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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OLHOS DE AGUA / Alves Redol
OLHOS DE AGUA / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

ROSAS sem unidade, atamancadas nas magras horas de lazer que faço sobrar, à má cara, da outra vida que levo, achei-me, ao relê-las, a recordar o Alviela, naquele alvorecer em que as suas águas borbulham, e pairam, e cabriolam, para se despenharem, desenvoltas, mais adiante, num salto febril de quem não cuida, e logo depois, em mutação de mágica, se darem a ripanços, com modos de se aprestarem para jornada amena.
O lirismo popular, que os poetas perfilharam, chamou ao sítio Olhos-d'Agua. E se na minha lembrança renasceu a imagem, logo daí, em hora de delírios, surgiu o título que pus a este livro, embora não fosse capaz de lhe dar a virtude.
Chegou agora, porém, talvez com o desespero impensado de quem sente as frustrações, o momento de atirar mais um filho para fora de casa - não sei ainda se para deixar de lhe ouvir as queixas, e já não ter com que lhe dar resposta, se para ver o seu comportamento, fora dos améns caseiros, na vida curta que vai viver sem glória. De qualquer modo, houve que tentar julgá-lo antes da partida, para melhor amparo da sua pobre aventura.
E logo se compreendeu que onde deveria haver vivacidade, colorido, inconformismo, e também poesia, e recolhimento interior, para que não fosse traído o nome herdado do rio, tinham ficado os acanhados limites destas páginas, em que do sonho à realidade quase tudo se perdeu - salvo a esperança do escritor, amachucada por algarismos e dúvidas de consciência, ao prometer a si mesmo trabalho menos comezinho para outra ronda.
O que ficou, porém, graças ao milagre da fantasia das palavras.
É que nas goleiras convulsivas dos rios jovens afloram milhares de olhos líquidos que, mal nascem, dando expressão às águas, logo morrem no próprio bulício dos cachões onde se geraram. Olhos sem luz, duma estranha vivacidade que é só estertor, nada os prende, porque neles não há imagem que se reflicta nem agarre.
Foi esse efémero, afinal, que acabou por servir às maravilhas para crismar um livro que eu gostaria de tornar tão humilde e tão ambicioso como os seus irmãos mais velhos.
Revive nele, ou parece reviver, uma vila ribeirinha, na monotonia dos seus pequenos ridículos e dos seus pequenos dramas, perdidos, quase sem eco, no ritmo voraz de uma civilização que a não consente. Por aqui andam lavradores e campinos, barqueiros e lojistas, mondinas e artesãos, pescadores e ceifeiros. E também os que abalam para a grande Cidade e para as ilusões de outros mundos que ficam para além do mar; e ainda os que vêm até à Borda-d'água em busca de canseira para os braços ou de aventura para dar de comer ao coração.
É um rolheiro de gente que trato por tu e que colhi na intimidade dos meus afectos mais puros.
Em histórias desgarradas, tendo a cerzi-las, com o ponto demasiado à mostra, notas de reportagem ou crónicas de voo raso, não fosse o delírio da altura exagerar a deformação da realidade, aqui fica o arremedo de um pequeno romance. Outras tantas páginas se poderiam escrever com gente da mesma cepa, desvendando-lhe os dramas de raiz ou de ambiente, que não faltam, à larga, por estas terras de horizontes rasgados. Mas preferiu-se a narrativa dos homens e dos factos banais, procurando mostrá-los na sua faceta mais comum, em prosas simples e de circunstância, como Goethe afirmava ser a poesia.
Será bom precisar que assim as realizei pela razão poderosa de o circunstancial estabelecer mais fácil diálogo com o meu espírito, forçado de tão jovem, e ainda bem, a compreender a vida como uma esplêndida aventura em que nunca se resigna, porque os homens podem ser destruídos, mas não vencidos.
Se juntar a essa característica a minha insistência em guardar a mesma preciosa parcialidade que dei ao meu primeiro romance, publicado há quinze anos, sem que um só dia houvesse procurado a porta da torre de marfim, apesar de alguns me quererem dar o número, terei confessado o essencial para não enganar.
E ainda mais: que a dedicatória a Garrett significa, além da homenagem devida ao que abriu o caminho ao nosso romance, a minha firme oposição a um cosmopolitismo que para aí anda a alardear fraternidade, embora de sobejo se lhe percebam as intenções.

 


 


PEQUENO ROMANCE DE UMA VILA SEM HISTÓRIA

Panorâmica 1
Se não fosse o rio, e certa gente que lá mora, a vila ^ seria uma terreola sonolenta e bronca, perdida no nevoeiro duma vulgaridade sem história. Nasceu para ali, entre a chã e a montanha, num improviso sem génio nem beleza, e ainda à mercê da caturrice de vereações camarárias, que nela fizeram terreiro de birras comezinhas: se vinha uma que a puxava para um lado, entendendo que o burgo devia ganhar altura para lavar os pulmões, logo chegava outra que a fazia encafuar na parte baixa, junto aos Iodos do rio, talvez com mágoa de a não poder encarcerar numa masmorra.
E a vila ficou desengonçada, ao deus-dará da sorte, como um fantoche ao abandono. De olhos postos no chão, ou de costas voltadas para o Tejo, dessorou-se por ruas vesgas e travessas sem destino, só porque os vereadores, ou os seus apaniguados, tinham quintal para hortos e pomares, e não era lícito prejudicar-lhes o afecto em proveito das passadeiras colectivas.
Para que o progresso não fosse palavra à margem do dicionário do burgo, tentaram abrir-lhe, certo dia, uma artéria mais larga, à custa do poisio de um presidente de

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junta demitido por questões políticas. E a rua ganhou proporções, com a sua faixa um nadinha enfartada e dois passeios, onde cabiam três pessoas, de ombro com ombro, em cada um.
Ufano daquela súbita abastança, o gentio acorreu a admirar as obras, discutiu-as com calor e deu-se a comparações com outras vilas ribeirinhas, acabando por impor uma comissão de festas, que organizou um arraial no largo com música e foguetes de lágrimas. Mas como o dono do poisio se não deu por vencido e jogou os seus votos na altura própria, acendeu-se-lhe candeia junto do governador civil, o qual, apressado em estabelecer tréguas, chamou à pedra o presidente da edilidade concelhia. E a rua mirrou-se, fez duas fintas apertadas, como se escapasse às investidas de um toiro espicaçado, e lá seguiu, com ripanços e ademanes, para se extinguir, num fio de azeite, no largo da praça.
E foi pena, porque a aristocracia rural ficou prejudicada no seu palco para exibição de cavalos e carruagens, bem como as senhoras, que têm de se debruçar em demasia para verem a carreira empolgante das esperas de toiros.
Daí lhe ter vindo o nome de Rua Arrependida, com que ainda hoje a conhecemos, apesar de lhe oferecerem o título pomposo de um capitão das índias, que ninguém entendeu decorar, a não ser os carteiros, por dever de ofício.
Como a conceberam seria mais um salão de festas do que uma artéria, onde aquela sociedade secreta faria desfile dos seus privilégios e dos seus prazeres. E talvez a vila não tivesse o ar melancólico que ganhou, embora haja ainda uma razão histórica para que pareça de castigo aos olhos de quem precisa de a atravessar. É que em tempos recuados foi sede de concelho - lá está no largo principal o antigo edifício da Câmara, com brasão de pedra mole sobre portão chapeado -, e agora vinga-se dela a outra vila que detém o ceptro municipal, por recalcados vexames dos seus anos de submissão.
Foram os notáveis da terra, quase todos lavradores, que abriram as portas a esta derrota, ao moverem influências para que uma fábrica não viesse instalar-se dentro dos
seus muros.
Julgaram as pessoas ingénuas desse tempo que o facto provinha de a fábrica ter chaminé, de a chaminé deitar fumo e de o fumo poder enfarruscar as cortinas e as filhas dos lavradores. Hoje, porém, muitos afiançam que a fábrica não nasceu ali para que os camponeses, atraídos pelas dez horas de trabalho e pelos salários mais altos, não abandonassem os campos de lavoira. Nisso sobejava-lhes a prevenção, pois os da ganga já desfrutam férias e oito horas de tarefa, enquanto os seus irmãos do campo ainda se esfalfam gloriosamente, salvo seja!, na canga do sol a sol.
A verdade é que a chaminé e o fumo caíram no vilar que ficava a uns quilómetros; e como havia que tirar proveito da electricidade ali montada, juntaram-se-lhe outras fábricas, e logo o poder económico do concelho se escapou do burgo agrário e tradicionalista para o centro industrial. Atrás disso, que parecia coisa sem importância, foram-se o título de sede concelhia, o tribunal, a secção de finanças e o posto da Guarda Republicana. Daí a neurastenia profunda em que hoje vemos debater-se uma terra que teve brasão e quis ser cidade.
Desprevenido destas questiúnculas dos homens, só o rio lhe permaneceu fiel, sem a poder abandonar; e ficou para lhe remir a chateza urbana, embora seja um rio velho e relho, esquecido dos vigores da mocidade. Mesmo assim, a gente da vila corre para as suas margens, talvez
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porque as estradas de água falam de aventuras pelo mundo, ou por certa curva sinuosa que o rio abre à beira do casario, como se quisesse agarrar-se às pedras do cais e ao aconchego do ancoradouro, onde repousam barcos de proas pintadas com flores estranhas, que só os poetas conhecem, e donde nascem, à noite, vozes encharcadas de plangências árabes para adormecer as estrelas.
Mesmo defronte, na outra margem, fica o corpo espalmado da Lezíria, todo cerzido por veias de água emprestadas pelo rio.
A vila mora da banda dos Montes, mas tem o coração na Lezíria. E dela lhe vêm as searas de pão e de luto, as histórias selvagens dos toiros feros e a garridice azougada dos fandangos.
E a lembrança já indecisa de certas lendas...
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A lenda das éguas e do vento
MALTESES que palmilham mundo, e hoje ceifam nas planuras do Alentejo e da Andaluzia, como semanas depois apascentam rebanhos nas fragas de Trás-os-Montes e cerros da Corunha, e correm cavalos doentes em feiras de gado, por conta de ciganos, e se medem com guardas fronteiriços nas encruzilhadas dos países, e conhecem o fundo das minas asturianas e os porões dos barcos de contrabandistas que sulcam o Mediterrâneo, esses, que sabem do mundo tanto como o próprio mundo, todo marcado com os seus passos, dizem que nunca sentiram vento igual ao que corre nas lezírias do Tejo.
É um vento que espinoteia como um garrano selvagem, e se sacode, furioso, a querer partir as amarras dos horizontes que o cercam, e muge, e uiva, e, às vezes, parece suplicar, vencido, pana logo escabrear em saltos e arrancos destemperados, capazes de estremecer as estrellas e fustigar as ervas rasteiras da gleba espalmada. Quando o sinal da sua aproximação se anuncia, ao longe, na ramaria das árvores do Norte, como o sussurro de búzios, acolhem-se os campinos às poisadas e agitam-se os gados
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nas pastagens, juntando as cabeças umas às outras, para se defenderem com as ancas das suas arremetidas.
Momentos depois aí está ele a varrer a Lezíria e os Mouchões, dando o primeiro aviso da sua chegada. Arrepiam-se os corpos, mais de emoção que de frio, e estremecem as motas e poisadas de caniço seco, sentindo as unhas do vento lezirão a agatanhá-las, como um lobo faminto que uivasse ao luar. E logo sacoleja, rodopia com loucura, arremete mais bravio e indomado, em assobios estridentes que golpeiam o ar e o ferem, como pontas agrestes de chicotes que se cruzam e avançam de todos os lados. Vergam-se-lhe, submissos, os raros choupos que alteiam na planície, os lençóis de espigas tenras das searas têmporas, que ondulam como um mar alqueivado, e a vegetação rebelde das bordas das abertas, onde os caniços e os bunhos, as espadanas e as 'hastes da mostarda se confundem e enleiam.
O vento lezirão fica senhor da planura, que corre, enfurecido, de ponta a ponta. Só então, certo de que ninguém o espreita, se acerca das manadas para rondar as ancas das éguas, postas em círculo. E parece ter hesitações entre uma fêmea de pêlo negro lustroso e uma outra de manchas doiradas, numa pelagem de fogo, para logo se decidir, atirando-se com as patorras invisíveis, qual garanhão selvagem que procurasse morder a cabeça submissa duma égua rendida.
A manada estremece de prazer, enquanto o vento a envolve de carícias.
Depois, quando ele abala pela madrugada, são as éguas e as poldrecas que correm a Lezíria num desaforo, relinchando a alegria de o terem feito seu noivo.
Diz a lenda que os cavalos da Lezíria são filhos do vento, tão ligeiro é o seu galope. Lenda medida por séculos, pois Estrabão já a ouviu e anotou quando os Romanos por aqui andaram - ainda os Árabes não tinham chegado à Península com a nora moirisca, o canal da rega e a sua arquitectura exuberante.
Mas a lenda ficou.
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A lenda da noite de S. João
a Primavera atira, ainda de longe, o seu primeiro -*-"-*- punhado de flores sobre a Lezíria, logo no horizonte aparecem as manchas brancas, franjadas de negro, das asas ronceiras e imponentes das cegonhas. Vêm para noivar e fazer casa, que alcandoram no cimo dos choupos esgrouviados ou das torres das igrejas mais altarranas. Sem um descanso, embora lentas, as gentes do burgo vêem-nas passar com os bicos carregados de materiais que vão carreando para o ninho - ninho, concha e berço, do cimo do qual elas castanholam com os bicos longos e rijos, como se acompanhassem a melodia do florir dos campos e a das cantigas dos ranchos, que vão começar os granjeios para as novas colheitas.
Depois, quando os filhos nascem, dizem os camponeses, não há pais tão desvelados, carinhosos e dados a sacrifícios; sempre à sua volta, ora abalando um à cata de comida, enquanto o outro os guarda das arremetidas dos rapinawtes, enchem-lhes os bicos e ensinam-lhes as primeiras noções que os servirão na vida. Lá do alto, talvez com vertigens - quem sabe?-, os filharotes habituam-se a descortinar os dois rios que enlaçam a Lezíria, as manchas
das manadas e das searas, o vaivém dos pais, que planam em voos largos, num gozo que eles ainda desconhecem, rasando os mastros das fragatas.
E quando as mondinas do arroz vão para a faina do* canteiros e os trigos se começam a chegar à foice, aloirando já, as cegonhas novas empoleiram-se nos ninhos e erguem atentas as lições de voo que os pais não se cansam de lhes ensinar, desde o partir, com as pernas levemente curvadas e as asas a bater, num ritmo lento, até ao deslizar no espaço, às voltas feitas numa leve inclinação do corpo, e ao poisar, de novo, nos bordos da concha que lhes serve de casa.
Dias sem conto, semanas inteiras, aí andam as cegonhas sabidas a amestrar os filhos sob as suas vistas, para que nem um pormenor lhes escape. É que se aproxima da noite de S. João - e uma vida nova se iniciará para as cegonhas jovens.
Diz a lenda que nessa noite, enquanto a mocidade, descuidosa, dança à volta das fogueiras, as cegonhas mães, implacáveis no cumprimento das leis da sua espécie, obrigam os filhos a sair do ninho, atirando-os para o espaço, onde alguns se despenham para a morte e outros se lançam para os prazeres da liberdade da Lezíria. Não há excepções, contam os camponeses, porque no mundo das cegonhas a liberdade é um direito imposto pela vida.
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A lenda de Santa Sofia
TilCASSE o mafarrico à vontade entre os gados da Lezíria, com tempo e sossego para se aprimorar nos desmandos que a sua danada imaginação pode conceber, e talvez hoje - pensavam os antigos - não houvesse na chã que vai do Tejo à Charneca sinais de cavalos e toiros nas pastagens dos salgados.
Sabendo-se do que é capaz - afiançam os que o conhecem bem -, não será exagerado supor que a sua endiabrada malvadez começasse a fazer cruzes de toda a ordem para espavorir lavradores e criados, levando-os a abandonar as terras ribeirinhas feitas pela pá do valador.
Se lhe desse para baralhar toda a fauna que por ali vive - santo Deus! -, existiriam hoje bichos mais feros e mais horrendos do que aqueles que o dilúvio afogou para sempre. Corpos de toiros possantes com asas de cegonhas e cabeças de lebres, garças e garcenhos com rabos de cavalo, cobras com comos e éguas a coaxar como as rãs, se não entendesse o maroto meter o homem nesta família estranha, fazendo da nossa espécie um cacharolete de toda a bicharada.
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Para excomungar o Diabo daquelas paragens só houve o remédio de pedir a protecção de uma santa virtuosa que o não deixasse à vontade.
Santa Sofia acedeu à súplica, e com ela se encontravam, os que queriam evitar éguas mal cobertas, novilhos mal nascidos, manadas sem doença ou perdas de cabeças, quando as cheias e as azielas arremetiam a Lezíria e os gados saíam para a Charneca à procura de pastos e de Invernos sem desgraça.
Santa Sofia, milagreira, por todos olhava e a todos atendia com a sua abnegada pachorra. E daí os homens, mais 'agradecidos do que os pintam, terem mandado construir, na aba de um monte maneiro da margem norte, ermida simples para guardar a imagem de dois palmos da que protegia alguns milheiros de hectares com o seu manto recamado de estrelas.
Legou-lhe um lavrador terra bastante para acolher manadas; ofereceram-lhe outros -e nenhum criador de gado se fez sovina com a santa - cavalos e toiros, novilhos e poldros, numa humildade1 comovedora de gratidão.
E a tapada da Santa Sofia -< aqui nasceu a lenda - não precisava de moirÕes e arame farpado, como as outras dos lavradores, nem sequer de campinos de pampilho ameaçador, para manter os gados em respeito. Era a santa em pessoa que da sua ermida dava a volta às manadas, as conduzia aos bebedouros, as levava a bom recato para a Charneca, no tempo das cheias, e as mantinha em paz sagrada, sem que uma só vez se ouvisse contar de rixas entre os seus toiros, que eram muitos e feros.
A lenda e a ermida desapareceram. Duma ficou um apontamento manuscrito, que poucos conhecem, e da outra nem uma simples pedra inscrita, mesmo abandonada, se encontra no monte que domina a Lezíria. Tudo morreu com a morte dos santos caseiros, como já antes se haviam
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finado as deusas do paganismo. O progresso tem as suas leis e não cuida dos oragos locais, que defendiam os interesses particulares dos terruços, do mesmo modo que esfanicou o artesanato, deu à hipoteca a pequena leiva e estrangulou as humildes caixas de crédito.
A concentração da riqueza obrigou o milagre a unificar-se.
E as lendas que as avós contavam aos serões foram substituídas pelas que trazem os jornais, esquecidos agora de Santa Sofia e das suas virtudes milagreiras.
MAS não é das lendas que vem a magia das terras lezirentas, outrora desgarradas em ilhotas, malagueiros e pequenos mouchões que o Tejo serpeava, e onde a pá dos valadores, pouco maior do que a concha da mão do homem, fez este milagre de os ligar numa planura ansiosa de galgar distâncias.
Embora a chã alcance, pela Primavera, lonjuras gloriosas de verdes, e de doirados quando o sol abrasa e as espigas se chegam à foice, e de negro e odores mal a chuva e as azielas a empapam de novos vigores, ou, ainda, quando, de horizonte a horizonte, toda ela se abre num mar de tragédia, não é dessa paleta maravilhosa de tons que lhe vem o encanto. Nem da paisagem, embora a água por ali ande, caprichosa, ora a cingi-la em enleios e furtetas esquivas, ora a embebedá-la numa bacanal de xaboucos, alvercas e mares, que são os corações dessas redes densas de veias, por onde a vida lhe penetra no corpo.
A fama da Lezíria e da Borda-d'Água vem-lhe das manadas de cavalos e toiros e dos espectáculos de movimento e barbárie a que dão pretexto: a desmama e a enchocalhação, a ferra e a tenta, a apartação e a amansia,
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Panorâmica 2
onde pontificam os campinos, pobres reis imaginários curtidos de perigos e fome, e cuja lenda todos os dias as crónicas refazem, e todos os dias a dura realidade esbarronda, acasalando-os com os demais servos da gleba. Distingue-os a garridice do traje de festa e a complexidade da hierarquia profissional, que passa do anojeiro ao roupeiro, deste ao eguariço e ao contramaioral e maioral, e lá ao cabo, passadas as tormentas duma vida que leva a morte na ponta da cinta vermelha, a divisa bem rara de maioral-real.
Desmontado, em dia de trabalho, o campino é um vulgar homem da terra, só mais seco e de perna escanifrada, um tanto caneja pelo jeito de cavalgar. E uma certa arrogância pimpona no olhar e na maneira de dar a saudação.
Mas em riba da montada e de pampilho ao ombro ou em riste, como se caminhasse para um torneio de lança, o campino transfigura-se. Nas manhãs de festa, quando o curro de toiros vai para a corrida, entre bravuras e algazarras, é vê-lo e admirá-lo a enquadrar os garbos dos últimos abencerragens da aristocracia rural.
Nesses dias a vila melancólica acorda excitada, deixa de bocejar e toma de assalto a Rua Arrependida.
Lá estão sempre as mulheres bonitas a ornar os varandins, como se as levassem ao teatro para ver os lavradores representarem de valentes. Põem-se colgaduras e mantas nas janelas, estreiam-se jaquetas e chapéus de aba rija, cobrem-se os passeios de uma multidão azougada que hesita entre o assistir ao espectáculo e o participar nele.
A arraia-miúda entra sempre para fazer o intervalo cómico ou o intervalo trágico• nunca se sabe ao certo. O peão tanto pode ser despido pelas hastes de um toiro, ficando como o botaram ao mundo - e é uma risota -, como ficar enganchado pelo ventre e esvair-se para ali
em sangue, entre gritos histéricos das senhoras e assobios da rapaziada. E se há a sorte de um aficionado correr com a saca de linhagem ou o cobertor da cama, para fazer frente ao bicho, arrancando-o da crença de esfanicar os restos de homem que para ali ficaram, logo se ouvem palmas frenéticas e a vítima é esquecida até à hora da sesta.
A espera prossegue com gritos de "lá vêm eles!", atropelos de susto, falsos alarmes e colhidas autênticas. com farroncas no sangue ou vinho nas tripas, os valentes nunca faltam. E os da nossa vila lá estão, atrevidos, para bater as palmas a um toiraço e morrer a sorrir, com a certeza de que o nome virá nos jornais e a tradição oral lho decorará, bem como as façanhas.
A glória máxima teve-a aquele rapazola morenaço e bexigoso que pegou num trapo de linhagem e conseguiu tirar um toiro borralho, de testuz negro, de entre as guias e campinos que o levavam à praça e ali mesmo, na rua, o passou de capa como um maestro, sem apuros de estilo, mas com valentia para uma quadrilha de matador. O bicho dava tarrascadas de estremecer, mas o Zé Bonito não lhe perdia a cara. Porém, numa volta rápida de sentido, o toiro meteu-lhe uma das agulhas à camisa e enganchou-o, levantando-o na cabeça possante, para depois o receber no chão com duas comadas. Ferido de morte, Zé Bonito ainda se ergueu a cambalear para abrir o trapo. E o bicho raivoso, de novo o levou nas agulhas, para o enfeixar a um canto da rua e pisá-lo; depois olhou a multidão, acobardada, com a cabeça erguida, num desafio.
O toiro recebera ao nascer o nome de Desertor. Mas os campinos mudaram-lho para Zé Bonito, em homenagem ao rapaz morenaço e bexigoso que morrera sem medo.
As esperas dão destas glórias, que não há dinheiro que pague.
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À hora do almoço sabe-se a lista, sempre aumentada pela imaginação, dos que entraram no hospital com rasgões ou dos que voltaram a casa com os pés para diante e muito juntos. E se de uns e outros a relação é farta, o burgo incha de orgulho, com a certeza de que nem Vila Franca nem Alcochete lhe levam a palma.
Ao passo sorna da montada magra os campinos regressam aos pátios ou à Lezíria.
Um campino tonto de amor
NAQUELA noite a Lezíria é um mar de silêncio, donde * só emerge um fio de música, que o vento faz ondular em vagas. Sem saber os caminhos que pisa, um campino vai ao seu encontro, levado pelo passo lento duma égua pigarça, cansada, como ele, de solidão.
Tonto de amor e de juventude, o oiro das searas que atravessa queima-lhe a pele crestada; e um gabão tecido de noite e estrelas cobre-lhe os ombros.
Há no ar um cheiro áspero que o excita e lhe faz apetecer as coisas mais simples da vida lezirenta. Gostaria de levar na garupa da sua égua a carmela que ontem lhe deu água do rancho da monda e sentir as suas mãos apertadas na cintura, em vez da faixa vermelha, e ir com ela depois, quando ambos o desejassem, adormecer num coxim de espigas e papoilas. Mas a serrazina do harmónio trá-la para si, com a saia curta pelo meio da coxa morena e aquele sorriso envergonhado e picante, que ele leva agarrado aos olhos. E por isso o campino tonto de amor vai ao encontro da música e da carmela que o espera. Só lhe disse "bom dia", mas tem a certeza de que a rapariga
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não bailou ainda, para olhar, inquieta, a porta do aposento por onde ele irá entrar.
E já é tarde.
Um toiro negro malacutão, o Príncipe, fugiu-lhe da manada, saltando os moirões da pastagem, e foi, carril abaixo, meter-se na tapada das vacas. Acossando-o na ponta do pampilho, num galope que esfarpou a Lezíria de gritos selvagens, o campino fê-lo voltar à pastagem, onde os outros o receberam de cornos em riste. Ele sabe que, mais dia menos dia, o Príncipe e um toiro salgado, de morrilho farto, o Andorinha, irão lutar pela chefia da manada; e que um deles morrerá sem piedade, enganchado nas hastes do outro - talvez o Príncipe, porque não há toiro que goste dele, e o círculo que os outros farão à volta dos dois, proporcionando lugar para a luta, não se abrirá para lhe dar a fuga e protegê-lo.
Aquela ideia excita-o. E dá de esporas à égua, que dispara numa carreira, levando consigo, em farrapos, o gabão de noite e estrelas que trazia sobre os ombros.
Quando chega à porta do aposento das mulheres, lá estão os olhos tristes da carmela à sua espera. Pimpão, atira a jaqueta para cima duns alforjes e acena a cabeça para a cachopa.
O harmónio toca um fandango.
Ele rompe por entre os grupos, acotovela um dos dançarinos, para que lhe dê o lugar, e, metendo os polegares nas cavas do colete, salta que nem um gamo à frente do outro; bate com os calcanhares, de busto rijo empinado, enquanto as pernas rendilham fantasias e o carapuço verde lhe saltita no dorso. Não tira o olhar doirado da carmela, que já lhe sorri, e sabe agora que a levará na
garupa da sua égua pigarça, para noivarem num coxim de espigas e papoilas.
Tonto de amor e de juventude, a faixa vermelha cai-Ihe da anca fina e escorre para o chão, como se fosse uma golfada de sangue.
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aba doce de um dos montes que encastoam o burgo escorre a parte mais velha do povoado, como se fosse a lava de um vulcão de fedor e de ruína. Ali se vêm acoitando, há mais de quatrocentos anos, os habitantes pobres, que não têm donde lhes venha, a não ser do braço. É um labirinto de ruelas e travessas, com tugúrios sem pulmões nem altura, amontoados pelo improviso dos trolhas e pela sovinice dos senhores da terra, uns e outros incapazes de conhecerem uma letra do tamanho de um boi, quanto mais quaisquer regras que os aconselhassem a prever o futuro.
Aferrados à vida que então se vivia, já aqueles casebres lhes pareciam palácios ao pé das choças e as minguadas passadeiras de pedra mais do que espaventosas avenidas de cidade, em comparação com os carreiros por onde viajavam fora das povoações.
O futuro para eles era o presente - a mesma ronceirice, com os senhores a deslocarem-se, levados pelas bestas de sela ou de tiro, e os vilões sempre à pata, como os asnos e os mulos; e lá muito de vez em quando um carro
tirado por junta de bovinos, a que o boieiro cantava,para animar a marcha gingada e sorna.
Os dejectos saíam pelas janelas e escorriam pelas ruas, até ao dia em que o progresso inventou uma carroça para os recolher. Os vasos eram postos à porta logo de manhã e uma espécie de dorna, montada sobre duas rodas e puxada por uma 'azêmola, vinha juntar os despejos, fazendo-se conhecer à distância por uma campainha reles. O funcionário que se encarregava da recolha era sempre um pobre homem tão fétido como os vasos e a carroça. E o rapazio chamava-lhe nomes e corria-o à pedra - nunca se soube, ao certo, se pelo fedor que exalava, se por se submeter àquela triste profissão.
O bairro, que se chama das Virtudes, sem que se alcancem as razões do nome, é uma espécie de estrumeira da vila, onde as doenças e as ratazanas passeiam como em casa própria. Talvez por ironia, sempre foram dali as raparigas mais bonitas do burgo, o que obrigava os fidalgotes e os "homens bons" a percorrê-lo de noite, embora bem embuçados, para que os não conhecessem as regateiras do sítio.
Outra fama do bairro vem-lhe de uma fonte milagreira, que prende à vila para sempre o homem que beba da sua água. No fundo não é a fonte, mas as moças, que arreatam os homens. E ainda bem, porque o povoado cresceu em forasteiros e gente miúda, tão submissas e ternas se mostram as cachopas para quem lhes ronde a porta.
Os soldados de Junot é que não levaram dali boas lembranças, pois a arraia-miúda nunca se perdeu de amores pelos ocupantes, ao contrário da fidalgaria, que lhes abriu as portas e 'as roupas da cama. Bem amassados a porrete ou picados à navalha, muitos franceses ali ficaram à espera que o Sol nascesse para os levarem ao cemitério. E quando Napoleão ficou vencido, lá longe, e a hora
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da libertação chegou para o resto da Europa, a gentalha do Bairro das Virtudes foi-se aos soldados do general e não lhes perdoou a ofensa das brutalidades e até das carícias.
Diz-se que uma só rapariga, à sua conta, "fez a cama" a mais de sete.
É capaz de ser lenda, como a da padeira de Aljubarrota, o que para o caso não importa. O que se deve lembrar aos que vêm, ainda que vestindo capa de santos, é que por estas bandas nunca gostámos de ouvir línguas estranhas com permanência, mesmo que nos queiram passar o braço pelo ombro.
Por aqui somos todos de forma torta, como dizia o meu avô, que era homem de poucas falas. De poucas falas e de reservas. E se gostamos de sentar à nossa mesa o viajante que chega por bem, temos o sentido muito apurado para descobrir, quase de olhos fechados, o que se aproxima com a intenção de que lhe tiremos do lume as castanhas que ele lá põe para vender.
A Primavera chega primeiro ao Bairro das Virtudes do que aos campos.
Os rapazes começam a fazer moinhos de papel, que depois apregoarão, espetados em pedaços de piteira, pelas ruas burguesas da vi'la, tentando os meninos endinheirados, que não sabem criar aqueles deslumbramentos de cor e de fantasia. As mães vêm sorrir-se para as portas, como se ali despissem as angústias do Inverno, que ainda escorre pelas valetas fétidas. E os homens saem mais cedo para as tabernas, onde se faz a praça dos braços para o campo, enquanto os moços de saco se sentam nas muralhas do cais, à espera de fragatas para descarga.
Mais cuidadas nos seus vestidos de chita, as raparigas penteiam-se à janela, espreitando o rosto em pedaços de espelhos que os irmãos acharam na lixeira que fica perto do bairro.
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Panorânmica 3
Morreu uma flor na Primavera
MORTA pelo contacto daquelas mãos sapudas que a prenderam e pelo corpo que nela refocilou, como se um bácoro devorasse magnólias.
E não se abriu sobre a vila uma tempestade que a assombiasse, zurzindo-a com chicotes de lume, até a pôr de rojo, mais baixa do que a lama; nem do Céu veio um punhal de fogo que queimasse os códigos dos juristas e os pusesse tão negros como as suas togas.
Foi, ao contrário, uma manhã de Primavera, verde e amorosa, verde e suave, com fanfarras de sol que fizeram sair mais cedo os velhos e as crianças. E que trouxeram um temporal de andorinhas à torre da igreja. E que abriram as flores, ainda receosas, nos prados das margens do rio.
Até num pátio fedorento, onde brincam crianças com a morte, um pessegueiro anémico deitou uma flor deslumbrada.
E só ela murchou...
É uma casa com a frente ratinhada pela ruína. Tem uma porta verde, com ombreiras da mesma cor, sem mais
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buraco por onde entre a luz. E a luz fica sempre nos degraus de pedra, com receio de se sujar lá dentro.
A porta também serve de janela, ao jeito dos "aventais de pau" das raparigas públicas doutro tempo. É a essa janela que assoma, de vez em quando, que assoma e desaparece, assustada talvez, a cabeça de um homem magro com uns olhos que parecem inteligentes. Como temendo que a vida o po'ssa vir prender com os seus mil braços, aquele homem nunca dali sai.
Mas, ao contrário da luz, a vida entra pela casa dentro e ninguém a arranca daquele poço.
Quem passa na rua nada vê - é tudo negro para além das ombreiras verdes, mesmo nesta Primavera verde e amorosa, verde e suave. Quem passa nada vê, mas sabe que lá dentro está a vida enrolada na miséria mais negra que ali se conhece. E que todos os anos - e já passaram treze - há uma mulher que deita filhas ao mundo; e que essas meninas são as mais formosas que a vila melancólica alberga, como se aquela esterqueira fosse propícia à beleza.
As mais formosas, sem exageros de conto romântico.
Quando as vejo passar, num rancho de pé descalço, julgo que fugiram das telas de pintores e se vestiram de pobres, para que não viessem prendê-las e obrigá-las a voltar ao silêncio dos museus. São pinturas vivas que ali andam a derramar pureza e candura, ante o espanto desses enfadonhos burgueses que as espreitam com guloseima, não sei se para as devorarem com a sua gula de carne jovem, se também com ciúmes de não serem pais de moças tão belas - de uma formosura que só possuem certas princesas, talvez porque estas e as meninas que nasceram no poço com porta verde são filhas da decadência. Filhas de plantas cansadas que antes de morrer se desfazem em flores maravilhosas.
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Para serem ainda mais estranhas, têm cabelos doirados e olhos claros, que vão dar cor do tabaco virgínia ao verde-mar, ao azulado e ao cinzento-papo de rola, peles rosadas, com toques de açucena, mãos longas e pálidas, linha branda nos corpos e uma maneira de pisar a rua e de caminhar com a cabeça erguida, como se os pintores, antes de as deixarem partir para o mundo, lhes tivessem ensinado a fascinar.
Entre elas só uma é feia - a que parece a Maria Luísa pintada por Goya.
O homem magro que espreita a rua falou à mulher.
E ela achou que talvez, sim, quando passava à porta do café, havia um tal, o das mãos balofas, que ficava de olhos agarrados àquela menina, ainda ontem maravilhada com a montra da capelista, onde está uma boneca loira, de olhos pestanudos e que chora quando a movem.
"Vê lá se ele te fala", disse o homem.
E a mulher procurou encontros, parou à noite numa betesga e tudo ficou assente. E tudo foi simples.
"Então ele sempre quer?
"Só acenou a cabeça e fez cara de riso.
"E disseste-lhe quanto era?
"Disse.
"Quanto disseste?"
A mulher envergonhava-se de falar em dinheiro - talvez porque ela, ao menos, pôde namorar. Mas o homem que não sai de casa insistiu:
"Quanto disseste?
"O que tu mandaste...
"Mas quanto?...
"Quinhentos..."
O homem deitou-se sobre a cama de ferro, que tem um cesto de flores pintado à cabeceira. Cerrou os olhos
e tossiu. Entre ele e a mulher nasceu um silêncio terrível, que nem a menina de colo, estendida a dormitar num caixote, foi capaz de romper com um gemido.
"Achou muito? perguntou o homem sem voltar a cabeça.
"Disse para aparecer...
"Quando?..."
A mulher já não respondeu, sufocada por soluços, que depois libertou em gritos abafados com a ponta do aventall. E a outra mão premia o ventre, como se o quisesse secar.
Por isso a Teresa saiu a noite passada com o seu vestido de chita azul. E não ia triste, embora de cabeça pendida- nem sequer ainda tem namorado...
A mãe levou-a pela mão e ficou à espera que ela voltasse, sentada à porta de um armazém, onde o homem de mãos sapudas guardou durante a guerra o azeite para a candonga.
Dos campos adormecidos vinha um perfume a Primavera. Mas a mulher chorava.
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Panorâmica (4)
A tradição é a luz intensa que ilumina ainda hoje os
-^*- caminhos percorridos pelos heróis, pelos santos e
pelos mártires, e que são ínvios para certos iconoclastas
que vestem de branco e deveriam trajar como Belzebu,
que é o guarda das suas almas."
Foi o Dr. Carvalho do Ó quem o disse, em artigo de muita erudição, no quinzenário da vila - O Indefectível-, "ao serviço da lavoira e da Pátria", segundo se proclama no cabeçalho, e que mais não era do que uma desafronta para certas galhofas e vitupérios duns malandretes que se reúnem na Barbearia Fraternidade. A alusão à bata de mestre Sampaio era evidente, e toda a gente o percebeu; até o Dr. Carvalho do Ó, que ficou sem a banda do casaco quando o outro lhe pediu satisfações, numa arrogância sem nome. O barbeiro fora às do cabo com o "envio" do artigo e não houve razões que lhe abrandassem a sensibilidade magoada.
E tudo isto por causa do velho brasão do burgo, que,
no listei, vem a proclamar aos tempos que a vila é notável.
Mestre Sampaio e a sua gente vociferam, garantindo
que não há na história regional pergaminho ou feito ilustre
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que torne válido o uso do adjectivo. Dizem eles - onde chega a perfídia humana! - que o arqueólogo autor de tão imaginosa insígnia devia resolver os seus pareceres heráldicos debaixo da pinga ou por rifas; que o homem - ah, mestre Sampaio! - metera num saquitel uns tantos papelinhos com o nome de quantos símbolos se entenderam servir para o efeito, como castelos, cabeças de reis moiros e cristãos, romãs, espigas e maçarocas, espadas e alfanges, leões e outros bichos da criação... E ainda árvores com laranjas e azeitonas, ou até sem frutos, como o pinheiro, pois já o rei D. Dinis falava do "verde pino". Depois disto o arqueólogo fechava os olhos, para não iludir o acaso daquela lotaria tão emotiva, e tirava dois ou três papelinhos para a composição dos pareceres. Daí o brasão da vila conter um castelo, de que nunca olhos de gente viram, sequer, umas pedrinhas para amostra, um leão de rabo muito enrolado e ainda uma palma entre o castelo e o rei dos animais, salvo seja.
Sem jeito de polémica, que os da barbearia dizem muitas vezes coisas sensatas, há que os chamar à razão neste caso particular.
No que respeita ao castelo, só uma propositada cegueira os impede de reparar que mesmo na rua principal existe uma fortaleza ao jeito da Idade Média, com ameias e tudo, porta de volta caprichosa, e até guaritas lá no alto, embora todo o edifício seja construído de cimento, que é material pouco vernáculo. Quanto a patina, não se lhe conhece outra que não seja a das manchas de bolor de alguma irreverente penetração de humidade ou o descasque produzido pelo tempo na caiação anual.
O castelo tem a sua história, como não podia deixar de ser num castelo, e, embora se saiba que no local não se travou qualquer batalha para defesa do terruço lusitano - como se diria em O Indefectível-, a verdade é
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que o apreço por tão engenhosa obra de arte não poderá ser menor, pois mal andaríamos se não legássemos ao futuro obras significativas das nossas glórias presentes. E que glórias!...
O castelo de cimento ficará, disso não duvido, como uma das raras preciosidades do engenho e do pendor nacionais para as artes de confeitaria, em que bem raros povos nos levam a palma. Mas volvamos à história do nosso monumento.
Na vila existe um velho chafariz de três ibicas e tanque para os gados, onde as mulheres do povo vão fazer o seu Chiado: vejam-se passar certas varinas, com a cinta preta a apertar-lhes o ventre escorreito, o peito alçado a enfunar-lhes as blusas de chita e a soberania com que caminham de bilha à cabeça e braços em arco, um erguido para a asa de barro, outro caído sobre o ressalto da anca, movendo-se todas num ritmo tão lento e sensual que deixariam espalmados na parede, como peles de coelho, certos basbaques de Lisboa. Ali vão encher os cântaros e despejar as novidades de três léguas em redor, que depois circulam pela vila inteira, desde o fojo do trabalhador que se acoita nas locas do monte, como o nosso irmão da era da pedra lascada, até à sala de visitas, toda vidrinhos e almofadas de veludo, do mais sisudo burguês que viva de juros e de rendas. No entender deste, os mexericos são de reprovar quando insinuam - ou até afirmam sem papas na língua - que o senhor fulaninho é amante da mulher de sicrano, que um director da fábrica de tecidos da sede do concelho se esbodega de volúpia quando vê entrarem-lhe ao portão certas moças, ou que um tal doutor se afazenda com as verbas do organismo que dirige. "Ora, pois não! Donde lhe vem o automóvel?... Dizem que a mulher tem mais de trinta pares de sapatos... E umas roupas de baixo tão bordadas e macias que os presos da
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cadeia morreriam de canseira se lhes passassem a mão por cima..."
Por estas e outras, a gente grada da vila odiava a fonte; por quanto lá se dizia, mas ainda mais pela certezinha certa de que eram as próprias criadas que carreavam para ali os segredos mais íntimos dos seus lares.
Como o rabo de raposa não dispensa o faval, assim o burguês não pode viver sem a serva. A verdade é que trocava a água para beber e para o banho semanal pela reputação da família. E quando se abriram duas ruas novas, logo as influências se moveram para que lhes não faltasse o fontanário, única maneira de isolar a criadagem daquela gentalha da fonte velha. O pior é que um tal melhoramento obrigava a depósito para a água; e a burguesia da terra, que seria capaz de decepar cabeças se lhe atormentassem os direitos, não hesitou também desta feita e exigiu o depósito. Foi então que funcionou essa imaginação maravilhosa para nos legar o castelo de guardar a água. Um lindo castelo, embora pequeno, donde em noites de luar escorrem os cabelos prateados do astro doente.
A umas tantas horas do dia, quem lhe passasse perto escutava o zunido do motor e o matraqueio da bomba, que bem serviriam na Escócia para facilitar a lenda de um fantasma qualquer a arrastar a espada e os restos da armadura. Na nossa vila, demasiado indolente para imaginar figuras lendárias, o tossir convulsivo da bomba castelã era a resposta do burguês distinguido ao mulherio sem dona.
Barrenta e malgostosa, a água despejava-se de uma torneira amarela de pistão, muito recatada num nicho que ficava à direita da porta, e onde o rapazio passava horas a premir o botão e a descompor as criadas, que os corriam
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a chinelo. Depois veio a água canalizada ao domicílio e tudo ficou sem préstimo: o castelo, o depósito e a torneira.
Agora a fortaleza serve para arrumação camarária, repousando entre as suas paredes - mais tarde qualquer Dr. Carvalho do Ó lhes chamará vetustas - as pás, as vassouras e o carrinho da limpeza, até que alguma edilidade inteligente resolva fazer dali o panteão regional, para eterno repouso das figuras mais gradas do burgo, que não são poucas, arrumadas e classificadas em sarcófagos de cimento armado para não destoar do conjunto.
Quanto à palma verde sobre fundo de prata, é bem possível que queira significar uma barreira vegetal para impedir que o leão vá 'beber a água da fortaleza, ou ainda uma maldosa insinuação do arqueólogo - quem o diria! - aos palmanços que vão desenfreados pelo mundo e que só há uma maneira de remediar: meter na cadeia os que teimam em não empregar o método, deixando os demais a viver como os grilos.
Já o leão simbolizará a bravura dos habitantes do burgo, não obstante o jeito muito equívoco daquela cauda em feitio de borla de pó-de-arroz; ou talvez - e porque não? - um pendor profético do arqueólogo para prever que se viria a prestar vassalagem ao leão americano da Metro, um pobre bicho desdentado e sem imaginação. De qualquer maneira, já serviu para emblema do grupo de futebol da vila, o que é um préstimo de louvar, ao mesmo tempo que facilita os discursos dos oradores consagrados.
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Romagem nocturna
FIRMAR que todas as noites, quer ventasse, quer chovesse, ele repetia o mesmo passeio e parava, com um sorriso, não sei bem se de orgulho, se somente de confiança, junto à esquina da praça velha, olhando o nome que lá está pintado em fundo preto, seria exagero descabelado para prejudicar a reputação do homem.
Mas a verdade é que o faz sempre que deita até ao clube para jogar umas partidas de xadrez, a que ele chama "a sessão de ginástica da inteligência". Os colegas de medicina dizem, por seu lado, que ele vai para ali por não ter telefone em casa, não se sabe bem porquê, agenciando ainda uma parte dos doentes que sobejam das várias caixas de que guarda o exclusivo.
Já perto da uma, deita os olhos pela sala de bilhar, vai ao lavatório passar as mãos por água, mais para ver se a toalha está suja e repreender o contínuo do que para se lavar, e ei-lo na rua, distribuindo a manápula de lutador pelos que saem com ele.
"Meus senhores! Boa noite! Até amanhã, se Deus quiser!"
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E tirando o chapéu, numa vénia rasgada de mosqueteiro, o Dr. Leonardo pisga-se, sem deixar que se lhe atrele o Lavrador das Moças, uma sarna que passa a vida a contar histórias de cavalos e de mulheres, à espera que a madrugada chegue para procurar a cama.
Quem o vir, então, percorrer a vila, sozinho, pela calada da noite, dialogando com a sua sombra avantajada, ora de cabeça abatida sobre o peito, em cogitações profundas de quem arranca pensamentos da raiz da terra, ora de gaforina crespa, ao léu, e com passo desenvolto de ganapo, acha que ele faz a ronda para se desintoxicar do ambiente de fumo da saleta do clube ou para deitar boas contas à vida, que lhe corre de vento em popa, pois às caixas e à consulta particular junta-lhes o dinheiro a juros, os dividendos das acções da Senhora Companhia e certas comissões em negócios que facilita com uma ida à capital.
Há marotões a insinuar que ele se mete ao passeio para melhor se sumir nas sombras da noite e nalguma porta que se lhe abra por galantaria. Apoiam essa versão no modo guloso com que depenica as damas, todo Vossas Excelências, vénias e sorrisos de rebuçado, e ainda pela sua apregoada viagem a Paris, "que é cidade de bródio e de prazeres secretos", no dizer sabichão do Raposo da C. P., quando ele só trouxe de lá uma abada de livros de pintura, em que é sumidade.
Ouvir-lhe relatos do Louvre, nos serões do clube, é um deleite, como diz o Dr. Carvalho do Ó. E apesar de estabelecer certas confusões com os pintores e as escolas, isso é coisa de somenos, que não dá escândalo, tratando-se de uma personalidade que bebe do fino e já esteve para ser deputado. De resto, o Louvre e a pintura só lhe servem para os brilharetes da vida social, num meio em que se fala de tudo, mas só se sabe de toiros.
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Em casa, no aconchego da mulher e da neta, o Dr. Leonardo prefere os bonecos de cera do Museu Grévin; no fundo do seu coração, porém, guarda ciosamente as recordações que trouxe da concierge do hotel onde se instalou, uma mulheraça de Tours que lhe foi ao quarto provar o vinho do Porto.
De qualquer modo, a viagem acrescentou-lhe a já sólida cultura coimbrã, dando-lhe um prestígio que não se cansa de crescer, pois desde o jornal e do plano de urbanização, de que foi autor, até à empenhoca para livrar rapazões da recruta e para a nomeação política, é sempre fatal a sua interferência ou opinião atilada.
Espírito insatisfeito, como ele próprio se confessa, é sensível, em jeito de catavento, a todas as ideias empolgantes.
E se na juventude fez dois discursos integralistas, andou depois de água e pucarinho com os democráticos, quando precisou de nomeação para um partido médico, embora, como ele sublinha, "nunca tivesse perdido a sua total independência". Esse condão lhe valeu para ferir de morte, em crítica acerba, a administração liberal, mal soou a hora de a julgar por todos os males que vinham da era dos Afonsinos.
Mais tarde apostou em Hitler, fez-se anti-semita, apesar de certo jeito comprometedor do nariz, estudou geopolítica e quis aplicá-la, apossando-se de uns terrenos que ficavam junto à sua quinta; ainda pensou em ser voluntário de uma cruzada bendita, mas ficou em casa, e por um triz não andou nas manifestações da vitória, no fim da guerra, "pois fora enganado pelo nazismo, que abusara miseravelmente da sua boa-fé", segundo confidenciou a um anglófilo, quando a maltesaria da vila saiu para a rua com a banda de música.
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Conteve-se, felizmente, e assim pode agora arrenegar o "estúpido esmagamento dos países dinâmicos", embora comece a hesitar na maneira de o conseguir.
Esta versatilidade vem da insatisfação da sua inteligência, apodada por ele próprio de renascentista, talvez por se lembrar do seu homónimo de Vinci, mas nunca por mesquinhas conveniências, que repudia com ardor. Toda a sua vida tem sido dada em sacrifício pelos seus concidadãos, embora no burgo lhe chamem o Arroz-Doce, por gostar de aparecer em toda a parte. Não entendem esses pobres de espírito que o Dr. Leonardo se deu a esse fadário para poupar os outros à maçada de serem célebres.
Ainda a semana passada, à porta do clube, ele disse, para quem o quis ouvir, que lamentava não viver nos Estados Unidos só para se dedicar à investigação científica.
E que extraordinário chefe de equipa daria o nosso doutor!...
A vila inteira lembra-se, com viva emoção, do seu esforço para tornar o País independente em combustíveis e pneus. Estudando os problemas nacionais com a sua clarividente inteligência, ele conseguia, "após labor afincado de alguns anos", segundo confessou, fazer a destrinça de todo o emaranhado de realidades e hipóteses da nossa economia, para opinar, finalmente, que, "se nos faltava borracha e gasolina e nos sobejavam, sem qualquer préstimo, as espinhas de peixe e os caroços de frutos, a nossa investigação científica, já que nos tinham roubado o subsolo, se deveria orientar no sentido de transformarmos o que deitávamos fora no que pagávamos a peso de oiro".
"E isso será possível?", perguntaram-lhe.
"Para nós, homens de ciência, não há impossíveis. Vocês talvez desconheçam ainda que do carvão se faz lã..."
Foi um assombro. Só um lavrador, dono de alguns rebanhos, teve ainda ânimo para inquirir: "E das ovelhas? O que se poderá fazer das ovelhas?"
"Estou convencido de que, dentro de poucos anos, tudo o que cada um quiser. Por exemplo na América..."
Antes, porém, que ele entrasse em pormenores, o Dr. Carvalho do Ó, muito conservador nessas coisas, sentenciou que "preferia ver as ovelhas darem leite para queijo fresco".
A conversa dessa vez azedou-se entre eles e estiveram duas semanas a evitar-se cerimoniosamente.
É por toda esta riqueza espiritual que a vila se deita a adivinhar quando o vê furar as trevas em passeio solitário. Ignoram que esse homem tão ilustrado tem uma fraqueza bem humana.
Quando chega à praça, o Dr. Leonardo pára defronte do cunhal de uma das esquinas e delicia-se a sonhar que daqui por alguns anos, mal se 'lhe fechem os olhos pard a eternidade, estará naquele mesmo lugar uma placa de mármore com o seu nome gravado. "Esta será a minha praça", sussurra comovido. "Que dirão os discursos?... E os estandartes? Gostaria que viessem todos... As crianças das escolas, com flores... E os bombeiros não devem faltar, com as carretas e os capacetes que lhes comprei quando fui seu presidente..."
Entre comovido e orgulhoso, compõe todo o aparato da homenagem. E, se não parecesse mal, gostaria de deixar escrito o discurso que alguém deveria ler em nome dele, defunto. Por fim, já derreado, procura o aconchego
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dos braços roliços da esposa, onde sonha ainda algumas horas a dar retoques no quadro da praça em festa.
Que ele merece o nome no cunhal da esquina ninguém discute. O que não se sabe, para o aquietar, é o que pensará o futuro do Dr. Leonardo.
Mas seria horrível que a posteridade fizesse à maior parte das placas dos largos e das avenidas o mesmo que os cães lhe fazem, cá por baixo, quando estão apertados...

Panorâmica (5)
A dias, para aconchegar melhor a celebridade, o Dr. Leonardo resolveu embrenhar-se na preparação de um livro, a que pôs o título modesto, como é de seu feitio, de Crónica Singular dos Factos e dos Génios de Uma. Vila Notável. O encargo, com excepção para o Dr. Carvalho do Ó, que é também "um poeta de rara sensibilidade", como ele próprio escreveu, sob pseudónimo, para o jornal onde pontifica, não podia ficar em melhores mãos. Cultura e prosa empastada não lhe faltam, além duma pasmosa colectânea de frases em latim, que vão rechear o livro de um certo sabor clássico, bem preciso neste momento, em que os escritores se ficam na frase curta.
Embora nada se saiba por enquanto dos capítulos que comporão a Crónica, é de esperar que nela viceje um bom punhado de virtudes reconhecidas.
O burgo é notável por muitas e variadas razões, se não quisermos pedir argumentos à História, pois por aqui se encontram à lagúrdia, como diz o povo, muitos resquícios de Romanos, Godos e Árabes, se acharmos que os de Celtiberos, Fenícios, e Visigodos não fazem falta.
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Comecemos pelo largo da praça, por exemplo, onde outrora se erguia um pelourinho de pedra lavrada e agora cresce, num louvar a Deus, um candeeiro de ferro como não há maior no mundo, o que bem poderia ser apregoado em cartazes litográficos, se não fôssemos todos tão modestos das nossas preciosidades artísticas - modestos e muitas vezes mal agradecidos.
É um candeeiro colossal no tamanho e na robustez, espécie de gigantesca mão de nabos, posta ali em homenagem à lavoura regional, que bem-merece da Pátria, e ainda mais da natureza, pela pachorra com que assiste à sorte das sementes que manda atirar à terra. E se as luzes do candeeiro não servem para alumiar a praça, porque morrem, de tão altas, antes de chegarem ao chão, julga-se, com muita propriedade, que as colocaram ali para que do Céu pudessem admirar o antigo edifício camarário e, principalmente, a torre do relógio, que é uma peça notável de folha-de-flandres a imitar escamas de peixe. O mesmo motivo - não estivesse a vila à beira de um rio e não vivêssemos num país de honrosas tradições de marinhagem - repetiu-se na cobertura do coreto da avenida marginal, que é um sítio muito aprazível para se apanhar vento e fazer corridas de velocidade e de obstáculos atrás dos chapéus.
Esta avenida é que se tornou, com o tempo, numa autêntica comucópia de coisas notáveis.
Lá está o coreto com o seu carapuço de escamas, onde em dias alumiados aparece a banda de música para tocar "um escolhido e variado repertório", como garante O Indefectível, a que raramente falta o Mercado Persa. A insistência da banda pode parecer absurda; a verdade, porém, é que até hoje - e já lá vão uns bons vinte anos de coreto - ainda ninguém conseguiu ouvir a partitura completa.
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O maestro bate na estante, consulta o 'relógio e pensa que daquela vez o Mercado chegará ao fim, pois a direcção da banda conseguiu uma entrevista com o chefe da estação e este garantiu a hora. Ainda receoso, o mestre agueia o olhar inquieto para cima e para baixo e manda, já decidido, distribuir as partes pela filarmónica. O ganapo que carrega a caixa do repertório, o que lhe firma honras entre o rapazio, pois deram-lhe fardamento, despacha-se a correr; os músicos aprestam-se para o sinal da batuta, e logo se inicia uma melodia requebrada e lânguida, que até os ouvidos mais duros conhecem a sete léguas.
A imaginação do auditório começa imediatamente a compor o quadro, tão sugestiva é a música: aqui um narrador de histórias, rodeado de aldeões barbudos e taciturnos; ali um camelo ajoujado de barros, perto do qual passa um grupo de mulheres com túnicas coloridas; mais além cegos e leprosos de mistura com turbantes, pedrarias, incensos, orações e melodias de flautas. E por cima de tudo, na sua omnipotência, os ingleses da Anglo-Iraniart às turras com os americanos da Standard Oil, a elegerem e a demitirem generais, a fazerem eleições e a deporem deputados, a inventarem dinastias e chefes religiosos, a manejarem manifestações populares e a venderem as armas que as hão-de reprimir...
É um prazer deleitoso ouvir aquele Mercado Persa e irmos de tapete mágico até tão longe, sem vistos no passaporte, sem requerimentos e devassas à nossa vida, sem guardas a vasculharem papéis e malas, numa hostilidade que magoa. E quando se está em pleno país das rosas, na velha Pérsia, túmulo duma grande civilização, vem um silvo de longe e todos estremecem - músicos, maestro e auditório. Caminhando imponente, a deitar faúlhas e a matraquear ferros, uma orquestra fabulosa rasga
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a noite. É um comboio atrasado que avança agora, contra o que garantiu o chefe, e que vai parar mesmo defronte do coreto, com resfolegares e apitos, descargas de vapor e bufares de cansaço, acompanhado em contracanto pelas gaitinhas de dirigir manobras e os sinais metálicos de chegada e partida.
E assiste-se à debandada. O Mercado Persa fica deserto, sem narradores, escravas, camelos e o perfume oriental que enchia a avenida de lês a lês.
O maestro torna-se pálido e embaraça-se no passear da batuta e nos meneios da cabeça; os solistas praguejam em pensamento, furiosos por não poderem fazer o seu brilharete; e todos olham para o comboio, que lá anda no seu passeio, ora abaixo ora acima, como no tempo das quadrilhas à francesa, a atrelar vagões, a gemer nas mola^ e a apitar em vários tons, num concerto que espatifa a banda de música.
Não é de estranhar que os da Barbearia Fraternidade tivessem largado o seu veneno, quando o coreto ali se instalou, sem perceberem, na sua pobre estupidez e inveterada peçonha, que a gaiola não se construiu para os habitantes da vila escutarem a sua banda, mas somente para que os músicos, sentados de palanque, pudessem assistir confortàvelmente às manobras do comboio. A verdade é que dois furiosos já prometeram provocar um descarrilamento àquela hora, só para que a vila possa sonhar com a Pérsia.
Mas o coreto e a banda não são mais do que o prelúdio de um desfile de coisas notáveis.
Na parte ajardinada da avenida houve uma junta de freguesia que resolveu em sessão, e por unanimidade - o que mostra como se encontram sempre os espíritos superiores -, mandar construir um lago diferente de todos os outros, em forma de caixinha de jóias, e no centro
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do qual ergueram um casinholo de estilo celeiro. E logo começou o mistério. Uns achavam que o lago e a casa seriam para cisnes - e estes eram os de imaginação mais corriqueira; outros entendiam que o conjunto ia servir para as crianças largarem os seus barcos à vela ou a motor, dando largas à fantasia sem limites da gente de palmo e meio - e estes pertenciam aos utopistas, pois o nosso mundo não se fez para as crianças, principalmente porque à volta do lago havia relva, e esta é interdita aos pés infantis, de maneira a não prejudicar os cães, que dela usam para se rebolarem com cio ou fazerem certas necessidades imperiosas.
"Será para peixes?", perguntavam alguns, "Mas a casa... Para que será o casinholo, se os peixes não forem voadores?!..."
Claro que lá deitaram uns peixes a carácter; a casa é que continuou vazia, com o mistério crescente de toda a vila, cada vez mais intrigada, principalmente porque houve quem reparasse que a porta era demasiado estreita. Como passassem meses sem que o embaraçoso quebra-cabeças fosse resolvido, a população esqueceu-se do lago e da caseta e, entretanto, alojaram-se nela os mosquitos, que a água inquinada favorecia.
Até que duma vez resguardaram o lago com uma vedação de arame de malha dupla, o que de novo desprendeu a imaginação adormecida da gente do burgo. "Parece um campo de concentração", insinuavam os maldosos; "talvez seja para centro de investigações atómicas", aventavam os cínicos; "é para os peixes não fugirem", larachavam os da ralé; "ou então para os mendigos não assaltarem o lago e comerem os peixes", juntavam os graciosos de má-língua.
Só uns tantos é que confiavam na alta inteligência do vereador que representava a freguesia. E esses é que
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andavam na razão. Certa manhã, em segredo, sem que ninguém o pressentisse, foi a junta inteira, com vogais, " secretário e contínuo, despejar dentro do lago dois cágados. Dois lindos cágados, que seriam o princípio dum jardim zooilógico muito educativo, onde, além de certas aves tropicais de penugem colorida e de alguns macacos faceiros, se guardam agora, em gaiolas do melhor gosto, muitos animais raros: coelhos, galinhas cocos e outras, dois galos e uma cabra, de que muito aproveitam as crianças da escola e todos nós, que, doutro modo, teríamos de ir a Londres para conhecermos tão estranha fauna.
Depois ainda, para que o local não pudesse tornar-se insípido, ou para que os de língua perversa não tivessem por onde abocanhar, construíram uma estufa, onde nunca ninguém entrou, a não ser o jardineiro e as sardaniscas, um pequeno bosque de cinco metros de largo, onde entra muita gente, aos casais, e principalmente de noite, além de um recinto para oito pessoas fazerem piqueniques debaixo de um caramanchão. Espera-se agora que juntem a tanta maravilha - eu sei lá! - talvez um realejo para os macacos dançarem ao som dum blue, ou um pavilhão de chá, de estilo japonês, para os cágados se entreterem a ver as senhoras da vila. Os animais, ao que parece, andam neurasténicos, e é uma pena se morrem para ali de tédio, tanto mais que não podem ouvir certa história brejeira que ainda hoje se conta a sorrir.
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O homem que foi às uvas
hábito deve ser de sempre e a expressão, ao que penso, já vem de longe. Ao sábado, pela tardinha, as mulheres casadas que trabalham na Lezíria abalam das empostas, descuidosas dos quilómetros que caminharão a pé, dito de um lado, risota do outro, numa vivacidade toda de nervos, e logo os seus nomes correm no rancho, dizendo-se que vão à vila mudar as meias. "Ir mudar as meias" significa ir matar saudades ios maridos.
A gente da vila desconhece a epressão da malta do campo e começou a usar essa outra "de ir às uvas", sempre que se trate duma aventura que meta saias, a partir do dia em que o burgo acordou alarmado com certa notícia inesperada.
Mas vamos por partes, antes de darmos o nome aos bois, outra maneira de dizer que a vila emprega para substituir a forma usual de "pôr os pontos nos ii" ou ainda a de "pôr tudo em pratos limpos".
A loja do Serafim era célebre sete léguas em redor, e, por muito estranho que pareça, quando se falava dele só vinha à lembrança a sua loja de fazendas e retroseiro - "tudo pelo preço dos armazenistas" - , pois
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nunca ninguém o viu interessado em ser membro da junta, director dos bombeiros ou da banda, e muito menos do grupo de futebol, que era "brutailidade" detestada por aquele homem sóbrio e de parcos entusiasmos. A identificação era de tal modo estreita entre a venda e o dono que muitos pensariam ter-lhe a loja de panos dado o nome de baptismo: o Serafim da Loja e a loja do Serafim eram, ao mesmo tempo, sinónimos de negócios prósperos, parcimónia de gastos, honradez em pessoa, vendas a retalho e por atacado, pagamentos a pronto aos fornecedores e "verdadeiras pechinchas" para os fregueses, que o desdenhavam mas que lhe enchiam o balcão todos os dias. E. mais do que tudo isto, uma vida exemplar de chefe de família.
O Dr. Carvalho do Ó, com o talento que todos lhe reconhecem, definira-o, certo dia, num artigo de exaltação às actividades económicas da vila, com os termos mais exactos: "um monge ao serviço do comércio e para bem da sacrossanta instituição da família".
Ele e a mulher, a D. Cariota, talvez por uma tão longa comunhão conjugal, pareciam nascidos do mesmo ventre materno: esguios, penteados de risco ao meio, com um sorriso longínquo nos carões escaveirados e longos, e ripanço no caminhar grave, como se ambos fossem ao pálio em dia de procissão. Se o Serafim não saía da loja, a D. Cariota não saía de casa, com excepção da manhã de domingo, em que ia à missa preencher os deveres de cristandade de toda a família. Fora disso, metiam-se no comboio, às quintas-feiras, depois do almoço, e desembocavam na estação do Rossio. Sempre de braço dado, corriam os armazéns à procura de saldos ou à espreita de fornecedor em que descobrissem dificuldades financeiras, e voltavam à nossa vila depois de fazerem uma extravagância: um cacau para cada um, duas sanduíches, um bolo
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de coco e um pastel de nata com muita canela. Uma vez em cada trinta dias jantavam copiosamente num restaurante da Rua dos Correeiros, quase sempre uma chispalhada, e iam arrotar plàcidamente para uma cadeira de qualquer teatro onde houvesse uma revista brejeirota, mais a instância da D. Cariota do que do Serafim, não porque ela gostasse de ditos apimentados, mas para decorar músicas que depois cantarolava em casa durante a lida, numa voz gorjeada que ninguém diria daquele corpo. O filho só os acompanhava durante as férias. Nas demais quintas-feiras do ano, o Raulzinho, muito resmungão junto da mãe, tinha de ir para a escola das Aldrúbias fazer a sua cultura de futuro comerciante da nossa praça, sem os projectos de carreira para doutor de que falavam outros rapazes filhos de casais com menos proventos. D. Cariota ainda dissera uma vez que "seria bonito pôr o Raulzinho nos estudos para ser alguém"; Serafim cortara-lhe os voos de vaidade materna, dizendo que não queria o filho para langão e que na loja estava garantido o seu futuro. Nunca mais o assunto veio à conversa; aos domingos o rapazola lá estava por detrás do balcão, a aviar botões, carrinhos de linhas e dedais, antes de lhe darem a honra de apontar os bicos da tesoura a uma peça de riscado. Metido na gaiola de vidros, donde vigiava todo o estabelecimento, o Serafim da Loja sorria de vaidade com o desembaraço do filho, já muito ufano em aviar as aprendizas das modistas e alfaiates que tinham conta ao mês.
A vigilância do Serafim não deixava escapar um gesto de aborrecimento duma freguesa: aí vinha pressuroso, sempre de boné na cabeça, para que todos soubessem que era ele o patrão, resolver mal-entendidos que os caixeiros ou os marçanos pareciam incapazes de serenar.
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Então a sua voz áspera tornava-se amena, sussurrava um gracejo para a cliente e um insulto ao empregado, e, depois de feitas as contas, voltava a sentar-se no poleiro do banco pernalta, onde o seu corpo crescia mais. Essa era uma das tácticas do seu negócio: não estar permanentemente ao balcão, para nada lhe escapar e poder intervir como um deus no momento justo, ao mesmo tempo que mantinha o seu prestígio a distância, sem tornar corriqueira a presença junto dos fregueses. Quando aparecia, era sempre para resolver a favor do cliente indignado, embora o caixeiro agisse segundo as suas rigorosas instruções.
Além da vantagem assinalada, esta prática servia-lhe ainda para evitar que os caixeiros ganhassem demasiada simpatia da clientela, de maneira a que, quando um dia se estabelecessem, não lhe deixassem a loja muito desguarnecida de gente. A outra razão, e a primeira, do progresso constante da 'loja, era vender barato, ou, melhor ainda, ter fama de vender barato. Além disso, não havia viajante que fosse capaz de lhe ganhar a amizade, obtendo com isso a liberdade de lhe impingir alguns "monos" ou certos tecidos novos que a vila desconhecesse. A muitos nem sequer dava a confiança de abrirem as malas. Todos os dias o Serafim fazia a sua volta à loja, anotando o que se vendia mais, o que estava a caminho de se esgotar, as cores e os padrões preferidos. E a sua relação é que o guiava.
"Traz cotim militar? Não, não vale a pena ver as amostras. Conjunto de vinte peças! O preço é tal... Pagamento a pronto. Que desconto fazem? Ah, não fazem desconto? Então fica sem efeito todo o pedido que fiz. Essa agora!... Armazéns não faltam..."
Os fregueses gostavam de o ver comprar, como se ele lhes estivesse a defender a bolsa. Embora os preços
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ficassem sempre em letras do abecedário - "O quê, o merino de lã é agora r-a-f-s-s? Não pense nisso, homem de Deus; tenho quanto quiser a j-tt-r-s-s" -, o tom em que falava aos viajantes satisfazia quem o ouvisse.
Não ousavam de lhe impingir fazenda a pretexto de modas. A moda na vila, e em sete léguas ao redor, era ele quem a ditava. Sabia sempre do que tinha necessidade, porque fora da sua loja de fanqueiro e retroseiro não lhe conheciam um entretém, uma perda de tempo ou de dinheiro com assuntos que a ela não dissessem respeito. Mesmo às quintas-feiras de manhã, antes de tomar o seu banho semanal na selha e de partir para Lisboa, levando a mulher no braço, dava nova volta ao estabelecimento, empoleirava-se no escadote, espreitando as prateleiras para resumir melhor as falhas da semana. Só depois vinha até à cancela de madeira que colocava numa das portas, e dali acenava os bons dias a quem passava, enquanto os caixeiros lhe limpavam o estabelecimento e os marçanos, sob as ordens da D. Carlota, lhe cavavam a horta e o jardim que havia por detrás da sua casa.
Era nessa horta, mesmo ao fundo e sobre o muro do quintailório de uma vizinha, que o Serafim tinha uma grande parreira, carregada todos os anos de belos cachos de uvas, cujas primícias iam sempre, em cestos muito lavados, para casa do doutor juiz, do administrador do concelho, do secretário de finanças e do Dr. Carvalho do Ó - mas para este só depois de ter escrito o tal artigo em que Serafim fora comparado a um monge.
Toda a sua vida se passara dentro destes limites, desde que abrira a loja e casara com a D. Carlota; e nada de anormal ocorrera na sua saúde, a não ser uns gramas de açúcar a mais, e nenhum outro desgosto lhe trouxera o mundo, a não ser a morte de Mussolini, que sempre admirara enternecidamente, embora possa parecer estranho
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o facto de um homem tão sóbrio como o Serafim dar a sua admiração a temperamento tão oposto ao seu.
Pois foi há uns dias que o Serafim morreu inesperadamente, deixando atrás de si um coro de gargalhadas. Os fregueses, que sempre lhe encheram o balcão, riram à frente do seu corpo morto. E só as pessoas mais respeitáveis, entre elas o Dr. Carvalho do Ó, que lhe fez o elogio fúnebre no jornal, andaram comprometidas, de olhos a rasar o chão e cinzentas de palidez, como se o escândalo as emporcalhasse.
Seriam talvez dez horas da noite quando a rua da Aninhas, a varina mais louçã e picante da vila, acordou com os seus gritos espantados e histéricos. A moça parecia doida, à porta, quase nua, com um xale pelos ombros, num entaramelado de berros e ais que ninguém entendia, sem saberem, os que primeiro chegaram, se a Aninhas tinha fogo em casa, se o Diabo a fora acordar no seu leito de virgem - que, apesar de metediça, nunca ninguém lhe conhecera namorado à porta -, ou ainda se algum ladrão lhe saltara o muro para lhe roubar os cordões, as pulseiras e os brincos, que "ganhara honradamente a vender o seu peixe", como ela dizia e todos acreditavam.
A Aninhas gritava, mas não queria que lhe entrassem em casa. E foi o Zé Chibante, um mocetão decidido que já pegou toiros, quem a arrancou da porta e deu com o triste espectáculo que pôs a vila inteira a rir: torcido numa convulsão, sem sinais de vida, o Serafim da Loja estava esbandalhado, em trajes menores, na cama da Aninhas. O médico veio e disse que o Serafim morrera de congestão.
Gente de língua danada, logo deitou para o mal a congestão do Serafim às dez horas da noite. Mas tudo se esclareceu quando o Raulzinho veio buscar o pai e o levou para o desgosto convulsivo da D. Carlota.
Foi a própria Aninhas, já mais calma, quem, depois de conversar com o filho do morto, explicou o que se passara: estava ela no quintal, quando o Serafim lhe deu para se empoleirar no muro e colher uns cachos de uvas, coitadinho! E vai daí o pobre senhor cai da outra banda, ela agarra-o para o socorrer e põe-no em cima da sua cama, aflita, pois os seus lençóis nunca haviam conhecido corpo de homem. E o Serafim morre ali a falar da família, ele, que era o cidadão mais exemplar da nossa vila e nunca fora a' Lisboa, nem uma vez só, sem levar consigo a sua santa mulher.
A vila riu-se e foi uma vergonha, porque esta gente do povo está sempre à espreita de apanhar uma ponta de nada para logo morder nos que não perfilha com a sua afeição. E, maldosos, ainda hoje dizem uns para os outros: "Tem cuidado, não vás às uvas depois de jantar! Lembra-te do Serafim da Loja, coitado!"
O nome honrado do Serafim ficou assim unido a um dito brejeiro, e nem o filho parece desculpá-lo, pois ainda não mandou fazer um simples jazigo de mármore onde o seu corpo repouse. Dizem muitos que o Raulzinho não perdoa ao pai o não lhe ter dado um curso de doutor; afiançam outros que ele quer esquecer a vergonha daquela morte equívoca e prefere que o pai continue ignorado numa campa rasa.
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Panorâmica 5
numa nesga de terra, sempre fresca pela reponta das marés, que os pescadores, depois de uma noite de safra, porfiam as redes precisadas de agulha e de linha. Os "tendais" são armados com prumos e varas de pinho e neles se penduram as redes tintas, se o rio vai turvo, ou as "branqueiras", se as águas estão luzinhas para enganar o pescado. Só as artes clandestinas, as de malha miúda e de arrasto, não vêm para ali com receio dos fiscais da pesca, que as rasgarão à navalha se as apanharem.
E o camaroeiro de arrasto ou a chincha quase desapareceram do Tejo, tais são as penas de multa e cadeia que esperam os raros pescadores ainda rebeldes, por desespero, que delas usam para ganhar o pão.
Noutros tempos o estendal de redes era uma romaria de gente.
Os homens, robustos como carvalhos, andavam sempre aperaltados nas camisas de castorina, na cinta e barrete pretos, que eram o seu luxo. Tingiam ou porfiavam redes, cantavam e riam, enquanto ali perto, no estaleiro, sempre havia novos saveiros a construir ou a pintar.
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O trabalho era duro, mas rendia. E os pescadores acreditavam em Deus.
Quando voltavam da venda do pescado, as mulheres passavam por ali e ficavam a conversar, em grupos; mais abaixo, os filhos jogavam à choca, com cortiças aproveitadas das bóias, ou brincavam às toiradas, com cavalos de pau, ajaezados a rigor, toirinhas apuradas e farparia enfeitada a papel, que melhor não a fabricavam os emboladores das corridas a valer.
Durante o dia, na sua rua privativa, só ficavam as velhas a dobar e a fiar o linho para as redes. Mas nas noites em que a Lua estava de pé e os pescadores não demandavam o Tejo a rua era uma festa, com violões a zangarrear e grupos que dançavam a Tirana e o Real das Canas. As raparigas punham o oiro, as Musas de seda e os aventais bordados; e os homens vestiam as samarras azuis e pretas, mesmo que fizesse calor.
Vê-los dançar era ver o rio requebrar-se em ondas largas e mansas. E as cantigas ao desafio não tinham fim, em rimas amalandradas, que às vezes davam sarrabulho. Então era uma tempestade de gritos, de saias levantadas para atitudes descompostas, de ameaças com tairocas e pragueado de queimar o Céu.
A rua dos pescadores era a imagem do rio.
Mas agora, que o Tejo está seco de peixe, como um ventre morto, calaram-se as violas e os pescadores já não acreditam em milagres.
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Lua deitada, marinheiro de pé
NEM o rio nem o céu assinalavam bons ensejos para o peixe procurar as redes das companhas com dois homens. Por muito que se corresse o Tejo com as artes da pesca, nem sávares, nem sabogais, nem camaroeiros de arrasto, mesmo com risco de enxovia, colhiam algumas tecas que dessem dinheiro grado na lota.
Lá longe, fora da barra, os barcos grandes com os arrastões limpavam tudo o que fosse escama viva - até as crias. E o rio finava-se aos poucos, como uma fêmea cansada, quando noutros tempos fora um jardim de peixe. Em noites como aquela, mal a Lua surgia no céu de pontas erguidas, em jeito de batel num mar sossegado, os pescadores desencalhavam os saveiros e metiam a caminho da féria de lance que (lhes parecesse mais ensejosa. E ali se juntavam aos grupos, à espera da hora de maré, galhofando de barco para barco, mais um dito, mais uma cantiga, e depois ala para a faina, que começava sempre pela companha que primeiro chegara ao sítio.
E os lances sucediam-se, com os candeios no extremo das redes para as assinalar aos barqueiros das fragatas, não fossem rasgá-las, e o peixe luzia no fundo das casernas, a escabrear de viveza. Na margem norte/ as mulheres* , esperavam-nos, noite ainda, com as canastras à ilharga.
O Tejo era, então, um viveiro de luzes naquelas noites em que a Lua se deitava no céu e os pescadores andavam de pé. Agora nem o rio nem o céu anunciavam escama / de peixe.
Barcos encalhados, a desfazerem-se, eram sem conta, no estaleiro do mestre Paulo Zé nem ruído de ferramentas, nem o cheiro de alcatrão; redes nos tendais contavam-se'com os dedos de uma só mão; e os homens abalavam do Tejo, como se por ali andasse a peste. Os raros saveiros que ainda se faziam ao rio eram mais esquifes do que barcos.
Ele assistira a tudo isto e ficara sempre. Tinha esperança, certeza até, de que um dia breve os arrastões seriam proibidos de pescar na embocadura do Tejo. A companheira ajudava-o com a venda do pescado, que vinha das praias do mar e as camionetas traziam à lota todas as madrugadas. E aí deitava ela pelos casais dos Montes, no seu pregão já cansado, sem cuidar das léguas que trazia nas varizes das pernas. Viva e tagarela, como poucas varinas da rua, praguejadeira, quando se zangava no despique dos leilões, também raras havia tão trabalhadeiras e de coração mais aberto.
Mas agora a canastra e o oleado estavam esquecidos no quintal. Já ia num mês que o lume não se acendia na lareira, dia e noite, pois o uso assim mandava quando havia morte de mulher em casa de pescador. Ele olhava a Lua deitada no céu e pensava no rio deserto, no estaleiro do mestre Paulo, nos barcos a apodrecer e nas redes por porfiar. E pensava em tudo isto, menos por si do que pelo filho, que estava um tamanhão, largo e tisnado como ele o fora, tagarela e abelhudo que nem a mãe, e que precisava de começar vida. Quando ele nascera, vira-o logo
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junto de si, feito seu camarada de remos, aprendendo, aos poucos, a conhecer todas as manhas da pesca. A companheira ajudava-o a manter aquele sonho: "desse lá por onde desse, o filho havia de ser pescador", dizia ela para as outras que vinham contar-lhe, para a porta, dos empenhos que arranjavam para os seus se empregarem nos batelões do Porto de Lisboa ou das promessas de trabalho em terra firme. "Arrenegar o rio, isso é que nunca! Já o meu avô por lá andava e os meus netos só hão-de também gastar as mãos nos punhos dos remos. Amalçoadas vocês todas, que querem os filhos de botas à pelica..."
Ele sentia agora que nem essa vontade lhe podia fazer. Sem a achega do seu dinheiro na venda, não devia obrigar o rapaz a fazer vida no rio. "Uma arte tão bonita!", pensava para si, espreitando a rua. O camarada dos remos começava a tardar.
"Vossemecê não vai à pesca esta noite?", perguntou-lhe o filho. "A Lua está deitada..."
"Se calhar, não vou. Perder a cama só pra fazer lances galos, é melhor ficar quieto."
O rapaz chegou-se também para a janela, com modos de querer dizer-lhe qualquer coisa; depois agatanhou a gaforina com as unhas e voltou para junto da cómoda.
"Quando é que eu tiro a cédula?... Vossemecê podia poupar no camarada... Ganhava-se para o mesmo monte..."
"Pró monte da fome!"
"O rio agora não dá peixe, não é, pai? Um punhadito de camarões, uns linguados folhas de oliveira..."
Ele não respondia, embora entendesse que tinha de decidir o rumo a dar ao filho. No seu tempo de rapaz a escolha era simples: o futuro estava ali mesmo, à frente dos olhos, e logo no berço se sabia que os ganapos seriam homens do mar e que o "gado rachado" ficaria para a
venda. E até as crianças 'lázaras por ali se amanhavam, porque o Tejo não distinguia os filhos dos enjeitados.
Agora muitos moços ganhavam o pão nas oficinas e nas fábricas, trocando a camisa de castorina pelo fato de ganga. Sempre colhiam trabalho mais certo e menos arrastado; mas tinha os seus perigos... Alguns rapazes metiam-se em "políticas", e era o diabo.
"Sempre vamos, pai?", insistiu o rapaz.
"Não!" E quando o filho se dirigia para o quarto: "Amanhã precisamos de falar..."
"Não quer já?", perguntou o moço a sorrir-lhe.
"Não; hoje não..." E em voz mais baixa: "Tenho ainda de pensar..."
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Panorâmica (7)
É meu propósito contar-lhes imediatamente algumas ^ histórias com cavalos, através das quais se ficaria a conhecer melhor a vida duma família célebre na nossa vilela, celebrada ela mesma pela fama das suas manadas. Daqui têm saído fogosos corcéis de tiro (assim se diz dos pobres animais que se esfalfam atrelados a carros e carretas), ginetes nervosos para corridas em estádios, montadas para toireio com nome de estadão em crónicas de jornais e ainda cavalos de guerra para soldados, uns e outros feitos carne de canhão quando as chancelarias se zangam, sem falar dos cavalos de guerra para generais, uns e outros fadados para os desfiles e as assinaturas dos armistícios quando as chancelarias resolvem fazer as pazes.
Diz, porém, a sabedoria popular, e com justa razão, que as palavras e as histórias são como as cerejas.
Será conveniente avisar desde já que o paralelismo não significa da minha parte o considerar as histórias com cavalos de tal colorido, recorte e densidade que passem a devorá-las, com o
mesmo apreço que nos Açores se dá'às cerejas, os que comecem a lê-las.
A citação popular só aparece na medida em que me desvio para dizer mais alguma coisa acerca da nossa vila ribeirinha, caindo nesse velho pecado de que "quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto".
Um ponto ou mais... Porque contar histórias direitinhas ao fim, sem desvios que as tornem baças e confusas, foi segredo que parece terem levado para a cova, as nossas avós, maravilhosos livros falantes para ouvintes maravilhados.
Hoje nem os escritores as pintam com tanta simplicidade e beleza, nem os leitores as recebem com o mesmo espírito lavado e aberto. A maioria - de quem será a culpa? - anda desencantada com a vida que os enjaulou, como se fossem pobres tigres. E neurasténicos, e abúlicos, e feitos tapetes como os tigres antes de estarem mortos, veio-lhes a saturação das histórias imaginadas.
E vai daí, como diziam os narradores de romances populares, aparecerem as histórias aos quadradinhos, que correspondem na literatura à bomba atómica - esta para volatilizar os corpos e as outras para assassinarem os espíritos.
Mas voltemos aos irracionais...
O cavalo alimária era na nossa vila, ainda não há muito, e mais ainda do que o toiro, uma espécie de "Deus totem", a que se devotavam lendas e festas com vinho, guitarradas de cravo ou beata na orelha e bazanada a cacete e naifa, verdadeiros símbolos de certa bravura que uns apodam de canalha e outros de castiça.

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O cavalo era uma espécie de trono, onde se deslocavam os inúmeros reis deste reino sem rei nem roque. Vivia sobre ele o campino, mesmo de Inverno, aconchegado na manta lobeira, durante o exílio de quinze dias de isolamento com os gados à sua guarda. Nele voltava a casa, aos sábados, para aviar o alforge, nele se exibia em derribas e apartações de toiros, com ele amava, alçando raparigas para a garupa do ginete até à sombra dalgum salgueiral da borda do Tejo. E enquanto o homem se retoiçava sobre as ervas dos valados, o cavalo gargarejava relinchos de cios recalcados.
Conheciam-se um ao outro, como irmãos siameses, nados na mesma solidão da Lezíria espalmada e triste. E se um possuía a espora para conduzir o bicho, o bicho tinha o instinto para levar o homem à poisada, quando alguma pinga a mais lhe tirava a tineta para se orientar no emaranhado dos carris da grande planície. Dormiam na mesma estrebaria, noivavam, às vezes, debaixo da mesma telha e corriam de parceria os mesmos riscos de morte, no safanço dalgum toiro que engravitasse os cornos para os arremeter.
Camarada fiel do criado de lavoira, o cavalo, pelo seu garbo de animal que dá nobreza a quem a não tenha de si, era também no passado - e ainda hoje, apesar do automóvel - o companheiro afeiçoado dos senhores da terra, que com ele se exibiam em esperas de toiros, cortejos agrícolas e torneios de jogo da rosa, quando não lhes dava para o atrelarem, em caprichosas combinações de muitas parelhas, a carros de nome inglês, num espavento de arreios, guizeiras e plumas.
com ele o senhor caçava às lebres e caçava às mulheres, nesse tempo em que no amor era de uso raptar espanholas que viessem nos circos e violar cachopas que chegassem nos ranchos de gaibéus. E se à menina do arame
ou do trapézio se oferecia uma pulseira de oiro, à moçoila trigueirota das abas dos Hermínios dava-se um cartucho de amêndoas pela Páscoa ou um marido da Borda-d'Água, se convinha ficar com ela sempre à mão. A troco, apadrinhavam-nos na igreja e assegurava-se-lhes jorna certa na criadagem da casa de lavoira, distinguida entre as outras pelo brasão que os servos ostentavam a metal branco, e até a prata, no lado esquerdo da jaqueta domingueira. com a mesma insígnia ferravam-se a fogo, e nas ancas, a novilhada e a poldraria, enfeitavam-se as cabeçadas dos animais de tiro, inarcavam-se carros, carretas, portas de cavalariça e albergarias e ainda os portões das velhas casas solarengas, onde o amo e senhor se entregava ao culto da família.
Uma santa família quase sempre! Meninos doidivanas e violentos, que corriam vilas e aldeias a chicote, e meninas pálidas e caridosas, que iam sarar as feridas deixadas pelos manos, oferecendo a esmola de um sorriso ou um enxoval para recém-nascido se os pais votavam bem em dias de eleições.
O cavalo na nossa vila está ligado a tudo isto.
E aos tempos idos, em que se espertavam rapazes no trabalho com o aguilhão para os bois, se deixavam morrer homens em cima dos valados, para que eles defendessem as searas das cheias do rio, se espancavam os servos, mas em que também-graças a Deus! - o mesmo senhor que açoitava era depois companheiro de bebedeira, de picaria de toiros e de fandango, dançado debaixo da mesma telha e da mesma pinga. E tudo com um respeito tão submisso e tão livremente consentido que os poucos rebeldes apareciam enforcados, como Judas, nos ramos das árvores ou nas traves dos palheiros. E ao que se julga eram eles mesmos que se enforcavam de arrependimento, embora não se saiba ao certo, pois o servo nunca

deixava carta, por não saber escrever. E como os suicidas não vão para o Céu, o segredo ficava entre a corda, que não fala, e a trave, que só range, ou o ramo, que só verga. O cavalo envelhecia sempre muito perto desta vida patriarcal, e tão devotado ao amo como ao servo. Por isso baptizavam-no, conheciam-lhe os pais e até os avós, faziam-lhe resenha pormenorizada da vida e enterravam-no em lugares escolhidos, assinalando-o muitas vezes com lápides ou marcas nas árvores próximas. E com as cores da sua pelagem criou-se uma paleta maravilhosa de tons, para além daquelas que o homem comum aprendeu no arco-íris. É o lazão, o baio, o isabel e o rato, nas pelagens simples; nos negros, o morzelo e o pezenho, entre outros; nos brancos, o porcelana, de transparências azuis, o pombo e. o rosado. E depois, nas pelagens compostas, o cardao, o andorino, o picarço, o tordilho, o mil-flores, o estorninho, a flor-de-alecrim, tantos e tantos, que até há o luzeiro e a estrela, a beta, o xairelado e a sombra-de-estrela.
A poesia floresce por aqui na cor dos cavalos e nos seus nomes, trasbordando para o cancioneiro popular, que oferece celebridade à "faca" do campino, um animal de aparência sorna, mas safo, como poucos, para galgar abertas e distâncias em terreno chão:
Minha mulher, meu cavalo, ambos morreram num dia; leve o Demónio a mulher, o meu cavalo é que eu queria.
O tema é comum a outros povos cuja vida está ligada ao cavalo mais do que à escrava do homem. Os Árabes, irmãos de sangue dos Berberes das nossas terras lezirentas, perfilham no seu folclore do mesmo sentimento, tanto
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como os Mongóis, que ficam lá longe, nos confins da Ásia remota, e cantam a fêmea e a alimária com imagens de hábitos iguais:
A mulh er que me coze a carne
é tão bela como o Sol;
mas o cavalo que eu cavalgo
é mais belo do que todas as mulheres.
É bem certo que as histórias e as palavras são como as cerejas. Mas assim como os frutos vermelhos nunca são despropositados, ao que julgo e, assim este desvio me pareceu conveniente, como uma espécie de chave para abrir alguns dos segredos das histórias com cavalos que lhes vou contar.
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O cavalo das ilusões
EMBORA o velho não passasse já de um fantasma, talvez estranho, porque andava agora sempre de dia, as ruas da vila pareciam transformar-se quando ele as atravessava, montando o seu último cavalo. E recuava-se no tempo mais de uma centena de anos, como se o passado distante voltasse inteiro, por milagre da sua imaginação ainda azougada, dos cascos trôpegos e esboroadiços da pileca derribada e faminta.
Aquele era o seu cavalo das ilusões. E também uma espécie de esquife, que o fazia vaguear pela vila com a chibatinha inseparável, a calça justa à perna escanifrada e já bamba, o negro gabão de Aveiro, a que chamava a sua capa espanhola e lhe cobria os ombros e a garupa da montada, e o chapéu de aba rija, que quase lhe tapava o rosto e o rezar de maldições que sempre trazia na boca.
O animal embalava-se de cansaço, numa oscilação exagerada, como se cavalo e cavaleiro fossem o pêndulo de um relógio; tinha o ventre arregaçado, o peito de quilha e as orelhas incertas, indício de vista fraca, numa cabeça descarnada e atrofiada de músculos, e o pescoço
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horizontal e tombado, de crineira grossa e farta, enquanto o garrote era cortante, o dorso de mulo e uma das ancas, aquela em que tinha o ferro do lavrador, náfega de todo, como se a outra pertencesse a cavalo diferente que lha emprestara por dó. Tigrado de pelagem, com manchas arredondadas em fundo alvo, destacava-se-lhe na fronte o grande luzeiro de uma bela malha branca. E só pujante de cauda se mostrava o bicho, como se o dono a usasse para varrer as palhas da cocheira.
Conhecia os joelhos e as esporas do velho melhor do que as ciganas as linhas das palmas das mãos. E se para ele era submisso, não consentia outro corpo em cima do selim sem usar das mil artimanhas de cavalo sabido em derribar cavaleiros inexperientes. Desengonçava-se, relinchando, enfiava a cabeça entre as mãos tortas, e tanto recuava, e tanto coice desferia, que a lombeira de camelo ficava limpa de calção. O velho ria-se, agradecido, e dava-lhe um punhado de fava, correndo-lhe a crineira áspera com a mão trémula.
"ó Madrugador! Quieto!... Ó!..."
E então, gemendo baixo, o velho desatarraxava as articulações perras pelo reumatismo e galgava-lhe para cima da manta listrada. O cavalo babava-se, erguia a cabeça, por instantes, e lá partia, sonolento como o dono, até encontrarem grupo que lhes tomasse o passo, para logo o velho se tornar tagarela e a pileca se transformar, na sua inveterada imaginação, num corcel fogoso e irrequieto.
Então dava-lhe de esporas, para o acordar, puxava-lhe o freio, para o fazer subir o pescoço derrancado, que afagava com ternura, como se o cavalo precisasse de carinho para não disparar veloz por aquelas ruas além.
"Ah, cavalinho! Quieto, quieto!"
E assobiava-lhe, tocando as orelhas do bicho com a chibata, talvez supondo torná-las corajosas.
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"Ó... cavalo!"
Em dias de festa nem tais expedientes eram precisos para que o Madrugador se mostrasse desembaraçado e vivaço. O velho encafuava-se na cocheira, todo denguices e palavras mansas na voz grave, e metia-lhe uns tantos grãos de pimenta no ânus mole e avermelhado, E o cavalicoque logo se tornava todo nervos que nem poldro insubmisso. Encabritava-se, elevava o dorso num sinal de energia, e até os cascos feriam mais duros o chão, que parecia ter lume, pondo-o ligeiro no trote e até no galope, no que comprometia o cavaleiro, já frouxo de joelhos para andanças tão vivas.
Mas era um deslumbramento. O velho voltava a achar-se jovem, e sorria, e empertigava-se no selim, como se tivesse ainda 30 anos e fosse o Lavrador das Moças, como lhe chamavam nesses tempos em que a vila o conhecera brigão e violento, metediço e sensual.
"Bons tempos, patrão Augusto!", exclamavam os que o queriam ouvir.
"Ah, sim, bons tempos!", respondia numa voz mais grave e pausada. "Não havia ainda automóveis, essa feia coisa que atravanca as estradas e a vida da gente, nem essas 'èguazinhas' que andam por aí a gingar-se, como as mulheres de 'avental de pau' dos meus anos de rapaz. A gente é que tinha de as namorar... e raptar..." E a voz soprava essa palavra maravilhosa que lembrava certa aventura que ele dizia ter-se passado em Sevilha.
E fazia o cavalo mover-se, ladear e abrir-se depois
num trote desconjuntado e chouto, para o fazer voltar
a passo forçado até aos grupos, que se riam em silêncio.
"Quieto! Quieto, Madrugador!"
O bicho, porém, com aquele lume dos grãos de
pimenta a queimá-lo, ficava irrequieto, a escarvar o chão.
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"Se o quisesse levar a uma feira, davam-me ainda sete ou oito notas por ele.- É um cavalo de sangue azul... Filho de um garanhão de Alter, morzelo e ondeado que nem uma seda, e de uma égua inglesa, porcelana, que o Sr. Marquês das Cotovias trouxe de fora. Cavalos destes não têm idade... São como certas mulheres a quem nunca se acaba o vício quando encontram homem que as saiba mexer. De cavalos e mulheres..."
E os olhos tornavam-se-lhe febris, acompanhando um assobio muito significativo, que o velho repetia a propósito de tudo o que para ele merecia excelência.
"Tive fidalgas-sei lá quantas!--e os melhores cavalos para toiros e de passeio que ainda andaram por arenas e estradas de Portugal. O Duque (para ele só havia um duque, que fora seu amigo) mandava-me chamar sempre que queria um animal para ele ou para as filhas. - Ouve lá, ó Augusto! Experimenta-me esse brinquinho e diz-me das tuas.--Quantas vezes lhe dei desgostos... Fui sempre pão, pão, queijo, queijo. - A égua parece boa, mas é zambra, Sr. Duque. - E a minha palavra é que lhe servia. Duma vez..."
E contava uma aventura, e depois outra, vividas todas na companhia de cavalos de fama, que ele pintava como ninguém, de mistura com lutas violentas e mulheres rendidas à sua cortesia e à sua fascinação.
"Depois de o deitar abaixo da montada, e quando ele ficou aos meus pés, olhei para a mulher e joguei-lhe uma rosa que trazia na cabeçada do cavalo. Em seguida atirei-lhe um beijo na ponta dos dedos, e só lhe disse: -Hão-de passar quatro luas - quatro! - antes que eu aqui volte. E se essa janela estiver aberta, nem mastins, nem arcabuzes, nem a raiva de todo o mundo, serão capazes de evitar que eu galgue aí acima para a levar na garupa deste cavalo, que é a testemunha da minha palavra."
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"E ela?", perguntavam-lhe.
"Ela lá estava à minha espera quando passaram quatro luas."
E o velho arremessava, num gesto másculo, com a ponta do gabão de Aveiro para cima do ombro.
"Os tempos vão feios e as mulheres e os cavalos já não são os mesmos! Mal vai o mundo quando os homens dispensam umas e outros. Na minha mocidade eram os cavalos, as mulheres, os toiros, o vinho e o fado que faziam a nossa lei. E o mundo andava mais direito! Oh, se andava!... É só pensar um bocadinho e ver. Um automóvel em dois anos está fora de moda... O cavalo, disse-me ainda outro dia o Dr. Carvalho do Ó, já é conhecido há mais de vinte mil anos e ainda nada apareceu que o substitua. É verdade ou não? Pois se é verdade, para que andam para aí esses lavradores de má morte, de jaqueta e calça à sevilhana, metidos em automóveis que não valem um bom landau puxado a quatro parelhas? A mocidade de hoje não sabe o que é viver... Sou eu que lhes digo; e eu quando falo cá tenho as minhas razões. O mundo há-de voltar a esses tempos!... Ou eu não me chame Augusto Vaz Pinto!"
E havia na sua conversa realidade e imaginação, num colorido que só ele sabia dar a cada passo das suas histórias, inventadas ou vividas.
"Vocês ainda conheceram os meus filhos... Belos rapazes, hem?! Encontram por aí alguém que se lhes compare? Quando aparecíamos os quatro, nas feiras de gado e nas esperas de toiros, toda a gente dizia: - Lá vêm os 'cavaleiros do Apocalipse'!-E eu tinha vaidade neles... E agora em que têm os homens vaidade? No pontapé na bola?... Nos automóveis que vêm de fora? Nessas 'èguazinhas' que para aí andam vestidas de
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mulheres e mais parecem umas sardaniscas, sem carne que se lhes veja?..."
Desabrido, o Madrugador parecia empolgar-se com as palavras do dono. E movia a cabeça e a garupa num azougue, fazendo nascer mais ilusões ao cavaleiro, que o esporeava para o pôr a ladear sem graça.
Pois foi ontem, na feira de gado de Maio, que o cavalo das ilusões matou a vida do Lavrador das Moças. O velho dobrou a dose de grãos de pimenta, e nunca na nossa vila se vira animal mais ladino, ora a trote, ora a galope, furando como o vento por entre os grupos de ciganos e de lavradores que se juntaram por a'li. Nem um instante o bicho se quedou para o dono falar dos seus tempos, das mulheres, de cavalos e dos filhos. E daquela celebrada aventura em Sevilha, que gostaria de lhes contar se pudesse aprender o colorido das suas narrativas.
De vez em quando, mal o velho se descuidava com as esporas, o cavailicoque disparava sem tino, por entre gritos, assobios e exclamações de ira dos que se furtavam à justa de ser atropelados. Aquilo não era um cavalo, era o Diabo!
"Tarrenego!", vociferavam os ciganos. "Que la Luna te cuspa na alma, viejo tonto!"
Mas o velho não os podia escutar, só atento à fúria do bicho, que parecia querer deixá-lo ficar mal naquele dia de feira, atirando-o a terra, à frente do povoléu, assombrado por tamanho desatino. Espantavam-se burros e labregos, ladravam-lhe cães, saltando ao rabo escorrido do Madrugador, e calavam-se pregoes de negociantes de mantas e esteiras, espantados daquelas carreiras desaustinadas, de que ninguém percebia o fito. Patrão Augusto sentia-se feliz, embora um tanto nervoso, só desejando acalmar a montada um pouco mais, para com ela se
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exibir depois em algumas habilidades que já sonhava; mas nem tempo enxergava para chegar com a mão à crineira do cavalo e dizer-lhe certas louvaminhas que o bicho gostava de ouvir. Desfizeram-se negócios apalavrados e deixaram os ciganos de correr animais à mão, pois a feira em peso abriu uma rua larga de curiosidade para ver o Madrugador nas suas andanças, mais andorinho que ginete.
"Ó cavalinho bonito! Quieto!", aconselhava o velho a meia voz, quase sufocado pelas carreiras doidas a que se via forçado. Pensando em não ser cuspido do selim, premia os joelhos e as esporas; e a alimária, queimada por dentro e picada por fora, ia e vinha na mesma vertigem, sem escutar as reprimendas do Lavrador das Moças, que já começava a irritar-se com tamanho desaforo. Um cigano altarrão que pensou em travar-lhes o rodopio teve de se safar num salto de gamo, porque eles o não enxergaram e quase o arrastavam pelo casaco na mesma galopada infernal.
"Pare o animal, lavrador! O cavalo está derramado!", gritava-se por todo o campo.
E isto de mistura com gargalhadas do pessoal da vila. que achava naquela feira - sombra triste das feiras do passado - um espectáculo nunca visto em terras da Borda-d'Água.
Foi um pegador de toiros - quando o Madrugador já afrouxava no corropio - que conseguiu atirar-se-lhe à garupa esquadrilhada, como se fizesse uma cernelha em plena praça. E a fúria do cavalicoque desfez-se num instante. Esgotada pelas correrias, a velha carcaça magra abateu-se no pó da feira, a resfolegar, como se lhe houvesse nascido um fole de ferreiro nas entranhas. Safou-se-lhe de riba, em charola, o velho Lavrador das Moças, mais pálido que um lírio branco ou um punhado de farinha
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espoada. E só então o cavalo se deu ao sossego, deixando tombar a cabeça suada e esperneando, a espaços, num resto de falsa pujança que ainda lhe sobejava por reflexos.
Voltou o dono à sua beira, tonto pelas chufas da gentalha, a ciciar-lhe palavras de carinho para que o bicho se comovesse. "Vá, cavalinho bonito! Vá, Madrugador, ó!..." E tocava-lhe com a verdasca no ventre ensanguentado pelas estrelas das esporas, afagava-lhe as crinas, sujas de poeira, e coçava-lhe a fronte com meiguice. Puxão de um lado, puxão do outro, assaltaram o cavalo uns tantos campinos e barqueiros do rio, mal viram o velho afastar-se para pedir a um cigano que lhe fosse buscar uma selha de água. Uns ao rabo, outros às crinas e à cabeça, lá puseram o animal de pé; mas, logo que o largaram, o cavalo derribou-se de novo, tão morto de corpo como de olhar.
E riu o povoléu, e cuspiram-lhe os ciganos em cima, todos esquecidos do dono, que não conseguia romper aquela muralha de gente, ávida por ver de mais perto o cavalo com o Diabo no corpo.
Foi nesse momento que o Zé Bago de Milho, um camponês de palmo e meio, a quem o Lavrador das Moças dera, em certo dia, uma sova, se lembrou de gritar - o maldito! - "que era melhor pegar na pileca ao colo". E logo a imaginativa popular levou a graçola por diante.
Num abrir e fechar de olhos apareceram duas trancas arrancadas a uma barraca de mexilhão; e como um bando de varejeiras, mais puxão de um lado, mais risota do outro, os farroupilhas ergueram o Madrugador em peso, por debaixo do ventre arregaçado, e levaram-no pelas ruas da vila, entre as chufas e a galhofa dos que vinham espreitar o cortejo.
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O patrão Augusto ainda quis impedir a vileza que matava o seu cavalo das ilusões. Mas um cigano agarrou-o pela jaqueta e ofereceu-lhe uma nota de cinquenta pelo penco - e ele só foi capaz de lhe dar uma resposta: atirar-se-lhe a uma orelha, com toda a gana da sua velhice gloriosa e ofendida, e tentar arrancá-la, lembrando-se de um dos filhos. Traíram-no os dentes frouxos, mas a autoridade interveio.
E lá foi a caminho da cadeia, entre dois guardas a cavalo
Ontem mesmo lhe deram a fiança no tribunal. Mas não puderam restituir-lhe as ilusões.
E o Lavrador das Moças meteu-se no quarto, sem espancar a mulher, como era de seu uso, e mandou-a fechar a porta.
"Nem pra me dar de comer aqui entra seja quem for... Acabou-se!"
E a vila inteira sabe que o velho vai morrer de fome por sua livre vontade. Uma vergonha daquelas com um cavalo seu é ultraje que não perdoa à vida.
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Como
se ganha um poldro
'l' era, então, um bonito rapaz e, ainda por cima, filho de um homem com dinheiro", dizia com frequência o patrão Augusto, como se quisesse desculpar-se da sua figura de trangalhadanças e daquele rosto todo feito de guedelhas, onde os olhos vivos e o nariz adunco pareciam estar a mais. O pai, por sua vez, também nunca pudera considerar-se um homem rico: fora lavrador-rendeiro de uma terra na Lezíria, conhecida pela Galé, e dono de uma quinta no Norte, a Quinta do Paraíso, que mais tarde passou a chamar-se da Formiga, por imposição do povo, que assim a crismou quando o patrão Augusto ia para lá embriagar-se com os filhos, na companhia de raparigas que ele próprio arrebanhava pelas feiras da Borda-d'Água ou trazia de Lisboa.
O amor pelos cavalos vinha já de família; o desvario por mulheres teve o seu porquê e merecia relato à parte, embora o nosso homem sempre houvesse mostrado sensualidade exaltada.
Aos 15 anos o patrão Augusto era um rapazola desempenado e voluntarioso, que encarava a vida de frente e com uma alegria sem limites. Camaradão para os campinos da casa do pai, fumou com eles o primeiro cigarro, embrenhou-se na sua companhia no trato de animais e ouviu-lhes histórias arrepiantes de cheias do Tejo, de parceria com outras apimentadas, em que as raparigas dos ranchos se lhes submetiam por afeição ou por violência. "O menino", como lhe chamavam os criados, "vai sair um cara direita e nem parece filho do alma danada do patrão", diziam todos. Mostrava-se brando, talvez mesmo um pouco temeroso de afoitezas com éguas ariscas ou de passeios às tapadas onde pastassem toiros de lavradores com gado bravo. As bravatas, que nesse tempo contava como suas no clube da vila, eram todas de campinos, a que juntava um certo sal da sua imaginação. Sempre de jaqueta curta com alamares e calça justa à perna, nunca abandonava as esporas de prata que o pai lhe oferecera no dia do segundo exame.
Pois foi por causa das esporas que o nosso homem se revelou diferente do que o julgavam os campinos.
Na Galé pastava nesse tempo uma piara de éguas que era o orgulho do lavrador. Duas delas estavam apoldradas, pelo padreamento de um garanhão da Senhora companhia (assim, respeitosamente, se referiam os criados à Companhia das Lezírias), um belo exemplar de cavalo árabe, isabel de cor, xairelado e calçado acima dos joelhos, com as crinas e os cabos pretos. O nosso rapaz explicava tudo isto ainda com outros pormenores, garantindo até que o garanhão árabe pertencera a um xeque rebelde, espécie de feiticeiro com filtros mágicos para os alfa rãzes da tribo.
Os dois poldros eram a vaidade do patrão Augusto, talvez porque o pai lhe dera a honra de os baptizar; mas a sua preferência ia mais ainda para o Inspirado, uma estampa maravilhosa de formas, como só as permitem os cruzamentos de sangue oriental! com as éguas de Aller.
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O Filho, pelo lado materno, da Tafula, uma fêmea ardega que bulia como um vime, o poldro era já pimpão, pela maneira arrogante como olhava os que se lhe aproximavam, deslumbrados pela cor da sua pelagem, pela franqueza do seu porte varonil e pela graciosidade com que corria atrás da mãe. O nosso rapazola já confidenciara ao maioral das éguas que aquele seria, dentro de poucos anos, o seu cavalo de sela.
Naquela manhã o lavrador atravessara o rio com o filho e um oficial do Exército, que vinha fazer medições de gado para a próxima remonta. Como sempre que falava da manada, o pai dera-se em pintar as suas éguas como os mais belos animais da espécie. Guiando a aranha, engatada a um capão ruço-cardão-claro, o lavrador olhava o filho com vaidade, indicando ao outro a facilidade com que ele fazia passar a sua montada do trote ao galope, numa correcção de causar inveja a muitos cavaleiros que iam às corridas da Marinha, em Cascais, ou mesmo a terras de Espanha, o maior luxo dos criadores dessa época.
"Veja-me aquele trote levantado! E tem só quinze anos, hem!"
O oficial sorria, um tanto comprometido com o monóculo, que a órbita, ainda pouco afeita, segurava por sacrifício de toda a face esquerda. Vendo-se notado, o rapazote fazia a montada apurar-se em andamentos rápidos e elásticos, com que parecia desafiar o pai para um galope seguido até à Galé.
Ali chegados, foi o menino Augusto quem fez desfilar a manada perante o hóspede, em gritos de "óis" selvagens aprendidos com o maioral, guardando para o final, como peça de grande efeito, uma corrida disparada da Tafula e da sua cria, que deixaram o oficial rendido pela harmonia das linhas e pela ligeireza da carreira.
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com açorda de sável, bem ensopada em vinho da lavra do Norte, mais uns frangos no espeto, com acompanhamento de outro vinho mais encorpado, e ainda aguardente velha de vinte anos - "Desta é só para os amigos, meu caro!"-, o almoço foi de empanzinar ventres e de bulir cabeças. E avivou-se a conversa, remanchada até ali.
"O cavalo de sela militar", dizia o oficial, mais desenvolto, "deve ter o dorso do cavalo de postilhão, correcta direcção nos aprumos e temperamento rústico. A guerra franco-prussiana foi uma vitória da cavalaria. Um dos mais preciosos ensinamentos que dela se colheram foi exactamente a definição das características de que falei. O cavalo berbere..."
"Eu prefiro o árabe", interrompeu o lavrador, mascando o seu charuto.
"Talvez seja um amimal mais formoso de linhas, isso não desminto. Mas para aguentar frio e fome..."
"Tem o meu amigo razão. Frio e fome é com o alfaraz do deserto."
"E vivacidade também", retorquiu o outro, avançando na sua, já pela condição de hóspede, já também pela afoiteza que lhe davam as bebidas.
"Lá isso, mais devagar! Vivacidade é como quem diz... O berbere é sempre um animal assendeirado, mornaço e triste..."
"Quando está em repouso", insistiu o outro. "Mas, se o puser em acção, o animal torna-se outro imediatamente. E então é que é ver energia, vivacidade e desenvoltura... E que cascos conhece o lavrador mais resistentes?"
"Ora! Cascos resistentes tem-nos o gado mulateiro, e disso não quero eu dentro da minha emposta, nem que me tragam orelhas de oiro."
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"Pois o cavalo de guerra tem de poder andar desferrado, sem se pisar, quando preciso for. Na sua manada há uma égua de Alter que não me falha..."
O lavrador arregalou os olhos pela desfeita; o oficial, percebendo-lhe a indignação, emendou logo de pronto: "É claro que isto não quer dizer que toda a manada não seja do melhor que eu até hoje vi... Mas como aquela égua que o seu rapaz correu em último lugar..."
"Ah, essa é uma maravilha!", assentiu o lavrador, metendo os polegares nas cavas do colete. É a Tafula! Terá de a comprar com o poldro."
"O poldro é meu, pai!", interveio Augusto, de pronto, debruçando-se, nervoso, sobre a mesa.
"A quem pediu autorização para se meter na conversa?"
Corado, o rapazola ergueu a cabeça, contra o seu costume, sempre que o pai o repreendia. Um sorriso do hóspede deu-lhe coragem.
"Então peço licença para falar." E soerguendo-se: "O pai dá-me licença que fale?"
O lavrador fez um gesto de assentimento depois de uma troca rápida de olhares com o oficial de cavalaria.
"Eu só quis lembrar", disse Augusto com humildade, "que o poldro me foi prometido quando nasceu... Fui eu que o baptizei..."
"E acha que o merece?", retorquiu o pai com aspereza.
"Acho que sim..."
"E porquê?"
Para lá do silêncio dos homens ficou mais vivo o chocalhar da manada.
"Não ouves?", insistiu o lavrador, passando ao trato por tu, que era o sinal mais signnificativo da sua exaltação. E como o rapaz continuasse calado, rematou: "Talvez por teres esporas de prata... Será por isso?"
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Um olhar estranho incendiou-se no rosto magro do moço.
"As minhas esporas de prata servem pra qualquer cavalo!", respondeu numa bravata.
"Fica combinado que ganharás o poldro pela segunda vez, e agora para sempre, se fores capaz de domar a mãe..." E num grito para fora: "Zé Malvado! Zé Malvado!..." E mal sentiu os passos do "maioral deu-lhe a ordem: "Põe uma manta em cima da Tafula e tira-a da manada! Dois criados que segurem o poldro!"
O filho baixara os olhos, ofendido pela deslealdade. "Que estás à espera? Podes levantar-te! Eu, o senhor oficial e os criados todos vamos ver para que servem essas esporas de prata..."
Erguendo-se de um salto, o rapaz saiu do aposento sem mais palavra. Da porta da poisada olhou a Lezíria, branda e sem fim, à sua frente. O maioral dava a volta ao gado, tentando meter a cabeçada de corda na égua, a que já tinham prendido o filho. "Desta vez acabou-se o receio", dizia Augusto para consigo. "Medo é que nunca tive..."
E correu para a manada assim que percebeu que o pai se levantava da mesa.
"Pode ser um perigo", lembrou o visitante. "Não tem importância", respondeu o lavrador. "Preciso que ele seja brioso."
Ajudado por outro criado, enquanto o maioral segurava o cabresto da égua, o rapaz saltou para cima da manta, ajeitando-se bem no dorso, apesar de o animal se querer esgueirar debaixo dele. Os criados pareciam assustados com aquela prova, de que não percebiam a intenção, e só o maioral sorria com os olhos, não se sabe ainda hoje por que maldade. Mas Augusto percebeu-o e disse-lhe: "Lembra-te, Zé Malvado, que te riste de mim..."
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"Eu, menino?"
"Sim, tu. Larga lá o cabresto... Larga o cabresto, depressa!"
E a voz do rapazola ganhou nesse momento um novo tom, que nunca mais deixou de ter: tornou-se grave e áspera, quando até ali era ainda a voz doce de um adolescente.
Mal se viu livre, a Tafula fugiu com o cavaleiro, como se quisesse amedrontá-lo pela vertigem da correria, sem obediência a qualquer preceito da arte de cavalgar. Era bem uma égua filha do vento, das lendas do passado. E indomável, furiosa com o bridão a queimar-lhe a boca, atirava sacões, baixava a cabeça, procurando atingir com os dentes as pernas do cavaleiro ou tentando fazê-lo sair por cima do garrote irrequieto.
Cego de raiva, o rapazola segurava-se à arreata de corda e aos flancos do animal com quanta gana possuía nas mãos e nos joelhos. E falava-lhe em voz mansa para a aquietar: "Quiá, Tafula! Ói, égua bonita!"
Foi nesse instante que o bicho, numa furtadela rápida dos flancos, mudou o curso da carreira e quase estacou sobre os cascos duros - e logo o rapaz lhe saltou de cima, como se um ciclone o arrancasse do dorso da égua, indo esbandalhar-se na borda de uma aberta, só com o chicotinho enrolado preso na mão. Mas quando a criadagem correu já ele estava de pé, assobiando à égua, apesar de sentir uma das pernas a pesar-lhe.
"Tragam-ma aqui!", gritou para os campinos, que desconheciam aquela voz dura e o olhar sinistro que viam o menino atirar ao Zé Malvado.
"Tu és o maioral ou não?", disse para o outro. "Vai agarrá-la, depressa! Quero que te rias mais uma vez..."
Já o pai se chegara ao pé dele, segurando-o pelos ombros e trazendo-o ao peito para o apertar com ternura.
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"Ganhaste o poldro, Augusto! Foste um valente!"
"Não, pai, não ganhei. Pra que me deu as esporas de prata? Eu disse que elas serviam para qualquer cavalo... E a Tafula desfeiteou-me..."
"Desfeiteia um qualquer, rapaz do Diabo! Não vês que é ainda uma égua selvagem?"
"Pois sim; mas eu não ganhei..."
E, voltando costas ao pai, foi a manquejar ao encontro da manada.
Na semana seguinte voltou à Galé, decidido a levar a sua por diante. E tantas vezes a Tafula o sacudiu, e tantas vezes ele lhe saltou para o dorso, que a égua acabou por consenti-lo com brandura, deixando que ele lhe afagasse a crineira.
E nunca mais foi arisca.
Já homem, o patrão Augusto contava, ufano, que égua ou mulher que lhe ouvissem a voz só deixavam de lhe pertencer quando ele quisesse.
Talvez fosse exagero seu; a verdade é que ganhou aquele poldro com as suas esporas de prata, embora nunca chegasse a montá-lo: o Inspirado finou-se, aos seis meses, nos cornos de um toiro borralho que alarmou a. Lezíria.
Esse facto deu-lhe uma filosofia: "Na vida nem sempre merece melhor recompensa o que se ganha com maior esforço."
E, embora com saudades do seu poldro, minguou-lhe o desgosto a circunstância de ter uma morte digna.
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Um cavalo ao Profeta
Foi a sua primeira grande extravagância logo após a •*• morte do pai, mas não há dúvida de que lhe saiu por dez réis de mel coado, se soubermos que gozou essa aventura durante meio século; e que a trazia ainda ontem a forrar-lhe o coração com o mesmo prazer dos primeiros dias.
Tinha ele 20 anos quando atravessou a nossa vila, montando aquele cavalo alazão-queimado, expressivo e ardoroso, que arredondou de cobiça e de espanto os olhos de entendidos e de leigos, de rapazes e do mulherio - é mais destas do que de ninguém, porque uma tal estampa lhes excitava as imaginações adormecidas pela pasmaceira da terra. Nesse dia ele foi um príncipe conquistador que entrava em triunfo num pobre burgo submetido à sua juventude esplendorosa.
Tão vaidosa de si como o cavaleiro, a montada aprimorava-se no mover soberbo da cabeça descarnada e no ritmar lento e bailado dos passos e das ancas.
Mas talvez baste dizer-vos o seu nome para que se torne desnecessário descrever esse corcel que a Ibéria inteira conhecia das crónicas elegantes dos hipódromos
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e das revistas ilustradas: tratava-se do Kébir. Sim, do Kébir!
Pois foi um dos mais formosos e famosos cavalos que ainda pisaram, até hoje, as pistas da Europa.
Filho do Tarik e da Uri, nascera numa tribo do Médio Atlas, junto ao rio Ume-Arrebia (a Mãe da Verdura), entre os Berberes, que afiançam ser as suas éguas fecundadas por um lendário garanhão, soberbo e impetuoso, que sai do mar rebelde para padrear as manadas, embora a viagem seja longa e árdua até ao seu país. E o Kébir veio ao mundo numa noite de estrelas e de orações, como o Profeta o desejava: alazão-torrado, o cavalo que, no dizer dos nómadas do deserto, é ágil como o vento quando foge debaixo do sol. E tinha, como mandam os preceitos, quatro coisas largas, quatro coisas compridas e quatro coisas curtas.
Ora submisso e brando, ora vivaz e selvagem, como o seu pai da lenda, o Mar, e como o seu pai de sangue, o Tarik, filho e neto de cavalos árabes Nedj, o Kébir trouxera consigo ao mundo todos os dons das raças orientais: cabeça corajosa como a do javali, espessa em cima, seca no meio e acabada em baixo, num remate que a mão de uma mulher colhia e apertava; ventas largas como a fauce do leão e fronte como a do toiro; olhos aflorados e vivos como os da gazela, que também lhe emprestava a graciosidade e a boca; a vivacidade e a inteligência do antílope, a ligeireza e o pescoço do avestruz. E a cauda curta da víbora e a crina fechada da tamareira. E este conjunto de beleza sem par, alçado sobre as colunas dos membros, fortes e elásticos ao mesmo tempo, musculosos, secos e bem nervados. E uma pelagem de cetim ornamentada de veias que dá, nos cavalos mais claros, tons discretos de porcelana chinesa.
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Mas o Kébir nasceu alazão-torrado, como o Profeta gostava, nesse tempo em que os morabitos pregavam a insubmissão nos aduares, aconselhando as tribos a "libertar-se dos sultões, que têm caprichos de criança e garras de leão". E os assaltos, as pilhagens e as lutas de morte travavam-se, violentos e sem quartel, entre os Berberes submissos e os seus irmãos do país rebelde, o Bled-Assaíba, pouco antes de os cristãos terem chegado para impor a sua lei, tão dura e implacável como a sua, pois nunca foram outras as regras das conquistas pelas armas.
Nesta fornalha de sangue o nosso poldro ganhou músculos de aço e fez-se nascente poderosa de energia indomável, e também de docilidade, para os cavaleiros marroquinos, que fizeram dele um dos mais belos alfarazes do deserto, seguindo as palavras do próprio Deus ao gerar a sua espécie: "Criei-te sem igual; bom para o ataque como para a fuga, voarás sem asas, e eu não colocarei sobre o teu dorso senão homens que me conheçam, que me dirijam orações, que me rendam acção de graças; homens, enfim, que me adorem."
Mais tarde Deus faltou à palavra, deixando o Kébir para gente cristã, talvez na esperança de converter os Europeus à sua lei.
E ainda brincão e rinchador, o poldro passou a cavalo inteiro, sempre adorado pelo povo, que escuta a voz do Profeta: "Cada grão de cevada que derdes aos vossos cavalos vos valerá uma indulgência no outro mundo."
Feito assim animal divino e chave para abrir as portas da eternidade, ele deixou o deserto, apesar de o emir Abde-Alcáder ter feito uma lei que condenava à morte os que vendessem cavalos do Oriente aos cristãos.
Mas o Kébir foi doado e não vendido, por preito de um sultão a certo fidalgo português que o ajudara em Tânger num manejo diplomático para a compra de armas.
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Novas famas o esperavam para o tornar mais vaidoso ainda. Famas e trabalhos, é bom acrescentar, porque o entregaram a picadores, de muitas e várias exigências, que lhe corrigiram os defeitos trazidos da sua Hibo. Todos os dias, a passo, em andadura, a trote e a galope, o Kébir foi submetido a canseiras sem conta, que lhe aumentaram a resistência e a rapidez. Depois vieram os obstáculos, que ele nunca recusava, com o seu feitio decidido e arrojado. Um e logo outro, cada vez mais altos, com varas e com sebes, com barreiras e charcos de água. E falavam-lhe com doçura, quando lhe não davam com a verdasca ou o picavam com a espora, para depois lhe vestirem uma andaina de boas lãs, não fosse ele constipar-se, passeando-o, a passo, até arrefecer. Comida boa e a horas certas no resto do dia e sombra de cavalariça limpa que nem uma sala de visitas. E até torrões de açúcar que eram uma delícia.
Mas tudo isto debaixo de uma vigilância permanente, que o incomodava ao princípio. Olhavam a maneira como se punha em descanso, se se apoiava nas palmas e não nas pinças, se tinha a cabeça alta e o pescoço direito, ou se deixava abandonadas as linhas de aprumo. E até deitado o vigiavam, para saberem se preferia o decúbito lateral e também se dobrava as mãos, fazendo essa coisa feia que os picadores chamam o "deitar de vaca". Em movimento ainda era pior: se descrevia um semicírculo pelo lado de fora com os membros anteriores, não fosse o Kébir "ceifar"-se no trote flexionava em demasia o antebraço e a canela ou se fazia o contrário (e ambos eram defeituosos); se se tapava ou se arpejava; se tinha as espáduas frias ou cavilhadas. Um martírio!...
Mas depois também um certo gozo com tanta preocupação, quando na sua tribo as virtudes de um alfaraz
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vinham já da barriga da mãe e daquela ascendência de sangue árabe, que o Kébir parecia recordar quando relinchava com orgulho. É que ele herdara dos seus avós da Síria a andadura rápida aprendida com as camelas, a que as éguas vão arreatadas durante os percursos longos. Desta convivência criou-se a fama de os cavalos do Oriente serem parcos a pedir rações e água, quando são as camelas que lhes matam a sede e a fome com o seu leite.
De tanta canseira e exigência, não tardou que o Kébir alcançasse os seus loiros de cavalo célebre. Ganhou derbies, teve o nome nos jornais de toda a Europa e foi o ídolo das Parisienses. Fotografaram-no com o dono e o jóquei, entre taças de prata e multidões rendidas pela sua fogosidade. E até um pintor célebre o quis fixar numa tela, que hoje não se sabe onde pára, pois os nazis levaram-na de uma galeria particular, e depois deles vieram outros que também a cobiçaram.
Mas isso é uma história diferente...
Passada a época dos torneios, o Kébir começou a padrear. E de Trás-os-Montes ao Alentejo o alazão-torrado, de luzeiro na fronte, pejou éguas sem conta, deixando o seu sangue rebelde e dócil em centos de poldros que relincharam por Portugal além.
As fêmeas fantis conheciam-no e desejavam-no. Ele também ganhou uma paixão em certa manada do Ribatejo. E aí não havia maneira de o fazerem saltar outras éguas, se lhe não pusessem perto aquela fêmea ardega de pelagem isabel que o Kébir desejava com vigores impetuosos.
Gastou assim onze anos a deslumbrar multidões e a propagar as suas virtudes.
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O pior é que o dono levava vida faustosa por Paris e Londres, passeando-lhe a fama pelos grandes salões da época. E nem os prémios ganhos em corridas, nem o dinheiro pago pelos donos das éguas que o Kébir padreava, puderam impedir a ruína da sua casa.
E chegou o leilão das carruagens, de um palacete em Sintra e do próprio Kébir.
"Cavalo alazão muitos o querem e poucos o hão", diz o provérbio popular. Dessa vez foi uma estação zootécnica do Estado que cobriu o maior lance. E o alfaraz do deserto foi funcionário público.
As suas andanças de garanhão passaram a fazer-se por intermédio do papel selado; e criados com o escudo nacional no boné vigiaram-lhe as arremetidas de cio profissional, tomaram notas da maneira como o Kébir a* fazia, que éguas pejava e que filhos seus vinham ao mundo. Meteram-se empenhos junto de directores-gerais, e até de ministros, para que o lazão fizesse certos serviços da sua especialidade nesta ou naquela manada de um lavrador ou outro com influência política.
E as requisições não tinham fim; as assinaturas do seu director lá visavam os papéis, sob o cunho do selo branco, e de acordo com a informação dos veterinários que o vigiavam.
Como tantos outros serventuários do mesmo patrão, o Kébir tornou-se preguiçoso. E dava-se a certas manhas, fingindo o que não fazia e burlando assim os que confiavam ainda no seu fulgor. Esqueciam-se de que ele começava a estar velho e de que o rifão berbere está certo quando diz de um cavalo: "Até aos sete anos para meu irmão, dos sete aos catorze para mim e dos catorze em diante para o meu inimigo."
E foi uma comissão de técnicos, depois de o medir e remedir, de lhe mirar o maxilar balbo, de lhe ver bem
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os cascos, o ânus e as orelhas, que resolveu, por maioria absoluta de votos, reformá-lo do serviço público, do que se fez acta, mas sem direito a manjedoura ou a telha que o cobrisse. A eterna gratidão dos serviços públicos! E o Kébir voltou a ser leiloado.
Foi assim que ele entrou na nossa vila, ainda soberbo, apesar de velho, enquanto lá longe, num aduar do Médio Atlas,'; as crianças da sua tribo aprendiam a história da sua vida, que era bem uma lenda.
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O cavalo da vingança
Nos joelhos daquele rapazola moreno que nem um cigano, o Kébir parecia ter rejuvenescido. E se ainda algumas vezes lembrava certas éguas - que saudades de uma rosilho mil-flores que padreara num dia de soalheira ! -, a verdade é que a vida de pachorra consentida pelo novo amo lhe refazia as forças, dia após dia, como se as fontes do seu antigo vigor voltassem a achar a linfa que lhes faltara.
Pródigas refeições de fava e cevada, bomtrato na quinta e mimos da criadagem, de que só lhe pediam em troca um passeio ou outro pelas ruas da vila, mais para o mostrarem a passo do que para lhe exigirem estafas. Que diferença dos últimos tempos de funcionário, em que o julgavam alimentar-se de cio, dando-lhe rações de pilecas, talvez por míngua de verba no orçamento ou por exagero do tratador, que o punha a dieta para embolsar as diferenças. Ainda bem que a reforma chegara a tempo! Talvez lhe começasse a faltar a vista, como ao amo escasseava a temperança dos tempos do pai. Apesar disso, o Kébir bem se enchia de vaidade, ao perceber vultos de mulheres debruçados nas janelas ou nos muros para o
verem pavonear-se, de cabeça garbosa e orelhas ainda bem postas e firmes, apesar dos anos. Muitas vezes nem de olhos precisava para lhes adivinhar a presença: bastava sentir nas rédeas e no freio um estremecimento leve que vinha das mãos do cavaleiro.
E as quatro batidas ritmadas do seu passo tornaram-se conhecidas a distância, como na Lezíria os campinos prometem tempestades pelo berrar dos toiros.
Eram deste tempo as mais belas aventuras que o patrão Augusto contava. Não como ele as coloria - só raparigas bonitas e desenxovalhadas e sempre bravuras da sua parte; mas aventuras, sem dúvida. Certa perseguição que lhe fizeram a cavalo desde uma quinta do Sobralinho; a subida a uma janela, numa noite de temporal, servindo o Kébir de escada ao nosso Romeu; o rapto de uma costureirita que ele conhecera no algibebe das suas jaquetas, e cuja boniteza, temperamento ardente e feitio arisco lhe deram para falar de três mulheres diferentes; e namoricos vulgares, rodeios a mulheres casadas e a uma viúva - que viúva!-, a que ele aludia de olhos espantados e braços abertos, como se fosse orar a Alá. Histórias sem importância, iguais às de todos os homens, mas que ele polvilhava de um mistério tão excitante e com tamanha conta de gestos que era um espectáculo ouvi-las.
O alazão-queimado entrava em todas elas por força da sua quimérica determinação, sem que o lavrador se preocupasse com a memória dos ouvintes. Mas o cognome do "cavalo da vingança" pertence, por inteiro, ao Kébir. suprimindo-se aqui qualquer fantasia do protagonista.
Cinco anos haviam já passado sobre aquele dia em que a Tafula, a égua ardega ciosa da sua cria, desdenhara das esporas de prata do nosso lavrador. E se mesmo depois de a ter domado ele não olvidara o sorriso irónico dos olhos do Zé Malvado, a verdade é que nunca se resolvera
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levar por diante qualquer das muitas vinganças que idealizara, talvez porque não sentisse coragem para dar realidade à que mais lhe agradava: amarrar o maioral à cauda da Tafula, e metê-los numa tapada de toiros, durante a ausência do guardador. O requinte do projecto parecia bastar-lhe. E imaginava a correria do animal perseguido, os gritos do criado, o cerco da manada por aquele desafio e o arremeter, por fim, de um dos bichos mais codiciosos, que desfaria à comada o campino e a égua. Tanto pensou nesta forma de vingança que numa noite de bródio se pôs a narrá-la, como se a tivesse consumado; fê-lo, porém, só dessa vez, e por causa de uma espanhola, tão bárbara lhe pareceu quando a pormenorizou em voz alta.
Não é menos certo que o Zé Malvado, talvez poi conhecer em demasia o que sucede aos servos caídos no desagrado dos filhos dos lavradores, se dera em desfazer aquela amostra de desrespeito, tornando-se o campino mais submisso da sua criadagem. Mal via o menino a distância, ele aí estava de barrete na mão para lhe agarrar as rédeas da montada, para lhe gabar o destemer com que domava os animais mais ariscos e ainda para lhe afiançar, tanto lhe conhecia o fraco, que em toda a Lezíria não havia casa de lavoira com manada de raça tão apurada. E dizia tudo isto com os olhos no chão, não fossem o^ dianhos traí-lo e arranjar-lhe algum par de botas.
Mas a desconfiança do amo sarou-se de todo quando ^oube que o seu maioral malhara, a poder de murro, outro campino que se rira de um poldro branco-pombo da sua piara, dizendo numa taberna do Cabo, para quem o quisera ouvir, que o lavrador tinha roubado aquela cria nalguma feira só para mostrar que as suas éguas também pariam cavalos em vez de pencos.
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O milagre fez-se.
Nesse dia, o Zé Malvado almoçou no aposento do patrão, a quem teve de contar o caso tintim por tintim, e ainda com acrescentos da sua lavra, mais para lhe agradar do que por seu feitio trapaceiro. Bem bebidos os dois, que o lavrador, quando se metia com vinho, gostava de o ver amarinhar até ao coruto da cabeça, acabaram por ir dar a volta às searas, com a raiva acesa do abegão, que se viu preterido nas suas funções. Por essa altura ainda o patrão Augusto fazia tais passeios, mais para ver as cachopas do que as espigas, tão pouco habituado estava a considerar que os créditos bancários deviam ser pagos. A lavoira já então atirava com todos os males para cima do mau tempo, culpando-o dos seus desequilíbrios financeiros e repetindo o velho conceito, gasto de todo, mas sempre válido, de que "isto de ser lavrador em Portugal é maneira de se empobrecer alegremente".
O rancho cantava para entreter a canseira e para agradar ao amo, que gostava do pessoal animoso. Solto de língua com a pinga, o Zé Malvado falou de dois ou três palminhos de cara que por ali mondavam, certo de que o patrão tanto gostava que lhe gabassem a manada como lhe puxassem a conversa para o lado das fêmeas. Cauteloso a princípio, tornou-se afoito com os sorrisos do outro. E à volta para os aposentos vá de fazer um pedido que, em são, nunca seria capaz de pespegar ao amo: "Que havia por lá uma gaibéua que lhe dava troco, e se o patrão não s'importasse e ela quisesse..."
O Zé Malvado tinha o mamar suave, como diziam dele os camaradas. E dessa feita ainda maior doçura empregava para conseguir a sua: "Que o patrão bem sabia que ele tinha mulher, mas que o raio da cachopa era uma desgraceira, e se o deixasse tê-la ali no Campo ela sempre
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dava jeito para tratar da criação e da cozinha, e era um grande favor que lhe fazia..."
"E tu gostas dela?", perguntou-lhe o lavrador.
"Ah, patrão!... A rapariga tem um falar como eu nunca ouvi. É assim a modos como um pássaro. E mete-se no coração dum homem como a verdizela numa seara de trigo."
"Vê lá mas é se a verdizela te dá conta da seara. E cá por mim já sabes... Trata-me bem das éguas e da poldraria, que do resto não se me dá."
Pouco faltou para que o maioral disparasse a galope pela Lezíria, anunciando a nova a todos os ranchos que por ali se assoldavam. Para um homem de meia-idade, como o Zé Malvado, aquilo era ficar com o Céu dentro da poisada. A moça andava pelos seus 20 anos e talvez não fosse bonita. Trigueirona e baixota, um pouquito fornecida de carne e com a boca rasgada que nem um fundão do Tejo. Mas dizia-lhe "Credo, seu home!" com uma graça tal que o corpo todo se lhe ria.
com sangue aventureiro nas veias, a cachopa não teve receio de que o rancho voltasse à terra sem ela. O noivado do maioral das éguas fez-se sem festança, não porque outro qualquer "já lhe tivesse mudado as meias", mas para evitar que chegassem ecos à vila, onde a mulher do Zé Malvado se consumia de míngua para dar aos filhos. E até, para tudo correr bem, o patrão esteve mais de quinze dias sem pôr os pés no Campo. A rapariga era vergonhosa, no dizer do amante, e aquela ausência ajudava-a a habituar-se à emposta e às suas recomendações: "Que não desse troco aos homens, que eram uns parvos e uns bacocos; que quando o amo aparecesse se metesse na poisada, e que mal dela se a visse em galhofa com alguém."
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"O patrão é assim de mulheres?", perguntou a cachopa com ingenuidade.
"É maluco de todo! Já o pai não tinha os sete alqueires bem medidos."
E riram-se os dois, aconchegados na esteira, enquanto lá fora um moço de lavoira cantava ao silêncio da Galé:
Eu hei-de ir aos teus olhos com uma pedra parti-los; já que não me gozo deles,
não há-de outro possuí-los.
Terra rodeada de águas quase mortas, a Galé não desmerecia do nome com que a haviam crismado os que ali se achavam como num degredo. "Maleitas até as apanhavam as flores", diziam os velhos. E solidão - que é mal ruim até para os bichos.
Mas agora não era só o moço de lavoira que cantava, à noite, a febre de quebrar uns olhos falsários. Toda a criadagem procurava demorar-se mais tempo no terreiro das motas, onde as galinhas e os patos andavam à solta, e onde a gaibéua vinha atirar-lhes comida duas vezes ao dia, chamando-os com a sua voz modulada.
Pimpões todos eles -ou não fossem campinos!-, era ali que iam mostrar agora as suas habilidades com garranos e éguas ardegas, e não se metiam no exagero, como fez o filho do abegão, de espicaçar um toiro, há pouco amansado, até o bicho investir com fúrias de animal de lide. E se o rapaz o conseguiu enganar duas vezes, levando-o embebido na cor viva do barrete, de outro tanto não foi capaz um maltês alentejão, que se deixou enganchar e ganhou para lembrança um susto de morrer.
Zé Malvado sabia bem as razões daquelas valentias e consumia-se de ciumeira quando adivinhava a cachopa
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a espreitar os homens da janela da poisada. Fazê-lo marchar para as suas obrigações de eguariço era arrancar-lhe o coração. A gaibéua trazia fogaréus no sangue e orvalho na boca. Uma orvalheira que lhe nascia nos lábios grossos e os punha frescos e ardentes ao mesmo tempo, mal o amante lhe tocava no corpo azadinho e rijo. E amuava com um pender de cabeça e um olhar tão magoado, quando o eguariço lhe ralhava por ela se prestar a conversas, que o Zé não tardava em lhe puxar o queixo com a mão trémula, acabando por jurar que nunca mais lhe falaria de rompante.
Mas os ciúmes iam nas suas esporas até à tapada. E daí a instantes lá estava ele à espreita, escondido por detrás do barracão dos bois, como se pudesse guardar a cachopa da cobiça dos outros homens. O abegão rira-se ao princípio com aquela excitação do maioral das éguas, convencido de que a febre lhe passaria mal a novidão acabasse. Julgava o outro por si, sem entender que a gaibéua nascera fadada para trazer os homens à babugem da saia e que o Zé Malvado tinha um coração largo como a arena da praça de Vila Franca.
Amigo de seu amigo, chamou-o um dia à fala, tão alheado o via do trato das éguas e poldros: "Olha, Zé! Isto de garranas na nossa idade é pior do que pôr um pedinte à frente de um caldeirão com comida... O pedinte quer meter na barriga tudo numa volta... e rebenta. E tu também rebentas, Zé! Lá isso rebentas! Deixa a cachopa prà mocidade... Já foste capaz de agarrar um pedaço de sol no barrete?... Ou uma baforada de vento?... É o mesmo Zé Malvado! Deixa o sol e o vento na sua lida... Deixa ir a moça pró seu destino... A gente já fez a sua 'epa'...-e não a fizemos mal, vamos lá, com trinta diabos."
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E pôs-se a contar à volta da fogueira uma das muitas histórias de mulheres que poucos sabiam na Lezíria como ele. "Se até andara por terras de Espanha com o patrão Zé Pereira!... Boa vida! Boa vida e bom tempo!..."
Mas o eguariço não gostava de conversas que o tivessem afastado da poisada e sobejavam-lhe farroncas para dar ouvidos a conselhos. "E olha de quem!", pensava na sua. "Conselhos do Anselmo, que tinha filhos de quatro camas." Quanto a mocidade, o eguariço ainda se não trocava por nenhum daqueles frangos que em lugar de cavalos e toiros falavam de grupos de bola, como se os homens, aos pontapés, pudessem alguma vez dar festa mais bonita do que um toiraço de bandeira ao sair do curro para ser farpeado; e corrido à capa e pegado de caras por gente com unhas, assim como o fazia o Edmundo, que foi ferreiro no Manei Burrico e media um toiro de largo a largo: "Eh bonito! Eh garraio!..."
Até que uma manhã, não pensasse a rapariga que ele era de muitas palavras e de poucas obras, apareceu no terreiro das motas montando a Estrela, a égua mais nervosa e de melhor estampa que o patrão guardava na manada. De orelhas pequenas e atentas, pêlo lustroso e curto, que deixava desenharem-se a azul, em transparência de porcelana, as veias do seu sangue irrequieto, o animal vinha, vaidoso, a relinchar para as brisas da Lezíria a presença do seu corpo perfeito entre as demais éguas que por ali pastavam.
Zé Malvado montou-a em pêlo, sem manta, nem bridão, nem freio, e vá de mostrar as habilidades à criadagem, que estava na hora do almoço. Meteu-a a passo apurado, quis fazê-la bailar, tocou-lhe o ventre malhado com a ponta das esporas, e a égua partiu a trote curto, e logo depois num galope elástico, ritmado e confiante, como se vogasse no espaço. Por detrás da janeleca fechada
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da poisada de caniço, a gaibéua espreitava-os, sabendo que o maioral se exibia para que ela o visse e admirasse. Tudo lhes saía bem - ao cavaleiro e à montada. Emproado sobre a égua, pernas magras na calça justa e bem enganchadas no ventre do animal, ambos num corpo só, tão afeitos estavam um ao outro, por ali andaram a brincar com a própria sombra, ante o pasmo rendido dos outros campinos, maravilhados com a inesperada revelação do Zé Malvado como picador. Só ele sabia a trabalheira que aquilo lhe dera, ensinando o animal às escondidas, à força de paciência e de carinho. E ainda de certo pó milagreiro que ele oferecia à Estrela, na palma da mão, e a égua procurava, lambareira, com a sua boca pequena de boa raça.
Mas é defeito dos homens perderem a tineta se as coisas lhes correm de feição. E Zé Malvado desvairou-se. Parou a montada, afagou-lhe a crina, debruçando-se-lhe sobre o pescoço, como se fosse dizer-lhe um segredo, e vá de tirar do bolso das calças um punhado de açúcar - o tal pó milagroso -, para que a Estrela percebesse que estava contente com ela e se dispusesse a acompanhá-lo na última façanha daquela manhã. Depois deixá-la-ia voltar à manada para ganhar a liberdade da pastagem.
A égua deliciou-se com a guloseima, resfolegando de satisfação e de vaidade; e pôs-se com apuros, ora numa mão, ora noutra, disposta ao baile que o maioral lhe ensinara. Ele, porém, queria fazê-la saltar uma aberta e a vedação de arame que dividia a Galé de outra emposta. Fez o animal correr até ao obstáculo, mostrou-lho bem e voltou novamente para o meio do terreiro, sempre com a Estrela embalada no seu assobio e nas suas carícias. E, quando lhe pareceu, fincou-lhe as esporas no ventre, e eles aí foram; mas a égua negou-se duas vezes, relinchando com angústia, como a avisar o campino de que seria melhor ficarem por ali e voltarem à tapada.
Zé Malvado quis mostrar-se paciente, mas começava a irritar-se por se ver desfeiteado. Não faltava agora um só criado da casa nem o abegão - e os dedos da gaibéua lá estavam também segurando a cortina. Quando acabasse iria logo para junto dela...
"Vá, Estrela! Égua bonita! Quiá!..."
Agarrando-lhe a crineira com ambas as mãos para a poder dirigir, endireitou-a para a vedação e, mal sentiu o animal mais irrequieto debaixo das suas pernas, deu-lhe duas esporadas no ventre malhado. E foi um relâmpago.
Nem ele soube depois explicar como aquilo se passara - a Estrela atirou-se com os ombros para cima do arame, que lhe rasgou o pêlo tordilho lustroso, e ele só parou no lameiro da aberta, embora com todos os ossos no seu lugar. A criadagem correu a ajudá-lo; o abegão veio a passo, a enrolar um cigarro, e só lhe disse: "E agora, Zé, que contas vais dar ao patrão? E logo a égua que ele queria largar ao garanhão que comprou! Vai ser aí um temporal..."
Não foi bem um temporal, mas foi o cabo dos trabalhos, como dizia o meu avô quando as coisas se punham feias.
O patrão Augusto contou depois que tivera um pressentimento na vila e que resolvera deitar até à Galé. Estava, porém, a fantasiar, para não dizer simplesmente que mentia. Ele soubera que uma senhora duquesa viera nessa manhã à Lezíria acompanhada da sua comitiva de administradores, agrónomos e criadagem; e como dela se contavam certos desvarios e liberdades que aguçavam o apetite de rapazes com sangue rinchador, não foi difícil aligeirar a imaginação do patrão Augusto, que logo
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entendeu atravessar o rio e ir mostrar-se com o Kébir para a saudar com o seu chapéu claro de aba rija, supondo talvez que a duquesa o iria chamar para a sua beira e convidá-lo para darem volta - e porque não sozinhos? - aos gados e às terras de que era dona.
De mão na ilharga sobre a faixa de seda, o patrão Augusto apareceu no cais montado no seu palafrém, como se fora um príncipe das Mil e Uma Noites. A duquesa reparou nele, sem dúvida. Era um ciganão, aquele rapazola moreno e dúctil de corpo que nem um vime. Naquele tempo, porém, ele era tímido, embora o não julgasse, e sabia pouco de mulheres, como sabia pouco de cavalos. Ele próprio o confessou mais tarde a si mesmo; porque aos outros o patrão Augusto contou aquela sua ilusão perdida com tanto pormenor da sua lavra que na vila se disse, durante muito tempo, que ele tivera por amante uma duquesa de Espanha, filha dum ganadero da Andaluzia, tão perdida de amores por ele que o perseguira até Lisboa.
Mas nesse dia a duquesa, que não era espanhola e foi à Lezíria, olhou-o com interesse e nada mais se passou - ele, então, sabia pouco de mulheres, como sabia pouco de cavalos. Se se tem deixado ficar por ali, talvez a realidade se vestisse com o sonho que ele levava na imaginação. Nunca se pode prever do que serão capazes os caprichos de uma duquesa.
Assim foi o cabo dos trabalhos para o Zé Malvado. Mal chegou à emposta, antes mesmo que o abegão lhe desse conta do que se passara, ele percebeu nos olhares esquivos e nos silêncios que havia alguma coisa para lhe dizerem. "O que foi, Anselmo? Morreu algum poldro?" Era o que lhe importava na Galé. As searas e o resto não o aqueciam nem arrefentavam.
Avisado pela gaíbéua, Zé Malvado apareceu à porta da poisada a enfiar o carapuço, querendo mostrar-se desempenado, mas queixoso de cada gesto que esboçava. Pressentido, o patrão Augusto entendeu, pelo olhar do abegão e pelo embaraço do maioral, que tivera perca na manada. Estava longe de conhecer a história, e nunca a soube também exactamente. O Zé Malvado contou-lha a seu modo, garantindo que o bicho tinha manhas, que ele não sabia quem lhas ensinara, e que nunca as vira assim em animal tão novo, a não ser em pencos cheios de vícios.
"E que égua foi?"
"Ora, que égua havia de ser..."
"Que égua foi, Zé? Fala-me a direito, homem! Senão o gado sai mosqueiro!"
O Anselmo é que disse, a medo, que fora a Estrela.
"A Estrela? Então aquela égua tem manhas, Zé? Onde está o animal?"
Quando passaram para a mota dos bois, onde haviam metido a Estrela num pesebre de improviso, a gaibéua mostrou-se à janela com um olhar guloso de curiosidade e garridice. Patrão Augusto passou o cigarro na ponta da língua para o canto do lábio grosso e quedou-se a vê-la. "Quem é aquela èguazinha?", perguntou para o Zé Malvado quando lhe percebeu um gesto de ira para a cachopa.
"Aquela rapariga, patrão..."
"Eu disse aquela èguazinha... Não falei em rapariga!"
No fundo dos olhos do maioral o patrão Augusto viu acender-se o brilho de uma afronta; e lembrou-se logo do sorriso de desdém daqueles mesmos olhos quando ele quis ganhar um poldro e o obrigaram a montar a Tafula.
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"Foi por isso que quiseste fazer avarias com a Estrela!... Não foi, Anselmo?", gritou, transtornado, para o abegão. "Não foi, Zé Malvado?"
Fora de si, jogou o chapéu ao chão e correu para o Kébir, que deixara à porta do aposento, entregue a um fedelho de palmo e meio. Parecia doido, com o olhar esgazeado e irrequieto, os braços aos sacões e as mãos trémulas, querendo arrancar o selim do cavalo. Um criado correu a dar-lhe ajuda.
"Deixa-o em pêlo, depressa!"
E voltou para junto do abegão e do maioral, num ar de desafio, como se fosse atirar-se a eles à punhada. "Vai montar aquele, anda! Sempre quero ver o eguariço que tu és!" E como lhe visse receio na expressão: "Tens medo?... Eh, rapariga! Salta cá pra fora!... Salta cá pra fora, senão deito fogo à poisada!..."
Sabia que exagerava, que não era capaz de fazer o que dizia, mas os nervos doíam-lhe e o sangue espojava-se-lhe nas veias, pedindo-lhe uma crueldade para se vingar do sorriso daquele olhar que vexara a sua mocidade. Agora o criado tinha ali uma rapariga e ele precisava de vê-lo feito poltrão.
"Vamos, Zé! Eu pago-te a jorna pra montares os meus cavalos. E hás-de montar aquele em pêlo... sem rédeas... Quero esse cavalo amansado como amansaste aquela èguazinha..."
Pálido, o eguariço manquejava, aproximando-se do Kébir, que parecia mirá-lo com desprezo. "Ajuda-o aí", gritou o patrão Augusto para outro criado. "Quem te fez maioral era cego! Cego como tu!..."
Estava agora mais calmo, mas as pernas sacudiam-se ainda; e passava sem cessar a mão no rosto, como se procurasse suster ali o desvairamento que o dominava.
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A medo, o Anselmo disse-lhe a meia voz: "O patrão pode matar o rapaz!"
Nem lhe respondeu. E voltando-se para o maioral, novamente aos gritos, que o punham rouco: "Dá-lhe de esporas, Zé!, dá-lhe de esporas, homem!" Mas o outro hesitava, embora percebesse que a situação o tornava ridículo aos olhos dos camaradas e da cachopa. E receava tocar no Kébir, que se não movia, como se estivesse ensinado para o aterrorizar também com aquela quietude estranha - tão estranha que ele parecia não o sentir respirar debaixo das suas pernas, embora adivinhasse todo o vigor do cavalo na expressão aterrorizada dos outros campinos.
E foi esse medo que o perdeu.
Quando o garanhão partiu, numa carreira desvairada, pelo carril da Terra Velha, doído pela varada que o patrão Augusto lhe deu na anca, o eguariço esqueceu-se de tudo o que aprendera desde criança no trato com cavalos, sentindo-se perdido desde o primeiro arranco, como se montasse o Diabo. E o Kébir percebeu-lhe o pavor nos joelhos flácidos e na maneira como o cavalgava. Tudo se passou num instante: enquanto o maioral se esbandalhava, como um farrapo, na berma do carril, o patrão Augusto, já sereno, entrava no seu aposento com o abegão.
"Dois criados que levem o Zé Malvado à vila... E a Estrela também... O Pedro Ferrador que trate dos dois e que me mande a conta. Eu levo a gaibéua comigo. Ela que arranje o saco da roupa... Volta pra terra no comboio da noite."
E sentou-se a assobiar baixinho na borda da tarimba, como se nada fora com ele. A Lezíria parecia mais de rojo e silenciosa. O Sol estava a pino, pincelando retoques doirados nas searas têmporas.
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"Deixa-me sozinho...", disse para o abegão. "Quando a rapariga estiver pronta e o Kébir arreado, manda-me chamar."
Foi até à janela; e dali ficou a seguir, com o olhar indiferente, a mancha de um carro lezirão que passava ao longe. Satisfeita a sua violência, sentia agora necessidade de ternura. Estava arrependido do que fizera e não se lembrava já daquele sorriso distante nos olhos do Zé Malvado. Só lhe via o medo na expressão agastada, numa súplica que o havia enfurecido e agora o magoava. O silêncio tornava-se-lhe estranho e incómodo. Quis escutar os seus passos e bateu com os pés; mas alarmou-se por se não ouvir, como se só então reparasse que o chão da casa era de terra batida.
"Está tudo pronto!", gritaram-lhe de fora. Deixou-se ficar mais uns momentos, parecendo ter receio de encontrar os rostos dos criados a procurarem o seu. Sabia que eles o odiavam e gostaria de poder torná-los seus amigos.
Logo, porém, num dos seus rompantes impulsivos, surgiu à porta do aposento, como se fosse apanhar os campinos a planearem uma desforra pelo camarada. Embora sombrios, eles levaram a mão aos barretes, no habitual gesto de humildade.
Então atravessou o terreiro, sem olhar ninguém, meteu a ponta da bota no estribo e galgou para o selim do Kébir. "A rapariga que venha na garupa!", exclamou com voz dura. Mas tinha vontade de ele próprio ir ajudá-la.
Quando a sentiu junto de si, não respondeu à saudação dos criados, tocando o cavalo com a roseta da espora, e meteu pelo valado, como se quisesse ignorar o carril por onde vira o maioral sumir-se em direcção à vila. A sua sombra projectava-se na água barrenta da vala e o chape-chape das rãs levantava-se debaixo das patas do Kébir.
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Percebeu que rapariga chorava baixinho e falou-lhe:
"Agarra-te bem à minha cinta, não vás cair. Sabes que voltas hoje prà tua terra?"
Ela não lhe respondeu.
"Pois voltas... Voltas no comboio da noite."
Gostaria de lhe perguntar se isso a contrariava, mas dominou-se. E pegou-lhe na mão para a pôr sobre o seu peito.
"Segura-te bem... Vais com medo?... Não tenhas medo, que o cavalo é manso."
Instintivamente, a cachopa chegou-se mais e ele sentiu-lhe os seios duros por cima das costas da jaqueta. O sol ardia, mas não o queimava mais do que os seios e a mão da gaibéua.
"Sabes cantar?... Não, não cantes. Eu percebo que vás triste... Dá-me o saco da tua roupa, que eu posso levá-lo aqui à frente..."
A rapariga continuava calada.
Um vento favónio trazia, de longe, uma cantiga. E ele meteu o cavalo a trote, obrigando a gaibéua a agarrar-se-Ihe mais ao peito.
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Panorâmica (8
PARA o Campo vem gente todos os anos.
Gente submissa e alegre que aparece em bandos, como se a Lezíria fosse a terra da promissão. Gente só rica de ilusões e que não entende os ódios do pessoal da vila.
Os daqui já percebem, porém, que a chegada de mais bragos no mercado do trabalho lhes rouba o ensejo de fazerem valer os seus.
Os ranchos aparecem e eles submetem-se.
Noutros tempos todos os ranchos faziam as adiafas no fim do trabalho ou pela Páscoa.
As raparigas aprimoravam-se num quadro forrado a papéis de cor, no qual pregavam fitinhas de seda e penduravam medalhas e peças de oiro, lenços e flores que criavam nas horas de sesta, para mostrarem que no seu rancho havia gente de brios. Depois içava-se o quadro numa pega de madeira que a rainha conduzia, ladeada por duas cachopas escolhidas, muito ufanas de segurarem as fitas de seda larga que saíam dos laços bem abertos.
A marcha rompia com o capataz à frente, todo pimpão no seu fato do dia de casamento, o grilhão de berloque de
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oiro a pender das algibeiras do colete, e a manejar o seu lódao com soberbas de rei. A malta seguia atrás do quadro e lá atravessava as ruas da vila, num círio de cantigas, cite à porta das lojas onde se aviava.
O ritual era sempre o mesmo: uma quadra de saudação e depois os cumprimentos do capataz e das "fateitas", que assim chamam às raparigas que vêm fazer as compras para todos -- "aviar o fato", como dizem pela Borda-d'Água.
E lá vinha a lembrança em dinheiro, broas ou amêndoas, com um aperto de mão bem repuxado, onde se escondia mais uma notita para o chefe do grupo.
Outra cantiga em que falava nas esperanças de voltarem, e logo depois a marcha rompia, rua fora, de braço dado, até à casa do lavrador, onde o rancho se esmerava numas quadras que um poeta qualquer pusera a manquejar.
O pessoal da terra não gosta daquela pedincha, pelo que nunca faz adiafas. E os ranchos de gaibéus e carmelas, de glorianas ou de mulheres dos Foros também agora não aparecem na vila com o seu quadro enfeitado, não sei se por darem ouvidos aos segredos da gente dali.
Para as cachopas é que permanece igual a emoção de virem trabalhar para a Lezíria. Há naquilo o sabor de uma aventura que o coração espera com ansiedade...
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Uma flor azul no chapéu
ARI-MIGUELA chegou à Lezíria - o quê, há duas semanas? - com o rancho dos Foros de Salvaterra, que é a sua "nação", como diz a cantiga de um poeta ignorado. Trouxe os ouvidos cheios de recomendações da tia, que andou muitos anos por aqui, em mondas e ceifas, e sabe bem como se evitam as maleitas e os rodeios dos rapazes do Campo, umas e outros com os seus perigos para cachopas pouco avisadas.
Morenaça, com uns estranhos olhos verdes, que também se tornam doirados, compõe-lhe o rosto, afilado e maneiro, uma pasta de cabelo loiro, que ela puxa do lenço de ramagens para a testa; mal sorri, prantam-se-lhe nas faces duas covinhas, que a tornam mais graciosa e lhe realçam os dentes, embranquecidos a. broa de milho, e aquele lábio carnudo em demasia, como se a boca lhe sangrasse num golpe de canivete. Magra e alta, ondula-lhe o corpo quando anda, um pouco no jeito duma panícula de arroz quando o vento da Lezíria toca as searas.
Um pouquinho brejeirota, Mari-Miguela embonecou-se para a sua primeira monda como nenhuma outra rapariga do seu rancho, nem dos outros ranchos que vieram
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trabalhar para a mesma emposta. O capataz fê-la rainha - o que já. deu ciumeira entre as cachopas mais velhas da sua "nação" - e ela achou por bem que a escolha a obrigava a certos esmeros. Fez um bordado, a verde e lilás, nas meias, que calça até meio da coxa, enfeitou, com o mesmo motivo, o peúgo velho que enfiou na mão direita, para evitar que a água e as ervas lha firam, e, talvez por descuido, puxou a saia muito acima, apertando-a bem com a cinta vermelha. E se é verdade, como dizem os homens da Lezíria, "que o arroz gosta de ver as pernas às raparigas", ele está, por força, bem contente com a vinda da Mari-Miguela.
Não se diga, porém, nem se pense, que a cachopa procede assim por garridice, na intenção de colher rapazes à sua volta. A tia bem lhe enzonou que "amores do Campo são como amores de estudante", e a cachopa tomou logo as suas cautelas, tanto mais que na terra deixou namorado - um rapazola que é boeiro e canta ao seu gado como nenhum outro maioral daquelas paragens.
Para mostrar que não vinha ali para gracejos - ela bem percebeu os olhares travessos de uns tantos moços do rancho de Samora -, Mari-Miguela pegou no seu chapéu de palha e pôs-se a enfeitá-lo com artimanha: passou-lhe à volta um pedaço de cinta vermelha que trouxe de casa, deixando-lhe as pontas à banda, para lhe caírem sobre o ombro, fez-lhe depois um bordado a ponto de cruz, com verde e lilás, e mesmo à frente, para que todos o vissem bem, pespegou-lhe o retrato do namorado, numa moldurinha de metal amarelo que ele lhe trouxera da feira de Coruche. E depois pensou para si, num sorriso longo: "Amanhã é que vou ver a cara que eles fazem..."
A monda começou logo na outra madrugada e o capataz nomeou-a rainha. Sempre atrás do rancho, arrancando alguma erva que escapava às outras mondinas, Mari-Miguela
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cantava em surdina com as companheiras, destinava a cachopa que devia distribuir água ao pessoal e, mais folgada, podia levantar a cabeça à vontade para seguir o voo de um bando de carraceiros, muito brancos, a chegada do apontador, numa égua ruça, e o movimento das mondadeiras e rapazes por todo o arrozal.
"Auga!... Auga!... Auga!...", gritava a aguadeira numa melopeia monótona.
"Erva! Vai erva!... Ervaçal!", respondiam-Lhe os homens das padiolas, a recolherem as ervas mondadas, que as cachopas traziam na mão, se estavam longe dos combros dos canteiros.
E se às horas das refeições e das sestas não faltavam olhares metediços à volta da Mari-Miguela, nunca rapaz algum teve o descaro de lhe tomar o passo em cima dos carreiros das marachas ou, ao sol-posto, na volta para os barracões. Já havia por lá os seus namoricos - menos no rancho da Glória, que vivia à parte dos demais - e até certas saídas à noite, quando a algaraviada enfadonha das rãs retraçava o silêncio da Lezíria.
Enzonados pelas mondinas, os capatazes resolveram pedir ao abegão que deixasse o pessoal fazer um bailarico naquele sábado. Tocador não faltava - o rancho das gaibéuas tinha um de muita fama em terra de Figueiró, mestre em gaita de curra-beiços e alma danada para rir e folgar, que ninguém se ficava triste à sua beira. E logo se arredaram fardos de palha, onde o pessoal dormia, e não faltou dinheiro para o petróleo do lampeão, que o criado da abegoaria emprestou sem muitos rogos.
E toca de dançarem "puladinhos" e "saias novas", de mistura com música da telefonia. Sentada a um canto, Mari-Miguela ria para as outras e lembrava-se das recomendações da tia e mais ainda das juras que o namorado lhe pedira à hora da partida para o Campo. E estava
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triste, apesar de já se ter negado a um gaibéu e a um rapaz de Samora.
Como se fosse tomado por uma febre estranha, o tocador gritou no meio do quartel: "Isto tudo baila, minha gente! Cachopa que não dançar vão-lhe nascer teias de aranha pelas pernas arriba!"
E foi uma risota quando ele atirou três pulos à frente da Mari-Miguela, jogando-lhe depois a mão ao braço. Ela não se fez rogada e foi com ele para o enleio dos pares. Deram umas voltas em rodopio, que ambos bailavam bem, e o gaibéu passou a harmónica a outro que estava morto por mostrar as suas habilidades.
"Como é a sua graça?"
"Ora! Pra que quer vossemecê saber?"
"Prà chamar plo nome..."
"Já a morte tem vícios..."
Mari-Miguela arredava-se do peito que a apertava, como se fosse esmagar-lhe os seios; e o gaibéu tocador e folgazão, com aquelas duas pedras fincadas na camisa, deixou de gracejar o resto da noite e falou ao ouvido de Mari-Miguela.
"Estou comprometida, seu homem. Vosemecê não viu ainda o meu chapéu?"
Ele fez-se desentendido e não a largou mais. E quando o bailarico se desfez, para os ranchos irem à deita, o gaibéu tocador e folgazão agarrou Mari-Miguela no escuro e mordeu-lhe a boca a sangrar. Ela esquivou-se, chamou-lhe um nome feio com todas as letras, mas enrolada sobre a palha, na sua manta lobeira, sonhou com ele.
E no outro dia, quando saiu do aposento, mal viu uma flor azul na borda duma regadeira, arrancou-a com cautela e meteu-a entre a fita vermelha do chapéu, mesmo por cima do retrato do namorado.

Panorâmica 9
NAQUELA manhã, à hora de abrir a praça para os trabalhos do campo, a taberna estava menos ruidosa do que era hábito, embora não faltassem homens para se deixarem contratar.
O costume consagrara o local na bolsa de trabalho da vila. Era ali que se resolviam os salários de toda a semana, segundo as tarefas que a lavoira exigia, assim como as horas de fumaças e de sesta. Se havia muita gente da vila e os ranchos tinham descido das Beiras, o preço baixava; se o trabalho era muito e escasseavam os braços, o pessoal pedia jornas mais altas.
Resolvidos os preços, saíam primeiro os mais robustos e desembaraçados, os que de foice em punho, nas debulhas do trigo ou do arroz, ou a armar terra para os canteiros e nas sementeiras, davam o suor sem regateio de maior. Os mais velhos ficavam para o fim, resignados com aquela lei que vinha de longe e, muitas vezes, os deixava sem jorna.
Mas naquela semana os homens tinham combinado o salário; e, depois de discussões acesas entre eles, haviam
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tomado o compromisso de se manterem, mesmo que nenhum conseguisse patrão.
Encostados ao balcão da taberna, sentados nos bancos corridos das mesas, ou à porta, em pequenos grupos silenciosos, os homens esperavam, de olhar resoluto.
"A quarenta?!", disse, espantado, o primeiro abegao que chegou à praça.
"Sim, a quarenta!", respondeu-lhe o Perdigoto, de voz calma.e firme.
"Vossemecês estão derramados, com certeza. Quem é o patrão que pode pagar uma jorna dessas?" E voltando-se para os grupos: "Preciso de vinte homens!"
Nem os velhos se moveram.
"Pago a trinta!... Duas horas de sesta e quatro fumaças...", insistiu ainda, já rodeado por outros abegões e capatazes que vinham para levar pessoal.
"A quarenta!"
"A quarenta?... Vossemecês estão doidos! Não faltam ranchos de gaibéus que queiram vir ceifar."
Mas as searas estavam maduras e não podiam ficar à espera. E os homens permaneciam silenciosos, sem que um só desse o primeiro passo para ceder.
"É a última palavra?!... Pois passem bem, e depois não se queixem. A gente cá está."
Havia ameaça naquelas palavras, mas ninguém arredou do preço. E os agenciadores deixaram a praça, ante a angústia de alguns homens que sentiam a semana perdida e a fome em casa.
"Aguentem-se!", disse o Perdigoto. "Aguentem-se que eles voltam!"
... Os capatazes e abegões voltaram, como garantia o Perdigoto, mas traziam vinganças nos olhares atravessados.
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Uma estrela no cabo de uma foice
A BANDONADO, com os ombros caídos, um ceifeiro vai ^* pelo carril adiante, indiferente ao rio que o espreita, para lá do valado, e as asas que se levantam, assustadas, quando passa.
A malária entrou-lhe no sangue, com a canseira de duas semanas de ceifa, e o capataz castigou-o com dois quartéis, pois ao talhar o seu eito deixou-se atrasar, em quatro passadas, dos camaradas que andavam à sua beira. Falta-lhe o vigor doutros tempos para se revoltar e ir ao aposento arrancar do carrrbaricho a manta lezirenta e o alforge, abalando daquela emposta para outra qualquer. - "Que se lixe, pois então, que a terra ainda não acabou; e quando há braços e uma foice o trabalho não falta a um homem no tempo da ceifa."
Mas a doença minou-o; derranca-lhe o corpo e a vontade, martela-lhe os ouvidos e lembra-lhe que já não é jovem. Quer cerrar os olhos e a imaginação, furtar-se à vida, afastá-la com a bota cardada, e por isso caminha para aquela oliveira, de sombra redonda, que se torce no valado, num isolamento igual ao seu.
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A solidão alarga-se-lhe no peito, como força que nascesse de si para tocar tudo o que o rodeia, dando aos nateiros do Tejo a cor pesada e o visco, às fragatas a calmaria que as tolhe e ao rancho, que mal ouve na voz duma rapariga, as doze horas de degredo de um sol a sol sem luz. Sabe que longe dos outros ceifeiros é cada vez mais pequeno, mas não se sente capaz de voltar ao rancho - a oliveira lá está à sua espera, insignificante e sem sentido, tal um bicho feio e estranho saído das águas mansas do rio para espreitar os homens que ceifam no mouchão.
Quando chega atira-se para debaixo da sombra mirrada da árvore, põe a foice à ilharga e volta as costas à seara, como se afastasse a vida com a bota cardada. Mete-se dentro de si, com o olhar vendado, pensa descansar a cabeça sobre a terra gretada e seca, mas vai sentindo, sem querer, a presença do Tejo e a sua cor azul, tão azul que nem o céu lhe ganha, a envolver o mouchão todo à volta, que, se o rio se embravecesse, como há muitos anos, nem um ceifeiro sairia dali vivo. E a lembrança acorda-o num estremecimento e fá-lo olhar, angustiado, para a seara onde os camaradas ceifam.
Não sabe porquê, sorri...
Talvez porque os veja bem nos olhos, em pequeninas manchas que se movem lá em baixo, como pássaros vogando num mar doirado de espigas; ou talvez porque o mouchão - amarelo amarelo amarelo -, encastoado pelo azul do Tejo, lhe fale à imaginação até ali adormecida.
Nessa noite medonha da cheia grande ele esteve junto ao barracão com os outros camaradas da valagem, e ouviu-lhes os gritos, e gritou também, para que da margem os fossem buscar e os tirassem daquele inferno de água e de frio, donde só ele e mais dois puderam escapar.
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O coração ficou-lhe negro desde essa noite, mas com outra ternura para os companheiros. Recorda-se de que por cima dele havia uma estrela a brilhar no céu - talvez houvesse mais, mas ele só viu uma.
Fica preso a essa lembrança e agarra a foice - não sabe porquê, pois o capataz castigou-o com dois quartéis e nesse dia a ceifa já acabou para ele. Tacteia o bolso com a mão, abre o canivete e, a meio do cabo, começa a marcar um desenho. E embora sinta a sezão da tarde aproximar-se-lhe do corpo derrancado para o sacudir, arranca pedacinhos de madeira dos traços feitos e grava fundo uma estrela de cinco pontas.
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Panorâmica (10)
A redacção de O Indefectível juntaram-se alguns colaboradores alarmados com o preço da ceifa, tanto mais que a exigência dos trabalhadores vinha depois da publicação de um artigo do Dr. Carvalho do Ó em que o fundista falava dos superiores interesses da comunidade nacional e da conveniência de todos se ajustarem aos limites de uma colaboração fraterna, para bem da Pátria. "Exigir jornas disparatadas seria tirar o pão da própria boca dos filhos", assim terminava o artigo, sempre judicioso, como todos os que saíam da sua pena ilustre. Houve até quem lembrasse o interesse de se mandar imprimir aquela frase lapidar para a distribuir pelas aldeias e mercados de trabalho. Mas a sugestão ficara em palavras e o pessoal persistira cegamente na sua incompreensão, talvez porque o preço do que comiam - muito pão e pouco conduto - não mudava, mesmo que ganhassem a dez.
O que se percebia, no fundo, é que para os lavradores havia uma noção de pátria e para os ceifeiros uma outra bem diferente. E era contra tal cisma que se levantava a
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pena do Dr. Carvalho do Ó, embora fossem os lavradores que lhe aguentassem o cartório de advogado.
Lívido na sua ira, um rendeiro da Lezíria ameaçou comprar uma ceifeira-atadeira, que lhe faria, quase só, todo o trabalho de dois ranchos. E o homem dava mostras de ter razão.
"Tem a gente pena deles, ajuda-os quando pode, e, assim que lhes aparece o ensejo, esquecem o que se lhes faz. Eu, por mim, tudo perdoo, menos a ingratidão." O Felisberto, que é amanuense na Conservatória da sede do concelho, disse, a sorrir, que "o povo já não tem memória para essas coisas". O 'lavrador zangou-se, não tanto pelas palavras, mas bastante pelo tom em que o outro lhas disse, e voltou a ameaçar com a máquina.
"E o senhor acha que a ceifeira fica do seu lado?" "Pois se sou eu quem a compra..." "Sim, mas isso talvez não queira dizer muito. O que eu pergunto é se a máquina resolve a situação..."
"Claro que sim! Tem obrigação de a resolver..." "Eu acho que ela tem obrigação é de cortar o trigo. Agora de cortar a insatisfação que por aí vai..." "Para isso há a autoridade, Sr. Felisberto." "Claro, claro!", sentenciou o Dr. Carvalho do Ó. "E não só a autoridade, mas uma reeducação que se deve fazer ao povo. Ensinar-lhe que a hora é de sacrifícios..." "Muito bem!", assentiu o lavrador-rendeiro. "... e que uma pátria não é arena de apetites inconfessáveis... E ainda mais: que no nosso país enjeitamos as soluções estranhas à índole portuguesa e que não precisamos de imitar seja quem for... Sabemos todos para onde vamos!"
O Felisberto calara-se e passava os olhos embaciados por um jornal que estava sobre a secretária.
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"Lá isso sabemos!", afirmou o Reboredo com dignidade.
E todos acenaram a cabeça num amém apreensivo, olhando uns para os outros, como se quisessem adivinhar quem discordava.
Mas num repente a gravidade desfez-se em sorrisos. E logo o Dr. Carvalho do Ó correu à janela, seguido pelos restantes companheiros de redacção, excitados todos pelo ruído estranho de um motor que se aproximava aos estalos como se levasse bombas de Santo António no tubo de escape.
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Os irmãos Maragato
DESILUDAM-SE os donos de imaginação fecunda se supuserem que se lhes vai dar uma história picara, baseados neste estranho apelido de família que ninguém sabe a raiz que o deu, mas parece conter um sabor a narrativa de fidalgaria. Nada aqui será estranho, nem burlesco, nem dramático, a não ser naquela medida diminuta em que todos os homens vulgares possuem estes condimentos próprios da nossa condição e mais ainda os do romanesco, do poético e do chilro.
Neste caso, porém, nem se pode falar rigorosamente de uma história, pois os dois manos -- Elias e Salomão de Castro Maragato - não guardam na sua vida qualquer aventura ou bizarria, vileza graúda ou miserando feito que sirvam para a construção de um conto apaladado, ao jeito das nossas melhores tradições literárias. São dois homens simples e ingénuos que herdaram uma pequena fortuna e hoje são pobres, sem que na sua biografia se conheça o esplendor de uma bailarina espanhola ou de um amor arrebatado, a lenda de dinheiros esbanjados nas roletas do Estoril ou, ainda menos, em bacanais com cocaína, homossexualidade e crime. Nunca ultrapassaram
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os limites desta pequena burguesia provinciana
e confiante ao mesmo tempo, que o dinamismo do capital/
financeiro deixa abúlica e estarrecida, cilindrando-a sem reacção, porque mesmo esmagada só pode sonhar com os " espaventos da força que a tritura, sem nada compreender do que se passa à sua volta.
Depois disto, não há outro remédio senão falar dos manos Maragato, os dois homens sem história.
O pai deixou-lhes dois prédios de rendimento, uma loja de quinquilharias, onde tudo se vendia e onde tudo faltava, menos as suas flores artificiais, que nem em Lisboa se faziam mais viçosas, uma quintarola com casa apalaçada e aquele jeito de anca larga que os dois irmãos lhe herdaram, além duma certa propensão para a coscuvilhice. Para somar a estes bens materiais, o pai Maragato, que fora sacristão por deferência com o senhor padre Manuel, legou-lhes os dois nomes arrancados à Bíblia e o gosto pela música, tão afamada se fizera a sua voz de barítono em festas sacras.
Nesse tempo os dois manos não faziam rir a vila, pois vestiam pelo último figurino - foram eles que introduziram na terra o uso do laço à papillon, que se dizia "papilon" -, aprendiam solfejo com o Casimiro, exímio em viola e ocarina, e suscitavam paixões entre costureiras de obra feita e meninas burguesas que os disputavam para as suas janelas - mais o mano Elias, que foi sempre metediço, do que o mano Salomão, que foi sempre taciturno. O primeiro dedicou-se ao bandolim e foi o fundador da Tuna Artística - oito instrumentos de corda e quatro pandeiretas -, que ficou famosa sete léguas em redor pela revolução que operou nos bailaricos da época, quase sempre remexidos pela cantoria das raparigas; o
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mano Salomão deu-se ao violino por inteiro e chegou a tocar no cinema em festas de beneficência, levando todo o santo dia às voltas com Czerny, até chegar à Serenata do Schubert e às Czardas. Foi nessa época que a família Maragato atingiu a plenitude da sua fama. E quando Kubelik veio a Lisboa, e os dois manos o foram ouvir, pareceria a todos que o destino do mais jovem estava lançado - "Hei-de tocar assim!"... E mal a manhã despontava ouvia-se o gemer do violino do Salomão, enquanto o Elias ficava na loja a aviar os fregueses e o pai Maragato, um tanto frouxo de juízo, passava os dias metido na cama a criar novas flores de veludo, que ninguém agora comprava, porque lhe dera para misturar no mesmo pé corolas de jacintos com pétalas de goivos e de rosas, folhinhas de malmequeres e raiados de amores-perfeitos com cores da sua imaginação doente. O progenitor, julgando que era Jeová, deixara crescer as barbas brancas até ao inverosímil; e o Salomão, bêbedo com o Kubelik, almofadava o pescoço com uma grenha encaracolada, começando por aí a sua carreira de virtuose do violino, até se ter convencido de que precisava de frequentar o Conservatório de Lisboa.
A mãe chorou com a resolução - de Lisboa contavam-se histórias de arrepiar uma mulher casta! - o pai riu-se sozinho e falou da arca de Noé e das onze mil virgens; e o mano Elias, aborrecido, começou a namorar a filha de um comerciante abastado, um pedaço de rapariga com uns olhos que beliscavam este mundo e o outro.
Pela ordem natural da vida, o Elias de Castro Maragato casou, de sua livre vontade, com a filha do Cavalinho das Sete Cores, uma alcunha que vinha dos tempos do avô, e o pai Maragato morreu a blasfemar contra a perdição de um mundo que havia de acabar em fogo, porque da outra vez terminara com o dilúvio. E lá se foi
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para o Céu puxado a carro de cavalos que veio de Lisboa, com criados de libré negra, enquanto os filhos andaram de luto durante três anos, por ordem da mãe, que nunca mais ninguém viu na rua nem à janela. A desfazer-se em suspiros e gemidos enclausurou-se no seu quarto de viúva inconsolável, na companhia dos seus cinco gatos, e não houve ternura dos filhos nem mau modo da nora que dali a arrancassem, mesmo para tomar as suas refeições. "Comia que nem um passarinho!", dizia, na praça, a criada. E nisso não havia exagero. Alimentava-se com a sua dor e bebia goles de água de uma infusa que o marido lhe trouxera da feira dos Santos, depenicando ao meio-dia o miolo de uma fatia de pão. E rezava as contas de um rosário que o senhor padre Manuel lhe deixara à hora da morte, sem crucifixo nem santos, mas defronte de um retrato do Maragato, rodeado de velas, que deram a única luz para o resto da sua vida, pois nem a janela se abriu uma só vez depois desse dia, como se D. Cremilda quisesse guardar o cheiro a incenso e a estearina deixado pelo seu defunto.
Os filhos visitavam-na quando o relógio da praça dava as oito horas, ajudavam-na num padre-nosso, entoado em ladainha, e ficavam a ouvir-lhe lembranças até às onze. E souberam, então, que o pai Maragato a raptara, a cavalo, de uma quinta para os lados de Arruda, que por causa dela ripostara, a tiro, a uma espera que lhe fizeram numa noite, que lhe aparecera com uma doença suspeita e ela o tratara como se fosse sua mãe - coisas de rapaz!, que o Maragato fora um lindo homem!-, que também ele tivera ciúmes de um caixeiro viajante que vendia artigos de Carnaval, que sofrera de azia durante vinte anos e que nunca votara pelos democráticos. "Era amigo do seu amigo. Num dia em que a rainha viera à Lezíria - uma bonita mulher, a rainha!-, o vosso pai
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apanhou-lhe um lenço de cambraia e rendas e foi levar-lho. Sua Majestade sorriu-lhe e ele ficou para sempre fiel à Monarquia... Homens como ele já não vêm ao mundo! Era muito bom, um santo..."
Naquele ambiente de saudade adiou-se o sonho de Kubelik do mano Salomão e finou-se a Tuna Artística, sem o entusiasmo do mano Elias, ainda agravado com a ameaça da filha do Cavalinho das Sete Cores, que jurava fugir-lhe se ele voltasse a perder noites em bailes.
E assim passaram dois anos. Numa manhã os gatos miaram lugubremente e a criada rompeu aos gritos quando entrou no quarto e encontrou a D. Cremilda fria que nem uma lousa. Morrera que nem um passarinho, salvo seja, porque os gatos não lhe tocaram.
Inconsolável, Salomão de Castro Maragato tornou-se mais triste do que nunca. Ele sentira bem que o seu sonho adiado se finara naquela mesma hora. Teria de deixar o seu violino para sempre!... E os que o viam chorar convulsivamente não percebiam a tragédia que lhe devastaria a vida.
Durante o luto pelo pai era raro verem-no na loja. Só ele e o mano Elias sabiam em que gastava os dias, Fechado no sótão horas sem conta, fazia exercícios de dedilhação e de arcada com as músicas sobre a estante, estudando ao espelho as posições correctas e entusiasmando-se com os seus progressos, na certeza de que, uma noite, também ele iria àquele teatro onde ouvira Kubelik deslumbrar uma multidão esmagada pela sua arte.
Afagando o violino com ternura, revendo-se nele com orgulho, Salomão não precisava de sedas nem de cordas para sentir que todos os dias caminhava seguramente para o triunfo. Ninguém ouvia os seus exercícios, nem as músicas que tocava de ponta a ponta sem um engano, numa mestria que o empolgava. Era só ele que se ouvia em
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imaginação, porque a mãe morreria de desgosto se escutasse uma nota de música naquela casa. Mas isso não o demovia do seu sonho. O Elias continuava na loja a vender caraças pelo Carnaval, estalinhos e fósforos de cores pelas fogueiras, rebuçados e surpresas em todas as épocas do ano, sentindo-se largamente compensado quando o irmão descia com o seu sorriso feliz e ele lhe perguntava: "Que tocaste? Saiu-te bem?..."
E logo o outro, atordoado de ilusões, lhe contava as páginas de Beethoven e de Schubert que executara no violino sem cordas, com um arco sem sedas. "Já corrigi a terceira posição. <Naquele pedaço que começa sol-mi, sol-fá" -- e cantarolava em voz baixa - "já não hesito. Andei-lhe com medo, mas agora sai-me que nem uma maravilha. Gostava que me ouvisses... Assim que a mãe achar que o luto acabou, vais ficar doido comigo! Talvez consiga entrar na orquestra sinfónica... Tenho a certeza de que ninguém toca a Ode à Alegria melhor do que eu..."
E os olhos tristes iluminavam-se de um brilho estranho, e as mãos magras sacudiam-se numa vivacidade que pareceria absurda para quem não soubesse das suas esperanças. O mano Elias punha-lhe a mão sobre o ombro e apertava-o contra si, numa vaidade que não conhecia a mancha de um instante de despeito.
"Se quiseres, eu falo à mãe!"
"Não, não fales, não quero dar-lhe esse desgosto!... Já passaram dois anos, e isto não pode demorar muito. Quero ver a cara com que ficam esses parvos que se riam de ti e da Tuna... Hei-de ser primeiro-violino em Lisboa!"
De taciturno, Salomão tornava-se loquaz. Se havia um concerto, ele aí estava de manhã, junto ao candeeiro da praça, à espera do jornal para ler a notícia. E repetia-a entusiasmado, ao canto da loja, para que o mano Elias a saboreasse naquele tropel de palavras que lhe saía da
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boca nervosa. E ficavam a falar de Brahms e de Mozart, enquanto o rapazio se pendurava no balcão a apontar os frascos dos rebuçados e dos drops, à espera que os aviassem. Elias achava que o irmão devia aprender contraponto e fuga, para também ser compositor - e afiançava que ele seria capaz, trauteando pedaços de melodias que lhe andavam nos ouvidos. Mas Salomão não se entusiasmava. O violino, sim, esse é que tinha voz para o comover e empolgar.
E quando esperava poder encordoá-lo viera a morte da mãe. "E agora?!...", perguntavam os olhos angustiados de Salomão.
Agora a malta ri-se dos irmãos Maragato.
O mano Elias, que é o homem de acção, corre o burgo a oferecer a cobrança adiantada dos recibos do único prédio que ainda possuem; e quando uma alma caridosa lhe dá duzentos escudos pelos papeluchos que valem duzentos e cinquenta, os quatro gatos e a criada gozam uns dias de certa fartura. A filha do Cavalinho das Sete Cores abalou de casa e voltou para o lar paterno, depois de querer obrigar o marido a separar a sua herança da do irmão. E Elias, que adorava a mulher, deixou-a partir sem um agravo, só magoado por ela não compreender que era preciso sacrificarem-se pelo mano Salomão.
E estão cada vez mais pobres. E mais pobres com uma fortuna no poço da quinta - uma fortuna que não há banco nem capitalista que a queira aproveitar. O povo da aldeia próxima chama-lhe água santa, e ali vai procurá-la em bilhas, para males de barriga. Elias viu o golpe e lançou-se no empreendimento. "Agora, sim, mano Salomão, poderás ir para Lisboa ou até para Paris. Uma fortuna dentro do poço e a gente a dizer que a água era salobra!" Colhidas as amostras e feita a análise, confirmou-se a riqueza: a água era lítica, fluoretada, sódica e não sei
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que mais, nomes que o mano Elias repetia com um gozo supremo, acrescentando que não há na Península melhor remédio para os intestinos. E no entusiasmo do seu dinamismo empreendedor perdeu a cabeça com o negócio e vendeu um dos prédios que o pai Maragato lhes deixara. Como Salomão continuasse ausente no seu desgosto profundo, Elias quis provar-lhe que estavam a caminho da emancipação e comprou um automóvel. O vendedor garantiu-lhe que em Lisboa só havia outro carro igual, e que esse estava em poder de um embaixador. E o mano Elias desvairou. Adquiriu um camisolão azul de gola alta e um boné de pala comprida para sair com a sua "espada", como ele lhe chama, e atordoa a vila com os estrondos do motor e as explosões do escape aberto.
Salomão vive na esperança de que se aproxima o momento de glória e vai, de cabeleira ao vento, arrepiado com a velocidade que o mano Elias lhe grita por cálculo: "Vamos a setenta à hora! A setenta... e a travar!"
"Eina, com seiscentos!", cicia o outro, deslumbrado pela vertigem.
E o bólide cor de canário lá vai a chocalhar pelas ruas além, até que gasta os cinco litros de gasolina e os dois o recolhem, a empurrão, no palheiro da quinta.
Há uma semana, porém, o mano Salomão descobriu no papelucho da análise da água que esta contém rádio.
"Rádio?!", gritou Elias, aturdido. "Estás a gozar..."
Rádio para ele é telefonia, e telefonia é música. E depois de ler também essa revelação o mano Elias ficou a pensar no caso. Mas tanto pensou que nessa noite teve um sonho deslumbrante: que estivera sentado na borda do poço, com a sua camisola azul, a ouvir o rádio da água tocar em surdina todo o repertório da Tuna Artística.
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Panorâmica (11)
E os forasteiros chegam em bandos ruidosos, com grande aparato de perdigueiros, bomais e cantis, não é de estranhar que entre os naturais e os perfilhados da vila haja a mania da caça, pois os Montes e a Lezíria são pródigos em bicharada que bem vale um cartucho ou um galope de cavalo.
Mesmo descontando as "galgas", aquelas histórias incríveis dos caçadores de todos os meridianos, ainda fica margem para se dizer que as boas espingardas não faltam, havendo até quem viva da caça na época própria, ou a matar e vender ou a servir de guia e de olhos aos caçadores da cidade, que trazem melhor equipamento e farronca do que pontaria.
E se os andarilhos gozam, por montes e vales da margem norte, atrás das perdizes, a paparem quilómetros como os ciganos e os antigos almocreves, as emoções maiores sentem-nas os que preferem a Lezíria, onde as variedades não faltam.
Em Julho toca de limpar a espingarda e encher o cartuchame, ensebar as botas e pôr a canzoada a dieta, de maneira a aguçar-lhe o apetite e torná-la esperta para
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as andanças. E logo na madrugada do primeiro de Agosto, que por aqui se diz ser o primeiro de Inverno, aí aparecem os grupos tagarelas a esburacar o silêncio, tomando o caminho dos barcos que os levam à margem sul.
Para as boas espingardas o dia de abertura é mais para o vinho e o petisco do que para a caça. Essa fica para os bandos de espingardeiros amadores, que também matam cães e homens, tal é a garganeirice de não voltarem para casa com a maldita "grade". Em filas cerradas, como batalhões encarregados de assassinar o bucolismo da natureza, eles aí vão à cata das codornizes e das rolas.
Os outros têm o resto do ano, pois em Fevereiro ainda há as tarambolas, as narcejas e os carapuceiros, sem falar das codornizes que conseguiram escapar à mortandade e que se acolhem às manchas de grisandra, uma erva amarela que se entorna por toda a Lezíria entre Janeiro e Março.
Para os que gostam de dominar os nervos e dar-se a sacrifícios, também sobejam os patos, que começam a acasalar aí por Março e se levantam nas valas e nos favais, onde as fêmeas mais tarde põem os ovos. O mais emotivo, porém, é fazer-lhes a espera, se algum guardador amigo manda aviso de que "os patos já batem na terra", quase sempre junto ao rio ou em sítios alavascados e com poças.
Então cava-se um esconderijo, com uma parte mais funda para as pernas e outra mais acima para o assento, que é trabalho de algumas horas, com suor em bica e calos nas mãos pouco afeitas a ferramentas duras. E com arbustos, cardos e ramos, tendo o cuidado de não levar cães brancos ou muito claros de pelagem, para que os patos não desconfiem e abalem, aí fica o caçador com a sua paciência de santo. Às vezes é preciso uma lata para despejar o buraco da água que remija, como num canteiro de arroz, e que enregela os membros até ao torpor. Valem-lhes
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umas goladas de aguardente bem rija, bebida com conta, não vá a cabeça toldar-se e os patos chegarem com o caçarreta a dormir à perna solta.
Depois de tudo isto, é atar bem os nervos e aguardar que as marrecas, os ades, as bicas largas ou os gansos, também conhecidos por patos reais, se aproximem para poisar em bando, mesmo ali à mão, se o caçador é dos que gostam de matar à vontade e pela certa, pois os desportistas preferem mostrar-se quando o bando se aproxima de terra. E dessa posição, quando os animais os descobrem e procuram suster, angustiados, a descida pausada, alvejar os que mais se chegaram, procurando fazer o doble, ou seja matar dois patos com os dois cartuchos que a espingarda tem nos canos.
Melhor do que os patos só as lebres, pela boa carne e pela rapidez da corrida, toda em furtadelas de corpo. Mas essas estão proibidas de fuzilamento, para que os senhores as corram na planura com alarido de cavalos de raça e galgos de concurso.
Criou-se assim na região uma caça distinta para cada classe, ficando a lebre, num extremo, para a grande burguesia e os reis exilados e, no outro, o laparoto, que os campónios matam a cacete, ou com ajuda de furão, para dar ceia à família.
E nestas circunstância" a caça ao coelho ganha a emoção de um drama.
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Sete facadas na Lua
QUANDO o ruído das cardas soou no alegrete que leva ao casebre, os três olharam para a porta e ficaram à espera que o vulto aparecesse. Mas os passos, à medida que se ouviam melhor, tornavam-se cada vez mais espaçados, como se o homem se arrastasse ferido e se detivesse, por momentos, para ganhar coragem de vencer o carreiro.
O rapazito ainda fez um gesto para sair ao encontro do pai; deteve-o a mão da avó quando lhe adivinhou as intenções.
Encostada à chaminé, a vigiar o lume, a mãe deixou correr as lágrimas provocadas pelo fumo, a que se juntavam as que chorava. O tacho com água já fervia de há muito e ela deixava-o ferver sempre, embora nada tivesse para lhe juntar, como se no borralho aceso pudesse aquecer ilusões para a velha e para o filho.
O homem entrou, por fim, furtando o olhar aos que o esperavam; e, depois de atirar com o cacete para cima de uma arca, pôs-se a esfregar as mãos e a aquecê-las com o bafo da boca; a seguir, lentamente, arrancou o carapuço negro da cabeça, voltou-o com cautela nas mãos trémulas
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e procurou uma ponta de cigarro que guardara no fundo do barrete.
"O furão?", perguntou a mulher.
Ele entreteve-se a procurar lume com a pederneira.
"Não ouviste?... O furão?", insistiu a companheira.
"Levaram-no", respondeu com voz baça.
"Levaram-no?... Quem?", disse a velha do seu canto.
O homem ainda encolheu os ombros para não dar conversa; mas num repente, quase sem querer, começou a falar e a mover os braços sem trambelho.
"Quem havia de o levar senão a Guarda?... Não sabe que não tenho licença? Não sabe disso?! Não sabe que a Guarda aparece agora por toda a banda?"
"Raios os partam!", arrenegou a velha com ódio.
"Caçar com furão é proibido, mulher! Vossemecê 'tá pataroca, ó quê?!... Os coelhos bravos já têm dono como os outros; já não são da gente, nem de quem os apanha. Eles não têm culpa qu'a gente precise deles pra comer... 'tá a perceber agora? Pois assim mesmo é que é!..."
O homem queria amaciar as palavras, mas a ira rasgava-lhe a boca.
"Amanhã tenho d'ir à vila pra pagar a multa... ou ficar preso. Aqui o vizinho Floriano é que ficou por mim; senão tinham-me pespegado hoje mesmo à sombra..." A companheira e a mãe começaram a carpir e ele sentiu vontade de as ver chorar com alarido. E excedeu-se.
"Cadeia, pois atão! A cadeia não se fez prós coelhos nem prós pássaros... Vossemecês julgam que me ralo? Ao menos na cadeia dão de comer a um homem... E não é vergonha nenhuma malhar com os ossos numa enxovia. Têm lá botado gente de muito boa família e por coisas mais roins."
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As palavras agora arrefeciam. Falava mais brando, sem gestos de mãos, especado no meio da casa, como se não soubesse para onde poderia ir.
"Tu julgas qu'eu me ficava se os do tribunal viessem pôr a gente na rua por mor da renda?... Eles, não têm culpa, mas eu não me ficava. O dinheiro não se paga com boa vontade... E com honradez também não..." E depois de meter a ponta do cigarro no fundo do barrete: "Ao menos na cadeia sempre tenho de comer..."
"E a gente?", gemeu a mulher, a exagerar também.
"Os vizinhos, quando é assim, têm pena."
O filhito fora-se esgueirando de mansinho até à porta, depois de se escapar dos carinhos da velha. Dali olhou o pai com estranheza e deitou a correr pelo alegrete abaixo, apesar de a avó o ter chamado num grito.
... E só parou junto da porta onde vinha sentar-se todos os dias, depois que reparara melhor nas laranjas daquela árvore da Quinta Nova. A ameaça do caseiro empolgava-o agora, quando até há pedaço o aterrorizava.
Lá estavam ainda os mesmos frutos, que ele bem conhecia: o mais maneirinho num ramo baixo e os outros mais juntos, quase no coruto, num sítio onde só os pássaros poderiam chegar. E pareciam mais bonitos naquela manhã tão fria, muito redondos e vivos, como se estivessem a rir-se para ele e a pedir-lhe que os fosse colher.
"Devia ser engraçado brincar com as laranjas", pensava Manel Jaquim. Jogar uma a uma pelo declive que levava ao poço, só para ver se elas corriam mais do que as suas pernas. "Isso corriam elas!... Ainda ontem dera um bigode ao filho do vizinho Floriano numa carreira até à estrada..."
Pensou na cadeia novamente, mas as laranjas deslumbravam-no e obrigaram a sua imaginação a volver-se para
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elas, E lembrou-se de que seria bonito atirá-las ao ar e agarrá-las na mão, uma de cada vez, a mais maneirinha e as outras; ou então experimentar aquela habilidade que vira fazer ao homem do circo da feira, pondo-as todas no ar ao mesmo tempo, como se ninguém as tocasse. A princípio julgara que as bolas estavam presas a uns fios que alguém manejava escondido no cimo da lona, mas depois nada vira e ficara com a certeza de que as bolas estavam ensinadas como os cães que vinham dar saltos pelo meio dos arcos.
"Se ele também fosse capaz de ensinar as laranjas!" Só no fim de as pôr aos saltos, e quando estivesse cansado da brincadeira, é que descascaria a mais maneirinha para lhe meter os dentes nos favos, que deviam ser doces como rebuçados da loja. "Há quanto tempo a mãe não lhe trazia um tostão deles!"
O comboio passou lá em baixo, ao longe, num penacho de fumo e numa fúria de assobios. Manei Jaquim não lhe deu a mesma atenção das outras vezes, em que ficava a segui-lo até desaparecer para além da curva do rio. A sua atenção fixara-se nas laranjas que estavam do outro lado da vedação de arame farpado, embora não as olhasse agora com a mesma angústia dos outros dias. Ele já não tinha medo da ameaça do caseiro: "Que 'tás tu aí a namorar?... Se t'apanho desta banda, pespego contigo na cadeia..."
E ele feito parvo com medo da enxovia, quando o pai dissera que era bom ir para lá, onde davam de comer às pessoas. "Bem precisava de comer!... Naqueles dois dias só bebera umas malguítas de café na companhia da avó... E tinha um rato dentro da barriga", como a mãe lhe dizia por brincadeira.
E de novo voltou a olhar as laranjas.
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A toda a volta só havia árvores doentes, sem folhas, de ramos ripados pelo vento e pela invernia. E aquela estava cada vez mais verde, a brilhar, como se todo o verde das outras árvores tivesse vindo esconder-se na laranjeira da Quinta Nova. "E as laranjas eram tão amarelas!... Quem lhe tinha dito que aquilo assim era amarelo? Não valia a pena matar a cabeça", pensou ainda. O bom era vê-las penduradas no mesmo sítio e saber agora que as podia arrancar sem medo. E riu-se do caseiro.
Logo, decidido, se aproximou da vedação, percebendo que poderia passar por entre os arames de bicos se metesse a cabeça com cuidado... "Assim não! O melhor era baixar o arame, meter uma perna e a cabeça ao mesmo tempo e depois passar a outra."
Quando se apanhou do outro lado, assobiou. "Tanto tempo perdido!" Mas assim que correu para debaixo da árvore percebeu que o ramo da laranja maneirinha estava mais acima do que ele julgava. Deu um pulo, e outro pulo maior, e nada. "Se houvesse ali uma cana!", pensou. "E se deitasse a laranja abaixo com uma pedra? Não era assim que ele a queria... Gostava de a agarrar primeiro, apertá-la bem na mão e depois puxá-la para si, jogando-a a seguir pelo carreiro, para que ambos corressem até ao poço; e aí agarrá-la outra vez e arrancar-lhe um pedaço amarelo..."
Pensou naquilo e riu-se: "E se ele ficasse depois amarelo como a laranja?... Havia de ser engraçado! A mãe e a avó à sua procura e ele amarelo, pendurado no ramo da árvore, todo cheio de folhas verdes..."
Um pássaro passou-lhe por cima da cabeça, depois de dar uma bicada na laranja maneirinha. "Querem ver que os danados me vão roubar a laranja?"
E não perdeu mais tempo em imaginações.
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Experimentou outro salto, e a alça de prender o calção caiu-lhe, deixando-o esbarrigado; depois mediu o tronco da laranjeira e compreendeu que a amarinhar não seria capaz de chegar lá acima. "Tinha de lhe jogar com uma pedra, estava visto! O pior é que podia esbandalhar a laranja... Mas, também, se os pássaros a comessem, quem ganhava com isso?"
Agarrando, presto, num calhau mais maneiro, e sem saber porquê escolheu um muito redondo, recuou uns passos, fez pontaria e arremessou-o com toda a gana. A pedra zuniu -"eina, pai, até levava asas!"- e desapareceu na lomba da vinha. E logo numa fúria, mal viu outro pássaro voar para a árvore, apanhou uma mãozada de pedras e jogou-as às cegas, cambaleando por cada uma que lhe saía da canhota. Fora assim que vira um cabreiro atirar calhaus e nunca na sua vida pensara que se poderiam lançar pedras daquela maneira.
O diacho é que nenhuma atingia a laranja maneirinha, como se ela já estivesse na brincadeira que pensava fazer antes de lhe meter os dentes.
O frio desaparecera: começava até a sentir-se encalorado. -"Gaita!"- A alça do calção pendia-lhe do ombro e deixava-lhe o umbigo à mostra. "Se não fosse por coisas, arrancava-a!" Mas quando pegou na alça mais uma vez teve vontade de começar aos gritos. "Que bruto fora!... Ah, que bruto!... Se passasse a alça por cima do ramo, era só puxá-lo, e depois... Que bruto!..."
Despiu-se num instante, afogueado pela emoção, talvez receando ainda que a sua ideia não desse o resultado que pretendia; mas assim que fez a primeira tentativa, ainda com o seu quê de medo, viu logo que era fácil se atirasse com os calções mais acima. E experimentou com alegria, sem pensar no caseiro nem nas suas ameaças. "Uma!... Duas!... Três! Já está!"
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"E agora?!..." Teve vontade de chorar. Os calções estavam pendurados no ramo e ele não lhes chegava. "E se chamasse pela avó?!..." Deu ainda dois pulos para não ficar quieto, embora já percebesse que nada conseguiria.
As carnes rosadas tremiam com o taro da manhã. "Chorar era vergonha, lá isso era! Mas ficar sem a laranja e os calções..."
E atirou-se à árvore com toda a gana; e agarrou-lhe o tronco, e sacudiu-o, gritando-lhe nomes para não chorar - os nomes mais feios que sabia.
"Ah, grande malandro!", foi a voz que ouviu para além da sua raiva.
Num instante, o caseiro estava junto do Manel Jaquim, para o agarrar em charola e atirá-lo por cima da vedação de arame farpado. E ameaçava-o com o varapau de fazer guarda, acenando-lhe a cabeça numa ameaça.
"Dê-me os calções...", pediu ainda numa lamúria.
"Hás-de ir nu para casa. O teu pai que os venha buscar..."
"O meu pai vai prà cadeia... E vossemecê no outro dia disse que me levava também."
Mas o caseiro afastava-se a passo largo, querendo esconder o sorriso que o rapazola lhe provocava. E Manel Jaquim gritou-lhe numa súplica, enquanto abanava os arames: "Leve-me prà cadeia, seu homem! Leve-me prà cadeia!"
Atraída pelos seus gritos, a mãe encontrou-o naquele preparo e sovou-o de palmadas até ao casal. Foi preciso que a avó lho tirasse das mãos, levando-o consigo para o quarto, onde Manel Jaquim ficou a rabiar em cima da cama, mais por ter a certeza de que os pássaros lhe iriam
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comer a laranja do que pelas pancadas que lhe aqueceram o rabito nu.
"Esse malandro que se cale já", disse o pai, arrenegado.
A avó fechou a porta de mansinho e sentou-se sobre a cama, puxando a cabeça do neto para o colo. "Dorme, Manel Jaquim,.."
"Eu queria que o homem me levasse prà cadeia... Ele dizia que me levava e enganou-me." "A cadeia é escura, nete medo!"
Ele pensou responder-lhe que "lá, ao menos, lhe davam de comer", mas lembrou-se dela e da mãe.
E só então sentiu desejos de chorar. Antes, porém, que a avó o percebesse, Manel Jaquim fez-lhe um pedido: "Eu durmo, sim, avó; mas há-de contar aquela história." "Já a sabes de cor e salteado..." "Mas gosto que a conte..." A velha fez-lhe uma carícia nos cabelos. "Era uma noite de temporal tão grande que os cegos dos caminhos se alumiavam com a luz dos relâmpagos... E os rios, e as árvores, e as estrelas, e os bichos..." "Menos os pássaros, avó."
"Pois sim, neto. Menos os pássaros. E os bichos tremiam com os trovões que rebentavam no céu. Uma família de ciganos ia por uma estrada, à procura de abrigo, e ninguém os queria receber..." "Porquê, avó?!"
"Perguntas sempre o mesmo... Porque são ciganos." "Está bem, pode ir pra diante." "O homem puxava o carro, porque o cavalo lhe tinha morrido com o temporal e com a fome... E vai daí, cansadinho de todo, já sem um nico de forças, o cigano abriu a navalha..."
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O rapazola estremeceu, apertando os dedos da velha. "... e, mordido de raiva, abriu a navalha e disse:
- Dou sete facadas na Lua se esta noite não arranjar uma
telha pra deitar os meninos!" "E ele deu as facadas?..." "Os ciganos são capazes de tudo, neto." "Eu também gostava de dar sete facadas na Lua..."
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Panorâmica (12)
largo da estação, sem beleza que lhe acuda, guarda para os rapazes da vila um feitiço qualquer que só eles entendem.
Quatro acácias franzinas florescem com pudor, quando a natureza manda, e ficam depois para ali, pobres de sombra, a servir de comparsas aos monólogos dos bêbedos e refúgio aos timoratos nas esperas de toiros, embora uma delas ainda tenha uma mancha de sangue, de certo atrevido que ali morreu desfeito à comada.
Os prédios, por seu lado, não lhe acrescentam nem lhe tiram.
Construídos com a chateza pífia de um estilo pombalino de província, meteram-lhe agora em cada rés-do-chão, por enxerto de revista estrangeira, um arremedo de arquitectura de caixote com faixas de marmorite, montras largas para duas casas de modas e um alfaiate, além de um botequim de estilo alentejano, que não é de caixote, mas todo em mantas às listras penduradas no interior.
No começo do século a rapaziada ia para a cancela do largo acenar um adeus de boa viagem aos maquinistas, que eram os seus ídolos, ou esperar que os pregos colocados
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nos carris fossem esmagados pelo comboio, para deles obterem navalhas de lâmina esbeiçada, espécie de arma exibida em rompantes de faias, quando as púrrias da vila se encontravam em combates de pedrada.
com o automóvel de focinho de hipopótamo e cromados bizarros de estilo milionário, o comboio perdeu o prestígio e o rapazio deixou a cancela.
O largo é que continua a desfrutar da sua eleição.
Esperando forasteiro ou viajante que precise de ajuda para a bagagem, abancando nos passeios com caixas de engraxador, ou gozando com as partidas levadas a cabo, pelos mais atiçados, a algum parolo que por lá caia, os rapazes ainda hoje malandram por ali na companhia dos moços de saco e dos farroupilhas, que não têm entrada no átrio da estação.
Há, porém, um certo recanto, junto ao muro do caminho-de-ferro, que está sempre com a lotação esgotada. É uma espécie de clube dos pilhas, onde se joga a chapa e a pedida, quando a Guarda Republicana permite, e se escutam aventuras que os mais imaginosos contam com pitoresco de calão. com o tempo nasceu ali uma espécie de Arcádia de narradores de histórias, afeiçoadas todos os dias com novos pormenores.
E embora os contos populares nasçam como os filhos enjeitados, que não conhecem os pais, e acabam por cair no esquecimento e morrer, quando os velhos e os jovens deixam de lhes sentir o sabor do maravilhoso que é a linfa da sua vida, é de supor que algumas histórias tenham nascido naquele recanto do largo, para iniciarem a sua viagem cheia de mistério.
A história do cigano que ameaçou a Lua com sete facadas passou por ali perto. Chegou aos casais dos Montes, não se sabe quando, mas muita gente ainda a conhece
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e recorda, acrescentando-lhe sempre alguma coisa, se a imaginação se empolga.
O Bicas, um moço que abalou de cacholada para a América, é que a narrou a um grupo de engraxadores. E como ninguém lhe perguntasse quem lha ensinara, e ele o não disse, ainda hoje se conta que essa é a história do Bicas. E dele ninguém sabe, porque a mãe nunca teve carta nem notícias.
"É capaz de estar rico!", dizem os rapazes que já não vão acenar adeus aos maquinistas do comboio.
Eu, por mim, estou certo de que o Bicas se há-de recordar ainda hoje das "sete facadas na Lua"; e que em Fali River ou em Nova Iorque já a contou também a outros emigrantes, dizendo talvez que o cigano ia num velho Ford, a caminho da Califórnia, para colher frutos nos pomares a tantos dólares por dia.
Mesmo que esteja milionário...
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Os sonhos
TITÃES: nesta noite que é a última que passo em terras da América, porque vou ser expulso por falta de papéis, quero escrever-te uma carta a minha primeira carta depois que saí da nossa vila. Parto sem saudades embora ganhasse mais dinheiro do que aí mas acho que o dinheiro não pode ser tudo na vida e só agora dentro da cadeia fui capaz de compreender isto.
Os dias que passei no fundo do navio que me trouxe com mais quatro companheiros, mesmo junto às caldeiras como se tivéssemos caído no Inferno, quase já não me lembram. Só vejo quatro rapazes cheios de sonhos, a apodrecerem entre paredes de chapa a que a gente não se podia encostar nem para dormir porque tudo queimava, só com uma vigia onde íamos encharcar os olhos no mar, um mar que não é igual ao nosso, e que aumentava a sede, uma sede que ainda hoje trago na garganta e me fez beber a água toda, como se ficasse para sempre com medo de que ma tirassem outra vez. Era da vigia que vinha o ar e ao mesmo tempo a raiva de nos sentirmos presos num caixão, quatro mortos vivos a serem queimados e a apodrecerem ao mesmo tempo, com a certeza de que por
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muito que gritássemos ninguém iria lá abaixo para nos levar para a vida. Um tempo depois do barco partir, nem sei se passaram só minutos se muitas horas se dias, tivemos de nos despir e esperar não sei bem o quê; se a América se a morte se as duas coisas e tudo que fazia parte da nossa vida, e ao mesmo tempo nada, porque já não éramos quatro homens mas quatro inimigos que queriam acabar com os outros para ficarem com o ar que vinha da vigia e o barril da água que estava entre eles.
Dum lado 'uma porta fechada, do outro o mar e à volta fogo, um fogo que cada vez queimava mais e parecia derreter-nos ali, a começar pela cabeça que já nada tinha dentro porque nem pensar já podíamos, só com gritos dentro da gente e gritos que nem podíamos gritar porque se gritássemos a resposta não vinha de ninguém a não ser dos tubos das caldeiras. E a garganta queimada e o coração queimado e tudo queimado. E os quatro com as mãos agarradas ao barril da água não fosse algum perder a cabeça e beber a água toda, e sem água a morte era mais certa. A febre e o calor e ainda agora não sei se eram as duas coisas ou se era só a febre que nos dava de comer, porque o que comemos pouco foi. E as quatro mãos agarradas ao barril, de noite tudo de noite sempre, porque a vigia não era um óculo por onde víssemos os dias e as noites mas um buraco donde nos vinha o ar. E tudo parecia noite só com as quatro mãos agarradas ao barril da água e ninguém falava nem mesmo o Linguiça que era o mais alegre e nunca estava calado antes d'a gente embarcar, e que dizia que não voltaria mais a Portugal ainda que se matasse ou morresse de qualquer maneira. Os outros chamavam-lhe Linguiça porque era magro e eu só o conheci na noite em que entrámos no fundo do navio.
Nem sei se passaram só minutos se muitas horas se dias, se quatro vidas inteiras, o Linguiça deixou de assobiar,
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de contar anedotas e de falar dum parente que tinha na América em Fali River e estava tão rico que se quisesse comprar os barcos todos que andam no mar o dinheiro não lhe faltava. Começou a falar só na água e a querer tirar os nossos dedos do barril, e depois gritou que a gente o queria matar e logo a seguir chorou como um menino e depois foi à vigia com o peito cansado que nem uma máquina velha. Só me lembro que quando ele tirou os dedos do barril eu fiquei à espera que os outros tirassem também para eu beber a água toda. E percebi que todos pensavam o mesmo porque quando o Linguiça veio com aquela fúria que o matou, e se pôs a gritar e a morder-nos e a chorar e a rir e a gritar outra vez como se fosse abrir o barco, a gente esqueceu-se de que ele contava anedotas e assobiava e tinha um parente rico em Fali River; e não sei já se fui eu sozinho ou os outros dois também ou todos os homens que emigram para a América que o fizeram calar e tirar os dedos do barril. Só me lembro que no barril só havia depois três mãos e que nem sei como arranjámos forças para fazer sair pela vigia o companheiro que queria roubar a nossa vida e ficou sem a dele. Sei também que tive pena de não ir com ele de princípio mas depois, e isso foi o pior, a vigia ficou tapada para mim e nunca mais de lá entrou o ar que entrava, mas o corpo do Linguiça com os seus gritos e as suas mãos magras que me queriam matar.
Quando o marítimo que nos metera dentro do navio veio dizer que já se podia sair, só dois se mexeram ainda pois o Algarvio já não falava nem tinha sede. E foi pena porque era bom companheiro, mas também foi pena que eu e o outro não tivéssemos sabido que a sua mão largara o barril e a sua boca deixara de ter sede; ou talvez não porque se a gente tem dado por isso, a gente não. se segurava e atirávamo-nos um ao outro até que um morresse
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e o outro ficasse sozinho com o barril. O marítimo teve que nos trazer cá para fora e atirar-nos baldes de água para cima; e cá em cima é que eu me lembrei que havia dias e noites. E então chorámos os dois que ficaram; e quando pudemos sair do barco, a América parecia-nos que estava ali à nossa mão, com as riquezas do parente do Linguiça e os prédios grandes cheios de luzes e os automóveis e as rajadas de metralhadoras, os cowboys e as raparigas que cantam e dançam em cima das mesas para os exploradores do oiro que vêm do Arizona, e para os batoteiros e para os banqueiros e para todos os homens que são capazes de vir entre quatro paredes de fogo, com quatro mãos agarradas a um barril de água e que são capazes de esperar que depois sejam só três mãos, e que fiquem com pena de não perceber que só eram duas quase no fim da viagem.
Mas a viagem não acaba quando se percebe que há estrelas no céu e um homem chora de alegria de se saber vivo e com as riquezas da América ali mesmo à nossa mão, mais vivo que tudo do que nas fitas e nas histórias que se contam nas tabernas da beira-mar por todos os homens que querem resolver a sua vida desligados dos outros, cada um que se amanhe. E tem de se fazer força todos os dias para não morrer esmagado, para ir lavar pratos ' para trabalhar nos frigoríficos, para andar sem trabalho para dizer Hélo aos camaradas e O. K. e as palavras que se aprendem para a gente se entender com os outros que na primeira altura vão dizer que andamos sem documentos, porque não há dinheiro para todos e os dólares não se conhecem quando são ganhas num gang ou no trabalho ou num negócio de cocaína e marijuana ou de contrabando ou numa companhia de petróleo ou de material de guerra. Todo o dinheiro são dólares e as notas são marcadas para se saber como vieram para o nosso
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bolso. E então são milhões de mãos em cima da vida, cada um à espera que seja menos uma, ou menos cem, ou menos todas, para que só a nossa mão tenha a água e o dinheiro e a música e as raparigas que dançam em cima das mesas.
Quando vi matarem o negro não senti nada e quando levaram aquele casal à cadeira eléctrica também não senti nada. São poucos os que não andam tontos no meio daquela vida, em que depois do trabalho não se pode pensar com o cansaço e depois há cerveja e whisky e gin e dólares para pagar, e os jornais e a rádio e a televisão e todos os que podem falar dizem que estamos no país mais rico do mundo com a liberdade numa estátua e a liberdade nos jornais na televisão e na rádio.
E os homens onde estão? onde ficaram os homens? onde fiquei eu com os meus sonhos?
É por isso que te escrevo esta primeira carta, porque amanhã volto num navio qualquer e havemos de falar os dois no que te fiz sofrer e em muita coisa de que nunca falámos. Porque aqui na cadeia, de mistura com polacos, italianos, negros e homens de muitas terras eu fui capaz de encontrar um momento para pensar em muita coisa que não pensei nunca, e muito menos desde o dia em que entrei nas quatro paredes de fogo do barco que me trouxe. Das grades da cadeia vejo o luar e acho que esta certeza é melhor do que o dinheiro que ter amigos é melhor do que o dinheiro, que não desejar que os outros tirem a mão do barril é melhor do que o dinheiro que ter sonhos é melhor do que o dinheiro.
Estou a sentir que volto para dentro de mim e vem-me à ideia uma vez que me bateste e foste injusta comigo, julgando que eu gastara o dinheiro dos sonhos a jogar à chapa com os graxas do largo da estação. Lembras-te que
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foi por causa dos sonhos que me deste aquela tareia na noite de Natal?
E agora estou a sentir a morte do negro e o casal que levaram para a cadeira eléctrica porque um companheiro espanhol que também vai ser expulso e acha que pode morrer e passa os dias a cantar esteve a ler-me uns versos de Ethel que me fizeram pensar e que gostava de saber de cor para tos dizer quando voltasse à nossa casa.
'A terra sorrirá meus filhos ela sorrirá e a verdade há-de espalhar-se sobre o nosso túmulo, as matanças acabarão, o mundo conhecerá a alegria na fraternidade e na paz...'
Foi talvez isto que me fez lembrar os sonhos da noite de Natal.
O pai tinha morrido num temporal do rio quando houve aquela cheia grande em que morreram os valadores no Lombo do Tejo e a nossa vila chorou muitos dias os mortos que eram nossos. Tu andavas de luto e fazias uns dias como lavadeira pelas casas de uns e outros enquanto eu me amanhava a roubar fruta nas quintas e na praça ou andava na lota a fugir com algum peixe das varinas que se distraíam no leilão e a dizer 'xui' aos vendedores. Sentir que corriam atrás de mim como nas fitas de piratas e galgar as cancelas do caminho-de-ferro e ouvir as pragas que me rogavam davam-me um gozo que tu nunca pudeste entender porque nunca viste uma dessas fitas de pancadaria que punham a assobiar a geral inteira.
Foi duma fita dessas que me lembrei quando naquela tarde te vi arregaçada amassando farinha num alguidar. Nem saí para a galdeirice da rua nem me importei com os tostões que ganhava a ajudar os passageiros que chegavam de Lisboa e traziam malas. Lembro-me que deitaste água quente na farinha e que a massa foi enrijando até que os nós dos teus dedos ficavam marcados nela e tu a
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repuxavas com as mãos para um lado e a atiravas depois para o outro lado do alguidar como se estivesses a fazer um jogo. Quando a massa estava fresca e as tuas mãos lhe batiam e faziam chape-chape chape-chape fiquei a pensar num carro puxado por dois cavalos brancos e daquela brincadeira de que tanto gostavam todos os rapazes da nossa vila que era de irmos sentados atrás no eixo do carro e gritarmos para os cocheiros 'chicote atrás chicote atrás', e depois assobiá-los se eles não nos acertavam. Depois", pensei ainda numa luta de caivboys quando te vi a socar a massa mais seca e o suor na tua testa e os gemidos que davas com a força que fazias. Estavam ali à minha frente o rapaz e o pirata, murro de um lado murro do outro e a gente a bater as palmas e a bater os pés. Os meus olhos deviam brilhar porque estava tão quieto sentado no banco da cozinha que tu reparaste em mim e disseste que se pudesses amassarias farinha com açúcar todos os dias para me teres mais tempo ao pé de ti.
Provaste a massa e deste-me também um pedaço na ponta dum dedo. -Que tal? Doce? - Acenei-te a cabeça e sorri e agarrei-te no dedo para o lamber. 'É doce muito doce. É prà gente?!... Nunca comi nada tão doce. Nem rebuçados nem beijinhos de carrapiços encarnados. É prà gente?! E tu respondeste que comeríamos alguns e eu perguntei se seriam muitos. E voltei a dizer que era a coisa mais doce que havia no mundo.
Não, não pode ser, respondeste. Irás vendê-los esta noite para a praça ou para o cais. Esta noite deve haver procura e a gente precisa de arranjar algum dinheiro para ajudar à renda da casa. Nesta noite há gente que gosta de comer sonhos e coscorões e filhoses. E sou eu que os vou vender? Nunca vendi nada mas acho que deve ser engraçado vender coisas', disse eu entusiasmado. E pus-me a pular à tua volta, abracei-te quis pendurar-me
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ao teu pescoço para que me pusesses a rodar como aos moinhos, mas tu estavas cansada e disseste 'deixa-me filho' e fizeste-me uma festa na cabeça.
- Já podes começar a fazê-los? perguntei-te não sei quantas vezes. Entretive-me em casa como pude sem me lembrar dos graxas da estação e dos desafios de futebol que fazíamos na avenida com bolas de trapo. Queria ver o fim de tudo parecia-me que a minha presença era precisa ali, para que os sonhos que ias fazer fossem realmente sonhos bons como os que eu tinha às vezes à noite e que me traziam todas as coisas boas que eu gostava e que nunca tivera.
Esquecia-me duma coisa. Gostei de te ver fazer a cruz que marcaste em cima da massa antes de a tapares ao mesmo tempo que dizias uma reza. pra que é isso? perguntei e vais tu respondeste que era para o Diabo não entrar para dentro dos sonhos. Dei uma gargalhada e esfreguei as mãos talvez porque pensasse na cara que o Diabo faria à rasca quando quisesse meter-se nos sonhos e não o conseguisse.
Era tarde quando começaste a pôr a massa na frigideira onde o azeite espirrava e fiquei a pensar que eram os meus olhos que davam aos sonhos aqueles feitios que eles tomavam no azeite. Deste-me um e outro e outro e quando te apanhei distraída roubei-te um muito tostado que julguei ser o melhor de todos. Depois rapei o fundo ao alguidar acabei com todas as migalhas e lambi também os dedos. Nunca na vida comi uma coisa tão doce ou talvez não diga bem o que penso porque mais doce do que esses sonhos, é pensar agora que hei-de chegar à nossa terra e falar contigo e arranjar trabalho por aí.
Puseste os bolos numa travessa deitaste-lhe açúcar por cima e recomendaste-me que tivesse cautela 'vê lá não
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sejas cabeça no ar não os deixes cair que o dinheiro é preciso. Levas quarenta ouviste? A tostão cada um...'
Não é barato mãe? A tostão? A tostão é barato.'
Qual barato! julgas que vão pagar mais por isto?
Começámos os dois a fazer as contas e separámos os sonhos aos dez e dez, 'cada dez dez tostões, quatro vezes dez quatro vezes dez quatro vezes dez... quatro mil réis'.
Quatro mil réis? Não pode ser mãe quatro mil réis?'
-Sim quatro mil réis e então?
E dissemos o mesmo já não sei quantas vezes tão contentes ficámos por eu ir ganhar num bocado de noite quase tanto como tu num dia de trabalho a lavar. Mesmo à porta ainda me disseste 'olha que são quatro mil réis ouviste? E fui todo o caminho a pensar no dinheiro que devia levar para casa, a ensaiar a maneira de apregoar os sonhos de maneira que os vendesse depressa e com vontade de ir até à estação para que os meus amigos me vissem com a travessa de sonhos para vender.
A noite estava fria e resolvi ir para o cais. Havia luar no rio e uma voz que cantava numa fragata e muitas fragatas encostadas à muralha com flores pintadas na proa.
'É a tostão cada um ó sonhos! Quem quer sonhos?'
Quis lembrar-me duma coisa doce que servisse para eu comparar aos doces que tinha na travessa rachada e não fui capaz porque ainda não sabia como era bom ter estado na América e voltar para o pé de ti. Nessa altura a coisa que eu mais ambicionava era um fato à maruja com cabeção mas achei que não devia falar nisso quando apregoasse os doces, porque ninguém seria capaz de entender o que eu apregoava.
Sonhos, ó sonhos, quem quer sonhos?"
Vendi quatro, cinco, mais dois, ainda mais um... E então comecei com medo que mos levassem todos porque sentia fome e lembrei-me dos que tinha comido em casa
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da massa lambida nos dedos e no gosto do açúcar. Não sei se te lembras mas só me tinhas dado um prato de sopa desde o almoço e a verdade é que comecei a sentir dores no estômago e tonturas e dores de cabeça e uma grande vontade de fugir dali e ir esconder-me na avenida a comer os sonhos que ainda tinha para vender. E eles estavam tão tostados tão loirinhos tão macios e com um cheiro tão bom e com tanto açúcar que pensei... Nem tu sabes o que pensei naquela noite... Pensei em fugir pela primeira vez antes desta aventura que vai acabar amanhã.
Sonhos ó sonhos quem quer sonhos? continuava a apregoar desejando ao mesmo tempo que ninguém viesse. E comecei a passar os dedos pelos bolos e a lamber os dedos com açúcar até que trinquei a ponta de um deles com os olhos fechados lembro-me bem. Mas até essa gana eu fui capaz de matar dentro de mim e ainda outra que me ocorreu de te dizer que um dos sonhos caíra da travessa e que o não pudera aproveitar.
Espanta-me neste momento como resisti a tanta coisa. Fui um valente podes ter a certeza porque só tu me deste forças para chegar até ali sem ceder à tentação e apregoar sempre com uma voz que eu tenho a certeza que estava cheia de lágrimas. Sonhos ó sonhos quem quer comprar sonhos?
Foi uma luta terrível dum lado uma criança com fome, do outro uma travessa com sonhos que os outros levavam a tostão cada um. Sonhos baratos porque eram sonhos para pobres mas foram até hoje a coisa mais cara que eu vendi na vida. E foi então que da ponta do cais do lado do luar me apareceu aquele homem que não era parecido com o nosso pai mas que eu achei que podia ser ele. Não sei porquê mas entendi que era ele que viera das águas do rio voltando para nós depois daquela noite
de temporal em que morreram valadores no Lombo do Tejo.
Ele aproximou-se e perguntou-me o preço.
'A tostão cada um. E ele respondeu: São baratos esses sonhos...'
E sentou-se numa pedra que ali estava, a olhar a travessa a olhar para o chão a olhar para o rio. São baratos esses sonhos... Fazem-me mais falta dos outros dos que dão coragem para a vida mas gostava de comer um desses... Esta é a noite da família. Tens família? Eu não tenho e parece-me que nunca tive.'
A sua cara e os seus olhos as suas mãos e a manta que trazia ao ombro impressionavam-me e os seus olhos prendiam-me ali e já não havia forças que me tirassem da sua beira. Depois ele remexeu as algibeiras e tirou um tostão e eu entreguei-lhe um sonho. E sentei-me no chão a olhar para ele como se quisesse descobrir na sua cara a cara do pai. Só a voz era a mesma quando me disse 'os sonhos são bem feitos, valem mais do que um tostão'.
Lá isso valem', disse eu. 'A minha mãe é que os fez e eu vi fazê-los. Quer mais um?...'
Quando lhe perguntei aquilo era para lho vender palavra d'honra! Mas ele disse 'obrigado já que mo queres dar'. E eu não fui capaz de lhe dizer que lho não tinha oferecido nem fui capaz de fugir para casa. E quando me achei perdido comi também, comemos os dois o resto da travessa num instante. Então ele deitou-se no chão com a manta debaixo da cabeça e começou a falar do Alentejo e duma tribo de ciganos a quem morrera a mula. O cigano mais velho ia entre os varais e os outros ajudavam e ninguém parava e todos tinham fome. Dou esta noite sete facadas na Lua se não chegar ao fim da viagem...'
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Percebes agora porque andava sempre a falar nas sete facadas na Lua? Foi o homem a quem dei os sonhos que me contou essa história de ciganos e de fome no Alentejo. Só com a diferença que em lugar da mula eu disse que era um cavalo porque um cavalo é mais bonito. Depois o homem adormeceu e eu tive medo de voltar para casa só com metade do dinheiro que tu tinhas dito que eu devia levar. São quatro mil réis ouviste? Cada dez dez tostões quatro vezes...'
Já era tarde quando entrei em casa e mal me abriste a porta quis explicar-te tudo mas não fui capaz e comecei a chorar. E tu contaste o dinheiro e depois bateste-me. Nessa noite tu foste injusta quando me chamaste malandro e disseste que eu tinha perdido o dinheiro a jogar à chapa no largo da estação. Mete bem a mão na consciência e confessa - estás arrependida? O que lá vai lá vai. Mas achas realmente que eu fui malandro quando dei o sonho" a um homem que vinha do lado do rio e a uma criança que tinha fome? Achas que não valeu a pena eu aprender a história do cigano que prometeu à Lua sete facadas?
Eu sei que quando chegar tu vais pedir-me desculpa dessa tareia injusta que me deste e eu vou pedir-te que voltes a amassar farinha e açúcar pois quero comer outra vez os sonhos da minha terra, que são os sonhos mais doces que ainda comi até hoje na minha vida."
"Panorâmica (13)

A hora dos comboios o largo ganha animação. Os rapazes deixam as histórias e a batota para
darem jeito à vida. Um ou outro mais actor choraminga alguma caramunha estudada para pedir uma esmola "pla sua riquinha saúde", que logo se desmancha, mal a colheita acaba, com uma corrida ao botequim para comprar cigarros ou rebuçados com litografias de jogadores da bola; outros rondam a porta de acesso ao cais, ante as ameaças dos carregadores, que os odeiam, e ali se plantam, abelhudos, a forçar serviços; os dos jornais apregoam-nos com trinados lisboetas, e os mais tamanhões roçam os olhares malandros por alguma senhora que se sentou no banco corrido da parede dos cartazes e mostra a perna, por desleixo ou garridice.
Então é um nunca mais acabar de passeios no átrio, quando não se juntam em magotes no balcão das expedições, à espera que o descuido suba e a imaginação facilite o resto.
Mas em dia de partida ou chegada de ranchos para a Lezíria é que a estação e o largo tomam jeitos de arraial, com harmónios e gaitas de beiços, esboços de bailaricos
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e um tal labirinto de gente, caixotes e sacos que à gandulagem não faltam motivos para recreio. Quando partem, talvez por se sentirem ali mais perto das suas terras, os gaibéus e carmelos vêm muito antes da abalada dos comboios, dividindo-se entre a ronda ansiosa ao casinholo dos bilhetes e as fugidas ao botequim, a enfrascarem-se em vinho.
E "seu compadre" para a direita, "seu compadre" para a esquerda, acabam por dar espectáculo em cheio, no largo, ao perseguirem algum garotão que lhes furte o chapéu ou que, fingindo tropeçar, lhes assente uma boa cabeçada no ventre atestado de vinhaça. E enquanto a malandragem se esgueira de pé leve, o ofendido acaba por se esparranhar nalgum monte de sacos, se a fatalidade o não faz embicar com o rosto nas pedras do chão.
Depois há galhofa, quando os ares não se turvam com ameaças de um lado e sogadas do outro, em que a rapaziada se junta em coro a açular os gaibéus e carmelos com palavrões de estarrecer.
O silvo do comboio é que recompõe tudo. E de tão cedo que chegam, nunca deixam uns tantos de ser atirados para dentro das carruagens como trouxas, tanto o vinho lhes deu para não largarem o botequim ou a sarrazina de conversas sem fim nem tineta. E grita-se, jogam-se sacos pelas janelas, empurram-se pessoas e caixas; quando o comboio abala, não é raro esquecer-se no cais algum retardatário, que se fica a balouçar nas pernas bambas e a grunhir ao maquinista que espere por ele, enquanto das carruagens lhe acenam adeus, se a companheira não aparece a chorar pelo "seu rico homem", e não há consolo que lhe abrande a mágoa de se ver sozinha.
Os da vila ou dos arredores também partem à aventura, como o Bicas, que abalou à cata de fortuna e ainda não escreveu, afinal, para falar do seu regresso.
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Outros abalam para Lisboa, cidade que dá gozo aos olhos, à procura de trabalho ou no rasto de alguma mulher...
Mas esses estão sempre sós, cheios do sonho da aventura que os arrasta para o torvelinho onde muitos se perdem.
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O cravo
NO pátio todos disseram que eu estava bêbedo quando fiz aquela zaragata por causa da lata dos cravos; mas nessa tarde só bebera um copo de vinho, "um garraio de três", na taberna do Cão Pelado, e não era isso que me ia transtornar.
Sou homem de poucas bebidas e de poucas falas. Se nos dias em que não trabalho dou a minha volta pelas tabernas, é só porque não sei onde matar o tempo, e por ali sempre pode aparecer quem saiba de patrão, algum moina que cante o fado ou, ao menos, uns companheiros para se bater a sueca ou a bisca. E se as cartas estão de maré ganha-se uma certa fezada nas voltas da vida. É claro que emborco o meu copo... Mas dessa vez -palavra de honra! - estava são que nem um pêro, embora o sangue já me fervesse por causa dela.
O craveiro talvez não valesse um chinfrim tamanho. Há alturas em que também assim penso. E vocês não serão capazes de perceber por que diabo havia eu de lhe pôr a cara negra com murros. Pois é... Não percebem! O chefe da esquadra logo me disse quando entrei: "Não é assim que se bate numa mulher!" Numa mulher -ouvi isto há
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muitos anos - não se bate nem com uma flor. E afinal foi por causa do cravo da lata de manteiga que fiz aquele "arraial" no pátio e ela abalou.
Tenho pena é dos rapazes, embora só um deles, o sardento, seja meu filho. A gente habitua-se às crianças e depois já parece que são todas do nosso sangue. Eu cá, pelo menos, sou assim. Feitios...
Acho que o meu avô também era um bocado "chora na teta". Quando o ciclone arrancou a macieira que tinha ao pé do poço, o velho pôs-se pesaroso que nem vocês acreditam. Uns poucos de dias sem comer, sentado à porta a cismar, olhando a árvore caída e a acenar a cabeça que nem um esparvoado. Só eu é que podia estar ao pé dele, talvez porque só eu também desse mostras de o acompanhar naquele desgosto de morte. Agora estou na mesma por causa dos rapazes! Mas isto tem de passar... Dela é que não me ficaram saudades nem penas. Escangalhou-me a vida!
Foi na festa do Santo que a encontrei. Tinha-me chegado à beira dum pichel de pinga nova e dei de caras com ela a olhar para mim. "Que é lá isso!", disse cá na minha. Estava de mal com a Custódia, por causa dum apertão que lhe dera na casa da brincadeira, e logo pensei em moê-la, prantando-me à beira da Luísa, que abalara para Lisboa havia três anos. Nesse dia de festa, com a jaqueta preta, a cinta bem agarrada aos quadris e o porrete de lódão descansado no braço, eu parecia um lavrador. Mostrei-lhe a caneca, onde o vinho cartaxano espinoteava às bolinhas -"Vai uma golada?"-, e ela chegou-se logo, muito azadinha de corpo, com os olhos lambareiros a espevitarem-me e aquele jeito safo de mulher da cidade, habituada à fala dos homens.
"Caragos! Pra que raio não deitaste pregão a dizer que chegavas?"
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"O quê, ias buscar-me às cavaleiras?", respondeu ela.
E vou eu digo-lhe assim, com a maldade na palavra: "Agora só dou carga mas é em osso."
"Já estou servida de jerico", repontou ela, a sorrir com os dentítos de rato.
"Os jericos de Lisboa têm muito que aprender comigo", atirei-lhe eu de lume no corpo.
E desatámos a rir.
Passou uma vendedeira de medalhas do Santo e merquei-lhe duas: pus a minha apertada na fita do chapéu e estendi a outra à Luísa, com os olhos pregados no seu peito. Nessa altura a Custódia encarou com a gente, muito arrenegada, e eu não me contive sem me chegar mais à outra, prantando-lhe a medalha na prateleira da blusa. A resposta foi um empurrão que me fez dar dois passos atrás. Mas a gente no campo sabe bem o que aquilo quer dizer. Atirei três pulos no ar com o porrete ensarilhado e, quando ela se agachou, deitei-lhe a manápula ao braço e levei-a à força para o terreiro do "balho". Durante aquela música só lhe falei com as mãos.
E à volta da festa perdemos o caminho no meio do pinhal.
Ela ficou mais uns dias e eu ia falar-lhe à porta. A aldeia ficou cheia daquele namorico, que só acabava altas horas, quando os galos cantavam a meia-noite. Nunca uma cachopa me beijara daquele jeito, com a boca fria e sôfrega, e eu sentia-me já agarrado pelas saudades da sua partida.
Numa ceia a minha mãe falou-me, querendo chamar-me à razão: "Olha, Maurício, mulheres que vão pràs bandas de Lisboa são mulheres perdidas para os homens como tu... já não se afazem à vida da nossa parvalheira e desencaminham um homem. Distrai-te, que estás em idade para isso, mas não te deixes agarrar."
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Mas deixei-me... Ela começara a contar-me coisas da cidade, que me arranjava trabalho de serventia numa obra, que talvez conseguisse emprego numa fábrica ou nos eléctricos. E aquela boca fria como uma golada de água férrea a fazer-me mais sede...
Numa tarde em que a minha mãe foi ao Brejo regar uma leivazita, meti a roupa num saco, roubei-lhe dinheiro da arca e fui apanhar o comboio à vila. Ela abalara na véspera, por causa das más línguas, e eu jurara-lhe que no dia seguinte lá estava também. Vi muita terra pelo caminho, tanta coisa que tudo se me baralha na cabeça. Devo-lhe ao menos esse favor. O que conheço do mundo foi ela que me ensinou; e vamos lá, com trinta diabos, não estou repeso de todo.
Ao princípio tudo correu bem, mesmo quando ela me mostrou o filho e me contou a história triste dum rapaz rico que quisera casar com ela e que, a uma semana de a levar à igreja, morrera duma doença ruim, deixando-lhe a criança nos braços. Comovi-me com a sua má sorte e fui ainda mais amigo dela e do filho. Deitei-me ao trabalho com alma, não me escusando nunca ao que aparecesse; o que era preciso era levar a féria ao sábado para casa. Um ano depois nasceu o nosso filho, o sardento, e a saudade da minha terra tornou-se menos pesada naqueles dias. O pior é que não conseguia habituâr-me àquele pátio, em que parecia andarmos uns em cima dos outros, com um cheiro a podre, como se estivéssemos mortos. O barulho de tanta gente entontecia-me e às vezes julgava que me tiravam o ar. O sol não era o mesmo da minha terra. Fazia-me falta o cheiro das searas e dos pinheiros... Aqui tinha a impressão de que, se abrisse os braços, batia em toda a gente; e que, se desse um grito, daqueles que a gente dá na aldeia para se ouvir ao longe, todos me julgariam atolambado. O coração parecia-me mais
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pequeno, metido numa casca dura, que se apertava cada vez mais; assim a modos como a casca duma noz que não houvesse alegria capaz de a abrir.
Os tombos que levei na cidade não importam - são coisas da vida, e eu acho que temos de a pagar bem. É uma espécie de renda, que a uns custa mais do que a outros.
Aprendi muito, lá isso é verdade; mas nada chegava àquela falta que sentia de ver o.campo e os montes da minha "parvalheira". Aos domingos ia à bola com outra malta, bebia o meu copo, jogava às cartas, mas logo outra semana começava com a mesma tristeza... Nunca lhe disse nada da minha tristeza com pena de a magoar. Sou homem de poucas falas... E depois, também, que lhe ia eu dizer? Que gostava mais de andar no trabalho de sol a sol e de aos domingos deitar até à vila, a fazer mercas na companhia da minha mãe?... Que gostava de ver o rio, o candeeiro da praça, a bicharada da avenida?... Tinha a certeza de que todos se largariam a rir de mim, e eu podia azedar-me com algum companheiro. Quando azedo nem sei o que faço!
Andava eu assim com esta tristeza funda quando o mestre de obras avisou uns tantos homens de que não podia dar mais trabalho. E eu fui um dos que saíram naquele "balão". Fiquei derrancado de todo. "Raios parta a sorte!", disse cá na minha. "Era só o que me faltava!"
Mas nem sei porquê, eu nunca tinha pensado naquilo, ao passar à loja do seu Artur, veio-me a ideia à cabeça. "Tem aí uma lata vazia que me venda?" E comprei-lhe uma lata que servira a manteiga. Lembro-me tão bem como se fosse agora.
"Pra que é isso?", perguntou-me ela quando cheguei ao pátio. "Cá pra uma coisa..." E naquela altura, palavra de honra, pensei que lhe ia dar uma grande alegria. Fui de madrugada ao Jardim da Patriarcal e roubei uma
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lata de terra preta bem estrumadinha. E aquele cheiro fez-me melhor que eu sei lá o quê. Arranjei as sementes, enterreia-as na terra, como se guardasse algum tesoiro do tempo dos Franceses, e passei a vir mais cedo para a barraca, só com o cuidado de as regar e de um dia ver a hastezinha cá fora ao sol. Então os rapazes chegavam-se para o pé de mim e fizemo-nos ainda mais amigos. Já o meu António tinha quase dois anos. Como o tempo passa!... Ainda me parece que foi ontem que abalei da terra.
A gente discutia às vezes. Era ela quem mais bramava, porque eu fui sempre um homem de poucas falas. "Cala-te aí, que a vizinhança ouve", dizia eu. E ela sempre na mesma sanfonice que nem um realejo - parecia que gostava de moer as palavras até ao fim. Que eu queria encostar-me ao "partido", que ela não podia sustentar mandriões... Mandrião, eu!... Eu, que nunca me neguei fosse lá ao que fosse. Que o digam todos os mestres de obras para quem tenho trabalhado. É verdade que de princípio me envergonhava de pedinchar emprego. Lá na terra vinham ter comigo ou ia à praça, e não era preciso nada daquilo. Mas até a isso me habituei. E ela, que não percebeu nunca a razão de eu ficar calado, pôs-se a abusar. Por tudo e por nada, zás. Eu encolhia os ombros e ia para o pé da lata, depois de procurar os cantos do pátio onde o sol lhe batesse melhor.
Dei muitas vezes com ela a olhar-me, a modos de quem troça, e a dar à cabeça quando eu me punha naquilo. Aquele acenar de cabeça dava-me voltas cá dentro que só eu sei-até as mãos me tremiam; e ficava-lhe com raiva de morte só porque ela não percebia o que se passava dentro de mim.
Mas tudo isso esqueci no dia em que se abriu o primeiro cravo; quase chorei de contentamento. Chamei os
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rapazes, o Jerónimo estucador, a vizinhança... Todos vieram mirar o cravo roxo, e só ela ficou de longe, com aqueles olhos pequeninos, matreiros e maldosos, a rir-se de mim e da flor. E naquela altura tive logo vontade de me deitar a ela.
"O cravo tem pintas brancas", disse o meu filho num grito de alegria.
"É cravo espanhol", juntou a mulher do Pendurinhas.
"Se fosse todo encarnado, era do Benfica..."
Todos riram.
Havia alguma coisa de novo naquele pátio, bem diferente das discussões e da gritaria do costume. Só ela continuava indiferente, à porta da barraca, com aqueles olhos maldosos e trocistas, como se a flor lhe fizesse afronta. Consegui depois esquecê-la, tão feliz me sentia, ao lembrar-me de que outros cravos viriam nascer junto daquele e tudo ficaria menos sujo e triste.
"E serão todos da mesma cor?..."
"Era bonito que não fossem..."
Eu pensei em todas as cores dos campos da minha terra, dos amigos que nunca mais vira e da minha mãe, lá longe, roída de saudades pela ausência do único filho que lhe ficara. Tive vontade de chorar, palavra de honra... E desejei que me deixassem sozinho ao pé das minhas flores.
Passou tempo, mas fizeram-me a vontade. Os rapazes voltaram para a brincadeira com a bola de trapos, os homens enfiaram-se nos quartos ou foram para a taberna e as mulheres ficaram cá fora a fazer a sopa do jantar ou a pentearem-se no chão, falando umas das outras.
Estive ali tempo sem conta, calado, a pensar na casa que gostaria de ter e nas flores do jardim que gostava de tratar. O cravo era roxo e tinha pintas brancas... Apetecia-me mexer-lhe e ao mesmo tempo receava estragá-lo.
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E era meu. E a terra cheirava à terra da minha terra quando chove; e aquele cheiro entrava-me no coração, para me lembrar todas as coisas que antes gostava de esquecer.
Foi então que ela disse: "Agora fica aí o resto da vida, e eu que me amole a trabalhar pra ti."
Levantei a cabeça, como se quisesse perceber bem que era ela quem falava, e fui pôr a lata dos cravos na armação de arame que tinha ao pé da porta. E respondi-lhe entre dentes: "Se não fosse cá por coisas, partia-te as ventas."
Ela ficou a falazar e eu fui meter-me na taberna do Cão Pelado. Petisquei qualquer coisa e bebi um copo - só um copo de três, palavra de honra! Todos disseram depois que eu estava bêbedo, mas não era verdade. O que me pôs doido foi ter chegado a casa e ver a lata no chão com a terra espalhada e o cravo com o pé partido.
Abri a porta com raiva, fui direito à tarimba e puxei-lhe por um braço. "Quem foi que fez aquilo à flor?..." Ela sorriu e voltou-se para o outro lado, sem me dar troco. Perdi a cabeça; galguei-lhe para cima, procurei descobrir-lhe a cara e, assim que apanhei uma aberta, atirei-lhe o primeiro murro. Bati com força, às cegas; bati-lhe com quanta força tinha.
Os rapazes gritaram e pu-los fora. A vizinhança acordou, veio o polícia e fui preso. E o chefe disse-me: "Não é assim que se bate numa mulher!"
Mas ele não me podia perceber; ele ia rir-se também, com certeza, se eu lhe dissesse que o cravo roxo me fazia falta.
Ele ia rir-se, por força, e por isso fiquei calado. Meteram-me dois dias no calaboiço, mas antes assim - há coisas que a gente deve guardar no fundo do coração.
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Ela abalou com os rapazes, e tenho saudades deles, embora só o mais pequeno seja meu filho. Um homem habitua-se às crianças e a separação custa sempre. Paciência!... Dela é que não quero mais ouvir falar... Sei que me vou lembrar sempre dos rapazes, e mais ainda do sardento, que é do meu sangue.
Saio do pátio com o saco às costas, tal qual como cheguei, e vou sozinho por estas ruas cheias de gente. Sozinho como nunca estive no mundo! Sozinho! Tão sozinho que me dá vontade de gritar para que alguém me responda, para que alguém me diga "boa noite", uma palavra qualquer, mesmo de troça, ou a sarrazina dum bêbedo.
"Vais a dormir, pá!", grita-me um tipo gordo de dentro dum automóvel.
"vou a dormir a raiz..." E não digo o resto porque só agora reparei que estou mesmo à saída da cidade e a estrada que vejo à minha frente passa à nossa vila, onde ia aviar-me com a minha mãe. São cinco léguas!... Cinco léguas com saudades dos rapazes deve ser mais longe do que ir ao cabo do mundo...
Depois também, com uma camisa destas, toda a gente vai pensar que andei à esmola por Lisboa.
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Panorâmica (14)
TODAS as bandeiras das colectividades da vila foram postas a meia adriça mal correu a nova da morte do palrão Augusto, gritada pela mulher numa berrata histérica, de que ninguém entendeu as razões, tão mortificada a sabiam pelos destemperos do marido. Quem lhe visse os olhos secos, talvez pensasse que tais arrancos de pranto agudo não passavam de cena fácil de actriz falhada. Mas ela sabia que ia ficar só naquele casarão, onde dera ao mundo os seus três filhos, e era a lembrança destes que lhe doía no coração cansado de sofrer. E como sempre tivera de esconder os seus prantos, não podia exprimi-los senão daquela forma caricata de grunhidos e gritos de animal lanceado.
O patrão Augusto foi homem de uma só palavra e finou-se seco como as palhas. Não morreu sereno, nem tal seria de esperar do seu temperamento; mas manteve-se firme até ao fim, sem aceder aos rogos da mulher, que lhe pedira, durante dias, que a deixasse levar-lhe de comer.
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Furibundo primeiro, depois já lamentoso, o velho lavrador só respondia "que lhe bastava a vergonha para se alimentar". E socava a porta em ameaças terríveis, que apavoravam a companheira. Ela conhecia bem do que ele era capaz!
Naquela manhã, como não ouvisse ruídos dentro do quarto onde ele se encerrara, deu logo alarme à vizinhança, num pressentimento de pavor. A porta foi arrombada pelo Grilo electricista, que é 2.º comandante dos bombeiros e perito em escavacar móveis nos salvamentos de casas incendiadas.
De borco, como se quisesse morder o soalho com os restos da dentuça de lobo velho e arrenegado, o Lavrador das Moças estava frio e quedo. A seu lado, junto à mão arrepanhada pela ânsia da morte, meia folha de papel de carta com o seu testamento. E como deixou a parte livre da sua fortuna, já escassa, à banda de música, o mestre, no ensaio da noite, mandou pôr na estante uma marcha fúnebre, que vai acompanhar o lavrador ao cemitério.
O pior é que a parte de clarinete tem dóis solos e o Manel Parró anda com um abcesso na boca, o que o impede de chegar a embocadura aos lábios, quanto mais soprar no instrumento.
O Dr. Carvalho do Ó exige que a banda vá ao funeral e o mestre ainda não viu como resolver o problema, pois a direcção recusa-se a pagar a um clarinete de fora, "não pela despesa em si", dizem cinicamente o presidente e o tesoureiro, mas por acharem que a "última homenagem a um sócio tão dedicado deve ser retintamente local".
Do gabinete dos corpos gerentes, como se assinala em letras pintadas sobre o vidro da porta, vêm gargalhadas altas, que depois se calam num silêncio brusco.
São os amigos que recordam a vida agitada do lavrador; por mais que queiram, não conseguem dar-lhe luto.
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embora comecem sempre as narrativas em voz magoada. Logo, porém, se animam nos pormenores das peripécias lembradas e a dor quebra-se em riso.
Agora mesmo, enquanto o mestre experimentava, irritado, passar os dois solos para o filarmónico que toca cometim, o Sá Perdigão contava a história da sua vingança sobre o Zé Malvado, falando da gaibéua que ele trouxera para a vila, na garupa do seu cavalo, e com quem acabara por viver uns meses.
"Era um homem que poucos entendiam... Umas vezes falso como Judas; noutras era capaz de ficar sem roupa pra servir um amigo... Mas em tudo era exagerado como um castelhano."
"O filho que se enforcou é que era o Lavrador por uma pena...", disse o Dr. Carvalho do O.
E logo passaram a falar do rapazola, que deu à vila uma história bem estranha; e atrás dessa veio a invocação dos outros dois filhos, numa espécie de homenagem aos "quatro cavaleiros do Apocalipse", como o mestre-escola lhes chamava, por mor de uma zaragata em São João dos Montes, quando os três resolveram deitar o fogo de artifício da festa antes de a comissão o determinar. Nem a patrulha da Guarda os aguentou, porque varreram o terreiro da igreja com as patas dos cavalos, embora à sua volta os cacetes caíssem mais ligeiros do que azeitonas ripadas.
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A
égua marcada
personalidade estranha, de contraste? vivos, em que na mais torpe violência se embebiam uma doÇura poética, quase feminina, e uma tendência para a volúpia dos sonhos mais imaginosos, encarregou-se o tempo de esboroá-la, sepultando o lirismo, pelo abuso de vícios desfrutados, sem requinte e à tripa forra, com os amigos e até com os filhos, nesse cenário de áleas românticas que era a Quinta do Paraíso.
Herdou-lhe o temperamento, e nunca o perdeu, talvez por bem cedo haver procurado a morte, o filho mais jovem, o Manuel Pedro, o último dos "quatro cavaleiros do Apocalipse". Quem conheceu o patrão Augusto no tempo desse cavalo imponente que foi o Kébir, via-o de novo, e bem pintado, nesse moçalhão meio cigano, meio varredor de feiras, que se aprimorava nos seus fatos de impecável corte ribatejano.
Os fatos à lavrador e os cavalos eram o seu maior luxo. Lembro-me ainda de certa samarra famosa que ele vestia como ninguém. É possível que esteja a exagerar, mas vejo-a impecável na gola farta de pele de lontra castanha, mosqueada nos bordos, a sublinhar o belo moscou do tecido. Certa nas ancas, de bem fornida caixa de peito, que lhe corrigia o busto e a linha seca dos ombros, acolchoava-a, por dentro, uma seda vermelha para vestido de rainha; no canhão da manga, uma tira enviesada com cinco botões sóbrios; e ainda a realçava o corte subtil dos bolsos, onde ele metia as mãos com a graciosidade estudada de um bailarino. Graciosidade máscula, que deixava nas ruas da vila um halo de ansiedades femininas.
O Manuel Pedro e a sua samarra ocorreram-me imediatamente mal acabei de contar a história da gaibéua. Mas então o momento passou, e agora volvem-me à lembrança, talvez mais vivos do que nunca.
O patrão Augusto chamou àquela, como a todas as raparigas, mesmo as que possuía ou desejava, a "eguazinha" E não o fazia para as desmerecer, antes pelo contrário. O nome era um elogio na sua voz grave e doce, onde se insinuava uma ponta de malícia e de crueldade. E até de ternura.
No filho mais jovem eram igualmente vivos os contrastes. Na negrura de um cinismo, que não era brutal nem bronco, mas quase físico, encadeava-se o cromatismo da sinceridade afectuosa, do gesto pimpão sem alardes e de um incompreensível cavalheirismo, talvez precioso, que escondia uma perversidade violenta. Um tanto como essa mocidade que para aí anda aviltada até à demência, por efeitos de um molde onde a querem meter, pondo-a do avesso, com lirismo nas camisas e crimes no coração.
Como se sobre uma tela de Van Gogh, dramática, promissora e esplendorosa ao mesmo tempo, se tivesse permitido que novos pintores de tabuletas viessem propagandear os pogroms do* < judeus, os vagões de gado com crianças mortas,
as chaminés das câmaras de gás deitando fumo.
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e Dachau, e auschuitz... E as cidades pulverizadas como Varsóvia, onde, na luz carinhosa dos poentes mais doces que me encharcaram os olhos, eu senti ainda as súplicas, os estertores e as esperanças dos que morreram para que os nossos filhos leiam. E rios de sangue sem imagem literária, como o fístula, irmão do Dnieper e do Óder, onde o Calvário dos homens em quatro anos foi maior do que o Calvário de todos os mitos.
até Cristo ficou pobre de sofrimento perante tanta dor!
O gueto de Varsóvia mais só do que um deserto - e ali estiveram vivos e ali foram assassinados quatrocentos mil irmãos nossos. O gueto de Varsóvia sem casas, sem o palmo escasso de uma parede, mas com gritos de terror que se colhiam no ar, como espigas de uma seara de violências.
Mas foi aí também que escutei, como se viessem do fundo da tela pintada por Van Gogh, dois pianos que tocavam a Apassionata de Beethoven, dois pianos que tinham a voz do génio surdo, como se Ele viesse pedir perdão pelos crimes que se não podem esquecer - não para os vingar, mas para que se não repitam, mesmo que nos queiram separar uns dos outros.
Apassionata de Beethoven por entre os assassinados e as ruínas das cidades pulverizadas, como por debaixo da tela repintada com tintas da Farben continua Van Gogh, bem agarrado ao coração dos homens, para viver nos nossos mais fundos anseios e arrancar a crueldade dos jovens que deixámos perverter.
E repor a inteligência, e a sensibilidade, e a poesia das coisas mais simples, e a poesia dos
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penssamentos mais profundos, nos berços dos meninos que acabaram de nascer e sorriem para a vida sem conhecerem o gueto de Varsóvia.
Braçados de flores vivas sobre os meninos vivos; braçados de flores vivas sobre o ventre das mães que hoje mal sabem sorrir e hão-de maravilhar-se de ser mulheres...
Mas falava na galantaria de Manuel Pedro, e acho que não soube interpretá-la. A sua personalidade era demasiado complexa; ou melhor, talvez, ainda indefinida, tão aberta se mostrava a todas as influências que a tocavam. Poderemos compará-la, para não cansar a imaginação, a um pedaço de barro, onde tanto seria possível moldar a imagem de um bácoro como a de um génio.
E não haverá génios entre os bácoros? Estou a lembrar-me daquele chefe que puxava da pistola quando ouvia falar de cultura...
No mais jovem dos "quatro cavaleiros do Apocalipse" a galantaria era mais um ardil do que um atributo.
Como os homens de quarenta anos estão cheios de recordações! Lembro-me agora daquele governador de Varsóvia que tocava maravilhosamente Bach e que ordenava matanças no gueto.
Wagner disse que "a música exprime unicamente emoções e sentimentos. A força expressiva da linguagem musical pede um complemento". A de Bach, para o governador nazi, exigia o assassínio. E Beethoven chamou a Bach o "patriarca da harmonia".
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Eles também macularam tudo! Mesmo o que julgavam amar... E eu agora, quando oiço Bach, junto-lhe sempre o matraquear das metralhadoras no fuzilamento dos heróis.
Falava de Manuel Pedro... Sim, era isso. Embora desvirtuado pelo poder paterno e pela certeza de que as leis estavam nos códigos para o justificar e proteger tanto como os santos nos altares para lhe darem o perdão, Manuel Pedro era pouco mais do que um homem vulgar. Se tem nascido um pobre labrego como o bisavô, nunca o seu nome ficaria ligado a essa história bizarra e violenta que o povo da minha vila conta de muitas maneiras.
O povo gostou do caso da "égua marcada" e fez como os poetas: agarrou no tema e tratou-o ao sabor da sua imaginação.
A ânsia de possuir terras tomaria, por certo, a vida inteira de Manuel Pedro - o corpo e o espírito, a ternura e a brutalidade. E nunca, por força, as mulheres seriam diferentes da asna que o levaria à feira ou da bica de água que lhe mataria a sede, depois de um sol a sol a puxar o céu cá para baixo com os bicos da enxada.
Devoluto das naturais ambições do bisavô, Manuel Pedro voltou-se para as mulheres, que são irmãs da terra e tão capazes, como ela, de despertar paixões desvairadas. Por um regueiro de água que lhe alimentasse a leiva o bisavô camponês seria capaz de matar um homem; e aquele rapazola, que gostava de samarras e cavalos, seria assassino se alguma vez tivesse desejado na raiz uma mulher que o perturbasse.
Não era o caso da "èguazinha", e ele marcou-a. Quando a conheci não pude entender a irrupção da sua
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violência. Talvez só os olhos, irrequietos como dois pássaros tontos que voavam sem canseira para os olhos dos homens, pudessem recordar a rapariga pervertida que o vício trouxera, uma madrugada, para a Quinta do Paraíso.
O patrão Augusto sentiu a afronta por se tratar do seu filho preferido; doutro modo teria achado graça ao devaneio e até seria capaz de o ajudar a concretizá-lo.
No dia em que conseguiu saber onde o Manuel Pedro se encontrava com a rapariga apeteceu-lhe montar a cavalo e ir cortá-los a chicote, trazendo-os até à vila amarrados um ao outro, como dois prisioneiros de guerra, para que todos vissem que ainda fora ele o mais forte. Como, porém, conseguiu dominar esse primeiro impulso, a luta só acabou em bem por Manuel Pedro haver cometido um destempere de violência, que espantou a vila pachorrenta e melancólica.
Se fosse possível a cada um deles agir de acordo com o que mais profundamente desejava, o caso teria o seu epílogo quando o pai mandou o irmão mais velho fazer a primeira proposta ao Manuel Pedro. Mas o rapazola resistiu e a batalha ateou-se.
A história começou naquela noite em que o patrão Augusto, após uma boa safra de azeite, disse para os filhos que os levaria a Lisboa. Depois de atafulhar a carteira com notas de cem, em que nunca tocava, como era seu hábito, os "quatro cavaleiros do Apocalipse" tomaram o único automóvel que então havia na praça da vila, e lá foram até à cidade, a espantar bestas e homens, numa carreira desvairada de sessenta quilómetros à hora.
Beberam num clube nocturno e pegaram-se de razões com o dono de um chapéu de palhinha que o João Roaz toureou, em alardes de matador, pondo-o em cima duma cadeira, no meio da pista para o baile, e que acabou por
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ser furado com uma faca de cortar o bife quando a sala em peso lhe gritava a pedir a estocada final.
De casaco levantado acima das ancas, como se trajasse de curto, o João fez do "palhinhas" o que lhe deu na gana; o dono ria com os outros, afogueado pela cerveja, e só foi às do cabo, assentando um murro na orelha do "matador", quando viu o chapéu furado e o outro lho devolveu desprezivamente, pedindo "más Miuras con casta", o que ele levou a mal.
Embrulhados num rebuliço, com espanholas a desmaiar e o baterista da orquestra a rufar caixa, enquanto o da trompeta tocava para a saída de outro "toiro", os "quatro cavaleiros do Apocalipse" abalaram dali, já atrelados com duas raparigas que haviam tomado o seu partido.
Na adega da Quinta do Paraíso a bacanal prosseguiu com toques pelo patrão Augusto, mais no tampo do violão do que nas cordas, fandanguillos em pêlo por uma das raparigas, a que era de Viseu mas falava de Sevilha como da sua pátria, crismando-se de Pilar, lavagens colectivas a água-pé, por precaução, como era mania do patriarca, e uma soneca final sobre a palha do curral dos bois, após um baile de roda à volta do lago com o querubim, que era sempre o número de apoteose daquelas festanças, quando não dava banho forçado a qualquer das visitas mais toldadas pelo vinho.
Foi nessa altura que o Manuel Pedro traiu o pai e os irmãos. Cansado de lhes ouvir alusões que o vexavam - "Cresce e aparece, Manuel! Ainda cheiras a cueiros, pá!"-, o rapazola deu-se a uma desforra, quando percebeu a preferência do pai pela outra moça, que estivera quase sempre à parte, muito digna na bebedeira, a falar da sua família afidalgada, onde se misturavam condes, médicos e damas com nome nas crónicas mundanas. Era
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o fraco do seu vinho, por influência de certo velhote de quem fora amásia e que lhe dera aquela proa, teimando assim em esconder a sua origem verdadeira - uma família algarvia de operários conserveiros, desfeita pela crise, que a obrigara a procurar, no amor de caixeiros viajantes, o modo de vida recusado pelas fábricas encerradas. De Portimão passara aos lavradores de Beja; e logo depois viera a viagem até Lisboa, onde de meia em meia hora desembarca uma moça atraída pela ilusão da cidade maior.
Amarralhado pelos gracejos do pai e dos irmãos, Manuel Pedro, dado à ternura pelo álcool, fez-se parceiro da moça. E quando ela lhe confidenciou o seu desprezo pela demência dos desmandos de que eram comparsas, e mal viu os outros a dormirem no palheiro, o rapazola foi à cavalariça arrear a égua pigarça e convidou-a a fugirem. Emparceiraram assim o desejo de vingança, que ele ambicionava, com o prazer de outra aventura, que ela queria coleccionar para relato nos clubes, onde as mulheres ganham fama pela bizarria. Aquele rapto servia a ambos, sem ainda perceberem que a juventude os podia atrair.
"Pareces o Gitanillo, o toureiro cigano", disse-lhe a rapariga quando naquela tarde, passada a embriaguez do vinho e da fuga, atentou melhor no companheiro de aventura.
"Já o viste tourear?..."
"Não; mas tenho o retrato dele no meu quarto. Tirei-o duma revista espanhola." E a meia voz, prendendo-se ao ombro do amante: "Aquilo, sim, é um homem! Gosto dos homens morenões e tristes... E valentes!"
A comparação envaideceu Manuel Pedro, tocando-lhe na má costela herdada da família paterna. Num gesto de falsa ternura meteu-lhe os dedos nervosos nos cabelos e
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puxou-a para o peito, que fez sobressair, como o loureiro cigano no desfile das cortesias.
E com a boca junto à dela sussurrou-lhe: "Na Borda-d'Agua todos são toureiros."
"Porque não te fazes matador?... Valias dez vezes mais."
"Sei lá!... Há tanta coisa para fazer... E ser espada , em Portugal, onde não se matam toiros, não nrinteressa. Gosto da verdade em tudo!... E toiradas sem toiros de morte é circo."
"Não será medo, Manel?...", volveu a rapariga para o espicaçar, ao mesmo tempo que lhe apetecia vexá-lo.
"Qual medo!... Nunca vi a cor que o medo tem. Nem a cor, nem o gosto, nem a sombra... Medo, eu, porquê?!..."
Aconchegando-se-lhe no peito, mais mirrada, à procura de mimos, ela disse ainda: "O que é que se sente à frente dum toiro?"
"Tudo menos medo. Vontade de o dominar como a um borrego que nos vem comer à mão... ou de matá-lo..."
E Manuel Pedro foi até à janela, como se não pudesse suportar mais a falsidade das próprias palavras. Mas depois julgou que a rapariga pensava como ele e voltou-se com o mesmo ar decidido, de braços arqueados e um sorriso de domínio na boca sensual.
"A gente no Ribatejo habitua-se com os toiros de tal maneira que até os trata por tu..."
Ela deu uma gargalhada que o contagiou. E, prendendo-o pelas costas, apertou-o contra si.
"O teu pai também trata os toiros por tu?..."
"Não fales do meu pai", e a voz de Manuel Pedro alterou-se, tornando-se dramática.
"Não gostas dele?..."
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"Já disse que não quero que fales do meu pai. Não o metas nas nossas conversas..."
Taciturno, foi até junto do lavatório e pegou na toalha, que depois atirou sobre a bacia. Ela olhava-o sem o entender.
"E dos teus irmãos posso falar?"
Manuel Pedro encolheu os ombros com desdém, mas começava a irritar-se com a conversa. Doíam-lhe os dedos e os músculos retesavam-se, fazendo-o premir as mãos uma na outra, como se entre elas esmagasse qualquer coisa que o atormentava.
"O teu irmão mais velho é que deve ser bruto", insistiu a moça, percebendo que o excitava ao falar-lhe de outros homens.
"Sim, é bruto, e depois?!... Que tem a gente a ver com isso? Também eu sou bruto..." E olhando-a com rancor: "com as mulheres os homens devem ser brutos."
"Tu?!... Ah, de ti não acredito. És ainda um menino... Um menino para eu apertar nos meus braços", disse-lhe a Condessa com ternura.
Mas Manuel Pedro não gostou do gracejo. Agarrou-lhe num braço com violência e quis esmagá-la com o olhar avivado pelo ódio. Ela, porém, talvez sem intenção de o magoar, teve uma expressão de desprezo que o enfureceu.
"Que queres dizer com esse sorriso?"
E antes que ela lhe respondesse, torceu-lhe o pulso, até a fazer voltar-se com a dor, e deu-lhe duas verdascadas na cara com as pontas dos dedos escanifrados e rijos. Ela arregalou-lhe os olhos ansiosos, que ainda pareciam dois pássaros tontos quando a conheci, e não sabia se deveria rir, para o pnnocar, se romper em pranto, para o comover; mas, sentindo os vergões a queimarem-lhe a pele, gritou com raiva: "Bruto! Grande bruto!"
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Ele atirou-a para cima da cama, como se jogasse um rolheiro de feno para o coruto de um carro lezirão, e caiu-lhe de pronto nos ombros, disposto a desfazer sobre ela o arrependimento que começava a miná-lo. A rapariga, porém, hábil no trato com os homens, prendeu-lhe as mãos nos cabelos negros e chamou-lhe: "Ciganão!"
Manuel Pedro ainda ergueu o braço para lhe dar uma punhada, mas viu-a sorrir. E sorriu também, reparando nos seus olhos. "Tens uns olhos que parecem de fogo..."
Riram ambos com as bocas pregadas, até que o braço dele a foi apertando e os dedos ansiosos lhe tactearam a carne adormecida pela profissão.
"Larga-me! Está quieto!"
E foi dizendo sempre "está quieto, está quieto", mas a voz sumia-se-lhe no sangue já enternecido.
Manuel Pedro olhava o largo da vilória onde se refugiara, recordando esse primeiro dia daquela convivência que já o desesperava até ao ódio e que só não rompia para não ceder perante as ameaças do pai.
Gastara em pouco tempo o dinheiro que trazia, vendera a égua pigarça na feira da Azambuja - "as contas com o pai haviam de ser faladas!" - e já escrevera à mãe para lhe mandar "alguma coisa", pois queria voltar para casa; a resposta viera pronta, de mistura com lamúrias e ralhações, e ele pagara a hospedaria mais uma semana, acabando por continuar com a rapariga. Depois aparecera-lhe o irmão mais velho com a primeira proposta: "O velho está danado contigo; acha que fizeste uma desfeita à gente todos, mas diz que lhe leves a moça."
"Pra que quer ele a rapariga?"
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"Diz que a quer ver bem. E falar-lhe numas coisas... Acha que foi ela que te levou à cena e gostava de maquiá-la a cavalo-marinho."
Manuel Pedro sentiu-se ofendido no seu amor-próprio e deu-lhe para a bravata.
"Ele que venha cá buscá-la. Vocês ainda me julgam um menino de calção, mas enganam-se. Nunca mais volto pra casa. Estou farto do pai! Farta de o gramar!..."
O irmão ficou pensativo, fez saltar o mazantini na mão e disse, por fim, junto da janela do corredor: "Ainda te não cansaste?..." E com a sensualidade a bulir-lhe no sangue: "Que tal é a tipa?"
"Uma èguazinha", respondeu Manuel Pedro com malícia. "Nunca conheci uma mulher assim..."
"E não estás aborrecido?"
"Ainda não..."
"E nem te dá vontade de a mandares embora?"
O processo era velho entre os irmãos e o fugitivo percebeu a intenção daquelas palavras rituais.
"Desta vez acho que vai demorar... É duma meiguice! O pai dava-me cinco notas se eu lha quisesse passar. Mas a ele não a passo, nem que eu seja negro!"
Voltou o silêncio a meter-se entre eles. com os olhos fitos no cigarro que embrulhava, o outro fez a sua proposta. Manuel Pedro sorriu e foi bater à porta do quarto.
Uma voz preguiçosa respondeu de dentro. E ele gritou, para se mostrar autoritário: "Vem cá fora! Sim!... É o meu irmão..."
Ela apareceu estremunhada, a espreguiçar-se, em meneios de ancas e sorrisos provocantes.
O João deixara-lhe algum dinheiro e a combinação firmara-se; ele, porém, continuara com a rapariga, convencido de que mais tarde ou mais cedo tinha de se render; e, assim, queria relê-la, quanto tempo pudesse.
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"Em que estás a pensar?", perguntou-lhe a Condessa de cima da cama.
"E tu?..."
"Penso que o tempo das praias está a acabar e que preciso de voltar pra Lisboa. A minha vida não é aqui..."
"Quem é que te prende?... Eu não, com certeza. Se estás farta, eu não estou menos..."
"Não é o que tu pensas... Gostava que fosses comigo, Manel."
Ele ficou surpreso, fitando-a com desconfiança.
"Contigo como?!... E o dinheiro pra ir contigo?..."
"Em Lisboa nunca me falta dinheiro. Julgas que foi por isso que vim para aqui? Estás enganado!... Naquela noite deu-me graça o teu irmão com o chapéu do velho... Depois achei-te piada. E agora já é mais do que isso."
"Amor, talvez...", disse Manuel Pedro com cinismo.
Ela sorriu para o irritar, mas não conseguiu manter a atitude e puxou de um cigarro, voltando-lhe as costas.
"Achas que as mulheres como eu não podem ter amor?", disse, por fim, depois de um silêncio. "Podias vir comigo pra experimentar..."
"Não gosto de fazer experiências com o coração... De resto, o homem não larga a porta do quarto, e eu tenho de lhe pagar a conta."
"Falamos com ele, se quiseres."
"Não! A mim é que me compete tratar dessas coisas... Logo à noite, enquanto eu estiver a jantar, podes fazer a mala e sair..."
"Deixo-te saudades, ao menos?"
"Deixas! Algumas... O que eu sinto não t'interessa. A tua vida é em Lisboa... A minha não sei onde é nem como acaba."
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Um carro atravessava o largo ao passo de uma égua velha. Manuel Pedro lembrou-se da Galé e da sua vida na Lezíria.
"Quando vim para aqui contigo, arrependi-me no primeiro dia... Por pouco não te derreti à pancada. Foi o que me apeteceu... Arranjar um pretexto qualquer e cortar-te a chicote. Pôr-te nua e cortar-te a chicote."
Falava agora voltado para dentro do quarto, mas sem ser capaz de encarar a rapariga; percebia que, se o fizesse, teria de se deitar a seu lado, e talvez não a deixasse partir.
"Quando o meu irmão aqui veio... Lembras-te?!..."
"Lembro-me."
"Fizemos os dois uma combinação. Foi uma coisa pulha, mas ao pé deles eu não posso ser doutra maneira."
"Que combinaram vocês?...", perguntou a Condessa com carinho.
Ele teve uma gargalhada forçada, como se quisesse desculpar-se do que lhe ia dizer.
"Ficou assente que quando eu estivesse aborrecido de ti..."
"E estás?!..."
"Não me faças perguntas... Quando eu estivesse aborrecido, mandava-lhe dizer e ele vinha-te buscar."
"E se eu não quisesse?... Se mesmo por dinheiro eu não quisesse, que faziam vocês?..."
"Ias à força..."
Ela sorriu e perguntou-lhe: "Sou por acaso alguma égua?"
"És, sim! És uma eguazinha!...", juntou Manuel Pedro com ternura. "Mas não fui capaz de te aborrecer. Se me perguntares porquê, ainda não sei... Talvez um dia te consiga dizer."
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"Acabámos por gostar um do outro... E eu ainda gosto", retorquiu a Condessa. "Por isso te pedi para voltarmos juntos... Porque não vens comigo?"
Ele hesitou em confessar-lhe que só ficara com ela pela fama que a sua aventura lhe tinha dado entre os súcios da vida. Sabia que o seu nome ganhara aos demais e que os irmãos e o pai passariam a olhá-lo como seu igual. Mas só lhe disse com um tom magoado na voz grave: "Foram os teus olhos de fogo... Nunca te disseram que tinhas os olhos cor de lume?"
Manuel Pedro gostara daquela expressão logo da primeira vez que lhe ocorrera e repetia-a, sem saber ainda se para enganar a rapariga, se por entender que correspondia aos seus sentimentos.
"Talvez me dissessem, mas eu nunca ouvi", retorquiu a moça, contaminada por aquele romantismo canalha. "Gostava de te ter encontrado mais cedo... Assim nem sei... Apetece-me ficar contigo e fugir de ti... Ou levar-te..."
Também ela estava certa de que nos clubes nocturnos" a sua ausência fora falada. A Pilar devia ter relatado a noitada com os lavradores, talvez com ciúmes de não ter abalado com o Manuel Pedro. -Não pelo prazer dessa aventura já insípida, mas pelo cartaz que lhe podia dar quando voltasse.
"Se ao menos me fosse" ver a Lisboa... É tão perto!" Ele não respondeu, mas pensou que iria procurá-la sempre que pudesse. E talvez não... Ignorava se aquelas semanas lhe deixariam saudades, se um amargor de dias vãos, parados, no receio do pai e na coragem de lhe recusar as propostas.
"Que fazes tu, afinal?", perguntou a Condessa, levantando as saias até meio das coxas, sem esperar que ele respondesse à sua pergunta anterior.
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Ele encolheu os ombros com desprezo: "Ajudo o velho na lavoira..."
"E os teus irmãos?"
"Ajudam o velho na lavoira..."
"Dá muito trabalho, com certeza."
"Quem faz o trabalho é o pessoal."
"Então vocês só mandam..."
"Não! Quem manda são os capatazes e o abegão..."
"E o que fazem vocês?" E disse isto dando uma gargalhada rouca e abafada.
Manuel Pedro encarou-a com estranheza e foi até junto da cama para lhe perceber nos olhos a razão daquele riso estranho que o irritou.
"Pra que me estás a olhar dessa maneira?", perguntou a moça. E acenou-lhe a mão para insistir: "Senta-te aqui!..."
"Não!", respondeu-lhe Manuel Pedro com a voz cheia de ameaças.
"Que bicho te mordeu agora?..."
"Nenhum!"
E ocorreu-lhe aquela ideia estranha, talvez por se ter lembrado da Galé. Aproximou-se da rapariga, num passo forçadamente lento, puxou-lhe a alça da blusa vermelha e afastou-se outra vez para lhe fixar, à distância, o ombro nu.
"Se gostasses de mim, era aí que eu te marcava." E logo exaltado: "Marcava-te a fogo, como a gente faz ao gado... Aos bezerros e às poldras..."
"Aqui?...", perguntou a moça interessada. "E para
quê?
"Pra que esses tipos de Lisboa soubessem a quem pertencias..."
Ela ficou surpresa, como se o não entendesse, e teve medo do seu olhar duro.
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"Mas tu não és minha...", prosseguiu Manuel Pedro, num misto de raiva e de desespero, sacudindo as grades da cama de ferro.
"E se eu te disser que sim?...", sussurrou a rapariga.
Na vila contou-se que ele possuía uma marca com cabo de prata para assinalar todas as mulheres que o amassem. E que obrigara aquela a ceder pela brutalidade, gravando-lhe a fogo, no ombro, o M do seu primeiro nome.
O povo exagerava na sua imaginação.
Ele marcou-a, mas foi ela que segurou a alça da blusa vermelha para que a mão dele não tremesse. O M é que ficou um pouco torto, porque Manuel Pedro fazia mal a primeira letra do seu nome.
Também eles marcaram mulheres. E essas foram obrigadas ao suplício.
Eu vi a marca deles no pulso de Hélène Langevin, a filha do Professor Paul Langevin.
E nem assim mataram a esperança...
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O cavaleiro que traiu o apocalipse
muito mais tarde, quando a vila se cansou dos seus desvarios com mulheres, é que alguém lhe descobriu aquela mancha permanente de tristeza no fundo do olhar, lá bem no fundo, na raiz do coração, que todos julgavam empedernido. E, apesar de se lhe não apontar uma brutalidade, o vulgo tomava-o pela mesma bitola, desconhecendo que era parceiro de zaragatas tempestuosas mais por solidariedade para com o irmão morgado, ou por achega de vinho, do que por seu temperamento brigão.
Alfeiro por saias, isso sim, como nenhum outro da família. Nem o pai, com a sua imaginação, lhe tomava a dianteira nessas pequenas aventuras sem glória.
A presença de uma mulher empolgava-o até à demência.
Cobiçava-as com os olhos angustiados, que pareciam tornar-se salientes do seu rosto trigueiro. Talvez por isso mesmo, nunca lhe descobriram a tal névoa de pranto contido, que os molhava de um brilho semelhante ao da volúpia. Devia fasciná-las, por certo, tanto pelo olhar como pelas suas mãos traquinas, que eram longas e secas, mas vibrantes como um canavial ou como dois búzios a sussurrar
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bravezas. Mãos estranhas que se soltavam dos seus braços um pouco bambos e iam colher, em afagos, os pomos dos seios, a curva da nuca, onde os dedos se entretinham, como nas cordas de um violino, ou a linha das pernas firmes, que ele tocava até às ancas, talvez porque julgasse moldá-las ao sabor da sua fantasia.
E as mulheres aproximavam-se-lhe com tanta candura, confiadas e sem pecado, que, quando as apertava, num arrebatamento, pareciam assustar-se, só então, como se nada entendessem do que se passara. Mas não lhe fugiam. Ficavam pequeninas entre os seus braços, muito quietas, querendo ocultar-se do que lhes fizera medo. E depois riam com lágrimas nos olhos; e fios de música nasciam-lhes na voz mimalha, enquanto um fogaréu lhes queimava o sangue.
Não vou contar-lhes as suas aventuras com mulheres, para que este livro não ande por aí às ocultas e todos o queiram ler. Tanto mais que a traição que ele fez ao pai não teve essa origem. O Manuel Pedro, sim; esse levou-lhe a "èguazinha" e marcou-a a fogo no ombro, como se naquele gesto impedisse os outros homens de a possuírem. E talvez não gostasse dela.
José Luís, ao contrário, nunca pôde abeirar-se de raparigas que não desejasse até ao desvairamento. Podia esquecê-las depressa, mas adorava-as quando as prendia.
Por isso mesmo deixo a cada um de vocês a liberdade de imaginar as suas aventuras. Peço, porém, tanto aos homens como às mulheres, que só recordem os momentos maravilhosos que o amor lhes tenha dado, escolhendo de entre aqueles que ainda agora trazem ansiedades ao langue, mesmo que sejam pecaminosos, e tenham de os guardar no fundo do coração, para que ninguém os roube ou amesquinhe com ciúmes.
José Luís, no amor, bem merece que lhe ponham aos pés as mais belas histórias que cada um de vós viveu.
E agora, que as confidências se fizeram e- todos estamos mais próximos uns dos outros, deixem-me dizer-lhes que a sua primeira história de amor foi uma história banal, embora para o José Luís tivesse o deslumbramento de uma aventura sem par.
Andava ele pelos treze anos e iniciara a passagem desse abismo, atraente e medonho ao mesmo tempo, que é a transição da meninice para o homem que já ali está presente e ainda se não conhece. Pequena fera à solta, vivendo em terríveis sobressaltos uma crise que lhe dói, tanto a criança reponta para desafiar o mundo com gritos selvagens, violências desabridas e heroísmos fúteis, como no mesmo instante, sem transição, o homem surge em coruchéus que galgam o resto e deixam o jovem silencioso, a viver o drama desse enigma que parece atemorizá-lo até à cobardia.
Mas já que este é um livro das coisas simples da vida de todos os dias, sempre lhes you contar essa história banal, que deu a alcunha de Pai-Menino ao segundo filho do patrão Augusto.
Numa família de bons calções, em que se vangloriava o assinar de cruz ou o mal desenhar do nome, mas onde nunca coubera perdão para os que temiam um cavalo selvagem, José Luís era a sela mais firme e a mão de rédea mais sábia, segundo o pai dizia. E o patrão Augusto gabava-se da sua arte de bem cavalgar. Mas aquele filho falava aos ginetes uma linguagem que, por certo, eles deviam entender à maravilha, pois as suas esporas não usavam rosetas e nunca houve montada que o desfeiteasse. Ele e o corcel eram uma só peça, toda harmonia e garbo,
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como se a vaidade estulta de todos os cavaleiros da Borda-d'Água se tivesse recolhido naquele rapaz.
Sempre de cavalo ajaezado a rigor, nunca se lhe vendo mistura de estilo andaluz com o alentejano ou o ribatejano, ele foi herói de uma espera, em que na ponta do pampilho levou sozinho, até à praça, um toirão de cinco anos, assalganhado de pêlo, e que acabara de matar à comada uma égua de campino que se chegara demasiado ao seu testuz, numa afronta que o enfureceu. Atirados os foguetes, anunciando que o curro entrara na praça, veio José Luís, com o pai e o irmão mais velho, receber os aplausos que das janelas lhe não regateavam. Tocando a aba do mazantini, num agradecimento sóbrio, passearam a rua principal nos seus cavalos brancos, acompanhados por uma matula de pé descalço e maltrapilha, que mais realçava as atitudes pamparretas dos três cavaleiros, como se fosse a peonagem de uma valentia pífia.
De uma janela, porém, toda engalanada com xales andaluzes, é que a apoteose surgiu, não só no entusiasmo das ovações quentes de um grupo de raparigas, como na rosa vermelha que uma arrancou dos cabelos, atirando-a sobre o cavaleiro, depois de a levar aos lábios. Patrão Augusto descobriu-se, emocionado, de braço aberto numa contumélia rasgada, e quando fez o cavalo ajoelhar à frente do varandim já o filho mais velho o imitava, pondo-se-lhe à ilharga, enquanto um moceco lhes estendia a flor na mão encascada de sujidade.
"Para o outro!...", gritou, vibrante, a rapariga que tivera o gesto arrebatado. E apontava, sorrindo e acenando com as duas mãos, para José Luís, que ficara a distância, de cabeça baixa, como se a emoção lhe pesasse no olhar. Lívido, o pai fez-lhe sinal para se aproximar com a rosa e agradecer também aquela homenagem, que desejara para si num momento exaltado.
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José Luís obedeceu e teve um daqueles repentes impensados que eram apanágio da sua gente: beijou a rosa também e atirou-a para um grupo de varinas que o olhavam, dando logo de esporas ao cavalo, para desaparecer entre o povoléu apatetado pelo imprevisto da cena.
Ainda mal tivera tempo de desmontar, recomendando ao criado que lhe tratasse do Leviano como ele merecia, já o pai lhe aparecia à porta da cocheira a chamá-lo num arremesso de mau humor.
"Quando falar comigo tire o chapéu..."
José Luís obedeceu, continuando com o olhar desviado.
"E olhe pra mim..."
"Estou a olhar..."
"Sabe que fez má figura depois de se portar como um homem?... Sabe ou não?!..."
José Luís respondeu num movimento frouxo de cabeça.
"Não tem boca?..."
"Tenho, sim senhor, meu pai... Mas acho que não fiz má figura."
"Não me contrarie." E resvalou-lhe um olhar de ternura. "Quando aquela fidalga lhe atirou com a rosa, vosemecê devia pôr-se debaixo da janela e pedir para lha levar. Ela não se negava a recebê-lo." como o rapaz parecia distraído, alteou a voz: "Entende?!..."
"Sim, senhor!"
"Lá em cima devia beijar-lhe a mão e oferecer-se para lhe mostrar as nossas manadas... Ela podia dizer-lhe que sim... Sabe que uma fidalga é a mulher que o merece para esposa?..."
"Não, pai..."
"Pois fique sabendo... Mas nunca..." -e a voz tornou-se-lhe áspera "...nunca devia atirar com a rosa
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de ma fidalga para um rebanho de varinas... Não é que entre as varinas não haja belas raparigas", juntou depois noutro tom. "Mas há oportunidades que se não repetem... Percebe ?!..."
"Não percebi muito bem."
"és estúpido, não admira. O teu irmão mais novo seria capaz de compreender tudo antes de eu lho dizer."
Como o pai se calasse, saltando do selim, José Luís perguntou se podia sair.
"Ainda não... Já agora sempre lhe quero dizer que hoje mostrou ser um grande calção e ter sangue-frio. Acho que pode dar um bom cavaleiro tauromáquico..." E pondo-lhe a mão no ombro para fazerem as pazes: "E eu gostava que o fosse..."
Tirou meia libra da jaqueta e ofereceu-lha. "Gasta-a como quiseres. A partir de hoje és um homem... Sabes o que é preciso para ser um homem?"
"Sei, sim, senhor", respondeu José Luís com uma onda de fogo no rosto.
"Então, se já sabes, não me deixes ficar mal... Se quiseres algum conselho, não tenhas vergonha. Eu cá estou..."
Quando o rapaz partiu, o patrão Augusto veio vê-lo ao portão do pátio e ali ficou, até que ele desapareceu na esquina da betesga que desembocava no Bairro das Virtudes.
João Roaz voltava também para o pátio e o irmão contou-lhe, nervoso, o que se passara.
"Mas no fim deu-me uma nota e disse que a partir de ~ hoje já era homem. E se eu sabia o que era ser homem..."
"Raparigas não faltam", respondeu o outro.
"Queres vir comigo?..."
"Pois claro que sim... Um homem é um homem!..."
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José Luís esperou que ele voltasse com os dois cavalos pezenhos que um conde qualquer deixara para o pai vender, e ambos foram para a feira passear o dinheiro e a vaidade. Andaram todo o dia por lá, a dar tiros pelas barracas e a beber copos nas tabernas de bancos corridos. João Roaz perdera a tineta com uma mulherona da barraca que dava prémios para quem não falhasse um alvo; mas José Luís não se decidira, embora o vinho lhe virasse a cabeça, como a roda dos cavalinhos que uma gaita de foles acompanhava de uma música fastienta.
"Vamos embora, João!"
"Gaita, que és sarna!... Vai lá para onde quiseres, que eu tenho de esperar que esta gaja possa sair... É um pedaço, não é, Zé Luís?" E piscava o olho para a mulheraça, com ganas de a arrancar do balcão.
O rapazola partiu enfastiado, mas deu dois passos e encontrou a Florinda com duas companheiras.
"Foi esta que lhe agarrou a rosa..." E as outras apontavam-na com garridice, enquanto a moça se encolhia por detrás delas, não sei se por ser vergonhosa, se por gostar de o parecer. A verdade é que daí a pouco ele passeava à sua ilharga, embora nesse tempo nunca rapazes da vila tivessem namorado varinas. José Luís também não a namorou. Gostaram um do outro sem palavras.
Meteram-se num aperto ao pé do circo e foram obrigados a ficar presos naquela massa de gente.
Ela, mais baixa, teve de se aconchegar entre os seus braços para não ser esmagada; ele, ainda sem maldade, tocou-lhe os seios duros e ali deixou as mãos, talvez para evitar que ela ferisse alguém com aquelas pedras agressivas. Depois comprou-lhe queijadas, refastelaram-se com seis tiras de gergelim, ofereceu-lhe uma cigana de barro para ela pôr na cómoda e foram esconder-se da varinagem, que já os espiava.
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E, no escuro, nem um beijo deram.
Mas ela habituou-se às suas carícias e, quando ia à fonte, deixava a bilha a encher e ia procurá-lo ao sítio combinado, lá longe, ao pé dos Três Caminhos.
E numa noite de luar, com a Primavera a escorrer de mansinho pelas abas dos montes, sentaram-se no chão, lado a lado, e ele voltou a achar que a Florinda tinha o peito rijo. E modelou-lhe o corpo com as mãos crespas de uma febre deliciosa.
Foi por isso que quando o filho nasceu à Florinda lhe puseram a alcunha de Pai-Menino, tão novinho o acharam.
Antes de lhes falar naquilo que o patrão Augusto considerou uma traição à família, devo confessar que no Pai-Menino havia um defeito grave, se defeito podemos chamar ao seu desejo de vingança, sendo ela, ao que se diz, um prazer dos deuses. Feia acção, imprópria de alma limpa, ou recompensa por direito divino, a verdade é que José Luís mostrou-se vingativo por mais de uma vez. E não isso somente, o que já bastaria: mas deixava de reserva num ecalque doentio, para não mais esquecer, os que lhe pregassem partida por ele considerada de agravo. De certa vez. pelo menos, a vila achou-lhe graça, sem perceber que ali havia desforra.
Mesmo ao pé do pátio onde o patrão Augusto tinha a abegoaria e a cocheira morava um campónio de belas suíças, pai de uma moça que mais tarde enfeitiçou o João Roaz, o que agora não vem para a história. O homem era senhor de um ar lavado, e não só por feitio, mas talvez por bem ganhar a vida a vender criação e ovos na praça de Vila Franca, andava sempre de carinha na água para se meter com o José Luís e ouvir-lhe as respostas na sua língua patarata, de garoto tardo na fala.
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"Diz lá ao teu pai se quer trocar os pencos que tem na cocheira por um coelho dos meus."
O garoto relanceava-lhe um olhar cheio de ódio e desprezo e não dava resposta, tanta coisa lhe ocorria em gestos e palavras para retorquir. O João do BuLhaco insistia nos remoques e, desvairado, José Luís respondia-lhe com um gesto repetido nos braços cruzados.
"Ah, meu malandro, que te agarro e te corto uma coisa que aí tens..."
O rapazito abalava a correr e metia-se no portão, de onde só saía acompanhado do pai ou do eguariço da vila. E o campónio lá continuava com as ameaças disfarçadas. Mas José Luís tanto remoeu naquilo, e tão bem ensaiou a resposta, que um dia se foi pôr quase à porta do outro à espera da provocação habitual. E não tardou a graça: "Então sempre queres trocar esses pencos lázaros por um coelho dos meus?"
"Não senhor...", disse o mocito lívido de raiva.
"E porquê?!"
A escapulir-se, em passadas manhosas, José Luís ganhou terreno e só então respondeu: "Vossemecê furava-os
com os cornos..."
E deu uma corrida para a viela, procurando o refúgio do pátio; o campónio, porém, agarrou-o em dois saltos, e logo se ouviu uma berrata de espantar um bando de patos. Quem desse por aquilo julgaria que o João do Bulhaco se propunha sangrá-lo, quando só lhe desabotoava a breguilha dos calções, pondo à mostra o pequenino sexo, que fingia arrancar com o canivete da poda. E só o largou quando, num arremesso, fingiu deitar para cima de um telhado a bolota do José Luís.
"Agora os gatos que to comam, meu malandro!"
Desvairado, José Luís fez-lhe frente com todos os nomes que o pai e o irmão mais velho lhe tinham ensinado,
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e só depois voltou ao choro tempestuoso dos primeiros momentos.
A graça correu a vila; e quem o queria ver encabulado era dizer-lhe que, "se não tivesse juízo, o João do Bulhaco viria capá-lo com o canivete".
Passaram anos, riram os dois mais de uma vez com a invocação, até que um dia chegou a hora que o Pai-Menino esperava com paciência de esquimó.
Foi ali mesmo, na praça do candeeiro fenómeno, que se consumou a vingança; e a verdade é que a vila riu do João Bulhaco como poucas vezes o fizera de alguém.
Num lampejo igual ao do arremesso da rosa no dia da espera de toiros, José Luís, mal viu o campónio com um cesto de ovos, a caminho da estação, concebeu toda a desforra de ponta a ponta. E parecia distraído, a conversar com o irmão e o Beiças, um furioso pela arte de bandarilheiro, onde só conseguia êxito nos boléus que apanhava - e que não eram poucos.
"Viva, João! Essa saúde?..."
Disse aquilo com o seu melhor sorriso, a sua cara de simpaticão toda aberta em franqueza.
"Graças a Deus, menino Zé."
"Vendes os ovos?"
"E o menino compra-os?"
"Se tu os vendes... Preciso de umas dúzias para uma oferta; ainda hoje estive pra te procurar, mas levantei-me tarde..."
"Alguma brincadeira de saias, com certeza. Também, quando morrer, leva a barriga cheia..."
"Salvo seja, João!"
E acamaradaram na risota.
"Sempre queres vender?..."
"Poupava a viagem até Vila Franca..."
"Quantas dúzias levas aí?"
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"Três certas..."
"Estás doido! Três dúzias o quê! Faz a conta a duas e fechamos o negócio."
"Ó menino! Pla luz dos meus olhos, que eu não veja mais a filha, se não estão aqui três dúzias bem contadas."
"Tem paciência, João, mas desta vez não t'acredito. Mas como preciso dos ovos, põe lá o cesto no chão e faz aí cama nos braços, que eu sempre vou contá-los... Já agora quero ver a cara que fazes quando te provar que me querias enganar..."
"Ó menino Zé!..."
E já o Pai-Menino se pusera a tirar os ovos da cesta, um a um, com todas as cautelas, pois para aquietar o campónio propusera-se pagar-lhe algum que caísse durante a contagem.
"Sete, oito, nove..."
Atraçalhado com a mercadoria, João do Bulhaco quase nem respirava, para que tudo corresse bem.
"Olhe que não me cabem todos nos braços, menino Zé!..."
"Não é preciso, homem de Deus. Quando chegar a meio, conto o resto no cesto, e acabou-se."
Sem lhe perceberem a intenção, os outros dois companheiros de conversa aproximaram-se. E só lhe viram o rosto num sorriso de maroteira, enquanto paulatinamente contava a terceira meia dúzia.
"Dezoito, não é, João?"
"O menino não contou?..." Disse o campónio para o Rapaz.
Quando, porém, viu o outro deixar a contagem e pôr-se a desabotoar-lhe a carcela da calça de cotim, o João do Bulhaco ficou aturdido, sem atinar as razões da operação.
"Ó menino!... Mas que diabo!..."
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Foi então que lhe viu o rosto malandro.
"Lembras-te, João?... Lembras-te bem daquela amostra que me fizeste quando eu não me podia defender?..."
"Ó menino Zé Luís! Na me faça uma dessas!... Olhe que eu fico com a minha cara preta de vergonha..."
E quando a amostra ficou completa e o campónio hesitava entre o partir os seus ricos ovos - "dúzia e meia, com seiscentos demónios!" - e o compor-se aos olhos de quem passava, José Luís pegou no irmão e no Beiças pelo braço e levou-os para o canto da praça, como se nada fora com ele. Voltando-se para o candeeiro, o campónio ocultava-se e ia-lhe gritando, em voz lamurienta: "Ó menino Zé! Pra brincadeira já basta!... Menino Zé!..."
E quanto mais pedia mais gente se lhe juntava à volta, num coro de gargalhadas que encheu a vila em pouco tempo.
Do João do Bulhaco vingou-se o destino, segundo ele próprio disse quando soube do sucedido na praça de Loures, e que o patrão Augusto considerou a traição do filho ao sangue da família.
E era justa a vergonha do Lavrador das Moças.
Durante dois anos o José Luís andou a preparar aquela égua de sangue azul, como o pai lhe chamava, para as sortes do toureio a cavalo. O animal nascera para as arenas e vencera todos os receios da sua espécie, mostrando-se dócil de boca como um pássaro. Todos os dias picadeiro, monta e desmonta, toca a ladear, vá de dar meias voltas rápidas nos quartos traseiros, e galopes rápidos encadeados em paragens bruscas, numa arte de desafio e negaça que se apurava de hora a hora.
Para as cortesias havia um cavalo mais aberto de formas, um neto ou bisneto do Kébir, alazao-queimado, todo vaidades como o avô, o que convinha ao espectáculo. Mas
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para o combate lá estava a Andorinha, um animal negro como a noite, que uma malha branca estrelava na cabeça graciosa. A vila inteira já a conhecia, não só por a ver passar na volta matinal com o Pai-Menino, mas pelos elogios que o patrão Augusto lhe fazia, onde quer que desse dois dedos de conversa. "Só me falta ver como se porta à frente dos toiros... Tenho a certeza de que é corajosa. Nem que me dessem um saco de libras a vendia. O Morgado..."
E alardeava uma proposta principesca que lhe haviam feito na feira de São Martinho, onde a sua égua ganhara as lampas a quantas por lá se tinham passeado. "Vinte libras ofereceu-me o Cigano de Évora, e eu disse-lhe: - O peso do templo de Diana em libras de cavalinho, valeu ? - Ele riu-se, mas arrenegou-me com olhos de inveja. O meu Zé Luís é o único cavaleiro digno daquele bicho. O rapaz tem pinta toureira em tudo o que faz... Cita com uma graça e uma arrogância!..."
Para o ouvirem, falavam-lhe da sua aventura em Sevilha com a filha do ganadero andaluz. E, num instante, ele esquecia a andorinha para retocar aquela história, que melhorava sempre, embora já fosse outra bem diferente da que primeiro relatara. E dizia como empolgara a rapariga, "una muchacha bella como la Giralda".
"Depois galguei do cavalo abaixo e aproximei-me do toiro com a capa aberta. Que par de agulhas!... Passo a passo, citava-o com o trapo e o bicho alegrava-se. - Eh toiro! - Ele então arremeteu. Juntei os pés, ergui o peito, levando-o na ponta da capa, como se lhe desse a cheirar um ramo de cravos. Passou tão rente que lhe senti o bafo na barriga... - Olé!-gritaram todos. Quando voltou, o toiro espumava de raiva. Mas nessa altura eu era um rapaz e o medo ficara-me no berço. Uma verónica para rematar e ainda outra meia, tão cingida, que uma parte
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da jaqueta foi nas navalhas do toiro. Saí do tentadero aos ombros da rapaziada - 'de los muchachos', como dizem em Espanha."
E então vinham os cumprimentos do Duque e a paixão da filha.
Sabia bem ouvir o patrão Augusto naqueles desmandos de imaginação, em que o rapto se consumara na Semana Santa, quando a espanhola devia ser pedida em casamento por um diplomata inglês apaixonado.
Falei nisto só para que todos compreendam as razões do Lavrador das Moças ao dizer que o filho o traíra. Sim, ele teve razões de sobejo para o castigar, pois nunca mais falou da sua aventura andaluza. E a vila perdeu com isso também.
Em duas ou três garraiadas o Zé Luís portara-se à altura e a Andorinha não desmerecera das fanfarronadas do dono. Este largou tudo para passar os dias em Lisboa, nos meios taurinos, agenciando contratos para o filho. Queria vê-lo chegar depressa às arenas principais, e a sua carteira, sempre forreta, abria-se à larga para pagar rodadas de cerveja. Ofereceu jantaradas a críticos e a empresários, contratou o melhor peão de brega da época e vendeu uma parelha de éguas para fazer frente às despesas com a farpela de seda e os arreios das cortesias. Esbanjava dinheiro que nem um príncipe, antegozando o prazer de encontrar o nome do filho nos cartazes e nos relatos das corridas.
Até que um dia lhe ofereceram a grande oportunidade. Havia festa grande em Loures e a comissão queria fazer uma toirada de arromba, com dez toiros, dez, dois cavaleiros, dois, bandarilheiros e capinhas, e um valente grupo de forcados, que até fazia a casa da guarda. E duas bandas de música, duas, fora o nome dos andarilhos e dos carecas que abriram as portas dos curros, pois, se trabalhavam
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de graça, era justo que o nome de todos viesse no prospecto.'
Duas semanas antes já o patrão Augusto andava a mostrar o programa, que mandara imprimir a seda amarela e tencionava fazer emoldurar para pôr na sala de visitas.
O entusiasmo desses dias, que nunca mais passavam, lentos como semanas de cadeia, só quem o visse poderia percebê-lo. E a despesa crescia sempre com o conserto dos arreios para o breque, farpelas novas à ribatejana para ele e para os outros dois filhos e uma mão-cheia de bilhetes para a criadagem e os amigos, fora os empenhos para que os críticos dos jornais de Lisboa fossem a Loures ver a apresentação oficial do seu rapaz.
Mas a hora chegou.
Casa à cunha, um sol glorioso, com ordem de fazer despir casacos, e, finalmente, uma das fanfarras a tocar uma marcha cheia de perfume andaluz, quando a porta grande se abriu e os dois cavaleiros, dois, surgiram com os penachos brancos dos cavalos a romper praça. Um nadinha pálido - era natural a emoção -, lá vinho o Zé Luís na sua casaca verde, bordada a oiro, fita negra também de seda, junto ao cabelo empastado de brilhantina, calção de tecido elástico a desenhar-lhe as coxas fortes e o tricórnio emplumado de arminho, em cumprimentos pimpões. E de crina e cabos entrançados a seda verde e preta, garupa coberta por manto curto, todo em relevos que pareciam de prata, o bisneto do Kébir, mais vaidoso do que o cavaleiro, embalados um e outro pelos aplausos sem fim da saloiada que enchia os lugares de sol.
E quando, às recuas, os dois cavaleiros, dois, regressaram à porta grande, a comissão da festa gabava-se de ter "feito toirada digna de Lisboa" e o patrão Augusto enxugava os olhos, de comoção e orgulho, tão senhor de
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si se mostrara o filho, que já não havia dúvidas da sua primeira tarde de glória.
Depois foi o toque de clarim, o capinha a atravessar a arena de farpa na mão e a saída dominadora da Andorinha, engalanada a vermelho e amarelo, enquanto o cavaleiro se aconchegava no selim de tourear e acenava a cabeça para o pai, que o aplaudia de pé com os irmãos.
"Bem montado, sim senhor", diziam os entendidos, vendo passar a égua numa meia volta para experimentar o piso.
Fez-se silêncio.
Frente ao curro, hirto sobre a sela e de mão firme com a garrocha para castigar o bicho, Zé Luís deu o sinal ao senhor inteligente. E logo o clarim se ouviu, pondo os carecas a dar punhadas nas portas do curral, até que um toiraço de morrilho almofadado rasgou a praça com os cornos em riste.
Tremeu a mão do cavaleiro por uma lufada de gelo que lhe correu a espinha. O peão de brega deu dois capotazos, que fixaram o toiro no meio da arena. Imponente de arrobagem, o bicho mexia a cabeça mas não bulia o corpo, olhando a égua e o cavaleiro, como a perguntar-lhes: "O que vieram cá fazer?"
De largo, e a passo cauteloso, Zé Luís roçava a trincheira de farpa erguida: "Eh toiro bonito!"
"Vai-te a ele!", gritou um bêbedo da galeria. Responderam-lhe duas vozes com um "cala a boca, bruto!" E quando o cavaleiro meteu a égua, numa galopada, pelos quartos traseiros do toirão, e este se moveu, pressentido, mas pouco disposto a arrancar com tamanha distância, Zé Luís, dominando os nervos, chegou-se à inteligência, tirou o tricórnio emplumado e fez um pedido, a que o outro acedeu com uma reverência e uma chapelada. O
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peão de brega percebeu o cerimonial e citou o bicho, para o arrancar, a capote, do meio da praça.
"Vai mudar de cavalo", disseram os entendidos.
Roendo as unhas, o patrão Augusto é que não entendia o que o filho pedira. E montada e cavaleiro desapareceram pela porta grande, enquanto a banda, a pedido da matula do sol, abria com outra marcha, para fazer ver aos da fanfarra de Alverca como se tocava uma espanholada.
Olho na praça, donde chegava o som dos metais dos instrumentos e o barulho terrível da multidão, olho na saída, donde lhe acenava a liberdade, Zé Luís pediu ao moço que lhe abrisse a porta da rua, "pois precisava de dar uma voltita para habituar a égua". E, mal ouviu os fechos correrem-se sobre ele, abalou num galope infernal pela estrada poeirenta, a caminho da terra, como se o toiro o perseguisse ou toda aquela gente lhe fizesse montaria para o assassinar, sem piedade.
Casaca verde e oiro a adejar com a carreira, tricórnio metido até às orelhas, espantaram-se os campónios de caminhos e atalhos por onde a fuga se fez, julgando verem o Diabo fardado de marialva por aquelas bandas, o que em certa aldeia lhe valeu uma corrida à pedra.
Na praça de Loures, entre risos e assobiadelas de fazer medo a um lobo, o outro cavaleiro, sempre com o olho na arena, não fosse o bicho galgar a trincheira, explicava, um nadinha gago, que, se o programa trazia dois cavaleiros, dois, e o primeiro toiro saíra para o colega, ele seria incapaz de cometer a deslealdade de farpear o animal sem autorização do Zé Luís.
Esmagado por uma síncope de vergonha, o patrão Augusto abandonava a barreira da sombra nos braços dos outros dois filhos e dos amigos, enquanto o toiro, esquecido
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na praça e com saudades das pastagens, escarvava o chão sem entender aquela algazarra.
E, aborrecido, acabou por se deitar na arena, na esperança vã de lhe levarem uma medida de ração.
Na nossa vila, durante algum tempo, quando Zé Luís, findo o cativeiro imposto pelo pai, aparecia com aquela mancha de tristeza no fundo do olhar, era vulgar a malandragem gritar-lhe das esquinas: "Ó Pai-Menino, vai mudar de cavalo!"
com o desprezo da família e a mofa do povo, Zé Luís sumiu-se um dia, sem dizer o seu destino.
Só mais tarde se soube que era ele quem recortava e gravava, em lâminas de prata, os maravilhosos cavalos de toureio vendidos pelas ourivesarias de Lisboa. Os cavalos e as varinas, cuja linha de corpo ele trazia decorada nas suas mãos ansiosas e magras, de tanto afagar o da Florinda, que era mãe do seu filho.
O
segundo animal da lenda
"E o primeiro animal era semelhante a um leão, e o segundo animal semelhante a um novilho, e o terceiro tinha o aspecto como de homem, e o quarto animal era semelhante a uma águia voando.'"
(Apocalipse de S. João Apóstolo).
tão altivo como o patrão Augusto, que seria o leão, o filho mais velho, João de nome e Roaz de alcunha, por seu feitio turbulento e destruidor, era na família o novilho da lenda bíblica.
Grandalhão e seco, mas de ombros largos e mãos possantes, temperou os músculos, de muito novato, em derribas, ferras e tentas, cujo calendário sabia de cor. Abonitado, talvez só pelos olhos expressivos, tinha o coração muito ao pé da boca, como diz o povo; e daí o andar sempre metido em arioscas, pois depressa tomava partido e com que decisão! - em conversas e disputas ocorridas à sua beira, mesmo que os adversários fossem de águas mansas. Ele se encarregava de lhes chegar o fogo ao rabo, pondo-os que nem fogueies a amarinhar. E no dize tu, direi eu, aí estava o João Roaz engalfinhado por conta alheia, baralhando razões e contendores, que muitas
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vezes se punham de acordo para o malharem a preceito, tão intrometido e provocador se mostrava. A avó materna, uma saloia que viera de moça para a Borda-de'Água, dizia que "o corpo lhe andava sempre a pedir chuva". Mas nem a arnica nem a moinha das lombeiras o emendavam de meter a colherada onde não era chamado.
Assim que descansava as mãos nas ancas, depois de atirar um piparote ao chapéu mazantini, e começava a mover os pés, como se estivesse preparado para bater um fandango, já se sabia que não tardava o seu tradicional "se fosse comigo", um pouquinho gaguejado e de boca arrepanhada ao lado esquerdo; e logo de seguida, sem mais paleio, um desabar de punhadas e pontapés, a que na vila chamavam os seus "chorrilhos".
A fama daquela valentia desbotara sete léguas ao redor e ele aceitara-lhe as consequências, nunca voltando a cara ao mais pintado.
No tempo em que era de uso os homens trazerem, debaixo do gabão ou da capa alentejana, uma pequena moca presa ao pulso, e a que se dava o nome acolhedor de "boas-noites", o João Roaz fez frente, sozinho, à púrria dos Laurentinos, que eram pegadores de toiros. E se ele ficou metido em panos de vinagre durante quinze dias, os outros tiveram que contar na botica do Elisiário, onde a patrulha da Guarda os levou para reparações.
A rixa nasceu de um remoque que o Roaz gritou na praça de toiros, quando o grupo de homens da unha foi desfeiteado por um bicho magro e feizão, com cornos de vaca: "Olhem que ele marra! Isso não é um toiro, é um cabrito!"
A graçola, mais para meter conversa com uma dama que estava na barreira da sombra, do que para diminuir os forcados, foi ouvida pelo Laurentino mais velho, quando galgava a teia em busca de abrigo. E se o momento
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não era oportuno para despiques, pois a praça em peso assobiava-os, a desforra não tardou naquela noite em que o Roaz, já esquecido da pega frustrada, passou pelo bando e lhe deu a saudação.
"Boa noite aí!"
"Quem vai, vai, quem está, está!", respondeu o Bogas, que era barqueiro e especialista em cernelhas.
Ele pensou em não se dar por achado, prosseguindo no passeio, até arregimentar os irmãos e outros companheiros para a batalha; mas logo percebeu as consequências desastrosas dessa atitude. "Os outros iriam gabar-se da proeza e, na primeira altura, a provocação seria feita às escâncaras e à frente de quem calhasse. O pior é que deviam ser alguns cinco..."
Mais dois passos e voltou-se - "um homem é um homem e um bicho é um bicho...", pensou.
"Eu disse boa noite, ó Laurentino!"
Já tocados pelos copos, os outros rodearam-no em três saltos e foram-se a ele como gato a bofe. Valeram-lhe a moca e a intervenção da patrulha da Guarda para não ficar em carne picada.
É claro que a resposta do Roar, não se fez esperar, arrancando o rabejador do grupo, o Laurentino mais novo, a uma súcia que o acompanhava numa ferra. E logo ali, sem mais aquelas, lhe deitou os dentes a uma orelha, tasquinhando-lhe um pedaço, que exibiu como um trofeu.
Fatalidade ou mania, gostava de orelhas como os gatos de canários. E disse fatalidade, porque o foi, sem dúvida, o sucedido nessa noite de Natal em que se esvaiu em sangue à porta da taberna do Cartaxano. Sem fazer mal a ninguém...
Mas talvez valha a pena contar-lhes algumas façanhas desse seu feitio arruaceiro e também brincão, embora as suas brincadeiras fossem sempre de mão pesada.
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Deslumbrado pelas fitas de cmvboys, deu-lhe em se apurar no manejo de laços e em correrias a cavalo, ensaiando-se nas terras da Galé. O tempo tornou-o exímio, e ei-lo que chegou ao largo da estação para alardear habilidades.
João Roaz, montando uma égua baia, toda arpejos, mas gulosa de" distâncias, apareceu naquela tarde quente de Agosto quando a gandulagem se esbodegava pelas sombras, em sonecas ou partidas de chapa. Firme nos estribos, olhou a praça com sobranceria e fez um arremedo de alta escola, pondo a Esperta às upas.
Já a maltesaria reparara nele, sem lhe perceber a intenção, embora adivinhasse espectáculo. E os aplausos não lhe faltaram, como nas fitas do Duncan, quando o viram dar de esporas à égua, fazer meia volta rápida na embocadura da Rua Direita e atirar-se em carreira desenfreada, com o laço girando sobre a cabeça, para o soltar num golpe impecável e amarrá-lo bem ao corpo de uma bomba de gasolina, como se caçasse algum índio em terras do Texas. E ali ao vivo, com o entusiasmo da matula a contaminá-lo, laçou a bomba vezes sem conta, repetiu a façanha num moço de saco, que se prontificou a fugir à sua frente, e acabou por baldear um pobre campónio que, de cesta às costas, se dirigia à estação para tomar o comboio da tardinha. com a fruta que levava a rolar pelo chão e mal refeito do laço inesperado, o labrego levantou-se de pronto, enrolou a cinta preta que se lhe soltara dos quadris magros e, vendo-o de riso aberto pelo gozo do susto, correu para ele e quis atirá-lo da montada abaixo.
"Meu filho dum cabaz de cornos!", grunhiu o outro fora de si, puxando-lhe a perna.
E lá veio ao de cima aquela mania das orelhas, mal saltou do selim e pôs o campónio de costas com um ponta´pé
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nas partes. Caindo sobre o peito do labrego, agarrou-lhe nas orelhas e bateu-lhe com a nuca nas pedras da calçada do largo, até o largar sem tino. Depois, pimpão, galgou de um pulo para riba da égua e abalou, a passo, com a corda de laçar metida sob a perna, enquanto a matula despejava um caneco de água sobre o pobre homem, a pretexto de o acordar.
Aquelas exibições prosseguiram, com grande ajuntamento de povo e burgueses, até que a Guarda Republicana teve de instalar patrulha no largo, tantas queixas recebeu dos seus desatinos. O patrão Augusto, de acordo com o administrador, remiu tudo a dinheiro, o que fez de bom grado, pois a violência dos filhos servia-lhe o orgulho de se dizer descendente de fidalgos galegos, o que ninguém entendia, por toda a gente lhe conhecer o pai e o avô.
Também João Roaz não saberia explicar as razões da sua aversão pelas orelhas, a que desprezativamente dava o nome chocarreiro de "pegas de assador". Mas era uma tentação agarrá-las e premi-las, fincar-lhes as unhas nos lóbulos carnudos e sentir as cabeças oscilar sob o impulso das suas manápulas. E talvez para si nem sempre o significado desse gesto apetitoso quisesse exprimir o sublime desdém que lhe mereciam os adversários.
De certa vez, pelo menos, a sua intenção foi quase de ternura por um velho criado da casa.
Agastado com os seus desmandos na vila, o pai resolveu mandá-lo um tempo para casa de um tio, senhor de lavoira em terras de Mato Miranda, ricas de pão e de cortiça. Sorna nos primeiros dias, como a mostrar-se arrependido e digno de comiseração, João desdisse da alcunha. Dava o seu passeio a cavalo pela manhã, tirava o ponto à criadagem que ganhava jorna e, no resto do dia, depois de uma boa sesta, acompanhava o tio a jogar ao solo e à bisca de dois, com intervalos para lhe escutar queixas dos
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republicanos, "uns malandros que tinham ensinado o povo a perder o respeito aos amos". Miguelista dos quatro costados, o velho falava com ternura do Senhor Infante, recordando as suas arruaças pelo Ribatejo e o seu entusiasmo por toiros e campinos. Tudo caminhava pelo melhor entre eles quando os viços da juventude fizeram voltar o João Roaz para uma criadita que servia o velho e passou também a servi-lo. Lambareiro, como o pai, achou que a rapariga lhe sorria, em convite para liberdades; e em noite de calor bruto, todo bravezas no sangue, toca de lhe assaltar o quarto, enfiando-se pela janela.
Afoito com o silêncio, sentou-se na beira da cama para encetar carícias, quando viu aparecer-lhe, num salto brusco, e do lado da parede, a figura descomposta do velho miguelista, que não sabia se era de seu dever gritar-lhe ou enfiar os chinelos e levá-lo consigo. Querendo aparentar sangue-frio, João Roaz perguntou "se o senhor seu tio desejava que ele de manhã fosse passear a Cristalina" - a égua que o velho adorava por ser o animal mais gabado na feira da Piedade, em Santarém.
Embaraçado a princípio com o descaro do rapaz, mas logo refeito pela saída que a pergunta lhe ocorreu, o tio rosnou que "passeasse a égua quando lhe aprouvesse, mas que nunca mais o fosse procurar à casa de banho".
A sorrir, João Roaz dispôs-se a sair pela janela e, já de fora, não fosse o Dianho armá-las, lembrou ao tio "que tivesse cuidado ao sair da banheira..."
No dia seguinte o rapaz era despachado para a terra com uma carta elogiosa do lavrador para o cunhado, em que o velho garantia a completa regeneração do sobrinho. Chegado o comboio à estação anterior à que servia a nossa vila, João Roaz pespegou-se à janela para receber os ares pátrios, sôfrego por descobrir montes e quintas que conhecia à légua. Na via oposta outro comboio aguardava o
sinal de partida. Foi então que o Miguel Molhelhas, um velho criado da casa do patrão Augusto, descobriu o filho do amo; e, exuberante de alegria por voltar a vê-lo - andara com o moço ao colo e adorava-lhe o modo turbulento -, gritou-lhe, de braços abertos, da sua janela: "Ai o menino João!..."
Ressaibo do falhanço da véspera ou malvadez da índole, a verdade é que o Roaz agarrou a orelha do velho servo e só lha largou quando a marcha do comboio teve mais força do que ele. O caso meteu hospital e o Miguel Molhelhas ficou desasado do lado direito.
A burguesia da terra riu-se da graça e ainda hoje a conta, como se relatasse um feito da conquista de Ceuta. Mas o facto deu brado entre o povo, com consequência* para o João Roaz, que já comparei a um novilho.
Foi uma noite de Natal...
Não vale a pena tentar contar-lhes como o caso se passou, pois nunca houve quem fosse capaz de o fazer, nem mesmo no tribunal, quando o Tormenta, um velhorro encortiçado pelas brisas do Tejo, se sentou no banco dos réus.
O barqueiro estava junto do balcão a comer uns figos para pretexto de um copo de aguardente que mandara servir. João Roaz entrou com o seu ar valentaço e deu-lhe uma palmada no ombro: "Boa noite, ó Tormenta!"; logo depois - maldita tentação -, os dedos subiram para a orelha do velho e o contacto não passou de uma carícia. Toda a gente que por ali estava lhe ouviu depois o grito rouco e angustiado, enquanto se arrastava para a porta, com as duas mãos ferradas no ventre, e o sangue lhe marcava a incerteza dos passos.
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Aturdido, o Tormenta, de navalha em punho, só disse: "Estou desgraçado!"
E no tribunal afirmou ao juiz que tivera medo do Koaz.
A Justiça não o acreditou e deu-lhe vinte e oito anos na costa de África.
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Panorâmica (15)
ENTRE a garotada que vai passar as tardes e parte da noite ao clube dos pilhas, no passeio do largo da estação, há um fedelho que se distingue pela viveza. É o Mira-Olho, defeituoso duma vista, o que lhe deu a alcunha, e que anda numa dobadoira entre a batota ou as histórias e os trabalhos de que o encarregam.
Toca caixa no bando que anuncia as fitas do cinema, faz recados sem manha, mas também sem humildade, e imita com um talento notável os cavalos de cortesias dos ases de toureio. E é com estas exibições que agencia a melhor parte do dinheiro para a avó com quem vive e para os cigarros que fuma gulosamente, como um homem viciado.
Há grupos que se juntam no largo para o ver de mãos no chão, a mover-se em apuros de palafrém afamado, num ritmo lento e certo, a que não falta o ondular das ancas e o lançar correcto dos membros. De vez em quando, a dar à cabeça como os cavalos vaidosos, o Mira-Olho relincha, espuma e prossegue o seu bailado, que uma fila de rapazes acompanha, a imitar uma banda de música.
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No fim, com os risos e aplausos, faz a recolha do dinheiro e corre a casa para entregar à avó, que teima em mandá-lo trabalhar para o campo.
Mira-Olho já andou na canastra, a acarretar terra para os cavalos, foi ajuda de um boieiro, deu água a valadores e acabou por largar a Lezíria sem saudades. A sua ambição é ser condutor de caminhetas. Por isso, sempre que pode, ninguém o arranca da garagem do Bochecha;!, que não tem crédito nem vergonha, mas que dispõe de influências nas altas esferas.
O Mira-Olho não gosta do homem, mas adora os carros. E presta-se a dar ajudas sem recompensa, só para saborear o prazer de olhar para os motores ou meter-se debaixo dos carros quando os motoristas vão lubrificá-lo. Depois aparece no largo com o rosto e as mãos sujas de óleo queimado, garantindo aos companheiros que o Bochechas já prometeu tirar-lhe a carta, mal ele cresça e possa chegar com os pés aos pedais.
"Quando fores homem já o Bochechas não tem carros", disse-lhe um moço de fretes. Mira-Olho encolheu os ombros com desdém e ficou na sua ambição. O Bochechas não lhe interessa...
Chamam-no da esquina e ele corre, arrancando a boina da cabeça, como se assim pudesse chegar mais depressa.
"O que é?"
"Tens aqui estes cartazes para ires colar."
E o homem entrega-lhe o caldeirão com a massa e <> pincel, a escada de madeira e o rolo dos cartazes. Mira-Olho encosta a escada à parede, poisa o caldeiro e desenrola um dos papéis.
"É bonito?", pergunta ainda antes de ver.
"Que t'interessa? diz-lhe o homem.
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"Gosto mais de colar cartazes que enrolar fitas."
E fica a olhar o papel litografado, 'num mover de cabeça de entendido, para depois voltar a enrolá-lo, pendurar a escada no ombro e abalar para a tarefa. Larga a assobiar e ginga-se com modos importantes.
O homem grita-lhe ainda: "Não te esqueças de pôr um no "café."
"Cá recebi o recado, mas não era pressa", responde, ofendido por uma indicação que vexa a sua prática daquele trabalho.
Não é ele, porventura, quem cola os cartazes das toiradas? Essa é boa!...
O cartaz a cores
MAIS absurdos do que o seu silêncio eram aqueles bigodes que já ninguém usava. Ele próprio não seria capaz de oferecer uma justificação lúcida, certamente pelo pudor de confessar que os copiara da fotografia de um lutador eslavo que viera disputar, ao Coliseu de Lisboa, um cinturão de oiro e pedras preciosas, segundo reclamavam os jornais para excitar os amadores.
Em homem tão débil, alcachinado como se trouxesse mochila, e sempre com um pigarro de tabaco a ressoar-lhe na estreita caixa do peito, a invocação seria ridícula pelo contraste. Mas pior ainda é que ele julgava reproduzi-lofielmente e acabara, com o andar dos anos, por fazer de uns bigodes imponentes, cultivados para exprimirem força e poder, um pobre piassaba espigado, que mal deixava adivinhar o traço indeciso duma boca murcha.
Quando as primeiras brancas apareceram, não se importou com as farripas da cabeça, mas deu-se em pintar os bigodes com esmero. E, talvez por ser incapaz de escolher a cor mais harmoniosa, deu-lhes o aspecto de fios curtos de sisal, borrados de alcatrão, como se trouxesse
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no rosto um estranho fumo de luto, por morle de qualquer coisa forçosamente estúpida.
Depois, com a idade, veio o desleixo ou só o esquecimento daquele requinte. E os bigodes tornaram-se em caixa de furta-cores, com manchas ruivas, como barbas de milho, fios brancos e loiros, laivos de preto-sujo, e um tom geral de pó de tijolo mal cozido, que parecia ser agora seu propósito torná-los em motivo de galhofa.
Não foi, porém, para lhes contar a história desses bigodes que o homem surgiu neste livro, quando o rapaz de pé descalço pegou nos cartazes de quatro cores.
Absurdo era também o seu silêncio, se soubermos que, durante muitos anos, fora uma espécie de máquina falante, a reproduzir todos os dias as anedotas e os ditos mais pícaros que a capital inventava para divertir o País. E embora nunca conseguisse ser um caixeiro viajante notável, exactamente porque contava mal as suas anedotas, ganhara a sua vida a falar e a abrir as malas das colecções pela província fora. Geniais, sim, eram o Aparício, da firma Ferreira, Matos e Irmão, Limitada, que sabia setenta anedotas só de papagaios, e o Pirinhos, um taco de homem que viajara com tecidos de lã por conta dos Armazén" de Lanifícios do Norte e que em histórias com espanholas e brasileiros punha a rir todos os mercadores de Portugal, fazendo sempre viagens rendosas.
Esses, quando chegavam às terras, eram anunciados com a mesma alegria dos cómicos dos circos ambulantes. E nas pensões e clubes juntavam-se grupos para os ouvir, levados pelo convite do fanqueiro, que guardava sempre boas encomendas para qualquer deles. - "Daqui por quinze dias vem o Aparício... O Pirinhos já tarda nesta viagem... Estará doente?" - E os rostos apodrecidos pela pasmaceira dos burgos ganhavam sorrisos de gozo.
Ele também preparava as suas anedotas, contando-a* sozinho, à frente do espelho, como se fosse um momo a preparar o espectáculo; mas sentia bem nos risos frouxos que o seu talento se esvaía sem colorido. Depois metera pelas anedotas pesadas de asneiras, e nem assim a reputação aumentara. Compravam-lhe alguma coisa, talvez para se verem livres dele ou também por piedade. E por isso nunca passara de viajante de certos armazéns modestos.
O melhor tempo da sua carreira obtivera-o com uma colecção muito completa de postais com mulheres nuas, que fez um sucesso, mas só até Évora - porque aí o Bento da loja da Praça fez questão em lhe ficar com os postais todos e ele não conseguiu explicar-lhe que aquilo era o chamariz para a colecção de algodões que trazia na mala de viagem.
O que ele nunca percebera é que no Aparício e no Pirnilho havia dois extraordinários psicólogos, antes de os médicos em Portugal saberem que isso era uma ciência. Conhecendo as predilecções dos fregueses com um tacto surpreendente, conduziam-nos e interessavam-nos no que mais os empolgava, tornando-se numa espécie de enciclopédias fáceis para uso de pequenos burgueses. E quando as anedotas vinham, todas faziam rir; e quando as malas abriam, todas as amostras eram encomendas em potencial.
Já a caminho da velhice, o homem dos bigodes incrí•is voltou à nossa vila. onde nascera, e tornou-se silencioso, deixando as malas e as anedotas sem saudades e com uma azia permanente no estômago, por muitos anos de comer em hospedarias e pensões. Sempre com um livro sob o braço, passava a reforma forçada e sem soldo nos
bancos da avenida ou na mesa do pequeno café, onde se acoitava para ouvir a telefonia.
Quando o rapaz de pé descalço entrou com o maço dos cartazes, estava ele sozinho com o criado.
"Seu João, um cartaz bonito!... Tem quatro cores..."
"É de toiros?", perguntou o empregado, enchendo os açucareiros plásticos.
"Não, senhor... É duma festa... Dá licença?"
O outro fez um sinal com a cabeça e o rapaz empoleirou-se numa cadeira para colocar o cartaz a meio da parede, mesmo ao lado da vitrina dos chocolates, onde as moscas poisavam em bandos.
"É bonito, não é, seu João?"
"Não é feio..."
O rapaz saiu a correr e o homem continuava embrenhado na leitura, sem dar atenção ao que se passara. Mas mal ergueu a cabeça, depois de puxar pelo relógio, para se certificar das horas que o estômago lhe indicara, fez uma expressão de espanto, recostou-se na cadeira e ficou a sorrir, com duas gotas de tristeza nos olhos. Penteou com os dedos a bigodeira espigada sobre a boca escondida, atirou depois o livro sobre a mesa e foi ver o cartaz mais de perto.
E fundiu-se o seu silêncio absurdo.
Ele não queria falar para o criado, mas precisava de dizer aquilo em voz alta, para ter a certeza de que as recordações não eram só imaginadas.
"Conheço aquilo como as minhas mãos... A relva ao pé do castelo nunca foi tão verde como está ali. Ou talvez fosse... Mas não é a cor que interessa..."
"O senhor já lá esteve?", perguntou o outro, admirado de o ouvir falar numa conversa seguida.
"Se lá estive?... Não há terra que eu não conheça. Às vezes dá-me vontade de rir, quando o^ oiço para aí a
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embirrarem uns com os outros e a dizerem parvoíces das terras onde passam a correr... Eu conheço-as toda" como aos meus dedos... Mas esta melhor do que nenhuma outra. . E aquele sítio ao pé do castelo melhor ainda... Se soubesses o bem que me faz agora olhar para ali..."
E aproximou-se do balcão, numa confidência.
"Ela era enfermeira no consultório de um médico. Eu fui lá uma vez, poi causa deste maldito estômago, e. como o médico não estava, ficámos a conversar. Era uma linda mulher!... Que mulher mais bonita em que as minhas mãos tocaram até hoje. E tornei-me atrevido, sem ainda perceber porquê. Mas fui-o naquela altura... E aimda. bem..."
Os olhos parados Corriam agora E, alargando as mãos de mansinho, prosseguiu: "Era ali que nos encontrávano-nos depois.. Uma noite ela pediu-me se a levava para Lisboa. E eu não fui capaz de lhe confessar que era casado. Fui pulha, mas acho que fiz bem. É que depois falámos tanto na nossa vida futura que ainda não houve um só livro, dos que leio todos os dias, que me dissesse coisas tão bonitas... Era ali ao pé do castelo que a gente se sentava. Eu prometi-lhe tudo; e ao pé dela pensava que sim, que seria capaz de explicar à minha mulher que encontrara alguma coisa de diferente na vida. E que ela também precisava de compreender..."
Depois o homem olhou para o chão com a cabeça inquieta e voltou para junto do cartaz com os dedos entrelaçados, que apertava uns nos outros. Por cima do balcão, o criado espreitou-o e encolheu os ombros, a sorrir.
Ele ficou ali durante muito tempo, silencioso como sempre, evitando fazer o gesto que lhe apetecia, tocar com a mão a relva verde do cartaz de quatro cores, como se assim pudesse voltar a sentir aquele contacto que o desvairava ainda. Mas entrou um freguês, bateu as palmas
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e ele afastou-se, embaraçado; pegou no livro e foi até à porta, para sair. Pôs ainda o pé no passeio, hesitando.
acabou, porém, por se decidir, vencendo todos os receios. E, abrindo a bolsa das moedas, escolheu uma de vinte e cinco tostões e empurrou-a sobre o tampo de mármore.
"Uma onça Superior?", perguntou-lhe o outro.
"Não! Não é isso!"
E quase dependurado no balcão, segredou: "Guarde-me o cartaz quando já não precisar... Valeu?!..."
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Panorâmica (16
VERDADEIRAS tardes de glória com o 00! morder os
* heróis", chamou o doutor Leonardo às pelejas travadas por esse punhado de bravos contra todos os adversários que apareceram a barrar-lhes a estrada do triunfo. E nem outra expressão estaria à altura dessa sessão solene para saudar a vitória dos novos heróis. Desvairado, quase em êxtase, o orador oficial da festa também ali levou Camões e Os Lusíadas, para afirmar que "o génio da raça lusa não estava no ocaso, antes se enobrecia em feitos dignos dos seus antepassados".
Foi nesse momento que um velho, acometido de uma loucura bendita, atravessou o salão, correndo para a mesa de honra, e ali se envolveu na bandeira, para beijar o leão do emblema, ao mesmo tempo que as suas lágrimas contaminavam a assistência, numa comovedora manifestação de orgulho regional.
Esse foi o dia, marcado numa lápide de mármore com letras doiradas, em que o Desportivo Ribatejano venceu o campeonato da sua zona. arrecadando uma taça de prata e madeira, que vale pelo significado do título.
Embora a façanha nunca mais pudesse repetir-se -- e todos os esforços se têm feito para ganhar o galardão -, o carinho dos habitantes da vila não se nega a sacrifícios, para que o seu grupo volte aos cumes da fama.
Saturado de pasmaceira - "Que se há-de fazer durante a semana?"-, o burgo esfalfa-se aos domingos, indo sofrer ruidosamente para o campo de futebol, à espera que voltem as tardes de glória.
Os heróis usam calção branco e camisola às riscas verde-salsa e preto, ganham um tanto por mês "para elevarem bem alto o nome da nossa querida terra", como foi garantido na sessão solene, e arrecadam ainda uns prémios por cada jogo vitorioso e pelos tentos que enfiam nas redes adversárias.
Para manter este punhado de bravos a vila sacrifica-se em quotas, obrigações e subscrições, enrouquece a uivar o nome dos seus ídolos, invade o campo e escaqueira os antagonistas, se o resultado está duvidoso, e anda com os jogadores às cavalitas, se eles vencem o prélio, como enfaticamente escreve o cronista desportivo de O Indefectível, um rapaz que teria sido poeta lírico se os versos se vendessem. A propósito do Coquinhas, o jogador mais portentoso do grupo, escreveu ele que "os seus pés são a batuta prodigiosa de um Toscanini a reger uma orquestra de violinos"; e em maré de inspiração, quando o Coquinhas meteu um golo com a cabeça num desafio da final, o cronista enfiou pela pintura e afirmou que "depois dos pintores românticos, nunca se havia criado mais beleza nas atitudes humanas".
O homem lá sabe o que afirma. Mas a verdade é que a vila se empolga, em arrebatamentos histéricos, mal o Coquinhas pega na bola, desafia os adversários e os engana em fintas, sem que os outros lhe loquem ou o travem. Então, como se estivessem na praça a ver uma corrida
de toiros, todos gritam "olés", afiançando que ninguém "passa de capa" melhor do que ele. E tanto se riem dos adversários, vaiando-os em provocações e assuadas, que os outros, desfeiteados, perdem a tramontana e entram a atacar com os pés o corpo do mago.
E no mesmo instante a batalha ateia-se dentro e fora do rectângulo, com prélios de punhada e até de navalha, que exigem a intervenção da Guarda Republicana, sempre solícita em desfazer embaraços à coronhada.
O pior é que o título nunca mais volta. E logo os sebastianistas lamentam o desinteresse dos heróis de hoje, relembrando as pugnas passadas, quando um jogador dava o sangue pela sua camisola, para citarem depois o caso daquele atleta morto de tuberculose e que quis ir para a cova equipado.
Sempre em discussão acesa, os habitantes da vila. com os nervos desfeitos, vão desembocar, à noite, no cinema. E enquanto lá dentro vêem as fitas partir-se de dez em dez minutos, cá fora, à porta, assistem ao espectáculo da caça feita pelo Sapo aos borlistas, que o apupam sem piedade, porque todos já parecem sarados da ferida aberta por aquele rapaz guindado aos píncaros da glória, pelo seu destemer da morte.
O vilar perturbou-se com a sua fama, que também o servia. Desvairou-se com os seus triunfos, viveu para os seus sonhos, mas foi cruel também quando ele perdeu o coração.
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Barro humano
A vila odiava o Júlio Sapo por razões sem conta, e •*"*• mais ainda, talvez, porque ele nunca dera mostras de recear a ira dos outros, antes parecendo refinar na sua "malvadeza", como diziam as velhas do Bairro das Virtudes, sempre que percebia a hostilidade alheia a amaldiçoá-lo.
Denegriam-no os mais ferrenhos da oposição pela vaidade insólita com que distribuía foguetório ao Cara Larga nos dias nomeados pela ditadura; os contribuintes, pelo modo autoritário como os acolhia na sua secretária de contínuo da Câmara, juravam-lhe na pele, embora lhe untassem as unhas em momentos de apuro; derrancavam-no de aleivosias as meninas tímidas que não almejavam namoro e se roíam de inveja por nunca faltarem rapazes pendurados à sua janela, onde as filhas esfoliavam calças pela noite dentro; assobiavam-no e enchiam-no de apuros os malandretes que queriam borlas para o cinema e que, mal iludiam a vigilância dos porteiros, logo sentiam as mãos sapudas e rijas do Júlio a tomar-lhes as orelhas e a pô-los no largo com dois pontapés quase sempre dados na atmosfera,
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mas que doíam ao rapazio como se os sentisse na carne.
Foram os borlistas das fitas de bandidos que lhe puseram a alcunha de Sapo, por causa dum quadrilheiro que tinha o mesmo nome numa aventura em série do António Moreno e da Pérola Branca. Mas toda a vila esteve de acordo e lhe decorou o cognome, porque o Júlio tinha jeito de batráquio no seu corpo arredondado e curto, nos olhos salientes e vivos a verrumarem quem se lhe aproximasse, na boca grande e rasgada em meia-lua, donde saía uma voz áspera a coaxar frases sincopadas.
Durante muito tempo, ainda por cima, o homem juntara ao lugar de contínuo da Câmara na sede do concelho o de cabo-de-ordens na nossa vila, de que era a autoridade suprema, uma vez que o regedor tinha mercearia e não desejava indispor-se com os fregueses. A verdade é que nunca desordeiro algum conseguira escapar-lhe - até mesmo o Besugo, um moço de saco, grande e impetuoso como um comboio, que em certo dia armara bazanada no largo da estação com um cigano, lhe levou a melhor, embora lhe levasse o fato em farripas, nas unhas de leão enfurecido.
Já agora, vale a pena contar o que se passou nesse dia.
Mal enxergou o Júlio a abanar o ventre, naquele jeito muito seu de braço* atrás das costas, o Besugo deu às pernas e escapuliu-se para o cais, acolhendo-se a um barco e à jurisdição marítima, quando o outro se aproximou, decidido a levá-lo para o posto da Guarda. Sem achar fronteiras para a sua autoridade, o cabo-de-ordens entrou na fragata e ali começou a teima com o moço de saco: "Vem daí, Besugo, que é melhor!" "Larga-me. Júlio, que eu esqueço-me que o teu pai era compadre do meu!"
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E como as palavras não bastassem, ambos meteram as mãos naquela alhada-e foi o diabo!
O Sapo ainda mostrou o cartão ao outro, para ver se assim lhe arrefecia o sangue; o Besugo, por seu lado, jurou que não sabia ler e que só dali sairia acompanhado pelo cabo-do-mar. Era provocação demasiada, tanto mais que a muralha do cais se enchera de gente.
"Qual cabo-do-mar, qual gaita! Vens e vens mesmo!..."
"Larga-me, Júlio! Olha que eu dou-te com a brilhantina!" insinuava o Besugo em calão lisboeta, ameaçando-o com uma cabeçada.
E puxão de um lado, puxão do outro, ficou o moço sem camisa e a autoridade sem casaco e braçadeira.
Tão certo como três e dois serem cinco, o Besugo foi malhar com os ossos na cadeia durante quinze dias, depois de bem sovado no posto, mas a verdade é que se ficou a rir com toda a vila, porque ao outro ninguém pagou o casaco, uma vez que nos orçamentos camarários não há verbas para vestir cabos-de-ordens (o que é mal feito, diga-se de passagem); desiludido com a Justiça, que não pespegava com um desordeiro na costa de África e o abandonava à galhofa do rapazio, o Júlio pediu a demissão do cargo, mesmo sob a ameaça de o demitirem da Câmara. Ficou-lhe desse tempo o cenho mais carregado e um alvoroço permanente na bílis.
Nascera para general, dizia dele um doutoreco que amarinhara à chefia da Administração num dos alcatruzes do novo Código e bem seguro ao eco de dois discursos que trinara quando estudante em Coimbra, donde vêm as orações sapientes e os fados com nós na garganta. Era um exagero evidente do Sr. Doutor, pois o Sapo tornava-se mais humilde do que o bicho do seu nome quando os superiores, em horas de má catadura, o vexavam com
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impropérios. "Sim, Sr. Presidente... Sim, Sr. Secretário" era só o que lhe ouviam. Mas no escuro do corredor, sozinho, os olhos bugalhudos do Júlio ensanguentavam-se de cóleras reprimidas e só o mata-borrão lhe escutava os ódios.
Punha-se por detrás da velha secretária, a prestar as suas reverências humildes ao Sr. Presidente e a todos os superiores que o Código o obrigava a reconhecer.
Quando a Câmara meteu obras no edifício, ceifando florões aos estuques aprimorados dos tectos, o que ia dando uma revolução no concelho, encaixando um vitral alegórico a meio da escadaria e pintando a doirado os ferros do corrimão, o doutoreco falou do Júlio no gabinete da presidência.
"Acho que devemos mandar fazer uma farda para o contínuo e meter no corredor uma secretária nova..." (E sorria.) "Ninguém vai poder com a vida do Júlio, Sr. Presidente." (Claro que o doutor, como toda a gente da Câmara, não suportava o presidente: uns achavam-no macio e outros muito amigo de boas pingas.) "Vossa Excelência já pensou o que vai ser o Júlio com a farda? Não há dúvida de que a farda empresta aos homens uma dignidade, um sentido de ordem que não podemos ignorar nos dias de hoje."
Sabendo que iam chover palavras, o presidente arregalou os olhos para o doutor, não fosse melindrá-lo por falta de atenção, e pôs-se a pensar na maneira de conseguir no Grémio da Lavoira mais um crédito de que precisava para esconder a sua apavorante falta de dinheiro para as sementeiras próximas.
"A ausência de fardas fez abortar, graças a Deus, a Comuna de Paris e as revoltas dos camponeses..."
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"Acha que foi por isso?", perguntou o presidente.
"Claro que não há acontecimentos unilaterais; mas a farda... Veja-se um guarda-portão fardado e logo se sentirá a marcialidade de que os doirados e os botões revestem a pessoa humana. A autoridade natural do Júlio, fardado de azul, vai torná-lo um Júlio César..."
E a Câmara em peso, desde o presidente ao zelador, ficou à espera que as obras acabassem e a farda do contínuo viesse do algibebe.
Nesse dia a bandeira foi içada pelo Sapo no mastro principal da janela de sacada, donde noutros tempos se discursava à multidão em dias alumiados para a oratória; mas os discursos fizeram-se em recato, sem assistência, entre vereadores, funcionários e certa gente de boas maneiras. O Dr. Carvalho do Ó falou em civilização ocidental, a propósito dos melhoramentos que se inauguravam, citando os nossos maiores e garantindo que seria imorredoiro o génio lusitano, de que todos sabiam "ser ele um dos mais lídimos representantes", segundo as palavras do presidente-lavrador, em resposta à panóplia de adjectivos com que o director do semanário o presenteara.
"Precisávamos todos os meses duma festa destas para retemperarmos o aço da nossa fé nos destinos da grei", disse o doutoreco de Coimbra à saída da sessão, ainda embalado com o seu discurso de tinta azulada. Só o Júlio, contra o que todos esperavam, se mostrava sorumbático, ausente da passadeira e da secretária nova que tinham colocado no corredor.
Como o vissem estranho, perguntaram-lhe "se estava satisfeito".
"Satisfeito de quê?", retorquira entre dentes, a modos de quem pragueja à socapa. E depois acabou por dizer que sim, que a festa fora muito bonita, naquele jeito submisso que os superiores lhe conheciam.
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"Deixem-no afeiçoar-se à fardeta que teremos de fazer acompanhar pela Guarda Republicana os contribuintes que lhe forem falar", sentenciou o chefe da secretaria para um amanuense que era poeta.
E deixaram o Júlio Sapo sozinho.
Quase ao fim da tarde, vindo duma das freguesias do concelho, chegou um rapazola e pôs-se a distância, meio tímido, à espera que o contínuo o mandasse aproximar. Lá estava o rosto fechado do Júlio sobre um registo qualquer, que passava a mata-borrão por cada palavra que escrevia, numa meticulosidade de relojoeiro. Sobre os óculos, cujas lentes nem o deixavam ver as horas do relógio que há quarenta anos lhe marcava a vida de funcionário, espiou o rapaz com estranheza e fez-lhe sinal com a mão.
"Que está aí à espera?", gritou depois quando o outro não veio ao mandado do seu gesto. "Ah, sim, um verbete! Fale de maneira que o perceba... Quer então embarcar? Faz bem... Isto já deu o que tinha a dar..."
com o verbete à frente, o rapaz preenchia-o a sorrir, com um sorriso enigmático que só ele entendia; desenhava as palavras com apuro, num gozo de linhas curvas e floreados de remates, como se estivesse a fazer o esquisso do corpo de uma mulher que quisesse invocar para ter mais perto. Por instantes deixava a mão suspensa, relia o que escrevera e prosseguia rápido depois, com o ar satisfeito de quem se ufanava do que fazia. O contínuo espiava-o por cima das lentes cansadas, andando à sua volta como se procurasse no seu rosto qualquer coisa que de há muito quisesse encontrar.
Houve um momento em que o moço hesitou, erguendo os olhos para ele - e sorriram ambos.
"Alguma falha?", perguntou o Sapo.
"Não..."
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E logo, mais decidido, o rapaz voltou ao verbete, deixando a mão correr com ligeireza, como se desse os últimos retoques no desenho da mulher.
"Assino?..."
"Sim, é preciso", respondeu o contínuo agarrando o papel com curiosidade.
O corredor estava, porém, na obscuridade e a luz não se acendeu com a volta no comutador. "É sempre assim... A electricidade falta sempre que é precisa."
E chegando-se para o rapaz, cujo braço agarrou com emoção: "Qual é o nome da sua mãe? Sim, como se chama?"
"Maria Alexandrina..."
"É isso mesmo... Maria Alexandrina... Ainda é viva?"
"Não senhor..."
"E o seu pai?"
"Está vivo, mas a gente não se dá bem... É por isso que me quero ir embora."
O rapaz levantara-se no momento em que a luz se acendeu e Júlio Sapo foi tomar o seu lugar à secretária. Olhava o moço com ternura, num sorriso que parecia ir desfazer-se em lágrimas. Aquela presença invocava-lhe o passado distante e certa rapariga que namorara antes de vir para o lugar na Câmara. "Como teria sido a sua vida com outra mulher? Talvez um filho", pensava agora com amargura. "E porque não aquele que tinha a mesma expressão doce da Maria Alexandrina?"
Uma campainha retiniu no corredor. Júlio Sapo levantou a cabeça e depois encolheu os ombros para o rapaz.
"Que esperem!... Essa campainha é a coisa mais estúpida que ainda ouvi. O que vale é que de vez em quando se encrava..." E esboçou um sorriso significativo. "Que escreveu à frente do motivo da viagem?"
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"Se calhar fiz mal", disse o rapaz com uma gargalhada na voz.
E por um instante o olhar do contínuo ficou alheado, com uma sombra de mágoa a toldá-lo. "Diga o que escreveu..."
"Para ser eu próprio..."
"Hem? - Para ser eu próprio?... --Isso não é resposta. Eles não querem assim, mas eu acho que respondeu como deve ser."
O Sapo parecia desorientado entre o verbete e a campainha a insistir num toque mais prolongado e nervoso. Afastou-se com o papel para debaixo da lâmpada e voltou a sorrir, acenando a cabeça. "Bem respondido, sim senhor! Bem respondido! Eles querem que se ponha "emigração ou turismo', mas assim é que está bem. Donde é você?"
Não esperou a resposta do outro e obrigou-o a sentar-se novamente na secretária.
"Ponha à frente, mas não risque o que escreveu primeiro. Isso mesmo! Quanto tempo falta para as cinco?", disse depois atarantado.
"Um quarto de hora", respondeu o rapazola, consultando o relógio.
"Não se fie nesse: está adiantado cinco minutos. Adianto-o sempre cinco minutos da parte da tarde."
Depois pareceu arrepender-se daquele desabafo e ficou inquieto como mosca no Inverno, indo de porta para porta com o verbete na mão; por fim enfiou por uma delas, donde vinha um matraqueio pesado de máquina de escrever.
O ruído parou por instantes e uma voz subiu lá dentro, agressiva e sincopada como o coaxar de uma rã. "Por que diabo há-de o rapaz fazer outro? Cada um escreve as
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razões que tem, ora essa é muito boa! À frente está aí como o senhor quer..."
Quando o Sapo voltou ao corredor veio com ele uma gargalhada.
"Era o que faltava! Queriam rejeitar, mas cantei-lhes das boas!" E baixando a voz: "Vossemecê é que não sabe as prendas que lá estão dentro. Gostam de papéis como os ratos de queijo... Por qualquer coisa mandam logo substituir um papel. Corja de langões!... E eu sou outro. Mas não era isto o que eu queria..."
A campainha voltou a chamá-lo. O Sapo olhou a caixa dos números e tornou-se lívido. "Agora é o Sr. Presidente..." (E sorriu com desdém.) "Se puder, espere-me lá fora... Gostava de falar um bocado consigo..."
E bateu com a palma da mão nas costas do rapaz.
"Traz mais vinho", disse para o balcão num grito de impaciência.
Os olhos luziam-lhe mais esbugalhados e desapertou o colarinho duro abotoado a dois colchetes.
"Era só o que me faltava nesta idade: darem-me uma farda, como se já não chegasse a de fiscal do cinema lá da terra. Eu não moro aqui... vou todos os dias a pé para casa."
E debruçando-se sobre a mesa: "Deixa-me tratar-te por tu... Conheci a tua mãe quando tinha a tua idade. Eu usava assim também o cabelo com uma popa à frente. Como a gente muda!... Gostava de saber pra que é que a gente muda tanto..."
Percebia-se que desejava dizer outras palavras ou que o vinho lhe embrulhava as ideias. Ia afagando o copo, mas os dedos enclavinhavam-se por vezes, e então falava com rancor.
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"O meu mal foi não ser capaz de dizer ao meu pai o que tu escreveste no verbete. Ele era um homem danado! Gostava de ser serralheiro e ele contrariou-me... Gostei doutra rapariga... A tua mãe conhece-a... E ele fez-me casar com aquela que lá tenho em casa... Por isso é que estou sempre azedo, a pegar com toda a gente que me aparece. Deixei que ele me encafuasse ali dentro naquele trabalho de trampa. Dizia que era um trabalho limpo, e eu nunca vi ninguém mais porco e sujo do que eu ando. E agora ainda por cima me deram esta farda! O que eu gostava era dum fato de ganga de serralheiro... Se calhar não tinha jeito... Nunca tive jeito para coisíssima nenhuma!"
Os olhos toldavam-se-lhe de lágrimas e a voz sumia-se mais na boca em meia-lua, donde as palavras escorriam, como as gotas de vinho que bebia sem conta.
"Tanto respeito cá fora e pra quê?... Em casa a mulher faz o que lhe dá na realíssima gana. E as duas raparigas..." (E soltou um "ah" profundo.) "Não as conheces? São bonitonas! Bonitonas a valer, como a cabra da mãe, que se baba toda por me ver ali na Câmara. A minha janela é um viveiro de todo o bicho careta lá da terra... Uma terra de canalha." (A voz magoava-se mais a cada palavra.) "E eu sei porque é que eles lá vão... Saem à mãe!..."
O rapaz parecia inquieto com as horas que corriam; mas o Sapo segurava-lhe o braço, como se o quisesse prender ali para sempre.
"Se lhes ralho, ameaçam-me que abalam pra Lisboa... E a mãe diz que vai com elas. Se lhes falo a bem, respondem-me que sou parvo. E quando as desanco toda a rua se põe contra mim... Ninguém me grama lá na terra, mas ninguém tem mais nojo do Sapo do que eu próprio. Percebes agora? Não sabes quem é o Sapo?... É um tipo
qualquer que anda por esse mundo feito mandão... Um tipo que não foi capaz de fazer essa coisa simples que tu fizeste há bocado... Dizer aos outros e ao pai que queria ser ele próprio. É uma coisa danada isto d'a gente se sujeitar ao mando dos outros!"
E encostando a cabeça aos braços, tapou os olhos e ali ficou.
O rapaz esgueirou-se, já com receio de não apanhar a camioneta, e foi pagar a conta ao balcão.
"Conhece esse gajo?", perguntou-lhe o taberneiro.
"Vi-o na Câmara..."
"É o maior malandro que temos cá na terra..."
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O herói que perdeu o coração
e nunca mais conseguiu encontrá-lo, por muito que
fizesse para voltar a metê-lo no peito e prendê-lo bem no mesmo sítio em que o tivera.
Foi uma luta tremenda, que ninguém percebeu até àquele dia...
Viam-no distraído e solitário, com um sorriso frouxo se o saudavam, e todos supunham que vivia já a hora de apoteose, querendo enjeitar os antigos companheiros de aventura e de sonho, que não tinham podido segui-lo na vertigem daquela ascensão. Era ainda o destemor que lhe gabavam - a firmeza com que avançava para o perigo, soberano como um grande senhor, ele, que viera do nada e só possuía um coração de granito, fechado à hesitação e ao medo.
Tornara-se mais pálido, de olheiras fundas e com uma expressão de tragédia tão marcada na boca endurecida que as mulheres o adoraram mais do que nunca. E ele fora sempre, desde o começo daquela carreira de triunfos e angústias, um ídolo das mulheres, que perdiam o pudor para o admirar, buscando-lhe os olhos para lhe dizerem que o desejavam. Apesar disso, ele nunca conheceu um
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grande amor na sua vida, embora fosse o sonho das costureiras e das burguesinhas da vila. E até da esposa de certo fidalgo de bom nome, que lhe escreveu duas cartas anónimas e se ficou à espera que ele aparecesse à entrevista marcada. Doente de romantismo quarentão, esse mal terrível que faz apetecer o contacto dos jovens, a senhora acabou por esquecê-lo nos braços felpudos do motorista da casa, a quem deu farda de cheviote azul e cama perfumada.
Indiferente a tudo, às cartas, como aos rodeios e aos olhares incendiados, o herói da vila sonhava consigo, apesar de ser um homem.
Mas preferia aguardar a hora da glória, sem um afecto que o desviasse da sua carreira, sempre com receio de dividir o coração. E acabou por perdê-lo, talvez porque lhe faltasse o estímulo de uma mulher.
Foi uma luta tremenda, parece que já o disse mais atrás.
Teve noites de insónia - pavorosas noites de insónia, em que, sozinho, se cobria de injúrias e se martirizava para se convencer a dar mais aquele passo que o corpo lhe não consentia. Chegou mesmo a querer entregar-se ao sacrifício para acabar em glória, antes que os outros percebessem que não era o mesmo e se apagara já a boa estrela dos seus triunfos.
Aquele frio, porém, um frio que nem o Inverno conhece, recusava-lhe tudo. Era uma força que o agarrava pelos ombros, lhe tolhia as pernas e o punha hirto, de músculos retesados e olhos em alucinação.
Para além daquela linha imaginária estava a morte - e ele sentia-lhe o bafo no rosto lívido, quando era o pisar dessa linha que antes o empolgava. O perigo parecia, então, reanimá-lo, para o tornar alegre e confiante, dando-lhe uma ousadia que desvairava as multidões.
E todos lhe chamavam "o noivo da morte", pela serenidade com que a deixava roçar-se pelo seu corpo jovem. Agora, a meio caminho da apoteose, o coração, feito vagabundo e canalha, abandonava-o sem esperança.
E ele já sentia saudades desses tempos em que passava fome e era "capitalista".
Percebo que não estou a ser muito claro e julgo conveniente abrir aqui um breve parêntesis. Um capitalista a passar fome, só por dieta, certamente. E não era o caso daquele rapaz.
Por dieta ou por revolução, é claro, quando se não tomam precauções. Por poupança, ninguém acredita.
A verdade é que ele passara fome nos seus tempos de "capitalista".
Quando calcorreava quilómetros a pé, sem cuidar de canseiras, tendo só por alimento aquele prazer de abrir o capote ou empunhar a muleta à frente de uma vaca, numa tenta de gado bravo.
"Lá vêm os capitalistas!", gritava-se com alarido nos muros e no palanque dos redondéis. E sabia-se que o espectáculo ia ganhar animação, porque eles vinham para se mostrar aos lavradores e aos toureiros de fama, jogando ali a sua oportunidade.
Não entendo porque chamam "capitalistas" a estes rapazes. Talvez por serem ricos de coragem e de espírito de sacrifício, como os outros o são de dinheiro. De qualquer modo, é assim que os conhecem.
E nesse tempo ele cruzava-se com vacas e novilhos, apanhava boléus, voltava ferido para casa, mas alegrava-se
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quando via o perigo. Ainda não sabia "mandar" com aquele tempero todo lentidão que mais tarde alardeou pelas praças, arrancando "olés", música e entusiasmos; menos conhecia certos terrenos onde os bichos o colhiam, pisando-o com desprezo; e mal sabia distinguir, a não ser pelas consequências, um animal de temperamento e nervo de um outro suave e nobre.
Mas o destemor, sem mancha aparente, o ar resoluto com que pisava os terrenos mais difíceis e neles se movia já, de vez em quando, com uma imponência de grande senhor, é que lhe deram, num instante, a admiração dos que procuravam um ídolo.
Tinha "salsa", diziam todos.
Mesmo sem ritmo, ora apressado, com a capa aos sacões, ora adormecido na sorte, e logo volteado, se o garraio era rabioso e se virava presto, ele sabia agarrar no coração e atirá-lo para as bancadas, pondo a vibrar com ele as praças em peso, fora os entendidos rabugentos, que mastigavam sapiência", para dizerem que "o rapaz não era um toureiro, mas um suicida".
Por isso lhe chamaram "o noivo da morte".
Aprendiz de carpinteiro, deixou a serra e a garlopa quando certo crítico lhe afiançou que podia ser "figura". E ser "figura" significava a fortuna e a idolatria, o retrato nos jornais, o triunfo por Espanha e pelas Américas, o namoro das filhas dos lavradores e dos fidalgos.
Incendiou-se-lhe a vida.
Passou horas à frente de espelhos com uma toalha e depois com a capa vermelha, só para aprender a desenhar aquelas sortes que ele via nas revistas; pedinchou às portas das praças, para que o deixassem ver os grandes nomes dos cartazes, se não conseguia tirar à sua fome o dinheiro para o bilhete ou não iludia a vigilância dos porteiros. Ensaiou-se à frente da carrinha e dos pitóns, habituou-se a bandarilhar, ganhando bem a cara aos bichos e desembaraçando-se a levantar os braços. E tudo com a tal "salsa", que ninguém lhe ensinou, mas que se desprendia do seu corpo magro e de boa linha, como dos pessegueiros se soltam cachos de flores rosadas quando a Primavera chega ou os vinhedos se tornam labareda e oiro mal o Outono lhes passa a mão.
Também ele parecia nascido para emocionar e oferecer beleza, no dramatismo e graciosidade do seu toureio. Lanceava à verónica, sem ceder um passo, de pés agarrados à arena, um pouco pendido sobre os novilhos, como se lhes segredasse que caminho queria para o espectáculo, mandão e arrogante, e ao mesmo tempo simples, fazendo da capa um véu mágico, donde se desprendiam figuras de bailado que vogavam na praça.
Só ele não bailava, sem sair dos terrenos da verdade, sempre atento àquela linha imaginária que ia do seu*coração, pelo meio do lombo do toiro, entre as agulhas, até à ponta do rabo do animal. Era ali mesmo que ele se plantava, firme, deixando a morte beijar-lhe os bordados a oiro do seu traje carmesim.
Já lhe falavam de um Inverno passado em Sevilha para fazer as tentas andaluzas, logo depois uma época como novilheiro puntero e mais um ano para ir à alternativa de matador, tomada em qualquer praça grande e confirmada em Madrid, onde só entram os toureiros com excelência.
A mãe, aturdida, é que lhe pedia para voltar ao ofício. "com as mãos que ele tinha podia chegar a mestre. Carpinteiro era um ofício tão bonito!"
Ele afagava-a, para a fazer calar, e enchia os cartazes e as praças.
Apurara-se também na muleta, e poucos matadores lhe levavam a palma nos naturais, quando o trapo vermelho
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fica mais pequeno e o homem se descobre aos cornos do inimigo. E a confiança no seu valor ganhou-o por inteiro.
Já não tinha os braços como cepos, à custa de horas em fim a fazer a muneca, esse exercício em que só os pulsos mexem, para os movimentos ganharem ritmo e suavidade, sem que o corpo bula.
Nunca das galerias lhe gritaram "que se parasse". Fazer martingala e enganar o público não era acusação que lhe coubesse. O seu coração de granito ali estava sempre firme, agarrando-lhe o medo e fixando-o com cavilhas, como ele dizia, à areia dos redondéis. "Foram cavilhas que trouxe do ofício", repetiu um jornal, em título da sua primeira entrevista.
E as mulheres seguiam-no e aclamavam-no.
Ele nunca quis escolher uma só. As que conheceu deixavam-lhe menos lembranças do que as capas que os toiros rasgavam com as hastes. Não queria dividir o seu coração. Mais tarde... Mais tarde, quando chegasse onde queria - aos cartazes das primeiras praças e às discussões em terras de Espanha, onde se sabe de toiros e de toureiros.
E assim foi subindo sempre até àquele dia em que perdeu o coração.
Saíra-lhe primeiro um toiro bonito, negro e temperado, "uma pêra em doce", como lhes chamam. E em arrojos e arte, o escândalo rebentou com aquele rapazola stido de oiro e carmesim, que desde as bandarilhas à muleta, e nesta, sempre pela esquerda ou em passes de peito, embriagara o animal até se adornar, de costas voltadas, ajoelhado e acenando a muleta ao público, que pedira música e o vitoriava de pé. Dominado, o toiro quase lhe tocava as costas com o focinho babado de canseira. Perdera a ferocidade, talvez maravilhado também
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por aquele moço que nunca lhe perdera a cara e quase o empurrava com o seu corpo, para que ele o sentisse bem.
A festa subiu naquela tarde quente de feira em Vila Franca.
O mexicano que com ele competia, morenão e de rosto marcado pela sua ascendência asteca, não quis ceder um palmo da sua fama de espada com alternativa. E vieram os desmandos de valentia, os passes de joelhos junto aos curros, o tocar de pitóns, quase sem preparação, até à sorte no estribo da trincheira, com a multidão em alvoroço.
Foi então que saiu para o nosso herói um toiro cabra, mal intencionado, que já devia saber o caminho do engano e ensarilhava a cabeça, como se tivesse olhos abertos na ponta dos cornos. Ele percebeu-lhe os defeitos, mas disse para si, como agora fazia sempre: "Sou capaz de dominar aquele toiro como fiz ao outro!" Era o apelo que usava para chamar a sua coragem.
com a capa bem agarrada nas mãos, ergueu o busto dominador, avançando depois em passos lentos, num cruzar de pés, que lhe retardava a marcha, na intenção estudada de aumentar a expectativa que vinha das bancadas e ele sentia passar-lhe no rosto e nos cabelos. O animal fitava-o de longe, sem ganas de arrancar. E o seu coração de granito, que começava a doer-lhe, levava-o sempre. Lá estava a linha onde poucos chegavam e na qual o toureio se confundia com a morte.
Abriu bem a capa de percal, tomou ainda um passo ao terreno do bicho, outro, e mais outro, e sussurrou-lhe com desprezo: "Eh garraio!..."
O toiro, de testuz saliente e negro, sacudiu a cabeça, como se entendesse a ofensa, e partiu, raivoso e rápido, para o enganchar, mal viu o toureiro mais perto. Um uivo de espanto abriu-se à volta dos dois. Na ponta da haste direita o toiro saíra da sorte com um pedaço da jaqueta
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de oiro e carmesim, que procurava com a boca para o morder.
Foi nesse momento que ele sentiu pela primeira vez aquele frio doloroso dentro de si. Quis dominar-se, mas aquela força estranha segurava-lhe os ombros e apertava-lhe o peito.
O animal arrancou de novo e ele não conseguiu dar mais um passo para se meter na linha imaginária.
"Arrima-te!", gritou-lhe uma voz selvagem da galeria.
Era a primeira desfeita que lhe faziam.
Cobriram-se-lhe os olhos de uma névoa densa, mas avançou com a capa aberta, decidido a tudo. "Ia agora ter medo?", pensou ainda. E alçando os ombros, como se quisesse aconchegar o resto da jaqueta, mas escapando-se de facto àquela mão poderosa que o prendia, citou o inimigo para outra verónica. E o toiro cresceu a seus olhos, enorme e terrível, como nunca vira bicho tamanho.
Sorriu para se enganar, ofereceu ao toiro a ponta do capote, e quando o vulto disparou para ele só ouviu aquele grito de angústia na cabeça aturdida, e logo depois o corpo atirado para diante, enquanto o mundo se apagava à sua volta.
A comoção não o deixou ver a presteza com que os seus peões de brega acorreram a tirá-lo das hastes do toiro. Recolheram-no, em charola, à enfermaria da praça, como se levassem já um morto.
Quando acordou, deixou-se ficar de olhos cerrados para se certificar bem do que se passara. Da praça vinham os "olés" e os aplausos com que festejavam o mexicano. E apertou os maxilares para não tremer de raiva.
"Não tem importância", disse uma voz à sua cabeceira. "Foi mais a emoção do que outra coisa!"
A emoção era o medo, ele bem o sabia.
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E abriu os olhos, fingindo-se ainda estremunhado. Num sacão, sentou-se na marquesa e pediu a capa. Percebia que estava a fazer teatro para os outros, mas era preciso mostrar-se valente, embora compreendesse que o coração lhe fugira. "Tinha de voltar à arena... Como iriam acolhê-lo?!..."
Pálido, exorbitando o manquejar da perna, foi ainda receber os aplausos na companhia do mexicano, que dava a volta de honra. E logo aí percebeu que perdera alguma coisa. Já não se sentia bem dentro daquele poço infernal com leras à volta, que o apupavam, exigindo que deixasse o outro sozinho. Mas as opiniões dividiam-se e esboçavam-se escaramuças entre os aficionados.
"Onde estavam os que sempre o tinham aplaudido?", pensou. "Onde estavam, se não eram capazes de gritar aos outros que ele era o noivo da morte' e nunca conhecera o medo?"
Agora chegava-se a hora de mais outra corrida, e ele sabia que não levava o coração no peito.
Estava inquieto, as mãos tremiam-lhe, embora as apoiasse nas ancas, sobre o calção bordado.
"Iria para a morte se fosse preciso", queria pensar, enquanto fazia o rodopio para lhe envolverem a cintura na faixa de seda. Mas tinha a certeza de que já não era capaz de vencer o seu amor à vida. Lembrava-se das pavorosas noites de insónia que sofrera, nessa batalha angustiosa de cortar a coleta, deixando as arenas, ou de persistir na carreira de triunfos que encetara em hora de boa estrela.
A um canto do quarto do hotel o apoderado voltara-lhe as costas e tamborilava o tampo da cómoda, como se quisesse aumentar-lhe a inquietação. "Também aquele duvidava de si."
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Apeteceu-lhe obrigá-lo a pôr-se de frente para lhe dizer tudo o que pensava das suas relações. "O que ganhara até agora?! Sim, que fosse franco. Que ganhara ele em jogar a vida? Dois fatos de tourear?!... Talvez um comer mais farto... E isso era o bastante?..."
Mas só baixou a cabeça, achando-se incapaz de falar ao outro naquele tom que desejava. "Não perdia pela demora, tivesse a certeza", pensou num remedeio.
Quando acabaram de o apertar com a faixa vermelha notou que uma rapariga aparecera no prédio fronteiro ao hotel. Sentiu curiosidade em perceber por que razão estaria ela a olhar tão atenta para as cortinas abertas da sua janela. "Talvez esperasse a sua saída... Não seria uma dessas mulheres que lhe escreviam e o festejavam?..."
Sentado na cama, um toureiro da sua "quadrilha" lia o jornal e ele via-o sorrir.
"Boas notícias?", perguntou para romper o silêncio.
Tinha a certeza de que todos adivinhavam o seu receio. Bem o percebia na maneira como lhe falavam agora.
"Coisas dos jornais", disse o outro. "Contam que daqui por dez anos, 'ou talvez menos, o mundo seja diferente."
"Seremos nós mais velhos, com certeza", respondeu sem tirar os olhos da rapariga.
"Dizem que com isso da energia atómica os homens serão mais felizes...", insistiu o bandarilheiro.
"E tu acreditas nisso?", respondeu o apoderado do seu canto.
"Acredito eu!", disse o novilheiro.
Mas disse aquilo com raiva, olhando o outro num desafio.
"Cantigas ao resto... Que sabes tu disso?!..."
"Mais talvez do que o senhor..."
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"Ora! Seria melhor que percebesses de toiros... É isso que precisas."
"Para quê?!...", respondeu, arrenegado. Depois comediu-se, tentando perceber nos outros a reacção da sua pergunta. António, o bandarilheiro, sorriu-lhe da cama.
"O senhor não acha que os homens podem ser felizes?!... Que têm o direito de ser felizes?..."
"Tu já o és... Que te falta?"
"Muita coisa..."
Estenderam-lhe a taleguilla e ele vestiu-a com lentidão, como se o enfiar das mangas lhe magoasse os braços. Na janela defronte lá estava a cabeça a espreitar.
"Olha, meu rapaz", disse o apoderado, agarrando-lhe nos ombros: "com a tua idade e com o cartel que te arranjei, a fortuna não tardará a bater-te à porta... Em menos de dois anos serás milionário..."
"Se tiver sorte..."
"Claro! Se tiveres sorte e não te faltar o coração... Mas disso tens tu para dar e vender..."
Não respondeu. O que pensou dizer ficava mal a um novilheiro.
"Parece que tens saudades da serra e da garlopa", insistiu o outro com cinismo. "O pior é que já não serias capaz de te habituar..."
"E porquê?!"
"Faltam-te os calos nas mãos." E começou a rir, atirando com o chapéu para a nuca. "A energia atómica não modifica os toiros."
"Mas modifica a vida... Há coisas mais importantes do que os toiros."
"Pra ti acho que não."
"E melhor acabarmos a conversa", disse, irritado. "Abre essa janela, António", pediu ao bandarilheiro.
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O apoderado atirou um "boa tarde" e saiu, batendo com a porta.
"Não o irrites... Ainda te faz falta...", sussurrou o* outro bandarilheiro que até ali estivera calado, a fumar.
Ele fora até ao espelho para compor a fita vermelha da gravata e respondeu-lhe num encolher de ombros.
"Se hoje tiveres sorte, iremos fazer três corridas em Espanha... Depois Madrid... A praça dos grandes toureiros... Hoje é a tua oportunidade", disse António, querendo dar-lhe confiança.
"É preciso armares o escândalo, dê lá por onde der", juntou o outro, atirando sobre os ombros a capa bordada.
Da rua ouviu-se o sinal repetido do automóvel que os ia buscar.
O novilheiro não ouvia as palavras dos seus homens, parecendo entretido com a gravata.
A rapariga olhava agora francamente para dentro do quarto; ele acenou-lhe o braço, com alvoroço, mas ela escondeu-se, envergonhada, para logo voltar a espreitá-lo.
"Está aí uma tarde de toiros que até manda ventarolas."
"Porque não dizes que está uma bela tarde de Verão?", respondeu.
Agora só via a madeixa de cabelos da rapariga - talvez loiros, parecia-lhe a distância. Ou talvez fosse do sol daquela tarde, que era um hino à vida.
Pegou depois na montera, pô-la ao espelho e achou-se pálido, com dois traços fundos aos cantos da boca. Aberta sobre uma cadeira, a sua capa de passeio, com rosas vermelhas bordadas em fundo amarelo, parecia um canteiro de flores para a rapariga colher.
"Mostra cá o jornal", disse para o bandarilheiro.
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De baixo, insistente, o motorista premia o klaxon.
"Já vamos!", gritou António da janela.
"Esse gajo que se cale... Se tem pressa, que vá andando sozinho", disse, irritado.
E sentou-se na beira da cama a ler a notícia, sem cuidar que amarrotava a seda dos calções.
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Panorâmica (17)
a vila tem os seus espectáculos sem bilhete - além das esperas de toiros, é claro. Mas nestas pode pagar-se com a vida, e a brincadeira fica cara.
E embora o recato more por ali de água e pucarinho com os pecados da carne, os pequenos escândalos rebentam uma vez por outra, como furúnculos que o pudor logo esconde.
Ainda há domingos, a Milinha, uma boniteza com olhos de veludo e corpo todo em requebros de labareda, foi ao cinema sob a respeitosa vigilância da mãe, uma senhora que a vila inteira trata por dona, pois, além do dom que lhe vem do dinheiro do marido, ainda pode usar o de família, segundo ela afiança na sua roda de amizades. com a Milinha e a mamã ia também o aguado delírio do namorado, que já garantiu casamento para quando acabar o curso, o que se não julga fácil, pois o curso é que parece capaz de rebentar com ele, tão escanifrado anda o moço, só patilhas, bigode e ondulados de cabelo.
Cerimónias de um lado, cumprimentos do outro, sentaram-se os três, com a Milinha ao meio, pois não era bonito o rapaz ficar entre as duas depois de uns zunzuns
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com as Pedralvas, mãe e filha, e um rapazola dos correios, que apareceu no burgo para desinquietar gente de bem.
Apagada a luz e posta a ronronar a máquina de partir fitas, mais calda de tomates e pimentos do que cinema a cores, aí apareceu um cómico alarve a cantar em inglês e uma qualquer fatalidade oxigenada a meter-lhe os olhos de devassa desde os pés ao cabelo em popinha: depois surgiu um jazz com negros, todo em grandes planos do trompeta, baterista e varas do saxofone, além de um gordo sentado com uma garota, ambos em equívoco, pois o gordo só olhava para a devassa e a garota não desferrava o sorriso brejeiro do alarve, que estava ali para fazer rir.
E num instante, mal a câmara de filmar começara às arrecuas, para que se visse bem o clube nocturno, a fita partiu-se, a luz acendeu-se e, enquanto a geral batia os pés e assobiava, a mamã da Milinha, sem saber se devia sorrir para disfarçar, se pedir um garrote para cortar o escândalo, ajudava, pressurosa, o namorado da filha a desembaraçar um dos botões da manga do casaco do fio de oiro que a donzela trazia ao peito, ao mesmo tempo que procurava tapar-lhe a mão curiosa.
A fita voltou a correr, mas já ninguém lhe deu atenção. O cómico alarve fez momices, tropeçou, pôs um saco de gelo na cabeça e aqueceu as mãos num fogareiro, e nas cadeiras nem um sorriso -e a geral em peso, voltada para trás, a querer bispar a Milinha, o namorado e a mãe.
O rapaz meteu a mão no bolso, talvez para que o julgassem maneta, e a Senhora Dona ficou sozinha a olhar para o pano branco, onde a fita aparecia e desaparecia, certamente com a marota intenção de perceber o que estaria o namorado a fazer ao fio da Milinha, tanto mais que não consta ter o moço hábitos ruins de gatuno.
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Dessa vez a vila pagou bilhete, mas a fita mudou de nome e chamaram-lhe A Mão Fatal.
A caixeirada, por sua banda, mete-se em casa da Patuleia, uma mulher encardida que vive de gorjetas, e ali, a grafonola e discos, toca de armar uns bailes misteriosos, onde criadas de servir e moças do Bairro das Virtudes servem de par e de regalo, só em jogos de mãos e apertões.
Como a electricidade ainda não chegou ao tugúrio da Patuleia, a dança alumia-se a candeeiro de petróleo, o que a velha aproveita para fazer o seu peditório a favor do combustível.
É um baile de fantasmas com sombras gigantes que enchem a casa e destinos negros que acabam em Lisboa. E que nunca acabam bem.
Mas a vila excita-se com aqueles serões e os homens procuram as boas graças da velha, na intenção de receberem convite para lhe frequentarem o casebre, tão hermético como certos salões da grande roda.
Os filhos dos lavradores andam agora doidos de todo por causa daquela rapariga com pernas de varina que veio para telefonista da estação dos correios.
"É um monumento!", dizem os entendidos. Um monumento revestido de meias de seda preta, com dois lindos pés maneiros que ninguém calça melhor. A moça não é alta e parece-o, tão perfeitas se desenvolvem as linhas que vão do chão, que mal toca, até às ancas, sublinhadas pela saia travadinha e curta; e também não é bonita, a telefonista, mas os homens pasmam ao vê-la subir ou descer a escada carunchosa da estação, onde se juntam aos magotes, como se estivessem numa bicha para receber a esmola de uma côdea.
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Atiram-lhe gracejos quando passa, escrevem-lhe cartas, fazem-lhe versos sem jeito e telefonam-lhe tanto que o chefe já pensou em requisitar outra empregada para atender as chamadas locais. Soberana, ela não se digna distinguir qualquer dos pretendentes.
"Terá noivo?!..."
"Ou haverá nela alguma pena de amor?!..."
Se teima na sua, começam qualquer dia a pôr-lhe defeitos. E a vila vai encher-se de uma história feia, de que as outras raparigas se farão eco, tanto despeito se lhes vê nos olhares atravessados com que a seguem.
O Dr. Leonardo já começou a ir à estação comprar os selos para a sua correspondência, que ele próprio apronta ao balcão encardido, molhando as estampilhas com a ponta da língua, ao mesmo tempo que molha a telefonista com uma expressão aguada de desejos senis. E quando a apanhou no expediente, num dia em que a colega adoeceu e ela se teve de repartir entre o balcão e o telefone, o Dr. Leonardo achou que a telefonista tinha umas olheiras negras e fundas - "que se acautelasse com a saúde, pois seria um crime deixar-se adoecer".
E prontificou-se a medicá-la, a tirar-lhe uma radiografia e a dar-lhe todos os remédios para os seus males.
"Mas eu não estou doente, Sr. Doutor..."
"Dorme mal?!..."
"Não, não durmo."
"Lê até muito tarde?!..."
"Também não... vou daqui com a cabeça tão cansada daqueles malditos auscultadores..."
"E telefonam-lhe tanto, não é?!..."
Julieta, a telefonista, que na vila os rapazes conhecem por Mariposa, ruborizou-se um pouco e sorriu para o Dr. Leonardo com tal enigma nos olhos negros que o
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médico sentiu o corpo abrandar-lhe e ficou capaz de lhe prometer uma casa em Lisboa.
"Não gostava de ter outra vida?..."
"Oh, não! Que ideia, Sr. Doutor!... Custou-me tanto a conseguir este lugar..."
Mas depois que ela lá está a estação é um corropio, e a conversa teve de se interromper. Excitado, o Dr. Leonardo telefonou-lhe; e mostrou-se tão atrevido que a Mariposa o-proibiu de voltar às propostas de uma viagem a Paris.
Agora escreve-lhe longas cartas à máquina, para se lhe não conhecer a letra, e fá-lo sem irritação, embora as teclas lhe andem sempre a fugir numa negação brincalhona. E assina Manet, em homenagem ao pintor, o que embaraça a telefonista, que não entende "a invocação e conta à colega que "um parvo qualquer lhe manda cartas estúpidas, subscrevendo-as com um nome que tanto pode ser Maneta como outra coisa pior".
E a Mariposa continua só, sem denunciar uma preferência, pisando as ruas tristes da vila melancólica com aqueles pés maneiros, que duas pernas maravilhosas prendem ao corpo soberano e coleante.
"Terá noivo?!..."
"Ou haverá nela alguma pena de amor?!..."
Ninguém pressente que à noite, de janela fechada, Julieta se deita sobre a colcha de falsa seda do quarto de aluguer e fica a pensar, consumida de solidão, em alguns dos rapazes que a requestam. Paris também entra nos seus sonhos, mas sem o Dr. Leonardo. "Que bom, Paris!"
E vai espreitar por detrás das cortinas certos vultos que se confundem com a noite. Logo foge, porém, para cima da cama, tão desvairados são os seus pensamentos
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e tamanho receio guarda do pecado. E continua só, à espera...
Talvez à espera de um homem atrevido que suba as escadas e lhe bata de mansinho à porta do quarto independente, embora ela não esteja disposta a abri-la.
Depois ainda ficam os bêbedos para recreio.
Pobres sombras que falam sós com as acácias do largo da estação, que se esparranham nas ruas sem um ai, que atravessam a noite em cantilena amarga, ou ainda como o Zé Faz-Cavalos, antes de se dar ao culto evangélico, e que gostava de arengar ao rapazio, falando-lhe dos seus selins, que enfeitaram os corcéis mais famosos da Península.
E andava assim uma noite inteira, até adormecer, cansado, no passeio do largo da estação ou à revessa dos bancos da avenida, onde se encontrava com dois outros fantasmas que a vila enjeitara.
Aquela mesma hora a que os operários se apressam com as lancheiras, para correrem ao apelo das sereias das fábricas distantes.
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Dois pássaros nocturnos
vila esqueceu-os...
Ou talvez não goste de os lembrar, para não sentir remorsos. Eles também nada pedem, num orgulho que hostiliza os poucos que gostariam de os ajudar.
Nesta noite de inverneira, fria como a angústia que vai nos seus ombros cansados, fria como o esquecimento, os dois só acharam abrigo debaixo de um barco desmantelado à beira do rio.
E o rio adormeceu, como se tivesse morrido, pois nem a respiração se lhe ouve na margem.
Não passa uma vela para dizer "boa noite"; não corre uma estrela no céu, curiosa por descobrir as raízes do silêncio dos dois pássaros nocturnos.
Agarrados às trevas, colados ao frio, eles roçaram na muralha e a canzoada afugentou-os. Nem os barqueiros os vieram saudar, ausentes nos beliches. E cegos de tristeza, amparados à solidão, só acharam abrigo debaixo daquele barco desmantelado, que é uma imagem da sua vida em ruína.
Ao contrário do que sucede a outros vagabundos, o rapazio não os hostiliza nem os apedreja. Parece que ninguém
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já dá por eles, como se fossem dois fantasmas que os olhares humanos não pudessem distinguir.
Se na vila houvesse colibris, os rapazes teriam pensado no seu tempo que ela era um colibri.
Um colibri de amor para os acompanhar aos canaviais do rio.
Foi ela que colheu nos seus braços morenos as primeiras raivas de sangue de todos os homens da vila. As ternuras como as bravezas... E o lirismo dos que eram poetas, como aquele que lhe fez uns versos em que só as palavras traíram o fogo da inspiração que os sentiu.
Muitos queimaram nela os ciúmes de outras mulheres que os enganaram. E nunca se enfastiou de os ouvir, sempre carinhosa, talvez na ilusão de os poder segurar à sua própria ansiedade de ser amada com desvario.
Abriu-se em promessas, logo traídas; sonhou uma vida longe dali, amante e mãe de filhos, no aconchego de uma casa fora dos caminhos do mundo, onde não passassem os outros homens que a conheceram.
Ouviu juras e enxugou lágrimas - tantas que acabou descrente das dores alheias e das suas. Amou algumas vezes, e nunca puderam entender que o colibri de amor tinha um coração.
E ficou presa àquele destino de ser a única noiva sempre disponível que a vila conhecia...
A voz dele era um romance.
Grave e doce, aprendera no rio histórias sem fim que as mulheres sabiam de cor.
Os namorados procuravam-no para serenatas e os senhores acolhiam-no em dia de festa, oferecendo-lhe o melhor lugar na sua mesa.
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As raparigas do povo amaram-no com desvairamento; e as outras faziam-no em silêncio, entontecidas pelas promessas da sua voz misteriosa, onde cabiam todos os sonhos.
Davam-lhe um mote e ele cantava toda a noite, como um pássaro tonto de poesia.
Só de uma vez - quase já ninguém se lembra! - glosou de improviso, em vinte cantigas, uma quadra que falava de saudade. Ditou-lha uma rapariga que não seria capaz de o reconhecer agora se lho apontassem na noite.
Estão para ali sozinhos, sem palavras, enregelados de esquecimento.
Ela puxou-lhe a cabeça para o regaço murcho, tirou-lhe o boné e vai-lhe afagando os cabelos em soluços de carinho. Ele não se move, de olhos cerrados, apertando o corpo contra o chão, como se quisesse sumir-se nas entranhas da terra.
"Já tomara que volte a Primavera", diz a mulher, para atirar uma esperança ao companheiro. "O Inverno há-de passar depressa, com certeza."
Ele finge que dormita e não lhe responde.
A seus pés o Tejo vem sussurrar uma cantilena monótona como uma canção de embalar. E o pássaro tonto de poesia ouve nela os passos cansados dos sonhos distantes.
A mulher estende o seu xale sobre o companheiro, estremece num arrepio doloroso e olha à sua volta, como se pedisse às estrelas para virem aquecê-los.
Mas nem há estrelas no céu. O ninho dos dois pássaros nocturnos cabe num pedacinho de noite. E é tão pequeno que ninguém os vê.
Ele está a lembrar-se daquela quadra que falava de saudade e que glosou em vinte cantigas improvisadas. Mas nem já sabe a quadra toda. Confunde-a com outras que
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um cantador qualquer, cuja voz era um romance, cantava às mulheres do seu tempo. Até o passado começa a abandoná-lo.,
Só ela, a noiva que os outros esqueceram, lhe ficou fiel no fim da vida. Ela e a noite. E a noite está fria. Tão fria!...
Coral por um menino morto
QUANDO ele se levantou, de um salto, com a mão estendida, apontando não se sabe bem o quê, e gritou, numa voz molhada de soluços: "Esse é o meu filho!", o pastor empalideceu, de braços abertos, e o coro destoou, até ficar calado, como um harmónio aberto que alguém tivesse impelido por um declive.
E foi compreensível aquele espanto, pois ninguém esperava que ele falasse, habituados como estavam a vê-lo surgir à sorrelfa, em bicos de pés, e ir sentar-se, sozinho, no banco corrido do fundo, que só se enchia em certas reuniões mais alumiadas do calendário evangélico. Nas duas ou três primeiras vezes que ali entrara ainda o pastor fizera sinal a um dos irmãos para o vigiar, não fosse dar-lhe o vinho para perturbar o culto. Era natural que o pastor receasse um desmando encomendado a um pobre homem que vivia de indulgências.
Mas ele chegava sempre no mesmo jeito submisso e devotado da primeira noite em que viera: um olhar receoso de quem teme ser espantado, uma vénia para o pastor e para a senhora que toca o órgão, um rápido esgueiranço até ao banco, não desconfiassem da pouca
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firmeza das suas pernas, e logo uma concentração profunda em todo o corpo, dada pelo pender respeitoso da cabeça sobre o peito. Sublinhava, quando muito, uma palavra ou outra com um erguer de olhos, para no fim sair apressado, desaparecendo na noite, sem deixar o rasto de uma palavra incrédula ou de uma das suas arengas sobre selins.
Todos na igreja acreditavam, sinceramente, que estava nele o germe de uma redenção miraculosa, bem necessária para servir o prestígio de um culto novo na vila, e sobre o qual não faltavam dúvidas de pacto com o Demónio.
Por isso mesmo a sua intervenção disparatada, talvez de um louco, chamando seu filho ao filho de Deus, teve o efeito de um ciclone entre os irmãos evangélicos.
E se alguns católicos e ateus se riram daquela irreverência, procurando saber da sua boca as razões do grito intempestivo, esses ficaram como o pastor e o sargento da Guarda ao interrogá-lo: "Quem lhe pagara para interromper o serviço de Deus?" Ele não entendeu a pergunta e só encolheu os ombros, com os olhos marejados de lágrimas.
Na nossa vila não faltavam seleiros e correeiros, celebrados de Trás-os-Montes ao Alentejo entre a gente que na arte de cavalgar encontrava o seu maior luxo. Mas ninguém como o nosso homem para conceber e armar Um selim de senhora, ao mesmo tempo robusto e leve, em que a elegância do arreio sublinhasse, e até corrigisse, o porte do animal. Era ele que dizia com justa razão, e daí lhe veio a alcunha, que "os cavalos nascem, mas os seleiros é que os fazem".
Então nessa peça mestra que é o suadouro, espécie de órgão natural que faz a adesão da amazona à montada, ao mesmo tempo que permite a ventilação perfeita da
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espinha do animal, mestre Zé não tinha quem lhe fizesse sombra. Quando pendurava o selim à porta da oficina, já com as estribeiras metidas, a que se agarravam os loros e os estribos, era vê-lo no passeio defronte, impando de justa vaidade, aos pulinhos e a esfregar as mãos, sempre pronto a dar explicações minuciosas a quem se aproximasse para lhe gabar a obra.
Nem ele próprio saberia dizer por que razão não era capaz de começar outro trabalho antes de ter fora o que acabara. Passava assim dias inteiros, tagarela e nervoso, até que o lavrador vinha com a filha procurar a encomenda e apertar-lhe a mão para o felicitar. E quando a sua obra partia e lha pagavam, mestre Zé Faz-Cavalos ficava triste, a remoer nem se sabe no quê; e vinha sempre o mesmo pedido: "Quando a menina aqui passar, lembre-se de vir mostrar-mo... Gostava de ver se tudo ficou como eu sonhei..."
"O mestre parece que está com pena de se despedir da obra!"
E estava.
Mal os fregueses abalavam e tinha o dinheiro na unha, , fechava a loja, dando folga ao aprendiz, ia comprar mais peles e aviamentos e levava o resto daquele santo dia a enfrascar-se pelas tabernas, deliciando-se a ouvir dizer a meia voz que "era um grande artista". Fora desses dias ninguém o encontrava a decilitrar pelas tascas; os seus selins, o filho - o seu rico filho! - e a mulher bastavam para lhe preencher a vida simples de artesão.
Na madrugada seguinte, alumiado a candeeiro de petróleo, era vê-lo na loja a agatanhar o rosto inquieto com as mãos deformadas pela sovela e a olhar, de vez em quando, ora com raiva, ora com ternura, a pele curtida ou a camurça-marfim já colocada sobre a mesa para receber o corte do cutelo. Ali ficava sozinho, horas sem conta,
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na intenção de gizar um selim mais surpreendente ainda, quantas vezes de cabeça encostada à parede e de olhos cerrados para que lhe não fugisse a imagem viva que guardava na sua fantasia.
Se a mulher o interrompia, ficava a rua cheia dos seus gritos uivados, rogando-lhe pragas mais assanhadas do que as das varinas. Mas quando o desenho ficava pronto na sua imaginação, o corpo fremia-lhe, como se o corresse uma sezão terçã, e atirava-se ao trabalho, sem cuidar de horas nem de refeições, leve como um estorninho, pé aqui, pé acolá, e um assobio todo repenicado nos beiços.
E durante quinze dias que ninguém lhe falasse!
Primeiro à volta dos vasos de madeira, forrando-lhe as lâminas de aço com o esmero de quem sabia vir da raiz a excelência da obra, para logo colocar as precintas, num jogo de proporções estudado durante horas, de maneira a que o pontete ou coxim levasse logo a sua assinatura de artista ímpar. Era por ali que os entendidos reconheciam a sua mão de mestre; e ele não se dava a um descuido para que a sua fama continuasse sem mancha, mesmo que em lugar da camurça lhe encomendassem um selim de pele de porco.
Ponto como o seu não havia sequer em Inglaterra. Sentado, com as talas apertadas entre as pernas curtas e magras e o pé esquerdo em cima de um cepo, cosia ele próprio o pontete e depois as abas, a que as cilhas de segurança e equilíbrio se uniam. E eram depois as duas forquilhas, e mais ainda a elegância e a proporção de bolsa das luvas, a que já se juntara, como peça capital, embora oculta, o suadouro, com o seu basteado de simetrias pacientemente estudadas.
Gastava as mãos a lavá-las, só para que nem a sombra de uma mancha lhe maculasse a obra. E já com o motivo
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das bordaduras de folhas e flores desenhado no papel vegetal, passava-o, maravilhado, com a recartilha, para as abas de camurça, as forquilhas e a bolsa; e enchia-as depois com' a vareta, polegada por polegada, de modo que o relevo da bordadura não tivesse um leve enfolado, uma falha no desenho ou um desvio no recorte. Mas se em peças de maior luxo lhe encomendavam ainda um brasão ou iniciais em alto-relevo, a sua alegria tornava-se quase em loucura: durante quatro ou cinco dias ali estava a cegar os olhos em cima da camurça, seguindo o desenho marcado no material, como um escultor paciente que não medisse o tempo para celebrizar a sua obra.
Depois lá vinham as estribeiras, os loros e os estribos. Curvado sobre o selim, identificado com ele, ora com o martelo e a sovela, a tesoura e o cutelo, ora com a vareta, a turquês e a recartilha, nada o arrancava da sua loja de seleiro. O aprendiz já decorara as palavras que dizia sempre, como num ritual: "Os cavalos nascem, mas a gente é que os faz. Cavalos sem os meus selins são pilecas. Se ainda houvesse rei em Portugal, eu é que seria o seu correeiro. Sabes o que isto quer dizer? Que sou o único correeiro que tem estas mãos."
E mirava com deleite os dedos engadanhados, nodosos e magros.
"Já me quiseram levar para uma oficina; mas não vou. O meu trabalho faço-o sozinho aqui dentro, percebes? Não quero patrões... Os patrões dão cabo da arte com as pressas." E fazia uma pausa longa, enquanto segurava o aprendiz pelos ombros. "Se um dia fores capaz de fazer uma sombra daquilo que ali está, dou-te um doce! Um doce, percebes?..." E ria para dentro, a esconder a boca, como se o vexasse aquela vaidade.
Mas a sua glória maior chegou no dia em que um cavaleiro tauromáquico lhe entrou no cubículo e lhe encomendou
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dois selins de tourear. Dessa vez mestre Zé esteve duas semanas sem bulir um prego, só enfeitiçado pela sua definitiva consagração.
Foram duas semanas de taberna e de bebedeira.
É um homem miúdo e ridículo, com uns braços longos, que quase lhe tocam os joelhos, costas deformadas pelo jeito do ofício e uns pés tamanhinhos, que mal lhe oferecem apoio para andar. Quando anda corre, como se tivesse receio de cair se caminhasse a passo; e se tem de parar encosta-se às paredes e conversa de perna traçada, em atitude de quem vai tirar o retrato ao pé duma floreira.
Na cabeça redonda e grande ficaram-lhe umas farripas de cabelos, que mais parecem guitas para lhe segurarem as orelhas despegadas do crânio, de tal modo se penteia. Tem uns olhos pequenos e maliciosos, sempre vermelhos, que uns dizem ser de doença, de os ter cansados, outros do muito vinho que sempre bebeu, outros ainda das lágrimas que chora às escondidas por se sentir isolado no mundo.
Foi talvez por se ver só que ele, quando ouviu aquela palavra mágica no meio do hino cantado em coro, entrou na casa da reunião e fez uma vénia para o pastor e para a senhora que toca órgão.
Numa elevação ao Céu, as vozes diziam:
Foste Tu que nos buscaste, E com sangue nos compraste: Pelo amor Tu nos ganhaste. Nosso Salvador!
E dentro do seu rosto de pobre diabo nasceu uma luz que o transformou, tornando-o suave e ao mesmo tempo
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dramático, como se o pincel de El Greco o tivesse tocado para o macerar. Depois os olhos aguaram-se de um pranto sem dor, enquanto um sorriso magoado e terno se esquissava na boca sempre frouxa.
Os irmãos do culto, que o pastor mandara para o fundo da casa, na intenção de o vigiar, ficaram surpresos com o milagre daquela espécie de unção divina que descia sobre o bêbedo. E no fecho da reunião, cantado o hino final com maior fervor, todos pressentiram que Deus trouxera aquele homem para ali com o propósito de o redimir dos seus pecados. O sinal da presença do Senhor não podia ser mais vivo.
Foi por isso que na reunião seguinte, verificados os mesmos sintomas de submissão e deslumbramento, o pastor lhe tomou a saída para lhe falar nos Provérbios.
"Sabe o que dizem os Provérbios? -- Não olhes para o vinho quando te começa a parecer loiro, quando brilhar no vidro a sua cor; ele entra suavemente, mas no fim morderá como uma serpente, e difundirá o seu veneno como um basilisco. - O irmão percebe o que isto significa?"
O correeiro negou com a cabeça, mas a sua expressão tornara-se angustiada.
"O Senhor queria dizer que o vinho não dá alegria... Entende agora?!..."
Zé Faz-Cavalos deu um trejeito ao corpo, afagou a calva, embaraçado, e escapuliu-se para a rua, fazendo pequenas corridas de portal em portal, até encontrar escuridão que lhe servisse para gozar melhor o prazer que sentira com as palavras dos hinos. E nessa noite não procurou o passeio do largo da estação para dormir; esperou que eles fechassem a porta e foi acomodar-se na soleira daquela casa, a repetir para si o que pudera reter dos
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cânticos. E na sua pobre cabeça, esvaída pelos desgostos e pelo álcool, criou-se o mito.
Os Provérbios não lhe serviram, porque continuou a embriagar-se toda a semana. Mas nas noites de reunião aparecia sempre. Enirava atemorizado, num escapanço, e ia sentar-se no banco do fundo, com a cabeça pendida sobre o peito, a chorar de mansinho, para que o deixassem ficar até ao fim. Habituados à sua presença, e certos de que o milagre viria inteiro, os irmãos evangélicos olharam-no com carinho e um deles já se propusera dar-lhe almoço todos os dias.
E quando já ninguém esperava um desaforo da sua parte, mestre Zé fez o escândalo.
Depois dos dois hinos de abertura e da oração, em que todos se levantam e concentram de olhos cerrados, pedindo pela paz das almas, o pastor subiu ao púlpito e começou a pregação com a leitura de passagens da Bíblia. Naquela noite, magoado com o que via pelo mundo, falava dos pecados e das tentações, citando S. Marcos: "... porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfémia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem."
Mestre Zé estava varado pela ressonância daquela voz dramática e dura, que parecia condená-lo também e o punha trémulo de pavor, quando antes só ali achara recordações ternas que o punham feliz. E aquelas mãos erguidas, gladiando contra monstros invisíveis, tornavam-se gigantescas e vinham sobre a sua cabeça para prosseguir o combate.
"Se te disserem", continuava o pastor, "que o Diabo não é religioso, não creias em tal; sabe que ele é o inventor da religião que prega a salvação por meio das obras.
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Logo que Adão pecou, ele ensinou-o a esconder alguma coisa que tapasse a sua nudez. E também persuadiu Caim a não levar a Deus um humilde cordeiro, como Abel, seu irmão, o fazia. E Caim, acreditando, levou do 'fruto da terra', que é o mesmo que dizer do fruto do seu trabalho..."
Excitado, de mãos trémulas, mestre Zé correeiro mirrava-se no seu banco, como se o pastor o fulminasse por ter vindo ali. Não entendia a maior parte das palavras, que a voz martelada do pregador lhe lançava do outro extremo da sala, mas compreendia que o seu olhar, que vinha sobre as cabeças da assistência, se dirigia para si. Pensou ainda em levantar-se e fugir, ou dar uma explicação que abrandasse o ímpeto trágico daquela voz que o desafiava. Por duas vezes esboçou um gesto cansado, mas não pôde concretizá-lo.
"Vamos ao hino cento e dezoito", disse o pastor num tom melífluo.
Ainda debaixo da opressão anterior, mestre Zé não distinguiu que já não o ameaçavam. A senhora do órgão abriu os braços levemente e a música veio com doçura do fundo da sala; depois o coro a quatro vozes surgiu a um gesto do pastor e suplicou no silêncio:
Guia-me, meu Salvador...
E foi então que, numa desafronta, Zé Faz-Cavalos se ergueu de braço estendido e gritou com a voz molhada de soluços: "Esse é o meu filho! O Salvador é o meu filho!..."
Levaram-no para o posto da Guarda, mas ele não foi capaz de explicar, quando lho perguntaram, "quem lhe pagara para interromper o serviço de Deus..."

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De resto, poucos se lembrariam na vila de que ele tivera um filho, o Salvador, um menino que morrera aos quatro anos, antes de a mulher lhe ter abalado. E se ele dissesse que só entrara na casa do culto por julgar que o coral evangélico entoava hinos pelo seu menino morto, haveria alguém capaz de o acreditar?
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Panorâmica (18)
O progresso parece trazer consigo uma vaga de infortúnio, arrastando o vilar melancólico para um turbilhão que o vai desfazer. É a história que caminha.
E dia após dia, em silêncios terríveis de dor ou em convulsões angustiosas, a tradição extingue-se numa agonia que as ansiedades de alguns não conseguem sustar.
Os países industriais precisam de vender máquinas para que a crise os não subverta; mas essas máquinas vão criar novos problemas nos países atrasados onde as colocam. E os industriais precisam de matérias-primas, que também se vendem.
As máquinas têm de deixar lucro ao dono das minas, ao industrial e ao comprador, aos intermediários sem conta que os aproximam e ainda aos financeiros que estão por detrás de cada um deles. E aos navios que as transportam e às alfândegas que vivem de pautas.
E, assim, as contradições crescem mais depressa do que as searas.
Os lavradores da vila, que não quiseram a primeira fábrica dentro dos seus muros, não enjeitam agora a maquinaria que lhes oferecem as fábricas de países distantes.
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E aos campos chegaram os tractores, os semeadores e as ceifeiras-atadeiras; e as varas dos lagares já não são movidas por homens esgotados; e caminhões, que parecem monstros a rodar triunfantes por essas estradas, esmagam as galeras puxadas por animais e os barcos levados por ventos e marés.
Incapazes de dominar os próprios acontecimentos que desencadeiam, os aprendizes de feiticeiro buscam, alucinados, o botão mágico do equilíbrio perdido.
E a vila sem história debate-se entre a gangrena e o sonho.
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A morte e a vida na proa de um barco
NãO estava cansado, bem longe disso. Nem ele nem o seu barco, que outro não galopava mais ligeiro as estradas do Tejo. Galopar era o termo justo, como se o Liberdade tivesse sangue de égua árabe na sua madeira de cerne rijo e de proa altiva, como um alazão, atirando com o peito destemido às ondas e aos ventos. O calafate que o construíra andara cinquenta anos à procura daquele jeito - desenhara à enxó fragatas e lanchas, barcos de água-acima e saveiros, tantos que lhe perdera a conta, até que um dia conseguira aquele casco, fino e robusto ao mesmo tempo, que cortava o rio como uma espada.
Mestre Ganau, o barqueiro, devoto pelo orago de Bucelas, mandara pintar-lhe na proa o nome de Anjo Custódio. Fizera-o por religiosidade, mas também porque o anjo empunhava um alfange na sua mão direita e no cais da vila todos diziam que o seu barco era fino que nem uma lâmina. O filho, António Ganau, não fora capaz de contrariar o velho; mas logo resolvera para si que, se alguma vez o barco lhe viesse à mão, outro nome o apadrinharia. Assim de repente não soubera escolher a palavra
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que mais se ajustasse a tudo o que pensava do "seu rico barquinho".
Quando o via parado, junto ao cais, a balouçar levemente nas águas tintas desses poentes maravilhosos do Tejo, António Ganau lembrava-se dum anor silencioso que tivera aos 11 anos pela varina mais bonita da sua rua, uma raparigaça já nesse tempo, que o percebia - "tinha disso a certeza" - e brincava com ele, chamando-lhe namorado. Florinda era o mais belo nome de mulher que Ganau conhecia. Estavam com ele os sonhos da sua adolescência e a curva suave dum peito, como a proa do seu barco, e a esbelteza dum corpo magro e firme, como a agulha daquele mastro que parecia quebrar-se ao sol e resistia aos temporais. Quantas vezes o pai lhe gritara da ré: "Eh rapaz dum raio!", só porque não tomava atenção aos cabeços de areia ou às manobras das atracações. Ausente do seu lugar de camarada, Ganau imaginava a Florinda a escapulir-se nas voltas da Tirana ou do Vira de seis, enquanto o João Nana zangarreava o violão e atirava os seus motes picantes para as desgarradas. Também o seu barco era ligeiro como ela - mas fogoso e corredor como nenhum outro, que era uma alegria ver os demais ficarem para trás, com a raiva dos arrais presa aos lemes e a impotência das velas a sacolejarem nos bordos.
Nesses momentos de emoção, lançada uma carreira de barcos às manobras da viagem, Ganau achava que só o nome dum pássaro podia ficar bem pintado naquela proa. E que pássaro?! Um que fosse leve como uma andorinha, cantasse como um rouxinol do caniço e tivesse as cores dos pintarroxos, dos guarda-rios e dos garcenhos. Mas que pássaro seria esse para merecer o nome do seu barco?
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E Ganau hesitava, lembrando-se ainda de todas as outras coisas que ele amava na vida - cantar o Real das Canas, ter um filho, andar aos domingos com a sua samarra azul, ir atrás da banda de música no 1." de Maio, quando ele punha uma coroa de flores do campo no bico da proa do seu barco, ou ainda, no começo do Verão, quando a banda ia buscar as Sestas a uma aldeia próxima; e os seus amigos, e as raparigas que o catrapiscavam, e o seu copito de vinho no Cartaxano, enquanto se batia uma biscada, e as ferras de garraios bravos, e as noites no Cais da Areia, em Lisboa, ali perto de Alfama, com histórias de brigas entre faias e barqueiros, aventuras de contrabandistas e sonhos de viagens por esse mundo.
Mas que nome lhe poderia dar tudo isto ao mesmo tempo?!...
Cansado de enxugar temporais no corpo, o pai apagou-se numa tarde de Dezembro, quando a safra do sável ia começar com o trabalho das enviadas para os mercados da Borda-d'Água. Filho único, ficou-lhe o Anjo Custódio, as dívidas numa loja de apetrechos marítimos, a cédula de barqueiro e o rio para navegar. E uma ânsia de vida que não havia penas que a abafassem.
Passados doze meses à certa, nem mais um dia, depois de ter ido com a mãe ao cemitério visitar a campa do velho, chamou o Marcolino pintor e fez-lhe a encomenda --que não tivesse mão nas tintas nem no tempo; o seu barco havia de se chamar Liberdade e ele queria, à volta daquele nome, uma grinalda de rosas com todas as cores que se conhecessem. Por dentro pintou-o ele mesmo, sempre a assobiar, naquele jeito de melro que os barqueiros e os moços de saco adivinhavam à légua.
Foi um acontecimento no cais. Juntavam-se grupos, ali perto, que falavam em voz baixa, sorriam e cumprimentavam o Ganau, com um aceno entusiasmado: "Fica
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uma coisa bonita, sim senhor; tiveste cabeça!..." E até a Cremilda do Cagaréu se chegou à borda da muralha para ver o barco pintado de novo; e ficou mais tempo, à espera do olhar do barqueiro. Que aquilo foi bem mais do que um olhar, porque logo nesse domingo o Ganau se pespegou a namorá-la à porta, enquanto a avó fiava linho, para as redes, ao pé da cómoda - isto nas primeiras semanas... Depois a avó ia dormir e os dois ficavam às escuras até passar o comboio da meia-noite.
Essas recordações, e tantas outras, é que o faziam andar agora fora de si. Indiferente a tudo, sacava algumas vezes uma das mãos da algibeira e atirava um gesto sacudido de ódio, como se discutisse com alguém as suas razoes bem fundadas. Muitos julgariam que bebera de mais - era certo que agora se alargava muitas vezes -, mas a verdade, verdadinha, é que nunca ninguém o vira a cambalear, por muito que se enfrascasse. Aquela mágoa de sentir que o rio já não era o mesmo, nem para os barqueiros nem para os pescadores, é que o convulsionava até ao desespero.
Não estava velho, muito longe disso, mas todos os dias era forçado a compreender que precisava de fazer andar o seu barco mais depressa, sem esperar a contradança das marés, porque os fretes iam quase só para os camionistas, que chegavam a toda a parte e punham os cereais onde os patrões queriam. E até esses se queixavam; era ouvi-los também: "Que o imposto deitava a mais de quinhentos escudos por mês por causa da protecção aos senhores do caminho-de-ferro; que do preço da gasolina pagavam eles as estradas e as pontes, e não sei mais o quê. Um raio que os abrasasse!"
E o seu Liberdade, um barquinho daqueles, tão azadinho e tão decidido para o mar, ali parado no cais, a servir para as sobras dos lavradores, levando pessoal para
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as empostas dos extremos da Lezíria, onde aquelas malditas não podiam chegar. E um homem sem poder tirar o desforço de responder aos abegões como lhe apetecia: "Ah, só pra isso é que o barco serve? Vão a nado ou como quiserem; daqui é que o Liberdade não sai."
Mas quantos outros iriam logo de afogadilho pegar naquele trabalho! E era um homem sempre cosido por dentro, a comer consigo o fel duma "malvadeza" assim. Fretes arrenegados que nem o deixavam acamaradar com o pessoal dos ranchos, quando noutro tempo era fazer o rumo e deixar o barco correr ao sabor da maré e do vento, com uma cantiga de um lado, uma graçola do outro.
E agora para ali andava à parte, agarrado ao leme, como um animal preso à corrente, e mais preso ainda àquela ideia fixa de ter de andar mais depressa, de deixar a vela vermelha de lado - uma vela que ele cosera e tingira - e comprar um motor qualquer, que lá parado não ficava ele, como os outros barqueiros. Queriam guerra, pois haviam de a ter! Lá voltar as costas ao rio que nem um cobardola não era para as suas tripas. Ali nascera e barqueiro havia de morrer, que a bronquite agarrada naquela noite maldita do ciclone lhe havia de lembrar o Tejo para sempre. E que faria do seu barco? Vendê-lo para lenha?... Não! Isso nunca! Andar com a morte na proa daquele barco, que ainda se não fizera outro mais ligeiro em toda a Borda-d'Água, era pedir de António Ganau mais do que a sua própria morte.
E esta ideia apegou-se-lhe à tristeza que o consumia. Quando o disse na taberna, ninguém o acreditou. "Estás a meter muita palha no enxergão, pá!", disse-lhe o Carapinha, pegador de toiros.
"Juro-te plo nome que trago na proa do barquinho!", respondeu com o punho cerrado e de olhos acesos pela decisão e pela ira.
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E a palavra do Ganau era só uma.
Arrebanhou o dinheiro que pôde, vendeu o oiro da mãe e da Cremilda, empenhou-se ainda com uma letra a juros, e foi a Lisboa comprar o motor. Meteu-se logo no primeiro comboio, embora soubesse que ia encontrar as lojas fechadas àquela hora; mas não podia estar na cama mais tempo. Toda a noite sonhara com a nova vida que encetaria dentro de poucos dias, correndo o Tejo numa vertigem, ora abaixo, ora acima, sem cuidar de ventos nem de marés. Procuraria todos os antigos patrões para lhes dizer que também o seu barquinho podia agora ir depressa como as camionetas; e os fretes voltariam a encontrá-lo no cais. Convidaria os amigos para uma caldeirada a bordo - "feita por ele, pois então!" - e havia de deitar cinco foguetes, num desafio aos que o julgavam vencido. O seu barco não levaria a morte na proa, como o dos outros barqueiros.
Só quem o visse, naquela madrugada, com a sua samarra azul, a cabeça de novo erguida e o assobio de melro a brincar-lhe na boca, é que poderia avaliar a esperança que levava consigo. "Fora parvo em ficar tanto tempo à espera! Mas agora, vida nova!..."
Mal a loja abriu, entrou de rompante por ali dentro e foi direito ao motor que já escolhera. O negócio fechou•se em poucas palavras. Ainda convidou o vendedor para beber qualquer coisa, mas o outro recusou com amabilidade; riram os dois e Ganau foi festejar a compra com uma volta pela Rua das Atafonas, depois de ter almoçado numa taberna - "Traga lá um bifinho, pois então! Estou farto de peixe!... E uma banana, que dias não são dias!..."
Foi ontem que fizeram a experiência.
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O motor chegou num caixote que o Ganau foi levantar à estação e um serralheiro atirou-se ao trabalho com ele à ilharga, nervoso de alegria, já apressado por se ver ao leme do seu Liberdade e fazer rumo para uma volta até às Obras. "Aquele primeiro dia era para ele e para a família, pois então!"
O serralheiro fez uma careta de dúvida e disse, a esfregar as mãos num bocado de desperdício: "O motor é capaz de ser pequeno..."
"Ora essa! Pequeno?! Então vossemecê queria um motor pr'avião? Pequeno? Essa agora! Isso é um motor, homem. Custou-me uns poucos de contos de réis e vossemecê diz-me que é pequeno?"
O outro relanceou o olhar, continuando a montagem à popa. E meneava a cabeça. Ganau queria sorrir-lhe, espreitando-o de cima da borda do barco, mas começava a irritar-se com o silêncio e os gestos de desconfiança do serralheiro. "Se vossemecê visse um motor mais pequeno do que esse puxar um barco, como eu vi, em Lisboa, até ficava parvo... Qual camioneta nem comboio pr'andar como aquilo. O barco dava-lhes um bigode!... Os motore^ são motores, homem! Não são pequenos nem grandes... São motores!"
"Pode ser que m'engane", disse o outro. "A gente também s'engana..."
"Era o que faltava! Pedi ao homem um motor pra barco... E ele disse-me logo assim: - Ah, pra barco temos aqui um amor! É do melhor que se faz na América..."
"O pior é que há muitos barcos!"
"Olha que gaita de novidade vossemecê me dá! Isso sei eu! De barcos não m'ensina vossemecê, nem ninguém..."
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E falava sem uma paragem, como se o silêncio lhe trouxesse maiores dúvidas do que as que já sentia apertarem-lhe o coração e aperrearem-lhe a garganta. "Felizmente que trouxera o barco para longe do cais", pensava Ganau, "senão a esta hora já havia galhofa com a conversa."
O serralheiro pôs o motor a trabalhar, ficou-se a ouvi-lo com atenção e nem olhava o barqueiro. "Então?!", perguntou o Ganau. "Pode-se experimentar?!"
"Se vossemecê quiser...",'respondeu o outro.
"Então pra que comprei eu o motor?... Se calhar era pra ficar aqui a vê-lo trabalhar como uma máquina de costura... Salte lá pra cima! Se faz favor, também se cá usa!", juntou ainda a sorrir.
Quando destravou e meteu a primeira velocidade, o hélice roncou por debaixo do casco e o barco deslizou suavemente. "Acelere!", gritou o serralheiro. "Não posso acelerar mais!", respondeu o Ganau com os olhos espantados pela ira. O outro parou o motor, limpou as mãos no desperdício, com uma lentidão que fazia raiva, e disse o mesmo: "O motor é capaz de ser pequeno..."
"Pequeno uma gaita!", gritou o Ganau, alucinado. "Vossemecê não sabe mexer nisto e agora chama-lhe pequeno! Porque não disse logo que não se entendia com isto?!... Deixe-me cá com o meu barquinho!"
O outro fitou-o, então, e deu um salto para a margem.
"Eh homem!... Eh seu homem!... Eh homem dum raio!", gritava o barqueiro de braços abertos e correndo a ré do barco em passadas largas. O serralheiro afastava-se sempre com lentidão; e o fato macaco azul-desbotado sacolejava ao vento, como se não levasse dentro corpo de homem.
"Estou desgraçado!", disse o Ganau, aquietado pela angústia, sentando-se à proa do barco, sem saber se devia
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chorar aquele infortúnio, se tentar sozinho, e mais uma vez, a manobra. Um torpor invadiu-o depois e ali ficou, até que um comboio o fez erguer, enchendo-lhe a cabeça dum frenesi de ruídos e de ideias. Decidido mais uma vez, aproximou-se do motor, pô-lo em marcha, repetiu as mudanças que o homem da loja lhe explicara e o barco voltou a mover-se com lentidão. "Ia agora passar por aquela vergonha de todo o cais se rir do seu barco e do motor? E se chamasse o serralheiro outra vez?! Mas ele ia dizer^lhe o mesmo por força:-O motor é pequeno!..."
Meteu a mão à algibeira das calças e voltou a sentar-se à proa. "Como havia de arranjar cara pra contar à mãe e à Cremilde? E a letra e os juros?!..." Pegou na navalha e abriu-a. "Se tivesse coragem de dar um golpe nas veias, de manhã, quando o procurassem, não haveria gente no cais capaz de se rir. À noite, nas tabernas, iria falar-se dele, do seu assobio de melro, do nome que mandara pintar na proa do barco. Talvez não lhe custasse; talvez pudesse adormecer depois de golpear os pulsos. Quem sabe até se sonharia? O pior é que o nome do seu barco ia ficar manchado de sangue, e ninguém ganharia com isso. A Cremilda ainda ontem lhe dissera... E se estivesse grávida?!..."
Nesse mesmo instante a voz de Cremilda chamou-o da margem: "Tóino! Tóino!..."
Por um momento pensou em não lhe responder, esperando que o comboio da meia-noite passasse para lhe fazer frente. "Seria mais fácil do que a navalha." Mas a Cremilda insistiu e ele percebeu que a sua voz tinha qualquer coisa de diferente.
"O que é que foi?!... Estou aqui!... Sim, aqui na proa!..."
"Vinha dizer-te que sim..."
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"Que sim. u quê?..."
"Aquilo de que te falei ontem à noite. Não parei toda <a tarde com vómitos..."
"Ah! Espera um bocadinho, que já vou."
"E o motor?"
A resposta demorou. Junto à margem vinha uma fragata puxada a remos, vencendo a calmaria ao pulso da tripulação. O arrais conheceu o Ganau e gritou-lhe: "Boa noite". E ele respondeu: "Boa viagem!" Depois saltou do seu barco, agarrou a Cremilda pela cintura e levou-a consigo.
"O motor parece que é pequeno... O gajo da loja enganou-me, mas eu vou amanhã falar com ele... E há-de dar-me outro motor ou o dinheiro. Tenho a certeza!..."
E sem a Cremilda perceber porquê, António Ganau alteou a voz irada: "Há-de dar-me o motor ou o dinheiro... Ou eu não seja Ganau. Ou o nosso filho não se chame António!"
"E se for uma menina?", disse a companheira, amparando-se-lhe no braço.
"Se for uma menina... e se tu não t'importares, pode chamar-se Florinda. Florinda é um nome bonito, não é?..."
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Uma charrua de sol
MADRUGADORA como no passado, a vila acorda alta •"•*• noite com o pé descalço das varinas e dos pescadores. Acorda, mas volta-se para o outro lado, e fica todo o santo dia às moscas, com os artelhos molhados pelas águas do rio, onde os rapazes aprendem a nadar e se ensinam os primeiros segredos da vida dos homens.
Mas quando as sereias das fábricas da sede do concelho atormentam os ares já os campinos dão volta aos gados, os camponeses limpam o suor da fronte e os valadores se encharcam de reumatismo na lama dos mouchões e dos esteiros; já as mondinas ou as ceifeiras, as vindimadoras ou as mulheres da canastra, segundo a época do ano, se debruçam sobre a terra, como se elas, mais do que ninguém, lhe entendessem os segredos.
Que segredos são poucos o sabem. Mas se cantam com a vida que levam, é porque o futuro lhes promete. Talvez uma charrua de sol com que ha-de revolver as entranhas dos poisios, para neles se abrirem as searas de uma paz dinâmica. E dessa convulsão, com as raízes dos sonhos bem presas ao sangue dos homens, a vila também há-de renascer com o vento da madrugada.
O que pode parecer estranho é que a Primavera vá florir dentro deste paul adormecido, com esta mesma gente e neste mesmo burgo. Tanto mais que o milagre só pode vir dos homens...

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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