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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OCULTOS NA ESCURIDÃO / J. M. Simmel
OCULTOS NA ESCURIDÃO / J. M. Simmel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OCULTOS NA ESCURIDÃO

 

Por volta das 18h de 11 de fevereiro de 1984, um certo Daniel Ross estava começando a se suicidar em seu apartamento térreo na sossegada Alameda Sandhöfer, em Frankfurt do Meno. O dia 11 de fevereiro de 1984 caía num sábado. Ross tinha escolhido esse momento para seu suicídio com todo o cuidado. Em iniciativas desse gênero, mesmo quando os métodos são bastante seguros, persiste sempre o perigo de ser perturbado por alguém, descoberto a tempo e trazido de volta à vida, com possíveis lesões no cérebro ou nas funções de numerosos outros órgãos. Por isso mesmo, os suicidas costumam ir para o meio do mato, subir em alguma montanha, meter-se em alguma cabana de abrigar barcos à beira de um lago. Ou então preferem determinado instante em que estão convencidos de que, por longo tempo, não serão incomodados, somente sendo detectados quando realmente já for tarde demais. Daniel Ross escolhera um sábado à tarde. Porque depois haveria a noite de sábado para domingo, o próprio domingo inteiro e, ainda, a noite para segunda-feira. Só então é que viria a faxineira. As peripécias de Ross nos quatro meses precedentes haviam sido de tal ordem que ele tinha bons motivos para não esperar qualquer chamada, nenhuma visita, enfim, absolutamente qualquer interesse de quem quer que fosse por ele ou por seu estado. Embora desesperado com essa situação, de toda maneira ela o deixava tranqüilo naquele fim de tarde. Nevava em Frankfurt, embora só um pouco.

E pela segunda vez lançou um punhado de cápsulas brancas boca adentro, engolindo-as com um grande gole de uísque. O escocês era tomado puro, e no copo só ficaram cubos de gelo. Tratou de comer metade de um sanduíche de presunto, mastigando cuidadosamente. Preciso comer alguma coisa com isso, pensou ele, senão acabo vomitando tudo de novo. Estava sentado à sua escrivaninha com o abajur verde aceso. Não havia outra luz no grande escritório repleto de livros. A janela junto à secretária dava para um jardim maltratado, onde dois gatos se perseguiam com miados estridentes. Virou a cabeça. A vidraça espelhava o seu rosto, pois lá fora já havia escurecido. Desviou rapidamente os olhos. Com isso, seu olhar deslizou sobre a escrivaninha coberta de manuscritos, onde se fixou numa pequena placa de prata inclinada sobre um suporte. Havia nela palavras gravadas. Leia, pensou ele, leia mais uma vez; você nunca foi tão feliz como naquele tempo.

O MUNDO EM QUE VIVEMOS PODE SER ENTENDIDO COMO O RESULTADO DO CAOS E DO ACASO; SE, NO ENTANTO, ELE FOR O RESULTADO DE ALGUMA INTENÇÃO. DEVE TER SIDO O DESÍGNIO DE UM DEMÕNIO. CONSIDERO O ACASO UMA EXPLICAÇÃO MENOS PENOSA E MUITO MAIS PLAUSÍVEL.

BERTRAND RUSSELL

PARA DANIEL, AO COMPLETAR-SE UM ANO EM GRANDE AMOR

SIBYLLE

VIENA, 17 DE NOVEMBRO DE 1971

Bem, disse ele para si mesmo, assim você pensou nela ainda uma vez. Agora, é tocar para a frente! De um pequeno frasco de tampa rosqueada, deixou mais cápsulas brancas caírem na concha de sua mão direita. Ele era canhoto. Tinha posto tudo o que precisava sobre a escrivaninha: um copo, uísque, cubos de gelo num recipiente de prata, um prato com vários sanduíches e quatro embalagens de Nembutal, que agora estavam abertas. ao lado dos frascos.

Fora bem fácil arranjar o narcótico. Por causa de um forte resfriado que tivera em dezembro do ano anterior, ele havia procurado um médico no distante bairro de Eschersheim e mediante a encenação de pequena manobra para distrair o profissional, roubara um bloco de receitas no instante propício. Elas estavam todas pré-carimbadas. Só fora preciso preenchê-las. Em seguida, fora a quatro farmácias diferentes. Cada embalagem continha vinte e cinco cápsulas, e ele precisava de cem. Havia se informado convenientemente na emissora, com um médico que era conselheiro científico da revista de saúde Hora de Consulta. Uma cápsula de Nembutal continha cem miligramas de Fenobarbital. A mais alta dosagem diária tolerável era de oitocentos miligramas, portanto oito cápsulas. Dez gramas de Fenobarbital seguramente liquidavam com qualquer um. Eram cem cápsulas. Ross engoliu sua quarta mancheia com o uísque e, em seguida, comeu a outra metade do sanduíche de presunto. Lá fora, os gatos miavam.

Já em dezembro seu desespero atingira tal ponto, que ficou decidido: iria se matar. Não havia outra saída. Um homem não pode continuar vivendo, pensava, quando chegou ao fim. Já em dezembro quisera suicidar-se, mas aí morreu seu mais velho amigo. No Hospital Martin Luther, de Berlim. Voara imediatamente para lá. Uma enfermeira da noite lhe transmitira as últimas palavras do amigo Fritz.

— Ele disse: “Já é tempo de eu dar o fora.” Então, fechou os olhos e morreu...

Já é tempo de eu dar o fora.

Aquelas palavras não o abandonaram mais, tornaram-se uma obsessão. Já era tempo de dar o fora. Já era mais que tempo. Dia após dia, ele ficava pensando na frase. Sonhava à noite com Fritz e ouvia-o dizer as palavras. Mesmo de dia, acordado, chegava a ouvi-lo. Bem alto. A esse ponto o levara o maldito Nobilam. E nem podia pensar nas outras conseqüências desse maldito Nobilam.

Quis resolver a parada logo depois do enterro do amigo, ainda em Berlim, mas então recebeu a oferta de uma produtora independente de televisão. Mais três semanas, e a coisa não deu em nada. Em seguida teve a impressão de que conseguiria, com um esforço desesperado, livrar-se daquele troço infernal. Durante três dias, ficou fora de si de tanta felicidade, até que veio a recaída. Mas que recaída! Com as mais horrendas alucinações provocadas pela abstinência. Não, não havia mais nenhuma saída para ele, nenhuma. Quinta-feira passada conseguira bater o seu próprio recorde. Treze comprimidos de Nobilam tinham sido necessários para lhe tirar parcialmente o medo, para deixá-lo mais ou menos calmo. O nojo de si mesmo tornou-se grande demais, e ele decidiu pôr um fim a tudo no sábado. Nunca sentira autocomiseração, ao contrário do que geralmente ocorre. Apenas repugnância, raiva e abominação. Isso o ajudou, ajudou-o enormemente.

De novo engoliu outro punhado de cápsulas, repetiu outro uísque, comeu mais um pouco. Ross mastigava praguejando. Que brincadeira de merda com aquelas cápsulas de miligramas. Havia ainda uma porção delas. Precisava mandá-las todas goela abaixo. É evidente que o efeito aumentava com o uísque. Ora bolas, é por isso mesmo que você está bebendo, que diabo, seu viciado em comprimidos, pensava ele. Você não pode se arriscar. Quase defronte estão as clínicas da universidade. E, a quinhentos metros, a Rua Heinrich Hoffmann, onde está a psiquiatria. Portanto, nada de riscos. E nada de praguejar, nada de fazer teatro, viu? Até a Marilyn conseguiu, engolindo comprimidos. Ou como é que você acha que ela deu o fora? Então, vamos. E rapidinho com isso. Estava engolindo o último pedaço do segundo sanduíche quando o telefone tocou. Já perturbado. atendeu mecanicamente, tão perturbado que nem se zangou ao ser incomodado.

— Sim?

— Quem está falando?

Voz de mulher. Com sotaque. Sotaque de quê? Dane-se qual o sotaque, pensou ele.

— Deseja falar com quem?

— Com o Sr. Daniel Ross.

— Ele não respondeu.

— Alô!

— Sim.

— O senhor é Daniel Ross?

— Sim. Que deseja? — Então notou que já estava com a voz levemente engrolada, e isso o encheu de satisfação. Já está começando, raciocinou. Bebeu um gole enorme.

— Meu nome é Mercedes Olivera. Preciso lhe falar urgente.

Ross colocou o copo na escrivaninha, com dureza. Agora estava furioso.

— Ah-ah!

— Como?

— Grande piada. E quem é a senhora? Alguém da emissora? Está com quem aí? Quem são os outros engraçadinhos? Quem são os filhos da puta — gritou fora de si, e assustou-se. Não, gritar não. A criatura vai pensar que alguma coisa está errada por aqui. Vem para cá. Manda alguém. A polícia. De repente sentiu um calor insuportável, o suor começou a escorrer. Isso ele já conhecia. Era do Nobilam. Há muito tempo já tinha uns acessos de transpiração, às vezes durante o sono, também na emissora, em pleno trabalho. Eram repentinos. O suor lhe corria da testa para dentro dos olhos. Por isso ardiam. Ele o sentia também correndo pelas costas, por debaixo do pijama. Sim, Ross estava de pijama, já se havia aprontado para dormir antes de começar com as cápsulas. Disse:

— Me desculpe. Sinto muito. Perdi a cabeça. A senhora está procurando um outro Ross. Ross é um nome muito comum.

— O senhor mora na Alameda Sandhöfer? — a voz soava muito decidida.

— Sim.

— Então é o senhor mesmo!

Isso está virando uma conversa de idiotas, pensou ele. E se forem uns caras que ainda estão lá na emissora e querem me engambelar? Não, imaginou. Não. Estão todos muito satisfeitos de não terem mais nada a ver comigo. Esses não tocam mais em mim. Estou empestado. Estou com a peste. Mas então quem é essa mulher? Onde é que ela está?

— Onde é que a senhora está?

— Em Kloten.

—  Onde?

— Aeroporto de Zurique. Se chama Kloten — ou não?

De repente, começou a música. Baixinho. Lenta, antiquada, doída. Uma voz misteriosa de mulher cantava: “... se eu pudesse desejar alguma coisa...”. Sibylle. Nossa canção,lembrou ele. Como é que essa música entrou na linha?

Agora, todo o seu corpo estava tremendo de susto. Mas o que é isso, pensou apavorado. Estarei ouvindo de novo uma voz, assim como eu ouvia a voz de Fritz? E ainda com música? Nossa canção? E uma segunda voz? Será o maldito Nobilam? E se as visões começarem novamente? Será um delírio do medicamento? Agora, sábado à noite? Com todo o Nembutal na barriga? Ele entrou em pânico, saltou da cadeira e gritou:

— A senhora é mesmo...?

— Não estou entendendo.

“... se eu ficasse confusa...” cantou a voz de mulher, entrando ruidosamente uma orquestra.

Oh, não, por favor. Não, não, pensou desesperado. Mordeu o lábio inferior. Sentou-se de novo. De repente, sentiu um mal-estar. Isso acontecia com freqüência, subitamente. Podia agradecer isso também ao Nobilam. Mas sem esse desgraçado desse Nobilam não consigo viver! Cada vez pior. Está ficando cada vez pior. Loucura! Eu não quero viver! Morrer é o que eu quero. Bebeu, serviu-se de mais uísque, bebeu de novo. A garrafa bateu no copo, de tanto que sua mão tremia.

— Alô! — agora a voz da mulher estava inquieta. — Alô! O que tem o senhor? Está doente? Está precisando de alguma coisa, Sr. Ross?

— Eu... estou... ótimo... A senhora está mesmo... — Ele engoliu, o mal-estar havia desaparecido.

— O que significa: a senhora está mesmo?

— A senhora está mesmo... em... Kloten? — Controle-se, homem. Sujeito de merda. Neurótico. Histérico, desgraçado, você tem é de se controlar.

— É o que estou lhe dizendo! Estou falando aqui de um bar. O barman teve a gentileza...

“...o que eu então desejaria...”

Isso eu não agüento. Não agüento mais. Ele gritou:

— Tem música por aí?

—, Sim. O barman botou um cassette no toca-fitas. Está dando para ouvir a música?

— Ah... — Ele sentiu imenso alívio. Seu humor mudava de um segundo para o outro. Havia essa mulher. Havia também:

“Se eu pudesse desejar alguma coisa.” Tudo era real. Nenhum delírio lhe iria estragar a morte. Mas por que queria essa mulher falar com ele?

“...nos tempos bons ou maus...” A misteriosa voz feminina. A orquestra. Um piano. Sibylle. Naquele tempo em Viena, quando éramos tão jovens e felizes. E agora? Logo agora? Ah, Sibylle...

— Eu acabei de chegar, Sr. Ross.

— De onde está chegando?

— De Buenos Aires.

“...se eu pudesse desejar alguma coisa...” Era a Dietrich, ela estava cantando! Claro, a Dietrich. Marlene Dietrich.

— De onde?

— De Buenos Aires.

“...quero ser um pouquinho feliz...”

— É da mais alta importância. Preciso falar logo com o senhor.

“...porque se eu fosse por demais feliz...“

— Não conheço a senhora.

“...se eu tivesse nostalgia de estar triste”, cantava Marlene Dietrich. A orquestra tocou mais alto e terminou a canção. Entrou outra música.

— Mas eu conheço o senhor!

Não, isso ser humano nenhum podia agüentar. Era insuportável. Deixou cair o fone. Caiu-lhe no colo. Colocou-o no gancho e voltou a beber novamente, em goles longos. Ofegava um pouco. Subitamente, sentiu asco do pijama úmido. Levantou-se, inseguro, e caminhou através do grande escritório escuro com suas estantes de livros. Entrou no seu quarto, onde acendeu uma das lâmpadas de cabeceira, à esquerda e à direita da cama. Tirou um pijama do armário embutido, despiu o outro e, no banheiro, secou o corpo, esfregou-se com água-de-colônia e vestiu o pijama novo. Como uma onda poderosa, o cansaço abateu-se sobre ele. Para a cama. Já para a cama. Já tinha afastado as cobertas, quando lhe ocorreu algo. As cápsulas! Tinha de tomá-las todas, até a última. E trancar a porta! Voltou cambaleante pelo mesmo caminho até a escrivaninha. Quando tinha acabado de engolir as últimas cápsulas com uísque, o telefone começou a tocar novamente. Completamente atordoado, ergueu o fone e ouviu de novo a voz dela:

— Aqui é...

— Sim, já sei. Vá para o inferno! - Ele estava farto. Para a cama. Queria ir para a cama. Dormir. Morte. Paz.

— Sr. Ross. Eu lhe suplico!

— Sim, sim — disse ele e pensou: a Dietrich não está cantando mais. Essa outra música, eu não conheço.

— Precisamos fazer uma viagem juntos.

— Coisa nenhuma — replicou ele.

— O quê?

— Coisa nenhuma. Estou de partida.

— Mas... mas... O senhor não pode fazer isso! — gritou ela. Agora era ela quem estava gritando.

Ele riu com malvadeza.

— Não ria! O senhor nem sabe de que se trata!

— Tudo bem — disse ele, repondo o telefone no gancho.

Abaixou-se em seguida e desconectou o telefone da parede. Pronto. Agora a maluca não podia mais chamar. Ninguém mais poderia. Foi até o vestíbulo, girou a fechadura de segurança da porta de entrada, trancou-a e passou a corrente. Do quarto vinha uma réstia de luz para dentro do escritório. Ross apagou a luz da escrivaninha e cambaleou de volta para o quarto. Também aqui a janela abria para o jardim. O gato e a gata no cio continuavam estridentes. Ross precisava ir ao banheiro. O misterioso telefonema daquela mulher, ele já havia esquecido. Estava bastante embriagado e sonolento. Repentinamente lhe vieram à cabeça as palavras de Bertrand Russell, e ele pensou no demônio que, de propósito, havia produzido este mundo de caos e de acaso. Sorriu. Agora você vai morrer, disse, e uma grande felicidade o invadiu. Acalmava a cada minuto que passava. Dormir, pensou. Dormir e nunca mais precisar acordar. Sorriu mais. Não há vida após a morte e não existe nenhum Deus. O argumento dos que nele acreditam, pensou, a causa original, é bobagem. Afirmam que tudo o que ocorre neste mundo tem uma causa e que se chega necessariamente a uma causa original quando se faz o caminho de volta que liga cada efeito à sua causa. E essa causa original é Deus. Mas se tudo tem de ter uma causa, também Deus necessita de uma. E se existe alguma coisa que não tenha uma causa, então tanto pode ser Deus como o mundo. Qual o desgraçado, pensou ele, que é capaz de me indicar um motivo por que também o mundo não poderia ter começado a existir sem uma causa original ou por que ele não pode ter sempre existido? Quem disse que o mundo precisa de ter tido um começo? Por quê? Essa idéia fixa, de que tudo precisa ter tido um começo, é simplesmente uma conseqüência de nossa capacidade de imaginação ridiculamente limitada.

Deixou o banheiro, deitou-se e apagou a luz. Afinal, tudo acabou mesmo dando certo, refletiu. No jardim, os gatos faziam grande estardalhaço e do céu leitoso pelas luzes da cidade caíam flocos de neve sobre a terra imunda. Alguns minutos, e ele adormeceu. E sonhou com o demônio que inventara o mundo.

— É evidente que nunca iremos impor nosso direito por intermédio da violência, mas insistiremos nele, e consideramos óbvio que esse direito de termos uma pátria e a reunificação de nossa terra natal, na paz e na liberdade, é para todos os políticos que efetivamente pensam em termos alemães uma conditio sine qua non e que igualmente o é para todos os políticos decentes de outros países. Por isso, continuamos a reagir com ardorosa indignação contra a chamada Ostpolitik* que o Sr. Brandt pôs em prática, assim como contra o escandaloso reconhecimento da linha Oder—Neisse. Nós não reconhecemos esta linha e nunca o faremos!

Essas palavras foram proferidas na terça-feira, 8 de novembro de 1983, no estúdio III da emissora de televisão de Frankfurt, por um homem chamado Siegfried Woitech, vice-presidente da União das Federações dos Expatriados da Alemanha.

Daniel Ross, um homem esguio e quase magro de quarenta e seis anos, com cabelos espessos embora já completamente brancos, melancólicos olhos cinzentos e uma larga boca num rosto estreito, estava sentado à mesa, em frente ao funcionário. O programa quinzenal FOCUS, de que Ross era redator e apresentador fazia já seis anos, começara há cinco minutos. Esse programa, extraordinariamente apreciado pelos telespectadores em virtude de sua absoluta naturalidade, somente apresentava entrevistas a respeito de temas atuais, e todas as discussões eram transmitidas ao vivo, sem ensaio prévio. Ele se ocupava, tal como o programa SINAL D, da emissora Berlim Livre, com acontecimentos de interesse para os dois Estados alemães. Nos três quartos de hora em que ia ao ar, entre 21 e 2lh45m, FOCUS contava com um número crescente de colaborações, e Ross sempre conversava com diversas pessoas. Siegfried Woitech havia sido convidado porque sua Federação organizara no dia 4 de novembro uma grande manifestação no Pavilhão da Westfália, em Dortmund, que resultara em tumultos e grande pancadaria entre ouvintes de orientações muito diferentes. Dois pelotões de policiais

 

 *Política de abertura para os países do Pacto de Varsóvia. (N. do R.)

 

tiveram de intervir, e o resultado foram onze feridos em estado grave e um grande número com ferimentos leves. Uma série de pessoas fora detida provisoriamente. Jornais, rádio e televisão noticiaram a respeito, cada um enfocando à sua maneira, desde “contingentes do terrorismo comunista” até “excessos da mais perigosa espécie, provocados pela direita radical”. Siegfried Woitech foi o primeiro convidado de Daniel Ross no FOCUS de 8 de novembro de 1983. Três câmeras eletrônicas registraram a conversa. Antes da emissão do programa, Ross conduzira Woitech para a sala da produção, que se situava no andar superior e através de cujas grandes janelas se podia ver lá embaixo o estúdio. Ele apresentou o convidado ao diretor, à coordenadora de imagens e ao engenheiro de produção, e Woitech ficou assim sabendo que as coordenadoras de imagens, por indicação do diretor, escolhiam nos monitores entre as tomadas que os câmeras transmitiam com seus pesados aparelhos. Todos esses monitores se achavam acima da mesa de produção. A qualidade de som era controlada de outra sala.

— Quando na câmera que estiver dirigida para o senhor se acender uma luz vermelha, isso significa que a sua imagem foi escolhida e vai diretamente ao ar. O senhor será então visto em todas as telas de televisão ligadas em FOCUS — explicara Ross ao funcionário Woitech. Então, quando este fez sua declaração de princípios e manifestou sua ardorosa indignação a propósito da política do Leste de Willy Brandt, piscou a luz vermelha da câmera que estava à sua frente, sobre um pesado tripé. A idéia de que muitas centenas de milhares de pessoas no país o tinham, por assim dizer, em suas salas, pôs Woitech quase em estado de êxtase.

Como a lampadazinha da câmera à sua frente continuava piscando, ele acrescentou:

— O Sr. Brandt não estava aqui durante a guerra. Não sabemos o que ele fazia lá fora. Nós, nós estávamos aqui. Sabemos o que fizemos aqui dentro. Para meus amigos e para mim, em todo caso — aí Woitech ergueu a voz e a cabeça redonda —, estas palavras continuam sendo ainda sagradas. . . — ele pigarreou, encarou sério diretamente a objetiva da câmera que o fixava e via-se como seus olhos ficavam úmidos: — Eu me dei de corpo e alma a ti, terra plena de amor e vida, minha querida pátria!

Enquanto prosseguiam essas longas declarações, durante as quais só Woitech estava no ar, uma maquiladora. que acabara de retocar o rosto de Ross com um diluente, notou preocupada que o moderador estava tendo uma violenta transpiração. Gotas

escorriam-lhe da cabeça para a nuca e para dentro do colarinho da camisa. Os lábios de Ross estremeciam. Seus dedos tremiam e ele cruzava as mãos sobre os joelhos.

— O que houve? — cochichou a maquiladora. assustada. O apresentador era apreciado por todos. Gostavam dele.

Diante da pergunta da moça, ele limitou-se a balançar a cabeça.

— Tudo em ordem?

Ele assentiu com a cabeça e fez um sinal para ser deixado sozinho. A maquiladora desapareceu atrás da cortina do estúdio. Para os operários do estúdio e dois convidados de Ross que estavam ali esperando, ela disse preocupada:

— Ele está tendo alguma coisa. Um médico, talvez, a gente...

— Bobagem — disse um operário. — Isso já aconteceu algumas vezes, Olga. Vive tomando pílulas, você sabe, antes de qualquer FOCUS. São as pílulas. Precisa de médico coisa nenhuma.

De fato, Ross já havia sofrido tais assomos de transpiração durante a emissão, e eram devidos, e nisso o funcionário estava inteiramente certo, a uma grande quantidade do psicotrópico Nobilam, que Ross, há doze anos, regularmente tomava todas as manhãs, em dosagens demasiado elevadas. Antes de qualquer de seus programas e também em qualquer oportunidade que exigisse grande concentração e trabalho, ele tomava uma ração adicional. Essa noite, entretanto, e ele o notava no maior nervosismo, a droga que sempre o acalmava e o fazia seguro de si, estava tendo efeitos opostos. Ela o estava excitando! Ele sentia o suor lhe banhar o corpo inteiro, seu coração batia disparado, e sentia-se dominado por uma cólera cega por tudo o que Woitech dissera. Por último, acrescentara ainda a seu poema as palavras “Pobre Pátria dividida!”

Ross inclinou-se para a frente. Sobre a testa já havia nova mente algumas gotas de suor. Sua face tremia.

— Aiaiaiai — disse lá em cima o diretor em sua cabine. Vergou o microfone que saía do painel à sua frente, aproximou-o e disse: — Dois, Charley, chegue bem perto de Daniel!

O homem atrás da câmera 2 usava, como seus colegas, os fones de ouvido. Logo em seguida apareceu o rosto de Ross ocupando inteiramente a tela do monitor.

— Dois — ordenou o diretor para a coordenadora de imagens. Ela fez que sim, inclinou-se sobre o painel com os muitos botões reguladores, pequenas lâmpadas e comutadores, e imediatamente se acendeu a luzinha vermelha na câmera 2,

Ross dizia muito excitado:

— Nossa pobre pátria, meu caro Sr. Woitech, está dividida porque nós alemães, sob um regime de criminosos, sob os maiores criminosos que conheci na História, começamos uma guerra criminosa, a maior que conheci na História...

— Epa! — exclamou o diretor diante do seu painel no andar de cima. Chamava-se Kramsky e estava um tanto embriagado. Isso acontecia com freqüência. Muitos membros da equipe da emissora de Frankfurt — e também de outras estações — estavam freqüentemente mais ou menos bêbados.

— ... uma guerra — prosseguia Ross cada vez mais alto e indignado enquanto sentia o sangue latejando em seu corpo e o maldito Nobilam atuando às avessas — em que sessenta milhões de pessoas pereceram, dos quais quatro vírgula oito milhões de alemães e vinte milhões de russos... - uma guerra.

— Um momento, por favor — disse o funcionário Woitech bem calmo.

— Agora falo eu, Sr. Woitech. Eu também o deixei falar... uma guerra na qual grandes, antigas e belas cidades, entre as quais a nossa, afundaram em escombros e cinzas..

— Dê-lhe duro! — exclamou Kramsky satisfeito, e para dentro do microfone: — Se der jeito, Charley, chegue mais perto de Daniel!

Lá embaixo no estúdio, atrás da câmera 2, Charley fez que sim com a cabeça. A imagem de Ross ficou enorme no monitor. E a luz vermelha da câmera 2 piscava, piscava, piscava.

Ross estava fora de si.

— ... uma guerra, em que países prósperos, entre os quais a nossa pobre pátria, foram totalmente devastados e em que nós não deixamos aos infelizes habitantes de todos esses países senão os olhos para chorar; uma guerra na qual, em campos de concentração, alemães assassinaram seus irmãos alemães e seis milhões de judeus... uma guerra na qual...

Woitech sacudia a cabeça.

— Até o senhor começa de novo com essa revoltante asneira, Sr. Ross! Um apresentador alemão numa televisão alemã quer atestar de qualquer maneira a culpa alemã, tst, tst, tst.

— Jorge — disse o bêbado Kramsky encantado — agora você, rápido! Chegue também bem perto do sujeito!

A coordenadora de imagens, uma bonita jovem em seu comprido avental azul, começou a tremer.

— Parem! — gritou ela. — Chega!

— Parar merda nenhuma — disse Kramsky. — Quando é que acontece uma coisa dessas? — E bateu na mão da moça, que queria girar um botão. — Você quer largar isso aí, sua vaca? Caia fora! Fora, eu estou dizendo! — E a empurrou. Ela escorregou do assento, cambaleou. atrapalhou-se e foi parar com as costas contra a parede da cabine, onde continuou de pé, os dois punhos fechados, apertados contra a boca.

Enquanto isso — ouvia-se tudo pelos alto-falantes da cabine — Woitech continuara a falar baixinho, numa quase advertência:

— Mas quanta coisa irresponsável está o senhor dizendo aí. Sr. Ross! Historiadores americanos e ingleses mundialmente reconhecidos e respeitados, como Toland e Irving, comprovaram em suas obras que esta guerra nos foi imposta. E já chega com essa história dos judeus! Não há dúvida, alguns foram mortos. Mas nunca seis milhões. No máximo, dois. A velha mentira, para que também os nossos netos se sintam culpados perante Israel e continuem pagando, pagando, pagando... — E levantando uma das mãos: — E quantos alemães não foram expulsos de suas casas e terras pelos russos, poloneses e tchecos? A quantos não foi tomado o torrão natal? Posso lhe dizer, Sr. Ross: doze milhões! Sim, senhor, doze milhões de expatriados! Quantos alemães não morreram na fuga, na expulsão, nos deslocamentos forçados? Quase três milhões! E quantos foram abatidos como animais depois de 45? Centenas de milhares, muitas centenas de milhares! Ê preciso pôr um ponto final nessa história de arrastar nosso povo pela lama!

Enquanto Woitech falava, a maquiladora tentava restaurar novamente o rosto de Daniel Ross. Estava fora das objetivas. Ela espalhava um pó de maquilagem com um pompom e sussurrava suplicante:

— Por favor, Sr. Ross, deixe isso! Pare com isso! O senhor está estragando a sua vida.

Ele abanava mudamente a cabeça, exasperado.

— Ele está tendo alguma coisa — gritou a coordenadora lá em cima na cabine. — Vocês não estão vendo como ele está mal? Corta, corta!

— Eu também acho — disse o engenheiro de produção, sentado num canto. — Kramsky, você está arrumando encrenca, estou lhe dizendo.

— E os jornais amanhã? E o escândalo, homem? E você acha que eu vou deixar escapar essa chance?

— Você está maluco! Você vai é para a rua!

— Eu estou de porre. Você conhece um só cara que eles tenham chutado só porque estivesse de porre? Chegue mais junto do Woitech, um!

B a câmera 1 se aproximou mais de Woitech, que havia continuado a falar:

— Quem eram os verdadeiros criminosos? Quem assassinou os oficiais poloneses em Katyn? Quem destruiu Dresden, que estava entupida de refugiados? Quem violentou nossas mulheres e filhas? Quem pregou gente nos portões de nossos celeiros? E os jogou pelas janelas? E os jogou amarrados uns nos outros dentro dos rios? Quem espancou, pisoteou e torturou até a morte? Essas hordas asiáticas.

Na cabine de direção tocou o telefone. O engenheiro de produção foi atender. Uma voz alta explodiu de dentro do aparelho. Ele se empertigou, assustado.

— Aqui é Colledo — berrou a voz masculina. — Quem é o senhor?

— Zettler. Engenheiro de produção, Sr. Colledo.

Do alto-falante saía a voz de Ross, lá embaixo no estúdio.

— As hordas asiáticas... Aí temos de novo a velha história de sempre! E exatamente o senhor quer uma reunificação na paz e na liberdade, um homem como o senhor?

— Quem está dirigindo?

— Kramsky.

— Me passe ele! Ande, vamos, vamos!

O Zettler estendeu o fone ao diretor.

— Agora a merda está feita — disse ele. — Colledo.

O diretor atendeu ao telefone

— Kramsky! — berrou Conrad Colledo, chefe da divisão de política e atualidades da emissora. — O que está acontecendo com você? Bêbado de novo, não é?

— Sim, Sr. Co

Enquanto isso, Ross continuava aos berros. A maquilagem escorria pelo seu rosto junto com o suor e lhe pingava na camisa. De vez em quando, arquejava lutando por ar.

— Reunificação! Ouça aqui, em setenta anos, nós começamos três guerras! Uma Alemanha unificada é perigosa demais. Precisa continuar dividida. Essa é a opinião do mundo inteiro.

— Como é que isso continua ainda? — ouviu-se do fone a voz de Colledo.

— Eu tenho... Nós estamos... estamos inteiramente perplexos... Nós. .. O senhor nos desculpe, Sr. Colledo queira nos desculpar!

— Desligue tudo, estou dizendo! — gritou Colledo.

— Nem o senhor, Sr. Woitech, nem o senhor quer a reunificação, seja honesto! Qual é a sua remuneração como...

A voz de Ross foi interrompida. Os monitores da cabine tremiam, escuros. Kramsky interrompeu finalmente a transmissão. Através do grande vidro ele viu como os três câmeras, as maquiladoras e os ajudantes de palco acorreram em direção aos dois homens à mesa do cenário para tentar acalmá-los. Nas telas dos monitores aparecia a indicação: DEFEITO TËCNICO. Foi colocada música.

- Graças a Deus, pelo menos uma pessoa normal no estúdio — soou a voz de Colledo ao telefone. — Quem é a locutora da noite?

— A Ilse.

— Já vou ligar para ela e dizer o que ela deve falar. E o senhor vá tratar de Ross e desse Woitech. Ele não deve sair da emissora em hipótese alguma. Esconda-o dentro de um camarim. O homem precisa ser vigiado. Dê champanha para ele, caviar, sei lá eu o quê... os jornalistas não podem se aproximar dele de jeito nenhum antes que eu tenha falado com ele.

— Todos os portões estão trancados, Sr. Colledo.

— Eu quero dizer, pelo telefone, seu cafajeste beberrão! Confesse que o senhor fez tudo isso de propósito!

— Sr. Colledo, eu juro...

— Tá, tá. Nenhum de vocês me saia daí! Já estou a caminho. Dentro de meia hora estarei aí.

— Santo Deus... — Kramsky vira o estúdio através do vidro,

— Santo Deus, por quê?

— O Sr. Ross não está passando bem. Dois ajudantes de palco o estão segurando de pé. Ele está ruim mesmo, Sr. Colledo.

— O senhor deve levá-lo para o médico do estúdio!

Kramsky ligou o circuito de alto-falantes para o estúdio e chamou pelo microfone:

— Levem-no ao médico.

— Pelo teu palpite é que a gente estava esperando — gritou um ajudante.

— O senhor — vociferou Colledo —, vá também imediatamente para o médico. E vai soprar o canudinho, Kramsky! Imediatamente, está me entendendo. O Zettler também. Estão me entendendo? — A ligação foi interrompida.

A coordenadora de imagens soluçou alto.

— Cale a boca, sua vaca — disse Kramsky; e para o engenheiro de produção: — Como é que é, então, vamos?

— Vou indo em seguida.

Kramsky desapareceu. A porta fechou-se atrás dele.

O engenheiro de produção abaixou-se até o chão e tirou uma garrafa de conhaque de dentro de um alçapão do piso. Tirou-lhe a rolha e tomou um bom gole.

— Que está fazendo? — gritou a mulher, horrorizada.

— Não está enxergando? Estou enchendo a cara. Também tenho que ficar de porre. Se não ficar, não há desculpa por não ter desligado mais cedo. — Ergueu novamente a garrafa. Depois disse: — Somos uns idiotas.

 

— Kramsky e Zettler tinham ambos acima de um e meio por mil — disse Conrad Colledo enquanto andava rapidamente de um lado para o outro dentro de seu grande gabinete. — Você, absolutamente nada. Dá vontade de chorar, homem. Por que você não pôde também encher a cara?

Daniel Ross não respondeu.

Ele estava sentado numa poltrona de tubos de aço, olhando fixamente uma litografia de Picasso pendurada na parede. Representava uma cabeça de mulher de perfil e, ao mesmo tempo, de frente. A mulher tinha apenas um olho.

O grande edifício da administração estava ligado aos estúdios de gravação por uma passarela fechada. A estação de Frankfurt ficava nas proximidades da cidade de Königstein, nos montes Taunus, ao pé do grande Feldberg, a vinte e cinco minutos de carro de Frankfurt.

— Se você estivesse embriagado, não aconteceria nada. Você sabe muito bem que nas emissoras se bebe de tal forma que se instalou uma poderosa rede de assistência social para alcoólatras. Ninguém é demitido por estar bêbado, mesmo que provoque o maior inconveniente. Veja o caso do Juhnke, por exemplo. O que ele já não estragou em matéria de programas! E daí? Todo mundo gosta dele. Você, com suas pílulas de merda. Agora a catástrofe está aí.

Ross continuava sem responder.

Estava muito pálido e seu rosto brilhava de tanto creme com que a maquiladora tinha limpado a pintura. Ela pusera creme em excesso, e quando tentou limpar o que sobrava com um lenço de papel, Ross, tremendo de inquietação, a empurrara para o lado e fora embora. A pintura manchava o colarinho branco da camisa que Ross trazia aberta, com a gravata desapertada, e sem paletó, já que estava novamente sentindo calor. Sob os olhos cinzentos havia olheiras escuras, e seu cabelo branco luzia sob a forte luminosidade vinda do teto.

Já passava de meia-noite. Colledo ficara horas com um Siegfried Woitech exaltado, e mobilizara toda a sua arte de persuasão. Nesse ínterim, havia sido informado dos resultados dos exames de teor alcoólico sangüíneo de Kramsky e Zettler, e praguejara silenciosamente ante o formulário que trazia o nome de seu velho amigo Daniel Ross, onde se via assinalado, do lado, um zero cortado pelo meio.

Em seguida, voltara-se de novo para o funcionário Woitech, que se encontrava profundamente atingido em sua honra de íntegro democrata — palavras com que ele mesmo se autodefinia. Colledo sabia que tinha de fazer tudo para acalmar o homem. Nenhuma pessoa sensata iria comprar briga com as Federações de Expatriados. Ainda em casa, Colledo telefonara para o superintendente, Sr. von Karrelis, conversando a respeito do futuro de Daniel Ross. Depois, explicara a um superexcitado Siegfried Woitech que o superintendente da emissora assegurara que Ross, no dia seguinte, quarta-feira, durante o horário nobre, logo após o noticiário das 20 horas, iria, perante as câmeras, pedir desculpas pelo seu grave deslize.

— Fará ele isso de fato? — perguntou o funcionário incrédulo.

— O senhor tem a palavra do superintendente, Sr. Woitech. Daniel Ross irá formalmente apresentar suas desculpas e dar uma satisfação tanto ao senhor quanto às Federações de Expatriados. Com isso, a sua honra terá sido efetivamente restabelecida — ou não?

— Bem, estará sim — disse Woitech. De repente, ele riu.

- O que há? — perguntou Colledo.

— O senhor me ofereceu champanha o tempo todo, Sr. Colledo, e eu, naturalmente, recusei. Mas, já que é assim... realmente, acho que vou tomar uma taça, depois de toda essa agitação. Mas o senhor terá de beber comigo.

— Com muito gosto.. — Colledo pegou uma garrafa de dentro de um balde que uma moça trouxera da cantina há horas, junto com duas taças. Colledo abriu a garrafa e encheu os cristais até a metade, estendendo um para o homem da cabeça redonda.

— Vamos tocar? — exclamou Woitech.

Tocaram-se, então, os copos e eles beberam, depois de Woitech ainda ter erguido o seu e olhado Colledo seriamente nos olhos, enquanto lhe desejava “saúde!”.

Após a terceira taça, já se sentia comovido e festivo.

- O senhor é uma pessoa extremamente decente, Sr. Colledo. E o seu superintendente também. Vou evidentemente dizer aos meus camaradas de que modo o senhor se comportou, como tomou suas enérgicas medidas. Tiro meu chapéu, Sr. Colledo! Muito correto! Também o direi a todos os jornalistas. Dá-me pena o Sr. Ross, mas um homem que não sabe conduzir uma entrevista é totalmente inconcebível num programa desses. Não é verdade?

— O Sr. Ross é um homem muito competente, apenas doente.

— Mas qual é o seu problema?

— Os nervos, Sr. Woítech.

— Ah, é isso. Mas então ainda é pior! O senhor não pode deixar um doente dos nervos ficar delirando por aqui!

Estas últimas frases Conrad Colledo não repetiu mais tarde, em seu escritório, para Daniel Ross. Todo o resto, sim. Ross ficou sentado, sem qualquer reação, escutando sem replicar. Colledo corria ainda de um lado para o outro.

— Você se incomodaria muito em se sentar, Conny? — perguntou Rosa com voz rouca.

— Desculpe-me.

— Eu é que lhe peço desculpas. Estou com uma dor de cabeça de enlouquecer.

Colledo deixou-se cair numa cadeira de tubos de aço atrás da escrivaninha do mesmo estilo, coberta com um grosso tampo de cristal. A enorme sala estava decorada em estilo moderno e tinha quatro janelas, que não podiam ser abertas por causa do sistema de ar condicionado. As quatro janelas eram um símbolo de status. Mostravam que Colledo estava investido de uma alta posição dentro da hierarquia da emissora. Havia funcionários com três janelas, duas, e muitos de uma só. A sala do superintendente possuía seis janelas e era gigantesca.

— Você vai, então, desculpar-se hoje à noite, Danny — disse Colledo baixinho. Soava quase como um pedido.

— Naturalmente — respondeu Ross sem levantar a cabeça. — Eu faço tudo. Realmente, eu também lamento muito.

— E que você, depois disso, não vai mais poder ficar à frente das câmeras, você também compreende.

— Entendo. Afeiçoei-me muito a FOCUS. Era o meu programa. Eu o construí. Seis longos anos; graças a você, ninguém jamais se intrometeu uma só vez.

— Sim, mas agora...

— .. . acabou. Claro. Perfeitamente claro. — E Ross perguntou: — E o que vai acontecer comigo?

— Programa infantil — disse Colledo exausto. Também ele puxou para baixo a gravata e abriu o colarinho.

— O quê?

— Claro que não! — Colledo bateu com a mão sobre o tampo de cristal. — Eu queria dizer alguma coisa igualmente atraente. Qualquer coisa absolutamente sem importância em um departamento absolutamente sem importância.

— Acho que está claro para você — disse Ross enquanto finalmente passou a encarar o amigo — que eu não me posso dar a esse luxo. Por causa dos colegas nas outras emissoras. E por motivos — desculpe-me a palavra dura — de amor-próprio. Isso também está claro para você?

— Evidente.

— O que acontece então se eu me recusar a aceitar uma tal posição?

— Então você precisa demitir-se. Não fique me olhando assim. homem — exclamou Colledo — Poxa, não olhe assim! Sou seu amigo! Trabalhamos juntos durante vinte e um anos. Graças a você, estou sentado nesta cadeira. Você me trouxe da Süddeutsche* quando o lugar aqui ficou vago. Você acredita que eu possa esquecer isso? Esses seus malditos comprimidos!

* Grande jornal de Munique. (N. do R)

 

— Você tem mesmo de tomá-los, sem apelação? Não pode viver sem essa porcaria?

— Não — respondeu Ross. — Não posso.

— Desculpe-me.

Depois disso, ambos ficaram em silêncio. Ouviam uma sirene de ambulância que crescia e decrescia.

— Se eu pedir demissão, serei indenizado? — perguntou Ross finalmente.

— Não.

— E se eu não me deixar transferir e não pedir demissão?

— Já combinei tudo com o superintendente. Você trabalhou tão bem por tanto tempo, Danny. A emissora vai demiti-lo. Neste caso, você recebe uma indenização. Mas cair fora, você precisa. No seu estado, vai acontecer a mesma coisa da próxima vez. Meu Deus, que história indecente e imunda! Seus comprimidos! Essa coisa de você ficar devorando seus comprimidos é que é responsável por tudo! Você está arruinando sua carreira com esse troço, sua saúde, sua capacidade de trabalho!

— Não é correto — disse Ross. Isso soou altivamente. — Tomo isso há doze anos. Alguma vez você notou que eu, por isso, não podia trabalhar decentemente? Nunca! Sem esses comprimidos eu não conseguiria trabalhar.

— Porque você está viciado.

— Não estou viciado. Só preciso de minha dose. Não fica maior. Fica sempre igual. O que você acha, quantas pessoas tomam tranqüilizantes? De que é feita a nossa vida? De nervosismo, tensão, medo de não acertar, medo indeterminado, medo da próxima catástrofe. Medo! Medo! Medo! A gente precisa então se ajudar, quando se é inclinado para isso. Você não tem essa propensão, considere-se feliz! Muitos bebem, você bem sabe, toda a televisão está submersa em aguardente. Outros tomam tranqüilizantes. Eu, por exemplo.

— As circunstâncias que você acaba de enumerar fazem parte da vida. Medo é muitas vezes um mecanismo de segurança importante. Tensão pode elevar a produtividade.

— E quando você não agüenta mais o estresse? A pressa? O medo? Qual, isso você não entende mesmo. Eu também preferiria encher a cara, pode crer. Todo mundo seria bonzinho para mim. E tão preocupados. Beber à vontade é permitido, pílulas são proibidas.

— Você não pode libertar as pessoas, mas pode ajudá-las a se sentirem menos mal — disse Colledo.

— Que significa isso?

— Texto publicitário americano para médicos. Li isso quando estive a última vez em Nova Iorque. Pretende motivar os médicos a receitarem tranqüilizantes — o maior negócio farmacêutico do mundo.

Ross interrompeu, irritado.

— Não vamos discutir, por favor. Pedirei desculpas hoje à noite. Quanto a demitir-me, faço-o neste momento. — Ele mexera no bolso de sua calça, tirando finalmente uma embalagem de Nobilam e um pedaço de papel impresso. — Só ainda uma coisa: agora eu sei por que me aconteceu isso agora à noite. Acontece uma vez em cada dez mil casos. Tinha de atingir exatamente a mim.

— Do que você está falando? Que inferno!

— Aqui! — E Ross segurava o papel. Isto é uma bula. Acompanha qualquer medicamento. Este aqui também. Sim, olhe isso! Nobilam é como se chama a droga sem a qual eu não posso trabalhar — e não posso viver. Olhe bem para ele!

— Não fale assim comigo, homem!

— Desculpe-me. Lamento. Realmente. Preste atenção, Conny. Depois que eu esculhambei com o programa, ocorreu-me haver lido uma vez alguma coisa na bula. E aqui está escrito! Aqui está... Rosa acompanhou as linhas com o dedo. — Aqui! —. E leu alto: — Alertamos para a possibilidade de uma reação paradoxal, excitação ao invés de sedação — está entendendo? Excitação em vez de sedação! — ...reação que pode ocorrer com medicamentos sedativos comparáveis! — Ross bateu o papel com a mão. — Excitação ao invés de sedução! O troço reagiu ao contrário, hoje à noite. Durante doze anos eu tomo isso, e sempre correu tudo muito bem. E depois acontece isso. E, naturalmente, logo na hora do programa!

— Danny! Por favor! Eu sou seu amigo. Não agüento ver como essa droga o está matando. Sim, fique quieto, você está morrendo, eu disse, é isso mesmo. Agora, sem emprego, o medo vai ficar cada vez maior. A inquietação. O nervosismo. Fique quieto, não interrompa! Você pensa que no nosso ramo alguém cala o bico? Você calcula quantos colegas já sabem que você vive tomando comprimidos? A maioria, Danny, a maioria. E aqueles que ainda não o sabem, agora vão descobrir. Deixe apenas que os rapazes da imprensa marrom comecem! Espere, até que apareça você-sabe-muito-bem-quem! Depois do que aconteceu, não será possível você achar um outro emprego — na situação em que você se encontra. Você precisa, está me ouvindo, você precisa fazer simp!esmente uma terapia de desintoxicação! Essa é a primeira coisa que você tem de fazer. Eu lhe peço isso. Eu lhe suplico, vá a uma clínica, faça um tratamento para perder o vício, faça-o por mim, está certo, Danny?

- Não — disse Ross e olhou novamente para o chão.

— Mas por que não?

— Porque eu já fiz uma.

— Você já...

— Sim.

— Quando?

— Há doze anos.

— Há doze anos? 1971? Você ainda dirigia o Estúdio Sudeste da Europa, em Viena!

- Fiz o tratamento em Viena. Por isso você não sabe de nada. Ninguém aqui sabe disso. Sim, em Viena. Psiquiatria das Clínicas da Universidade. Hospital Geral.

— Mas... mas... Você disse que já toma esse troço há doze anos. Não estou entendendo. De que foi então que eles curaram você em Viena?

— Oxazepam — disse Rosa.

— Ora... -

- Oxazepam. Uma outra droga. Muito boa. Só a tomei durante um ano. Tomei demais. Do Oxazepam eu tinha de me livrar mesmo. Não podia continuar. Assim como aconteceu hoje à noite, naquela época podia ocorrer todos os dias.

— Então, há doze anos, eles lhe deram o Nobilam no lugar do Oxazepam?

— Isso — disse Ross. — E, antes do Oxazepam, tomei Vallium durante sete anos.

Colledp sussurrou:

— E depois dos sete anos de Valium você já fez um tratamento?

— Sim. Também em Viena. Também no Hospital Geral. Gente formidável. Reconheceram que eu simplesmente não tenho condições de suportar minha vida alucinada sem qualquer droga. Não posso suportar! Por isso, tentaram desintoxicar-me gradualmente. Foi assim que me deram o Nobilam. Que é que você tem, Conny? Conny, o que está acontecendo com você?

Colledo se levantara e se aproximara de uma das janelas escuras pela noite. Sua sala se situava no oitavo andar do edifício. Ele contemplou o grandioso tapete de luzes de Frankfurt. A chuva contra a vidraça.

— Meu Deus — disse ele, sufocado —. você é mesmo um pobre-diabo.

Seguiu-se um novo silêncio. — Então, Colledo voltou a falar, mirando os milhões de luzes coloridas da cidade a distância:

— Volte para Viena, Danny! Por favor! Vá de novo àqueles especialistas! Faça de novo um tratamento!

— Não — respondeu Ross, e agora sua voz se tornara dura de repente. — Não, eu não irei para Viena. Nunca mais.

— Mas por que não? Por que não, Danny?

— Porque lá trabalham os únicos em quem eu confio, que me conhecem, que sabem o que está acontecendo comigo.

— Você quer dizer: por isso você não vai procurar nenhuma outra pessoa?

— Sim.

— Não compreendo. Mas por que então não para Viena? Para seus amigos, para o médico que goza de sua confiança, que conhece você tão bem. Por que não, Danny? Por que não?

— Não é um médico — disse Ross, baixinho. — Ë uma médica. E eu... eu me envergonho demais diante dela.

Ali havia calor, uma luz dourada e quietude.

Ali havia nuvens prateadas e poderosas, de formas fantasmagóricas.

E ali não havia mais cuidados nem fadigas, correrias ou tristezas. Não existia mais nenhum medo, não, medo algum.

Ali havia a rosa vermelha.

Ele a observava feliz, e pensava: a rosa sou eu. Meu corpo, encravado na terra, desfez-se. Uma parte dele, suas partes orgânicas, transformou-se em gás carbônico e amoníaco e espalhou-se pelo mundo inteiro. As partes inorgânicas, os diversos sais, entraram pela terra adentro, onde estou deitado, e fizeram crescer essa rosa, essa extraordinária rosa. Transformei-me numa rosa. Uma rosa e também uma nuvem, pois os gases em meu corpo subiram aos céus. Sou uma nuvem.

Começou a chover, suave, levemente. Eu sou a chuva, pensou ele, também a chuva. Existe uma energia do mundo, cuja dimensão está fixada com precisão. Nem a mais ínfima partícula dessa energia se pode perder jamais. Só pode é transformar-se. Em outra energia. Numa infinidade de outras energias. A energia que deixou o meu corpo quando morri tornou-se calor, calor que eu sinto, luz dourada que ilumina a rosa. Eu sou a luz, pensou. Cada árvore, cada folha, cada pedra contém uma parte de mim. Porque as partes de meu corpo estão por toda parte, no céu e na terra. Sou a terra. Sou o rio. Sou o mar. Sou um pouco de cada coisa que existe no cosmo infinito. Sou o universo. O universo que sempre houve, que jamais começou, que jamais precisou ter um começo. Nada mais sou, mas sou tudo. E tenho finalmente a paz.

Como isso é belo, pensou ele. Como é bela a morte, como é bela a eternidade. Sim, agora eu sou até a eternidade. Por que não soube isso antes? Por que não pude imaginar isso mais cedo? Gostaria de ter morrido logo depois de nascido. Não, refletiu, esse pensamento está errado. Não poderia morrer logo. Deveria crescer, para que meu corpo recebesse todas as suas panes que agora se transformaram. Precisei viver a fim de poder dessa forma ser universal: uma parte do todo que floresce e vive e prospera, sim, que acontece neste mundo, neste universo, pois com certeza eu gerei energia com minha vivência, boa e má, com meu pensamento e com meu trabalho, criei energia e entreguei-a à morte para que venha a ser parte da energia do mundo.

E viu novamente a rosa, e ali havia calor, luz dourada e quietude.

Aconteceu, então, uma coisa terrível. Não sabia o quê. Mas a calma foi repentinamente perturbada por uma confusão ruidosa e horrível de sons pavorosos, um barulho infernal, e já não havia mais nenhuma luz dourada, apenas escuridão, oh, pavorosa escuridão, e já não havia mais calor porém frio, um frio terrível que o deixava horrorizado.

Na felicidade, ele era destituído de peso. Agora, de repente, sentia de novo o corpo. Seu corpo era puxado de um lado para o outro, levantado, atirado para baixo. Um número cada vez maior de sensações se fazia notar — dor de cabeça, dores no corpo, e frio, o frio, o grande frio glacial. Cheio de horror, pensou: isto não é a morte.

Em seguida, alguém lhe bateu violentamente no rosto e uma voz de mulher gritou: Engula isto! Logo depois achou que ia ficar asfixiado. Seu nariz estava tampado, as narinas eram apertadas, com dor. Ar! Preciso de ar! Até há pouco não precisara de ar, agora precisava. Sentiu de novo o medo, um medo desgraçado. Sentia seu corpo se contorcendo. Escancarou a boca para poder respirar. Mas, antes que o conseguisse, um líquido quente de gosto asqueroso escorreu para dentro de sua garganta. O gosto era tão horrível que quis cuspi-lo. Em vez disso, engoliu-o. O líquido fétido vinha num fluxo cada vez maior, e ele engolia, engolia, pois precisava respirar, respirar pela boca aberta. Gemia. Não agüentava mais. Ninguém agüentaria. Era demais. Demais. O líquido havia atingido o estômago, que logo se revoltou. Tudo retomou como um tiro. Sentia como vomitava, com o maior ímpeto. O nojo o sacudia todo. Foi abrindo os olhos, com enorme dificuldade. Via tudo enevoado. Sua cabeça doía a ponto de estourar. Onde estava? Na banheira. Como tinha ido parar na banheira? Distinguiu uma mulher, curvada sobre ele. Ela parecia estar nua como ele. Água quente bateu em seu corpo. Essa mulher.., essa mulher... Ela o lavava com o chuveirinho.

Só agora notava que estava sentado com as costas apoiadas na parede da banheira. Aspirou fundamente o ar, o nariz já estava livre.

Logo depois a mulher fechou-o de novo, apertando as narinas. Ele abriu a boca. E, num instante, o líquido entrava em sua garganta, quente, fétido. A mulher dizia alguma coisa. Ele não entendia nada. Recomeçou a vomitar. Não agüento mais, pensou. É demais. Não posso suportar. Morto! Morto! Quero estar morto.

Uma terrível suspeita o assaltou: Estavam tentando salvá-lo! Trazê-lo de volta para esta vida imunda e miserável. Do universo dos mortos. Por aquela mulher despida, com seus grandes seios, que novamente se debruçava sobre ele, enquanto o chuveirinho lavava tudo.

Aspirou estertorando pela boca. Chorava agora de raiva e desamparo. E mais uma vez a mulher lhe dizia alguma coisa e ele nada entendia. Ela não tinha piedade. Sem dó, lhe apertava as narinas, obrigava-o a abrir a boca, e o líquido fétido entrava em sua garganta, fazia com que ele vomitasse e vomitasse.

Sentia-se terrivelmente fraco. Seu coração batia em disparada. Então, passava a tortura. Conseguia respirar. A água do chuveiro lhe escorria, quente, sobre o peito. Uma mão tocava a sua. Demorou até que compreendesse que ela lhe tomava o pulso. De repente, ficou sozinho. Ela deixara o banheiro. Sua cabeça escorregou de lado sobre os frios azulejos da borda da banheira. Estava tão fraco que não conseguia mais manter seus olhos abertos. O crânio estourava de dor. E ele pensou na rosa.

Então, a mulher voltou.

Segurou-o pelos cabelos e colocou sua cabeça de novo no lugar. Apertou-lhe de novo as narinas. Ele abriu a boca. O tormento recomeçava. De novo a coisa asquerosa lhe descia pela garganta abaixo, e ele vomitava. Outra chuveirada e ela dizia alguma coisa. Dessa vez, gritando. Todo o seu corpo tremia. Diante de seus olhos giravam traços e círculos negros. Ele ouvia a mulher ofegar. O que ela estava fazendo devia custar-lhe um grande esforço. Ela segurava sua cabeça, impedindo que ele deslizasse para dentro da banheira. Na outra mão segurava uma vasilha com aquele líquido repugnante. Sim, ela ofegava de tanto esforço. Mas só desistiu no momento em que ele perdeu a consciência.

Ele voltou a si e ela logo lhe apertou o nariz. Tudo recomeçou. Ele estava ficando cada vez mais débil. Ela derramou o líquido fétido em sua boca e ele vomitou. Ficou inconsciente. Voltou a si. Tudo recomeçou mais uma vez. Após o primeiro segundo da eternidade, chegou o momento em que ele só cuspia bílis. Seguiu-se um momento de calma. E a mulher lhe entornou água quente na garganta. Nem isso ele reteve. Por três vezes, água quente. Então, sentiu seu coração parar. Ela te matou, pensou ele. Obrigado. Tudo enegreceu à sua volta. Retornou a calma. Bem-vinda a morte, pensou.

Ele abriu os olhos.

Agora, enxergava com nitidez. Ela se achava sentada à borda da cama. Ele, deitado, estava coberto até o pescoço. Ela não estava mais despida, usava um slip e um sutiã cor de carne. Tinha cabelos negros e brilhantes, e olhos azuis, luminosos. Sua pele era profundamente bronzeada.

— Quem é a senhora? — Ele mal conseguia articular as palavras.

— Não pode falar!

— Como entrou aqui?

Ela sacudiu a cabeça e pós o indicador sobre os lábios cheios, lindamente arqueados lábios.

— Quer dizer que eu vou ter de viver?

— Não pode falar! — disse ela.

Tudo ficou escuro de novo.

Ele acordou. Ela, de négligé azul, estava sentada na cama. Seu rosto estava macilento, parecia exausta. A lâmpada ao lado da cama ainda estava acesa, mas era dia. Pela janela, via-se que nevava forte. A tempestade rugia levantando redemoinhos. Ele ouvia as venezianas batendo.

— Alô — disse ela.

Ele não respondeu.

— O senhor dormiu bastante. Treze horas. Catorze. São quase onze horas. — Ela olhara para a mesinha-de-cabeceira sobre a qual se achava um despertador elétrico com música.

— Quase catorze horas? — Sua cabeça ainda doía.

— Sim, Sr. Ross.

— A senhora conhece meu... — Ele fez uma interrupção.

— Eu sou Mercedes Olivera.

Ele encolheu os ombros. Sua cabeça doía cada vez mais.

— Não está mais lembrado?

— De quê?

— Eu telefonei. Ontem.

Ele a olhou, mudo.

— De Zurique. Do aeroporto.

— Oh... — Ele gemeu. Tudo lhe voltou à cabeça.

— Está lembrado agora, não é?

— Sim.

— O senhor queria se matar. Por quê?

— A senhora não tem nada com isso. Trouxe-me de volta. Por quê?

— Mas eu não poderia deixá-lo morrer, meu Deus!

— Por que não?

— Sr. Ross, por favor! — E ela pôs sua mão na face dele.

— Não — disse ele.

— O quê, não?

— Tire sua mão! Não gosto.

Ela retirou a mão.

— O que tem a senhora a ver com isso, se eu quero morrer? A senhora destruiu tudo.

— O senhor ainda está muito fraco, Sr. Ross. Tenho a ver com qualquer pessoa que esteja à morte.

— Florence Nightingale — disse ele. — Caridosa enfermeira. Boa Alma. Destruiu tudo, foi isso o que a senhora fez.

— Deixe-me tomar o seu pulso!

— Não me toque! — E disse encolerizado: — Sem a senhora eu teria agora a minha paz. Infame. É infame aquilo que a senhora fez.

— O senhor se encontra diante do momento mais importante de sua vida. O senhor precisa viver!

— Eu a odeio — disse ele. E adormeceu novamente.

Quando despertou, estava escuro lá fora. A tempestade ainda bramia, açoitava com neve as vidraças. A jovem estava de novo

sentada junto da cama. Parecia extremamente cansada. Sorria, porém.

— Então, dorminhoco?

— Por quanto tempo dormi agora?

— Mais de sete horas. São seis da tarde.

Ele tentou endireitar-se e se erguer, gemeu e caiu de vo1ta no travesseiro.

— O que é?

— Preciso ir ao banheiro.

Ela se curvou para diante.

— Espere, vou apoiá-lo.

— Posso ir sozinho.

— Não, não pode, não. — O rosto dela estava agora bem junto do seu. O négligé estava aberto, e ele viu os grandes e belos seios no decote do sutiã, mas não sentiu nenhum desejo, estava fraco demais. Ela o levantou pelos ombros. Por um mo mento, ele descansou a cabeça no ombro dela. Sentia o seu per fume.

— Assim — disse ela —, agora ponha as pernas para fora da cama! Devagar! Sua circulação. — Em seguida, ele deixou suas pernas escorregarem lentamente, até os pés chegarem ao chão. — Eu o conduzo.

— Não precisa... – Ele se ergueu. Tudo rodou violentamente ao seu redor.

— Sim, por favor — disse ele. Só então percebeu que estava inteiramente despido. Pé ante pé ela o guiou até o banheiro. Ele deixou-se largar sobre o assento da privada. Ela ainda o apoiava.

— Posso deixá-lo sozinho?

— Ë melhor ficar por aqui! Estou bastante mal. Sei que estou abusando. Desculpe-me!

— Eu já vi um homem nu, Sr. Ross. Na mesma situação.

O banheiro estava limpo. Ele disse:

— Foi dentro da banheira que a senhora me entornou aquela porcaria pela boca, para esvaziar meu estômago, não é?

— Sim, Sr. Ross. Foi um trabalho pesado, infernal. Primeiro, tive de arrastá-lo da cama até aqui. Estava tão pesado que o deixei cair por duas vezes. Depois, tive de tirar minha roupa por que estava começando a sentir um calor enorme. E também para proteger minhas coisas. O pior foi conseguir passá-lo por cima da borda da banheira. E para fora de novo. Mas tinha de ser na banheira, por causa da água. Enquanto dormia, limpei tudo por aqui e tomei um banho.

— Mas que gênero de conversa — disse ele.

— O senhor acha que agora poderá comer alguma coisa? Caldo de carne?

— Não sei.

— O senhor precisa. Tomou algumas garrafas de água mineral.

— Quando?

— Sempre que acordava um instantinho, eu lhe dava um pouco.

— Não faço idéia.

— O senhor perdeu enorme quantidade de líquido. Tínhamos de repô-lo.

— Bebi muito?

— E não está notando? — Ela o olhou sorridente.

Ele respondeu ao sorriso, seus lábios tremiam:

— Qual é a sua idade?

— Trinta e três. Por quê?

— Bastante sem vergonha para trinta e três anos.

— Totalmente. Deus, como estou contente!

— E com quê?

— Que o senhor já esteja tão melhor.

— O que fez a senhora com o meu pijama?

— Tirei do senhor. Eu não poderia colocá-lo com o pijama na banheira.

— Claro que não. — Ele se ergueu. Os joelhos tremiam violentamente. — Posso pedir-lhe mais uma vez o favor?

Ela o ajudou novamente no caminho de volta para a cama e ele sentiu mais uma vez o perfume e o cheiro de sua pele.

— E que foi mesmo que entornou para dentro de mim? — perguntou depois que já estava deitado.

— Tudo o que possa imaginar. Quando eu o vi...

— Como conseguiu entrar?

— Arrombei uma janela da cozinha, do jardim, e abri o trinco. Ainda bem que o senhor mora no térreo! Naturalmente primeiro eu toquei a campainha — por bastante tempo. Como o senhor não vinha abrir, comecei a ficar com receio. Estava com uma voz tão estranha ao telefone! Mora gente aqui em cima, não?

— Um casal de velhos e um homem solitário.

— Eu tinha uma sensação muito desagradável. Não queria chamar atenção em hipótese alguma. Senão os outros moradores iriam ficar desconfiados. Com certeza teriam chamado a polícia — em todo caso o perigo era bem grande — e ela teria arrombado sua porta de entrada. O senhor poderia acabar na psiquiatria. E para lá que são levados os suicidas, não é verdade?

— Está bem perto daqui.

— Quem?

— A psiquiatria. Nem meio quilômetro de distância.

— O senhor está vendo? É evidente que o teriam conservado por lá. Semanas a fio. E isso é simplesmente impossível.

— E por quê?

— Seu pai o está esperando.

Ele engoliu com dificuldade e a encarou Tentava falar. A tentativa frustrou-se. O choque tinha sido grande demais.

— O que tem o senhor?

— Meu pai...

— Sim?

— Meu pai tombou em março de 1945.

— Não, não.

— Não, o quê?

— Não, ele não morreu. Ele vive. Em Buenos Aires. Agora seu nome é Olivera e está esperando pelo senhor, Por isso é que eu vim para a Alemanha.

— Por quê?

— Para levá-lo até ele.

— A senhora não me pode levar até ele. Que bobagem é essa?

— Estava ficando exaltado. — Meu pai morreu há trinta e nove

anos.

— Ele não morreu. Ele está vivo. Vivo. Acredite! Por favor, por favor! Ele vive e quer lhe dar uma coisa. O mais rápido possível.

Tudo isso era demais para ele. Calou-se e ficou olhando-a fixamente.

— O que houve? Por que não diz nada?

— Quem... quem é a senhora, afinal?

— Sou filha dele — respondeu ela lenta e calmamente. — Sua enteada, quero dizer. Ele casou com minha mãe. Sou, portanto, sua meia-irmã, Sr. Ross.

Ele fechou os olhos.

— E o que quer ele me dar?

— Um acordo secreto internacional. Eu tinha de arrombar a janela da cozinha. Depois, tinha de me apressar enormemente. Felizmente, achei tudo na cozinha. Sabão, sal, vinagre, mostarda.

— Não estou entendendo nada.

— Pois eu tinha de esvaziar seu estômago, tirar todo aquele Nembutal lá de dentro!

Ele abriu novamente os olhos.

— Como é que sabe que eu...

— As embalagens estavam em cima da escrivaninha. Enchi um panelão com água e o coloquei sobre a chapa mais forte. Depois, tudo lá para dentro, muito sal, muito vinagre, mostarda, o que havia. O sabão eu cortei em fatias bem finas, quase como flocos. Depois, tive de cozinhar tudo e deixar esfriar. Sempre despejando de uma panela para outra. Até o senhor poder suportar tomar aquilo.

— Eu tomei raspa de sabão.

— Sim, e tudo o mais.

— De onde é o truque?

— Curso de primeiros socorros.

— E se eu tivesse batido as botas? A despeito de tudo?

— Então eu ficaria encrencada. Morte por negligência. Mas precisava arriscar. Simplesmente precisava. Tive sorte. O senhor também.

— Eu não. — Ainda há pouco ele se sentira bem. De repente, começou a passar mal de novo.

— O senhor vai me contar tudo.

Ele fez que não com a cabeça.

— Mas claro que sim. Mais tarde, Daniel. Quando estiver bem de novo. Posso chamá-lo de Daniel, não?

— Mas é claro, Mercedes — se me for permitido.

— Ë evidente. — Ela continuou: — Sabe, Daniel, nós temos realmente uma sorte gigantesca, nós dois. Vinte minutos depois de eu haver telefonado, saía um avião para cá. Ainda consegui um lugar. Às oito e meia já tinha chegado. — Ela se levantou. — E agora você vai tomar um fino e nutritivo caldo de carne. — Foi até a porta. A ele parecia que, de repente, estava acordando de um sonho profundo.

— Mercedes!

— Sim? — Ela se virou e sorriu,

— O que foi mesmo que você disse?

— Que você ia tomar agora um fino e nutritivo caldo de carne.

— Não, antes disso. Que quer meu pai, morto há trinta e nove anos, dar-me com toda a urgência em Buenos Aires?

— O acordo secreto internacional. Já está tudo pronto na cozinha. Volto já.

Ele ficou olhando o teto, imóvel. Lá fora, a tempestade continuava, com seus uivos, seus bramidos, seus gemidos. Se eu fiquei maluco, também não tem importância, pensou Ross.

 

Na capa estava impressa em tinta negra a águia que segurava nas garras a cruz suástica. Embaixo se lia: LIVRO DE SOLDO.

Ross abriu o velho e fino caderno.

Ali estava a fotografia de seu pai. Um rosto estreito, olhos grandes e lábios finos. Os cabelos grisalhos cortados rente. Ross percebeu que sua mão tremia. Leu na página com a foto os dados sobre a pessoa. Nome: Ross, Georg. Nascido: 11 de janeiro de 1907. Local: Viena/Ostmark. Patente: Major. Virou as folhas. As páginas estavam amarelecidas e mofadas.

— Esse é seu pai?

— Sim — e sua voz oscilava.

— Não tem a menor dúvida?

— Não. — Ele a encarou. — Como é que isso chegou às suas mãos?

— Ora, ele me deu para trazer, meu Deus! Senão como ficaria eu de posse disso? Do reino dos mortos? Seu pai está vivo, assim pelo menos você acredita em mim!

Ele não respondeu. Fitava a foto no livro de soldo.

Mercedes voltou a sentar-se a sua frente. Uma almofada apoiava as costas dele. Tinha vestido um pijama novo, tomara três xícaras do caldo de carne e continuava a se sentir ainda muito fraco, mas muito melhor e perfeitamente lúcido. Mercedes trajava um costume cinzento com um lenço azul-claro no decote. Tinha feito a maquilagem.

— Aqui — disse ela ao lhe estender uma foto amarelada e pálida. Ele a olhava boquiaberto. Ali estava ele próprio! Um menino de calças curtas e uma camisinha leve, cabelos cortados como pajem. Sorridente e feliz, a foto o mostrava sobre o ombro do pai, em uniforme de major da Wehrmacht alemã, com um cachimbo na boca. Estavam em frente a uma mansão coberta por uma parreira e cercada de grande jardim.

— Está lembrado da foto? — indagou Mercedes.

— Sim. Quem a tirou foi minha mãe. Nós moramos nessa casa. Alugada. Rua Sterwarte. Décimo oitavo distrito. No Cottage. Lembro-me do cachimbo de meu pai. Lá pelo fim da guerra só havia poucos cigarros, e aí ele passou a fumar cachimbo. Esta foto deve ter sido tirada durante sua última licença antes de morrer.

Ela disse então, pacientemente:

— Ele me deu esta foto três dias atrás. Ele não morreu. Com ela eu tenho de convencê-lo.

— Mas nós recebemos a notícia oficial do óbito! — E recitou escandindo as palavras: — “Tombou no leal cumprimento do dever ao Führer, ao Povo e à Pátria em duros combates de defesa, a 2 de março de 1945, na região de Kütrin.” Como pode viver ainda? E por que nós nunca mais tivemos notícia dele — nunca, durante todos estes anos? -

— Isso, ele vai lhe contar pessoalmente. Aqui, quem é esse aí? — E estendeu-lhe uma segunda foto.

Ele se viu, ainda menino, ao lado de uma frágil mulher que tentava sorrir. Estavam sentados juntos sobre um sofá, ao lado de um aparelho de rádio.

— Minha mãe, e isso era um daqueles chamada Receptores Populares.* Existiam aos milhões. Tínhamos ainda um outro aparelho, grande, com o qual minha mãe ouvia sempre Londres à noite. É claro que ela só ouvia Londres quando meu pai não estava em casa. Ele simplesmente teria dado parte à polícia. Era um nazista fanático. Estou seguro de que ele denunciou uma porção de gente. Cara nojento. Canalha. Ah, como eu o odiei!

— Por ter sido um nazista fanático?

— Naquele tempo eu era muito pequeno, não tinha sequer sete anos de idade. Ainda não tinha entendimento. Ficava, então, sempre feliz quando ele vinha de licença. Naquele tempo eu ainda gostava dele. Veja como estou sorrindo de satisfação na foto. Não, foi mais tarde, anos depois, quando eu estava ficando crescido e podia compreender, e a coitada da minha mãe me contou tudo a respeito dele. Que pavoroso nazista ele fora! E que inferno fora a vida dela. Que ela chorava às escondidas, dias a fio, de medo antes que ele chegasse. Porque ele ficava fazendo cenas, as piores cenas. À noite, enquanto eu dormia, fazia um escarcéu. Evidentemente eu não ouvia isso... um meninote. Só mais tarde é que eu entendi tudo. O casamento estava destroçado. Ele queria se separar, tão logo terminasse a guerra. Coitada de minha mãe. Aí é que comecei a odiá-lo. Você certamente sabe tudo sobre mim, ele e minha mãe, não é?

— Sim.

— Então me diga onde ele trabalhou, antes de ter de ir para a Wehrmacht!

A resposta veio rápida:

— Ele era gerente de uma filial da Caixa Econômica da Áustria.

Ross a mirou por longo tempo.

* Votksempf&tge — iniciativa do III Reich análoga à do carro popular Volkswagen, na época produzido em poucas unidades. (N. do T.)

 

Muito bem, então ele está vivo. Esse maldito canalha está vivo. Continuo sem entender. Por que não se chama mais Ross? Por que agora é Olivera? Como foi parar na Argentina? Esse imundo! Oh, agora mesmo é que eu o odeio! Mas, ao mesmo tempo, ele sabia ser tão charmoso, tão carinhoso, tão amável, quando queria. Também para minha mãe, coitada. — E voltou a olhar para a foto. — Está vendo aqui? As sandálias de couro com os grossos saltos! Eram chamados de “sapatos de cortiça”. Engraçado, como a gente se lembra de certas coisas. Recordo-me da história inteira... Certa vez, meu pai trouxe consigo esses tais sapatos de cortiça quando veio de licença. Eles eram da Itália. Tudo isso minha mãe me contou mais tarde, e só agora me ocorre, depois de tanto tempo. O pai deve tê-los recebido de algum camarada, pois ele ficava o tempo todo na frente oriental. Foi uma grande sensação naquele tempo: sandálias italianas! Está vendo, a cortiça está revestida com couro. A mãe ficou tão contente quando o pai lhe deu de presente! Duas horas depois ela estava chorando. Por causa dele. Um sádico. Divertia-se quando minha mãe chorava. Olhe só para ela aqui! Por volta dos trinta e cinco, um pouquinho mais velha que você, Mercedes. Uma mulher velha, sem esperanças.

— Ele a recriminava de quê?

— Nada! Estava simplesmente farto dela. A mãe estava segura de que existia uma outra mulher na vida dele. Eu também.

— O que quer dizer eu também?

— Eu também estava certo disso, mais tarde, quando já tinha juízo e minha mãe me contou tudo.

— Mas por que, no fim das contas, seu pai vinha para Viena, de licença, quando ali só havia lágrimas e cenas?

— Estava louco por mim. Eu era seu tesouro.

— Mas, no caso de separação, você seria entregue a sua mãe.

— Sim — disse ele perplexo. — Claro.

— Ele deveria saber disso.

— É... Talvez também lhe fosse indiferente e ele só estivesse fazendo teatro. Talvez tivesse um motivo totalmente diferente para vir a Viena.

— Pode ser — disse ela.

— Você sabe a razão?

— Sim.

— Ou seja?

— Seu pai — disse Mercedes —, seu pai vai contar tudo a você. Seu pai, eu não. Ele me proibiu.

— Por que você está fazendo tudo isso?

— Porque gosto dele — disse ela com firmeza. — É uma pessoa maravilhosa, a mais admirável que conheço.

— Então deve ser um outro homem. Um sósia. Que loucura! Um patife, meu pai é um patife miserável.

— O homem mais extraordinário do mundo — disse ela fervorosamente.

Entreolharam-se, mudos. A tempestade continuava uivando. Mercedes estendeu-lhe uma série de papéis amarelecidos.

— Cartas — disse Ross. — Cartas que eu lhe mandei.

— Sim, cartas suas. Ele as conservou. Durante quarenta anos. Há três dias ele as entregou a mim. Ele me contou que você já sabia ler e escrever bastante bem com pouquíssima idade. — Ross ficou olhando para uma velha folha de papel coberta com a desajeitada escrita de criança.

Querido paizinho! Mamãe disse que onde você está houve uma grande batalha. Se Deus quiser não aconteceu nada com você. Por favor, escreva bem depressa... Ross virou a folha e leu:

14 de setembro de 1943. Pegou uma outra carta e pulou algumas linhas. 21 de fevereiro de 1943 ... Aconteceu uma coisa horrível. No dia 13 de fevereiro houve de novo um ataque pela manhã, dessa vez também em nosso bairro. Nossa casa foi atingida. Quebrou tudo e todas as nossas lindas coisas também quebraram. Mamãe chora sem parar e eu também tenho de chorar porque perdi a bicicleta e o ursinho também. Ficamos no bunker do cinema Apollo, você sabe, senão estávamos mortos agora. Encaminharam a gente para pessoas estranhas. Mamãe está escrevendo certo aonde. Essa gente estranha é nojenta conosco...

— É, fomos bombardeados — disse ele — e perdemos tudo. Pouquinho antes do fim da guerra. Durante vários anos ficamos morando em casas de estranhos, dentro de um quarto... — E fitando a jovem: — Mas isso é impossível.

— O quê?

— Que agora você me traga essas cartas. — E disse em voz alta: — De onde você tirou essas coisas? Diga a verdade! Você trabalha para quem?

Ela lhe devolveu o olhar, em silêncio.

Ross murmurou:

— Desculpe-me... Mas se você tivesse acreditado durante trinta e nove anos que seu pai está morto, e de repente viesse alguém e dissesse ... Lamento muito. .. Por favor, me perdoe!

Ela fez que sim com a cabeça.

Ele agarrou uma outra carta: 6 de janeiro de 1943... - Querido paizinho! Pelo seu aniversário desejo-lhe muita felicidade e saúde e que você volte para nós bem. Mamãe escreve também uma carta para você. Ela tem um chapéu novo muito bonito. Ela disse que é do Panamá, é uma fazenda que até parece casca de ovo. Na frente, ele cobre um pouco a testa e atrás cai um pouquinho também e é pequenininho e muito engraçado. Mamãe disse que faz parecer jovem e ele se chama chapéu de Koletsch...

— É college — explicou Ross fitando a velha folha de papel. — Lembro-me muito bem dele. É mesmo, ele rejuvenesce, tinha dito minha mãe. Anos mais tarde ainda falávamos do tal chapéu... — Sua voz se perdeu. E leu: — Para o aniversário eu pintei para você uma porção de flores. — Ele observou a carta toda emoldurada por desenhos coloridos. — ... As vermelhas são tulipas, as azuis são campânulas e as marrons são margaridas. Peguei o amarelo em vez do marrom porque nãotenho mais lápis amarelo e nem existe mais. E os dois corações são o de mamãe e o meu... Seu querido Daniel.

Olhou-a desamparado. Sua voz soava suplicante:

— Em que devo acreditar? Em quem devo crer?

— Em mim — disse ela. — Seu pai vive e precisa vê-lo logo. Essa é a verdade.

— Por que você não me conta que história é essa de pacto secreto internacional?

— Porque ele quer lhe contar. Em mim você não iria acreditar. Ê um acordo colossal demais. Você precisa lê-lo. É a respeito da paz. Pelo amor de Deus, pode existir alguma coisa mais importante que esta? Todos nós temos de fazer o máximo para que não venha uma guerra nuclear por aí. — Ele a olhava espantado, pois sua voz de repente ficara muito alta. O seu rosto tremia. — Você também é a favor da paz!

* Votksempf&tge — iniciativa do III Reich análoga à do carro popular Volkswagen, na época produzido em poucas unidades. (N. do T.)

- Não, eu sou a favor da guerra. Quero que um SS-20 caia direto em cima da cabeça.

A expressão facial dela ficara gelada.

— Muito bem — disse Mercedes. Mas ela estava ferida. — Aqui.

— Estendeu-lhe uma grande foto colorida. — Eu a tirei há uma semana.

Ross viu, entre duas velhas palmeiras muito altas, um homem de terno claro e sapatos brancos. Estava postado sobre um gramado cortado bem rente ao chão diante de um sobrado branco de teto plano. A casa ficava num parque repleto de árvores exóticas e tinha altas janelas francesas. Podiam-se distinguir caminhos ensaibrados e cercas vivas bem aparadas, além de grandes canteiros de flores que esplendiam em todas as cores. O homem encarava diretamente a objetiva E sorria. Tinha dentes fortes, saudáveis. Era esbelto, de rosto estreito com olhos cinzentos e lábios finos. Sua cabeleira, ainda espessa como a de Ross, era branca como a neve. Na têmpora direita corria verticalmente o que restava de uma profunda cicatriz: era um traço mais claro contrastando com a pele bronzeada pelo sol.

— Está reconhecendo seu pai?

— Talvez — respondeu ele, sentindo aquele impreciso temor, o temor que não podia descrever mas que conhecia tão bem, já há tantos anos, crescia lentamente dentro dele, ainda bem devagar. — Sim, é ele mesmo. A cicatriz na têmpora. - Ele sofreu um grave acidente de moto quando ainda era jovem. Quase morreu naquela ocasião. A cicatriz... É essa a casa em que ele mora?

— Sim.

— Parece que ele está bem de vida. Como é que o Sr. Olivera tem tanto dinheiro?

— Por favor, Daniel. Ele deu duro a vida inteira.

— Sim? Trabalhando em quê?

— Ele era banqueiro.

— Era?

— Está com setenta e sete anos! — E ela deu a Ross uma outra foto. — Esta eu tirei de bem perto. Olhe a data do jornal que ele está segurando.

Na foto, o homem segurava um jornal de tal modo que se podia ler claramente o título bem como as linhas que ficavam abaixo. O jornal se chamava La Prensa.

— A data — repetiu Mercedes mais uma vez. Ele leu:

3. Febrero 1984.

— Acredita agora que ele vive?

— Ele vive... — Sua voz era apenas um sussurro. — O patife vive... — E o medo voltou, o medo sem nome dentro dele, ainda bem longe mas que se aproximava aos poucos, mais perto, mais perto. — Maldição — disse ele e, olhando para Mercedes: — Por que não me deixou morrer!

Em vez de responder, ela lhe passou um envelope fechado.

Ele o rasgou e desdobrou a folha coberta com uma letra minúscula mas nítida e exata que, à esquerda no alto, trazia a indicação do endereço do remetente, impresso em alto-relevo.

EDUARDO OLIVERA

CÊSPEDE 1006

BUENOS AIRES

8 de fevereiro de 1984

 

Meu querido filho Daniel.

A presente carta lhe será entregue por sua meia-irmã Mercedes. Certamente se trata para você de um choque ficar sabendo que ainda me encontro vivo, mas para mim não existia, em 1945, nenhuma outra possibilidade senão a de estar oficialmente morto. Trata-se de uma longa e aventurosa história que só estarei em condições de lhe contar na ocasião em que você estiver sentado diante de mim. Poderei, então, esclarecer também a razão pela qual somente agora, após tantos anos, eu me manifesto e por que não o fiz mais cedo.

Nesse ínterim, encareço-lhe vir ao meu encontro imediatamente em companhia de Mercedes, uma vez que estou de posse de um documento secreto cuja publicação desferirá nos detentores do poder de ambas as superpotências um golpe mortal e banirá o terrível perigo de uma guerra nuclear.

Tenho conhecimento de que você trabalha em Frankfurt na televisão. Aquilo que tenho a lhe dar proporcionaria a você e à sua emissora uma enorme sensação que transformaria o mundo. Bem pode compreender que eu preciso falar pessoalmente com você a respeito. Sei que, quando lhe tiver contado tudo, você também entenderá o que aconteceu e me perdoará. Já tenho se- tenta e sete anos de idade. Quero fazer as pazes com você, Daniel — e também quero presenciar como a publicação do material que vou lhe dar fará com que os indivíduos de todas as nações descubram o jogo diabólico de que são vítimas. Por favor, não me considere um fantasista. Além de tudo, estou velho demais para mentir. Suplico-lhe, meu filho, venha ver-me!

Seu pai

 

Ele deixou a carta cair.

- O que é? – Mercedes o olhou assustada... – Você está totalmente pálido. Está tremendo, Daniel.

- Você poderia... – Ele engolia com dificuldade. – Você poderia por favor ir até o banheiro... ali está dependurado um armário de medicamentos...

- E então?

- Lá você vai encontrar um remédio, se chama Nobilam...

— Nobilam...

- Sim... por favor... me traga... uma... embalagem.... rápido!

O medo subia dentro dele como água que jorra de um chafariz. Ele sentia que estava ficando tonto. Deixou-se cair de volta na cama. Em seu peito batia alguma coisa que ele não podia localizar nem designar — como já tantas vezes, tantas.

Tanto tempo sem tomar nada... falei demasiado... me excitei demais, pensava ele.

Mercedes retornou com a embalagem e um copo cheio de água. Rasgou a cartolina e tirou a tampa de plástico do tubinho de vidro. Ele lhe estendeu a mão trêmula, em concha.

— Quantos?

— Cinco... seis... oito.

Os comprimidos caíam do tubinho. Ross os jogou na boca e os engoliu com água.

Mercedes o olhou assombrada.

— O que é?

— Por isso... eu queria... me matar. — Falar custava-lhe desmesurado esforço. — Espere... uma meia hora... Aí o troço... faz efeito... Então lhe contarei tudo... A maldita... história inteira.

 

Ninguém falava.

Lá fora estrugia a tormenta. Ross jazia, quieto, de costas, e mantinha os olhos fechados. Como uma potente bolha de ar o medo pulsava contra seu esterno, na altura do coração. Ele conhecia isso, mas sempre se assustava. Plop. Plop. Plop. Depois, alguns minutos de calma. E então na garganta. Plop. Plop Plop. Ele engolia em seco, sem parar. Mas as palpitações ele não podia engolir. Os músculos dos seus braços e pernas tremiam. Isso também era um sinal. Engraçado, pensou ele, quando a coisa está mesmo péssima eu não transpiro. Lá estava a tortura novamente. Encarou Mercedes. Precisava de um ponto em que se pudesse fixar.

— Muito ruim?

Ele fez que sim com a cabeça.

Ergueu as mãos e esticou os dedos. Agitavam-se bastante. Tremor bonito, grosseiro, pensou. Mas não conseguia dizê-lo. Não teria dito sequer uma sílaba. Em sua boca se acumulava saliva. Engoliu-a com a maior dificuldade. Era como se não tivesse mais músculo algum.

— Você é viciado? Balançou a cabeça.

Lá estava a bolha de ar. Plop. Plop. Plop.

Deixou cair as mãos sobre a coberta. Mercedes afagou-as com seus dedos frescos e lisos, cautelosamente. Ela sorria. A palpitação da bolha de ar inexistente manifestou-se de novo na garganta. Ele queria dizer alguma coisa.

— Não diga nada — sussurrou ela.

Plop, plop, plop, plop

Ele se virou na cama. Seus artelhos se crisparam. Ele escorregava para cá e para lá. O rosto dela não lhe saía dos olhos.

— Isso vai passar — disse ela. — Eu vou rezar, para que passe.

Nos olhos dele se refletia o espanto quando viu que ela baixava a cabeça. Após um longo tempo, ela o olhou novamente.

— Melhor?

Ele queria sacudir a cabeça, mas depois fez que sim e sorriu amarelo como um pobre idiota. Sentia-se, de fato, melhor. A imaginária bolha de ar não mais palpitava. O medo, o medo imaginário, recolheu-se. Dez minutos mais tarde, tudo havia passado.

— Seu rosto tem cor novamente.

— Agradeço-lhe a oração.

— Você nunca reza?

— Eu? — De repente estava tudo em ordem de novo, de repente conseguia falar novamente com fluência. — Sou um pobre pagão que não encontra salvação.

— Mesmo assim. E um pobre pagão não reza, num estado desses?

Ele a fitou.

— O que é?

— Você é formidável.

— Por que eu adivinhei?

— Sim.

— Não foi difícil. Você tinha um medo terrível, não é verdade?

Ele concordou.

— Quem é que, então, não reza?

— Decerto — disse ele. — Mas comigo, ainda não funcionou. — Ross pensou: Como pode funcionar uma coisa que não existe? E disse: — Bem, ouça aqui, Mercedes... — Ela o interrompeu:

— Você não quer me contar tudo amanhã? Seu rosto está com jeito doente. Você precisa dormir. -

— Não... Eu... eu quero contar agora. Não estou cansado. O Nobilam ajudou... quero dizer: sua oração.

— Foi mesmo o Nobilam.

— Se eu pudesse desejar alguma coisa... — disse ele.

— Como?

— Quando você me telefonou do bar do aeroporto, ouvi a Dietrich cantando aquela canção. Você me disse que o barman colocara um cassete no estereofônico. Eu já estava dopado de Nembutal e uísque. Mas quando eu ouvi a melodia, levei um susto para valer “Se eu pudesse desejar alguma coisa.” Marlene Dietrich fez essa canção ficar famosa no mundo inteiro - Uma mulher extraordinária... Eu a venero... Sabe o que Hemingway escreveu a respeito dela?

— Hemingway?

— “Mesmo que ela só tivesse a sua voz, ela poderia com isso partir teu coração — citou ele.

— Ë — concordou Mercedes — £ isso mesmo.

— “... mas além disso ela tem esse belo corpo e a beleza eterna do seu rosto” — prosseguiu ele. — “É indiferente com o que ela parte os corações, basta que ela venha refazê-los. É grandioso. não é?

— Ë, sim — disse Mercedes.

— E é verdade — disse ele. — Todo o mundo deve sentir isso. Desejaria havê-la conhecido. Ou falado com ela, nem que fosse ao telefone. — De novo empregava palavras de Hemingway:

“Eu sei que nunca podia ver Marlene sem que ela mexesse com meu coração e sem que ela me fizesse feliz. Se é isso que a torna misteriosa, trata-se de um lindo mistério”... Um lindo mistério — ele repetiu. — Sim, assim é Marlene Dietrich!

— Você está falando demais — ponderou Mercedes.

— “Se eu pudesse desejar alguma coisa!” Veja, em 1931, num filme da UFA (ele se chamava “O homem que busca seu assassino”, com direção de Robert Siodmak) uma outra cantou pela primeira vez essa canção... uma outra... Nós colecionávamos discos antigos, de setenta e oito rotações, está entendendo? E exatamente desse disco de laca haviam sido raspados os selos dos dois lados. Mesmo assim, nós descobrimos, uma mulher e eu, tudo a respeito, com exceção de quem havia cantado essa música. Em Viena, perguntamos à proprietária do cinema Bel que apresenta regularmente reprises de filmes bem antigos. Quem cantou foi uma mocinha, disse a senhora. Mas do nome ela não mais se lembrava... Isso foi bastante estranho. . . Nunca ficamos sabendo o nome. . . Mas já faz tanto tempo. . . tantos anos.. . E então ouvi novamente essa canção... Isso deve ter um significado, não?

— Você é supersticioso, Daniel?

— Se alguém não consegue crer, torna-se supersticioso. — E repetiu: — “Se eu pudesse desejar alguma coisa”. . . E deu um sorriso.

— Vocês se amaram muito — disse ela baixinho.

— Sim, muito. Ela foi a mulher que me... salvou. — A voz dele ia ficando cada vez mais vagarosa. Fechou os olhos. — Sempre me salvou novamente... Há muito eu já teria morrido, sem ela... Vida e amor.., foi o que ela me deu... tanto amor..

“Se eu pudesse desejar nossa canção... em Viena. E agora eu a ouvi de novo.., com seu telefonema... estranho... não é verdade? Sibylle me conhece como nenhuma outra pessoa. Mas eu não posso ir ter com Sibylle. Não posso... no fim... no fim, nós nos matamos um ao outro... — Agora mal se entendiam suas palavras. — Sempre se mata aquilo que se ama.

Mercedes curvou-se sobre ele, que respirava fundo. Tinha adormecido. A jovem ajeitou a coberta. Sentou-se de novo, ereta, e ficou observando Ross. Seu rosto estava sério.

 

Sibylle se erguera e agora se encontrava de pé, com as costas voltadas para ele, junto à escrivaninha. Ela completara trinta e seis anos de idade. Era de estatura mediana e esguia. Tinha cabelos castanhos e olhos muito grandes, da mesma cor. Sua boca era larga, de lábios suavemente delineados, criados para rir. Daniel tinha trinta e três, e seus cabelos ainda eram louros. Parecia recuperado e saudável. Estava tudo quieto no consultório de Sibylle, situado no primeiro andar da Clínica de Psiquiatria e Neurologia no imenso conjunto do Hospital Geral de Viena.

— Conseguimos, portanto, verificar que sua dependência em relação ao Vallium e, de um modo geral, seu comportamento como viciado, pouco tem a ver com estresse ou a loucura de sua profissão. Ele vem de fatores ligados ao seu desenvolvimento na infância e de uma vinculação materna exagerada.

— Doutora... — disse Ross, erguendo-se também.

— Sim? — E ela se virou. Ele estava bem próximo a ela e disse: — Existe mais uma complicação, que eu gostaria de lhe contar.

— Qual?

— Eu amo você, Sibylle. Desde que a conheço. Adoro você.

Os olhos dela se arregalaram. Ele a envolveu nos braços e a apertou contra seu corpo. Ela se defendeu em vão. Os lábios se encontraram, e ele a beijou com dureza. Também a boca de Sibylle permaneceu rígida. Mas depois, seus lábios se abriram, ficando macios, admiráveis. Foi um longo beijo. Por fim, ela deitou sua cabeça sobre seu ombro, sua face encostada na dele.

— Eu o compreendo, Daniel — murmurou ela. Seus braços o enlaçaram. Beijaram-se novamente. Depois, se olharam nos olhos.

— Para sempre — disse ele.

— Para sempre.

Sibylle sorriu de repente.

— O que é? — indagou ele.

— Nada, querido.

— Como não!? Por que você sorriu?

— Por favor, não.

— Por favor, sim! Em que você pensou?

— Pensei: vinculação materna! Ê evidente que eu sou mais velha — disse ela, sorrindo novamente.

Ele sentiu um frio súbito e acordou num segundo. Mercedes estava sentada ‘a beira da cama. Trajava um pijama negro e reluzente,

— O que é... Como... — Ele ainda estava muito longe. O sol invadia o dormitório. — Eu adormeci de novo, não é?

Ela concordou.

— Pois eu queria lhe contar em que situação me encontro. Por que não posso ir para Viena. . . mas deveria. . . Eu contei isso?

— Você estava simplesmente fraco demais.

Ele olhou para o despertador de música sobre a mesinha-de-cabeceira.

— Nove e meia. Dormi novamente dez horas.

— Treze. Como está se sentindo hoje, nesta maravilhosa segunda-feira?

— Bem — disse ele. — Mas, e você... onde dormiu?

— A seu lado.

— O quê?

Ela sacudiu os ombros.

— Se houvesse um divã em sua casa... Mas só há esta cama. Esta cama bem larga. Com uma segunda coberta e outro travesseiro. Assim, vesti também um pijama e deitei-me a seu lado. Está chocado?

— Não. — Ele a encarou. Um raio de sol refletia-se em seus cabelos pretos, dando-lhes um brilho avermelhado.

— A mulher também não ficou.

— Que mulher?

— Não a conheço. Chegou pontualmente às nove. Uma senhora já idosa. Casaco grosso e chapéu de caçador. E uma imensa bolsa de compras, cheia de mantimentos.

— Era a Sra. Glanzer. Minha governanta.

— Sim, foi o que logo pensei. Muito enérgica. Usa sapatos ortopédicos.

— Como sabe... Ah, sim, eles fazem muito barulho quando ela caminha.

— Eu pelo menos acordei por causa deles.

— O que disse ela?

— “De novo uma outra.”

— Muito inconveniente.

— Como assim? Eu estava deitada com você na cama. Parece que você leva uma vida particular agitada.

- Mercedes, francamente... — Muito embaraçado ele disse:

— Às vezes não suporto ficar sozinho. O medo. Tenho medo de tudo. De gente. Mudanças do tempo. Da vida. Medo do medo. Já há uma eternidade acordo à noite e me sinto extremamente mal... E quando alguém está deitado ao meu lado... uma moça... carne jovem, firme, quente, em que me posso aconchegar, sem acordar a moça... Só para saber: aí há vida, despreocupação, saúde... então...

— Então?

— ... então penso que afinal não preciso morrer.

— Quando você acorda à noite, acredita que precisa morrer?

— Muito freqüentemente, sim.

— Morrer de quê?

— Não sei. As noites são piores do que os dias... Daí as meninas... Você está sorrindo...

— Claro que não!

— Está sim! — Ele sentou-se. — Por favor, não fique sorrindo. Estou liquidado. Mercedes. A emissora de televisão me demitiu, por causa de algo que aconteceu. Nenhuma outra televisão me aceita. A sociedade produtora onde me candidatei para trabalhar não existe mais... — e, curvando-se para diante: — Ainda tenho algum dinheiro no banco. Essa porcaria do meu pai! Mas o que ele escreve... e o que você diz desse pacto... Se você afirma que se trata de uma sensação... Isso poderia ser a minha chance... Portanto, preciso pegar o avião para ir ver meu pai... — Ele interrompeu-se: — Você conseguiu o que queria. Minhas congratulações! -

Ela o olhou, radiante.

— Mas estou numa tal fossa... E o que acontece se eu não agüentar mais o vôo.., se eu passar mal por lá...

— Telefone, então, para a sua Sibylle. Telefonar não significa ir até lá. Telefonar, isso você há de conseguir! Caso ela seja o único médico em quem você confia. A ela você pode contar tudo — somente sobre o seu estado, claro. Fora isso, apenas o absolutamente indispensável. Uma palavra a mais seria suicídio. Diga-lhe que seu telefone está grampeado.

Ele a interrompeu, nervoso:

— Não sou nenhum idiota.

— Desculpe-me! Mas é que há tanta coisa em jogo. Entre outras coisas, nossas próprias vidas. Sei que você fará tudo direito. Sibylle vai aconselhá-lo, vai descobrir uma saída para você. Ande, venha! -

— Para onde?

— Ao telefone. Falar com Sibylle. — Ela viu que o rosto dele se torcia. — Daniel! Você não deve exagerar na maluquice, está bem?

— Mas eu nem quero. Eu vou ligar. Com certeza. Mas é que estou... Preciso de café. Depois do café, vou telefonar.

— Palavra de honra, seu pagão!

— Palavra.

Ela estendeu sua mão direita e ele a apertou. Algo lhe ocorreu.

— Como é que a Sra. Glanzer entrou na casa? Eu havia trancado a porta e passado a corrente.

— E eu a abri novamente, depois de entrar pela janela da cozinha. Minhas malas estavam no meio da rua. Bem, vou fazer o café. Você precisa de alguma coisa no estômago. Você consegue lavar-se sozinho e fazer a barba?

Ross levantou-se. Seus joelhos só tremiam de leve.

— Sim — disse ele. — Mas a Sra. Glanzer...

— Contei-lhe que você comera alguma coisa estragada e teve uma ligeira intoxicação. Que eu iria ficar cuidando de você. E que o médico já tinha vindo. Calma. Absoluta calma.

— E ela acreditou em você?

— Cada palavra. Ela só voltará na quarta-feira. Sou muito convincente, está sabendo? Vamos, já para o banho!

A luz do sol entrava no quarto, ofuscante. Sobre a casa, um avião passou em vôo baixo. Tudo lhe pareceu irreal, absoluta-

mente irreal.

 

Tomaram o café da manhã na cozinha.

Ambos estavam de roupão. Diante da vidraça arrombada Mercedes fixara um grande papelão. Havia café, suco de laranja. pãezinhos frescos, manteiga, presunto, queijo, geléia e ovos quentes. Ross estava de repente, com enorme apetite. Mercedes ficou contente com isso.

Entre ambos estava o jornal Frankfurter Aligemeine do dia. A Sra. Glanzer o trouxera. O olhar dele fixou-se no cabeçalho.

— Andropov morreu!

— Morreu na quinta-feira. Você não sabia?

Ross sacudiu a cabeça.

— Ah, bem! — disse ela. — Os russos só anunciaram na sexta à noite. Saiu nos jornais de sábado. Eu vi as manchetes quando aterrissamos em Zurique.

— No sábado não li jornal algum... — Interrompeu-se, pegou o jornal e começou a ler.

Iuri Andropov morrera de fato em Moscou na última quinta- feira, aos sessenta e nove anos de idade, às l6h5Om, hora local, após longa enfermidade e curto tempo de serviço: quatrocentos e cinqüenta e quatro dias antes, em 12 de novembro de 1982, o Comitê Central o elegera para o cargo de secretário-geral, um pouco mais tarde para a chefia do partido e do Estado. Nos últimos cento e setenta e quatro dias, Andropov, sucessor de Leonid Brejniev, não fora visto em público — desde 18 de agosto de 1983.

— Será sepultado amanhã — disse Ross com o jornal nas mãos. — Seu sucessor será escolhido hoje. Já se sabe que será Konstantin Chernenko, um filho de camponeses siberianos, setenta e dois anos de idade. Nunca ouvi falar.

— Nós já — disse Mercedes.

— Quem, nós?

— O pai e eu. Chernenko é o funcionário mais idoso que já se tenha tornado chefe do partido, é apenas um ano mais novo do que Stalin por ocasião de sua morte, após quase trinta anos no comando do poder.

— E você sabe isso?

— Estudei Política na Universidade, Daniel. Trabalho e penso politicamente desde que comecei a pensar.

— O que quer dizer: você trabalha? — Ele a olhava por cima do jornal.

- No movimento internacional a favor da paz. — Ela agora falava mais alto e os seus olhos estavam brilhantes.

— Ai, minha Nossa Senhora — disse ele. — Movimento internacional a favor da paz! Criar a paz sem armas! Quatro vírgula seis bilhões de seres humanos não podem permitir que duzentos velhos decrépitos os levem à morte nuclear! Transformar espadas em arados... — E ele interrompeu espantado o que dizia, pois Mercedes havia exclamado alguma coisa. Seu rosto estava inteiramente desfigurado. Os músculos tremiam, as sobrancelhas se haviam juntado, uma expressão de paixão alucinada se manifestava em seus olhos.

- Cale-se! — exclamou ela. E acrescentou: — Você se diverte com o movimento a favor da paz? Está achando que somos ingênuos, pirados e escravos de Moscou, não? Sonhadores e sectários, hem?

— Nada disso...

— Claro! Mas o senhor está equivocado. Sr. Ross! Agora, exatamente agora, quando o senhor vir o documento, vai reconhecer que o movimento pacifista (tanto mais com o material de que meu pai dispõe) é de qualquer forma o movimento mais importante do mundo. Na Argentina, até pouco tempo atrás, nós tivemos dificuldades. Oito anos de ditadura militar! Mas depois vieram as eleições em 30 de outubro. Desde então, a Argentina é uma democracia. Já em 13 de dezembro, três dias após seu juramento de posse, o Presidente Alfonsín decretou novas leis. No dia 15, ele mandou quarenta e oito oficiais de alta patente para a reserva, prematuramente. No dia 29, ele começou o gigantesco processo contra os membros das três Juntas militares. Agora, tudo é mais fácil. Agora poderemos afinal trabalhar direito. — Viu a cara assustada dele. — Desculpe-me essa explosão, mas...

— Você é uma fanática, Mercedes.

— Em favor da paz, sim. Para a paz, tudo. Minha vida, imediatamente!, se for para ajudar a preservar a paz.

— Lamento muito — disse ele enquanto pensava: presumivelmente não só a vida dela. Qualquer outra também. Meu Deus, em que coisa estão querendo me meter.

Ela disse então, mais calma novamente:

— Chernenko é um modelo de apparatschik. Por sinal, ele nunca dirigiu uma empresa do Estado ou administrou um departamento do governo. Ninguém tem idéia do que ele vai fazer depois que tomar conta do poder. Quem está realmente no poder? Ele ou os homens que estão por trás dele? Será meramente uma solução transitória! Andropov tinha sessenta e nove, Chernenko já tem setenta e dois. Corre em Moscou a maledicência de que o partido é uma empresa funerária.

- E Reagan? — perguntou ele. — Ele tem setenta e três.

— E a América vota este ano. — Mercedes tinha novamente a expressão de férrea decisão em seu rosto. — Você não pode me compreender porque não pode saber o que o espera em Buenos Aires. Mas irá compreender-me. Por isso mesmo é que eu vim até aqui, para buscá-lo, o mais rápido possível. Meu Deus, o tempo urge! O tempo urge!

— Você me provoca arrepios — disse ele.

— Não, não sou eu quem provoca arrepios. — Mercedes sacudiu a cabeça. — São os governos das superpotências! E os provocam sempre mais. Cada vez mais sinistros. Cada dia mais imprevisíveis — em virtude desse acordo. Você precisa lê-lo! Não dá para explicar. Velhos! Velhos, que já viveram as suas vidas. Você sabia que durante vinte e dois dos sessenta e anos de sua existência o Estado Soviético foi governado por doentes?

Então Ross disse:

— George Orwell escreveu em 1984: “Não tem importância se o Grande Irmão vive ou não.”

— Orwell! Se Orwell tivesse encontrado meu pai, ele não teria escrito isso.

Ele a observava, assombrado. Essa mulher está realmente possuída, pensou ele. Possuída por sua convicção de que ela e o vagabundo do meu pai detêm a paz do mundo nas mãos, que podem preservar o mundo de uma guerra terrível que traria o fim de todos nós. Ela está com uma pressa frenética. Tem medo de que nosso tempo se esgote.

Mercedes exclamou:

— Orwell não teria escrito nem uma linha desse livro inofensivo e simpático romance de conversa mole — que comparado com a verdade de 1984, é apenas um simpático romance água-com-açúcar. — Os lábios dela tremiam. — Você vai conhecer esta verdade — disse Mercedes Olivera. — Agora vai conhecê-la.

 

— Hospital Geral.

— Puxa! Finalmente.

— Como é, por favor?

— Nada, nada. Estou falando de Frankfurt. Por favor a Dra. Mannholz, da psiquiatria.

— Não trabalha aqui.

— Bobagem. Claro que trabalha aí. Ela tratou de mim.

— E eu lhe estou dizendo que não temos nenhuma Dra. Mannholz.

— Minha cara senhorita, estou perfeitamente seguro de que vocês têm uma Dra. Mannholz. Na Clínica Psiquiátrica da Universidade.

Ele ouviu a mistura de vozes das moças na central telefônica.

— A senhorita está sobrecarregada. Naturalmente. É muito importante. Talvez a senhorita não trabalhe aí há muito tempo. Poderia pedir-lhe que perguntasse a alguma de suas colegas?

— Eu trabalho aqui na mesa telefônica há onze anos. Mas muito bem... Um momento... — Ele ouvia como a telefonista falava indistintamente com uma colega.

— Alguma coisa que não está em ordem? — indagou Mercedes. Ela estava de pé junto a Ross, ao lado da escrivaninha, sobre a qual ainda se encontravam as embalagens abertas de Nembutal. Entre um copo cheio de uísque aguado e a garrafa de Chivas brilhava a plaqueta de prata polida com as palavras de Bertrand Russell que Sibylle dera de presente a ele em 1971, há treze anos. Mercedes leu o texto gravado enquanto seus dedos tamborilavam nervosamente sobre o tampo da mesa.

— Isso é formidável.

— O quê? Alô! Alô! Senhorita... O que é formidável?

Mercedes apontou a plaqueta com o queixo.

— Mesmo que não se tenha a mesma opinião — disse ela. — Sibylle tinha?

— O quê?

— Se ela era da opinião de Russell?

— Não. Ela acreditava que... Alô! Sim, senhorita?

— Agora nós a encontramos — dizia a voz de Viena.

— Ah, muito bem.

— A Dra. Mannholz já não trabalha mais aqui há oito anos.

— Não trabalha mais no Hospital Geral?

— Não, ela trabalha em outro lugar. Eu posso lhe passar o endereço e o telefone dela.

— Ótimo, obrigado. — Ele pegou um lápis.

— Então: Sanatório Particular Kingston em Heiligenkreuz, telefone: nove-três-quatro. Prefixo: zero-dois, dois-cinco, oito. Conseguiu pegar?

— Sim. Eu lhe agradeço muito, senhorita.

— Não há de quê. Grüss Gott! (Saudação nacional austríaca: “Que Deus o abençoe!”

Ele pousou o fone no gancho.

Mercedes sentou-se numa poltrona ao lado da escrivaninha.

— Estranho. — Ele fitava a placa de prata.

— Que ela trabalhe em outro lugar? O que tem isso de estranho?

— Ela gostava tanto dessa clinica. Ela não podia imaginar deixá-la um dia. — Ergueu os ombros e apertou o código da Áustria, 0043, em seguida o de Heiligenkreuz e, por último, o número do sanatório.

Atenderam imediatamente. Era uma voz masculina.

— Sanatório Kingston, bom dia.

— Bom dia. Desejava falar com a Dra. Mannholz. É uma chamada de Frankfurt.

— Vou ligar com a recepção.

— Obrigado

Uma voz feminina: — Recepção da Médica-Chefe Mannholz.

Ele repetiu seu pedido.

— Como é o seu nome?

— Ross. Daniel Ross, de Frankfurt

- Um momento, por favor. Ela não está na sala dela. Espere um instantinho, sim?

- Pois não.

- O que é? – perguntou Mercedes.

— Tenho de esperar um instantinho. A senhora médica-chefe foi chamada com o bip. Não se encontra em sua sala. Líbano em batalha mortal.

— Como?

Ele indicou um número do Time.

— Está escrito ali.

— Ouça, Daniel, não se pode também exagerar. Afinal, a sua amiga não esperava a sua chamada.

— Tudo bem. Tudo bem. — E passou a mão pelos cabelos brancos.

— Alô, Sr. Ross?

— Ela está aí agora?

— Nós a chamamos pelo bip-bip. A médica-chefe já vem. Ainda um momento, por favor.

— Certamente. — E ele começou a assoviar. Mercedes o observava.

— Danny! — Ele se encolheu como se tivesse levado um choque quando ela o chamou pelo nome.

— Sibylle! Enfim. Como estou feliz de ouvir sua voz.

— E eu, Danny! E eu! Meu Deus, desde aquela época você nunca mais deu sinal de vida. — A voz estacou. — Quase treze anos, Danny.

— Você também não se manifestou — disse ele penosamente.

— Mas isso nós havíamos combinado. Você disse que precisava ser assim. Nós não deveríamos ter nenhum contato, nunca mais. Veja se se lembra disso!

— Eu me lembro direitinho. Nós dois agimos de acordo com o combinado.

— Pois é. — Os olhos dele começaram de repente a arder.

— Meus olhos estão ardendo. — Aí veio a voz, que ele tanto havia amado, da Áustria para o seu ouvido:

— O que está acontecendo, Danny? Houve alguma coisa? Você está passando mal?

— Sim — disse Ross.

— O Nobilam. Tomou novamente demais?

— Demais, mesmo.

— Você toma o primeiro avião e vem para Viena! Heiligenkreuz está a vinte e nove quilômetros ao sul. Meta-se num táxi! Por que você não telefonou há mais tempo?

— Tive vergonha, Sibylle. Por causa de minha fraqueza, meu vício. Foi ele que nos separou...

— Isso não é verdade!

— Claro que é verdade! — Ross estava falando mais alto agora. Parecia ter esquecido que Mercedes ouvia tudo. — Nós tivemos nosso tempo. Foi um tempo maravilhoso. Mas não poderia dar certo conosco. .. Com um sujeito como eu... que é covarde, inseguro e cheio de medos... que vive choramingando e não consegue viver sem os malditos comprimidos... Sempre outros... sempre novos...

— Danny! Danny! Não fale assim! Você agora está na fossa, está num baixo astral. Por isso você vem imediatamente para cá! Você é o homem mais fantástico do mundo quando você não se arrebenta todo...

— Sou um porcaria, isso sim. Exagerada vinculação com a mãe! Coisa nenhuma! É só uma desculpa para engolir mais comprimidos. Belo pretexto. Boa desculpa, Sibylle... Você também me deu Oxazepam e eu logo comecei a exagerar como antes com o Valium. E de novo dei de cara no chão, e a boa doutora teve de me ajudar... uma vez, duas vezes... Isso destruiu o maior amor! É isso que acabou enchendo a paciência até da boa Sibylle, que é tão compreensiva.

Mercedes o olhava, assustada. Ele não sabe mais que eu estou aqui, pensou ela. É evidente que ele ainda ama essa mulher. E ela?

EM GRANDE AMOR. SIBYLLE

— Danny! — dissera Sibylle nesse entretempo. — Por favor! Você bem sabe que não foi assim.

— Exatamente assim é que aconteceu. Ouça isto! Uma piadinha. Um menininho volta da escola e chora: “Mãe, mãe, o professor disse para um outro professor que eu tinha um complexo de Édipo. Diz a mãe: Mas isso é bobagem! Você nem precisa prestar atenção, querido. Basta você gostar de sua mãezinha!” — Ele caiu na gargalhada, e as lágrimas lhe desciam pelas faces. Mercedes o olhava preocupada. — Você nem está rindo, Sibylle? Não é engraçado?

— Não. E agora chega. Quando você estará aqui?

— Aí é que está. Por isso é que estou telefonando para você. Eu não posso ir.

— E por que você não pode vir?

— Isso não lhe posso dizer.

— Danny, que bobagem é essa!

— Não é bobagem nenhuma, Sibylle. Preciso partir da premissa de que nossa ligação está sendo ouvida. Talvez não a sua. Mas o meu telefone é muito provável. Eles tiveram bastante tempo desde... — Aí, ele interrompeu.

— Desde o quê? Danny, não fique fazendo teatro!

— Por favor, por favor, acredite em mim! Aí, ninguém está escutando junto com você, não?

— Não.

— Certeza que não?

— Com toda certeza, Danny. Assim, você me ofende.

— Perdão! Isso eu não queria. Então, com certeza, ninguém?

— Não! — gritou ela, fora de si.

A quase seiscentos quilômetros de distância de Daniel, em linha reta, a Dra. Sibylle Mannholz estava de pé, diante de sua escrivaninha recoberta de papéis, dentro de sua enorme sala de conferências, inteiramente pintada de branco. Segurando o fone ao ouvido, ela estava com os olhos arregalados de excitação. Passou a mão sobre os curtos cabelos castanhos. Ao seu lado estava postado um homem alto. Esse homem vestia, como ela, um avental branco de médico. Seu rosto regular, muito pálido, estava impassível. Ele segurava um segundo receptor do aparelho telefônico junto ao ouvido. Desse modo, registrava cada palavra que Daniel dizia, tão nitidamente quanto a médica. Esse homem alto e pálido tinha espessos cabelos pretos, esticados para trás, e olhos que revelavam ao observador uma rara combinação de duas características: frio glacial e melancolia.

— Bem, está bem, eu acredito em você! É que eu agora preciso tomar cuidado. Muito cuidado. Contarei tudo o que puder contar.

Relatou-lhe que havia perdido sua posição na emissora e, também. porque, disse que durante semanas procurara inutilmente um novo trabalho. Descreveu os efeitos colaterais do Nobilam, seu desespero, sua malograda tentativa de suicídio. Contou da mulher que lhe salvara a vida. Sibylle e o grande homem pálido escutavam atentamente. O médico via lá fora um parque densamente coberto de neve, cercado por altos muros. Um enfermeiro e seu paciente caminhavam pesadamente pela neve.

— ...bem, isso é tudo — soou a voz de Ross nos dois fones.

— O que quer dizer “isso é tudo”? Por que você não pode vir imediatamente me ver?

O homem grande e pálido de cabelos negros escreveu em um bloco de papel:

QUEM E A MULHER? O QUE É QUE ELA QUER?

— É porque antes eu tenho que terminar uma coisa, Sibylle. Tenho mesmo! De qualquer modo!

— Tem alguma relação com essa mulher?

Pausa, depois:

— Sim.

— E quem é essa mulher, Danny? Como pôde ela salvar a sua vida?

— Lamento muito, mas isso não lhe posso dizer.

— E o que ela quer de você, também não?

— Ela veio me trazer uma notícia.

— Notícia? De quem?

— Não ao telefone.

Sibylle olhou o médico, com uma expressão de imenso triunfo em seu rosto. Também ele a olhou — triste e glacial.

Ele escreveu, então, sobre o bloco:

DE ONDE?

— E de onde, também não?

— Sim, isso sim. Isso eu preciso dizer. Esse é o meu problema. Preciso ir para lá. A noticia veio de Buenos Aires.

— De onde?

— De Buenos Aires.

BUENOS AIRES

escreveu o médico pálido sobre o bloco. Então, voltou a olhar para o parque coberto de neve. Os dois homens estavam metidos em pesados capotes e gorros de pele. Lá fora, fazia um frio de rachar, embora o sol brilhasse, banhando com seus raios as paredes brancas da sala,

— E — soou a voz de Ross — eu não sei se vou agüentar o longo vôo até lá. Expliquei a você meus sintomas, o que o Nobilam fez de mim. Quero dizer: o que eu fiz de mim, usando o Nobilam. E, ainda por cima, a tentativa de suicídio.

—. Você está muito fraco?

— Um bocado. Lá em Buenos Aires é agora a estação mais quente do ano, Sibylle.

— Eu sei.

Sobre a escrivaninha, em meio a montanhas de pastas com papéis, livros e embalagens de medicamentos, havia um grande retrato a cores dentro de uma moldura larga. Mostrava um quarentão de olhos e cabelos castanhos. O homem do retrato ria. Parecia-se muito com Sibylle.

— Mas eu preciso ir lá! — acrescentou Ross.

— Por quê?

— Por causa de um homem que tem trabalho para mim.

— E que trabalho é esse?

— Meu trabalho de sempre. Notícias. Uma história. Fui posto na rua, Sibylle.  Aqui, eu não arranjo mais nada. É a última chance. Esse homem vai me conseguir um trabalho. Um trabalho formidável, Sibylle.

— E ele não pode fazer isso depois que você tiver estado comigo?

— Não, aí é que está. Preciso vê-lo o mais rápido possível. Tanta coisa para mim depende disso, Sibylle.

O homem de cabeleira negra, pálido e de sobrancelhas cerradas, voltou a escrever no bloco:

ELE TEM DE IR A B.A. IMPRETERIVELMENTE

— Eu compreendo o que isso significa para você, Danny, na sua situação — disse Sibylle. — Não há dúvida de que você precisa ir. — Ross não chegou a perceber o tremor de sua voz.

— Não é mesmo, Sibylle, não é mesmo?

Ela o ouviu rir, aliviado, O médico também ouviu a risada. E escreveu no bloco:

MAS DEPOIS IMEDIATAMENTE PARA CÁ! IMEDIATAMENTE!

E sublinhou a última palavra. Em seguida, bateu com o lápis sobre o bloco.

Sibylle o encarou. Em seu olhar misturavam-se ódio e impotência.

— Mas, depois disso, você vem imediatamente me ver, Danny — disse ela. — Você precisa me prometer isso! Já dei um jeito em você duas vezes. Vou fazê-lo uma terceira. Você não deve em hipótese alguma procurar um médico que não o conheça como eu!

— É claro que eu então irei imediatamente ver você. Mas estou lhe dizendo, pode ser que não consiga nem mesmo chegar a Buenos Aires. Talvez você possa me ajudar. Eu não tenho a menor idéia. Que acha?

O homem de cabelos pretos escreveu:

REINSTEIN! REINSTEIN PRECISA EXAMINÁ-LO MUITO BEM! PRECISAMOS DO HOMEM VIVO — E DA MULHER!

Sibylle vacilou. Olhou o médico com olhar suplicante. Ele encarou-a com seus olhos estranhos, dos quais a tristeza desaparecera: só sobrara aquela frieza gélida.

— Sibylle! Você ainda está aí?

Com um movimento brutal, o homem pálido colocou diretamente diante de Sibylle aquela fotografia grande e colorida do jovem sorridente. Ela estremeceu.

— Estou sim Danny...

— O que houve?

— Por quê? Houve alguma coisa?

— Por que você não respondeu? Há alguém com você, escutando?

— Se alguém... Danny! Eu já lhe disse, estou sozinha!

O homem ao seu lado sorriu pela primeira vez. Ele se divertia. E estava muito excitado, mas controlava-se perfeitamente. Durante cinco anos de formação especializada, tinham-no educado para se controlar totalmente perante qualquer situação.

— Você está mesmo sozinha?

— Danny! — disse ela com desespero na voz, um desespero que ele não notou. — Você acredita que estou lhe mentindo? Você acha, hem?

— Não... não... por favor! — disse ele, precipitado. — Não disse isso nesse sentido. Por aí você vê qual é meu estado. Você pode me ajudar de alguma forma?

O médico bateu com o lápis sobre a palavra que havia escrito: REINSTEIN.

Lutando com todas as forças para se controlar, Sibylle disse:

— Está bem, Danny. Você tem de estar tranqüilo quando for voar. Sim, eu acho que posso ajudá-lo.

— Ah, Sibylle!

— Agora que você tem um novo emprego em vista, é claro que não vai novamente tentar se matar, não é?

— Claro que não. Por quê?

— Eu pensei exatamente em mandar você à clínica psiquiátrica de Frankfurt e telefonar para um médico de lá que trabalhou comigo em Viena.

— Não, nada de psiquiatria! Eles me seguram por semanas, meses a fio. Isso agora tem de ser rápido, Sibylle, o mais rápido possível.

— Isso mesmo. Era nisso que eu estava pensando. No fundo, basta que se faça um exame geral. Coração, circulação, sangue, radiografia dos pulmões, após a tentativa de suicídio. Rins, por aí afora. Um check-up completo. Tenho um velho amigo. Um médico formidável. No Primeiro Hospital das Clínicas da Universidade.

— Eu moro quase ao lado.

O médico balançou a cabeça, satisfeito.

— O homem se chama Reinstein. Dr. Ernst Reinstein. Vou ligar imediatamente para ele. Amanhã você já deve poder caminhar de novo. Você pode confiar integralmente nesse Reinstein. Você pode imaginar o que os médicos às vezes são obrigados a fazer, em que situações são metidos, não é verdade? Muitas vezes ajudei Reinstein, e ele a mim. Ele nos poderá dizer exatamente como você se encontra. Todos os dados ele me passa pelo telefone. Se nós dois dissermos que você pode voar para Buenos Aires antes de vir aqui, então pode ir sossegado.

— Eu lhe agradeço, Sibylle!

— Não seja por isso — disse ela com uma voz neutra.

O homem grande e pálido de olhos esquisitos escreveu sobre o bloco:

NOME E ENDEREÇO DO HOMEM EM B. A.

— Quanto tempo vão levar esses exames? — indagou Ross.

— Um dia inteiro. De manhã até a noite. Vão passar você pelo moedor de carne! Reinstein só faz isso para mim. Senão leva muito mais tempo. A amostra de sangue é tirada bem cedo. Você tem de estar em absoluto jejum. Sem Nobilam! Em hipótese alguma! Você já tem bastante no corpo, infelizmente. Depois do exame de sangue, você pode voltar a tomar o Nobilam! Esse pouco tempo também não tem mais grande importância. Tão logo você se sinta mal, vá em frente, seu velho viciado! Vou conversar com Reinstein a respeito. E onde mora esse homem?

— Em Buenos Aires. Eu já lhe tinha dito, Sibylle.

O médico ergueu a foto com a larga moldura e a colocou diretamente diante do rosto de Sibylle. Agora, todo o corpo dela estremecia.

— Buenos Aires, mas onde?

— Lamento.

— Você não quer me dar o endereço?

— Não posso. E o nome tampouco. Mas isso também não tem importância.

— Claro que não. Seria apenas uma medida de precaução. Caso viesse a acontecer alguma coisa. — E Sibylle olhou o homem do cabelo preto, cujo rosto de novo expressava triunfo. Um triunfo mesquinho. O médico ergueu com indiferença os ombros e deixou-os de novo cair. — Agora me dê seu número de telefone! Eu ligo imediatamente para Reinstein e, em seguida, para você.

Ross lhe passou o número.

— Até já, Danny!

— Fico esperando.

Ela desligou e afundou-se numa poltrona branca. Sua respiração era irregular. Apertava as faces com as duas mãos.

— Vamos, doutora-chefe! — disse o pálido médico. Tirou o fone do aparelho e o estendeu para ela. — Em frente! Ligue para Reinstein!

— Eu ... não... posso.

— Ê claro que pode! E com a outra mão, voltou a segurar a foto do jovem sorridente diante do rosto dela. — Pense nele!

— Mas eu estou pensando nele...

— Então, vamos! Eu disco o número. — E já tinha começado a discar. — Só precisa falar!

Sibylle pegou o receptor. Ouviu os algarismos sendo registrados. Em seguida, escutou o sinal. E logo uma voz de mulher:

— Clínicas da Universidade.

— Por... favor ... o Dr. .... Reinstein! — Sibylle fazia esforço para respirar.

Em Frankfurt, Ross dizia a Mercedes:

— Ela é formidável, não acha?

— É — respondeu ela, e seus olhos de um azul luminoso estavam serenos. — Formidável mesmo.

Ele foi à cozinha e trouxe um copo d’água. Pegou então o tubinho de Nobilam e engoliu com água cinco comprimidos.

— Sibylle disse que agora dá na mesma. Posso tomar esse troço assim que sentir qualquer coisa. E eu estava começando a sentir. Grande novidade!

— Se você conseguir marcar para amanhã, vai dar tudo certinho — disse Mercedes.

— O que você quer dizer com isso?

— Amanhã é terça-feira. Na quarta, sua amiga tem os resultados. O primeiro vôo direto de Frankfurt para Buenos Aires só segue na quinta. LUFTHANSA. Sextas e domingos há vôos da AEROLINEAS ARGENTINAS. Sábados, LUFTHANSA.

— Você já se informou?

— Como você vê...

— Quando?

— Antes de minha partida de Buenos Aires.

Ele a olhou em silêncio.

— Eu também sou formidável — disse ela. — Preste atenção e verá como ainda serei formidável.

Ele se sentou.

— Daniel?

— Sim?!

— Sua mãe, Thea Ross, já faleceu em 1969, não é?

— Correto. Por quê?

— E mesmo assim... — E calou-se.

— Mesmo assim o quê?

Ela abanou a cabeça.

— Não, eu quero saber — exclamou ele.

O telefone soou.

— Atenda! — disse Mercedes. Ele pegou o receptor e percebeu a mesma voz de homem de antes.

— Grüss Gott! Sanatório Kingston. Sr. Ross, em Frankfurt?

— Sim.

— Um momento, vou ligar com a doutora-chefe.

Um estalido na ligação. Então. ouviu a voz de Sibylle:

— Danny?

— Sim.

— Bem, falei com Reinstein. Tudo OK. Amanhã de manhã às sete e meia, em jejum. vou lhe dar o número dele na clínica. — Assim o fez e ele anotou. — Quando eu tiver desligado, ligue para lá! Ele lhe dirá tudo o que é necessário: aonde você deve ir e o que será examinado.

— Ótimo!

— Mas só na quarta à tarde é que ele terá todos os resultados.

— Não importa, Sibylle. O vôo direto só parte mesmo na quinta.

O médico grande e pálido sorria de novo. Escreveu no bloco:

QUINTA-FEIRA

E emabixo:

ISTO BASTA

Então, rasgou a parte superior da folha e colocou-a no bolso.

— Amanhã à noite, quando você tiver terminado, ligue sem falta para mim!

— Por que sem falta?

— Preciso saber como você está se sentindo a fim de que eu possa combinar com Reinstein o que vamos lhe dar para a viagem. E na quarta à tarde ficarei em casa. Tio logo tenha os resultados e saiba de tudo, eu telefonarei para você.

— Eu lhe agradeço, muito obrigado, Sibylle. Ah...

— Sim?

— Já ia esquecendo. Diga-me: Que você está fazendo aí em Heiligenblut?

— Heiligenkreuz.

— Kreuz. Dá na mesma. Que faz você aí? Por que não está mais no Hospital Geral?

— Você sabe, foi uma oferta de emprego formidável. Eu simplesmente tinha de aceitar.

— Mas você não queria sair nunca do Hospital Geral!

— Isso era outra coisa. Depois eu lhe conto, quando você vier. E essa mulher tem de vir junto! Ela agora tem de ficar sempre junto a você. No caso de você se sentir mal. E venha o mais rápido possível! Você prometeu. Pense no amor que tivemos. Por esse amor, Danny! Jura que logo em seguida você vem?

— Juro, Sibylle.

— Então, até mais tarde! Passe bem, Danny!

— Você também, Sibylle! Um abraço. — Pousou o receptor no aparelho e olhou para Mercedes. — Por favor, reze por mim, para que os resultados sejam bons! Aí dará certo.

— Precisa dar certo — disse Mercedes. — Já estou rezando o tempo todo.

— Agora, esse Reinstein. -. — Ross olhou o número que havia anotado e começou a discar.

Nesse mesmo instante, aquele médico grande e muito pálido de cabelos pretos atravessava com passos rápidos um corredor do primeiro andar do sanatório. Chegou à sua sala de trabalho e abriu a porta, deixando em seguida bater às suas costas. Havia nela uma placa. Gravado em letras de imprensa, lia-se: DR. GERD HERDEGEN. O homem que se chamava Herdegen aproximou-se de sua escrivaninha. Também aqui tudo era branco. O homem que se chamava Herdegen sentou-se e puxou o telefone para junto de si, depois de ligá-lo a um pequeno aparelho, denominado misturador. Tudo o que dissesse agora, seria, para qualquer um que ficasse à escuta, uma seqüência ininteligível de sons. Somente uma pessoa, cujo aparelho estivesse ligado ao misturador correspondente, poderia entender Herdegen. E vice-versa, ninguém afora Herdegen poderia entender o que essa outra pessoa dissesse ao telefone, cujo número ele agora chamava na maior precipitação. Começava com 00441...

00441 era o prefixo de Londres.

Em sua sala, Sibylle estava sentada diante da fotografia do jovem sorridente e chorava. Com um lenço, ela enxugava suas lágrimas. Mas sempre lhe vinham outras. A Dra. Sibylle Mannholz chorava como se nunca mais fosse parar de chorar.

— Atenção, por favor! — dizia uma voz de moça saindo de vários alto-falantes. — LUFTHANSA anuncia a chegada do seu vôo novecentos e dezessete, procedente de Frankfurt com escalas no Rio de Janeiro e São Paulo. — A voz repetia a informação em inglês e em português.

Um gigantesco Jumbo do tipo Boeing 747 E corria ao longe sobre uma das pistas de aterrissagem. Em seguida, diminuiu a velocidade e foi rolando até taxiar. Era sexta-feira, 17 de fevereiro de 1984, e 11h45m e fazia um calor infernal em Ezeiza, o maior aeroporto da América do Sul, situado a trinta e três quilômetros de Buenos Aires. Os termômetros marcavam quarenta e dois graus centígrados à sombra. O ar fervia e o asfalto estava mole. Ônibus se aproximavam do Jumbo pousado, que viera quase lotado, trazendo duzentos e setenta e um passageiros. Quando Daniel Ross saiu do interior refrigerado do avião e pôs os pés na plataforma superior da escada, o calor do sol o atingiu como uma martelada no crânio. Ele soltou um gemido e chegou a cambalear.

— Muito mal? — indagou Mercedes bem junto dele, pousando, preocupada, a mão sobre seu ombro.

— Está indo — respondeu ele.

Ambos usavam roupas bem leves e chapéus de linho branco.

Mercedes trouxera um desses chapéus para Frankfurt, destinado a Daniel. Era necessário, dizia ela. Todas as pessoas cobriam a cabeça, com um calor desses. Seria um risco de vida andar com a cabeça descoberta, mesmo que apenas por pouco tempo.

O corrimão estava em brasa. Quatro degraus atrás de Ross vinha um homem jovem, vestindo um temo de tropical bege. Usava um boné de tecido da mesma cor, com guarda-sol, e parecia-se com o ator Alain Delon.

Nos ônibus destinados aos passageiros a temperatura era seguramente de mais de cinqüenta graus. Os passageiros recém-chegados tinham todos, sem exceção, rostos pálidos e exaustos. Ross sentia-se entontecido. O ônibus em que vinha balançava. Ross praguejava baixinho.

— Isso já vai passar — disse Mercedes. — Meu carro está aqui.

Mas é evidente que ainda demorou um bom tempo até que tivessem passado pelo controle de passaportes e bagagens. Ross levava seu capote de inverno dobrado sobre o braço, Mercedes, um vison. No lugar onde essas peças pousavam, as mangas das roupas estavam empapadas de suor. O imenso salão do aeroporto estava climatizado, os aparelhos de ar condicionado funcionavam a todo vapor, mas não conseguiam vencer o calor. O ar estava úmido e abafado.

Na noite da véspera, quinta-feira, o avião partira às 22h de Frankfurt em pleno inverno, decolando de uma pista da qual montanhas de neve acabavam de ser removidas. A diferença de fusos horários entre Frankfurt e Buenos Aires é de quatro horas, e a viagem durara, portanto, dezessete horas e quarenta e cinco minutos, inclusive escalas.

Muitos funcionários atendiam os passageiros em numerosos balcões. O jovem de terno bege, que parecia com Alain Delon, conseguiu passar habilmente pelo controle de passaportes, à frente de Mercedes e Ross. Ele dirigiu-se para a esteira metálica que circulava trazendo as bagagens. A meio caminho, passou junto a dois rapazes que vestiam calças brancas de linho e camisas coloridas de algodão de manga arregaçada, uma vermelha e a outra verde. O homem parecido com Alain Delon parou e virou-se para trás por um momento.

— Balcão oito — disse ele. — Os dois, com quem o funcionário está falando agora. Ela está de vestido lilás, ele de camisa branca e calça azul. Os dois com chapéu de linho branco. Estão com os abrigos sobre o braço. Estão vendo?

Os dois homens fizeram que sim. Usavam chapéus de ráfia.

— Vocês sabem o que têm a fazer?

— Naturalmente — disse o de camisa vermelha.

— Vocês vão acabar no inferno, se eles escaparem de vocês. Eu os acompanhei até aqui. Agora, são de vocês.

O homem de terno de tropical prosseguiu em direção à esteira rolante das bagagens, atrás da qual esperavam muitos funcionários da alfândega.

Por volta das 13h15m — uma hora e meia mais tarde — um Cadillac Sevil castanho metálico seguia de Ezeiza em direção a Buenos Aires por uma auto-estrada hipermoderna. Chamava-se Autopista Tte. General Riccheri, conforme Rosa tinha lido em diversos grandes painéis.

A autopista estava movimentada, A grande distância, o Cadillac era seguido por um Ferrari vermelho. Na direção, encontrava-se o rapaz da camisa vermelha, que, junto com seu amigo de camisa verde, estivera no salão do aeroporto. Atrás, a conveniente distância, seguia um Chevrolet branco, em cujo volante se achava o rapaz de camisa verde. De ambos os lados da auto-estrada estendia-se uma densa vegetação. Ross via bosques de cedros, ciprestes, palmeiras, pinheiros, eucaliptos e cactos, altos como carvalhos. Mercedes dirigia rapidamente, mas com segurança. Usava agora óculos escuros. Dentro do carro estava fresco. O ar condicionado sussurrava baixinho.

— Daniel?

— Sim?

— Quero lhe pedir uma coisa. Mas não fique logo zangado!

— Claro que não. Que é?

Ela olhava a pista ofuscante que se alongava à sua frente e lhes vinha ao encontro. De vez em quando vigiava o retrovisor.

— Eu sei que você detesta seu pai. Eu sei quanto e por quê. Peço-lhe de todo o coração, no interesse da causa: não o ataque imediatamente, não lhe caia logo em cima com acusações e xingamentos! Eu o compreendo muito bem, realmente. Você tem que odiar seu pai. Mas, por favor, controle-se o máximo que puder. Considere-o como parceiro em um grande negócio! Você não precisa gostar dele. Precisa trabalhar com ele. Para isso se faz necessário um mínimo de receptividade e compreensão de ambos os lados. Você acredita poder conseguir esse mínimo?

Ele pousou sua mão sobre a mão direita dela, que segurava o volante.

— Prometo comportar-me normalmente, Mercedes.

— Eu lhe agradeço — disse ela.

— Bem, e... Mercedes?

— Sim?

— Eu também tenho um pedido a fazer. Não contaremos nada do meu vício e minha tentativa de suicídio, está bem?

— Nem uma palavra. Fica sendo um segredo entre nós dois.

— Também eu lhe agradeço — disse Ross.

O Cadillac alcançava os arrabaldes de Buenos Aires. Quanto mais avançavam, tanto mais Ross se sentia subjugado. Ele visitara diversas vezes a América do Norte, mas nunca a do Sul. Buenos Aires era uma cidade gigantesca, cujo tamanho ultrapassava todas as expectativas, inimaginável. A autopista descia lentamente. Ross via agora um mar de casas. Tinha lido num folheto do avião que ali moravam dez milhões de pessoas. A cidade crescera explosivamente, o que tornara necessário construí-la de novo, literalmente de novo, no começo deste século. Somente a cidade velha permanecera em certa medida intocada. Quase todas as ruas eram traçadas em retas paralelas, infindáveis, por sua vez cortadas por outras ruas igualmente retilíneas e paralelas. A despeito desse ordenamento quase que matemático das avenidas e dos blocos de casas, Buenos Aires era uma das mais belas cidades do mundo. Não sufocava em concreto, arranha-céus ou vias de acesso sobrecarregadas com trânsito excessivo. Por todos os lados, assim lera Ross, parques e jardins desanuviavam o perfil da cidade, e agora que eles entravam nela, vindo de sudoeste, viu o primeiro deles, viu palmeiras, o verde profundo dos ciprestes, carvalhos, figueiras-da-índia, grandes quantidades de flores vermelhas, brancas, azuis, amarelas e mesmo douradas — e um lago onde nadavam cisnes.

— O lago! — disse ele assombrado.

— Há centenas deles, grandes e pequenos. — Mercedes dirigia com a segura desenvoltura de um chofer de táxi.

A Autopista Tte. General Riccheri seguia por um longo trecho para leste, cidade adentro, cercada à direita e à esquerda por árvores, arbustos, flores e gramados. Atingiram um enorme trevo com pistas superpostas. Diretamente na direção norte-sul, seguia a via expressa Avenida General Paz, também ela ladeada por um verde luminoso. Mercedes seguiu adiante, na direção leste. A autopista trocava, então, de nome, passando a chamar-se Avenida Tte. General Dellepiane, e servia como outra auto-estrada urbana. Era margeada por palmeiras, ciprestes e canteiros em flor.

— O que não falta é general — disse Roas.

— Por oito anos tivemos uma quantidade bastante deles — respondeu Mercedes. — Mas esses que dão os nomes às avenidas e auto-estradas foram os fundadores do Estado argentino. E olhou novamente pelo espelho retrovisor.

— Algum problema?

— Espero que não. Um Ferrari vermelho está nos seguindo desde o aeroporto. Eu o estou observando o tempo todo. Espere aí... — Mercedes pisou no freio e andou mais devagar. O Ferrari aproximou-se com rapidez. O jovem de camisa verme lha ergueu a mão e sorriu amigavelmente para Mercedes no momento em que os dois carros estavam emparelhados. Ela devolveu-lhe o aceno. O Ferrari então disparou e logo desapareceu no meio do tráfego.

— Sujeito simpático — disse Mercedes.

— Uma mulher maravilhosa — disse Ross. — Eu também teria acenado se estivesse no lugar dele.

Ela o olhou sorridente e afagou seus cabelos brancos com a mão direita.

— Obrigada, Daniel — disse ela.

— Mas, por favor, prezada senhora.

— Eu me enganei, graças a Deus — observou ela.

— Estamos os dois nervosos — disse Ross.

Nenhum dos dois notava o Chevrolet branco que agora os seguia em lugar do Ferrari.

A Avenida Tte. General Dellepiane terminava num anel circular. Mercedes seguiu, então, um largo trecho da Avenida San Pedrito na direção norte e de novo para leste pela interminável Avenida J. B. Justo, que parecia interminável. O Chevrolet branco a acompanhava.

Ross sabia que a cidade era limitada no extremo leste pelo rio da Prata. Via novamente palmeiras de um tamanho e idade que lhe pareciam fantásticos. Tudo é fantástico, pensou ele. Esta cidade gigante. A quantidade de flores. Os parques e os lagos. O trânsito louco. A mulher calma e prudente a meu lado. Há menos de uma semana tomei Nembutal para morrer. Agora estou aqui, do outro lado da Terra, e aguardo a maior sensação de minha vida. Todos os resultados dos exames foram mais ou menos bons. Sibylle disse que eu poderia enfrentar o vôo sem perigo. Vou rever um homem que durante trinta e nove anos considerei morto. Um homem com um segredo que fará o mundo estremecer. O vento do ar condicionado soprava baixinho. Fantástico, pensou ele. Totalmente fantástico. O Cadillac continuava seguindo pela Avenida J. B. Justo. O Chevrolet branco ainda os seguia.

— Daniel?

— Sim?

Ela olhava para a frente enquanto falava:

— Então vamos trabalhar juntos. Voltaremos juntos para a Europa. Vamos conviver quem sabe por quanto tempo. Só queria lhe dizer: estou muito feliz em poder trabalhar com você. Você é tão inteligente. Tão simpático.

— Obrigado — respondeu Ross. — Você é muito amável. Eu sinto a mesma coisa. Admirei-a desde o primeiro instante. Estou contente por havê-la conhecido. Sem você eu estaria morto.

— Não pense mais nisso! Juntos, nós vamos conseguir. Não existe nada que juntos não possamos levar a cabo, eu sei disso. — E ela o olhou através dos óculos escuros e sorriu. Logo em seguida, ela dobrou à esquerda, de novo na direção norte, entrando na Avenida Cabildo. Ele viu mansões pomposas, amplos jardins que esbraseavam em todas as cores, pequenos bosques, de novo dois parques com lagos no meio e em cuja superfície o sol ofuscava. O ruído do tráfego ficara para trás. O carro deslizava murmurante por ruas mais estreitas.

— Este bairro se chama Palermo — disse Mercedes. — Atrás de nós ficam o Jardim Botânico e o Zoológico, à direita o clube de pólo e atrás dele o Parque Três de Fevereiro com seus lagos, o velódromo e o planetário. Acho que é o parque maior e mais bonito da cidade. Do planetário já dá para enxergar lá embaixo as docas e o rio da Prata. — E entrou à esquerda numa rua comprida. De ambos os lados erguiam-se palmeiras.

Finalmente, Mercedes parou diante de um portão de ferro batido com painéis de placas douradas que se achava num alto muro de pedras que cercava um grande terreno. De lado, no muro, estavam fixadas letras e algarismos em ferro batido, e Ross leu: CÉSPEDES 1.006.

Mercedes pegou um pequeno emissor eletrônico, do tamanho de um maço de cigarros, e apertou um botão. As duas metades do portão se abriram para os lados. Mercedes entrou num parque, por um largo caminho, também ele ladeado de palmeiras.

Ross se virou. Através do vidro traseiro viu os portões se fecharem novamente. O que ele não viu mais foi o Chevrolet branco que os havia seguido até ali. O jovem vestido com a camisa verde de algodão sentado ao volante observou a entrada um instante e logo arrancou em frente.

O Cadillac avançou com certeza uns cinco minutos por dentro do parque. Só então apareceu a casa branca de dois andares, com o teto rebaixado e as janelas francesas, que Ross conhecia da fotografia que vira. Um grande balcão no primeiro andar, para o qual abriam diversas janelas agora fechadas, era sustentado por pesadas colunas de mármore.

Mercedes dirigiu o carro até diante da entrada e parou. Saltaram os dois. Um homem e duas mulheres, vestidos com leves roupas claras, saíram de dentro da casa. Saudaram-nos risonhos. Mercedes lhes disse, então, que retirassem as bagagens de dentro do porta-malas.

Ross pisou no raso gramado ao lado do caminho de cascalho. Estava em pleno parque. De novo lhe chamaram a atenção as numerosas espécies de árvores, além dos canteiros de flores onde resplandeciam gladíolos brancos, amarelos, vermelhos e de um violeta-escuro, gerânios vermelhos, brancos e lilás, e minúsculas rosas das mais variadas cores. Muitos dos poderosos troncos das árvores estavam envoltos de hera, de exuberante jasmim florido de branco, de buganvílias. essas trepadeiras espinhentas com suas folhas pequenas e ovais e florescências de todos os matizes entre vermelho, violeta e laranja. E, como num sonho psicodélico, de penduravam-se das árvores grandes tufos de orquídeas de tais formas e de tanta beleza como Ross jamais tinha visto.

À direita da casa achava-se um campo de tênis, na frente do qual se via uma grande piscina, cujos azulejos davam à água uma coloração de luminoso azul. Móveis de vime branco e pára-sóis se espalhavam à sua borda. Um homem saía naquele momento da água. Tinha um corpo esbelto, musculoso e bronzeado; o cabelo completamente branco, cortado rente, era espesso. Tinha um rosto estreito e olhos penetrantes e altivos. Os lábios eram finos. Os dentes brancos e reluzentes apareceram quando ele riu, levantando os braços e vindo ao encontro de Ross, Este permanecia imóvel. Sentia seu coração bater acelerado e forte. Pela primeira vez depois de quarenta anos, via novamente seu pai. Queria ir ao seu encontro, mas não conseguia mover-se do lugar, como que colado ao chão. Seu pai se aproximava mais e mais, a passos largos e seguros, com um andar muito ereto e desenvolto. Deixara baixar os braços, mas continuava a sorrir. Era assim que ele vinha, com um ímpeto quase juvenil, a cabeça jogada para trás. E de repente ocorreu a Ross a palavra que descrevia um homem daquela espécie, palavra que ele buscava desde o momento em que revira seu pai. Lembrou aquela palavra horrível. O homem que vinha em sua direção, sorridente e na aparência tão forte, tão invencível, era um Herrenmensch, um “membro da raça dominadora” no linguajar nazista.

— Daniel!

Ross continuava imóvel, incapaz de mexer um dedo.

O homem, com os cabelos brancos e o peito bronzeado salpicados de gotas d’água faiscantes, pegou a mão direita de Ross em suas mãos fortes e bronzeadas, cobertas de pêlos brancos, apertando-a e sacudindo-a com tanta força que Daniel chegou a sentir dor.

— Bom dia — disse ele, pensando no que havia prometido a Mercedes. Ela estava a seu lado e contemplava os dois homens, sorridente, mas com olhos sérios. Manterei minha palavra, preciso mantê-la, dizia Daniel Ross para si mesmo, O homem que num passado distante se chamara Georg Ross e que, de há muito, passara a chamar-se Eduardo Olivera, segurou Ross pelos braços e apertou-o contra seu corpo. Com os punhos, bateu-lhe nas costas estreitas. Ross deixou-se ficar. Com o rosto diretamente diante do rosto de seu filho, o pai disse no ritmo das batidas:

— Menino... meu menino... — olhou-o bem de perto, dentro dos olhos, pleno de emoção e amor, sem falsidade. — Você veio! Eu lhe agradeço! — Largou Ross e abraçou Mercedes. — Muito obrigado, meu coração. Você o trouxe para mim. — Deixou cair os braços e disse (não, pensou Ross, não!) com os olhos voltados para o céu: — E eu agradeço a Ele. Tantos anos... Minha vida está quase no fim - . . E isso ainda se torna realidade... Um milagre... — E, recuando um passo, disse: — Desculpem-me, estou comovido. — Calou-se em seguida, e tanto Mercedes quando Ross também ficaram calados. Os empregados estavam tirando as bagagens de dentro do Cadillac. Um papagaio, que se encontrava encarapitado numa palmeira, um bicho grande e com colorido de circo, dava gritos longos e excitados. Outros papagaios responderam no parque.

Eduardo Olivera segurou as mãos de seu filho e da enteada.

— Meus filhos! — disse ele.

Isso eu não agüento, pensou Ross.

Olivera devia ter um sexto sentido. Largou imediatamente as mãos de Ross e, com voz subitamente alegre e normal, passou a se informar se o vôo havia sido bom — o que eles confirmaram — e se desejavam repousar. Diante da negativa, indagou:

— Vocês estão com fome?

— Nós já comemos no avião, pai — disse Mercedes.

— Quer dizer que não estão com fome?

—Não.

— Eu tampouco — disse Olivera. — Tomei café muito tarde, hoje. Muito bem, não almoçamos. Mas com certeza vocês vão querer refrescar-se. Venham para a piscina! A água está maravilhosa. Vocês precisam nadar! Vai fazer-lhes bem. Em seguida. a sesta. Todos vão dormir. E depois do chá, conversaremos. Que querem beber? — E, voltando-se para Ross: — Uísque não é bom, com esse calor. Derruba qualquer um. Aconselho gim-tônica com muito gelo. OK?

— OK — concordou Mercedes. Ross balançou a cabeça sem dizer uma palavra.

— Miguel! — Olivera dirigiu-se a um homem jovem e moreno que se achava junto ao carro e encomendou-lhe os drinques. Miguel deu uma resposta curta e muito polida, fazendo uma reverência.

— Venham — disse Olivera caminhando sobre o gramado em direção à piscina. Indicou uma série de ‘cabines brancas de madeira. — Vá na da direita, Daniel. Lá há tudo de que você precisa. Mercedes guarda suas coisas sempre aqui embaixo. Os chuveiros estão atrás das cabines.

Ross viu que no parque havia figuras de mármore de tamanho natural, assentadas sobre pedestais. Elas esplendiam vivamente à luz inclemente do sol. Sobre a cabeça de uma deusa instalara-se um colibri.

— Daniel!

Ross se virou. O pai já estava na piscina e Mercedes acabava de desaparecer em sua cabina. O pai acenou, pisou sobre o trampolim, estendeu os braços, saltitou algumas vezes para cima e para baixo, e então pulou com elegância, com muita elegância, para dentro da água faiscante. Retornou à superfície e nadou com fortes braçadas ao longo de todo o comprimento da piscina. Um atordoante ressoar interrompeu repentinamente a quietude e fez estremecer o ar e também o chão sobre o qual Ross estava pisando. Sombras passaram rapidíssimas sobre sua cabeça. Uma formação de caças a jato da força aérea argentina passava vertiginosamente, em vôo rasante, O Herrenmensch, pensou Daniel, e os cavaleiros do apocalipse: O mundo tremerá quando a raça germânica sucumbir. Sucumbir? Será que um tipo desses vai sucumbir?

 

Enquanto isso, o Chevrolet branco que havia seguido Mercedes e Ross ao aeroporto até a propriedade de Olivera em Céspedes 1.006 parara a uma boa distância a oeste dali, defronte à entrada principal do gigantesco cemitério Federico Lacroze. no bairro de Chacarta. O rapaz de camisa verde saltou e dirigiu-se à cabine telefônica. Introduziu as moedas no aparelho e discou. Ao primeiro chamado já haviam atendido.

— Sim? — perguntou uma voz masculina.

— Aqui é o Roberto. O endereço é Céspedes, 1.006.

— Céspedes, 1.006.

— Não havia nome no portão.

— Não faz mal. Fim.

Clique. A ligação estava interrompida.

O homem que se chamava Roberto abandonou rapidamente a cabina em brasa e retornou ao Chevrolet estacionado. Sentou-se ao volante e partiu.

Bem mais longe, no noroeste da cidade, apenas coberto com uma toalha nos quadris por causa do forte calor, um homem estava sentado num quarto de seu pequeno apartamento numa rua chamada Husares. Diante da janela situavam-se as desoladoras casernas e praças de exercícios do Regimento 3 de Infantería General Belgrano. Com o calor abrasador e mortal do começo da tarde não se enxergava vivalma. O ar fervia sobre as praças desertas. O homem solitário — tinha cerca de sessenta anos de idade e era inteiramente calvo — estava com os pés em cima da mesa e segurava um fone junto ao ouvido. Possuía um bom amigo no departamento de registro de habitantes da cidade, órgão que dispunha de um bom computador.

Não se passaram nem mesmo cinco minutos até seu amigo ligar:

— Cristóbal?

— Sim.

— Céspedes, 1.006 pertence a um tal de Eduardo Olivera.

— Eu lhe agradeço, Ruiz — disse Cristóbal. Desligou o telefone e apertou o botão de um ventilador para que pelo menos o ar quente se movesse, soprando-lhe diretamente no rosto. Tirou os pés de cima da mesa. Em seguida ligou um misturador a seu aparelho, o que faria sua voz tornar-se ininteligível para terceiros, pegou novamente o fone e começou a discar um número comprido. Começava com 00441.

Para o mundo inteiro, 00441 é o código da cidade do Londres.

 

Agora estavam nadando os três.

Mercedes vestia um minúsculo biquíni que quase mostrava todo o seu corpo, que era muito bonito, embora um tanto exuberante. Ross escolhera um calção de banho preto, do qual havia vários em sua cabine. Envergonhava-se um pouco. A pele de seu corpo estava branca enquanto as dos outros estavam bem bronzeadas. Com Mercedes, Ross nadou dois comprimentos, mas depois ficou com dores no coração. Ele pensava no que lhe dissera há um ano um médico de emergência num hotel em Istambul. Mandara-o chamar porque acordara à uma hora da manhã, pensando, como tantas vezes, que ia morrer.

— O senhor não tem absolutamente nada — dissera aquele médico — apenas esforço corporal. O senhor não pratica nenhum esporte, não é? Nunca, não é verdade? Só fica o tempo todo atrás da escrivaninha, ou no avião e no carro. Pelo amor de Deus, não dá sequer um passo! Bem, muito bem. Sabe por que o senhor está se sentindo tão mal? Porque seu aparelho circula tório está inteiramente arruinado. Sim senhor, não fique me olhando assim! Eu lhe dou agora uma injeção. O senhor vai dormir. Mas isso não adianta nada, meu amigo, absolutamente nada. Tem quarenta e seis, diz o senhor? Pois mais parece ter sessenta. O senhor precisa mudar imediatamente sua vida!

Disso eu sei, espertinho, pensara Ross. Você não suspeita do Nobilam? Você agüentaria sofrer o que eu sofro? Ainda estaria vivo?

Tal lhe ocorreu no momento em que sentiu o coração. Dava pontadas. O acesso do sangue ficara irregular. Estou mesmo um caco, pensou. O contrário de meu pai. Estou mais velho e desgastado que esse maldito cachorro. Não! Não! Prometi a Mercedes.

— Vamos apostar uma corrida! — gritou Olivera.

Para o diabo com as pontadas, pensou Ross. Claro, nós dois, para ver quem chega primeiro, seu crápula imundo. Sempre nós dois! O pai se achava a seu lado na metade da piscina. De repente, sentiu um doloroso impacto no peito e, dentro da água, foi empurrado para trás. Olivera ria em voz alta. Mercedes saiu da piscina e ficou em pé na borda, com o rosto imóvel. Grandes e rijos, os seios escapavam da estreita faixa de pano.

Ross compreendeu: o pai abrira um registro lateral de água com força total. Da parte frontal da piscina vinha-lhe agora de encontro uma torrente sob forte pressão.

— Vamos, meu filho! Quem primeiro chegar lá! — Com um empurrão, o pai afastou-se da parede lateral para o meio da piscina e começou a lutar contra o forte jato de água Ross tomou profundo fôlego e em seguida jogou-se contra o turbilhão. Afundou e voltou à tona, engoliu água e a cuspiu fora, e pôs-se a nadar como se fosse para salvar sua vida. O corpo lhe doía, cada músculo doía. O coração lhe batia na garganta. Ante seus olhos giravam rodas de fogo. Mas ele não desistiu. Isso vai acabar, Herrenmensch, pensava ele. Um dia, isso vai acabar. Nem que eu agora morra, com meu corpo escangalhado pelo vício, minha circulação arruinada, e que você tenha de me pescar morto de dentro dessa sua piscina de ostentação. Sujeitinho de merda, você não pode vencer, não pode vencer!

Ele começou o seu crawl. O pai também. Estavam agora emparelhados. Ross pensou: pelo menos ele não ri mais. Ross girava os braços com selvageria. A pressão contrária do jato ficava cada vez mais forte, quanto mais se aproximava do bocal. Ele tinha a sensação de que a água, de repente gelada, lhe arrancava a carne dos ossos. Sua cabeça doía horrivelmente e ele sentia uma leve câimbra na perna direita, mas não desistiu. Ele viu triunfante como seu pai ia ficando para trás, meio metro, um metro. Rosa esforçou-se ainda mais. As ondas cortantes da torrente lhe açoitavam o corpo, que ficara vermelho como um caranguejo. A espuma espirrava alto. Nunca senti nada de especial em relação a lutadores, pensou ele, mas às vezes a gente simplesmente tem de ser um deles. Ele mergulhou e nadou por debaixo do impetuoso fluxo de água. Voltou de novo à superfície, recebeu um golpe, submergiu, voltou à tona, submergiu de novo. Em sua cabeça soavam sinos. Não enxergava quase mais nada, quando subitamente bateu com a cabeça na parede frontal da piscina. Segurou-se num apoio e virou para trás. Enquanto massas de água despencavam sobre ele, Rosa viu seu pai, que estava pelo menos seis metros para trás, derrotado. E então! pensou. De repente, sentiu-se magnífico.

Eles descansavam nas cadeiras brancas de vime. Miguel havia servido os drinques. Os copos transpiravam com o calor. Todos os três estavam de roupão branco. Mercedes enrolara os cabelos molhados numa toalha vermelha.

— Ao vencedor! — disse Eduardo Olivera.

Eles beberam.

O drinque estava tão frio que os dentes de Rosa chegaram a doer. Era um copo grande com quatro cubos de gelo. Em cima boiava uma metade de um limão pequenino e verde. O gim-tônica tinha um sabor amargo e delicioso, após o esforço. Ross sentia suas pernas tremendo sob o tecido do roupão.

— Todo mundo gosta dos vencedores — disse Olivera. Ross via agora a cicatriz na sua têmpora direita, o vestígio esbranquiçado da velha cicatriz. — Ninguém gosta do perdedor. Sentimo-nos mal em sua companhia. Espera-se que ele nos provoque pena, que ele goze de nossa simpatia. Comiseração e consolo: é isso que se espera de nós para com o derrotado. Onde está o colo sobre o qual ele pode pousar a cabeça e chorar? Eu tive esperança que você conseguisse, Daniel. Eu senti sua força. Senão eu não teria enviado Mercedes para buscá-lo. Você é forte, embora esteja com uma cara horrível. Mas quando é preciso, você tem isso dentro de você. Sim, isso eu senti. Afinal, você é o meu filho. Agora eu preciso deixar você fazer o trabalho. Também a aposta de nadar foi um teste, não foi um desafio. Você a tomou como um desafio porque me odeia. Você me odeia, não é verdade?

Mercedes olhou Ross, aflita e suplicante. Ele disse alto:

— Sim.

Olivera deu uma gargalhada. Perguntou:

— Muito?

— Muito, sim — disse Ross. — Mercedes, eu lamento.

— Não precisa se desculpar, filho — disse o pai. — Eu o sei. Como poderia ser diferente? Você me odeia demais, certo?

— Certo, demais — respondeu Ross.

— Por isso, você também pensou dentro da piscina: ele não pode ganhar! Nem que eu morra. Você pensou isto mesmo, não é, filho?

— Sim.

— E por isso você me venceu, O ódio fortalece. Quem odeia é capaz de tudo, das coisas mais difíceis. Vamos beber ao ódio, filho?

— Com prazer — disse Ross.

— Por favor... — começou Mercedes, entristecida.

— Você não! Isso é uma coisa entre homens. Uma coisa entre pai e filho. Pai e filho perdidos, devo dizer. Pai e filho reencontrados. A tu salud, filho, ao ódio!

— Ao ódio! — disse Ross e bebeu o copo inteiro.

Olivera pegou seu interfone que se encontrava sobre a mesa e chamou pelo nome de Miguel. Ele atendeu. Olivera pediu novos drinques. o que Ross entendeu.

— Si, senor — veio a voz do empregado.

— Que disse você por último? — perguntou Ross.

— Com um pouquinho mais de gim, por favor. Excelentes os drinques, mas um pouco mais de gim ainda é melhor, acho eu. Mercedes, você é a mais bela mulher da Argentina. Fique quieta! Não se responde ao pai. Ela não é maravilhosa, Daniel?

— Perfeitamente maravilhosa — respondeu ele. — Como é que você está vivo?

— Mas você me prometeu. . . — exclamou Mercedes.

— Eu mantenho a minha palavra — disse Ross. — Eu me comporto de forma perfeitamente amável e nada agressiva. Ele sabe que eu o odeio. Minha resposta não foi nenhuma surpresa para ele. Ao contrário. Ficou contente com isso. Ele viu que eu não minto. Fique tranqüila. Mercedes. Não há nenhuma briga, não é mesmo?

— Briga? — disse Olivera. — O que é isso?

Nas árvores, cantavam muitos passarinhos. Ross olhou para o alto. As aves estavam pousadas no alto das velhas palmeiras, nos ciprestes e pinheiros, eucaliptos e cactos, que eram altos como carvalhos. Os pássaros tinham penas de todas as cores.

— Então — disse Ross — como é que você está vivo? Houve um tempo em que você se chamava Georg Ross e era gerente de uma filial da Caixa Econômica austríaca em Viena. Durante a guerra você era major. O major Georg Ross tombou no leal cumprimento do dever para com o Führer e a Pátria em duros combates de defesa no dia 2 de março de 1945 na região de Küstrin. Foi o que escreveram à minha mãe, e ela chorou muito.

— Realmente? — Olivera ergueu as sobrancelhas. — O que é para ele Hécuba, o que é ele para ela, para que ela tanto o chore? Hamlet um pouco mudado. Ela chorou? Até mesmo muito?

— Quando fiquei mais velho e com capacidade de entender o que a mãe me contou a seu respeito, também não pude entender as lágrimas dela. — Ross fitou Mercedes. — Isto é uma conversação cortês entre nós dois.

Miguel se aproximava pelo gramado. Trazia os novos drinques sobre uma bandeja de prata. Tirou-os com habilidade e levou consigo os copos vazios.

— Eu lhe agradeço, Miguel — disse Olivera.

— Às suas ordens, señor — disse Miguel afastando-se de volta à casa.

Olivera o acompanhou com o olhar.

— Um bom homem — disse ele. — Motorista, jardineiro, sabe servir com perfeição. Compreende alguma coisa de técnica. É um massagista de primeira ordem. Por mim, se deixaria cortar em pedaços. Nem está há tanto tempo comigo. Eu o peguei do Carlo Alvarez.

— Quem é esse?

— O General Álvarez foi um dos chefes da Junta militar. Velho amigo meu. Agora está sendo processado. Você sabe que isso aqui agora virou democracia.

— E você não dá nada pela democracia?

Olivera encarou Ross espantado.

— Que quer você dizer com isso, Daniel? Acho a democracia a melhor forma possível de governo.

— Logo você? — riu Ross.

— Eu, sim — respondeu Olivera muito sério.

— Mas você era um nazista sem escrúpulos!

— Quando? Há quase quarenta anos! Há muitos anos que não sou mais um nazista. O que eu vivi, o que ouvi, o que vi e o que eu li abriram-me os olhos para os indizíveis crimes praticados pelos nazistas. Tomei-me um outro. Essa risada foi muito boba, Daniel. Só um idiota conserva ao longo de toda a sua vida a mesma convicção.

Ross fitou Olivera longamente.

— Então, você é um democrata — disse ele afinal, convencido.

— Com certeza — insistiu Olivera.

— Você acha que nós de outra forma iríamos nos dar tão bem? — perguntou Mercedes.

— Ah, Mercedes... — observou Ross.

— O que quer dizer isso? Se há alguém que conhece o pai, esse alguém sou eu. Eu o conheci quando tinha três anos. Desde então, ele cuidou de mim. Na medida em que eu ia crescendo, cuidou da minha educação, de meus pontos de vista. Nunca me tutelou. Deu-me livros. Levou-me a conferências, a teatros, ao cinema. Queria que eu formasse minha própria concepção dai coisas. Educou-me de uma forma democrática. Ele se arrependeu, penitenciou-se. Ele é outra pessoa! Olhe bem para mim! Eu sou uma adepta convicta da democracia. Você acredita nisso?

— Acredito, Mercedes.

— Então o pai também necessariamente o é! — exclamou ela. Ross se calou.

— E sou mesmo. E mais: o Presidente Alfonsin está rodeado de gente muito boa. Freqüentemente sou convidado pelos mais importantes dentre eles, e, muito mais vezes ainda, eles vêm aqui me contar suas dificuldades e planos e me pedir algum conselho.

— A você? — perguntou Ross. — Com seu amigo, o General?

— Eles sabem perfeitamente que ele é meu amigo, embora seja general. Sou conhecido como verdadeiro democrata, Daniel. Naturalmente estou tentando ajudar o pessoal do Alfonsín onde posso. Mas eu acho que para a Argentina a democracia não serve — disse Olivera.

— E por quê?

— Aqui o pessoal é selvagem. Precisam de uma mão forte.

— Você quer dizer uma ditadura. — Olivera sacudiu os ombros.

— Nós vamos ver quanto tempo vai durar essa democracia. Plop, fez a imaginária bolha de ar no peito de Ross. Plop plop.

— O que está havendo com você? Você está pálido. Minha honestidade está irritando você tanto assim?

— Deve ser. Honestidade em você! — revidou Ross.

— Daniel! — exclamou Mercedes. Olivera riu.

— Meu filho — disse ele. — Nós vamos brindar a sua inteligência; e a sua beleza, filha.

Eles beberam.

— A tu salud — disse Olivera de novo.

— Mas voltemos novamente a você! — disse Ross.

— Você já viu limões tão minúsculos assim? Só crescem aqui. Voltemos a mim. Em dois de março de mil novecentos e quarenta e cinco, Georg Ross, Major e gerente de filial da Caixa Econômica austríaca tombou em dura luta defensiva na região de Küstrin — no leal cumprimento do dever para com o Führer e a Pátria. Então, ele ressuscitou. Lázaro também ressuscitou.

— Você ressuscitou como Eduardo Olivera — disse Ross.

— E como banqueiro — disse seu pai. — Em 1945 houve muitos Lázaros.

— Isto é fato — concordou Rosa.

— Agora você entende como?

— Agora eu entendo — disse Ross..

— Primeiro, fui um pequeno banqueiro. Não morava ainda aqui. Depois me tornei um grande banqueiro- Aí me transferi para cá.

De novo, o ar encheu-se com um estrondo trovejante. Nova mente tremia o chão. Uma nova esquadrilha de caças a jato passava em vertiginoso vôo rasante por cima do parque. Os copos tiniam.

— Esses caças — disse Olivera — também voaram às vezes por cima da casa quando meu amigo, o General Álvarez. ainda era o patrão de Miguel. Voam agora, quando ele não mais precisa dele, quando Miguel está comigo e este país é uma democracia. Os mesmos aparelhos e os mesmos pilotos. O país continua a ser o mesmo. Eles precisam estar prontos para proteger nosso país- — Olivera abriu largamente os braços. — Meus filhos! Como estou feliz em tê-los comigo todos os dois! Venham, vamos de novo para a água!

— Eu quero lhe perguntar...

— Não — disse Olivera levantando-se e tirando o roupão branco. — Agora não há mais perguntas, Daniel. Depois da siesta eu vou lhe mostrar o documento. Então, vou responder a qualquer pergunta. Você viu as orquídeas nas árvores? Aquelas amarelas e marrons com as bordas violeta? Elas não são uma maravilha? Chamam-se Vanda tricolor. Eu gosto de orquídeas...

Plop, plop, plop.

Ross apertou os lábios. Era o medo, o medo que era irreal mas muito pior do que o medo explicável. Estava ainda ao longe, mas já estava a caminho. Ross ergueu-se rapidamente. Mercedes o mirou, preocupada. Ele sacudiu a cabeça, sorrindo, e seguiu rumo às cabines do vestiário.

— O que está se passando? — indagou Olivera.

— Nada. Eu volto já. Só preciso...

— Ah, bom.

Ross chegou às cabines. Entrou na sua e trancou a porta. Do bolso do paletó, retirou um tubinho de vidro e derramou cinco comprimidos sobre a palma da mão. Abriu a boca e engoliu o Nobilam. Há anos conseguia tomar pílulas de qualquer espécie sem tomar água junto. Sibylle disse que eu posso tomar Nobilam assim que achar que preciso, tranqüilizou-se ele. Em seguida colocou o tubinho de volta no bolso e foi para o ar livre. Dentro de quinze minutos tudo estará em ordem, pensou, a caminho da piscina. Olivera e Mercedes já estavam dentro da água. Jogavam água um no outro e riam. Ross observou longamente o pai que remava com as mãos e gritava alguma coisa para Mercedes. Ross percebeu que já estava se sentindo melhor. O ódio era uma coisa fina.

O homem cujo nome já fora Georg Ross e que agora se chamava Eduardo Olivera estava na grande biblioteca de sua casa. Ele passava de uma das altas janelas francesas para outra, apertando um botão a fim de baixar as pesadas persianas corrediças de ferro, movidas eletricamente. Na biblioteca iluminada. Mercedes e Daniel estavam sentados em fundas poltronas. Ela vestia um traje caseiro de tecido fino e dourado — calças compridas e blusa folgada — bem como slippers no mesmo tom. A casa inteira era climatizada, e na biblioteca, com seus vários milhares de volumes, reinava uma temperatura fresca e agradável. Um antigo relógio pousado na cornija da lareira mostrava a hora: eram 6h04m. Ross sentia-se descansado. Havia dormido pesado e sem sonhos. Depois, tomaram chá na biblioteca. Miguel, de calças e jaqueta branca, fechada no pescoço, tirava as xícaras, o bule e tudo o que sobrara de cima de uma mesa baixa de mármore diante da lareira aberta e punha em cima de um carrinho de serviço. Deixou uma colher cair sobre o tapete. Miguel se ajoelhou. Passaram-se vários segundos até que ele a tivesse encontrado.

— Peço-lhe perdão, señorita — disse ele para Mercedes e se ergueu.

— Mas Miguel!

— Não, foi desajeitado de minha parte. — Ele tinha boa aparência, era um rapaz moreno e esbelto, de grandes olhos amendoados e lábios cheios. Sua voz soava quente e agradável.

— Está bem — disse Mercedes. — Está tudo bem.

— Deseja mais alguma coisa, señorita?

— Nada, obrigada, Miguel.

— Meus senhores?

— Você pode ir — disse Olivera diante de uma janela. — Bebidas nós temos aqui. O jantar dentro de duas horas, por favor. Você informa a Maria?

— Sim, señor. Dentro de duas horas. Às suas ordens.

E Miguel desapareceu empurrando à sua frente o carrinho com a louça do chá, com todo o cuidado. A grande porta da biblioteca fechou-se silenciosamente atrás dele. Mercedes serviu-se de um cigarro de uma caixa de prata que se achava sobre uma mesa baixa de mármore. Ross se ergueu e ofereceu-lhe fogo.

— Obrigada, Daniel. — Ela o olhou com um sorriso.

Ele sentou-se novamente.

— Você agora vai assistir a um filme, Daniel — disse Olivera, ainda ocupado com as persianas de ferro. — Esse filme se passa em Teerã, a capital do atual Irã. Antes de mostrá-lo, preciso dizer-lhe ainda algumas palavras para facilitar a compreensão. — Olivera usava uma calça de linho branca e uma camisa azul pelo lado de fora. A terceira persiana de ferro acabara de descer ao aperto de um botão ligado a pequenos e invisíveis motores elétricos. — Até 1953, o Irá era chamado de Império Persa. Esse império foi, em mil novecentos e sete, dividido em uma esfera de interesses britânicos e outra de interesses russos. Desde mil novecentos e vinte e um, existia um tratado de defesa com a União Soviética. — Olivera seguiu até a quarta janela e abaixou a pesada persiana. — De 28 de novembro até l de dezembro de 1943, teve lugar em Teerã uma conferência dos chamados Três Grandes: Stalin, Roosevelt e Churchill. Era a primeira vez que Roosevelt e Churchill se encontravam com Stalin. — Olivera chegou diante da quinta e última janela. — Stalin tinha feito questão de Teerã e nenhuma conferência de guerra entre os aliados havia provocado antes uma luta tão longa e tenaz para determinar o local e momento de sua realização. Churchill sugerira o nome de Eureka para designar em código a conferência. — Finalmente, a quinta veneziana descansava sobre o peitoril. — Pronto — disse Olivera — agora a sala está à absoluta prova de som. -

Dirigiu-se a uma estante ao lado da lareira e apertou uma mola escondida. Uma parte da estante deslocou-se para o lado e um grande cofre embutido munido de segredo, surgiu aos olhos deles. Encobrindo a instalação com suas largas costas, Olivera formou a combinação de algarismos correta. Ao mesmo tempo, ele prosseguia:

— A persistência de Stalin quanto ao Teerã teve, aliás, seus inconvenientes. Lá, nessa época do ano, o tempo é extremamente incerto. E foi o tempo que imediatamente obrigou o Presidente Roosevelt, então já gravemente enfermo, a abandonar o local da conferência antes do previsto. Em decorrência dos conselhos de seu médico pessoal, ele queria evitar ter de voar a grande altitude por causa da aproximação de uma frente de mau tempo. As conversações do dia primeiro de dezembro foram, por isso, excessivamente comprimidas, apenas para assegurar que Roosevelt, no dia seguinte, pudesse encetar sua viagem de volta através do Egito. — A pesada porta blindada, de uns trinta centímetros de espessura, abriu-se por inteiro. Do espaçoso interior do cofre, Olivera retirou um objeto parecido com um livro estreito, metido em um estojo. — Hoje nós sabemos — prosseguiu ele — que na conferência de Teerã falou-se a respeito da abertura definida de uma segunda frente de guerra na França. Isso levou mais tarde ao desembarque aliado na Normandia a 6 de junho de 1944. Em Teerã chegou-se praticamente a um acordo, segundo o qual a abertura desse segundo front deveria ser coordenada com uma contra-ofensiva russa na primavera desse mesmo ano. Planos completos não existiam ainda. Além disso, segundo a historiografia oficial, os Três Grandes tentaram, aliás sem resultado, traçar as linhas mestras de sua política para o pós-guerra.

Olivera havia trancado novamente o cofre. Ross constatou que aquilo que ele tinha nas mãos era um vídeo-cassete. Olivera levou-o para um grande bar embutido do outro lado da lareira e abriu as duas portas de mogno. Surgiu um receptor de TV. Olivera puxou-o um pouco para fora. Ao lado da televisão havia um moderno aparelho de vídeo, sobre o qual estava pousado um pequeno e gracioso abajur. Olivera o acendeu, apagando simultaneamente a luz ambiente. A luz vinha agora de um ponto somente. A gigantesca biblioteca ficou reduzida à escuridão e uma vaga penumbra.

— Naquela época — disse Olivera enquanto se ocupava com o equipamento de vídeo — acorreram naturalmente numerosas equipes de cinema que filmavam para os noticiários semanais dos cinemas ocidentais e soviéticos. Paralelamente, porém, foi feito um filme de trinta e quatro minutos de duração, de cuja produção ninguém teve conhecimento com exceção de seus realizadores, além de Roosevelt e Stalin e de seus dois conselheiros políticos. Até este momento, ninguém no mundo sabe nada da existência desse filme, a não ser alguns homens, que pertenciam ao círculo mais restrito de colaboradores de Stalin e de Roosevelt — caso ainda estejam vivos —, além dos sucessores de Roosevelt e Stalin como dirigentes das duas maiores potências e de seus mais íntimos colaboradores. E Mercedes e eu. Preciso corrigir- me: o Ministro do Exterior Joachim von Ribbentrop, o Ministro da Propaganda do Reich Joseph Goebbels, e Heinrich Himmler, o chefe dos SS, também sabiam naturalmente da existência desse filme o qual, como Stalin e Roosevelt acreditavam, só havia sido feito em duas cópias por especialistas americanos escolhidos a dedo, de absoluta confiança e integridade a toda prova: uma versão com texto e locutor russos e outra com texto e locução em inglês. O que tenho aqui é uma cópia do exemplar americano.

— Como, uma cópia? Em 1943 não havia gravação em vídeo! Os filmes eram rodados na época em fitas de trinta e cinco milímetros.

— Isso é correto, Daniel. Eu possuía primeiro também um filme Kodak de trinta e cinco. Somente mais tarde é que mandei passar esse filme para vídeo-cassete.

— Por quê?

— Por dois motivos: o material da Kodak naturalmente não duraria eternamente. 1943, são quarenta e um anos atrás! Nem o melhor material permanece intacto por tanto tempo. Eu precisava fazer uma cópia em vídeo. Estou seguro de que também o devem ter feito no Kremlin e na Casa Branca. O filme original, com cerca de seiscentos metros de comprimento, chegava a seis quilos de peso e estava acondicionado num grande tambor de alumínio. Com aquilo, nenhuma alma conseguiria passar por nenhum controle aduaneiro. Aliás, mandei copiar em três vias esse original, por um alemão, aqui mesmo em seu laboratório. O homem faleceu já há uns cinco anos. Chamava-se Klein. Paulo Klein. Um amigo digno de toda a confiança.

— Por que motivo queria você cópias de sua cópia?

— Para minha proteção. O segundo cassete está numa casa- forte de um banco. Se alguma coisa me acontecer, se de repente eu morrer de morte não-natural, meu advogado tem procuração para retirar essa cópia do cofre e exibi-la numa conferência de imprensa internacional. Isso vale também para o caso de eu ficar mais que duas semanas desaparecido ou não der sinais de vida. Todo cuidado é pouco. Você também vai ter de tomar cuidado, Daniel quando receber agora o filme.

— Como é que devo proceder?

— Do mesmo modo que eu — disse Olivera. — A terceira cópia está aqui no cofre. Você receberá, portanto, duas cópias e também depositará uma, imediatamente, com as instruções necessárias para torná-la pública.

— E como é que esse filme chegou afinal em suas mãos?

Olivera encostou-se na parede de livros e enfiou as mãos nos bolsos da calça de linho.

— O Ministro do Exterior Joachim von Ribbentrop era um idiota. Ele só dispunha de um único talento: conseguir colaboradores de altíssimo gabarito. Dessa forma, seu Ministério dispunha de longe do serviço secreto que melhor funcionava — até mesmo melhor que o de Canaris. O serviço de Ribbentrop tinha gente de primeira classe em todos os pontos importantes do planeta. No final de 1945 esse aparelho ainda estava perfeitamente intacto. Na República Federal existem diversos serviços secretos concorrendo entre si, não é mesmo? Pois no Terceiro Reich era a mesma coisa. E também no Império do Irã fora há muito montada uma rede de espionagem como parte de um sistema muito maior, que cobria todo o Oriente Médio. E um homem tinha criado essa poderosa rede.

— Você? — perguntou Ross.

— Sim, eu — disse Eduardo Olivera, que muito tempo atrás se chamara Georg Ross.

— Então, quer dizer que você nunca foi soldado?

— Jamais. — Olivera sacudia a cabeça. — Em todas as cidades importantes dos países do Oriente Médio e em todos os pontos de apoio eu havia colocado residentes absolutamente confiáveis. Eram sempre naturais do país. Em Teerã residia um homem de nome Chan Ragai. muito jovem, muito dinâmico, muito bem-sucedido. Os agentes dele eu não conhecia — conforme uma antiga lei de todos os serviços. Só se conhece sempre um outro homem da respectiva rede.

— Como é que você se comunicava com esse Chan Ragai?

— Pelo rádio ou por mensageiro. O Ministério do Exterior de Ribbentrop achava-se instalado na Wilhelmstrasse, em Berlim. Meu escritório era ali. No prédio estavam instaladas também enormes estações transmissoras e receptoras. Chang Rai recebera de mim a tarefa de acompanhar o mais exatamente possível tudo o que ocorresse nessa conferência dos Três Grandes. Seus homens fizeram trabalhos notáveis. Especialmente um agente, que até hoje só me é conhecido sob o logograma CX-21. CX-21 acabou conseguindo uma cópia do filme que eu agora lhe mostrarei, Daniel.

Olivera deixou-se cair sobre um divã diante da lareira e pressionou a tecla de um minúsculo controle remoto que agora tinha na mão. Na tela do receptor de TV começou a passar um filme preto, levemente desgastado.

Acompanhados de curtos apitos, aparecem os algarismos 3, 2 e 1. Em seguida — trata-se de um filme preto-e-branco — vêem-se as armas dos Estados Unidos: uma águia estilizada com um ramo de oliveira na garra direita e um feixe de lictores, igualmente estilizado, na garra esquerda; sobre o peito, quadrada e estilizada, a bandeira americana; acima da cabeça da águia, uma faixa tremulante com as palavras E PLURIBUS UNUM. Ao redor da águia há uma circunferência fechada. Lê-se: SEAL OF THE PRESIDENT OF THE UNITED STATES. As armas ficam um tempo paradas. Seguem-se, em letras bem grandes, as palavras TOP SECRET e, em seguida, em língua inglesa, as palavras:

DO PRESENTE FILME EXISTE APENAS UM OUTRO EXEM PLAR COM TEXTO RUSSO E COMENTÁRIO EM IDIOMA RUSSO. A VERSÃO EM INGLÊS É DESTINADA AO ARQUIVO SECRETO DO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, CASA BRANCA, WASHINGTON, DC. A VERSÃO RUSSA É DESTINADA AO ARQUIVO SECRETO DO SECRETÁRIO-GERAL DO COMITÊ CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA DA UNIÃO SOVIÉTICA E CHEFE DO ESTADO DA UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS SOVIÉTICAS. NO KREMLIN, MOSCOU. SOB JURAMENTO DE MANUTENÇÃO DE SEGREDO, TOMARÃO CONHECIMENTO DESTE FILME E DE SEU CON TEÚDO APENAS OS MAIS PRÓXIMOS COLABORADORES DOS DOIS CHEFES DE ESTADO ATUAIS, BEM COMO OS MAIS PRÓXIMOS COLABORADORES DE SEUS SUCESSORES COMO CHEFES DE ESTADO. JAMAIS OUTRA PESSOA PODERÁ VER OU TOMAR CONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DESTE FILME DOCUMENTÁRIO. OS DOIS EXEMPLARES DO PRESENTE FILME DEVERÃO SER GUARDADOS PARA SEMPRE.

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APARECE NOVA IMAGEM

Uma panorâmica da cidade de Teerã. Entra falando inglês com sotaque americano um

NARRADOR

Esta é a cidade de Teerã, capital do Império do Irã, com cenas tomadas na manhã de 27 de novembro de 1943. Amanhã, 28 de novembro de 1943, inicia-se aqui a conferência dos Três Grandes: o Primeiro-Ministro do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, Winston Churchill, o Presidente dos Estados Unidos da América, Franklin Delano Roosevelt, e o Presidente do Conselho dos Comissários do Povo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Marechal Josef Vissarionovitch Stalin.

Um aeroporto militar à entrada da cidade. Ao fundo, poderosa e sinistra, a alta cordilheira coberta de neve das montanhas Elburz. Um grande quadrimotor, do tipo Liberator, pousa nesse instante e sai da pista. A escada de acesso é aproximada. Parece estar fazendo muito frio, pois os poucos homens que aparecem para a recepção, civis e militares, vestem pesados capotes e coberturas para a cabeça, a maioria gorros de peles. Vê-se um grande número de carros militares soviéticos e soldados com pistolas automáticas ao redor do terreno do aeroporto. As mais rigorosas medidas de segurança foram tomadas. A porta do avião se abre. Aparece ao alto da escada, de capote militar e boné, Winston Churchill. Traz um grosso charuto na boca, dá um largo sorriso e ergue o dedo indicador e o médio da mão direita no gesto, que se tornou famoso, do “V” da vitória. As forças soviéticas de segurança na mais alta prontidão. Atmosfera agitada e nervosa. O reduzido grupo de homens saúda Churchill, que desceu a escada. Cerca de uma dúzia de outras pessoas deixa o avião que acabou de pousar.

NARRADOR

14h35m. hora local. Nesse momento mantido em sigilo pousa o avião do Primeiro-Ministro Churchill — por motivos de segurança, não no aeroporto civil de Mehrabad, e sim no aeroporto militar soviético. O Premier desembarcou com uma pequena equipe de colaboradores. Está sendo cumprimentado pelo Embaixador britânico em Teerã. O Primeiro- Ministro Churchill é conduzido em seu carro para a sede da Embaixada britânica.

Churchill embarca em um carro estacionado no campo de pouso e é seguido pelo Embaixador britânico. A comitiva de Churchill utiliza três outros automóveis que chegaram à pista. A reduzida coluna põe-se em movimento. À frente de todos, um grande carro da polícia com pisca-piscas azuis. Sobre os estribos, seguem de pé fortemente armados, policiais persas.

— Quem fez essas tomadas? — indagou Ross, que olhava enfeitiçado a tela de TV.

— Cinegrafistas do exército, escolhidos entre americanos e soviéticos — informou Olivera. — Os repórteres, operadores de noticiários semanais de cinema e fotógrafos só aterrissaram mais tarde no aeroporto civil de Mehrabad. — Olivera acendera um abajur, e Ross viu que havia um livro ao lado de seu pai. Ele mantinha um outro aberto sobre os joelhos.

— Embora Churchill risse diante das câmeras, na realidade ele estava furioso — disse Mercedes. Ela havia descalçado seus slipers e puxara as pernas para cima, aconchegando-se em sua poltrona.

— Por que furioso? — perguntou Ross. A imagem havia mudado.

O pequeno comboio segue por uma estrada que liga o aeroporto militar à cidade. O caminho é guardado por cavalarianos persas separados entre si por pequenos intervalos. A princípio. são vistas poucas pessoas acenando.

— Ele estava insatisfeito com as medidas de segurança — disse Olivera e colocou os óculos de tartaruga. — Tenho aqui um volume de suas memórias. Churchill escreve: “. . - À medida que nos aproximávamos da cidade, a estrada, por cinco quilômetros, estava ladeada por postos de cavalaria persa a cada cinqüenta metros. Pessoas de má-fé poderiam deduzir sem dificuldade que uma alta personalidade era esperada e qual o itinerário que ela iria seguir. . . A velocidade era lenta e logo muita gente encheu os espaços entre os cavalarianos: policiais, quando os havia, eram escassos O filme corrobora o que Churchill iria escrever mais tarde.

Subúrbios de Teerã. De repente, muitas pessoas entre os cavaleiros. A maioria surpresa e séria. A câmera mostra uma menininha sentada nas costas do pai e que acena. várias imagens focalizam a viagem através do centro da cidade. Aqui, as pessoas se comprimem de maneira aterrorizante. Sem qualquer impedimento, elas chegam bem junto dos carros.

Olivera disse, com o livro sobre os joelhos:

— Churchill continua: “No centro da cidade, a multidão se comprimia em quatro e até cinco fileiras. Chegavam até poucos passos junto dos carros, de maneira amigável mas reservada. Contra dois ou três indivíduos resolutos, munidos de revólveres ou bombas, não teria havido proteção alguma...“

A multidão vai ficando cada vez mais compacta. A comitiva segue a baixíssima velocidade. Num cruzamento, chega a ter de parar. A rua está entupida de gente. Os soldados persas só a muito custo se tornam senhores da situação. As pessoas recuam hesitantes e contrafeitas.

Ouviu-se a voz de Olivera: -

— Churchill escreve e eu cito: “No cruzamento que leva à Embaixada ocorreu uma parada; ficamos imóveis por cerca de três a quatro minutos, no meio da multidão de persas embasbacados. Se se tivesse decidido correr o máximo perigo, dispensando tanto a proteção de uma chegada sigilosa quanto a cobertura de uma forte escolta, a solução encontrada teria sido a melhor possível. De qualquer modo, nada aconteceu. Eu sorria para a multidão e a maioria retribuía meu sorriso...”

A imagem na televisão mostra um inabalável e tranqüilo Churchill com o charuto na boca. Acena para as pessoas que se comprimem ao redor de seu carro, e ri. Muitos acenam para ele e riem também. Sem tirar o charuto da boca, Churchill diz alguma coisa para o Embaixador britânico sentado ao seu lado. Este balança afirmativamente a cabeça e faz uma cara de raiva. Finalmente, o cruzamento é desimpedido e os carros podem seguir. Ruas estreitas que finalmente conduzem a uma mais larga. O comboio chega a uma grande mansão situada no meio de um parque. O portão do jardim está aberto. Soldados britânicos da Índia vigiam todo o terreno, a entrada, o caminho através do jardim bem como o prédio. Usam turbantes brancos. Todos estão fortemente armados. O comboio avança em direção à mansão. A câmera se desvia e mostra a propriedade vizinha, num parque gigantesco em comparação com o jardim da Missão britânica, no qual se encontram diversos edifícios de grande porte, guardados por soldados soviéticos que fervilham por toda parte.

NARRADOR

A fila de carros com o Primeiro-Ministro Churchill chegou à Embaixada britânica. Churchill e sua comitiva irão ficar hospedados aqui. A residência é guardada por soldados britânicos provenientes da Índia. (E após um movimento da câmera:) Logo ao lado se encontra a Embaixada soviética, onde já estão hospedados o Marechal Stalin e sua comitiva.

Depois de ajustar os óculos, Olivera prosseguiu na leitura:

— “Os edifícios, escreve Churchill, se encontravam um ao lado do outro. A brigada indo-britânica que nos protegia entrou por isso mesmo em contato com os russos, que eram ainda mais numerosos e isolavam completamente sua própria área. Assim, entraram logo em acordo, de tal forma que nos encontrávamos num território isolado, protegido como que para uma guerra...”

Novamente o aeroporto militar soviético. Um avião do tipo Fortaleza Voadora aterrissa e rola até o mesmo ponto onde havia parado a aeronave de Churchill. A área do campo de pouso está de novo hermeticamente fechada. Uma longa coluna de grandes carros americanos — Chevrolets, Buicks. Chryslers, Lincolns e Cadillacs — aproxima-se do avião. A porta da Fortaleza Voadora se abre e a escada encosta no aparelho. A câmera mostra desapiedadamente como o Presidente Roosevelt é carregado escada abaixo por dois seguranças americanos e sentado dentro de uma cadeira de rodas. (Após haver contraído poliomielite, o Presidente não consegue mais caminhar, só conseguindo ficar de pé, mediante muito esforço, por muito pouco tempo.) Numerosos civis e militares o saúdam. A cadeira de rodas desaparece atrás de uma limusine. Evidentemente, o Presidente será levantado para dentro de um autom6vel. Logo em seguida vê-se seu pálido rosto marcado pela doença, através do vidro traseiro de um veículo.

NARRADOR

16h47m. Neste momento, também mantido sigiloso, o aparelho com o Presidente Roosevelt pousa na pista do aeroporto militar russo. O Presidente vem à Conferência Eureka, conforme é chamada por sugestão do Premier britânico, com uma comitiva de setenta e seis pessoas.

Vemos agora essa enorme quantidade de acompanhantes. Um número cada vez maior de civis e militares sai do avião e desce a escada. Os homens embarcam nos carros. Como com Churchill, um carro da polícia segue à frente, piscando uma luz azul, desta feita na ponta de um comboio bastante grande.

— Meu Deus — disse Ross. — Comitiva de setenta e seis pessoas!

As imagens que o vídeo agora mostrava correspondiam no fundo às da chegada de Churchill e de seu deslocamento até a cidade. Pelo controle remoto, Olivera baixou um pouco o volume da voz do narrador. Enquanto eram mostradas as imagens da delegação americana em seu caminho para a cidade e através dela, Olivera disse, tomando nas mãos o outro livro:

— Tenho aqui um trabalho sobre a História Contemporânea, de Gottfried Zieger, que, por sinal, é excelente. O autor deste livro, publicado em 1967 com o título de A Conferência de Teerã em 1943, desenvolvia outrora atividades no Instituto de Direito Internacional da Universidade de Göttingen. Ele escreve no capítulo III: “... afora as dificuldades de acomodação dessa gigantesca equipe, verificou-se logo que as instalações dos norte- americanos eram inadequadas...”

O filme mostra a chegada da fila de carros do Presidente diante da Embaixada americana, um edifício grande e branco que, como os outros, estava situado num jardim. Muitos soldados americanos, bem armados, guardam a propriedade.

— “...A Missão diplomática dos Estados Unidos achava-se aliás a quase dois quilômetros de distância das Embaixadas da Grã-Bretanha e da União Soviética”, escreve Zieger. “Transpareciam temores de que poderia acontecer alguma coisa com o Presidente em conseqüência dos deslocamentos diários para aqueles locais...” E, em outro ponto, observa Zieger: “Conforme o Diário do Presidente, verifica-se que era do conhecimento dos americanos que Teerã até há bem pouco tempo tinha estado ‘sob completo controle alemão’” — Olivera, primeiro contido, se pôs a rir, enquanto prosseguia na leitura — “ou, como se expressava drasticamente Roosevelt, que o quartel-general de toda a espionagem do Eixo no Oriente Médio se achava na capital persa, onde residiria inclusive ponderável número de simpatizantes da Alemanha...” — Então Olivera riu abertamente. Ele se acalmou e disse, sempre interrompido por ataques de riso:

— Espertinhos, hem? Tinham mesmo descoberto que nós estávamos em ação em Teerã! Não que eu queira me gabar...

— Nem precisa — disse Ross entre os dentes. — Roosevelt já o faz.

— Oh, Daniel — suspirou Olivera — será isso um cumprimento?

Ross viu que Mercedes o olhava suplicante. Os olhos dela lhe solicitavam: Por favor, não! Você prometeu controlar os seus nervos. Ross concordou levemente com a cabeça. Ela lhe sorria. E ele voltou a fitar a tevê.

O filme mostra então uma sala numa das mansões pertencentes à Embaixada soviética. Muito luxuosa. Vêem-se, conversando: Stalin de uniforme (dólmã branco), um homem pequeno com um antiquado pincenê sobre o nariz e um outro homem forte de uniforme.

Olivera aumentara novamente o volume do som por meio do botão.

NARRADOR

As equipes dos órgãos soviéticos de segurança, que já haviam desembarcado anteriormente, asseguraram ao fim da tarde de 27 de novembro haverem detectado um complô contra um dos Três Grandes. O Marechal Stalin ouviu seu Ministro do Exterior Viacheslav Mikhailovitch Molotov e seu conselheiro político pessoal, General Kliment Iefremovitch Voroshilov...

É noite. O Ministro do Exterior Molotov vai de carro da Embaixada soviética para a Missão diplomática americana, desce do automóvel e é conduzido por civis para dentro da casa e introduzido num salão onde é recebido por um homem à paisana de cinqüenta anos de idade.

NARRADOR

Ainda na noite do dia da chegada o Ministro do Exterior Molotov dirige-se à Embaixada Americana e alerta expressamente o Conselheiro político pessoal do Presidente Roosevelt, Harry Lloyd Hopkins, para a existência de agentes alemães e suas intrigas criminosas.

Olivera havia empunhado novamente o primeiro livro. Enquanto passavam as imagens pormenorizadas da mudança, ele leu, baixando o volume do som:

— Novamente Churchill: “Guardada por tropas americanas, a Embaixada dos Estados Unidos distava mais de dois quilômetros de nós, o que significava que ou o Presidente ou Stalin e eu deveríamos passar pelas estreitas ruas de Teerã duas ou três vezes por dia, nas duas direções. Para piorar as coisas, Molotov, que havia chegado vinte e quatro horas antes de nós, anunciou que o serviço de segurança russo tinha indícios de um complô para matar um dos Três Grandes, como éramos chamados. O mero pensamento de que nós constantemente deveríamos passar pelas ruas enchia-o de terror. Um acontecimento dessa natureza daria a pior impressão possível, pensava ele. Isso era incontestável. Apoiei por isso com toda a energia o apelo ao Presidente para que ele se instalasse na Embaixada soviética, que, em matéria de espaço, era três a quatro vezes maior que as outras missões e ficava dentro de um grande parque e cercado pelas tropas e a polícia soviéticas...”

Exatamente nesse ponto o filme mostra a inacreditável quantidade de forças de segurança soviéticas no decorrer da mudança do americano.

— “...Conseguimos convencer o Presidente a aceitar esse bom conselho”, escreve Churchill, “e no dia seguinte, à tarde, ele transferiu-se com seu staff pessoal, que incluía os excepcionais cozinheiros filipinos de seu iate, para a propriedade russa, onde lhe foi oferecida uma régia e confortável hospedagem.”

Cenas da mudança dos americanos para a Embaixada soviética. A câmera mostra de novo, em primeiro plano, o conselheiro pessoal de Roosevelt, Harry Hopkins.

— Como vê, Daniel — disse Olivera —, o tato do narrador e o das memórias de Churchill, neste ponto são quase idênticos. Só que Churchill começou a escrever suas memórias muitos anos mais tarde. Quanto à veracidade das imagens e dos comentários do filme não pode persistir nenhuma dúvida. Churchill escreve ainda: “Assim nos encontrávamos todos dentro de um pequeno bairro, onde, sem o perigo de uma perturbação, podíamos tratar dos problemas da guerra mundial. Isso se tornou para mim, na Embaixada britânica, muito confortável; e até o palácio dos soviéticos, do qual se poderia muito bem dizer que, no momento, constituía o ponto central do mundo, eu só precisava percorrer algumas centenas de metros. Eu me sentia ainda muito mal; meu resfriado e minha garganta dolorida pioraram tanto que eu, muitas vezes, mal conseguia falar. De qualquer modo, com pincelamentos e infatigáveis cuidados, Lorde Moran me pôs em condições de expressar o que eu tinha a dizer — e era muita coisa!”

Olivera tirou os óculos e fechou o livro.

A CÂMERA mostra então EM PRIMEIRO PLANO o edifício da Embaixada soviética e se aproxima bastante dele.

A IMAGEM DESAPARECE

APARECE NOVA IMAGEM

Um salão com gigantescos tapetes, tapeçarias, velhas pinturas e móveis antigos. Sentados um defronte do outro, posando para fotógrafos e cinegrafistas: Roosevelt e Stalin.

Olivera aumentou novamente o volume.

NARRADOR

28 de novembro de 1943: primeira entrevista Stalin-Roosevelt, na Embaixada soviética. Início: 15h, hora local; término: 16h, hora local. Presentes também: dois intérpretes e um estenógrafo.

CORTE

Um grande salão de reuniões. Cerca de duas dúzias de homens, alguns de uniforme, outros em traje civil.

NARRADOR

Primeira sessão plenária, em 28 de novembro de 1943, na Embaixada soviética. Início: l6h. Término: l9h3Om. Participantes: o Presidente Roosevelt, seu conselheiro pessoal Harry Hopkins, Almirante Leahy, Almirante King, General- de-Divisão Deane, Capitão Royal e Charles Bohlen. — Primeiro-Ministro Churchill, Ministro do Exterior Anthony Eden, Marechal-de-Campo Dili, General Brooke, Almirante- de-Esquadra Cunningham, Marechal-em-chefe-do-Ar Portal, Tenente-General Ismay, Major Birse. — Marechal Stalin, Comissário do Povo para Assuntos Estrangeiros Molotov, General Voroshilov, Pavlov e Berezkov.

CORTE

— A respeito dessas reuniões — disse Olivera — Zieger relata em seu livro com exatidão, indicando as mesmas datas e horários. Sobre o próximo encontro ele não menciona nada, naturalmente.

Um pequeno aposento. Lá dentro, Harry Hopkins e o General Voroshilov. Ambos muito sérios.

NARRADOR

29 de novembro de 1943. 2h. Primeiro encontro secreto entre Harry Hopkins e General Voroshilov, conselheiros políticos pessoais, respectivamente, do Presidente Roosevelt e do Marechal Stalin, em um salão afastado da Embaixada soviética. Mais tarde presentes: dois intérpretes e um estenógrafo. A respeito desse encontro só estão informados Roosevelt e Stalin. Estende-se até 4h30m da madrugada. Primeira troca de idéias e primeira sugestão para um protocolo bilateral secreto entre a União Soviética e os Estados Unidos da América...

CORTE

Daniel Ross, que trajava blue jeans e uma malha branca, ergueu-se de um salto. Quase sem fôlego, ele disse:

— Protocolo bilateral secreto, já em 1943?

— Certamente. E que protocolo! Você acha que eu mandei Mercedes buscá-lo só de brincadeira? Você acha que está errado o meu ponto de vista de que, com este filme se pode sacudir o mundo? Fique calmo e ouça!

Ross afundou novamente na poltrona.

— Isso avisei — sussurrou Mercedes.

Nesse ínterim, havia mudado a imagem na televisão, mostrando agora a primeira reunião conjunta dos representantes militares das três grandes potências, em 29 de novembro de 1943, de novo na Embaixada da URSS, início às lOh3Om, término, por volta de 13h30m.

Seguiam-se imagens da segunda entrevista Stalin-Roosevelt, em 29 de novembro de 1943, na Missão russa, início às 14h. Término: 15h30m.

Em seguida, eram tomadas da segunda reunião plena, em 29 de novembro de 1943. Início: 16h. Término: 19h30m.

Olivera comentou: — Também estes encontros são minuciosamente apresentados no trabalho de Zieger — comentou Olivera.

— O que se segue, é evidente que não.

CORTE

O pequeno aposento da Embaixada, onde se encontram Harry Hopkins e o General Voroshilov. Uma escrivaninha recoberta de muitos papéis, junto à qual estão sentados os dois, um defronte do outro.

NARRADOR

30 de novembro de 1943, 6h30m. Segundo encontro secreto entre Harry Hopkins e o General Voroshilov no salão afastado da Embaixada soviética. Mais tarde presentes: os dois intérpretes e um estenógrafo. Dois especialistas absolutamente confiáveis do Ministério americano do Exterior fizeram as tomadas deste encontro assim como do primeiro. Ficou acordado entre Roosevelt e Stalin que esses encontros secretos deverão ser gravados em imagens. Os especialistas estavam ali, evidentemente, sob juramento de silêncio. Objetivo do encontro: elaboração definitiva do protocolo secreto bilateral. Término do encontro: 3h45m

CORTE

— Fantástico — disse Ross.

— Espere um pouco — disse Olivera.

Seguiram-se imagens da conferência Stalin-Churchill, em 30 de novembro, início às l2h4Om, término por volta de l3h3Om.

Local: Embaixada britânica; em seguida, tomadas de uma conferência durante o almoço, em 30 de novembro de 1943, no salão de banquetes da Embaixada soviética, início 13h3O, término, 15h45m; então vieram imagens da terceira reunião plenária, de 30 de novembro de 1943, com início às l6h e término às l8hl5m. Local: Embaixada soviética; logo em seguida, uma sessão em mesa-redonda, ainda a 30 de novembro, também na Embaixada soviética. Seu começo foi às 18h, e término às 19h40m.

— Tudo isso — disse Olivera — pode-se ler no livro de Zieger, A Conferência de Teerã em 1943. Datas e horas são precisamente as mesmas. O que se segue não é mencionado, pois Zieger não tinha idéia disto.

A tela do vídeo mostra o pequeno salão da Embaixada soviética. Presentes: Stalin, Roosevelt, Harry Hopkins, Voroshilov, dois intérpretes. Roosevelt e Stalin estão sentados juntos à escrivaninha. Cada um assina um fino documento numa pasta de couro. Trocam de pastas e assinam novamente.

NARRADOR

1° de dezembro de 1943, 6h da manhã. Stalin e Roosevelt assinam o protocolo secreto elaborado por seus respectivos conselheiros pessoais, nas versões datilografadas nos idiomas inglês e russo. Por vontade de ambos os Chefes de Estado, as tomadas foram feitas pelos já mencionados especialistas. Igualmente por desejo de Roosevelt e Stalin, o próprio protocolo foi filmado, desfilando página por página, tão devagar que é possível acompanhar-se o texto sem maior dificuldade. Eis o referido texto.

CORTE

A primeira página do protocolo, parte superior de leitura, muito nítida, embora esta parte, bem como, de resto, todo o filme, esteja gasta em virtude de sua idade e apresente um leve “chuvisco”, alguns rasgões e falhas de som, além de arranhões e manchas.

Fez-se um silêncio mortal na biblioteca. Ross lê.

PROTOCOLO BILATERAL (ULTRA-SECRETO)

O Presidente dos Estados Unidos da América e o Presidente do Conselho dos Comissários do Povo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas incumbiram seus conselheiros políticos de formular as perspectivas a longo prazo para a política de seus respectivos Estados. Por ocasião da assinatura da declaração de 1o de dezembro de 1943 sobre o desenvolvimento e as conclusões da Conferência dos Altos Aliados em Teerã, o Governo dos Estados Unidos da América e o Governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas — a seguir denominadas Potências — afirmam os seguintes princípios de sua política futura:

A CÂMERA ACOMPANHA LENTAMENTE LINHA POR LINHA

Os Governos dos Estados Unidos da América e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

— na consciência de que sobre eles recaem os mais pesados encargos no combate contra a Alemanha nazista e seus aliados,

— unidos na decisão de, depois de cessados os embates armados desse conflito, não se esquivarem da responsabilidade pela paz no mundo e, em conjunto, de a manterem,

— na convicção de que apenas duas potências fortes e independentes podem efetivamente assegurar o exclusivo objetivo da manutenção da paz, da justiça e do bem-estar em todo o mundo,

— cônscios de sua responsabilidade de libertarem a si mesmos e aos povos do mundo da ameaça de qualquer política de agressão,

— no reconhecimento da necessidade de assegurar uma transição ordenada da guerra para a paz e de garantir futuramente a segurança internacional,

declaram conjuntamente que:

As Potências se obrigam a abster-se, em suas relações mútuas, de qualquer ato de força, qualquer posição agressiva e qualquer ataque entre si, quer isoladamente quer em conjunto com outras potências.

No caso de uma das Potências vir a ser alvo de ação agressiva por parte de um terceiro Estado, a outra Potência não apoiará, de forma alguma, este terceiro Estado. Este acordo não impede nenhuma das Potências de... (A primeira página é afastada e a CÂMERA fotografa a parte superior da página...vir em ajuda de um terceiro Estado, mesmo que essas atividades estejam dirigidas contra a outra Potência ou contra grupo de potências ao qual ela pertença. Em tal situação, as duas Potências evitarão, no entanto, qualquer confrontação direta e imediata entre suas tropas e seu pessoal militar.

As Potências reconhecem mutuamente a especial responsabilidade que cada Potência possui em relação a determinadas regiões.

As regiões de especial responsabilidade da União das Re públicas Socialistas Soviéticas serão delimitadas na Europa pela linha que as tropas soviéticas tiverem alcançado por ocasião do armistício que se registrar com a Alemanha do Terceiro Reich, ou bem, por uma linha de demarcação a ser ajustada entre os Aliados e as forças a eles associadas. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas busca um remanejamento político e territorial das referidas regiões.

— E, por Deus, a União Soviética realmente remanejou essa região, política e territorialmente! — disse Mercedes. Ela se levantara e interrompera o filme, pressionando a tecla do stop do aparelho de vídeo. Sua voz soava extremamente neutra.

— Hungria! Gigantescas trocas de populações com a Tchecoslováquia. Latifúndios, bancos e indústria, estatizados. Escolas religiosas e particulares, estatizadas; agricultura brutalmente estatizada. Em 1947, os comunistas conseguiram, apoiados no Exército Vermelho, eliminar a oposição. E, para quebrar a resistência do clero, o Cardeal Mindszenty é condenado à prisão perpétua. Políticos incômodos são acusados de “titoístas” e “agentes do imperialismo” em processos sinistros e fictícios, condenados à morte e executados. Sob Imre Nagy são, mais tarde, reabilitados. Que escárnio, quando se pensa que, em fins de 1956, as tropas do Exército Vermelho invadem o país, fazem cair Imre Nagy, que mais tarde é morto. Diante de tudo isso, mexeram os americanos um dedo que fosse? Nem um único! Ajudaram a Hungria? Nem com um gesto. E por que não? Porque assim havia sido combinado em Teerã!

Mercedes acendeu um novo cigarro. Ross a observava, fascinado.

— Tchecoslováquia! — continuou Mercedes sempre neutra. — Uma parte, a Ucrânia carpática, passa (é evidente que sob pressão) para a Rússia. Desentendimentos entre partidos não- socialistas possibilitam aos comunistas, dois anos mais tarde, o domínio do Estado. O Ministro do Exterior Jan Masaryk, o filho do grande Tomas Masaryk, tomba em circunstâncias misteriosas da janela de seu escritório para a morte. Suicídio? Homicídio? Por desejo de Stalin, é aberto processo contra proeminentes comunistas, acusados de “ações titoístas e sionistas”. Todos são executados. Muitos milhares são assassinados. Os americanos? Mexeram um único dedo? Nenhum. Ajudaram? Nem com um gesto. E por que não? Havia ficado combinado em Teerã.

A fosca tela da tevê lançava uma luz trêmula sobre Mercedes.

O dourado traje caseiro brilhava. Ela falava com uniformidade — aparentemente tranqüila e fria por fora. Ross a fixava, subjugado.

— Polônia! — prosseguiu Mercedes. — A partir de julho de 1945, o governo no eixo não é mais reconhecido, sendo dissolvido. Eleições livres não são realizadas e a sovietização da Polônia é irresistível. A União Soviética obriga à troca de valiosos territórios (em termos comerciais e de riqueza do subsolo) por outros sem qualquer significação. Após a assimilação, segue-se, a partir de quarenta e nove, a submissão total à política soviética. Em 1955, a Polônia, assim como a República Democrática Alemã, a Tchecoslováquia, a Hungria e outros países do bloco oriental entram no Pacto de Varsóvia. Todos esses países tornaram-se satélites da URSS. A Cortina de Ferro já desceu há muito tempo. Fizeram os americanos a menor objeção, a mínima que fosse? Nada e nunca. E por que não? Pois ficara assim tratado em Teerã! — E Mercedes acrescentou: — Não sou nenhuma anticomunista fanática. Logo chegará a vez dos americanos. Apenas vamos acompanhar, na ordem, este maravilhoso protocolo. — Apertou uma outra tecla e o filme voltou a rodar.

A CÂMERA desliza para o pé da página 2. Na tela, pode- se ler: Os Estados Unidos da América assumem a especial responsabilidade no que se refere aos territórios europeus situados a oeste e ao sul desta linha.

Mercedes interrompeu novamente o filme.

— E como eles exerceram essa “especial responsabilidade!” — exclamou ela. — Aquilo que os soviéticos tiveram de executar mediante a força, porque não possuíam os bilhões, os americanos fizeram sem violência, pois possuem os bilhões. O Plano Marshall. A Europa é de novo reconstruída, especialmente a Alemanha, a fim de que nenhum país, na miséria, se torne comunista. Criam a Bundeswehr, o exército da Alemanha Ocidental, sob o comando de velhos generais nazistas, já que não existem outros. Isso importa alguma coisa aos americanos? Absolutamente nada. Muito pelo contrário: eles sabem que os generais nazistas são aliados extraordinariamente confiáveis, Em conseqüência da criação da Bundeswehr ocidental, naturalmente logo se cria no Leste o Exército Nacional do Povo da República Democrática da Alemanha. Igualmente com velhos generais nazistas. Ser general é que é bom. De preferência general alemão. Sempre tem utilidade. É sempre estimado. Pelo amigo e pelo inimigo. É estimado quer ganhe quer perca a guerra. Por quê? Porque logo se irá precisar dele! Por que você não é general, Daniel?! Imperdoável. Você teria uma vida excelente, e nenhuma preocupação. Viva! Chegou o milagre econômico. Com dinheiro americano e a velha administração germânica da economia de guerra! E daí? O Secretário de Estado Globke, consultor pessoal de Adenauer, é autor de normas de aplicação das leis anti-semitas de Nuremberg. “Não posso abrir mão desse homem”, diz Adenauer. É, se ele não pode abrir mão dele! Amizade com o Ditador fascista Franco: Basta que ele ponha algumas bases à disposição da Força Aérea dos Estados Unidos, pelo que ele, aliás ganhou centenas de milhões de dólares por ano. Amizade com os tipos mais asquerosos da Turquia e da Grécia. Milhões também para eles. Basta que os seus governos sejam ferreamente anticomunistas. Basta que eles mais tarde entrem todos na OTAN ou pelo menos aluguem bases para os bombardeiros e navios de guerra do “mundo livre”! Protesto dos russos? Protesto sério? De jeito nenhum. Porque assim foi combinado em Teerã!

O filme continua passando.

Como regiões de especial responsabilidade dos Estados Unidos da América as Potências consideram o duplo continente americano, inclusive as ilhas que lhe ficam defronte, bem como a Groenlândia e a Islândia.

As Potências exercerão toda a sua influência no sentido de que as regiões africanas que estão atualmente sob a administração das potências européias obtenham uma total independência. As Potências declaram que não defenderão no continente africano interesses unilaterais e não aspirarão ali a posições contrárias aos interesses da outra Potência. Iniciativas análogas de terceiros Estados serão rechaçadas com os meios adequados.

— Rechaçar com os meios adequados, Daniel! Em Angola e no Congo os soviéticos rechaçaram iniciativas análogas com os meios apropriados. Os americanos não disseram uma palavra. Isto é, disseram muito, mas fazer, não fizeram nada. Porque estavam de acordo com os soviéticos. — Mercedes aproximou-se do televisor.

Não, pensou Ross, não.

Com a concordância da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas os Estados Unidos da América consideram a Turquia e os países do Oriente Próximo, ao sul da fronteira meridional da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas até a fronteira leste do Império do Irã como territórios da responsabilidade especial dos Estados Unidos da América. As Potências estão concordes em que o problema do povo judeu sem pátria precisa receber uma solução e estão de acordo em apoiar a fundação de um Estado judaico na Palestina.

— Isso elas fizeram — disse Mercedes, sempre com a mesma voz uniforme. — Os americanos apoiaram Israel com dinheiro, com armas e com conselheiros, e os soviéticos ajudaram os árabes e os sírios com conselheiros com armas e com dinheiro. Exatamente como reza o protocolo: “Esta convenção não impede que qualquer das Potências venha em ajuda de um terceiro Estado, mesmo quando essa iniciativa seja dirigida contra a outra Potência.” — Ela apagou o cigarro. — “Em tal situação”, como você mesmo já leu, “ambas as Potências evitarão qualquer confrontação direta e imediata entre suas tropas e seu pessoal militar!” E como isso funcionou. Bravo! Tudo se passou às mil maravilhas. Alguma vez, no Oriente Próximo ou em qualquer outro lugar do planeta, desde o fim da guerra, qualquer soldado americano atirou em qualquer soldado soviético, ou vice-versa? Mesmo quando se tenha tratado de uma região crítica como Israel? Jamais. Isto os cavalheiros não fazem. Mutuamente nunca se fazem nada. Desde 1945 houve cento e cinqüenta e seis guerras. Guerras pequenas. Milhões pereceram nessas guerrinhas. Cento e cinqüenta e seis guerras, nas quais um lado ou os dois foram sustentados pelos soviéticos e americanos, naturalmente sem que suas tropas jamais tenham chegado a uma “confrontação direta e imediata”. — Como sempre, Mercedes prosseguia impassível. — Novos sistemas de armamentos foram testados nessas guerras pelas duas potências! Ambas precisavam de campos de treinamento. Tinham de ficar igualmente fortes, não é mesmo, senão este protocolo teria ficado sem sentido. Você agora está vendo, Daniel, o que os soviéticos e os americanos fizeram em Teerã, em 1943? Dividiram o mundo entre si! As superpotências precisam se pôr de acordo, gritam todos hoje. Pôr-se de acordo? Pois se já o estão há tanto tempo! — Mercedes tinha apertado a tecla de stop do equipamento de vídeo enquanto falava. Agora, deixou o cassete prosseguir. A câmera filmava a parte inferior da página 3.

A delimitação da responsabilidade no subcontinente indiano e no Extremo Oriente será objeto de um acordo especial entre as Potências depois da derrota definitiva do Império do Japão. As potências solucionarão essa questão por meio de um entendimento amigável. Ao fazê-lo, atribuirão um peso especial ao futuro papel a ser desempenhado pela China. Elas partem do princípio que a Coréia e os países da península indochinesa assim como dos arquipélagos do Sudeste asiático

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... irão obter sua total independência política.

Mercedes apertou de novo a tecla, parando o aparelho de vídeo.

— Total independência política! — disse ela. — Enquanto se cortava esses países pelo meio. Coréia! Paralelo trinta e oito. Coréia do Norte e do Sul. Cada um a sua. Em amigável entendimento”. Vietnã! Vietnã do Norte e do Sul, até os americanos invadirem. Em “amigável entendimento”. Dividir! A idéia mais brilhante da política do nosso tempo. Berlim. Alemanha. Leste e Oeste. Tudo em “entendimento amigável!” — E ela fez seguir o filme.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas reconhece a especial responsabilidade dos Estados Unidos da América no que se refere à Austrália, Nova Zelândia e às ilhas do Oceano Pacifico.

As Potências partilham integralmente a concepção de que, após a total derrocada militar e política do Reich Alemão, a formação de um novo Estado alemão unificado somente poderá ocorrer quando existir a segurança de que deste Estado não possa partir qualquer ameaça à paz mundial e ao ordenamento criado pelo presente acordo.

— Portanto nunca — disse Mercedes. — A Alemanha precisa ficar dividida para sempre. Como dois campos de treinamento!

As Potências consideram o Ártico e a Antártida como insuscetíveis de precisarem de uma responsabilidade especial. Elas se oporão a quaisquer reivindicações provenientes de terceiros Estados. Quanto às atividades futuras no continente antártico, será tentada uma solução internacional com participação de terceiros Estados interessados.

A liberdade dos mares permanece intocada. Contudo, as Potências se reservam o direito de declarar as águas existentes ao longo de suas costas como zonas nas quais podem exercer competências especiais. As Potências concordam que o princípio da liberdade dos mares inclui especialmente a exploração de recursos ou jazidas aproveitáveis que se encontrem dentro ou no fundo dos mares.

A vídeo-cópia do velho filme ficou levemente trêmula. A imagem estava amarelecida. Mas a escrita da máquina de escrever podia ser reconhecida nitidamente. No divã, Olivera recostou se para trás.

— Que beleza, hem, Daniel? — disse ele. — Ah, mas vai ficar mais bonito ainda. — E distendeu-se, satisfeito.

Abre-se a página 5.

Na hipótese de que venham a ocorrer disparidades de pontos de vista sobre a expansão das regiões de responsabilidade especial das duas Potências, as referidas disparidades deverão imediatamente ser objeto de negociações sendo solucionadas mediante entendimento amigável.

— Amigável! De novo esta palavra — disse Mercedes interrompendo a projeção. — Você está entendendo, Daniel? Elas são amigas, as duas superinimigas, que desde o fim da guerra e até hoje se insultam, ameaçam e amaldiçoam mutuamente de forma cada vez mais grosseira e mais infame. Uma chama a outra de “antro do mal”, ou “antro de criminosos capitalistas”, de assassinos e bandidos com sede de poder. Uma diz que a outra é um perigo mortal para a humanidade, e que ela por isso precisa de mais armamentos, sempre mais armamentos, para evitar que o mundo pereça. Teatro, Daniel, puro teatro! Teatro de marionetes! As infrutíferas conferências de desarmamento: teatro! Queiram entrar, meus senhores, entrem, entrem! Vejam o superteatro do mundo! Venham ver como nós nos odiamos! Venham ver como o outro é um criminoso inescrupuloso da mais alta periculosidade! E, por isso, é preciso suprimi-lo, cauterizá-lo, extirpá-lo da face da Terra. E nós todos, bilhões de seres humanos, vivemos nesse circo da mistificação, acreditamos nos embusteiros, trememos por nosso mundo. Concordamos que seja armado cada vez mais, e mais e mais. Somente assim ainda teremos a chance de nocautear um dos dois malvados, manter, um ou outro, em xeque. Queiram escolher, meus senhores, é só escolher! Pouco importa a quem vão eleger. Os Grandes já se entenderam, em 1943, em Teerã, quando dividiram o mundo entre si. O jogo já foi feito naquela época. Rien ne vas plus!

- Mas eu não estou entendendo...

- O que você não entende, Daniel?

- Armar-se, armar-se!, você diz. Mas as superpotências se armam efetivamente, de forma tão louca, que sua economia fica arruinada.

- Mas é claro!

- Sim, mas por que diabo, se elas já dividiram o mundo e estão de acordo em tudo, desprezando cinicamente o gênero humano?

- Ah — disse Olivera que se esticava de novo- — Uma pergunta muito boa. Você vai ter uma resposta muito boa, Daniel, no momento que tiver lido o ponto quinze. Aí você vai entender tudo o que Mercedes diz. Ponto número quinze. Espere por ele. Segue adiante, Mercedes, minha querida, por favor!

- Pontos sete e oito, Daniel, e preste bastante atenção! — observou Mercedes, deixando o filme prosseguir.

Caso nos territórios sob especial responsabilidade de uma das Potências venham a ocorrer situações exigindo que ela exerça ativamente esta responsabilidade, ela tomará todas as medidas que julgar necessárias para preservar a paz e a segurança contra quaisquer danos. A outra Potência respeitará tais medidas e, caso se veja obrigada a. por sua vez, tomar quaisquer medidas, levará em consideração os deveres assumidos no presente ajuste, nada empreendendo que possa prejudicar a posição da outra Potência.

- E então! — Mercedes apertou mais uma vez o botão para parar. — De forma mais clara realmente não poderia ter sido formulado! E tais situações não vivem ocorrendo? Na Primavera de Praga, quando foi esmagada pelos tanques soviéticos? A Tchecoslováquia inteira foi ocupada pelo Exército Vermelho e a “Primavera” foi mergulhada num mar de sangue e lágrimas! Os americanos já sabiam com antecedência do ataque, por intermédio do serviço secreto da República Federal da Alemanha. Os soviéticos lhes comunicaram indiretamente. O ataque era simplesmente inevitável, a fim de tomar medidas “para preservar a paz e a segurança”! Que fizeram os americanos? Eles se ativeram ao Protocolo, do mesmo modo que os soviéticos se ativeram a ele, aceitando que os americanos, na Nicarágua, Granada e em toda a América Central, tomem medidas “para preservar a paz e a segurança contra quaisquer danos”. Os soviéticos comportam-se tão corretamente como os americanos. Tire-se o chapéu! É o que se espera de cavalheiros.

Mercedes apagou o cigarro.

- 1950, Coréia! Tropas norte-coreanas ultrapassam o paralelo trinta e oito entrando na Coréia do Sul. Fica ameaçado o status quo que separava as áreas de influência das duas super-potências, tanto militar quanto politicamente. O Conselho de Segurança da ONU condena a Coréia do Norte como agressora. Organiza-se uma Força militar de Paz das Nações Unidas contra o agressor. Os americanos, que têm um especial interesse na manutenção do status quo na Coréia, arcam com o maior ônus da guerra. Segundo o teor do protocolo! “Paz e Segurança” de um território de sua “especial responsabilidade” estão em jogo! Os soviéticos reconhecem isso. Não apóiam a Coréia do Norte. No máximo com armamento e dinheiro. Centenas de milhares de pessoas morrem — em nome da paz e da segurança. — Mercedes passou a mão na testa. — Líbano! — disse ela com a mesma voz neutra, artificialmente tranqüila. — O Líbano em 1958 e o de agora. Em 1958, os fuzileiros navais americanos precisam desembarcar lá a fim de “conciliar” uma guerra civil! Hoje, precisam de novo. Trata-se da paz e da segurança - Os soviéticos compreendem. Por quê? Porque assim ficou combinado em Teerã!

Ross continuava encarando Mercedes.

— Hungria, 1956! — prosseguiu ela, — Levante contra os comunistas detentores do poder. Tanques e tropas soviéticas reprimem o levante sanguinariamente. Dezenas de milhares de mortos. Centenas de milhares escapam para o exterior. O que faz a América? A América não faz nada. Respeita o procedimento soviético. Atém-se rigorosamente ao ponto sete do protocolo secreto. “Paz e segurança” num território de sua “especial responsabilidade”! E a paz e a segurança entram pela Hungria adentro — como na Coréia, como na Tchecoslováquia...

— E no Afeganistão — disse Olivera. — Após a expulsão do rei há diferentes partidos comunistas, que não querem saber nada de Moscou. Os comunistas leais a Moscou, porém, resvalam cada vez mais para uma posição desvantajosa e correm o perigo de serem expulsos do país. Trata-se apenas de um grupo diminuto, uma pequena fração. Mas por favor: basta um telefonema e já chegam os amigos ao Afeganistão. — Olivera pigarreou. — Especulações no ocidente supõem que os soviéticos certamente querem um acesso para o Oceano Indico. O “caminho para os mares quentes” já fazia parte das prioridades da política tzarista. Temos todos que agradecer à União Soviética o fato de haver trazido para o Afeganistão a paz e a segurança.

— Não sem antes, como sempre, haverem comunicado tudo aos americanos e obtido a sua concordância — disse Mercedes.

— E o que fazem os americanos? Por meio dos seus mídias protestam indignadamente, da mesma forma que os mídias soviéticos reagem sempre com indignação. Agir? Qual a ação dos americanos? Nada. Realmente, eles são sócios honestos. Cada um com sua metade do mundo! — Ela retomou fôlego. — 17 de junho de 1953: Levante na RDA (República Democrática Alemã) contra o regime do SED.** (Sozialistische Einheitspartei Deutchlands – Partido da Unidade Socialista Alemã, o partido comunista da RDA) Soldados e tanques soviéticos o esmagam brutalmente. — Mercedes ficava cada vez mais rouca. — O que fazem os americanos? Nada.

— 13 de agosto de 1961. É constituído o Muro de Berlim O que fazem os americanos? — perguntou Olivera. — Nada. Uma dúzia de tanques, nem isso, meia dúzia bastavam para derrubar o Muro. Aparece um só desses tanques? Naturalmente que não. De novo os soviéticos alertaram previamente seus parceiros contratuais e agiram segundo o protocolo. Os americanos compreendem que o Muro é necessário para os soviéticos, como para si próprios a Coréia do Sul. Mas, por obséquio, dizem os americanos, sirvam-se, construam o muro! Aquilo ali é um foco de crises - Criem “paz e segurança”! Desejamos tudo de bom.

Ele havia falado cada vez mais depressa, e Mercedes tomou a palavra, mais depressa ainda:

- Vietnã! Novamente uma situação que estimula a América a cumprir seu dever. Uma longa, longa guerra! Centenas de milhares de mortos, aleijados, queimados pelo napalm, de pessoas mortas com veneno derramado do alto! Gente miúda e sem importância. E também americanos. Um país destroçado. Destruída uma cultura milenar. Insignificante! A América precisa cumprir com seu dever, proporcionar “paz e segurança” num território de sua especial responsabilidade”. Por meio de uma guerra bestial. Os soviéticos aceitam. Fornecem armas ao Norte, mas não participam ativamente. Os soviéticos podem ficar tranqüilos. Tudo foi estabelecido em Teerã. Cada um tem o seu. Cada um respeita o que pertence ao outro. Que pereçam milhões de pessoas, se for necessário! A América e a União Soviética são os proprietários do mundo! O mundo lhes pertence, cada um tem uma metade. E a humanidade, essa carne de canhão, não pode saber isso. Nunca! Jamais!

— Setembro de 1983 — disse Olivera. — Caças soviéticos atiram num Jumbo da companhia sul-coreana KAL, com duzentas e sessenta e nove pessoas a bordo, porque ele penetrara no espaço aéreo soviético, a sudoeste das ilhas Sacalinas. Primeiro, uma gigantesca indignação. O presidente americano ameaça com o pior. Mas então, muito rapidamente, fica tudo tranqüilo, muito tranqüilo em tomo desse assassinato em massa. Não estava voando à sombra do Jumbo um aparelho de espionagem americano? Não falemos mais nisso! Seravejo e o pretenso ataque polonês à emissora de Gleiwitz desencadearam respectivamente a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais. E desta vez? Não aconteceu nada. Absolutamente nada. Que bênção para a humanidade não constitui o protocolo bilateral secreto de Teerã!

O filme prossegue.

As Potências partem do princípio de que os Estados europeus buscarão, em decorrência dos acontecimentos da presente guerra, reconquistar sua perdida significação política.

— Agora, preste atenção, Daniel! — disse Olivera.

Caso daí decorram situações que possam constituir perigo para a paz e a segurança da ordem edificada com o presente acordo — como, por exemplo, na Alemanha, que é um foco de permanente agitação —, cada uma das Potências se comportará com compreensão ante as medidas tomadas pela outra Potência, e as duas Potências poderão. quando assim se fizer necessário, agir conjuntamente contra esta ameaça à paz e à segurança.

— Se necessário, agir conjuntamente! — exclamou Mercedes.

— E isso não acontece? Elas não agem assim com toda a sua energia? O rearmamento não trouxe, ainda uma vez, centenas de armas atômicas para a Alemanha, foco de constante agitação, que constitui um perigo para a paz e a segurança? Mísseis Pershing I e Cruise? Para a mesma Alemanha, na qual já estão estocadas cinco mil ogivas nucleares, mais do que em qualquer outro país da Europa? E os soviéticos não montaram imediatamente na RDA novas rampas de lançamento para os seus SS-20? A Alemanha inteira não é uma rampa atômica? Ninguém sabe realmente o que sucederá se uma bomba atômica, com a força atual, explodir, já que em comparação a bomba de Hiroxima é uma piada. Ninguém! Ninguém tem idéia do que vai acontecer quando cinqüenta, cem, duzentas bombas de hidrogênio explodirem. Os cientistas não têm a menor idéia. E os militares, muito menos. Mas é preciso saber! É preciso estar informado! Há guerras atômicas circunscritas, limitadas, diz Reagan. Podem até ser ganhas. Então, vamos começar! Vamos deixar esta Alemanha permanentemente agitada, vamos deixar toda a maldita Europa ir pelos ares! Com isso, seiscentos milhões de pessoas vão esticar as canelas! E daí? A Terra não está super-povoada? Já é tempo de acontecer alguma coisa. Seiscentos milhões. Mas o que significa isso? Uma gota sobre uma chapa quente. Então, vamos em frente! Viva os Pershing I Viva os SS-20! Viva os mísseis Cruise! Depois veremos o que sucede.

Mercedes se apoiava no aparelho de televisão sufocando um tremor em seu corpo. Ross lembrou-se da explosão dela em Frankfurt. Ela era fanática.

Para a paz, sim. Para a paz, tudo. Minha vida — imediata mente —, se isso ajudar a preservar a paz. Era isso que ela havia exclamado, ele se lembrava nitidamente. Olhou-a assombrado. Mas que mulher!

— Mas eu não compreendo... — Ross olhava para Olivera.

— Por que uma guerra atômica na Alemanha?... Na Europa? As duas superpotências não querem uma guerra atômica, na qual elas próprios acabariam envolvidas! Guerra convencional, vá lá! Vietnã, OK, mas não uma guerra nuclear, que também os deverá atingir!

— Ë claro que eles não a desejam, Daniel — disse Olivera.

— Mas Mercedes...

— ... perdeu a cabeça. Vê a guerra chegando. Ela se aproxima, é verdade. Mas não está perto demais. Nenhum dos dois grandes está seguro se pode liquidar o outro ou não. Eles se preparam, isso com certeza, entopem o mundo inteiro com foguetes nucleares, especialmente a Europa. Mas eles querem estar absolutamente protegidos de um ataque atômico em seu próprio território. Aguarde o ponto 15, Daniel, então você vai compreender. Por favor, Mercedes, deixe correr o filme! E acalme- se, você precisa acalmar-se...

— Eu não preciso me acalmar, preciso me agitar! — bra dou ela.

O filme prossegue.

Em situações em que uma das Potências tenha de tomar medidas no exercício de sua especial responsabilidade, ela informará previamente...

A página 6 aparece agora no televisor.

..a outra Potência, na forma apropriada.

— Bem, isso sempre tem ocorrido — disse Olivera. Mercedes se arriara sobre um banquinho ao lado do aparelho de vídeo. — Além do quê, não podemos esquecer a pobre Polônia. Quando a coisa começou a esquentar e os soviéticos estavam prontos para invadir o país com seus tanques, por ocasião da eclosão dos choques entre civis poloneses e os respectivos militares, comunicaram naturalmente o fato ao governo Reagan. Os americanos só poderiam achar acertada uma postura rígida em relação à Polônia. Compreenderam que os soviéticos não poderiam deixar um território de sua “especial responsabilidade” sair da linha dos países do bloco oriental, com um sindicato livre e outras liberdades. Desse modo, os americanos cancelaram o fornecimento de víveres aos polonesa, conquanto soubessem que as pessoas passavam fome. Continuaram, porém, a fornecer quantidades gigantescas de cereais aos soviéticos. Também aí tudo tinha sua razão de ser. Rigorosamente de acordo com o protocolo.

Para a transmissão de informações urgentes relacionadas com situações que demandem imediato esclarecimento, as Potências instalarão uma ligação direta de comunicação a distância entre o governo dos Estados Unidos da América e o governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Além disso, as Potências trocarão outras informações necessárias por qualquer outro meio, inclusive canais diplomáticos, observando seu caráter estritamente confidencial. Os Embaixadores das Potências têm, a qualquer momento, o direito prioritário de entrar em contacto com os governos junto aos quais se achem credenciados. Os Chefes de Governo das Potências se encontrarão toda vez que a situação assim o exigir.

As Potências reconhecem a necessidade de ser criada uma organização internacional global para a manutenção da paz e da segurança entre as nações. No quadro dessa futura Organização das Nações Unidas, as Potências colaborarão na medida de suas forças.

— Colaborarão na medida de suas forças! — disse Mercedes, que se havia controlado e falava com voz tranqüila. — E como colaboram! Que êxitos, que formidáveis êxitos pode a ONU registrar!

Estão, contudo, conscientes de que a existência de tal organização não as desobrigará das responsabilidades especiais de que estão investidas pelo conteúdo do presente acordo.

— Com o que, o valor da ONU é igual a zero, conforme se pode ver todos os dias — disse Olivera. Ele riu. — Agrada-lhe o que estou lhe proporcionando, Daniel? Um bocado de coisas, não é?

Ross nada respondeu.

Na futura elaboração do estatuto da referida organização, as Potências cuidarão para que nem a Organização das Nações Unidas nem um terceiro Estado venham a causar prejuízo a qualquer medida tomada por uma delas no exercício de sua responsabilidade especial.

— Para mim, é este o trecho mais bonito - disse Olivera. — Não me canso de lê-lo.

De repente, o medo voltou. Jorrava dentro dele como uma fonte. Medo... medo... Ele engoliu em seco. A bolha de ar imaginária batia contra seu coração... Rápido. pegou o tubinho, abriu-o, deixou os comprimidos caírem na mão — cinco, seis, sete, oito — e os engoliu. Os joelhos tremiam. Ele viu que Mercedes o percebera. Pouco importa, ela sabe o que ocorre comigo, pensou. Esse vagabundo não viu nada. Isso é o que conta.

No que se refere aos territórios de sua responsabilidade especial, as Potências criarão, a fim de manter e assegurar a paz e a segurança, associações adequadas de Estados...

— A OTAN, o Pacto de Varsóvia! Organizações que ambos os lados fundaram para defesa e ataque recíproco. E sua formação foi decidida em Teerã, em amigável entendimento a fim de partilhar o mundo — disse Mercedes.

...a fim de, por intermédio dessas associações com objetivos militares, políticos ou econômicos, praticar no futuro uma política a longo prazo em suas respectivas regiões.

Ross respirava com cuidado, aspirando pouco ar. Estava passando um pouco melhor. Não, pensava ele, primeiro preciso procurar Sibylle o mais rápido possível e entrar de novo nos eixos. Só então eu vou ter forças para me ocupar dessa história. A maior história do século.

Aparece a imagem da página 7.

Na consciência de que a longo prazo, suas necessidades de petróleo e outros metais crescerão substancialmente, as Potências consideram seu abastecimento com essas matérias-primas como um assunto de interesse comum.

Na expectativa de grandes avanços na exploração e aproveitamento do espaço sideral, as Potências consideram o referido espaço e as possibilidades que aí se abrem como um assunto de interesse comum.

As Potências têm a expectativa de um rápido desenvolvimento dos artefatos voadores não tripulados com propulsão de foguetes para fins militares assim como dos armamentos baseados no emprego da fissão nuclear. A fim de que esta evolução não venha a ameaçar os objetivos do presente acordo, nenhuma das duas Potências tentará atingir nesse campo uma supremacia decisiva em relação à outra. Por outro lado, as Potências envidarão esforços comuns para que essas novas possibilidades técnicas não caiam no domínio de terceiros Estados. Na hipótese de se verem as Potências levadas a empregar as mencionadas armas, seu emprego será feito de tal modo que o território nacional das Potências em caso algum se veja envolvido.

— Bombas de hidrogênio, foguetes atômicos sobre o mundo inteiro, sobre a maldita Europa, porém jamais um foguete soviético sobre a América, ou uma ogiva americana sobre a Rússia soviética! — exclamou Mercedes, novamente excitada — Que Hopkins e Voroshilov não tenham morrido asfixiados por ocasião dessa formulação! Eles sabiam perfeitamente que todas as pesquisas espaciais serviriam exclusivamente para objetivos militares! Hoje, nós temos satélites no espaço que conduzem ogivas nucleares recuperáveis. Temos espiões do céu que, de sua altitude alucinante, podem até mesmo fotografar e transmitir os números das placas de um automóvel sobre um território que estejam cruzando no momento. Dispomos de satélites assassinos que destroem no ar foguetes que se aproximam. Você já vai compreender tudo, Daniel, toda a pavorosa infâmia, a verdadeira infâmia desse convênio, o verdadeiro motivo por que esse acordo foi feito em mil novecentos e quarenta e três. É pior do que um cérebro humano pode conceber. Espere só! Um momento... Aguarde o ponto quinze!

Disposições finais:

O presente acordo terá validade até o dia 19 de janeiro do ano 2000. Até essa data, ele une os atuais e futuros governos das duas Potências. Como Estados soberanos, cada Potência tem individualmente o direito de abandonar este acordo a l de janeiro de 2000, caso determine que seus mais altos interesses foram prejudicados por acontecimentos excepcionais, relacionados com o conteúdo deste acordo. Neste caso, tem de ser observado um prazo de aviso prévio de cinco anos, que vencerá portanto a 1 de janeiro de 1995. Este será o último dia para a comunicação, à outra Potência, de uma eventual denúncia do presente acordo. A comunicação deverá conter uma exposição dos acontecimentos excepcionais que na opinião da Potência denunciante prejudicaram seus interesses vitais.

Mercedes pressionou o botão de parada, imobilizando a imagem.

— É isso — disse ela —, chegamos ao ponto. Agora você pode entender por que este acordo bilateral foi subscrito, em Teerã.

— Porque a América e a Rússia soviética precisavam de uma pausa para tomar fôlego — disse Ross, e sua voz soava oca. Apertava as mãos uma contra a outra.

— Isso mesmo! Porque elas precisavam dessa pausa, e sabiam disso. — A esta altura, Mercedes estava muito excitada.

Ele pensou: Se alguém no mundo imagina o que nós três aqui sabemos, o que temos como provas... Se alguém, uma pessoa, dá esta informação a uma das duas Potências, meramente como conjetura...

— A Alemanha ainda não estava derrotada! — exclamou Mercedes. — Os Estados Unidos sabiam que a invasão seria para eles um exorbitante esforço militar, o maior da História. A leste, a luta dos soviéticos contra a Alemanha ainda estava longe de terminar, O serviço secreto dos russos constatou (isto, hoje, é certo) que os americanos já estavam construindo uma bomba atômica. As pesquisas soviéticas estavam atrasadas, muito atrasadas. Os soviéticos precisavam avançar nesse campo, deveriam igualmente possuir a bomba, com vistas a um equilíbrio entre as Potências. A Rússia se encontrava destruída até o Cáucaso. Vinte milhões de pessoas haviam perecido. Os soviéticos sabiam que seu país estava próximo do colapso, e também sabiam que os americanos sabiam desse fato. E, por seu lado, os americanos sabiam perfeitamente que os soviéticos tinham conhecimento de que os Estados Unidos, após a capitulação dos alemães, teriam de investir quase todos os seus recursos na Europa destruída, em todo caso na parte ocidental, a fim de ajudar a reconstruir os países devastados, para fazer das populações desses países adversários do comunismo, para criar novos exércitos europeus, inclusive um alemão, que, com eles, iriam lutar contra os soviéticos. O mesmo sabiam os russos em relação aos países que ficavam sob seu domínio com a partilha do mundo. Também eles precisavam de novas forças armadas nesses países, entre as quais um exército alemão, que com eles enfrentassem os americanos. Exércitos alemães, precisava-se de dois deles! Os soviéticos sabiam que tinham de manter sua população viva. E os americanos temiam que as fantásticas despesas com armamentos levassem ao desemprego de muitos milhões de pessoas e ao desmoronamento da economia. Sim, eles precisavam de um tempo para respirar. O tempo suficiente para que de novo estivessem por cima. Fortes, armados até os dentes. Até o limite do possível, invulneráveis em seus próprios territórios — os demais lhes eram indiferentes.

— Você acredita mesmo nisso? — indagou Ross abalado.

— Quero dizer, você acredita mesmo que Hopkins e Voroshilov, em Teerã, já partiam da premissa de que seus dois países gigantes iriam travar uma nova guerra colossal? Já foi ruim bastante quando se puseram a partilhar o mundo, mas isso eu ainda consigo imaginar. Pois talvez Roosevelt e Stalin pensassem evitar, assim, que se repetisse uma catástrofe das dimensões da última guerra, embora eles ao mesmo tempo tratassem vários milhões de pessoas de uma forma despótica e arbitrária, o que também é insuportável. Eles precisavam de um tempo para respirar, dizia eu — com uma visão de hoje. Naquela época... talvez Roosevelt e Stalin quisessem efetivamente assegurar a paz, delimitando de saída os seus interesses, os interesses das duas super-potências. Não poderá ter sido assim?

— Talvez, Daniel — disse Mercedes. hesitante. — Vá que seja, é uma possibilidade. Eu não acredito nela, mas é uma possibilidade. Os dois grandes queriam, de uma vez por todas, arranjar-se à custa do resto do mundo, então haveria paz ou apenas pequena guerras localizadas. Deixe-nos supor que os autores desse protocolo pelo menos ainda fossem capazes de um tal sentimento humano, que, aliás, já é um sentimento muito duvidoso. Uma coisa é certa: eles tinham a mais profunda desconfiança mútua! Com toda certeza pessoa alguma de ambos os lados podia prever com certa segurança se dois sistemas sociais tão diferentes poderiam coexistir ao longo do tempo. Eles não podem, como deu para ver. Já em 1948 houve o bloqueio de Berlim, e as duas potências se chocaram pela primeira vez. Após três anos de calma apenas, somente três anos! Você bem sabe o que Churchill, a quem não deixaram participar (não deixavam ninguém participar) afirmou a propósito. Ele disse: “Eu temo que nós tenhamos abatido o porco errado.” Muito, muito desesperado o cinismo dele. O que aconteceu em 48? Nada. Cada um dos dois gigantes ainda estava fraco demais para aplicar o golpe mortal no outro. O mais tardar a partir de então, até mesmo a pessoa mais ingênua teria de compreender o protocolo como você, Daniel, compreendeu instintivamente.

— Com a visão de hoje! — repetiu ele alto. — E porque eu me recuso a acreditar que. . . — E aí estacou.

— Porque você se recusa a acreditar que o ser humano chegue a esse ponto. Daniel, querido Daniel, eu acho que o homem é essa coisa pavorosa. Se os autores e subscritores desse protocolo realmente não pensaram nessa “pausa para respirar”, no seu inconsciente, in the back of their minds, se escondia essa idéia. Estou convencida disso. Posso imaginar que todos os participantes sentiram-se tomados pela mais profunda tristeza a respeito do futuro da raça humana. Tristeza autêntica. Tristeza desesperada. O resumo, porém, era responsabilidade apenas perante as próprias nações. E ilimitada ingenuidade: que o resto do mundo vá para o diabo, nossas duas nações precisam sobreviver! E, para tanto, as duas potências precisavam de um tempo de calma, que não fosse perturbado por querelas no resto do mundo, e (que pesadelo numa época de armas atômicas!) por uma nova guerra prematura, para a qual fossem arrastadas, embora não estivessem ainda perfeitamente invulneráveis e super-fortes. O protocolo deveria impedir a qualquer preço este perigo. E, por isso mesmo, ambos os lados por tanto tempo a ele se ativeram.

— E a astronáutica deveria torná-las absolutamente invulneráveis e superiores - disse Ross.

— Sim, Daniel, isso mesmo. Não só a pacífica, que servia a fins científicos, mas também a viagem espacial que atendia a fins militares, mortíferos. Quando é que seriam investidas somas de dinheiro tão absurdas apenas para objetivos pacíficos, razoáveis, que servissem à humanidade? Ciência? Progresso? Ridículo! Guerra! Guerra! Guerra! Para isso havia naturalmente dinheiro, sempre houve dinheiro!

— E assim soviéticos e americanos competiram e continuam competindo pela supremacia no universo até o momento presente — disse Daniel, e ele tinha a sensação de estar falando num sonho.

— Assim é, Daniel. — Mercedes concordava com a cabeça.

— Ambos já têm a bomba. Os foguetes também. Mas os sistemas de defesa espacial, os satélites assassinos e muitos outros instrumentos fantásticos que hoje circulam pelo espaço afora para formar uma espécie de muro, de barreira contra foguetes que se aproximem, tudo isso ainda não é suficiente. A barreira é ainda permeável. Os satélites assassinos ainda não são a solução. Já existem assassinos de satélites assassinos! Oh, vai-se conseguir fazer a barreira intransponível. Não tenha medo! Não demora mais muito tempo. Veja você, por isso já está sendo preparado tudo para uma guerra atômica, por isso a Europa e especialmente a Alemanha (as duas Alemanhas) estão repletas de foguetes com ogivas nucleares, por isso a situação política fica cada dia mais perigosa. — Mercedes, cheia de paixão, exclamou: — Para que, no momento preciso em que uma das duas potências tiver encontrado a total proteção para seu território, ela possa imediatamente, no minuto seguinte, desencadear o ataque atômico contra a outra potência. l de janeiro do ano 2000! Coisíssima nenhuma! As duas superpotências nunca irão se ater à vigência do acordo e ao primeiro de janeiro de noventa e cinco, data limite para denúncia do ajuste. Mais um ano. Mais dois. Em todo caso, não falta muito tempo. Aí, então, uma das duas potências estará mais avançada na defesa de seu país. Aí será esquecido este protocolo. Essa potência desfere o golpe. E ambos sabem disso. E quatro bilhões de pessoas não sabem disso e rezam pela paz, têm esperanças de paz, lutam em favor da paz. Porque ignoram a verdade... — E o corpo dela tremia novamente.

Ross se levantou e aproximou-se dela, apertou-a contra si e lhe afagou as costas.

— Até o demônio é obrigado a chorar — disse Mercedes — e a desviar-se com horror diante de tamanha monstruosidade humana. As duas superpotências trabalham febrilmente para defender totalmente seus respectivos países. E vão consegui-lo. Claro que sim. A possibilidade existe. Não demora muito tempo, e já o terão conseguido. Aí o primeiro começa. E então vem o apocalipse. E, por isso, precisamos agir depressa. Rápido, rápido. Você entende agora a razão por que o tempo urge? O tempo nos acossa, realmente,

— Compreendo — disse Ross.

— Então leia ainda até o fim — disse Mercedes, deixando o filme prosseguir.

Este acordo é rubricado em dois exemplares, dos quais um é redigido em idioma inglês e o outro em russo. As versões são idênticas. Este instrumento entra em vigor no momento de sua assinatura. Será tratado agora e para todo o sempre como ultra-secreto. Para esse efeito, os dois exemplares, tão logo assinados, serão registrados em filme e, na presença dos signatários, serão destruídos. Cada Potência receberá o seu exemplar do filme. As duas Potências tratarão o documento de tal modo que ele nunca venha a ser divulgado, nem mesmo nos casos de abertura dos arquivos normais de Estado.

Assinado em Teerã em l de dezembro de 1943.

Em nome do Conselho dos Comissários do Povo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

Assinatura

(J. V. Stalin)

O Presidente dos Estados Unidos da América

Assinatura

(Franklin Delano Roosevelt)

 

A imagem da parte inferior da página 8 fica ainda parada por algum tempo e então se apaga.

Olivera levantou-se e desligou o gravador de vídeo e o aparelho de televisão. Acendeu as luzes de dois grandes lustres. Ninguém disse nada enquanto ele depositava o cassete novamente no cofre. Tampouco alguém falou enquanto ele seguia de janela em janela para suspender as pesadas persianas de ferro. Em seguida, abriu uma das janelas. Sentou-se depois sobre o divã e passou a fitar o interior da escura lareira.

— Você deve estar se perguntando, Daniel, por que este protocolo teria sido filmado, não é mesmo? — disse Mercedes.

— Sim — respondeu ele. — De fato, eu me pergunto isso. A versão escrita teria sido suficiente.

— Isso é que não — retrucou Mercedes.

— Não estou entendendo.

— Já naquela época os americanos não confiavam nos russos. Eles receavam que os soviéticos iriam desmentir a existência desse protocolo caso ele apenas existisse por escrito e na hipótese de que ele lhes causasse problemas. Esse protocolo nós nunca assinamos, ele jamais existiu, poderiam dizer os soviéticos. Isso é uma invenção dos americanos e as assinaturas não são verdadeiras. Sem o filme, também os americanos poderiam negar a existência do acordo. Por isso, está entendendo, Daniel, é que o filme foi rodado. O filme inteiro! Os encontros entre Hopkins e Voroshilov. A assinatura do protocolo por Roosevelt e Stalin. O filme mostra as personagens mais importantes. Aquilo que o filme mostra não se pode facilmente desmentir. Não se pode dizer que nunca se tenham encontrado para subscrever o protocolo. E tampouco que o protocolo filmado nunca tivesse existido.

— É verdade — concordou Ross. — Mas os soviéticos ou os americanos, ou ambos, poderiam dizer, a despeito de tudo (e por sinal, eles podem fazê-lo ainda hoje): “O filme inteiro, conjuntamente com o protocolo, é uma falsificação.” Uma falsificação dos nazistas, em primeiro lugar.

— Isso eles vão dizer de qualquer modo, tão logo o público tome conhecimento do filme — interveio Olivera. — Muito bem pensado, Daniel. Eles serão obrigados a dizê-lo, não lhes resta outra alternativa. Mesmo que ele seja mil vezes verdadeiro.

— E igualmente se ele for mil vezes falsificado — disse Ross.

— Ele é verdadeiro, Daniel — disse Olivera. — As imagens não podem ser negadas. Os homens foram filmados. Como já foi dito, os americanos, que afinal rodaram o filme, queriam evitar que os russos simplesmente contestassem a existência do protocolo. Daí um acordo filmado junto com um filme sobre a história dos precedentes.

Ross dirigiu-se para a janela aberta. Diante dele estava o parque escurecendo, com suas maravilhosas árvores, arbustos e flores. O ar estava docemente dominado pelo aroma dos jasmins. Ross respirou fundo. Percebeu então que Mercedes estava a seu lado. Ela pegou a mão de Ross e apertou-a. E assim ficaram, mudos, por um longo tempo.

Eles jantaram às oito da noite. Os raios de luz do sol que se punha ainda banhavam o parque e se escoavam para dentro da sala de jantar com seus painéis de madeira escura, suas tapeçarias, a grande mesa e as cadeiras de ébano negro com seus encostos altos e trabalhados. Na comprida mesa quadrangular cabiam dezesseis pessoas. Miguel só preparara a mesa numa extremidade. Mercedes sentava-se entre Ross e Olivera. Eles se haviam trocado o traje.

O bonito empregado Miguel, ainda no seu traje da tarde, todo de branco e com um dólmã fechado no pescoço, servia com a discreta habilidade de um maître de restaurante de luxo. Pesados tapetes faziam seus passos inaudíveis. Os pratos subiam da cozinha por um elevador, e eram postos em cima de um aparador também ele entalhado. O empregado procedia com a maior gentileza. Ross foi informado por que se jantava tão cedo: de sextas à noite até domingos de manhã Miguel estava liberado. Olivera, sempre entusiasmado com seu empregado, explicou que não deixava nunca que ele terminasse atrasado seu serviço. Em ocasiões especiais, como quando Olivera recebia às sextas-feiras e precisava de Miguel Morales, o empregado naturalmente adiava para mais tarde sua saída.

Miguel oferecia o segundo prato. Mercedes serviu-se de muito pouco e o mesmo fez Ross. Olivera tinha bom apetite.

— Mas assim também não pode ser — disse ele. — Vocês precisam comer direito, meus filhos!

— Eu sempre me sinto mal quando vejo o filme — disse Mercedes. Ela agora estava com um vestido verde-escuro.

Ross olhou para Miguel, que voltava com a pesada bandeja de prata em direção ao aparador, e em seguida para Olivera -

— Será que ele não entende mesmo o alemão?

— Nem uma só palavra, Daniel. Delicioso o peixe. Verdadeiramente delicioso. — Olivera falava espanhol com Miguel, que sorria satisfeito, fazendo pequenas reverências. O empregado dizia alguma coisa. — Ele está muito perturbado com o fato de vocês comerem tão pouco — traduziu Olivera. E de novo para o em pregado em castelhano: — É o vôo muito longo, sabe. A mudança de clima.

— Oh, naturalmente, señor. Bobagem minha não ter pensado nisso.

Veio o terceiro prato: carne. Olivera serviu-se de um grande pedaço. Parecia estar de ótimo humor. Mercedes e Ross recusaram. Mercedes dirigiu-se a Miguel:

— Amanhã já estará tudo em ordem novamente.

— Desejo de todo o coração, señorita — disse o empregado muito sério.

Também do queijo e da sobremesa somente Olivera se serviu. Café, tomaram todos. Antes disso, Miguel havia retirado pratos e talheres e, junto com as bandejas, descera tudo pelo elevador para a cozinha.

Olivera fitou o relógio. Faltavam quinze minutos para as nove.

— Bem — disse ele — encerrado para você, Miguel. Nós voltaremos em seguida para a biblioteca. Drinques posso fazer pessoalmente. E agora vamos, desapareça!

— Obrigado, señor.

— Qual é seu programa hoje à noite?

— Em Chacarta existe uma nova discoteca. — Olivera traduzia para Ross, e disse:

— É um bairro da cidade, mais para oeste. — E de novo em castelhano para Miguel: — Você ainda está com aquela ruivinha bonita?

— Carmelita? Não, señor. — Miguel ficou encabulado. — Eu terminei com ela.

— E por quê?

— Ela era muito ciumenta.

— Naturalmente você já tem uma outra.

— Sim, señor. Ela se chama Maria Perichole.

— Morena?

— Loura. Quase de ouro. Cabelos compridos e dourados.

— O rapaz troca de meninas, as mais belas da cidade, como quem troca de camisa. Também, não é grande coisa quando se tem essa aparência!

Miguel curvou-se ainda uma vez e disse algumas palavras.

— Ele nos desejou a todos uma boa-noite — traduziu Mercedes.

— Seja bem-comportado, menino! — disse Olivera. — E, se não conseguir, pelo menos tome cuidado!

Miguel riu, mostrando seus belos dentes, e desapareceu.

— Em todo o país você não encontra um empregado como Miguel — disse Olivera. — Preciso realmente estar agradecido ao meu amigo, o General Álvarez, por ter me mandado o rapaz. Tamanha lealdade, tanta dedicação. Não serviu com perfeição? É igualmente perfeito no volante do carro. Mantém o jardim em ordem. Conserta simplesmente tudo o que quebra. E é um fantástico massagista, realmente. — E, voltando-se para Rosa: — Ele precisa fazer massagens em você também, Daniel. O seu corpo está precisando com urgência.

— Sim, sim — respondeu Ross.

— Não, não! Você também não é mais tão jovem assim. Seu coração, sua circulação. Olhe para mim! Não passa sequer um dia sem que eu não faça algo, pelo menos por duas horas, por minha saúde, Você simplesmente tem de fazer a mesma coisa. Prometa-me isso, está bem?

— Sim — disse Ross. — Sim, poxa.

Olivera riu.

— Não olhe assim tão assustada, Mercedes! Daniel vai agora trabalhar com seu odiado pai. Isso já deve ser horrível. Não, real mente, eu posso me pôr no seu lugar, Daniel. — Olivera riu de novo.

Miguel Morales o escutava. Acabava de entrar na biblioteca e havia acendido a luz. Rastejou para debaixo da mesa de mármore que ficava à frente da lareira, deitou-se de costas e procurou algo por pouco tempo. Da parte inferior da tampa de mármore retirou um objeto com a forma de meia esfera. Era de metal e do tamanho de uma ficha telefônica. Era um grampo, um minúsculo instrumento eletrônico, que possuía um microfone ultra-sensível e um potente transmissor. O grampo — produto japonês — podia transmitir conversas captadas pelo microfone até uma distância de trezentos metros, mesmo através de paredes ou laje de concreto - Miguel o havia colado na parte inferior da mesa de mármore quando à tarde arrumava as xícaras de chá. Ao deixar cair uma colher como pretexto para a busca, abaixou-se até o chão e assim não fora notado por ninguém. Olivera tinha razão: Miguel era de fato de habilidade incomum.

O moço com a pele lisa e morena e os grandes olhos amendoados botou o aparelho no bolso de seu temo branco. De outro, retirou um novo, ainda nunca usado, e o prendeu no lugar do antigo, sob a mesa de mármore. Deixou a biblioteca e se dirigiu para o segundo andar, onde os empregados tinham os seus quartos. Miguel abriu o seu com a chave e trancou a porta atrás de si. O dormitório era grande e tinha ao lado um banheiro, As paredes do quarto estavam recobertas de fotos e cartazes com os retratos de artistas de cinema famosos assim como os mais populares cantores argentinos. Em um canto encontrava-se uma mesinha com uma Nossa Senhora muito colorida. Ao lado, um vaso com flores; Miguel sempre as tinha bem frescas. Com freqüência, se ajoelhava diante da mesa. Miguel era devoto.

Dirigiu-se ao banheiro. De novo agachou-se no chão, junto ao sanitário. Puxou um receptor eletrônico do tamanho de um maço de cigarros detrás do vaso, assim como um gravador ligeiramente maior. Os dois aparelhos estavam ligados por um fiozinho, e eram igualmente fabricado no Japão. Tratava-se de um produto especial, ao qual pertenciam cassetes maiores. Um lado podia gravar até três horas e não se precisava virar a fita decorrido esse tempo. Sem troca alguma o gravador funcionava outras três horas em uma segunda faixa. Além disso, o aparelho ligava automaticamente tão logo o receptor transmitisse ruídos, conversas ou vozes isoladas, recebidos do grampo. O gravador desligava automaticamente se por cinco minutos não recebesse impulsos, mas ligava imediata mente tão logo o grampo enviasse ao receptor novos sons para registro.

Miguel abriu o gravador e tirou o cassete. Voltou para o seu quarto, arrumado com móveis de sua propriedade que havia trazido consigo e que incluíam um armário de roupas com duas gavetas para roupa íntima e meias. Miguel tirou a gaveta da esquerda, inteira. Com o polegar, bateu três vezes com força sobre um canto do forro de madeira do fundo, o qual logo se abriu. A chapa se levantou tomando visível um compartimento de uns dez centímetros de profundidade do tamanho da gaveta, onde se encontravam numerosos cassetes iguais ao que Miguel retirara do gravador assim como numerosos aparelhos de escuta. Num pequeno saco branco de plástico que Miguel tirou lá de dentro, havia dois cassetes, aparentemente gravados, pois juntou a eles o que trouxera consigo. Em seguida, rasgou o invólucro de proteção de um cassete novo e o introduziu, já de volta ao banheiro, no gravador, pronto para ser usado. Quando Olivera, conforme havia anunciado, voltasse para a biblioteca com sua filha e o homem que supostamente era seu filho, o novo cassete registraria a conversa. Miguel não acre ditara em momento algum que aquele homem fosse filho de Olivera: uma pessoa proveniente do outro lado da terra com quem Olivera se trancou durante horas com as persianas de ferro baixadas!...

Miguel colocou novamente o gravador atrás do vaso sanitário, foi para seu quarto e trancou o esconderijo, pressionando a chapa de madeira e repondo a gaveta no armário.

Tirou do armário uma camisa listrada vermelho e azul e uma calça azul, e pegou além disso meias e slippers de pano azul. Após um banho de chuveiro, vestiu-se com as peças escolhidas. Com todo o cuidado pendurou seu temo branco no cabide. Antes de deixar o quarto, ajoelhou-se diante da Virgem colorida e murmurou de mãos postas, uma oração de agradecimento pela ajuda e proteção até então recebidas e que terminou com o pedido de contínua proteção e infinita misericórdia.

Em seguida, levantou-se, pegou o cartucho de plástico com os cassetes e uma bolsa de couro idêntica à que todos os homens aqui usavam, onde guardara seu dinheiro, documentos e chaves do carro. Trancou a porta atrás de si. Poucos minutos mais tarde seguiu em seu Volkswagen através do parque em direção ao portão.

— Ai! — fez o homem grande, que estava deitado de bruços, inteiramente despido. — Menos força, garoto! Você está me machucando.

— Peço perdão, meu general — disse Miguel Morales. — Mas eu preciso pegar mais forte. Seus músculos da nuca já estão de novo inteiramente contraídos.

O homem despido, que tinha tendências para a obesidade encontrava-se deitado sobre uma mesa de massagens, cujo colchão de espuma de borracha estava coberto por um lençol branco. Miguel, todo de branco, de camisa de manga curta e sandálias, estava ao lado da mesa no grande banheiro do general Carlo Maria Álvarez e lhe fazia massagens. Isso ocorria quase quatro meses antes, na manhã de 25 de outubro de 1983 uma terça-feira.

Miguel cobriu as palmas das mãos com talco e continuou a massagear os músculos da nuca do general.

— Agora, preste bastante atenção — disse Álvarez. — Isso é muito importante. Você, na verdade, me é realmente dedicado, com sinceridade, hem, garoto?

— Sim, meu general.

— Você faz tudo o que eu quero de você, sem condições.

— Tudo sem condições, meu general.

— Eu também gosto de você. Nunca encontrei um rapaz com tão bom caráter e tamanha lealdade. Não se esqueça de que fui eu quem tirou você da miséria.

— Nunca, meu general, nunca vou esquecer-me disso.

— Bem, bem. Você conhece o Sr. Olivera, garoto? Meu bom amigo Eduardo Olivera?

— Certamente, meu general. — Miguel estava trabalhando agora as costas do gordo homem.

— Ele gostaria muito que você fosse para lá. Se ele realmente é meu amigo — poxa, como está doendo!

— Precisa ser assim, meu general.

— Está bem. É isso que eu não sei, se ele é realmente meu amigo. Não esqueça: faça de novo as coxas, direitinho, sim? As pernas ficam cansadas tão depressa.

— Sim, meu general. — Miguel gastava muito talco. Estava ficando com calor. Era trabalho bastante pesado. — Isso agora eu não entendi — disse ele. — O senhor não sabe se o Sr. Olivera realmente é seu bom amigo?

— Isso mesmo. — Álvarez grunhiu. — Ai! Sim, aí mesmo! Continua aí mesmo! Isso faz bem. — Olivera é um homem estranho, sabe. Ele sempre me ajudou muito, a mim e aos camaradas. Não só como banqueiro. Com informações também. — Miguel calcava agora as nádegas de Álvarez. O general continuava falando: — Mas será ele leal? Leal como você, meu garoto? Ou só pela metade? Mais forte! Aí você pode agarrar mais forte. Será que ele agora não vai trocar de lado e ficar amigo dos nossos adversários?

— Não estou entendendo, meu general...

— N6s estamos antes das eleições — disse Alvura. — Vão ser daqui a cinco dias. Nós vamos perdê-las. Alfonsín vai ganhar.

— Virgem Santa! Não, não acredito nunca! — exclamou Miguel.

— Você vai ver. Esperamos pela derrota. Desde a guerra das Malvinas, o povo nos odeia. Também antes as pessoas nos odiavam, mas nos temiam. Agora, somente nos odeiam. A coxa, mais uma vez, por favor!

— Sim, meu general. — Miguel batia rapidamente com as bordas das mãos ao longo da coxa direita e depois da esquerda, por várias vezes.

— Alfonsín vai se vingar — disse Álvarez. — E é claro que vai abrir um processo contra a Junta.

— Também o senhor, meu general? — Miguel estava horrorizado. Parou até com a massagem. Começou a chorar.

— Não chore, querido! Não adianta nada. Vão fazer o processo, com toda a certeza.

— Quer dizer... O senhor vai para a cadeia? — Miguel continuava parado, perplexo. Passou um braço na face molhada.

— Sim, certamente, meu garoto. Não faz sentido fechar os olhos diante disso. Sei que você está de acordo com tudo o que faço, não é verdade?

— Com tudo, meu general. Minha gratidão e carinho para com o senhor não têm limites. Estou sempre às suas ordens.

Carlo Maria Álvarez virou-se de costas, gemendo. Tinha um peito quase feminino. Miguel começou a massageá-lo.

— Eu já leguei você para ele, meu querido — disse o general.

— O senhor general já...

— Quando eles vierem e me levarem, você pode começar logo a trabalhar para ele. Leve todas as suas coisas: isso vai demorar.

O general Álvarez habitava uma grande mansão na Rua Dorrego, no eminente bairro de Palermo. Dez quadras adiante, corria comprida a Céspedes, onde Olivera tinha sua casa.

— Mas... mas eu não quero, meu general! Não quem trabalhar para o Sr. Olivera. Se o senhor for mesmo preso e condenado, vou me matar. — Miguel tinha de novo lágrimas nos olhos.

— Isso seria muito bonito de sua parte, mas muito bobo também — disse Álvarez. — Como morto você não pode ser útil a ninguém. Como vivo, exatamente ao lado de Olivera, meu bom amigo, você pode ser utilíssimo — para nós.

— Para o senhor? — Miguel descia as suas massagens em direção da grande e flácida barriga do general.

— Para nós, querido — repetiu Álvarez. — Para nós todos que estamos agora caindo. Isto aqui não vai continuar sendo uma democracia, acredite! Nós voltaremos.

— Voltarão? — Miguel aplicava sonoras palmadas na barriga mole. As murchas carnes escorregavam de um lado para outro.

— Nós sempre voltamos. Por mais pessoas que prendam, eles não podem prender todos. Sobram muitos em liberdade, em ação. A isso se junta nosso poderoso agrupamento de camaradas em todo o país. Ninguém conhece esse agrupamento e por isso também ele permanece intacto. Para a resistência. Para grandes atentados. Para disseminar insegurança e terror. Para preparar o campo para nossa volta. Você vê como tem realmente toda minha confiança, meu garoto.

— Essa o senhor me pode conceder, meu general. Pela Virgem Mãe, eu lhe daria a minha vida.

— Caso você, mesmo assim, me desiludisse, não sobreviveria um dia depois da traição, meu querido. É óbvio que você não é o único homem de confiança. Temos milhares deles, como você há de imaginar. Mas você seria um dos mais importantes. Todos serão vigiados pelos nossos homens, cada um. E é absolutamente necessário que alguém vigie Olivera. Preciso emagrecer, eu sei, eu sei. Bem, agora vou ter oportunidade para isso. A parte da frente da coxa, por favor!

Miguel trabalhava arfando. Estava dominado por aquilo que acabara de ouvir.

— Olivera foi muito nosso amigo. Nesse meio-tempo, ouço dizer de fonte segura que ele já entrou em contato com homens que parecem pertencer ao grupo do Alfonsín.

— Não!

— Você não conhece as pessoas, pequeno inocente. Aparentemente, Olivera já passou para o outro lado. Vai passar a ser agora o bom amigo dos nossos adversários, vai ajudá-los — como banqueiro e com informações. Ele vai convidá-los para sua casa. Ele é muito inteligente. Eles vão procurar seu conselho. Vão considerá-lo como um deles mesmos. E por isso você precisa ir agora para junto dele. — Álvarez passou levemente a mão entre as pernas de Miguel enquanto este lhe fazia massagens na coxa, voltando-lhe as costas. — Você vai fazer isto para mim, meu querido. Através de você ficaremos sabendo na prisão de muitas coisas, o que os novos senhores estão planejando, querendo, pretendendo. E nós precisamos estar informados. você compreende, não é mesmo? Só assim é possível uma luta na escuridão... um levante...mais tarde um golpe de Estado...

— Mas.., mas que tenho de fazer, meu general? Sou simples mente um menino bobo que o senhor, na sua infinita misericórdia, tirou da imundície.

— Você é um menino esperto, meu querido. Vai fazer a escuta das conversas que Olivera mantiver com portas trancadas. Tudo o que lhe parecer importante. Você fará isso?

— Faço qualquer coisa, meu general.

— Matar também?

— Se for necessário, também matar, meu general. Mas como é que eu vou escutar essas conversas?

— Bem, há aparelhos excelentes. Você vai receber o de que precisa. Vão lhe explicar tudo. Meus amigos e eu pensamos num equipamento moderno. Você sabe mexer com essas coisas! Eu já disse a Olivera que você aqui em casa sempre esteve livre de sextas à noite até domingos de manhã e que ele teria de fazer o mesmo. Ele o fará com prazer. Está louco para conseguir você. Fique inteiramente tranqüilo! Ele não é assim como nós somos. Você não vai correr o perigo de me trair.

— Eu jamais faria isso! — Miguel se voltou. Seu rosto bonito e franco mostrava autêntica indignação.

— Disso eu sei. Foi só uma brincadeira — disse o general e de novo pegou em Miguel. — Meu querido, meu amor! O que eu queria dizer: no seu tempo livre você vai trazer sempre a colheita da semana para um determinado local... Você ainda será informado para onde... Você deverá receber os méritos pela revolução, meu garoto. Você vai querer isso, se me for útil.

— Tudo, meu general — disse Miguel, vencido. — Tudo o que o senhor exigir de mim.

No seu Volkswagen, Miguel atingiu o portão de ferro da entrada. Também ele possuía uma pequena caixinha plástica com cuja ajuda eletrônica os portões abriram-se lentamente. Miguel deixou o carro rolar até a rua. A entrada fechou-se atrás dele. Dobrou em seguida à esquerda. Ao longo da Céspedes havia estacionados, dos dois lados da rua, muitos carros embaixo das velhas paineiras. O rapaz viu que vizinhos davam uma grande festa no jardim. Ouvia a música trazida pelo vento e vislumbrou alguns pares que dançavam ao ar livre sobre um piso de acrílico.

Um Buick preto e um Lincoln azul, dentro dos quais se achavam sentados dois moços, estavam manobrando a alguma distância para estacionar em sentidos opostos; o Lincoln na mesma direção que Miguel havia tomado. O homem ao volante tirou um pequeno microfone de seu suporte e disse:

— Peru, aqui é Cuba.

No Buick negro um homem respondeu pelo microfone:

— Aqui Peru. O que houve, Cuba? Vocês vão seguir o fusca?

— Sim. Se alguém ainda for sair, siga-º Continuamos mantendo contato.

— OK, boa sorte! Fim.

O Lincoln azul deslizou para fora da sua vaga. Seu motorista, que no telefonema com o velho chamado Cristóbal se havia identificado como Roberto, usava ainda a mesma camisa verde da manhã, além de suas calças brancas. A seu lado estava sentado o jovem da camisa vermelha. Quando eles haviam seguido Mercedes e Daniel Ross do aeroporto até a cidade, ele estivera ao volante de um Ferrari vermelho. A organização dispunha de uma frota com muitos automóveis. Ainda estava claro e muito quente, mas o sol se punha no horizonte. Logo ficaria escuro.

Na Avenida Cabildo, Miguel entrou à direita. Desceu a larga rua em direção sul. O Lincoln azul o seguia. Miguel atingiu o clube de pólo que ficava à sua esquerda, e o cruzamento com a Avenida J. B. Justo. Neste ponto, a Avenida Cabildo mudava seu nome para Avenida Santa Fé e continuava mais para o sul, margeando o Zoológico e o Jardim Botânico, além de muitos parques com lagos. Depois, virava suavemente para sudoeste.

— Chamando Peru — disse Roberto no microfone. — Chamando Peru. Aqui é Cuba.

— Aqui Peru. O que há?

— O fusca está descendo toda a Santa Fé. Se continuar assim, logo vai chegar nas docas e no porto. Fique na escuta! Há alguma coisa de estranho.

— Fico, na escuta, Cuba. Fim.

— Que vai querer esse cara no porto, Esteban? — perguntou Roberto ao jovem de camisa vermelha.

— Não faço idéia — respondeu Esteban. Ele estava irritado. — O velho Cristóbal já nos deveria ter dispensado há muito tempo. Homem, isso já está se arrastando desde a manhã! Agora já são nove e meia. Estou cansado. Isto é um serviço de merda.

— O cara está indo para o Retiro, Esteban! Para o Retiro!

Efetivamente, Miguel, agora na altura da Plaza General San Martín e da Plaza Britania, atrás das quais de novo havia parques, entrou à esquerda e atingiu o gigantesco estacionamento diante do maciço edifício da estação principal de Buenos Aires. Das seis diferentes redes de estradas de ferro da Argentina, cinco delas têm nomes de generais acompanhados de seus títulos, e três convergem para o Retiro, enquanto as outras três têm suas próprias estações em Constitución, Once e Lacroze. O estacionamento em frente ao Retiro estava praticamente lotado. Muitas pessoas se esgueiravam por ali, apressadas. Roberto achou ainda uma vaga bem próxima da do Volkswagen. Manobrou habilmente o grande carro para dentro do espaço, enquanto Esteban pegava o microfone.

— Chamando Peru, aqui Cuba.

— Aqui Peru.

— Estamos agora no estacionamento do Retiro. O fusca parou aqui. Há um jovem saltando dele. Segura um capanga e um saco de plástico branco. Está indo para o Retiro. Nós vamos grudar nele.

Miguel abriu caminho por entre os numerosos carros. A alguma distância o seguiam Esteban e Roberto. Miguel alcançou o grandioso bloco da Estação central e as plataformas ante o grande salão com suas muitas lojas ainda abertas. Passou ao lado das bancas de jornais, vendedores ambulantes e bancas com provisões de viagem até uma grande parede com os compartimentos de guarda-volumes. Estava sendo observado cuidadosamente pelos seus seguidores que se achavam atrás de uma cortina de revistas pornográficas dependurada em uma banca. Miguel pegou uma chave recortada de forma bizarra de dentro de sua bolsa de couro e abriu o compartimento duzentos e catorze. Isso ele fazia todas as sextas-feiras a essa hora, desde que trabalhava na casa de Olivera. Deitou o saco de plástico dentro do compartimento. Já depositara muitos cassetes ali. Eram retirados por um homem de confiança do general Álvarez, que agora já estava sendo processado. Miguel não conhecia este homem. O plano havia ainda sido combinado com Álvarez, de quem ele recebera a chave e as explicações — o homem que ele amava e venerava.

— Esse guarda-volumes duzentos e catorze precisa, como todos os demais, ser alimentado com moedas, a fim de que possa ser trancado. O mais tardar a cada setenta e duas horas precisam ser colocadas novas moedas, senão termina a corda do relógio e somente a fiscalização poderá abri-lo. Mas você não precisará se incomodar com isso, meu garoto. Disso tratarão os outros. Outra coisa ainda: toda vez que depuser os cassetes, antes de trancar, você poderá colocar moedas na fenda. As pessoas que forem apanhar os cassetes naturalmente terão de proceder do mesmo modo, meu querido...

Miguel apertou a porta do guarda-volumes, jogou as moedas pela fenda e trancou tudo. A chave que ele meteu de volta em sua bolsa de couro trazia gravada as letras RETIRO e o número 214. Poucos minutos mais tarde Miguel estava novamente no estacionamento superlotado. Sentou-se atrás do volante do Volkswagen. Deu a partida no motor e dirigiu o carro para fora de sua vaga. No instante seguinte. bateu contra um grande Lincoln azul que subitamente surgiu diante dele. Miguel não o tinha visto. Os dois veículos chocaram-se ruidosamente com os pára-lamas dianteiros. Ouviu-se o barulho estridente de metais. De susto, Miguel deixou o motor morrer. Do Lincoln desembarcara um homem com uma camisa verde e vinha em sua direção.

— O senhor está bêbado, não é? — gritou ele.

— Logo o senhor! — berrou Miguel. — Isto não é nenhuma pista de corridas! O senhor estava no mínimo a oitenta por hora!

— Ora! Não se faça de engraçadinho!

— Sim, o senhor tem razão! — gritou uma mulher que passou a atacar Roberto. — O senhor vinha dirigindo muito depressa!

— É isto mesmo. Eu sou testemunha!

— Eu também

De repente, ajuntou-se um bando de gente. O calor, que tampouco à noite ficava mais suportável, fazia todos ficarem nervosos e irritados.

No meio de toda confusão, Esteban aproximara-se do Volkswagen, cuja porta esquerda se mantinha aberta. Sobre o assento à direita estava a bolsa de couro. A parte externa da bolsa tinha um fecho de correr. Esteban era um observador arguto. Ele sabia que o jovem de pele morena pusera a chave do guarda-volumes no compartimento externo da bolsa. Agarrou-a e abriu o seu zíper, enquanto atrás dele a gritaria se tornava cada vez mais veemente.

Aí estava ela — a chave! Esteban saiu de fininho. Correu até a plataforma, chocou-se com várias pessoas, foi devidamente xingado, correu adiante e atingiu a parede com os guarda-volumes. Logo em seguida havia aberto a duzentos e catorze e retirava o saco plástico. Introduziu as moedas devidas, trancou a caixa e disparou o mais rápido que podia em direção ao estacionamento. Escutou, aliviado, a raivosa confusão de vozes. Continuavam ainda a discutir, e maior número de pessoas se havia aglomerado. O fusca de Miguel havia afundado bastante o pára-lama direito dianteiro do Lincoln. Ele e Roberto examinavam uma vez mais os estragos. Os assistentes faziam comentários. Esteban esgueirou-se para diante; chegou ao Volkswagen com a porta aberta e, despercebidamente, deixou a chave cair no compartimento externo da bolsa, cujo zíper fechou. O saco de plástico ele escondeu por debaixo da camisa.

Nesse ínterim, um homem havia sugerido que se chamasse a polícia. Merda, pensava Esteban, e Roberto também, quando Miguel exclamou assustado:

— Não, a polícia, não!

— E por que não? O Lincoln estava inteiramente errado!

— Mesmo assim... — gaguejava, nervoso, Miguel. Polícia coisa nenhuma, pensou ele. E se eles me perguntam que eu estava fazendo aqui. Ele disse com esforço: —. Este carro não é meu... - Eu...- o tomei emprestado...- Não quem agora nenhum aborrecimento com meu amigo... Eu lhe dou meu endereço... O senhor conserta o carro e me manda a conta por favor, sim? — Olhou Roberto com ar suplicante.

— Endereço falso, hem?

—. Não, não! Eu lhe mostro meus documentos. — Miguel fez meia-volta, curvou-se dentro do Volkswagen, apanhou a bolsa de couro e apresentou a carteira de motorista e outros documentos. — Por favor, veja o senhor... Moro na Céspedes mil e seis... na casa do Sr. Olivera... trabalho lá... aqui... o registro... Estou lá há apenas algumas semanas... — Oh, maldição, pensou ele, que me tenha de acontecer isso. Ajude-me, Mãe Maria!

— Está bem — disse Roberto — já que o senhor quer pagar. Pegou um bloco e lápis de seu bolso traseiro. — Mostre-me Sr...

—. Miguel Morales.

— O senhor ficou maluco! — exclamou uma mulher. — O senhor paga quando é ele o culpado!

Concordância generalizada.

— Isso é assunto meu. Eu já disse que o carro é emprestado.

Enquanto isso, Roberto se havia apoiado sobre a capota do motor do Lincoln e anotado o endereço de Miguel e o número de seu seguro.

— Então, OK, o senhor recebe a conta. Queira prestar mais atenção da próxima vez! Boa noite.

—. Boa noite.., e muito obrigado por sua compreensão — balbuciou Miguel.

Os observadores dispersaram-se, debatendo. Não estavam de acordo com essa solução.

— O miserável com seu Lincoln metido a besta — dizia uma mulher para o homem que seguia a seu lado. — O garoto no seu fusquinha fez nas calças, é claro. Não quis se meter com os figurões! Assim somos todos nós. Por isso jamais chegamos a coisa nenhuma.

— Agora já chega. Evita! — disse seu acompanhante. — Vamos chegar atrasados ao cinema. Não é possível, você precisa sempre assistir a uma discussão dessas.

Na casa de Cristóbal, no segundo andar do número 25 da Rua Husares, na parte ocidental da cidade, o telefone tocou, estridente. O calvo sessentão a quem Roberto, ao meio-dia, informara por telefone que o carro que havia seguido desde o aeroporto havia penetrado no parque da mansão da Calle Céspedes 1.006 estava sentado numa esfarrapada cadeira de balanço da sala de estar, sob um abajur de pé alto, diante de um velho aparelho de rádio que terminava de apresentar uma dramatização de A ponte de San Luiz Rey, de Thornton Wilder.

O telefone continuava a tocar. Cristóbal se ergueu e correu para o quarto vizinho, cuja janela dava para a gigantesca área do Regimento 3 de infantaria General Belgrano, com suas praças de exercício e suas casernas, Todo o terreno estava inteiramente iluminado por holofotes presos no topo de altos postes. O velho homem trazia uma toalha enrolada à cintura. Abrira todas as janelas para receber pelo menos um pouco de corrente de ar. Finalmente, levantou o receptor.

— Sim?

— Aqui é Roberto — dizia uma voz que ele conhecia. — Temos aqui uma coisa que o senhor precisa receber imediatamente.

— O que é? — Só se podia alcançar Cristóbal telefonicamente. Técnicos da organização haviam preparado a instalação de tal forma que conversas não poderiam ser escutadas por terceiros. Transmissões pelo rádio teriam sido arriscadas demais.

Roberto narrou o que ocorrera. Cristóbal ficou animado.

— Traga imediatamente os cassetes para cá! Eu vou descer. Quanto tempo vocês precisam para chegar aqui?

— Uns trinta minutos. Muito tráfego.

- Bem. Ficarei em pé, na sombra do portão. Vocês passam devagar e me estendem o saco de plástico do carro mesmo.

O velho desligou, retomou à sala com seus móveis destroçados e tomou a sentar-se. Ouvia uma voz de locutor de rádio, que encerrava a adaptação da Ponte de San Luiz Rey.

“Logo estaremos todos mortos e toda recordação daqueles cinco terá assim desaparecido da face da terra, e nós mesmos seremos amados por um curto instante e, então, esquecidos. Mas o amor terá sido suficiente; todas essas emoções de amor voltam à sua Origem. Nem mesmo de uma recordação o amor precisa. Há uma terra dos vivos e uma terra dos mortos, e a ponte entre elas é o amor — a única coisa duradoura, a única razão.”

Cristóbal desligou o aparelho. Seus lábios se mexiam, mudos. Ele repetia a última frase e olhava o vazio. Era um velho homem, muito triste e muito solitário.

No momento em que o Lincoln azul começou, trinta e cinco minutos mais tarde, a deslizar lentamente de faróis ligados pela Rua Husares, já lá se encontrava Cristóbal na escuridão do portal de entrada da casa. Da janela do carro, uma mão se estendeu para ele. Habilmente, o velho pegou o pequeno saco de plástico branco na mão. O Lincoln seguiu adiante e logo dobrou a primeira esquina.

Cristóbal trancou a porta de casa e retornou para seus aposentos. Sofria de artrose e com fortes dores subiu as escadas. Na verdade, sempre sentia dores, mas pioravam tão logo subisse .

Em seu escritório, examinou os três cassetes. Ele possuía toca-fitas dos mais variados tipos, mas os cassetes não cabiam em nenhum, o que ele já sabia de antemão. Tão logo os viu, percebeu que haviam sido produzidos para uma finalidade especial e um equipamento específico. No comércio, com certeza, não se encontraria tal aparelho para comprar.

Ele se ergueu e cerrou todas as janelas. Sentou-se ao telefone, acoplou o misturador de vozes e discou 0041, o código de Londres, e, em seguida, um número de sete algarismos.

Tão logo soou o sinal de chamada, uma macia voz masculina atendeu. Cristóbal agora falava em inglês. Deu logo seu nome e escusou-se por perturbar tão tarde da noite.

— Não há por quê! — disse gentilmente a voz lá de Londres.

— Um momento! — Ouviu-se um estalido na ligação. — Pronto, colocado o misturador. O que houve?

— Lamento realmente, Mr. Morley. Aqui são onze e meia. Aí já são duas e meia. Certamente já havia começado a dormir.

— Não importa. Eu já lhe disse que o senhor deve me chamar imediatamente, de dia ou de noite, tão logo aconteça alguma coisa. Então o senhor descobriu o nome do homem que guardou os cassetes no guarda-volumes da estação?

— Sim. Pela carteira de motorista e o registro. Miguel Morales é o nome dele. Nascido em quinze de maio de mil novecentos e sessenta, em Buenos Aires. Meus homens são bastante confiáveis. Do registro constava também o endereço anterior e o nome de seu último patrão. General Carlo Maria Álvarez, Rua Dorrego, 870, bairro de Palermo. É bem perto da casa de Olivera.

Mr. Morley soltou um assovio.

— Álvarez, o general da Junta?

— Yes, Sir. Verifiquei na lista telefônica. E o endereço dele. Melhor: era. Há semanas que está preso. Pegaram-no em 20 de dezembro. No dia 21, Morales se transferiu para a casa de Olivera.

— Está parecendo que ele estava incumbido de alguma coisa, hem, Cristóbal?

— Parece que sim, Sir.

— Instalar um equipamento de escuta e gravar as conversas de seu novo patrão. De quem terá ele recebido esse complicado equipamento especial? Só pode ter sido de Álvarez e dos seus amigos. Foi introduzido na casa do Olivera, não lhe parece?

— Está parecendo sim, Sir.

— Diga-me, Cristóbal, esses cassetes... não têm eles, na etiqueta, em cima, à esquerda, três pequenos anéis entrelaçados — como os das olimpíadas, só que com dois a menos?

O velho foi verificar.

— Isso mesmo, Sir. E embaixo dos anéis há duas letras: um E e um X.

— Merda. Já presumia isso. Fabricação particular. Ninguém pode tocá-los. Somente técnicos, num laboratório especial. Ouça aqui, sabe Deus, o que contêm esses cassetes — preciso deles imediatamente. O mais rápido possível, está me entendendo?

— Sim, Sir — respondeu Cristóbal. Sua voz soava cansada e submissa,

— Mande-os para mim com seu melhor homem, aquele que se parece tanto com o Alain Delon. Como é que se chama?

— García, Sir. García Lopez.

— Onde é que ele está metido?

— Está na cidade, Sir. Ele veio com os dois lá de Frankfurt. Apresentou-se há algumas horas, na hora marcada. Ele mora com sua amiga. Tenho o número do telefone. Mas antes de amanhã cedo não sai avião algum.

— Pouco me importa como ele voe e quantas vezes terá de trocar de avião, caso não haja logo um vôo direto. Amanhã de manhã ele embarca, está claro?

— Perfeitamente claro, Sir — disse Cristóbal, resignado. — Ele vai tomar o primeiro avião possível. Mesmo que tenha de fazer vários transbordos. Ele lhe entregará os cassetes sem demora, tão logo chegue a Londres, Sir.

— Conto com isso, Cristóbal. Precisamos ficar finalmente sabendo o que acontece.

Em Londres, o receptor foi reposto em seu lugar. O mesmo fez Cristóbal. Poderia pelo menos ter dado boa-noite, esse Mr. Morley, pensou ele, enquanto desligava o misturador de vozes. Como eu odeio tudo isso. Mas a gente precisa viver. Vou acordar Garcia às cinco da manhã. Não consigo mesmo dormir. Há anos não posso dormir direito. No máximo, uma ou duas horas. Isso, quando tenho sorte. Às cinco vou despertar o Garcia e dizer-lhe que precisa vir aqui falar comigo e apanhar os cassetes. E voar imediatamente para Londres. Agora vou dar-lhe um pouco de tempo para o amor, disse o velho para si mesmo. Um pouquinho só.

O COMANDANTE SUPREMO SS E CHEFE DA POLÍCIA DA ALEMANHA

Berlim, 31 de março de 1944

Ao Chefe-de-Divisão SS Prof. Dr. Walther Wüst,

Curador do Patrimônio Ancestral e

Chefe do Dep. de Patrimônio Ancestral/Assessor Pess C.S.SS

e

Chefe-de-esquadrão 55 Wolfram Sievers,

Gerente Supremo do Patrimônio Ancestral

Por ocasião das futuras pesquisas meteorológicas que desejamos fazer sistematicamente, logo após a guerra, por meio da organização de inúmeras observações isoladas, peço ter em vista o seguinte fato:

As raízes, ou melhor, os bulbos dos cólquicos, estão, nos diversos anos, a profundidades diferentes dentro do solo. Quanto mais fundo eles estiverem; tanto mais forte será o inverno; mais próximos à superfície, mais suave será o tempo frio.

Para este fato fui alertado pelo Führer.

ass. H. Himmler

Eduardo Olivera, que havia lido em voz alta essa carta, baixou um livro de bolso e tirou seus óculos de aros de tartaruga.

— Que quer dizer isso? — perguntou Daniel Ross. Ele, Olivera e Mercedes encontravam-se novamente sentados nos assento de vime à borda da piscina, em cujo fundo estavam instaladas fortes lâmpadas por detrás de vidros espessos e que, agora acesas, clareavam a água com uma tonalidade azul. A luz se espalhava também sobre os três. Tinham desejado retornar primeiro para a biblioteca, mas então Olivera sugeriu que fossem ainda uma vez para o ar livre. Um carrinho de bebidas achava-se ao lado deles. Tomavam uísque. A biblioteca jazia abandonada. O gravador escondido atrás do vaso da privada do banheiro de Miguel não se havia ligado sequer uma vez. Eram quase nove e meia.

A essa hora, os dois rapazes seguiam com o Lincoln azul o fusca do empregado pela Avenida Santa Fé em direção à estação de Retiro.

— Isto é para lhe mostrar por que Himmler me fez esperar no dia 31 de março de 1944 quando fui buscá-lo para o levar ao Ministério do Exterior; e que tipo de preocupações ele tinha àquela altura, fim de março de quarenta e quatro. Ele me saudou em seu escritório, desculpou-se e ditou ainda para sua secretária, com quem trabalhava antes de minha chegada, esta nota imbecil para o “Patrimônio Ancestral” do qual era chefe. Ribbentrop lhe dissera ao telefone que ele e Goebbels precisavam falar-lhe sobre um assunto da maior importância Desse modo, Himmler queria mostrar-me também em que conta ele tinha Ribbentrop. Jamais me esqueci dessa informação sobre os cólquicos, pois eu estava extremamente furioso com o comportamento de Himmler. Mais tarde encontrei o texto exato dessa nota nesse livro de bolso com quase quatrocentas cartas endereçadas a Himmler ou escritas por ele. Sob o número trezentos e cinco, de fato, se registra a extraordinariamente importante colaboração de Hitler para a pesquisa meteorológica, sendo que, para ditá-la, Himmler me fez esperar de pé. — Olivera pousou o livro sobre a mesa do jardim. — Era para eu apanhar Himmler às quatro da tarde. Depois que havia terminado com essa idiotice, mandou trazerem ainda uma gorda pasta e assinou cartas. Finalmente, por volta das quatro e meia, deixamos o Comando Supremo da Rua Prinz Albert, 8. O número 9 era a sede central da Gestapo. Seguimos em um carro, com um homem das SS ao volante e outro a seu lado, em direção ao Ministério do Exterior, na Wilhelmstrasse, 74 a 76. Também Himmler usava o uniforme negro com a caveira de prata sobre a pala. O tempo estava bonito e por isso tinha havido, ao meio-dia, um ataque americano. Os americanos só vinham com tempo bom e sempre de dia, enquanto os ingleses vinham com qualquer tempo à noite, até mesmo duas vezes. Eu me recordo de que muitos incêndios ainda não haviam sido controlados. Uma imensa nuvem de fumaça pairava sobre a cidade. Ademais (é inconcebível quando se olha retrospectivamcnte) os locais de trabalho de Ribbentrop, Goebbels e Himmler, a despeito dos ininterruptos ataques aéreos, nos quais pouco a pouco toda a gigantesca cidade, de milhões de habitantes, ia sendo reduzida a ruínas, com milhares de mortos; bem, esses locais continuavam (afora freqüentes estilhaçamentos de vidraças, logo respostas) completamente intactos, lá dentro se trabalhando sem a menor perturbação. Apenas o Ministério da Propaganda tinha sido levemente atingido por bombas, em fins de janeiro de quarenta e quatro. Os danos foram sanados. Inconcebível, realmente. Como se o próprio Deus tivesse desejado que aqueles senhores não fossem impedidos de conduzir o povo para dentro do abismo infernal, no qual finalmente acabou no fim da guerra...

Olivera, o democrata, sorveu um bom gole — por assim dizer in memoriam germaniae patriae. E prosseguiu:

— No Ministério do Exterior, conduzi Himmler para o subterrâneo. Ali nós tínhamos diversas cabines de cinema. Ribbentrop e Goebbels já esperavam. ambos, como eu, em trajes civis. Saudações glaciais. Goebbels e Ribbentrop estavam irritados com o atraso de Himmler, que novamente exibiu seu desprezo frente a Ribbentrop assim como seu pavor diante de Goebbels, a quem admirava e invejava em decorrência da confiança que Hitler nele depositava, portando-se, no seu caso, de maneira típica: pisando duro. Na presença de Hitler, sentia regularmente os joelhos frouxos e não conseguia formular sequer uma frase coerente.

— Sujeito de muitas caras esse Himmler — disse Daniel Ross. Olivera repôs os óculos, folheou o livro de bolso e fez que sim com a cabeça.

— Ele é descrito aqui como “mestre-escola” e “assassino de gabinete” responsável por quase dez milhões de mortos; como um “subalterno” e, no entanto, “generalíssimo”; um “ocultista”, “jardineiro de ervas” e “possesso”. — Olivera deixou cair o livro e tomou um gole. — Sim — acrescentou ele — e tinha centenas de outros rostos.

— Um vampiresco pequeno-burguês — disse Ross. — Meu Deus, como seus colegas eram psicopatas, existências arruinadas, doidos e criminosos da mais alta periculosidade! — E, voltando- se para Mercedes: — Você estudou Política na faculdade. Você sabe que uma das mais importantes matérias universitárias não existe? Quero dizer a psicologia política. Deveria ser ensinada em todas as universidades! Os bastidores psicológicos de acontecimentos históricos. Oual é a explicação psicológica para que um tipo sem teto e associal seja eleito pelo povo alemão para chefe supremo e que esse povo traga então infelicidade ao mundo inteiro? Desculpe-me! — disse a Olivera — eu o interrompi.

— Mas, por favor, Daniel, fale mais! Isso é muito interessante. Então?!

— Então — prosseguiu Ross — com psicologia política eu quero dizer a apreciação psicológica da história da humanidade. Nela se repetem sempre os mesmos conflitos, sempre os mesmos desfechos, análogas personalidades, os mesmos motivos fúteis que conduzem à ruína mas que deveriam ser estudados em profundidade. Nós só poderemos, por exemplo, evitar o retorno do fascismo se nos ocuparmos com exatidão psicológica das situações de origem e das pessoas.

— Há historiadores e existem psicólogos, mas não temos os psicólogos da História. E isso é surpreendente porque a humanidade não está reconhecidamente em condições de aprender com a História, e também não desenvolve quaisquer esforços para aprender alguma coisa. Diante disso, a psicologia da história seria a única chance de que ainda dispomos para, prospectivamente, portanto, com vistas para o futuro, enfrentarmos o mal. E esta chance a humanidade no mundo inteiro, sem exceção, não leva em consideração. Incompreensível, não é? O interessante na História não são os eventos em si, mas o conjunto integrado das inter-relações psicológicas que levaram aos acontecimentos! Isso seria a única coisa instrutiva para nós. A única salvadora. Mas ninguém pensa em criar uma tal ciência. — E se fez, então, uma longa pausa. Mercedes olhou Ross fixamente. Ele percebeu o olhar e disse levemente constrangido para Olivera: — O que aconteceu, então, em Berlim?

— Pois bem — disse ele — Ribbentrop esclareceu que eu (ou melhor, meu serviço, naturalmente) estava de posse de um extraordinário filme e ele o queria mostrar imediatamente a Goebbels e Himmler...

— ...Ao senhor, meu caro doutor, e ao senhor, comandante do Reich, uma vez que eu só gostaria de exibir este filme ao Führer acompanhado de uma precisa sugestão nossa — disse Ribbentrop. — Por favor, tomem assento! — Goebbels saiu mancando até o seu assento estofado na primeira fila da cabine, Ross e Ribbentrop sentaram-se a seu lado, Himmler tomou lugar na outra extremidade da mesma fila. Ribbentrop ergueu a mão para o funcionário que fazia a projeção. A luz da cabine se foi apagando aos poucos e o filme começou a rodar. Durante os trinta e quatro minutos seguintes nenhum dos homens disse uma só palavra. Ninguém se mexia. Georg Ross observava a fileira buscando a expressão de seus rostos. O de Goebbels parecia uma máscara. Nos lábios de Ribbentrop desenhava-se um sorriso vaidoso e bobo. Himmler estava subjugado. Sua boca permanecia aberta. Uma vez caiu-lhe o pincenê sobre os joelhos. Sua mão tremia quando o repôs sobre o nariz. Ross, que já vira o filme por três vezes, sentia novamente crescer dentro de si uma grande tensão. A respiração se fazia difícil e suas mãos estavam ficando úmidas. Então, terminou o filme, a tela ficou branca e brilhante, depois opaca, e as luzes da cabine voltaram a se acender. Ainda ninguém falava, ainda ninguém se mexia. Somente após alguns minutos quebrou-se o feitiço. Goebbels ergueu-se e disse: — Vamos subir até sua sala Ribbentrop!

— “Vamos subir até sua sala, Ribbentrop!” — repetiu Olivera quarenta anos depois. — Isto foi tudo o que Goebbels disse primeiramente. Himmler começou: “Quem nos garante...” mas Goebbels o interrompeu, cortante: “Aqui não! Fique quieto, Comandante!” Ele claudicava à frente, em direção à saída. Pelo elevador, chegaram ao imenso e aparatoso escritório. Tudo naquele ministério era imenso, ostentatório e de mau gosto. Políticos e diplomatas estrangeiros deveriam, diante das colossais galerias, imensos salões de colunas, das estátuas e tapeçarias, ficar impressionados e, ao mesmo tempo, intimidados. Só junto a Hitler tudo era mais exorbitante ainda... Um gole, Mercedes?

— Por favor.

— E você, Daniel?

— Sim.

— De novo puro, só com gelo?

— Puro, com gelo, sim — disse Ross. Ele observava Olivera que preparava os novos drinques. — Presumo que todos devessem estar excitados — disse ele.

— Naturalmente — disse Olivera, e deixou um cubo de gelo escorregar para dentro de um copo. — Goebbels me perguntou..

— Como foi que este filme veio parar em suas mãos, caro Sr. Ross? — Goebbels ia de um lado para outro sobre um gigantesco tapete, entre uma escrivaninha de mármore e uma coluna, igualmente de mármore, sobre a qual estava assentada uma cabeça de Hitler, fundida em bronze, e maior que o tamanho natural. Escrivaninha e cabeça de bronze estavam bem uns trinta metros distantes uma da outra. Os outros três homens estavam sentados em grandes poltronas de couro. Ross queria erguer-se, mas Goebbels fez sinal que não. Ross disse: — Sr. Ministro, o senhor sabe que eu sou responsável pelo serviço do Oriente Médio. Nós... — Goebbels o interrompeu: — Seus homens em Teerã se apoderaram do filme, visivelmente uma cópia. Eu felicito essas pessoas. Notável mérito. Eu queria dizer: Como este filme chegou às suas mãos aqui em Berlim?

— Da forma habitual, Sr. Ministro. O residente em Teerã fez-me saber (em código naturalmente) pelo rádio, que uma cópia deste filme havia sido apresada. Como de costume não esclareceu o método de trabalho.

— Disto também sabemos — disse Himmler agressivo. — Prossiga, Sr. Ross!

Goebbels olhou para Himmler com desprezo. Seguiu em frente claudicante, em cima do grande tapete.

— Hoje é sexta-feira — disse Georg Ross. — A emissão de rádio chegou na segunda à noite, às três e quarenta. A comunicação foi feita: agente CX-2 1 com o rolo do filme. Sua chegada exata não foi fixada. Tão logo estivesse em Berlim, disse pelo rádio, iria depositar o filme no guarda-volumes da estação do Zoológico, acondicionado dentro de uma mala com fechadura de algarismos. O comprovante de depósito ele poria dentro de um envelope com um remetente fingido e o enviaria para meu endereço particular em Dahlem. Hoje, pela manhã, chegou uma carta. Eu havia solicitado à minha governanta que em tal caso, me telefonasse imediatamente. Ela me ligou, segui até Dahlem, apanhei a carta: havia realmente lá dentro um comprovante de depósito de bagagem. Fui à estação do Zoológico e recolhi a mala. Em seguida vim até aqui e abri o segredo. Os algarismos foram informados pelo rádio. Na mala havia um filme, embrulhado cuidadosamente. Além disso, um longo texto em código. Meu departamento decifrou-o imediatamente. Era uma comunicação de CX-21 a respeito de como ele se apoderou da cópia.

— E de que maneira? — perguntou Himmler. — Por que caminho? Por meio de quem? Diga nomes e pormenores!

— É usual — atalhou Ribbentrop altivamente — que um serviço proteja seus agentes, Comandante.

— Disso eu sei — disse este, raivoso. — Não sou nenhum idiota, Ribbentrop. Se nós temos de fazer alguma coisa com isso, pre cisaremos dizer às pessoas de onde veio e como chegou a nosso poder.

— Não necessariamente — disse Goebbels. — Quero dizer: Não precisamos dizer a verdade às pessoas. Quem é que faz isso, Himmler? Não seja infantil! — E dirigiu-se a Ross: — O que mais me interessa é como seu pessoal procedeu.

— Já em 29 de novembro do ano passado recebi um radiograma do meu residente em Teerã — disse Georg Ross. — Ele indicava que o agente CX-21...

— Mas quem é ele, que diabo? — exclamou Himmler.

— Isso eu não sei, Sr. Comandante. Isso ninguém sabe, apenas o residente em Teerã. Um membro de uma rede não conhece além de um outro membro.

— Queira fazer-me a fineza de não me dar lições! Disso eu sei muito bem.

— Então, por que pergunta, Himmler? — De passagem, Goebbels olhou-o ironicamente.

— Eu... Por favor, não nesse tom, doutor, está bem?

Goebbels não reagiu. Disse para Ross:

— O senhor foi interrompido. Oueira desculpar!

Ross curvou-se, sentado.

— Eu queria dizer: No radiograma de 29 de novembro meu residente em Teerã indicava que o agente CX-2 1 havia conseguido fazer um contato com um americano, envolvido na produção desse filme. Bem, esse americano parecia encontrar-se em grandes dificuldades financeiras. Ele se prontificava a providenciar para CX-21 uma cópia do filme mediante o depósito, em sua conta na Súiça, da soma de cinco milhões de dólares.

— Quanto? — Himmler tirou incrédulo o pincenê.

— Cinco milhões de dólares — disse Goebbels irritado. — Está lhe parecendo demais por um documento dessa ordem? — Então perguntou a Ross, sem mais dar atenção a Himmler: — E então?

— Discuti a coisa com o chefe do serviço bem como com o senhor Ministro. Fomos de opinião que deveríamos arriscar, O homem responsável pela Suíça providenciou o necessário.

— Graças a Deus! — disse Goebbels. Olhou para Himmler. Ele recolocara seu pincenê e fazia cara de criança ofendida.

— O senhor não sabe naturalmente o nome desse americano.

— Naturalmente não — disse Ross. — Mas se nós o quisermos saber, se precisarmos, muito contra os nossos princípios, revelar o nome, eu posso evidentemente mandar verificar a identidade do homem e sua posição, a qualquer momento, Sr. Doutor.

— Bem. Prossiga, Ross!

— Depois que a mensagem havia sido decifrada, levei-a ao co nhecimento do Sr. Ministro imediatamente, e nós sasistimos ao filme.

— Duas vezes — completou Ribbentrop. — Logo em seguida eu liguei para os senhores. Sou de opinião que, com está filme, poderemos ganhar a guerra, e isso rapidamente.

— Eu partilho essa opinião — disse Goebbels. Seu rosto ficara vermelho. — Esta é a coisa mais extraordinária que já vi. Não se podem calcular as conseqüências da chegada ao conhecimento do público desse filme, basta fazer-se isso com habilidade. — Ele retomou a sua dificultosa mas rápida caminhada por sobre o tapete, as mãos cruzadas às costas. — Em primeiro lugar, precisamos tirar muitas cópias — disse ele. — O filme deverá ser apresentado pelas Missões diplomáticas do Reich alemão em todos os países neutros: na Suíça, na Suécia, na Espanha, Portugal, toda a América do Sul, na Turquia, etcétera, etcétera; perante todos os Embaixadores ou Plenipotenciários ali creditados e cujos países se encontrem em estado de guerra conosco. — Goebbels riu. — Que bela surpresa não será para Churchill, por exemplol — Ele falava cada vez mais rapidamente. Além disso, devem assistir a este filme todos os prepostos que colocamos nos países que conquistamos e mantemos ocupados: França, Polônia, Noruega, Grécia, Iugoslávia, Tchecoslováquia, Hungria, região ocupada da União Soviética. Os políticos bem como os milhões de habitantes. — Ele havia parado diante da cabeça de bronze e a fitava. Depois se virou novamente e saiu mancando. — Além disso, nos países que combatem a nosso lado: Romênia, Bulgária, isso precisa ser feito rapidamente, meus senhores! Os senhores todos conhecem a situação. Teremos de abandonar a Bulgária e a Romênia dentro de alguns meses. Mas é da maior importância que exatamente as pessoas da Europa oriental vejam esse filme, porque segundo o protocolo secreto elas deverão ser escravizadas pelos soviéticos. Imaginem os senhores, que pânico não vai ali explodir!

— Exatamente nisto é que estávamos pensando — disse Ribbentrop. — Por isso solicitamos a presença dos senhores aqui. O senhor, Doutor, porque o senhor, melhor que ninguém, sabe como se monta algo assim de forma a se obter o maior efeito, e o senhor, Comandante, porque o senhor dispõe do poder, tanto na Alemanha quanto em diversos países ocupados, para implantar tudo o que o doutor deseja. Desta forma poderemos mostrar praticamente a todo o mundo (o filme penetrará nos Estados Unidos pela América do Sul e na Rússia pela parte ocupada), a todo o mundo, repito, e de forma exemplar, de que modo dois homens: dois homens, digo eu! se puseram de acordo sobre o futuro de milhões e milhões de seres. Poderemos mostrar com que desdém pelas pessoas, com que cinismo e brutalidade eles partilharam o mundo entre si, em Teerã. O senhor não acha, doutor?

— Eu sou de opinião — disse o pequeno homem de pé disforme que havia parado — de que a idéia de que a Rússia e os Estados Unidos tenham realmente dividido o mundo, de fato, não é tão despropositada assim. Um homem como Churchill, por exemplo, pode com certeza imaginar isso tão bem como eu. Tanto mais que os americanos e russos vão protestar energicamente, acusando o filme de propaganda alemã, coisa que eles naturalmente irão fazer, precisam fazer. — E continuou. — Permitam-me tecer meus pensamentos até o fim. Teremos de exibir esse filme, sobretudo, nos grandes cinemas do Reich. Nosso povo precisa ser informado do que se pretende fazer com ele e com seu país. Que querem dividi-lo, dividi-lo para sempre. Que a parte oriental deve sair nas mãos dos bolcheviques. Que as pessoas nessa parte do leste, assim como todo o leste e sudeste europeu, deverão ser subjugadas e escravizadas pela Rússia. Façam idéia de qual será o efeito sobre o povo alemão! A pátria cortada em pedaços! Dilacerada! Ocupada! — Ele respirava ofegante. — Esse filme, além disso, terá de ser mostrado nos países neutros do Extremo Oriente, sobretudo no Japão, que desenvolve uma guerra heróica contra os americanos. Pensem apenas um pouco como essa orgulhosa nação irá reagir ante tal filme! Imaginem como reagirão as mulheres, filhos, filhas e noivas nos países por nós conquistados e que perderam o marido, o pai, o noivo! Extraordinário... lncrível... — Ele agora mancava quase aos tropeções. — Quanta fanática determinação para lutar por cada casa, por cada árvore, não dominará cada cidadão alemão e qualquer pessoa no sudeste europeu quando pensarem no que têm à sua frente! Como reagirão os mutilados, os aleijados, os amputados, esse exército de milhões de pessoas de tantas nações? Por que terão lutado? Para libertar-se do temor e da necessidade? Não! Para a maior glória de dois homens que julgam que o mundo lhes pertence.

— Naturalmente precisamos dublar o filme nas línguas dos respectivos países — disse Ribbentrop.

Goebbels o olhou com ironia.

— Acha mesmo, Ribbentrop? Nós sabemos que os anglo-americanos planejam uma invasão da costa francesa. Uma operação poderosa! Teríamos então duas frentes, caso essa invasão seja bem- sucedida. Por isso mesmo, tudo precisa ser feito agora rapidamente, bem depressa, digo mais uma vez. Os soldados americanos, britânicos e canadenses precisam ficar sabendo desse filme antes que passem a atacar a fortaleza européia. O que se operará então dentro deles, o que precisa ocorrer no seu íntimo? Com que sentimentos empenharão eles suas vidas no mais perigoso empreendimento da história da guerra? Com que sentimentos vão continuar a combater os já mortalmente exaustos soldados do Exército Vermelho? Como irão reagir todos aqueles que lutam contra nós? A Itália capitulou. Mas as nossas tropas ainda lá se encontram em luta com os anglo-americanos. Também na Alta Itália teremos de exibir esse filme! As pessoas! O que farão as pessoas?! Se agirmos habilmente, exércitos inteiros se revoltarão, povos inteiros se erguerão. Então, o pacto dos aliados irá desmoronar... — Ele se calou, sem fôlego.

Em meio ao silêncio, Himmler disse:

— Formidável! Maravilhoso! Mas se o filme for uma falsificação?

— Há muito tempo eu queria perguntar o mesmo — disse Daniel. E apontou na direção de Olivera. — E se o filme que você me mostrou for mesmo uma falsificação?

— A isso só posso responder com as palavras do doutor Goebbels, Daniel — disse Olivera sorrindo.

— O que significa falsificação, Himmler? — exclamou Goebbels. — Eu repito: os americanos e os russos vão dizer de qualquer maneira que se trata de uma falsificação, precisam dizê-lo. Mas agora entre nós: quem iria falsificar o filme? Aqui entre nós, repito! Sr. Ross, seu pessoal aqui em Berlim falsificou o filme?

— Não, Sr. Ministro. Eu já contei de que modo ele chegou em minhas mãos.

— Ribbentrop?

— Não. Doutor. Hoje pela manhã, pela primeira vez, fui informado de sua existência.

— Então só poderá ter sido falsificado em Teerã — disse Goebbels. — A possibilidade existe. É improvável, mas existe. Por que motivo teria o seu pessoal em Teerã se dado a tão imenso trabalho, Sr. Ross? Teriam eles pelo menos os meios para tanto? Eu acho que num ponto estamos de acordo, Himmler: as tomadas das pessoas não são falsificadas. Todos nós sabemos como se parecem Stalin,Churchill e Roosevelt, não é mesmo? Também as cenas onde aparecem Harry Hopkins e Voroshilov. Os dois devem ter se encontrado. Ou acha que tenham sido atores, Himmler? Por favor!

O Reichsführer replicou furioso:

— Está bem, está bem. Mas quem nos diz que nesse encontro os dois não tenham discutido uma outra coisa, bem diferente? Alguma coisa totalmente inofensiva! Quem nos diz que Roosevelt e Stalin não subscreveram qualquer documento sem maior importância, qualquer entendimento entre os seus dois Estados? E aí então? O senhor, Ribbentrop, assinou com a Rússia o Pacto de Não-Agressão, sendo filmado com Molotov, bem ostensivamente. Embora nesse caso fosse um tratado realmente importante, porque simplesmente não estávamos ainda prontos para atacar a Rússia.

— Aonde está querendo chegar, Himmler? — perguntou Goebbels.

— Do meu ponto de vista, todas as imagens de pessoas são verdadeiras Mas e o comentário falado? Quer dizer: diz o locutor a verdade? E, sobretudo: será verdadeiro o Protocolo Secreto? Pois isso seria a coisa mais simples para um falsificador, qual seja montar imagens verdadeiras com um documento falso. Ou não?

— Quero dizer-lhe uma coisa, Himmler — explicou Goebbels. — É evidente que mandaremos examinar o protocolo inteiro por nossos melhores especialistas, a fim de verificar se se trata de um documento verdadeiro. Isso é óbvio. Antes disso, a ninguém será permitido ver o filme, é claro! Parto da premissa de que o protocolo pelo menos está redigido exatamente no vocabulário e no estilo em que documentos dessa natureza são elaborados. Mesmo que aceitemos que o todo é uma falsificação: o senhor acha que o falsificador (ou os falsificadores) se daria tamanho trabalho se o protocolo não desse a impressão de ser absolutamente verdadeiro? Nunca! Além disso: Quem, Himmler, quem pode ter falsificado? E caso seja uma falsificação, eu lhe digo: isto não faz a menor diferença para uma platéia de inúmeros milhões de espectadores. E por que não? Porque qualquer pessoa pode conceber que um tal acordo entre americanos e russos tenha sido concretizado. Porque é plausível! Por esse motivo se considerará também a falsificação como verdade. E mais: por isso é inteiramente indiferente se o filme é verdadeiro ou falso.

— Certíssimo! — exclamou Ribbentrop. Goebbels continuou:

— Nada é tão eficiente quanto o visual. Possui o maior poder de persuasão. Da autenticidade das imagens de pessoas ninguém poderá duvidar. Falsificação dessa ordem ninguém conseguirá fazer. Portanto, as pessoas também acreditarão na autenticidade do protocolo. Porque ele é tão provável!

— Porque ele é tão provável, Daniel — disse Eduardo Olivera. E tomou um gole de uísque. — Aí está a resposta à sua pergunta. Porque hoje mil vezes mais que outrora é tão espantosamente provável que tal protocolo tenha sido, de fato, elaborado.

— Mas é que os tempos mudaram! — exclamou Ross. — Com a televisão, o mundo ficou pequeno. Nenhuma estação de televisão do mundo iria ousar promover a emissão desse filme sem antes pesquisar com exatidão se há ou não testemunhas de sua autenticidade. Ou de sua falsificação, não sei por quem. Na Alemanha, ainda se está chocado com o escândalo que a STERN provocou com o diário falsificado de Hitler.

— Mas isso foi uma falsificação feita por idiotas — explodiu Olivera. — Tão idiota que eu nunca consegui me livrar da suspeita de que, por detrás dos bastidores, eram outras coisas que estavam em jogo.

— Não creio — replicou Ross. — Houve uma indignação de dimensões mundiais e danos, também mundiais, para a STERN. Se esse filme for uma falsificação, então trata-se de uma falsificação incomparavelmente mais refinada, e que provocará uma indignação incomparavelmente maior. Disso ninguém quer saber. Muito menos uma emissora de televisão. Não, não. Isto tem de ficar bem claro para você: Ninguém vai passar esse filme sem mais nem menos. Em quaisquer circunstâncias, a primeira coisa que vai acontecer é que serão despendidos os maiores esforços para encontrar testemunhas confiáveis — para a falsificação ou para a autenticidade. Isso será difícil, pois tudo já aconteceu há muito tempo e a maioria das pessoas que tinham a ver com esse negócio já estão mortas. Você ainda está vivo, pai. Mas outros também terão de estar. Precisamos achá-los! Pode muito bem ser que existam pessoas que digam que o filme é verdadeiro, e outras que jurem que ele é falso. Nós apresentamos então ao espectador o filme com ambas as versões. Deixamos para ele a tarefa de julgar. Por que está me olhando assim?

Olivera disse, então, com voz sufocada:

— Pela primeira vez você me chamou de pai.

— É, chamei. — Ross levantou-se, foi até o bar e preparou um novo drinque. Bebeu apressado e falou logo em seguida: — E o mais decisivo, e porque precisamos pesquisar de qualquer maneira: tudo o que agora sei — e Mercedes já sabe há muito tempo — sabemos apenas de você. Você acabou de contar como era Berlim naquele tempo, o que você disse, o que Goebbels, Ribbentrop e Himmler disseram. Esses três já morreram há muito tempo. E se você estiver mentindo? E se as coisas tiverem acontecido de um modo inteiramente diferente?

— Por qual motivo haveria eu de mentir? Como haveriam de suceder as coisas?

— Por exemplo assim — disse Ross: - com base no material autêntico remetido de Teerã e com material falsificado (que dizer, o protocolo) na própria Alemanha, foi montado em Berlim, por pessoal especializado, um filme com todo refinamento, E, a respeito do filme e das possibilidade que se abriam com sua divulgação, vocês então conversaram. Eu me vejo obrigado a dizer que esta versão me parece extremamente possível, apesar de a cópia agora, quarenta anos mais tarde, com tudo o que aconteceu no mundo durante esse tempo, parecer autêntica e não falsificada.

— O filme é autêntico — disse Olivera com ênfase.

— Isso diz você. Alto e bom som. Precisa-se acreditar em você? Você, na verdade, quer vender o filme. Por muito dinheiro, não é mesmo? Ou você quer dá-lo de graça?

— E claro que eu quero vendê-lo, O que fazia você, Daniel, se tivesse um filme desses, nos dias atuais?

— Faria o mesmo.

— Está vendo!

— Sim, estou vendo. E por isso você precisa insistir em dizer que o filme é verdadeiro, mesmo que você saiba, ou presuma, que ele tenha sido falsificado.

— Ele não foi falsificado - disse Olivera, agora bem baixo.

— E por que então Goebbels não cuidou de mostrá-lo em centenas de cópias em todos os lugares onde supostamente queria exibi-lo?

— Isso eu vou contar em um instante, filho. Mesmo que você considere seu pai um mentiroso. Não tem importância. Você está no seu direito. Em um caso tão decisivo, é direito seu. Mesmo que eu não fique lá muito satisfeito com a sua postura.

— Agora não vem ao caso se você está satisfeito ou não. Por que esse filme nunca foi mostrado pelos nazistas? — perguntou Ross irritado.

— Goebbels disse naquela tarde...

— O trabalho vai ser iniciado imediatamente. Primeiramente, especialistas precisam examinar o texto do protocolo. Se os peritos o aprovarem, então poderemos começar a tirar cópias e preparar os comentários em outros idiomas em Babelsberg. A cópia que temos conosco precisa ser guardada em lugar absolutamente seguro.

— Nós temos uma casa na Rua Meineke, doutor — disse Ribbentrop. — Alguns departamentos foram transferidos. O prédio tem quatro andares além de três pavimentos subterrâneos. Em cada piso desses pavimentos foram embutidas chapas de aço. Três pavimentos debaixo do solo, existem armários blindados com nossos mais importantes documentos. Nenhuma bomba destrói isso aí, nem mesmo a mais forte.

— Bem, então para a Rua Meineke com o rolo do filme! — determinou Goebbels.

Uma hora mais tarde o Mercedes de Himmler e um Opel Modelo P 4, o carro de serviço que fora posto à disposição de Ross, chegavam ao Kurfürstendamm e dobravam para dentro da Rua Meineke. Pararam à frente da casa que pertencia ao Ministério do Exterior. Os dois elementos da SS que acompanhavam Himmler desembarcaram do carro. Himmler permaneceu sentado no fundo do Mercedes e fechou as cortinas das janelas laterais, pois não queria ser visto. Ele tinha a maior inibição em aparecer em público de forma tão inesperada. Os elementos da SS, dois gigantescos sujeitos, foram buscar uma mala do fundo do P 4. Um carregou-a e acompanhou Ross para dentro da casa, enquanto o outro retornou para o Mercedes.

Ross e seu acompanhante desceram os muitos degraus até o terceiro subsolo. Um policial que estava postado ao lado da portaria seguia à frente. Ele conhecia Ross, que, por isso, não precisou identificar-se. No patamar de cada lance da escada estavam colocadas duas portas de aço que o policial destrancava com dificuldade. No terceiro subsolo o assombrado SS viu então embutidos nos muros os armários blindados. Fortes lâmpadas clareavam o aposento. Ross tomou a mala do moço.

— Agora dê meia-volta! — disse ele.

O elemento das SS e o policial lhe voltaram as costas. Ross compôs o segredo da porta de um dos armários blindados, e ela abriu-se. Ross colocou a mala sobre uma prateleira vazia de aço espesso. Em seguida fechou novamente a porta e girou a roda numerada. Os três homens voltaram a subir. O policial apagava as luzes de cada andar à medida que os iam deixando, além de trancar as portas de aço atrás de si.

O homem da SS voltou a sentar-se ao lado de seu colega atrás do volante do Mercedes enquanto Ross abria a porta traseira. O homem de pincenê com cara de mestre-escola recuou amedrontado, erguendo uma das mãos como que para aparar um golpe.

— Só queria dizer-lhe um Heil Hitler — explicou Ross.

— Sim... ah, sim. Heil Hitler, Herr Ross! — Himmler levantou a mão para a denominada “saudação alemã”, e Ross o fez igualmente.

— Telefonaremos amanhã de manhã para o senhor, Reichsführer — disse ele, fechando a porta da limusine e fazendo um sinal para o homem da SS ao volante. O Mercedes partiu. Ross retornou lentamente para seu Opel. Eram seis e meia da tarde. Rumou em direção a Dahlem, onde morava numa casa na Rua Im Dohl, implantada dentro de um grande jardim. Todas as grandes residências ao redor pertenciam a numerosos nazistas importantes e altos funcionários dos mais diversos Ministérios e Organizações que tinham seus escritórios no centro da cidade. Ross atravessou o jardim no qual já desabrochavam as primeiras flores. Era um morno e bonito começo de noite primaveril. A casa, como muitas outras aqui, havia pertencido a um judeu. Na chamada “Noite de Cristal”, de 9 para 10 de novembro de 1938, sua joalheria no Kurfürstendamm, como muitas outras lojas de judeus em toda a Alemanha, foi saqueada. Ele e sua mulher foram abatidos pelo pessoal das SA — como muitos outros judeus. O Ministério do Exterior havia encaminhado Georg Ross para aqui durante sua estada em Berlim. A mansão estava ainda montada com os belos e valiosos móveis, tapetes e quadros do proprietário de outrora.

Enquanto Ross tirava sua capa de chuva, surgiu no vestíbulo a Sra. Valerie von Tresken, a governanta. Ross trajava um terno cinza da mais fina flanela inglesa, uma camisa de seda com monograma bordado e uma gravata-foulard. Seu andar ereto e elástico denotava autoconfiança e consciência de sua significativa posição. O submisso e simultaneamente colérico gerente de uma filial da Caixa Econômica austríaca em Viena não tinha com ele a menor semelhança.

— Heil Hitler, Frau von Tresken! — Ele lhe dedicou um sorriso.

— Heil Hitler, Herr Ross! — A Sra. von Tresken era alta e magra, trazendo os cabelos puxados para cima e seguros por um nó; vestia-se com roupas negras e nunca usava maquilagem. Ela disse:

— A Srta. HoIm já chegou.

— Como assim, tão cedo?

— Diz ela que não havia mais nada para fazer.

— Onde está Dora?

— Está no banho. — A Sra. von Tresken desaprovava tudo o que pudesse fazer a jovem atriz de quem estavam falando. Desaprovava principalmente a permanente presença de Dora HoIm naquela casa. A Sra. von Tresken provinha da Prússia oriental e falava com o sotaque daquela região. Assim como a cozinheira e a arrumadeira, ela vivia há cinco anos naquela casa que servia de lar para Ross durante sua permanência em Berlim. O primeiro semestre havia sido maravilhoso para a Sra. von Tresken. Podia sentir-se como dona da casa e dispensar a Ross todo o carinho e a admiração que desde logo sentira por ele. Ela era da idade dele e no seu desesperado retraimento, produto de uma rígida educação, sempre esperou ser correspondida por ele em seus sentimentos. Mas então veio essa mocinha, essa mulherzinha à-toa, e Ross não deu mais atenção a mulher alguma. A Sra. von Tresken jamais compreendeu como um homem com tamanho charme e tal maneira de viver podia perder a cabeça nessa proporção por uma mocinha dez anos mais jovem e tão exageradamente vulgar. Amarga, observou Ross quando este subia escada acima, saltando dois a dois os degraus.

Ele seguiu pelo primeiro andar até um quarto de vestir, onde trocou de roupa. Pendurou o terno sobre um criado mudo e escolheu uma calça leve e uma camisa de algodão. Enquanto tirava essas peças do armário, viu a um canto um uniforme de major da Wehrmacht alemã. Fechou imediatamente o armário e dirigiu-se rápido para a porta do banheiro. Bateu.

— Sou eu, Georg.

— Entre!

Dora Holm estava sentada dentro da banheira e lhe sorria. Ele olhou seu bonito rosto, seus belos seios, sua delicada pele molhada, e sentiu-se feliz e descansado, dez anos mais jovem.

— Bom dia, meu amor! — Beijou-lhe a boca molhada e, em seguida, os bicos dos seios.

— Mais... faz mais.., isso faz bem... — Ela avançou o busto em sua direção, erguendo o corpo fora da água com o apoio dos cotovelos. — Aqui também... — Ele beijava e lambia a carne rosada. — Oh... oh..., você sabe certinho aonde! — Ela ofegava.

— Hoje vamos brincar bem bonito, está bem, meu amor? Estou tão a fim de brincar.

— Eu também. — Ele levantou-se. — Agora chega! Senão a coisa continua.

— Nada tenho contra isso.

Ele sentou-se num tamborete.

— Não, não é mesmo?

— Mais tarde, amor! Mais tarde, o tempo que você quiser.

— Mas eu quero agora! Se você não quiser, começo sem você!

— Sua mão desapareceu sob a superfície de espuma. Mexeu-se algum tempo e então riu. — O que aconteceu com sua calça, Sr. Ross?

Ele também riu.

— Não — disse ela. — Mas agora eu não quero. Agora já estou tão acesa. Assim eu vou ficar até depois do jantar. Então vamos brincar, está bem?

— Sim, meu amor. — Oh, meu Deus, como gosto dela, pensou ele. — Como é que você já está em casa? Pensei que iam filmar até às seis.

Ela riu novamente. Uma mulher que sempre ri, uma jovem e bela mulher, ponderou ele. E Thea em Viena. Não, nem é bom pensar nisso!

— Tudo por causa do salame — disse Dora.

— Não estou entendendo.

— Gosta dos meus seios, hem?

— Sim, meu doce.

— Não são grandes demais? Às vezes eu tenho medo de que sejam grandes demais.

— São do tamanho certo.

— Que bom! Isso é importante. Têm de ser certinhos para você, meu querido. — Ela acariciou os seios.

Ele pensou: vai fazer cinco anos que nos conhecemos. Quando nos encontramos no bar Königin ela ainda estava na Escola de Atores da UFA. (Universum-Film-Aktiengesellschaft, Sociedade Cinematográfica Universo). Agora ela já tem até grandes papéis com parceiros famosos. Os pais dela, em Hamburgo, sabem de nossas reIações e que Dora mora comigo. Doce Dora.

— E essa história de salame? — perguntou ele,

Ela riu novamente. Por debaixo da toalha com que ela enrolara a cabeça saíam cabelos pretos. Tinha olhos azul-claros e uma boca bem larga.

Talvez, refletiu Eduardo Olivera, seja por isso que eu tenha loucura por minha enteada Mercedes.

— Agora estamos rodando As águas subterrâneas, segundo a novela do húngaro Harsanyi, não é mesmo? Pois então hoje chegou a vez de uma cena em que o Heinrich George toma um lanche com seu vizinho e comigo. Tanto na novela quanto no roteiro consta que a mesa está repleta de carne, pão, queijo, manteiga, uvas e por aí vai. .. e George tem de comer um salame. Um salame, disse eu, meu querido!

— Eu escutei, querida. E aí?

— E aí? Quando é que você comeu salame pela última vez? Do verdadeiro, do húngaro? Pois é, está entendendo? Já não existe mais há uma eternidade.

Ela riu de novo. E ele pensou: como eu a amo.

— Mas na novela e no roteiro está escrito: salame húngaro! Pois é, George faz talvez uma confusão, vou lhe contar. Ele já começou com isso há umas duas semanas. Ele pode se dar a esse luxo. — Ela imitava Heinrich George: — Aqui está escrito que eu como salame húngaro, então, que venham com o salame húngaro! Podem ir dando o fora com suas lingüiças de terceira! Eu sou um artista que jura sobre a fidelidade à obra. Se eu não receber um salame húngaro, podemos riscar desde já esta cena. — Dora estendeu uma perna para fora da água, depois a outra. Ross beijou rápido seus pés. — Pois é, que vão eles fazer? Primeiro eles perguntam no Rollenhagen. Claro que não tinham. Perguntaram então por toda a parte. Salame nenhum. Aí telefonaram para a Embaixada húngara.

— Não é possível!

— Sim, meu querido! Mas espere, que vem coisa pior! A Embaixada da Hungria também não tem nenhum salame húngaro. Telefona-se para Budapeste. Vem um portador de avião, de Budapeste para Berlim, com um salame húngaro na mala diplomática!

— Isso não é verdade!

— Até a última vírgula! O correio diplomático traz o salame para a Embaixada húngara. Ele fora emprestado por Sua Excelência o Administrador do Reich. von Horthy. Emprestado, repito, apenas emprestado. Sob palavra de honra, de que lhe seria devolvido o pedaço maior. Grande palavra de honra alemã, da UFA.

— Chega, Dora!

— O salame húngaro é trazido para Babelsberg acompanhado por um adido da Embaixada. Fica combinado que George, no ensaio, só simule e que depois, na filmagem, só coma um pequeno pedaço. Pois bem, aí começa o rolo. Primeiro, nada acontece. Então, primeira tomada: George decepa para si um pedaço imenso, mastiga, estala a língua e se engana na fala — obviamente de propósito.

Ross começou a rir.

— Trezentos e quatro, segunda tomada — E Dora imita o continuísta — George papa de novo o que lhe cabe na garganta, se engasga e tem um acesso de tosse. Pára tudo. O adido da Embaixada fica cada vez mais inquieto. Ucicky tem lágrimas nos olhos — o diretor, você sabe. Ele suplica a George: “Heinrich, faça-o por mim, por favor, faça direito agora, está bem?” Cena trezentos e quatro, terceira tomada! — Dora bate as palmas das mãos mais uma vez. — George come com a boca cheia. Tudo vai bem. Faltam três segundos. Dois segundos. George se engasga e perde o ar.

— Por Deus, não!

— Por Deus, sim! O engenheiro de som explode. “O que foi desta vez?”, grita ele. Então: trezentos e quatro, quarta tomada! Desta vez George começa a rir bem no meio, como se fosse louco. Bem, para terminar: Liquidou com o salame inteirinho, ele é touro, não é, e só no último pedaço é que a tomada trezentos e quatro ficou finalmente pronta. Mas o homenzinho da embaixada teve um ataque de furor e Ucicky também, e aí George se levantou e disse: “Pois bem, meus senhores, isto é tudo, o expediente acabou!” E foi embora. Por isso as filmagens terminaram hoje mais cedo. Você acha que agora a Hungria nos declara guerra, querido?

Quando horas mais tarde estavam deitados lado a lado, despidos e exaustos sobre a larga cama e fumando um cigarro, interrompeu- se a suave música que estavam ouvindo e uma voz masculina anunciou: “Aqui é a Rádio Berlim. Atenção, um aviso sobre a situação aérea no momento. Fortes esquadrilhas inimigas de combate aproximam-se sobrevoando o mar do Norte e a província de Brandemburgo.” O locutor repetiu o aviso. E voltou a música suave.

Dora deixou-se rolar para fora da cama. Ross levantou-se. Vestiram apenas roupas de dormir e roupões. Dora pegou uma bolsa de crocodilo na qual carregava suas jóias e documentos, Ross pegou uma grande pasta com documentos e deixaram a casa atravessando o jardim escuro em direção a um pequeno bunker de espessas paredes de concreto enterrado no gramado. Ribbentrop havia insistido para que Ross o mandasse construir. Desceram os degraus. Lá embaixo já se encontravam sentadas a Sra. von Tresken, a cozinheira Pikuwelt e a arrumadeira Havia bastante espaço. Aqui também havia um rádio e um aparelho telefônico, extensão do existente na casa.

Nesse intervalo, a Rádio Berlim se havia desligado e só se ouvia o tique-taque do chamado radiotelégrafo. De tempos em tempos uma voz de mocinha informava do posto de comando do Gauleiter* (Chefe de comarca na administração nazista) onde se encontravam os aviões inimigos. Às primeiras esquadrilhas seguiam-se outras. Logo se ouviam o profundo roncar de muitos motores e os ganidos da artilharia antiaérea, então veio a primeira explosão, bem ao longe. A luz dentro do bunker apagava e acendia, piscando. A cozinheira chorava.

Dora tentava soerguer-lhe o ânimo e dizia:

— Sra. Pikuweit. Não precisa ter medo. Aqui em Dahlem não acontece nada. E também não em Grunewald.

— E como é que está sabendo disso? — perguntou sarcástica a Sra. von Tresken.

— E já aconteceu alguma vez? Algumas bombas, sim. Mas, acontecer mesmo? Não! E sabe por que não, Sra. Pikuweit? Um iluminador no estúdio me disse e eu acredito. Eles querem ganhar a guerra, os americanos e os ingleses. Bem, se eles ganharem, então virão aqui para Berlim, não é mesmo? E aí eles vão querer vir morar nas melhores casas dos mais belos bairros, onde agora estão os chefões: em Dahlem e em Grunewald. E as mais belas mansões eles não vão querer bombardear. Não é lógico?

— Não fale assim! — disse Ross, de repente seriamente zangado.

— Eu só estou contando o que o iluminador falou. E porque a Sra. Pikuweit está com tamanho medo.

— Ai, minha boa senhorita — disse a pálida cozinheira com os olhos vermelhos de choro. — Mas eu não tô me borrando de medo não. Tô chorando é pelo Oscar. Tem cinco semanas que ele não dá notícias. Primeiro, meu homem. E agora ainda o menino. Só tem vinte anos, só vinte... — E desmanchou-se novamente em lágrimas. Dora apertou-a contra si e falou-lhe com carinho, mas a macilenta mulher não podia ser consolada. Então a atmosfera passou a tremer com as contínuas explosões. O piso tremia. De novo a luz acendia e apagava. A voz da moça falava de atividades de defesa e maciços bombardeios no centro e no norte da cidade. E cada vez maior número de esquadrilhas se aproximavam de Berlim.

Subitamente, a cozinheira perdeu os nervos. Ela gritou: — Joga mais! Joga mais! Quebra tudo! É Deus castigando a gente. Porque a gente ficou gritando viva pra que o Hitler fez, esse demônio. Reduz a entulho! Esse é o castigo de Deus! Quando ele atacou os tchecos e a Polônia e a Bélgica e a Holanda e a França e a Noruega e a Rússia! E os judeus! Ninguém abriu a boca contra ele. E por que não? É porque ele é forte e nós somos covardes. Deus do céu tá nos castigando é por isso. Sem piedade. E por isso que eles tão morrendo, na frente da batalha e aqui, o Paulinho, coitado, e o Oscar, coitadinho do meu filho, e tantos, tantos outros... — A Sra. Pikuweit passou a mão sobre a testa como alguém que acorda.

— Desculpe-me, meu senhor. Não sei o que deu em mim, perdi a cabeça de tanta preocupação, perdoe-me, por favor!

— Perdoar? — gritou Ross com o rosto roxo de cólera e fora de si. — A senhora bem que gostaria não é, Sra. Pikuweit! Ousou insultar nosso Führer! Isso é incrível! Isso é criminoso!

— Ora, deixe disso, Georg — disse Dora baixinho. — A pobre mulher. Perdeu o marido. O filho provavelmente está morto também. Nem sabia o que estava dizendo.

— Não se meta nisso, está bem? — berrou Ross. — Não sabia o que estava dizendo! O que quer dizer isso? Centenas de milhares perdem os seus entes mais queridos em nossa luta heróica. E a Sra. Piku’weit acha que pode jogar lama no Führer. Muito bem, mas aí ela se enganou. E se enganou muito mesmo, a Sra. Pikuweit!

— Isso mesmo, se enganou sim — exclamou Valerie von Tresken.

— Pelo amor de Deus, o senhor não vai me denunciar, não é, Sr. Ross! — A cozinheira caiu de joelhos. — Por favor, não me denuncie! — e agarrou-se aos joelhos dele.

— Mas é claro que eu vou denunciar! — berrou Ross. — Esse é meu dever. Isto é alta traição!

— Meu Jesus, se o senhor me denunciar, minha cabeça vai rolar! Eu lhe suplico, tenha piedade, Sr. Ross! Não queria dizer isso! Eu só estava fora de mim.

— Largue imediatamente meus joelhos! — gritou Ross. E avançou para ela, que caiu de costas.

— Não denuncia! — exclamou ela. — Por favor por favor, não denuncia!

O telefone tilintou.

— Quieta! — berrou Ross. — Cale a boca, e já! – Tirou o fone do gancho e disse: — Sim?

— Sr. Ross?

— Quem está aí?

— Ligação do Ministério do Exterior.

— O que houve?

— Nossa casa da Rua Meineke recebeu um tiro certeiro. A casa vizinha também. Tudo virou um único e grande montão de escombros.

O Doca-Sul penetrava como uma comprida e estreita lingüeta pela periferia de Buenos Aires. Do lado que se dirigia para o rio da Prata erguiam-se grandes refinarias e tanques de petróleo. Aqui havia ainda muitas áreas vazias com montões de entulhos, cemitérios de carros, barracas apodrecendo e milhares de ratos. Eram bichos gigantescos e as pessoas que moravam lá temiam-nos muito, pois os ratos tinham o costume de atacar crianças pequenas que dormissem, mordendo-lhes a garganta para depois começar a roê-las. Aqui moravam os mais pobres dos miseráveis.

Do outro lado da Doca-Sul, depois da Rua Debenedetti, elevavam-se, em compridos blocos, os prédios cinzentos e feios do programa de habitação social. Seus moradores pertenciam igualmente à classe dos pobres, porém não mais à dos pobres mais pobres.

A Debenedetti era uma fronteira social que todos respeitavam, inclusive os ratos.

 

Um Ford de cor verde pulou por cima dos buracos da Rua Olímpia e parou diante de uma casa de três andares. Dentro, havia dois homens sentados.

— Número quinze. Aqui moram os pais dele, Pio — disse o homem ao volante. — Ali está o Volkswagen dele. Mora no terceiro andar, bem à esquerda. A janela aberta.

— O.K. — disse o homem que se chamava Pio. Saltou deixando a porta do carro aberta, aproximando-se da cerca de madeira que delimitava o reduzido jardim frente ao prédio. Abaixou-se para pegar algumas pedrinhas e jogou-as através da janela aberta do terceiro andar. Não demorou muito e surgiu Miguel. Seu tórax estava despido. Tinha a aparência assustada.

— O que houve?

— Miguel Morales?

— Sim. Quem são vocês?

— Já vou lhe dizer. Desça logo! É urgente.

— Quero saber quem são vocês.

— Silêncio! Não acorde seus pais! O que disse a formiga para a libélula?

Miguel respirou novamente. Aliviado respondeu:

— Fica dançando, fica! No inverno você vai amargar muita fome. — Logo seu rosto ficou de novo sombrio. — Aconteceu alguma coisa?

— Sim. Mas desça logo!

— Estou indo.

Logo em seguida Miguel surgiu à porta. Por causa do calor só vestia um slip e tinha cara de sono.

— Entre no carro! — disse Pio. Miguel o seguiu.

— Boa noite — disse ele para o homem ao volante.

— Boa noite. Meu nome é Emesto. Esse é o Pio. — E se apertaram as mãos. Miguel sentou-se com Pio no banco de trás. Ernesto apagou os faróis. Falavam baixinho.

— Você esteve hoje no Retiro?

— Como todas as sextas.

- E botou alguma coisa na caixa?

- Três cassetes.

— Merda.

— Merda por quê?

— A que horas você os colocou lá?

— Nove e meia, ou um pouco mais tarde.

— Nós estivemos lá às dez. Como sempre. A caixa estava vazia.

Miguel apertou os dois punhos contra o peito. De repente começou a tremer como que com frio.

— Informamos ao oficial-chefe. Ele nos mandou aqui. Disse que você sempre passa os fins de semana aqui quando está livre. Traz para seus pais comida e dinheiro. Bom menino. Bom menino teve má sorte.

— Minha Nossa Senhora! Agora estou entendendo.

— O que é que você está entendendo?

— Os filhos da mãe.

— Quem?

— Os malditos filhos da puta! Eles arrumaram a colisão de propósito.

— Que colisão?

— No estacionamento do Retiro... — E Miguel relatou o que ali havia acontecido. Terminou dizendo: — Enquanto eu estava tratando com um dos sujeitos, o outro deve ter ido até a e pegado os cassetes. Bem rápido.

— Bem rápido! Como, bem rápido, cara? Você trancou a caixa depois, não foi?

— Claro. Botei as moedas e tranquei. Senão nem conseguiria tirar mais a chave.

— Mas você tirou mesmo a chave?

— Espere aí...

— Tirou mesmo? Miguel, eles têm três cassetes! Nem pensar no que eles vão fazer agora. Se você realmente trancou, então deve estar com a chave.

— É evidente que estou.

— Onde?

— Dentro da minha capanga.

o que estava caixa

— Vá buscar.

— Ora, vocês...

— Vá buscar, seu filho da puta! Você ainda não entendeu que você é um sujeito meio morto?

— Meio... — Miguel olhava fixo o Pio. Então pulou para fora. Correu silenciosamente para dentro da casa. Pouco tempo depois já voltava, enfiando-se de novo dentro do carro. Tinha sua bolsa de couro consigo. A chave de recorte bizarro estava na mão.

— Aqui está!

— Então os caras tinham uma duplicata. Devem haver observado você há muito tempo. Conheciam o número da caixa.

— Com isso não ganham duplicata nenhuma.

— Eu lá sei como é que eles fizeram? — disse Ernesto. — Mas o fato é que fizeram. O gravador está funcionando agora?

— Sim.

— Maldito idiota!

— Não me chame de idiota, está bem? Olivera disse que voltaria de novo com o homem para a biblioteca. Eu gravei a primeira longa conversa. Pensei que iam precisar também da segunda.

— Pensou o seu rabo. Você foi descoberto. Talvez Olivera já saiba de tudo há muito tempo. E lá está um grampo colado e um gravador rodando!

— Eu não tenho culpa de nada. — Miguel começou a teimar. — Eu fiz sempre tudo aquilo que me disseram para fazer.

Ernesto botou a mão sobre o ombro do rapaz.

— Pio não está querendo dizer isso. Nós estamos todos nervosos. Claro que você não tem culpa alguma. Mas você tem de fazer agora o que vamos dizer. Disso nos incumbiu o oficial-chefe. Você vai se vestir e seguir para Céspedes.

— O quê? Agora?

— Agora. Quando Olivera ou alguém perguntar, qualquer desculpa serve. Você prefere dormir na mansão. Logo que possível você tira o grampo. O gravador e o receptor também. Arruma tudo junto. O que ainda tiver. Tem de sumir tudo. Sem qualquer vestígio.

Miguel ficou furioso.

— Sem qualquer vestígio! Olivera está farto de saber que fui eu! Ele já deve ter revirado o meu quarto e encontrado tudo. Ele ou os seus novos amigos, aquele da Europa, por exemplo. A polícia já deve estar lá esperando por mim. Vocês estão é loucos. Nunca mais vou poder voltar.

— O oficial-chefe diz...

— Estou cagando para o oficial! Ele então que vá lá!

De repente, Pio tinha uma pesada pistola na mão. Encostou a boca da arma contra a barriga de Miguel.

— Você pega o seu carro e volta para lá, e faz tudo o que nós lhe dissemos para fazer. Pode ser, talvez, que Olivera não saiba de nada.

— Não saiba de nada! Quando os cassetes já foram roubados há mais de duas horas! Não saiba de nada, seus cretinos! Claro que ele sabe. Claro que os homens estão lá. E que pego eu? Três anos? Cinco? — Miguel estava ficando histérico.

Ernesto encostou-se para trás e lhe deu duas bofetadas no rosto, à direita e à esquerda, o mais forte que pôde.

— Cale a boca!

Miguel tremia de novo.

— Você vai, agora mesmo! Nós vamos atrás de você. O oficial diz que nós temos de liquidar você caso se recuse a voltar para a casa. Pelo menos você não pode dizer asneira, caso Olivera realmente já saiba de tudo.

— Mas não é certo que ele saiba, diz o oficial-chefe. E você é o único que pode entrar na casa.

O frio aço da pistola de Pio machucava o estômago de Miguel.

Miguel ofegava.

— Pense no General Álvarez. Você jurou pela Virgem na frente dele que você daria sua vida se isso fosse necessário. Então: sim ou não? Se não, vamos acabar logo com isso.

Miguel ficou mudo.

— Seu porco! — disse Pio indignado de repente.

— O que houve? — perguntou Ernesto.

— Mijou-se todo. Está tudo boiando. Que maldita porcaria!

Pio se havia levantado um pouco. Com uma das mãos se agüentava.

— Sinto muito... Eu limpo tudo... É só porque eu senti tanto medo... um medo pavoroso — exclamou desesperado o bonito menino da pele morena e dos olhos amendoados.

— Quieto! No porta-malas há uns panos — disse Pio empurrando Miguel para fora do carro. — Vamos! Limpe esse mijo, seu porco!

— Esse foi o ataque na noite para o 1º de abril de 44 — disse Eduardo Olivera. — Os escombros das duas casas da Rua Meineke acumulados uns sobre os outros. O rolo do filme, lá embaixo, três pavimentos abaixo do solo. No piso de cada andar, placas blindadas embutidas. E dia e noite lá vinham os bandidos, dia e noite.

— É melhor não falarmos de bandidos — disse Ross. — Você agora é um democrata, não mais nazista, segundo me explicou. Quem é que começou com os bombardeios? Quem é que tem Rotterdam, Varsóvia e Coventry pesando na consciência? Quem é que gritou, para júbilo de seus ouvintes, a informação de que estas cidades haviam sido apagadas do mapa?

— Foi desumano, Daniel. Desumano, estou lhe dizendo — sussurrou Olivera cobrindo os olhos com uma das mãos que ele punha em pala à frente de sua testa.

— Quando é que vocês foram humanos?

— Daniel, por favor...

— Não, Mercedes, não! Essa maldita corja de criminosos, e meu pai junto deles como grande chefão! Com entusiasmo! No luxo de uma casa que pertencia a judeus que se presume tenham sido assassinados. Meu pai se perturbou com isso? Não se perturbou porcaria nenhuma! Em companhia de uma prostituta do cinema levava uma vida gostosa. Qual é o problema?! Não foi o mais belo período da vida dele?! A ele não aconteceu nada! Cinqüenta milhões pereceram! Ele não! — As últimas frases Ross havia gritado. Ele se levantou. De repente começou a sentir-se mal e com muito calor. — Ele estava, o meu pai, do lado dos assassinos e não dos assassinados. Agora eu disse a palavra pai por quatro vezes. Você está comovido, não? Já lhe chegam as lágrimas aos olhos, não? Ó Deus, uma coisa dessas é meu pai! Uma coisa dessas... — E caminhou balançando até a piscina.

- Aonde vai? — exclamou Mercedes.

— Embora! Para longe desse cara! — E isso foi tudo o que Ross conseguiu dizer ainda, pois em seguida o famoso medo subiu- lhe pela garganta e ele ficou imobilizado. Com as duas mãos segurou-se no tronco de uma palmeira. O sangue lhe martelava tão forte nas têmporas que estas chegavam a doer. Tudo isso é demais para mim, já há muito tempo, disse ele de si para si — e ainda vai piorar, eu sei. E eu preciso escutar tudo pois preciso saber de tudo, de toda essa suja verdade se agora eu quiser ir em frente com o filme. E isso eu quero, isso é a story da minha vida, o filme e meu pai junto aos nazistas, ao lado do carrasco Himmler, do demônio do Goebbels, do ordinário do Ribbentrop. Esse aí assinou  um Pacto de Não-Agressão com a Rússia, que um ano mais tarde foi invadida pelos nazistas, esses criminosos do milênio, e meu pai foi um dentre eles, um dos grandes...

Daniel Ross seguiu até a piscina, ajoelhou-se e lavou seu rosto com a água fria. Sentia-se péssimo. Então tomou Nobilam. Nem sabia quantos comprimidos. Derramou-os do tubinho para dentro da concha da mão, jogou-os na boca e engoliu sem água. Não importa se o sujeito viu, pouco importa, você tem de resistir, falava ele consigo, é a única coisa importante, você precisa resistir. Voltou para junto da mesa, encheu meio copo com uísque e bebeu até seus olhos lacrimejarem. Deixou-se cair em sua cadeira.

— Assim não vai não, filho — disse Olivera. — Eu preciso de você e você, de mim. Então.

— Está bem. Foi simplesmente muito mais do que eu podia suportar. Não vai mais acontecer, pai! Por Deus, tome isso como um insulto se eu o chamar de pai e não como demonstração de amor filial, sim? — E fitou Olivera que empalidecera. Os já finos lábios do velho tomaram-se apenas um traço. — Adiante — disse Ross. — Você denunciou a cozinheira?

— É óbvio. Essa era minha obrigação.

— Esse era seu dever de nazista!

Olivera controlou-se enormemente e disse:

— Eu sou hoje um outro homem. Você deve me crer. Antigamente, eu era um nazista fanático, confesso. Confesso tudo. Não escondo nada. Conto tudo. Também Mercedes não sabia disso. É muito... muito difícil contar tudo o que aconteceu. Pode crer.

— Isso tudo eu acredito, pai!

— Não me chame de pai! — gritou Olivera.

Ross deu uma risada.

— Pare de rir!

Ross parou.

— Eu acreditei mesmo em Hitler. Eu... para mim ele era alguma coisa como Deus... Há muito eu sei que ele foi o demônio... mas outrora...

— Que sucedeu com a cozinheira?

— Foi detida, naturalmente. Ainda na mesma noite.

— Parabéns! Marido perdido, filho perdido. Para a mulher, a guilhotina, não é?

— Presumo que sim — disse Olivera. — Eu não precisava lhes haver contado a respeito da cozinheira. Não tinha necessidade de contar uma porção de coisas. Mas eu quero lhes narrar tudo. Você pensa que isso seja fácil para mim?

— Foi fácil para você denunciar a cozinheira.

— Nós podemos prosseguir na conversa nesse tom — disse Olivera — O problema é que só perdemos tempo com isso. E não faz o menor sentido.

— Isso está certo — disse Ross. — Nesse ponto você tem razão. Deixemos de lado. Então minha mãe sabia: havia uma outra mulher. Por isso você queria separar-se dela. Por isso você atormentava a mãe, a ofendia, fazia cenas toda vez que vinha a Viena de licença. Por que você vinha ainda, afinal?

— Primeiro, porque, oficialmente, eu era soldado. Major na Rússia. Minha camuflagem. O serviço insistia para que eu viesse “de licença”. Em segundo lugar, eu também me ocupava sempre do escritório de Viena. Estava subordinado a mim. Viena era o trampolim para o Oriente Médio. Você vê que eu tinha de vir.

— Sim, estou vendo. Profissionalmente, você tinha de vir. E nós aporrinhávamos você, os dois.

— Você, não. De você eu gostava muito.

— Mas, para você, a mãe era um horror.

— É evidente — disse Olivera. — A noite da verdade. Menti o suficiente em minha vida. Eu não minto mais. Você quer escutar a verdade? Pois seja. No fundo, você também me aporrinhava naquela época, porque, como sua mãe, você era um peso para mim. Pois estou dizendo que eu amava essa moça, essa atriz, Dora Holm. — E subitamente cintilaram lágrimas em seus olhos.

Ross o fitava boquiaberto.

— Pai! — Mercedes havia saltado da cadeira e correra para Olivera. Ela o abraçou e deu-lhe um beijo. — Não chore, por favor!

Olivera passou a mão sobre seus cabelos negros. Ele a olhou nos olhos. Os cabelos de Dora, pensou ele, os olhos de Dora.

— Ela era como oxigênio para mim. Eu também amei sua mãe, Mercedes. Com a mesma intensidade. Mas de outra maneira. E eu amo você. Esse aí, ele não sabe o que é o amor.

— Não — disse Ross —, nunca ouvi falar.

— Se ele soubesse o quanto gosto dele, e há muitos anos. Desde que me tornei um outro homem. Com que freqüência eu não falei dele cheio de amor e de saudade, Mercedes, quantas vezes!

— Sim, isso é verdade, Daniel — disse Mercedes. Ela foi até Ross e, toda tímida, também lhe deu um beijo. Então tomou a sentar-se.

— Desde quando? — perguntou Ross.

Mas não recebeu qualquer resposta.

— E minha mãe, coitada? Dela você jamais gostou, não é?

— Nunca. Ou melhor, sim. Uns seis meses, talvez. Mas isso não era amor — disse Olivera. — Isso era -

— Eu já sei o que era isso — interrompeu Ross. E mirando Olivera: — A essa mulher você fez infeliz, você a deixou na mão. Com isso, você me estragou. A mim você com isso... — E estacou.

— Com isso eu lhe fiz o quê?

— Nada — disse Ross. Tenho de tomar cuidado com a bebida, pensou ele. E para o velho: — E o número de campanha, as cartas da Rússia, tudo foi organizado com precisão, é isso?

— Tudo. Pois eu estava convicto de que precisava fazer tudo isso a fim de que ganhássemos a guerra.

— Então você iria se separar e casar com essa atriz.

— Sim. — Olivera encheu por sua vez o copo até a metade e o tomou quase de um gole. E disse, perdido em pensamentos: — Então eu e Dora... — Recostou-se para trás. Sua voz voltou a ficar fria e neutra. — Bem, com as casas da rua Meineke, isso virou uma autêntica catástrofe.

— O.K., prossiga, para acabarmos esta história. Como catástrofe?

— Você bem pode imaginar que nós fizemos tudo para chegar lá embaixo, até o terceiro pavimento. O filme! Um dia após o outro perdia-se nisso. Nós precisávamos do filme! Dispúnhamos de tanta gente quanto necessitássemos. Tínhamos as melhores máquinas. Mas simplesmente não estávamos com sorte. Primeiro, passou-se uma eternidade até que tivéssemos podido tirar todo o entulho e as ruínas e pudéssemos atacar a primeira chapa de aço com o maçarico. Desse profundo subterrâneo naturalmente não havia mais nenhuma passagem para outros porões. Quando atacamos, então, a primeira chapa, os americanos lançaram minas aéreas, um tapete delas, desde a Rua Uhland até a Gedächniskirche*. Tudo destruído de novo. As máquinas, os equipamentos. Um monte de mortos. Tivemos de começar tudo outra vez. Isso foi em vinte e quatro de abril. Nos meados de maio, havíamos chegado de novo ao primeiro subsolo. Então, no dia quinze, os americanos arrebentaram novamente com tudo nos arredores, em que, aliás, só havia escombros. Os alicerces das casas saíam fora do lugar. Trabalhar ali se tomara um perigo de vida.

* (Igreja em Memória do Imperador Guilherme, no começo do Kurfürstendamm A Rua Meineke fica entre a Rua Uhland e Gedëchtniskirche. N. do R.)

— Então vocês só usaram prisioneiros de guerra ou presos políticos!

— Naturalmente. Mas eles sabotavam o trabalho. Precisava vir de novo nosso pessoal. Chegou junho. Veio a invasão da Normandia. Veio uma enorme inundação, havia estourado uma tubulação principal. O terreno inteiro estava um lago. A semana inteira bombeando água antes que pudéssemos prosseguir. Paredes empapadas de água. A terra começara a deslizar. Tudo se esfacelava novamente. Veio julho.

— E assim por diante. Quando chegaram lá embaixo, finalmente?

— Dia 29. Dia 20 havia sido o atentado contra Hitler. Os ânimos estavam a zero. Os americanos e ingleses na ofensiva pela França. Grande ofensiva do Exército Vermelho. Trinta e oito divisões alemãs aniquiladas em poucos dias. Os soviéticos já estavam em Brest-Litovsk. Lindo dia, aquele 29 de julho. Eu me recordo ainda de como eu desci até o terceiro subsolo através dos buracos recortados nas chapas de aço. Só havia uma escada de cordas. Fora preciso abrir o armário blindado com o maçarico. A combinação do segredo não funcionava mais. A mala estava lá. Eu a tirei e, com um cabo, a puxamos para cima. Lá em cima, naturalmente, estava tudo cercado. E lá fui eu para dentro do Banco do Reich com uma escolta das SS. Ali, bem no fundo do cofre principal, a depositamos.

— Por que depositou o filme mais uma vez?

— Goebbels e Himmler não estavam em Berlim. Enquanto eu estava na Reichsbank, começou um bombardeio americano. Ataque ao centro da cidade. O banco foi atingido algumas vezes, mas resistiu. Três noites mais tarde...

... atacaram Berlim setecentos bombardeiros da Royal Air Force, em ondas sucessivas. Ross, a jovem Dora Holm, a governanta Sra. von Tresken, a arrumadeira e uma nova cozinheira chamada Emma Siedeleben estavam sentados no pequeno e sólido bunker no jardim atrás da casa na Rua Im Dohl. Desta vez, a luz apagou-se inteiramente, depois de uma meia hora. O bunker possuía um gerador de emergência. Ross o ligou. Assim, havia luz novamente e podiam de novo ouvir o radiotelégrafo.

O ruído dos motores das esquadrilhas que se sucediam, intermináveis, enchia o ar, misturando-se com ganidos enlouquecidos da artilharia antiaérea e as sinistras e ininterruptas explosões em seqüência vindas de um pouco mais longe. A locutora informava que caças noturnos alemães haviam levantado vôo e já tinham abatido doze bombardeiros. Um terrível combate aéreo se desenrolava entre eles e os Mosquitos, os caças de acompanhamento britânicos. Outras unidades de caças alemães já atacavam os bombardeiros bem antes de chegarem próximo à capital do Reich.

Entre as informações soava o tique-taque da emissora.

Dora HoIm fazia de tudo para distrair as pessoas que estavam dentro do bunker. Contava uma história engraçada atrás da outra. A nova cozinheira reagia direitinho: ela ria. A Sra. von Tresken não ria nunca, e agora tampouco. Ficava ali sentada, imóvel, com as sobrancelhas erguidas. Seu rosto era uma máscara de desdém. Ela odiava aquela mulher alegre, bonita e jovem. Georg Ross também ria. Ele pensava: com certeza Dora está com medo, mas ela o combate, ela faz seu teatro, a fim de que esqueçamos nosso próprio temor. Ah, Dora...

— . . . é uma perfeita chanchada o que estamos rodando com Willy Birgel. Ouvi dizer que a história original é de um americano. Ben Hecht é o nome dele. Eles conseguiram se apossar do filme americano. Goebbels o viu e determinou que simplesmente surrupiássemos a história.

— Dora, por favor! — disse Ross melindrado. O ressoar ensurdecedor das esquadrilhas de bombardeiros, os estouros das explosões, os disparos antiaéreos sublinhavam sem interrupção a conversa. — Desse modo você não pode falar! Não tolero isso. Além disso, isto não é verdade. Nós não plagiamos filmes aliados.

— Não? Ah, não? — Dora jogou seus cabelos pretos para trás. Ela ria — E Serenata? Willi Forst diz que ele não sabia que roteiro era aquele que lhe tinham dado. Ora, eu li o romance, em inglês, numa edição americana do exército: Rebeca. Daphne du Maurier é a autora. Uma inglesa. E Serenata é exatamente igual a Rebeca! E por que não? Pegamos o que dá. — As explosões ficaram por um momento muito altas, depois mais baixas. — Após a vitória final poderemos pagar os direitos — ou não. — E ria de novo.

Deixe ela! disse Ross para si mesmo. Deixe para lá! É muito mais importante que ela nos faça rir. A Siedeleben está ficando de novo toda cinzenta de medo.

— Goebbels é esperto — tagarelava Dora sem parar, enquanto a locutora informava a respeito dos mais pesados combates sobre o centro da cidade assim como ao norte e a leste de Berlim. — Ele sabe muito bem que no meio de todo esse tumulto ninguém quer ficar o tempo todo vendo propaganda. O pessoal quer é rir, nem que seja um pouquinho só. Por isso, agora, só comédia! Nessa agora, roubada, que eu estou rodando com Birgel, ele me conhece no metrô. Toda a história se passa nos anos 30. Muito bem pensado por Goebbels: nada de entulhos nem ruínas, nada de guerra, existe de tudo para comprar, ninguém diz ‘Heil Hitler’! — Uma esquadrilha sobrevoou Dahlem. O ruído dos motores ficou bastante alto. Dora continuava a falar despreocupadamente: — Pois bem, isso foi o que rodamos ontem. A cena em que nos conhecemos no metrô. Birgel está sentado defronte a mim e quer puxar papo de qualquer maneira. Tempos atrás, existia uma revista famosa, chamada A Corujinha. Ele segura na mão um exemplar dessa revista e diz: — Ah, cara senhorita, posso lhe mostrar minha Corujinha? — O ruído dos motores dos aviões que se aproximavam estava insuportável. — E eu respondo indignada: — Se o senhor abrir o primeiro botão eu puxo o freio de emergência!

A Sra. Siedeleben ri, até mesmo a Sra. Tresken sorri, pensou Ross. Também ele riu. Mais que todos riu Dora de sua própria história. Por meio da risada e do barulho dos motores atravessou um assovio agudo que rapidamente ficou mais alto tomando-se de uma pavorosa estridência. A isso se acrescentou um estranho som, um segundo apito, um terceiro. O barulho tornou-se ensurdecedor e, então, as bombas caíram a pouquíssima distância — e explodiram. O piso do bunker sacudiu com violência. As cinco pessoas voaram contra a parede de concreto. O gerador de emergência parou. Parecia que o bunker estava sendo jogado de um lado para o outro. As mulheres gritavam. Ross estava jogado ao chão. Tinha batido com a cabeça e estava completamente tonto.

E assim, quase sem sentidos, ouviu acima de todo aquele inferno a voz aguda e estridente de Dora, de repente dominada pelo pânico:

— Abra! Eu quero sair daqui! Aqui dentro nós vamos morrer!

Na escuridão. ela pisou em cima dele. Ele tentou segurá-la pelas pernas. O bunker conkinuava a ser sacudido pelo tremendo ímpeto das bombas que explodiam. O clarão de fogo chegava até lá embaixo.

- Fique aqui! — berrou Ross. — Você não pode sair agora! Você não pode agora...

E, contra o clarão do fogo, ele a viu correndo para fora do bunker.

— Dora! — Ele não conseguia pensar em outra coisa a não ser: - Preciso trazê-la de volta! Preciso trazê-la de volta! Eles estão sobre a gente! Ela está correndo para a morte.

— Sr. Ross! — gritou a Sra. von Tresken.

Ele ainda ouviu sua voz. Já estava ao ar livre. Ele viu que a casa havia sido atingida. Estava queimando. Ele se virou. Muitas outras casas queimavam também.

— Dora! — gritou ele. — Dora, po... — Não terminou a palavra. No jardim detonou outra bomba, O deslocamento de ar atingiu Ross como um gigantesco soco, ergueu-o e o lançou a distância, dentro de um canteiro de rosas. Ele ainda sentiu a dor do golpe, em seguida perdeu os sentidos.

Quando voltou a si, estava com o rosto no chão. Demorou muito até recobrar novamente a consciência. Ao clarão do incêndio da casa ele viu que só tinha ainda as calças e a camisa em tiras. Paletó e sapatos haviam sido arrancados pela pressão do ar. Passou a mão pelo rosto. Viu-a vermelha de sangue. Seu peito estava igualmente rasgado, coberto de sangue morno e pegajoso. Não ouvia mais nenhum ruído de motor. A formação havia voado embora. Por todos os lados só se ouviam os lamentos das sirenes. As vigas caíam na casa com estrondo. Ross tentou se erguer mas logo caiu ao chão. Somente na terceira tentativa conseguiu ficar de pé com as pernas bambas. Ele cambaleava através do jardim. Chamou novamente o nome de Dora, gritando repetidas vezes. Não lhe veio nenhuma resposta. Aos tropeços errava através do jardim destroçado. Bombeiros e ambulâncias haviam chegado. Pessoas de uniforme e médicos passaram por ele correndo. Ele mal os notava. Ó Deus, pensava ele, deixe-a com vida! Que ela esteja só sem sentidos. Por favor, meu Deus, por favor! Então, caiu sobre ela. Dora estava deitada na borda da cratera de uma bomba, e só alguns trapos cobriam o seu belo corpo, que agora se reduzia a uma única massa ensangüentada. Ross ergueu-se de novo. Estremeceu de pavor. A boca e os olhos de Dora estavam abertos. Por cima do olho direito passava apressada uma formiga.

Olivera calou-se. Esiava sentado ali, completamente abatido, com o olhar perdido dentro do parque escuro.

Mercedes e Ross trocaram olhares.

— Eu a sepultei — disse Olivera. — No cemitério Schmargendorf. Os pais dela não puderam vir de Hamburgo. A linha férrea fora bombardeada. Não havia sacerdote. Somente os coveiros. Enquanto trabalhavam com as pás, começou o ataque diário americano. Buscamos abrigo debaixo da placa de mármore de um grande mausoléu, de um mau gosto inaudito. Muitas bombas caíram sobre o cemitério e revolveram as velhas covas. Aquele mausoléu nos salvou as vidas. Passado o ataque, pedaços de esqueleto se achavam dependurados nos galhos das árvores, com seus crânios sorridentes. Eu... — E ele parou de contar, pois um Volkswagen se aproximava da entrada da casa. — É o Miguel! — exclamou Olivera. O carro parou. Miguel Morales saltou e veio para junto da piscina. Tinha um ar embaraçado.

- Que há com você, menino? Por que está de volta?

Calado, Miguel olhou para os seus sapatos.

— Você não está bem?

— Sim, señor.

— Então, que é?

- Eu tive uma discussão, señor — disse Miguel e olhou francamente para Olivera. — Com minha namorada.

— Com a nova? Aquela de cabelos dourados?

- Com Maria Perichole. Sim, señor. Havia um outro sujeito. E ela flertava. Ficaram rindo o tempo todo, falando baixinho. Chamei-a às falas. Aí, discutimos. No final, ela foi embora com o outro rapaz.

- Ela o abandonou? — observou espantado Olivera.

— Sim, señor.

— Mas isso com certeza nunca aconteceu antes com você em toda a vida, não é?

— Não, señor. Eu estava tão furioso que... que pensei que seria melhor eu voltar logo, antes que eu aprontasse alguma.

— Muito sensato de sua parte — louvou Olivera. — E agora você fica por aqui.

— Sim, señor. Vou dormir. Agora já estou mais calmo.

— Está mesmo?

— Realmente, señor. — Miguel deu um sorriso e se inclinou. — Boa noite, señorita, boa noite, señores!

Seguiu para o carro e dirigiu-o para os fundos da casa.

Olivera, que o havia acompanhado com o olhar, voltou-se de novo. Levou um susto. Ross estava sentado torto na cadeira de vime e segurava a testa com uma das mãos. Ele se controlara com o maior esforço — Mercedes o vigiara, preocupada — mas agora simplesmente não dava mais para agüentar. O medo. O medo irreal estrangulava seu peito, dominava a garganta, lhe penetrava o cérebro.

— Que há com você, Daniel?

— Nada — disse Ross penosamente. — Realmente nada. É o calor. E naturalmente eu fiquei muito nervoso. Eu... eu estou ficando tonto... Dor de cabeça... — Olivera não poderia imaginar quanto lhe custava cada palavra. Mercedes o sabia pois já havia presenciado isso com Ross.

— Você não quer se deitar uns minutos, Daniel? — perguntou ela.

— É, acho que seria bom.

— Se já for demais para você, filho, nós também podemos ir dormir. Já são, aliás, onze horas.

— Não, dormir não! Você tem de continuar a contar! De qualquer jeito. Somente uns quinze minutos, uma meia hora, aí já estarei bem de novo! — Ross levantou-se. Mas cambaleou. Mercedes rapidamente o segurou.

— Vamos para a biblioteca — disse ela. — Lá está fresco. Você não quer deitar-se na biblioteca? No sofá, em frente à lareira? Nós estamos por perto. Só precisa chamar...

— É, é uma boa idéia. — Ross concordou com a cabeça.

— Sim, tudo isso cansa bastante — disse Olivera. — A mim também. — Encheu um copo e bebeu. — Maldita história. Eu também preciso de uma pausa. Melhoras para você, Daniel!

— Obrigado.

Olivera não poderia supor o quanto Ross se apoiava em Mercedes para andar. O chão balançava debaixo dele. Tudo girava. E ele gemia.

— Pobre Daniel... Vou rezar... Eu já o fiz todo o tempo.. - Estava vendo o que se passava com você... Mas sua amiga Sibylle e esse Dr. Reinstein disseram que você vai suportar tudo, com certeza.

— E vou mesmo, Mercedes.

Chegaram à casa e logo em seguida à biblioteca. Mercedes conduziu Ross até o sofá. Lá dentro estava realmente agradável, enquanto no parque, nessa época do ano, mesmo à noite a temperatura não baixava. Ross desfez-se dos slippers e deitou com as pernas para cima. Mercedes empurrou-lhe uma almofada para debaixo da cabeça e abriu-lhe a camisa.

— O Dr. Reinstein me deu umas gotas — disse Roas. — Você se recorda que Sibylle havia sugerido isso para o caso de as coisas ficarem muito feias. O frasquinho está na minha sacola de banho. Você me fez o favor de apanhá-lo, Mercedes? E um copo com água. Com as gotas certamente irá tudo melhor.

— Já, já, Daniel. — E ela foi bem depressa.

Ele sentia a bolha de ar inexistente batendo dentro do peito. Você tem de agüentar-se sobre as pernas, disse ele para si mesmo. Ainda mais dois ou três dias, você tem de agüentar. Simplesmente precisa. Esse caso tem de ser seu.

Mercedes veio de volta. Trazia o vidrinho e um copo meio cheio com água.

— Quantas gotas?

— De dez a quinze, disse o doutor. Mas dê vinte, por favor.

À luz dos dois lustres, Mercedes deixou pingar as gotas na água. Ele bebeu todo o copo e torceu o nariz

— Obrigado — disse Ross.

Ela se ajoelhou ao seu lado. O rosto dela estava agora bem junto do seu. De novo, ele sentiu o suave perfume de sua pele.

 

Ela acariciou suas faces e depois seus cabelos. Seus olhos azuis estavam imensos.

— Danny — sussurrou ela. — Por favor, querido Danny, agüente firme! Eu posso chamar você de Danny, não posso?

— Mas é claro.

Ela sorriu.

— Você é tão gentil, Danny.

— Você também, Mercedes.

De repente, ela apertou seus lábios contra os dele e seu busto contra o peito sem camisa. Ele retribuiu o beijo com ardor e ante a felicidade daquele momento sumiram o medo e a fraqueza como que por encanto. Um milagre, pensou ele.

Bruscamente, ela se afastou.

— Nada vai acontecer a você enquanto eu estiver aqui — disse.

— Enquanto você estiver aqui — repetiu ele.

Ela voltou a afagar-lhe a testa.

— Você quer a luz acesa?

— Não, por favor, não.

Ela apagou as luzes, e dirigiu-se a uma das janelas francesas a fim de abri-la.

— Eu deixo um lado aberto — disse ela. — Logo estarei de volta e venho ver como você está. Só não quero que papai fique inquieto e acabe chamando um médico.

— Não, médico não! — disse ele. — É a coisa de que menos preciso agora.

— Até já, Danny!

— Obrigado, Mercedes.

Ele ouviu quando seus passos se afastavam sobre o cascalho. Depois, percebeu que ela alcançara o gramado, que absorvia todos os ruídos.

De costas, Ross estava deitado imóvel. Ainda pairava no ar seu doce perfume. Ele respirou fundo. Fechou os olhos. E se isso acaba virando amor? — pensou ele. Um amor depois de tantos anos? Um amor como aquele que havia vivido com Sibylle? Naquela epoca eu havia jurado para mim mesmo que isso nunca mais me aconteceria. Nunca mais. É, pensou ele, mas agora...

Bem baixinho e devagar abriu-se a porta.

Ross não se mexeu.

Uma sombra deslizou no salão.

Miguel! Ross soergueu-se um pouco.

O jovem ficou estarrecido. Levara um susto mortal. Pronto, pensou ele. Estragou tudo!

— Miguel — disse Ross assombrado.

— Si, señor... — a voz de Miguel saiu sussurrada.

— What are you doing here? — Talvez ele entenda inglês, pensou Ross.

— Vim cuidar do senhor, Sir — respondeu Miguel em inglês. Ele havia dominado seu choque. — O senhor está se sentindo mal, Sir?

— Não, só um pouco cansado.

— Posso fazer alguma coisa para o senhor? — disse Miguel se aproximando. Lnclinou-se bastante em reverência, como sempre fazia.

— Não, obrigado, Miguel. Está tudo bem.

— Como desejar, Sir. Sempre às ordens. — Nova reverência. Miguel deu alguns passos atrás, depois se agachou decidido, apalpou a parte inferior do tampo de mármore da mesinha, achou o grampo e o arrancou. E esgueirou-se para a porta.

— Até logo, Sir!

— Até logo! — disse Ross.

E vai virar amor. Com tanto ódio, precisa também haver amor, pensou ele e sentiu como ficava cada vez mais apagado. Volte, amor, pensou ainda. Logo em seguida, adormeceu.

Sonhou com a rosa vermelha que tinha visto quando pairava entre a vida e a morte. Então sentiu que alguém o observava. Rapidamente voltou a si e abriu os olhos. Mercedes estava ajoelhada a seu lado. Ela sorria.

— Alô, Danny — disse ela baixinho acariciando sua mão.

— Alô — disse ele, pensando na rosa vermelha entre a vida e a morte. Mercedes é a vida, pensou. A linda vida. Talvez a vida possa ser tão bela quanto a morte. E por que não? — Eu dormi muito?

— Nem vinte minutos. Vim olhar por três vezes. Como está se sentindo?

— Maravilhosamente — disse ele, e era verdade, reconhecia espantado. — Venha cá!

Colocou os braços ao redor dela e tornou a beijá-la. Os lábios dela logo se abriram.

— Meu querido — disse ela. — Teremos um vida boa quando tudo isso tiver passado.

— Sim — disse Ross. — Quando tudo tiver passado.

— Você acha que pode levantar novamente e vir até papai?

— Acho que sim. — Levantou-se. — Tudo em ordem.

— Essas gotas são excelentes — disse Mercedes.

— Suas orações também.

— Tarde demais — disse o Dr. Joseph Goebbels. Caminhava para lá e para cá, dessa vez sobre o tapete do seu gabinete no Ministério da Propaganda do Reich, na Wilhelmsplatz, 8 e 9. O homenzinho precisava de movimento quando estava excitado. — Tarde demais — repetiu.

— Por quê? — indagou Ribbentrop.

— O momento oportuno já passou — explicou Goebbels. — Os anglo-americanos  estão diante de Paris. A leste, só andamos para trás, para trás. Os russos estão em frente a Varsóvia e nos Cárpatos. Nos próximos dias invadirão a Romênia e também a Bulgária. Minsk, Vilna, Grodno, Lublin, nas mãos dos bolcheviques. Lemberg já caiu. A baía de Riga alcançada pelo Exército Vermelho e com isso cortada toda a Divisão norte. O Führer disse que vai ser necessário abandonar a Grécia, a Albânia e Montenegro o mais rápido possível.

— Quando é que ele disse isso? — perguntou Hiinmler furioso.

— Ontem — Goebbels parou e olhou-o com imenso desdém. —A mim.

— Desde quando ele discute operações militares com o senhor? — Himmler exaltou-se. — Eu sou o homem dele! Foi a mim que ele designou, depois do atentado, para ser o Comandante Supremo das forças militares de reserva.

— E eu terei o prazer de proclamar amanhã, no Palácio dos Esportes, e pela segunda vez, a “Guerra Total”. Todos os planos foram elaborados para dentro do mais breve prazo poder convocar todos os homens entre dezesseis e sessenta anos capazes de empunhar armas para o “Assalto Popular Alemão”.

— Para quê?

— Para o “Assalto Popular Alemão” — disse Goebbels, voltando a mancar e de mãos às costas. — Soa bem, não é? É meu. Dou-lhe de presente. Nossas cidades submergem sob ruínas e cinzas. E aí pensam os senhores que ainda é possível utilizar o filme de Teerã? Os senhores pensam isso seriamente? De fato? — Deu um risinho curto e maligno.

— Ainda assim, teria o seu efeito — disse Himmler furioso.

Goebbels estacara novamente.

— Seria um efeito de bosta, senhor Comandante Supremo — disse ele bem baixo e escondido. — Seria uma merda. Infelizmente a situação virou-se contra nós nos últimos meses. Como eu previra. Antes, em março, quando Ross nos surgiu com o filme, eu disse que precisávamos utilizá-lo rapidamente, na maior pressa e no mais curto espaço de tempo. Caso tenha a bondade de recordar minhas palavras. Um azar que demorasse tanto até termos o filme de volta. A sorte e o sucesso nos abandonaram. Por um momento — acrescentou, mudando o quadro com a habilidade de costume.

— Mas voltarão! A vitória final será nossa. Claro. Natural. E por quê? Porque precisamos triunfar.

Os outros homens, inclusive Ross, assentiram sérios com a cabeça. Ah, seus idiotas, pensou o homenzinho.

— Então — disse ele —, quando tivermos triunfado, iremos mostrar o filme. Em todos os lugares. No mundo inteiro. Como coroamento de nossa vitória, por assim dizer. Se agora o fizéssemos, toparíamos com desprezo e escárnio. Na presente situação, quando estamos sendo batidos em todas as frentes por esses aliados que estão unidos como nunca... — fique quieto, Himmler! Estamos aqui entre nós, creio me ser ainda permitido dizer a verdade. O senhor pode ir logo denunciar meu ponto de vista ao Führer! Bem, em tal situação, não podemos mais afirmar que o filme é autêntico, mesmo que isso seja a pura verdade. Ninguém acreditaria. Há instantes nos quais se pode arriscar qualquer mentira e qualquer verdade. E ambas merecerão crédito. Mas há momentos em que ninguém acredita, nem na mentira, nem na verdade. Stalin e Roosevelt teriam acessos de riso caso viéssemos agora com o filme. E não apenas eles. Todos aqueles que a ele assistissem. Eles se esculhambariam de rir, meus prezados companheiros de partido!

Estava falando mais depressa.

— Esses nazistas estão na pior. É isso que todo mundo iria dizer. Estão batidos, quebrados, liquidados. E aí resolvem nos ser vir esse estúpido filme mentiroso, essa falsificação infantil! Não, meu senhores, queiram me ouvir, não deveremos exibir esse filme! Sobretudo não na Alemanha. Em hipótese alguma na Alemanha. As conseqüências seriam imprevisíveis. Mais tarde, após a vitória final: em qualquer lugar! Agora, não!

Sobre a escrivaninha tocou o telefone. Ele atendeu.

— Sim — disse ele — sim, obrigado. — E desligou. — Posto de comando do Gauleiter. Fortes esquadrilhas de combate americanas se aproximando da capital do Reich. Em dez minutos será dado o alarme. Os senhores estão cordialmente convidados a descerem ao meu subterrâneo. Ele é seguro.

Os homens se ergueram.

— Essa maldita ninhada de facínoras — disse Himmler.

— Quem? — Goebbels olhou para ele. — Ah, sim — disse então — sim, sim, claro. — Ele arrumou seus papéis e os documentos que se encontravam sobre a mesa e os pôs dentro de uma grande pasta de couro que levaria para dentro do bunker.

Himmler e Ribbentrop já seguiam apressados à frente. Goebbels os acompanhou com o olhar.

— Fizeram nas calças de tanta coragem — disse o homenzinho. — E o senhor, que faz aqui ainda?

— Estou esperando pelo senhor, Ministro — disse Ross.

— Obrigado.

Ross usava temo e gravata pretos. Era proibido pôr luto, mas ele não se incomodava. No momento não se importava com nada. Tudo lhe era indiferente. Tanto fazia ir para o refúgio ou ficar ali em cima. Ser abatido por bombas ou continuar vivo. Indiferente. Totalmente indiferente.

— O senhor sofreu uma perda terrível — disse Goebbels, ainda ocupado com os documentos. — Eu sei. O senhor gostava muito da Srta. HoIm, disso eu também sei. Meus sinceros pêsames!

Ross assentiu e ficou em silêncio.

— O senhor já tem um novo lugar onde ficar?

— Moro com um amigo.

— Se puder ajudá-lo em alguma coisa...

— Muito obrigado! Mas já tenho tudo.

— Ninguém pode ajudá-lo. — Goebbels balançou a cabeça.

— Não. — disse Ross. — Ninguém. Permite-me levar a pasta, Sr. Ministro?

Dirigiram-se para a porta.

— O senhor tem muito que fazer esta tarde? — perguntou Goebbels.

— Sim. Não. Por que me pergunta?

— Preciso lhe falar ainda. Não poderia dizer tudo aqui diante desses... senhores. Mais tarde vou ter de fazê-lo. Agora, ainda não. Somente com o senhor quero falar desde já. Pode vir ver-me à tarde?

— É evidente, Sr. Ministro.

— Digamos, às cinco?

— Está certo, às cinco.

As sirenes começaram a soar.

Uma conversa telefônica.

— Sim, alô?

— É você, Cristóbal?

— Quem está falando?

— Franco. Eu rendi Roberto e Esteban. Emilio está junto comigo.

— E que há? Esse tal de Miguel Morales já voltou à casa de Olivera?

— Sim. E atrás dele um Ford com dois caras. Miguel entrou pela frente, pela entrada principal. O Ford entrou na rua depois da Céspedes. Zabala é o nome dela. O parque de Olivera chega até ela. Ali o Ford aguardou, junto da grande igreja.

— E aí?

— Depois de uns quinze minutos, Morales apareceu, trepando por cima do muro. Os caras o ajudaram. Ele trazia uma bolsa preta de viagem e uma mala comum. Foram todos juntos para o Retiro.

— Para onde?

— Para a Estação central. Compraram uma passagem para Tucumán. Para o trem de meia-noite e quinze.

— Tucumán? Mas isso é bem lá no norte Ele vai levar umas vinte horas de viagem.

— Vinte e duas. Parece que eles querem o rapaz o mais longe possível daqui. Mas quem é que quer, Cristóbal? Quem?

— Idiota! Ele estava grampeando Olivera, certo? Depositou os cassetes numa caixa da estação. Com certeza não fez isso pela primeira vez. Só que hoje foi flagrado pelo Roberto e pelo Esteban. Quando os mandantes souberam pelo seu pessoal que os cassetes haviam sumido, eles tiveram de fazer desaparecer todo o equipamento de escuta, além do próprio Miguel. Antes que Olivera percebesse alguma coisa. Somos nós que estamos de posse dos cassetes.

— Mas não fomos nós que o fizemos espionar Olivera?!

— Virgem santa! Não, claro que não fomos nós. Foram outros, que estão com medo de que se descubra isso.

— Mas que outros são esses, Cristóbal?

— Isso nós vamos saber quando soubermos o que está gravado nos cassetes. E quem, afora Olivera, participa do papo. Meia-noite e vinte. Quer dizer que o trem para Tucumán já partiu.

- Sim. Com Morales. Nós vigiamos até o fim. E agora?

— Vocês voltam para Céspedes. Eu não creio que hoje à noite alguém ainda vá sair de casa. Mas em todo o caso... às sete vocês vão ser rendidos.

— O ataque durou até duas e meia — disse Olivera junto da piscina, à noite. — Sobre o centro. Quando finalmente subimos após o sinal de fim de alarme, estava escuro como a noite, embora o sol brilhasse. Uma espessa fumaça dos prédios em chamas cobria toda a cidade. Eu segui para meu gabinete no Ministério do Exterior. Apenas informes catastróficos pelo rádio, vindo de todos os cantos. Muito deprimente. Goebbels tinha razão. O filme não poderia mais ser exibido. — E, dando uma curta risada: — Somente após a vitória final! Às cinco da tarde eu estava de novo no Ministério da Propaganda...

Goebbels recebeu Ross imediatamente. Sentaram-se em um pequeno salão. No gabinete do Ministro as vidraças estavam de novo em cacos. A luz estava acesa, pois a fumaça ainda transformava o dia em noite. De instante a instante ouvia-se uma explosão das bombas de detonação retardada, os alarmes dos bombeiros e as sirenes das ambulâncias. Goebbels estava pálido. Foi apanhar uma garrafa de conhaque francês e dois copos de dentro de um armário. Sentaram-se ao lado de uma pequena mesa redonda junto à janela e beberam.

— Há quanto tempo nos conhecemos, Ross?

— Desde que eu estou no serviço, Sr. Ministro. Desde 1939. Cinco anos. Incompletos.

— Eu sempre admirei muito seu trabalho. E sua fanática crença no Führer, no movimento, na concepção nacional-socialista do mundo. Eu não poderia ser mais fiel. O senhor é um homem instruído. Com todo o entusiasmo e devotamento por nossa causa, o senhor demonstrou ter a aptidão para avaliar os acontecimentos dentro da mais estrita lógica, e diria ainda, cientificamente. Em sua posição, o senhor precisa possuir essa capacidade. Também eu preciso tê-la, na minha. — Ele tomou um gole. — Nós lutaremos como um povo jamais combateu. As armas milagrosas vão mudar o rumo dos eventos em nosso favor. Se ficarem prontas a tempo. Será esse o caso? Ninguém sabe. Vai ser pavoroso aquilo que está para vir, Ross, e disso o senhor muito bem sabe. O senhor pode falar abertamente. Isso permanece uma troca de idéias entre nós dois. Eu preciso poder falar assim com alguém. A respeito de fatos, Ross! Fatos são a sua profissão. Por isso, a minha escolha recaiu no senhor. E porque eu tenho confiança no senhor. Na intensidade de sua convicção. E na sua fria e analítica maneira de raciocinar.

— Não estou entendendo... — começou Ross, mas Goebbels fez sinal que parasse.

— Espere, meu caro. Nós lutaremos, sim. E se tiver de ser, também morreremos. Sabe tão bem quanto eu, Ross: a idéia não morre conosco. A idéia continua em vida. Mesmo que, nesta luta devêssemos submergir (estou falando assim com o senhor porque, por profissão, está habituado a levar em conta todas as possibilidades, friamente e sem qualquer emoção, e eu lhe recomendo estritamente, é óbvio, a não dizer uma só palavra com quem quer que seja a respeito desta nossa conversa), mesmo que tivéssemos que naufragar, a idéia sobreviverá em milhões de cérebros. Tenho razão?

— Inteiramente, Sr. Ministro — disse Ross. — Basta pensar quanto tempo e quanto sangue correu até o Cristianismo, essa doutrina da misericórdia, vencer.

— Perfeito — disse o pequeno Goebbels, educado pelos jesuítas. — Falamos a mesma língua. Se tivéssemos que desmoronar sob o peso da superioridade dos inimigos, mesmo que viéssemos aparentemente a submergir, isso só seria uma fraqueza temporária. Também os primeiros cristãos tiveram de pagar com suas vidas. Na verdade, nossa derrota coincidirá com o nascimento do nacional-socialismo universal. In my end is my beginning, meu fim é meu começo.

— É a divisa dos Tudors.

— Ah! Como faz bem falar com uma pessoa instruída! — Goebbels suspirou. — Inicialmente, durante os primeiros anos, os vencedores serão onipotentes e qualquer oposição será vã. Oh! Mas aqueles que sobreviverem, saberão esperar! Esperar por sua hora. E essa hora chegará quando a humanidade duplamente escravizada enxergar claramente o que dois Estados criminosos com ela fizeram. Partilharam o mundo entre si! Cada um deles pode, em sua respectiva metade, cometer as maiores atrocidades contra povos desarmados, quando e quanto desejarem. Os povos sob o açoite americano. Mais ainda, as nações sob o chicote bolchevique. Serão explorados. Serão tratados como animais. Todos eles, os muitos povos do Ocidente e do Oriente, serão servos, terão perdido a liberdade. Estarão entregues a dois poderosos ditadores, desamparados e sem direitos.

Goebbels estava agora muito excitado.

— Somente então, meu caro Ross, somente então, quando os povos do mundo tiverem acumulado um ódio monstruoso, uma cólera enorme e extraordinária sensação de impotência, somente então se deverá mostrar a eles o filme de Teerã! A fim de lhes exibir esses dois monstruosos bandidos em sua integral ignomínia e brutalidade. Aos homens de nossa querida pátria, que então estará dilacerada e dividida conforme prevê o protocolo, é que se deve mostrar primeiro o filme. Qual será o efeito sobre o povo alemão quando vir e ler aquilo que se pretendia fazer com ele, já mesmo em 1943? Qual será o efeito sobre todas as outras nações, igualmente dilaceradas, divididas e esmagadas?

Goebbels tomou fôlego.

— Então, Ross, só então todo o mundo, sem exceção, vai reconhecer que nós, nacional-socialistas, fomos os únicos que combatemos contra os patifes de Washington e Mascou. Só então todo o mundo vai constatar horrorizado com que heroísmo único na História tentamos coibir um crime, também único na História. Todo o mundo compreenderá que, de toda maneira, nós tivemos de fazer o que fizemos, tudo, tudo o que logo após o nosso aparente aniquilamento será apresentado como um crime bestial contra a humanidade. Então todo o mundo verá quem cometeu o crime bestial que nós previmos e queríamos evitar, sacrificando até mesmo nossas vidas. Não só o Ocidente, não. Queríamos libertar o mundo inteiro, e para sempre, dessas inescrupulosas criaturas surgidas do inferno. A Alemanha se tomará uma palavra sagrada. O Führer, seus seguidores, os soldados alemães, todo o povo alemão vão entrar para a história como sinônimos de honra, de intrepidez e de heroísmo. E o nacional-socialismo figurará então nos olhos dos pobres homens desse mundo dividido em dois como o maior ensinamento de salvação que jamais existiu, O mundo será dominado por um vendaval de cólera que varrerá aquelas criaturas e os seus bajuladores. O nacional-socialismo não somente será reabilitado mas também começará seu avanço triunfal ao redor do globo terrestre. E a Terra será nacional-socialista!

Goebbels se calou, respirando com dificuldade.

— A terra inteira: nacional-socialista. Por Deus, o senhor tem razão — sussurrou Ross fascinado.

— Assim será nossa vitória. Assim terá de ser. O nacional-socialismo viverá, mesmo que tenhamos todos de morrer. Com isso se tornará a nova religião do mundo. Por meio de nosso sacrifício e por intermédio desse filme. Um dentre os homens mais valentes, mais merecedores de confiança, precisa preservar esse filme como o Santo Graal. O filme precisa ficar protegido no mais profundo dos bunkers para que ele o possa exibir tão logo a Providência seja clemente e nós, a despeito de tudo, triunfemos. Assim que ficar claro, sem qualquer dúvida, que nós teremos de fazer o maior sacrifício que se pode exigir dos homens, quando se constatar que a guerra está perdida, então esse homem, com o filme, precisa deixar a Alemanha. Precisa esconder-se num país longínquo. Ele precisa devotar sua vida a essa missão realmente sobre-humana, qual seja a de disseminar por toda a terra o nacional-socialismo.

Goebbels se levantara. Caminhava de um lado para outro. Lá fora, a escuridão volta e meia se iluminava com os clarões de vermelho-sujo dos incêndios que grassavam nas proximidades. Também Ross se levantou sem perceber. Seus olhos estavam fixos em Goebbels, como se ele estivesse hipnotizado.

— Esse homem precisa saber esperar, muitos anos talvez. Até o momento chegar. Até ele receber de nossos combatentes, que estarão ocultos na clandestinidade, a incumbência de vir a público com o filme! Uma extraordinária responsabilidade histórica pesará sobre seus ombros, não é verdade?

- Sim — disse Ross sem fôlego.

— E então lhe pergunto, meu caro, o senhor que está sofrendo tanto, que perdeu a mulher que era toda sua paixão: deseja ser esse homem?

— Desejo ser esse homem — disse Ross.

Por muito tempo fez-se silêncio junto à piscina.

Finalmente, Mercedes disse:

— O mal absoluto talvez agora se torne o bem absoluto.

— Espero que sim — disse Olivera.

— Esperem um momento! — interveio Daniel. — Não chegamos ainda a esse ponto. Ainda tenho algumas perguntas a fazer. Como é que você veio parar aqui? Quando? E como é que sua transformação durou de quarenta e cinco até hoje? E que aconteceu ao longo de todos esses trinta e nove anos? Por que você não mostrou o filme ao público antes de sua transformação, para fazer o mundo inteiro virar um campo de concentração?

— Eu vou contar, Daniel. Contarei tudo — disse Olivera.

 

- Os cadáveres dos três e todos os vídeos que houver. É isso?

— Isso mesmo, Mr. Hyde. E rápido. O mais rápido possível.

— Os três não são problema, Mr. Morley. Mas os vídeos são. Porque se podem tirar cópias de cópias, quantas se desejar.

— Nossa esperança, Mr. Hyde, é que ninguém mais terá muita vontade de tirar cópias assim que houver mortos.

— Decerto, Mr. Morley. Mas perfeitamente tranqüilos seus chefes só poderão estar no momento em que estiverem de posse de todas as cópias.

— Naturalmente. Permita-me ainda observar que muito provavelmente o senhor se verá obrigado a .. hum... eliminar mais do que três pessoas.

Esta conversa teve lugar na tarde de 20 de fevereiro de 1984, uma segunda-feira, três dias após Daniel Ross, com quarenta anos de atraso, ter reencontrado seu pai em Buenos Aires. Foi num escritório de uma casa na Chancery Lane, nas proximidades do quarteirão da imprensa em Fleet Street, Londres. Apenas um quarteirão mais para oeste erguia-se o poderoso edifício, com quatro torres, das Royal Courts of Justice. Nevava em Londres e fazia bastante frio. Cerca de duas horas antes, às 14h30m, havia chegado ao aeroporto de Heathrow, no horário, o avião da Pan American World Airways, vôo 856, procedente de Chicago. A nevasca forte criava grandes obstáculos lá fora. Máquinas niveladoras em permanente operação mantinham funcionando as pistas do aeroporto, e na auto-estrada em direção à cidade já se haviam registrado numerosas colisões de veículos. A neve caía sobre gelo, pois o tempo de inverno já se vinha estendendo há várias semanas.

Entre os passageiros achava-se um homem alto e magro com rosto curtido de chuva e de sol, de olhos muito claros e cabelo louro cortado bem rente. Vestia um pesado capote forrado de peles. No controle de chegada para estrangeiros exibiu ao funcionário um passaporte americano. Este passaporte, que naturalmente poderia ter sido falsificado, dizia que o viajante era um certo Wayne Hyde, nascido a 12 de agosto de 1948 em Chicago, residência ao tempo da emissão do passaporte igualmente Chicago, solteiro.

Hyde trazia dois grandes sacos de roupas. Eram de motivos escoceses e de boa qualidade, mas via-se que já eram usados há muito tempo e com freqüência. Seguiu para um táxi cujo motorista logo acomodou as bagagens enquanto Hyde sentava ao fundo do carro indicando um número em Chancery Lane. Em seguida, encostou-se para trás, juntou as mãos e fechou os olhos. Enquanto isso, as condições sobre as pistas da auto-estrada tinham se toma do caóticas. Por causa das colisões, os policiais conduziam o tráfego sempre de uma pista para outra. O táxi escorregava sobre placas de gelo. O motorista do carro da frente deu uma freada e quase o táxi colidiu com ele.

O chover praguejou.

— Pare com isso! — disse Hyde de olhos fechados.

— Que houve?

— Chega de palavrão! Eu não gosto.

— Ei, espere aí! O senhor viu o que fez esse idiota aí na frente? Quase que entramos nele.

- Pare com isso! — disse Hyde.

— Parar com quê?

— Pare de falar. Difícil de dirigir? Sim. E daí? É sua profissão, não é? Então, fique quieto.

— Como quiser. — O chofer do táxi ficara magoado. Mexia os lábios e xingava esses desgraçados de americanos. Que seu passageiro era um deles ele logo reconhecera pelo sotaque aberto.

Uma cambada de vagabundos, esses americanos, pensou o chofer. Acabam de nos dar de presente novos foguetes. Mísseis Cruise e Pershing II, ali em Greenham Common. Estive por lá, semana passada. E ainda um monte de gente. Pelo menos duzentos. Por detrás da cerca de arame farpado, soldados americanos. Os animais abriram a boca e disseram alguma coisa como yellow. Yellow é a mesma coisa que covarde. Um de nós arriou as calças. E outro. E outro. Um minuto mais tarde, os americanos viram duzentas bundas britânicas peladas. Muito bem, porque é verdade! Quando começa, quem leva na cabeça? Nós e os alemães. Estou me lixando para os alemães. Mas eles lá na América, nunca viram uma única bomba caindo. Não seriam tão metidos se tivessem passado pelo que Londres passou na blitz. Segue à esquerda, seu idiota, tem de andar à esquerda! O Jesus! O calhambeque está girando em torno de si mesmo!

O motorista moveu os lábios até chegar ao final da corrida. Praguejara durante todo o percurso — em silêncio.

Em Chancery Lane ele saltou, abriu a porta traseira e ficou mudo. Foi ao porta-malas e trouxe os dois sacos de roupa. Mudo. Depois, disse o preço da corrida. Hyde pagou e esperou até o último pêni do troco. Pegou os dois sacos e dirigiu-se à entrada da casa, sem dizer uma só palavra. O chofer o acompanhou com o olhar, deu uma cusparada na neve e sentou-se ao volante. Quando arrancou, lá estava xingando de novo — agora em voz alta.

Wayne Hyde subiu com sua bagagem até o segundo andar da quieta e distinta casa. A luz estava acesa. Uma placa de latão estava fixada a uma porta:

ROGER MORLEY

SOLICITOR

Advogado consultor, então. Nenhum desses que defende causas perante um tribunal, pensou Hyde. Senão ele seria um Barrister at-law. Na minha terra são chamados de Attorney-at-law. É claro que tinha de ser solicitor! Bem que sabia, senti pelo cheiro. Aqui não se trata de um desses casos que tenho de arrumar provas para a justiça. Ou de fazê-las desaparecer.

Ele apertou a campainha. Ouviu um zumbido e a porta se abriu. Hyde entrou. O escritório era bem grande e decorado com solidez, à antiga. Só precisou aguardar um instante e logo apareceu Roger Morley: pequeno, ágil, com rosto rosado, bochechudo, ventre protuberante e cabelo grisalho e desordenado, boca redonda, dentinhos de rato, alegre e cordial. Personagem de Dickens, pensou Hyde. Lera todas as obras de Dickens. Ele conhecia muitos escritores. Wayne Hyde lia sempre que dispunha de tempo.

Morley saudou seu convidado.

— Que bom que o senhor tenha vindo, mister Hyde! — E ajudou-o a tirar o capote. — As sacolas, deixamos na secretaria. Por favor, acompanhe-me!

Seguiu na frente para seu escritório. Hyde divisou altos painéis de mogno, que encobriam a parede até a metade de sua altura, belos móveis antigos e uma forte lâmpada com um artístico abajur de vidro verde pousado sobre a escrivaninha, além de estantes cheias de livros que luziam cheios de magia. O escritório de Roger Morley estava aquecido e transpirava tranqüilidade. Sobre a grande mesa trabalhada havia fotos, revistas e um pequeno gravador.

— O que toma o senhor Mr. Hyde? Uísque? Conhaque? Xerez? Vodka?

— Eu nunca tomo álcool, Mr. Morley.

— Não diga! Isso eu acho fabuloso. — O advogado esfregou as mãozinhas rosadas. — Mas então chá, certamente?

— Chá, com prazer. Morley desabrochou.

— Ah, ótimo! Qual seria mais de seu gosto? — E abriu a porta para uma minúscula cozinha. Sobre o fogão elétrico havia uma prateleira com diversas latas das mais variadas cores. Que tal um Finest China Keemun, suavemente perfumado? Ou um China Jasmin with Flowers, clarinho, com o adorável aroma de botões de jasmim? — Indicou as latas coloridas: — Flowery Orange Tea? Uma seleção sino-indiana com o aroma de laranjas maduras? Oh, ou então este: Assam Herrentee. Da melhor procedência indiana, muito castiço. Talvez deva experimentar também um Special Earl Grey, extravagante mistura de espécies indo-chinesas com o especial perfume do óleo de bergamota? Ou, ah, um Finest Highgrown Darjeeling! Também é chamado de Flowery Orange Pekoe. Trata-se de uma planta de altitude, cultivada nas encostas meridionais do Himalaia, com brilhante sabor moscatel. Ou...

— Highgrown Darjeeling, Mr. Morley, se me permite.

Roger Morley bateu as mãozinhas rosadas uma contra a outra.

— Excelente! Highgrown Darjeeling! — Tirou uma das latinhas da prateleira e a abriu. Durante a conversa que se seguiu, Roger Morley, advogado consultor, preparava o chá com o amor do verdadeiro entendido. Primeiro, encheu uma chaleira com água e a pousou sobre uma chapa do fogão.

O homem chamado Wayne Hyde, que o observava, disse:

— Eu recebi sua carta e uma passagem de avião. É claro que não era carta sua. Só dizia que o senhor me esperava imediatamente. A carta veio de uma fábrica de conservas de carne, de Nova lorque.

— O senhor não vai trabalhar nem para essa gente nem tampouco para mim — disse o rosado advogado enquanto trazia xícaras de porcelana chinesa da espessura de uma folha de papel, pires, colheres e um recipiente de prata contendo açúcar-cande. — Eu sou meramente intermediário.

- Compreendo. Coisa grande?

— Coisa muito grande, Mr. Hyde.

— Cliente de alto nível?

— Do mais alto nível, Mr. Hyde.

— Os cavalheiros não desejam sujar suas mãos, não é?

- Não o podem, Mr. Hyde, não o podem. E ninguém em seus serviços tampouco. Logo irá entendê-lo. No que se refere aos cavalheiros, o seu problema é de tal modo delicado que ninguém, de fato, os pode ajudar senão um MERC. O melhor que existir. O senhor, Mr. Hyde.

— Como sabe o senhor que eu sou o melhor?

— Oh, tomamos naturalmente informações a seu respeito - disse Morley e trouxe um pequeno coador de prata com seu suporte.

- Quem forneceu informações a meu respeito, Mr. Morley?

— Bem, o Serviço Secreto americano...

- Ahã...

— ... e o soviético.

— Mhm.

Na kitchenette o advogado aquecia um belo bule antigo de prata. Ele sorria para Hyde. Roger Morley lembrava um sadio bebezinho feliz,

— O senhor sabe como é, Mr. Hyde. Não se pode confiar nas pessoas, mesmo quando juram por tudo que é sagrado de que vão liquidar alguém. Pessoas comuns, quero dizer, Leigos. Por isso eu lhe pedi para vir até aqui. O senhor é realmente um assassino profissional de confiança.

— Essa é a minha profissão, Mr. Morley — disse Hyde. — Essa é a profissão de um MERC.

— Eu fico orgulhoso e feliz em conhecê-lo, Mr. Hyde. — Morley trouxe uma chapa elétrica para manter quente o bule. — Se existe alguém que pode dar um jeito nessa história horrenda, esse alguém é o senhor. Eu logo vi. Graças aos céus! De fato, uma coisa realmente horripilante.

Ele pegou uma das revistas que se encontravam à sua frente. Eram grossas publicações encadernadas, impressas no melhor papel, com fotos coloridas, mesmo nas páginas internas, e recordavam revistas pornográficas, do gênero caro e exclusivo. O gritante título em vermelho indicava MERCENARIES e o subtítulo, na mesma cor, era THE JOURNAL OF PROFESSIONAL ADVENTURES ou, em português, o jornal dos aventureiros profissionais. A página de rosto do caderno que Morley segurava na mão mostrava três desses mercenários, fortemente armados e com capacetes de aço, no momento em que faziam, em escadas de gancho, a abordagem de um edifício de cujo interior disparavam terríveis línguas de fogo cor de laranja. À esquerda, cabeçalhos impressos em cor, informavam sobre os temas contidos no número: EXCLUSIVO: NOSSOS HOMENS EM HONDURAS — AFINAL: A HISTÓRIA DO SAS — A LEGIÃO NA SÍRIA — A CORÉIA AGUARDA NOVA GUERRA — MERCS NO LÍBANO — CHARADA DO VIETNÃ — POMOS ANGOLA EM ORDEM — O MESTRE DOS MERCS NA FRANÇA — MATAR PARA A LÍBIA — ATAQUE NOTURNO EM CUBA.

Cento e oitenta páginas! anunciava a capa em amarelo penetrante. O exemplar custava três dólares, no Reino Unido, uma libra e setenta e cinco. Esse e os outros cadernos transbordavam de sanguinárias descrições de mercenários em ação nos mais variados teatros de guerra, honradas e respeitáveis séries sobre superfamosos ou temíveis mercenários e com precisas indicações ensinando as mais rápidas, pavorosas e temerárias maneiras de matar uma pessoa. Em outros artigos, os autores empregavam os mais puros epítetos para as arrebatadas descrições de novas armas, entre as quais também aquelas de que qualquer particular se poderia (ou deveria) munir: fantásticas pistolas automáticas de tiro rápido, pistolas de grosso calibre com nove milímetros, granadas de mão, projéteis com gás irritante, e preciosidades como as imitações oficialmente autorizadas dos estiletes utilizados pelos fuzileiros americanos em ataques de surpresa (atravessam a carne como se penetrassem em nata), mas limitados no mundo todo a duas mil e quinhentas unidades.

A metade do caderno era tomada por anúncios — em parte camuflados sob a forma de notícias horrendas — nos quais mercenários de muitas nações testemunhavam pessoalmente que deviam suas vidas a um determinado helicóptero de combate, blindado de assalto ou fuzil com telescópio para visão noturna. Muitas páginas pareciam particularmente discretas, Nelas, mercenários eram procurados por clientes anônimos, e mercenários que no momento se encontravam desocupados ofereciam seus serviços.

Podia-se ler ali, por exemplo:

MERCENÁRIO PARA ALUGAR. Para todos os fins. Em qualquer parte. Assassinato inclusive. Não se preocupe, ele acerta as contas. Trabalha sozinho. No mais curto prazo. Toda confiança. Não deixa vestígios. Para: SKIPPER, Caixa Postal 546455, SURFSIDE, FLÓRIDA 33154.

Ou:

EX-TENENTE DA MARINHA. Veterano do Vietnã, pára-quedista, procura serviço. Oferece proteção pessoas e propriedade. Segurança. Ajuda rápida. Operações secretas de salvamento. Para: MALDONADO, Caixa Postal 267, COLBY, KANSAS 67701.

Ou:

BUSCO EMPREGO. Veterano sudeste asiático 66-70, com ações internacionais e experiências correspondentes. Instrução, seqüestro, ação de combate e serviço de correio. Começo imediato. Para: VGA, Caixa Postal 309, SCHENECTADY, NY 12301.

O advogado Morley havia encontrado o que procurava. Encarou seu interlocutor, sorriu com seu sorriso de bebê e leu em voz alta:

“NAMVET para serviços de alto risco. Trabalha para governos, pessoas físicas ou organizações- Garante perfeita eliminação de objetos e/ou indivíduos. Faço tudo. Em qualquer parte. Diga o que precisa. Eu resolvo. Falo alemão, espanhol e francês fluentes. Também problemas militares e políticos. Para: COPLAND. Caixa Postal 41051, CHICAGO ILLINOIS 60641.

Na cozinha, a chaleira começou a apitar. Morley se ergueu, correu para o fogão e colocou a chaleira sobre uma outra chapa. Depois, com uma colherinha, pôs várias porções do Highbrown Darjee no bule de prata aquecido e derramou água fervente sobre as folhas pretas do chá e também numa outra vasilha sem tampa. Enquanto isso, dizia:

— Copland é o senhor, Mr. Hyde, Nam-Vet; veterano do Vietnã. E sobre o senhor recaiu finalmente a nossa escolha. Precisamos esperar que a infusão se complete. Eu não lhe quero ocultar que também consideramos alguns de seus colegas. O senhor possuía de longe o melhor currículo. E seus conhecimentos de idiomas foram decisivos. Tive conhecimento das operações de que o senhor já participou. Confesso que muitas coisas tive de ler duas vezes. Bastaria o que o senhor fez em Beirute. No massacre de Chatilla. Que o senhor tenha saído vivo dali!

— Sorte — disse Hyde modesto. — Também somos chamados de “Cavaleiros da Sorte”. Sim. agora que já nos conhecemos, Sir, em que lhe posso ser útil? Quem são os meus empregadores? Tenho a impressão de que se trata de um governo.

— Sua impressão é inteiramente acertada, Mr. Hyde. Trata-se dos governos dos dois mais poderosos Estados do mundo.

— Se bem estou entendendo, deles recebo em conjunto uma incumbência?

— Perfeitamente correto, Mr. Hyde. Pavorosa, essa neve. Ouça só como uiva a tempestade! Olhe só pela janela! — Já há muito estava escuro lá fora. Duras pancadas batiam contra as vidraças. - O trânsito vai sofrer um colapso. Felizmente eu habito neste mesmo prédio. Penso que à noite ainda verei televisão. Patinação no gelo. Ah, como eu gosto! Posso ficar olhando durante horas. É, exatamente os Estados Unidos e a União Soviética. — Morley empurrou diversas fotos brilhantes por cima da mesa. — Primeiro se trata desse homem. Hoje se chama Eduardo Olivera. Antigamente seu nome era Georg Ross.

— Antigamente, quando?

— No tempo dos nazistas. Até 1945. Esta aqui é sua enteada, Mercedes Olivera, trinta e três anos. A mãe, falecida desde 76. E este é Daniel Ross, filho de Georg Ross. Vive em Frankfut-do-Meno, Alemanha Ocidental. Mercedes, a enteada de Rosa, foi buscar o filho no dia 16 de fevereiro, portanto, há quatro dias, para levá-lo a Buenos Aires. Seu pai tem em vista vender um vídeo-filme para a televisão. Esse filme não deve jamais ser posto no ar. Ninguém pode ter conhecimento de seu conteúdo. Eu acho que o chá já está pronto. — Morley foi à cozinha com passinhos miúdos e voltou com os bules em cima de uma bandeja de prata, que colocou no meio da escrivaninha. — Em primeiro lugar, por favor, meu caro Mr. Hyde, sirva-se do açúcar-cande! Um ou dois cubinhos, conforme desejar. Aí está uma pinça. Sempre o açúcar em primeiro lugar, só depois o chá. Queira segurar o coador! Assim está bem! E agora, se o senhor me permitir... — Morley encheu a xícara que se achava diante de Hyde quase até em cima. — Acrescente somente um pouquinho de água quente, porque nesse grau de concentração o sabor moscatel será mais suave... E passou a preparar o seu chá, depois de se haver servido de três cubinhos. — Gosto muito de doce.

— Por que ninguém deve tomar conhecimento do conteúdo desse filme, Mr. Morley? — Hyde mexia seu chá.

— Seria uma catástrofe, Mr. Hyde.— Morley sentou-se.

— Para os Estados Unidos ou para a União Soviética?

— Talvez para ambas. — O advogado pegou o gravador, dentro do qual se achava um cassete. — Aqui está uma gravação clandestina da conversa dessas três pessoas na biblioteca de Olivera em sua casa na Rua Céspedes, 1.006, no bairro de Palermo, Buenos Aires. Essa conversa foi gravada, por assim dizer, erroneamente por alguém que tinha uma missão inteiramente diversa. Vou explicar-lhe depois. O equipamento de escuta deve ser dos mais modernos do mundo. Com cassetes especiais. Em Washington tiveram de passar essa conversa, da forma mais complicada, para um cassete normal. É melhor ouvirmos a conversa, Mr. Hyde. Depois, muitas de suas perguntas vão se revelar supérfluas.

O advogado pressionou o botão de reprodução. Soou a voz de Eduardo Olivera: — . . - Você agora vai assistir a um filme, Daniel, Esse filme se passa em Teerã, a capital do atual Irã...

O advogado havia preparado um outro bule de chá, trocado as xícaras e o coador e, enquanto servia, ele disse:

— O senhor é uma pessoa inteligente, Mr. Hyde. O senhor ouviu a voz do narrador do filme. Realmente uma escolha excepcional a sua quando preferiu o Highgrown Darjee A voz do narrador e os comentários da moça e de Olivera a propósito dos diversos pontos do protocolo bilateral secreto. Mesmo que o senhor não conheça o protocolo na íntegra, pelo menos já sabe do que ele trata.

— Exato, Mr. Morley.

— É claro que teoricamente o senhor poderia deixar escapar uma palavra a respeito do assunto com alguém, Mr. Hyde. Acho que não deveria colocar mais água para diluir. Por causa do sabor de moscatel. Uma hora mais tarde, o senhor seria um homem morto.

— Não sou nenhum idiota, Mr. Morley. Meu quociente de inteligência é da ordem...

— ... de cento e trinta e dois, eu sei.

— De onde? Ah, claro, sua verificação.

— Conheço tudo a seu respeito, Mr. Hyde. Sobre sua saúde. Sua vida privada. Sua atividade até agora. As doenças de infância. Pois o senhor esteve no Exército. Dele o Serviço Secreto americano recebeu todas as informações de que ainda não dispunha. O resto veio do banco de dados dos dois grandes.

— Eles têm um banco de dados comum? Disso eu não sabia.

— Só o têm há cinco anos. Os tempos vão se tomando cada vez mais explosivos. Por isso, as duas superpotências precisam saber em conjunto o que planejam terceiros em termos políticos e militares. E sobre pessoas. Pessoas são mais perigosas do que ogivas nucleares. É o que há de mais perigoso. Para preservar a paz, faz-se necessário conhecer as pessoas. Não todas. Mas muitas: Idealistas, ideólogos, fanáticos. Militantes pacifistas. Militares. Pessoas como o senhor. Formidável o chá, não é?

— Excelente, sim. O senhor sabe, eu acho que essa história é uma invenção.

— Seu quociente de inteligência, Mr. Hyde! — Morley estava encantado. — Seu QI! É evidente que esse filme é forjado! Mas o senhor está vendo que o consideram verdadeiro. — Mexeu o chá dentro de sua xícara. — Preste atenção: em mil novecentos e setenta e nove, há cinco anos, morreu em Buenos Aires um certo Paulo Klein. Judeu alemão, cujos pais, juntamente com ele, emigraram da Alemanha em trinta e quatro. Seu pai herdou um grande laboratório copiador de filmes em Buenos Aires, que por sua vez o filho herdou. Quando Paulo Klein já se encontrava há seis meses no Hospital Dr. Zubizareta, com câncer no estômago e metástase por todo lado, pediu aos médicos que lhe mandassem um homem da Embaixada americana. Nenhum figurão. Um homenzinho que não chamasse atenção. Então um secretário foi lá. Chamava-se Maltravers. Timothy Maltravers. E a esse Maltravers, Klein contou que, cinco anos antes, em junho de setenta e dois, tinha copiado em segredo, um velho filme de trinta e cinco milímetros, com seiscentos metros de comprimento, para três cassetes de vídeo. Para um amigo...

— E como se chama o amigo? — perguntou Timothy Maltravers. Ele tinha vinte e oito anos de idade, era magro e usava óculos de lentes bem fortes.

— Isto eu não vou lhe contar — explicou Paulo Klein, que acabara de completar cinqüenta e cinco anos de idade. Jazia numa cama no último quarto de um comprido corredor no setor de cancerologia do Hospital Dr. Zubizareta, na Avenida Lincoln. Klein linha sido um homem de grande estatura e muito forte. Agora se achava extremamente magro, só pele e osso. Parecia ter apenas dez anos de idade. Principalmente sua cabeça parecia minúscula. Sua pele tinha a cor amarelo-pálida. Assim que Maltravers chegara, ele lhe mostrou de que modo as radiações da bomba de cobalto lhe haviam destruído a pele. Horrorizado, o jovem americano viu uma cratera rasa do tamanho de um prato, de um negro violáceo, que se destacava na barriga de Klein quando este levantou o lençol. Faixas de gaze encobriam a pele queimada. Um forte mau cheiro impregnava o quartinho cuja estreita janela se abria para o pátio. Era o fedor da doença de Klein. A carne queimada fedia. Maltravers respirava pela boca.

— Estou fedendo, não é? — perguntou Klein. Suas pupilas estavam diminutas. Falava com voz rouca. As cordas vocais e a laringe também haviam sido acometidas.

— Mas não...

— Estou sim, eu sei. Malditas radiações. Estou apodrecendo vivo. É, não vai mesmo durar muito tempo. Já me deitaram aqui no quarto da morte.

— Mas que bobagem é essa!

— Ponha logo o seu lenço diante do nariz. Bobagem coisa nenhuma. Esses quartos pequenos, no final de um corredor são os quartos onde se morre. Quem me disse foi a enfermeira da noite. Uma enfermeira muito burra. É daí que eu sei. Vamos, pegue seu lenço! A janela permanece aberta dia e noite, mas o mau cheiro não vai embora...

Essa havia sido a saudação de chegada.

Maltravers estava sentado em sua cadeira junto à cama, segurando realmente um lenço à frente da boca.

— E como se chama seu amigo? — perguntou.

— Isso eu não lhe direi — explicou com sua voz rouca o emagrecido e esquelético Klein. — Eu lhe direi o que havia no filme... o que há... — E contou-o a Maltravers, cujo rosto permaneceu imóvel.

— É algo forjado, naturalmente — disse ele por fim.

— Não, o filme é verdadeiro!

— Impossível.

— Ah, o senhor, evidentemente, nada sabe de sua existência, é claro. — Klein tossiu. — Da existência só sabem algumas pessoas no Kremlin e em Washington. Não me conteste! Eu só disponho de pouco tempo. E falar me exige muito esforço. Meu amigo é alemão, como eu. Quero dizer: éramos ambos. Meus pais eram de Munique. Ali eu nasci. Em mil novecentos e trinta e quatro fugimos da Alemanha. Em Lisboa recebemos um visto de entrada americano. Assim foram salvas as nossas vidas. E é por isso que eu lhe conto que há cópias desse protocolo secreto. Para que seu país saiba da traição que ali foi cometida em quarenta e três.

— Sr. Klein, eu lhe juro que não existe esse tal de protocolo secreto.

— Meu jovem, quem é o senhor? Secretário na Embaixada. Como é que logo o senhor quer saber se tal protocolo existe não? Não comece de novo com isso! Preste atenção ao que eu digo! Cada minuto conta. Não agüento mais por muito tempo.

— Desculpe-me, Sr. Klein — disse Maltravers e apertou o lenço com mais força contra o nariz. Eu tampouco agüento por mais muito tempo, pensou ele. Pobre-diabo. Mas esse cheiro...

— Está bem. — Tosse. — Veja: aquele homem, meu amigo, foi nazista muito importante. Ele mesmo me confessou com toda a franqueza. O serviço secreto nazista, no fim da guerra, ficou de posse de uma cópia desse filme. Um americano se tornou traidor e deve ter recebido muito dinheiro. Em todo caso, a cópia é verdadeira! Além do mais, nem acho que a coisa seja tão terrível assim. Todo mundo vive exigindo que os dois grandes se ponham de acordo. Pois muito bem, eles já estão de acordo desde quarenta e três. Pelo menos, jamais haverá uma grande guerra atômica.

— Sr. Klein...

— Não me interrompa! Os nazistas receberam o filme tarde demais para ainda poderem utilizá-lo para fins de propaganda. Já estavam quase vencidos. Ninguém na Alemanha, nos territórios ainda ocupados ou no exterior em posição de neutralidade teria acreditado que o filme era verdadeiro. Embuste! teriam todos gritado.

— Mas se trata mesmo de... Perdão, Sr. Klein. Prossiga, por favor!

— Prossiga... — O homem na cama arquejava. — Portanto, na guerra, os nazistas não podiam mais utilizar o filme. Muito bem, disseram eles, nós afundamos mas o mundo inteiro pertencerá ao nacional-socialismo por ocasião da segunda arrancada. Assim me explicou meu amigo.

— Segunda arrancada?

— Sim, Mr. Maltravers. Os nazistas, ao fim da guerra, mandaram meu amigo com o filme para cá. Documentos falsos, tudo obviamente preparado. Ele deveria esperar até que a ordem viesse, e, então, exibir o filme a jornalistas internacionais. A idéia era que às pessoas não agradaria serem agora escravas dos americanos ou dos soviéticos, todos se sublevam — o mundo inteiro se torna marrom, a cor do nazismo. — Klein tossia fortemente. Quando o fazia, virava a cabeça para o lado.

— Mas por que seu amigo não fez isso então?

— Porque ele se tornou um outro homem.

— Tornou-se o quê?

— Uma pessoa inteiramente diferente. Logo depois da chegada aqui. Nada sabia dos crimes nazistas. Era um idealista. Então descobriu a verdade. Ficou inteiramente transtornado. Crises nervosas. Clínica. Realmente! Eu o conheci em setenta e três, numa recepção. Pois nós fugíramos primeiro para Nova lorque, não é mesmo? Meu pai herdou uma firma copiadora de filmes, aqui na cidade. Então viemos para cá em cinqüenta e dois. Em sessenta, perdi meus país. Ambos em um ano. Eu me sentia muito solitário. E esse homem, que conheci em 73, agradou-me. Um alemão — como eu. Eu tinha saudades da Alemanha. O senhor sabe, não é, nós judeus...

— Os senhores se conhecem há seis anos?

— Sim. Há seis anos nos conhecemos. Naquela época, há muito ele já tinha se tornado um outro homem. Senão eu nem poderia ter feito amizade com ele, não é mesmo? O senhor está se sentindo mal, estou vendo. Mas não vá ainda não! Quem sabe se ainda estarei vivo amanhã.

— Fico aqui o tempo que o senhor desejar.

— Obrigado, meu jovem. Deus o protegerá! Meu amigo, desde há muitos anos, tentou fazer reparações. Fez doações. A organizações judaicas. A Israel. Aos hospícios de lá. O senhor sabe que em Israel, em proporção ao tamanho do país, há mais hospícios do que em qualquer outro país do mundo? E continuamente precisam construir novos. Tudo superlotado. Gente mais velha, gente idosa, que sobreviveu ao holocausto, aos campos de concentração. Depressões, psicoses, os piores padecimentos da alma — só agora é que estão saindo. Bem, e meu amigo deu uma verdadeira fortuna. Como posso traí-lo?

— Mas por que o senhor está me contando tudo isso?

— Porque a situação do mundo está muito ruim. Estamos tão próximos de uma guerra nuclear. Meu amigo tem o velho filme. Tenho medo de que ele o mostre. Não como nazista. Como alguém que abre os olhos das pessoas, que quer salvar a paz! Todo o mundo agredirá os Estados Unidos e a União Soviética. E isso eu não quero. É evidente que não quero a guerra atômica, mas também não quero que as pessoas digam que os americanos são criminosos. Não, eu não posso morrer quando imagino que as pessoas dirão isso. Os americanos salvaram minha vida e a de meus pais —. Poderei esquecer isso? Com os soviéticos e os ingleses triunfaram sobre os nazistas. Também não posso esquecer. Estou num dilema. Eu disse para mim mesmo: os americanos e os soviéticos têm, pelo menos, de saber que alguém tem a cópia desse filme. Para que não estejam despreparados quando meu amigo mostrar as cópias. Para que possam tomar providências. Para que montem uma prova de que o filme foi forjado pelos nazistas.

— Por Deus, ele foi...

— Pst, Pst. Não conteste! O filme é verdadeiro. A cópia também. Assim jurou meu amigo pela vida sua filha. Acredito nele, quando jura assim. O senhor não o faria? Está vendo!

— Sr. Klein, que foi feito do original do filme, o de trinta e cinco milímetros?

Klein tossiu novamente.

— Ele é boa pessoa. Mas pode ser perigoso para os americanos. E os americanos também são boa gente. Ajudaram com vistos a tantos judeus e outros que estavam na maior dificuldade... — Súbito, Klein cuspiu sangue. Jorrou de sua boca como um jato.

Fora de si de terror, Maltravers precipitou-se para o corredor.

— Um médico! — gritou. — Um médico! Rápido, um médico!

— Ainda levou uns três dias até que ele morresse, o pobre sujeito — disse o advogado Roger Morley. — Maltravers relatou imediatamente na Embaixada o que Klein lhe havia contado. Eles levaram a coisa a sério. Horas depois sabia-se de tudo em Washington e Moscou. No enterro de Klein havia um monte de agentes. Fotografaram todos os presentes. Todos foram identificados. Resultado: zero. Nenhuma das pessoas que estavam no cemitério judaico era o “amigo” de Klein.

— Conclusão: o homem não foi ao enterro. A filha, também não — disse Wayne Hyde.

— Correto. Aí nós começamos a levar a coisa terrivelmente a sério.

— Nós?

O advogado que parecia haver saltado de dentro de um romance de Dickens sorria.

— Cheguei ao ponto de representar alguns órgãos de Washington. Desde então eu dirijo a pequena organização.

- Que organização?

— Logo direi. Veja, em Buenos Aires e Israel continuou-se a pesquisar. Ninguém na cidade de dez milhões de habitantes doara dinheiro para hospícios em Israel. Para judeus, sim. Para Israel também. Para todas as instituições imagináveis, mas não para asilos de loucos. Portanto, o amigo de Klein havia mentido. Adiante: perguntamos a todos os outros amigos de Klein a respeito do tal homem. Ninguém o conhecia. Ele era, portanto, um amigo muito cuidadoso, que nunca veio à casa de Klein. Devem haver-se encontrado na casa desse amigo ou em um terceiro lugar.

— E os parentes de Klein?

— Ele não tinha mais parentes. Nunca se casou. Vivia sozinho. Foi sepultado ao lado dos pais. E não há dúvida de que ele, em seu dilema de lealdade, disse a verdade a Maltravers. Podia-se partir desse pressuposto.

É mesmo? pensou o seco e alto Hyde, com seu rosto curtido pelo tempo. Verdade? O que é a verdade?

— O senhor precisa refletir, meu caro — prosseguiu o advogado — que os Estados Unidos e a União Soviética se encontraram realmente em uma situação desagradável. E se encontram. Seus esforços em matéria de armamentos se tornam cada vez mais desvairados Cada vez fica maior o medo das pessoas. Cada dia mais fortes os movimentos pacifistas. Preciso descrever-lhe o que acontece se o filme que o pobre Klein copiou em vídeo for irradiado por exemplo, hoje à noite, para todo o mundo pela televisão? Simplesmente inimaginável!

— Por quê? Pois se foi uma peça forjada pelos nazistas para um objetivo inteiramente diverso?

— Disso sabe o senhor, e eu, e o homem que possui as cópias. Mas os milhões de pessoas que assistissem ao filme hoje à noite, não o saberiam. É evidente que Washington e Moscou explicariam imediatamente que se trata de uma invenção. E daí? As pessoas não iriam acreditar neles. E mesmo que houvesse alguns que acreditassem, onde está a diferença? O que o filme mostra é possível e todo mundo iria dar curso às suas próprias reflexões. Também os soviéticos e americanos. Em outras palavras: não tem a menor importância se o filme é um embuste ou não. Não tem a mínima importância. E, por isso mesmo, ele jamais deverá ser mostrado! Foi também por isso que Washington e Moscou criaram sua pequena organização. É uma organização “tomara-que-funcione”.

— Que quer dizer isso?

— Bem, tudo o que nós sabíamos, era: em Buenos Aires mora um ex-nazista alemão de alto coturno, que possui três vídeo-cópias desse filme. E uma filha. Paulo Klein, o pobre sujeito, tinha o temor de que o desconhecido, nestes tempos de overkill (Quantidade de armamentos nucleares capaz de destruir várias vezes a humanidade. (N. do R.)e de superarmamentismo viesse a público e mostrasse o filme. Quando? Ninguém poderia dizê-lo. Era possível qualquer dia. Por esse motivo criou-se a organização. Limitava-se principalmente a Buenos Aires. Lá, um grupo de homens seguia, obedecendo às minhas indicações, todos os indícios. Ficou atento por anos a fio ao menor sinal com o que um homem dentre dez milhões poderia tornar-se suspeito. O senhor não pode imaginar quantos milhares de rastros esses homens não seguiram. Tudo em vão. Por todos os lados apenas alarmes falsos. Simultaneamente, as duas superpotências verificaram que nesses tempos. em que são cada vez mais temidas e odiadas, se fazia necessário criar instituições onde pudessem facilmente vir a saber de coisas de interesse para os dois lados. Isso está claro?

— Cristalino.

— Essas instituições são, por exemplo, clínicas particulares. Há em toda a Europa, inclusive no bloco oriental, sanatórios particulares, pretensamente construídos com o dinheiro de um milionário americano chamado Kingston. Eles dão lucro, a despeito de seus altos custos, ao contrário de hospitais do Estado. Os chamados sanatórios Kingston servem, em primeiro lugar, para receber informações sobre os pontos de vista e maneiras de pensar de políticos de alto nível e militares, mas também de personalidades do campo cultural, sobre seu estado de saúde, sua atividade, seus segredos. Esses sanatórios foram além disso instalados como esconderijo e quartel de agentes, e outros agentes (médicos, pessoal de laboratório e enfermagem) são responsáveis pelo seu funcionamento. Um instituto e um agente dessa natureza encontram-se também nas proximidades de Heiligenkreuz, uma pequena localidade nos arredores de Viena. Como todos os agentes nesses sanatórios, também ele sabia da história desse filme. Há anos. Finalmente agora tivemos sorte. — Morley bateu com um dedo sobre a foto de Daniel Ross. — O filho!

— O quê, o filho?

— Olivera enviou a filha à Europa para buscar o filho. Ele trabalha na televisão.

Hyde assoviou por entre os dentes.

— Isto é, ele não está mais na televisão, foi posto para fora. É viciado em medicamentos. Mal consegue ficar em pé. É apegado a um antigo amor, que já o ajudou algumas vezes, uma certa Dra. Sibylle Mannholz. Ela trabalha no sanatório Kingston, em Heiligenkreuz. Daniel Ross lhe telefonou porque precisava de seu auxílio, a fim de suportar o vôo até Buenos Aires, antes de ir tratar-se com ela.

— Tudo isso o senhor sabe por intermédio dessa Dra. Mannholz?

Morley riu.

— Não, de seu chefe. Esse é nosso agente. Ouviu a conversa.

— E essa Mannholz nada teve contra?

— Não.

- Como não?

— Existem motivos — disse Morley.

— Oh — disse Hyde.

— O filho e a enteada já foram seguidos durante o vôo para a Argentina. Descobrimos, então, onde mora o pai e como ele se chama. Mas algo bem maluco veio ainda em nossa ajuda. Olivera foi espionado. Conforme sabemos hoje, por incumbência da última Junta Militar. Nossos jovens amigos em Buenos Aires capturaram três cassetes, enviaram-nos para Washington, onde foram repassados para cassetes normais. Dois deles contêm conversas com políticos. O terceiro, sobre o qual está a conversa que Olivera manteve com seu hóspede, o senhor ouviu agora mesmo. Agora chegou a sua vez, Sr. Hyde. O senhor tem armas, proteção, documentos, esconderijo e o resto, em outros países?

— Não precisa se preocupar — disse o mercenário. — Gente como eu existe por toda parte. Nós também temos nossa rede. Eu não posso, por exemplo, viajar com uma arma. Desse modo recebo em cada país exatamente aquilo de que necessito.

— Bem, isso é então por sua conta.

— Haveria também o pagamento.

Morley riu.

— Certamente. Quase ia esquecendo. Quanto é?

— Cinco milhões de dólares a serem depositados numa conta numerada na Suíça.

— Isso não é um pouco...

Hyde se levantou.

— Agradeço-lhe pelo chá. Foi um prazer havê-lo conhecido.

— Mas fique sentado, caramba! Cinco milhões. Bem. Afinal o senhor não arrisca sua vida apenas uma vez.

— A metade é transferida imediatamente. A outra metade, quando eu me afastar do negócio. — Hyde ergueu sua voz. — E por sinal, independente do fato de eu haver satisfeito todos os seus desejos. Tento liquidar tudo conforme previsto. Pode ser também que chegue um momento em que o senhor ache que a partida está perdida e que eu deva me retirar, embora não tenha terminado completamente o serviço. Em ambos os casos, a segunda metade é considerada vencida. Caso o senhor não pague ...

— Não! — disse Morley e olhou cabisbaixo para seus reluzentes sapatos.

— O que não?

— Não ameace, por favor! Compreendo sua exigência. O senhor corre um grande risco. Nós também teremos de correr. — Morley deu a Hyde três grandes envelopes. — Aqui estão todos os dados que obtivemos a respeito dos três — Olivera, filho e enteada. Coisas pequenas e grandes. Terá uma imagem perfeita. Leia tudo até que saiba de cor, depois destrua os papéis, antes de deixar Londres!

Hyde empurrou-lhe um papelucho.

- Este é o número da conta na Sociedade de Bancos Suíços, em Zurique. Depois de amanhã de manhã eu telefono para lá. Se os dois milhões e meio ainda não estiverem depositados na conta, tomo o avião de volta para Chicago.

— Eles estarão na conta — prometeu Morley. Abriu em seguida a gaveta da escrivaninha e retirou um objeto em um invólucro de plástico que parecia um pequeno aparelho elétrico de barbear.

— O que é isso? — indagou Hyde.

— Isto é um decodificador de bolso — disse o rosado advogado.

— Pode usar um decodificador desses para regular o aquecimento numa casa de férias, por exemplo. — Ele se ergueu. — Venha até aqui! — Morley encaminhou-se para uma caixa cinzenta e achatada que estava sobre uma mesinha. — E isto aqui é uma secretária eletrônica. Para meu número secreto que eu vou lhe dar. — E estendeu a Hyde um cartão. — Decorar e destruir o cartão! — Hyde assentiu.

— Olhe aqui! — Morley deslocou a caixa, cujo verso tornou-se visível. — Aqui atrás se acham três interruptores rotativos que o senhor poderá, à vontade, colocar cada um em cinco posições. Coloque uma vez! Mas não duas posições iguais uma ao lado da outra!

Hyde girou os três interruptores para posições entre um e cinco.

— Bem — disse Morley. — Agora, abra seu decodificador! Aperte no meio e ele se abre em dois.

Hyde apertou. O aparelho se abriu em duas metades. Uma delas possuía, só que menores, três interruptores análogos aos da secretária eletrônica.

— Agora ajuste os interruptores nas mesmas posições da secretária eletrônica.

Hyde obedeceu.

— Feche o aparelho! Assim.

— E agora?

— E agora está tudo pronto. O decodificador é alimentado por uma bateria de quinze volts. O senhor pode agora voar para Tóquio, Johannesburg ou o Rio de Janeiro, simplesmente para qualquer lugar do mundo. Se o senhor, o que deverá ser freqüentemente o caso, quiser entrar em contato comigo, procure qualquer telefone, disque o número secreto e segure o decodificador com a parte superior preta diante do microfone do bocal. Primeiro vem o meu prefixo. Depois um tom de apito. Em seguida, aperte este botão preto do seu decodificador. Agora ouvem-se três sons que variam segundo a programação do decodificador e que meu aparelho de resposta reconhece, pois está programado do mesmo modo. Com isso, meu aparelho estará pronto para gravar sua mensagem, a qual (não se espante!) em hipótese nenhuma poderá ser interceptada.

— O senhor quer dizer...

— Sim, Sr. Hyde! Meu aparelho evidentemente dispõe de um misturador. Seu pequeno decodificador — e isso é que é interessante! — também tem um. Está à venda há um ano. Um milagre da técnica, não é?

— É, sim.

— Coisa maravilhosa! — entusiasmou-se Morley. — É preciso que o senhor possa falar comigo de qualquer parte. Aí, um minúsculo misturador de vozes dentro do decodificador vale ouro.

— Ouro puro — disse Hyde.

— O senhor poderá dizer-me tudo o que lhe vier à cabeça e eu depois escutarei. Mas isso também funciona às avessas: Eu tenho uma mensagem para o senhor. OK, eu registro na fita. O senhor chama o telefone secreto, segura seu decodificador junto ao bocal, aqui em Londres a fita retrocede depois que o decodificador reconheceu seu sinal, e o senhor pode ouvir de qualquer parte do mundo o que eu falei na fita. Naturalmente que os interruptores, se assim o desejarmos, a qualquer momento poderão ser dispostos de outra forma mas sempre se correspondendo. — Bateu na caixa.

— Eu já lhe disse que moro nesta casa. Estarei praticamente sempre perto do aparelho, enquanto correr o caso. Penso que isso é tudo.

— Onde se encontram agora Daniel Ross e Mercedes Olivera?

O advogado olhou para um antigo relógio de bolso que havia tirado do bolso do paletó e cujo tempo fizera saltar.

— Agora são 19h30m. Em Buenos Aires ainda são 16h30m. Entre Londres-GMT e lá há uma diferença de três horas. Entre o continente e lá são quatro horas de diferença. Ross e Mercedes voam hoje às 20h, hora de Buenos Aires, com um Jumbo das Aerolineas Argentinas, partindo de Ezeiza. Estas são as minhas últimas informações. Chegam amanhã às 17h25m, hora da Europa central, ao aeroporto de Frankfurt. Ross precisa seguir urgente para o sanatório em Heiligenkreuz. Aqui está um papelzinho com os nomes da médica e do médico, o endereço e o telefone da clínica. Esse Dr. Herdegen merece toda sua confiança. Ele dirá tudo o que o senhor precisa saber.

— Sabe se os dois vão voar diretamente de Frankfurt para Viena?

— Penso que não — disse Morley. — Eles têm dois dos três videocassetes consigo. O terceiro se encontra, conforme ouviu — e indicou o gravador — num cofre do banco, para proteção de Olivera. Os dois marcaram viagem até Frankfurt porque certamente vão querer pôr os dois cassetes em lugar seguro, antes de seguirem viagem até Viena. Esta seria a sua primeira grande chance, Mr. Hyde. Segundo o boletim de meteorologia, a queda de neve deverá cessar hoje à noite. Há diversos aviões diários entre Londres e Frankfurt, o primeiro já de manhã, bem cedo. O senhor dispõe de tempo suficiente.

— Na hipótese de não continuar a nevar e de o aeroporto não estar fechado — disse Hyde.

— Isso, por sinal, poderia interferir — disse Morley. — O senhor há de ter sorte, como “Cavaleiro da Sorte”! Pernoite aqui comigo e poderemos assistir juntos à patinação no gelo!

— Prefiro ir para um hotel.

— Como desejar. Nesse caso, eu lhe aconselharia o RICHMOND. É pequeno e agradável, além de ficar bem perto daqui.

— Obrigado. E obrigado também pelo chá!

— Oh, por favor! Fico satisfeito em saber que gostou. Nós nunca mais nos veremos, Mr. Hyde. Permita-me que lhe dê um presente. E lhe deu uma lista impressa no melhor papel feito à mão. — Aí o senhor encontra informações sobre meus chás preferidos. China smiokey. Finest Colong. Queen’s Tea. E por aí vai. Simplesmente notáveis. O senhor vai ver.., ah, sim, Mr. Hyde, ainda uma coisa!

— Sim, por favor?

— Nós estamos muito contentes em tê-lo ganho para nossa tarefa. Entretanto, caso no curso de seu trabalho tenha dificuldades com funcionários governamentais ou com a polícia, nem eu nem quem quer que seja da Organização teremos a menor idéia de quem seja o senhor. Seria em vão apelar para nós. Não deve contar com a mínima ajuda, minha ou de quem quer que seja.

Hamburgo está ocupada pelo Exército Vermelho, Hanôver também — os soviéticos vieram pela Dinamarca, penetraram em Schleswig-Holstein, conquistaram Lübeck e Kiel. Somente atrás do rio Weser é que forças armadas da OTAN montam posições de defesa para a região do Ruhr.

— O mapa — disse o menino com sardas e cabelos louríssimos. Usava calças curtas e uma camisa solta. Ao lado de seu pai, um gigante também em mangas de camisa e com rosto bem vermelho, estava ele sentado na seção média, na primeira fila de poltronas da classe turista, justo em frente a uma das telas de projeção. O Boeing 747. E. da Aerolineas Argentinas, saído de Buenos Aires às 20h, hora local, já estava voando há cerca de quarenta minutos, com apenas metade de sua lotação. Através das janelas à esquerda, vinham os raios do sol poente.

Sobre o assento vazio que ficava entre eles, pai e filho haviam armado um tabuleiro desdobrável. Nele estava impresso um mapa da Europa. Faziam parte do jogo uma série de peças de plástico em forma de pequenas coroas de fogo, tanques, foguetes e aviões, todas em cores bem vivas. Entre o pai e o filho estava, meio encoberto, um pacotinho com cartas, O menino lourinho havia tirado uma.

— Que bom — disse ele. — Três, coroa.

— Droga — reagiu o pai.

— Você já está vendo o que vai acontecer, Dad — disse o Júnior. — Sinto muito. Agora chegou o momento das nukes. (Abrev. popular de “Nuclear Weapons” — Armas nucleares (N. do R.) — Com foguetes que se encontravam estacionados na região da Polônia e da RDA, ele investiu contra as vizinhanças das cidades de Dortmund, Essen e Duisburg. Seus foguetes de plástico eram amarelos, os do pai, verdes, O guri instalou as coroas de chamas vermelhas junto aos foguetes movidos. Percebeu que Mercedes e Ross, que estavam sentados à mesma altura na seção da esquerda, observavam o jogo. — Eu elimino as rampas dos Pershing e dos mísseis Cruise ao redor das cidades — explicou ele. — Vocês falam inglês, não? Okay. Isso é o mais importante, estão sabendo? Sempre as rampas de lançamento em primeiro lugar. Estão entendendo?

— Estamos — disse Mercedes.

Daniel nada disse. Estava muito pálido.

Junto a ele, no lugar da janela, estava sentado um velho sacerdote de hábito branco. Dava a impressão de estar perturbado. — Ó Deus onipotente — murmurou.

O pai riu para Mercedes e Ross. Tinha olhos simpáticos.

— Que acha desse guri espertinho, madame? Só tem onze anos. Mas tem uma cabecinha. Até que os comunas gostariam de ter o meu júnior lá no Estado-Maior deles.

— Com isso, as cidades estão liquidadas de qualquer jeito — disse Júnior. — Usava um aparelho para fazer recuar seus dentes salientes. — Vai desmoronar tudo. Além disso, a contaminação radioativa. Pode esquecer a região do Ruhr, Dad. E as tropas no Weser, também. Acabaram-se pelo menos uns dez milhões de krauts. (Designação pejorativa americana para alemães. (N. do T.) Espera só até eu tirar uma outra coroa vermelha!

— Só quem tirar uma carta com uma coroa vermelha pode usar nukes — explicou Dad.

— Pode usar o quê? — perguntou Mercedes.

— Ora, armas atômicas — disse Júnior, — Você disse que falava inglês!

Dad havia puxado uma carta. Exibiu-a triunfante ao filho.

— Quatro, coroa!

— Maldição — disse Júnior.

Dad empurrou quatro foguetes verdes para a região oriental.

— Então, eu liquido primeiro com Leipzig, Rostock, Varsóvia e Praga — disse ele colocando os símbolos plásticos para armas atômicas nos respectivos lugares do mapa. E disse bem sério para Mercedes: — O Pacto de Varsóvia é muito maior que a República Federal da Alemanha. No leste, as rampas de lançamento estão mais espalhadas. Daí a minha tática: tirar cidades do mapa. Pânico total. Caos absoluto. Só faço isso naturalmente quando eu sou a OTAN e o Júnior o Pacto de Varsóvia.

— Suas nukes nessas cidades de titica, eu nem estou ligando — disse Júnior. — Tenho meus foguetes mais atrás, na União Soviética. Os grandes! Esses é que importam. Você está cometendo um erro, Dad, sempre lhe digo isso. Primeiro tirar as rampas, creia! Claro que é mais fácil na República Federal. Ela está toda entupida de rampas, numa área tão pequena. Por isso é que a República Federal tem de ser arrasada em primeiro lugar. Até um bebê sabe disso. Com as cinco ou seis coroas que vêm ela vai virar cinzas.

— Que idéias tem hoje essa gente, não é? — disse Dad com os olhos simpáticos para Mercedes. — Comprei em Nova lorque. OTAN — A Guerra na Europa, é como se chama essa coisa. Doze dólares. Venderam em dois meses mais de trezentos mil deles. Incrível, não? Ora, mas diverte, não é? É uma coisa diferente. Incrível, não é?

— Incrível, sim — disse Mercedes.

Mercedes o olhou assustada.

— É claro que a concorrência não dorme — disse Dad enquanto Júnior tirava outra carta. — Já existe uma quantidade desses jogos. Estão vendendo adoidado. A maioria trata da Europa. Holocausto Europeu ou Europa Tática, O que você tirou?

— Dois aviões azuis — disse Júnior.

— Bombardeio prolongado e em seguida pára-quedistas — explicou Dad.

— Ãhã — disse Mercedes.

Júnior cobriu o mapa com novas figuras de plástico.

— Vou arrebentar o sul — ia dizendo ele. — A Floresta da Baviera está atravancada de rampas. Ao mesmo tempo, vou logo acabar com Munique, Stuttgart e Nuremberg. — Olhou para Mercedes. O grampo nos dentes o prejudicava um pouco para falar.

— Dad comprou todos esses jogos. Todos o mesmo princípio, disso eu sei. A graça está em reduzir a República Federal a cinzas o mais rápido possível. Quando o Pacto de Varsóvia conseguir isso, ele vai conquistar toda a Europa, de Moscou até Londres.

— Que me diz disso, de como o guri está por dentro de tudo isso? — Dad estava radiante. — De repente começou a tirar notas boas em Geografia.

— Vamos apostar como eu, com sete coroas, vou chegar até o Atlântico? E ainda por cima com a Inglaterra?

— Okay — disse Dad. — Dez cents. Nada mais. — Para Mercedes acrescentou: — Adora apostar. Preciso cuidar para que Júnior não se tome um jogador, haha. — Tirou uma carta com a imagem de um palhaço colorido. — Droga — disse ele.

— Coringa — comentou Júnior. — Azar. Você acabou de ganhar três mega-nukes sobre rampas na Floresta Negra e atrás de Bonn. — Ele tratou de colocar as peças de plástico nos respectivos lugares. — Por causa da radiação você precisa recuar. Nova posição. Vai ser muito certamente sua última. Você está vendo que eu agora preciso empregar os SS-20 da União Soviética, assim que tirar novamente coroas. A coisa está numa escalada de primeira ordem.

Daniel gemeu baixinho.

—Mal?

— Sim. Péssimo.

— As gotas! — Ergueu-se rápida e disse para uma aeromoça que passava apressada: — Um copo d’água, por favor!

— Imediatamente, madame!

Mercedes pegou do porta-bagagens de cima dos assentos uma bolsa de viagem com o logotipo da empresa aérea, abriu o zíper e procurou o frasquinho com as gotas. Para isso tirou dois vídeo-cassetes de lá de dentro, segurando-os com a mão esquerda enquanto continuava a procurar.

Seis filas atrás dela estava sentado um homem jovem, na seção intermediária, que a observava com atenção. Era muito alto e esguio, de rosto bronzeado e usava óculos sem aro. Já vinha espreitando Mercedes e Daniel desde que chegaram ao aeroporto de Ezeiza em companhia de Olivera. Nada se mexeu em seu rosto quando avistou os dois video-cassetes.

Mercedes achara o vidrinho. Repôs os cassetes na bolsa, fechou-a de novo e a colocou no porta-bagagens.

O sacerdote à esquerda de Daniel lia seu breviário. De quando em vez suspirava fundamente. A aeromoça já vinha com uma bandeja, sobre a qual trazia um copo com água em que Mercedes pingou vinte gotas. Daniel bebeu tudo de uma vez e se recostou. Mercedes limpou com um lenço a testa dele coberta de suor.

— Não esmoreça, Danny! Por favor, por favor, agüente firme!

— Sim, Mercedes. — Fez que sim com a cabeça e afagou à mão dela.

— E um mega-nuke em cima da grande base de mísseis Cruise atrás de Baden-Baden — disse Júnior Ele ria. Uma criança contente.

Daniel não agüentava mais esse jogo. Pegou os fones de ouvido de dentro da bolsa de seu assento e colocou-os sobre as orelhas. O arco de plástico desceu por debaixo do queixo. Ouviu música de ópera. Na extremidade do braço esquerdo de sua poltrona havia um botão giratório que Daniel virou enquanto se esforçava para respirar fundo a fim de poder suportar a imaginária bolha de ar em seu peito. Veio uma melodia de Cole Porter. Girou mais um pouco o botão e ficou repentinamente imóvel. Ouvia a vibrante e profunda voz de Marlene Dietrich: “.. . se eu ficasse em apuros...”

— Mercedes!

Ela o olhou assustada. Ele lhe estendeu os fones que estavam pendurados em frente ao seu assento enquanto sintonizava o botão da poltrona dela na mesma posição que o dele. Instalados os fones, no instante seguinte seus olhos se arregalaram.

  “...se eu pudesse desejar alguma coisa...” – cantou a Dietrich.

Um piano. Um saxofone. Violinos.

Daniel levantou um dos fones, Mercedes também.

— Estranho, Mercedes, não é?

Ela engoliu em seco e assentiu. Não conseguia falar.

— Quando você, pela primeira vez, me telefonou... do aeroporto de Zurique... do bar...

— Sim.., e agora de novo. Estranho. A velha canção...

“... tempos bons ou maus — cantou a Dietrich.

— Mas era a canção de vocês — disse Mercedes. — Como é que nós a estamos ouvindo? E de novo?

— Talvez a canção queira vir até nós — disse Daniel.

“... se eu pudesse desejar alguma coisa, quero ser um pouquinho feliz ...”

— Mas você continua a amar Sibylle... — A voz dela era apenas um sopro.

Ele abraçou-a. De repente, o medo e a opressão haviam desaparecido, de repente ele estava se sentindo bem. Ele a puxou para si e apertou seus lábios contra os dela, que estavam macios e quentes. Ela o envolveu com os braços.

“...porque se eu fosse por demais feliz, se eu tivesse a nostalgia de estar triste” — cantava Marlene. A orquestra tocou mais forte e encerrou a música. O beijo prosseguia. Outra velha canção começou: Charmaine.

Mercedes se desprendeu de Daniel. Os dois podiam ser rostos refletidos em miniatura um nos olhos do outro, já que os últimos raios do sol poente caíam sobre eles. Em seguida, recostaram-se em seus assentos, seguraram-se fortemente as mãos e ficaram se olhando, sempre com a mesma expressão, ouvindo a bela e melancólica melodia. O avião voava ao longo do leito de um rio que corria por entre uma selva. Em contraste com o verde-escuro da floresta, a água parecia avermelhada e lamacenta. Era um rio bem grande, havia várias ilhas dentro dele.

As gotas fizeram Daniel ficar calmo e atordoado. Mantinha os olhos cerrados.

Goebbels deu a meu pai cianureto, pensou ele. Vinte cápsulas. No bunker da Chancelaria do Reich, onde Hitler e seus assessores já se encontravam desde 16 de janeiro de 1945. Eles se esforçavam em vão para reconstruir as frentes de guerra que desmoronavam. Goebbels havia trazido sua família inteira para dentro do bunker, e Hitler a sua Eva Braun. Militares ali se haviam instalado. Ligações de rádio e de telex ainda funcionavam parcialmente. Tarde da noite de 7 de abril apareceu Georg Ross, a chamado de Goebbels no gigantesco e último posto de comando do Terceiro Reich, construído à prova de bombas. Em todos os corredores e diante de todas as portas para as diversas alas postavam-se homens das SS, de armas embaladas. Para conseguir entrar no bunker, Ross havia precisado, aliás, de quase 1h. Em uma estreita ante-sala dos seus aposentos privados, encontrou-se finalmente com o Ministro da Propaganda do Reich. Goebbels parecia morto de exausto.

— Aqui, Ross. — Ele deu ao pai de Daniel uma pequena mala com fechadura de algarismos. — O tambor com os filmes está bem acondicionado. — Mostrou-a a Ross. Em seguida fechou a tampa.

— Escolha agora um número de quatro algarismos, dos quais se possa lembrar, e tranque-a logo. E Rosa escolheu a data de nascimento de Dora Holm, 3.7.17.

Goebbels tirou uma foto autografada de Hitler de dentro do bolso e a rasgou com vagar, mudando de direção, em duas partes cujas bordas ficaram com um perfil bizarro.

— Uma das metades é para o senhor. Quem vier fazer contato com o senhor em Buenos Aires terá de possuir a segunda metade — disse o pequeno homem de pé disforme. Finalmente deu a Ross um frasquinho de vidro cheio de cápsulas de cianureto. — Para qualquer eventualidade — disse ele. — Isso dura uma eternidade. No caso de dispor de tempo bastante diante de uma emergência, é melhor quebrar uma cápsula e dissolver o cianureto em água. Ficará mais fácil para o senhor. Se precisar morder a cápsula, essa droga vai dilacerar sua garganta. Em ambos os casos, de qualquer forma, estará tudo acabado, no máximo, em meio minuto.

Do quarto contíguo ouvia-se o riso das crianças de Goebbels. Era uma noite tranqüila. Já há duas noites, americanos e ingleses não atacavam a cidade, a fim de não perturbar as operações soviéticas. Em 25 de abril, Berlim deveria estar cercada pelo Exército Vermelho.

Ross enfiou o pequeno vidrinho com as cápsulas de veneno em um bolso interno de seu paletó.

Trinta e nove anos mais tarde, sentado à beira da piscina de sua casa em Buenos Aires, tirou-o do bolso de sua camisa.

— Aqui estão as cápsulas — disse ele.

— Você ainda conserva essa coisa?

— Sim, Daniel.

— E por quê?

— Nunca se pode saber — disse o homem que se chamava há trinta e nove anos Eduardo Olivera.

Já naquela noite de 7 para 8 de abril de 1945 ele trazia consigo documentos perfeitamente falsificados com esse nome. Na tarde daquele mesmo dia, ele os buscara no subterrâneo do Ministério do Exterior que se transferira para o Tirol meridional mas ainda deixara em Berlim alguns homens do Serviço Secreto de Ribbentrop.

— Precisa de mais alguma coisa, Sr. Ross — indagou Goebbels.

— Não, tenho tudo, Sr. Ministro.

— O senhor precisa partir ainda esta noite, de qualquer maneira. A qualquer momento poderá ocorrer a irrupção soviética.

— Deu a Ross sua frouxa mão. — Tudo de bom, meu caro! A mim o senhor não precisa desejar isso. — Seus lábios se contorceram. — Preserve o filme! Ele mudará o mundo. — Os lábios se contorceram ainda mais. — E se ele não o fizer — Goebbels deu de ombros — então, pelo menos, o senhor terá saído com vida.

Uma menina pequena de cabelos louros precipitou-se chorando para dentro da sala. Erguia, acusadora, uma boneca.

— Papai, papai, Hans destroncou o braço da Tina!

— Ora, onde já se viu! Não chore! Já vou sarar logo a Tina de novo!

Goebbels bateu no ombro de Ross e caminhou mancando para fora do minúsculo aposento do bunker sem dizer mais palavra. De longe, Ross ouvia cantar uma voz de mulher bastante embriagada e também de um homem inteiramente bêbado.

“Tudo passa, tudo passará...”

Pouco antes das 3h da manhã de 8 de abril de 1945 um carro cinzento com as armas das SS entrou no aeroporto militar de caças noturnos ao sul de Berlim. Não havia nenhuma luz acesa. Os faróis do carro estavam vedados por discos de baquelite preta, nos quais haviam sido recortadas estreitas fendas. Duas das três pistas de decolagem estavam completamente destroçadas por bombas e a terceira tinha sido consertada precariamente para casos de necessidade. Um avião do tipo JU-52 da força aérea alemã esperava na cabeceira dessa pista. Pelo caminho liberado dos escombros do edifício principal, o carro seguia devagar em virtude das crateras das bombas, aproximando-se do avião, aos solavancos.

Ross saltou. Vestia uma capa de chuva forrada e um chapéu de abas largas. O homem das SS que havia dirigido o carro e o radio-telegrafista do JU-52 ajudaram-no com sua bagagem, duas pesadas malas, e as carregaram até dentro do aparelho. A terceira peça, a mala pequena que Goebbels lhe havia dado, Ross conservou na mão. A noite estava clara. Sem interrupção se ouvia o ruído do fogo de artilharia, às vezes mais baixo, às vezes mais alto. A pálida luz da lua cheia fazia tudo parecer sem sentido e irreal: pessoas, ruínas, o avião.

Ninguém disse uma só palavra. O homem das SS retomou a seu carro, Ross entrou no aparelho e o telegrafista desapareceu na cabine do piloto. Os motores se puseram em movimento. Minutos depois, o JU-52 já fazia uma curva por cima de Berlim. Ross olhou para baixo. Enxergou um pesadelo de cidade em escombros. De repente, teve uma morna sensação de felicidade. Estavam-no fazendo escapar. Escapava com vida. Essa sensação dominou-o por inteiro. Recostou-se. respirou profundamente e percebeu o frasquinho de cápsulas de cianureto apertado contra o peito. Naquele bunker logo muitos irão tomar o veneno, pensou ele. A mim, Goebbels escolheu para uma importante missão. Eu farei o que posso. Mas o mais importante não é a missão. O mais importante é a vida. E eu vou conservar a minha.

Estava começando a clarear o dia quando o JU-52 pousava na única pista de aterrissagem ainda intacta do também quase destruído aeroporto de Bergen. O mais importante porto da costa ocidental da Noruega, cidade rica em tradições, deveria ser a primeira escala da longa viagem de Ross. Quando o avião baixava, Ross constatara que o centro de Bergen havia sido consideravelmente poupado pelos incêndios e ataques de bombas.

O aparelho parou. Um Mercedes verde-opaco veio vindo em sua direção. Também aqui se encontrava um elemento das SS atrás do volante. Ele ergueu desleixadamente o braço direito. O mesmo fez Ross. Nada se falou. De novo, o telegrafista ajudou nas bagagens. Os dois pilotos não se deixaram ver. Logo em seguida Ross estava sendo conduzido para o porto, por caminhos recém-desimpedidos, através dos sórdidos montes de escombros e ruínas da periferia. Fazia um frio glacial. Ross tremia de frio. Bergen se encontrava sobre uma baixa península inteiramente cercada por altas montanhas. Os braços das docas eram ramificados como um labirinto. Essa foi a visão que ele teve, à medida que se aproximava da água.

O lugar se tomava cada vez mais sinistro. Havia muitos equipamentos destroçados por bombas. O motorista descia a ínfima velocidade. Surgiu então diante deles uma gigantesca muralha de concreto de muitos metros de altura. Parecia comprida, sem fim. A névoa do gelo convertia tudo num fantasmagórico cenário de mistério.

O motorista parou.

— O que é? — perguntou Ross.

— A estrada se danou, olhe só. Precisamos ir a pé até o bunker.

Saltaram. A ventania era tão forte que quase jogou Ross ao chão. Com a ajuda do homem, arrastou sua bagagem através desse cenário lunar. Alcançaram sem fôlego a estreita entrada para o bunker de concreto. Aqui se postavam dois homens da polícia do Exército. Seus rostos estavam azuis de frio.

— Estou sendo esperado — disse Ross. — Submarino Swine-münde.

— Senha?

— Retorne, aurora — gritou Ross. A tormenta era aqui muito forte, ela lhe levava as palavras da boca.

— Momento. — Um dos soldados pegou no receptor de um telefone que se achava pendurado num invólucro de couro na parede a seu lado, girou uma manivela e gritou ao aparelho: — O sétimo homem agora está aqui... Sim... Certo. — Pôs de novo o fone no gancho e berrou para Ross: — Já estão vindo pegar suas malas. O tenente-capitão vem também. Espere!

Ross fez que sim. Seu rosto queimava, dos seus olhos escorriam lágrimas. O motorista a seu lado praguejava. Após alguns minutos surgiram dois rapazes com capotes de uniforme forrados de pele. Fizeram um sinal com a cabeça, e desapareceram com as duas pesadas malas. O motorista levou a mão levemente ao boné e se foi. Da entrada do bunker saiu um homem jovem em uniforme de tenente-capitão. Era magro, de estatura mediana e seu rosto estava sulcado de rugas. Puxou Ross para dentro do bunker.

Após o bramido da tempestade lá fora, reinava um silêncio mortal no gigantesco edifício. Assim lhe parecia. Olhou ao redor de si. Nos diques flutuantes estavam atracados quatro submarinos, dos quais três seriamente danificados. Dois outros se encontravam sobre diques secos, na extremidade inferior do imenso bunker. Ali Ross divisou também oficinas colossais. Não se havia começado ainda a trabalhar.

— Sr. Eduardo Olivera? — O tenente-capitão vestia um pulôver cinzento de colarinho enrolado por debaixo do dólmã de seu uniforme.

— Sim. — Apertaram-se as mãos.

— Meu nome é Jonson — disse o oficial que era tão jovem mas parecia tão idoso. — Esperamos pelo senhor. Venha! Temos de sumir.

Suas vozes ecoavam. Ross seguiu os passos de Jonson sobre oscilantes placas de aço. Exalava o mau cheiro de óleo e de metal incandescente.

— Cuidado! — disse Jonson. Ross concordou com a cabeça. Olhou para cima. O bunker era alto. Jonson percebeu o olhar. — O teto tem a espessura de sete metros — disse ele. — Concreto armado. Até agora, nem a maior bomba conseguiu atravessar. — Caminhavam sobre rampas de concreto. Depois se seguiram outras placas de aço. Lá estava o submarino Swinemünde. Olivera fitava a embarcação. Os dois homens que haviam trazido suas malas estavam postados sobre o convés estreito e liso, ao lado da torre.

Ross se recordou do esclarecimento que Goebbels lhe dera há algumas semanas em Berlim:

— O Swinemünde vai levá-lo até o outro lado. É um submarino de carga de longo curso. Nos últimos anos levou preciosos carregamentos para o Japão e de lá para cá. Minérios, por exemplo. Não foi construído para torpedos. Tem apenas a proteção usual. —  Olivera sabia: a tripulação inteira era composta de voluntários, inclusive o comandante. Isso também lhe havia contado Goebbels. Era uma equipagem formada de elementos das tripulações de diversos outros submarinos.

— Apenas gente de primeiríssima ordem — tinha dito Goebbels — Por muitas e muitas vezes passaram pelo crivo. Todos perderam a família. Não querem voltar à pátria. De acordo com as circunstâncias, sabem que vão acabar presos. Esperam uma vida melhor do outro lado do oceano. Conhecem todos os riscos caso no caminho sejam descobertos. Seguem junto ainda seis civis. Cada um tem sua missão...

Os dois tripulantes que estavam no convés se adiantaram. Ajudaram Ross a subir a bordo. Estava inseguro e temia cair dentro da água imunda do bunker. A mala com o tambor do filme, ele segurava com mão de ferro.

— O senhor precisa subir a escada da torre e entrar no barco através da escotilha Não existe outro caminho — disse o comandante, tenente-capitão Jonson.

Olivera subiu a escada. Deu a mala a um dos homem que o seguia. Chegou balançando à escotilha e entrou, descendo os degraus internos. E ficou sem ar. Os piores sonhos de sua vida não o haviam preparado para aquilo que era o interior de um submarino. Tão apertado. Tão opressivo. Tão pavoroso. Olhava e via por todos os lados aparelhos, máquinas e painéis de instrumentos com uma massa imensa de incontáveis mostradores sob vidro. Por Deus! pensou ele.

— Siga em frente! — disse o homem que o acompanhava na descida da escada da torre. — Eu levo sua mala. Tem de seguir para os beliches. Através dos compartimentos. — Ross deu um passo, tateando, e continuou assim. O primeiro compartimento. Atravessou, passando os pés por cima. Uma luz fraca estava acesa. Homens de casaco, pulôver, cueca passavam apertados a seu lado. Apertado. Apertado. Uma angústia opressiva apoderou-se de Olivera, e crescia, e crescia. O homem com a mala o empurrou. Vamos! O próximo compartimento. Ross chegou a um compartimento com estreitos beliches, sempre um sobre o outro, de ambos os lados. Sobre seis desses deploráveis catres, em cima e embaixo, estavam sentados seis civis.

— Bom dia — disse Ross.

Os seis o fitaram. Nenhum respondeu. O cabo com a mala lhe disse:

— Lá em cima, ali é seu beliche.—Jogou para lá a mala com o filme e saiu do compartimento. Olivera viu que suas malas grandes já haviam sido, como numerosas outras, empurradas para baixo dos beliches. Tirou, então, o capote, não sabia o que fazer com ele e com seu chapéu, acabou jogando os dois no beliche, onde também trepou. Enquanto isso, os seis homens o olhavam. Olivera deitou-se sobre o leito estreito e fixou seus olhos no teto de aço que tinha diretamente sobre si. Embaixo, marinheiros corriam de cá para lá. Ouvia ordens e chamados. Parecia que aprontavam a embarcação para zarpar. Ninguém se importava com os sete civis. Nenhum deles falava. Eram senhores extraordinariamente silenciosos.

Meia hora mais tarde ligaram os motores diesel. Olivera sentiu como o submarino se punha vagarosamente em movimento. Eram 6h35m de 8 de abril. Olivera lembrou-se da frase de um clássico britânico, mas não de seu nome: Hell must be a place like London. Ele pensou: “O inferno deve ser um lugar como este aqui, isso sim. Até esse momento ele ainda não imaginava que deveria permanecer nesse inferno os próximos setenta e seis dias e setenta e seis noites, até a madrugada de 23 de junho de 1945.

Durante o dia, o submarino anda por debaixo d’água para economizar combustível. Por isso também navega muito rapidamente. Somente à noite é que sobe. Os motores elétricos precisam ser recarregados. E somente à noite é que eles podem, por algumas horas, deixar para trás o ar viciado do interior da embarcação e aspirar ar fresco. Setenta e seis dias e setenta e seis noites. Até mesmo para antigos tripulantes de submarinos, isso é quase demais. Os sete civis silenciosos, que nunca antes haviam passado sequer cinco minutos em um submersível, lutavam pela mera sobrevivência. Ficavam com enjôo. Vomitavam imediatamente o que comiam. Depois, já vomitavam mesmo sem comer, apenas ao sentir cheiro de alimento. Tinham de limpar tudo logo em seguida, a fim de não sufocarem com o próprio mau cheiro. Tinham medo da morte. Setenta e seis dias e setenta e seis noites com medo da morte. Ninguém se importava com eles. Eram desprezados pela tripulação como altos chefões nazistas. Todos a bordo deixam a barba crescer. Não podem lavar-se direito. Têm nojo do seu próprio corpo. O ambiente fica cada vez mais irritado, até mesmo para os macacos velhos da tripulação do submarino.

O único a quem nada daquilo parece afetar é o comandante Heinz Jonson, de uns trinta anos. Permanece completamente inalterado. Lacônico. Esperto. Vê tudo. Ouve tudo. Apazigua imediatamente qualquer rixa, afasta com rapidez dois que começam uma pancadaria. Impõe-se sem dificuldade contra qualquer implicante, amotinado, intrigante. Fica debruçado dia e noite — mas quando é dia e quando é noite? — sobre sua mesa de mapas, lê todas as informações que o radiotelegrafista capta em seu boxe e passa adiante aquelas que considera de interesse.

Já em 25 de abril os soldados russos e americanos estendem-se as mãos em Torgau, no rio Elba — e três dos sete civis estão há dez dias com diarréia, que piora mais ainda após esse encontro histórico. Em 30 de abril, Hitler designa para seu sucessor o comandante dos submarinos, Almirante Dönitz, e manda matar seu cachorro, sua Eva Braun e a si mesmo. As notícias provêm dos navios de guerra aliados que enxameiam na rota do Swinemünde, que não pode ser detectado e por isso mantém em silêncio seu rádio.

Algumas horas depois do fim de Hitler, Goebbels mata sua mulher, seus quatro filhos e a si mesmo, e Olivera, enquanto ouve isso, tem de pensar na pequena menina loura com a boneca Tina, cujo braço havia sido destroncado pelo irmãozinho Hans. Teria Goebbels perdido tempo dissolvendo o cianureto para toda a família? refletiu Olivera. É provável que sim. Que criança morde voluntariamente uma ampola de vidro?

A maior parte do dia, Olivera permanece deitado em seu beliche. A mala com o tambor do filme está a seu lado, presa com uma algema a um suporte de aço no revestimento externo da parede. Ele se cuida muito bem e mantém-se limpo o mais que pode. Obriga-se a comer. À noite, faz exercícios ao ar livre sobre o convés até escorrer suor. Eu sobrevivo a essa viagem infernal, prometeu a si mesmo. A maioria dos outros seis cavalheiros está mal, e tomou-se apática ou histérica. Todos sofrem de estomatite.

No dia 7 de maio Dönitz manda, às 2h41m, o General Jodl assinar a capitulação incondicional da Alemanha no quartel-general de Eisenhower, em Reims.

No dia 9 de maio, pensa Daniel, enquanto está voando num Jumbo da Aerolineas Argentinas com destino à cidade de São Paulo, foi assinada e confirmada a capitulação no quartel-general soviético em Berlim-Karlshorst, desta vez com a assinatura dos documentos pelo Marechal-de-Campo Keitel, novamente por ordem de Dönitz. Keitel e Jodl foram enforcados pelos vencedores mais tarde em Nuremberg, pondera Daniel. O Almirante Dönitz recebeu dez aninhos que cumpriu gentilmente sentado em Spandau, tendo sido libertado a 1° de outubro de 1956, e ainda escreveu um livrinho bonito, esse homem que simplesmente levou à morte trinta mil dos quarenta mil alemães que tripulavam submarinos. Dez anos e vinte dias, chamava-se a bela obra. Morrer, Dönitz só foi no dia 24 de dezembro de 1980. Iria completar 89 anos, a idade é respeitável. Agiu com rara inteligência em 1945. Não, com instinto! Reflexo condicionado. Como com os cachorros de Pavlov. Mandar os outros assinarem a derrota como representantes, quando tudo já está na merda — pensou Daniel — é um tipo de comportamento que em nosso país sempre ajudou a prolongar a vida.

A bordo da embarcação a capitulação foi festejada a 9 de maio de 1945, no mesmo dia em que ela, a partir de meia-noite e um entrou em vigor. O cozinheiro preparou uma gororoba especial e cada um recebeu uma banana e uma laranja. O jovem-velho comandante disse: — Maldição. E nunca mais uma guerra! Que Deus proteja a todos e a cada um em especial. — Bom sujeito, o velho. Que terá sido feito dele? Guerra, nunca mais — ai! meu Deus do céu!

No dia 23 de maio, o “Governo Dönitz” foi preso em Flensburg, e o mais idoso dos cavalheiros silenciosos a bordo teve um furúnculo em um lugar extremamente doloroso. Mais de dez milhões de soldados alemães encontram-se em cativeiro. Mais da metade do exército oriental, quase dois milhões de homens, alcança ainda a área sob jurisdição ocidental nos últimos dias da guerra. E a Marinha de guerra transporta de 23 de janeiro até 9 de maio, mais de dois milhões de fugitivos para o ocidente, desde as cabeças-de-ponte do mar Báltico.

E prossegue a viagem. Parece sem fim. Os outros taciturnos civis também têm agora furúnculos, eczemas e inflamações nos olhos. Somente Olivera é poupado, ao contrário de alguns homens da tripulação, que praguejam contra os altos chefões de merda, esses cães nazistas. Agora já se pode dizer a verdade sem medo, não é? Uma raiva furiosa explode entre esses pobres rapazes maltratados que ainda puderam escapar da matança final. Teriam mesmo escapado? Só haviam passado cinqüenta dos setenta e seis dias.

No qüinquagésimo primeiro dia, um dos silenciosos civis tem um ataque de furor e precisa ser amarrado aos trilhos de seu beliche. Começa, então, a bater com a cabeça na parede de aço, até que sangra como um porco, o que obriga a lhe amarrarem também a cabeça. Que porcaria! É contagiante. Uma semana depois dois outros senhores começam a delirar e precisam ser amarrados. Todos têm convulsões de choro, exceto Olivera. Quando permanece deitado em seu beliche está sempre quieto, calmo, polido. No JU-52 que o trouxe para Bergen ele descobrira um livro que alguém ali tinha abandonado. Chamava-se Grande Livro de Xadrez, e nele estavam descritas as duzentas e cinqüenta melhores partidas dos mais famosos mestres enxadristas do mundo, lance a lance. Como o livro fora impresso em 1930, ali se encontravam também as grandes partidas de judeus e russos, e Georg Ross, agora chamado Eduardo Olivera, estudou o volume, linha após linha. Lance por lance ele acompanhou mentalmente partidas geniais, a maioria delas disputadas entre Bernstein e Janovski, Alekhine e Marshall, Tarrash e Gunsberg, Lasker e Napier, Capablanca e Bogolibov e tantos e tantos outros. Esse livro de xadrez, P4D — C3BR, P4BD — P3R, por assim dizer, salvou sua vida, P/CR — P4D, B2C — B2R, porque dessa forma ele preservou seus nervos, não ficou louco e suportou inteiramente incólume setenta e seis dias e setenta e seis noites dentro do inferno, C3BR — 0—0, 2DB — PXP.

No qüinquagésimo nono dia de viagem, Olivera foi acordado pelos frenéticos gemidos de um civil, que se deitava no beliche debaixo do seu. Ele saltou da ratoeira. O homem estava com o rosto azul, olhos revirados e espuma na boca aberta. Um minuto mais tarde acabam os gemidos e o homem também. Começa a cheirar mal, dessa vez excepcionalmente com um outro fedor — o de amêndoas amargas. O sujeito mordera uma cápsula de cianureto, das que Olivera também possuía. Parece que todos as têm, esses sujeitos calados. Então, passaram a ser só seis. Dois marinheiros bem como seu chefe enfiaram o morto num saco de aniagem, juntaram pedaços de ferro ao cadáver e amarraram bem o volume. À noite, quando o barco emergiu, jogaram o saco ao mar bem como toda a bagagem que o homem trazia: os documentos secretos que se danem! Já foi tarde! Não se fez nenhuma oração: Pode deixar que ele vai para o céu. Logo em seguida Olivera fez sua ginástica. Como sempre. B4B — B3D, C5R — C4D.

Durante a noite antes do sexagésimo dia de sua viagem, outro civil perdeu inteiramente a razão. Já há uma semana não estava bom da cabeça e falava o tempo todo de raios X e de Martinho Lutero. Nessa noite, ele pulou da cama repentinamente e caminhou a esmo pelo resto da embarcação, tendo na mão uma faca de mola, C3BD —. CXB, PXC — C2D, sabe Deus de onde a sacou, PXC — C2D, P3R — D2R. Saiu com ela espetando quem se atravessava em seu caminho e até mesmo quem ressonava pacificamente (eram quatro horas da manhã). Uivava como uma fera: quero sair, sair, sair. O-O — T1C, C4R — C3B. Não conseguiram subjugá-lo, e então o Comandante sacou de uma pistola — era o único que podia possuir uma arma — e atirou três projéteis na barriga do alucinado. E como o homem custasse a morrer, esvaziou o pente de balas. Isso foi suficiente. E novamente precisaram enfiar um morto desconhecido num saco de juta com ferros, amarrar o saco, e à noite jogá-lo ao mar com todas as suas coisas. O enfermeiro de bordo medicou os feridos — por sorte eram apenas ferimentos na carne, inofensivos, só precisou desinfetá-los com vigor — e Olivera estava de novo ocupado com suas flexões de pernas e braços e exercícios de respiração, P5B — P3CR, PXPR — DXP. Era apenas o sexagésimo dia de viagem.

Passou então a fazer cada vez mais calor, um calor terrível. A bordo, todos estão quase despidos e suam como animais, noite e dia, porque agora também as noites são quentes. Quase todos têm furúnculos, aftas e eczemas. Apenas Olivera não tem, T5-5C— P4B, P4T — R2B. Rubinstein fez um jogo fantástico, simplesmente notável!

E vejam só, chegou a noite antes do septuagésimo sexto dia e todos sabiam: agora chegou o momento! Os mais doentios e desgraçados começaram a rir amarelo, o comandante Jonson está olhando pelo periscópio e observa a costa que se estende a umas trinta milhas marítimas de distância. Então — são três da madrugada — ele recolhe o periscópio e dá ordem de emergir. Todos escalam a escada para o convés, até mesmo os que estão de serviço. Vêem luzes perdidas a distância e sabem que são de um lugarejo chamado Bartolomé Bavio, que fica na margem direita do rio da Prata, portanto à esquerda deles, e que atingiram o objetivo, pelo menos os civis. Jonson já combinara com os seus homens: quando os civis tivessem ido embora ele iria entrar na foz até Buenos Aires e se entregar no porto aos americanos. Ele sabia que navios americanos estavam no porto. O comandante diria que eles fugiram com o submarino porque estavam de saco cheio de seu país, e, como comprovação de sua sinceridade e boa vontade, trouxeram um submarino de longo curso alemão, inteirinho, lançado ao mar em 1941, no estaleiro de Blohm & Voss, em Hamburgo, por assim dizer, um presente de convidado. E que desejavam ir para os Estados Unidos. Se fosse necessário, primeiramente na qualidade de prioneiros de guerra. Mas depois, pelo amor de Deus, que os deixassem ficar no país, pois seriam bons cidadãos. Só queriam mesmo viver na América e em paz. Lá ainda havia esperança para eles. Na Alemanha, não Por isso, arriscaram esse louca viagem, que durara setenta e seis dias e setenta e seis noites.

O barco aproxima-se lentamente da costa. Depois de algum tempo começa a dar o sinal de visitante. Emite um sinal combinado com luz vermelha.

E vejam! O sinal é respondido! Da costa vem trêmulo um sinal, igualmente vermelho, repetidas vezes. Eles vêm buscar a homens silenciosos. Diabo, talvez tudo tenha dado certo! E ainda por cima perdemos a guerra. P6R — P7B, B4B -  (1-0).

Cerca de duas horas mais tarde, aproximou-se um grande barco a motor, muito veloz. Soam vozes em alemão. Rápido! Precisa ser rápido, porque a guarda costeira está atenta por toda a parte. Os cinco civis e suas bagagens são içados para bordo do grande barco chegado. Como vocês são só cinco? Onde se encontram os outros dois? Eles... Baixo, baixo. Sussurros. E as malas deles? No mar. Que maldita porcaria! O comandante estava junto à torre, apertou a mão de cada um dos indesejados hóspedes e repetiu cinco vezes: então boa sorte. As amarras foram soltas. O barco a motor logo girou e tomou a direção da costa, na mais alta velocidade. Olivera virou-se ainda uma vez. Na penumbra, viu Heinz Jonson de pé junto à torre.

Um quarto de hora meis tarde o barco chegou à costa. O rio da Prata era raso ali, e a praia era de areia fina, e branca. Foram obrigados a correr um trecho chapinhando na água, mas, então, pisam solo argentino. O barco a motor vai embora. Em ternos imundos, os cinco permanecem imóveis de pé, chapéus na cabeça. Sem qualquer movimento, sentem o ar úmido e quente. Seis minutos e meio depois aparecem sete automóveis, entre os quais dois jipes. De novo as perguntas, onde se encontram os dois que faltam, as mesmas respostas, outros tantos palavrões.

Vamos embora, temos de ir o mais rápido possível! Cada um dos cavalheiros é enfiado num carro com sua bagagem. Dois carros ficam sem passageiro. Eduardo Olivera está sentado na frente, ao lado de um homem alto de calça e camisa brancas que dirige o jipe. No banco de trás está a bagagem, mas a mala com o filme e o livro de xadrez, Olivera conserva sobre os joelhos.

— Nós vamos para Bartolomé Bavio — disse o homem ao volante. — Lá o senhor passará o dia. Escondido. Com amigos. — Fala agora em espanhol, e é nessa língua que Olivera responde:

— Por que não vamos direto para Buenos Aires?

O motorista ficou satisfeito com a pronúncia de Olivera.

— Perigoso demais — respondeu. — Muitos milhares espalhados. À noite eu o levo adiante. Para sua casa. Está tudo preparado! — E deu a partida, rodando sobre a fina areia branca como pérolas. Os outros carros já desapareceram. Olivera foi levemente pressionado para trás em seu assento. Uma indescritível sensação de felicidade o invade, forte, muitas vezes mais forte que aquela que sentira a bordo do JU-52. Salvo! Em segurança! Sobreviveu! Começou então a rir. E riu, riu muito. O motorista nem prestou atenção. Dirigia sem luz, claro. Agora já estavam numa estrada. E ali, quando o jipe disparou numa curva, o Grande Livro de Xadrez deslizou de cima da mala que Olivera trazia sobre os joelhos e caiu do carro, na escuridão, enterrando-se na areia da praia. E Olivera queria tanto conservá-lo, guardá-lo para sempre: o livro que o protegera da loucura e da morte.

— Que foi isso?

— Isso o quê?

— Voou agora mesmo alguma coisa para fora.

— Ah, é sim.

— Mas, o quê?

— Nada de importante — disse Olivera.

— Senhoras e senhores, sua atenção, por favor!

Uma aeromoça chegara a um microfone telefônico. Sua voz soava dos alto-falantes para toda a imensa cabine, mas também dos fones de ouvido de cada assento. Quando eles estavam ligados à música, esta era automaticamente interrompida. Daniel abriu os olhos e precisou de um momento até que soubesse de novo onde se encontrava. Ainda agora sonhara acordado com a chegada do pai na Argentina. Percebeu que Mercedes estava segurando sua mão.

A aeromoça continuava falando:

— Em poucos minutos iremos pousar no Aeroporto Internacional de São Paulo. Temos um pequeno defeito no condicionamento de ar, que desejamos afastar antes de prosseguirmos com o vôo. Isso deverá demorar cerca de trinta minutos. Solicitamos aos senhores passageiros que abandonem a aeronave e aguardem a partida nas salas de trânsito. Todos estão cordialmente convidados a tomar um drinque. Após a partida, serviremos o jantar. Pedimos encarecidamente aos senhores passageiros que apertem os cintos e se abstenham de fumar. Obrigada!

E repetiu sua mensagem em três outros idiomas.

Lá fora já estava escuro. A luz estava acesa na cabine.

— Como está, Danny?

— Muito melhor — disse ele. — Estou bastante dopado, mas está muito melhor, Mercedes.

Ela acariciou a mão dele.

— Você dormiu.

— Sim.

— Você fica maravilhoso quando está dormindo.

— Mercedes!

— Não, realmente. E eu velei o seu sono.

— Você foi muito boazinha. Fica maravilhosa quando vigia.

— Ambos somos lindos. — Ela lhe havia tirado os fones do ouvido e o beijava na face. O sacerdote, que olhava para fora pela janela, disse em inglês para Daniel:

— Esta é a maior cidade do Brasil. É o centro da vida científica. Três universidades do Estado e uma católica. — Mercedes e Daniel olharam para baixo, O aparelho sobrevoava um imenso mar de luzes. O sistema de ruas se assemelhava ao de Buenos Aires.

— Uma quantidade de indústrias — prosseguiu o reverendo. — A maioria dos filmes brasileiros é rodada aqui. Dois aeroportos. Muitas auto-estradas. Para o porto de Santos. Até o Rio. São Paulo foi fundada pelos jesuítas em 1554 — disse ele orgulhoso. — Hoje em dia é chamada de Chicago da América do Sul. Senhor, Tu nos deste, em Tua misericórdia, a Tua proteção até agora. Continua a proteger-nos, nós Te pedimos, Amém.

O Jumbo perdia altura rapidamente.

— O senhor vai prosseguir no vôo? — indagou Mercedes.

- Oh, sim. Até Frankfurt. E, depois, até Colônia. O Arcebispo me chamou de volta para casa.

- O senhor é alemão?

— Sou — disse o sacerdote enquanto o Jumbo pousava e corria pela pista, demarcada dos dois lados pelas fortes luzes. Passou a falar alemão: — De Colônia. A senhora o percebe pelo sotaque. Meu nome é Heinrich Sander.

— Quanto tempo ficou na América do Sul?

— Em Buenos Aires, apenas em Buenos Aires — disse o padre Sander —, vinte e cinco anos. — Ele sorria, e era o mais bondoso sorriso do mundo, pensou Ross. — Agora estou velho. Agora posso pensar em mim. Finalmente terei tempo para ler. E trabalhar em um grande jardim. Sou muito bom jardineiro, sabia?

Mal o avião desligou as turbinas, o condicionamento de ar foi desligado. Imediatamente, todos os passageiros começaram a suar. Apressaram-se em deixar o avião. Ergueu-se igualmente o rapaz alto, esguio e bronzeado que, seis filas atrás de Mercedes e Daniel, estava sentado observando os dois, desde a partida. Ele viu que Mercedes tirou do porta-bagagens a bolsa vermelha onde pusera os dois vídeo-cassetes. Seus olhos quase se fecharam. O velho padre seguiu à frente de Mercedes e Daniel, apoiado em uma pesada bengala de madeira negra e trabalhada em prata.

Ao ar livre, o calor era tão insuportável quanto em Buenos Aires. Os ônibus de passageiros seguiram rapidamente. Uma aeromoça havia afirmado que as salas de trânsito eram climatizadas. Mercedes tomara o braço de Daniel e o apoiava enquanto caminhavam ao longo de um comprido e iluminado corredor do aeroporto; o padre seguia ao lado deles. Daniel vacilava um pouco. Seu rosto estava abatido e muito pálido. Súbito, no instante em que queria entrar na sala de trânsito, ele foi girado com força.

Mercedes lançou um grito estridente. Daniel viu que um homem jovem, de grande estatura e óculos sem aros, tentava arrancar-lhe a bolsa vermelha. Ela se defendeu, desesperada. O homem era mais forte. Finalmente, estava com a bolsa. Já queria fugir quando soltou um gemido, caindo de joelhos. O velho sacerdote o havia atingido na cabeça com o castão de sua bengala.

Vários passageiros começaram a gritar. Dois policiais vieram correndo do salão. O velho padre abaixou-se com uma rapidez que ninguém poderia imaginar e arrancou a bolsa vermelha das mãos do rapaz, por cujo rosto o sangue corria, vindo de um ferimento coberto por seus cabelos.

— Polícia — gritou ele —, polícia! Socorro! Socorro!

O homem conseguiu pôr-se de pé, jogou-se para a frente abrindo caminho de qualquer maneira e correu para fora do salão através de uma entrada lateral. Os dois policiais ocuparam-se de Mercedes. O padre contou-lhes o ocorrido. Mercedes estava nervosa demais para que pudesse falar. Daniel balançava. Os policiais puseram-se a correr atrás do fugitivo. No corredor entupido de gente só conseguiam avançar devagar.

— A senhora precisa tomar alguma coisa contra o susto — disse o padre Sander em idioma alemão com sotaque de Colônia.

— Deixe que eu trato disso. Tanta gente. Encomendo direto no bar. Sente-se aqui e não vá embora! Volto em seguida.

Daniel esforçava-se para acalmá-la. Ela tremia toda, e abriu com dificuldade a bolsa para assegurar-se de que os dois cassetes ainda se encontravam lá.

— É porque eu também adormeci um pouquinho a seu lado — disse ela a Daniel.

— Ele não iria tentar arrancar-lhe a bolsa se já tivesse os cassetes consigo — disse Daniel.

— O cachorro — disse Mercedes —, cachorro imundo. — Fechou então a bolsa vermelha e abraçou-a com os dois braços. Logo em seguida surgiu o padre com uma bandeja e três copos compridos.

— Gim-tônica — disse Sander. — Peguei logo duplos. — Ele sentou-se.

Os pequenos limões verdes, pensou Daniel olhando para dentro de seu copo, como na casa de meu pai.

— Dentro de cinco minutos o garçom nos trará o mesmo mais uma vez — disse o padre. — Tem algo de valioso dentro da bolsa?

— Sim — volveu Mercedes.

— Todos esses sujeitos roubam — disse o velho padre. — De preferência no metrô, ou num aperto como esse.

— O senhor foi simplesmente formidável, reverendo — disse Mercedes. — Eu lhe agradeço.

— Não seja por isso — disse o ancião. — Foi uma satisfação. Se tivesse alguns anos menos, esse menino não teria tido chance de escapar. Cheerio, a esse susto! — Ergueu o copo. Beberam a ele. — Já fui o melhor lutador de boxe da Ordem. E o melhor corredor nos mil metros. Os novos drinques têm de vir logo.

Nesse momento, o jovem de óculos sem aros estava sentado num Peugeot preto estacionado à frente do aeroporto. Um outro rapaz, mais baixo e de longos cabelos pretos, estava sentado atrás do volante e tratava da ferida. Segurava em cima dos joelhos uma caixa de lata para primeiros socorros. Depois de desinfetá-la, colocou uma atadura por cima dos cabelos e da testa do outro. Em seguida, limpou seu rosto com álcool. Enquanto fazia isso, os dois conversavam.

— Então, agora você sabe onde eles estão sentados Pablo. E onde eu me sentei. Você tem de arranjar um outro lugar. O avião está meio vazio.

— Agora, naturalmente, vão tratar de botar a bolsa entre eles — disse Pablo. — Você pega o carro e vai para a cidade, León. Correio central. Perigo nenhum. De lá, telefona para Cristóbal. Ele me disse que Londres já havia encontrado o homem certo. Esse agora vai assumir. Ele vai estar em Frankfurt quando pousarmos, me informou Cristóbal, e vai falar comigo. Sabe qual é minha aparência. Estarei segurando uma orquídea na mão. Conte a Cristóbal o que aconteceu. Para que esse homem já saiba de tudo. Fotos dos dois já lhe foram mostradas, segundo Cristóbal. Isso, a atadura está presa. Trata agora de sumir daqui, León! — Ele fechou a caixa de primeiros socorros e jogou-a para cima do banco traseiro. — Vou entrando agora. Já fiz o check-in. Até logo, León, boa sorte!

— Para você também, Pablo. — Saltaram ambos do carro e deram-se as mãos. León acompanhou Pablo com o olhar, vendo-o encaminhar-se para a entrada do aeroporto, sentou-se em seguida ao volante do Peugeot e deu a partida. Logo estava entrando numa auto-estrada que o conduziria até a cidade.

Na habitação do solitário velho de nome Cristóbal na casa de número 25 da Rua Husares defronte às casernas e praças de exercícios do Regimento 3 de Infantería General Belgrano em Buenos Aires tocou o telefone. Cristóbal, que só estava vestido nas últimas semanas com uma toalha à cintura porque o calor quase dava cabo dele, saiu correndo do quarto dos fundos e atendeu.

— Sim?

— Aqui é León.

— Onde você está?

— São Paulo. Correio central.

— Que houve?

León contou o que havia. Cristóbal praguejou:

— Seu imundo filho da puta, quem foi que lhe disse que você deveria entrar em ação? Você tinha de acompanhar os dois até São Paulo, nada mais.

— Eu sei. Mas é que vi os cassetes. Isso me deixou simplesmente maluco, Cristóbal. Será que você não pode entender isso? Pensei que pudesse resolver a coisa facilmente. E eu teria conseguido se não fosse aquele maldito padreco.

— Se... se... Se vocês tivessem pelo menos um pouquinho de massa cinzenta, vocês todos! — Cristóbal xingava novamente. — Mas não, um merdinha como você vai logo querer brincar de 007. Bastava você ter informado que os cassetes se encontram dentro da bolsa e você já seria um grande homem, seu merda. Você vai naturalmente pegar o avião de volta no outro aeroporto.

— Claro. Sinto muito.

— Sente porcaria nenhuma! Pablo está no avião?

— Sim.

— Pernoite numa pensãozinha qualquer! Devolva o carro de aluguel! Voe amanhã cedo! Boa noite, idiota!

Cristóbal desligou, acoplou o misturador de vozes, respirou fundo e ligou para o advogado Roger Morley, em Londres.

O mercenário Wayne Hyde repousava na cama de seu quarto no hotel RICHMOND e lia sonetos de Shakespeare. Já estava lendo há mais de uma hora. Eram três e meia da manhã e Hyde não conseguia dormir. Presumivelmente ninguém o conseguia em toda Londres. Um temporal de uma força que Hyde só vira em nevascas nos Estados Unidos, onde eram chamadas de blizzards e que já rugia há duas horas sobre a cidade. Levantava telhados, fazia paredes desabarem, desenraizava grandes e velhas árvores e aturdia com o barulho de uma esquadrilha de bombardeiros. A tempestade, que era acompanhada de inacreditáveis quedas de neve, era de fato ensurdecedora. Embora as janelas estivessem trancadas, as cortinas voavam e um ar gelado envolvia o quarto. Mesmo o antigo hotel com suas espessas paredes tremia, a ponto de Hyde poder senti-lo na cama. Sentia dor de cabeça e mesmo tendo tomado dois comprimidos, eles não surtiam efeito.

“Como as ondas do mar correm pra areia, / Nossas horas se perdem, consumidas...“

(A tradução dos versos de Shakespeare citados neste livro é de Carlos Sergio Abbenseth.N. da E.)

Este era o começo do soneto número 60. Hyde o conhecia e adorava. Para esse homem, que lia em cada minuto livre, lia como um sedento, como um maníaco, a literatura era o que a religião significa para pessoas devotas, e a ideologia para os fanáticos. Sim, Wayne Hyde, aquele assassino de aluguel com muitas mortes nas costas, era um leitor fanático.

“... E vão, maré vazia, maré cheia, / Sempre adiante, uma a uma, em duras lidas. / Do nascimento, luz por toda a Terra, / Vem lenta a madureza, e é coroada / No umbral da noite que lhe faz a guerra: / O tempo deu, para deixar um nada...”

O telefone tocou na mesinha-de-cabeceira. Hyde atendeu.

— Sim?

— Aqui é o porteiro da noite. Desculpe incomodá-lo, Sir. Mas um cavalheiro telefonou e pede que o chame urgente de volta. Vou lhe dar o número dele. — Passou a ditá-lo. Hyde percebeu após o terceiro algarismo que se tratava do número da secretária eletrônica de Roger Morley. Ele agradeceu, desligou, sentou-se na cama e, enquanto lá fora desabava o temporal, discou o número de Morley. Sobre a mesa-de-cabeceira estava pousado o pequeno decodificador branco. Pegou-o com a mão livre.

A voz de Morley se anunciou no aparelho e deu o nome e o endereço do proprietário, que aparentemente não se encontrava em casa. Mas se poderia deixar um recado.

— Por favor, fale agora — disse a voz de Morley na fita.

Hyde segurou a parte preta superior do decodificador diante do microfone do seu receptor telefônico e apertou o botão negro de seu pequeno aparelho. Nesse instante, o decodificador emitiu três sons de diferentes alturas e durações. Hyde tornou a colocar o receptor ao ouvido. Notou como uma fita retrocedia, depois soou a voz de Morley:

— Morning, morning. Lamento caso esteja incomodando mas presumo que o senhor, como eu, não esteja dormindo. Novidades para o senhor... — A voz de Morley relatou na fita o que o velho e solitário Cristóbal em Buenos Aires lhe acabara de informar. Ele concluía: — Infelizmente, nós também temos de lidar com idiotas, meu caro. Bem, no fim mais uma vez deu certo. Portanto, os cassetes estão a bordo e agora também sabemos em que lugar. Pelos documentos que leu, o senhor poderá reconhecer em Frankfurt o homem que acompanha os dois até a Europa. Ele se chama Pablo. Grande falta de sorte, essa tempestade de neve. Telefonei para Heathrow. Eles informam que vai continuar assim ainda por duas, três horas. Até o meio-dia não parte nenhum avião, isso é certo. Quase certo que também na parte da tarde nenhum avião decolará. Lufadas de neve acumularam-se em todas as pistas com altura de mais de dois metros. E está piorando cada vez mais. As chances de que o senhor chegue a tempo em Frankfurt são agora de vinte para oitenta, na melhor das hipóteses. Good Luck. Fim.

A fita parou com um leve dique. Hyde repôs o telefone no gancho e o decodificador sobre a mesa-de-cabeceira. Deixou-se cair para trás em sua cama, pegou o livro e retomou a leitura.

“...O tempo abate a verde juventude, / Rasga sulcos na fronte outrora bela, / Consome a natureza, em fome rude, / Tudo o que é, foice em punho ele debela. I Mas meu verso se opõe à mão que avança: / Pra te cantar, resiste na esperança.”

Maravilhoso, pensou Hyde. simplesmente maravilhoso. Vinte para oitenta? Deus sabe, já tive chances menores. Bem menores...

— É óbvio que o homem que me apanhou com o jipe não me trouxe imediatamente aqui para essa mansão — dissera Olivera alguns dias antes, tarde da noite, à luz azulada da piscina no parque. — Eles tinham providenciado um grande apartamento para mim, no centro. Nada de extraordinário, mas limpo e sólido. Uma governante, uma senhora de idade, esperava por mim. Fui introduzido oficialmente como novo diretor de um banco pequeno, que se chamava Banca Imperiale.

Daniel pensava nessas palavras de seu pai enquanto se encontrava em seu assento. Eles estavam de novo no ar e voavam agora- em direção ao Rio de Janeiro. O jantar fora servido. Daniel não tinha nenhum apetite e não comeu quase nada. O tremor de suas mos ficava cada vez mais forte, sua cabeça doía de estourar e ele sentia novamente o medo, o medo... Ainda não chegara, mas já estava à espreita, pronto para o salto. Mercedes o observava, presa da maior preocupação.

— Mal, não? — perguntou ela baixo.

— Sim.

— Você tem de agüentar, Danny! Pense naquilo que está em jogo!

— É nisso que estou pensando. — Esforçou-se para sorrir. — O chato é que o Nobilam não faz mais efeito. Em São Paulo engoli vinte comprimidos. E os dois gim-tônica. Nenhum efeito. — Ele acariciou a mão dela. — Mas vou conseguir. — Virou-se para o padre, que tinha diante de si uma meia garrafa de vinho que sorvia com vagar. — Poderia passar-me um instante a bolsa?

— Mas, certamente. — O padre chamado Sander deu-lhe a bolsa. Ela se achava à sua esquerda, entre seu corpo e a parede da cabina, O jovem de longos cabelos pretos, cujo nome era Pablo e que se achava sentado três bancos atrás, na seção esquerda portanto, viu quando o sacerdote passou a bolsa vermelha para Daniel. Este a abriu, retirou seu frasquinho e falou com uma aeromoça. Ela fez que sim com a cabeça, dirigiu-se à copa mais próxima e retornou com um copo d’água. Pablo não podia ver que Daniel pingava vinte gotas na água nem que a bebeu em seguida. Só pôde ver que a aeromoça se retirou e que Daniel devolveu ao padre a bolsa vermelha. Voltou ao lugar entre ele e a parede. León, maldito cagão! pensou Pablo, ninguém mais chega nem perto da bolsa. É claro que seria loucura tentar alguma coisa no Rio. Mas espero que dê certo depois que pousarmos em Frankfurt, com a ajuda desse homem que espera por mim. Pablo segurava uma pequena caixa transparente. Lá dentro se achava uma orquídea marrom-esverdeada com pintinhas, chamada de Sandália de Dama — o sinal de identificação. Daniel disse:

— Em todo o caso, tomei as gotas antes que fique pior. Ainda há bastante. Mesmo que eu tenha de tomar todas, eu vou agüentar firme, Mercedes. — Ele apertou a mão dela que estava pousada no braço da poltrona entre os dois e fechou os olhos. Novamente pensou na narrativa de seu pai...

A Banca Imperiale empregava principalmente descendentes de alemães. Cuidava de muitos clientes especiais. Olivera sabia o que o esperava. Logo após a queda do Terceiro Reich, começou a funcionar uma empresa de nome ODESSA, extraordinariamente bem preparada e montada. ODESSA era a abreviação para as iniciais de Organization Derehemaligen SS-Angehõrigen, organização dos ex-membros das SS. Tinha associados e colaboradores praticamente em todos os lugares e nos primeiros anos do pós-guerra ela trabalhava em ritmo de alta rotação; mais tarde, foi progressivamente reduzindo seu ímpeto. Com a ajuda de órgãos oficiais dos mais diferentes Estados, de pessoas ricas, de políticos e de altos dignitários da Igreja católica que, em parte, se achavam até mesmo no Vaticano. ODESSA se propunha à tarefa de remover nazistas de alto nível em risco de vida, assim como criminosos de guerra, da Alemanha para o ultramar, em primeiro lugar para a América do Sul e particularmente para a Argentina. Assim sucedeu, por exemplo, com Adolf Eichmann. A SS, que agora trabalhava na clandestinidade, possuía dinheiro e ouro em profusão. Os homens que eram levados para fora da Alemanha tomavam seu caminho na maioria das vezes via Áustria, sul da França, Espanha e Portugal. Daí, seguiam de navio. Naturalmente que tudo tinha de estar preparado na nova pátria, como no caso de Ross, aliás Olivera, para abrigar o fugitivo. Hoje existe documentação precisa sobre a ODESSA. Também Banca Imperiale fora montada por ela. Por pequena que fosse essa instituição, as somas que tinha a sua disposição eram astronômicas. As ordens de depósito procediam na sua maior parte da Suíça, mas também da República Federal da Alemanha. Um ponderável papel nas atividades da ODESSA foi desempenhado pela indústria alemã do pós-guerra. Dentre os seus novos chefões contava-se suficiente número de ex-dirigentes da economia de guerra e elementos das SS.

O banco de Olivera servia no país como novo ponto de apoio para que os fugitivos pudessem começar uma nova vida. Aqui recebiam dinheiro e importantes informações. Havia ainda outros onze bancos na Argentina com idênticas funções. Todos eles pertenciam à ODESSA.

Olivera se julgava feliz em poder ajudar esses genocidas foragidos e importantes figuras do nacional-socialismo procuradas pela policia. Afinal, também era um fugitivo. O tambor de alumínio que continha o filme de trinta e cinco milímetros, ele o guardou em seu cofre privativo dentro do banco. Levava uma vida extremamente reservada e aguardava a ordem para trazer a público seu conteúdo. Sabia que teria de esperar alguns anos, muitos anos. Talvez a vida inteira. Seus clientes da ODESSA não deixavam de criar, de tempos em tempos, exaustivos incidentes, não havendo lugar para monotonia. Olivera apreciava viver sozinho. Naturalmente precisava de vez em quando de uma mulher. Havia casas muito discretas na cidade.

Passaram-se os anos. Veio o bloqueio de Berlim, chegou a guerra fria e, em 25 de junho de 1950, a primeira guerra quente, na Coréia. A evolução que Goebbels havia previsto começava. Por volta do meio-dia de 12 de julho de 1950, Olivera recebeu a chamada telefônica de um desconhecido que o convocou em fluente castelhano para um encontro no mesmo dia, pontualmente às l5h, no SKAL..CLUB internacional, em Viamonte 867. Um ho mem com um cravo branco na lapela de um temo azul o iria abordar. Olivera deveria trazer consigo a metade do retrato autografado rasgado.

Sentou-se a um canto do salão de chá do Skal-Club, havia chegado um tanto cedo demais. Pontualmente às l5h, entrou um homem baixote, de cerca de cinqüenta anos de idade, com escuros e pesados sacos lacrimais embaixo dos olhos. Trazia o cravo branco preso na lapela de um temo azul-claro de seda de shantung..

O indivíduo veio direto em direção a Olivera e lhe estendeu uma mão flácida e úmida. Disse baixinho, em alemão: — Heil, Kamerad!

— Heil — disse Olivera. Um garçom aproximou-se rápido. Eram, no momento, os únicos no salão. O homem do cravo também pediu chá. Depois ficou sentado em silêncio por nove minutos, o tempo de que o garçom precisou para trazer o chá e desa parecer novamente.

— Então — disse ele, pondo sobre a mesa uma metade da foto de Adolf Hitler, no tamanho de um cartão-postal, que Goebbels havia rasgado de maneira tão bizarra no bunker da Chancelaria do Reich. Olivera tirou a outra metade do bolso interno de seu paletó e justapôs as duas partes do retrato. — Bem. Tudo em ordem com o filme? — O gordo falava com um estranho chiado na voz, lançando perdigotos. Seu rosto estava torcido pela dor, e um lado estava inchado.

— Claro — disse Olivera. — Que tem o senhor?

— Supuração de raiz. Estou vindo direto do dentista. O senhor não faz a menor idéia de como isso dói, camarada. Onde se encontra o filme? — E espalhava perdigotos por todos os lados, sobre a mesa, as xícaras e o rosto de Olivera.

— Num cofre de meu banco.

— Bom, Kwnerad. Cheguei ontem. Fiquei com essa maldita supuração a bordo do cargueiro. Há duas semanas não prego o olho. — Tomou um gole de chá, gemendo bem alto.

— Merda, quente demais. A central ODESSA tem ordens para o senhor.

— Sim? — Durante um louco instante, Olivera pensou que o estranho iria dizer-lhe que o momento havia chegado. O sangue lhe subiu ao rosto.

— A situação internacional não está nem de longe suficientemente ruim. O senhor precisa continuar a esperar. Essa coisa é da mais alta significação. O senhor voltará a ser contatado por nós.

O homem do cravo colocou novamente no bolso sua metade da foto, entendeu outra vez sua flácida mão para Olivera, levantou-se e saiu rapidamente do salão de chá.

Nos trinta e quatro anos subseqüentes, Olivera nunca mais ouviu uma só palavra a respeito do filme.

— Você chegou a pensar alguma vez em minha mãe ou em mim? — havia perguntado Daniel a seu pai, após a conclusão desse relato. Eram quase duas e meia da madrugada e só então o ar ficara mais fresco. Estavam ainda sentados à borda da piscina iluminada.

— Às vezes. Não muito.

— Você tentou descobrir se nós ainda vivíamos e como estávamos passando?

— Não, nunca. E como estavam vocês? — perguntou Olivera polidamente.

— Muito mal durante bastante tempo. Até que eu pudesse começar a trabalhar.

— Dora — disse Olivera e olhou para a água da piscina. — Eu pensava em Dora. Apenas em Dora. Dia e noite pensava nela. Com freqüência sonhei com ela. Com sua risada. Com seu fim. Eu a amei muito. Sempre tinha de pensar que ela poderia ter vindo comigo para a Argentina. Teríamos sido muito felizes juntos. Muito mais do que em Berlim... — Sua voz se esvaiu.

— Mamãe faleceu em 1969. Dia 12 de dezembro — disse Daniel.

Olivera não reagiu.

— Eu disse que mamãe...

— Sim, sim, eu sei. De quê?

— Leucemia.

— Durou muito tempo?

— Quase um ano. Ela sofreu muito, pai.

— Não sou tão insensível quanto você está pensando, Daniel. Tudo o que fiz a vocês dois, eu lamento muito, lamento muitissimo. Mas eu continuava a amar Dora. Embora ela estivesse morta já há tanto tempo. Em cinqüenta e quatro eu a vi novamente.

— Você viu o quê?

— Eu vi Dora outra vez — repetiu Olivera.

A bola azul rolou dIretamente para os pés de Olivera.

Uma pequena menina com vestidinho branco, sapatos e soquetes brancas tropeçou no caminho coberto de saibro. Foi na tarde de 5 de maio de 1954. Olivera caminhava através do grande Parque de Febrero. Estava saindo do planetário onde tinha ouvido uma palestra.

Ele abaixou-se e apanhou a bola. A menininha veio em sua direção de braços abertos. Ela ainda era muito pequena.

— Mas que bola bonita — disse Olivera.

— Tenho mais duas, uma verde e uma vermelha — disse a garotinha. — Mas eu gosto mesmo é da azul. Como é que você se chama?

— Escute, você não pode ir perguntando assim o nome do cavalheiro — disse uma grave voz de mulher. Olivera ergueu o olhar e se levantou. Sentiu um imenso calor e logo em seguida um calafrio. Diante dele estava Dora HoIm. Seu cabelo negro faiscava ao sol, seus olhos azuis brilhavam e ela lhe sorria com seus lindos lábios. Perdeu o fôlego. Dora, pensou ele, minha Dora!

É claro que não era Dora Holm.

Era uma mulher incrivelmente parecida com Dora HoIm. Devia ser uns dez anos mais velha e sua pele não era tão branca, e sim bronzeada pelo sol. Estava com um vestido azul com pontinhos brancos, colarinho, luvas e sapatos brancos. Olivera queria falar mas gaguejava.

— Obrigada por haver pego a bola — disse a jovem mulher.

— Mas por favor! — Ele levantou o chapéu de linho. — Uma garotinha tão encantadora. E uma tão... encantadora mamãe. Meu nome é Eduardo Olivera.

— Eu me chamo Mangalez. Eliza Mangalez.

— E eu me chamo Mercedes — disse a menininha.

Olivera notou que ela também tinha cabelos pretos e olhos azuis. Mercedes trazia uma fita vermelha nos cabelos. A mulher parecida com Dora HoIm riu novamente.

— Por que está me olhando tão espantado, Sr. Olivera?

Falavam espanhol.

— Porque a senhora me... Porque a senhora é tão bela — emendou-se ele. — Tão maravilhosa, que eu...

— Sim? — indagou ela.

— Nada — disse ele. — Posso acompanhá-la por um trecho do caminho? Ali há um restaurante. Você gosta de sorvete, Mercedes?

— Oh, sim! É a melhor coisa do mundo.

— Então, senhora? Vamos tomar alguma coisa? Está muito quente... Quero dizer, só se a senhora quiser. Eu ficaria muito feliz... Mas talvez a senhora tenha de ir para casa... Talvez seu marido esteja esperando...

O riso desapareceu dos lábios dela.

— Meu marido não está me esperando.

— Desculpe, senhora.

— Meu marido desquitou-se de mim há um ano e meio — disse ela, tranqüila. — Por causa de uma outra mulher. Foi-se embora com ela para muito longe. Trabalha agora na Venezuela.

— Você está ouvindo? — disse Mercedes. — Papai foi embora. Não está esperando em casa. Podemos ir tomar um sorvete. Eu quero de morango com chocolate. É o melhor que tem.

Olivera olhou Eliza Mangalez dentro dos imensos olhos azuis. Ela respondeu seu olhar e sorriu novamente. Menos de três meses mais tarde, eles se casaram,

— Você ainda não tinha quatro anos — disse Olivera à moça a seu lado, naquela noite junto à piscina do grande parque. — Você nem pode se lembrar de tudo isso, naturalmente.

— Mas claro que sim — disse ela. — O sorvete estava ótimo. Acho até que tomei uma dupla porção. E uma semana depois eu lhe perguntei: “Você vai casar com minha mãe?” Mamãe me contou mais tarde que só faltou morrer de vergonha.

— Sim — disse Olivera — ficou famosa essa sua frase, Mercedes. Com vocês duas, voltei a ser feliz. Não só na vida particular, mas nos negócios também. Em 1955, uma junta militar assumiu o poder no país. O General Lonardi foi eleito Presidente. Eu já o conhecia há três anos. Pode-se dizer que mantínhamos uma boa amizade. Nos limites das possibilidades do meu banco, eu o ajudei bastante, tanto a ele quanto a seu pessoal.

— Eu pensava que você tinha se tornado um democrata — disse Daniel.

— Tinha mesmo — disse Olivera sério. — Mas, como eu já disse antes, estou convencido de que uma democracia nunca vai funcionar na Argentina. Pense no que ocorreu desde cinqüenta e cinco. Governos democráticos voltaram sempre. Mas quanto tempo duraram? E quanto vai durar Alfonsín?

- Compreendo — disse Daniel. — E seus amigos, a quem você tanto ajudou, mostraram-se reconhecidos.

— Isso mesmo, Daniel. — Olivera tomou um gole de uísque e acendeu um cigarro. — Mostraram-se muito reconhecidos. Foi-me dada a possibilidade de abrir meu próprio banco. Naquele tempo, eu ganhava enormes somas de dinheiro em muito curto prazo. Foi quando nos mudamos para esta mansão. — Fez com a mão um movimento circular. — Como éramos felizes os três. Com seis anos, Mercedes precisava ir à escola. Aqui no bairro fica a melhor de Buenos Aires, incluído o Liceu. Mercedes foi uma aluna formidável. O secundário, terminou com distinção. Então foi para a universidade... — Olivera parou de falar. Colocou sua mão diante dos olhos.

— Que foi?

— Nós três éramos tão infinitamente felizes — disse o velho baixinho. — Tantos anos. Vinte anos de felicidade. Quem já teve tudo isso, Daniel? Então, no dia 17 de janeiro de 1974... — Calou-se.

— ... mamãe sofreu um acidente de automóvel no caminho para o aeroporto — prosseguiu Mercedes. — Ela queria ir buscar uma amiga. Um bêbado bateu no carro dela. Ele capotou e pegou fogo. Mamãe deve ter morrido na hora. Quebrou o pescoço.

... Moscou: Foi com as mais cortantes palavras que um porta- voz do Ministério do Exterior soviético condenou os planos do Ministro da Defesa Weinberger, dos Estados Unidos, de estender os armamentos ao espaço... Uma voz de locutor inglês saía dos fones de ouvido de Mercedes e de Daniel. Eles haviam sintonizado o botão na estação de número cinco.

Após a escala intermediária, o Jumbo havia levantado vôo, às 3h55m, de uma pista do aeroporto do Rio de janeiro, cercada por águas paradas, e havia sobrevoado a cidade fazendo um largo círculo. Agora, o avião tomava a direção do gigantesco Cristo de pedra branca que se erguia no alto do Corcovado, uma montanha que já desaparecia em meio à selva. A estátua era iluminada por possantes holofotes. O Cristo faiscava. Muitos passageiros olhavam pelas janelas e tiravam fotografias.

... O porta-voz soviético classificou os mencionados planos de “criminosa loucura nascida de um cérebro enfermo”... De hora em hora, o serviço internacional da BBC transmitia um boletim com as notícias mais recentes.

Cada vez mais se aproximava o Cristo iluminado. O Jumbo inclinou-se e começou a traçar um laço no ar

O velho sacerdote orava em voz alta:

— Senhor de todos os povos, ouve nossa voz, com a qual imploramos que nos concedas a verdadeira paz...

... Washington. Conforme já informado, o Presidente Reagan apóia com todo o vigor os planos de Weinberger perante o Congresso norte-americano, disse a voz do locutor do estúdio londrino da BBC.

— ... para que liberte o coração dos homens de todo ódio, toda inveja e toda discórdia — orava o padre.

...O Senador Edward Kennedy classificou por isso o Presidente Reagan como o “mais perigoso Presidente da Era Nuclear”, num programa nacional em que foi entrevistado há duas horas pela rede de televisão NBC...

Mercedes e Daniel se entreolharam.

— Nós te pedimos que dês forças e apoio a nós e a todos os povos a serviço da Justiça...

O maciço Jumbo fez um longo vôo circular ao redor do Cristo que abençoava.

- Olhe, Dad! Os Pershings da terceira geração têm uma tal precisão de tiro que eles conseguiriam, numa probabilidade de noventa para dez, acertar nesse Jesus ai, a cinco mil milhas de distância — disse o guri americano de calças curtas com camisa para fora, que tinha sido parceiro do pai de cara vermelha no longo jogo OTAN — A Guerra na Europa.

— Você tem mesmo razão — disse Dad. Os dois se haviam levantado. Uma das mãos do Cristo apontava diretamente para eles. Dad fotografou, incansável.

O padre idoso rezava:

— ... que a todos os governantes de todos os países e povos Tu dês verdadeiro senso e juízo e acertadas decisões e que guardes os frutos da Terra...

... Bonn. Na capital da República Federal, o armamento espacial planejado pelos americanos transformando o espaço sideral em palco de guerras foi recebido com a mais forte reserva por todos os partidos políticos, prosseguiu a BBC através dos fones de ouvido.

— ...que a todos os sem teto dês segurança e tranqüilidade em nosso meio, nós Te pedimos, Senhor, escuta-nos!

... A bancada social-democrática do parlamento alemão exigiu do governo que recusasse expressamente os planos do Ministro da Defesa Weinberger de produzir armas anti-satélite ...

— Que despertes em nós o amor que socorre os que têm fome e os que sofrem....

... O fundamento apresentado por Weinberg, segundo o qual a União Soviética já dispõe de tal sistema de armamento e do grande número de destruidores de satélites foi qualificado pelo vice-presidente do Grupo de Trabalho de Política Exterior e Segurança, Jungmann, de “pretexto esfarrapado”...

O avião já havia deixado para trás o Cristo com seus braços abertos em bênção e tomou o curso nordeste, por cima do mar. Mas a estátua ainda pôde ser vista por longo tempo.

- ... nós te pedimos, Senhor, que tragas de volta às famílias que os esperam os irmãos e irmãs ausentes.

... O jornal Suddeutsche Zeitung escreve em seu último número um artigo de quatro colunas sob o título de ‘Corrida armamentista agora também no espaço’, onde se lê que o governo da República Federal já se declarou contrário a uma corrida armamentista no espaço. Embora a União Soviética se encontre um passo adiante no campo dos denominados satélites-assassinos em termos militares...

De novo Mercedes e Daniel se entreolharam.

— Que o Senhor receba em seu reino eterno nossos mortos...

... os Estados Unidos não podem tomar medidas retaliatórias sem considerar a preservação da unidade estratégica da OTAN. Essa unidade estaria seriamente ameaçada caso prossiga o curso armamentista no espaço sideral, concluiu a BBC.

— ... e concede-nos a paz, Senhor, imploramo-Te com todo o fervor, concede-nos a paz, amém.

O Cristo havia desaparecido. A escuridão tornava a Terra invisível.

Mercedes soltou a mão de Daniel e sussurrou:

— Estou com medo.

— Eu também — respondeu ele.

— Você está mal novamente?

— Bastante.

— Tudo vai ficar bem, Danny!

— Sim, com certeza.

Na cabine, foi baixada a intensidade da luz.

Daniel finalmente caiu numa confusa sonolência, a cabeça apoia da no ombro de Mercedes. Sonhava com seu pai. Naquela noite, todos foram afinal deitar-se, mortos de sono, após a longa permanência junto à piscina. Na manhã seguinte, descobriram o desaparecimento de Miguel. Olivera estava fora de si, de preocupação e de medo. Chamou a polícia. Vieram funcionários e fizeram muitas perguntas. Procuravam vestígios. Não encontraram nenhum. Às suas indagações, Olivera não pôde responder. Não conseguia imaginar como e por que Miguel havia sumido. Estaria relacionado com ele próprio? Por que com ele? queriam saber os homens da lei. Para isso, Olivera não tinha resposta.

Ao fim da tarde, ele fez um longo passeio pelo grande parque, em companhia de Daniel. Contou o fim de sua história e como, após a morte da mulher que tanto amava, procurou um sentido para sua vida e, então, recordou-se do velho filme. Naquela época, a situação mundial já se havia tomado de fato caótica. Havia chegado o momento de tratar do assunto.

— Tinha chegado o momento de tratar do assunto — contou Olivera, que caminhava ao lado de Daniel. Ambos trajavam calças bem leves, camisas abertas e sandálias. Novamente fazia um insuportável calor, mesmo sob as árvores, as velhas árvores em cujas copas cantavam os pássaros. — A vida me era indiferente. Eu teria arriscado qualquer coisa, mas havia Mercedes, minha querida Mercedes. Eu tinha de fazer as coisas de modo diverso. Não sozinho. Você está me olhando, Daniel. Sei que você está pensando: naquele tempo, ele começou a pesquisar o que tinha sido feito de seu filho na Áustria.

— Sim, mas foi isso que você fez — disse Daniel.

— Sim, foi isso o que eu fiz — confirmou Olivera. Olhou o filho, suplicante. — Com todo o ódio que você sente por mim, e que eu posso compreender, Daniel, com toda a amargura: procure, pelo menos, compreender o que fiz. Você não me precisa perdoar. Você só precisa tomar conhecimento de tudo o que pode acontecer na vida de uma pessoa, por que eu agi da forma como agi. Fiz infelizes sua mãe e você. Eu os deixei na mão- E mais. Muito mais. Concordo com tudo. Me chame de canalha! Um vagabundo. Que posso dizer em minha defesa? Que eu amei uma mulher acima de todas as coisas no mundo: Dora. Que ela era a vida para mim. Que eu fui um nazista fanático, que após a morte de Dora aceitou a incumbência de Goebbels, porque queria ir embora, embora, embora da Alemanha. Que acreditei reencontrar Dora em Eliza. E que fui feliz. Durante vinte anos. Você pode me odiar! Me desprezar! Mas diga que concorda que tudo isso pode acontecer na vida de um homem- Diga apenas que tal coisa pode acontecer!

— Bem — disse Daniel —, uma coisa assim pode acontecer. Mas vamos nos ater aos fatos. Você precisa me contar tudo, caso queira que trabalhemos juntos. Vou registrar tudo, de agora em diante sem fazer nenhuma apreciação.

— Obrigado — disse Olivera. Como se de repente se sentisse fatigado, desabou sobre a grama e encostou-se num tronco de eucalipto. Daniel sentou-se a seu lado. Achavam-se agora distantes da casa.

— Então você providenciou investigações a respeito de mamãe e de mim.

— Sim, Daniel.

— Depois da morte de sua mulher, Eliza. Você diz que isso foi em 74.

 — Isso, 74. Por intermédio de amigos na Alemanha, e de uma agência. Você entende isso, não é mesmo? A morte de Eliza. Meu desespero. O vazio. Precisava fazer alguma coisa. Fazer! Aí estava esse mundo, onde tudo ia de mal a pior. Aí estava a catástrofe definitiva, para onde nos conduzíamos. E aí estava eu com meu filme, esse monstruoso documento. Tratei de me convencer de que era meu dever vir com ele a público e talvez — talvez — evitar o pior. Eu tinha ainda uma tarefa a cumprir. Minha vida ainda não estava sem sentido. Mercedes estudava. Nesse meio- tempo, ela já tinha vinte e três anos de idade. Mostrei-lhe o filme. Você pode imaginar a maneira como ela reagiu. Então, ficamos ambos possuídos por nossa idéia, ela muito mais do que eu.

Daniel tinha agora um graveto na mão e brincava com ele.

— Então você nos fez procurar de 1974 até 1984, portanto durante dez anos, até me encontrar.

Olivera calou-se.

— Então! Você decidiu contar-me toda a verdade! Até agora, você até que fez bem direitinho o striptease de sua alma...

— Por favor, Daniel!

— Sim, sim, foi notável. A busca demorou dez anos, não é?

— Não — disse Olivera. — Sabia, é claro, já depois de dois meses onde você vivia, que Thea havia morrido e que você estava na televisão.

— E por que então você não me mandou buscar por Mercedes já há dez anos atrás? Não fique calado de novo! Olhe para mim! Por que você deixou passar ainda dez anos, pai?

Olivera disse:

— Mas nada disso é verdade.

— O que não é verdade?

— O que eu contei por último. A respeito do filme. Sobre minha idéia fixa, de que eu teria uma missão a cumprir. Foi tudo muito diferente.

— Como é que foi? A verdade! Diga a verdade!

— A verdade... — Olivera levantou sua mão. — Muito bem, então vamos lá! No fundo, dá tudo na mesma. Você afinal não pode me odiar e desprezar mais ainda. Eu menti quando lhe disse que graças às juntas militares e a Perón eu ia ficando mais rico. Em 74, eu estava numa situação desesperadora. No verão, Isabel Perón se tornou Presidenta. Eu tinha dado aos militares créditos gigantescos. A maioria dos generais era corrupta. Sim, uns porcos corruptos é que eram meus amigos. E eu fazia meus negócios com eles, à custa do país, que cada vez mais ia ficando na miséria. Olhe para ele hoje! Os militares e os peronistas o empurraram para a beira de uma falência do Estado. O Presidente Alfonsín tem de lidar com uma pavorosa herança.

— Você, o íntimo amigo dos generais, os chama de porcos corruptos? — disse Daniel com voz insegura.

— E chamo a mim mesmo de porco corrupto. Com os canalhas dos meus amigos abocanhamos o que havia de melhor no país e o devoramos juntos. Esse striptease da alma, como você o chama, não estará ficando um pouco demais para você? Eu lhe prometi a verdade. Aí está ela, meu caro filho.

— Nada daquilo que você fez me surpreende mais. Então, em 74 a sua situação era desesperada. E daí?

— E daí, e daí! E daí que me veio à cabeça o negócio do velho filme. Eu quase me havia esquecido dele. Aí tive a idéia de rifá-lo. Por muito dinheiro. Eu teria ganho muito dinheiro por ele, você também não acha?

— Acho. Então também mentiu com toda aquela conversa de que se sentia chamado para uma missão moral?

— Tudo mentira. Eu estava me lixando para o que acontecesse com este mundo. O que acontecia comigo e com Mercedes, isso era importante, apenas isso. Veja — e com um gesto amplo da mão direita Olivera abarcou toda a propriedade. — Esta man são, este luxo, era isso que eu queria manter de qualquer maneira. Não queria me ver obrigado a abrir mão de tudo. Não queria ir à bancarrota. Não queria cair na miséria depois de me haver habituado à riqueza durante tantos anos. E só vi, então, uma salvação: vender o filme!

— E por que você não fez isso? Por que não me chamou logo para cá?

— Alvarez — disse Olivera

— Que Alvarez?

— Meu amigo, o General Carlo Álvarez. Que me passou o Miguel, nove anos mais tarde. Foi membro da última Junta. Alvarez me ajudou. Recebi meu dinheiro de volta. Ele deu um jeito em tudo.

— Como é que ele conseguiu arranjar tudo?

— Ora, como? Com chantagem. Houve dois suicídios de membros da Junta, na época. Então foram devolvidos todos os créditos. Agrada-lhe a verdade, Daniel, hem? — Olivera ria. — Você sempre precisa dos maiores porcos para pegar os maiores bocados Recebi meu dinheiro de volta. Então, por que vender o filme? Era perigoso demais.

— Você tinha medo de que o matassem?

— É claro. Antes de receber meu dinheiro de volta, meu medo da ruína era muito maior. Naquela época havia mandado fazer os videocassetes pelo judeu Paolo Klein. Naquele tempo, eu estava decidido a tudo.

— Mas aí veio a grana — disse Daniel.

— Aí veio a grana. — Olivera riu. — Você bem que entendeu, Daniel. E também veio o medo de que o filme pudesse trazer-me má sorte. Portanto, as cópias voltaram para dentro do cofre! Por sinal, naquela época eu não havia mostrado o filme a Mercedes. Ela não tinha idéia de sua existência. Como adepta entusiasta de movimentos pacifistas ela só teria enchido meu saco, não é? É claro.

- Perfeitamente claro. Mas agora ela conhece o filme. Desde quando? Por que o mostrou a ela? Por que me chamou agora?

— Porque, mais uma vez, fui enrolado pelos generais — disse Olivera, subitamente muito calmo. — Porque esses cachorros me enganaram mais uma vez. E porque desta vez meu amigo Álvarez não me pôde ajudar. Meu bom amigo Álvarez está na cadeia. Metade da Junta está. Mas aqueles que me passaram a perna, esses saíram do país a tempo. O homem que está diante de você, Daniel — e, aliás, já há tempos, mas ninguém o sabe ainda — está liquidado. Inteiramente liquidado. Minhas promissórias ainda estão sendo aceitas. Os grandes bancos ainda trabalham comigo. Ainda! Talvez ainda um mês, talvez dois. Três, não mais. Se até lá tudo não estiver em ordem, vão tirar-me tudo o que tenho, e também vou parar na cadeia como meu amigo Álvarez, embora por outros motivos. Por falência fraudulenta. Por desfalque de milhões. Tenho setenta e sete anos de idade, Daniel. Não quero ir para a prisão. Não quero ser liquidado. Estou cagando para este mundo; realmente, me é indiferente o que vai acontecer com ele. Mas eu possuo um filme que iria interessar imensamente todas as pessoas deste mundo. Você viu o filme. Ele não seria de imenso interesse, hem?

— Sim — disse Daniel. Ele havia deixado cair o graveto.

— Daí toda a pressa, entende?

— Entendo.

— Por isso mostrei o filme a Mercedes e a fiz ficar louca com ele.

— Compreendo.

— Por isso você precisa levar o filme para a Alemanha e vendê-lo! A sua emissora de televisão, Você mesmo lá disse que eu poderia receber muito dinheiro por ele.

Daniel assentiu.

— Então, só que agora o striptease acabou. Agora você conhece toda a verdade, menino.

— Quanto você quer pelo filme?

— Dez milhões de dólares — disse Olivera.

— Você perdeu o juízo — disse Daniel.

— Como assim?

— Porque é uma soma totalmente absurda.

Olivera riu como se alguém lhe estivesse fazendo cócegas.

— Totalmente absurda? E quanto foi que aqueles caras espertíssimos da revista Stern pagaram pelos diários falsificados de Hitler, mesmo que não houvesse neles nem uma só frase interessante? Nove milhões e meio de marcos. Marcos, sim, não dólares. Mas mesmo assim.

— Mas isso você não pode comparar! Aquilo foi vigarice, foi um negócio criminoso.

— Ora, os alemães preferem pagar quando é um embuste, é  criminoso?

— Pai, pare com isso! Dez milhões de dólares! Por vinte milhões de dólares a televisão alemã pode comprar da rede ABC os direitos de transmissão ao vivo de toda a Olimpíada de Los Angeles.

— Mas meu filme tem mais valor do que a transmissão da Olimpíada. Concordo, dez milhões de dólares é muito dinheiro. Tem que ser muito dinheiro. Aumenta ainda mais o valor do filme. Ele tem um inacreditável valor, é quase impossível de ser pago. Dez milhões, isso mesmo.

— Isso você não ganha nunca! No máximo, um.

— Um? Ridículo! Eu preciso de dez, só para conseguir sair da emboscada em que estou.

— Mas isso não interessa à televisão.

Olivera tornou-se malévolo.

— Então vamos cagar para a televisão alemã. E cago para você também. Continue sendo aquilo que você é: um pequeno redator. E eu, com um pequeno gesto, tenho doze milhões, quinze, vinte, quanto eu pedir.

— De quem?

— Dos americanos, por exemplo. — Olivera estava com o rosto dum como pedra. — Para que eu lhes dê o filme e todas as cópias, para que eles possam dar sumiço em tudo e ninguém esteja em condição de poder exibi-lo.

Daniel engoliu em seco.

— Você não deve considerar seu pai um idiota — queixou-se Olivera. — Você acha que eu não receberia dos americanos dez milhões de dólares, Daniel?

— Sim, e depois seis balas na barriga.

- Ah, você não deve me julgar um idiota, Daniel! Uma cópia está depositada no banco, eu já lhe disse. É minha proteção. Se algo me acontecer, quem recebe o filme é Khadaffi. E isso eu digo aos americanos.

— Quem o recebe então?

— Coronel Muhammad Khadaffi, Presidente da Líbia. Ele odeia os americanos como nenhuma outra pessoa no mundo, Ele o compraria por cem milhões e ainda daria a todos os países do mundo de presente, além dos direitos de emissão. E ainda ficava louco de alegria. Mais maluco ainda do que já é. Ou você acha que ele diria não, preferindo gastar o dinheiro com uma transmissão da Olimpíada?

Daniel Ross fitava o pai como se nunca o houvesse visto.

— Você está vendo, isso já está fazendo efeito, garoto. Eu poderia me aproximar logo de Khadaffi, indo diretamente à Líbia. Estaria em segurança total. Tenho a sensação do século! Ofereço um filme pronto para ser exibido. Nenhum custo de produção. A emissora não precisa despender nem mais um dólar. Mas pode vender os direitos a outros países no mundo inteiro. Quanto tempo você acha que a emissora vai precisar para faturar de volta seus dez milhões? Ou você duvida disso, meu caro filho? Esses dez milhões já são meus. E medo? Na minha idade? Todo mundo tem de morrer. E perigo é o que não falta. Medo, só tenho agora da miséria, da desgraça, da cadeia. E por isso eu preciso dos dez milhões de dólares. E por isso eu vou ganhá-los. Com ou sem você. Bem, você quer levar o filme para sua emissora e ver como ela o compra avidamente e você faz carreira, uma brilhante carreira? Ou você prefere que eu mesmo trate de tudo?

— Eu levo o filme comigo — disse Daniel, e percebeu que suas mãos tremiam. Ele cruzou os dedos. Mas Olivera já o tinha notado.

Olivera riu novamente.

Às 12h35m do dia 21 de fevereiro de 1984, o Jumbo das Aerolineas Argentinas sobrevoava a cidade africana de Dakar e tomava a direção da Europa. Fazia muito frio na capital do Senegal. O ar condicionado fornecia agora ar quente. Quando mais tarde cruzaram Gibraltar e penetraram no espaço aéreo espanhol enfrentaram a primeira tempestade de neve. O louríssimo menino e seu Dad jogavam de novo OTAN — A Guerra na Europa, e Júnior ganhava novamente. Estava entusiasmado consigo mesmo e olhava em torno buscando aplauso Nisso, percebeu que a jovem senhora do lado esquerdo lhe voltava as costas. Isso o irritou.

— Ei! — exclamou ele. — Então não se interessa, não é?

Mercedes não respondeu. Ela e o padre Sanders observavam Daniel com muita preocupação. Ele estava deitado, todo encolhido, entre os assentos dos dois. Durante a noite, ele tinha ido algumas vezes ao toalete para vomitar. Havia tomado um frasquinho de gotas por inteiro. Elas não mais faziam efeito. Três fileiras atrás, o moço dos negros cabelos compridos observava tudo com muita atenção.

— Só faltam poucas horas — disse Mercedes desesperada — e então estaremos em Frankfurt. Ainda vai dar, Danny? Danny! — Da segunda vez, ela havia gritado o nome pois o rosto de Daniel ficara branco de repente, e os lábios azulados. Ele gemia. Então, de repente, seus braços e pernas começaram a tremer terrivelmente. A tremedeira crescia, chegando a verdadeiros espasmos que sacudiam seu corpo de um lado para outro.

- Danny! — gritou Mercedes de novo.

No momento seguinte, Daniel desabou para a frente, um pouco de lado. Com a ajuda do padre. Mercedes o repôs no lugar com muito esforço. Daniel perdera os sentidos. Outros passageiros que haviam assistido ao ocorrido começaram, por sua vez, a gritar. Fez-se pânico. Dois aeromoços e uma aeromoça se desdobravam para fazer as pessoas voltarem aos seus lugares. Daniel voltara a si. Fitava o vazio. Seus lábios continuavam azulados e o rosto branco.

— Danny! Danny! Que foi isso?

— Não sei — custou a dizer.

— Um conhaque grande! — gritou o padre à aeromoça. Esta desapareceu e logo retornou com um copo de conhaque, cheio até a metade. Daniel o segurou com as mãos trêmulas e o bebeu de um gole. Ele acenou com a cabeça e estendeu o copo vazio. Logo em seguida seus braços e pernas voltaram a estremecer, outra convulsão, mais forte que a primeira, sacudiu-o, e ele novamente per deu os sentidos.

A aeromoça dirigiu-se ao microfone mais próximo, retirou o aparelho de seu suporte e disse pelo alto-falante:

— Minhas senhoras e meus senhores, um de nossos passageiros está se sentindo mal. Há algum médico a bordo?

Ela repetiu as duas frases em quatro idiomas.

Depois da versão francesa, ergueu-se um homem pequeno com reluzentes cabelos pretos, bem ao fundo do aparelho.

— Sanatório Kingston em Heiligenkreuz.

— Bom dia. Aqui é a Primeira Clínica Médica da Universidade de Frankfurt. O Dr. Reinstein necessita falar com urgência com a Dra. Mannholz.

Eram 15h59m do dia 21 de fevereiro de 1984.

— Um momentinho, já vou ligar.

Quando o telefone tocou desta vez, Sibylle Mannholz estava sozinha em sua sala. Ela atendeu. Dois segundos depois, ela ouviu uma voz masculina:

— Dra. Mannholz?

— Sim.

— Aqui é Reinstein, de Frankfurt.

— Oh, bom dia, caro colega. Que há?

— Trata-se de seu paciente Daniel Ross, a quem examinei.

Sibylle segurou o fone com ambas as mãos.

— Ross? Que há com ele?

— Ele está nesse momento voando de volta de Buenos Aires, sobre a Espanha. Há cerca de meia hora ele teve convulsões e perdeu os sentidos.

— Oh! Meu Deus!

A porta se abriu, O médico Herdegen entrou sem bater. Sem dizer uma só palavra, acercou-se da escrivaninha e segurou o segundo receptor junto ao ouvido. Como sempre, seu rosto pálido estava imóvel e podia ver-se a curiosa expressão de seus olhos que transmitiam uma combinação de duas características: frieza glacial e tristeza.

— Como o senhor sabe disso? — perguntou Sibylle. Afastou seus cabelos castanhos de cima da testa.

— Vamos pela ordem, espere! Há um médico francês a bordo.

— Graças a Deus!

— É um ginecologista. Mas, de acordo com os sintomas, ele diagnostica um ataque epiléptico com conseqüência de grave uso indevido de medicamentos. Ross lhe disse a verdade.

— O diagnóstico está correto. E que é que o médico fez?

— Antes que o tivessem chamado, uma aeromoça havia trazido para Ross, depois de um primeiro ataque, um copo com conhaque. E ele o tomou...

— Oh, não!

— E logo em seguida sofreu um segundo ataque epiléptico.

— Naturalmente! — exclamou Sibylle. — Conhaque foi a coisa mais errada que se poderia ter dado a ele. O conhaque provocou o segundo ataque.

— É, o ginecologista também diz isso. Ele lhe injetou alumina. Intravenosa.

— Alumina?

— Ele sabe que isso pouco vai ajudar. Mas não tinha coisa melhor em sua bolsa. Se os ataques se repetirem, vai novamente injetar alumina, segundo declarou ao primeiro-piloto. Desse modo, pelo menos Ross chega até Frankfurt e o avião não precisa mais pousar em lugar nenhum. Não existe risco grave de vida. Ao que parece, Ross só está todo estropiado.

 

 

Segunda Parte

 

 

 

 

JÁ PARA CÁ DE QUALQUER JEITO!

escreveu Herdegen num bloco.

— Além disso, o médico acha que ele precisa ser internado imediatamente numa clínica logo após a aterrissagem.

— Como é que o senhor sabe de tudo isso?

— O piloto falou com a torre de Frankfurt por ondas curtas e fez um relatório. E a torre telefonou para mim porque a Sra. Olivera, que está acompanhando o Sr. Ross, disse ao piloto que eu, há pouco tempo, o havia examinado e saberia melhor que ninguém o que deveria ser feito com ele após o pouso da aeronave. Ela queria evidentemente evitar que o médico do aeroporto assumisse o caso. Telefonei para esse colega e lhe expliquei que de fato conhecia o Sr. Ross. O médico concorda que eu prossiga o tratamento de Ross após a chegada e decida o que fazer desde que eu assuma toda a responsabilidade. Eu disse que o Sr. Ross está a caminho daí para fazer um tratamento que o livre da dependência de drogas. Avisei-o de que entraria em contato com a senhora a fim de pedir-lhe as indicações médicas necessárias- Não sou psiquiatra, a senhora precisa entender. Se eu, de fato, assumir a responsabilidade e depois acontecer alguma coisa...

ORGOLAN!

escreveu Herdegen no bloco e, embaixo:

ENTÃO ROSS AGÜENTA. PRECISAR VIR PARA CÁ!

— Eu o compreendo perfeitamente, prezado colega. Estou muitíssimo agradecida por sua ajuda.

— Mas a senhora também já me ajudou. Muitas vezes.

— Ele precisa vir logo para cá. De qualquer maneira. Eu o conheço há uma eternidade e já tratei dele por duas vezes.

Herdegen, que se achava postado ao lado de Sibylle, mexeu a cabeça em sinal de aprovação e passou um dedo sobre a moldura da grande foto colorida que se achava colocada sobre a mesa e em que aparecia um homem quarentão, de olhos e cabelos castanhos. Guardava grande semelhança com a Dra. Maànholz.

— Muito bem, minha cara colega. Diga então o que devo fazer, e em seguida seguirei para o aeroporto. Confio na senhora.

— Quando pousa o avião?

— Às l7h45m. Dentro de três quartos de hora, portanto.

— Até lá o médico do avião vai agüentando a coisa, com alumina. Provavelmente ele nem vai mais precisar disso. Ross vai dormir. O senhor sabe a que horas vai partir daí a  conexão para Viena?

— Eu já me informei. Às 18h30m. Chega em Viena às 19h50m.

— Então Ross pode voar logo em seguida. Assim está bem. O senhor lhe dê dez centímetros cúbicos de Orgolan, na veia. Não, injete-lhe vinte! Assim ele ficará absolutamente calmo. E seu aparelho circulatório não desmorona. Assumo também a responsabilidade por isso. Passe-me, por favor, o número e o nome do médico do aeroporto; eu falo com ele. Nós mandaremos daqui uma ambulância para o aeroporto em Viena. Aqui parou de nevar. Em Frankfurt também?

— Sim. O avião está em contato permanente com Frankfurt. Telefonarei logo caso algo de imprevisto venha a ocorrer. Agora só falta o médico do aeroporto, anote aí...

Depois da tempestade de neve noturna, o aeroporto de Heathrow ficou fechado até as 15h do dia 21 de fevereiro. Então finalmente tratores e removedores de neve limparam uma das pistas e um primeiro avião — da Pan Arnerican Airways, com destino a Nova lorque — pôde levantar vôo às 15h15m. Wayne Hyde chegou em Frankfurt às 19h05m, a bordo de um Airbus da British Airways.

O alto e magro homem com o rosto curtido pelas intempéries foi o último a deixar o aparelho. Após o controle de passaportes, caminhou sem pressa em direção às bagagens. Em meio aos vários passageiros que esperavam, detectou imediatamente o homem que buscava. Com seus longos cabelos pretos, Pablo vestia um sobretudo muito leve e tremia deploravelmente de frio. Estava de pé, um tanto afastado, e trazia em sua mão direita uma caixa transparente com a orquídea. Hyde passou junto dele e disse bem baixo, em inglês:

— Vou pegar minha bagagem. Depois me acompanhe até o Bar Azul... — Mal passado um quarto de hora, ele estava sentado com Pablo a um canto do bar. Os dois grandes sacos de roupas jaziam no chão. Hyde havia pedido um chá, e Pablo, o chá com rum branco. Há muito já estava escuro. Através da janela do bar, viam o agitado movimento das pistas e os aviões que em rápida seqüência pousavam ou rugiam com poderoso ímpeto levantando vôo e perdendo-se no céu escuro.

Pablo narrava para Hyde todas as peripécias a que assistira antes e depois da partida do Jumbo do Rio de Janeiro. Hyde escutava em silêncio.

— Depois do pouso aqui, puseram Ross imediatamente dentro de uma ambulância do aeroporto. Junto com um médico. Ele já estava à espera no portão de chegada. Essa Olivera havia pedido que ele fosse avisado, por já conhecer Ross. Foi o que consegui depreender no meio de toda a confusão dentro do avião. Mandaram chamá-lo pelo rádio. Chama-se Reinstein. Dr. Reinstein... — E Pablo emudeceu porque já vinha se aproximando o garçom com as bebidas encomendadas.

— Sim? — disse Hyde, mal o garçom se afastara.

- Esse Dr. Reinstein deve ser um médico espetacular. Ou Ter um medicamento realmente espantoso. Ainda no ar, eu pensei que Ross iria capotar, tão lamentável era seu estado. Também quando pousamos. Eu fiquei circulando por aqui diante do posto da Cruz Vermelha. Depois de vinte minutos Ross saiu. Com a Olivera. Já podia andar sem apoio, e tinha cor no rosto. Havia desaparecido aquela tremedeira horrível. Parecia apenas muito tonto.

— Claro — disse Hyde e tomou um gole de chá.

— A bolsa vermelha, a Olivera não a largou nem um segundo. Carregava-a de um lado para outro. O velho padre que tinha quebrado a cara de León ficou sentado no avião ao lado dos dois. Depois da chegada. tomou conta de Ross. Ficou dentro do posto da Cruz Vermelha. Saíram todos juntos lá de dentro, também esse Dr. Reinstein. — Pablo tremia. — Que diabo de frio. Lá no Rio fazia mais de quarenta graus.

— Quando é que vai voltar para lá?

— Só amanhã, às 22h. Infelizmente não há outro avião mais cedo. Arrumei um quarto aqui mesmo no hotel do aeroporto.

— Mande comprar Corofax. Tome o dobro do que está escrito na bula.

— Que é isso?

— É o melhor remédio contra diarréia. Senão, ela virá de qualquer jeito, com essas diferenças de temperatura. É horrível voar com cólicas. Eu sempre tomo.

- Corofax. Okay. Então vamos adiante. Eles foram todos juntos para o balcão da Austrian Airlines, onde Ross e a Olivera marcaram passagens para Viena no vôo de 18h30. O padre ficou cuidando das bagagens dos dois. E assim, nesse momento já estão a caminho da Áustria. No que eu pude observar, Ross deverá ir imediatamente para um sanatório.

— Sim. Já estou sabendo. Felizmente hoje ainda segue um avião para Viena. Lufthansa. Vindo de Paris. Sai daqui às 21h10m. Tem certeza de que a Olivera carregou consigo a bolsa vermelha?

— Com toda a certeza! Esse Dr. Reinstein, com Ross e a mulher, foram todos de ambulância até o avião. Eu os vi embarcando. A Olivera estava com a sacola vermelha na mão.

— E os cassetes estavam lá dentro?

— Isso naturalmente eu não sei — disse Pablo, assustado. E ficou nervoso. — O senhor tem razão! Não estava previsto que o sujeito fosse ter um colapso. Com certeza os dois tinham em vista deixar os cassetes em algum lugar seguro aqui em Frankfurt. Mierda! Sabe Deus onde estarão agora os cassetes! O padre pode estar com eles, o médico, sei lá eu. Que faremos agora?

— Você fica aqui, Pablo — disse Hyde. — Preciso telefonar. Logo estarei de volta.

E ele saiu do bar e seguiu para o posto telefônico do aeroporto. Levou consigo as bolsas de roupas. Na cabine, alguém havia escrito na parede em grandes letras vermelhas: FRESSEN, FICKEN, FERNSEHEN, o negócio é comer, trepar e ver televisão. Manteve duas conversas ao telefone e dirigiu-se em seguida para o balcão da Lufthansa. Reservou um lugar no avião de 21h e registrou sua bagagem. Ao lado do balcão estava um rapaz de uns vinte anos sentado no chão. Havia aberto um tapete e estava enrolado numa manta colorida. Tocava guitarra e cantava com bela voz quente:

— O boom de armamentos é muito clemente. A guerra ainda vai demorar, minha gente. Quem der azar vai virar marmelada. E com napalm faz-se a melhor fritada..,

Algumas pessoas o rodeavam. Estavam excitadas. Um senhor mais idoso exclamou:

— Você cantando essa merda! Se não gosta daqui, vai para o lado de lá.

— É de lá que estou vindo — disse o rapaz. — Também não me queriam.

Hyde retornou ao bar.

— Logo ficaremos sabendo se os cassetes ainda estão com a Olivera — disse ele para Pablo, que agora tremia de corpo inteiro.

— Quando?

— Tão logo Ross tiver pousado em Viena. — Hyde olhou o jovem Pablo preocupado. — Você vai agora bem rápido para a cama! Continue tomando chá com rum! Sobretudo não esqueça Corofax! Eu ligo para você logo que eu souber de alguma coisa. Realmente, você não pode continuar sentado por aqui.

— Sim, então... - Eu estou péssimo... - Mas o senhor telefona está bem? Prometido?

— Prometido. — Estendeu a mão para o moço. — Muito obrigado e melhoras para você, tudo de bom!

Quando ficou sozinho, o mercenário pediu mais um chá e tirou o volume com os sonetos de Shakespeare de um grande bolso de seu espesso casacão. Encostou-se para trás, folheou um pouco o livro e então leu enternecido estas palavras: “Desabam, apesar de sua crueza, / Ferro, granito e a onda revoltosa; / E a tal fúria deve opor-se à beleza,/ Se ela só tem a força de uma rosa?”

Ah, pensou Wayne Hyde, que beleza. Como é belo.

Às 20h40m tocou o telefone no Bar Azul. O barman atendeu. Disse qualquer coisa e lançou um olhar pelo salão, onde cerca de um dúzia de pessoas se encontravam. Ele chamou:

— Meus senhores, aqui há uma ligação para...

Hyde já havia saltado de seu lugar e acorrido ao balcão.

— Wayne Hyde — disse ele — não é?

— Sim, senhor. — E o barman lhe estendeu o fone. As pessoas no bar falavam bastante alto.

— Herdegen — disse uma voz masculina.

- Hyde. Sim?

— Os cassetes estão com eles.

— Tem certeza?

— Foi na Alfândega. Eu cheguei lá com uma ambulância e eles nos deixaram seguir até o campo de pouso para apanhar o homem. Mas a Alfândega depois revistou a mulher. E a bolsa também. Eu estava bem próximo.

— Okay, ótimo. Voarei pouco depois das 21h e chegarei a Viena por volta das 22h30m.

— Está certo.

— Como está ele?

— Mal.

— Bom — disse Hyde. Saudou brevemente e desligou. Depois escutou a chamada de seu nome. Tinha de seguir para os controles de passaporte e da Alfândega. — Como posso chamar daqui um hóspede do hotel? — perguntou ao barman.

— Disque o número nove e terá a telefonista central.

Poucos segundos depois, Hyde estava ligado com Pablo.

— Aqui é Hyde. Eles estão com os cassetes.

— Graças a Deus! Faça bom vôo, Mr. Hyde!

— Obrigado. E tudo de bom para você, menino!

Hyde pagou. Saudou levemente o barman e deixou o lugar. Estava pensando nas últimas palavras do soneto que havia lido na luta contra o tempo: “Mas que mão firme retém sua carreira? / Quem lhe proíbe o saque à beleza? // Ah! ninguém — fora o milagre, que pinta / Teu brilho claro, amor, com negra tinta.”

Tomara que o Franz traga uma Springfield, pensou Hyde. Isso é uma arma americana. Eu me sinto muito mais seguro com ela do que com uma 98-k alemã.

— Fique inteiramente despreocupado — disse o Dr. Gerd Herdegen. E limpou as gotas de suor na testa de Daniel Ross. — Tudo vai ficar melhor rapidamente. — Ele sorria. Em seus olhos estranhos agora prevalecia a impressão de tristeza sobre a de frieza. Daniel ficou olhando o homem de avental branco que se achava sentado a seu lado. Ele mesmo estava deitado de calça e camisa em cima de uma maca na ambulância que se dirigia velozmente do aeroporto em direção sudeste por uma estrada dentro da escuridão da noite.

Defronte a Daniel se achava Mercedes. Ela havia tirado seu casaco de peles. O carro estava aquecido. Mercedes segurava no colo a bolsa vermelha. A sirene da ambulância cantava. Uma luz azul, que girava piscando em cima do teto, lançava a curtos intervalos reflexos de luz para dentro do carro.

— Falta muito ainda? — indagou Mercedes.

— Nem vinte quilômetros, minha senhora — respondeu o médico.

A ambulância seguia através de espessa floresta. Nevava agora bem forte. De vez em quando, o carro derrapava, mas o motorista não reduzia a velocidade.

— Ele tem de andar mais devagar — disse Daniel.

— Ele é muito seguro. Já foi corredor de automóveis — disse o médico.

— Pouco me importa o que tenha sido antes. Ele tem de andar mais devagar.

— O senhor precisa chegar o mais rápido possível ao sanatório — insistiu Herdegen. — O senhor não está bem. Quer ter outra crise?

— Sim — replicou Daniel. — Quero ter outro ataque. Melhor ainda dois mais. Aqui na maca.

— Danny! — disse Mercedes. E, dirigindo-se ao médico: — O senhor me desculpe, por favor.

Herdegen sorriu para ela, pousou sua mão sobre a dela, e em seguida ergueu-se, empurrou para o lado a janela que dava para o assento do motorista e falou com o chofer. Fechou novamente a janela e tomou a sentar-se ao lado de Daniel.

— Está andando mais devagar. Está percebendo? Satisfeito?

Daniel não deu nenhuma resposta.

A sirene continuava cantando e a luz azul continuava lançando reflexos para dentro do carro.

Algum tempo depois, ficou claro lá fora. Através de uma faixa transparente ao alto da janela fosca, Mercedes viu ruas iluminadas e casas. Estavam passando à frente de uma prefeitura.

— Já nos encontramos em Mödling — disse o médico. — É um local de excursões muito freqüentado, ao lado do Bosque de Viena. E também um centro cultural. Aqui trabalharam Schubert, Hugo Wolf, Wildgirin. e Grillparzer. Estamos passando pela rua principal. Ali, está vendo aquele edifício iluminado. Chama-se Hafnerhaus e é um monumento histórico. Foi ali que nos meses de verão de 1818 e 1819 Beethoven compôs a Missa solemnis.

— O cofre — disse Daniel de forma quase ininteligível.

— Como? — perguntou Herdegen.

Daniel apontou para Mercedes.

— Falo com muita dificuldade — balbuciou.

— Com certeza há um cofre em seu sanatório, não, doutor? — disse Mercedes.

— Na sala da Dra. Mannholz, sim. Por quê?

As luzes tinham ficado para trás. Voltaram a passar no meio da mata. Mercedes bateu sobre sua bolsa de viagem.

— Tenho aqui documentos importantes. Queríamos deixá-los num banco em Frankfurt, mas isso foi impossível. Não podíamos adiar o vôo para Viena. Por isso ainda trago comigo esses documentos.

— Mas é evidente que o cofre está à sua disposição — disse Herdegen sorrindo. — Fique inteiramente despreocupada!

Depois de mais algum tempo surgiram novamente algumas luzinhas.

— Hinterbrühl — esclareceu o médico. — Aqui há uma jazida de gesso abandonada aberta, com o maior lago subterrâneo da Europa. Durante a estação, barcos elétricos navegam lá dentro. É uma grande atração turística.

— Tenho medo pelo Sr. Ross — disse Mercedes baixinho.

— Não precisa ter medo, minha senhora. Está nas melhores mãos. Logo ele estará recuperado. — Ele sorriu para Daniel, to mando-lhe o pulso.

— Quanto? — perguntou Daniel.

Alto — disse Herdegen. — Mas isso é perfeitamente natural. Estamos quase chegando. Ali já está Heiligenkreuz. — E dirigindo-se para Mercedes; — Está vendo aquela igreja iluminada por holofotes? Ali se encontra o mais antigo convento cisterciense da Áustria. — A neve caía violenta, em flocos grandes. Mercedes observava uma enorme construção ao lado da igreja. — Foi fundado em 1135 pelo Margrave Leopoldo, o Santo. Fabuloso! Quando já tiver passado pela desintoxicação, Sr. Ross, vai poder visitar tudo isso em companhia da prezada senhora. Aqui se achan os mausoléus dos velhos senhores feudais da Áustria. O mosteiro de Heiligenkreuz também é um local de peregrinação... - — O carro derrapou novamente, desta vez com bastante ímpeto.

— Realmente, um grande motorista — disse Daniel.

Logo adiante, Herdegen avisou:

— Nós chegamos.

O motorista buzinou.

Com a face colada ao vidro frio da janela, Mercedes enxergou à luz dos faróis um alto portão de ferro batido, no meio de um muro elevado. Atrás dele, ela divisou uma parte da casa do vigia da qual estava saindo um homem de botas e anoraque para abrir o portão. Este se abriu para os lados e a ambulância atravessou um grande parque todo coberto de neve e minutos depois parou diante de um prédio branco.

Tudo se passou muito rápido. O motorista e seu colega desembarcaram e abriram as portas traseiras do veículo. Herdegen havia ajudado Mercedes a vestir seu casaco de peles e cobrira Daniel com uma coberta. Em seguida, ajudou-a a descer, enquanto ela se agarrava a sua bolsa de viagem. O motorista e seu ajudante puxaram com rapidez e habilidade a maca para fora da ambulância. Com passos rápidos, eles subiram em silêncio a escada de entrada do sanatório e, lá dentro, depuseram a maca sobre uma armação com rodas de borracha. Avançaram em seguida por um corredor branquíssimo até um elevador de carga. Os dois homens subiram com Daniel. Outro corredor. Iluminação forte, como em baixo. Empurravam a maca com rapidez e segurança. Daniel vislumbrou de passagem os rostos de algumas enfermeiras e médicos que ali circulavam, além de portas, muitas portas. Uma se encontrava aberta. E então, ele viu uma mulher de curtos cabelos castanhos, de grandes olhos também castanhos, de avental de médico. Sentiu como seu coração passou de repente a bater desenfreado. Ela se curvou sobre ele que a enlaçou com os braços.

— Sibylle — disse ele com voz rouca.

— Boa noite, Danny — disse ela beijando-o nas faces.

Os homens ergueram a maca do carrinho e entraram num quarto de doentes, deitando Daniel numa cama. Sumiram em silêncio.

Sibylle aproximou-se. Ela apertou a boca na orelha esquerda de Daniel, que a ouviu sussurrar rapidamente:

— Há uma microfone em seu quarto. Cada palavra é ouvida. Diz isso a sua acompanhante. Mas bem baixo!

Dois enfermeiros trouxeram a bagagem.

- Posso fazer alguma coisa ainda, doutora-chefe? — perguntou um deles. Tinha cabelos grisalhos, olhos cinzentos, um rosto bondoso e corpo de atleta.

— Não, obrigada, Sr. Aigner — respondeu Sibylle.

- Se precisar de mim, estou na copa, doutora-chefe. — Ele encarava Sibylle com ar compenetrado.

— Está bem, Sr. Aigner.

- Até logo, Sr. Ross — disse o enfermeiro e sumiu.

Sibylle se havia sentado b beira da cama. Os dois se olhavam nos olhos e não se falavam. Ele tentou sorrir algumas vezes. Ela não correspondeu sequer uma vez. Seus olhos estavam muito grandes, muito sérios e seu rosto continuava tão belo como ele o conhecia, embora recoberto de preocupação. Finalmente ela disse baixinho:

— Depois de tanto tempo, hem, Danny.

— É, tanto tempo — respondeu ele.

— E naturalmente você teve outra vez uma recaída! Desta vez bem pior.

- Você vai conseguir me botar nos eixos, Sibylle?

— E eu não consegui toda vez? — Ela murmurou em seu ouvido: — Na primeira oportunidade vou lhe explicar tudo o que acontece por aqui; até lá, tenha cuidado! — Ele cheirou o perfume que se evolava de seus cabelos e de repente foi como se tudo tivesse se passado ontem, ontem e não há doze anos atrás, doze longos anos que se escoaram no areal do tempo.

— Você está bem, Sibylle?

— Muito bem, Danny — disse ela, mas uma grande tristeza marcava seu rosto, desmentindo suas palavras.

Ele acariciou as mãos dela e sorriu novamente, e de novo ela voltou a ficar séria, muito séria.

Ele queria dizer alguma coisa, mas ela lhe fez um sinal de advertência.

— Você ainda pensa de vez em quando no... no nosso tempo, Sibylle?

— Bastante, Danny, bastante.

— Você sabe, eu sempre sonho com nós dois. — Puxou-a para junto de si, beijando-a na boca. — Há doze anos eu sonho conosco. Loucura, não é mesmo?

— É — disse ela — loucura total.

De repente, seus olhos se encheram de lágrimas e ele a olhou, perplexo. Ela repetiu o sinal de cuidado. Com um lenço, secou rapidamente os olhos.

— Se eu pudesse desejar alguma coisa.. . — disse ele. — Você ainda se lembra?

— De tudo, Danny. De tudo. Eu me recordo de tudo.

— Eu também. Exatamente. Como a vida é engraçada, não é?

— É — disse ela. — É mesmo engraçada. Acho que sua acompanhante e o Dr. Herdegen estão chegando.

— Onde estiveram eles todo esse tempo?

— Fazendo o registro. Você deu seu passaporte à Sra. Olivera. não deu?

— Dei. Esse Dr. Herdegen o pediu.

— As determinações são muito estritas — disse Sibylle. — Temos muitos pacientes estrangeiros aqui, sabe. Todos os registros de entrada e saída têm de ser logo levados para o posto policial em Heiligenkreuz. — Novamente ela cochichou na orelha dele: — Eles fotocopiam seu passaporte e o conservam enquanto você estiver aqui. Das fotocópias eles precisam logo. Eu vou explicar- lhe tudo...

No corredor, as vozes e passos ficavam mais fortes.

Sibylle se levantou. Logo em seguida, Herdegen e Mercedes entraram no quarto. Mercedes era mais alta que Sibylle, mas estava tão séria quanto a outra quando as duas se apertaram as mãos. Depois, ambas sorriram. Daniel viu como elas em seguida se observaram. Agora, estavam falando com Herdegen a seu respeito, como se ele nem estivesse presente. Sibylle dizia que ele deveria ser examinado imediatamente. Coração, aparelho circulatório, pulmões. Rotina. Um eletrocardiograma poderia ser feito no leito. Todo o resto também.

— Se a senhora desejar, durma aqui junto ao Sr. Ross — disse Herdegen. — Este é um quarto grande, de dois leitos.

— Obrigada! — agradeceu Mercedes. — O senhor é muito amável.

— Então vamos começar logo com o tratamento — disse Sibylle com toda a objetividade. — Eu vou me ocupar disso, Dr. Herdegen. O Sr. Ross é um velho amigo meu. Já tratei dele antes. Infelizmente. Sempre voltou a ter recaídas. A senhora pode fazer o favor de tirar da bagagem suas coisas de toalete e um pijama, Sra. Olivera! — E, dirigindo-se a Daniel: — O banheiro é ali. Venho daqui a uma meia hora para o exame, okay?

— Okay. Sibylle — disse ele baixinho. Obrigado.

Mercedes já havia aberto uma mala. Enquanto ela ainda buscava as coisas, o pálido Herdegen, com seus espessos cabelos pretos e sua estranha expressão no olhar, disse:

— A Sra. Olivera ainda tem um pedido. Ela gostaria de guardar documentos importantes em seu cofre, doutora-chefe.

O rosto de Sibylle enregelou-se numa máscara, pensou Daniel, que a observava sem cessar. Uma máscara de susto e de medo, pensou ele perturbado.

— Em meu cofre...? — A voz de Sibylle não tinha expressão.

— Sim, doutora. Trata-se de documentos muito importantes — disse Mercedes.

— Aqui não há furtos, Sra. Olivera.

— É claro que não. Mas eu preferiria que os documentos ficassem guardados em seu cofre.

— Eu também, Sibylle — disse Daniel.

— Está ouvindo, doutora? — Somente a expressão do olhar de Herdegen havia mudado. Era agora glacial. — Com certeza a senhora nada terá em contra.

Sibylle continuou calada.

— Doutora-chefe...

Ela se encolheu num repente.

- Claro que não — disse, e seu sorriso crispado fixou-se numa outra máscara.

— Então é melhor irmos logo — disse Herdegen, muito afável. — Enquanto isso, o Sr. Ross pode ir ao banheiro.

— Como desejarem. — Sibylle acenou com a cabeça para Daniel e deixou o quarto, acompanhada pelos outros dois. Os três seguiram rápidos pelo corredor fortemente iluminado, em direção ao elevador. A porta da sala de enfermeiros estava aberta e um jovem médico estava sentado lá dentro com duas enfermeiras, to mando café. Cumprimentaram amigavelmente. Ao longo de todo o caminho até o escritório de Sibylle, que se achava no andar térreo, Mercedes não viu mais vivalma.

O cofre era bastante grande — a porta era mais alta que Sibylle — e estava embutido na parede à esquerda da escrivaninha recoberta de papéis, livros e embalagens de medicamentos. Sua fachada de aço tinha um brilho fosco. A meia altura se encontrava um círculo prateado em cujo centro havia um cone da dimensão de um copo d’água. O cone possuía muitas caneluras, circundadas por uma escala com algarismos. Sibylle aproximou-se do cone. Girando o mecanismo nas duas direções, ela soltou a tranca da porta blindada. Suas costas estreitas encobriam o cone e o circulo numerado.

— Que coisa enorme — disse Mercedes assombrada.

Sibylle não respondeu. Em seu lugar, falou Herdegen:

— Aqui são guardados todos os papéis importantes da clínica e de nossos pacientes, o histórico de suas enfermidades por exemplo. Não se preocupe! O cofre tem uma combinação numérica de cinco algarismos que pode ser alterada a qualquer momento com uma chave apropriada, está vendo? Possui um milhão de combinações diferentes. Sempre trocamos a combinação. Apenas a doutora-chefe abre e fecha o cofre. Somente ela conhece a combinação do momento.

A tempestade recrudescera e açoitava a neve contra a grande janela escurecida pela noite.

— Cinco algarismos, e sempre diferentes. Como é que consegue lembrar-se, doutora? — indagou Mercedes

— Eu tenho um método muito bom — disse Sibylle enquanto girava o cone.

- Mas a senhora não vai revelá-lo — disse Herdegen cordialmente. Sibylle virou-se e o encarou muito séria. Ele continuou rindo. A médica puxou o grande aro prateado. Com um ruído aspirado abriu-se a porta blindada, de mais de trinta centímetros de espessura. Simultaneamente, acendeu-se uma luz no interior da altura de uma pessoa. Mercedes avistou uma mesa e prateleiras nas paredes internas da casa-forte. Havia muitos classificadores de documentos, pacotes amarrados e maços de papéis.

— O que deseja depositar? — perguntou Sibylle. Seu rosto estava agora cinzento. Mercedes pousou a bolsa vermelha sobre um canto da escrivaninha, abriu o fecho e tirou os dois videocassetes. Traziam anotações em espanhol e a indicação do sistema VHS.

— Aqui, por favor! — Herdegen estendeu a Mercedes um grande envelope amarelo.

— Obrigada. — Ela enfiou os dois cassetes lá dentro. — E agora?

— Agora a senhora entra no cofre e coloca o embrulhinho sobre a primeira prateleira à esquerda — disse Sibylle. Sua voz soava de repente extremamente cansada.

Mercedes seguiu a ordem. Mas sentiu um medo estranho quando penetrou na casa-forte. Voltou correndo para fora.

— Pronto — disse Herdegen alegre. — Agora a senhora pode ficar tranqüila. — E Sibylle montou a combinação de algarismos e cerrou a pesada porta. Em algum lugar ela tem de anotar os algarismos, pensou Mercedes, se ela realmente sempre troca de segredo. Seu olhar bateu na foto emoldurada que mostrava a cores um homem de uns quarenta anos, com cabelos e olhos castanhos. O homem ria.

— Oh — disse Mercedes surpresa. — Mas que semelhança, doutora! É seu irmão?

— Sim respondeu Sibylle e segurou-se fortemente na roda do cofre como se tivesse um ataque de fraqueza. — Esse é meu irmão Eugen.

Cerca de uma hora mais tarde, a doutora-chefe Sibylle Mannholz ligou Daniel Ross a um conta-gotas. Com rapidez e habilidade, ela espetou e fixou numa veia de seu braço direito a agulha na extremidade de um fino tubo de plástico que descia de um frasco cheio de um liquido amarelo-brilhante. Em seguida, ela se soergueu e regulou a velocidade das gotas. Antes, Sibylle examinara Ross minuciosamente - Ela se havia assustado perante o quadro de sua exaustão.

— Parece que cheguei aqui faltando um minuto para apagar — disse ele.

— Um segundo. Gostaria de ter seu coração, Danny! Qualquer um já estaria morto há muito tempo.

— Sibylle?

— Sim?

— Estou muito feliz por ter vindo parar aqui.

— Eu também, seu doido.

Enquanto conversavam, Sibylle havia escrito sobre um envelope que a ele passara: CONTINUE FALANDO COMIGO ENQUAN TO LÊ...

— Então quer dizer que agora você está extraindo o Nobilam de meu corpo — disse ele.

IGNORO O QUE VOCÊ DESCOBRIU EM BUENOS AIRES. EM HIPÓTESE ALGUMA FALE SOBRE ISSO COM A SRA. OLIVERA EM VOZ ALTA...

— E claro que o estou retirando — disse Sibylle. — Até ele ser eliminado do corpo vai levar umas setenta e duas horas. O processo de desintoxicação vai durar três a quatro dias.

- VOCÊ QUERIA VIR ATÉ MIM, leu Ross. VOCÊ NÃO PODERIA TER VINDO PARAR EM LUGAR MAIS PERIGOSO. SÓ DEPOIS QUE VOCÊ TIVER RECOBRADO SUAS FORÇAS E PUDER PASSEAR TERÁ TODAS AS EXPLICAÇÕES. EU ESTOU NUMA SITUAÇÃO MUITO RUIM. -.

— E depois de três, quatro dias?

— Você não estará se sentindo tão bem como agora. meu caro.

... A SRA. OLIVERA JAMAIS DEVERIA TER GUARDADO OS VIDEOCASSETES NO MEU COFRE, seguiu lendo Daniel. NUNCA! AGORA É TARDE DEMAIS- AGORA SÓ PODEMOS ESPERAR QUE TUDO DÊ CERTO...

- Então, que vai você fazer comigo?

...REPITO: NENHUMA PALAVRA PESSOAL! DIGA ISSO À SrA. OLIVERA NO OUVIDO! OU ESCREVA!

— Você já vai ver. Com medo das alucinações da desintoxicação, hem?

— Claro. Você bem sabe que covardão eu sou.

Sibylle lhe tinha tirado o envelope das mãos e tinha ido ao banheiro onde rasgou o papel em pequenos pedaços que jogou fora, puxando a descarga.

— O covarde morre mil mortes e o corajoso uma só, diz o ditado. Claro que isso é conversa. O corajoso morre dez mil mortes se ele for inteligente.

— Eu sou inteligente — disse ele enquanto sentia seus membros ficarem pesados. — Infelizmente.

— Sim — disse Sibylle. — Nem por isso você tem de ser corajoso, meu pequeno covarde! Não faria a menor diferença. Nós não vamos deixá-lo morrer, Danny. E um pouco de medo e alucinações são no fundo uma coisa boa. Então você se lembrará disso durante algum tempo. Eu espero. As pessoas esquecem tão rapidamente. — Ela beijou-o nas faces e na boca, afagando seus cabelos. — Isso, dorme bonitinho, meu velho!

— Eu vou conseguir dormir?

— Corno urna marmota. Nem vai acordar quando eu trocar o frasco. See you later, a!ligator! — Sua trágica expressão facial fazia um terrível contraste com a alegria fingida de sua voz. Dirigiu-se à porta e fez-lhe ainda um aceno.

Mercedes estava sentada numa poltrona do corredor. Ela se ergueu.

— Pronto, acabou — disse Sibylle. Ela agora chegava até a sorrir. — Pode entrar, Sra. Olivera. Está tudo em ordem.

— Eu lhe agradeço, doutora. Agradeço muito.

— Ora, não há nada para agradecer — disse Sibylle. Ela seguiu pelo branco corredor. Estava com as mãos dentro dos blocos de seu avental. Mercedes a acompanhou com o olhar e notou um tremor em seus ombros. Não poderia supor que aquela mulher esguia de cabelos castanhos que se afastava tinha de reunir todas as suas forças para conseguir manter-se de pé e não desmaiar.

Mercedes entrou no quarto e voltou-se para fechar a porta. No mesmo instante, as fortes lâmpadas fluorescentes do corredor se apagaram e ele ficou banhado na luz azul das lâmpadas noturnas - Olhou para seu relógio de pulso 22h, precisamente. Empurrou a porta e trancou-a. Viu então Daniel, que escrevia apressadamente com a mão esquerda alguma coisa num bloco de papel pousado sobre os joelhos encolhidos. Seu braço direito permanecia ligado ao conta-gotas. mas sendo canhoto ele sabia escrever com ambas as mãos. Mercedes queria começar a falar, mas ele pôs um dedo sobre os lábios e estendeu-lhe o bloco. A primeira folha ele havia recoberto de texto. Mercedes compreendeu imediatamente a situação.

- Alô. Danny, como está?

— Cansado — respondeu- — Penso dormir por muito tempo. pois foi imenso o tormento destes dias! Schiller, A Morte de Walenstein, quinta cena do quinto ato.

Assim como ele havia lido o que Sibylle escrevera enquanto conversava com ela, também Mercedes pôs-se a ler durante a conversa com Daniel.

— Mas você está se sentindo melhor, não é?

— Muito melhor. Eu estando aqui, está tudo bem.

— É urna mulher formidável, a sua Sibylle.

- É – disse ele – não é mesmo?

Mercedes havia lido até o fim. Sabia, então, tudo o que Slbylle confiara a Daniel. Ela o olhava perplexa. Ele ergueu os ombros e voltou a pôr o dedo sobre a boca. Em seguida afagou a mão dela e a encarou. Ânimo! exprimia o sorriso dele. Ânimol

— Você amou muito Sibylle, não é? — perguntou ela.

— Sim, muito mesmo, Mercedes.

— Deve ter sido um reencontro único.

— Ah, e foi mesmo.

— Você ainda a ama?

— Sim. Mas como uma irmã. Alguém em quem se confia muito.

— Você está dizendo mesmo a verdade?

— Mas é a verdade, Mercedes.

- Você precisa dizer a verdade, está me ouvindo? Seria infame me mentir: Posso entender perfeitamente que você ainda goste muito dela. Seria para mim uma falta de sorte. Mas eu preciso saber da verdade. Gosto demais de você.

— Mas eu também gosto de você, Mercedes. De outra forma, inteiramente diferente, mas tanto quanto amei Sibylle.

— Oh, que bom. Eu amo você como jamais amei alguém, Danny.

Seguiu-se um silêncio.

— Isso. E agora aquele beijo comprido — disse um sujeito cheio de banhas, de cara vermelha e cabelo louro-pálido, de cerca de trinta anos. — Agora é meter a língua bem para dentro da boca.

— Cale essa boca, Toni! — disse Herdegen, que se achava em frente ao alto-falante.

O silêncio durou muito tempo.

— Então — disse o balofo chamado Toni. — Já devem estar sufocados.

Do alto-falante saiu o ruído de passos se distanciando. Começou o barulho de água correndo.

— A dama toma seu banho — disse Toni. — Ah, mas que bela e maravilhosa cena de amor!

O alto-falante se encontrava num cômodo sem janelas, repleto de equipamentos eletrônicos. Ao longo de toda uma parede havia prateleiras com modernos pequenos gravadores. À frente de cada prateleira preta estavam coladas diminutas etiquetas sob cada gravador contendo um nome e um número. Três dúzias de alto-falantes iguais, ligados aos microfones escondidos, estavam presos sobre a prateleira. Na verdade, cada alto-falante correspondia a um gravador, trazendo marcado o número respectivo com tinta branca. Em frente a essa parede havia uma longa mesa atrás da qual se viam cadeiras de escritório com encostos reguláveis. Na parede oposta estavam instaladas diversas máquinas e equipamentos de todos os tamanhos, inclusive um completo equipamento de rádio. Um exaustor providenciava a renovação de ar.

— Outra coisa nunca vai conseguir ouvir, doutor — disse o sujeito esponjoso. Ele estava em mangas de camisa e suava. Sob as axilas, sua camisa tinha manchas escuras, O cômodo estava superaquecido e o ar continuava viciado a despeito do exaustor. — A Mannnholz avisou os dois.

— A Mannholz? Nunca na vida, Toni! Ela nunca ousaria. Sabe muito bem o que acontece se nós descobrirmos.

— Como é que pretende descobrir, doutor? Basta que tenha avisado o homem, esse Ross. Já foram grandes amantes, os dois.

- Mesmo assim. Medo demais, Abriu imediatamente o cofre.

— Por quê?

— Por que o quê?

- Por que a Mannhoiz abriu a casa-forte? — perguntou o gordão de cima da cadeirinha.

— A Olivera queria que os videocassetes estivessem em absoluta segurança.

O homem chamado Toni teve um ataque de riso.

— Já na ambulância falava disso o tempo todo. Então, contei-lhe que havia o cofre. Agora os cassetes estão em segurança, Toni.

O ruído de água escorrendo continuava a soar no alto-falante.

— Se a Mannholz não os tiver avisado, então eles têm de ser superestúpidos — disse Toni, em tom de repente sombrio. — E se eles são tão broncos assim, por que não falam então da coisa?

— Eles não são superestúpidos. São é muito inteligentes, os dois, Você sabe que Ross já amou a Mannholz. E ela o amou Ele confia nela cegamente. Portanto, a Olivera também confia nela. É algo maravilhoso a confiança, Toni.

— Mas se eles têm, então, tamanha confiança, por que não falam dos cassetes?

— Simplesmente porque são inteligentes — Herdegen sentou-se numa pequena cadeira de escritório. — Eles têm imaginação. Não querem se arriscar, na situação em que se encontram. Já ouviram falar de grampos.

- Mas isso é inteiramente idiota. E então por que a Olivera pôs os cassetes no cofre para que fiquem em segurança?

— Eu já lhe disse, eles confiam completamente na Mannholz. Agora basta com essa história! Precisamos esperar até que chegue esse tal de Wayne Hyde.

— Quem vai chegar?

— O homem anunciado por Londres. — Herdegen olhou para o relógio. O avião dele vai pousar em trinta minutos.

Enquanto se desenrolava essa conversa, Daniel Ross se havia levantado. Movia-se devagar e com cuidado, a fim de que não lhe saísse da veia a agulha do conta-gotas. Com a mão esquerda, segurou a haste cromada do tripé com rodinhas que mantinha o frasco com o líquido dourado, e empurrou cautelosamente o equipamento diante de si para dentro do banheiro, onde a água jorrava, enchendo a banheira.

Vestida sumariamente com uma calcinha, Mercedes estava debruçada sobre o lavatório, escovando os dentes. Deu meia-volta tão logo viu Ross surgir no espelho.

— Danny, você ficou maluco?

— Psiu! Quieta. — Empurrou o tripé e sentou-se sobre um tamborete.

— Mas você não deve se levantar! E se acontece alguma coisa! — murmurou ela. O barulho da água abafava suas vozes.

— Não vai acontecer nada. Preciso dizer-lhe uma coisa, Mercedes.

— O que é? — Só então ela percebeu que estava quase nua. Pegou rapidamente um roupão e cobriu-se com ele.

— Não é verdade — sussurrou ele vexado.

— O que não é verdade?

— O que eu falei. Sobre Sibylle. Que a amo como uma irmã. Como uma confidente.

— Oh. — Seguiu-se um silêncio. A água rugia. Mercedes sentou-se à borda da banheira.

— Ou melhor: foi a verdade. Ainda era verdade, até duas horas atrás, isso eu posso jurar pela minha própria vida, Mercedes. Mas então, quando a vi de novo, quando ouvi sua voz...

— Aí tudo voltou a ser como antes — completou Mercedes, baixinho.

— Sim, como antes. Eu... eu não posso mentir para você. Porque eu amo você demais. Eu... eu estou inteiramente confuso... Eu nunca poderia esperar... realmente não... Mas, quando a vi novamente, foi como doze anos atrás. . . Como se o tempo não houvesse passado... nem sequer um dia...

- E Sibylle — murmurou Mercedes.

— Não sei... Ela mal disse uma palavra...

— Mas isso você nota logo, Danny!

— Realmente, não sei o que ela acha... Ela está muito mudada... Tão séria, tão fechada. Deve estar passando por uma grande aflição...

— E você não lhe perguntou o que era?

- Mas eu estou lhe dizendo, mal conversamos. Eu... eu estou tão mal... Talvez seja por causa disso... Talvez em alguns dias... já amanhã... realmente eu a ame como uma irmã... Mas no momento...

— Você gosta de nós duas?

— Sim — sussurrou ele.

— As duas igualmente?

— É... não... sim, isso mesmo... desculpe-me, Mercedes.

— Não há nada para desculpar. Eu imaginei isso, o tempo todo, já esperava por isso...

Eles se entreolharam, mudos.

A água continuava a rugir...

... e por isso, essa conversa ficou inaudível para Herdegen e para o balofo Toni. Ambos continuavam sua conversa.

- E que aconteceu durante seu turno? — indagou Herdegen.

- A enfermeira Gertie disse que o homem da Union of Concerned Scientists recebeu visita.

— É, o homem dos Cientistas Apreensivos recebeu visita, sim, doutor. Um americano. interessantíssimo. - Toni indicou com a mão um dos pequenos gravadores da estante. — Número vinte e dois. Está tudo gravado. Pois o Reagan deu ordem para a militarização do espaço, não é? O “Campo de batalha do futuro” é como ele chama o cosmo. Dentro dos próximos dez anos deverá haver estações orbitais permanentemente tripuladas Deverão ser construídas pelos space shuttles, essas naves espaciais que podem ser usadas várias vezes, como o ChalIenger. Eles têm capacidade para levar cargas bem grandes, já está comprovado. Quando essas estações já estiverem instaladas, elas serão equipadas com canhões de raio laser, que podem destruir  todos os foguetes inimigos que se aproximarem, no próprio espaço. Mas isso é apenas uma das coisas planejadas. Parece que os russos têm os mesmos planos. Em todo o caso, esse termo cinematográfico de Guerra nas estrelas, do Reagan e Weinberger já está sendo usado para designar uma defesa completa contra foguetes balísticos. Os dois estão convencidos de que estarão, dentro de dez anos, inteiramente protegidos dos foguetes soviéticos. Os Cientistas Apreensivos parecem estar muito apreensivos. Doutor, o senhor precisa escutar tudo o que o americano contou ainda! A gente fica com a sensação de que todos os chefões americanos e russos devem ser internados aqui no hospício! Mas isso não acontece. E o que será dentro de dez anos?

— Depende de saber se tudo isso é mesmo possível, e, nesse caso, saber quem vai consegui-lo primeiro. Se for, salve-se quem puder. Houve mais alguma coisa?

— Piontak também recebeu visita. Polonês, compatriota. Finge que estuda computação. Por isso lhe é permitido entrar e sair do país. Conversaram sobre novas atividades do “Solidariedade”. Estão planejando o diabo. Está tudo gravado. Os soviéticos precisam ficar sabendo disso o mais rápido possível.

— Vão ficar sabendo logo, Toni. O que mais?

— Número catorze. O homem do MAD, do Serviço de Inteligência do Exército alemão. Visita de um colega. O MAD está completamente por baixo, desde que usou um gay que transa por dinheiro como testemunha de que esse general da OTAN é bicha. Deverão rolar cabeças no MAD. Agora eles vão partir para a safadeza. Se não forem deixados em paz, vão dizer que agiram por incumbência do chefe americano da OTAN, porque ele queria se livrar de qualquer maneira do general alemão.

— Gente fina!

— Está tudo na fita, doutor.

— O que mais?

— Damiani, é claro. Durante horas, uma briga com Isabel de Castela, Fernão de Aragão e esse papa Bórgia. Como sempre, o tratado de Tordesilhas. 7 de junho de 1494. Já sei tudo isso de cor. É óbvio que não gravei. Pobre-diabo, esse Damiani. E pensar que ele é um especialista famoso em direito internacional! Totalmente biruta, não?

— Gravemente esquizofrênico.

— E daí? Não vai mais melhorar?

— Não. Não tem chance. Vamos mandá-lo de volta para a Itália. Só estamos esperando pelas ordens lá de cima.

— Ah! Doutor, o mais importante: o muçulmano!

— O que há com ele?

— Disso os americanos precisam saber logo. Hoje à tarde esteve alguém da Embaixada aqui. Khomeini quer começar uma grande ofensiva com meio milhão de homens para liquidar definitiva mente com o Iraque. Em seguida, quer fechar o golfo Pérsico. E chantagear o ocidente.

Herdegen ficou de repente excitado.

- Onde está a fita?

— Cinqüenta e três.

Herdegen pegou o gravador cinqüenta e três da prateleira.

— Vou ouvi-lo imediatamente. Hoje foi uma tarde cheia de acontecimentos, hem, Toni?

— Mas não é mesmo! Estou inteiramente arrasado. E ainda tenho de trabalhar até meia-noite! Meu corpo está todo doendo. Quem é que vai me render?

— Buja.

— O Buja sempre ganha o turno da calma! Isso é que é moleza. Entre meia-noite e a hora do café todos estão dormindo. Buja também pode dormir, tranqüilamente. Estou é com dor de cabeça. Aqui dentro está um ar fedido! Mesmo com o exaustor. Fede como numa latrina, realmente, doutor.

— É seu fedor, ora!

— Eu! Espere um momento, doutor!

— Você está suando. Você está fedendo. Tome mais banho. Troque mais vezes de camisa. Realmente, Toni, eu gosto muito de você, mas você não passa de um grandíssimo porco.

Neste edifício se paga por dia um ducado na primeira classe. e 30 cruzados na segunda. São aceitos gratuitamente os estipendiários por cuja remuneração a Casa seja responsável; outros dementes da classe daqueles que nos hospitais gerais são aceitos contra pagamento de dez cruzados ou sem remuneração.

Para os eclesiásticos que tiverem a infelicidade de se tornarem dementes é destinado o alojamento dos Irmãos da Misericórdia, daí não precisarem de acolhimento nesta Casa. Os loucos mansos serão acomodados no chamado Lazareto.

Esta informação, impressa em um quebradiço e amarelecido papel, estava dependurada, entre vidros, em uma parede do gabinete de Sibylle, situado no primeiro andar da Clínica Psiquiátrica e Neurológica da Universidade em Viena. Debaixo dela, havia um leito simples. Aqui dormia a Dra. Docente Mannholz, quando fazia plantão noturno. Naquela hora tardia de uma noite outonal, em novembro de 1970, podiam-se enxergar, pela janela aberta, muitas outras clínicas na grande área ocupada pelo Hospipita! Geral, cuja entrada principal se encontrava na Travessa do Lazareto, 15. O prédio da Psiquiatria erguia-se sobre uma suave elevação do terreno, acima das demais clínicas. Sibylle havia completado trinta e seis anos de idade, tinha estatura média e era esbelta. Tinha cabelos castanhos e grandes olhos da mesma cor. A boca era larga, os lábios macios e feitos para o riso. Daniel tinha trinta e três anos e ainda era louro. Tinha aspecto recuperado e sadio. Daniel e Sibylle encontravam-se de pé, um defronte ao outro junto da escrivaninha dela.

— Há ainda uma complicação que eu preciso relatar — disse ele.

— Mais urna complicação?

— Sim.

— E qual é? — indagou ela.

— Eu amo você, Sibylle. Desde que a conheço. Adoro você.

Os olhos dela ficaram imensos de repente. Ele a envolveu com os braços e apertou seu corpo contra o dela. Ela se de fendeu em vão. Os lábios se encontraram. Ele a beijou com dureza e os lábios dela ficaram rijos. Mas aos poucos se entreabriram, ficaram macios e maravilhosos. O beijo foi longo. Por fim, ela pousou sua cabeça no ombro dele, e suas faces se encostaram. Ela murmurou:

— Eu compreendo você, Daniel... — Seus braços soltaram o corpo dele. Voltaram a beijar-se. Em seguida, olharam-se nos olhos.

— Para todo o sempre — disse ele.

— Para todo o sempre — replicou ela. Súbito, ela sorriu.

— O que foi?

— Nada, querido.

— Claro que sim! De que você riu?

— Por favor, não.

— Por favor, diga! Em que você pensou?

— Eu pensei: fixação materna! Claro, eu sou mais velha — disse Sibylle e sorriu novamente...

Foi assim que tudo começou.

E desse modo começava o sonho que Daniel desde então tivera, tantas dezenas de vezes. Sempre assim. Exatamente assim. E dessa forma também começou na noite de 21 de fevereiro de 1984, a primeira que Daniel passou no Sanatório Kingston em Heiligenkreuz, deitado de costas, com o braço direito ligado a um conta-gotas. Ele sorria durante o sono. Mercedes estava sentada na borda da cama e o observava. Ela estava com um roupão de banho e seu rosto permanecia sério. Apenas uma pequena lâmpada sobre a escrivaninha iluminava o fundo do quarto. Estava tudo quieto. A tempestade amainara. Mas a neve continuava caindo, muita neve. Daniel está sonhando com ela, pensou Mercedes. Ela estava segura de que ele sonhava com Sibylle.

O homem com chapéu de tirolês estava postado diante da grande parede de vidro que cortava o andar de chegada do Aeroporto de Viena-Schechat em duas partes. Havia poucas pessoas esperando por amigos ou parentes que desembarcavam do último avião daquele dia, o vôo 345 da Lufthansa, procedente de Paris e com escala em Frankfurt, e que chegara às 22h30m. Já eram 22h50m e o homem com chapéu de tirolês viu através da vidraça Wayne Hyde vir em sua direção, saído do setor de entrega de bagagens. O mercenário trazia suas duas grandes e velhas bolsas de roupas com revestimento de tecido escocês. Havia reconhecido o homem junto à vidraça que lhe acenava, e aquilo o fez sorrir, feliz. Dirigiu-se a uma das muitas portas de entrada da grande divisória de vidro, para onde, do outro lado, se encaminhou igualmente o homem de casacão de feltro e chapéu tirolês. Outros passageiros surgiram atrás de Hyde e os que esperavam passaram a acenar-lhes. No gigantesco saguão espalhava-se a horrível claridade dos tubos de néon como num reino dos mortos. Todas as pessoas tinham rostos de cera. Os lábios pintados das mulheres pareciam negros.

Wayne Hyde ultrapassou a porta de saída, jogou um dos sacos de roupa por cima do ombro e apertou cordialmente a mão do homem que o aguardava. Sobre seus louros cabelos rentes havia cristais de neve, e seu rosto curtido pelas intempéries estava avermelhado.

— Alô, Franz, meu velho! — saudou ele.

— Alô, cara! — disse Franz Loderer com carregado sotaque austríaco. Também seu rosto era estreito e seus olhos claros. — Que alegria — disse ele, batendo no ombro de Hyde. — Realmente. Sabe há quanto tempo não nos vemos?

— Exatamente. Desde 78. Angola. Foi quando estivemos juntos pela última vez,

— Conseguimos botar o MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola – N. do T.) para a frente, não é? Aquilo também foi uma história! Quando nós despencamos com aquele helicóptero Sikorski? — Ambos riram em voz alta.

— Mais divertido que no Congo — disse Hyde.

— Não tem nem comparação — disse Franz. — O Congo foi uma tragédia. Me dê aqui esses sacos.

— Não, deixe. Eu me viro com eles muito bem.

— Meu carro está aqui, bem pertinho. — Caminhavam lado a lado. Franz Loderer continuava eufórico. — Realmente, cara. Quando você telefonou, eu cheguei a chorar, imagine!

— Esse Franz velho de guerra — disse Hyde. Eles haviam alcançado uma das saídas. Nevava forte.

— Logo ali! No primeiro estacionamento — disse Franz, rindo de novo. — Tive até de olhar a condecoração do MPLA, depois que você ligou. Que troço grande, aquele. Você está lembrado? Você também ainda tem o seu?

— Claro.

— Aliás, tenho uma gaveta da cômoda cheia dessas latas. poderia até abrir um negócio. Você também. Que coisa, a estrela do MPLA. A maior condecoração de todas.

— Aqueles crioulos ganharam aquilo dos russos. As condecoraçôes russas são sempre as maiores — disse Wayne Hyde, que caminhava ao lado de seu velho amigo através da neve que caía.

Após a guerra civil angolana, que havia começado em 1976, o partido marxista MPLA depois de anos conseguira finalmente chegar ao poder, com o auxilio da União Soviética e Cuba bem como de mercenários. Wayne Hyde e seu amigo Franz Loderer haviam combatido ao lado deles durante dois anos.

— Proletários de todos os países, uni-vos! — disse Hyde

— Cara, não existe ideologia pela qual não tenhamos matado ainda.

— Aqui está ele — disse seu amigo de chapéu tirolês, abrindo em seguida o porta-malas de um Mercedes preto. Hyde guardou os dois sacos de roupa e eles sentaram-se no carro. O pára-brisa estava coberto de neve. Franz acendeu a luz interna. Ergueu uma pesada bolsa de lona e a pôs sobre os joelhos de Hyde.

— Pronto, cara, está tudo ai — disse ele.

Na bolsa estavam a coronha, o cano e a mira telescópica de uma espingarda, munição e uma poderosa pistola.

— O que você queria — disse Franz. — Springfield 03, calibre 7.69, carregador para dez tiros. Mira telescópica. Trouxe dez carregadores, porque sempre só há seis cartuchos lá dentro. Okay, Merc?

— Okay, buddy.

— Quem diria, vou até admirar! O velho Wayne na cidade de Viena! Para onde nos arrancamos? — Franz Loderer deu a partida no motor e ligou o limpador de pára-brisa. Acenderam-se os faróis.

— Heiligenkreuz.

— O quê? — Franz estava perplexo. — Você está querendo apagar alguns santos sacerdotes?

— Não, como assim?

— Lá é um mosteiro, cara.

— Há um sanatório perto.

— Ah, bem. — Franz seguiu em frente. — Você dessa vez vai trabalhar para quem? Para os ianques ou para os russos?

— Para ambos — retrucou Wayne Hyde.

 

Daniel Ross sonha...

Está nu, deitado ao lado de Sibylle, também nua. Pela primeira vez se haviam amado. É tarde da noite. Ele afaga seus pequenos e firmes selos. Fumam juntos um mesmo cigarro. A cama é grande e quadrada. De dia é apenas um divã. Diante da janela do minúsculo dormitório piscam ao longe milhões de luzinhas de Viena. Sobre uma mesinha estão uma pequena televisão e um pequeno toca-discos, ligado a um equipamento estereofônico. Dispõe de uma haste onde pode colocar até dez discos por vez.

E deitados eles escutam baixinho a música romântica de tempos passados. Willi Forst acabara de cantar Bel Ami. Sibylle coleciona velhas gravações em discos de goma-laca. Cai outro disco no prato giratório. Soa um piano, geme um saxofone, entram os violinos. A música tem aquele estranho som enlatado das velhas gravações. O arranjo musical também é antigo e diferente. Sozinho, o piano acompanha agora uma jovem e triste voz feminina, que canta: “Ninguém nos perguntou, quando ainda não existíamos, se queríamos viver ou talvez não. Agora eu caminho só numa grande cidade — e não sei se ela gosta de mim. Olho em alcovas, por portas e vidraças, e espero, e espero por alguma coisa... Se eu pudesse desejar alguma coisa, ficaria embaraçada, sem saber se escolheria um bom ou um mau tempo...”

Daniel escuta com atenção.

— Quem é? Quem está cantando?

— Não sei, querido. — O dedo de Sibylle acaricia sempre de novo seus cabelos. Ela lhe passa o cigarro para uma tragada e bate a cinza num pratinho a seu lado da cama.

“... Se eu pudesse desejar alguma coisa, gostaria de ser feliz só um pouquinho”, canta a voz infantil da mulher naquele velho disco, “porque se eu fosse feliz demais, sentiria saudade da tristeza.” Entra novamente o saxofone, voltam os violinos. A música chega ao fim.

Rápido, Daniel se levanta e pára o toca-discos.

- Que é que você quer?

— Ver quem cantou.

Ela, então, se ajoelha. Nua, encosta-se no corpo dele, que tira o disco do prato.

— Estranho — diz ele.

— O que é estranho, Danny? — Seus pequenos seios apertam-se contra as costas dele.

— A etiqueta. Olhe aqui! Inteiramente riscada. E do outro lado também... Não se consegue decifrar mais nada. Nem uma palavra. Em todos os seus outros velhos discos as etiquetas estão legíveis. Só essa não. Nunca tinha visto nem ouvido esse disco. Realmente curioso. Eu achava que conhecia todos.

— Eu também pensava que conhecia tudo em você — disse ela, deixando-se cair para trás sobre a cama, de braços abertos.

Então ele desliza sobre ela e recomeça a maravilha, a maravilhosa maravilha para os dois naquele quarto, que já é praticamente a casa inteira, aquele quarto tão pequeno que somente pessoas que se amam muito podem nele viver juntas. Há ainda um banheiro, uma cozinha e um pequeno vestíbulo, tudo minúsculo

Tempos mais tarde, em 1973, o terreno do Hospital Geral de Viena se transforma por vários anos num imenso canteiro de obras. Um atrás do outro, vão sendo derrubados todos os velhos edifícios das clínicas, em primeiro lugar o horrível e antigo prédio, pintado de amarelo-imperial, da Psiquiatria. Cada clínica é substituída por um edifício hipermoderno. Essa transformação, indissoluvelmente ligada a um gigantesco escândalo de corrupção — chamado de escândalo do HGV — não se concluiu ainda até este momento em que Daniel sonha com o pequenino quarto de Sibylle.

Já antes de 1970 construíram-se nas proximidades da Travessa do Lazareto duas torres imensas de dezessete andares, para moradia dos médicos, médicas e corpo de enfermagem da grande clínica. Também Sibylle se mudou para lá, para o décimo quinto andar, apartamento 1.508.

Todos os apartamentos são iguais e pequenos, vinte metros quadrados apenas. Vinte metros quadrados! Em cada andar ímpar, os pisos, as cortinas e as cobertas de cama são azuis, e nos pares. amarelos — assim como as paredes dos corredores sem fim que saem dos elevadores e nos quais facilmente se pode sentir claustrofobia. Na verdade, qualquer pessoa normal tem de enlouquecer dentro dessas células padronizadas, onde o grande sofá-cama pertence ao inventário básico do prédio. Inúmeros exemplares se situam nos dezessete andares rigorosamente na mesma posição

Em seu sonho, Daniel ouve Sibylle dizer: — Quando eu ainda estava sozinha, durante algum tempo dormia muito mal. Todas as noites daquela época eu tinha — o que era diabólico — de ficar imaginando onde as catorze pessoas abaixo de mim tinham as cabeças e os pés.

Sim, pode-se ficar louco nessas desumanas moradias que lembram favos de uma colméia! Pelo menos dois moradores por ano pulam das janelas para o abismo. Mas mesmo um tal favo pode ser um oásis de sorte, felicidade e paz — quando duas criaturas se amam. Se amam tanto como Sibylle e Daniel. Daniel Ross, o bem-sucedido, o quase-viciado diretor dos Estúdios Europa-Sudeste, de propriedade da emissora de TV de Frankfurt. É claro que a Central tem também correspondentes nas capitais do Sudeste europeu, mas seu trabalho é coordenado em Viena. Daniel tem uma residência espaçosa na Alameda Grinzinger, mas sempre que pode ele dorme com Sibylle. De seus pais, que moram em Salzburgo — o pai também é médico — ela ganhou uma secretária antiga. Nem mais um móvel antigo caberia naquele único cômodo, com muito menos que vinte metros quadrados. Em prateleiras dependuradas na parede, por cima da secretária, está arrumada uma quantidade de literatura especializada. No chão, estão empilhadas montanhas de livros de bolso; não há lugar para edições normais. Em prateleiras de madeira compensada há muitos LPs, além da coleção de discos de setenta e oito rotações de Sibylle. Durante o dia, a cama fica coberta por um tecido azul, com várias almofadas coloridas. Na parede está dependurada uma reprodução do quadro Jidl mitm Fiedl, (Judeu com Violino) do pintor preferido dos dois: Marc Chagall. Mostra um pequeno judeu corcunda dançando e tocando violino em cima de um telhado de madeira de uma casa entortada pelo vento e cercada por uma lua, nuvens, estrelas, um burro e uma vaca, a igreja e outras casas tortas de judeus pobres do Schtetl (cidadezinha, vilarejo judeu na Europa oriental – N. do R.) Liosno, onde nasceu Chagall, nas proximidades de Vitebsk.

Aqui, neste cubículo, onde duas pessoas não podem passar ao mesmo tempo entre a cama e a secretária, Daniel encontrava tranqüilidade, ele que estava eternamente superocupado e inquieto. Aqui ele era feliz, tão feliz com Sibylle. Viam televisão. Ouviam música: Tchaikovsky, Mozart e também Gershwin e Louis Armstrong. Liam juntos as edições de bolso dos seus preferidos Hemingway, Steinbeck, Gary, Silone, Fallada, Graham Greene...

Tudo isso Daniel via e ouvia em seu sonho, sonho que ele, nos últimos doze anos, tão freqüentemente sonhara. Um sorriso se mostrava em seu rosto, e Mercedes, sentada à cama, o observava imóvel — séria e triste.

Sibylle entrou e trocou o frasco quase vazio do conta-gotas por um outro cheio, com toda a cautela. Daniel não acordou, nada sentiu. As mulheres se entreolharam em silêncio. Ela deveria ir dormir, sussurrou Sibylle para Mercedes, mas esta sacudiu a cabeça. Sibylle assentiu e se foi novamente. Lá fora, continuava a nevar. Em meio ao grande silêncio só se ouvia a respiração mais profunda e regular de Daniel, que continuava a sonhar com Sibylle e ele, e com o amor que os unia...

Eles têm os mesmos gostos e pontos de vista, os mesmos interesses e preferências, e os seus corpos — a “química” deles, como dizia Sibylle — haviam sido criados um para o outro. Quando, exaustos de amor, dormiam enlaçados num único ser, pareciam uma única pessoa, protegida de todo o mal pelos trinta e seis justos a que o grande Martin Buber alude ao narrar as lendas hassídicas (Do hebraico hasidím — piedosos, devotos; em tempos modernos (século XVIII) movimento piedoso do judaísmo. de especial sabor popular (N. do T.): no nosso mundo há, desde que ele existe, justos e injustos, às vezes mais, às vezes menos justos. Mas, sempre e em todos os tempos, há, pelo menos, trinta e seis deles. Eles precisam existir senão o mundo não poderia sobreviver nem mais um dia, submergiria em sua própria culpa...

E a tudo isso presenciava Daniel em seu sonho, que ele sonhava há doze anos, sempre e sempre de novo. Só as palavras e as imagens mudavam, como ocorre em sonhos.

Eis a senhora que é proprietária do pequeno cinema Beliario, e que regularmente exibe filmes muito antigos, e eles lhe perguntam se ela conhece quem cantou “Se eu pudesse desejar alguma coisa” e em que filme, pois, que essa canção, desde aquela noite em que tudo aconteceu pela primeira vez, se havia tomado deles. E a velha senhora recordava que a música tinha sido cantada no filme O homem que busca seu assassino, e que Heinz Rühmann nele trabalhou sob a direção de Robert Siodmak, com música e texto de Friedrich Hollaender, mas ela não consegue encontrar mais nenhuma cópia desse filme de 1931, um dos primeiros sonoros, e assim Sibylle e Daniel nunca souberam quem cantou a canção deles que está naquele disco de goma-laca com etiqueta arranhada.

Eles cuidavam para que suas férias sempre coincidissem e então seguiam no Opel Admiral de Daniel, que pertencia à emissora, em direção à Normandia, para as praias repletas de pássaros e o mar raivoso; eles iam até a Camargue ver os brancos cavalos selvagens; visitavam a Riviera e percorriam Vallauris, Antibes, Saint-Paul-de-Vence; viam os originais dos quadros daqueles pintores que ali tinham vivido — telas de Bonnard, Picasso, Calder, Kandinsky, Miró, Ubac e, evidentemente, Chagall.

Viajam para a Iugoslávia. Vão até Roma e jogam moedinhas na Fontana de Trevi porque quem o faz, diz-se, sempre volta. Oh, e como riam juntos! Como é maravilhoso poder rir com uma pessoa que sente do mesmo modo que nós próprios.

1971. Em outubro, um ano depois que começara seu amor, Daniel começa a sofrer sob os efeitos colaterais do Oxazepan, para o qual Sibylle o havia desviado, para livrá-lo do Valium.

Tudo isso ele via e ouvia em seu sonho — da mesma forma que aquele grumete que canta: “Eu vejo Jerusalém e Madagascar e a América do Norte e a do Suuul!” Sim, tudo isso ele reviveu, mais uma vez. Como de repente sua voz foi ficando rouca e finalmente só conseguia sussurrar, como passou a sofrer de uma necessidade de dormir cada vez mais forte e irresistível, e de como uma noite em que tinha um encontro com Sibylle num hotel confundiu uma porta espelhada e escura de uma cabine telefônica com a escura e espelhada porta de entrada do hotel, chocando-se com todo o ímpeto contra a porta da cabine, porque seus olhos haviam falhado...

... Então, com carinho, Sibylle o conduz pela mão até o carro, senta-se atrás do volante e parte imediatamente, naquela mesma noite, em direção à clínica, para o pavilhão B 22 da

Psiquiatria, onde ele já estivera internado anteriormente, quando ela o libertou do Valium. Ele confessa que estava tomando Oxazepan em doses excessivas.

- É um medicamento tão formidável — grasnou. — Primeiro me deixou sempre tão bem disposto quando eu estava cansado, e eu nunca queria estar cansado a seu lado. Tomei mais e mais, para que pudesse ficar mais tempo acordado e feliz. Você não acredita em mim?

- Claro que acredito, Danny.

- E você não está zangada comigo?

— Como poderia?

— Mas você me despreza...

— Que bobagem é esta!

— Porque eu sou tão fraco... tão sem consciência... cedo a qualquer tentação... principalmente não sou nenhum apoio para você, se não consigo me agüentar nem a mim...

— Você é todo o meu amparo, seu burrinho — diz Sibylle e lhe dá um beijo na boca. E ele já está deitado na cama, dependurado no conta-gotas. Começou a desintoxicação.

Assim como Mercedes doze anos mais tarde, em outubro de 1971 era Sibylle quem estava ao lado do leito de Daniel até que ele tivesse adormecido — um homem magro com um estreito e cinzento rosto de menino, cabelo louro desarrumado que já começa a ficar grisalho. Tão logo Sibylle lhe ouve a respiração mais profunda e regular, ela deixa o quarto. Mas permanece em seu gabinete e sempre volta para trocar os frascos. Era sempre a mãe, pensou ela. Será sempre a mãe. Pensei certa vez que eu seria a mais forte. Enganei-me. Meu querido, meu bom, meu pobre, pobre Danny...

O telefone soou no quarto de Herdegen.

Ele estava deitado numa cama de campanha e fumava. Ergueu o receptor e atendeu.

— É o porteiro, doutor. Acaba de chegar um carro. Um homem deseja falar com o senhor. Tem um compromisso com o senhor, diz ele.

— Deixe-me falar com ele.

— Um momento, doutor.

Outra voz masculina perguntou:

— Dr. Herdegen?

— Sim.

— Wayne Hyde.

— Está dando tudo certo! Como chegou até aqui? Táxi?

— Um amigo me trouxe.

— Espere aí três minutos. Vou até aí buscá-lo no portão. — Herdegen desligou o aparelho, vestiu um pesado capote por cima do avental branco e andou rápido pelo corredor do primeiro andar. Com o elevador, desceu até a garagem. Ali havia numerosos carros. Herdegen sentou-se ao volante de um Land Rover. O carro seguiu aos solavancos pelo caminho coberto de neve do parque. À luz dos faróis, Herdegen viu que muitos galhos se haviam quebrado com o peso da neve. Chegando ao portão, viu um homem alto e magro que o aguardava, de olhos muito claros, abrigado sob um pesado capote forrado de peles. Tinha os cabelos louros cortados rente e o rosto de quem viveu muito ao ar livre. Trazia dois sacos de roupas por cima dos ombros. À sua frente havia uma bolsa de lona e a seu lado estava o porteiro de serviço, baixo e gordo.

Herdegen parou e saltou. Saudou Hyde. Apertaram-se as mãos, e puseram a bagagem dentro do Rover. Hyde subiu no assento ao lado de Herdegen que manobrou para retornar ao grande prédio da moderna clínica.

— Onde estão os dois?

— No quarto deles. Ele já dorme há muito. Estava exausto. Ela não. É tenaz.

— Eu sei. Foi campeã nacional juvenil nos oitocentos metros de nado crawl e mil metros de nado de peito. Grande amazona. Prêmios em tênis e golfe. Li o dossiê a respeito dela.

— Mr. Morley informou-me a respeito dos dois.

— Bastante esbudegado, esse Ross.

— Sim, no momento. Mas logo estará de pé novamente. Não se pode subestimá-lo. Ela é a mais perigosa dos dois. Fanática. Há muitos anos participa de movimentos pacifistas internacionais.

— Mas o que quer, doutor? — disse Hyde. — Esses movimentos pacifistas sempre existiram antes de qualquer guerra mundial.

Herdegen riu efusivamente.

Daniel sonha... Desta feita, o tratamento para desintoxicação e a mudança para um novo medicamento duram quatro semanas. O novo se chama Nobilam. Sibylle afirma:

— No fundo, o que eu estou fazendo é errado e irresponsável. Eu não deveria lhe dar coisa nenhuma.

— Mas, querida. por favor, eu não posso ...

— Eu sei. Eu conheço você, Danny. Você se tornou de tal forma dependente desses malditos tranqüilizantes que a gente precisa dar alguma coisa. Mau. Muito mau. Vamos tentar no seu caso um lento decréscimo e um medicamento cada vez mais fraco. Nobilam é sem dúvida um medicamento bastante eficiente. Exatamente por isso é grande o perigo de que você volte a exagerar. Mas isso não pode continuar para sempre assim. Nenhum corpo agüenta isso o tempo todo. Você tem de me prometer que realmente só vai tomar aquilo que eu lhe houver permitido!

— Eu juro. Pelo nosso amor — disse ele.

Ah, pensou ele em seu sonho, e eu jurei em nome de nosso amor..

Algumas noites mais tarde ele conta a Sibylle no minúsculo apartamento: — Werner Farmer está em Viena. Um velho amigo. Historiador de arte. É o sujeito mais simpático do mundo, realmente! Você precisa conhecê-lo! Será que eu posso trazê-lo amanhã à noite aqui?

Ela teria preferido ficar sozinha com ele — como sempre — mas disse, naturalmente:

— Claro, Danny

— E... meu amor... você faria uma comidinha para a gente? Você cozinha que é uma coisa fantástica! Aliás, eu já informei o Werner a respeito.

— Então eu já sei o que vai ser — disse ela rindo. — Tafelspitz (designação antiga para um prato feito com carne bovina – N. do R.) com espinafre, batatas coradas, molho de vinagre e cebolinha.

Também ele ri agora, feliz, cheio de amor, e a abraça e beija.

— Tafelspitz. Claro! Porque na Alemanha não conseguem fazê-lo tão bem. Ah, você é fabulosa, Sibylle, fabulosa...

Alguém bateu à porta.

Antes que Sibylle pudesse dizer “entre”, a porta se abriu e o alto e pálido Herdegen entrou em seu gabinete. Atrás dele vinha um homem seco e igualmente alto, com calças de flanela, jaqueta de tweed sobre um pulôver de gola enrolada.

Sibylle, que estivera sentada de costas para a porta e no escuro, a observar a neve que caía na noite, girou em sua cadeira. Herdegen logo à entrada havia acendido a luz do teto.

— Mas que é isso, Sr. Herdegen? — Sibylle ficara assustada e nervosa. — O senhor bate e vai logo entrando? Eu poderia estar dormindo!

— A senhora trocou com o colega Habeck o turno da noite porque quer tratar pessoalmente de Ross.

— E daí? O quarto estava escuro. Se eu me tivesse deitado um pouquinho...

— A senhora não se deitou. Lamento o incômodo, doutora-chefe. O assunto é urgente. Permita-me apresentá-los: Peter Corley. Mr. Corley. esta é a doutora-chefe Mannholz.

— Alô — disse Wayne Hyde, e sorriu. Ele tinha grandes dentes amarelados. — Quase meia-noite. Lamento realmente, doutora-chefe. Incomodaremos apenas um instante.

— Que desejam?

— Que abra o cofre.

Sibylle se havia levantado. Seu lábio inferior tremia, seu rosto empalideceu subitamente.

- O cofre, para quê?

- A senhora sabe para quê — disse Herdegen.

— Não faço idéia.

— Por favor, doutora!

Wayne Hyde continuava a sortir.

— A senhora recebeu hoje à noite um novo paciente, o Sr. Daniel Ross. Sua acompanhante, Mercedes Olivera, depositou dois videocassetes no cofre. Preciso deles com urgência. Por favor, doutora.

— Não — disse Sibylle. As mãos dela tremiam. Cerrou os punhos.

— Doutora, eu li seu dossiê. É claro que a senhora vai abrir o cofre — disse Wayne Hyde. Seu sorriso agora era meigo, por assim dizer.

— Isso eu não farei.

— Mas que está acontecendo, doutora? Em seu dossiê consta que seria uma satisfação trabalhar junto com a senhora. Seu espírito de cooperação foi particularmente elogiado. E precisamente esse pequeno favor a senhora se recusa a fazer?

— O Sr. Ross é um velho amigo meu. Ele e a Sra. Olivera me passaram os cassetes em plena confiança.

— Certo, certo. E a senhora vai agora passá-los para mim, doutora.

— Não, isso eu não farei, Mr. Corley.

— Ah, fará, sim, doutora. Será que eu preciso lembrá-la de seu irmão? Seria penoso para mim.

— Pare com isso! — gritou Sibylle de repente. — Será que isso vai continuar assim? Será que terei sempre de ajudar em patifarias?

— Não empregue tal vocabulário, doutora! Patifaria — tst, tst, tst. E ajudar sempre? Mas é claro que isso tem de prosseguir. Já há anos a senhora está inteiramente de acordo com nosso convênio. Não consigo entender o que está acontecendo com a senhora, realmente. Será que o fato de haver visto de novo o seu velho amigo a faz perder a cabeça? Isso me daria muita pena. Mas não continue aí a fazer cenas! O tempo urge! — Wayne Hyde havia apanhado a grande foto emoldurada de cima da escrivaninha e a examinava. — Tem boa cara o menino, realmente.

— Queira botar imediatamente o retrato no lugar! — gritou Sibylle.

— Mas com todo o prazer, doutora! — Hyde fez o que lhe era solicitado com tamanha potência sonora. De repente deixou de sorrir. — Bem — disse ele —, agora basta! Abra, e já!

Sibylle não se mexeu.

— Doutora, pela última vez, abra!

Sibylle sacudiu a cabeça. Ela quis dizer alguma coisa. Sua voz falhou.

— Muito bem. — Herdegen deu um passo à frente e tirou o receptor do telefone. Discou. E falou imediatamente. — Boa noite. Aqui é Herdegen. Passe-me o Sr. Abad! É urgente. Sim, obrigado. Eu espero... — Ele olhou para Sibylle. Ela revidou o olhar, com o corpo inteiro tremendo.

— Sr. Abad?... Sim, Herdegen. Lamento ter de dizer-lhe que a doutora-chefe se nega...

Com uma terrível expressão de resignação no rosto, Sibylle havia avançado para junto da porta da casa-forte e começou a girar o cone com o disco numerado.

— Um momento — disse Herdegen ao telefone. — Um momento, Sr. Abad, por favor...

Sibylle havia montado a combinação. Ela puxou o grande aro metálico. A porta blindada se abriu e lá dentro acendeu-se uma luz.

— Preciso me desculpar, Sr. Abad. Já está tudo em ordem de novo. A doutora se conduz tão razoavelmente como sempre... Lamento profundamente tê-lo incomodado, mas... Muito amável de sua parte, Sr. Abad... Sim... Sim... Sim, vou transmitir-lhe. Boa noite! — Ele desligou e disse a Sibylle, que se havia encostado na janela: — As mais cordiais saudações do Sr. Abad. Ele lhe agradece muito. — Com isso, entrou no cofre-forte e retirou o envelope amarelo com os dois videocassetes da prateleira. Ele se voltou e disse: — Realmente, doutora. A senhora sabe que essas cenas não levam a nada! A senhora fica nervosa à toa, não faz sentido. Isso poderia ter sido feito logo. Venha, Sr. Corley! Vamos subir para os meus aposentos.

— Perdoe-me mais uma vez tê-la incomodado — disse Wayne Hyde. Em seguida acompanhou rapidamente o pálido doutor. A porta fechou-se atrás deles. Imóvel, Sibylle voltou a encostar à vidraça da janela.

Agora Daniel já não sorria; notou Mercedes, que continuava sentada à borda de sua cama. Já não sonhava com Sibylle. Tudo se havia transformado, ele via imagens diferentes, tinha vivências inteiramente diversas, como costuma suceder nos sonhos.

A vida com a mãe. Naquele tempo, logo após a guerra. Escombros, ruínas, frio, necessidade. O pavoroso quarto na casa daquelas pessoas más e estranhas, para onde haviam sido “encaminhados”. Era como garçonete que Thea Ross trabalhava no clube americano próximo, no palácio Clam-Gallas. na Rua Wãhringer, junto ao Instituto Químico. E voltam os doughnuts.

Os doughnuts!

Era sonho, recordamo-nos das coisas menores e mais distantes que existem. Quantas vezes não havia sonhado Daniel com esses doughnuts! São aquelas roscas de massa de sonhos fritas na gordura. Somente por volta das onze da noite a mãe voltava para casa. Daniel sempre ficava acordado. E esperava pela mãe, pleno de felicidade, como se fosse Natal, todas as noites — Natal. Mas é assim mesmo. Pois a mãe sempre trazia do clube três doughnuts e uma garrafa térmica cheia de chocolate quente. E então começa todas as noites o Natal de Daniel, o pequeno menino de rosto estreito, olhos muito grandes e corpo magro. Doughnuts para ele! Chocolate quente para ele! Por vezes, um pedaço de pão branco com manteiga de amendoim.

Santo Deus, como ele fica feliz em sua cama dura! E também a mãe, quando lhe passa a mão pelos cabelos, exausta, feliz em poder tirar os sapatos daqueles pés inchados. Ela sempre tem de sorrir nesses instantes. E o mesmo sorriso das madonas nas igrejas, para onde Daniel é levado tantas vezes, porque sua mãe vive rezando para conseguir um outro trabalho, que lhe seja mais leve, e um pequeno apartamento só para eles. Por favor, meu Deus, papai está morto, estamos sozinhos, só temos um ao outro! Ah, Daniel, como eu amo você. E eu também amo você, mãe. Eu também. No céu, deve ser assim. Mãe e doughnuts. Talvez ainda manteiga de amendoim. E chocolate quente.

O tempo passa depressa, a nossa vida é curta. Daniel já freqüenta o ginásio. É o melhor aluno, o mais fervoroso, para dar alegria à mãe, mãe que sempre está triste e sempre o foi, desde que ele possa se recordar — também quando o pai ainda vivia e vinha da guerra de licença. Agora, não há mais guerra. Pouco a pouco vão sumindo os escombros. Mais tarde eles conseguem uma casa, na rua Schopenhauer, térreo, construção antiga. Tanto faz, o que importa é que têm uma casa deles! E a mãe tem outro serviço: em uma nova editora. Ela tem um posto de leitora para livros franceses, ingleses e italianos. Porque sua mãe sabe idiomas, ela é instruída, e agora estão sendo impressos todos aqueles muitos e muitos livros que eram proibidos pelos nazistas. É o tempo em que, depois da escola, Daniel vai fazer  compras, limpa a casa, lava a louça, e só depois faz seus deveres de casa - como o Anton em Reticências e Anton,  de Erich Kästner, que também amava sua mãe acima de todas as coisas.

E como Erich Kästner, também Daniel começa a escrever bem jovem. Seu primeiro conto é impresso para o seu décimo quinto aniversário. No Nova Áustria. Sic transit... Há quanto tempo já não mais existe esse jorna!! Cento e cinqüenta xelins é o  que recebe Daniel de honorários. E como a mãe fica feliz. Não pelo dinheiro. Não, por Daniel. Tão orgulhosa fica pelo seu filho.

EIe continua escrevendo. Suas histórias já chegam a ser reimpressas na Alemanha. Elas são muitas, muitas. Ó tempos maravilhosos! Os novos livros! Os novos filmes! As novas peças! Daniel vai com a mãe ao cinema, ao teatro. Outros rapazes de sua idade saem com suas namoradas. Namorada? Daniel não quer nenhuma. Ele só quer a mãe, que sempre foi tão bondosa. Mas é claro que depois surge a namorada. Ela se chama Erika. E que faz Daniel, pela primeira vez enamorado de uma menina? Ainda antes de tê-la beijado, já a tinha apresentado à mãe. Ela agrada a sua mãe. Por sorte. Caso a mãe não tivesse gostado, ele teria logo terminado com Erika.

Mas a mãe é tão inteligente, pensa ele, e sente de repente ódio em seu sonho. Ela sabe que virá o tempo em que ela terá de partilhar o amor de Daniel. É claro que ela odeia Erika. Não como Erika. Mas como concorrente. Ah, pensa ele logo envergonhado em seu sonho, mas afinal de contas, depois de tudo que ela passou: o papai, a guerra, o trabalho pesado de gabinete, nós dois sozinhos. Ela não passa de uma pobre vítima. Vítimas do amor, nós dois...

Não dura muito tempo com Erika. A mãe tem muito que fazer. À noite, em casa, ela ainda tem de datilografar seus pareceres. Os olhos dela vão ficando cada vez piores. Então, Daniel senta-se diante da máquina, depois de ter desmarcado seu encontro com Erika, e começa a bater o que lhe dita a mãe, e ela afaga novamente os cabelos. Meu bom menino.

É evidente que Erika não agüenta isso. Diz a Daniel que havia encontrado um outro amigo e que tudo havia terminado entre eles. Daniel fica desesperado. E a mãe também. Para confortá-lo. ela viaja — podem novamente viajar — com ele para a ilha de Elba. Todas as tardes sentam-se no cais de Portoferraio em seu bar preferido — na Itália, qualquer pequeno café se chama de bar — e ficam felizes, eles são tão felizes, a mãe e Daniel. E os navios vêm e se vão...

E vêm outras moças. E a mãe acha todas encantadoras. Mas as moças, todas, se vão. Não fica nenhuma. Com muita freqüência. Daniel fica satisfeito com isso. Porque compara todas elas com a mãe. Sim, porque uma é vaidosa demais, outra um tanto desgastada e a terceira sequer sabe o nome do famoso livro escrito por Marcel Proust.

As histórias de Daniel fizeram-no conhecido. O redator-chefe do grupo de emissoras militares americanas Vermelho-Branco-Vermelho vem buscá-lo. Desta forma, chega ao rádio. Logo terá seu programa próprio. Escreve, fala, produz ele próprio. É mandado para Hamburgo como correspondente. A mãe sozinha em Viena? Não, agora ele ganha o bastante. Ela precisa vir com ele para Hamburgo. Ficar com ele. Toma-se correspondente em Londres. Naturalmente, sua mãe muda-se junto. Os olhos dela já estão muito ruins. Uma operação pelo melhor médico ajuda. Daniel sempre dá muito dinheiro à mãe. Ela nem precisa. Vai poupá-lo para ele, diz ela, para seu amado Daniel, caso um dia algo não vá bem com ele.

Em Londres encontra Alice. . . encantadora, mais velha que ele, treze anos mais. Mas que importa? Casam-se. A mãe vai morar com eles, isso Daniel deixou claro de saída. Ele aluga uma bela casa em Mayfair. Ele já é correspondente de televisão. Da emissora de Frankfurt. Que carreira!

— Daniel Rosa informa de Londres...

Após meio ano, Alice coloca-o ante o dilema: ou a mãe vai embora, ou ela. Grandes cenas. A mãe logo se oferece para se mudar de volta para Viena. Isso, em hipótese alguma. Então, Alice se vai. Seis meses mais tarde estão divorciados. E a mãe está tão feliz, tão feliz.

É transferido para Roma. Ele passa a ser mais cuidadoso. Tudo isso de ficar correndo de um lado para outro é um tanto cansativo demais para sua mãe. Ele compra uma casa em Viena, em Hietzing. Sua mãe deverá viver ai e visitá-lo com freqüência em Roma. Com o avião é um pulo. É claro, diz a mãe, você precisa de sua liberdade. Ah, como ela é inteligente, ah, como é compreensiva.

Em Roma, encontra Ana. Ama. É amado. A mãe vem em visita e é tão gentil como Ana, tão amável. Mas antes do Natal ela adoece e pede a Ana e Daniel que venham de avião para Viena. Ana tem um filho pequeno. Ele naturalmente precisa festejar o Natal em Roma. Desta vez, tudo vai ser diferente. Daniel fica ao lado de Ana. Pela primeira vez não passa a véspera de Natal com a mãe. Ele lhe telefona. Ela é tão compreensiva ao telefone. Mas é claro, lhe é impossível sair de Roma. Ela não o reprova em nada. Mas ele se censura a si mesmo. E censura a Ana também.

Essa festa natalina põe termo ao seu segundo amor por uma mulher adulta. Junto com seu filho Robertino, Ana abandona Daniel no dia de Natal. Ele quer se embriagar. Mas não suporta álcool algum. Vomita tudo. Sente-se como que para morrer : Está supernervoso, inquieto, trêmulo.

Aí — um homicídio!

Ele precisa trabalhar com sua equipe. E não consegue... Não dá... Um câmera lhe dá dois pequenos comprimidos.

— Tome isso. É ótimo.

— Mas que é?

— Valium.

Valium!

Ó maravilhoso, bendito Valium!

Passou o tremor, passou a tontura. Daniel está de novo seguro de si. Pode trabalhar novamente. E como trabalha nos anos seguintes! Tão bem como nunca. Sempre sob o efeito do Valium, é claro.

Recebe o comando dos Estúdios do Sudeste europeu, em Viena. Volta de novo para junto da mãe, na mesma cidade, no mesmo apartamento. Um grande círculo se havia fechado. Agora não precisa mais sentir nenhum complexo de culpa. Não precisa mais do Valium. Mas necessita do Valium. Não consegue mais viver sem ele.

— Meu menino — diz a mãe — meu bom, meu grande menino! — Como é belo o apartamento que agora possuem na Alameda Grinziger! A mãe fica doente. Precisa ir para o hospital. E ele vive viajando. Para Praga, Budapeste, Bucareste, Belgrado. Mais Valium. A mãe cada vez mais enferma. O grande terremoto em Nápoles. É obrigado a seguir para lá. Volta imundo das filmagens para seu hotel. Um telegrama. A mãe está morta. E ele não estava junto dela quando ela morreu. Não estava junto...

Valium, é óbvio.

Muito Valium.

Deusa romana do fogo com cinco letras.

Não dá para descobrir. Buja, o homem do turno da noite, o turno do “cemitério”, já há três minutos se esforçava para descobrir a palavra, na sala de equipamentos eletrônicos atrás do gabinete de trabalho do Dr. Herdegen. Pequeno, baixote, com uma coroa esparsa de cabelos, se achava sentado ali com uma revista de palavras cruzadas aberta diante de si. De muitos alto-falantes saía o chiado dos microfones ligados. É tentar, então, a horizontal, talvez eu consiga pelo menos uma letra. A horizontal, então: antigo trirreme. Porcaria!

Abriu-se a porta e Herdegen e um homem que o turno da noite desconhecia entraram apressados.

— Boa noite, Buja!

— Boa noite, doutor!

— Não aconteceu nada, não é?

— Não, nada.

— Vá embora, Buja!

— Como?

— Você tem de dar o fora. Temos de olhar uma coisa. Sente- se no meu gabinete!

— Pois não. — O homem que chamavam de Buja levantou se, espreguiçou-se, bocejou, ergueu os suspensórios, pegou o paletó. Herdegen já se achava com o desconhecido no meio da sala. Dirigiu-se para um televisor e um aparelho de vídeo. Buja viu que ele tinha na mão dois videocassetes.

— Por que você já está por aqui?

— Por causa da neve, parti mais cedo de Viena.

— Então, dê o fora! E não deixe ninguém entrar, certo?

— Certo. — Buja se irritava com esse tom gelado. Não estamos aqui no exército! Levou consigo o caderno de enigmas. Deusa romana de merda! No gabinete do doutor há um Brockhaus, vinte e quatro volumes. Aí talvez se possa...

A porta fechou-se atrás de Buja.

Herdegen havia ligado o aparelho, introduziu o primeiro cassete no equipamento de vídeo e com o telecomando mudou a tevê para um outro canal. Wayne Hyde se sentara. A tela começou a tremeluzir. Herdegen apertou o botão de partida e sentou-se ao lado de Hyde.

A imagem tremeu na tela por mais alguns segundos e então apareceram os algarismos 3, 2, 1 e, em seguida, um grande X. Começou um filme a cores. Os dois homens leram: WALT DISNEY PRESENTS THE BEST OF MICKEY MOUSE.

Começou uma agitada música de jazz. Na meia hora seguinte, Herdegen e Hyde assistiram a seis filmes de Mickey, muito bons.

Herdegen levantou-se, parou o gravador, trocou o cassete por outro e o fez funcionar.

3, 2, 1, um grande X e o seguinte título: WALT DISNEY PRESENTS: THE BEST OF DONALD DUCK. De novo um jazz bem alegre. Mais seis filmes de desenho animado, desta feita com o pato mundialmente famoso, dos quais o último festejava o aniversário de Donald, que acabara de completar cinqüenta anos de idade.

Herdegen desligou os aparelhos e meteu os cassetes dentro de suas caixas.

— Vou ligar para Londres — disse ele.

— Já — disse Hyde. — Mas antes o       s cassetes têm de voltar para o cofre. Talvez a Olivera queira vê-los de repente. A doutora-chefe sabe calar o bico, não? Ela não faz tudo o que o senhor lhe diz?

— Isso o senhor já viu — disse Herdegen. — Porque aliás...

— Eu sei por quê — disse Wayne Hyde que já estava saindo. No gabinete ao lado encontrava-se Buja, gordo e quase careca, do turno do cemitério.

Ele ergueu os olhos quando os dois homens surgiram.

— Obrigado — disse Herdegen. — Pode voaq            ltar. Voltaremos logo em seguida. — Saiu atrás de Hyde. Buja sacudiu os ombros e se levantou. Que foi que houve? O rosto do doutor estava vermelho. Em geral sempre tem a cara de quem acabou de vomitar. Vesta era a deusa romana do fogo, com cinco letras.

E Daniel sonha, da forma que sempre volta a sonhar...

Werner Farmer, seu velho amigo, que agora se encontra em Viena, chegou de visita àquele apartamento destinado a anões. Daniel deseja que Sibylle o conheça. E, orgulhoso, quer mostrar ao amigo que mulher maravilhosa ele tem. Eles estão no vestíbulo e mal se conseguem mexer. Sibylle precisa entrar na cozinha, e Werner não consegue desembrulhar as flores que trouxe; ele e Sibylle estão praticamente em silêncio, apenas Daniel se agita feliz e apaixonado.

— Ela não é formidável? Eu não exagerei nada, não é?

— Danny, por favor — diz Sibylle.

— A senhora é realmente formidável — diz Werner sorrindo tímido e constrangido. E faz uma mesura. Werner Farmer é mais alto e mais forte que Daniel, tem um rosto largo, testa alta e cabelos pretos. Usa óculos de aro de tartaruga, seus olhos são verdes e sua pele, de grandes poros. Quando menino tivera muita acne e Daniel se recorda muito bem disso.

Na saleta Sibylle havia arrumado festivamente a mesa. Na cozinha, ela pôs-se a preparar os drinques, martínis secos para Werner e ela, e Daniel, que não suporta álcool, vai tomar uma tônica Schweppes. Ele é quem mais fala e gostaria que os dois simpatizassem imediatamente um com o outro. É uma conversa com pausas, pois Sibylle volta e meia tem de voltar à cozinha para ver a comida que se encontra ao fogo.

— Werner escreve os mais extraordinários livros de arte do mundo, Sibylle! Você não pode imaginar como eles são fantásticos! Maravilhosos volumes a cores!

— É claro que é um exagero desmedido — diz Werner. Ele está novamente encabulado. Sibylle também. Os dois mal se olham.

Daniel nada percebe. Entusiasma-se:

— É um projeto gigantesco — explica Werner — no qual trabalha um bando de gente. E duas editoras, uma inglesa e uma alemã. Seria dispendioso demais para uma só. Centenas de reproduções a cores em cada volume. Com desenhos e mapas. Sou responsável apenas pelos textos de história da arte, com alguns colegas ingleses. Vai ser realmente uma grande série. AIguns títulos já foram lançados e o último foi o da Renascença.

— Oh, a Renascença! — Sibylle conhece o volume. O pai dela o possui em Salzburgo. — Então é o senhor quem fez uma coisa tão maravilhosa!

— Pois eu lhe disse, Sibylle, que ele é um gênio, um verdadeiro gênio!

— Por favor, Danny. — Farmer mexe em seus óculos. — É claro que fico contente que o volume lhe tenha agradado, Sibylle.

— Em que está trabalhando agora, Sr. Farmer?

— No volume relativo à época barroca.

— E Werner estará ocupado em Viena por um ano inteiro — exclama Daniel. — No Museu da História da Arte, no AIbertina, na Biblioteca do Estado.

— Sempre por algumas semanas — esclarece Farmer. — Em seguida, preciso retornar a Munique. Ali é que se encontra a editora alemã. — Ele se sente cada vez mais embaraçado. - Danny já me contou tanta coisa a seu respeito. Como a senhora o ajudou. A senhora é uma médica sensacional.

— Ai, meu Deus do céu! — diz Sibylle também mais constrangida. — Vamos nos declarar rapidamente merecedores do prêmio Nobel e logo depois vamos tratar de comer alguma coisa.

— Comer alguma coisa! — Daniel bate no ombro do amigo. — O Tafelspitz que está vindo, este é merecedor do prêmio Nobel! Coisa assim você jamais comeu. Isso você só encontra na casa da Doutora-docente. Profissionalmente, está bem, concordo que ela entende alguma coisa de medicina. Mas como cozinheira... Homem, aí ela já me salvou a vida algumas vezes. Já tive a vivência de algumas curas de desintoxicação de Tafelspitz. Vou precisar sempre delas. Sou um viciado incurável nessa coisa.

Sibylle o beija na face. — Seu maluco!

— É óbvio que eu sou maluco! Qualquer um ficaria assim com um Tafel..., quero dizer: com uma mulher assim. Não acha, Werner?

— Sim, eu penso que isso é inevitável — diz Werner.

Jantaram. Daniel geme de bem-estar. — Isto aqui não é o paraíso, em companhia dela?

Werner comprime novamente os óculos contra a testa. — Sim, é o paraíso.

— Ele poderá sempre voltar, não é, Sibylle? Sempre que ele vier a Viena nós nos veremos!

— Com prazer! — diz Sibylle que nem olha para Farmer,

— E nós ainda o levaremos até a estação.

— Até a estação — como assim?

— Ele precisa voltar hoje à noite para Munique. Eu o apanhei no hotel. A mala dele está no carro. Ainda dispomos de tempo. O Orient-Express só parte à meia-noite e quinze.

— Gosto de viajar em carro-dormitório — diz Farmer. — Ganha-se tempo. E eu durmo muito bem.

— Isso você só vai ver depois, se vai dormir tão bem. Do jeito que você entupiu sua pança! — exclama Daniel, ao que Sibylle protesta. — Mas o quê, querida, eu também! Werner vai ter de deitar, com toda cautela, de costas, para que sua barriga não saia rolando por ai afora. — Daniel ri alto. Ele está feliz que seu amigo finalmente saiba que preciosa criatura agora possui.

Às onze e meia eles partem. Seguem para a estação oeste. Lá, Daniel insiste em carregar a mala de Werner.

— Não, não, é pesada demais. Há muitos livros aí dentro.

— Livros. Ridículo! — Daniel tira a grande mala do carro com toda sua força. No instante seguinte ele, em silêncio, se chama de maldito idiota. A mala quase o derruba. Daniel jamais havia carregado uma mala tão pesada. E ainda por cima empanturrado como estou, pensa ele enquanto já cambaleia escada acima para chegar à via férrea. Oh, meu Deus, que mala é essa que temos aqui! O Oriente.Express é imenso, sem fim, e o carro-dormitório de Werner se encontra, é claro, na cabeça do trem.

Eles caminham lado a lado. Parece que o caminho não quer mais terminar. Eu sou um herói, pensa Daniel. O herói dos idiotas é o que sou. Quase no fim de suas forças ele alcança o vagão-dormitório e, num último esforço, ainda levanta a amaldiçoada mala pela escada metálica até o vagão. Ele está ofegante. A camisa lhe cola no corpo. Sente pontadas do lado. Mas sorri amarelo.

- Tchau, meu velho! Quando é que você volta?

- Na quinta-feira que vem, por um mês inteiro.

- Você ouviu isso, Sibylle? Um mês inteirinho! Aí nós vamos nos ver muitas vezes, não é?

— Claro — diz Sibylle.

Werner Farmer se despede e lhes agradece.

- Foi um prazer havê-lo conhecido, Sr. Farmer — diz Sibylle. E mais uma vez ela evita encará-lo.

Ele sobe a escada do vagão. Logo em seguida, aparece na janela de sua cabine. Não consegue abrir a janela. Acena, e eles também. Daniel ri, mas Sibylle não. Permanecem alguns minutos ali e, então, o trem põe-se em movimento. Daniel acena até o Orient-Express desaparecer numa confusão de barulhos de ferros e luzes vermelhas e brancas.

— Ele ficou louco por você! — disse Daniel.

Eles caminham ao longo da plataforma.

— Você acha?

— Se eu acho? Pois se ele devorou você com os olhos! Você não notou?

— Não, isso eu não notei. Ele o fez realmente?

— Mas claro! Está gamado! E você? Ele lhe agrada?

— Oh, sim.

Daniel ri.

— Ele tem o que fazer por um ano em Viena! Teremos uns bons tempos pela frente, não é?

— É — diz ela, — Com certeza.

Ele pega a mão de Sibylle e, de repente, se põe a correr com ela.

—. Que é que você tem, Danny? Danny!

— Venha, vamos voltar para nossa torre! — diz ele. — Estou terrivelmente apaixonado. Vamos brincar, Sibylle? Está bem, vamos brincar?

A porta do quarto abriu-se sem ruído.

Mercedes, que se achava sentada na cama de Daniel, assustou-se. Sibylle entrou. Pôs um dedo sobre os lábios. Aproximou-se da cama. De um bolso de seu avental de médica retirou uma folha de papel e estendeu-a a Mercedes. Sibylle trazia também um novo frasco e o trocou habilmente pelo outro que estava quase vazio, sobre o conta-gotas. Daniel nada percebia, tinha um sono profundo e sorria feliz.

Mercedes se erguera. No banheiro havia uma luz. Pela porta entreaberta passava uma réstia à luz da qual ela leu as seguintes palavras:

LER DEPRESSA E DESTRUIR! SOU CHANTAGEÁVEL. VOCÊS ESTÃO AQUI NUM CENTRO DE ESPIONAGEM, HERDEGEN E UM ESTRANHO ME OBRIGARAM A ABRIR O COFRE. RETIRARAM SEUS CASSETES E OS DEVOLVERAM QUARENTA MINUTOS DE POIS SEM COMENTÁRIOS. O QUE AGORA ACONTECER SERÁ DECISÃO DE VOCÊS.

Enquanto Mercedes lia, Sibylle disse baixinho: — Por que não vai para a cama, Sra. Olivera? Deve estar morta de cansada!

E baixinho saiu a voz de Sibylle de um dos muito alto-falantes no cômodo sem janelas, atrás do gabinete de Herdegen. O pequeno técnico baixote de ralos cabelos em forma de coroa, chamado de Buja, que fazia o turno do cemitério, aumentou o volume das vozes. De quando em vez havia um estalido na transmissão.

A voz de Mercedes soava: — Eu não estou nada cansada. Quero velar-lhe o sono.

A voz de Sibylle: — Não precisa preocupar-se com Daniel. Está tudo em ordem. Eu virei diversas vezes. E também a enfermeira da noite vem dar uma espiada.

Atrás de Buja, sentado numa poltrona de encosto regulável diante da longa parede de escuta, estavam postados Herdegen e Wayne Hyde.

— A Mannholz escreveu tudo num papelucho, isso eu juro — disse Herdegen.

— Tomara — respondeu Hyde. — É precisamente o que agora queremos. Precisamente o que Mr. Morley agora mesmo desejou ao telefone. Ross e a Olivera devem saber que estamos atrás deles. Só assim eles vão agir mais depressa. Com cautela, mas agir. Precisamos provocá-los...

Sobre a folha de papel, Mercedes escreveu com uma esferográfica, em garranchos:

NO COFRE ESTÃO CASSETES COM DESENHOS ANIMADOS. OS VERDADEIROS ESTÃO EM LUGAR SEGURO. OBRIGADA POR SUA AJUDA!

No que disse baixo: — Simplesmente não consigo dormir. Estou com toda a corda. Além disso, tenho medo por causa de Daniel.

— Totalmente desnecessário — retrucou Sibylle também baixinho, acendendo um isqueiro e queimando o papel. Levou-o para o banheiro onde jogou as cinzas dentro do vaso, fazendo em seguida os gestos para que Mercedes, mais tarde, desse a descarga. E prosseguia, nesse ínterim: — Ele tem urna constituição inacreditavelmente boa. Na semana que vem já deverá estar andando por aí, isso eu lhe prometo.

— Obrigada! — murmurou Mercedes.

As duas mulheres estavam agora quietas, uma diante da outra. Olharam-se longamente, bem sérias. Sibylle sussurrou então:

— Até mais tarde! — e deixou abruptamente o quarto. Caminhou pelo corredor mergulhado na luz azul. De repente sentiu- se como se não tivesse mais força alguma. Cambaleou e mal teve tempo de sentar-se num banco. Desabou sobre ele, com os olhos cerrados. Ali permaneceu por um longo tempo, inteiramente imóvel. Uma vez Sibylle gemeu. Muito baixinho.

Herdegen estava sentado em seu gabinete junto à escrivaninha. Falava com Londres. O advogado Roger Morley havia chamado de volta. Herdegen colocou o misturador de vozes. Wayne Hyde apoiava-se no tampo da mesa enquanto segurava junto ao ouvido o segundo receptor.

— Passei suas informações adiante, doutor. Devo lhe informar, bem como a Mr. Hyde, o seguinte: não há motivo para desânimo. Simplesmente não estamos lidando com idiotas. Todavia, a coisa é da maior urgência. Temos que avançar o mais rápido possível. A coisa tem que se movimentar com ímpeto. Que é? Queria dizer alguma coisa, doutor?

— A coisa entrará em movimento, Mr. Morley. A Mannholz acabou de sair do quarto do doente. A Olivera está de vigília junto à cama de Ross. Mr. Hyde e eu estamos inteiramente convencidos de que a Mannholz informou por escrito à amiga de Ross que nós a obrigamos a abrir o cofre e a nos passar os cassetes. E que os devolvemos sem qualquer comentário.

— Eu tinha esperado que isso acontecesse, o senhor se lembra. Prossigamos: o colapso de Ross no avião não foi fingido e não era previsível. Em Frankfurt, os dois não tinham mais tempo para pôr os verdadeiros cassetes em segurança. Os senhores sabem que em São Paulo um velho sacerdote deu uma bengalada na cabeça do estúpido do León. A seguir, o Reverendíssimo passou a vigiar a bolsa vermelha. Nosso pessoal em Frankfurt checou isso. Segundo a lista de bordo, o nome do sacerdote é Heinrich Sander. Às 18h30m, nossos amigos prosseguiram o vôo para Viena. Pouco tempo depois, Sander voou com a Lufthansa, vôo 328, com destinação de Colônia. Lá era aguardado por dois padres mais jovens. Um radiotáxi levou os três para o grande mosteiro cisterciense na Rua Daverkusen, no bairro de Colônia-Merkenich. Há uma igreja ao lado, disse o motorista. A Igreja de Santo André.

— Isso tudo o senhor descobriu em uma única hora? — assombrou-se Herdegen.

— Somente empregamos pessoal de primeiríssima ordem, o senhor sabe, doutor. Como os senhores. A coisa só funciona realmente, se funciona rápido.

— Mas quando poderia esse Sander haver trocado os cassetes? De onde tirou ele esses de Walt Disney? — indagou Herdegen. Hyde concordou com a cabeça.

A voz de Morley, de Londres. — Ele já embarcou em Buenos Aires com eles. Talvez já lá a coisa tenha começado. O senhor afirma que os cassetes de Disney têm etiquetas em castelhano. Talvez já tenham sido adquiridos muito tempo antes da decolagem e já se encontravam dentro da bolsa vermelha. E os verdadeiros se encontravam na bagagem de Sander. Poderia haver sido assim. Não precisa ter sido assim. Muitos dados favorecem essa hipótese. Acima de todos, o mero fato de Sander ser padre. Pense apenas no preponderante papel que a Igreja desempenha nos movimentos pacifistas! Lembre-se do fato de que a Olivera, já há muitos anos, atua nesses movimentos internacionais a favor da paz! Possivelmente, tudo isso já tinha sido combinado previamente. Eu já disse: Não estamos lidando com idiotas. Passe-me um instante Mr. Hyde!

Hyde pegou o outro receptor e se anunciou. Os dois homens se cumprimentaram. Então, Morley perguntou:

— O senhor escutou tudo, não?

— Sim, Mr. Morley.

Pelos próximos dias, Ross está fora de combate. Instrução para o senhor — e para o doutor: os dois precisam ser separados, estão me entendendo? A Oliveira sabe onde se encontram os cassetes verdadeiros. Não precisa haver sido necessariamente o padre, não podemos nos ater a isso. Tudo indica que sim. Mesmo que nos enganemos: em algum lugar os cassetes estão. Os senhores só têm a lidar doravante com uma mulher. O senhor vai poder dar conta de uma mulher, Mr. Hyde, quero crer.

— Creio também.

— Usar a força só se não houver outra alternativa e realmente se isso fizer sentido.

— Eu estou nesse ramo de negócio há dezessete anos, Mr. Morley. Sei o que faço. Quanto ao mais, obrigado pela transferência de fundos.

— Oh, o senhor já se informou em Zurique?

— Ainda de Londres. Sem transferência, nem teria decolado para Frankfurt. Mas como iremos levar a Olivera a deixar Ross sozinho?

— Já vou lhe dizer.

E Roger Morley continuou falando.

A visita médica começava às nove.

Às nove e meia, Sibylle chegou ao quarto de Daniel, acompanhada de Herdegen, dois outros médicos, duas médicas e da enfermeira-chefe. Ele estava lavado e barbeado e olhava Sibylle sorridente. Mercedes estava sentada a seu lado. Continuava a nevar.

Sibylle olhou rapidamente as curvas de evolução da temperatura, pulso e pressão arterial anotadas em cores diversas numa grande folha dependurada aos pés da cama de Daniel.

— Tudo normal. Grande apetite ao café da manhã, ouvi dizer. E um bom sono.

— Dormi como um morto, Sibylle.

— Disso eu sei. Estive aqui algumas vezes, seu criminoso.

Sibylle estava pálida e parecia exausta. Estava com fundas olheiras escuras. Abordou rapidamente com Herdegen o prosseguimento do tratamento. Este manifestava extraordinária cortesia, por assim dizer, servilismo. Sibylle enumerou a medicação para a enfermeira-chefe, uma gorda senhora de óculos, que tudo anotou. — E é claro que continua no conta-gotas. Anotou tudo, Magdalena?

— Estique uma vez os braços! — disse Sibylle. — Dedos abertos! Não em riste; deixe-os soltos! Agora, feche os olhos!

— Os dedos de Daniel tremiam fortemente, e até as mãos começaram a se agitar.

— Que beleza! Muito bonito — disse Sibylle.

— E ficará mais bonito ainda — disse Herdegen para Mercedes, que vestia um costume azul. — Não se assuste, Sra. Olivera! Isso é perfeitamente natural. Mas não dura mais muito tempo. — E, virando-se em direção de Sibylle: — Há ainda uma coisa, doutora...

(Na grande sala de escuta, junto ao técnico que havia rendido Buja às oito da manhã, encontrava-se, de pé, Wayne Hyde, que assentia com a cabeça, satisfeito. A conversa saía do alto-falante.)

— Ah, sim, certo. Obrigada, colega. — Sibylle olhou para Mercedes. — Falávamos há pouco sobre isso...

— Sobre o quê, doutora?

Sibylle sorriu levemente.

— Nada de ruim. A senhora realmente não precisa preocupar-se com nosso paciente, Sra. Olivera. Ele voltará a ficar de pé. É exatamente nisso que estávamos pensando. Quando ele dentro de cinco, seis dias levantar, ele precisará de ar fresco, de caminhar por aí. Passear muito. Conforme pude ver ontem, ele só tem roupas leves de verão em sua mala. É claro, na Argentina agora faz calor. Mas aqui... Precisa de sapatos sólidos, ternos quentes, um capote de inverno, etc.

— Isso está tudo em Frankfurt — disse Daniel.

— Certamente — disse Sibylle. E para Mercedes: — Nos próximos dias, a senhora não poderá ajudá-lo em muita coisa. Nós é que vamos ter de nos preocupar muito com ele. A senhora tem de estar de qualquer forma aqui quando ele estiver desintoxicado e tiver de habituar-se a um outro preparado. Então ele precisará da senhora. Nós gostaríamos de lhe pedir para aproveitar esse intervalo de tempo e ir de avião a Frankfurt. Traga suas coisas de inverno para cá. Agora a senhora tem tempo para fazer isso.

— É, isso está certo — concordou Mercedes. — Você não acha também, Daniel?

Ele olhou para Sibylle. Ela lhe devolveu o olhar sem qualquer expressão, pois sentia que Herdegen a observava.

— Também acho — disse ele. — Junte tudo o que você achar necessário. No seu caso, você já trouxe consigo roupa mais quente.

Ocorreu algo a Mercedes. Indagou de Sibylle:

— Ouvi dizer que entre a desintoxicação e a adaptação a um outro medicamento ele não vai se sentir nada bem.

— Isso, ele poderá suportar. Ele já conhece esse estágio. Tão bem quanto agora ele naturalmente não vai se sentir.

— Então prefiro voltar o mais rápido possível para junto dele — disse Mercedes. — Acho que tomarei o avião ainda hoje.

— Ótima idéia — disse Sibylle sorridente. Herdegen a observava ininterruptamente.

— Assim talvez já estarei de volta amanhã.

(Muito bem, disse Wayne Hyde na sala de escuta para o técnico do turno de dia, chamado Schorsch.)

— Há vários aviões por dia para Frankfurt — disse Sibylle.

— A secretária lhe trará um plano de vôos e a ajudará na reserva da passagem. A senhora precisa também de seu passaporte.

— Um ajudante levará a senhora de carro até Schwechat e a buscará, evidentemente, também na volta, Sra. Olivera — disse Herdegen.

— Eu vou acompanhá-la até a secretária — disse a gorda enfermeira-chefe amigavelmente — tão logo a visita termine.

— Muito obrigada, enfermeira.chefe.

— Eu vejo você mais tarde! — disse Sibylle a Daniel. — Preciso dormir algumas horas. Tchau! Até logo, Sra. Olivera!

Ela deixou o quarto, seguida por sua comitiva. E a porta se fechou. Mercedes e Daniel estavam novamente sozinhos. Ela o olhou em silêncio por muito tempo. Então, ela falou bem baixo no ouvido dele: — É ainda tão forte quanto ontem?

— Não — sussurrou ele. — Nem de longe tão forte assim.

— Mentiroso — disse ela. — Querido mentiroso.

— Você tem de compreender isso, tão de repente... depois de tanto tempo...

— Claro que entendo — disse ela, quase inaudível.

— Obrigado. Isso é passageiro, Mercedes. Ela também está muito confusa, é natural.

— Naturalmente — disse Mercedes.

Meia hora mais tarde, Sibylle deixou a clínica e seguiu pesadamente através da neve por um caminho aberto com pás, que a levaria até uma casa próxima. Estava agora com botas e um casaco de pele por cima de seu avental. Abriu a porta de entrada. Através de peças com móveis antigos, madonas, quadros e ícones, ela foi até um gabinete, cujas paredes estavam encobertas até o teto de prateleiras entupidas de livros. À escrivaninha, junto à janela, achava-se sentado um homem grande e forte.

Trajava calças de flanela e uma camisa xadrez vermelha e preta,de madeireiro, com as mangas arregaçadas. Seu rosto era largo, a testa bem alta, cabelos pretos e a pele com poros ásperos.

Tinha olhos verdes e usava pesados óculos com aro de tartaruga.

A mesa estava coberta de livros, fotografias coloridas de quadros e provas diagramadas de páginas de um livro de grande formato.

O homem batia à máquina no momento em que Sibylle entrou.

— Bom dia, Werner — disse ela aproximando-se e beijando-o na face.

— Bom dia, meu amor. Como está ele?

— Tudo em ordem — disse ela, se esforçando para ter calma e tranqüilidade. — Eu agora vou me deitar. Estou muito cansada. E você, como está?

— Regular — disse Werner Farmer. Ela foi até atrás da cadeira dele, pôs as mãos sobre seus ombros e leu as últimas linhas que ele havia batido.

“... e este luminoso andar superior, Tiepolo o aumentou ainda mais ao pintar, contra um fundo de céu azul e fofas nuvens brancas, ‘Quatro continentes prestam homenagem a Karl Philip von Greifenklau’*(Grande teto abobadado pintado por Giambattista Tiepolo, acima da Grande Escadaria da Residência dos Príncipes-Bispos, em Würzburg, Norte da Baviera – N. do T.) — uma fantasia, tão sem sentido e refinada como outra qualquer que ele tenha pintado nas casas da decadente nobreza veneziana.”

O avião da Austrian Airlines, com Mercedes a bordo, pousou em Frankfurt às 19h30m. Fazia muito frio, e por isso mesmo não estava nevando.

Já no saguão de chegada, Mercedes dirigiu-se à entrega automática de bagagens. Demorou meia hora até que estivesse de posse de suas coisas: trazia as roupas de verão de Daniel de volta e uma outra malinha com roupas, um outro costume e seus objetos de toalete. De táxi, atravessou o bosque da cidade, totalmente coberto de neve. Do rádio do táxi saíam vozes.

— Incomoda a senhora? — perguntou o motorista. — É de Erich Kästner. Ele escreveu isso logo depois da guerra. Para um cabaré de Munique.

— Pode deixar o rádio ligado — disse Mercedes.

— Rádio nada — disse o chofer. — Isso nunca seria transmitido pelo rádio, minha senhora. É um cassete. Em cassete ainda se encontra. Está quase no fim. — O motorista, um senhor de idade, acompanhava as palavras com movimentos de cabeça...

“... Ceifem o grão e abriguem os rebanhos enquanto o pla neta gira ao redor do sol! Esmaguem as uvas para o vinho e escovem os cavalos! Bela, muito bela poderia ser a Terra, se vocês o quisessem, se vocês quiserem!...”

O carro derrapou. Por debaixo da neve havia uma camada de gelo. Como nos contos de fadas: assim, encantadas, pareciam as velhas árvores, que emergiam à luz dos faróis e de novo sumiam na escuridão.

“... Estendam-se as mãos, formem uma comunidade! Paz, paz, o lema agora é paz. Não creiam que têm milhões de inimigos! Seu único inimigo chama-se guerra!...

Nesse ponto o chofer do táxi soluçou.

“... Paz, paz, contribuam para que ela exista! Façam aquilo que lhes dê alegria e não a que são obrigados. Ceifem o grão, recolham o rebanho! Esmaguem as vinhas e escovem os cavalos! Bela, muito bela poderia ser a Terra, se vocês o quisessem, se vocês quiserem!”

E entrava a música.

O chofer perguntou alarmado:

— Está sentindo alguma coisa, minha senhora? Não está passando bem?

— Preciso chorar — disse Mercedes. E assoou o nariz.

— Também eu — confessou o chofer. — Mas o que vamos fazer? Pobre do Erich Kästner. Durante sua vida inteira ele escreveu contra a guerra. E que foi que ele conseguiu com isso? Nada. Porque nós não podemos fazer nada, nós os pequenos.

— Somos quatro e meio bilhões de pequenos — disse Mercedes.

— E quatro e meio bilhões nada podem fazer — retrucou ele. Encontravam-se agora na Alameda Kennedy. A cidade se aproximava. Mercedes não a via. Via apenas suas luzes clarearem o céu, pelo qual corriam nuvens escuras.

— O senhor pode fazer! — afirmou Mercedes mais alto.

— Ah, minha cara senhora. Uma vez acreditei nisso — após a guerra. Não falemos mais disso!

Quando depois, na Alameda Sandhöfer, ele parou na frente da casa onde morava Daniel e levou a bagagem até a porta de entrada, Mercedes estendeu-lhe a mão.

Ele a olhou com olhos tremeluzentes.

— Era belo aquele tempo em que eu acreditava nisso. E tantos outros também. Ele não volta nunca mais. — Ele desceu rapidamente os degraus, de volta para o carro.

Mercedes trancou a porta atrás de si, botou a corrente de segurança e entrou no grande escritório de Daniel, onde acendeu a luz.

— Boa noite — disse Wayne Hyde.

Ele havia tirado seu capotão e se achava sentado numa funda poltrona, com uma perna cruzada sobre a outra. Vestia um temo marrom, uma camisa branca e uma gravata castanho-escura. Em sua mão, segurava uma pistola. Mercedes parou no meio de seu movimento. Engoliu em seco num espasmo, mas não conseguiu dizer palavra. Hyde se ergueu.

— Mãos para a frente! — Examinou os bolsos do seu casaco de peles, depois o jogou sobre a cadeira da escrivaninha. Ali se encontrava a bandeja de prata com as palavras de Bertrand Russel. O MUNDO EM QUE VIVEMOS... Não haviam sequer passado duas semanas desde que Mercedes lera aquela inscrição pela primeira vez. Parecia-lhe que tudo aquilo havia acontecido há vinte anos.

— Vire-se! Mãos contra a parede! Pernas abertas! — Sua voz soava brutal. Ela obedecia. Ele lhe apalpou o corpo em busca de armas: seios, quadris, coxas.

— Okay. Sente-se junto à escrivaninha, mãos nos joelhos!

Ele recuou. Ela desabou no assento. Agora ela conseguia falar, mas com esforço: — Quem... é o senhor?

— Meu nome é Corley. Peter Corley. Investigações de qualquer gênero. Não! Fique sentada quieta, diabo! — Destravou a arma com um estalido. Era uma pistola da polícia SIG/Sauer 9 mm. Wayne Hyde a tinha recebido de seu velho amigo Heinz Erkner, com o qual estivera, em 1971, em Sri Lanka, do lado das tropas do governo indiano contra os grupos de oposição dos tâmiles. Em 1974, em Chipre, lutara com ele do lado dos cipriotas gregos contra os cipriotas de origem turca e unidades subordinadas a Ancara. Hyde já havia chegado a Frankfurt com o avião do meio-dia. Ainda de Viena ligara para Heinz e dissera o que precisava: uma SIG/Sauer, de 9 mm e uma Sterling Mk 9, com mira telescópica. Heinz havia sido tão pontual e confiável quanto o mercenário amigo austríaco Franz Loderer, cujas armas Hyde havia deixado sob a proteção de Herdegen. Ele sempre precisava primeiro montar seus depósitos. Por sorte, ele tinha muitos amigos. Heinz Erkner tinha enorme gratidão por ele. Pois Hyde havia salvo sua vida em Chipre, numa ocasião em que caíra numa emboscada. Duas balas de metralhadoras haviam atingido Erkner no ombro. Com risco de vida e sob o permanente fogo dos turcos, Hyde carregara seu amigo nas costas até a margem de seixos de um rio. Lá, o helicóptero grego, que Hyde pedira pelo rádio, pôde pousar. Eles tinham falado a respeito tão logo se reencontraram. Heinz estava muito bem de vida. Possuía dois peep-shows (salas de stripteases rodeadas de cabines individuais cujo visor se abre por um minuto à introdução de cada moeda – N. do R.) e três cinemas de filmes pornográficos, estava magnificamente trajado e as armas se achavam no porta-malas de seu Mercedes 450. Depois que Hyde havia alugado um BMW. numa agência da Hertz, os estojos das armas foram transferidos para o novo carro cinzento. Agora, esse BMW se achava estacionado nas imediações, diante das Clínicas da Universidade. Hyde trouxera apenas sua SIG/Sauer 9 mm.

— Como foi que entrou aqui? — perguntou Mercedes.

— Da mesma forma que a senhora.

— Que quer dizer com isso?

— Arrombei a janela da cozinha que dá para o jardim e abri o trinco.

— Como sabe que eu fiz assim?

— Foi observada no ato. Alguém, naqueles dias, a acompanhou de Buenos Aires até Zurique e depois para cá. E voou de volta com a senhora e Ross.

— Quem foi que lhe disse que eu hoje viria para cá?

— Eu é que faço as perguntas. A senhora responde. Onde estão os cassetes do filme?

— Que cassetes?

— Vamos, vamos, onde é que estão?

Ela se calou.

Ele ergueu a mão.

 

A campainha da porta soou.

No segundo seguinte ela já sentiu a boca da pistola encostada na têmpora.

— Nenhum som — cochichou ele.

A campainha voltou a tocar. Não queria mais parar de soar.

— Mercedes! — chamou uma voz masculina.

A pressão do cano contra a têmpora aumentava.

— Mercedes! — gritou a voz de homem diante da porta. — Você está dentro da casa. Eu vi luz. Se você não responder agora, já sei que há alguém com você e que a ameaça.

— Ouieta! Bem quietinhal — sussurrou Hyde. O cano da pistola já lhe doía, tão forte ele a apertava contra sua cabeça.

— Eu tenho telefone no carro. Vou chamar a polícia.

Com quatro passos Hyde chegara à porta de entrada, soltou a corrente de segurança, escancarou a porta de um só golpe e saltou para o lado.

— Entre! — disse ele. — Rápido!

Um cinqüentão alto e esguio com cabelos pretos e olhos cinzentos num rosto inteligente entrou no apartamento. Não usava sobretudo. Seu terno sob medida combinava com a camisa azul-clara. Sobre a gravata escura havia bordados minúsculos elefantes prateados. Abrira o colarinho e afrouxara a gravata. Enquanto estava no vestíbulo, Hyde, por trás, fechava a porta.

— Mãos na parede e pernas abertas!

Hyde apalpou também o homem com a maior minúcia, em busca de arma. Não encontrou nenhuma. Em seguida, acenou com a pistola.

— Lá para dentro! Para junto da senhora!

Entraram os dois no escritório

— Boa noite, Mercedes — disse o homem de temo azul. — Sinto muito. Tudo demorou tanto tempo. Minha secretária não telefonou para o aeroporto? Então alguma coisa deve ter dado errado. Deveria ter recebido a notícia de que eu tinha de fazer ainda uma coisa e que, para ganhar tempo, viria direto para cá. Você deveria esperar por mim aqui.

— Como diz, algo saiu errado. Não havia mensagem alguma para mim.

— É, quase não deu tempo, hein? — disse o homem. E, olhando para Hyde: — Ele quer o filme, não é?

— Sim — informou Mercedes.

— Que sabe o senhor sobre isso? — perguntou Hyde.

— Uma porção de coisas.

— Quem é o senhor?

— Meu nome é Conrad Colledo — disse o homem.

— E daí?

— E daí o quê?

— Que é que o senhor faz?

— Eu venho de Königstein, no Taunus.

— Encurte a história!

— Em Königstein, no Taunus, estão os estúdios da Televisão de Frankfurt. Eu sou o chefe da Divisão de Política e Atualidades.

— E quem tem os cassetes? — perguntou Wayne Hyde.

— Eu — respondeu Conrad Colledo.

A essa hora, Daniel já está dormindo novamente...

15 de maio de 1972. Nesse dia de absurdo calor, ele voltou de Roma. Tivera de dirigir o estúdio de lá durante seis semanas. O correspondente permanente estava num hospital, vítima de um infarto. Daniel ainda havia telefonado de Roma para Sibylle — conforme fazia todos os dias.

— Venha aqui para casa — diz Sibylle em seu sonho. — Werner também virá. Mas ele precisa ainda hoje à noite seguir para Munique por alguns dias.

— Então ótimo, estaremos os dois sozinhos!

Daniel está contente. Após o pouso, vai rapidamente à sua casa na Alameda Grinzinger, deixa ali a sua bagagem, toma banho e troca de roupa. Logo depois está na torre com Sibylle.

Ele a abraça e sempre a beija novamente. Meu Deus, como ele está feliz por estar de novo junto a ela! Werner Farmer á se encontra lá. Está muito pálido. Excesso de trabalho, pensa Daniel. Eles comem e Daniel, empolgado, continua falando.

— Roma é fabulosa, gente! A Itália é fabulosa. E o que existe em matéria de corrupção! Simplesmente incrível! Sei lá quantos governos já tiveram desde a guerra. Um desemprego maluco. Os milionários estão no Norte e são seqüestrados ou presos por causa de negócios ilícitos de bilhões. Em nenhum país se comete tanta fraude. Simplesmente fabuloso! Os pobres — nunca vi tamanha pobreza. No campo, os lavradores. No Sul, as pessoas nas cidades. Na verdade já deveriam estar mortos de fome com essa inflação, com essa máfia. Mas eles vivem e cantam e bebem vinho, sabe Deus de onde tiram o vinho. Esse pessoal nos convidou — nem mesmo na Rússia essa gente pobre nos serviu tão bem. Fabuloso, simplesmente fabuloso! Todos bons católicos comunistas. Todos como Dom Camilo e Peppone. Cinqüenta e seis milhões de Camilos e Peppones. Eu conversei muitas noites com Berlinguer, que acaba de se tomar secretário-geral do Partido Comunista Italiano. Instruído, cortês, circunspecto, às vezes tímido. E meus dois amigos suíços! Nägeli e Bürgler! Da Guarda Suíça! Vocês sabiam que a Guarda Suíça do Papa é realmente composta de suíços? Pois eu não. São mercenários, mercenários de verdade! Existe desde o fim do século XVIII! Desde quando a coisa não mais funcionou com aqueles exércitos de nobres. Aí os graúdos encontraram as tropas de mercenários suíços. Eram os mais corajosos. Mercenários suíços, sempre os melhores. Pois então um desses papas — vou já me lembrar de qual foi — disse que ele também precisava. Desde então existe a Guardia Svizzera Pontificia. Levam uma vida boa. Muito tempo livre. Podem encher a cara, ter namoradas, tudo. Naturalmente, também podem ser comunistas. Mas o Santo Padre lhes paga muito mal. Mas a aposentadoria! Um dia em que eles estavam de porre, Nägeli e Bürgler me explicaram que Deus não existe. É tudo encenação. Tive de defender Deus — eu, imaginem só. Mas não consegui convencê-los. Suíços formidáveis. Cidade fabulosa, Roma, realmente...

Daniel, finalmente, pára de falar e, com a boca cheia — ele tinha comido o tempo todo enquanto falava — fica olhando de um para o outro.

— Que está havendo com vocês? Vocês estão tão quietos. E comer, vocês também não estão comendo. Aconteceu alguma coisa? Vamos, vamos, contem aqui para o pai! Não deve ser tão terrível assim.

— Mas é, sim — diz Werner Farmer e empurra seus óculos. — Pior não poderia ser.

— Não estou entendendo uma só palavra — diz Daniel. — Se vocês não estão com fome, Sibylle, meu coração, você me daria mais uma fatia. Deus lhe pague. Então, que há de tão ruim assim?

— Acabou, Danny — diz Sibylle, engolindo em seco a cada palavra.

— Acabou o quê? — Agora ele baixa a faca e o garfo.

— Entre mim e você. Precisa acabar. Porque nós não queremos enganar você.

— Mas que é isso? — pergunta Daniel. — Um sketch? Um sketch inglês? Ou de sua própria autoria? Especial para mim? Para rir? Um sketch para rir.

Sibylle põe-se de repente a soluçar.

E Werner Farmer intervém: — Não é para rir. Você não está entendendo, seu burro? Nós nos amamos, Sibylle e eu. Queremos casar.

Daniel ri de tal modo que lhe cai um pedaço de carne da boca.

— Casar! Mas que coisa, meu Deus! — Ele está levemente embriagado: uísque no avião, logo ele que nada suporta. — Isto deve ser um sketch inglês! Só os ingleses para fazer um assim. No avião eu vi os cartuns do último punch: dois ursos panda. Vocês sabem, aqueles pequenos, preto-e-brancos que vivem morrendo aqui. Diz um para o outro: “Eu não creio que este seja o mundo apropriado para criar pandas!” — Daniel ri novamente. Depois, olha os dois. Longamente. Afasta garfo e faca. — Então, não é sketch coisa nenhuma. Muito bem. Mas só não entendo uma coisa. Todas as vezes que eu liguei para cá, minha querida, todas as noites, estava tudo em ordem, ontem ainda!

— Não havia nada em ordem, Danny — soluçou Sibylle. — Passe-me um lenço.

— Claro. Aqui, por favor! — Daniel lhe passa o seu. Ela assoa ruidosamente o nariz. — Então, muito bem, vocês se amam e vão se casar. Excelente idéia, de fato. Um dos suíços da Guarda Suíça também tinha um grande amor. Por um outro suíço da Guarda Suíça. Quando ele estava inteiramente de porre, ele...

— Danny, por favor! Fique sério! — disse Werner.

— Espere um momento, sim? — disse Daniel. — O que significa, ficar sério? Você acha talvez que eu esteja extraordinariamente alegre? Que aquilo que vocês acabam de me revelar me diverte à larga? Se eu não fizer o papel de palhaço, começo a chorar como a pobre Sibylle, seu merda! Poxa, gente, vocês me arrumaram uma bela surpresa! Tiro o meu chapéu! Que significa dizer que vocês não querem me enganar? O que é que vocês fizeram o tempo todo? Vão querer me dizer que ainda não foram para a cama, Sibylle?

— Sim, é isso que eu quero dizer. .. Você nem imagina o que sofremos aqui! Nós nos afastamos um do outro. Quando um telefonava, o outro não atendia. Mas isso só veio piorar as coisas. Nós nos amamos, Danny, nós nos amamos... — Ela o olha com o rosto coberto de lágrimas. — Não tenho idéia de como pôde acontecer tudo isso. Werner também não. No começo, um não ia com a cara do outro. E então, de repente... Para mim, é um enigma, Danny, um enigma completo, mas é assim mesmo: eu amo Werner e ele me ama — e eu o amo mais que a você, Danny, perdoe-me!

— Perdoe-me, besteira — diz Daniel. E como um enigma? E você quer ser psiquiatra? Não me faça rir com seu enigma! Está na cara que isso teria de acontecer. Ai está o Werner. Um homem brioso, a que nada derruba. Ele sabe o que quer. Acredita em alguma coisa. Realiza um belo trabalho... E aqui está Danny. Não acredita em nada. Não é corajoso. É covarde, não faz nada de bonito e não sabe fazer nada, quer dizer, saber ele sabe: devorar comprimidos!

— Isso não é verdade, Danny!

— Mas é claro que é — diz ele. — Pode-se dar a ele o que quiser e ele logo exagera na coisa, abusus como um latino diria, mas ele não o diz...

— Danny! — exclama ela. — Pare com isso, você só faz piorare as coisas.

— Será que eu posso? — pergunta ele assombrado. — Piorar ainda mais? — E empurrando o prato: — Como sempre, estava muito gostoso, querida. Mas é melhor parar por aqui. Portanto, minhas cordiais felicitações, é claro! E que permaneçam para sempre felizes. Sempre! Não por tão pouco tempo como nós dois.

— Não agüento mais — diz Werner. — Preciso de ar puro.

— Eu também — diz Sibylle.

— Vocês me deixam ir junto? — pergunta Daniel, que agora também está muito sério. — Por favor, vamos circular um pouco pela cidade! E depois levaremos o Werner até a estação, e eu trago você de volta à torre. Não aqui em cima, não tenha receio! Somente até a entrada. Acontece tanta...

E assim, eles caminham através da escura Viena e mal trocam uma palavra. Sibylle chega a se apoiar no braço dos dois, mas logo desiste. É uma noite muito quente. Finalmente, eles voltam para a travessa do Lazareto. Daniel deixara seu Opel Admiral com Sibylle enquanto precisava ficar em Roma. O carro está no estacionamento.

— Sua mala já está aí dentro? — pergunta Daniel. Werner acena que sim. Daniel dirige, e Sibylle se senta a seu lado.

Na estação oeste, Werner não admite que Daniel carregue sua mala. Daniel recua um passo e desfecha um soco no rosto do outro, com toda a sua força. Agarra então a mala e segue adiante. Já depois de um minuto, na grande escada, ele está banhado em suor. Ofega como uma locomotiva, o coração lhe bate nas orelhas, nos olhos, na língua. E ele continua em frente. Nem que eu tenha que morrer, pensa ele. Carrega a pesada mala de Werner todo o longo caminho acompanhando o Orient-Express até os primeiros vagões, como sempre fazia. Lança a mala no piso do vagão. Então toma assento numa carreta de bagagem e espera.

Os dois custam muito a chegar. Quando finalmente aparecem, Werner diz:

— Nós não podemos fazer isso com você. Largarei o meu trabalho. Não volto mais a Viena.

— Vocês estão é loucos — diz Daniel escorregando da carreta para baixo. — Sou eu quem agora vai sumir do mapa. Hoje à noite ainda telefono para Colledo em Frankfurt; ele é meu chefe. Ele tem de me chamar de volta para a central. Tchau, Werner, boa sorte! — Aperta a mão do amigo. Nesse ínterim, o queixo do outro já estava inchado. — Lamento haver feito isso — diz Daniel. E para Sibylle: — Espero no carro por você...

Até meia-noite e vinte ele fica sentado atrás do volante. Um velho cata pontas de cigarros da calçada. Daniel fica contando. Quando chega a trinta e sete, Sibylle se senta a seu lado. Dá partida ao carro. Retorna ao Hospital Geral. Diante da torre, ele pára e ajuda Sibylle a descer. Segue ao lado dela até a grande entrada envidraçada e espera até que ela ache as chaves no bolso de seu casaco. Ela recomeça a chorar.

— Não — diz Daniel —, por favor, não chore de novo, querida! Foi muito valente o jeito como vocês se comportaram. Agora vocês não estarão mais me enganando quando forem para a cama.

Ele toma a cabeça dela com as duas mãos e beija-lhe a testa. Em seguida faz-lhe ali um sinal-da-cruz.

— Que quer dizer isso?

— Que Deus a proteja,

— Mas você não acredita nele, meu pobre Danny!

— Eu não, mas você. Abre logo a porta!

— Obrigada — diz Sibylle. — Obrigada, Danny! Nunca vou esquecer você.

— E eu tampouco você, meu amor — diz ele. — E agora, vá! Rápido! Por favor, rápido...

Ela o olha ainda uma vez e caminha então para dentro do prédio. A pesada porta de vidro se fecha devagar. Daniel acompanha Sibylle com o olhar até que ela tropeça entrando à esquerda, onde se acham os elevadores. Então, ele volta para o carro.

— Quando seu pai lhe mostrou o filme, Daniel telefonou-me imediatamente e contou-me a respeito. Logo em seguida, peguei o primeiro avião disponível para Buenos Aires — disse Conrad Colledo. — O senhor está informado de tudo, Mr. Corley. Sabe naturalmente também que Daniel e eu somos amigos há vinte e um anos e trabalhamos durante muito tempo juntos.

— Onde ficou hospedado? — perguntou Wayne Hyde.

— No Nogaro. — Colledo mostrou uma embalagem de fósforos de papel. — AI está o número do telefone. Pode informar-se.

— E bastou um telefonema de Ross para o senhor voar para a Argentina? — Hyde brincava com os fósforos.

— Eu já lhe disse. Trabalhamos há anos juntos. Goza de minha absoluta confiança. Quando ele me contou o que tinha em mãos, é claro que peguei o primeiro avião. O senhor não faria o mesmo? Guarde essa pistola, isso já é bobagem!

Hyde colocou a arma de volta no coldre do ombro, depois de havê-la de novo travado.

- Continue!

— Não há muito para contar. Quando Daniel e Mercedes — a Sra. Olivera — seguiram para Ezeiza em companhia do pai para voltarem à Europa, eu também estava no aeroporto. Voei igualmente de volta.

— No mesmo avião?

— No mesmo avião.

— Como trocaram os filmes?

— Pelo telefone. Daniel me passou a marca do cassete. Comprei dois cassetes com filmes de Disney da mesma marca. Eu tinha uma bolsa vermelha da Aerolineas Argentinas e Daniel também. Na checagem das passagens estávamos um ao lado do outro no balcão. Simplesmente trocamos de bolsas.

— Esses bestalhões!

— Quem?

— Ross e a Sra. Olivera estavam sendo vigiados.

— Disso nós estávamos convencidos. De fato ninguém poderia ter notado a troca. Já as havíamos colocado trocadas sobre o balcão. Encurtando a história, Mr. Corley: eu trouxe os cassetes certos comigo para Frankfurt. Fui imediatamente com eles para Königstein. O que aconteceu em seguida, está claro que não vou lhe contar.

Fez-se uma pausa.

Hyde levantou-se e foi até a escrivaninha.

— O que é que o senhor quer? — perguntou Colledo.

— Telefonar, se o senhor me permite.

Hyde pegou o decodificador de um de seus bolsos, ergueu o fone e discou o número da secretária eletrônica de Morley em Londres. Depois que a voz do advogado soou, Hyde aproximou o decodificador do bocal e aguardou os três apitos que preparavam a secretária para a resposta. A voz de Morley estava nervosa na gravação:

— 22 de fevereiro de 1984, 18h50m, hora européia. Mr. Hyde! Mr. Hyde, onde quer que o senhor esteja, o que quer que esteja fazendo ou pretenda fazer: não empreenda nada! No momento, abandone tudo. Tome um quarto em um hotel e não o deixe antes de receber instruções de minha parte. Acabo de ser informado de que os dois cassetes do filme estão em mãos da emissora de televisão de Frankfurt. Um homem de nome Conrad Colledo as trouxe de Buenos Aires para a Alemanha. Com isso, toda a situação encontra-se modificada. Meus clientes indicarão as iniciativas subseqüentes. Telefone-me novamente às 23h, hora continental européia. Espero a essa hora poder dizer-lhe alguma coisa a mais. Isto é tudo. Fim.

Wayne Hyde pousou o fone de novo no aparelho, pegou seu capote de uma poltrona e deixou a casa sem dizer uma só palavra nem lançar um só olhar para Mercedes ou Colledo. Este se dirigiu para junto de uma janela, de onde podia enxergar a rua. Viu Hyde embarcando num BMW cinza, e arrancando em seguida. Colledo voltou ao escritório.

— Conte-me o que aconteceu até agora, Conrad — disse Mercedes. — Preciso saber. Danny também.

Colledo sentou-se.

— Pois bem. Eu fui, então, para a emissora. O Sr. von Karrelis esperava por mim. Ele é o superintendente. Estavam ainda presentes o Hans Kleinhals, redator-chefe, nosso diretor jurídico e dois elementos de seu departamento. Fomos para uma sala de projeção e assistimos ao filme. Primeiro, todos ficaram extremamente céticos.

— Como assim?

— Consideramos o filme naturalmente um embuste.

— Não é embuste nenhum! Ele é verdadeiro! — protestou Mercedes.

— Por favor — disse Colledo —, por favor, Mercedes. Você está convencida de que é autêntico, porque você acredita no seu padrasto. E natural também, porque você deseja que ele seja autêntico. Os homens lá da emissora são calejados. Eles já passaram pelas coisas mais inacreditáveis, sobretudo os do departamento jurídico. É inerente à profissão deles serem desconfiados. Caso esse filme seja verdadeiro — seria a maior sensação da história da televisão.

— Mas é! Mas é!

— Mercedes... — Colledo fez um gesto desconsolado. — Você deseja saber o que aconteceu. Muito bem, eu lhe conto. Quem reagiu mais negativamente, primeiro, foi o redator-chefe, Hans Kleinhals. Ele era de opinião que o lugar do filme era no Departamento de Entretenimento. Os advogados fizeram advertências. Então, eu lhes contei tudo a respeito da procedência e história do filme, aquilo que Danny me havia contado, pelo telefone, em Buenos Aires. Eles ficaram pensativos. Karrelis, afinal, teve uma sugestão, aceita por todos.

— Qual foi?

— Respaldar o filme com uma poderosa documentação e apresentá-lo subdividido em várias partes. Tentar tudo para descobrir se se trata de uma impostura ou não. Acionar nosso melhor pessoal. Fazer com que todas as suas pesquisas, tudo o que conseguirem reunir como provas ou testemunhos, a favor ou contra a autenticidade do filme, seja apresentado como parte integrante da documentação. E toda essa documentação seria então transmitida juntamente com o filme, pouco importando o resultado das pesquisas, a favor ou contra sua autenticidade, O negócio é simplesmente grande demais para que a gente o deixasse de lado. E, desse modo, será possível pôr o filme no ar de acordo com todas as determinações legais e fazer realmente algo que entre para a história da televisão. E claro que Danny vai voltar a trabalhar conosco. A discussão demorou até de manhã. A ela se seguiram contatos com o Primeiro-Ministro e com o Ministro do Exterior, em Bonn.

— Por que isso?

— Porque nós queremos agir com correção. De acordo com a Constituição e com a Lei da Radiodifusão, o governo não pode exercer qualquer influência sobre o trabalho redacional da emissora, especialmente no setor informativo. Isso só pode ser feito pelo Conselho de Radiodifusão da ARD.

— Que é isso?

— É a abreviatura para a associação das organizações de radiodifusão da Alemanha. Nós pertencemos ao grupo de emissoras de televisão da ARD. Por isso, Karrelis pediu ao Presidente do Conselho de Radiodifusão que viesse ainda à noite para Königstein. Mostrou-lhe o filme. Em seguida, chamou Kleinhals, o redator-chefe. Os três conferenciaram por pouco tempo. Então, o Presidente do Conselho deu sinal verde.

— E o Primeiro-Ministro? — indagou Mercedes. — E o Ministro do Exterior?

— Hoje, pela manhã, Karrelis pegou o avião para Bonn. Avião das Forças Armadas. Karrelis havia informado pelo telefone de que se tratava de um assunto de significação mundial. Em Bonn, relatou tudo ao Primeiro-Ministro e ao Chanceler.

— E aí?

— Ambos ficaram profundamente preocupados. Solicitaram a Karrelis que ainda retivesse o filme. Queriam ligar para os aliados americanos e para a direção do Kremlin. Caso o filme seja autêntico, sua apresentação poderá ter desdobramentos políticos imprevisíveis. De ordem política mundial.

— Ele é autêntico!

— Sim, Mercedes, sim. Talvez. Mas talvez não — disse Colledo. — Nós vamos averiguar isso. Para isso precisamos de tempo. Portanto, o superintendente pôde prometer em Bonn que seguraria o filme. Mais que isso ele não prometeu. É evidente que o Primeiro-Ministro e o Chanceler teriam preferido simplesmente mandar confiscar o filme. Mas isso teria sido o último ato oficial do Ministro do Exterior e do Primeiro-Ministro. Eles sabiam disso. — Colledo olhou para Mercedes. — Tudo isso e o que ainda aconteceu demorou tanto tempo que eu não consegui mais chegar ao aeroporto.

Mercedes assentiu com a cabeça.

— Você vai conseguir, de algum modo, comunicar isso a Danny?

— Vou. E o que veio depois? — indagou Mercedes.

— Karrelis voltou hoje à tarde. Precisávamos começar imediatamente com a documentação, quer dizer, montar um bocado de coisas e maquilar o superintendente. Finalmente, ele ligou para as Embaixadas americana e soviética em Bonn. Com o Embaixador americano demorou quase vinte minutos até que o cavalheiro se dignasse a vir ao aparelho. Karrelis, nesse ínterim, falou com três outros cavalheiros até que conseguiu finalmente falar com o Embaixador...

— Excelência, meu nome é Eugen von Karrelis. Eu sou o superintendente da...

— Okay, okay — disse a voz do Embaixador com sotaque americano. — Disso já me informaram. O senhor parece estar extremamente nervoso, Sr. von Karrelis. Se bem entendi, trata-se de um filme que teria chegado às suas mãos.

— Eu estou extremamente nervoso, Excelência. Também o senhor estaria se tivesse visto o filme. Ou mais precisamente: o vídeo-filme.

— Não tenho a mais vaga idéia do que o senhor está falando.

— É claro que não. Os três cavalheiros com quem falei antes do senhor tampouco têm alguma idéia. Falo agora com toda a seriedade. Os senhores simplesmente não podem ter nenhuma idéia. A respeito só sabem o seu Presidente e o Chefe do Estado Soviético bem como seus respectivos colaboradores mais íntimos. Seus funcionários me ligaram de volta aqui para a emissora para se assegurarem de que não estavam sendo vitimas de alguma mistificação. Somente depois é que lhes contei de que filme se tratava. Prometeram que iriam informá-lo. Isto não foi feito, Excelência?

— Claro.

— Então?

— Ouça aqui, tudo isso é puro delírio. Um filme assim não existe.

— Eu o tenho, bem como uma cópia, aqui na emissora, Excelência.

— Loucura.

— Sim, isso o senhor já disse uma vez. Sugiro que o senhor entre prontamente em contato com seu Presidente. O Primeiro- Ministro alemão provavelmente já o terá feito. Seu Presidente vai poder explicar ao senhor de que trata esse filme e aquilo que está em jogo. Um momento, Excelência! Tenho ainda uma coisa a lhe dizer e que peço repita a seu Presidente. Nós estamos decididos a divulgar esse filme...

— Eu creio que a conversa está encerrada.

— Eu não creio. Divulgar esse filme, dizia eu, tão logo tenhamos providenciado todas as pesquisas humanamente possíveis no sentido de verificar sua autenticidade. Não se trata, aqui, dos diários de Hitler ridiculamente forjados. Trata-se agora, de uma forma ou de outra, do objeto politicamente mais perigoso desde o fim da guerra. Estamos inteiramente conscientes da imensa responsabilidade que nos pesa sobre os ombros. Possuímos extraordinários pesquisadores. Buscarão provas ou testemunhas ainda vivas que atestarão se esse filme é verdadeiro ou forjado.

— Mas é óbvio que é forjado.

— Oh, então o senhor conhece o filme?

— Segundo o que meu pessoal me informou. Somente a idéia de um tal filme já é fantástica.

— Nisso, me vejo obrigado a concordar com o senhor, Excelência. Por favor, preste bem atenção: caso fique comprovado que os nazistas — ou quaisquer outros interessados — forjaram o filme, nós vamos exibi-lo da mesma forma. Com todos os depoimentos de testemunhas e comprovantes que atestem a falsificação. Também divulgaremos de que maneira conseguimos o filme. Apresentaremos ao telespectador todas as circunstâncias que o envolvem. O telespectador, de fato, verá tudo. Como, por exemplo, a mim, nesse momento.

— Que quer dizer com isso?

— Quero dizer, Excelência, que nesse instante, enquanto me encontro falando com o senhor, duas câmeras estão focalizando a minha pessoa. Igualmente a nossa conversa, desde o começo, está sendo gravada. Quando apresentarmos então o filme, teremos documentado todos os nossos passos. De forma alguma pretendemos manipular o que quer que seja. Pois o assunto é mesmo sério demais. Se se comprovar que o filme é forjado, isso dará uma enorme força política e moral a seu país.

— Que atrevimento!

— Estou convencido de que a seu lado, aí, há um gravador registrando toda a nossa conversa. Assim, o senhor pode transmitir a fita para Washington. Isto porque eu chego agora a um ponto extremamente importante: eu poderia imaginar, Excelên cia, que o senhor — quero dizer, é claro, pessoas especialmente preparadas para ações dessa natureza — pode tentar apoderar- se desses cassetes. Se não puder ser de outro modo, por meio de homicídio e terror. Da emissora, certamente o senhor não os obterá nem mediante a ação do mais temerário comando. Seria entretanto possível que alguém viesse a ter a idéia de tentar tomar como refém ou objeto de chantagem uma ou várias pessoas de nossa equipe que se ocupam desse filme, redatores ou pesquisadores — ou mesmo seus familiares.

— Bem, agora já basta, eu vou desligar.

— O senhor não irá desligar, Excelência. A esse grupo de pessoas especialmente expostas pertencem o Sr. Eduardo Olivera, em Buenos Aires, seus filho Daniel Ross, sua enteada Mercedes Olivera, o redator-chefe Hans Kleinhals, o chefe-de-divisão Conrad Colledo e eu. Esses nomes eu já passei para um dos homens de seu pessoal que os anotou... Faça-me o obséquio de deixar-me falar até o fim, Excelência. Em resumo: Pretendemos exibir esse filme-documento somente após verificação, e divulgando ao mesmo tempo todos os resultados de nossa pesquisa. Caso nesse ínterim algo venha acontecer a alguma das pessoas que acabei de mencionar ou a quaisquer outras envolvidas com o filme — rapto, seqüestro, homicídio ou ameaça de morte — então nós, e peço levar em consideração as minhas palavras, Excelência, nós exibiremos o filme imediatamente, sem prosseguir as pesquisas! Pelo contrário: divulgaremos minuciosamente tudo o que o senhor tiver feito para impedir a exibição. O senhor compreendeu, não é mesmo? O senhor o tem gravado na fita. O filme é o seguro de vida de todos nós. Excelência, queira aceitar a expressão de minha mais elevada consideração! — E Karrelis desligou. Em seguida, ele telefonou para a Embaixada Soviética em Bonn.

Depois de haver dado seu nome e sua posição, ele foi informado de que o Embaixador soviético se encontrava em Moscou. Por quanto tempo? Inteiramente incerto, O superintendente pediu para ser ligado com seu substituto.

— Lamento, ele voou junto para apresentar relatório.

— Passe-me então o Primeiro-Secretário.

— Trata-se de que assunto?

— Isso eu direi ao Primeiro-Secretário.

— O senhor Primeiro Secretário encontra-se em reunião. Não pode ser perturbado.

E assim foi indo. Karrelis conseguiu finalmente que o adido de imprensa viesse ao telefone. Ele começou — de novo em inglês — a informar a mesma coisa que na conversa com o Embaixador norte-americano.

— Não existe um tal filme — explicou em seguida o adido de imprensa.

— Eu mesmo o vi.

— Então se trata de uma falsificação americana.

O superintendente não se deixou abalar. Recomendou ao adido que se comunicasse o mais rápido possível com Moscou.

— Infâmia americana. Nós vamos convocar imediatamente uma conferência de imprensa internacional.

— Duvido que o senhor vá fazer uma coisa dessas, senhor adido. — Karrelis repetiu tudo o que dissera ao Embaixador americano. Energicamente, advertiu contra medidas de violência diante de qualquer uma das numerosas pessoas envolvidas com o filme ou seus parentes,

— Nesse caso, vamos exibi-lo imediatamente, sem aguardar qualquer pesquisa e mostrando em detalhe de que modo os senhores tentaram impedir a divulgação. Senhor adido, peço-lhe aceitar a expressão de minha mais alta consideração!

— Isso aconteceu, portanto, hoje, ao entardecer — disse Conrad Colledo. Ele se levantou e foi em direção a um pequeno armário de bar. — Que bom que o Danny tenha algumas garrafas em casa, embora ele quase não beba — disse ele. — Agora eu preciso de um uísque.

— Eu também — completou Mercedes.

— Uísque também?

— Sim. Puro. Com gelo. Espere, eu vou buscá-lo. — Ela seguiu para a cozinha e voltou com um baldezinho de gelo. Com um pegador de prata, ela botou cubos de gelo em ambos os copos.

— Cheers! — saudou Colledo.

— Que Deus nos proteja — disse Mercedes. — Nós estamos investindo contra as duas maiores potências do mundo.

— Danny contou-me que você está disposta a se arriscar por qualquer coisa que possa ajudar à paz.

— Estou sim — replicou Mercedes. — Mas medo eu tenho assim mesmo.

— Os outros também. Se isso pode servir de consolo — disse Colledo bebendo mais um gole.

— Sim — disse Mercedes. — Agora todos têm medo.

 

Wayne Hyde havia tomado um quarto num hotel no centro da cidade. Esvaziou seus sacos de roupa e sentou-se na cama. Discou então um longo número que começava com os algarismos 00 13 12, o código telefônico de Chicago.

Atendeu a voz fina e trêmula de uma velha senhora, tão logo se completou a ligação.

— Yes?

— Hello, Ma, aqui é Wayne.

— Oh, Wayne! — A mãe dele ria, feliz. — Eu já estava esperando! Você disse que telefonaria hoje.

— É o que estou fazendo, sweetheart! Infelizmente não deu para ligar mais cedo. Uma loucura o que tenho de fazer.

— Onde está você? Ainda em Roma?

— Ainda, sim. As negociações estão se esticando.

— Meu bom menino, mas como estou satisfeita de ouvir sua voz!

— Você a ouve duas vezes por semana, Ma.

— Sim, decerto. Mas você é tudo o que tenho. Eu amo tanto você, Wayne.

— E eu a você. Você também é tudo o que eu tenho. — Ele passou os dedos pelos curtíssimos cabelos louros.

— Obrigada pelas flores!

— Entregaram flores decentes?

— Maravilhosas! Nunca recebi orquídeas tão esplêndidas. Cheias de cachos! Você é maluco, menino.

— Totalmente doido. Isso eu tenho por escrito. As orquídeas são mesmo bonitas, Ma? Em encomendas internacionais, a gente nunca sabe.

— Mas você usa sempre a mesma loja aqui, meu querido. Mr. Kleene é um homem honesto. Ele fica tão satisfeito quanto eu, quando chegam flores. “A senhora tem um filho maravilhoso, Mrs. Hyde”, diz ele, “como ele deve amar a senhora!”

— Mr. Kleene tem razão. Como vai a perna?

— O Dr. Hailey diz que ainda vai levar muito tempo até que eu possa de novo me levantar. Foi uma fratura muito complicada. E na minha idade os ossos simplesmente não colam mais. Provavelmente nunca mais vou poder andar.

— É isso o que diz o médico?

— Eu é que digo.

— Não diga isso nunca mais! Mas que bobagem! HaiIey é o melhor médico que pudemos conseguir em Chicago. É claro que você vai poder caminhar novamente! Eu rezo por você, Ma, todas as noites. É a pura verdade. Toda noite peço a Deus que sua perna sare depressa.

— Meu filho querido. Eu também rezo por você. Para que você tenha sucesso e fique sadio.

— Nós dois — disse Hyde. — O que está você fazendo agora? Vendo televisão? Aí deve estar escurecendo agora, não é?

— Estou vendo um torneio de dança. Você sabe como sou louca por concursos de dança. Como caminham e deslizam, e como giram. Como é bonito! Eu também já fui uma boa dançarina, não é? E agora tem de me acontecer isso com a perna. Ah. meu querido...

— Tudo vai melhorar. A enfermeira é okay?

— Fabulosa. Mas muito cara. Você gasta muito dinheiro comigo, Wayne!

— E com quem deveria gastar então?

— Se pelo menos o banco não mandasse você sempre pelo mundo afora, Wayne.

— Não tem remédio, Ma. O meu posto é da mais alta confiança. Grande responsabilidade.

— Sim, decerto. Por isso eu fico muito orgulhou de você. Mas às vezes demora tanto até você estar de novo comigo. Quanto tempo vai demorar desta vez?

— Não posso dizer, Ma. Eu temo que ainda vá demorar bastante. Mas quando eu voltar para casa, vamos entrar em férias. Fora da imunda Chicago. Voaremos para o Havaí.

— Você perdeu o juízo!

Voaremos para o Havaí e vamos morar no hotel mais caro, na suíte mais bonita e teremos areia e sol e mar azul — e estaremos juntos.

— Mas eu não posso caminhar, com minha perna assim.

— Então nós compramos uma cadeira de rodas elétrica. A enfermeira vem junto. Nada de réplica! Tudo decidido. Bem, agora tenho de desligar, Ma. Um abraço bem apertado em você. Cuide-se, está me ouvindo?

— E você também, darling. Que nada aconteça com você. Os tempos ficaram tão horríveis. Por todos os lados, só bandidos e assassinos. Por favor, tome cuidado. Com mulheres, também. Há tantas mulheres malvadas.

— Para mim só existe você, e isso você sabe. Um enorme beijão para você, Ma! Dentro de três ou quatro dias, ligo de novo. Assim, à noite. Saúde, Ma!

Hyde desligou, suspendeu novamente o fone e discou um algarismo. Era o serviço do andar. Hyde disse o número do quarto.

— Traga-me um bife com batatas fritas e vagens — disse ele. — O bife, no ponto. E uma garrafa de água mineral. Obrigado.

Quinze minutos mais tarde apareceu um garçom com um carrinho de servir e a refeição que Hyde havia pedido. Comeu com todo o gosto e acompanhou com um copo d’água. Por fim, pegou a garrafa e o copo e os pôs na mesinha-de-cabeceira. Empurrou o carro para fora, deixando-o no corredor. Na maçaneta externa pendurou o aviso NÃO PERTURBE. Eram exatamente 23h quando Hyde discou o número londrino de Roger Morley e levantou o bloqueio da secretária automática, com a ajuda de seu decodificador.

A voz do advogado soou:

— Vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos, 22 de fevereiro de 1984. Lamento, Mr. Hyde. Nenhuma recomendação ainda. Não empreenda nada. Fique onde está! Chame-me nova mente às duas da manhã, hora continental da Europa. Até então terei mais informações. Felicidades! Fim. — A fita parou com um leve clique. Hyde serviu-se de água e pegou o livro que se achava sobre a mesinha. A poltrona era confortável. A luz de um abajur alto iluminava as páginas. Ele bebeu devagar. Lia também lentamente, com toda a atenção-

“Do tesouro fechado em sua doçura, / Eu tenho, assim, a chave abençoada, / Mas escasseio o instante da procura: / A flor prazer não quer ser desgastada.”

Conrad Colledo ajudou Mercedes a fazer as malas. Precisaram de duas malas, uma vez que as roupas de inverno de Daniel eram pesadas e ocupavam muito espaço.

— Você vem comigo e pernoita com a gente lá em casa, Mercedes! Já combinei tudo com minha mulher — disse Colledo. — Senão eu não teria um minuto de calma.

— Mas eu disponho agora de meu “seguro de vida”!

— Mesmo assim — respondeu ele. — Nós ignoramos qual será a primeira reação deles...  Não, por favor, não me conteste! Você vem comigo! — Ele carregou a bagagem até seu carro. Para dirigir, ele usava óculos. A casa ficava bastante afastada. Morava na Rua Siesmayer, junto ao Parque Grüneburg, ao lado do Jardim das Palmeiras. Isso ele ia contando a Mercedes, enquanto dava partida. E, sem qualquer transição, prosseguiu: — No último verão, Lisa, minha mulher, caiu de mau jeito em pleno jardim. Bem em cima das lâminas do cortador de grama. Cortou os tendões nos dois pulsos. Seis operações. Mal dá para notar. Muitas coisas, porém, ela não pode mais fazer com as mãos.

Lisa Colledo era uma pequena e frágil mulher de cabelos louros e olhos azuis. Saudou Mercedes cordialmente. Suas mãos estavam geladas. Na sala de refeições da grande casa modernamente decorada, Mercedes entreviu uma mesa coberta para o jantar.

— Você disse que provavelmente ia ficar tarde, Conny. Teresa preparou um gulasch. Mais vinte minutos, e podemos comer.

No primeiro andar havia um apartamento de hóspedes, com chuveiro e telefone. Mercedes tomou uma ducha, vestiu-se com outro costume e voltou novamente para baixo. A cozinheira Teresa era uma mulher de seus sessenta anos de idade, com um rosto simpático e magnifica dentadura postiça. Ela serviu e encheu o prato de Lisa. Colledo cortou-lhe a carne em pequenos pedaços.

— Conny já lhe deve ter contado, não? — Lisa olhou primeiro para Mercedes e, em seguida, para suas próprias mãos. Mercedes assentiu com a cabeça. — É uma pena. Muitas coisas ainda são possíveis. E outras, bem simples, de jeito nenhum. Eu poderia, por exemplo, dirigir automóvel perfeitamente. Mas não posso, porque não consigo depois abrir a porta do carro para saltar. Minha escrita praticamente não se alterou. O Dr. Eichholz acha que tudo vai ficar em ordem de novo. Está gostando do gulasch? A Teresa é vienense. É claro que nunca mais vai ficar como antes. Não consigo sequer passar manteiga no pão — disse ela então bem baixinho.

Durante o caminho de vinda, Colledo havia explicado a Mercedes que sua mulher nada sabia do que estava ocorrendo. Somente que havia no momento muito trabalho a fazer e que ela, Mercedes, era uma amiga de Daniel, procedente do Brasil, tendo desembarcado em Frankfurt para fazer-lhe uma visita, pois ele estava nas cercanias de Viena para fazer um tratamento de desintoxicação.

— Amanhã Mercedes prossegue sua viagem de avião e Danny certamente ficará bem feliz.

— Danny! — Lisa sorriu tão logo a conversa chegou ao amigo, e agora, de repente, seu rosto lembrava a doçura de uma pequena menina. — É amigo nosso há tanto tempo! Uma pessoa excelente! Meu marido e ele já trabalham juntos há uma eternidade ...

Mercedes olhou para Colledo que fechou momentaneamente os olhos. Sua mulher não sabia tampouco que Daniel havia sido despedido e novamente empregado. Parecia que Colledo a mantinha afastada de tudo.

A cozinheira vienense vinha e voltava.

— O gulasch está formidável, Teresa.

— Muito obrigada, meu senhor. Há ainda sorvete de fruta. O senhor gosta tanto! A senhora também?

— Gosto muitíssimo — disse Mercedes.

— Ah, mas que bom!

Após o jantar, ficaram ainda sentados por meia hora na sala de estar, diante da lareira. Queimavam grandes achas de lenha. Nas paredes da peça Mercedes notara numerosos quadros — sempre com o mesmo tema, uma jovem menina. Ora brincava. Ora dormia. E caminhando. Por cima da lareira havia um retrato dependurado, no qual a menina estava rindo. Lisa percebeu o olhar de Mercedes.

— Nós tínhamos uma criança — disse ela. — Meningite. Com treze anos. No último verão.

Colledo interveio: — Todos os quadros de Kathi foram pintados por minha mulher. Excepcionalmente talentosa.

— Sim, realmente — comentou Mercedes.

— Que nada — atalhou Lisa. — E agora eu nem poderia mais pintar. E nem o desejo. Destruí todos os outros quadros quando... Kathi morreu. Somente os dela eu guardei. — Ela começou subitamente a chorar. Colledo deitou-lhe um braço por cima dos ombros e lhe falava, confortando-a.

— É uma grande maldade! — disse Lisa para Mercedes. — Como pôde Ele permitir uma coisa assim? Uma criança tão boa. “Meu anjinho”, como Teresa sempre a chamou. Não, Ele não existe ... — Ela escondeu seu rosto junto ao pescoço de Conrad. Ele fitou Mercedes com olhar suplicante.

Punhos cortados. Com as lâminas de um cortador de grama. Nunca, pensou Mercedes. Jamais. A faca foi outra...

Logo foram dormir.

— Se quiser telefonar para seu pai — disse Colledo já perto da escada. — Lá nesse instante são apenas sete e meia.

— Ah, sim, muito obrigada — disse Mercedes.

Também no seu quarto havia um retrato da pequena menina. Mercedes sentou-se na cama, ao lado da mesinha com o telefone. Discou o longo número. Seu padrasto logo atendeu.

— Olivera!

— Pai, aqui é Mercedes.

— Estou esperando desde ontem. — Sua voz soava inquieta. — Aconteceu alguma coisa?

— Tudo em ordem.

A menina tinha cabelos dourados e olhos azuis. Também nesse quadro ela ria.

— Onde está Daniel?

— Ainda na emissora — mentiu Mercedes.

— De onde você está telefonando? Não há alguém na escuta?

— Estamos morando na casa de amigos dele e ninguém pode escutar.

A menininha do quadro mantinha a cabeça ereta.

— E então? O que há? Meu Deus, fale logo!

— Eles estão mais que impressionados. Vão mostrar o filme. Antes precisam, é claro, examinar minuciosamente a coisa. Isso, Danny já tinha dito para você.

— Sim, sim, sim. E eles pagam o preço?

— Em princípio, eles estão de acordo.

— O que quer dizer em princípio? — A voz dele ficara mais alta. A milhares de quilômetros de distância, por sobre selvas e estepes e por cima de um mundo de mares, ela sentiu como ele ia ficando encolerizado, ia perdendo o controle.

— Pai... Por favor... Estamos aqui há apenas um dia. E o que você pede é uma soma monstruosa... É uma coisa imensa em que eles estão se metendo... Pense no escândalo mundial! Precisam fazer pesquisas, investigações, precisam assegurar-se.

— Você sabe o que eles têm em mãos. Naturalmente que eles vão tentar tudo para considerar o filme um embuste... Vão subornar testemunhas para que façam falsas declarações e mintam...

— Isso mesmo! E para achar todas as testemunhas a favor ou contra a autenticidade, eles, da emissora, precisam de tempo.

— Quanto tempo?

— Isso eu não sei... Meu Deus, pai! Eles acabam agora mesmo de receber o material! Só agora iniciam suas buscas.

— E antes que elas se encerrem, eles não pagam nada.

— Não — disse Mercedes duramente. Nesse estado ela nunca havia visto seu pai. Não queria ele, mediante o filme, despertar as pessoas? Evitar uma nova guerra horrenda? De repente, tratava-se apenas de dinheiro? Ela estava surpresa e abalada. — Não — disse ela mais uma vez — antes eles não pagam. — Que teria acontecido com seu pai?

Vermelho-escuro era o vestidinho usado pela menina do quadro. Ao telefone, nenhuma resposta.

— Pai!

— Sim.

— Por que não diz nada?

— Porque... não foi isso que eu combinei com Daniel. Portanto, eles só pagarão depois que terminarem suas investigações. Isso pode demorar um mês, não? Você está me ouvindo? Eu disse: Isso pode demorar um mês, não é?

— Não sei, papai. Sim, um mês talvez... Talvez até mais...

— Mais? — Agora sua voz soava histérica. — Escute aqui. Mercedes: um mês é o máximo absoluto que eu dou a eles. Se dentro de um mês eles ainda não tiverem pago a soma integral, então eles podem esquecer o assunto. Eu farei aquilo que expliquei a Daniel. Ele deverá lhe dizer. E também ao pessoal dele.

— Você não vai fazer coisa alguma, pai! Por favor! Você põe sua vida em perigo. E a de muita gente também. Eu lhe suplico!

— Vida em perigo! Não posso esperar mais que um mês. Não quero esperar mais que um mês. Eles têm de se arranjar com isso. Eu telefono dentro de três dias. Onde posso encontrar vocês?

— Isso eu não sei, pai. Vamos ter de ficar correndo agora o tempo todo. Nós ligaremos para você.

— Como quiser. Mas se eles não se comprometerem de forma segura a transferir a soma completa o mais tardar dentro de um mês, vou agir por conta própria.

— Pai, eu lhe peço...

— Vou agir por conta própria! — gritou ele. Em seguida, sua voz voltou ao normal. — Boa noite, minha filha! — Pronto, estava cortada a ligação.

Mercedes repôs o fone no lugar e ficou ali sentada, imóvel. Fitava o retrato da garotinha, que ria com tanta alegria no quadro e que, na realidade, tivera uma morte tão horrível.

Agir por conta própria, pensou Mercedes. Em que direção? De repente, o medo voltou a dominá-la, frio e colante. Escondeu o rosto nas mãos.

Em Londres, o advogado Roger Morley também repunha o fone no lugar. Durante quase duas horas havia falado com diversas pessoas que eram os seus contatos, e dava a impressão de estar exausto. Agora, o homenzinho das bochechas e rosto vermelhos, da boca redonda, dos dentinhos de rato e do cabelo grisalho emaranhado recostou-se na confortável poltrona de seu escritório e cruzou as mãozinhas sobre a barriga pontuda. Era 1h10m da manhã. Na Chancery Lane, um carro buzinava longamente, de forma irritante. Depois, tudo ficou quieto. Morley enxugou sua testa com um lenço de seda. Eu sou um velho, pensou ele consternado. Então, seu rosto iluminou-se. Chá! Isso mesmo. Ele precisava agora de umas xícaras de um bom chá.

Ergueu-se com ímpeto e foi em rápidos passinhos miúdos até a quitinete. Ali, encheu uma chaleira com água e colocou-a sobre uma chapa do fogão elétrico. Ligou o fogão e mirou pensativa-mente a longa série de latas coloridas que se perfilavam numa prateleira acima dele. O que seria preferível escolher? Flowery Orange Tea? China Jasmin with Flowers? Oh, não, tomemos uma vez um Finest China Keemun, delicadamente perfumado! Com a concentração espiritual de um grande regente de orquestra, Roger Morley preparou a bebida que o aliviaria dos tormentos do dia. Juntou tudo o que precisava. Sobre uma bandeja de prata, trouxe tudo para sua escrivaninha. Primeiro, colocou três pedacinhos de açúcar-cande na xícara de fina porcelana chinesa. Em seguida, encheu-a pela metade com chá, e só depois diluiu-o com água quente. Esperou um pouco e aspirou o suave perfume do Finest China Keemun. Finalmente o tomou. Um feliz sorriso de bebê iluminou seu rosto.

Sim, esse era o gosto!

Depois de tomar duas xícaras, sentiu-se novamente bem-disposto. Preparou uma terceira xícara como reserva, puxou a mesinha com a secretária eletrônica, ligou-a, pegou um pequeno microfone e começou a falar.

— Boa noite, Mr. Hyde. Ou melhor, bom dia. É 1h25m de 23 de fevereiro de 1984. Estou finalmente em condição de lhe dar novas instruções.

Um gole de chá.

— A situação modificou-se, conforme já lhe comuniquei. O ponto mais importante é o seguinte: as pessoas responsáveis na emissora de Frankfurt que agora possuem o filme vão — após pesquisas precisas — pô-lo no ar, pouco importando se se trata de um filme falso ou não. De qualquer modo, não há dúvidas de que haverá testemunhas inescrupulosas que vão jurar pela sua autenticidade. Meus conhecidos desejavam primeiro — o senhor se recorda — que o filme chegasse às suas mãos e que não fosse exibido em hipótese alguma. Essa solução ideal agora se tomou inatingível. O que é preciso agora é que o filme seja pelo menos mostrado como uma infame falsificação, o que não deixa de ser. A propósito, convém observar que o superintendente da emissora disse para os meus conhecidos que o fato de estar de posse das duas cópias do filme representava um “seguro de vida” para todos os participantes do projeto, especialmente, é claro, para Ross e a Olivera.

Desta vez, o chá saiu forte demais. Morley acrescentou água quente. Degustou. Agora, a concentração estava perfeita.

— Em circunstância alguma, meu caro Mr. Hyde, em nenhuma situação, por melhor que esteja arranjada, poderá o senhor por conseguinte empregar violência contra esses cidadãos. Hahaha. Adoro essas reviravoltas. O senhor também? De fato, no fundo nada mudou: estamos lidando com um velho porco nazista que quer trazer a público um filme forjado e ganhar com isso o máximo dinheiro possível. As testemunhas que agora assegurarem que o filme é verdadeiro ou são nazistas e por isso mentem consciente e inescrupulosamente, ou então ganham dinheiro com isso, o que é claro. Entretanto, é difícil explicar isso ao simples homem diante da televisão. Ele ficará impressionado com qualquer depoimento de qualquer testemunha. Por isso mesmo — e agora preste bastante atenção, Mr. Hyde — é da mais alta e indiscutível importância que essas falsas testemunhas sejam liquidadas — e, por sinal, antes mesmo que tenham a oportunidade de apresentar seus depoimentos diante das câmeras. Precisamos, por isso, chegar a esses vagabundos antes, ou pelo menos, ao mesmo tempo, que os pesquisadores da emissora. Isso significa para o senhor manter Ross e a Olivera sob a mais estrita e permanente vigilância. É óbvio que ambos também vão buscar testemunhas. O senhor, Mr. Hyde, tem de encontrar uma possibilidade de descobrir, ao mesmo tempo que eles, se uma testemunha quer dizer a verdade, isto é, que o filme foi forjado, ou se pretende atestar a autenticidade do filme. No primeiro caso, é necessário sempre cuidar para que a testemunha possa depor ante as câmeras. Na segunda hipótese, sua tarefa é liquidar a testemunha antes que ela chegue diante de uma câmera.

Um gole de chá.

— Bem, meu caro Mr. Hyde, o senhor não pode seguir todas as pessoas da emissora que foram mandadas à procura de testemunhas e provas. Por esse motivo, já foram contratados numerosos outros profissionais. O senhor permanece naturalmente como o homem mais importante. Segundo as últimas instruções, o senhor fica exclusivamente destacado para a Olivera e Ross. Os dois são os mais perigosos. E dos dois a mais perigosa é a Olivera. Por quê? Porque se trata de uma fanática que considera que todos, inclusive ela, são vítimas, com exceção, naturalmente, dos “duzentos velhos criminosos”. O senhor sabe qual é a pior coisa que existe, Mr. Hyde? As vítimas que se transformam em acusadores. Eu vou em breve dizer-lhe como a caçada deverá começar. Um cenário está sendo preparado. Tem como pressuposto...

— ... que o senhor retorne para Viena e fique na proximidade imediata dos dois a fim de observá-los — disse a voz de Roger Morley no ouvido de Hyde. Conforme lhe havia sido pedido, ele tinha ligado para o advogado às duas da madrugada desde seu quarto de hotel em Frankfurt. Estava sentado, o fone no ouvido, debaixo da lâmpada. A garrafa de água mineral estava vazia. — Explique tudo ao Dr. Herdegen. Ele tem a possibilidade de abrigar o senhor no sanatório. E é evidente que a Olivera não o pode ver nem em Heiligenkreuz nem em qualquer outro lugar.

Preciso devolver as armas ao Heinz antes de voar de volta para Viena, pensou Hyde. E preciso ocupar-me das listas de passageiros para que não vá parar no mesmo avião que a Olivera.

— O seu trabalho e o de seus colegas, que vão operar isolados ou a dois, serão coordenados daqui. Seria prejudicial e perigoso se vocês se conhecessem entre si. Repito: Testemunhas em favor da autenticidade do filme serão imediatamente liquidadas. Por outro lado, nós precisamos com urgência de testemunhas que, se possível com convicção, comprovem que o filme é forjado e como ocorreu essa falsificação. Aliás, o filme será transmitido mesmo que todas as testemunhas declarem que foi falsificado. É isso que a emissora diz. Por sinal, e isso é muito importante, meu caro Mr. Hyde, graças a Deus encontramos um homem de confiança lá dentro, com quem se pode contar e que nos informa a respeito de tudo. Se o diabo não atrapalhar, o filme terá um efeito inteiramente diferente do que, por exemplo, aquele esperado pelo movimento pacifista internacional. Ele vai exatamente desmascarar esse movimento pacifista como um grupo de sonhadores entusiastas que se transformaram em perigosos psicopatas que não recuam diante de nenhuma fraude e que, no fundo, constituem o maior perigo para a paz. Revelar isso, meu caro Mr. Hyde, é nosso objetivo, e ele tem de ser realizado de qualquer modo. O senhor tem diante de si uma grande tarefa.

De repente, Hyde ouviu o advogado rir, dizendo em seguida: — Perdoe-me essa indevida hilaridade! Eu estava exatamente pensando: É claro que esse filme é uma farsa! Mas, mesmo que não o fosse, nós todos deveríamos agradecer de joelhos aos americanos e aos soviéticos esse protocolo secreto, porque afinal, em última análise, há trinta e nove anos não ocorreu mais nenhuma guerra mundial, não é verdade?

 

— Bem, assim eu lhes expliquei com que objetivo o Sanatório Kingston foi montado e como ele funciona. Isso vale para todos os outros sanatórios Kingston na Europa. Os soviéticos e os americanos querem hoje em dia simplesmente ter centros dessa espécie, onde podem obter conjuntamente informações importantes — disse Josef Aigner, o grisalho enfermeiro de olhos cinzentos, com o rosto bonachão e o corpo de um atleta. Ele caminhava à esquerda de Daniel, com Mercedes à sua direita. Isso ocorria na manhã de 5 de março de 1984.

Os três cruzavam vagarosamente o pátio coberto de neve do convento de Heiligenkreuz. Já há quatro dias que Daniel fazia tais excursões pela paisagem de inverno dos arredores do sanatório, em companhia de Mercedes e de um novo enfermeiro a cada dia. Ele havia suportado bastante bem a desintoxicação bem como a mudança para um novo medicamento, o Amadam. Mostrava enorme apetite, dormia bem e recobrava suas forças de forma rápida e espantosa. Desta sua quarta saída participava, pois, o enfermeiro Josef Aigner. No quarto de hora precedente, ele havia revelado a Mercedes e Daniel o segredo daquela curiosa clínica.

— Por que está nos contando tudo isso, Sr. Aigner? — indagou Daniel assombrado.

— Josef, por favor, Sr. Ross, não me chame de Sr. Aigner! Eu sou Josef.

— Pois então, muito bem, Josef. Por quê?

— Porque a doutora-chefe me pediu — respondeu o colosso bonachão. — É claro que ela teria preferido contar-lhes tudo pessoalmente, mas isso não seria possível. O Dr. Herdegen nunca iria permitir que ela pudesse falar com vocês sozinha, fora dos limites do sanatório. Nem mesmo que ela passeasse em companhia de vocês. Não, não, isso seria impossível. A pobre doutora-chefe é uma perfeita prisioneira. Eu sou o único aqui em quem ela pode ter confiança, uma vez que freqüentei a mesma escola que o irmão dela e continuamos amigos por muitos anos. Mas disso eles aqui não têm a menor idéia, graças a Deus!

— O irmão de Sibylle! — disse Daniel. — Em todo o meu tempo de Viena, nunca cheguei a vê-lo. Mas falar, ela sempre falou muito dele. Ela era muito agarrada ao irmão, disso eu consigo me lembrar.

— E ainda continua — disse Josef com tristeza. — Aí é que está o problema. Por isso é que a tarefa deles ficou bem fácil.

Dois sacerdotes se aproximavam pelo imenso pátio e passaram perto deles. Imediatamente, Josef mudou de assunto e de tom.

— E aqui, por favor, se os senhores quiserem apreciar a coluna da Santíssima Trindade. — Estacou diante do alto monumento lavrado em pedra, cujas imagens e símbolos se achavam cobertos de espessa camada de neve. Bem lá no alto, destacava-se uma grande cruz dourada contra as pesadas e escuras nuvens. — Ela foi construída em 1739. Grüss Gott, reverendos! — Os sacerdotes ergueram seus chapéus. — É uma coluna maravilhosa — continuou Josef. — Bem, agora vamos seguir para a fonte de José, que data do mesmo ano. Todos os verões, milhares de pessoas vêm visitar isto aqui. Porque o convento é uma atração turística, sabem? Em 1188, os religiosos ganharam do Duque Leopoldo V de Babenberg uma relíquia do Santo Lenho. Meu Deus, sim, isto aqui é tudo velho de vários séculos. Vocês não podem imaginar como isto fica cheio de ônibus de turismo! Em filas triplas! Mas também nesta época do ano vêm visitantes. — Sem qualquer transição, tão logo os sacerdotes se tinham afastado ele disse: — A doutora-chefe pode realmente confiar em mim, disso ela sabe. Por isso ela disse que eu lhes contasse tudo quando tivesse a oportunidade de acompanhá-los num passeio: tudo a respeito do sanatório e também a respeito dela. A pobre e boa doutora! É melhor irmos primeiro para a igreja do convento. O Dr. Herdegen pediu autorização à administração daqui a fim de que nos fosse permitido visitar tudo. Isso ele faz com freqüência quando chega a deixar os pacientes saírem da clínica...

Eles tinham cruzado todo o pátio e passado sob as arcadas de dois andares, entrando na igreja grande e antiga. — A doutora acha que vocês devem ficar sabendo de tudo para tomarem ainda mais cuidado. — Seus passos ecoavam sobre as desgastadas placas de pedra do piso. Diante de um altar lateral, estava de pé uma velha senhora com um lenço negro sobre a cabeça e mergulhada em profundas orações. Imediatamente, Josef reagiu: — Estão vendo as pinturas sobre os vidros das janelas, meus senhores? Foram feitas no ano de mil trezentos e. . - Bem, continuando: em 1976, há oito anos, a doutora ainda trabalhava no Hospital Geral, na Psiquiatria, não é?

— Sim — disse Daniel. — A primeira vez que eu telefonei para ela, perguntei-lhe por que motivo havia saído de lá. Pois ela não queria sair. Não recebi resposta alguma.

— Agora o senhor vai tê-la. Em conformidade com os desejos dela, de que eu lhes contasse tudo. Mas vamos seguindo bem devagar, meus senhores, como se estivéssemos examinando tudo com atenção, pois vejo que ainda há pessoas na igreja. Bem, isso foi em 18 de junho de 1976. Nesse dia, a doutora recebeu um telefonema...

— Ê a Dra. Mannholz? — perguntou a voz masculina, com um ligeiro sotaque eslavo.

— Sim.

Sibylle se achava diante de uma máquina de escrever elétrica, batendo um relatório sobre pacientes, quando soou o telefone. Raios de sol iluminavam seu gabinete de trabalho, de decoração supermoderna, como aliás todo o edifício da Psiquiatria. Ele fora construido próximo ao lugar onde se havia demolido o velho prédio. Todas as outras velhas construções ainda existiam. A Psiquiatria foi na verdade o primeiro novo pavilhão.

— Meu nome é Abad — disse a voz masculina. — Peço-lhe que me perdoe por incomodá-la.

— O senhor não incomoda, absolutamente, Sr. Abad. De que se trata?

— Eu, quero dizer, as pessoas que disso me encarregaram, gostariam de fazer-lhe uma proposta de ordem profissional.

— Estou há muitos anos aqui na clínica e realmente desejo permanecer aqui, Sr. Abad.

— Oh, mas a senhora não conhece a proposta, doutora! É absolutamente única. Eu não gostaria de esclarecê-la ao telefone. Quando poderíamos nos encontrar?

Sibylle hesitou.

— Receio que isso não leve a nada, Sr. Abad.

— Mas com certeza que sim — disse ele com fervor. — A senhora me faria o extremo obséquio de aceitar um convite para jantar? Não conheço Viena muito bem. Diz-se que o restaurante da Torre do Danúbio é uma atração. E a comida muito boa. Estaria de acordo já para hoje à noite?

Sibylle ponderou. Seu marido havia tomado o avião para Paris, onde ficaria por três dias. Tinha o que fazer no Louvre.

— Um momento! — exclamou Mercedes, interrompendo o relato de Josef. O rosto dela ficara pálido de repente. — A doutora é casada?

— Mas é claro. A senhora não sabia, Sra. Olivera?

— Não, não sabia. — E, olhando para Daniel: — Você sabia disso?

Ele fez que sim com a cabeça.

— Por que você nunca me contou isso?

— Nós nunca conversamos detalhadamente a respeito de Sibylle, Mercedes — disse ele sem muita vontade. — Ela casou- se em 1973. Com um velho amigo meu. Eu é que os apresentei um ao outro.

— E como assim ela continua a se chamar Mannholz?

— Esse era seu nome como jovem médica. E com ele é que era conhecida. Não queria um nome duplo e conservou o seu. O marido dela, o Dr. Werner Farmer, é historiador de arte.

— Onde é que ele mora?

— Ora, aqui, é evidente, minha senhora. Junto com a doutora. Numa bela casa no parque. A senhora a viu, não é mesmo?

— Claro, essa casa eu vi — disse Mercedes. Ela voltou a fitar Daniel, longamente. Em seguida, deu um ligeiro sorriso e tomou o braço dele, enquanto continuavam a caminhar e o enfermeiro prosseguia sua narrativa...

Sibyile ponderou. Seu marido seguira para Paris por três dias, onde tinha o que fazer no Louvre.

— Sim, poderia ser hoje à noite — disse ela vacilante.

— Posso ir apanhá-la... digamos, às sete?

Já há muito que Sibylle não morava mais na torre. Havia alugado uma casa com Werner em Sievering.

— Muito obrigada, mas não se incomode! Eu tenho um carro.

— Então, muito bem. Posso reservar uma mesa, então, no restaurante de cima, digamos... para as sete e meia?

— Sete e meia, está bem. Como vou reconhecê-lo, Sr. Abad?

— Não se preocupe, doutora. Eu conheço a senhora.

— Mas como? De onde?

— Oh, de muitas fotografias. Também nos encontramos algumas vezes.

— Onde?

— Na clínica. Nas suas conferências no grande auditório.

— Realmente, eu não consigo me lembrar...

— A senhora não me viu, doutora. Mas eu a vi muito bem. Explicarei tudo na Torre do Danúbio.

A Torre do Danúbio em Viena foi erguida como símbolo da exposição internacional de jardins e posta em funcionamento em 1964. É a construção mais elevada da cidade, com 252 metros de altura. Dois elevadores de alta velocidade levam os visitantes até o andar central, a 175 metros de altura, em quarenta e cinco segundos. A torre dispõe de dois terraços para se apreciar a paisagem e de dois restaurantes giratórios climatizados, a 160 e 170 metros de altura. Ambos os restaurantes podem girar a uma velocidade de 26, 39 ou 52 minutos para completar uma volta.

Na noite de 18 de junho de 1976, a Dra. Sibylle Mannholz achava-se sentada diante de um homem baixinho, pequeno a ponto de chamar atenção, e com um semblante preocupado. Abad tinha um nariz e orelhas grandes demais para sua pequenina cabeça. Só com grande dificuldade se podiam distinguir seus olhos, escondidos atrás de óculos extremamente espessos. Sua testa era enrugada. Seus ralos cabelos estavam penteados rigidamente para trás. Abad trazia uma enorme pérola no nó de sua gravata. As mãos eram as de um pianista. Todo ele dava uma impressão franzina e frágil.

Durante toda a refeição, ele fizera amáveis observações sobre a aparência de Sibylle assim como sobre a capacidade profissional da médica, assegurando-lhe que muito apreciava os livros de arte dos quais seu marido era co-autor. Quando chegou a hora do café e do conhaque, ele se inclinou para diante, cruzou dedos e baixou o tom de sua voz. Lá fora, quase imperceptivelmente, deslizava o mar de luzes do centro da cidade.

— Então, doutora — disse o anàozinho Abad —, passemos logo ao assunto! A senhora já ouviu falar dos sanatórios Kingston?

— Não.

— É claro, eles não existem há tanto tempo e deles não se faz propaganda alguma. Um milionário americano, de nome Kingston, os construiu, do mesmo modo que outros milionários americanos edificaram redes de hotelaria por toda a Europa. São clínicas psiquiátricas e neurológicas, com todo o conforto imaginável e os mais modernos e dispendiosos equipamentos para os exames mais complicados. Apenas sumidades trabalham nessas clínicas e todo o quadro de pessoal é de primeiríssima ordem. Existe perto daqui um desses sanatórios, nas imediações do convento de Heiligenkreuz. A senhora com certeza conhece Heiligenkreuz? Pois é. Estou incumbido pela administração dos sanatórios Kingston e tenho a honra de lhe oferecer a direção da clínica de Heiligenkreuz.

Sibylle olhou fixamente para o anão. O mar de luzes ficara para trás pois o restaurante continuava a girar. O luar caía agora sobre os arrabaldes e iluminava os morros do Bosque de Viena.

— Por que motivo oferecem esse cargo a mim, Sr. Abad?

— Só se admite especialista de primeira categoria, eu já lhe disse. Seu trabalho foi acompanhado de perto e por longo tempo e chegou-se à conclusão de que não existe em Viena ninguém melhor do que a senhora para assumir essa posição.

— Isso é muito amável, Sr. Abad. Mas... — Ela interrompeu sua frase.

— Mas?

— Mas também muito fora do comum.

— A senhora deseja dizer: porque a senhora é mulher? Mas, por favor, minha cara doutora! A senhora trabalha no Hospital Geral com a mesma desenvoltura e independência que seus colegas homens!

— Eu não queria dizer isso.

— O quê, então?

Foi ela quem, por sua vez, inclinou-se para diante.

— Sr. Abad, o senhor é estrangeiro, não é mesmo? Quero dizer: o senhor fala um alemão fantástico, mas nota-se um leve sotaque. Um sotaque eslavo...

— Meus pais eram russos, doutora.

— Está vendo!

— Estou vendo o quê, minha cara doutora?

— O senhor é russo, segundo diz, e faz-me esse oferecimento em nome de uma organização norte-americana?

— Assim é — disse Abad e sorriu tristemente. — E, mesmo assim, não existe aí nenhuma contradição. Esses sanatórios Kingston, aliás, são...

 

— Todos os brasões de pedra e altares que os senhores estão vendo foram feitos por grandes artistas como Rottmayr e Altomonte — disse o enfermeiro Josef rapidamente e em voz alta. Ele havia interrompido sua narrativa ante a aproximação de um homem e de uma mulher pela nave central, O homem trazia em suas mãos um guia que aparentemente continha uma descrição da igreja e de todo o convento, pois ele lia em voz alta para sua acompanhante. Ficaram parados e observavam um quadro do altar. Mercedes, Daniel e o enfermeiro Josef seguiram adiante. Quando já se tinham distanciado o bastante, Josef disse:

— Pois bem, então esse Abad explicou abertamente à doutora-chefe que espécie de instituições eram esses sanatórios Kingston...

— Médicos e pessoal, é claro, não têm a menor idéia a respeito. Isso eu posso lhe dizer com toda a franqueza, minha prezada doutora — disse o homenzinho antes de tomar mais um gole de conhaque — pois bem sei o quanto a senhora gosta de seu irmão Eugen.

— E que tem meu irmão Eugen a ver com isso?

— Oh, muito, minha cara doutora. Ele será o elemento realmente decisivo, o motivo pelo qual a senhora irá aceitar nosso oferecimento.

— Não aceitarei nunca sua oferta, Sr. Abad — disse Sibylle. — Está me ouvindo? Nunca! Estou horrorizada com aquilo que o senhor me contou sobre o objetivo e a forma de operar desses sanatórios. Nunca em minha vida quero ter algo a ver com instituições dessa natureza. Se eu tivesse imaginado...

— Seu amado irmão Eugen trabalha há nove anos para o Serviço de Informações da República Federal da Alemanha — interrompeu Abad com voz melancólica. — Esse serviço tem sua central em Pullach, perto de Munique. Há quase três anos, seu irmão foi infiltrado na União Soviética. Foi introduzido de forma extremamente hábil. Ele operava em Moscou na qualidade de correspondente de um grande jornal da Alemanha ocidental — a senhora sabe qual é. Isto está correto, não é mesmo?

Sibyile concordou com a cabeça. Através de sua janela, via-se agora o Danúbio, brilhando prateado à luz da lua. — A senhora e ele estiveram em contato regular todo esse tempo. Durante todos esses anos, a senhora sentiu medo por seu irmão. Pois bem, agora ele também está com medo.

— Que quer dizer com isso?

— Isso quer dizer que o serviço de segurança soviético conseguiu, depois de tanto tempo — meus parabéns, seu irmão tem uma excelente cabeça — depois de tanto tempo, dizia eu, conseguiu reunir material que incrimina Eugen Mannholz. Ele foi desmascarado como agente alemão ocidental e processado- O julgamento teve lugar há quatro semanas. Seu irmão foi considerado culpado e condenado à morte.

— O claustro que agora iremos visitar — disse Josel Aigner, novamente interrompido por um grupo de turistas alemães que passava com uma cicerone — foi construído entre 1220 e 1240. Esqueci-me de mencionar que o convento recebeu, no século XVII, acréscimos barrocos de autoria de Angelo Canavale, tais como o belo pátio conventual e suas arcadas... — Os turistas haviam seguido adiante. — A doutora, coitada, ficou realmente transtornada. Ela de fato ama muitíssimo seu irmão e vivia com medo o tempo todo. Já durante nosso tempo de escola, ele era um garoto selvagem. Nas competições de escalada no Rax, ele ousava arriscar-se em precipícios onde nós outros, só de olhar, já nos sentíamos mal. A mesma coisa ocorria na ginástica, na natação e ao se andar de moto. Sempre nos dizíamos que Eugen não tinha nervos. O que o fascinava era a aventura, o perigo, já na escola... — Josef suspirou. — Assim, ele mais tarde foi para o Serviço de Informações e para a Rússia. Lá, eles acabaram por desmascará-lo e o condenaram à morte. — Para que ela acreditasse em suas palavras, Abad mostrou-lhe uma série de fotografias, sobre a mesa do restaurante ...

Sibylle foi pegando uma foto atrás da outra. Seu rosto se havia cristalizado numa máscara de cera. Mostravam Eugen Mannholz, de quarenta e quatro anos de idade, em roupa de presidiário em um pátio de prisão, e em roupas civis, de camisa aberta e sem gravata, de pé diante dos juizes de um tribunal militar. A janela do restaurante havia chegado aos muitos edifícios da parte chamada Cidade do Danúbio, no cais à esquerda do rio, com suas janelas iluminadas.

— Tenho realmente muita pena — disse Abad brincando com seu nó de gravata adornado pela pérola. — Bem sei o quanto a senhora gosta de seu irmão, mas ele escolheu sua profissão de espião por livre e espontânea vontade. Por anos a fio provocou grandes danos à União Soviética, de tal modo que nada mais restou ao tribunal militar senão condená-lo à pena de morte por enforcamento. Existe, por sinal, uma saída...

Sibylle ergueu a cabeça.

— O que foi que o senhor disse?

Em vez de responder, Abad estendeu-lhe um envelope por cima da mesa. Sibylle tirou um papel dobrado de seu interior. Ao desdobrar a carta, teve de colocá-la sobre a toalha, tamanho era o tremor de suas mãos. A letra de seu irmão! Sem a menor dúvida. Sibylle a reconheceu com absoluta segurança. E leu:

Querida Sibylle,

Moscou, 20 de maio de 1976

Quando você ler estas palavras, já estará sabendo o que aconteceu. Eu sempre soube perfeitamente o que estava fazendo e o que sucederia na hipótese de me faltar sorte. Considerei-me esperto demais. Nunca tive medo de morrer. Agora que fui condenado, mal consigo respirar, nem tampouco comer, muito menos dormir. Não quero morrer!

Sibylle gemia. A vista de sua janela mostrava uma área deserta inundada.

Há uma hora, dois oficiais de alta patente estiveram em minha cela. Tenho lápis e papel e recebi autorização para escrever-lhe. Só existe uma única condição para que o Superior Tribunal Militar comute a pena capital em prisão por vinte e cinco anos: você aceitar a oferta que o portador da presente carta lhe fizer. Sei o que estou cometendo contra você, mas mesmo assim lhe peço: aceite o oferecimento a fim de que eu possa viver!

Caso você concorde e estiverem satisfeitos com seu trabalho, vou também receber a permissão para lhe escrever uma carta a cada oito semanas. Além disso, acenaram-me com facilidades carcerárias. Sim, permanece a possibilidade, caso você apresente trabalho extraordinário, de que venha a ser reduzido o meu período de encarceramento. Por favor, faça aquilo que o homem que lhe entregar a carta exige de você! A data de meu enforcamento já está fixada e não pode ser adiada. Ajude-me! Abraços de seu irmão Eugen.

Ao lado do nome, Sibylle distinguiu, meio cega pelas lágrimas, um carimbo redondo com letras em cirílico.

— O escrito do carimbo diz: Posto de censura militar 21 — esclareceu o diminuto Sr. Abad, de rosto tão preocupado. — Seque seus olhos! Não devemos chamar a atenção de ninguém por aqui! Controle-se! Vamos! — Disse ele com súbita aspereza. Sibylle.pegou um lenço e fez o que ele exigira.

— Os senhores estão satisfeitos? Está tudo em ordem?

Um amável maître havia surgido de repente junto à mesa, todo sorridente.

— Foi excelente — disse Abad. — Muito obrigado!

— Nós é que temos de agradecer, meu senhor — respondeu o maître. E fez uma reverência, seguindo sorridente para outra mesa. Em outro setor do restaurante redondo algumas mulheres e homens começaram a cantar:

“Um vinho vai ser, e não mais iremos viver ...”

— Então? — perguntou Abad.

Sibylle queria responder. Mas não conseguia tirar um som da garganta.

— Doutora! — disse Abad.

Ela não respondeu. Não conseguia, por mais que se esforçasse.

— Hoje é dia 18 — disse Abad. — Dentro de sete dias...

— Pare com isso! — disse de repente Sibylle, muito alto.

— Baixo! — ordenou o Sr. Abad. — Bem baixo!

“... lindas meninas vai ter, e não mais iremos viver”, cantava o alegre grupo. Através da grande janela podiam-se ver agora, à pálida luminosidade do luar, as velhas árvores, os brejos, os bancos de areia e os pequenos jardins das colônias da ilha de Lobau. Ali, poucas luzes piscavam, perdidas.

— Portanto, trata-se de uma chantagem — disse Sibylle. A partir de agora ela e Abad quase sussurravam.

— Faça-me o favor de não repetir isso! — disse Abad. — Nunca mais diga isso! Isso não é uma chantagem. Trata-se de uma bondosa disposição dos funcionários soviéticos de indultar seu irmão, num ato humanitário totalmente fora de propósito. Caso a senhora venha igualmente a demonstrar boa vontade.

— Como posso saber se Eugen, mesmo assim, não será enforcado, a despeito de minha concordância? Quem me pode garantir isso?

— Isto lhe garanto eu em nome e por incumbência do Superior Tribunal Militar da União Soviética. Se a senhora aceitar esse posto, seu irmão será imediatamente autorizado a lhe escrever uma carta. E outras virão em seguida. Esta é uma garantia suplementar! Mais garantias ninguém pode exigir.

— Quando é que eu terei de começar em Heiligenkreuz? — indagou Sibylle. Ela antes havia esvaziado seu copo com um grande gole. — Meu prazo de dispensa para me afastar do Hospita! Geral é de seis meses.

— Eles vão deixá-la sair imediatamente, caso a senhora queira mudar de emprego — disse Abad. — Assim se procede generosamente em qualquer lugar. A senhora precisa começar o mais rápido possível.

— E me comprometer por vinte e cinco anos? Por vinte e cinco anos?

— Em princípio, sim — disse o pequenino Abad. — Tudo vai depender de vocês dois. Conforme escreve seu irmão: caso estejam extremamente satisfeitos com vocês dois, o tempo de encarceramento poderá ser reduzido. Encurtado bastante, de acordo com as circunstâncias. É mais do que óbvio que a senhora não poderá jamais falar com quem quer que seja (sobretudo nunca com seu marido) a respeito dessa nossa conversa e dos verdadeiros motivos que a levam a trocar o Hospital Geral pelo sanatório de Heiligenkreuz. Ele é um cientista. Seu matrimônio é exemplar, calmo, alheio a um maior convívio social. Seu marido pode trabalhar em qualquer lugar. Heiligenkreuz fica a apenas trinta quilômetros de Viena. Ser-lhe-á posta à disposição uma bonita mansão no parque, junto ao sanatório. Nós nos compro metemos a cuidar para que sua vida privada seja respeitada. Isso quer dizer que em seu lar não haverá aparelhos de escuta de qualquer espécie. A senhora poderá naturalmente convidar seus amigos. Por vezes, nós solicitaremos que convide um ou dois pacientes. Nessas ocasiões, por sinal, o Dr. Herdegen, cujas funções já lhe expliquei, deverá estar presente, pois esses convites a pacientes devem ser considerados como parte de seu tra balho. Pudemos comprovar que eles são necessários, porque...

— ... e nessa chamada Casa da Fonte aqui — gótico antigo — podem-se ver as mais antigas imagens dos Babenberg (família francônia, cujo apogeu se verificou nos séculos XII e XIII. Extinguiu-se em 1246. Seu membro mais conhecido, Leopoldo V, foi quem entregou Ricardo Coração de Leão ao Imperador Henrique VI – N. do T) em toda a Áustria. — Novamente o enfermeiro Josef Aigner fora forçado a interromper o que contava baixinho, pois um sacerdote lhes vinha ao encontro. — Grüss Gott, reverendo!

O religioso acenou cordialmente com a cabeça.

Josef prosseguiu a visita enquanto continuava a narrar a conversa de Sibyile com o homem chamado Abad no restaurante superior da Torre do Danúbio, na noite de 18 de junho de 1976.

— Porque num ambiente caseiro é mais fácil obter dos pacientes informações de caráter privado — tinha dito Abad à doutora naquela noite.

— Um momento! — interrompeu Daniel. — Esse Abad havia proibido à doutora contar a qualquer pessoa os motivos verdadeiros da troca entre Viena e o sanatório Kingston, inclusive a seu próprio marido. Como é então que o senhor sabe de tudo isso?

— Eu sou o único a quem a doutora-chefe confiou o segredo. Em mim ela pode confiar cem por cento: Pois eu fui à escola com Eugen...

— Sim, isso o senhor já nos contou — disse Daniel. — Ela tem então mais confiança no senhor do que em seu marido?

— Naturalmente não, Sr. Ross.

— Por que então ela, mesmo assim, não contou tudo para o marido?

— Mas isso é realmente fácil de conceber, Sr. Ross. Por amor! Ela não quer que ele sofra com a história. O senhor não entende isso?

— Oh, sim — disse Mercedes —, eu posso entender muito bem. Mas, por outro lado, ela lhe deu a incumbência de nos informar, a nós. A mim ela sequer conhece. E o Sr. Ross ela não vê há doze anos.

— A doutora-chefe — disse Josef muito sério — está muito desesperada com o fato de que o Sr. Ross e a senhora deram o azar de cair aqui, e ainda por cima envolvidos numa história do mais alto interesse. A doutora-chefe me disse que os senhores precisam saber de toda a verdade. Rapidamente. Para sua proteção. Ela própria não pode contar-lhes. Nunca irão deixá-la sozinha com os senhores. Falar no sanatório é impossível. Lá, serão sempre escutados. Na casa dela, o Dr. Herdegen está sempre presente. Ela já pensou em gravar um cassete, mas isso teria sido arriscado demais. Pois ela precisa, em tudo o que fizer, pensar em Eugen! Não pode fazer o irmão correr qualquer risco, pô-lo em perigo. Precisa ficar cada dia mais digna de confiança, a fim de que a pena seja reduzida, caso continuem se comportando dessa maneira formidável. — E Josef completou: — Ela deve ter uma confiança realmente ilimitada nos senhores, já que ela me disse que eu lhes contasse tudo. Ela deve estar inteiramente segura de que os senhores jamais a irão delatar.

— Disso ela pode estar segura — disse Mercedes. — Ela é de fato uma mulher fabulosa, Danny.

— Sim, é verdade — disse ele. Mercedes apertou o seu braço no dele. Eles continuavam de pé diante das figuras de pedra dos Babenberg. — E Eugen está bem?

— Sim, ele está bem — disse Josef. — Já há cinco anos lhe é permitido escrever uma vez a cada quatro semanas. O Dr. Herdegen recebe as cartas e as passa à doutora-chefe, abertas. Além do mais, já há tempos Eugen pode ler nas horas livres, tem comida melhor e todas as vantagens possíveis, segundo ele escreve. A doutora sempre me informa quando chega uma nova carta. Os senhores a compreendem, certo? Ela também me incumbiu disso, aliás.

— De quê? — perguntou Daniel.

— Perguntar-lhes se podem entender por que ela aceitou a direção do sanatório e faz tudo o que lhe é exigido. Se realmente conseguem compreender e se julgam isso correto.

— Eu me teria comportado do mesmo modo — esclareceu Mercedes. — Você também, Danny?

— Naturalmente. — disse ele. — Por Deus, tratava-se da vida de seu próprio irmão. É óbvio que ela não poderia ter agido de outra maneira. Diga-lhe isso, por favor!

— Farei isso, sim! Imediatamente. Muitas vezes ela me pergunta isso — depois de tanto tempo. É tão difícil para ela. Somente comigo é que pode falar. Qualquer pessoa precisa disso: uma outra, pelo menos uma, com a qual possa falar tudo... Bem, então vamos continuar! — disse ainda Josef. — Desejam agora visitar a sala do capítulo ou ir diretamente à pinacoteca?

— Fica para outra vez — pediu Daniel. — Vamos parar por aqui, hoje! Estou cansado.

Ele dormiu profundamente, sem nenhum sonho.

Ouviu quando alguém o chamou pelo nome e acordou. Primeiro, sentiu-se embaraçado, não sabia onde se encontrava. Através de brumas, distinguiu três pessoas junto de sua cama.

— Danny! — Era a voz de Sibylle. Desfeitas as névoas, lá estava ela em seu avental de médica, sorridente.

— Alô — disse ele, também com um sorriso. E percebeu que a luz estava acesa. — Que horas são?

— Já passa das oito. Você dormiu toda a tarde. Como é que está se sentindo?

— Bem. — Ele sentou-se na cama. — E o que temos aqui? Visita da noite?

— Não, ela já passou há muito tempo. Esta é uma visita bastante especial. Alguém que há muito deseja ver você. Eu o trouxe comigo.

Agora, finalmente, ele estava desperto. Junto a Sibylle se achava Mercedes e ao lado dela Werner Farmer.

— Werner, meu velho! — Daniel saltou da cama. De pijama, abraçou seu velho amigo. Deram-se palmadas nos ombros, e, depois, se miraram.

Ele ficou velho, pensou Daniel. Parece sobrecarregado de trabalho. Ele ficou velho, pensou Werner. Cabelo todo branco. Doze anos é muito tempo. E só foram doze anos, pensou Daniel. Ele mudou tanto. Estaria doente? Não, sempre foi um homem que trabalhou acima de suas forças. Como eu. É provável que ele pense o mesmo de mim. Como esta vida é curta. Como passa depressa.

— Deixe-me olhar para você — disse Daniel. — Você está com a cara formidável!

— Você é que está — disse Werner. — Sibylle botou você de novo em forma.

— Viva a Sibylle, a boa Sibylle — tomou Daniel.

— A ótima Sibylle — observou Werner.

— Agora já chega de bobagem! — Sibylle havia ficado vermelha. Mercedes a abraçou. — Obrigada — disse ela comovida — obrigada!

— Cada um no seu ramo — murmurou Sibylle. — Faz-se o que se pode.

— Eu gostaria... Desculpe-me... Posso chamá-la de Sibylle? — disse Mercedes.

— Mas é evidente, Mercedes! — Ela riu. — A família se reúne novamente. E tem mais um membro. Agora nós somos quatro.

— Precisa então cozinhar Tafelspitz para mais um — disse Werner. E todos riram.

Estamos rindo, pensou Daniel, mas o único cujo riso não soa forçado é Werner. Ele não sabe de nada. Ah, como é maravilhoso não suspeitar de nada, não saber de nada. Nada do que eu e Mercedes sabemos, nada do que Sibylle sabe, e mandou Josef nos contar. Simplesmente nada.

— E mais espinafre, mais batatas coradas, mais molho de vinagre e cebolinha — completou Daniel, passando a mão pelos cabelos da médica.

— O que é Tafelspitz? — perguntou Mercedes. E isso foi motivo para mais riso.

— Não dá para explicar — disse Daniel. — Tem de experimentar. Cozinheira é o que ela deveria ter sido, e não médica.

E como poderiam então fazer chantagem com ela?, pensou ele.

— Podem deixar, vai dar para todos — disse Sibylle. — Qualquer dia desses, vou cozinhar. Pois Daniel já está em forma de novo e vai ter alta em dois ou três dias. Você sabe, Mercedes, que esses dois sujeitos vinham sem a menor vergonha a minha casa, quando Daniel ainda trabalhava em Viena, e me obrigavam, a mim, pobre e frágil mulher, a viver cozinhando.

— Meu Deus, como a gente comia — disse Werner pensativo. — Não é mesmo, Danny?

— Como animais — disse Daniel.

— Uns porcos — completou Werner.

— Insolentes e nojentos — voltou Daniel. — Pobre, pobre Sibylle! E agora vai começar tudo de novo, hurra!

— Muito bem, hurra! — disse Herdegen, que se achava ao lado de Wayne Hyde e atrás do técnico chamado Schorsch, dentro da sala sem janelas. Eles acompanhavam toda a conversa pelo alto-falante. — Hurra, mais uma vez — disse Herdegen. — Vai até mesmo ter de cozinhar para mais gente, a médica-chefe. O que Morley sugeriu vai acontecer agora. Comigo, Damiani não abriu a boca. Pode ser que agora ele fale.

— Já não é sem tempo — disse Hyde.

O advogado Roger Morley havia telefonado nove dias antes, a 25 de fevereiro, por volta do entardecer.

— Alô, doutor. Hyde está com o senhor? Ele está ouvindo também?

— Sim, Mr. Morley.

Ambos estavam instalados no gabinete de Herdegen. Wayne Hyde segurava o segundo fone junto ao ouvido...

— Eu disse anteontem a Hyde, quando ele ainda se encontrava em Frankfurt, que vocês, no mais breve prazo possível, ficariam sabendo como iria começar a caçada. Pois bem: o senhor tem aí, no sanatório, esse tal de Damiani, que foi especialista em Direito Internacional do Ministério do Exterior italiano. Infelizmente o homem foi uma decepção, não é mesmo, doutor?

— Ë um doido varrido. Esquizofrenia profunda. Sempre em discussão com o Papa Alexandre VI, Isabel de Castela e Fernão de Aragão a respeito do Tratado de Tordesilhas, pelo qual Espanha e Portugal dividiram entre si seus territórios ultramarinos. Um portador levou para o senhor dois cassetes repletos de brigas de Damiani com as vozes que tanto o atormentam. Desde que ele chegou aqui tudo gira em tomo desse maldito tratado de 7 de junho de 1494. Eu acredito que está previsto remover-se o paciente para uma clínica em Roma. Nós precisamos do quarto. Para nós, Damiani não tem valor algum.

— Isso é o que o senhor pensa! — a voz de Morley aumentou.

— Eu não entendo... — começou Herdegen, logo interrompido por Morley.

— Já vai ficar entendendo. Meus conhecidos comprovaram: desde o começo de 1942 até meados de 1944, Damiani viveu em Berlim.

— Damiani em Berlim? — repetiu Herdegen perplexo. — Mas seu currículo não menciona isso, e ele jamais disse uma só palavra a respeito. Eu mesmo conversei com ele semanas a fio e nem uma só vez, nem mesmo de leve, o malandro tocou nesse assunto de Berlim durante a guerra. Tem certeza de que seus conhecidos não estão enganados?

— Certamente que não. Obtiveram essa informação diretamente do Governo italiano.

— Mas por que Damiani não fala a respeito? O que é isso? Um bloqueio? Uma repressão?

— O problema é seu. Eu só lhe dou fatos. Em Berlim, Damiani trabalhava na Embaixada da Itália. Conhecia naturalmente seus colegas alemães. Era muito benquisto. Para forjarem o maldito filme, os nazistas precisaram sem dúvida de um advogado de Direito Internacional, a fim de que o protocolo secreto soasse absolutamente verdadeiro — inclusive para especialistas. Um colega alemão de Damiani deve ter ficado encarregado da coisa. Está começando a entender?

— O senhor quer dizer que se nós perguntarmos a Damiani a propósito disso — é claro que não diretamente, mas de modo sutil e alusivo — talvez se consiga romper essa barreira e ele fale de sua vida em Berlim?

— O senhor precisa tentar tudo, doutor, está me ouvindo? Tudo!

— Então os seus amigos presumem que Damiani deve ter conhecido o perito que trabalhou para os nazistas, porque, no fim das contas, o Tratado de Tordesilhas e o protocolo secreto tratam da mesma coisa?

— Menino esperto — disse Morley. — Sim, é isso o que presumem os meus conhecidos. Melhor ainda: isso é o que eles esperam. Tudo vai a favor dessa tese. Esses especialistas sempre formam um grupinho fechado. Acham-se mais inteligentes que todos os outros. Precisam sempre ficar provando um para o outro que sujeitos formidáveis eles são. Em qualquer profissão é assim. Por intermédio de Damiani poderíamos descobrir quem lá em Berlim ficou incumbido do protocolo secreto. Quem eventualmente o redigiu ou simplesmente o revisou, caso já existisse uma coisa assim.

— Mas se, a despeito de tudo, ele não nos contar nada? Até agora ele nada disse a respeito. E se ele quiser, de qualquer jeito, continuar a reprimir o tema?

— O senhor dispõe de Ross, não é mesmo? Então é ele que tem de ser aproximado de Damiani. Ele e essa tal de Olivera. Antes disso, o senhor conta para Damiani a história de que o pai de Ross também foi um internacionalista, por exemplo. E que Ross não tem a menor idéia do que fazia o pai em Berlim e do que foi feito dele. Que tudo isso até hoje ainda deixa Ross maluco, e assim por diante. O senhor é que é o psiquiatra — ou eu? Caso Damiani tenha conhecido o perito do protocolo, então ele deve haver conhecido também o Ross sênior, pelo menos de ouvir falar. Uma situação inteiramente nova para Damiani, não é verdade? É perfeitamente possível que ele conte ao jovem Ross tudo aquilo que não quer contar ao senhor. É claro que essa conversa não pode ter lugar na clínica.

— Evidente que não. Deve ter caráter particular e bem descontraído, como sempre arranjamos em casos assim — disse Herdegen.

— Exatamente. Tão logo Ross estiver curado de novo — dissera Morley na noite de 25 de fevereiro, nove dias atrás.

No quarto de Daniel, Sibyile e Werner se despediam.

— Assistam hoje à noite à televisão! — disse Werner. — Sibylle e eu também o faremos. Por Deus, você agora deve ter dormido bastante, Danny. Às 22h. Canal 1. Vocês não podem de jeito nenhum perder esse filme.

— Como é que se chama?

— Os melhores anos de nossa vida. Direção de Wiilam Wyler. Os três soldados que, vindos da guerra, voltam para casa. Você está lembrado, Danny? Wyler rodou esse filme em 1946. Sete Oscars! Sibylle, você e eu, nós vimos o filme um quarto de século mais tarde no cinema Beilaria, aquele cineminha que sempre exibe filmes antigos.

— Cinema Beilaria — disse Daniel com olhar perdido. — Cinema Beilaria. É claro que eu me lembro! Filme maravilhoso. De um tempo maravilhoso também. Fome, frio, escombros, ruínas por toda a Europa, e todos acreditavam que estava começando uma época nova e melhor, um novo mundo melhor. Eu era ainda um menino pequeno naquele tempo. Mas minha mãe sempre me dizia isso, e eu ficava todo contente por causa desse mundo novo, bom. As pessoas eram pobres e cheias de esperança.

— Quando nós chegamos a ver o filme, toda essa esperança havia sumido — disse Werner.

— Havia sumido há muito tempo — disse Daniel. Seu olhar encontrou-se com o de Mercedes.

— Por isso é que nós queremos também assistir a esse filme hoje, de qualquer maneira — disse Werner. — Vamos ficar muito tristes de novo, como daquela vez no cinema Beilaria. Ficar com raiva.

— E recordando todas as pessoas que tiveram tanta esperança — acrescentou Sibyile.

— Você estava muito longe, na Argentina. — Agora, Werner se dirigia a Mercedes. — Nem sequer pode fazer idéia de como as coisas estavam aqui.

— É verdade — disse ela. — Nem posso imaginar.

Sibylle e Werner deixaram o quarto. Daniel vestiu seu roupão, mergulhou os pés nos chinelos e dirigiu-se ao banheiro para escovar os dentes. Quando já bochechava com água, Mercedes veio para junto dele.

— Você está com fome? Basta tocar a campainha — disse a enfermeira da noite. — Sua comida é guardada aquecida.

— Não, não estou com fome — disse Daniel. Eles estavam de pé, bem juntos e se olhavam firmemente nos olhos.

— Mas você? — perguntou Daniel.

— Eu também estou sem fome, Danny — disse ela. Os olhos dela não se afastavam dos dele. Ficaram em silêncio. De repente, Sibylle voltou. Não a tinham ouvido bater. Imediatamente, Daniel abriu a torneira. O jato espumante provocava muito barulho. Sibylle concordou com a cabeça.

— Já mandei Werner de volta para casa — disse ela a meia-voz enquanto entregava a Mercedes um grande envelope. — Aqui, isto é para vocês! Ela saiu, quase correndo. A porta do quarto fechou-se atrás dela.

Ambos olharam para o que Sibyile havia escrito sobre o envelope, de próprio punho:

TODA A FELICIDADE DO MUNDO PARA VOCÊS DOIS!

SIBYLLE

Mercedes abriu o envelope. Um velho disco de 78 rotações escorregou para fora de uma velha capa amarelecida. O disco estava arranhado e as etiquetas faltavam.

— Isto é... — Mercedes calou-se. Olhou para Daniel, desconcertada.

— ... o disco de que lhe falei — disse Daniel. Eles falavam muito baixo, um bem juntinho do outro. — A canção que tivemos, Siby e eu: “Se eu pudesse desejar alguma coisa.”

— Mas como...

A água corria com ruído.

— Eu contei-lhe que nós dois já a havíamos escutado duas vezes. Então ela nos deu o disco de presente. Passa agora a ser nossa canção.

— Você tem certeza, Danny? — perguntou Mercedes.

— Sim, Mercedes. Agora tenho toda a certeza.

— Você deve estar bem seguro — insistiu ela. — Você não pode se iludir. E a mim também não. Se não tiver certeza, deve dizer-me agora mesmo. Eu ficaria magoada. Mas eu preciso saber. Agora.

— Você não acredita em mim?

— Não sei, Danny... Não sei... Sibylle se comporta de um jeito tão fabuloso.. . Eu nunca poderia ficar zangada com você se você não conseguisse gostar de uma outra pessoa como gosta dela.

— Mercedes.

— Sim?

— Fiquei inteiramente perturbado quando vi Sibylle novamente, isso você sabe. E as recordações eram muito fortes. Mas isso já passou. Você é quem se comportou de um modo fabuloso estes dias todos. Você é tão corajosa.

— De jeito nenhum. Gostaria de ser.

Ele pegou o disco das mãos dela e o colocou sobre o tamborete. Em seguida a beijou e seus corpos se colaram e se abraçaram tão violentamente como se um fosse o último apoio do outro sobre a Terra. O último.

Aproximadamente nesse mesmo instante, um homem alto e magro, de botas, calças de veludo cotelê e anoraque movia-se como um felino por entre as árvores velhas e altas e os espessos arbustos do bosque municipal de Coblença, inteiramente recoberto por espessa camada de neve. No ponto denominado Rittersturz, Queda-do-cavalo, nas proximidades da Rua Laubach e da margem do Reno, havia um estacionamento, também encoberto de neve. O homem de anoraque tinha um rosto de ossos salientes, lábios estreitos e olhos extremamente frios. Esgueirava-se já há meia hora através da mata, dando a volta ao Rittersturz. Precisava estar seguro de que aqui não seria esperado pela polícia. Como mercenário de muitas guerras, ele já havia freqüentemente vivido situações como essa, onde sua segurança e sua vida estavam em jogo. Finalmente, ficou satisfeito. Aqui não o aguardava polícia alguma. Kramer havia mantido a palavra e tinha vindo sozinho. Lá estava seu negro Vollkswagen Golf, as lanternas acesas conforme haviam combinado por telefone. Agora posso arriscar, pensou o homem dos olhos frios. Deu algumas largas passadas até o carro e abriu a porta de um só golpe. Deixou-se cair no assento ao lado do motorista e bateu a porta atrás de si. Herbert Kramer, o homem de uns trinta anos que se achava atrás do volante, estremeceu assustado. Estava extremamente pálido. Na leitosa penumbra seu rosto redondo lembrava uma lua em miniatura. As espessas lentes de seus óculos faiscavam.

— Oi — disse o homem que chegara.

Kramer não disse nada. Ele tremia, e não era de frio.

— Trouxe a coisa? — perguntou o homem magro.

— Claro — Kramer pigarreou, tenso.

— Onde está?

— No banco de trás.

O homem magro curvou-se para trás e ergueu o objeto que lembrava um grande livro de contabilidade. Pegou uma potente lanterna de bolso, deitou o livro sobre os joelhos e começou a folheá-lo. As páginas estavam recobertas com uma escrita uniforme. Ele encontrou o que buscava. Pensativo, leu e releu várias vezes o mesmo lugar.

— Bom — disse então. — Tudo bem, Sr. Kramer.

— Onde está Lotti? — perguntou o homem chamado Kramer. Suas mãos batiam contra o volante. — Pelo amor de Deus, onde está Lotti? O senhor me disse que, quando eu trouxesse o volume, iria tê-la de volta.

O outro desceu o vidro do seu lado, acendeu a luz forte da lanterna e fez com ela três movimentos circulares. Pouco tempo depois, completamente às escuras, aproximou-se lentamente pelo caminho um grande Mercedes. Entrado no estacionamento, parou à mesma altura do Golf, mas a cerca de uns oito metros de distância, O homem que dirigia o Mercedes acendeu a luz interna do carro, virou-se para trás e disse alguma coisa. Logo em seguida, surgiu junto à janela esquerda traseira do Mercedes uma menina pequena, com um capotinho de peles e um capuzinho vermelho. Tinha imensos olhos escuros e olhou fixamente para o Golf.

— Graças a Deus! — disse Kramer. — Senti um medo tão terrível de que ela estivesse morta.

— E estaria morta se o senhor tivesse avisado a policia — disse o homem magro. — Ou se não tivesse trazido isto. — Ele bateu sobre o grande livro.

— Buzine curto!

Kramer o fez.

Soou igualmente um curto toque da buzina do Mercedes. Em seguida, o homem ao volante, que parecia um touro baixote, saltou e abriu a porta traseira do lado esquerdo. Ele tirou a menina do carro e disse: — Ande

A pequena menina caminhou aos tropeções através da alta neve, em direção ao Golf. Trazia às costas uma mochila escolar. Caía, se erguia, voltava a caminhar. O homem dos olhos frios saltou.

— Obrigado — disse Kramer sufocado. — Obrigado por ter mantido a palavra.

— Sempre mantenho a palavra — respondeu o outro. Levava o grande livro debaixo do braço esquerdo. A menina passou pulando por ele, entrou no carro e abraçou Kramer.

— Paizinho — exclamou ela. — Paizinho!

— Sim, Lotti, meu anjo. — Ele apertou a criança contra si.

— Foi horrível, paizinho... horrível mesmo... Senti tanto medo. — A menina começou a soluçar.

O pai passou-lhe desajeitadamente a mão pelos cabelos pretos. O capuzinho vermelho havia caído.

— Não chore, Lotti! — disse ele. — Não chore! Por favor, não chore! Agora está tudo bem. — Ele repetia sempre as mesmas palavras. Finalmente, elevou os olhos para o homem magro. — Agora está tudo acabado? — perguntou. — Sim — respondeu o magro — agora está tudo acabado. — E subitamente estava com uma pistola na mão direita. Com a rapidez de um raio aproximou a grande arma da têmpora direita de Kramer e pressionou o gatilho. A bala atravessou o crânio, arrancando na saída metade do rosto, quebrando ainda o vidro da porta esquerda. Os óculos de Kramer haviam voado. O sangue espirrava em jorros de sua cabeça.

— Paizinho! — gritou Lotti desesperada. Agarrou o braço direito do pai. O morto caiu sobre a criança que logo ficou coberta de sangue. Lotti urrava. Tentava livrar-se. O sangue corria em torrentes sobre ela.

O homem magro correu para o Mercedes e saltou para junto do motorista baixinho que já havia ligado o motor. O carro descreveu um círculo doido em sua arrancada pelo estacionamento deserto e coberto de neve e deslizou pelo caminho em direção à Rua Laubach. Em pouco tempo, já não se ouvia o barulho do motor. Lotti se havia libertado da carga do cadáver do pai. Ela cambaleou para fora do Golf e pela neve adentro. Caiu novamente, ergueu-se e começou a gritar de pavor. Gritava sem parar Eram gritos incompreensíveis. Gritava coberta de sangue, e também o Golf estava cheio de sangue, do sangue que continuava a jorrar daquilo que havia sido a cabeça de seu pai.

Na manhã seguinte, às 10h do dia 6 de março de 1984, sempre em Cohlença, dois carros seguiam ao longo do Cais de Peter-Altmeier, à margem do Mosela, em direção ao Deutsches Eck, lugar onde as sujas águas desse rio encontram as águas ainda mais sujas do Reno. Os carros passavam pela nova ponte sobre o Mosela e viraram antes da ponte da estrada de ferro que atravessa o rio junto ao porto de baixo. Dirigiram-se à nova Praça das Exposições, onde pararam.

Do carro da frente saltaram Conrad Colledo, Chefe do Departamento de Política e Atualidades da emissora de televisão de Frankfurt e um jovem louro, de cerca de vinte e cinco anos. Do segundo veículo, uma grande Kombi, desembarcaram quatro homens que abriram o compartimento de carga de onde retiraram tripés, cabos, spots, microfones, câmeras, assim como algumas malas metálicas. Todos eles seguiram ao longo da Escola Clemens Brentano e da piscina pública em direção ao grande edifício do Centro de Documentação da República Federal da Alemanha, que se ergue atrás da Ponte Balduíno. No saguão de entrada ergueram-se dois homem de capote de inverno e puseram-se no caminho de Colledo e de seu acompanhante, que haviam seguido adiante dos demais.

— Que há? — perguntou Colledo. — Que desejam?

— Polícia criminal, Comissão de homicídios — disse o mais velho dos dois, cigarro no canto da boca. Exibiu o seu distintivo. — Sou o comissário Bevensen, e este é meu colega, comissário Mack. Os senhores são muito pontuais. — Nesse ínterim, já haviam chegado também ao frio saguão os quatro técnicos da emissora com seus equipamentos.

— Como souberam que viríamos aqui? — perguntou Colledo. Usava de novo uma gravata com elefantes e um terno azul sob medida, desta vez, porém, com uma camisa listrada azul e branca.

— Ocorreu um crime — disse o esguio comissário Bevensen. Seus cabelos cortados rente tinham o brilho da prata. — Mataram uma pessoa. Por favor, queiram nos acompanhar! Não podemos falar aqui. A direção do Instituto pôs uma sala à nossa disposição.

Pouco tempo depois todos estavam sentados nessa sala. Haviam tirado os capotes. Estava quente demais. Colledo abriu uma janela. Logo entrou o barulho da rua.

— O senhor — disse Bevensen para o jovem louro que havia chegado com Colledo — é Heinz Kling, não é?

— Sim — respondeu ele. — Como...

— Iniciamos as investigações já ontem à noite — disse Bevensen, acendendo um novo cigarro na guimba do velho. — Sabemos da sua existência por intermédio dos funcionários do arquivo, Sr. Kling. Há três dias que o senhor está trabalhando aqui. Herbert Kramer, um bibliotecário, ajudou o senhor. Está empregado como repórter na emissora de Frankfurt. Ontem pela manhã, parece que o senhor achou aquilo que procurava, pois, segundo os funcionários do salão de leitura declararam, o senhor estava muito excitado e deu um longo telefonema da cabine junto ao saguão de entrada.

— O Sr. Kling estava falando comigo. Aliás: meu nome é Colledo. O senhor tem razão, Sr. Comissário. Ele havia encontrado algo de muito importante — importante para nós. Graças à amável e paciente ajuda do Sr. Kramer. Pelo amor de Deus, não me diga que foi o Sr. Kramer quem foi assassinado!

— Pois foi ele mesmo! — disse Bevensen, que fumava com uma fúria que Colledo jamais tinha visto. — Infelizmente.

Um tripé caiu com estardalhaço da mesa. Um dos técnicos ergueu-o do chão e se desculpou. Depois disso, por algum tempo ninguém mais falou. O barulho da rua entrava em ondas pela sala.

— Terrível — disse Colledo afinal. — Como é que aconteceu? Onde?

— Com licença! — O comissário Mack, mais jovem e forte que Bevensen, ergueu rapidamente a mão. — Vamos pela ordem, por favor! Conforme ficamos sabendo, o Sr. Kling. veio aqui na esperança de encontrar algum documento referente ao serviço secreto do Ministro nazista Ribbentrop. Ele teve sorte. Kramer descobriu que esse centro possui os chamados “diários de trabalho” do referido serviço secreto, um volume por ano, a partir de 1935 (quando foi criado o serviço) até 1945, não é mesmo, Sr. Kling?

— Sim, é isso mesmo, Sr. Comissário.

— O senhor procurou por três dias seguidos. A razão de sua excitação foi, segundo nos informaram, um registro do “diário de trabalho” relativo ao ano de 1944.

O louro Kling hesitou.

Ao Invés dele, Colledo respondeu: — Isso está certo, Sr. Comissário — Bevensen apertava novamente uma guimba contra o cinzeiro depois de com ela haver acendido um novo cigarro. As unhas de seus dedos estavam amarelas de nicotina.

— O que dizia o registro, Sr. Kling?

O jovem rapaz olhou para Colledo pedindo socorro.

— Meus senhores, trata-se de uma produção absolutamente secreta, essa na qual estamos trabalhando — disse finalmente o próprio Colledo.

— Trata-se de um homicídio, Sr. Colledo — disse Mack olhando agressivamente o homem da televisão. Novamente se fez uma pausa.

— Isso ultrapassa a minha competência — disse Colledo finalmente. — Preciso falar com o superintendente.

— Faça isso, Sr. Colledo. Faça isso. Conforme já foi dito, há no saguão uma cabine telefônica. O senhor tem trocado suficiente? Trata-se de um telefonema interurbano, o senhor precisa de muitas moedas. Aqui, por favor! — Mack estendeu-lhe um envelope com moedas de cinco marcos.

— Obrigado! Vai demorar um bocado.

— Nós temos tempo — disse Bevensen.

Ficaram todos sentados sem se olhar. Ninguém falava e da rua subia o barulho do tráfego. Todos sentiam calor, mesmo com a janela aberta. Então o jovem câmera levantou-se e disse:

— Preciso urinar. — Quando voltou, disse logo: — Informaram-me no arquivo que esse Kramer era casado e tinha uma filha. Uma menina pequena.

— É isso mesmo — disse Mack com rosto impassível. O câmera ficou furioso.

— Não fique olhando assim para mim! Nós não liquidamos com ele!

— Se o Sr. Kling não tivesse aparecido por aqui, o Kramer ainda estaria vivo — disse Mack.

— Ouça aqui, Sr. Comissário, a gente não pode escolher para onde nos mandam. Nós...

— Deixa para lá, Karl — disse o louro Kling. — O Sr. Mack tem toda a razão. — Ele bateu sem força na mesa. — Mas que merda! — disse. Ninguém mais disse uma só palavra.

Demorou quase meia hora até que Colledo voltasse. Parecia irritado e insatisfeito.

— Desculpem-me a demora, meus senhores. Falei com o superintendente. Ele precisava falar primeiro com o departamento jurídico. Depois com o Primeiro-Ministro. E este com o Ministro do Interior. E este com o Departamento Federal de Polícia Criminal. — E Colledo olhou para os quatro técnicos: — Lamento muito, rapazes, mas vocês precisam sair. Esperem no carro. Tenho a permissão e também a incumbência de esclarecer tudo aos senhores da comissão de homicídios. O departamento federal de polícia criminal e a polícia de todas as unidades da federação a partir de agora trabalham junto com a emissora. O DFPC insiste que só sejam informadas a respeito as pessoas que precisem saber de toda a verdade. Isso ocorre em nome da própria segurança de vocês.

— Claro — disse o câmera. — Então, vamos dando o fora, colegas! — Os quatro deixaram a sala.

Bevensen acendeu mais um cigarro com a ponta do velho.

— Então? — perguntou.

Colledo começou a falar.

Quando, um quarto de hora mais tarde, ele emudeceu, Mack levantou-se e fechou a janela.

— Esse barulho vai me deixar maluco — assegurou ele. — E vou desligar esse maldito aquecedor. Mas que história complicada, Deus do céu! Vai sobrar coisa para nós. O assassinato de Kramer foi o primeiro, pequeno começo. Conte aos cavalheiros aquilo que nós até agora desencavamos, Tom.

Bevensen acedeu. — Bem, aconteceu o seguinte: depois que o senhor, Sr. Kling, se precipitou ontem para o telefone, alguém, por volta de 1h3Om da tarde, ligou para a casa da Sra. Kramer, na Rua Moltke. O senhor telefonou mais ou menos às 10h. não é verdade?

— Sim. Relatei ao Sr. Colledo o meu achado. Para filmar no Centro de Documentação, precisávamos, é claro, a concordância do diretor. E este, a do Ministro do Interior. Finalmente, conseguimos tudo. Combinamos que eu pernoitaria mais uma vez aqui no hotel. Hoje, pela manhã, o Sr. Colledo queria vir com uma equipe de filmagem. Isso o senhor já sabe. — Os policiais concordaram. — Alguém telefonou para a Sra. Kramer? Três horas e meia depois de minha ligação?

— Sim.

— Quem?

— Isso nós não sabemos.

— E que é que o sujeito queria?

— Disse para a Sra. Kramer que a sua filhinha havia sido seqüestrada. Quando vinha da escola para casa. Alguém deve ter observado o senhor, Sr. Kling, durante todo o tempo em que trabalhava no Centro de Documentação. Observado atentamente. Ninguém chamou sua atenção?

— Não.

— O senhor é repórter. Está habituado a ser seguido ou observado?

— Sim.

— Mas durante três dias o senhor não percebeu nada.

— Não. Prestei atenção. Mas notar, não notei nada.

— Por que o senhor precisou de três dias?

— Porque tive de esmiuçar todos os onze volumes do Diário de Trabalhos, de 1935 a 45.

— O senhor achou muitos registros que eram de seu interesse?

— Não, apenas um.

— Do ano de 1944.

— Sim, senhor comissário.

— Profissionais — disse Bevensen.

— isso é o que eu temo — disse Colledo — Mas continue, por favor.

— O sujeito que ligou disse à Sra. Kramer que ela deveria telefonar imediatamente para seu marido no Centro de Documentação e dizer-lhe para roubar o volume do Diário do Serviço de Ribbentrop relativo ao ano de 1944 e trazer o livro consigo. Caso ele não o fizesse, ou não estivesse disposto a entregar o volume mais tarde — ele ainda viria a saber onde e quando — a um determinado indivíduo, então ele não teria chance alguma de rever sua filha viva. E tampouco se ele ou a mulher contatassem a polícia. Os dois ficaram em tal estado de pânico que não nos disseram nada.

— E Kramer levou o Diário de 1944 — disse Colledo.

— É — disse Bevensen. — Ele o levou em sua pasta. Ninguém notou nada. Aqui não existe controle.

— Não se pode censurá-lo — disse Mack. — Segundo a mulher nos contou, eles estavam fora de si de medo, por causa da criança.

— Onde é que ela está?

— No Hospital São José. Choque profundo. E a menina também. Em estado de choque. Só pudemos falar com a mulher por cinco minutos. E com Lotti também: cinco minutos.

Bevensen pegou um outro cigarro. Dava a impressão de excesso de trabalho e nervosismo. Seus dedos tremiam levemente.

— O homem ao telefone tinha dito que os pais deveriam permanecer cm casa, aguardando novas instruç6es. Eles esperaram até quinze minutos para as seis. A essa hora, ligou um outro homem e disse que Kramer deveria pegar o seu VW Golf e o Diário e vir para o restaurante Hafner, na Rua Görtz. Kramer exigiu um sinal de vida de sua filha e então ouviu Lotti chorar e dizer que sentia medo e que ele fizesse o que os tios mandavam, pois aí ela poderia voltar para casa.

— Espere um momento — disse o jovem Kling. — Eu cheguei há quatro dias a Coblença. Na manhã seguinte, me dirigi ao Centro de Documentação. Três dias depois eu encontrei o que procurava e telefonei para o Sr. Colledo. E apenas três horas e meia mais tarde um homem liga para a Sra. Kramer para informá-la de que sua filha foi seqüestrada. Isso é praticamente impossível.

— Isso é perfeitamente possível, não há dúvida — retrucou Bevensen.

— Mas como?

—  O senhor não anunciou previamente a sua visita ao Centro de Documentação?

— Quando?

King disse um tanto inseguro: — Há quatro dias. Liguei da emissora mesmo.

— Com quem falou o senhor?

Kling ficou vermelho de embaraço.

— Com o Sr. Kramer. Ligaram-me com ele.

— Então os sujeitos tiveram três dias para investigar tudo a respeito da família de Kramer: aonde a criança ia à escola, que caminho tomava, tudo. Kramer informou aos colegas que alguém da televisão estava para vir. E essa notícia circulou. Podemos estar seguros de que o senhor já estava sendo aguardado. Os sujeitos sabem — devem saber — que todos os arquivos e institutos de História contemporânea vão ser procurados por pesquisadores de vocês. Não é assim, Sr. Colledo?

— É, é isso sim — respondeu ele. — Mandamos pesquisadores por toda parte. Não apenas na Alemanha. Também para os Estados Unidos, Inglaterra e França. Não deu para mandar para a Rússia. Mas, mesmo assim, é impossível que todos estejam sendo seguidos! Eles também não podem dispor de tanta gente assim.

— E por que não? — perguntou Bevensen. — Por que motivo não haveriam eles de empregar tanto pessoal quanto o senhor? Talvez mais ainda:

— Isso está correto — confessou Colledo.

— É evidente que há ainda uma outra possibilidade — disse Mack.

— Qual é?

— É a de que vocês tenham um traidor na emissora que mantém os caras informados sobre tudo o que acontece lá dentro.

— Um momento, por obséquio! — Colledo havia saltado da cadeira. — Eu só informei a pessoas ótimas, da maior confiança. Aí se incluem o superintendente, o redator-chefe e os homens do departamento jurídico. O senhor deseja insinuar que...

— Acalme-se, Sr. Colledo! — Mack acenou com uma das mãos. — Eu não quero insinuar coisa alguma. Disse apenas que isso seria também uma possibilidade. Uma telefonista bastaria.

— Negativo — disse Colledo. — Pelo pessoal da emissora, eu ponho minha mão no fogo.

— Como quiser — disse Mack. — O senhor tem a sua experiência, e nós temos a nossa.

— É de presumir que os seqüestradores tenham feito uma gravação com a voz de Lotti — prosseguiu Bevensen — porque ela não respondeu às perguntas de Kramer. Disso nós ficamos sabendo pela Sra. Kramer. Bem, então ele seguiu para o restaurante na Rua Görtz, onde ficou até cerca das 19h. Então tocou o telefone e ele foi chamado. Isso nos contou um garçom, que se lembrava perfeitamente. Não há dúvida de que Kramer foi então instruído a ir para um outro local. Ignoramos para quais outros lugares ele ainda foi mandado. Eles queriam se assegurar de que ele não havia prevenido a polícia e estivesse sendo seguido. Presumimos que ele tenha sido acossado por toda a cidade.

— E onde... aconteceu afinal? — perguntou Kling.

— No bosque da cidade — disse Mack. Ele continuava a falar com nervosismo e raiva. Talvez ele tenha uma úlcera no bosque ou desentendimentos com a mulher, pensou Colledo.

— Devolveram-lhe a criança

— Sim. Lotti nos ajudou muito no esclarecimento. O quanto lhe foi possível em seu estado. Pobre bichinho — disse Bevensen. - Eram dois homens. Primeiro a trancaram num porão. De mãos amarradas. Mordaça na boca. Depois, à noite, saíram com ela de carro. Um longo caminho. Até o bosque. Então, um dos homens saltou, disse ela. O outro ficou mais ou menos meia hora esperando. Finalmente, seguiu para o estacionamento. O VW Golf estava parado lá. Lotti o viu. Seu pai no volante. O outro homem a seu lado. O homem do carro dela acendeu a luz interna para que o pai enxergasse Lotti. Então, o homem lhe disse: — Ande! — E Lotti caminhou até o Golf. O outro homem saltou. Tinha um grande livro na mão, disse Lotti. Ela pulou para dentro do carro e abraçou o pai. Logo em seguida houve um estampido. Primeiro, o pai caiu sobre o volante e depois sobre a menina. O homem que estava com ele atirou-lhe na têmpora direita. A bala atravessou o crânio e o vidro da porta esquerda. Nosso pessoal foi encontrá-la num tronco de árvore. Calibre nove milímetros. Primeiro, Lotti apenas gritou, depois andou até a Rua Laubach. O primeiro carro que passou pertencia a um certo engenheiro Kreuzer. Peter Kreuzer. Parou naturalmente e ouviu o balbuciar da pequena, foi ao local do crime, viu toda a pavorosa imundície e saiu em disparada com Lotti para o asilo de velhos Drei-Kaiser-Weg, e dali chamou a Polícia. Agora sabem tudo de nós, e nós sabemos tudo de vocês — disse Bevensen. — Menos duas coisas.

— Quais são? — perguntou Colledo.

— Primeiro, o que o senhor e o Sr. Kling pretendem fazer. Devemos pôr os senhores sob proteção?

— Por quê? — indagou Kling.

— Ora, o senhor será logo o primeiro — disse Bevensen. — É realmente um milagre que não o tenham pego ainda. Nem dá para entender. Pois o senhor sabe qual é o teor do registro no Diário de Trabalho. Sempre se pode filmá-lo para a documentação e colher a sua declaração.

— Mas isso é o que iremos fazer — disse Colledo. — O senhor se esquece de que nosso superintendente ameaçou apresentar imediatamente o filme na televisão, sem documentação ou pesquisa de qualquer espécie, caso uma única pessoa que se ocupa do assunto ou um parente seu venha a ser atingido. Todos nós temos nosso “seguro de vida”.

— É claro — disse Bevensen. — Bobagem minha.

— Só Kramer não tinha nenhum — disse Mack, amargo.

— E segundo? — indagou Colledo.

— Segundo — tomou Bevensen — não sabemos ainda qual era o texto da anotação no Diário, correspondente ao ano de 1944. Que dizia, Sr. Kling?

O repórter olhou para Colledo. Este fez que sim com a cabeça. E Kling, então, disse:

— O Sr. Colledo lhe contou que esse Eduardo Olivera, de Buenos Aires, que outrora se chamava Georg Ross e é o pai de Daniel Ross, assegura que um agente, que ele apenas conhecia sob a designação de CX-21, havia chegado em fins de março de 1944 na então capital do Reich alemão, trazendo o referido filme. Certo?

— Sim — disse Bevensen.

— Bem — disse Kling. — O registro no Diário de Trabalho relativo a 31 de março de 1944 dizia: “Procedente de Teerã, chega a Berlim CX-21 com material da mais alta importância. O Chefe para o Oriente Médio informa o Ministro von Ribbentrop. Este convoca imediatamente o Ministro Goebbels e o Dirigente do Reich Himmler ao Ministério do Exterior. Material declarado secreto nível 1. Por isso mais nenhuma menção no Diário de Trabalho.”

— O pior de todos é o Papa — bradou o internacionalista italiano Umberto Damiani para Mercedes. — As querelas com Fernão de Aragão e Isabel de Castela já são bastante graves. Mas os insultos de Alexandre VI tornam-se insuportáveis. Um Bórgia. E logo qual! Pelo amor de Deus! De sua ligação com Vanozza Cattanei resultam os temíveis filhos Cesare, Francesco, Giovanni e Lucrezia... Não preciso dizer mais nada. Uma ninhada digna do pai, só Deus sabe! Guerras, saques, envenenamentos, incestos, bem, a senhora sabe. Não, esse Alexandre ainda me mata. E isso eu afirmo literalmente, minha honrada Signora. Vivo com permanente medo de morrer.

O professor Damiani tinha setenta e dois anos de idade, era alto e esguio. Era dotado de um temperamento dramático, típico dos meridionais, e suas mãos estavam sempre em movimento quando falava. Tinha olhos pretos e crespos e espessos cabelos negros, as têmporas totalmente grisalhas. Sua pele acetinada tinha uma cor de azeitona. Trajava terno escuro, camisa branca e gravata prateada. Com pernas cruzadas — meias brancas e sapatos pretos — pontificava sentado numa poltrona do grande salão de estar da mansão  onde moravam Sibylle e seu marido. Eram nove e meia da noite. Lá fora, agitava-se uma tempestade. Ao redor de uma mesa encontravam-se ainda, além do italiano, Mercedes, Daniel, Herdegen, Sibylle e Werner Farmer. O jantar já havia terminado. Uma governanta o tinha servido, mas quem o havia preparado fora Sibylle — Tafelspitz com guarnições. Daniel e Werner o haviam degustado com entusiasmo e plenos de recordações sentimentais, os demais apenas com entusiasmo, inclusive Herdegen. Sibylle foi cumulada de cumprimentos, Damiani beijou-lhe a mão. Então, após o jantar, Daniel envolveu o professor numa conversa. Não se surpreendeu com o fato de que o doente mental falasse do problema de sua vida de forma coerente, racional, perfeitamente normal. Sibylle havia prevenido Daniel: — Enquanto se tratar de assunto do âmbito de seu trabalho, você nem vai notar que Damiani é esquizofrênico. Mas tão logo saia desse campo...

De fato, tudo aquilo que Damiani dissera durante a refeição, com uma escolha de vocábulos e forma de se expressar bastante peculiares, havia soado abstruso e enredado. Mas agora ele estava em seu elemento. Sua conduta se havia alterado inteiramente.

— ... medo de morrer, sim, minha cara senhora.

— Mas eu não compreendo... De que o acusam essas pessoas? — indagou Mercedes.

— Ah! — Damiani lançou os braços para o alto. — Há catorze anos, publiquei um livro científico...

— Que provocou sensação nos círculos especializados do mundo inteiro — disse Herdegen.

— Ah, bem, tiveram a gentileza de dar uma certa atenção ao meu trabalho. — E Damiani tomou ares de falsa modéstia. Parecia estar o tempo todo representando. — A obra despertou interesse e contestação por parte de meus colegas de diversos países, pois se ocupa minuciosamente de uma controvérsia cujas raízes remontam ao Velho Testamento, particularmente aos Salmos, nos quais, como os senhores bem sabem (e eu estou me expressando em termos de extrema vulgarização científica), diz-se que este mundo foi criado por Jeová, ou seja por Deus, e que portanto é de Sua propriedade, não é mesmo? Em conseqüência, todos seriam seus súditos. — Damiani ergueu a voz e citou: — “E todos os reis deverão dobrar seus joelhos diante dEle.” Então, com base nisso, alguns papas, Seus representantes sobre a Terra, não é mesmo, tiraram a conclusão de que eles possuíam o mesmo direito, de considerar esta Terra como sua propriedade, dispondo dela como bem entendessem. Vejam, minhas senhoras e meus senhores, esse foi, durante muitos séculos, um dos problemas mais melindrosos do direito internacional de então, não é mesmo? E meu livro Inter coetera divinae se ocupa minuciosamente desse problema.

— O que significa Inter coetera divina? — perguntou Mercedes, procurando traduzir as palavras: — “Entre outras...”.

— Signora, tem toda a razão. Dessa forma, essas três palavras parecem incompreensíveis, uma vez que constituem o começo de uma frase, qual seja, a primeira frase da bula papal de Alexandre VI dirigida aos Reis Católicos Fernão de Aragão e Isabel do Castela, assim como a João II, de Portugal. Os monarcas espanhóis se haviam dirigido ao Papa a fim de obter a confirmação e a proteção de que precisavam para a defesa de sua esfera de interesses contra seu rival na península Ibérica, Portugal portanto. — As palavras de Damiani atropelavam-se umas sobre as outras. — Então, naquela bula de Alexandre VI, de 4 de maio de 1493, após um pomposo preâmbulo genérico, começa assim o texto: “Entre as outras à majestade divina.” Aí está o Inter coetera divinae, minha cara Signorina, pois o majestatis foi posto de lado. Traduzindo: entre as outras obras aprazíveis à majestade divina e desejadas por nossos corações, a mais importante é que o credo católico e a religião cristã sejam glorificados em Nosso Tempo e disseminados por toda parte etcétera, etcetera. Tudo isso, a fim de fundamentar e justificar aquilo que Alexandre VI de facto fez por meio dessa bula.

— E que foi que ele fez? — perguntou Daniel.

— Ah! — disse Damiani. — Ele estabeleceu uma linha de demarcação para separar as descobertas dos portugueses e espanhóis. -Essa linha corria a cem milhas a oeste do arquipélago dos Açores, de pólo a pólo. Todas as terras a leste dessa linha pertenceriasm aos portugueses, e aquelas a oeste, aos espanhóis. A 7 de junho do ano seguinte portugueses e espanhóis entenderam-se diretamente no Tratado de Tordesilhas Esse tratado fazia passar a linha demarcatória por um ponto situado a 370 milhas a oeste do Cabo Verde, quer dizer, a fronteira  foi deslocada para oeste, em favor de Portugal, de trinta e oito graus, conforme a bula, para quarenta e seis graus e trinta minutos de longitude oeste, para sermos exatos.

— Em outras palavras: esse Papa consentiu que Portugal e Espanha, as superpotências daquele tempo, dividissem o mundo entre si — disse Daniel.

— Exatamente isso, Signore — respondeu Damiani. — Os dois dividiram o mundo entre si.

Essa conversa transcorreu na noite de 8 de março de 1984, uma quinta-feira.

Dois dias antes, a 6 de março, no decorrer de seu passeio diário — desta feita com um enfermeiro desconhecido — Daniel telefonara de uma hospedaria em Heiligenkreuz para Colledo. Ele ficou sabendo a respeito do assassinato de Herbert Kramer, o bibliotecário do Centro de Documentação da RFA em Coblença.

— Do meu ponto de vista — dissera Colledo, furioso — agora há um monte de assassinos por aí, do tipo daquele que Mercedes e eu encontramos em sua casa. Dizia chamar-se Peter Corley. Nunca na vida se chamou assim. Tenho a sensação de que ele se encontra bem próximo de vocês. Parece estar encarregado de vocês dois. Tomem cuidado! A polícia é de opinião que isso é o começo, o pequenino começo de alguma coisa maior. — Colledo praguejou. — O registro no Diário de Trabalho do Serviço de Ribbentrop! Isso é que era uma prova! Agora essa prova desapareceu e Kramer está morto. É uma merda!

— Se os nazistas forjaram o filme e de fato pensaram em tudo, a fim de não deixar nenhuma lacuna, então é claro que o registro no Diário também é coisa falsa. Nesse caso não precisa ter chegado de fato nenhum agente de Teerã.

— Mas os filhos da mãe que fuzilaram o pobre sujeito em Coblença e fizeram sumir o Diário, querem comprovar que o filme é forjado! Não me faça ficar maluco, Danny! — exclamou Colledo.

— Foi apenas uma idéia. É claro que o registro é autêntico. Mas, escute, eles não podem simplesmente fazer desaparecer desse jeito todas as provas em favor da autenticidade do filme!

— E por que não? — Colledo se exaltava. — Você viu como funcionou! Basta eles disporem de assassinos em número suficiente. Escrúpulos eles não têm nenhum, com certeza. Mas, aparentemente, eles têm todo o dinheiro do mundo.

- Mas eles não podem liquidar todas as testemunhas que atestam que o filme é verdadeiro.

- E por que não?

- Vejamos — disse Daniel: — Eles só deixam sobreviver as pessoas que digam que o filme é falsificado ou apresentem provas para isso. Nós, por outro lado, vamos então, em nossa documentação, falar de provas desaparecidas e apresentar uma galeria de mortos. Tudo isso vai provocar uma impressão bastante desagradável.

- Mas qual?

— Que pergunta! O fato de que, nesse caso, pessoas poderosas alugaram assassinos que tiraram do caminho testemunhas incômodas a fim de que apenas sobrassem aquelas que atestam que o filme é uma mentira da propaganda nazista.

- Não concordo — disse Colledo.

A gelada cabine telefônica da hospedaria fedia a comida e urina. Ela estava situada num escuro corredor, a meio caminho entre a cozinha e os banheiros. Daniel com freqüência telefonava dali para Colledo, e parecia que o mau cheiro não mais o abandonava. Mesmo ao ar livre, continuava a senti-lo. — É claro que nós podemos afirmar isso em nossa documentação, mas jamais conseguiremos apresentar provas. Essa gente é esperta, Danny, muito esperta. Eles não vão fuzilar todas as testemunhas perigosas. Uma vez vai parecer suicídio, outra vez vai dar a impressão de acidente. Do modo como as coisas estão, tudo parece indicar que eles se decidiram por esse método para tirar o valor do filme. Além do mais, nós temos de nos convencer de que o filme ficará muito desvalorizado se nós só pudermos apresentar testemunhas e provas de que se trata de uma falsificação. A esse respeito, não adianta nós nos desiludirmos. Não, não, eles previram tudo. É a única resposta que eles podem dar ao nosso desafio. E com toda a certeza – disso estão convencidos a Policia e o Departamento de Polícia Criminal - eles montaram uma rede que funciona assombrosamente bem. Eles dispõem de muito mais gente e dinheiro do que nós jamais vamos dispor. Eu posso imaginar, inclusive, que determinadas pessoas aí do sanatório já sabiam do assassinato de Kramer antes de nós.

Ele tinha razão. O advogado Morley havia ligado à noite para Herdegen, duas horas depois do crime, informando a ele e a Wayne Hyde: — Primeiro sucesso. Um importante documento original em favor da autenticidade do filme está em nosso poder. Quero dizer, é claro: um documento original forjado pelos nazistas. Eles pensaram em tudo. Até o registro no Diário de Trabalho do Serviço Secreto de Ribbentrop. É, esse diário a televisão já pode esquecer!

— Trabalho de gente de primeira — dissera Herdegen.

— Nós só empregamos gente de primeira, doutor — fora a resposta de Londres. — Mr. Hyde, por exemplo, goza de nossa particular confiança. Nele depositamos as maiores esperanças.

— Não vai parecer um tanto esquisito se começar a morrer gente, talvez muita gente, assim de repente e de surpresa, Mr. Morley?

— De repente e de surpresa... Mas não é assim que se diz nos avisos fúnebres, doutor? Súbita e inesperadamente, hum, hum, veio a morte.., e por aí vai. É evidente que se falará nisso. Deixe as pessoas falarem! O importante é que nenhuma prova e nenhuma testemunha em favor da autenticidade do filme apareça à frente de uma câmera de televisão. Soa um pouco duro, mas não somos meninas de pensionato. As pessoas, disso nós sabemos, acreditam no que ouvem e vêem. A grande massa, pelo menos. Mas é ela que importa- Todas as pesquisas da emissora devem levar ao resultado de que ela está transmitindo uma coisa que diversas pessoas reconhecem ser uma falsificação. Esse é o nosso objetivo. E o caminho para ele já está delineado...

Na cabine fedorenta do escuro corredor da hospedaria em Heiligenkreuz, Daniel disse ao telefone: — Eu estou novamente OK, Conny. E é bem possível que eu daqui a alguns dias possa apresentar uma testemunha.

— O que aconteceu? — perguntou Colledo.

— Hoje de manhã serviu-nos o café uma mocinha. Você sabe que aqui todas as refeições são servidas nos quartos para que nenhum paciente conheça o outro. Pois bem, nós já havíamos visto a moça algumas vezes. Elsie e o nome dela. Estava com rosto triste e disse ...

— ... eu lhes desejo multo bom apetite, minha senhora, meu senhor.

Ela usava um avental de listras brancas e azuis e uma touquinha.

- O que é que você tem? — indagou Mercedes.

Elsie, muito bonita, era há dois anos a amiguinha de Herdegen - de longe não era a única, mas disso Elsie nada sabia. Era muito devotada ao médico. Tudo o que ele lhe pedia, ela fazia. E Herdegen lhe havia feito um pedido.

— Mas, como assim, minha senhora?

— Você dá a impressão de estar muito deprimida. Não é verdade, Danny?

—  Isso mesmo — disse Daniel. — O que há, Elsie? Amor infeliz?

Elsie sorriu tristemente.

- Ai, não diga isso, meu senhor! Não, eu estou triste, porque alguém vai embora daqui.

- Um médico?

— Um paciente. O velhinho mais simpático que já tivemos

— É, mas se ele está curado...

- Mas o caso é que ele não está curado. Não teria sido possível. Pobre Sr. Damiani! — Elsie calou-se assustada. Pelo menos, parecia assustada. — Nossa senhora! Isso eu não posso fazer!- Falar de outros pacientes. E ainda por cima de um tão famoso. Conhecedor de lei internacional, uma coisa assim.

Mercedes e Daniel trocaram um olhar. Haviam pensado na mesma coisa.

— Certamente não iremos delatar você, Elsie — disse Mercedes — E que importância tem isso? Aqui, ninguém se conhece. Quem é Damiani? Não faço idéia. E você, Danny?

— Não faço a menor idéia.

— Você está vendo, Elsie. Pode falar à vontade. Esse Damiani é o paciente mais simpático que você teve e agora que ele vai embora você está triste, não é isso?

Elsie concordou.

— E para onde ele vai?

— Eu não sei, minha senhora. Acho que ele volta para a Itália. Ele é italiano. Talvez ele vá para outro sanatório. Não tenho a menor idéia. A doutora disse que aqui se fez tudo o que era possível.

Tomara que o Gerd esteja satisfeito comigo, pensou Elsie. Ele sempre me diz quanto me ama. Quem sabe eu ainda acabe casada com um doutor?

— Good girl — disse Wayne Hyde, que em companhia de Herdegen acompanhava a conversa pelo alto-falante.

— É, realmente — disse Herdegen a seu lado. — Tem algo na cabeça e não apenas entre as pernas. Compreende o que se diz. Estou bastante satisfeito com ela.

— Ele está tão mal — continuou Elsie. — Estava ainda pior quando chegou aqui. Mas não está nada bem. Mesmo assim, sempre brincava comigo quando eu vinha com o café ou com a refeição. Sempre foi simpático. Sempre tinha um presentinho. Só me chamava de Belissima. Eu já falo como se ele tivesse partido. É, mas vai ser mesmo dentro de poucos dias.

- Você gostava de conversar com ele, Elsie?

- Ah, decerto. E ele fala tão bem alemão, minha senhora. É que ele viveu muito tempo na Alemanha.

De novo Daniel e Mercedes se entreolharam.

- E ele lhe disse isso, Elsie?

- O quê, meu senhor?

- Que viveu na Alemanha.

- Sim, ele mesmo. Já faz muito tempo. Mas ele ainda fala bem demais. Com um pouco de sotaque berlinense.

- Berlinense?

- Claro, ele trabalhou em Berlim.

- Quando?

-  Ah, uma eternidade — disse a bonita Elsie. — Na guerra. Até meados de 44...

 

- ... Consta que até meados de 44 ele trabalhou em Berlim – disse Daniel a Colledo ao telefone. Alguém passou se arrastando pela cabine. Um homem de pijamas e chinelos. A porta da privada fechou-se atrás dele.

- Uma armadilha, é evidente – disse Colledo.

Daniel ergueu os ombros.

- Muito provavelmente, sim. Mas não é certo. Existem acasos.

- Acasos desse tipo, não - Insistiu Colledo

- Talvez sim — disse Daniel. — Mercedes acha que não, como você. Eu não estou seguro. Mesmo que seja! Eu quero conhecer esse professor Damiani.

- Pelo amor de Deus, tome cuidado, Dannyl Pense no Kramer em Coblença. Você está lidando com um bando de assassinos sem o menor escrúpulo.

- Nós precisamos tocar pra frente. Quem sabe em que pode dar uma conversa com Damiani?

- Mas você não disse que eles não gostam de conversas entre pacientes?

- No sanatório! Pedi a Sibylle que nos convidasse para jantar junto com o Damiani. Eu não disse a você que ela queria cozinhar para a gente?

— Contou, contou. E aí? Sibylle ficou entusiasmada com o seu pedido?

— É óbvio que não. Mas Herdegen já lhe tinha dado instruções para que ela nos convidasse, a nós e a Damiani, e ela precisa fazer tudo o que ele exige. Chantageiam-na com o irmão dela, mas isso eu lhe conto mais tarde.

— Se é assim... Só não estou entendendo por que motivo eles querem, de qualquer jeito, pôr você e Mercedes em contato com Damiani.

— Ora, para descobrir se ele sabe alguma coisa sobre o protocolo secreto. Naquela época, ele se encontrava em Berlim. É claro que dá para pensar que ele, como internacionalista, tenha ouvido falar disso. Talvez até de um colega alemão que estivesse tratando da coisa. Uma testemunha, portanto.

— Agora já entendi. Mas para que precisam de você para isso? Afinal Damiani já está há bastante tempo aí. Herdegen teria ele mesmo tentado arrancar alguma coisa.

- Não conseguiu – disse Daniel. – Damiani tem uma espécie de bloqueio. Sybille escreveu-me tudo isso num papel. Você sabe que aqui há microfones em todos os quartos. Tudo aquilo que Herdegen, e sei lá mais quem, não devem escutar, a gente precisa sempre rabiscar enquanto conversa sobre outro assunto.

- Sim, isso você já me explicou. Sybille portanto escreveu que Damiani já foi interrogado a respeito de Berlim, mas acabou não contando coisa alguma?

- Isso. Durante o exame final. No consultório dela. Naturalmente ali há também um microfone. Foi muito complicado. E arriscado. Herdegen contou a esse Damiani como eu me chamo e que meu pai também se encontrava em Berlim durante a guerra e que parecia ter sido um internacionalista também. E como ele teria morrido em 45, em Berlim, eu já estaria há uma eternidade tentando descobrir se isso era verdade e o que ele fazia em Berlim. Herdegen indagou de Damiani se ele gostaria de me conhecer, pois eu me interessaria ardentemente por sua especialização. Damiani é vaidoso. Isso evidentemente o lisonjeia. Quando ele agora me encontrar, o autêntico filho de Ross, Herdegen espera descobrir uma testemunha – isso na hipótese de que realmente exista uma testemunha e de que Damiani a conheça – e essa testemunha seguramente contaria a verdade para mim.

- Eis aí, pois, a armadilha.

- Não se trata de uma armadilha, se se sabe como ela funciona.

Isso é certo. Vamos então supor que Damiani indique a você uma testemunha. Os assassinos não podem liquidar o homem imediatamente, uma vez que eles não sabem o que ele lhe vai contar. Talvez ele diga a você que sabe que tanto o filme como o protocolo secreto foram forjados. Nesse caso não lhe vão tocar em um só fio de cabelo. Aí o sujeito vale ouro para os bandidos. Só correrá risco de vida se disser que o documento é verdadeiro. Aí eles o matam como fizeram com o Kramer em Coblença. Eles agora estão atrás de cada pesquisador, naturalmente atrás de você e Mercedes, em especial. E nós precisamos levar isso em consideração. Se você achar uma testemunha a favor da autenticidade do filme – e isso vale, é claro, para todos os que estão pesquisando -, então o homem precisa ser protegido instantaneamente. O Departamento de Criminalística e a Polícia trabalham conosco. E, além disso, a testemunha precisa vir para diante das câmeras o mais rápido possível!

- E como é que você pretende conseguir isso?

- Precisamos formar equipes volantes, que cheguem prontamente no local, e não somente um dia depois, como em Coblença. Isso seria fácil se pudéssemos arrolar outras emissoras da Associação e solicitar sua colaboração. Mas, nesse caso, gente demais ficaria sabendo da coisa. Nós nos limitamos aos técnicos da emissora de Frankfurt. Nossa sorte é que existem aviões. No caso do Damiani, se vier a surgir uma testemunha viva, então você liga para mim antes de tomar o avião, para que eu possa mandar uma equipe. Eu só vou dar alarme à polícia, quando você souber como é a testemunha. Antes, não. Eles são bem capazes de o prender preventivamente, e aí a pessoa fica com medo e não fala nada. O mais importante é que a gente consiga filmá-la imediatamente, qualquer que seja o caso, com qualquer testemunha.

- E como é que isso vai funcionar com a polícia no exterior? Nos Estados Unidos? Na França? Na Inglaterra? Você também mandou gente pesquisar lá.

- Isso eu ainda não sei. Vou telefonar logo para o Departamento Federal de Polícia Criminal. Eles têm de pedir ajuda aos seus colegaas.

- Mas então será ainda mais gente a entrar no circuito.

- Não nos pormenores. Deixe isso comigo! Faça o que eu lhe disse, de qualquer maneira, Danny. Boa sorte...

 

- Com sua bula Inter coetera divinae, pela qual o mundo simplesmente foi dividido entre os “reis católicos” Isabel e Fernão, de um lado, e João II de Portugal, o Papa Alexandre VI provocou uma formidável crise de consciência naqueles teólogos e juristas que estavam convictos de que o conceito de monarquia universal — que eles agora viam perder literalmente todos os limites — se opunha aos princípios do Direito Natural da lex naturalis — disse o professor Umberto Damiani, cujo rosto já estava coberto de manchas vermelhas.

— O que é o Direito Natural? — indagou Mercedes.

— É um muito antigo princípio de Direito, signora. Suas raízes recuam ao sexto e quinto séculos antes de Cristo. Os grandes filósofos gregos é que o elaboraram. O Direito Natural é um Direito que se baseia na natureza racional do homem, e é independente do tempo e do lugar assim como da jurisprudência humana. Os conteúdos fundamentais do Direito Natural são, por exemplo, o direito à inviolabilidade do corpo e da vida, da propriedade e da honra, a liberdade individual assim como a observância de contratos assumidos. Segundo esse Direito Natural, que evidentemente exercia poderosa influência sobre o Direito Internacional e a Teologia, expresso-me aqui com a maior simplicidade possível —, era naturalmente inconcebível que um Papa se arrogasse o poder de fazer de apenas dois monarcas cristãos os senhores do mundo, tratando todos os não-cristãos como animais, pior que animais... —- A fala de Damiani ficara muito baixa e indistinta. Ele fitava irritado um ícone que se achava dependurado, na penumbra, ao lado da lareira. Subitamente, ele calou-se, pareceu ficar à espreita, queria dizer alguma coisa, engolia em seco com dificuldade, seu rosto ficou vermelho e ele ergueu uma das mãos. — Desculpe-me, senhor, mas o que pretende, por exemplo, esse Colombo? — Calou-se de novo, como se alguém o tivesse interrompido, para depois dizer, com uma careta: — Perdoe-me, então, por favor! Eu lhe pergunto, Santo Padre, qual é a intenção desse Colombo? — Ficou novamente à espreita, encolerizado e tenso, como que escutando uma voz inaudível para os demais. Falou, então, em voz alta: — Levar consigo missionários! Converter pessoas, em continentes longínquos, à fé cristã! Mas como? Colombo só quer o ouro, a prata e todos os outros tesouros que aqueles povos possuem, Santo Padre, por favor! — De repente, sua testa cobriu-se de suor, que ele logo limpou. Dirigiu o olhar para uma janela e, novamente ficou à escuta, muito atento, para logo dizer, raivoso:

- Não,  agora já basta, Majestade, vós estais ficando ridículos!

Mercedes olhou-o, assustada.

- Com quem o senhor está falando, professor?

- Com Isabel de Castela e o Papa Alexandre. Eles querem me meter na cabeça que Colombo e os espanhóis estão buscando o caminho marítimo para as índias como se fossem um Exército da Sallvação e apenas têm interesses missionários. Mentirosos! -gritou ele de repente com selvageria. Mas, voltando ao normal, prosseguiu — Mas é sempre assim. Simplesmente se põem a mentir. Torcem qualquer fato histórico. E o Papa ainda fica ofendido quando o chamo de senhor e não de Santo Padre! Eu ainda fico maluco! Dia e noite é assim. Os três estão sempre aí.

— Os três?

- Sim, há ainda o marido de Isabel, Fernão de Aragão.

- E agora, estão eles aí? — perguntou Mercedes, assombrada.

- É claro, signora, é claro. Pois se acabo de falar com eles...

— E onde estão?

- O Papa, perdão, o Santo Padre está sentado ao lado da lareira, Isabel está à janela e Fernão diante da estante de livros atrás da senhora, signora.

- O senhor os está vendo, realmente? — perguntou Daniel...

- Não com nitidez. Apenas suas silhuetas. É porque ali está meio escuro, não é? Mas suas vozes, eu as ouço bem claramente.

Damiani ficara muito nervoso. Olhou de novo para a lareira, onde via o Papa Alexandre VI, e disse com um sorriso maligno: - Muito bem. Colombo vai por causa de um novo caminho marítimo... Então, por que quer ele tornar-se vice-rei das terras a serem descobertas? Deixe, doutora, não tenho medo algum desse Bórgia, cuja filha, com o próprio irmão... Perdoem-me minhas senhoras! Então, porque vice-rei, Santo Padre? Agora ficou quietinho, hem?

Damiani respirava penosamente. Recostou-se na poltrona e puxou o nó da gravata. Novamente tinha a testa molhada. E tossiu. Daniel percebeu que Sibylle, Werner e Herdegen permaneciam indiferentes. Eles já conhecem isso, pensou. Um pobre esquizofrênico.

— A verdade é que vocês não imaginam tudo o que agüento desses três — disse o infeliz. — É claro que, mesmo assim, temo por minha vida. Afinal, trata-se de um Bórgia! Quantos assassinatos esse bando não... — Ele se encolheu com um choque para logo gritar em direção à lareira: — E não grite comigo, Santo Padre! Quem grita, de saída já não tem mais razão, isso eu lhe digo todos os dias!

Ele virou-se para Mercedes, controlando-se com dificuldade: — Berra o tempo todo. E Isabela também. Uma grande histérica. — Parecia estar sendo atacado pelos dois, pois apertou as mãos contra as orelhas e exclamou: — Eu não ouço os senhores! Não os ouço! Nem uma só palavra.

Deixou cair as mãos. Aparentemente, estava exausto, pois só depois de algum tempo é que voltou a falar, num fio de voz. — Concedo, trata-se de uma situação extremamente difícil. Mas também é fundamental para a história da humanidade. — E, falando então com bem amplos movimentos dos braços e ênfase bem italiana, disse: — Eu só peço que considerem esse atrevimento na sua real proporção, signora, signore! Apelando para o poder que lhe foi atribuído por Deus, um homem divide o mundo, de pólo a pólo entre duas casas reais que lhe aprazem! E por que lhe aprazem? Porque são rigidamente católicas e se com prometeram a catequizar o maior número possível de pessoas. E como? Por meio de submissão, guerra, suplício, encarceramento ou ameaças de morte. Desde as cruzadas, o universalismo católico não se manifestava de modo tão militante como através dessa bula. A oposição contra a conduta daquele Papa hipócrita tem sido manifestada até hoje de um modo muito nítido.

— Em primeiro e mais renomado lugar pelo senhor, professor — disse Herdegen espreitando.

— Sim, eu creio poder dizer isso sem nenhuma presunção — respondeu Damiani. — Ah, mas todos estão vendo quanto eu tenho de sofrer pelo fato de haver ousado atacar Alexandre e seus sócios por causa dessa partilha do mundo. Morrer, ainda vou morrer por isso.

— Mas quando foi que esses senhores protestaram pela primeira vez? — perguntou Daniel com cortesia. — Dessa forma brutal, quero dizer. Quando o senhor estava escrevendo sua obra? Ou somente após a publicação?

- Ah, não! — Damiani afastou a pergunta com um aceno da mão. — A Inter coetera divinae foi publicada em 1970. Até 1975, o trabalho já havia sido traduzido em vinte e seis idiomas — sim, isso se precisa reconhecer — ficar conhecido no mundo inteiro. Só dois anos mais tarde, ou seja em setembro de 1977, os três se manifestaram pela primeira vez e se lamentaram. Naquele tempo, ainda com certa urbanidade. Com o correr dos anos é que as coisas foram piorando e agora se tornaram quase insuportáveis.

— É verdade — disse Sibylle —, foi no outono de 1977 que seus oponentes começaram a atacar o professor.

— Porque eu mostrei na Inter coetera o que a bula realmente era, ou seja um alvará de doação e pelo fato de eu haver estigmatizado essa “doação do Mundo”, feita por Alexandre, como uma pretensão humana de dimensões incalculáveis.

A cabeça de Damiani voltou-se na direção da lareira. Sua boca estava aberta. Ele ouvia novamente a voz do Papa, aquele Bórgia invisível e inaudível para os demais. Damiani balançava a cabeça com intensidade sempre maior. Finalmente, ele começou a falar com voz alta e excitada. — Isso não é verdade! isso simplesmente não é verdade, Santo Padre! Não me venha com essa! “FórmuIas de Direito Feudal”! Não tem fundamento dizer que eu não compreendi bem essas “Fórmulas de Direito Feudal”! Sua bula foi uma “bula de doação” e não uma “bula feudatária”, continuo insistindo! Pode me matar! Envenene-me! O senhor possui lá a sua experiência! — Voltou-se para a janela. — Não, não e não, Majestade. Eu sei muito bem o que quer dizer donamus, concedimus et assignamus, como se traduz essas palavras, e qual o seu sentido. Deseja por meio desse truque rabulista apenas comprovar que não se trata de uma doação, mas sim de uma transferência feudatária.

— Ah, meu Deus, Danny! - Aterrorizada, Mercedes fitou Daniel. Ele segurou e acariciou sua mão, enquanto sacudia a cabeça, falando baixinho: — Você sabe, ele é doente.

A excitação de Damiani crescia de maneira assustadora. Seu olhar passava da lareira para a estante e daí para a janela. Parecia que estava sendo atacado pelos seus três opositores ao mesmo tempo. Sua voz estava inteiramente mudada...

— Então está bem... Estou a dar o braço a torcer, Majestade... É claro que posso seguir vosso raciocínio. . . Dizeis que a linha demarcatória de Tordesilhas não é apenas uma fronteira para a navegação, mas também o limite dos domínios feudais dos dois lados... Sim, sim... sim... Eu já entendi, não sou nenhum idiota. — A cabeça dele se voltou para um ponto junto à lareira. De repente, a voz de Damiani soou triunfante: — E com isso, meu prezado Santo Padre, o senhor caiu em sua própria armadilha... Como?... Peço perdão, mas uma coisa não pode absolutamente ser contestada: toda a sua penosa interpretação da bula em termos de direito feudal, em nada altera o fato teocrático de que o senhor pretende que os territórios descobertos ou ainda a descobrir sejam de seu domínio, de sua propriedade superior. Ah! Eu sabia que também desta vez eu iria pegá-lo! O senhor pode torcer e retorcer as coisas, como quiser: eu o pego todas as vezes!

Damiani recostou-se novamente em sua poltrona, ofegante. Arrancou sua gravata e abriu o colarinho. Passou-se algum tempo até que conseguisse falar de novo como pessoa normal. — Bem, vocês assistiram a uma pequena disputa, signora, signore Ross. Meus caros amigos aqui já conhecem isso. Apóiam-me com todos os meios que estão ao seu alcance. Mas parece que o poder daqueles três é maior. Não, não é bem isso. Não é que suas forças sejam superiores, é a persistência deles nas repetidas justificativas para uma monstruosidade...

— Uma fraude monstruosa — disse Mercedes.

Damiani a encarou com os olhos rasos d’água. Suas palavras, tão precisas e lógicas quando ele travara seu combate contra as vozes que o atormentavam, tornaram-se loucas e abstratas tão logo ele deslizou para as profundezas sem fim de sua enfermidade. — Fraude — repetiu ele. — É claro que é uma fraude! Lograda é a senhora, logrado sou eu, logrados somos todos nós. Desde a infância, desde as origens somos todos enganados. É uma fraude contra a humanidade! Ouvimos coisas inteiramente diferentes das que realmente sucedem. O que nos é dito é um embuste. O que nos é mostrado, também. Os acordos concluídos pelos poderosos, o que são? Embuste! Sempre embuste. E apontou um dedo em direção a Daniel. — Veja, Sr. Ross, foi-me dito que seu  pai durante a guerra estava em Berlim. Que o senhor não sabe o que ele fazia. O senhor acha que eu talvez saiba, uma vez que seu pai também lidava com Direito Internacional, conforme o senhor diz. Então, meu caro Sr. Ross, eu...

Damiani emudeceu. Herdegen se havia curvado para diante, tamanha era a sua tensão. O professor o fitou com reprovação e voltou-se para Sibylle. Sem qualquer transição, ele disse claramente e com muito bom senso: — Gostaria de ajudar o Sr. Ross, com todo o prazer. Mas esse é um assunto estritamente pessoal, doutora, e por isso não posso falar a respeito nesse círculo. Seria por acaso possível que eu por um instante pudesse me retirar com o Sr. Ross?

Herdegen afundou desolado em sua poltrona. Em seu olhar triste se via agora uma expressão de cólera.

- Mas é evidente, professor. — E Sibylle se ergueu. — Àcompanhem-me até o gabinete de meu marido! Lá poderão conversar sem serem molestados.

Ela foi na frente. Daniel e Damiani acompanharam seus passos. Ela acendeu a luz no grande gabinete de trabalho repleto de livros que transbordavam da escrivaninha. Em frente a uma janela havia uma mesa redonda e quatro cadeiras.

- Aqui,  por favor, se desejarem sentar!

— Muito obrigado, Sibylle — disse Daniel.

Ela lhe passou a mão sobre o braço e sorriu. Em seguida, saiu e fechou a porta. Os dois homens ficaram sozinhos.

- O senhor pode dizer-me alguma coisa a respeito de meu pai? - começou perguntando Daniel.

- Sim. Mas desejo dizê-lo apenas para o senhor. Os outros não têm nada com isso. Não é nada agradável o que lhe tenho a dizer, signore Ross. Tão logo ouvi seu nome, voltou-me à cabeça toda a história.

— Que história?

Damiani lançou mais uma vez os braços para o alto.

— Seu pai, sinto muito, signore Ross, mas o senhor quer saber a verdade.

— Naturalmente. Qualquer que ela seja.

— Seu pai também era um farsante. Trabalhava para farsantes. Farsa, lógico, é sempre a mesma coisa, está vendo?

— Não estou entendendo. Onde trabalhava meu pai? Para quem?

— Ele pode ter sido um internacionalista, mas em Berlim trabalhava para o Serviço Secreto do Ministério do Exterior. Para o Sr. von Ribbentrop, esse arquiembusteiro. Eu bem que lhe disse, lamento muito, Sr. Ross...

— O senhor não precisa lamentar — disse Daniel em tom amigável. — Eu já presumia que meu pai estava envolvido em alguma coisa obscura. Estou feliz cm comprovar isso por seu intermédio. Então ele trabalhou para o Serviço Secreto de Ribbentrop? E como o senhor sabe disso?

Damiani deu uma risada amarga. — A fraude. Sempre a fraude. O mundo inteiro consiste numa fraude, meu caro signore Ross. Veja, internacionalistas não existem tantos assim. Em Berlim, trabalhei para minha Embaixada. Naturalmente os órgãos do governo alemão tinham seus próprios peritos. Também o Ministério do Exterior, de Ribbentrop, bem como seu Serviço Secreto. E nós, internacionalistas, nos conhecíamos todos. Muitos eram amigos entre si. Eu, por exemplo, era amigo do professor Emil Kant, uma capacidade. Certa noite, nos começos de 44, segundo meus cálculos deve ter sido em fins de março, Emil contou-me em minha casa algumas coisas a propósito de um novo caso desse eterno embuste. Nós nos encontrávamos toda semana. Éramos realmente amigos. Emil podia confiar em mim, disso ele sabia. Por isso, ele me fez um relato sobre o assunto. Era ultra-secreto. Ter-lhe-ia custado imediatamente a cabeça, caso os nazistas descobrissem que ele me falara sobre isso. EmiI... — Damiani olhou para o vácuo e sorriu, absorto. Calou-se, submerso em pensamentos e recordações.

— Professor!

— Ah, sim. É claro. Desculpe-me. Veja só, Emil trabalhava para seu pai como especialista em Direito internacional. Também para outras repartições, mas sobretudo para seu pai. Ross. Georg Ross. Assim se chama seu pai, não é mesmo?

—  É fato, assim ele se chamava. O senhor tem uma memória extraordinária.

—  Extraordinária, é verdade. Lembro-me de tudo. Por décadas Meu cérebro tem registrado milhões de acontecimentos e fatos, pode crer. Além disso, o assunto que seu pai havia dado ao meu amigo para verificar, excitou-nos muito, a ambos. É claro que mais a Emil que a mim, pois nessa época eu já sabia mais ou menos como as coisas se passam nesse mundo. Mas eu confesso que também fiquei excitado, e como ... — Mais uma vez, o olhar de Damiani caiu no vazio. Emudeceu novamente. Somente depois de algum tempo é que voltou a falar:— Trapaça, é evidente. Tratava-se disso. Um acordo entre os Estados Unidos e a União Soviética, no qual essas duas potências partilhavam o mundo entre si. Exatamente como em 1494 espanhóis e portugueses o fizeram, só que desta vez sem a bênção do Papa! — Ele riu, tossindo e esfregando as mãos.

— Um acordo entre os Estados Unidos e a União Soviética? - repetiu Daniel com uma voz que deveria soar a mais incrédula possível. — Quando é que teria sido concluído? E onde? E que tinha meu pai a ver com o assunto?

- Tudo isso é muito obscuro, caro signore Ross. Seu pai chamou meu amigo Emil e entregou-lhe uma cópia desse acordo... Sim, ao que parece era a cópia de um protocolo secreto filmado, que o Serviço de Ribbentrop conseguira em Teerã...

- Em Teerã?

A tempestade soprava violenta ao redor da mansão. As telha batiam, a madeira gemia, correntes de ar passavam através da janela dupla.

- Sim, em Teerã. Foi lá que, em fins de 1943, se realizou aquela conferência dos três grandes: Churchill, Stalin e Roosevelt. E, naquela ocasião, ao que consta, teria sido concluído esse acordo secreto, cuja autenticidade o Emil devia verificar. Ou també se pode dizer: comprovar o grau de perfeição da falsificação. Tais pactos são elaborados com uma terminologia totalmente específica, com fórmulas e regras bastante rigorosas, não é verdade? Um perito percebe imediatamente qualquer pa lavra não apropriada e portanto, falsa. Eles queriam estar se guros de que o embuste seria perfeito...

— Quem queria estar seguro, professor, quem?

— Ora, os falsificadores, naturalmente, meu caro amigo. Ou esse protocolo era autêntico, e nesse caso os americanos e os soviéticos enganavam a humanidade. Ou então foi forjado pelos nazistas, mas tinha de parecer autêntico, pois desejava-se empregá-lo para fins de propaganda. Nesse caso, eram os nazistas que estariam engambelando a humanidade, ou pelo menos tencionavam fazê-lo. Em ambos os casos, eles necessitavam de um perito de primeiríssima ordem que lhes dissesse que o protocolo, em matéria de estilo e formulação, era incontestável. Trapaça, como o senhor vê. Trapaça dos aliados, trapaça dos nazistas — isso é indiferente, não é mesmo? Emil ficou inteiramente fora de si, o bom Emil... Tão ingênuo... Ao contrário de seu pai. Lamento, eu lhe avisei, lamento ter de falar desse modo. Mas enganar era a função profissional de seu pai, não é verdade? E nós todos somos enganados... sempre o fomos. Quantas vezes não foi dividido este mundo? Quantas vezes não se mentiu para a humanidade? Pense apenas no pacto de não-agressão entre a Alemanha e a Rússia, que Ribbentrop e Molotov subscreveram em agosto de 1939... E pense que já em junho de 1941, menos de dois anos depois, a Alemanha invadiu a Rússia... Farsa. Intrujice... Os nazistas iludiram... - Mas os americanos e os soviéticos também não enganaram as pessoas? E será que os nazistas queriam apresentar à humanidade essa trapaça? Ë presumível! E é de supor que Kohl e Reagan também estavam envolvidos nesse negócio... — O olhar de Damiani vagava pelo gabinete.

— Mas, professor! Perdão! Naquele tempo, o Reagan era ator em Hollywood e Kohl um guri de quatorze anos!

— Ah, sim... — Nada mais poderia demover Damiani em sua argumentação, estranha à realidade. — É, mas isso também não tem a menor importância! No fim da história, a coisa é sempre a mesma: estamos sendo trapaceados! Mantenho constante contato com personalidades importantes. A todo instante recebo novas informações. Trapaça. Trapaça. Desde o começo do mundo até o seu fim...

Daniel interrompeu-o, falando bem alto a fim de arrancar Damiane de seu transe. — E a que conclusão chegou o seu amigo, professor?

— Conclusão? — Damiani olhou para Daniel, sem nada entender.

- Depois de examinar o protocolo secreto que meu pai lhe havia dadoo?

- Como assim? Ah, é! Isso eu não sei, meu amigo.

- E por que não?

- Precisei retornar a Roma, em maio. Em maio, a casa de Emil, na Praça Savigny, foi bombardeada, conforme ainda fui informado. Sua mulher e seus filhos perderam a vida, e ele mesmo parou no hospital, gravemente ferido... O senhor não imagina como era em Berlim com esses ataques aéreos.. – Pavoroso... Em todo caso, nunca mais falei com Emil a respeito do resultado de sua investigação... Isso mesmo, apenas quando ouvi o nome do senhor e que seu pai trabalhou em Berlim durante a guerra, é que me veio à cabeça toda a história...

- E se um tal acordo entre a União Soviética e os Estados Unidos realmente existiu, e ainda existe? — indagou Daniel.

- Ora! Damiani fez um gesto cansado. — E daí, caro amigo? Do ponto de vista científico chega até a ser perfeitamente concebível. Pois corresponderia à natureza do mundo, não é verdade? O mundo é mesmo assim! O que acha o senhor que poderia acontecer se se comprovasse que tal acordo efetivamente existe? Nada, caro amigo, rigorosaxnente nada! Acredite: isso não interessaria a pessoa alguma. Porque nós somos permanentemente logrados...

Damiani encolheu-se todo. Sorria, alucinado. Passou-se uma longa pausa,  preenchida pelo ruído da tempestade que se agitava lá fora. Finalmente, Daniel indagou com cautela: — E... seu amigo vive ainda, professor?.

Damiani levantou vagarosamente o olhar

— Que amigo?

Ele tinha estado distante, bem longe em seus pensamentos, num outro mundo, no seu mundo.

— Esse, de quem o senhor falou até há pouco. Esse, que recebeu de meu pai aquele documento para exame, O professor Emil Kant,

— Oh, o senhor deseja dizer, o Emil! — De repente, Damiani tinha a expressão de uma criança. — Em 1970 ele ainda vivia. Meu livro foi publicado e ele me felicitou. Tínhamos perdido todo contato, desde a guerra, sabe. Mas, quando meu livro causou sensação, e é preciso reconhecer que ele causou uma sensação enorme na Itália e entre meus colegas, Emil se deu ao trabalho de desencavar meu endereço em Roma. Eu morava então na Via Cortina d’Ampezzo. Iniciamos uma assídua troca de correspondência, e, em fins de 1971, ele chegou a me visitar. Ele tinha então... deixe-me lembrar... sim, sessenta e quatro anos. Isso, nasceu em 1907. Em 1973, quando foi publicada a tradução alemã da Inter coetera divinae, a Faculdade de Direito Internacional da Universidade Livre de Berlim me convidou e me outorgou uma distinção. O discurso laudatório coube ao meu velho amigo Emil. Ele foi muito comovente. Outubro de 1973, isso mesmo. Foi quando eu o vi pela última vez. Daí em diante eu vivia o tempo todo em viagens, em conferências sobre o livro, estava louco de tanto trabalho. Nosso contato se rompeu novamente. Não sei, portanto, se Emil ainda vive. Nunca mais ouvi falar dele. Mas também nunca ouvi falar que tivesse morrido. Setenta e sete teria ele hoje. Naquele tempo, quando recebi a honraria em Berlim, ele morava com uma governanta numa casa no Caminho de Schwanenwerder, junto ao lago Wann, naquela pequena enseada. O senhor co nhece Berlim?

— Sim.

— Caminho de Schwanenwerder. É ainda em Berlim ocidental. Ë idílico lá. Número 325, acho eu. Alguma coisa com 320. Por quê? Quer falar com o Emil?

— Sim, professor. O senhor escapou de Berlim em maio de quarenta e quatro. Nosso contato com meu pai se rompeu em março de 45. Talvez seu amigo saiba o que foi feito dele e se ele realmente morreu em 45, e como, e onde.

— O senhor tem razão – disse Damiani.  - Emil deveria sabê-lo. E também em que deu essa história de Teerã. Estranho, não conversamos sequer uma vez sobre isso, quando estive em Berlim em 1973. Isso me interessaria. Cumprimente-o cordialmente! E que ele volte a me escrever. Conte-lhe tranqüilamente como me conheceu e que, infelizmente, não estou passando muito bem. Que eu tenho esses problemas terríveis com Alexandre, Isabel e Fernão. Conte-lhe tudo. Ele também lhe dirá tudo o que sabe sobre seu pai. Se ainda estiver vivo...

Você não pode deixar de ouvir a violinista Franz!

Com estas palavras começava o texto interno de um prospecto nas cores rosa-escuro, cinza e branco, cuja capa mostrava uma moça tocando violino. Seu vestido, bastante decotado no estilo da virada do século. Seus cabelos e seu rosto, apenas sugerido, eram vermelhos, bem como o violino e o vestido decotado. O pintor Reznicek havia retratado tais mulheres antes da Primeira Guerra Mundial, pensou Daniel Ross. Eu vi muitas naqueles velhos volumes do SIMPLICISSIMUS. Que charme...

- isso mesmo, senhorita. — Ele estava telefonando, sentado à escrivaninha no salão do apartamento 419 do hotel Ritz, na proximidade da Praça Schwarzenberg, e via as luzes do tráfego noturno que fluía sobre a larga Ringstrasse vienense. O apartamento era decorado com móveis de estilo. Sobre a mesa, havia um vaso cheio de flores enviadas pela gerência, assim como outro menor, repleto de mimosas. Daniel ouvia Mercedes caminhando de um lado para o outro no dormitório ao lado. Tinham chegado há uma hora, e ele estava falando com uma telefonista do hotel. — Professor Emil Kant, Berlim Ocidental, Caminho de Schwanenwerder, número 320 ou por aí.

Chá das cinco vienense com as “Doces meninas de Viena”, no Café Ritz, diariamente das 17 às 19h, encimava o desenho. Daniel sempre se hospedava no Ritz quando vinha a Viena. Gostava desse hotel que conhecia há muitos anos, assim como o famoso café contíguo, a que se referia o prospecto.

— A senhorita me chama de volta, obrigado! — Ele repôs o receptor no aparelho, tomou a desdobrar o prospecto e releu com ar ausente: Você não pode deixar de ouvir a violinista Franzi! E a temperamental Fifi,...

Era sexta-feira, 9 de março de 1984, por volta das 20h. Há duas horas, Daniel e Mercedes haviam deixado o Sanatório Kingston, em Heiligenkreuz, e agradecido a muitas pessoas seu trabalho e ajuda: médicas, médicos, enfermeiras, enfermeiros, a gorda enfermeira-chefe Magdalena e o pálido Dr. Herdegen. Ao final, Mercedes, ele, Sibylle e Werner estavam diante da entrada da clínica, junto a um táxi na neve.

— E a você agradeço mais que a todos, Sibylle. Você me botou nos eixos de novo. Você é maravilhosa. Não existe médico melhor para mim..

— Você não vai precisar de médico algum se cumprir aquilo que prometeu e não tomar, por dia, mais que duas pastilhas de Amadam. Estou só alertando! Você não pode continuar eternamente devorando comprimidos desse jeito. Desta vez, você já estava todo quebrado, estou lhe dizendo a verdade.

... as duas, com as outras estrelas da legendária Orquestra Feminina de Viena, enfeitiçam você com melodias populares, desde Strauss até Lanner, Ziehrer, Stolz e Lehar...

— Eu tomarei conta dele, Sibylle — disse Mercedes. Eles continuavam a falar a fim de adiar a despedida final. Todos quatro estavam com ânimo tristonho e sentimental.

— Eu acho isso lindo, Mercedes, mas de nada adianta. Só esse moleque mesmo é que pode fazê-lo. E disso ele bem sabe. E sempre soube...

Daniel abraçou Sibylle e beijou-lhe as faces. Ela lhe fez um sinal da cruz sobre a testa.

- O que é isso? — perguntou ele. — Eu...

- Eu sei que você não acredita nEle — disse Sibylle — mas eu acredito. Que Ele o proteja. Há doze anos, também estivemos assim, um diante do outro — sozinhos. Tarde da noite, diante da torre de apartamentos do Hospital Geral. E então você mesmo fez um sinal-da-cruz na minha testa e eu disse: O que é isso? Você não acredita nEle! E você respondeu: Eu não, mas você. Está lembrado?

- Claro, Sibylle — respondeu ele — me lembro muitíssimo bem.

- Não deixe passar novamente doze anos! — disse Werner. - Mercedes, você fica responsável para que esse sujeito, a partir de agora, sempre volte a aparecer. Com você! Telefonem, por favor! Onde quer que estejam! Porque nós nos preocupamos com vocês!

- Está certo, Werner — disse Mercedes.

- Saúde e felicidade, tudo de bom para vocês! Continuem juntos! E não percam o ânimo nesses tempos desgraçados! - disse Daniel olhando para Sibylle.

Ela fechou por um instante os olhos. — Você também não, Danny e cuide de si, por favor!

... tudo isso acompanhado de café, chá ou chocolate quente como nos velhos tempos. Escolha um pedaço de pudim. brioche, bolo ou torta – como desejar. (Tudo isso pelo preço de 65 xelins)...

Finalmente embarcaram apressados. O táxi arrancou e Daniel olhou para trás. Werner e Sibylle estavam de pé sob a lâmpada de entrada, acenando.

Por intermédio de Colledo, Daniel havia mandado reservar um apartamento no Ritz. Sempre lhe davam o 419/420, desde que ele se entendia. Depois de tanto tempo, havia-se tornado o “seu” apartamento. Todos os porteiros e recepcionistas o saudavam alegres, sempre que ele vinha. Também desta feita foram especialmente atenciosos e prestativos. Apertou muitas mãos e abraçou a única senhora da recepção, sua boa e velha amiga Edith. Conheciam-se há mais de vinte anos. Edith, afável como sempre, usava um de seus vestidos pretos, fechado até a gola, e seu belo colar de turquesas. Penteada com elegância e discretamente maquilada como sempre, ela subiu com Mercedes e ele até o quarto andar, abriu o 419/420, acendeu todas as luzes e desejou-lhes uma boa estada. Assim que ela saiu, Daniel descobriu o envelope com uma saudação de boas-vindas, encostado no vasinho sobre a escrivaninha. As mimosas eram uma gentileza de Edith. Estava muito contente em rever Daniel, escreveu ela.

O telefone tocou.

Ele atendeu imediatamente.

— Aqui é a telefonista, Sr. Ross. O senhor queria o número desse professor Emil Kant...

— A senhorita o conseguiu?

— Sim, Sr. Ross. — E a moça ditou, enquanto ele anotava o número num bloco à sua frente. — E o endereço exato é Caminho de Schwanenwerder, 327.

— Eu lhe agradeço muito, senhorita.

Daniel desligou. Como fazia calor no apartamento, logo após a chegada, ele mudara de roupa. Estava de pijama e robe.

— Consegui! — exclamou.

— Ótimo! — veio a voz de Mercedes do quarto. — Telefone logo para ele! É quase impossível que eles já tenham grampeado o telefone.

Ele discou o código de Berlim e o número de Kant. Demorou muito até que alguém atendesse. Finalmente, ouviu-se uma voz de mulher.

— Aqui é da casa do professor Kant!

— Boa noite! Estou falando de Viena. Meu nome é Daniel Ross. Seria possível falar com o professor?

— Foi Ross que o senhor disse? De Viena?

- Sim.

— Um momento, por favor.

Estou avançando, pensou Daniel. Nervoso, passou os dedos pelos cabelos brancos.

Uma voz masculina: - Aqui é Kant.

- Perdoe-me o incômodo a essa hora, professor, mas é muito importante para mim. Espero obter do senhor uma informação a respeito do que foi feito de meu pai.

- Como é o seu nome?

- Ross. Daniel Ross. Meu pai se chamava Georg Ross e trabalhava durante a guerra para o serviço de Ribbentrop. O senhor o conhecia...

- Quem é que diz isso?

- O professor Damiani.

- Umberto? Como assim...

Em poucas palavras, relatou sua conversa com Damiani. – O senhor está lembrado ainda desse assunto, professor?

Silêncio.

- Professor!

- Sim.

- Perguntei...

- Eu não o conheço, Sr. Ross. O senhor diz que está falando de Viena. Não creio, que isso, pelo telefone...

- Mas é claro que não! Posso ir vê-lo em Berlim?

Novo silêncio. Então, Kant disse: - Se isso for tão importante para o senhor, Sr. Ross... por favor venha!

- Quando?

- Quando o senhor quiser. Eu tenho tempo.

- Poderia já ser amanhã? Eu estou com pressa. Amanhã  à noite?

- Tanto faz. Digamos às sete?

- Às sete está ótimo. Eu lhe agradeço muito, professor.

Daniel despediu-se e desligou. Retomou o fone e discou o número do porteiro. Reconheceu-o pela voz.

- Sr. Albert, aqui é Ross.

- Quanta honra, Sr. Ross. Que posso fazer pelo senhor?

- Preciso de passagens. Vamos amanhã para Berlim.

- Para lá voam muitos aviões. Precisam fazer escala em Munique ou Frankfurt. Vôos diretos não há.

- Eu sei. Tenho um compromisso às seis.

- Momentinho, aqui está o plano de vôos. Às seis, o senhor diz? Sugiro que o senhor tome a AUA às 11h30m, para Munique. Muito cômodo por causa da conexão. Com a Pan American já chega às 15h30m em Berlim-Tegel.

- Excelente. Mas agora já é noite. O escritório da AUA na cidade...

- Está fechado. Eu reservo no aeroporto. E o senhor paga as passagens amanhã.

- E se o vôo já estiver lotado?

- Não agora, no inverno. Os aviões seguem meio vazios. O Sr. Ross pode ficar tranqülo. Um lugar para o senhor e um para a senhora. Vou tratar disso já.

— Obrigado, Sr. Albert!

Daniel levantou.se um pouco tonto. Se eu agora tiver sorte, pensou ele... Se tiver sorte...

Atravessou o salão e abriu a porta do quarto. Só estava acesa a luz da cabeceira. Mercedes estava deitada na cama, despida. Ele olhou seu corpo bronzeado pelo sol, os grandes e belos seios, as longas pernas, o ventre liso e o escuro triângulo de seu sexo.

— Venha, Danny — disse Mercedes. — Venha para junto de mim! Há tanto tempo eu esperava por isso.

O tempo passara.

— Foi maravilhoso. Tão maravilhoso e intenso como nunca.

— Para mim também, Mercedes.

— Com a maioria das pessoas, a primeira vez não é nada maravilhosa. Porque ainda não se conhecem bastante. Por isso foi bom que tivéssemos de esperar tanto tempo, Danny. Nesse tempo todo, pudemos nos conhecer perfeitamente. Por isso foi tão fabuloso. Você é muito amado, sabia?

— Você mais ainda, Mercedes. Mais ainda.

— Às vezes não funciona com um homem pela primeira vez, por mais que os dois se esforcem, segundo me disse uma amiga. E a mulher, então, pode ficar muito feliz com isso.

— Não diga...

- Sim, porque isso demonstra que o homem a ama de verdade, sinceramente. De verdade e sinceramente demais. Ele a deseja demais, com intensidade demais. Por essa razão, não funciona. É sempre um bom sinal, ouvi dizer.

— Você também ficaria muito feliz comigo, mesmo que não tivesse dado certo, Mercedes?

— lmensamente.

- Lamento que não tivesse sabido disso antes. Mas eu temo que de nada teria adiantado.

- Sim, eu também temo que sim.

- Mas você acredita que eu amo você, embora tenha funcionado?

— Claro — disse ela séria. — Segundo disse a minha amiga, talvez alguns homens metam isso na cabeça das mulheres. Como desculpa. E na hora, você não teve de pensar em Sibylle?

— Não, Mercedes.

- Eu sei. Eu sei, Danny. Eu teria notado. Com certeza. Não teria sido tão maravilhoso. Agora eu acredito que você me ama realmente. Até hoje eu tinha medo.

- Medo por causa de Sibylle?

-Sim. Ela é tão formidável. Nos últimos dias sempre pensei que você tinha, simplesmente de amá-la ainda, apesar de tudo que você dizia. Agora eu sei que posso ficar tranqüila.

- Inteiramente tranqüila, Mercedes. — Ele viu algo sobre a mesinha-de-cabeceira. — O que é... Mas isso é o velho disco!

- Que Sibylle nos deu de presente, sim. Já foi a canção de vocês. Agora é a nossa. Deve proteger-nos. A nós e ao nosso amor. Pus ali por superstição. Pensei que se a canção está tão perto e se tudo sair maravilhoso, então é sinal que você me ama de verdade, sinceramente.

— Está vendo?

— Mas eu não desejo apenas que sejamos um pouco felizes. Eu desejo toda a felicidade que possamos ter. Nunca consigo ficar feliz demais. E saudade da tristeza, eu não sentiria nunca..

— Mas sabe, a letra é tão bonita..

— É, isso é verdade. — Ela curvou-se sobre ele e abraçou-o loucamente. — Oh, Danny, querido, venha cá de novo...

Eram 11h da noite quando o porteiro da noite, Felix Pokorny, rendeu o turno da tarde. A essa hora, havia ainda muitos hóspedes sentados no bar e na grande sala dos fundos. Felix Pokorny estava aposentado já há alguns anos. Por muito tempo havia trabalhado no Ritz. Agora era chamado por seus ex-colegas do Ritz e dos outros hotéis da região toda vez que algum dos porteiros da noite ficava doente. Então, Pokorny os substituía. Já há três noites o fazia no Ritz, pois ambos os colegas do último turno se achavam de cama com forte gripe.

Pokorny era um homem alto e forte, que vivia sozinho. Já havia perdido sua mulher há muitos anos, e os filhos, crescidos, já estavam casados. Pokorny gostava de substituir os enfermos, e não pelo dinheiro. Por muitos anos trabalhara em grandes hotéis. Ficara para sempre dominado pela estranha fascinação que eles exercem.

Por volta da uma hora da manhã, esvaziaram-se o bar e o salão. Os hóspedes recolhiam-se a seus quartos e muitos já levavam as edições matutinas dos jornais, trazidas pelos entregadores. Às duas, tudo estava inteiramente deserto. Um empregado cochilava numa poltrona próxima aos elevadores de carga, e Pokorny, que havia trancado as amplas portas de vidro da entrada, permanecia sentado na pequena central telefônica, atrás do extensão balcão da recepção. Ele lia, num livro que continha algumas cartas escolhidas de autoria de Ernest Hemingway, exatamente esta frase: “O mundo está tão cheio de tantas coisas que estou seguro de que deveríamos todos ser felizes como reis. De que modo são felizes os reis?”

Nisto, tocou a campainha da entrada.

Pokorny ergueu-se, atravessou o saguão e viu diante da porta de vidro um homem de pé, com um sobretudo forrado de peles. Atrás dele, via-se um carro estacionado no acostamento da Ringstrasse. O homem era alto e magro, de cabelos louros cortados rente. Ele sorria enquanto Pokorny abriu um lado da porta de vidro e o deixou entrar.

— Boa noite, meu senhor.

— Boa noite — disse Wayne Hyde. — Finalmente! Meu Deus, mas que noite! Cheguei a pensar que nunca mais chegaria a Viena.

— Mas o que aconteceu? — indagou Pokorny.

— Estourou o pneu traseiro do lado direito. Na auto-estrada. A cento e vinte por hora.

— Minha nossa — disse Pokorny. — Mas que azar!

— Eu que o diga. Não tinha estepe. E até rebocarem o carro!

— Onde é que foi?

— Antes de Sankt P(lten.

— Santo Deus, o senhor deve estar morto de cansado.

— Se estou! Tomara que o senhor tenha um quarto para mim.

— Quantos quiser. Acompanhe-me, por favor...

Pokorny seguiu na frente. Wayne Hyde puxou um lenço de seu casaco e uma garrafinha, abriu-a habilmente e empapou o lenço com éter. Aproximou-se rapidamente de Pokorny, por trás, e, dobrando o braço, aplicou-lhe o lenço contra o nariz e a boca. O velho porteiro reagiu um instante, mas depois desabou por inteiro. Hyde o deixou deslizar sobre o tapete do saguão.

Do lado do elevador de serviço, já vinha o sonolento copeiro da noite, despertado pela campainha. Esfregava os olhos.

— O que... — Não disse mais nada. Já estava com o lenço apertado contra seu rosto. Fez alguns movimentos enérgicos com os braços, mas logo, como Pokorny, escorregou inconsciente sobre o tapete.

Hyde movia-se elasticamente e com rapidez. Deslizou para trás do comprido balcão da recepção e percorreu com o olhar o grande quadro-negro com os inúmeros cartões multicores. Era o plano de ocupação do hotel, com todos os nomes dos hóspedes. Hyde encontrou o que procurava.

419/20 — DANIEL ROSS

Foi então para o escritório atrás da parede com as chaves, acendeu a lâmpada fluorescente e olhou em tomo. Havia ali um computador. Sobre a escrivaninha ao lado, Hyde divisou uma caixa com as contas dos hóspedes e os respectivos comprovantes. Na folha contábil do 419/20 só estavam presas duas notas: uma do serviço do andar e outra que era uma fita impressa pelo computador com dados de um telefonema indicando o número solicitado, a duração em minutos bem como a tarifa. Hyde anotou depressa o número do telefone de Berlim num pedaço de papel e o enfiou no bolso. A conta com a fita do computador, ele a repôs em ordem dentro da caixa. Desligou a lâmpada, deixou o escritório e aproximou-se da parede com as chaves. No escaninho 419 faltava a chave, mas nele havia um cartão. Retirou-o e leu o que estava escrito.

Acenou com a cabeça, satisfeito, e recolocou o cartão em seu lugar. Em seguida, deixou o hotel após passar cautelosamente por cima de Pokorny, que estava imóvel. Pouco depois, já estava sentado ao lado do motorista do carro, que esperara parado diante da entrada.

— Para onde? — perguntou o pálido Dr. Herdegen.

— Wienzeile da direita, número 10.

A essa mesma hora — eram 2h15m de sábado, 10 de março

— Conrad Colledo, da emissora de televisão de Frankfurt, estava sentado em seu escritório na casa da Rua Siesmayer, no grande Parque Gr(neburg, em Frankfurt. Ele falava ao telefone com um de seus pesquisadores em Los Angeles. Lá eram apenas 17h15m, perfazendo nove horas a diferença de fusos horários. Colledo dava a impressão de um homem exausto.

— E para resumir, chefe — disse a voz de um jovem no fone —, nos dois últimos dias estivemos todo o tempo viajando entre Washington e Los Angeles. Sete pessoas. Aqui há o CCA e a ACA, ou seja, o “Clube dos Câmeras da América” e a “Associação dos Câmeras Americanos“. Depois de muito ir e vir, mostraram-nos a lista de seus asssociados de durante a guerra. Quase todos os câmeras estão lá dentro, os bons de qualquer forma. Ora os camaradas de Teerã eram, decerto, de primeira linha.

- Isso, com certeza, Pit. Prossiga!

- Agora nós temos o panorama completo. Em 11 de dezembro de 1941, Itália e Alemanha declararam guerra aos Estados Unidos. Por isso, examinamos quantos e quais associados das duas organizações prestaram serviço militar entre 1941 e 1944. Foram 2.657. Até nos sentimos mal. No Pentágono, em Washington, eles nas trataram com extrema cortesia, mas olhar na lista dos funcionários não nos foi possível. Tentamos realmente todos os truques, sempre de novo. Finalmente, conseguimos que um velho arquivista se dispusesse a pelo menos nos dizer em que «teatros da guerra” ou para quais tarefas especiais haviam sido destacados os homens.

- E então?

- O velho sofreu um acidente de carro. Hoje, pela manhã. Antes que nos pudesse dizer alguma coisa. Foi atropelado numa faixa para pedestres. Um carro passou disparado e o pegou. Morreu na hora.

—E o carro?

— O motorista fugiu. Até agora, nenhuma pista, segundo a polícia. As placas do carro estavam tão sujas que as testemunhas não puderam enxergar os algarismos. Um caso evidente, não é?

— Claro que é — disse Colledo — Merda.

— Filmamos tudo, preparando uma documentação. Depois, nós conseguimos selecionar, dentre os mais de 2.600 associados das duas organizações, quantos ainda vivem hoje. O resultado foi 1.998. Naturalmente nem todos trabalham mais. E aqueles que trabalham, não estão todos em Hollywood, mas também na costa leste ou nas estações de TV. Praticamente em todo o país. Os que não trabalham, também.

— Tente encontrá-los, todos!

— Chefe, eu disse, vivem ainda 1.998!

— Eu ouvi bem. Vocês precisam procurá-los. Todos.

— Vai levar uma eternidade!

— Deixe levar uma eternidade!

Atrás de Coliedo se achava pendurado um retrato de sua pequena filhinha, a Kathi, que havia morrido no ano anterior.

— São quase dois mil câmeras! E nós somos sete! Para cada um de nós sobram cerca de trezentos! Fica impossível, o senhor há de concordar, meu Deus!

— Então, eu lhe mando mais dez rapazes.

— Mas isso é loucura, chefe!

— Você sabe, Pit, atrás de que nós estamos?

— Claro, chefe.

— Então pare de reclamar!

— O senhor é quem manda, chefe. Ainda vamos ficar todos pirados.

— Então, que fiquem todos pirados. Ou encontrem os homens certos.

— Nunca, chefe, jamais! Caso a gente — que Deus nos proteja — esteja a ponto de descobri-los, eles vão logo sofrer acidentes de carro. Talvez até já tenham sofrido. Ou então uma arma disparou por acidente quando as estavam limpando. Ou...

— Pit?

— Sim, chefe?

— Cale essa boca, está me ouvindo? Faça o que estou dizendo! E mantenha contato! Boa noite!

Colledo desligou e apoiou a cabeça nas mãos. Então, também nada, pensou ele. Nada vezes nada. Mandei meu melhor pessoal para todos os cantos. Para o Instituto de História Contemporânea em Munique, para o arquivo estadual em Berlim. Em Coblença, bem, lá quase tivemos sorte. Quase. Mataram o pobre sujeito como um cão e sumiram com o Diário de Serviço. E que mais? Mais nada. Absolutamente nada. Nada no Museu da Guerra, em Londres. Nada no Archive de la Seconde Guerre Mondiale em Paris, e em todos os outros arquivos. Nada nos arquivos em Washington. Nada, nada, nada. Danny ligou. De Viena. Pelo ele encontrou alguém: o autor de um parecer sobre o protocolo secreto. Voa hoje para Berlim. Já disparei uma equipe para lá. A Policia Federal já está avisada. Talv...

- Conny!

Ele ergueu o rosto.

Lisa, sua pequena e frágil mulher, havia entrado no escritório - descalça e de camisola — Seu louro cabelo estava em desordem.

- Você vai trabalhar a noite inteira? Já são duas e meia.

Ela tinha se aproximado dele e pusera os braços sobre seus ombros. Coony beijou-lhe os pulsos cortados.

- Já estou indo.

- É aquela história que você não quer me contar?

- Eu não posso, Lia, não posso.

A pequena mulher desatou de repente a chorar. Ele tentou consolá-la e faze-la ficar calma de novo, mas demorou muito até que tivesse conseguido tranq(ilizá-la um pouco. Foram juntos para a cama. Lisa adormeceu logo. A seu lado, Conrad Colledo continuou deitado, os olhos abertos, atento à respiração regular da mulher. Nessa noite, não dormiu um só minuto.

No aeroporto de Tegel, Mercedes e Daniel alugaram um carro, chegando ao Hotel Kempinski, no Kurf(rstendamm, por volta das 16h3Om. A entrada principal era na Rua Fasanen, a Rua dos Faisões, onde Daniel estacionou o seu Volvo, encaminhando-se em seguida para o grande saguão. Empregados do hotel cuidaram das bagagens, e o chefe da portaria Willi Ruof, um prestativo gigante bávaro extraordinariamente cortês, cumprimentou Daniel com cordialidade. Os dois se conheciam há muitos anos, pois sempre que lhe era possível, Daniel ali se hospedava. Também no Kempinski ele tinha seu apartamento permanente: 606/7.

Apresentou Mercedes a Ruof, tagarelando por vários minutos. Dias antes, um avião de carreira polonês, da companhia estatal LOT, havia sido seqüestrado por três homens e conduzido para o aeroporto de Tempelhof. O avião fazia um vôo doméstico. Quando os passageiros perceberam onde se encontravam, onze dentre eles se decidiram a acompanhar os seqüestradores e permanecer no ocidente, pedindo asilo político. Como em todos os episódios desse gênero, mesmo nos casos mais dramáticos, logo os berlinenses começaram a fazer suas piadas a respeito.

— Sr. Ross, o senhor sabe o que quer dizer LOT? — perguntou o chefe da portaria. — “Linha Ocidental Tempelhof”... E um recado para o senhor. — Ruof estendeu-lhe um envelope, desejando-lhe uma boa permanência.

No elevador, Daniel rasgou a sobrecarta e leu o recado.

— O que é? — indagou Mercedes.

Daniel olhou para o ascensorista que os levava para cima e estendeu o papel para ela.

— Equipe aguarda chamada no Hotel Steigenberger — leu ela. Estava igualmente escrito um nome desconhecido e um número de telefone.

O apartamento em Berlim agradou muito a Mercedes. Ainda havia bastante tempo. Daniel encomendou chá. Enquanto o tomavam, ele tratava de buscar num mapa da cidade o melhor caminho para o lago Wann. Conhecia muito bem a cidade, mas ainda era inverno e a noite já caía bem cedo.

Mercedes estava ficando cada vez mais inquieta. Havia concordado com o fato de que não poderia acompanhar Daniel. Qualquer explicação só teria tornado inquieto e inseguro o professor Kant. Ele estava à espera de uma pessoa: o filho do homem com quem trabalhara durante a guerra. Daniel dissera que desejava ser informado que Kant sabia sobre o destino de seu pai. Era impossível apresentar ao professor uma enteada argentina. Para tanto, deveria ter dito a verdade desde o começo. E isso, ambos não desejavam.

— Não tenha medo — disse Daniel ao partir. — Não vai acontecer nada. Vai estar tudo cheio de polícia, pois Colledo já a preveniu. Eles entram em ação à mínima suspeita de que algo não está em ordem. E a equipe também vem logo, no momento em que eu tiver falado com o professor o essencial.

- Mesmo assim, estou com medo, Danny, um medo terrível... — Ela apertou-o em seus braços. Daniel beijou-a, soltando-se cuidadosamente em seguida. — Assim você não é a corajosa Mercedes.

— Não sou corajosa coisa nenhuma!

— Sim, você é, e gosta de mim e sabe que preciso ir lá sozinho. E, como você me ama, agora não vai me afligir, mas vai parar com isso e dizer que não está com medo.

Ela soluçou algumas vezes, passou a mão pelos olhos e disse:

— Não tenho medo.

— Assim você é a minha menina! — Ele a abraçou ainda uma vez e saiu rápido do apartamento, a caminho do elevador.

Na sala do apartamento, Mercedes afundou numa cadeira. Lágrimas lhe subiam aos olhos e ela sussurrava: — Ó Deus, se eu pelo menos não sentisse tanto medo!

Um manobrista de carros acompanhou Daniel até o Volvo alugado. A temperatura havia baixado.

— Dirija com cuidado, Sr. Ross! Formou-se gelo nas ruas. E muito obrigado.

Estava guardando a moeda de cinco marcos e fechou a porta atrás de Daniel.

O Kurf(rstendamm estava entupido com o tráfego da noite. Na Praça Rathenau Daniel dobrou entrando na Rua Halensee. Por ela, seguiu em direção ao norte e, com tráfego mais calmo, chegou ao Parque de exposições. Diante de si via a torre de rádio com suas luzes vermelhas, Dali ao Avus, uma auto-estrada. era um pulo.

Passava de seis e meia.

Daniel acelerou. Seguia agora em direção sudoeste e em velocidade muito maior, pois a auto-estrada estava livre de gelo. Só poucos carros lhe vinham ao encontro. Na altura da estação do lago de Nikolas, aproveitou a saída, cruzou o Caminho das Kronprinzessineu e tomou a direção noroeste pelo longo Caminho do Wannseebad. De muitas casas, as luzes iluminavam os jardins. Outras, pareciam desabitadas. Daniel aproximava-se cada vez mais da água. De repente teve pela frente a névoa e logo em seguida a neblina, empurrada pelo vento oeste. Ele via com dificuldade e seguia bem devagar. Ele sabia que adiante se encontrava a Inselstrasse, a Rua da Ilha, que passava por cima de uma curta represa e chegava à pequena ilha de Schwanenwerder. Pouco antes do começo da rua, divisou três carros parados. Por telefone, ele havia combinado com Colledo um sinal pelo qual poderia saber se a polícia estava a postos. Seguindo bem devagar, deu três curtos sinais com os faróis. Os faróis dos três carros responderam com o mesmo sinal. Da Rua da ilha até o Caminho de Schwanenwerder eram apenas uns poucos metros, e logo em seguida vinha a casa de número 327. Ainda na Rua da Ilha, estacionou um quarto carro que igualmente reagiu ao sinal luminoso de Daniel. Em menos de um minuto eles poderiam chegar até a casa, pensou Daniel.

Ele entrou mais uma vez à direita e parou. Aqui, nessa região, não havia iluminação pública. A neblina se tomara mais espessa, o raio de visão era de poucos metros. O lago Wann devia estar bem perto pois Daniel sentia o cheiro da água. A casa do professor era um sobrado, com um imenso teto pontiagudo com grandes clarabóias. Videiras selvagens cobriam as paredes, subindo por largas ripas de madeira. A casa seguinte certamente se achava a uns cem metros de distância.

Daniel apertou o botão da campainha no portão do jardim, no qual se encontrava pregado o número da casa. Do alto-falante saiu uma voz feminina deformada: — Quem está aí?

Ele se inclinou e falou para dentro dos furinhos do microfone:

— Daniel Ross. Tenho um compromisso com o professor.

— Um momento!

O portão se abriu, e sobre a entrada da casa acendeu-se uma luz. Daniel caminhou através do jardim, cinzento de neblina. A porta de entrada se abriu. Daniel viu uma corpulenta senhora de idade.

— Boa noite — disse ele.

— Boa noite — disse a mulher — o senhor trouxe seu passaporte?

— Sim.

— Deixe ver!

Daniel entregou-lhe o passaporte.

— Um momento.

A porta se fechou, Daniel ouviu passos que se afastavam. Esperou. Os passos voltaram. A porta se abriu novamente. A senhora idosa devolveu-lhe o passaporte e disse: — Entre, Sr. Ross. O senhor precisa desculpar, mas todo cuidado é pouco!

Estavam de pé num pequeno vestíbulo.

— Seu casaco, por favor!

À mulher o pendurou sobre um cabide. Em seguida, abriu uma outra porta.

— Por aqui, por favor!

Daniel entrou e parou, assombrado. Achava-se num cômodo muito grande, arrumado como gigantesco salão de estar. Tapetes cobriam o piso, cinco lâmpadas de pé, com abajures amarelos, catavam acesas, espalhando uma luz quente e clara. O cômodo fora muito bem dividido em partes de estar, de jantar e de trabalhar — simplesmente mediante o arranjo adequado dos móveis. Uma larga escada de madeira em balanço conduzia ao andar superior. Prateleiras de livros encobriam as paredes da parte destinada ao trabalho. Dicionários e escritos diversos se achavam sob uma forte lâmpada sobre uma mesa de carvalho, detrás da qual se ergueu um alto homem esguio, trajado com um leve casaco borgonha e calças de flanela. Ao redor do pescoço, trazia um fular branco de seda. Com passos juvenis veio ao encontro de Daniel.

— Permita-me saudá-lo, Sr. Ross!

— Boa noite, professor!

Apertaram-se as mãos. O professor Emil Kant tinha um rosto rosado e redondo, olhos claros e boca pequena. Sua cabeça era alva, mas dos lados e atrás, o cabelo ainda crescia em longas madeixas castanhas que Kant penteava para trás, prendendo-as na nuca com um pregador. Os cachos de cabelo desciam até os ombros. Parecia um hippie idoso.

— O senhor deseja um chá, um café — ou prefere uma bebida alcoólica?

— Um pequeno uisquinho não me faria mal.

— É para já. É para já. — Dirigiu-se então à senhora idosa que havia aguardado: — Está bem, Ema. Muito obrigado!

Ema desapareceu atrás de uma porta que dava para os fundos — presumivelmente para a cozinha.

— Minha governanta. Já está comigo há quinze anos. Pessoa fabulosa. Como ela cuida de mim!

Kant se encaminhou com Daniel para seu canto de trabalho e fez-lhe um gesto indicando uma poltrona de couro. — Tome assento. — Curvou-se sobre uma mesa coberta de garrafas e copos e preparou um drinque. — Gelo e água?

- Só gelo, por favor.

— Está certo. Vou tomar um também.

Kant trouxe dois uísques, e eles se desejaram saúde. Só então o professor se sentou.

— Naturalmente poderia ter sido um passaporte falso, não? — perguntou ele.

Daniel quis dizer alguma coisa, mas Kant interrompeu-o com um gesto.

- Não poderia tratar-se de passaporte falso. O senhor disse ao seu amigo Colledo o número do documento, por telefone. Ele o passou para a polícia e esta para mim. — Ele riu curto, como um balido.

— Estou realmente muito agradecido ao senhor por me haver recebido tão depressa — disse Daniel enquanto girava o copo nas mãos.

- Por que não deveria fazê-lo se meu velho amigo Umberto o mandou aqui? — Kant meneou a cabeça. — Mau, mau. Ele está muito doente, não?

— Receio que sim, professor.

— Esquizofrenia?

— E não se espera nenhuma melhora?

— Pelo que eu entendi, não. Ele... ele sofre muito com vozes, que passam todo o tempo atacando-o. Eu mesmo assisti a isso.

E Daniel relatou rapidamente a discussão verbal de Damiani com o Papa Alexandre VI, Femão de Aragão e Isabel de Castela, da qual fora testemunha.

— Pobre sujeito... — Kant sacudiu preocupado a cabeça. E os cachos do penteado hippie na nuca voavam de um lado para o outro. — Esse livro que ele escreveu, Inter coetera divinae, chamou, na época, muita atenção entre os teólogos e internacionalistas, como o senhor bem pode imaginar. Alguns teólogos ficaram quase loucos de raiva. É claro que Umberto também recebeu muito apoio. Mas foi um escândalo universal. Meu Deus, como ele foi coberto de imundície, no sentido figurado. Que polêmicas! Que lutas! Hoje em dia, esse livro é a obra de referência sobre o tema. Mas, para o Umberto, isso não adianta mais nada, coitado. Foi simplesmente demais para ele, em termos de irritação e ataques do tipo mais desagradável. Mas é preciso também compreender a igreja. Umberto a atacou sem piedade. E que se pode fazer — Kant ergueu a mão —, jamais o senhor poderá convencer um boneco de neve da força benéfica do sol de primavera.

Ele bebeu um gole do uísque. — Bem, e agora passemos ao senhor, Sr Ross! Confesso que este encontro, a mim, me toca fundamente. Afinal de contas, já faz quarenta anos que eu trabalhei com seu pai. Sim, agora em março, completam-se exatamente quarenta anos desde que ele me deu esse protocolo secreto para verificação, aquilo que o pobre Umberto mencionou. É verdade que eu nunca deveria ter lhe contado nada a respeito. Tratava-se de um “assunto secreto do Reich”. Mas o senhor sabe muito bem: ninguém dá mais com a língua nos dentes do que nós cientistas. Além disso, éramos amigos íntimos. Termine o copo! Vou buscar a garrafa e o gelo.

— Depois eu preciso dirigir, professor.

— Qual nada, não vão ser alguns golezinhos que vão derrubar o senhor.

O homem dirigiu-se à mesa e trouxe o que precisava. Pousou uma garrafa de uísque e um balde térmico com cubos de gelo sobre uma mesinha baixa, diante de Daniel, e refez os dois drinques.

— O senhor passou toda a guerra em Berlim, professor?

— Até o amargo fim. E o fim foi mesmo muito amargo, meu caro! Aqui o seu copo. À saúde! — Eles beberam de novo. — Amargo — repetiu Kant, e voltou a rir seu estranho riso balido. — O mundo tremerá com o ocaso dos germanos, não é? Pois bem, foi diabólico, simplesmente diabólico. Mas sobrevivemos. Sobrevivemos...

— E meu pai? — Daniel colocou seu copo de lado. — Perdoe-me se logo pergunto a respeito. O senhor é minha última esperança. Depois do senhor, não resta mais nada.

— Seu pai morreu nas lutas — disse Kant.

— Por isto eu já estava esperando — disse Daniel com o rosto impassível. — Só queria era ter certeza. Agora tenho. É claro que o senhor está seguro disso, professor, senão não me iria dar uma tal informação, não é mesmo?

— Inteiramente seguro, Sr. Ross. Goebbels me disse pessoalmente.

— Goebbels?

— Sim. Ele mandou me chamar. Para ir ao bunker da Chancelaria do Reich. Isso foi em 10 de abril de 1945. Verifiquei no meu diário. Uma odisséia, eu lhe asseguro! A cidade sob permanente bombardeio. Os russos já tinham rompido a última linha de defesa, no Neisse em Lausitz. Dois meses mais tarde, eles já se batiam em Berlim, de casa em casa. Vôos rasantes...

— Por que Goebbels o mandou chamar?

— Para dizer-me que Ross estava morto. Ele sabia que eu tinha recebido o documento para exames no ano precedente, na qualidade de confiável colaborador de seu pai. Sua casa em Dahlem já fora bombardeada em março de 1944. Desde então, ele morava em casa de conhecidos na Praça Bayerische, casa essa que eu conhecia. Goebbels exigiu então que eu fosse até lá e destruísse toda a documentação que seu pai havia levado para casa. O Ministério do Exterior de há muito já tinha sido evacuado. Goebbels sabia que eu reconheceria toda a documentação importante. Que haveria eu de fazer? Tive uma trabalheira para chegar até a praça Bayerische, precisei de um dia inteiro, e queimei pilhas de papéis. Só que eu tive azar.

- Como assim?

O fogo escapou do controle e toda a casa ardeu. A casa inteira. Ninguém mais morava lá dentro, ela estava semidestruída. O conhecido de seu pai fora incorporado à tropa popular, segundo Goebbels. Nunca mais apareceu. Morto também. Ou falecido em campo de prisioneiros.

- Como morreu meu pai? — perguntou Ross. — E onde?

- Goebbels disse que havia ocorrido na Rua Gneisenau. No bairro de Kreuzberg. Seu pai também tinha ido até o bunker do F(hrer e longo caminho de volta à sua residência provisória na praça Bayerischen ele se deu mal — desculpe-me — ele foi morto. Como eu disse, os caças russos viviam fazendo rasantes. Voavam ao longo das ruas jogando bombas de cinqüenta quilos e atirando com metralhadoras em tudo o que se mexesse. Seu pai não teve tempo de abrigar-se: esses aviõezinhos apareciam ,sempre de repente.

- Como soube Goebbels que meu pai tinha sido morto?

- Uma patrulha do exército estava de passagem pela Rua Gneisenau exatamente no momento em que os sobreviventes queriam enterrar as vítimas numa cratera aberta pelas bombas. Os homens da patrulha tiraram os documentos pessoais dos bolsos dos cadáveres. Quando perceberam que posição seu pai ocupava, entregaram imediatamente os papéis no comando e dali eles foram enviados a Goebbels. Ele os mostrou a mim.

- Ele lhe mostrou os documentos de meu pai?

- É isso que estou dizendo! Ele morreu na Rua Gneisenau, com certeza. E lá também está seu túmulo. Em algum ponto debaixo da nova pavimentação da rua. Os mortos não podiam ficar espalhados por ali, não é mesmo? Naqueles dias, esse era o modo usual de sepultar os que tombavam. E as coisas ainda pioraram quando os russos passaram a combater diretamente na cidade.

Então foi assim, refletiu Daniel. Meu pai deu a Goebbels as cápsulas de cianureto quando esteve no bunker para receber o filme, na noite de 7 para 8 de abril. Novos documentos falsos ele já havia recebido à tarde no Ministério do Exterior. Em seguida ele foi levado de avião, de Berlim para Bergen, na Noruega, conforme contou em Buenos Aires. Nós também recebemos uma notícia de óbito oficial, minha mãe e eu: tombado em luta defensiva, a 2 de março, na região de Küstrin. Nesse ponto, tudo funcionou até o fim no Terceiro Reich. Goebbels desejava que Georg Ross desaparecesse sem deixar vestígios. Precisava estar morto, para sua própria segurança.

— Lamento muito — disse Kant.

— Eu já estava preparado para isso — disse Daniel. — Caso contrário, ele teria se manifestado mais tarde. Agora estou devidamente informado. E o protocolo secreto, professor? O que aconteceu com ele?

— Bem, eu tinha de dar um parecer a respeito da autenticidade do documento. Por sinal, seu pai me passou a cópia na tarde do mesmo dia em que depois sua casa foi bombardeada. Tão logo o filme lhe chegou às mãos, ele mandou fazer uma transcrição do texto. Segundo o meu diário, isso ocorreu em 31 de março de 1944.

— E esse protocolo secreto era genuíno ou se tratava de algo forjado?

— Genuíno. Era autêntico! — Kant começou a falar muito agitado.

— E o senhor está seguro disso?

— Absolutamente seguro! — exclamou o professor.

— Essa era e é sua convicção?

— A mais total convicção. E quando eu, então, assisti ao filme, não restou mais a menor sombra de dúvida.

— O senhor viu o próprio filme?

— Sim, eu e três especialistas do laboratório Geyer.

— Quando foi isso?

— No dia 3 de agosto de 44. Seu pai nos mostrou o filme.

— Por que só tão tarde?

— Seu pai nos disse que o porão onde se tinha guardado o filme fora soterrado, e que as escavações levaram muito tempo.

— Então o protocolo secreto e o filme, segundo sua opinião, bem como a dos outros especialistas, eram autênticos e não falsificados?

- Genuínos, sob todos os pontos dc vista. Filmados com material americano da Kodak. Não existe dúvida nenhuma.

Muito bem, pensou Wayne Hyde.

Ele estava deitado no escuro primeiro andar, perto do topo da escada, com a barriga para baixo, o corpo apertado contra o piso, e tinha diante de si uma arma soviética do tipo Wintowka obr 1891/1930. Wintowka é a palavra russa que designa espingarda. Guardava grande semelhança com a Springfield 03 americana, a preferida de Hyde. O calibre das duas armas era o mesmo: 7,62. O rifle soviético era um tanto mais leve, mais alongado e, ao contrário do americano, tinha raias para a direita. Em seu coldre debaixo do braço, trazia uma pistola militar soviética de grosso calibre. Acoplado ao rifle, havia uma mira telescópica. O retículo do visor se fixava uma vez no peito, outra vez na cabeça do professor de Direito Internacional, Dr. Emil Kant. Hyde movia o cano do rifle de um ponto para o outro...

Herdegen o levara do Hotel Ritz, em Viena, até a casa de seu amigo mercenário Franz Loderer, no prédio dos fundos da Wienzeile direita, número 10, onde Hyde queria passar o resto da noite. Com a ajuda do pequeno decodificador, ele ligara imediatamente para o advogado Roger Morley em Londres, gravando na fita da secretária eletrônica as seguintes palavras:

— Aqui fala Wayne Hyde. Estou com um amigo em Viena. São 2h45m de sábado, 10 de março. Descobri o seguinte. O jurista que em 1944 examinou o protocolo secreto chama-se professor Emil Kant e vive em Berlim. Seu número de telefone é três-quatro-dois-dois-cinco-zero-sete. Por aí se consegue o endereço facilmente. Ross e a Olivera reservaram lugares para um vôo de hoje com destino a Berlim, via Munique, partindo de Viena às 11h. Pude verificar isso no Ritz. A reserva está no escaninho das chaves. Eles vão pousar em Berlim por volta das 15h30m. Ross ligou para Kant. Com a mais alta probabilidade, ele deverá visitar o professor logo depois de sua chegada. Favor instruções urgentíssimas. Volto a ligar às 13h30m.

E assim ele fez. Ouviu a voz de Morley:

— Bom dia, caro Mr. Hyde. Meus amigos analisaram a situação. Então: tome o primeiro avião para Berlim, também via Munique. É um da Swissair às 9h50m. Conexão com Pan American, chegando a Berlim-Tegel às 12h45m. De lá, siga rapidamente para a travessia de estrangeiros entre Berlim ocidental e oriental, na Rua Friedrich. É o posto fronteiriço Checkpoint Charlie. Mande chamar o oficial de serviço da Voto (Volkspolizei - polícia do povo, na República Democrética Alemã, também aplicado aos policiais, os vopos.N. do T) Ali, um homem o estará esperando. Também temos nosso pessoal em Berlim Oriental. O senhor, caro Mr. Hyde, faça o que o homem disser.

— Prazer em conhecê-lo, Mr. Hyde, disse o homem na sala do oficial de serviço da Vopo num barracão do Checkpoint Charlie, tão logo o policial havia saído. — Bem pontual. Acompanhe-me, por gentileza. De preferência, deixe sua bagagem aqui, pode pegar na volta.

O homem era alto e parecia um lutador de luta-livre. Seu nariz era inteiramente achatado e os olhos muito pequenos. Olhinhos de porco, pensou Hyde. Seus dedos ainda lhe doíam depois do aperto de mão do atleta.

— Eu me chamo Lohotski — disse o homem, já ao ar livre, enquanto andava em direção a um Volga com número da Vopo. Abriu uma porta e deixou Hyde sentar-se no banco traseiro. Ao volante estava sentado um rapaz magro. Como Lohotski, também ele se achava em trajes civis.

— Alô — disse Hyde.

— Amizade — respondeu o jovem. Lohotski sentou-se ao lado do rapaz.

— Então vamos, Max! Pé na tábua e ligue a sirene!

O Volga saiu disparado e a sirene começou a apitar. Hyde, que não se assustava tão facilmente, sentiu o estômago se contrair. Lohotski estava sentado meio virado para ele.

— Não fique com medo — disse ele com um sorriso debochado. — Max é o melhor motorista que temos. — O Volga chispava pelo centro de Berlim-leste. Ultrapassava outros veículos a distâncias de dois a três centímetros e se desviava dos carros que vinham em sentido contrário só no último instante. A maioria deles parava ou seguia pela beirada da rua. Enquanto a sirene apitava, uma luz azul piscava sem parar.

— Está indo em que direção? — indagou Hyde, que era jogado de um lado para o outro no fundo do carro.

— Primeiro, direção norte. — Ao lutador Lohotski agradava fazer o papel de cicerone. Ele sorria. — Cidade dividida em dois, não é verdade? Dividida por um muro, que só tem 15 quilômetros de comprimento. Mas nós precisamos nos proteger de Berlim ocidental em todos os lugares, não é mesmo? Então, um “corredor da morte” circunda completamente Berlim-oeste. Ao longo da fronteira, sempre ao longo da fronteira. Esse corredor da morte tem dez metros de largura e cento e setenta quilômetros de extensão. É, Berlim ocidental é grande pra burro. Cerca de arame farpado num comprimento de 130 quilômetros. O arame farpado utilizado chega a 12 mil quilômetros. Além disso, é claro, os bunker. São duzentos e trinta e oito em volta de Berlim. E pontos de controle nas auto-estradas e vias de trânsito para a RFA, é evidente.

— Evidente — disse Wayne. — Precisamos então ir primeiro na direção norte, até onde acaba o muro. Até a fronteira da cidade.

— Isso mesmo, Mr. Hyde, isso mesmo. Em seguida, por fora, circundando Berlim-oeste, sempre pelo território da RDA. O lago Wann se encontra no extremo sudoeste.

— E o que faremos então?

— Isso o senhor verá, Mr. Hyde. Isso o senhor verá.

Nos limites da cidade, ao norte, tiveram de passar pelo controle. Ao vopo que parou o Volga, Lohotski exibiu uma plaqueta. O vopo fez continência. O Volga contornou as barreiras do posto de controle e prosseguiu, disparado. Agora, seguiam em direção oeste. As casas foram se tomando cada vez mais esparsas. As ruas e caminhos estavam congelados, atravessando pequenos bosques e áreas baldias.

— Floresta estadual Falkenhagen — disse Lohotski a certo ponto. Um pouco mais tarde, quando um grande espelho d’água se tornou visível à direita: — O lago de Falkenhagen. E, finalmente: — Agora estamos seguindo rente à fronteira com o setor ocidental. Está vendo o corredor da morte com o arame farpado? Ali está o posto de controle de Staaken. Mais adiante, um outro, da Rua Heer. Essa rua é muitíssimo extensa. No setor oeste, ela vai até a Praça Theodor Heuss, e aqui, na direção de Hamburgo. — Em seguida. avançaram por imensas áreas despovoadas. — É o cerrado de Gross-Glienick — disse Lohotski. — Agora já estamos novamente bem junto da fronteira. Ali na frente está a estrada de Potsdam. Está vendo os rolos de arame farpado e os aviões por detrás? É o aeroporto de Gatow. Pertence aos ingleses. Ali, o arame fecha a ponta de uma das pistas. E agora precisamos seguir para oeste, para dar a volta no lago de Gross-Glienicke, onde a fronteira passa pelo meio da água.

— Há muitos lagos em Berlim — disse Hyde.

— É o que não falta — acrescentou Lohotski. — O motorista Max não dizia palavra. Já há algum tempo havia desligado a sirene e o pisca-pisca azul. Hyde voltou a ver uma grande superfície de água.

— E isso?

— O rio Havel — disse Lohotski — Seguiam uma rua larga. Spandauer Strass leu Hyde numa placa. De repente, o carro parou diante de uma baixa construção de pedra. No topo de um mastro, a bandeira da RDA tremulava no vento oeste.

— Pronto, cá estamos — disse Lohotski saltando do carro e abrindo para Hyde a porta traseira. — Venha comigo!

Entraram juntos no pequeno edifício. Numa sala térrea trabalhava uma meia dúzia de homens uniformizados, diante de escrivaninhas. Lohotski dirigiu-se a um rapaz e o apresentou a Hyde. O jovem se chamava Wilms. Atrás dele, pregado na parede, havia um grande mapa de Berlim e arredores. Eram 14h34m.

— Explique a Mr. Hyde a situação, Wilms — disse Lohotski.

Aproximaram-se do mapa. — Nós estamos aqui, Sir. — Seu dedo indicava o lado inferior esquerdo do mapa — Rua Spandauer, está vendo? Mais alguns metros, e o senhor está no Havel. Lá, a fronteira atravessa a água. É esta larga linha vermelha, está vendo? Nós temos naturalmente balizas, placas e polícia marítima, é claro.

- Claro — disse Hyde

- Do outro lado, do lado oeste, está a ilha dos Pavões Há um castelo lá em cima E há uma grande área tombada, com um monte de pavões. Daí o seu nome.

— Ah — comentou Hyde.

— Subindo o Havei no território ocidental — prosseguiu Wilms — chega-se a essa dobra. Ao lado dela está dependurado como um saco o grande lago Wann E aqui, mais um pedacinho, outra ilha, muito menor que a dos Pavões. Chama-se Schwanenwerder. Sobre ela, uma rua dá a volta como um lago e vai, depois de passar por cima de um curto dique, para terra firme. - Wils acompanhou o laço com o dedo. — É aqui que ela atravessa. Como se chama? Rua da Ilha, é claro. E onde é que ela desemboca em terra firme? No Caminho Schwanenwerder, é claro. Aqui. E isso aí — ele bateu com o nó do dedo num ponto junto da água — é o 327. Aqui mora o professor Emil Kant.

— Quando escurecer e a neblina aumentar, poderemos subir facilmente o Havei com o senhor, passando pela fronteira para levá-lo até Schwanenwerder — disse Lohotski. — Até o lado sul, que está cheio de chorões caindo sobre as águas. Assim, é fácil esconder um barco. Precisamos pegar o lado sul. Pois pelo lado norte, há um posto policial, diretamente na Rua da Ilha. Pelo lado sul, o senhor precisa caminhar pelo parque umas centenas de metros até o dique. Então, é só atravessar até o Caminho de Schwanenwerder. Ninhada para um homem como o senhor, sir. E quanto a nós, esperamos pelo senhor aqui, do lado sul. Quando tiver terminado tudo, volte e nós damos o fora. Tudo claro?

— Não — disse Hyde.

— O que não está claro?

- Como vão me levar até o outro lado?

— Ora, com um barco de patrulha, naturalmente — disse Wilms espantado.

— E o barulho do motor? É um pedaço de caminho até lá! O barulho do motor vai atrair a polícia fluvial ocidental inteirinha.

— Não há barulho de motor — disse Wilms.

— O quê?

— Não faz barulho algum. Temos aqui um barco elétrico. Funciona com acumuladores. O senhor não ouve nada. Absolutamente nada.

— Vocês estão mesmo up to date!

— Temos de estar, Sir. Os outros também estão. — Wilms recuou um passo.

— No que se refere a nós, garantimos a segurança do transporte de ida. Todo o resto não podemos influenciar. Essa história é enrolada pra cachorro — disse Lohotsk.

— Como assim? — indagou Hyde.

— Em Londres, nós temos um amigo comum, não? Esta noite, telefonou para mim. Anunciou o senhor e assim por diante. Ao final, ele disse que eu informasse o senhor, de qualquer jeito, de que a casa do professor estará sendo vigiada pela polícia. Com certeza.

— Como é que ele sabe? — perguntou Hyde.

— Parece que ele tem gente por todos os cantos.

É, pensou Hyde. Eu me lembro. Morley disse uma vez que por sorte ele tinha um homem de confiança na emissora. Mas por que...

— ... por que ele não me disse nada? Eu também telefonei para ele esta noite.

— Talvez ainda não soubesse.

— É — disse Hyde —, pode ser.

— Também disse que uma equipe de filmagem espera em Berlim ocidental. A um sinal desse Ross, está pronta para ir imediatamente para a casa do professor. Eles estão tomando todas as precauções. Mas não é para menos.

—É — disse Hyde.—Não é mesmo?—Lançou um olhar duro para Lohotski.

— Tudo bem — disse este. — Eu sei a respeito do senhor. Faço parte do mesmo grupo. Nosso amigo em Londres não lhe contou?

— Claro, ele contou.

— Armas nós temos aqui. Pode escolher qualquer uma que desejar. Ouvi dizer que o senhor prefere a Springfield. Essa não temos. Mas temos uma Wintowka obr 1891/1930, por exemplo. É quase a mesma coisa. E pistolas militares soviéticas. Nove milímetros, praticamente uma parabelum. Agora ainda é muito cedo. Precisamos esperar até começar a escurecer, e tomara que haja mais névoa. Isso é que é sorte: se agora a neblina aumentar, não é?

- É, isso é que é sorte.

Estava quase escuro e a neblina crescia em espessas brumas no momento em que saíram no barco elétrico do ancoradouro da estação, onde se encontravam ainda outras embarcações. Dois vopos assumiram o comando enquanto Lohotski e Wilms acompanhavam Wayne Hyde.

- Eu estive em Gâmbia e Uganda em 1981 — disse Lohotski subitamente. E ante um olhar assombrado de Wayne, acrescentou: - Vivi antes no ocidente.

- Tem muito que fazer aqui no leste?

— Muita coisa — disse Lohotski.

O barco era supermoderno. Hyde estava espantado. Os acumuladores realmente mal faziam barulho. O barco de patrulha deslizava em silêncio pela neblina. Hyde, Lohotskt e Wilms estavam sentados no convés atrás da ponte de comando. Wayne usava uma espécie de escafandro preto e tênis muito leves da mesma cor. O coldre da pistola e o estojo do rifle eram à prova d’água. Sobre seus curtos cabelos louros estavam fixados os óculos escuros e estreitos, presos a uma tira de borracha que lhe passava ao redor da cabeça.

Chegaram à grande ilha dos Pavões. Hyde viu sua sombra à direita. Logo que a superfície da água se tornou mais larga, emergiu da neblina uma minúscula ilhota. Wayne indicou-a com o queixo.

— K(lberwerder — sussurrou Lohotski. O barco aumentou a velocidade. Tomara que eles disponham de um bom radar, pensou Hyde.

Tomaram o curso nor-nordeste. O relógio de Hyde dispunha de uma bússola luminosa. Após algum tempo, o curso mudou praticamente para leste. Um dos vopos saiu da pequena cabine de pilotagem com sua janela circular e sussurrou algo a Lohotski, que concordou com a cabeça. O vopo dirigiu-se então a Hyde e lhe cochichou na orelha direita:

— O radar mostra quatro carros no Wannseebadweg, isto é, no caminho do balneário, e na Rua da Ilha. Polícia, não há dúvida. O senhor vai chamar a atenção se vier do lado de Schwanenwerder. Por isso, nós vamos diretamente para a costa, ao norte dos terraços do lago Wann, perto do dique. O senhor precisa, então, passar por alguns jardins e um prado, atrás dos carros. É o mesmo caminho, quando voltar. Se eles nos descobrirem antes de sua volta, vamos ter de dar o fora sem o senhor.

Hyde fez que sim com a cabeça.

O barco reduziu a velocidade, andava bem devagar. Pareceu demorar uma eternidade até Hyde enxergar a costa com seus tufos de junco. O barco parou e ficou balançando suavemente com o fraco movimento das águas. Lohotski fez um sinal para Hyde, o qual queria dizer: não podemos chegar mais perto; siga em frente!

Com um impulso, Hyde alçou-se sobre a amurada e deslizou devagar para dentro da água, que lhe chegou até os joelhos. Pegou o estojo do rifle e uma bolsa que Lohotski lhe estendia. Caminhou pela água, curvado e cauteloso, até chegar à terra firme. Após alguns passes, deitou-se na areia e prosseguiu rastejando. Segurava o estojo e a bolsa no alto, arrastando-se para a frente com os cotovelos.

Devagar, devagar, em silêncio total.

Estava tudo quieto. Um prado. Uma árvore. Hyde controlava sua direção com a bússola luminosa. Precisava ir para leste! Uma cerca. Passou por cima, sem problemas. Um jardim. Uma casa. Passou ao largo, rastejando. Só faltava agora um cachorro, pensou ele. Que não me apareça nenhum maldito cachorro. Tomara que a casa esteja vazia. As outras também. Divisou vagamente três outras casas. Não viu luz alguma. Um a um, os jardins iam ficando para trás. Em meio à grama pardacenta ele depositou diversas vezes pequenos objetos de metal escuro que pareciam granadas de mão.

Arrastou-se mais um trecho em direção norte e, em seguida, em direção leste. Na tela de radar do barco ele havia localizado os carros. Um deles bloqueava, na Rua da Ilha, o dique para Schwanenwerder. Wayne queria atravessar o Caminho do Balneário pelo sul, passando por trás dos outros carros. Conseguiu. Viu os carros à sua esquerda. O último da fila — estavam todos c os radiadores voltados para noroeste, em direção à ilha — a a menos de dez metros de distância quando ele atravessou o caminho do Balneário. Também aqui colocou uma granada. Agora só faltava um jardim. Pronto. Chegara ao Caminho de Schwanenwerder.

Nenhum automóvel. Uma casa. Wayne arrastou-se para junto do portão do jardim; 327; ótimo. Escorregou mais um trecho, encontrou um lugar na cerca, por onde poderia esgueirar-se. Entrou e rastejou em volta da casa. Reconheceu em meio à neblina os dois andares bem como o telhado empinado com as grandes clarabóias. Chegou aos fundos. Levantou-se com muito cuidado, passou a alça do estojo do rifle pelo ombro e deu um puxão na armação de madeira por onde as videiras selvagens subiam até o telhado. Puxou o quanto pôde e balançou a cabeça satisfeito.

Com a habilidade e rapidez de um gato subiu pela parede, apoiando-se na armação e na videira. Continuou subindo até chegar ao telhado. Observou uma das clarabóias. Conseguiu abri-la, e entrou.

Hyde encontrava-se agora num grande e alto sótão cheio de livros e documentos empilhados. Seguiu furtivamente adiante com o corpo curvado, e vislumbrou a nesga de luz que indicava o quadrado de um alçapão aberto. Aproximou-se. Uma escada levava ao andar de cima. Só no térreo, num imenso salão, havia luz acesa. Um senhor de idade falava com uma mulher corpulenta. Uma gigantesca escada de caracol subia em balanço livre do térreo. Do andar de cima podia-se ver muito bem quase todo o salão. Está ótimo, pensou Hyde. E o que vai acontecer? Se os dois me descobrirem, liquido com ambos. Fico deitado aqui até que Ross chegue. Lentamente, com toda a precaução, retirou o rifle de dentro do estojo, acoplou a mira telescópica, deitou-se novamente de barriga para baixo e ficou esperando. A mulher lá embaixo sumira. O homem quase calvo desapareceu de seu ângulo de visão. Ele usava um casaco cor de vinho e prendia na nuca, como um índio, os restos de cabelo, longo e castanho. Devia ter ido sentar-se à escrivaninha. Hyde respirava com regularidade, Estava calmo e satisfeito.

Somente trinta e seis minutos mais tarde a campainha tocou e Daniel Ross, depois de uns momentos, entrou no salão. Apertou as mãos do velho. Hyde lembrava-se do rosto de Ross. Herdegen lhe havia mostrado na clínica o convalescente quando ele dava um passeio no parque. Dúvida não havia, era Ross. Hyde arrastou-se mais um pouco para a frente até chegar ao corrimão do patamar da escada. Ouviu a conversa dos dois homens com nitidez. Haviam-se apresentado. Também quanto ao outro não havia dúvida: era o professor Emil Kant. Estava agora sentado enviezado, abaixo de Hyde, no canto de trabalho. A conversa se estendia. Hyde ouviu com paciência até que, depois de muito tempo, chegaram ao essencial e o velho disse bem alto:

— Genuínos, sob todos os pontos de vista. Filmados com material americano da Kodak. Não há dúvida nenhuma.

Wayne Hyde estava agora com o retículo do visor apontado para o lado esquerdo do peito de Kant, no lugar exato do coração...

— Genuínos, sob todos os pontos de vista. Filmados com material americano da Kodak. Não dá dúvida nenhuma — disse Kant.

— Era essa também a opinião dos especialistas do laboratório fotográfico? — indagou Daniel.

— Sim, eles estavam igualmente convencidos.

A voz de Kant tomou-se mais forte, suas faces se avermelharam.

— Autêntico! Autêntico mesmo! Não faço idéia de como o pessoal de seu pai conseguiu esse filme, mas autêntico ele era, isso eu juro. Ah, se se tivesse mostrado o filme a todo mundo! Meu Deus! Teria ocorrido um levante no mundo inteiro! Quem seriam então os verdadeiros criminosos? Nós? Não me façam rir! Os americanos e os soviéticos! O que o Führer sempre dizia. Judeus e boleheviques. Ele o repetiu mil vezes, milhões de vezes. Bolcheviques e judeus. Os corruptores do mundo. E esse filme era a prova, meu Deus, a prova!

Kant bebeu sofregamente. Uísque escorreu-lhe pelo queixo abaixo. Ele encheu os copos de novo e adicionou mais gelo. (No visor, o retículo se encontrava agora sobre sua cabeça. Ainda não, pensou Hyde. Deixe-o contar o resto. Preciso ouvir tudo.)

 — E por que não exibiram o filme? — perguntou Daniel.

— Isso eu também perguntei a seu pai naquela época, em agosto. Ele respondeu que isso iria ser feito. Uns dias mais tarde ele me disse que os escalões superiores haviam decidido que nada mais iria ocorrer. O quadro da guerra já era ruim demais. Qualquer pessoa tomaria o filme como um embuste. Os alemães, inclusive. Não ousaram mostrar o filme. Ainda afirmo até hoje: esse foi o maior erro jamais cometido. Nós teríamos vencido a guerra, mesmo no ponto em que estávamos! Não fique me olhando assim, meu jovem! Eu não sei o que foi feito do filme. Mas se o tivéssemos hoje... se o tivéssemos hoje! O mundo poderia ser alterado com ele!

— O senhor pensa realmente assim?

— O senhor não viu o filme. E ainda pergunta se eu penso assim! Se hoje dispuséssemos desse filme, meu jovem...

Daniel disse: — Nós o temos, professor.

—.0 quê?

O rosto vermelho de Kant ficara branco.

— Nós temos o filme.

(Agora o visor mirava novamente o peito de Kant. Logo, logo, pensou Hyde.)

— Onde o obteve?

— Essa é uma longa história. Eu a contarei mais tarde para o senhor. Eu vi o filme, professor. O senhor tem toda a razão com aquilo que diz.

— Quem... quem é o senhor?

— Isso o senhor sabe muito bem. Eu trabalho na emissora de televisão de Frankfurt. É ela que possui o filme. Buscamos testemunhas que naquela época tiveram a ver com ele. O senhor é uma delas.

— Deus todo-poderoso! Mas que coisa! O senhor tem o filme... o senhor tem o filme...

— O senhor estaria disposto a repetir tudo aquilo que acabou de narrar para mim?

— Que eu estou convencido da autenticidade do filme — e por que motivos?

— Sim.

— Mas é claro que estou disposto.

— Diante de uma câmera de televisão?

— Também frente a uma câmera de TV. Não consigo acreditar! O filme está aí! O filme está aí!

— Disponho de uma equipe de filmagem em Berlim. professor. Ela pode estar aqui em meia hora. Para sua proteção, a polícia já se encontra aqui.

— Disso eu sei.

— Se o senhor permitir, chamo agora a equipe, e também a polícia.

— De acordo. O telefone está sobre a escrivaninha. Que eu ainda possa viver isso... Meu Deus, que eu ainda possa viver esse momento!

Daniel se ergueu.

(Bem, agora está na hora, pensou Wayne Hyde. Seu velho porco nazista. No retículo do visor ele fixava de novo o lado esquerdo do peito do velho. Com cuidado, apertou o gatilho.)

Um tiro ecoou com estrondo.

Kant foi arrancado para cima e desabou novamente no assento.

— Professor! — gritou Daniel, desesperado.

Correu em volta da mesa em direção a Kant, que jazia em sua cadeira com a cabeça virada para trás. Havia erguido a mão pescoço como se estivesse sentindo calor e quisesse soltar o colarinho e tirar seu foulard de seda branca. Mas o professor Dr. Emil Kant não estava sentindo calor. Nem queda tirar o foulard. Não queria absolutamente mais nada. O professor Dr. Emil Kant estava morto.

Wayne Hyde se encontrava ainda a poucos metros do solo, nos fundos da casa, no momento em que Daniel abria a porta de entrada e gritava por socorro. Os faróis dos quatro carros da polícia no Caminho do Balneário e na Rua da Ilha acenderam-se imediatamente e de cada carro saíram correndo quatro homens. Alguns se precipitaram pela rua onde morava o professor e sumiram dentro da casa de Kant. Dois guardavam a entrada. O resto procurava cercar a casa. Em algumas casas vizinhas abriram-se janelas e portas. Homens gritavam, mulheres berravam, crianças choravam e cachorros latiam como loucos. Hyde atingiu o solo do jardim. Caminhou agachado e em ziguezague por cima de canteiros de flores e gramados, pulou a cerca para o terreno vizinho, onde circundou, correndo, a casa...

— Ali está ele — gritou uma mulher.

... pulou por cima de outra cerca, passou ao largo de uma casa vazia, em direção ao Caminho da Schwanenwerder. Toda a área estava agora iluminada por uma luz leitosa, vinda dos carros da polícia e das casas vizinhas.

- Ali!

Dois policiais, um em roupas civis e outro de uniforme, vinham pelo mesmo caminho em direção de Hyde. Muito bem, pensou ele. Venham logo, vamos! Mais perto! Pertinho, seus cachorros! Os homens vinham curvados, rentes a uma cerca. Ambos portavam pistolas automáticas apontadas. Hyde havia aberto um bolso de seu escafandro e tirado uma caixinha preta muito semelhante a um controle remoto de TV. Vários botõezinhos prateados brilhavam. Hyde apertou o quarto botão. Na rua, diretamente diante dos dois policiais, explodiu uma granada ofuscante, com a terrível claridade de um raio nuclear -uma das granadas que Hyde havia colocado quando se arrastava em direção à casa do professor. Os dois deixaram cair as armas e bateram com as mãos contra os olhos. Esses aí não vão enxergar mais nada por uns dez minutos, pensou Hyde satisfeito. Quem sabe quando e como vão voltar a ver. Muita gente fica cega para sempre com um troço desses. Hyde tinha grande experiência com granadas ofuscantes. A gente pode confiar nesse sistema de detonação, pensou ele enquanto corria pela rua e enfrentava de nova uma cerca. Ouviu outras vozes de homens que gritavam confusamente. Hyde voltou a levantar os óculos escuros que havia colocado diante dos olhos antes de detonar a granada ofuscante.

Agora ele corria de jardim em jardim, saltando sobre as cercas e atingindo um pequeno bosque. Só faltava agora uma última cerca antes de chegar ao Caminho do Balneário.

Ouviu de repente os disparos de duas pistolas automáticas. Vários tiros bateram diretamente a seu lado nas estacas da cerca. Deixou-se cair ao chão e apertou outro botão do controle remoto fazendo explodir a segunda granada ofuscante ao lado do Caminho do Balneário. Os dois policiais, autores dos disparos, foram igualmente cegados pelo brilho terrível provocado pela explosão. Hyde voltara a pôr os óculos de proteção antes de detonar. Já corria de novo, até que enxergou através da neblina a areia clara da margem e, na água, o barco de patrulha da Volkspolizei. Ofegante, pegou novamente o controle remoto. O certo pelo duvidoso, pensou ele, e apertou dois botões. Duas granadas explodiram nos jardins que ele havia cruzado. Correu sobre a margem do lago e chapinhou na água através dos juncos. Logo estava junto ao barco. Viu dois homens, o lutador Lohotski e o jovem Wilms, que o puxaram para cima. Ficou de pé sobre o convés.

— Vamos! — disse Lohotski a meia-voz.

Os dois vopos reagiram imediatamente. O barco de patrulha já estava deslizando no denso nevoeiro em direção ao rio Havel. Várias vozes faziam uma gritaria em terra firme.

Lohotski estendeu para Hyde uma garrafa sem rolha.

— O que é isso?

— Vodca.

— Obrigado — disse Hyde — eu não bebo álcool.

— Conseguiu acertar no homem?

— Cem por cento.

— Parabéns! — disse Lohotski. — Fantástica a sua execução. Também a sua volta! Não é, Wilms?

— Realmente fantástico, Sir.

- Sim, não posso negar — balbuciou Hyde O barco seguia em direção sudoeste sem fazer qualquer ruído — “Sei muito bem que espíritos de antigo tempo / Louvaram outros, de menor merecimento.” — Viu os rostos assombrados dos dois homens. - Shakespeare — disse.

Duas horas mais tarde, o departamento de homicídios havia encerrado suas investigações no local do crime e o cadáver do professor Kant foi removido em um chato recipiente metálico. Precisaram conduzir a governanta de nome Ema para um hospital, já que fora vítima de um ataque nervoso. No grande salão encontrava-se meia dúzia de pessoas. Sobre tripés, estavam instalados holofotes e cámeras Arriflez. Os spot-lights iluminavam a sala, Novelos de cabos jaziam no chão. O assistente do engenheiro de som pendurou um minúsculo microfone preto ao pescoço de Daniel. A equipe que Conrad Colledo havia enviado a Berlim e que se achava hospedada no Hotel Steigenberger à espera de ordens tinha chegado e já se havia preparado para as tomadas. Daniel chamara os homens depois de haver ligado para Mercedes, a quem tudo tinha contado. Ela ficou sabendo que ele só voltaria muito tarde para o hotel...

- Tudo pronto — disse o assistente do som, um jovem gigante com uma barba imensa.

- OK, Sr. Ross – disse o câmera. – Pronto?

— Pronto — respondeu Daniel. — A poltrona diante da qual ele se encontrava, estava embebida de sangue do ferimento de Kant.

—Som?

Um técnico levantou os olhos do painel de instrumentos e disse: — Ligado.

— Câmera também. Claquete!

O assistente pulou diante de Daniel e, na falta de uma claquete, bateu com força as mãos e disse em voz alta: — Salão do professor Kant, primeira tomada — e saiu da frente da câmera.

Daniel começou a falar, voltado para a câmera:

— Aqui é Daniel Ross. São 22h e 44min de sábado, dia 10 de março de 1984. Eu me encontro em Berlim ocidental, no Caminho de Schwanenwerde, 327. Esta é a casa do Professor Emil Kant, um especialista em Direito Internacional conhecido mundialmente. Há cerca de três horas, ou seja, ‘as 19h45min, o professor Kant foi morto com um tiro em minha presença, quando se achava sentado nesta poltrona. A polícia proibiu-nos filmar o morto. Mas não proibiu que minha descrição do desenrolar do acontecimento e dos episódios que o precederam seja gravada e filmada...

Do lado de fora entrou o alarido provocado por muitas vozes irritadas. — O que se está ouvindo são os repórteres da tele visão, da imprensa e do rádio da cidade de Berlim, que tentam, em vão, entrar nesta casa..

Diante da casa havia muitos carros estacionados. Estava tudo muito claro, pois numerosos faróis de automóveis iluminavam as massas de neblina. Mais de duas dúzias de jovens repórteres bem como algumas mulheres gritavam em confusão e tentavam convencer um detetive igualmente jovem que se achava no jardim, diante do portão. Os jornalistas tinham trazido câmeras de cinema e fotográficas, gravadores de som e luminárias especiais. Em suas redações, ouvia-se ininterruptamente o rádio da polícia. Desse modo, eles souberam do homicídio no Caminho de Schwanenwerder e tinham saído em disparada. Dos rádios de diversos carros, cujas portas se mantinham abertas, saíam agora também os ruídos de estática e as vozes dos homens na central de polícia e nas radiopatrulhas.

Entre o jovem policial e essa excitada comunidade, uns outros policiais formaram uma corrente para que ninguém entrasse no terreno. Policiais e investigadores do serviço de reconhecimento, bem como todos os homens disponíveis do posto policial situado na ilha de Schwanenwerder continuavam trabalhando em todas as imediações. Munidos de potentes holofotes portáteis, passavam o pente fino sobre o local, até o rio Havel. Fotografavam rastros e o perfil da sola dos tênis de Wayde Hyde que ficara marcado da neve e encheram algumas das pegadas mais nítidas com gesso líquido.

— Oue quer dizer isso: estamos perturbando as investigações em curso? — gritou uma moça com um gorro felpudo e casaco de peles, vestindo blue jeans e calçada de botas. — Como assim? Só porque estamos querendo saber o motivo por que o professor foi alvejado?

- Isso mesmo — respondeu o detetive, que morria de frio em seu sobretudo leve e estava furioso por haver sido deixado sozinho com os repórteres.

— Que quer dizer: isso mesmo? Assunto político?

— Quem foi o assassino?

— Onde é que ele está?

— Fugiu para o Leste, não é?

Os repórteres voltaram a gritar todos ao mesmo tempo. Estavam com frio, sentiam-se exaustos, resfriados, excitados.

- Vamos, Johny, vamos, diga logo alguma coisa!

— Abra logo o bico!

— Quantas vezes nós não ajudamos vocês?

— É mesmo uma coisa política?

— Sairá um comunicado oficial — disse o investigador, que todos chamavam de Johnny.

— Comunicado oficial? Isso é merda!Não passa de uma besteirada, recheada de mentiras

— Como em Coblença! O homem do Centro de Documentação! Até hoje ninguém ficou sabendo o que aconteceu realmente! Vocês estão se comportando da mesma forma aqui!

— Mas lá houve um comunicado oficial!

— Sim, mas que comunicado! O papel não servia nem para limpar o rabo! Desconhecidos o autor e o motivo do crime!

— Por que não podemos entrar na casa?

— Ninguém pode entrar.

— E os caras da TV, já há meia hora? O que há com eles?

— Eles podem filmar! Por que eles, e nós não?

— Não estou autorizado...

— Autorizado! Ó Johnny! Diga para a gente, pelo menos, quem são esses caras que puderam entrar com câmeras, spots e tudo. Quem é essa gente lá dentro? Americanos?

O homem a quem eles chamavam de Johnny pensava furioso: me deixam sozinho aqui e ainda por cima dizem para eu não abrir a boca. É sempre a mesma coisa. Merda de trabalho. Vou voltar para a delegacia de Costumes. Vida mansa é com as putas! Obstinado, ele declarou:

— Nenhum comentário. Esperem pelo comunicado oficial. Agora tratem de dar o fora, vamos!

— Puxa, Johnny, isso é safadeza sua! Você não passa de um grande sacana de merda!

Que jeito de falar tem essa gente, pensou Johnny, amargurado. As prostitutas nunca me disseram uma coisa dessas. Nunca.

O Finest Highgrown Darjeeling é realmente o que tem o melhor sabor, pensava o advogado Roger Morley em seu escritório decorado à antiga, na Chancery Lane, em Londres. O homenzinho de cabelos revoltos e grisalhos, com a barriga protuberante e rostinho rosado e os dentes de rato, tomou mais um gole de chá, enquanto escutava atento à voz que saía do receptor do telefone. Pousou com cuidado a xícara sobre a escrivaninha. A voz masculina se encontrava em meio a um discurso de elogios a Wayne Hyde. Este havia ligado para Morley tão logo chegara ao posto da Vopo na Rua de Spandau à margem do Havel. Com a ajuda do pequeno decodificador, podia-se realmente ligar de qualquer lugar para a secretária eletrônica           em Londres. A informação de Hyde, que comunicava o sucesso de sua missão, havia logo sido passada adiante pelo advogado a um dos seus conhecidos. Em Londres era urna hora mais cedo que em Berlim — 21h55m.

— Nosso mais cordial agradecimento a Mr. Hyde — dizia o conhecido de Morley. — Nossa dívida para com esse homem é cada vez maior. Ele realmente empenha sua vida em favor da paz mundial.

Sabe Deus que nada tenho contra cínicos, pensou Morley ao degustar o seu chá. Eu mesmo sou um deles, mas quer-me parecer que esse homem está exagerando um pouco É óbvio que não lhe posso dizer isso assim. Preciso formular de outro jeito. E Roger Morley formulou de outro jeito: — Não creio que o senhor e seus amigos pensem realmente que uma exíbição desse filme na TV — mesmo que não seja possível liquidar todas as testemunhas contrárias para que só falem aquelas que o descrevem como uma falsificação — que uma exibição, eu dizia, leve milhões e milhões de pessoas indignadas a se insurgirem, e se rebelarem contra os dirigentes de ambas as superpotências. Revolução mundial por causa de um filme? Por favor!

- É evidente que não tememos um levante das massas. Seria um medo ridículo.

- E o medo real, Sir?

- Meu caro Mr. Morley, o medo real é de que os políticos dos Estados aliados dos Estados Unidos ou da União Soviética poderiam ficar profundamente abalados com esse filme. Mesmo que todas as testemunhas o qualifiquem como uma farsa. Nossos aliados — assim como os dos soviéticos — poderiam, expressando-me em termos populares, dizer: muito bem, o filme pode ser forjado ou não. Mas isso, no fundo, não nos interessa, O que nos faz refletir — deixando de lado se o filme é autêntico ou falso — é o seguinte: os acontecimentos dos últimos quarenta anos testemunham veementemente em favor da existência de um acordo de partilha do mundo entre os Estados Unidos e a União Soviética. Este é que é o perigo, está me entendendo? Que por intermédio desse filme se sugira aos nossos aliados (estou falando em nome dos dois Estados) que um tal acordo poderia realmente existir, com uma grande, uma enorme probabilidade. E se essa suspeita crescesse até tomar-se uma convicção, comprometeria mortalmente qualquer aliança, seja no Leste, seja no Ocidente. Pois quem gostaria de ser sacrificado em nome de interesse de estranhos, não é mesmo, meu caro Mr. Morley? Quem não iria dizer: servir de gado de corte para os dois Grandes? Não, muito obrigado! O seu próprio governo não diria isso?

— Imagino que certamente o faria.

— Está vendo? E todos os demais governos também. Seria o fim de todos os pactos, de todas as alianças. As mais estreitas alianças seriam simplesmente desfeitas. Cada governo pensaria apenas em manter seu país fora de uma catástrofe atômica. A nítida divisão ideológica do mundo em dois campos — essa existe de fato — deixaria de existir. Morrer pelos ideais do Ocidente? Morrer pelos ideais do Leste? Mas como, se Leste e Oeste, no mais estrito sigilo, por cima de todas as cabeças, já estão de acordo? É pedir um pouco demais, iriam dizer nossos aliados, não é mesmo? É pedir demais. É isto que nós e os soviéticos tememos, O grande caos, me entende? A supressão da imagem do inimigo — com o senhor posso usar de toda a franqueza. Sim, esta é a melhor formulação: a supressão da imagem do inimigo. E não vão parar por aí. Vão se perguntar: mas então, quem é realmente o inimigo ou os inimigos de uma vida de paz? Naturalmente que tais pensamentos seriam o produto de uma fantasia enferma...

— Naturalmente — disse Morley tomando seu chá.

— ... mas eles surgiriam, não é verdade? Também nos Estados Unidos. E na URSS. E nós bem sabemos o que pensamentos — embora doentios, e, aliás, exatamente os doentios — provocaram, no passado. Revoltas, levantes heróicos de pessoas indignadas, isso nós não tememos caso o filme venha a ser exibido. Pelo contrário, tememos a confusão, a renitência, o desinteresse. A desagregação das ordens constituídas. Esse maldito Olivera nos aprontou a maior sujeira com essa sua farsa nazista. A semente do mal — querem que ela brote, depois de quarenta anos! Okay, parece que não podemos impedir a exibição do  filme pela TV. Podemos, entretanto — com ajuda benévola de Deus — liquidar todos aqueles que atestarem a autenticidade do filme...

— Sim — disse Morley, rápido —, é isso que me provoca dúvidas. Muitas, todas as testemunhas só comprovam o embuste, Ninguém que comprove a autenticidade. Por outro lado, uma série de assassinatos misteriosos, O senhor acredita, Sir, que isso dará uma impressão muito vantajosa? Sobretudo, quando imagino que a emissora alemã também apresentará sua documentação sobre o filme.

A voz masculina respondeu com aberto sotaque norte-americano: — Pois exatamente isso nos parece constituir a solução, Mr. Morley.

- A solução?

— Veja um filme, no qual todas as testemunhas exclamem «falsificação” provocará sem duvida uma impressão deveras singular. O senhor mesmo o diz. Então por que se mostra um filme assim pela televisão? Bem, é claro que os EUA e a URSS  farão declarações depois da exibição do filme. Os comunicados terão aproximadamente o seguinte teor: “Este filme, com todos a testemunhos em favor de sua inautenticidade, está destinado a desnortear as pessoas, fazê-las ficar inseguras em suas convicções, procura fazer com que as duas superpotências percam sua credibilidade, ele procura gerar o caos. É óbvio que o filme é uma falsificação dos nazistas. Entretanto, para poder asseverar que também existiram importantes testemunhos em favor de sua autenticidade, procedeu-se — inescrupulosamente e com desprezo pela vida humana — à eliminação de uma série de pessoas. Pessoas que não tinham absolutamente nada a dizer Com relação ao assunto. Assim, depois de sua morte, pode-se T&aJfrn que elas teriam atestado a autenticidade do filme, se fio tivessem sido eliminadas por misteriosos assassinos. Foram mortas. Embora como já foi dito, nada tivessem a ver com a história. Seria esse o teor dos comunicados

— Mas quem as matou?

— Meu caro Mr. Morley, mas por favor! Quem pode ter sido? Todos os governantes de países que sentem cada vez mais medo das superpotências de que são aliados, medo de uma guerra nuclear em seu próprio território. Esqueça esses ridículos movimentos pela paz! Pense apenas nos governos desses muitos países! Observe simplesmente como os dois Estados alemães se aproximam um do outro! Eles declaram que os “danos de um rearmamento” deveriam ser limitados ao máximo. Erich Honecker disse em Eisenhüttenstadt, na presença do Presidente da Áustria, a respeito dos novos foguetes que a União Soviética está instalando na Alemanha Oriental: “Nós não queremos ter esses apetrechos diabólicos por aqui.” Da mesma maneira se expressou Willy Brandt, pela Alemanha Federal, dirigindo-se aos Estados Unidos. Honecker escreveu ao chanceler Helmut Kohl que seria melhor prosseguir nos entendimentos do que continuar acumulando armamentos. Escreveu isso “em nome do povo alemão”! O antigo paladino da divisão da Alemanha vive agora defendendo o “diálogo” e a tese de “maior segurança com menos armamentos”. A República Democrática Alemã demonstra suas ambições de independência — de forma para ela mais drástica que nunca - E a Hungria a apóia, a Romênia obviamente também, e talvez outros países do bloco oriental. Pela primeira vez, desde a constituição do bloco oriental, Moscou se vê diante de uma ação concertada — e em junho de 1985 expira o Pacto de Varsóvia, sem uma cláusula de prorrogação automática. Está entendendo o que eu quero dizer?

— Compreendo, Sir. E no Ocidente...

— No ocidente, o protesto se manifesta, naturalmente, de uma maneira muito mais veemente e ostensiva. É claro que sobretudo os alemães se sentem afetados. O senhor sabe muito bem onde há a maior probabilidade de desencadear uma confrontação nuclear. Já houve tempos felizes em que os alemães diziam mais ou menos assim: “Os Grandes são mesmo malucos, mas que eles cheguem ao ponto de apertar o botão, isso também não!” Tempos felizes que não voltarão nunca mais. Em lugar nenhum! O senhor não está vendo a Holanda, a Inglaterra, a Itália! Os mesmos protestos, as mesmas acusações contra as duas superpotências. A França! Mitterrand nos causa um choque suplementar. Retira a União da Europa Ocidental de sua obscura existência a fim de aumentar o peso da Europa contra os EUA. A América e a URSS estão perdendo cada vez mais a confiança em seus aliados. A rejeição e até mesmo a animosidade desses aliados contra a política das potências protetoras está continuamente aumentando. Crescem o protesto e a insubordinação. E isso especialmente, repito, nas duas Alemanhas. Nessa situação, aparece esse velho filme nazista. Ora, toda essa gente desconfiada e temerosa iria deixar de usar esse filme para atingir seus próprios objetivos? — indagaremos nós. Eles teriam o menor escrúpulo em sacrificar algumas vidas humanas, quando se trata de atingir um objetivo tão importante, qual seja o de se des vencilharem da tutela de suas superpotências. Este será mais ou menos o teor de nossos comentários. O que acha disso, caro Mr. Morley?

— Magnífico. Acho essa forma de argumentação que o senhor escolheu simplesmente notavel Sir.

- É a única possibilidade que há. Diante de uma mistificação de tal ordem, só se pode reagir assim.

- O senhor tem razão, Sir. Tem toda a razão. Agora me sinto completamente tranqüilo. Tudo isso, se me for permitido dizê-lo, só vem demonstrar a grande... hum, hum... sabedoria de seus amigos.

Já pouco depois das 21h, Wayne Hyde estava de volta ao Checkpoint Charlie. Chegou ao Volga com número da Vopo, dirigido pelo jovem magro chamado Max. No caminho de volta, ele não correu com a mesma velocidade aterradora da tarde. Lohotski desembarcou e abriu a porta para Hyde.

- Agora o senhor precisa levar sua bagagem — disse o ex-mercenário, que lembrava um lutador de luta-livre. Fazia um frio glacial. O nariz achatado de Lohotski estava vermelho-escuro. De seus pequeninos olhos, que a Hyde lembravam os de um suíno, corriam lágrimas pelas faces abaixo.

— Muito obrigado e até a vista — disse Hyde a Max.

- Amizade, amizade — respondeu Max.

Hyde acompanhou Lohotski para dentro do cômodo no barracão do oficial de serviço da Vopo. Era ainda o mesmo do meio-dia. Ele saudou com sinal de grande respeito e estendeu a Lohotski um envelope fechado. Uma estufa crepitava.

— Um telex. Chegou há uma hora.

— Obrigado. — Lohotski rasgou o envelope, que continha uma folha de papel. Ele entregou-a a Hyde. — Para o senhor.

Hyde pegou o telex, olhou-o rapidamente com o rosto impassível, meteu-o no bolso, despediu-se de Lohotski e agarrou suas duas bolsas de roupas. Jogou-as sobre os ombros e passou pelas barreiras do lado oriental. Lohotski havia falado com os funcionários do barracão do controle pelo telefone. Ninguém parou Hyde. Dois vopos friorentos com grossos casacos batiam com as pesadas botas no chão liso de gelo. Eles fizeram continência,

— Amizade — disse Hyde.

Passou ao lado das barreiras de aço que obrigavam os carros a seguir lentamente um caminho sinuoso ao longo do muro a fim de passarem de uma Alemanha para a outra Alemanha. Fortes lâmpadas fluorescentes iluminavam a área como a luz do dia. Do outro lado estavam postados policiais de Berlim ocidental assim como soldados aliados. Estavam friorentos como os seus colegas do leste. Hyde mostrou a um suboficial americano o seu passaporte. O militar era negro e folheou com cuidado o documento.

— O que fez o senhor do outro lado, Mr. Hyde?

— Visitei um amigo — disse Hyde.

— Com toda a bagagem?

— Vim para cá com um táxi logo depois de pousar em Tegel. Estava com pressa. Meu amigo está à morte,

— Ah, sim? — O negro o examinou. — Um momento, Sr. Hyde. O senhor pode me acompanhar se estiver com muito frio.

O suboficial seguiu na frente entrando num barracão branco da polícia militar americana, sobre cujo teto estava presa uma placa. Mostrava, em formato reduzido, as bandeiras das três potências ocidentais e as palavras ALLIED CHECK-POINT. O militar indicou-lhe um banco com a mão e Hyde sentou-se. Em seguida, o negro desapareceu atrás de uma porta verde. Em algum lugar, um rádio estava ligado. Hyde ouviu música. Frank Sinatra cantava: At last my love has come along. Hyde acom panhou a canção, cantarolando. Quando a música terminou, um locutor informou: — Esta é a AFN — Berlim. Estamos apresentando “Música no estilo de Miller!” À próxima canção é Little brown jug. — De novo começou uma balançada e sentimental música de jazz.

A porta verde se abriu e o negro reapareceu.

— Aqui está seu passaporte — disse ele supergentil. — Eu tinha a impressão de que alguém telefonara procurando o senhor. Não me enganei.

— Quem foi que ligou? — perguntou Hyde indiferente.

— Isso não sei, Sir. Deixou um recado: que o senhor precisa ir imediatamente, depois de haver passado por aqui, ao Checkpoint Restaurant. É logo aqui ao lado, na primeira casa. Comida decente, Sir. O cavalheiro está à sua espera.

— Obrigado — disse Hyde.

- Good night, Sir — disse o preto — and good luck. — Ele ergueu sua mão até a borda do capacete de plástico branco.

Em meio ao vento frio, Wayne Hyde caminhou então em território de Berlim ocidental. Na calçada esquerda havia algumas lojas, dentre as quais urna de artigos fotográficos. Estavam de há muito fechadas. Em frente, achava-se o Checkpoint Restaurant. Estava quase vazio. Alguns motoristas de táxi jogavam cartas, e um homem de óculos, sentado sozinho, lia o jornal BiId. Diante dele, um prato com restos de ovos mexidos com presunto. Atrás do balcão iluminado e da vitrine com almôndegas e arenques, se achava à espera o gordo proprietário.

— Boa noite — disse Hyde e sentou-se à uma mesa num canto.

O dono se aproximou. Trazia uma corrente dourada de relógio por cima do colete, que sublinhava a dimensão da grande barriga. Havia tirado o paletó e enrolado as mangas da camisa.

- Boa noite, meu senhor. O que é que vai ser?

— Uma coca e uma mineral — disse Hyde.

— Está bem, meu senhor. — O dono se retirou.

Hyde pegou o telex que Lohotski lhe tinha dado de dentro de um bolso de seu casacão, e de outro bolso tirou o livro com os sonetos de Shakespeare. O telex não era mais que uma série de números. Ele leu 41 9 23 11 10 14 10...

O proprietário acercou-se novamente da mesa.

— Aqui está meu senhor. Uma coca e uma água. Esteja à vontade.

— Obrigado — respondeu Hyde. Tomou primeiro um grande gole de água e só então se serviu da Coca-Cola.

Pegou então papel e lápis do bolso do paletó e anotou: 34 2 16 4 3 7 3... Ao fazê-lo, estava apenas subtraindo 7 de cada um dos números constantes do telex. Após cinco minutos, havia terminado a primeira parte de seu trabalho. Abriu então o livro e procurou o soneto trinta e quatro, a segunda linha e a décima sexta letra, a contar da esquerda. A letra era um T. A esta, seguia-se a letra E, e depois de um quarto de hora, havia Hyde decifrado e anotado o texto inteiro:

TEDDY SHIMON DA EMBAIXADA ISRAEL EM BONN ESTEVE MANHÃ COM KARRELIS EMISSORA FRANKFURT STOP VOOU PARA BERLIM STOP HOTEL KEMPINSKI STOP INFOR MAÇÕES PARA HOMEM ÓCULOS E JORNAL BILD SAUDAÇÕES MORLEY.

O código tinha sido combinado entre Hyde e Morley. O mercenário pegou o papel, acendeu-o e observou-o enquanto queimava. Os restos ele triturou dentro de um cinzeiro de porcelana. Em seguida, levantou-se. O dono do restaurante estava polindo com um pano a parte metálica do balcão.

— O banheiro — disse Hyde.

— Aquela porta ali e depois a primeira à direita, meu senhor.

Hyde seguiu até o reservado masculino e postou-se diante de um lavatório. Dois minutos mais tarde surgiu o homem de óculos. Colocou-se ao lado de Hyde após haver verificado que todos os sanitários estavam vazios.

— Alice no país das maravilhas — disse o homem. — A rainha branca. O que fazia ela?

— Ela gritou — disse Hyde —, e só depois se machucou.

O homem falou então: — Teddy Shimon tomou no Kempinski o quarto 323. Ross e a Olivera estão no apartamento 606/7. Reservamos para o senhor o 608/9. Sob seu nome. No fundo do corredor. Foi sorte, estava vago. Ross ainda está no lago Wann, com a equipe de TV. Não perca tempo!

— Obrigado — disse Hyde.

— Não seja por isso — disse o homem de óculos. — Vá indo logo. Eu ainda fico um pouquinho.

— Boa noite — despediu-se Hyde.

Voltou para o restaurante e dirigiu-se à mesa onde se encontravam os motoristas de táxi jogando cartas.

- Quem é o primeiro? — indagou.

- Eu. — Um homem de cabelos muito louros olhou para cima. Trajava um blusão de couro por cima de um pulôver de colarinho enrolado, e calças de veludo.

- Quero pagar! — chamou Hyde.

 O dono veio e anunciou-lhe o valor da despesa. Hyde deu-lhe uma nota de dez marcos e esperou até receber o troco em moedas na palma da mão. O motorista, que tinha coberto a cabeça com um capuz,  pegou os dois sacos de roupas. Deixaram o local e seguiram até o primeiro de uma série de táxis.

- Porcaria de frio, não é? — disse o chofer. — Agora até em março. Para onde?

— Kempinski - respondeu Wayne Hyde.

- Então, em outras palavras: os distintos senhores continuam se negando a pagar.

A voz de Eduardo OIivera soava alta e colérica, pela membrana do receptor telefônico ao ouvido de Mercedes. Com a outra mão, ela se apertava a testa.

— Pai! Por favor, pai! Seja razoável! Também aqui em Berlim foi fuzilado um homem.

— O que me interessa esse homem? Eu quero é o meu dinheiro.

— O homem seria uma testemunha de primeira qualidade em favor da autenticidade do filme. Já é o segundo homicídio. Nós estamos lutando contra uma organização de assassinos sem o menor escrúpulo.

— Este problema é de vocês, não meu. Eu tenho outras preocupações, e grandes. O tempo está passando. Em 20 de fevereiro vocês partiram daqui! Hoje já é 10 de março. E não recebi dinheiro algum, nada.

— Eles estão dispostos a oferecer cem mil dólares como sinal de boa vontade, isso eu já lhe disse três dias atrás...

Mercedes telefonava para o seu padrasto regularmente. O comportamento dele se tornava cada vez mais virulento, e o ânimo dela, mais desesperado.

— Cem mil dólares! O que quero são finalmente os dez milhões! Eles engoliram, não é mesmo? Pois então têm de pagar! Preciso deles! Preciso de dinheiro.

— Você precisa tão urgente assim de dez milhões de dólares?

Com o fone no ouvido. Mercedes olhava as belas gravuras antigas penduradas nas paredes do salão, daí para a lareira, da lareira para o bar, que era feito de um velho escabelo de oração, e daí de volta para as gravuras que mostravam cenas da velha Berlim. Um grande lustre estava aceso. Já era quase meia-noite. Mercedes estava de robe. Havia jantado no grill do restaurante depois que Daniel ligara contando o que havia acontecido e avisando que os trabalhos se alongariam pela noite adentro. Tentara ler um pouco, em vão. Assistira à televisão sem enxergar as imagens. Seus pensamentos giravam em círculo. O professor Kant morto a tiros. Na presença de Danny. O segundo morto. Danny em perigo. Ela em perigo. O assassino, os assassinos, em Berlim, na cidade, no hotel talvez. Mercedes entrara em pânico. Tinha tomado um grande conhaque. Fumara, nervosa, muitos cigarros. Depois lhe veio à cabeça que já era tempo de voltar e ligar para o padrasto. Ele estava se comportando do modo que ela temia.

— Agora me escute aqui, Mercedes! — Ela se assustou com a frieza de sua voz. — Para mim agora basta. Eu não espero mais. Já faz seis dias que outros interessados me procuraram. Líbios. Prontos a pagar imediatamente. Eu fui correto, deixei-os aguardando, porque originalmente eu tinha dado à emissora de televisão um prazo de quatro semanas, mas...

Alguém batia. Mercedes tinha trancado a porta do salão.

— Um momento, pai, está chegando alguém. Preciso ir abrir a porta.

Ela deixou o fone cair sobre o leito, caminhou até a porta e perguntou em voz alta: — Quem está aí?

— Danny. — Era a voz dele. Ela destrancou a porta e se lançou ao peito dele mal ele havia entrado. Ela soluçava.

— Danny...  Danny... Danny...

— Mas Mercedes... Pelo amor de Deus.., O que aconteceu?

- Eu tinha tanto medo por você — balbuciou ela enquanto ele cobria seu rosto de beijos. — Um medo tão pavoroso. Estava agora mesmo falando com papai... Ele quer vender o fllme para os líbios.,.

- O quê?

DanieI tirou os braços dela de cima de seus ombros e foi até a cama. Pegou o receptor e falou.

- Aqui é Daniel.

— Já notei.

— Acabo de voltar agora mesmo ao hotel. Mercedes me disse o que você pretende fazer. Você ficou doido?

— Estou perfeitamente normal. Expliquei minuciosamente minha situação a você quando esteve aqui, está bem lembrado...

— Sim, com certeza, mas você nos deu o prazo de quatro semanas...

— Agora não tenho mais tempo, Daniel. Nenhum tempo mais, está compreendendo? Disso depende a minha existência...

- Mas...

— Nada de mas! Eu não espero mais tempo. Recebi um telegrama de sua emissora. Uma equipe de TV está vindo para cá. Então, primeiro: antes que eu receba os dez milhões...

— Pai, por favor!

— Cale sua boca! Antes que eu receba meus dez milhões, não fico nem um segundo diante das câmeras..

— Mas isso é...

— Cale você sua boca, que inferno. Segundo: exijo que os dez milhões me sejam pagos dentro de três dias, portanto o mais tardar até o dia treze. Pagos mesmo, estou dizendo. Nada de truques bobos como transferências, que podem ser trancadas ou coisas assim. Eu quero o cheque na mão! Pouco me importa quem vai trazê-lo. Ou você ou alguém da emissora. Alguém tem de vir. Espere, eu ainda não acabei. Até o mais tardar amanhã à tarde às 18h, hora de vocês aí, eu quero do superintendente da emissora — como é que ele se chama?

— Sr. von Karrelis.

— ... quero desse Karrelis o compromisso por escrito de que o cheque no montante global me será trazido aqui até o dia treze, o mais tardar. Karrelis precisa mandar amanhã um telex no qual ele se comprometa a honrar sua palavra satisfazendo à minha exigência.

— Isso nunca vai acontecer!

— Vamos aguardar! Hoje ainda você telefona para Frankfurt. O pessoal terá tempo para refletir sobre tudo. Caso não queiram, caso o filme para eles não valha dez milhões, então okay. Então o superintendente tem de me telefonar amanhã. Assim, depois de amanhã eu vendo o filme aos líbios. Repita.

— Para quê? Eu compreendi muito bem.

— Quero estar seguro disso!

— Mas isso é..

— Você vai repetir para mim, que diabo!

— Eu telefono para Frankfurt. Você se nega a comparecer diante de uma câmera antes de receber os dez milhões. Você está tratando com gente do Khadafi, que pagariam imediatamente. Um ultimato, portanto. Você exige que alguém, o mais tardar até o dia treze, lhe traga um cheque no valor global. Isso o superintendente deverá prometer amanhã com sua palavra de honra, mediante um telex nesses termos, antes das 18h, hora daqui. Caso não se faça o que você exige, depois de amanhã você vende o filme para os líbios.

— Correto. Boa noite, Daniel.

Deu-se um estalido na ligação. Daniel fitava o receptor.

— Desligou — disse ele sem se mover. — Maldito pai. Só nos faltava ainda essa.

Tirou rapidamente seu grosso capote e atirou-o para um canto. Em seguida se pôs a dizer palavrões por longo tempo.

— Danny, por favor!

Mercedes havia apanhado o capote e dependurado no vestíbulo. Quando voltou, Daniel havia desabado numa poltrona, a cabeça entre as mãos. Ela se ajoelhou diante dele e acariciou-lhe os cabelos.

- Meu querido, acalme se, por favor... Foi terrível, não foi?

— Um desses cachorros abateu Kant com um tiro. E eu sou culpado disso. Eu sou culpado disso, Mercedes!

— Mas que bobagem é essa!

- Não é bobagem alguma. Sou culpado, eu, eu! Porque me comportei como um garotinho brincando de índio. Um garotinho débil mental.

- Mas como assim?

— Facilitei tudo para o assassino. Como se fosse uma criança. Do hotel em Viena pedi a uma mocinha na central telefônica que descobrisse o telefone e endereço de Kant. Do hotel, eu, imbecil! E, do hotel, como um idiota, falei com Kant. Do hotel, mandei reservar as passagens de avião para Berlim. Deixei rastros por todos os lados. Até um cego poderia ter-me seguido. Sou culpado da morte de Kant. Trago na consciência a morte de uma pessoa.

— Pare logo com isso, Danny! O telefone em Viena não podia estar grampeado. Além disso, a Polícia Criminal não estava avisada? A casa não estava vigiada pela polícia? Vocês não fizeram tudo para que nada acontecesse com Kant?

— Não, não fizemos tudo não. O assassino conseguiu entrar na casa e matou Kant. A despeito da proteção da polícia. A despeito da vigilância.

Daniel a agarrou pelos ombros...

— E assim vai continuar, Mercedes, só agora compreendi isso. Eles liquidam todo aquele que for capaz de comprovar que o filme é verdadeiro. Eles estão por toda a parte. Eles sabem de tudo. Tudo. Contra eles, nós não temos chance. É melhor nós desistirmos antes que morra mais gente.

— Não! — gritou Mercedes bem alto. Depois ela se controlou. — Nós não devemos desistir! É isso que eles querem. Precisamos continuar! Precisamos informar as pessoas. Precisamos fazer isso!

Ele a observou seriamente. Que fanatismo!, pensou ele. Vai até mais longe: ela mesma já disse que faria qualquer coisa para assegurar a paz. Meu Deus, em que história estamos nos metendo!

Daniel levantou-se abruptamente. — Desculpe-me, Mercedes!

Ela deu um sorriso desfigurado. — Está bem, Danny. Estamos num estado em que somos só nervos.

Ele meteu a mão no bolso, puxou mecanicamente um tubinho de medicamentos e abriu-o, deixando os comprimidos caírem na palma da mão. Aquele tubinho que Sibylle lhe havia dado, junto com outros, ainda no sanatório. Continham o novo medicamento para o qual seu organismo havia sido preparado: Amadam. Ele inclinou a cabeça para trás, abriu a boca e estava prestes a tomar cinco pílulas. No meio do movimento, com sua mão dirigindo-se para cima, imobilizou-se.

— Não — disse ele. E deixou cair os comprimidos de volta no tubinho. — Não — repetiu. — Eu prometi à Sibylle. Não posso faltar mais uma vez à palavra. — Estendeu o tubinho para Mercedes. — Você fica com isso. Com os outros tubinhos também. Estão no banheiro. No meu estojo de toalete. Estou vendo que você desfez as malas. Você doravante fica com o Amadam e só me dá dois comprimidos por dia, um de manhã, outro à noite, não importa o que aconteça. Pegue logo, por favor!

— Danny — disse ela — Danny...

- E agora, algo para beber — disse ele. — Foi um pouco demais para mim, o que aconteceu.

—. Conhaque? Uísque?

— Tanto faz... Conhaque, por favor.

Ela encheu um copo de conhaque, que ele esvaziou de um só trago. Seu rosto que estava pálido quando chegou ao hotel, lentamente começou a recobrar a cor. Daniel respirava fundo.

— Sente-se junto de mim, Mercedes — disse ele. — Vou contar tudo para você...

E ele lhe contou tudo, o braço ao redor de seus ombros, e com isso foi se acalmando.

— Pelo menos desta vez existe uma documentação precisa — narrou ele. — Rodamos tudo o que é importante, reconstituímos o homicídio, por assim dizer. Mas isso também não é o bastante. Da próxima vez — dírei isso a Conny quando telefonar a propósito de meu pai —, tanto a polícia quanto a equipe precisam vir junto comigo, para que possamos filmar a testemunha tão logo estejamos com ela, O que aconteceu hoje, nunca mais deve ocorrer. Foi... foi tão terrível. Eu ainda estava falando com Kant, e ele já estava morto. Eu não sei como é que vai continuar. O Conny diz que seu pessoal não achou até agora a menor pista. Nem na Alemanha, nem em Londres, nem em Paris, e nem nos Estados Unidos.

- Ah! — exclamou Mercedes se erguendo.

- Que foi?

- Um homem ligou para cá... há umas duas horas mais ou menos.

— Que homem foi esse?

- Um certo Teddy Shimon, da Embaixada de Israel em Bonn. Está hospedado aqui no hotel. Quarto 323. Pediu para você telefonar para ele logo que chegasse.

— Não conheço nenhum Teddy Shimon.

- Ele disse que é importante. Muito importante.

— Você acha que tem algo a ver com o filme?

— Sim, isso o Conny me disse.

— Conny Colledo? — Daniel a olhava assombrado.

— Eu estou inteiramente confusa. Sim. Conny ligou também... Antes desse tal de Shimon... Foi ele quem anunciou esse Shimon... Ele esteve com o Conny e o superintendente... Eles é que o mandaram para cá. Nós precisamos falar com o Shimon de qualquer maneira.

Daniel levantou-se e pegou o fone. Uma voz de mulher fez- se ouvir.

— Por favor, Sr. Ross?

— Senhorita, eu queria falar com o Sr. Teddy Shimon. Quarto 323.

— O senhor mesmo pode chamar. Antes do número do quarto, disque o oito.

Na sala do apartamento 608/9, Wayne Hyde estava sentado num sofá, bem junto da parede que dava para o apartamento vizinho. E já o fazia há duas horas. Hyde tinha uma paciência infinita. Esta era uma das razões pelas quais ainda estava vivo. Seus pés estavam pousados sobre a mesa à sua frente, e ele se recostava num canto do sofá. Em seus ouvidos estavam enfiados os terminais metálicos de um equipamento análogo a um estetoscópio. Um tubo de borracha vermelha de cerca de meio metro de comprimento unia os terminais em arco a um tampão achatado no qual se achava embutido um potente amplificador eletrônico. Hyde apertava o tampão contra a parede que dava para o apartamento contíguo, ficando em condições de acompanhar com nitidez a conversa entre Mercedes e Daniel. Assim, já pudera escutar as palavras que a moça dissera a Conrad Colledo, Teddy Shimon e a seu pai na Argentina. O equipamento era de qualidade excelente. Hyde pudera ouvir perfeitamente tudo o que ocorria ao lado durante as últimas horas. Cada ruído, os passos de Mercedes indo e vindo de um lado para o outro, o abrir e fechar de portas. Havia escutado como ela enchera um copo, como tossira depois de beber, enfim, tudo. Ficara pacientemente acompanhando, e com que paciência.

Agora, ouvia Daniel discando um número de quatro algarismos, e, em seguida, sua voz: — Sr. Shimon? Boa noite. Aqui fala Daniel Ross. Perdoe-me incomodá-lo a essa hora. O senhor havia pedido que eu chamasse de volta, mesmo que fosse tarde... Bem, só há alguns minutos...

Hyde permanecia imóvel, como se tivesse morrido.

— Isso mesmo, eu não o conheço... O que deseja de mim?... O filme?... Que filme?... Sr. Shimon, realmente não faço idéia do que o senhor está falando... Sim, sim, o Sr. Colledo telefonou para minha acompanhante e disse que eu deveria falar com o senhor de qualquer modo assim que o senhor chegasse... Bem, agora mesmo... Talvez no bar... O senhor tem razão... Muita gente... Por que o senhor não sobe até aqui?... O que quer dizer: a Sra. Olivera pode naturalmente participar? De onde o senhor conhece... Ah, sim... Também seu prenome... Mercedes, certo... 606/7, sim... Nós o esperamos, Sr. Shimon.

Wayne Hyde continuava sentado em absoluta imobilidade. Seu rosto estava destituído de qualquer expressão.

No salão de sua suíte, Mercedes e Daniel estavam de pé, um diante do outro.

— Conny disse que é muito importante. Foi isso que ele disse? Que era muito importante?

- Sim — disse Mercedes confirmando com a cabeça. — E que nós podemos ficar tranqüilos. Ele queria explicar o menos possível ao telefone.

Bateram à porta. Daniel foi abrir.

Lá fora estava um gigante de um homem, queimado de sol, cabelos louros, olhos de um azul-metálico, o rosto comprido e bem talhado, Sob seu temo cinzento percebia-se o desenho de um corpo esbelto e bem treinado.

- Queira entrar, Sr. Shimon! — convidou Daniel.

O homem mostrava um documento com um retrato a cores de passaporte, as armas do Estado de Israel e um esclarecimento em hebraico, inglês, francês e alemão, segundo o qual Shimon era membro da missão diplomática israelense em Bonn.

O louro gigante, arquétipo do chamado ariano, fez uma reverência diante de Mercedes. Os três se sentaram. Ele recusou um drinque.

— Então? — perguntou Daniel. — Desde quando a Embaixada de Israel se interessa por nós?

— Oh, já há muito tempo — disse Shimon. Tinha dentes extremamente brancos, que mostrava quando sorria. — Mas quem mais se interessa por vocês é o Mossad.

— E o que é Mossad? — indagou Mercedes.

— O serviço secreto israelense — respondeu Daniel, que se voltou para Shimon: — E por que seu serviço secreto?

— A maioria dos serviços secretos do mundo estão interessados em vocês, Sr. Ross. Seu pai em Buenos Aires toma cada vez menos cuidado. Ele... ele se comporta de forma muito pouco inteligente. Para encurtar uma longa história: que os americanos e os soviéticos evidentemente sabem de tudo a respeito do filme, isto lhe é claro, não?

Daniel concordou.

— Mas também os ingleses, os franceses, italianos, húngaros, suíços, espanhóis. Pode-se dizer que o mundo dos serviços secretos está alarmado e sabe do filme e de todos os esforços que o senhor e muitos outros fazem para encontrar testemunhas que possam atestar que o filme é autêntico — ou que foi forjado.

— ‘E o senhor? O que sabe o senhor, Sr. Shimon? — perguntou Mercedes.

— Que o filme é falso, cara senhora. Uma falsificação genial, eu concedo. Mas falsificação.

— E para dizer-nos isso, o senhor se deslocou até Berlim? —. disse Daniel sorrindo.

— É claro que não.

— Então, por quê?

— Porque nós sabemos quem o falsificou — disse Shimon. — Ele está à sua espera. Prontifica-se a contar sua história. Diante das câmeras. Toda a verdade. Por que me olha assim, Sr. Ross?

— Por gratidão, Sr. Shimon. Somos extremamente gratos ao senhor. Pensar que o serviço secreto israelense se dá ao trabalho de procurar esse falsificador, e o senhor se dá ao trabalho de tomar o avião até Berlim para promover um contato...

- Isso o deixa desconcertado.

— Não senhor.

— Sim senhor. É extremamente vantajoso para os Estados Unidos que uma testemunha apareça e deixe claro que o filme foi forjado. Nós não passamos de um pequeno povo, permanente mente ameaçado e dependente da ajuda norte-americana. Sem a América, estaríamos perdidos. Uma mão lava a outra. Foi nisso que o senhor pensou ainda há pouco, Sr. Ross!

— Muito bem, foi nisso que eu pensei — respondeu Daniel. — Um pensamento muito evidente, não é verdade?

— Sr. Ross, é com muito gosto que nós ajudamos os Estados Unidos nesse assunto, é claro. Isso eu lhe digo abertamente. Esse foi o principal motivo para as investigações do Mossad. Mas em nenhum momento tivemos a intenção de ajudar os Estados Uni dos com um embuste.

— Se o senhor houvesse encontrado alguém que depusesse a favor da autenticidade do filme, o senhor também estaria aqui agora?

Shimon titubeou.

— Não — disse ele, enfim. — O senhor tem razão. Mas o fato é que o Mossad encontrou o falsificador.

— Como?

— O quê, Sr. Ross?

— Como o encontrou?

— Sr. Ross, por favor! — O sorriso do diplomata israelense ficou mais largo. — Francamente!

— É — disse Mercedes —, francamente, Danny.

— Perdoe-me, Sr. Shimon.

— Ora, por favor! O Mossad procurou quem falsificou. Formulemos assim a coisa. E todos os outros serviços secretos também e são muitos. Mas nós tivemos sorte, fomos mais rápidos que os demais. Com freqüência nós somos mais rápidos que os outros. Graças a Deus! Eu lhe posso dizer o nome do falsificador.

— Diga. Como se chama?

- Harry Gold.

- Harry Gold?

— Harry GoId.

— E onde vive esse Harry Gold?

- Em Frankfurt do Meno, Sr. Ross.

— Onde em Frankfurt, Sr. Shimon?

— Eu o levarei lá, Sr. Ross, e também a prezada senhora.

— Por mim, pode fazê-lo. Mas eu quero saber onde ele mora. Eu sou de Frankfurt. Conheço a cidade bastante bem.

— Rua Odrell, 217.

— Isso é no conjunto de Kuhwald — disse Daniel. — A oeste da Feira de Exposições, entre a Alameda Theodor Heuss e a grande estação de manobras de trem.

— Correto.

— O Sr. Harry Gold tem telefone?

— Não precisa ligar para ele. Eu já arranjei tudo para o senhor.

— Muito amável.

— O Sr. Gold está disposto a já dar o seu depoimento amanhã. Pode ir à sua casa quando quiser. Ele o está esperando.,

— Muito bem. Preciso, aliás, telefonar ainda para o Sr. Colledo. Não sei que equipe de TV eu vou receber. Amanhã é domingo.

— Não se precipite! Dê algum tempo também para o Sr. Colledo. Há treze vôos por dia de Berlim para Frankfurt. Aqui o senhor tem um horário de vôos.

Ross folheou o horário.

— Eu diria que vamos tomar um avião às 13h35m — disse ele —, chegaremos em Frankfurt às 14h35m. Vamos dizer que precisamos de mais uma hora para chegarmos à casa do Sr. Gold. Portanto, às três e meia. Está bem, assim, para ele?

— Para ele, tudo está bem. Vai esperar o dia inteiro. Basta que liguemos para ele logo depois do pouso em Frankfurt. Posso assistir às filmagens?

— Por favor.

— Obrigado.

— Nós é que temos de lhe agradecer, Sr. Shimon. E muito.

— Para mim, é um prazer.

- Tomamos o café da manhã juntos? — perguntou Mercedes. — Aqui em cima?

— Com muito gosto, Sra. Olivera.

— Nós ligaremos para o senhor. Lá pelas nove, está bem?

— Às nove está ótimo — disse Teddy Shimon.

— Espere, eu acompanho o senhor.

— Para onde?

— Preciso ligar ainda para o meu amigo Colledo. — Daniel pegou seu capote e deu um beijo em Mercedes. — Logo estarei de volta!

— Tome cuidado, Danny! — disse ela. — Por favor, cuidado!

Ao lado, Wayne Hyde ouviu Teddy Shimon se despedir de Mercedes e os dois homens deixaram a suíte. Mercedes ligou a televisão. Um filme tardio estava sendo apresentado. Hyde ouvia música e diálogos. Tirou dos ouvidos o arco cromado do aparelho parecido com um estetoscópio, esperou uns dez minutos e só então se levantou. Vestiu seu capote, saiu igualmente de sua suíte e desceu com o elevador até o saguão, onde ainda havia muitas pessoas sentadas. Do bar vinha o som de um piano. Hyde seguiu para o ar livre. O frio era glacial e o céu estava límpido. Hyde chegou a enxergar as estrelas.

Desceu o Kurfürstendamm até a Igreja do Imperador Guilherme. A ruína da torre varava a leitosa escuridão. Quanto mais Hyde se aproximava do fim do Kurfürstendamm, mais prostitutas cruzavam com ele. Quase todas lhe dirigiam a palavra. Ele sempre fazia um gesto, agradecendo. Elas eram todas muito gentis, embora desanimadas. Usavam casacos de peles, mas mesmo assim morriam de frio. Hyde queria ir à estação do Zôo. Quando, em frente à igreja, dobrou a esquina da Rua de Joachimstal, um homem bem trajado cruzou seu caminho. O homem levantou um rígido chapéu preto e disse: — Oh, desculpe-me, meu senhor.

— O que há?

— Fleischmann é meu nome, Julius Fleischmann. Professor de ginásio, de latim e grego. Desempregado. Eis meus documentos. — Mostrou a Hyde o pequeno caderninho aberto.

— O que deseja o senhor?

— Uma esmola, por bondade. Tenho mulher e quatro filhos.

Hyde abriu seu capote e procurou nos bolsos do paletó.

— O senhor escolheu uma má hora, professor.

— Não diga isso! Agora ainda está calmo. Mas em duas ou três horas... Por aqui há muitos lugares onde fazem strip-tease. E também outros. Além disso, há os bêbados... Os bêbados têm coração mole.

— O senhor também está bêbado, não é mesmo?

— Um pouquinho, meu senhor. Com esse frio. A gente precisa manter-se aquecido.

— Só tenho dez marcos.

— Eu troco. Com quanto posso ficar?

— O senhor me... Deixe pra lá — disse Hyde —, fique com a nota.

— Mil vezes, muito obrigado! Deus o abençoe, meu senhor.

— É, espero que sim — disse Hyde. — O senhor fica por aqui, de pé. todas as noites?

— De dia também. Nós trabalhamos em três turnos.

— Nós?

— Um contramestre e um vendedor de móveis. Como mendigo, a gente precisa se organizar, está entendendo. Há tantos. Esta é uma cidade muito pobre, de qualquer ponto de vista. Já morei aqui na Rua de Joachimstal. Até 1 de março de 1943. Não tinha ainda cinco anos de idade. Naquele dia tivemos um tremendo ataque aéreo. Americanos. Vinham sempre de dia. Céu azul. Maravilhoso dia de sol. No nosso porão morreu minha família inteira: mãe, pai, irmã. Eu mesmo fui tirado daquele buraco. Parece-me, às vezes, que foi ontem. Engraçado, não é? O mihi praeteritos si Jupiter referat annos. Na nossa língua...

— Oh, se Júpiter me trouxesse de volta os anos perdidos — disse Hyde.

— O senhor sabe latim?

— Fluentemente. Leio muito, sabe.

— Grego também?

— Grego não. Boa noite, professor. E boa sorte!

— Obrigado — disse Fleischmann.

Hyde chegou à estação do Zoo e entrou no posto telefônico no térreo. Ficava aberto dia e noite. Uma velha fatigada estava sentada atrás do balcão. Ela lhe deu um cartão de plástico com o número catorze.

— Cabine 14. Depois tem de voltar aqui. O senhor mesmo pode discar.

— Eu sei.

Na cabine de número 15 havia uma mocinha sentada no chão e parecia dormir. Vestia blue jeans sujos e um pulôver gordurento. Provavelmente uma viciada, pensou Hyde. Curtindo sua dose. Entrou na cabine 14 e discou o número de Morley em Londres. Com o decodificador, destrancou a secretária eletrônica.

A voz do advogado soou: — Boa noite, Mr. Hyde. Suponho que tenha podido acompanhar a conversa de Teddy Shimon com Ross e a Olivera. Disque de novo e conte, por favor!

Quando após a segunda chamada a secretária eletrônica estava preparada para a gravação, Hyde narrou tudo o que tinha escutado com a ajuda do equipamento parecido com um estetoscópio. Indicou o nome, a rua, o número, o horário de vôo e a hora do encontro.

— Estará tudo pronto quando o pessoal chegar, não se preocupe, Mr. Morley! Agora outra coisa: A Olivera e o Ross telefonaram hoje à noite para Buenos Aires. O pai está vacilando. Porque não recebe da emissora seus dez milhões. Parece estar falido. Ou quase. Em todo caso, assegura já estar em tratativas com o pessoal de Khadafi, e lançou um ultimato que Ross vai repassar a Karrelis. — Hyde contou com detalhes. — Parece que a coisa é urgentíssima. Caso me procure, o senhor me encontrará através de um amigo em Frankfurt. — Deu, então, o número do telefone de seu colega mercenário Heinz Erkner. — É claro que agora não estou falando do Kempinski mas de uma cabine telefônica. Boa noite, Mr. Morley! — Desligou.

Ergueu, então, o fone pela terceira vez e discou o número de Frankfurt que acabara de passar a Londres. O sinal de chamada tocou muitas vezes até que, sem fôlego, uma voz masculina atendeu.

— Alô, desgraçado!

— Heinz, aqui é Wayne.

— Wayne! — A voz tinha agora um tom alegre, mas Heinz Erkner, o amigo mercenário, ainda respirava com dificuldade.

— Onde está, baby?

— Berlim Ocidental. O que há com você? Estava trepando?

— Sim.

— Lamento.

— Não faz mal. Meu amorzinho levanta ele de novo. O que há?

— Chego amanhã a Frankfurt. Às nove e meia. Pan American. Preciso de novo a Sig Sauer e a Sterling MK nove.

— Certo, baby. Espero no balcão da Pan-Am, no saguão de chegadas. Trarei tudo comigo.

— Excelente.

— Mais alguma coisa, baby?

— Sim, Heinz. Você precisa quebrar um galho para mim.

Wayne Hyde explicou a Erkner o que esperava que ele fizesse. Em seguida, despediram-se cordialmente.

— Boa trepada! — encerrou Hyde.

— Como o Corpo de Bombeiros, baby — disse Heinz Erkner.

Da cabine do lado, Hyde ouviu de repente a mocinha gemer. Viciada em heroína, como eu tinha imaginado, pensou ele. Depois ouviu-a vomitando convulsivamente.

Quando saiu da cabine, a mocinha se contorcia em fortes convulsões. Hyde retornou ao balcão.

— Eu quero pagar — disse ele. — Cabine 14. Passou o cartão de plástico pela fresta do vidro.

A velha fatigada olhou para um contador diante de si e calculou num papelucho. — Cento e dezesseis marcos e trinta — disse ela. — A soma é gorda.

Hyde colocou duas notas de cem marcos sobre o balcão. Enquanto a mulher lhe dava o troco, ele disse. — Na cabine quinze há uma moça deitada. Está vomitando e gemendo. Tem convulsões. A senhora precisa chamar um médico da emergência.

— Drogada? Heroína?

— Está com toda a cara.

— Eu ainda vou ficar maluca — disse a velha. — Todas as noites a mesma coisa. O inverno inteiro assim. Quando esquenta, ficam deitados pelas privadas.

 Ela discou um número e disse no receptor:

— Central médica de urgência? Aqui estação do Zoo. Posto telefônico. Boa noite. Bom dia. Como queiram. Aqui tem uma na cabine. Picada... Dose ruim... Não, tá viva, acho que tá... Mas precisam vir rapidinho... Sim, tá bem.

Ela desligou e dirigiu-se bocejando a Hyde, que enfiava no bolso seu troco: — Não, sabe, não. O Führer não permitia uma coisa dessas.

Daniel havia acompanhado Teddy Shimon no elevador até o terceiro andar e se despedido ali do israelense. Prosseguiu até o saguão, mergulhou no frio da rua e desceu um trecho do Kurfürstendamm em direção à igreja Ali cruzou a rua e entrou na Rua Meineke. Ele conhecia aí um famoso bar-restaurante da antiga Berlim. Muitas das mesas de madeira lavada e escovada estavam ocupadas. Alguns fregueses só estavam comendo a essa hora. Todos bebiam. A fumaça de muitos charutos enevoava o ambiente. Um rádio tocava um animado jazz. Daniel foi até o balcão, pediu ao dono uma cerveja e uma aguardente, dizendo em seguida que precisava telefonar.

— Mas é claro, meu senhor. O aparelho é na cabine lá atrás. É só discar. Aqui comigo, fica contando um relógio.

Daniel tomou a aguardente e levou consigo o copo de cerveja. Na cabine fazia um calor sufocante. Daniel manteve uma fresta da porta entreaberta com o pé. O ruído do local era tamanho que ninguém poderia entender o que ele dizia ao telefone. Bebeu mais um gole, colocou o copo numa prateleira e discou o número de Conrad Colledo em Frankfurt. Seu amigo logo atendeu.

- Conny, aqui é Danny. Estou ligando de um bar.

— Alô, Danny. — Sua voz estava baixa e cansada.

— O que há? Você ainda está sentado no escritório?

— Sim. Montes de trabalho. Na Califórnia, os rapazes encontraram um câmera que tinha estado naquela época em Teerã. William Mackenzie.

— E então?

— Não teve então. Infarto. Morreu há três meses. Há três meses, Danny, apenas há três meses!

— Que azar!

— Bruto azar. Só damos azar! Você também. Com seu professor. Mercedes me contou tudo quando eu avisei vocês desse Shimon. Ele vale pelo menos alguma coisa?

— Ainda não sei. Parece que sim, já vou contar. O que mais está acontecendo por aí?

— Ah, cara, é para chorar. Está lembrado do Chan Ragai?

— Chan Ragai?

— Sim.

— Não.

— Esse cara havia sido contratado por seu pai. Como residente do Serviço Secreto de Ribbentrop em Teerã. Ele contou para você! A ele estava subordinado o fabuloso agente CX 21.

— Sim, claro! Chan Ragai! Meu velho mentiu, não?

- Não, não. Nesse ponto, ele disse a verdade. Eu mandei três rapazes para o Irã. De Bagdá. Porque não recebiam visto de entrada do regime de Khomeini.

A voz fatigada tornou-se alta e colérica.

— Esse país é uma casa de loucos.

— Naturalmente, nenhuma pista de Chan Ragai.

— Pelo contrário, Danny. Pelo contrário. Meus rapazes tinham uma pista quentíssima. Chan Ragai vive ainda. Não mais em Teerã. Lá, só vive a irmã. Nós já tínhamos chegado pertinho dele quando meus três rapazes foram presos. Acusação: espionagem para os EUA. É de matar, Danny, é de matar!

— Meu Deus! Espionagem? Tomara que não morra ninguém.

— Vão deixá-los sair. Telefonei logo para o Genscher. Como Ministro das Relações Exteriores, ele tem boas relações com o Irã. Já falou com os mandachuvas de lá, soltou o embaixador em cima deles. Vão soltar logo os três, mas expulsá-los imediatamente. Pois é, e assim vai por aí. E o senhor superintendente está muito descontente porque tudo está dando errado. Tomara que agora tenhamos sorte com esse Harry Gold. Quando vai você  ver esse homem?

— Hoje à tarde, às três e meia. Pousaremos às t4h35m. Por isso estou ligando para você. Desta vez não vamos correr risco algum. Desta vez a equipe vai comigo para a casa do homem e começa a rodar desde o primeiro momento. E a polícia também tem de estar por lá antes que eu chegue e examine a casa inteira. Se você estivesse lá quando liquidaram o velho Kant, no meio da frase, eu só estava a um metro dele... Todo aquele sangue...

- Com a Polícia Criminal Federal eu já falei. Vocês terão não só esses, mas policiais comuns também. Diante da casa. Dentro da casa. Durante a filmagem. Vem uma equipe de Königstein. Meu melhor pessoal. Vamos rodar novamente com duas câmeras. Deixe esse Gold dizer bobagem a vontade, caso ele precise de tempo! Não o apresse! Filme virgem é barato Por mim que rode até dois quilômetros! E nós depois montamos o material de nosso jeito. E, escute aqui, você naturalmente não vai levar Mercedes junto!

— Claro que não. Ela fica em minha casa.

- Sozinha? De jeito nenhum. Estarei no aeroporto quando chegarem e a levarei para casa comigo até que tudo tenha passado.

A balançada música de dança parou de tocar. A voz do locutor que se seguiu estava ininteligível com todo aquele barulho. Logodepois soou, solene e austero, o hino da DDR, “Ressurgido das ruínas”.

Uma belíssima mulher de cabelos escuros, sentada a uma mesa, disse em voz alta: — Amizade, amizade!

O proprietário disparou em direção ao rádio e o desligou, exclamando: — Desculpem-me os senhores! Sintonizei a rádio errada.

— O que foi isso? — perguntou Colledo.

— Nada. Coisa à-toa. Agora, preste atenção, Conny! Vem mais uma!

— Ainda tem mais? Que bom. Conta tudo aqui para o papai! Daniel relatou sua conversa com o pai e o ultimato apresentado por ele.

Colledo praguejava como um danado.

— Homem, e isso é seu genitor. Meus parabéns!

— Obrigado. E como disse, ele quer que o superintendente saiba de tudo logo.

— Pois vai saber. — Colledo riu com raiva. — Tchau, meu velho! Até amanhã no aeroporto. E, na minha crueldade, agora vou tratar de acordar o Sr. von Karrelis...

Daniel bebeu sua cerveja até o fim e foi para o balcão, para pagar.

— Isso eles fazem de propósito — disse o dono.

— Eles, quem?

— Os do outro lado. Primeiro tocam sempre um jazz, americano, lindo. Para que a gente se engane. Isso eles acham engraçado. Muito obrigado, meu senhor, volte sempre! Durma bem.

Daniel voltou para a Rua Meineke. Um homem chocou-se com ele na calçada. O homem cambaleou. Estava bastante embriagado.

— Ora, nenhuma consideração com um velho, hem?

— Tudo bem.

— Bem, coisa nenhuma! Ainda fico maluco. Já estou procurando faz uma hora. Onde é que é isso, Rua Schaper?

— Não sabe pedir por favor?

— Prefiro continuar procurando — disse o bêbado e prosseguiu, cambaleando.

Daniel retornou ao hotel. Chegou à porta de entrada ao mesmo tempo que um homem alto e magro, que cortesmente afastou-se para o lado.

— Entre, por favor.

— Obrigado — disse Daniel.

Caminharam lado a lado através do saguão em direção aos elevadores.

— O senhor vai subir também? — perguntou Daniel.

— Não — disse Wayne Hyde. — Vou ainda dar um pulo até o bar.

Mercedes havia trancado a porta do apartamento. Daniel bateu forte. Ela abriu, já de camisola. Ele a abraçou e lhe deu um beijo.

— Pronto, tudo resolvido. Eu já venho logo. Não vá se resfriar! Mercedes caminhou de volta para o quarto enquanto ele tirava seu capote. Rapidamente, ela discou o algarismo zero no telefone ao lado de sua cama. Uma voz de moça atendeu.

— Aqui é a Sra. Olivera, apartamento 606/7 — disse Mercedes baixinho. — Srta. Michaela?

— Sim, minha senhora.

— Por favor, pode começar. — Mercedes desligou.

Logo em seguida, Daniel entrou no quarto. Tirou o paletó.

— Meu Deus, mas que dia esse! — disse ele.

Do rádio embutido na mesinha-de-cabeceira vinha urna música suave, a Rapsody in blue, de Gcorge Gershwin.

— Se você não estivesse aqui comigo, eu ficaria maluco, querida, O pobre do Conny está a ponto de...

Ele calou-se, pois a música fora retirada do ar e substituída, por outra, com a grave e vibrante voz de Marlene Dietrich.

“...Se eu pudesse desejar alguma coisa, eu ficaria embaraçado...”

— Mercedes!

— Surpresa — disse ela radiante. — Estive à tarde lá embaixo, com nosso velho disco debaixo do braço, e perguntei à telefonista se eles não poderiam tocá-lo. Não podiam. A música da casa é de fita. Mas eles possuíam uma fita em cassete com a canção interpretada pela Marlene. Imagine, Danny, nossa canção! Aí está ela de novo...

“...o que então eu deveria desejar, tempos ruins ou tempos bons...“, cantava a Dietrich.

Daniel se aproximou da cama. Mercedes estava sentada com os braços abertos. Ele deslizou para o lado dela. Seus lábios se encontraram. Mercedes apertou seu corpo contra o dele.

“...se eu pudesse desejar alguma coisa, quero ser um pouco feliz...”

— Mercedes, querida!

— Oh. Danny. Como eu amo você.

Ele a beijou novamente.

“ ...pois se eu fosse por demais feliz, eu teria nostalgia da tristeza”, cantou Marlene Dietrich.

- Sim — disse Harry Gold. — Eu amo a Alemanha. A Alemanha é minha pátria. Eu não conseguiria viver em um outro país. Eu bem que tentei. América. Israel. França. Impossível! Morria de saudades, A Alemanha. Somente a Alemanha. Aqui eu nasci. Aqui é que eu desejo morrer. Eu sei o que estão pensando agora. Três anos de campo de concentração não foram suficientes para esse idiota. Não, não bastaram mesmo. Estúpido judeu patriota alemão, pensam agora vocês. Mas sim, eu estou vendo! E daí? Pois então eu sou um estúpido judeu patriota alemão. E agora, eu posso me imaginar, vem à mente de vocês a velha anedota. Os judeus marchando pela Unter den Linden (literalmente, Sob as Tílias. Avenida central de Berlim, antigo palco de acontecimentos análogo aos Champs Elysées em Paris – N. do T.) em 1933, com cartazes, sobre os quais está escrito: FORA CONOSCO! Muito engraçado.

Harry Gold era um homem baixinho, com uma grande cabeça e espessos cabelos grisalhos, que lembravam a cabeleira de Albert Einstein, igualmente revolta e desgrenhada. Estava sentado numa cadeira de braços diante de um aquecedor a gás. Dependurado na parede, acima do aquecedor, se via um retrato do Imperador Guilherme II.

Muitos spots iluminavam Harry Gold. Duas câmeras estavam voltadas para ele. Uma gravava. A outra entrava em funcionamento tão logo fosse preciso trocar o rolo de filme da primeira. Desse modo, a entrevista podia ser filmada sem interrupção. Um minúsculo microfone estava pendurado num cordão diante do peito de Gold. Ele usava um terno escuro e uma gravata prateada. Num canto da sala, um técnico de som estava ajoelhado, com fones de ouvido, diante de seus aparelhos e observava cuidadosamente as oscilações dos vários ponteiros de muitos mostradores. Fazia calor na sala embora todas as janelas estivessem abertas e lá tora fizesse ainda um frio terrível. Os holofotes aqueciam enormemente o ambiente.

— Havia um monte de judeus patriotas alemães — dizia Harry Gold, de setenta e cinco anos de idade, com seus melancólicos olhos escuros e bolsas lacrimais escuras e pesadas. — Disseram-me que eu poderia falar como quisesse. Pouco importava por quanto tempo. E isto eu preciso contar, porque é importante. Os jovens não sabem mais nada disso tudo. Uma grande quantidade de judeus ajudaram a fazer da Alemanha um grande país. Heinrích Heine e o pintor Max Liebermann. Paul Ehrlich, o químico e médico. Max Reínhardt. Elisabeth Bergner. E. Kortner, Bassermann, Ernst Deutsch. E os cinco irmãos Ullstein. Kurt Tucholsky. Walther Rathenau, o Ministro do Exterior da República de Weimar. Albert Ballin, íntimo amigo do Imperador, fundador da Hapag, a maior empresa de navegação da Alemanha. Dotou sua cidade natal de Hamburgo do maior porto marítimo da Alemanha e do mundo antes de 1914. Suicidou-se em 1918 com a derrota na guerra. Carl Zuckmayer. Jacques Offenbach. Ferdinand Lassalle. Maximilian Harden. Bruno Walter. Otto Klemperer. Heinrich von Friedberger, Ministro de Bismarck, e Rudolf Friedenthal. O quase cego Gerson von BIeichröder, banqueiro particular de Guilherme II, e que já o fora de Guilherme I. Therese Giese. Fritz Haber, com sua síntese do amoníaco, que assegurou o abastecimento de munições da Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial. Dentre os trinta e cinco maiores químicos do Império, dezesseis eram judeus. Richard Willstätter, Adolf von Baeyer, ambos prêmios Nobel! Os físicos Max Bom e Albert Einstein. Otto Hahn, que o Terceiro Reich ainda tolerou, e sua colaboradora Lise Meitner. Os alemães poderiam ter produzido a bomba atômica antes dos americanos. Niels Bohr... Sim, sim, já vou parar. E todos os grandes médicos... Vou parar, realmente. É só porque o senhor disse que eu podia falar como bem entendesse... Com isso, eu só queria explicar que não é somente um pequeno judeu maluco que ama a Alemanha, mas que também existiram muitos grandes e geniais judeus alemães...

E a câmera 1 rodava...

A sala pequeno-burguesa estava lotada de gente. Daniel estava postado atrás da câmera, encostado numa vitrine cheia de figuras de porcelana. A seu lado se encontrava o diplomata israelense Teddy Shimon diante de um bufê, no pesado velho estilo alemão, de madeira negra maciça. Na parte inferior do móvel estava certamente empilhada a louça “fina” destinada às visitas. Sobre o tampo da parte debaixo, estavam pousados pesados copos lapidados de vinho, de pés altos e nas cores mais variadas, que em alemão se chamam “Romanos”, e atrás dos vidros da parte superior achavam-se dispostos em prateleiras sucessivas suspensas em armações de arame, diversas salvas de cristal, também coloridas. Todo o móvel era ricamente entalhado: numerosas pequenas torres, cachos de uvas, mulheres em miniatura com seios desnudos, castelos, sacadas e minúsculas bandeiras desfraldadas ao vento, tudo na mesma madeira preta. A mesa de canto era igualmente adornada e sobre ela estavam postadas muitas fotografias atrás de vidro, com retratos de parentes de Harry Gold. Mais adiante, ao redor de uma mesa de carvalho havia pesadas cadeiras de assentos macios e recobertos de veludo verde- escuro. O sofá tinha um encosto alto, e nos pontos onde se poderia encostar a cabeça, assim como nos braços do móvel, havia paninhos de renda. O papel de parede repetia sempre o mesmo padrão de pequenos buquês de flores. Acima de uma mesa suplementar via-se uma reprodução da Última Ceia, de Leonardo da Vinci, e sobre o móvel, uma menorá, um candelabro de sete braços. E, no meio desses e de outros tantos móveis antigos e pesados, havia um bando de gente: iluminadores, pessoal das câmeras,  o assistente do controlador de som além de três policiais em trajes civis, fortemente armados.

O pó adejava nos fachos de luz dos refletores. Pairava no ar um cheiro de inseticida, metal aquecido e suor. Mais elementos da Polícia Criminal, munidos de pistolas automáticas, e policiais uniformizados, igualmente armados, estavam lá fora, no corredor, à frente da entrada da casa bem como ao seu redor, no pequeno jardim. Havia também policiais nas calçadas da rua repleta de carros estacionados. Os carros da polícia, bem como os do pessoal de TV, se achavam na Rua Odrel que estava fechada para passagem. Por detrás das barreiras branco-vermelhas comprimiam-se as pessoas: mulheres, homens, crianças pequenas. O bairro vivia a sua grande sensação. Já horas antes haviam chegado policiais, que tinham erguido as barreiras e examinado minuciosamente a casa de Gold do porão ao telhado assim como o jardim. Para a época do ano fazia frio demais. Os curiosos estavam gelados Apoiavam-se ora num pé, ora noutro, com os rostos vermelhos. Mas não se arredavam do lugar. Quando é que havia um espetáculo assim por aqui!

Da estação de manobras próxima vinham diversos ruídos: o rolar dos vagões, as batidas dos pára-choques, curtos apitos das locomotivas de manobra. Os moradores da região, de há muito, não mais ouviam essas coisas.

Por cima de Harry Gold, o retrato do Imperador fulgurava à luz dos refletores. O braço direito de Guilherme lI, demasiadamente curto, se achava enfiado dentro do bolso do dólmã de um magnífico uniforme da Marinha, cujo peito estava recoberto de muitas e grandes condecorações Com as pontas de seu bigode retorcidas para cima, o Kaiser mirava um longínquo horizonte com seu olhar de aço. O pequeno e frágil judeu debaixo do retrato a óleo estava dizendo:

— Desde 1949 moro nesta casa. Sozinho. Só tenho ainda uma irmã na América. Casada por lá. Todos os meus outros parentes — ele engoliu em seco — estão mortos. Já há muito tempo. Também Elsa, minha boa mulher, que Deus a tenha!

— Morreram todos em diversos campos de concentração — disse Daniel atrás da câmera 1. Trazia também um microfone ao pescoço: — Nós nos informamos.

— Eles... eles morreram em campos de concentração... — Harry Gold concordou com a cabeça. Mas completou apressadamente: — Mas isso foram os nazistas, esses criminosos! Os nazistas não eram a Alemanha. Não a minha Alemanha.

— Sr. Gold, eu lhe peço... — começou Daniel, mas Gold o interrompeu.

— Sim, sim, eu sei o que o senhor está pensando. Totalmente doido esse Gold, está pensando o senhor. Então eu sou mesmo doido, deve ser realmente isso. Minha família é natural de Frankfurt. Foi aqui que sempre vivemos. E as pessoas sempre foram amigas da gente, e prestativas. Até o fim, até que levaram o meu pessoal. Elsa — e que Deus a tenha junto a si — era loura. Todo mundo sempre dizia: “Não, e a senhora é mesmo judia, Sra. Gold? Mas a senhora nem parece!” Meu pai — que Deus o tenha — ganhou a Cruz de Ferro na Primeira Guerra Mundial. Quando eles o vieram buscar, a turma dos AS (Sturm Abteilung – Grupo de assalto; SS: Schutzstaffel – esquadrão de proteção. Tropas do nacional-socialismo – N. do T.), junto com minha mãe e minha tia Lenchen, muitas pessoas ficaram na rua, algumas choraram, segundo me foi contado. Naquela época eu estava com Elsa em...  — Ele parou. — Isso eu relatarei depois. Aqui também, no bairro — todos gostam de mim. Vocês sabem como eles me chamam? “Nosso velho judeu” é como me chamam! — Harry Gold sacudiu a cabeça sorridente: — Eu sou o velho judeu deles...

Daniel pigarreou.

— Desculpem-me! — O homenzinho se endireitou e disse: — Agora ao assunto, finalmente. Meu nome é Harry Gold. Nasci em 11 de janeiro de 1909 em Frankfurt. Aqui freqüentei a escola e completei o ginásio. Em 1928 segui para Berlim. Desde 1931, estava empregado na UFA, a maior empresa cinematográfica alemã. Queria tomar-me montador de filmes, Comecei bem lá em baixo e galguei posições trabalhando. Em 1934, eu já era montador-chefe, e mais de duas dúzias de homens e mulheres trabalhavam sob minha direção. Os diretores de cinema brigavam por mim. Eu acho que posso afirmar que era realmente um bom montador. Em conseqüência, fui declarado membro do JEV e pude seguir trabalhando.

— E que era um JEV? — perguntou Daniel atrás da câmera.

— Um chamado Judeu Economicamente Valioso — esclareceu Harry Gold, não conseguindo esconder o orgulho que transparecia em sua voz. — JEVs eram químicos, engenheiros, médicos, o que quiser.

— E também montadores de filmes?

— Tão bons quanto eu, sim. Todos os técnicos de filmagens. Naturalmente só alguns. Os melhores. Foi Goebbels quem impôs isso. No teatro se dava o mesmo. Não para sempre, é claro. Mas comigo, até 1942. Já era alguma coisa! Os JEVs estavam protegidos, suas mulheres e filhos também, caso os tivessem. Não precisavam usar estrelas amarelas. Recebiam cartões de alimentos como “arianos”. Conservavam suas moradias. Tínhamos uma casa maravilhosa, a minha boa Elsa — que Deus a tenha — e eu. Rua Lassen, no bairro de Grunewald. Bem próximo da praça Hagen. E todas as manhãs eu ia até Babelsberg, onde se achava o grande estúdio da UFA... Ora, tudo estava indo muito bem até o começo de 1942. Em 20 de janeiro foi suspenso meu status de JEV e no dia 30 eu já estava no campo de concentração. Todos os meus parentes, com exceção de minha irmã na América e de Elsa, já tinham sido levados para os campos de concentração. Eu só conseguia proteger minha boa mulher — que Deus a tenha. Prenderam-na junto comigo. Elsa seguiu para Auschwitz onde foi,.. Onde ela morreu.

— E o senhor foi levado para qual campo, Sr. Gold? — perguntou Daniel.

— Para Oranienburg — respondeu Gold. — Quero dizer, na verdade era Sachsenhausen, que é uma comuna que faz parte de Oranienburg, distrito de Potsdam. Fui metido no bloco 31 e, com isso, estava praticamente salvo.

— Como assim? — indagou Daniel.

— O bloco 31 era um bloco bastante peculiar.

— E o que tinha de especial?

— Ali trabalhavam profissionais. Os de primeiríssima linha, os melhores que havia na Alemanha.

— Que profissionais eram esses?

— Especialistas em falsificações — disse Harry Gold, de novo com orgulho na voz.

Com estardalhaço, uma pistola automátíca caiu ao chão.

— Corta! — gritou o técnico de som.

— Sinto muito — disse um policial. — Escorregou. — Ele apanhou a arma do chão.

— Então vamos — disse o técnico de som, ajoelhado diante de seu equipamento.

— Câmera pronta?

— Rodando! — respondeu o segundo operador.

— Com som ligado — disse o assistente de som.

Este saltou para diante de uma das câmeras e bateu uma claquete onde estava escrito com giz: “Entrevista Sr. Gold. Rolo três. Tomada dois.” E recuou com rapidez.

— Prossiga, por favor, Sr. Gold — disse Daniel.

— Preciso começar de outra forma para que o senhor tenha um quadro correto da coisa. Veja: no campo de concentração de Sachsenhausen produziram-se as duas maiores falsificações do Terceiro Reich. No bloco 31 e no 19. Eu tenho aqui — e Gold ergueu um livro que tinha sobre os joelhos — as memórias de um homem cujo nome de autor é Walter Hagen! Já deve ter morrido há muito tempo. Esse Hagen trabalhou longamente no SD, o Serviço de Segurança do Estado dentro do Departamento Central de Segurança do Reich criado por Himmler. A seu livro, Höttl deu o título de Operação Bernhard e o subtítulo de Um depoimento histórico sobre a maior operação de falsificação de dinheiro de todos os tempos. O livro foi lançado pela editora Welsermühl. Comprei meu exemplar em Munique, em 1956. Para a chefia do SD, Himmler havia designado o oficial SS Reinhard Heydrich. Um dos colaboradores de Himmler, Naujocks, elaborou o plano de se lançar, em grandes quantidades, notas falsas de libras esterlinas sobre a Inglaterra, de bordo de esquadrilhas de bombardeiros, além de levá-las também para os outros países, a fim de arruinar a moeda e a economia britânicas. Essas notas de cinco, dez, vinte, cinqüenta, cem, quinhentas e mil libras foram copiadas de maneira tão extraordinária por excepcionais especialistas que, quando o Banco Nacional da Suíça enviou uma série delas para exame pelo Banco da Inglaterra, de Londres veio imediatamente a resposta de que aquelas notas eram autênticas, sem dúvida alguma.

— E foram todas falsificadas no bloco 19 do campo de concentração de Sachsenhausen — disse Daniel.

— Não desde o começo — replicou Gold. — Hagen descreve o penoso trabalho dos especialistas. Primeiro, se trabalhou durante anos numa parte isolada da fábrica de papel Spechthausen, em Eberswalde, nos arredores de Berlim. Em começos de 1942, pareceu a Heydrich que a produção na fábrica de papel de Spechthausen não era suficientemente segura, e ele a transferiu para o bloco 19 do campo de Sachsenhausen. Na época, Naujocks trouxe de outros campos de concentração, de penitenciárias e do submundo berlinense os melhores falsificadores de notas de banco que conseguiu, e além disso químicos, especialistas em papel e impressão. Também peritos judeus em assuntos bancários, que já se encontravam nos campos, foram todos transferidos para Sachsenhausen. Então Heydrich brigou com Naujocks e conseguiu que este fosse transferido para a frente de guerra. Seu sucessor chamava-se Krüger. Em Sachsenhausen, a grande produção começou. Em 1943, eram fabricados até 400 mil notas ao mês. Deixou-se de lado a opção de fazer chover falsificações tão dispendiosas sobre a Inglaterra; elas foram colocadas em circulação através de países neutros.

— Está na hora dele chegar ao assunto que interessa! — sussurrou Teddy Shimon.

— E o que escreve esse Hagen sobre o seu bloco, Sr. Gold? Bloco 31? — perguntou Daniel.

— Nem uma só palavra. Ele não sabia o que ocorria conosco, embora estivesse na SD e as dois blocos se encontrassem no mesmo campo. Isso lhes poderá dar uma idéia do segredo em que trabalhávamos. Eu diria: muito mais secretamente que os falsificadores de libras. Os senhores precisam imaginar isso: o bloco 19 e o bloco 31 eram totalmente autônomos. Campos fortemente vigiados dentro de um outro campo. Nunca um de nós ou dos homens do bloco 19 entraram em contato com um prisioneiro estranho. Tínhamos tudo próprio: dormitórios, cantinas, banheiros, assistência. A respeito dos falsificadores de libras Hagen escreveu seu relatório, e depois da guerra chegou a existir uma comissão de inquérito anglo-americana e muita excitação. Sobre aquilo que fazíamos no bloco 31, nunca alguém escreveu uma só palavra. Tampouco alguém contou a outra pessoa algo a respeito. Eu sou o primeiro a abrir a boca, depois de mais de quarenta anos.

— E por que motivo o senhor o está fazendo, Sr. Gold? — perguntou Daniel.

- Porque sou o único que sobreviveu. E porque a verdade tem agora de vir à luz — disse Gold calmamente.

— Qual era sua tarefa no bloco 31?

— Também a de falsificar. Tudo o que se relacionasse a filmes. Os prisioneiros comuns do campo sabiam, naturalmente, que nós éramos algo especial, já que podíamos usar roupas civis, recebíamos comida melhor e assim por diante. Sob a forma de boatos, dizia-se que no 19 e no 31 existem falsários. Sim, mas o quê era falsificado, disso os demais prisioneiros não faziam a menor idéia. Disso, por sinal, só sabia um punhado de pessoas no Departamento de Segurança. Quando eu cheguei, encontrei montadores, técnicos de som, iluminadores, pessoal de laboratório, operadores. Um homem eu conhecia da UFA, meu amigo Peter Lammers, técnico de som, comunista.

— E que falsificava o senhor exatamente?

- A grande patifaria só chegou em fins de 43, começo de 44. Até então, forjávamos apenas filmes de propaganda, filmes de horror, filmes sobre planos ou operações militares, que deveriam cair em mãos dos aliados...

— Um momento, Sr. Gold! — disse Daniel. — Pelo menos para os filmes de horror e propagandísticos, o senhor precisava, sem dúvida, de locutores e comentaristas.

— É evidente que nós os tínhamos também. E tinham de dominar seus idiomas. Sem sotaque de espécie alguma. Para o francês e o russo havia judeus estrangeiros, que não tinham podido escapar a tempo da Alemanha. Um locutor americano fazia o seu trabalho espontaneamente. Talvez o senhor já tenha ouvido falar alguma vez de Lorde Haw-Haw, não? Era um irlandês nascido na América cujo nome era Wllliam Joyce. “Germany calling! Germany calling!” Com estas palavras, a Rádio da Grande Alemanha começava suas emissões em inglês durante a guerra. Ora, o locutor era esse William Joyce, que os ingleses denominaram Lorde Haw-Haw. Depois da guerra, moveram-lhe um processo e o enforcaram. Aliás, o processo não respondeu à pergunta: era William Joyce um idealista louco ou um criminoso consciente?

— Mas Joyce não trabalhava para o bloco 31!

— De jeito nenhum! Ele nada sabia do bloco 31. Não, não, nosso especialista se chamava Richard Clark. Noticiarista de rádio formado. E também dele jamais se saberá se era um maluco fanático ou um crápula imundo. Mas um locutor fantástico, isso ele era em todo caso. Os nazistas o tratavam tão bem como a Lorde Haw-Haw.

Agora Harry Gold falava com os olhos fechados. Ele se concentrava para o que viria adiante.

— Muito bem, em junho de quarenta e dois, Heydrich foi assassinado em Praga, não é mesmo? Seu sucessor foi Ernst Kaltenbrunner.

A voz de Gold se manteve a mesma, mas em seu rosto pequenos músculos se puseram a tremer, enquanto ele recordava. As reminiscências do que ele vivera se tornavam cada vez mais fortes.

— Agora chegamos ao seu filme. Lembro-me de tudo, exatamente. Era o dia 26 de dezembro de 1943, dia do segundo feriado de Natal. Chegaram dois caminhões da SS ao bloco 31, e um Mercedes preto. Do carro, desembarcou um homem em trajes civis. Era um homem muito grande, com largos lóbulos de orelha presos. Nós fomos chamados para o refeitório...

Os pensamentos de Gold mergulhavam cada vez mais profundamente em seu passado...

Os prisioneiros estavam sentados às mesas da cantina. Lá fora, caía uma neve molhada, em grandes flocos. Fizera-se um silêncio mortal. — Meu nome nada acrescenta ao assunto — disse o homenzarrão. Eu sou um comandante da SS e lhes trago material referente a um Gekados do mais alto nível.

Gekados significava Geheime Kommandosache, assunto secreto do Comando, o que todos no recinto sabiam.

— De 28 de novembro a 1º de dezembro deste ano realizou-se em Teerã uma conferência entre Stalin, Roosevelt e Churchill. Nessa ocasião poderiam Stalin e Roosevelt perfeitamente haver firmado um protocolo secreto no qual essas hienas previdentemente dividiriam o mundo entre si. Este acordo teria sido elaborado pelo conselheiro político de Roosevelt, Harry Hopkins, e o conselheiro político de Stalin, general Voroshilov. Ficamos de posse de uma quantidade de material em forma de filmes. Tomadas para noticiários feitas por operadores norte-americanos. Filme Kodak. E também tomadas de Hopkins e Voroshilov, naturalmente. E de Roosevelt e Stalin. Chega-se até mesmo a vê-los assinando alguma coisa.

— Mas como... — começou a perguntar o comunista Peter Lammers, mas se interrompeu. — Sou um imbecil. Desculpe-me, comandante! Da SD, é claro. Os melhores agentes que temos.

O homem das SS olhou-o irritado, com os olhos apertados.

— Canaris vai alegrar-se — disse Lammers rapidamente.

— O senhor fala demais — disse o SS. — Nome?

— Peter Lammers, o comandante.

— Cale a porcaria dessa boca, Lammers!

— Sim senhor, comandante.

 — Vocês não vão acreditar, mas nós também possuímos o protocolo secreto — continuou o homem com os lóbulos da orelhas presos. — Não em filme, evidentemente. É um longo protocolo. Ele precisa ser montado com o filme por vocês. Trago instruções precisas sobre em que ponto cada coisa vai ficar. O protocolo precisa ser filmado. Página por página. Filme virgem Kodak temos bastante aqui. O acordo foi datilografado por um especialista em Mauthausen, numa máquina de escrever americana, do mesmo modo como os americanos escrevem. Todas as folhas têm, igualmente, o formato americano. Quanto à absoluta correção, vocês não precisam preocupar-se. Internacionalistas o verificaram. Na Rua Prinz-Albert. Não contém erro. O redator original trabalhou na América antes da guerra, numa universidade. O protocolo secreto é de primeira ordem, primeiríssima ordem. Terrivelmente esperto, esse judeu.

— Que nesse meio tempo já foi desta para melhor — disse Gold.

— Pneumonia. O senhor acertou, Sr...

 — Gold, comandante. Harry Gold.

- Também um judeu espertinho, não

— Sim senhor, comandante, Só estou pensando aqui com meus botões que todos os que vão trabalhar nesse filme para o senhor, vão morrer de pneumonia ou qualquer coisa assim.

 - Isso o senhor já podia calcular desde que falsificou o primeiro filme de horror, Gold. Parece que não é um judeu tão esperto assim.

-  Não, eu temo que não.

O homem das SS ficou jovial.

— Não faça nas calças por isso! Há quanto tempo já trabalha aqui?

- Há quase dois anos, senhor comandante.

- Três anos — disse Lammers.

- E nesse tempo todo não passaram muito bem aqui?

- Muito bem — disse Gold.

- Já estariam há muito tempo comendo grama pela raiz se não fossem profissionais desse gabarito. Vocês já estão vivendo mais dois ou três anos além do que lhes cabe. Se o filme sair perfeito e nós conseguirmos fazer alguma coisa com ele, vocês continuam vivos e sendo tratados do mesmo modo excelente. Quanto a isso, vocês têm a minha palavra de honra.

— E o homem que elaborou o protocolo... — começou Lammers.

— Desse aí, os chefões não precisam mais, seu idiota — disse Gold para ele.

— É mesmo um judeu esperto — disse o homem das SS.

— Assim é, Lammers. De vocês nós continuaremos a precisar. Se estiverem mortos, não poderão mais falsificar. Para vocês cada dia de vida é um dia presenteado. Vocês devem lembrar- se disso sempre!

— Você está ouvindo, Peter? — disse Gold. — Está ouvindo o que diz o senhor comandante? Eu lhe digo todos os dias, temos de ter isso sempre diante dos olhos, com a mais profunda gratidão. E por isso, trabalhar tão bem quanto pudermos.

— Sim, mas por quanto tempo ainda? — disse Lammers, entristecido.

— Caso não esteja de acordo e quiser morrer logo, é só falar. — opinou o homem que tinha os lóbulos da orelha presos.

— Ele hoje está num mau dia, senhor comandante — disse Gold apressadamente. E para Lammers: — Controle-se, seu bestalhão! Todos nós teremos de morrer um dia. Ou você pensa que vai viver eternamente?

— O senhor me agrada, Gold — disse o homem da SS. — Esta é a forma correta de ver a coisa. Conosco poderia tornar- se alguma coisa. É uma lástima que seja um judeu.

— Não me foi permitido escolher, senhor comandante. E ao Lammers tampouco. Ele é um produto do meio e da educação. Cresceu na miséria. Pai desempregado. A mãe, morta. Moradia: um buraco úmido num porão. O pai enchia a cara. Não regulava mais da cabeça. Por isso foi para o PC. Lá, ele recebeu um pouquinho de apoio. Auxílio vermelho, não é? Também teria recebido dos senhores, é claro que outra ajuda, disso eu sei. Mas o pai era bêbado. Educou o menino para ser um ferrenho comunista, O que poderia fazer o pequeno? Contestar? Recebia logo um par de bolachas na cara. É o que eu digo: educação e o meio em que se vive. Não era nada agradável no buraco do porão.

— Pelo menos ratos a gente não tinha. Lá em casa era muito úmido para eles — disse Lammers.

— Que delícia! — O comandante teve um ataque de riso. — A casa de vocês era úmida demais para os ratos! — Ficou sério de novo. — Pois bem: vocês até agora trabalharam muito bem. Prestaram grandes serviços ao Reich, Nós não somos bandidos. Vocês sabem que existem judeus de honra. E também comunistas de honra, Já ouviram falar alguma vez em anistia do Führer? É óbvio que vocês jamais deverão abrir a boca. Mas isso certamente vocês não farão, pois nesse caso, seus próprios companheiros iriam arrebentar vocês de pancada. Tudo depende agora de como sair o filme. Vocês entenderam muito bem que esse filme com o protocolo secreto terá um efeito inacreditável se vocês derem o máximo de si. Pode ser até que decida o destino da guerra.

- Senhor comandante — disse Gold — o senhor vai receber um filme do qual o mundo inteiro falará!

Mergulhado no passado, Harry Gold voltou de repente a ver esta cena, enquanto relatava resumidamente o primeiro encontro com o homem das SS, diante da câmera e da luz brilhante dos refletores. Ele prosseguiu:

- Muitos dizem que eu sou um mau judeu. Eu nunca deveria me haver unido aos criminosos nazistas. Todos os meus parentes — com a única exceção de minha irmã — foram liquidados. Okay, eu deveria ter sido um herói e me haver recusado a trabalhar para os assassinos. Também me teriam liquidado. Não sou herói. Sou um covarde. Por isso, ainda estou vivo...

Um avião passou com estrondo por cima da casa, O homem que controlava o som girou seu botão. Quando o barulho passou e uma câmera e o gravador entraram de novo em operação, Daniel disse:

- Então, vocês forjaram o filme, Sr. Gold?

— Sim — respondeu ele. — Foi uma trabalheira. A quantas coisas não tínhamos nós que prestar atenção! Os montadores americanos usavam métodos diferentes dos nossos na Alemanha. Por sorte, eu os conhecia. O senhor não pode imaginar o trabalho que Peter Lammers teve com o som.

— Como assim?

— Ora, uma voz de locutor lê um comentário para as imagens que antecedem o protocolo secreto, não é mesmo? Os americanos possuíam naquele tempo também outros aparelhos de som. Peter chegou a ter de montar um. Como nós tínhamos noticiários americanos, Peter pôde comparar como soava o som americano e como os locutores de lá falavam. Isso era extremamente importante para Richard Clark, o nosso locutor. Dias e semanas a fio ele trabalhou sem descanso. Postava-se diante da tela sobre a qual passava o copião e falava e falava. Nunca ficava satisfeito. Ao fim, já estávamos em carne viva. Até que, finalmente, chegou o dia em que Clark se declarou satisfeito. Lammers também. E eu devo acrescentar: com razão. Em matéria de perfeição, eu nunca tinha visto uma coisa assim. Naquele tempo, a gravação do som era elétrica, e não magnética como hoje. Tudo era problema! Mas mesmo assim: foi grandioso o que Clark e Lammers acabaram fazendo. Foi um trabalho de cão, antes e depois.

— O que quer dizer: antes e depois?

— Ora, por exemplo, a tarefa de copiar o conjunto inteiro. Tudo tinha que ficar ajustado, sincronizado. E, ao mesmo tempo, não, O protocolo secreto tinha que parecer inserido, intercalado no filme! Portanto, outros valores preto-e-branco. Como os rapazes se debateram! E as falhas e erros!

— Que erros?

— Nós também poderíamos ter entregue uma cópia absolutamente perfeita, não?

— É claro.

— Mas isso teria sido uma porcaria. Dizia-se que o filme vinha de Teerã, não é? Primitivas condições de trabalho. Assim, tivemos que fazer artificialmente arranhões e falhas de som e todas as outras coisinhas, os minúsculos erros que um filme nessas condições teria de apresentar para não ficar parecendo um filme rodado em Hollywood. Era uma loucura! Cada arranhão precisava ser ponderado. De que tamanho. E onde. Mas também não poderia ter falhas em demasia. Pois bem, em começos de março de 1944, finalmente terminamos o nosso trabalho.

- E o que aconteceu, então?

- O comandante sem nome veio para Sachsenhausen, acompanhado de Kaltenbrunner, Chefe da SD, e de outro chefão da SD, Walter Schellenberg.

- Como é que sabiam que eram esses dois? Eles se apresentaram a vocês?

— De jeito nenhum! Mas nós tínhamos muitos presos políticos. Esses e Peter Lammers os reconheceram. Os chefões das SS assistiram ao filme...

- Só os três?

— E Lammers e eu. Os chefões ficaram entusiasmados. Agradeceram a todos. Kaltenbrunner apertou a mão de todos, individualmente. Então, foram se embora com o filme.

- O senhor sabe o que aconteceu com ele?

- Nãosei, não

- E nunca mais ouviu falar dele?

- Nunca mais. Deve ter acontecido alguma coisa.

- Acontecido?

- Com o filme. Eles não mandaram fazer para pô-lo no armário. Com ele, queriam sublevar os povos. Nunca o fizeram. Ninguém jamais ouviu falar desse filme, até hoje. Muito engraçado...

Daniel refletiu e disse finalmente: — Sr. Gold, hoje de manhã mostraram-lhe na emissora um filme que chegou em nossas mãos. Esse filme é idêntico ao que o senhor forjou?

- Evidente,

- O senhor está seguro disso?

- Cem por cento. O que...

- Espere um instante! O senhor disse que, juntamente com seus colegas, havia forjado esse filme seguindo instruções do Departamento de Segurança de Himmler.

— Sim, naturalmente. Para o SD, o Serviço de Segurança do Estado.

— E o senhor está absolutamente seguro de que não foram enganados?

— Por que nos deveriam ter enganado? O Departamento de Segurança também mandou produzir, no bloco 19, as notas falsas de libras esterlinas. Sei até para quem trabalhei!

— O que sabe o senhor do Almirante Canaris?

— Ele era o chefe da Defesa Militar.

— Portanto, também de um serviço secreto.

— Claro. Havia um bom número deles. A Polícia Secreta de Campo, por exemplo. Ou o Serviço Secreto de Ribbentrop.

— O senhor chegou a lidar com eles?

— Nunca! Tampouco com nenhum outro. Apenas com o SD da Central de Segurança do Reich. Com Kaltenbrunner, Schellenberg e esse comandante que não disse como se chamava. Não estou entendendo o sentido da pergunta.

— Esqueça a pergunta! Só queria ouvir mais uma vez de sua própria boca que o senhor trabalhou para o Serviço de Segurança da Central de Segurança do Reich e para ninguém mais — disse Daniel. Ele olhou para Teddy Shimon, que ergueu as sobrancelhas e sussurrou: — Acredito nele.

— O que aconteceu depois de meados de março de 1944? Sacudindo os ombros, Gold respondeu: — Prosseguiu a rotina. Falsificávamos filmes de horror e tudo aquilo que forjávamos antes. Depois, em novembro de 1944, nós e os falsificadores de notas do bloco 19 fomos transferidos. A situação já estava se tornando séria. E eles nos queriam ver longe dos arredores de Berlim.

- Para onde foi o senhor transferido?

— Os falsificadores de libras foram para um campo em Redl-Zipf, na Áustria. É um lugarejo entre Linz e Salzburgo. Se alguém o conhece é em virtude de sua cerveja. Nós da turma de cinema fomos levados para um velho castelo mais ou menos uns trinta quilômetros a sudoeste de Redl-Zipf. O comandante das SS estava agora sempre conosco assim como um bando de SS para nos vigiar. A guerra de há muito estava perdida, disso todos sabiam, ma nós continuávamos a trabalhar. Também os falsários em Redl-Zipf.

Gold soergueu novamente o livro.

- Sobre isso, Hagen escreve com bastante minúcia e precisão. Tinha pelo menos sentido o que eles faziam, ao contrario de nós. Isso porque os nazistas já pensavam no tempo depois da guerra e tinham gigantescos planos para aquele dinheiro falso. Nossa “hora de glória”, se assim se quiser chamar, tinha sido o filme de Teerã e com ele alguma coisa deve ter dado errado.

- Mas que planos eram esses?

- Não estou entendendo.

- Que planos imensos eram esses que tinham os nazistas para depois do fim da guerra?

Gold bateu com a mão no livro.

- Com o dinheiro, eles queriam montar e financiar no exterior organizações que lhes sucedessem, alem de atrapalhar o mercado financeiro internacional. Para tanto precisavam de dinheiro, para a fuga dos criminosos nazistas e recursos para agentes e simpatizantes. O senhor precisa ler, realmente, esse Operação Bernhard! Quando os americanos chegaram, em começo de maio de 1945, ficamos com medo. Os falsários de libras também. Mas estes, certamente, sem razão nenhuma. Com eles não aconteceu rigorosamente nada. Os americanos os libertaram e os interrogaram a respeito da falsificação de papel-moeda. Isto foi na época um acontecimento sensacional. Grande artigo em Seleções do Readers Digest! Um prisioneiro tcheco  denunciou que, de 1942 até o fim da guerra, teriam sido produzidas 150 milhões de libras esterlinas, cuja maior parte havia sido desviada para o estrangeiro. Uma soma muito grande teria sido levada para a América do Sul, principalmente para a Argentina. O senhor sabe o que era a Odessa?

- Sim, eu sei.

- Ora, essa “operação” também foi financiada por esse dinheiro, embora diversamente. De modo bastante curioso, a Operação Bernhard não foi mencionada no Tribunal de Nuremberg, e Schellenberg não foi acusado por isso. Os ingleses solicitaram dos americanos que nada empreendessem, escreve Hagen-Höttl. As libras foram falsificadas durante a guerra e, na guerra, achavam os ingleses, tratava-se de um “estratagema bélico permitido”. Eles, afinal, tinham também feito chover sobre a Alemanha cartões falsificados para distribuição de alimentos. Já para o pessoal do cinema a coisa foi bem pior.

— O que aconteceu com vocês?

— No dia 1º de maio de 1945, o pessoal das SS destruiu completamente todos os equipamentos e documentação de trabalho. Não deveria ficar rastro algum. Fomos empurrados para um porão e postos contra a parede, inclusive meu amigo Peter Lammers e nosso narrador americano Richard Clark. Os homens das SS usaram uma metralhadora. Derrubaram todos. Nenhuma testemunha.

— Mas o senhor ainda está vivo!

— Deus misericordioso me salvou. Só fui atingido por um tiro de rajada no braço direito e joguei-me ao chão antes que outras balas me pegassem. Dois mortos caíram por cima de mim. Os SS prepararam então a dinamitação do castelo. Nesse ínterim, pude rastejar para fora do porão e escapar. Escondi-me na floresta e vi como o castelo voou pelos ares e como os sujeitos das SS e o comandante fugiam — em direção do ocidente. Não há dúvida de que se entregaram aos americanos. Quando já tinham ido embora, arrastei-me até a granja mais próxima. A gente dali me ajudou o melhor que pôde, mas logo depois já estavam chegando os americanos, que me medicaram adequadamente.

— O que contou o senhor para os americanos?

— O mínimo possível. Que eu tinha trabalhado no bloco de falsificação de filmes em Sachenhausen. Propaganda e falsas informações militares. Sabiam evidentemente que tais filmes falsos haviam sido produzidos, só não sabiam onde. Pois bem, eu lhes contei. Também, que havíamos sido transferidos para a Áustria e que as SS nos haviam fuzilado a todos, exceto a mim, explodindo em seguida o castelo. Comparado com as informações prestadas pelos falsários de libras, o que eu estava contando aos americanos não tinha interesse algum. Para eles, a sensação eram as libras.

— Bem, a sensação teria sido o filme forjado de Teerã, Sr. Gold, caso o senhor tivesse mencionado uma palavra apenas. Mas isso o senhor não fez.

— Não.

— E por que não?

- De medo! Porque eu sentia um medo terrível! — gritou Harry Gold de repente.

— Dos americanos?

— Bobagem, dos americanos! Dos nazistas! Havia ainda tantos. Escondidos. Em subterrâneos. Teriam liquidado comigo se por meu intermédio qualquer coisa viesse a ser conhecida a respeito do filme. Já não tinha havido vítimas dos nazistas em número suficiente em minha família? Deveria eu também pôr a minha vida em risco? Teria o senhor, em meu lugar, dado com a língua nos dentes?

Silêncio.

— Está vendo? — disse Harry Gold.

— Mas hoje o senhor está falando — disse Daniel. — Hoje o senhor nos está contando tudo. Não tem mais medo, hoje?

— Não, hoje eu não sinto mais medo. Não sou nenhum idiota. Sei que ainda existem nazistas na Alemanha. Esses malditos neonazistas. Mas agora há tanta coisa em jogo que eu preciso falar. Penso ser o único que pode fazer isso. Kaltenbrunner foi enforcado em Nuremberg, Schellenberg escapou, mas os vencedores só se interessaram pela falsificação de libras, e ninguém podia imaginar que ele também tivesse algo a ver com o filme. E agora ele já morreu há muito tempo.

— Nenhum de nós pensou nisso.

— Mas Goebbels, sim.

— Sim. Goebbels, sim. Por isso, eu me pus imediatamente à disposição tão logo fiquei sabendo da história. Mas ninguém precisa ficar nervoso por causa desse maldito filme! Ele é falso. Eu colaborei para forjá-lo. Quem disser outra coisa estará mentindo. Trapaça! Trapaça! Nunca russos e americanos dividiram o mundo! Eu juro por Deus, eu...

Tocou o telefone.

O assistente do encarregado do som atendeu e deu o número do aparelho.

— Lamento muito, ele agora está ocupado. Por favor, volte a chamar daqui a urna hora.

— Quem foi? — perguntou Gold.

— Disse que seu nome era Anton. Queria falar com o senhor. E disse que não era nada importante. Vai ligar mais tarde.

— Então é sinal que voltou a funcionar — disse Gold.

— Seu telefone? — perguntou Daniel e exclamou: — Vamos continuar a filmar! Não pare!

Em seguida voltou-se de novo para Gold.

— Seu telefone não estava em ordem?

— Não. Eu nem tinha percebido até que o homem da Companhia veio aqui e me disse. Ele o consertou.

— Um homem do serviço de consertos esteve aqui? — perguntou Daniel devagar.

— É o que estou dizendo, Sr. Ross!

— Quando?

— Hoje de manhã. Por volta das 11h. Tinham acabado de me trazer de volta da exibição do filme no estúdio da televisão. Aí, um homem tocou a campainha da rua. Disse que havia assinantes que tinham reclamado por não conseguirem falar comigo. Consertaria imediatamente.

— E o senhor deixou o homem entrar na casa?

— Mas é claro. Sujeito muito decente. Mostrou-me sua identificação. Quem é que gosta de um telefone quebrado? Trazia uma sacola de ferramentas. Antes que fosse embora, tomamos juntos um copo de cerveja. Nem aceitou gorjeta.

— Como se chamava o homem?

— Do nome já esqueci.

— Interrompam, por favor! — disse um detetive. — Vamos dar uma espiada nesse telefone.

Os refletores foram apagados, câmera e som foram desligados. O policial e um colega se aproximaram do aparelho telefônico que se achava sobre a mesa. Um deles desaparafusou a rosca de plástico do bocal e retirou um clip eletrônico de dentro.

—Muito bem — disse ele.

- O que significa isso? — indagou Gold assustado.

- Isso significa que o sujeito hoje de manhã grampeou seu telefone. Por sinal, pelo novo sistema. Isto aqui é um microfone altamente sensível. Registra tudo o que é falado no recinto, alto ou baixo. A pessoa para quem o microfone registra disca então o seu número de telefone. A campainha não soa, mas a ligação é completada, sem que o senhor fique sabendo.

— E o senhor quer dizer que alguém escutou tudo?

— Provavelmente cada palavra, Sr. Gold.

— Meu Deus, quem seria?

— Sim, quem? — perguntou Teddy Shimon baixinho

Daniel voltou-se para sua equipe

— Quero que esta cena seja filmada, por favor. Virem as câmeras para cá! Iluminem de novo! E agora os senhores, por favor, repitam a conversa que acabaram de ter, está bem?

- Isso é tudo.

W.ayne Hyde colocou o fone no gancho e desligou um grande gravador que estava conectado ao telefone. Os carretéis que se haviam movido lentamente agora estavam parados. Hyde fez as fitas voltarem atrás.

— Você fez um ótimo trabalho — disse Hyde para seu amigo mercenário Heinz Erkner, cuja vida salvara numa operação em Chipre.

- Coisinha à toa, baby — disse Erkner. Ele tendia à gordura e tinha enormes mãos vermelhas. Seus cabelos negros brilhavam. Erkner usava brilhantina. Durante a última hora, enquanto Hyde permanecera junto ao telefone, ele ficara à escrivaninha de seu escritório revisando as últimas contas semanais de seus três cinemas pornôs e dois peep-shows. Seu rosto vermelho tinha uma expressão de candura. Possuía uma mansão no Caminho do Parque de Rödelheim, junto ao parque Brentano, na zona noroeste de Frankfurt, bem longe do Conjunto Kuhwald e da casa de Harry Gold.

— Os clips japoneses ainda são os melhores — disse Hyde.

— Escute aqui, Heinz, eu preciso telefonar para Londres agora mesmo.

— Pois telefone, baby.

— Mas vai durar muito tempo e custar um dinheirão.

— E daí? Vá em frente e deixe correr! Merreca é o que não falta. Minhas egüinhas dão bom rendimento .Eu lhe ofereci as três mais bonitinhas. Mas você não quis. Okay, okay, seu problema. Então telefone, pelo menos!

— Obrigado, Heinz.

- Cague pra isso, cara! Tenho de sair, baby?

— Fique aí!

Wayne Hyde havia tirado do bolso seu pequeno decodificador branco. Discou o número do advogado londrino, desbloqueou a secretária eletrônica e falou.

— Boa noite, Mr. Morley! Aqui é Wayne Hyde, de Frankfurt. A entrevista de TV já foi feita. Registrei tudo e vou transmitir-lhe agora.

Hyde ligou novamente o gravador e esperou um momento. Segurava o bocal do fone junto ao alto-falante. A voz de Harry Gold começou a soar, clara e nítida: “Sim. Eu amo a Alemanha. A Alemanha é minha pátria. Eu não conseguiria viver em outro país...”

O calor em Buenos Aires finalmente havia cedido. De dia, a temperatura só atingia trinta graus. O solitário e velho Cristóbal que morava na Calle Husares defronte aos campos de exercício e casernas do Regimento 3 de Infanteria General Belgrano, e nas últimas semanas do verão andara praticamente nu, apenas com uma toalha enrolada na cintura, já se achava agora vestido com um leve pijama. Cristóbal dormia sobre uma primitiva cama de ferro num quarto cuja janela dava para um pátio tranqüilo. Estava deitado de costas com os braços cruzados sobre o peito, e sorria. Cristóbal sonhava. Em seu sonho, revia-se como garoto, com doze anos de idade.

Seu pai trabalhava na limpeza pública do município, a mãe era faxineira. Eles eram muito pobres. Mas se amavam e por isso permaneciam felizes. Cristóbal era dotado da mais bela voz entre os meninos da escola que freqüentava. No domingo, era-lhe permitido cantar na igreja, uma igreja miserável numa zona miserável, e que aos domingos sempre estava lotada. Como os pais de Cristóbal, todos os fiéis eram pobres, ou mais miseráveis ainda, e por isso eram piedosos, pois o padre sempre falava maravilhosamente da justiça de Deus todo misericordioso, e que seria feliz todo aquele que nEle acreditasse e em seu filho Jesus. E isso faziam todos os membros da comunidade, tanto os adultos quanto as crianças, com o maior fervor. Todos queriam ser felizes.

Cristóbal começou a ser feliz no dia de seu décimo segundo aniversário. Ganhou um ingresso para um pequeno cinema da esquina, onde eram exibidos filmes americanos. Era um ingresso para um lugar situado na primeira fila, a mais barata, e o garotinho de calças curtas, camisa de aIgodão e pés sujos e descalços tinha de inclinar a cabeça bastante para trás a fim de poder ver a tela. Mas isso não tinha a menor importância. O filme contava a história da vida e do trabalho de um homem e sua mulher. Eles eram um casal de físicos e, após infinitos esforços, descobriram o elemento maravilhoso e abençoado por todos os doentes chamado rádio. Durante o filme inteiro eles trabalhavam

com ardor, e apenas no fim — era a noite de São Silvestre, na qual eles voltavam para o frio laboratório, a fim de verificar se todas as providências de pesquisa estavam em ordem — a felicidade bateu a sua porta. O laboratório se encontrava numa velha estufa de vidro que se desmoronava e, quando os Curie entraram no recinto, eles viram na espessa escuridão, sobre uma mesa, dentro de uma salva de vidro, a minúscula quantidade de uma substância que irradiava uma luz muito clara: tinham conseguido, após décadas de trabalho, isolar o rádio em seu estado puro.

Depois que Cristóbal assistiu a esse filme, ficou sabendo o que um dia queria ser: físico, como o señor e a señora Curie. E também queria achar um elemento que ajudasse os enfermos. Passou a pensar constantemente nisso, e todos os domingos, dentro da igreja cheia de gente pobre, na qual se falava tanto de felicidade, Cristóbal pensava muito firmemente em seu destino predeterminado. Então, cantava com tamanha beleza que a maioria das pessoas, até mesmo o padre e as crianças pequenas, esqueciam-se do triste quotidiano. Agora, doente e sozinho sobre a cama de ferro, Cristóbal via-se em sonho diante do altar, e se ouvia cantando sua canção predileta, acompanhado por um velho órgão defeituoso: “Oh, quão felizes as almas que com Jesus comungam, pois por elas perpassa Seu sopro de vida e seus corações só desabrocham a cada hora ao calor de Seu amor, bem perto dEle.”

O telefone tocou com estridência no quarto da frente.

O velho acordou sobressaltado. Sua nuca e seu peito estavam úmidos de suor, isso provinha de sua fraqueza, ele o sabia. Tinha ficado tão fraco que precisava deitar-se durante o dia por uma ou duas horas e dormir — como agora. A campainha do telefone era tão forte que sempre o acordava.

Cristóbal ergueu-se e sorriu ao recordar-se do sonho, enquanto se arrastava do quarto. Ele ainda sorria no momento em que ergueu o fone, pois pensava que havia desejado um dia tornar-se um benfeitor da humanidade.

— Sim? — sentou-se numa poltrona de vime. Dos campos de exercícios defronte vinham os sons dos comandos e o ruído de botas no chão. Ali, ao calor da tarde, os recrutas recebiam instrução militar. Pobres-diabos, pensou Cristóbal.

— Aqui é Franco — disse a voz de um rapaz. — Emilio está comigo. São três e meia. Estamos avisando que vamos agora para a casa do Olivera, Céspedes, 1.006, render o Roberto e o Esteban.

— Esperei por sua chamada, Franco — disse o velho, — Com que carro estão indo hoje?

— Um Peugeot preto.

— Bem. Nunca se esqueça que eles têm diariamente de lhes dar na garagem um carro de marca diferente, para que não chame atenção na casa de Olivera. Depois de alguns dias vocês podem usar novamente o mesmo carro, desde que estacionem em outro lugar. Eu também já disse isso a Roberto. É da maior importância que a casa de Olivera agora seja vigiada vinte e quatro horas por dia e vocês observem bem quem chega e quem sai.

— Perfeitamente claro. Então seguimos agora para a casa do Olivera.

— Não, ainda não — disse Cristóbal. — Tenho instruções para você e Emilio. Vêm de cima. Da maior importância. Chame o Roberto pelo rádio e lhe diga que hoje ele precisa trabalhar até mais tarde. Você vai partir imediatamente para as docas Sul, para a refinaria de petróleo e os depósitos. Você conhece ali uma rua chamada Debenedetti?

— Jesus, na fronteira dos ratos! Que temos nós que fazer ali, naquele cu-do-mundo?

- No cu-do-mundo, na Rua Olimpia, 15, moram os pais de Miguel Morales.

- Pais de quem?

— Miguel Morales. Daquele rapaz bonito, o garçom do Olivera. Veja se lembra: vocês dois, você e Emilio, seguiram esse rapaz naquela noite quando ele fugia da casa do Olivera.

— Claro, agora eu sei. Eles foram com ele para o Retiro e o puseram num trem noturno para Tucumán. Vi quando eles compraram uma passagem para Tucumán. Longe pra burro, lá no Norte. Viajou durante vinte horas. Mas o que há para fazer agora, Cristóbal?

O velho suspirou.

— Precisamos descobrir o mais rápido possível se ele ainda está em Tucumán. Ou onde ele está. Exatamente. Precisamos encontrá-Io.

— Cristóbal! Você tem idéia do tamanho de Tucumán? E ele pode estar em qualquer lugar. Você sabe qual é o tamanho da Argentina?

— Sei muito bem, seu bestinha. Por isso mesmo é que vocês têm de ir ao quarteirão dos ratos, para as docas Sul, Rua Olimpia, 15. Você tem um mapa da cidade no carro. Escolha o seu caminho! E fale com os pais. Miguel é um bom filho. Disso ficamos sabendo, nesse meio-tempo. Quase todo o seu dinheiro ele dava aos pais. A mãe é muito doente.

— Sim, está bem, Cristóbal. Você quer finalmente me dizer o que terei de fazer com esses malditos pais?

— Diga para eles que você é um velho amigo de Miguel. Que esteve ausente um ano. Precisa falar com ele sem falta. Que tem um emprego em vista para os dois, emprego excelente. Mas que ele não está mais trabalhando onde estava um ano atrás. Que ele disse a você que seus pais sempre sabiam onde ele se encontra. É isso que eles devem dizer.

— E se eles não quiserem?

— Mas se você tem um emprego fabuloso para ele? Por que haveriam de não querer falar?

— Talvez ele lhes tenha proibido. Ou então eles sabem o que ele fez.

— Franco! Isso é gente inteiramente primitiva. Não sabem coisa nenhuma. Miguel certamente não lhes confessou que foi ou que é um espião da Junta militar. Você contaria a seus pais uma coisa dessas?

— Você tem razão.

— Então! Miguel continuou sendo sempre um filhinho da mamãe. Sempre. Escreve decerto uma vez por semana. Olhe em volta e veja se descobre algum envelope. Deve estar escrito o endereço.

— Okay, okay, portanto o endereço exato de Miguel Morales.

— Isso mesmo. Logo que você o tiver, telefone imediatamente, Franco!

O velho recostou-se na sua poltrona de vime. De repente, voltou a sorrir. Com voz alta e fina cantou, balançando a ca beça, baixinho: — ... seus corações só desabrocham a cada hora ao calor do Seu amor, bem perto dEle!

— E se Harry Gold mentiu? — perguntou Emanuel von Karrelis. superintendente da emissora de televisão de Frankfurt. Tinha cinqüenta e nove anos de idade, era alto e esbelto e possuía um rosto hipersensível com olhos castanhos plenos de calor e lábios belamente ondulados. Estava sentado numa poltrona de couro, de pernas cruzadas, e as pontas de seus dedos finos e longos se tocavam. Seu terno marrom trazia a marca de seu alfaiate londrino de Savile Row, onde mandava fazer todos os seus trajes. Vestia uma camisa de seda com monograma. Os sapatos marrom-escuros eram de autoria de Ferragamo, o famoso sapateiro de Florença. Ali, num imenso depósito, se encontravam, em gesso, as formas de seus pés. Em prateleiras extensas, Ferragamo guardava inúmeras formas de todas as partes do mundo. As do rei dos armadores, Niarchos, da atriz Sophia Loren, do Presidente Reagan e do Ministro do Exterior Gromiko, da Rainha da Inglaterra e marido, de Frank Sinatra e de Carolina de Mônaco, assim como as de banqueiros, fabricantes de armamentos, pianistas e pintores mundialmente famosos.

Von Karrelis não era um esnobe. Gostava, apenas, de vestir-se bem — assim como Conrad Colledo, que se achava sentado a sua frente. Este usava quase sempre um temo azul, camisa azulada e uma gravata preta com minúsculos elefantes bordados em prata. Os dois estavam sentados com quatro outras pessoas no gabinete do superintendente, no andar superior do edifício da administração, em Königstein. Se Colledo trabalhava num gabinete de quatro janelas como símbolo de status, o superintendente dispunha de uma sala com seis janelas. Era tão grande que lembrava antes um salão de clube inglês, tanto mais que estava revestida de painéis de mogno e decorada com móveis refinados de madeira escura, O recinto dispunha ainda de um bar bem sortido com banquinhos diante de um balcão e tinha pendurados nas paredes quadros de Georges Braque. Tapetes cobriam o piso. Três luminárias de pé, com grandes abajures de seda, distribuíam uma luz suave pelo ambiente.

— Por que iria ele mentir? — indagou Mercedes. Estava sentada ao lado de Colledo. Estavam ainda presentes Daniel, Hans Kleinhals, redator-chefe da emissora e o diretor jurídico, Dr. Volker Brandt. Kleinhals parecia um ambicioso guarda-livros e o diretor-jurídico um Beatle. E estava vestido de acordo, com roupa leve e um pouco maluca. A despeito de sua juventude, já era considerado por seus próprios colegas como um dos melhores consultores jurídicos da República Federal.

— Ora — disse o jovem gênio amavelmente para Mercedes —, ele poderia mentir, por exemplo, a pedido da Embaixada israelense. Com a observação de que o Estado judeu, sem a imensa e permanente ajuda dos Estados Unidos, nos campos econômico, financeiro e militar, iria simplesmente a pique. Os americanos podem ter deixado transparecer aos israelenses no momento em que lhes pediam um pequeno favor, não é mesmo? E isto o Sr. Shimon poderia ter dado a entender ao Sr. Gold quando o procurou para transmitir o pedido. Aliás, eu não entendo esse judeu patriota alemão, não entendo esse seu amor de arrancar lágrimas pelo país em que sua família foi assassinada.

— Se o senhor realmente acredita nisso, então em sua opinião o professor Kant mentiu. E, além disso, o registro no diário do Serviço de Ribbentrop, pelo qual um outro homem, Herbert Kramer, em Coblença, teve de morrer, não passava então de uma falsificação dos nazistas para que o filme parecesse ainda mais autêntico — disse Mercedes.

— Eu considero esta hipótese — disse o jovem Dr. Volker Brandt. — E penso que todos nós o deveríamos fazer. E pode ser também que testemunhas mintam, mas se matem outras, para causar uma impressão bem determinada. Consciência os assassinos não têm, mas talvez tenham um plano muito complicado. E desse plano nós não temos a menor idéia.

— É isso mesmo que quero dizer — enfatizou o superintendente balançando o pé calçado por Ferragamo. — Talvez até mesmo seu pai esteja mentindo, Sr. Ross — me desculpe!

— Não tem de se desculpar! — Daniel abanou a cabeça. — Nisso eu já penso há algum tempo. Mas não consigo acreditar que Harry Gold esteja mentindo.

— Acredita realmente que ele tenha forjado o filme? — indagou o jovem Dr. Brandt.

— Consigo imaginá-lo perfeitamente bem!

— Para o SD, a Segurança do Estado? Para a Central de Segurança do Reich?

— Sim.

- Mas seu pai assegura que o filme é autêntico e que foi obtido em Teerã por um agente CX 21, do Serviço Secreto de Ribbentrop, que também o trouxe de avião para Berlim. Ali, seu pai foi buscá-lo no guarda-volumes de uma estação ferroviária e o trouxe para o Ministério do Exterior, onde ele o exibiu a Ribbentrop, Goebbels e Himmler. Então aqui é seu pai quem está mentindo?

- Não, nesse ponto, não, acho eu.

- Com sua permissão, Sr. Ross! — O redator-chefe deu uma curta risada. — Com isso o senhor está querendo dizer que o SD, que estava subordinado a Himmler, passou para o Serviço Secreto de Ribbentrop um filme forjado por encomenda do próprio SD — e que Himmler de nada sabia?

—Sim. E não.

— Que quer dizer isso? — perguntou Karrelis

— Sim, creio que o SD deu a Ribbentrop um filme forjado. Mas não acredito que Himmler ignorasse o assunto. Pelo contrário, sabia muito bem do que se tratava.

— Mas isso é ridículo! Segundo seu pai, ele não tinha idéia do assunto, ficou altamente desconfiado e insistiu que era uma falsificação.

— Sim, foi exatamente assim que ele se comportou.

— Escute aqui. Danny, mas isso é coisa de louco — disse Colledo.

- Ora, de forma alguma.

Daniel pegou então um livro que se achava sobre a mesa.

— Confesso que depois das tomadas feitas na Rua OdrelI, eu me senti totalmente desnorteado. Por isso, fui correndo até tinha casa enquanto estavam desmontando os equipamentos na casa de Gold. A coisa simplesmente me deixou louco! Como está agora acontecendo com o senhor, Sr. Kleinhals. Eu precisava ter certeza. Teria Gold mentido? Disse ele a verdade? Podia dizer a verdade? Eu tenho uma grande biblioteca sobre história contemporânea e entre os livros a respeito dos diversos serviços secretos alemães, estava este, de Heinz Höhne. Chama-se Canaris, patriota na penumbra. Obra excelente, autor excepcional. É perito em serviços secretos do SPIEGEL. Então, a toda pressa, assinalei com tiras de papel as passagens relativas a Himmler, Heydrich, Kaltenbrunner e Schellenberg.

Ele olhou para os presentes, um após o outro.

— Nós já conversamos a respeito de que havia vários serviços secretos na Alemanha nazista: a Gestapo, o SD, a Polícia Secreta de Campo, o Serviço de Ribbentrop — e a poderosa Abwehr do Almirante Canaris, do Comando Supremo da Wehrmacht das Forças Armadas. Entre todas essas organizações, reinava uma renhida rivalidade.

— Correto — disse Colledo. — Desde o começo, a maior rivalidade foi entre os serviços das SS e Canaris.

— Isso mesmo! — Daniel folheou o livro. — Höhne diz, na página 349: “Em 27 de setembro (se refere a 1939) Himmler havia unificado a Gestapo, a Polícia Criminal e o SD, sob o comando de Heydrich, numa Central de Segurança do Reich, que deveria evoluir para se tornar um órgão superior de polícia do Estado; mas já a 18 de outubro, o grupo de Canaris resolveu se estabelecer como Departamento Exterior de Defesa do Comando Supremo das Forças Armadas”, que ficou conhecido como Abwehr, defesa. E assim por diante.

Daniel levantou os olhos.

— Mesmo considerando que os dois maiores serviços alemães em muitos casos dependiam necessariamente um do outro, basta pensar nas diferenças pessoais e de mentalidade entre Canaris e Himmler/Heydrich, para compreender que uma união era tão impossível como entre a água e o fogo. Os dois chefões da SS sempre tiveram um ódio sem limites por Canaris. Ademais, Himmler vivia sonhando sempre com a ampliação da Central de Segurança do Reich para formar uma Corporação de Segurança do Estado nos moldes da ideologia nacional-socialista. Nesse meio-tempo, Ribbentrop tentava alçar vôo, de forma tola e despreocupada. Isso não escapou a Kaltenbrunner e seu pessoal. O ódio deles contra o Ministro do Exterior elevou-se ao infinito. Em fevereiro de 1941, a Abwehr sofreu uma nova pane, sendo que a última ainda não havia sido esquecida. “Novamente” — escreve Höhne — “uma das ondas de cólera de Hitler desabou sobre a Abwehr e seu chefe. Todos os seus colaboradores foram informados de que Hitler já estava farto de Canaris e de toda a sua Abwehr... Hitler chamou Himmler ao quartel-general. Quando deixou o ditador, ele acabara de dar um gigantesco passo em direção ao poder total no Terceiro Reich: Hitler o incumbira de criar com o SD e a Abwehr um serviço secreto unificado, o super-serviço de informações com o qual todos os nazistões sempre haviam sonhado. Canaris foi exonerado de seu cargo, e o coronel Georg Hansen tomou a direção da Abwehr até que saísse a nova regulamentação”. Fim da citação. — Daniel calou-se por um momento e disse em seguida:

— Todos vocês sabem muito bem que Hitler hesitou longamente antes de mandar que detivessem Canaris. Depois veio o atentado de 20 de julho de 1944. Em 23 de julho Schellenberg prendeu Canaris como conivente com a conjura. Somente em 9 de abril de 1945 o almirante foi executado, no campo de concentração de Flossenbürg. Catorze meses se tinham passado desde o dia em que Hitler havia chamado Himmler para providenciar a unificação do SD e da Abwehr. Himmler e seus camaradas tinham aproveitado bem esse tempo e não ficaram uma hora inativos. No mesmo dia da visita de l-Iimmler a Hitler, escreve Höhne que “o chefe das SS convocou seus mais íntimos colaboradores” — etecétera, etecétera — e “lhes revelou que deveria ser feito um rápido esboço de como a Abwehr e o SD poderiam ser unificados... Kaltenbrunner, por sua vez, queria imediatamente incluir o Serviço de Informações do Ministério do Exterior, pois de há muito ele havia descoberto as manobras de Ribbentrop... Os chefes das SS prepararam a minuta de uma ordem de Hitler, e a 13 de fevereiro Kaltenbrunner partiu com o papel para o quartel-general do Führer... Após a assinatura da minuta, o ditador perguntou-lhe, não sem ironia, se ele havia finalmente conseguido agrupar tudo. A isso

Kaltenbrunner observou: agora só falta o serviço do Ministério do Exterior. A resposta de Hitler foi tão vaga que Kaltenbrunner tomou a decisão de forçar a entrada do serviço de inteligência diplomático sob o jugo da Central de Segurança do Reich...” — Daniel fechou o livro e se dirigiu a todos:

— Desse modo é que explico a possibilidade de que um filme forjado pelo SD, que Harry GoId e seus companheiros de prisão tiveram de produzir, tenha caído em poder do serviço de Ribbentrop, sendo ali considerado como fruto de seus próprios esforços. Como sabemos, Kaltenbrunner e Himmler tinham aversão por Ribbentrop e seu serviço. Harry Gold disse que, com o filme, deve ter acontecido alguma coisa. É óbvio! Ele deveria ser repassado o mais rápido possível ao serviço de Ribbentrop para que este se pudesse gabar dele.

— Como se deu isso? — perguntou o superintendente.

— Existem várias hipóteses — disse Daniel. — Eu sou capaz de imaginar perfeitamente que homens do serviço de Ribbentrop em Teerã, onde meu pai havia montado uma base, se deixaram subornar pelo SD e comunicaram a Berlim que um especialista americano que se dispunha a vender uma cópia do filme em conjunto com o protocolo secreto por uma grande soma de dinheiro. Lembrem-se, por favor: meu pai contou que seu residente naquela cidade, de nome Chan Ragai, já tinha mandado durante a conferência uma mensagem cifrada pelo rádio, segundo a qual seu agente CX 21 havia entrado em contato com um americano que estava disposto a arranjar uma cópia do filme tão logo o serviço de Ribbentrop depositasse numa conta na Suíça a soma de cinco milhões de dólares. E se a mensagem de rádio tivesse sido enviada por funcionários corruptos de Ribbentrop? Os cinco milhões de dólares foram, segundo diz meu pai, efetivamente transferidos. E se Ribbentrop os transferiu, sem saber, para uma conta do SD na Suíça? Em fins de março, meu pai foi buscar, conforme contou, um rolo do filme no guarda-volumes da estação do Zôo, onde o misterioso agente CX 21 o havia deixado. E se também esse sujeito foi subornado pelo SD, que depositou ele próprio o filme forjado no guarda-volumes de Berlim? Todos no Ministério do Exterior estavam fora de si de euforia com esse fantástico êxito de sua organização — nisso acreditavam cegamente, disso ninguém duvidava. O filme foi imediatamente exibido a Goebbels e a Himmler. Goebbels ficou entusiasmado...

— Sim, mas Himmler ficou amuado e presumia que se tratasse de uma mistificação. Estava extremamente desconfiado e hostil — disse Colledo.

— Mas, Conny, ele tinha de se comportar assim, caso ele e o SD tivessem realmente produzido o filme! Você não compreende isso? Himmler tinha de demonstrar desconfiança e rejeitou o filme para não despertar a menor suspeita de que, na realidade, queriam acabar com Ríbbentrop.

— Não estou entendendo.

— Conny! Pense bem! Goebbels determinou que a autenticidade do filme e do protocolo fosse imediatamente verificada por especialistas. Se tivesse surgido a menor dúvida, Himmler, cheio de indignação, teria comunicado a Hitler que o Ministério do Exterior era ludibriado com falsificações e que, portanto, o serviço secreto de Ribbentrop não podia mais ser tolerado.

- E se todas as investigações tivessem atestado que o filme era autêntico?

— Nesse caso Himmller e Kaltenbrunner teriam a alegria de mostrar a Hitler que esse filme de autenticidade comprovada fora de fato forjado no campo de concentração de Sachsenhausen. Pois testemunhas como Gold havia. Podia-se até mesmo interrogar os falsificadores, demonstrando, mais uma vez, a incapacidade do serviço de Ribbentrop. E se tudo desse certo, Himmler e seu SD seriam os grandes heróis. Em minha opinião, essa versão é perfeitamente possível. E, nesse caso, trata-se de uma maquinação genial.

- E no caso contrário, Sr. Ross? — indagou Karrelis. — Se o filme não tiver sido forjado mas for efetivamente um original?

— Bem, aí eu não sei — disse Daniel. — O senhor deu a entender que Harry Gold poderia ter mentido, senhor superintendente. Eu afirmei que ele poderia muito bem ter dito a verdade e apresentei essa história. O plano de se aproveitar propagandisticamente o filme não pôde mais ser executado, pois a cópia permaneceu por muito tempo soterrada num subterrâneo, sob os escombros de uma casa atingida por uma bomba. Quando se conseguiu retirá-la de lá, Goebbels achou que a situação da guerra tinha piorado tanto que não se podia mais exibir o filme. Talvez seja uma mera fantasia o que eu elaborei em favor da veracidade das afirmações de Harry Gold. A questão da autenticidade do filme continua em aberto. Só ouvimos uma primeira testemunha que assegura havê-lo forjado. Necessitamos agora de um homem que não só afirme que o protocolo é verdadeiro, como Kant, mas que comprove que o filme é autêntico, O ideal seria o residente de meu pai em Teerã, esse tal de Chan Ragai. Que aconteceu com ele, Conny?

— Nós estamos no encalço dele, Danny. Mas é tudo muito, muito difícil.

— Nesse caso, só saberemos a verdade no instante em que tivermos encontrado Chan Ragai e falado com ele,

— E se ele tiver sido subornado pelo SD e mentir? — perguntou o Dr. Brandt, o jovem diretor jurídico.

— Deixe-nos primeiro encontrar esse homem! — disse o superintendente. — Seu raciocínio foi muito interessante, Sr. Ross, ele abalou seriamente minha convicção de que Harry Gold tinha mentido. Ainda relacionado com isso, refleti todo o tempo sobre uma outra coisa. — Ele voltou-se para Daniel: — Há pouco eu disse: talvez seu pai também esteja mentindo, Sr. Ross. O senhor concordou comigo. E agora eu fico o tempo todo pensando: talvez um de nós ou um dos que sabem do assunto esteja mentindo (e são muitos os que conhecem a história, não é mesmo?) quando diz que está sendo leal para com a emissora.

Karrelis levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

— Somente um exemplo: ontem, pela manhã, o Sr. Shimon veio aqui e contou-me a respeito da testemunha Harry Gold. Acedendo ao meu desejo, ele voou para Berlim a fim de informar a Sra. Olivera e o Sr. Ross. Pus o Sr. Colledo a par do assunto, e ele a Polícia Federal. Além disso, ele cuidou de formar a equipe para as filmagens. Ora, pudemos constatar que já hoje, pela manhã, o telefone de Gold foi grampeado e que alguém escutou tudo o que foi dito durante as tomadas.

Karrelis havia chegado ao bar e deu meia-volta.

— Alguém gostaria de tomar alguma coisa?

— Um uísque, por favor — pediu Colledo.

— Conhaque para mim — disse Brandt.

- Para mim também — disse o redator-chefe, Kleinhals.

- E um uísque para mim — completou Karrelis, enquanto Mercedes e Daniel recusavam, agradecidos.

O bar se achava junto a uma das grandes janelas, O superintendente observou os milhões de luzes da cidade de Frankfurt que piscavam a distância. Ele começou a preparar os drinques. Enquanto isso, continuou a falar:

- Eu pergunto o seguinte: como é que o outro lado pôde ficar sabendo, e de maneira tão rápida, da existência de Harry Gold e de nossa intenção de entrevistá-lo em sua casa? Do meu ponto de vista, só pode haver para isso uma explicação. Qual seja, que temos um delator na emissora.

Karrelis foi e voltou entre o bar e seus convidados, distribuindo os copos.

- Saúde para todos! — disse ele. — É claro que esse delator não precisa necessariamente estar no seio deste pequeno círculo aqui. Mas em algum lugar há alguém que denuncia. Objeções?

- Nenhuma — disse Daniel.

Fez-se em seguida um prolongado silêncio.

O telefone tocou no escritório da casa de Heinz Erkner, situada no Caminho do Parque de Rödelheim, junto ao Parque Brentano.

Erkner atendeu. Uma voz masculina disse:

- Bom dia. Meu nome é Gerd Herdegen. Estou num sanatório em Heiligenkreuz e procuro com urgência o Mr. Hyde. Será que ele está em sua casa, ou tem o senhor idéia de onde posso encontrá-lo?

Erkner tampou o bocal com a mão e murmurou para Wayne Hyde, que estava bebendo café: — Gerd Herdegen. Precisa falar urgência com você, baby.

Hyde fez que sim com a cabeça.

— Sim, ele está aqui. Um momento. Passou o fone para Hyde.

— Sim, doc? — disse Hyde.

— Graças a Deus! Ainda bem que me deixou aqui todos os números de telefone que poderiam entrar em cogitação.

— O que há?

— Acabei de receber um telefonema de Morley. Ligue imediatamente para ouvir uma notícia que está gravada na fita para o senhor! Imediatamente!

— Vou fazê-lo já, doc. — Hyde se despediu.

Em seguida, com a ajuda do decodificador, pôs-se em contato com a secretária eletrônica de Morley.

Pela primeira vez desde que Hyde havia conhecido Morley, a voz deste soava afobada:

— Mr. Hyde, este é um caso de absoluta urgência. Hoje ainda o senhor terá de voar para Buenos Aires, às 22h, pela Lufthansa, vôo 917. Um lugar já foi reservado para o senhor. A passagem se encontra no balcão do aeroporto. Chegará às 11h45m da manhã a Buenos Aires, hora local. Às 12h2Om segue um vôo doméstico para Tucumán, no Norte da Argentina. Também essa reserva já foi feita. Certamente ainda se lembra de um jovem ex-criado de Olivera, que espionava seu patrão por ordem de um general detido da Junta. Por meio do criado foi que chegamos às informações sobre o filme, não é mesmo? — Morley pigarreou. — Perdoe-me. Estou um tanto... nervoso... Acontecem.., tantas coisas ao mesmo tempo. Há pouco, eu me enganei, quando disse que estava reservada uma passagem de Buenos Aires para Tucumán. Isso é tolice. Tucumán não tem aeroporto. Salta é que tem um. A passagem está reservada para Salta. Fica a 300 quilômetros ao norte de Tucumán. Alugue um carro em Salta e desça o mais rápido que puder pela auto-estrada. O senhor se lembra: o criado chama-se Miguel Morales. Miguel Morales. Trabalha agora como garçom num restaurante. Esse restaurante chama-se — anote, Mr. Hyde! — chama-se Oasis, na Rua Rodríguez Peña, 24... Tomou nota? Oasis, 24, Rodríguez Peña. Não é um estabelecimento muito grande. E agora, preste atenção.

Fez-se longo o silêncio no gabinete do superintendente. Afinal, Karrelis disse:

- É claro que não estou esperando que o delator se apresente, mesmo que seus motivos sejam respeitáveis ou que tenha sido coagido a delatar. Nós aqui somos o círculo mais restrito. Quero que fique bem claro para este pequeno grupo que há um delator entre nós, que tenta constantemente anular nosso trabalho. Percebo que todos estão conscientes disso. A questão é se nessas circunstâncias devemos prosseguir nas pesquisas e com isso pôr em risco a vida de outras pessoas? Quem for a favor, que erga sua mão. — Ele viu como todos ergueram a mão e, então, levantou a sua. — Não podemos mais recuar. O adversário iria, é evidente, continuar a procurar testemunhas, mesmo que nós não mais o fizéssemos.

Mercedes disse com fervor:

- Meu padrasto, o Sr. Ross e eu daremos ainda a conhecer perante as câmeras, para a documentação, tudo aquilo que nós sabemos e tudo aquilo por que passamos. E eu vou deixar bem claro que um delator sabotou o nosso trabalho. Mas se nós tivermos sorte, ainda o descobriremos e também a respeito daremos um depoimento.

— Eu considero isso notável — disse Colledo.

- Eu também — concordou Karrelis. — Até agora não houve oportunidade, mas as declarações da Sra. Olivera e do Sr. Ross deveriam ser tomadas com a maior presteza, Sr. Colledo — Este anuiu. — Ponto seguinte! — Karrelis girava seu copo para um lado e para o outro. Os pedaços de gelo tiniam. — Hoje, tarde da noite, o Sr. Colledo ligou e me informou sobre o ultimato de seu pai, Sr. Ross. Os líbios estão interessados no filme.

— Se ele estiver dizendo a verdade — disse Daniel.

- Receio que sim — disse Karrelis. — Khadafi está firmemente decidido a fazer o possível e o impossível contra seus arquiinimigos americanos. Certamente iria inundar as televisões do mundo inteiro com cópias presenteadas. — Karrelis endireitou o nó de sua gravata de seda. — O Sr. Olivera disse também que não ficaria um segundo sequer diante das câmeras enquanto não recebesse os seus dez milhões.

— Muito bem, muito bem — disse o jovem diretor jurídico Brandt, que se vestia de forma tão desenvolta. — Portanto nós temos um delator e um chantagista.

— Sim, uma beleza, não é mesmo? — Karrelis recostou-se na poltrona. — Hoje de manhã, falei pelo telefone com o Primeiro-Ministro e o Ministro do Exterior, traçando o perfil da situação. Os Estados Unidos são nosso mais importante aliado. Todos dois ficaram horrorizados ante a perspectiva de Khadafi receber o filme. Pois enquanto nós queremos transmitir o filme acompanhado de uma documentação com depoimento a favor e contra, Khadafi iria difundir o protocolo simplesmente para açular os ânimos. Precisamos, portanto, comprar de qualquer maneira e no mais breve prazo possível a cópia que está em mãos de Olivera, disseram os ministros. Além do mais, sentiram-se bastante aliviados ao ouvirem que nós encontramos uma testemunha que qualifica o filme de falso e que pessoalmente colaborou na sua confecção. A propósito dos dois homicídios, e dos homicídios que poderão se seguir, o porta-voz do governo deverá manifestar-se oficialmente na conferência de imprensa de amanhã.

— Estou ansioso para ver como ele vai mentir — disse Daniel maldosamente.

— O Primeiro-Ministro e o Ministro do Exterior — prosseguiu Karrelis impassível — asseguraram-me que os dez milhões, que deveremos levar imediatamente para a Argentina, serão restituídos por um fundo especial do governo caso venham a ocorrer fatos que tornem impossível a divulgação do filme.

— Que fatos seriam esses? — indagou Mercedes.

— Bem — disse Karrelis —, os adversários poderiam não levar em consideração o “seguro de vida” que nós nos proporcionamos e seqüestrar um ou vários de nós, ameaçando com execução se não entregarmos todas as cópias e todo o material em nosso poder.

— Isso eles nunca ousarão! Tudo indica que o que eles querem é que só apresentemos testemunhas em favor da falsif icação e nenhuma em favor da autenticidade! — exclamou Mercedes.

Correto — ponderou Karrelis. — E com o delator em nosso meio, eles já chegaram bem próximo a esse alvo.

Kleinhals levantou-se, caminhou até uma janela e praguejou em voz alta.

— Depois de ter conversado com nosso Conselho de administração — disse Karrelis — e de haver obtido sua anuência, telefonei para seu pai, Sr. Ross, e lhe assinalei nossa concordância. Também enviei o telex desejado. Os dez milhões estão à disposição dele. Claro, toma lá, dá cá.

— Que é isso? — perguntou Mercedes.

— Já transferimos a soma telegraficamente para uma conta nossa em Buenos Aires. O Sr. Colledo segue de avião para lá amanhã. Procura Olivera e assiste à projeção do filme, que deverá ser tirado do cofre do banco por seu padrasto. Pega então a cópia...

— O que quer dizer isso? Meu pai está disposto a entregar a cópia que está no cofre do banco? — interrompeu Daniel.

— Sim, Sr. Ross.

— Mas ele queria deixá-la de qualquer maneira no cofre, com a ordem de que fosse posta à disposição da imprensa internacional, caso algo viesse a lhe acontecer!

— Eu o convenci. — Karrelis sacudiu os ombros. — Eu falei-lhe do “seguro de vida” que todos nós temos, ele inclusive.

Fiz-lhe ver claramente que nossos opositores tudo fariam para chegar à cópia existente no banco e que eles, com sua sabida falta de escrúpulos, certamente seriam bem-sucedidos nesse empreendimento. Seu pai concordou. A cópia no cofre do banco não constitui proteção alguma para ele. Em todo caso, ele aceitou minha exigência de entregar ao Sr. Colledo esta cópia, a fim que ele não possa mais tarde chantagear-nos uma outra vez. Seus amigos líbios aparentemente lhe causam um certo temor. Além disso, eu tive a impressão de que a água lhe deve estar chegando ao pescoço. Tudo indica que se encontra metido numa grande miséria financeira.

— E como deverá prosseguir essa história do toma lá, dá cá? indagou o Dr. Volker Brandt.

No momento em que o Sr. Colledo estiver de posse da cópia, ele faz a entrega do cheque de 10 milhões de dólares. Permanece na casa de Olivera todo o tempo que for necessário para que o dono da casa tenha a oportunidade de levar o cheque ao banco e ficar convencido de que há fundos para cobri-lo. É evidente que o Sr. Colledo não ficará sozinho. A Polícia Criminal Federal já se comunicou com o departamento correspondente em Buenos Aires e recebeu a confirmação da ajuda argentina. Funcionários devidamente armados estarão permanentemente acompanhando o Sr. Colledo até ele estar de volta aqui em Königstein.

— O senhor me cumula de alegres novidades, Sr. Superintendente — disse Conrad Colledo. — Muito amável que me diga já hoje o que devo fazer amanhã, e não uma hora antes da decolagem do avião.

Ele se tinha levantado. Sua voz tremia de mal contida raiva. Daniel o olhava, fascinado. Nunca tinha visto Colledo em tal estado de agitação. Seus punhos estavam de tal forma cerrados que, à luz dos abajures, os ossos de suas mãos se mostravam com a brancura da cal.

— Mais um drinque, Sr. Colledo? — Karrelis o olhava sem qualquer expressão.

— Não, obrigado.

— E só para acalmar-se.

— Sinto-me muitíssimo penhorado, Sr. Superintendente, pelo fato de haver passado por cima de minha cabeça e, sem me informar, já haver tomado todas as decisões. Muito agradecido! E também em nome do delator, O senhor não poderia ter facilitado mais a tarefa dele.

— Lamentaveimente dá tudo no mesmo, Sr. Colledo — disse Karrelis. — Como sempre, ele teria em todo caso sabido a tempo de poder informar o adversário, ou não? Não compreendo seu nervosismo. Que receia o senhor? Nós pagamos Olivera. Ele nos passa sua cópia. Assim se afasta Khadafi. Assim se anula o maior perigo que ameaça os americanos. Podemos ficar seguros que eles respirarão aliviados e nos ficarão eternamente agradecidos. Pois já temos duas cópias do filme. E agora, temos a terceira. Desse modo, também ela sai de circulação e não pode mais ser vendida por Olivera a inimigos dos EUA, da URSS, ou dos dois Estados. É enorme a distensão que vai ocorrer. O senhor corre tão pouco perigo como o velho Harry Gold, que declarou ter forjado o filme. Eu não o compreendo, Sr. Colledo! Em outra ocasião, o senhor não hesitou um minuto em viajar até Buenos Aires para trazer os cassetes do Sr. Ross. Que teme o senhor? Quero dizer: O que teme o senhor agora, de repente, Sr. Colledo?

Também Mercedes havia encarado Colledo. Perplexa, ela fitava agora Daniel. Este limitou-se a sacudir os ombros.

— Queira desculpar-me, Sr. Superintendente — disse Colledo, agora já mais calmo. — E pedir também desculpas a todos os presentes. Nervos. Estou sobrecarregado de trabalho. À noite, não consigo ir para a cama antes das três da manhã. Além disso, fiquei a princípio — e o digo com toda a franqueza — realmente chocado com o fato de o senhor, Sr. von Karrelis, não haver falado comigo sobre minha missão, a sós. Pois isso teria sido... teria sido o usual, não é verdade?

— Em circunstâncias normais, certamente que sim — disse Karrelis. — Mas as condições de agora não o são. Uma vez que um delator se encontra entre nós, eu queria verificar que impressão causaria a todos os presentes a comunicação daquilo que aconteceu e do que deverá acontecer.

— E que foi que o senhor conseguiu apurar? — indagou Colledo.

— Rigorosamente nada. Afora a sua reação, Sr. Colledo. Mas isso era apenas natural e era de esperar. Peço-lhe que me perdoe haver abusado do senhor para fazer um teste.

— Posso preparar mais um drinque? — perguntou Colledo.

— Espere, eu...

— Fique sentado! Sei fazê-lo sozinho.

Colledo foi até o bar e encheu um copo de uísque. Voltou as costas para os demais e tomou a bebida pura. Sua mão tremia de tal modo que o copo lhe bateu nos dentes. Daniel chegou a ouvi-lo. É sinal de que os outros também escutaram, pensou ele. Ora, no lugar de Colledo, eu também me teria irritado com o teste do superintendente. Bem, pensou Daniel, teria mesmo?

 

— Aqui fala o General Carlo Maria Álvarez. Esta mensagem, da mais alta importância, é destinada a Miguel Morales. Você reconheceu imediatamente minha voz, não é mesmo, Miguel? Você pode confiar cegamente no homem que lhe trouxe esse cassete. Mesmo assim, deixe que ele lhe mostre o passaporte. Ele se chama James Douglas, é americano, procedente de Boston. Trabalha há muito tempo para nós e é sempre utilizado nos casos de perigo maior. E a situação agora é de total emergência...

— O senhor reconheceu a voz do general? — perguntou Wayne Hyde.

O belo moço de cabelos pretos, olhos escuros e acetinada pele morena, acenou com a cabeça.

— Está realmente seguro disso, Miguel?

— Tenho toda a certeza, señor.

— Aqui está o meu passaporte. Verifique-o atentamente.

Hyde estendeu para o jovem o seu passaporte americano, já aberto. Era um dos sete passaportes que trazia consigo. Miguel o examinou longamente. Desligou o pequeno gravador Sony que havia mantido junto ao ouvido. Olhou para a foto do passaporte e voltou a olhar para Hyde. Tornou a assentir com a cabeça. Wayne Hyde guardou o documento. Passavam dez minutos das cinco da tarde e dentro da fresca catedral de Tucumán tudo estava quieto. Os dois homens estavam sentados num dos últimos bancos da imensa nave central. A essa hora, o templo se encontrava deserto. Apenas uma pequena mulher, trajada de preto, se achava ajoelhada diante de um altar lateral distante, mergulhada profundamente em suas orações. No altar-mor rebrilhava a distância uma grande cruz dourada, de mais de quatrocentos anos. Os espanhóis, vindos do Peru, haviam começado a construção de Tucumán e de sua catedral em 1565. Tinham trazido a cruz com eles. A maravilhosa igreja encontrava-se ao norte da Plaza Independencia, no centro da grande e moderna cidade, que também é chamada de San Miguel de Tucumán. Palmeiras e laranjeiras cercavam a praça principal, em cujo meio se erguia uma estátua da Liberdade. Do lado sul, achava-se o palácio do governo que mais parecia um fantástico castelo das Mil e uma Noites. À luz daquela hora da tarde, o palácio e a catedral, as palmeiras e as laranjeiras, e a branca estátua, brilhavam em cores irreais, psicodélicas.

Wayne Hyde havia chegado a Tucumán com seu carro alugado no aeroporto de Salta, por volta das quatro da tarde. Graças ao seu mapa da cidade, encontrou facilmente o restaurante da Rodríguez Peña, onde Miguel trabalhava como garçom. O local estava fechado até o jantar, mas Hyde indagou por Miguel num café vizinho, onde lhe informaram que Miguel estava livre até às 18h45m. Morava no mesmo prédio, no segundo andar, com outros empregados.

— Acho que ele deve estar dormindo — disse uma mocinha atrás do balcão do café. — Sempre moram dois empregados por quarto.

— Será que alguém pode subir e avisá-lo de que preciso falar com ele? Trata-se de um assunto do señor Olivera.

— Eu mesma vou — disse a menina.

Logo em seguida, ela voltou com Miguel, que vinha vestido de jeans e com uma camisa branca, solta. Fazia bastante calor. Hyde chegara a tirar o paletó de seu terno de tropical bege. Miguel parecia assustado.

— Quem é o senhor? O que quer de mim?

— Uma notícia. Urgente. Não podemos falar aqui. Eu vou para a catedral. Vá até lá daqui a uns cinco minutos!

— Mas trata-se de quê?

Hyde disse baixinho no ouvido de Miguel: — A notícia que eu trago é do General Álvarez.

Ele falava espanhol sem sotaque. Ao ouvir esse nome, Miguel contraiu-se, num estremecimento. Seus olhos negros brilharam.

— O que há com o general?

— Psiu! Aqui não. Na catedral — disse Hyde. Fez um aceno com a cabeça para a moça atrás do balcão. — Obrigado por sua ajuda — disse ele.

— Foi um prazer — disse a mocinha sorrindo.

— Você tem belos dentes — disse Hyde.

— Oh, obrigada.

— E lindos olhos também.

— O senhor é muito amável, señor — disse a moça.

Hyde voltou para a rua e dirigiu-se à catedral, que ficava perto. Esgueirava-se pela sombra das casas. O ar estava puro e, quando atravessava um parque, distinguiu os picos da Sierra de Aconquija que, atrás de Tucumán, se erguiam no forte azul do céu.

As 11h45m desse dia 12 de março de 1984, Wayne Hyde aterrissara em Ezeiza, o maior aeroporto da América do Sul, situado a 33 quilômetros de Buenos Aires. Vinha num Jumbo 47 da Lufthansa, vôo 917. No local de entrega de bagagens ele viu o jovem de estatura mediana, com os compridos cabelos negros que ele havia conhecido no aeroporto de Frankfurt, novamente com uma orquídea nas mãos como sinal de reconhecimento.

- Bom dia, Pablo.

— Bom dia, Mr. Hyde.

- Eu me chamo James Douglas, Pablo.

— Oh, desculpe-me, Mr. Douglas! Bobagem minha. Disseram-me que deveríamos nos encontrar aqui. Loucura! Sua bagagem vai ser mesmo transferida automaticamente para o avião de Salta, não é mesmo?

— Sim — disse Hyde. — Ele levanta vôo às 12h20m.

- Venha comigo, Mr. Douglas! — Pablo abriu caminho através dos muitos passageiros desembarcados. Hyde o seguiu até um amplo estacionamento onde havia um Chevrolet preto. Pablo escancarou a porta esquerda traseira. Hyde deslizou para dentro. Do lado direito estava sentado um pálido senhor calvo, de uns sessenta anos de idade. Vestia uma camisa branca, solta por cima de calças pretas.

— Alô — disse Hyde. — Deve ser Cristóbal, não?

— Sim, Mr. Douglas — disse o senhor de idade. Parecia doente e fraco. — Londres mandou que eu lhe trouxesse pessoalmente o cassete e um gravador. Eles são muito precavidos em Londres.

— São mesmo — disse Hyde ao receber o pequeno Sony que Cristóbal lhe estendia.

— O cassete está lá dentro — disse o velho.

Pablo ficara do lado de fora, em frente ao radiador, e fumava um cigarro.

— O general fala aqui para Miguel? — indagou Hyde.

— Sim, Mr. Douglas. Durante o vôo, o senhor pode ouvi-lo. Está ótimo! Não é para menos, o general está se cagando de medo.

— Muito bem! Como é que vocês conseguiram? Subornando o guarda?

— Claro. Felizmente, aqui isso é bem simples. O general foi mal informado. Entrou em pânico. Gravou a fita, que foi contrabandeada para fora da cadeia.

— Vocês funcionaram com uma rapidez incrível. Meus parabéns!

— Muito obrigado. Sim, tenho um bom pessoal aqui. E Londres disse que precisava ser muito rápido.

— Tomara que o general, com todo o seu medo, tenha falado de um modo bastante comovente.

— Chega-se a chorar, Mr. Douglas. Miguel vai ficar fora de si. Pois o general é o seu grande amor.

— E as armas?

— Quando é que pretende voltar?

— Se tudo correr muito bem, hoje às 23h50m. Com o último vôo de Salta.

— Então Pablo vai esperá-lo novamente na entrega das bagagens e levá-lo até um automóvel. Vai lhe dar chaves e documentos. No porta-luvas encontrará pistolas e munição.

— Que pistolas vão ser?

— As que desejar, Mr. Douglas.

— De preferência, nove milímetros, automáticas.

— Tudo bem. Defronte à casa de Olivera, na Céspedes, 1.006, fica sempre parado um de nossos carros, com dois homens. Isso eu lhe digo para o caso de que venha a precisar de ajuda. Hoje à noite, os dois homens vão estar num Oldsmobile verde

— Ótimo

Cristóbal fitou seriamente Hyde com seus olhos velhos, cansados e opacos.

— O senhor pode ainda ficar um instante?

— O que há com o senhor?

— Pensamentos. Tantos. Sempre os mesmos. Perguntas. Tantas. Sempre as mesmas. Espero ter a resposta correta. Mas não estou muito seguro. À noite eu fico deitado, acordado, e receio que sejam respostas equivocadas. Isso seria terrível. O senhor é um homem tão inteligente, correto e experimentado...

— O que é isso!

— Sim, sim. Já me disseram.

- E quem foi que lhe disse isso?

— Londres. Mr. Morley. Mas só ontem.

- Bem, ele realmente exagerou um bocado.

— Não, não, de jeito nenhum Na minha vida, passei por muitas coisas e vi mais ainda, Mr. Douglas. Entendo de fisionomias. Principalmente de olhos. O senhor é um homem sábio e bom. Por isso preciso lhe perguntar uma coisa. Veja, eu hoje sou pobre e solitário. Muito solitário. Ao longo de toda a vida, procurei com todas as forças fazer o bem. Como o senhor, Mr. Douglas. — Cristóbal fitou Hyde com ar quase suplicante. — Quero dizer: se existe alguém que faz o bem, se há alguém que tenta impedir o mal, a coisa terrível que esse Olivera está em via de fazer, então esse alguém é o senhor, é o Mr. Morley, sou eu e todos os demais, não é mesmo?

— Certamente — disse Hyde.

— Numa época em que o perigo de uma guerra é tão grande e a palavra pacifista se tornou um insulto, numa época assim, o senhor, eu e nós todos devemos simplesmente procurar malograr os planos de Olivera. Por todos os meios. Isso está correto, Mr. Douglas, não é mesmo?

— É evidente — disse Hyde com o rosto imóvel e pensando consigo mesmo: gostaria de saber o que foi que Morley contou para esse pobre-diabo a respeito de nossa atividade.

— Conheço o mal muito bem, Mr. Douglas. “A aspiração do coração humano é má desde a juventude”, diz o Senhor. Primeiro Livro de Moisés.

Caramba, pensou Hyde.

— Há anos — prosseguiu o velho — ocupo-me cada vez mais com a pergunta: para que existe o ser humano? Creio haver encontrado uma resposta para isso. Deseja ouvi-la?

— Sim — disse Hyde.

— A pessoa existe para uma responsabilidade mais elevada — disse Cristóbal.

Caramba, pensou novamente Hyde.

— O que acha disso?

— Que o senhor tem toda a razão, señor Cristóbal — replicou Hyde. Para construir um mundo, pensou ele, são necessárias pessoas de todas as espécies.

Um forte clarão iluminou o pálido rosto do velho. — Tenho razão. Que bom! Mas vamos em frente. Por que o homem pratica o mal, não me interessa. Isso eu sei.

— Primeiro livro de Moisés — dise Hyde.

— Isso mesmo — concordou Cristóbal. Contudo: por que pessoas como nós fazem o bem?

Não sei por quanto tempo vou agüentar isso, pensou Hyde. É claro que todo o mundo é um pouco pancada. Mas, mesmo assim!

— Concordo que o senhor e eu e os outros temos também vantagens financeiras com a coisa. Posso dizer-lhe que eu e aqueles que comigo praticam o bem tiramos uma vantagem tão mínima que chega a dar pena. Mas eu, meus amigos e o senhor também faríamos o bem mesmo que não tirássemos disso proveito algum, não é verdade? Mesmo que ninguém saiba disso nem possa sabê -lo nem vá jamais saber. Pois bem, é por isso que eu penso que isso tem a ver com o senso de responsabilidade, de uma responsabilidade elevada. O que acha o senhor? Não imagina como sua opinião é importante para mim, Mr. Douglas.

Coitado, pensou Hyde. Totalmente sozinho. É claro que ninguém consegue agüentar uma solidão dessas. Com exceção dos santos. E até para eles .é bastante difícil. Que seria de mim sem minha mãe? O velho precisa de um pouco de simpatia. Vou dar-lhe uma alegria.

- O senhor tem toda a razão, señor Cristóbal — disse Hyde...— E essa responsabilidade elevada é algo assim como a chave-mestra de sua identidade humana. — Hyde assustou-se um pouco. Meu Deus, pensou, como é que eu pude dizer uma besteira dessas Só espero que o velho não fique perturbado com isso

— Oh — disse Cristóbal

Então? pensou Hyde. Então?

- Maravilhoso. — O rosto de Cristóbal estava radiante, brilhando com uma luz que vinha de dentro dele. Agarrou uma das mãos de Hyde e a apertou com firmeza — Disse uma coisa maraviIhosa! E com tão poucas palavras. A chave-mestra para minha identidade humana. E eu me atormentando anos a fio com isso, e aí vem o senhor e fala comigo e logo tudo fica claro, totalmente claro. Como me sinto feliz, Mr. Douglas. Nunca me esquecerei deste dia. Obrigado! Muito, muito obrigado!

- Tudo bem — disse Hyde. Essa é forte, pensou, realmente forte. Assombroso. Cristóbal não é nenhum imbecil. E essa besteira o faz tão feliz? A coisa mais engraçada que existe são os seres humanos.

- Sim — disse Cristóbal, e balançava a cabeça sorrindo. — Assim é. E por isso pessoas como nós permanecem anônimas, ninguém nos conhece, ninguém nos pode conhecer.

— Ninguém — disse Hyde e pensou: vamos, dê mais um pedaço de açúcar para ele! E disse: — Ocultos na escuridão.

— Como?

- Ocultos na escuridão — repetiu Hyde. — Isso é tirado da última estrofe do filme A ópera dos três vinténs. O senhor não conhece A ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht?

— Quem não a conhece?

— Pois bem, há um filme baseado na peça teatral. A última cena mostra uma velhinha atravessando devagar uma rua do lado ensolarado para o lado coberto de sombra. Nessas sombras ela desaparece. Enquanto isso se ouve a balada acompanhada pelo realejo... — Hyde fez sua voz tornar-se ligeiramente melodiosa: — “Uns estão mesmo no escuro. Outros bem na luz estão. Uns se vêem, e os outros ficam ocultos na escuridão.”

— Magnífico — disse Cristóbal tocado. — Simplesmente magnífico. É isso o que acontece conosco. Quanta munição deseja o senhor para as duas pistolas, Mr. Douglas?

A esta mesma hora — na Europa central era 16h15m — dizia em Bonn o porta-voz do governo ao final da conferência de imprensa: — Nos últimos tempos registrou-se o assassinato de dois homens em circunstâncias misteriosas: em Coblença, o bibliotecário Herbert Kramer, do Centro de Documentação da República Federal da Alemanha, e do professor de Direito internacional Dr. Emil Kant, em Berlim. De acordo com as primeiras conclusões da Polícia Federal e do Serviço de Informações trata- se de vítimas de uma organização de terroristas. Informações mais pormenorizadas não podem ser dadas no momento. Caso contrário, outras vidas humanas correriam perigo. Peço compreensão para o fato de as autoridades competentes haverem interditado quaisquer informações a respeito. Elas estão trabalhando febrilmente para o esclarecimento completo do caso. Isso é tudo.

Imediatamente estourou um tumulto entre os jornalistas que ali se encontravam reunidos. O porta-voz levantou-se, ergueu os ombros e deixou o salão.

Na grande catedral de Tucumán a velha senhora que, toda de negro, estava rezando diante de um altar lateral, começou a mover ritmadamente seu corpo extenuado. Ela havia entrado numa espécie de transe. Parecia ser grande a desventura que a levava a pedir assistência a Deus.

Sobre um banco que se encontrava na penumbra, continuavam sentados Wayne Hyde e Miguel Morales. O jovem de pele cobreada segurou novamente o toca-fitas Sony junto ao ouvido e ficou à escuta da voz de seu ex-patrão, Carlo Maria Álvarez: eu repito, Miguel, este é um caso de extrema necessidade. O Qlivera, esse patife para quem eu fiz tanta coisa, é um delator infame. Conforme acabo de ficar sabendo, ele colecionou materlal contra mim durante anos a fio e se pôs à disposição dos promotores para atuar na qualidade de testemunha no processo...

Não! — disse Miguel muito assustado. Parou o toca-fitas e deixou-o baixar sobre o colo.

- Baixo, cuidado! — disse Hyde.

— Olivera quer depor contra o general... — balbuciou — Mas eu, o que devo...

— Continue a ouvir! — disse Hyde.

Miguel tornou a ligar o aparelho e ficou escutando a voz do generaI: “... Olivera vendeu-se. Por muito dinheiro. Eles prepararam tudo com perfeição. Todo o material — forjado naturalmente — contra mim foi gravado num vídeo-filme. Não podes comprovar a falsificação. Meus advogados afirmam que, se e filme for apresentado perante a Justiça, em qualquer caso -posso contar com a pena máxima...“

— Jesus, Maria! — sussurrou Miguel.

“... Por isso Olivera não pode comparecer como testemunha, está compreendendo, Miguel? Por isso, esse vídeo-filme tem de desaparecer. Você conhece a combinação do segredo do cofre que está na biblioteca de Ollvera. Com toda a probabilidade o filme se encontra lá dentro. Caso não esteja, você tem de levá-lo á dizer onde é o esconderijo, se necessário o ameaçando com a morte. Nosso amigo americano vai ser de grande ajuda para você. Certa vez — com certeza você lembrará disso — você disse que faria tudo por mim, Miguel. Se fosse preciso, até mesmo matar Você precisa matar Olivera pois caso contrário eu estou perdido e nunca mais voltaremos a nos ver. Nunca mais poderá estar de novo comigo...“

A mão de Miguel que segurava o toca-fitas tremia. Seus lindos olhos já estavam cheios de lágrimas. Ele ainda amava o general. Mais do que nunca. E mais que a seus pais. Miguel agora escutava a voz no maior nervosismo.

- Portanto, você tem de fazer tudo aquilo que o señor Douglas disser. Ele agora é o seu comandante... O terreno de Olivera há algum tempo foi fortemente cercado. Por cima dos muros correm agora fios eletrificados e há equipamentos de disparo automático. Você ainda tem o pequeno aparelho com o qual até mesmo de dentro de um carro se pode abrir ou fechar o portão de entrada. Assim, você pode entrar...”

A pequena senhora de negro continuava rezando diante do altar lateral.

... O señor Douglas vai dizer-lhe exatamente o que tem de ser feito — inclusive depois que tudo estiver liquidado. Você tem de confiar nele incondicionalmente — como em mim, e do mesmo modo que eu confio em você, Miguel. Pense nisto: minha vida está em jogo. Olivera, esse cachorro, perdeu seu direito à dele. Pense na sua promessa! Dependo agora de sua lealdade e devoção. Não tenho a menor dúvida de que posso ficar tranqüilo. Você não vai me abandonar, Miguel. Reflita sempre nisto: se você agora seguir todas as instruções, em breve estaremos juntos outra vez. Caso contrário, nunca mais. Eu lhe dou um abraço bem apertado, meu Miguel. Muita sorte e muito obrigado! Sempre serei o seu General Álvarez.

Este era o fim da mensagem, e a fita continuou girando, muda. Miguel desligou o toca-fitas. Encarou Hyde, tremendo todo.

— Esse cafajeste — murmurou ele. — Cão maldito! Diga-me o que tenho de fazer, señor Douglas! Por favor, diga-me!

— Você pode ausentar-se daqui por um ou dois dias? Quero dizer, do restaurante. Com uma desculpa. Mãe adoentada. Uma coisa assim.

— Eu nem preciso disso, de uma desculpa. O patrão, señor Lerron, pertence à gente. Por esse motivo é que me mandaram para cá. Posso dizer sem perigo que tenho de liquidar um assunto e que ele tem de ocultar tal fato diante de qualquer pessoa. É de confiança.

— Bem. Então vá agora e fale com ele! Faça somente uma maleta! Voamos ainda hoje à noite para Buenos Aires e... liquidamos tudo. Você conhece realmente a combinação do cofre?

- Sim, Sr. Douglas.

— Tem também ainda o controle remoto para o portão principal?

— Claro. Só saí de lá há algumas semanas.

— Muito bem. Você sabe manejar uma pistola?

— Qual delas?

— Nove milímetros, automática.

— Com uma delas, ganhei certa vez o segundo prêmio num concurso profissional.

— Então, vamos andando! Você resolve tudo com seu patrão. Dentro de uma hora, vou estar esperando com um carro diante da catedral. Seja pontual! Precisamos viajar até Salta. Para o aeroporto. Tomamos o avião noturno para Buenos Aires. Devolva-me o toca-fitas! — Hyde o guardou no bolso. Nas escadarias em frente à catedral, os dois se separaram.

— Dentro de uma hora — lembrou Hyde.

— Sim señor — disse Miguel. — Que cachorro! Que maldito cachorro, esse Olivera! — disse ainda, abalado.

— É, esse maldito cachorro! — concordou Hyde. Ele seguiu vagarosamente pela grande Plaza Independencia e sentou-se num banco, debaixo de uma laranjeira. Os frutos brilhavam ao sol. Hyde observou longamente a cadeia de montanhas da serra de Aconquija que estavam agora à sua frente envolta num nevoeiro azulado. Tirou, então, o pequeno volume dos sonetos de Shakespeare de dentro do bolso de seu paletó, folheou-o um instante e, esquecendo todo o ruído do tráfego, mergulhou numa calma infinita, ao ler os versos: “E tu, adorado, roubaste ao tempo, / A foice e a areia das horas que correm, / Da decadência sorves teu alento — / Te abres em flor, e teus amantes morrem.”

Sim, pensou Hyde, da decadência sorves teu alento, adorado Miguel.

— Claquete!

— Depoimento Mercedes Olivera, tomada um, primeira vez.

Mercedes achava-se no Estúdio II da TV Frankfurt em frente a uma pesada câmera eletrônica. Refletores mergulhavam seu rosto e sua figura numa luz ofuscante. Vestia um costume preto. Como fundo, uma tela azul-clara. Sobre sua cabeça, pendia um microfone suspenso, invisível na tela da câmera. Nas laterais, estavam sentados Daniel e Colledo. O chefe do departamento político e de atualidades queria colher os depoimentos de Mercedes e Daniel ainda naquela noite, antes de partir, às 22h, para Buenos Aires.

 — Por favor — disse Colledo.

— Já há quarenta anos eles nos governam — disse a jovem mulher em voz alta e apaixonada diante da câmera. — Em suas mãos eles detêm o futuro da humanidade. Nós, meros figurantes nesse jogo pelo poder e a glória, os chamamos de superpotências. Poderosos eles são — mas serão mesmo super?

A jovem tomou fôlego.

— Meu nome é Mercedes Olivera. Sou enteada de Eduardo Olivera. Foi-me permitido, assim como às demais testemunhas, externar pontos de vista pessoais. Portanto: poderosos eles são — mas serão super?

O microfone suspenso baixou um pouquinho. O assistente de som corrigia a distância em relação à boca de Mercedes. Agora chegou sua hora, pensou Daniel. A hora dela...

— Washington, primavera de 1984 — prosseguiu Mercedes com voz vibrante. — A potência mundial, que tanto gostaria de ser a número um sobre a face da terra, é liderada por homens que estão convencidos de que o apocalipse bíblico é iminente. Eles fazem piadas macabras sobre apagar-se do mapa a URSS, dizem disparates a respeito da anulação do acordo dos vencedores de lalta, vêem o resto do mundo exclusivamente através da fresta dos visores de tanques de guerra...

Fascinado como sempre que ela falava, Daniel fitava Mercedes, imóvel. A voz dela tornava-se cada vez mais fervorosa, em seu rosto tudo trabalhava.

— E quando o Presidente deseja conhecer o estado de seu arsenal atômico, o Pentágono lhe envia desenhos coloridos para mais fácil compreensão de complicadas questões de defesa. Nesses desenhos, cogumelos atômicos de diferentes tamanhos informam tudo a respeito do poder de fogo...

Um close de Mercedes aparecia no monitor da câmera.

— A nove mil quilômetros de distância, em Moscou, a elite do país — presumindo-se que ela esteja representada no Kremlin — causa a mesma triste impressão. Com voz monótona, procurando o fôlego, soletrando um papel com rosto impassível, o chefe do Estado e do Partido cumpre alguns deveres protocolares para logo em seguida ser retirado pelos médicos da cena política — na direção do Kremlin encontra-se mais uma vez um homem doente e praticamente incapaz de agir.

— Formidável, não? — murmurou Daniel para Colledo.

Este concordou com a cabeça. Seu rosto estava imóvel.

A câmera continuou a filmar um close de Mercedes.

— Nossas superpotências estão enfermas. O diagnóstico de um psiquiatra teria o seguinte teor: graves surtos de mania de perseguição e temporária perda total do senso de realidade. Arvoram-se em potências que mantêm a ordem no mundo, mas são na verdade as que preservam a desordem na Terra; não agem em termos globais mas apenas em seu interesse nacional. E com isso surge ainda a grande questão: prevalecerá o pensamento racional ou a conduta anti-social, que é tão inerente ao homem, ou seja a pura concorrência...

Buenos Aires.

Por volta da 1h da manhã, um Porsche cinza-prata seguia pelo bairro de Palermo, na Avenida Cabildo, em direção ao norte. Passava diante de brancas mansões em grandes jardins, do clube de pólo, do gigantesco Parque de Febrero com seus lagos, do velódromo e do planetário. O carro dispunha de um emissor e receptor de rádio que estava ligado. Ao volante, Miguel Morales e, a seu lado, Wayne Hyde.

O Porsche alcançou a longa Rua Céspedes e dobrou à esquerda. Altas palmeiras erguiam-se dos dois lados. Parou a alguma distância do grande portão de ferro com painéis dourados no elevado muro de pedras que cercava o imenso terreno de Olivera. Do outro lado da rua, um Oldsmobile se achava estacionado nas proximidades da entrada.

— Boa noite, señor Douglas; boa noite, Miguel. Estamos à frente de vocês, esperando. Boa sorte! — Estas palavras saíram subitamente do alto-falante do Porsche, na voz clara de um homem jovem.

— Aqui estão os nossos amigos — observou Hyde satisfeito. Abriu o porta-luvas e retirou as duas pistolas de nove milímetros, os dois silenciadores e oito cargas de munição. Quatro ele guardou no próprio bolso e as demais passou a Miguel, cujo rosto estava estranhamente pálido. — Atarrache o silenciador! — disse Hyde. — Carregue a arma e guarde o resto da munição no bolso. Está com o controle remoto na mão?

— Sim, señor.

— Então, venha.

Os dois deixaram o carro e seguiram rápidos e silenciosos em direção ao grande portão. Calçavam sapatos de solas leves que tornavam seus passos inaudíveis.

— Agora! — disse Hyde.

Miguel retirou o aparelho do bolso da calça e apertou um botão. As duas bandeiras do portão abriram-se para os lados.

— Ótimo — disse Hyde.

— O sacana realmente mandou botar arame farpado em cima do muro e com certeza deve estar eletrificado — disse Miguel.

— É claro. Aliás, o general já lhe disse isso.

Penetraram curvados no jardim: Miguel fechou novamente o portão. Seguiram apressados pelo longo caminho através do fantástico parque com suas palmeiras, suas árvores de todas as espécies, seus grandes canteiros de flores. Das árvores pendiam orquídeas e seus troncos estavam encobertos de hera, jasmim e buganvílias. Um forte quarto crescente clareava um céu sem nuvens e tudo tinha um aspecto irreal, era um mundo irreal. Passaram rápidos pela piscina com seus móveis brancos de vime e chegaram à grande casa branca, de dois andares, com o telhado plano e as altas janelas francesas. O imenso balcão do primeiro andar, para o qual se abriam várias janelas, apoiava-se sobre pesadas colunas de mármore.

— Onde dorme Olivera? — sussurrou Hyde.

— Na parte de trás.

Haviam atingido uma janela cujas venezianas, como todas as demais ao nível do solo, estavam trancadas.

Hyde trazia uma bolsa de couro com ferramentas. Em menos de um minuto conseguira abrir as venezianas. Pegou então um rolo de fita adesiva e aplicou diversas tiras em todas as direções sobre uma das vidraças de uma porta. Praticamente a encobriu por inteiro. Em seguida, tirou da bolsa um pequeno martelo e bateu na vidraça em dois pontos: mais ou menos no meio, perto do lugar em que presumia estar a maçaneta. Os cacos do vidro quebrado não podiam cair ao chão, fazendo ruído — ficaram presos ao adesivo cor-de-rosa. Hyde desprendeu um pedaço triangular, introduziu a mão, encontrou a maçaneta, girou o ferrolho e a porta se abriu. Um minuto mais tarde os dois estavam na biblioteca com seus muitos livros. Miguel havia acendido uma potente lanterna e ia à frente em passos furtivos.

— Cuidado, poltrona! — murmurou. Atingiram a lareira com o antigo relógio de pé. Miguel apertou uma mola escondida. Uma parte da estante se abriu, pondo à mostra o grande cofre embutido na parede com sua fechadura numerada. Miguel passou a Hyde a lanterna para que iluminasse o cofre. Durante o vôo de Salta para Buenos Aires, Miguel havia contado a Hyde que uma de suas primeiras tarefas na casa de Olivera fora espionar a combinação numérica do cofre.

— Foi bastante fácil. Olivera mal vigiava. Depois de três dias eu já conhecia a combinação. Mas, depois, nunca foi necessário tirar coisa alguma lá de dentro.

Com rapidez e habilidade, ele compôs uma série de cinco algarismos e a porta de aço se abriu. Hyde dirigiu o facho para o interior. Viu pastas e documentos, envelopes e classificadores, bem como alguns vídeo-cassetes.

— Ali! — disse ele.

Miguel passou-lhe o cassete e o controle eletrônico que abria o portão.

- Obrigado, menino. — Hyde meteu-os no bolso. — Agora você precisa esperar aqui um pouco.

Miguel assentiu.

— Vou correr o máximo que posso. Se tivermos sorte, todos na casa vão continuar a dormir. Se você for descoberto, tem uma arma. Mas só faça uso dela caso não veja outra alternativa.

— Sim, señor.

— Sobretudo, não acabe com o Olivera antes de eu voltar — se for possível. Precisamos estar certos de que este é o filme que compromete o general. Caso não seja, teremos de conversar com Olivera.

— Isso, deixe comigo — murmurou Miguel. — Esse maldito delator!

— Você gosta muito do general, não?

Miguel concordou em silêncio. Como eu de minha mãe, pensou Hyde.

— Força... mais força... Depressa, mais depressa... Bota mais.., tudo... assim... — A linda mocinha se agitava despida embaixo do homem nu. Seus dedos eram garras cravadas nas costas dele. As pernas da moça envolviam suas coxas. O homem ofegava. Uma outra moça, também nua, só com meias negras e sapatos de salto alto, assistia a tudo com o rosto desfeito e se masturbava com movimentos de rapidez alucinante. — Vou gozar! — gritou a primeira moça na tela da televisão.

Uma campainha tocou: longo, longo, longo, curto, longo.

O homem magro com seu avental de trabalho que, com quatro aparelhos de vfdeo, fazia três novas cópias do filme pornô, simultaneamente, olhou para um relógio de parede. Faltava pouco para as duas da manhã. Olhou em seguida para os mostradores de um equipamento de controle, balançou a cabeça, satisfeito, e se levantou. Ele trabalhava na oficina de uma grande loja de equipamentos de televisão e de vídeo, na Avenida Rivadavia, no bairro Flores. Atravessou a loja até a entrada e destrancou a porta. Hyde entrou. Logo em seguida, os dois se estreitavam num abraço e se batiam às costas.

— Wayne, meu velho!

— Méndez, bom amigo!

Eles tinham a mesma idade e eram igualmente magros. Haviam lutado lado a lado junto às guerrilhas e contra as tropas da Junta argentina em 1977. Naquela oportunidade, Méndez Caballito ganhara tanto dinheiro que pôde comprar essa loja na Avenida Rivadavia. Com a venda de filmes pornográficos, que ele comprava de grandes produtores americanos e franceses, copiando-os em grandes quantidades, o negócio havia tomado um grande impulso. O comércio com filmes dessa natureza estando proibido, Méndez Caballito podia pedir fortunas por cada exemplar. Hyde havia ligado para ele de Tucumán, anunciando sua visita.

Caballito voltou a trancar a porta de entrada e seguiu para a oficina. O filme pornô prosseguia. As duas mocinhas ocupavam- se agora do homem. Uma o montava e a outra se achava sentada sobre sua boca. Ambas gemiam em voz alta e agitavam seus corpos exuberantes. O homem rosnava. Ele abraçava os traseiros das duas.

— De Paris. Realmente de primeira — disse Cabailito. — Você não quer assistir um pouco à coisa, meu caro?

— Me dá nojo — disse Hydc.

— Desculpe!

— Está tudo pronto?

— Claro. — Caballito observou novamente os mostradores e caminhou com Hyde para outro cômodo, onde havia um aparelho de TV e um equipamento de vídeo acoplado. — Você disse que quer ver imediatamente a cópia.

— É, a coisa é urgente.

— Posso trazer-lhe algo para beber?

— Eu não bebo nunca.

— Sabe manejar o aparelho?

— Claro. É tão simples. — Hyde tirou do bolso o vídeocassete roubado do cofre de Olivera. — Não fique zangado comigo, Méndez, meu velho, mas é que pornografia realmente me enoja.

— Entendo muito bem. Como vai sua mãe?

— Obrigado por você lembrar dela. Quebrou uma perna.

— O meu Deus, na idade dela!

— Vai ficar boa. Arrumamos o melhor médico. Volte tranqüilo para o seu trabalho. Eu me arrumo por aqui.

Seu amigo foi embora.

Hyde procurou o canal para reprodução de vídeo, ligou o equipamento, introduziu o cassete e pressionou a tecla de play. Então, sentou-se. Do recinto ao lado soava a voz de uma das meninas: — O Deus, estou morrendo. Não agüento mais... Vou gozar de novo... de novo...

Em sua tela, Hyde viu o filme todo negro, em seguida os números 3, 2, 1, e logo depois uma águia estilizada com um ramo de oliveira na garra direita e um feixe de lictores na esquerda; sobre seu peito, um quadrilátero, a bandeira estilizada dos Estados Unidos, e, acima da cabeça, uma faixa esvoaçante onde se liam as palavras ET PLURIBUS UNUM.

Ao redor da águia, uma circunferência fechada. Hyde leu: SEAL OF THE PRESIDENT OF THE UNITED STATES. O sinete ficou algum tempo parado. Depois, em maiúsculas, as palavras TOP SECRET, seguidas do texto em inglês: DESTE FILME EXISTE APENAS UMA OUTRA VERSÃO COM TEXTO EM RUSSO E COMENTÁRIOS NO IDIOMA RUSSO...

— Bota mais! — exclamou a voz de uma moça vinda do lado.

— Mete tudo, bem lá dentro, por favor, por favor!

Miguel Morales permanecia sentado na grande biblioteca e esperava. Ele sabia que ainda teria de esperar mais um bom bocado, pois Hyde só o havia deixado há alguns minutos. Através da porta aberta entrava a luz do luar, iluminando o tapete. Miguel pensava: estou muito feliz que o general tenha me escolhido para ajudá-lo nessa situação desesperadora e que realmente eu lhe possa ajudar. Que homem maravilhoso, o meu general. Será que de fato logo estarei junto dele? Miguel sorria. Ele imaginava o reencontro. De repente, acendeu-se a luz do teto da biblioteca.

Miguel levantou-se de um salto, horrorizado. Eduardo Olivera havia entrado. Estava apenas vestido com um pijama azul e chinelos. Na mão, empunhava uma pistola Walther PP, calibre 7,65. seus espessos cabelos brancos cortados rente brilhavam na luz. Seu rosto estreito estava bronzeado e seus olhos sempre altivos agora não denotavam orgulho algum mas apenas desmesurado assombro.

— Miguel... — disse Olivera, baixinho.

Miguel havia pousado sua pistola sobre a mesa. Puxou-a para si. No instante seguinte, os dois atiraram ao mesmo tempo. A bala de Miguel errou o alvo, atingindo um painel da parede ao lado da cabeça de Olivera. O jovem foi atirado para trás e voou com as costas contra uma estante. Olivera esvaziou todo o pente de balas. A maioria delas atingiu a barriga de Miguel. Os olhos se esbugalharam. Ele abriu a boca e o sangue saiu num jato. Miguel desmoronou. Uma grande poça vermelha formou-se ao seu redor. Olivera ficou imóvel durante longo tempo. Depois, com passos arrastados, foi até o telefone e discou um ntlmero de dois algarismos. Logo em seguida, falou com voz inexpressiva: — Polícia?... Aqui Eduardo Olivera, Céspedes, 1.006. Venham imediatamente! Matei um ladrão com um tiro.

Meia hora mais tarde, Hyde despediu-se de seu velho amigo Méndez Caballito. Entrou no Porsche cinza-prata e deu a partida. Logo em seguida, ouviu uma jovem voz masculina no aparelho de rádio: — Chamando Douglas... chamando Douglas... Douglas, favor chamar... Chamando Douglas...

Hyde tomou o microfone na mão e disse: — Aqui é Douglas.

— Finalmente! Procuramos o senhor já há uma meia hora.

— Quem são vocês?

Em meio a muitos ruídos de estática, veio a resposta: — Amigos. Um colega e eu estávamos sentados no Oldsmobile verde estacionado em frente a Céspedes, 1.006, quando o senhor chegou. Ainda estamos no carro, mas demos o fora rapidamente. Não volte para Céspedes de jeito nenhum, Douglas! Em hipótese alguma! Está cheia de policiais.

— Polícia?

— Alguma coisa deve ter dado errado.

— O quê?

— Olivera fuzilou Miguel.

— Maldito! Como vocês sabem disso?

— Nós podemos captar a freqüência da polícia, Douglas. Telefone imediatamente para Cristóbal! Ele já falou com Londres.

O minúsculo Sr. Abad parecia ainda mais preocupado do que Sibylle o conseguia recordar. Até as orelhas e o nariz pareciam agora ainda mais compridos. Com sua mão, que em tudo se assemelhava à de um pianista, o pequeno e frágil homem tateava o nó de sua gravata. Estava sentado defronte a Sibylle à mesa de um dos dois restaurantes da Torre do Danúbio. Diante da ampla janela passavam agora lentamente as luzes do centro da cidade. Já tinham jantado — Sibylle apenas hors d’ceuvres. Diante deles estavam xícaras de café e copos de conhaque.

— Eu lhe agradeço que tenha aceito meu convite para jantar, doutora — disse Abad. Ele bebia seu conhaque em pequenos golinhos. O restaurante nessa noite estava bastante freqüentado.

— O senhor disse que se tratava de assunto de meu irmão. — Sibylle passou a mão sobre os curtos cabelos castanhos. Seus olhos da mesma cor se entrefechavam enquanto falava. — O que há com meu irmão, Sr. Abad?

— Ele está bem. A senhora não recebe regularmente correspondência?

— Sim.

— Então. E ele não escreve que tudo está bem e que ele goza de todos os privilégios possíveis?

— Não foi para perguntar-me isso que o senhor marcou um encontro comigo.

— Não, não, com certeza que não, doutora.

— Então, por quê?

As luzes da cidade iam ficando para trás, tomando-se escassas. A janela girava lentamente em direção a Kahlenberg, o chamado Monte Calvo.

— Bem, hm, bem... — Abad tateava insistente sua pérola e balançava preocupado a cabeça. — A senhora tem um velho amigo, Daniel Ross. Um grande amigo de longa data, não é verdade?

— Sim, Sr. Abad.

— Faz pouco tempo, a senhora tratou dele no sanatório. Ele havia arruinado bastante a saúde por causa do abuso na ingestão de tranqüiizantes. A senhora o pôs novamente de pé. A senhora é uma médica formidável.

— Por favor, Sr. Abad.

— A senhora o é, realmente. É como se Ross tivesse renascido. Sadio e vivaz, ativo e bem-sucedido como nunca.

— E como o senhor sabe disso?

— Um conhecido contou-me a respeito. Nada tem ouvido dele?

— De vez em quando ele me telefona.

— Bem, então deve saber muito bem como ele está ótimo. À sua saúde, doutora! — Ele ergueu o copo, o que a obrigou a fazer o mesmo. Beberam juntos. Nas encostas do Kahlenberg havia poucas luzes isoladas, além da iluminação da estrada de subida. Um branco luar se esparramava sobre florestas e vinhedos, muros de pedra e relvados.

— Lamentavelmente, o seu bom e velho amigo Daniel Ross e sua amiga Mercedes nos dão grandes dissabores. Cada dia maiores. Quero dizer que os aborrecimentos que eles nos arranjam estão cada dia se tomando maiores. Agora se tornaram insuportáveis. A senhora não sabe de que estou falando?

— Não faço idéia, Sr. Abad.

— Veja, minha cara doutora, o seu velho amigo e sua jovem companheira acreditam estar prestando um grande serviço à humanidade com aquilo que têm em vista. Outras pessoas também acreditam nisso. Todos eles estão incorrendo num trágico equívoco. Eles não vão prestar serviço algum às pessoas mas apenas fazer com que o mundo viva em ainda maior inquietação, insegurança e medo. Eles estão a ponto de provocar uma tragédia, doutora, algo que precisa ser evitado a qualquer preço.

O poderoso curso do rio surgiu com suas águas luzindo prateadas ao luar.

— Tragédia para quem, Sr. Abad? Para as pessoas que o contrataram e para quem o senhor trabalha?

— Não, não. Para todas as pessoas. Todas, sim. — Ele se calou para depois de uma pausa acrescentar: — Realmente todas. Desordem e sofrimento, essas serão as conseqüências da atividade desenvolvida pelo Sr. Ross e sua amiga. No mundo inteiro. Se não for ainda pior. Isso precisa ser evitado.

— Isso o senhor já disse uma vez, Sr. Abad.

Ele a encarou, emudecido.

Depois de um longo intervalo, Sibylle perguntou: — Por que está o senhor me fitando assim?

— Estou me lembrando do nosso primeiro encontro, minha cara doutora — disse o homenzinho. — Ele ocorreu na noite de 18 de junho de 1976. Aqui mesmo, na Torre do Danúbio. A senhora me causou uma funda impressão, doutora. Como mulher, extraordinariamente bela. E como personalidade. Nunca me esquecerei dessa data. 1976! Meu Deus, isso já faz oito anos... Como o tempo passa depressa... e a vida... Eu sou um homem velho... Logo irei morrer...

— Sr. Abad! Por que o senhor me convocou para vir aqui?

— Não fale tão alto, por favor. — Ele bebeu novamente, e acenou então para um garçom: — Mais dois — disse ele e indicou os copos de conhaque.

— Muito bem, meu senhor. Dois Remy Martin.

O pequeno Sr. Abad inclinou-se para diante. — Veja, prezada doutora... — Ele passou a mão pela testa. — A senhora nem pode imaginar como odeio a minha profissão... Veja, uma vez que durante os anos que se passaram a senhora cooperou de modo tão formidável, a pena imposta a seu irmão foi reduzida pata quinze anos, não é verdade? E desses, oito ele já liquidou. Ele poderia portanto estar livre dentro de sete anos.

— O que quer o senhor dizer com esse poderia? — exclamou Sibylle.

— Se a senhora soubesse como encaro minha profissão...

— Sim, sim. O que é poderia, Sr. Abad?

— Poderia significa: se a senhora conseguir aquilo que eu hoje sou infelizmente obrigado a exigir.

— E o que é?

— Eu lhe peço para tomar um avião até Frankfurt e fazer tudo para que Ross e sua amiga encerrem seu trabalho nesse projeto.

— E como poderia eu conseguir tal coisa?

O garçom já vinha com os dois novos copos.

Abad tomou o seu de um só gole.

— O problema é seu. Na hipótese de não conseguir, a pena de seu irmão será novamente fixada em vinte e cinco anos. Todas as suas vantagens, todas, doutora, serão suspensas. Isto a senhora poderá dizer a Ross.

— O quê?

— Aquilo que acabo de lhe dizer. Os dois, a senhora e ele, já tiveram muito em comum. Uma grande amizade ainda persiste até hoje. Apele para a compreensão dele! Faça tudo aquilo que estiver no limite de suas forças!

— Mas... mas o Sr. Ross de nada sabe a respeito de meu irmão! Foi-me proibido expressamente falar com quem quer que fosse sobre o assunto.

— Isso está certo — disse Abad, subitamente frio e cruel. — Mesmo assim o Sr. Ross sabe tudo sobre ele. E essa Sra. Olivera, também.

— Isso não é verdade!

— É evidente que é verdade! A senhora pediu ao enfermeiro Josef Aigner que contasse tudo para os dois — durante uma visita ao convento de Heiligenkreuz, no dia 5 de março.

Desta vez foi Sibylle quem esvaziou seu copo.

— A senhora tomou o enfermeiro Josef como confidente, doutora — lamentou-se Abad. — Isso foi um erro gravíssimo. Não se deve acreditar em ninguém. Jamais. Ele foi à escola com seu irmão, ele foi por longos anos seu melhor amigo. A senhora se abriu com Josef, com freqüência...

Sibylle o olhava calada. Seus lábios tremiam.

— É muito ruim que a senhora nos considere idiotas, doutora — prosseguiu Abad com sua invectiva. — A senhora acha que nós não examinamos minuciosamente cada pessoa que trabalha no sanatório, antes de contratá-la?

— O senhor sabia...

— É evidente. Josef foi para nós de valor inestimável. Ele sempre nos informava imediatamente aquilo que a senhora confiava ao homem que julgava ser seu único amigo no sanatório. É claro que também nos relatou a incumbência que a senhora lhe tinha dado de informar detalhadamente a Ross e à Olivera os motivos pelos quais trabalhava em Heiligenkreuz e o que se passava com seu irmão. Ou, para ser mais preciso: ele nos informou de sua incumbência antes de a cumprir. Nós então lhe demos a autorização expressa para que o fizesse.

— O senhor lhe deu... Mas por quê?

— Porque nós também tínhamos de levar em consideração que acontecesse o que agora está acontecendo, doutora. Foi uma decisão inteligente! Pode informar tranqüilamente ao seu velho amigo Ross o que vai acontecer a seu irmão caso Ross e os outros levem a cabo seu plano. E caso as pessoas envolvidas não mantenham silêncio e estranhos fiquem sabendo da coisa, seu irmão perderá a vida — imediatamente. A senhora precisa dizer isso também a Ross.

Sibylle tentou duas vezes antes de conseguir se expressar.

— Mas eu nem sei o que ele pretende.

— Não, disso a senhora não sabe. Pergunte a ele! Faça o que estiver ao seu alcance. Está em jogo o destino de seu irmão, doutora. Tudo se encontra agora em suas mãos...

Abad olhou para fora da janela. As árvores, os pequenos bosques e os bancos de areia de Lobau passavam lentamente por eles. O luar projetava grandes sombras, formando um claro-escuro irreal.

— Aliás, a senhora não mais verá Josef — disse o homenzinho em direção à vidraça. — Ele já deixou o sanatório. E a Áustria também. Vamos designá-lo para outro lugar. Realmente, minha mui prezada doutora, essa miserável, infame e desumana profissão ainda me custará a vida. Meu coração não vai mais agüentar muito tempo. Não, não vai não...

Uma ligação internacional.

— Senhor Superintendente, aqui fala Colledo. Acabo de sair da Chefatura de Polícia. Olivera vai ser libertado ainda hoje. Dentro do prazo de quarenta e oito horas. Legítima defesa.

— Decerto todos os jornalistas e correspondentes em Buenos Aires deverão estar presentes quando Olivera sair.

— Com certeza. Por isso estou telefonando.

— O que quer dizer isso?

— Recebi uma mensagem clandestina de Olivera. Há dez minutos. Um guarda subornado a contrabandeou para fora. Olivera escreve que explicou à polícia e ao juiz que nada sumiu de dentro do cofre. Que teria surpreendido Morales logo depois que este havia aberto a câmara de aço. Na verdade, sumiu o vídeocassete que Olivera deveria me entregar.

— O quê?

— O senhor escutou bem.

— Se ele desapareceu, então um outro homem deve ter entrado na casa junto com Morales e sumido imediatamente com o cassete.

— Ou então Olivera está mentindo.

— O senhor quer dizer que nesse caso o cassete ainda está com ele. E ele nos quer passar a perna.

— Se havia ainda um outro homem, por que Morales ficou para trás? Por que ele também não deu no pé, depois que havia aberto o cofre e tirado o cassete?

— Tem alguma explicação?

— Poderia ser que o segundo homem quisesse primeiro verificar se se tratava do cassete certo.

— E por isso deixou Morales ficar?

— Sim,.

— Não estou entendendo.

— Para o caso de ser um cassete falso. Estou partindo da idéia de que nesse caso são nossos amigos do lado contrário que estão de novo em ação.

— É claro.

— Se tivesse sido o cassete falso, talvez os dois tivessem tentado aterrorizar Olivera e obter assim o filme verdadeiro.

— Com todos os empregados em casa? Isso agora já é fantasia!

— É a única explicação que me ocorre.

— Então o senhor quer dizer que Morales ou o segundo homem teriam fuzilado Olivera se o cassete fosse falso e ele não quisesse entregar o verdadeiro?

— Eles queriam matá-lo de qualquer modo, senhor superintendente. Para que não os pudesse denunciar.

— Muito bem, muito bem. Isso significa que os outros de novo chegaram antes de nós.

— Assim é, senhor superintendente. A não ser, como eu já disse, que Olivera esteja mentindo e ainda tenha o cassete.

— Mas, nesse caso, por que (conforme a teoria do segundo homem) Morales ficou para trás enquanto o outro homem foi verificar o filme?

— Talvez Olivera nos esteja pregando uma peça e ajudou no próprio arrombamento.

— Será que faria parte da peça matar uma pessoa, Sr. Colledo?

— Senhor Superintendente! O que quer de mim? Eu lhe expus uma versão plausível. Mais eu não sei. Muito obrigado, aliás, pela referência gentil de. que os adversários devem ter sido informados a tempo.

— Meu Deus, não seja tão bobo! Isso é fato, infelizmente. Teria eu suspeitado do senhor? Então. Está com os nervos ruins, Sr. Colledo.

— Obrigado, funcionam ainda. A polícia daqui coopera de um modo incrível. A Polícia Federal alemã tem bons amigos. Nós estamos o tempo todo sob proteção, Olivera também vai ser protegido, mesmo mais tarde. Disseram-me que ele está bastante tranqüilo. Deve crer firmemente no seguro de vida proporcionado pelos cassetes que estão no estúdio... O senhor se lembra que foi com isso que conseguiu que ele nos entregasse o terceiro cassete. Agora só preciso de sua decisão, com a maior rapidez.

— Decisão?

— Olivera escreve na mensagem clandestina que não foi por culpa dele que o cassete desapareceu e que, portanto, ele não o pode entregar a mim, conforme combinado com o senhor. E de qualquer forma nós já teríamos os dois outros em nosso poder. Olivera exige os dez milhões de dólares. Devem ser depositados imediatamente em seu banco. Feito isso, ele vai repetir diante dos jornalistas e do pessoal de TV — diante de todo mundo que nada foi roubado do seu cofre. Se os dez milhões não estiverem no banco quando sair, então falará. E muito. Vai contar a maldita história inteirinha. Tudo o que sabe. Tudo o que se refere ao filme e seu conteúdo. Ele está inteiramente desesperado e ficará arruinado, caso não receba o dinheiro agora. Vai falir e passar o resto de sua vida na cadeia, por causa de seus negócios financeiros. Senhor Superintendente, peço-lhe que me diga o que devo fazer. No máximo dentro de três horas, Olivera será libertado.

— Colledo! O que está exigindo de mim?

— Que me diga se devo entregar os dez milhões ou não.

— Mas... mas... que diabo! O sujeito está nos chantageando de novo!

— O senhor não faria o mesmo se estivesse em seu lugar? Ele deve ter dívidas horrorosas. Esta é sua última chance, agora que seu filme sumiu.

— Talvez não tenha sumido. Vai ver que ele está nos enganando, o filho da mãe!

— É possível!

— Diabo de porcaria, isso é uma chantagem infame!

— Senhor superintendente! Mando depositar os dez milhões de dólares ou não?

— Não! Ou melhor, espere aí, se nós não lhe dermos o dinheiro...

— Pois é.

— Mas eu não posso, sozinho... Preciso falar com Bonn... Deixe-me tratar disso, meia hora... Onde posso encontrá-lo?

— Estou no hotel Nogaro, como da última vez.

— Fique em seu quarto! Não se mexa do lugar! Vou chamá-lo de volta.

— Mas antes que decorra uma hora, senhor superintendente. Senão será tarde demais...

Quatro horas mais tarde, Eduardo Olivera estava de pé ao lado da lareira de sua biblioteca, diante de seu cofre aberto. Achava-se trajado com um leve terno azul de verão e, envolvendo o seu pescoço, um largo lenço de seda branca. O lenço assim como seu espesso cabelo branco brilhavam sob a luz dos refletores. Dois câmeras e um assistente de som haviam montado os seus equipamentos como na casa de Harry Gold. E também as medidas de segurança lembravam a filmagem de Harry Gold só que agora as dimensões eram muito maiores. Policiais armados cercavam todo o terreno da mansão. Todos os cantos haviam sido examinados minuciosamente.

Os homens da equipe que viera com Conrad Colledo de Frankfurt continuavam impassíveis. A câmera um rodava, o som estava gravando, a claquete havia batido. Com as mãos nos bolsos da calça, o homem diante dos refletores dizia: — Meu nome é Eduardo Olivera. o nome que uso há muitos anos. Outrora me chamava Georg Ross. Eu juro em nome de Deus que somente direi a verdade. Durante a Segunda Guerra Mundial exerci em Berlim um cargo de chefia no serviço secreto do Ministro do Exterior Joachim von Ribbentrop. Nessa posição, montei uma rede própria do mencionado serviço secreto para todo o Oriente Médio...

... E há duas horas você tem dez milhões de dólares no seu banco, pensava Conrad Colledo, que estava sentado ao lado do técnico de som, atrás dos refletores. E não precisa mais ter preocupações com ruína e nem com miséria. Fala de novo com fluência e altivez, com tanto dinheiro no banco.

— Que bom que você tenha atendido quando lhe telefonei ontem, Danny — disse Sibylle. — Eu já estava com receio de que vocês estivessem fora daqui, viajando, talvez. Faz bem vê-los de novo. Você dá uma impressão bem sadia, Danny, meu velho!

— Realmente, eu me sinto muito bem — disse ele. — Mercedes controla. Deixei os comprimidos com ela. Ganho um à noite e um pela manhã, conforme você prescreveu. Sim, estou plenamente recuperado. Você é que parece esgotada, minha querida. Trabalho em demasia, ou você está com alguma coisa?

— Você acha?

— E eu sei? Preocupações? Aconteceu alguma coisa?

— Absolutamente nada, Danny. Nada, realmente.

— Você está de fato com um péssimo aspecto — disse Mercedes. — Muito pálida, faces encovadas, olheiras fundas...

— Trabalho demais. Danny mesmo acabou de dizê-lo — Sibylle riu.

Ela ri alto demais, pensou Daniel.

— Nós recebemos dois pedidos de pesquisa de um laboratório farmacêutico. Novos produtos. Testes clínicos. Por isso tive de vir a Frankfurt. — Tomara que eu minta facilmente e com perfeição, pensava ela. E, de fato, o fazia. — Conversar com os químicos aqui. Uma grande conferência. Se eu tivesse adivinhado que trabalheira isso iria dar, nem teria aceitado. Nem por todo o dinheiro do mundo.

Sibylle estava sentada entre Daniel e Mercedes no grande escritório da casa na tranqüila Alameda Sandhöfer. Lá fora fazia ainda muito frio. Um forte vento norte assoviava ao redor da casa. Mercedes tinha servido chá e sanduíches. Sibylle se esforçava para demonstrar calma, firmeza e alegria. Ela estava com a aparência realmente péssima. Logo na manhã seguinte ao jantar que tivera com o Sr. Abad, ela voara para Frankfurt — não sem antes assegurar-se telefonicamente de que Daniel e Mercedes estavam em casa. Ela tinha perguntado se podia vir visitá-los, pois já se achava na cidade. Entusiasmado, Daniel havia pedido que ela viesse. Agora lá estavam, sentados juntos, Contando-se coisas, rindo e calando, e Sibylle relatava como era a vida no sanatório. Meu Deus, deixe-me achar um começo, pensava ela. Preciso achar um começo, para poder contar o motivo de minha visita. Preciso fazer muito mais, caso meu irmão não deva morrer na prisão. Outros vinte e cinco anos...

E ela falava e falava. E não sei sequer por onde começar, pensava ela, desesperada.

Mercedes se havia levantado e aberto um armário embutido pouco profundo, diante do qual se ajoelhou. De duas caixas acústicas estereofônicas, que se achavam nos cantos do recinto, soou de repente uma música, um piano e um saxofone. A música tinha aquele curioso som metálico e aparentemente alto demais dos discos bem antigos. Uma voz jovem e clara de mulher começou a cantar com melancolia: ... “Antes de nascer, não nos perguntaram, se queríamos ou não viver...“

— Oh — fez Sibylle. Seu olhar passava de Daniel para Mercedes, indo e voltando.

— Para que você possa ver como estimamos o disco — disse Mercedes voltando para a lareira. — É o tempo de vocês, Sibylle, Daniel. É a canção de vocês. E agora é a nossa, Sibylle. Foi você quem a deu de presente para nós.

— Nunca soubemos quem canta — disse Sibylle. — Não é, Danny? E que trabalheira tivemos, tentando descobrir!

— Nós também — disse Mercedes. — Mas agora nem queremos mais saber. É muito mais bonita assim.

“Agora, caminho só por uma cidade grande, sem saber se ela gosta de mim”, cantava a mulher desconhecida, de outros tempos, de outro mundo. Uma janela rangeu, enquanto uma violenta rajada de vento fez tremer toda a casa. “Olhando para dentro das casas, através das janelas e das portas, e esperando, esperando por alguma coisa...“

Mercedes olhou longamente para Daniel. Por fim, ele fez um sinal com a cabeça.

— Sim — disse ele.

— Sim, o quê? — indagou Sibylle.

— Queremos contar para você o que estamos fazendo — explicou Daniel. — Você incumbiu aquele enfermeiro Josef de nos dizer tudo sobre você e seu irmão, toda a grande desgraça, e nós jamais contamos nada a nosso respeito. Isso é muito injusto, não é mesmo, Mercedes?

— Muito. Sabemos muito bem que você não vai contá-lo a ninguém — disse Mercedes.

— Claro que vai: ao Werner — protestou Daniel. — Werner deve sabê-lo também. Vocês dois. Vocês se pertencem um ao outro.

— Nós quatro nos pertencemos — disse Sibylle, bem baixo.

— Obrigada — disse Mercedes, igualmente num sussurro. — Muito obrigada. Eu também gosto muito de você, Sibylle.

“... Se eu pudesse desejar alguma coisa, só gostaria de ser um pouquinho feliz...“

— Você também tem medo de uma nova guerra, Sibylle? — perguntou Daniel.

— Sim, um grande medo. Werner também. Todas as pessoas que conseguem pensar um pouquinho sentem medo. Dia a dia vai ficando pior. Vocês sabem, sempre tenho de pensar quão sábios foram os homens que escreveram a Bíblia. “Felizes os pobres de espírito, já que deles é o reino dos céus”... Os pobres de espírito... Que não pensam... que não podem imaginar-se... eles não têm medo... De fato, felizes são eles!

“... pois, se eu fosse feliz demais, teria nostalgia da tristeza”, cantava a jovem voz de mulher, seguida pelos acordes da orquestra que concluíram a canção. Com um ruído seco, o aparelho desligou-se.

— Acabamos de buscar nos arquivos da emissora alguns discursos e entrevistas de grandes políticos — disse Daniel. — Ficamos estatelados diante do que encontramos. Ouça só, Sibylle, vou citando de memória... “No instante em que os soviéticos tiverem os meios necessários para aniquilar a América, e em que esta possuir os meios para liquidar com a URSS, não é concebível que os dois rivais, com exceção de um caso extremo, ataquem um ao outro. Mas o que impede que as duas potências joguem suas bombas sobre o território que as separam, isto é, sobre a Europa central e ocidental? A OTAN, por conseguinte, deixou de garantir a existência dos europeus ocidentais.” Quem teria dito isso? Você nunca que vai acertar! O general De Gaulle! E já há mais de vinte anos! E, por Deus, não se tratava de nenhum esquerdista! Ou, então, uma outra voz: “Existem interesses políticos materiais contra uma distensão com os russos. Há muito dinheiro metido nisso, o interesse econômico de muita gente reside na produção de cada vez mais armamentos. É muito fácil vender isso sob o rótulo de patriotismo e intenções de defesa.” E, agora, quem disse isso? O senador norte-americano Fulbright — pleno de cólera. Bonito, não acha?

— Os europeus são obrigados a assistir desamparados ao infortúnio que está vindo por aí — disse Mercedes. — Todos eles vivem — os alemães, principalmente — na fronteira onde os dois blocos se entrechocam. Em Washington, um conselheiro governamental fala em “época que antecede a guerra” — duma tal época eles falam deveras, Sibylle! E em Moscou, eles advertem contra os “preparativos de guerra” do ocidente, dizendo que por isso é necessário conservar-se a pólvora seca”. É claro que, então, não apenas um filósofo pessimista, como Carl Friedrich von Weizsäcker, pensa que a terceira guerra mundial é “provável”. Weizsäcker disse: “Quando suficiente número de pessoas se comportam como se uma tal guerra viesse, torna-se fácil que ela venha efetivamente.”

O vento norte seguia assoviando ao redor da casa, fazeúdo as janelas rangerem:

— Deus há de nos proteger — disse Mercedes com a boca retorcida. Sibylle notou como em seu rosto crispado pequeninos músculos fremiam. — Pois até o Vaticano já disse claramente que a intimidação atômica não é imoral de maneira alguma. Para o Papa, as armas atômicas, em vista desse perigo de guerra, seriam por assim dizer uma espécie de anticoncepcional. E nós sabemos — Mercedes ria maldosamente — como ele tem simpatia por anticoncepcionais.

— E os bispos católicos alemães, Sibylle, imagine só isso — exclamou Daniel —, esclareceram que, depois de longa reflexão, são a favor da paz. Os bispos alemães são a favor da paz. E não a favor da guerra. Formidável, não é?

— Nós pequeninos. Nós, bilhões de pequeninos — disse Sibylle. — O que podemos fazer? Esperar até que nos matem, nada mais.

— Ah, isso, não! — estourou Mercedes.

— Como?

— Essa não — exclamou também Daniel. — Certamente você se lembra de quando eu falei com você daqui mesmo, para o sanatório, inteiramente destroçado pelo maldito Nobilam...

— Claro. Eu tinha dito então que você precisava vir imediatamente, mas você retrucou que antes precisava ir, de qualquer maneira, tratar de um assunto. Juntamente com Mercedes, que lhe havia trazido uma notícia.

— Exato. Notícia de um homem em Buenos Aires, como eu lhe disse. Notícia bastante importante. Esse homem, disse eu, teria trabalho para mim. E eu precisava ir vê-lo. O mais rápido possível... Sabe quem é o homem em Buenos Aires?

— Não. Quem é? — perguntou Sibylle.

— Seu pai... mas ele não tinha morrido na guerra?

— Sim, nisso eu acreditava também. Ele vive! Meu pai vive, Sibylle! Com um outro nome. Homem idoso. Muito ativo. Está dando, exatamente agora, uma grande entrevista à televisão, ou acaba de dá-Ia.

— Sobre quê?

— Sobre... Nós vamos contar tudo para você. Tudo. A história inteira.

Meia hora mais tarde.

Mercedes e Daniel haviam falado alternadamente e Sibylle escutara com atenção. Agora, os três estavam calados. A tempestade prosseguia lá fora. No mais, o recinto estava quieto.

— Monstruoso — disse Sibylle, enfim. — Realmente, a coisa mais monstruosa que jamais ouvi em minha vida. Esse, então, é o trabalho de vocês.

— Sim, esta é a nossa tarefa — disse Mercedes. — Quando esse filme for exibido na TV, Sibylle... não que estejamos imaginando que as pessoas vão fazer uma revolução. Mas os aliados dos dois grandes, os governos de todos esses Estados, deveriam abandonar o cortejo das duas superpotências, pois elas partilharam o mundo em 1943. Pois já àquela altura elas haviam decidido nada empreender uma contra a outra e não se imiscuir caso uma delas venha a entrar em guerra contra alguma nação recalcitrante de sua própria órbita de influência. Pois já naquele tempo elas estabeleceram que a Europa, e especialmente a Alemanha, passaria a ser o campo de provas para testar suas novas armas.

— Até agora continuamos sem saber se o filme foi forjado ou se é autêntico — disse Daniel. — Com a ajuda de seu pessoal, as duas superpotências tudo empreendem, realmente tudo, para eliminar quaisquer testemunhas em favor da autenticidade do filme. Nós contamos para você que já há, até agora, dois mortos. Mas isso não quer necessariamente dizer que o filme seja verdadeiro. Demonstra apenas que as duas potências têm medo de que o filme venha a ser irradiado, porque já basta que os governos aliados pensem o seguinte: considerando os fatos reais ocorridos desde 1945, o filme poderia ser autêntico. E nós não passamos de meras reses, muitos milhões de reses destinadas ao abate.

— Por isso é que essa guerra no escuro é travada com tamanho furor, Sibylle — disse Mercedes. — Está entendendo agora?

— Sim — respondeu Sibylle.

E pensou: nunca. Não, nunca poderei pedir a esses dois, após lhes contar a respeito de meu irmão, que desistam de sua missão. Seria, aliás, tecnicamente impossível parar esse empreendimento que começou a rolar. E mesmo que fosse possível fazê-lo... claro que eu poderia dizer: este mundo está perdido de qualquer maneira, vocês não passam de simples visionários idealistas, preciso ajudar meu irmão, só isso é que importa, somente meu irmão é que conta. Mas será que posso fazer isso? Será que quero fazer isso?

Sibylle ouvia e via Mercedes e Daniel falando com ela, mas não entendia aquilo que ambos diziam. Não, pensava ela, eu não tenho o direito de inquietá-los com meus problemas, torná-los inseguros, desunidos, pois quem sabe o que aconteceria se eu contasse a respeito de Eugen? Mercedes está por demais engajada e fanatizada. Ela não deixa de me ser estranha. Mas Danny... Ele me amou tanto... E eu, a ele... Está tão ligado a mim... Tanto quanto eu a ele... Isso eu posso imaginar, que no mínimo, eu precipitaria o pobre do Danny num pavoroso conflito de consciência... Não, não. Não devo falar de meu irmão. Simplesmente não devo.

— ... sentindo mal? — Mercedes é quem tinha falado. Sibylle só tinha compreendido as duas últimas palavras.

— Não. Por quê?

— De repente, você ficou tão pálida — disse Mercedes. — Não é verdade, Danny?

— É, sim — disse ele. — Que é que você tem, Sibylle?

— Realmente, nada. — Agora eu preciso mentir, pensou ela. — Só cansada. Muito cansada... Levantei-me às cinco da manhã, para pegar o avião. As conferências com os químicos. Muito desgastante, sabe. Exausta, sim, exausta é como me sinto de repente, nada mais.

— Fique aqui até amanhã! Durma aqui! — disse Mercedes.

— Não, não dá...

— Mas é claro que dá. Nós temos espaço bastante.

— Não é por isso. Preciso voltar ao sanatório. Tenho dois casos graves... Meu vôo de volta já está reservado para hoje à noite... Afinal, eu só queria ver vocês novamente... — Sibylle sentiu como a sala começou a girar ao seu redor. — Eu... eu... estou realmente morta de cansaço. Preciso ficar bem-disposta de novo. Danny, meu velho, você poderia me servir um uísque, bem grande, sem água, sem gelo, puro?

Sibylle tomou outro enorme uísque, e quando finalmente Mercedes e Daniel levaram-na de carro com sua mala para o aeroporto de Rhein-Main, ela já estava um tanto alcoolizada.

— Precisamos ver-nos de novo, com o Werner também — repetiu ela mais uma vez. — Precisamos nos ver de novo. Gosto tanto de vocês. São tão corajosos. Precisamos nos ver logo, está bem?

Chegaram às 20h30m ao balcão da Lufthansa, no grande saguão de embarque. Sibylle recebeu seu cartão de bordo e a mala foi despachada. Junto ao balcão, quatro seguranças tentavam arrastar um jovem de cerca de vinte anos que, envolto numa manta vermelha, estava sentado sobre um tapete. Eles tentavam não machucá-lo. Ele havia tocado guitarra. Quando Sibylle estava chegando com Mercedes e Daniel e os policiais tentavam convencer o rapaz, enquanto os primeiros espectadores paravam para assistir à cena, o jovem cantava ainda: “— Venham todos olhar! O nosso grande horror! Venham dar uma olhada” — Sobre seu tapete, viam-se fotos brilhantes. Mostravam pessoas, algumas ainda vivas, outras já mortas, depois do lançamento da primeira bomba atômica sobre a cidade japonesa de Hiroxima, em agosto de 1945. As fotografias mostravam também o que havia restado daquela cidade poucos segundos depois do lançamento. Um dos policiais recolhia os retratos.

— Cale essa boca, seu comunista de merda! — gritou uma mulher de casaco de pele.

— Deixe-o em paz, ele tem razão! — exclamou outra senhora, muito excitada.

O rapaz, a quem os policiais já haviam tomado o violão, esforçando-se por tirá-lo dali sem violência, continuava cantando: “— Não temos medo de nada! O holocausto nuclear dá pa se fotografar; portanto, podemos tentar! São retratos bonitinhos, corpos todos tostadinhos! O próximo passo nos dá esperança: a bomba explode e a gente dança.”

Nesse ponto, já estavam carregando o cantor para uma radiopatrulha. Sua voz ficava cada vez mais baixa. Ele ainda se voltou e gritou para trás: “— Esta canção é de Werner Schneyder. Que viva Werner Schneyder! E viva a vida!”

— A senhora chamou a polícia? — perguntou Mercedes a uma das recepcionistas detrás do balcão.

— Sim, minha senhora — disse ela séria. — Não se conseguia mais agüentar. Nós teríamos acabado ficando malucos. Todas as noites ficava cantando aqui, minha senhora, e toda noite havia bate-boca e às vezes até pancadaria.

Era o mesmo rapaz que estava cantando quando Wayne Hyde comprara, nesse mesmo balcão, uma passagem para Viena, para seguir no mesmo horário das 21h com o vôo que procedia de Paris. Isso fora poucas semanas atrás...

— Ele faz parte do movimento pacifista — disse um homem que tinha escutado tudo.

— Movimento pacifista coisa nenhuma! — exclamou um outro. — Isso é dirigido diretamente do Leste, da RDA, todo mundo sabe. Cambada maldita! Aqui ficam açulando as pessoas para fazerem demonstrações, mas se do lado de lá alguém fala contra a bomba, vai logo preso.

Mercedes apanhou uma foto que ficara no chão e trazia a marca de um salto de sapato. Mostrava uma criança queimada até quase ficar irreconhecível. Mercedes mostrou-a à funcionária do balcão.

— Sim, é horrível — disse esta. — Mas toda noite essa batulheira e complicação... Nós o deixamos cantar bastante tempo. Tempo demais.

— A senhora tem filhos? — perguntou Mercedes.

— Não — disse a moça, subitamente empolgada. — E conscientemente jamais terei filhos — não nestes tempos. Senão sentiria medo demais.

— Tenho quatro crianças — exclamou o homem que acusara os pacifistas de serem dirigidos pela RDA. — E um quinto está a caminho. E não tenho medo nenhum. Não deixem que esse pessoal os faça ficarem malucos! Não haverá uma guerra nuclear!

— E por que não? — perguntou Mercedes com os olhos brilhantes.

— Porque simplesmente não pode haver, O importante é que os americanos e os comunas mantenham um equilíbrio de forças exclamou o homem.

— Vamos sair daqui! — disse Sibylle.

Já estavam se afastando mas ainda ouviram quando uma mulher pequena e muito idosa dizia: — Todos os dias agradeço a Deus porque não terei mais de assistir a isso. Tomara que eu realmente morra antes!

— Mercedes! — Daniel havia estacado. Ela chorava. Lágrimas rolavam sobre sua face. — Mercedes, por favor!

— A criança da foto — balbuciou ela, ainda segurando a suja foto com as mãos trêmulas. — É só a foto.

— Jogue-a fora! — disse Daniel com rispidez.

— Não — teimou Mercedes, dobrando o papel brilhante e guardando a foto. Secou as lágrimas do rosto com a mão. — Desculpem-me! — disse ela. — Por favor, me desculpem!

— Passageiros do vôo da Lufthansa 345, com destino a Viena — disse uma voz de moça por vários alto-falantes —, queiram dirigir-se ao controle de bagagens e de passaportes. — A voz repetiu o chamado em inglês e em francês.

— Isto é para mim — disse Sibylle. Os dois a acompanharam até o controle de documentos. Antes de passar adiante, ela parou e beijou Mercedes. Em seguida, ela e Daniel trocaram um longo e terno beijo. Agora, era ela quem tinha lágrimas nos olhos.

— Que Deus os proteja, a vocês e ao seu trabalho!

— E também a você e ao Werner — disse Mercedes.

— A gente se telefona — disse Daniel. — Muitas vezes.

— Sim, por favor — disse Sibylle. Ela o enlaçou com os braços, beijou-o na boca e nas faces, sussurrando-lhe ao ouvido: — Eu o amo, Danny, ainda o amo muito.

E passou rápido pelo controle. Antes de dobrar para a entrada da alfândega e desaparecer, ergueu rapidamente a mão para um curto aceno.

— Como a Liza Minelli — disse Mercedes.

— O quê?

— Ela acenou como Liza Mineili no filme Cabaret, quando ela se despedia de Michael York na estação de Berlim e eles nunca mais se iriam ver. Ah, Danny!

Ela se dependurou nele, apertando-o contra si, e assim seguiram vagarosamente em direção às saídas envidraçadas. A tempestade havia aumentado.

O vôo para Viena foi muito agitado, o avião balançava, perdia altitude aos solavancos e tudo sacudia. Muitos passageiros sentiram medo, crianças choravam. Sibylle estava sentada numa poltrona junto à janela e não se mexia. Quando o avião já tinha  pousado em Schwechat e Sibylle havia recuperado sua mala, ela se dirigiu para o bar do aeroporto. Eram quase quinze para as onze. Lá dentro, estava sentado um par de namorados. Da fita, soava uma música. A orquestra de James Last tocava I’m always chasing rainbows...

Seus olhos logo se habituaram à penumbra e ela distinguiu numa mesinha o pequeno Sr. Abad, que cortesmente saltou da cadeira e veio ao seu encontro. Ele a cumprimentou com cerimônia, pegou-lhe a mala e acompanhou-a até a mesinha.

— O que posso pedir para a senhora? — perguntou ele, tão logo surgiu um garçom fatigado.

— Um uísque. Duplo. Sem gelo nem água. Puro — disse Sibylle.

— Muito bem, minha senhora — disse o garçom.

— Entâo? — indagou Abad acariciando a pérola de sua gravata.

— Eu nem cheguei a falar com os dois sobre meu irmão — foi logo dizendo Sibylle.

— A senhora nem chegou..

— Palavra alguma.

— E por que não?

O garçom chegou com o uísque. — Por favor, minha senhora.

— Obrigada. — Sibylle bebeu.

— Mas por que não, doutora? — perguntou Abad. Seu rosto ficara cinzento, parecia de repente ter cem anos de idade.

— Porque eu não quis. E porque não podia. Aí está: simplesmente eu não podia.

— Minha prezada senhora doutora, por favor: trata-se de seu irmão!

— Disso eu sei. O senhor não precisa lembrar-me disso.

Sibylle bebeu novamente.

— Os dois lhe contaram em que trabalhavam?

— Sim.

— E a senhora nem tentou apelar para os sentimentos de seu velho amigo Ross? A senhora não o esclareceu em que situação a senhora se encontra? A senhora e seu irmão?

— Não.

— Mas... mas a senhora ama seu irmão acima de tudo.

— Acima de tudo.

— Por oito anos a senhora fez o que lhe exigimos. Somente para ajudá-lo.

— É isso mesmo, sabe Deus como.

— E desta vez a senhora nada fez para ajudar seu irmão, absolutamente nada.

— Absolutamente nada — disse Sibylle.

Fez-se uma pausa.

— Bem — disse então Abad. — Lamento muito por seu irmão.

— Não minta! — disse Sibylle. — Lamenta coisíssima nenhuma. Não por meu irmão. Pelo resto, sim. Com certeza. Isso, aliás, me despedaça o coração.

— Desta forma, seu irmão vai ficar na prisão mais dezessete anos, todos os privilégios lhe serão retirados, não poderá mais escrever. Tudo ficará bem difícil para ele. E para a senhora também, doutora.

— É, para mim também.

— Foi muito insensato não haver falado com seus amigos sequer uma vez.

— É, decerto.

— E a senhora acha que poderá viver com esse peso.

— Isso se verá. — Sibyile esvaziou seu copo e levantou-se.

— Obrigada pelo uísque!

— Escute aqui, a senhora não pode agora simplesmente... — também Abad se levantara.

— Oh, sim, claro que posso — disse Sibylle enquanto pegava a mala. — Permaneça aqui! Não me acompanhe! Meu carro está no estacionamento, bem próximo. Boa noite, Sr. Abad! — Ela deixou rapidamente o bar. April in Portugal era a música que agora tocava James Last.

O miúdo Abad acompanhou a mulher com o olhar até perdê-la de vista. Acenou então para o garçom, pagou a conta e desceu para o grande saguão. Ali, dirigiu-se para uma das muitas cabines telefônicas e discou.

— Sanatório Kingston, Dr. Herdegen — disse uma voz, atendendo.

— Abad aqui.

— Ela já chegou?

— Sim.

— E? Que foi que ela disse?

— Ela sequer falou com Ross e a Olivera a respeito de seu irmão.

— O quê?

— Nem uma palavra. Não podia e não queria, diz ela. Nada há a fazer.

— Pôs-lhe diante dos olhos o que o irmão agora ... — começou Herdegen.

— Por Deus, é evidente que sim — interrompeu o frágil homenzinho. — Não sou nenhum idiota! Estou lhe dizendo que nada há a fazer.

— E como é que essa história vai prosseguir?

— Não tenho a menor idéia. Fizemos tudo o que pudemos. Diga isso a Morley. O que pudemos, fizemos.

— Sim, Sr. Abad. Vou ligar logo para ele. Que porcaria de azar.

— Bruta sorte, doutor — disse Abad.

— O que é bruta sorte?

— Que tenha sido feito tão grande estoque de folhas assinadas por Eugen Mannholz e que só foram autorizadas cartas datilografadas. Pelo menos assim não perdemos a mulher como médica. Ela continuará prestando bons serviços enquanto vierem cartas de seu irmão. Nestas, ele irá contar — claro que depois de muito tempo — sobre as primeiras novas regalias. Depois que lhe tiver feito, é lógico, algumas reprimendas.

— Não estou entendendo. Que significa essa história de estoque de folhas assinadas?

— Ora, ele já morreu em setembro de 1976. Três meses depois de eu ter conseguido que sua irmã aceitasse o cargo em Heiligenkreuz.

— Ele... ele... está morto?

— Se eu estou lhe dizendo... Nunca lhe contei isso? Já estou mesmo ficando gagá. Claro que está morto. Já há oito anos. Mas suas cartas continuaram a vir. E ele respondeu a todas as perguntas da irmã. Os censores cuidaram disso. Ele próprio não ia mais responder. Bem, a coisa pode prosseguir assim. Agora ele recomeça a responder às perguntas. Eles ainda têm muito papel de carta.

3

— Pontualidade britânica — disse o pequeno e bochechudo advogado Roger Morley, que com seus cabelos grisalhos e emaranhados e sua barriga pontuda sempre lembrava a Wayne Hyde uma figura tirada dos romances de Charles Dickens. Eram 9h da manhã de 22 de março de 1984. Morley esfregou suas gordas mãozinhas. — Sente-se, sente-se, meu caro. — Ele desapareceu na pequena cozinha ao lado do antiquado escritório e retornou com xícaras de chá, bule e demais utensílios sobre uma bandeja de praia. — Hoje nós vamos experimentar uma vez o Queen’s Tea — disse ele feliz. Ele ria e mostrava então seus dentinhos de camundongo. — E uma refinada mistura de Darjeeling, de aromático buquê. Perfeita delícia... Permita-me... Primeiro o açúcar... E agora o chá, pelo coador, é claro... — Continuou falando até encher também sua xícara e sentar-se confortavelmente em sua poltrona atrás da escrivaninha. Então, alterou-se a sua voz. — O senhor está com o cassete?

— Claro. — Hyde colocou-o sobre a mesa. — Até esse ponto, tudo correu bem em Buenos Aires. Vi o filme. Está okay. Lamento que o resto tenha dado errado. Esse Miguel era um cretino.

— Deus também ama os cretinos, Mr. Hyde. Que dê a Miguel a paz eterna. Não se censure por isso! O senhor fez o que podia. Deu o máximo de si. Meus... conhecidos manifestam-se a seu respeito sempre nos termos mais elogiosos. Simplesmente não se pode ganhar sempre. Agora, pelo menos dispomos de uma cópia do filme. Isso ajuda muitíssimo. Meus conhecidos, depois de o verem, estarão em condições de reagir muito melhor. Penso que devemos experimentar um golezinho, não?

E ambos tomaram o chá. Morley mantinha erguido o dedinho da mão que segurava a xícara. Suspirava de prazer. — Isto é que é um chazinho, não é mesmo?

— É, Mr. Morley.

— Não está forte demais?

— Está no ponto.

—Doce demais?

— Tudo perfeito, Mr. Morley.

— Sabe de uma coisa? Meu gosto modificou-se. Agora é deste Queen’s Tea que eu mais gosto. Engraçado, não? Hahaha.

— Hahaha. É óbvio que nesse meio-tempo, o Olivera se pôs diante das câmeras e contou sua história inteira.

— Não tem maior significação, Mr. Hyde, não quer dizer nada. Se o imbecil do Miguel o tivesse acertado, haveria ainda assim o filho e a enteada. Nesse ínterim, eles contaram a mesma história — quase a mesma — diante das câmeras. Reproduziram aquilo que souberam de Olivera, segundo ouvi dizer.

— Ouviu dizer por quem?

— Ora, de nosso amigo na TV. É uma sorte que nós o tenhamos.

— Sorte grande — disse Hyde.

Chovia em Londres nessa manhã. Gotas martelavam contra a vidraça.

— Uma verdadeira sorte grande — concordou Morley e provou mais um pouquinho de chá. — Recebi ontem novas notícias dele. Os repórteres finalmente encontraram esse tal de Chan Ragai. O senhor se lembra: era o residente do Serviço de Ribbentrop em Teerã.

— Com o famoso agente CX 21.

— Isso mesmo, Mr. Hyde. Termine com essa xícara! Permita-me que volte a enchê-la?... Muito bem. Alegra-me que o chá lhe tenha agradado tanto quanto a mim... Sim, eles localizaram Chan Ragai. Não foi nada fácil. Veja só a razão: ele é um íntimo do Aiatolá Khomeini, desde o tempo em que Khomeini vivia em Paris... Os dois se conhecem há uma eternidade. Viajou muito em missões confidenciais do aiatolá. Ele é extremamente cuidadoso e inteligente, esse Chan Ragai, senão já há muito não estaria vivo. E agora vive inteiramente retirado. Os repórteres descobriram onde.

— Onde foi que se meteu?

— Recolheu-se em La Roquette sur Siagne. É um lugarejo minúsculo no interior da região de Cannes. Fica totalmente escondido e fora do mundo. O caminho para lá o senhor só poderá encontrar num mapa da Côte d’Azur, tão pequeno é o lugarejo.

— Soa encantador. O senhor está seguro de que seu amigo está dizendo a verdade?

— Completamente, Mr. Hyde. Uma equipe de filmagem com Conrad Colledo segue amanhã, de avião, para Nice. Via Zurique. Os homens vão hospedar-se em Cannes no hotel Majestic. Isso quer dizer: o senhor terá de tomar o avião ainda hoje.

— Tenho viajado bastante — disse Hyde. — Não posso me queixar.

— Já está ficando bem quente na Riviera, Mr. Hyde.

— Eu tenho roupa leve. Acabo de usá-la, Mr. Morley.

— O senhor tem razão. Onde? Ah, é claro! Buenos Aires! Perdoe-me, é evidente! Está vendo, meu velho, a coisa desta vez é muito delicada. Eu já lhe disse, Khomeini e Chan Ragai são velhos amigos. Chan Ragai é um fanático admirador do aiatolá.

— Isso tudo obteve por intermédio do seu amigo na emissora?

— Sim, e ele o sabe através dos pesquisadores. A Polícia Federal alemã também pediu auxilio à gendarmeria francesa.

— Deus seja louvado por um delator tão precioso!

— É verdade. Ora, Ragai sabe o que ocorreu em dezembro de 1943. Afinal, ele era o residente dessa associação nazista de Ribbentrop. E como ele é um tão leal assecla de Khomeini, podemos calcular o que ele dirá perante as câmeras. Ele odeia os americanos com a mesma intensidade que Khomeini. É de admirar que ele acertou os termos de seu depoimento com o velho. Terá contado a ele que os repórteres alemães o tinham detectado e queriam saber o que tinha ocorrido em 1943. Meus conhecidos pediram que eu lhe fizesse uma pergunta. Qual seja: que acha o senhor que um homem que odeia os americanos como esse Chan Ragai irá relatar a propósito do filme?

— Que se trata de material autêntico. Que o filme inteiro é verdadeiro, naturalmente. E por aí afora.

— Corretíssimo, Mr. Hyde. É exatamente este o nosso ponto de vista. Em todo caso, essa vai ser a linha geral. E não temos necessidade de uma testemunha que jura pela autenticidade do filme, mesmo que jure por uma completa mentira. O senhor entende o que quero dizer, Mr. Hyde?

— Já entendi, Mr. Morley. Câmera alguma poderá aproximar-se desse Chan Ragai, enquanto ele viver. Isso quer dizer que precisa morrer logo, rapidamente.

— Muito rapidamente, Mr. Hyde. Seu avião vai sair dentro de três horas e meia. Eu me permiti reservar-lhe uma passagem. O senhor conhece Nova lorque?

— Como a palma de minha mão.

Morley abriu a gaveta de sua escrivaninha e de lá retirou um passaporte americano e numerosas fotos a cores.

— Até nova ordem, o senhor se chama Andy Maree e é corretor da Bolsa de Nova lorque. Nós nos permitimos preparar este passaporte para o senhor. Eu sei que o senhor sempre tem seus próprios documentos. Desta vez, use este aqui!

— Como desejar. E que são essas fotos? É Chan Ragai?

— Sim. Afinal, o senhor tem de conhecer a cara do homem que terá de matar.

Hyde fitou os retratos com grande atenção. Mostravam um homem de aparência muito idosa que se achava no meio de um jardim um tanto selvagem e dava uma impressão extraordinariamente melancólica. Seu terno parecia ser grande demais para ele, assim como o colarinho da camisa. Tinha um rosto estreito de ave de rapina, a tez um tanto cor-de-oliva e um bigodinho preto. Seus cabelos eram igualmente pretos. Certamente  tingidos, pensou Hyde. Encostado em um piátano, ali estava Chan Ragai, triste e decrépito. Ao fundo de vários retratos, se via uma casa térrea, de paredes cor-de-rosa.

— Essa é a casa dele em La Roquette? — perguntou Hyde.

Sim. Ele a chama de Vila Biblos. Está escrito numa coluna do portão. Da praça principal, o senhor tem de descer a Avenue du Roi Albert. O senhor já sabe como é o aspecto dela.

— Qual a idade de Ragai?

— Setenta e três.

— Parece ter noventa. Onde conseguiu as fotos? Também do seu amigo da emissora?

— De onde seria então? Repórteres que estiveram na Côte e perguntaram a Ragai se ele se deixaria filmar, tiraram as fotos. Nosso amigo é quem deve haver providenciado as duplicatas. Bastam-lhe essas aí?

— Perfeitamente — Mr. Morley.

— Ótimo. Hospede-se por favor no hotel Le Mas Candille, em Mougins. O quarto já está reservado. Em nome de Andy Maree. Lugar encantador, Mougins. Bem perto de La Roquette sur Siagne. Conhece Mougins, Mr. Hyde?

— Sim. Almocei lá uma vez — disse Hyde mergulhado em recordações. Com aquele cadáver no porta-malas, pensou ele.

O avião da British European Airways voou uma boa distância pelo mar adentro, descreveu uma grande curva e tomou a direção de uma das pistas do Aéroport International Côte d’Azur. Todos os aviões que ali pousavam ou decolavam, independentemente de seu destino, precisavam primeiro sobrevoar o mar. Wayne Hyde olhava através de sua janela. A água estava de um azul tão escuro como o céu. O sol já se encontrava bem baixo, acima dos picos do Estérel, a distância. Sua luz fazia a terra vermelha brilhar com uma claridade mágica e se refletia, ofuscante, nas centenas de milhares de vidraças de Nice. O avião baixava e baixava. Quando Hyde já estava certo de que eles se iam precipitar no mar, o aparelho tocou a pista.

Realmente, já fazia ali algum calor. Hyde, um leve terno azul de verão, uma camisa branca de colarinho aberto, meias e slippers brancos. O avião ficou estacionado bem longe sobre o campo e um ônibus se aproximou. Quando Hyde já havia passado pelo controle de passaportes e entrara no saguão, ele viu, num andar inferior, as esteiras de entrega de bagagem e o escritório da alfândega. Os funcionários estavam todos de camisa azul. Um deles discutia com uma mulher de louríssimos cabelos tingidos que segurava sob o braço um minúsculo cachorrinho de pêlos compridos. O bichinho tinha uma imensa fita avermelhada amarrada na cabeça. Havia muitos funcionários e maior número ainda de passageiros no local de bagagens. Ininterruptamente chegavam ou partiam aviões. Parecia que a estação já havia começado por aqui. Ao lado da mulher loura (ela parece um bando de prostitutas, pensou Hyde enojado) estava postado seu amigo Raymond Laforet.

Ele calçava sandálias, vestia brancas calças de linho e, solta por cima da cintura, uma folgada camisa de linho branco. Estava bastante bronzeado. Quando ergueu, sorridente, sua mão, Hyde viu cintilantes dentes brancos. Excelente trabalho do dentista, pensou Hyde enquanto respondia ao aceno. Daquela vez, o negro já estava pronto para acabar de quebrar a cara de Raymond com a coronha de seu fuzil quando ele ainda chegou a tempo de abatê-lo. Raymond também tivera um cirurgião plástico de excelente categoria. Não se conseguia olhar para o rosto dele. E agora, tudo novamente em ordem. Apenas algumas cicatrizes. Isso ocorreu no Tchad, em 1978. Não, em 1979. Engraçado. Tropas francesas lutando contra guerrilhas e rebeldes militares. O negro era um soldado francês. Nós estávamos do lado dos guerrilheiros...

Hyde estava diante de. Laforet.

— Então, seu velho sacana, como é que você vai?

— Bem, seu safado, e você?

— Sua aparência é perfeita, Raymond. Por que você não se torna ator?

— Ora, vá tomar banho! Meu Deus, como estou feliz por poder rever você.

Agora, já havia três funcionários da alfândega rodeando a loura. Ela tinha jóias na mala, viu Hyde. Um dos inspetores levou a bagagem dela para dentro do escritório. A loura tropeçava com seus saltos altos atrás dele, aos gritos estridentes de Assassin!

Hyde sorria. Isso sempre o divertia quando vinha à França. Quando aqui havia alguma confusão, pouco importando por quê, mesmo quando alguém passava à frente do outro ou um cachorro urinava na roda de um carrinho de bebê, imediatamente alguém gritava a palavra assassin!

Os dois sacos de roupas vinham pela esteira de bagagens. Hyde os tomou nas mãos e com Laforet abriu brutalmente caminho através da multidão. Nesse meio tempo haviam chegado mais dois aviões e todo o saguão de baixo estava apinhado de gente. Um senhor idoso, que Hyde havia atingido com o cotovelo, gritou:

— Ficou maluco?

— Vá para o inferno — disse Hyde.

— Assassin! — foi logo gritando o velho. — Assassin!

Hyde deu uma risadinha. Foi com seu amigo ao balcão da Hertz no andar de cima e alugou um BMW. Buscaram-no no estacionamento da Hertz e embarcaram nele. Era um BMW preto.

— Onde está sua carroça? — perguntou Hyde.

— Lá do outro lado — disse Laforet. As cicatrizes de suas operações plásticas formavam traços mais claros na pele bronzeada pelo sol. — Há muito tempo que você não vem mais aqui, meu velho. Eles modificaram tudo por aqui. Ficou tudo apertado demais. Fizeram uma porção de estacionamentos, lá perto do departamento de cargas. E nem mesmo assim dá vazão. Estou no P 2. Bem lá atrás. Tem uma barreira automática. Preciso pegar um ingresso.

O ar estava macio e ameno, a luz completamente diferente de todas as outras partes da Europa, e por todos os cantos havia canteiros de flores de cores vibrantes. As pessoas se movem mais elasticamente, e todos estão mais felizes do que na Alemanha, ou Inglaterra ou não importa onde, pensava Hyde. Sempre pensava o mesmo quando vinha à Riviera. Mais alguns anos, refletia ele, e eu venho para cá com mamãe e vou procurar uma casa. Fora da balbúrdia. O lugar mais lindo do mundo, a Côte d’Azur.

Ele seguia por uma pista de mão única no imenso P 2, sob as altas palmeiras, nas quais chilreavam passarinhos coloridos.

— Como vão os negócios? — perguntou.

— Não estou mais dando conta — respondeu Laforet. — Sobretudo agora, com a filial em Cannes. Olhe, menino, isso aqui no verão, quando o calor está a pique, é uma loucura! Tantos velhotes ricaços e velhas podres de dinheiro, sofrendo de asma,  circulação, coração. É um atrás do outro. Estou dizendo, não estou dando conta. E os parentes só compram os caixões mais caros. Eu poderia comprar bem barato uma casa funerária em Menton. Também é uma região ideal. Tantos aposentados vivendo de rendimentos! Mas sem um sócio, não vai. Eu afinal quero ter também alguma coisa da minha família. Monique ainda está ótima e nossas duas crianças são toda a nossa alegria. Aliás, que faz você com a grana?

— Bolsa — disse Hyde. — Tenho um corretor. Com a política de altos juros do Reagan, quem tem dinheiro pode ganhar uma fortuna.

— É, o Reagan é bom para os ricos — disse Laforet. — Ali na frente, aquele Citröen azul. Para os pobres, nem tanto, não é?

— É, para esses nem tanto Ele por sinal diz que nmguem é pobre quando não ofende a Deus E que os ricos são ricos porque são honestos.

— É um bom sujeito — disse Laforet — É por isso que ele diz também que a luta contra o mal no mundo tem de começar. O mal são os russos. Pare aqui, Wayne!

Hyde parou ao lado de um Citroën azul. A placa do carro tinha, como seu carro de aluguel, os algarismos finais 06. Número da Côte. O Citroën estava estacionado diante de uma cerca alta, coberta de buganvifias cheias de botões e de flores de cor violeta e acobreada.

— O paraíso — disse Laforet destrancando o porta-bagagens de seu carro. — Eu não conseguiria morar mais em outro lugar, Wayne. — Ele retirou de lá uma estufada bolsa de lona e a estendeu ao amigo, que logo a guardou no porta-malas do BMW.

— Uma parabelum com silenciador, uma Springfield com mira telescópica, também com silenciador, e grande quantidade de munição. Como você disse ao telefone.

— Eu lhe agradeço, Raymond.

— Mas que é isso. Você está com pressa, não?

— Sim.

— Pena. Gostaria tanto de encher a cara com você, batendo papo. Sobre os velhos tempos. Talvez quando tiver terminado seu serviço.

— Talvez.

— Seria bom — disse Laforet. — Realmente bom. Muito besta, mas você sabe que eu o amo, Wayne, não sabe?

— Que merda, cara. Pare com isso!

— Não, de verdade. Eu o amo. Bem puro e profundo. Pois se pode realmente amar um homem — só assim — ou não?

— Você me ama porque cheguei a tempo de derrubar aquele negro antes que ele lhe afundasse o crânio — disse Hyde.

— Não, não é por isso. Sim, por isso também. Mas não é a razão principal. Nós dois, você sabe...

— Já estou entendendo, meu velho.

E se abraçaram.

— Precisa tomar cuidado — disse Laforet com voz sufocada. — A Springfield puxa um pouco para a esquerda.

Na auto-estrada havia grande movimento.

Deixando Nice para trás, Hyde viu em Cagnes-sur-Mer os horríveis espigões totalmente malucos de Marina Baie des Anges. A estrada subia. Ele se recordava que daqui se tinha uma linda vista para leste e virou-se rapidamente para trás. Lá embaixo estavam o mar e o semicírculo da baía de Nice com a Promenade des Anglais e depois as montanhas de Mônaco e, mais além, perdidos na névoa e a distância, as montanhas italianas. Sim, pensou ele, para cá vou trazer mamãe. Talvez ache alguma coisa em Vallauris. Ou, melhor ainda, em Saint-Paul-de-Vence. Lá estão todos os quadros dos meus pintores prediletos. Na saída para Antibes, Hyde lançou algumas moedas de um franco dentro de uma cesta de lata num posto de pedágio e a luz do sinal pulou do vermelho para o verde. Seguiu viagem. As taxas já tornaram a subir, pensou ele. Parece que a pobre e bela França está realmente no buraco. Tanto melhor. Vamos poder viver aqui muito bem com nossos dólares.

Antes da saída para Cannes havia uma curva traiçoeira. Hyde se lembrava dela. Estava mal sinalizada, era interminável e estreita. Quem nela entrasse a cento e vinte por hora, tinha as melhores chances de jamais sair. Hyde acionou os freios. Passou a curva sem problemas, deixando à direita a entrada para Cannes e prosseguindo em frente, em direção ao sol que se punha. Pensava em sua mãe e sorria. Isto aqui vai lhe agradar, disse para si mesmo. Oh, sim, com certeza.

Depois de abandonar a auto-estrada, a subida da montanha atravessava uma floresta. Mougins se acha sobre uma Colina. Hyde seguiu vagarosamente ao longo dos restos de um muro de arrimo e um portão secular e viu o busto de um homem na praça principal. Sabia até mesmo, desde sua primeira visita, quem fora o homem: o comandante Lamy, que havia tombado numa expedição no Saara, por volta de 1900. Lamy era originário de Mougins. O hotel Le Mas Candille achava-se cerca de uns trezentos metros de Mougins. Uma rua particular atravessava um grande parque. Hyde viu novamente flores de todas as cores. O acesso particular situava-se sob as copas de antiqüíssimas oliveiras. Fora muito sensato que M. Maree houvesse telefonado antes, disse o porteiro. Estavam inteiramente lotados. Mas para monsieur haviam reservado o mais belo dos quartos. O de número 11.

Um empregado do hotel carregou os sacos de roupas, enquanto Hyde conservava a bolsa de lona, e o porteiro fez questão acompanhá-lo. Número 11 era um quarto de canto com duas portas de vidro. Uma abria para a mata. Sobre a larga cama, no quarto decorado em estilo provençal, em lugar do travesseiro havia um comprido rolo. Foi como se de uma só vez lhe voltasse à cabeça tudo o que vivera na França. O porteiro abriu as bandeiras da segunda porta, diante da qual havia uma pequena sacada.

— Uma vista maravilhosa, M. Maree — disse ele. — O vale e toda a região entre Grasse e o mar.

— Maravilhoso — disse Hyde subjugado. Ele deu dinheiro ao carregador.

— Já esteve alguma vez em Grasse, monsieur?

— Sim.

— Insuportável o mau cheiro das fábricas de perfumes, não?

— É insuportável, sim.

— Mas, quando o vento sopra do lado bom, chega aqui um odor finíssimo, M. Maree. Bem, eu amo esse delicado odor. O banheiro está aqui, monsieur. O restaurante é excelente. Alguns hóspedes pediram bouillabaisse para o jantar. Gostaria também de uma? A melhor bouillabaisse que jamais tomou. Com um vinhozinho, temos um vinhozinho, M. Maree...

— Formidável. Bouillabaisse para mim também. Mas sem vinho.

— Às nove? Está bem? Antes um aperitivo no bar?

— Nove horas está ótimo. Não, aperitivo não.

— Está bem. Está vendo as mimosas ali atrás do velho muro? Logo vai estar tudo cheio de mimosas florescendo, M. Maree. Eu acho que o vento já mudou de rumo. Está sentindo a fragrância de Grasse?

— Não.

— Ora, eu tenho um nariz finíssimo. Logo estará sentindo o cheiro também... Muito obrigado, monsieur. Isso nem era necessário. Deus, como eu amo esse perfume no ar.

Quando ficou sozinho, Hyde despiu-se, tomou uma ducha e deitou-se sobre a cama, com a cabeça pousada no rolo. Ele nem sequer se havia enxugado e deixou as gotas evaporarem sozinhas. As mãos cruzadas por debaixo da cabeça, olhando o forro do quarto, ele pensou que toda pessoa devia ter algo para amar. O porteiro amava o perfume que provinha de Grasse. Morley o seu chá. Ele, sua mãe. Laforet, a Hyde. Existiam tantas espécies de amor.

Nos outros quartos estavam alojados alemães e ingleses, jovens ou então muito velhos, mas poucos franceses. Após o jantar, a maioria abandonou o salão de refeições. Ele também se foi. No escuro, sentou-se sobre a cama junto à janela aberta e olhou para o vale e para as muitas luzes que ali faiscavam. Eram inúmeros pontos de luz. Além dos colares ao longo das ruas, havia também luzes nas fábricas, onde também se trabalhava à noite, havia as luzes de Grasse e pequenas manchas com pontinhos brilhantes esparsos; às vezes um só ponto tremeluzia, certamente uma casa isolada. Na hora e meia que Hyde permaneceu sentado na cama até meia-noite, por três vezes uma longa série de luzes deslizou através do vale. Eram trens de longa distância, mas o ruído de suas rodas não chegava ao hotel. A tranqüilidade chegava a ser irreal e agora Hyde também sentia o perfume que o vento de Grasse trazia. O céu estava cheio de estrelas nessa noite clara, de lua crescente. Ele ficou sentado ali, imóvel, respirando fundo. Via as estrelas, a lua e as luzes, e pensava numa porção de coisas.

Pouco depois da meia-noite apagaram-se as lanternas externas do hotel e ele ouviu quando o porteiro fechou as portas de entrada. Hyde levantou-se, apanhou sua bolsa de lona e saiu para a sacada, descendo em seguida pela parede. Os slippers que calçava eram macios e elásticos, e entre as grandes pedras da parede do hotel havia juntas profundas. No último trecho, saltou para o chão e caminhou até o estacionamento, no qual havia mais de vinte automóveis. Sentou-se em seu BMW da Hertz, soltou o freio de mão, e deixou o carro rolar pelo piso levemente inclinado. Somente depois de se haver afastado bastante é que ligou o motor e os faróis e desceu por uma estrada cheia de curvas para o VaI de Moulins, dirigindo-se então para o norte pela Avenue de Tournamy, para tomar a Route Nationale 7 que ia para Mouans-Sartoux e Grasse. Antes de Mouans-Sartoux, junto a um grandioso plátano, dobrou à esquerda e de novo tomou a direção sul. Uma densa floresta chegava de ambos os lados até as bordas da estrada. Logo adiante, distinguiu à esquerda várias casas em construção, perdidas por entre as árvores. Máquinas e materiais de construção espalhavam-se por todos os cantos, além de muitos automóveis estacionados em pequenas entradas na terra. Dirigiu seu BMW para o outro lado da via, parou em um desses pontos e desceu. Nas casas já habitadas, não havia qualquer luz acesa. Estava tudo quieto. Uma só vez latiu um cachorro.

Hyde abriu o porta-malas e pegou a bolsa de lona. No hotel retirara da mala uma forte lanterna, que trouxera consigo. Vestia agora uma camisa com bolsos aplicados e fechos nos ombros, bem como blue jeans. Depois de poucos minutos atingia a entrada da aldeia. Estava escrito numa placa: La Roquette sur Siagne. Pelo lado direito da rua por onde ele vinha havia uma agência do correio e uma igreja. Atento aos menores ruídos, atravessou uma grande praça sobre a qual cresciam plátanos. À esquerda, distinguiu uma fonte e um edifício que parecia uma escola, a cujas paredes estavam colados cartazes anunciando as novas aquisições de uma biblioteca assim como conferências destinadas ao troisième âge, à terceira idade, ou seja, a pessoas mais velhas. Do lado oposto, em nível mais baixo, viu uma cancha para o jogo de boule, e, na frente principal da mesma praça, havia uma loja de comestíveis e o Bar de la Place. Para a esquerda, saía a Rue de la Baisse e para a direita, a Avenue du Roi Albert. Na parede do pequeno bar estava afixado um cartaz rasgado. Ele leu: Du-Dubon-Dubonnet, o anúncio do aperitivo. Hyde tomou a estreita Avenue du Roi Albert. Aqui só havia umas poucas casas, bem afastadas entre si. Chan Ragai morava numa casa de nome Biblos, conforme Morley tinha dito. Ele chegou a um alto muro e duas pilastras de portão, em ruínas. Numa delas ainda dava para se ver as letras em ferro forjado: Vila Biblos. O chão era arenoso. O portão de ferro parecia que ia cair a qualquer momento. Por detrás dele se via um jardim totalmente abandonado. Cresciam misturados palmeiras, pinheiros, arbustos, trepadeiras e flores. Ao fundo, se encontrava a casa de paredes cor-de-rosa que Hyde conhecia das fotos de Morley. Ele desconfiou do portão. Trepou então pelo muro com sua pesada bolsa e, em seguida, saltou maciamente sobre a grama. Ajoelhou-se, abriu sua bolsa, tirou um coldre de ombro, montou a Springfield e aparafusou-lhe, assim como à parabelum, o silenciador. Carregou as duas armas e guardou mais alguns pentes nos bolsos de sua camisa. Colocou a pistola no coldre.

As janelas pintadas de verde estavam parcialmente fechadas. Curvado para diante, Hyde seguiu pela grama alta, rodeando a casa iluminada pelo luar. Encontrou aberta uma janelinha de porão pela qual se introduziu silenciosamente e acendeu sua lanterna. No baixo porão ele viu uma grande armação de metal, repleta de garrafas de vinho, uma boa quantidade de lenha para a lareira e montes de livros muito manuseados. Nada se mexia. Hyde trazia agora a Springfield deitada sobre o ombro e a pistola na mão direita. Esgueirou-se escada acima para o andar térreo e abriu cautelosamente e sem ruído a porta que dava para uma grande sala, debaixo da escada que conduzia ao andar de cima. O piso era de lajotões vermelhos de argila. Móveis rústicos provençais se misturavam com fundas poltronas modernas. Num recanto destinado a refeições, Hyde distinguiu uma mesa comprida e muitas cadeiras. Pendurado à parede, um ícone. Toda a parede da lareira estava recoberta de seixos da praia e pedaços de vidro colorido que tinham sido aplicados no gesso branco ainda úmido. Nas outras paredes se viam quadros surrealistas. Entre a sala e a área de refeições havia um degrau. Não havia estantes, e por isso em vários lugares se erguiam montanhas de livros franceses, ingleses e alemães. Sobre as costas de um grande elefante de faiança branca, de meio metro de altura, estava pousado um tabuleiro de xadrez com peças de marfim. Aparentemente, uma partida havia sido interrompida. Uma belíssima secretária barroca, com muitas gavetas e maravilhosos entalhes, junto à janela, servia de escrivaninha. Estava recheada de papéis. Um livro se achava aberto e Hyde, que com a lanterna examinava toda a sala, viu que um trecho tinha sido sublinhado. Ele aproximou-se e leu: “Seus corações estão doentes e Allah os abandona cada vez mais à enfermidade; amarga punição irão sofrer por sua negação. Quando se diz a eles: ‘Não provoquem infortúnio sobre a Terra!’, eles respondem: ‘Estimulamos a paz.’ Quando se diz a eles: ‘Tenham fé, como os outros a têm!’, eles replicam: ‘Devemos crer como os tolos?’ Mas se eles próprios são tolos — e não o sabem.”

A caneta-tinteiro com a qual alguém havia sublinhado aquele ponto ainda jazia ali, desatarrachada. Um cachimbo meio fumado se encontrava no cinzeiro. Ao lado, havia um vaso com flores frescas do jardim. Hyde fechou o livro e leu sobre a capa: O Corão — O Livro Sagrado do Islã. A um canto, ele viu um aparelho de televisão japonês e, sobre uma mesinha lateral, um telefone.

Hyde andou até a cozinha. A máquina estava cheia de louça lavada. Subiu em seguida para o andar de cima. Movia-se rapidamente, com elasticidade e em silêncio. De repente, pareceu-lhe ouvir um ruído atrás de uma porta. Esperou um momento, deu então um empurrão na porta e saltou de lado. Nada se movia. Hyde examinou o quarto. Havia uma cama coberta, armários embutidos nas paredes. Hyde os abriu. Roupas e ternos de excelente qualidade se achavam arrumados à sua frente. Foi então para o outro quarto, igualmente um dormitório, tão rigorosamente arrumado quanto o primeiro. Depois de uma meia hora, ele tinha investigado minuciosamente a casa inteira. Não encontrara ninguém, vivo ou morto.

Abandonou a casa, subiu uma colina que havia atrás — o terreno era bem grande — e trepou numa antiqüíssima e poderosa árvore, de galhos retorcidos. Em uma forquilha, ficou sentado. Às cinco da manhã deixou seu posto de observação e retornou para o carro que se achava estacionado perto das residências em construção. Ninguém havia chegado ou se fez ver. Ele desmontou as armas, colocou-as na bolsa que foi guardada no porta- malas. De volta ao hotel, parqueou o BMW, deu a volta no prédio e subiu até sua sacada. Vestido como estava, deitou-se na larga cama e dormiu por três horas. Às oito e meia despertou, tomou um chuveiro e se barbeou. Vestido com outra roupa, desceu à sala de refeições, a fim de tomar seu café da manhã.

Afora ele, havia apenas um casal alemão. A moça tinha cabelos louros e olhos azuis, o rapaz usava uma barba. Ambos só podiam comer com uma das mãos já que as outras estavam entrelaçadas. Olhavam-se quase que sem parar e sorriam como que de um segredo, do qual só eles sabiam. Se for realmente um segredo, então deve ser muito bonito, pensou Hyde, e por alguns segundos deixou-se dominar pela melancolia.

Terminado o café, ele dirigiu-se para o saguão.

O amável porteiro, que ele já conhecia, estava postado atrás do balcão.

— Bom dia, M. Maree! O senhor dormiu bem?

— Como uma marmota.

— É o ar daqui — disse o porteiro. — O ar é maravilhoso.

— O que o senhor planeja para hoje, M. Maree?

— Passear um pouco pela região — disse Hyde.

— Mas não vai às fábricas de perfumaria de Grasse — comentou o porteiro piscando um olho.

— Não, decerto que não.

— Hoje o vento está soprando errado. Não se sente o perfume aqui. Com certeza vai fazer muito calor, M. Maree. Estará aqui para o almoço?

— Não sei ainda — disse Hyde. — Provavelmente não.

— Só perguntei por cortesia — afirmou o porteiro. — É evidente que fica a seu critério, M. Maree.

Hyde seguiu de carro para Cannes.

Estacionou o carro no velho porto atrás do horrível edifício moderno que se encontra onde antes havia o lindo cassino de inverno e desceu um pedaço da Croisette. As folhas das velhas palmeiras no canteiro do meio pendiam imóveis. A calmaria era total. O mar parecia chumbo derretido. Três contratorpedeiros da Sexta Frota americana estavam ancorados lá fora. Pequenos barquinhos iam e vinham apressados, cheios de marinheiros, entre os navios e um ponto de atracação no velho porto. Hyde conhecia Cannes e sabia que as prostitutas estavam em plena ação. Ele viu muitos marinheiros em seus brancos uniformes de passeio. Todos subiam a Croisette em direção ao novo Port Canto, local onde morava a maioria das moças. As prostitutas sempre ganhavam bastante dinheiro quando as naves da Sexta Frota atracavam em Cannes, mas sobretudo ganhavam por volta do dia 4 de julho, data da independência norte-americana, porque então sempre apareciam gigantescos porta-aviões e toda uma frota de naves acompanhantes, e havia recepções do Prefeito e uma noite de gala no Palm Beach. Nessa ocasião, as prostitutas simplesmente não davam mais conta. Hyde conhecia a história de uma moça que num 4 de julho precisou ser internada no grande Hôpital des Broussailles, inteiramente inchada e com um colapso circulatório, depois de ter atendido a quarenta e sete espadaúdos marinheiros norte-americanos, sem interrupçao. As prostitutas ganhavam bastante dinheiro durante a estação e gostavam de fazer a ronda pela Croisette entre o porto antigo e o Palm Beach, para cá e para lá, sempre na calçada dos hotéis e lojas. Já a calçada ao longo do mar era a zona dos rapazes. Hyde não via nenhum. Os marinheiros queriam mulheres, a estação dos rapazes ainda não tinha começado.

Hyde atravessou a Croisette na altura da grande loja de revistas Maison de la Presse, seguiu um curto trecho da pequena Rue des Serbes e entrou à esquerda na Rue Notre Dame. Aqui era o Correio central, agora climatizado. Oito anos antes, quando Hyde tinha sido enviado para cá a fim de liquidar um político armênio, ainda não era climatizado, embora mais limpo. Desta vez estava imundo. Hyde achou que nesse entretempo Cannes havia perdido muito do seu encanto. O lugar dos tipos que ele via perambular pelas ruas era, na verdade, Marselha. Hyde sabia que Cannes se havia tornado uma cidade de gângsteres. A criminalidade, inclusive a mais pesada, tinha crescido assustadoramente e a polícia pouco atuava. Ela deve saber por que motivo, pensou Hyde enquanto recebia de uma mal-humorada funcionária de óculos um sujo pedaço de cartão no qual se achava inscrito o número treze. Dirigiu-se à cabine com esse número, deixou uma fresta da porta entreaberta a fim de que entrasse o ar fresco, e discou o número de Morley em Londres. Em seguida, empregou o decodificador.

— Bom dia, Mr. Morley! Aqui fala Hyde — disse ele. — Estive na casa de Chan Ragai e fiquei de observação a noite inteira. Não havia ninguém e tampouco alguém chegou. Mas tudo indica que Chan Ragai estava ali até bem pouco. Que devo fazer? Voltarei a chamar dentro de uma hora.

Depois de pagar a ligação à mulher mal-humorada, Hyde foi pela Rue d’Antibes para um cabeleireiro onde mandou que lhe cortassem os cabelos e as unhas. Logo em seguida visitou algumas lojas de antigüidades. Desejava comprar um Buda para sua mãe, mas não encontrou nada adequado. Finalmente passeou pela Rue d’Antibes, cujas calçadas haviam sido alargadas, retornando ao Correio. Pelo caminho, ele foi testemunha de como uma idosa senhora, que ia ao longo do meio-fio, teve sua bolsa arrancada por dois adolescentes, montados sobre uma pesada motocicleta. A velha mulher gritou com estridência e foi jogada ao chão. Arranhou os joelhos e as faces, o sangue manchava o asfalto. Os dois jovens fugiram em alta velocidade, e dois senhores a ajudaram a se pôr novamente de pé enquanto os demais passantes seguiam indiferentes. Os homens a conduziram para dentro de uma loja de roupas íntimas femininas a fim de que seus ferimentos pudessem ser cuidados, e Hyde ouviu um deles dizer, zangado: — A senhora é culpada, madame. A senhora sabe muito bem que não pode andar com sua bolsa do lado da pista. Sempre para o lado dos prédios! Todos bem sabem disso, mas ninguém o faz. E é por isso que essas coisas acontecem todo dia nesta maldita Rue d’Antibes.

— É o que sobrou dessa cidade — disse a mulher, lamentando-se.

— E que juventude! Ainda por cima, ganha naturalmente auxílio-desemprego.

— Quando se começa a dar dinheiro a alguém só porque é pobre, logo o número de pobres aumenta — disse o outro homem.

Hyde alcançou o Correio central e discou novamente o número de Morley. A voz deste soou na fita: — Bom dia, Mr. Hyde! Tudo indica que se aconselhou Chan Ragai a deixar sua casa para ir ocultar-se, até que o pessoal da televisão e os gendarmes tenham chegado. Conrad Colledo e sua equipe de filmagens tomaram agora de manhã o avião de Frankfurt para Zurique. Ali, tomaram um aparelho da Swissair. Agora são 11h25m, hora daí. O vôo da Swissair chega a Nice às 11h40m. O Majestic confirma haver reservado os quartos para Conrad Colledo e sua turma. É óbvio que o senhor sabe melhor o que tem a fazer, mas eu lhe recomendo ficar de olho no Majestic e esperar pela chegada da equipe. Eles trazem todas as suas aparelhagens assim se tornando facilmente reconhecíveis. Colledo o senhor já viu na casa de Ross. Infelizmente, ele agora se tornou extremamente cauteloso. Tem de ficar nos seus calcanhares quando ele for buscar Chan Ragai de seu esconderijo. É uma pena que o senhor ainda não tenha podido liquidá-lo. O senhor precisa consegui-lo de qualquer maneira antes que diga uma só palavra diante das câmeras. Boa sorte! Fim.

Hyde voltou para o velho porto. Dois marinheiros americanos vieram ao seu encontro.

— Ei, francês — disse um. — Speak English?

— A little — disse Hyde.

— We wanna fuck. Understand? — O segundo marinheiro fez um gesto obsceno com o braço e a mão.

— Fuck. Fuck. Understand — respondeu Hyde.

— Where are lhe giris?

— You go down this street. Left side. Rue de Canada. Many girls.

— Ruu dêi Canada?

— Yes. Very good fucking — disse Hyde. — Beautiful giris.

— Thanks, buddy — disse o primeiro marinheiro, que trazia uma garrafa de scotch na mão. E para o seu companheiro: — Come on, Joe, hurry up! Ruu dêi Canada! — E seguiram os dois pela Croisette sobre a calçada junto ao mar.

Hyde prosseguiu até seu carro, dentro do qual fazia um calor escaldante. Foi até o Majestic, dobrou à esquerda e deixou o carro rolar pelo acesso do hotel. Dois manobristas e um carregador de camisa e calças azuis permaneciam à sombra. Hyde circundou o grande e redondo canteiro de flores diante da entrada envidraçada, parou e saltou. Um imenso manobrista com o rosto rosado veio logo em sua direção e riu amigável.

— Estacionar, por favor! — disse Hyde.

— O senhor mora no hotel, monsieur?

Hyde apertou-lhe duas notas de dez francos na mão.

— Não.

— Está em ordem, monsigur — disse o manobrista. Ele sentou- se atrás do volante e dirigiu o carro para a garagem subterrânea. Hyde seguiu pela entrada até uma curta escada de mármore que dava sobre um largo terraço. Debaixo de um toldo estendido havia muitas mesas redondas e cadeiras. Diante do terraço havia uma piscina de mármore branco, o mesmo que forrava o piso de todo o ambiente. Ao redor da piscina havia quantidades de flores e uma baixa cerca viva a escondia da vista da Croisette mais abaixo. Duas moças e um senhor idoso nadavam. Outras moças permaneciam deitadas ao sol. Debaixo do amplo toldo, americanos estavam sentados, de bermudas. Fumavam charutos e tinham sobre a mesa, diante de si, valises e muitos papéis. Hyde sentou-se junto à escada e pediu Gini, um simples refrigerante sem álcool. Diante dele, uma linda garota estava deitada sobre a grama. Ela havia tirado a parte superior do biquíni, deitara de bruços e lia um livro vermelho. A moça estava praticamente nua. Ela agora olhava para Hyde e sorria enquanto se apoiava sobre os cotovelos, erguendo-se um pouco para que Hyde lhe visse os seios.

— Alô — disse a bela mocinha.

— Alô.

— O fim do mundo e o reino de Deus chegaram mais perto — disse a garota.

— Passe bem — disse Hyde.

— Como é?

— Passe bem, até segunda.

— Escute aqui, monsieur, não pode falar assim comigo!

— Vá dando o fora! — disse Hyde. — Vamos, vamos, vá logo dando o fora!

A linda garota levantou-se aborrecida, levou um tempão para vestir novamente a parte superior do biquíni, pegou o livro vermelho e saiu rebolando para o outro lado da branca piscina.

O garçom veio com um copo, cubos de gelo, uma pequena garrafa de Gini, um prato com amêndoas salgadas e outro com azeitonas.

— Voilà, m’sieur.

— Merci — disse Hyde, e bebeu com muita sede. Estava tão gelado que seus dentes chegaram a doer.

Só às 13h15m é que um Opel Diplomat azul deu a volta ao redor do canteiro de flores e parou diante da entrada do hotel. O homem ao volante saltou e falou com um manobrista. O homem a seu lado tratava com dois carregadores. Eles tiraram as malas do Opel, atrás do qual já chegava uma Kombi branca. Vários homens saltaram do segundo veículo, trajando roupas ligeiras. E mais malas se foram alinhando, desta vez saídas da Kombi. Por detrás dos pára-brisas de ambos os carros, cartolinas traziam inscrições em letras pretas. Hyde tinha os olhos bons. Sob o toldo, sentado no terraço, ele leu: TV FRANKFURT / TELEVISION ALLEMAGNE FEDERALE. Hyde tomava lentamente seu terceiro Gini. Havia reconhecido Conrad Colledo, que trajava calças brancas combinadas com slippers da mesma cor, e uma folgada camisa azul-escura. Trazia uma pequena bolsa de couro na mão. Estava tudo muito tranqüilo diante da entrada do hotel assim como no terraço. A maioria das pessoas havia saído. Hyde acompanhava as conversas do pessoal da televisão. Queriam subir a seus quartos, lavar-se um pouco e comer um lanche rápido. Todos estavam com pressa. Um deles perguntou ao manobrista rosado de quanto tempo se precisava para ir até La Roquette sur Siagne. Hyde acenou para o garçom, fazendo-lhe um sinal de que queria pagar a despesa. Havia apanhado um Nice-Matin na banca e mantinha o jornal local diante do rosto. Colledo não poderia vê-lo de forma nenhuma. Finalmente, os dois manobristas afastaram os carros, estacionando-os. próximo à amurada da escada de mármore e não na garagem subterrânea.

Os homens desapareceram então dentro do hotel. Hyde pagou a conta mas esperou que eles voltassem para fora e seguissem até o salão de refeições, que se encontrava defronte ao terraço, ao nível da rua, numa ala lateral do hotel. Algumas mesas se encontravam ao ar livre, debaixo de uma marquise que as protegia do fortíssimo sol. Dois homens ali ficaram para comer. Incluído Colledo, eram seis ao todo.

Hyde levantou-se e deixou o terraço.

— O meu carro, por favor — disse ele ao corado manobrista —, é um BMW preto.

— Imediatamente, monsieur.

O empregado desceu à garagem subterrânea e voltou com o BMW em marcha à ré, manobrando em velocidade com grande destreza. Hyde agradeceu e deu mais dinheiro ao homem.

— Mas o senhor já me deu...

— Beba um copo à minha saúde!

— Merci milie fois, monsieur!

Uns vinte minutos depois, os primeiros membros da equipe de televisão saíram do restaurante e seguiram para a Kombi. Hyde havia contornado o canteiro redondo e parado o carro do outro lado. Após meia hora seguiu-se o restante do grupo. Colledo embarcou no Opel Diplomat e um homem sentou-se a seu lado. Os demais entraram na Kombi. Colledo arrancou devagar e a Kombi o seguiu. Desceram pelo acesso ao hotel. Hyde ligou o motor de seu BMW e acompanhou a Kombi.

Os três carros entraram à direita pela Rue des Belges, tomaram à esquerda a Rue d’Antibes e logo viraram novamente à direita na Rue Foche, pela qual alcançariam a via expressa 12. Esta larga voie rapide, que subia em forte rampa, conduziu-os ao grande e mal planejado cruzamento junto à ponte da estrada de ferro, no começo do imponente Boulevard Carnot. Aqui, os carros se comprimiam e havia numerosos sinais luminosos além de excitados guardas de trânsito com pequenos apitos. Os três carros avançaram pelo Boulevard Carnot com suas sombras de frondosas árvores até um balão, do qual saía o acesso para a auto-estrada. No acostamento do estreito acesso estava parado um carro aberto para transporte de gendarmes. Sobre seus bancos longitudinais estavam sentados uns trinta policiais uniformizados, fortemente armados. Hyde parou, pois os dois carros à sua frente haviam parado junto aos gendarmes. Um oficial se aproximou do Opel Diplomat, bateu continência e falou com Colledo. Hyde mordeu os lábios. Diretamente à sua frente havia um sinal luminoso que ainda estava verde. Atrás dele alguns carros buzinavam como loucos. Berrava-se confusamente em todas as direções.

— Crevez, salopard!

— Mon Dieu, quel con!

— Allez, allez, assassin!

O suor descia da testa para dentro dos olhos. Precisava sair dali e bem depressa. Deu uma funda pisada no acelerador. O BMW partiu como um tiro e ele passou voando pela Kombi, pelo Opel e pelo carro da gendarmeria, subindo pelo acesso em direção à auto-estrada. Hyde não tivera outra alternativa. Boa merda! E se eles agora forem buscar Chan Ragai em seu esconderijo antes que eu consiga liquidá-lo, pensou ele, avançando mais devagar. Isso vai ficar uma beleza com todos esses gendarmes. Preciso esperar até que eles me ultrapassem, pois não tenho idéia de onde possa estar metido esse Chan Ragai. Pelo espelho retrovisor, ele viu quando apareceram o carro-transporte dos gendarmes, o Opel Diplomat e, atrás, a Kombi branca. Hyde deixou os três passarem à frente. Eles permaneceram sobre a via de acesso, que depois de um trevo voltava a ser uma rua normal. Já passavam pelo restaurante Moulin de Mougins. Bom rango, pensou Hyde como um idiota. Logo depois, voltou a ficar nervoso. Surgia agora à direita a igreja de Notre Dame de Vie. Se os sujeitos querem ir a La Roquette sur Siagne, então devem entrar depois da grande curva na Route Nationale 85 e, por sinal, à direita. Na Kombi acendeu-se o pisca-pisca direito. Afinal! Hyde ligou o pisca-pisca direito de seu BMW. Enquanto acompanhava o pequeno comboio pela estrada nacional, que seguia em direção a Grasse, ele raciocinava febrilmente. Não há dúvidas de que os camaradas estão a caminho de La Roquette sur Siagne. Será que eles ainda iriam apanhar Chan Ragai em seu esconderijo? Morley sabia que as tomadas deveriam ser feitas na Vila Biblos. Até agora ele tinha sido informado corretamente de tudo o que se referia à TV. Era preciso ter confiança. Também desta feita.

Saída para Le Vai de Mougins. O comboio ficou na Route Nationale. Hyde também. A próxima saída era para La Roquette sur Siagne. O comboio dobrou então para a esquerda, junto ao grande e velho plátano. Hyde igualmente. Ele pensou: preciso arriscar. Simplesmente tenho de arriscar. Tenho de chegar lá antes desses cachorros! Sim, antes deles! Acelerou violentamente e saiu em disparada. Mal ultrapassara os três carros, veio-lhe uma Peugeot ao encontro. Uns poucos centímetros e ele teria batido. Hyde viu o rosto desesperado de um homem passar voando a seu lado. Ele guiava na maior velocidade possível, sem o menor cuidado. Em todas as curvas o carro derrapava e os pneus cantavam. Ele não tirava o pé do acelerador.

Parou o carro novamente numa entrada, junto às casas em construção. Na maior pressa, retirou a bolsa de lona do porta mala e saltou para a rua. Tudo ainda estava quieto, mas logo eles estariam chegando.

Hyde correu. Começou a suar. O suor lhe corria por todo o corpo. Estava ofegante. Seu coração martelava, as têmporas martelavam. Ele correu, cruzando a praça com sua loja de comestíveis e seu bar. Alguns velhos jogavam a boule à sombra dos plátanos. Ninguém ligou para ele. Correu pela estreita Avenue du Roi Albert. Alcançou o muro e o portão de ferro forjado que pendia torto das dobradiças enferrujadas. Subiu o muro e deixou-se cair na grama alta do jardim abandonado. Já ouvia o ruído dos motores se aproximando. Eles estavam chegando!

Ele ziguezagueou através do jardim, correu ao redor da casa abandonada à luz do sol, deixou-se deslizar pelo olho-de-boi do porão e se escondeu atrás da pilha de madeira destinada à lareira. As achas se erguiam até quase o teto. Ele suava de tal forma que sua camisa e as calças estavam ensopadas e as gotas caíam no chão. Esforçou-se para se acalmar e respirar mais lentamente. Abriu a bolsa, montou a Springfield acoplando-lhe o ienciador, bem como à parabelum. Eles virão e vão checar tudo, pensou. O porão também. Se tiver sorte, eles não me descobrirão. Se não a tiver, levarei ainda comigo uma porção desses cães. Em todo caso vai haver tiroteio quando eu tiver de subir para acabar com Chan Ragai. Ah, pensou Hyde, já consegui escapar de outras piores.

Já ouvia vozes e frases, alemão e francês misturados, ordens somente em francês.

- Dez homens examinam o jardim! Cinco me acompanham para dentro da casa! O resto vigia o terreno! Um momento. Ragai deu todas as chaves. Vou destrancar tudo.

Esse deve ser o oficial, pensou Hyde. Ragai lhe deu todas as aves. Então quer dizer que vão trazê-lo para cá, protegido e vigiado, é claro. Primeiro tudo tem de ser examinado. Quinze homens vão guardar o terreno, refletiu ele enquanto botas já desciam pela escada do porão. Estava deitado no escuro atrás da lenha sobre o chão frio, a Springfield carregada e destravada. Dois homens entraram no recinto. Traziam lanternas de bolso. E estavam ambos irritados.

— E tudo isso com esse calor filho da mãe, cara! — dizia um deles, furioso. — Esse uniforme ainda me mata!

— Que se dane o maldito capitão — disse o outro. — Aqui não há ninguém. É tudo uma macaquice!

Os passos afastaram-se novamente, subindo a escada de pedra. A porta de cima continuou aberta. Hyde sorriu. Muito bem, pensou ele. Muito bem. Que continue assim! Agora ouvia o ruído dos passos acima de sua cabeça. Eles realmente estão examinando a casa inteira, pensou ele. Claro, seu idiota, é claro, pensou. Têm de fazer isso mesmo, a casa inteirinha. Subitamente ouviu a voz de Colledo. — São três horas da tarde. Fomos pontuais. Agora ele tem de vir.

— Tomara — disse uma outra voz. — Homem, deixe as janelas fechadas! Senão só entra calor.

— Nós vamos filmar ao ar livre — disse Colledo. — Em frente da casa. — Hyde continuava deitado imóvel no úmido chão do porão. Cheirava a mofo. Cheirava fortemente a mofo.

Meia hora mais tarde, ele continuava deitado.

Lá em cima, tudo ficara quieto. A maioria dos gendarmes, aparentemente, havia deixado de novo a Vila Biblos. Os homens da TV estavam fumando. Hyde sentia o cheiro. Ele também gostaria de um cigarrinho.

— Mas que porcaria — disse uma voz masculina. — Será que esse velho idiota não podia ser pontual?

— Cale a boca, Franz — disse uma outra voz. — Ele deve estar chegando. Acalme-se. Você sempre tem de ficar nervozinho, Franz.

— Ah, vá tomar banho — disse a primeira voz. Hyde olhou para o relógio digital em seu pulso. Eram 15h33m.

Às 16h03m Chan Ragai ainda não tinha chegado. Hyde ouviu a voz de Colledo. — Que merda, alguma coisa deu errada.

— Receio também, Conny — disse uma voz de. homem.

— Vou telefonar para o Jean-Marie, mon capitaine — disse a voz de Colledo.

— Sim, faça isso — disse a voz do capitão.

Hyde ouviu quando um número era discado ao telefone. Depois de um momento soou a voz de Colledo falando em francês:

— Jean-Marie? Aqui é Colledo. O quê... — Emudeceu, à escuta por algum tempo. — Obrigado, Jean-Marie... Não, não, vá logo embora! Imediatamente!

O receptor foi posto de novo sobre o aparelho. Colledo falava com o capitão.

— Grande merde fumante — disse o capitão horrorizado.

— O que houve, Conny?

— Ele sumiu — disse Colledo.

— Como, sumiu?

— Sumiu quer dizer sumiu, idiota!

— Devagar, Conny, está bem? Sempre na calma. Onde está ele?

— Jean-Marie diz que ele pegou o avião!

— Quando?

— O quê?

— Quando?

— Hoje de manhã. Às dez e meia da manhã. Com a Panam, para Atenas.

— Atenas? Foi isso que Jean-Marie disse?

— Sim.

E Colledo explicou tudo isso também em francês para que o capitaine de la gendarmerie e seu pessoal ficassem sabendo da situação. — Ragai saiu do hotel em Mougins às oito e meia de hoje.

— Que hotel?

— Hotel Le Mas Candille. Ele deveria nos aguardar lá para em seguida, hoje à tarde, se encontrar conosco às três.

Oh! Essa não! pensou Hyde. Oh, não! Deu-lhe uma terrível vontade de rir. Chegou a morder o braço. Oh, meu Deus, pensou ele. Oh, não. Chan Ragai estava no Mas Candille. Logo no meu hotel!

— Como Jean-Marje sabe disso?

— Idiota! Pois se ele esteve vigiando Ragai desde anteontem. Também estava hospedado no Mas Candilie. Mas Ragai de nada sabia. Não queria saber de segurança. Tinha medo de chamar muita atenção.

Não, pensou Hyde, não, não e não!

— E, então?

— Hoje pela manhã, às sete e meia, Chan Ragai desceu para o saguão, pagou sua conta, fez descer suas bagagens, as mandou colocar num carro e foi-se embora. Para o aeroporto de Nice. E Jean-Marie sempre atrás dele. Informou-se de tudo no balcão  da Panam. Ragai já tinha reserva. Para Atenas.

— Por que Jean-Marie não nos deixou um recado no Majestic?

— Simplesmente porque não tem idéia do que se trata! Só tinha de ficar vigiando Ragai até que chegássemos.

— Maldito! E por que não ligou para Frankfurt, para a TV?

— Ô cara, pois eu lhe estou dizendo que ele não sabia o que nós queríamos com Ragai. Você acha que eu contaria tudo a ele, com todos os detalhes?

— Aliás, quem é esse porcaria de Jean-Marie?

— Não o conheço pessoalmente. Sempre o empregamos por aqui quando há alguém que deva ser vigiado.

— Quem foi que o contratou para Chan Ragai?

— Kleinhals, o redator-chefe. Telefonou para ele. Jean-Marie e Kleinhals se conheceram quando Kleinhals foi uma vez atropelado aqui. Jean-Marie conseguiu safá-lo da pancadaria. Fizeram amizade. Foi no verão, três anos atrás.

— Que é que Kleinhals estava fazendo aqui?

— Ora, de férias. Não me faça ficar doido! Ragai deu no pé, essa besta! — exclamou Colledo.

— E que faz esse Jean-Marie quando não está vigiando pessoas por aí?

— Certa vez, um multimilionário morou aqui, em La Roquette sur Siagne. Linda casa. No caminho para o cemitério. Quem me contou isso foi Kleinhals. Jean-Marie foi um de seus guarda-costas. Então, esse milionário morreu. Ótima localização, a da mansão. Jean-Marie já foi pugilista. Peso-pesado.

— Tudo isso foi Kleinhals quem lhe contou?

— Claro que sim, seu bobão. Como poderia eu saber, então? Jean-Marie já estava ficando desesperado. Não sabia o que faze!. Kleinhals lhe dissera que se algo acontecesse ele deveria aguardar no hotel Le Mas Candilie, até que um de nós telefonasse. Está satisfeito agora? Ou ainda tem perguntas?

— Tenho. Mas como assim Jean-Marie ainda está por aqui quando seu milionário já morreu?

— Comprou um casebre por aqui. Adora a região. Não quer viver nunca mais em outro lugar, diz Kleinhals. Agora vamos em frente, vamos, vamos!

— E aonde vamos?

— De volta a Cannes. Preciso ligar para o superintendente.

— Ora, então ligue para ele, homem!

— Daqui, não. Esse telefone não me parece católico. E do hotel também não. De um posto telefônico dos Correios — disse Colledo. — Meu Deus, que droga essa coisa toda! — Em seguida, voltou a falar em francês com o capitão.

Dez minutos mais tarde, Wayne Hyde ouviu o ruído de motores sendo ligados. Os carros partiram. Pelo estreito caminho eles terão de recuar, de marcha à ré, pensou ele. Não, eles devem ter feito manobra no jardim. Eu também preciso telefonar. E igualmente depressa. Por que esse Chan Ragai se teria evadido?

— Agora são 15h, hora da Europa central, de sexta-feira, 23 de março de 1984. Meu nome é Chan Ragai. Nasci a 2 de agosto de 1911, em Teerã. Sou cidadão iraniano, viúvo, e minha religião é a islâmica. Sou vítima de enfermidade incurável e tenho no máximo cinco meses de vida.

O homem que dizia estas palavras, quase à mesma hora em que Colledo, sua equipe e um grupo de gendarmes franceses chegavam à aldeia de La Roquette sur Siagne e à Vila Biblos e em que Wayne Hyde se achava deitado atrás da pilha de madeira no porão, esse homem tinha um rosto estreito de ave de rapina, pele morena, olhos escuros e melancólicos. Seus cabelos eram negros e ele usava um cuidado bigodinho negro. O terno que usava era grande demais para seu corpo emagrecido, o mesmo ocorrendo com sua camisa, cujo colarinho dançava ao redor do pescoço, com um dedo de folga. Tinha grandes dentes amarelados. A voz soava cansada.

Estava com as costas voltadas para a escrivaninha na casa de Daniel Ross, na Alameda Alice, em Frankfurt. Todas as cortinas haviam sido cerradas. Refletores sobre tripés estavam acesos. Duas câmeras Arriflex, em posições fixas, dirigiam-se ao homem de aparência doentia. Uma delas estava operando. Numa confusão de cabos, o operador de som havia instalado seus equipamentos e, de fones nos ouvidos, observava os mostradores do painel. Daniel e Mercedes achavam-se sentados atrás das câmeras. Ao lado deles, estavam postados dois policiais munidos de pistolas automáticas. Dois outros patrulhavam as janelas do apartamento térreo. Na rua, estava parada uma radiopatrulha com uma guarnição de quatro homens. Chovia em Frankfurt. Atrás da casa silenciosa brotavam flores de açafrão em meio ao gramado.

— Foi esta comunicação, feita a mim após minuciosos e exaustivos exames pelos melhores especialistas de Paris, ou seja a comunicação de que, na melhor das hipóteses, eu tenho apenas cinco meses de vida, que me levou, após muitos anos de reclusão, a concordar com uma última aparição pública — diante de alguns milhões de pessoas em todo o mundo. Até ontem, quinta-feira pela manhã, eu vivia em minha casa no pequeno vilarejo de La Roquette sur Siagne, no Sul da França, perto de Cannes. Já há um mês os médicos me informaram que estou condenado a morrer. Quando pesquisadores da emissora de Frankfurt finalmente me detectaram em La Roquette sur Siagne e me disseram o que desejavam, solicitei apenas um dia de reflexão. Só então declarei-me disposto a comparecer diante da câmera e relatar tudo o que sei a respeito de um filme que equipes de filmagem das forças armadas americanas e soviéticas rodaram durante a conferência dos chamados Três Grandes, Churchili, Roosevelt e Stalin, entre 28 de novembro e 1° de dezembro de 1943. Encontro-me em condições de fazer um depoimento sobre esse filme uma vez que naquela época era eu, em Teerã, residente do serviço secreto do Ministro do Exterior nazista von Ribbentrop.

Chan Ragai tossiu. Era uma tosse seca e dura, que parecia provocar dor, pois o velho homem torcia seu rosto enrugado e se encolhia. Mantinha um lenço diante da boca. Demorou algum tempo até que pudesse falar novamente.

— Desculpem-me. Até a aparição dos pesquisadores, eu tinha vivido sempre na presunção de que esse filme teria, durante os últimos dias da guerra, sido destruído, ou se extraviado ou desaparecido. Quando eu soube que ele — copiado em vídeo-cassete — continuava a existir e que vinha sendo travada uma violenta guerra na escuridão tendo em vista liquidar pessoas que, como eu, sabem da existência do filme, a fim de anular o efeito de sua planejada projeção pela televisão para todo o mundo, declarei-me disposto a aceitar também todas as medidas de segurança das polícias francesa e alemã para protegerem a minha vida. Eu sei que logo devo morrer — mas não quero que seja antes do instante que foi estabelecido para mim. Meu estado de saúde vai certamente piorar. Por isso mesmo, já dou o meu depoimento hoje, depois que deixei minha pequena casa no sul da França Estou determinado a doravante nunca mais voltar para lá.

Chan Ragai voltou a ser sacudido por uma tosse seca. Pequenas gotas de suor começaram a brotar em sua testa.

— Corta! — disse Daniel. O câmera desligou sua máquina.

— Descanse um pouco, Sr. Ragai. O senhor não deve se sobrecarregar. Vamos sempre fazer pausas. Todos sabemos quão cansativo é falar, para o senhor.

Mercedes se levantou e verteu um pouco de água de uma garrafa em um copo. Ragai a fitou agradecido enquanto pegava o copo com sua mão descarnada e bebia a água em pequeninos goles. Recostou-se e fechou os olhos. Depois de alguns minutos, havia-se recuperado. A câmera e o gravador recomeçaram a funcionar.

— Alertaram-me para o fato de que existe um delator dentro da emissora que revela cada passo da equipe ocupada agora com esse filme àqueles que, de qualquer maneira, querem impedir o avanço do presente projeto. Ficou-nos, evidentemente, bem claro que exatamente eu — em vista da posição extremamente negativa do governo iraniano ante os Estados Unidos e também à União Soviética — corro um risco enorme, pois os adversários desse empreendimento encontram-se nessas duas potências. Por isso mesmo, apenas um círculo muito restrito de pessoas envolvidas no assunto elaboraram um plano bastante arriscado. O outro foi dado a público, segundo o qual o diretor de Política e Atualidades da emissora e uma equipe de filmagem iriam seguir hoje, sexta-feira, de avião com destino a Nice e dali para a minha casa, a fim de lá, em La Roquette sur Siagne, documentar o meu depoimento. E isto aconteceu. O Sr. Colledo, sua equipe e os gendarmes franceses destinados à minha proteção deverão neste momento estar na minha propriedade e em minha casa — assim como um potencial autor de atentado, pois o delator desconhecido certamente passou adiante essas informações. Somente altos oficiais da gendarmeria do Departamento dos Alpes Marítimos foram postos a par da verdadeira situação. Depois de uma manobra de despistamento, dois oficiais da gendarmeria voaram comigo em avião particular, de Nice até Frankfurt. No aeroporto daqui, esperavam-me policiais alemães. Eu passei a noite nesta casa, da qual, por compreensíveis razões, os senhores só vêem as cortinas às minhas costas. Tão logo eu tenha encerrado o presente depoimento, voarei, sob proteção policial, imediatamente para Teerã, onde em lugar desconhecido uma casa já se encontra a postos para mim. Esta é a minha situação. Passo, portanto, a relatar aquilo que sei a respeito do filme.

Com um lenço, Ragai enxugou o suor de sua testa.

— Meu chefe imediato em Berlim, que me havia recrutado e era responsável pela rede de informações do Oriente Médio, chamava-se Georg Ross. Como é costume em serviços dessa natureza, dispúnhamos de um código freqüentemente alterado para nossa correspondência pelo rádio ou por escrito. Antes do início da Conferência, recebi uma mensagem por rádio de Ross, pela qual ele me dava instruções para acompanhar minuciosamente tudo o que se relacionasse com o encontro dos Três Grandes. E assim, eu fiz.

— Como foi que o senhor procedeu, Sr. Ragai? — indagou Daniel, que, do mesmo modo que Mercedes e o entrevistado, trazia um pequeno microfone amarrado ao pescoço.

— Eu dispunha de excelentes colaboradores. Foi-me possível alojar dois homens na delegação britânica na qualidade de garçons, dois outros na imensa comitiva americana e um, apenas, na soviética. Esses cinco garçons eu introduzi em meio à numerosa mão-de-obra local que, na época, foi requisitada, porque, é evidente, alguém precisaria arrumar os quartos, manter os edifícios limpos, assim como servir. Cozinheiros, as três delegações trouxeram consigo. Molotov já havia chegado no dia vinte e seis de novembro, e as delegações da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos chegaram a Teerã no decorrer do dia 27. Com elas vieram também muitos jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas de atualidades e noticiários semanais. Um dos dois homens que consegui colocar entre os americanos era meu agente mais jovem e bem-sucedido.

— E como se chamava ele? — perguntou Mercedes.

— Até hoje não sei.

— Não compreendo... — começou Daniel.

— Esse homem era alemão. Foi mandado de Berlim por Georg Ross. Naturalmente dispunha ele de documentos e um nome, para apresentá-los às autoridades em Teerã, a fim de poder receber um visto de permanência no país. É claro que esses papéis eram falsos.

— Claro, por quê? Era usual que seus colaboradores vivessem com documentos falsos?

— Usual, não era. Mas ocorria com freqüência. Isso ocorre em qualquer serviço com certa freqüência. É evidente que alguém lá de cima — o chefe da rede — tem de saber quem são as pessoas na realidade, e quais os seus nomes verdadeiros. Eles são rigorosamente radiografados antes de serem admitidos. Esse moço jovem, meu melhor agente, que Ross me havia mandado de Berlim, chamava-se Werner Kalmann — nos documentos. Para todas as menções em rádio ou por emissário, ele era designado CX 21.

— CX 21 — repetiu Daniel.

— Sim, CX 21. Também o emprego de tais abreviaturas não era nada incomum.

— Na medida, como o senhor diz, em que o chefe do serviço sabia perfeitamente quem era o homem que usava tal codinome.

— Correto — assentiu Ragai com um gesto de cabeça.

Daniel fitou Mercedes ee disse baixinho: — Então meu pai mentiu quando nos contou que não sabia quem era CX 21. Sabia-o perfeitamente.

— Ou Ragai está mentindo agora — sussurrou ela, balançando a cabeça. Daniel falou novamente em voz alta:

— O senhor disse “o moço jovem”, Sr. Ragai. Qual era a idade dele?

— Dezoito anos.

— Quantos anos?

— Dezoito! Eu mesmo fiquei assombrado com sua pouca idade. Mas Ross já sabia quando me mandou o rapaz. Esse misterioso CX 21 falava fluentemente persa, inglês e francês. Era superinteligente e, a despeito de sua juventude, havia lido muito, era culto e estava simplesmente informado de tudo. Era muitíssimo bem-educado. Insinuava-se em todos os lugares — como filho de uma excelente família, como rico playboy, como esnobe — e também como garçom. Pois ele sabia servir muitíssimo bem.

Os dois câmeras entreolharam-se. Com isso, o primeiro dava a entender ao outro que seu cassete só dispunha ainda de poucos metros não expostos. Como de hábito, o segundo deixou então sua câmera rodar. Em seguida, o seu colega teria tempo para, com toda a calma, repor um novo cassete.

— CX 21 teve rapidamente sucesso — prosseguiu Chan Ragai. Sua voz ia ficando cada vez mais baixa, os olhos se entrefechavam, cansados. Enquanto ia relatando aquilo que havia ocorrido, os acontecimentos e conversas voltavam a se tornar realidade para ele. — Já na noite de 28 para 29 de novembro, por volta das duas da manhã, ele me procurou em minha casa porque, como dizia, tinha recebido uma informação da mais alta importância. Ele estava bastante tranqüilo e controlado. Ao contrário de mim, que fiquei muito excitado ...

— Trata-se do seguinte — disse o esbelto e simpático jovem de codinome CX 21. — Todo o pessoal da imprensa, rádio e cinema dos Estados Unidos permanece na Embaixada norte-americana. Sabe-se que Roosevelt e sua grande assessoria, por pressão do Ministro do Exterior Molotov, mudaram-se hoje à tarde para um pavilhão dentro da Embaixada soviética.

— Sim — disse Chan Ragai. Ele já se encontrava dormindo quando CX 21 lhe telefonara, e agora estava sentado num sofá de sua sala, em pijamas e robe, cabelos despenteados. — Por motivos de segurança, segundo ouviu o nosso pessoal. Os funcionários da segurança soviética parecem haver descoberto um pretenso complô alemão. Teerã, dizem eles, é o quartel-general de toda a espionagem do Eixo no Oriente Médio, e até há pouco, se achava sob completo controle alemão, havendo na população grande número de simpatizantes da Alemanha. Haveria agora um plano de atentado contra Roosevelt. Até que seria ótimo. Um cigarro?

— Não, obrigado, chefe. — O jovem CX 21, de cabelos castanhos e sensíveis olhos escuros, sacudiu a cabeça.

— Emtão, pelo menos, queira sentar-se! — Ragai acendeu um cigarro e soprou a fumaça para o alto. O aquecimento central de sua casa estava funcionando. Fazia um frio terrível em Teerã. — Alguma verdade existe no rumor a respeito da influência alemã e das simpatias em favor da Alemanha. Mas infelizmente — isso eu posso dizer — os russos exageram demasiado. Certamente os Três Grandes teriam escolhido uma outra cidade para seu encontro, caso aqui estivessem correndo realmente um risco tão grande. Afinal de contas, as autoridades de segurança das três nações investigaram a cidade no que se refere à sua conveniência — semanas antes que as delegações desembarcassem.

— Assim é — disse CX 21 que se sentou, puxando para cima o vinco irrepreensível de suas calças. Era um jovem muito elegante, e não estava mais vestido de garçom, mas com um terno azul. — É óbvio que essa história do complô nada mais é do que um pretexto a fim de levar o Presidente americano e seus colaboradores para território soviético e muito provavelmente para a proximidade direta dos aparelhos de escuta soviéticos. Os russos conhecem o medo de atentados dos americanos; alguns de seus presidentes foram assassinados. Os russos não fizeram senão aproveitar-se brilhantemente da mentalidade um pouco paranóica de seus aliados. A imprensa, o rádio e os cinegrafistas americanos encontram-se agora a dois quilômetros de distância da delegação, morando em sua própria Embaixada. Ali eles são assistidos. O pessoal nacional foi dividido. Graças a Deus, fiquei, como antes, responsável pelo pessoal na Embaixada.

— Por que graças a Deus?

— Espere, chefe, espere! Não precisei fazer nada. A coisa evoluiu por si mesma. Veja: já ontem chamou-me a atenção o fato de que dois câmeras dos americanos não participavam da grande confraternização com os demais correspondentes. Desde o primeiro momento, estavam eles curiosamente isolados — por desejo pessoal, parecia. Eles comem em uma mesinha para dois, mal falam com os colegas, e também os seus dois quartos ficam um tanto afastados na Embaixada. Um deles se chama William Mackenzie e é natural da Califórnia, e o outro, de Nova lorque, tem o nome de Ernest Rosen. Uma dupla bastante engraçada, esses dois.

— Mas como engraçada?

— Mackenzie tem talvez vinte e sete ou vinte e oito anos de idade. Rosen, pelo menos quarenta. Patente dos dois: são cabos. Tenho a impressão de que os dois não se suportam. Rosen é casado, mas não tem filhos. Já Mackenzie tem uma grande família, com três crianças. Rosen não fuma nem bebe. Mackenzie fuma como uma chaminé, e vive de cara cheia. Não se pode dizer de outra maneira, chefe. Quando há pouco o deixei, estava completamente bêbado. Tive até de despi-lo e metê-lo na cama.

— O senhor esteve até agora na Embaixada?

— Pois se estou dizendo! Trabalhei no turno da noite e, além disso, Mackenzie ainda me levou para cima, para o seu quarto.

— Escute aqui, se tivessem pego o senhor...

— Mas não o fizeram, chefe. Um grande número de correspondentes estão hoje à noite inteiramente bêbados na Embaixada. E muito nervosos. Por causa dos pretensos planos de atentado. Claro que os correspondentes ficaram sabendo da históra. E ninguém ficou mais calmo depois que Hopkins desmentiu e explicou que nenhum desses rumores deveria vir a público. Tanto mais depois da mudança hoje, não, ontem, à tarde. Já anteontem se bebia bastante. A maioria dos rapazes estava alcoolizada. Mackenzie também. Desentendeu-se com seu colega Rosen — nem sei por que — e Rosen deixou-o sozinho, seguindo para seu quarto. Mackenzie ficou ainda sentado no refeitório e puxou conversa comigo. Queria saber de mim o que eu achava do complô, se realmente havia muitos agentes alemães na cidade, se sou natural de Teerã, se conheço todo mundo aqui, se por acaso também saberia quem trabalha para os alemães, e aí por diante.

— Bastante incomum, não?

— Sim, chefe. Isso eu também achei. Mas bêbado como ele estava... Uma idéia fixa o mantinha aprisionado. Anteontem, ainda não sabia qual era. Hoje, eu sei.

— E qual é a idéia fixa? — perguntou Ragai. Seu cabelo negro brilhava à luz de um lustre.

— Uma coisa depois da outra, chefe! Calma! Então, naturalmente, atendi logo como uma mãe a Mackenzie, entrando em pormenores e lhe disse que havia nascido aqui. Quando ele se assombrou com meu fabuloso inglês, eu lhe disse que antes da guerra havia trabalhado durante um ano nos Estados Unidos, como garçom e, por sinal, na Califórnia. Em Los Angeles. Ora, ele vive em San Diego, ali bem pertinho, e isso o tornou ainda mais confiante e sentimental. Então, fui eu quem perguntou por que motivo ele e seu parceiro se mantinham a distância dos demais, e ele me respondeu que ele tinha uma top secret mission, sobre a qual não poderia falar e, claro, eu tampouco o forcei. Só cuidei para que ele bebesse bastante. Ele foi ficando choroso, chamava-me de filho e disse que eu deveria chamá-lo de Bill e que precisava beber alguns copos com ele. Bem, havia muitos hóspedes no refeitório, fazia-se muito barulho, ninguém nos dava atenção, e eu passei a chamá-lo de Bill. Ele me disse que estava na merda, sentado bem dentro dela, e que, de tanta preocupação, não via saída alguma...

— Que preocupação? Como, na merda?

— Isso ele não me disse. Anteontem ainda não me disse. Anteontem à noite só falava vagamente e começou novamente com o papo de agentes alemães e que eu deveria conhecer um ou outro. Eu balançava a cabeça, dizendo muito bem, talvez, que naturalmente ouvia isto e aquilo e sei um bocado de coisas a respeito de muita gente e disponho de amigos. Mas aí veio um funcionário da segurança e exigiu que Mackenzie fosse para a cama — anteontem. Por isso ele ontem pediu-me para subir a seu quarto.

— Por quê?

— Para que pudéssemos conversar sem sermos molestados. Eu já disse que ele estava bêbado novamente, só que hoje não fez rodeios e foi direto ao assunto. Disse-me que estava atolado em dívidas. Havia perdido uma fortuna em corridas de cavalos.

— Quanto?

— Mais de sessenta mil dólares.

— Bobagem — disse Ragai. — Um bêbado diz bobagem. O Exército investigou o homem da cabeça aos pés, sobretudo se está aqui para uma top secret mission. Um homem que tenha tais dívidas significa sempre um risco para a segurança! É suscetível de ser chantageado; pode, por dinheiro, delatar sua missão.

— Isso mesmo — disse CX 21.

— O quê, isso mesmo?

— Exatamente isso foi o que ele fez.

— Ele revelou sua missão? Ao senhor?

— Sim, chefe.

— Nesta noite?

— Nesta noite. E fez muito mais ainda. Já volto a esse assunto. Só queria dizer: é óbvio que ele foi investigado! A respeito eu logo indaguei. Ele afirma que ninguém sabe coisa alguma sobre suas dívidas pavorosas — ele agiu muito habilmente, assinou letras, seus credores estão em Los Angeles, o Exército não descobriu nada. Mas meu novo amigo Bill também falsificou uma promissória e além disso dois cheques. Quando isso estourar, e todas as outras promissórias, mil vezes prorrogadas, vencerem, então Bill vai passar pelo menos dez anos na cadeia. Bem, eu disse que isso me dava uma pena enorme, e se eu o pudesse pelo menos ajudar, pois gosto dos americanos, desde que estive nos Estados Unidos. Ele respondeu que sim, eu poderia ajudá-lo, isso é certo, bastava apenas que eu quisesse fazê-lo. Indaguei em que ele pensava e então me contou qual é essa top secret mission.

— Ora, um momentinho, está bem? — disse Ragai. — O senhor não pode estar falando sério.

— Como, por favor?

— Que esse Mackenzie lhe tenha pedido que viesse até o seu quarto.

— Mas é claro que estou falando sério.

— Escute aqui! Os americanos mandam de avião para cá dois câmeras numa missão ultra-secreta e um dentre eles pode contar essa bobagem toda para o senhor, fazer-lhe tantas perguntas, arrastá-lo para seu quarto, lamuriar-se sobre seu ombro — e o senhor não é imediatamente fisgado pela segurança e expulso com um solene pontapé? E é nisso que eu tenho de acreditar, homem?

— O senhor precisa acreditar em mim, chefe!

— Que diabo, tanta negligência não pode existir! Os americanos também não são tão idiotas! Claro que ficam de olho em dois homens tão importantes!

— Ficaram, sim, mas só no começo. Depois veio esse rumor sobre o plano de um atentado contra Roosevelt, e todos entraram em pânico. Chefe, o senhor não pode fazer idéia do que está neste momento acontecendo na Embaixada americana! Estão simplesmente se borrando nas calças. É histeria generalizada, uma correria, todos atordoados. O pessoal da segurança chega a dar dó. Cada minuto um novo boato. É claro que, em circunstâncias normais, Mackenzie jamais poderia falar comigo desse jeito. Mas nessa bagunça que se armou... Sorte... Temos simplesmente sorte, chefe!

Ragai se levantou, apertou o cigarro no fundo do cinzeiro e começou a caminhar no recinto de um lado para outro.

— Então? — disse ele.

— Então, Mackenzje e Rosen estão aqui a fim de rodar um filme, um filme bastante especial. Só depois de muitos rodeios é que Mackenzie soltou a língua. Deverá ser uma espécie de filme documentário: a chegada das delegações, o caminho desde o aeroporto até a cidade, as principais personalidades, as sessões e encontros, as refeições de serviço, tudo de acordo com um plano preciso. A chegada e as primeiras coisas já foram rodadas, diz ele, mas o mais importante ainda está por vir.

— O mais importante?

— É melhor que o senhor se sente de novo, chefe, senão a coisa vai derrubar o senhor. Bem, meu amigo Bill assegura que os americanos e os russos estão decididos a chegar aqui em Teerã durante a conferência a um acordo bilateral secreto. Firmar um acordo do qual os britânicos não podem tomar conhecimento. Esse acordo, ao que parece, deverá ser elaborado pelo conselheiro de Roosevelt, Harry Hopkins, e o Conselheiro de Stalin, general Voroshilov, e Stalin e Roosevelt vão depois assiná-lo. Tudo isso deverá ser filmado por Bill e Rosen: como Hopkins e Voroshilov se encontram, secretamente, como elaboram o texto, como depois ele é assinado. E agora é que vem, chefe, eles além disso terão de filmar todo o acordo em si, página após página, bem vagarosamente, para que se possa ler cada palavra, uma vez em versão inglesa, uma vez em versão russa.

— E por que isso?

— Por que o quê?

— Por que filmar o acordo?

— Isto também perguntei. Resposta: esse acordo tem de permanecer secreto em qualquer circunstância. Por isso, o documento original do acordo deverá, após sua filmagem e na presença dos Signatários, ser queimado. Cada uma das potências receberá uma cópia do filme. Esta deve ser conservada de tal forma, que permaneça secreta para sempre, mesmo depois da abertura dos arquivos de Estado. Tem sua razão, não?

— Mas que maldito acordo será esse, homem?

— Isso naturalmente, Bill não sabe. Não lhe disseram. Mas ele e Rosen, em todo o caso, sabem que deve ser um acordo entre os Estados Unidos e a Rússia, do qual nem a Inglaterra nem ninguém deverá ficar sabendo. Bill, e Rosen também, está convencido de que americanos e russos, como maiores potências do mundo, querem pôr-se de acordo, aqui e no documento secreto, sobre como irão dividir o mundo entre si, uma vez terminada a guerra.

— Isto foi o que esse Bill contou a seu agente? Quarenta e oito horas depois de se conhecerem?

— Dividir o mundo entre si: foi assim que William Mackenzie formulou realmente?

— Mas isso é impensável!

— O senhor está seguro de que foi isso que seu formidável agente CX 21 contou para o senhor? Tem certeza de que ele não estava fazendo um jogo duplo, Sr. Ragai?

Mercedes e Daniel falavam ao mesmo tempo. Mercedes se levantara de um salto.

O velho enfermo diante da câmara acenou com a cabeça, confirmando. E disse então, aborrecido:

— É muito compreensível a sua excitação. Eu já esperava por isso. Isso também me deixou completamente excitado. Eu disse a CX 21: Não me faça gracejos idiotas, homem..

— ... nunca esse tal de Bill, mesmo de porre, lhe contou uma coisa dessas! Nunca na vida! — disse Chan Ragai na noite de 29 de novembro de 1943, em sua casa de Teerã. Ele o disse exaltado e furioso. E em voz bem alta.

— Okay, então não. Queira esquecer o assunto! chefe! — CX 21 se levantou.

— O que aconteceu? — perguntou Ragai.

— Eu vou para casa. Não quero que o senhor continue gritando comigo. Faça sua porcaria sozinho!

Ragai sentiu insinuar-se em seu corpo uma sensação estranha. E se o rapaz estiver dizendo a verdade? Ele é evidentemente um protegido do todo-poderoso Georg Ross. Se CX 21 entra em contato direto com Ross e se queixa... Ragai disse apressadamente: —. Eu não gritei.

— Sim, o senhor gritou!

— Não. Apenas falei mais alto. De assombro. Não seja tão suscetível! O senhor tem de me entender. Mas... mas isso é monstruoso, se o seu americano de fato lhe disse isso. O senhor também não acha isso monstruoso?

— Mas é claro que acho. Do mesmo modo que o senhor, chefe. E é por esse motivo que eu venho no meio da noite à sua casa. Estou perplexo. Estarrecido. Temos aí, à mão, a coisa mais fantástica que até agora existiu nesta guerra. O quê, nesta guerra?! Neste século! — Agora é CX 21 quem está falando alto. Seu rosto ficou todo vermelho. — Estou tão fora de mim como o senhor. Mas foi exatamente isso que Bill me contou. Exatamente isso! O senhor não o conhece. Não conhece a dimensão do seu medo de acabar parando na cadeia por causa desse assunto de dinheiro. O homem está desesperado, inteiramente desesperado, capaz de qualquer coisa, de qualquer crime, qualquer delação... e ainda por cima, completamente embriagado... e depois, pense bem nisso, ele falou comigo, um homem em quem ele depositou toda a sua esperança, a partir do momento em que eu lhe disse que talvez conhecesse alguns importantes agentes alemães em Teerã... conhecesse até bem... Mais uma vez, chefe: eu sou para esse Bill, que de pavor não consegue mais pensar claramente, a última esperança. A ultimíssima esperança.

— Sente-se logo aí! O que quer dizer isso, a ultimíssima esperança?

— Ele espera que agentes alemães lhe ofereçam bastante dinheiro por uma cópia desse filme quando ouvirem de que filme se trata.

— Ele disse isso?

— Disse? Ele suplicou que eu conseguisse um contato com agentes alemães. Nem me lembro de que promessas ele me fez em meio à sua bebedeira, caso eu conseguisse que agentes alemães lhe dessem dinheiro por uma cópia do filme. Ele se encontra fortemente tolhido em sua liberdade de movimentos. Ele precisa de um intermediário. Esse, ele acaba de encontrar. Sou eu. Ficou de joelhos diante de mim, implorando-me para que eu o ajudasse, chefe. De joelhos! — CX 21 respirava agora aceleradamente. Tirou o paletó. Havia começado a suar. Abriu o nó da gravata e o colarinho da camisa branca.

— E o senhor disse a ele que iria ajudá-lo?

— Óbvio! Chefe, a coisa é simplesmente gigantesca, eu estou sentindo isso, eu quase diria: eu o sei. O senhor precisa entrar logo em contato com Berlim e passar isso adiante. Naturalmente também as exigências de Bill.

— A quanto se elevam?

— Bem alto. Mas quando ele nos entregar o filme e se ele contiver aquilo que ele promete, então o montante que ele exige não será senão uma piada.

— Quanto ele exige?

— Cinco milhões de dólares.

— Uma bela soma.

— Quando nós tivermos uma cópia desse filme, poderemos botar pelos ares a unidade dos aliados. Poderemos alterar completamente o curso da guerra, chefe! Meu Deus, o senhor não compreende isso?

— Claro que compreendo. Não sou nenhum idiota. — Também Ragai estava excitado. — E é claro que vou informar Berlim. Ribbentrop precisa decidir.

— Mas o mais rápido possível! Bill quer o dinheiro já. Nas próximas quarenta e oito horas o dinheiro precisa estar depositado numa conta na Suíça. Tecnicamente não existe problema algum. Nós temos nosso pessoal na Suíça.

— E ele quer a soma integral antes que tenhamos sequer um metro do filme?

— Sim, chefe. Todo o dinheiro. Já. Até esse ponto teremos de confiar nele, diz Bill. Se a coisa estourar, isso lhe custará a vida. Nisso, Deus sabe, ele tem toda a razão. Ele está assumindo um risco inacreditável. E quando o tivermos pago, o teremos nas mãos, diz ele. Poderemos desmacará-lo a qualquer momento — com seu dinheiro em conta. Aliás, esse negócio de louco só funciona se um confiar no outro. A esse respeito o senhor também terá de esclarecer Berlim. Só então!

— E como é que isso vai funcionar na prática? — indagou Ragai, que estava tão nervoso que queimou os dedos quando pretendia acender um outro cigarro.

— É simples, chefe. Simples. Aqui em Teerã existe um estúdio razoável, onde os filmes de atualidades para os cinemas são produzidos. Dispõe também de um laboratório para tirar cópias, aparelho de montagem, tudo o de que se precisa. Os dois exemplares desse filme — o americano e o soviético — deverão ser, segundo a vontade dos dois grandes, feitos aqui em Teerã, imediatamente depois da conclusão da filmagem. É claro, sob supervisão americana e soviética. O filme deverá receber um comentário. Locutores americanos e russos, que fazem noticiários cinematográficos, estão aqui. Está estabelecido, diz Bill, que os dois exemplares prontos vão ser levados daqui diretamente para os arquivos blindados do Kremlin e da Casa Branca.

— Como é que seu amigo Bili quer obter uma cópia?

— Naturalmente o filme será produzido exclusivamente por especialistas americanos e russos. Montador. Som. Homens de laboratório. Bill diz que tem um amigo que vai proceder à edição final da versão americana. E ao fazê-lo, vai tirar uma cópia para Bill. Também isso é uma coisa em que se corre um risco de vida total, mas o amigo se comprometeu. Ele assume o risco — por dinheiro, é óbvio. Não tenha receio, disse Bill, esse homem quem paga é ele. Não sei quanto dos cinco milhões ele lhe vai dar. Talvez a metade, talvez menos. Calculo que menos. Esta seria a parte financeira. Só falta o prazo de entrega. Teremos que esperar um pouquinho.

— Quanto tempo?

— Quatro meses.

— Quanto?

— Até o fim de março do ano que vem. Um momento, chefe, um momento, deixe-me falar! Não há dúvida de que a cópia vai ficar pronta antes. Certamente antes do Natal. Mas Bill diz que precisa insistir nisso, que precisamos conceder-lhe esse prazo. De outro jeito não dá, diz ele. Se nós já recebêssemos nossa cópia antes do Natal e a levássemos para Berlim, os chefes lá entrariam imediatamente em atividade, não é?

— Sim. É de se presumir.

— Por isso mesmo. E isso não é aceitável nem para Bill, nem para seu amigo. Suspeitariam dos dois imediatamente. Seriam logo descobertos. O tempo precisa passar, diz Bill. Ele e seu amigo devem ser antes designados para outro lugar completamente diferente. Sobretudo, Bill precisa regularizar suas obrigações financeiras de modo a não chamar atenção, apagar todos os rastros que levam até ele, e para isso ele precisa de tempo. Ele está no Exército. Não pode simplesmente entrar de licença e partir para a Califórnia a fim de botar tudo em ordem. O tempo deve passar. Tudo compreensível, acho eu.

— Mas, até março! Nós temos de pagar dentro das próximas quarenta e oito horas e esperar pela cópia durante quatro meses! Isso é uma exigência absurda!

— De outra forma não dá para fazer, chefe. É isso ou nada, diz Bill: Take it or leave it. Desesperado como se encontra, naturalmente deve estar implorando a Deus que aceitemos suas condições. Mas também não está desesperado a ponto de cavar sua própria sepultura.

Seguiu-se um silêncio.

— E se Berlim aceitar, como iremos receber a cópia em fins de março? — perguntou em seguida Ragai.

— De um amigo que seu amigo tem no pessoal da Embaixada aqui. O homem é motorista. Ele saberá onde está escondida a cópia. E é esse sujeito que vai entrar em contato comigo.

— Com o senhor?

— É claro que é comigo. Eu não poderia indicar seu nome nem seu endereço, chefe! Eu sou o homem que em março fará uma ligação entre o senhor e esse motorista.

— Meu Deus do céu, mas que história! — Ragai fumava ininterruptamente, acendendo um cigarro na guimba do outro. — Mas, por outro lado: que chance!

— É isso mesmo. chefe. Uma chance assim não aparece duas vezes.

— É, eu vou informar Berlim de tudo isso. O que arriscamos, afinal? A sermos engambelados e não recebermos cópia nenhuma. Ou a receber uma falsificação. Então poderemos ainda denunciar esse tal de Bill e seu amigo, e providenciar que ambos sejam executados.

— E isso que estou dizendo o tempo todo, chefe! O risco que Bill vai correr é muito maior que o nosso! Que são cinco milhões de dólares para o governo do Reich? Nada. E o que poderia significar para nós esse filme? Tudo!

Um outro ataque de tosse, pior que o primeiro, torturou o idoso senhor diante da câmera. Chan Ragai se debatia em busca de ar, seu corpo se encolhia, a pele de seu rosto ficara de branca transparência. Ele cobria a boca com o lenço.

— Corta! — disse Daniel.

A câmera 2, que ainda rodava, foi desligada.

— Intervalo! — disse Daniel. — Vamos fazer agora um intervalo. O senhor se esforçou em demasia. Falou por tempo demais, Sr. Ragai. Apagar os refletores também!

E eles foram desligados.

Ragai tossia ainda, uma tosse seca e dura. Qualquer um que ouvisse essa tosse, pensaria o mesmo: só mais cinco meses de vida. No máximo. Mercedes já estava de novo junto ao velho. Segurava um copo junto aos seus lábios. Ele bebeu. As mãos de Ragai tremiam demais. Ele ergueu para ela seus olhos agradecidos. Eles estavam cheios de lágrimas pois o ataque de tosse o cansara extremamente.

— Nós podemos também interromper por uma ou duas horas — disse Daniel. — Se o senhor quiser se deitar um pouquinho, Sr. Ragai...

O velho balançou a cabeça.

— Vamos... Eu quero continuar.., a falar... Só... alguns... minutos...

De fato, ele havia se recuperado após um quarto de hora.

Os refletores se acenderam outra vez. A câmera 2 entrou em movimento.

— Tudo o que tenho a dizer — disse Ragai —, quero fazê-lo hoje, agora, já. O avião... Quero alcançar o avião... Quero ir embora daqui... Quero ir para casa... para Teerã...

— Eu creio que o senhor já contou quase tudo — disse Daniel. — Logo teremos terminado. Então tudo funcionou perfeitamente, pois em fins de março de 1944 seu misterioso agente CX 21 chegava a Berlim com a cópia do filme, disso sabemos.

— Sim — disse Ragai. — Funcionou. Eu ainda cheguei a mandar, em 29 de novembro de 1943, uma longa mensagem pelo rádio para Berlim. Ross respondeu-me no mesmo dia. Tinha falado com Ribbentrop. Os cinco milhões haviam sido depositados na Suíça na conta indicada por William Mackenzie...

— Nossos repórteres, aliás, chegaram a achar em San Diego um câmera de nome William Mackenzie, que, segundo informações de conhecidos, tinha estado outrora em Teerã — disse Daniel.

— Ah, sim? — Ragai ergueu rapidamente o olhar. Seus olhos cansados luziram de repente. — Está vendo! E que foi que ele disse?

— Nada, Sr. Ragai. Morreu há três meses. Infarto.

— Meu Deus!

— Sim, foi má sorte. Embora... — Daniel interrompeu.

— Embora?

— Embora ele naturalmente jamais fosse admitir haver recebido cinco milhões de dólares dos nazistas em troca de uma cópia desse filme.

— Mas meu depoimento iria incriminá-lo gravemente.

— Sim, com certeza. Aliás...

— O quê, aliás? — Ragai ficou nervoso.

— Calma, fique calmo! Permita-me fazer-lhe uma pergunta: Esse agente CX 21 — seria possível que ele tivesse desempenhado um duplo papel?

— Não estou entendendo...

— Então, de uma forma bem brutal: seria possível que CX 21 — e eu tenho bons motivos para fazer tal pergunta, Sr. Ragai —, seria possível que CX 21 pudesse ter sido subornado por um outro serviço secreto alemão, como por exemplo, o Serviço de Segurança de Kaltenbrunner, e simplesmente representado uma farsa para o senhor?

— Realmente, eu não estou entendendo, Sr. Ross.

— Eu vou explicar para o senhor, então. Nós temos uma testemunha que assegura haver forjado, por incumbência do SD, do Serviço de Segurança do Estado, e com matéria-prima fornecida pelo SD, ou seja tomadas de Teerã e pedaços de filmes, um filme sobre a conferência. Isto teria sido feito por prisioneiros, no campo de concentração de Sachsenhausen.

— Isso é absolutamente impossível. O homem mente.

— Espere, Sr. Ragai, espere um pouco! Tudo isso é simples teoria, naturalmente... Mas seria possível — eu sei que isso soa fantástico, mas o que não é fantástico em todo esse assunto? Seria possível que o SD tivesse subornado o seu agente a fim de que ele conseguisse esse filme que recebeu em Teerã de Mackenzie ou qualquer outra pessoa, mas em partes e sem o protocolo secreto filmado, passando-o primeiramente para o pessoal do SD? Eles poderiam haver enviado todos esses pedaços de filme para a Alemanha, inserindo um protocolo secreto elaborado em Berlim. Teriam assim produzido uma monstruosa falsificação no campo de concentração de Sachsenhausen, conforme afirma essa testemunha...

— Inteiramente impossível!

— Por favor, queira não me interromper, Sr. Ragai! Impossível não é. Teoricamente — como um jogo de hipóteses — seria perfeitamente possível que assim tivesse ocorrido. O senhor não poderia ter idéia disso. Sim, o senhor não poderia saber disso. É plausível, Sr. Ragai, é plausível que o filme tenha sido forjado desse modo e depois trazido de volta a Teerã, onde lhe foi entregue em fins de março de 1944, como sendo aquele que havia sido objeto das negociações entre CX 21 e esse William Mackenzie. A mencionada testemunha diz que ele e seus companheiros prisioneiros terminaram a falsificação do filme no começo de março de 1944. Kaltenbrunner e dois outros homens vieram pessoalmente ao campo de concentração — segundo a testemunha —, assistiram à exibição desse falso filme, felicitaram os prisioneiros, e foram embora com o exemplar terminado. Teria, então — tudo hipótese, tudo hipótese! —, ainda havido tempo suficiente para se remeter o filme de volta para Teerã e entregá-lo ao senhor como sendo a desejada e esperada cópia. Não estou afirmando que assim tenha ocorrido, Sr. Ragai. Tampouco estou dizendo que CX 21 se tenha deixado subornar, de fato, pelo SD. Digo apenas que dispomos de uma testemunha que afirma categoricamente ter forjado o filme em conjunto com outros prisioneiros, O que eu estou dizendo é que é possível que ele diga a verdade e que tudo tenha ocorrido conforme acabo de esboçar. Não afirmo de forma nenhuma que foi assim. Pergunto: não poderia ter sido assim?

Ragai emudeceu.

— Sr. Ragai! Por favor! Eu lhe fiz uma pergunta!

— Eu estava refletindo a respeito — disse o velho homem. — Teoricamente isso poderia ter sido possível, pelo menos em termos de tempo. É como o senhor diz: é um simples jogo de hipóteses. Considero absolutamente impossível que tivesse ocorrido desse modo. Recebi o filme de CX 21 no dia 27 de março. Disso ainda me lembro exatamente. E também de que CX 21 pegou um avião com a cópia desse filme, a 28 de março, voando pela Turquia, que era neutra, com destino a Berlim. E com certeza me lembro de haver anunciado a chegada dele pelo rádio a Berlim e também onde a cópia do filme teria de ser buscada por Georg Ross.

— Onde, exatamente? — perguntou Daniel.

— O senhor bem o sabe! Mas, por favor: no guarda-volumes da estação da estrada de ferro do Zoo. Conforme informei pelo rádio, CX 21 mandaria o ticket de depósito dentro de um envelope para o endereço particular de Georg Ross. Lá em Dahlem. O filme se achava dentro de uma mala com segredo, uma combinação numérica. Também passei pelo rádio os números dessa combinação. No dia 31 de março recebi um rádio de Ross: apanhara pessoalmente o filme na estação do Zoo e agradecia por isso. Isto é tudo o que tenho a dizer.

— E o senhor insiste nesse ponto: aquilo que Ross recebeu era uma cópia da versão autêntica americana que havia sido realizada em Teerã! 

— Sim, senhor, esta é a verdade. A outra testemunha mente. Deve ter seus motivos para mentir. Ele estava num campo de concentração, diz o senhor?

— Sim.

— Judeu?

— Sim.

— Ora, então o motivo de sua atitude ao mentir seja talvez o desejo ou a incumbência de, por meio de sua afirmação, desagravar os Estados Unidos. Israel depende dos americanos. Seria um motivo bastante forte, não é mesmo?

— Sr. Ragai — disse Daniel —, peço-lhe com todo o empenho que não reaja melindrado: Khomeini e os membros do governo iraniano odeiam os Estados Unidos acima de qualquer outra coisa. Não residiria aí um motivo igualmente forte para afirmar que o filme não foi forjado, mas é autêntico?

Ragai assentiu com a cabeça, impassível.

— O senhor tem duas testemunhas — disse ele. — As duas têm motivos muito fortes. “Não se dê crédito a nenhum motivo sublime para uma ação, caso também se possa encontrar algum motivo mesquinho”, diz Edward Gibbon.

— Quem é esse?

— Um historiador inglês do século XVIII. Duas testemunhas, sim. Uma delas mente. Escolha!

— Sr. Ragai — disse Daniel — nós lhe agradecemos por esta conversa. — Esperou passarem alguns segundos e exclamou:

— Corta! Fim!

Havia terminado o depoimento de Ragai. Os técnicos começaram a desmontar seus equipamentos, abriam as cortinas e janelas a fim de trocar o quente ar viciado pelo ar puro que vinha de fora. O velho senhor se virara na poltrona e se achava agora sentado diante da escrivaninha, recoberta de muitos documentos. Exausto, porém satisfeito, contemplava o jardim atrás da casa, os açafrões floridos e, nos galhos das velhas árvores, os brotos das novas folhas.

Mercedes e Daniel se aproximaram dele.

— Vou fazer chá para todos — disse Mercedes. — Para a equipe, os policiais e nós. O senhor também toma chá, Sr. Ragai?

— Com todo o prazer, madame — disse o velho.

Mercedes seguiu para a cozinha. Os técnicos falavam baixo entre si, e o mesmo faziam os policiais.

Chan Ragai fitou a pequena bandeja de prata com as palavras de Bertrand Russell. E as leu, a meia-voz: — O mundo em que vivemos pode ser entendido como o resultado do caos e do acaso; se, no entanto, ele for o resultado de alguma intenção, deve ter sido o desígnio de um demônio. Considero o acaso uma explicação menos penosa e muito mais plausível.

— Maravilhoso! — disse ele. E suspirou fundo. Seu olhar vagou sobre uma dezena de diferentes fotos antigas, que mostravam um homem em diversas idades de sua vida e que se achavam espalhadas sobre a mesa. Ele se inclinou para a frente. Pegou algumas delas. Sua voz ficara de repente rouca e sem fôlego.

— Quem é esse?

— Nosso superintendente — disse Daniel, a quem a excitação do velho passou despercebida. — O Sr. von Karrelis. Dentro de dois meses festeja seu jubileu de quinze anos de serviço. Três períodos de cinco anos como superintendente. Estamos preparando uma pequena publicação comemorativa. Quer dizer, eu tenho de prepará-la. Nosso departamento de imprensa solicitou-lhe estas fotografias... Por quê? O senhor o conhece?

— Sim — disse o velho senhor. Segurava agora uma foto levemente amarelecida com as mãos trêmulas: um jovem bem apessoado de rosto fino e sensível, olhos castanhos e uma boca de lábios bem desenhados. O jovem se achava sentado num banco de jardim. Vestia um terno escuro, estava de pernas cruzadas e mirava pensativo o observador.

— O que está sentindo, Sr. Ragai? — Agora Daniel estava alarmado.

— Este aqui é ele — disse Chan Ragai. — Tenho toda a certeza, absoluta. É ele, sim.

— É quem?

— O agente CX 21 — disse o idoso senhor.

 

Coram Fields é o maior play-ground público de Londres.

Na tarde de 23 de março de 1984 — o sol brilhava, as flores haviam desabrochado e o ar estava macio —, dois homens passeavam por entre os muitos meninos e meninas pequenos que corriam, faziam ginástica nas coloridas armações de aço, deslizavam rápidos pelos escorregas, gritando e rindo. Eles haviam marcado o encontro para as 11h. A essa mesma hora, Chan Ragai estava terminando seu depoimento na casa de Daniel. Entre Frankfurt e Londres a diferença de horário é de uma hora.

— A que horas chega o carro? — perguntou Emanuel von Karrelis. Seu rosto fino e sensível estava pálido, em seus quentes olhos castanhos pairavam sombras de pavor. Por baixo de um capote de pêlos de çamelo, ele vestia um terno marrom, e combinando com o conjunto, calçava sapatos de couro cru e usava um chapéu, todos marrons.

— Às cinco e meia — respondeu o pequeno e roliço advogado Roger Morley. — Não se preocupe. Tudo está dando certinho. Em Frankfurt não estava um Lear-Jet esperando, depois que o senhor me ligou?

— Claro, sim.

— Quando o senhor pousou em Heathrow, lá não estava um mensageiro que o trouxe para cá e levou sua bagagem para Oval Green?

— Certamente. Desculpe-me, eu estou nervoso.

Oval Green era uma base da Força Aérea norte-americana ao sul da capital.

— Perfeitamente compreensível, Sr. von Karrelis, inteiramente normal. Comigo sucederia exatamente a mesma coisa se estivesse em seu lugar.

Morley estava um tanto sem fôlego. Andava aos pulinhos ao lado do alto superintendente. De tempos em tempos, crianças vinham na direção deles, dando encontrões. Morley lhes acariciava delicadamente os cabelos e sempre trazia um gracejo na ponta da língua. — Mas, calma, fique calmo! É evidente que os meus conhecidos americanos manterão a palavra. Com um homem que lhes prestou sempre tão preciosos serviços! Claro, nós poderíamos ter nos encontrado em Oval Green, mas meus amigos não o desejavam. Aqui, entre as crianças, não chamamos a atenção de ninguém. Há tantos pais por aqui. Ninguém o vai procurar em Coram Fields. Por isso, preferi este grande play-ground a meu escritório, para nossa última conversa.

— Conversa? Já ao telefone o senhor usou esta palavra? O que há ainda para conversar?

— Então, Sr. von Karrelis... — De repente, o pequeno advogado mudou de assunto. Com sua mão rosada ele indicou uma casa que se erguia na borda do parque, diante deles. — Este local para crianças recebeu o nome de Thomas Coram, que em 1745 fundou um conhecido asilo de crianças aqui. Em 1926 ele foi derrubado e em seu lugar, na Brunswick Square, 40, foi erguido um pequeno museu, que mostra a história desta instituição. O senhor sabe que aquele asilo de crianças foi muito amparado por um dos seus maiores compositores?

— Não. Eu pergunto o que há ainda para...

— Por Georg Friedrich Händel! O senhor também gosta de sua música? Oh, eu adoro praticamente tudo dele. Os concertos para órgão, os concerti grossi, naturalmente a Música aquática e a Música para os Fogos de Artifício. E os oratórios!

— Nesse pequeno museu ali à nossa frente é também conservada uma partitura original do oratório Messias. Imagine! Händel dirigia o coro de crianças do asilo. Ele viveu desde 1712 em Londres, não é verdade? Vamos dar talvez um pulo.., não, eu já estou vendo que talvez o senhor não deseje. Embora valha realmente a pena. Mas como o senhor quiser...

— Mr. Morley, o que há ainda para conversar?

— Como? Que quer... Ah, sim! Bem, o senhor ainda não me contou — ao telefone o senhor tinha uma tamanha pressa — como foi que o descobriram, meu caro Sr. von Karrelis...

Um telefonema intercontinental.

— Pai!

— Mercedes! Quanta alegria! Onde está você?

— Em Frankfurt. No correio central.

— Pela sua voz parece que você está sem fôlego. Aconteceu...

— Sim.

— O que foi?

— Acabamos de entrevistar Chan Ragai.

—Oh!

Pausa.

— Pai!

— Sim.

— Eu disse que...

— Eu ouvi. Ora, e daí? Diz ele que o filme é genuíno?

— Sim.

— Está vendo?

— Ele também nos disse quem é o agente CX 21.

Longo intervalo.

— Pai!

— Sim, eu estou aqui. E muito surpreso. Como poderia ele dizer?

— Havia fotos de Karrelis sobre a escrivaninha de Danny, para uma publicação de jubileu. E também fotos da juventude. Chan Ragai o reconheceu — com absoluta certeza.

— Hum.

— Que quer dizer hum?

— Que diz Karrelis diante dessa afirmação?

— Nada! Ele desapareceu.

— Oh!

— Pai, Karrelis foi mandado por você para Teerã, diz Chan Ragai. Sob um nome falso. Com falsos documentos. Chamava- se Werner Kalmann. Você lhe deu o codinome CX 21. Isto acontecia, disse Chan Ragai. Em casos especiais. Por exemplo, quando o chefe do serviço o queria. Por que você quis isso?

— Eu... eu já prestei o meu depoimento. Completo. Para mim o caso está encerrado.

— Mas não para nós. Você não calcula o escândalo que isso vai provocar aqui. Nós precisamos saber da verdade. Diga-a para mim, pai! Se você não disser a verdade, nós também tomaremos a sua recusa em nossa documentação.

— Escuta aqui, você não pode gritar assim comigo! Não admito.

— Eu estou muito nervosa. Desculpe-me! E responda à minha pergunta!

Longo intervalo.

— Pai!

— Não posso, Mercedes...

— Você precisa!

De novo uma pausa.

— Então está bem... Eu lhes contei a respeito de Dora Holm... a jovem atriz em Berlim, que eu tanto amava e que depois, por ocasião de um ataque aéreo, veio a falecer de uma forma tão terrível... Você está lembrada, Mercedes? Dora Holm, já fazia grandes papéis na UFA...

— Lembro-me sim, pai.

— Bem, veja você... Dora Holm era seu pseudônimo de atriz...

— Ela na realidade se chamava diferente?

— Sim.

— Como se chamava ela de fato? Pai!

— Na realidade.., na vida real ela se chamava Dora von Karrelis.

— E esse CX2I...

— ... era seu irmão. Emanuel von Karrelis. Eu o conheci por intermédio de Dora... Ele era superinteligente... genial. Um fenômeno... Falava vários idiomas sem nenhum sotaque... Era oito anos mais jovem que Dora... Entre militares, eles teriam destroçado o sensível menino... Dora o idolatrava... Sentia medo terrível por ele... Então, eu o tomei sob a minha proteção, no serviço de Ribbentrop... por amor a Dora... para proteger Emanuel... Você consegue entender isso, Mercedes?

— Sim, eu posso compreender... Mas isso é fantástico, pai. Simplesmente fantástico. O superintendente da emissora de Frankfurt foi agente em Teerã!

— E me conseguiu o filme, sim, sim.

— Quem sabia disso na época? Quero dizer, que CX 21 se chamava von Karrelis e que trabalhava como agente?

— Somente dois homens do serviço e Dora.

— E os pais não?

— Não, os pais não sabiam. Ele sempre escrevia para Hamburgo dizendo que era intérprete no Ministério do Exterior. Tampouco Chan Ragai tinha idéia. Nem suspeitava, não sabia de nada...

— Até hoje. Até que viu as fotos de Karrelis. Ele está disposto a, de público, esclarecer que era seu agente CX 21.

— Que o faça, então! O que altera isso na existência do filme? Eu agora ultrapassei o meu choque. Eu acho tudo isso formidável. Vocês dispõem assim da principal testemunha em favor da autenticidade do filme!

— Quem?

— Von Karrelis, ora! Peguem-no diante da câmera! Deixem- no contar a sua história! A verdade, toda a verdade, do mesmo modo que eu acabo de fazê-lo agora, filha.

— Pai. Mas eu lhe estou dizendo que ele desapareceu.

— Isso não estou entendendo... Mas por quê... Mas quando?

— Há poucas horas deixou a emissora, segundo nos disseram. Ninguém sabe em que direção, com que fim. Pode-se supor que já há muito não se encontra mais na Alemanha.

— Mas por quê?

— Tudo indica que ele era o delator.

— Karrelis? Nunca!

— Isto já está mais do que certo. Karrelis delatou com antecipação todas as nossas ações, passando as informações para os adversários. Danny e Colledo já suspeitavam. Montaram-lhe uma armadilha. Ele acreditava que nós entrevistaríamos Chan Ragai no sul da França, em sua casa numa pequena aldeia perto de Cannes. Colledo pegou também um avião com uma equipe para lá, a fim de que Karrelis continuasse em plena certeza de que era isso mesmo. Com certeza Karrelis informou os seus amigos a respeito, a fim de que Chan Ragai pudesse ser liqüidado na Riviera — da mesma maneira que os outros o foram, depois que Karrelis os delatou. Só que desta vez Danny e Colledo foram mais espertos. Secretamente, fizeram Chan Ragai vir para Frankfurt, para a casa de Danny, sob proteção policial. E na casa de Danny, agorinha mesmo, Chan Ragai acaba de prestar o seu depoimento diante das câmeras. O superintendente deve ter suspeitado que nós desconfiávamos dele — ainda não sabemos como —, então, ele fugiu, imediatamente.

— Incompreensível. Eu...

— O contato entre ele e você jamais foi rompido, não?

— Sim. Após o fim da guerra. Por alguns anos. Depois, eu ouvi dizer que Emanuel havia começado a trabalhar na Rádio da Alemanha do Norte. Enviei-lhe notícias — através de terceiros. Ele respondeu imediatamente. Ele estava bem. Havia chegado à Alemanha Ocidental pouco antes do fim da guerra. Todos os parentes mortos... Quando a televisão começou na Alemanha, ele teve a sua chance. Em 1969, tornou-se o superintendente da TV de Frankfurt. Foi duas vezes reeleito. Por Deus, o seu passado jamais teria sido revelado se se tivesse liqüidado esse Chan Ragai antes que ele pudesse dar uma entrevista. É realmente fantástico.

— Teria sido revelado de qualquer modo, pai. Pois estou lhe dizendo que Colledo e Danny estavam em seu encalço.

— Mas, por que diabo seria Karrelis o delator? Que motivo tinha ele, Mercedes?

— Talvez o mesmo que você, pai.

— O que você quer dizer com isso? Qual era então meu motivo?

— Dinheiro.

— Isto é... isto é...

— ... a verdade. De nada adianta sentir-se ofendido. Você sabia muito bem que Karrelis era o superintendente da TV de Frankfurt, antes mesmo de saber onde se encontrava Danny, se ele ainda vivia e onde, não é?

— Sim.

— E depois que você descobriu Danny, tudo veio a calhar.

— Exatamente. Posso falar com você no mesmo tom em que você fala comigo. Veio mesmo a calhar, filha. Precisava de um intermediário. Eu não podia simplesmente entrar em contato direto com Karrelis e lhe entregar o filme. Não poderia tornar-se público que nós nos conhecíamos. Senão ninguém teria acreditado naquilo que agora está comprovado com o depoimento de Chan Ragai — ou seja, que o filme é genuíno.

— Mas você falou antes com Karrelis a respeito do filme, de sua transmissão e, principalmente, de sua compra, antes mesmo que você me mandasse em frente a fim de buscar Danny, não?

— Mas é claro. Ou você acha que eu deveria me dirigir a um superintendente desconhecido de alguma outra emissora?

— Uma equipe da televisão vai voltar a Buenos Alres. Você vai contar tudo isso na frente das câmeras.

— Jamais!

— Então eu vou fazê-lo. Tudo, tudo aquilo que você acaba de me contar, palavra por palavra. Você prefere isto?

— Você... você está me chantageando?

— Naturalmente. Como deveria eu tratá-lo de outra forma? A equipe irá o mais rápido possível. Logo logo você ouvirá notícias minhas. Adeus!

— Mercedes! Espere! Mercedes... Desligou. Como pode fazer uma coisa dessas?! Como se eu fosse um criminoso!

 

No play-ground de Coram Fields, um garotinho deu um encontrão em Roger Moyle. — Epa, meu filho — exclamou o advogado .— Não pensa que sou um punching-ball! — E apressou-se para alcançar as passadas de Karrelis. — Como descobriram o senhor: é isso que meus conhecidos desejam saber ainda. Deixe-me recapitular em poucas palavras: depois que as cópias do filme chegaram à TV, o senhor, com extrema habilidade e cautela contatou a Embaixada americana em Bonn e colocou-se à disposição como responsável pela transmissão do filme pela TV. O senhor não queria assumir esta responsabilidade, tanto mais que o senhor muito justamente é de opinião que a exibição do filme só pode gerar infortúnios, principalmente se acompanhada do depoimento de testemunhas que juram que ele é autêntico. Como remuneração para esses serviços que estava prestando, o senhor exigiu uma — se assim me posso exprimir — farta soma meus conhecidos imediatamente transferiram para Toronto, depositando-a numa conta indicada pelo senhor.

— Cinco milhões de dólares — disse von Karrelis ofendido. — E o senhor chama isso de farta soma — pelo meu enorme risco, por tudo o que eu fiz e evitei?

— Perdoe me a irreverência da observação, Sr von Karrelis

— Que falta de tato a minha! O senhor tem razão: o risco era enorme. E agora o senhor tem de desaparecer. Começar uma nova vida. É claro que para isso necessita de dinheiro. Realmente abominável o meu reparo, sobretudo quando eu penso que seu procedimento foi norteado por considerações de tão alto padrão ético.

Uma bola voou ao encontro do peito de Morley. Ele a lançou rindo de volta para uma menininha com um traje de jogging, que levantara os bracinhos finos. — Criança bonita, é? E agora, devido a todas essas cogitações e convicções, o senhor precisa deixar tudo para trás, e ir embora para bem longe, muito longe. O senhor tem a minha sincera simpatia, Sr. von Karrelis. — Morley soergueu seu rígido chapéu. — Mas diga-me finalmente por que diabólico acaso se chegou a descobrir as suas pegadas.

— Não foi acaso nenhum, Mr. Morley. Tratou-se de um plano minuciosamente preparado para derrubar-me. Colledo é o responsável por isto. Ele me odeia...

— Por quê?

Von Karrelis ignorou a pergunta. Continuou a falar.

— ... e, ao que parece, já suspeitava de mim há tempo. Ele e Daniel Ross. Quando nossos pesquisadores muito descobriram Chan Ragai lá no sul da França, eu logo informei o senhor de que Colledo queria entrevistá-lo em La Roquette sur Siagne, sob rigorosa vigilância da gendarmeria francesa, não é mesmo?

— É verdade, Sr. von Karrelis. O senhor avisou prontamente. Confiável como sempre. No que imediatamente enviei nosso melhor homem para La Roquette sur Siagne, depois de haver mostrado a ele as fotos que o senhor me enviou, as fotos de Chan Ragai. Para que ele conhecesse o aspecto do homem que deveria matar antes que uma câmera dele se aproximasse.

— Porque era evidente que ele, com toda a certeza, iria jurar que o filme é autêntico — disse von Karrelis. Mas pensava consigo mesmo: e porque conhecia o agente CX 21. Um Chan Ragai vivo significava o fim da minha segurança. Este é o verdadeiro motivo por que Chan Ragai devia morrer. Meu Deus do céu, se Morley e seus amigos soubessem que eu fui CX 21! Nem pensar! Eles iriam perguntar e perguntar, e nunca mais me largariam: recebi realmente o filme do motorista da Embaixada norte-americana em Teerã? O filme é, portanto, verdadeiro ou eu colaborei com o SD e ajudei a produzir uma falsificação? O que quer que eu respondesse — seria em seguida um homem morto. Sou o único que sabe a verdade sobre esse filme. A mim só serviria um Chan Ragai morto. Vivo, ele é mortal para mim. Por isso eu precisava sumir de Frankfurt o mais rápido possível. Por isso! Mas isso não é da conta deste advogado, nem tampouco dos seus amigos. Agora o que interessa é desaparecer o mais velozmente possível. Cada minuto conta. Em voz alta, ele disse: — Eu tinha de ir embora de Frankfurt tão logo fiquei sabendo que Colledo e Ross estavam me enganando e que suspeitavam que eu fosse o delator. Isso se deduzia do comportamento deles. Quem sabe que provas terão para apresentar. Precisava dar o fora.

— Perfeitamente claro, Sr. von Karrelis. Claríssimo — disse Morley.

Caso você conhecesse o motivo real, pensava trêmulo o superintendente. Preciso sumir. Quando chega afinal esse maldito carro, que vai me levar para Oval Green?

— A única coisa que desejo ainda saber do senhor: quem foi que lhe informou que esse complô existia contra o senhor? Quem foi que lhe disse que Chan Ragai não estava em La Roquette sur Siagne mas que estava sendo trazido para Frankfurt?

Karrelis começou a rir como um louco.

— Como?! — disse Morley.

— Uma moça da companhia iraniana de aviação — disse Karrelis, ainda em meio a um riso histérico. — Uma moça do balcão do aeroporto da Iranian Air. — A moça ligou para a emissora e pediu para falar com Daniel Ross. Ele não estava. É que tinha uma notícia importante para ele, disse à telefonista de nossa central. Esta tratou de ligá-la com Kleinhals, nosso redator-chefe. Que também não estava em seu gabinete. A recepcionista insistia, dizendo que era urgente mesmo. Então a boa telefonista — que Deus a abençoe — passou a ligação para minha secretária, porque na central telefônica corriam rumores de que algo importante estava sucedendo na emissora. Foi assim que a conversa chegou até mim, e a moça contou aquilo que era tão importante.

— E que era...

— Que o avião para Teerã, que segue hoje à noite, estava lotado. E que na lista de espera havia seis pessoas. E que Daniel Ross tinha reservado as passagens para o Sr. Chan Ragai e dois acompanhantes, mas havia prometido confirmar ainda se o Sr. Chan Ragai iria embarcar de fato. A moça contou-me igualmente que o Sr. Ross lhe havia dito que tudo dependia de que o Sr. Ragai terminasse seu trabalho em Frankfurt a tempo. Portanto, a reserva se encontrava ainda em aberto. E como ela tinha seis outras pessoas na lista de espera, queria logo saber se os três lugares seriam efetivamente ocupados ou não. — E Karrelis acrescentou: — Presumivelmente, Ross queria, por motivos de segurança, deixar em aberto pelo tempo mais longo possível.

— E por que a moça não ligou para a residência de Ross?

— Ela já o tinha feito. Aparentemente o fone havia sido mal encaixado no aparelho. Em todo caso, o número sempre dava ocupado. Na verdade, ele deve ter levantado o receptor e discado um algarismo, a fim de que ninguém pudesse ligar durante todo o tempo em que Chan Ragai estivesse em sua casa — especialmente durante a entrevista.

— Mas que história mais louca! E que disse o senhor para a moça?

— Eu disse que iria fazer todo o possível para contatar prontamente o Sr. Ross e pedir-lhe que ligasse de volta. Espere, a loucura ainda vai aumentar! Ë claro que depois desse chamado, por longo tempo não consegui botar minha cabeça de novo no lugar.

— Claro que não.

— Eu estava em pânico. Na minha cabeça tudo girava. E então, uns cinco minutos mais tarde, a telefonista me passou novamente a moça da Iranian Air. E ela me disse que Ross acabara de ligar para lá, confirmando as reservas. Chan Ragai e seus dois acompanhantes voam então hoje à noite com esse avião. Uma loucura, não é? A maior loucura! Se ele tivesse telefonado alguns minutos mais cedo! — Karrelis voltou a rir. — Eu nada teria sabido. Não teria imaginado o que se montava contra mim. Alguns minutos apenas! Meu Deus, meu Deus, meu Deus!

— Basta! — disse o pequeno advogado com inesperada e cortante frieza. — Pare com isso!

O superintendente o olhou assustado. E emudeceu.

— Só nos faltava que o senhor agora enlouquecesse — disse Morley. — Desculpe o meu tom! Mas que essa história com Chan Ragai tenha dado errado, que ele agora tenha comprovado a autenticidade do filme, é, em si... hum... muito desagradável para os meus conhecidos, muito desagradável realmente. E agora, ainda por cima, o escândalo que se vai desencadear com o seu desaparecimento. Na verdade, não há nenhum motivo para risos!

— E o que farão os seus conhecidos?

— Isso eu não sei. Não me encontro em meu escritório onde eles poderiam ligar para mim. Também nosso melhor homem não pode se comunicar comigo neste momento. Ele deve estar decerto tentando. Eu penso, Sr. von Karrelis, que meus conhecidos vão agora empregar os meios mais drásticos de que ainda dispõem a fim de evitar que o filme seja transmitido.

— De que medidas extremas dispõem eles ainda?

— Isso não o deve preocupar, Sr. von Karrelis. O senhor está livre de quaisquer preocupações. Dentro em pouco já não mais as terá.

Os dois homens passavam agora por uma roda de crianças, em cujo centro um menino estava de pé, indicando com o dedo uma criança depois da outra enquanto recitava a seguinte rima:

“Humpty Dumpty sat on a wall.

Humpty Dumpty had a great fali.

All the King’s horses and all the King’s men

Couldn’t put Humpty Dumpty together again.”

— Alice no país das maravilhas — disse Karrelis.

— Quase — disse Morley. — Humpty Dumpty aparece no segundo livro de Lewis Carroil, Alice no país dos espelhos.

Na Brunswick Square havia parado um furgão amarelo. As portas traseiras se abriram e dois homens em ternos de flanela cinzenta saltaram para a rua.

— Eles chegaram — disse Morley.

— Graças a Deus !— disse von Karrelis. — Afinal!

Ele deixou o play-ground em companhia do advogado. A saudação dos quatro homens foi curta e formal.

— Precisamos nos apressar, Sir — disse um dos homens de cinza. — O avião está pronto para a decolagem. Disseram-nos que o senhor desejava partir o mais rápido possível.

— Correto — disse von Karrelis. — Que avião é?

— Um B 52, bombardeiro de longa distância.

— Nós lhe agradecemos por tudo que o senhor fez por nós — disse Morley. E sacudiu a mão de Karrelis.

— Também lhe agradeço. Lamento que tudo tenha acabado assim.

— Não é sua culpa, Sr. von Karrelis — disse Morley.

 

O homem sentado ao volante buzinou. Trajava um sobretudo azul e um boné. O tráfego do entardecer estava pesado. Muitos carros se espremiam devagar pela Brunswick Square. O barulho era enorme.

— Venha, por favor, Sir — disse o segundo homem de cinza. — Estamos no meio da hora do rush.

Os homens falavam inglês com sotaque americano.

— Que Deus o proteja! — disse Morley a Karrelis.

— O que há com o senhor? — perguntou Karrelis ao primeiro dos homens. — Não vem conosco?

—  Não, o senhor será acompanhado pelos meus colegas, Sir. Eu trago novas instruções para Mr. Morley. Temos muito a conversar. Boa viagem!

— Obrigado — disse Karrelis. E com o segundo homem dirigiu-se para o carro de entregas fechado, cujo compartimento de carga dispunha de uma pequena janela de cada lado. O segundo homem ajudou Karrelis a entrar no compartimento de carga pelas portas agora abertas. Também ele embarcou. As portas se fecharam atrás dele. O furgão saiu devagar. Na Guilford Street, que se achava diante deles, o tráfego e o ruído se intensificaram. Na penumbra que reinava dentro do furgão, Karrelis distinguiu um terceiro homem, igualmente trajado de flanela cinza. Este acenou e fez um sinal para que se sentasse sobre um banco lateral. Tão logo Karrelis se sentou, o terceiro homem sacou uma pistola de cano longo do bolso interno do paletó, segurou-a junto à têmpora esquerda de Emanuel von Karrelis e puxou o gatilho. O estampido não pôde ser ouvido por causa do barulho do tráfego. Karrelis inclinou-se para o lado. Antes que o sangue saído da ferida viesse a sujar o carro, o segundo homem havia enfiado um saco plástico pela cabeça do superintendente, amarrando-o no pescoço do morto. O furgão estava tomando a direção sul através da Lumb’s Conduit Street, ao encontro da larga Theobald Road.

— E agora? — indagou o terceiro homem.

— De acordo com o combinado — disse o segundo. — Para as docas, no Tâmisa. Esperar lá até às dez. A essa hora chega Joey com o tonel de concreto e não há mais ninguém nas docas. É enfiar o homem no tonel, e jogar este último no Tâmisa.

— Que merda — disse o terceiro homem. — Então quer dizer que não vou poder assistir ao meu jogo de futebol. E eu que já estava todo satisfeito.

— Compre então um equipamento de vídeo como eu fiz! Simplesmente sensacional. Você liga a hora, a coisa grava para você o que quiser, e, quando voltar, assiste com toda a tranqüilidade.

Roger Morley e o primeiro homem de terno cinzento continuavam ainda de pé ao lado do play-ground.

— Quando é que vai ser? — perguntou Morley. Ele havia acompanhado o furgão com o olhar.

— Já foi — disse o homem. — Disseram-nos para liquidar logo o negócio.

— Que descanse em paz! — disse Morley muito sério.

— Precisava ser assim — disse o homem de flanela cinzenta. — Ele sabia demais.

— Oh! Certamente — disse Morley. Bem, como foi mesmo que Chesterton escreveu?: “O homem que sabia demais sabe agora o quanto vale que saibam dele!”

Na noite de 27 de março, uma terça-feira, dois homens e duas mulheres estavam sentados diante de uma fria lareira sob o retrato de uma pequena menina. Conrad Colledo e sua frágil e pequena mulher Lisa, com seus louros cabelos e olhos azuis, haviam convidado Daniel e Mercedes para jantar em sua casa na Rua Siesmayer, no Parque Grüneburg, junto ao Jardim das Palmeiras. Teresa, a velha cozinheira vienense, de novo serviu e cortou a carne em pequenos pedaços para Lisa, a qual, conforme Colledo contara a Mercedes, havia caído sobre um cortador de grama e cortado os tendões de ambos os pulsos. A refeição já havia terminado. Na sala de refeições, como em toda a casa, havia desenhos e quadros a óleo reproduzindo a pequena filha de Colledo que, com apenas treze anos de idade, tinha morrido no verão de 1983.

Era natural que toda a conversa girasse em torno dos acontecimentos dos últimos dias. Colledo havia contado todas as suas peripécias na Riviera e em La Roquette sur Siagne e Daniel narrara a entrevista concedida por Chan Ragai, em Frankfurt. O idoso senhor de há muito tinha voltado para Teerã. Entrementes, Colledo ficara sabendo do incidente com o telefonema da Iranian Air, por intermédio da secretária do superintendente. Em frente à lareira, eles estavam agora falando a respeito de Emanuel von Karrelis.

— A partir do momento em que veio essa chamada telefônica, ele desapareceu — disse Colledo. — Percebeu imediatamente que tínhamos fortes suspeitas. Que nos tenha sido possível obter o depoimento de Chan Ragai e que graças a nossas precauções nenhum atentado à vida dele tenha sido viável, isso significou o fim de Karrelis. Mesmo que até o instante em que desapareceu ele não soubesse que Ragai, face às fotos, o havia reconhecido como sendo o agente CX 21. Ele devia, no mínimo, estar temendo vir a ser desmascarado pelo velho — desta ou de qualquer outra maneira. Ele e seu pai, Danny... que magnífica dupla! Sempre o foram. O que aconteceu de fato em Buenos Aires, Mercedes? Afinal você hoje à tarde falou ao telefone com Neumann.

Neumann era o nome do jovem e ambicioso redator que Colledo havia mandado para a Argentina com uma equipe, para mais uma vez visitar Olivera e filmar um depoimento suplementar:

— Tudo correu muito bem — disse Mercedes. — Meu padrasto concedeu a segunda entrevista e contou tudo sobre suas relações com Karrelis, segundo relato de Neumann. Tudo! Mas também eu na sexta-feira, ao telefone, o amedrontei bastante. Eu disse que, se ele não falasse, falaria eu para a documentação. Neumann diz que meu padrasto justificou todo o favoritismo com o argumento sentimental de seu grande amor pela atriz Dora Holm. Só queria ajudar o irmão, nada mais. E aí por diante. Só queria praticar o bem. Está naturalmente possesso com o fato de que Karrelis se tenha revelado um delator. Entretanto, não consegue ainda acreditar nisso. Mas vai ter de acreditar, sobretudo depois do que sucedeu.

— Vocês conseguem ainda lembrar-se de como foi quando eu cheguei com os dois cassetes de Buenos Aires lá na emissora? — perguntou Colledo. — No começo, todos estavam céticos: Brandt, o diretor-jurídico; Kleinhals, o redator-chefe; e também von Karrelis! Representava seu ceticismo à perfeição. E com que elegância ele manobrou para que todos fossem a favor da exibição do filme pela TV, propondo a grande documentação que deveria acompanhá-lo!

— Será que já então pretendia delatar tudo, a fim de que pudessem ser liquidadas todas as testemunhas da autenticidade do filme? — perguntou Mercedes.

— Com toda a certeza — disse Daniel. — Mas acho impossível que ele estivesse obedecendo a motivos de ordem política. Karrelis tinha politicamente tanto interesse no filme quanto meu pai — isto é, absolutamente nenhum. A ambos somente interessava o dinheiro.

— Isso mesmo — disse Colledo.

Sua pequena e linda mulher indagou: — E como vai ficar tudo isso agora, Conny?

— O Conselho de Radiodifusão decidiu que até a nomeação de um novo superintendente, Kleinhals vai dirigir a emissora. A mídia tem a sua sensação, os colegas têm do que falar, o porta- voz do governo anuncia investigações em curso nas quais não se deve intervir. Bem, a vida dele também não é nada fácil, Mas no que se refere a nosso trabalho: nós agora dispomos de material suficiente. O filme deve ser montado o mais rapidamente possível, a fim de que possamos oferecê-lo às outras emissoras. Kleinhals espera uma enorme procura.

— Fico muito feliz de que já tenhamos chegado a esse ponto — disse Mercedes.

— Escute aqui, Conny — disse Lisa, sua mulher — Danny e Mercedes são afinal nossos bons amigos. Eu preciso contar- lhes uma coisa.

— Por favor, não, Lisa! — disse Colledo, sobressaltado.

— Sim, me deixe falar, Conny! Eles precisam saber!

Seu marido deu de ombros.

— No ano passado, em junho — disse Lisa baixinho —, realizou-se em Nova lorque essa conferência internacional em favor de uma maior cooperação entre as emissoras de televisão. Ela começou em 8 de junho e deveria durar duas semanas. Tratava-se sobretudo de um intercâmbio maior e mais rápido de notícias atuais sobre os acontecimentos do mundo e da transmissão por satélites comerciais. Conny tinha de ir. Eu tenho uma colega de colégio em Kiel e disse a Conny que Hanni — este é o nome dela — queria ir com seu noivo fazer um cruzeiro pela Suécia e a Noruega e tinha me convidado. O noivo de Hanni possui um maravilhoso iate de alto-mar, com uma tripulação de três homens. Um homem rico. Eu disse que gostaria de acompanhá-los. Conny estaria ausente, e Teresa cuidaria de Kathi. “Naturalmente”, disse Conny, “participe do cruzeiro e se divirta!” Em 7 de junho, ele pegou o avião para Nova lorque...

Por volta das 11h da noite do dia 11 de junho de 1983, Conrad Colledo chegou de volta ao hotel Regency, na Park Avenue em Nova lorque. Ele tivera um dia exaustivo e estava morto de cansaço. O recepcionista estendeu-lhe um envelope vermelho da central telefônica. Colledo puxou uma folha dobrada de papel e leu: “13h32m — Mrs. Teresa Poldinger telefonou de Frankfurt, Alemanha. Pede chamada de volta. É muito urgente.”

Collledo subiu de elevador até o décimo andar, correu para seu quarto e discou o número do telefone da casa no Parque Grüneburg. Aqui são 11h, na Europa já são cinco da manhã, pensou ele. Que terá acontecido? Atenderam depois do primeiro toque. A voz da velha Teresa soou: casa do Sr. Colledo...

— Teresa, aqui é...

— Graças — gritou ela. — Finalmente! Já estou esperando há tanto tempo...

— O que ouve, Teresa?

Ele a ouviu soluçar. — Kathi...

— O que houve com Kathi?

Ele a ouvia chorando do outro lado do oceano, chorando terrivelmente.

— Teresa! — gritou Colledo.

Teresa só conseguia falar com muito esforço. — Uma infelicidade, meu senhor, uma grande infelicidade! Pelo amor de Deus... Minha pequena Kathi...

— O que há com ela? — gritou Colledo.

— Ontem ainda estava em ordem, meu senhor. De noite, ela teve dor de barriga... Achei que era porque tinha comido frutas e bebido água... mas de manhã a dor de barriga tinha piorado... e ao meio-dia ela tinha febre. Quase trinta e nove, meu Deus...

— Teresa!

— Chamei o Dr. Egling... Então ele disse, apendicite, ela precisa ir para o hospital... A ambulância veio... Levaram a menina para a Casa de saúde de crianças Clementine, na Rua Theobald Christ e operaram imediatamente... Todos os médicos fizeram depois uma cara muito séria...

Colledo gemia.

... apendicite supurada, disseram eles... Nossa Kathi está agora no tratamento intensivo... Ela está passando mal, meu senhor...

— Eu tomo o primeiro avião! — exclamou Colledo. — E minha mulher? Conseguiu encontrá-la?

— Ainda não... estou tentando sem parar... pelo rádio marítimo... Pois se ela está naquele barco, meu senhor...

— Continue insistindo, Teresa! Chegarei o mais rápido que puder.

Colledo desligou. Chamou o recepcionista, que reservou para ele um lugar num vôo da manhã. Às 19h Colledo desembarcou em Frankfurt. Com um táxi, seguiu direto para o hospital Clementine. O porteiro indicou-lhe o caminho. Sobre um banco em frente ao Centro de Tratamento lntensivo de Cirurgia estava sentada a velha Teresa. Seu rosto estava branco e os olhos inchados e inflamados de tanto chorar. Colledo a abraçou. A idosa mulher gaguejava: — O doutor disse... que eu preciso rezar... Eu rezo o tempo todo, meu senhor, todo o tempo só fico rezando pelo meu pequeno amorzinho...

— A senhora encontrou minha mulher?

— Não, ainda não, meu senhor..

— Mas isso é impossível!

— É, eu também não entendo. O pessoal da rádio marítima diz que no iate ninguém atende...

— Mas isso não existe! Tem de atender!

— Sim, eu disse isso também... Mas se ninguém atende mesmo, meu senhor...

De uma porta do centro intensivo saiu um senhor de idade de cabelos grisalhos e olhos escuros e cansados. Estava com um avental de médico.

— Este é o doutor — exclamou a cozinheira. Colledo atravessou-se em seu caminho. O médico alçou o olhar.

— Sim? Oh, o senhor é o Sr. Colledo?

— Acabo de chegar de avião. Como está ela, Dr.?

— Goldberg.

— Como está, Dr. Goldberg?

Com seus olhos cansados e suas pálpebras pesadas o médico fitou Colledo em silêncio. Depois, passou-lhe um braço pelo ombro e caminhou a seu lado pelo longo corredor. Diante de uma janela, ele ficou parado.

— Sua filhinha está muito mal, Sr. Colledo. Estou lhe dizendo a verdade.

— Por favor. Não tem sentido esconder as coisas.

— Isso mesmo. Infelizmente, agregou-se agora ao problema uma grave peritonite.

Colledo sentiu subitamente todo o seu corpo começar a tremer. Cerrou os punhos. Apertava com força as maxilas. Não conseguia controlar o tremor de seu corpo.

— Colocamos diversos drenos na cavidade abdominal, Sr. Colledo. Praticamente a enxaguamos o tempo todo, para mantê-la limpa. Com antibióticos, naturalmente, doses maciças. Mas não está ajudando em nada. A pequena continua com febre elevada. Perto dos quarenta graus...

— Posso vê-la?

O médico hesitou.

— Por favor, doutor! Eu lhe peço, deixe-me chegar perto de Kathi!

Cinco minutos mais tarde, Colledo aproximou-se em trajes especiais da cama de sua filha. Ela estava ligada a vários tubinhos e a um conta-gotas. Seu rosto pareceu a Colledo tão pequeno, tão miúdo. Kathi mantinha os olhos fechados. Respirava com dificuldade. Ele falou com ela. Somente depois de algum tempo ela abriu seus olhos: opacos e leitosos. Sua respiração estava estertorante.

— Kathi! Sou eu, o paizinho!

— Pombinhas! — disse a criança. — Tantas pombinhas, muitas pombinhas...

E os olhos se fecharam de novo. Colledo permaneceu sentado mais dez minutos junto à cama, mas depois não agüentou mais. Deixou o centro intensivo e mandou Teresa para casa. Permaneceu contudo no hospital e ficou tentando entrar em contato com o iate Jasmim II através do rádio, mas tudo foi em vão. O Jasmim II não responde, diziam-lhe. Às nove da noite, Colledo telefonou para a mãe da colega de colégio de sua mulher, que morava em Kiel. Obtivera o número por intermédio do serviço de informações.

A Sra. Clara Leisen foi extraordinariamente gentil depois que Colledo relatou o que havia acontecido e que não conseguia entrar em contato com o iate no qual se encontravam, em algum ponto do Báltico, sua mulher Lisa, a filha da Sra. Leisen, Hanni, e o seu noivo. Por fim, ela disse: — Sr. Colledo, tudo isso é terrível para mim. Mas o que posso fazer?

— A senhora pode me dizer a verdade — disse Colledo. — Alguma coisa está errada. O que é?

A Sra. Leisen soluçava.

— Sua mulher não se encontra com Hanni em cruzeiro, Sr. Colledo. Ela só contou isso para o senhor.

— Ela não está no iate?

— Não, Sr. Colledo... Ah, como isso é terrível...

— Então, onde é que ela está? Sra. Leisen, eu lhe peço! Diga- me o que sabe! Nossa filhinha está morrendo. Preciso saber onde está minha mulher! Por favor! Se a senhora tiver alguma idéia, diga! Eu lhe imploro!

— Sua mulher está na ilha de Sylt, Sr. Colledo — soou, muito baixa, a voz que vinha de Kiel.

— Na ilha de Sylt?

— Sim.

— Como assim?

— Sr. Colledo, não sei o que devo dizer... o que posso dizer...

— A verdade — berrou ele.

— A verdade... Sua mulher pediu a Hanni que a ajudasse...

— Para ajudá-la? E dizer-me que estaria em companhia de sua filha e do noivo dela?

— Sim. Mas na verdade sua mulher está em Sylt.

— Onde em Sylt?

— Isso eu não sei. Ela deu um número de telefone a Hanni, já há um ano quase... para o caso... As duas são velhas amigas...

— A senhora tem esse número?

— Eu... Mas, realmente...

— A senhora tem esse número? Talvez na agenda de telefones de sua filha?

— Sim, Sr. Colledo. Mas eu não sei...

— Dê-me logo esse número, Sra. Leisen! Nossa filha está morrendo!

Ela lhe deu finalmente o número. A Sra. Leisen estava muito perturbada.

Colledo discou o número de Sylt. O sinal soou longamente, e só então atendeu uma voz masculina.

— Karrelis!

Colledo quase deixou o fone cair das mãos. Não disse palavra.

— Alô! — exclamou a voz do seu superintendente. Reconheceu-a com nitidez. — Alô! Quem está chamando? Diga logo, maldição! Mas que diabo, quem fala?

Conrad Colledo desligou.

Por volta das seis da manhã do dia seguinte a vida de Kathi começou a apagar-se. A pressão de seu sangue baixou e o pulso ficava cada vez mais fraco. Quase não respirava. Colledo ficara a noite inteira sentado ao lado da cama. Também o Dr. Goldberg permaneceu no centro intensivo. Agora ele se achava ao lado de Colledo. A primeira luz do sol da manhã clareava o quarto. Uma tela de computador, na qual os riscos verdes em movimento mostravam a atividade do coração de Kathi, estava instalada atrás da cama. O traçado ficava cada vez mais irregular. Colledo sentia como as lágrimas lhe escorriam pelas faces. De repente, a criança arregalou os olhos. Em seu último minuto de vida, Kathi ficou completamente consciente. Ela sorriu quando viu Colledo.

— Paizinho! — Seu olhar vagueou pelo quarto. — Onde está...?

Ela não terminou a frase. Os olhos fecharam-se. Kathi jazia imóvel. Não respirava mais. Um quase imperceptível estremecimento perpassou-lhe o pequeno corpo. Logo em seguida, os confusos riscos verdes desapareciam também da tela do monitor. Só se via agora uma linha reta.

— Já passou — disse Goldberg. Ele se aproximou de Colledo e pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Lamento imensamente pelo senhor. Mas fizemos o que podíamos. Desde o começo não havia perspectivas. Venha!

— Só desejo ficar um pouquinho com ela, por favor — disse Colledo.

Goldberg assentiu e abandonou o quarto.

Colledo permaneceu quinze minutos sentado na cama de sua filha morta, procurando conversar com ela, em pensamento, pela última vez. Foi em vão. Teria sido o mesmo que se despedir de uma estátua. Ele se ergueu e foi embora.

Quando chegou ao pátio do hospital com suas árvores e flores desabrochadas, um grande carro deslizou pela entrada e parou bem junto dele. Lisa e Karrelis desceram. Seus rostos estavam cinzentos.

— Conny! — Sua mulher veio caminhando em sua direção. Ele recuou e ela ficou parada.

— Conny, eu... A Sra. Leisen telefonou... logo depois de você... partimos imediatamente... Conseguimos um avião particular. De Hamburgo viemos então com o carro... — Ela avançou e passou os braços em torno do pescoço dele. — Por favor, me perdoe! — exclamou desesperada.

Ele segurou as mãos da mulher e afastou-a de si.

— Deixe-me esclarecer tudo — começou Karrelis. — A culpa foi minha. Apenas minha, eu...

Colledo fez um movimento como se quisesse golpear o superintendente.

Karrelis levantou uma das mãos.

— Kathi está morta — disse Colledo com uma voz que a ele mesmo pareceu estranha. Deixou os dois parados ali e dirigiu-se para seu carro. Seguiu caminhando e a cada passo soavam suas próprias palavras dentro de sua cabeça: Kathi está morta... Kathi está morta... Kathi está morta...

Seguiu, então, para casa. Dirigia com todo o cuidado, pois sentia fortes tonteiras.

Teresa recebeu-o banhada em lágrimas.

— Já sei de tudo, meu senhor. Telefonaram do hospital. O senhor precisa voltar lá por causa dos papéis. São tantos papéis...

Colledo passou em silêncio pela velha mulher. Seguiu para seu quarto e deitou-se, vestido como estava. Uma janela permanecia aberta. Também aqui a luz do sol entrava no quarto, e as árvores do jardim estavam cheias de pássaros cantando. Colledo ficou deitado de costas na cama. Fitava o teto e não se mexia. Mais tarde, ouviu sua mulher voltar e trocar algumas palavras com Teresa. Em seguida, ouviu a água enchendo a banheira. Ele permanecia imóvel.

Passada uma meia hora, ouviu um gemido. Pulou da cama e tentou abrir a porta do banheiro. Estava trancada.

— Lisa! — gritou ele.

Nenhuma resposta, apenas o gemido.

Recuou uns passos, tomou impulso e lançou-se de ombros contra a porta que então se rompeu. Na banheira jazia sua mulher, nua e mergulhada em água vermelho-escura. Os olhos de Lisa astavn arregalados e fixos. A boca, totalmente aberta. Na mão, segurava ainda uma lâmina de barbear com a qual havia cortado as veias e os tendões de ambos os pulsos.

— Meia hora mais tarde, e ela estaria morta — disse Mercedes no carro, ao lado de Daniel. Atravessavam as ruas na noite escura. Tinha ficado tarde na casa dos Colledo, já era uma e meia da manhã. Os sinais piscavam monótonos nos cruzamentos das ruas vazias.

— Sim, ela teve bastante sorte — disse Daniel.

— Também com o marido — disse Mercedes. — Sujeito decente, o Conny. Perdoou-a imediatamente.

— Ele a ama — comentou Daniel. Não lhe restava outra coisa.

— Precisa ser um amor muito grande.

— Oh, sim, muito grande.

— E, mesmo assim, ela o enganou — por mais de um ano. Você consegue entender isso?

— Não — disse Daniel. — Mas agora entendo porque Conny odeia tanto Karrelis.

— Na verdade, ele tinha de odiar Lisa — disse Mercedes. — Ela o traiu e enganou. Karrelis só aproveitou a chance.

—— Isso está certo, mas quando se trata de amor não existe mais lógica alguma.

— Por que será que Lisa fez questão de nos contar toda essa história? — indagou Mercedes.

— Como prova de amizade, acho eu. Para mostrar o quanto confia na gente. Os dois vivem muito isolados. Certamente gostariam de ter bons amigos.

— Mas isso você sempre foi, Danny, um bom amigo.

— Sim. Mas só que agora existe você. Nós quatro — agora combinamos. Acho que foi isso que Lisa quis dar a entender.

Daniel dobrou a esquina, entrando pela Alameda Sandhofcr, e estacionou diante de sua casa. Não havia ninguém na rua. Desligou o motor do carro e apagou os faróis. Saltaram do carro e foram até a porta. Quando chegaram, tudo se passou muito rápido. Um homem alto e magro pulou de dentro do vão escuro junto à porta do prédio e deu uma coronhada na cabeça de Daniel.

— Danny! — gritou Mercedes, que viu como ele caía no chão. No instante seguinte o homem comprimiu-lhe um pano molhado contra a boca e o nariz. Éter, pensou ela. O homem imobilizou-a com os braços. Ela se contorcia, mas logo em seguida perdeu os sentidos.

Wayne Hyde ergueu Mercedes e carregou-a até o carro estacionado mais adiante. Abriu a porta direita da frente, deixou a mulher inconsciente escorregar sobre o assento e prendeu-a com o cinto de segurança. Deu a volta ao veículo e agachou-se atrás, ao volante. Do porta-luvas, retirou uma caixinha prateada. Dentro dela havia uma seringa, cheia de líquido. Com um algodão embebido em álcool, também tirado da caixinha, Hyde esfregou um ponto do antebraço de Mercedes. Espetou a agulha sob a pele e comprimiu o êmbolo. Garanto que isso vai acalmá-la por algum tempo, pensou Hyde. Tudo normal. É preciso não chamar atenção! Deu tudo certo. Só tive é que esperar por muito tempo. Mas está tudo incluído no preço.

O crânio de Daniel doía de tal forma que ele pensou que não ia agüentar. Muito lentamente, ele voltava a si. Percebeu que se achava deitado na calçada, o rosto metido numa poça. Com esforço botou a mão esquerda na cabeça. Seu cabelo também estava molhado. Voltou a mão para bem junto dos olhos. À luz de um poste ele viu que ela estava vermelha. Sangue. Seu sangue. Também na poça em que se achava deitado havia sangue. Seu sangue. Ele gemia. Tentou soerguer-se mas logo tornou a cair. Na quarta tentativa desistiu de levantar-se e arrastou-se então até a porta de casa. Num interminável esforço, levantou-se apoiado na parede até alcançar o porteiro eletrônico. Apertou todos os botões. Depois de algum tempo, ouviu as vozes furiosas de uma mulher e dois homens. Falavam todos ao mesmo tempo.

— O que foi que houve?

— Porcaria, são quase duas horas! Quem é?

— Bêbado, hem?

— Ross — disse Daniel. — Socorro...

Ele não tinha mais forças. Tombou novamente, desfaleceu.

Quando voltou a si, encontrava-se deitado numa estreita mesa branca sob uma lâmpada muito forte. Dois jovens médicos e uma enfermeira estavam precisamente passando uma atadura em volta de sua cabeça. Sentia-se um forte cheiro de desinfetante.

— Onde estou?

— Pronto-socorro. Hospital da Universidade — disse o primeiro médico.

— Não foi nada — disse o segundo. — Apenas um grande ferimento superficial na nuca. Já foi suturado. — E Daniel gemia. — Sim, é claro que dói. Vai ainda doer algum tempo. Fizemos diversas radiografias, não houve fraturas. Provavelmente, nem mesmo uma comoção cerebral.

— O senhor acha que consegue falar? — perguntou um policial que surgira de repente à frente de Daniel.

— O senhor... — começou Daniel. A língua lhe parecia muito maior que a boca. — O senhor me trouxe até aqui...

— Sim, Sr. Ross. Os moradores chamaram a polícia. Diga-me agora o que aconteceu.

Daniel começou a falar com esforço.

Onze minutos mais tarde, a polícia de Frankfurt desencadeou as operações para o resgate de Mercedes Olivera.

Uma hora antes, Wayne Hyde havia levado Mercedes, ainda inconsciente, para a garagem subterrânea de um dos edifícios da chamada Cidade Noroeste. Muitos milhares de pessoas moravam nessa enorme cidade satélite. Mal se conheciam entre si. Não se preocupavam umas com as outras. O conjunto era chamado também de cidade dormitório, já que a maioria de seus moradores ali só permaneciam à noite, trabalhando o dia inteiro no centro da cidade.

Hyde estacionou o carro numa das vagas e desligou o motor. Abriu a porta dianteira direita, soltou o cinto de segurança e arrastou-a para fora de seu assento. Ela balbuciava levemente. Ótimo, pensou Hyde. Se encontro alguém, tomara que ela balbucie assim. Dá uma linda impressão de porre. Ele trabalhava sistematicamente, sem pressa nem nervosismo. Depois que passou um braço de Mercedes por cima de seus ombros. arrastou-a consigo e deixando que seus pés deslizassem pelo chão. Passou por uma porta do subsolo e seguiu por um longo e estreito corredor com cinco portas de elevadores, destinados aos diversos blocos do edifício. Diante da porta do elevador do meio, ele parou e apertou o botão. Levava a tiracolo a pistola SIG/Sauer de nove milímetros, que seu amigo de Frankfurt, Heinz Erkner, novamente lhe havia cedido quando há três dias chegara de Londres. Havia deixado a Sterling-Mk-9 no porta-malas do carro.

O elevador chegou.

Hyde abriu a porta e arrastou Mercedes para dentro da cabine. Subiu até o décimo quarto andar. Em cada andar havia três apartamentos. Com um suave zumbido, o elevador parou. Com um braço de Mercedes ainda enrolado em seu pescoço, ele a puxou pelo vestíbulo. Tirou a chave do bolso e abriu a fechadura e o trinco de segurança do apartamento da direita. Nos dois outros apartamentos, o silêncio era total. As pessoas aqui já dormem há muito tempo, refletiu Hyde.

A porta com os algarismos metálicos indicando 1.403 se abriu. Hyde estava ofegante. Mercedes era pesada. Ele entrou no apartamento escuro — uma grande sala, três quartos menores, banheiro e cozinha — e acendeu todas as luzes. Tinha cerrado todas as cortinas quando aqui estivera pela última vez. Morley havia lhe dado as chaves em Londres. Parecia que o advogado dispunha de chaves para numerosos apartamentos desse gênero em diversas cidades. Na primeira inspeção que fizera, Hyde havia controlado tudo. Só dispunha de duas camas de ferro num dos pequenos quartos, duas cadeiras e uma mesa. No mais, tudo estava vazio. Num supermercado da Cidade Noroeste, Hyde tinha comprado comestíveis, com os quais encheu a geladeira e o congelador. Adquirira sabão, papel higiênico, escovas de dentes e coisas do gênero, além de um balde. Também incluíra nas compras um grande rolo de fita adesiva larga, assim como uma tesoura e uma câmera Polaroid.

Arrastou Mercedes, que balbuciava mais alto, até uma das camas, cujas cobertas e travesseiros estavam intocados, e deixou a mulher escorregar sobre o leito. Logo em seguida, Mercedes arregalou os olhos. Seu rosto estava branco. Fixou o olhar em Hyde.

— Eu o conheço — disse ela baixinho. — Já o vi uma vez... na casa de Daniel Ross... Chama-se... Corley... Peter Corley...

— Boca calada! — disse Hyde. Do bolso de seu capote tirou um pequeno gravador. Em seguida, tirou o sobretudo e jogou-o por cima de uma cadeira. O gravador, ele o pousou sobre a mesa, ao lado da Polaroid.

— Onde estou? — perguntou Mercedes.

— Boca calada! — repetiu Hyde.

— Onde está o Sr. Ross?

— Cale a boca!

Hyde pegou o grande rolo de fita adesiva de cima da mesa.

— Deitada quietinha, boca fechada! — ordenou ele. Em seguida, estirou a fita sobre a boca de Mercedes. Pegou a tesoura da mesa, cortou a fita e colou mais um pedaço em cruz sobre o primeiro. — Isso — disse ele, levantando-se da borda da cama.

— Você já vai poder falar novamente. Uma pequena notícia para Ross. Em cassete. Amanhã nós vamos tirar uma bela foto de você com um exemplar do jornal BiId, de forma que se possa ler a manchete do dia. Lamento muito, mas agora você precisa ficar algemada. Presa à cama. Para que você não tenha nenhuma idéia maluca.

Voltou de novo até a cadeira sobre a qual havia jogado o seu sobretudo e pegou um par de algemas que se encontrava num bolso interno. Estava com as costas voltadas para Mercedes. Uma das algemas se enganchou no forro do bolso. Hyde puxou de um lado para o outro até rasgar o tecido. Em seguida, virou-se e parou no meio do movimento. Sobre a cama de ferro, Mercedes se contorcia em medonhas convulsões. Ela havia arrancado as fitas da boca. As pupilas estavam reviradas, e seu rosto tomara uma cor violeta. Uma espuma branca escorria de sua boca. Seu corpo arqueou-se e, de repente, ficou imóvel. Cada vez mais espuma escorria de sua boca. Hyde percebeu estilhaços de vidro nos lábios da moça. Encostou o ouvido em seu peito, sobre o coração. Tomou-lhe o pulso. Mas fez tudo isso sem nenhuma esperança. Ele fitava a morta.

— Oh, meu Deus — disse Wayne Hyde. — Mas que merda desgraçada!

Uma conversa telefônica.

— ... Conversei longamente com meus conhecidos, Dr. Herdegen. Quando é que Mr. Hyde vai chamar o senhor novamente?

— Às seis da manhã, Mr. Morley.

— Bem. Diga-lhe que meus conhecidos desejam que ele prossiga em seu trabalho como se nada houvesse ocorrido.

— Mas agora isso não faz mais sentido nenhum!

— Como não faz mais sentido, doutor?

— Porque a Olivera está morta. Ele não pode mais tirar nenhuma foto, nem gravar uma mensagem. Tudo se precipitou.

— Mesmo assim, ele precisa fazer a exigência.

— Sem um sinal de vida da Olivera eles não vão entrar na conversa.

— Em última análise, o senhor tem razão. Mas nós agora precisamos de tempo. Pode estar seguro de que Ross e os demais não vão interromper imediatamente as tratativas se Hyde agir com habilidade. Eles não têm idéia de que a Olivera já se suicidou. De onde teria ela essa maldita cápsula de cianureto?

— Hyde diz que é inteiramente inexplicável. Escute aqui, Mr. Morley, eu sei que não me compete criticar os seus conhecidos, mas isso é uma loucura! Por quanto tempo deve Hyde prosseguir com essa farsa idiota? Só falta agora ele ser acossado pelo último filho da mãe de um policial qualquer. Está em curso uma batida geral.

— Ela seria desencadeada de qualquer forma. Hyde sabe disso muito bem. O senhor não precisa ter medo em lugar dele. Ele já sente isso. Além do mais, não se trata de uma farsa idiota, doutor. Eu já disse que agora precisamos de tempo. Tempo para cozinhar os sujeitinhos em fogo brando, para que eles percam a cabeça. Se, então, mais alguém for seqüestrado — a mulher de Colledo, por exemplo —, eles vão ceder.

— O senhor quer que Hyde seqüestre uma segunda pessoa...?

— Mas é evidente que sim, doutor. Colledo é agarrado à mulher do mesmo modo que Ross à Olivera. Hyde será muito mais cauteloso da segunda vez. Isto não é uma censura. Ele não poderia adivinhar que a Olivera trazia veneno permanentemente consigo. No caso da mulher de Colledo, ele vai controlar esse ponto imediatamente.

— Mas...

— Agora basta! Já estou ficando farto dos seus mas, doutor. Instrua Hyde para que prossiga como se nada tivesse acontecido. Conte-lhe também a variante com a mulher de Colledo. Receberá prontamente novas instruções. Fim.

Sobre a escrivaninha de Daniel, o telefone tocou com estridência.

Além dele, muitos homens estavam no recinto: Conrad Colledo, o redator-chefe Kleinhals, dois técnicos da polícia e um comissário mais idoso da Divisão de Crimes, de nome Hollgand. Imediatamente depois que Daniel foi trazido para casa, saído do hospital, técnicos tinham instalado em seu telefone um comutador para localização de chamadas. Acoplado ao aparelho havia também um grande gravador de fita, destinado a gravar todas as conversas.

O telefone tocou pela segunda vez. Eram agora 6h35m do dia 28 de março de 1984, uma quarta-feira. Um dos técnicos pousou a mão sobre o receptor de um segundo telefone, que se encontrava igualmente sobre a escrivaninha.

— Atenção — disse ele contando —, três, dois, um — agora! Simultaneamente, ele e Daniel atenderam. No mesmo instante ligou-se o gravador. As bobinas giravam.

— Alô? — disse Daniel. Sofria de forte dor de cabeça. Os medicamentos que lhe haviam dado de nada serviam.

— Quem é alô? — perguntou uma voz masculina, metalicamente distorcida.

— Daniel Ross.

— Sr. Ross, a sua amiga se encontra em nosso poder e assim ficará até o instante em que o presidente do Conselho de Radiodifusão declare por escrito que o filme em questão jamais será exibido pela televisão e em que o filme esteja em nosso poder juntamente com todos os documentos das entrevistas com as testemunhas e todo o material restante que ainda lhe iremos indicar.

O técnico fez um sinal para Daniel: continuar a falar, prolongar a conversa o maior tempo possível!

— Eu quero falar com a Sra. Olivera — disse Daniel.

— Isso é impossível.

— Como posso saber se ela ainda vive?

— Ela vive. Está muito bem. Precisa crer em mim! Fale com seus amigos e com o presidente do Conselho de Radiodifusão, e permaneça nas proximidades do telefone!

— Nós vamos...

Clique. Quem ligou havia desligado.

Daniel praguejou.

O segundo técnico desligou o gravador, retrocedeu a fita e tornou a ligá-la. Todos escutaram o diálogo entre Daniel e o desconhecido.

O segundo telefone tocou. O primeiro técnico atendeu.

— Sim?

— Curto demais — disse uma voz. — Não conseguimos verificar de onde foi feita a chamada.

— O sujeito vai ligar novamente — disse o primeiro técnico.

— Sim, com certeza — disse seu colega numa das grandes centrais telefônicas da cidade de Frankfurt.

— Eu preciso falar com o presidente — disse Kleinhals.

— O senhor ficou maluco? — perguntou Colledo. — Depois de uma simples ameaça, sem um só sinal de vida da Sra. Olivera, o senhor quer atender a uma exigência desse crápula?

— Naturalmente que não! — disse Kleinhals furioso. — Mas o presidente precisa ficar ciente do que aconteceu.

— Use então este aparelho — disse o primeiro técnico. — O telefone do Sr. Ross continua livre.

Daniel permanecia sentado em total imobilidade.

E imóvel escutou a conversa de Kleinhals. Este disse, depois de haver desligado: — Precisamos entreter esse cara o mais que pudermos. Foi acionado o maior cerco que já existiu desde o seqüestro de Schleyer. Mesmo que dure alguns dias. Temos de entretê-lo. Exigir sinais de vida. E, quando os tivermos, falar de pormenores. Ross precisa fazer perguntas. E por aí afora. O professor Klammer está vindo às corridas para cá.

O professor Klammer era o presidente do Conselho de Radiodifusão.

— E o que faremos agora? — indagou Colledo.

— Esperar até que o cão volte a ligar — disse Kleinhals.

— Virão para cá dois funcionários — disse o comissário Hollgand, um pequeno e tranqüilo homem de óculos. — Trazem uma grande caixa térmica com café e sanduíches para todos. Já foi providenciado. Vão cuidar de nós. Trabalharemos em três turnos de oito horas. Infelizmente isso não vale para o senhor, Sr. Ross.

— Vou empurrar a minha cama até aqui — disse Daniel. E ergueu-se rapidamente, mas logo gemeu, pois seu crânio reagiu ao brusco movimento com uma dor ainda maior.

— O que é que você tem, Danny?

— O diário! — Daniel já ia em direção ao quarto.

— Que diário?

— O de Mercedes. Ela mantinha um. E só agora me lembrei de uma coisa... — Ele desapareceu no quarto de dormir e voltou com um volume encadernado em couro vermelho. A isso acrescentou: — Certa vez, Mercedes me disse: ‘Se alguma coisa vier a acontecer comigo — nós já vimos de que essas pessoas são capazes —, portanto, se alguma coisa acontecer comigo, olhe então no meu diário. Há lá dentro uma carta para você. Leia-a! Mas só nesse caso!’ E Daniel se pôs a folhear o volume vermeIho. Um envelope caiu ao chão. Ele o apanhou. Fez-se um profundo silêncio.

Daniel abriu o envelope. Várias folhas de papel, cobertas com a letra de Mercedes, se achavam lá dentro. Daniel sentou-se de novo e leu.

Danny, meu querido Danny,

Quando você ler estas palavras, eu já estarei morta. Por favor, perdoe o que eu fiz. Eu o amo tanto. Gostaria tanto de viver feliz com você. Mas isso agora se tornou impossível. Você sabe com quem nós temos de lidar. Você sabe que quem está por trás dessa gente — eles mesmos nunca se sujam as mãos — não recua diante de nada a fim de evitar a exibição de nosso filme pela TV. Desde o começo foi assim. E quanto mais material nós conseguirmos reunir, mais as coisas vão piorar. Os adversários sabem o que temos em mãos. Para tanto há um delator. Todos os dias, eu conto em ser seqüestrada. Como em nosso meio não é comum sacrificar-se imediatamente uma vida humana, será tentada uma chantagem contra a emissora. Por exemplo: minha vida contra todo o material e um firme compromisso de alguém em alta posição de que o filme nunca seja mostrado. Naturalmente não sei com precisão como irão agir.

 A destruição do mundo é uma ameaça real. Disso nós temos provas. Assim, talvez exista ainda uma pequena chance. Para todos os seres humanos. Por isso, estou firmemente decidida: se me seqüestrarem vou envenenar-me na primeira oportunidade. Tenho as cápsulas do meu padrasto. Ele as recebeu certa vez de Goebbels, você se lembra. Ele lhe disse que o veneno contido nessas cápsulas hermeticamente fechadas não se deteriora. Trago-as sempre comigo. Vou me matar para que não se tenha a oportunidade de chantagear você ou o Conny ou simplesmente a emissora.

Portanto, caso me seqüestrem, não acredite em hipótese alguma nas mentiras que vão contar para atingir o seu objetivo. Pois eu já estarei morta, com toda a certeza.

Se, em tal caso, meu corpo for encontrado, não desejo velórios. À beira de minha sepultura não deverão ser feitos nem discursos, nem orações. Também não deverá haver música, flores ou coroas.

Desejo que, afora você, meu querido, e os coveiros, não haja ninguém junto a meu túmulo. Desejo ser enterrada num cemitério próximo do lugar em que você esteja vivendo.

Você sempre me chamou de fanática, meu querido. Pois bem, eu sou. Esperemos que você nunca se veja obrigado a ler esta carta.

Eu abraço você com todo o amor.

Mercedes

Embaixo, havia uma data: 10 de março de 1984. A carta havia sido escrita há mais de duas semanas.

Daniel estendeu as folhas a Colledo. Depois, apoiou sua cabeça dolorida nas mãos e começou a chorar, o que lhe fazia tremer o corpo inteiro como se tivesse uma forte convulsão.

Duas horas mais tarde, em Wiesbaden, representantes das diferentes corporações de segurança da Alemanha Federal reuniram-se no edifício da Polícia Federal. A brigada de combate ao terrorismo GSG-9 entrou em ação. Seus especialistas não mais arredaram pé das possíveis vítimas, entre os quais se contavam, entre outros, Daniel Ross, Conrad Colledo, sua mulher Lisa, o redator-chefe Kleinhals e seus familiares. Todas as forças disponíveis da polícia, e unidades da guarda de fronteiras e do exército procuravam por Mercedes Olivera em todo o país.

Uma conversa telefônica.

— Mr. Morley, aqui é Herdegen. Hyde acabou de ligar. Toda a República Federal está...

— Em estado de alarme. Eu sei. Também sei que todas as pessoas suspeitas estão sendo observadas.

— Nessas condições Hyde não vê nenhuma possibilidade de seqüestrar a Sra. Colledo.

— O que quer isso dizer: nenhuma possibilidade? Sempre há uma possibilidade! Nesse ínterim, enviamos três elementos excelentes para ajudá-lo, não é mesmo? Que diabo, ele está sendo muito bem pago por aquilo que faz! E ele tem de fazer aquilo que determinarmos. Diga-lhe isso! Bom dia, Dr. Herdegen!

Eram 3h41m da manhã de 29 de março de 1984, quando o telefone tocou novamente. Daniel dormia em sua cama, que agora se encontrava ao lado de sua escrivaninha coberta pelos equipamentos dos técnicos. Um outro turno se achava de serviço. Colledo estava presente. Havia cochilado numa poltrona. Foi ele quem sacudiu o amigo.

— Danny! Danny! Acorde!

Daniel gemeu. Ele sentou-se na cama e pousou a mão sobre o telefone, enquanto um técnico punha a mão sobre o outro, contando regressivamente a partir de três. Ergueram os fones ao mesmo tempo. As bobinas do gravador começaram novamente a girar.

Ouviu-se de novo a voz metálica distorcida que Daniel já conhecia.

— O senhor já falou com seu pessoal, Sr. Ross?

Daniel esfregou os olhos que ardiam. A luz da escrivaninha era muito forte e o ar estava viciado e ruim.

— Sim — disse ele com voz rouca. Pigarreou.

— E então?

— Escute aqui, mas isso é idiota! Que segurança tem o senhor de que novas cópias não foram produzidas e de que o filme não será exibido, mesmo que agora se prometa não mostrá-lo e se entregue todo o material, para que a Sra. Olivera seja libertada?

Cada palavra custava esforço a Daniel. De seus olhos corriam lágrimas. A voz distorcida respondeu:

— Nossos planos são outros. Este seqüestro é só para mostrar do que somos capazes. Quando a Sra. Olivera, após o atendimento de nossas exigências, for libertada, ela será apenas uma morta em férias. Caso os senhores prossigam o trabalho no filme ou entrem em contato com outras emissoras, nós seremos informados e a Sra. Olivera morrerá imediatamente. Nesse caso, nada e ninguém poderão salvá-la.

— Eu quero um sinal de que ela está viva! — gritou Daniel. — Quero ouvir a voz dela!

— Não é possível. Já lhe disse isto uma vez. O senhor precisa acreditar em mim. Ela está bem — ainda. Ela lhe implora que faça o que nós exigimos.

— A voz dela! — gritou Daniel fora de si. — Quero ouvir a voz dela!

A ligação foi interrompida.

Alguns minutos mais tarde, um especialista da central telefônica ligava de volta. Novamente lhes fora impossível detectar de onde a chamada havia sido feita.

 Daniel levantou-se abruptamente e foi com rapidez para o quarto. Acendeu a luz e puxou uma gaveta. Encontrou o que buscava. No banheiro, encheu um copo com água fria e abriu o fecho da grande embalagem de Amadam, o medicamento para o qual Sibylle o reorientara após o tratamento de desintoxicação. Até então, Mercedes lhe dava um comprimido pela manhã e outro à noite. Desta feita, deixou cair onze comprimidos na palma da mão, jogou-os na boca e engoliu-os com água. Ao telefone — pela primeira vez depois de muito tempo — havia sido dominado pela horrorosa sensação de ter de morrer caso não tomasse imediatamente a droga — e em grande quantidade. Ficou ainda uns quinze minutos sentado na borda da banheira. Só então teve forças para ir reunir-se aos demais.

Dois dias se passaram sem que o seqüestrador se manifestasse. Os jornais, a televisão, o rádio, haviam logo após o desaparecimento de Mercedes, relatado à exaustão o seqüestro, que determinados pasquins com imensas edições apresentaram em seu habitual estilo de sensacionalismo barato. Rádio e televisão davam repetidamente a descrição da desaparecida, e a policia solicitava a ajuda de todos os cidadãos para encontrá-la.

O porta-voz do governo comunicava a irritados jornalistas que o seqüestro da jovem senhora, segundo o ponto de vista de peritos, teria ligação com os assassinatos misteriosos e ainda não esclarecidos, ocorridos nas últimas semanas, e que ele nada podia dizer a respeito da natureza e dos objetivos da organização criminosa que estava por trás de tudo isso.

Em comentários e em ataques ao governo, o pessoal da imprensa, do rádio e da televisão levantava as mais arriscadas hipóteses desses acontecimentos cercados de tanto mistério — nem de longe elas se aproximavam da verdade.

Ao mesmo tempo, pacientes e exaustos, milhares e milhares de soldados, policiais e membros de brigadas especiais vasculhavam a República Federal, o que, na selva das grandes cidades, era um empreendimento de antemão condenado ao malogro. Foi oferecida uma recompensa de cem mil marcos por informações que levassem à descoberta de Mercedes Olivera e seus raptores. Isso levou a um número inconcebível de indicações sobre pretensos indícios. Cada uma delas tinha de ser verificada. Esse imenso trabalho suplementar não levou a nenhum resultado. A Polícia Federal solicitara desde o início a colaboração das organizações análogas de todos os países europeus. Pouco tempo depois, fora acionada a Interpol. Aeroportos e portos marítimos estavam sendo controlados, e o mesmo se dava com os viajantes em seus carros e os passageiros dos trens de longo percurso. As estações de fronteira estavam em alerta. E durante todo esse tempo, Daniel tomava grandes doses de Amadam sempre que sua sensação de medo voltava.

Na noite de 1º de abril, um domingo, reuniram-se oito homens no grande gabinete de trabalho de Daniel: o professor Abel Klammer, presidente do Conselho de Radiodifusão; o Dr. Volker Brandt, diretor-jurídico da emissora de TV de Frankfurt, apesar de seu aspecto tão jovem; Hans Kleinhals, redator-chefe; Conrad Colledo; os dois técnicos e o comissário de polícia que estavam de plantão naquele turno, e Daniel Ross.

Este estava muito pálido, com uma volumosa atadura na cabeça. As dores haviam cedido e ele dava uma impressão serena. No apartamento, nas escadas e ao redor do quarteirão, numerosos policiais fortemente armados e elementos do GSG-9 haviam tomado posição. A permanente vigilância de todas as pessoas envolvidas com a produção do filme documentário, bem como seus parentes, continuavam sob proteção permanente.

O professor Abel Klammer, um homem baixinho e rosado de cerca de sessenta anos de idade tomou a palavra.

— Estive numa reunião de todos os membros do Conselho de Radiodifusão e superintendentes de várias estações. Tratava-se de examinar a questão de se a emissora de Frankfurt deve prosseguir na produção do filme, oferecê-lo à venda a emissoras estrangeiras e exibi-lo pela TV. Com um voto contrário, chegamos à conclusão de que não devemos dar qualquer sinal de fraqueza ante a chantagem, e se pronunciou a favor da continuação do trabalho, ficando claro que se respeita qualquer outro ponto de vista das pessoas que se acham envolvidas diretamente com o assunto e particularmente do Sr. Ross. A pergunta que lhes tenho a fazer é, portanto, a seguinte: Os senhores partilham o ponto de vista de que, levando em conta que a Sra. Olivera com certeza quase absoluta já está morta há dias — desculpe-me, Sr. Ross — a transmissão e a venda do filme devem ser efetuadas, apesar do perigo de novos atentados terroristas? Tenho a incumbência de formular esta pergunta a cada um dos senhores. Sr. Kleinhals?

O homem que parecia um ambicioso contador disse:

— Prosseguir com o trabalho.

— Dr. Brandt?

O jovem diretor-jurídico — lembrava um beatle e era considerado pelos colegas o melhor profissional do país — disse: — Sim, sou a favor da transmissão pela TV.

— Sr. Colledo?

O chefe do Departamento de Política e de Atualidades, que quase sempre estava de terno azul, uma camisa da mesma cor e uma gravata preta bordada com elefantinhos de prata, disse:

— Se eu tivesse a menor esperança de que a Sra. Olivera ainda está viva, faria tudo para que as exigências do seqüestrador fossem atendidas, ou seja, para que o projeto fosse posto de lado. Mas eu li a carta da Sra. Olivera. Conheço seu caráter. E, além disso, está claro que o seqüestrador não é capaz de apresentar nenhum sinal de vida dela, seja acústico ou ótico. Para minha grande tristeza, estou, portanto, convicto de que ela está morta. E, nessas circunstâncias, também sou favorável a concluir e exibir o filme.

— Sr. Ross?

— Precisamos prosseguir de qualquer maneira. Desse modo estaremos satisfazendo o desejo da Sra. Olivera — disse Daniel.

O rosado e baixote professor Klammer perguntou a Kleinhals:

— Quando poderá estar pronto o filme?

— Nós ainda precisamos rodar um filme relatando os últimos acontecimentos. Se nos apressarmos, terminaremos os trabalhos dentro de três semanas, portanto por volta de 20 de abril. A essa altura estaremos em condições de oferecer o filme pronto para que outras emissoras o comprem. Essas emissoras vão então, como de hábito, proceder à dublagem em suas respectivas línguas. Ou seja, uma segunda voz deverá ser superposta à voz original, traduzindo o que esta diz, inclusive o protocolo. Sou de opinião de que o filme deve ser transmitido por todas as emissoras no mesmo dia, com o objetivo de se conseguir o maior efeito possível sobre as pessoas no mundo inteiro. A União Soviética certamente não vai comprá-lo. Os países do bloco oriental tampouco poderão fazê-lo por causa da pressão soviética. Uma parte da República Democrática Alemã capta nossa imagem. Mas isso será tudo. Assim sendo, temos em vista produzir uma versão radiofônica da documentação, providenciando a dublagem nos idiomas de cada país. Essas adaptações poderão então ser transmitidas pela Rádio Alemã. Ela tem estações retransmissoras em todo o mundo, de forma que suas emissões poderão atingir todos os países da Terra. Estamos inteiramente seguros de que fecharemos negócio com uma das maiores cadeias de televisão dos Estados Unidos, bem como com a televisão estatal chinesa. Esperamos muitos compradores. As negociações com os superintendentes estrangeiros deveriam ser imediatamente iniciadas.

 

Uma mensagem telefônica.

— Mr. Hyde, aqui fala Morley. São 11h33m, sexta-feira, 6 de abril. Meus conhecidos tomaram conhecimento de que, mesmo ajudado por outros, não lhe é possível ser bem-sucedido na realização de outro seqüestro. Em virtude do grande cerco que foi montado, sua situação ficou tão precária que o senhor não pode continuar correndo o risco de ser descoberto. O senhor nos prestou serviços notáveis. Meus conhecidos expressam o seu agradecimento. Eu o intimo a deixar a Alemanha o mais rápido possível. Sua missão está encerrada. A segunda metade de seus honorários já foi transferida para a conta na Sociedade Bancária Suíça. Desse modo, nossas relações chegam ao fim. Meus conhecidos e eu desejamos-lhe boa sorte. Caso o senhor — agora ou futuro — venha a ter dificuldades com a polícia ou autoridades, nem meus conhecidos nem eu teremos a menor idéia de quem é o senhor. O senhor iria apelar em vão para nós, e jamais poderá esperar que eu ou quem quer que seja o ajude minimamente. Pois este foi o entendimento desde o início. Adeus, Mr. Hyde! Deus o proteja! Este é o fim de minha última mensagem pora o senhor.

A Cidade Noroeste de Frankfurt dispõe de um distrito policial próprio.

No dia 7 de abril de 1984, um sábado, por volta das sete da manhã, apareceu ali um homem alto e magro de uns quarenta anos. Ele topou com o policial Josef Niedermoser, natural de Munique, que há seis meses servia em Frankfurt, e desejou-lhe bom dia.

— Grüss Gott — disse Niedermoser, que também era alto, mas muito forte. Ele acabara de bater à máquina um relatório sobre um acidente com fuga de motorista.

— Meu nome é Felix Zimmermann. Moro aqui no GerhartHauptmann-Ring, 12, bloco C, décimo quarto andar, apartamento 1.401. No meu andar existem ainda dois outros apartamentos. 1.402 e 1.403. O Sr. e a Sra. Esser, do 02, já estão para fora há três semanas. Minha mulher e eu os conhecemos superficialmente. Quem mora no 03, nós não sabemos. Desde ontem está saindo desse apartamento um mau cheiro adocicado. Hoje está ainda mais forte. Minha mulher e eu nunca vimos alguém entrar ou sair de lá. Alguma coisa deve estar errada. Talvez uma pessoa tenha morrido lá dentro e o cadáver esteja apodrecendo. Minha mulher me disse que eu lhe comunicasse isso antes de ir para a cidade.

Cerca de uma hora mais tarde, um carro da radiopatrulha parou diante do edifício do GerhartHauptmann-Ring, 12, na Cidade Noroeste. Estacionou atrás de um carro do corpo do bombeiros. Da radiopatrulha desembarcaram Daniel Ross, os dois funcionários que lhe davam proteção nesse horário, e — o único sem uniforme — o motorista. Os homens passaram através de um grupo de curiosos, em direção à entrada do edifício. Aí estavam postados mais dois policiais. Saudaram-se em silêncio. Daniel e seu acompanhante entraram num saguão muito grande e alto. Havia cinco elevadores. Tomaram o do meio — bloco C — até o décimo quarto andar. A porta do apartamento 1.403 tinha sido arrombada. Os quatro homens começaram a sentir náuseas. O cheiro fétido que chegava até eles era fortíssimo. Apertaram os lenços contra a boca e entraram no apartamento. Três bombeiros com máscaras contra gás os aguardavam. Todas as janelas estavam abertas. Um bombeiro fez um sinal para Daniel o seguir. Passaram através de uma peça maior para um dormitório, no qual havia uma mesa, duas cadeiras e duas camas de ferro. Uma delas estava feita de novo. Sobre a outra jazia uma mulher morta. Seu rosto estava negro. Sua boca, aberta. Os olhos eram apenas dois buracos cheios de um líquido escuro. Todos os homens olharam para o rosto de Daniel, que se aproximara do leito. Daniel fez que sim com a cabeça. Em seguida correu para fora do pequeno quarto em direção ao banheiro próximo e vomitou violentamente.

Enquanto isso, lá embaixo no saguão do edifício, outros bombeiros tentavam introduzir na cabine do elevador destinado ao bloco C um ataúde de zinco, de parede dupla, que se podia trancar hermeticamente. A tentativa se mostrava infrutífera. Também foi inútil tentar a escada de incêndio, situada atrás dos elevadores. Era tão estreita que os homens não conseguiam fazer passar o esquife pelas apertadas voltas que tinha. Os arquitetos desse edifício — como decerto também dos demais — aparentemente não pensaram que uma pessoa pudesse morrer em qualquer dos apartamentos. Vieram dois carros do Serviço de Socorro Técnico. A essa altura, numerosos policiais precisavam conter uma pequena multidão de curiosos a fim de deixar a rua transitável. Uma forte roldana foi fixada a uma pesada viga na janela da sala do apartamento 1.403. O caixão foi suspenso por cordas. O cadáver de Mercedes já se havia deteriorado a tal ponto que só foi possível colocá-lo no caixão junto com o lençol manchado sobre o qual se achava. O ataúde foi trancado com oito parafusos, e desceu ao longo da parede externa do edifício. Um carro preto do serviço funerário municipal já estava esperando. Bombeiros empurraram o caixão para dentro do veículo e as portas foram fechadas. O carro logo deu a partida.

Depois de longo tempo em silêncio, às três da tarde o telefone voltou a tocar sobre a escrivaninha de Daniel. Em sintonia com os dois técnicos que acabavam de começar o seu turno, Daniel levantou o receptor.

— Danny, aqui é Sibylle — disse uma voz de mulher.

— Sibylle... — Ele sentiu o suor brotando em todo o seu corpo. — Um momento, por favor! — E para os dois técnicos e um comissário: — É uma conversa particular.

Os três assentiram com a cabeça e se retiraram para o vestíbulo, cerrando a porta atrás de si. Daniel pegou novamente o fone:

— Desculpe-me! O telefone está ligado a um equipamento de escuta.

— Meu Deus... Danny, meu pobre Danny, só há alguns minutos fiquei sabendo do que aconteceu. Estava em Belgrado num congresso e acabo neste momento de voltar. Mas que coisa terrível! Ouvi pelo rádio, mas uma notícia muito curta... Coitada da Mercedes...

— Sim — disse Danny. — Coitada dela.

Diante dele se achava uma xícara com chá. Enquanto falava, apanhou a embalagem de Amadam, que agora trazia sempre consigo, guardada no bolso do paletó, e a abriu.

— Quando é que vocês a encontraram?

— Hoje pela manhã.

Ele deixou os comprimidos rolarem sobre o tampo da escrivaninha. O medo havia disparado novamente dentro dele, aquele medo sinistro.

— Onde? Você poderia contar-me, Danny, por favor? Conte-me tudo! Tudo!

Ele lhe contou tudo. Entre duas frases, ele fez uma pausa maior para tomar nove comprimidos. Jogou-os na boca e os engoliu com um gole de chá. Percebeu que suas mãos tremiam. Sentia-se tonto e bastante mal. Isso agora lhe ocorria com freqüência. O Amadam ajudava.

— Danny... — A voz de Sibylle fraquejou. — Eu sinto... sinto tanta pena de você... uma pena terrível...

— Eu também.

— O que há? Você tomou Amadam em excesso?

— Não — mentiu ele. — Como assim?

— Você está gaguejando um pouco. Você tomou Amadam sim senhor. Diga a verdade!

— Estou dizendo a verdade — voltou ele a mentir.

— Oh, meu Deus, Danny! Esses miseráveis... Esses nojentos miseráveis... Isso é de uma crueldade tamanha...

— É — disse Daniel.

— Eu vou já para Frankfurt. Imediatamente.

— Não! Eu... gostaria de ficar sozinho. Você me entende, não é?

— Claro... Claro que entendo... Quando vai ser o enterro?

— Segunda-feira de manhã. Eles levaram o cadáver para o Instituto Médico Legal. Precisam fazer uma autópsia. Embora seja evidente o que ocorreu. Ela se envenenou com cianureto.

— Mas na segunda eu vou para o enterro.

— Por favor não, Sibylle — disse ele. — Mercedes me escreveu uma carta... deixou uma carta, quero dizer... Ela queria, no caso de sua morte, que não houvesse velório, nem flores, nenhum sacerdote, nem música ou gente junto à sepultura — só eu. Acho que nós deveremos respeitar isso.

— Certamente, Danny. Certamente que sim. Eu... eu...

— Sim, Sibylle?

— Em pensamento, eu estou junto a você, meu querido. Sempre, Danny, sempre. Eu amo o Werner realmente. Mas nunca conseguirei esquecer nosso tempo. Nosso tempo maravilhoso.

— Eu também não, Sibylle.

— Foi um amor tão grande. E um tão grande amor não acaba nunca, não é mesmo?

— Não, realmente não.

— E por isso, embora eu admire tanto o Werner e seja tão feliz com ele, sempre irei traí-lo com você, Danny. Traí-lo em pensamento. Disso... disso você sempre soube, não é verdade? Sempre sentiu, não é mesmo?

— Sim, Sibylle. E você, você sentiu que comigo e com Mercedes a coisa também era assim, embora eu a amasse muito. Você simplesmente nunca irá desaparecer de minha vida.

— E você tampouco da minha, Danny.

— E tudo isso não é verdadeiro — disse ele aumentando a voz.

— Como? — soou a voz dela, assustada. — O que quer dizer isso, Danny?

— Ah, Sibylle... Você é tão boazinha... Tão empenhada em me ajudar... Você quer que eu tenha pelo menos um apoio, pensando como foi com nós dois.

— Ora, mas foi mesmo maravilhoso!

— Certamente, Sibylle... foi maravilhoso mesmo... E também durou um bocado até que eu pudesse amar Mercedes, sem pensar sempre em você como vinha fazendo durante todos esses anos... Finalmente consegui... Eu não precisava mais pensar em nós dois, fazer comparações, recordar-me... Eu podia amar Mercedes, realmente, de verdade.., como amei você.., do mesmo modo que você ama o Werner, seja franca... Nós não devemos mentir, somente para que fique mais fácil para mim... Não fica mais fácil... Você ama o Werner de todo o coração, e eu amei Mercedes com todo o meu coração... O resto é apenas reminiscência, Sibylle, somente uma lembrança que nós dois possuímos.

Ela ficou silenciosa por bastante tempo. Quando voltou a falar, sua voz estava muito baixa.

— Não fique zangado comigo, Danny... Eu... eu realmente pensei que iria ajudá-lo se falasse assim com você. Precisamos nos ater à verdade... Você tem toda a razão... Nós nos conhecemos há tanto tempo... Perdoe-me haver tentado isso... Foi, de fato, apenas porque...

— Sim, Sibylle, sim... E eu também agradeço a você... Apenas nós não devemos fingir um para o outro ... Seria tão ignóbil com Mercedes... e simplesmente não seria verdade! Eu lhe dou um abraço — forte, bem apertado.

— E eu em você, Danny. — A voz dela era apenas um murmúrio. — Telefone, telefone logo, por favor, sim?

— Sim, logo, logo — disse Daniel.

Repôs o receptor no lugar e deixou cair mais alguns comprimidos em cima da mesa. Eu preciso de mais, pensava ele.

Na manhã de 9 de abril duzentos policiais de prontidão isolaram um setor afastado do Cemitério Sul bem como suas vias de acesso. Somente três carros da emissora de televisão de Frankfurt tiveram permissão para romper a barreira. Sobre suas capotas e tetos havia homens munidos de câmeras que filmavam o enterro de Mercedes. Este transcorreu rapidamente. Um carro do serviço funerário municipal aproximou-se de uma cova com o caixão. Não havia música, nem flores. Discursos e orações tampouco. Daniel estava postado à beira da sepultura, entre dois funcionários da Policia Federal. Quatro empregados da funerária deixaram escorregar o esquife para dentro da cova e os coveiros começaram prontamente a encher o buraco. Policiais armados com pistolas automáticas estavam dispostos em um grande círculo ao redor das sepulturas.

A face de Daniel estava branca e inteiramente petriflcada. O sol brilhava nesse lindo dia de primavera, e das árvores vinham os trinados de muitos pássaros. Daniel observou os coveiros durante algum tempo. Depois, virou-se e foi embora, seguido por seus acompanhantes, percorrendo o longo caminho de volta até um carro da radiopatrulha. Durante todo o tempo não dissera palavra.

Chegando à Alameda Sandhofer, Daniel se deitou sobre a cama, que de novo se achava em seu quarto. Os dois homens da Polícia Federal permaneceram no gabinete de trabalho. Daniel ficou dei tado, imóvel, fixando os olhos no teto. Depois de algum tempo havia adormecido. Despertou depois da meia-noite sentindo-se fraco e indisposto. Andou até o gabinete de trabalho. Os dois guarda-costas do turno da noite se encontravam sentados defronte à parede com as estantes de livros e jogavam um carteado. Eles sentiram-se embaraçados. Ele lhes fez um sinal para que não se incomodassem, foi até a escrivaninha — os equipamentos de escuta telefônica haviam sumido — e telefonou para seu pai em Buenos Aires. Ele o fazia diariamente a essa mesma hora.

Olivera atendeu prontamente. Sua voz estava balbuciante.

— Alô, Daniel?

— O que... o que aconteceu?

— Hoje de manhã nós a sepultamos. No Cemitério Sul. Conforme ela havia desejado. Embora não exatamente desse modo.

Olivera ficou em silêncio.

— Quando é que você vem? — perguntou Daniel.

Não houve resposta.

— Quando você vem?

— De modo algum...

— O quê?

— Você tem de me entender, Daniel... Eu não consigo. Simplesmente não posso ir... impossível. .. Estou desesperado demais... e velho demais também... Essa viagem me derrubaria... Mal consigo mexer-me dentro de casa... Sabe, é como se eu mesmo tivesse morrido e estivesse deitado dentro do caixão e não conseguisse deixá-lo mais... Você entende isso? Diga que você compreende isso, Daniel!

— Seu ordinário! — disse Daniel Ross.

No domingo, dia 13 de maio de 1984, no horário nobre da noite, foi transmitida a primeira parte do filme documentário O mundo dividido — mentira ou verdade? por emissoras de televisão de oitenta e cinco países, nos cinco continentes. A isso somavam-se as emissões radiofônicas, em diferentes idiomas, da Rádio Alemã. Semanas antes, muito se havia escrito e falado nos jornais, no rádio e na televisão, a respeito dessa produção. Isso fez aumentar ainda mais o grau de interesse das pessoas. Segundo uma pesquisa feita posteriormente, no momento em que começou a transmissão quase novecentos milhões de pessoas se achavam sentadas diante de seus aparelhos: brancos, amarelos, negros, pessoas de todos os credos, de todas as convicções possíveis, de todas as atividades profissionais e níveis de rendimento. Diante de telas cintilantes ou aparelhos de rádio, se encontravam multimilionários e famílias que viviam abaixo do chamado limite da miséria. Coveiros e corretores de bolsas de valores; empresários da indústria pesada e desempregados; políticos e prostitutas; padres e assassinos; aleijados e mutilados das 156 “pequenas guerras” ocorridas desde 1945 e da grande que então terminara; detentores do Prêmio Nobel da Paz que não tinham conseguido evitar nem mesmo a menor dessas guerras. Diante do rádio ou da televisão estavam sentadas as famílias enlutadas dos que tombaram, e os homens, mulheres e crianças que sofreram sob ditaduras militares ou outras quaisquer em que se torturava até a morte, afogava, enforcava, fuzilava, queimava, envenenava, eletrocutava, liquidava com o machado ou os potentes medicamentos utilizados na psiquiatria. E freiras e produtores de filmes; generais e vendedores de amendoim; físicos nucleares e corretores de seguros; reis e limpadores de esgotos; proprietários de editoras e carregadores de água, fabricantes de armamentos e mecânicos de automóveis; atores e especialistas em informática; viciados, vencedores de olimpíadas, pedreiros, cantoras de cabaré; sadios e enfermos, velhos e jovens.

A primeira parte da documentação continha o depoimento de Olivera a respeito da procedência do filme, a declaração de Mercedes assim como o velho filme com o protocolo secreto. No segundo e terceiro dias deveriam ser mostradas a segunda e terceira partes, no mesmo horário. As continuações consistiam nos depoimentos contraditórios das testemunhas, a declaração de Daniel Ross, relatórios sobre as conversas telefônicas mantidas pelo superintendente com os diplomatas norte-americanos e soviéticos e sobre o desmascaramento de Karrelis. Havia também reportagens a respeito dos assassinados e do seqüestro e fim de Mercedes, aIém das imagens do enterro espectral no Cemitério Sul de Frankfurt. Tudo isso ligado por comentários e escrupulosos eesclarecimentos de um jornalismo impecável, informativo e isento. No mundo inteiro a documentação foi vista e ouvida naquele domingo. Aqui estão registrados apenas alguns juízos ou reações por ocasião da apresentação dessa primeira parte.

No Cairo, capital do Egito, diz Abdu Amarna, um óptico, a sua mulher Isis: — A gente deveria pôr os políticos dirigentes dos EUA e da URSS diante de um tribunal internacional e executá-los. Eles é que são os culpados de toda a desgraça do mundo.

Sua mulher replica: — Não diga bobagem, Abdu! Tal coisa jamais vai acontecer, e você bem sabe disso. Eles são tão fortes e nós tão fracos.

Em extensas áreas da África, especialmente na Etiópia, reina a maior catástrofe de fome da História. Centenas de milhares de pessoas já morreram, milhões de outras seguirão o mesmo caminho. A Etiópia quase não dispõe de estradas. Um comboio de caminhões de dez toneladas se arrasta vagarosamente, vindo do aeroporto da capital, Adis-Abeba, pelo chão ressecado, de buraco em buraco, em direção a Lalibela, ao norte do país. Os gigantescos veículos estão carregados de farinha, leite em pó e medicamentos destinados às regiões em estado de penúria. Encontram-se em viagem há quatro dias. Na cabine de um dos caminhões dois motoristas acompanham atentos pelo rádio a emissão de uma estação retransmissora da Rádio Alemã, apesar de todos os fortes ruídos de interferência.

Kalo Negesti, o homem ao volante, diz: — Dividam o mundo entre si! Fiquem felizes com as suas partes! Aqui ninguém se interessa por isso. Por aqui, todos vão mesmo morrer. Então, vocês podem vir aqui nos enterrar! Ou nos deixar deitados por aí mesmo!

— Por mim, vocês podem esticar as canelas do mesmo jeito que o pessoal daqui — disse seu companheiro Ko Yahunia.

Em Mempawah, um porto ao sul do mar da China, situado na costa ocidental de Bornéu, diz Romang Timor, antigo aprendiz de cozinha, dirigindo-se a sua mãe, Banda: — Nós nunca vimos um americano ou um russo. Por mim, todos os bandidos do mundo que façam o que quiserem. Do hospital de Pontianak me mandaram para casa porque as metástases já chegaram até a laringe. Dentro de um mês já estarei morto...

Romang Timor acabara de completar vinte e um anos de idade.

Em Santiago do Chile, diz Taipal Chuzco, detetive de um supermercado: — E daí?! Isso não passa de um programa de horário infantil! Meus queridos, imaginem só, os dois partilharam o mundo entre si! Quem é que vai fazer um filme sobre os crimes do General Pinochet?

Nas cadeias de montanha do Hindu Kuch, que se erguem no Nordeste do Afeganistão a uma altura de quase oito mil metros, rebeldes escutam dentro de seu quase inacessível covil rochoso a versão radiofônica, com um receptor militar soviético capturado por eles. Um deles diz: — Vocês agora estão entendendo por que os americanos se conformaram com o fato de nós termos sido invadidos pelos russos?

— Os políticos americanos estão escandalizados — disse um outro.

— O mundo inteiro está — disse o primeiro. — Mas mesmo assim ninguém nos ajuda.

Em Eisenhach, na República Democrática Alemã, diz o torneiro KarI Zschinschke que com sua mulher sintonizou a televisão ocidental, o que não é permitido: — É por isso que os malditos americanos não mexeram um só dedo quando o muro foi construído, Emma. E não nos ajudaram quando, antes, os trabalhadores tinham se revoltado e os tanques soviéticos vieram em 17 de junho de 1953. E seu irmão foi fuzilado em Berlim, diante da Porta de Brandemburgo. Onze anos tinha ele. Malditos sejam, os dois!

— Desligue, Karl! — diz sua mulher. — Mesmo que seja assim! Isso não vai trazer meu irmão de volta à vida.

Em Bielefeld, na República Federal da Alemanha, o contador- chefe Hermann Eipel diz a sua mulher e filhos: — Esse filme não passa de uma velha falsificação nazista, está cÍaro. E também é evidente quem deixa agora passarem essa porcaria.

— Quem é? — indaga a mulher.

— Os Verdes e os movimentos pacifistas. Eles estão infiltrados em toda parte. Também nas emissoras de televisão! Vocês podem crer em mim!

Kuddel Heinke, operário de estaleiro, desempregado, diz em Hamburgo, a sua mulher Elfie: — Forjado ou autêntico, estou pouco ligando. O fato é que é assim. E já, já vai começar. E nosso país vai ser o primeiro a ser arrasado com todos esses foguetes enfiados pelas matas por aí.

— E que quer você fazer contra isso, Kuddel? — pergunta sua mulher Elfie, que está grávida.

Em Düsseldorf, a mulher do milionário Karl, fabricante de produtos de limpeza, diz a seu marido: — Mas isso é insuportável, Karl-Heinz! O que há no outro canal?

— Willy já vai ninar o bebê, com Heinz Erhardt — diz o marido milionário.

— Então, vire o botão! Eu sempre tenho de rir tanto com o Heinz Erhardt!

Em Lille, na França, diz o velho pai do advogado Jean-Pierre Quemard: — Acredito que eles façam isso, Jean-Pierre. Acredito mesmo. Eles são capazes de tudo. Inclusive de jogar bombas atômicas na Europa e travar uma guerra aqui. Seria a terceira guerra na minha vida.

— Nós não precisamos mais de bomba atômica, pai — diz Jean-Pierre. — Nós mesmos nos exterminamos.

Em Lewes, Condado de Kent, Inglaterra, diz o condutor de locomotivas Jack Tompkins à mulher e crianças: — É óbvio que os americanos e russos são criminosos. Mas sem o Hitler eles não seriam o que são. Hitler foi o maior criminoso que jamais existiu. Por causa dele é que o mundo se tornou aquilo que é hoje. Ah! Orwell era um otimista.

Em Saint George’s, capital da Ilha de Granada, o minúsculo Estado ao sul das Antilhas, diz o exportador de frutos cítricos Pai Owan a sua mulher: — Você entendeu agora por que os soviéticos falaram muito, mas não fizeram nada, quando os americanos desembarcaram aqui?

— Fale baixo, Pai — diz sua mulher —, fale baixo! Você está nervoso. E sempre fala tão alto. Você sabe como as paredes são finas e quem mora aqui ao lado.

Em Atenas, na Grécia, diz o dono de uma sauna, Joannis Pagniatópoulos, a sua esposa Melina: — E ainda por cima nós somos membros da OTAN!

Sua mulher comenta: — E se nós fôssemos um Estado-membro do Pacto de Varsóvia? Daria no mesmo. Um lado vai nos matar, o outro também. Passe mais um pouco de vinho, Joannis!

— Você já está embriagada.

— Sim, e daí? — diz Melina. — Quero beber até ficar inconsciente. Totalmente inconsciente.

Em Amsterdã, na Holanda, diz a viúva Maria de Vries a seu cachorro, o único ser que ela ainda tem: — Não, eu não acredito nisso. Tão más assim as pessoas não são! Mas eu tenho medo. E se elas forem mesmo ruins?

Em Sorano, uma pequenina cidade da Itália, diz Andreo Fumo a sua famiia: — E caso seja mesmo assim, eu digo bravo! Enquanto os dois tiverem a mesma força, nunca vai haver uma guerra nuclear. Por isso, os dois precisam naturalmente continuar aumentando sempre a corrida armamentista. Mas mesmo que um deles fique mais fraco e o outro o ataque — nossa pequenina Sorano não está na mira de nenhum foguete. Seria um desperdício de dinheiro. Sorano — ridículo! E se os alemães se ferrarem — azar o deles! Afinal, foram eles que nos levaram à guerra. E foi na guerra que papai e o tio Marco tombaram.

— E o que acontece conosco se soprar o vento norte? — indaga sua mulher.

Em Haifa, Israel, declara Bob Bernstein a Ruth, sua mulher:

— Mas é claro que esse filme é uma infame falsificação. E quem a está lançando? A Alemanha, é claro. Eles liquidaram todos os seus parentes, Ruth. E acabaram com os meus também. Aquilo ali continua um país de nazistas. Você está vendo só o poder que ainda têm os nazistas?

— Sim, isso é terrível — diz Ruth. — Mas, mesmo assim, eu sinto tanta saudade de nossa querida Colônia.

Em Manágua, capital da Nicarágua, diz o professor de escola primária José Patuca à mulher: — Mas é lógico que o Presidente americano telefonou para o Presidente soviético e lhe comunicou que a CIA iria agora minar nossos portos. E antes que eles desembarquem e invadam nosso país, o Presidente americano vai novamente ligar para o seu colega soviético, e este vai dizer: bem, se vocês precisam mesmo fazer isso, por favor! Quando nós tivermos que invadir a Polônia, serei eu quem vai lhe telefonar, Sr. Presidente.

Em Beirute, capital do Líbano, diz Ali Ranpur, muçulmano, mercador de tapetes, que nas lutas dos últimos dias perdeu sua mulher, sua filha e sua loja, dirigindo-se à sua gata: — Se esses cães pestilentos tivessem dividido o mundo pelo menos de modo correto! Mas o fizeram de um jeito bem relaxado, se é que o fizeram. Ë por isso que minha mulher e minha filha estão mortas. E também eu vou acabar atingido. Mas você não, minha gatinha. Alá seja louvado! Gatos pressentem o perigo. Gatos sabem cuidar de si mesmos.

O fato de os gatos serem capazes de cuidar de si mesmos acabou sendo a única esperança que restou a Ali Ranpur.

Em Gdansk, outrora chamada de Dantzig, na Polônia, banhada pelo mar Báltico, Josef Kowalski, capitão de marinha mercante, está sentado diante do aparelho de rádio com sua mulher. Ambos escutam a voz do locutor, e as lágrimas lhes rolam pelas faces. E muitas pessoas na Polônia choram como o Capitão Kowalski e sua mulher.

Em Vitebsk, na URSS, diz o metalúrgico Mikhail Bogolov a sua mulher Elisaweta: — Talvez eles tenham realmente feito isso, Elisaweta. Mas, nesse caso, talvez mereçam nossa gratidão. Porque assim a Alemanha ficará dividida para sempre e nunca mais vai poder nos invadir. Vinte milhões de russos pereceram quando as tropas alemãs entraram no país.

— E quantos milhões vão morrer se os americanos nos invadirem? — indagou Elisaweta.

Em Novgorod, diz Maria Rakunin a seu marido Maxim, um ex-marceneiro, que está sentado ao lado dela diante do rádio:

— Agora você sabe porque foi alvejado no Afeganistão e ficou cego.

— Mas eles nem nos disseram que nós estávamos no Afeganistão, querida — diz ele.

Em Praga, Tchecoslováquia, diz a esposa do professor universitário Josef Krb a seu marido: — Nosso filho tinha dezessete anos de idade quando um tanque soviético o esmagou, Josef. Dezessete anos. Seu irmão também desapareceu naquele tempo e nunca mais o vimos. E a Rádio Europa Livre proclamava ininterruptamente que nós deveríamos resistir, pois os americanos viriam em nosso socorro.

— E os russos vieram em socorro dos vietnamitas do norte? — indaga o marido. — Esse aí é um velho filme nazista. Forjado ou verdadeiro, dá na mesma. Foi a única vez em que os nazistas quiseram dizer a verdade.

Em Keszthely, às margens do lago Balaton, na Hungria, diz o químico Clemens Károly, que, com sua esposa, estava passando suas férias lá: — Em 1956, os russos disseram previamente aos americanos que iriam sufocar nossa rebelião. Os americanos responderam: — Por favor, nada temos contra. — Isso já está comprovado historicamente. E também está comprovado que minha irmã e meu irmão foram fuzilados durante as lutas em Budapeste. Malditos sejam eles, americanos e soviéticos!

Em Hiroxima, no Japão, Eiji Kimura, de quarenta e cinco anos de idade, está deitado num quarto de hospital onde, além dele, sete outros homens jazem nas camas. Quando, em 1945, os americanos jogaram a primeira bomba atômica sobre a cidade, houve oitenta e seis mil mortos, sessenta e um mil feridos, e a cidade desapareceu do mapa. Entrementes, ela foi reconstruída. Alguns sobreviventes da catástrofe ainda vivem. Quase todos estão estropiados ou contaminados pela irradiação. É o caso de Eiji Kimura e dos sete outros homens em seu quarto. Eiji Kimura vive há trinta e nove anos em hospitais. Ele sofre de uma grave enfermidade do sangue. Eiji Kimura diz: — A bomba atômica que os americanos jogaram quando eu tinha seis anos de idade, é hoje chamada de baby bomb. Porque, em comparação com a potência destrutiva dos atuais foguetes dotados de ogivas nucleares, ela é realmente um bebê. Em 1945, nós e os americanos éramos inimigos. Desde há muito, nos tornamos aliados. E que sorte a do Japão! Pois os americanos dispõem das bombas mais terríveis. E estou seguro de que eles desferirão o primeiro golpe.

Em Detroit, EUA, diz o rei das lojas de departamentos, Jack M. Langley, a sua mulher Katherine: — Malditos alemães! Eu sempre disse, não confiem neles! E o que fizeram os nossos idiotas? Reconstruíram a Alemanha Ocidental. Este agora é o agradecimento. Gente fina, os nossos aliados! Com esse velho embuste nazista, eles tentam levantar o mundo contra nós. E também contra os soviéticos. E fomos nós e os soviéticos que, juntos, vencemos Hitler!

— Isso já passou — diz sua mulher. — Hoje em dia os soviéticos são os nossos inimigos mais perigosos.

— Nós somos mais fortes que eles — diz Langley. — Eles só querem enlouquecer o mundo inteiro e tornar todas as pessoas inseguras.

— Quem?

— Os malditos nazistas alemães — diz Langley. — Nossos distintos aliados. Deixe para lá, pelo menos eles vão ser os primeiros, façam o que façam. Pelo menos nesse ponto, estamos de pleno acordo com os soviéticos.

Em Filadélfia, diz a mulher do alfaiate de consertos Faiberg a seu marido: — Moishe, Budd e Danny, nossos três filhos morreram no Vietnã, Aaron.

— Sim — diz ele —, em nome da liberdade e da democracia. Você sabe que nós nunca declaramos guerra ao Vietnã do Norte?

— E mesmo que tivéssemos declarado — insiste a mulher: — será que nossos filhos ainda estariam com vida? Aaron, este mundo é horrendo!

— Mas o que quer você? — pergunta Aaron. — Ainda por cima você acha que o mundo deve ser bonito?

Em Chicago, uma senhora idosa, sentada numa cadeira de rodas movida a bateria, diz a seu filho:

— Eu sinto tanto medo, filhinho.

— É — diz Wayne Hyde —, eu também. Mas. enquanto tivermos ainda um ao outro, ma!...

No dia seguinte à emissão da primeira parte do filme, os EUA e a URSS fizeram, por intermédio do porta-voz do governo e da agência de notícias TASS, duas curtas declarações do mesmo teor. Eles diziam que ambos os Estados nunca haviam, quer na conferência de Teerã, ou em qualquer momento antes ou depois, firmado qualquer acordo como o que lhes era imputado pelo protocolo secreto mostrado no filme O mundo dividido — mentira ou verdade?, que estava sendo exibido pela televisão de 58 países. Essa película produzida na República Federal da Alemanha mostrava uma inequívoca falsificação, sendo que a parte procedente de uma cópia em vídeo era provavelmente uma antiga falsificação propagandista dos nazistas. O mundo dividido teria sido produzido por encomenda de grupos fascitas extremamente perigosos e muito ativos, com o objetivo de perturbar a luta incansável das duas grandes potências para a manutenção da paz e da coexistência entre os seus diferentes sistemas de organização social. Esse incidente mostraria que as pessoas amantes da paz em todo o mundo deveriam observar com incansável vigilância as perniciosas atividades das forças fascistas, especialmente na República Federal da Alemanha. Abater essas forças seria a mais importante tarefa de todas as pessoas bem- intencionadas.

Os grandes jornais diários do mundo inteiro reagiram a essa declaração com os mais diferentes comentários. Não houve, entretanto, nenhum apelo em favor de uma oposição ativa ou passiva ou de um boicote às duas grandes potências. E muito menos na República Federal, onde, no dia seguinte à emissão da primeira parte, a manchete do jornal de massas de maior tiragem era: BABY DE LADY DIANA CORRE PERIGO – SEQÜESTRADOR!

Segundo pesquisas internacionais, à segunda parte, emitida na segunda-feira, nem mesmo quatrocentos milhões de pessoas assistiram ao invés dos novecentos milhões iniciais. E à terceira parte assistiram apenas cem milhões. À transmissão pela Mondovision do jogo de futebol realizado entre Brasil e Itália, assistiram, por outro lado, cerca de seiscentos milhões de pessoas.

Na tarde de sexta-feira, 18 de maio, Daniel Ross e Conrad Colledo estavam sentados no gabinete de Colledo, no edifício da administração da emissora de televisão de Frankfurt.

Colledo acabara exatamente naquele momento de apresentar ao amigo um relatório sobre o acolhimento do filme e a queda radical dos índices de audiência.

— Então quer dizer que deu errado — disse Daniel. Ele falava com a língua um tanto pesada, pois tinha tomado bastante Amadam, como vinha fazendo diariamente desde o seqüestro.

— Totalmente — disse Colledo.

— Nunca pensei.

— Eu também não.

— Quer dizer: pensei que nosso filme ia ter uma acolhida bastante dividida. Mas que iria despertar um grande interesse, desencadeando uma imensa discussão. Nisso eu acreditava firmemente. E me enganei.

— E como! — disse Colledo.

— Pode-se, então, dizer que todo o nosso trabalho foi simplesmente inútil.

— Isso se pode dizer sem qualquer exagero — respondeu Colledo levantando-se e se aproximando de uma das quatro janelas, símbolo do status de seu gabinete. Ele se pôs a observar à distância os milhões de janelas da grande cidade de Frankfurt do Meno que brilhavam aos raios do sol. Fazia um dia excepcionalmente bonito.

— Mercedes morreu sem nenhuma razão — disse Daniel.

— Sem nenhuma razão — disse Colledo, olhando a cidade que brilhava a seus pés.

— Pobre Mercedes — disse Daniel.

— Ela é que é feliz — disse Colledo. — Imagine só se ela tivesse presenciado essa reação! Logo ela. Isso teria partido o seu coração.

— É — disse Daniel —, é verdade.

— Ela morreu quando ainda havia esperança — continuou Colledo.

— Sim, é isso mesmo — disse seu amigo. — Meu Deus, como Mercedes teve sorte!

Logo em seguida, Colledo voltou-se, espantado, pois Daniel saltara de pé e gritava como um louco: — Sem razão e sem sentido morreu portanto também Herbert Kramer, o bibliotecário em Coblença! Sem razão! Sem qualquer razão! Morreu também, em Berlim, o professor Kant! Sem razão! Sem qualquer razão!

— Danny, por favor... — começou Colledo, mas Daniel não se deixou interromper. Ele continuava a falar, não mais em tom tão elevado, mas com paixão, muito empolgado. Ao mesmo tempo, caminhava em grandes passadas de um lado para o outro.

— Em vão! Tudo em vão! O trabalho de tantos, que arriscaram suas próprias vidas. Tudo inútil! Mas que diabo, em que mundo vivemos? Nada, nada mais que a verdade foi o que quisemos mostrar às pessoas. Nós queríamos adverti-las. Advertir todas as pessoas, no mundo inteiro. E todos os políticos. Eles deveriam perceber que falta um minuto para as doze. Que já é um minuto depois das doze! Que têm de acabar com sua tagarelice! Precisam acabar com os seus corruptos compromissos! E com a covardia, a estupidez e a inconsciência! Com essa criminosa doutrina do equilíbrio do terror! E com essa baboseira idiota de dizer que não vai haver guerra nuclear, simplesmente porque não pode haver!

— Meu Deus, Danny! Tudo isso não adianta nada! Nós avaliamos as pessoas de forma errada.

—— As pessoas! — gritou Daniel. E continuou berrando. — Pessoas, diz você? Quatro e meio bilhões de filhos da puta, digo eu. Idiotas demais para enxergarem! Idiotas demais para escutarem! Deixam-se abater como gado de corte, sempre, desde que existem. Preferem morrer a pensar ou a se defender, nem que seja uma só vez. É de deixar qualquer um maluco! — Daniel parou de andar. — Okay, então não podemos ajudá-los. Ninguém pode ajudá-los. Este mundo está mesmo perdido. Precisa ir mesmo pelos ares. Que seja, então! Mas e depois? Vai ser um grão de poeira no cosmo! Uma piada sem graça! Um peido no infinito!

Ele encarou Colledo e disse, subitamente com calma: — E nós? Que somos nós todos que pensávamos que podíamos mudar alguma coisa? Os maiores idiotas! Idiotas de pedra, mortos! Ou vivos, só aguardando chamada! Dá na mesma! Idiotas! Se tivéssemos um pouquinho de massa cinzenta na cabeça, deveríamos ter sabido desde o começo que tudo é inútil, em vão, sem sentido, e não teríamos por nada no mundo, posto as mãos nessa merda de filme, nem chegado perto dele. — Daniel estendeu a mão.

— Idiota -—- disse ele —, aperte a mão de outro idiota.

Colledo hesitou.

— Aperte logo — berrou Daniel. — Preciso ir embora.

— Para onde?

— Não sei para onde. Em qualquer direção. Aqui, estou sentindo falta de ar. Quer dizer que um idiota não dá a mão a outro idiota? Bem, não se pode fazer nada. Não se pode fazer mais absolutamente nada. Agora, pelo menos, o sabemos. Finalmente. — Ele se precipitou para fora do recinto.

Por um momento, Colledo o seguiu, assombrado, com o olhar. Só depois é que correu atrás do amigo, pelo corredor afora. Não havia ninguém. Pelos algarismos que se acendiam acima da porta do elevador, Colledo pôde ver que a cabine descia.

No sábado, dia 19 de maio de 1984, por volta das 19h30m, em seu apartamento térreo na tranqüila Alameda Sandhofer Allee, em Frankfurt do Meno, Daniel Ross começou a pôr termo à sua vida.

Sobre a escrivaninha, debaixo da lâmpada de abajur verde, ele havia reunido tudo aquilo de que necessitava: um copo, uma garrafa de uísque, cubos de gelo dentro de um pequeno balde de prata, um prato com sanduíches, quatro embalagens de Nembutal — já com as tampas dos vidros devidamente desatarraxadas — e um arranhado disco antigo.

Ele havia providenciado o narcótico durante as semanas que passaram entre o enterro de Mercedes e a transmissão do filme pela televisão, empregando o mesmo processo que já utilizara uma vez.

Já fazia calor nesse sábado, e o jardim estava cheio de flores. Nesse momento, o sol estava se pondo no oeste, colorindo o céu de um vermelho luminoso.

Daniel Ross engoliu mais um punhado de cápsulas de Nembutal — ele tinha derramado o conteúdo dos quatro vidros sobre o tampo da mesa —, bebendo um grande gole de uísque. Comeu mais uns pedaços de sanduíche de presunto, pois precisava evitar que um mal-estar o obrigasse a vomitar o Nembutal. Pensava em muitas pessoas, além de acontecimentos ocorridos durante os três últimos meses, mas apenas de modo superficial e distorcido, uma vez que já se achava bastante embriagado, e o Nembutal começava a surtir efeito. Como um fantasma, a figura de Fritz, seu mais velho amigo, veio-lhe à cabeça. Fritz, que falecera em dezembro do ano anterior no Hospital Martinho Lutero, em Berlim, depois de haver declarado: — Já é tempo de eu dar o fora! — Depois dessas palavras, seu amigo fechara os olhos e partira.

Daniel Ross engoliu outro punhado de cápsulas, bebeu seu uísque e comeu o pão com presunto. É tempo de eu também dar o fora, pensou ele. E desta vez ninguém virá me incomodar. Mercedes está morta, Conny e sua mulher passam férias em Capri, Kleinhals foi de avião a Hamburgo visitar a irmã.

Daniel Ross estava muito sereno e tomado por grande paz.

Depois de engolir todas as cápsulas e acabar com o pão, ele ergueu-se, meio cambaleante. Já estava bastante embriagado. De pijama e chinelos, dirigiu-se mais uma vez à porta de entrada. Verificou a fechadura de segurança e a corrente. Sua governanta, a Sra. Glanzer, só viria na segunda-feira pela manha, às 9h.

Daniel cruzou seu gabinete de trabalho e seguiu para o quarto, deitando-se na cama. Agora você vai morrer, pensou ele, e ninguém vai atrapalhar. Sobreveio-lhe então uma alegria que há muito tempo não sentia. Afinal. Agora você irá dormir, disse para si mesmo, dormir sem nunca mais ter de acordar. Ele sorriu. Não existe vida alguma depois da morte, pensava ele, e não existe Deus algum. Depois que eu morrer e que meu corpo estiver decomposto, estarei presente nas árvores, em cada folha, em cada flor. No vento e na chuva. Nas montanhas e no ar. Em todos os rios e mares. Serei uma parte do universo, que sempre existiu, que jamais começou a existir porque não precisava começar a existir nem tampouco terminar durante toda a eternidade. Assim, também eu serei uma parte infinitamente pequena da eternidade. Ouviu, ao longe, baixinho, uma voz de mulher cantando, perguntando o que seria se pudesse desejar alguma coisa. Ele se recordava do calor, da luz dourada e da quietude do instante em que, da primeira vez, quase tinha morrido. Ele bem se lembrava de que não sentira mais aflição nem fadiga, nem pressa, nem tristeza. E de que não sentira medo. Então lhe vieram à memória as nuvens que tinha visto, prateadas e de formas fantásticas. Mais tarde, voltou a ver uma delas. Ela flutuava num céu de azul luminoso. Esta nuvem também sou eu, pensou. Observou-a por longo tempo e, de repente, percebeu uma outra, maravilhosa e cheia de majestade, que mansamente flutuava no infinito. Quando descobriu a verdade, uma grande alegria o dominou. Brancas e majestosas, as duas nuvens se aproximavam, deslizando, até que, finalmente, Daniel se fundiu com a nuvem que era Mercedes.

 

                                                                                            J. M. Simmel  

 

                      

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