Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O B S E S S Ã O
LÂMPADAS A CADA seiscentos metros ou mais iluminavam apenas com a luz de serviço a sombria galeria subterrânea que ligava as duas dúzias de prédios do Instituto Psiquiátrico Pearce. Meus passos ecoavam no piso de concreto. Mesmo na primavera, o cimento poroso das paredes ainda retinha o frio do inverno e gotas de água gelada pingavam do teto.
Abri uma porta e avancei pela densa penumbra. Pela primeira vez, eu não e levava trabalho para casa. Tinha um encontro com Annie Squires às oito no Casablanca, em Harvard Square. Sem falar do tempero mediterrâneo do lugar, Annie era uma acompanhante linda, cujo dia não fora gasto com a burocracia do hospital e cinco novas admissões. E esse nem fora um recorde para a Unidade Neuropsiquiátrica — certa vez, obtivemos nove admissões num só dia memorável, quase cinqüenta por cento da rotatividade. Mas cinco foram o suficiente para exaurir Gloria Alspag, a enfermeira-chefe, o que significava que nós também terminaríamos o dia exaustos.
Jantar com Annie era exatamente o antídoto de que eu necessitava. Tomaríamos uma garrafa de vinho tinto, talvez um Ridge Zin. Ela me contaria como havia sido seu dia — eu sabia que Annie planejara encurralar e entrevistar os sócios de um empresário milionário que o advogado Chip Ferguson defendia contra acusações de fraude. Talvez pudéssemos dividir um pudim de pão como sobremesa. Saborear um expresso. Voltar a minha casa para um cálice de Porto de um sabor generoso, quase achocolatado. Bom, mas não tão bom quanto o sabor de Annie. Senti um tremor só de pensar.
Caminhei ao longo da lateral do Rose Hall. O prédio aposentado — nosso eufemismo para "abandonado" — possuía uma fachada cor de tijolo e um belo pórtico de colunas brancas. Ainda que a maioria dos edifícios que adornavam a área com uma arquitetura heterogênea tenha sido construída na mesma época, cada um era único. Rose Hall era uma representação da antiga arquitetura grega, o prédio que abrigava a unidade neuropsicológica era em estilo vitoriano de muito mau gosto, com telhado de mansarda, e o prédio da administração assemelhava-se a uma villa italiana. Talvez os fundadores do instituto almejassem a diversidade arquitetônica — ou talvez fosse obra do Conselho, que nunca chegava a um consenso a respeito de nada. Eu mesmo já havia participado dele algumas vezes.
Pacientes e funcionários haviam-se mudado do Rose Hall desde que as unidades clínicas foram fechadas e começaram a surgir construções de concreto e vidro destinadas a pesquisas. Agora as janelas do primeiro andar estavam vedadas por tapumes. Uma das tábuas de madeira compensada fora pintada de branco com um X preto no centro, marcando o prédio para demolição.
A porta lateral estava parcialmente aberta. Quando me aproximei, pude ver que o cadeado fora forçado e a corrente pendia, balançando. Quando eu era garoto, a porta aberta de um prédio abandonado era para mim irresistível. Chamaria Danny Ellentuck e iniciaríamos uma exploração, desejando, fervorosamente, que o lugar se transformasse numa casa mal-assombrada.
Eu já não era criança. Empurrei a porta para abri-la mais e espiei o interior. Tentei não inalar o odor de mofo e putrefação. Escutei um ruído, como se alguma coisa fugisse às carreiras. Provavelmente roedores.
A porta rangeu quando a fechei, então resolvi chamar mais tarde a segurança para advertir que o prédio precisava ser vistoriado. Outra vez. O vandalismo era um problema constante no Pearce. Durante anos, discutimos a idéia de instalar um sistema de segurança no portão de entrada, mas fora o mesmo que cuspir no oceano. Qualquer um podia entrar no terreno e circular por onde quisesse, dentro do perímetro de dezesseis quilômetros.
Comecei a descer os degraus, que nada mais eram do que vigas de madeira enterradas na encosta da colina. Naquela manhã eu conseguira uma das últimas vagas no fim do longo estacionamento de duas fileiras. Agora havia mais vagas desocupadas do que ocupadas, e o lugar parecia um palco deserto. As sombras das árvores ao redor estendiam-se sobre o asfalto.
Escutei um rumor estridente e pensei ter visto um vulto atravessar o estacionamento. Agora a brisa sacudia as árvores e os arbustos. O Pearce tinha uma equipe de vinte funcionários cujo trabalho era manter as plantas em seus devidos lugares. Vesti meu casaco e ergui a gola. A primavera na Nova Inglaterra não significava calor.
Caminhei em direção ao meu carro, um Subaru WRX prata, novo em folha, que eu começava a odiar. Passei pelo Miata de Emily Ryan. Emily era a pós-doutoranda que eu orientava. Nos últimos meses, trabalhava meio período em parceria conosco. Bonito automóvel, pensei e me voltei para admirá-lo. A pintura vermelha parecia quase preta sob a penumbra. Não era tão sensual quanto um Corvette ou um clássico, como meu falecido Beemer 67. Senti uma pontada no peito ao lembrar daquele carro. Não havia razão para lamúrias. Ele fora destruído e nenhum suor, desejo ou dinheiro o traria de volta.
Sim, de fato, aquele Miata era muito legal. Imaginei se havia espaço suficiente para minha perna. Afinal de contas, que diabos eu fazia com um Subaru? Ao contrário do que diziam as revistas de carros, o WRX não era a maior sensação do novo século. Na minha opinião, o carro era de plástico e se movia tal como um brinquedo. O único consolo era a facilidade com que podia encontrar as peças de reposição.
Quando deslizei a mão sobre a lataria do Miata, senti algo estranho. A pintura não estava lisa como eu esperava. Abaixei-me para olhar melhor. Toda a extensão do lado do carona havia sido arranhada com a ponta de uma chave. Para algumas pessoas, suponho, um carro vermelho, novo e brilhante é tão irresistível quanto uma suculenta maçã.
Senti uma apreensão no peito. O dano era recente — anéis de tinta vermelha ainda aderiam às ranhuras da lataria.
Continuei onde estava, agachado. Quando se trata de seu próprio carro, esse é o tipo de coisa que provoca náusea e, logo depois, uma raiva dos diabos. Então você fica apavorado, e pergunta a si mesmo se foi acaso, se ganhou na rifa ou se foi pessoal — como se você fosse o alvo. Verifiquei o resto da pintura, os faróis. Um dos pneus traseiros estava arriado. Droga.
Atravessei o estacionamento e comecei a subir os degraus, já recalculando meu tempo. Emily provavelmente ainda devia estar em seu escritório. Eu a chamaria, ligaríamos para a assistência, e então eu teria de esperar até que o pneu fosse trocado e ela partisse em segurança. Ainda assim, eu chegaria a tempo no Casablanca para encontrar Annie.
Apressei-me pelo túnel e entrei no prédio. Subi os degraus dois a dois galgando os três lances de escada e bati à porta do enorme gabinete, onde acomodávamos os pós-doutorandos. Salas vazias eram um conforto escasso. Nenhuma resposta.
— Emily — chamei, batendo com mais força. Tentei a maçaneta. A porta estava trancada.
Talvez ela estivesse no andar térreo. Peguei o elevador e desci. Gloria olhou da sala das enfermeiras — o largo balcão rodeado de cavaletes, arquivos e um sortimento de cadeiras sem pares que nos servia de eixo e centro nevrálgico. O dia de Gloria deveria ter acabado às cinco, porém, levada pelo seu alto grau de responsabilidade, ela ainda trabalhava com a papelada a preencher e orientava o turno da noite por causa dos pacientes novos.
— Viu Emily Ryan? — perguntei.
— O que houve? — Gloria era baixa, mas vigorosa em seus cinqüenta e três anos, com cabelos bem curtos e óculos. Muito pouco passava por ela despercebido.
— Quando saí para pegar meu carro notei que um dos pneus do carro dela está murcho.
— Do carro novo?
Como eu disse, muito pouco passava despercebido por Gloria.
— Sim. E alguém arranhou a pintura com uma chave. Gloria pareceu ultrajada.
— Que horror. A segurança... — ela disse com desdém —, aposto que eles estavam em algum lugar distribuindo cupons de estacionamento. — Para Gloria era um sofrimento atroz que cinco vagas perfeitas ao longo do nosso prédio possuíssem placas de NÃO ESTACIONE. — Emily saiu há cerca de quarenta e cinco minutos. Vestia trajes de correr. Carregava também a valise e a roupa de trabalho.
Quarenta e cinco minutos. Ela provavelmente havia jogado os pertences no carro, alongado os músculos e fora correr numa das trilhas que serpentiam a mata e atravessam os gramados do Pear-ce. Talvez estivesse voltando ao carro agora mesmo. Poderia facilmente não ver o pneu furado, seguir para casa e ser obrigada a parar no acostamento; podia até danificar a roda.
Agradeci a Gloria, corri pela escada e precipitei-me pelo túnel. Tinha acabado de atingir o topo dos degraus quando ouvi um som semelhante a alguém batendo palma uma única vez, e então um grito de mulher reverberou pela noite, provocando-me arrepios nas costas.
— Seu maldito, filho da mãe miserável — Emily gritou afastando-se do carro. Com o movimento brusco, tropeçou nos próprios pés.
O estacionamento agora estava imerso em sombras. Não consegui enxergar nenhuma outra figura. Com quem ela falava?
— Seu cretino. Oh, Deus, afaste-se de mim.
— Emily! — gritei, descendo os degraus.
— Fique longe — ela berrou. Correu pelo estacionamento, chegando a um aglomerado de bétulas no final do terreno.
— Emily, sou eu, Peter — gritei, agitando os braços.
Ficou paralisada por um momento. Então, correu em minha direção e atirou-se em meus braços, quase me derrubando.
— Meu Deus, ele está aqui — disse, soluçando e tremendo. — Alguém está... — Ela teve um sobressalto. — Você escutou isso? Ali. Nos arbustos?
Abraçava-me com força. Senti o odor de suor e algo mais, como o interior de uma lata de conserva. Medo.
— Seja quem for — esbravejei naquela direção —, a festa acabou. Suma daqui. Pare de perturbá-la.
Emily agarrou-se a mim tenazmente. Cachos dos seus cabelos negros tinham se soltado do rabo-de-cavalo e colavam-se ao suor da nuca. Embora pequena e delicada, Emily era tudo, menos fraca. Podia mover-se depressa. Os ombros e os músculos das costas se contraíam sob o top de malha elástica enquanto ela se colava a mim.
Consegui pegar meu celular e ligar para a segurança. Atenderam no segundo toque. Pedi que enviassem alguém imediatamente.
Com meu braço ao redor dela, acompanhei Emily até o Mia-ta. Ela ergueu a mão trêmula e colocou-a sobre a porta aberta, do lado do carona. Seu rosto tornou-se branco como giz.
— A porta estava aberta quando voltei — disse. Inclinou-se para dentro do carro e tateou o chão, o assento. — Ele levou... Oh, Deus, nem sequer sei o que levou. Algumas peças íntimas. E acho que deixei um brinco no banco.
Uma fúria impotente crescia em meu peito. Os arbustos rodeando o estacionamento estavam agora no escuro. Estaria ele à espera entre as sombras? Escondendo-se no Rose Hall? Ou teria chegado antes e também me observado?
— Oh, não — Emily murmurou ao tocar o local onde a chave riscara a pintura do carro.
— O pneu traseiro à direita também está murcho — eu disse. Ela gemeu.
Uma das vans brancas da segurança do Pearce parou no estacionamento. Um oficial desceu, as chaves tilintando de uma argo-la presa às calças. Enfiou os dois polegares no cinturão e deu-lhe uma volta completa, depois que Emily contou o que havia acontecido. Então, acendeu uma lanterna e percorreu o perímetro do estacionamento, iluminando as árvores e os arbustos.
— Acho que ele estava ali — eu disse, indicando o local de onde Emily dissera ter escutado o ruído.
O guarda se embrenhou com dificuldade nos arbustos. Verificou as proximidades, esquadrinhando a área com o foco da lanterna. Alguém ou alguma coisa que estivesse lá, já estaria alerta e a essa altura teria se escondido.
Ao reaparecer o guarda tirou o boné e coçou a cabeça.
— Não encontrei ninguém. Vimos rastros de coiotes, mas de semanas atrás.
Era como se estivesse falando do Oeste selvagem, e não do subúrbio de Boston.
— Coiotes não usam chave para riscar carros nem esvaziam pneus — eu disse. Sugeri-lhe que desse uma busca em todo Rose Hall. A porta lateral fora arrombada.
Ele pegou um bloco de papel e anotou. Então, tirou o walkie-talkie do cinto.
— Acho melhor avisar a polícia.
— Não, por favor — Emily pediu, ainda mais pálida quando levou a mão ao pescoço.
O guarda e eu a encaramos, incrédulos.
— Devem ser garotos da vizinhança — ela disse. — É sério, não quero incomodar a polícia. Eles farão um estardalhaço por causa disso.
— Mas... — o guarda começou a protestar. Ela tocou-lhe o braço.
— Você entende, não? Ele a fitou, incerto.
— Emily, sabe o que está fazendo? — perguntei. Por que, de repente, ela minimizava o terror que sentira?
— Serei mais cuidadosa — ela nos garantiu. — Mandarei instalar um alarme. Trocarei a fechadura.
O guarda pôs de volta o walkie-talkie no cinto.
— Você ao menos fará um relatório interno? — perguntei ao homem.
Ele assentiu.
— Quanto à senhorita, sugiro que corra durante dia claro. E talvez seja aconselhável usar um apito.
— Senhorita? — Emily resmungou, enquanto o observávamos partir. — Que idiota. — Pegou uma malha no chão do carro e vestiu-a. Então, cruzou os braços num gesto defensivo. — Por que isso está acontecendo comigo?
Liguei para o socorro e pedi que enviassem alguém para trocar o pneu.
— Por que não quis chamar a polícia? — perguntei, enquanto esperávamos.
— Não quis fazer alarde. Piorar a situação.
Piorar a situação? Estava prestes a fazer tal pergunta quando meu celular emitiu um sinal. Havia uma mensagem. Oh, não, pensei, sobressaltado. Havia perdido completamente a noção do tempo. Annie já devia estar me esperando no restaurante há vinte minutos. Não tinha uma boa explicação para não ter me lembrado de ligar para ela. Nem pensei nisso.
Digitei o número da caixa postal. A mensagem era de Annie, sim... mas não o que eu esperava ouvir: "Peter, desculpe o atraso. Fiquei presa no trabalho e perdi a hora", Annie disse. "Pode jantar sem mim. Não conseguirei chegar a tempo no restaurante. Telefono mais tarde para sua casa."
A princípio, senti alívio. Pelo menos, Annie não estava sentada no restaurante, imaginando onde diabos eu me metera. No instante seguinte, fiquei irritado, embora soubesse não ter esse direito. Superada a irritação, veio a preocupação. Annie não costumava se atrasar e, muito menos, faltar a um encontro comigo.
Liguei para ela. Tentei sua casa, o escritório e o celular. Nos três lugares deixei a mesma mensagem: "Não se preocupe com o jantar. Ligue-me."
— Quer que eu a acompanhe até em casa? — Perguntei a Emily depois de trocado o pneu.
— Não. Estou bem. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou meu rosto. — Obrigada.
— Não precisa agradecer — eu disse.
Quando abri a porta do motorista, senti um estranho odor de amêndoa doce. Um recipiente de creme para as mãos caíra aberto ao lado do pedal do acelerador e uma quantidade do seu conteúdo sobre o tapete preto. Agachei-me para procurar a tampa. Ia contar a Emily o que havia encontrado, mas as palavras morreram em minha garganta. Ao longo do painel, em finas letras brancas, alguém havia escrito PUTA em garrancho.
NA MANHÃ SEGUINTE cheguei tarde ao trabalho. Ainda não tinha conseguido localizar Annie. Saí apressado do carro, subi os degraus que levavam ao túnel, mal registrando o lindo dia de primavera — o ar exalava odor de água fresca e as árvores se cobriam daquelas impressionantes folhas cor de lima que duravam somente até a primeira onda de calor.
Esperava que Emily tivesse conseguido dormir um pouco. Perguntei-me se estaria disposta a trabalhar com pacientes. Pensar que alguém está lá fora para pegar você, seja verdade ou não, pode trazer conseqüências traiçoeiras. Eu sabia disso por experiência própria.
Uma rajada de ar quente e úmido recebeu-me quando abri a porta da unidade. As paredes rosadas do térreo pareciam flamejar como carne superaquecida. Não era o ar-condicionado que estava quebrado. O sistema de aquecimento nunca sabia quando parar. Subi a escada que dava acesso ao primeiro andar e entrei na unidade.
Esgueirei-me até a pequena sala atrás da enfermaria e me servi uma xícara de café. A correspondência ainda não havia chegado. A planta de Gloria, um filodendro que quase morrera meses antes, agora estava verdejante. Carinhosamente conhecida como Audrey, seus cachos floríferos tombavam do pote, subiam e se espalhavam pela janela e ao redor do espelho. Entre as folhas em formato de coração, meus próprios olhos revelaram inquietação quando se viram sob um emaranhado de sobrancelhas negras com alguns fios brancos. Ajeitei o nó da gravata e limpei meus óculos.
Percorri o corredor, cujo pé-direito era de quase três metros, e cruzei a sala comum onde o sol penetrava pelas janelas, que iam do teto ao chão, atrás do antigo piano. Era um local que merecia um sofá vitoriano de veludo vermelho e poltronas do mesmo estilo, para damas e cavalheiros. Em vez disso, havia sofás de vinil, cadeiras de plástico, uma estante de fibra e uma TV de tela grande. E nas janelas, redes de malhas — os atuais substitutos das grades que o hospital psiquiátrico usava.
— Se não é o herói do momento — anunciou meu colega e consultor de moda residente, dr. Kwan Liu, quando cheguei à sala de reuniões. Estava elegante como sempre, num terno carvão feito sob medida, com gravata vermelha e cabelos pretos brilhantes. — Soube que você socorreu uma donzela em perigo ontem à noite.
— Não ligue para ele — disse Gloria. — A segurança mandou uma circular pedindo a todos que fiquem alerta para qualquer intruso. O que aconteceu?
Contei a Kwan e a Gloria como encontrei Emily no estacionamento; como seu carro fora danificado e quão apavorada ela estivera, convencida de que alguém a estava ameaçando entre as sombras.
— Alguém a está perseguindo. — Gloria pronunciou as palavras num sussurro.
— Você acha? — Kwan perguntou.
— É o que parece — respondi. — Alguém entrou no carro dela. Escreveu "puta" no painel e pegou alguns objetos, roupas íntimas e um brinco.
— Que medo — disse Gloria, tocando uma das argolas de ouro nas orelhas. Ela raramente usava jóias. E parecia até mesmo ter passado um pouco de batom nos lábios. — Emily está bem?
— Está — uma voz respondeu à entrada. Era Emily Ryan, apoiando a cabeça no batente da porta. Usava um conjunto azul-marinho, com o terno abotoado, formando um decote em V. A roupa fazia um contraste sombrio com os cabelos amarrados em rabo-de-cavalo. Considerando o Miata, os trajes bonitos, e toda uma bela aparência americana, podia-se pensar que Emily viera de alguma região rica de Connecticut. Mas não. A cicatriz no queixo e outras no braço eram os únicos traços visíveis de uma infância tortuosa na Califórnia. O pai dela, caminhoneiro, estivera a maior parte do tempo ausente, enquanto a mãe se esfolara para manter todos alimentados. De algum modo, Emily havia manobrado para ajudar a si mesma, e conseguira estudar.
Sorriu, mas não o suficiente para revelar as covinhas que possuía nos dois lados do rosto. O semblante parecia ainda mais pálido nesse dia, com manchas escuras sob os olhos. Emily entrou na sala e acomodou-se à mesa.
— Você conseguiu dormir? — perguntei.
— Quer um café? — Kwan ofereceu.
— Tem certeza de que está bem? — Gloria perguntou.
— Escutem, vocês são ótimos — Emily disse, olhando para cada um de nós e sorrindo — e agradeço a preocupação. Mas posso cuidar de mim mesma.
— Ninguém está dizendo que não pode — Gloria afirmou. — Formamos um time aqui. Se um de nós se machuca, todos assumimos o problema.
— Não pode realizar esse tipo de trabalho se estiver com medo — Kwan acrescentou.
O sorriso de Emily desapareceu.
— Até agora estou dando conta do recado.
— Não foi a primeira vez? — Gloria indagou. Emily mirou a mesa e meneou a cabeça.
Gloria aproximou a cadeira e colocou o braço ao redor dela.
— Há quanto tempo?
— Algumas semanas. Talvez uns dois meses.
Uns dois meses? Perguntei-me por que ela não mencionou o fato a mim ou ao segurança na noite anterior.
— Recebo telefonemas tarde da noite. Acho que alguém está me seguindo até a garagem do laboratório de IRM. Às vezes, peço a um dos colegas de lá que me acompanhe até o carro.
Era perturbador. Emily trabalhava parte do tempo conosco, e parte em companhia de outros colegas, fazendo pesquisas no laboratório de imagem por ressonância magnética na Central Square. Quem quer que a estivesse espreitando, é certo que a seguira até lá também.
Emily levantou-se, foi à janela e olhou para fora.
— É tão irritante. Odeio ter de mudar minha vida por causa disso. Eu costumava correr até Fresh Pond, mas a metade do trajeto é bastante isolada. Percebi que se ele estivesse por ali, eu estaria perdida. Ele me pegaria e... — Emily estremeceu. — Por isso comecei a correr aqui no Pearce. Achei que, devido ao movimento intenso, haveria mais segurança. Ora, seu carro é guinchado em trinta segundos, se você estaciona onde não deve. — Ela mordeu uma lasca de unha. — Eu me sentia segura.
Já não parecia sentir-se segura. Nesse momento, mostrava-se frágil e vulnerável, uma garota vestida em roupas de adulto.
Kwan massageava o queixo e escutava. Gloria esticou o braço e apertou a mão de Emily.
— Tem alguma idéia de quem possa ser? — perguntou. — Seu ex?
— Kyle não faria isso. De jeito nenhum.
— É alguém com quem rompeu uma relação? — perguntei.
— Sim. Há alguns meses.
— Foi quando tudo isso começou? — Gloria deduziu.
— Foi, mas Kyle? Não acho que ele seja desse tipo.
Que tipo de pessoa se divertia seguindo uma mulher? Estragando seu carro? Roubando seus pertences? Eu sabia o que a literatura a respeito dizia. Na maioria das vezes, o perseguidor era um ex-companheiro que não podia aceitar o término do relacionamento. Ou um pretendente cujas investidas haviam sido desdenhadas. Celebridades eram perseguidas por fãs ardorosos. E, como o resto de nós que trabalhava no campo da saúde mental, Emily exercia uma função que lhe impunha, acima da média, o risco de cruzar o caminho de um indivíduo capaz de criar um vínculo obsessivo.
Eu nunca fora perseguido por um paciente, mas já o tinha sido por um homem que ajudei a defender. Ralston Bridges foi a julgamento por assassinar uma mulher que ele conhecera num bar. Quando sugeri alegar insanidade mental, ele avançou sobre mim, bateu o punho na mesa e urrou:
— Não sou louco. Ninguém me acusa de insano e sai ileso. — Em seguida, Bridges interrompeu a emoção tal como se ela saísse de uma torneira. Então dissera, com a confiança suprema de quem uma vez escapara da acusação de assassinato e esperava fazê-lo novamente, que ninguém precisava convencer os jurados de que ele era louco.
Tinha razão quanto a isso. Após seis horas de deliberação, os jurados declararam Ralston Bridges inocente. Haviam acreditado no seu rosto pueril de olhos azuis e nas suas mentiras. Quando foi solto, Bridges seguiu minha esposa, Kate, e eu, e estudou nossas rotinas para saber quando ela estaria em casa sozinha. Ele, então, invadiu minha casa e conseguiu sua vingança, matando Kate.
Eu já podia falar desses detalhes de forma natural, mantê-los a distância como uma história acontecida a outra pessoa. Mas o sentimento de devastação, de perda catastrófica, ainda podia me surpreender quando eu menos esperava.
Sentia-me contente por ter acudido Emily. De minha parte, eu levava qualquer tipo de perseguição muito a sério — quem podia afirmar que o perseguidor se satisfaria apenas assustando-a?
Nossa assistente social e a musicoterapeuta chegaram, seguidas logo depois pelo fisioterapeuta e pelo terapeuta ocupacional. Cada um tomou seu lugar à mesa e iniciei a reunião sobre as rondas da manhã. O ritmo dessa rotina diária, em que revíamos os pacientes da unidade, fez o trauma da noite anterior parecer distante.
Após a reunião, encontrei Emily no corredor. Estava próxima a Gloria, de braços dados com ela.
— Você está muito chique hoje — Emily disse a Gloria. — Bonita roupa. — Além das argolas de ouro, Gloria usava uma blusa de seda branca em vez da usual camisa Oxford com a calça escura. — Tem um encontro? — perguntou, em tom de brincadeira.
Glória deu uma risada e olhou para os lados, como para ver se alguém escutava.
— Vou almoçar com Rachel — respondeu. Rachel era a companheira de Gloria. — É nosso quinto aniversário.
Ainda bem que não se tratava de uma entrevista de emprego. Gloria, aliás, podia muito bem escolher qualquer colocação no Pearce ou em outro hospital psiquiátrico. Boa parte da ordem e da salubridade do setor dependiam dela.
— Nenhuma rosquinha hoje? — Emily perguntou, batendo no estômago de Kwan quando este passou rapidamente. — Você está muito esbelto.
Kwan parou, sorrindo.
— Bem, fico feliz que alguém aqui tenha notado — ele disse, olhando para mim.
Tive de admitir, Kwan estava menos barrigudo. Um mês atrás eu zombara dele, dizendo que deveria afrouxar o cinto da calça. E o paletó agora abotoava confortavelmente — lembrei-me de quão justo estava na altura da barriga.
— Claro que notamos — eu disse. — Somos apenas educados.
— Perdi quase seis quilos — Kwan contou, orgulhoso de si.
— Por isso você anda de tão bom humor.
— Tenho sido um príncipe — disse, e se afastou.
Agora estávamos somente eu e Emily no corredor. Ela tirou uma caixinha de chiclete do bolso e me ofereceu um.
— Não, obrigado — recusei. Odiava tutti-frutti.
— Isso me ajuda a não fumar — ela explicou. — E, cara, eu adoraria acender um cigarro agora. — Ela pôs na boca a goma de mascar.
— Sente-se bem para trabalhar com pacientes? — perguntei.
— Creio que sim. Vou atender o sr. Black ao final desta manhã. Fora isso, nada com que eu não possa lidar.
O sr. Black era um paciente clínico que Emily começara a tratar antes de iniciar a parceria conosco.
Peguei minha agenda e verifiquei meus compromissos.
— Talvez eu possa observá-los. Acredito que você ainda sinta os efeitos do que aconteceu ontem à noite. Ter uma retaguarda não lhe faria mal algum.
Emily percebeu que eu não lhe pedia permissão. Como seu supervisor clínico, era meu trabalho garantir que ela tivesse a supervisão de que necessitava.
— Na verdade, seria ótimo. Talvez você possa me dizer se ele está indo a algum lugar ou se ambos estamos derrapando.
Fechei-me na sala atrás da enfermaria, servi-me de outra xícara de café e liguei para a casa de Annie. Nenhuma resposta. Então, tentei o escritório.
— Ferguson e Associados. Investigações Squires — disse a voz familiar da secretária eletrônica. Eu havia feito várias avaliações forenses para o sócio dela, o advogado Chip Ferguson, analisando o estado psiquiátrico dos réus. — Se conhece o ramal... — Apertei o número.
— Annie Squires. — A voz de Annie soou afobada, como se tivesse atendido a ligação no caminho para sair.
— Está ocupada?
— Na verdade, estava de saída. Lamento muito ter faltado ao jantar de ontem.
— Pelo menos você ligou. Não se preocupe com isso. Nem sequer fui ao restaurante. — Contei a Annie o que acontecera.
— Você chegou a ver alguém?
— Não, mas estava escuro. Fiquei com ela até o socorro chegar.
— Perseguição não é algo com que se deva brincar.
— Foi o que eu disse a ela. Não percebi que era tão tarde até escutar sua mensagem.
— Que estranha coincidência. Nós dois faltamos a nosso encontro.
— Onde você estava? — perguntei.
— Tive uma emergência familiar. Depois lhe conto tudo. Preciso sair agora mesmo.
— Parece que está muito ocupada.
— Você nem imagina. Após tantos meses lutando para pagar o aluguel, os negócios estão desabrochando.
— E hoje à noite?
— Ocupada. Que tal amanhã à noite? Ficarei com fome até lá.
— Estou com fome agora e nem sequer precisamos jantar — eu disse.
— Agüente firme. Podemos jantar em minha casa? Às oito?
— Você vai cozinhar?
— Eu disse isso? Estava pensando em comprar comida chinesa. Ou pedir uma pizza.
Não me importava o que comeríamos. .
— Levarei a cerveja — prometi. Eu era um obstinado bebedor de vinho antes de Annie me ensinar os aspectos positivos da cerveja. Pensei também em levar flores.
Desliguei. Nunca dei flores a Annie. Sorri, lembrando-me das margaridas que ela me oferecera quando torci o tornozelo ao engalfinhar-me com um homem que se revelara um assassino. Muito tempo depois das margaridas, finalmente fizemos amor. Isso acontecera meses atrás, mas ao lembrar ainda podia sentir meu pênis enrijecer e um sorriso curvava meus lábios.
Depois do assassinato de Kate, toda a minha paixão pareceu secar. A comida não tinha mais sabor. Troquei o Bordeaux pelo uísque. Enterrei-me no trabalho. Levei quase dois anos para começar a recuperar os sentimentos.
Ainda estava me acostumando aos sentimentos recentes. Desejo. Eu o saboreava.
QUANDO RETORNEI a minha sala, encontrei um bilhete pregado à porta: "Sessão com o sr. B. às 11." Estava assinado "E". No topo do papel, havia a impressão: LAPSOS FREUDIANOS. Simpático.
Pouco depois das onze entrei na área de observação e me sentei. Através do espelho pude ver uma sala do mesmo tamanho daquela em que me encontrava. O espaço era anônimo, mas agradável, com um abajur de mesa e a cópia de uma paisagem impressionista. Um vaso de íris e narcisos artificiais repousava na mesa de café, e entre as flores havia um microfone, conectado aos alto-falantes na parede da sala onde eu estava.
Permaneci ali, no escuro, com as luzes apagadas. Emily estava na sala de atendimento, do outro lado do espelho de observação. Sentava-se, com as pernas cruzadas, numa cadeira de braços; a luz do dia entrava pela janela atrás de sua cadeira.
Diante dela estava o sr. Black. Homem de meia-idade, com os cabelos penteados para trás, rosto e barriga rechonchudos. Ele rascunhava num caderno equilibrado sobre as pernas.
— Sabe, o senhor não poderá mais fazer isso, se for levar adiante a operação — Emily apontou.
Ele ergueu a caneta e olhou para o próprio braço.
— Aprenderei a escrever com a outra mão.
— O que está escrevendo?
— Só um lembrete para mim mesmo, de um monte de coisas que preciso fazer: procurar meu passaporte, comprar um livro de expressões em espanhol. — Ele fechou o caderno. — Estou esperando ser chamado. Às vezes, eles recebem um cancelamento e você tem de ir para lá imediatamente.
Eu suspeitava de que recebiam muitos cancelamentos de última hora — pacientes fantasiavam a amputação de um membro, mas desistiam quando chegava o momento da verdade.
— A cirurgia vai salvar minha vida.
— E um grande passo.
— Acha que não sei disso? Não é uma decisão repentina — disse, colocando o caderno ao longo de sua cadeira. — E como eu disse, trata-se de se tornar inteiro, não desabilitado. — Olhou para o braço como se aquele fosse um pedaço de carne com validade vencida. — Sinto que tenho esse... esse objeto alienígena ligado a mim.
— E se algo acontecer e a operação falhar? Ele sorriu, matreiro.
— Não se preocupe. Não vou me deitar sobre os trilhos do trem.
Era um pensamento brutal, mas lembrei-me de ter lido acerca de um homem cuja obsessão era amputar as próprias pernas. Incapaz de encontrar um médico que realizasse o serviço, ele deitou-se sobre os trilhos e deixou que o trem fizesse o resto. Até sobreviveu para contar sua história.
Embora a obsessão pelo membro amputado fosse rara, a sín-drome tinha um nome: apotenofilia. O termo foi criado por um especialista em sexualidade no Johns Hopkins. As vítimas de apotenofilia, ele escreveu, queriam cortar um dos membros para que pudessem ter melhor desempenho sexual. O sufixo filia entrou na categoria dos distúrbios sexuais, vistos pelas pessoas comuns como perversões. Emily e eu havíamos discutido sobre o diagnóstico que se adequaria ao caso do sr. Black. Para nós, o modo como ele falava do desejo de amputar parecia referir-se mais ao corpo errado — dismorfia corporal — que ao desejo sexual.
— E como acha que serão as mudanças depois da operação? — Emily perguntou.
— Muito melhores. Infinitamente. Com isso — ele esticou um braço perfeitamente normal em aparência —, sei o quanto pareço estranho. — O sr. Black cruzou o outro braço sobre aquele que desprezava.
— Então, acha que seu braço o deixa deformado?
— Ele não pertence a meu corpo.
— Entendo.
— Não me sinto bem, e é só nisso que penso. Custou-me meu casamento. Meu emprego.
— Seu patrão o despediu por causa do braço?
— Sim.
— Foi o que ele disse?
— Não, claro que não.
— O que ele disse?
— Umas bobagens a respeito de habilidades inadequadas para o trabalho. Não engoli nada disso.
— Ele lhe ofereceu um treinamento? O sr. Black deu de ombros.
— A questão não foi essa. Eu teria conseguido aprender a mexer naquela porcaria de computador. Foi por causa disso, não daquilo.
— Mas eles o promoveram no passado.
— Por pena. Nada mais. Sentiram pena de mim e, por isso, me deram a promoção. Mas sei a verdade. Ninguém suporta olhar para mim. Nunca tive um relacionamento saudável com ninguém. Por isso minha mulher me abandonou. Como ela faria amor com alguém tão deformado quanto eu? Não, enquanto eu tiver essa coisa que não me pertence. Sinto uma sensação sufocante de desespero, às vezes. — Olhou rapidamente para Emily e desviou o olhar. — Não quero morrer, mas há momentos em que não desejo continuar a viver num corpo que não sinto como meu.
— Lamento... — Emily começou.
— Não preciso de sua piedade — ele rebateu. — Só preciso consertar o que está errado em mim. E muito simples. Para que tanto drama?
— Pense no significado de tudo isso — Emily sugeriu. — Se cortar o braço, não poderá mais escrever, apertar a mão das pessoas.
Ele piscou, como se não soubesse o que responder. Então, pareceu olhar diretamente para mim com expressão de repulsa. Percebi que ele fitava a si mesmo no espelho.
— Se eu tivesse um nariz grande, ninguém questionaria minha decisão de operá-lo. E quanto àqueles artistas de Hollywood que mandam sugar metade do corpo? Meu irmão esfrega Rogaine no couro cabeludo todos os dias e ninguém diz que ele é louco.
— São situações diferentes, e creio que sabe disso.
— Meu irmão, aliás, sugeriu que, em vez de uma amputação, eu talvez precisasse de um carro novo. Depois do divórcio, ele comprou um Hummer. — O sr. Black girou a cabeça para estalar o pescoço. — A senhora tem um Miata vermelho. Não é a mesma coisa?
Emily ficou boquiaberta. Parecia estar sem palavras. Corrija o curso da sessão... tentei telegrafar em pensamento. A terapia é para tratar do paciente, não do terapeuta. Aquela era uma resistência clássica. O sr. Black usava aquele comentário para desviar a atenção da terapeuta. O pensamento seguinte não me ocorreria, se Emily não fosse vítima de uma perseguição: como diabos o sr. Black sabia que ela possuía um Miata vermelho?
— Tem certeza de que é isso que deseja? Não poderá mudar de idéia depois.
— Sei o que quero. Sei disso desde os sete anos. Ainda lembro a primeira vez que vi um homem com um braço só. Foi como se uma luz se acendesse em minha cabeça.
— O senhor tinha sete anos.
— Foi quando descobri por que todos me olhavam. Era meu braço. Não me pertencia, e os outros podiam ver isso tão claramente quanto eu. Não vejo a hora de resolver esse problema e retomar minha vida. Começar a viver.
— Conversou com seus parentes sobre isso? — Emily perguntou. — Ou com um professor?
— Claro que não. Eles me encarariam ainda mais. — Houve uma pausa. — Como a senhora está fazendo agora.
Emily cruzou as pernas para o outro lado.
— Estou tentando entender por que odeia tanto seu braço. O sr. Black inclinou-se para a frente. Agora ele fitava as pernas
de Emily.
— É fácil falar, pois a senhora tem um corpo bonito.
Ela moveu o bloco de anotações para que este cobrisse um pouco o joelho exposto. O sr. Black recuou.
— Uma coisa mudou. Pelo menos, agora sei que não estou sozinho.
Ele então falou das pessoas que conheceu pela Internet, homens e mulheres que queriam amputar partes de si mesmos. Um homem já havia retirado uma perna e alegava sentir-se renascido, em paz pela primeira vez. Uma mulher removeu quatro dedos de uma das mãos e aguardava cirurgia na outra mão.
O sr. Black mostrou a Emily onde queria que o cirurgião cortasse, precisamente cinco centímetros abaixo do cotovelo. Então, tudo ficaria melhor. Poderia procurar um emprego com mais ânimo. Entrar novamente em contato com a filha, que mal conhecia. Expor-se em público, sem se sentir um leproso.
A sessão terminou e o sr. Black levantou-se para sair. Pegou o caderno. Emily apertou-lhe a mão e deteve-se um instante, tocan-do-lhe o antebraço. Pareceu não notar o horror do sr. Black.
— Eu verei o senhor amanhã à noite, no laboratório?
Ele assentiu com o olhar fixo no braço que Emily tocava. Limpou a garganta.
— A senhora já me deu o endereço.
— Certo. Pare seu carro no prédio. Se alguém perguntar, diga que tem uma consulta com o dr. Shands.
Quando ela o soltou, uma expressão de alívio invadiu o rosto do sr. Black. Ele tropeçou ao sair da sala.
Após a sessão, Emily e eu fomos até minha sala para conversar. Ainda em pé, ela esquadrinhou as paredes. Seus olhos brilharam ante meu pôster das Vinhas de Provence. Apontou um desenho do cérebro, feito a lápis, e me olhou com ar questionador.
— Eu o fiz aos oito anos. Minha mãe mandou emoldurar o desenho quando terminei meu doutorado em neuropsicologia.
Emily sorriu, admirada, e meneou a cabeça.
— Você é impressionante. Sabia desde o início o que queria fazer. Eu ri.
— Quem sabe? Ela guardou todos os meus desenhos. Se tivesse me tornado astronauta, ela colocaria num quadro um dos meus foguetes espaciais. Um rebatedor de beisebol? Desenhei uma temporada inteira do Yankee Stadium.
— Jogou beisebol?
— Mais ou menos. Não havia campos de beisebol em Flat-bush. Portanto, tínhamos de nos virar no terraço das casas. Eu usava uma Spalding — disse, pronunciando Spaldeen. — Você sabe, aquela bola de borracha rosa.
— Que fascinante. E? — Emily perguntou, encarando-me, o queixo apoiado no punho.
— Quer mesmo saber? — Ela assentiu, com os olhos arregalados. Fazia séculos que não pensava em beisebol, embora eu tivesse jogado com Danny Ellentuck todos os dias depois da escola. — Você joga a bola do terraço e o parceiro tenta agarrá-la. Um lance é um single, dois, um duplo. Se pegar a bola no ar, você está fora. Após três erros, troca de lugar e a outra pessoa arremessa a bola. O verdadeiro objetivo do jogo é atingir a extremidade do degrau do terraço porque assim a bola voará e você conseguirá fazer um home run. *1
Emily deu um sorriso apreciativo.
— Onde passei minha infância não havia terraços nem campos de beisebol.
Pegou uma fotografia antiga sobre minha valise. Uma foto em preto-e-branco de uma mulher de preto com o semblante sofrido e cabelos longos esvoaçantes. Ela parecia fundir-se a um tronco sinuoso e aos galhos de uma árvore. As linhas ondulantes combinavam natureza e mulher numa forma única.
— Uma paciente me deu essa foto — contei. — Ela sabia que eu gostava do trabalho de Annie Brigman.
— É uma imagem bela e perturbadora.
— Creio que esse foi o motivo por que não a usei. De maneira nenhuma eu queria que os pacientes tivessem isso diante deles quando estivessem em terapia. — Fiz uma pausa. — É assim que deve acontecer a terapia. Por isso, o consultório é tão neutro. O paciente deve lidar com o que ele traz à sessão, não com o que penduramos na parede ou com o que trazemos de nós mesmos.
Emily sentou-se numa cadeira. Virou a cabeça de lado, atenta ao detalhe.
— Está dizendo que levei algo de mim mesma à sessão de hoje? Abaixei a cabeça ao passar pelo teto rebaixado e sentei-me à
escrivaninha, de costas para a janela.
— Notei que você tenta manter certa distância terapêutica. Isso é bom. Mas apertar a mão do sr. Black e segurar o braço dele como você fez... o gesto o deixou desconfortável.
— Mas eu só estava... — Emily começou. Respirou fundo e reiniciou. — Yalom diz que os terapeutas deveriam tocar o paciente durante cada sessão. O toque faz o paciente sentir-se valorizado.
— Sei, há profissionais que defendem o aperto de mão quando o paciente chega e quando vai embora. Não é inadequado. Mas tocar um homem com esse distúrbio em particular talvez seja forçar a barra. Para ele, pode ser uma intrusão tão indevida quanto seria, no seu caso, receber do seu terapeuta um tapinha no seu traseiro.
Ela engoliu em seco.
— Acha que eu o aborreci?
— Ele definitivamente reagiu. É difícil determinar se ele entendeu o gesto como uma intrusão agressiva, uma abertura sexual ou apenas uma demonstração amigável. — Pousei meus cotovelos na mesa e cruzei as mãos. — Você quer ser uma presença neutra e lidar com os mishigas dele, não com os seus.
— É claro. Está absolutamente certo. Creio que gosto de tocar as pessoas. E nem sempre é o certo a fazer. — Emily escreveu em seu bloco de notas. — Ainda bem que você chamou minha atenção. É algo que preciso observar.
Era gratifícante trabalhar com uma pós-doutoranda que não se tornava defensiva diante de um feedback construtivo. Que realmente anotava as sugestões. Que sabia não ter chegado àquela rotatividade sabendo todas as respostas.
Quando se inclinou em minha direção, o decote abriu um pouco. Vi de relance a pele e uma combinação bege mostrando que Emily não usava sutiã sob a roupa íntima.
— E... —Tentei me lembrar o que ia dizer. —Tudo que você faz, o que veste...
Ela puxou a barra da saia.
Eu precisava dizer mais. Mas como fazê-lo sem parecer um devasso ou um puritano?
— Tem de ser cautelosa quanto aos sinais que está passando — disse eu, erguendo as sobrancelhas e olhando para o decote enquanto tocava meu peito. — Pode estar estimulando o tipo errado de atenção.
Funcionou. Emily olhou para baixo e recuou.
— Não percebi...
— Qualquer paciente vai reparar. Alguém como o sr. Black, com dismorfia corporal, ficará vidrado. Ele já fez um comentário acerca de seu corpo. É como ter um sino badalando na sala, provendo uma fonte constante de interferência.
— Lógico, você tem razão. — Emily me olhou. — Que falta de consideração a minha. Acha que por isso não tenho ido a lugar nenhum com ele? Tento atingi-lo para examinar outros aspectos de sua vida, sua personalidade, quando teve sua primeira ereção... e ele sempre volta ao "Preciso tirar meu braço".
— Essa é a resistência clássica. Você toca o ponto sensível e ele se torna intratável. Ele redireciona o diálogo.
— Toda vez. Preciso tirar meu braço. É como um mantra que ele fica entoando para mim. — Emily olhou, ansiosa, para o de-cote. O casaco continuava no lugar.
— Estou certo de que há mais na resistência dele do que nas roupas que você usa — apontei. O que um terapeuta veste podia ser facilmente corrigido, uma vez que ele ou ela esteja ciente do fato. — Tive um paciente obsessivo que me deixava louco. Repetia sempre a mesma ladainha quanto à vida infeliz que tinha. Nada que eu fizesse podia mudar sua perspectiva. Com obsessivos como esse, a intensidade é tamanha que, por mais lógico que seja, você perde.
— Esse é exatamente o sr. Black — Emily disse. — Lembra-se de que conversamos a respeito de a obsessão dele ser de origem orgânica?
Era uma idéia interessante que Emily começara a investigar. A princípio, descartei a noção de que algo no cérebro do sr. Black lhe dizia que deveria amputar um braço. Então, reconsiderei. Por que não? Pessoas com a síndrome do membro fantasma continuavam a experimentar sensações num braço ou perna muito tempo depois de o membro ter sido amputado. Havíamos especulado sobre até que ponto isso poderia ser mostrado por uma ressonância magnética. Talvez o movimento braçal de um lado evocasse respostas qualitativamente diferentes no cérebro. Um dos prazeres de trabalhar com uma psicóloga jovem, brilhante e novata era o surgimento de idéias novas.
— Consegui convencer o dr. Shands a me dar uma hora de seu novo sistema.
— Novo sistema? — perguntei. Em anos recentes, a tecnologia de diagnósticos por imagem de ressonância magnética tinha dado passos gigantescos. Os escâneres tornaram-se menores, menos intimidativos, e, ao mesmo tempo, mais potentes. E diferentemente dos sistemas TEP e TC,2* os magnetos gigantes não emitiam radiação.
— É uma máquina quatro-ponto-cinco tesla.
Eu assobiei. Era nove vezes mais poderosa que a máquina que tínhamos no Pearce. Devia ter custado uma fortuna. Mas as faculdades de medicina correriam para usar o aparelho em seus campos de pesquisa. Portanto, o escâner se pagaria sozinho antes de tornar-se ultrapassado. Nesse ínterim, Shands teria o seu próprio parque de alta tecnologia — o sonho de um pesquisador.
— Nunca vi um sistema tão potente. Interessa-me muito saber qual é sua opinião a respeito.
— Quer observar? É amanhã à noite — Emily disse, corando de empolgaçáo. — Há uma política no laboratório que impede a presença de espectadores, mas estou certa de que ele abrirá uma exceção para você. Pode ficar na sala de controle comigo. Assim verá as imagens tal como elas surgem. O computador as sintetiza em terceira dimensão. É o mesmo que assistir a um filme do cérebro em ação.
Olhei para o cérebro que eu havia desenhado a lápis e o modelo de plástico que eu mantinha na estante. Lembrei a animação que senti quando dissequei meu primeiro cérebro. Não podia recusar o convite para assistir de camarote a um cérebro em operação.
Amanhã à noite? Merda. Eu e Annie havíamos marcado de nos encontrar. Eu me ouvi dizer:
— A que horas? — Imediatamente senti uma onda de culpa. Tinha acabado de dar uma mancada com Annie e estava prestes a fazê-lo de novo.
— Às oito. — Emily selecionou uma página nova do bloco de notas, escreveu, destacou a folha e a entregou para mim. A nota dizia: "Centro Universitário de Diagnóstico por Imagem", com um endereço na rua Sidney, em Cambridge.
O exame não levaria mais do que uma hora. Eu ligaria para Annie e veria se poderíamos nos encontrar mais tarde. Quando coloquei o papel no bolso, perguntei-me o que estava fazendo. A maioria dos homens tinha o problema de deixar a outra cabeça, a menor, controlar suas ações. Eu parecia permitir que a maior comandasse às cegas.
— Obrigada pelo feedback. — Emily levantou-se e ofereceu a mão. Levantei-me e a apertei. —Também fiquei pensando o que você achou de meu questionamento. Acha que me excedi? — ela perguntou. Sua mão estava quente. Senti um instante de desconforto quando ela manteve o cumprimento, fitando-me intensamente.
— De modo geral, não — eu disse, soltando minha mão e apertando o nó da gravata. Certo, ela é bonita e está lisonjeada pelo excesso de atenção, disse a mim mesmo. Eu sou o supervisor. Onde está a distância clínica? — O único momento no qual acredito que tenha se excedido foi quando lembrou a ele que não poderia mudar de idéia. Não se trata do que disse, mas como disse. Pareceu, de alguma maneira, um confronto. — Minha voz soou tensa e formal.
— Creio que não quero vê-lo cometer um erro tão grave. Era o tipo de declaração de uma terapeuta inexperiente.
— Lembre-se, você nunca sabe o que é melhor para seu paciente. — Abri a porta para ela.
— Mas e se ele tomar a decisão errada? Quero dizer, se optar pela amputação. É bárbaro.
— Cabe somente a ele decidir. Essa vida é ele quem vai viver. Não poderá ajudá-lo, a menos que acredite mesmo nessa idéia.
Emily estava a caminho da porta quando parou e virou-se.
— Como acha que ele descobriu que tenho um Miata? Eu havia pensado o mesmo.
— Acredita que seja ele o perseguidor? __Não imaginaria jamais —ela disse.
Concordei; o sr. Black parecia centrado demais em si mesmo para desenvolver um vínculo obsessivo com Emily. Por outro lado, eu já tinha avaliado clinicamente muitos assassinos e sabia que vilões adquiriam formas surpreendentes. Ralston Bridges havia enganado um júri.
__Eu não descartaria ninguém, a menos que tivesse absoluta certeza — aconselhei. — Por favor, tome cuidado.
— ESTOU CERTA DE QUE ficará deslumbrado — Annie comentou com certa secura, depois que lhe contei da oportunidade de ver uma IRM funcional naquela máquina nova e pedi-lhe que adiássemos nosso encontro. — Aliás, eu pretendia telefonar para você. Surgiu um imprevisto...
— Eu conseguiria chegar em sua casa às nove e meia. O mais tardar, às dez horas — tentei.
— Não, tudo bem. Provavelmente vou ficar ocupada até tarde.
— Outra emergência familiar?
— Algo semelhante, sim.
— Posso ajudar?
— Talvez. — Escutei o ruído de papéis do outro lado da linha.
— Falo com você, se precisar.
Eu esperava que a "emergência familiar" não fosse uma desculpa conveniente. Já imaginava cenários, cada um pior que o outro: eu a vinha sufocando e ela precisava de espaço para respirar; um ex-namorado estava na cidade; Annie investigava noite e dia um caso particularmente perigoso e não queria me alarmar.
— Você podia me ligar quando estiver saindo de lá — Annie sugeriu. — Talvez eu esteja liberada.
— Parece ótimo. Posso pegar alguma coisa para nós em Mary Chungs ou talvez um sorvete de baunilha do Toscanini? — Aprendi isso com minha mãe, a crença no poder da boa comida.
— Talvez — ela murmurou, mas sua mente parecia estar em outro lugar.
A despedida de Annie soou distante e nossa conversa encerrou-se sem terminar. O fato ainda me corroía na noite seguinte, enquanto dirigia para o centro de imagem. Meu estômago reclamava, lembrando-me de que eu não havia comido nada desde o almoço, uma sopa morna de macarrão com legumes e um pacote de bolacha salgada. Um macarrão com shoyo da Mary Chungs sem dúvida iria me satisfazer. Esperava que Annie estivesse em casa depois que eu saísse do centro.
Virei na rua Sidney. A área tinha sido muito transformada nos últimos cinco anos. Onde certa vez fora o lar de Simplex Wire e Cable Company, era agora o cartão-postal infantil de restaurações urbanas no estilo Cambridge: um misto de prédios residenciais, escritórios visando o fim de empresas virtuais e o início da biotecnologia, um hotel e um supermercado gigante para complementar a boa medida. O edifício de uma velha fábrica, de tijolos aparentes, onde, diz a lenda, assaram o primeiro Fig Newton, fora transformado em lofis artísticos.
Passei pela construção moderna de granito e vidros. A entrada do estacionamento no subsolo ficava na esquina. Tive de descer dois níveis para encontrar uma vaga. Então, peguei o elevador a fim de ir ao andar térreo.
O saguão possuía teto alto, com um lustre de cristais antigo que ficaria ótimo em casa, no Met. O interior, com estrutura de madeira e bronze, fora desenhado para moradores que podiam pagar a opulência que tinham acima de suas cabeças.
Um segurança uniformizado, atrás de um balcão circular de mármore, pediu-me que assinasse o livro. Apontou o arco que levava ao Centro Universitário de Diagnóstico por Imagem. Duas mudas de árvores, plantadas em vasos, mais altas do que eu, cuidavam da porta dupla de vidro.
Na sala de espera, a imensa janela da parede estava aberta. Uma jovem à mesa do outro lado usava jaleco branco e digitava num computador. Era alta e loira, como uma freqüentadora da praia de Malibu. Disse-lhe quem eu era e por que estava ali. Ela desapareceu em direção aos fundos.
Enquanto esperava, observei a sala vazia e acarpetada. Fileiras de cadeiras de encosto reto estavam meticulosamente dispostas ao longo de mesas baixas repletas de revistas. As fotos na parede eram ampliações da Boston histórica. Eu admirava um retrato do Old Howard — uma casa caricata na praça Scollay, aquela parte mística de Boston tempos atrás derrubada para abrir caminho a um Centro Governamental sem alma — quando uma porta se abriu. Um homem alto e bonito, cujo perfil bem delineado era emoldurado por uma mecha de cachos grisalhos, veio em minha direção de mão estendida. Ele usava óculos circulares e os dentes cintilavam.
— Dr. Zak? — ele perguntou. — A dra. Ryan me falou do senhor. Sou Jim Shands.
Tinha um aperto de mão firme, como um político em época de eleição. Shands conduziu-me a uma área com odor anti-sépti-co, onde fortes lâmpadas fluorescentes iluminavam o assoalho branco de vinil.
— Por favor, chame-me de Peter. Li seus artigos a respeito da demência com corpos de Lewy. Muito interessante.
— E eu li os seus acerca da memória — ele disse. — Impressionantes.
Shands fitou uma caixa da FedEx no chão.
— O quê...? -— ele começou. Havia rótulos com os dizeres MANTER CONGELADO A 4°c. — Há quanto tempo essa caixa está aqui? Eles sabem que estou à espera dessa encomenda. — Shands olhou ao redor e, como não visse ninguém, elevou a voz. — Por que, em nome de Deus, ninguém me disse que isso estava aqui?
Pegou a caixa como alguém teria pego um bebê recém-nascido para o embalar nos braços.
— Amanda — vociferou. — Onde está essa garota?
— Acho que ela foi para casa — eu disse.
— Incompetente. — Ele murmurou algo acerca de já ter explicado um milhão de vezes à jovem. Então, dirigiu-se a mim. — Desculpe-me. Preciso cuidar disso. Não levará um minuto.
Desapareceu no fim do corredor. Ao retornar, pouco tempo depois, parecia totalmente recuperado.
— Agradeço sua permissão de me deixar observar — disse eu. — Não sei quase nada a respeito da tecnologia da IRM.
— Se pretende aprender, aqui é o lugar. Temos o corpo magnético mais potente usado por qualquer clínica de imagens do país.
Começamos a percorrer o corredor.
— Ouvi dizer que você faz trabalho forense — ele comentou.
— Avalio pessoas acusadas de crimes. — Não mencionei que sempre trabalhei para a defesa. Eu havia aprendido, da pior maneira, a evitar aumentar ainda mais minha quota de sermões, os quais começavam com uma expressão de espanto, seguida da frase: Oh, então você é um deles.
— Leu sobre o feito recente do Johns Hopkins, o exame detalhado de cérebros criminosos condenados? — Shands indagou. — Encontraram anormalidades no córtex pré-frontal.
Eu havia lido o estudo. As descobertas confirmavam o que tinha sido apenas uma hipótese durante anos — o córtex pré-frontal representava o papel de controlar as emoções e o comportamento. A pesquisa provocava a seguinte questão: poderíamos "consertar" os lobos frontais de um criminoso para que ele parasse de cometer crimes? Esse tipo de especulação encorajara uma enxurrada de trabalhos que exploravam terapias com drogas e cirurgia cerebral. As cingulotomias — operações para extrair uma porção do sistema límbico do cérebro — estavam em voga. A operação parecia ajudar certos pacientes, em especial os extremamente obsessivos. Ainda assim, o pensamento me fazia tremer. Eu torcia para não voltarmos aos velhos tempos da lobotomia frontal à Ia Um Estranho no Ninho.
Nós nos aproximamos de uma porta dupla. Havia um aviso numa delas, um triângulo amarelo enorme, com o desenho de uma ferradura magnetizada e raios de luz saindo das extremidades. Abaixo do desenho, as palavras CAMPO MAGNÉTICO POTENTE, e abaixo: PROIBIDOS IMPLANTES METÁLICOS.
Shands apontou o aviso e me olhou, interrogativo.
— Não tenho implantes — informei. — Pelo menos, não que eu saiba.
Eu lera que a força magnética de um sistema de IRM possuía poder suficiente para parar um marcapasso. O ímã seria capaz de desalojar o clipe de um aneurisma cerebral e rasgar a artéria usada na cirurgia de restauração.
Shands empurrou uma das portas; empurrei a outra. Do outro lado havia o que parecia ser o centro nevrálgico do laboratório. Havia também no meio um balcão semicircular largo, com cadeiras giratórias e arquivos dispostos ao redor. Tudo era branco, exceto o estofamento vermelho das cadeiras. Corredores abriam-se em três direções.
— O magneto está sempre ativado, mesmo que a força elétrica da unidade seja rompida — Shands explicou. — Portanto, embora a sala do escâner seja protegida, você tem de ter cuidado com o que traz consigo. — Ele me deu um contêiner de plástico. — Algo tão inócuo quanto um clipe de papel adquire uma velocidade terminal de mais de cento e sessenta quilômetros por hora, quando atraído por um imã. Isso sem mencionar que o campo magnético apaga todos os cartões de crédito.
Emily Ryan entrou quando eu tirava o relógio de pulso e esvaziava meus bolsos, jogando cartões de crédito, moedas, celular, chave do carro e de casa dentro do contêiner. Ela usava um jaleco branco sobre o conjunto escuro, e o rabo-de-cavalo balançava de um lado a outro enquanto ela caminhava até nós.
— Dr. Zak — cumprimentou-me, com o rosto iluminado. Emily sentou-se sobre o balcão e balançou as pernas. Sentia-se obviamente à vontade nesse lugar. — Estou quase terminando de aprontar o sr. Black. Precisarei de mais dez ou quinze minutos.
— Por que não levo Peter comigo? — Shands sugeriu. — Assim, posso lhe contar do trabalho que estamos realizando.
A sala de Shands era espaçosa e clara, com uma vista que dava para o jardim do átrio. Focos verdes e rosas iluminavam uma selva de plantas tropicais. Algumas árvores altas estendiam-se em direção à luz. Eram diferentes da vegetação que usávamos para enfeitar a unidade neuropsiquiátrica, e eu podia apostar que nenhuma dessas árvores era de plástico.
— Então, a dra. Ryan também está trabalhando para você? — Ele ergueu as sobrancelhas, como se o "trabalhando para" fosse um código para alguma coisa mais.
— Ela está fazendo o pós-doutorado na unidade neuropsiquiátrica.
— Emily é muito tenaz — Shands disse. — Uma lutadora. — Perguntei-me se ele era sempre tão condescendente em relação às pessoas com quem trabalhava. — Ela me contou que você a socorreu noite dessas. Viu alguma coisa?
— Que tipo de coisa?
— A pessoa que ela diz estar seguindo-a, por exemplo. Tudo isso deixou-a tão apavorada que ela tem medo da própria sombra.
— Posso ter visto algo — eu disse. Era mentira, mas não queria prejudicar a credibilidade de Emily e fazê-la parecer uma doi-divanas. O terror que ela demonstrara pereceu-me muito real.
— E?
Dei de ombros.
— Não pude distinguir o que vi.
— Ainda bem que você a acompanhou até em casa — Shands comentou, enquanto parte das linhas de tensão de sua testa sumiam.
Senti uma pontada de culpa. Eu provavelmente deveria tê-la acompanhado.
— A bem da verdade, eu me ofereci, mas... — Ajustei minha gravata. Por que estava fazendo isso? Eu não lhe devia nenhuma explicação. — Bela sala — comentei, olhando ao redor.
Como de hábito, havia diplomas e certificados expostos na parede atrás da escrivaninha de mogno maciço. O incomum era o banco de caixas luminosas. Preso dentro de uma das caixas estava o filme de um cérebro escaneado. Era uma fatia do topo do cérebro, com áreas realçadas por cores. Na caixa luminosa ao lado havia a transparência do que parecia ser uma amostra de tecido. Aproximei-me para olhar melhor as células vermelhas circundadas por aros brancos, flutuando num fundo vermelho opaco.
— Essa é a nossa descoberta — Shands informou. — O primeiro paciente no qual encontramos demência com corpos de Lewy a partir de uma IRM funcional, e cujo diagnóstico mais tarde foi confirmado. São os corpos de Lewy corticais. — Apontou as células do cérebro deformadas com suas bordas brancas. — São na verdade inclusões citoplásmicas que parecem matar o cérebro, resultando na demência com corpos de Lewy e na doença de Parkinson. O que descobrimos foi que alterando a permeabilidade da membrana da célula, podemos interromper a formação dos corpos de Lewy e prevenir a morte das células cerebrais. Entre as demências, o corpo de Lewy foi certa vez reconhecido como extremamente raro. Acabamos percebendo que sua ocorrência era na realidade muito mais comum. Mas somente poderia ser diagnosticada através do exame das células cerebrais.
— Autópsia? — perguntei. Ele assentiu.
Essa era a parte frustrante. Você podia observar um comportamento, avaliar testes, detalhamentos cerebrais, exames de sangue e raios X até ficar azul. Contudo, um diagnóstico num paciente vivo era, em geral, parte do palpite. Pena que pacientes tivessem de morrer para satisfazer a curiosidade científica.
— Deve ter sido muito empolgante — disse eu.
— Provavelmente o momento mais satisfatório de minha carreira. — Indicou a área da IRM. — Aqui está a marca. Podemos ver a mudança na difusão das moléculas aquosas. Veja aqui, e aqui. As células são menos permeáveis. — Apontava o gânglio basal. Assenti, embora não soubesse o que ele deveria estar vendo.
— Isso faria diferença para os distúrbios motores — ponderei.
— Claro, esse foi apenas nosso primeiro caso. Tivemos muitos mais desde então. Precisaremos de centenas para convencer a comunidade médica.
Centenas de cérebros escaneados. Então, centenas de autópsias para confirmar o diagnóstico. Pelo menos, pacientes que possuíam demência com corpos de Lewy morriam rapidamente — dentro de um ano ou dois. Levaria somente algumas décadas para Shands completar sua pesquisa.
Minha mãe recusara-se a autorizar uma autópsia depois que meu pai falecera. Não importava a ela se fora Alzheimer ou algo mais que tirara a alma de meu pai muito antes de o coração parar de bater. Não queria que mais nenhuma indignidade o molestasse. Apenas eu desejara saber, mas a decisão coubera a ela.
— Agora podemos chegar a um diagnóstico definitivo com antecedência — Shands continuou. — Antes até dos sintomas. Estamos visando uma intervenção extremamente profilática. Medicamentos que aumentam a permeabilidade das células cerebrais. Administramos Cimvicor.
O Cimvicor tinha sido aprovado pela FDA*3 para o tratamento do colesterol alto. Há muito sabia-se que várias drogas que reduziam a taxa de colesterol também aumentavam a permeabilidade das células.
Shands prosseguiu.
— Em poucas semanas, vimos mudanças no cérebro em resposta à droga. É muito mais rápido do que os meses necessários para observarmos uma melhora cognitiva definitiva.
— A medicação atrasa o início da doença? — perguntei.
— Atrasa? Previne? É o que estamos tentando descobrir. — Deu um sorriso torto. — Por isso, a pesquisa é tão importante. Se pudermos identificar pacientes antes do aparecimento da doença, confirmar diagnósticos com uma IRM funcional, tratá-los agressivamente, poderemos obter inclusive uma medida para a cura. E oferecer alguma esperança a famílias que sofrem devido ao pesadelo que é essa doença.
Houve uma batida leve à porta. Emily enfiou a cabeça pela fresta.
— Posso começar quando quiser. Shands estendeu-me a mão, que eu apertei.
— Prazer em conhecê-lo. — Continuou segurando minha mão e tocou meu braço. — A propósito, se estiver interessado em es-canear seu cérebro, estamos sempre à procura de tecidos normais para nossa biblioteca. O único jeito de os dados fazerem sentido é se os compararmos à população total.
Eu sorri.
— Eu? Submeter-me a uma IRM? — Não pude conter o entusiasmo. Parecia muito interessante. Não seria mau experimentar, disse a mim mesmo; assim eu estaria em melhor posição para aconselhar meus pacientes acerca do procedimento.
Shands soube como selar o acordo.
— Claro — ele disse. — Por que não? Nós lhe daremos uma imagem escaneada de lembrança para pendurar em sua parede.
Imaginei o que minha mãe pensaria se eu instalasse uma caixa luminosa na sala de estar e expusesse a imagem de meu cérebro. Tinha certeza de que ela não acharia isso tão charmoso quanto o desenho feito por um menino de oito anos.
— Fale com a dra. Ryan antes de sair — Shands sugeriu. — Ela agendará um horário para você.
— ELE NÃO É INCRÍVEL? A pesquisa que está realizando é totalmente original — Emily comentou, quando voltamos à área central. Suspeitei que Shands inspirasse esse tipo de idolatria heróica em muitos jovens pesquisadores que trabalhavam à sua sombra. — E é tão dedicado... muito além de qualquer coisa que eu já tenha experienciado.
Eu a segui até outro corredor. Passamos por uma porta que se abria para uma pequena sala repleta de frascos de Dewar da altura de uma pessoa e com marcações de HÉLIO LÍQUIDO nas superfícies. Presumi que usavam gás criogênico para esfriar os condutores, pelos quais passavam as correntes elétricas a fim de criar o campo magnético. Havia também alguns tanques pequenos tarjados com a palavra OXIGÊNIO; um deles achava-se sobre um carrinho de mão. No hall, havia um par de ferraduras amarelas e mais avisos: CUIDADO e PROIBIDA A ENTRADA COM OBJETOS METÁLICOS.
Apoiado sobre uma das ferraduras estava o que parecia ser um disco de hóquei liso. Emily o pegou.
— Importa-se que eu verifique se há qualquer objeto magnético que possa ser atraído pelo ímã? — Quando a fitei, confuso, ela acrescentou: — Esse é nosso detector magnético. Nós o usamos para descobrir qualquer objeto de metal antes de entrar na sala do escâner... e também revistamos as pessoas mais de uma vez.
— Claro — assenti, erguendo os braços como se tivesse sido detido no aeroporto.
Enquanto percorria as laterais de meu corpo com o magneto, Emily dizia:
— Adoro trabalhar aqui. A excitação de estar no limite do que é possível. Imagine, essa é a terceira demência mais comum já diagnosticada, e nós vamos curá-la. — As faces de Emily tornaram-se rosadas. — A parte mais difícil é trabalhar com pacientes que estão quase morrendo. Parece que quando você tem a chance de conhecê-los melhor, eles se vão.
Essa era uma das distinções da demência com corpos de Lewy — a morte vinha mais rapidamente do que em casos de Alzheimer.
Emily recolocou o imã na ferradura. Do outro lado do hall notei uma porta com a palavra PRIVATIVO.
— O que há lá dentro? — perguntei.
— É o quarto do Barba Azul — Emily respondeu, piscando para mim. — Honestamente, não sei o que há lá dentro. É a única trava cuja combinação difere das outras do laboratório. — Notei o sistema de abertura por cartão na maçaneta. — Somente o alto escalão tem acesso à sala.
Ela tentou abrir a porta, tal qual uma criança incapaz de resistir à curiosidade. Estava mesmo trancada.
Novamente, segui Emily até uma pesada porta de metal que já estava aberta. Deduzi que fazia parte do escudo que Shands dissera proteger a sala do escâner. Pouco além, numa sala grande e iluminada, o sr. Black achava-se deitado sobre uma mesa estreita, ligada a um cubo branco e maciço, o escâner da IRM.
— Só mais alguns minutos — Emily disse ao sr. Black. Conduziu-me então a uma porta que conectava a sala do escâner a uma outra sala.
— Esta é nossa sala de controle.
As luzes do recinto estavam apagadas. À meia-luz, cintilavam monitores e caixas luminosas em paredes. Através de uma imensa janela de vidro, da qual era possível enxergar o escâner, podíamos ver o sr. Black sobre a mesa e, na direção dele, o tubo horizontal que corria pelo magneto de frente para trás. Por isso os pacientes se assustavam, incapazes de tolerar a imobilidade num local tão confinado.
Emily acomodou-se diante de um monitor próximo ao vidro.
— Poderemos assistir daqui. — Num dos lados, havia o painel de controle com uma infinidade de botões.
Escutei alguém tossir e olhei em volta.
— Foi o sr. Black— Emily explicou, indicando os alto-falantes instalados no console. — Escutamos tudo que acontece lá dentro.
Um homem baixo e robusto, vestindo um jaleco branco do laboratório, entrou na sala. Usava óculos, tinha cabelos finos e a aparência pálida de quem raramente via a luz do dia. Trazia um jornal dobrado sob o braço.
— Olá, Lenny — Emily disse. — Este é o dr. Leonard Philbrick, o verdadeiro especialista. Lenny, este é o dr. Peter Zak. Trabalho com ele no Pearce.
Philbrick olhou-me de relance através das lentes.
— Shands permitiu que ele assistisse? — Philbrick perguntou, com a voz alterada. Manchas de suor apareciam sob as mangas do jaleco.
— Sim. Eu estava prestes a explicar como o escâner funciona — Emily disse. — Mas você é muito mais eloqüente...
Philbrick pareceu aceitar o elogio como algo natural.
— Não é complicado. — Ele largou o jornal e enfiou um lápis mastigado no bolso. — Sabe como trabalha uma IRM funcional?
— Claro — eu disse. — Tenho uma idéia geral. — Eu sabia que numa IRM regular do cérebro o escâner tirava foto após foto, fatia após fatia. Numa IRM funcional o mesmo acontecia, só que muito mais rapidamente, para que você obtivesse uma série de imagens do cérebro. De alguma maneira, com a ajuda do computador, as imagens se uniam para mostrar mudanças no cérebro em tempo real.
Philbrick continuou:
— Então você sabe que os dados do computador nos mostram onde o fluxo sangüíneo do cérebro aumenta durante a atividade mental. Nossos experimentos reproduzem gigantescas quantidades de informação rapidamente. Costumava-se levar dias para processar os dados de uma imagem de alta resolução em três dimensões.
Philbrick evitava o contato visual; seu olhar percorria a sala enquanto falava.
— Nosso escâner é um dos mais poderosos do país. Usamos hélio para resfriar os supercondutores magnéticos. O sistema abriga quase mil litros de hélio líquido. — Perguntei a mim mesmo se isso explicava por que as paredes do cubo eram finas.
— Nosso escâner registra dados do cérebro e os transmite através de uma rede de alta velocidade para aquele Cray T3E — apontou uma parede de vidro através da qual pude ver um gabinete preto multissegmentado com uma elegante fita vermelha —, o qual converte os dados puros em imagens tridimensionais, compensa os movimentos da cabeça e identifica o nível de atividade em diferentes áreas do cérebro. Do T3E, os dados viajam até aqui, onde podemos observar quais áreas do cérebro estão destacadas.
É a imagem funcional em tempo real — ele disse, acariciando as palavras.
Philbrick esfregou as mãos.
— Já montamos uma das maiores bibliotecas de cérebros esca-neados do país.
Eu podia imaginá-lo debruçado sobre o banco de dados: Midas contando seu ouro.
— É a primeira coleção completa de IRMs de pacientes que sofrem de demência com corpos de Lewy — Emily acrescentou. — Incluindo várias amostras de cérebros normais para comparação. A minha está aí. A de Lenny também. Ele modificou os controles para que possamos nos escanear sozinhos. Basta apertar um botão e o programa cuida de tudo. Ele o insere, administra o exame e o retira da máquina. É incrível ver seu próprio cérebro em funcionamento.
Eu podia vibrar com a parte "incrível". Mas não estava muito animado para entrar naquele tubo estreito sem saber se alguém poderia me puxar, caso algo saísse errado.
— O dr. Shands disse que você poderia agendar uma sessão de escaneamento para mim.
— Claro. Farei isso antes de você ir embora.
— Vai ficar até mais tarde? — Philbrick perguntou a Emily, verificando o relógio.
— O dr. Shands me deixou usar o escâner para um projeto de pesquisa. — Ela piscou algumas vezes. — Oh, Lenny. — Emily colocou a mão no ombro de Philbrick. — Desculpe-me. Esqueci que íamos comer mais tarde. Quer esperar? Podemos...
A boca de Philbrick curvou-se para baixo e os olhos se estreitaram, quando ele me encarou rapidamente.
— Não faz mal — disse. — De qualquer forma, hoje não posso ficar até tarde.
— Lenny trabalha para o dr. Shands há séculos — Emily contou, radiante.
Não pude ler a expressão de Philbrick.
— Sim — ele confirmou. — Colaboro para a pesquisa do dr. Shands há mais de dez anos. — Havia uma grande diferença entre "trabalhar para" e "colaborar".
— Lógico, foi isso que quis dizer. — Emily soltou uma risada nervosa.
— Mas foi a dra. Ryan aqui quem faturou um crédito no último artigo dele. Muito surpreendente. Levei três anos para fazer aquilo. — As palavras foram dirigidas ao monitor do computador.
— Obrigada. — Emily estava ruborizada. — O artigo acaba de ser aceito no Journal of Neuroimaging. O título é pomposo: "Correlações Neurocognitivas da Demência com Corpos de Lewy." Fiz os testes neuropsicológicos e redigi a metodologia.
Philbrick pendurou o jaleco num gancho e pegou uma capa de chuva surrada.
— Peça para alguém acompanhá-la até o carro quando sair. — Ele aconselhou já de saída.
— Não esqueça o jornal — eu disse, pegando o jornal que ele deixara sobre a mesa. Estava dobrado na seção de obituários.
Philbrick agarrou o jornal e saiu, deixando para trás um leve odor de suor.
— Lenny estudou com o dr. Shands e a dra. Pullaski em Har-vard — Emily contou. — Ele ajudou a montar o laboratório. Fez os arquitetos removerem um andar inteiro para que os magnetos não afetassem os outros prédios ocupados. Lenny sabe mais que qualquer um a respeito dessa tecnologia, mas passa a maior parte do tempo atrás do palco. Não parece tão estranho depois de conhecê-lo melhor.
— Ele a acompanha até o carro?
Emily sorriu.
— Lenny é um amor.
Depois de selecionar duas bolas rosas de borracha da mesa, ela pegou um par de óculos de proteção e fones de ouvido da parede.
— O sistema faz um barulho horrível durante o escaneamen-to. Eles abafam o som — explicou ela, indicando os fones de ouvido. — E também posso me comunicar com o paciente através dos fones.
— Vocês jogam bola aqui dentro? — brinquei. Emily riu, fitando as bolas de borracha.
— Não. Vou dá-las ao sr. Black. Você verá. Ele as usará durante o exame.
— Sr. Black, pode me ouvir? — Emily disse ao microfone, na sala de controle.
De dentro do escâner, o sr. Black respondeu como pôde. Emily aumentou o volume para que pudéssemos escutá-lo melhor.
— Prepare-se. Vou iniciar o escaneamento. Vai ouvir ruídos, o que é perfeitamente normal. Quero que continue deitado onde está. Relaxe. — Emily tapou o microfone com a mão. — Começamos com o básico.
Agora a máquina emitia sons rítmicos altos e zunidos. A janela no canto da tela do computador piscou e uma imagem começou a se materializar. Em vez de fatia após fatia, uma imagem integrada e tridimensional do cérebro surgiu à minha frente. Tornou-se fosca e voltou ao foco. Provavelmente, o sr. Black se mexera.
Permanecemos sentados em silêncio por cerca de um minuto. Então, Emily aproximou-se do microfone.
— Sr. Black?
Agora a máquina emitia sons pesados junto com zunidos. Era o tipo de ruído que se esperaria no interior de uma fábrica. O que vimos foi surpreendente. Havia pulsões amarelas no fundo azul-esverdeado em ambos os lados das têmporas, e outras mais próximas ao centro, quando o sr. Black escutava e, então, processava o que ouvia.
Emily iniciou o que parecia ser o procedimento de rotina. Pediu para o sr. Black fechar e abrir os olhos, dizer o próprio nome e o nome de solteira da mãe. Ela marcava o tempo de cada tarefa. Eu observava, fascinado, as diferentes áreas do cérebro sendo ativadas, pulsando de espectro verde ao amarelo e ao laranja. Era o mesmo que olhar um jogo de fliperama supersônico. Eu queria diminuir a velocidade das imagens.
A porta da sala de controle foi aberta e uma mulher entrou. Era de uma presença imponente, com os cabelos pretos curtos e muito bem cortados, olhos escuros e sobrancelhas quase unidas acima do nariz. Usava um jaleco do laboratório e um crachá pendurado no pescoço.
— Dra. Ryan? Não sabia que estava usando o escâner.
— Sr. Black, vou parar o escâner por um momento — Emily disse, ao microfone. Apertou um botão e o escâner silenciou. — Sim, estou trabalhando com um paciente — ela informou, cobrindo o microfone com a mão.
— Estou vendo. Quem lhe deu permissão?
— O dr. Shands autorizou.
— E não permitimos visitantes. — As narinas da mulher abriram-se quando ela encarou Emily e a mim.
— Dra. Pullaski, este é o dr. Peter Zak. Ele dirige a Unidade Neuropsiquiátrica no Pearce.
Pude sentir a dra. Pullaski abaixar a crista. O Pearce conferia um instante de legitimidade a qualquer um cujo nome estivesse associado à instituição.
Levantei-me e a cumprimentei. Contei-lhe que tinha ouvido maravilhas a respeito do Centro Médico Universitátio e como estava grato por ter a chance de ver o impressionante sistema deles em ação. Ela sorriu para mim. Não era o tipo de mulher que gostava de ser bajulada.
— E onde está o dr. Shands? — ela perguntou.
— Por aí. — Emily ergueu a mão, displicente. — Em algum lugar. Lamento. Pensei que soubesse.
— Estou certa de que pensou — a dra. Pullaski disse. Em seguida, virou-se e saiu.
— Essa dra. Estelle Pullaski é a diretora executiva — Emily bufou. — Ela e o dr. Shands são assim. — Emily esfregou os dois dedos indicadores. — Ela administra o laboratório. Registra tudo, desde a última luva de látex à seringa hipodérmica. E sempre tem uma reclamação a fazer. Ora, a essa hora o sistema estaria ocioso. Portanto, não há problema em usá-lo agora.
Emily tirou a mão do microfone.
— Sr. Black, vamos reiniciar. — Apertou um botão no painel de controle e o sistema voltou a funcionar. —Agora vou lhe mostrar algumas imagens.
Para mim, ela explicou:
— Lembra-se daqueles óculos que dei a ele? Projetamos imagens daqui para as lentes internas dos óculos.
Uma janela abriu-se na tela do monitor mostrando a fotografia de um buquê de flores. Emily anotou o tempo. Em seguida, pressionou o botão outra vez. Agora havia a foto do braço de uma pessoa. Ela prosseguiu, mudando as imagens e marcando o tempo no protocolo do teste. Cada vez que a imagem mudava, aconteciam sutis mas perceptíveis modificações no cérebro do sr. Black. Porém, tudo rápido demais, para fazer algum sentido para mim.
— Muito bem. Poderia agora apertar a bola em sua mão esquerda?
Observei atentamente, vendo desenvolver-se a atividade que esperava na região motora direita e nas áreas ao redor.
— Excelente — Emily disse. — Aperte agora a bola da mão direita. — Esse era o braço que ele queria amputar.
Ambos observamos com atenção. Houve certa atividade dentro e ao redor da região motora esquerda. Definitivamente, não foi a resposta zero que Emily talvez devesse esperar. Mas era a que devia esperar num cérebro "normal"? Eu não fazia idéia.
Emily continuou dando tarefas ao sr. Black. Flexionar um dos pés, depois o outro. Estender cada joelho. Mover cada um dos ombros.
Ao final, a respiração de Emily estava ofegante e ela mal conseguia ficar sentada de tão empolgada.
— Precisarei analisar o teste, claro. Mas há algo aqui, tenho certeza. Vou salvar isso... — Ela clicou algumas vezes e digitou algo.
Rapidamente, mostrou-me como voltar as imagens e como controlar a velocidade. Então, ela se retirou para liberar o sr. Black.
Eram apenas 9h30. Tinha tempo suficiente para comprar comida e ir à casa de Annie. Usei o telefone da parede, ligando para a casa dela. Ninguém atendeu. Tentei o celular. Também nenhuma resposta. Annie provavelmente o desligara. Droga. Ainda assim era cedo. Quem sabe, até o momento da minha saída do centro de imagens, ela teria tido tempo de chegar em casa.
Voltei ao computador e olhei a tela. Ela lhe dirá o que está acontecendo quando estiver pronta, disse a mim mesmo.
Vi a animação mais uma vez, acelerando o começo, diminuindo a parte em que Emily pedira ao sr. Black para apertar as bolas. O aperto direito havia mesmo emitido, em um dos lados do cérebro, uma resposta diferente em relação àquela que o aperto esquerdo provocara do outro lado. Seria uma diferença aleatória ou mensurável e consistente? E quanto às pernas — haveria um efeito generalizado da direita para a esquerda? E se alguém lhe tivesse pedido para criar uma imagem mental do braço direito e, em seguida, do esquerdo? E se ele tivesse fechado um olho e depois o outro? E se houvesse visto fotos de amputados? Minha mente expelia idéias como se fossem faíscas de um amolador.
Acomodei-me, aproveitando o fluxo de energia intelectual. Aquela tecnologia não existia na época em que freqüentei a faculdade. Se existisse, eu teria facilmente me tornado pesquisador em vez de clínico.
Espiei os papéis que Emily deixara sobre a mesa. "Consentimento para Participar do Protocolo de Pesquisa." Pelo que parecia, ela adaptara o formulário padronizado que Shands usava para sua pesquisa. Proposta do estudo. Procedimentos. Riscos e des-confortos. Não havia muitas modificações. O procedimento, uma IRM, era o mesmo. Alguns parágrafos acima da assinatura do sr. Black tinham sido apagados, o texto fora sublinhado com um marcador preto e rubricado pelo sr. Black. Perguntei-me o que fazia parte do formulário de consentimento de Shands que Emily achara inadequado para sua pesquisa. Eu estava prestes a virar a folha e ver se podia ler o resto quando Emily voltou.
— Ele já foi para casa — informou-me. — Sem nenhum dano. Pegou o formulário de consentimento e o protocolo do teste,
e eu a segui pelo corredor em direção à área central. Guardei as moedas no bolso, carteira e cartões de crédito, e estava pensando em usar novamente o celular para achar Annie, quando escutei vozes alteradas. Emily ficou paralisada.
— Não entendo por que você se arrisca tanto. — Era a voz de uma mulher. — Estamos juntos nisso há tanto tempo...
A voz de um homem a interrompeu. Eu só conseguia escutar fragmentos da discussão.
— ... exagerando... de seu pedestal... é problema meu...
— É um idiota, James... — a dra. Pullaski vociferou no corredor. As palavras morreram quando ela nos viu. — Na próxima vez — ela disse diretamente a Emily —, por favor, peça minha permissão antes de requisitar os recursos do Centro. — Dito isso, ela se foi, marchando.
Shands saiu ao corredor, parecendo furioso.
— Estelle! — gritou atrás dela. Quando viu Emily, a expressão abrandou. — Desculpe-me, Emily. Vou resolver isso agora. — Ele seguiu a dra. Pullaski pelo corredor.
As mãos de Emily tremiam, enquanto tentava inserir os papéis na valise.
— Vou levá-la até o carro — ofereci-me, ajudando-a a tirar o jaleco do laboratório.
— Não precisa.
— Permita-me.
Descemos de elevador em silêncio. A boca de Emily estava cerrada; a tensão dos músculos do maxilar indicava somente a contenção das emoções. Ela hesitou quando as portas do elevador se abriram. Eu olhei a garagem. Havia vários cantos sombrios entre os carros, onde alguém poderia estar à espreita. Eu me vi querendo abraçar Emily para protegê-la de qualquer bicho-papão que pulasse sobre ela.
O Miata estava parado do outro lado do elevador. Ela abriu o porta-malas e jogou a valise dentro. Quando lhe toquei o ombro, ela estremeceu.
— Tem certeza de que está bem? — perguntei.
— Tenho, sim. Estou bem. — A voz soou tensa. Emily entrou no carro. Continuei em pé onde estava, quando
ela deu a partida e manobrou o veículo. Quando o Miata parou no topo da rampa, nenhuma das luzes de freio acendeu.
Não gostei disso. Se alguém adulterara as luzes de freio, não havia como saber o que mais poderia ter sido alterado. E aquele cheiro de gasolina? Talvez ele houvesse furado o tanque de combustível. Não vi nenhuma mancha no chão, mas o odor pareceu me intoxicar.
— Ei — gritei, correndo atrás dela. Mas Emily já havia partido.
CORRI ATÉ MEU CARRO e entrei. Dei a partida, já acelerando. Quando cheguei à guarita do vigia, a cancela de madeira estava descendo e o Miata de Emily havia sumido. Joguei uma nota de dez dólares ao rapaz e mordi a língua, enquanto esperava o troco.
Sabia que ela morava em Brookline. Meu melhor palpite era que Emily desceria em direção ao rio. Os pneus cantaram quando saí. Com a vantagem que ela tinha de três ou quatro quarteirões e sem as luzes de freio, eu teria de agir por instinto. Nunca seria capaz de divisá-la à minha frente no labirinto de ruas. Pensei ter visto um carro esporte vermelho atravessando a ponte BU. Tentei ultrapassar outros carros em ziguezague para diminuir a distância entre nós.
Na avenida Comm., fiquei preso no semáforo, atrás de um ônibus. Quando a luz tornou-se verde, entrei pela esquerda para ultrapassar o ônibus, meus pneus derrapando na curva da plataforma do bonde que se prolongava no meio da rua.
Mais uma vez, vi o carro de relance quando cruzamos os limites de Brookline. Após algumas ruas, ela virou à esquerda. Quase a alcancei quando Emily entrou no estacionamento iluminado de um prédio de tijolos aparentes, uma daquelas construções robustas dos anos quarenta. Parei embaixo de uma árvore. Estava pronto para sair do carro quando vi um vulto esgueirando-se no canto do prédio sob as sombras das árvores.
Emily saiu, carregando uma pilha de roupas. Acionou um dispositivo abrindo o porta-malas. Dirigiu-se à traseira do veículo e pegou a valise.
Desliguei a luz interna de meu carro, abri a porta e saí. Agora Emily caminhava pelo estacionamento, os saltos ressoando no concreto. Ela olhou sobre o ombro, ansiosa.
Definitivamente, havia alguém ali, colado à lateral do prédio, e aproximando-se. Agora Emily estava quase sob o arco ornamental. Refleti sobre o que fazer. Podia bater a porta do carro e chamá-la. Isso assustaria o intruso. Ou poderia me aproximar sorrateiramente, do jeito que ele faria com Emily, e pegá-lo no ato. Não era uma disputa. Seria preferível desmascará-lo a assustá-lo.
Aproximei-me. O vulto também aproximou-se. Emily estava à porta. Remexia na bolsa à procura da chave. Usando uma fileira de carros estacionados como cobertura, abaixei e dirigi-me ao prédio. Estava muito próximo ao último carro quando escutei a porta do edifício se fechar. Ergui-me o suficiente para ver Emily no saguão, esperando o elevador. Ela apertava o botão, impaciente.
Esquadrinhei o estacionamento. A base do prédio. Quem quer que estivesse escondido, já havia desaparecido. Fiquei parado e escutei. Um automóvel arrancou em disparada. As árvores agitavam-se a uma leve brisa. Escutei em seguida passos atrás de mim e senti a adrenalina surgir. Antes que pudesse me virar e levantar, algo pesado atingiu-me por trás e caí, ofegando. Alguém pressionava meu rosto contra o cimento.
— Algum problema, colega? — o homem grunhiu. Ele enterrou o joelho em minhas costas. Não podia me mover, muito menos discutir com ele. Sentia que um gorila de noventa quilos estava sentado sobre mim.
Afinal, agarrou-me pelo colarinho e me ergueu.
— Tire as mãos de mim — exigi, engasgando, enquanto tentava me equilibrar. Recebi um violento soco no rosto, e cambaleei para trás.
Avancei para cima dele, pronto para socá-lo, quando Emily surgiu correndo no estacionamento.
— Kyle! — ela gritou. — Deixe-o em paz!
Kyle? Perguntei-me se aquele cara, que parecia um atacante do Pats, sabia que Emily se referia a ele como "ex"-namorado.
— Eu o peguei em flagrante — Kyle disse. — Esse safado, filho da puta.
— Seu idiota — Emily esbravejou. Postou-se diante de Kyle, com as mãos no peito musculoso dele. — Calma. Dê um tempo. — Ela tocou-lhe a face.
Nunca tinha visto ninguém hipnotizar um jacaré, mas devia ser muito semelhante a isso. Kyle passou de estado de tensão e fúria ao estado de calma e docilidade em questão de dez segundos. Ele era bonito, possuía um quê juvenil de universitário; tinha cabelos pretos, que começavam a rarear, ombros largos, um queixo forte e mandíbulas que começavam a criar bochechas.
— Sei que pensa estar me protegendo — ela disse. — Mas não o quero me rondando. Isso tem de parar. E sério.
— Mas ele... — Kyle me olhou com raiva.
— Kyle Ronan, este é o dr. Peter Zak. Ele é meu supervisor do Pearce.
— Do Pearce? Pensei... Ah, merda — Kyle resmungou. Perguntei-me o que ele teria esperado. — Desculpe-me. — Kyle começou a ajeitar meu paletó. Eu o empurrei.
— Pensou que eu estava perseguindo Emily?
— Você a seguiu.
— As luzes de freio do carro dela estão queimadas — infor- mei. — E senti cheiro de gasolina. Pensei que talvez alguém também tivesse furado o tanque de gasolina.
— O quê? — Emily ficou pálida. Dirigiu-se até a traseira do carro. — As luzes não estão quebradas.
— Abra o porta-malas. Vamos dar uma olhada — sugeri Aberto o porta-malas, tateei o interior. Havia fios soltos.
— Os fios foram desconectados.
— Deixe-me ver — Kyle disse, empurrando-me.
— Mas este carro é novo — Emily argumentou, a voz trêmula.
— Agora sabem por que estou aqui — eu disse a Kyle. — Por que você estava se esgueirando entre as sombras?
— Ora, por favor — ele rebateu, erguendo-se. — Eu queria pegar o cretino. — Kyle fitou Emily pelo canto dos olhos, como se quisesse avaliar suas reações. Ela pareceu exausta ao puxar uma mecha dos cabelos para trás. — Tranque bem sua porta, querida, Sabe onde me encontrar, se precisar...
— Não vou precisar de você — Emily alegou, fatigada. — Agora não. Nem nunca. — Ela o encarou, furiosa. — E se continuar vagando por aí, vou solicitar uma ordem judicial.
Kyle recuou um passo.
— Não estou brincando. Fique longe de mim. Os lábios de Kyle estreitaram-se e sua expressão tornou-se feia.
— Putinha ingrata — murmurou, esmurrando a lateral do carro. Em seguida, virou-se e marchou até uma Range Hover preta. Entrou no veículo. O motor começou a vibrar e ele arrancou.
— Você está bem? — Emily perguntou.
— Estou. — Bati a sujeira de minha calça e ajeitei a camisa. Tirei a gravata e guardei no bolso. Respirei fundo. Sentia como se um caminhão tivesse passado sobre mim, mas nada parecia quebrado. — Prometa-me que vai fazer uma revisão no carro antes de usá-lo novamente.
Emily sorriu.
— Prometo. — Arrumou minha gola. — E é melhor você cuidar desse olho. — Dito isso, entrou no prédio.
Minha pele queimava ao redor do colarinho, por onde roçaram os dedos dela.
Voltei a meu carro e acendi a luz interna. Examinei meu rosto no espelho. O olho direito estava começando a fechar devido ao inchaço. Eu ganharia um formidável olho roxo. Um banho e gelo, era do que eu necessitava. Tentei achar Annie mais uma vez antes de ir para casa, mas não tive sorte.
No caminho, parei num Dunkin Donuts para comprar um café e conseguir um copo de gelo. Amarrei os cubos em meu lenço e dirigi com uma das mãos, pressionando o gelo com a outra em meu olho.
Chegando em casa, joguei o resto do gelo no meio-fio. Minha mãe deixara a luz da varanda acesa. Ela morava na casa ao lado da minha, desde que ela e meu pai se mudaram, anos atrás, no início do processo de Alzheimer dele.
Eu me metia com meus assuntos e minha mãe também. Se me ouvisse falar assim, ela diria: "Como seu irmão, sempre com piadinhas."
A verdade era que cuidávamos um do outro, mas na maior parte do tempo respeitávamos nossa privacidade. Tal qual aquela luz que ela deixara para mim. Não queria que eu telefonasse ou batesse à porta. Somente apagar a luz da varanda, ela pedira. "Assim, não ficarei preocupada."
Ela nunca apreciou o fato de eu avaliar criminosos. Ver meu rosto adquirir várias tonalidades de púrpura também não amenizaria seus medos. Apressei-me. Não queria ter de inventar uma explicação.
Estava destrancando a porta quando minha mãe colocou a cabeça para fora.
— Já era hora — ela disse.
Hora para quê, pensei. Verifiquei meu relógio. Eram quase dez.
Inclinei-me para ganhar um beijo no rosto. Sabia que estava mesmo preocupada, pois ela não havia notado meu olho.
Annie achava-se em pé no hall, atrás de minha mãe. Os cabelos ruivos cacheados estavam presos e os olhos cinzentos transmitiam tensão. Ela usava jeans e uma camiseta da Universidade de Boston que, eu sabia, vestia pela manhã sem nada por baixo. Aquela era a roupa de ficar em casa. Havia um traço de sujeira no queixo e os braços estavam cruzados, como se ela estivesse com frio, mas eu sabia que a casa de minha mãe permanecia sempre aquecida. O que Annie fazia aqui? Algo acontecera, eu tinha certeza.
Annie reparou no meu olho esmurrado.
— O que houve?
Agora minha mãe também o notava.
— Você entrevistou outro criminoso?
— Não. Isso, na verdade, foi um engano de identidade. O cara pensou que eu fosse outra pessoa.
— O cara? — minha mãe perguntou, com ceticismo.
Segui minha mãe e Annie até a sala, com seus confortáveis móveis estofados e carpete escuro padronizado, e entramos na cozinha. O balcão cintilava de tão limpo. Minha mãe tirou uma fôrma de gelo do freezer.
— Tentei ligar para você — eu disse a Annie. Ela tirou o celular do bolso.
— Lamento. Esqueci que o tinha desligado.
Minha mãe agora estava na pia, depositando cubos de gelo num pano de prato.
— O que aconteceu? — sussurrei a Annie, sentindo meu estômago queixar-se. Era impressionante quão pouco precisava para me lançar à condição na qual me encontrara depois do assassinato de Kate, certo de que a qualquer momento outra pessoa de que eu gostava seria jogada no precipício.
— Quero falar com você. — Ela cruzou os braços novamente, como se estivesse protegendo algo muito frágil. — Preciso de seu conselho.
Percebi que era a primeira vez que ouvia Annie dizer que precisava de mim.
— Sua mãe escutou-me tocar a campainha — Annie contou. — Eu sabia que você pretendia assistir àquele escaneamento de cérebro, mas imaginei que já estaria de volta a essa hora.
— Não sabia que estava aqui. Do contrário, teria trazido comida chinesa.
Annie conseguiu sorrir.
— E o Toscanini?
— Não jantou? — Minha mãe ficou chocada. — Nenhum de vocês dois comeu? — Seu olhar nos desafiava a negar. — Sentem-se.
Como se tivesse recebido uma ordem, sentei-me numa das cadeiras de assento de vinil e estrutura de tubos de metal que pertencera a nossa cozinha em Brooklyn. Minha mãe já tinha tirado um assado da geladeira e o pusera no forno para esquentar. Agora pegava uma fôrma de pudim de macarrão e a colocava no microondas. Em seguida, ligou o aparelho. Não passaríamos fome.
— Então? — perguntei, enquanto o microondas trabalhava. Minha mãe tinha agora uma lata de coquetel de frutas no abridor elétrico. No minuto seguinte, colocou duas tigelas dessa coisa na mesa. Nunca entendi por que ela, uma mulher que discursa com veemência acerca da comida saudável, não entende que esse coquetel de frutas está para a fruta assim como o isopor está para o pão.
Minha mãe transitava, selecionando talheres, guardanapos e água. Convenceu Annie a vir até a mesa e a fez sentar-se. Minha mãe tinha suas regras, e escutar más notícias com o estômago vazio era estritamente verboten, proibido. Prendi a respiração e provei uma colherada do coquetel de fruta. O microondas apitou.
— O que há? — Tentei mais uma vez.
— É meu tio Jack — Annie respondeu.
Embora sentisse culpa, respirei aliviado — tratava-se mesmo de uma "emergência familiar".
— Foi casado com a irmã de minha mãe. Eu lhe falei dele, lembra-se? É o policial que me prendeu por dirigir bêbada quando eu tinha dezessete anos. Deixou-me mofando uma noite na cela. — Annie sorriu ao recordar.
Eu me lembrava, sim. Annie me contara que, depois de beber umas poucas cervejas com amigos, voltara para casa dirigindo. Tio Jack a tinha feito parar, jogara o foco da lanterna no rosto dela e a obrigara a recitar o alfabeto. Ela nem sequer conseguira passar da letra H.
— Bem, ele sempre foi um tanto estranho, mas não caduco ou algo parecido. É um colecionador, uma daquelas pessoas que não consegue jogar nada fora. Desde que tia Felicia morreu a situação piorou.
— Oh! — minha mãe exclamou, olhando-me significativamente. — Tio Louie. — Ela colocou os pratos de carne assada e pudim de macarrão diante de mim e de Annie.
Eu recordava vagamente de meus pais fazendo uma viagem de emergência à Flórida. Eu devia ter uns dez anos na época. Retornaram acompanhados de uma alma vazia e magérrima que, segundo eles, fora certa vez o aposentado mais charmoso do pedaço. Tio Louie, o irmão mais velho de meu pai, morara conosco por mais de um ano antes de sofrer um derrame e ir para o hospital. Falecera logo depois.
— Minha mãe toma conta de tio Jack. Visita-o uma vez por semana. Anteontem ela foi vê-lo. Em geral, ele não a deixa entrar no apartamento, prefere encontrá-la na confeitaria do outro lado da rua. Mas dessa vez permitiu que ela entrasse.
— O apartamento está uma bagunça medonha e tio Jack parece viver em outro mundo. —As palavras contradiziam a seriedade em seu tom de voz. Ela continha as lágrimas. — Fui vê-lo naquele dia, depois do trabalho. Por isso não pude encontrá-lo no restaurante. Foi... horrível. Hoje estive lá novamente para tentar arrumar a desordem.
— No entanto, essa não é a pior parte. É tio Jack. Não sei como descrever... é como se estivesse oco por dentro. Está presente e, de repente, não está mais. Então, ele se curva e vagueia como um velho.
Nada daquilo soava bem. Comportamento apático. Andar ocioso. Sugeria algum tipo de demência.
— Quantos anos ele tem?
— Ainda não chegou aos setenta.
— Ele esteve doente?
— Não. Porém, minha mãe diz ter notado que nos últimos dois meses ele está mais confuso. E perdeu muito peso.
— Acha que ele está bem, vivendo sozinho?
— Contratamos uma enfermeira que o visita regularmente. E os vizinhos estão de olho nele. Tio Jack ficará bem por uma noite ou duas, mas depois...
— Ainda bem que a família está presente — minha mãe disse. — Quando seu pai e eu chegamos à Flórida, tio Louie estava em frangalhos e o apartamento... tornou-se uma atrocidade. Creio que não o limpavam desde a morte de tia Gertie. — Enxugou as mãos num guardanapo, como se a imundície do apartamento de tio Louie ainda estivesse na pele. — Ele havia esticado fios de extensão pela casa toda, pendurou-os em qualquer lugar. Era impossível chegar perto das paredes para usar as tomadas. — Assoprou o chá. — Não sei por que me lembrei disso.
— Por que isso tem de acontecer agora? — Annie perguntou. — Minha mãe pretende viajar para a Irlanda semana que vem. Ela nunca esteve lá. Seus parentes planejam uma reunião familiar e tudo mais. Agora ela alega que não poderá ir. Não sei o que lhe dizer.
Peguei minha agenda. Ao menos, aquela situação era algo com que eu sabia lidar e poderia ajudar.
— Por que não vamos juntos ver seu tio amanhã de manhã? Não tenho nenhum compromisso até as onze.
O alívio tomou conta do rosto de Annie. Então, ela olhou para o prato, como se a emoção a envergonhasse.
O assado desfazia-se de tão tenro e o pudim de macarrão estava denso e crocante na superfície, saboroso — não açucarado do jeito que as pessoas costumavam fazê-lo. Annie provou o dela. Ambos recusamos a segunda rodada.
Estávamos saindo quando minha mãe entregou a Annie um pote de plástico com a sobra do jantar e segurou-lhe os ombros com firmeza.
— Escute. Se houver algo que eu possa fazer para ajudar, basta pedir. — Annie assentiu, muda. — Já passei por isso. Ficar sozinha nisso não é nada bom.
Annie abraçou-a.
Para mim, minha mãe murmurou alto o bastante para qualquer um escutar, mesmo a três quarteirões de distância:
—Você faltou ao compromisso com ela por causa de um cérebro?
Na varanda, observei Annie vasculhar a mochila.
— O que aconteceu de verdade a você? — ela indagou.
— A mulher que trabalha na unidade... aquela que eu ajudei com o pneu furado outra noite, no Pearce?
— A que foi perseguida. — Annie estreitou os olhos. — Aconteceu outra vez?
— Não exatamente. Foi ela quem conseguiu que eu assistisse a uma IRM funcional. Quando ela saiu da garagem depois...
— Você a acompanhou até o carro?
— Sim. Notei que as luzes de freio não acendiam. Estavam funcionando na outra noite, e o carro é novo. Pensei... — Em que eu pensei? Por que saí correndo atrás dela e a segui até em casa? — Pensei que o carro estivesse adulterado. Talvez houvesse um vazamento de combustível também.
— Então, você a seguiu. — Annie tinha uma expressão divertida. Fazendo um retrospecto, não fora a atitude mais racional a tomar.
— O ex-namorado dela a esperava em frente ao prédio.
— Ele pensou que você fosse o perseguidor e vice-versa — Annie deduziu. — Dois protetores perseguindo o perseguidor. — Ela meneou a cabeça. — A mulher deve ser demais.
— Ela é... — Eu hesitei. — Ela é uma pós-doutoranda.
— Você é um bom homem, Peter — Annie disse, dando-me um tapinha indulgente nas costas. — Sabe, acho que gosto de você com esse olho roxo. Lembra Marlon Brando em Sindicato dos Ladrões?
— Eu poderia bancar a briga — protestei.
— Ele estava muito sensual no filme, sabe. — Annie sorriu para mim.
— Estava?
Eu a tomei nos braços e rocei-lhe o pescoço. Amava o perfume dela — era intenso e doce, como grama recém-cortada e melancia.
Em geral, Annie derretia-se em meus braços, mas essa noite parecia tensa.
— Estava, sim.
— Não precisa voltar para casa esta noite.
— Preciso.
— Annie?
Ela me fitou por alguns momentos e depois desviou o olhar.
— Desculpe, Peter. Não sou boa companhia. Estou morta de preocupação por causa de meu tio e odeio não poder fazer absolutamente nada a respeito. E detesto ter de pedir ajuda a alguém.
Antes que eu pudesse dizer "Mas não sou um mero alguém", Annie já estava a caminho da rua. Ela se voltou e me jogou um beijo. Então, entrou no carro, ligou o motor e se foi.
Droga. Abri a porta de casa e apaguei a luz da varanda. Voltei-me na direção em que Annie se fora.
— Lamento não ter estado com você esta noite.
O CHEIRO É O QUE SE NOTA primeiro. Comida queimada, naftalina e o intenso odor de suor seco da idade avançada. Já à entrada sentiam-se tais odores de forma marcante. O cheiro tornava-se mais forte à medida que subíamos ao apartamento de tio Jack no segundo andar. A escada do edifício de três pavimentos em Somer-ville estava enfeitada de pedaços de jornais.
— Não era assim no passado — Annie disse.
No saguão do segundo andar, havia mais jornais, latas de tinta velhas e usadas, sacos de supermercado empilhados uns sobre os outros. Espiei dentro de um deles. Havia dúzias de cilindros de papelão, aqueles que sobram no final do papel higiênico, guarda-napos de papel que pareciam ter sido usados e dobrados, um mapa rodoviário e um pote de plástico vazio de Windex.
Annie bateu à porta.
Pelo que pude ver, os sacos inferiores e os abaixo desses eram uma miscelânea — um continha brochuras, tampas de copos de plásticos e o outro continha caixas de confeitaria.
Annie bateu novamente.
— Ei, tio Jack, sou eu, Annie.
Nenhuma resposta. Ela destrancou a porta. O interior estava escuro e o ar parecia pesado e úmido. Mais sacos de supermercados, artigos de jornais e caixas encontravam-se na entrada, e o odor era ainda mais forte.
— Tio Jack! — Annie chamou-o.
De um lado, pude ver a cozinha, a pia entulhada de louça suja. Do outro lado, a sala de estar. Cortinas verdes cobriam as janelas altas. Um gato cinza e gordo pulou do encosto do sofá, aproximou-se e roçou o corpo na perna de Annie. Ela se abaixou e o afagou atrás da orelha. Ele se equilibrou nas patas traseiras, apoiou as dianteiras em Annie e emitiu um miado estridente.
— Olá, Columbo — Annie disse, pegando o gato. — Como vai? Columbo esfregou um lado do focinho na face de Annie, em seguida, o outro lado, marcando seu território. Gato esperto.
Um homem apareceu à porta da cozinha. Era alto e curvo. O cardigã preto parecia alguns números maior.
— Annie? — ele disse com a voz arrastada, o rosto apático e sem expressão. O cinto estava justo para manter a calça no lugar.
— Ouviu meu recado? Tio Jack olhou-a, confuso.
— Recado?
— Sim, liguei para dizer que estávamos vindo para cá. — Annie olhou-me ansiosa. — Este é meu amigo, Peter.
Caminhamos até a sala de jantar. Sobre o aparador havia uma foto de casamento em preto-e-branco. O homem, presumivelmente tio Jack, era cerca de trinta centímetros mais alto do que a jovem e radiante tia de Annie, Felicia. Pude notar um pouco de Annie nos olhos dela. Ele parecia um lutador, dado o jeito como as lapelas do paletó se dobravam no seu peito largo. Tio Jack passara por uma transformação e tanto, desde então.
— Amigo de Annie? — Tio Jack me encarou, seu rosto de repente tornando-se vivo e alerta. Senti-me como um adolescente que apareceu sem avisar para sair com a filha dele. Ainda possuía um aperto de mão firme.
Annie colocou Columbo no chão. O bichano foi em frente, farejou uma das três latas de comida de gato, torceu o nariz e desapareceu.
Alguns armários da cozinha estavam abertos. Um deles repleto de ração para gatos — latas de Friskies de bife e fígado, Friskies de frutos do mar, caixas de fígado de galinha e outro com mais de uma dúzia de caixas de Jell-O e mais comida de gato.
Tio Jack arrastou-se pela cozinha, com o andar retesado e movimentos espasmódicos. Havia cadeiras de metal com assentos de vinil vermelho, como o jogo de minha mãe. Correspondência, revistas, jornais e jogos americanos cobriam a mesa. Somente a área próxima à extremidade estava vazia.
— Sr. O'Neill? — disse eu. Ele assentia olhando para a mesa. Imaginei se não esperava que me sentasse. Toquei o braço dele. — Annie me contou que sua esposa faleceu. Lamento muito.
Não respondeu. Moveu-se até a pia com pequenos passos espasmódicos. Então, voltou à mesa. Sentou-se numa cadeira. O corpo vibrava e os olhos percorriam o espaço.
— O aspirador de Felicia pega coisas... — ele disse, dirigindo-se a uma das cadeiras. — Deixe a mesa... — Fez uma pausa. — Pare e Compre. — Eram palavras sem coerência.
Annie encostou-se na porta e levou a mão à testa.
Tio Jack tornou-se agitado quando fiz menção de me sentar na cadeira com a qual falava. Olhei para o assento, pensando que talvez houvesse algo sobre ele, mas não tinha nada.
Logo depois de eu ter ocupado a outra cadeira, ele levantou-se, saiu da cozinha arrastando os pés e atravessou o hall em direção aos fundos do apartamento.
— Ei, tio Jack! — Annie o chamou. — Aonde vai? Não pode ir tirar um cochilo. Acabamos de chegar.
Tio Jack riu e sacudiu uma das mãos, como se espantasse um enxame de mosquitos.
Eu o segui até o dormitório. O quarto estava em desordem tanto quanto o resto da casa. Havia dois aparelhos de TV, nenhum dos dois conectados à tomada, um aspirador de pó, vários ventiladores velhos, mais jornais, pilhas de lençóis e roupas. Longas tiras adesivas amareladas tapavam buracos e falhas na pintura das paredes — a versão singular de tio Jack para reforma.
— Como vai indo? — perguntei, tocando-lhe o ombro novamente a fim de chamar-lhe a atenção. Olhou-me como se me visse pela primeira vez. — Sou Peter. Amigo de Annie.
— Annie — tio Jack disse e olhou ao redor. Annie apareceu à soleira da porta.
— Chamou? — Ela se aproximou e segurou-lhe a mão. — Ei, colega. Como está se sentindo hoje, afinal de contas?
— Afinal de contas, afinal de contas — ele repetiu. —Já estive pior, sem dúvida. — Era uma resposta direta a uma pergunta direta. Pelo menos naquele momento ele estava conosco.
— Posso buscar algo para o senhor? — ofereci, quando ele moveu-se em direção ao corredor.
— Uma daquelas coisas lá fora — tio Jack disse.
— Que coisas?
— Nos degraus. Nos degraus.
Tio Jack sentou-se à mesa da cozinha.
— Jornal? — deduzi.
— Vou buscar — Annie prontificou-se. —Vi um lá fora.
Enquanto Annie ocupava-se com o jornal, pesquei uma moeda de vinte e cinco centavos do bolso. Coloquei-a na palma da minha mão. Precisava de um teste rápido a fim de avaliar a extensão do distúrbio de tio Jack.
— Conheço um joguinho... posso experimentá-lo com o senhor? Tio Jack viu a moeda.
— O dobro ou nada — disse.
— Está valendo. Vê essa moeda? — Fechei o punho, levei minhas mãos às costas, como para passar a moeda de uma das mãos à outra. Então, mostrei os dois punhos fechados. — Onde está a moeda? — Dessa vez, seria um jogo simples de adivinhação.
Tio Jack inclinou a cabeça e olhou uma das mãos, depois a outra. Apontou com o dedo a mão esquerda. Abri minha mão e mostrei-lhe. Ele acertara. Então, tentou pegar a moeda.
— Espere. Agora vou colocar a moeda na outra mão — informei bem devagar, com ênfase cuidadosa na palavra outra. Levei as mãos para trás e transferi a moeda. Então, expus meus punhos fechados.
Mais uma vez, os olhos de tio Jack correram de uma das mãos à outra. Esperei. Ele apontou a mesma mão em que acertara na primeira vez. Errado. Não foi um bom sinal.
O jogo simples era um teste de flexibilidade de pensamento — um dos primeiros sinais do início da demência. Fora meramente uma verificação aleatória, mas confirmou minha suspeita e o que eu sabia, Annie mais temia.
Escutei a porta da frente fechar-se e os passos de Annie na escada.
— Você ganhou — eu disse e entreguei a ele a moeda. Annie tirou o jornal daquele dia do plástico e o ofereceu a tio
Jack. Ele pegou o jornal e o saco plástico também. Cuidadosamente, alisou o plástico sobre a mesa e o dobrou em quatro. Então, levantou-se e o enfiou dentro do armário sobre a pia, o qual já estava entupido de sacos. Retornou à mesa, abriu o jornal e pareceu percorrê-lo com os olhos.
— Os Red Sox ganharam de novo — Annie comentou.
— Ah! — tio Jack exclamou. — É primavera. — Ele estava conosco outra vez.
Tio Jack movia os lábios e esfregava os dedos de uma só mão, revelando um leve tremor.
— Nixon é um bandido safado — disse.
— Havia fungos crescendo a um canto da pia — Annie contou, mais tarde, quando nos sentamos a uma mesa dos fundos um Dunkin Donuts.
Havíamos permanecido umas duas horas no apartamento do tio Jack. Lavei o chão da cozinha, o balcão e a mesa, enquanto Annie trabalhava na pia, no fogão e dava uma geral no banheiro. Jogamos fora as latas vazias de comida para gatos. Tio Jack ficou bravo quando tentei me livrar de alguns jornais.
Respirei o aroma do café e da rosquinha açucarada, na tentativa de eliminar o odor dos desvãos do apartamento. Uma pessoa no balcão me olhou com estranheza, lembrando-me de que meu olho roxo podia significar que eu batera de encontro a uma porta. Só doía quando eu sorria.
— Então? — Annie perguntou. — O que acha? Ele está presente às vezes. Em outros momentos, não está. — A voz soou vigorosa, como se ela tentasse conter tudo com a força do braço.
Cataloguei automaticamente o resto do que havia observado. Existiam problemas nomeáveis. Sintomas de Parkinson, tremores e andar arrastado. Abstinência social. Pouca higiene. Acumulação. Quando reunidos, formavam um conjunto de sintomas para o qual tínhamos um nome, embora não fosse um diagnóstico preciso: síndrome de Diógenes. Diógenes de Sinope fora um filósofo da Grécia antiga que supostamente mostrara seu contentamento pelas coisas materiais vivendo quase na penúria. Vagava por Atenas com um lampião, durante o dia, à procura de um "homem honesto", mas nunca encontrava nenhum. A síndrome de Diógenes em geral marcava o limite entre excentricidade e uma demência como Alzheimer ou corpos de Lewy. Sem intervenção, metade dos pacientes com a síndrome de Diógenes morre em menos de um ano.
Além da síndrome de Diógenes, notei o início rápido dos sintomas, alta energia, aumento e diminuição da consciência. E perguntei-me se ele vira alguém ou algo naquela cadeira em que não me deixara sentar. Talvez estivesse sofrendo alucinações.
Caso eu tivesse de dar um diagnóstico, diria tratar-se de demência com corpos de Lewy. As opções terapêuticas comuns eram, na melhor das hipóteses, paliativas. Não queria alimentar esperanças em Annie, mas pensei se o dr. Shands não estaria disposto a avaliar o tio dela. Talvez inseri-lo no estudo de pesquisa e qualificá-lo para um tratamento experimental.
— Ele precisa ser avaliado — eu comecei. — Provavelmente não obteremos uma resposta definitiva, mas essa avaliação pode indicar que tipo de tratamento...
— É tratável? — Annie perguntou, agarrando a possibilidade.
— Há drogas que podem atenuar os sintomas, somadas a tratamentos experimentais que se mostram promissores.
Annie pressionou o dedo no plástico da xícara.
— Está dizendo o quê? O diagnóstico é falho e o tratamento é experimental?
Doía-me admitir que ela estava certa. Bem-vinda a meu mundo — saúde mental moderna, casa de fumaça e espelhos.
— As pessoas com esse problema sempre terminam vivendo assim? — Annie perguntou.
— Você e sua mãe descobriram em tempo. Muito antes do que teria descoberto qualquer pessoa que morasse sozinha.
— Se eu o visitasse com mais freqüência, talvez...
— Annie — eu a interrompi, inclinando-me sobre a mesa e tocando-lhe o braço —, podemos limpar o apartamento. Contratar um auxiliar geriátrico para ajudar na rotina. Isso o fará ganhar tempo. Mas ele necessita de uma avaliação minuciosa, para que posamos saber contra o que estamos lutando. Annie empurrou o café.
— Você acha que estou negando o problema.
— Não é a primeira pessoa a ter dificuldades de aceitar uma doença como essa.
— Isso devia me tranqüilizar.
Negação, raiva — eram reações perfeitamente normais.
— Escute — eu disse. — Neguei totalmente quando meu pai começou a apresentar sintomas inconfundíveis de Alzheimer, e eu era um especialista na doença.
Um pouco da tensão desapareceu do rosto de Annie.
— Acho que não estou pronta para perdê-lo.
— Deixe-me ver se consigo admiti-lo em minha unidade. Poderemos fazer alguns exames, tentar descobrir o que está havendo. Talvez existam medicamentos que possam ajudar. E há algo que você pode fazer agora. Faça-o assinar uma procuração que vise o cuidado com sua saúde e dê a você poderes de advogado. Assim, tomará as decisões que acha que ele tomaria.
— Quando ele estiver incapaz de tomar decisões? — Anni indagou, lendo as entrelinhas. — É assim tão ruim?
Infelizmente, não pude discordar.
— Os TREMORES, de certa forma, melhoraram, mas ele ainda tem alucinações — Gloria relatou. Tio Jack encontrava-se conosco na unidade havia dois dias. Estávamos discutindo seu caso na reunião matinal. — Ele continua pescando coisas no ar e levando a alguém chamado Felicia.
— Essa é a esposa falecida — eu disse. Kwan estava com o prontuário de tio Jack.
— Início rápido, sintomas parkinsonianos, alucinações visuais... Hmmm, o que temos aqui? — ele perguntou, olhando para Emily.
— Demência. Talvez Alzheimer. Possivelmente, corpos de Lewy.
— Quando obteremos um diagnóstico definitivo? — Kwan indagou.
— Existe um exame novo — Emily disse. — Estão realizando pesquisas a respeito dele no Centro Médico Universitário de Diagnóstico por Imagem, onde também trabalho em parceria. O dr. Shands foca todo o estudo na demência com corpos de Lewy.
— James Shands? — Kwan quis saber.
— Você o conhece? — perguntei. Kwan cerrou os lábios.
— Por reputação.
Eu conhecia Kwan tempo suficiente para ler suas expressões. Ele tinha reservas quanto ao grande dr. Shands.
— Uma vez que o exame não mudará o tratamento, para que realizá-lo? — Kwan continuou. — O sr. O'Neill já está tomando remédios para mitigar os sintomas.
— Há uma pesquisa para o qual ele pode estar qualificado — Emily argumentou.
— Protocolo experimental? — Kwan deduziu.
— Os resultados recentes são promissores. Nossa hipótese é a de que o aumento da permeabilidade das membranas das células do cérebro pode neutralizar alguns dos efeitos da demência com corpos de Lewy. Administramos uma droga usada para baixar o nível do colesterol.
— Não há riscos — garanti. — Eles fazem os testes num novol sistema de imagens. Quatro-ponto-cinco tesla.
As sobrancelhas de Kwan ergueram-se alguns pontos acima do normal. Agora ele parecia impressionado.
— Talvez seja uma boa idéia. Se funcionar, um contato mais próximo com eles não nos fará mal. Eles provêem os fundos, nós provemos os pacientes. Todos ganham.
Fiquei a sós com Kwan após a reunião.
— Então, você conhece o dr. Shands?
— Claro. É o bambambã da imagem por ressonância magné tica funcional.
— E...?
Kwan permanecia sentado como um Buda, aquele que tudo sabe e pouco diz.
— Escute, se houver algo que o desabone, não quero que nossos pacientes participem da pesquisa. Não precisamos de um contato como esse. Há muitos outros especialistas...
— Como especialista, ele é o único de sua classe. Não encontrará ninguém que saiba mais. Shands escreveu artigos excepcionais. E, claro, é um tremendo narcisista.
O que havia de novo? Cada pesquisador que realizava trabalhos fundamentais tinha de ter uma dose saudável de narcisismo ou jamais sobreviveria aos céticos e pessimistas.
— E?
— Ouvi dizer que é um cretino. Um mulherengo.
Macho alfa. Pênis alfa. Lembrei-me da discussão que escutei entre Shands e a dra. Estelle Pullaski. Aquele nível de raiva raramente surgia de diferenças profissionais.
— E gosta das mais jovens — Kwan acrescentou.
— Ele se meteu com as assistentes de pesquisa?
— Pode ter havido no passado situações feias que foram abafadas. Minha antena ficou ligada. Eu evitava acreditar num boato sem questioná-lo primeiro. Não muito tempo atrás, as armas primárias de um administrador para estimular atritos no Pearce foram rumores e insinuações. Tive uma boa amiga, uma psiquiatra, cuja reputação havia sido esmigalhada devido a uma campanha de intrigas. Como fora assassinada antes que pudesse se defender, fiz isso por ela.
Devo ter expressado ceticismo porque Kwan ergueu as mãos.
— Essa é a fama dele. Só estou lhe dizendo o que ouvi falar. — Ele pigarreou e olhou ao redor. Não havia ninguém à vista nos escutando. — Não sei se ele e a dra. Ryan estão... você sabe.
Pensei em Shands, naquela presença reluzente que iluminava qualquer lugar. Estaria Emily seduzida pelo carisma tanto quanto estava fascinada pelo brilhantismo intelectual de Shands? O que ele deduziria ao ver Emily no trabalho vestindo um conjunto decotado sem nada sob a combinação? E quanto à maneira com que o tocava quando falava com ele? Shands provavelmente entenderia que ela dava a ele certas liberdades. Afinal, essa era a tática dele. Oferecera a Emily crédito no artigo, algo que Philbrick confessara ter levado três anos para alcançar. Seria um suborno para favores futuros ou uma recompensa por serviços prestados? Era muito fácil para alguém como Shands tirar vantagem de sua posição. Principiantes, em geral, eram ambiciosos, ávidos para agradar, e essa equação poderosa estabelecia-se contra eles.
A princípio, pensei que tio Jack estivesse brincando com um pedaço de barbante, segurando-o com as mãos, puxando-o de um lado a outro. Então, percebi que não havia nenhum barbante.
Nós o instalamos num quarto ensolarado e ele logo se acomodou. Artigos de revistas e jornais já estavam espalhados pelo cômodo, pendurados na cadeira, na cama e no criado-mudo. No parapeito da janela, ele começava uma coleção de saquinhos de açúcar. E não era só isso. Havia um chaveiro prateado com chaves de carro, quatro canetas do Instituto Psiquiátrico Pearce e um par de óculos escuros feminino. Aparentemente, era um colecionador que se servia de objetos aleatórios. Coloquei as chaves em meu bolso com a intenção de levá-las ao nosso Achados e Perdidos, e ainda me fiz um lembrete mental de que precisávamos ficar de olho em tio Jack.
— Bom dia, sr. O'Neill — cumprimentei-o. Minha voz o distraiu somente por um momento. Agora ele erguia o barbante fantasma e o examinava. Pelo menos, a medicação que Kwan havia ministrado abrandara os tremores.
— O que o senhor tem aí? — perguntei. — Posso ver?
— Num cinema perto de você — ele disse, estendendo-me a mão. — Felicia ganhou cartas.
De repente, ele arregalou os olhos e jogou-se para trás, como se alguém o agredisse no rosto. Soltou um grito e os ombros moveram-se em sobressalto. Então, permaneceu onde estava, de olhos arregalados e ofegante, a respiração o exaurindo. Havia alucina-ções benignas com as quais você podia brincar de cama-de-gato e havia esse tipo de alucinação que o tirava do mundo consciente.
Liguei para Annie e contei-lhe acerca das alucinações perturbadoras.
— Porém, de modo geral, ele está se adaptando bem. Parece até gostar da comida. Assim que obtivermos mais diagnósticos definitivos, teremos uma idéia mais afinada quanto ao melhor tratamento. Estamos tentando agendar uma IRM funcional para ele.
— Você vai introduzi-lo numa daquelas máquinas? Não irá perturbá-lo?
— É provável. Mas o exame possivelmente nos dará um diagnóstico. Podemos sedá-lo...
— Sedá-lo? — Annie pareceu horrorizada.
— Algo de curta duração. Não haveria efeito duradouro. Houve um silêncio do outro lado da linha.
— Posso assistir, pelo menos?
— Vou perguntar. — Eu já elaborava argumentos para ludibriar a política de "proibida a presença de estranhos". — Como está o apartamento?
— Estamos progredindo. Devagar. São anos e anos de acúmulo de coisas. Como tudo chegou a esse ponto sem que nós percebêssemos?
— Para começar, você me disse que seu tio era um pouco obsessivo. Ele sempre colecionou coisas, certo?
— Sim, mas não como agora.
— Quando a demência começa, a pessoa, para lidar com a doença, costuma com freqüência concentrar a energia que lhe resta numa única coisa que ainda pode controlar. Os psicólogos usam uma palavra extravagante para definir esse comportamento: hipercatexia. A coleção torna-se acumulação, e logo a pessoa reluta em jogar qualquer objeto fora porque, um dia, pode precisar dele. Tudo gira em torno de tentar evitar que o mundo interno saia do controle.
Annie soltou uma risada frágil.
— Nesse caso, ele ficará furioso quando voltar para casa e encontrar tudo limpo.
Ela ainda não estava pronta para ouvir, mas era muito pouco provável que tio Jack voltasse para casa.
Quase não havia lugar para sentar na sala de espera. Devido a um cancelamento, Emily fora capaz de encaixar seu tio às nove horas. Acompanhei tio Jack na ambulância. Annie convencera a mãe a não adiar a viagem à Irlanda e a deixara em Logan antes do anoitecer. Emily ajudara-me a convencer o dr. Shands a permitir que Annie observasse.
Tio Jack calçava sapatos novos e calça caqui pregueada que parecia muito limpa. Estava barbeado, a pele translúcida, e marcas de pente alinhavam os cabelos. Agora ele lia um artigo intitulado "Mania de Golfe". Então, rasgou uma página da revista, depois outra. Cuidadosamente, dobrou-as e as enfiou no bolso da calça. Depois, rasgou um cupom de desconto para dezoito buracos num clube em Myrtle Beach e o colocou em seu esconderijo secreto.
Quando a recepcionista veio buscá-lo, o bolso de tio Jack estava abarrotado. Ela nos disse que fariam um breve exame físico. Quando tio Jack estivesse pronto, alguém viria nos chamar.
Annie levantou-se quando o tio retirou-se.
— Ele ficará bem sozinho?
— Eles lidam com pacientes dementes o tempo todo. É como um hospital — expliquei.
Annie olhava a porta pela qual tio Jack desaparecera, como se alguma força a puxasse. Com um suspiro, ela foi à mesa de revistas e escolheu a Time. Sentou-se e folheou as páginas, em seguida, deixou a revista aberta no colo e fitou o espaço.
Ela se inclinou e sussurrou em meu ouvido:
— Sabia que o magneto de uma IRM é quatro vezes mais poderoso que os utilizados para erguer carros no ferro-velho? Tempos atrás, em Rochester, um magneto arrancou uma arma calibre 45 da mão de um policial. A arma disparou uma bala que terminou na parede.
— É mesmo? Não sabia — disse, reprimindo o riso. Era um alívio descobrir que um pouco da velha Annie ainda estava lá. — Presumo que você não tenha trazido sua pistola.
— Achei que seria um erro trazê-la.
— Bem pensado.
Quando Leonard Philbrick apareceu para nos buscar, vestia o que parecia ser o mesmo jaleco amarfanhado. Hoje o setor interno borbulhava de atividade. Um homem e duas mulheres, em ja-lecos brancos e crachás presos aos bolsos, trabalhavam no balcão da área central. Um homem com estetoscópio no pescoço passou, carregando um prontuário enorme. Uma enfermeira precipitava-se por um dos corredores. Telefones tocavam e, num canto, a parede se iluminava enquanto a recepcionista usava a copiadora.
Annie deixou sobre a mesa a mochila de couro e um canivete que tirou do bolso. Esvaziei meus bolsos.
Philbrick nos levou à sala de controle. Annie olhou a sala de escaneamento pela janela de vidro, onde Emily mostrava a máquina a tio Jack. Ele vestia uma bata hospitalar azul e branca e parecia ainda mais frágil e inseguro.
— Sr. O'Neill — Emily disse, aproximando o rosto. Sua voz soava levemente distorcida e fraca nos alto-falantes. — Vamos pedir-lhe para subir nesta mesa. — Pôs a mão de tio Jack na plataforma acolchoada. — E então ergueremos a mesa e o colocaremos lá dentro. — Tio Jack olhou o interior do tubo branco de metal maciço.
Ela prosseguiu com uma explicação simples do procedimento.
— O senhor ouvirá muito barulho, o que é perfeitamente normal. — Emily mostrou a tio Jack um par de fones de ouvido pretos. Colocou-os sobre a cabeça de tio Jack e os ajustou. Tio Jack agora parecia um inseto com enormes olhos compostos nas laterais da cabeça.
Ela o ajudou a sentar na mesa e deitar-se com a cabeça voltada para o tubo. Ele lá permaneceu, piscando para as caixas de luzes fluorescentes, a nuca apoiada num travesseiro de espuma. O único sinal de agitação eram as mãos inquietas.
Emily passou as tiras de velcro sobre a cabeça dele e ajustou-as. Então, pegou o que parecia uma gaiola de plástico e colocou-a sobre a cabeça de tio Jack. Pegou o microfone de uma mesa ao lado e disse:
— Pode me ouvir? — Tio Jack pulou ao som da voz dela. — Ótimo. Vou lhe fazer algumas perguntas. Vamos experimentar.
Pediu para tio Jack fechar e abrir os olhos. Pediu-lhe para dizer o nome. Estalar os dedos. Era uma versão simplificada do protocolo que ela utilizara com o sr. Black, sem as bolas para apertar e sem as imagens. Tio Jack conseguiu realizar a maioria das tarefas que ela pediu.
— Agora vou colocá-lo no escâner — Emily informou. — Depois irei para a outra sala. Pronto?
Ela apertou um botão e a mesa começou a deslizar até que a cabeça de tio Jack chegou ao centro do tubo. Seus pés em chinelos de papel apontaram em nossa direção.
— Deus, já detesto esse exame — Annie murmurou para mim. Emily retornou à sala de controle. Philbrick sentou-se diante do monitor ao longo do vidro que expunha a sala de escaneamen-to. Digitou algo e uma janela negra surgiu.
Emily pegou o microfone do painel de controle e começou a falar.
— Relaxe, sr. O'Neill. Estou com o senhor. Vamos iniciar. Quando ligarmos a máquina, haverá muito barulho. Não se preocupe, é perfeitamente normal.
Zunidos emergiram e uma imagem cinza e tridimensional tomou forma num canto do monitor. Philbrick clicou sobre a imagem para aumentá-la.
— É o cérebro de seu tio Jack — ele disse a Annie.
— Nossa! — Annie ficou boquiaberta.
Senti um alívio profundo e inesperado. Não havia percebido quanto importava a mim que Annie achasse tudo aquilo formidável.
Philbrick inclinou-se para a frente e coçou o rosto, ao observar a imagem. Notei um arranhão na sua face e vestígios de sangue no canto do olho. Pelo jeito, ele se metera numa briga. Não parecia esse tipo de cara, mas tampouco eu parecia. Fazia uma semana que me atracara com Kyle, o ex de Emily. Tudo que restava era um tom amarelado e uma leve sensibilidade.
Annie apoiou-se na mesa e observou intensamente. Agora a máquina começava a trepidar.
— O que é isso? — Annie perguntou. A imagem então ficou fosca por um momento. — O que aconteceu? — ela indagou em tom de pânico. Levantou-se e pressionou o rosto no vidro.
— Seu tio se mexeu — Philbrick explicou. — Lá vem ele. — O cérebro reapareceu.
— Tem certeza de que ele está bem? — Annie perguntou.
— É absolutamente indolor — Philbrick garantiu. O cérebro tremeu novamente.
— Sr. O'Neill, por favor, tente manter a cabeça imóvel — Emily pediu.
Aquilo não tinha nada a ver com os dados básicos que observei quando o sr. Black fez sua ressonância. Pude sentir meu coração disparar à medida que assistia à atividade intensa. Houve pequenas explosões de verde e amarelo; em seguida, flashes de laranja e vermelho atrás da testa, no sistema frontal, e mais no centro do cérebro, no sistema límbico.
— Ele está tendo uma crise de pânico — anunciei e levantei-me, derrubando a cadeira.
— Por favor, tente ficar quieto — Emily disse ao microfone. A imagem mais uma vez saiu de foco. — Sr. 0'Neill! — Emily tentou.
Os pés de tio Jack davam chutes. Um dos chinelos caiu e flutuou até o chão. Eu me sentia como se assistisse à tortura de alguém.
— Tirem-no daí — Annie ordenou com a voz estridente. Precipitou-se para um painel de botões vermelhos onde havia a palavra EMERGÊNCIA. — Como diabos se desliga essa coisa?
— Não toque neles! — Philbrick berrou. Annie afastou-se. — Meu Deus, antes que você destrua o sistema, deixe-me cui-dar disso.
Apesar dos ruídos da máquina, pude escutar a voz fraca de tio Jack.
— Socorro! Socorro!
Philbrick pressionou um botão com os dizeres PARAR O ESCÂNER e a máquina ficou em silêncio. As vibrações que agora ouvíamos era tio Jack dentro do tubo.
Annie e eu seguimos Philbrick e Emily à sala de escaneamen to, mas ele nos deteve.
— Por favor, deixe que cuidemos de tudo. Não irá ajudar fi carmos os quatro ao redor dele.
Annie e eu assistimos através da janela. Pareceu durar uma eternidade para a mesa sair do tubo.
— Não estou morto — tio Jack disse. Ele estava chorando. Philbrick moveu uma alavanca e a mesa saiu da máquina. Ele soltou o velcro que prendia a cabeça de tio Jack.
— Pare o caixão. Deixe-me sair! — Sobreveio então uma sucessão de sílabas ininteligíveis, enquanto tio Jack lutava contra as tiras que ainda o prendiam. Ele se molhara e a urina, escorrendo da mesa, pingava no chão.
Philbrick inclinou-se para seu rosto ficar no mesmo nível que o de tio Jack. Pousou a mão sobre o peito ofegante.
— Sr. O'Neill, está tudo bem. — A voz dele chegava aos alto-falantes. — Calma. Tente relaxar.
Annie respirava no mesmo ritmo que o tio e tinha uma das mãos pousada em meu braço.
Philbrick soltava as tiras, enquanto continuava a falar com suavidade.
— Vai ficar tudo bem. Estou aqui com o senhor.
Fiquei perplexo. Philbrick não se assemelhava em nada com o camarada bem-comportado que dizia jargões e evitava o contato visual. Eu nunca teria imaginado, mas estava claro que os modos gentis eram tão úteis a Shands quanto seu conhecimento técnico.
A respiração de tio Jack transformou-se em chiados. Emily foi para o outro lado da mesa e segurou uma das mãos dele, enquanto ele se agitava como um mosquito preso ante os vidros de uma janela.
— Não me enterre — ele dizia com a voz fraca e trêmula. Nenhum sinal de palavras incoerentes. Um choque emocional
muito forte às vezes podia causar esse efeito, limpar as sinapses como um espirro.
— Chame o dr. Shands — Philbrick ordenou a Emily. Então voltou a atenção para tio Jack. Ajudou-o a sentar-se. Tio Jack olhou o próprio colo e gemeu.
Momentos depois, foi a dra. Pullaski quem apareceu. Tio Jack afastou-se, assustado, quando ela começou a examinar seu rosto. Gentilmente, ela segurou-lhe o pulso e tomou a pulsação.
— Devíamos tê-lo sedado antes, mas não sabíamos que estava tão volátil — ela comentou.
— O sr. 0'Neill não estava volátil — Emily argumentou. — Não até agora.
A dra. Pullaski nem sequer considerou o que Emily tinha dito. Ela tirou uma seringa hipodérmica do bolso. Eficientemente, ergueu a manga de tio Jack, esterilizou a pele e injetou a agulha. Devagar ela aplicou a injeção. Em segundos, os ombros e a face de tio Jack relaxaram, e os vestígios de agitação esmoreceram.
A dra. Pullaski pousou o estetoscópio no peito de tio Jack e auscultou. Pediu que Emily buscasse oxigênio.
Philbrick foi até a pia e colocou água numa bacia. Calçou luvas de látex e, delicadamente, lavou as pernas de tio Jack com uma esponja. Em seguida, pegou uma toalha e o secou. Depois, ajudou tio Jack a vestir a bata hospitalar limpa. Enquanto ele enxugava a mesa, Emily retornou puxando um carrinho com um cilindro de oxigênio.
— Isso o ajudará a respirar — Philbrick disse, mostrando a máscara a tio Jack. Tio Jack esquivou-se. Philbrick segurou a máscara a poucos centímetros do próprio rosto e inspirou, mostrando a tio Jack como funcionava. Então, gentilmente, posicionou a máscara sobre a boca de tio Jack.
— Apenas respire e tente relaxar — disse. — Isso mesmo, respire fundo. — Philbrick prendeu a máscara ao redor da cabeça de tio Jack.
A dra. Pullaski e Philbrick conversaram em voz baixa. Ambos olharam a janela em direção a mim e Annie. Então, deixaram Emily com tio Jack e vieram à sala de controle.
— Dr. Zak, esse não é seu paciente? — a dra. Pullaski perguntou. — Devia ter nos avisado. Sei que não preciso dizer-lhe quão mais eficiente é o exame quando podemos prever acontecimentos como esse.
Não havia sido uma decisão impulsiva. Kwan e eu tínhamos discutido e ambos concluímos que a sedação seria desnecessária. E mais, um sedativo poderia deixar tio Jack menos receptivo ao protocolo de teste. Embora eu não gostasse de admitir, havia pesado também a aversão de Annie a sedar tio Jack. Com aquela percepção tardia, estava evidente que eu cometera um erro.
— Estamos prontos para tentar novamente — Philbrick anunciou.
— Está brincando — Annie disse, incrédula.
— Com o sedativo, seu tio ficará bem — a dra. Pullaski garantiu.
— Ficou louca? — Annie retrucou.
Tio Jack olhou para a janela. Philbrick tapou o microfone.
Eu sabia que era procedimento operacional padrão não deixar que a família observasse tais processos justamente por essa razão. Isso não suavizou nada, e agora a preocupação de Annie com o tio influenciava seu julgamento quanto ao que era melhor para ele.
Philbrick me encarou como quem dizia: A idéia foi sua. Agora resolva.
— Annie, pense por que está aqui — argumentei. — Esta máquina é a única que consegue realizar este tipo de teste. Podemos obter um diagnóstico. Talvez até um tratamento.
— E se ele tiver um enfarte ou um derrame lá dentro?
— Nós o estaremos monitorando. Se ele ficar aflito novamente, pararemos tudo — Philbrick disse.
— Terminará antes que você perceba — acrescentei.
— Mas... — Annie começou, com lágrimas por trás de sua muralha de raiva.
— Srta. Squires — a dra. Pullaski disse, gentil —, o dr. Shands e eu realizamos esse trabalho há mais de uma década. Examinamos pacientes como seu tio todos os dias da semana. Esta é a rotina. Seu tio ficará bem. Deixe apenas que façamos nosso trabalho.
Nós a rendemos — três contra um. Não foi justo, mas foi o certo a fazer. Finalmente ela concordou.
Philbrick voltou à sala de escaneamento e auscultou o coração de tio Jack. Removeu a máscara de oxigênio e Emily afastou o tanque. A cor de tio Jack aproximava-se do normal e suas costas estavam eretas. Agora ele sorria e recolhia bolas de poeira imaginárias do chão.
Dessa vez, Philbrick encarregou-se de tudo. Observamos enquanto ele ajudava tio Jack a deitar-se. A tela do computador oscilava onde o cérebro de tio Jack estivera. Olhei o painel vermelho sobre o qual Annie quase apertava um botão. Poderia ela realmente ter destruído o sistema ao pressioná-lo? Outra boa razão para impedir a presença de visitantes.
Philbrick posicionou a gaiola de plástico sobre a cabeça de tio Jack e, então, fez deslizar a mesa em direção ao tubo.
— Peter, tem certeza de que isso ajudará meu tio? — Annie perguntou, apreensiva. — Diga-me que não é um procedimento inútil e estúpido.
— Não é. — Apertei a mão dela e esperei que estivesse certo.
Ao longo do resto do teste, Annie ficou sentada, agarrada aos braços da cadeira, o maxilar tenso. Não relaxou nem mesmo quando tio Jack, depois de vestir as próprias roupas, estava a caminho do Pearce e nós esperávamos por Shands na sala de controle.
Podíamos ver Philbrick enxugar o sistema da IRM e novamente a mesa, enquanto Emily limpava a sala. Ela carregava um esfregão e um balde de água. De repente, virou-se com olhos arregalados e a boca aberta em protesto. A frente do jaleco dela estava puxando, como se uma criatura em seu bolso lutasse para fugir. Ela derrubou o balde, espalhando água pelo chão, quando tentou levantar-se.
— Cuidado! — Emily gritou assim que o bolso rasgou e algo foi lançado pela sala, batendo no escâner a menos de trinta centímetros de Philbrick.
Ele se encolheu, cobrindo a cabeça com os braços. Então, vi-rou-se devagar e fitou o objeto — o magneto em formato de disco de hóquei, que Emily usara para verificar se os visitantes portavam metais, agora estava grudado à lateral do escâner. Ela, no mínimo, utilizara-o para checar o cilindro de metal e, sem pensar, jogara-o no bolso do jaleco. Quando encarou Emily, Philbrick pareceu aumentar de tamanho à medida que sua raiva dominava a sala.
— Qual é seu problema? O escâner é um imã. Um imã gigante. Certo? Não trazemos objetos magnéticos a esta sala porque, repita... comigo — ele vociferou com Emily — o campo magnético está sempre ligado!
— Desculpe-me — Emily gemeu.
— Repita!
— O campo magnético está sempre ligado.
Eu me contorci ao sentir Annie me olhando. Sabia em que ela pensava. E você ainda confia nessas pessoas?
Nós NOS SENTAMOS a uma mesa pequena na sala privativa de reuniões com Shands. Philbrick mostrava-se evidentemente aborrecido com Emily. Ignorava as repetidas tentativas de desculpar-se. Annie estava tensa e ansiosa demais para notar.
Shands contou-nos que tinha visto a IRM de tio Jack.
— Em princípio, eu diria que o sr. O'Neill possui no cérebro as mudanças que nós procuramos. São os sinais iniciais do que identificamos como demência com corpos de Lewy. — Falava como quem anuncia a previsão do tempo. Dia claro, com poucas nuvens... — Acredito que uma análise mais minuciosa confirmará minha suspeita.
Eu queria esmurrar o babaca. Estava completamente alheio ao impacto que a notícia causava em Annie. Ela ficou pálida e seu maxilar tremia.
— Gostaria de inscrever seu... — Shands parou, consultando um prontuário.
— Tio — Annie completou a frase.
Shands olhou para cima, momentaneamente atordoado.
— Sim, gostaríamos de inscrever seu tio em nosso estudo. — Então, ofereceu um sorriso compreensivo a Annie. — Estou certo de que Peter lhe contou que estamos testando um novo tratamento para a demência com corpos de Lewy. Os resultados até agora são promissores, embora, é claro, nunca haja garantia. E tampouco saberemos se seu tio estará obtendo o tratamento ou apenas o placebo.
Annie o encarava, mas eu não tinha certeza de que ela processava as palavras.
— É a triagem clínica — expliquei. — Eles alocam metade dos pacientes no tratamento e a outra metade recebe pílulas de açúcar. Nem mesmo os médicos saberão o que tio Jack estará tomando.
— E se ele receber o placebo?
Engoli em seco.
— Mesmo assim, ainda estará obtendo outro tratamento, algo para os tremores e as alucinações.
Shands acomodou-se na cadeira e olhou para as próprias mãos.
— Há evidências de que esse tratamento aumenta a permeabilidade da membrana das células cerebrais — disse, falando com os dedos.
— Isso significa o que exatamente? — Annie perguntou.
Ele não podia explicar em português? Pensei ter visto a sombra de um sorriso no rosto de Philbrick. Shands entrelaçou os dedos.
— Isso pode atrasar o progresso da doença, atenuar os sinto-mas... talvez mais. Se for ministrado mais cedo, pode até prover uma cura — Shands explicou, agora mais devagar. — Essa é a esperança. Claro, seu tio já mostra os sintomas evidentes de demência. — Annie contraiu-se ao ouvir as palavras. Ele prosseguiu: — As triagens são feitas para nos ajudar a descobrir quais são exatamente os efeitos do tratamento.
Duvidava que Shands estivesse causando em Annie a mesma impressão que em geral inspirava aos membros da família de outros pacientes.
— E quanto à droga que ele tomará? — ela perguntou.
— Cimvicor — Shands disse. — Já aprovada pela FDA para o tratamento do colesterol alto. Geralmente bem tolerada. Nós a administramos em dosagens altas. É claro que há efeitos colaterais. Em suma, pode causar reações adversas.
Shands entregou a Annie um papel. Li o conteúdo sobre o ombro dela. Embora o risco da maioria daqueles pesadelos fosse baixo, a lista ainda assim era assustadora. Começava com dispep-sia e zumbido nos ouvidos, depois seguia para fotossensibilida-de, debilidade visual, fraqueza muscular e disfunção do fígado. Os médicos tinham a permissão de expor, no pior caso, qualquer discussão referente ao tratamento. Mas, mesmo para mim, era impossível saber o que fazer com aquela lista de disfunções. Basicamente, ela era um excelente salvo-conduto, se alguém resolvesse processá-los.
— Gostaríamos de colocá-lo no regime do tratamento e ver como ele responde. Corri sua permissão, é claro. Então, nós o testaremos novamente a cada duas semanas — Shands disse.
— Mais IRMs? —Annie gemeu.
— E importante monitorar seu progresso.
— Se eu fosse a paciente, não quereria voltar àquela máquina. Pode ter certeza — Annie afirmou.
— Por volta da hora do almoço, ele terá esquecido tudo — Shands informou, complacente.
Não foi o mais adequado a dizer.
— Eu não esquecerei — Annie rebateu com a voz fria.
Shands sobressaltou-se.
— Lamento — ele disse. Pela primeira vez pareceu realmente olhar para Annie e pensar por alguns momentos antes de falar. — Sei que às vezes me mostro insensível. Não é minha intenção. Talvez eu deva explicar. — Agora o tom de voz soava baixo, como se ele e Annie fossem os únicos na sala. — A medicina tem sido excelente para ajudar as pessoas a viverem com saúde, mas é muito deficiente quando se trata de oferecer qualidade de vida durante os últimos anos. Mais de quatro milhões de americanos sofrem de demência. Estamos prestes a obter a maior descoberta científica. — Havia paixão na voz dele e os olhos brilhavam. — E, enquanto seu tio possui apenas cinqüenta por cento de chance de obter um tratamento novo, ele tem cem por cento de chance de ajudar a salvar incontáveis outros dessa devastação, isso sem mencionar que estará poupando famílias do sofrimento que você vive agora.
Annie recostou-se na cadeira, arrasada. Shands empurrou mais papéis sobre a mesa.
— Essa é a papelada da qual necessitamos para iniciar o processo. Infelizmente, a pesquisa acarreta muita burocracia.
Annie passava os dedos pelas páginas, mas não as estava lendo. O choque do diagnóstico. As incertezas do tratamento. Eu sabia como era. Shands ofereceu-lhe uma caneta e Annie fitou-a.
— Ela não precisa decidir neste minuto — eu disse. Annie me olhou com gratidão.
— Lógico que não. São muitas informações para digerir —
Shands acatou, recolocando a caneta no bolso. — Eu não poderia deixá-la assinar os formulários de consentimento agora. Leve-os com você. Pense a respeito. Restam somente algumas vagas no protocolo de pesquisa. Se não for nesse estudo, estou certo de que haverá outro posteriormente. Mas tenha em mente que quanto mais cedo começarmos, melhores serão as chances de o tratamento ser efetivo.
Annie e eu acompanhamos Emily até o elevador do saguão. Annie estava exausta, angustiada.
— Sei que o dr. Shands parece um tanto distante — Emily admitiu. Aquilo, em minha opinião, era apenas o começo. Um narcisista pretensioso, um cara com a sensibilidade de uma lixa. Porém, tive de admirar sua intensidade e sincera congruência — sem dúvida, era um homem que acreditava no próprio trabalho.
— Ele é um pesquisador brilhante — Emily continuou. — Seu trabalho está anos-luz à frente dos outros.
Num murmúrio que somente eu pude ouvir, Annie comentou:
— Não seria a primeira vez que o gênio é um idiota.
Às vezes, eles davam as mãos. Lá estava o menino de ouro que obtivera exclusividade numa nova tecnologia e com ela avançava. Pelo menos, tinha consciência suficiente para conhecer a própria fraqueza. Rodeava-se de pessoas que lhe garantiam uma retaguarda. Tinha Philbrick, com seu know-how tecnológico e gentileza com pacientes, e a dra. Pullaski, a administradora eficiente que parecia se encarregar das operações diárias. Aparentemente, ele atraiu uma série de jovens pesquisadoras brilhantes que, como Emily, acariciavam seu ego e redigiam os resultados de suas pesquisa.
— O dr. Philbrick foi maravilhoso com tio Jack — Annie disse.
— Sim, Lenny é uma peça rara — Emily reforçou. — Ótimo com pacientes, talvez não tão bom com as pessoas. E não tolera idiotas. Receio que ele me ache uma. Não acredito que eu tenha feito algo tão estúpido. Repeti o treinamento de segurança várias vezes.
Quando nos aproximamos do elevador, apertei o botão.
— Obrigada por me acompanhar até o carro — Emily agradeceu. Annie fitou-a com apreço.
— Espero que não se importe, mas Peter me contou que foi ameaçada. Sou investigadora. Tenho experiência com perseguidores.
O elevador chegou. Emily olhou sobre o ombro antes de entrar.
— Não achei que fosse comigo, mas é.
— Já pensou em quem pode estar fazendo isso? — Annie perguntou, enquanto descíamos. — Provavelmente, é alguém que você conhece. É assim que em geral acontece.
— É? Vivi algo semelhante anos atrás e não foi alguém que eu conhecesse.
Chegamos à garagem.
— Já aconteceu antes? — Annie perguntou. Ela no mínimo pensava o mesmo que eu — eram celebridades que normalmente sofriam perseguições de pessoas que não conheciam. Ser vítima de dois perseguidores tornava Emily ainda mais incomum. Imaginei se ela cometera algum... Eu me detive. Esse representava o lado insidioso de ser perseguido — ou de qualquer tipo de abuso, na verdade. Era fácil culpar a vítima. Assustava menos afirmar a nós mesmos que ela devia ter feito alguma coisa para merecer isso.
— Aconteceu quando eu estava na faculdade. Mas não pode ser o mesmo. O homem morreu num acidente de carro. Não faço idéia de quem seja dessa vez. A única coisa que sei é que não é o dr. Zak aqui. Ele me salvou do perseguidor. — Quando nos aproximamos do Miata, Emily olhou para os próprios pés. — Não creio que tenha agradecido como deveria.
— Não se preocupe — eu disse.
— Houve mais incidentes desde que Peter — Annie fez uma pausa e me olhou de soslaio — salvou você? Não foi há cerca de uma semana?
— Uma semana e meia — Emily precisou. — Nada mais desde então. Talvez ele tenha fugido.
— Pode ser — Annie disse. Não parecia convencida.
— Não sei ao certo. Sinto como se ele ainda estivesse lá fora me vigiando.
Emily abriu o porta-malas do carro e guardou a valise. Olhei meu relógio.
— Nós nos vemos no Pearce — despedi-me.
Caminhei com Annie até o carro dela. Entramos e ela ligou o motor.
— Perseguições não acabam do dia para a noite — Annie argumentou. Então, manobrou o carro e começou a acelerar. — Você não acha estranho que...
Nesse instante, Emily postou-se à nossa frente. Annie pisou no freio e o carro deteve-se a tempo. O grito de Emily ecoou nas paredes da garagem.
Saí por um lado, Annie pelo outro.
— O que aconteceu? Você está bem?
Emily mantinha os braços em torno de si mesma, e seu rosto contorcia-se de horror.
— Em meu carro — ela conseguiu dizer entre soluços incoerentes.
Annie olhava, com a expressão petrificada, o interior do Mia-ta. Aproximei-me e espiei. Alguém colocara um sutiã branco no encosto e uma calcinha branca sobre o assento, fazendo parecer que o banco usava a lingerie de Emily. Como se aquela imagem já não fosse bastante perturbadora, o sutiã ainda trazia um corte em formato de coração em cada lado e o estofamento preto como pano de fundo. Um coração também havia sido cortado na frente da calcinha. Desviei o olhar. Era obsceno.
— Ótimo. Um perseguidor com senso de humor — Annie murmurou. — Vou chamar a polícia.
Dessa vez, Emily não protestou.
Annie pegou o celular e digitou alguns números. Esperou com o fone no ouvido. Então, olhou o visor.
— Droga. Nunca há sinal quando precisamos. — Resolveu usar o telefone público perto do elevador.
Agora Emily chorava baixinho. Botei meu braço ao redor dela.
— O carro estava trancado? — perguntei.
Emily assentiu. Annie já retornava.
— Estão a caminho.
— Já mudei a fechadura duas vezes — Emily disse. — Acho que terei de mudá-la novamente. Merda. Não acreditariam no preço que isso custa. Mal consigo dar conta das despesas normais.
Quando os dois policiais chegaram — um homem e uma mulher —, eles interrogaram Emily. Foi terrivelmente frustrante vê-los banalizar o fato com aquelas verificações de rotina. Rastrear alguém que gostava de cortar corações em lingerie feminina não fazia parte das prioridades deles. Afinal, ninguém se ferira, nenhuma propriedade fora danificada — a menos que o sutiã e a calcinha sejam considerados bens. Pelo menos, a lingerie eles julgaram como evidência.
— Quer que a acompanhemos até sua casa? — sugeri.
— Obrigada. A polícia já se ofereceu. — Emily me abraçoju, enterrando o rosto em meu peito. Correspondi ao gesto. Pude senti-la tremer. — Lamento causar tantos transtornos. Você tem sido ótimo.
Annie nos observava com uma expressão especulativa. Gentilmente, afastei Emily.
Annie deu uma última olhada na garagem.
— Tem certeza de que não sabe quem...? — ela começou.
— É o que a polícia ficou me perguntando. Namorado? Ex-marido? Alguém que dispensei recentemente? Chegaram até a sugerir que eu tivesse feito isso a mim mesma. — Emily olhou para cima com os olhos repletos de lágrimas. — Seria bem patético.
— É TÃO DIFÍCIL vê-lo sofrer — Annie desabafou, ao me levar de volta ao Pearce.
— Eu sei. — Coloquei minha mão em sua coxa. — Desculpe-me. Eu devia ter deduzido o quanto seria doloroso para você assistir. Quando Emily me falou no escâner novo e da pesquisa que estavam realizando, creio que fiquei deslumbrado e perdi a perspectiva.
Annie desligou o rádio, que previa céu nublado e chuva.
— Não é sua culpa — ela disse. — Na verdade, estou muito grata por tudo que está fazendo. Obrigada por estar presente.
Gratidão. Gemi comigo mesmo. Isso implicava em obrigação, algo que eu não queria de Annie.
— Minha mãe costumava contar como detestava levar a mim ou a minha irmã ao médico, porque não suportava nos ver tomando uma injeção. Preferia mil vezes sofrer a picada a nos deixar sentir dor. Agora sei o que ela queria dizer.
Annie parou no semáforo.
— Você está fazendo tudo que pode — argumentei.
O semáforo tornou-se verde e Annie acelerou. Percorremos os próximos dois quilômetros em silêncio.
— Estudei na escola que fica em frente ao apartamento deles — Annie contou. — Adorava visitá-los depois da aula. Tio Jack me levava ao parque. Ele me ensinou a arremessar como um menino.
Agora nos aproximávamos do Stavros Diner. Já havia passado da hora do almoço e nenhum de nós havia comido.
Eu estava prestes a perguntar a Annie se queria parar para comer qualquer coisa, quando ela inquiriu:
— Sabia que ela recorreria a você, não? — As conversas com Annie podiam tornar-se um cordel.
— Quem?
Annie meneou a cabeça.
— Pobre Peter. Você às vezes é tão inocente. Emily Ryan. Não a acha um pouco infantil... — Ela mordeu o lábicj. — Não sei, talvez manipuladora? — Annie desviou para não bater num ônibus. — Ela possui aquele talento especial para fazer com que as pessoas a socorram.
— Só não gosto de ver ninguém intimidado e ameaçado. — Eu sabia que soava defensivo.
— Ela já foi molestada três vezes? — Annie perguntou, ao entrar no terreno do Pearce.
Eu não disse nada.
— Ela o fita com aquele olhar de cachorro abandonado.
— Ela olha para todos desse jeito. Kwan. Até Gloria.
— Notei que você a abraçou por um bom tempo. Ela estava me abraçando, eu quis gritar.
Annie dirigiu devagar ao longo da estreita alameda, rumo Unidade Psiquiátrica. Então, desligou o motor e permanecemos dentro do carro, o silêncio ecoando entre nós.
Eu não queria sair, mas o fiz. Havia quanto tempo eu e Annie não ficávamos juntos ou fazíamos amor — quase duas semanas?
— Quando a verei de novo?
— Virei visitar tio Jack amanhã. Fechei a porta do carro.
Annie hesitou. Começou a abrir a janela do passageiro e, de repente, mudou de idéia. Então, fechou-a, antes de manobrar o carro e partir.
Quando parei de socar a palma da mão com meu punho, respirei fundo. Annie equivocara-se acerca de uma coisa. Eu não estava "presente", pois ela não permitia minha aproximação.
Você às vezes é tão inocente. Eu não conseguia simplesmente apagar o que Annie havia sugerido. Afinal, ela fora treinada para enxergar o que as pessoas não viam.
Eu sabia que Emily Ryan estava apegada a mim, sentindo por mim o encantamento que os pós-doutorandos podiam sentir pelo orientador. Claro que isso me lisonjeava, mas pensei que, após diagnosticar o fato, eu o deixara de lado. Para isso, afinal, é que eu tinha sido treinado.
Quando cheguei à unidade não sentia mais fome. Fui ver tio Jack. Estava deitado na cama, dormindo, a respiração regular, mas um pouco difícil. Insuficiência de oxigênio no cérebro poderia apenas agravar a demência. Precisava me lembrar de mencionar isso a Kwan.
As páginas que tio Jack havia arrancado das revistas da sala de espera estavam no criado-mudo. Dei uma olhada nelas. Golfe, celulares e Viagra. Tudo indispensável à vida.
Voltei à minha sala e retornei algumas ligações. Em seguida, li as mensagens de e-mail acumuladas. Depois me vi sentado diante da tela do computador, incapaz de me concentrar no trabalho. Peguei o telefone para falar com Annie. Coloquei-o no gancho sem me decidir a ligar.
Desci e andei pela unidade. Em geral, esse passeio ajudava a repor minhas idéias nos eixos. Não hoje. Sentia-me como um fio plugado, minha mente estava agitada. Ainda podia escutar o grito de Emily Ryan. O solavanco dos pneus na hora da brecada abrupta. Manipuladora. Essa era a opinião de Annie a respeito dela.
Senti-me claustrofóbico, incapaz de pensar. Precisava sair dali e ir para o rio. Remar ajudava-me a eliminar bolhas de poeira do cérebro e drenar a tensão. Não tanto quanto o sexo, mas essa possibilidade não estava ao meu alcance nesse momento.
Não havia nada na agenda que eu não pudesse remarcar. Falei com Gloria e fui embora.
O dia se tornara cinzento e chuvoso. Quando bati a porta do carro, a grade do alto-falante caiu em meu colo. Outra vez. Senti um arrepio gélido na nuca. O teto solar estava vazando. Ainda. Essa porcaria de carro era um brinquedo de luxo. O carro do ano, o schmar do ano, como diria minha mãe. De qualquer forma, era um mérito de menor importância — o Pinto e o Escort, afinal, haviam gerado orgulho. Pelo menos, o rádio funcionava. Liguei-o e me acalmei imediatamente ao ouvir o violão virtuoso de Richard Thompson.
Engatei a ré, manobrei e segui em frente. Atravessei Cambridge e rumei para o rio. Havia vagas para estacionar perto da casa de barcos. Nenhuma novidade. Somente um tolo sairia para correr ou remar debaixo daquela chuva constante. Não importava — minha camisa já estava encharcada por causa do vazamento no teto solar.
A nova casa de barcos BU representava uma cópia frágil da original, uma estrutura centenária que fora demolida anos atrás.
Eu sentia falta dos degraus esculpidos, das velhas vigas e tábuas rangendo. Mas, pela primeira vez, a mudança acontecera para melhor. A casa de barcos nova era um espetáculo com seus espi-gões, telhado de cobre verde e azul e uma varanda que dava para o rio. O teto alto e abobadado e a fileira de janelas ao redor proporcionavam luz e arejavam o interior, enquanto a velha casa de barcos fora escura e úmida.
Fui ao vestiário e me troquei. Em seguida, trotei pela larga escadaria central até o nível da doca. Duas das portas duplas estavam abertas para o rio. A chuva havia parado e, com as nuvens começando a se mover, o sol surgia de um lado. Parecia um bom presságio.
Peguei dois remos e coloquei-os na extremidade da doca. Do gancho suspenso, abaixei o barco de um lugar que pertencia a meu amigo Rudí. Ele me deixara usar seu barco desde que o meu fora destruído por uma lancha que viera em minha direção. Quando pudesse substituir o meu, compraria um barco como aquele. O levator, cuja concha de fibras de carbono era longa e fina como uma lâmina, parecia ter sido feito a partir de um esplêndido mogno. Carreguei-o sobre a cabeça e o levei à doca.
Os raios de sol cintilavam sobre a água. Em pouco tempo comecei a remar rio acima. A água estava plácida, somente minhas remadas perturbavam a superfície, o ar frio e o aroma limpo da chuva.
Remar requeria total concentração e precisão intensa, mergulhando os remos e depois empurrando com as pernas para levar o barco adiante. Tentei relaxar, imaginando que os remos estavam fixos e que os usava como alavanca para mover o barco sobre a água. Fiquei atento a meus ombros a cada remada. A proa formava ondas conforme o barco cortava a superfície.
Quando me aproximei da ponte de pedestres Weeks, estava molhado de suor. Ignorei a dor em minha pernas, sabendo que logo a endorfina iria eliminá-la e seríamos apenas eu e o ritmo do rio.
Deslizei sob a penumbra da ponte Anderson e continuei em direção a praça Watertown. A paisagem tornou-se pastoral e os bancos do rio, amplos. Convenci a mim mesmo de que havia retrocedido um século e estava dentro de uma pintura de Thomas Eakins, muito antes de qualquer um conceber rodovias e caminhões com dez rodas. Uma enorme garça azul imperava na grama alta, não muito longe de um rato que vasculhava a beira do rio à procura de alimento. Nenhum outro barco encontrava-se na água.
Após quarenta minutos, atingi o Newton Yacht Club. Parei lá, com os remos erguidos, tal qual asas de libélula, fitando o alto do rio, onde a água encontrava o céu, saboreando a paz e a solidão. Relutante, virei o barco e voltei.
Remar com a corrente foi mais fácil e minha mente começou a vagar. Estariam meus sentimentos por Emily Ryan prejudicando meu julgamento? Ela estaria mesmo me manipulando?, Se assim fosse, por que eu permitia? Por que sentia tanta necessidade de protegê-la?
Se eu fosse meu próprio terapeuta, diria que isso provavelmente tinha a ver com a culpa relacionada ao assassinato de minha mulher. Repetição compulsiva. Com Emily, havia uma chance de fazer direito.
Eu não tinha problema de avaliar a versão cor-de-rosa que Emily criava em relação a Shands. Um caso cabeludo de idolatria, combinado, no mínimo, a uma dose poderosa de atração física. Talvez ele a tivesse seduzido. Estaria ela usando os mesmos óculos cor-de-rosa quando olhava para mim?
E quanto à desconfiança de Annie acerca do Centro Médico Universitário? Baseado na apreciação de Emily, permiti que o tio de Annie fosse avaliado no Centro. Não me preocupei em verificar os antecedentes do lugar a não ser consultando Kwan e, em seguida, ignorei suas reservas quanto ao dr. Shands.
Teria o acidente com o magneto sido um evento único ou o resultado da falta de um procedimento de segurança? E quanto ao Cimvicor? Administrá-lo em altas doses era tão correto quanto Shands alegava?
Uma pequena diligência estava em pauta. Quando voltasse, eu verificaria o registro de segurança do laboratório. Também descobriria mais a respeito dos riscos de administrar o Cimvicor.
Cheguei à casa de barcos sentindo que meu equilíbrio havia sido recuperado. Tinha uma pesquisa a fazer, certa distância psíquica a instalar entre mim e Emily e mais do que um pequeno arranjo a fazer com Annie.
De volta a minha sala, entrei no sistema da biblioteca da faculdade de medicina, onde encontrava-se cada pesquisa médica desde o final dos anos 1980. Digitei "James Shands". Havia dúzias de itens.
O registro mais antigo era de um trabalho publicado em 1981. "Mapeamento Funcional do Córtex Visual Humano pela Imagem por Ressonância Magnética." Aparentemente, a dra. Pullaski ofuscara Shands no passado, porque ela pertencia à lista como autor principal do trabalho. James Shands Júnior, Ph.D., professor-as-sistente de neuroanatomia, era um dos três co-autores. Ele devia ter começado como um pesquisador e obtivera o diploma de médico mais tarde.
Shands fora colaborador de vários trabalhos naquele ano, sendo a dra. Pullaski a autora principal. Li os resumos. Muitos acerca do mapeamento funcional do cérebro. Nada a respeito da demência com corpos de Lewy.
Existia uma lacuna de seis anos. Então, vinha a seguinte pesquisa: "Demência com Corpos de Lewy: Cognição, Neuropatologia e Permeabilidade Celular", por James Shands — agora com o título de médico e Ph.D. Nos anos precedentes, ele obviamente terminara a faculdade de medicina. Nenhum co-autor estava listado.
O trabalho descrevia IRMs funcionais e subseqüentes exames dos cérebros de pacientes diagnosticados como portadores de demência com corpos de Lewy. Esse devia ser o grande avanço científico de Shands. Provavelmente, incluía o paciente cujo cérebro escaneado e as células corticais estavam orgulhosamente expostos na sala dele, como fazia o comerciante ao exibir seu primeiro dólar.
Desde então, Shands havia sido prolifero. Nove ou dez artigos por ano, mais alguns capítulos de livro. Era único autor da maioria; outros possuíam co-autoria, incluindo as de Leonard Philbrick e Estelle Pullaski. Agora ele estava catalogado como professor de neurologia. Tratava-se de um impressionante corpo de trabalho, especialmente dado o curto período de tempo.
Abri os arquivos do Boston Globe, curioso para ver se existiam; novos artigos sobre ele. Os primeiros eram de 1984 —um co municado de noivado e um obituário. Em março, os pais da dra. Estelle Pullaski haviam anunciado o noivado da filha com James Shands, Ph.D. Não me surpreendeu saber que o relacionamento de ambos fora tão pessoal quanto profissional.
Um mês depois, o seguinte obituário fora publicado: "Dr. James Shands, cardiologista e pesquisador, faleceu no dia 10 de abril noj Hospital Beth Israel depois de uma longa enfermidade. Ele tinha 65 anos." Mesmo para aquela época, ele morrera jovem demais. Pulei para o final. "O dr. Shands sobrevive no filho, James Shands Júnior, Ph.D." O obituário era extenso. Shands, o pai, havia sido um brilhante pesquisador — autor do Relatório Cardiológico de Amherst, o primeiro estudo longitudinal do coração a nos fornecer virtua mente tudo que sabemos a respeito de doenças cardíacas.
Perguntei-me se a morte do pai de Shands precipitara o ror pimento com a dra. Pullaski. Notei também que o início da lacu| na de seis anos correspondia aproximadamente à morte do pai. Talvez o evento o tenha levado à faculdade de medicina.
Também havia um artigo de 1991 sobre a abertura do Banco de Cérebro de Cambridge. "Hoje os pesquisadores de Cambridge inauguraram o mais sofisticado depósito de tecido cerebral humano." Lembrei-me da fanfarra na inauguração. Na época, eu terminava meu pós-doutorado no Pearce. O Banco de Cérebro de Cambridge continuava a se fortalecer.
Li mais um pouco. "Dra. Estelle Pullaski, diretora executiva, disse que o novo banco de cérebro é 'indispensável a nossos esforços de relacionar ao comportamento o que ocorre em nível celular e molecular'." A dra. Pullaski aparecia numa foto da cerimônia, no centro de um grupo e com Shands a seu lado. O artigo prosseguia para mencionar Shands como um dos mais estimados da equipe de pesquisadores.
Olhei os outros membros do grupo. A maioria eu conhecia por reputação. Lá, sem encarar a câmera, estava o dr. Nelson Rofstein, meu primeiro orientador. De acordo com o artigo, ele pertencera ao conselho de diretores.
Havia outros artigos. Um cobria a festa de inauguração do Centro Médico Universitário anos atrás. Vários materiais sobre envelhecimento e demência cotavam Shands como o especialista. Ele fora orador principal numa conferência nacional sobre o cérebro. Nenhuma menção acerca de situações desagradáveis ou escândalo.
Não existia nenhum meio simples de verificar o registro de segurança do laboratório. Eu podia ao menos checar se ele fora credenciado pelo American College of Radiology. Rapidamente descobri que, enquanto os escâneres 4.5 tesla podiam ser utilizados para pesquisa, ainda não tinham sido aprovados pela FDA para o uso clínico. No entanto, o Centro Médico Universitário obtivera os quesitos mínimos para o procedimento.
Ainda no site da Web, encontrei uma lista de acidentes registrados. Percorri a tela para olhar os detalhes. Havia o incidente que Annie me contara em Rochester, uma arma que saíra da mão do policial, atingira a parede e disparara. Em outro incidente, uma mulher em Minneapolis morrera quando um cilindro de oxigênio fora sugado para dentro da máquina.
Dois técnicos e um paciente haviam sofrido hipotermia e rompimento do tímpano num laboratório de San Diego quando um magneto esfriara — ele rapidamente perdeu seu campo magnético e o hélio líquido dentro da câmara explodiu na sala do escâner. Aquilo não pareceu divertido. Eu esperava que Annie não tivesse lido acerca desse incidente. Do contrário, esperava que ela houvesse chegado à parte onde dizia que acidentes como esse eram "extremamente raros" e que o sistema IRM possuía um "impressionante registro de alta segurança".
Nenhum incidente havia sido registrado no Centro Médico Universitário.
Por fim, abri minha cópia do Physicians Desk Reference e consultei Cimvicor, a droga que Shands estava usando para tratar a demência com corpos de Lewy. O registro começava coín "Cimvicor é um agente sintético com baixo teor de lipídios...". Perscrutei a descrição da droga e uma seção longa de como ela funcionava. Como eu esperava, sua função clínica era o tratamento do coles-terol alto, não a demência. Li as precauções, os avisos e, finalmente, as reações adversas. Verifiquei os sintomas de overdose. Não pude ver nada que Shands não houvesse revelado, nada que acionasse o meu alarme interno.
Liguei para Annie no trabalho.
— O que aconteceu? — ela perguntou no instante em que escutou minha voz.
Aquilo sumariava nosso relacionamento — eu telefonava e ela; imediatamente presumia o pior.
Disse que tio Jack acordara e almoçara.
— E verifiquei o registro de segurança do laboratório. Está limpo
— Ao menos, isso é um consolo.
— E o Cimvicor, o tratamento químico? Não creio que seja um grande risco administrá-lo, mesmo em alta dosagem.
— Então, você aprova esse tratamento experimental?
— Acho que vale a pena tentar.
— Falei com minha mãe esta manhã. Foi o que ela disse também. Dadas as alternativas.
Não havia boas alternativas. A verdade brutal era que não tínhamos meios de tratar essa doença, de curá-la ou mesmo de atrasá-la. Tudo que possuíamos eram medicamentos para os sintomas mais extremos.
— O que ele tem... é basicamente uma sentença de morte, não é?
— Annie perguntou.
Eu gostaria de poder ver-lhe o rosto para determinar se ela queria me ouvir confirmar ou atenuar o golpe.
— Receio que sim — eu disse, sentindo minha garganta se apertar. Conhecendo Annie, ela provavelmente exigiria os fatos.
— Um ano, dois no máximo. Mesmo com o tratamento que podemos ministrar, as alucinações visuais e auditivas e o distúrbio motor irão piorar.
Houve uma longa pausa.
— Ele tem vivido um pesadelo — ela enfim disse com a voz calma e quieta. — Vou enviar por fax os formulários de consentimento ao laboratório esta tarde. Mas devo confessar que não gosto daquele lugar. Todos os laboratórios de pesquisa tratam os pacientes como cobaias idiotas?
Era a imagem perfeita. Talvez fosse inevitável. Afinal, pesquisadores tinham de ser observadores imparciais, que requeriam certo sangue-frio em face do sofrimento humano. Trabalhavam em nível macro à procura de padrões — o paciente ocasional que superava a probabilidade somente enlameava o quadro.
—Ainda bem que você não é pesquisador — Annie acrescentou.
POR DUAS SEMANAS, tio Jack tornou-se meu notório protegido. Eu sabia que a melhora, caso ocorresse alguma, aconteceria em avanços imperceptíveis. Porém, mesmo nesse curto espaço de tempo, certas mudanças despontaram. O andar dele estava mais firme, menos arrastado. Parecia um pouco mais coerente e as alucinações surgiam com menos freqüência. As enfermeiras relataram que tio Jack mostrava-se mais cuidadoso consigo e dormia sem pesadelos.
Tentei conter meu entusiasmo ao transmitir a notícia a Annie. Afinal, poderia ser apenas uma ilusão. Eu ansiava por aqueles telefonemas diários, embora falássemos só de tio Jack. Cada vez que eu sugeria um encontro, Annie se esquivava.
Naquela manhã, tio Jack havia ido ao laboratório para a IRM seguinte, dessa vez, acompanhado de um enfermeiro. Quando perguntei se podia observar, Philbrick me dera um curto e grosso "absolutamente não" e citara as medidas de segurança.
Fui observar tio Jack assim que ele retornou. Estava vendo TV na sala comum. Dessa vez, a experiência deixara-o de alguma maneira anestesiado, mas ileso.
Imaginei se os resultados do exame confirmariam a melhora ou se eu via o que queria ver. Poderia ser simplesmente o efeito da mudança para o Pearce, combinada às refeições regulares, à equipe treinada e aos medicamentos que ministrávamos para os tremores e as alucinações. Pelo que sabíamos, tio Jack poderia estar tomando pílulas de açúcar.
— Finalmente, recebi a análise dos resultados do teste do sr. Black — Emily contou-me durante nossa supervisão semanal naquela tarde. O perseguidor permanecia adormecido desde o incidente na garagem. — Em geral, a análise leva apenas uma semana. Acho que não era prioridade de ninguém, somente minha. — Ela pegou um lenço de papel, discretamente tirou o chiclete da boca e jogou-o fora.
— E?
— Muito frustrante. As diferenças entre o esquerdo e o direito são as mesmas que as pessoas normais, testadas por nós, apresentaram. Se relatasse os resultados baseada somente em observação, eu afirmaria que havia algo de errado. Creio que isso justifica o fato de as pesquisas serem cegas.
— Vemos o que queremos ver — eu disse. — Felizmente, existe todo aquele equipamento sofisticado e análises de dados para garantir a honestidade do pesquisador. Como vai o sr. Black?
— Andei pensando no que você disse. Que nenhum terapeuta sabe o que é melhor para o paciente. Intelectualmente, sei que tem razão. Escutei isso várias vezes na faculdade. Mas emocionalmente não consigo ficar de braços cruzados. — Ela me fitou com dureza.
Eu não disse nada.
— Eu sei, eu sei, como terapeuta, devo dizer a mim mesma que só posso tentar controlar o que ocorre nos limites da sala de atendimento. Acreditar no contrário é a receita certa para um desastre.
Tive de sorrir. "A receita certa para um desastre" fora uma das frases carimbadas do dr. Rofstein. Era assim que a supervisão funcionava — com esperança, nós transmitíamos somente coisas boas.
— Então, qual é a diferença entre ele e um paciente suicida? — Emily continuou. — Não devo sentar-me, assentir e dizer: "Que interessante. Fale mais sobre como irá se matar." — Hoje ela usava uma blusa branca sob o blazer, e não houve relances de pele exposta quando se inclinou. — Não tenho a obrigação de agir?
— Caso perceba que um paciente pretende mesmo se matar, sim, você tem a obrigação de agir. Se ele disser que vai ferir outra pessoa, por lei, você deve alertar essa pessoa.
— Eis um homem que pretende cortar o braço. O que fazer para impedi-lo?
— Se for um psicótico ou demente, você poderá interná-lo. Acha que é o caso?
— Não.
— Acha que ele é suicida?
— Não. Mas ele tem essa obsessão...
— Não pode hospitalizá-lo a menos que ele ameace a própria vida. Estamos falando de automutilação. Não é necessariamente o desejo de morrer. Pode ser o oposto. Algumas pessoas almejam a dor com o intuito de sentir-se ligados ao mundo real. Enquanto debatemos se o sr. Black deve ou não amputar o braço, como te-rapeuta você tem de aceitar o fato de que não pode controlar as ações do paciente.
— É tão frustrante — Emily desabafou, com os punhos fechados. — Resta-me apenas sentar e assistir, ocupar-me com uma bobagem intelectualizada, quando uma pessoa em seu desespero necessita de um tipo de ajuda que não estou autorizada a dar?
Eu admirava sua paixão, a determinação para ajudar, mas Emi-ly estava tremendamente equivocada.
— Não se trata de bobagem intelectualizada. Emily fitou a janela.
— Bem, não posso fazer nada. Nem mesmo posso dizer a ele que, como observadora, acho que não é uma boa idéia?
— Claro que pode, mas quais seriam as conseqüências? Suponhamos que diga: "Não acho que deva cortar seu braço", mas é isso que ele quer fazer? Por que ele voltaria à terapia? Ao revelar sua opinião, você correrá o risco de arruinar a relação terapêutica.
— Então, o que eu faço?
— Pense o seguinte. É como penicilina. Se um paciente tem uma infecção, a chave do tratamento está em certificar-se de que ele toma a penicilina.
— Está dizendo que — Emily parou e endireitou o corpo da cadeira — a chave é manter o sr. Black em terapia antes que ele aja. Certificar-me de que ele continue trabalhando para entender de onde vem a necessidade de amputar.
— Certo — confirmei. — Explore outras maneiras de lidar com essas urgências.
— Eu estava no caminho correto quando tentei ajudá-lo a entender o lado negativo da ação? — Agora ela não precisou olhar para mim a fim de pedir aprovação. Era um daqueles momentos de percepção interna que tornava a supervisão tão gratificante.
— Pode ir mais além — sugeri. — Encoraje-o a obter os dados de que ele necessita para tomar uma decisão acertada.
— Dados... — Emily murmurou. Compenetrada, refletiu por alguns instantes. — Poderia sugerir que ele conversasse com pessoas amputadas.
— Claro. É o tipo de coisa que lhe dará a oportunidade de se sentir no lugar do outro, antes de agir.
O telefone tocou.
— Penso... — Emily disse, franzindo o cenho. O telefone tocou novamente. — Pode atender. — Ela se levantou. — Preciso correr. O sr. Black deve estar me esperando e creio que tive uma idéia.
Peguei o telefone. Era Gloria.
— Achei que você gostaria de saber — ela disse quando Emily fechou a porta. — O sr. O'Neill não está bem. Começou a vomitar depois do almoço. Agora está com febre e com chiado no peito. Já ligamos para a sobrinha dele.
Para enfatizar a preocupação de Gloria, a luz vermelha em meu telefone começou a piscar. Eu a ignorei. Quem quer que fosse, deixaria uma mensagem se fosse importante.
— Mas fui vê-lo umas duas horas atrás e ele estava bem.
— Ei, estou apenas passando o recado. Pode ser um vírus estomacal. Estamos de olho nele.
Olhei meu relógio. O último paciente do dia chegaria em quinze minutos. Corri até a unidade. O leito de tio Jack estava suspenso quase na vertical, e ele tinha uma máscara de oxigênio no rosto. Parecia pálido, mas confortável, o peito subindo e descendo a cada respiração. Ao final de cada expiração, eu podia escutar um ruído em seus pulmões. Os olhos se abriram quando lhe toquei no ombro.
— Como se sente? — perguntei, puxando uma cadeira e tirando a máscara.
— Já estive melhor — ele respondeu.
— Soube que fez outra IRM esta manhã — comentei.
Ele murmurou algo semelhante a "idiotice". Então, os olhos moveram-se e ele focou o espaço acima de meu ombro direito. Um sorriso frágil moveu seus lábios. Achei que o fantasma de Fe-licia havia reaparecido. Virei-me. Annie tinha acabado de entrar no quarto. No mínimo, tivera de testemunhar no tribunal nesse dia, porque usava um conjunto preto de saia e blusa e os cabelos estavam presos no alto da cabeça. Parecia preocupada. Eu sabia que não era hora nem lugar para admirar suas pernas esguias, mas não pude resistir a isso. Tio Jack piscou para a sobrinha. Annie segurou-lhe a mão.
— Ei, grandão, que papo é esse de ficar doente? Tio Jack tentou rir.
Mais tarde, no corredor, Annie me perguntou:
— Não acha que isso tem algo a ver com o teste que ele fez hoje de manhã? Quero dizer, nas duas vezes em que fez a IRM, ficou ofegante.
— IRMs não causam problemas respiratórios — eu disse. Não acrescentei que, dessa vez, era mais que um problema respiratório. Ele não conseguia manter o alimento no estômago e a temperatura subira demais.
— Mas tio Jack ficou naquele tubo. Talvez a pessoa que lá esteve antes dele estivesse doente. Contaminou o lugar inteiro. Eles não se dão ao trabalho de limpar...
Não me incomodei em pontuar que, de fato, limpavam tudo.
— Muitos vírus que o deixam doente assim têm um período de incubação de mais de duas horas.
Annie não se deu por vencida.
— As pessoas contraem todo tipo de infecção em hospitais Algo que não aconteceria se ficassem em casa — ela argumentou — Pois ou não li a respeito de uma bactéria carnívora que o homem pegou depois de operar uma unha encravada?
— Bactéria carnívora?
— Não estou inventando.
— Annie, seu tio provavelmente pegou uma gripe, ele não te unha encravada. Gripe é o tipo de coisa que ele pegaria em qual quer lugar. Ao menos, ele está aqui, onde podemos monitorá-lo
Annie agora andava de um lado a outro a passos rápidos.
— Talvez eu deva tirá-lo daqui. Agora mesmo. Ele ficará bem em casa.
— Annie! — Eu a detive e segurei-a pelos ombros. — Sabe tão bem quanto eu que ele não está bem.
— Mas não estava doente desse jeito. — Uma lágrima surgiu no canto do seu olho.
— Eu sei, eu sei — disse, gentil, tomando-a nos braços. — Mas agora está. — Pousei meu queixo nela e inspirei uma essência de fruta. — E ele precisa de acompanhamento. Pode ser algum tipo de vírus.
— Só uma gripe? — Ela pareceu esperançosa.
Para alguém com a idade de tio Jack, nunca era "Só uma gripe". Gripe e pneumonia lideravam as causas de morte entre os idosos.
— Nós o observaremos o tempo todo. Se houver algum problema, nós o internaremos no hospital imediatamente.
— Hospital? — Annie afastou-se um pouco e me encarou horrorizada.
Fora um longo dia. As reuniões administrativas se estenderam até as sete. Depois fui mais uma vez observar tio Jack. A máscara de oxigênio estava sobre a mesa e ele parecia respirar facilmente. Embora as cobertas o protegessem até o queixo, ele parecia estar com frio. Peguei uma manta extra e o cobri.
Voltei à minha sala, puxei minha valise que estava sob a mesa e guardei algumas anotações que tinha feito. Sentia-me cansado e com dor no corpo. Queria ir para casa. Peguei o telefone com a intenção de deixar Annie a par da situação antes de sair. A luz vermelha do aparelho ainda piscava.
Gemi e considerei a possibilidade de deixar para a manhã seguinte. Engoli minha impaciência e digitei o número da caixa postal.
— Você tem quatro mensagens... Joguei-me na cadeira e procurei lápis e um pedaço de papel.
— Dr. Zak? É Leonard Philbrick. — Reconheci o tom de voz alto. — Eu queria... — Houve uma pausa, como se ele não soubesse por que tinha ligado. — Eu queria saber como vai o sr. O'Neill. O procedimento foi tranqüilo dessa vez, mas sua respiração estava difícil. Fiquei preocupado com... — Ele se deteve. — Se puder, telefone para mim. Estou no laboratório. — Anotei o número e apaguei a mensagem.
A próxima fora deixada às três. Começava com alguns instantes de silêncio. A princípio, pensei que fosse uma daquelas ligações automáticas. Então, escutei um "Droga". Parecia Philbrick novamente. A terceira mensagem chegara às 3h26. Era minha mãe, perguntando se eu não queria juntar-me a ela e a seu amigo, sr. Kuppel, no Brattle para a sessão das sete horas de O Colecionador. Tarde demais. Também uma pena. Lembrei-me do filme — um caixa de banco simplório acrescenta a sua meticulosa coleção de borboletas a garota pela qual está apaixonado. Tratava-se de um desempenho clássico de terror.
A última mensagem. Seis e vinte. Esperei. A pessoa limpou a garganta.
— É o dr. Philbrick outra vez. Poderia, por favor, ligar para mim hoje à noite? Devo estar em casa depois das nove. — Ele deixara o número.
Philbrick não telefonara desde então. Talvez ainda estivesse no laboratório. Liguei. O sistema de comunicação atendeu. Digitei o ramal de Philbrick. Depois de seis toques, entrou a caixa postal. Deixei uma mensagem, dizendo que telefonaria para a casa dele.
Ninguém atendeu em sua residência. Mais tarde, nessa noite, tentei outra vez depois do jornal das dez. Nenhuma resposta.
Cheguei cedo na manhã seguinte. A primeira coisa que fiz foi ver tio Jack. Os lençóis da cama vazia haviam sumido. Estaria ele em pé e circulando devido a uma cura milagrosa da noite para o dia? Não quis pensar na alternativa. Virei-me e trombei com Kwan.
— Nós o hospitalizamos — ele informou.
— Por que ninguém me avisou? — Minha voz saiu mais elevada do que eu tencionara.
— Peter, ele se foi há duas horas. Eu sabia que você estava chegando e...
— O que aconteceu?
— Se parar de me interromper, vou contar.
Uma paciente, que passeava pelo corredor, parou para nos observar. Levei Kwan para dentro do quarto de tio Jack.
— A febre piorou e ele teve calafrios — Kwan relatou. — Respiração ofegante, dor no peito. Nada grave, mas não quis arriscar. O melhor é mantê-lo no hospital onde podem tratá-lo mais eficientemente se o problema se transformar em pneumonia.
Pneumonia. Alguns a chamavam de "amiga dos idosos", porque significava uma morte relativamente benigna. Sem dúvida, era mais rápido e preciso que morrer de demência com corpos de Lewy.
— Alguém avisou a família?
— Eu pretendia fazê-lo agora — Kwan disse.
— Vou cuidar disso.
Precipitei-me pelos dois lances de escada e pelo corredor até minha sala. Quase não reparei no sr. Black que aguardava em frente à sala de Emily. Destranquei a porta e corri ao telefone. Annie ainda devia estar em casa ou a caminho do trabalho. De qualquer maneira, o celular era a melhor pedida.
Um toque. Dois. Por favor, atenda.
Quando ela o fez, respirei.
Antes que Annie perguntasse qual era o problema, adiantei-me:
— Kwan não acredita que seja grave, mas por precaução tio Jack foi admitido no Beth Israel. — Contei-lhe da febre, dos calafrios, dores no peito.
Ela nada disse por um momento.
— Era isso que eu temia que acontecesse. Eu lhe disse que não gostei daquele lugar.
— E eu lhe disse que IRMs não podem causar doenças respiratórias.
— Então, por que ele está doente? Acabou. Chega de testes. Chega de magnetos. Chega de comprimidos cor-de-rosa. Não me importo. Aquele lugar é uma armadilha da morte.
— Annie, lamento muito — comecei, sabendo que as palavras soavam mancas e inadequadas.
— Não é culpa sua. É minha. Eu devia ter seguido minha intuição.
No entanto, ela seguira minha opinião. Dei-lhe as informações de onde estava tio Jack e quando poderia visitá-lo. Então, desliguei o telefone e massageei as têmporas. Era cedo para uma dor de cabeça, mas eu já começava a sentir um latejo.
Abri minha gaveta, peguei o pote de aspirina e o que pensava ser uma caneca vazia — virei-a e senti odor penetrante no fundo. Fui ao banheiro pegar água.
O sr. Black ainda esperava no corredor.
— O senhor viu a dra. Ryan? — ele perguntou. — O carro dela não estava no estacionamento quando cheguei.
Ele não tivera uma sessão no dia anterior? Emily era sua tera-peuta, não namorada. O que dirigia e onde estacionava não era da conta dele, e eu estava prestes a lhe dizer isso quando notei que a manga direita da camisa do sr. Black estava vazia. Era tarde de mais para ocultar meu espanto.
O sr. Black relançou o olhar para o braço ausente. Em seguida examinou meu rosto. Suspendeu o riso. Reparei que seu tórax parecia maior na altura do braço e que a camisa estava repuxada. Ele devia ter amarrado o braço ao peito. Emily tinha dito que tivera uma idéia. Fiquei admirado. Aquela era mesmo uma intervenção, sugerir que o sr. Black experimentasse a vida sem o braço antes de amputá-lo.
— Pensei que eu tivesse uma consulta às oito e meia com ela
— ele disse. Já passava de 8h30. — Será que ela está bem? — O sr. Black parecia mesmo preocupado. — Estou certo de que não errei o dia. Eu a vi ontem à tarde e marcamos uma sessão extra para esta manhã. Ela queria ouvir minhas impressões acerca de...
— olhou o próprio braço — meu progresso.
Desci. Gloria estava na enfermaria. Ela conferiu a agenda, onde marcava todos os nossos compromissos.
— Emily devia estar aqui. — Olhou para o teto, como se observasse a sala vazia de Emily. — Não é do seu feitio deixar um paciente esperando.
Peguei o telefone da escrivaninha e liguei para o serviço de recados de Emily. Digitei o número da unidade. Enquanto esperava uma resposta, lavei minha caneca, servi-me de café fresco e engoli duas aspirinas. Verifiquei a correspondência e Gloria ateve-se a telefonemas.
Dez minutos depois, Emily ainda não havia ligado. Gloria já procurava o número residencial. Tentou encontrá-la em casa. A secretária eletrônica atendeu.
— Talvez ela esteja no laboratório onde trabalha — supus. Procurei o número e liguei. O telefone tocou e tocou...
Que estranho. Já passava das nove. Onde estaria Amanda, a recepcionista? Se o escritório não estava aberto, eles não possuíam um serviço de atendimento automático? Eu pretendia desistir quando alguém atendeu.
— Alô? — Era a voz de um homem, um pouco sôfrega. Por um momento, pensei ter digitado o número errado. Então, reconheci a voz. Era o dr. Shands.
— É Peter Zak — disse eu. — Desculpe incomodá-lo, mas! preciso falar com a dra. Ryan.
— Ela... — Houve uma pausa. — Ela não está disponível agora.
— Ela tem um paciente... — comecei. Foi quando ouvi um grito de mulher. De início, soou alto, depois abafado, como se Shands houvesse tapado o telefone. — Dr. Shands? Está tudo bem?
Escutei sons confusos.
— Desculpe-me. — A voz dele soou sem emoção. — Algo acon teceu. Temos uma situação de emergência aqui.
— Preciso falar com ela um instante... A ligação foi interrompida.
— O QUÊ? O QUÊ? — Gloria perguntou, encostando em mim. Encarei o telefone.
— Falei com o homem que coordena o laboratório. Emily não pôde atender. Ele disse que há uma situação de emergência.
— Situação de emergência... o que significa isso? — Gloria indagou, ecoando minha pergunta.
— E escutei um grito de mulher.
— Acha que era de Emily? — A voz de Gloria soou tensa. — Um de nós tem de ir até lá. — Ela olhou o relógio. — Não posso sair, então, vá você. — Eu sempre soube qual de nós era o mais dispensável. — Você e eu temos uma reunião com o chefe de manutenção e operações às dez, mas isso pode esperar. Pedirei a alguém que se desculpe com o paciente de Emily.
Nem sequer me preocupei em buscar meu blazer. Sem pensar lio que faria ao chegar lá, apressei-me. Enquanto dirigia para a praça Central, repassei a breve conversa ao telefone. Por que a recepcionista não atendera ao chamado? A "emergência" significava que houvera um acidente — outro acidente, dessa vez, com conseqüências mais graves que o vôo de um disco de hóquei? Quem estava gritando? E o que Emily fazia no laboratório de IRM já que marcara com o sr. Black no Pearce?
O tráfego parou na Avenida Mass., quando me aproximei da rua Sidney. Da esquina, pude ver o reflexo de luzes piscando diante do prédio. Várias viaturas da polícia, um caminhão de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados na rua. O trânsito levaria uma eternidade para desafogar. Fiquei na avenida Mass. e parei o carro num estacionamento. Então, saí correndo.
Aproximei-me do prédio. Havia uma multidão de curiosos d lado de fora. Os bombeiros estavam voltando ao caminhão.
Abordei o policial na entrada.
— Preciso entrar — eu disse a ele.
— Lamento, ninguém pode entrar — ele informou com o rosto impassível e os olhos sob a sombra da aba do boné.
— O que aconteceu?
— Precisamos manter a área livre, senhor — ele disse. — Por favor, afaste-se.
Pelas portas de vidro, pude enxergar o saguão. As portas d laboratório de IRM estavam abertas e outro policial ali estaciona ra. Uma paramédica apareceu no saguão e saiu à rua. Eu a segu até a ambulância.
— Alguém se feriu? Ela não respondeu, mantinha também o rosto impassível. Pe
gou uma maleta de metal no fundo da ambulância.
— Tenho uma amiga que trabalha aqui — eu disse. Ela parou. — Uma boa amiga.
A paramédica me olhou rapidamente e sacudiu a cabeça.
— Desculpe.
Eu a vi desaparecer no interior do prédio. Se alguém estivesse ferido, já o teriam levado ao hospital. A presença de policiais e paramédicos significava que algo pior ocorrera. Teria o perseguidor seguido Emily e finalmente a pegara?
Eu tinha de entrar. Mas, a menos que eu rendesse o policial à porta, não havia meios de passar por ele. Dei a volta no prédio. Não tinham bloqueado a entrada da garagem. Espiei o interior escuro e desci a rampa.
Pegar o elevador não ajudaria. Eu acabaria detido novamente na entrada do saguão. Lembrei-me, então, da escada de incêndio do laboratório de IRM. Ela não terminava na garagem?
Tentei me orientar. Fui à parte da garagem que se localizava sob o laboratório. Havia um aviso à porta da escada: NÂo ENTRE. Um aviso em amarelo mais abaixo direcionava a pessoa ao elevador. Experimentei a porta. Ela abriu. Alguém grudara uma fita adesiva no engate para impedi-la de fechar.
Subi dois a dois os degraus da escada e parei à porta com o número um em tamanho gigante pintado na superfície. A maçaneta rangeu quando a empurrei e puxei a porta, que também rangeu. Escutei. Havia vozes, mas a distância. Esgueirei-me pelo corredor.
Nunca tinha estado naquela parte do prédio. Parecia um laboratório de patologia — uma sala ampla com duas mesas de aço, pias. Havia cestos de plástico e contêineres no chão, mais todo tipo de equipamento laboratorial, inclusive microscópios gigantes instalados com luzes e câmeras. Prateleiras guardavam centenas de potes com rótulos de papel. Provavelmente corantes e fixadores para revelar slides.
Continuei por um corredor em direção a um par de portas de incêndio. Olhei pela janela no alto da porta. Era a sala de Shands. Quando entrei, ele apareceu no corredor.
— Como diabos chegou até aqui? Pensei que o prédio estivesse...
— O que aconteceu? Emily está bem? — perguntei, interrom-pendo-o.
— A dra. Ryan? — Ele franziu o cenho. — A dra. Ryan... — A voz engrossou.
Nesse momento, dois policiais chegaram marchando.
— Dr. Shands? — o mais alto disse, ignorando-me. — Preciso lhe fazer algumas perguntas. Podemos conversar num lugar mais privativo?
Shands ficou onde estava. Olhou para mim e, em seguida, voltou-se aos policiais. Então, como acionando um interruptor de luz, ele acendeu o velho charme.
— Claro — disse com um sorriso benigno. — Ficarei feliz em responder a quaisquer perguntas. — Ele os levou à própria sala.
Continuei pelo corredor até a área central com seus avisos e recepção. Amanda, a recepcionista, estava sentada, parecia pálida e em choque. As portas duplas das áreas internas estavam abertas. As barreiras de cavaletes haviam sido viradas. A porta da sala do escâner também estava aberta. A paramédica que eu vira lá fora passou por mim e entrou na sala. Eu me aproximei.
Mal notei o enxame de policiais e peritos. Fiquei estarrecido ante o sangue no piso branco de linóleo.
Um homem, provavelmente médico legista, estava de costas para mim e inclinado sobre a mesa. Eu sabia que havia uma pessoa na mesa, a mesma pessoa cujo sangue empoçara o sistema e escorrera pelo assoalho.
Entrei na sala. Um tanque de oxigênio avariado jazia no chão perto da máquina. Senti náusea no estômago, lembrando como o magneto voara em direção à maquina. Um tanque de oxigênio seria fatal.
Segui adiante. Precisava ver. Um policial veio até mim. Ele er gueu as mãos.
— Lamento, senhor. Terei de lhe pedir para esperar na outra sala.
— Quem é? — perguntei.
Agora o médico legista se virava. Estava movendo-se para o lado. Enquanto procurava alguma coisa dentro da maleta, o braço da vítima escorregou e pendeu na beirada da mesa. A axila do jaleco branco estava manchada de suor.
— Dr. Zak? — disse uma voz de mulher, incerta e trêmula, atrás de mim. Era Emily. Eu me virei e soltei um suspiro gigantesco de alívio.
Emily aproximou-se, hesitante, o rosto marcado pelas lágrimas. Então, deteve-se, tremendo, como se fosse ter um colapso. Quando a abracei, senti os músculos relaxarem.
— Pobre Lenny — ela disse. — Que horror. — Emily soltou um soluço profundo e tenso. Abraçou-me com mais força, ofe-gante. — Obrigada por estar aqui. — De súbito, endireitou-se, antes de se afastar, e me olhou com estranhamento. — Por que está aqui?
Ela não foi a única que perguntou.
— O que diabos você está fazendo aqui? — Era o sargento-de-tetive Joseph MacRae.
Não fiquei surpreso ao ver MacRae em seu terno marrom amar-fanhado. Afinal, ele trabalhava no departamento de homicídios.
— Cristo Todo-Poderoso — ele murmurou, esfregando os cabelos avermelhados com a mão e olhando-me com descontentamento. Seus olhos brilhavam de irritação. Eu já havia me metido em investigações demais para o gosto dele... e o meu.
Quando vi MacRae pela primeira vez, ele estivera apaixonado pela vítima de um crime que alegara lembrar quem tinha atirado em sua cabeça. Eu gostava de pensar que ambos havíamos desenvolvido um respeito ressentido. Talvez. Não ajudava saber que ele e Annie eram velhos amigos e que, certa vez, tinham sido mais do que isso.
— Olá, Mac — cumprimentei-o. Ele me olhou desconfiado.
— Não sabia que você trabalhava aqui também. Eu raramente perdia alguma coisa.
— Estou envolvido num projeto de pesquisa com essas pessoas.
— Sei. — Não se mostrou muito convencido. — Parece que a sra. Ryan encontrou a vítima — MacRae disse num tom que insinuava algo mais. Emily lá permanecia trêmula.
— Dra. Ryan — eu o corrigi. — Ela trabalha aqui. — Sabia que ela seria massacrada por MacRae.
Emily deu um passo em direção ao corpo de Philbrick e seu lábio inferior estremeceu. Ela mordeu o dedo.
— E se eu levar a dra. Ryan a um lugar em que ela possa se acalmar um pouco? — ofereci.
— Não a leve para longe — MacRae avisou. — Ainda iremos falar com ela. E com você também.
Olhei Leonard Philbrick pela última vez. Mesmo do lado oposto da sala, pude ver que seu crânio havia sido destruído. Seus objetos pessoais tinham sido espalhados sobre a mesa de aço. Óculos quebrados. Dois lápis. Carteira.
Quando coloquei meu braço ao redor de Emily e a conduzi à sala de controle, perguntei-me por que Philbrick me telefonara na noite anterior — três vezes. Droga. Ainda podia ouvir a voz dele. Teria a ligação algo a ver com um procedimento de rotina? Não fazia sentido. Por que não ligar para a enfermaria do Pearce e obj ter as informações sobre o tio de Annie? Ele se mostrara relutante em dizer o motivo do telefonema por que estivera no laboratório e temera que alguém o escutasse? Philbrick não atendera quando liguei — teria ele passado a noite toda ali?
Podíamos ver a polícia e a equipe de legistas trabalhando através do vidro. Nós nos sentamos a uma das mesas. O rosto de Emily estava inchado e os olhos, turvos. Ela se contraiu quando o flash da câmera piscou na outra sala.
— Quer conversar a respeito? — indaguei. Emily soluçou.
— Lenny me ligou ontem à noite para me dizer...
— Quando? — perguntei, interrompendo-a. Ela me olhou, surpresa.
— Por volta das seis, acho.
— Ele também me ligou. Três vezes ontem à tarde. Quando tentei retornar a ligação, ele não atendeu. Nem aqui nem em casa.
— Que estranho. Ele me telefonou para dizer que a dra. Pullaski havia encontrado meu bip — Emily contou. — Eu tinha certeza de que estava comigo, mas quando olhei em minha bolsa, não o encontrei. Eu disse a Lenny que teria de passar aqui cedo porque tinha uma sessão com o sr. Black às... — Ela arregalou os olhos. — Meu Deus! O sr. Black. — Emily levantou-se.
— Não se preocupe. Nós o dispensamos, dissemos que você ficou detida por causa de uma emergência.
Emily gemeu.
— Espero que ele esteja bem.
— Então, você encontrou Philbrick? Ela assentiu.
— Escutei o escâner funcionando. Achei estranho que estivesse ligado tão cedo. Vim ver o que acontecia. — Emily olhou pelo vidro. Estavam removendo o corpo de Philbrick da mesa. — Vi o sangue.
Emily olhou para os pés. Perguntei-me se haveria sangue nos sapatos dela.
— Mal consegui respirar. — Ela engoliu em seco. — Sabia que alguém estava lá dentro.
— Então, você parou o escâner e puxou a mesa?
— Tentei. Mas estava emperrada. — Ela voltou a chorar. — Tentei e tentei, mas não consegui movê-la. Por fim desliguei tudo, inclusive o campo magnético. Aniquilei o magneto. — Ela apontou o botão vermelho, tarjado com BLOQUEIO DE EMERGÊNCIA e separado dos outros no painel de controle. — Fui avisada diversas vezes para não fazer isso, exceto em caso de emergência, quando alguém estivesse preso na máquina.
— Você veio até aqui para desligar tudo?
— Não. Há outro painel na parede ao lado do escâner. Houve um barulho ensurdecedor, como o das turbinas de um avião. Fiquei morta de pavor. Então, tudo parou. O hélio escapou para fora. Não houve nenhuma explosão, graças a Deus.
Olhei para a sala do escâner. Havia uma espécie de chaminé de alumínio ligando o escâner à parede externa. Devia ser por onde os gases criogênicos escaparam.
— A mesa mesmo assim ainda não se movia. O tanque estava preso lá dentro. — Emily olhou para as costas da mão. A unha do dedo indicador estava quebrada. Ela o levou à boca e chupou o sangue. — Foi quando o dr. Shands apareceu. Chamou a polícia. Eles conseguiram retirar o tanque da máquina.
— Espere um minuto — eu disse. — Pensei que somente você trouxesse os tanques de oxigênio à sala do escâner. Afinal, trouxe um tanque para o sr. O'Neill.
— Aquele era uma IRM-compatível. É o único tipo que usamos para justamente evitar acidentes como esse. Não sei de onde veio aquele tanque. — Seus olhos se arregalaram quando ela percebeu as implicações.
— Se aquele tanque de oxigênio chegou aqui por engano — arg-mentei — e você é a única que o trouxe à sala do escâner, ninguém.
— Não foi o que aconteceu. Além do mais, nós nunca... nós sempre testamos o tanque antes de o levarmos à sala do escâner. — Ela me fitou, suplicante. — Não acredita em mim?
Eu não disse nada. Estava pensando em quão cuidadoso era Philbrick. Ele havia trabalhado com magnetos potentes durante anos. Emily trabalhava na área havia apenas alguns meses.
MacRae veio até a janela. Olhou para Emily e indicou o corredor. Atrás dele, um técnico tirava as impressões digitais do sistema de IRM. Encontraram as impressões de Emily no topo. Agora trabalhavam no tanque de oxigênio. Também encontraram as impressões dela no metal.
— Não importa o que penso. O importante é aquilo em que a polícia vai acreditar. Não deveria falar com eles sem um advogado.
— Se eu chamar um advogado, vão pensar que tenho algo a esconder. — Ela se dirigiu à porta.
— É esse tipo de atitude que causa problemas a pessoas inocentes. Conheço um excelente criminalista.
— Acho que não — disse e abriu a porta. — Vou dizer somente a verdade.
MacRae estava esperando.
— Não saia daqui — ele grunhiu para mim, e retirou-se com Emily.
Encostei-me à porta. Sangue nos sapatos. Impressões digitais em todo o local. Era uma principiante em se tratando daqueles magnetos. Ela já havia entrado na sala do escâner com um perigoso objeto de metal. A única pessoa que poderia provar a inocência de Emily estava morta.
Não demoraria muito para a polícia entender como o sistema funcionava — que o campo magnético nunca era desligado mesmo quando a máquina não estava escaneando, mesmo que puxasse a tomada e cortasse a eletricidade. Eles rapidamente avaliariam as implicações. Aquele "acidente" não poderia ter sido causado por alguém que, sem querer, levara um tanque de oxigênio à sala do escâner. Se Philbrick o fizera sozinho, o tanque teria sido sugado pelo sistema antes que Philbrick entrasse.
Não, o tanque de oxigênio fora levado à sala enquanto Philbrick estava na máquina. Enquanto ele fazia uma IRM de si mesmo. O pobre infeliz provavelmente nem sequer tivera tempo de ver o que o atingira.
VINTE MINUTOS DEPOIS, Emily ainda não havia retornado. Minha cabeça doía como se um martelo estivesse batendo atrás de meu córtex pré-frontal.
Perambulei até achar uma sala pequena com um refrigerador, uma pia e uma mesa de fórmica com cadeiras dobráveis. Não encontrei nenhuma aspirina, mas no balcão havia uma cafeteira. Num dos armários, encontrei pó de café. Iniciei o preparo e sentei-me para esperar.
As últimas gotas de água caíam no filtro quando ouvi passos no corredor. A dra. Pullaski entrou e dirigiu-se ao armário para pegar uma caneca. Nenhuma gota de sangue no escarpim cor de creme. Ela deu um pulo, assustada, ao me ver.
— Peter Zak, dr. Peter Zak — eu disse, caso ela não se lembrasse. — Fiz café.
Com a mão trêmula, ela se serviu.
— Que dia horrendo. Ainda não consigo acreditar. É uma tragédia.
— Parece um acidente terrível.
Ela encostou-se no balcão, segurou a caneca com as duas mãos, inspirou o aroma de café e, então, tomou um gole.
— Liguei para a irmã de Leonard a fim de lhe dar a notícia. Teria feito isso pessoalmente, se pudesse, mas a polícia quer me manter aqui. Não quis que ela soubesse através do noticiário. Leonard estava conosco desde o começo. Nunca pensei... — A voz falhou. Ela fechou os olhos e inclinou-se para trás, os lábios trêmulos. De súbito, fitou-me intensamente, uma combinação de desconfiança e talvez um pouco de medo.
— O que faz aqui? — perguntou. O olhar tornou-se especulativo, e antes que eu pudesse responder, a dra. Pullaski foi dizendo: — Veio encontrar a drâ. Ryan? Pobre criatura. Estou certa de que ' ela não teve a intenção.
— Intenção de quê?
— Não é óbvio? — Pullaski tomou um gole de café. — Ela deve ter levado o tanque de oxigênio à sala do escâner, sem perce ber que se tratava de um contêiner de ferro.
— Por que ela faria isso?
— Quem sabe.
— E por que, em primeiro lugar, haveria um tanque como aquele? Um que pudesse ser sugado pelo magneto?
— Às vezes, o pessoal dos suprimentos se engana. Já aconteceu, antes. Os tanques são em geral tarjados, mas sempre verificamos. Pelo menos, é esse o procedimento padrão — ela apertou os lábios — que todos deveriam seguir. Aliás, por que a dra. Ryan estava aqui? Não tinha nada marcado para esta manhã.
— Ela disse que o dr. Philbrick ligou dizendo que você havia encontrado o bip. Veio buscar o aparelho antes do trabalho.
— Eu? Ela entendeu mal. Claro que isso não me surpreende. E um tanto distraída.
— Você não deu aqueles telefonemas? — Shands perguntou, colocando a cabeça na abertura da porta. A voz soou firme. Sem dúvida, um homem acostumado a dar ordens.
— Estou cuidando disso. — A dra. Pullaski fez um gesto com a cabeça em minha direção.
— Controle de danos — Shands explicou. — Tenho certeza de que você entende.
— Lógico que providenciaremos uma investigação — a dra. Pullaski disse. — Nunca tivemos um incidente grave. Não deverá afetar nossos recursos. Afinal, com nossa experiência e os serviços que provemos... — Ela praticava um pouco de "controle de danos" em mim. — É um acidente em um milhão. Claro, nós iremos refazer os procedimentos de treinamento.
— Pobre Leonard — Shands disse. Por um momento seus olhos tornaram-se vazios e o rosto, austero. Então, como num passe de mágica, livrou-se da sensação. — Os fiscais virão para cima de nós.
A dra. Pullaski tirou um pote de creme do refrigerador e pôs um pouco em seu café, lambendo a gota que caiu na unha pintada.
— Cuidaremos deles.
MacRae fechou a porta da sala onde realizava os interrogatórios. Terminara com Emily e agora estava pronto para o próximo. Tinha o seu bloco de anotações aberto e a caneta suspensa.
— A que horas chegou aqui? — O olhar dele dizia Não me enrole.
— Um pouco depois das nove.
— Um pouco depois... — ele repetiu, com o rosto impassível, exceto pelo movimento de um músculo do maxilar. — FoÍ após nossa chegada. Você deve ter rompido a barreira de som para entrar aqui.
— Prenda-me.
— Como diabos conseguiu entrar?
— Subi pela escada da garagem. — Ele ergueu as sobrancelhas. — O engate de uma das portas estava bloqueado por uma fita adesiva.
— Droga — MacRae resmungou, tomando notas. Pelo jeito, os oficiais da segurança iriam ouvir poucas e boas. Depois de escrever, olhou para mim, devagar. — Bloqueado por uma fita adesiva?
— Vá verificar.
— Iremos. Então, a dra. Ryan não compareceu a um compromisso e você correu para investigar. Age de forma tão protetora com todos os pós-doutorandos? — Disse a mim mesmo que ele não estava sendo ofensivo só por prazer, era seu dever encontrar lacunas nas histórias das pessoas.
— Escute, alguém anda perseguindo a dra. Ryan — contei. — Ela sofreu vários incidentes e um deles foi aqui. Se não acredita em mim, verifique com a polícia. Claro que nós ficamos preocupados com o bem-estar dela.
— Então, nós viemos até aqui para salvar o dia?
Eu sabia que ele estava me provocando, mas não entrei no jogo. Apenas cruzei os braços.
— Você conhecia o dr. Philbrick? — ele perguntou.
— Um pouco. Eu o encontrei duas vezes. Ambas aqui. — Contei a MacRae que Philbrick fizera um escaneamento num de nossos pacientes. Relutante, disse-lhe o nome do paciente. — Jack O'Neill.
MacRae espantou-se.
— O tio de Annie? Assenti.
— Ótima pessoa. Um dos melhores policiais de Somerville. Sabia trabalhar com jovens melhor do que ninguém. Alguns garotos costumavam ir à delegacia perguntar por ele. Depois que o pai de Annie faleceu, O'Neill assumiu a família.
Incomodava-me muito o fato de MacRae saber tudo isso. Lembrei que ele e Annie haviam crescido juntos. Freqüentaram a mesma escola, as famílias de ambos eram próximas. Porém, eu queria ser o único a saber o que importava para Annie, não MacRae.
— Ele está doente? — MacRae perguntou.
— Está sendo avaliado.
— Lamento saber. Pode dizer a Annie que perguntei por ele? Assenti, sem a menor intenção de fazê-lo.
— O que pode me dizer a respeito do dr. Philbrick? — ele perguntou, voltando ao trabalho.
Contei o que eu sabia. Que ele trabalhava para Shands havia muito tempo. Que a dra. Pullaski disse que ele tinha uma irmã. E que já tinha feito a própria IRM.
— Uma IRM em si mesmo? — MacRae perguntou, incrédulo.
— Ele era um especialista nessa tecnologia.
— Um especialista. — MacRae murmurou a palavra. — Então, ele sabia que seria perigoso levar aquele tanque de oxigênio à sala?
— O campo magnético nunca é desligado — eu disse, dando uma resposta oblíqua.
MacRae ficou confuso. Sabia que aquela informação era importante, mas não sabia por quê. Continuei:
— Portanto, o dr. Philbrick não poderia ter levado aquele tanque de oxigênio à sala de escaneamento.
Quase pude ver as engrenagens trabalhando no cérebro de MacRae, enquanto ele assimilava as implicações.
— Outra pessoa deve ter levado o tanque à sala enquanto o dr. Philbrick estava na máquina — ele disse. Fez outra anotação. — E qual era o relacionamento da vítima com a dra. Ryan?
— Profissional. — Eu me senti um tanto desconfortável ao acrescentar: — E saíram juntos algumas vezes, depois do trabalho.
Pude ver que isso ele não esperava.
— O dr. Philbrick me telefonou três vezes ontem — contei.
— É mesmo? Para quê?
— Não sei. Não conseguimos nos falar.
— Ele já tinha ligado para você antes?
— Não.
— Não achou estranho ele ter telefonado?
— Não até agora.
MacRae endireitou o pescoço.
— Gostava dele?
Era uma pergunta tão bizarra que levei algum tempo para encontrar a resposta. Escutei Emily dizendo: Não parece tão estranho depois de conhecê-lo melhor. Lembrei-me dele com tio Jack, de quão gentil e compreensivo fora.
— Na verdade, gostava, sim.
Voltei ao hospital me sentindo num nevoeiro, pouco ciente de qualquer coisa fora de minha cabeça. Minha mente continuava a mostrar flashes do corpo de Philbrick e do sangue no chão. Liguei o rádio, aumentei o volume e tentei envolver-me na música.
Assim que cheguei, fui ao encontro de Gloria. Assim que ela soube da novidade, olhou, perturbada, ao redor da enfermaria.
— Acidentes acontecem no minuto em que você abaixa a guarda. — Ela levantou-se e verificou se a sala dos medicamentos estava trancada. — Ainda bem que você foi até lá. Pobre Emily. Espero que a tenha mandado para casa.
— Tentei. Mas Emily insistiu em voltar para cá depois que a polícia terminar de interrogá-la. Disse que prefere trabalhar a ficar em casa.
— Onde foi que escutei isso?
Nas semanas após a morte de Kate, vaguei pela unidade como um zumbi. Gloria e Kwan haviam tentado me levar para casa, mas ficar sozinho era a última coisa que eu queria.
— E quanto a você? Tudo bem? — Gloria perguntou.
— Tudo bem. — Na verdade, eu achei que estivesse mesmo. Fui para minha sala. Semanas antes, eu teria ligado para Annie na mesma hora. Agora hesitei. Essa história confirmaria a convicção de Annie de que o Centro Médico Universitário era um local diabólico onde procedimentos de segurança básicos eram ignorados, de onde pacientes saíam mais doentes do que quando haviam entrado. E fora eu quem o recomendara.
Digitei o número. Como ela não atendesse, deixei uma mensagem, pedindo que me ligasse.
Pelo menos, tinha bastante trabalho para me enterrar nele. Abri o livro de contas e iniciei uma revisão orçamentária. A sala estava sufocante. Levantei, abri a janela, sentei novamente e tentei me concentrar. Havíamos aumentado a cota de pacientes para dois e diminuído um dos membros da equipe. Bem-vindo ao novo milênio. Ajustei os números. Então, precisei carregar a nova programação de reembolso do computador principal e gerar uma previsão. Sabia que os resultados seriam deprimentes.
A cortina da janela voou com a brisa. Levantei e fechei-a pela metade. Tinha acabado de retomar o trabalho quando o ronco de um caminhão me distraiu outra vez. Pela janela, observei o veículo manobrar na lateral do prédio.
Desisti e desci. Encontrei Kwan preparando chá.
— Não consigo trabalhar — comentei.
— Trabalhar? Você trabalha? — ele brincou. Provavelmente viu algo em minha expressão, porque seu sorriso sardônico desapareceu. — Alguma coisa o perturba.
— Sinto como se as estrelas estivessem fora de alinhamento — eu disse, e contei-lhe o que acontecera naquela manhã.
— Somente ela estava lá quando aconteceu? — Kwan perguntou.
— Emily diz que chegou depois.
— Quer dizer que alguém causou um acidente medonho e depois fugiu, deixando-a levar a culpa? Não creio que devamos mandar mais pacientes para lá.
Claro que era justamente isso que preocupara Shands e Pullaski. Para um laboratório médico, um registro de segurança imaculado era um quesito tão importante quanto qualquer máquina de última geração.
Kwan convenceu-me a acompanhá-lo ao refeitório para adiantarmos o almoço. Comi uma salada e uma omelete que podia ter . sido preparada com Silly Putty*4 reaproveitadas. Quando voltei, verifiquei se Annie havia ligado. Ainda não.
Não pude encarar o livro de contas. Então, desci outra vez unidade. Percorri o corredor, checando pacientes. Havia uma informalidade tranqüilizadora na rotina.
Emily estava num dos quartos, trabalhando com um novo paciente. Nós nos entreolhamos. Ela assentiu discretamente.
Continuei até o fim do corredor e entrei no quarto que fora d tio Jack. Não podíamos nos dar ao luxo de manter leitos vazios Um novo paciente lá seria instalado no dia seguinte. Os único vestígios de tio Jack eram a maleta na qual a equipe guardara o pertences dele e uma pilha de recortes de revistas e jornais. Ima ginei que Gloria fora a responsável por guardá-los. A coleção d pacotinhos de açúcar, canetas e vários outros itens que ele recolhera haviam sumido.
A maleta de couro era antiga, de boa qualidade, coberta de decalques de viagem. Yosemite. Monte Rushmore. Ocorreu-me que eu sabia muito pouco a respeito de tio Jack. Somente que era tio de Annie, um viúvo que fora policial. Um bom policial. Pensei em todas as coisas que ele guardara em seu apartamento e aqui. Acumulação. Era o mesmo que tentar conservar as próprias pegadas.
Folheei os recortes. Havia um estranho sortimento de coisas. Tio Jack parecia gostar de anúncios de veleiros, praias ou campos de golfe. Por que não? Ele teria atingido um ponto na vida em que, junto com a esposa, poderia enfim aproveitar tudo o que nunca fizera antes por falta de tempo. Ela não deveria ter morrido e ele não deveria definhar com a demência.
Levei a maleta e os recortes à minha sala. Ao abrir a porta, ouvi o telefone tocando. Era Annie.
Rapidamente, contei-lhe que Leonard Philbrick estava morto e que eu tinha estado no laboratório de IRM.
— Parece que ele estava operando a máquina sozinho.
— Para quê?
— Para uma IRM de si mesmo. Eles têm um controle remoto. — Eu sabia que soava estranho. — Ei, ele é um pesquisador. Esses caras são meio malucos.
— Então, quem levou o tanque de oxigênio à sala?
— Emily diz que não foi ela.
— Emily Ryan?
Percebi que havia conseguido contar minha versão sem mencionar que Emily fora a razão que, em primeiro lugar, levara-me às pressas ao laboratório de IRM.
— Ficamos preocupados porque Emily não apareceu para uma sessão com um dos pacientes. Então, quando liguei... — Minha voz falhou. — Gloria achou melhor que um de nós fosse até lá para ver o que estava acontecendo.
— Gloria mandou você até lá — Annie disse. —Teste de mag-neto. Tanque de oxigênio. Não é basicamente o mesmo acidente?
— Exceto que, dessa vez, não foi com Emily.
— Acredita nela?
A pergunta pairou no ar. Eu não queria admitir a verdade. Era difícil acreditar na história de Emily. Havia o bip extraviado que a dra. Pullaski alegara não ter encontrado. O aparelho começava a parecer uma desculpa fraca para chegar mais cedo e "encontrar" o corpo. E agora, com a morte de Philbrick, não havia ninguém para confirmar a história de Emily. Existiria talvez outro motivo para ela ter ido tão cedo ao laboratório? Alguém com quem estivesse se encontrando e que agora tentava proteger?
— Eles não vão colocar as mãos em tio Jack novamente. Se ele sobreviver — Annie afirmou.
— Como ele está?
— Muito fraco. Hoje à tarde, eles o colocaram no respirador. Conversei com o médico.
— E?
— Espere. Anotei tudo. — Houve um silêncio na linha. — Aqui está. Ele disse algo sobre uma área opaca no pulmão esquerdo. Infecção bacteriana. Eleva o número de glóbulos brancos.
Nada daquilo parecia bom.
— Ao menos, eles descobriram a tempo — eu disse, tentando manter o otimismo. — Uma infecção bacteriana deveria responder a antibióticos.
— Foi o que o médico disse.
— Nada a fazer agora, senão esperar.
— O médico também disse isso. Esperar. É algo que agora sou obrigada a fazer. — Annie soltou uma risada cansada. — Preciso desligar. Tenho muito trabalho e...
— Annie, não desligue ainda. — Houve um silêncio do outro lado da linha. — Você está aí?
— Estou.
— Sei que está muito atrapalhada com tio Jack e o excesso de trabalho, mas... — respirei fundo — você está me deixando de lado.
Escutei um suspiro pesado.
— Escute, estou exausta. E tenho oito milhões de coisas a fazer. Provavelmente não terei tempo para almoçar...
— Deixe-me levá-la para jantar.
— A última coisa que quero é dirigir.
— Vou buscá-la e a levo para casa. Terá de comer em algum momento, certo?
— Estou de jeans apenas.
—Jeans está ótimo. É muito informal. Conheço um lugar em North End.
— Estou muito cansada. Quero só ir para casa. Dessa vez, eu não aceitaria um não como resposta.
— Você verá. Vai se sentir em casa.
Depois de passarmos pelo portão, deparamos com um letreiro vermelho cintilante, em néon: COZINHA ITALIANA DA IDA.
— Nossa! — Annie exclamou, olhando sobre a cerca nos fundos de um beco em North End.
Um metrô e meio abaixo de nós, carros fluíam da boca do túnel Sumner como jorrando de um escoadouro de água num dia de tempestade. Atrás de nós, a rua Hover pulsava com pedestres naquele bairro que ainda se gabava de possuir os melhores restaurantes italianos de Boston. O ar estava denso devido ao forte aroma de alho.
Era maravilhoso estar com Annie num lugar diferente de um hospital. O estabelecimento minúsculo realmente nos deixava à vontade, como se estivéssemos no apartamento de alguém em North End, com o piso de linóleo e as toalhas de mesa vermelhas. As paredes possuíam espelhos com molduras salpicadas de dourado, e nas prateleiras mais altas havia garrafas de vinho em cestas ao lado de pilhas de uvas de plástico.
— Dr. Peter — um senhor disse ao nos receber de braços abertos. Ele bateu em minhas costas e nos acomodou a um canto na única mesa disponível.
— Como descobriu este lugar? — Annie perguntou, tambori-lando o cardápio de plástico. Seu olhar intenso ia de uma mesa à outra, fixando o que parecia uma dupla de matronas bem pentea- das de Back Bay, usando terninhos, e dois senhores carecas com jaquetas de zíper e conversando animadamente em italiano. Outro casal de idade levantou-se e abraçou a garçonete para se despedir.
— Na verdade, foi Kate quem o descobriu. — Agora eu tinha, a atenção de Annie. — Ela lera que Caroline Kennedy havia feito uma festa aqui e resolveu experimentar. Isso foi há cerca de de anos. Quando viemos pela primeira vez, adoramos a comida...
— A atmosfera assustadora.
— A comida — eu disse. A garçonete, uma loura sorrident que eu sabia ser a irmã da proprietária, trouxe uma cesta de pão uma trivial moringa de barro com o vinho da casa. Servi a bebi da nas taças deixadas sobre a mesa. Ergui a minha.
— A tio Jack. Annie sorriu.
— A Kate. Entre o farto antepasto e a sopa, que minha mãe saberia preparar se fosse italiana, Annie me falou do trabalho. Ela e Chip ha viam batalhado no primeiro ano e meio depois de saírem promotoria pública. Agora tinham mais trabalho do que podiam dar conta.
— Isso é muito bom — Annie comentou após a primeira garfa-da no famoso frango de Ida: um rolinho de peito dourado e embebi-do num esplêndido molho com nozes de pinha, espinafre, presunto e queijo. Provou outra garfada, acomodou-se na cadeira, fechou os olhos e mastigou. — Você tinha razão. Eu precisava disso.
— Eu também — disse e olhei para ela. Annie sabia que não me referia à comida.
Contei-lhe acerca do orçamento que eu tinha de equilibrar e como tentava convencer os administradores do Pearce a nos deixar expandir nossos serviços de hospital-dia. Ela falou dos currículos que tinham recebido para a equipe que queriam formar. Nenhum de nós quis mencionar a demência de tio Jack ou a morte de Leonard Philbrick.
Annie pegava a última noz de pinha do prato quando a garço-nete veio tirar a mesa.
— Desculpe-me, ando distraída e egoísta — Annie explicou-se. — Tudo parece tão...
— Caótico?
— Sim.
A garçonete nos serviu café.
— Você não gosta de ver nada fora de controle, não é? Annie sorriu com ironia.
— Vai me analisar?
— Não, só fiz uma observação — respondi, tomando um gole de café. — Manter-me em banho-maria não fará com que tudo volte ao lugar.
— Acha que é isso que estou fazendo? — Ela pensou por um instante. — Pode ser. Sinto-me tão sufocada. Tio Jack esteve presente quando meu pai morreu e nos anos anteriores também, quando meu pai desistira de viver. Agora eu o estou perdendo.
Annie tomou seu café de uma só vez.
— Dói muito perder alguém que tanto amamos — disse eu. — Mas o distanciamento não é a resposta.
A xícara afastou-se um pouco dos lábios de Annie. Ela enfim colocou-a sobre o pires.
— Acredite-me. Sei o que estou falando — acrescentei, tocando a mão de Annie.
— Sei que você sabe — ela disse, apertando minha mão.
O jantar terminou cedo demais. Parecia ter passado semanas desde que corri ao laboratório de IRM para encontrar Philbrick morto, não justamente nesta manhã.
A garçonete trouxe a conta. Conferi o valor. Tirei meu cartão de crédito da carteira. Mas em vez de deixá-lo no pratinho, fiquei] fitando-o, imóvel. Ele me lembrava de algo. Algo que vi nessa manhã, mas não pude assimilar.
Fechei os olhos e tentei visualizar a sala. O legista estava em pé diante do corpo. Ele moveu-se para o lado. Ali estava Philbrick estendido, usando o jaleco, o crânio massacrado, o braço pendendo de um lado. Sobre a mesa, os seus pertences, seus óculos quebrados...
— Com licença, senhor — a garçonete disse, oferecendo-se para pegar o cartão de crédito.
De repente, descobri o que tinha notado sem registrar.
Passei essa noite na casa de Annie. Fizemos amor e, depois, abracei-a até adormecermos.
— E daí? — MacRae resmungou quando liguei para ele de minha sala na manhã seguinte. — Todo homem carrega sua carteira no bolso da calça.
— E os cartões de crédito? Havia algum na carteira do dr. Philbrick?
MacRae grunhiu, confirmando.
— Ele não chegaria perto do sistema IRM com cartões de crédito no bolso. Os magnetos os apagariam.
Houve um silêncio enquanto MacRae digeria a informação.
— O dr. Philbrick era um técnico extremamente cuidadoso — reforcei.
— Estamos esperando o resultado do exame toxicológico — MacRae disse.
Ele parecia um passo à minha frente. Se Philbrick estivesse drogado ou bêbado, isso explicaria por que se esquecera de tirar a carteira do bolso antes de entrar na sala do escâner.
— O laboratório tem um registro de segurança perfeito. Acha que eles notificam cada incidente? — MacRae lançou a pergunta tal qual uma isca. Pelo tom que usou, parecia já saber a resposta.
— Testemunhei um incidente. O objeto foi sugado pelo campo magnético com uma velocidade impressionante. Quase atingiu Philbrick. Alguém levou um magneto à sala do escâner. Ele ficou furioso.
— Posso imaginar — MacRae disse simplesmente.
Agora ele esperava pela cartada final. Relutante, mostrei-lhe o que tinha.
— Foi a dra. Ryan quem entrou na sala com o magneto.
— Sei — MacRae disse. — Telefone, caso apareça algo mais que eu deva saber — ele acrescentou com um toque de ironia. — A propósito, quando verificamos as portas de incêndio na garagem, nenhuma delas tinha fita adesiva.
— Mas foi assim que entrei. Estou certo...
— Não estamos duvidando de sua história. Encontramos resíduos indicando que uma delas teve o engate bloqueado com fita adesiva. Se você não tivesse visto, nunca saberíamos.
Esta foi a maneira mais próxima de um agradecimento que eu poderia obter de MacRae. E as implicações eram enormes. Significavam que alguém, qualquer um, poderia ter chegado antes de Emily, entrara e saíra sem passar pelos seguranças do saguão. Assim que desliguei o telefone, ele tocou.
— Dr. Zak? — Não reconheci a voz da mulher. — Estou ligando apenas para lembrá-lo. O senhor tem uma IRM marcada para amanhã às duas. Nós lhe enviamos um pacote de informações... — Verifiquei a pilha de correspondência ainda fechada em minha mesa, provavelmente eu havia presumido que não tivesse importância. — com as coordenadas para chegar até aqui e instruções quanto ao que esperar do procedimento.
Abri minha agenda. Lá estava, às duas do dia seguinte, "IRM". Eu esquecera completamente. Parecia ter passado anos, não semanas, desde que Emily marcara aquele compromisso para mim. Agora eu estava bem menos entusiasmado para deitar-me naquela mesa e entrar naquele tubo estreito onde Leonard Philbrick havia morrido. Eu permaneceria estirado lá dentro, imaginando se alguém entraria na sala do escâner com um aro de ferro? Eu pegaria catapora ou dengue? A paranóia de Annie em relação ao lugar era contagiosa.
— Dr. Zak? Podemos confirmar seu horário?
Pensei em cancelar. Então, comecei a raciocinar. Como poderia desperdiçar a oportunidade? Não havia outro sistema no país tão potente quanto o deles. Após o acidente, sem dúvida a equipe estaria mais vigilante do que o normal. No pior caso, eu contrairia uma gripe. Parecia improvável, mas, caso acontecesse, ora eu era jovem, estava em boa forma. Sobreviveria.
— Você viu isso? — minha mãe perguntou. Eu estava em sua cozinha nessa noite, comendo uma fatia de bolo, tomando café e conversando. Ela empurrou o jornal sobre a mesa em minha direção. Estava dobrado e ela marcara em vermelho na primeira página "PESQUISADOR É MORTO NUM ESTRANHO ACIDENTE DE IRM".
Quase engasguei com o bolo. Eu tinha lido o artigo naquela manhã e sabia que meu nome não fora mencionado.
— Mais? — ela perguntou, levantando-se e indo ao balcão.
— Não, já comi o suficiente.
"Suficiente" não pertencia ao vocabulário de minha mãe. Ela me olhava como se eu estivesse doente.
— Tem certeza? Ergui as mãos.
— Quero que Minnie veja isso — ela disse, indicando o jornal. Minnie Sadowsky era uma amiga de longa data de minha mãe.
Minnie era legal, embora ainda conservasse a mania de apertar bochechas. Era o dr. Geoffrey — seu filho exemplar, um médico casado com três filhos — a maldição de minha existência. Fingi ler o artigo.
— Por que quer mostrar isso a ela?
— Geoffrey deu a ela um escaneamento de aniversário. — Pela expressão de minha mãe, pude perceber que ela não gostara muito do presente. — Completamente seguro, ele disse a ela. Se houver câncer, nós saberemos, ele afirmou. — Minha mãe meneou a cabeça. — Em nossa idade, é melhor não saber.
— Esse acidente ocorreu num laboratório de IRM — eu disse. — Ele provavelmente deu à mãe um escaneamento TC.
Eu havia reparado em anúncios espalhados em vários lugares, incitando as pessoas a "dar um escaneamento completo a seu amado". Fato inteiramente previsível. Cada hospital possuía um escâ-ner de TC, quando a tomografia computadorizada era o quente da nova tecnologia. Logo depois, vinha a imagem de ressonância magnética, e a última invenção de ontem tornava-se o elefante branco de hoje. Todo equipamento em excesso ainda precisava ser pago e, sendo assim, voilà, surgia o médico/empresário.
— TC, maquinário-T. É como um raio X? — ela perguntou, eu assenti. — Eu iria a Chernobyl se quisesse radiação. E sabe que adoro Minnie, mas não é um bom presente para ela. Cada joane-te que ela ganha é câncer de pele. Quando está cansada, é fibro-mialgia ou síndrome de Epstein-Whozits.
— Talvez ele pense que Minnie vai parar de se preocupar, caso não encontrem nada.
Minha mãe me olhou como se eu tivesse o QI de um sapo.
— Sempre há alguma coisa para encontrar.
Não era muito improvável. Escaneamentos corporais podiam facilmente acusar falsos positivos ou anomalias inofensivas, enviar pacientes a mais exames desnecessários e até mesmo a cirurgias.
— Deve ser algum tipo de jogada desonesta — minha mãe continuou. — Acha que esses homens estão mancomunados com cirurgiões?
Como sempre, a teoria da conspiração de minha mãe era inteiramente plausível. Ela também nunca comprara margarina. Momentos depois, quando eu estava de saída, ela perguntou:
— Terá um dia cheio amanhã?
— Todos os dias são cheios — eu respondi. Ela não precisava saber que eu era tão maluco quanto sua amiga Minnie.
JÁ PASSAVA DAS DUAS HORAS e as cadeiras da recepção do Centro Médico Universitário de Diagnóstico por Imagem estavam vazias. Aparentemente, os negócios tinham sofrido uma queda. Talvez fosse apenas temporário. Afinal, ainda protagonizavam o espetáculo — nem o Mass General tinha uma máquina tão poderosa quanto a deles.
Dirigi-me ao balcão. A jovem recepcionista era baixa e roliça, com cabelos pretos e óculos. Ela me entregou uma prancheta com formulários a preencher.
Sentei-me e comecei. Escrevi meu nome, endereço. Marquei sexo masculino. Altura e peso. Estava grávido? Percorri o resto das perguntas. Canhoto ou destro? Sob alguma medicação? Implantes de metal? Distúrbios neurológicos? Não, não, não.
Eram várias páginas repletas de perguntas. Suspirei e continuei a preencher as lacunas. Aquilo levaria um bom tempo, mas fazia parte do procedimento em qualquer pesquisa.
As duas últimas páginas eram um formulário de consentimento. Assinei no final.
Levei os formulários à recepcionista. Ela os verificou e hesitou por um momento, como se não soubesse o que fazer em seguida. Supus que Amanda, a loira alta, havia pulado do navio e, portanto, a dra. Pullaski contratara uma substituta.
Tão logo me sentei com uma revista, a porta se abriu.
— Dr. Zak? — Era Emily. Sorria, mas tinha olheiras fundas e a pele estava quase tão pálida quanto o jaleco.
Conduziu-me à área central, agora tão familiar, com seus avisos, e apresentou-me ao homem também de jaleco que trabalhava no balcão. Eu conhecia o procedimento. Livrei-me da carteira e das chaves. Segui Emily até a sala de exame.
Ela fechou a porta e recostou-se no batente.
— Não sei por quanto tempo vou suportar — desabafou. — Todos me olham como se fosse a responsável. A dra. Pullaski disse
à polícia que utilizei o laboratório sem sua autorização. Alega nunca ter encontrado meu bip ou pedido a Lenny que me telefonasse. Estou certa de que ela me despediria, não fosse pelo dr. Shands. É o único que continua a meu favor. E a polícia...
— Eles a interrogaram de novo?
— Apareceram aqui ontem à tarde, perguntando acerca dos procedimentos de segurança e por que não notificamos o acidente com 1 o magneto. Eu lhes disse que ninguém se feriu. Não houve acidente.
Raciocínio interessante. Perguntei-me se ela estava mesmo con-vencida disso.
Emily sentou-se num banco.
— Para ser honesta, eu lhes disse tudo que sei. — Ela começou a chorar. — Agora estão interrogando meus vizinhos. — Soluçava, enquanto as lágrimas caíam livremente. Coloquei minha mão em seu ombro. — Queriam saber a que horas saí do apartamento naquela manhã. Quantas vezes — respirou fundo — terei de explicar que Lenny já estava morto quando cheguei? — Emily parecia infeliz, como um animal ferido.
Eu a levantei do banco e a abracei.
— Estou certo de que a polícia está explorando todas as possibilidades.
— Agora querem falar com Kyle. Nem sequer o estou vendo mais — ela contou, chorando em meu ombro.
Seus cabelos exalavam odor de gengibre e eu podia sentir os seios dela colados a mim, lembrando-me de que era uma mulher que eu abraçava. A atmosfera em torno de nós dois parecia carregada como um campo magnético.
— A polícia provavelmente os está interrogando porque você esteve aqui na hora do crime — eu disse, tentando afastar Emily e livrar-me de minha crescente sensação de desconforto. Peguei um lenço e o entreguei a ela.
— Talvez eles verifiquem seus antecedentes — continuei. — Para ver se há algo em seu passado.
— Oh, Deus. Você acha mesmo?
Emily segurou o lenço sobre a boca. As pupilas se dilataram. Entrou em pânico ante a mera possibilidade de expor qualquer esqueleto que estivesse em seu armário. Percebi que eu sabia pouco a respeito dela.
— Teme que eles descubram algo?
Veias avermelhadas apareceram no pescoço de Emily. Ela brincava com o primeiro botão do jaleco, que abotoava e desabotoava.
— Fiz algo muito estúpido na faculdade. Eu precisava de dinheiro. Não pensei nas conseqüências. Kyle me ajudou a superar essa fase. Ele me protegeu.
— Você mencionou outra experiência de perseguição. — Ela dissera que se tratara de um desconhecido que morrera num acidente de carro.
Emily assentiu.
— Foi parte do problema. Espero que a polícia não traga isso à tona. Pensei que finalmente houvesse deixado tudo para trás.
Antes que eu pudesse perguntar "Tudo o quê?", alguém bateu* à porta. Emily assustou-se quando esta se abriu.
— Oh, desculpem-me — Shands disse ao nos ver. Emily guardou o lenço no bolso. — Acho que ainda não está pronto. — Ele a fitou por um momento longo demais. Então, olhou-me de forma especulativa. — Voltarei em alguns minutos — disse e saiu.
— É melhor eu ir — Emily concluiu, entregando-me uma bata hospitalar. Ela se retirou da sala.
Enquanto trocava de roupa, refletia acerca do que acontecera a Emily que era tão vergonhoso a ponto de ela não conseguir falar a respeito. Teria sido por isso que não quisera que a polícia investigasse o vandalismo em seu carro?
Calcei os chinelos de papel e tentei não pensar em quão ridículo estava. O cuidado com a saúde podia ser humilhante.
— Peter! — Shands exclamou ao retornar com um sorriso de 150 watts. — Você vai gostar disso. — Disse a aranha à mosca.
Anime-se, disse a mim mesmo. Nas atuais circunstâncias, eles precisam se comportar muito bem.
Shands levou pelo menos uns dez segundos para verificar meu histórico médico. Realizou os exames habituais — pulso, pressão sangüínea, reflexos — e acrescentou algumas notas ao prontuário. Brandiu uma seringa hipodérmica surgida como por encanto e veio com ela em minha direção.
A veemência com que puxei meu braço surpreendeu-me. Nã havia percebido que estava tão assustado. Porém, Shands devia saber disso — era uma lição que se aprendia cedo, não avance sobre um paciente inesperadamente a menos que esteja preparado para levar um chute na região mais sensível do corpo.
— Calma — Shands disse. — Eu ia injetar um agente contrastante. Ele nos dá uma visão mais clara...
— Sei o que um contraste faz. Só não esperava receber uma picada.
Perguntei-me se ao menos lhe ocorrera dizer: "Só levará um segundo" ou "Vai doer um pouco", ou... Não, Shands era um pesquisador. Annie tivera razão. Ele tratava os pacientes como cobaias idiotas.
Ofereci meu braço. Ele desinfetou o local com álcool. Observei a agulha penetrar. Ardeu um pouco quando ele injetou o líquido. Fiquei feliz por Annie não saber que eu fazia aquilo.
— Muito bom. Mantenha a cabeça imóvel. — Escutei a voz de Emily através dos fones de ouvido, quando deitado no tubo de IRM.
Tio Jack estivera certo. Era o mesmo que se deitar dentro de um caixão. Não precisei me preocupar com o medo do fantasma de Philbrick — o zunido ensurdecedor e as batidas sobrepujavam qualquer coisa que pudesse passar por minha mente. Poderia até mesmo estar dentro de uma locomotiva. Pelo menos, eles me haviam dado óculos prismáticos, que me permitiam ver o reflexo de meus pés no final do tubo quando eu olhava para cima. Era melhor do que olhar o interior do escâner, poucos centímetros acima de meu nariz. Porém, achei mais fácil de agüentar com os olhos fechados.
Esperava que o contraste estivesse fazendo meu cérebro surgir em tecnicolor. O local onde Shands injetara o agente estava frio.
— Excelente — Emily disse. — Temos uma ótima base. Agora leve o tempo que precisar. Eu gostaria que, lentamente, piscasse seus olhos vinte vezes.
O teste durou cerca de meia hora. Não foi tão ruim e sobrevivi sem arranhões. Depois, sentei-me na sala de controle com Emily para ver meu cérebro escaneado. Minha "base" não pareceu particularmente tranqüila. Como uma seção de percusão, havia pulsões em ambos os lados da região temporoparietal, possivelmente sincronizadas com o ruído da máquina. Somente o córtex visual estava quieto. Considerando que eu estivera de olhos fechados, entre a bigorna e o martelo, aquilo era quase o que eu esperava.
Enquanto observava, percebi um gosto engraçado em minha boca. Mencionei o fato a Emily.
— Metálico?
Era isso. Emily disse que se tratava de um dos efeitos colaterais do contraste e desapareceria em algumas horas.
— Aqui você piscou os olhos — ela mostrou. O córtex visual agora aparecia no fundo e a área motora acendia.
Shands entrou e observou, de braços cruzados, sobre o ombro de Emily.
— O nome de solteira de sua mãe — Emily disse.
Ele me lançou um olhar furtivo e endireitou o corpo. Shands vira algo inesperado na imagem escaneada. Lembrou-me o olhar evasivo do avaliador para a minha mãe, quando levamos meu pai para um exame. Ele havia mostrado a papai uma caneta e perguntara-lhe o que era.
— Um revólver de tinta — respondera meu pai, o mesmo homem que outrora lera quatro jornais por dia, todos os dias, incluindo o Daily Forward em iídiche. Inclinei-me para a frente, examinando a imagem, pensando no que Shands vira e não querendo perguntar.
Escutei a porta da sala abrir-se. Quando me virei, Shands havia saído e a recepcionista nova entregava um papel rosa a Emily. Ela o leu. E engoliu em seco.
— O que houve? — perguntei.
— Nada. — Ela forçou um sorriso. Pegou o resto do protocolo e o formulário de consentimento da mesa. — Preciso retornar uma ligação. Não levará um minuto. Importa-se?
— Claro que não.
— Pode continuar a ver o escaneamento enquanto eu estiver ausente. Quer que eu lhe mostre como...
— Não. Eu me lembro da última vez.
Quando ela se virou para sair, derrubou os papéis que segurava.
— Droga. — Emily fez menção de se abaixar.
— Vá telefonar — eu disse, e comecei a recolher os papéis. Emily saiu.
Arrumei as folhas. Cada tarefa que eu fizera estava listada no protocolo. O tempo de início e finalização havia sido marcado. Deixei os formulários de lado.
Enquanto encarava a imagem congelada na tela, tentando assumir a perspectiva de um investigador imparcial, senti a ansiedade corroer meu estômago. Aquele era o meu cérebro, não o de um desconhecido, e algo nele havia chamado a atenção de Shands.
Verifiquei o protocolo do teste. De acordo com o tempo impresso, eu estava estalando os dedos. Voltei a animação para o momento em que pisquei os olhos. Havia atividade em ambos os lados próximos às têmporas e mais atividade no sistema límbico — talvez a prova de que eu escutava sons e sentia um certo grau de ansiedade. Havia pulsões perto do centro quando processei uma informação. Mas, além disso, não vi nada. Era como ler palavras escritas em outro idioma — eu podia verbalizá-las mas não conseguia extrair significado, muito menos nuanças. Via meu cérebro funcionando a cada passo, sem saber o que procurava.
Frustrado, afastei-me da tela. Dobrei e desdobrei a ponta do formulário de consentimento. Senti um pouco de enjôo. Talvez a náusea fosse outro efeito colateral do corante que Shands injetara.
Se talvez visse o escaneamento de pessoas "normais", eu poderia enxergar o que havia de diferente no meu. Sabia que o cérebro de Emily e o de Philbrick haviam sido escaneados. O de Shands também. Eu estava prestes a procurar outros escaneamentos no sistema quando Emily entrou.
Ela sentou-se a meu lado.
— Conseguiu ver o resto?
— Um pouco alucinante.
— Literalmente.
Cliquei o mouse e meu cérebro voltou a animar-se em pulsões de verde, um flash de amarelo.
— Como se analisa isso? Se alguma coisa estiver anormal, como saber?
— Não é algo que a maioria consiga ver. Está tudo em estatísti-cas. Basicamente, aquele bebê — apontou o computador na sala en-vidraçada adjacente — separa o sinal dos ruídos de fundo. Por isso nós nos fixamos no básico. Assim, ignoramos o que seu cérebro faz para lidar com a experiência de estar no escâner. Então, o programa compara seus dados com todos os nossos dados arquivados. E uma espécie de análise compacta de regressão. Se houver anomalias, elas são pinçadas e isoladas. Lenny conseguia olhar um escaneamento e dizer se existia algo de errado em você. Eu não consigo.
— Shands consegue? — perguntei. Ela me olhou com estranhamento.
— Às vezes.
Emily limpou a poeira do monitor com o dorso da mão.
— Acho que Lenny passou mais tempo neste laboratório do que em qualquer outro lugar no mundo. — Abriu os dedos da mão e percorreu o teclado como se ele fosse sagrado. Então, respirou fundo.
— Poderíamos ver outros escaneamentos? — pedi. — Cérebros normais? Só estou curioso...
— Claro. — Pressionou algumas teclas e uma nova janela surgiu, um fundo negro com uma lista de arquivos. — Há um monte de coisas minhas aqui. — Emily percorreu a lista. Os nomes dos arquivos eram uma combinação de letras e números. — A pergunta é: onde.
Levantou-se e foi a uma prateleira. Havia manuais de software e três fitas circulares.
— Os nomes dos arquivos foram codificados para proteger a privacidade dos pacientes. Lenny tinha tudo anotado num caderno preto... — Ela se abaixou e abriu um armário sob o balcão, depois outro. — Ele o deixava à vista durante o dia. Aliás, quando encontrá-lo, precisarei acrescentar seu escaneamento à lista.
Abri uma gaveta da mesa à qual sentávamos e onde Philbrick costumava trabalhar.
— É este? — perguntei, indicando um bloco de notas de capa preta, encadernado com uma espiral.
— O próprio — Emily respondeu. Ela o pegou. — Vamos lá. — Voltou a atenção ao teclado e começou a digitar. — Eis um dos meus...
Mas eu não escutava. No fundo da gaveta havia uma publicação dobrada. Era a página de uma revista masculina. Peguei-a e a desdobrei. Uma edição típica da Playboy — havia fotos de moças em várias poses de nudez. Os cenários eram um tanto incomuns. Uma jovem posava modestamente num escritório simples com prateleiras de livros; outra deitava, sedutora, no que parecia ser uma cama de um dormitório com uma bandeira de Dartmouth na parede. O título do artigo era "Universitárias", e fora publicado três anos antes.
— Vamos ver — Emily disse. Ela abria uma nova janela na tela com outro cérebro flutuante.
Eu pretendia guardar a página quando notei que a mulher numa das fotos era Emily. Ela posava de joelhos, com os seios em-pinados para a frente e o traseiro para trás, usando nada mais que um jaleco branco. Então, essa fora a "estupidez" que Emily dissera ter feito na faculdade porque precisava de dinheiro.
— Podemos vê-los lado a lado e... — A voz de Emily calou-se. Ficou paralisada ao notar o que eu segurava.
O texto ao lado da foto transcrevia seu depoimento: 'Acho importante que as mulheres não sejam vistas como objetos sexuais, mas como seres sexuais. A nudez é normal. Se uma mulher quer mostrar o próprio corpo, qual é o problema?', diz a estudante de psicologia Emily Ryan, que está se graduando em Harvard."
Mas Emily enganara-se. Quando a revista chegara às bancas, ela obviamente tivera de defender-se de avanços indesejáveis de homens que viram na foto da Playboy uma parceira disponível. Isso explicava como ela conseguira conquistar certa celebridade — nesse caso, notoriedade —, que atraíra as atenções obsessivas de um estranho. Por isso, precisara de Kyle para protegê-la.
— Lenny? — Emily disse, fitando a gaveta ainda aberta. Havia meia dúzia de lápis mastigados na gaveta. Do fundo, ela tirou um pedaço pequeno de tecido branco em formato de coração. — Lenny. — Desta vez, o nome soou como um gemido. Ela se sentou e levou a cabeça às mãos.
Gosto de pensar que sou um observador muito perspicaz, que sei avaliar as pessoas. Mas tirei nota zero com Philbrick. Primeiro, eu o vira como um completo grosseirão. Agora estava tendo dificuldades de encaixá-lo no papel de perseguidor. Esquisito, sim. Reprimido, sem dúvida. Mas um predador sexual? Olhei o coração, o ensaio fotográfico da Playboy. Talvez ele fosse mesmo.
— Não desconfiou dele? — perguntei.
— De Lenny? — Emily arregalou os olhos. — Eu sabia que ele gostava de mim. Costumava me acompanhar até o carro. Saímos para tomar uma cerveja no outro lado da rua, depois do trabalho. Mas nunca me ocorreu que...
— Que ele poderia estar interessado em você? — Não consegui esconder a incredulidade em minha voz.
Emily deve ter percebido, porque disse:
— Ele era solitário. Muitos se interessam. Isso não significa que não podíamos ser amigos.
— Vocês saíram para beber algumas vezes?
— Bem... mais do que algumas vezes, eu acho. Tornou-se um hábito regular. Saíamos às quintas após o trabalho, às vezes íamos jantar.
— Então estavam juntos.
— Não, não. — Ela pareceu horrorizada. — Deixei muito claro a Lenny que eu admirava seu intelecto e seu trabalho, e que queria aprender com ele tudo que pudesse. Mas não estava interessada nele, não desse jeito.
— Você não o levou a sério.
— Levei. Só não queria magoá-lo.
Sei que os homens podiam ser míopes em certos assuntos, mas aquela era a quintessência do ponto cego de uma mulher. Imaginei o que o constrangido Leonard Philbrick fizera por aquela jovem brilhante e vivaz, que lhe enviara tantas mensagens dúbias. Num minuto ela lhe diz que adora sua companhia e seu intelecto. No minuto seguinte, rejeita sua masculinidade. Pude visualizar Philbrick prolongando o contato com Emily, saboreando os "encontros", usufruindo a sensação de estar em público com uma mulher atraente.
Então, ele descobre que Emily posou nua. Talvez sua visão em relação a ela mudasse — agora a vê como uma vagabunda. Começa a criar fantasias, e passa a segui-la. A paixão torna-se obsessão. Nada improvável.
Olhei o coração de tecido. Doce, sem dúvida, como um namoro adolescente — mas ao mesmo tempo sinistro.
— Éramos amigos. Ao menos, pensei que fôssemos — Emily disse.
— A polícia precisa ser informada.
— A polícia? Acha que isso tem a ver com...? — Era difícil acreditar que ela podia ser tão obtusa.
— Talvez não. Talvez sim. Não sou detetive, mas sei que entender a vítima é a chave para a solução de um crime.
— Crime. — Emily ecoou a palavra. Pressionou os lábios. — Tenho a esperança de que vão nos dizer que foi um acidente. Que irão descobrir quem trouxe o tanque. Como foi entregue por engano.
— Pode ser — eu disse —, mas a carteira e os cartões de crédito estavam no bolso de Lenny quando ele morreu.
Emily assimilou a notícia.
— Ele jamais chegou perto do escâner com a carteira no bolso. Concordei.
— Então, alguém o colocou no escâner? Simulou o acidente? — ela perguntou.
— Seria uma explicação.
— Mas por quê? Por que alguém desejaria matá-lo?
— É por isso que a polícia precisa saber o que encontramos na gaveta dele. Se Philbrick a estava seguindo, o fato sugere todos os tipos de avenidas a explorar. Talvez você não tenha sido a única vítima. — Quando Amanda, a recepcionista, demitira-se, pensei, que motivo ela alegara?
— Acha que eu... ou um deles poderia ter feito isso? — Emily mordeu o lábio inferior. — A polícia tem de saber de tudo?
Peguei o telefone. Quando, enfim, consegui falar com a polícia, MacRae não estava. Começava a deixar um recado quando escutei a porta abrir-se atrás de mim e senti uma brisa leve. Olhei por cima do ombro. Era Shands.
— Se tiver uns minutos... — ele dizia ao entrar.
— A polícia foi chamada há duas semanas — eu disse no correio de voz de MacRae. — Alguém seguiu a dra. Ryan e cometeu um ato de vandalismo no carro dela. Os policiais vieram e recolheram evidências, como a lingerie da dra. Ryan com partes recortadas. Creio que encontramos uma dessas partes na mesa do dr. Leonard Philbrick. Ele é o homem que morreu dentro do escâner. — Repeti o nome do laboratório e o endereço duas vezes. Deixei também o número de telefone e o ramal. Então, desliguei.
— O que está acontecendo? — Shands exigiu saber.
A foto da Playboy havia desaparecido e Emily mantinha as mãos atrás das costas.
— Achamos evidências que sugerem que o dr. Philbrick estava perseguindo Emily — expliquei e mostrei-lhe o tecido recortado.
Shands ficou pálido.
— Onde encontrou isso?
— Aqui mesmo. — Emily indicou a gaveta.
— Leonard? — Ele pareceu ainda mais incrédulo do que Emily. Aproximou-se da gaveta e pegou um dos lápis. Deslizou o dedo sobre a parte mastigada. — Pobre diabo. Claro que estava apaixonado por você.
Foi uma guinada muito rápida. À primeira reação, Shands não pôde acreditar que Philbrick era um perseguidor. De repente, agora fazia sentido.
— Claro que ele gostava de mim. Mas apaixonado?
— Eu conhecia Leonard há anos. De tempos em tempos, ele bancava o idiota. Sempre deslumbrado por alguma jovem bonita.
Inatingível... para ele — disse Shands. Emily encolheu-se. — Oh, sim, ele a adorava. Costumava observá-la trabalhando. Todos sabíamos. — A pergunta não dita pairou no ar: como você não percebeu? — Claro que jamais imaginei que ele fizesse algo como... — Shands fitou o coração de tecido. Então, ergueu-o entre os dedos. — Isto. — Fechou o punho e virou-se para sair.
— Jim — eu o chamei.
— Agora não, Peter. Preciso de tempo para rever seu escanea-mento. Processar algumas análises estatísticas. — Shands dirigia-se à porta. — Depois conversaremos. Sim, teremos de conversar. Ligo para você. — Ele abriu a porta.
— Lamento — eu disse, segurando a porta. — Não pode levar o tecido.
Ele ficou ruborizado. Não estava acostumado a confrontos, muito menos a receber ordens.
— Pode não ser nada — argumentei, dando de ombros, mas mantive minha posição. — Por outro lado, pode ser importante. Sei que a polícia precisará manter as provas sob custódia.
— Evidência sob custódia? — As palavras explodiram. -Acha que isto é prova de um crime?
— Perseguição é crime — eu disse. — Assassinato também.
— Não pensei... — Shands começou. Ele olhou para o punho fechado e depois me encarou. — É mesmo necessário? Por que denegrir a reputação de Leonard? Pelo amor de Deus, ele já não sofreu o bastante?— Ele encarou Emily.
Abri minha mão. Relutante, Shands devolveu-me o pedaço de tecido e retirou-se.
— Nunca o vi tão perturbado — Emily comentou depois que ele saiu. Parecia trêmula. — Em geral, é tão seguro de si.
Eu diria muito defendido. Talvez a perda de Philbrick houvesse! enfraquecido, ao menos temporariamente, a armadura de Shands.
Emily parecia também muito perturbada. Sua mão tremeu quando tirou uma mecha de cabelos do rosto.
— Obrigada por não mostrar a foto da Playboy a ele. Eu morreria se ele descobrisse.
— Você sabe que a polícia será informada acerca das fotos. Agora, mais do que nunca, precisa de um advogado. Alguém com experiência em casos criminais para orientá-la quanto ao que dizer ou fazer, visando seu melhor interesse. Ligue para esse homem — sugeri e escrevi o nome e o número de Chip Ferguson num pedaço de papel e dei a ela. Emily não discutiu.
O telefone tocou. Atendi. Era MacRae, e ele estava a caminho.
Resolvi dizer a Shands que a polícia chegaria logo. Encontrei-o abrindo a porta marcada com a palavra PRIVATIVO, como se estivesse atrasado para uma reunião importante. Quando me viu, dete-ve-se, assustado.
Ele apenas assentiu quando informei que um detetive estava a caminho. Então, virou-se e entrou na sala secreta, deixando um ar gélido com um cheiro de formol dissipado pelo corredor. Aquele era o estereótipo do cientista. O mundo ao redor, com bons e maus momentos, precisava continuar a girar e o resto de nós trabalhava duro como coadjuvantes. Enquanto isso, Shands aparentemente preferia enterrar a cabeça em seu laboratório.
— VOCÊ PODIA, ao menos, ter tido a decência de me informar, antes de assumir o comando da situação — a dra. Pullaski disse-me, friamente. Ela nos encontrara, a Emily e a mim, na sala de controle, esperando MacRae. — Eu teria administrado o problema.
Murmurei alguma coisa que esperava ter soado como desculpas. Eu não a procurei porque temia que ela se encarregasse do problema, tal qual Shands tentara fazer. A despeito do que se tornara o relacionamento dos dois, eram sócios quanto a proteger a reputação do laboratório.
Mostrei-lhe o que aparecera na gaveta de Philbrick.
— Eu devia saber que haveria algo assim — a dra. Pullaski disse ao ver a foto da Playboy. — Eu o avisei. — Emily esmoreceu ante o olhar reprovador. — Era justamente o que precisávamos para manter a imprensa à nossa porta. — Alisou a saia e ajeitou as pérolas.
Quando MacRae chegou, a dra. Pullaski transpirava solicitude.
— Avise-me, se precisar de alguma coisa — ela ofereceu-se com um sorriso forçado.
— Você anda muito por aqui — MacRae disse dirigindo-se a mim.
— Na verdade, não. Vim realizar um escaneamento do meu cérebro.
— Você fez o quê?
— Uma IRM — expliquei. Ele me olhava como se eu tivesse enlouquecido. — Sou um "normal".
— Claro que é. — MacRae sorriu e meneou a cabeça. — E Ted Bundy foi um garoto incompreendido de um lar falido.
Ele rapidamente se pôs a trabalhar. Após interrogar Emily e a mim, MacRae seguiu com Shands e outros membros da equipe. Ele ainda estava lá quando Gloria me ligou. Tio Jack havia piorado durante a noite. Tivera um choque tóxico e estava internado na UTI. Assim que MacRae me liberou, corri ao hospital.
Peguei o interfone à porta da UTI. Uma enfermeira atendeu do outro lado e deixou-me entrar.
O som da UTI é único — a ocasional voz sussurrada, o atrito dos sapatos com sola de borracha, o ruído constante da ventilação e o bip dos monitores. Eu estivera na UTI apenas duas vezes, mas lembrei-me novamente de como aquilo assemelhava-se ao olho de um furacão.
Annie estava sentada em uma cadeira ao lado do leito de tio Jack. Ele parecia fraco e abatido, seus olhos estavam fechados. A cama havia sido elevada e uma profusão de tubos e cabos percorriam seu corpo. Annie lia em voz alta o Boston Globe para o tio.
Peguei o prontuário no pé do leito e o li. A temperatura indicava que tio Jack tinha febre e a contagem de glóbulos brancos ainda estava alta. Ele tomava antibióticos pela veia. Gostaria que Kwan estivesse comigo para decifrar o resto das anotações.
Quando Annie parou de ler e me olhou, tio Jack moveu-se levemente em direção à sobrinha. O fato de ele notar a mudança foi um bom sinal. Os olhos de Annie diziam muito — doses iguais de ansiedade e tristeza.
Sentei-me com eles até a enfermeira nos abordar.
— Seu pai precisa descansar — ela informou, dispensando-nos. Annie não a corrigiu.
Annie tocou o braço do tio e aproximou-se.
— Tenho de ir agora. Voltarei amanhã à tarde.
Ela inclinou-se e o beijou no rosto. Em seguida, virou-se para sair. A mão de tio Jack moveu-se quando ele tentou dizer algo.
— Oh, sim, desculpe-me. — Annie guardou o jornal no armário ao lado do leito de tio Jack. — Para mais tarde.
A sombra de um sorriso surgiu no rosto de tio Jack. Tomamos o elevador em silêncio para descer ao saguão, e ali nos sentamos num sofá azul de vinil, a um canto.
— Pneumonia bacteriana aguda — Annie disse. — É o que tio Jack tem, segundo os médicos. Ele está incrivelmente fraco, mas pareceu mais confortável do que quando o removeram para a UTI. — Annie estava exausta, os olhos avermelhados. — Disseram que os próximos dias serão críticos.
Peguei a mão de Annie e segurei-a entre as minhas.
— Lamento. Pensei que soubesse o que seria melhor para o seu tio.
— Não é culpa sua. — Annie movimentou os ombros e mas-sageou a nuca. — Você não podia adivinhar.
Levantei-me para lhe oferecer uma massagem decente nos ombros.
— Você dormiu a noite passada? — Os ombros e o alto das costas de Annie estavam endurecidos.
— Um pouco. — Virou a cabeça e me olhou, sorrindo. — Não tão bem quanto a noite anterior. — Então, o semblante tornou-se sério. — Você não parece muito bem. O que aconteceu?
— Nada. Mandei examinar minha cabeça.
Annie riu.
— Finalmente resolveu seguir o conselho de Kwan? Apertei os nós no pescoço de Annie com meus dedos. Foi extamente por isso que não disse nada a ele — eu sabia que Kwan me atormentaria incansavelmente por eu ter feito um escane mento em meu cérebro.
— Fiz uma IRM. Annie pulou.
— Naquele lugar? — Ela tocou minha testa. — Cuidado para não cair de cama. — Eu sabia que ela estava quase brincando. — Obrigada por não ter contado para mim antes.
— Não me sinto tão mal — eu disse. — Embora meu braço, esteja um pouco dolorido por causa do corante que aplicaram.
— Eles injetaram corante para clarear sua cabeça?
— Esquisito, eu sei. Mas é assim que funciona.
— E todos ficaram impressionados com seu cérebro? Agora não era hora de contar-lhe que me preocupava com o que Shands vira em meu cérebro escaneado.
— Ficaram chocados — exagerei. — Enquanto estava lá, descobri algo que sugere que o dr. Philbrick era o perseguidor de Emily Ryah.
— Está brincando — Annie disse. — Philbrick? Contei-lhe o que havíamos encontrado.
— Ela posou para a Playboy! — Annie riu. — Aposto que ela adoraria eliminar esse item do currículo. — Annie meneou a cabeça. — Já lhe contei que certa vez sonhei ser uma policial enquanto viajava a uma cidadezinha entre Las Vegas e Death Valley? Quem pensaria que juventude e estupidez eram sinônimos? — Annie ficou novamente séria. — E quem fez a descoberta?
Contei.
— Emily pareceu totalmente surpresa. Atônita, na verdade.
— Tenho certeza — Annie reforçou. Os olhos cinzentos me encararam.
— Dei-lhe o telefone de Chip. Espero que ela o contate.
— Peter, já notou o quanto essa garota gosta de ser o centro das atenções? Primeiro, é perseguida. Depois, encontra o corpo. Mais tarde, faz com que você descubra a evidência que sugere ser o morto o seu perseguidor. — Annie levantou-se. — Tem certeza de que ela não inventou tudo isso... quero dizer, as perseguições?
Era verdade, eu não tinha visto de fato o perseguidor de Emily. Seria possível que ela houvesse encenado tudo e plantado a prova sozinha.
— Mas por que ela faria isso? Annie já tinha uma resposta pronta.
— Você é o psicólogo. Mas, se por acaso está usando venda nos olhos, a resposta é simples. Para chamar a atenção. — Talvez ela estivesse certa e eu, cego. Eu deveria ser capaz de perceber esse tipo de coisa. — Claro que ela agora meteu-se numa enrascada. Tinha motivo, oportunidade. E você certamente está prestando atenção. E a polícia também. A melhor lição a tirar de tudo isso é ter cuidado com o que você deseja.
No dia seguinte, sentei-me na sala de observação para assistir à sessão do sr. Black com Emily. Eu estava mais que perturbado. Uma pessoa que se deixa fotografar pela Playboy, mesmo aparentemente por dinheiro, tinha de possuir um quê de exibicionista. Emily parecia almejar o centro do palco. Era exatamente o que fazia durante as sessões com o sr. Black, deslocando, de maneira sutil, o foco da relação terapêutica para si mesma. Era um estilo de personalidade que, no mínimo, tinha raízes na infância de Emily, quando ela buscara e nunca conseguira sustentar a atenção de um pai que abandonou a família, mas continuou a retornar, durante alguns anos, por tempo suficiente para engravidar a mãe dela. Emily, porém, iria tão longe a ponto de criar o próprio perseguidor? Parecia possível.
— É muito desconfortável — disse o sr. Black. — A fita adesiva dá comichão e o meu braço fica dormente. Mas quando eu fízer a operação, não terei de lidar com essas questões. Fora isso, é apenas um punhadp de inconvenientes. Menores, na verdade.
— Por exemplo? — Emily perguntou. Naquele dia, ela usava uma discreta calça escura com uma blusa rosa de gola alta.
— Tenho o dobro do trabalho para retirar as compras do carro. E é irritante usar meu computador com apenas uma das mãos. É difícil lidar com os botões. Com o zíper é ainda pior. Mexer em dinheiro... tirar notas de minha carteira? São coisas que posso aprender com o tempo.
— Algo mais?
— Sim. As pessoas me olham. — Ele fez uma pausa. — Parecem mesmo ligadas a mim agora. É como sair fora do radar. Dessa parte eu gosto.
— Como as pessoas olham para o senhor?
— Bem, elas olham para meu braço, claro. O que está ausente. Depois, o outro. Então, olham para meu rosto.
— É uma maneira de se relacionar.
— Pelo menos não me ignoram.
— O que imagina que estão pensando?
— Que talvez eu tenha nascido assim. Ou que perdi o braço num acidente? Enquanto servia o Exército? Talvez as pessoas se sintam constrangidas. Estou certo de que algumas delas fogem. Um homem me seguiu. Eu estava em Walgreens e ele permaneceu apenas meia ala afastado de mim, o tempo todo.
— Isso o incomodou?
— Por que incomodaria? É problema dele. Emily fitou-o sem nada dizer.
— Quer saber se fugi dele? — ele indagou. — Acho que de certa forma, sim. Pensa que é disso que se trata? De querer ser olhado? Como um letreiro luminoso?
— Isso o faz sentir-se um letreiro luminoso?
— Quer dizer, se exerço certa atração sexual por ser um amputado? Não mesmo. — As palavras soaram como um juramento. — Não quero fazer parte de uma piada suja. Não se trata disso.
— De que se trata?
— Trata-se de se sentir normal.
Aquilo foi interessante — "normal" era igual a ser olhado, opondo-se a ser ignorado, dispensado como inconseqüente. A auto-estima parecia ser a raiz dos problemas dele, e talvez dos de Emily também.
— Mas há inconvenientes. Não é verdade? — Emily perguntou.
— Alguns. Como eu disse, coça.
— Se seu membro fantasma cocar, o senhor não poderá tirar a fita adesiva para aliviar a coceira.
O sr. Black levou a mão à boca e desviou o olhar.
— O que mais devo fazer? — questionou. Perguntei-me se Emily também via as luzes amarelas piscando. O sr. Black pedia-lhe que o salvasse. Ela morderia a isca?
— Já falamos de medicação... — Emily começou. Ele endureceu.
— Gostaria de tomar comprimidos para apagar parte de quem é?
— Pense a respeito. O senhor tem medo de tomar comprimidos para apagar parte de quem é, mas está disposto a cortar um pedaço de si mesmo, apagar parte de si através de uma cirurgia?
Foi doloroso escutá-la — incitar um confronto como aquele era um convite à disputa. O sr. Black contra-atacou.
— Está me condenando por ser autodestrutivo. Olhe ao redor antes de julgar. As pessoas fazem várias coisas para se autodestruir. Fumar. Beber. Pilotar uma motocicleta. Criar umpit bull. Não se medica esse idiotas. Embora eu não saiba por quê. Pelo jeito, temos comprimidos para tudo. Quer emagrecer? Tome uma pílula. Quer ser feliz? Tome outra. Mais viril?
Ele olhou de soslaio para Emily. Sentia-se atraído por ela. Mas suas atenções não projetavam nenhuma sombra sinistra. O sr. Black não era o perseguidor e a atração não era obsessiva — fazia parte da transferência, um dos fatos inevitáveis da terapia.
— O que aconteceu ao direito individual de escolha? — ele indagou.
— Então, o que o senhor quer agora, neste instante?
— Ser levado a sério — ele rebateu.
— E eu o levarei mais a sério se cortar seu braço?
— Não. Não foi o que eu quis dizer. Quero que pessoas como a senhora me levem a sério quando digo que este braço não pertence a meu corpo. Não estou realizando uma fantasia sexual adolescente. E não preciso de medicação para me anestesiar e transformar-me numa espécie de zumbi.
— Sr. Black, eu o levo a sério. Quero ajudá-lo.
A sessão continuou em queda espiral. O início de um auspicioso autoconhecimento se desintegrara, primeiro com o sr. Black sentindo-se atacado e desaprovado, depois tentando se defender. Agora tratava-se de saber se Emily gostava ou não dele. Era o tipo de atitude que se espera de um terapeuta novato, não de uma pós-doutoranda experiente.
Encontrei Emily no refeitório horas depois. Eram quase duas, mas o espaço cavernoso ainda estava meio cheio de funcionário, visitantes e pacientes, todos em roupas de trabalho ou casuais. Emily estava em uma mesa, escrevendo. Vestia uma calça justa e o top sem manga, que moldava o corpo como uma segunda pele e deixava a barriga à mostra. Os cabelos estavam soltos. Se estivesse encostada, displicente, numa parede e usando maquiagem nos olhos e batom vermelho, ela se assemelharia a uma prostituta de folga no meio do dia.
— Por que não nos sentamos ali? — sugeri, indicando uma mesa mais discreta, ao redor da qual não havia muita gente.
Ela terminou as anotações e mudou de mesa, enquanto eu buscava café. Quando voltei, ela bebia uma garrafa de água. Emily me olhou, expectante.
— Espero que não se importe com meus trajes. Estou tentan- do correr durante o dia.
— Ainda se sente ansiosa?
Ela não respondeu.
— Algo mais aconteceu?
— Sinto-me ridícula em dizer isso, mas estou quase certa de que alguém entrou em meu apartamento. Não dei falta de nada. Mas alguns objetos em meu banheiro saíram do lugar. E minha cama também. Em geral, não a arrumo porque sempre saio com pressa de manhã. Estava feita quando cheguei em casa ontem. Deve ser um problema da minha cabeça, não? A morte de Lenny me perturbou. Nada disso deveria estar acontecendo.
— Talvez você deva ficar na casa de alguém por um tempo — sugeri.
— Talvez eu o faça.
— Ligou para aquele advogado? Ela assentiu.
Achei melhor não ocultar de Emily o feedback de que ela precisava acerca de sua interação com o sr. Black. Ela estava obviamente vulnerável. Mas era a única que insistira em continuar o trabalho com pacientes. Minha primeira preocupação tinha de ser o bem-estar deles, não o dela.
— Acha que o estresse está afetando sua habilidade de realizar seu trabalho?
Apareceram pontos rosados no rosto dela.
— Você acha?
— Por que você não me diz o que achou da sessão de hoje com o sr. Black? — rebati, esquivando-me da pergunta.
A princípio, Emily pareceu perdida.
— Acho que foi boa. Eu... — Então, o olhar endureceu e ela fechou o caderno com força. — Mas é óbvio que você discorda. Se pretende me criticar, por que não vai direto ao ponto, em vez de jogar? — A voz ecoou na sala ampla. Constrangida, Emily olhou à volta, notando que as pessoas nas outras mesas a observavam.
Esperei. Não era um jogo, era um teste. O autocontrole e a auto-reflexão eram essenciais para um terapeuta.
Ela respirou fundo e se recompôs.
— Sr. Black. Está indo bem. — Emily me encarou. — Resposta errada, eu sei. Certo, não está indo bem. Eu tinha certeza de que a experiência de viver sem o braço o convenceria de que a amputação era um erro. Mas são apenas inconvenientes menores, segundo ele. Então, começou a se defender de mim. Acusou-me de não ligar para o que lhe acontece. Como pôde sequer sugerir que não me importo?
— Escute o que está dizendo. Ele desapontou você. Ele se defendeu de você. Como ele pôde sugerir que você não se importa — eu disse. Emily ficou boquiaberta. Nunca a tinha confrontado daquela maneira. Agora eu a pressionava de propósito só para ver se ela agüentaria. — Soa como se a terapia do sr. Black dissesse respeito a você.
— Claro que não é o que penso — ela retrucou.
— Nesse caso, você parece ter perdido a perspectiva clínica. Ela tomou outro gole de água, segurou o líquido na boca e então engoliu.
— E já que perguntou — acrescentei, notando umas doze pessoas ou mais ainda no refeitório —, não, não penso que sejam trajes adequados para usar aqui.
— Então, é melhor eu trocar de roupa. — Emily, ainda sentada, piscou, deixando cair algumas lágrimas. — Por que está sendo tão cretino?
Levantou-se, recolheu seus pertences e saiu.
— BOA PERGUNTA — eu disse a mim mesmo, amassando o copo de plástico e jogando-o no lixo.
Eu me descontrolara. Ao atacá-la em nível pessoal, dei-lhe a permissão para interpretar a mensagem como bem quisesse. Emily poderia afirmar que eu estava sob estresse, exagerando. E talvez tivesse razão. Pela primeira vez, depois de um longo tempo, sentia-me inseguro quanto a minha bússola interna.
Em vez de voltar a minha sala, peguei-me caminhando em direção à sala do dr. Nelson Rofstein, no prédio da administração. Mais de dez anos atrás, ele fora meu supervisor clínico, mas ainda servia de referencial sempre que eu precisava.
— Peter? — ele disse, erguendo as sobrancelhas, contente ao me ver à porta.
— Tem um minuto?
Rofstein se levantou, apertou minha mão e bateu em minhas costas.
— Claro, claro. É bom vê-lo. — Por ser um homem robusto, seu rosto possuía personalidade, e os cabelos, outrora castanhos, agora estavam grisalhos. O ombro direito caído e uma pálpebra parcialmente fechada eram os únicos sinais do derrame que sofrerá anos antes.
— Sente-se — o dr. Rofstein disse, indicando uma das cadeiras estofadas diante da escrivaninha. Ele também sentou-se, recos-tou-se na cadeira e entrelaçou os dedos. — Diga-me, a que devo o prazer? — Ele me conhecia bem o bastante para saber que não era uma visita social.
— Creio que estou perdendo minha perspectiva — fui direto ao ponto. Falei de minhas observações acerca de Emily Ryan e de nossa última interação. — Eu me descontrolei e não sei bem por quê.
— Fale-me dela.
— Ela está conosco há alguns meses. — Dei-lhe, então, uma sinopse do trabalho que Emily vinha realizando na unidade. — Ela é brilhante, mas não parece ter muita consciência de si mesma. Como, por exemplo, as roupas que veste. Usar uma calça justa e um top curto no refeitório da unidade... é uma postura totalmente inadequada.
— Lembro-me de que, certa vez, você se revelou inexperiente nesse departamento — o dr. Rofstein comentou, sorrindo.
Eu ainda ficava envergonhado só de lembrar com que avidez eu entrara na sala de Rofstein, pronto para salvar o mundo. Logo me vi encalacrado com a primeira paciente — uma mulher cujo marido estava à morte com um tumor cerebral — e minha crescente frustração porque ela falara somente da reforma da casa e de como administrava o turno das enfermeiras.
— Ela não o está levando a sério — o dr. Rofstein dissera-me. E por que não, eu quisera saber.
Ele dera de ombros e olhara para cima, como se orasse por paciência.
— Você pode cortar seus cabelos do jeito que desejar — Rofstein argumentara, fitando meu estilo afro — e pode vestir o que quiser — observara então minha camiseta esporte —, mas seus pacientes virão com os próprios mishigas e julgarão o que vêem. São as primeiras impressões. Agir com profissionalismo, o que você faz, não é suficiente — ele garantira. — Se quer ser levado a sério, olhe para as partes em jogo.
Agora, uma dúzia de anos depois, o dr. Rofstein me fitava da mesma maneira, enquanto entrelaçava novamente os dedos.
— Sim, você era imaturo. Mas um aprendiz sagaz, se bem me recordo. — Notou meus cabelos curtos, o terno e a gravata. — O que mais o preocupa?
Disse-lhe que, em minha opinião, Emily demonstrava um julgamento questionável em relação a seus pacientes.
— Preocupo-me com o fato de ela dar mais importância aos sentimentos e muito pouca ao intelecto. Estou tentando manter minha perspectiva. Ela esteve sob muito estresse. — Prossegui ressaltando os pontos cruciais: o perseguidor maníaco, a morte no laboratório de IRM que podia ou não ser culpa de Emily, a vigilância da polícia. — Ela parece depender de mim, exigir mais do que posso oferecer. Acho que é compreensível, dado o que ela vem passando.
— E tem certeza de que não é identificação projetiva? Que você não está fazendo algo para provocar essa dependência?
Eu pensava que não. Contudo, Rofstein tinha certa razão. Segui-la até em casa para dizer que a luz do freio queimara. Correr ao laboratório de IRM e esgueirar-me para entrar. O que quer que Shands enxergara em meu cérebro talvez já estivesse atrapalhando o meu discernimento.
— Eu pareço estar sempre socorrendo Emily.
— Está se perguntando, então, se algo em você compensa as atenções inconscientes dessa mulher.
— Creio que sim — admiti. O dr. Rofstein permaneceu sentado, esperando que eu chegasse à questão. — E agora me vejo duvidando da integridade dela, imaginando que inventou as perseguições que sofreu. Pergunto-me se Emily é tão inocente quanto alega no que diz respeito à morte do colega.
— Você teme que tais suspeitas, embora inconsistentes, estejam influenciando seu relacionamento profissional. Fazendo você duvidar da competência dela. — Ponderou por alguns momentos, observando-me com o cenho franzido. — Parece que, por algum motivo, sua opinião a respeito da jovem mudou.
Despertei. Minhas próprias palavras verbalizadas por ele ganharam um significado diferente. Paralaxe, lembrei-me. Se sua posição muda, a posição do objeto que você observa parece mudar. É por isso que, quando você está dirigindo, a lua parece mover-se junto, e quando você pára, ela aparenta estar estacionada.
Havia um problema similar na psicologia — o que você espe- ra ver dá cor à maneira como interpretará suas observações. Se , você acha que fulano é idiota, as ações dele que você acha estúpidas seriam consideradas inspiradoras, caso você julgasse a pessoa um gênio.
Então, o que mudara na percepção que eu tinha de Emily?
— Descobri que anos atrás ela posou para a Playboy — disse, sentindo-me um pouco envergonhado.
— E isso o fez vê-la de modo diferente. É somente o julgamento dela que está em questão ou há algo mais?
Eu tinha experiência suficiente na área para saber onde ele estava tocando. Eu me senti atraído por Emily. Lisonjeado pela atenção exclusiva que ela me dispensava. Eu correspondia intelectualmente, enquanto suprimia a parte sexual. As fotos da Playboy me pareceram uma traição. Não era muito diferente da situação de alguém que descobre que a namorada o enganou.
Rofstein continuou:
— Peter, há muitas coisas acontecendo e não me surpreende que esteja confuso. Você precisa prestar mais atenção em sua intuição. Ela está lhe dizendo algo, mas é necessário tempo para descobrir o quê. E, pelo que me disse, é como se essa jovem estivesse envolvida em muitas coisas também. Tem motivos para estar preocupado.
— Fazia muito tempo que eu não sentia essa insegurança — disse eu.
Rofstein endireitou o corpo e inclinou-se sobre a mesa.
— Peter, se continuar auto-reflexivo, vai se sair bem.
— Eu deveria ter um autocontrole melhor — queixei-me.
— Sim, deveria. Vai tentar, então? — Ele se levantou. — Nesse ínterim, espere e veja o que acontece. — Ele me levou até a porta.
— Essa jovem também trabalha no Centro Médico Universitário — Rofstein comentou. — É a instituição da rua Sidney?
— Exato. Conhece o dr. Shands, não? O guru encarregado?
— Guru — Rofstein repetiu, rindo. — O dr. Demência com corpos de Lewy. Deus abençoe o supervisor que desencorajou aquele jovem a seguir a clínica psiquiátrica. Alguns de nós somos curadores e outros, apenas observadores.
— Lidar com as pessoas não é o forte dele. Conheceu-o no Banco de Cérebro de Cambridge?
— Ele era um dos pesquisadores principais.
— Mas não por muito tempo.
— Todos nós deveríamos ter seguido o objetivo dele.
Meus ouvidos ficaram atentos. Aquela era uma evasiva, não uma resposta.
— Ele e o banco de cérebro desfizeram a sociedade?
— Shands precisou seguir o próprio caminho. O banco de cérebro não foi fundado para financiar pesquisas especiais.
— E de que maneira a pesquisa dele era especial?
O dr. Rofstein havia aberto a porta da sala. Agora ele a fechava.
— Ele desenvolveu um meio de observar a permeabilidade da membrana celular, mas tratava-se de um processo destrutivo. Os cérebros se perdiam em velocidade alarmante. Ele supôs que os cérebros, sem mencionar os recursos financeiros, estavam à disposição dele exclusivamente. Nunca se tornou público, mas ficou claro que uma porcentagem do dinheiro estava sendo desviada para a pesquisa pessoal de Shands.
— Como ele conseguiu fazer isso?
— Digamos que Shands e a diretora executiva tivessem um relacionamento muito próximo. Ambos pediram demissão.
— A dra. Pullaski? Rofstein assentiu.
— Mas você não ouviu nada disso de mim. Quando eles saíram, parte do acordo foi que os detalhes nunca se tornariam públicos.
O dr. Rofstein abriu a porta novamente. Apertou minha mão, fitou-me nos olhos e disse a mesma coisa que dizia quando nos despedíamos:
— Lembre-se, nenhuma boa dívida termina impune...
— ... mas faça o bem mesmo assim — terminei a frase.
Nesse final de tarde, quando eu saía para ir embora, notei Gloria e Emily sentadas na varanda lateral da unidade. Estavam muito próximas, uma de frente para a outra. Emily tragou o cigarro e o ofereceu a Gloria.
Não, por favor, pensei — Gloria sofrerá para largar o hábito alguns anos antes. Durante um bom tempo, andara com um cigarro apagado, que usava como uma espécie de calmante sempre que sentia vontade de fumar.
Gloria declinou do cigarro. Imaginei que Emily estivesse se queixando de mim. Eu não tinha sido direto e não dissera que não a queria trabalhando com pacientes até que sua cabeça estivesse no lugar, mas estava certo de que ela percebera que eu havia chegado perto.
Nesse momento, uma Range Rover preta apareceu na entrada circular. Parou. Reconheci o homem forte e de cabelos escuros que saiu do carro. Era Kyle, o ex de Emily. Ela acenou para ele e apagou o cigarro. Então, o cavaleiro branco estava de volta à vida de Emily.
Ela e Glória levantaram-se. Gloria pousou a mão no ombro de Emily e conversaram, os rostos de ambas muito próximos. Abraçaram-se e assim permaneceram, o que me surpreendeu, porque Gloria não era adepta a abraços. Então, Emily afastou-se, pegou a valise e correu até a Range Rover.
Na noite seguinte, subi os degraus brancos e atravessei o jardim do hotel Charles, onde luzes cintilavam nas árvores. Shands me telefonara e sugerira que eu o encontrasse para um drinque. Ele, de qualquer maneira, iria ao bar depois do trabalho e, já que tivera a oportunidade de olhar os resultados de meu escaneamento, queria conversar a respeito.
Quando cheguei ao bar à meia-luz, cujo odor de charuto pairava no ar, eu precisava mais de um Maalox do que de um daqueles martínis caros e bonitos. Eu havia passado a maior parte da noite vasculhando a internet à procura de informações acerca de como interpretar uma IRM funcional. A idéia básica era simples — uma IRM funcional mostrava como o fluxo sangüíneo modificava o cérebro. Além disso, nada mais pareceu simples. Por fim, desisti, frustrado.
Ao menos, havia notícias animadoras de tio Jack. A febre baixara e os pulmões começavam a clarear. Pensavam em tirá-lo da UTI e acomodá-lo num quarto comum do hospital. Poderia até voltar ao Pearce em alguns dias.
Avistei Shands a uma mesa de canto. Bonito em seu terno escuro, cabelos grisalhos lustrosos, ele saboreava um drinque. Quando me aproximei, pensei no fato de querer conversar no bar, e não no laboratório. Talvez ele preferisse essa estratégia — primeiro, anestesie o paciente, encha sua cabeça de fumaça, e depois despeje a má notícia.
Shands se levantou e apertou minha mão.
— Peter. Obrigado por me encontrar aqui.
Ele chamou o garçom. Pedi um clube soda. Shands pediu outro martíni.
— Espero que não se importe de conversarmos aqui. O clima no laboratório está um pouco... tenso — ele falou.
— Suponho que isso não seja surpresa para ninguém.
— Conhece aquele detetive encarregado?
— MacRae?
— Ele é insuportável. Eu ri.
— Sim, mas é seu trabalho.
— Acha que estão vendo o caso como um assassinato?
Por isso ele quisera me encontrar no bar — para se inteirar acerca da investigação? Como diabos vou saber?, eu quis gritar. Claro que Shands não fazia idéia de que eu estava ansioso acerca do que ele vira no escaneamento de meu cérebro.
— Se MacRae ainda está no caso, pode ter certeza de que o consideram assassinato. Se foi um acidente, por que a pessoa que levou o tanque de oxigênio à sala do escâner não se apresentou?
— Medo. Imaturidade — Shands sugeriu, erguendo o queixo. Eu estava certo de que ele não era o único a querer um bode expiatório conveniente. — Eles sempre voltam para fazer perguntas. É um tormento para todos. Principalmente para Emily. Nossas bebidas chegaram. Shands misturou seu martíni.
— Não que ela seja muito estável, para começar — continuou. — Eu nunca a teria contratado se soubesse que havia posado para a Playboy. Sabe o que quero dizer? — Pegou o palito de azeitonas e puxou uma com os dentes. — Agora o Conselho está pegando no meu pé. Péssimo momento. Justamente quando estamos prestes a divulgar uma descoberta ainda maior. — Ele me fitou sob a penumbra. — Bem, nada disso é problema seu. Claro que quer saber quais foram os resultados.
Finalmente. Senti um nó no estômago.
— Você mencionou que seu pai teve Alzheimer. Alguém mais na família? — ele perguntou. Aquele não foi um começo auspicioso.
— Meu tio.
— Irmão de seu pai? Assenti.
Shands limpou a garganta.
— Uma das dificuldades é que existe muita variação na amostra. Há somente sombras de diferenças entre a linha limítrofe do padrão normal e do levemente anormal, indicando algum problema.
Levemente anormal? Talvez eu conseguisse um boné com as iniciais L.A. bordadas sobre a aba.
— Mas você acredita que haja um problema.
— Preciso confirmá-lo com uma análise estatística rigorosa. Leonard costumava fazer tudo isso. — Por um instante, Shands pareceu uma criança petulante que fora obrigada a arrumar o quarto.
— Mas acha que meu escaneamento mostrou alguma anormalidade? — Eu queria que ele parasse de se esquivar.
— Seu pai. Foi um declínio constante ou foi marcado por estados flutuantes de consciência?
— Meu pai... — comecei. Lembrei do trajeto de Brooklyn a Cambridge depois do diagnóstico de Alzheimer, quando meu pai e minha mãe concordaram em morar ao lado de minha casa. Papai parecera saber onde íamos e que estávamos na auto-estrada. Conversávamos normalmente e, de súbito, perto da 495, a janela se fechara. Ele tornara-se agitado, apavorado com o fato de ficarmos sem gasolina. Tentara pegar a direção diversas vezes. Cheguei a parar para abastecer, mas de nada adiantou. Por fim, minha mãe assumira o volante e fui atrás com meu pai para impedir que ele causasse um acidente. Somente agora ocorria-me pensar em sua agitação. Seriam alucinações?
Quando chegamos em casa, papai sentara-se numa cadeira de alumínio no gramado, observando os transeuntes. Com total cia-; reza, ele perguntara a minha mãe:
— Lembrou-se de trazer meu cachimbo? Eu o deixei no banheiro. — Semana após semana, depois dessa, os períodos de lucidez tornavam-se mais esporádicos.
Shands aguardava minha resposta.
— Na verdade, ambos — eu disse. — Um declínio contínuo com ocasionais períodos de lucidez. —Tudo isso fora compatível; com o diagnóstico de Alzheimer.
— Distúrbio motor? — Shands perguntou.
— Tremores. Períodos de espasmos.
— Não me espanta. Penso que seu escaneamento mostra marcas da demência com corpos de Lewy. Quando eu terminar de computar os números, pode ir ao laboratório e veremos os resultados mais detalhadamente. Achará fascinante.
Fascinante? Em que planeta aquele cara vivia? Permaneci sentado, fitando-o de boca aberta, tentando absorver o veredicto. Tardiamente, ele acrescentou:
— Lamento, Peter. Até pareceu sincero.
Ei, todo mundo morre, disse a mim mesmo; agora você sabe como vai morrer. Poderia ser em vinte anos ou em quarenta. Poderia ser atropelado por um ônibus. Eu só tinha certeza de uma coisa: aquela era uma informação que eu realmente não precisava obter.
Shands cruzou as pernas e balançou o pé. Tomou o resto do martíni.
— Irá ao laboratório para discutirmos o tratamento? Minha boca se abriu, mas não consegui responder. Shands não notou. Ele meteu a mão no bolso e tirou o bip. O aparelho, no mínimo, vibrara, porque não o escutei tocar.
— Tenho de correr. — Levantou-se e bateu em meu braço. Então, foi-se.
Senti como se tivesse sido atingido por uma onda marítima que me jogou no fundo do mar. Um pormenor de tudo isso foi a conta que o garçom me trouxe, assim que Shands saiu, tal qual uma intimação. Doze dólares cada martíni?
Que homem arrogante. Até logo, Peter. A propósito, você deve ter demência com corpos de Lewy. Bem, até outro dia, amigo, e não se esqueça da gorjeta.
NÃO ME LEMBRAVA de ter decidido ir à casa de Annie, mas, vinte minutos depois, me vi em frente à porta de sua casa. As luzes da janela do último andar do tríplex estavam acesas. Eu pretendia tocar a campainha quando as luzes se apagaram. Esperei. Escutei passos na escada. Annie abriu a porta. Vestia um casaco e tinha a mochila pendurada no ombro. O rosto achava-se marcado pelas lágrimas e ela segurava uma caixa de lenços de papel. Por um momento, pareceu espantada ao me ver. Então, o semblante se contraiu.
— Você já soube? — ela perguntou num soluço.
— Soube o quê?
— Tio Jack morreu.
— O quê? — Fiquei pasmo. — Mas pensei que ele tivesse melhorado.
— Foi o que achei. — Annie assoou o nariz e fungou. — Primeiro, disseram-me que o removeriam para um quarto. Depois, quando liguei, informaram que tinha morrido. — Annie engoliu em seco. — Morreu — repetiu num sussurro. Tomei-a nos braços.
— Sinto muito — disse e fechei os olhos, sentindo-me desnorteado, exausto. Se ao menos eu tivesse deixado tio Jack em casa com suas pilhas de jornais velhos, comida de gato vencida e a pia embolorada, com sua cultura variada de germes, ele provavelmente ainda estaria bem — ou vivendo a própria versão de "estar bem".
— Vou ao hospital. Quero me despedir.
— Posso ir?
— Você vai? — dissemos juntos.
Beijei-lhe a cabeça, tomado pelo alívio de ela me querer por perto naquele momento.
— Tio Jack certa vez me contou que viu Ted Williams jogar em Fenway, no ano que o jogador rebateu 406 vezes — Annie comentou, encostando a cabeça na janela do carro, enquanto eu dirigia. — Eu pretendia comprar ingressos para o jogo de setembro.
Passamos pela praça Union e pegamos a direita, em direção à ponte BU.
— Eu o vi esta manhã e ele estava tão bem — ela disse.
— Às vezes, é assim que acontece. As pessoas revigoram antes do fim.
— Mas a febre havia baixado. A taxa de glóbulos brancos tinha voltado quase ao normal. Comprei dois pijamas novos para ele. — Annie apertou o lenço entre os dedos, quando passamos pela rotatória em Boston. — Não acredito. Ê surreal.
Entrei na garagem do hospital e estacionei. Pareceu uma caminhada longa através do túnel que dava acesso ao saguão. Pegamos o elevador. Na UTI, eles nos mandaram à sala em que tio Jack jazia.
A porta estava aberta e uma cortina fora puxada. Do lado de fora, um homem de uniforme branco discutia com a enfermeira.
— Mas estamos com a ordem bem aqui. Viemos buscar um tal de sr. O'Neill. Só necessito de uma assinatura.
— Precisa pegar a assinatura do parente mais próximo do morto — a enfermeira disse.
— De que se trata? — Annie perguntou. — Sou a parente mais próxima.
O homem mostrou-lhe um pedaço de papel.
— Precisamos que assine isso.
— "Confirmação de Consentimento Post-mortem" — li sobre o ombro de Annie. — Consentimento para quê?
O homem de uniforme branco pareceu constrangido.
— Autópsia e... o sr. O'NeilI concordou em doar seu cérebro.
— Ele o quê? — Annie exclamou.
— Deixe-me ver isso — eu disse.
Sem dúvida, havia ordens do Centro Médico Universitário para buscar o corpo de tio Jack e transportá-lo à instituição. Lembrei-me da sala que vira logo após a do dr. Shands, a que possuía mesas de aço e prateleiras de fixadores. Devia ser naquela sala que faziam autópsia e coleta de cérebro.
— A senhora tem de assinar... — o homem começou. Pensei em interferir, mas Annie mostrou-se perfeitamente capaz de colocar o rapaz em seu devido lugar. Ela o encarou.
— Vai me desculpar, senhor, mas meu tio acaba de falecer. Ainda não tive a chance de vê-lo para me despedir. — No final, sua voz falhou devido à forte emoção.
O homem deu um passo em falso para trás.
— Lamento, senhora. Mas querem que transportemos o falecido o mais cedo possível depois da morte.
— Eu lhe direi quando poderá transportá-lo.
— Quer que eu vá com você? — perguntei a Annie.
— Obrigada — ela disse, encarando a cortina aberta. — Mas prefiro ir sozinha. Quero ficar a sós com ele.
Annie levou dois dedos aos lábios, endireitou os ombros e entrou. No momento seguinte, saiu de trás da cortina.
— Isso é algum tipo de brincadeira?
— O que houve? — a enfermeira perguntou.
— Não sei quem é esse pobre homem, mas não é meu tio Jack.
— Tapeação burocrática — Annie concluiu, torcendo o nariz enquanto percorríamos o corredor que levava à ala oposta, onde veríamos tio Jack. O corpo atrás da cortina era de outro idoso que morrera na UTI, na mesma hora em que tio Jack fora transferido para um quarto. Uma confusão com a papelada.
— Não está morto. Só mudou para o quarto andar. — Annie ria e chorava ao mesmo tempo. A voz soava com certo grau de histeria. — Já leu The Stupids Diet? — perguntou.
— Não sei como não li esse livro.
— É um livro infantil, hilariante. Trata-se de uma família cujos membros pensam estar mortos e no céu. Acontece que estão todos em Cleveland. — Annie andava tão depressa que tive de correr para alcançá-la. — Eu o ganhei de minha sobrinha, no Natal de alguns anos atrás. Não sei o que me fez lembrar do livro.
Chegamos à porta do quarto de tio Jack.
— Bem-vindo a Cleveland — Annie disse ao entrar. Ela estava em ebulição, seu humor fazia pensar em um punhado de balões vermelhos preenchendo todo o espaço.
Tio Jack estava sentado na cama vendo televisão. A cor da pele estava boa e ele pareceu reconhecer Annie. Enquanto eu observava os dois juntos, o mal-estar causado pelo diagnóstico de Shands voltou-me à consciência.
Quando Annie e eu retornamos à casa dela uma hora depois, ela ainda estava eufórica. Sentada no carro, batia a cabeça de encontro ao encosto do assento. Os cabelos cacheados caíam suavemente ao redor do rosto e as pontas cintilavam por causa das luzes das ruas. Ela segurou minha mão, parecendo relaxar pela primeira vez, depois de semanas de tensão.
— É incrível como a vida parece melhor quando você percebe que poderia ser pior. — Aquele era o credo de minha mãe: espere o pior e nunca ficará decepcionado.
Agora Annie sentava-se de lado e me olhava. Correu o dedo sobre meu braço, fazendo-me arrepiar.
— Tem de ir para casa?
Relutante, disse-lhe que não podia ficar, e inventei uma desculpa relacionada a um trabalho inacabado. Não era tanto um trabalho, mas sim um assunto inacabado — sabia que minha preocupação com o que Shands dissera acerca do escaneamento de meu cérebro continuaria, e não era hora de contar a Annie. Ela já havia tido problemas demais nesse dia.
Eu a acompanhei até a porta e nos beijamos sob a luz da varanda.
Dormi mal nessa noite, pois desejava estar na cama com Annie, nós dois abraçados, eu inspirando sua essência. Em vez disso, estava sozinho, com os piores cenários galopando em meu cérebro. Num deles, eu era um paciente de minha unidade e dividia o quarto com tio Jack. Annie me alimentava com canja de galinha e limpava os restos de comida em meu queixo. Quando enfim adormeci, foi somente para despertar de um pesadelo no qual Emily Ryan, usando nada mais do que um jaleco branco e com uma seringa na mão, injetava-me na veia um líquido esverdeado. Enquanto observava a substância venenosa entrar em mim, ouvia o dr. Rofstein entoar:
— Escute sua intuição.
Estava acordado quando o telefone tocou às 6h30.
— Não acredito que eu não tenha lido o documento com mais atenção — Annie disse. Ela estudara o formulário de consentimento que assinara para tio Jack. — Há um item que se refere a consentimento post-mortem, retenção de material humano para diagnóstico e pesquisa. Teria sido mais gentil se houvessem escrito isso na nossa língua.
Levantei-me da cama jogando de lado as cobertas. Lembrei as palavras que Emily havia riscado no consentimento do sr. Black. A maioria achava-se nessa seção. O sr. Black não tinha demência com corpos de Lewy, portanto, Shands não se interessaria por seu cérebro.
— Annie, o único meio de aceitar o diagnóstico de demência com corpos de Lewy é através de autópsia. A pesquisa deles seria inútil, a menos que confirmem o diagnóstico.
— Mas não acha que ele deveria ter mencionado algo quando assinei o formulário? Não creio que a cláusula de doação deva ser pormenorizada. Não é antiético? Talvez criminoso?
Achei que Annie estava exagerando, mas não disse nada. A mesma cláusula devia constar no consentimento que assinei. Não me incomodara em ler os parágrafos finais. Quando os médicos de jaleco branco chegassem para coletar meu cérebro, eu sabia que minha mãe não ficaria perturbada — ela daria de ombros e diria "bem típico".
— Peter, você ouviu o que eu disse? — Gloria perguntou pela manhã, dois dias depois.
— Claro que ouviu — Kwan disse. — Por isso ele está com esse olhar vidrado.
— Ouvi, sim — protestei. —Você disse que o sr. O'Neill está voltando hoje à tarde. Eu pretendia lhe perguntar onde iremos instalá-lo.
— Foi o que acabei de dizer. — Gloria me olhou, exasperada. — Vamos acomodá-lo no quarto em que ficou na primeira vez. Está desocupado.
Eu havia devaneado de verdade. Estivemos discutindo a nova paciente que Emily começara a avaliar. A mulher viera até nós porque sempre se perdia no próprio bairro. O marido a encontrara vagando em algum quintal, a dois quarteirões da casa deles. A partir de agora me restariam dez anos? Vinte? Quando minha memória começaria a falhar? Já estava falhando? Eu me testei. Quem fora minha professora do jardim de infância? A sra. Dreiwitz. Da primeira série foi a sra. Lowe. Segunda, a srta. Goldsmith. Terceira? Não pude lembrar, embora pudesse visualizar a sala de aula no segundo andar. Quando eu começaria a conversar com meus parentes mortos?
— Não faria mal colocar as coisas dele no quarto — sugeri. — Tornará o espaço mais familiar.
Eu tinha visitado tio Jack no dia anterior. Ele estava melhorando. Ainda fraco, mas comia e movimentava-se sozinho. Parecia entender que sairia do hospital em breve, mas não mostrou sinais de que compreendesse o fato de não mais voltar para casa.
— Então, a família não o quer mais participando do tratamento experimental — Kwan mencionou. — Francamente, acho que estão exagerando.
— O que eles não querem é submetê-lo a mais IRMs — expliquei. — Há outra maneira de continuarmos o tratamento? Parece estar ajudando.
— Eles não darão o protocolo ao sr. O'Neill sem os exames de ressonância — Kwan argumentou. — Mas é fato que parece beneficiar-se da medicação. Podemos colocá-lo em outro estado. Na pior hipótese, a química não causará nenhum bem à cognição e diminuirá o colesterol dele. Na melhor hipótese, veremos a melhora continuar. Vale a pena tentar.
Após a reunião, parei no corredor para observar se a minha mão, que segurava o café, tinha algum tremor.
— Terra para Peter. Você está bem? — Era Gloria.
— Ando pensando em algo... — comecei e quase revelei a "tentativa" de diagnóstico de Shands. — Não é nada. Desculpe minha distração.
— Você coordena as reuniões. Não pode se dar ao luxo de ficar distraído — Gloria disse, com um sorriso preocupado.
— Registrado — brinquei, executando uma pequena saudação, e virei-me para sair.
— Peter — ela me chamou. Voltei. Gloria me puxou para um canto. Em seguida verificou se alguém podia nos escutar. — Sabe que não me meto em seus assuntos, mas, como somos amigos há muito tempo, imagino que tenho o direito de dizer o que penso. — Opa. Eu já tinha escutado aquele prelúdio. — Acho que está sendo um tirano. Com Emily. Quero dizer, ela é inexperiente, está aprendendo. Você vive pegando no pé dela.
Gloria em geral não servia de mensageira dos problemas pessoais de terceiros.
— Ela se queixou para você? Gloria manteve a posição.
— Não precisou se queixar. Eu mesma vi. Emily foi perseguida. O colega morre e ela encontra o corpo. E no auge de tudo isso você começa a criticá-la, como se o mundo fosse acabar porque ela não age como uma profissional perfeita vinte e quatro horas por dia. — Houve uma pausa, Gloria parecia decidir o que dizer. — Lembro-me da época em que você esteve sob muito estresse e nós tivemos de suportar suas oscilações de humor.
Senti meu rosto corar. Ela se referia à época em que Kate fora assassinada. Claro, eu mergulhara no trabalho. Fui um tremendo filho da mãe com meus colegas. Mas se eu tivesse errado com pacientes, esperaria que Gloria e Kwan e alguém mais da unidade me colocassem de novo nos trilhos.
— Ela tem mostrado pouco discernimento, e sou o responsável pelas bobagens que faz.
— Mas... — Gloria começou.
— E por que sente que tem de protegê-la? Pense você nisso. Virei-me, deixando Gloria boquiaberta. A satisfação que senti ao vê-la sem palavras desapareceu quando subi a escada em direção a minha sala. Resmungava comigo mesmo, enquanto recolhia a maleta de tio Jack e sua pilha de recortes de jornal. Por que não conseguia manter a boca fechada? Ralhar com Gloria somente provava minha implicância.
Desci de elevador e entrei na unidade. Emily estava ao telefone na enfermaria. Eu ficaria aliviado quando a temporada dela conosco terminasse. Muitos dramas vinham ocorrendo desde que chegara, e em todos ela era a personagem central.
— Oh, espere. Esqueça. Ele está aqui — Emily disse ao aparelho. Ofereceu-me o telefone, hesitante, como se temesse que eu lhe mordesse a mão. — Dr. Shands quer falar com você.
— Shands? — grunhi. Ele provavelmente terminara a análise estatística. A última coisa que eu queria era receber más notícias no meio da unidade. Quando botei a maleta no chão, os artigos caíram no piso. Chutei-os de raiva e peguei o telefone.
— E Zak — eu disse. — Posso ligar mais tarde...
— Só telefonei para saber como vai o sr. O'Neill — Shands precipitou-se.
Ocorreu-me que ele não sabia que tio Jack estava saindo do estudo de pesquisa. Era a decisão de Annie, e não cabia a mim comunicá-la.
— Ele ainda não chegou — eu disse. — Eles o mandarão para nós esta tarde.
— Eu soube, eu soube. Boa notícia. Emily recolhia os recortes. Shands prosseguiu:
— Lamentei muito a confusão do hospital. Estou certo de que você sabe quão importante é congelar o tecido cerebral logo após a morte do paciente. Francamente, prefiro dúzias de erros como esse a deixar um cérebro se deteriorar. Espero que a sra. Squires não tenha ficado aborrecida.
Agora Emily estava agachada, lendo um dos artigos.
— Certo — eu disse.
— Também estou com a análise final dos resultados de seu exame. Precisaremos conversar a respeito. Tenho tempo amanhã. Por volta das cinco?
Engoli o temor que travava minha garganta. Componha-se, disse a mim mesmo. A realidade era sempre melhor que os pesadelos maquinados pela imaginação. Geralmente.
— Peter, ainda está aí?
— Às cinco. Quinta-feira. Claro. — Desliguei.
Emily ainda segurava um recorte de jornal. Aproximei-me para ajudá-la, minha mente fervia com o que Shands poderia me dizer.
— Isso é muito esquisito. — Ela me olhou. — Onde diabos... — Emily deteve-se. — Sente-se bem?
— Sim — retruquei.
Ela me observou, desconfiada.
— Não parece bem. — Então, lembrou o que segurava. — Viu isso?
Peguei o artigo e li. Era um obituário.
— É do sr. O'Neill. Felicia. É o mesmo nome da esposa dele. Ele provavelmente tirou o artigo dos jornais da unidade.
— Veja a data.
O obituário era de maio, três meses antes. Muito antes de tio Jack juntar-se a nós.
— Veja esse aqui. — Emily me deu outro recorte. Era um obi-tuário de Frank Mosticcio, e a data era anterior à primeira. — Pergunto-me onde ele pegou esses artigos.
Que diferença fazia? Tio Jack recolhia objetos em todos os lugares que ia. Ele rasgaria os cupons das caixas de cereais no café da manhã e sairia com talheres de plástico, se deixássemos.
Olhei meu relógio e fiz um cálculo rápido. Trinta horas aproximadamente para eu ouvir a "análise final". Isso significava que depois eu estaria pronto para a "solução final"?
— Quem sabe, talvez haja um punhado desses em algum lugar e ele resolveu pegar alguns — chutei.
— Estranha coincidência, não acha? Essas duas pessoas foram pacientes do laboratório de IRM. Ambas tinham demência com corpos de Lewy.
Agora ela recebia minha total atenção.
Tio JACK retornou ao Pearce nessa tarde. Às vezes, uma transferência podia ser exaustiva, mas ele parecia energizado. Annie é que aparentava estar esgotada. Estava sentada em uma cadeira de vinil ao lado da cama do tio, com a cabeça reclinada para trás e os olhos fechados.
— Ei, tio Jack, veja quem está aqui. — Ela abriu os olhos. Tio Jack estava sentado na cama. Fitou-me sem nenhum sinal
de reconhecimento.
— Sou o dr. Zak, Peter Zak. Ele, então, surpreendeu-me.
— Tem uma moeda?
Sorri, levei a mão ao bolso, tirei uma moeda e dei a ele. Quando tio Jack fez menção de colocá-la na boca, peguei-a de volta. Um passo para a frente, um passo para trás.
Um rádio chiava sobre a mesa. Eram fragmentos de sentenças com um monte de números.
— Dez-quatro. Estou a caminho — escutei, de repente.
— Rastreador da polícia — Annie explicou. — Tio Jack costumava ter um na cozinha. Eu trouxe este e ele parece gostar.
Outra seqüência de estática, depois uma porção de números e o despachante deu um endereço. Tio Jack ficou alerta.
— Perturbação doméstica e um roubo de carro — Annie traduziu. — Não muito longe da casa de tio Jack.
Dei a Annie a pilha de recortes de tio Jack que eu guardara.
— Guardou para ele? Que gentil.
— Dê uma olhada nesses recortes — sugeri.
Ela me fitou com olhar interrogativo. Sabia que eu queria que notasse algo. Começou a folhear os artigos.
— Golfe. Casas móveis. — Annie sacudiu a cabeça. — Quem sabe? — Olhou mais alguns. — O que é isso? — Ela achou um dos obituários.
— Emily diz que a falecida foi paciente do laboratório de IRM. Também tinha demência com corpos de Lewy.
— O quê? — Agora, alerta, Annie endireitava o corpo.
— Há outro paciente entre os obituários.
Annie encontrou o outro obituário. Olhou para mim, ruborizada.
— Aqui diz que ele faleceu após um curto período de enfermidade. Começou a vasculhar o resto dos recortes.
— Só isso? — perguntou, desapontada. — Ainda assim estou intrigada. Você acha tudo isso significativo? — Acenou para mim com os dois obituários na mão. — E veja, os artigos foram recortados, não rasgados como o resto das coisas de tio Jack.
— Imagino que alguém do laboratório possa ter cortado os obituários e seu tio apenas se serviu dos recortes. Talvez o nome tenha atraído a atenção dele. Felicia.
Annie dispôs os dois obituários sobre a mesa.
— Após uma curta enfermidade. — Ela me olhou. — É exatamente o que o obituário de tio Jack diria, se ele tivesse morrido. Uma pequena investigação não fará mal a ninguém.
Ela guardou os obituários na mochila, depois inclinou-se e beijou a testa de tio Jack.
— Vou para casa — disse a ele. — Estou morta de cansaço, E Columbo precisa comer.
Annie pegou a mochila e eu a acompanhei até o saguão.
— A propósito, falei com Mac — Annie me contou. — Ele ligou para saber de tio Jack. Soube que ele estava doente.
— É mesmo?
— É. Como se você não soubesse. Bem, eu contei a ele que tio Jack ficou doente logo depois de fazer uma IRM no local onde ocorreu um acidente e morreu um médico. Mac achou interessante, porque recebeu o exame toxicológico da vítima. O nível de álcool no sangue de Philbrick era 0,09. E também deu positivo para diazepam.
Assobiei. Uns drinques e uma dose de Valium poderiam facilmente confundir seu discernimento. Poderiam considerá-lo dopa-do na verdade, dependendo da quantidade. Pelo menos, isso explicava por que Philbrick esquecera de tirar a carteira do bolso.
Quando chegamos ao saguão, escutei passos atrás de mim, alguém correndo pelo corredor. Virei-me quando Emily Ryan nos alcançou.
— Kyle foi detido sob a acusação de assassinato — ela disse, ofegante. Ao ver Annie, recuou, tropeçando no próprio pé. — Desculpe-me, Peter. Você não estava em sua sala. Não pensei que... Não sei o que fazer. Eles o levaram para interrogatório há algumas horas. Agora o estão detendo.
Estava acontecendo de novo. Por que aquilo era problema meu? Fiquei dividido entre acolhê-la sob minha asa ou jogá-la no meio do estacionamento.
Não precisei decidir. Annie assumiu a liderança.
— Acho melhor você nos contar o que houve.
Subimos até minha sala. Peguei uma garrafa de uísque no fundo da gaveta e despejei um pouco numa caneca de café. Emily tomou um gole e fez uma careta.
— Creio que Kyle estava no laboratório na manhã em que Leonard morreu. Seguindo-me.
— Ele esteve lá? — perguntei.
— Kyle me seguiu até lá naquela manhã. Então, resolveu esperar. Viu você. Quando a polícia chegou, ele se mandou. — Emily tomou outro gole de uísque. — Estava tentando me proteger. Kyle pode ser um idiota, mas não é um assassino.
— O que mais? — Annie perguntou. Ela sabia que aquilo não seria suficiente para detê-lo.
— Descobriram que Kyle havia ameaçado Lenny e, poucas semanas depois, ele o seguira após o trabalho. Os vizinhos os viram discutindo em frente ao prédio onde Lenny morava. Kyle sabia que Lenny saía comigo ocasionalmente e que costumava me acompanhar até o carro.
Perguntei-me se tal história explicava o arranhão que notei sob o olho de Philbrick no dia em que tio Jack fizera a IRM.
— Mais alguma coisa? — Annie indagou, pegando o uísque e ; preparando-se para servir mais uma dose.
Emily tapou a caneca com a mão.
— Acho que Kyle telefonou para Philbrick. Algumas vezes. Fez 5 ameaças que desconheço; disse talvez que esvaziaria os pneus de Lenny, caso ele não parasse de me seguir. Lenny deve ter guardado as fitas.
Annie sentou-se e fitou Emily com gentileza.
— O que você acha de tudo isso?
Fui deixado de lado, mas não me importei.
— Kyle faria qualquer coisa para me proteger. Esse sempre foi o problema. Ele é grudento, controlador e um chato.
— Acha que ele matou Leonard Philbrick? — Annie perguntou.
— Deus, não! — Emily exclamou. — Por que ele o faria? — Ela encarou Annie e a mim. Ficou boquiaberta. — Para me proteger? Sei que é o que parece. Mas pensem bem. Quem matou Lenny conhecia o escâner de IRM. Kyle só entende de cerveja e esportes. Ele é professor de educação física, meu Deus! Seria tão capaz de tramar o assassinato de Lenny quanto eu de treinar um time de futebol.
— Você contratou um advogado? — perguntei.
— Não vou precisar. Não fiz nada — ela alegou, teimosa. Annie e eu nos entreolhamos.
— Você acaba de nos dizer que Kyle não teria conhecimento para tramar o acidente — Annie ponderou. — A polícia é muito esperta. Vão descobrir isso também e pensarão que Kyle não agiu sozinho. Talvez alguém o tenha ajudado. Alguém que conhece tudo acerca daquele sistema.
Não seria difícil, nesse caso, somar um mais um. Kyle tinha força, Emily tinha o conhecimento. Trabalhavam em equipe. Talvez Emily e Philbrick estivessem bebendo um pouco. Ela mistura Valium na bebida dele. Philbrick desmaia e Kyle o coloca na plataforma. Emily opera o escâner. Então, resta apenas introduzir o tanque de oxigênio ofensor na sala do escâner. Kyle poderia até ter sido aquele a buscá-lo, para não deixarem vestígios que incriminassem Emily.
— Mas posso explicar... — Emily começou.
— Não deveria explicar nada a ninguém, a menos que o faça na presença de um advogado — Annie disse. — Se contar à polícia metade das coisas que nos revelou, eles festejarão. Em trinta segundos, será presa como cúmplice... ou pior.
— Acha mesmo que ela fez isso? — Annie me perguntou mais tarde, enquanto caminhávamos pelo estacionamento.
— Você não?
— Morte misteriosa no laboratório de IRM. Vingança de uma vítima de perseguição? Acho que não. — Ela tirou os dois obi-tuários da mochila. — Creio que é disso que se trata.
— Cientistas loucos matando pacientes com demência? — eu deduzi. O Miata vermelho buzinou quando Emily passou por nós. Era ali que estava minha aposta.
Depois de chegar em casa e me servir de um copo de Zin, sentei-me na confortável poltrona de couro Morris em minha sala de estar. Tentei ler o jornal, na esperança de evitar pensar no encontro com Shands e no que ele teria para me dizer a respeito de meu cérebro. Contudo, eu devaneava, pensando em como lidaria com as suspeitas — que agora tornavam-se uma convicção — de que Emily Ryan estaria ligada à morte de Leonard Philbrick. Ou ela causara o acidente e não desejava admitir o erro ou, pior ainda, ela e Kyle haviam conspirado para matá-lo. A idéia de supervisionar uma assassina, permitir que ela continuasse a trabalhar com pacientes, deixava-me profundamente incomodado.
TENTEI ME ACALMAR na sala de espera do Centro Médico Universitário de Diagnóstico por Imagem. Antes de chegar, estava apavorado. Agora queria acabar logo com isso. Havia vários pacientes esperando. Peguei um jornal e sentei-me. Numa página do caderno de notícias da cidade havia um nota pequena acerca do interrogatório ao qual Kyle se submetera e sua soltura.
Estelle Pullaski passou. Olhou-me de relance, marchou até a porta que levava ao laboratório e, de repente, voltou.
— Dr. Zak. — Veio até mim com um sorriso que eu sabia não possuir. Hoje Pullaski vestia um terninho muito bem talhado e sapatos que mostravam os tornozelos impecáveis. Havia nela uma intensidade sombria.
Levantei-me e a cumprimentei. Seu aperto de mão era firme.
— Ele o está deixando esperar?
— Na verdade, cheguei cedo.
— Por que não entra? O café está sempre fresco.
Minha antena ergueu-se imediatamente. Café era sempre bem-vindo, mas eu sabia que havia um motivo para ela se mostrar tão gentil comigo. Pullaski falou algo à recepcionista e entramos.
— Então — ela disse, enquanto servia café em duas canecas e me entregava uma. Na caneca, em letras vermelhas, havia a inscrição CENTRO MÉDICO UNIVERSITÁRIO DE DIAGNÓSTICO POR IMAGEM e, em azul, ESCOLHAS SAUDÁVEIS PROATIVAS. PATriotismo e saúde. — Soube que a polícia fez uma prisão. Estou tão aliviada.
Tomei um gole de café. O pó era medíocre; no entanto, o gosto estava bom. Se ela pensou que eu tinha acesso aos bastidores, ficaria decepcionada.
— Na verdade, o Glohe de hoje diz que ele foi solto.
— Solto? Mas... o segurança me disse que esse jovem esteve aqui na hora do acidente. Como puderam soltá-lo?
Ela ainda chamava o evento de "acidente" mesmo ao expressar alívio com o fato de a polícia ter prendido um criminoso. O criminoso perfeito, aliás. Não um paciente ou membro de família insatisfeito. Mas sim alguém sem nenhuma conexão formal com o laboratório.
— Vamos, Peter — Pullaski disse. Então, ela se lembrava do meu primeiro nome. — Não tem contatos na promotoria e na polícia? Soube que faz trabalho forense. Ao menos, uma opinião você deve ter.
— Provavelmente sabe mais do que eu. Não estava aqui naquela manhã? Você e o dr. Shands?
— Eu... nós... sim, claro — ela se atrapalhou com as palavras. — Chegamos depois do acidente. Trabalhamos aqui. O que quero saber é o que esse homem fazia aqui. — Agora Pullaski recobrava o equilíbrio. — Pode não ter sido a primeira vez. Ele continuará vagando por aí, escondendo-se na garagem à noite quando eu for pegar meu carro? Estamos seguros? — Ela se inflamou. Ocorreu-me que qualquer maníaco que perseguisse Estelle Pullaski rapidamente descobriria que havia abocanhado mais do que podia mastigar.
— Ele... — comecei. Honestamente, não sabia se Kyle continuaria a seguir Emily como um bichinho de estimação.
Os olhos da dra. Pullaski arregalaram.
— Você conhece esse homem, não?
— Fomos apresentados. Ele é amigo da dra. Ryan.
— É mesmo? Não me surpreende.
— Ele admite que esteve aqui. Mas diz que não viu nada — contei, parafraseando o que lera no jornal. — Alega ter seguido Emily. Ficou aqui até a polícia aparecer.
— Bem, eu certamente espero que descubram o que está acontecendo. Temos uma trabalho importante a realizar e estou certa de que a última coisa que Leonard quereria é ver nossa pesquisa prejudicada por causa de perturbação da polícia.
Cérebros gêmeos flutuavam no fundo negro — o meu e um outro ao qual Shands se referia como um "cérebro normal". Ajustei meus óculos e me aproximei.
Shands pulava de um a outro, apontando, segundo ele, diferenças e anomalias que, devido à minha ignorância, eu era incapaz de apreciar e, por causa da minha recusa, não reconhecia. Senti meus olhos se turvarem, enquanto ele prosseguia com explicações acerca da análise volumétrica e de coeficientes de permeabilidade.
Acordei quando Shands disse:
— Você está na linha limítrofe. Abaixo da área de normalidade e acima da área de demência com corpos de Lewy. — Ele me fitou com gravidade. — Como lhe disse antes, se eu fosse você começaria o tratamento o mais rápido possível.
— Acima da área de demência com corpos de Lewy. — Repeti as palavras que ainda não tinha assimilado. — No limite.
— Você sabe que somente uma autópsia do cérebro nos permite um diagnóstico exato. É claro que podemos realizar os procedimentos utilizados nos anos 1980. Abrir um buraco em seu crânio e extrair uma amostra do cérebro. Contar as plaquetas e as dobras encefálicas e procurar protocorpos de Lewy. — Ele notou que me contraí. Aquele devia ser o mesmo olhar que Shands expressara quando, na infância, jogara sal em lesmas. —Todos nós devíamos nos lembrar por que a imagem por ressonância magnética foi um avanço para a pesquisa médica.
Ele provavelmente queria que eu lhe beijasse os pés, mas naquele momento não sentia vontade de rastejar.
— Está dizendo, portanto, que posso desenvolver a doença? E que eu deveria tomar a medicação para prevenir essa... potencialidade?
— Ou poderia chamá-la de eventualidade. Seu pai e tio tive-ram a doença?
— Talvez. Nunca foi diagnosticada.
— Irmãos. Sabemos que pode haver um componente genético. Nesses casos, os filhos têm cinqüenta por cento de chance de herdar o problema. — Eu não apostaria nessa probabilidade.
— Quando? — perguntei.
— Sabe que não posso precisar quando. O início dos sintomas é muito variável. Sabemos, contudo, que a medicação tem respondido bem. Muitas pessoas a tomam para reduzir o colesterol.
Em que estava me inscrevendo? Décadas de uma dose diária de comprimidos dos quais eu nem sequer sabia se precisava? Pude ver na expressão de Shands que ele esperava me ver abraçar essa chance única, maravilhar-me com minha sorte. Certamente, era preferível isso a acordar numa manhã e descobrir que perdera a consciência.
— Pense a respeito. Eis os formulários de consentimento. — Vi minha mão pegar os papéis, como se meus dedos pertencessem a outra pessoa. — E uma grande sorte obter essa oportunidade.
Sim, que afortunado eu era. Ele se levantou. Foi minha deixa para ir embora.
Minhas pernas pareciam de borracha. Levantei-me e comecei a andar. Quando cheguei à porta, olhei os papéis que segurava, focando as palavras. Fui à última página.
Virei-me. Shands voltara a examinar o escaneamento de meu cérebro. Ele traçou algo com o dedo e, então, escreveu no prontuário.
— "Consentimento post-mortem e retenção de material humano para diagnóstico e pesquisa" — li em voz alta. Shands olhou-me, espantado, como se uma cadeira tivesse falado. — Por que não aponta essa cláusula aos pacientes?
Numa parte desconectada de meu cérebro, perguntei-me por que, diabos, após receber uma sentença de morte simbólica, eu me prendia àquele detalhe insignificante?
Queria avançar em Shands, apontar-lhe o dedo e dizer: "Como é isso? Por que não previne os pacientes?" Estava louco por uma briga, mesmo sabendo que a raiva advinha da notícia que ele acabara de me dar.
Shands ergueu as mãos.
— Nossa! Vá com calma. Peter, você não está à beira da morte.
— O sr. O'Neill quase morreu. Foi uma surpresa desagradável à sobrinha quando foram coletar o corpo.
— Um engano infeliz — Shands disse, parecendo irritado. — Culpa do hospital.
— Por que, então, não diz a pacientes como eu que estamos abrindo mão de nossos próprios cérebros?
Ele girou para me encarar, inclinou a cabeça e coçou o queixo.
— A autópsia é crítica.
— Não é o que estou questionando. Por que não informa o consentimento?
— Consta nos formulários. Pedimos que leiam...
— Seus pacientes e suas famílias estão sob estresse emocional — eu o interrompi. — Acabaram de receber a pior notícia. E você vem oferecendo essa esperança única. Mas há uma condição. Deveria dizer-lhes de forma explícita. Não esperar que interpretem o jargão dos formulários.
Ele suspirou. Vá em frente, pensei, tente me enrolar.
— No início, costumávamos conversar a respeito disso com pacientes. De forma explícita. Percebemos que ficavam melindrados. A informação os distraía do foco principal de atenção — essa oportunidade de criar uma nova ciência. Eles atrasavam a entrada no tratamento. O paciente sofria sem necessidade. A pesquisa sofria.
Cruzei os braços. Ele continuou:
— Vamos minar essa doença, desenvolver um diagnóstico definitivo e preventivo e um tratamento efetivo. Pense na dor que poderemos evitar. Nas vidas que salvaremos.
Tive de admitir, aquela promessa era intoxicante.
— Porém — eu disse, sentindo a raiva diminuir —, é um detalhe que deveria ser explicitado desde o início.
Shands deu de ombros, como se estivesse cansado de explicar.
— Ser um sujeito de pesquisa não é o mesmo que ser um paciente comum. Pacientes comuns fazem exames e se tratam para melhorar. Quando se é um sujeito de pesquisa, o paciente pode beneficiar-se pessoalmente. Mas o objetivo maior é ajudar a humanidade, tornar sua doença importante, contribuir de maneira significativa para nossa compreensão da patologia da doença com a finalidade de que outros sejam salvos. Por isso, as pessoas se inscrevem por livre vontade, mesmo sabendo que podem ou não receber o tratamento, sabendo que faremos uma autópsia no cérebro delas quando tudo acabar. Além disso — ele acrescentou —, precisamos que a família dê o consentimento novamente após a morte. Portanto, onde está o problema?
— Suponha que um paciente não assine o consentimento, recuse-se a doar o cérebro?
— Nesse caso, o show pára. Sem autópsia, sem tratamento.
— Sério?
— Lógico. Se estivéssemos sob o patrocínio da faculdade de medicina, eu não poderia exigir essa condição, mas temos nosso próprio conselho revisor institucional e eles entendem a importância desse componente.
— Mas a família pode rescindir a decisão depois da morte?
— Raramente o fazem — ele respondeu. Tive vontade de esmurrar aquele rosto petulante.
Voltei à recepção, sentindo que observava a mim mesmo de uma daquelas caixas fluorescentes encaixadas no teto. A recepcionista chamou-me quando passei.
— Precisa marcar um retorno? — ela perguntou.
— Ligarei depois — respondi.
No saguão, apertei o botão do elevador. Uma voz num de meus ouvidos desdenhou: "Esqueça. E puramente subjetivo. Herr doktor vê o que quer ver porque aquilo atesta o que ele espera."
Onde diabos estava o elevador? Apertei o botão novamente.
Uma voz no outro ouvido arreliou: "Você lamentará mais tarde. Em vinte anos, terá acumulado uma infinidade de garrafas de vinho que se tornará vinagre. Terá comprado tantas mobílias usadas que nem sequer haverá espaço para você dentro de casa."
Então, uma voz calma dentro de mim assumiu. "Em vinte anos, quem sabe que novas curas existirão? Provavelmente poderão manipular o gene que você possui, se realmente o tem. No fim das contas, tudo não passa de um grande SE."
Finalmente, o elevador chegou. Entrei. As portas começaram a fechar quando escutei passos e um:
— Espere!
Segurei as portas. Era Emily, carregando um envelope imenso. Entrou no elevador.
— Eu queria lhe mostrar isso. Ela tirou vários recortes de jornal.
— Encontrei esses...
Eu quis dizer que não era uma boa hora, mas saiu somente um:
— Agora não. — Emily recuou um passo. Eu sabia que a raiva estava mal canalizada, mas não pude me conter. — Há outras pessoas, outros problemas no mundo que não a rodeiam.
Saí na garagem e marchei até meu carro.
— Mas encontrei esses artigos escondidos no fundo de uma das gavetas de Lenny — ela disse, seguindo-me.
Abri a porta do carro e entrei.
Ela me olhou com pesar, parecendo me acusar de abandoná-la.
— Você perguntou se alguém mais no laboratório colecionava obituários, lembra?
Eu não perguntei nada disso, pensei ao inserir a chave na igni-ção. Mas não liguei o motor. Mal-humorado, tive de admitir que Philbrick era a pessoa mais indicada para colecionar obituários, o único que se preocupava o suficiente para notar a morte de um paciente como mais do que uma descoberta clínica. Lembrei-me dos três telefonemas que Philbrick dera para mim pouco antes de morrer. Fora na mesma noite em que tio Jack ficara gravemente doente após um exame de IRM. Se aqueles eram obituários que Philbrick colecionava e escondia, eu lhe devia, pelo menos, considerar as implicações. No topo de tudo pude ver Annie sacudindo os dois obituários na minha frente. Creio que é disso que se trata.
Abri a janela.
— Desculpe-me. Sim, é claro que gostaria de vê-los. Tudo bem se eu ficar com eles?
Emily assentiu, grata, e passou-me o envelope.
ANNIE E EU espalhamos os obituários e os comunicados de falecimento sobre a mesa de sua cozinha. Ela empurrou duas cadeiras de carvalho diferentes. Uma caixa de pizza vazia estava sobre a pia.
Em cerca de vinte anos, a cozinha de Annie estaria em voga. Havia gabinetes de metal da Sears na parede e o fogão era verde-abacate. O único acessório moderno era o microondas.
Annie organizou os recortes em ordem cronológica. Columbo subiu na mesa, acomodou-se na pilha diante de Annie e começou a ronronar. Ele emitiu um miado queixoso quando Annie o pegou e o jogou no chão sem cerimônia. Desconsiderado, o gato esfregou-se na perna dela. Annie afagou-lhe as orelhas peludas.
— Suponhamos que o dr. Philbrick estivesse colecionando obituários e comunicações de falecimento de todos os pacientes do laboratório que morreram. Não lhe parece uma quantidade significativa? — ela indagou.
— Durante três anos? Na verdade, não. O laboratório trata de muitos idosos doentes. E acho justo assumir que a maioria tenha demência com corpos de Lewy.
— Se é que essa doença os matou.
— "Faleceu após um longo período de enfermidade" — li, apontando um dos primeiros.
— "Morreu de uma infecção sangüínea no Hospital Brooklyn." — Annie leu numa publicação de poucos meses atrás. — E quanto a esse? "Faleceu repentinamente em casa."
— "Adorava bailes dançantes." — Li outro artigo. — Esse não diz a causa da morte, tampouco o local.
Muitos eram assim.
— Só porque a causa da morte não está publicada não significa que a demência não os tenha matado — argumentei. — Há um estigma. As pessoas se sentem relutantes em admitir que o marido ou a mãe teve demência. Preferem chamar de "falha cardíaca", o fator que mata a maioria de nós no final.
Annie cruzou os braços.
— Não vejo muitas falhas cardíacas por aqui. — Pude sentir que ela maquinava algo.
— Annie, sei que quer encontrar alguma coisa muito sinistra nessa história, mas tem certeza de que está sendo objetiva?
Ela me fitou nos olhos.
— Você acha que estou queimada porque tio Jack voltou daquele laboratório de IRM e adquiriu uma infecção, que Gloria diz que ele não teria pego no Pearce. Admito que talvez eu queira encontrar um responsável para o fato de tio Jack quase ter morrido. E, sim, é verdade, estou mais do que ofendida, porque cinco minutos depois de ele supostamente falecer mandaram uma equipe de necrófilos para coletar o cérebro dele.
"Chame-me de paranóica, se quiser, mas pergunto-me se o sr. Martin Drogan — ela apontou um dos obituários, de um antigo funcionário do tribunal de Middlesex que, de acordo com o artigo, jogara hóquei na juventude e ainda patinava aos setenta anos — morreu de infecção bacteriana. — O obituário dizia que pneumonia fora a causa da morte. — Que mal haveria se investigássemos um desses?"
— Nem sequer sabemos se todas essas pessoas foram pacientes do laboratório — eu disse.
— Vamos descobrir. — Annie me olhou, exasperada. — Sem duvida, são informações que Emily Ryan pode obter para nós.
— Certo, certo — acatei, suspirando. —Tem papel? Annie abriu uma gaveta e tirou um bloco de folhas pautadas amarelas.
— Se vamos fazer isso, ao menos sejamos metódicos. — Desenhei algumas colunas e tracei cabeçalhos nas três primeiras: nome, data da morte, causa.
Annie leu os nomes para mim, um por um, e qualquer outra informação que constasse. Meia hora depois, levantamo-nos. Havia seis obituários dos últimos três anos. Dez do ano anterior. Uma dúzia do ano atual, e estávamos apenas na metade dele.
— Mais os dois que tio Jack pegou — apontei. Somavam um total de trinta.
— Pneumonia. Infecção sangüínea. Após um curto período de enfermidade. Pneumonia outra vez.
Tive de concordar, era decididamente estranho.
— Embora você ache essas mortes suspeitas, creio que alguém as teria denunciado muito tempo atrás — remarquei. — Quando um paciente saudável faz um exame médico e em seguida falece, pode ter certeza de que as autoridades serão informadas. Há processos, queixas a órgãos reguladores.
— Talvez — Annie admitiu. — Mas o que acontece quando um paciente mentalmente desequilibrado suga a energia e os recursos da família? Quando essa pessoa não é mais a pessoa que era, a morte súbita pode ser uma resposta às preces. — Os olhos de Annie ficaram repletos de lágrimas devido à raiva. — A família não abre processo. Eles dizem: "Que tristeza. Mas foi melhor assim." Não pude rebater sua lógica.
— Então, quando cada uma dessas pessoas teve sua última consulta no laboratório de IRM? — perguntei, escrevendo o cabe-çalho da coluna seguinte: última consulta no CUMDI. — Emily pode descobrir isso também.
— E vou procurar os atestados de óbito dessas pessoas para obter as causas das mortes — Annie disse.
Acima da penúltima coluna, escrevi: atestado de óbito? —Verificarei as causas atribuídas. Então, veremos o que temos. — Ela sentou-se. — Eu gostaria de falar com eles, perguntar... — Annie me olhou. — Vou procurar algumas dessas famílias. Ver se descubro exatamente o que causou as mortes.
Ela pegou o lápis e escreveu o cabeçalho da última coluna: famílidi Pelo olhar de Annie, eu sabia ser inútil tentar dissuadi-la.
— Precisa ser discreta — aconselhei. — Não queremos terminar processados por difamar o laboratório.
— Sou sempre discreta — Annie disse, piscando para mim me dando o beijo mais obsceno do mundo. — Deus, como é bo fazer alguma coisa, em vez de ficar sentada praguejando contra destino. Quero uma sobremesa. — Ela abriu o freezer. — Vamos ver o que temos aqui. Que tal um Toscanini?
Aproximei-me por trás e a abracei.
— Tem certeza de que quer sorvete para sobremesa? — Beijei lhe o pescoço e inspirei a doce essência de fruta.
Ela pegou um pote de sorvete de baunilha.
— Meu favorito. E onde está... — Annie abriu a geladeira. Num compartimento da porta havia um pote de cobertura de chocolate. — Ah.. Está aqui.
Levou o creme ao microondas e ligou o aparelho. Voltei a mordiscar-lhe o pescoço. O microondas apitou. Annie pegou uma colher, misturou o chocolate e me ofereceu a colher. Eu a lambi. Quente, intenso. Perfeito.
Annie abriu o pote de sorvete. Tirou um pouco de sorvete.
— Duro feito pedra — comentou.
O sorvete não era a única coisa que estava dura.
Annie levou a colher à boca e chupou-a devagar, deixando um pouco de sorvete na colher. Então, ofereceu-me o que havia sobrado.
— Você é o encarregado da cobertura — avisou.
Nós nos alimentamos de colheradas de sorvete embebidas no creme de chocolate.
— Espere — eu disse. — Há chocolate bem aqui. — Lambi o canto dos lábios de Annie. — E aqui. — Larguei o creme e beijei-a longamente. Annie deslizou as mãos sob minha camisa e correu os dedos em minhas costas.
— Acha que há mais chocolate aí embaixo? —Annie perguntou, enquanto eu desabotoava sua blusa.
— Nunca se sabe. É melhor verificar.
Nó final da tarde seguinte eu esperava Emily em rainha sala para nossa supervisão regular. Fiquei contente por não ter agido com desconfiança e suspendido o trabalho dela com os pacientes. Depois que Annie e eu terminamos de analisar os obituários e os comunicados de falecimento, comecei a concordar com Annie que talvez a morte de Leonard Philbrick não houvesse sido acidental e que talvez não estivesse relacionada às perseguições que Emily sofria. No mínimo, eu sentia uma dúvida razoável.
O que continuava a me intrigar era o motivo pelo qual Leonard Philbrick guardara aqueles obituários e comunicados de falecimento. Meu primeiro pensamento fora que em respeito aos pacientes ele quisera homenageá-los. Mas tive de considerar a possibilidade de que o próprio Philbrick pudesse ser o responsável. Talvez colecionar obituários daqueles que morreram fosse o equivalente a gravar entalhes em seu cinto. E isso explicaria por que ele os escondera. Seguindo essa linha de raciocínio, talvez alguém tivesse se vingado da morte de um ente querido. Trinta vítimas em potencial, trinta grupos de amigos e familiares. Era possível que alguém entre tantos tivesse sabedoria para armar um acidente durante a IRM.
Quando Emily chegou, estava visivelmente feliz — mechas do cabelo haviam se soltado do rabo-de-cavalo e curvavam-se ao redor do rosto.
— Creio que estou começando a entender o espírito da terapia — ela disse. — Não vai acreditar no que o sr. Black fez.
— Deixe-me adivinhar. Ele não amputou o braço.
— Ele o tatuou. Era a última coisa que eu esperaria.
— Mandou fazer um dragão rastejante do pulso ao cotovelo. El me disse: "Já que vou cortá-lo, por que não fazer uma tatuagem? Então, agora que tem a tatuagem, ele a deixa à mostra, observa a reação das pessoas, determina que julgamento fazem dele.
— Isso o faz sentir-se poderoso? — perguntei.
— Ele diz sentir-se ótimo. E atraente. E interessante. E antes que se desse conta, conheceu uma mulher. Ela admira a tatuagem. Acha-a legal. Acha que ele é legal.
— E?
— Ocorreu o que se espera de dois adultos disponíveis.
— Os pacientes nunca param de nos surpreender.
— Acho que consegui ajudá-lo. Ele estava dizendo que amarrar o braço não foi útil. Fazia-o sentir-se mais conspícuo, não menos, e não agüentava a pena e o desagrado que via nos olhos dos outros. O modo como olhavam para seu braço não fazia toda essa diferença. Disse que poderia também usar mangas curtas e exibir a amputação. Eu disse apenas: "Talvez deva mesmo amputá-lo."
"Ele ficou sentado. Olhou para mim como se eu o tivesse virado de cabeça para baixo. Nem sequer me falou o que pretendia fazer. Simplesmente apareceu na sessão seguinte com uma camisa de manga curta e me pegou de surpresa. Juro, fiquei perplexa.
"Ele parou com aquele mantra em relação ao braço e como precisava cortá-lo. Graças a Deus. E está começando a tornar-se mais introspectivo, de uma maneira que nunca foi antes. Acho que ele está pronto para tentar descobrir quem é realmente."
— Parabéns. Agora pode iniciar uma terapia de verdade.
— Sei que ainda há muito trabalho a ser feito. Mas sou muito grata a você — Emily disse. — Nada disso teria acontecido se eu continuasse a manipular as sessões. Estou tão aliviada porque enfim algo está dando certo. — A felicidade dela era contagiosa. — Sinto vontade de comemorar. Vou sair para beber depois do trabalho... quer ir comigo?
Desejei dizer sim, mas houve em relação a ela uma hesitação momentânea que não aconteceria com nenhum outro pós-douto-rando. Deixei de lado o incômodo. Por que não saborear o sucesso evidente? Tais acontecimentos eram raros nessa profissão.
— Avise-me quando estiver saindo — eu disse. — É por minha conta.
Emily olhou o relógio.
— Tenho uma entrevista com um paciente novo às seis. Ele deve estar chegando. Tudo bem se vier chamá-lo depois da sessão? — Parou a caminho da porta. — Esqueci de perguntar. Teve a chance de verificar aqueles obituários?
— Sim. Eu queria inclusive lhe agradecer. Mas podemos conversar a respeito mais tarde.
Retornei uma meia dúzia de telefonemas e estava no meio da edição de um artigo quando Emily voltou.
— O que houve? O paciente novo ficou com medo? — perguntei.
— Creio que sim. Ele não apareceu. — Emily estava levemente ofegante. — Acabo de correr ao saguão para certificar-me de que ninguém estava à minha espera. Então, liguei para o número que o paciente me deu. Está desligado.
— Que estranho — comentei. — E muito desagradável.
— Nada pode me desagradar hoje — Emily disse. Ela me olhou com expectativa. Então, notou os papéis sobre minha mesa. — Ainda está trabalhando?
— Preciso de um tempinho para terminar.
Vinte minutos depois, pegamos o elevador até o subsolo e continuamos através do túnel.
— Quanto aos obituários — eu disse, devolvendo-lhe o envelope —, diga-me outra vez, onde os encontrou?
— Estavam num dos arquivos de Leonard. Ele os guardou numa pasta nomeada "Faturas".
— Que estranho.
— Também achei. Lenny era superorganizado. Por isso supus que ele os estivesse escondendo.
— De quem?
— Do dr. Shands? Dra. Pullaski? De mim? — Ela refletiu por um minuto. — Dos pacientes? Obituários de ex-pacientes seriam a última coisa que alguém, prestes a fazer um exame, gostaria de ver.
— Acha que Leonard estava preocupado? Ele acreditava que havia algo suspeito nessas mortes? — perguntei, segurando a porta externa.
— Se acreditava, ele nunca me disse — Emily respondeu, vestindo o casaco por causa da brisa da noite.
— Você poderia verificar quando esses pacientes estiveram pela última vez no laboratório?
— Sem problema. Deve constar no prontuários deles e... — Emily deteve-se. — O que é isso?
O estacionamento abaixo de nós estava iluminado como um palco de teatro e as saídas, bloqueadas. Luzes piscando sem parar emitiam reflexos no asfalto e nas árvores ao redor.
— Pode ter havido uma agressão? — Emily perguntou, correndo pelos degraus.
Eu a segui. Parecia mais tratar-se de um acidente de carro. Mas havia muitos veículos de emergência para uma simples trombada. Uma ambulância e uma viatura da polícia estavam estacionadas frente à frente. Entre elas, a equipe de resgate se movimentava. Um policial afastou-se e pude divisar o que parecia ser um homem de roupas escuras deitado no chão.
Emily pegou uma mochila de ginástica largada nos degraus.
— Isso é de Kyle — ela disse, com a voz embargada. — E aquele carro não é dele? — Uma Range Rover preta era um dos carros parados no estacionamento.
Os joelhos de Emily bambearam e ela caiu sentada nos degraus. Sentei-me ao lado dela. Emily mergulhou o rosto na mochila.
— Vá você. Eu não posso ir. — Estava tão pálida e tremia tanto que receei que desmaiasse. Quando hesitei, ela exclamou: — Vá! Por favor. Descubra o que aconteceu.
Levantei-me e desci os degraus. Quando me aproximei, pude ver que a vítima achava-se deitada de bruços, as pernas abertas. Era Um homem grande, costas largas, cabelos escuros e o rosto voltado para o outro lado. Um dos homens em pé perto do corpo olhou para mim — era MacRae.
— Afaste-se! — um dos policiais berrou em minha direção. MacRae veio até mim.
— O que houve? — perguntei.
— Se tivéssemos podido ajudá-lo, ele ainda estaria vivo — MacRae comentou. — Pobre infeliz. Foi atingido em cheio.
Procurei marcas de pneu perto do corpo, mas não encontrei nenhuma. Cerca de um metro adiante, um fotógrafo da polícia registrava imagens do pavimento.
— Acha que aconteceu ali? — indaguei.
MacRae deu de ombros, como sempre. Agora Emily achava-se na base dos degraus, ainda agarrada à mochila de Kyle.
O fotógrafo bateu mais duas fotos. A distância entre aquelas marcas de pneu e o local onde estava Kyle era longa. No mínimo, fora atingido em alta velocidade, para ter se distanciado tanto. Não havia meios de um carro ganhar tanta velocidade no estacionamento. Muito provavelmente Kyle se arrastara até o local em que agora se encontrava.
Um dos oficiais que trabalhavam no corpo aproximou-se de nós. Ele entregou algo pequeno a MacRae. MacRae colocou-o na palma da mão.
— Reconhece isso? — perguntou, mas não se dirigia a mim. Mostrava a Emily, que surgira atrás de nós. Ainda estava pálida, talvez em estado de choque. Ela se espantou ao ver o que se assemelhava a uma jóia de ouro. Antes de ser atropelada, a peça fora um brinco minúsculo ou um anel de mulher.
Coloquei minha mão no ombro de Emily e esperei que ela entendesse a mensagem. Não diga nada.
— O que é isso? — MacRae perguntou-lhe, indicando a mochila.
— Acho que é de Kyle — ela respondeu. — Eu a encontrei sobre um dos degraus.
— Vou levá-la — MacRae informou e pegou a mochila. — Gostaria que ambos ficassem por aqui, principalmente a senhora, dra. Ryan. Tenho algumas perguntas a fazer.
Emily assentiu, muda. Olhava um canto mais distante, onde seu carro estava estacionado. Um homem de uniforme vasculhava o interior do Miata com uma lanterna e tomava notas.
Lembrei-me de que Emily dissera ter sido perseguida na época da faculdade por um desconhecido. Ele morreu num acidente de carro. Atropelado num estacionamento? perguntei-me.
Dos DEGRAUS observávamos o trabalho metódico dos peritos no estacionamento. Emily, alternadamente, chorava e praguejava. Kyle estava morto e o culpado usara o carro dela para atropelá-lo. Após um tempo, permaneceu sentada, fitando o espaço, como se tomasse consciência da gravidade de sua situação. Abracei-a pelos ombros, mas à medida que eu refletia, sentia a distância entre nós crescendo.
Em que momento o médico legista determinaria a hora da morte? Enquanto Emily estivera — e a palavra supostamente surgiu do nada em minha mente — esperando um novo paciente que nunca aparecera?
Agora ela tremia, suprimindo os soluços. A emoção parecia completamente genuína. Porém, eu me vi tentando calcular o tempo exato que se passara após o atropelamento de Kyle. Emily aparecera sem fôlego ao retornar a minha sala, como se houvesse corrido. Disse que fora ao andar térreo a fim de verificar se alguém a aguardava no saguão. Se Kyle foi morto por volta das seis, ela teria tido tempo para ir ao estacionamento e voltar. O serviço de ambulatório era muito cuidadoso quanto a marcar consultas para pacientes novos. O procedimento padrão requereria a verificação da legitimidade do contato. Teriam marcado uma sessão para Emily com um paciente inexistente ou ela o fizera com o objetivo de ganhar tempo? Era uma informação que eu poderia obter na manhã seguinte.
Se você considerasse como ponto de partida que Kyle ajudara Emily a matar Philbrick, tudo faria sentido. Emily induz Kyle a ajudá-la a eliminar o perseguidor maníaco que tornara sua vida um inferno. Depois de o matarem, as coisas começam a esquentar. Kyle é detido para interrogatório. Ele, levado pela pressão, começa a fraquejar. O medo maior de Emily é vê-lo confessar a verdade.
Marca um encontro com ele no estacionamento, na hora em que supostamente espera por um paciente novo. Quando Kyle aparece, ela o atropela. Mas o carro é pequeno e ele é um homem forte. O impacto inicial não é suficiente. Ele se arrasta pelo pavimento, tentando fugir. Então, ela o atropela novamente. Quantas vezes foram necessárias? Em seguida, ela pára o Miata num canto do estacionamento, atravessa o túnel correndo e sobe ao terceiro andar. Quando aparece em minha sala, ainda está sem fôlego.
Tudo se encaixava. Mas havia peças que não faziam sentido. Por que atropelar Kyle com o próprio carro, sabendo que isso a incriminaria? Por que largar o carro a poucos metros do corpo, onde a polícia pudesse perceber o pára-choque danificado? Por que não esperar alguns minutos para recuperar o fôlego antes de entrar em minha sala? E por que aparecer logo em seguida no estacionamento, bem no meio da investigação policial?
Eu sabia o que Emily diria. Estava sendo vítima de uma armação. Alguém roubara a chave de seu carro outra vez. Eu testemunhara como o perseguidor esvaziara o pneu, destrancara o veículo e servira-se dos pertences dela — peças íntimas e... um brinco.
Agora eu atinava para o que era a minúscula jóia de ouro que a polícia encontrara esmagada no pavimento — era o brinco que Emily às vezes usava. Não fora esse brinco que ela dissera ter sido roubado pelo perseguidor? A palavra perseguidor agora ganhava nova cotação?
Dois guinchos apareceram — deduzi que um levaria o carro de Emily e o outro o de Kyle. MacRae aproximou-se de nós.
— Não precisa me dizer nada — Emily dirigiu-se a mim e se levantou. Ela endireitou os ombros e, antes que MacRae dissesse alguma coisa, anunciou: — Sei que tem perguntas a me fazer, e estou disposta a respondê-las. Mas primeiro quero telefonar para meu advogado.
MacRae já estava com o bloco de notas em mãos.
— Não vou prendê-la, só estou tentando ajudá-la — ele retrucou, como quem só quer cumprir uma obrigação. — Quando foi a última vez que viu a vítima?
Emily meneou a cabeça. MacRae me olhou com frieza.
— E quanto ao senhor, dr. Zak? Estou certo de que não se importa de responder a algumas perguntas.
Ele posicionou a caneta e despejou as perguntas. A maioria delas estabelecia que eu não poderia garantir o paradeiro de Emily na última hora. Quando terminou, MacRae continuou parado onde estava, mexendo na caneta.
— Quero vê-la amanhã de manhã — disse a Emily. — Com seu advogado, é claro.
Não levei Emily para casa. Liguei para Annie e ela me ajudou a localizar Chip no Harvard Club, onde ele estava no meio de uma partida de squash. Não ficou muito feliz ao ser localizado. Nós o encontramos no escritório.
Vestindo short e uma camiseta molhada, Chip parecia deslocado naquela sala elegante do edifício em que ele e Annie haviam aberto a sociedade depois de saírem da promotoria pública. Com os tijolos à vista e as janelas gigantes, o prédio fora um estábulo em meados de 1800, quando cavalos e carroças percorriam as ruas de pedra nessa área de East Cambridge, o primeiro centro industrial de Boston. Uma localização perfeita para a prática de direito criminal — o tribunal e a penitenciária ficavam bem próximos.
Chip possuía uma escrivaninha de mogno, cadeira de couro e uma pintura abstrata na parede. A única pista de seu passado duvidoso era um pôster de 1976, pendurado na porta da sala, do álbum Fillmore East, dos Grateful Dead, no qual havia um esqueleto vermelho, branco e azul.
Após uma hora falando com Emily, Chip havia preenchido seis páginas de um bloco de folhas amarelas com garranchos que somente ele podia ler. Então, recostou-se na cadeira.
— Serei honesto com a senhora, dra. Ryan. Acredito realmente que a promotoria pública irá acusá-la de assassinato. Amanhã de manhã, iremos à polícia oferecer nossos préstimos para a investigação. Precisa estar preparada para a possibilidade de eles a deterem.
— Deterem-me? E quanto a meu trabalho? — ela indagou. As pessoas faziam isso, agarravam-se a retalhos da rotina normal a fim de negar que o mundo ao redor estava ruindo.
— Talvez seja uma boa idéia pedir uma licença. Até que tudo isso se resolva — Chip sugeriu. Emily engoliu um soluço. — E quando estivermos falando com a polícia — ele prosseguiu, com a voz firme —, faça exatamente o que eu disser. Entendeu? Meu trabalho é protegê-la.
Emily levantou-se, apertou a mão de Chip e agradeceu. Eu a levei até meu carro. Durante o trajeto ao apartamento, Emily, apática, fitava a janela. Eram quase dez horas quando chegamos à casa dela.
Acompanhei-a à porta.
— Droga — ela resmungou, vasculhando a bolsa à procura das chaves. Havia luz na entrada do prédio. A bolsa caiu e boa parte do conteúdo espalhou-se no chão; moedas rolaram para todos os lados.
— Merda! Merda! Merda! — Emily reclamou, chutando e pisando, jogando um batom na grama. — Maldito filho da mãe miserável!
— Acalme-se — pedi, tocando-lhe os ombros. Ela se desvencilhou e me acusou com o olhar.
— Acha que sou culpada, não? Acredita que matei Lenny e atropelei Kyle. — Emily pisoteou com o salto alto um espelho portátil, até trincá-lo. — É isso que todos pensam. Talvez eu deva desistir.
Abaixou-se para pegar uma lasca do espelho. A luz se refletia no vidro, projetando um raio prateado pela escuridão. Emily ficou parada, a pele emanando palidez na luz da noite.
Então, suspirou e jogou o pedaço do espelho entre os arbustos. Enxugou as lágrimas, pegou as chaves, recolheu o resto dos pertences e jogou-os dentro da bolsa.
Ofereci minha mão. Ela aceitou e ergueu-se. Antes que eu percebesse o que acontecia, Emily estava em meus braços, colando-se a mim. Por um instante, pensei abraçar Kate — Kate tinha quase o mesmo tamanho, a mesma combinação de vulnerabilidade física e força. Minha respiração falhou quando o aroma de canela e cravo invadiu minha mente. O perfume de Kate. Eu sabia que era somente uma lembrança. Respirei profunda e lentamente, desejando que a sensação perdurasse. Então, nós nos beijamos; todos os sinais de alarme que eu escutava foram abafados pelo momento. Devagar, com mais relutância do que eu teria admitido, afastei-me.
— Não creio que seja uma boa idéia — eu disse. Ela sacudiu as chaves e olhou-as.
— Tem razão. — Emily ajeitou a gola do casaco. — Desculpe-me. — Os lábios agora estavam inchados.
Fitei o rosto dela, o pescoço longo e o queixo delicado, cílios escuros pousando sobre as faces ruborizadas. O cravo e a canela haviam desaparecido, dando lugar a uma fria clareza quando imaginei estar olhando para o semblante de uma criminosa.
Como somos babacas, pensei, diante de minha casa, sentado no carro. Por que eu havia permitido que isso acontecesse? Num minuto, pensei que Emily pudesse ser uma assassina fria que agora mirava a terceira vítima. No minuto seguinte, eu a segurei entre os braços e a beijei. Pior ainda, gostei do beijo. Talvez a demência com corpos de Lewy já estivesse afetando meu discernimento, Se não, o que diabo estava acontecendo? De uma coisa eu sabia, não queria ir para casa. Precisava de estabilidade e de uma cerveja preta bem forte.
Liguei para Annie e pedi-lhe que me encontrasse no Inman Lounge. Quando cheguei, o lugar estava quase cheio, e um par de televisões sobre cada canto do bar mostrava uma reprise de Seinfeld.
— Não parece nada bom para ela — Annie comentou. — A mulher assume o problema com as próprias mãos, faz o namorado ajudá-la a matar o homem que a seguia, depois mata o namorado antes que ele a denuncie. E assim que aparenta a situação.
— Aparenta?
Annie passou o dedo sobre a espuma da cerveja e o lambeu.
— Sua amiga Emily é um tanto delicada, e acredito que as pessoas não gostem muito dela, mas não é estúpida. Creio que a situação faz com que ela pareça estúpida.
— Não acha muita coincidência que o primeiro perseguidor tenha morrido num acidente de carro?
— Acha que ele foi atropelado num estacionamento?
— Não foi?
— Não. Verifiquei esse estranho incidente. — Meu rosto devia ter mostrado surpresa, porque Annie acrescentou: — É meu trabalho. Claro que fui atrás dos antecedentes dela. Emily conseguiu uma ordem judicial contra o cara, um colega de faculdade. Ele morreu seis meses depois, quando seu carro bateu num ônibus de Greyhound e capotou na rodovia num dia frio de chuva. Não me parece algo que Emily pudesse tramar, apesar de seus variados talentos.
— Só uma coincidência — concluí, tentando mais uma vez ajustar minha imagem mental de Emily.
— Às vezes, é só uma coincidência.
— Quer que tudo tenha uma relação com aqueles obituários, certo? — indaguei. Annie sorriu e franziu o cenho, concedendo minha razão. — Pois bem. Admito que a morte de Philbrick pode estar ligada às atividades do laboratório e à rapidez com que os pacientes faleceram. Mas e a morte de Kyle? Como ela se encaixa nos pacientes mortos?
— Ele estava lá na manhã em que Philbrick foi morto. Talvez tenha visto algo.
— O quê?
— Não sei. Ainda não desvendei essa parte. — Annie passou o dedo ao redor do copo. — Pena que Emily irá para a cadeia. Agora ela não poderá descobrir quando foi a última vez que aqueles pacientes estiveram no laboratório. Teremos de descobrir sozinhos. Visitar as famílias e perguntar. Se não souberem, tentaremos os registros do laboratório.
Não gostei do rumo daquela conversa.
— Já entrei em contato com a filha de Frank Mosticcio — Annie contou, adiantando-se,
— O homem que adorava bailes dançantes?
— Não. Mosticcio é o falecido de um dos obituários que tio Jack roubou. Ele morreu há uns dois meses. Morava em Brookline. Você e eu visitaremos a filha dele amanhã.
— É mesmo?
— É. Eu disse que iria acompanhada de um psicólogo que trabalha com pacientes dementes e suas famílias. — Fiquei pasmo. — É verdade, não é? Eu disse a verdade a ela... mais ou menos. Aleguei que queria conversar com famílias que passaram pelo que passei. Inventei um pouco o motivo.
— Inventou?
— Posso ter insinuado que pretendia escrever a respeito do tema. Não precisei me explicar muito. Ela concordou em nos receber. Mostrou-se ansiosa, aliás.
— Annie... — comecei. Todas as bandeiras vermelhas estavam erguidas.
— Peter, você precisa saber se Emily é culpada ou não e quero pegar o cretino que tentou matar meu tio. — Annie tinha um jeito particular de focalizar os fatos. — Você me dará... — ela buscou a palavra certa — legitimidade. Eu o tornarei menos intimidativo.
— Não sou intimidativo.
— Certo, não é. Já falei com Gloria. Você não tem nenhum compromisso amanhã.
— Como ela poderia saber? Amanhã é sábado.
— Estará ocupado amanhã?
— Creio que agora sim.
Frank Mosticcio havia morado em Brookline, no alto de Coolid-ge Corner. A construção vitoriana fora, anos atrás, dividida em apartamentos. A escadaria de madeira fora transferida para a lateral externa da residência a fim de oferecer aos inquilinos acesso ao segundo pavimento. Quando chegamos, uma mulher de meia-idade, vestindo camiseta ejeans, removia da árvore em frente à casa uma placa que dizia "BAZAR HOJE".
— Desculpe, mas já encerramos as vendas — ela nos disse, quando saímos do carro.
— Não viemos comprar nada — Annie avisou-a. — Sou Annie Squires. Estou aqui para conversar com a filha de Frank Mosticcio.
— Sou eu mesma. Dorothy Stephanos. Por favor, chame-me de Dottie.
Annie apertou a mão dela e me apresentou.
— Pensei que a essa hora tudo já estaria arrumado — a sra. Stephanos disse, passando as unhas feitas nos cabelos loiros. — Meu filho deveria estar me ajudando, mas... — Olhou ao redor, como se esperasse encontrá-lo atrás de uma árvore. — Ele vendeu um punhado de CDs e se mandou. Adolescentes. Não se prendem muito tempo a nada. — Percorreu os itens que restaram no jardim. — Agora estou presa a essa bagunça. Por que sempre parece que temos mais ao final da venda do que no início?
— Creio que isso demonstra algum princípio acerca da conservação das coisas — Annie comentou, pegando uma das caixas. — Onde quer que eu coloque essa?
— Não precisa me ajudar — a sra. Stephanos protestou.
Segui Annie e peguei dois abajures cujas bases pareciam ser feitas de granadas em miniatura da Segunda Guerra Mundial. Era mesmo do que cada lar precisava. Apenas cinqüenta dólares o par. Uma barganha.
A sra. Stephanos nos levou aos fundos da garagem, onde empilhamos o que não fora vendido. Meia hora depois, nós três havíamos limpado o jardim e nos sentávamos na varanda para tomar chá gelado. A sra. Stephanos trouxe consigo uma pasta na qual guardava os documentos referentes à doença do pai.
— Tem sido uma luta organizar os bens. São tantos detalhes. Mas tenho certeza de que sabe como é. — A sra. Stephanos sorriu para Annie.
— Na verdade, sei, sim — Annie concordou, sem corrigir a impressão da sra. Stephanos de que o tio dela havia falecido. — Meu tio adorava acumular coisas.
— Essa é nossa terceira venda e ainda há mais coisas no sótão, nas quais nem sequer mexi. Está repleto de caixas até o telhado. Meu marido diz que devia pagar alguém para limpar o local. Mas não tenho coragem. Pode haver fotos de família e quem sabe o que mais. — Ela suspirou e a cadeira de alumínio rangeu quando se acomodou. — Acreditam que encontrei uma dúzia de papéis de ações dentro do forno dele?
— Eu acredito — Annie disse.
Perguntei à sra. Stephanos quando o pai adoecera e como fora o progresso da doença.
— Eu nunca tinha ouvido falar disso — ela contou. — Demência com corpos de Lewy. Meu filho diz que parece o nome de um grupo de rock. — A sra. Stephanos prosseguiu, alegando que o médico do pai havia sugerido que ele participasse de um estudo de pesquisa.
Ela espalhou o conteúdo da pasta sobre a mesa. Junto dos papéis havia o formulário de consentimento que assinara pelo pai.
— Posso dar uma olhada? — pedi, indicando os outros papéis.
— Fique à vontade — ela disse.
A sra. Stephanos contou-nos, então, como o pai se submetera a uma série de IRMs — quatro ou cinco — no Centro Médico Universitário. A última ocorrera poucos dias antes de ele falecer.
— Ele voltou para casa e foi direto para a cama dormir — relatou. — Na manhã seguinte, acordou com febre. Pensei que fosse uma simples gripe. À noite, teve problemas para respirar. Liguei para o médico, mas quando o encontramos no hospital era tarde demais. Foi algum tipo de infecção bacteriana. Como aquela que matou Jim Henson? Pneumonia galopante, uma das enfermeiras informou.
Enquanto ela falava, eu vistoriava os papéis da pasta. A sra. Stephanos tinha receitas do primeiro médico do pai, recibos de hospital e relatórios médicos. Havia uma brochura colorida exaltando as virtudes do Centro Médico e um folder da Cimgen Pharmaceutical — a empresa que fabricava o Cimvicor. À frente estava uma foto de um casal de idosos cheios de vigor usando roupas de golfe. A mulher dava uma tacada. Na metade da página havia o seguinte texto, em itálico: "O colesterol baixo reduz o risco de enrijecimento das artérias, o qual foi associado a doenças cardíacas e ao princípio da demência."
Sutil. Os médicos poderiam prescrever uma droga, como Cimvicor, para abaixar o nível de lipídios e, de lambuja, obter um uso "extra-oficial" para o tratamento de demência. Mas a empresa foi proibida pela FDA de divulgar o uso extra-oficial. Não poderiam dizer que a droga era também utilizada para tratar a demência — mas as implicações eram claras.
— Estou curioso — eu disse. — Lembra onde achou isso?
A sra. Stephanos pegou a brochura.
— Eu não... — ela começou. Virou o papel e notou algo escrito no final da página. Parecia um nome e um telefone. — Sim, lembro. Peguei essa brochura num encontro de apoio familiar.
Os fabricantes de droga tinham meios de distribuir aquele tipo de informação enganosa, desviando-a do radar dos órgãos competentes.
— O dr. Shands tratou seu pai com medicamentos para demência com corpos de Lewy? — perguntei.
— Que médico brilhante — a sra. Stephanos disse. — Ele foi o único que nos deu alguma esperança.
— O tratamento estava ajudando?
— Talvez. Não tenho certeza. Foi tão difícil ver meu pai deteriorar-se daquele jeito. Em poucos meses, ele deixou de ser independente e passou a precisar de ajuda até para sair da cama. Passara a vida lecionando e, de repente, começou a falar sem a menor articulação. Perto do fim, tivemos de contratar uma pessoa para ficar com ele o dia inteiro. Eu dormia aqui. Foi tão exaustivo.
— Faz três meses que ele faleceu e ainda sinto que estou me adaptando à normalidade. Pelo menos, é um consolo saber que o cérebro de meu pai está sendo usado para encontrar a cura.
— A morte de seu pai foi inesperada? — Annie perguntou.
— O primeiro geriatra nos disse que, a despeito da demência, o coração dele era forte.
— Então, a morte foi um choque? — Annie pressionou. A sra. Stephanos hesitou.
— Achamos que ele agüentaria. Sim, foi um choque. — Houve uma longa pausa, durante a qual ela e Annie se fitaram. — E um alívio. Você deve saber. No final, ele se foi enquanto dormia. Nenhuma agitação ou gritos, como vinha acontecendo. Foi melhor assim.
Annie me encarou na mesma hora.
ATÉ O FIM DE SEMANA Annie e eu havíamos nos encontrado e conversado ao telefone com mais meia dúzia de parentes. Tudo se tornou uma miscelânea. Dois pacientes tinham morrido mais repentinamente que o esperado. Para um dos parentes, foi como se a morte se transformasse num prolongamento interminável da desumana fase final de uma doença cruel. Em outro caso, a filha sobrevivente ficara tão alheia que nem sequer sabia dizer se a morte do pai fora ou não repentina.
A informação mais relevante — quando cada um dos falecidos obteve a última consulta no Centro Médico Universitário — permanecia elusíva. Os membros da família não sabiam ou não lembravam.
— Se ao menos houvéssemos seguido essa direção semanas atrás, teria sido muito mais fácil — Annie apontou. — Emily teria conseguido essas informações para nós nos arquivos do laboratório.
Neste momento Emily Ryan não estava em posição de obter nenhuma informação para ninguém. Havia sido presa e fichada. Na mochila de Kyle, a polícia encontrara um "Lapso Freudiano" igual ao que ela usara para deixar um bilhete em minha sala. No papel estava escrito:
Vejo você às 6.
XX
Emily
Mesmo assim, Annie ainda não acreditava.
— Está me dizendo que ela ficou vinte minutos sentada no estacionamento segurando a mochila dele e nem se preocupou em livrar-se do bilhete que a incriminava? — Era uma boa pergunta.
Segunda-feira de manhã encontrei Gloria e Kwan na sala de conferências. Eles se calaram e me olharam com estranhamento quando entrei.
— O que foi? — perguntei imediatamente.
— Estávamos justamente falando de Emily — Kwan disse.
— Deve haver um meio de podermos ajudá-la. — O rosto de Gloria contorcia-se de preocupação.
Sentei-me numa cadeira e contei-lhes que não estava muito otimista. Eu havia ligado para o serviço de ambulatório e me disseram que não tinham registro da entrevista que Emily alegara ter sido agendada. A administradora ficara indignada ante a sugestão de que a equipe teria sido descuidada o bastante para marcar consulta com um paciente inexistente. Sempre verificavam os dados, ela dissera. E sempre telefonavam para confirmar as consultas.
— Eles afirmam nunca ter fornecido a Emily o número de nenhum telefone desligado.
— Mas... — Gloria disse, desanimada.
— Algum de vocês a viu quando ela diz ter descido para procurar o paciente?
— Eu tinha ido para casa — Kwan alegou.
— Eu a vi — Gloria disse. — Ela me perguntou se eu vira alguém perambulando por aí, parecendo perdido. — Pude notar quão perturbada Gloria ficou ao revelar a informação seguinte. — Então, acho que ela foi para fora.
— Você a viu voltar? — perguntei. Gloria admitiu que não.
— Mas isso não significa nada. Não vê? Alguém armou para ela. Gloria e Annie estavam na mesma página com suas teorias da conspiração — Gloria achava que Emily era vítima de uma arapuca e Annie tinha certeza de que tudo se relacionava à morte repentina de pacientes. E quanto a mim? Paralaxe. Algo havia mudado e, a despeito do fato de que mais e mais evidências surgiam para incriminar Emily Ryan, eu começava a concordar com elas. Minha intuição dizia que Emily não era uma assassina.
O sistema de segurança da penitenciária do condado Middlesex, nos últimos pavimentos de Cambridge Courthouse, tornava-se cada vez mais rigoroso — agora eram necessários quase quarenta minutos para passar pelo procedimento de revista. Confiscaram minha valise e até meus Tic Tacs. Ao menos, deixaram-me levar um bloco de papéis e uma caneta.
Numa sala de interrogatório, Emily aguardava em pé, olhando pela janela gradeada. Parecia perdida vestindo o macacão cinzento com os dizeres "PENITENCIARIA DE MIDDLESEX" nas costas do traje. O rabo-de-cavalo estava preso na altura da nuca. Mechas dos cabelos caíam ao redor do rosto. Eu sabia que ela não estava apreciando a vista espetacular do Boston Harbor com a ponte Leo-nard Zakim Bunker Hill em primeiro plano, um leque de cabos oblíquos de par a par como uma harpa futurista.
— Não acredito no que está acontecendo. Como podem pensar que matei Kyle?
Emily se sentou à mesa e pousou a cabeça sobre os braços cruzados. Sentei-me na cadeira diante dela.
— O serviço ambulatorial diz que a indicação que você recebeu não veio deles — contei.
Ela ergueu a cabeça.
— Mas uma mulher do ambulatório me telefonou. Naquela manhã. Ela me forneceu o nome, número de telefone, motivo para a indicação. Por que eu inventaria tudo isso? — Ela piscou algumas vezes. — Oh, já entendi. Acham que usei essa história como desculpa. Dessa maneira, pude sair na surdina para matar Kyle e depois voltar sem que ninguém me visse.
— Gloria disse que a viu sair.
— Gloria...? — Emily inclinou a cabeça, pensativa. — Claro que saí. Pensei que o paciente estivesse perdido. Voltei para dentro em seguida. — Houve uma pausa. — Ela não me viu voltar?
— Não viu, não.
— Oh, Deus — Emily disse. — Quem está fazendo isso comigo? Soube do bilhete que encontraram na mochila de Kyle? Em meu bloco de recados? Não faço idéia de onde veio aquilo, porque eu não escrevi nenhum bilhete para ele. Eu não mandava bilhetes a Kyle. Ligava para ele. Falava com ele. Era um amigo. Além disso, eu usava aquele papel impresso somente no trabalho.
Emily inclinou-se para trás, fitando a extensão no teto, da janela ao radiador. Em seguida, voltou a me encarar com olhos brilhantes e intensos.
— Sei o que você está pensando. Esta mulher está louca... quem ela pensa que engana?
— Na verdade, não é isso que estou pensando — eu disse. — O que penso é que alguém teve muito trabalho para incriminá-la.
O alívio tomou conta do rosto de Emily.
— Vai me ajudar? — Ela tocou meu braço. — Tem de me ajudar. Ê minha única esperança.
— Não sou, não — eu retruquei, puxando o braço e arrepen-dendo-me imediatamente. Odiava o jeito como Emily confiava em mim, impondo-me o papel de salvador, mas sabia ser exagero de minha parte. A situação era grave, e Emily precisava mesmo de muito auxílio.
— Talvez não sejam apenas dois assassinatos — ponderei. — É muito provável que pacientes não precisassem ter morrido tão cedo. Não sei se o dr. Philbrick foi o responsável por essas mortes.
— Não poderia. Se soubesse que algo assim estava acontecendo, ele teria soado o alarme.
— Sim, talvez seja isso. Estava pronto para soar o alarme. Por essa razão Philbrick me telefonou na noite em que morreu. Para me pedir que observasse o sr. O'Neill. Talvez ele não tivesse certeza absoluta.
— Então — Emily falava devagar, organizando os pensamentos —, talvez Kyle tenha morrido porque viu alguma coisa naquela manhã, quando me seguiu ao laboratório?
Mas Kyle dissera à polícia que nada vira. Podia ter mentido. Ou talvez...
— Espere um minuto. Quem mais estava no laboratório naquela manhã quando você chegou?
— Ninguém.
— Mas o dr. Shands não chamou a polícia?
— Jesus — Emily exclamou, atinando para o significante. — Por que Kyle não o viu estacionar na garagem e entrar?
— Ele poderia ter ido trabalhar a pé ou de táxi? Emily desdenhou a sugestão.
— Lembra-se de ter visto o carro de Shands quando chegou?
— Honestamente, não lembro.
Suponha que Shands já estivesse no laboratório quando Emily lá chegou. Suponha que Philbrick colecionava obituários porque as mortes dos pacientes pareceram suspeitas. Suponha que houvera uma série de acidentes, ou até assassinatos, que foram acobertados.
Parei. Tudo que existia era uma rede de suposições. O que precisávamos era de provas, não conjecturas.
— Se tudo está relacionado a encobrir mortes de pacientes, então, devemos retroceder e nos perguntar quem tinha acesso a esses pacientes.
— Qualquer um do laboratório.
A contaminação criminosa poderia ter sido realizada de várias maneiras diferentes num sistema tão restrito. A bactéria poderia ser acrescentada ao agente contrastante que Shands injetava, ou no sedativo administrado anteriormente para acalmar os pacientes. Até mesmo as caixas de Cimvicor ou placebo entregues aos pacientes em estudo poderiam ter desencadeado o problema.
Emily refletiu por um momento.
— Idosos que sofrem de demência morrem. No mesmo instante, qualquer um pensaria "Que morte abençoada". Mas não pode afirmar que o dr. Shands ou a dra. Pullaski tenham algo a ver com isso, pois não se trata de compaixão.
Tive de concordar. Mas fiquei surpreso ante a clareza da obser- vação de Emily — até então, ela só falara de Shands em termos gloriosos. Talvez a prisão estivesse eliminando os óculos cor-de- rosa. Ou talvez ela tivesse enfim percebido que sua própria sobre- vivência estava em xeque.
— Certa vez ele me contou seu grande sonho — Emily disse. — Mostrou-me como ambicionava pesquisar diferentes faixas etárias, homens e mulheres, em estágios distintos da doença. O fato é que ele faz o mesmo na vida... ou seja, coleta as pessoas de que precisa.
Eu havia feito uma observação semelhante. Shands tinha Leo-nard Philbrick, que soubera lidar com pacientes e conhecera mais acerca da tecnologia de IRM que qualquer outro. Ele tinha também a dra. Pullaski, administradora eficiente, disposta a angariar fundos e resolver inconvenientes.
— E Shands tinha você, certo? — eu disse com gentileza. — O que ele queria de você?
Emily pareceu corar.
— Não faço idéia. Ele veio até mim, de repente. Ofereceu-me uma posição no laboratório. Disse ter ouvido falar de minha tese de doutorado em cognição e demência. Fiquei tão feliz. — O rosto de Emily tornou-se mais avermelhado. — Lisonjeada. — Ela desviou o olhar. — Pensei que ele necessitasse de uma pesquisadora diligente. Mas há um milhão de nós lá fora que ele poderia ter escolhido. Por que eu?
Emily moveu-se na cadeira e puxou um fio solto do macacão.
— Desde o primeiro dia de trabalho ele dizia como eu era bonita, perfumada. Pedia-me para ficar até mais tarde e então trabalhar com ele. Sua paixão e determinação para encontrar a cura da demência com corpos de Lewy me contagiou. Fiquei com essa idéia na cabeça, essa fantasia de que eu seria capaz de ajudá-lo nessa empreitada. Que talvez pudéssemos virar sócios.
"Então, o pós-doutorado no Pearce apareceu e pensei que eu tinha morrido e ido para o céu. De súbito, vi-me diante de duas oportunidades fantásticas. E conseguiria dinheiro suficiente para comprar roupas melhores. Podia finalmente bancar um financiamento do carro tão sonhado. Estava eufórica.
"Após algumas semanas, ele começou a colocar a mão onde não devia. Tentei dizer-lhe educadamente que não estava interessada. Não daquele jeito, Quando não funcionou, fui mais direta."
— Você deve tê-lo deixado em choque — comentei. Emily sorriu. — Ele parou de molestá-la?
— Tornou-se mais sutil. Foi como se iniciasse uma campanha para me conquistar. Houve presentes e gentilezas. Subornos, na verdade. Então, ele se sentiu no direito de pedir algo em troca. Estou certa de que o dr. Shands pensou que, cedo ou tarde, eu cederia.
— O que a dra. Pullaski fez ao saber do seu relacionamento com o dr. Shands?
— Creio que ela me rotulou, como se eu fosse uma espécie de prostituta. Nada do que eu dizia fazia diferença. Deixou claro que eu não era a primeira e nem seria a última. Acredito que ela pensou que estávamos dormindo juntos.
"Kyle queria que eu me demitisse. Devia tê-lo escutado. Mas acho que, de certa maneira, o dr. Shands me seduziu mesmo. Mais do que tudo, eu queria trabalhar no laboratório, ajudar o grande médico em sua pesquisa. Fiquei muito empolgada quando ele me deu crédito em seu artigo. E eu merecia. Escrevi a maior parte. Porém, todos ficaram chocados no laboratório."
— Ele é um gênio, sabe. Seu trabalho é brilhante — continuou. — Os pacientes o vêem como o grande homem cujo trabalho os salvará. Se houver alguma possibilidade de alguém estar matando os pacientes dele, algo tem de ser feito a respeito.
Interessante o modo como ela colocava a questão: alguém estar matando os pacientes dele. O suspeito mais óbvio seria o próprio Shands. Mas por que mataria os próprios pacientes? Não eram mais valiosos vivos, como sujeitos de pesquisa para testar o protocolo experimental? A única função de um cadáver era confirmar o diagnóstico.
— Nesse momento, a polícia optou pelo caminho mais curto e a está acusando de assassinato. Se pudermos convencê-los de que não se trata de um único assassinato, ou de dois, mas de um padrão de mortes suspeitas, serão obrigados a investigar. Tenho a lista de pacientes cujos obituários e comunicados de falecimento você encontrou. Queremos mostrar que cada um deles morreu após a última consulta no laboratório de IRM. Como podemos obter isso?
— É fácil. A informação está no computador, é claro. Consta também nos prontuários dos pacientes. Esses estão na sala de registros.
— Mostre-me onde — pedi, entregando caneta e papel a Emily. Ela desenhou um mapa do centro de imagem. Havia o saguão
de entrada, a área de espera externa, a recepção no eixo central. Fora isso, ela rascunhou um corredor com a sala de Shands e o laboratório de neuropatologia. Então, traçou o corredor que levava à sala do êscaner. Num dos lados estava a despensa. Do outro lado, ela desenhou mais duas salas. Dentro de uma, escreveu PRIVATIVO, e na outra, REGISTROS.
— Aqui. Eles mantêm as salas trancadas. Há um cartão magnético com a combinação da tranca. — Ela escreveu uma série de seis números: 0-1-0-4-5-5. — É fácil de lembrar. É a data do aniversário do dr. Shands. — Primeiro de abril, o Dia da Mentira, 1955. Eu não me esqueceria.
Emily tirou o elástico do rabo-de-cavalo, ajeitou os cabelos com os dedos e prendeu-os novamente; dessa vez o rabo ficou mais alto. Era um pequeno detalhe, mas revelava a mudança em sua aparência.
— É UM TREMENDO Risco — Annie comentou, quando, em seu escritório, contei-lhe meu plano naquela tarde.
A sala de Annie era estritamente funcional — uma mesa de metal robusta, quatro arquivos e algumas cadeiras; tudo muito pequeno em comparação ao teto alto e à janela gigantesca.
— Você pode ir até lá com o pretexto de pedir a Shands que lhe mostre sua IRM novamente. Mas iria deixá-lo sozinho tempo suficiente para bisbilhotar e encontrar a informação de que necessitamos em algum arquivo? — Ela pareceu responder: Plano fadado ao fracasso.
— E por que ele o deixaria voltar a essa altura? Não desejaria mantê-lo o mais longe possível do local, especialmente se está tentando esconder um série de acidentes ou assassinatos?
Abri minha boca, e a fechei em seguida. Estava prestes a dizer a Annie por que Shands adoraria me rever — ele acreditava que eu tinha demência com corpos de Lewy e queria me inscrever em seu estudo.
— Peter, o que você está me escondendo? — ela perguntou, com aquele olhar de raio X.
— Eu não lhe contei antes porque pensei que a doença de tio Jack a estivesse sobrecarregando demais. Shands viu alguma coisa em minha IRM. Quer que eu participe de seu estudo de pesquisa. Acha que tenho demência com corpos de Lewy.
Annie me encarou, boquiaberta.
— Você só tem quarenta anos. Como diabos...?
— Ele diz que os sinais aparecem antes de os sintomas se manifestarem. Acredita que estou na linha limítrofe, abaixo da área de normalidade e acima da área de demência com corpos de Lewy.
— Abaixo... acima — Annie murmurou. — Que panacéia. Em outras palavras, ele não tem certeza.
— Pode ser hereditário. Meu pai e tio tiveram demência. Annie fitou-me nos olhos e, então, tocou meu rosto.
— Está levando isso a sério, não? Peter, esse homem dedica a vida a essa doença. Procura pessoas para usar em sua pesquisa. Ele quer confirmar o diagnóstico. Se me perguntar, acho que Shands deturpa tudo que vê.
Aquela dificilmente era a reação que eu esperava. Pegou-me de surpresa como um golpe de ar vindo de uma janela aberta.
— E não ouse começar a viver como se fosse adoecer a qualquer momento — Annie ordenou. Então, um sorriso matreiro surgiu em seu rosto. — Mas não é isso que dirá ao dr. Shands. Dê a ele o que deseja. Você está muito preocupado. Fará qualquer coisa para prevenir o início dessa terrível doença. Mal pode esperar para participar do estudo. Está interessado no cérebro, portanto, é claro que deseja ver novamente sua ressonância.
O semblante de Annie tornou-se sombrio.
— Prometa-me que não o deixará fazer mais uma IRM. Ou dar-lhe uma injeção, ou comprimido... qualquer coisa. Porque, se permitir, vou matá-lo.
Ergui três dedos.
— Palavra de escoteiro.
— Shands não tem a menor capacidade de ater-se a uma coisa só por muito tempo — ela argumentou. — Esse detalhe trabalhará a nosso favor. Agüente firme e namore aquele escaneamento. Aposto o que você quiser. Após cinco minutos, ele o deixará sozinho.
— Até agora tudo bem. E depois? Você sabe como bisbilhotar, eu não. Tudo que sei fazer é investigar a cabeça das pessoas.
— Primeira coisa, não se deixe pegar.
— Vou tentar.
Annie colocou a mão em meu braço.
— E sério, Peter. Tome cuidado. Duas pessoas já foram mortas e talvez mais umas trinta. A cada dia, pacientes saem de lá muito mais doentes do que entraram.
— Estou feliz porque resolveu participar do estudo — Shands me disse.
Ele marcara um encontro comigo logo pela manhã. Assinei o formulário de consentimento e, em seguida, ele me entregou uma caixa de comprimidos com instruções de como ministrá-los.
— Você é nosso sujeito mais jovem com a forma hereditária da doença. Irá nos ajudar a descobrir outro território. — Shands devia mesmo acreditar que isso me alegraria.
Em meu bolso, eu tinha o mapa que Emily desenhara e a cópia xerox da tabela onde Annie listara os pacientes. Com as informações que adquirimos através das entrevistas com as famílias e dos atestados de óbito, tornava-se cada vez mais evidente que pacientes haviam sucumbido a doenças respiratórias, gripe ou infec-ção bacteriana. Eu precisaria de uma estatística ou do Cray T3E de Shands para determinar que proporção era típica para aquele tipo de população. Lembrei-me de que o objetivo principal para estar ali era descobrir quando cada um dos pacientes tivera sua última consulta no laboratório.
— Como está a dra. Ryan? — Shands perguntou, como se houvesse desenvolvido uma dor de cabeça repentina. — Que desperdício. Uma jovem com um futuro brilhante pela frente.
— Acha que é culpada dos dois assassinatos? — indaguei. — Você a conhecia bem.
— Bem, eu... — Shands gaguejou. — Eu não a conhecia tão bem assim.
— Pensei que ela tivesse escrito um artigo para você.
— A dra. Ryan me auxiliou — ele disse, perturbado. — Eu lhe dei o crédito. Faço isso com freqüência. Ajudo jovens que estão começando.
— Orientar pode ser muito satisfatório — comentei. — Na verdade, estou me sentindo um pouco estudante outra vez. Há| tanto a aprender acerca da imagem por ressonância magnética. — Tentei parecer sincero. — Espero que não se importe de me permitir olhar o escaneamento de meu cérebro mais uma vez.
— É um prazer conversar com alguém que aprecia a ciência que há por trás da ressonância magnética. Lembro-me da primeira vez que vi a minha. Foi praticamente uma experiência extra-sensorial. — Ele riu da própria piada. Consegui sorrir um pouco..
Eu o segui até a sala de controle. Nós nos sentamos diante, eu supus, do computador de Philbrick. Logo Shands abriu uma janela na tela e meu cérebro passou a flutuar.
— Vamos melhorar a imagem — ele disse, maximizando a janela.
Acionou o escaneamento em baixa velocidade para me mostrar o que considerava os indicadores cruciais. Fingi interesse, mas tentei não prestar muita atenção. Cabia a mim escolher ver ou não o que Shands enxergava. Preferi não ver.
— É tão interessante — comentei quando ele finalizou a exposição. — Será que posso ver tudo mais uma vez?
Shands ofereceu-me um sorriso indulgente.
— Claro. Fique à vontade.
Como Annie previra, ele permaneceu uns cinco minutos mais e logo em seguida desculpou-se.
— Divirta-se. Vá até minha sala quando tiver terminado. Enfim, eu estava sozinho. Abri um pouco a porta para espiar o
corredor. Tudo quieto. Ninguém à vista. Dei mais uma olhada no mapa que Emily fizera, lembrei a combinação de números da porta da sala de registros e me esgueirei pelo corredor.
Espiei a área central através das janelas das portas de incêndio. A recepcionista conversava com um homem de jaleco branco, sentado atrás do balcão. Esperei até que ela se fosse e o homem retornasse a seu computador.
Eu tinha acabado de empurrar a porta e aproximar-me da sala de registros quando escutei vozes. Entrei na despensa um instante antes de Shands e a dra. Pullaski saírem da sala marcada com a palavra PRIVATIVO. Falavam em voz baixa, enquanto Pullaski abria a porta da sala de registros ao lado e entrava.
Senti meu coração disparar no peito; um minuto antes e eu teria sido descoberto na sala de registros, vasculhando os arquivos. Depois que Shands voltou à sala privativa, saí do vão entre dois tanques de hélio. Precisava de um lugar melhor para esperar a dra. Pullaski liberar a sala de registros.
Então, Shands apareceu no corredor e, sem olhar para mim do outro lado, dirigiu-se à própria sala. Corri e consegui segurar a porta antes que esta batesse. Entrei na sala.
Emily a chamara de "Quarto do Barba Azul". Eu não sabia o que esperava encontrar, mas nada me preparou para aquilo. A sala pequena, não mais que três metros quadrados, estava, no mínimo, dez graus mais fria do que o corredor. Cheirava a for-mol e um som constante preenchia o ar, como se um ninho de pássaros ali estivesse.
Numa das paredes, notei uma fileira de freezers metálicos. A porta de um deles marcava "4°C" . Não tão frio quanto o hélio líquido que utilizavam para resfriar os magnetos, mas era a temperatura exata para começar a congelar o tecido vivo em questão de segundos.
Abri a unidade e esta soltou uma nuvem de vapor. Quando clareou, pude ver metade do interior do freezer repleta de sacos fechados. O plástico transparente deixava à mostra as veias avermelhadas em toda a superfície de um cérebro fresco. Então, aquele era o banco de cérebros particular de Shands. Fiz uma rápida contagem. Havia cerca de cinqüenta amostras coletadas. Fechei o freezer.
Várias caixas vazias da FedEx, rotuladas com avisos para manter o conteúdo resfriado, estavam no chão. Eram idênticas à que Shands encontrara quando eu fora ao laboratório pela primeira vez. Que prosaico enviar cérebros via FedEx!
Na parede adjacente, encontrei a fonte do som constante. Havia quatro prateleiras de provetas de vidro, cada uma contendo a metade de um cérebro flutuando numa solução. Cada hemisfério achava-se empalado com eletrodos, como termômetros de carne. Os fios estavam conectados a uma pequena caixa preta — um medidor eletrônico cujas agulhas moviam-se conforme o som.
Cada proveta possuía uma data, a mais recente tinha poucos dias. A solução em algumas delas era azul e límpida. Em outras, o líquido tornara-se turvo. O cérebro mais antigo, de quase um ano, estava suspenso numa solução marrom semi-opaca. A maior parte do tecido cerebral parecia ter-se desintegrado.
Fiquei pasmo. A pesquisa de Shands não se restringia a triagem de drogas, IRMs periódicas e post-mortem. Pelo que parecia, ele tentava medir diretamente a permeabilidade da membrana celular.
O que quer que estivesse fazendo, causava a desintegração acelerada do tecido cerebral. Lembrei o comentário do dr. Rofstein: Os cérebros são perdidos em velocidade alarmante.
Um banco de cérebros regrado nunca teria permitido tal pesquisa. Os cérebros eram o recurso mais precioso deles. Camadas de tecido cerebral eram racionadas para pesquisadores qualificados. Por isso, Shands havia rompido com o Banco de Cérebros de Cambridge. E, por esse motivo, mantinha escondido aquele banco de cérebros.
Escutei um ruído ao lado. Logo depois dos freezers havia uma porta que dava acesso à sala de registros. Encostei meu ouvido nela. Escutei passos e uma gaveta fechando-se. Aparentemente, a dra. Pullaski ainda estava lá. Esperava que ela terminasse logo — Shands retornaria a qualquer momento para ver o que eu fazia e, quando não me encontrasse, começaria a procurar. Além disso, estava ficando com muito frio.
Na parede havia um enorme quadro branco com linhas e colunas preenchidas com caneta verde. No topo, as colunas foram nomeadas de "<50", "50 a 60", "60 a 70", "70 a 80" e, finalmente, ">80". Escalas de faixas etárias, presumi. Na lateral, as duas linhas indicavam MASCULINO e FEMININO.
A tabela possuía nomes. No meio da grade, na área de setenta a oitenta anos combinada ao sexo masculino, estava o nome de Frank Mosticcio. Aqueles eram pacientes e o quadro se referia ao grande plano que Emily me contara, o que Shands usava para atingir sua pesquisa. Era só mais um exemplo da vaidade excessiva do homem — a prática padrão nos laboratórios de pesquisa era identificar pacientes através de números, não nomes. Mas não se tratava de um banco de cérebros comum. Nessa sala restrita achava-se um santuário particular e, entre suas paredes, ele poderia fazer o que bem desejasse.
Pensei ter ouvido uma porta bater. Encostei a orelha novamente na porta. Não escutei nada. Teria ela saído? Eu precisaria de um olho mágico.
Um som pesado de metal ecoou, trancando a porta. Empurrei-a, mas a barra resistiu. Um pequeno lubrificante teria resolvido o problema.
Tirei meu lenço do bolso e o soquei no final da tranca, então pressionei com toda a força. Devagar e relutante, a tranca cedeu. Girei a maçaneta e empurrei a porta. Nenhum barulho. Abri mais a porta até divisar uma sala longa e estreita, repleta de arquivos. Nenhum sinal da dra. Pullaski.
Botei uma lixeira no vão da porta e entrei na sala de registros. Encontrei dois arquivos rotulados de PRONTUÁRIOS DE PACIENTES e abri um deles. Havia pastas etiquetadas em ordem alfabética da frente ao fundo da gaveta. Obter a informação que eu queria seria moleza.
Trabalhei em minha lista, começando com Anna Abeis. A última consulta havia ocorrido quatro dias antes de sua morte. Poderia ser apenas uma coincidência. Porém, senti minha pulsação acelerar.
Verifiquei o segundo nome. A morte do paciente fora três dias depois de uma IRM. Anotei a informação e segui em frente. O próximo paciente, uma mulher, também falecera poucos dias após visitar o laboratório.
Enquanto eu abria arquivo por arquivo, sentia a indignação aumentar. Como Shands se atrevia a perverter uma pesquisa médica daquela maneira? Tirando vantagem de pessoas vulneráveis. Isso sem mencionar que a pesquisa, ao se tornar pública, seria considerada oficial. Assim que isso acontecesse, nem todas as pessoas doariam seus órgãos.
Eu estava no penúltimo nome quando gelei, alerta, pensando ter ouvido um barulho no corredor. Era difícil discernir ruídos com o som dos freezers e dos medidores elétricos da outra sala. Fechei a gaveta e guardei a lista no bolso. Já tinha dados suficientes, e não havia por que correr riscos desnecessários.
Voltei ao banco de cérebros. A tranca estava emperrada. Eu me digladiava com ela quando notei uma caixa ao pé do freezer a meu lado. Puxei-a com o pé. Parecia uma caixa de metal. A fechadura havia sido arrombada e a tampa somente apoiava-se à base. Puxei-a com a ponta do pé.
Havia uma estranha mistura de objetos. Um lenço usado com marcas de batom. Uma calcinha. Abaixei-me para olhar melhor. Divisei o que parecia ser um chiclete mastigado. Havia também alguns papéis amarelos — "Lapsos Freudianos", como os que Emily usava. Peguei um deles. "Obrigada pela ajuda!", estava escrito e no final havia um rosto sorridente e a letra E. Outro dizia: "Volto às 2h30. Emily." Bilhetes sem conteúdo deixados por uma colega de trabalho. Não teria sido difícil transformar um desses em "Vejo você às 6h. Emily", acrescentar dois Xs para dar um ar de intimidade, depois jogá-lo na mochila de Kyle e largá-la no chão para a polícia encontrá-la.
No fundo da caixa notei uma pequena pilha de revistas — todas de edições antigas da Playboy. Todas do mês de outubro, aliás. A de cima anunciava "Garotas Nota Dez". Outra proclamava "Mulheres da Liga Ivy". Essa era de três anos atrás. Abri a edição e folheei, sabendo o que encontraria. Evidentemente, a página fora arrancada. Eu tinha certeza de que a página rasgada continha a foto de Emily Ryan, a mesma que acabara na gaveta de Philbrick. E eu sabia sem cheirá-lo que o chiclete era de tutti-frutti. Não foi surpresa achar mais dois corações de tecido no fundo da gaveta. Aquele que escondera a caixa era o perseguidor de Emily. Ela dissera que somente os veteranos da equipe tinham acesso àquela sala. Philbrick qualificava-se como veterano da equipe. Podia pertencer a ele.
Comecei a guardar os objetos na caixa, tentando lembrar a ordem em que os tirara. Coloquei a tampa e empurrei a caixa até o local onde a encontrara. Por que a fechadura estava quebrada e a tampa, danificada? Não havia tempo para pensar a respeito. Eu já tinha passado tempo demais naquele lugar.
Escutei passos na porta do corredor. Passos. Tornaram-se mais altos. Prendi a respiração. Pude sentir a camisa colar em minhas costas por causa do suor. Então, silêncio, como se alguém tivesse parado em frente à porta do lado de fora. Então, os passos continuaram.
Eu precisava voltar à sala de controle. Esperei mais alguns momentos só para ter certeza que a pessoa havia ido embora mesmo. Então, saí.
Aguardei, fitando o quadro branco com seu "plano de mestre". O que não tinha notado antes foram as marcas vermelhas ao lado de alguns nomes. O nome de Frank Mosticcio tinha um visto vermelho. Tirei a lista de Philbrick do bolso. Era como se todos os nomes dos pacientes falecidos em nossa lista tivessem marcas vermelhas. Mas também havia outros nomes no quadro, nomes que não estavam em minha lista e que também possuíam vistos vermelhos.
No meio do quadro estava o de JOHN O'NEILL — o tio de Annie. Ao lado dele, um visto vermelho fora apagado. Talvez os vistos significassem "falecimento, cérebro coletado". E talvez Philbrick somente colecionasse os nomes de pacientes que haviam sido "assistidos".
Levei meu olhar à coluna "<50". Lá estava eu, PETER ZAK. Ainda não tinha sido marcado.
Foi como se água gelada escorresse pela minha espinha quando percebi o que eu olhava. Aquilo era mais que um grande plano. Era uma lista de compras. Shands necessitava de cérebros para cada célula da matriz. Cada nome que não possuía o visto vermelho, incluindo o meu, estava condenado à morte. Havia pessoas inocentes agendadas para consultas no laboratório. Talvez não houvesse uma próxima consulta ou a seguinte. Eu sabia estar forçando a barra, mas precisava copiar os nomes que não haviam sido marcados. As famílias tinham de ser avisadas. Peguei o papel e uma caneta de meu bolso e comecei a escrever.
Não escutei a porta abrir-se atrás de mim. Tudo que vi de relance foi um jaleco branco, quando uma dor explodiu em minha nuca. A última coisa de que me lembro foi de ter batido o queixo na ponta da mesa ao cair.
— ESTÁ TUDO BEM, dr. Zak? — Em meio à visão turva, o rosto de Estelle Pullaski flutuava em minha direção.
Sentia uma dor de cabeça terrível; meus lábios e nariz pareciam esmigalhados. Alguma coisa me cobria a face. Tentei retirá-la, mas a dra. Pullaski segurou minha mão.
— Não está respirando direito — ela disse. — Inspire profundamente. Isso vai ajudar.
Obriguei-me a olhar ao redor.
— Ele está consciente? — Era a voz de Shands. Estava em algum lugar atrás de mim.
— Está despertando — a dra. Pullaski informou, pressionando os dedos em meu pulso. — Tente relaxar. — A boca dela movia-se conforme contava. — Muito melhor — disse, suavemente. Com gentileza, tirou a máscara de oxigênio de meu rosto.
Ela e Shands me ajudaram a sentar. Rápido demais. Minha cabeça parecia carregar vinte quilos. Toquei meu rosto. O lábio e o nariz estavam inchados, mas pelo menos os dentes estavam intatos.
Tanto a dra. Pullaski quanto Shands usavam um jaleco branco. O rapaz, que eu vira trabalhando na área principal, apareceu para perguntar se queriam que ele chamasse uma ambulância. Ele também vestia um jaleco branco.
— Não creio que será necessário — a dra. Pullaski disse ao funcionário.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Nós o encontramos inconsciente no corredor — ela contou.
No corredor? Lembrava-me de estar no banco de cérebros, escutar alguém atrás de mim e depois cair. Não me lembrava de ter saldo ao corredor e não fazia idéia de como fora parar naquela maca ou na sala de controle.
— Pensamos que tivesse sofrido uma convulsão — a dra. Pullaski disse. — Não tem epilepsia ou algo semelhante?
Era tentador responder: "Oh, Deus, esqueci de mencionar. Tenho mesmo um distúrbio convulsivo. Por isso, devo ter perdido a consciência no corredor." Mas a dra. Pullaski não esperava uma resposta. Ela me lançava um sorriso especulativo.
A máscara estava na mão dela. Segui o tubo da máscara até o tanque de oxigênio ao qual estava ligado. O tanque possuía um rótulo amarelo e, em letras pretas, dizia NÃO-FERROSO, e logo abaixo SEGURO EM RM.
Atarraxado à boca do tanque estava um nebulizador, um pequeno dispositivo que administra doses de medicamento a cada inalação. De repente, minha boca ficou seca. Percebi que era assim que faziam. Simplesmente inseriam uma pequena bactéria no nebulizador e voilà. Bastava combiná-la com oxigênio num belo corpo úmido e você tinha uma receita para a morte.
Imaginei a minúscula bactéria verde multiplicando-se como louca em meus pulmões, formando uma fila e marchando ao longo dos tubos bronquiais, descendo ao alvéolo onde o sangue recebe ar e onde, a propósito, a bactéria pode pegar uma carona na corrente sangüínea.
Virei-me para ver o relógio na parede. Meu palpite era de que permanecera inconsciente por cerca de vinte minutos. Teria eu inalado veneno durante todo esse tempo? A dra. Pullaski já estava retirando o tanque.
Mesmo que eu adoecesse, não poderia provar nada. Eu queria pular da maca e agarrar o nebulizador. Engoli a fúria gigantesca que ameaçava ferver em mim. Shands me observava, ansioso. Eu tinha de sair dali e correr ao hospital, onde pediria a Kwan que me prescrevesse antibióticos.
— Nossa — eu disse, passando a mão nos cabelos. — Não sei o que aconteceu. Não me lembro de nada. Devo ter batido a cabeça. — Cuidadoso, tateei o galo que se formara no topo da cabeça. Não mencionei que aquela lesão significava uma agressão — seria impossível eu ter caído de cabeça no chão.
— Creio que fui procurar você após terminar de ver IRM. Esse lugar é confuso, tem tantos corredores.
Desci da maca.
— Estou bem — disse cambaleando, enquanto tentava dar um passo. Shands aproximou-se para me ajudar. — Tudo bem. — Respirei fundo, lutando contra a náusea quando o mundo ameaçou enegrecer novamente. A respiração profunda daria mais abrigo à bactéria. Eu tinha de ir até o Pearce.
Somente quando cheguei a meu carro e comecei a dirigir é que me lembrei de verificar os bolsos. Ainda tinha o mapa de Emily, mas o papel com a lista de Philbrick e toda a informação que eu copiara dos arquivos e do quadro branco havia sumido.
Eu estava deitado num leito da sala de observação. Observava Kwan amarrar um torniquete em meu braço, procurar uma veia e então inserir a agulha. Lentamente, ele retirou uma seringa repleta de sangue.
— Por que estou fazendo isso? — Kwan perguntou, olhando-me como se eu fosse um melão verde. Resmungando, aplicou em mim uma dose saudável de amoxicilina e prescreveu mais algumas para eu tomar oralmente na semana seguinte.
— Não parece doente. Nem sequer me dará tempo de receber o resultado do exame de sangue — ele se queixou. — Desde quando é médico?
— Ai — reclamei, quando tirou a agulha de meu braço. —Tem de comparar meu exame de sangue com o que o sr. O'Neill fez. Aposto qualquer coisa como trata-se da mesma bactéria.
— Você não parece doente. Esquisito, sem dúvida. Doente, não.
— Eu ficaria doente em cerca de vinte e quatro horas.
— Está dizendo que o laboratório de IRM adoece os próprios pacientes?
— Com o intuito de matá-los.
— Para um cientista louco se apossar dos cérebros? — Kwan parecia cético, mas não totalmente incrédulo. — Só não entendo por que alguém quereria seu cérebro. É óbvio que é de qualidade inferior.
— Eu gostaria de saber quem... — Fechei os olhos e tentei recordar o momento em que fui atingido. Mas não consegui combinar um rosto ao jaleco branco.
— Talvez queiram acrescentar seu cérebro à coleção de corpos de Lewy — Kwan brincou, mas, ao ver minha reação, chocou-se. — Querem mesmo? Bem, isso explicaria algumas coisas.
Tentei sorrir, mas não consegui. Ele pôs a mão em meu ombro.
— Desculpe-me, velho amigo, é difícil eliminar certos hábitos. Provavelmente, farei piadas em seu leito de morte... algo que está longe de acontecer! Peter, se estivesse enlouquecendo, eu seria o primeiro a adverti-lo. E, acredite-me, aguardo isso ansiosamente.
— Obrigado. Agradeço o voto de confiança.
Gloria entrou com um pacote de gelo. Eu não sabia se o aplicava no rosto ou na cabeça.
— O dr. Shands ligou — Gloria disse. — Duas vezes. Parece muito preocupado com sua saúde. Levou uma eternidade para me explicar que você caiu acidentalmente. — Ela me entregou um pedaço de papel. — Pediu que você telefonasse para esse número.
Kwan fez menção de sair.
— Ei, por quanto tempo tenho de ficar deitado aqui? — perguntei.
Ele se virou.
— Ora, pelo que sei, não precisa ficar deitado! Só saberei de alguma coisa quando tiver seu resultado do exame de sangue em mãos. Levarei seu fluido precioso até o laboratório e os atormentarei até finalizarem. Mas não posso tirar coelhos de cartolas. — Ele marchou até a porta. — Se estiver doente, vou me certificar disso como médico.
Enquanto esperava deitado, mentalmente me repreendi por sair do laboratório sem a lista de Philbrick. Quase pude sentir o tique-taque de uma bomba a meu lado. Havia pacientes cujos nomes cedo ou tarde teriam marcas vermelhas na matriz de Shands, e eu não tinha como avisá-los.
— Preciso sair daqui — disse a Kwan quando ele voltou meia hora depois.
— Esqueça. Hemophilus influenza, cocos e bacilos gram negativos — Kwan anunciou, austero.
— É um encanto ou uma maldição? — perguntei.
— O último. Trata-se da mesma bactéria que encontramos no sr. O'Neill... um tipo virulento de bactéria infecciosa que entra na corrente sangüínea e se espalha rapidamente. Pode causar pneumonia. Talvez falência dos rins ou pericardite.
— Sinto-me bem — eu disse. — Só minha cabeça dói.
— Claro que se sente bem. E pretendo mantê-lo assim. Vai ficar aqui e repousar nem que eu tenha de amarrá-lo. É sério. Você precisa dar tempo para a medicação surtir efeito.
Eu me ocupava contando os azulejos do teto quando Annie apareceu à soleira da porta. Em meu estado lastimável, ela pareceu, para mim, um anjo naquele jeans que emoldurava as pernas esguias e o traseiro delicioso. Ela no mínimo reconheceu meu olhar, por que comentou:
— Pensei que estivesse doente.
— Como soube?
— Tenho meus espiões. Disseram que precisa de descanso. Estou aqui para reforçar a indolência. Vim visitar tio Jack. O que aconteceu?
Quando terminei de contar, Annie exalou o ar devagar.
— Então, Emily Ryan estava mesmo sendo perseguida. E eles estão matando os próprios pacientes.
— Em nome da pesquisa.
— Deveríamos chamar a polícia. Com as provas que conseguiu... Eu me contorci.
— Não conseguiu as provas?
— Consegui. Mas, quando acordei, não estava mais com a lista.
— Merda — Annie praguejou. — Ao menos, temos uma cópia. Mas a polícia quererá mais que isso. Acha que Shands é o dr. Morte?
— Foi a dra. Pullaski que administrou o oxigênio.
— Talvez ela não soubesse o que havia no nebulizador. Lembrei-me do olhar da dra. Pullaski enquanto eu respirara o oxigênio. Tinha certeza de que ela sabia. Gloria apareceu à porta.
— É o dr. Shands outra vez. — Ofereceu-me o telefone. Peguei-o e tapei o bocal.
— Ele tem ligado para saber se estou bem. Acho que receiam que eu os processe antes de morrer.
Annie não hesitou.
— Pergunte se ele pode encontrá-lo em algum lugar. Hoje à tarde. Um local em que haja pessoas. Se não obtivemos provas contundentes, você precisa dissuadi-lo a se delatar.
— O que digo a ele?
— Invente um pretexto para encontrá-lo. Então, quando o vir, seja direto. Exponha o caso e veja como ele reage.
— Alô? — eu disse ao telefone, tentando parecer fraco. Shands perguntou-me como eu estava. Apenas uma contusão
na cabeça, respondi.
— Lamento muito — ele disse. — Espero que entenda. Acidentes acontecem.
— Claro que sim. É inevitável. O índice de acidentes no Pear-ce é minúsculo. — Limpei a garganta, inventando o assunto para prosseguir. — Eu conversava com nosso diretor de segurança e contei-lhe o que aconteceu. Ele perguntou se você não queria ver uma cópia de nosso livro de registros. Não acredito em processos judiciais... — Fiz uma pausa, esperando insinuar que a oferta seguinte seria mais coerciva. —, mas me sentiria melhor se me permitisse mostrar o que aprendemos em décadas de experiência.
— Suponho que sim. — Houve um momento de silêncio. — Tem certeza de que está disposto?
— Estarei melhor no final da tarde — assegurei-lhe. Não precisei de mais argumentos para convencê-lo.
ESTAVA SENTADO a uma mesa no Stravos Diner, à espera de Shands, e saboreava uma das excelentes azeitonas. A ardência do sal lembrou-me de meu lábio cortado. O lugar sempre estava vazio àquela hora do dia. Eu não podia ver Annie, mas sabia que ela escutava minha respiração, sentada no final do balcão, que percorria o estabelecimento de um extremo a outro. Eu carregava um aparelho de escuta.
Jimmy, o proprietário, limpava a grelha. Quando chegamos, ele correra de um lado a outro, fazendo barulho a fim de contribuir para a farsa. Com meu rosto inchado, eu parecia ter brigado com uma porta rebelde. Jimmy ignorava Annie só porque nós havíamos pedido que o fizesse. Ela prendera os cabelos, colocara um boné de beisebol e abrira um jornal diante do rosto para que Shands, caso se aproximasse daquela extremidade do balcão, não a reconhecesse.
Shands chegou, ainda usando jaleco. Estava um trapo; os cabelos não tinham a perfeição grega de sempre. Quando me avistou, o semblante ficou um pouco mais pesaroso. Ele se aproximou.
— Sinto-me péssimo — Shands disse, encarando-me nos olhos. Era um ator impressionante.
Ele se sentou e pediu café. Pedi um refrigerante. Entreguei-lhe uma cópia do manual de segurança do Pearce. Shands o abriu e seus olhos brilharam ante a tabela de conteúdos.
— Também somos muito cautelosos — ele argumentou. — E temos nosso próprio procedimento de segurança.
— Sei disso. É a respeito desse assunto que eu queria conversar com você. Lembra-se do paciente John O'Neill, que levei ao laboratório para uma IRM?
— Claro que me lembro dele. E uma pena que a família o tenha retirado do estudo.
— Eu aposto que ficou decepcionado.
Shands piscou algumas vezes por trás dos óculos de armação caríssima. De perto, os dentes pareciam perfeitos, como se estivessem encapados.
— Fiquei, sim. Mas devo dizer que não estou gostando de seu tom.
— O sr. 0'Neill quase morreu dois dias atrás, depois da IRM. Você acharia normal, mas não é. Vários outros pacientes submetidos a seu protocolo de tratamento morreram poucos dias após uma IRM.
— Nós lidamos com pacientes idosos e doentes. A morte é...
— Inevitável? — completei. — Talvez. Por que não esperar que morram naturalmente?
— O que está insinuando? — Shands me encarou, confiante.
— Frank Mosticcio?
— Ele...
— Anna Abeis? — Eu relacionei o nome de mais meia dúzia de pacientes. Coloquei a cópia da lista de Annie sobre a mesa. — Todos esses pacientes morreram ou de pneumonia, ou de infecção pulmonar, ou...
— Idosos, em geral, morrem de doenças desse tipo — ele alegou, estreitando os olhos.
— O dr. Philbrick colecionava obituários de todos esses pacientes. E ele me telefonou na noite seguinte ao exame do sr. O'Neill. Não cheguei a falar com ele, mas desconfio que quisesse me alertar. Philbrick nunca teve a chance porque, como deve lembrar-se, foi assassinado.
— Mas isso é absurdo — Shands disse.
— E quanto a Kyle?
Agora Shands me olhava como se o nome não tivesse registro.
— O homem que Emily supostamente atropelou? Acho que foi morto porque viu alguma coisa... ou porque teria visto algo e não viu. Kyle seguiu Emily naquela manhã e, enquanto a esperava na garagem, o dr. Philbrick foi assassinado. Ele viu Emily chegar. Viu a polícia. E me viu também.
Jimmy trouxe o café de Shands e meu refrigerante.
— Mas Kyle não viu você — eu disse. — Achei estranho porque quando cheguei você já estava no laboratório. — O silêncio do restaurante foi rompido pelo ruído do liqüidificador. — E não foi esse detalhe que tornou Kyle tão perigoso?
Eu esperava ver raiva nos olhos de alguém encurralado. Mas o que vi no semblante de Shands foi confusão. Seu maxilar soltou um pouco.
Ele empurrou o café.
— Tem idéia de quão horrenda é essa doença? — perguntou-me. — Os dados que coletamos são extraordinários. — O rosto tornou-se animado. — Estamos muito próximos a uma compreensão. Muito perto de uma prevenção. Tem idéia de quão doloroso é assistir à tortura cruel da pessoa que você ama? — Lágrimas de uma emoção verdadeira surgiram nos olhos dele. — Essa doença destrói, massacra o intelecto, dilacera a personalidade. — Shands engoliu o choro. — E tudo o que você pode fazer é assistir.
Nesse momento, eu percebi. A paixão pela pesquisa — Shands a havia adquirido da maneira mais difícil. Perdera alguém que ele muito amara para a demência com corpos de Lewy.
— Quantos anos tem? — perguntei.
— O quê?
— E quantos anos seu pai tinha quando começou a enlouquecer? Quando ele começou a mostrar os sintomas de demência? Essa é a cura que você tanto busca. É pessoal, não é? Sua esperança de sobrevivência. Quando examina o escaneamento de seu cérebro, o que vê, Shands? Quanto tempo acha que ainda tem?
Ele tirou os óculos e esfregou o canto dos olhos.
— Meu pai tinha apenas cinqüenta e nove anos quando começou a tornar-se esquecido. Seu irmão, meu tio, tinha sessenta e poucos. — Shands me olhou com dureza. Ergueu a mão e apontou o dedo para mim. — Creio que tenho alguns anos menos do que você. — Havia um pequeno tremor na mão dele ou eu enxergava o que queria ver?
— Vou durar tanto assim? — perguntei. — Ou vou adoecer como os outros pacientes? De repente, não me sentirei bem. Chegarei ao hospital a tempo ou esperarei, assumindo ser uma simples gripe? Então, quando me derem antibióticos, a infecção já estará avançada e nada poderá ser feito.
Botei minha palma sobre a lista de pacientes, todos eles, pessoas que tinham sido assassinadas para salvar Shands de seu destino infeliz. Empurrei a lista em sua direção.
— É um pesquisador. Existe a possibilidade, mesmo que remota, de essas mortes tão similares estarem relacionadas a uma consulta em seu laboratório?
— O que está sugerindo... — ele começou, com a voz ríspida. Pude notar a tomada de consciência. — Eu nunca, jamais, machucaria um de nossos pacientes de propósito.
Ele pegou a lista de nomes e olhou-a. Passou o dedo cuidadosamente no papel e, então, fitou o espaço.
— Não — murmurou. — Não pode ser... — Ele parou como se recobrasse forças. Levantou-se, de súbito, arrastando a cadeira sobre o linóleo. — Onde acho um telefone? Tenho de fazer uma ligação.
Olhei para ele, boquiaberto. O que estava acontecendo?
— Pode usar meu... — comecei, pegando meu celular. Mas Shands já se dirigia ao telefone público nos fundos do restaurante.
Eu o segui. Ele nem sequer notou Annie ao passar. Quando Shands desapareceu atrás das portas com os dizeres TOALETES e TELEFONE, Annie acenou para mim discretamente.
Voltei à mesa. Tomei um gole do refrigerante e chupei um cubo de gelo. Pensei nas reações de Shands. Primeiro, surpresa. Depois, negação. Por fim, achei que poderia ter sido horror. Mastiguei o gelo. Seria possível que ele não houvesse percebido o que acontecia? Olhei para os fundos do restaurante.
Tomei outro gole. O café de Shands ficava frio. Jimmy veio até mim.
— Aquele seu amigo? — ele disse, apontando os toaletes. — Ele saiu pelos fundos.
Annie devia ter escutado porque pulou do balcão. Ela já estava com o celular na mão.
— Levará cerca de trinta segundos para eles apagarem o quadro. Mais uma hora para eliminarem os arquivos.
Annie dirigiu-se ao estacionamento, discando enquanto corria. Eu a ultrapassei e abri meu carro. Ambos entramos.
— Não está na sala dele? — Annie disse ao telefone. — Ora, use o rádio para localizá-lo. É importante.
Acelerei na rua e em seguida parei num semáforo vermelho.
— Mac? Sou eu, Annie.
A luz tornou-se verde. Voltei a acelerar e passei para a faixa da esquerda.
Annie agarrou-se ao painel para se segurar.
— Sabe aquele laboratório de IRM onde houve um assassinato semanas atrás? Bem, acontece que estão matando pacientes também. Eles provocam infecções fatais. Peter e eu estamos indo para lá... — Ela fez uma pausa. — Sei porque escutei uma conversa... — Houve outra pausa.
Agora descíamos a movimentada Fresh Pond Parkway em direção ao rio. A hora do rush começava. Carros se aglomeravam perto da rotatória - um dispositivo de tortura criado em meados de 1800 para administrar o tráfego de carroças. Alguns motoristas bloqueavam a entrada, outros avançavam à frente. Eu avançava e o cara diante de mim bloqueava a passagem. Toquei a buzina.
— Tínhamos provas, uma lista com nomes e datas que torna muito óbvio o que está acontecendo. Mas foi roubada.
Houve outra pausa. Annie escutava, meneando a cabeça e olhando pela janela.
— O que quer que eu faça? — ela disse. — Encontre-nos lá. Se não corrermos, eles destruirão os registros.
Emergíamos agora na Memorial Drive.
— Mandado de busca? Está brincando? Sabe quanto tempo isso leva. Já houve um assassinato lá. Não dá para iniciar uma investigação, uma extensão de qualquer mandado que já tenha?
Acelerei quando o semáforo ficou amarelo na rua JFK, costurando entre a multidão de pedestres que atravessava na faixa. Poucos metros depois, passamos por uma placa onde estava escrito "INVERNO", que naquele dia parecia estar escrito "INFERNO".
— Sim, sei que não pode virar a moeda. É, causa provável. — Annie apoiou a cabeça na janela. — Certo. Sei que precisa de provas. Mas se não formos para lá agora, não haverá nenhuma.
Voei pelas ruas alinhadas a depósitos e entrei na rampa da garagem da rua Sidney.
— Droga — Annie resmungou, desligando o telefone. — Ba-baquice burocrática.
Estacionei numa vaga do primeiro piso e saímos do carro. O elevador estava aberto, à nossa espera. Quando subimos, Annie sugeriu:
— Precisamos recolher informações suficientes para iniciar uma investigação. Por que não vasculho os registros dos pacientes enquanto você distrai Shands e Pullaski?
— Está com a lista?
Annie assentiu. Ela me seguiu pelo saguão à entrada do laboratório de IRM.
— Demonstre que sabe aonde está indo — eu avisei.
Entramos na sala de espera. Aparentemente, os negócios tinham diminuído porque havia somente cerca de meia dúzia de pessoas ali. A recepcionista estava ao telefone. Sem hesitar, avancei, alcancei a porta da área interna e a puxei.
— Posso ajudá-lo? — a recepcionista disse quando passamos. — Ei!
— Tudo bem. O dr. Shands está nos esperando — eu disse. Enfim, entramos.
Atravessamos a área central. Um dos rapazes que trabalhavam no balcão olhou para cima. Ele expressou confusão ao fitar a mim e a Annie, sem nos reconhecer.
Acenei para ele.
— Já estivemos aqui com o dr. Shands. Conheço o caminho.
No momento seguinte, empurramos as portas duplas e desaparecemos. Passamos pela sala com os tanques de hélio e o banco de cérebros. Agora estávamos em frente à sala de registros. Pousei a mão sobre a maçaneta. Emily dissera que o código era a data do aniversário de Shands. Por favor, diga-me que não o mudaram. Digitei os números. O mecanismo soou e Annie abriu a porta.
— Eu o encontro mais tarde no carro, e lembre-se de manter a cabeça baixa — ela advertiu e entrou.
RETORNEI À SALA de Shands. A porta estava aberta. Ele não estava lá, e o jaleco estava jogado sobre a cadeira.
Voltei, passei pela sala de registros, onde esperava que Annie já estivesse recolhendo as provas de que necessitávamos, e atravessei as barreiras amarelas do campo magnético. Parei do lado de fora da sala do escâner. A porta estava fechada e, a princípio, não pude escutar nada. Prendi a respiração para ouvir melhor. A voz de uma mulher era audível. Em seguida, escutei a voz abafada de um homem.
Dirigi-me até o fim do corredor e entrei na sala de controle. Através da janela, pude ver a dra. Pullaski e Shands na sala do escâner. Estavam no meio de uma briga. Abaixado, aproximei-me do painel de controle e liguei o alto-falante.
— Você tem de... parar... não pode... — A voz de Shands saía entrecortada.
Escondi-me entre as sombras da sala escura e observei. Shands tentava puxar algo que a dra. Pullaski segurava. Atrás deles havia uma paciente numa cadeira de rodas. A mulher de cabelos grisalhos, vestindo uma bata de hospital, chorava e se lamuriava baixinho.
— Eu nunca... significava para você... — Shands arrancou uma máscara de oxigênio da mão de Pullaski e virou-se.
— O que diabos aconteceu com você? — ela indagou Shands aproximou-se da mulher na cadeira de rodas. Hesitante, tocou-lhe o ombro. Foi um gesto esquisito, como se ele tentasse um passo de dança que jamais ensaiara. Então, amparando-se na cadeira de rodas, Shands ajoelhou-se diante da paciente. O efeito foi claramente positivo; a mulher tornou-se menos rígida e cessou as lamúrias.
— Ela vai ficar bem? — ele perguntou, olhando para a dra. Pullaski.
— Vai, assim que você sair de cima dela.
— Quantos foram?
A dra. Pullaski o encarou sem responder.
— Quantos? — ele exigiu.
— Está me dizendo que não sabe? Shands ergueu-se.
— Deus me ajude. É verdade, não é? Em que você estava pensando? Sou um médico. Não mato pessoas.
— Claro que não. — A dra. Pullaski segurou a face de Shands com as duas mãos. — Por isso precisa de mim. — Ele se afastou. — Sempre precisou de mim. Formamos uma parceria perfeita. Foi assim que chegamos até aqui. O magneto mais potente do país. Os pacientes imploram para participar de sua pesquisa. — A voz dela tornou-se grave. — Belas assistentes de pesquisa. Você não pode, de repente, ficar com medo. Fizemos uma barganha.
— Barganha? De que está falando? — Shands disse. A paciente soltou um grito.
A dra. Pullaski levou o dedo aos lábios.
— Não grite — ela disse a Shands, como se falasse com uma criança. — Talvez você se esqueça de que as garotas vêm e vão. Sou constante, a única que mantém tudo acontecendo. Claro que sabe disso após todos esses anos. Faço tudo por você. Por causa da relação especial que temos, que sempre...
— Está fora de si, Estelle — Shands cortou-a. A mulher na cadeira de rodas começou a resmungar consigo mesma. Ele abaixou a voz. — Eu a tolerei porque sabe fazer seu trabalho...
— Tolerou?
— Não é uma mulher fácil, com esse seu ciúme patético.
— Meu o quê?
— Suas fantasias em relação a nós. A dra. Pullaski ficou boquiaberta.
— Fantasias? Você... precisa... de mim — ela afirmou, ressaltando cada palavra.
— Preciso nada. Você prejudicou tudo o que significa algo para mim. Posso tê-la amado uma vez. Mas foi há muito tempo. Agora? Como eu poderia amá-la? Você é fria. É seca por dentro.
— Seu cretino.
— Vadia!
A mulher na cadeira de rodas emitiu um grito longo que atravessou o ar.
— Quer calar essa boca? — Shands exclamou.
A paciente encolheu-se, levando o peito aos joelhos. Ela, então, começou a guinchar, e o guincho tornou-se um gemido prolongado que pareceu fazer o ambiente vibrar. A dra. Pullaski tentou aquietá-la, mas não houve jeito. Agora a mulher debatia-se. A qualquer minuto, ela se jogaria da cadeira de rodas.
Quando a dra. Pullaski fez menção de pular no pescoço da mulher, precipitei-me à porta da sala do escâner e a abri. Ao me ver, a dra. Pullaski recuou um passo.
A sala ficou em silêncio. Ouvia-se apenas o lamento da mulher que, sentada na cadeira de rodas, tinha os cabelos grisalhos caídos sobre o rosto.
Shands e a dra. Pullaski se entreolharam.
— Ele sabe — Shands informou-a.
A dra. Pullaski absorveu a novidade sem alterar a expressão. Passou as mãos sobre o jaleco para arrumá-lo. Shands pegou o interfone, digitou alguns números e pediu à pessoa que atendeu para buscar a paciente. Momentos depois, um dos homens que vi trabalhando no laboratório apareceu e a levou.
Séria, a dra. Pullaski começou a puxar o tanque de oxigênio até a porta.
— Não gosta da dra. Ryan, certo, dra. Pullaski? — eu indaguei. Ela parou e uma expressão divertida passou por seu semblante.
— Eu devia ter me livrado dela.
— E por quê?
A dra. Pullaski deixou o tanque ereto sobre o carrinho e me encarou.
— Ela...
— Estelle — Shands adyertiu-a.
— É a única administradora que mantém o lugar funcionando e o dinheiro fluindo, não é? — eu disse. — Também mantém o fluxo de assistentes jovens. Você as contrata sabendo muito bem o que irá acontecer. Uma após a outra, elas se deixam seduzir pelo bom médico. Depois do uso, são dispensadas. As jovens vêm e vão, e você continua aqui, a companheira insubstituível. Porém, cometeu um pequeno engano com a dra. Ryan.
— Eu? Não, nunca teria contratado aquela mulher. Ela se dirigiu... — Pullaski fez uma pausa. — diretamente a você, não, James? — O sorriso tomou-se escarninho. — Oh, aquela sabe como agradar. Sabe como persuadir e chamar a atenção. A pequena srta. Inocente. E ela não o quis, não foi?
— Ela me desejaria, se não fosse sua... sua interferência — Shands atacou. — Além do mais, ela é diferente.
— Acha mesmo? — Pullaski olhou para Shands com piedade. — Ambição. É isso que move aquela garota. É isso que move todas elas, na verdade. Emily Ryan teria feito amor comigo, se isso lhe garantisse o que desejava. Tudo que ela fez foi distraí-lo do trabalho. Que patético. O modo como você a seguia...
— Creio que já disse o bastante — Shands interrompeu-a. —Você simplesmente não agüenta um não como resposta, certo? Então, eu estivera certo quanto a minha primeira impressão acerca de Philbrick — estranho, intenso, anti-social, mas não um maníaco perseguidor. Recordei a ansiedade descabida que eu sentira em Shands quando ele me perguntara se eu tinha visto algo na noite em que encontrei Emily apavorada no estacionamento do Pearce. O alívio evidente ocorrera porque eu não o tinha visto. Shands estava obcecado por Emily, a mulher que posara para a Playboy, mas que não fora para a cama com ele.
Algo havia mudado? Quando Shands se transformara de perseguidor em executor? O coração de tecido e as páginas da Playboy haviam sido plantados na gaveta de Philbrick para parecer que ele era o perseguidor — e, sobretudo, dar a Emily um motivo para assassiná-lo. O brinco de Emily e seus "Lapsos Freudianos" tinham sido plantados pela mesma pessoa que atropelara Kyle com o Miata. Teria sido fácil pegar as chaves do carro e do apartamento de Emily em sua bolsa, enquanto ela trabalhava no laboratório, fazer cópias e, então, devolvê-las antes que Emily percebesse a falta delas.
Mas as mortes de Philbrick e Kyle não se referiam à perseguição obsessiva. Fora um estratagema conveniente para desviar a atenção do verdadeiro motivo pelo qual foram assassinados.
— Encontrei um dos médicos que pertenceu ao conselho do Banco de Cérebros de Cambridge na mesma época que vocês — contei. Agora eu tinha a atenção de ambos. — Ambos se demitiram na mesma ocasião, certo? Por quê? Houve muitas queixas das assistentes? Fundos de pesquisa sendo desviados de outros orçamentos e entrando nos de vocês?
A dra. Pullaski e Shands trocaram olhares. Naquele instante, de adversários eles passaram a aliados.
— Não pertencíamos àquele lugar — Shands justificou. — Era muito conservador, formal. Nossa pesquisa estava... está... anos-luz à frente da deles.
— Então, por que não a publicaram? Por que não deixaram o mundo saber acerca do trabalho radical e destemido que ocorre aqui?
Juntos eles me apresentaram uma postura impassível.
Agora eu falava diretamente com Shands.
—Você não coleciona apenas mulheres. Precisa de cérebros para alimentar sua pesquisa, e necessita de muitos cérebros porque, o que quer que esteja testando, isso causa um colapso da estrutura do tecido. E o tempo é essencial, não é? Quem sabe em quanto tempo começará a sentir os efeitos da doença em si mesmo?
— Cale a boca! — Shands esbravejou. — Não sabe de nada. A sala ficou em silêncio. Ouvia-se apenas o barulho da luz fluorescente e um clique ocasional do escâner. Fazia vinte minutos que eu deixara Annie sozinha.
— A conversa está muito interessante, mas receio que temos um trabalho a fazer — a dra. Pullaski informou, ocupando-se em ajeitar a sala. — Temos a agenda cheia hoje, e há pacientes esperando para o exame.
Ela retirou o papel que cobria a mesa do escâner, jogou-o fora e puxou outra extensão de papel de um rolo sobre o balcão. Colocou-o sobre a mesa e alisou o local. Começou a puxar o carrinho que carregava o tanque de oxigênio em direção à porta. Fiz menção de segui-la, mas Shands segurou-me pelo braço. A porta bateu quando Pullaski saiu.
—Tem de acreditar em mim. Eu não sabia — Shands disse. — Ela deve estar louca. Armou para Emily.
— A polícia precisa saber de tudo isso — aleguei.
— Não há outro jeito? — Shands perguntou, sentando-se num banco. — Pense em todo esse trabalho. Nos benefícios para a humanidade. Só neste país, há quatro milhões de pessoas que sofrem de demência. Pense na qualidade de vida perdida. — Aquela visão restrita me deixou pasmo. Ele não perdia um momento sequer para ponderar acerca dos pacientes que morreram, não se importava com Leonard Philbrick e Kyle Ronan. — Você entende a importância, não? Tem de haver um meio de salvar a pesquisa.
Pensei nos cérebros, conectados a eletrodos como especiarias em tantos perus de Natal, dissolvendo-se na solução que ele havia preparado. Valia a pena salvar aquela pesquisa, o estudo de um homem insano, cujo único objetivo era salvar a si mesmo?
— Ela é muito ciumenta, sabe? — Shands continuou. — Uma administradora brilhante. Quando estávamos começando, ela conseguia tirar dinheiro do ar. — Ele parecia perdido numa espécie de devaneio. — Lembro-me da primeira vez em que a vi. Cabelos negros, olhos brilhantes. Não era bonita, mas havia um tipo de eletricidade nela. Um poder puro.
— Agora ela transformou-se em outra coisa. Em algo muito feio. Eu a mantive aqui porque se tornou... — Shands buscou a palavra certa — indispensável.
Sobre os ombros de Shands, pude ver que a dra. Pullaski entrara na sala de controle. Ela encarava as costas de Shands e escutava.
— Não creio que deveria... — comecei, erguendo a mão para silenciá-lo.
— Já estruturei a base do projeto. Um acordo que fará o laboratório financeiramente independente e me livrará dela...
Shands olhou para cima quando um barulho ecoou no alto. O som vinha do teto acima do escâner. Ele então olhou para a janela da sala de controle. A dra. Pullaski havia desaparecido.
Houve outro barulho. Shands gelou, como um animal escutando o predador aproximar-se.
— O que foi isso? — perguntei.
— O sistema de ventilação. — Ele limpou a garganta e olhou para o teto. — Está fechado, eu acho.
Agora a dra. Pullaski estava ali, com os olhos fixos em Shands. Ela ergueu o dedo indicador e o direcionou à mesa. Lembrei-me de que lá estava o painel de controle com os botões de emergência. Philbrick tivera um ataque quando Annie tentara apertar um deles.
— Não! — Shands berrou, protegendo o sistema de IRM com os braços.
A dra. Pullaski o ignorou. Ela apertou um botão.
Houve uma pausa e, por um momento, pensei que nada fosse acontecer. Então, surgiu uma explosão, como o motor de um avião sendo acionado. O ruído parecia vir do sistema de IRM. Nuvens de vapor começaram a sair do tubo de ventilação no topo do escâner, caindo sobre Shands. Ele soltou um grito agonizante e tombou no chão com as mãos espalmadas. Seus dedos tornaram-se amarelados e pálidos. Um som ensurdecedor, como o alerta de um navio, iniciou.
— Pane! — Shands gritou. A dra. Pullaski continuava na sala de controle, olhando-o, impassível. — Pelo amor de Deus, Estelle, abra a ventilação!
As palavras de Philbrick ecoaram em minha mente: O sistema contém mais de mil litros de hélio líquido. E toda aquela quantidade de hélio agora fervia e evaporava. Pude ver meu professor de química da escola, Hiram Bucholtz, fazendo um sermão acerca dos perigos de trabalhar com gases criogênicos.
— Não pode ser em quantidade exagerada — ele entoara pela milionésima vez. — Gases comprimidos são perigosos em virtude de sua temperatura e compressão. — Em algum lugar dos recônditos de meu cérebro recordei que o hélio expandia-se num raio de novecentos para um quando evaporado. Tínhamos de sair dali, e depressa.
Minha cabeça parecia prestes a explodir. Joguei-me na porta, agarrei a maçaneta e empurrei. Não se moveu. Deduzi que a dra. Pullaski a trancara pelo lado de fora ou a pressão dentro da sala já a bloqueava. Tentei gritar para Shands me ajudar, mas acabei me inclinando para a frente com as mãos nos ouvidos. Marteladas pareciam reverberar na sala.
Então, foi como se alguém desligasse o som. O barulho tornou-se abafado e meus ouvidos estavam zunindo. A sala pareceu girar ao redor e me vi sentado no chão, respirando rapidamente. Um sensor vermelho na parede começou a piscar, dizendo-me o que eu já sabia. O nível de oxigênio havia caído.
A sala a cada segundo ficava mais fria. Congelamento dos globos oculares, pensei distraído. Eu deveria ter fechado os olhos para me proteger, mas não pude. Agora o teto estava completamente obliterado pela nuvem branca que descia à medida que o vapor preenchia o espaço. Em breve, tudo de que necessitaríamos seria uma gôndola e um candelabro para encenarmos O Fantasma da ópera, pensei numa onda de tontura. Somente as velas permaneceriam acesas, não?
Shands cambaleou até mim. Estava de braços cruzados, as mãos escondidas sob as axilas. Saía sangue de suas orelhas. Tateei a lateral de meu rosto. Meu ouvido direito estava sangrando também. Rompimento do tímpano.
Na escola primária, havíamos aprendido a nos rastejar numa sala repleta de fumaça. O ar quente sobe. O que faz o ar frio, perguntei-me, enquanto me deitava no chão e olhava a nuvem es-branquiçada descer para me encontrar. Agora meus olhos estavam queimando devido ao frio. Mal podia enxergar a sala de controle.
Sentia-me pesado, cansado. Afinal, meu fim não seria a demência com corpos de Lewy. Asfixia era muito mais precisa e rápida. Embora não fosse tão diferente assim. Diminuição da vigilância mental. Enfraquecimento da coordenação muscular. Ausência de discernimento. E um nariz muito gelado.
Eu mal conseguia divisar a dra. Pullaski, ainda olhando pelo vidro, com a cabeça inclinada para um lado como se observasse algo crescendo numa cultura de bactérias.
De repente, foi como se luzes vermelhas piscando formassem palavras. QUEBRE o VIDRO, QUEBRE O VIDRO. Eu esperava que não fosse tarde demais.
Consegui rolar e ficar de bruços. Com muita dificuldade, arrastei-me sob a nuvem de vapor até as pernas da cadeira mais próxima.
Finalmente, peguei-a, alcancei o assento de plástico e, seguran-do-me, fiquei de joelhos. Shands estava a poucos metros, já desmaiado. Mexa-se, disse a mim mesmo, imaginando que estava no rio, tentando conjurar a sensação do sol em minhas costas, o sentimento de alegria, enquanto superava a dor que sempre ameaçava me engolfar quando começava a remar.
Mas não adiantou. Fiquei parado onde estava, com a cabeça no assento para conseguir respirar, e olhando as linhas da janela. Vamos, a voz em minha mente ordenava. Visualizei-me levantando, erguendo a cadeira e mirando-a na janela que mal podia enxergar.
Em câmera lenta, como em sonho, trincas apareceram no vidro e uma cadeira atravessou a janela. Confuso, vi a cadeira atingir o chão sem emitir nenhum som e correr pelo piso para parar ao lado de Shands. A nuvem branca dissipou-se pela abertura, entrando na sala de controle.
Num momento de clareza, berrei:
— Abra a porta da sala de controle! — Em seguida, tudo se tornou negro.
Alguém estava segurando minha mão. O calor era quase doloroso. Abri os olhos. Annie estava ajoelhada a meu lado. Eu me encontrava no chão do laboratório de IRM, coberto por uma manta. Quis sorrir, mas não consegui — meu rosto parecia anestesiado. Os lábios de Annie moviam-se, mas eu não escutava nada além do zu-nido persistente em meus ouvidos. Os lábios dela formaram um beijo. Esta mensagem eu entendi.
A cadeira caída a meu lado estava de pernas para cima. Lembrei-me. Alguém atirara a cadeira na janela. Devia ter sido Annie. Pedaço de vidro eram o que restava da moldura da janela. Por que não havia cacos pelo piso? O vidro devia ter implodido na sala de controle. Com o aumento da pressão do ar, o vidro se rompera com força considerável.
Annie tinha uma toalha amarrada à testa, de onde o sangue escorria. De tão anestesiado que estava meu rosto, minha expressão consternada devia ter saído distorcida, porque ela disse sem som:
— Estou bem, juro.
— Dra. Pullaski? — perguntei, sentindo o som vibrar em minha garganta sem escutá-lo.
Os olhos de Annie focaram a sala de controle. Ela meneou a cabeça.
Senti o chão estremecer quando dois paramédicos surgiram. Um deles carregava uma prancheta e falava com Annie. O outro verificava minha pulsação. Então» ele virou minha cabeça para um lado e examinou meu ouvido.
O escâner, o maravilhoso sistema 4.5 tesla, permanecia em seu canto e parecia benigno. Como um enorme elefante que tivera um acesso de fúria, ele agora estava anestesiado. Perguntei-me quão danificados estavam seus componentes devido à pane e à explosão.
O médico girou minha cabeça para o outro lado. A única indicação do que havia acontecido era a janela quebrada e a cadeira virada no chão.
Não, havia mais. Uma fissura de uns dez centímetros se abrira entre o teto e uma das paredes. A pressão do ar havia literalmente explodido o forro do laboratório. Por isso eu-me sentia uma merda.
— TEM CERTEZA de que deseja fazer isso? — perguntei a Emily. Estávamos no estacionamento. Era uma tarde abafada em meio à primeira onda de calor do verão; o sol continuava no céu.
— Certeza absoluta.
Emily havia sido solta e liberada das acusações. Shands sobrevivera, embora suas mãos estivessem gravemente feridas devido ao contato direto com o hélio evaporado. Três semanas apás sua morte, não houvera nenhum velório para a dra. Estelle Pullaski, que praticamente fora decapitada por um fragmento que voara quando o vidro se quebrara.
A coleção de cérebros havia sido apreendida pelo perito, prova na investigação de homicídios múltiplos. A cada dia surgiam novas revelações no jornal, outra família aparecendo para questionar a morte de um parente. A conta oficial já passava dos vinte. Shands cooperava com a investigação, e diziam que seu advogado tinha solicitado uma apelação.
Entre outras coisas, Shands admitiu que ele e a dra. Pullaski estiveram no laboratório na manhã em que Philbrick foi assassinado. Ele alegava estar trabalhando em seu laboratório particular e nada escutara até encontrar Emily tentando remover o tanque de oxigênio do escâner.
Além disso, o que aconteceu foi pura especulação, já que a dra. Pullaski estava morta. O cenário mais provável era o de que, na noite anterior, a dra. Pullaski pedira mesmo a Philbrick que telefonasse a Emily para informar do bip esquecido no laboratório. Só que Emily não o deixara lá. A dra. Pullaski o tirara da bolsa dela. Philbrick combinara de encontrar Emily às sete da manhã seguinte para pegar o bip. Talvez ele tivesse ido à sala da dra. Pullaski para avisá-la, e fora nesse momento que ela lhe oferecera um drinque. Perguntei-me se Philbrick se surpreendera com o gesto súbito de amizade. A bebida continha Valium. Em estado semiconscien-te, ela o fizera subir na plataforma onde Philbrick desmaiara. Tal fato devia ter ocorrido na hora em que eu estava tentando ligar para a casa de Philbrick.
Sabíamos como ela o mantivera inconsciente — o médico legis-ta não tinha visto uma pequena picada no pé de Philbrick, onde uma intravenosa fora usada para administrar mais coquetel de álcool e Valium durante a noite, enquanto a dra. Pullaski ia para casa.
Ela e o dr. Shands retornaram cedo naquela manhã. Pouco antes das sete, quando Emily deveria chegar, a dra. Pullaski livrou-se do aparelho de intravenosa, ligou o escâner e, por fim, levou o tanque de oxigênio à sala. A única coisa com a qual ela não contara foi Kyle Ronan esperando na garagem para observar Emily. Ele não avistou Shands e Pullaski chegarem porque já estavam no laboratório quando Emily lá entrou. O novo paciente inexistente havia sido uma artimanha para manter Emily fora do caminho enquanto Pullaski eliminava Kyle.
Talvez Shands fosse capaz de convencer o promotor público de que nada sabia acerca do que acontecia. As pessoas faziam coisas para ele, dissera Shands, coisas que jamais pedia. Ele certamente nunca pedira à dra. Pullaski para matar pacientes.
Após livrar-se das acusações criminais, haveria uma avalanche inevitável de processos civis. O Centro Médico Universitário foi fechado, e me perguntei se seria definitivamente.
Emily tirara duas semanas de férias. Quando retornou, seu humor mostrara-se sóbrio e controlado. Seu carro ainda estava sob a custódia da polícia e ela tivera de alugar outro para locomover-se.
— Não me importo — Emily dissera. — Podem ficar com meu carro para sempre. Nunca mais conseguirei dirigi-lo, muito menos olhá-lo.
Fazia sentido. Afinal, o veículo fora usado para matar um homem de quem ela gostara e que a amara profundamente. Que pena, não pude deixar de pensar, era um carro excelente — o que não era o caso do meu Subaru.
Num rompante de generosidade egoísta, eu me vi oferecendo uma troca de carros. Não me importava de esperar até que o Mia-ta fosse liberado. Eu mandaria consertar o pára-choque e refazer a pintura da Jataria. Emily vibrou com a oferta.
— Graças a Deus — Gloria disse para mim quando soube da idéia. — Não agüentava mais ouvi-lo reclamar daquele carro idiota.
No calor do verão, fitei os arbustos que rodeavam o asfalto. Nenhuma ameaça se escondia ali.
— Peter? — Emily chamou.
— Desculpe, você disse alguma coisa? — perguntei. Minha audição começava a voltar, mas ainda não estava cem por cento.
— Preparado?
Coloquei o documento de transferência no capô e, com floreio, assinei o papel para Emily. Em seguida, tirei a chave do bolso.
— O teto solar vaza — avisei.
— Eu sei. Você já me disse. — Ela pegou a chave e o documento. — Acredite, será muito melhor assim. Discreto, útil. Exatamente o que o médico recomendou. — Emily abriu a porta do motorista. Depois, colocou a valise sobre o banco e a abriu. — Trouxe uma coisa para você. — Tirou uma caixa de CD, que entregou para mim.
— O que é? — perguntei, virando a caixa.
— O escaneamento de seu cérebro.
Tive de apertar a caixa com os dedos para não derrubá-la.
— É um arquivo de vídeo. Roda em qualquer PC.
Que reconfortante. Era o tipo de presente que eu esperaria de Shands, não de Emily. Olhei para ela devagar, quando atinei para o fato.
— Onde conseguiu isso? Pensei que o laboratório estivesse fechado.
Ela desviou o olhar.
— Ajudei a limpá-lo. Eu precisava lhe dar isso também. —Tirou um envelope da valise e o entregou para mim. — Estou me demitindo do trabalho clínico no Pearce. Decidi dedicar minha vida à pesquisa.
— Há muitas pesquisas acontecendo no Pearce. Ela assentiu, olhando para o chão.
— Já indiquei outra pessoa para trabalhar com meus pacientes. Pelo menos, ajudei o sr. Black a encontrar um rumo.
— Você conseguiu outro trabalho, certo? — Ela não respondeu. — No Centro Médico Universitário?
— Ele está vendendo o laboratório. Já o vendeu, aliás. Será reformado e terá outro nome.
— Quem o comprou?
Emily ficou levemente ruborizada.
— Ainda não foi formalmente anunciado.
Não precisei de muito para deduzir quem era o comprador. Meu palpite era a Cimgen Pharmaceuticals, a empresa por trás do Cimvicor.
— Eles me ofereceram o cargo de diretor clínico e eu aceitei. Nós vamos focar o cerne de nossa missão de outra maneira. Nesse ínterim...
— Nós?
— Não pode estar falando sério. Emily, esse é o homem que a atemorizou. Mesmo que ele não vá para a cadeia, provavelmente perderá o direito de praticar a medicina. O laboratório perderá seu crédito.
Ela engoliu em seco.
— Ele precisa de mim. É o que eu queria desde o início. Participar de algo realmente importante. O trabalho tem de prosseguir, mesmo que tenhamos de recomeçar do zero.
Ela pareceu procurar em minha expressão alguma indicação de que eu entendia. Não encontrou nenhuma.
— Eu tinha uma amiga que sempre se envolvia com o mesmo tipo de homem — Annie contou-me. Estávamos na passarela de pedestre da ponte Weeks, olhando o Charles. Era fim de tarde e o sol estava atrás de nós. Na semana anterior, eu a ajudara a instalar tio Jack numa casa de repouso especializada. Um barco com oito remadores passou sob a ponte, cortando o rio. — A cada relacionamento, ela saía com estúpidos egoístas e egocêntricos. E toda vez era dispensada.
— Acha que é isso que Emily está fazendo? — Shands não se parecia em nada com Kyle.
— Não me referi a Emily. Estou falando de Shands.
Por mais diferentes que Emily Ryan e Estelle Pullaski fossem, havia uma semelhança essencial. Ambas procuravam a outra metade para se sentirem completas, alguém em cuja glória refletida pudessem se aquecer.
— Ele precisa de uma Emily — eu pontuei. — Mas Emily também precisa dele.
— Tem razão. É difícil dizer quem estava seduzindo quem — Annie observou. — Sei que não é politicamente correto sugerir isso, mas não é possível que Emily tenha armado para que o dr. Shands visse a edição da Playboy na mesma época em que avaliava seu currículo? A reputação do homem não era um segredo tão bem guardado. Não seria necessário muito esforço para reconhecer a vulnerabilidade dele. Quem sabe, talvez o objetivo dela todo o tempo fosse substituir a dra. Pullaski. Tornar-se a parceira do grande médico.
O que Annie dizia pareceu plausível. Emily havia mesmo admitido a mim que se tornar parceira dele fora sua fantasia.
— A garota sabe como ir atrás do que quer — Annie comentou. — Fico feliz que ela não tenha conseguido morder você. Mas Deus sabe que ela tentou.
Senti meu rosto corar quando me lembrei dò beijo do qual eu não deveria ter gostado tanto, mas gostei. Annie olhou para mim e riu.
— Pergunto-me quem ele teve antes da dra. Pullaski. Lucrécia Bórgia? — Annie indagou.
— Você sabe que as acusações contra ela foram retiradas.
— A dra. Pullaski?
— Lucrécia Bórgia. — Abracei Annie e ela se encostou em mim. Rocei seu pescoço. — É isso que a assusta em relação a mim? Cometer o mesmo erro do passado?
Annie virou-se para me fitar.
— Na verdade, não creio que eu tenha cometido esse erro em particular.
Ela beijou a ponta dos dedos e pousou-os primeiro em meu olho direito, depois no esquerdo e então em minha boca.
— Você não é como os outros — ela disse. — É estável, digno de confiança. — Gemi. Também era enfadonho e previsível? — Os homens que conheci no passado eram legais, desde que a relação não se complicasse.
— A vida raramente é descomplicada.
— Não por muito tempo. Ter de depender de outra pessoa? Fico arrepiada só de pensar. — Annie olhou para o sol. — Então, do que você tem medo?
Respirei fundo. Mortalidade? Doença? Enlouquecer?
— Quem sabe. Só sei que você não me assusta mesmo.
— Não? Não acho. Mas parece que você ainda está remoendo o que aquele dr. Shands viu no escaneamento de seu cérebro. Ou devo dizer que aquilo o está remoendo?
O CD que Emily me dera estava em meu bolso. Eu o tirei.
— Está aqui. Emily me deu uma cópia.
— Seria um ótimo barquinho.
— Não. Ele tem um buraco no meio.
— Sabe o que eu acho? — Annie perguntou.
— Que Shands só diz bobagem?
— Isso. E se você herdou essa maldita doença, qual é o problema?
Se eu fosse meu próprio terapeuta, era exatamente isso que estaria pensando. Que razão havia em saber, se o fato o faria viver cada dia temendo algo que podia ou não acontecer e sobre o que você não tinha o menor controle?
— Eu gostaria de nunca ter feito aquele escaneamento — admiti.
— Ah. Mas como se aproximar da caixa de Pandora? — Annie perguntou, apoiando-se na amurada da ponte.
Também me apoiei e segurei a caixa do CD sobre a água. Nossas sombras alongadas estendiam-se à nossa frente. Conhecimento ou ignorância? Aceitação ou negação? Em ambos os casos, eu normalmente optaria pelo primeiro. Mas aquilo era diferente.
Tirei o CD da caixa e o joguei da ponte. Ele brilhou na luz do sol antes de cair na superfície da água, flutuar um pouco e, em seguida, afundar.
1 Home run é a jogada na qual um rebatedor marca um ponto direto ao rebater uma bola para fora da linha circular que delimita o jardim externo, porém dentro das linhas laterais que delimitam o campo. (N. do E.)
2 TEP e TC, respectivamente, tomografia por emissão de pósitrons e tomografia computadorizada. (N. do E.)
3 Food and Drug Administration (agência governamental americana que regula e fiscaliza a fabricação de drogas e comestíveis). (N. do E.)
4 Polímero comercializado dentro de ovos de plástico, grande sucesso entre crianças norte-americanas. (N. do E.)
G. H. Ephron
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