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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OITO PRIMOS / Luísa Alcott
OITO PRIMOS / Luísa Alcott

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OITO PRIMOS

 

                     DUAS AMIGUINHAS

ROSA, muito bem sentada a meio da sala de visitas, segurava na mão o lencinho de assoar, pronta a enxugar a primeira lágrima que se lembrasse de aparecer. Estava meditando nas suas penas e, portanto, a lágrima não se devia fazer esperar. A menina refugiara-se naquela sala por lhe parecer o sítio mais apropriado para uma pessoa se sentir muito desgraçada. Era um aposento sossegado, arranjado com móveis antigos, ornamentado de reposteiros escuros, e, pelas paredes, encontravam-se pendurados muitos retratos imponentes de cavalheiros idosos, alguns deles envergando armaduras, de senhoras de nariz comprido e elevadíssimo toucado no alto da cabeça. Não faltavam também retratos de crianças embasbacadas, todas com gibõezinhos golpeados e cabeções rendados. Para mais, como nessa sala fazia sempre escuro, era esse um local esplêndido para uma menina poder lastimar à vontade a sua triste sorte. E até a chuva primaveril que escorria pelas vidraças parecia soluçar e dizer "Chora, minha filha, chora, eu acompanho-te".

Na realidade, Rosa tinha motivos para se sentir triste. Já não tinha mãe e perdera ultimamente seu pai, vindo viver com as tias-avós. Estava em casa delas havia apenas uma semana e, embora as pobres senhoras tivessem feito tudo para alegrá-la, não o tinham conseguido. Rosa era uma criança diferente de quantas pequenas haviam até ali conhecido e dava-lhes a sensação de estarem a cuidar de uma borboletazinha triste.

Rosa teve autorização de andar à vontade por toda a casa e, durante um dia ou dois, divertiu-se a vaguear de um aposento para o outro, pois tratava-se de uma habitação antiga, cheia de recantos, de quartos engraçados e corredores misteriosos. As janelas davam para os sítios mais inesperados e existiam por aqui e por ali balcÕezinhos românticos abrindo sobre os jardins. Também havia uma sala cheia de curiosidades, vindas das cinco partes do Mundo, porque os Campbells eram capitães de navios há gerações.

A tia Plenry foi até ao ponto de permitir que Rosa fizesse viagens de exploração dentro da copa

- um quarto repleto de guloseimas que fariam a felicidade de qualquer criança. Infelizmente, Rosa parecia não se importar com nenhuma dessas tentações e, quando esta última esperança falhou, a tia Plenty sentiu-se desesperar.

A simpática tia Peace experimentou todos os seus recursos de costureira na execução de um enxoval de boneca tão completo que teria sido o encanto de qualquer pequenita mesmo mais crescida. Rosa, porém, interessou-se tão pouco pelas touquinhas de cetim cor-de-rosa e pelas calcinhas minúsculas como se interessara pelo resto. Lá foi cosendo muito desconsolada, até que a tia, vendo-a limpar uma lágrima à cauda de um vestido de noiva que estava confeccionando, desistiu das costuras.

As duas senhoras conferenciaram então e resolveram chamar uma menina muito bem comportada, que havia na vizinhança, para vira a entreter a sobrinha.

Esta idéia foi a pior de todas, pois Rosa não pôde suportar Anabela, afirmando que esta lhe parecia uma boneca de cera e que só lhe apetecia beliscá-la a ver se se mexia. Nestas condições, a modelar Anabela foi recambiada para casa e Rosa ficou entregue aos seus próprios recursos durante um dia ou dois.

O mau tempo e uma constipação não a deixaram sair, passando grande parte do tempo na biblioteca, onde haviam guardado os livros de seu pai. Leu bastante, chorou um pouco e sonhou muitíssimo, como sempre acontece às crianças imaginativas. Esta maneira de passar o tempo, agradava-lhe mais do que qualquer outra, mas não lhe fazia bem à saúde. Tornou-se pálida, olheirenta e sem vontade. E a tia Plenty passou a embutir-lhe ferro que chegaria para fabricar um fogão de cozinha e a tia Peace fez-lhe os mimos que teria feito a um cachorrinho doente.

Muito preocupadas, as pobres tias voltaram a puxar por todos os seus recursos e resolveram tentar uma última experiência, embora pouco confiantes quanto aos resultados. Contudo, nada disseram a Rosa acerca dos planos que tinham para essa tarde de sábado e deixaram-na andar pela casa à vontade e refugiar-se na sala.

Rosa não chegou a ter tempo de derramar uma única lágrima porque um ruído singular veio cortar o silêncio, fazendo-a espevitar os ouvidos. Dir-se-ia um pássaro a gorjear muito suavemente; era, com certeza, uma ave muito bem dotada porque em breve o gorjeio se transformou num chilreio que terminou numa série de notas muito musicais, como se o passarinho fosse soltar uma gargalhada fresca. Rosa desatou a rir e, esquecendo todas as penas, levantou-se, exclamando muito animada:

- Que avezinha tão alegre! Onde estará?

Desceu à sala de entrada, abriu todas as portas a procura, mas não viu pássaro algum. Avistou apenas um pintainho espojando-se sobre umas folhas no jardim. Apurou o ouvido e teve a certeza de que o som vinha do interior da casa. Continuou à procura até que lhe pareceu que o chilreio saía de dentro da copa.

"Estará aqui dentro? Que esquisito! ", disse com os seus botões. Entrou, mas só viu brilhar as cores intensas do serviço chinês arrumado nas prateleiras. De repente, todo o seu rosto se entreabriu num sorriso e, muito devagar, abriu o postigo que comunicava com a cozinha. A música parara há instantes; de joelhos no chão andava uma pequena de avental azul, lavando o mosaico da cozinha. Rosa fitou-a um instante e perguntou-lhe bruscamente;

- Não ouviste um passarinho a chilrear?

- Um passarinho chamado Phebe - respondeu a rapariga, piscando os olhos negros.

- Onde está ele?

- Está onde estava.

- E onde é?

- Na minha garganta. Quer ouvi-lo

- Quero, quero! Já vou ter contigo! - E, dizendo isto, Rosa saltou e encarrapitou-se no rebordo do postigo, pois tinha tanta pressa que não pôde ir pela porta.

A rapariga limpou as mãos e sentou-se sobre os pés - andava ajoelhada no meio de um oceano de água e sabão - e então, com grande segurança, a sua garganta delicada soltou trinados harmoniosos, imitando melros e rouxinóis e muitos pássaros silvestres. Era um canto tão alegre que Rosa se sentiu transportada às flores, pisando musgo fofo num dia quente de Junho.

Ficou tão admirada que ia caindo do seu poleiro e, quando o concerto acabou, bateu palmas entusiasmada.

- Que coisa linda! Quem te ensinou?

- Os pássaros - respondeu a rapariga, começando o seu trabalho.

- É maravilhoso! Eu também sei cantar mas não é nada assim. Como te chamas, diz lá?

- Phebe Moore.

- Já tenho ouvido cantar as cotovias e sei que não cantam tão bem -exclamou Rosa, sorrindo e olhando para a espuma de sabão sobre o mosaico. Posso ficar a ver-te acabar a tarefa Sentia-me muito só lá em cima na sala.

- Pode, se lhe apetece - respondeu Phebe, torcendo o pano da casa com tanto jeito que Rosa ficou impressionada.

- Deve ser engraçado ensaboar assim o chão. Era um serviço que eu gostava de fazer; as tias é que não ficavam satisfeitas, creio eu - acrescentou Rosa, muito interessada com o inesperado da ocupação.

- Cansava-se depressa e depois sabia-lhe melhor estar só a olhar.

- Deves ajudar bastante a tua mãe, não?

- Não tenho mãe, nem pessoa alguma de família.

- com quem vives então?

- Espero ficar a viver consigo. Era preciso uma rapariga para ajudar no serviço e eu vim experimentar durante uma semana.

- Oxalá que fiques, embora isto aqui seja muito triste - continuou Rosa, tomada de uma simpatia súbita pela pequena, que cantava como um pássaro e trabalhava como uma mulher.

- Oxalá que sim. Já fiz quinze anos; tenho obrigação de olhar por mim - respondeu Phebe, fitando a interlocutora, e pasmada por uma menina que trazia um vestido de seda, um aventalinho de rendas e uma fita de veludo a prender-lhe os cabelos, achar aquela casa triste. - E a menina tem de viver aqui muito tempo? - perguntou.

- Até o meu tio voltar. É ele o meu tutor. Não sei o que pensa fazer de mim. E tu, também tens um tutor?

- Eu cá não tenho. Foram deixar-me nos degraus da porta de Miss Rogers, quando eu era muito pequenina. Ela tomou conta de mim, mas, como agora morreu, eu tenho de olhar pela minha pessoa.

- Que engraçado! É exactamente o que acontece a Arabela num livro chamado Filha de Ciganos. Já leste alguma vez essa história? - perguntou Rosa, que era muito amiga de ler histórias onde se falasse de crianças abandonadas e que já tinha devorado grande quantidade dessas literaturas.

- Não tenho livros para ler. Todo o tempo que me fica livre é para ir para a floresta; isso repousa-me mais do que ler histórias - respondeu Phebe, acabando a sua tarefa e iniciando logo outro trabalho.

Rosa observava-a muito atenta, enquanto ela ia descascando uma quantidade enorme de favas, pasmada com aquela vida de trabalho, onde não havia tempo para brincar. Phebe achou que chegara a sua vez de fazer perguntas:

- A menina deve estar farta de aprender coisas?

- Se estou! Meteram-me numa escola aborrecidíssima, quase um ano, e vim de lá meio morta por causa de tantas lições. Quanto mais eu estudava mais me davam para estudar. Nunca me habituei e fartei-me de chorar. O papá nunca me incumbiu de tarefas difíceis e tudo quanto me ensinava era tão agradável que me dava vontade de aprender. Oh, éramos tão felizes e tão amigos um do outro! Agora acabou-se. Deixou-me sozinha no Mundo.

As lágrimas, que não tinham vindo quando Rosa esperava por elas, surgiram subitamente e rolaram-Lhe pelas faces, mostrando melhor a sua pena do que quaisquer palavras poderiam dizer.

Durante um minuto só se ouviram os soluços da pequenita e a chuva acompanhando aquela dor filial. Phebe parou de descascar as favas e, olhando compadecida para a cabeça de Rosa cheia de caracóis loiros, percebeu que o avental de rendas estava habituado a enxugar lágrimas tão amargas como ela nunca chorara.

Sentiu-se feliz com o seu grosseiro vestido castanho e com o seu avental de riscado azul.

Rosa fez-lhe muita pena e tê-la-ia abraçado se se atrevesse.

Receou que fosse atrevimento e limitou-se a responder com a sua vozinha meiga:

- Tenho a certeza de que não há-de sentir-se tão só, tendo tanta família. Todos a hão-de amimar porque, segundo ouvi dizer à cozinheira, é a única menina da família.

As últimas palavras de Phebe fizeram Rosa sorrir, a despeito das lágrimas que lhe corriam pelas faces. Afastou do rosto o avental e disse num tom de aflição muito cômica:

- É essa também uma das coisas que me apoquenta. Tenho seis tias, que não conheço lá muito bem, e todas se interessaram por mim. O papá chamava a este sítio o reino das tias. Vejo agora que tinha toda a razão.

Phebe riu e disse, para animá-la:

- Acho que é um nome muito bem posto, porque todas as senhoras Campbells vivem perto e estão sempre a visitar as senhoras velhas.

- As tias ainda eu poderia suportar, mas há dúzias de primos, todos eles uns rapazes impossíveis. Detesto rapazes! Uma porção desses primos veio visitar-me na quarta-feira. Eu estava deitada e,

quando a tia me veio chamar, meti-me debaixo da colcha e fingi que dormia. Mas, para a próxima vez, terei de vê-los e arrepio-me só de pensar nisso. Rosa estremeceu. Como vivera sempre sozinha com seu pai inválido, não lidara nunca com pequenos e considerava-os uns animaizinhos bravios.

- Oh! tenho a certeza de que vai gostar deles. Já os vi várias vezes andar de barco, e passear a cavalo. Se gosta de andar de barco e de passear a cavalo vai divertir-se bastante.

- Mas não gosto! Tenho medo dos cavalos, e enjôo, se ando de barco. Além disso não posso suportar os rapazes!

E a pobre Rosa torceu as mãos ao pensar na perspectiva que se abria diante dela. Um desses horrores ainda ela poderia suportar, mas todos juntos era de mais. Começou a pensar seriamente em voltar para a aborrecida escola.

Phebe riu por vê-la tão aterrada, e as favas dançaram dentro da caçarola para onde as ia atirando. Todavia, foi dizendo, para consolá-la:

- Talvez que seu tio a leve para um sítio onde não haja rapazes. Todos dizem que ele é muito bom e, quando chega, traz sempre muitas coisas bonitas.

- Mas a vinda dele também me apoquenta, porque mal o conheço. Quase nunca nos veio visitar, embora me tenha mandado muitas vezes coisas lindas. O pior é que até aos dezoito anos estou-lhe entregue. Posso não gostar dele e passarei todo o tempo a moer-me.

- Pois eu, no seu caso, não queria saber de nada disso. Tenho a certeza de que me sentiria feliz se tivesse família, dinheiro, tempo para me divertir, e se pudesse ir à escola - respondeu Phebe, mas não continuou porque, nesta altura, ouviu-se lá fora um barulho que as fez dar um pulo.

- Seria um trovão? - perguntou Phebe.

- É uma companhia de circo que está a chegar!

- exclamou Rosa que, do seu poleiro, avistara um carro garrido, puxado por cavalinhos muito enfeitados.

O carro passou e as pequenitas iam a continuar as suas confidências, quando Debby, a criada velha, apareceu, um tanto aborrecida e ensonada ainda aí está.

- As senhoras estão à sua espera na sala, Miss Rosa.

- Chegou alguém?

As meninas bonitas não fazem perguntas, fazem aquilo que lhes mandam - respondeu Debby.

- Espero que ao menos não seja a tia Myra; assusta-me, de todas as vezes que a vejo, pela maneira que tem de me perguntar se me sinto melhor da tosse, como se estivesse convencida de que vou morrer, - disse Rosa, preparando-se para descer por onde tinha vindo. O postigo, destinado a deixar passar os perus e os pudins dos jantares de Natal, era grande bastante para permitir que uma menina franzina entrasse e saísse à vontade.

- Tenho a impressão de que desejaria que fosse a tia Myra a visitante, quando vir quem chegou. Se volto a vê-la na minha cozinha, entrando por esse postigo, não sei o que lhe faço - resmungou Debby, que julgava seu dever ralhar com as crianças a todo o momento.

 

                       A FAMÍLIA

ROSA saltou para dentro da copa e, uma vez lá, vingou-se, fazendo caretas a Debby, enquanto endireitava os fatos e tomava coragem. Desceu muito devagarinho até à sala de entrada e espreitou para dentro da sala de visitas. Não viu ninguém, não ouviu o menor ruído e teve a certeza de que se encontravam todos no andar de cima. Atreveu-se a entrar, com intenção de chegar à janela, mas o que avistou na sua frente cortou-lhe a respiração.

Sete rapazes em bicha -havia-os de todas as idades, de todos os tamanhos, embora estivessem todos vestidos de escoceses - sorriam para ela e, cumprimentando, disseram à uma só vez: "como está a nossa prima?"

Rosa suspirou aflita e olhou em roda, assustada, pronta a fugir, porque o medo multiplicou o número dos primos e fez que ela visse o quarto atafulhado de rapazes. Todavia, antes que tivesse tempo de desatar a correr, o rapaz mais alto deu um passo em frente, saindo assim do alinhamento em que estavam, e disse com grande simpatia:

- Não te assustes. É a família a dar-te as boas-vindas. Eu sou o chefe, chamo-me Archie e estou ao teu dispor.

Enquanto falava estendeu-lhe a mão; Rosa, timidamente, poisou os seus dedinhos numa patoila escura que os apertou com força e nunca mais os largou enquanto duraram as apresentações.

- Viemos em trajo de gala porque é costume vestirmo-nos assim nas grandes ocasiões. Espero que a nossa farpeia te agrade. Agora you dizer-te os nomes destes tipos, e pronto, estamos apresentados. O maior é o Príncipe Charlie, filho da tia Clara. É filho único, mas vale por sete. Este velhote que vês a seguir é Mac, mais conhecido pelo "Parafuso". O elegante que está ao pé é Steve, o "Janota". Repara nas luvas dele, peço-te. São ambos filhos da tia Jane e formam um lindo par, podes crer. Os restantes são meus irmãos, Georgie, Will e Jamie, o "Miúdo" Agora, rapazes, um passo em frente e mostrem a educação que lhes deram.

Ao ouvirem esta ordem, com grande susto de Rosa, seis mãos foram estendidas com o fim de serem apertadas. Foi um momento terrível para a nossa tímida Rosa, mas, lembrando-se de que tinham vindo dar-lhe as boas-vindas, procurou mostrar-se simpática e retribuir o cumprimento cordialmente.

Acabada esta impressionante cerimônia, romperam fileiras e a sala ainda ficou mais atafulhada, com tanta rapaziada. Rosa refugiou-se apressadamente numa poltrona. Sentou-se, observando atentamente o batalhão de invasores, desejosa de que uma das tias viesse em seu auxílio.

Querendo mostrar até ao fim as suas maneiras requintadas, os rapazes espalharam-se pela sala e sucessivamente fizeram uma pequena observação, a que Rosa respondeu com grande dignidade. Depois foram-se pondo à vontade, com grande expressão de alívio.

Archie foi o primeiro a falar. Inclinou-se na direcção de Rosa e disse num tom muito paternal:

- Sinto grande satisfação em ver-te, prima, e espero que te dês bem na nossa colina.

- Espero que sim.

Mac abanou a cabeça para atirar com o cabelo para trás e perguntou bruscamente:

- Trouxeste alguns livros?

- Quatro caixotes cheios. Estão na Biblioteca. Mac desapareceu da sala e Steve, procurando

uma atitude que realçasse o seu fato de escocês, disse com um sorriso afável:

- Tivemos imensa pena, na quarta-feira, de não te vermos. Espero que estejas melhor da constipação.

- Estou melhor, obrigada. - Rosa sorriu, recordando-se da astúcia que a fizera refugiar-se debaixo da colcha.

Achando que estava a ser recebido duma maneira muito distinta, Steve afastou-se, mais elegante do que nunca, e o Príncipe Charlie atravessou a sala para dizer num tom muitíssimo à vontade:

- Minha mãe manda-te saudades e espera que, para a semana, vás passar um dia connosco. Uma pequena tão nova como tu deve aborrecer-se imenso aqui sozinha com as tias.

- Não sou assim tão nova como isso. Já fiz treze anos, embora pareça ter menos idade - exclamou Rosa, esquecendo a sua timidez, tão grande fora o insulto à sua respeitável idade.

- Peço desculpa, Excelência, não pretendia

ofender - respondeu Charlie, que se afastou todo contente por ter feito arreliar a priminha.

Georgie e Will, que eram dois rapagões de onze e doze anos, dispararam ao mesmo tempo e à queima-roupa:

- Trouxeste o teu burrinho?

- Não; morreu.

- Gostas de andar de'barco?

- Nem por sombras.

Afastaram-se ambos rapidamente e Jamie, que era o mais no vinho, perguntou com naturalidade:

- Trouxeste alguma guloseima para mim?

- Trouxe-te rebuçados.

Ao ouvir isto, Janie saltou-lhe ao pescoço, mostrando assim a sua simpatia.

Os outros pequenos desataram a rir do movimento do "Miúdo", e Rosa, muito atrapalhada, exclamou para disfarçar:

- Não viram passar uma companhia de circo, quando chegaram?

- Uma companhia de circo? Quando, onde?

- Pouco antes de vocês virem, vi passar um carro vermelho e preto, puxado por uns cavalinhos muito bem enfeitados...

Não pôde continuar, porque uma gargalhada geral fez com que suspendesse, aterrada, aquilo que estava a dizer.

- Era o nosso carrinho novo e os nossos cavalinhos. Imaginou que fazíamos parte de um circo!...

- Era um carrinho tão engraçado e os cavalos vinham tão bonitos, que imaginei - balbuciou Rosa, tentando explicar o equívoco.

- Então vem ver de perto essa maravilha! - exclamou o "Príncipe". E antes que Rosa tivesse tempo de protestar, foi arrastada com grande balbúrdia até junto do carro e dos cavalinhos.

Rosa não conhecia nada daquela região e os primos ofereceram-se logo para ir mostrar-lha. Ela, porém, disse que as tias podiam não gostar que fosse passear assim sem prevenir.

- Mas as tias encarregaram-nos de te distrair: é muito mais agradável ir dar um passeio do que ficar a girar em volta da casa.

- Receio ter frio, indo sem casaco.

- Não, não tens! Nós resolvemos essa questão!

- exclamaram os pequenos, enquanto um lhe enterrava o próprio boné na cabeça, outro lhe amarrava uma camisola em volta do pescoço, atando-a com as mangas por debaixo do queixo, um terceiro a atabafava com um cobertor que havia dentro do carro e um quarto se curvava dizendo muito amável:

- Queira instalar-se, Excelência. Vamos começar por um pequeno espectáculo.

Rosa sentou-se, divertida, enquanto os rapazes começaram a executar, diante dela, vários passos de dança à maneira escocesa com tanto entusiasmo que dava logo vontade de rir.

- Que dizes a esta agilidade? - perguntou o "Príncipe", quase sem fôlego, quando acabaram de dançar.

- É magnífica! Já fui ao teatro uma vez, e juro-Lhes que não vi dançar tão bem. Estou a perceber que vocês são uns rapazes cheios de habilidade! respondeu Rosa, como uma rainha falando aos seus pajens.

- Oh, isto é só uma amostra. Não trouxemos as gaitas, senão verias o que tocávamos e dançávamos - afirmou Charlie, envaidecido com o elogio de Rosa.

- Não sabia que éramos escoceses. O Papá nunca me tinha dito; só se interessava pela Escócia por causa das suas baladas - respondeu Rosa, com a sensação de ter deixado a sua terra e ter sido transportada à Escócia.

- Nós também só há pouco tempo é que sabemos isso. Andávamos lendo alguns romances de W. Scott quando nos recordámos, de repente, que tínhamos um avô escocês. Lemos mais histórias, arranjámos estes fatos e entregámo-nos de corpo e alma à Escócia, para glória da família. Temo-nos divertido bastante com isso. Toda a família apreciou a nossa resolução.

Archie disse isto enquanto trepava para o carro. Os outros seguiram-lhe o exemplo, encarrapitando-se conforme puderam, enquanto diziam:

- Nós somos cavaleiros andantes. Um destes dias travaremos combate para tu assistires. É uma coisa admirável, vais ver - afirmava o "Príncipe".

- E hás-de ouvir Steve tocar gaita de foles. É um primor - exclamou Will, todo vaidoso das habilidades do seu grupo.

- Mac é quein nos informa dos velhos usos e nos ensina a vestir como devemos. Lê tudo muito bem e depois diz-nos - acrescentou Georgie todo contente por não deixar no esquecimento o primo ausente.

- E tu mais o Will, o que é que fazem? perguntou Rosa a Jamie, que não a largava, como se estivesse à espera dos rebuçados prometidos.

- Eu sou o pagem. Will e Georgie são as tropas, quando queremos marchar, e os bandidos se nos apetece cortar uma ou outra cabeça.

- São homens para as ocasiões, percebo disse Rosa, enquanto os dois se curvavam muito modestos, resolvidos a mostrar à prima do que eram capazes, assim que tivessem ensejo.

- Vamos jogar aos quatro cantinhos para ela ver

- exclamou o "Príncipe", dando uma grande palmada nas costas de Steve.

Sem se importar de ter já as luvas calçadas, o "Janota" correu atrás dele e os outros dispersaram em várias direcções o mais rapidamente possível.

Era um espectáculo inédito para Rosa, ver toda aquela animação. Will cobria-se de glória pela agilidade com que corria, quando Phebe apareceu com um recado das tias e vários agasalhos.

- A Miss Rosa faz favor de vir às senhoras.

- Vamos levá-la às cadeirinhas! - exclamou Archie que, num momento, foi obedecido. Num abrir e fechar de olhos, dois deles fizeram uma cadeirinha com as mãos, enquanto os outros colocavam Rosa em cima. Entraram em casa radiantes. Phebe comentou: "Estes garotões vão dar cabo da menina".

Mas a "menina" mostrava-se contente e, quando a largaram, subiu as escadas a correr, indo ao encontro da tia Plenty, que a recebeu muito apoquentada e a mandou deitar-se um pouco a repousar.

- Oh, isso é que não! Nós viemos tomar chá com ela e, se não nos mandar embora, prometemos estar muito sossegados - disseram os rapazes ao mesmo tempo.

A tia Plenty cedeu.

- Pois sim, vá lá. Mas estejam quietos e deixem ir Rosa tomar o seu remédio e arranjar-se. Veremos o que se pode preparar para lanchar - respondeu a bondosa senhora, toda preocupada com o festim que tinha de improvisar.

- Eu queria um bocadinho de marmelada. - Eu cá quero um pudim.

- Não se esqueça da compota de pera.

- Se precisar de alguém para ajudar a comer um bolo de frutas, eu cá estou.

- Porque não manda fazer filhos? Rosa havia de gostar.

Quando Rosa desceu, um quarto de hora depois, muito penteada e de bibe lavado, avistou os rapazes espalhados pela sala de entrada e parou um instante a examiná-los, porque ainda não os tinha visto bem.

Mantinham todos um forte ar de família, embora uns tivessem cabelos escuros, outros claros, uns tossem corados e brancos, outros morenos, e as idades variassem entre os dezasseis anos de Archie e os dez anos de Jamie. Nenhum deles, à parte o "Príncipe" era especialmente bonito, mas eram todos sadios e agradáveis. Rosa resolveu que afinal não eram tão terríveis como a começo lhe parecera.

Estavam muito entretidos e a menina não pôde deixar de sorrir ao vê-los. Archie e Charlie, que eram evidentemente grandes amigos, passeavam. lado a lado, assobiando: Mac instalara-se a um canto a ler com o nariz em cima do livro; o "Janota" compunha os cabelos diante do espelho oval do bengaleiro; George e Will olhavam muito atentos para a máquina do relógio; e Jamie, acocorado em frente das escadas, pediu-lhe os rebuçados assim que a avistou.

Ela adivinhou o que ele queria e atirou-lhe logo um punhado deles.

Os outros rapazes olharam para ela e sorriram, porque a pequenita que vinha descendo era muito bonitinha. Tinha os olhos ternos, o cabelo fofo, o rosto risonho. O vestido negro que trazia recordou-Lhes o seu luto e sentiram grande desejo de se mostrarem afectuosos para aquela priminha que não tinham outro lar que não fosse aquele.

- Ei-la outra vez como nova - exclamou Steve, enviando-lhe um beijo.

- Venha tomar chá, Excelência - exclamou o "Príncipe", animador.

- vou conduzi-la à sala - disse Archie, e ofereceu o seu braço com elegância e dignidade. Rosa corou, desejosa de fugir novamente pelas escadas acima.

A refeição foi muito alegre e os dois rapazes mais velhos intrigaram todos, aludindo misteriosamente a qualquer coisa que ia acontecer dentro em breve Era uma coisa agradabilíssima, segundo declararam, fazendo grande mistério.

- Diz-me respeito? - perguntou Rosa.

- Sim, embora não faças idéia do que seja. Mac e Steve vão também ficar radiantes – respondeu Archie, deixando os dois pequenos suspensos a meio de um milho que estavam a comer.

Quem adivinha o que é? - perguntou Will,

Com a boca cheia de marmelada.

A tia Plenty saberá do que se trata?

- E é na segunda-feira - afirmou Georgie. Santo Deus! De que estão vocês a falar? exclamou a bondosíssima senhora, sentada por detrás de um centro de mesa tão colossal que só deixava ver o alto da sua touca.

- A tia sabe o que é? - perguntram todos em coro.

- Não; e isso é mais extraordinário porque se trata de uma coisa que ela vai apreciar. É uma coisa que vai chegar.

- E que cor tem?

- É azul e castanha.

- E é coisa de comer?

- Não me parece - respondeu Charlie, rindo.

- E a quem pertence?

Archie e o "Príncipe" olharam um para o outro, divertidos, depois, piscando o olho, Archie respondeu, enquanto Charlie continuava rindo:

- Ao avô Campbell.

Houve uma pausa, enquanto tentavam adivinhar. Jarnie declarou a Rosa, em voz baixa, que não resistia até segunda-feira, se lhe não dissessem o que era.

Pouco depois de acabarem de comer, foram-se todos embora, cantando em falsete uma velha canção.

- Então, minha querida, gostaste dos teus primos? - perguntou a tia Plenty, quando o carro e os cavalinhos desapareceram, encobertos pela esquina da casa.

- Gostei, sim, minha tia, mas ainda gosto mais de Phebe.

Esta resposta pasmou tanto a pobre senhora, que foi logo desabafar com a irmã, afirmando que desistia de entender aquela criança e que ainda bem que Alec estava para chegar para lhes tirar das mãos semelhante responsabilidade.

Fatigada pela tarde movimentada que tivera, Rosa aninhou-se num sofá a pensar no que seria essa coisa misteriosa que devia chegar na segunda-feira.

No meio das suas meditações adormeceu e sonhou que estava novamente em casa, na sua antiga caminha. Teve a impressão de que acordava e ouvia seu pai dizer: "Como está a minha filhinha"? e ouviu-se responder: "Muito bem, papá". Depois deitou os braços em volta do pescoço e deu-lhe um grande abraço. O sonho era tão agradável que Rosa acordou e soltou um grito de alegria ao encontrar-se realmente a abraçar um cavalheiro de barbas escuras que lhe disse com voz semelhante à de seu pai:

- Eu sou o tio Alec e tu és a minha filhinha.

 

                      OS TIOS

QUANDO Rosa acordou na manhã seguinte, não teve a certeza se fora ou não um sonho o que lhe acontecera na noite anterior. Levantou-se e arranjou-se logo, embora fosse uma boa hora mais cedo do que costumava, pois sentia que não poderia dormir mais, tão grande era a sua curiosidade em saber se realmente a sala de entrada estava ainda atravancada com caixotes. Recordava-se de ter tropeçado numa quantidade de caixotaria ao ir para a cama, mas não tinha a certeza de que não se tratasse de um sonho. As tias haviam insistido em mandá-la muito pontualmente deitar, para terem o sobrinho recém-chegado só para elas.

O dia estava lindo e Rosa abriu a janela para deixar entrar a brisa fresca que, nessa manhã de Maio, vinha do mar. Ao curvar-se sobre o peitoril da balcãozinho do seu quarto, observando um pássaro matinal e perguntando a si própria se simpatizaria ou não com o tio Alec, viu um homem saltar o muro e dirigir-se para casa por uma álea do jardim. A começo julgou tratar-se de algum larápio, mas depressa se convenceu que era o próprio tio que regressava do seu banho do mar. Mal o tinha visto na noite anterior, porque de todas as vezes que ia a olhar para ele, via, fixados nos seus, uns olhos azuis muito bondosos. Agora, porém, podia observá-lo à vontade, enquanto caminhava distraído, olhando em volta, como se sentisse alegria por se encontrar de novo ali.

Era um homem de cabelos escuros, envergava um casaco azul e vinha em cabelo. De tempos a tempos, sacudia a cabeça encaracolada como se fosse um cão de água. Tinha os ombros largos, fazia movimentos rápidos e dava uma impressão de saúde e de calma que agradou a Rosa. Não saberia ela própria explicar o sossego que sentia ao olhar para ele. Disse para consigo, aliviada: "Espero vir a gostar do tio". Nesta altura, ele olhou para cima e viu o rosto da rapariguinha a observá-lo. Acenou-lhe um adeus e disse com voz muito alegre:

- Apareceste muito cedo no convés, sobrinha.

- Levantei-me para me certificar de que o tio tinha chegado realmente.

- Nesse caso vem ter comigo para teres a certeza.

- Não me dão licença de sair antes do primeiro almoço, meu tio.

- Que idéia! - exclamou ele, encolhendo os ombros. - Então vou eu a bordo cumprimentar-te.

- E, com grande surpresa de Rosa, o tio Alec trepou por uma das colunas do alpendre, gatinhou pelo telhado e chegou facilmente à varanda. Enquanto ultrapassava o parapeito, acrescentou: Ainda tem dúvidas sobre a minha existência real, Excelência?

Rosa estava tão surpreendida que só soube responder com um sorriso.

- Como está hoje a minha filha? - perguntou ele, agarrando na maõzinha da pequena com as suas duas manápulas.

- Menos mal, obrigada.

- Não muito bem?

- Acordo sempre com dores de cabeça e muito fatigada.

- Não dormes convenientemente?

- Estou muito tempo acordada e, quando consigo dormir, o sono não me repousa.

- O que fazes durante o dia?

- Leio, coso um bocado, desenho mapas e estou ao pé das tias.

- Então não corres, não passeias, não andas a cavalo?

- A tia Plenty diz que não sou bastante forte para poder fazer grandes exercícios. Às vezes leva-me a passear com ela de carro, mas não é coisa que eu aprecie.

- Não me espanta isso - murmurou o tio Alec, como se falasse com os seus botões, e acrescentou logo: - com quem costumas brincar?

- com ninguém. A Anabela veio algumas vezes mas era tão chocha que não me entendi com ela. Ontem estiveram aí os primos. Pareceram-me simpáticos, mas não podia pôr-me a brincar com eles, está claro.

- Porque não?

- Já sou muito crescida para brincar com rapazes cavalões.

- Que tolice! É exactamente disso que precisas. São bons pequenos e terás de lidar bastante com eles durante anos. É muitíssimo vantajoso que desde já se tornem amigos e companheiros de folia. Também te hei-de arranjar algumas meninas para brincares, se encontrar alguma que não esteja completamente estragada pela má educação.

- Phebe é muito boa pequena, tenho a certeza. Gosto dela, embora só ontem tenhamos falado exclamou Rosa, animada.

- Quem é Phebe?

Rosa disse tudo quanto sabia acerca da rapariguinha, e o tio Alec ouviu-a com um sorriso nos lábios, embora a expressão dos olhos se mantivesse séria, como quem observa.

- Agrada-me ver que não te mostras aristrocrata na escolha dos teus amigos, mas não percebo bem a tua preferência por uma rapariguinha tão humilde.

- O tio pode rir-se à vontade. Eu também não lhe sei dizer porque gostei tanto dela. Mas soube-me bem ouvi-la cantar e ver que era forte bastante para poder lavar o chão da cozinha, sem se queixar.

- Como sabes que não se queixa?

- Porque eu comecei a lamentar-me e perguntei-lhe se não tinha coisas que a apoquentassem. Ela respondeu-me que a única coisa que lhe fazia pena era não poder freqüentar a escola, embora esperasse arranjar maneira de ir lá, mais dia menos dia.

- com que então não a apoquenta ser pobre e ter de fazer trabalhos pesados? Vejo que é uma rapariguinha valente e hei-de gostar de conhecê-la.

O tio Alec disse isto de tal forma que Rosa sentiu vontade de ser ela a pessoa elogiada.

- Mas de que te lamentas, minha filha? O que te apoquenta? - perguntou ele depois de uma pequena pausa.

- Não me fale disso, tio, peço-lhe.

- Não me podes dizer os teus desgostos como os disseste a Phebe?

No tom da sua voz havia qualquer coisa que fez Rosa sentir a necessidade de abrir-se com ele. Baixou os olhos e disse muito corada:

- O que mais me apoquenta é ter perdido o Papá.

Ao dizer isto, sentiu que o tio Alec a abraçava com ternura, enquanto lhe dizia com uma voz semelhante àquela que estava habituada a ouvir a seu pai:

- Esse desgosto não posso eu curar, minha filha; mas tentarei que o sintas menos. E que mais temos?

- Sinto-me sempre tão fatigada que não posso fazer nenhuma das coisas que gostaria, e isso aborrece-me - suspirou Rosa, esfregando a cabeça dorida, como uma criancinha assustada.

- Disso vamos nós tratar e havemos de curar-te

- afirmou o tio Alec com tal decisão que todos os seus caracóis tremeram, e Rosa pôde ver, debaixo das madeixas de cabelo escuro, muitos fios brancos.

- A tia Myra afirma que sou fraca e que nunca poderei fortalecer-me bastante - observou Rosa, num tom tão resignado que dir-se-ia achar interessante ficar toda a vida uma inválida.

- A tia Myra é... era! uma óptima pessoa, mas tem a mania de imaginar que toda a gente está de pés para a cova, e até parece que se sente ofendida se a contrariam. Pois vamos mostrar-lhe como se torna forte uma criaturinha débil e como um rosto pálido ganha lindas cores. Deixa isso comigo - dis- se ele, mais calmo. O rompante com que começara a falar quase metera susto a Rosa.

- Tinha-me esquecido de que o tio era médico, Mas peço-lhe que não me dê muitos remédios. Já tenho tomado tantos! E o pior é que não me fazem nada.

Enquanto talava, Rosa apontou para uma mesa perto da janela, onde se alinhava um regimento de frascos.

- Ah, ah, vamos lá a ver o que é isto. Que data de venenos! - E o Dr. Alec foi examinando os frascos um a um, sorrindo umas vezes, carregando outras o sobrolho. - Pois vou mostrar-te o destino a dar a todas estas mixórdias. - E, como um raio, o Dr. Alec desatou a atirar os frascos pela janela fora. Um a um foram pousar nos canteiros do jardim.

- Mas a tia Plenty e a tia Myra vão zangar-se; eram elas que me mandavam tomá-los - exclamou Rosa, meio assustada, meia divertida com as medidas enérgicas do tio.

- Agora sou eu quem te trata e a responsabilidade é minha. Os meios que vou empregar parecem mais vantajosos porque ainda agora comecei e já tens melhor aspecto - disse ele, rindo tão afectuosamente que Rosa se atreveu a gracejar, dizendo:

- Não imagine o tio que os seus remédios vão agradar-me mais do que estes que eu andava a tomar, e posso também lembrar-me de atirar com eles para o jardim.

- Se te prescrever mixórdias destas, tens licença de atirá-los para o jardim sempre que queiras. Mas passemos aos outros desgostos. Que vêm a ser?

- Tinha esperança que se esquecesse de perguntar.

- Como hei-de ajudar-te a vencer tais desgostos se não souber o que são? Passemos ao terceiro.

- É muito feio este meu sentimento, tenho a certeza; mas, por vezes, desejava não ser sobrinha de tantas tias. São muito boas para mim e gosto de agradar-lhes, mas são diferentes umas das outras!... Cada uma puxa por mim em sentido oposto

- disse Rosa, como um pintainha que se sentisse entregue aos cuidados de seis galinhas enormes.

O tio Alec deitou a cabeça para trás e riu como um garoto, porque fazia bem a idéia do que seriam as excelentes senhoras, todas muito bem intencionadas, combinando-se para atormentarem a pobre Rosa.

- Pois vamos tentar uma direcção única, que será dada pelo tio. Talvez te convenha melhor esta modalidade. Vou tomar-te à minha conta e ninguém terá autorização de dar opinião, a menos se eu lha pedir. Não há outro processo de manter a ordem a bordo. vou ser o capitão deste barco durante algum tempo. Que mais temos?

Rosa corou muito, não se atrevendo a dizer qual era o quarto desgosto.

- Não posso dizer o que é. Seria má educação, e tenho a certeza de que vai passar.

O Dr. Alec, ao vê-la corar e ao ouvi-la dizer estas palavras, desviou os olhos para o mar distante e disse muito sério, com tanta ternura que Rosa sentiu que nunca esqueceria as suas palavras:

- Minha filha, não posso esperar que me dês instantaneamente a tua amizade e a tua confiança; contudo, peço-te que creias que vou entregar-me de todo o coração à minha nova missão; quando errar

- e é provável que tal aconteça - sentirei esses erros profundamente, mais do que ninguém. Para mais, é minha a culpa se sou para ti um estranho, quando deveria ser um amigo. É um dos meus erros passados que mais me apoquenta. Eu e teu pai ti- vemos uma zanga sem importância. Convenci-me de que nunca nos havíamos de conciliar e mantive-me afastado anos e anos. Felizmente, fizemos as pazes da última vez que nos encontrámos e ele disse-me que, se tivesse a infelicidade de deixar só no Mundo a sua menina, ma entregava como prova da sua confiança e da sua afeição. Não poderei ocupar o lugar que era o seu, mas tentarei fazer as vezes dum pai e, se essa menina puder dar-me metade da afeição que dedicava ao seu verdadeiro pai. sentir-me-ei recompensado e feliz. Queres fazer o possível para confiar em mim?

No rosto do tio Alec havia tal expressão que Rosa se sentiu comovida e, quando ele ergueu a mão, foi levada a beijá-la para selar esse pacto de confiança mútua. Sentiu-se então apertada nuns braços fortes e ouviu o peito do tio Alec soltar um suspiro fundo de alívio. Não disseram mais nada até que alguém bateu à porta. Ambos estremeceram.

Rosa deitou a cabeça fora da janela ao dizer "entre", e o Dr. Alec passou a manga do casaco nos olhos, muito apressado, e começou a assobiar alegremente.

Phebe apareceu com uma chávena de café.

- Debby mandou-me trazer o café e dizer à menina que se levantasse - afirmou a pequena, arregalando os olhos e perguntando consigo como é que o "marinheiro" teria entrado.

- Já estou pronta. Espero que o café esteja forte - disse Rosa, observando o café, desconfiada.

Não chegou, porém, a tomá-lo, porque uma mão morena tomou conta da chávena. O tio Alec disse muito depressa:

- Espera um instante. Todas as manhãs tomas uma chávena de café deste tamanho?

- Tomo. A tia diz que me faz bem; realmente sinto-me melhor depois de havê-lo tomado.

- Por isso não dormes, e tens palpitações e estás pálida em vez de teres lindas cores. Não tomes mais café, minha filha. Vais ver que tenho razão. Phebe, haverá leite?

- Há, sim, senhor. Acabadinho de mttngir.

- Pois é essa bebida que convém à minha doente. Vai buscar leite e traz uma chávena mais, pois também me apetece tomar uns goles. Ninguém com nervos, resistiria a tanto café.

Com grande desgosto de Rosa, o café levou o caminho dos remédios.

O Dr. Alec viu o olhar triste que Rosa lançou ao café e disse animado:

- Trouxe na minha bagagem uma tigelinha que é óptima para beberes o teu leite; é feita de uma madeira que torna gostosas todas as bebidas. É uma tacinha verdadeiramente mágica. Agora me lembro, um dos caixotes que estão lá em baixo é para ti. Quando soube que tinha uma filha à minha espera, comprei umas coisitas na esperança de que lhe agradassem. Amanhã muito cedo vamos dar um grande passeio. Ora cá está o nosso leite. Bebo à saúde de Miss Rosa Campbell - cá vai à tua!

Era impossível amuar com uma perspectiva tão agradável diante de si. Um caixote de surpresas. Rosa sorriu, quase sem querer, e achou que o leite era uma bebida agradável de se tomar.

- Agora tenho de me pôr a andar - disse o Dr. Alec, preparando-se para descer por onde subira.

- O tio costuma sempre entrar pelos telhados como um gato? - perguntou Rosa, divertida com a estranheza do caso.

- Quando era pequeno costumava sair pela janela para não incomodar as tias, e tomei-lhe o gosto. É um caminho mais curto e não tenho de bater à porta. Adeus, ver-nos-emos à hora do almoço.

E lá foi pelo telhado abaixo até se perder na madressilva do jardim.

- Que pessoa tão divertida! - exclamou Phebe, enquanto levava as chávenas.

- Parece-me muito bom - respondeu Rosa, matutando na sua caixa de surpresas.

Quando o tio apareceu à hora do almoço, encontrou-a olhando ansiosa para o novo pitéu que fumegava sobre a mesa.

- Então como vamos? - perguntou o tio Alec, acariciando-lhe os cabelos fofos.

- Tio, não me vai fazer comer flocos de aveia?

- perguntou Rosa, num tom trágico.

- Porquê? Não gostas?

- Detesto! - respondeu Rosa, com ênfase, mostrando grande repugnância.

- Então não és uma verdadeira escocesa. Não gostas do pitéu mais tradicional. É pena, porque eu próprio estive a cozinhá-lo enquanto pensava no gosto que teríamos em comê-lo juntos. Não faz mal.

- E sentou-se, com aspecto desapontado.

Rosa estava disposta a teimar, porque detestava realmente o petisco, mas, como o tio Alec não tentasse sequer fazê-la obedecer, mudou de resolução e resolveu experimentar.

- Tentarei provar, para lhe fazer a vontade, tio; fizeram-me detestar este prato, à força de afirmarem que era óptimo - disse Rosa, um tanto envergonhada da razão apresentada.

- Desejaria que a minha filha viesse a gostar, porque na realidade é uma coisa que faz bem, e quereria que ela se tornasse tão forte como os filhos de Jesie, que foram criados com isto. Nunca almoçaram outra coisa e são os pequenos mais fortes de todo o grupo. Muito bom dia, tia.

O Dr. Alec voltou-se para cumprimentar a senhora que entrara e sentou-se, disposto a principiar a comer. Rosa sentou-se também.

Em poucos minutos esqueceu completamente o que estava comendo, tão interessada se encontrava na conversa. Divertia-a imenso ouvir chamar "menino" ao tio Alec, que tinha quarenta anos. A tia Plenty era assim que o tratava. A sopa detestada lá foi comida sem mais protestos.

- Espero que venhas connosco à igreja, Alec, se não te sentes muito fatigado - rogou a bondosa senhora quando acabaram de almoçar.

- Vim da índia com esse único fim, minha tia. Simplesmente, é preciso prevenir as manas da minha chegada. Só me esperam amanhã e Deus sabe o que aconteceria se os pequenos me vissem aparecer na igreja inesperadamente.

- Mando recado às outras manas. Mas podias ir tu próprio a casa de Myra. Ficava contentíssima por te ver e ainda tens tempo.

O Dr. Alec saiu e ninguém mais o viu até à hora de partirem, quando o carro esperava à porta e a tia Plenty descia as escadas com Rosa atrás como uma sombrazinha negra.

Lá se meteram todos dentro do carro e, pelo caminho, o chapéu do tio Alec não teve descanso, tantos foram os cumprimentos às pessoas que passavam, sorriam e cumprimentavam também.

Era evidente que a prevenção fora útil, porque apesar dela, os pequenos mostraram-se tão excitados ao verem o tio, que as pessoas mais velhas recearam qualquer movimento despropositado.

Rosa não se atrevia a olhar para os primos. Charlie piscava-lhe o olho por detrás do leque da mãe; Mac apontava descaradamente o tio, chamando a atenção dos mais velhos; Jamie olhava para ele tão atentamente que Rosa receou que os olhos lhe saltassem. Georgie deitou abaixo três livros de orações ao entrar. Will desenhou chineses nos punhos da camisa, mostrando-os a Rosa, à socapa; Steve parecia estalar de alegria e Archie fartou-se de escrever no livro de orações: "É azul e castanho" e, em seguida, passou o livro a Rosa muito amàvelmente.

A única salvação foi fixar a vista no tio Mac um cavalheiro muito plácido, que parecia inteiramente fora do assunto e continuava muito bem sentado, no seu canto. Fora ele o único tio que Rosa conhecera durante vários anos, porque os tios Jem e Steve, maridos da tia Jessie e Clara, navegavam, e a tia Myra era viúva. O tio Mac era negociante muito rico e mostrava ser tão sossegado que ninguém dava por ele. Como se encontrava numa minoria esmagadora entre tantas mulheres, não se atrevia a abrir o bico e deixava a esposa governar à vontade.

Rosa gostava muito dele porque fora esse tio quem viera buscá-la quando o pai morrera e porque costumava enviar-lhe infinitos doces para o colégio e enchê-la de mimos. com os seus botões lamentara não ser ele o seu tutor, antes de conhecer o tio Alec. Agora, porém, tal não acontecia, e demais a mais não tinha grande preferência pela tia Jane, que era a mulher do tio Mac.

Quando saíram da igreja, o tio Alec encaminhou-se para a entrada, onde a pequenada o assaltou e as irmãs o abraçaram. Rosa quase ficou esmagada à porta; felizmente o tio Mac correu em seu auxílio e levou-a para o carro sã e salva.

- Agora, minhas filhas, quero que venham todas jantar connosco; Mac vem também, está claro. Simplesmente, não poderei convidar os pequenos porque só esperava amanhã o nosso Alec e não tenho nada preparado. Mandem os pequenos para casa e na segunda-feira nos reuniremos. Demais a mais eles portaram-se muitíssimo mal na igreja - disse a tia Plenty, ao entrar na carruagem.

Os rapazes prepararam-se para protestar energicamente, quando o tio Alec arrumou a questão, dizendo:

- Não se importem, pequenos. Amanhã também é dia e já terei retirado dos caixotes as lembranças que vos destino.

 

                    AS TIAS

DURANTE todo o jantar, Rosa sentiu que iam falar dela e, depois dessa refeição terminada, teve a certeza porque a tia Plenty segredou-Lhe quando se encaminhava para a sala:

- Vai lá acima fazer um pouco de companhia à tia Peace. Ela gosta muito de te ouvir ler, enquanto faz o seu repouso, e nós não podemos estar ao pé dela.

Rosa obedeceu, e no andar de cima havia tanto sossego que se sentiu outra vez na igreja e acabou por lhes saber bem a companhia da pobre senhora, que há anos esperava que Deus a libertasse das suas penas.

Rosa conhecia o triste romance da sua vida; isso emprestava certo encanto à companhia da pobre tia-avó que a estimava tanto. Quando Peace tinha vinte anos, esteve para casar, o vestido de casamento estava pronto, as flores colhidas, e esperava pela hora abençoada quando lhe vieram dizer que o seu noivo morrera. Todos pensaram que a meiga Peace morreria também; esta suportou, porém, corajosamente, a notícia. Guardou o seu vestido de noivado e continuou a viver como até ali. Agora era uma velhinha com cabelos de neve e umas faces pálidas que nunca mais tinham tido cor. Nunca se vestia de preto. Escolhia vestidos de tons pálidos, como se estivesse sempre pronta para aquele casamento que não" chegou a realizar-se. Durante trinta anos viveu muito calma, interessando-se pela vida dos outros, ajudando-os, aconselhando-os. Dedicava-se especialmente às sobrinhas que iam crescendo e aos sobrinhos que nasciam. Eram uma senhora idosa e bonita que acalmava todos quantos se chegavam junto dela.

A tia Plenty era o oposto. Era também idosa mas forte, ágil, enérgica, e tinha os olhos vivos e as faces coradas como maçãs camoesas. Nunca parava, falava sempre e tratava de tudo quanto fossem coisas práticas, sentindo-se feliz com isso.

A suposição de Rosa era certa; enquanto se entretinha lendo salmos suaves à tia Peace, as outras senhoras estavam falando dela com o maior à-vontade.

- Então, que te parece a tua pupila? - perguntava a tia Jane, quando acabaram de instalar-se, ao tio Alec que se sentara defronte dela.

O pobre George levou sempre uma vida muito

retirada e esta criança sofreu bastante com isso sempre; depois que ele faltou, as coisas ainda têm piorado.

- Meu amigo, enquanto não chegavas, fizemos aquilo que nos pareceu melhor. Muitas vezes repeti a George que fazia mal em educá-la assim, mas nunca fez caso da minha opinião, e agora encontramo-nos a braços com essa pobre criança. Confesso que já não sei o que hei-de fazer. É como se estivesse a tratar de um desses passarinhos exóticos que tens trazido, por vezes, das tuas viagens. - E a pobre tia Plenty abanou a cabeça desanimada, o que causou grande impressão entre os toucados cheios de laçarotes que a rodeavam.

- Se me tivessem ouvido tinham-na deixado ficar na escola que eu lhe arranjei. Mas a nossa tia julgou preferível tirá-la de lá, e, afinal, a pequena desde que chegou, não mostra sentir-se melhor do que se sentia lá. É terrível atender aos caprichos de uma rapariga mimada e doente como Rosa-disse Mrs. Jane, muito severa.

Nunca perdoara à tia ter ouvido as súplicas de Rosa, que desejava esperar pelo regresso do tutor, em casa, e abandonar a odiada escola.

- Nunca aprovei semelhante escola para uma menina que tem de seu. Será muito boa para qualquer pobre rapariga que precise de tirar um curso para ganhar mais tarde a vida. O que Rosa necessita é de uma escola onde esteja um ano ou dois a completar a sua educação, e donde saia aos dezoito anos, suficientemente prendada para entrar com brilho na sociedade - afirmou a tia Clara, que fora uma beleza nos seus tempos e que ainda era uma linda senhora.

- Deus do Céu! Como vocês têm coragem de falar do futuro quando se vê mesmo que essa pobre menina precisa é de carinho e de cuidados. Lê-se-Lhe nos olhos que a sua maior necessidade é um pouco de ternura. Aquilo que ela mais quereria não podemos nós dar-lhe. Precisava da sua mãe - disse a tia Jessie, com os lindos olhos rasos de água, pensando que os seus filhos também pudessem um dia encontrar-se sem mãe, entregues a estranhos.

O tio Alec, que ouvira todas as opiniões sem icsponder, voltou-se para a última das irmãs e atalhou imediatamente:

- Tens toda a razão, Jessie; e com a tua ajuda havemos de conseguir que esta pobre criança não sinta tanto a falta de seus pais.

- Farei o possível, Alec; estou convencida de que hás-de precisar que te ajudem, porque, por maior que seja a tua vontade, não poderás nunca entender tão bem uma criança tímida e ainda tão nova, como uma mulher tem obrigação de fazer - afirmou Mrs. Jessie, sorrindo para ele com o coração transbordando de amor maternal.

- Não me posso impedir de pensar que, tendo eu tido uma filha, sou a pessoa mais indicada para tratar duma rapariga; fiquei muito surpreendida por o Georgie não entregar Rosa aos meus cuidados observou a tia Myra, muito melancólica e cheia de importância, pois fora ela, de todas as irmãs, a única que tivera uma filha, e sentia que isso lhe dava autoridade, embora pessoas mal intencionadas afirmassem que a filha morrera graças à sua falta de bom senso.

- Acho que ele fez muito bem, quando me lembro da educação que deste à pobre Carrie - interrompeu Mrs. Jane, muito áspera.

- Jane Campbell, não posso ouvir nem mais uma palavra. A minha querida Carolina é um assunto sagrado para mim - exclamou a tia Myra, levantando-se com intenção de sair da sala.

O Dr. Alec deteve-a, sentindo que era indispensável definir a sua posição imediatamente e mantê-la com coragem, se queria obter resultados.

- Oiçam, minhas queridas amigas, não nos vamos pôr a discutir por causa de Rosa, nem vamos disputá-la uns aos outros como se tratasse de um OSSO - embora ela não tenha senão ossos, pobrezita. Vocês há um ano que tratam dela como entendem e não se pode dizer que os resultados tenham sido brilhantes. Eram pessoas de mais a mandar. Tenciono experimentar os meus processos durante um ano também e, se não derem resultado, entrego a pasta a uma de vocês. É justo o que pretendo, parece-me.

- Ela não dura um ano, pobrezita. Ninguém terá de assumir semelhante responsabilidade daqui a um ano - afirmou a tia Myra calcando umas luvas pretas como se fosse já para o funeral.

- Santo Deus! Myra, és tremenda! - exclamou o Dr. Alec, com os olhos a cintilar. - Se continuas a afirmar essas coisas acabas por sugestionar a pobre criança. Já lhe meteste na cabeça que é muito fraquinha e essa idéia parece agradar-lhe. Acabas por encher-lhe a cabeça de temores. Se não fosse uma criança resistente já tinhas dado cabo dela. Peço-te que não dês opinião até que eu tá peça.

- Muito bem, muito bem! - disse o tio Mac do canto onde se instalara e onde parecia dormitar.

- És tu o seu tutor, de modo que nós não podemos fazer nada: tenho, porém, a certeza de que vais estragar essa pequena com mimos - disse a tia Jane, azeda.

- Obrigado pelo seu parecer, irmã. Contudo, tenho a impressão de que, sendo possível a uma mulher educar dois rapazes, tão bem como tu tens educado os teus, também não será impossível a um homem, com um pouco de esforço, educar uma rapariga - replicou o Dr. Alec, maliciosamente, pois era sabido que os filhos de Jane eram os mimados de entre todos os primos.

- Tenho a certeza de que o Alec é capaz de fortalecer e melhorar a saúde da pequena de modo a poder mantê-la mais tarde no colégio de Madame Roccabella, onde terminará a sua educação - disse a tia Clara, compondo os anéis e pensando, toda contente, no momento em que apresentaria à sociedade uma sobrinha muito distinta.

- Suponho que ficarás na tua antiga casa, a menos que penses em casar. Já não seria sem tempo - redarguiu a tia Jane, muito irritada com as frases do irmão.

- Não, não penso nisso por agora. Vamos fumar um cigarro, Mac - disse, bruscamente, o Dr. Alec.

- Não te cases: já há mulheres a mais na família - murmurou Mac. E os dois homens saíram da sala.

- A tia Peace gostava de ver as tias - foi o recado que Rosa veio trazer, antes que as senhoras tivessem tido tempo de recomeçar a discussão.

- Meu Deus, vê-se logo que está tuberculosa!

- murmurou a tia Myra, olhando para as faces descoradas da menina.

- Ainda bem que os seus caracóis são naturais; é uma coisa cada vez mais rara - disse a tia Clara, observando Rosa, com a cabecinha um pouco de lado.

- Agora que teu tio chegou, espero que comeces a aprender alguma coisa e que passes todo o tempo por aí sem fazer nada - não pôde impedir-se de dizer a tia Jane, saindo da sala com o seu ar de mártir.

A tia Jessie não disse nada, mas beijou a menina, ao passar, com tanta simpatia que Rosa não pôde deixar de segui-la com a vista, cheia de gratidão.

Quando todos se retiraram, o Dr. Alec pôs-se a passear pela sala até ao escurecer. Andava tão absorvido que umas vezes sorria, outras carregava o sobrolho. De repente exclamou como quem toma uma resolução:

- Tenho de começar imediatamente, porque o pessimismo de Myra e os sermões de Jane têm tornado a pequena verde.

Abrindo um baú que estava a um canto, tirou de dentro, depois de procurar um pouco, uma almofada muito bem bordada e uma tacinha de madeira trabalhada.

- Isso é para começar - disse, enquanto limpava a taça e dava pancadinhas na almofada. - É preciso não entrar com muita violência, para ganharmos confiança um no outro e então veremos.

Neste momento Phebe saía da sala de jantar com um prato de fatias de pão escuro, pois Rosa não tivera autorização de comer ao lanche as guloseimas do costume.

vou aliviar-te da tua carga - disse o Dr. Alec, agarrando numa fatia e retirando-se para o seu gabinete, enquanto Phebe pasmava daquele súbito apetite.

Mais ainda teria pasmado se o tivesse visto a transformar a fatia de pão numas pilulazinhas escuras e a meter estas dentro de uma linda caixa de marfim.

- Ora aqui temos umas pílulas óptimas, para o caso de insistirem em que a pequena tome remédios. Tenciono fazer as coisas à minha maneira, mas prefiro levá-las a bem, sendo possível. Se a experiência der resultado, muito nos havemos de rir disse ele para consigo, divertido como um garoto.

Entretanto, Rosa estava tocando num pequeno órgão que a tia Peace gostava de ouvir.

O Dr. Alec, enquanto conversava com as suas velhas tias, ia ouvindo Rosa e pensava em sua mãe que também se chamava Rosa e costumava tocar para ele ouvir.

Quando deram oito horas, disse:

- São horas de a minha filha ir para a cama, para poder levantar-se cedo amanhã, pois tenho muitos projectos. E agora venha ver uma coisa que tenho para lhe dar.

Rosa aproximou-se e, muito atenta, ouviu-o dizer:

- Nas minhas viagens por esse Mundo descobri vários remédios agradáveis de tomar. Espero que os queiras experimentar. Tenho aqui umas pilulazinhas que me foram dadas por uma velhota indiana. São feitas de vegetais e ajudam a dormir: vais experimentar e estou convencido de que hás-de dormir muito bem e de que amanhã acordarás sem dores de cabeça.

- Oxalá que sim. Cheiram tão bem! E Rosa engoliu a pílula com a maior boa vontade, continuando atenta às palavras do doutor.

- Esta é a tacinha de que já te falei. Dá ao leite um óptimo sabor e vais ver como ele passará a saber-te bem.

- Receio que não - disse Rosa. Entretanto, agarrou na tacinha por achá-la muito linda.

- Não te parece que Rosa deveria tomar qualquer coisa que a alimentasse mais do que uma simples tacinha de leite, Alec? Acho que era bom que tomasse um tônico - disse a tia Plenty, olhando para os novos remédios, desconfiada; tinha muito mais fé nos remédios da farmácia, que toda a vida conhecera, do que naquelas novidades vindas do Oriente.

- Se a tia quer, dá-se-lhe mais uma pílula, embora se trate de um remédio de que não convém abusar. É um remédio feito de cereais misturados: dantes era muito usado. Tenho esperança de que volte a sê-lo, pelos óptimos resultados que com ele se obtêm.

- Meu Deus! Um remédio feito de cereais, que coisa estranha! - proferiu a tia Plenty, pondo os óculos para olhar para as pílulas, cheia de interesse" e respeito.

Era mais do que o Dr. Alec podia suportar e custou-lhe imenso manter-se sério.

- Toma mais uma pela manhã, minha filha, e boa-noite, dorme bem - disse para a sua doente, beijando-a com afecto.

Quando ficou só, o Dr. Alec levou as mãos à cabeça e exclamou meio divertido, meio aflito:

- Quando penso no que me meti, só me apetece fugir e não pôr cá os pés senão quando Rosa fizer dezoito anos.

UM CINTO E UMA CAIXA

(QUANDO Rosa, na manhã seguinte, saiu do quarto, com a sua tacinha na mão, a primeira pessoa que viu foi o tio Alec, na soleira da porta do quarto fronteiro, olhando para dentro como se examinasse o aposento com grande atenção.

Quando lhe ouviu os passos voltou-se e começou a cantar:

"Onde vamos nós, minha linda menina?"

"vou mungir a minha vaquinha" - respondeu ela, também por música, mostrando a taça; e continuaram juntos a mesma cantiga.

Antes que dissessem mais nada, duma outra porta surgiu uma cabeça com uma touca de dormir tão cheia de folhos que parecia um repolho, e uma voz exclamou muito admirada:

- O que estão vocês fazendo, assim tão cedo?

- Afinamos as gargantas. Oiça, tiazinha, pode ceder-me este quarto? - perguntou o Dr. Alec, fazendo continência como um marinheiro.

- Fica com todos os quartos que quiseres, à parte o da tia Peace.

- Muito obrigado. Posso também passar busca

 

1 Alusão a uma cantiga americana, muito conhecida das crianças-(N. da T.)

 

aos sótãos e arrumações, para arranjar móveis com que o mobile a meu jeito?

- Meu querido filho, podes voltar a casa de pernas para o ar, desde que fiques junto de nós.

- Que óptima proposta. Pois vou instalar-me, minha tia. Tenho aqui uma âncorazinha a prender-me e desta vez hão-de ter tempo de fartar-se de mim.

- Nunca nos fartamos de ti! Veste o teu casaquito, Rosa. Não a fatigues, Alec. Vou já, irmã, vou já! - disse para dentro, e a cabeça desapareceu.

O Dr. Alec e Rosa foram até ao curral. A primeira vez que Rosa tentou mungir a vaca, não o conseguiu sem peripécias e sem risos. Por fim, Ben segurou na cauda do bicho e Rosa lá pôde encher a sua tacinha.

- Apesar de toda esta risota pareces ainda ter frio. Dá uma volta ao jardim, correndo, para aqueceres - disse o doutor quando acabaram.

- Já não tenho idade para correr, meu tio. Miss Power fartou-se de me dizer que não era bonito uma menina ser cavalona.

- Pois tomo a liberdade de discordar dessa opinião abalisada. E, como médico, ordeno-te que corras. Vamos a isso! - ordenou o tio Alec, com tanta animação que Rosa desatou a correr com quantas forças tinha.

Ansiosa por agradar-lhe, deu uma volta aos canteiros e veio por fim ao alpendre de entrada onde o tio a esperava. Quando lá chegou, sentou-se num degrau a repousar, tão corada como o xalinho que trazia em volta do pescoço.

- Ora muito bem: vejo que não perdeste o uso das pernas, embora se tenham esforçado por que i isso acontecesse. Simplesmente, trazes o cinto muito apertado e não podes respirar convenientemente.

- Não está apertado, tio; respiro perfeitamente - respondeu Rosa, muito convencida.

O tio, como única resposta, limitou-se a puxar pela ponta do cinto, fazendo que este se desapertasse.

Rosa não pôde evitar um suspiro de alívio, mas disse por respeito pelo seu cinto novo:

- Não sentia que estivesse apertado, mas se se puxa assim...

- Vê-se perfeitamente que não enches de ar os pulmões, de modo que podes suportar esse aperto absurdo sem te sentires incomodada. Que idéia, apertar com uma tira de couro um corpinho que precisa de crescer - continuou o Dr. Alec, olhando para o cinto com grande desprezo e alargando-o, com desgosto de Rosa que sentia certa vaidade em ter a cinturinha fina e não ser como aquela pobre Luly Miller, sua companheira de escola, uma gorducha.

- Assim tão largo, pode cair e perco-o - obseryou, olhando ansiosa para o cinto.

- Não cai se respirares fundo. Quando te habituares a trazê-lo assim, desenvolves-te melhor e, nessa altura, voltaremos a alargar mais um furo. O que é preciso é ser saudável; não vale importar com modas tolas.

- Que figura! - disse Rosa, desconsolada, vendo o cinto a cair-lhe pela barriga abaixo. - Ainda perco este cinto, que é de tão bom couro da Rússia. Veja como é maleável.

- Se o perderes dou-te outro ainda melhor, menos duro. Não vejo necessidade de usares uma coisa tão forte. Devo ter nas minhas coisas algum cinto vindo da Turquia ou de Marrocos. Ora, dize-me cá, não te sentes melhor? - E deu-lhe um beliscãozinho na face.

- É um disparate, mas não desgostava de saber se... -Rosa parou, corando, e, baixando a cabeça, continuou: - se o tio não acha que fico feia assim.

O Dr. Alec pestanejou, e disse, muito simplesmente:

- Tu serás vaidosa?

- Creio que sim - respondeu uma voz muito tímida por detrás dos cabelos que encobriam o rubor do rosto.

- É um defeito desagradável. - E o Dr. Alec suspirou, penalizado.

- Sei que é, e procuro deixar de ser vaidosa mas não consigo; agrada-me saber que não sou feia de meter medo.

As últimas palavras de Rosa e o tom em que foram ditas fizeram que o Dr. Alec saísse do seu sério, dando uma gargalhada que muito aliviou Rosa.

- Concordo que não és; mas para que metas ainda menos medo é necessário que te tornes pelo menos tão bonita como Phebe.

- Phebe! - exclamou Rosa, tão pasmada que o tio explicou:

- Sim, Phebe; Phebe tem exactamente aquilo que tu precisas de arranjar, saúde. Se vocês, rapariguinhas, aprendessem de uma vez para sempre no que consiste realmente a beleza, poupavam muitos aborrecimentos e muito dinheiro. Uma alma sã num corpo são é a única beleza necessária quer a um homem quer a uma mulher. Compreendes, minha filha?

- Compreendo, tio, - respondeu Rosa, um tanto ferida com a comparação, e não pôde impedir-se de acrescentar: - Tenho, em todo o caso, a impressão de que o tio não gostava de me ver com aquele vestido castanho, um avental de riscado azul e as mangas arregaçadas.

- Pois enganas-te. Gostava imenso, desde que te visse com forças para trabalhares como ela trabalha e com um par de braços fortes como os seus. Há muito tempo que não vejo uma criaturinha mais linda do que ela, quando esta manhã estava lavando os degraus da entrada, cantando como um pássaro.

- Nesse caso, acho que o tio tem uns gostos fora do vulgar! - comentou Rosa. depois desta afirmação que lhe pareceu de mau gosto.

Ainda agora a procissão vai na praça. Vais ter ocasião de observar que tenho gostos ainda mais singulares - replicou ele, tão categórico que Rosa sentiu certo alívio ao ouvir tocar a campainha que chamava para almoçar, para não mostrar mais as suas vaidades feridas.

- O teu caixote já está aberto na sala das tias. Podes divertir-te e diverti-las vendo o que contém

- disse o Dr. Alec ao acabar de almoçar. - Eu vou tratar do meu quarto. - Quer que o ajude, tio? - perguntou Rosa, desejando tornar-se útil.

- Não, obrigado. A tia Plenty empresta-me Phebe, se não lhe fizer falta.

- Quem tu quiseres, sempre que quiseres, Alec. Também deves precisar de mim. Vou dar ordens para o jantar, e já venho ajudar-te. - A bondosa senhora, dizendo isto, lá se foi cheia de actividade e interesse.

"O tio Alec há-de acabar por reconhecer que eu posso fazer certas coisas de que Phebe não é capaz"

- pensou Rosa com os seus botões, enquanto corria para o quarto da tia Peace a abrir o desejado caixote.

Qualquer rapariguinha pode imaginar a delícia que foi para Rosa nadar num oceano de tesoiros e ir pescando maravilhas uma após outra, até o quarto ficar perfumado a sândalo e extraordinariamente colorido com muitos tecidos alegres e frescos. Ao pegar numa caixinha de marfim trabalhado, perdoou ao Dr. Alec os flocos de aveia que a fazia comer; quando descobriu uma porção de lencinhos coloridos como um verdadeiro arco-íris, perdoou-lhe a largura do cinto; e quando surgiram uns frasquinhos orientais cor-de-rosa, perdoou-lhe considerar PheBe mais bonita do que ela.

Entretanto, o Dr. Alec parecia ter tomado à letra a frase da tia Plenty e voltava a casa de pernas para o ar. No quarto verde havia uma verdadeira revolução. As cortinas escuras de damasco saíam levadas por Phebe, o calolífero foi transportado para o sótão por Ben, e a cama de dossel, desarmada, foi aos pedaços para um quarto de arrumação. A tia Plenty andava num virote no meio de tantas mudanças, abrindo e fechando as arcas de cânfora, arrumando roupas, um tanto divertida e bastante admirada com semelhante transformação.

Quando Rosa avistava, de tempos a tempos, o Dr. Alec, era para vê-lo transportar uma cadeirinha de bambu, um bimbo japonês, etc.

- Que engraçado o quarto vai ficar! - disse ela, sentando-se a repousar, enquanto se enfeitava com alguns tecidos.

- Espero que fique bonito - respondeu a tia Peace, levantando a vista da sua costura, que era um trabalho delicado feito em seda e musselina branca.

Neste momento, o Dr. Alec passou e Rosa pôs-se a dançar diante dele, dizendo com uma alegria muito infantil:

- Olhe para mim, olhe para mim! Estou tão linda que não me reconheço. com certeza não estou vestida como deve ser, mas sinto-me assim muito bem!

- Estás alegre e pareces uma arara. Fica-te bem o que fez e alegro-me por te ver transformada num autêntico arco-íris - disse o tio Alec, olhando para a carinha alegre que lhe sorria.

Pensou consigo, embora não o dissesse, que a figura da sobrinha era muito mais bonita do que a de Phebe seria, em idênticas condições. Rosa colocara sobre os seus caracóis loiros um fez carmesim, prendera à cintura vários véus de cores e vestira um corpete escarlate bordado a oiro. Na parte da frente desse corpinho via-se o Sol, nas costas a Lua, e nas mangas havia estrelas. Rosa também não se esquecera de calçar umas chinelinhas turcas, nem deixara de pôr ao pescoço vários colares de âmbar e coral. Numa das mãos segurava um frasco de perfume oriental e na outra uma caixa de bombons.

- Sinto-me uma princesa das Mil e Uma Noites e espero encontrar por aí lalgures um tapete mágico ou um maravilhoso talismã. Só não posso saber como lhe hei-de agradecer tantas coisas lindas - disse Rosa, parando de rir, esmagada pela gratidão.

- Pois eu vou dizer-te como há-de ser. Vais abandonar imediatamente os vestidos pretos. Há muito tempo que já não devias andar assim vestida. Vais animar-te e serás a alegria desta casa. Não acha, minha tia?

- Acho que tens toda a razão, Alec, e, felizmente, não tratámos ainda dos seus fatos para a Primavera. Myra era de opinião que ela só devia vestir-se por ora, de roxo, e eu achava-a muito pálida para essa cor poder ficar-lhe bem.

- Deixe-me dirigir Miss Hemming e verá. Vão ficar admiradas ao verem quanto percebo de fatiotas - afirmou o Dr. Alec, pegando num pedaço da seda, com ares entendidos.

Mas a tia Plenty e Rosa riram tanto que não o deixaram continuar.

Rosa voltou para junto do seu caixote e daí a bocadinho disse muito séria:

- Parece-me que não mereço tantas coisas. Se desse algumas a Phebe? O tio gostaria que eu fizesse isso?

- Tenho a certeza de que não se importava, mas não serviriam para nada a Phebe. Alguns dos vestidos que já não usas, ser-lhe-ão muito mais úteis, se lhos mandares arranjar - respondeu a tia Peace, com aquele tom moderado que sempre se emprega para dominar um bom impulso de caridoso entusiasmo.

- Preferia dar-lhe coisas novas. Tenho a impressão de que ela há-de ter certo orgulho, e receio feri-la.

Se fôssemos irmãs não teria importância; assim é delicado. Acho que o mais prático seria adoptá-la e fazer dela minha irmã - exclamou Rosa, radiante com a idéia.

- Receio que não possas fazer isso se não quando fores crescida; mas, até lá, poderás ajudá-la muito porque, até certo ponto, todos nós somos irmãos, aos olhos de Deus.

O rosto bondoso da tia Peace tinha tal expressão que Rosa não esperou nem mais um instante e correu à cozinha, vestida como estava. Phebe polia uns castiçais com tal entusiasmo que estremeceu quando ouviu Rosa dizer:

- Cheira isto e olha para mim.

Phebe cheirou o perfume, comeu um bombom que Rosa lhe meteu na boca e pasmou para a linda moirinha que tinha diante dos olhos.

- Senhor Deus! Que maravilha! - disse ela juntando as mãos sujas do serviço que estava fazendo.

- Tenho lá em cima montes de coisas lindas; quero mostrar-tas e gostaria de repartir contigo. A tia, contudo, diz que são inutilidades e que é preferível dar-te objectos que te sirvam para alguma coisa. Espero que não leves isso a mal, pois desejo adoptar-te, tal como acontece na história de Arabela. Não achas boa idéia?

- Que está dizendo, Miss Rosa? Não está em si.

Rosa continuava a falar tão depressa que Phebe não conseguia interrompê-la e olhava pasmada, tanto das palavras que ouvia, como da maneira como Rosa estava vestida. Então esta, curvando-se para Phebe, continuou muito terna:

- Não está certo que eu tenha tanto e tu tão pouco. Quero tratar-te como se fosses minha irmã; a tia Peace, demais a mais, afirma que somos todos irmãos aos olhos de Deus. Desejo, pois, adoptar-te desde já. Estás de acordo?

Com grande surpresa de Rosa, Phebe sentou-se no chão, escondeu o rosto no avental, e ficou um instante sem responder.

- Não te queria ofender, que queres que faça?

disse Rosa, desanimada com a maneira como fora

recebida. - Perdoa-me, peço-te. Não te queria magoar.

No entanto, Phebe causou-lhe ainda maior surpresa quando, retirando o avental do rosto, lhe mostrou uma expressão sorridente, embora cheia de lágrimas, e lhe passou os braços em volta do pescoço, dizendo enquanto chorava e ria a um tempo:

- É a melhor menina do Mundo. Pode fazer de mim o que quiser.

- Então, agrada-te o meu projecto? Não choraste por eu te querer proteger? Não era a minha intenção ofender-te - exclamou Rosa, radiante.

- Chorei porque ninguém tinha sido tão bom para comigo e isso comoveu-me. Quanto a proteger-me, faça de mim o que quiser - disse Phebe, com o coração transbordando de gratidão pela frase que ouvira: "Nós somos todos irmãos". Essa frase entrara até ao fundo do seu coração.

- Então podemos começar a brincar. Eu sou a fada que desce pela chaminé. Tu és a gata BorraLheira. Podes pedir o que quiseres - disse Rosa, procurando expressar-se o mais delicadamente possível.

Phebe compreendeu a intenção, porque tinha sentimentos requintados, embora tivesse vindo de um meio humilde.

- Não preciso de nada, Miss Rosa; preciso apenas de arranjar maneira de lhe poder agradecer aquilo que já me deu - respondeu Phebe, limpando uma lágrima que lhe escorria pelo nariz duma maneira nada poética.

- Mas eu só te dei um bombom! Aqui te deixo mais para ires comendo, enquanto acabas o teu trabalho. Vai pensando naquilo que queres e não te

esqueças de que te adoptei.

- Já me deu muitas coisas, além destes bombons; nunca me esquecerei disso. - E, limpando muito cuidadosamente as mãos, apertou a mãozinha de Rosa, enquanto os olhos se lhe enchiam de ternura, vendo Rosa afastar-se. Era um olhar de gratidão que lhe tornou os olhos escuros, avelulados e muito meigos.

 

                 O QUARTO DO TIO ALEC

LOGO a seguir ao jantar, antes que Rosa tivesse podido ver metade das suas riquezas, o tio Alec propôs um passeio de carro para levar às tias e primas as lembranças que lhes trouxera. Rosa aprovou a idéia, desejosa de experimentar um albornoz que encontrara no seu caixote. Esse albornoz tinha, por sinal, um lindo capuz.

O carro, apesar de grande, ia cheio de embrulhos e até junto de Ben havia coisas. Um enorme papagaio chinês, um par de chifres polidos e trabalhados, vindos de África, etc. O tio Alec, todo ele azul e castanho, azul nos fatos e castanho nos cabelos, sentou-se muito direito, olhando enternecido para os sítios familiares por onde iam passando, enquanto Rosa, sentindo-se muito elegante, se instalava comodamente, embrulhando-se no seu casaco maleável e claro. Entreteve-se a imaginar que era uma princesa oriental que ia visitar os seus súbditos.

As três primeiras visitas foram curtas porque o catarro da tia Myra estava pior do que nunca; a tia Clara tinha a sala cheia de gente de fora; e a tia Jane mostrava-se disposta a discutir política da Europa, da Ásia e da África com tal violência que o Dr. Alec não teve coragem de enfrentá-la e se pôs a andar o mais depressa possível.

- Agora é que nos vamos divertir! Oxalá os rapazes estejam em casa - disse Rosa, com um suspiro de alívio, quando chegaram ao alto da colina, à casa da tia Jessie.

- Deixei esta visita para o fim para podermos encontrar os pequenos de regresso da escola. Jamie, que estava junto do portão, já nos viu, e deve ter ido chamar os outros. Estão, com certeza, todos, porque nunca se separam.

Assim que Jamie viu os visitantes, assobiou duma maneira muito especial. Imediatamente lhe responderam outros assobios, uns vindos de dentro da casa, outros do jardim e os primeiros acorreram todos, gritando "viva o tio Alec!". Depois encaminharam-se para a carruagem, agarraram os embrulhos, tomaram conta das pessoas que vinham dentro como se fossem prisioneiros, e encaminharam-se para casa com enorme animação.

- Mãezinha! Mãezinha! Chegaram e trazem montes de presentes! Venha cá abaixo ver! Depressa!

- gritavam Will e Georgie no meio de um barulho ensurdecedor de papéis que se rasgam e de fios que se desatam. Num instante, a sala ficou transformada num caos.

A tia Jessie desceu com a sua engraçada touca um pouco de banda, mas com um sorriso tão lindo que dava mesmo a impressão que a touca se desarranjara com a corrida. Mal teve tempo de cumprimentar o Dr. Alec e Rosa, antes que os rapazes a rodeassem para lhe mostrarem os seus presentes, exclamando conteentemente "veja, mãezinha"! Num instante, ficou submersa em objectos vindos dos quatro cantos do globo, enquanto os sete pequenos falavam todos a um tempo.

Ela, porém, estava habituada a tudo isto e até gostava. Sentou-se, a sorrir, admirando e explicando, inteiramente à vontade no meio duma balbúrdia que fazia Rosa tapar os ouvidos, e o Dr. Alec ameaçar de se ir imediatamente embora, se não sossegassem um pouco. Esta ameaça deu certo resultado. O barulho parou algum tempo e permitiu que o tio Alec recebesse agradecimentos de alguns pequenos e a tia Jessie ouvisse confidências dos outros, que vinham dizer-lhe a alegria que lhes causara receberem aqueles presentes.

Em certa altura, a tia Jessie perguntou baixinho a Rosa:

- Minha filha, como tens agora passado? Espero que te sintas melhor do que estavas a semana passada.

- Tia Jessie creio que me vou sentir muito bem, agora que o tio chegou. É bastante esquisito, mas mostra-se tão bom para comigo que tenho a certeza de que virei a gostar muitíssimo dele. - E, chegando-se mais, Rosa descreveu as maravilhas vindas dentro da caixa.

- Isso alegra-me muito, minha filha. Mas, peço-te, Rosa, não deixes que o teu tio te estrague com mimos.

- Se assim for até acho agradável, minha tia.

- Não duvido, minha filha; mas, quando cresceres, se se provar que o resultado da educação que teu tio te deu não foi bom, todos o hão-de censurar. Isso seria uma pena, tendo ele feito tanto esforço para te educar o melhor possível, não achas? Não deixes que o seu bom coração perturbe a clareza da sua inteligência.

- Nunca tinha pensado nisso. Farei o possível por não me deixar estragar com mimos. Mas como hei-de fazer para evitar isso? -perguntou Rosa.

- Não te queixes por insignificâncias, obedece-Lhe e estima-o como ele merece; e faz de boa vontade os sacrifícios que ele julgue necessários para teu bem.

- Vou fazer o possível e, quando me vir aflita, virei ter consigo, sim? Quer que venha?

- Quando quiseres, minha filha, vens ter comigo e encosta-te aqui. É a melhor maneira de acabar com um desgosto. Creio mesmo que é só para isso que serve o peito das mães. - E a tia Jessie apoiou ao seu peito a cabecinha cheia de caracóis de Rosa e mostrou assim ser muito entendida no que diz respeito ao coração das crianças.

Rosa sentiu-se tão bem que se deixou ficar encostada um pedaço, até que um dos pequenos perguntou:

- Mãezinha, não lhe parece que Pokey havia de gostar que lhe déssemos algumas das nossas conchas? Rosa partilhou com Phebe as coisas que o tio lhe trouxe. É uma idéia esplêndida. Dá licença que eu faça o mesmo?

- Quem é Pokey? - perguntou Rosa, erguendo a cabeça, interessada pela estranheza do nome.

- É uma boneca que tenho; queres vê-la? perguntou Jamie, que se sentia muito impressionado por aquilo que ouvira a respeito de Phebe.

- Eu também gosto muito de bonecas; parece-me, entretanto, que, se dizes aos outros rapazes que brincas com bonecas, vão rir-se de ti.

- Não riem. Eles também brincam com ela; contudo, ela gosta mais de mim. - E, dizendo isto, Jamie saiu a correr para ir buscar a sua boneca.

- Eu ainda tenho uma boneca, mas não me atrevo a brincar com ela porque sou muito crescida. Entretanto, não tenho coragem para deitá-la fora, embora já não brinque. Gosto ainda tanto dela! exclamou Rosa, continuando as suas confidencias à tia Jessie.

Esta replicou:

- Podes vir para cá, quando quiseres, brincar com o Jamie. Nós cá em casa gostamos muito de bonecas. - E a tia Jessie sorriu, divertida.

Neste momento, Jamie entrou, e Rosa compreendeu o sorriso da tia. A boneca era uma menina muito linda, aí de uns quatro anos, que caminhava o mais depressa que as suas perninhas gordas lhe permitiam e que segurava muito contente uma quantidade de conchas, dizendo, muito entusiasmada:

- São todas minhas e do Dimmy! São todas minhas!

- Aqui está a minha boneca; não é bonita?

- perguntou Jamie, muito vaidoso, olhando para a bonequinha, de mãos atrás das costas, com um movimento que se via claramente ter sido copiado dos irmãos.

- É muito engraçadinha. Mas, por que lhe chamam Pokey? - perguntou Rosa, encantada com o novo brinquedo.

- É tão pequenina e tão mexida que lhe vai bem o nome. Como não lhe fica nada bem o nome que tem, resolvemos chamar-lhe Pokey. Não é bonito, mas é expressivo.

De facto, o nome era bem posto, porque, depois de examinar por um instante as suas conchas, a pequenita deitou as mãozinhas a quantas coisas estavam ao seu alcance e continuou as suas pesquisas até que Archie deu com ela chupando um dos peões do xadrez, convencida de que o marfim de que era feito seria açúcar. Também lhe encontraram num bolsinho, amarrotadas, algumas gravuras japonesas, feitas sobre papel de arroz e, por um triz, como se isso fosse pouco, Pokey esmagava o ovo de avestruz de Will, sentando-se-lhe em cima.

- Toma-a lá, Jim, leva-a daqui: é pior do que um cachorrinho, não a podemos aturar - disse o irmão mais velho, levantando ao ar a pequenita e entregando-a ao irmão, que a recebeu nos braços abertos, comentando:

- Terás de pensar duas vezes naquilo que dizes,

 

Pokey significa mexida, garota, instável- (N. da T.)

 

porque you adoptá-la, como a Rosa fez a Phebe e, nessa altura, terão de aturá-la, seus grandalhões.

- Se adoptares esta criança, terei de oferecer-te uma jaula; está-se tornando-se cada vez pior. É um autêntico macaquinho - disse Archie, indo ter com os rapazes mais crescidos, enquanto a tia Jessie, prevendo zaragata, propunha que Jamie levasse a casa a sua boneca, visto que a menina já devia estar fatigada.

- A minha boneca é mais linda do que a tua, pois não é? Fala, anda, e até pode dançar - replicou Jamie, olhando envaidecido para Pokey, que acabava de executar uns passozinhos de dança, enquanto cantava.

Depois desta façanha, lá se foi, acompanhada por Jamie, fazendo ambos imenso barulho a chocalharem as conchas.

- Temos de retirar-nos, Rosa. Desejo chegar a casa antes do pôr-do-sol. Não queres vir dar uma volta de carro, Jessie? - perguntou o Dr. Alec, daí a instantes.

- Não, obrigada. Os pequenos é que precisam de um pouco de exercício. Podem acompanhar-vos a casa, mas só até à porta. Entrar só lhes é permitido nos dias feriados.

Mal a tia Jessie acabara a frase, Archie comandava:

- Passem palavra. Ordiário, marche! Num instante os pequenos desapareceram. Desceu a colina com tal velocidade que Rosa

se agarrou várias vezes à manga do casaco do tio. Os cavalos que puxavam o carro sentiam-se excitados com os cavalinhos novos dos rapazes e seguiam a trote. Ben gostou da brincadeira e lá foram à compita todo o tempo. Rosa, quando chegaram, declarou que parecia realmente fazerem parte de um autêntico circo.

Quando chegaram os pequenos desmontaram e colocaram-se ao lado das escadas do alpendre, 59

enquanto Rosa subia, elegantemente conduzida pelo Dr. Alec. Depois a pequenada cumprimentou e lá se foi, fazendo aquilo a que eles próprios chamavam "um trote à maneira árabe".

- Foi esplêndido. Principalmente agora que já passou - Disse Rosa, olhando para o grupo que se afastava.

- Hei-de arranjar-te um cavalinho logo que estejas mais forte - disse o Dr. Alec, sorrindo.

- Oh, era incapaz de montar um desses terríveis animais. Morria de susto,

- Serás medricas?

- No que diga respeito a cavalos, creio que sim.

- É pena. Enfim, não importa: vem daí ver o meu quarto. - E subiram as escadas sem dizer mais palavra.

Rosa, enquanto subia, ia-se recordando da promessa que fizera à tia jessie e tinha pena de ter respondido ao tio tão secamente. Daí a cinco minutos ainda teve mais pena, se possível.

- Ora agora olha, e diz-me se gostas-perguntou o Dr. Alec, abrindo a porta e deixando-a passar à frente, enquanto Phebe se esgueirava por outra porta com uma pá de lixo.

Rosa caminhou até ao meio do quarto, parou, e arregalou os olhos pasmada com a transformação que o aposento sofrera.

Este quarto ficava mesmo por cima da biblioteca e só era utilizado quando, pelo Natal, a casa estava completamente cheia. Tinha três janelas. Uma que abria para o nascente e dava para a baía, outra para o sul, donde se avistava a encosta forrada de castanheiros, e outra para o poente, onde agora o Sol se escondia por detrás das colinas. A luz vermelha do poente enchia de brilhos o quarto, tornando-o um encanto; ouvia-se o mar murmurar baixinho e, da serra, vinham chilreios de passarinhos que se" despediam do dia que ia findar.

Rosa, antes de mais nada, foi sensível a essa beleza com o instinto maravilhoso das crianças; depois os seus olhos observaram a transformação do quarto, dantes tão nu e agora tão alegre, tão confortável, tão luxuoso.

O chão fora forrado com uma esteira indiana, coberta aqui e além por tapetes coloridos; uma braseira antiga de cobre, cheia de brasas, aquecia e secava o ar do aposento há muito desabitado. Cadeirinhas de bambu e divas formavam, ajudados por mesinhas baixas, cantos acolhedores. Sobre uma dessas mesinhas eslava poisado um cestinho, sobre outra uma escrivaninha, ainda noutra vários livros familiares. A um canto, encontrava-se colocada uma cama muito branquinha, com uma Madonna pendurada por cima. Um biombo japonês escondia um serviço de toucador de porcelana azul e branco colocado sobre uma placa de mármore. Logo ao pé avistava-se uma grande banheira, várias toalhas turcas e esponjas do tamanho da cabeça de Rosa.

"O tio deve gostar de se meter dentro de água fria como um verdadeiro pato"-pensou Rosa estremecendo. Olhou então para um grande armário que, tendo uma das portas abertas, mostrava no interior infinitas gavetinhas e muitíssimos escaninhos.

"Que quantidade de espaço para guardar coisas"

- pensou Rosa, perguntando a si própria o que é que o tio iria guardar num armário daqueles.

- Que lindo toucador! - exclamou ela, logo a seguir, aproximando-se.

Um espelho antigo estava pendurado por cima da mesa de mármore e, presa numa fita azul de seda, caía dos lados uma cortina de cambraia. Sobre o mármore estavam colocadas muitas caixas, um par de castiçais e uma caixinha de fósforos, tudo de porcelana azul e branca. Todavia, o que mais impressionou Rosa foi uma almofada de cetim azul com borlas nas pontas, e coberta de renda, colocada sobre um banquinho, diante desse toucador. Não pôde impedir-se de pensar, sorrindo:

"Já considerava o tio Alec um janota, mas não tanto; isto da almofada pareceu-me de mais".

Nesta altura o tio abriu a porta de um outro armário e disse despreocupadamente:

- Os homens gostam de ter bastante espaço para guardarem as suas coisas. Não te parece que será suficiente?

Rosa espreitou para dentro e deu um pulo, embora o que avistasse dentro do armário fossem coisas que efectivãmente é costume guardar num desses móveis. Sim, estava realmente cheio de fatos, de casacos; simplesmente, eram tudo fatinhos pequenos, de cores delicadas, e os sapatínhos nunca poderiam servir ao tio. Rosa reconheceu as suas coisas e entendeu a singularidade de certos pormenores do aposento, tão impróprios num quarto masculino. Atirou os braços ao pescoço do Dr. Alec e disse impetuosamente:

- Oh, tio, é bom de mais para mim. Pode fazer de mim o que quiser. Pode fazer-me montar um cavalo feroz, pode mandar-me tomar banhos de água fria, pode mandar-me comer flocos de aveia, pode mandar-me fazer vestidos onde eu pareça um cabide, pode fazer tudo quanto quiser de mim. Mesmo assim não conseguirei provar-lhe a minha inteira gratidão por um quarto tão lindo.

- Gostas dele? E estás convencida de que é para ti? Bonito! - exclamou o Dr. Alec, sentando a sobrinha nos joelhos.

- Tenho a certeza. Vejo na sua cara que sim e sinto que não sou merecedora. A tia Jessie disse-me que tinha a impressão de que o tio me ia estragar com mimos; receio bem que isso aconteça. E não mereço ter um quarto tão lindo. - E Rosa pôs-se a pensar se teria heroísmo bastante para recusá-lo.

- Então a tia Jessie disse isso? - perguntou o Dr. Alec, no fundo receoso de que a boa senhora tivesse razão E sorriu, com aquele sorriso bondoso que parecia um raio de sol a iluminar-lhe o rosto moreno; depois continuou: - Isto faz parte da cura que empreendi. Instalei-te aqui para poderes tomar os remédios que te indico com menos custo. Os remédios por ora são três: muito sol, muita água fria, e um pouco de trabalho feito com alegria. Phebe vai ensinar-te a tratares do teu quarto. Será uma amiga e ao mesmo tempo uma professora. Achas as minhas prescrições muito duras e excessivamente desagradáveis, minha filha?

- Não, tio; farei o possível por me tornar boa e paciente. Estou convencida de que ninguém pode estar doente num quarto como este. - Os olhos de Rosa iam de um para outro objecto, sorridentes e felizes.

- Então preferes estes remédios àqueles que a tia Myra te aconselhava? Não tens vontade de atirá-los pela janela fora? Dize cá.

 

                   UMA VIAGEM À CHINA

VEM daí, minha filha. Há um outro remédio que desejo aplicar-te e tenho a impressão de que não vai agradar-te tanto como te agradou o último que te aconselhei. Uma vez que estejas habituada, acabas por gostar - disse o Dr. Alec para a sobrinha, uma semana depois da grande surpresa.

Rosa encontrava-se no seu quartinho, onde teria passado o dia inteiro se lho permitissem. Todavia, olhou para o tio, sorrindo; deixara de recear os seus remédios e estava sempre pronta a experimentar outros. O último remédio constara de mandá-la fazer um pouco de jardinagem. O tio Alec presenteara-a com várias ferramentas para que o ajudasse a tratar dos canteiros, enquanto se entretinha a ensinar-lhe várias coisas referentes às plantas que estavam cuidando, Embora já tivesse recebido lições de botânica na escola, tais lições não tinham comparação possível com as lições práticas que o tio agora lhe dava.

- Que vamos fazer? - perguntou Rosa, fechando a sua caixa de costura sem murmurar.

- Tomar um pouco de água salgada.

- Tomar água salgada?

- Vista o seu fato novo e desça à praia, Miss Rosa. Aí lhe mostrarei como se toma água salgada.

- Pois sim, tio - respondeu Rosa, muito obediente, embora dissesse com os seus botões, toda arrepiada: "Ainda é cedo para tomar banho! Deve tratar-se de qualquer tremendo passeio de barco".

Vestiu o seu fato azul escuro avivado a branco, pôs um chapelinho de marinheiro com grandes fitas e lá se foi como um passarinho, para não fazer o tio esperar muito. Atravessou o jardim a correr, seguiu correndo por um carreirinho até chegar à praia onde encontrou o tio Alec muito ocupado, junto de um bote vermelho, que estava sobre a areia à espera que o arrastassem para o mar.

- É um barquinho muito bonito, e Flor do Mar é um lindo nome - disse Rosa, procurando ocultar o seu nervosismo.

- Pois é teu; senta-te à popa para aprenderes a governá-lo, enquanto não fores capaz de remar.

- Todos os barcos baloiçam tanto como este? perguntou ela, hesitante, enquanto enterrava melhor o boné.

- Todos oscilam como cascas de noz desde que o mar esteja picado - respondeu o tio marinheiro, como se não percebesse o receio da menina.

- E o mar hoje está picado?

- Nem por isso; há um bocadito de vento, mas não tem importância. A menos que se levantasse ventania. Vamos lá.

- O tio sabe nadar? - perguntou Rosa, agarrando-se-lhe ao braço, quando ele se preparava para lhe pegar na mão.

- Como um peixe. Anda daí.

- Oh, por favor, não se afaste tanto! Porque há de o leme estar colocado mesmo na extremidade do barco? - e, soltando várias exclamações neste gênero, Rosa lá se instalou no barco, agarrando-se com ambas as mãos como se receasse que cada vaga os levasse.

O tio Alec parecia não notar o receio da pequena e, muito pacientemente, ia-lhe ensinando a maneira de pegar no leine e dizendo o que era bombordo e estibordo até que ela acabou por se esquecer de soltar exclamações de cada vez que apanhavam uma vaga forte.

- Onde vamos nós? - perguntou Rosa, logo que sentiu a brisa fresca a dar-lhe na cara, quando já estavam longe da praia e atravessavam a baía.

- Se fôssemos até à China?

- Não será muito longe?

- Não, visto que me encontro a bordo. Vais dirigir o leme na direcção daquela ponta e, dentro de vinte minutos, avistamos a China.

- Bem, então não me desagrada! - disse Rosa, perguntando com os seus botões o que quereria o tio dizer, enquanto começava a achar graça ao panorama que se avistava dali. Lá estava o "Reino das Tias". Era uma colina semeada de casitas pitorescas e familiares. Logo que dobraram o pequeno cabo, viram a baía completamente e, ao fundo, a cidade por detrás dos mastros dos navios que enchiam o porto.

- Vamos até lá? - perguntou Rosa, toda animada, pois nunca vira semelhante aspecto da velha cidade industrial abrir-se na sua frente.

- Vamos. Chegou um navio do tio Mac que veio directamente de Hon-Kong; tenho a impressão de que gostarás de visitá-lo.

- Muito. Primeiro por ser do tio Mac; depois porque vou ver coisas que nunca vi e, principalmente, por se tratar da China. Interessa-me muito esse país por o tio lá ter estado.

- Vou mostrar-te dois autênticos chineses que acabam de chegar. Tenho a certeza de que gostarás de dar as boas vindas a Whang Lo e a Fun Lee.

- Não me peça para lhes dirigir palavra, tio; tenho a certeza de que me desato a rir dos rabichos deles e dos seus olhos como frinchinhas, além da extravagância dos nomes. Irei atrás do tio mas não direi palavra. É preferível.

- Pois está combinado. Vamos dirigir-nos para aquele barco grande que tem uma bandeira singular e se chama Rafa. Se pudermos, vamos a bordo.

Lá foram seguindo entre navios muito grandes. A água estava verde e tranqüila e perfumes estranhos entravam-lhes pelas narinas. Rosa nunca vira nada semelhante e tudo lhe agradava, pois tinha a sensação de estar realmente em Hong-Kong, quando subiu as escadas e entrou no Rajá. Homens fortes andavam carregando caixotes saídos do porão, e havia bastante movimento a bordo.

O Dr. Alec foi conduzindo Rosa através do navio e ela teve a satisfação de chegar sã e salva, sem ter sido esborrachada por nenhum caixote, ao camarote do capitão.

- Então, minha filha, não gostavas de dar a volta ao Mundo comigo, num barco como este?

- perguntou o tio.

- Gostava de dar a volta ao Mundo, mas não havia de ser num barco tão pequeno e tão mal cheiroso como este é. Preferia ir num iate muito bonito, como Charlie já me descreveu um - respondeu Rosa, olhando para o pequeno aposento onde se encontravam, com certo desprezo.

- Pois não és uma verdadeira Campbell se não aprecias o cheiro da maresia. Estou vendo que Charlie também não o é, visto preferir um iate luxuoso a um navio de carga. Vamos agora até ao convés fazer chin-chin aos habitantes do Celeste Império.

Depois de terem atravessado parte do navio, acabaram de encontrar o tio Mac e os dois cavalheiros amarelos muna salinha particular, onde as curiosidades exóticas, acabadas de chegar, se acumulavam em grande profusão e confusão ainda maior.

Logo que pôde, Rosa retirou-se para um canto e instalou-se entre um buda de porcelana e um enorme dragão verde e, coisa que lhe causou grande embaraço, em frente de Fun Lee que, sentado num banquinho, a fitava muito sério com os seus olhos oblíquos, com tal insistência que a pequena, por fim, já não sabia onde se havia de meter.

O Sr. Whang Lo era um cavalheiro idoso, vestido como um americano, com o seu rabicho muito bem atado em volta do crânio. Falava bem o inglês e conversava de negócios com o tio Mac duma maneira absolutamente vulgar. Rosa considerou-o inteiramente sem interesse. Em compensação, Fun Lee era um verdadeiro chinês desde os sapatos que trazia nos pés até ao chapéu em forma de pagode que lhe ornamentava a cabeça. Dir-se-ia, olhando para ele, estar em presença de um amontoado de sedas bordadas. Era baixinho e gorducho e andava duma maneira muito cômica. Os olhos eram verdadeiras frinchinhas, e tanto o rabicho como as unhas, extraordinàriamente compridos. A cara era amarela e bolachuda. Em resumo, - um autêntico chinês.

O tio Alec informou-a de que Fun Lee viera educar-se e quase falava inglês. Era preciso ser amável com o pobre pequeno porque era ainda muito novo, embora parecesse exactamente da mesma idade que Mr. Wanhg Lo. Rosa prometeu mostrar-se amável, apesar de não ter a menor idéia do que poderia fazer por aquele cavalheiro que parecia ter saído de alguma gravura sobre o papel de arroz pregada na parede e que se encontrava sentado na sua frente, meneando a cabeça como se fosse um mandarim de loiça. Era muito difícil rnanter-se séria, diante dele.

O tio Mac parecia divertir-se com a atrapalhação dos dois pequenos, até que, finalmente, pegando numa caixinha que estava sobre a mesa, a entregou a Fun Lee, dizendo-lhe umas palavras que deram aparentemente grande satisfação ao rapaz.

Este levantou-se do seu poiso e começou a desembrulhar com grande cuidado a caixa que lhe fora entregue, enquanto Rosa olhava para ele perguntando a si própria o que iria aparecer. Subitamente, surgiu um bulezinho que fez Rosa bater as palmas de contentamento, pois era do feitio de um chinesito. O chapéu era a tampa, o rabicho a asa, e o bico o nariz. Desde os sapatos até à expressão do rosto era tal qual Fun. Rosa desatou a rir, sem querer.

Apareceram a seguir duas tacinhas e um tabuleiro de loiça vermelha. Era um serviço de chá à maneira chinesa, sem açucareiro nem leiteira.

Depois de lhe ter mostrado estes objectos, Fun disse-lhe por gestos que era um presente para ela, que o tio lhe mandava entregar. Rosa agradeceu-lhe também por gestos, visto não disporem de outra maneira de comunicar, e ficaram-se outra vez sentados, olhando um para o outro, sem saberem o que fazer. De repente, uma idéia súbita acudiu ao espírito de Fun. Levantou-se a toda a pressa e encaminhou-se, o mais apressadamente que as suas perninhas enchumaçadas lhe permitiam, para um armário. Rosa fazia votos por que ele não tivesse ido buscar algum rato assado, algum cão no espeto, ou qualquer outro petisco exótico que ela fosse forçada a provar por delicadeza.

Enquanto esperava pelo seu novo amiguinho, ia-se instruindo duma maneira que teria satisfeito todas as exigências da tia Jane. Os três cavalheiros conversavam acerca de infinitas coisas e ela escutava com grande atenção, procurando fixá-las, pois tinha uma excelente memória e desejava muito preencher as lacunas do seu saber para poder responder alguma coisa, quando lhe censurassem a sua ignorância.

Estava procurando não esquecer que Amoy fica a cento e oitenta milhas de Hong-Kong, quando o seu amigo regressou, empunhando uma coisa que parecia uma espadazinha. Entregou-lha com grande mesura à maneira chinesa e, diante dos olhos deslumbrados de Rosa, abriu-se um leque enorme e lindíssimo.

Nunca na sua vida vira um leque tão lindo e ficou-se absorta a examiná-lo. De um lado, no meio de uma paisagem, avistava-se um figurinha de mulher, sentada, perto de um pagode. De outro lado, corria um ribeirinho passando junto de uma casita onde se debruçava um lindo chinês. No céu, poisado num raio de luz, um pássaro com duas caudas parecia gorjear e um barquinho com um pescador dentro encaminhava-se para a Lua.

Era tão lindo e tão cheio de pormenores curiosos este leque, que Rosa teria ficado a tarde inteira a olhar para ele, com grande satisfação de Fun, se o Dr. Alec, cuja atenção fora subitamente despertada pela brisa que o leque provocara, não tivesse dito que eram horas de se irem. O servicinho loi embrulhado, o leque fechado, escolhidas várias lembranças para levar às duas senhoras de idade e lá se foram embora, depois de Fun ter feito os três cumprimentos e as nove vénias da praxe, como se se despedisse do imperador, do "Filho do Sol", como eles lhe chamam lá no Oriente.

- Tenho a impressão de que estive realmente na China e venho com todo o ar de lá ter estado - disse Rosa, assim que saíram da sombra do Rajá.

Realmente assim parecia. Fun ainda lhe dera mais um guarda-sol e o tio Alec escolhera alguns balões para enfeitarem o terraço.

- É uma maneira nada desagradável de estudar geografia, não achas? - perguntou-lhe o tio, que observara a atenção que Rosa dava à conversa.

- É muito agradável; creio que aprendi hoje mais geografia do que em todo o tempo que estive na escola, porque lá interessava-me o menos possível. E não me interessava porque ninguém me explicava. Só me lembro de ter aprendido que a seda vem da China, e que as mulheres nessa terra têm os pés muito pequenos porque lhos ligam em criança. Fun fartou-se de olhar para os meus pés. Deve tê-los achado enormes - observou Rosa, mirando os fortes sapatos que trazia calçados.

- Havemos de arranjar uns mapas e um globo e faremos algumas viagens, acompanhadas de explicações. Agora já será mais fácil interessar-te.

- O tio é tão amigo de viajar que vai aborrecer-se muito aqui, tenho a certeza. A tia Plenty afirma que dentro de um ou dois anos o tio se vai embora.

- Pode muito bem acontecer.

- E o que será feito de mim nessa altura! suspirou Rosa, tão desesperada que o tio Alec se abriu todo num sorriso de prazer, e disse muito depressa:

- Para a próxima viagem levo a minha âncorazinha comigo. Queres?

- Está falando sério, meu tio?

- Estou, sim, sobrinha.

Rosa deu um jeito ao leme que fez o barco ir durante algum tempo em ziguezague. Isso fez com que moderasse o seu entusiasmo. Todavia, os olhos pareciam saltar-lhe de contentamento e preparava-se para fazer imensas perguntas quando o tio Alec exclamou, apontando para um barquinho que se aproximava muito direito:

- Olha como os pequenos dirigem o seu barco e segue-lhes o exemplo.

O Explorador dos Mares era um barquinho tripulado por meia dúzia de marinheiros, todos vestidos de azul e cheios de estrelas e âncoras nos bonés.

- Que bem que eles vão! Ninguém diria que são todos rapazotes. Estou daqui a ver Charlie rindo à socapa. Reme, tio, reme e não deixe que nos apanhem! - exclamou Rosa, tão animada que a sombrinha quase ia saindo pela borda fora.

E lá foram a grande velocidade. Teriam mesmo dobrado o cabo antes dos outros se Rosa não tivesse deixado cair o boné à água, com um balanço do barco. Isto pôs ponto à regata; enquanto se entretinham a pescar o chapéu, o outro barco aproximou-se e os pequenos perguntaram trocistas:

- Apanhou algum caranguejo, tio?

- Não: apanhei um peixe azul - respondeu o tio, enquanto punha a secar o boné de Rosa sobre um banco.

- Por onde tem andado?

- Fomos fazer uma vista a Fun.

- Gostaste, Rosa? Havemos de lhe pedir que nos ensine a deitar um papagaio.

- Olhem para o meu leque.

- Podia-te servir de vela.

- Empresta a sombrinha ao "Janota". Ele não gosta de se crestar.

- Já ouviram dizer que vamos ter uma festa com balões?

- Não; mas nesta ocasião agrada-nos mais uma festa com pão com manteiga porque são horas do chá. E, se esta nuvem negra não mente, fazemos bem em ir para casa antes que chova, para a mãe ficar em cuidados, Archie.

- Adeus. Rosa. Hás-de ensinar-nos o processo que usas para dirigir o leme - disse Charlie para terminar.

Os barcos separaram-se, mas, ao longe, Rosa ainda ouvia a cantiga que os rapazes entoavam. Era uma cantiga disparatada, mas tão alegre!

Oh, Timballo, Timballo! que felizes nós somos por andar nas águas do mar. Oh, Timballo, Timballo!

 

           O QUE ACONTECEU MAIS

TIO, pode fazer o favor de emprestar-me nove pence? Pago-lhos logo que receber a minha mesada - disse Rosa, entrando na biblioteca, muito apressada, certa tarde.

- Creio que posso, e, como não tenciono levar-te juros, escusas de ter tanta pressa em pagar me. Mas, se não tens nada a fazer que seja urgente, peço-te que venhas ajudar-me a arrumar estes livros - respondeu o Dr. Alec com aquela prontidão que é tão agradável de encontrar quando se pede a alguém uina pequena quantia emprestada.

- Volto já, tem-me apetecido imenso pegar nos meus livros, e, se ainda o não fiz, foi por ver o tio abanar a cabeça de todas as vezes que me vê com os livros.

- E passarei a abanar a cabeça quando te vir escrever, se executares esse trabalho como fizeste neste catálogo.

 

Pequena moeda. - (N. da T.)

 

- Está mal escrito porque fiz isso à pressa. Rosa foi-se embora, toda contente por ter escapado à repreensão.

O pior é que não escapou, porque o tio Alec, quando ela regressou, estava penteando as sobrancelhas, enquanto olhava para a lista de livros que ela escrevera. Assim que a avistou, perguntou-Lhe.

- Que quer dizer isto, Excelência? Não consigo ler.

Rosa soletrou: "O Paraíso Perdido".

- Ainda bem que conseguiste decifrar, porque estava sem perceber. E isto aqui? "Em Saias" de Bacon? O que vem a ser?

Rosa olhou atrapalhada para a frase e, daí a instantes, disse com um ar muito circunspecto:

- Não: "Ensaios" de Bacon. é que é.

- Estou a ver que Miss Power não te ensinou a escrever como devia. Olha para estas linhas escritas pela tia Plenty: que letrinha tão certa! Andou numa escola de meninas. Aprendeu poucas coisas, mas aprendeu-as bem. É preferível, a encher a cabeça de coisas inúteis, aprendidas a correr, parece-me.

- Na minha escola eu era considerada boa aluna. Eu e a Luly. A gente éramos as melhores alunas de francês e de música - respondeu Rosa, um tanto ofendida com a crítica do tio.

- Pois sempre te digo, minha filha, que se a tua gramática francesa não é melhor do que é na nossa língua, receio bem que o elogio fosse pouco merecido.

- Não sei porque o tio diz isso. Nós lá no colégio estudávamos muita gramática. Sei conjugar verbos muito bem; às vezes até era chamada para as visitas verem. Falo melhor do que a maior parte das pequenas da minha idade.

- Creio bem que sim, mas, em geral, todos nós somos tão pouco cuidadosos com a maneira de falar! Ora cliz-me lá se a gente éramos é uma maneira correcta de dizer?

Rosa mordeu os lábios, afastou da testa um caracol e disse muito de mansinho:

- Devia ter dito nós éramos, bem sei.

- Ora muito bem. Ouve cá, Rosinha, eu não me considero nenhum modelo nem na maneira de falar nem na forma de proceder. Quando eu fizer alguma coisa que não te pareça bem, podes chamar-me a atenção. Só te agradeço. Eu passei a vida a correr mundo, não tive tempo para certos requintes, mas gostaria muito que a minha filha viesse a ser aquilo que se chama uma pessoa bem educada, mesmo que aprenda poucachinho de cada vez. Aprender devagar, para aprender bem.

Falava-lhe com tal suavidade e parecia tão triste, que Rosa se sentou no braço da poltrona dele e disse com ar arrependido:

- Tenho pena, tio, de me ter aborrecido, quando só devia mostrar-me grata por se interessar tanto por mim. Acho que o tio tem toda a razão, porque aprendia muito melhor quando o Papá me dava lições e me ensinava pouco de cada vez. Lá na escola até parecia que a cabeça me estalava no fim de todas aquelas lições de coisas tão variadas. Eram lições de aritmética, de alemão, de francês, que sei eu!

- E contudo é considerada uma boa escola, essa onde andaste. É pena que não achem prefrível ensinar as coisas sem embutir conhecimentos à toa. Mas é um defeito comum a quase todas as escolas. Pobres cabecinhas que têm de resistir a semelhante sistema!

Este era um dos assuntos preferidos pelo Dr. Alec para dissertar, de modo que Rosa sentiu receio de que insistisse. Mas, desta vez, tal não aconteceu. O Dr. Alec deu novo rumo aos seus pensamentos e retirou da algibeira um livrinho de apontamentos muito volumoso:

- O tio Mac entregou-me as contas que te dizem respeito a todos os teus bens; tenho aqui para te entregar a tua pensãozinha para os gastos pessoais. Espero que tenhas um livro para as tuas contas?

- Realmente o tio Mac deu-me um caderno de contas, quando entrei para a escola, e comecei mesmo a notar as despesas que fazia; tive, porém, de desistir porque sou pouco forte em contabilidade

- disse Rosa, enquanto procurava na sua escrivaninha um livrito que se envergonhava de apresentar.

- Ora, como as contas têm certa importância e como um dia terás bastantes a fazer, não te parece bem aperfeiçoares-te desde já?

- Pensei que o tio se encarregaria de todas as coisas referentes a dinheiros.

- Encarrego-me, enquanto fores menor, mas prefiro que sejas capaz de entender como as coisas se passam. Assim não estarás dependente da honestidade alheia, saberás tu própria verificar.

- Deus do Céu! Eu confiaria ao meu tio milhões e milhões, se os tivesse - exclamou Rosa, ofendida só com a idéia.

- Posso ser tentado; não seria o primeiro tutor a quem tal acontecia. É bom que te mantenhas ao facto para poderes zelar os teus interesses respondeu o Dr. Alec, abrindo o seu livro de contas que era um verdadeiro primor de arrumação.

Rosa espreitou por cima do ombro do tio e suspirou desesperada, comparando-o com o seu.

- Tio, quando faz uma soma de despesas, não lhe acontece, no fim, encontrar-se com mais dinheiro do que antes?

- Não, pelo contrário, fico sempre com bastante menos. Costuma acontecer-te?

- Costuma; por mais cautela que tenha ao fazer as operações.

- Talvez eu possa encontrar o gato - disse o tio Alec, muito sério.

- Tenho a certeza que pode. Mas peço-lhe que não se ria. Sei que sou muito estúpida para contas e o meu livro é uma verdadeira desgraça. Nunca consegui acertar. - E, muito envergonhada, Rosa entregou-lhe o livro.

Realmente foi uma grande amabilidade do Dr. Alec não rir. Rosa sentiu-se infinitamente grata quando ele lhe disse, muito sério, depois de olhar para as contas dela:

- É que misturaste dólares com moedas inferiores; uma vez que ponhas as coisas no seu lugar tudo dará certo.

- Então, ensine-me como é, faça favor, para eu poder ter o meu livrinho limpo como o seu está.

Rosa, postada ao lado do tio, ia vendo a facilidade com que este corrigia as suas contas e jurou a si própria pegar na tabuada e aprender melhor as quatro operações e alguns quebrados, antes de abrir qualquer livro de histórias, dessas que costumava ler.

- Tio, eu sou uma rapariga rica? - perguntou ela, subitamente, enquanto ele fazia uma conta.

- Tenho a impressão de que és bastante pobre porque ainda não há muito me pediste dinheiro emprestado.

- A culpa foi do tio; ainda não me tinha dado dinheiro para os meus alfinetes. Mas, falando sério, venho a ser rica?

- Receio bem que sim.

- Porque é que o tio receia?

- Ter dinheiro a mais não é uma boa coisa.

- Contudo, posso dar muito. Creio que é essa a vantagem de se ter dinheiro.

- Alegra-me que penses assim, e podes fazer muito com a tua fortuna, se souberes empregá-la convenientemente.

- O tio ensina-me como devo fazer e, quando for grande, montamos uma escola de raparigas onde ensinaremos as coisas como deve ser. As pequenas comerão todos os dias flocos de aveia e usarão os cintos a cair pela barriga abaixo - disse Rosa, sorrindo, muito garota.

- Vejo que és uma menina muito atrevidona, para me interromperes assim no meio da minha primeira lição. Não importa, para a próxima vez serei mais severo.

- Percebi que o tio estava com vontade de rir e dei-lhe ocasião. Agora vou estar com toda a atenção.

O Dr. Alec riu, de facto; depois Rosa sentou-se e ouviu-o com o maior cuidado. Foi uma lição que ela nunca mais esqueceu.

- Agora vais ler em voz alta para eu ouvir; tenho os olhos fatigados e é-me agradável estar sentado junto ao lume a ouvir ler, enquanto chove e a tia Jane vai fazendo as suas prelecções lá em cima - rogou o Dr. Alec depois de ter posto em ordem as contas do mês anterior.

Rosa gostava muito de ler em voz alta; desta vez escolheu um capítulo de Nichols Nickleby. Leu o melhor que soube, certa de que o tio, no fim, iria fazer-lhe a sua crítica severa.

- O tio quer que continue? - perguntou ela muito humilde, quando chegou ao fim.

- Se não estás fatigada. Gosto de ouvir-te ler, porque lês muito bem - foi a resposta do tio Alec. Rosa sentiu-se cheia de alegria.

- O tio gostou realmente? Eu costumava ler horas a fio para o Paizinho ouvir e ele também gostava, mas provavelmente era por ser muito meu amigo.

- Eu também sou teu amigo, mas não é isso. Acho que lês bem e isso é um mérito raro, que tenho em grande conta. Senta-te nesta cadeirinha; a luz aqui é melhor e posso afastar os caracóis que te caiam sobre os olhos quando começares a ler muito depressa e não tiveres tempo de afastá-los.

Estou vendo que vais ser uma grande consolação e um grande amparo para o teu velho tio, Rosinha.

E o Dr. Alec olhou para ela duma maneira tão afectuosa e tão paternal que Rosa sentiu que lhe seria muito fácil amá-lo e obedecer-lhe, visto ele saber tão bem censurar e louvar, com justiça.

Tinham acabado de ler um segundo capítulo quando ouviram chegar a carruagem que vinha buscar a tia Jane. Antes que tivessem tempo de se irem despedir dela, Mrs. Jane apareceu à porta com o seu casaco de borracha e os óculos sempre a brilhar.

- Exactamente o que eu pensava. Estragas esta criança com mimos e deixa-la estar a ler às escuras. Espero que, ao menos, sintas a responsabilidade que pesa sobre as tuas costas, Alec - disse ela, ao entrar, com certa satisfação ruim.

- Tenho a impressão de que sinto essa responsabilidade, irmã - replicou o Dr. Alec, encolhendo os ombros e olhando para Rosa, que sorria.

- Faz pena ver uma rapariga deste tamanho dias e dias sem fazer nada. Os meus filhos estiveram todo o dia agarrados aos estudos e creio que ainda estão. Pelo menos o Mac. Aposto que ainda não tiveste uma lição desde que o tio chegou.

- Pois já hoje tive cinco - atalhou Rosa, inesperadamente.

- Ainda bem. E de que foram essas lições? Rosa respondeu muito lépida:

- De navegação, de geografia, de aritmética, de gramática e de autodomínio.

- Que lições tão singulares! E que aprendeste no meio dessa trapalhada? Não desgostava de saber.

Os olhos de Rosa deitaram faíscas e disse muito pronta, olhando para o tio:

- Não posso estar a dizer-lhe tudo quanto aprendi, minha tia; entretanto, acerca da China, soube algumas coisas que talvez a interessem. Os melhores chás são o Lapsing-Souchong, o Assam Pekoe, o raríssimo Ankoe, e uma mistura chamada Howqua. Xangai fica nas margens do rio Woosung. Hong-Kong quer dizer "Ilha de águas suaves". Singapura quer dizer "A Cidade de Lião". Os barcos onde habitam os Chineses chamam-se Chops, e as principais produções da China são a porcelana, o chá, as sedas e o ópio. Em Cantão existe a morada dos leitões sagrados. São uns bichos enormes e cegos,

O efeito deste pequeno discurso foi absolutamente inesperado. A tia Jane voltou as velas como se o vento tivesse virado também, e não disse uma palavra. Olhou para Rosa com os olhos a brilhar; daí a instantes só pôde murmurar "muito bem" e lá se foi a toda a pressa, pasmada e um tanto aborrecida.

Mais teria ficado se tivesse visto o tio Alec dançando uma polca com Rosa, com a satisfação de haverem dominado o inimigo comum. Pelo menos daquela vez.

 

               O SEGREDO DE PHEBE

PORQUE estás a rir-te, Phebe? - perguntou Rosa, certa manhã que trabalhavam juntas pela casa.

O Dr. Alec considerava o trabalho doméstico um óptimo exercício para uma rapariga, e Rosa andava tomando lições com Phebe. Varria, limpava o pó, fazia as camas.

- Estava a pensar numa coisa que não posso dizer, porque é segredo.

Estou vendo que vais ser uma grande consolação e um grande amparo para o teu velho tio, Rosinha.

E o Dr. Alec olhou para ela duma maneira tão afectuosa e tão paterna! que Rosa sentiu que lhe seria muito fácil amá-lo e obedecer-lhe, visto ele saber tão bem censurar e louvar, com justiça.

Tinham acabado de ler um segundo capítulo quando ouviram chegar a carruagem que vinha buscar a tia Jane. Antes que tivessem tempo de se irem despedir dela, Mrs. Jane apareceu à porta com o seu casaco de borracha e os óculos sempre a brilhar.

- Exactamente o que eu pensava. Estragas esta criança com mimos e deixa-la estar a ler às escuras. Espero que, ao menos, sintas a responsabilidade que pesa sobre as tuas costas, Alec - disse ela, ao entrar, com certa satisfação ruim.

- Tenho a impressão de que sinto essa responsabilidade, irmã - replicou o Dr. Alec, encolhendo os ombros e olhando para Rosa, que sorria.

- Faz pena ver uma rapariga deste tamanho dias e dias sem fazer nada. Os meus filhos estiveram todo o dia agarrados aos estudos e creio que ainda estão. Pelo menos o Mac. Aposto que ainda não tiveste uma lição desde que o tio chegou.

- Pois já hoje tive cinco - atalhou Rosa. inesperadamente.

- Ainda bem. E de que foram essas lições? Rosa respondeu muito lépida:

- De navegação, de geografia, de aritmética, de gramática e de autodomínio.

- Que lições tão singulares! E que aprendeste no meio dessa trapalhada? Não desgostava de saber.

Os olhos de Rosa deitaram faíscas e disse muito pronta, olhando para o tio:

- Não posso estar a dizer-lhe tudo quanto aprendi, minha tia; entretanto, acerca da China, soube algumas coisas que talvez a interessem. Os melhores chás são o Lapsing-Souchong, o Assam Pekoe, o raríssimo Ankoe, e uma mistura chamada Howqua. Xangai fica nas margens do rio Woosung. IIong-Kong quer dizer "Ilha de águas suaves". Singapura quer dizer "A Cidade de Lião". Os barcos onde habitam os Chineses chamam-se Chops, e as principais produções da China são a porcelana, o chá, as sedas e o ópio. Em Cantão existe a morada dos leitões sagrados. São uns bichos enormes e cegos.

O efeito deste pequeno discurso foi absolutamente inesperado. A tia Jane voltou as velas como se o vento tivesse virado também, e não disse uma palavra. Olhou para Rosa com os olhos a brilhar; daí a instantes só pôde murmurar "muito bem" e lá se foi a toda a pressa, pasmada e um tanto aborrecida.

Mais teria ficado se tivesse visto o tio Alec dançando uma polca com Rosa, com a satisfação de haverem dominado o inimigo comum. Pelo menos daquela vez.

 

                      O SEGREDO DE PHEBE

"PORQUE estás a rir-te, Phebe? - perguntou Rosa, certa manhã que trabalhavam juntas pela casa.

O Dr. Álec considerava o trabalho doméstico um óptimo exercício para uma rapariga, e Rosa andava tomando lições com Phebe. Varria, limpava o pó, fazia as camas.

- Estava a pensar numa coisa que não posso dizer, porque é segredo.

- É coisa que eu venha a saber, mais tarde ou mais cedo?

- com certeza.

- E será coisa de que eu goste?

- Sem dúvida nenhuma.

- E acontecerá em breve?

- Num dia desta semana.

- Então já sei o que é. Os primos andam a arranjar fogo de vistas e têm alguma surpresa para mim. É isto?

- Não posso dizer.

- Não importa; esperarei. Dize-me só mais uma coisa - o tio anda metido nisso?

- Pois anda. Não pode haver festa sem ele.

- Então tenho a certeza de que vai ser agradável.

Rosa encaminhou-se para a varanda a sacudir os tapetes e, depois de ter batido com força, pendurou-os na balaustrada da varanda enquanto cuidava das plantas. No terraço havia vários vasos grandes. A chuva e o calor do Sol do mês de junho tinham feito maravilhas das sementes que Rosa plantara. Não tardava que florissem. Do jardim, a madressilva e o jasmim chegavam já à varanda e a casa ficava um encanto, assim revestida de trepadeiras.

A água da baía tremeluzia ao sol, a brisa sussurrava nos castanheiros e, lá em baixo, o jardim encontrava-se repleto de rosas, de borboletas, de abelhas. Os passarinhos chilreavam com força em volta dos ninhos e, ao longe, muitas gaivotas de asas brancas pairavam entre os navios ancorados e os barcos de vela que pareciam eles próprios aves, apenas um pouco maiores.

- Oh, Phebe, o dia está tão lindo! Oxalá o teu segredo se realize depressa. Sinto-me tão bem disposta, e tu? - exclamou Rosa, movendo os braços, como se desejasse voar.

- Eu também me sinto bem disposta, mas nunca tenho tempo para dar largas à minha boa disposição. Tenho sempre tanto que fazer! A menina assim que acabar de limpar o pó fica livre; aproveite, vá-se divertir. Eu tenho de ir tratar das minhas escadas. - E lá se foi, cantando, como viera.

Rosa curvou-se sobre a balaustrada, e pôs-se a pensar nas distracções que desfrutara ultimamente; aprendera a jardinar e andava aprendendo a remar e a nadar; além disso, costumava passear de carro e tinha compridas conversas com o tio. Raras vezes agora se sentia aborrecida. Trabalhava e brincava o dia inteiro e, à noite, dormia òptimamente. A vida sabia-lhe bem, como sempre acontece às crianças sadias. Estava ainda longe de ser robusta como Phebe, mas para lá caminhava. As faces pálidas já tinham cor, as mãos estavam morenas e mais gordinhas e, como ninguém lhe falava na sua falta de saúde, já se esquecera de que "era fraca". Os remédios do Dr. Alec davam esplêndidos resultados. A tia Plenty atribuía toda a melhoria às pílulas; estou, porém, convencida de que se enganava.

Rosa era finalmente digna do seu nome.

Enquanto olhava para longe, meditando no segredo de Phebe, ouviu uma voz dizer-lhe do jardim:

- O que está a princesa a pensar, aí encarrapitada no seu balcão?

Era o tio Alec. Rosa respondeu:

- Apetecia-me hoje fazer qualquer coisa de especial, que nunca tivesse feito. Este vento que vem do mar trouxe-me muito boa disposição.

- Imagina que íamos hoje dar um passeio até à ilha? Já tencionava ir lá à tarde, mas seria melhor se pudéssemos partir já.

- Vamos, tio, vamos! Acabo de arrumar o meu quarto em dez minutos. Não posso ir antes de acabar, porque a Phebe tem muito que fazer.

Rosa agarrou nos tapetes e desapareceu, enquanto o Dr Alec entrava em casa, dizendo consigo, com um sorriso indulgente:

"Podem considerar isso uma coisa sem importância, mas o facto é que os prazeres, para uma criança, ganham muito mais valor se chegam no momento oportuno".

Nunca um quarto foi melhor arrumado, nem com tanta velocidade, como o de Rosa nesse dia. As mesas e as cadeiras eram sacudidas como se soprasse um tufão, e os objectos colocados por cima dos móveis devem ter tido a impressão de que havia um tremor de terra. Num abrir e fechar de olhos, Rosa enfiou o seu vestido à maruja e lá se foi, perguntando com os seus botões daí a quantas horas estaria de volta e tornaria a ver o seu lindo quarto.

O tio Alec estava colocando um grande cesto dentro do barco, quando Rosa chegou e, antes que partissem, Phebe apareceu, correndo com um embrulho enorme, forrado de oleado.

- Nós não podemos comer tudo isso e tenho a certeza de que não precisamos de cobertores disse Rosa, como sempre, um pouco amedrontada por ir para a água,

- Não podias fazer um embrulho mais pequeno, Phebe? - perguntou o Dr. Alec, olhando desconfiado para a trouxa.

- Tive de fazê-lo muito à pressa - respondeu Phebe, rindo.

- Bem; não te esqueças do bilhete para Mrs. Jessie, peço-te.

- Não esqueço, não, senhor. Vou já mandá-lo.

- E Phebe desatou a correr como se tivesse asas nos pés.

- Vamos visitar o farol, antes de mais nada; creio que nunca lá estiveste e merece ser visto. Entretanto são horas e iremos merendar para debaixo das árvores da ilha.

Rosa achou mutíssimo bem e lá foram visitar o farol que ficava no extremo do cabo. Gostou imenso de subir todas aquelas escadas e achou muita graça à lanterna enorme. Demoraram-se bastante; o Dr. Alec não parecia ter pressa e esteve tempo imenso a olhar pelo binóculo como se esperasse descobrir qualquer coisa especial na praia ou no mar.

Era meio dia quando chegaram à ilha e Rosa desde há muito se sentia capaz de almoçar.

- Que agradável! Muito gostava eu que os primos aqui estivessem. Não acha agradável que passassem as férias sempre connosco? Julgo que começam hoje as férias deles. Foi pena não me ter lembrado, porque talvez estivessem dispostos a vir connosco - disse Rosa, quando já se encontravam muito bem instalados a comer as suas sanduíches à sombra de uma velha macieira.

- Foi pena. Para a próxima vez viremos com mais vagar. Os pequenos vão ficar desesperados quando souberem que almoçámos aqui e não lhes dissemos nada - replicou o Dr. Alec muito calmo, enquanto bebia chá frio.

- Tio, não lhe cheira a fritos? - perguntou Rosa, quando dali a uma hora arrumava os cestos do lanche.

- Cheira-me mesmo a peixe frito.

Durante um momento ficaram a ver donde vinha o cheiro, até que o Dr. Alec se levantou, dizendo com grande decisão:

- Não pode ser. Ninguém pode desembarcar nesta ilhota sem autorização. Sempre quero ver quem se atreve a vir fritar peixe na minha propriedade.

Agarrando no cesto com uma das mãos e com a outra segurando no embrulho, pôs-se a caminhar feroz como um leão, enquanto Rosa seguia atrás dele com a sua sombrinha.

- Parecemos o Robinson Crusoé e o seu criado Sexla-Feira, cheios de receio que os selvagens tenham chegado - disse Rosa, que tinha a cabecinha sempre cheia de histórias.

- E lá estão eles! Trouxeram duas tendas e dois barcos. Os patifes estão divertidos, não há dúvida.

- Para ser completo, devia haver mais barcos, e as tendas eram desnecessárias. Onde estarão os prisioneiros?

- Há por aqui restos - disse o Dr. Alec, mostrando algumas espinhas de peixe espalhadas por aqui e por ali.

- Cá estão mais - acrescentou Rosa, rindo e apontando para umas pernas de lagosta.

- Os canibais devem estar devorando as suas vítimas; não os ouves tasquinhar?

- Acho que é melhor espreitarmos; Crusoé era muito valente, mas Sexta feira andava sempre com medo - acrescentou Rosa, insistindo na brincadeira.

- Sim, Crusoé era capaz de se atirar a eles sem querer saber de conseqüências. Se me matarem e me comerem, tu agarras no cesto e corres para o nosso barco; tens provisões bastantes para empreenderes a viagem de regresso.

Dizendo isto, o tio Alec encaminhou-se devagarinho até à porta da frente de uma das tendas e gritou com voz de trovão:

- Piratas à vista!

Ouviu-se gritaria, muita risota, e os selvagens saíram brandindo facas, garfos, ossos de galinha, etc. Caindo sobre o tio Alec, exclamaram:

- Veio cedo de mais! Ainda não estamos prontos. Estragou tudo! Onde está Rosa?

- Estou aqui - respondeu uma vozinha, e avistaram Rosa, sentada sobre um embrulho vermelho que continha os fatos de banho. De longe parecera-Lhe uma porção de lagostas, esse embrulho, e caiu pasmada quando percebeu que os canibais eram os seus alegres primos.

- Vocês são uns rapazes impossíveis! Estão sempre a pregar-me partidas, e eu tão tola que ainda me admiro. O tio é o pior de todos – disse Rosa, quando os pequenos se aproximaram, gritando, cumprimentando, entusiasmados com a surpresa.

- Estava combinado que só viriam à tarde, e nessa altura a Mama já cá devia estar para os receber. Está tudo por arranjar, por enquanto. Felizmente a vossa tenda já está armada e podem-se sentar lá dentro a ver-nos trabalhar - disse Archie, como sempre fazendo as honras da casa.

- Rosa teve o pressentimento de que qualquer coisa ia acontecer, - cheirou-lhe, como diria a Debby - e quis partir logo pela manhã. Fiz-lhe a vontade, mas não teria vindo ter convosco se o cheiro de peixe não vos atraiçoasse - explicou o tio Alec, abandonando o seu papel de Crusoé e voltando a ser a pessoa bondosíssima de sempre.

- Vou levantar-me porque este assento está um tanto húmido - declarou Rosa, quando os pequenos se acalmaram um pouco mais.

Estenderam-se várias mãos para a ajudarem a levantar e Charlie disse, enquanto colocava os fatos de banho ao sol, para secarem melhor:

- Tencionamos tomar um rico banho antes de jantar, por isso vou pôr os fatos a secar. Espero que tenhas trazido o teu fato, também, Rosa. Pertences ao grupo das lagostas e vai ser muitíssimo divertido ensinar-te a nadar.

- Não trouxe coisa alguma - começou a dizer Rosa; foi, porém, interronpida por Will e Georgie que apareceram com o embrulho de oleado, já meio desfeito, donde caiu um fatinho de banho também vermelho e vários apetrechos de toilette, escovas, pente, etc.

- Oh, a garota da Phebe! Era então este o segredo! Foi embrulhar as minhas coisas depois de eu ter saído - exclamou Rosa, com os olhos a brilharem.

- Vê lá se partiu alguma coisa; caiu um pedacinho de espelho agora mesmo - observou Will, quando colocava o embrulho no chão, junto da prima.

- Já viram alguma rapariga dar dois passos sem (razer consigo um espelho? Nós, em compensação, é coisa de que nunca nos lembramos - disse Mac, com grande superioridade masculina.

- O "Janota" trouxe. Vi-o pentear-se escondido atrás dumas árvores depois do banho que tomámos esta manhã - afirmou Georgie, apontando para Steve, que o fez calar, dando-lhe uma pancadinha na cabeça com uma chibata que trazia na mão.

- Vamos, vamos, é preciso trabalhar; de contrário, a Mama chega antes de acabarmos. Leva as coisas de Rosa para a sua tenda e mostra-lhe onde as arrumaste. "Príncipe". Mac e Steve, tirem daí esses restos de palha; vocês, miúdos, limpem a mesa, se são capazes. Gostava que o tio me desse o seu parecer sobre a melhor colocação para a nossa cozinha.

Todos obedeceram ao chefe; Rosa foi escoltada por Charlie, que se dedicou ao seu serviço. Ficou encantada com a instalação e ainda mais com o programa que Charlie lhe anunciou, enquanto trabalhava.

- Costumamos sempre, durante as férias, acampar algures; este ano lembrámo-nos de experimentar a ilha. É perto e presta-se.

- Vamos passar aqui três dias? Meu Deus, que maravilha vai ser!

- Isto não é nada; já temos estado acampados uma semana inteira, nós os mais velhos. Este ano, porém, a miudagem também quis vir e fizemos-lhe a vontade. Divertimo-nos muito, vais ver. Costumamos brincar imenso. Quando éramos mais pequenos, então, era um nunca acabar - disse Charlie, cheio de importância, recordando-se do tempo em que tinha seis anos.

- Não imaginava que os rapazes soubessem brincar. Provavelmente por não ter nunca conhecido de perto nenhum pequeno. Mas talvez vocês sejam uns rapazes excepcionais - observou Rosa com um modo bastante lisonjeiro.

- Sem dúvida que nós gozamos de certas vantagens, segundo creio. Somos muitos e a nossa família vive aqui há muitíssimo tempo, de modo que conhecemos este sítio na perfeição; estamos; pois, em melhores condições para nos divertirmos do que muitos outros rapazes. E agora, minha senhora, pendure o seu espelhinho neste prego para se poder pentear à vontade. Está meio partido o espelho, mas não faz mal. Podes escolher um cobertor azul ou vermelho e também tens direito a uma almofadinha de palha ou a um travesseiro pneumático, à vontade. Além de que podes pôr-te à vontade e dormir a sesta. Aqui é o domínio das senhoras e nós nunca ultrapassamos aquele traço, que fizemos no chão, sem pedir licença. Precisas de mais alguma coisa, priminha?

- Não, obrigada. Creio que deixo a sesta para quando a tia chegar e vou ajudar-vos naquilo que puder.

- Pois, sim; vem ver a nossa cozinha. Sabes cozinhar? - perguntou Charlie, conduzindo a prima até um recanto, no meio dos rochedos, onde Archie instalara a cozinha, protegida com a vela de um dos barcos.

- Sei fazer chá e torradas.

- Muito bem. Hei-de ensinar-te a fritar peixe. Agora era preciso colocar estas caçarolas com graça porque a tia Jessie insiste sempre em ajudar e é preciso que a cozinha esteja decente.

Por volta das quatro horas, o acampamento estava pronto e os seus habitantes desceram à praia à espera de Mrs. Jessie e de Jamie, que nunca andava longe da mãe. Pareciam um bando de pássaros azuis, todos vestidos à maruja e com enormes fitas a esvoaçarem ao vento. Puseram-se a cantar, e, antes de avistá-los, Mrs. Jessie já podia ouvir-lhes as vozes alegres.

Quando o barco apareceu içaram a bandeira da ilha; pareciam marinheiros a valer, tão bem fardados estavam. A este sinal de boas-vindas, responderam do barco com um grito de guerra: "Rah, rah, rah! ", e o vultozinho minúsculo que vinha à ré acenou com um lenço, enquanto as mãos maternais lhe seguravam nas pernas.

Cleópatra, ao descer da sua galera doirada, não recebeu jamais acolhimento comparável ao que foi feito à "Mãezinha", pela pequenada. A tia Jessie conformava-se com três dias de desconforto para acompanhar os seus rapazes e Jamie tomou conta de Rosa, propondo-se defendê-la dos inúmeros perigos que, por certo, corria naquela famosa ilha.

Sabendo, por experiência, que os rapazes andam sempre com fome, a tia Jessie propôs que tratassem da ceia, e todos deitaram mãos à obra. Ela própria envolveu-se num enoime avental e colocou na cabeça um velho boné de Archie. Rosa ajudou o mais que pôde, procurando aparentar o desembaraço de Phebe, ao pôr a mesa. Por fim, lá se sentaram todos à sombra das árvores, comendo e bebendo, e grandemente divertidos por verem passar as formigas e variadíssimos insectos nos sítios mais impróprios.

- Nunca imaginei que fosse tão agradável lavar loiça - disse Rosa, muito bem instalada dentro de um dos barcos, lavando pratos no mar.

- Não custa nada quando se passa primeiro com um papel e um pouco de areia - respondeu Georgie do outro barco, onde fazia o mesmo serviço.

- Muito havia a Phebe de gostar de estar aqui connosco! Nem sei como o tio não se lembrou de trazê-la.

- Creio que se lembrou, mas a Debby disse que não podia dispensá-la. Tenho pena, porque gosto daquele passarinho chilreador. Tenho a certeza de que passava o dia todo a cantar.

- É necessário que tenha, ao menos, um dia de descanso. Não está certo abandonarmo-la assim.

Este pensamento assaltou Rosa muitas vezes durante a tarde. À noite voltou a meditar na mesma coisa. Phebe teria ajudado tão bem no concerto que deram ao luar! Teria também apreciado as histórias que todos contaram, e teria rido das brincadeiras. E mais alegre seria ainda o deitar. Ter-se-iam deitado debaixo do mesmo cobertor, teriam rido e dito segredinhos, como as rapariguinhas gostam tanto de fazer.

Já todos dormiam há muito e ainda Rosa se encontrava acordada, excitada pela novidade e com a lembrança de Phebe às voltas na sua cabeça. Muito ao longe, o relógio duma igreja na cidade deu meia-noite. Uma estrelinha olhava para ela com ternura através da abertura da tenda e o marulhar das ondas parecia convidá-la a sair. A tia Jessie adormecera profundamente com Jamie junto de si, enrolado como um gatinho. Rosa levantou-se muito devagar para ver como era o mundo àquela hora adiantada da noite.

Sentiu-se bem e sentou-se a gozar a beleza da noite. Felizmente o Dr. Alec viu-a antes que ela tivesse tempo de apanhar frio. Vinha abrir mais um pouco a sua tenda para deixar entrar o ar quando avistou uma figura clara ao luar. Como não tinha medo de fantasmas, aproximou-se e, vendo Rosa ali acordada, perguntou-lhe, poisando uma das mãos nos seus cabelos brilhantes:

- Que está a minha filha a fazer aqui?

- Vendo como a noite está linda - respondeu Rosa, estremecendo.

- Pergunto a mim próprio no que estaria a pensar assim tão séria.

- Na história que o tio me contou daquele valente marinheiro que cedeu o lugar na jangada e que deu a última gota de água à criancinha. As pessoas capazes de se sacrificar são muito queridas e admiradas, não é assim? - perguntou muito séria.

- Se realmente se trata de um verdadeiro sã crifício, são. Entretanto, a maior parte das vezes, os sacrifícios mais difíceis não são nunca conhecidos dos outros, de modo que não podem ser apreciados. Isso ainda os torna mais belos, embora também mais difíceis, pois todos nós gostamos de ser compreendidos - disse o Dr. Alec com uma espécie de suspiro.

- Tenho a certeza de que o tio tem feito muitos sacrifícios desses. Não me quer falar de nenhum?

- perguntou Rosa, impressionada pelo suspiro.

- O último sacrifício que fiz foi deixar de fumar; como vês, foi um sacrifício muito pouco romântico.

- E porque deixou o tio de fumar?

- Era um mau exemplo para os rapazes.

- Foi uma grande bondade da sua parte, tio. E custou-lhe muito?

- Tenho de confessar que sim. Há, porém, um velho rifão que diz: "o que é preciso é proceder bem, a felicidade virá depois".

Rosa ficou-se um momento a meditar; por fim, disse:

- Um verdadeiro sacrifício é dar, por exemplo, qualquer coisa de que se gosta muito, não é assim?

- Sem dúvida.

- E procede-se assim porque se gosta da pessoa a quem se deu, sem importar que reconheçam ou não o sacrifício feito.

- Espero, minha filha, que não te faltarão ocasiões de fazeres sacrifícios, durante a tua vida. Oxalá não sejam muito penosos.

- Pelo contrário. Oxalá que sejam.

- Pois então, principia desde já e vai para a caminha, de contrário, amanhã sentes-te doente e só te fará mal estares aqui acampada.

- Vou já. Boa noite. - E, dando-lhe um beijo, o fantasmazinho lá se foi embora.

O tio Alec ainda ficou uns instantes olhando para o mar e meditando nos sacrifícios que tinham feito dele aquilo que hoje era.

O SACRIFÍCIO DE ROSA

O dia seguinte foi agradabilíssimo, conforme Charlie anunciara. Rosa divertiu-se muito. O almoço foi alegre e, a seguir, fez-se uma pescaria que deu óptimos resultados. Depois as "lagostas" foram todas banhar-se. Até a tia Jessie apareceu em fato de banho encarnado. O tio Alec fazia muitas habilidades dentro de água e os rapazes tentavam imitá-lo, o que provocava cenas engraçadíssimas.

Rosa nadou o seu bocado, acompanhada pelo tio. A tia Jessie banhou-se na lagoazinha com Jamie perto de si. Em certa altura, todos os primos executaram um bailado que fazia lembrar a dança dos flamingos em Alice no País das Maravilhas.

A fome os tirou da água e saíram para cozinhar. Escuso de lhes dizer que fizeram uma caldeirada famosa, e as quantidades fabulosas que todos comeram teriam feito pasmar o Mundo inteiro. Depois de tão extraordinária refeição, a sesta foi considerada indispensável; todos se deitaram. Uns dentro das tendas, outros por aqui e por ali, onde aconteceu caírem.

Mal os mais velhos começavam a repousar já os mais pequenos se encontravam dispostos a iniciar novas façanhas. Tiveram idéia de ir procurar entre as bagagens e lá descobriram apetrechos que faziam de espadas, de punhais, etc. Encarrapitada num rochedo, com Jamie ao lado, Rosa divertia-se vendo as brincadeiras dos primos. Jamie ia-lhe explicando.

O capitão Cook foi assassinado pelos selvagens da maneira mais cruel. O capitão Kidd foi enterrado pela calada da noite e os dois traidores castigados. Sindebad aportou àquela ilha e aconteceram-lhe coisas maravilhosas.

Rosa achou estes dramas extraordinários e, quando as brincadeiras terminaram, com um batuque que fez debandar as gaivotas, tantos foram os gritos de guerra, não encontrou palavras com que exprimisse o seu entusiasmo.

Antes do pôr-do-sol tomaram outro banho e, até escurecer, estiveram sobre as rochas vendo entrar os barquinhos no porto. Assim acabou o segundo dia. Todos foram cedo para a cama, para estarem bem dispostos no dia imediato para novos folguedos.

- Archie, pareceu-me ouvir o tio dizer que irias amanhã, pela manhã, a casa buscar leite e outros mantimentos; é verdade?

- É, porquê?

- Agradecia-te se me deixasses ir também. Tenho uma coisa muito importante a fazer lá em casa. Como sabes, vim para aqui a toda a pressa,

- disse Rosa ao primo, confidencialmente, quando se ia deitar.

- Combinado; espero que Charlie não se oponha.

- Obrigada. Quando amanhã eu disser que quero ir, tu apoias-me e, até lá, não digas nada a ninguém, a não ser ao Charlie. Prometes? - suplicou Rosa, com tanto empenho que Archie, fazendo um gesto largo, exclamou:

- Juro, pela Lua que nos ilumina.

Muito bem. Adeus. - Rosa lá se foi, toda

satisfeita.

- É um encanto duma pequenita, não achas, "Príncipe"?

- É, sim. Gosto muito dela.

Rosa ainda pôde ouvir estas frases ao recolher-se na sua tenda, comentando com grande dignidade e bastante sono:

- Uma pequenita! Parece que sou alguma criancinha. Quando virem aquilo que tenciono fazer amanhã, passarão a tratar-me com mais respeito.

Archie, na manhã seguinte, apoiou-a realmente quando ela pediu para ir também, e o pedido foi atendido, tanto mais que era apenas por ida e volta. Partiram; Rosa foi dizendo adeus com a sua mãozinha aos restantes habitantes da ilha, com grandes projectos a bailarem-lhe no espírito. Ia mostrar que era capaz de fazer um grande sacrifício.

Enquanto os rapazes foram buscar leite. Rosa correu junto de Phebe e disse-lhe que deixasse ficar a loiça que estava lavando e que se preparasse para ir no barco, levar um bilhete ao tio Alec, que lhe explicaria estas estranhas ordens. Phebe obedeceu e Rosa acompanhou-a até ao barco. Uma vez aí, disse aos primos que ainda não estava pronta e que lhes pedia que a viessem buscar quando ela lhes fizesse sinal, com um lenço branco, da sua varanda.

- Mas, porque não vens agora? Que aconteceu? O tio vai protestar - disse Charlie, muito admirado.

- Faz como te digo. O tio depois explica-te. Tenho a certeza de que vai compreender a minha intenção. Obedece, como Phebe fez, e não comeces com perguntas. Posso ter segredos como qualquer outra pessoa.

Rosa voltou costas com uns ares muito independentes que impressionaram imenso os primos.

- Deve tratar-se de qualquer combinação com o tio. É melhor não tentar por ora entender. Vamos lá, Phebe. A caminho, "Príncipe".

E lá se foram. Na ilha houve grande pasmo,

quando os viram aparecer.

O bilhete de Rosa para o tio dizia assim:

"Meu querido tio:

vou tomar o lugar de Phebe, durante o dia de hoje, para ela se poder divertir um pouco. Peço-lhe que não se importe com os protestos dela e que a deixe aí ficar. Diga aos rapazes que sejam bons para com ela. Não pense que é fácil fazer isto, sinto, contudo, que é da minha parte um grande egoísmo, gozar eu tudo e Phebe não ter a mínima parte num prazer tão grande. Desejo, por isso, fazer este sacrifício. Peço que me deixe levar a minha avante. Não preciso de louvores, porque desejo sinceramente proceder assim. Saudades afectuosas da Rosa. "

- Que bom coração tem esta pequena! Achas que devemos ir buscá-la, Jessie, ou deixamo-la fazer a sua vontade? - perguntou o Dr. Alec, depois de passar o primeiro momento de espanto geral.

- Acho melhor deixar as coisas como estão para não estragar o seu sacrificiozinho. Parece-me que a melhor maneira que temos de mostrar-lhe que compreendemos a sua boa intenção é fazer com que Phebe passe um dia agradável. Tenho a certeza de que é esse o seu maior desejo.

E Mrs. Jessie fez sinal aos pequenos para não mostrarem o seu desapontamento e para procurarem agradar à convidada de Rosa.

Foi muito difícil evitar que Phebe não regressasse imediatamente a casa, declarando que não podia divertir-se sem a menina Rosa.

É por pouco tempo. Antes do meio dia vou buscá-la - disse Charlie, e lá se conformaram todos com a idéia de que era por pouco tempo.

Passou, porém, uma hora e ninguém acenou no balcãozinho de Rosa, embora Phebe tivesse estado todo o tempo à espreita. E não era só Phebe, todos os outros olhavam, ansiosos, à espera do sinal.

- Na realidade não imaginava que a nossa menina fosse capaz de um sacrifício destes. Querida filha! Tenho de pedir-lhe perdão um cento de vezes por me ter convencido por um instante de que ela fazia uma destas unicamente para os outros verem - disse o Dr. Alec, enquanto olhava na direcção de casa.

- Enfim, pelo menos não deixará de ver o fogo de vistas logo à noite, a não ser que se meta num quarto interior - disse Archie um tanto aborrecido com Rosa, pois lhe parecia uma ingratidão esta sua atitude.

- Vê o fogo de vistas que nós deitarmos, mas não vê aquele que o Papá deitar, que é o mais bonito. A não ser que o Papá se esqueça da combinação que fizemos com ele - acrescentou Steve, pouco confiante na memória dos adultos.

- Tenho a impressão de que vê-la aqui junto de nós era melhor do que todo o fogo de vistas deste Mundo - afirmou Phebe, pensando qual seria a melhor maneira de apanhar um dos barcos e ir ter com Rosa.

- Deixemos as coisas seguirem o seu caminho. Se Rosa resistir ao convite que lhe vamos fazer com o fogo de artifício, é uma heroína - disse o Dr. Alec, cheio de esperança que a sobrinha não resistisse.

Entretanto, Rosa passara um dia tranqüilo ajudando Debby, fazendo companhia à tia Peace e - resistindo às várias tentativas da tia Plenty para recambiá-la para a ilha. Tinha sido custoso, pela manhã, abandonar o mundo encantado que era a ilha, cheia de flores e de borboletas, desprezar um dia inteiro passado ao ar livre, e vir lavar chávenas, enquanto a Debby rabujava e as tias se lamentavam. Foi duro ver o dia passar, lembrando-se como devia estar agradável na ilha. Mas ainda foi pior, à tardinha, quando a tia Peace adormeceu, a tia Plenty atendeu uma visita e Debby se instalou debaixo do alpendre a ver o panorama. A pobre menina já não tinha mais nada para fazer e foi sentar-se na sua varanda a olhar para a ilha, enquanto, na baía, muitos barcos gozavam a frescura da tarde, passeando de cá para lá.

Nessa altura, tenho de confessá-lo, uma lágrima ou duas deslizaram pelas faces de Rosa e esta teve a impressão de avistar tendas armadas no meio das flores e de ouvir um passarinho cantar.

- Espero que, ao menos, alguém sinta a minha falta.

As lágrimas desapareceram quando começou a ver o fogo que os rapazes iam deitando; nesta altura, o tio Mac apareceu muito apressado, dizendo:

- Anda daí, minha filha, veste um casaco ou outro agasalho qualquer e vem daí comigo. Vinha buscar Phebe, mas a tia disse-me que ela não estava, de modo que te levarei a ti. Trouxe Fun comigo e quero que venhas ver o fogo que eu vou deitar. Não podes deixar de vê-lo. Foi arranjado com tua intenção e ficava muito desapontado se não o visses.

- Mas, tio - começou Rosa, como se quisesse desperdiçar aquele raiozinho de felicidade creio...

- A tia disse-me que não precisava agora de ti e eu tenho muita vontade de que venhas - atalhou o tio Mac, que se mostrava mais apressado e mais afectuoso do que era seu costume.

Rosa lá foi e encontrou o chinesinho junto do barco com um balão aceso na mão, pronto a ajudá-la a subir para o bote, procurando exprimir os seus sentimentos em muito mau inglês. Os relógios da cidade estavam batendo as nove, quando entraram na baía; o fogo da ilha parecia ter acabado, porque nenhum foguete de lágrimas respondeu à peça queimada em casa do tio Mac.

- O nosso fogo deve ter acabado, mas a cidade começa a encher-se de luzinhas e isso é muito lindo

- exclamou Rosa, embrulhando-se no casaco e olhando em volta, pensativa.

- Espero que ainda continue e que lá em casa sejam capazes de fazer as peças convenientes murmurou o tio Mac. - Lá vai agora! Olha, Rosinha, não percas, foi uma peça comprada em tua honra.

Rosa olhou e viu aparecer um vaso doirado, depois surgiram muitas folhas verdes, e, finalmente, uma flor vermelha desabrochou das trevas, muito brilhante.

- É uma rosa, tio? - perguntou ela, reconhecendo a linda flor.

- Pois é. Olha agora; vê se percebes o que se vai seguir - respondeu o tio Mac, animado como um garoto.

A começo, Rosa não entendeu, mas de repente bateu palmas numa grande animação.

- Gaitas de foles, tio, gaitas de foles escocesas! Sete gaitas de foles. Uma para cada um dos pequenos! Que bem apanhado. - E desatou a rir com tal força que se deixou escorregar para o fundo do barco, onde ficou até terminar o espectáculo.

- Então, não foi bonito? Acho que me posso felicitar pelos resultados da minha iniciativa - ex'clamou o tio Mac, muito contente. - Agora vou deixar-te em casa, ou na ilha, como preferires, querida filha - disse o tio com uma voz tão meiga que Rosa o abraçou.

- Em casa, se faz favor, meu tio. Gostei muito de ver o fogo preso e tenho a certeza de que vou sonhar com ele - respondeu Rosa, fazendo-se muito forte, embora olhasse saudosa para a ilha, que estava agora tão plerto que podiam cheirar o fumo da pólvora dos foguetes.

Foram para casa. Rosa adormeceu, dizendo consigo: "Foi mais custoso do que eu imaginava, mas sinto-me satisfeita por ter levado o sacrifício ao fim. E não preciso de outra recompensa que não seja a alegria de Phebe".

 

                 POBRE MAC

O sacrifício de Rosa falhou debaixo de certos aspectos. Se os mais velhos compreenderam e apreciaram a- sua intenção e lhe souberam mostrar isso, os mais novos, em compensação, não entenderam e não passaram a mostrar-lhe aquela consideração que ela esperava. Pelo contrário, Archie disse que fora um disparate e "Príncipe" declarou que nunca vira semelhante extravagância.

Isto custou a Rosa. Embora não quisesse que andassem com uma campainha a louvar a sua boa acção, todos gostam de ser apreciados e compreendidos.

Algum tempo depois. Rosa teve ocasião de mostrar do que era capaz e todos os primos lhe ficaram gratos; isto quase sem ela dar por isso.

Pouco depois de terem estado na ilha, o pobre Mac apanhou sol de mais e esteve muito doente.

Durante alguns dias permaneceu entre a vida e a morte. Conseguiu, porém, escapar, mas quando todos já estavam descansados apareceu novo motivo de grandes preocupações.

Os olhos do pobre Mac, que nunca tinham sido muito fortes, pioraram muitíssimo.

Ninguém se atreveu a repetir-lhe as sombrias previsões do médico que veio vê-lo, e o pequeno prometeu mostrar-se paciente, esperançado que seria coisa para poucas semanas. Proibiram-no de tocar num livro, que era a coisa de que mais gostava no Mundo, e isso apoquentou-o muito. A começo todos estavam sempre prontos a ler para ele ouvir, mas as semanas foram passando e o pobre Mac continuou fechado num quarto às escuras, sem poder fazer nada.

Pouco a pouco todos se fatigaram. Era penoso para uns rapazes tão activos passarem as suas férias ali metidos e ninguém pôde censurar quando começaram a encurtar as suas visitas.

As pessoas crescidas faziam o mais que podiam, mas o tio Mac tinha os seus negócios e a leitura da tia Jane era uma espécie de ofício dos mortos, impossível de ouvir durante muito tempo. Quanto às tias, tinham cada qual os seus quefazeres, embora estimassem bastante o pequeno.

O tio Alec vinha todos os dias mas não podia dedicar todo o seu tempo ao sobrinho inválido. Enfim, se não fosse a companhia de Rosa, o pobre Mac teria padecido muito com a solidão. A voz agradável da menina era um grande consolo, a sua paciência não conhecia limites e a sua boa vontade também não. Passava todos os dias tempo imenso com o primo.

Aquela criança possuía no mais alto grau a capacidade de se sacrificar. Permanecia no quarto sombrio horas e horas todos os dias, lendo para Mac ouvir, apenas com uma luz fraca a incidir sobre o livro, enquanto o pequeno, com os olhos tapados, gozava o único prazer que lhe era permitido. Por vezes, mostrava-se muito difícil de aturar, outras mal disposto por ela não encontrar um livro que lhe agradasse. Alguns dias estava tão desanimado que fazia pena vê-lo. Rosa insistia sempre em distraí-lo conforme podia. Quando ele estava rabugento tinha paciência, quando se mostrava aborrecido com a leitura saltava páginas, quando o via desanimado dava-lhe coragem.

Embora Mac não se manifestasse muito, Rosa sentia que ele lhe estava grato, e que preferia a sua companhia a qualquer outra. Se ela vinha atrasada mostrava-se impaciente; quando se ia embora sentia-se abandonado, e, quando estava mais impaciente, Rosa tinha artes de adormecê-lo entoando velhas canções.

- Não sei o que seria de nós sem esta criança - dizia muitas vezes a tia Jane.

- Vale mais do que todos os outros juntos-comentava Mac, pedindo que colocassem junto dele uma cadeirinha para a sua companheira.

Rosa apreciava sentir que a consideravam útil e, quando se encontrava muito fatigada, dava-lhe novas forças a piedade que sentia pelo pobre pequeno para ali deitado no escuro sem poder fazer nada.

Nem ela própria fazia idéia de quanto estava aprendendo, tanto com os livros que lia, como com o sacrifício diário a que se habituara. Rosa preferia ler versos e novelas; Mac, porém, não estava de acordo e, com os seus autores preferidos, pedia que, ao menos, lhe lessem histórias de viagens, biografias, e narrativas sobre as grandes invenções e descobrimentos. A princípio Rosa não concordava com esta preferência; depressa, porém, começou a interessar-se pelas vidas dos grandes homens.

Uma bela manhã, quando Rosa se preparava para iniciar a leitura de um livro volumoso, chamado História da Revolução Francesa, Mac, que passeava pelo quarto como um urso na jaula, perguntou: "a quantos do mês estamos? ".

- A sete de Agosto, creio.

- Já se foram mais de metade das minhas férias e mal gozei delas uma semana. Hás-de concordar que é uma crueldade.

- Tens toda a razão. Mas ainda te fica muito tempo na frente para te divertires, verás.

- Também espero. E não estou nada disposto a conservar-me aqui metido muito tempo mais.

- Logo que os teus olhos estejam melhores, sairás daqui.

- Esse pateta do médico não disse nada ultimamente?

- Não sei. Eu não estava cá quando ele chegou. Posso começar a ler?

- É-me completamente indiferente que leias ou não - disse Mac, estendendo-se no diva, com a cabeça enterrada na almofada.

Rosa desatou a ler, fazendo-se muito animada. Leu, assim, um ou dois capítulos, conseguindo mesmo soletrar convenientemente os nomes complicados, e bastante bem, segundo pensava - pois o seu ouvinte não corrigia e parecia muito interessado. Subitamente, Mac fê-la parar a meio duma frase. Sentou-se muito direito e perguntou num tom áspero:

- Ouve cá. Não te estejas a fatigar porque eu não estou a entender uma palavra e guarda antes o fôlego que te resta para me responderes a uma perguntinha que te desejo fazer.

- Dize lá - replicou Rosa, cheia de receio de que fosse exactamente uma pergunta a que ela não desejaria responder. Realmente assim era. Mac disse logo em seguida:

- Desejo saber com verdade o que há a respeito dos meus olhos, e tu vais responder-me.

- Como te hei-de eu dizer... - retorquiu Rosa, evasivamente.

- Se não me dizes tudo quanto sabes, tiro imediatamente esta venda e olho para o Sol com quantas forças tiver.

- Digo tudo, digo, mas não faças uma coisa dessas - retorquiu Rosa, muito aflita.

- Pois então terás de dizer-me se o médico não achou que eu estava pior dos olhos da última vez que aqui esteve. A mãe não me responderia, mas tu vais fazê-lo.

- Creio que sim - murmurou Rosa.

- Eu tinha a certeza disso. Disse que eu poderia entrar na escola quando as férias acabarem?

- Não, Mac - respondeu Rosa, muito baixinho.

- Ah!

Mac não disse mais nada. Respirou fundo como se suspirasse. Percebia-se que queria ter coragem. Daí a uns instantes perguntou novamente, ansioso:

- Quando pensa ele que poderei voltar a estudar?

Custou muito a Rosa responder a esta nova pergunta; teve, porém, de fazê-lo, porque a tia Jane declarara que nunca teria coragem de dizer a verdade a Mac e o tio também, e haviam-lhe pedido que tentasse ela prevenir o pobre pequeno.

- Só daqui a alguns meses.

- Quantos? - perguntou ele, ainda com uma espécie de soluço.

- Talvez um ano.

- Daqui a um ano esperava eu poder fazer os exames. - E, retirando a venda, Mac olhou para ela com os seus pobres olhos que piscaram mesmo com aquela fraca luz.

- Tens muito tempo de fazer exames. Por agora o que precisas é de ter paciência e poupar a vista para depois te poderes servir dela - afirmou Rosa, com os olhos rasos de água.

- Não quero. Não posso consentir numa coisa dessas. Sabes muito bem como são os médicos. Só querem fazer valer os seus serviços sem se importarem de prejudicar. Não posso acreditar numa coisa assim! - exclamou Mac, desesperado.

- Ouve, Mac. Ouve com atenção o que tenho a dizer-te - principiou Rosa, muito decidida, embora com a voz a tremer. - Sabes perfeitamente que fizeste muito mal aos teus olhos lendo à luz Dá lareira e estando até muito tarde na cama a ler. Agora estás a pagar essas imprudências, segundo afirma o doutor. Precisas de ter muito cuidado, senão podes ficar cego.

- Não é verdade.

- É, sim. Pediu-nos mesmo que te disséssemos que só um repouso completo te seria salutar. Sei que vai custar-te muito, mas farei o possível por ajudar-te.

Rosa calou-se. Via perfeitamente que a palavra cego aniquilara Mac. O pequeno enterrara a cabeça numa almofada e não dava sinal de vida. Rosa ficou hesitante alguns segundos, sem saber como havia de consolá-lo, fazendo votos por que o tio Mac se lembrasse de entrar.

De repente, ouviu soluçar desesperadamente. Nunca ouvira ninguém assim. O livro caiu-lhe do colo e correu apressada para o sofá com aquela ternura toda maternal que as raparigas sentem pelo sofrimento alheio. Disse-lhe imediatamente:

- Meu querido priminho, não chores. Faz-te tanto mal chorar. Levanta a cabeça e deixa-me liinpar-te as lágrimas. Tens muita, muita razão, mas peço-te que não chores.

E continuou dizendo coisas até conseguir que Mac erguesse a cabeça. Vendo as lágrimas que lhe corriam pelas faces, compreendeu quanto fora grande o susto e o desgosto.

Mac percebeu que ela era muito compadecida, mas, como rapaz que era, não lhe ficou grato por isso. Começou a limpar as lágrimas à manga do casaco, dizendo:

- Os meus olhos já estão tão mal que não importa mais lágrima, menos lágrima.

Rosa chorou também e pegou-lhe nas mãos dizendo:

- Ao menos não lhe toques com a lã do casaco. Vou banhar-te a vista, assim não te fará mal teres chorado.

- Não digas aos outros rapazes que eu me portei como um miúdo e que fiz uma cara destas

- acrescentou Mac, suspirando e obedecendo à enfermeira que lhe entregara um lencinho de cambraia de linho para ele limpar as lágrimas.

- Evidentemente que não digo; mas não havia ninguém, podes ter a certeza, que não se impressionasse com uma coisa destas. Acho até que foste muito corajoso. Entretanto, podes estar seguro de que esta doença vai passar dentro de algum tempo e, entretanto, havemos de arranjar muitas coisas interessantes para fazer. Queres?

Dizendo estas palavras de consolação, Rosa ia lavando os olhos doentes do primo.

- Homero foi cego e Milton também: no entanto, foram grandes homens - proferiu Mac, muito sério, daí a algum tempo.

- Meu pai tinha um quadro muito bonito, representando Milton a ditar enquanto as filhas escreviam - observou Rosa, procurando acompanhar os pensamentos do pobre doentinho.

- Talvez eu conseguisse estudar se alguém lesse para eu ouvir - exclamou ele, como se na sua alma tivesse entrado um raio de esperança.

- Tenho a certeza de que serás capaz desde que tenhas repousado bastante. Como sabes, o cérebro também precisa de repousar por causa do sol que apanhaste, segundo afirmou o doutor.

- Na próxima visita, hei-de conversar com ele para saber exactamente o que devo fazer. Que louco fui em continuar lendo com o sol a bater-me no livro, estando já a ver as letras como se dançassem. Agora, quando fecho os olhos, vejo bolas e estrelas e toda a espécie de coisas extravagantes. Pergunto a mim próprio se os cegos verão coisas idênticas.

- Não penses agora nos cegos. Posso continuar a ler? Daqui a nada chego a um ponto interessante e esqueço tudo isto - sugeriu Rosa.

- Não; nunca me esquecerei. Podes poisar o livro. Hoje não estou capaz de ouvir nem mais uma palavra. Dói-me a cabeça e não consigo ligar duas idéias.

O pobre Mac enterrou novamente a cabeça na almofada.

- Então deixa-me cantar. Talvez consigas adormecer - disse ainda Rosa, sentando-se junto dele.

- Talvez que sim. Não dormi bem a noite passada. Quando adormecia sonhava que andava a brincar com os outros rapazes. Ouve, previne os primos de que já me disseste; assim é escusado que voltem a falar-me do assunto. Agora vê se consegues que eu adormeça. Só queria não voltar a acordar sem haver passado um ano.

- Vamos a ver se consigo. Oxalá que sim.

Rosa disse isto com tanta bondade que Mac levantou a cabeça e pegou numa pontinha do avental dela para sentir que a tinha junto de si, e respondeu:

- És muito boa pequena, Rosinha.

Muito contente com estas palavras, Rosa começou a cantar uma velha canção escocesa.

Daí a dez minutos o pobre pequeno adormecia, e esquecia a ameaça terrível que pesava sobre ele.

 

                 OS OUTROS PRIMOS

ROSA preveniu os outros do que se passara e ninguém disse a Mac uma palavra sobre tal assunto, para não o afligirem mais. O pequeno conversou com o doutor; tal conversa pouco ou nenhum ânimo lhe deu porque soube que, de momento, não devia fazer nada. Todavia, a esperança de poder ainda a vir a estudar deu-lhe coragem para suportar o presente. Habituou-se, porém, à idéia, e todos se admiraram da força de que deu provas.

Os outros pequenos sentiam-se muito impressionados, tanto pela terrível ameaça que pesava sobre o primo como pela maneira como este suportava a sua infelicidade. Queriam mostrar-se afectuosos mas nem sempre as suas tentativas eram sensatas e, muitas vezes, Rosa encontrava Mac muito abatido depois da visita dos outros primos. A menina mantinha o seu lugar de enfermeira-chefe e principal leitora, embora todos tentassem ajudá-la. Os pequenos, por vezes, comentavam que Mac estava a tornar-se mimalho, mas, mesmo assim, concordavam que Rosa prestava excelentes serviços.

Era Rosa quem tinha o lugar preponderante dentro daquele quarto de doente. A tia Jane incumbia-a de muitos cuidados porque percebia que Rosa era absolutamente capaz de tê-los, tanto mais que fora desde sempre habituada a lidar com doentes. Ela é que tratara do seu pai, e o ser muito nova era antes uma vantagem, neste caso. Mac depressa se convenceu de que ninguém sabia cuidar dele como a prima, e Rosa foi criando amizade ao seu doente, embora sempre o tivesse considerado o menos atraente de todos os primos. Não era amável e meigo como Archie, não era alegre e bonito como o "Príncipe" Charles, não era cuidadoso e prestável como Steve, não era divertido como Georgie e Will e também não era confiante e afectuoso como Jamie. Era rude, distraído, descuidado, um tanto petulante e estas qualidades não podiam agradar muito a uma menina bonita e delicada como Rosa.

Contudo, quando conheceu melhor o primo naquele momento de aflição, aprendeu a estimá-lo e a respeitá-lo. Não era só piedade o que ela sentia pelo pobre Mac, que procurava mostrar-se corajoso e que nunca deixou ver a ninguém os seus desânimos. Só Rosa soube quanto, algumas vezes, ele sofria.

Depressa Rosa se convenceu de que os outros pequenos não o apreciavam como deviam e, certo dia, quase já no fim das férias, disse-lhes o que pensava duma maneira que os impressionou.

As férias estavam quase terminadas e Mac não poderia entrar para a escola, que era aquilo que mais apreciava no mundo. Isto deprimia-o muito e os primos esforçavam-se por consolá-lo. Certo dia Jamie apareceu com um cestinho de amoras que ele próprio colhera, como podiam provar os seus dedos e a boca absolutamente pretos. Will e Georgie trouxeram os canitos para ajudarem a passar o tempo, e os mais velhos desataram a discutir base-ball, crícket e toda a espécie de coisas próprias para fazerem Mac sentir a sua invalidez.

Rosa fora dar um passeio de carro com o tio Alec, que declarara que ela estava pálida como a própria Lua, por passar os dias dentro de um quarto escuro. No entanto, em pensamentos estava com o seu doente e, logo que regressou, foi ter com ele. Encontrou o quarto na maior confusão.

Com as melhores intenções deste mundo, os rapazes tinham feito muito mal e o espectáculo que Rosa entreviu indignou-a. Os canitos ladravam, os primos mais pequenos brincavam e os mais velhos falavam alto e todos a um tempo. As cortinas encontravam-se abertas e as vidraças fechadas. Havia amoras por toda a parte. Mac, com a venda meio tirada e as faces a arder, gritava mais do que todos, discutindo com Steve que lhe pedira uns livros emprestados com o pretexto de ele não os poder ler.

Rosa considerava aquele quarto como um sítio onde podia reinar; por isso, pôs a andar os invasores com uma energia que os espantou. Nunca a tinham visto zangada e o efeito foi, por isso, colossal e ao mesmo tempo cômico. Pô-los fora do quarto como uma galinha que defendesse os seus pintos. E eles obedeceram, mansos como cordeiros. Os mais pequenos saíram mesmo de casa precipitadamente, enquanto os mais velhos esperaram, no quarto ao lado, ocasião de se desculparem. Rosa, enérgica e zangada, arrumava mesas e cadeiras e restabelecia a ordem no aposento.

Enquanto esperavam, iam vendo, através da porta entreaberta, os movimentos de Rosa dentro do quarto, e iam comentando entre si a cena anterior, cheios de remorsos.

- Está a arrumar o quarto num instante. Que disparate termos deixado entrar os cães - obseryou Steve, depois de um longo silêncio.

- O pobre Mac lamentava-se como se ela o estivesse a maltratar em vez de lhe estar fazendo bem. Não é estúpido? - disse Charlie, ouvindo Mac queixar-se da "sua pobre cabeça".

- Ela vai conseguir acalmá-lo, mas não está certo que nós venhamos pô-lo naquele estado para ela depois ter mais trabalho ainda. Ia ajudar, se soubesse como - atalhou Archie, muito triste e censurando-se pela sua falta de imaginação.

- Nunca mais tornaremos a fazer uma coisa destas. Não é estranho o jeito que as mulheres têm para tratar dos doentes? - exclamou Charlie, rindo deste conhecido facto.

- Tem sido tão boa para o pobre Mac - afirmou Steve, num tom de censura.

- Melhor do que o irmão - retorquiu Archie, sentindo-se aliviado por atacar o outro.

- Vocês não têm direito de falar. Nenhum tem feito mais do que eu, e Mac gostava muito mais de vocês do que de mim - protestou Steve, defendendo-se.

- Todos nos temos mostrado egoístas e temos feito muito pouco por ele, mas tentaremos proceder melhor - acrescentou Archie, tomando para si maiores responsabilidades do que lhe competiam porque fora ele o melhor de todos.

- Rosa tem estado sempre ao pé dele, não admira que seja muito amigo ldela. Acontecia-me outro tanto, se estivesses no lugar de Mac-observou Charlie, concordando em que não tinham sido inteiramente justos com a "priminha", até ali.

- Vou dizer-lhes a minha opinião, meus filhos. Acho que não temos sido justos para com Rosa

- afirmou Archie, que tinha uma grande preocupação de justiça e gostava de pagar as suas dívidas de gratidão, mesmo a uma rapariga.

- Tenho pena de ter feito troça da boneca dela e de me ter rido por vê-la chorar, quando o gatinho morreu. Mas as raparigas, às vezes, são tão cômicas que dão vontade de rir - acrescentou Steve, um tanto arrependido e pronto a reparar a sua conduta.

- Vou pôr-me de joelhos diante dela e pedir-lhe perdão por havê-la tratado como se fosse uma criancinha sem importância. Acham que ficará muito pasmada? É apenas mais nova dois anos do que eu, mas é tão pequenina e tão linda que a considerei sempre uma bonequinha- disse o "Príncipe" do alto da sua grande altura, como se Rosa fosse um pigmeu, colocada a seu lado.

- Pois essa bonequinha tem um coração de oiro e um espírito forte, podes acreditar. Mac afirma que ela compreende, por vezes, as coisas mais facilmente do que ele próprio, e a mãe considera-a uma rapariga rara. Escusas de te dares tantos ares lá por seres tão alto, Charlie; Rosa gosta muito de Archie, porque ele trata-a com muito mais respeito.

- Steve, pareces um galo enfurecido; não te excites tanto que não vale a pena. Toda a gente gosta mais de Archie. Ele é o chefe e estou pronto a puxar as orelhas a quem tiver o atrevimento de não o preferir a todos nós. Acalma-te "Janota", e vê como te portas antes de censurares os outros.

Assim respondeu o "Príncipe" com grande dignidade e muito boa disposição, enquanto Archie agradecia modestamente o que diziam a seu respeito e Steve continuava convencido de que era seu dever proceder como procedera. Seguiu-se uma pausa, durante a qual a tia Jane apareceu, com um tabuleiro grande na mão sumptuosamente guarnecido. Eram horas de tomar chá e ela não permitia que em parte alguma se servissem chás como os seus.

- Se te podes ainda demorar uns instantes, gostaria que mudasses a venda ao Mac, porque esta sujou-se com as amoras, e amanhã precisa de estar limpo para sair um pedacinho, se o tempo se mantiver enevoado durante o dia - disse Mrs. Jane, oferecendo as torradas, enquanto Mac entornava o seu chá sem que ninguém lhe fizesse a menor censura.

- Pois sim, tia - respondeu Rosa, tão suavemente que não parecia a mesma que, momentos antes, dissera aos rapazes, muito zangada, "ponham-se daqui para fora".

Eles não tiveram tempo de retirar-se antes de Rosa aparecer na sala. Esta atravessou o aposento muito séria e foi sentar-se na mesinha de costura, sem dizer uma palavra. Era cômico ver os três rapagões a olharem atrapalhados para aquela menina franzina, muito séria, que, logo a seguir ao chá, enfiou a sua agulha em linha verde e se pôs a coser. Desejavam dizer qualquer coisa expressiva que demonstrasse arrependimento, mas nenhum deles sabia como havia de começar; percebia-se, pela sua fisionomia, que Rosa entendia dever manter-se muito séria. Houve uma pausa difícil; em certa altura, Charlie, que tinha o condão de saber tornar-se simpático, caiu de joelhos junto da menina e, batendo no peito, disse muito contrito:

- Peço-te que me perdoes por esta vez. Prometo não tornar.

Foi-lhe difícil manter-se séria, mas replicou com gravidade:

- É a Mac e não a mim que deves pedir perdão.

A rnim não me fizeram vocês mal nenhum; a ele, sim. Fizeram-lhe muito mal com tanta conversa, com tanta luz, e com tamanha insistência em coisas que só podiam contrariá-lo.

- Achas realmente que lhe fizemos mal, prir minha? - perguntou Archie, preocupado, enqunto Charlie se sentava, atrapalhado.

- Fizeram, sim. Está cheio de dores de cabeça e tem os olhos vermelhos como esta flanela - disse Rosa, espetando a agulha numa fazenda cor de morango. Steve passou as mãos nos cabelos, aflito; Charlie tomou uma atitude melodramática e Archie, mais sensível ainda do que os outros, pensou que, de futuro, havia de vir mais vezes fazer um pouco de leitura ao seu pobre primo.

Vendo o efeito das suas palavras nos três rapazes, Rosa achou que devia conceder-lhe um raio de esperança. Quis, em todo o caso, dar uma pequena lição ao "Príncipe" que muitas mais vezes do que os outros a havia melindrado e, dando-lhe uma pancadinha na cabeça, disse-lhe com ares muito superiores:

- Não te faças tolo e acaba com esses ares. Charlie sentou-se, então, num banco aos pés de

Rosa e os outros aproximaram-se. Apaziguada pela atitude deles, Rosa disse muito maternal:

- Agora, oiçam cá. Vocês têm infinitas maneiras de se tornarem agradáveis ao Mac. Em vez de virem falar para o pé dele das coisas que lhe estão vedadas, agarrem num livro e leiam um pouco para ele ouvir, falem-lhes dos estudos e ajudem-no sempre que tenham tempo. Podem fazer isso muito mais facilmente do que eu, porque são rapazes e sabem grego, latim e todas as coisas que nós raparigas não aprendemos.

- Está provado que tu possuis infinitos recursos que nós não temos - respondeu Archie, de tal maneira que Rosa se sentiu deleitada, embora não resistisse a dizer mais uma gracinha dirigida ao Charlie:

- Ainda bem que vocês são dessa opinião, embora eu seja apenas uma miúda.

O "Príncipe" voltou a cara, envergonhado, e Steve ergueu a cabeça todo contente por lhe não ser dirigida esta frase. Archie riu, e Rosa, vendo os olhos dele tão risonhos, não pôde deixar de estender a mão a Charlie, amigavelmente, como se lhe oferecesse um raminho de oliveira.

- Espero que, daqui por diante, tudo corra bem e que conseguiremos animar o pobre Mac - disse Rosa, sorrindo tão graciosamente que foi como se um raio de sol atravessasse nuvens sombrias.

A tempestade tornara a atmosfera mais transparente e fizeram-se os mais variados planos. Todos ardiam por se sacrificarem pelo pobre Mac; Rosa era uma estrelinha para onde todos olhavam para se guiarem. Evidentemente, uma disposição destas não podia durar, mas era agradável, mesmo assim, e deixou todos bem dispostos depois de passar o primeiro entusiasmo.

- Já está prontinha para ele pôr amanhã, espero que o dia venha enevoado - proferiu Rosa, quando terminou o seu trabalho, que os rapazes haviam seguido muito interessados.

- Não me sabia mal mais um dia de sol; entretanto, meterei requerimento para que ele não apareça. Espero ser atendido - replicou Charlie, que já se. sentia outra vez inteiramente à vontade.

- Para ti é fácil brincar. Mas, se durante semanas tivesses de trazer uma coisa destas, acharia menos graça-objectou Rosa, colocando a venda sobre os olhos de Charlie que continuava sentado a seus pés.

- É horrível! Tira para lá isso! Não me espanta que o pobre rapaz se sinta mal disposto - exclamou Charlie, olhando para a venda como se se tratasse de um instrumento de tortura. Levantou-se para ir dar as boas-noites a Mac.

- Vou acompanhar-te a casa; já está escuro e sei que és medrosa-declarou Archie, esquecido de que muitas vezes fizera troça desse mesmo receio.

- Parece-me que é a mim que compete ir com ela, porque o doente é meu irmão - afirmou Steve, desejoso de manter os seus direitos.

- Então vamos todos - propôs Charlie, tomado de uma tão grande amabilidade que os outros ficaram pasmados.

- Vamos lá! - disseram todos à uma, e assim foi, com grande surpresa e enorme contentamento de Rosa, embora Archie fosse o único que verdadeiramente a acompanhou. Os outros foram todo o caminho em. carreiras e brincadeiras.

Ao chegarem à porta de casa tornaram-se mais atentos e apertaram-lhe a mão cordialmente, retirando-se com grande elegância e dignidade, enquanto Rosa comentava para si, muito satisfeita:

"Assim, sim. Assim gosto de ser tratada".

 

                   NA MONTANHA

As férias acabaram, os rapazes voltaram para a escola e o pobre Mac não os acompanhou. Podia agora sair do quarto e passear com uns óculos muito escuros, que mal lhe permitiam ver qualquer coisa. Não podia fazer outra coisa que não fosse andar de um para outro lado, sem forçar a vista. Só quem tenha passado por isto poderá entender o estado de espírito de uma criatura condenada a semelhante pena, e poderá compreender que Mac, desesperado, declarasse a Rosa:

- Se não inventam qualquer coisa para me distrair, um dia dou cabo de mim, podes ter a certeza.

Rosa foi ter com o tio Alec para lhe pedir auxílio; este resolveu que o melhor seria que doente e enfermeira fossem passar um mês nas montanhas, acompanhados pela tia Jessie e por Jamie. Pokey e a mãe juntaram-se à expedição e, uma bela manhã de Setembro, lá partiram todos seis, muito contentes, no expresso de Portland: Duas mães muito risonhas, carregadas de rolos de mantas e de cestos com farnéis, uma linda rapariguinha com uma malinha cheia de livros, um rapazinho alto e magro com o chapéu sobre os olhos e duas crianças mais pequenas que, com as perninhas penduradas por não chegarem ao chão, se instalaram na carruagem, reluzindo de contentamento com aquela primeira viagem.

Um dia de sol, especialmente bonito, esperava-os e dava-lhes as boas-vindas. Depois de um dia inteiro de carro, chegaram à porta de uma herdade, pintada de verde. Dentro do pátio avistaram um poldro branco, uma vitela castanha, dois gatos, quatro gatinhos, muitas galinhas e aí umas doze pessoas, novas e velhas, mas todas com ar divertido. Cumprimentaram e sorriram da maneira mais amigável, e uma senhora idosa aproximou-se, beijou os recém-chegados e disse-lhes com muita simpatia:

- Que prazer em vê-los! Vão descansar um poucachinho que, dentro ein pouco, chamo-os para tomar chá. Devem estar necessitados. Lizzie, vai ensinar-lhes o caminho dos seus quartos; Kitty, ajuda o Pai, que deve estar tratando das bagagens; Jenny, é preciso aprontar a mesa. Os pequenitos já estão a ver os gatinhos!

As três lindas meninas desapareceram num instante e os recém-chegados ficaram com a impressão de terem sido recebidos com muita simpatia. Mrs.

Jessie notou a maneira agradável como os quartos estavam arranjados, e Rosa não podia afastar-se das janelas; cada uma delas era um autêntico quadro. Os mais pequenos depressa se relacionaram com as outras crianças e passaram a brincar com os pintainhos e com os bichanos.

Foram chamados para a refeição por uma trompa de caça e, na sala de jantar, juntou-se imensa gente, além dos Campbells. Só crianças eram seis, todas com um apetite que dava honra ao ar da montanha. A tia Atkinson - como todos chamavam à dona de casa - era a mais animada de todas as pessoas; nunca parava quieta. Andava sempre a olhar pelas crianças, levantava-se para ir buscar um prato ou um talher que faltasse, etc. Os gatos instalavam-se com grande familiaridade no regaço das pessoas, pedindo para provarem também dos petiscos, e algumas ninhadas de pintos atreveram-se a entrar, seguindo a mãe, que andava procurando migalhinhas.

Depois do chá, todos saíram para ver o pôr-do-sol e só entraram quancío os mosqui deram ordem de recolher, aparecendo com os seus ferrões e as suas buzinas. Ao chegarem a casa, surpreendeu-os ouvir um órgão a tocar. Foram encontrar, na sala, o tio Atkinson tocando num orgãozinho que ele próprio fabricara. As crianças juntaram-se em volta e cantaram até que Pokey caiu a dormir atrás da porta e Jamie se pôs a desafinar duma maneira assustadora, tonto com sono.

Os viajantes sentiam-se fatigados. Depressa adormeceram nos óptimos colchões da tia Atkinson, que pareciam ter dormideiras, tão profundo foi o sono de todas as pessoas.

No dia imediato começou aquela vida ao ar livre que tanto faz bem a quem está fatigado de corpo e espírito. O tempo estava uma maravilha e o ar da montanha dava uma boa disposição extraordinária às crianças e mesmo aos adultos. Até Mac parecia melhor. Propôs a Rosa que fossem para a floresta à procura de algum gato bravo.

Jamie e Pokey entraram imediatamente nas fileiras da "Infantaria da Montanha" - um batalhão magnífico composto apenas de oficiais. Todos transportaram insígnias e bandeiras colossais. Era muitíssimo divertido vê-los marchar, comandados pelo capitão Dove - um simpático rapazinho de onze anos - que dava as suas ordens com a seriedade de um velho general. Os outros obedeciam-lhe com maior docilidade que certeza. Jamie, que já se treinara em exercícios semelhantes, foi imediatamente elevado à categoria de coronel. Pokey, porém, era impagável e os espectadores, sem querer, tiveram de aplaudir, quando ela apareceu. Trazia o chapéu à banda, e a bandeira caía-lhe sobre o ombro e brandia um espadalhão de pau; o rosto reluzia-lhe e os caracóis abanavam com toda a força, enquanto ela se esforçava por marchar com ar bélico.

Mac e Rosa andavam às amoras pelas sebes, quando o batalhão passou sem lhes ligar nenhuma. Um pouco mais longe avistaram um desses cemitérios em volta duma capela, tão vulgares nas florestas americanas, e o capitão Dove mandou fazer alto, explicando que era necessário fazer continência em sinal de respeito.

- Não são engraçados? - perguntou Rosa, ao vê-los passar.

- Vamos segui-los para verem o que fazem disse Mac.

Seguiram-nos realmente e viram-nos, um pouco mais adiante, dar volta à igreja, cantando, de bandeiras e cabelos ao vento. Era uma velha capela abandonada. Os pequenos entraram. Rosa e Mac espreitaram por uma das frestas e viram o capitão Dove encarrapitado num dos púlpitos, enquanto a sua gente, que poisara as armas à entrada, cantava um hino desses que é uso cantar nas escolas.

Quando acabaram, o capitão Dove disse: "Agora vamos rezar", e, juntando as mãos, iniciou uma oração que todos acompanharam com muita devoção. Era realmente uma oração; simplesmente não era nada apropriada ao momento, pois começava assim:

"com Deus me deito... "

Todos acompanharam a oração com fervor. Os olhos de Rosa encheram-se de água. Mac, sem querer, tirou o chapéu.

- Agora vou pregar-vos um pequeno sermão, sobre o seguinte motivo: "Crianças, amai-vos umas às outras". Pedi à Mama que me desse o motivo que eu havia de desenvolver e ela deu-me este. Sentem-se e oiçam-me, pois, com atenção. Marion, não te ponhas a assobiar. Quero dizer-vos que devemos ser bons uns para os outros e não nos devemos zangar, como costumamos fazer. O Jak não pode ir sempre passear de carro; não deve, por isso, zangar-se quando eu levo o Frank. Willie deve habituar-se a deixar Marion construir a sua casa como lhe apeteça. Jamie parece-me um bom pequeno, mas quero que me oiça como se o não fosse. Pokey, as pessoas na igreja não se beijam, nem põem e tiram os chapéus. Espero que se recordem das minhas palavras porque sou o capitão e devem ouvir o que lhes digo.

- Não te importes com aquilo que nós fazemos e olha para as tuas acções, que é melhor. Diz-me lá como é que estragaste o meu cinto? - respondeu o alferes Jack, verdadeiramente revoltado.

- Sim, e deste um sopapo no Frank, eu vi gritou Willie Snow, levantando-se do seu poiso.

- E escondeste-me o meu livro, e não mo deste quando eu to pedi - acrescentou Annet, a mais velha dos irmãos Snow.

- E eu hei-de pôr e tirar o meu chapéu quantas vezes quiser - gritou Pokey, resistindo aos esforços que Jamie fazia para que ela se mantivesse sossegada.

O capitão Dove sentiu-se um pouco abalado na sua respeitabilidade, mas, como era um cavalheiro cheio de dignidade, acabou com aquela revolta, mostrando um tacto enorme. Disse muito sério:

- Cantemos um último hino que todos saibam, e depois vamos almoçar.

Restabeleceu-se a harmonia, e uma melodia suave veio afogar os frouxos risos de Rosa e Mac, que não puderam manter-se sérios durante a última parte daquela notável cerimônia.

Aqueles quinze minutos de repouso tornaram impossível uma marcha ordenada, de regresso a casa, pois os pequenos sentiam-se cheios de energia. Vieram para casa numa tal correria que fizeram grandes honras ao almoço, como já acontecera à ceia do dia anterior. Jamie, porém, sentia-se muito impressionado com aquilo a que ele chamava "o discurso do capitão".

Era extraordinária a quantidade de coisas que tinham para se entreter naquela propriedade. Mac, em vez de passar os dias deitado a ouvir ler, como esperava, encontrou sempre melhor ocupação. Divertiu-se imenso a percorrer a quinta, a ver regar os campos e a ouvir discorrer os trabalhadores acerca das culturas. Mac, apesar de ser um pequeno muito amigo de ler, tinha apenas quinze anos.

Também foi à pesca; isso ajudou-o a passar o tempo, embora tanto ele como o seu companheiro

- um rapaz mais ou menos da sua idade, vindo de longe - só apanhassem peixinhos minúsculos e pouco abundantes. Outro motivo de prazer foi trocar lições com Rosa. Ele falava-lhe de geologia, ela ensinava-lhe um pouco de botânica. Andavam por um lado e por outro à procura de pedras e de folhinhas que os interessassem para as suas lições.

Foi uma vida divertida. Os Atkinson viviam numa atmosfera de festa que nunca acabava. Antes de passar um mês, já todos estavam de acordo em que o Dr. Alec, mais uma vez, prescrevera o remédio que convinha.

 

                   UM FELIZ ANIVERSÁRIO

O aniversário de Rosa era a doze de Outubro. Como ninguém parecia lembrar-se da data, Rosa achou pouco delicado falar do caso e calou-se muito bem. Nestas condições, foi para a cama, na véspera, perguntando a si própria se, no dia imediato, receberia algum presente.

Na manhã seguinte, ainda muito cedo, teve a resposta a essa pergunta. Foi acordada por uma pancadinha no rosto e, abrindo os olhos, viu um bichano branco e preto sentado em cima da sua própria almofada, mirando-a com uns olhos muito redondos e muito azuis, enquanto com a pata lhe dava sapatadinhas na cara para lhe chamar a atenção. Era o gatinho Cometa, o mais lindo entre os hmãos, que se encontrava ali, evidentemente, a cumprir uma missão, pois trazia uma fitinha cor-de-rosa alada ao pescoço e, preso nela, um bilhete onde se liam as seguintes palavras: "O Frank oferece a Miss Rosa. "

Ficou contentíssima; isto, contudo, era apenas o começo de uma série de surpresas encantadoras que se prolongaram durante todo o dia, da maneira mais agradável, porque os Atkinson eram exímios em surpresas e estimavam muito Rosa.

Entretanto, a melhor de todas as surpresas foi o piquenique que se lembraram de ir fazer ao alto da serra. Logo a seguir ao almoço, começaram a tratar do farnel porque eram muitos e desejavam sair cedo. A disposição de toda a gente era excelente. A tia Atkinson levava mesmo uma trompa de caça para juntar a pequenada quando fosse necessário.

- O carro vai para transportar a tia e os pequenos, por isso terás de ir a cavalo. Peço-te, além disso, que te deixes ficar um pouco para trás; temos de ir à estação buscar uma encomenda, e só tá queremos mostrar no alto da montanha. Não te ofendes com isso, pois não? - disse Mac, no meio da balbúrdia da partida, para a prima.

- De maneira nenhuma - respondeu Rosa. Sinto-me realmente melindrada, quando me mandam afastar, num dia normal, mas em ocasiões como esta acontece sempre assim. Nos dias de anos e nos dias de Natal é uso passar metade do tempo em mistérios e segredinhos pelos cantos. Só começo a andar um bocado depois de vocês se terem posto a caminho.

- Esperas por nós debaixo da macieira grande até eu te chamar; daí não podes ver coisa alguma

- acrescentou Mac, ajudando-a a subir para o cavalicoque que o pai mandara para ele montar. Era um cavalinho tão manso que Rosa teve vergonha de mostrar medo, e habituou-se a cavalgar. Além disso, agradava-lhe pensar na surpresa que seria para o tio Alec, quando regressassem, saber que ela montava.

Puseram-se todos a caminho, e Rosa seguiu-os dali a pouco. Quando chegou debaixo da macieira, parou, conforme combinara, mas não resistiu a olhar na direcção da estação e avistou um homem alto que Mac conduzia para o carro a toda a pressa. Foi quanto bastou; Rosa precipitou-se na direcção da estrada o mais depressa que o cavalo soube galopar.

"Vou espantar o tio", pensou Rosa consigo, "e mostrar-lhe que não sou medrosa".

Levada por esta ambição, meteu o cavalo por um desfiladeiro escarpado. Tudo teria seguido bem se, a pouca distância, não se atravessassem umas galinhas em frente do cavalo e não o assustassem. O bicho estacou e Rosa passou-lhe por cima das orelhas.

Rosa levantou-se antes que o Dr. Alec tivesse tempo de sair da caruagem. Quando ele se aproximou, passou-lhe os braços ao pescoço e exclamou quase sem voz:

- Estou contente por ver o tio. Foi o melhor de todos os presentes.

- Não estás magoada, minha filha? Foi um grande tombo e receio que te tenhas aleijado - perguntou o Dr. Alec, preocupado, olhando com orgulho para a sobrinha.

- Sinto-me um pouco vexada, mas não me magoei. Aquelas estúpidas galinhas estragaram tudo - disse Rosa.

- Não podia acreditar nos meus próprios olhos quando perguntei a Mac onde estava Rosa e ele me mostrou a tua figurinha ao longe, correndo montada num cavalo. Não podias ter feito coisa que eu tanto apreciasse. Queres voltar a montar ou preferes ceder o lugar a Mac e vires connosco no carro? - perguntou o Dr. Alec, enquanto a tia Jessie fazia notar que era melhor porem-se a caminho para não fazerem os outros esperar.

- Não há como um trambolhão para acabar com as vaidades - respondeu Mac, que não pôde resistir a arreliar um pouco a prima.

- Não importa - respondeu Rosa, ocultando que se tivesse magoado e dizendo com grande dignidade: - Prefiro continuar a cavalo.

Subiu para o cavalo muito direita, procurando fazer esquecer a queda.

- Só queria que a visse cavalgar e saltar obstáculos quando vamos passear juntos. Monta tão bem como eu - disse Mac para o tio,

- Receio que a venhas encontrar uma cavalona.

Via-a tão feliz que não tive remédio senão consentir. Não será muito próprio duma menina, mas tem-lhe feito bem - acrescentou Mrs. Jessie que, em rapariga, também gostava muito de correr e saltar.

- É a melhor nova que me podias dar - respondeu o tio Alec, esfregando as mãos. - Só estimo que corra e que salte, é um sintoma de saúde. É tão natural correr, como um animalzinho cheio de vida. Prefiro encontrar Rosa a jogar futebol com Mac a encontrá-la dobrada sobre qualquer estúpido trabalhinho.

- Em todo o caso, não pode passar a vida a jogar a bola. É preciso não esquecer que tem de portar-se como uma menina que é - acrescentou Mrs. Jessie.

- Também Mac não vai pasar a vida a jogar a bola. Entretanto tê-la jogado só lhe terá dado vantagem porque o tornou saudável. É fácil polir um edifício bem construído. Tenho a certeza de estar na verdade, Jessie, e, se a minha experiência resultar tão bem nos seis meses que se vão seguir como tem resultado até aqui, pode felicitar-me.

- E estou pronta a fazê-lo. Quando comparo a cor que tem agora à palidez que sempre lhe conheci, tenho a impressão de que se operou um milagre - respondeu Mrs. Jessie, olhando para as faces rosadas da sobrinha.

Quando chegaram ao alto, instalaram-se entre as rochas a preparar a refeição. A tia Atkinson pôs um grande avental, arregaçou as mangas, e começou a trabalhar com a mesma alegria com que andava pela sua cozinha. Acenderam uma fogueira com pinhos e gravetos e ferveram água, enquanto as pequenas punham a mesa sobre o musgo e as crianças brincavam em volta, à espera que soasse a trompa de caça, como um bando de passarinhos esfomeados.

Depois de terem comido e de terem repousado um pouco, resolveram entreter-se com charadas.

Escolheram um planaltozinho atapetado de relva e, com alguns xailes, arranjaram um palco. Houve quem propusesse um motivo, e começou a representação.

Na primeira cena aparecia Mac, numa atitude muito desanimada, vestido com desleixo e muito preocupado, via-se isso perfeitamente. Em certa altura, entrou uma criaturinha muito singular, com um cartuxo de papel pardo metido pela cabeça abaixo, e onde tinham feito um buraco para sair o narizinho, que era muito cor-de-rosa, um outro para a boca e dois buraquinhos mais pequenos e muito redondos para os olhos. De cada lado da boca estavam colocados uns fiozinhos de erva a servir de bigodes e os cantos do cartuxo encontravam-se dobrados de maneira a parecerem exactamente duas orelhas; além disso, ninguém podia ter dúvidas de que o cinto que trazia pendurado atrás fosse uma cauda.

Este singular bicharoco pretendia consolar o seu dono e dar-lhe conselhos, que este acabava por aceitar, até que, finalmente, Mac descalçava as botas que o bicho imediatamente calçava. Mac entregava-lhe então uma bolsa e, beijando-lhe respeitosamente a mão, a singular criatura desaparecia. Imediatamente todos adivinharam exclamando: "É o Gato das Botas".

- Exactamente - disse uma voz de dentro, e o pano caiu.

A cena seguinte foi mais difícil de decifrar. Entrou, desta vez, um outro bicho que vinha a quatro, tinha uma cauda e umas grandes orelhas. Trazia a cabeça tapada com um xaile, embora se adivinhasse debaixo das franjas vários caracóis loiros a quererem espreitar. Montado nele encontrava-se um minúsculo cavaleiro vestido de camponês, que parecia cavalgar com certa dificuldade, dada a singularidade do animal. Subitamente, aparecia uma fada toda vestida de branco com umas asas feitas de papel de jornal e o rosto encoberto pelos seus cabelos loiros. Coisa estranha, o animal viu imediatamente a aparição e recuou, mas o cavaleiro nada viu e começou a bater-lhe para fazê-lo avançar. Tudo foi inútil, pois a fada não saiu do meio do caminho e o bicho recusou-se terminantemente a continuar. Trava-se uma luta entre os três; o cavaleiro acaba por ir esconder-se atrás duma moita, enquanto o bicho se roja diante da formosa aparição.

Ninguém percebeu nada, até que a tia Atkinson perguntou:

- Não seria o moleiro e o seu burro, digam lá? Eram, realmente; a fada, depois de responder

que sim, retirou-se, sorrindo, satisfeita do cumprimento que ouviu.

Alguém murmurara: "Rosa é uma linda fadazinha".

A cena que se seguiu era tirada da história Os Meninos Perdidos na Floresta. Jamie e Pokey apareceram de mãos dadas. Apanharam amoras, perderam-se, choraram e, por fim, deitaram-se no chão e morreram de olhos abertos, estatelados de costas. Foi uma cena verdadeiramente patética.

- Agora vêm aí os pássaros. Vou espreitar, porque os quero ver - ouviu-se murmurar um dos defuntozinhos.

- Oxalá não se demorem, porque estou deitado em cima duma pedra e as formigas atacam-me furiosamente- murmurou o outro.

Nesta altura apareceram os pintarroxos, com umas tiras encarnadas no peito, trazendo na boca folhinhas tenras, que deixavam cair sobre os dois pequeninos. Uma folha caiu mesmo em cima do nariz de Pokey e fez que esta espirrasse com tanta força que até as perninhas se levantaram ao ar. Jamie estremeceu assustado e as aves lá se foram, saltitando como tinham vindo.

Depois de várias discussões lá se descobriu do que se tratava.

O pano voltou a erguer-se para deixar ver Annette Snow na cama, muito doente: Miss Jenny mostrava-se aflita. Era, sem dúvida, a mãe. Depois apareceu Mac, fazendo de médico, e todos acharam muita graça porque trazia um relógio enorme e mostrava-se muitíssimo importante, fazendo perguntas absurdas. Prescreveu um remédio com um nome impossível de soletrar e pediu vinte dólares pela consulta.

Deram o remédio à menina e seguiram-se tais agonias que a pobre mãe correu a chamar a velhinha "Sabe-Tudo". Apareceu, então, uma criaturinha idosa com uma touca e uns óculos na ponta do nariz, trazendo um molhinho de ervas debaixo do braço. Imediatamente começou a explicar as virtudes dessas ervas e a aplicá-las da maneira mais estranha. Cataplasma aqui, cataplasma ali, e um linda grinalda em volta do pescoço. Instantaneamente a menina moribunda se levanta e pede ervinhas guisadas para ela comer. A mãe, reconhecida, oferece cinqüenta dólares à velhinha. Esta, porém, recusa, ofendida, e declara que veio como vizinha e não precisa de nenhuma recompensa.

Depois desta cena todos riram às gargalhadas, pois Rosa imitava admiràvelmente a tia Atkinson, que tinha a mania de aconsenhar ervas para tudo. Ninguém mais apreciou a brincadeira do que a própria. As crianças, animadas com o êxito, prepararam um final de arromba.

- O motivo desta charada vai ser um provérbio - disse Rosa, que desejava distinguir-se aos olhos do tio.

Sentou-se junto de Mac e conversaram durante muito tempo. O pano esteve descido mais de cinco minutos. Em certa altura, um dos pequenos veio Pregar na cortina uma folha de papel pardo com um relógio desenhado, tendo os ponteiros a marcar quatro horas. Queria isto dizer apenas que já eram quatro horas da tarde. Daí a instantes, quando o público já se compenetrara do facto, aparece rastejando uma enorme serpente embrulhada num in" permeável. Devia tratar-se duma minúscula lagarta, mas, como sabem, lagartas e serpentes têm a mania de rastejar da mesma maneira. Então ouviu-se um grito singular e apareceu uma ave com um xaile a fazer de asas e uma popa de ervas no alto da cabeça, que ataca o verme. Ninguém poderia dizer exactamente que espécie de ave seria; tinha, em todo o caso, uns olhos muito espertos e a voz era uma espécie de cacarejo singular. O verme pretende escapar-se, a ave insiste, e acaba por dar cabo dele, supõe-se que às bicadas, e lá carrega com ele, embora com bastante dificuldade.

- O passaroco apanhou um verme maior do que ele - comentou, rindo, a tia Jessie, enquanto as crianças batiam palmas, entusiasmadas pela maneira como a pantomima fora representada.

- O motivo desta pantomima é um provérbio de que o tio gosta muito - disse Rosa, retirando o seu disfarce de verme.

- Percebeu-se perfeitamente; que mais temos?

- perguntou o Dr. Alec, sem fazer a menor idéia de qual seria o provérbio, mas para não a desconsolar.

- Agora os pequenos vão representar um incidente da vida de Napoleão; os mais miúdos vão gostar imenso - informou Mac, condescendente.

Aparareceu então uma tenda armada a meio do palco. De um para outro lado passeia uma sentinela que informa o público de que está debaixo de uma tempestade enorme, que já nesse dia andou léguas e léguas e que se sente a cair de sono. Pára, encosta-se à espingarda e começa a cabecear: vai caindo até que fica estendido no chão ao lado da espingarda. Nesta altura entra Napoleão. Traz um chapéu de cozinheiro, um casaco cinzento, botas altas e uma expressão bélica. O autor é Freddy Dove, que costuma sempre cobrir-se de glória, quando representa papéis destes. Toma a cena com uma atitude verdadeiramente napoleónica.

É evidente que está imaginando extraordinárias façanhas - atravessar os Alpes, incendiar Moscovo, quem sabe mesmo se meditando já na batalha de Waterloo? Seja como for, era uma figura cheia de majestade. De repente, repara no soldado adormecido e exclama indignado: "Adormeceu no seu posto! Merece pena de morte!" Agarra na espingarda, resolvido a fazer justiça por suas mãos, como é uso dos imperadores, mas ao olhar para o soldado sente-se comovido. Quem não teria pena do pobre soldadinho que era Jack com um grande bigode colocado sobre a sua boquinha rosada e infantil? Qualquer Napoleão teria pena de um soldadinho assim. Napoleão exclama: "Pobre rapaz, estava a cair de sono!" Agarra na espingarda e, generosamente, faz de sentinela. Dali a nada o soldadinho acorda, vê o que aconteceu e considera-se perdido. O imperador, porém, entrega-lhe a arma e, com um sorriso indulgente, diz: "Sé valente, sé vigilante e recorda-te de que as pirâmides estão a olhar para ti". Com estas palavras sai, deixando o pobre magala muito direito, mal refeito ainda do susto, mas disposto a morrer por ele. Adivinha-se isso na expressão do seu rosto infantil.

Os aplausos que se seguiram a esta cena foram indescritíveis. Subitamente, ouviu-se um baque e um grito. Todos correram para uma pequena queda de água que havia perto. Avistaram Pokey dentro de uma lagoazinha e Jamie mesmo ao pé. A menina caíra porque escorregara, e Jamie, muito cavalheirescamente, lançara-se à água para a salvar. Estavam ambos dentro de água a nadejar, meio assustados, meio divertidos com o inesperado do banho.

Rosa tomou parte em todos os divertimentos, sem mostrar quanto lhe doía um tornozelo. Contudo à tarde, desculpou-se e não tomou parte nas brincadeiras, vindo sentar-se junto do tio muito alegre. Contou-lhe que tinha brincado muito com os pequenos, que subira às árvores, que correra muito, etc. Coisas que teriam aterrado as tias se tivessem assistido.

- Não me importa que as tias protestem desde que o tio não se importe - respondeu Rosa, quando o Dr. Alec lhe disse que as tias ficariam aterradas quando soubessem.

- Acho bem essa independência, mas receio que daqui a pouco também não faças caso daquilo que eu te disser - observou o Dr. Alec - e depois não sei o que será de nós.

- Isso não. O tio é o meu tutor e pode fazer de mim o que quiser - disse Rosa, sorrindo, enquanto ele, rindo também, acrescentava:

- Palavra de honra, Rosa. Receio que me aconteça como ao domesticador de elefantes. Achou muita graça ao elefantezinho e resolveu domesticá-lo. O elefante, porém, cresceu e, por fim, já podia mais do que ele. Estou a ver que me sais uma mulher de vontade e isso, às vezes, cria dificuldades a um pobre tio que para mais é tutor!

O Dr. Alec foi distraído da sua cômica aflição pelos pequenos que executavam uma contradança com lanterninhas acesas na mão. Vinham em filas pelo jardim adiante. Foi uma linda surpresa.

Quando Rosa se foi deitar viu que o Dr. Alec não se esquecera dela. Sobre a mesinha de cabeceira encontrou duas miniaturas muito delicadas dentro de um estojo de veludo. Os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas: representavam sua mãe e seu pai.

Rosa ajoelhou e, pegando no estojozinho, disse:

- Tentarei que gostem de olhar para mim, pela maneira como me vou comportar.

Foi esta a prece que Rosa fez na noite dos seus catorze anos.

Dois dias depois, os Campbells regressavam a casa.

Iam mais numerosos do que tinham vindo. Além do Dr. Alec, que agora os acompanhava, ia também Cometa, o bichano de Rosa. Instalaram-no muito bem dentro dum cesto, com uma garrafa de leite, algumas minúsculas sanduíches e um pratinho de boneca para comer. Não se esqueceram tão pouco de forrar o palácio com um pedaço de tapete para ele se recostar. Fez a viagem muito bem, deitando a cabecinha de fora de tempos a tempos duma maneira engraçadíssima.

Muitos beijos, muitos adeuses e põem-se a caminho. Nesta altura, aparece, correndo, a tia Atkinson a trazer umas empadazinhas para comerem durante a viagem.

Novos adeuses, novos beijos, e lá iniciam a viagem pela segunda vez. Nova paragem. Desta vez, são as pequenas Snow que reclamam os seus bichanos. Pokey metera-os, às escondidas, dentro de uma malinha de mão. Os pobres gatos iam quase sufocados. Lá os entregaram às donas, com grandes protestos de Pokey que declara que os bichos preferem ir com ela para acompanharem o irmão.

Pela terceira vez se põem a caminho e, pela terceira vez, são forçados a parar. Tinham-se esquecido do farnel.

Finalmente, lá seguem. A viagem foi boa. Pokey brincou com o gatinho de maneira tão engraçada que foram considerados beneméritos, pois tornaram a viagem muito mais divertida.

- Rosa não está satisfeita por ir para casa porque lá não a deixam correr e saltar como na serra deixavam - disse Mac, quando estavam quase a chegar.

- Durante algum tempo não poderei realmente correr e saltar, porque torci um pé quando caí do cavalo. Tenho feito o possível por disfarçar, para não incomodar, mas dói-me bastante - disse Rosa, baixinho, enquanto desejava que o tio pegasse nela em vez de pegar nas malas.

Num instante, sem ela saber como, Mac agarrou-a ao colo e subiu com ela as escadas, colocando-a no sofá da sala da entrada, sem ela ter poisado o pé no chão.

- Não precisas de te servires do teu pé enquanto te doer. Posso perfeitamente contigo. E não faço mais do que corresponder àquilo que fizeste por mim. Nunca me esquecerei de quanto foste boa para comigo quando estive pior.

Mac saiu a chamar Phebe, cheio de boa vontade e de gratidão.

 

                       OS BRINCOS

Oentorse de Rosa foi sério, tanto mais que não fora de começo tratado. O Dr. Alec mandou que se conservasse estendida pelo menos uns quinze dias. Não lhe agradou nada esta ordem, mas não se atreveu a protestar. Os primos vieram vê-la e repetiram-lhe alguns dos sermões que lhe tinham ouvido a respeito da necessidade de ser-se paciente. Chegara a vez de Mac pagar a sua dívida de gratidão e soube fazê-lo. Como ainda não tinha autorização para ir para a escola, ficava-lhe muito tempo livre; fez muito boa companhia a Rosa. Poupava-lhe todos os passos e chegou mesmo a aprender a fazer meia, afirmando agradar-lhe esse passatempo, tradicional na Escócia. Todavia, fez Rosa jurar que guardaria segredo e, quando se aproximava algum dos primos, a meia desaparecia como por encanto.

Numa bela tarde de Outubro, estava Rosa no seu quarto com Jamie e Pokey instalados a um canto (tinham vindo para distraí-la) brincando às casinhas. Cometa e a boneca de Rosa eram os filhos.

Em certa altura, Phebe apareceu, trazendo um cartão de visita. Rosa, ao lê-lo, fez uma careta, riu, e acabou por dizer:

- Bem; tenho de aturar Anabela, não há outro remédio - e tratou de compor os caracóis.

- Como estás, minha amiga? Desde que chegaste tenho desejado ver-te, mas tenho tido tantas coisas a prenderem-me! Só hoje é que consegui. Estimo tanto encontrar-te sem mais visitas! Minha mãe disse que eu podia demorar-me; trouxe, por isso, a renda que ando a fazer. Vou mostrar-ta, é um encanto - disse Anabela, dando um beijo em Rosa; esta retribuiu com muito pouco entusiasmo, embora lhe agradecesse ter vindo vê-la e mandasse Phebe aproximar uma das cadeiras de braços.

- Que bom teres esta criadinha à tua disposição! - continuou Anabela, enquanto se instalava.

- Em todo o caso, deves sentir-te muito só e precisas, com certeza, de uma amiga íntima com quem possas desabafar.

- Tenho os meus primos - respondeu Rosa, um tanto irritada com os modos de Anabela.

- Santo Deus! Espero que não queiras para amigos rapazes tão crescidos. A Mama até nem acha próprio que andes tanto com eles.

- Considero-os como irmãos e as tias acham muito bem que nos demos bastante - replicou Rosa, com certa aspereza, porque achava que Anabela se estava metendo onde não era chamada.

- Em todo o caso, tenho a certeza que te faz falta uma amiga íntima. Gostava muito que passássemos a dar-nos mais, porque me zanguei com a minha melhor amiga, que era Hatty Mason. Tivemos uma discussão e deixei de lhe falar. Imagina que nunca me pagou uns caramelos que lhe emprestei e nunca me convidou para um chá. Ainda lhe perdoava os caramelos, mas o chá é que não pude perdoar-lhe, e resolvi runca mais lhe falar enquanto formos vivas.

- És muito amável mas não preciso realmente de nenhuma amiga íntima - respondeu Rosa, enquanto Anabela se mostrava grandemente indignada com a atitude de Matty Mason.

Com os seus botões, Anabela pensou que Rosa era "um desmancha-prazeres, mas, como gostava de ir a sua casa e com a família Campbell, que, no dizer da mãe, era uma das famílias mais importantes da terra, resolveu não mostrar que ficara vexada com a frieza de Rosa e continuar a conversa, limitando-se a mudar de assunto o mais depressa possível.

- Estás a estudar francês, segundo vejo. Quem te ensina? - perguntou, folheando Paulo e Virgínia, que se encontrava sobre a mesa.

- Não estou a estudar, porque leio o francês com a mesma facilidade com que leio inglês. O tio, às vezes, fala comigo em francês horas seguidas. Ele fala muitíssimo bem e afirma que tenho boa pronúncia.

Rosa não pôde impedir-se de mostrar certa atitude de superioridade, porque realmente o francês era uma das coisas em que se considerava forte. Não resistiu à tentação de se mostrar superior a Anabela. pelo menos naquele ponto.

- Muito bem! - comentou Anabela, um tanto humilhada, porque sabia muito pouco de francês.

- Tenciono ir ao estrangeiro com o tio daqui a um ou dois anos e ele considera muito importante saber línguas, para a viagem ser proveitosa. A maior parte das raparigas, quando saem da escola, falam muito mal francês e isso é um aborrecimento se têm de viajar. Se quiseres que te ajude a aprender, tenho muito prazer nisso. Provavelmente não tens ninguém que converse contigo lá em casa.

Embora Anabela tivesse aspecto de uma boneca de cera, possuía, em todo o caso, dentro de si qualidades e defeitos, e não gostou nada da maneira como Rosa estava a falar. Considerou-a, mais do que nunca, insuportável, mas não soube o que havia de responder. Tinha a impressão de haver recebido uma pancada na cabeça, a que, involuntariamente, levou a mão. Quando fez o movimento tocou nos brincos que trazia e isso consolou-a. De repente, soube o que havia de responder.

- Obrigada, não preciso porque lá na escola a professora é uma parisiense, e fala, com certeza, melhor do que o teu tio. - Dali a nada acrescentou:

- Que te parecem os meus brincos novos? O Papá deu-mos a semana passada e toda a gente os tem gabado.

Num momento, Rosa sentiu que ficara por baixo e Anabela teve a consciência disso. Rosa adorava coisas bonitas, e um dos seus maiores desgostos era não ter as orelhas furadas. Nunca se atrevera a fazê-lo, porque sabia que o Dr. Alec considerava isso uma estupidez. De boa vontade teria trocado todo o francês que sabia por um parzinho de brincos como os de Anabela. Juntando as mãos, exclamou:

- Acho-os tão lindos que me considerava a rapariga mais feliz do Mundo se o tio me deixasse pôr uns brincos assim.

- Não te importes com o que ele diz. Meu pai dizia o mesmo e agora gosta tanto de me ver com os brincos que já me prometeu oferecer-me uns com diamantes, quando eu tiver dezoito anos respondeu Anabela muito satisfeita.

- Tenho um par que a Mama gostava tanto de pôr! Têm pérolas e turquesas - suspirou Rosa.

- Então porque não os pões? Furo-te as orelhas num instante. Deixo-as com um fiozinho de retrós e, quando estiverem cicatrizadas, pões os brincos. Verás como o tio vai gostar de te ver.

- Já uma vez pedi ao tio que me deixasse furar as orelhas por ter os olhos vermelhos e ele riu-se de mim. Não é verdade que costumam curar as inflamações de olhos, furando as orelhas?

- Pois é. E os teus olhos estão bastante vermelhos. Deves furar as orelhas antes que piores disse Anabela, fitando os olhos claros de Rosa.

- Dói muito? - perguntou Rosa, assustada.

- Não, não dói nada. Parece uma beliscadura. Já furei muitíssimas orelhas. Levanta os cabelos e dá-me uma agulha comprida.

- Acho melhor pedir primeiro autorização ao tio - disse Rosa, quando tudo estava pronto para a operação.

- Ele proibiu-te de o fazeres? - perguntou Anabela, como um vampiro pronto a sugar o sangue de um inocente.

- Não; não proibiu!

- Então porque tens medo? acrescentou Anabela, agarrando na agulha.

Rosa deu-se por convencida e disse: "Fura", como teria dito: "Fogo!"

Anabela furou as orelhas à sua heróica vítima, que não disse mais nada, mas se fez pálida e ficou com os olhos cheios de lágrimas.

- Pronto. Deixas andar uns dias estes fiozinhos de retrós e pões todas as noites um poucachinho de creme. Daqui a uns dias já poderás pôr os brincos - disse Anabela, olhando vitoriosa para a menina que sabia falar francês mas que estava agora estendida no sofá, pálida como se lhe tivessem cortado ambas as orelhas.

- Dói imenso e tenho a certeza de que o tio não vai gostar - suspirou Rosa, cheia de remorsos.

- Promete-me que não dizes nada - acrescentou, aterrada, esquecendo os dois pequenos que tinham assistido à cena e eram possuidores de uns bons olhos e de óptimos ouvidos.

- Deus do Céu! O que será isto? - E Anabela deu um pulo, ouvindo muitas pessoas a subir as escadas e vozes falando todas ao mesmo tempo.

- São os primos! Esconde a agulha. Como estão as minhas orelhas? Vê-se? Não lhes digas - segredou Rosa, desejosa de esconder todos os vestígios da operação.

Os rapazes entraram em muito boa ordem, trazendo o produto da sua expedição. Tinham andado às nozes. Pagavam sempre tributo de semelhantes passeios à sua rainha, da maneira mais cavalheiresca.

- Apanharam tantas! Que grandes que são! Depois do lanche vai ser uma pândega - disse Rosa mergulhando as mãos num grande saco que os primos lhe apresentaram. Estes tinham-se posto à vontade, depois de terem cumprimentado Anabela.

- Apanhei estas propositadamente para ti, Rosa. São só para ti - disse Mac, apresentando uma caixinha cheia de avelãs.

- Só queria que visses, quando ele andou a apanhá-las. Partiu-se um ramo da árvore e teria caído cá em baixo se o Archie não o aparasse observou Steve, sentando-se graciosamente junto da janela.

- Era escusado dares à língua, "Jaiiota" replicou Mac, sentando-se num braço do sofá. Era o lugar privilegiado que só ele tinha o direito de ocupar.

- Hei-de dar à língua sempre que me apetecer

- retorquiu Steve, sem sombras de respeito pelo irmão mais velho.

- Está a escurecer e a Mama não gosta que eu chegue tarde a casa - disse Anabela, levantando-se a toda a pressa, embora tivesse esperança que insistissem com ela para assistir ao partir das nozes e avelãs.

Ninguém disse nada e, enquanto ela se arranjava para sair, os rapazes iam empurrando uns para outros o penoso dever de acompanhá-la a casa. Nenhum deles sentia heroicidade bastante para se oferecer. Mesmo Archie, que era sempre bem educado, disse para Chalie, esgueirando-se ambos para a sala ao lado:

- Decididamente não vou. Deixemos o Stéve mostrar que é bem educado.

"Demônios me levem se eu for!" - pensava consigo o "Príncipe", que detestava Anabela, porque esta tinha a mania de querer namoriscá-lo.

- Então vou eu. - E, com grande espanto dos rapazes, o Dr. Alec, que entrara naquele instante, ofereceu os seus serviços.

Chegou, porém, tarde de mais, porque Mac, obedecendo a um olhar de Rosa, tornara-se a vítima voluntária e preparava-se para acompanhar Anabela.

- Nesse caso, visto que não sou preciso, vou levar esta outra gentil dama lá para baixo para tomar chá connosco. Já acenderam as luzes da sala de jantar e o cheiro indica-me que as tias preparam qualquer petisco especial para nos obsequiarem.

O Dr. Alec ia pegar em Rosa ao colo, mas Archie e o "Príncipe" suplicaram a subida honra de transportar a menina numa cadeirinha. Rosa consentiu, receosa de que o tio notasse os fiozinhos de retrós que lhe pendiam das orelhas. Os pequenos fizeram uma cadeirinha com as mãos e tranportaram-na, seguidos pelos outros que formavam o acompanhamento.

O chá, nesse dia, fora servido mais cedo, para Jamie e a sua bonequinha poderem assistir e terem ainda tempo de partir umas quantas nozes, antes de virem buscá-los às sete horas.

Acabado o chá, as nozes foram colocadas em cima da mesa e todos, grandes e pequenos, iniciaram o trabalho de parti-las e descascá-las.

- Rosa, podias contar-nos uma história, enquanto trabalhamos - propôs Mac, que sabia que sua prima era uma autêntica Scheherezade.

- Precisamos que o nosso trabalho seja recompensado - acrescentou Charlie.

- Muito bem. Por acaso recordo-me agora de uma história cuja moral pode ter algum proveito para vós todos. Pelo menos, para os mais pequenos

- respondeu Rosa, que gostava de contar histórias morais e instrutivas.

- Vamos a isso - disse Georgie.

Rosa começou, sem prever os resultados desastrosos que a história viria a ter para si própria.

- Em tempos que já lá vão, havia uma menina pequena que foi fazer uma visita a uma menina mais velha, que era muito amiga dela. Aconteceu que a menina maior estava aleijada num pé e não podia mexer-se. Tinha, por isso, junto de si um cestinho com uma porção de ligaduras todas muito bem enroladas e prontas a servir. A pequenina gostava muito de brincar com o cestinho e, um dia, imaginando que ninguém estava a olhar para ela, agarrou num dos rolos e meteu-o na algibeira sem pedir licença.

Nesta altura, Pokey, que estivera todo o tempo a olhar para cinco nozes que tinha muito bem guardadas dentro da algibeira, exclamou "Oh! ", como se, de repente, a história a interessasse imenso.

Rosa notou a exclamação da minúscula pecadora e continuou como se nada fosse, enquanto os rapazes piscavam o olho uns para os outros, logo que compreenderam a brincadeira.

- Mas dois olhos viram o movimento da menina. E de quem imaginam que eram esses olhos?

- Dois olhos - murmurou Pokey, impressionada, tapando o rosto com as suas mãozinhas gordas que não chegavam para cobri-lo.

Rosa continuou ainda, muito séria:

- Esses olhos eram os olhos de Deus. Deus, porém, não fez coisa alguma e preferiu esperar que a menina tivesse um rebate de consciência.

Realmente, a menina, que até ali estivera a brincar muito contente, assim que meteu o rolinho dentro da algibeira, ficou preocupada e nunca mais brincou como dantes. Dali a nada veio muito devagar e colocou o rolo no seu lugar; depois foi novamente brincar para o seu canto.

- A tonsciência atacou-a - murmurou uma vozinha contrita por detrás das pequeninas mãos.

- E porque é que a menina tiraria o rolinho, fazes idéia? - perguntou Rosa, percebendo que todos estavam interessados.

- Era um rolinho muito bem feito e a menina gostava muito dele - respondeu a vozita.

- Ainda bem que está tudo explicado. A moral da história é que a má consciência não deixa uma pessoa gozar das coisas. Porque está Pokey a esconder a cara? - perguntou Rosa, concluindo.

- Pokey tem muita vergonha - soluçou a pequenita, apoquentada.

- Rosa, é muito feio censurar-lhe assim os seus pequenos defeitos, diante de toda a gente. Tu não gostavas que te fizessem o mesmo - disse o Dr. Alec, distribuindo nozes e beijos, como prêmio de consolação.

Antes que Rosa tivesse tido tempo de dizer fosse o que fosse, Jamie que estivera todo o tempo sobre brasas, ergueu-se encrespado como um galinho-da-India e veio em defesa da sua querida boneca:

- Sei de uma coisa que tu fizeste, que ainda é mais feio, e vou já dizer o que é. Imaginas que nós não vimos, mas enganas-te. Até disseste que o tio não devia de gostar e pediste para ninguém dizer nada. Anabela furou-te as orelhas para poderes usar brincos. Isto é muito pior do que tirar um pedaço de linho velho. Estou muito zangado contigo por teres feito a minha Pokey chorar.

O discurso de Jamie produziu tal efeito que, instantaneamente, todos se esqueceram de Pokey, e Rosa teve a certeza de que chegara a sua hora.

- O quê? O quê? - exclamaram, em coro, os rapazes, largando aquilo que estavam a fazer e precipitando-se para observar as orelhas de Rosa. Esta encolheu-se toda como se fosse um caracol dentro da casca.

- Agora vai aparecer-nos com pássaros, com gaiolas, com cestos, com porquinhos, com tudo quanto lhe der na cabeça, pendurado nas orelhas, como as outras raparigas costumam fazer! - exclamou um dos primos.

- Tenho a certeza de que não será tão parva como costumam ser as outras raparigas - respondeu Mac, num tom que convenceu Rosa, que baixara uns quantos pontos na estima desse rapaz.

- Não deviam deixar entrar cá essa parva da Anabela. Só faz disparates - comentou Charlie, desejoso de atirar-se à pequena como um cão enorme a um gatinho travesso.

- Que lhe parece, tio? - perguntou Archie que, como mais velho, se julgava obrigado a manter a disciplina a todo o custo.

- Sinto-me muito surpreendido; entretanto ela é uma rapariga, tem todo o direito a ter as suas vaidades, como as outras - respondeu o Dr. Alec, suspirando desconsolado, como se esperasse que Rosa fosse uma espécie de anjo superior às tentações terrenas.

- Que lhe vamos agora fazer, meu tio? - perguntou Georgie, desejoso de aplicar uma punição qualquer àquela vaidade feminina.

- Como parece gostar de ornamentos, talvez seja melhor furar-lhe também o nariz e colocar-lhe aí uma argola. Devo ter guardadas algumas argolas das ilhas Fidji, que vêm mesmo a propósito para esse fim. Vou ver se as encontro. - E, deixando Pokey entregue a Jamie, o Dr. Alec saiu da sala como se fosse realmente buscar esses ornamentos.

- Muito bem, muito bem! - exclamaram os rapazes, como se na realidade lhe fossem furar o nariz, dançando em volta de Rosa como verdadeiros selvagens.

Rosa não podia fugir e só tinha o recurso de tapar o narizinho e de gritar:

- Socorro, tio Alec, socorro!

Ele veio realmente socorrê-la e, quando Rosa se sentiu abraçada pelo tio, mostrou-se tão humilhada que os rapazes, depois de troçarem ainda algum tempo, resolveram perdoar-lhe e atirarem todas as culpas para Anabela. O próprio Dr. Alec foi até ao ponto de oferecer-lhe duas argolinhas de oiro para pôr nas orelhas, em lugar da famosa argola para o nariz. Esta maneira de proceder provou a Rosa que, se ela demonstrara a frivolidade do seu sexo, deixando furar as orelhas, o Dr. Alec mostrara a inconstância do seu, ajudando exactamente numa coisa que, em princípio, condenava.

 

               COZER PÃO E FAZER CASAS

EM que está a minha filha a pensar, aqui sozinha, com um ar tão solene? - perguntou o Dr. Alec, entrando no escritório, certa tarde de Novembro, e encontrando Rosa muito pensativa.

- Tio, gostava de ter uma conversa séria consigo, quando tiver tempo de me ouvir - exclamou Rosa, como se não tivesse ouvido a pergunta.

- Estou às tuas ordens e inteiramente disposto a ouvir-te - respondeu o tio muito amàvelmente.

Quando Rosa se dava ares de pessoa grande, o Dr. Alec nunca deixava de tratá-la com uma seriedade que a encantava.

Sentou-se ao lado dela; Rosa disse:

- Tenho estado a pensar na profissão que devo escolher e gostava que o tio me desse a sua opinião.

- Na profissão? - perguntou o Dr. Alec, tão admirado que Rosa se apressou a explicar:

- É verdade, o tio não ouviu uma conversa que uma vez tivemos quando estávamos na serra. As senhoras iam muitas vezes sentar-se no pinhal a coser, entretendo-se a conversar. Eu gostava muito de ir para o pé delas. A tia Atkinson era da opinião de que todas as pessoas deviam ter uma profissão, qualquer coisa que lhes pudesse dar para viver, porque mesmo as pessoas ricas podem empobrecer. As filhas delas eram muito desembaraçadas e sabiam lançar mão de infinitas coisas. A tia Jessie achou que ela tinha razão. Eu, quando vi quanto essas meninas eram independentes e felizes, desejei ter também uma profissão. Nessa altura, não me importaria mais com dinheiros, embora goste de gastar.

O Dr. Alec ouviu esta explicação com um misto de surpresa e prazer e olhou para a sobrinha como se a considerasse, de repente, uma mulherzinha. Realmente, Rosa, nos últimos meses, crescera um bom pedaço e, se o Dr. Alec pudesse ver o que se passava dentro daquela cabecinha, teria ficado admirado: Rosa era uma dessas crianças que gostam de observar e de meditar sobre aquilo que vêem e que, de vez em quando, surpreendem as pessoas amigas com os comentários que fazem sobre isto ou aquilo.

- Acho também que a tia Atkinson tinha toda a razão e ajudar-te-ei a decidir, com grande satisfação - respondeu o Dr. Alec, muito sério. - Tens alguma preferência especial? Sentes, em ti, alguma tendência? É uma grande ajuda quando a pessoa tem uma preferência nítida.

- Não tenho preferência determinada e não creio, tão-pouco, possuir tendência nitidamente marcada. Nestas condições, parece-me que seria acertado pensar apenas no que fosse mais vantajoso; não considero a profissão propriamente como um prazer. Será antes uma segurança, se algum dia me encontrar em más circunstâncias - respondeu Rosa, como se no fundo desejasse ardentemente ficar pobre para exercer os seus dons.

- Uma coisa há que não é só indispensável a toda a rapariga bem educada, como excelente e utilíssima para quantas dela dependam, seja rica ou pobre. É uma coisa hoje em dia muito pouco apreciada e tida por antiquada, e é pena que tal aconteça. Devia fazer parte da educação de todas as raparigas; sei, por acaso, de uma senhora que te podia ensinar na perfeição.

- O que é - perguntou, Rosa encantada por encontrar uma ajuda cordial.

- Tornares-te uma boa dona de casa - respondeu o Dr. Alec.

- Pode considerar-se isso como uma profissão? - perguntou ela, um tanto desiludida, pois estivera acalentando muitos lindos sonhos.

- Sim, é uma profissão; é mesmo a profissão mais linda que a mulher pode aprender. Não será tão romântico como cantar, pintar, escrever ou ensinar, mas faz a felicidade de todos aqueles com quem vivam. Uma mulher deve saber realmente tratar da sua casa. Podes à vontade arregalar os olhos. O facto é que te vejo mais como uma boa dona de casa do que tratando de negócios pela rua. Não quer isto dizer que não cultives qualquer talento especial que possas ter; em todo o caso, considero indispensável, e faz parte duma boa educação, seres uma boa dona de casa. Espero que metas mãos à obra agora que já estás boa, felizmente.

- E quem é a senhora que me pode ensinar? - perguntou Rosa, impressionada com as palavras do tio.

- A tia Plenty.

- A tia Plenty - exclamou Rosa, admirada, pois sempre considerara essa senhora a mais insignificante de todas as tias.

- Sim, a tia Plenty. Desde que me entendo é ela quem tem dado a felicidade e o conforto a esta casa que habitamos. Não é uma pessoa elegante, mas é tão boa que haveria luto geral se nos faltasse. Talvez que nem todos sintam da mesma maneira, porque estas virtudes caseiras, tão sólidas, não estão em moda. Todavia, para mim, não há outras que se lhe comparem.

- E ela será capaz de ensinar-me a fazer as suas vezes? Gostava de saber tanto como ela e de vir a tornar-me igualmente boa - disse Rosa, com certo remorso de sempre haver considerado a tia Plenty uma pessoa banal.

- Se souberes aproveitar com as lições que ela te der, estou convencido que sim. Tenho a certeza de que se sentirá muitíssimo satisfeita por ver que alguém finalmente a aprecia. Deixa, pois, que ela te ensine tudo quanto sabe e serás como ela uma modesta e cuidadosíssima boa dona de casa. Verás mais tarde que são valiosas as suas lições. Poderás tornar feliz o teu lar.

- Mas, tio, por onde hei-de principiar?

- Falarei com ela. Ela e a Debby hão-de ensinar-te a cozinhar. É essa uma das coisas mais importantes.

- Também acho. Lá em casa, gostava muitas vezes de tentar, mas não tinha ninguém que me ensinasse, de modo que nunca consegui senão sujar os aventais. Acho imensa graça a fazer bolos. Mas o tio não está convencido de que a Debby nunca me deixará fazer qualquer petisco na sua cozinha?

- Virás cozinhar para a sala. Estou, porém, convencido de que basta que a tia Plenty dê as suas ordens. Entretanto, não te esqueças de que prefiro que saibas fazer bem pão, a fazer bolos maus. Se me ofereceres um pãozinho amassado por ti, fico mais satisfeito do que se me ofereceres uns chinelos bordados a matiz. Não quero aborrecer-te, mas juro que não deixo uma migalha do pão que me trouxeres.

- Que bom! Que bom! Venha daí tio. Venha combinar com a tia Plenty. Não faz idéia quanto vou gostar. Quero principiar imediatamente - exclamava Rosa, dançando em frente do Dr. Alec.

Dirigiram-se ambos para a sala onde a tia Plenty estava fazendo a sua malha, pronta a acorrer onde quer que precisassem dos seus serviços.

É inútil dizer quanto a boa senhora ficou satisfeita por reclamarem o seu auxílio e por ter de ensinar a Rosa as suas virtudes domésticas. Debby não protestou, pois estava habituada a obedecer a Miss Plenty e Phebe ficou satisfeitíssima porque este estado de coisas trazia Rosa para junto dela e animava a cozinha com a sua presença.

Para falar verdade, as duas tias mais idosas já algumas vezes tinham sentido que Rosa, toda absorvida pelo tio Alec, andava muito longe delas, embora tivessem por ela grande afeição. Entretanto, como o Dr. Alec é quem tinha as responsabilidades de tutor, havia deixado as coisas caminhar assim.

O tio Alec entendera que isso desgostara as pobres senhoras e encontrara agora um bom ensejo de remediar o mal. Rosa compreendeu bem quanto o tio era seu amigo, quando iniciou a apredizagem e o viu aparecer, de vez em quando, a certificar-se se ela se sentia bem escutando as observações da tia Plenty.

Fazia sempre grande festa aos petiscos que agora apareciam com freqüência na mesa. E sentia-se recompensado de tudo quanto fizera até ali, vendo Rosa corar de prazer com os seus elogios.

Levou algum tempo antes que aparecesse na mesa o famoso pão. Cozer pão não é nada fácil e a tia Plenty era muito metódica nos seus processos de ensino. Rosa foi primeiro fazendo bolos e biscoitos para se habituar. Finalmente, uma tarde, à hora do chá, surgiu numa salva de prata um lindíssimo pão. Phebe, quando o trazia na mão, não pôde deixar de dizer ao Dr. Alec:

- Não é verdade que está muito lindo?

- A minha filha fez este pãozinho? - perguntou o Dr. Alec, olhando para o pão, maravilhado.

- Sozinha, e sem nunca precisar de perguntar nada a ninguém - respondeu a tia Plenty, juntando as mãos com tal satisfação que não podia fazer elogio mais caloroso à sua disciplina.

- Estava convencida de que não levava o meu trabalho ao fim. Debby não me disse nada, embora sentisse cheiro a queimado, e quase que se ia tostando o meu rico pãozinho. Ao menos podia-me ter prevenido, embora não lhe tocasse. Não o fez porque diz que, quando se está cozendo pão, não se pode pensar em mais nada - explicou Rosa, suspirando, ainda aflita com o susto. - É de opinião que cada qual deve aprender à sua custa.

- Pois deve estar muito bom este pão - afirmou o Dr. Alec.

- Depois do desastre que me ia acontecendo, sentei-me em frente do forno e não arredei pé até estar pronto. Gostava que o tio provasse, para ver se estará bom.

- Não sei se o corte, se o meta debaixo de uma redoma, como se faz aos objectos preciosos.

- Que idéia, tio. Estragava-se e toda a gente troçaria de nós por eu me gabar de uma prenda tão antiquada. Prometeu comê-lo e tem de cumprir a sua promessa. Não digo que o coma todo de uma vez mas aos poucos. Quando se acabar, faço mais.

O Dr. Alec cortou uma fatia, comeu-a muito sério, depois levantou-se e, beijando Rosa na testa, afirmou:

- Minha filha, este pão está uma perfeição. Dá honra à discípula e à mestra.

- Realmente, não está mau-agradeceu Rosa instalando-se no seu lugar e procurando esconder uma das mãos, onde tinha uma grande queimadura.

Todavia o Dr. Alec viu e, depois do chá, insistiu em tratá-la para lhe aliviar a dor.

- A tia Clara disse que estou estragando as mãos, mas eu não me importo. É tão agradável ser ensinada pela tia Plenty! Entretanto, sabe o tio? há uma coisa que me aflige - declarou Rosa, em tom confidencial.

- Dize, minha filha. Gosto sempre muito de ouvir as tuas confidências.

- Sinto que a tia Peace também gostava de poder ensinar-me qualquer coisa e creio que já encontrei o que poderia ser. Ela, coitada, como não pode andar, sente-se muito só quando andamos cá por baixo pela cozinha. Vou pedir-lhe que me ensine a coser. Ela trabalha muito bem e sempre é uma coisa útil, para uma dona de casa, saber coser, não é assim?

- Deus te abençoe, minha filha, por teres tão bom coração. Outro dia, quando ouvi a tia Peace dizer que te via agora bastante menos, tinha pensado nisso, mas receei que fossem coisas de mais para aprenderes ao mesmo tempo. A boa senhora pode ensinar-te a bordar, mas gostaria, principalmente, que te ensinasse a fazer casas, creio que é aí que se percebe se uma senhora sabe ou não coser. Pelo menos, é o que tenho ouvido dizer. Dedica-te a fazer casas. Estou disposto a sacrificar todos os meus fatos, se precisares de praticar. Podes encher-me de casas e de botões.

Rosa riu e confessou que, realmente, era esse um dos seus pontos fracos. O Dr. Alec fez um novo fornecimento de roupas para Rosa ter onde exercitar-se, e dirigiram-se à tia Peace, pedindo que desse umas lições à sobrinha.

A tia Peace ficou tão enternecida com o pedido que arranjou imediatamente um lindíssimo cestinho de costura para a aluna.

Os dias de Rosa estavam agora muito cheios de ocupações. Pela manhã, andava pela casa com a tia Plenty, arrumando armários e despensas para que tudo estivesse em ordem, dirigindo a casa segundo a maneira tradicional. À tarde, depois de dar o seu passeio, instalava-se junto da tia Peace de agulha na mão, enquanto a tia Plenty, cujos olhos já não viam muito bem, se entretinha fazendo malhas e contando histórias antigas.

Era um lindo espectáculo ver o rostozinho colorido de Rosa no meio das duas senhoras de idade, aprendendo com muita boa vontade as lições que queriam dar-lhe. E, se a cozinha tinha atractivos para o Dr. Alec, quando Rosa se encontrava a trabalhar lá, a sala de costura não tinha menos. Era verdadeiramente irresistível. Muitas vezes vinha fazer companhia às senhoras e entretinha-as lendo alto.

- Veja, tio. Já lhe fiz umas quantas camisas de dormir e cada uma tem quatro botões. Repare nas casas - disse Rosa certo dia, algumas semanas depois de haverem começado as lições.

- Para provar-te como aprecio a maneira como estão feitas estas casas, deixa-me experimentar pregar alguns botões.

- O tio sabe pregar botões? - indagou Rosa, pasmada.

- Já vais ver.

- Será realmente capaz? - perguntou Rosa à tia Peace, vendo os ares de importância do Dr. Alec.

- É, sim. Há muitos anos, antes de ele embarcar, ensinei-lhe a pregar botões. Provavelmente, como era ele quem tinha de tratar das suas coisas, enquanto andava no mar, não terá perdido a prática.

O Dr. Alec tinha ido buscar uma caixa, donde retirou uma agulha e uma linha, e mostrou as suas habilidades.

- Pergunto a mim própria se haverá alguma coisa no Mundo que o tio não saiba fazer? - exclamou Rosa, num tom admirativo.

- Há uma coisa ou duas que realmente nunca consegui - respondeu ele, risonho.

- Gostava de saber o que são essas coisas.

- Nem sei cozer pão, nem fazer casas, minha senhora.

 

                     BONS NEGÓCIOS

ESTAVA um dia de chuva. Pela tarde, quatro dos rapazes encontravam-se na "Livraria", como Jamie costumava chamar ao quarto de estudo em casa da tia Jessie. Will e Georgie haviam-se instalado num sofá, lendo romances, de aventuras. Archie estendera-se numa fofa poltrona, rodeado de revistas. Charlie mantinha-se de pé, meditando.

Charlie e Archie, lamento muito ter de dizê-lo, estavam ambos fumando.

- Parece-me que o dia de hoje nunca mais acaba - disse o "Príncipe", abrindo a boca o mais possível.

- Lê e cultivarás o teu espírito, meu filho respondeu Archie, espreitando por cima da revista que tinha na mão.

- Em vez de pregares moral era bem melhor que calçasses as botas e viesses dar uma volta. Estás para aí junto do lume como se tivesses cem anos.

- Não me diverte andar debaixo de água. Nesta altura, Archie ergueu uma das mãos animado, pois ouvira uma vozinha meiga falar no quarto ao lado:

- Os rapazes estão no quarto de estudo, tia?

- Estão, sim, minha filha. Estão desesperados por não haver sol. Vai ver se o substituis - respondeu a tia Jessie.

- É a Rosa - disse Archie, atirando com o cigarro para o lume.

- Porque deitas fora o cigarro? - perguntou Charlie.

- Não se deve fumar diante de uma senhora.

- É verdade. No entanto, não estou disposto a deitar fora o meu cigarrinho. E "Príncipe" apagou o cigarro num tinteiro vazio que lhe servia de cinzeiro.

Ouviu-se uma pancadinha discreta na porta e todos responderam em coro - "entre".

A cabeça de Rosa apareceu, muito corada por causa do frio.

- Se incomodo, vou-me embora - disse Rosa, hesitante.

No rosto dos primos havia qualquer coisa que ela estranhava e que, ao mesmo tempo, lhe provocava curiosidade.

- Nunca incomodas os teus primos - responderam os fumadores, enquanto os mais pequenos poisavam os livros e se aproximavam para cumprimentarem a prima.

Rosa curvou-se para lhes apertar as mãos e reparou no cigarro de Archie, que não se apagara e cheirava horrivelmente.

- Oh, que rapazes impossíveis! Porque se entretêm vocês com uma coisa destas? - exclamou a pequena com ar de censura.

- Onde está o mal? - perguntou Archie.

- Sabes tão bem como eu que tua mãe fica contrariada, quando te vê fumar. É um mau hábito que só serve para estragar a saúde e deitar dinheiro pela janela fora.

- Tolices! Todos os homens fumam. O próprio tio Alec, que tu consideras o modelo de todas as perfeições... - replicou Charlie secamente.

- Não; não fuma tal. Deixou de fumar e eu sei a razão disso - replicou Rosa vivamente.

- Realmente, desde que regressou, nunca mais vi o seu cachimbo. Deixou de fumar por nossa causa, não? - perguntou Archie.

- Pois deixou. - Rosa contou a cena e a conversa que tinha tido com ele.

Archie mostrou-se muito impressionado e afirmou:

- Não quero que o sacrifício tenha sido inútil, pela parte que me toca. Não me importo nada de deixar de fumar. Fumo por brincadeira, nada mais.

- E tu? - perguntou Rosa ao "Príncipe". Este, porém, que acendera novamente o cigarro.

para arreliá-la, abanou a cabeça e acentuou:

- Vocês, mulheres, estão sempre a pedir que deixemos de fazer isto ou aquilo, mas se lhes pedissem o mesmo não gostavam.

- Quando se trate de uma coisa tão prejudicial como o fumo, agradeço-te que me faças um pedido idêntico. Estou pronta a ceder.

- Pois muito bem. Estou disposto a deixar de fumar se te resolveres a fazer o que te vou dizer.

- Concordo desde já, se se tratar de uma coisa tão parva como o fumo.

- É ainda mais parva.

- Então prometo; o que é? - perguntou Rosa, preocupada com o que seria.

- Tira os brincos. - E Charlie riu maldosamente, convencido de que ela não era capaz de fechar o negócio.

Rosa, soltando um grito, levou apressadamente as mãos às orelhas, onde já trazia argolas de oiro.

- Oh! Charlie, não arranjarás outra coisa que me peças. Já tive tantas maçadas por causa disto e sabe-me tão bem trazer as minhas argolas!

- Então, traze quantas argolas te der na cabeça e deixa-me fumar em paz - replicou o rapaz arreliador.

- Não te contentas com qualquer outra coisa? implorou Rosa.

- Não - retorquiu.

Rosa ficou-se um momento a pensar numa frase que a tia Jessie um dia dissera: "Tens mais influência sobre os rapazes do que imaginas; se usares essa influência bem, ficar-te-ei grata para toda a vida". Aí tinha, pois, uma ocasião de obter de um deles uma coisa boa, a troco de uma pequena renúncia da sua vaidade. Não hesitou, embora lhe custasse muito.

- Nunca mais poderei tornar a pô-las, Charlie?

- Nunca. A menos que queiras ver-me recomeçar a fumar.

- Então nunca mais as usarei.

- Está fechado o negócio.

Charlie não estava nada convencido de que Rosa fosse capaz e ficou muito surpreendido quando viu a prima retirar das orelhas os seus queridos brincos e entregar-lhe um deles, corando. Dali a momentos, Rosa acrescentou com rneiguice e simpatia:

- Gosto mais dos meus primos do que destes brincos. Fica pois prometido, e saberei cumprir a minha palavra.

- Não tens vergonha, Charlie! Estás a obrigá-la a fazer um sacrifício quando ela tem toda a razão

- exclamou Archie, levantando a cabeça del cima das suas revistas, indignado.

Rosa, no entanto, estava decidida a mostrar que sabia usar da sua influência sobre os rapazes duma maneira vantajosa, de modo que disse muito depressa:

- Não; acho. que está assim muito bem. Toma lá a outra argola. Vais guardá-la junto do teu relógio para te lembrares. Eu não me esquecerei.

E Rosa acrescentou, voltando-se para Archie: Guarda tu a outra.

Vendo quanto ela estava sendo sincera, os rapazes obedeceram. Rosa estendeu uma das mãos a cada um deles e ficou fechado o contrato.

Neste momento, o Dr. Alec e tia Jessie entraram na sala.

- O que vem a ser isto? Estão a dançar uma quadrilha? - exclamou o tio Alec, admirado da situação em que os encontrava.

- Não, tio. Acaba de se formar a Liga Contra o Tabaco. Quer também fazer parte? - respondeu Charlie, enquanto Rosa ia para junto da tia e Archie dava cabo dos dois cigarros.

Quando explicaram o que se havia passado, os mais velhos ficaram muito encantados e Rosa recebeu agradecimentos tão calorosos como se tivesse prestado um grande serviço ao seu país. Na realidade, assim fora. Cada rapaz que cresce entregue aos seus maus hábitos, sem saber refrear-se, nunca pode vir a ser um bom cidadão.

- Gostava bem que Rosa também fechasse um negócio qualquer ali com o Will e com o Georgie. Estou convencida de que os romances de aventuras, que se entretêm a ler, são tão prejudiciais para pequenos da sua idade, como o fumo é para os mais velhos - proferiu Mrs. Jessie, sentando-se no sofá entre os dois leitores, que se chegaram para os cantos deste, para lhe darem espaço.

O Dr. Alec instalou-se numa poltrona e disse:

- Estou convencido de que os autores destas histórias imaginam fazer bem aos seus leitores dizendo: "Sejam desembaraçados e a riqueza virá", em vez de aconselharem: "Sejam honestos e a felicidade não tardará em chegar". Não estou falando sem conhecimento de causa, porque já tentei ler mais de uma dúzia destes romances que os pequenos tanto apreciam. Considero-os absolutamente prejudiciais.

- Alem disso, um livro deve ser convenientemente escrito e, nestas obras, a gramática sofre tratos de polé - afirmou Mrs. Jessie.

- A maior parte das vezes, tratam de pequenos que não são instruídos. Vendedores de jornais e engraxadores. Esses rapazes não podem falar bem disse Georgie, defendendo os seus livros favoritos.

- Mas os meus filhos não são engraxadores, nem vendedores de jornais e, à força de lerem frases mal construídas, e de ouvirem falar calão, acabarão por falar como esses pobres pequenos sem instrução. Não vejo vantagem em ler literatura desta. Que vantagem pode ter um pequeno decente em familiarizar-se com descrições de roubos, de prisões, etc.

- Mas, mãezinha, alguns destes livros não falam de roubos nem de prisões. Falam, pelo contrário, de rapazes que tiveram aventuras e viajaram por terras distantes - replicou Will.

- Bem sei, meu filho. Esses não serão tão prejudiciais. Em todo o caso, também não são vantajosos porque nos convencem de que é perfeitamente natural rapazes de dezassete ou dezoito anos comandarem navios e cobrirem-se de glória. Isso dá uma idéia muito falsa das realidades da vida. A vida é feita de esforços contínuos e prolongados. Não é feita de momentos excepcionais. Num destes livros o protagonista é um simples soldado, pois tem aventuras tão extraordinárias que chegariam para cobrir de cabelos brancos a cabeça de qualquer mortal. Por fim, é chamado à capital pelo próprio presidente que deseja conhecê-lo. Mesmo quando o protagonista é um pobre rapaz simples, nunca leva a sua vida como qualquer vulgar ser humano. Acaba sempre por ser adoptado por um milionário cuja carteira perdida o nosso herói encontrou e restituiu. como era sua obrigação. Não é verdade que é assim, meus filhos?

- Realmente os protagonistas destes livros são sempre felizes e desembaraçados - respondeu Will, olhando para uma das gravuras.

- Porque não hão-de estes livros tratar de coisas simples, dessas que acontecem todos os dias, e apresentar-nos pessoas com defeitos e qualidades como toda a gente? - continuou a tia Jessie, olhando para os filhos com a sua expressão suave e maternal.

- Há livros assim. tom Brown, por exemplo. Oxalá o autor voltasse a escrever outro livro como aquele - disse Archie.

- Mas falam-nos tantas vezes dos países exóticos e ensinam-nos tantos termos náuticos, estes livros! - exclamou Will.

- E de que maneira! - comentou Mrs. Jessie, que estivera lendo uma ou duas páginas do livro que tinha na mão.

- Chega mesmo a ser útil porque ensina a navegar - acrescentou Georgie.

- Achas que sim? Então, podes talvez explicar-me esta manobra de que fala aqui o autor - pediu Mrs. Jessie, indicando certo parágrafo que acabara de ler.

- Podia, se não tivesse vergonha do tio, que sabe muito mais do que nós - respondeu Georgie, um tanto ofendido.

- Ah! Então é por isso que vocês se dirigem sempre a mim, como se eu fosse um navio. Esta manhã, quando saímos da igreja, havia imenso vento. Sabem o que elas me disseram? "Colhe as velas, priminha, colhe as velas. Assim vais mareando à boíina". Nem mais nem menos - retorquiu Rosa, rindo.

Os rapazes responderam que só queriam dizer com aquilo que era melhor ela apertar o casaco.

Mrs. Jessie passou um braço por detrás das costas de cada um dos pequenos, e disse, muito meiga:

- Oiçam, meus filhos, se vocês gostam de navegar, dêem passeios de barco. Vão prometer-me que, durante um mês, param com essas leituras.

- Oh, Mãezinha, não podemos ler nem um só livro destes de que tanto gostamos? - perguntou Will, aterrado.

- Ao menos deixe-nos acabar o que temos começado - pediu Georgie.

- Os manos deitaram fora os cigarros a meio, vocês terão de fazer o mesmo aos livros. Não hão-de querer ficar atrás, nem hão-de querer ser menos obedientes a um pedido da vossa mãe, do que eles foram a um pedido de Rosa.

- É claro que não. Tem de ser, Georgie disse Will para o irmão.

Georgie suspirou e pensou com os seus botões que, mal acabasse o mês, pegaria imediatamente no livro.

- Vais ver-te aflita, Jessie. Tens de arranjar leituras que interessem estes pequenos que, até agora, se alimentaram de romances de aventuras. É como substituir compota de medronho por fatias de pão com manteiga - interveio o Dr. Alec, divertido.

- Recordo-me de ter ouvido o Avô dizer que o amor pelas boas leituras é a melhor salvaguarda que um homem pode ter - afirmou Archie, olhando para as estantes que forravam a parede.

- Pois sim, mas, hoje em dia, há pouco tempo para ler. O tempo é pouco para ganhar a vida - replicou Charlie, querendo mostrar grande senso prático.

- Esse amor ao dinheiro é uma das características americanas, infelizmente. Por ele se abandona honra e honestidade. Só criaturas superiores como Agassiz tem a coragem de afirmar: "Não posso perder tempo a enriquecer" - retorquiu Mrs. Jessie, tristemente.

- A mãe gostava de nos ver pobres? - pergutou Archie, admirado.

- Não, meu filho, e nunca serás inteiramente pobre desde que possas trabalhar. Receio, porém, essa riqueza e as tentações que lhe andam ligadas.

Meus filhos, tremo só de pensar no momento em que terão de sair de junto de mim; sinto partir-se-me o coração só com o pensamento de que posso vê-los falhar na vida. Preferia ver-vos mortos.

Mrs. Jessie disse isto tão comovida que lhe faltou a voz, ao dizer as últimas palavras, e abraçou as duas cabeças loiras que tinha junto de si. Os dois pequenos chegaram-se a ela e Archie proferiu em um tom resoluto:

- Não posso prometer-lhe, Mãe, vir a ser um Agassiz, mas prometo-lhe, com a ajuda de Deus, manter-me sempre um homem honrado.

- Nesse caso, sinto-me satisfeita - disse Mrs. Jessie, apertando a mão que o filho lhe estendia e dando-lhe um beijo cheio de confiança.

- Não acredito que possam vir a fazer-se más pessoas, tendo uma mãe assim, tão amiga e tão cheia de confiança - murmurou Rosa, comovida com a cena.

- Terás também de ajudar a fazer deles uns homens às direitas. Quando penso nas tuas argolas, considero-as as jóias mais valiosas que jamais existiram - disse o Dr. Alec olhando para Rosa, cheio de ternura.

- Sinto-me tão contente por saber que o tio pensa que posso servir para alguma coisa. Especialmente que posso ser útil à tia Jessie. Ela tem sido tão boa para comigo!

- Parece-me que estás pagando essa dívida de gratidão. Quando as raparigas estão dispostas a sacrificar as suas pequenas vaidades e os rapazes os seus viciozinhos, seguem o bom caminho e fortalecem-se mutuamente. Continua a trabalhar, minha filha, e a ajudarás esta boa mãe a manter os seus filhos no caminho direito, como convém.

 

                 A MODA E A FISIOLOGIA

DESCULPE incomodá-lo, Sr. Doutor, pareceu-me preferível vir preveni-lo, do que ouvir Míss Rosa dizer que não tinha coragem de aparecer-lhe, pois sabia muito bem que o Sr. Doutor não havia de gostar.

Phebe proferiu estas palavras abrindo a porta do escritório onde o Dr. Alec se instalara lendo um novo livro.

- Estão a tentar convencê-la, não? - perguntou de, pondo-se de pé, pronto a entrar em campo.

- com quantas forças têm; a menina até parece que já nem sabe para que lado se há-de voltar, porque o vestido é muito lindo e fica-lhe muito bem. Embora eu gostasse mais de vê-la como dantes respondeu Phebe,

- Mostras, com isso, ser uma rapariga de senso. Vou pôr as coisas no seu lugar e tu vais ajudar-me, se for preciso. Tens a certeza de que tudo se passa como me disseste?

- Creio que Miss Rosa se sente mascarada e que isso a diverte. Deve ser o que pensa. - Phebe, ao pronunciar estas palavras, desatou a rir.

- Que importa que ela pense isso, se está disposta a obedecer? -exclamou o Dr. Alec, e subiu as escadas de livro na mão, com um sorriso nos lábios.

No quarto de costura falava-se tanto que ninguém ouviu o Dr. Alec abrir a porta. A tia Plenty, a tia Clara e a tia Jessie olhavam muito absorvidas para Rosa enquanto esta se pavoneava diante do espelho, com o seu vestido novo, feito na última moda.

"Deus do Céu! Ainda é pior do que eu imaginava" - pensou o doutor com os seus botões olhando para a menina.

O vestido não tinha nada que o recomendasse, não era elegante, nem gracioso, nem bonito. Era feito em dois tons de azul. A saia era tão travada que mal a deixava andar e, por toda a parte, tinha folhos e franzidos. O corpo era uma jaquetinha da mesma fazenda ornada também com um folhinho. Por debaixo via-se um peitílho com infinitas rendas. Um amontoado de trabalho inútil, aquele vestido. A linha não era bonita e as guarnições eram excessivas.

O chapéu, de veludo, tinha uma pluma e urn molho de rosas. Rosa colocara-o de banda e os caracóis haviam sido penteados em forma de ralo e pesavam-lhe sobre o pescoço. Dir-se-ia um trajo de mosqueteiro; não era de forma alguma um fato para rapariga.

Para mais tinham-lhe atado um véu tão junto da cara que implicava com as suas longas pestanas. Era perfeitamente absurdo.

- Agora, sim. Está uma rapariga como as outras

- afirmava a tia Clara com grande satisfação.

- Sim, está vestida à moda, mas não me parece a minha querida Rosinha. As crianças devem vestir-se como crianças - respondia a tia Plenty, pondo os óculos como quem não acredita nos seus próprios olhos.

- As coisas hoje mudaram muito, minha tia, e uma menina, quando chega a esta idade, deve vestir-se como quem é. Tenho a certeza de que a Jessie prefere vê-la com este vestido a vê-la arranjada como andou todo o Verão. Não é verdade, Jessie?

- perguntou a tia Clara, esperando que, ao menos, Mrs. Jessie apreciasse o seu esforço.

- Minha amiga, para falar com franqueza, acho que é horrível, esta moda - respondeu Mrs. Jessie com uma simplicidade que deixou Rosa pasmada.

- Oiçam a voz do bom senso, oiçam-na, peço-Lhes-disse uma voz que fez as senhoras darem um pulo.

Rosa estremeceu e levou a mão ao chapéu, enquanto a tia Clara se apressava em dizer:

- Não era de esperar que gostasses, Alec. Todavia, não te considero um bom juiz nestas coisas. Tomei pois a liberdade de vestir esta pequena convenientemente, para poder sair com ela. Evidentemente que, se tu não quiseres, ela não põe o seu vestido até passar aquele ano em que prometemos não interferir e deixá-la inteiramente a teu cargo.

- Dize-me cá: isto é um fato de Inverno e de rua? - perguntou o Dr. Alec. - Ninguém dirá que é cômodo para andar e ainda menos será para proteger do frio. Dá uma volta e deixa-me admirar-te.

Rosa procurava andar com o seu à-vontade natural, mas não conseguia. A saia era tão apertada que mal a deixava mover as pernas e as botas davam-Lhe um péssimo andar.

- Ainda não estou habituada-explicou ela, toda vaidosa, dando mais uns passinhos.

- Imagina que um cão se lembra de correr atrás de ti? - observou o tio Alec com garotice.

- Podia perfeitamente fugir - respondeu Rosa tropeçando. Os atacadores das botas rebentaram, ela atrapalhou-se e caiu, ficando o seu lindo chapéu às três pancadas. Todos riram tanto, e Rosa mostrou-se tão divertida que a própria tia Clara desatou também a rir.

- Sim senhor, vejo que é muito prático este fato de passeio. Não deixa andar, mas deixa, em compensação, apanhar frio no peito e no pescoço. Decididamente, Clara, este fato não tem ponta por onde se lhe pegue. Nem bonito é! - exclamou o Dr. Alec. ajudando Rosa a tirar o véu. E acrescentou: - Isto também é uma coisa óptima; não tardará que tenhas de ir consultar um oculista.

- Então este vestido não é bonito? - perguntou a tia Clara. - Muito pode o mau gosto masculino. É óptima esta seda, e as plumas são autênticas penas de avestruz. Sem falar do regalo, que é de arminho. Onde é possível arranjar um vestido mais próprio para uma rapariga?

- you dizer-to, quando Rosa me fizer o favor de retirar este disparate - respondeu o doutor muito sério.

- Alec, não é possível. Protesto. Não posso ver esta criança sacrificada às tuas excentricidades disse Mrs. Clara jntando as mãozinhas, numa grande aflição.

Logo que Rosa saiu do quarto, o Dr. Alec acrescentou:

- Vão fazer-me o favor de meter todas essas trapalhadas em sítio que Rosa não torne a vê-las. Depois, reparando em qualquer coisa que Mrs. Clara procurava ocultar: - O que vem a ser isso?

- É um espartilho que eu trouxe para experimentar. Rosa está engordando bastante e tenho a impressão de que é preciso remediar esse mal. Se não se lhe açode já, será muito tarde para. que lhe possamos dar remédio - respondeu Mrs. Clara muito convicta.

Nesta altura, o doutor revoltou-se:

- Sim, felizmente está engordando, e há-de continuar. A natureza sabe melhor do que nós como se molda um corpo de rapariga. Minha boa Clara, dá-me a impressão de que não estavas em ti quando pensaste meter o corpinho de Rosa dentro de uma coisa destas. - E o Dr. Alec atirou com o espartilho para cima do sofá com ar ofendido.

- Não sejas absurdo, Alec. Hoje já se fazem espartilhos tão bem feitos que não incomodam absolutamente nada. É uma coisa que toda a gente usa. Até são aconselháveis para as crianças. Endireitam-lhes as costas - afirmou Mrs. Clara, defendendo o seu insensato ponlo de vista.

- Bem sei; ficam deformadas para toda a vida, essas pobres crianças, como as mães já ficaram. Só te digo uma coisa, se sei que Rosa usa espartilho, o menos que faço é atirá-lo para o lume. Podes depois mandar-me a conta.

Enquanto falava, o Dr. Alec peparava-se para pôr em prática o seu dito. Mrs, Jessie, porém, apanhou o espartilho no ar e disse:

- Não o atires para o lume, por favor. Tem muitas barbas de baleia e vai empestar tudo com um cheiro pavoroso. Deixa-me ver isso. Prometo dar-lhe um destino que não fará mal a ninguém.

- Barbas de baleia! E tiras de metal na frente, como se os ossos humanos não chegassem para manter o corpo de cada um! - resmungou o Dr. Alec mal disposto. Subitamente, mudou de expressão, ouvindo umas gargalhadas cristalinas. - Oiçam como as pequenas sabem rir. Não há música que valha esta que estamos ouvindo.

Do quarto de Rosa, vinham umas tais gargalhadas que, sem querer, todos sorriram.

- Qualquer nova surpresa tua, Alec, não? perguntou a tia Plenty com indulgência. Em vista dos bons resultados obtidos, já se iam habituando às excentricidades do Dr. Alec.

- Exactamente, minha tia. E considero esta a surpresa mais vantajosa. Como sabia que Clara

devia ter hoje pronto o seu vestido, pretendi rivalizar com ela. Rosa escolherá, e, se não estou em erro vai preferir o fato que me lembrei de oferecer-lhe. Enquanto ela não aparece vou mostrar-lhes umas gravuras deste livrinho, para poderem apreciar o novo modelo. Agradou-me muito esta obra, porque sugere a maneira de se poder vestir uma mulher com bom gosto e sem trazer coisas que a incomodem e lhe façam mal à saúde. Desce a todos os pormenores. Peço-lhes que olhem com atenção e que me digam se não se sentiam aliviadas se pudessem abandonar esses horrores que trazem vestidos.

Enquanto falava, o Dr. Alec abriu o livro e mostrou uma gravura à tia Plenty. Esta pôs os óculos, olhou e disse muito ofendida:

- Valha-nos Deus! Parecem as camisas de dormir do Jarnie. Não pretendes que Rosa se vista assim. Nem eu consinto. Não é próprio duma menina.

- Tenho a certeza de que a minha boa tia consentirá quando entender as vantagens. Isto chama-se "combinação". Como vê, é uma peça toda ligada que Rosa poderá usar por debaixo dos seus vestidinhos, sem precisar de cintas que incomodam e não deixam trabalhar os músculos. Está a desenvolver-se e precisa de trazer o corpo à vontade. Além disso, se forem feitas de flanela, estas combinações aquecem e são confortáveis. Juro-lhe que, se Rosa se vestir assim, ficará para sempre livre de dores nas costas e de muitíssimas doenças que vocês, mulheres, se habituaram a considerar uma fatalidade do vosso sexo.

- Também não me parece nada próprio e tenho a certeza de que Rosa vai ser da mesma opinião.

Neste momento, Rosa apareceu à porta com grande naturalidade, envergando o seu vestido novo.

- Entra, minha filha, e deixa-nos admirar o teu novo modelo - disse o tio, bondosamente. enquanto a menina entrava rindo, muito divertida com a brincadeira.

- Realmente, não tem nada de especial. Entretanto, se Rosa se arranjar neste estilo, parecerá sempre uma colegial e ninguém olhará para ela - declarou a tia Clara, convencida da importância deste inconveniente.

- E ainda bem - replicou o tio Alec, esfregando as mãos. - Rosa parecerá aquilo que realmente é: uma menina modesta e inteligente que não precisa para nada que olhem para ela. Entretanto, estou convencido de que não deixarão de admirá-la todas as pessoas sensatas que prefiram a simplicidade a modas tolas. Vira-te, minha filha, deixa-me olhar bem para ti.

Realmente, não tinha nada de extraordinário. A' menina trazia um vestidinho castanho muito simples que vinha até ao cano das suas botas de salto raso. Na cabeça colocara um chapelinho de feltro. Como único ornamento o vestido tinha uma golazinha vermelha, e os cabelos, muito simplesmente penteados, em caracóis, vinham presos com uma fita de veludo, igual na cor do vestido. Era confortável e bonito.

- Como te sentes, Rosinha? - perguntou o Dr. Alec mais ansioso pela opinião dela do que por todas as outras opiniões juntas.

- Acho esta maneira de vestir um pouco extravagante, mas sinto-me quentinha e à vontade - respondeu Rosa gozando da vantagem de poder mover as pernas livremente como um rapaz, embora usando saias, como é próprio de uma menina.

- Agora já podes fugir dos cães se te atacarem.

- Pois posso, tio, e posso mesmo fazer isto disse Rosa, sentando-se nas costas do sofá como teria feito um dos primos.

- Estás a ver o resultado de vestires esta menina como um rapaz? Ficou logo com modos de garoto. Detesto estas modas. Não são nada femininas - exclamou Mrs. Clara.

- Esqueces-te de que, com o teu bom gosto, farás que estas modas sejam tão bonitas como outras quaisquer, com a vantagem de serem cômodas. A própria Mrs. Van Tessel as adoptou. O marido é que me disse, acrescentando que ela se sente muito melhor de saúde. Já anda de um para outro lado, e isso é importante para uma pessoa tão doente como ela sempre foi.

- Que estás dizendo! Deixa-me ver esse livro - e a tia Clara pôs-se a examinar com a maior atenção os novos modelos. Mrs. Van Tassel era considerada uma elegante.

O Dr. Alec olhou para Mrs. Jessie e ambos sorriram.

- E, pela primeira vez na vida, vou adoptar uma moda antes da Clara. Já mandei fazer um vestido assim; dentro de muito poucos dias ver-me-ão acompanhar Rosa e os pequenos no jogo dos quatro cantinhos - disse Mrs. Jessie sempre sorrindo.

Entretanto, Rosa tirara o chapéu e descrevia à tia Plenty as suas roupas interiores.

- Muito rimos, eu e a Phebe, enquanto me vestia! O corpete e as calças são pegados. As meias são compridas e é tudo tão quentinho! Tão confortável! Peço à tia que faça por habituar-se. O tio Alec sabe melhor do que nós o que faz bem ou mal à saúde. Era capaz de andar com uma mala às costas se ele me dissesse que isso fazia bem.

- Não peço semelhante coisa. Só desejo que compares os dois fatos que hoje vestiste e digas depois qual preferes. Deixo isso ao teu critério respondeu o Dr. Alec, de antemão seguro da preferência.

- Prefiro este, tio. O outro é muito lindo, mas tolhe-me os movimentos. Fico muito agradecida à tia Clara, mas prefiro este.

Rosa respondeu muito decidida, embora olhasse para o vestido que Phebe acabava de trazer, com certa pena. Era natural isso. A tia Clara suspirou, o tio Alec sorriu e acrescentou, muito contente:

- Obrigado, minha filha. Aqui tens um livro que te explicará por que te pedi isto. Ontem disseste-me que querias aprender qualquer coisa mais. Pois aí tens. Trata-se de uma coisa muito mais necessária do que o francês ou o governo da casa.

- O que vem a ser? - E Rosa pegou no livro que a tia Clara poisara com grande desdém.

Embora o Dr. Alec já tivesse quarenta anos, por vezes não desgostava de mostrar-se arreliador, como um rapaz pequeno; não pôde pois resistir à tentação de assustar a tia Clara sugerindo coisas fantásticas.

- Fisiologia, minha filha. Não gostarias de estudar medicina como teu tio? Quando ele morresse, substituía-lo. Se estiveres de acordo, amanhã mando armar o meu velho esqueleto.

Era mais do que Mrs. Clara podia suportar. Apressou-se a partir, muitíssimo perturbada com a idéia da moda nova e ainda mais por a pequena ir estudar medicina.

 

                 O ESQUELETO

ROSA aceitou o oferecimento do tio. Três dias mais tarde, a tia Myra veio fazer uma visita, pela manhã, e, ouvindo vozes no escritório, abriu a porta. Assim que viu o que se passava lá dentro, fechou a porta a toda a pressa, soltando um grito. O doutor veio cá fora ver o que tinha acontecido.

- Como podes perguntar o que aconteceu tendo junto de ti uma caixa que era mesmo um caixão e aquela coisa horrível que parecia rir-se para mim, quando abri a porta? - respondeu a tia Myra referindo-se ao esqueleto.

- Isto aqui é uma aula da Escola Médica e está-se fazendo justamente um curso para raparigas. Peço-te pois que nos dês a honra de entrar respondeu o doutor curvando-se atencioso.

- Entre, tia. É interessantíssimo - exclamou Rosa sorrindo, mesmo em frente do esqueleto.

- Que estás aí a fazer, minha filha? - perguntou a tia caindo numa cadeira, muito apoquentada.

- Estou aprendendo anatomia. Já sei que as costelas são doze fixas e que as restantes se chamam flutuantes porque não estão presas no peito. É por isso que é tão fácil uma pessoa apertar-se embora esteja esmagando o coração e os pulmões que se alojam - deixe-me ver como se chama... já sei... na caixa toráxica. - Rosa-reluzia de orgulho pelo seu grande saber.

- Parece-te uma boa idéia estares a meter estas coisas na cabeça de uma criança tão nervosa? Receio muito que lhe faça mal - afirmou a tia Myra, vendo Rosa contar as vértebras com a maior naturalidade.

- Acho, pelo contrário, que vai fazer-lhe bem. Interessa-a e ensina-a a dominar os nervos. Muitas mulheres são vítimas dos nervos porque são ignorantes e não têm nada em que pensar. É um horror fazer mistério de coisas tão naturais. Desejo que Rosa conheça bem o seu corpo, para saber respeitá-lo.

- E ela distrai-se com um estudo destes?

- Muito, minha tia. Tem-me interessado imenso. Imagine a tia que um simples pulmão comporta quantidades colossais de ar, e um pedacinho de pele deve ter aí uns dois mil poros. Compreende o cuidado que precisamos de ter com os nossos pumões e com a nossa pele, que é toda cheia de pequenas portinhas. E o cérebro, tio! Que coisa extraordinária! Estou desejosa de que o tio me mostre um manequim que tem, que se desarma aos pedaços. Só é pena que os órgãos desse manequim não possam trabalhar como trabalham nas pessoas.

A tia Myra olhava pasmada para Rosa, enquanto esta discorria com a mão familiarmente apoiada no ombro do esqueleto. As palavras do doutor tinham-na impressionado e via erguerem-se na sua frente as muitas boticadas que, durante toda a vida, havia ingerido, censurando-lhe tê-las tomado por ignorância e por não ter outra coisa em que pensar, até se tornar naquilo que hoje era: uma senhora doente, nervosa e infeliz.

- Pode ser que tenhas razão, Alec, mas não leves esses estudos muito longe. Uma mulher não precisa de saber muito acerca de tais coisas. Eu, pela minha parte, era incapaz de tocar numa coisa dessas; até sinto náuseas só de ouvir falar no funcionamento dos órgãos - comentou a tia Myra com um suspiro que partia o coração, e colocando a mão no peito.

- Não daria à tia algum alívio saber que o seu fígado se encontra do lado direito e um pouco mais abaixo do ponto onde lhe costuma doer? perguntou Rosa muito garota.

- Que me importa isso, minha filha? Todos havemos de morrer. Mais tarde ou mais cedo, por isto ou por aquilo, lá vamos - replicou a tia desanimada.

- Entretanto, prefiro saber de que doença morro e, enquanto por cá andar, gosto de divertir-me. Porque (não vem a tia estudar connosco? Tenho a. certeza de que havia de fazer-lhe bem, - E Rosa recomeçou a contar as vértebras com tal ardor que a tia Myra não se atreveu a dizer mais nada.

- Talvez tenhas razão em distraí-la o mais possível, durante o pouco tempo que há-de estar entre nós. Só te peço, Alec, que não a fatigues - murmurou a boa senhora indo-se embora.

- É exactamente o que procuro fazer - replicou o Dr. Alec, fechando a porta, impaciente. A tia, decididamente, exagerava.

Cerca de meia hora mais tarde, foram novamente interrompidos. Mac entrou e disse, divertido:

- Que vem a ser esta nova brincadeira?

Rosa explicou e Mac soltou um longo assobio, dando em seguida uma volta em roda do esqueleto. Depois observou:

- O nosso mano esqueleto parece-me muito interessante, mas pouco entendo do assunto.

- Não faças troça dele: quando esteve coberto de carne, era tão bonito como tu - replicou Rosa, defendendo o seu amigo com calor.

- Acredito, por isso prefiro manter-me tal qual estou. Vejo que estás muito atarefada, de modo que não deves ter tempo de fazer um pouco de leitura em voz alta para o teu velho amigo ouvir

- acrescentou Mac, cujos olhos estavam muito melhores mas não tinha ainda autorização de ler.

- Porque não tomas parte no curso? O tio explica-nos a ambos. Podíamos, por hoje, pôr de lado os ossos e tratar dos olhos que deve ter mais interesse para ti.

- Menina Rosa, não podemos andar a salutar de umas coisas para outras. Assim não aprende nada - observou o Dr. Alec. Rosa porém, apontou para Mac, e segredou:

- O tio não viu que ele hoje está mal disposto? Temos de distraí-lo. Não se importe comigo nesta ocasião.

- Muito bem; vamos começar a lição -disse o doutor, dando uma pancadinha na mesa.

- Senta-te aqui. Assim podemos ambos ver as gravuras e, se te sentires fatigaclo, podes estender-te

- disse Rosa, oferecendo generosamente parte da sua lição.

Sentados lado a lado, ouviram uma explicação muito clara acerca da maneira como os olhos funcionam, acompanhada sempre de gravuras. Foi uma lição interessantíssima.

- Santo Deus! Que mal estive eu fazendo a uma máquina tão delicada, lendo quase às escuras! exclamou Mac. Depois acrescentou indignado: Porque não hão-de explicar as coisas convenientemente?

- Tens toda a razão, Mac. É uma coisa que me farto de repetir. Os rapazes precisam que os ensinem e, tanto os pais como as mães, têm a obrigação de fazê-lo. Se eu tivesse filhos havia de ensinar-lhes menos grego e menos latim e de incutir-lhes maior quantidade de conhecimentos úteis. A matemática é necessária, mas a moral ainda o é mais. Desejava poder convencer disto os professores.

- Há mães que fazem isso. A tia Jessie costuma fazê-lo. Lá em casa, porém, a mãe anda sempre muito atarefada com o governo da casa e o pai tem os seus negócios. Nunca há tempo para se conversar. Nós mesmos já não estamos habituados a isso.

O pobre Mac tinha toda a razão. Todos os rapazes e todas as raparigas precisam que se ocupem deles. Os pais e as mães, a maioria das vezes, não têm tempo para se dedicarem, de modo que não se estabelece entre eles e os filhos aquela confiança que seria necessária. Os mais novos são sujeitos a muitas tentações e a maior parte das vezes, quando querem acudir-lhes, é demasiado tarde. Felizes todos aqueles que puderam habituar-se a dizer a seus pais as dúvidas que os assaltaram, certos de encontrarem conselho, piedade e perdão.

Rosa e Mac sentiam necessidade de se apoiarem em alguém, e, muito naturalmente, voltaram-se para o Dr. Alec. Neste Mundo singular, freqüentemente os corações mais paternais encontram-se alojados no peito de tios médicos, em vez de estarem onde deviam estar. Em minha opinião, isto é uma precaução da Natureza para acudir às pobres crianças que ficam órfãs.

O Dr. Alec, quando ouviu as lamentações de Mac e quando Rosa acrescentou, com um suspiro, "deve ser tão bom ter mãe"! fechou o livro e disse animador:

- Oiçam, meus filhos, quando se sentirem apoquentados, ou quando tiverem qualquer dificuldade, venham ter comigo: com a ajuda de Deus, espero poder auxiliá-los. Podem crer que é para mim uma alegria sentir que confiam em mim.

- Confiamos, sim, tio! - responderam ambos, muito gratos.

- Ora muito bem. Por hoje está acabada a lição; aconselho-os a que vão arejar os vossos 600. 000. 000 de poros, correndo pelo jardim. Volta sempre que queiras, Mac. Ensinar-te-ei o mais que puder.

- Muito obrigado, tio. - E os estudantes de fisiologia foram passear para o jardim.

Mac voltou e aprendeu muitas coisas, apesar da sua vista ainda estar doente. Coisas que lhe foram muito úteis pela vida fora.

Os rapazes faziam bastante troça. Mas nem Mac nem Rosa se importaram e continuaram com as suas lições. Certo dia, aconteceu mesmo qualquer coisa que fez os outros sentirem mais respeito.

Foi num dia feriado. Rosa estava no seu quarto quando lhe pareceu ouvir as vozes dos primos. Desceu ao andar de baixo para lhes dar as boas-vindas, mas não encontrou ninguém.

- Não importa. Eles aparecerão - disse consigo, imaginando ter-se enganado, e entrou no escritório para ver se por acaso lá estavam. Começou por procurar debaixo de uma mesa; nisto ouviu um ruído singular. Esse ruído vinha do canto onde estava instalada a caixa, com o esqueleto dentro. A caixa encontrava-se entre duas estantes, ao fundo do aposento, num recanto um pouco sombrio. Rosa olhou na direcção da caixa e resolveu ver se algum rato se teria metido lá dentro. Abriu a tampa e teve a surpresa de ver um braço erguer-se na sua direcção com um dedo espetado. Durante uns segundos sentiu-se assustada e correu para a porta. Quando, porém, estava quase a sair, voltou para trás, resolvida a ver do que se tratava. Parou um instante, vermelha de cólera, e dirigiu-se, pé ante pé, para a caixa. Quando se aproximou percebeu que o braço estava atado com umas guitas que eram manobradas por alguém que fizera uns furos na caixa e se mantinha por detrás. Olhando melhor, percebeu mesmo que esse alguém estava coberto com um pano que ela conhecia muitíssimo bem.

Num relâmpago compreendeu a brincadeira. Puxou da tesoura que trazia no bolso do avental e cortou os fios que prendiam a mão do esqueleto, dizendo: "Sai daí, Charlie. Deixa em paz o meu esqueleto. Nesta altura surgiram os outros rapazes, clamando que a brincadeira falhara por completo.

- Eu tinha-lhe dito que não fizesse uma coisa destas porque podia pregar-te um susto - explicou

Archie, emergindo de dentro de um grande armário. - Eu vinha prevenido com um frasquinho de sais para o caso de ela desmaiar - acrescentou Steve saindo de trás da cadeira da secretária.

- Ela agora é que pode rir-se de vocês - exclamaram Willie e Geordie saindo de baixo do sofá, muito alegres.

- Estás a tornar-te uma mulher de armas, Rosa. Muitíssimas raparigas teriam ficado aterradas, se vissem este tipo mexer um braço - disse Charlie, saindo detrás do caixote, sujo de pó e desconsolado com o malogro da brincadeira.

- Já estou habituada às vossas partidas, de modo que me conservo sempre de pé atrás. Só não gosto que façam pouco do meu amigo esqueleto. Sei que o tio não ficava satisfeito, por isso, peço-lhes que não tornem a meter-se com ele. - Nesta altura o Dr. Alec entrou e, vendo o que se passava, disse muito calmamente:

- Vou dizer-lhes como obtive este esqueleto e tenho a certeza de que, quando souberem, vão sentir por ele maior respeito.

Os rapazes sentaram-se imediatamente por aqui e por ali, sobre o móvel que tinha mais próximo, e ouviram com toda a atenção.

- Há muitos anos, quando eu trabalhava no hospital, apareceu lá um pobre homem que sofria duma doença muito rara e muito penosa. Não havia esperança de poder salvá-lo, mas tratámo-lo o melhor que nos foi possível. Ele sentiu-se tão grato por isso que, ao morrer, nos deixou o seu pobre corpo para que pudéssemos estudar a sua doença e descobrirmos o processo de curá-la quando aparecesse outra pessoa atacada. A sua dádiva foi tão generosa que, ainda hoje, passado tanto tempo, todos nos recordamos dele com admiração. Como lhe parecia que eu me tinha interessado por ele, antes de morrer, disse a um dos estudantes que trabalhavam comigo: "Diga ao doutor que lhe deixo os meus ossos. Não tenho mais nada no Mundo de que possa dispor, mas sei que um esqueleto pode ser útil a um médico. E aqui têm como sou dono deste esqueleto. É um esqueleto de um pobre homem que se chamava Mike Nolan. Era uma pessoa simples, mas generosa, e sabia demonstrar a sua gratidão para com aqueles que tinham desejo de ajudá-lo.

Quando o Dr. Alec acabou de falar, Archie fechou a porta do caixote com tanto respeito como se dentro se encontrasse a múmia de algum Faraó egípcio. Will e Geordie olhavam um para o outro muito impressionados, e Charlie não pôde deixar de comentar lá do seu canto, - estava sentado em cima da caixa da lenha: - "Poucas famílias se poderão gabar de estar na posse de um esqueleto tão interessante. "

 

               A SOMBRA DO AZEVINHO

ROSA obrigou Phebe a prometer que traria o seu sapatinho para o quarto dela, no dia de Natal, porque as surpresas perdem todo o encanto quando não são duas as cabecinhas que se curvam sobre elas a analisá-las e quando os oh! e os ah! não podem ser ditos a duas vozes.

Nestas condições, quando Rosa abriu os olhos, nessa célebre manhã, deparou com a fidelíssima Phebe, enrolada num xaile, sentada no tapete diante do lume que crepitava, e com o sapatinho cheio de prendas, intacto, ao seu lado.

- Festas Felizes! - exclamou a menina muito alegre.

- Festas Felizes! - respondeu a criadinha com uma voz tão fresca que, ouvi-la, fazia bem.

- Traze para aqui os sapatos, Phebe; vamos ver o que contêm - disse Rosa recostando-se nas almofadas, ansiosa como uma criancinha pequena.

Começaram a analisar o conteúdo com a maior animação, embora ambas soubessem o que continha o sapato da amiga.

No fim, ficaram tão satisfeitas que Rosa exclamou, recostando-se para trás:

- Creio que tenho tudo quanto desejava. Se me perguntassem o que queria eu mais, não saberia responder.

- É o Natal mais feliz de toda a minha vida

- comentou Phebe sorrindo. E acrescentou com ares importantes - A menina, contudo, tem de desejar qualquer coisa mais, porque sei que ainda tem mais dois presentes que não estão aqui.

- A não ser umas chinelinhas de vidro iguais às da "Gata Borralheira". Não sei que mais possa ser.

Phebe bateu as palmas e correu para a porta, dizendo:

- Realmente, um do presentes é qualquer coisa para pôr nos pés. Não sei qual será a sua opinião acerca do outro. A mim parece-me muito bonito.

Rosa concordou, quando viu o que era. Phebe fora buscar, fora do quarto, um par de patins e um trenó muito maneirinho.

- É o tio que manda? Realmente, lembro-me de ter dito que desejava patinar e andar de trenó. Que lindo que é o trenó! Vê como me ficam bem os patins! - E Rosa colocou os patins nos pés descal ços, enquanto Phebe olhava para ela encantada.

- Temos de apressar-nos a vestir-nos num instante. Hoje há muito que fazer e quero arranjar tempo de experimentar o meu trenó, antes de jantar.

- Valha-me Deus! Já devia andar a limpar o pó na sala! - Dizendo isto, separaram-se muito contentes.

- O bosque de Birman está a mudar-se cá para casa, Rosa-observou o Dr. Alec quando, em seguida ao almoço, viu entrar pela porta dentro uma procissão de ramos de azevinho de cedro e de pinheiro.

Eram os rapazes. Durante vários minutos só se ouviu dizer em todos os tons: "Festas Felizes! Festas Felizes!". Depois todos deitaram mãos à obra, ornamentando a casa, antes que chegasse a restante família. No dia de Natal costumavam jantar todos juntos.

- Andei léguas e léguas, como Ben diria, para arranjar um ramo como este, e vou colocá-lo no lugar de honra - proferiu Charlie, prendendo um ramo ao lustre da sala.

- É realmente muito lindo - concordou Rosa, que estava ornamentando a chaminé com verdura.

- É azevinho verdadeiro, e todos aqueles que estiverem à sombra têm de beijar-se, quer queiram, quer não. Aproximem-se, minhas senhoras, não fujam - ordenou o "Príncipe", muito garoto, para as pequenas que se afastavam da zona perigosa.

- A mim não me apanhas tu aí - avisou Rosa com grande dignidade.

- Pela parte que me toca, lancei as minhas vistas sobre a Phebe - observou Will, com um tom tão importante que todos desataram a rir.

- Não me importo nada - respondeu Phebe,

Com tanta simplicidade e de tal maneira maternal que o galanteio ficou sem efeito.

- "Oh! Azevinho, azevinho! - cantou Rosa.

- "Oh! Raminho de azevinho... - continuaram os rapazes e, em coro, terminaram a melancólica canção, de que todos gostavam tanto.

Ainda sobejou imenso tempo, antes do jantar, para irem experimentar os patins e o trenó. Rosa deu a sua primeira lição de patinagem na baía, que parecia ter gelado propositadamente para esse fim. Caiu várias vezes: os seis rapazes queriam todos ensiná-la ao mesmo tempo. Por fim, conseguiu que a deixassem andar só, um pedacinho, e lá se equilibrou. Entusiasmada continuou e deu mais uns quantos trambolhões.

- Oh! estas rosetas nas faces! Parte-se-me o coração de olhar para ela - murmurou a tia Myra, quando Rosa apareceu na sala, um pouco mais tarde, muito corada pelo exercício. As suas faces pareciam quase da cor das bagazinhas dos ramos que havia pelas paredes, e os caracóis vinham muito bem penteados, graças aos cuidados de Phebe.

- Vejo com prazer que Alec não consegue, apesar das suas excentricidades, que esta menina se arranje mal - comentou a tia Clara, olhando para o vestido de seda azul com uma golinha de renda que Rosa vestira.

- É uma criança muito inteligente e tem muita personalidade - observou a tia Jane com uma afabilidade nada vulgar. Rosa acabara de arranjar uma venda muito fina para proteger um pouco da luz os olhos de Mac.

"Se tivesse uma filha assim para apresentar a Jem, quando ela vem a casa, sentir-me-ia uma mulher feliz" - pensou a tia Jessie. Mas, imediatamente, se censurou por não estar satisfeita com os quatro rapagões que lhe haviam cabido em sorte.

A tia Plenry andava demasiadamente absorta com o jantar para notar fosse o que fosse. Se tal não acontecesse, teria visto o efeito que a sua touca de gala produziu sobre os rapazes. A boa senhora enfeitara a sua touca nova, toda ela feita de rendas e folhos, com inúmeros lacinhos; dir-se-ia que um bando de borboletas poisara na sua cabeça. Quando andava, as rendas esvoaçavam, os folhos encarrapitavam-se e os lacinhos pareciam mover-se da maneira mais cômica. Arcliie teve de meter na ordem os dois irmãos mais novos, que não podiam resistir ao riso que este espectáculo provocava.

O tio Mac trouxe, para jantar, Fun Lee. Foi óptimo porque os outros pequenos divertiram-se imenso a brincar com o chinês e admirar o seu aspecto inesperado. Vestia à maneira européia e falava correctamente. Isto, depois de seis meses de escola. Apesar de tudo o seu rostozinho amarelo fazia um contraste curioso com as cabeças loiras dos pequenos Campbells. Todos o tratavam pelo "Chinesito" e, com desespero do próprio, esse nome ficou.

A tia Peace foi trazida para amesa. Nos dias de festa nunca deixava de aparecer e de acompanhar o jantar, sorrindo para todos, como um verdadeiro símbolo de "Paz".

- Quase não almocei e fiz quanto estava ao meu alcance para poder comer de tudo; tenho, contudo, a impressão de que não conseguirei, a não ser que desaperte o colete - segredou Geordie a Will, vendo a quantidade de iguarias espalhadas sobre a mesa e pelos aparadores.

- Nunca ninguém sabe do que é capaz, antes de experimentar - respondeu Will, mostrando-se disposto a cumprir o seu dever e a portar-se como um homem.

Toda a gente sabe como é um jantar do Natal, de modo que se torna desnecessário descrevê-lo.

 

Peace quer dizer paz em inglês. - (N. da T.)

 

Direi apenas como terminou. Levou tanto tempo a servir essa refeição e os acepipes foram tantos que, antes de estar no fim, tornou-se necessário acender as luzes. Lá fora, levantara-se uma tempestade de neve e o dia baixara rapidamente. Isso, porém, só tornou o ambiente mais confortável, dentro das salas aquecidas e repletas de verdura e de pessoas felizes. Todos estavam alegres, mas Archie mostrava-se particularmente bem disposto - a tal ponto que Charlie confidenciou a Rosa estar convencido de que o primo entrara pelas bebidas.

Rosa negou semelhante insinuação porque reparara que os filhos da tia Jessie, quando tinham de acompanhar alguma saúde, o faziam com água. Ela fazia outro tanto, a despeito das brincadeiras do "Príncipe", que afirmava que a cor das suas faces era suspeita.

Realmente Archie estava extraordinariamente animado e, quando alguém lembrou que era também aniversário de casamento da tia Jessie e lamentou que não estivesse ali o marido para fazer uma saúde, todos ficaram pasmados vendo Archie propor-se substituir o pai. Fez um pequeno discurso um tanto incoerente; contudo, o fim foi considerado por toda a família uma obra-prima. O rapaz voltou-se para a mãe e, com voz comovida, disse "que ela merecia ser coroada de rosas que simbolizassem o amor dos seus filhos, o que merecia também que o navio onde vinha o marido atravessasse perigos e tempestades para lho trazer mais depressa".

Esta alusão ao marido fez Mrs. Jessie soluçar, escondendo a cara no lencinho, e todos os filhos a rodearam e a beijaram. Então, como se isto fosse pouco, Archie, ouvindo dentro qualquer ruído, saiu da sala apressadamente, como se tivesse perdido a razão.

- Estava demasiadamente comovido para receber felicitações - justificou-se Charlie.

- Phebe fez-lhe um sinal qualquer; eu vi exclamou Rosa, olhando para a porta.

- Serão mais presentes? - perguntou Jamie ansioso, vendo o irmão reaparecer ainda mais excitado.

- É um presente para a mãe que eu trago aqui!

- anunciou Archie, abrindo completamente a porta para a outra sala, enquanto um homem alto entrava exclamando:

- Onde está a minha mulherzinha? O primeiro beijo tem de ser para ela, depois virão os outros.

Ainda não tinha acabado de falar, já Mrs. Jessie estava abraçada a ele, meio embrulhada no grande casacão que ele trazia vestido, e os quatro rapazes todos pendurados nele.

Rosa contemplava aquela alegre confusão como se lesse um capítulo duma história do Natal. Que alegria ver o tio Jem olhar cheio de orgulho para o filho mais velho e acariciar os outros com grande ternura! Que prazer em vê-lo abraçar em volta todos os irmãos e irmãs! Até a tia Myra se animou um instante. Contudo, ainda foi melhor quando ele se instalou na cadeira que fora do avô, com a mulher ao lado, os três filhos mais novos no colo e o mais velho por detrás da cadeira, como se fosse um anjo-da-guarda.

Segundo a expressão de Charlie, "era como ver uma planície fragrante florir dentro do coração humano".

- Todos junto de mim e todos bons, graças a Deus! - exclamou o capitão Jem, quando passaram os primeiros momentos de entusiasmo.

- Falta a Rosa - observou Jamie, não vendo a menina.

- É verdade, esqueci-me dela! Onde está a filha de George? - perguntou o capitão, que não a via desde pequenina.

- Dize antes a filha de Alec - respondeu o tio Mac, que tinha bastantes ciúmes do irmão.

- Estou aqui, tio - disse Rosa saindo do vão da janela, onde se refugiara atrás das cortinas.

- Valha-me Deus! O que esta menina cresceu!

- exclamou o capitão Jem, afastando os filhos e pondo-se de pé para cumprimentar Rosa, de tal maneira a menina lhe parecera uma verdadeira senhora. Mas quando lhe apertou a nãozinha que, dentro da sua manápula, quase se não sentia, e quando a viu tão parecida com o irmão, não se sentiu satisfeito com um cumprimento tão convencional e abraçou-a com muita ternura, passando a sua cara áspera no rostozinho macio dela.

- Deus te abençoe, minha filha, perdoa-me se me esqueci de ti no primeiro momento. Podes crer que ninguém poderia gostar mais de ver-te do que o teu velho tio Jem.

O rosto de Rosa brilhou; era evidente que as palavras do tio haviam feito esquecer a impressão de abandono que sentira e que a levara a refugiar-se no vão da janela.

Em seguida todos se sentaram em volta do recém-vindo a ouvi-lo narrar as peripécias da viagem

- o esforço que fora necessário para chegar no dia de Natal, etc. As coisas pareciam conspirar contra ele. Entretanto, quando tudo se resolveu, enviou um telegrama a Archie, pedindo-lhe que não dissesse nada a ninguém, porque, como o barco ancorava noutro porto, podia não conseguir chegar a tempo.

Archie contou que, durante todo o jantar, o telegrama que tinha dentro da algibeira parecia queima-lo; Phebe era a única pessoa que estava no segredo e teve artes de não deixar entrar o capitão sem o discurso do filho haver terminado, para o efeito ser completo.

Os mais velhos, de boa vontade teriam ficado a conversar o resto da tarde; os mais novos, porém, não dispensaram os passatempos usuais numa data tão solene. No fim de cerca de uma hora de cavaco começaram a iinpacientar-se e a mostrarem-se irrequietos, de modo que a conversa teve de acabar.

Em certa altura, Steve desapareceu e, dali a nada, surgiu com a gaita de foles, chamando todos os Campbells à folia.

- Não toques tão forte, Steve. Tocas bem mas fazes um barulho infernal - exclamou o tio Jem, tapando os ouvidos, porque esta nova prenda dos rapazes ainda lhe era desconhecida.

Steve tocou, pois, uma dança escocesa o mais suavemente que o instrumento lhe permitiu, e os outros pequenos dançaram. Toda a família se pôs em círculo para admirá-los. O capitão Jem, porém, era um marinheiro a valer e não podia parar quieto vendo os outros estar a mexer. Logo que a gaita de foles se calou, ele saltou para o meio da sala exclamando:

- Quem é capaz de me acompanhar nesta dança? E, sem esperar por mais nada, desatou a assobiar, executando um sapateado complicado. Tudo isto foi feito com tão grande entusiasmo que Mrs. Jessie, rindo como uma rapariga, pulou para o meio da sala a acompanhá-lo. Rosa e Charlie seguiram-nos e continuaram a dança todos quatro com tamanha animação e tal rapidez que a restante família ficou pasmada.

Isto foi apenas o começo e outras danças se seguiram, igualmente animadas, sem que ninguém se sentisse fatigado. Até o próprio Fim Lee se tornou notado, dançando com a tia Plenty. O "Chinesito" admirava profundamente a excelente senhora pela sua corpulência. No seu país a gordura é considerada um enorme atractivo. A boa tia Plenty sentia-se muitíssimo lisonjeada com a admiração do pequeno. Em certa altura, os rapazes declararam tê-los visto dançar debaixo do ramo de azevinho e Fun Lee, erguendo-se no bico dos pés, depôs um respeitoso beijo na face rechonchuda da boa senhora.

Todos riram do espanto dela, enquanto os olhinhos negros de Fun Lee brilhavam, muito garotos. Charlie estava resolvido a chamar Rosa à falsa-fé para debaixo do ramo fatal. Fez-lhe inúmeras partidas para tal conseguir. Rosa, porém, defendeu-se sempre a tempo, mostrando-se muito indignada com "um uso tão absurdo", segundo a sua própria expressão. A pobre Phebe já não teve tanta sorte. Quando servia o chá à tia Myra, muito inocentemente colocou-se debaixo do raminho. Num instante Archie estava junto dela. A chegada do pai não diminuíra a sua alegria, antes pelo contrário. Todavia, portou-se como um cavalheiro. Deu o beijo, mas pediu imediatamente desculpa da garotice e agarrou no tabuleiro que, por um triz, não caía das mãos de Phebe, tão surpreendida a pequena ficara.

Jamie atrevidamente pediu a todas as senhoras que viessem ter com ele, tendo-se colocado debaixo do azevinho, e ninguém se negou a fazer-lhe a vontade. Quanto ao tio Jem, procedia como se o tecto da sala estivesse todo forrado com a fatal planta. O tio Alec sorrateiramente colocou um raminho na touca da tia Peace, depois aproximou-se dela e deu-lhe um beijo muito suave na face. Esta brincadeira agradou muito à pobre senhora porque lhe sabia sempre bem tomar parte nos divertimentos da família e Alec era o seu sobrinho preferido.

Charlie continuava a perseguir o seu arisco passarinho e, quanto mais este lhe fugia, tanto mais ele se empenhava em consegui-lo. Quando viu que nenhum ardil dava resultado, foi pedir a Archie que propusesse um jogo de prendas.

Rosa compreendeu a manha e foi tão cautelosa que se tornou impossível apanhá-la.

Em certa altura, Will, completamente inconsciente do que se passava, propôs que fossem jogar qualquer outra coisa.

O "Príncipe" respondeu:

- Só mais um bocadinho e mudamos de jogo. Dali a nada. quando chegou a vez de Rosa responder à pergunta que lhe cabia, ouviu Jamie gritar, muito aflito: "Rosa, Rosa, vem cá, depressa!" Rosa assustou-se e não respondeu imediatamente. Todos clamaram: "Paga prenda, paga prenda", enquanto o pequeno traidor vinha ter com um grupo, rindo. "Príncipe" exultava, certo de que vencera. Rosa considerou-se perdida. Steve, porém, que era o juiz, disse, muito sério, embora soubesse muito bem do que se tratava:

- Vais levar o nosso velho Mac para debaixo do ramo de azevinho. É o castigo que te dou.

Todos ficaram pasmados, tanto mais que a partida era principalmente feita a Mac, que detestava jogos de prendas e que fora para o pé das pessoas crescidas, logo que haviam principiado. Estava agora muito distraído junto do lume, ouvindo os tios conversar com o pai.

Charlie, furioso, esperava que Rosa reagisse e dissesse que não. Rosa, contudo, não disse nada e. rindo, encaminhou-se para o grupo das pessoas crescidas. Deu o braço ao tio Mac, levou-o até debaixo do lustre e deu-lhe um beijo muito afectuoso.

- Muito obrigado, minha filha - exclamou o tio Mac, muito admirado com uma honra tão inesperada.

- Não vale, não vale - disseram os pequenos. Rosa fez uma cortesia e disse:

- Vocês disseram-me que tinha de dar um beijo no "nosso velho Mac". Embora ache que foi uma maneira pouco respeitosa de falarem do tio, fiz-Lhes a vontade. É um caso arrumado, meus amigos.

Realmente assim era. Rosa, enquanto falava, deu um salto e tirou do lustre o ramo de azevinho, deitando-o para o lume.

- Que vem a ser isto? - perguntou o jovem Mac, ouvindo falar no seu nome.

O barulho era tanto que durante algum tempo foi impossível explicar-lhe. Mas, quando finalmente compreendeu, comentou:

- Não se me dava nada que ela tivesse vindo ter comigo.

Este dito divertiu imenso os outros e o pobre Mac sentiu-se apoquentado porque não conseguia compreender onde estava o cômico duma coisa que ele dissera tão simplesmente.

Pouco depois, Jamie enroscou-se a um canto do sofá e adormeceu. Todos julgaram que era tempo de se separarem.

Quando estavam já na sala de entrada, preparando-se para partir, ouviram uma vozinha cantando. Pararam para escutar. Era Pehebe, a pobre Phebe que nunca tivera casa, nem conhecera mãe, que cantava, muito grata por ter finalmente encontrado um lar.

Todos entoaram, em coro, a canção que Phebe principiara. A canção, que narrava as delícias do Natal em família e os encantos do lar, tinha o mesmo sentido para as duas órfãs que, pela primeira vez, passavam o Natal debaixo daquele tecto acoLhedor.

 

UM SUSTO Alec, tenho a certeza de que não vais consentir que esta criança saia de casa num dia tão frio como o de hoje - exclamou Mrs. Myra abrindo a porta do escritório, onde o doutor estava instalado a ler, numa bela manhã de Fevereiro.

- Porque não? Se uma pessoa tão doente como a mana Myra pôde suportar a temperatura, a minha filha que, felizmente, é saudável, também pode respondeu o Dr. Alec, com tanta confiança que chegava a ser uma provocação.

- Não fazes idéia do frio que está. O vento corta. Estou gelada até aos ossos - insistiu a tia Myra, esfregando o nariz vermelhíssimo com a sua luva escura.

- Acredito; o frio ainda é mais para temer se uma pessoa vem vestida com crepes e sedas, em vez de ir embrulhada em lãs e flanelas. Rosa está habituada a sair com todas as temperaturas. Só lhe fará bem uma hora de patinagem.

- Andas a brincar com a saúde da menina. Tens demasiada confiança nas melhoras aparentes que conseguiste durante o ano. Ela tem uma saúde muito delicada e pode ir-se embora de um momento para o outro, como aconteceu à mãe - acrescentou a tia Myra íúgubremente, abanando o seu grande chapéu.

- Veremos - respondeu o Dr. Alec, contraindo as sobrancelhas, como sempre fazia quando alguém se lembrava de aludir à doença da mãe de Rosa.

- Ouve o que te digo. Hás-de arrepender-te. E a tia Myra desapareceu como uma sombra negra.

Sou obrigada a confessar que, entre outros defeitos, o doutor tinha uma característica muito masculina: não gostava que lhe dessem conselhos. Ouvia com respeito as duas tias mais velhas, uma vez ou outra consultava Mrs. Jessie, mas, quanto às outras três senhoras, não admitia que pudessem ter razão. Fatigavam-no as suas opiniões insistentes. Especialmente a tia Myra tinha o condão de irritá-lo. Era mais forte do que ele: só lhe apetecia contradizê-la.

Não havia muito tempo que o Dr. Alec chegara à conclusão que era melhor Rosa não sair enquanto estivesse tanto vento. A entrada da tia Myra e a sua insistência, porém, levaram-no à conclusão contrária. Rosa, realmente, estava habituada a sair todos os dias e tinha bons agasalhos. Daí a instantes o Dr. Alec viu a menina atravessar o jardim toda embrulhada em peles como se fosse para o pólo.

"Oxalá não se demore muito", pensou consigo o tio Alec quando, uma hora mais tarde, saía a ver os poucos doentes que consentira em tratar. Cuidava exclusivamente de velhos amigos que visitava por simples amizade.

Durante toda a manhã, o Dr. Alec andou preucupado. Todavia, tinha confiança no bom senso de Rosa. Só do que ele não se lembrou é que pudesse acontecer-lhe ficar para ali a gelar, esperando por Mac.

Mac combinara encontrar-se com ela em determinado local, para irem juntos patinar. Rosa prometera esperar e manteve a sua promessa com uma fidelidade que lhe custou caro. Mac esqueceu-se da combinação, absorto numas experiências de química e, quando se recordou, a mãe não o deixou sair porque o vento podia fazer-lhe mal à vista.

- Tenho a certeza de que Rosa vai ficar à minha espera. É uma pessoa que mantém sempre aquilo que combinou - afirmava Mac, aterrado com a idéia de a prima gelada, esperando por ele.

- Tenho a certeza de que o tio não a deixa sair com um tempo assim - respondeu a tia Jane, voltando aos seus quefazeres.

- Ao menos alguém pode ir ver se ela está à minha espera e dizer-lhe que não posso ir - insisti Mac, preocupado.

- O Steve não está para isso. Traz os pés gelados e tem vontade de jantar'-replicou o "Janota" que acabava de regressar da escola e se preparava para mudar de botas.

Mac teve de resignar-se e Rosa esperou inútilmente até à hora do jantar. Fez o possível por não arrefecer, mas em vão. Andou de um para outro lado, sem se afastar do local combinado. Por fim, não podendo suportar mais o frio, voltou para casa, lutando desesperadamente contra o vento que cada vez se tornava mais forte.

O Dr. Alec estava-se aquecendo junto do lume, no escritório, quando uma espécie de soluço abafado fez que se erguesse e, abrindo a porta, viesse ver o que se passava. Rosa, junto da porta, tremia toda, esfregando as mãos e esforçando-se por não chorar com as dores que o frio lhe causara nas pontas dos dedos.

- Minha filha, o que te aconteceu? - perguntou o Dr. Alec aproximando-se o mais depressa que pôde.

- Mac não apareceu. Estive à espera dele e arrefeci tanto que não há agora maneira de aquecer! - respondeu Rosa tremendo e batendo os dentes, com o nariz tão roxo que metia pena.

Num instante, o Dr. Alec deitou-a no sofá embrulhada no cobertor de pele de urso, enquanto Phebe lhe esfregava os pés e ele próprio as mãos. A tia Plenry apareceu logo com uma bebida quente e a tia Peace mandou para baixo a sua própria escalfeta e o seu cobertor bordado.

Cheio de remorsos, o Dr. Alec só largou a sua doente quando esta declarou que já se sentia perfeitamente bem. Não consentiu, em todo o caso, que Rosa se levantasse para jantar e serviu-a ele próprio. Em seguida, a menina adormeceu, porque a bebida da tia Plenty fizera-lhe sono.

Dormiu algumas horas. O seu sono, contudo, era agitado e as faces tinham rosetas de febre quando acordou. Respirava com dificuldade e pediu à tia Plenty, que se conservava junto dela, para a levarem para a sua caminha.

- Alec, era melhor tu transportá-la ao colo. A água está pronta. Vamos dar-lhe um banhinho muito quente e depois embrulhamo-la em cobertores, para esta terrível constipação se ir embora disse a tia Plenty, saindo da sala para dar as suas ordens.

- Sentes-te mal, minha filha? - perguntou o Dr. Alec, enquanto a levava pelas escadas acima.

- Custa-me a respirar porque tenho uma pontada, mas não se apoquente, tio, não há-de ser nada

- respondeu Rosa passando no rosto dele uma das suas mãozinhas quentes.

O pobre doutor não queria mostrar-se preocupado mas não lhe faltavam razões para isso, porque, quando Rosa desatou a rir da figura de Debby, que entrava com um enorme panelão de água quente, não pôde continuar. A pontada foi tão forte que a menina empalideceu.

- É uma pleurisia - suspirou a tia Plenty, do canto onde estava, junto do lavatório.

- É uma pneumonia - resmungou Debby deitando a água quente dentro da banheira.

- São doenças muito más? - perguntou Phebe, muito baixinho, pois não entendia nada de doenças, mas tinha a impressão de que essas doenças eram terríveis.

- Psiu! - disse o doutor muito severo. - Façam tudo para aquecê-la. Quando estiver na caminha virei vê-la.

Saiu do quarto e foi sossegar a pobre tia Peace, dizendo-lhe que devia tratar-se de uma simples gripe. Depois desceu ao escritório e pôs-se a passear de um lado para outro, cofiando as barbas, muito apoquentado.

- Realmente era sorte demasiada passar o ano sem surgir qualquer transtorno sério. Porque não havia eu de fazer caso do que me disse a Myra? Porque havia de Rosa sair? Não está certo que a pobre criança sofra por causa da minha teimosia. Vai ter uma pneumonia, sem dúvida nenhuma.

Quando viu Rosa, ainda ficou mais desanimado. Todo o tratamento fora vão. Durante algumas horas a menina não pôde sossegar. Ainda mais a apoquentava ver todos tão preocupados por sua causa.

No pior momento, apareceu Charlie, trazendo um recado da mãe, e encontrou Phebe descendo as escadas com uma porção de papas que também não tinham dado qualquer alívio. Phebe vinha muito triste.

- Que aconteceu? Parece que vens de um enterro.

- Miss Rosa está muito doente.

- Que estás para aí a dizer?

- É verdade, menino. Está muito doente e a culpa foi do menino Mac. - Phebe, em poucas palavras, contou o que tinha acontecido; naquele momento só lhe apetecia correr com todos os rapazes.

- Vou-lhe já dizer, podes estar descansada - respondeu Charlie, fechando o punho ameaçador. - Mas Rosa não está perigosamente doente, não é verdade? - perguntou, vendo a tia Plenty descer as escadas.

- Está, sim. O sr. doutor não diz muito, mas já não se atreve a afirmar que se trata de uma simples constipação. Deve ser uma pleurisia e estou com muito medo que amanhã lhe sobrevenha também uma peumonia - respondeu Phebe, muito séria.

Charlie desatou a rir da maneira como ela pronunciara a palavra pneumonia. Phebe indignou-se, vendo-o rir.

- Como tem coragem de troçar, estando ela tão malzinha! - exclamou com um gesto trágico e os olhos brilhantes de cólera.

Charlie deixou de ter vontade de rir e ficou tão apoquentado como Phebe quando ouviu a vòzinha de Rosa gemer:

- Peço-lhe, meu tio, deixe-me sossegar um momento. E não diga aos rapazes que eu sou pouco corajosa. Dói-me tanto que me saltam as lágrimas, sem querer.

Também Charlie não pôde suportar o cheiro da mostarda das papas que Phebe tinha na mão.

- Tira para lá isso. Não me ponhas semelhante coisa debaixo do nariz. A mostarda faz-me arder os olhos.

- Não sei como isso possa ser. O doutor mandou-me comprar mais porque acha que esta não é suficientemente forte.

- Eu you comprar - disse Charlie, e assim fez. Dali a nada, apareceu com uma caixa cheia da mostarda mais forte que pôde encontrar. Aproveitara para se recompor e agora já não mostrava quanto se sentira comovido. Depois pôs os pés a caminho para ir participar a Mac o resultado da sua falta de pontualidade. O pobre rapaz foi, nessa noite, para a cama muitíssimo apoquentado e cheio de remorsos. Charlie falara-lhe tão energicamente que o infeliz Mac quase se convenceu de que para ele nunca mais poderia haver perdão.

Graças aos cuidados do doutor e das suas infatigáveis ajudantes, por volta da meia-noite, Rosa sentiu-se melhor e era de esperar que o pior tivesse passado. Phebe preparou chá, na lareira do escritório, para o pobre doutor, que se esquecera de comer desde que Rosa se sentira doente. A tia Plenly insistia em que ele precisava de tomar um bom chá.

Em certa altura ouviu-se uma pancadinha nos vidros da janela. Phebe estremeceu e voltou-se, vendo que alguém espreitava. Não se assustou porque compreendeu que era Mac, muito pálido, quase lívido à luz fria do luar.

- Abre-me a porta, peço-te - e, logo que entrou, murmurou assustado: - Como está Rosa?

- Felizmente está melhor - respondeu Phebe sorrindo. Foi um raio-de-sol que penetrou no coração do pobre rapaz, este sorriso de Phebe.

- Amanhã já estará boa?

- Isso sim! A Debby diz que ela deve ter apanhado uuma pomonia - respondeu Phebe esforçando-se por pronunciar a palavra como devia ser.

Mac desanimou novamente e voltaram-lhe os remorsos. Suspirou e disse muito a medo:

- Eu poderei vê-la?

- Agora não, Está-se a fazer o possível por que adormeça.

Mac ia acrescentar qualquer frase mais, quando de cima alguém fez "psiu".

Mac resolvera ir-se embora antes que a sua presença incomodasse mais, quando uma voz suave o chamou:

- Mac, sobe. A Rosa quer ver-te.

Subiu as escadas e encontrou o tio à sua espera.

- Porque vieste a uma hora destas, meu filho?

- Charlie disse-me que Rosa adoecera por minha causa, e que, se morresse, eu era o culpado. Não consegui adormecer e vim ver como ela estava. Só o Steve é que soube que eu vinha - respondeu Mac tão comovido que o doutor não teve coragem para censurá-lo.

Uma vozinha fraca chamou: "Mac!" O Dr. Alec disse em voz baixa: "Não te demores mais do que o indispensável; ela precisa de repousar. O doutor acompanhou-o até à porta do quarto.

O rostozinho de Rosa estava pálido, quase tão branco como a almofada onde repousava, e o sorriso com que a menina recebeu o primo foi muito tênue, porque Rosa ainda não se sentia nada bem. Entretanto, não conseguira repousar sem tê-lo sossegado.

- Ouvi-te a voz e quis dizer-te que não estejas preocupado. Sinto-me melhor e, se adoeci, não foi culpa rua. Eu é que não devia ter esperado ao frio, lá porque tínhamos combinado.

Mac, muito perturbado, pediu-lhe que não morresse. As palavras de Charlie tinham-lhe feito muitíssima impressão.

- Não sabia que estava em perigo de vida respondeu Rosa, olhando para ele com os seus olhos meigos.

- Espero que não, mas nunca se sabe, e eu não conseguia sossegar sem ter vindo pedir-te perdão acrescentou Mac, ainda atrapalhado, pensando com os seus botões que Rosa, com os seus caracóis louros espalhados na almofada e uma expressão tão linda no rosto infantil, parecia um anjo.

- Não creio que morra; o tio não há-de deixar. Entretanto, se tal acontecer, recorda-te de que te perdoei.

Olhou para ele com muita ternura e acrescentou:

- Não te dei um beijo debaixo do ramo de azevinho, mas vou dar-to agora para teres a certeza de que te perdoei realmente.

Isto foi superior às forças de Mac. Saiu do quarto muito comovido e encaminhou-se para casa a toda a pressa. Quando lá chegou, meteu-se na cama, fazendo grandes esforços para não chorar como uma criança pequena.

 

                   UMA RESOLUÇÃO

NÃO faço idéia de quais teriam sido as conseqüências do resfriamento que Rosa apanhou, se não tivesse sido tratada com tantos cuidados. Assim, depressa passou qualquer perigo, embora a tia Myra se recusasse a acreditar semelhante coisa e o Dr. Alec redobrasse de cuidados quanto à saúde da menina. Rosa quase gostou de estar doente, quando deixou de sentir-se mal, porque, durante uma ou duas semanas, levou a vida duma princesinha, a quem todos serviam e entretinham da maneira mais agradável.

Entretanto, pouco tempo depois, o Dr. Alec foi chamado à cabeceira de um amigo perigosamente doente e Rosa sentiu-se como um passarinho a quem faltasse, de repente, a mãe. Certa tarde em que as tias resolveram dormir uma sesta e a casa toda estava muito silenciosa, sentiu-se muito só.

"Vou ter com a Phebe, está sempre alegre e nunca lhe falta trabalho. Se Debby não estiver pela cozinha podemos entreter-nos a fazer alguma guloseima para oferecermos aos rapazes, quando eles vierem. - Rosa pensou com os seus botões, poisando o livro que andava a ler.

Antes, porém, de entrar na cozinha, deu-se ao trabalho de espreitar, porque Debby não gostava que os seus domínios fossem invadidos, quando estava presente. Não viu mais ninguém, além de Phebe, que parecia dormir com a cabeça apoiada nas mãos. Rosa preparava-se para acordá-la quando viu que erguia a cabeça, limpava os olhos ao avental azul que trazia e, com uma expressão muito resoluta, começou um trabalho que parecia interessar-lhe imenso. Rosa não podia ver exactamente de que se tratava. Via apenas que Phebe tinha diante de si um livrinho, donde copiava coisas para um pedaço de papel pardo.

"Preciso de saber por que estava chorando e que trabalho vem a ser este que parece interessá-la tanto. Esqueceu a sua primeira intenção de fazer uns bolos, abriu a porta e entrou na cozinha, dizendo com muita simpatia:

- Phebe, posso ajudar-te em alguma coisa? Preciso tanto de me entreter.

- Não, menina. Entretanto, gosto sempre de estar ao pé de si, mesmo que não precise de ajuda. Que havemos de arranjar para a distrair? - respondeu Phebe, procurando ocultar dentro de uma gaveta o trabalho que estava fazendo.

- Deixa-me ver o que estavas a fazer. Não direi nada à Debby, se não quiseres que ela saiba.

- Estava a ver se conseguia estudar, mas sou tão estúpida que não aprendo nada - respondeu a pequena, mostrando à sua amiguinha o trabalho que estava executando.

O material de que Phebe dispunha era um pedaço de lousa partida, dois pedacitos de lápis, um almanaque que lhe servia de livro de leitura, alguns pedaços de papel pardo e uma ou duas receitas escritas pela tia Plenty, que eram um modelo de letra manuscrita. Tinha ainda um frasco com um resto de tinta e uma caneta com um aparo muito velho. Não admirava que, com semelhante material, os progressos fossem poucos.

- Pode rir-se à vontade, menina Rosa. Bem sei que isto dá vontade de rir. É por isso que prefiro esconder estas coisas das outras pessoas. E também porque sinto vergonha de estar tão atrasada, tendo já esta idade -disse Phebe com muita humildade, enquanto limpava uma outra lágrima que teimava em cair sobre a folha de papel onde estivera escrevendo

- Rir-me de ti? Apetece-me mais chorar, quando persebo quanto fui egoísta; possuindo tantos livros e não me faltando nada, não pensei em te oferecer coisa alguma. Porque não me pediste? Fizeste muito mal Phebe. Não tens desculpa-replicou Rosa, poisanpo uma das suas mãozinhas no ombro de Phebe e pegando com a outra o pobre caderno.

- Não gosto de pedir nada, porque a menina já fez muito por mim - respondeu Phebe com os olhos cheios de gratidão.

- Que orgulhosa! Como se eu não sentisse uma satisfação tão grande quando posso fazer qualquer coisa por ti. Vou ensinar-te eu própria aquilo que souber, e não digas que não. Vais ser óptimo para me entreter. Vais aprender num instante, verás.

Rosa poisou a mão nos cabelos macios de Phebe, acariciando-lhos.

- Isso é a coisa melhor que a menina me podia fazer.

O rosto de Phebe reluzia. Dali a instantes acrescentou mais triste:

- Só tenho medo que a menina não consiga que eu aprenda ou que o Sr. Doutor não goste, quando vier a saber.

- Ele não gosta que eu me sobrecarregue com estudos, mas nunca me disse que não devia ensinar aquilo que sei. Tenho a certeza de que não se vai importar. Em todo o caso, vamos tentar, enquanto ele não chega. Vem ter comigo ao meu quarto, tenho lá tudo quanto é necessário. Combinaremos uma hora todos os dias e verás que aprendes muito bem.

Dava gosto ver a alegria de Phebe e o olhar sorridente de Rosa. Saíram da cozinha de mãos dadas, cantando.

Quando chegaram ao quarto, Rosa instalou-se à sua mesa e, mandando sentar Phebe na sua frente, disse-lhe:

- Agora muito cuidado porque a aula vai começar. Vou ser muito exigente.

Rosa retirou de dentro de uma das gavetas e entregou a Phebe, canetas, lápis, livros e papel.

- Agora vou ouvir-te ler, para saber em que classe te devo colocar - continuou Rosa muito digna, pegando numa régua.

Phebe leu um trecho menos mal. Só se atrapalhava nas palavras menos vulgares. Rosa ouviu, sempre muito séria. As noções, porém, que Phebe possuía de gramática e de geografia eram nulas. Rosa tentou explicar-lhe as vantagens da gramática. Depois passaram à aritmética. Nessa matéria Phebe estava muito mais adiantada, pois era ela quem fazia as contas das compras que entravam na cozinha. Fazia certas contas com mais facilidade do que a própria Rosa. Esta felicitou-a. Phebe mostrou-se animada

Com os elogios, e a lição continuou. Em certa altura, surgiu a tia Plenty que exclamou, ao vê-las:

- Deus do Céu! Que estão vocês para aqui a fazer?

- Estamos a dar lição, tiazinha. Estou a ensinar Phebe, é uma coisa que me vai distrair muito - respondeu Rosa muito contente.

Phebe respondeu ainda mais contente, embora com certa timidez:

- Eu devia ter pedido autorização à senhora, mas a menina Rosa ofereceu-se e eu fiquei tão contente que nem pensei nisso. Mas se a senhora não quer que continue...

- Pelo contrário, minha filha. Gosto de te ver aprender e estimo que a menina Rosa te ensine. Minha mãe costumava sentar-se rodeada pelas suas criadas e ensinava-lhes coisas que depois lhes foram" muito úteis. Só não quero que te esqueças da tua obrigação, nem que os teus livros te façam desinteressar dos teus deveres.

Enquanto a tia Plenty falava, Phebe olhou para o relógio, viu que eram cinco horas e calculou que, dentro de pouco tempo, Debby desceria e desejaria encontrar os preparativos para a ceia. Poisou o lápis e disse, levantando-se apressada:

- Agora são horas de eu ir ajudar a Debby. Quando acabar, volto a ter com a menina.

- Acabou-se a aula - disse Rosa e, com um simpático "muito obrigado", Phebe saiu correndo.

Assim continuaram durante uma semana, com grande satisfação de ambas. A aluna era esperta e a professora mostrava-se competente. Phebe chegou mesmo a convencer-se de que Rosa sabia tudo quanto se pode saber.

Já se sabe que os rapazes troçaram bastante daquelas lições. Contudo, quando se habituaram à idéia, acabaram por oferecer-se como professores de grego e de latim porque sentiam grande admiração pela coragem de Rosa.

A própria Rosa sentia, por vezes, certa ansiedade quanto à maneira como o tio receberia a notícia e preparava-se para convencê-lo de que era um plano maravilhoso o seu. Pensou mesmo em escrever-lhe a tal respeito. O Dr. Alec, porém, chegou inesperadamente.

Rosa estava sentada no chão do escritório com um enorme cartapácio aberto sobre os joelhos, quando se sentiu abraçada e ouviu o tio exclamar:

- Porque está a minha filha tão absorta sobre essa poeirenta Enciclopédia, quando podia andar a correr e ter visto chegar o seu tio, que traz tantas saudades?

- Oh! tio, que contente por vê-lo! Que pena não ter sabido para poder ir esperá-lo. Já estava com tantas saudades! - exclamou Rosa, poisando o livro e abraçando o Dr. Alec.

O Dr. Alec sentou-se numa cadeira de braços com Rosa encostada aos seus joelhos. Rosa principiou:

- Então o tio fez boa viagem? Conseguiu salvar o seu amigo? Está contente por se encontrar novamente ao pé da sua filhinha?

- Para quê tantas perguntas? Fala-me antes de ti. Diz-me o que tens feito. A tia Plenty afirmou-me que tinhas grandes projectos e que receavas que eu os não aprovasse. O que vem a ser?

- Espero que a tia ainda não lhe tenha dito, realmente? - perguntou Rosa desconfiada.

- Não; só me disse isto.

Rosa então falou das lições que tinha dado, afirmando que Phebe mostrava grande desejo de aprender e que ela tinha satisfação em ajudá-la.

- Até me faz bem, tio. Ela é tão viva que não tenho nada a esforçar-me, para ensiná-la. Hoje, por exemplo, a propósito da palavra algodão que encontrámos num trecho que lemos juntas, fez-me tantas perguntas que cheguei à conclusão de que sabia eu própria muito pouco acerca do algodão. Era isso que eu estava a ver quando o tio entrou. Como vê, eu própria aprendo coisas, só por ensinar a Phebe.

- Era então com estes argumentos que esperavas convencer-me, minha marota? - perguntou o Dr. Alec gracejando.

- Não, meu tio. Como o tio sabe, resolvi adoptar Phebe e tenho de fazer qualquer coisa por ela respondeu Rosa olhando ansiosa para o tio.

O Dr. Alec comoveu-se, evidentemente, quando Rosa lhe descreveu o material de que Phebe dispunha e a maneira como resolvera aprender sozinha. Quando Rosa voltou a argumentar para convencê-lo, deu-lhe um beliscãozinho na face e respondeu:

- Acho muitíssimo bem. Parece-me bem que voltes aos teus livros, agora que já te encontras boa, e é um óptimo processo de medires as tuas forças, ensinares Phebe. Ela é uma boa pequena e merece que a ajudem. Espero que encontre sempre quem a aprecie devidamente.

- Tenho impressão de que encontrou.

- Quem é?

- O tio - disse Rosa. - Tenho a certeza de que vai fazer dela uma mulher porque está disposto a ajudar-me, não é assim?

- Minha filha, por ora ainda não fiz coisa alguma, infelizmente. Mas parece-me de facto que ela merece aprender tudo quanto seja capaz. Vamos ver - por onde havemos de começar?

- Isso é um encanto, tio. Posso dizer-lhe a sua intenção? vou chamá-la.

- Minha filha, tudo foi, por ora, obra tua. Faze como melhor te pareça.

- Tio, se mandássemos a Phebe para a escola, eu podia fazer o trabalho dela.

- Anda cá. Vou dizer-te um segredo. A Debby está tão velha e tão rabugenta que as tias decidiram dispensá-la e deixá-la ir viver com uma filha que tem muito bem casada. Durante a minha viagem, falei com essa filha e combinámos que a mãe se instalasse em casa dela para a Primavera. Nessa altura passaremos a ter uma nova cozinheira e uma criada de fora, se conseguirmos arranjar duas raparigas que agradem às tias.

- Oh, tio! Como hei-de passar sem a Phebe? Prefiro pagar eu própria o seu ordenado e não ficar sem ela.

O Dr. Alec riu muito de semelhante proposta! Depois explicou a Rosa que Phebe ficaria encarregada do serviço dela e que, assim, teria tempo para ir à escola.

- Phebe também tem o seu orgulho. Parece-me que, assim, poderá aprender, sem se sentir mal por se considerar às nossas sopas. Fica encarregada de tratar de ti e poderá fazer-te os caracóis doze vezes por dia se quiseres dar-lhe a impressão de que é imprescindível.

- O tio tem sempre razão. Por isso todos são seus amigos - respondeu Rosa com um suspiro de admiração.

Quando Phebe soube dos magníficos projectos, não teve palavras com que exprimisse a sua enorme gratidão. Cada dia, porém, se tornou mais dedicada. Sentia-se tão contente que se desentranhava em canções, e os pèzinhos nunca lhe paravam, nem as mãos deixavam de trabalhar. No seu rosto lia-se constantemente uma enorme gratidão. Phebe aprendera, além das outras coisas, um dos sentimentos mais importantes na vida - o sentimento da gratidão.

 

                       AS PAZES

TEVE, desejava que me informasses de uma coisa - disse Rosa ao "Janota", enquanto este fazia caretas ao espelho esperando a resposta da tia Plenty a um bilhete que viera trazer da parte da mãe.

- Talvez que sim, talvez que não. O que vem a ser?

- Archie e Charlie zangaram-se?

- Que pergunta! Nós rapazes andamos sempre com melindres, bem sabes. Tenho a impressão de que me entrou um argueiro para o olho esquerdo acrescentou Steve mostrando-se absorto na contemplação das suas pestanas loiras.

- Não, não pode ser isso. Não se trata de um pequeno melindre. Tenho a certeza de que houve qualquer coisa mais grave. Dize lá, Steve. Tu deves saber.

- Não esperas que eu ande a trazer e a levar?

- resmungou Steve, erguendo as sobrancelhas como sempre fazia quando se sentia atrapalhado.

- Neste caso, espero que o faças - respondeu Rosa muito decidida; embora considerasse que ele tinha razão, desejava saber o que se passara. - Não gosto que andes a trazer e a levar, mas, neste caso, deves dizer-me, porque tenho todo direito de saber o que aconteceu. Vocês rapazes precisam sempre de ter quem olhe por vós e sinto-me decidida a fazer isso. As raparigas sabem harmonizar, segundo afirma o tio Alec; ele tem sempre razão.

Steve ia dando uma gargalhada quando ela disse que tencionava olhar por eles, mas subitamente, teve uma idéia que o impediu de rir e disse:

- Que me dás se eu te contar? - perguntou corando, envergonhado da frase.

- Que posso eu dar-te? - exclamou Rosa admirada da pergunta.

- Preciso de uns dinheiros. Não te pediria se o Mac não andasse sempre com as algibeiras vasias. desde que se dedicou à Química. Qualquer dia vai tudo pelo ar e ele fica feito em pedaços. Nessa altura, tu e o tio terão o prazer de juntar esses fragmentos, na esperança de colá-los.

- Está bem. Dize quanto queres - continuou Rosa desejosa de entrar no segredo.

Animado com a promessa, Steve alisou a popa e contou resumidamente o caso.

- Acho realmente que deves saber, mas, pelo amor de Deus, não digas a ninguém que me perguntaste. O "Príncipe" fazia-me em bocados. Archie não gosta de certas companhias que Charlie teima em conservar. Discutiram por causa disso, zangaram-se e quase deixaram de falar um com o outro.

- Que espécie de companhias são? -perguntou Rosa com ansiedade.

- São uns rapazes mais velhos e bastante grosseiros. Fazem muita festa ao "Príncipe" e este gosta de andar com eles. Não admira. O "Príncipe" é tão simpático e tem tão boa fé. Parece que costumam ir jogar o bilhar. - Steve disse isto com certa admiração pelo primo. Rosa não percebeu muito bem onde estaria o perigo para Charlie mas convenceu-se de que Archie devia ter razão.

- Se o "Príncipe" prefere esses amigos do bilhar ao Archie, prova ter muito pouco senso - afirmou Rosa severamente.

- Pois sim. O pior, em todo o caso, é que tanto o Charlie como o Archie são muito orgulhosos e não gostam de dar o braço a torcer - retorquiu Steve, abanando a cabeça com ares entendidos.

- Meu Deus! Não sei bem como posso intervir, mas desejava tanto que fizessem as pazes! Charlie precisa de aprender a ouvir Archie, que tem mais juízo do que ele.

- Isso é que há-de ser difícil. O Archie gosta de pregar moral e o Charlie não tem paciência para ouvi-lo. Disse ao Archie que o considerava um maçador e o Archie respondeu-lhe que ele era mal educado. Não sei como não se pegaram à bulha. Eu e o Mac não sabíamos que fazer.

- Os rapazes sempre são bem apanhados! disse Rosa, enquanto Steve, que não tomou esta frase como um cumprimento, respondia:

- Somos tão bem apanhados que vocês não podem passar sem nós, priminha. - Depois, mudando de assunto, acrescentou: - Quanto podes emprestar-me? Eu quando puder, pago-te.

- Quanto queres? - pergunto Rosa, tirando da algibeira a sua bolsinha.

- Poderias emprestar-me cinco dólares? Tenho de pagar uma dívida de honra - respondeu Steve tomando uns ares muito másculos.

- Todas as dívidas são dívidas de honra comentou Rosa inocentemente.

- Pois são. Mas esta é mais: prometi pagá-la imediatamente e não me foi possível - confessou Steve muito atrapalhado com a explicação.

- Não tornes a fazer isso, peço-te. Teu pai não havia de gostar. Peço-te que o não faças - rogou Rosa, com muito bom modo, entregando-lhe o dinheiro.

- Nunca mais. Já me ralei bastante por causa disto. Obrigado, priminha - disse Steve partindo apressadamente.

Tendo decidido fazer as pazes, Rosa teve de esperar pela oportunidade. Não tardou muito tempo que ela chegasse.

Rosa havia passado o dia com a tia Clara, que recebera umas visitas e convidara a sobrinha a vir ajudá-la, pois achava mais que tempo de começar a apresentá-la às pessoas amigas. Tinha acabado de jantar e as visitas haviam-se ido embora. A tia Clara resolvera repousar um pouco antes de ir para um chá e Rosa esperava por Charlie, que devia acompanhá-la a casa.

A menina estava sozinha na elegante sala de visitas de Mrs. Clara, sentindo-se particularmente bem. Trazia o seu melhor vestido e, ao peito, colocara um botão de rosa-chá que sua tia lhe dera. Estendera as saiinhas em volta de si e, recostando-se, mirava os sapatinhos novos que tinham umas rosetas de fita que pareciam dálias. Dalia a nada, Charlie entrou, com ar ensonado e mal disposto. Quando a viu mudou de expressão e disse:

- Pensei que estivesses ao pé de minha mãe, de modo que passei pelo sono depois de essa gente se ir embora. Agora estou à tua disposição, Rosamunda. Acompanho-te onde quiseres.

- Pareces ter dores de cabeça. Se assim é, não te prendas comigo. Não me importo nada de ir para casa sozinha. Ainda é tão cedo - continuou Rosa, observando a cor dele e o quebrado do olhar.

- Até me fará bem. O champanhe faz-me sempre doer a cabeça. Apanhar um pouco de ar vai dispor-me bem.

- Então para que bebes? - perguntou Rosa.

- Sabe-me bem. Não te ponhas com discursos. Bem basta o Archie. Já estou farto de prelecções.

O tom de Charlie era tão desagradável e tão contrário ao seu modo habitual que Rosa se sentiu magoada. Contudo, respondeu com meiguice:

- Não ia fazer nenhum discurso, simplesmente, quando se é amigo duma pessoa, não é agradável vê-la sofrer.

Charlie sentiu-se arrependido, porque Rosa tinha os lábios a tremer, embora não quisesse mostrar-se ofendida.

- Sou um bruto. Peço-te desculpa, Rosa acrescentou Charlie, com o seu modo franco.

- Gostava tanto que fizesses as pazes com o Archie. Nunca te vi aborrecido enquanto foram amigos - proferiu Rosa, olhando para o primo, en' quanto este apoiava os cotovelos na chaminé.

Ele não respondeu logo. Daí a instantes disse, novamente mal disposto:

- É melhor não te meteres em assuntos que não conheces, prima.

- Faz-me pena sentir-vos tão frios um para com o outro. Vocês dantes andavam sempre juntos e agora quase não se falam. Foste tão pronto em pedir-me desculpa. Porque não fazes outro tanto ao Archie, se consideras que não tiveste razão?

- Quem te disse que eu não tive razão? -respondeu Charlie, tão àsperamente que Rosa estremeceu. Dali a instantes, acrescentou, mais calmo:

- Um homem bem educado pede sempre desculpa a uma senhora se se mostrou um pouco rude, mas não pede desculpa a um homem que o ofendeu.

- Valha-te Deus, meu amigo! Não se trata de homens que se ofenderam mutuamente, trata-se de dois rapazes que sempre se estimaram. Demais a mais um deles é "Príncipe", precisa de dar o exemplo - replicou Rosa, rindo.

Charlie, porém, não deu o braço a torcer e procurou mudar de assunto, tirando o brinco de Rosa do bolso do colete.

- Eu já faltei à minha palavra, por isso aqui tens o teu brinco. Fui tolo em prometer uma coisa que não podia cumprir. Peço-te que escolhas um par de brincos que te agradem. Devo-te essa indemnização. Tens todo o direito a usá-los.

- Só poderia pôr um, por isso não vale a pena. Tenho a certeza de que o Archie cumpriu a sua palavra.

Rosa sentiu-se tão mortificada com as palavras de Charlie, por saber que fora incapaz de cumprir a palavra dada, que lhe falou com certa aspereza e não agarrou no brinco que ele lhe estendia.

Charlie encolheu os ombros e atirou-lho para o regaço, procurando mostrar-se frio, embora estivesse envergonhado pela cena que estava fazendo. Rosa sentiu que ia chorar e, como se achava muito zangada, desatou a falar, pálida e excitada. Começou por dizer, em voz mal segura:

- Vejo que não és o rapaz que eu pensava. Procurei ajudar-te mas vejo agora que não tens o menor respeito por ti próprio. Afirmas que és um rapaz bem educado e afinal não és, porque não sabes cumprir uma promessa. Prefiro que não me venhas acompanhar. Vou muito melhor com Mary. Boa noite.

Depois de pronunciar isto, Rosa saiu do quarto, deixando Charlie admirado. Tinha a impressão de que um bando de pomhas o tinha picado. Era tão raro Rosa zangar-se que, quando tal acontecia, os rapazes ficavam muito impressionados porque tinham a certeza de que ela devia ter razão.

Enquanto vestia o casaco e punha o chapéu na sala da entrada, um ou dois soluços aliviaram-na. Deu as boas-noites à tia Clara, que se estava arranjando para sair, e foi à procura de Mary, para esta a acompanhar. Mary, porém, tinha saído. Rosa resolveu partir sem demora e não esperou por ninguém.

Mal fechou a porta do jardim, ouviu uma voz junto de si. Era o "Príncipe", que lhe dizia com a maior cortesia:

- Se não quiseres não me fales, mas tenho de acompanhar-te a casa, priminha.

Rosa voltou-se imediatamente, poisou a mão no braço de Charlie, e disse:

- Fui estúpida. Peço-te que me perdoes. Voltemos a ser amigos como dantes.

Esta atitude de Rosa valeu mais do que quanto ela tivesse podido dizer. Apertou-lhe a mão amigavelmente, enfiou-lhe o braço e acrescentou, ansioso por recuperar a antiga estima:

- Ouve, Rosa, vou guardar novamente o teu brinco e tentar cumprir a minha promessa, Não podes fazer idéia de quanto é penoso rirem-se de nós.

- Faço, sim. Anabela tem feito imensa troça por eu não trazer brincos, depois de ter padecido tantas maçadas por causa deles.

- Entre raparigas essas coisas não têm a mesma importância. Quando se é rapaz faz-se uma triste figura por coisas destas.

- Em todo o caso, tenho sempre ouvido dizer que és o mais corajoso de todos os primos - disse Rosa.

- Em certas coisas, serei. No entanto, não suporto que façam troça de mim.

- Acho que não é uma coisa assim tão difícil de suportar, quando se está na razão.

- Talvez, para uma pessoa tão virtuosa como o Archie.

- Peço-te que não digas mal dele. Ele possui aquilo que se chama coragem moral. Tu terás coragem física. O tio já me explicou a diferença. E digo-te que a coragem moral vale mais do que a outra - respondeu Rosa, pensativa.

Charlie não gostou de ouvir isso, e retorquiu:

- Se ele andasse com os rapazes com que eu ando, acontecia-lhe o mesmo que a mim acontece.

- É possível; por isso não anda com eles. Era o que tu devias fazer.

Rosa tinha razão. Charlie sentia isso, mas não queria ceder; contudo, parece que a escuridão via as coisas com maior clareza do que à luz do dia. Não encontrou nada melhor para dizer senão esta frase:

- Ele não tem nada que interferir na minha vida, nem é meu irmão sequer.

- Oxalá que fosse! - exclamou Rosa.

- Tens talvez razão - acabou por concordar Charlie, e puseram-se ambos a rir.

Este ataque de riso fez-lhes bem e, quando "Príncipe" voltou a falar, já foi num tom diferente.

- É preciso pensar que estou numas condições muito piores do que os outros primos. Não tenho irmãos. Sinto-me só. Nem sequer tenho uma irmãzinha.

Rosa achou estas frases tão patéticas que nem reparou na maneira como ele pronunciara a frase "Nem sequer tenho uma irmãzinha", e replicou:

- Faze de conta que sou tua irmã. Sei que não valho grande coisa, mas sempre será melhor do que nada. Além de que sou muito tua amiga.

- Vales muito, minha amiga, porque és muito sensível e sentir-me-ei orgulhoso de ter-te como irmã.

Charlie disse estas palavras, olhando com muita ternura para a cabecinha cheia de caracóis que ia a seu lado.

Rosa deu-lhe uma pancadinha amigável no braço e respondeu:

- É muito simpático da tua parte dizeres uma coisa dessas. E não precisas de te senlires só daqui por diante. Procurarei preencher o lugar de Archie, enquanto ele não vier ter contigo novamente. Tenho a certeza de que vem logo que lhe dês ocasião.

- Não posso dizer que nunca me tenha sentido só, quando andei com ele; entretanto, depois que nos zangámos tenho-me sentido como Robinson Crusoé antes de encontrar Sexta-Feira.

Rosa sentia-se cada vez mais resolvida a fazer as pazes entre os dois primos. Contudo, não disse mais nada, decidida a esperar por melhor ocasião. Separaram-se bons amigos e Charlie voltou para casa, perguntando com os seus botões por que é que um rapaz dizia a uma rapariga certas coisas que nunca diria a outro rapaz.

No dia seguinte, Rosa foi visitar Archie e contou-lhe, da conversa do dia anterior, tudo aquilo que lhe pareceu próprio para dispô-lo bem em relação ao primo.

- Tenho estado a pensar que, embora eu tenha tido razão, não fiz bem em zangar-me com o Charlie. Ele, afinal, prejudica-se por ser muito bom e não saber dizer que não a ninguém. Enquanto meu pai esteve connosco andei pouco com Charlie e ele habituou-se a acompanhar uns rapazes de quem eu não gosto nada. Lisonjeiam-no e conseguem dele tudo quanto querem - jogam a dinheiro, fumam, fazem toda a espécie de tolices. Não gosto nada de vê-lo andar com eles e fiz-lhe notar isso. Infelizmente já era tarde de mais. Foi por isso que nos zangámos.

- Creio que está disposto a fazer as pazes e concorda que tiveste razão; simplesmente, não gosta de dar o braço a torcer e não lhe apetece dizer-te, a ti, tudo quanto ontem me disse a mim, tenho a impressão - afirmou Rosa.

- Não me importo com pequenas coisas e, se ele quer fazer as pazes, eu estou disposto, sem necessidade de desculpas, nem coisa que se pareça. Não me admirava mesmo que ele quisesse cortar com esses tipos e não pudesse, por lhes dever dinheiro. Tenho a impressão, mas não a certeza. O Steve deve saber, mas eu não queria perguntar-lhe. Infelizmente andam sempre juntos. É uma pena, demais a mais o Steve é ainda muito novinho! acentuou Archie, impressionado.

- Realmente o Steve deve saber. Naquela tarde falou-me de umas dívidas de honra. Até eu lhe...

Rosa ia a descair-se, mas calou-se a tempo, muito vermelha.

Archie, porém, obrigou-a a continuar e ela acabou por contar tudo. Ainda ficou mais aflita quando Archie lhe meteu na algibeira uma nota de cinco dólares e lhe pediu que nunca mais fizesse uma coisa daquelas, muito indignado.

- Não tornes a fazer isso. Manda o Steve ter comigo, se não se atreve a dirigir-se ao pai. Charlie não deve ter nada com isso. Era incapaz de receber um vintém de uma rapariga. Em todo o caso, são as conseqüências do Steve querer imitar o "Príncipe. Eu não direi nada que te comprometa, mas tenho de ir pôr as coisas a direito.

- Valha-me Deus! Faço sempre asneira com a melhor intenção - suspirou Rosa, muito apoquentada por se ter descaído.

Archie consolou-a dizendo que era sempre preferível saber a verdade, e prometeu fazer as pazes com o "Príncipe" logo que tivesse ocasião para isso.

Manteve a sua palavra e, no dia seguinte, Rosa teve o prazer de vê-los, de braço dado, subirem ao jardim e encaminharem-se para casa. Vinham ter com ela.

Rosa poisou o seu trabalho e correu para a porta, esperando que se aproximassem, com uma expressão tão alegre que eles se apressaram a chegar.

- Estão feitas as pazes - afirmou Archie, apertando-lhe a mão com toda a força.

Charlie acrescentou, com um olhar que fez Rosa sentir-se contente consigo mesma:

- Como vai a minha irmãzinha?

 

                   PARA QUÊ?

TIO, descobri para que servem as raparigas

- disse Rosa para o Dr. Alec, no dia seguinte à reconciliação de Archie e do "Príncipe",

- Então para que é, minha filha? - perguntou o Dr. Alec, que andava a passear no "convés", como ele próprio costumava chamar, quando dava o seu passeio habitual de um lado para o outro, na sala.

- Para olharem pelos rapazes - respondeu Rosa, muito satisfeita. - Quando eu revelei isto a Phebe, ela riu-se e afirmou-me que as raparigas já tinham bastante que fazer se olhassem por si próprias; a Phebe, porém, não tem sete primos como eu.

- Ambas têm razão, Rosa. As duas coisas completam-se. Uma rapariga que olha por sete rapazes está ao mesmo tempo a dar uma grande prova de que é capaz de olhar por si - sublinhou o Dr. Alec, com um sorriso afectuoso, instalando-se na cadeira de bambu.

- Sinto grande satisfação por o tio me dizer isso, porque preciso absolutamente de olhar pelos rapazes. Vêm ter comigo para eu lhes resolver toda a espécie de coisas e eu estimo que assim seja. Simplesmente, como muitas vezes não sei o que devo aconselhar-lhes, terei de vir ter com o tio, para depois lhes transmitir a sua opinião. Vão ficar admirados com a minha sensatez.

- Muito bem, minha filha, quando te vires apoquentada vem ter comigo.

Rosa passou-lhe os braços em volta do pescoço e contou-lhe o que havia acerca de Charlie, perguntando o que poderia ela fazer para ser uma verdadeira irmã para ele, conforme prometera.

- Serias capaz de ir passar um mês com a tia Clara? - perguntou o doutor, quando ela acabou de falar.

- Sou, sim, tio, embora não considere isso um prazer. O tio acha que é vantajoso eu ir?

- Tenho a certeza de que é a melhor cura para Charlie, tomar todos os dias uma dose de Água de Rosa. Vais ver que bem lhe sabe - respondeu, rindo, o Dr. Alec.

- O tio tem a impressão de que, se eu estiver lá em casa e procurar tornar a vida agradável, ele não sairá tanto e se afastará das más companhias?

- Exactamente, minha filha.

- E eu conseguirei tornar o ambiente da casa agradável? Ele precisa mais da convivência dos rapazes do que da minha.

- Os rapazes aparecerão, porque andam sempre à tua volta como abelhas em roda das flores. Ainda não deste por isso?

- A tia Plenty já me tem dito que eles dantes não apareciam tanto por cá; entretanto, nunca me convenci de que viessem por minha causa.

- Que modéstia, nem sabe os poderes de que dispõe - comentou o doutor, dando-lhe uma palmadinha na cara. - Ora se a atracção se mudar para a casa da tia Clara, os rapazes não saem de lá e Charlie, sentindo-se acompanhado, esquecerá as más companhias, espero - disse o doutor, suspirando, pois sabia quanto é difícil afastar um rapaz de dezassete anos daquilo que ele chama "conhecer a vida" e que, na maioria das vezes, é apenas "conhecer a morte".

- Muito bem, tio. Nesse caso, estou disposta a ir. A tia Clara está sempre a convidar-me. Terei de passar a vestir-me todos os dias para o jantar e a comer a horas certas, e terei de tornar-me uma menina absolutamente à moda; farei o possível por que essas coisas não se me peguem. Quando surgir qualquer dificuldade, venho, como sempre, ter consigo - respondeu Rosa, cheia de boa vontade.

Assim ficou resolvido e, sem dizerem exactamente à tia Clara as razões por que Rosa aceitava o seu convite, a menina mudou-se para a casa dela. Conforme o Dr. Alec calculara, os rapazes seguiram a prima e, com grande espanto de Mrs. Clara, não saíam agora de lá. Charlie passava a vida em casa e procurava mostrar a sua estima e gratidão pela "irmazinha", pois percebia que ela se esforçava por ajudá-lo.

Rosa, por vezes, tinha saudades da sua casa e das suas ocupações habituais, mas suportava corajosamente essas saudades com a idéia de que as raparigas deviam ajudar os rapazes e olharem por eles.

Era enternecedor ver o rosto juvenil da menina no meio de tantos rapazes, procurando agradar-Lhes e tornar-se útil. Em contacto com ela, os pequenos tornavam-se mais delicados, mais atenciosos, e ela por sua vez ia perdendo certas pequeninas vaidades muito femininas e ia tornando-se mais decidida e corajosa.

Quando passou o mês, Mac e Steve pediram que ela fosse também passar um mês com eles. Rosa acedeu e gostou muito de ouvir dizer a tia Clara, quando se despediram: "Oxalá, minha filha, pudesse sempre ter-te comigo".

Depois de Mac e Steve, Archie e companhia também exigiram a sua conta. Em casa deles, não se importaria ela de ficar para sempre, se não fosse a companhia do tio Alec.

Evidentemente que a tia Myra não podia ser deixada no esquecimento, e Rosa, desesperada, teve de passar uns tempos no "Mausoléu", que era como os rapazes costumavam chamar à casa da tia Myra. Felizmente era muitíssimo perto e o Dr. Alec passava todo o tempo a fazer-lhe visitas. Mesmo em casa da tia Myra a presença de Rosa foi benéfica. Alegrou e distraiu a boa senhora, passeando com ela e fazendo-a sair.

O Inverno passou rapidamente e só em maio Rosa voltou definitivamente para casa. Os primos já diziam por brincadeira que ela se alugava ao mês.

O Dr. Alec sentiu grande satisfação, quando Rosa voltou. Entretanto já passara quase o ano de experiência e, no fundo, o bom doutor receava que Rosa resolvesse ir viver com qualquer das tias, quanto mais não fosse por sentir que lhes podia ser útil. Esperava pois, com certa ansiedade, o momento em que Rosa devia decidir isso.

Rosa sentia-se muito feliz e passava grande parte do dia ao ar livre, gozando a Primavera que nesse ano viera uma maravilha e ouvindo o dia inteiro as vozes dos primos exclamarem "Que dia lindo!".

Ninguém se recordava da data em que se completava o ano de experiência que o doutor se propusera fazer. Ninguém a não ser o próprio doutor. Foram, pois, convidadas todas as tias a virem tomar chá, na tarde desse dia e, quando todas se reuniram e começaram a conversar, o Dr. Alec apareceu com duas fotografias na mão.

- Recordas-te - disse ele para a tia Clara, que aconteceu ser a pessoa que estava mais perto dele.

- Recordo. Estava parecidíssima esta fotografia com a Rosa, quando ela chegou. O rostozinho magro e os olhos muito grandes e muito tristes.

Todas as senhoras olharam para a fotografia e todas concordaram com a tia Clara. Nessa altura, o doutor mostrou a outra fotografia e todos exclamaram, à uma: "que boa que está!"

Que diferença fazia da rapariga de hoje, cheia de alegria e de saúde, embora os olhos continuassem pensativos e na boca se percebesse tratar-se de uma pessoa cheia de sensibilidade!

O Dr. Alec poisou as duas fotografias sobre a chaminé e olhou para ela durante algum tempo, depois perguntou:

- Passou o ano combinado, parece-lhes que a experiência resultou?

- Salta aos olhos! - exclamou a tia Plenty.

- O melhor possível, meu filho - respondeu a tia Peace, convencida.

- Tem realmente melhor aspecto. Mas as aparências iludem e ela não é nada forte - murmurou a tia Myra.

- Concordo em que a experiência, no que diz respeito à saúde, foi um verdadeiro êxito - observou a tia Jane, que não podia esquecer quanto Rosa fora boa para o seu Mac.

- Eu acho que não podia resultar melhor. O Alec fez maravilhas. Dentro de dois ou três anos está uma linda rapariga - replicou Mrs. Clara, que considerava isso o maior elogio que se podia fazer.

- Sempre estive convencida de que conseguirias; no entanto, tudo quanto possamos dizer é pouco - exclamou a tia Jessie, juntando as mãos com tal entusiasmo que Jamie, que acompanhava sempre os entusiasmos da mãe, se fez vermelho como uma bandeira erguida em triunfo.

O Dr. Alec agradeceu-lhes e disse:

- O que importa agora decidir é se posso continuar. Isto foi apenas o começo. Nenhuma de vocês faz idéia dos sustos que tive e dos erros que cometi. A Myra tem razão numa coisa: Rosa é de facto uma criança delicada. Herdou da mãe um temperamento muito cheio de sensibilidade e precisa de muitos cuidados para poder desenvolver-se convenientemente dentro de um corpo são. Em todo o caso parece-me que, com a vossa ajuda, poderemos fazer que Rosa venha a ser uma mulher cheia da nobreza de caracter. Mais tarde todos poderemos orgulhar-nos dela, tenho a impressão.

O doutor Alec fez uma pausa porque falara muito apressadamente e com grande calor. As senhoras animaram-no a prosseguir.

- Não desejo ser egoísta, nem despótico, lá por ser o seu tutor, e deixo que ela escolha com plena liberdade. Todos nós gostamos dela e, se preferir, irá habitar com uma de vocês. No Inverno passado, animei-a a ir estar convosco uns tempos para poder escolher e saber onde se sente melhor.

- Todas nós gostaríamos de tê-la connosco disseram as tias à uma, radiantes com a idéia de que Rosa fosse viver com elas durante um ano.

- Muito bem. Vamos chamá-la e ela escolherá. O caso ficará resolvido por mais um ano, segundo a escolha que ela fizer. Só lhes peço que não estraguem aquilo que já está feito e que saibam encaminhar a minha filha. De contrário, sentirei partir-se-me o coração.

Enquanto falava, o Dr. Alec voltou as costas rapidamente e começou a examinar os quadros que havia pela parede. As tias entenderam perfeitamente que o pobre homem, que vivera sempre só e tivera como único afecto sua mãe, falecida há tanto, tinha pela menina uma afeição verdadeiramente paternal.

Fizeram sinal umas às outras e nenhuma estava decidida a disputar-lhe a "sua filhinha".

Ouviram-se, nesta altura, várias vozes alegres falando ao mesmo tempo, e todos os rostos sorriram. O Dr. Alec voltou-se para a senhora e disse:

- Aí está ela.

Rosa vinha acompanhada pelo grupo dos primos. O Dr. Alec olhou para ela cheio de orgulho como sempre fazia, enquanto a menina mostrava à tia Peace um cestinho que trazia na mão, cheio de flores muito frescas e de folhagens tenras.

- Sentem-se todos muito quietos, meus filhos disse a tia Plenty para o grupo dos rapazes que pareciam cintilar de saúde e mocidade. - Estamos a tratar de um assunto muito sério.

- De que se trata? - perguntou "Príncipe". Parece um julgamento.

O Dr. Alec explicou em poucas frases o caso. Essas simples palavras tiveram, no entanto, um efeito surpreendente sobre a rapaziada. Começaram imediatamente a querer, cada um deles, sugestionar a prima para esta escolher a sua casa.

- Devias vir viver connosco por causa da mãe. Deve estar saturada de rapazes - disse Archie, usando do argumento mais forte que pôde encontrar naquele momento.

- Lavarei sempre as mãos quando vier ter contigo, e passarás a ser a minha bonequinha porque a Pokey vai-se embora e eu gosto muito mais de ti exclamou Jamie, com o rosto a reluzir de entusiasmo.

- As irmãs devem viver ao pé dos irmãos e eu preciso muito de ti - acrescentou Charlie com tal convencimento que era difícil resistir-lhe.

- Ela esteve mais tempo na tua casa do que na nossa. O Mac gosta muito dela e ela faz-lhe muitíssima falta porque é "a luz dos seus olhos". Juro que. se vieres viver connosco, nunca mais usarei aquela brilhantina com que tu embirras - prometeu Steve, com um gesto de sacrifício muito nobre.

Mac tossicou e disse com uma vivacidade que não era vulgar na sua pessoa:

- Vem, priminha. Estudaremos química juntos. Tenho experiências colossais e posso explicar-tas.

Rosa, entretanto, estivera muito quieta com as flores caídas no regaço, olhando para uns e para outros. Enquanto Mac falava, olhou para o tio, que tinha os olhos fitados nela duma maneira que lhe foi direita ao coração.

"Sim. pensou ela, "o tio precisa mais de mim do que os outros. Sempre desejei poder oferecer-lhe qualquer coisa que ele estimasse. Chegou o momento".

E, quando um gesto da tia Plenty fez que todos se calassem, Rosa proferiu muito lentamente, olhando em volta como se pedisse perdão aos rapazes:

- É muito difícil escolher quando se está tão rodeada de afeições, de modo que me parece acertado escolher aquele que julgo precisar de mim.

- Não, minha filha, deves eleger aqueles com quem te sintas mais feliz - disse o Dr. Alec, muito depressa, enquanto um murmúrio vindo do lado da tia Myra deixava adivinhar qualquer frase neste gênero: "Minha querida Carolina", e obrigava Rosa a voltar a cabeça nessa direcção:

- Pensa um pouco, priminha, lembra-te que o Charlie é muito teu amigo - acrescentou Charlie, esperançado.

- Não preciso de pensar. Sei muito bem com quem me sinto melhor: fico com o tio, se ele quiser - exclamou Rosa num tom cheio de confiança e amor.

Se tivesse algumas dúvidas sobre a sua resolução, o rosto do tio Alec ter-lhas-ia tirado instantaneamente.

Durante uns segundos ninguém falou e, entre as tias, havia indícios de emoção que levaram os rapazes a tomar uma decisão que impedisse as lágrimas de correr.

Deram-se as mãos, fizeram uma roda em volta de Rosa e puseram-se a entoar uma antiga canção infantil.

Isto veio cortar a emoção geral e Rosa emergiu do peito do Dr. Alec, sorrindo, e com um dos botões do casaco do tio marcado na face. Quando ele viu isto, disse, dando-lhe um beijo que quase deu cabo da marcazinha: "Este cordeirinho é meu, já lhe pus a minha marca, de modo que ninguém nunca mais poderá roubar-mo".

Os rapazes acharam muita graça à frase e repetiram em coro:

- O cordeirinho do tio.

Rosa, então, saltou para o meio da roda, e todos dançaram como se se tratasse da festa da árvore. Phebe, que entrava nesse momento com uma jarra cheia de água para nela colocar as flores, começou a chilrear e foi como se muitos passaririhos se reunissem aos oito primos para festejarem juntos a Primavera.

 

                                                                                Luísa Alcott  

 

                      

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