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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ÔMEGA / P.D.James
ÔMEGA / P.D.James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

        Nesta madrugada, 1º de Janeiro de 2021, três minutos após a meia-noite, o último humano nascido no planeta foi morto numa briga de bar em um subúrbio de Buenos Aires, com a idade de vinte e cinco anos, dois meses e vinte dias. Se as primeiras notícias são verdadeiras, José Ricardo morreu como viveu.
        Sua distinção, se é que podemos chamar assim, era ser oficialmente o último ser humano nascido, diferente de alguém dotado de virtude especial ou talento, isso sempre foi um problema para ele.
        E agora está morto.
        A notícia chegou à Grã-Bretanha no programa das nove, da Rádio Estatal e eu a ouvi por acaso.
        Tinha me sentado para começar este diário, sobre última metade da minha vida, quando vi a hora e pensei que deveria ouvir as principais notícias no boletim das nove.
        A morte de Ricardo foi a última notícia e, depois, apenas um breve e cuidadoso comentário e opiniões sem ênfase pelo locutor, com sua voz sem emoção.
        Mas, me pareceu ao ouvir, que era uma pequena justificativa adicional para começar o diário hoje, o primeiro dia de um novo ano e meu qüinquagésimo aniversário.
        Quando criança, gostava desta data, apesar do inconveniente de se seguir logo ao Natal e, por este motivo, receber sempre apenas um presente, não mais do que um, apesar das duas celebrações.


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        Conforme começava a escrever, pensei que estes três eventos, o ano novo, meu aniversário de cinqüenta anos e a morte de Ricardo, dificilmente justificavam macular as primeiras páginas do caderno de folhas removíveis.
        Mas devo persistir, uma pequena defesa contra uma flexão pessoal. Se nada há para se registrar, então devo registrar este nada e então se chegar à velhice - como a maioria espera chegar, pois nos tornamos especialistas em prolongar a vida -  abrirei meus arquivos secretos e me aquecerei na pequena fogueira de minha vaidade.
        Não pretendo deixar o diário como o registro dos últimos dias de um homem.
        Mesmo em meus ataques mais egoístas não me enganarei com isso.
        Qual o interesse possível no diário de Theodore Faron, doutor em filosofia, membro do Conselho na universidade de Oxford, estudioso da época Vitoriana, divorciado, sem filhos, solitário, que possui como único aspecto notável ser o primo de Xan Lyppiatt, ditador e Governador da Inglaterra.
        Nenhum outro registro pessoal, de qualquer modo, se faz necessário.
        Por todas as nações do mundo as pessoas estão se preparando para guardar seus testemunhos para a posteridade com o qual poderão, ocasionalmente, convencer aquelas criaturas de outro planeta que possam aterrissar em nossas selvas verdes e se perguntarem que tipo de vida senciente uma vez habitou este lugar.
        Estamos guardando nossos livros e manuscritos, pinturas, partituras musicais e instrumentos.
        As maiores bibliotecas do mundo, em quarenta anos, estarão escuras e lacradas.
        Os prédios, aqueles que estiverem ainda de pé, falarão por si próprios.
        Os tijolos de Oxford pouco provavelmente sobreviverão mais do que um par de séculos.
        Já na universidade se debate a validade de se reconstruir o Sheldonian Theatre.
        Mas gosto de pensar nestas míticas criaturas ao pousar na praça Saint Peter e entrar na Basílica silenciosa e ecoando séculos de pó.
        Será que perceberão que aquele é um dos maiores templos de um dos muitos deuses do Homem? Ficarão curiosos sobre sua natureza, das deidades que foram esculpidas com tanta pompa e esplendor, intrigados pelo mistério simbólico daquela simples cruz, onipresente ainda que coberta de ouro, gloriosamente ornada com jóias? Ou seus valores e seus processos mentais serão tão estranhos para nós, que nada do que para nós inspira reverência ou adoração poderá tocá-los?
        Mas apesar da descoberta - em 1997, não foi? - de um planeta cujos astrônomos dizem ser capaz de suportar vida, poucos de nós realmente acreditam que eles virão.
        Eles devem estar lá.. É certamente pouco racional, acreditar que só esta nossa pequena estrela na imensidão do universo é capaz de desenvolver e suportar vida inteligente.
        Mas nós não iremos até eles e eles não virão até nós.
        Vinte anos atrás, quando o mundo já estava meio convencido de que nossa espécie havia perdido seu poder de se reproduzir, a busca pelo último humano nascido tornou-se uma obsessão universal, elevada à condição de orgulho nacional, um concurso internacional sem sentido, pungente e feroz. Para se qualificar, o nascimento tinha que ser oficialmente registrado, a data e a hora precisamente registradas. Isso efetivamente excluiu uma grande parte da raça humana, onde o dia era sabido mas não a hora, pois o resultado nunca seria conclusivo.
        Certamente, em alguma selva remota, de um modo primitivo, o último humano corria incógnito e sem a reverência mundial.
        Depois de meses de verificações e reverificações, José Ricardo, mestiço, nascido ilegítimo em um hospital de Buenos Aires, aos dois minutos para as três, horário ocidental, em 19 de outubro de 1995, foi oficialmente reconhecido.
        Após o resultado ser divulgado, ele foi deixado para explorar sua celebridade, da melhor maneira possível, como se subitamente ciente do exercício fútil, captasse a atenção por onde fosse.
        E agora estava morto e eu duvidava que qualquer outro país estivesse ansioso para arrancar outros candidatos do esquecimento.
        Estávamos ultrajados e desmoralizados, menos por não impedir o fim de nossa espécie, menos pela nossa falta de habilidade de prevê-la, do que pelo nosso fracasso em descobrir a causa. A ciência e a medicina ocidentais não haviam nos preparado para a grandeza e a humilhação deste erro supremo. Havia doenças difíceis de diagnosticar ou curar, e uma delas quase despovoou dois continentes antes de desaparecer.
        Mas ao fim éramos sempre capazes de explicar o porquê.
        Dávamos nomes a viroses e germes, que, mesmo hoje, nos habitavam para nosso pesar; parecendo ser uma afronta pessoal que eles ainda nos atacassem, como velhos inimigos que viviam nos cercando ocasionalmente fazendo uma ou outra vitima; a ciência ocidental se tornara nosso Deus.
        Dentro da variedade desse poder que podia cuidar, confortar, curar, assustar, nos alimentar ou divertir, nos sentimos livres para criticar e ocasionalmente rejeitá-lo, como os homens sempre rejeitaram seus deuses; mas, sabedor disso, apesar de nossa apostasia, esta divindade, nossa criatura e nosso escravo, ainda assim nos abasteceu com o anestésico para a dor, um coração reserva, um novo pulmão, o antibiótico.
        A luz sempre vem quando apertamos o interruptor e se isso não ocorre, ficamos sem saber o motivo.
        A ciência nunca me foi algo íntimo.
        Entendia pouco na escola e entendo um pouco mais agora aos cinqüenta.
        Ainda assim, tornou-se meu Deus também, mesmo se seus princípios são incompreensíveis para mim, e assim compartilho da desilusão universal daqueles que dizem que Deus está morto.
        Lembro claramente as palavras confidenciais de um biólogo quando ficou finalmente claro que em parte nenhuma do mundo havia uma mulher grávida.
        “Pode ser que levemos algum tempo para descobrir a causa desta aparente infertilidade mundial.”
        Passaram-se vinte e cinco anos e não mais esperamos ter sucesso.
        Como se um estudo sobre lascívia de repente encontrasse impotência, fomos humilhados no ponto crucial de nossa fé em nós mesmos.
        Todo nosso conhecimento, nossa inteligência, nosso poder e não podemos mais fazer o que animais fazem sem pensar. Não importa se nós os cultuamos ou os ofendemos.
        O ano de 1995 ficou conhecido como o ano Ômega e o termo agora é universal.
        O grande debate público do final dos anos 90 era se a nação que descobrisse uma cura para a infertilidade iria compartilhar a descoberta com o resto do mundo - e em que termos.
        Foi aceito que se tratava de um desastre global e isso deveria ser o bastante para unir o mundo.
        Ainda no final dos anos 90, falava-se de Ômega como uma doença, um mau funcionamento, que em breve seria diagnosticado e corrigido, pois o homem já encontrara a cura da tuberculose, da difteria, pólio e ao fim, mesmo que tarde, para a AIDS.
        Os anos se passaram e os esforços, sobre o patrocínio das Nações Unidas nada acrescentaram e a solução se viu partida por completo.
        As pesquisas se tornaram secretas, os esforços dos países causavam uma atenção suspeita.
        A comunidade européia agia em conjunto, dividindo seus recursos.
        O Centro Europeu da Fertilidade Humana, nos subúrbios de Paris, era a instituição mais prestigiada do mundo. Era uma ação conjunta, em grande parte com os Estados Unidos, cujos esforços eram grandiosos.
        Mas não havia cooperação entre as raças, o prêmio era grande demais.
        Os termos sob quais este segredos deviam ser compartilhados eram motivo de especulação fervorosa e debates.  
        Era aceito que a cura, uma vez encontrada, teria que ser divulgada, o conhecimento científico não poderia ser, de forma alguma, mantido indefinidamente em segredo.
        Mas, através dos continentes, nações e grupos raciais se olhavam com suspeita, de forma obsessiva, alimentando rumores e especulação.
        A velha máquina da espionagem estava de volta.
        Velhos agentes haviam deixado suas confortáveis aposentadorias em Weybridge e Cheltenham e voltado aos negócios. A espionagem, é claro, nunca parou, mesmo com o fim da guerra fria em 1991.
        Os homens são viciados nesta mistura intoxicante de aventura adolescente e perfídia adulta para abandoná-la inteiramente.
        No final dos anos 90, a burocracia da espionagem floresceu como nunca, produzindo novos heróis, novos bandidos, uma nova mitologia.
        Em particular, vigiávamos o Japão, por temer que aquele povo tecnicamente avançado já pudesse estar a caminho de achar uma resposta.
        Dez anos se passaram e ainda vigiávamos, mas com nenhuma ansiedade e sem esperança. A espionagem permanece, mas já se passaram vinte e cinco anos desde que alguém nasceu e, no íntimo, acreditamos que o choro de um recém nascido jamais será ouvido novamente em nosso planeta.
        Nosso interesse em sexo vem minguando.
        O romantismo e o amor idealizado foi superado pela satisfação carnal, não obstante os esforços do Governador da Inglaterra através da criação de lojas de pornografia nacionais para estimular nossos desejos.
        Temos nossos substitutos sensuais disponíveis através do Serviço Nacional de Saúde.
        Nossos velhos corpos são surrados, esticados, socados, acariciados, ungidos e perfumados.
        Recebemos um tratamento de pedicure e manicure, somos medidos e pesados.
        Lady Margareth Hall se tornou o Centro de Massagem de Oxford e ali, toda terça à tarde, me deito no sofá e admiro os jardins, desfrutando de minha hora de prazeres sensuais e mimos pagos pelo Estado.
        E, assiduamente, com obsessivo interesse, tentamos reter a ilusão, senão de juventude, mas de uma meia-idade vigorosa.
        Golfe é o esporte nacional.
        Se não tivesse ocorrido o Ômega, os conservacionistas teriam reclamado que alguns dos mais belos campos foram distorcidos e rearranjados para prover mais desafio aos jogadores.
        Tudo era de graça, essa era parte do prazer prometido pelo Governador.
        Alguns exclusivos, mantendo de fora alguns membros pouco benquistos, não por proibição - que era ilegal - mas por aqueles sutis sinais discriminatórios que na Grã-Bretanha todos são treinados a entender desde a infância. Precisamos de nosso esnobismo, igualdade é uma teoria política, não uma prática, mesmo na Grã-bretanha igualitária de Mister Xan.
        Tentei certa vez jogar golfe, mas achei o jogo totalmente desinteressante, talvez pela minha habilidade de arrancar torrões de terra sem nunca acertar a bola.
        Hoje eu corro. Quase diariamente eu piso o chão macio de Port Meadow ou as trilhas desertas de Wytham Wood, contando os quilômetros, subseqüentemente medindo as batidas do coração, a perda de calorias e histamina. Sou tão preocupado em me manter vivo quanto qualquer outro, obcecado com o funcionamento do meu corpo.
        Muito disso eu posso identificar, no começo dos 90, a busca por uma medicina alternativa, óleos perfumados, massagem, ser esticado e socado, o uso de cristais, o sexo sem penetração.
        Pornografia e violência sexual nos filmes, na televisão, nos livros, na vida, tornando-se mais predominantes e mais explícitos; mas cada vez menos, no ocidente, fazíamos sexo e tínhamos filhos.
        Pareceu na época, algo desejável e bom em um mundo superpovoado.
        Como historiador, eu via como o inicio do fim.
        Devíamos ter nos alarmado no início dos 90, assim que em 1991 a comunidade européia divulgou uma queda no número de crianças nascidas na Europa - 8.2 milhões em 1990, com quedas significativas nos países católicos. Pensávamos saber as razões, de que a queda era deliberada, resultado de atitudes mais liberais de controle do nascimento e aborto, o adiamento da gravidez devido as mulheres preferirem alavancar suas carreiras profissionais, o desejo das famílias por um nível de vida mais alto. E a queda da população foi complicada pela ameaça da AIDS, particularmente na África. Alguns países da Europa começaram a adotar campanhas vigorosas pelo nascimento de crianças, mas a maioria das pessoas achava que a queda era desejável e mesmo necessária.
        Estávamos profanando o planeta; se nos reproduzíssemos menos, seria algo bem vindo.
        O importante não era a queda populacional, mas o desejo dos países em manter seu povo, sua cultura, sua própria raça, crescendo o suficiente para suportar a estrutura econômica.
        Mas eu me lembro: ninguém sugeriu que a fertilidade da raça humana estivesse mudando.
        Quando Ômega chegou, chegou dramaticamente, subitamente e foi recebido com incredulidade.
        Do dia para a noite, parecia que a raça humana tinha perdido seu poder de se reproduzir.
        A descoberta em Julho de 1994 que mesmo os espermatozóides congelados, armazenados para experimentos ou para inseminação artificial, haviam perdido seu poder, tornou-se um horror espalhando sobre Ômega, o manto supersticioso do pavor, da bruxaria e da intervenção divina.
        Os velhos deuses surgiram com seus terríveis poderes.
        O mundo não desistiu até que a geração nascida em 1995 alcançou a maturidade sexual.
        Mas quando o resultado dos testes veio ao conhecimento do público, que nenhum deles podia produzir espermas férteis, soubemos que era o fim do Homo sapiens.
        Era o ano de 2008 e o número de suicídios cresceu como nunca.
        Não somente entre os mais velhos, mas na minha geração, aqueles na meia-idade, aqueles que teriam que encarar o envelhecimento e a degeneração desta sociedade humilhada.
        Xan, que havia sido eleito Governador da Inglaterra, tentou parar o que começou a parecer uma epidemia, impondo prêmios e multas por manutenção de sobrevivência, assim como o Conselho hoje paga generosas pensões aos parentes daqueles incapacitados ou velhos dependentes. Isso teve um efeito, a taxa de suicídios caiu comparada aos números alarmantes de outras partes do mundo, basicamente naqueles países onde a religião se apoiava no respeito à figura do progenitor, na continuação da família.
        Mas aqueles que viviam se deixaram levar por um negativismo universal, o que os franceses chamavam de — ennui—  universal. Caiu sobre nós como uma insidiosa doença com todos os sintomas bem conhecidos de cansaço, depressão, mal estar, uma fragilidade a pequenas infecções, uma perpétua e incapacitante dor de cabeça.
        Eu lutei contra isso, tanto quanto os outros. Alguns, Xan também, nunca se viram atingidos, protegidos talvez por uma deficiência de imaginação, ou no seu caso, por um ego tão poderoso que nenhuma catástrofe externa poderia atingi-lo.
        Ocasionalmente ainda sinto-a, mas não a temo tanto.
        As armas que escolhi para o combate são também minha consolação: livros, música, comida, vinho e natureza.
        Estas suaves satisfações possuem o sabor doce-amargo da lembrança da transitoriedade dos prazeres humanos; mas e quando isso não mais existir?
        Ainda poderei encontrar prazer, mais intelectual do que sensual, no resplendor da primavera de Oxford, no florescer em Belbroughton Road (que parece a cada ano mais esplêndido, a luz do sol movendo-se nas paredes de pedra, o desabrochar das castanheiras balançando ao vento, o perfume dos campos em flor), os primeiros flocos de neve a cair, a fragilidade compacta de uma tulipa?
        O prazer não necessita ser menos penetrante, pois haverá séculos de primaveras por vir, com florações que não serão vistas por olhos humanos, muros tombarão, árvores irão morrer e apodrecer, os jardins se converterão em ervas e grama, pois toda beleza sobreviverá à inteligência humana.
        Digo isso a mim mesmo, mas será que acredito nisso, quando o prazer se torna agora mais raro e, quando ocorre, ele é indistinguível da dor? Posso entender porque a aristocracia e os grandes donos de terra, sem a perspectiva e a esperança da posteridade, abandonam suas propriedades sem vigilância.
        Não podemos experimentar outra coisa além o momento presente, vivendo neste e não em outro segundo e compreendendo que isto é o mais perto que chegaremos da vida eterna.
        Mas nossas mentes voltam no tempo, pelos séculos, nos assegurando de nossa ancestralidade, sem a esperança de posteridade para nossa raça e para nós mesmos, sem garantir que estamos mortos, apesar de vivos. Todos os prazeres da mente e dos sentidos às vezes parecem para mim nada mais do que uma patética defesa contra nossa ruína.  
        Em nossa perda universal, temos que nos libertar de todas as dolorosas lembranças, e os brinquedos nos parques precisaram ser retirados.
        Vinte anos após os Ômegas, os balanços ruíram, os escorregadores e escaladores perderam a tinta.
        Agora finalmente tinham sido levados e os parques asfaltados ou cobertos pelo mato e por flores, como pequenos túmulos.
        Os brinquedos foram queimados, exceto as bonecas, que se tornaram, para algumas mulheres um tanto dementes, substitutos para as crianças.
        As escolas, fechadas há muito tempo, se tornaram centros de educação para adultos.
        Os livros infantis foram praticamente todos retirados das livrarias.
        Somente em fita e discos podemos ouvir a voz de crianças, só em filmes e programas de televisão podemos ver as imagens em movimento das crianças.
        Alguns acham tal coisa intolerável de se assistir, mas a maioria se alimenta disso como uma droga.
        E a geração, nascida em 95, é chamada de Ômega.
        Nenhuma outra geração foi tão estudada, examinada, mais torturada, mais valorizada ou mais perdoada.
        Eles eram nossa esperança, nossa promessa de salvação e eram - ainda são - excepcionalmente belos.
        Às vezes parece que a natureza, em sua máxima indelicadeza, queria enfatizar o que nós perdemos.
        Os rapazes, homens de vinte e cinco anos agora, são fortes, individualistas, inteligentes e elegantes como jovens deuses. Alguns são também cruéis, arrogantes e violentos - e isso tem sido notado em todos os ômegas ao redor do mundo.
        As temíveis gangues dos Caras Pintadas, que dirigem pelo interior à noite, emboscando e aterrorizando viajantes desprevenidos, dizem se tratar de ômegas.
        Dizem que, quando um ômega é pego, lhe é oferecida imunidade se ele se juntar a Polícia de Segurança do Estado, enquanto que o resto não menos culpado é mandado para cumprir pena na Colina Penal, para onde são banidos todos os culpados por crimes de violência, roubo e reincidência.
        Mas, se estamos inseguros em nossas vias secundárias, nossas cidades são seguras, o crime foi efetivamente solucionado, finalmente com o retorno da política de deportação do século dezenove.
        As fêmeas ômegas possuem uma beleza diferente, clássica, distante, desatenta, sem animação ou energia.
        Elas possuem um estilo próprio que nenhuma outra mulher consegue copiar, ou talvez tenha medo de fazê-lo. Usam o cabelo longo e solto, com uma fita no alto da testa, simples e larga.
        Como seus iguais do sexo masculino, parecem ser incapazes de expressar compaixão.
        Homens e mulheres, os ômegas são uma raça à parte, favorecidos, tolerados, temidos, são lembranças do medo supersticioso. Dizem que em alguns países são sacrificados em rituais de fertilidade, mesmo após séculos de tênue civilidade.
        Eu ocasionalmente penso o que nós na Europa, faríamos se ficássemos sabendo que queimá-los seria uma oferenda aceita pelos deuses e que faria nascer uma criança.
        Talvez tenhamos feito os ômegas o que eles são devido à nossa insensatez; um regime que combina vigilância perpétua com total indulgência dificilmente conduz a um desenvolvimento saudável.
        Se você trata uma criança como um Deus, desde sua mais tenra infância, ela acabará na maioridade agindo como um demônio.
        Tenho uma memória viva deles que reproduz bem como eu os vejo, como eles vêem a si próprios.
        Era junho passado, um dia quente e abafado, com nuvens se movendo lentas como véus de musselina no céu azul-celeste, o ar era doce, nada da languidez úmida que associo ao verão de Oxford.
        Eu visitava um colega acadêmico na Igreja de Cristo e tinha entrado por Wolsey, quando vi um grupo de quatro moças e quatro rapazes ômegas, elegantemente dispostos ao pedestal de pedra de uma estátua.
        As moças com suas auréolas de cabelos brilhantes, sobrancelhas altas e saltadas, seus vestidos diáfanos de dobras elaboradas, como se tivessem saído dos vitrais pré-rafaelitas da catedral.
        Os quatro machos atrás delas, com pernas abertas, braços dobrados, olhando para o nada sobre suas cabeças, a arrogância de um suserano.
        Quando passei, as jovens me deram aquele olhar vazio, indolente, que, todavia, sinalizava uma inconfundível ponta de desprezo.  Os rapazes fizeram caras carrancudas, levemente ofendidos, como se ao ver um objeto imprestável ou indigno de nota, e voltaram ao olhar perdido de antes.
        Pensei, como agora, que sorte eu tinha por não ter que ensiná-los.
        A maioria dos ômegas termina a primeira série, mas é só; não se interessam por continuar sua educação.
        O estudante Ômega era inteligente, mas desconcentrado, pouco disciplinado e facilmente enfadado.
        Sua pergunta típica era —E daí? o que eu felizmente não precisava responder.
        Em História, interpretamos o passado para compreender o presente e enfrentar o futuro; era, então, a mais insignificante disciplina a ser ensinada para uma espécie que morria.
        Um dos colegas de universidade que tinha grande paciência com os ômegas, era Daniel Hurstfield, mas como professor de paleologia estatística, sua mente cobria uma dimensão de tempo diferente.
        E como o Deus do velho cântico, centenas de anos para ele eram como uma tarde que se ia.
        Sentado ao meu lado em uma festividade da escola, ele me disse:
        — O que você ganha com a lamentação, Faron? Você devia fazer algo que valesse a pena. Temo, às vezes, que você seja perigoso demais. Espero que tenha estabelecido um programa racional. Seria uma desgraça para mim, em meu leito de morte, contemplar os bárbaros ômegas tratando desrespeitosamente um colega de faculdade.
        Eu disse:
        — Estamos pensando nisso. Ainda estou me adaptando às coisas, é claro. Alguns acham que sou um pessimista.
        — Oh, não acho que você possa ser um pessimista. Não entendo a surpresa de vocês com os ômegas. Além disso, de quatro bilhões de formas de vida que já passaram por este planeta, três bilhões, novecentos e sessenta milhões estão extintos. E muitos nem sabemos o porquê. Alguns por uma extinção brincalhona, alguns por catástrofes naturais, realmente parece absurdo supor que o Homo sapiens seria uma exceção. Nossa espécie será aquela com a vida mais curta de todas, um mero piscar, pode se dizer, do olho do tempo. Ômegas a parte, é bem possível que um asteróide de tamanho suficiente para destruir este planeta esteja a caminho agora mesmo.
       
       
      Terça-feira, 5 de janeiro de 2021.
       
        Por dois anos, a convite de Xan, fui uma espécie de observador-conselheiro das reuniões do Conselho, e era comum os jornalistas escreverem que estávamos sempre juntos, que éramos unidos como irmãos.
        Não era verdade.
        Lá pela idade dos doze anos passávamos as férias de verão juntos, mas foi só.
        O erro não era surpresa. Eu quase acreditava nisso.
        Mesmo agora, aqueles verões pareciam uma retrospectiva cansativa da concatenação de dias iguais, dominados por horas na mesa, nem dolorosos ou memoráveis, mas insuportáveis ou ocasionalmente agradáveis, já que eu era inteligente e razoavelmente popular.
        Depois de uns dias em casa era mandado para Woolcombe.
        Enquanto escrevo, tento entender o que sinto por Xan, porque o elo se mantém tão forte e por tanto tempo.
        Não era nada sexual, exceto pelos primeiros momentos juntos de nossa amizade, quando houve uma rápida e subcutânea atração sexual. Nunca nos tocamos, eu me lembro, mesmo nas brincadeiras mais intempestivas.
        Aliais, não havia brincadeiras violentas. Xan odiava ser tocado e eu desde cedo aprendi a respeitar este campo invisível ao seu redor e ele o meu.
        Não se tratava, tampouco, da costumeira história de um parceiro dominante: o mais velho (mesmo se por meses) guiando o mais jovem, seu admirador discípulo.
        Ele nunca me fez sentir-me inferior; não era assim.
        Ele me recebia sem um tratamento cordial em especial, mas como se estivesse diante de seu irmão gêmeo, uma parte de si mesmo. Ele era encantador, é claro, ainda é.
        Um encanto muitas vezes menosprezado, mas nunca entendi o porquê.
        Ninguém faz isso sem ser capaz de genuinamente identificar-se com o outro, ao menos durante um encontro, numa conversa. Este atrativo é sempre genuíno: pode ser superficial, mas nunca falso. Quando Xan está com uma pessoa, ele dá a impressão de intimidade, de interesse, de não querer estar com qualquer outra pessoa no mundo.  Ele pode ouvir falar sobre a morte desta pessoa no dia seguinte com serenidade, pode inclusive tê-lo assassinado sem escrúpulos.
        Agora eu o vejo na televisão, em seu programa trimestral para a nação, e posso ver o mesmo encanto.
        Nossas mães estão mortas. Elas estiveram internadas em seu fim no Woolcombe, que hoje é uma casa de internação para familiares do Conselho.
        O pai de Xan morrera num acidente de carro na França no mesmo ano que ele se tornou o Governador.
        Havia algum mistério a este respeito, os detalhes da morte não foram divulgados. Cheguei a pensar muito sobre o acidente durante um tempo, ainda penso às vezes, o que diz bastante sobre meu relacionamento com Xan. Parte de mim acredita que ele é capaz de qualquer coisa, a outra parte necessita acreditar nele sem questionar, como alguém além das amarras de um comportamento banal, o que sempre vi nele quando éramos garotos.
        As vidas das irmãs tiveram rumos diferentes.
        Minha tia, por uma fortuita combinação de beleza, ambição e boa aparência, casou-se com um baronete de meia-idade, e minha mãe casou-se com um servidor civil de formação mediana.
        Xan nasceu em Woolcombe, um dos mais belos solares em Dorset; eu nasci em Kingston, Surrey, na maternidade que ficava em uma das alas de um hospital local e fui morar em uma semipreservada casa vitoriana, em uma longa rua de casa idênticas, no caminho de Richmond Park.
        Cresci numa atmosfera cheirando a ressentimento.
        Lembro de minha mãe me preparando para uma visita de verão a Woolcombe, separando nervosamente camisas brancas, dobrando meu melhor casaco, examinando-o e sacudindo-o com o que parecia um ressentimento pessoal. Como se, ao mesmo tempo, se ressentisse do quanto ele havia custado e pelo fato de termos sempre que comprar roupas mais largas, que permitissem seu uso mesmo com o crescimento, e agora o casaco era pequeno demais para ser confortável, e não havia um período no qual ele se ajustasse com perfeição.
        Sua atitude com a irmã rica se traduzia em uma série de frases constantemente repetidas:
        — Ainda bem que eles não se vestem para jantar. Eu não compraria mesmo para você um casaco para jantar, não na sua idade. Ridículo!
        E a pergunta inevitável - feita com olhar ofendido, do qual ela não tinha vergonha:
        — Eles vão bem, certo? É claro que na sua classe social é comum marido e mulher dormirem em quartos separados -  e ao fim dizia:
         — É claro que está tudo bem com Serena.
        Sabia, mesmo aos doze anos, que as coisas não iam bem para Serena.   
        Suspeitava que minha mãe mantinha um estreita ligação com sua irmã e cunhado, mais do que demonstrava. Mesmo meu pouco comum, nome cristão, eu devia a Xan.
        Ele recebera o nome do avô e do bisavô. “ Xan”   era um nome na família Lyppiatts por gerações.
        Eu também recebi o nome de meu avô paterno, minha mãe não viu razão de escolher outro, mesmo sendo um nome excêntrico para uma criança.
        Mas Sir George a embaraçava.
        Ainda posso ouvir seu comentário rabugento:
        — Ele não se parece com um baronete! 
        Ele era o único baronete entre nós e eu imaginava que imagem secreta ela fazia - um descorado, romântico quadro de Van Dyck, cheio de uma arrogância byronesca, um rosto vermelho e quadrado, a voz estrondosa, difícil de esquecer.
        Mas eu sabia o que ela pensava; ele não se parecia com um baronete também.
        Muito menos parecia com um proprietário de Woolcombe.
        Tinha o rosto longo e sardento, com uma boca úmida sob um bigode que parecia tanto ridículo quanto falso, os cabelos despenteados que conferiam uma aparência de loucura.
        Mas era um bom atirador- minha mãe o aprovava. E assim também era Xan.
        Ele não podia tocar nas espingardas do pai, mas tinha as suas próprias, com as quais caçávamos coelhos, e outras duas que usávamos para tiro ao alvo.
        Prendíamos alvos em árvores e passávamos horas aperfeiçoando nossos escores.
        Depois de poucos dias de prática, eu fiquei melhor do que Xan em pistola e revólver.
        Meu talento no surpreendeu (e a mim mesmo em particular).
        Nunca esperei ser bom em tiro. E estava desconcertado em descobrir o quanto eu gostava daquilo, com um pouco de culpa, mas com um prazer quase sexual, a sensação do metal na palma da mão, a satisfação do balanço das armas.
        Xan não tinha outras companhias durante as férias e parecia não precisar.
        Nenhum dos amigos de Sherbone vinham a Woolcombe.
        Quando eu o perguntava sobre a escola, ele era evasivo.
        — Tudo bem. Melhor do que Harrow.
        — Melhor que Eton?
        — Não vamos mais para lá. O bisavô tem algo contra o lugar. Me esqueci do que se trata.
        — Você não se importa com isso?
        — Por que deveria? Você se importa?
        — Não, prefiro assim. Se não pudesse vir aqui, preferiria a escola às férias.
        Ele ficou calado por um pouco e então disse:
        — É o seguinte, os professores querem te entender, eles pensam que são pagos para isso. Eu os deixo confusos. Sou o mais aplicado, tenho as melhores notas, sou o queridinho do diretor, serei o próximo grande nome, e  então apronto um grande problema.
        — Que tipo de problema?
        — Não o bastante para ser chutado para fora, e no próximo período, sou novamente o bom garoto. Eles ficam confusos, preocupados comigo.
        Eu não o entendia, mas não ligava. Eu também não me entendia.
        Sei agora , é claro, por que ele me queria em Woolcombe.
        Acho que já sabia desde o inicio.
        Ele não tinha o menor comprometimento comigo, nenhuma responsabilidade, nem o que se espera no comprometimento entre amigos, ou a responsabilidade das escolhas pessoais.
        Ele não tinha me escolhido. Eu era seu primo: se fosse um desejo seu, eu estaria lá.
        Comigo em Woolcombe ele nunca teve que encarar a pergunta inevitável:
        — Por que você não convida seus amigos nas férias?
        Por que faria? Ele tinha o primo órfão para diverti-lo.
        Eu o desobrigava, do peso excessivo das questões familiares.
        Nunca me preocupei particularmente com esta questão: sem mim, seus pais deviam se sentir constrangidos.
        Desde a infância ele não tolerava que dúvidas interferissem em sua vida.
        Eu simpatizava com isso, também pensava assim.
        Se tivesse tempo ou propósito o bastante, me interessaria em vasculhar nossa ancestralidade em comum e descobrir as raízes dessa obsessiva auto-suficiência.
        Acho que isso se tornou um dos motivos do fracasso do meu casamento.
        E era a razão pela qual Xan nunca se casara.
        Era necessário uma força mais poderosa do que o amor sexual para erguer a ponte levadiça que defende nossos guarnecidos corações e mentes.
        Raramente encontrávamos seus pais durante estas longas semanas de verão.
        Como a maioria dos adolescentes, dormíamos tarde e eles tomavam o café da manhã enquanto dormíamos. Nosso lanche da tarde era um piquenique que preparávamos na cozinha, uma térmica de sopa caseira, pão, queijo e patê, pedaços de pão de frutas caseiro preparado por uma lúgubre cozinheira que rosnava devido ao trabalho extra que dávamos e por tornarmos impossíveis os prestigiosos jantares em que podia exibir seus talentos.
        Voltávamos para o jantar a tempo de trocar nossas roupas.
        Meu tio e tia nunca me entretinham, pelo menos quando estava lá, e as conversas quase inteiramente se davam entre eles, enquanto Xan e eu comíamos, trocando entre eles ocasionais olhares conspiratórios, julgando nossa juventude.
        Suas conversas espasmódicas eram geralmente sobre planos sobre nós e ditos de uma maneira que não parecíamos estar ali.
        Minha tia, delicadamente retirava a casca de uma pêra, sem erguer os olhos:
        — Os garotos podem gostar de ver o castelo Maiden.
        — Não há muito para ver lá; Jack Manning poderia levá-los em seu barco quando fosse pescar as lagostas.
        — Não confio inteiramente em Manning. Haverá um concerto amanhã em Poole que eles podem gostar.
        — Que tipo de concerto?
        — Não lembro, eu lhe dei o programa.
        — Eles gostarão de passar um dia em Londres.
        — Não com este tempo. Ficariam melhor ao ar livre.
        Quando Xan fez 17 e dirigiu o carro do pai pela primeira vez, fomos até Poole atrás de garotas.
        Achava estas excursões terríveis e só fui com ele por duas vezes.
        Era como entrar em um mundo alienígena, os risos, as garotas caçando aos pares, o atrevimento, as trocas de olhares, as aparentemente inconseqüentes mas obrigatórias conversas. Depois da segunda vez eu disse:
         —Não precisamos fingir sentir alguma afeição, nem gostamos delas e elas certamente não gostam de nós. Então, se ambas as partes só querem sexo, então por que não falamos logo e paramos com estas preliminares embaraçosas?
        —Por que elas precisam disso. De qualquer forma, a única mulher que vai chegar perto de você vai te pedir dinheiro antes. Nós podemos ter sorte na Poole, com um cinema e algumas horas bebendo.
        — Acho que não irei.
        — Você deve estar certo. Na manhã seguinte, geralmente me sinto como se não valesse a pena esse trabalho todo.
        Isso era típico dele, fazer parecer que minha relutância não era, como ele sabia, uma mistura de embaraço, medo de errar e vergonha. Eu poderia culpar Xan pelo fato de ter perdido minha virgindade em péssimas condições, com profundo desconforto no estacionamento do Poole com uma ruiva que, durante minhas preliminares e mesmo depois, dizia que sabia de maneiras melhores de passar uma noite de sábado. E eu poderia jurar que aquela experiência afetaria seriamente minha vida sexual. Mas afinal, se nossa vida sexual fosse determinada pelas nossas primeiras experiências na juventude, a maioria das pessoas no mundo escolheria ser celibatário.
        Em nenhuma área da experiência humana os seres humanos são mais convictos de que algo melhor pode vir a ocorrer somente se perseverarem.
        Além da cozinheira, lembro de outros poucos criados.
        Havia um jardineiro, Hobhouse, com uma particular repugnância de rosas, especialmente quando plantadas com outras flores.
        E tinha Scovell, com sua cara pequena e esperta, cujo trabalho exatamente eu nunca entendi: motorista, ajudante de jardinagem, quebra-galhos? Xan o ignorava, quando não o ofendida de maneira calculada.
        Nunca o vi ser rude com outro empregado e nunca perguntei por que o fazia, se não tinha sentido, atento como sempre a cada nuance emocional de meu primo, perguntar então seria inadequado.
        Não me ressentia por Xan ser o favorito dos nossos avós. A preferência me parecia perfeitamente natural. Lembro de um trecho de uma conversa, em algum Natal quando, desastrosamente, nos encontrávamos em Woolcombe.
        — Imagino se Theo não vai ter o mesmo fim que Xan.
        — Oh, não. Theo tem boa aparência, é um garoto inteligente, mas Xan é brilhante.
        Xan e eu concordávamos com aquele julgamento.
        Quando entrei para Oxford eles ficaram contentes, porém surpresos.
        Quando Xan entrou para o Balliol, acharam que era direito dele.
        Quando recebi minha primeira graduação, disseram que havia sido sorte minha.
        Quando Xan concluiu o secundário, eles, indulgentes, disseram que ele não tinha que se aborrecer com aquilo.
        Ele não me fazia exigências, nunca me tratou como o primo pobre, que uma vez por ano era presenteado com comida, bebida e férias grátis em troca de companhia ou subserviência.
        Eu tinha a liberdade de ficar sozinho sem ter que dar explicações. Quase sempre ficava na biblioteca, um lugar onde me deliciava com os tomos enfileirados lado a lado e as capas de couro, suas pilastras e uma magnífica lareira de pedra com as armas de família incrustadas. Admirava os bustos de mármore em seus nichos, a grande mesa para mapas, onde eu podia abrir meus livros e trabalhos de férias, a profunda poltrona de couro, e a vista das janelas altas da clareira até o rio e a ponte.
        Era ali, vasculhando as histórias do condado, que descobri que uma escaramuça ocorrera na ponte, durante a guerra civil, quando cinco cavaleiros partidários de Carlos I tomaram a ponte dos puritanos, lutando até que todos tombassem. Até seus nomes evocavam a coragem romântica, Ormerod, Freemantle, Cole, Bydder e Fairfax.
        Fui até Xan, tremendamente excitado e o fiz vir até a biblioteca.
        — Veja, será o aniversário da batalha na próxima quarta-feira, dezesseis de agosto. Temos que celebrar!
        — Como? Atirando flores na água?
        Não estava sendo desdenhoso, só não dava importância ao meu entusiasmo.
        — Por que não vamos beber por eles? Fazer uma cerimônia!
        Fizemos as duas coisas. Fomos à ponte ao pôr do sol com uma garrafa de vinho Claret (do seu pai), duas pistolas e os braços carregados de flores colhidas no jardim murado.
        Bebemos juntos e então Xan, equilibrado no parapeito, disparou ambas as pistolas para cima e eu gritei seus nomes. É um dos momentos da minha juventude que me dão prazer de lembrar, um final de tarde de puro prazer, sem culpa ou remorsos, imortalizado para mim pela imagem de Xan equilibrando-se contra o pôr do sol, o cabelo em fogo e as pétalas pálidas das rosas flutuando na correnteza, sob a ponte, até perder de vista.
       
       
       
        Segunda, 18 de Janeiro de 2021.
        Lembro das minhas primeiras férias em Woolcombe.
        Segui Xan através de um segundo lance de escadas até o final de um corredor e ao quarto sobre o terraço e a planície que terminava no rio e a ponte. A princípio, contaminado pelo ressentimento de minha mãe, imaginava se seria colocado no quarto dos criados. Então Xan falou:
        — Estou no quarto ao lado. Temos nosso próprio banheiro no fim do corredor.
        Lembro de cada detalhe daquele quarto. Fiquei nele durante cada uma de minhas férias de verão desde meu tempo de escola até deixar Oxford.
        Eu mudava, mas o quarto jamais mudou, e via na minha imaginação uma sucessão de estudantes, cada qual carregando uma estranha semelhança comigo, abrindo aquela porta a cada verão e adentrando aquela sua herança.
        Não voltei a Woolcombe desde a morte de minha mãe, oito anos atrás, e agora nunca voltarei.
        Algumas vezes, fantasio de que retorno a Woolcombe, já velho, e morro naquele quarto. Abro sua porta pela última vez e olho mais uma vez a cama de quatro colunas com suas incrustações, a colcha de um triste patchwork, a cadeira de balanço com sua almofada bordada por alguma das mulheres Lyppiart, morta há décadas, a pátina dos móveis georgianos, a estante de livros com as edições dos séculos 19 e 20 para jovens moços: Henty, Fenimore Cooper, Rider Haggard, Conan Doyle, Sapper, John Buchan.
        O armário em arco de gavetas com o espelho gasto ao topo, e as velhas pinturas de cenas de batalhas, cavalos empinados a frente de canhões, oficiais cavaleiros de olhos selvagens, a morte de Nelson.
        E, mais claramente que tudo, me lembro do dia quando entrei pela primeira vez ali, caminhei até a janela e olhei por sobre o terraço o gramado em declive, os carvalhos, o resplendor do rio e a pequena ponte corcunda.
        Xan da porta disse:
        — Podemos sair para algum lugar amanhã, se quiser, para pedalar. O proprietário comprou uma bicicleta para você.
        Eu aprenderia que ele raramente falava do pai de outro modo.
        Eu disse: 
        — Que gentileza.
        — Não acho. Ele tinha que comprar, não tinha? Senão não poderíamos andar juntos.
        — Eu tenho uma bicicleta. Uso para ir à escola. Eu podia ter trazido.
        — O proprietário pensou que seria menos problemático manter uma aqui. Não precisa usá-la se não quiser. Eu gosto de andar por aí de dia, mas não precisa vir comigo se não quiser. Andar de bicicleta não é obrigatório. Nada é obrigatório em Woolcombe, exceto a infelicidade.
        Iria descobrir mais tarde que aquilo era o tipo de humor semi-adulto que ele gostava de fazer.
        Tentava me impressionar. Mas eu não acreditava nele.
        Naquela primeira visita, inocentemente encantado com tudo, era impossível imaginar que alguém pudesse ficar infeliz numa casa como aquela. Isso, certamente, incluía ele próprio.
        Eu disse:
        — Gostaria de ver as vizinhanças da casa qualquer hora dessas.
        Então fiquei corado com medo de parecer um avaliador de propriedades ou um turista.
        — Vamos, é claro, se puder esperar até sábado. A senhorita Maskell, do vicariato fará as honras. Isto vai lhe custar uma moeda, mas inclui os jardins, que são abertos aos sábados para auxiliar os fundos da igreja. O que Molly Maskell não possui em conhecimentos históricos e artísticos, lhe sobra em imaginação.
        — Eu preferia que você me mostrasse.
        Ele não respondeu, mas ficou me olhando enquanto eu colocava a mala na cama e começava a desfazê-la. Minha mãe me comprou uma mala nova para esta primeira viagem.
        Desagradavelmente consciente de que ela era grande demais, vistosa demais, muito pesada, preferia minha velha mala de viagens de lona. Eu tinha, é claro, trazido roupas demais, e todas erradas, mas ele não disse nada. Não sei se por delicadeza, tato ou por que não tinha visto. Enfiei-as rapidamente dentro das gavetas. Perguntei:
        — Não é esquisito viver aqui em Woolcombe?
        — É inconveniente e às vezes chato, mas não esquisito. Meus ancestrais viveram aqui por trezentos anos. E acrescentou:
        — É relativamente pequena.
        Aquilo soou para mim como se ele estivesse tentando me deixar à vontade, depreciando sua herança, mas quando olhei para ele eu vi, pela primeira vez, aquela expressão que se tornaria familiar para mim: um divertimento íntimo e secreto, que se via nos olhos e na boca, mas que nunca se transformava num sorriso.
        Eu não sabia e ainda não sei o quanto ele se importa com Woolcombe. Ainda é usada como casa de retiro para poucos privilegiados, parentes e amigos dos membros do Conselho regional, distrital e Conselhos locais, pessoas que são consideradas merecedoras de algum privilégio do Estado.
        Até a morte da minha mãe, Helena e eu fazíamos visitas regulares ao lugar.
        Ainda posso ver as duas irmãs sentadas juntas no terraço, bem próximas, devido ao frio, uma com câncer terminal e outra com asma cardíaca e artrite; ódio e ressentimento esquecidos conforme encaravam a grande equalizadora morte.
        Quando penso no mundo sem um único ser vivo, posso ver - quem não pode? - as grandes catedrais e templos, palácios e castelos, desabitados por séculos, a biblioteca britânica, com seus manuscritos preservados e livros que ninguém irá jamais abrir ou ler.
        Mas de todo coração, lamento somente por pensar em Woolcombe. Em imaginar o odor mofado dos quartos desertos, os painéis apodrecendo na biblioteca, a hera crescendo nas paredes, a grama e a erva tomando o terreno da quadra de tênis e do jardim principal, apenas pela lembrança do quarto pequeno, não mais visitado e intocado até que as cobertas apodreçam, os livros se tornem pó e o último quadro despenque da parede.
       
       
        Quinta-feira, 21 de Janeiro de 2021
        Minha mãe tinha pretensões artísticas.
        Não, isso é arrogante e não é verdadeiro. Ela não tinha pretensões a nada, exceto à respeitabilidade.
        Mas tinha algum talento artístico e, contudo, nunca a vi produzir nada de original.
        Seu hobby era pintar velhas cenas, geralmente vitorianas, tiradas dos volumes dos Livros para Moças ou do Illustrated London News.
        Não acho que fosse difícil, mas ela o fazia com alguma habilidade, com cuidado e uma vez me disse que usava cores historicamente corretas, embora eu não entenda como ela podia ter certeza disso.
        Acho que o mais perto da felicidade que já chegou foi quando estava sentada na mesa da cozinha, com sua caixa de pintura, o foco da luminária angular ajustado sobre a figura a sua frente, retirada de um jornal. Costumava vê-la trabalhar, a delicadeza com que mergulhava o fino pincel na água, os torvelinhos de azuis, amarelos e brancos misturados em sua paleta.
        A cozinha era grande o bastante, senão para espalhar todo meu trabalho de casa, mas o bastante para ler ou escrever meus ensaios semanais.
        Gostava de contemplar, meu exame breve e sem ressentimentos, e ver as cores brilhantes colidindo através da pintura, a transformação do monótono cinza em uma cena viva; o terminal de trem repleto de mulheres ossudas, acompanhando a partida de seus homens para a guerra da Criméia; uma família vitoriana, mulheres em peles alvoroçadas com a decoração da igreja para o Natal; a Rainha Vitória acompanhada por seu consorte, cercada por crianças bem vestidas; a abertura da Grande Exibição; cenas de barcos; homens de bigode em seus blazers, moças de cintura pequenas e seios inchados e chapéus de palha; igrejas de vilas com a procissão de adoradores; o nobre rural e sua senhora ao fundo da missa da tarde e túmulos repletos de festivas flores de primavera. Talvez a fascinação por estas imagens tenha servido para dirigir meu interesse à história do século 19, uma época que agora - e na época de meus estudos - parecia como um outro mundo, visto por telescópio, tão perto e infinitamente longe, fascinante por sua energia e seriedade moral, tão brilhante quanto miserável.  
        O hobby de minha mãe não era lucrativo. Ela emoldurava os quadros terminados com a ajuda de Mr.Greenstreet, o vigário da igreja local; e eu, relutante, ia vendê-los nas lojas de antiquários.
        Nunca soube que lugar Mr Greenstreet ocupava em sua vida a não ser por esta habilidade com a madeira e a cola, ou o que poderia ocorrer se não fosse por esta minha presença onipresente entre os dois, mais do que podia saber quanto minha mãe recebia pelos quadros e como suspeitava, este dinheiro extra bancava minhas viagens escolares, os bastões de cricket, os livros extras. Eu dava minha parcela de contribuição, já que era eu que escolhia as pinturas. Eu as procurava nas lojas de usados em Kingston no meu caminho para casa indo da escola ou aos sábados, às vezes indo de bicicleta, quinze ou vinte quilômetros até uma loja que tinha os melhores espólios. A maior parte era barata e eu os comprava com o pouco dinheiro do bolso. Os melhores eu roubava, me tornando um especialista em arrancar a página de pôster central dos livros, sem danificá-los, arrancando as figuras e escondendo-as no Atlas escolar.
        Precisava desses atos de vandalismo como a maioria dos garotos precisava de suas pequenas delinqüências. Nunca ninguém suspeitou de mim, uniformizado, um garoto da escola primária que ocasionalmente comprava livros de segunda mão dos vendedores de miscelâneas na porta das lojas. Adorava estas excursões solitárias, o risco, a excitação em descobrir um tesouro, o triunfo de retornar com meu saque.
        Minha mãe pouco me falava sobre o assunto, a não ser por quanto eu gastara e para me reembolsar.
        Se suspeitava que algumas daquelas fotos valiam mais do que eu lhe dizia ter pagado, ela nunca demonstrou, mas sabia que ela ficava grata.
        Eu não a amava, mas eu roubava por ela.
        Aprendi desde cedo, naquela mesa de cozinha, que havia maneiras sem culpa de evitar os comprometimentos do amor.
        Eu sei, ou penso saber, sobre meu terror em assumir responsabilidades pela vida das outras pessoas, ou por sua felicidade; posso estar enganado a mim mesmo, mas sempre fui esperto bastante para inventar desculpas para minhas deficiências pessoais.
        Acho que posso seguir suas raízes até o ano de 1983, o ano em que meu pai perdeu sua batalha contra um câncer de estômago. Foi quando atento aos mais velhos, ouvi a descrição — ele perdeu sua batalha .  
        E vejo agora que foi uma batalha, com alguma bravura, mesmo se ele não tivesse muita opção.
        Meus parentes tentaram me poupar de saber o pior.
        — Vamos tentar não envolver o garoto nisso -   era outra frase freqüentemente ouvida.
        Mas isso também significava não me falarem nada exceto de que meu pai estava doente, que tinha que procurar um especialista, ir ao hospital para uma operação e que em breve estaria de volta em casa, que iríamos ter que ir ao hospital de novo. Algumas vezes eu sequer era avisado; voltava da escola e ele não estava mais em casa e minha mãe limpava a casa com um rosto petrificado.
        Não envolver o menino significava que eu vivia sozinho em uma atmosfera de incompreensível ameaça na qual nos três seriamos inexoravelmente atingidos para algum desastre inimaginável, que quando viesse seria minha culpa.
        Crianças sempre acreditam que as catástrofes dos adultos são sua culpa.
        Minha mãe nunca pronunciou a palavra — câncer—  pra mim, nunca se referiu a esta doença a não ser por acidente.
        — Seu pai está um pouco cansado esta manhã , -  seu pai vai ter que voltar ao hospital hoje ,
        — Leve seus livros escolares pra cima antes do doutor chegar. Ele quer falar comigo.  
        Ela falava com olhar ofendido como se houvesse algo embaraçoso, ou mesmo indecente, sobre a doença. Algo que se convertia em uma questão imprópria para uma criança.
        Ou aquilo era um segredo total, um sofrimento compartilhado, que tinha se tornado parte essencial de seu casamento e do qual eu estava severamente excluído, do mesmo modo que de sua cama de casal Imagino agora o quanto do silêncio de meu pai para comigo era deliberado.
        O quanto nos afastamos, menos pela dor e aborrecimento, que drenava a esperança, do que pelo desejo de não aumentar a angústia da separação. Ele também nunca teve o meu carinho. Não era uma criança fácil de amar. E como podíamos nos falar? O mundo de uma doença terminal não é o mundo dos vivos nem dos mortos. Tenho observado outras pessoas como meu pai, sempre com uma sensação de estranheza. Eles se sentam e falam, e são ouvidas e ouvem e sorriem, mas em espírito, já se foram e não há como penetrar aquela redoma de proteção.
        Não me lembro do dia em que ele morreu a não ser por um incidente: minha mãe estava sentada na mesa da cozinha secando as últimas lagrimas de ódio e frustração.
        Quando, tímido e embaraçado, tentei colocar meus braços ao seu redor, ela sussurrou:
        — Por que eu sempre fui tão azarada?
        Pareceu-me aos doze anos, e me parece hoje, uma resposta pouco apropriada para uma tragédia pessoal e sua trivialidade influenciaria minha atitude com minha mãe o resto da minha infância.
        Aquilo foi injusto e condenatório, mas crianças são injustas e condenatórias com os pais.
        Apesar disso eu esqueci, ou deliberadamente tirei de minha cabeça, tudo sobre o dia em que meu pai morreu. Posso relembrar cada hora do dia em que foi cremado, a chuva fina que fez os jardins do crematório parecerem com uma pintura pontilhista, a espera no claustro pelas primeiras cremações terminarem para podermos tomar nossos lugares nos bancos duros de pinho, o cheiro da roupa nova, as coroas de flores, a pequenez do caixão - parecia impossível que pudesse conter o corpo de meu pai. A ansiedade da minha mãe para que tudo transcorresse bem era aumentada pelo medo do que seu cunhado baronete aparecesse.
        Ele não apareceu, nem Xan que estava na escola preparatória. Mas minha tia veio, muito bem vestida, a única mulher que não estava predominantemente de preto, dando a minha mãe um oportuno motivo para se queixar. Eu estava perto da mesa de bolos no banquete do funeral quando ouvi as duas irmãs decidirem que as minhas próximas férias de verão seriam em Woolcombe - e o modelo para todas as subseqüentes férias de verão estava estabelecido.
        Mas minha principal lembrança do dia era uma atmosfera de excitação zero e uma forte censura que sentia estar direcionada para mim.
        Foi quando pela primeira vez ouvi a frase que foi repetida por amigos e vizinhos, em seus trajes negros:
        — Você agora é o homem da família, Theo. Sua mãe conta com você!—
        Eu não pude dizer a verdade, nos quarenta anos seguintes.
        Nunca quis ninguém contando comigo, nem por proteção ou felicidade, não por amor, por nada.
        Desejava ter uma lembrança feliz de meu pai, uma lembrança clara do homem com quem eu podia contar, fazer parte de mim, e mesmo poder apontar três de suas qualidades.
        Pensando nele agora, pela primeira vez em anos, não há adjetivos que eu possa honestamente usar, não era gentil, inteligente ou amável. Ele poderia ter sido, mas não sei.
        Tudo que sei sobre ele era que estava morrendo.
        Seu câncer não foi rápido ou misericordioso - quando é? - e ele levou três anos para morrer.
        Parece que a maior parte da minha infância incluía a aparência, o som e o cheiro de sua morte. Ele era seu câncer. Não via nada mais do que vejo hoje. E, por anos minha memória dele, menos memória do que reencarnação, era a de horror. Poucas semanas antes de morrer ele cortou o dedo abrindo uma lata e a ferida infeccionou. Debaixo da bandagem trocada por minha mãe via-se sangue e pus. 
        Isso não parecia aborrecê-lo, comia com a mão ferida, como se nada tivesse a ver com ele. Mas eu não conseguia afastar meus olhos, a fome brigando com a náusea. Era para mim um objeto obsceno de horror. Talvez eu projetasse no seu dedo ferido todo meu desconhecimento de sua doença mortal.
        Meses após sua morte era visitado por um pesadelo recorrente quando eu o via ao pé da minha cama apontando-me não seu dedo sangrento, mas toda a mão amputada.
        Não falava, ficava lá mudo em seu pijama listrado.
        Parece injusto para mim que ele fosse por tanto tempo lembrado com horror, com sangue pingando e pus. Na forma de um pesadelo, enigmaticamente para mim agora, com meu conhecimento adulto de psicologia, que procuro analisar.
        Seria mais explicável se eu fosse uma menina.
        A tentativa de explicar era uma tentativa de exorcizar. Em parte com sucesso.
        Depois que matei Natalie ele me visitava semanalmente; agora ele nunca mais apareceu.
        Estou contente que tenha finalmente se ido, levando sua dor, seu sangue e seu pus.
        Mas gostaria que tivesse me deixado uma lembrança diferente.
       
       
        Sexta, 22 de janeiro de 2021.
       
        Hoje é o aniversário da minha filha, quer dizer, seria o aniversario de minha filha se eu não tivesse a atropelado e a matado.
        Isso ocorreu em 1994, quando ela tinha 15 meses.
        Helena e eu morávamos numa semi-preservada casa eduardiana em Lathbury Road, muito cara e muito grande para nós, mas assim que Helena soube que estava grávida, insistiu numa casa com jardim e um quarto de criança voltado para o sul.
        Não me recordo hoje exatamente das circunstâncias exatas do acidente, se eu deveria estar de olho em Natalie ou se ela estava com a mãe.
        Aquilo tudo deve ter feito parte da investigação, mas o inquérito, a designação oficial de responsabilidade foi apagado da memória.
        Lembro que estava saindo para a faculdade e dando ré no carro, que Helena havia estacionado no dia anterior, de maneira que eu poderia manobrar facilmente até o portão estreito do jardim.
        Não havia garagem em Lathbury Road, mas havia espaço para dois carros em frente de casa.
        Eu tinha deixado a porta da frente aberta e Natalie, que andava desde os 13 meses, saiu me procurando.
        Uma mínima culpabilidade foi estabelecida no inquérito também.
        Mas alguma coisa eu ainda me lembro: o leve solavanco no pneu traseiro esquerdo como se passasse por uma pedra, mas mais macio, mais tenro e suave do que uma pedra.
        E a imediata compreensão, absoluta, certa e aterradora do que era.
        E os cinco segundos de total silêncio, antes dos gritos começarem.
        Sabia que era Helena gritando e ainda assim parte de mim não conseguia acreditar se tratar de um som humano. Lembro da humilhação.
        Não consegui me mover, sair do carro, nem sequer estender minha mão até a porta.
        Então George Hawkins, nosso vizinho, apareceu socando o vidro da janela e gritando — saia do carro desgraçado, saia agora!  e lembro a irrelevância de meu pensamento ao vê-lo embrutecido, o rosto distorcido pela raiva contra o vidro da janela.
        Ele nunca gostou de mim. Não dava para fingir que não acontecera.
        Não dava pra fingir que era com outra pessoa. Não dava para fingir que eu não era o responsável.
        Horror e culpa misturados no luto. Talvez se Helena fosse capaz de dizer — é pior para você, querido— , nós poderíamos ter salvado algo dos destroços do casamento, que desde o seu início não fora particularmente saudável.
        Mas é claro que ela não podia, que não era algo que ela acreditasse.
        Ela pensava que eu não me importava tanto quanto ela - e estava certa.
        Ela pensava que eu me importava menos com ela, pois a amava menos e ela estava certa sobre isso também.
        Eu estava feliz em ser pai.
        Quando ela me disse que estava grávida, senti o que eu presumo ser todas as emoções usuais, orgulho irracional, satisfação e estupefação.
        Sentia afeto pelo meu bebê, embora tivesse sentido mais quando era ainda menor - parecia uma miniatura caricatural do pai de Helena - mais afeto, mais responsabilidade e menos inclinado a lamentar-me.
        Estou feliz que nunca ninguém irá ler estas palavras.
        Ela morreu há quase vinte e cinco anos e ainda penso nela como se estivesse me queixando de suas atitudes.
        Mas Helena ficara totalmente obsessiva pelo bebê, totalmente encantada, escravizada e eu sei que o que estragou Natalie para mim foi a inveja.
        Eu poderia ter superado ou pelo menos aprendido a viver com isso, mas não tive tempo para.
        Não acho que Helena acreditasse que eu tivesse atropelado nossa filha de propósito, pelo menos não quando ela está racional; mesmo em seus momentos mais amargos, ela evitava dizer palavras que não serão esquecidas, como uma mulher carregando o peso de um marido desprezível, que engole as palavras — queria que você estivesse morto.
        Mas se pudesse, ela preferiria ter Natalie viva, e não eu.
        Não a culpo por isso.
        Mantinha distância da cama de casal, esperando-a adormecer, sabendo que levava horas para acontecer, preocupado com o dia seguinte, como, através das noites de sono ruim, eu seria capaz de lutar repetindo minha ladainha de justificativas para a escuridão.
        — Meu deus, foi um acidente. Eu não queria fazer aquilo. Não sou o único pai que matou um filho. Ela devia estar de olho em Natalie, a criança era sua responsabilidade, ela planejou aquilo assim, eu não, o mínimo que tinha que fazer era olhar por sua propriedade.
        Mas uma auto-justificativa raivosa era algo banal e irrelevante, como a desculpa de uma criança por ter quebrado um vaso.
        Sabíamos que teríamos que deixar Lathbury Road. Helena disse:
         — Não podemos ficar aqui. Temos que procurar por uma casa próxima do centro. Além disso, você nunca gostou deste lugar— .
        A alegação, embora não dita, estava lá: você está feliz com a mudança, feliz que a morte dela tornou isso possível.
        Seis meses depois do funeral nos mudamos para St.Johh Street, para uma casa georgiana de dois andares com a porta da casa na rua e onde estacionar era difícil.
        Lathbury Road era uma casa de família; esta era uma casa para pessoas desimpedidas, ágil e solitária.
        A mudança me caiu bem, por que gostava de estar perto do centro e a arquitetura georgiana, mesmo especulativamene georgiana, requeria constante manutenção, mais do que a eduardiana.
        Não fazíamos amor desde a morte de Natalie, e agora Helena dormia em outro quarto.
        Nunca discutíamos isso, mas sabia que ela diria que não tinha apenas assassinado sua amada filha, mas a esperança de ter outra criança, o filho que ela suspeitava que eu realmente queria.
        Mas isso foi em 1994 e não tínhamos mais escolha.
        Não ficamos permanentemente separados, é claro. Sexo e casamento são coisas mais complicadas que isso.
        De tempos em tempos eu atravessava os poucos metros acarpetados entre seu quarto e o meu.
        Ela não me recebia bem, mas também não me rejeitava.
        Mas havia um abismo entre nós que eu não me esforçava em vencer.
        Esta estreita casa de cinco pavimentos era grande demais para mim, mas com a população sendo reduzida não queria ser criticado por não repartir aquilo que tinha em excesso.
        Não havia estudantes precisando de um quarto, nem jovens sem onde dormir para atormentar a consciência dos privilegiados. A sala de jantar e a cozinha ficavam no porão, uma escada com um amplo arco de pedras levava ao jardim. Acima, duas salas de estar foram convertidas em uma que servia como biblioteca, sala de televisão e som e um lugar conveniente para eu encontrar meus alunos.
        O primeiro andar era uma grande sala em “ L”  , que fora convertida em dois quartos pequenos, com duas destoantes lareiras.
        Da janela ao fundo podia ver o jardim murado e pequeno com uma solitária bétula prateada.
        As janelas frontais eram elegantes, indo até o teto, com um balcão saliente para a rua St.John.
        Qualquer um que visse aquelas janelas teria certa dificuldade em definir o morador.
        Obviamente um acadêmico, três paredes cobertas de estantes de livro, do chão ao teto.
        Um historiador, os livros diriam. Um homem dedicado ao estudo do século 19, não somente pelos livros, mas pelas pinturas e ornamentos que entregavam sua obsessão; as imagens comemorativas de Staffordshire, pinturas a óleo do gênero vitorianas, o papel de parede Wiliam Morris.
        O quarto de um homem que vive confortavelmente só.
        Sem fotografias de família, sem tabuleiros de jogos, sem desordem, sem poeira, sem o toque feminino, pequenas evidências, de fato, que o quarto era continuamente utilizado.
        E um visitante poderia adivinhar também que nada ali fora herdado, tudo fora comprado.
        Não havia nenhum daqueles artefatos excêntricos, valorizado ou tolerado por conta de ser uma herança, nenhum quadro proclamando a ancestralidade de família.  
        O quarto de um homem que se fizera sozinho, com os símbolos de suas realizações e suas pequenas obsessões. A senhora Kavanaug, esposa de um dos seguranças da faculdade, vinha três vezes na semana para limpar, e isso era o bastante. Não tinha o desejo de manter a criadagem que requeria um ex-conselheiro do Governador da Inglaterra, como me chamavam.
        O quarto que eu mais gostava ficava no topo da casa, um sótão mínimo com uma charmosa lareira de aço e ladrilhos decorativos, mobiliado apenas com uma cadeira e uma mesa de leitura e o necessário para se fazer um café. Uma janela sem cortinas com a vista do campanário da igreja de St.Barnabas ao longe e o verde de Wytham Wood. 
        É aqui que escrevo meu diário, preparo os trabalhos e seminários, escrevo minhas notas.
        A porta da frente fica quatro pavimentos abaixo, o que era inconveniente para atender a campainha mas eu me assegurava de não ter visitantes inesperados em minha auto-suficiente vida.
        Ano passado, em março, Helena me deixou por Rupert Clavering, treze anos mais jovem que ela, que combinava a aparência de um jogador fanático por rúgbi, com, o que é difícil de acreditar, a sensibilidade de um artista. Era desenhista de cartazes e capas de livros e era bom nisso.
        Lembro de algo que ela disse, durante uma de nossas discussões pré-divórcio, que eu sofria para me conservar amargo e sem emoções; que eu somente dormia com ela, em intervalos cuidadosamente regulares, por que queria que minhas obrigações com meus alunos fossem motivados mais por distinta necessidade do que justificada por cruel privação sexual.
        Essas não foram exatamente suas palavras, mas seu significado.
        Acho que ela surpreendeu a nós dois com sua perspicácia.
        A tarefa de escrever seu jornal e Theo sendo uma obrigação - e não um prazer - tinha se tornado parte de sua vida hiper-organizada, um complemento noturno de uma rotina semanal imposta por circunstâncias, um tanto pelo desejo deliberado de tentar impor a ordem e propósito em uma existência sem sentido. 
        O Conselho da Inglaterra havia decretado que todo cidadão, em adição a seus trabalhos normais, fizesse curso de duas semanas em habilidades que pudessem servir para sua sobrevivência, se e quando eles se tornassem parte da civilização restante.
        A escolha era voluntária.
        Xan sempre usou da prudência de dar às pessoas a escolha em questões nas quais a escolha era o menos importante.
        Theo escolhera gerenciar o Hospital John Radcliffe, não por que se sentisse em casa com a hierarquia anti-séptica ou imaginasse seu valor na administração dos doentes e idosos, para ele repelentes, mas porque pensava que o conhecimento obtido poderia lhe ser útil. E não era má idéia saber onde poderia colocar as mãos em algumas drogas, se surgisse a necessidade.
        A segunda sessão de duas horas era passada mais agradavelmente, tratando da manutenção do lugar. Achava o bom humor e os comentários grosseiros dos artesãos um alívio bem vindo do menosprezo dos acadêmicos.
        Seu ganha-pão era o de ensinar os alunos mais velhos que, com alguns poucos não formados, faziam trabalho de pesquisa ou buscavam graduações superiores, que era afinal a justificativa para existência da universidade.
        Duas noites por semana, terças e quintas, ele jantava no Hall.
        Nas quartas, invariavelmente comparecia à missa das três de Evensong, na capela de Madalena.
        Um pequeno número de colegas, mais do que os costumeiros excêntricos ou aqueles obstinados em ignorar a realidade, usava as capelas para seus cultos, revertendo para o antigo Book of Common Prayer.
        Mas o coro de Madalena estava entre as suas melhores lembranças e Theo ia ouvi-los cantar, não apenas por tomar parte naquele gesto arcaico de ir às missas.
        Foi na última quarta-feira do mês de Janeiro que aconteceu.
        Indo para a capela de Madalena, como de costume, virou na rua Beaumont e já estava perto do museu Ashmolean quando uma mulher se aproximou dele empurrando um carrinho de bebê.
        A chuva fina tinha parado e, enquanto vinha na sua direção, ela parou para puxar a coberta do carrinho.
        A boneca ficou aparente, envolvida e aconchegada nas cobertas, os bracinhos, as mãos com luvinhas, repousando dentro da proteção acolchoada, uma paródia da infância, também patética e sinistra.
        Chocado e repelido, Theo achou que não conseguiria continuar vendo aquilo.
        As íris brilhantes, anormalmente grandes, mais azuis do que qualquer olho humano, pareciam ter se fixado nele, seu olhar vazio que ainda assim parecia ser capaz de sugerir uma inteligência, estranha e monstruosa.
        Os cílios escuros repousavam como aranhas e uma abundância de cabelos humanos loiros escapava da touca com laço.
        Fazia anos desde a última vez que vira uma boneca ser ostentada assim, mas vinte anos atrás era algo comum, até se tornara uma moda. A fabricação de bonecas era o único ramo da indústria de brinquedos que, assim como a produção de carrinhos de bebê, tinha renascido na última década, produzindo bonecas para toda uma gama de desejo maternal frustrado. Algumas eram baratas e mal acabadas, outras eram trabalhos notáveis de artesanato e beleza, ou aquelas feitas para os Ômegas que se tornaram apreciadores de peças raras.
        As mais caras podiam custar duas mil libras e vinham em diferentes tamanhos: recém-nascido, bebê de seis meses, de um ano, até uma criança de dezoito meses, já capaz de ficar de pé e caminhar, um mecanismo complexo e alimentado a bateria.
        Ele lembrou que eram chamados de seis-mesianas.
        Houve um tempo onde era impossível se andar pela High Street, sem ser obstruído por esses carrinhos, por grupos de quase-mães.
        Lembrou dos pseudo-nascimentos e das bonecas quebradas que eram enterradas com toda a cerimônia em solo consagrado.
        Esta não foi uma das disputas eclesiásticas do começo de 2000, quando igrejas foram usadas para legitimar aquilo e até padres foram ordenados para tomar parte desse espetáculo?
        Consciente de seu olhar, a mulher sorriu, um sorriso estúpido, convidando à conivência e às congratulações. Quando seus olhos se cruzaram ele se afastou, para que ela não visse sua piedade e seu desprezo, e ela empurrou o carrinho para trás como se pudesse proteger-se de atitudes inoportunas masculinas.
        Um pedestre mais receptivo parou para falar com ela.
        Uma mulher de meia idade bem vestida, cabelos cuidados, foi até o carrinho, sorriu para a dona da boneca e começou a parabenizá-la.
        A primeira mulher respondeu com prazer, inclinando-se à frente, puxando a cobertura de cetim do carrinho, ajustando a touca, arrumando alguns cachos do cabelo loiro.
        A segunda mulher segurou a boneca junto ao peito, como se fosse um gato ainda murmurando aquele tatibitate de bebês.
        Theo, mais deprimido e inconformado pela obscenidade do que certamente pela cena inofensiva de fingimento, havia dado as costas quando aconteceu.
        A segunda mulher subitamente, sem uma palavra, girou a boneca duas vezes sobre sua cabeça, segurando pelas pernas e a atirou contra o muro de pedra com força. Pedaços da face e cacos de porcelana cobriram a calçada.
        A dona ficou absolutamente silenciosa por dois segundos e então gritou.
        O som foi horrível, o grito de um torturado, um guincho no maior volume, inumano e ainda assim muito humano, não controlável.
        E assim permaneceu, o chapéu torcido, a cabeça jogada para trás, a boca aberta demonstrando sua agonia, sua raiva.
        A outra mulher se virou e correu depressa para os portões abertos, através do jardim e entrou no museu Ashmolean. Quando se deu conta que a atacante tinha escapado, a dona da boneca partiu atrás dela, ainda gritando, então parou e como se percebesse a inutilidade disso, voltou ao carrinho.
        Ficou parada um pouco, e então se ajoelhou para catar os pedaços partidos, com gentileza, como se estivesse tentando remontar um enorme quebra-cabeças.
        Dois olhos brilhantes, horrivelmente reais, soprados por uma brisa, rolaram até Theo.
        Teve um impulso de pegá-los, de ajudar, de falar algumas palavras de conforto.
        Podia dizer que ela poderia comprar outra criança.
        Era um consolo que ele não fora capaz de dar a sua esposa.
        Mas sua hesitação foi apenas momentânea. Começou a se afastar rápido. Ninguém mais chegou perto da mulher.
        Mulheres de meia idade, que haviam alcançado a maturidade no ano do ômega, eram notoriamente instáveis.
        Chegou na capela quando a missa estava prestes a se iniciar. O coro de oito homens e oito mulheres perfilados, trazendo a lembrança dos coros antigos, coros de meninos, os rostos sérios com a gabolice infantil imperceptível, segurando as partituras junto ao peito, as faces límpidas como se iluminadas internamente, os cabelos penteados em cachos brilhantes, as expressões solenes e colarinhos engomados.
        Theo expulsou a lembrança pensando por que eram tão persistentes quando nunca realmente dera importância às crianças. Fixou agora os olhos no capelão relembrando o acidente de meses atrás quando ele tinha chegado cedo a Evensong.
        De alguma forma um gamo jovem vindo dos prados, encontrou um jeito de entrar na capela e pacificamente se instalou ao lado do altar, como se fosse seu habitat natural.
        O capelão asperamente começou a gritar, atirando livros de oração, acertando o flanco do animal que de forma dócil se viu atacado e então, empinou-se e correu deixando o lugar.
        O capelão voltou-se para Theo, com lágrimas no rosto disse:
         — Cristo, por que não podem esperar? Malditos animais! Logo tudo pertencerá a eles! Por que não podem esperar?
        Olhando para ele agora, com sua face séria, concentrada e iluminada de paz, não mais lembrava a bizarra cena como se saída de um pesadelo.
        A congregação reduzida, como sempre a pouco mais que trinta freqüentadores regulares como ele, era conhecida Theo.
        Menos um deles, uma mulher jovem, sentada no banco oposto a ele, cujo olhar fixo, de tempos em tempos, era difícil de evitar - embora não desse nenhum sinal de reconhecimento.
        A capela pouco iluminada pela chama das velas preenchia seu rosto com uma luminosidade quase indefinível, como o de uma aparição.
        Não era de todo uma desconhecida, de alguma forma já a tinha visto antes, não de relance, mas frente a frente e por um bom tempo. Esforçou-se para lembrar, fixando seu olhar sobre ela durante a confissão, embora fingisse devoção concentrada na leitura do primeiro cântico, mas constantemente atento a ela, procurando por sua imagem na memória. Ao final do segundo cântico, aquilo se tornara irritante e o coro, a maioria de meia-idade, arrumou as partituras esperando o órgão recomeçar quando Theo se lembrou.
        Ela tinha sido, por um curto tempo, aluna da classe de Colin Seabrook, — Vida Vitoriana e o Tempo— , com o subtítulo — Mulheres nos romances vitorianos— , que ele dirigira por oito meses antes de Colin.
        A esposa de Seabrook se submetera a uma operação de câncer; foi uma chance para tirar férias, se Colin pudesse encontrar um substituto para uma de suas classes.
        Lembrou da conversa e de seu protesto sincero. 
        — Por que não deixa um membro da faculdade de inglês fazer isso por você?
        — Não, meu velho, eu já tentei. Todos têm muitas desculpas. Não gostam de trabalhar à tarde. Não têm tempo. Não naquele período. Só posso fazer uma aula e não quatro. É só uma hora e não tem que pensar na preparação, são só 4 livros e você provavelmente os conhece de cor. “Middlemarch”, “Portrait of a lady”, “Vanity Fair” e “Cranford”. São 14 alunos na classe, a maioria mulheres de 50 anos que deveriam estar ocupadas com os netos, e têm hoje tempo de sobra, sabe como é. Senhoras encantadoras, um pouco convencionais para o seu gosto. Vai adorá-las. E elas vão ficar felizes com você. Estão atrás do consolo da cultura. Seu primo, o estimado Governador, é perspicaz quanto a isso. Tudo que desejam é poder escapar temporariamente para um mundo agradável e seguro. Todos queremos, querido amigo, mas só você e eu chamamos isso de erudição.
        Mas eram 15 alunos e não 14. Ela chegou dois minutos atrasada e sentou-se quieta no fundo da sala.
        E como agora, ele tinha visto o contorno de sua cabeça contra as tábuas de madeira e iluminada pelas velas. Quando o último dos estudantes ainda buscando graduação ia embora, as salas da faculdade se abriam para um público maduro, estudantes de meio-período, e esta classe havia sido instalada em uma agradável e aconchegante sala de leitura em Queen— s College.
        Ela ouvira aparentemente com atenção, seu discurso preliminar sobre Henry James e não havia tomado a palavra na discussão geral, até que uma mulher robusta na fileira da frente começou a discursar extravagantemente sobre as qualidades morais de Isabel Archer e lamentar seu destino.
        Ela então disse subitamente:
        — Não vejo por que você particularmente se compadece de alguém que teve tanto e fez tão pouco disso. Ela poderia ter casado com Lord Warburton e feito um grande acordo para o bem dos seus inquilinos, pobres. Certo, ela não o amava ; era uma desculpa e ela tinha ambições maiores do que casar com Lord Warburton. Mas e daí? Ela não tinha nenhum talento, nenhum emprego ou treinamento. Quando seu primo a fez rica, o que ela fez? Partiu para uma volta ao mundo com Madame Merle. Casou-se com um conceituado hipócrita e passou a aparecer nos salões esplendorosamente vestida. O que aconteceu com todo aquele idealismo? Vi mais em Henrietta Stackpole!
        A mulher robusta protestou: — Oh, mas ela era tão vulgar!
        — É o que Mrs. Touchett pensa, e o autor também. Mas ao menos ela tem talento, o que Isabel não tem, e o usava para ganhar a vida e ajudar sua irmã viúva— . E acrescentou: — Isabel Archer e Dorothea descartaram pretendentes qualificados para se casarem com tolos presunçosos, talvez porque George Eliot respeita sua heroína e, francamente, Henry James a desdenha.
        Ela podia, Theo suspeitava, querer afastar o enfado com uma provocação deliberada. Mas qualquer que fosse seu motivo, o argumento resultante fora forte e vivo por si e os trinta minutos restantes passaram rápida e agradavelmente.
        Ele lamentou-se e ficou um pouco magoado quando na quinta seguinte, esperando por ela, ela não apareceu.
        Com a conexão feita e a curiosidade saciada, podia sentar-se em paz e apreciar o segundo hino.
        Era um costume em Madalena, nos últimos dez anos, tocar-se um hino gravado durante Evensong.
        Theo viu no programa impresso, que aquela tarde seria a primeira de uma série de hinos ingleses do século 15, começando com William Byrd, “Teach Me, O Lord” e “Exult Thyself, O God.”
        Houve um breve silêncio antecipatório, quando o coordenador do coro lidava com o gravador.
        A voz dos jovens, doce, clara, assexuada, que não era ouvida desde que o último jovem do coro havia o deixado, encheu a capela sonoramente.
        Ele deu uma olhada nela, ainda sentada imóvel, a cabeça jogada para trás e os olhos fixos nas vigas do teto, então tudo que ele podia ver era a curva de seu pescoço iluminada por velas.
        Ao fim da fileira, reconheceu repentinamente o velho Martindale, um camarada  aposentado.
        As lágrimas corriam por seu rosto em fila, como pérolas.
        O velho Marty nunca se casara, celibatário, que toda sua vida amara a beleza dos garotos.
        Por que, pensou Theo, ele ainda vinha ali, semana após semana, buscando um prazer masoquista?
        Poderia muito bem ouvir a gravação das vozes das crianças em casa, por que tinha que ser aqui, onde passado e presente se fundiam no belo à luz de velas, reforçando o pesar?
        Por que vinha? Mas ele sabia a resposta para aquela pergunta.
        Sentir, disse a si mesmo, sentir, sentir, sentir, mesmo que seja dor tudo que possa sentir.
        A mulher deixou a capela antes dele, movia-se com vivacidade, quase furtiva.
        Quando chegou lá fora, no ar frio, surpreendeu-se ao encontrá-la obviamente esperando por ele.
        Ela veio até seu lado e disse:
         — Posso falar com você? É importante.
        Na ante-câmara a luz brilhante do fim de tarde jorrava e pela primeira vez pode vê-la claramente.
        Seu cabelo escuro e sedutor, castanho com reflexos de ouro, penteado para trás era comportado e curto.
        Uma franja caia do alto sobre a testa sardenta. Tinha a pele bem clara, apesar dos cabelos escuros, uma aparência dourada, pescoço longo, ossos da face largos, olhos espertos, de uma cor que não conseguiu determinar sob grossas sobrancelhas, um nariz longo e estreito, e uma larga e bela boca desenhada.
        Um rosto pré-rafaelita. Rossetti teria gostado de pintá-lo.
        Estava vestida segundo a moda atual, menos para ômegas, uma jaqueta curta com cinto e debaixo uma saia de lã chegando ao meio dos joelhos, onde podia ver altas meias coloridas que eram a moda naquele ano.
        As dela eram amarelas brilhantes.
        Carregava uma bolsa de couro a tiracolo sobre o ombro esquerdo.
        Estava sem luvas e pode ver que sua mão esquerda era deformada.
        Os dedos médio e indicador eram fundidos num toco sem unha e as costas da mão parecia inchada.
        Balançava-a como se aquilo a reconfortasse.
        Não fazia esforço em esconder. Parecia querer proclamar sua deformidade a um mundo que havia se tornado intolerante a defeitos físicos. Ao menos ela tinha uma compensação.
        Ninguém que estivesse fisicamente deformada ou mentalmente de alguma forma ou não tivesse saúde estava na lista das mulheres que iriam originar uma nova raça, se um homem fértil fosse descoberto.
        Estava a salvo dos exames a cada seis meses, salva da humilhação e da perda de tempo ao qual toda mulher saudável com menos de quarenta e cinco era submetida.
        Ela falou de novo, mais calmamente:
        — Não vai levar muito tempo, mas por favor, preciso falar com você Doutor Faron. Eu preciso.
        Ele estava intrigado, mas não conseguiu fazer sua voz parecer receptiva.
        — Talvez possamos caminhar ao longo do novo mosteiro.
        Passaram a andar juntos, em silêncio.
        — Você não me conhece— . Ela disse.
        — Não, mas me lembro de você. Você estava na classe de Seabrook, que eu coordenei. Você com certeza estimulava a discussão.
        — Temo que tenha sido mais propriamente veemente. E como se fosse importante explicar disse
        — Eu admiro de verdade “The portrait of a lady”— .
        — Mas presumo que não arranjou este encontro para me assegurar sobre seu gosto literário.
        Assim que acabou de falar, ele lamentou o que disse. Ela corou e ele percebeu um recuo, uma perda de confiança em si mesma e talvez nele. A ingenuidade de sua reação o desconcertou, mas ele não precisava responder ironicamente.  Seu embaraço era contagioso. Ele esperava que ela não estivesse querendo embaraçá-lo com revelações pessoais ou questões emocionais.
        Foi difícil reconciliar aquele debatedor confiante e articulado com sua presença quase adolescente e desajeitada.  Não tinha sentido tentar reparar o ocorrido e por quase meio minuto apenas andaram em silêncio.
        Então ele falou: — Lamentei quando você não mais apareceu. A aula ficou sem graça na semana seguinte.
        — Eu queria voltar, mas meus horários foram mudados. Tinha que trabalhar.
        Ela não explicou no que ou onde, mas acrescentou: — Meu nome é Julian. Eu sei o seu nome, é claro.
        — Julian. Incomum para uma mulher. Você foi chamada assim por causa de Julian de Norwich?
        — Não, acho que meus pais nunca ouviram falar nela. Meu pai ao registrar-me me deu o nome de Julie Ann, que era o nome escolhido por eles. O funcionário do registro deve ter se atrapalhado ou meu pai não pronunciou correto. Só 3 semanas depois minha mãe percebeu o erro e achou que era tarde. De qualquer forma, acho que ela acabou gostando, então fiquei sendo Julian.
        — Imagino que as pessoas te chamam de Julie.
        — Que pessoas?
         — Seus amigos, sua família.
        — Não tenho uma. Meus pais morreram nos confrontos raciais de 2002. Mas por que me chamariam assim? Julie não é meu nome!
        Ela foi perfeitamente educada e não agressiva.
        Ele pensou que ela pudesse estar confusa pelo seu comentário, porém não era justificável.
        Seu comentário fora inepto, sem pensar, talvez condescendente, mas não ridículo.
        E se aquele encontro era uma preliminar para um pedido, para que ele falasse sobre a história social do século 19, então era bem pouco comum.
        — Por que quer falar comigo?
        Agora que o momento chegou, ele percebeu que ela relutava em prosseguir, pensou, não por embaraço ou arrependimento por ter iniciado aquele encontro, mas porque o que tinha a dizer era importante e precisava escolher as palavras certas. Parou olhando para ele.
        — Tem coisas acontecendo na Inglaterra - na Grã-Bretanha - e que estão erradas. Pertenço a um pequeno grupo de amigos que pensa que é nosso dever tentar consertá-las. Você era um membro do Conselho da Inglaterra. Você é o primo do Governador. Achamos que você poderia falar com ele antes que agíssemos. Não estamos certos de que você possa ajudar, mas dois de nós, Luke - ele é um padre - e eu, pensamos que você poderia. O líder do grupo é meu marido, Rolf. Ele concordou que falasse com você.
        — Por que você? Por que ele mesmo não veio?
        — Acho que ele pensou - nós pensamos - que eu seria capaz de persuadir você.
        — Persuadir-me para que?
        — Para se encontrar conosco, assim explicaríamos o que temos que fazer.
        — Por que não me explica agora, então eu posso decidir se quero encontrar vocês. De que grupo está falando?
        — É só um grupo de cinco. Nós ainda não fizemos nada. Talvez nem precisemos, se existir uma chance do Governador fazer algo a respeito.
        Ele disse cuidadosamente:
        — Nunca fui membro pleno do Conselho, só um consultor particular do Governador. Não tenho trabalhado nos últimos três anos e não vejo o Governador há mais tempo ainda.  O parentesco nada representa para nós. Minha influência junto a ele não deve ser maior do que a de vocês.
        — Mas você pode vê-lo. Nós não podemos.
        — Você pode tentar. Ele não é totalmente inacessível. Algumas vezes as pessoas telefonam só para conversar. Naturalmente, ele tem que se proteger.
        — Proteger-se do povo? Mas vê-lo, até falar com ele, deixaria a Polícia de Segurança do Estado saber que existimos, até saber quem somos.... Não seria seguro para nós tentar tal coisa.
        — Acredita mesmo nisso?
        — Ah, sim—  disse um pouco triste — Você não?
        — Não, eu não acredito. Mas se você estiver certa, então está falando de um risco extraordinário. O que faz você achar que pode confiar em mim? Você certamente não está propondo colocar sua segurança nas minhas mãos, só por que me conhece de um seminário sobre literatura vitoriana. Alguém do seu grupo já me encontrou?
        — Não, mas Luke e eu lemos alguns dos seus livros.
        — Não é esperto julgar a probidade de um acadêmico por seu trabalho.
        — É o único jeito que nós tínhamos. Sabemos que é um risco, mas é um que precisamos assumir. Por favor, encontre-se conosco. Ao menos ouça o que temos para dizer.
        Seu tom de voz era claro, simples e direto e subitamente ele pensou saber porque.
        Tinha sido idéia dela se aproximar dele.
        Ela viera com o apoio relutante do resto do grupo, talvez até contra os desejos do líder.
        O risco que corria era escolha sua. Se ele se recusasse, ela voltaria de mãos vazias, humilhada.
        Pensou que não poderia fazer isso com ela.
        Disse, mesmo sabendo poder ser um engano:
        — Certo. Conversarei com vocês. Onde e quando será a próxima reunião?
        — Domingo, dez horas na igreja de St.Margaret, em Binsey. Conhece?
        — Conheço Binsey.
        — As dez, na igreja.
        Ela tinha feito aquilo para o qual viera e não se demoraria mais. Mal a escutou murmurar um — obrigado.
        Partiu tão rápida e quieta que poderia ser uma das sombras entre as sombras do monastério.
        Ele esperou por um minuto para que não tivesse chance de mudar de idéia e alcançá-la, e em silêncio e solitariamente fez seu caminho para casa.
       
       
        Sábado, 30 de janeiro de 2021.
       
        Às sete horas desta manhã Jasper Palmer-Smith me telefonou e perguntou se podia visitá-lo.
        A questão era urgente.
        Não deu explicação, mas raramente dava. Disse que poderia estar com ele depois do almoço.
        Essas intimações, cada vez mais peremptórias, estavam se tornando comuns. Costumava demandar minha presença uma vez a cada trimestre, agora era uma vez por mês. Ele me ensinara História e era um professor maravilhoso, ao menos para os estudantes mais inteligentes.
        Como um formando, nunca admiti minha preferência por ele, mas já havia dito com casual tolerância:
        — Jasper não é ruim. e o fiz por uma razão compreensível, eu era seu pupilo predileto naquele ano.
        Ele sempre tinha um favorito. O relacionamento era quase que inteiramente acadêmico. Ele não era gay nem particularmente atraído por jovens, ainda assim, sua aversão a crianças era legendária e sempre conseguia mantê-las fora de vista e raramente aceitava um convite para jantar. Mas a cada ano ele escolhia um formando, quase sempre homem, para sua aprovação e patronagem.
        Assumíamos que o critério era primeiro a inteligência, que a aparência vinha em segundo lugar e a capacidade em terceiro. Levava tempo para escolher, mas uma vez feita, era irrevogável.
        Era um relacionamento sem angústia para o favorito, desde que, uma vez escolhido, não fizesse nada de errado.
        Era também livre de ressentimentos e invejas, uma vez que não era exatamente desejado e, por imparcialidade, o favorito não tomava parte da seleção.
        Reconhecidamente aquele escolhido tinha algo a ganhar, todos tinham.
        Da vez que fui escolhido estava confiante o bastante que havia uma probabilidade de não precisar me preocupar ao menos por dois anos.
        Mas eu não lhe dei trabalho e sim quis agradá-lo, justificar sua escolha.
        Ser selecionado entre muitos era sempre gratificante para a auto-estima; aquele sentimento de precisar dar algo em troca, um fato que conta em casamentos.
        Talvez fosse a base de seu próprio casamento com uma colega de matemática do New College, cinco anos mais velho que ele. Eles pareciam ao menos companheiros, o bastante para ficarem bem juntos, enquanto as mulheres em geral sentiam intensa repugnância por ele.
        Durante o inicio dos anos 90, quando surgiram alegações sobre assédio sexual, ele instituiu uma mal sucedida campanha para garantir que apenas professoras dessem aulas para alunas, garantindo que ele e seus colegas homens estivessem a salvo de alegações injustificadas.
        Ninguém foi mais adepto do que ele, em demolir a autoconfiança feminina enquanto as tratava meticulosamente, com quase insultante consideração e cortesia.
        Ele era a caricatura da idéia popular de um cavalheiro de Oxford, testa ampla, magro, poucos cabelos, nariz em gancho, lábios estreitos. Andava com o peito arqueado a frente como se enfrentando o vento forte, ombros caídos, sua beca ondulante.
        Ocasionalmente me tratava como se visse em mim seu sucessor.
        Aquilo, é claro, não tinha sentido, ele me dera muito, mas algumas coisas não tinham a ver com sua dádiva.
        Mas a impressão de seu atual favorito era de algum modo, como um príncipe coroado tinha me feito um prodígio, embora não fosse seu jeito de indicar sua idade, o auge de seu cérebro, sua pessoal ilusão de imortalidade.
        Ele freqüentemente proclamava sua visão sobre os Ômegas, uma ladainha confortável quando compartilhada com alguns colegas, particularmente aqueles que haviam ingerido uma boa quantidade de vinho e tinham acesso à adega da faculdade:
        — Não me preocupam particularmente. Não estou dizendo que não tive alguns momentos de tristeza ao saber que Hilda estava estéril, os genes protegendo seus imperativos atávicos, eu suponho. No geral estou satisfeito, não há como lamentar sobre um neto que não nasceu se não há esperança para eles. De qualquer forma o planeta está condenado. Eventualmente o sol explodirá ou resfriará e uma pequena e insignificante partícula no universo e desaparecerá. Se o homem está condenado a perecer, então esta infertilidade é uma maneira indolor para isso. E afinal, existem compensações pessoais. Nos últimos 60 anos nós bajulamos e servimos a mais ignorante e criminal e convencida parte da nossa sociedade. Agora, pelo resto de nossas vidas, nós dispensaremos o barbarismo da juventude, seus narizes, sua atitude contestadora, repetitiva, sua assim chamada música criada em computadores, sua violência e egoísmo disfarçados de idealismo.
        Meu Deus, talvez consigamos acabar com o Natal, aquela celebração anual de culpa dos pais e avareza dos jovens. Pretendo que minha vida seja confortável, e quando não mais for possível, engolirei minha pílula fatal com uma garrafa de vinho branco.
        Seu plano pessoal de sobreviver com conforto pelo menos até o último instante era semelhante ao plano de milhares de pessoas adotaram nos primeiros anos antes de Xander tomar posse, quando o grande medo era o colapso total da ordem.
        Sair da cidade - no seu caso de Clarendon Square - para uma pequena casa no campo ou uma cabana na floresta com um jardim para a produção de alimentos, um riacho perto para fornecer água fresca suficiente para beber (depois de fervida), uma lareira e um estoque de madeira.
        Uma despensa cheia de latas de conservas selecionadas cuidadosamente, fósforos suficientes para muitos anos, uma maleta médica com remédios e seringas, cadeados e trancas em todas as portas reforçadas, prontas para a possibilidade de que um dia, olhos invejosos se voltassem para seus bens.
        Mas nos últimos anos Jasper ficara obsessivo. O depósito de madeira no jardim fora substituído por uma estrutura de tijolos com uma porta de metal ativada por controle remoto.
        Um muro alto cercava o jardim e a porta para o porão tinha um cadeado.
        Normalmente quando eu o visitava os portões de aço estavam destrancados, esperando minha chegada e eu podia estacionar na entrada para carros. Esta tarde eles estavam fechados e tive que tocar a campainha.
        Quando Jasper veio atender fiquei chocado o quanto um mês de diferença fizera em sua aparência.
        Ainda aprumado, o passo ainda firme, mas à medida que chegava perto vi sua pele esticada sobre ossos fortes do rosto cinzento e um olhar selvagem, quase um brilho de paranóia, que nunca tinha visto antes.
        Envelhecer era inevitável, mas não constante.
        Existiam períodos de tempo, por anos, em que as faces de nossos amigos e conhecidos permaneciam virtualmente sem mudanças. Então de repente o tempo acelera e em uma semana a metamorfose tem seu lugar.
        Parecia para mim que Jasper envelhecera dez anos em seis semanas.
        O segui para dentro da grande sala de estar nos fundos da casa, com suas janelas francesas para o terraço e o jardim. Aqui, como em seu estúdio, as paredes estavam cobertas de livros.
        Estava, como sempre, obsessivamente limpo, móveis, livros, ornamentos, tudo em seu lugar.
        Mas detectei, pela primeira vez, os sinais visíveis de uma negligência incipiente, as janelas sujas e alguns restos no carpete e uma fina camada de pó nas prateleiras.
        Um aquecedor elétrico estava sobre a grelha, mas a sala estava fria.
        Jasper me ofereceu um drinque e apesar de ser quase fim de tarde, não era meu horário favorito para beber vinho. Aceitei. Vi que seu estoque de garrafas de bebida havia crescido desde a minha última visita.
        Jasper era uma das únicas pessoas que eu conhecia que consumia seu melhor vinho branco em qualquer hora, para qualquer propósito. Hilda estava sentada próxima ao fogo, um casaco de lã nos ombros. Não me recebeu ou mesmo olhou para mim e nem fez nenhum sinal quando a cumprimentei com um movimento de cabeça.
        A mudança nela era mais significativa do que em Jasper.
        Por anos, pelo menos para mim, ela parecia sempre a mesma, uma figura angular, pescoço comprido, a camisa de tweed bem cortada, o casaco de cashmere, o cabelo cinzento intrincado e preso num coque ao alto da cabeça.
        Agora o cardigan estava manchado de comida congelada, sapatos sujos, e os fios de cabelos caiam sobre o rosto sério, de expressão rígida, por linhas de repelente desaprovação.
        Imaginei, como nas vezes passadas, o que estava errado com ela.
        Dificilmente era Alzheimer, que tinha cura desde 1990.
        Mas havia outros tipos de senilidade que, mesmo com nossa preocupação cientifica e obsessiva com os problemas da idade, eram ainda impossíveis de aliviar.
        Talvez só estivesse velha, cansada, só de saco cheio de me ver.
        Suponho que existe esta vantagem na velhice, de poder se mudar para um mundo só seu, mas não se este mundo é um inferno.
        Imaginava o porque de ser chamado ali, mas não queria perguntar diretamente qual era o motivo.
        Finalmente Jasper disse:
         — Tem uma coisa que quero discutir com você. Estou pensando em voltar para Oxford. Aquela última aparição do Governador na televisão que me fez decidir. Aparentemente o plano é que todos se mudem para as cidades, onde os serviços poderão ser concentrados. Ele disse que aqueles que decidirem permanecer isolados em distritos remotos poderão fazê-lo, mas não terão garantidos o fornecimento de energia e gasolina para transporte. Ficaremos presos aqui.
        Eu disse:
        — O que Hilda pensa sobre isso?
        Jasper sequer se importou em olhar para ela:
         — Hilda não está em condições de contestar. Sou o responsável aqui. O que for o mais fácil para mim é o que vai acontecer. Penso que isso pode ser útil pra nós dois - quero dizer, você e eu - se eu for para St. John Street. Você não precisa mesmo daquela casa enorme. Tem espaço o bastante no andar de cima para um flat separado. Pagarei pela conversão, é claro.
        A idéia me amedrontou. Esperava ter dissimulado minha repugnância.
        Fiquei calado como se considerasse a idéia, então eu disse:
        — Não acho que vá dar certo. Você vai sentir falta do jardim e as escadas serão um problema para Hilda.
        Um silêncio e Jasper respondeu:
        — Já deve ter ouvido falar do Quietus, eu imagino. O suicídio em massa dos idosos?
        — Só o que li nos jornais e vi na televisão.
        Lembrei-me de uma foto, talvez a única mostrada na televisão: um idoso de branco sendo ajudado a entrar em uma barca, vozes agudas cantando, o barco lentamente indo para o crepúsculo, uma cena sedutora de paz, habilmente montada e editada.
        Eu disse:
        — Não sou atraído pela morte gregária. Suicídio devia ser como sexo, uma atividade privada. Se quisermos nos matar, os meios estarão sempre à mão, então por que não fazê-lo confortavelmente na própria cama? Preferiria fazer meu Quietus com uma lâmina nua.
        Jasper disse:
         — Oh, eu não sei, tem gente que gosta de transformar num evento estes ritos de passagem. Está sendo assim por todo o mundo, de uma forma ou de outra. Suponho que existe uma espécie de conforto em cerimônias. E os envolvidos recebem pensões do Estado. Que não é propriamente uma migalha, não é? Não, eu acho que consigo ver a atração disso. Hilda estava falando sobre isso outro dia.
        Achei improvável que a Hilda que eu conhecia pensasse em tal exibição pública de sacrifício e emoção.
        Ela tinha sido uma formidável acadêmica no seu tempo, inteligentíssima, diziam, mais do que seu marido, com língua afiada e peçonhenta. Depois do casamento passou a produzir menos, talento e personalidade diminuíram diante da terrível subserviência ao amor.
        Antes de ir, eu disse:
        — Acho que você poderia conseguir uma ajuda extra. Por que não recebe alguns forasteiros cadastrados? Com certeza você está qualificado!
        Ele desfez da minha idéia:
        — Acho que não quero estranhos aqui, particularmente forasteiros. Não acredito nessa gente. É como pedir para ser morto debaixo do próprio teto. E a maioria não sabe o que é um dia de trabalho, estão melhor aproveitados reparando estradas, limpando e recolhendo lixo, trabalhos que podem ser mantidos sob supervisão.
        Eu disse:
         — Trabalhadores domésticos são cuidadosamente selecionados.
        — Talvez, mas eu não quero.
        Arranjei um jeito de sair sem fazer promessas.
        No caminho de volta a Oxford ponderei como frustrar a determinação de Jasper.
        Ele estava, apesar de tudo, acostumado a agir por conta própria.
        Parecia que os trinta anos por benefícios prestados, o aconselhamento especial, os jantares caros, as entradas para teatro e ópera, estivessem sendo cobrados agora. Mas a idéia de compartilhar St. John Street, a violação da privacidade, minha crescente responsabilidade de cuidar de um homem velho me era repelente.
        Devia muito a Jasper, mas não tanto assim.
        Dirigindo para a cidade, vi uma fila de pessoas, algumas dezenas de metros fora das Examination Schools.
        Era uma multidão ordenada e bem vestida, de idosos e pessoas de meia-idade, mais mulheres do que homens. Esperavam quietos e pacientemente com um ar de cumplicidade, controlada expectativa, que caracteriza uma fila onde todos tinham um tíquete, entrada garantida e uma expectativa esperançosa que o entretenimento compensaria a espera.
        Fiquei intrigado até me lembrar de que Rosie MacLure, a evangelista, estava na cidade.
        Rosie era a última e mais bem sucedida apresentadora televisiva e que vendia a salvação, um bem que estava sempre sob demanda e que não custava nada prover.
        Nos primeiros dois anos depois de Ômega tínhamos Roaring Roger e seu parceiro Soapy Sam, e Roger ainda tinha quem o assistisse nos programas semanais.
        Ele era - ainda é - um poderoso orador nato, um homem enorme, barba branca, moldado conscientemente dentro da idéia popular dos profetas do velho testamento, derramando suas denúncias com sua potente voz, curiosamente com um sotaque da Irlanda do Norte.
        Sua mensagem era simples e pouco original. A infertilidade dos homens era uma punição divina pela sua desobediência, seus pecados. Só os arrependidos seriam poupados pelo Todo Poderoso e este arrependimento era melhor demonstrado por contribuições generosas para as despesas de campanha de Roaring Roger.
        Ele mesmo jamais tocava no dinheiro; este era o trabalho de Soapy Sam.
        Eram inicialmente um par extraordinário e a mansão em Kingston Hill, era uma manifestação sólida de seu sucesso.
        Cinco anos após o Ômega, a mensagem tinha alguma validade quando Roger atacou fulminante a violência urbana, mulheres atacadas e estupradas, abuso sexual de crianças, o casamento reduzido a nada mais do que um contrato, os divórcios serem uma norma, a desonestidade abundante e o instinto sexual pervertido.
        Linha após linha do maldito Velho Testamento surgiu de seus lábios enquanto erguia sua bíblia surrada.
        Mas o produto teve uma vida curta. É difícil ter sucesso contra a sexualidade em um mundo tedioso, condenar o abuso sexual de crianças quando não existem mais crianças, denunciar a violência urbana quando as cidades mais e mais se tornavam repositórios de dóceis idosos.
        Roger nunca atacou a violência e o egoísmo dos ômegas, tinha um senso bem desenvolvido de auto-preservação.
        Agora, com seu declínio, tínhamos Rosie McClure - e a doce Rosie estava na nossa cidade.
        Originária do Alabama, tinha deixado os EUA em 2019, provavelmente por que seu hedonismo religioso estava esgotado por lá.
        O evangelho segundo Rosie era simples: Deus é amor e tudo é justificável pelo amor.
        Ela tinha ressuscitado uma velha canção pop dos Beatles, um grupo de rapazes de Liverpool dos anos 60.
        — All you need is Love—  era seu repetitivo jingle, não um hino, precedia seus encontros.
        A Próxima Vinda não seria no futuro, mas agora, o crente seria abençoado, um por um, ao final de suas vidas e subiria aos céus em glória. Rosie era bem específica sobre os júbilos que estavam por vir.
        Como todo evangelista, ela acreditava na satisfação de contemplar o paraíso, enquanto outros simultaneamente contemplariam os horrores do inferno. Mas o inferno descrito por ela não era o local do tormento, mas sim o equivalente a um desconfortável e mal administrado hotel de quarta categoria onde hóspedes incompatíveis eram forçados a suportar a companhia um do outro por toda eternidade, e lavar suas próprias roupas sem instalações apropriadas e sem água quente.
        Igualmente ela era especifica sobre o paraíso: — Meu Pai tem muitas mansões—  e Rosie garantia que seus adeptos teriam mansões próprias para cada grau de virtude, sendo reservado para poucos o mais alto pináculo de benção. Mas todos que dessem atenção aos clamores por amor de Rosie encontrariam um lugar agradável, uma eterna Costa do Sol, suprida gratuitamente de comida, bebida, sol e sexo.
        O demônio não tinha lugar na filosofia de Rosie.
        A pior acusação era que as pessoas cometiam erros por não entender a lei do amor.
        A resposta ao sofrimento era um anestésico, uma aspirina para a solidão da garantia da preocupação pessoal de Deus, a perda da confiança na reunião. Ninguém era chamado a praticar o desprendimento, desde que Deus, sendo o amor, desejasse que sua criança fosse feliz.
        A ênfase era dada à paparicação e recompensa de um corpo temporário, e Rosie não esquecia de dar dicas de beleza durante os sermões. Eles eram espetacularmente preparados, o coro vestido de branco, centenas perfilados sob luzes estroboscópicas, banda de metais e cantores Gospel.
        A congregação apreciava a animação dos integrantes do coro, ria, chorava, erguia seus braços como marionetes dementes. Rosie trocava de roupas três vezes durante cada comício.
        Amor, proclamava Rosie, tudo que você precisa é de amor.
        E ninguém precisava se sentir despojado do objeto de seu amor.
        Não precisava ser um ser humano, podia ser um animal - um gato ou cachorro; podia ser um jardim, uma flor ou árvore. O mundo todo estava conectado pelo amor, amor exultante, amor redentor.
        Alguém podia supor que Rosie nunca vira um gato com um rato.
        Ao final do comício, a felicidade geralmente resultava em todos se abraçando e deixando dinheiro nas caixas coletoras com negligente entusiasmo.
        Durante o meio dos anos 90, as igrejas reconhecidas, particularmente a Igreja da Inglaterra, trocaram a teologia do pecado e redenção por uma doutrina menos compromissada, responsabilidade social acoplada a um sentimento humanitário corporativo.
        Rosie foi favorecida e virtualmente aboliu a segunda pessoa na santíssima trindade, junto com a substituição da cruz por um orbe solar dourado, como um pomposo símbolo de um pub (bar) vitoriano.
        A mudança agradou e tornou-se popular.
        Mesmo os descrentes como eu na cruz, o estigma do barbarismo, do formalismo e da crueldade do homem, nunca tiveram um símbolo tão confortador.
        Pouco antes das nove e meia da manhã de Domingo, saiu a pé de Port Meadow para Binsey.
        Tinha dado sua palavra para Julian e era uma questão de orgulho cumpri-la.
        Mas tinha que admitir a si mesmo que era o motivo menor para cumprir a promessa.
        Eles sabiam quem ele era e como encontrá-lo. Melhor se aborrecer uma única vez, encontrá-los e terminar tudo logo, do que passar os próximos meses na constrangedora expectativa de encontrar Julian toda vez que fosse a capela ou fizesse compras no mercado.
        O dia ensolarado, o ar frio mas seco sob um céu límpido e de profundo azul; a grama ainda viçosa com a geada da madrugada, quebrando sob seus pés. O rio era uma fita enrugada refletindo o céu e assim que cruzou a ponte, parou para olhar para baixo, um grupo de patos barulhentos e gansos vinham reclamando, os bicos abertos, como se ainda houvesse crianças para correr gritando atrás deles.
        A vila estava deserta. As poucas casas de fazenda ao lado direito do campo verde continuavam lá, mas a maior parte das janelas estava lacrada por tábuas. Naquelas onde as tábuas haviam sido arrancadas e os vidros quebrados, ele viu de relance o papel de parede descascado, motivos floridos que antes haviam sido escolhidos com cuidado, agora em esfarrapados fragmentos, bandeiras transitórias de uma vida passada.
        Os telhados de ardósia começavam a cair, revelando suas estruturas ruídas e os jardins já tomados pela grama alta e erva selvagem.
        O Perch Inn, como sabia, estava fechado faz tempo, desde que a demanda diminuíra.
        Atravessar de Port Meadow para Binsey já fora uma das suas caminhadas domingueiras favoritas, sendo o Perch Inn seu destino. Parecia agora que ele atravessava a vila como um fantasma, vendo com estranheza a estreita alameda de castanheiras que seguia para o noroeste de Binsey para a igreja de St.Margareth.
        Tentou se lembrar da última vez que fizera esta caminhada. Sete ou dez anos atrás? Não conseguiu lembrar nem a ocasião, nem se estava acompanhado. Mas a alameda mudara. As castanheiras permaneciam lá, mas o caminho escuro sob os galhos entrelaçados das árvores tornara-se uma passagem estreita e bolorenta de folhas caídas, confusa devido à profusão de restos e mato crescido.
        O Conselho local tinha designado que certos caminhos fossem mantidos limpos, porém gradualmente ia diminuindo o número dos preservados.
        Os velhos eram fracos para o trabalho, os de meia idade estavam encarregados de sustentar a vida do Estado tremendamente dependente e eram ocupados demais, os mais novos não se importavam com preservação da área rural. Por que zelar pelo que seria deles em abundância?
        Eles logo herdariam um mundo inteiro de terras despovoadas, rios não poluídos, florestas, selvas e estuários.
        Raramente eles eram vistos no campo e pareciam temê-lo.
        As florestas em particular tinham se tornado lugares perigosos que muitos temiam adentrar, como se pudessem se perder nos caminhos escuros e esquecidos e nunca mais ver a luz do dia. E não eram apenas os jovens.
        Mais e mais gente estava procurando a companhia dos seus, deixando as vilas desertas, mesmo antes que a prudência ou os decretos oficiais se fizessem necessários, mudando-se para aqueles distritos urbanos designados onde o Governador prometia prover e luz e energia - se possível, até o fim.
        A casa solitária que ele se recordava ainda permanecia ao jardim a direita da igreja. Theo, com surpresa, viu que ela estava ao menos parcialmente ocupada. As janelas tinham cortinas, um fio de fumaça partia da chaminé e do lado esquerdo do caminho haviam tentado limpar a terra, cultivando vegetais.
        Um canteiro de favas de feijão pendurados nos pauzinhos e umas fileiras de repolhos amadurecendo, pequenas couves de Bruxelas germinando. Durante suas visitas, enquanto estudante lembrava de ter apreciado a paz da igreja e da casa, difícil acreditar sendo tão perto da cidade, apenas estragado pelo rumor incessante na M40.
        Agora aquele aborrecimento não era mais perceptível e a casa parecia envolta em calma perene.
       
        Calma que só foi quebrada pela porta se abrindo, com a saída precipitada de um homem idoso vestindo batina, grasnando e reclamando pelo caminho, balançando os braços como se repelindo bestas teimosas.
        Gritava com a voz esganiçada: — Não tem missa hoje! Tenho um batismo às onze!
        Theo disse:
        — Não venho pela missa. Só estou de visita.
        — É só o que eles fazem. Ou o que dizem. Mas eu devo estar na fonte às onze. Saiam, todos! Todos, menos aqueles que vão ficar para a festa de batismo.
        — Não devo ficar até tão tarde. Você é o padre desta paróquia?
        Ele chegou até bem perto e olhou Theo com um olhar paranóico. Theo achava nunca ter visto alguém tão velho assim, a pele parecia pergaminho, a face sarapintada como se a morte não pudesse esperar mais por ele.
        O velho disse:
         — Fizeram uma missa negra aqui na quarta, cantando e gritando a noite inteira. Isso não está certo. Não posso mandá-los parar, mas não aprovo. E eles não limpam depois – sujam o chão com sangue, penas e vinho. E cera de velas pretas. Não dá pra limpar. Não sai, sabia? Deixam tudo para eu fazer. Não pensam. Não é justo. Não é certo.
        Theo disse:
         — Por que não deixa a igreja fechada?
        O velho aproximou-se em tom de conspiração: — Por que eles pegaram as chaves, por isso. E eu sei quem pegou. Oh, eu sei, sim.
        Virou-se e começou a andar, em direção à casa, tropeçando e resmungando, parando na porta para gritar um aviso final: — Saia até as onze. A não ser que vá ficar para o batismo. Saia até as onze!
        Theo seguiu para a igreja. Era uma construção pequena de pedra com uma torre curta de sinos gêmeos parecendo pouco pretensiosa, como uma cabana de pedra com uma única chaminé.
        O jardim era um campo negligenciado de mato alto. A grama estava alta e sem cor, como a era que cobria os túmulos, apagando seus nomes.
        Em algum lugar nesta confusão selvagem estava o poço de St.Frideswide, um lugar de peregrinação.
        Um peregrino desatento teria dificuldade em achá-lo, mas a igreja ainda era obviamente freqüentada.
        De cada lado do pórtico, vasos de terracota contendo uma única rosa, o caule desnudo, mas ainda contendo alguns botões brancos de inverno.
        Julian esperava por ele no pórtico. Não ofereceu a mão nem sorriu, mas disse:
        — Obrigada por vir, estamos todos aqui. e empurrou a porta aberta. Ele a seguiu para dentro do interior sombrio e foi atingido por uma forte onda de incenso que sobrepujava qualquer outro odor silvestre.
        Quando viera até ali pela primeira vez, trinta anos atrás, tinha encontrado o silêncio imutável da paz, parecendo poder ouvir o eco de uma canção esquecida, de velhas ordens e rezadores procurar sinônimo desesperados.
        Tudo se fora. Certa vez fora um lugar onde o silêncio era mais do que a falta de sons. Agora era só um prédio de pedras, nada mais.
        Ele esperava que o grupo estivesse sentado, esperando juntos na escuridão. Mas quando viu, eles estavam separados e andavam por diferentes partes da igreja como se algum argumento ou uma necessidade indócil de solidão os forçasse a se separar. Assim que ele e Julian entraram, os outros se aproximaram, quietos e agruparam-se para encará-lo na coxia entre os bancos.
        Não teve dúvida de qual era o marido de Julian - e seu líder - mesmo antes dele vir na sua direção como se desejasse confrontá-lo. Ficaram face a face como dois adversários medindo um ao outro.
        Sem sorrir ou se cumprimentar.
        Ele era bem moreno, com um rosto elegante, impaciente, olhos desconfiados, brilhantes e profundos, as sobrancelhas grossas e retas acentuando os ossos da testa. As orelhas eram grandes e proeminentes, os lóbulos pontudos, uma boca firme e mandíbula forte. Não era o rosto de um homem em paz consigo e com seu mundo, mas por que seria, já que teria perdido por alguns anos os privilégios oferecidos aos ômegas?
        Sua geração, como a deles, havia sido observada, estudada, mimada, preservada para o momento em que seriam machos adultos e produziriam o tão esperado esperma fértil.
        Fora uma geração programada para o fracasso, o último desapontamento dos pais que os criaram e para a raça que havia investido neles tantos cuidados e esperanças.
        Quando falou, sua voz foi mais alta do que Theo esperava, um tom áspero e com traços de um sotaque que não conseguiu identificar.
        Sem esperar que Julian o apresentasse, ele disse:
        — Não há necessidade de saber nossos sobrenomes. Usaremos apenas os primeiros nomes. Sou Ralf e sou o líder do grupo. Julian é minha esposa. Estes são Miriam, Luke e Gascoigne. Gascoine é sobrenome. Seu avô o escolheu em 1990, Deus sabe porquê. Miriam era dona de casa e Luke era padre. Não precisa saber o que fazemos agora.
        A mulher foi a única que veio apertar a mão de Theo.
        Era negra, provavelmente jamaicana e a mais velha do grupo, mais velha do que ele mesmo, Theo achou, talvez nos seus cinqüenta e tantos anos. Seu cabelo curto estava grisalho. O contraste entre o branco e o negro era severo, dando a sua cabeça uma aparência empoada, dando-lhe um visual quase sagrado e decorativo.
        Era alta e graciosa com um rosto fino e longo, a pele cor de café contrastando com a brancura do cabelo. Vestia calças compridas negras, uma camisa de Jersey marrom de gola alta e colete de lã de ovelha, calçava botas, uma elegante e quase exótica combinação perto das roupas rudes de trabalho dos três homens.
        Ela cumprimentou Theo com um aperto de mão firme e um bem humorado olhar conivente, como se já fossem velhos conhecidos.
        À primeira vista nada de memorável podia ser dito do rapaz - parecia um sujeito que não poderia ter menos de trinta e um anos - aquele que chamavam Gascoigne. Baixo, quase atarracado, cabelo escovinha e um rosto cordial, olhos grandes e nariz pequeno - o rosto de uma criança que havia crescido, mas não havia alterado essencialmente sua aparência e seu olhar para o mundo com um ar intrigado e inocente sugerindo que ainda o achava estranho, mas não hostil.
        O homem chamado Luke, que tinha sido um padre, era mais velho que Gascoigne, e tinha provavelmente uns quarenta anos. Alto e pálido, um rosto sensível e o corpo franzino, mãos grandes caindo dos punhos delicados, como se na infância seu crescimento tivesse ocorrido desordenado, sem nunca chegar a ter um corpo robusto de adulto. Seu cabelo ralo caía em franjas sedosas sobre a testa alta, seus olhos eram espaçados e cinzentos, porém gentis. Não se parecia com um conspirador, e obviamente fornecia um contraste com a masculinidade morena de Rolf. Sorriu para Theo um sorriso breve que transformou sua face melancólica, mas não disse nada. Foi Rolf quem falou:
        — Julian explicou a você por que concordamos em encontrá-lo?
        Ele fez parecer que Theo tivesse suplicado por aquilo.
        — Você quer que use minha influencia com o Governador da Inglaterra. Já disse que não tenho tal influência. Perdi qualquer direito quando abri mão da minha posição de conselheiro. Ouvirei o que vocês têm para dizer, mas não acho que eu possa fazer qualquer poder junto ao Conselho ou o Governador. Por este motivo, em parte, eu concordei em vir.
        Rolf disse:
         — Ele é seu primo, seu único parente vivo. Mais ou menos cresceram juntos. O rumor é que você é o único na Inglaterra que ele ouve.
        — O rumor está errado. Theo acrescentou. — Que tipo de grupo vocês são? Sempre se encontram em igrejas abandonadas? São algum tipo de organização religiosa?
        Foi a vez de Miriam falar: — Não. Como Rolf explicou, Luke é um padre, mas não em tempo integral ou tem paróquia. Julian e ele são cristãos, o restante de nós não é. Nos encontramos em igrejas por que estão disponíveis, abertas, são de graça e geralmente estão vazias, pelo menos aquelas que escolhemos. Vamos ter que desistir desta. Outras pessoas estão começando a usá-la.
        Rolf a interrompeu com sua voz impaciente, exageradamente enfática.
        — Religião e cristianismo nada têm a ver com isso. Nada.
        Como se não tivesse ouvido, Miriam continuou:
        — Todo tipo de gente excêntrica se reúne em igrejas. Somos apenas um grupo entre muitos. Ninguém faz perguntas. Se eles perguntam, dizemos que somos do Clube Cranmer. Nos encontramos para ler e estudar o antigo livro de rezas da igreja anglicana. 
        Gascoigne disse:
        — É nosso disfarce. Disse com a satisfação de uma criança ao aprender um segredo dos adultos.
        Theo virou-se para ele.
        — É? E o que você diz quando a Polícia de Segurança do Estado pede que você recite a prece do primeiro domingo do advento?
        Vendo que Gascoigne ficou embaraçado, acrescentou:
        — Disfarce difícil de engolir.
        Julian falou calmamente: — Pode não simpatizar conosco, mas não precisa nos menosprezar. O disfarce não é para convencer a polícia. Se começassem a se interessar por nós, nenhum disfarce funcionaria. Nos descobririam em dez minutos. Sabemos disso. O disfarce nos dá uma razão, uma desculpa para nos encontrar regularmente em igrejas. Não fazemos propaganda disso. Só se alguém nos pergunta, se precisarmos.
        Gascoigne disse:
        — Eu conheço as orações. Você conhece essa que me perguntou?
        Não estava me acusando, apenas mostrando interesse.
        Theo disse:
        — Cresci com o velho Livro. A igreja que minha mãe me levava quando garoto deve ter sido uma das últimas a usá-lo. Sou um historiador. Tenho interesse na igreja Vitoriana, em velhas liturgias, formas de veneração extintas.
        Rolf falou impaciente: — Isso tudo é irrelevante.Como Julian disse, se a polícia nos agarrasse não ia perder tempo examinando nosso velho catecismo. Ainda não estamos correndo perigo, se você não nos entregar. E o que fizemos? Nada, só conversamos. Antes de passarmos a fase dois, poderemos apelar ao Governador da Inglaterra, seu primo.
        Miriam disse:
        — Três de nós votam a favor. Concordo com Julian e Luke. Acho que vale a pena tentar.
        Rolf mais uma vez a ignorou: — Não foi idéia minha trazê-lo até aqui. Vou ser honesto com você. Não tenho motivos para confiar em você e particularmente não queria esta situação.
        Theo respondeu: — E eu não queria vir, estamos em pé de igualdade. Vocês querem que eu fale com o Governador. Por que vocês mesmos não falam?
        — Por que ele não iria nos ouvir. Mas pode ouvir você.
        — Se eu concordar em vê-lo e se ele for me ouvir, o que vocês querem que eu diga?
       
        Agora que a questão fora colocada claramente pareceu que eles ficaram confusos. Olhavam um para o outro, imaginando quem falaria. Foi Rolf quem respondeu:
        — O Governador foi eleito ao tomar o poder, mas já faz 15 anos e desde então não fizeram mais eleições. Ele diz estar no comando por desejo do povo, mas é um déspota, um tirano!
       
        Theo respondeu, secamente: — Precisam de um mensageiro de coragem que esteja preparado para dizer-lhe algo assim.
        Gascoigne diz: — E os Granadeiros são seu exército privado. Foi para ele que prestaram juramento. Eles não sevem ao Estado, mas ao Governador. Meu avô foi dos Granadeiros. Dizia ser o melhor regimento do exército britânico.
        Rolf o ignorou: — E tem outra coisas que ele pode fazer mesmo antes de uma eleição geral. Pode acabar com o programa de teste de sêmen. É uma perda de tempo, é degradante, além de ser um ato desesperançado de qualquer jeito. E poderia deixar os Conselhos locais e regionais escolherem seus próprios representantes. Seria o princípio para uma democracia.
        Luke disse:
        — Não é só o teste de sêmen. Poderia parar com os exames ginecológicos compulsórios. São degradantes para as mulheres. E queremos que ele ponha um fim no Quietus. Sei que todos os velhos são supostamente voluntários. Talvez tenha começado assim. Talvez alguns ainda sejam. Mas quem escolheria morrer se fosse lhe dada uma esperança?
        Theo interrompeu: — Esperança de quê?
        Foi a vez e Julian interromper: — E queremos que seja feito algo sobre os forasteiros temporários. Você acha certo que exista um edital proibindo nossos ômegas de emigrar? Nós importamos ômegas de países menos influentes para fazer nosso trabalho sujo, limpar as ruas, recolher o lixo, cuidar de inválidos e velhos.
        Theo disse:
         — Eles querem vir para cá, por que querem uma qualidade de vida melhor.
        Julian falou: — Eles querem comida. Então, quando ficarem velhos - sessenta anos é a idade limite, não? - eles são mandados de volta, querendo ou não.
        — É uma maldade que seus próprios países poderiam reparar. Poderiam começar tratando melhor dos seus. De qualquer forma, o número deles não é grande. Existe uma quota, a entrada deles no país é vigiada cuidadosamente.
        — Não é somente a quota que restringe. Eles têm que ser fortes, saudáveis e sem passagens criminais. Nós escolhemos somente os melhores e eles voltam quando não são mais necessários. E quem deveria se importar com eles? Trabalham por uma miséria, vivem em acampamentos, mulheres separadas dos homens. Sequer recebem título de cidadania; é uma forma de escravidão legalizada.
         Theo disse:
         — Não penso que você vai começar uma revolução com o problema dos forasteiros ou do Quietus. As pessoas não se importam.
        Julian disse:
        — Nós queremos que se importem.
        — Porque deveriam? Vivem sem esperança, em um planeta que está morrendo. O que eles querem é segurança, conforto e prazer. O Governador promete os dois primeiros, e é mais do que qualquer governo estrangeiro faz.
        Rolf ouvia sem falar, então disse de repente:
        — Como é o Governador? Que tipo de homem ele é? Você deve saber, já que cresceu com ele.
        — Isso não me dá acesso à sua mente.
        — Todo aquele poder, mais o que qualquer um já teve - neste país ao menos - em suas mãos. Ele gosta disso?
        — Presumo que sim. Não parece ansioso para largá-lo. Se você quer democracia, tem que começar de alguma forma, revitalizando o Conselho local. Começa assim.
        Rolf falou: — Termina assim também. É como o Governador exerce seu poder neste nível. Já viu nosso representante, Reggie Dimsdale? Tem setenta anos, um reclamão, covarde, só trabalha por que tem uma cota dupla de gasolina e dois ômegas estrangeiros que cuidam de sua casa e limpam sua bunda. Para ele, nada de Quietus.
        — Ele foi eleito para o Conselho. Todos são.
        — Por quem? Você votou? Quem se importa? As pessoas querem que alguém faça o trabalho. Sabe como funciona. O presidente de um Conselho local não pode ser aprovado sem o voto do Conselho Distrital. Que precisa da aprovação do Conselho Regional. E ele ou ela tem que ser aprovada pelo Conselho da Inglaterra. O Governador controla todo o sistema, de alto a baixo, você deve saber disso. Também o controla na Escócia e no País de Gales. Cada qual tem seu próprio governador, que é escolhido por? Xan Lyppiatt, que se auto denomina o Governador da Grã Bretanha, o que no caso dele, não tem o mesmo apelo romântico.
         O comentário, pensou Theo, mostrava percepção. Lembrava-se de antigas conversas com Xan.
        — Se muito, “Primeiro Ministro”. Não desejo me apropriar de outro título, principalmente quando este carrega em si o peso de tanta tradição e obrigações. É esperado que o Primeiro Ministro convoque eleições a cada cinco anos. E nada de — Lorde Protetor— . O último foi um grande fiasco. Governador soa muito bem. Mas Governador da Grã Bretanha e Irlanda do norte? Não soa como eu gostaria.
        Julian disse:
        — Não se vai a lugar nenhum no Conselho local. Você mora em Oxford, é um cidadão como qualquer outro, deve ler o tipo de coisa que eles divulgam depois das reuniões, as coisas que eles discutem. A manutenção dos gramados de golfe e coisas assim. As instalações do Clube de Campo são adequadas? Decisões sobre alocações em serviços, reclamações sobre obtenção de gasolina, contratação de forasteiros. Audições para o coro amador local. Existe gente suficiente nas lições de violino para precisar da contratação de um profissional em tempo integral? Algumas vezes até discutem policiamento das ruas, não que seja realmente necessário, uma vez que a ameaça de deportação no Código Penal acaba com qualquer perspectiva para ladrões.
        Luke disse gentilmente:
        — Proteção, conforto e prazer. Tem que haver algo mais.
        — É com que o povo se importa, é o que quer. O que mais o Conselho poderia oferecer?
        — Compaixão, justiça e amor.
        — Nenhum governo jamais se preocupou com amor e nem vai se preocupar.
        Julian disse:
        — Mas poderia se preocupar com justiça.
        Rolf estava impaciente: — Justiça, compaixão e amor são só palavras. O que estamos falando é de poder. O Governador é um ditador mascarado de líder democrático. Foi eleito para ser o responsável pelo desejo do povo.
        Theo disse:
         — Ah, o desejo do povo. Ai está uma frase que soa bem. Atualmente o desejo do povo é por proteção, conforto e prazer. Sei o que ofende vocês - o fato que Xan gosta tanto do poder, não da maneira que ele o exerce.
        O pequeno grupo não era coeso e ele suspeitava que não compartilhava dos mesmos propósitos.
        Gascoigne era cheio de indignação sobre a apropriação do nome — granadeiro— , Miriam tinha seus motivos, apesar de não serem claros, Julian e Luke eram idealistas religiosos, Rolf pela inveja e ambição.
        Como historiador, Theo podia apontar uma dezena de paralelos.
        Julian falou: — Miriam, conte a ele sobre seu irmão. Fale de Henry. Mas vamos nos sentar antes de continuar.
        Sentaram-se todos em um banco de igreja, de frente para Miriam, olhando todos para Theo, como um bando de idolatras um pouco relutantes.
        — Henry foi mandado para a ilha dezoito meses atrás. Assalto com violência. Não foi tão violento, nem realmente foi violento. Assaltou uma ômega e a empurrou. Nem foi um empurrão, mas ela caiu e depois disse na corte que Henry a chutou nas costelas enquanto estava no chão. O que não foi verdade. Não estou dizendo que ele não a empurrou. Ele é briguento e difícil desde criança, mas ele não chutou aquela ômega, não enquanto estava caída. Ele pegou a bolsa dela, a empurrou e depois correu. Isso aconteceu em Londres, um pouco antes da meia noite. Correu para Ladbroke Grove e direto para os braços da polícia. Nunca teve sorte na vida.
        — Você foi ao julgamento?
        — Eu e minha mãe. Meu pai havia morrido dois anos antes. Arranjamos um advogado para Henry - pagamos por um - mas ele realmente não estava interessado. Pegou nosso dinheiro e não fez nada. Pudemos ver que ele concordava com a sentença de mandar Henry para a ilha. Além disso, ele tinha roubado uma Ômega. Isso contava bastante contra ele. E ele é negro.
        Rolf disse impaciente:
         — Não comece com aquela conversa de discriminação racial. Foi o empurrão e não a sua cor. Você não é mandado para a colônia à toa, exceto por crime violento contra pessoa ou por uma segunda condenação por arrombamento. Henry não tinha cumprido pena por arrombamento, mas tinha duas por roubo.
        Miriam disse:
        — Ele furtou uma loja. Nada demais. Furtou um cartão de aniversário para mamãe e uma barra de chocolate. Mas ele era criança. Por Deus, Rolf, tinha doze anos. Vinte anos atrás!
        Theo falou:
        — Se ele derrubou a vítima, era culpado de crime com violência, não importa se a chutou ou não.
        — Mas ele não chutou! Ele a empurrou e ela caiu. Não foi deliberado.
        — O júri não pensou assim.
        — Não houve um júri. Você sabe como é difícil conseguir pessoas pra um. Ninguém se interessa. Não querem se incomodar. Ele foi julgado sob os novos acordos, um juiz e dois desembargadores. Eles têm poder para mandar alguém para a ilha. Para sempre. Sem perdão, nunca mais sai de lá. Uma sentença perpétua por causa de um empurrão que ele não pretendeu dar. Isso matou minha mãe. Henry era o filho único e ela sabia que jamais o veria de novo. Ela se fechou depois disso. Mas estou contente por ela ter morrido. Ao menos não soube do pior que aconteceria com Henry.
        Olhou para Theo e disse:
        — Ele voltou para casa.
        — Quer dizer que ele fugiu da ilha? Achava que era impossível!
        — Henry encontrou um bote quebrado, um que a força de segurança esqueceu quando a ilha foi preparada para receber os detentos. Eles queimaram todos os barcos, mas este ficou esquecido, escondido ou então acharam que estava danificado demais. Henry sempre foi bom com as mãos, ele o consertou secretamente e fez dois remos. Foi em três de Janeiro, aguardou a noite e entrou no mar.
        — Ele foi inacreditavelmente imprudente.
        — Não. Ele sabia que conseguiria ou morreria afogado e se afogar era melhor do que ficar naquela ilha maldita. E assim ele chegou em casa, ele voltou. Eu morava - bem, não importa onde. Era uma cabana na periferia da vila. Ele chegou depois da meia noite. Eu tinha tido um dia duro no trabalho e fui cedo para a cama. Estava cansada, mas não conseguia dormir, então fui tomar chá e adormeci na minha cadeira. Dormi uns vinte minutos e quando acordei ainda não estava pronta para me deitar. Sabe como é. Era noite escura, sem estrelas, ventava. Normalmente eu gosto do som do vento, quando estou em casa, mas naquela noite foi diferente, não foi bom, ficava assoviando na chaminé, ameaçadoramente. Estava triste, pensando em mamãe morta e em Henry preso para sempre. Foi então que ouvi as batidas na porta.  Não tocou a campainha. Duas batidas, fracas, mas eu ouvi. Fui ver no olho mágico, mas só vi a noite. Passava de meia noite e eu não sabia quem podia estar lá fora. Coloquei a corrente e abri a porta. Tinha uma forma escura, encostada na parede. Teve forças somente para bater duas vezes na porta antes de cair inconsciente. Trouxe-o para dentro e tentei acordá-lo. Dei-lhe sopa e brandy e depois de uma hora conversamos. Ele precisava falar, deixei que falasse, deitado em meus braços.
        Theo perguntou: — E como ele estava?
        Foi Rolf quem respondeu: — Faminto, fedendo, sangrando e muito magro. Tinha andado desde a costa da Cumbria— .
        Miriam continuou: — Dei um banho nele e fiz curativos e coloquei-o na cama. Estava com medo de dormir sozinho, então eu deitei junto dele. Não consegui dormir. Ele ainda falava. Falou por uma hora. E então falei, apenas o abracei e fiquei ouvindo. Até que ficou quieto e eu soube que dormira. Fiquei lá o abraçando, ouvindo sua respiração.
        Então às vezes ele gemia e se sentava, mas eu o convencia a voltar a dormir, como uma criança. Fiquei ao seu lado ouvindo as coisas que dizia. Oh, eu tinha tanta raiva também. Queimava com o ódio em meu peito.
        A ilha era o inferno em vida. Aqueles que são mandados para lá logo morrem e o resto são demônios. Existe muita fome. Sei que tem sementes e grãos, maquinaria, mas a maioria é gente da cidade que não sabe cultivar coisa alguma, não sabe trabalhar com as mãos. Toda a comida estocada se foi, o canteiros e hortas se foram. Agora, quando as pessoas morrem, alguns são comidos. Eu juro. Aconteceu. A ilha é controlada por presos mais fortes, são cruéis, batem e torturam e atormentam e ninguém os impede, e ninguém vê. Aqueles gentis, que não mereciam estar ali, não duram muito. Com as mulheres é ainda pior. Henry me disse coisas que não posso repetir e nunca esquecerei. Na manhã seguinte eles vieram atrás dele. Não quebraram nada, nem fizeram barulho, apenas vieram até a cabana e bateram na porta.
        Theo perguntou: — Quem eram?
        — Seis granadeiros e seis homens da polícia. Os policiais eram os piores. Acho que eram ômegas. Não disseram nada para mim, subiram as escadas e o pegaram. Quando ele os viu ele gritou. Nunca esquecerei aquele grito. Nunca, nunca… Então eles vieram pra cima de mim, mas um dos granadeiros disse para me deixarem em paz. Ele disse, ela é irmã dele, era óbvio que ele viria para cá. Ela não podia fazer outra coisa a não ser ajudá-lo.
        Julian falou:
        — Nós pensamos depois que ele devia ter uma irmã, alguém que nunca o deixaria mal.
        Rolf disse impaciente:
        — Ou alguém que ele achou que mostrando alguma humanidade seria pago por Miriam.
        Miriam fez que não:
        — Não, ele não era assim. Estava tentando ser gentil. Perguntei o que aconteceria com Henry. Ele não respondeu, mas um dos outros disse:
        — O que você espera? Você vai receber as suas cinzas. Era um capitão, disse que tinham descoberto sua fuga e o seguido desde a Cumbria até Oxford. Só para ver aonde iria. Por que queriam pegá-lo quando se sentisse seguro.
        Rolf disse amargo:
        — É este tipo de refinada crueldade que os dá um charme extra.
        — Uma semana depois o pacote chegou. Era pesado, como dois sacos de açúcar, mesmo formato, enrolado em papel marrom com um carimbo. Dentro tinha este saco plástico cheio de um grão branco, parecia fertilizante de jardim, nada que lembrasse Henry. Só havia uma nota junto, não estava assinada e dizia — morto ao tentar fugir— . Nada mais. Fiz um buraco no jardim. Lembro que chovia e quando joguei a coisa no buraco foi como se todo o jardim estivesse chorando. Mas eu não chorei. O sofrimento dele tinha acabado. Qualquer coisa era melhor do que ser mandado de volta para a ilha.
        Rolf falou: — Claro que não o mandariam mais para lá. Não queriam que ninguém soubesse que era possível fugir com sucesso. E não é possível, agora não. Eles começaram a patrulhar toda a costa.
        Julian tocou o braço de Theo:
         — Não deviam tratar pessoas assim. Não importa o que fizeram, o que são, não podem tratar gente assim. Temos que parar com isso.
        Theo disse:
        — É claro que estes demônios existem, mas não é nem perto do que acontece em outras partes do mundo. É uma questão de o que o país está preparado a tolerar o preço de um governo forte.
        Julian perguntou: — O que você quer dizer com um governo forte?
        — Uma boa ordem pública, sem corrupção em altas esferas, sem medo da guerra ou do crime, uma razoável e equilibrada distribuição da prosperidade e dos recursos, para cada indivíduo.
        Luke então disse:
        — Então não temos um governo forte.
        — Devemos ter o melhor possível sob estas circunstâncias. Muita gente concorda com a colônia penal. Nenhum governo pode agir sem o desejo moral do povo.
        Julian falou:
        — Então temos que mudá-lo. Temos que mudar as pessoas.
        Theo riu.
        — Oh, é este o tipo de rebelião que você tem em mente? Não o sistema, mas os corações e mentes dos homens. Você são o tipo mais perigoso de revolucionários, ou seriam, se vocês tivessem a menor idéia de como começar, ou tivessem a menor chance de sucesso.
        Julian, como se estivesse interessada na resposta, perguntou:
        — E como você começaria?
        — Não começaria. A história me ensina sobre o que acontece com pessoas que fazem isso. É fácil lembrar com uma corrente ao redor do pescoço.
        Ela pegou a cruz com sua mão defeituosa. Junto da sua carne intumescida, a cruz parecia um pequeno e frágil talismã.
        Rolf falou:
        — Você pode sempre encontrar desculpas para não se fazer nada. O fato é que o Governador controla a Grã Bretanha como seu feudo particular. Os granadeiros são o seu exército pessoal e a polícia de segurança, seus espiões e executores.
        — Você não tem prova disso.
        — Quem matou o irmão de Miriam? Aquela execução se deu depois de um julgamento apropriado ou foi um assassinato secreto? O que queremos é democracia de verdade.
        — Com você nas rédeas dela?
        — Farei um trabalho melhor do que ele.
        — Imagino que foi exatamente o que ele pensou ao assumir o lugar do Primeiro Ministro anterior.
        Julian disse:
         — Então você não vai falar com ele?
        Rolf interrompeu:
        — É claro que ele não vai. Nunca teve essa intenção. Foi uma perda de tempo trazê-lo até aqui. Sem sentido, estúpido e perigoso.
        Theo então falou: — Não disse que não o verei. Mas preciso levar para ele mais do que um boato, particularmente nem posso dizer a ele onde e como consegui esta informação. Antes de responder a vocês, eu quero ver um Quietus. Quando está marcado o próximo? Alguém sabe?
        Julian respondeu: — Eles pararam de avisar, mas é claro que ainda continuam a acontecer. Tem um Quietus para mulheres acontecendo em Southwold esta quarta, daqui a três dias. Será no píer, ao norte da cidade. Conhece a cidade? Fica a quase dez quilômetros de Lowestoft.
        — Não é muito conveniente.
        Rolf disse:
         — Talvez não para você. Mas é para eles. Não existe um estrada para lá, então não haverá multidões. É longe o bastante para fazer as pessoas pensarem se vale a pena gastar combustível só para ver a vovó ser despachada numa camisola branca ao som de “Abide with me”. E só há um acesso pela rodovia. Eles podem controlar quantas pessoas passaram para lá e podem ficar de olho nelas. Se ocorrer um incidente, fica fácil encontrar o responsável.
        Julian perguntou:
        — Teremos que esperar quanto antes de nos responder?
        — Decidirei se vou ver o Governador logo após o Quietus. Então, é melhor esperar uma semana e arranjar um encontro.
        Rolf disse:
        — Deixe para daqui a quinze dias. Se for ver o Governador, eles colocarão alguém lhe vigiando.
        Julian perguntou:
         — Como saberemos se você concordou?
        — Deixarei uma mensagem depois do Quietus. Conhecem o Museu em Pusey Lane?
        Rolf disse que não.
        Luke disse impaciente:
        — Eu conheço. Uma exibição de cópias de estátuas romanas e gregas. Costumávamos usá-lo para as aulas de arte. Não vou lá há anos. Nem sei por que é mantido aberto.
        Theo disse: Não há motivo para fechá-lo. Não precisa de muita supervisão. Poucos estudantes ocasionalmente vão parar lá. O horário de abertura está no quadro do lado de fora.
        Rolf suspeitava:
        — Por que lá?
        — Porque eu gosto de visitá-lo e o atendente me conhece. Porque oferece um bom número de lugares acessíveis e discretos. Principalmente porque é conveniente para mim.
        Luke perguntou:
        — Onde exatamente vai deixar a mensagem?
        — No primeiro andar, debaixo da cabeça de Diadoumenos. Número de catalogo C38. Se não lembrar o nome, acho que pode se lembrar do número. Se não puder, escreva-o.
        Julian disse:
        — Temos que levantar a estátua ?
        — Não é uma estátua, apenas uma cabeça. Não precisa nem tocar nela, há um espaço entre ela e a base. Deixarei minha resposta num cartão. Nada que incrimine, apenas um sim ou um não. Pode me telefonar, se não for imprudente.
        Rolf falou:
         — Tentamos nunca usar o telefone. Somos precavidos, mesmo antes de tomarmos qualquer atitude. Todo mundo sabe que os telefones são grampeados.
        Julian perguntou:
        — Se a resposta for sim, e o Governador concordar em vê-lo, você nos deixará saber o que ele disse, o que lhe prometeu?
        Rolf interrompeu:
         — Melhor deixar isso para duas semanas depois. Vou encontrar com você em Oxford, um lugar aberto seria melhor.
        Theo disse:
        — Espaços abertos podem ser observados por binóculos. Duas pessoas no meio do parque obviamente é uma reunião, chama atenção. Um prédio público é mais seguro. Encontrarei Julian no museu Pitt Rivers.
        — Parece que gosta mesmo de museus.
        — Eles possuem a vantagem de serem lugares onde as pessoas podem perder tempo legitimamente.
         Rolf falou:
        — Então eu o encontro ao meio dia, no Pitt Rivers.
        — Você não, Julian. Você a usou para fazer o primeiro contato comigo. E para me trazer até aqui. Estarei em Pitt Rivers ao meio dia de quarta feira, daqui a duas semanas depois do Quietus, e espero que ela apareça sozinha.
        Pouco depois das onze, Theo deixou a igreja.
        Parou por um momento na entrada, olhando seu relógio e o cemitério abandonado.
        Queria não ter vindo, queria não ter se envolvido com esta iniciativa fútil.
        Tinha sido mais atingido pela história de Miriam do que podia admitir. Queria nunca ter ouvido essa história. Mas o que poderia fazer, o que alguém poderia fazer? Agora era tarde.
        Ele não acreditava que o grupo corria perigo.
        Alguns pareciam bem perto da paranóia.
        Esperava por um cancelamento temporário de suas responsabilidades se o Quietus não ocorresse por meses. Quarta feira era um dia ruim para ele.
        Significava ter que rearranjar seu dia.
        Fazia 3 anos que não via Xan. Se fosse encontrá-lo de novo seria humilhante e desagradável vê-lo no papel de suplicante. Estava irritado consigo mesmo e com o grupo.
        Poderia desprezá-los como uma gangue de descontentes e amadores, mas eles tinham levado a melhor, de maneira que ficava difícil desistir. Porque achou difícil fazê-lo era uma questão que no momento não lhe interessava explorar.
        Iria ao Quietus como prometeu e deixaria a mensagem no museu.
        Esperava que a mensagem se justificasse com um simples “ Não” .
        A comemoração cristã começara. O velho padre, agora vestindo uma estola, conduzia os fiéis com pequenos gritos de encorajamento. Duas mulheres de meia idade e dois homens velhos, os homens de terno azul e as mulheres de chapéus floridos e sobretudos brancos. Theo passou por eles, evitando contato visual, mas as duas mulheres quase se puseram no seu caminho, sorrindo feito dementes, exibindo as trouxas que carregavam, esperando admiração. Os dois filhotes de gato, enrolados em mantas, pareciam ambos ridículos e ternos.
        Seus olhos bem abertos, piscinas de opalas, mostravam aborrecimento devido ao confinamento.
        Pensava se tinham sido drogados, conclui que sim, provavelmente para serem manuseados, acariciados e tratados como bebês.
        Perguntava-se sobre o padre também estaria drogado, se tinha sido ordenado ou era um impostor - e tinha um monte deles - ele estava compenetrado com o ritual ortodoxo.
        A Igreja da Inglaterra há muito não tinha uma doutrina normal ou uma liturgia comum, estava tão fragmentada que não era possível saber o que algumas facções estavam envolvidas, mas ele duvidava de qualquer uma que encorajasse o batismo de animais. O novo arcebispo que se denominava um Cristão racionalista teria, suspeitava, proibido o sacramento do batismo, já que não se havia quem batizar.
        Mas ele dificilmente podia controlar o que acontecia em cada igrejinha.
        Os gatinhos presumivelmente não gostavam também de receber um punhado de água gelada em suas cabeças, embora ninguém reclamasse. 
        Caminhou vigorosamente em direção a sanidade e aquela casa inviolável que chamava de lar.
       
       
        Na manhã do Quietus, Theo acordou com uma vaga sensação de que algo estava errado, não o bastante para ficar ansioso, mas uma leve e indistinta depressão, como os farrapos esquecidos de um sonho desagradável.
        E assim, antes mesmo de acender a luz, achava saber como seria o dia. 
        Era seu hábito escolher pequenos prazeres como paliativos para obrigações desagradáveis.
        Normalmente, ele agora começaria a planejar sua rotina com cuidado, um bom pub para um café da manhã, uma visita a uma igreja interessante, uma volta por uma vila atraente.
        Mas não havia compensação para uma jornada em que o propósito final era a morte.
        Era melhor ir de uma vez, ver o que tinha prometido ver, retornar para casa, dizer a Julian que nada podia fazer pelo grupo e tirar aquela experiência de sua mente.
        Significava também rejeitar a rota mais interessante, via Bedford Cambridge e Stowmar em favor da M40 por M25, então pelo norte até a costa de Suffolk pela A12.
        Seria o caminho mais rápido e direto, mas ele não esperava se divertir.
        A A12 estava em melhores condições do que esperava, considerando que os portos da costa leste estavam quase abandonados.
        Fez um tempo excelente, chegando a Blythburgh, no estuário, antes das duas.
        A maré estava vazante e as margens lamacentas e a água pareciam um lenço de seda que o sol da tarde transformava em ouro, nas janelas da igreja de Blythburgh.
        Fazia 26 anos desde a última vez que estivera ali.
        Naquela época, ele e Helena passaram um fim de semana no hotel Swan em Southwold quando Natalie tinha somente 6 meses.
        Naquele tempo, só podiam ter um Ford de segunda mão.
        A cadeirinha de Natalie ia firmemente amarrada ao banco de trás junto com a sua parafernália, grandes pacotes de fraldas descartáveis, equipamento para esterilizar mamadeiras e latas de comida para bebê.
        Quando chegaram a Blythburgh, Natalie começou a chorar e Helena disse que ela estava faminta e que devia alimentá-la antes de chegar ao hotel.
        Porque não podiam parar no White Hart em Blythburgh? O estalajadeiro certamente providenciaria uma maneira de aquecer o leite. Podiam almoçar em um pub e ela alimentaria Natalie. Porém o estacionamento estava lotado e ele detestava o trabalho que a criança e Helena lhe impunham. Sua insistência por permanecer rodando mais alguns quilômetros até Southwold foi mal recebida. Helena tentava sem sucesso acalmar o bebê. O fim de semana começara com o ressentimento usual e continuava repleto de mau humor.
        Era, é claro, sua culpa.
        Mais do que nunca ele estava pronto para magoar os sentimentos da esposa e estragar a alegria de sua filha em um inconveniente bar cheio de estranhos.
        Gostaria de ter alguma lembrança de sua falecida filha que não viesse manchada de culpa e remorso.
        Ele decidiu quase por impulso almoçar no pub.
        Hoje seu carro era o único no parque de estacionamento e, dentro da sala de teto baixo, o piso negro da lareira de toras ardentes fora substituído por uma imitação elétrica de fogo.
        Era o único cliente.
        O taverneiro, bem velho, serviu-o uma cerveja regional.
        Estava excelente, mas a única comida de que dispunham eram tortas pré-cozidas, que o homem aqueceu no forno de microondas.
        Não era uma refeição adequada para a provação que tinha pela frente.
        Tomou o caminho conhecido de volta a Southwold.
        Suffolk, enfadonha sob um céu de inverno, não parecia ter mudado, mas a estrada se achava deteriorada, fazendo o percurso perigoso e sofrível como um rally.
        Quando chegou nas cercanias de Reydon viu as pequenas turmas de trabalhadores forasteiros com seus inspetores, obviamente se preparando para começar a reparar o asfalto.
        Os rostos escuros se voltaram para ele conforme dirigia lentamente passando por eles.
        A presença deles o surpreendeu. 
        Southwold com certeza não fora designada como um futuro centro populacional aprovado.
        Por que então se preocupavam em consertar o acesso?
        Passava pelos jardins e prédios de Saint Felix School.
        Uma grande placa presa ao portão declarava que agora era o Centro de arte de Suffolk leste.
        Possivelmente só abria no verão ou em finais de semana, pois não viu ninguém pelo gramado abandonado.
        Dirigiu pela ponte Bight e entrou na pequena cidade, onde as casinhas pintadas pareciam dormir em um estupor pós-refeição.
        Trinta anos atrás seus habitantes eram, na maioria, idosos, velhos soldados passeando com seus cães, casais aposentados, andando de braços dados.
        Uma atmosfera de calma e ordem, consumida toda a paixão.
        Agora era um deserto.
        Na varanda fora do hotel Crown, dois homens velhos sentados lado a lado, mãos curtidas segurando suas bengalas.
        Decidiu estacionar no jardim do Swan e tomar um café antes de seguir para a praia norte, mas a estalagem estava fechada. Quando dava ré no carro, uma mulher de meia idade usando avental florido veio na sua direção saída de uma das portas laterais.
        Ele disse: Queria tomar café. O hotel está fechado permanentemente?
        Ela tinha um rosto simpático, mas um pouco nervoso, e olhou ao redor antes de lhe responder.
        — Só fechamos hoje, senhor. Em sinal de respeito. É o Quietus, você sabe, ou talvez não saiba.
        — Sim, eu sei.
        Desejando quebrar aquela sensação profunda de isolamento deixada nos prédios e ruas ele disse:
        — Estive aqui trinta anos atrás. Não mudou muito.
        Ela colocou uma das mãos no carro e disse:
        — Oh, mas mudou sim, senhor. Mas o Swan continua sendo um hotel, apenas não tem mais hóspedes, é claro, agora as pessoas se mudaram para a cidade. É o esquema de evacuação. O governo não é capaz de nos garantir eletricidade e serviços. Todos estão indo para Ipswich ou Norwich.
        Por que tanta pressa? ele pensou irritado.
        Estava claro que Xan poderia manter aquele lugar funcionando por mais vinte anos.
        Estacionou o carro em um gramado pequeno ao final da rua Trinity e começou a caminhar colina acima pelo caminho que conduzia ao píer.
        O mar verde-barrento agitava-se morosamente sob um céu da cor de leite ralo, cuja luminosidade desfalecia ao horizonte como se um sol inconstante fosse mais uma vez sumir. Acima de sua pálida transparência, grandes acúmulos de nuvens negras e escuras, como uma cortina parcialmente erguida.
        Trinta metros abaixo dali, podia ver as ondas chocando-se com enfadonha inevitabilidade, carregadas de areia e seixos.
        O caminho do promenade, que fora certa vez puro e branco, estava repleto de pedaços quebrados, como se agonizando um descaso de anos.
        No passado, ele podia ver além dele, a longa e brilhante seqüência de chalés com seus nomes ridículos, ordenados como casas de bonecas de frente para o mar.
        Agora havia falhas que lembravam dentes faltando numa boca banguela e os restantes estavam em condições periclitantes, a pintura descamada, precariamente sustentadas, esperando pela próxima tempestade varrê-los para longe.
        Aos seus pés, a grama seca e alta agitava-se na brisa que nunca parecia se ausentar desta costa.
        Aparentemente a embarcação não tomara seu lugar no píer, mas sobre uma plataforma de madeira especialmente construída ao lado dele.
        Podia ver na distância duas chatas com os deques decorados com grinaldas de flores e ao final do píer um pequeno grupo de figuras, algumas, imaginou, usando uniformes.
        Uns oitenta metros em frente, três ônibus subiam o promenade. Ao se aproximarem, os passageiros começavam a descer. Primeiro um pequeno grupo de músicos vestindo jaquetas vermelhas e calças pretas. Começaram a se reunir desorganizadamente enquanto o sol fazia seus instrumentos faiscarem.
        Brincaram entre eles, depois se cansaram e acenderam cigarros, olhando o mar.
        E então chegaram os idosos, alguns capazes de descer sem ajuda e outros acompanhados por enfermeiras.
        O bagageiro foi aberto e muitas cadeiras de roda apareceram. Por último, um homem mais frágil foi ajudado pelo motorista a sentar-se numa das cadeiras de rodas.
        Theo manteve distância enquanto observava a fina linha de figuras corcundas tomando o caminho em direção às cabines da praia. Logo ele entendeu o que acontecia. Usavam as cabines para que as idosas pudessem vestir os robes brancos; as cabines que por tanto tempo conheceram os ecos das risadas infantis e que estavam desocupadas nos últimos trinta anos, espontaneamente voltavam a sua mente, das tolas e felizes celebrações dos feriados em família: Ficou lá de cima do penhasco vendo-as duas a duas, as velhinhas serem auxiliadas a subirem os degraus das cabines. Os membros da banda olhavam a tudo sem se mexer.
        Depois de confabularem um pouco, apagarem os cigarros, pegaram os instrumentos e se colocaram em marcha em direção ao despenhadeiro. Formaram uma fila e ficaram aguardando. O silêncio era quase sinistro.
        Atrás deles, a coluna de casas vitorianas, em ruínas, vazias, de pé como uma lembrança maltrapilha de dias mais felizes. Na praia, apenas um bando de gaivotas perturbava a calma. Agora as anciãs estavam sendo ajudadas a descer e colocadas em fila. Todas vestidas com robes brancos, quem sabe de dormir, com capuz branco, um conforto necessário devido ao vento penetrante. Ele se sentiu feliz por estar usando seu casaco de tweed.
        Cada anciã carregava um ramalhete de flores, de forma que lembravam um desordenado bando de damas de honra. Ele se achou pensando em quem teria arranjado as flores, destrancado as cabines, deixado os robes dobrados com aquele propósito. O evento que parecia tão ao acaso, espontâneo, devia ter sido cuidadosamente organizado. E viu que as cabines na parte de baixo do promenade haviam sido reparadas e pintadas.
        A banda começou assim que a procissão chegou à parte debaixo do promenade em direção ao píer.
        Assim que o primeiro acorde quebrou o silêncio, ele sentiu um certo ultraje, uma pena terrível.
        Eles tocavam belas canções, melodias dos tempos dos avós, canções da segunda guerra mundial, que reconhecia mesmo que não lembrasse dos nomes. Então, alguns nomes foram chegando à sua mente: “Bye Bye, Blackbird,” “Somebody Stole My Girl”, “Somewhere over the Rainbow.”
        Assim que chegaram ao píer, a música mudou e ele reconheceu a melodia de um hino: — Abide with me— (— Fique comigo— ). Depois do primeiro verso a melodia reiniciou e ergueu-se um som queixoso como de aves marinhas: então percebeu que os anciões cantavam. Viu uma mulher se balançando na música, segurando sua roupa branca e fazendo piruetas. Ocorreu a Theo que eles podiam ter sido drogados.
        Mantendo distância dos últimos da fila, ele os seguiu pelo píer.
        Agora a cena estava visível.
        Havia um ajuntamento de umas vinte pessoas, alguns provavelmente parentes e amigos, mas a maioria eram membros da polícia. Os dois barcos eram pequenas chatas. Apenas o casco permanecera e havia colunas de remos. Em cada barco, dois soldados, e assim que a primeira anciã subiu, eles se curvaram.
        O rebocador, atracado ao píer começou a se mover. Uma vez que os barcos estivessem longe, os soldados poderiam entrar no rebocador e voltar para a praia.
        A banda na praia continuava a tocar: desta vez era — Nimrod— . A cantoria cessara e nenhum som chegava, exceto o quebrar das ondas nas estruturas de madeira e ocasionalmente uma ordem de comando trazida pela brisa.
        Disse a si mesmo que já vira o bastante. Podia voltar ao carro. Não queria outra coisa a não ser dirigir para longe daquela cidade que apenas que dizia sobre abandono, decadência, vazio e morte.
        Mas tinha prometido a Julian que veria o Quietus e significava que teria que continuar olhando até que os barcos sumissem de vista. Como se reforçando sua intenção, desceu pelos degraus de concreto do alto do promenade para a praia. Ninguém veio atrás dele para impedir. Nem o pequeno grupo de oficiais, as enfermeiras, nem mesmo os músicos concentrados em sua parte da macabra cerimônia parecia tê-lo percebido lá.
        Subitamente uma comoção. Uma das mulheres sendo ajudada na proximidade do barco deu um grito e começou a balançar violentamente os braços. A enfermeira com ela, pega de surpresa, nada pôde fazer e a mulher saltou do bote para a água e começou a nadar em direção a praia.
        Instintivamente Theo tirou seu pesado casaco e correu na direção dela, entrando na água que congelava seus tornozelos. Ela estava apenas a vinte metros dele agora e ele podia ver seus cabelos brancos, a roupa colada ao corpo, nadando, os seios oscilando, os braços de pele cor de crepe.   
        Uma onda arrancou-lhe a vestimenta do ombro e ele viu um dos seios obsceno como uma gigantesca água-viva.
        Ela ainda gritava, alto, como um animal sendo torturado. E ele a reconheceu.
        Hilda Palmer-Smith. Bufando ele avançou até ela, acenando com ambas as mãos.
        E então aconteceu. Um dos soldados no bote pulou na água e, com a coronha do revolver, acertou-a na cabeça.
        Ela desmaiou e afundou, os braços em rodopio. Houve uma breve mancha vermelha antes que a próxima onda a engolisse, a erguesse e a empurrasse esticada contra a espuma.
        Ela tentou se levantar, mas o soldado a atingiu mais uma vez.
        Theo já a tinha alcançado e segurado uma de suas mãos. Quase imediatamente sentiu ser agarrado pelos ombros e puxado para o lado. Ouviu uma voz, autoritária e calma, quase gentil: — Deixe-a ir, senhor. Deixe-a ir.”
        Outra onda, maior que a última, a engoliu e o derrubou. Retrocedeu e ele pode vê-la de novo, esticada, a roupa erguida deixando ver suas pernas finas, e todas as costas expostas.
        Ele soltou um grito e tentou alcançá-la, mas desta vez, sentiu um impacto ao lado da sua cabeça e caiu.
        Acordou com a aspereza do cascalho contra o seu rosto e o cheiro da água salgada do mar que enchia seus ouvidos. Suas mãos tentaram se agarrar em alguma coisa. Mas a areia e o cascalho escorriam debaixo delas.
        Outra onda o atingiu e ele se viu indo para as profundezas. Meio inconsciente, tentou erguer a cabeça, respirar, sabendo que estava perto de se afogar. Então veio a terceira onda, que o ergueu, o carregou e o atirou contra as pedras da praia.
        Mas eles não queriam que ele se afogasse. Tremendo de frio, gaguejando e com ânsia de vômito foi arrancado por mãos fortes da água, como se fosse leve igual a uma criança.
        Era carregado pelos braços, de bruços pela praia. Sentia os dedos dos pés raspando a areia molhada e as pernas da calça molhadas. Seus braços sem força e confusos, as articulações machucadas pelas enormes pedras da parte mais selvagem da beira do mar. E por todo tempo o cheiro forte do oceano e o som rítmico das ondas.
        Então foi largado na areia macia e seca. Sentiu o peso do seu casaco cair sobre seu corpo. Viu uma sombra escura passar ao seu lado e logo viu que estava sozinho. Tentou erguer a cabeça, despertado por uma dor palpitante, expandindo e contraindo como uma coisa viva em seu crânio.
        Cada vez que tentava se pôr de pé, sua cabeça pendia frágil para o lado; então caiu novamente.
        As pálpebras pesadas de areia compactada, a mesma que cobria sua cara e boca, enquanto refugos de algas verdes presos aos dedos e cabelo.
        Sentiu-se como um homem que tivesse escapado de seu túmulo molhado com toda a pompa de sua morte a envolvê-lo.
        Mas no momento após deixar a inconsciência já era capaz de perceber que alguém o deixara largado entre duas cabines. Haviam sido erguidas sobre estacas e ele pode ver debaixo do chão os detritos queimados de férias e festejas há muito esquecidos, na areia suja, um vislumbre de um papel prateado, uma velha garrafa de plástico, quadros putrefatos e partes da estrutura de uma cadeira e uma pá de criança quebrada. Arrastou-se dolorosamente, mas o esforço foi grande demais e fechando os olhos, afundou na escuridão.
        Quando despertou, ele pensou primeiro que era noite. Virando-se olhou para o céu decorado com estrelas e viu atrás dele a pálida luminosidade do mar. Lembrou-se de onde estava e o que tinha ocorrido. Sua cabeça ainda doía, mas agora era somente uma dor entorpecida, porém persistente.
        Passando a mão pela cabeça, sentiu um galo do tamanho de um ovo, mas não lhe pareceu grande o dano.
        Não tinha idéia da hora e era impossível ver seu relógio. Esfregou seus membros doloridos trazendo-os a vida, retirou a areia do casaco e vestiu-o, caminhou trôpego até a beira da água onde ajoelhou e banhou o rosto.
        A água estava gelada. O mar estava calmo agora e havia um trêmulo caminho de luz sob uma lua fugitiva.
        Depois de retornar às cabines, sentou-se por alguns minutos em um dos degraus, recuperando as forças.
        Checou os bolsos. Sua carteira de couro estava ensopada, mas ao menos o interior estava intacto.
        Caminhou para o promenade. Algumas poucas luzes, mas era o bastante para ele ver o mostrador do relógio.
        Eram sete da noite. Tinha ficado inconsciente por pelo menos quatro horas.
        Ao chegar na Trinity Street viu com alivio que seu carro permanecia lá, mas não havia nenhum sinal de vida.
        Ficou indeciso. Começava a ter calafrios e precisava muito de comida quente e uma bebida. A idéia de dirigir de volta a Oxford em seu estado atual o amedrontava, mas sua vontade de sair de Southwold era tão imperativa quanto sua fome e sede. Foi enquanto estava de pé indeciso que ouviu uma porta fechar e olhou ao redor.
        Uma mulher com um cachorro pequeno na coleira emergia de uma daquelas casas vitorianas de verde jardim.
        Era a única casa com luz e notou na janela do primeiro andar uma placa escrita — Cama e café da manhã.
        Num impulso, caminhou na sua direção e disse: — Sofri um acidente. Estou encharcado. Acho que não conseguirei dirigir para casa esta noite. Você tem uma vaga? Meu nome é Faron, Theo Faron.
        Ela era um pouco mais velha do que ele esperava, com um rosto queimado, gentil, como um balão que murchou, olhos brilhantes e uma boca pequena, delicadamente desenhada e que certa vez deve ter sido bonita mas não era mais, olhando para ela,  mastigando impaciente, como se ainda saboreasse a última refeição.
        Não parecia surpresa, melhor ainda, não tinha medo dele e quando falou sua voz era agradável.
        — Tenho um quarto vago se você esperar até que eu leve Chloe para fazer suas necessidades. Tem um lugar especial para cães. Temos cuidado para não sujar a praia. As mães costumam reclamar se a praia não está limpa para suas crianças - velhos hábitos não morrem. Pode aguardar?
        Ela olhou para ele e pela primeira vez, pode ver traços de ansiedade nos olhos brilhantes.
        Ele disse que gostaria muito.
        Ela voltou três minutos depois e ele a seguiu por um corredor estreito então para a sala de estar dos fundos. Era pequena e quase claustrofóbica, repleta de móveis antigos. Teve a sensação de desvanecer entre panos floridos, uma prateleira repleta de animais de louça, cadeiras com almofadas de patchwork nas cadeiras baixas junto a lareira, fotografias em molduras prata e o cheiro de lavanda. Parecia que a sala era um santuário, com seu papel de parede florido, as paredes fechando-se na confortável segurança que ele nunca tivera em sua infância. Ela disse: Sinto não ter muita coisa no refrigerador esta noite, mas posso lhe oferecer uma sopa e omelete.
        — Maravilhoso.
        — A sopa não é caseira, sinto, mas um mix de duas latas que tornei um pouco mais interessante adicionando salsinha partida e uma cebola. Acho que achará palatável. Vai querer comê-la na sala de refeição ou aqui mesmo em frente ao fogo? Talvez aqui seja mais cômodo para você.
        — Prefiro comer aqui.
        Escolheu se sentar numa cadeira de encosto de botão, esticando as pernas frente ao aquecedor elétrico, observando o vapor sair de suas calças compridas.
        A comida chegou logo, primeiro a sopa - uma mistura, ele percebeu, de cogumelos e galinha e salsinha. Estava quente e surpreendentemente boa, e o pãozinho com manteiga que a acompanhavam eram frescos. Então ela trouxe um omelete de ervas. Perguntou se queria chá, café ou chocolate. O que ele queria era álcool, mas parecia que ela não ofereceria. Escolheu chá e ela o deixou bebendo sozinho, por toda a refeição.
        Quando terminou, ela reapareceu como se estivesse esperando na porta e disse:
        — Coloquei-o no quarto dos fundos. Às vezes é bom ficar longe do barulho do mar. E não se preocupe com a cama. Coloquei dois sacos de água quente e pode tirar se achar que está quente o bastante. Liguei o aquecedor e temos água bastante se quiser se banhar.
        Seus membros estavam doloridos pelas horas sobre a areia úmida e a perspectiva de esticar-se debaixo de água quente era sedutora. Mas, saciadas a fome e a sede, o cansaço tomou conta. Era trabalho demais tomar um banho.
        Disse:
        — Me banharei pela manhã, se puder.
        O quarto ficava no segundo andar e era de fundos como ela prometera. Ficando de lado ela disse:
        — Temo não ter qualquer pijama grande o bastante para você, mas tem um velho camisolão que poderia usar. Pertencia ao meu marido.
        Ela não parecia surpresa ou preocupada por ele não ter trazido um pijama. Um aquecedor elétrico estava ligado junto à grelha vitoriana. Ela se inclinou para desligá-lo antes de sair e ele percebeu que não seria o bastante para manter o aquecimento por toda a noite. Mas ele não precisava disso. Assim que ela fechou a porta, ele tirou as roupas, deitou sobre a coberta da cama e mergulhou em tépido e confortável esquecimento.
        O café n amanhã seguinte foi servido na sala de refeições no primeiro andar. Eram cinco mesas, cada qual com uma imaculada toalha branca e um pequeno vaso de flores artificiais, mas não havia outros hospedes.
        A sala, com seu vazio, seu ar de prometer mais do que cumpria, despertava a memória do último feriado que tivera com os pais. Devia ter uns onze anos e passaram uma semana em Brighton, numa estalagem de café-e-cama perto do despenhadeiro Kemp Town. Tinha chovido quase todos os dias e sua memória do feriado era do odor de capas de chuva molhadas, dos três parados ao abrigo, olhando o mar cinzento e pesado, de andar pelas ruas a procura de alguma diversão disponível até as seis horas quando voltariam para o lanche da tarde. Tinham comido em uma sala como aquela, os grupos de famílias, desacostumados a serem servidos, sentados em mudo constrangimento até os proprietários, decididamente agradáveis, trazerem as bandejas de carne e vegetais. Do inicio ao fim do feriado ele ficara ressentido e chateado. Ocorreu a ele naquele momento, pela primeira vez o quão pouca alegria seus pais tiveram na vida e como ele, quando pequeno, tinha contribuído para isso.
         Zelosamente foi servido o café completo, bacon, ovos e batata frita, com a senhora obviamente dividida entre o desejo de vê-lo se banquetear e a percepção de que ele preferia comer sozinho.
        Ele comeu rapidamente, ansioso por ir embora.
        Assim que a pagou, ele disse:
        — Foi bondade sua receber um homem sozinho, sem bagagem para passar a noite. Algumas pessoas ficariam relutantes de fazê-lo.
        — Oh, não, não foi uma surpresa vê-lo. Não estava preocupada. Você foi a resposta a minhas preces.
        — Acho que nunca ninguém me disse isso antes.
        — Oh, mas você é. Não tinha um hóspede por quatro meses e estava me sentindo tão sem utilidade. Não há nada pior do que se sentir sem utilidade quando se é velho. Então rezei a Deus para que Ele me mostrasse o que fazer e Ele me mandou você. Penso sempre, você não? - que quando estamos em apuros de verdade, de frente para problemas que parecem ser grandes demais para você, só precisa pedir e Ele terá a resposta.
        — Não, ele disse contando as moedas, não posso dizer que tenha experiência nisso.
        Ela continuou como se não tivesse ouvido: — Eu sei é claro, que às vezes é preciso desistir. A cidadezinha está morrendo. Não fazemos parte dos planos dos centros populacionais. Então, os aposentados não mais virão morar aqui e os jovens irão embora. Mas tudo ficará bem. O Governador prometeu que todos no fim serão protegidos. Eu espero ser movida para um pequeno apartamento em Norwich.
         Ele pensou: — Seu Deus providenciou um hóspede ocasional, mas é o Governador que ela apela para o essencial. Num impulso ele disse:
        — Você viu o Quietus ontem?
        — Quietus?
        — Aquele que aconteceu aqui. Os barcos no píer.
        Ela disse com a voz firme: — Acho que está enganado Mr.Faron. Não houve Quietus. Não temos nada disso aqui em Southwold.
        Depois disso ele percebeu que ela estava ansiosa por vê-lo ir embora. Ele agradeceu a ela de novo.
        Ela não tinha dito seu nome e ele não perguntou. Ele teve vontade de dizer que gostara bastante e que viria uma outra vez, passar alguns dias, mas sabia que nunca retornaria e sua bondade merecia algo melhor do que uma mentira casual.
        Na manhã seguinte ele escreveu uma simples palavra — SIM—  em um cartão postal e cuidadosamente, com precisão correu o polegar sobre a dobra. O ato de escrever aquelas três letras parecia pressagioso de maneira que ele estava se comprometendo com algo mais do que a prometida visita a Xan.
        Pouco depois das 10, fez o caminho pelas ruas estreitas de Pusey Lane até o museu.
         Um simples zelador estava a serviço, sentado como sempre na mesa de madeira do lado oposto à porta. Era muito velho e parecia dormir. Seu braço direito curvado sobre a mesa, a cabeça descansando sobre ele, com sua profusão de cabelos brancos. Sua mão esquerda parecia mumificada, uma coleção de ossos frouxos reunidos numa luva manchada de pintas de pele. Perto dela, uma brochura aberta, Platão Theaetetus. Ele era provavelmente um dos voluntários que conduziam as visitas e mantinha o museu aberto. Sua presença, adormecida ou acordada, era desnecessária, ninguém se arriscaria a ser mandado para a ilha correcional por conta de alguns medalhões no mostruário ou carregar dali a grande estatua de mármore da Winged Victory of Samothrace!
        Theo conhecia sua história, mas fora Xan quem o apresentara ao museu Cast, como um garoto desvenda para outro seu tesouro, seus brinquedos. Theo também caíra sob seu encanto.  Mesmo dentro do museu, seus gostos eram diferentes. Xan gostava do rigor e da falta de emoção dos rostos pré-clássicos das estatuas masculinas no primeiro andar. Theo preferia as salas de baixo, com exemplos mais generosos das linhas helenísticas.  Nada, ele viu, havia mudado. Moldes e estatuetas continuavam perfilados sob a luz das janelas altas, como trastes de uma civilização descartada, os torsos sem braços com rostos sérios e lábios arrogantes, os cachos penteados sobre testas largas, deuses sem olhos sorrindo secretamente, como se nos privando de uma verdade mais profunda do que a espúria mensagem de membros congelados: que civilizações surgiam e desapareciam, mas o homem permanecia.
        Como sabia, Xan nunca mais visitara o museu, mas para Theo se tornara um lugar de refúgio ao longo dos anos. Naqueles meses infelizes após a morte de Natalie e sua mudança para St.John, aquele lugar tinha lhe dado uma escapatória conveniente da amargura e ressentimento de sua esposa. Podia sentar em um dos bancos duros, lendo ou pensando no silêncio, protegido da voz humana. De tempos em tempos um pequeno grupo de crianças da escola ou estudantes solitários vinha até o museu e ele fechava seu livro e ia embora. A atmosfera especial que o lugar guardava para ele dependia de estar sozinho.
        Antes de fazer o que veio fazer, andou pelo museu, parte com um sentimento um tanto supersticioso que, mesmo naquele silêncio e vazio, ele deveria agir como um visitante casual, parte por precisar revisitar velhas delícias e ver se ainda o afetavam: a lápide da jovem mãe do século 4 A.C., o servo segurando o  bebê em fraldas, a pedra tumular da pequena menina com pombos: a aflição permanecia falando com ele 300 anos depois.
        Ele olharia para ela, pensaria e se lembraria.
        Quando voltou para o primeiro andar viu que o atendente continuava dormindo. A cabeça de Diadoumenos continuava em seu lugar na galeria, mas olhou para ela com menos emoção do que a primeira vez que a vira trinta e dois anos atrás. Agora o prazer era imparcial, intelectual; uma vez ele correra seu dedo sobre a testa, traçando uma linha do nariz a garganta, emocionado com a mistura de medo, reverência e excitação que, naqueles dias inebriantes, a grande arte podia sempre lhe causar.
        Tirando o cartão dobrado de seu bolso, inseriu-o entre a base de mármore e a parte inferior, de modo que fosse visível apenas para um olhar aguçado. Quem quer que Rolf mandasse pegá-lo deveria ser capaz de pescá-lo com a ponta da unha, uma moeda ou caneta. Não sentia medo de que qualquer outro o encontrasse e mesmo se isso acontecesse, a mensagem não lhe diria nada. Checou se o cartão poderia ser visto e sentiu a mesma mistura de irritação e embaraçamento que sentira na igreja em Binsey. Porém, agora a convicção de que ele começara a se envolver em uma empreitada ridícula e fútil era ainda mais poderosa.
        A imagem do corpo de Hilda semi-nu boiando, daquela procissão lamurienta, a batida da arma no crânio, impunha dignidade e gravidade mesmo ao mais infantil dos jogos.
        Bastava fechar os olhos e ouvir de novo o quebrar das ondas.
        Havia muita dignidade e segurança em escolher o papel de espectador, mas ao ficar de cara com abominações como aquela, um homem não tem outra opção senão a de pisar no palco. Ele veria Xan.
        Mas ele estava menos motivado pelo ultraje e do horror do Quietus do que pela memória de sua própria humilhação, um julgamento cuidadoso revelaria, seu corpo arrastado pela praia e largado como se não passasse de uma carcaça indesejável.
        Quando passava pela mesa a caminho da porta o zelador agitou-se e sentou. Talvez seus passos tinham penetrado na mente sonolenta como um aviso da negligência de suas obrigações.
        Seu primeiro olhar para Theo foi de medo, quase terror. E então Theo o reconheceu. Era Digby Yule, um instrutor aposentado de Merton.
        Theo apresentou-se: — É bom vê-lo senhor. Como vai?
        A pergunta aparentemente serviu para descontrolar os nervos de Yule. Aparentemente não controlava os movimentos da mão direita, chacoalhando sobre a mesa. Ele disse:
        — Oh, bem, muito bem, obrigado, Faron. Tudo vai bem. Sou voluntário, você sabe. Moro nos alojamentos for a de Iffley Road, mas estou no controle. Faço tudo sozinho. A proprietária não é uma pessoa fácil, bem, ela também tem seus problemas, mas não tenho nenhum problema com ela. Com ninguém.
        Do que ele tinha medo, pensou Theo. Que chegasse a polícia de segurança uma queixa de que havia um cidadão que havia se tornado um peso para a sociedade? Seus sentidos de repente ficaram aguçados. Sentia o cheiro de desinfetante, via as marcas deixadas pelo sabão no seu uniforme, que apesar de limpo não estava passado.
        Então lhe ocorreu que poderia dizer: — Se não está bem onde está, tenho um quarto em St.John Street. Estou só e seria um prazer tê-lo como companhia em casa.
        Mas disse para si mesmo que não seria agradável, sua oferta seria presunçosa e condescendente; o velho não poderia subir as escadas, o que o desocupava das obrigações de ser benevolente. Nem Hilda daria conta de subir as escadas. Mas Hilda estava morta.
        Yule dizia: — Venho aqui só duas vezes por semana, segundas e sextas, você sabe. Estou fazendo isso por um colega. É bom ter algo de útil para fazer e eu gosto do silêncio. É diferente do silêncio dos outros prédios em Oxford. 
        Theo pensou : Talvez ele queira morrer aqui, sentado nesta mesa. Que melhor lugar para isso? Então, viu a imagem do velho deixado ali, na mesa ainda, naquele serviço de abrir e fechar o lugar, até o fim, anos de silêncio inquebrantável, seu frágil corpo mumificado e apodrecendo diante dos olhos de mármore que não enxergavam.
       
       
       
      Terça, 9 de Fevereiro de 2021.
       
        Hoje vi Xan pela primeira vez em três anos. Foi difícil marcar uma entrevista, não foi seu rosto que apareceu no televisor, mas um de seus comandados, um granadeiro com divisas de sargento.
        Xan era guardado, protegido, conduzido e servido por uma pequena companhia de seu exército particular, desde o início não tivera secretárias ou assistentes pessoais, nenhuma governanta ou cozinheira eram empregadas na corte do Governador. Costumava pensar que isso se dava a fim de evitar escândalos sexuais ou então a lealdade que Xan essencialmente demandava, exigia masculinidade: hierárquica, inquestionável e não emocional.
        Ele enviou um carro para me pegar. Disse ao granadeiro que preferia dirigir eu mesmo até Londres, mas ele simplesmente disse enfaticamente:
        — O Governador lhe mandará um carro, senhor. Estará na sua porta às nove e meia.
        De alguma forma esperava que George viesse, o meu motorista quando eu era consultor de Xan. Gostava de George. Ele tinha um charme, um rosto atraente com orelhas pronunciadas, uma boca larga e um tanto testudo e nariz arrebitado. Raramente falava, a não ser que eu começasse a conversa. Imagino que todos os motoristas trabalhassem sob esta proibição. Mas dele emanava - pelo menos gostava de achar que sim - um espírito de boa vontade, o que fazia com que nossas viagens fossem livres de preocupações no interlúdio entre a frustração das reuniões do Conselho e a tristeza no lar.  
        O motorista enviado era servil, agressivamente esperto no seu aparentemente novo uniforme e seus olhos ao encontrarem os meus, nada passaram, sequer descontentamento.
        Eu disse:
        — George não dirige mais?
        — George está morto, senhor. Um acidente na rodovia A4. Me chamo Hedges. Serei seu motorista na ida e na volta.
        Era difícil imaginar que George, cuidadoso e talentoso motorista tivesse se envolvido em um acidente fatal, mas não fiz mais perguntas. Algo me dizia que a curiosidade ficaria sem satisfação - além de não ser aconselhável.
        Não havia como me preparar para a entrevista que viria, ou especular como Xan me receberia após três anos de silêncio.
        Nós não havíamos nos despedido com amargura ou ódio, mas sabia que aos seus olhos minha atitude era indesculpável. Imaginava se era também imperdoável. Ele costumava ter tudo que queria.
        E ele me queria ao seu lado e eu declinei. Mas agora aceitara me encontrar. Em menos de uma hora eu saberia se ele desejava que este rompimento fosse permanente.
        Pensei se ele teria contado aos membros do Conselho de que eu requisitara uma entrevista.
        Não esperava ou desejava revê-los, aquela parte da minha vida havia terminado, mas eu pensava nela conforme o carro lentamente e quase silenciosamente seguia para Londres.
        Havia quatro deles.
        Martin Woolvington, responsável pela Indústria e Produção; Harriet Marwood, responsável pela Saúde, Ciência e Recreação; Felicia Rankin, da pasta dos Assuntos Internos, algo como um saco de gatos que incluía Habitação e Transportes e Carl Inglebach, ministro da Justiça e Segurança.
        Alocar responsabilidades era a maneira mais conveniente de dividir a carga de trabalho ao invés de assumir a autoridade absoluta por tudo. Ninguém, ao menos enquanto participei das reuniões de Conselho, era proibido de invadir o território do outro, e as decisões eram alcançadas pelo voto da maioria, como Xan exigia.
        Eu não tinha parte nelas. Isso era, penso hoje, essa minha humilhante exclusão, preferível à consciência da falta de minha efetividade, que tornava minha posição intolerável?
        Influência não era substituto para o poder.
        A utilidade de Martin Woolvington para Xan e a justificativa de seu lugar no Conselho não era posta em dúvida, e se tornara mais forte desde a minha partida. Ele era o membro mais procurado por Xan, aquele mais próximo de ser chamado de amigo. Tinham servido ao mesmo regimento, juntos como subalternos e Woolvington foi o primeiro a ser designado por Xan ao Conselho. Indústria e Produção era uma das pastas mais pesadas, incluía agricultura, alimentação e energia, e a direção do trabalho. Em um Conselho notável pela inteligência, a indicação de Woolvington a princípio me surpreendeu. Ele não era estúpido, o Exército Britânico tinha parado de aceitar a estupidez entre seus comandante deste antes de 1990 e Martin mais do que justificava seu lugar por possuir uma inteligência, não intelectual, mas pragmática, e um extraordinária capacidade para o trabalho pesado. Pouco falava no Conselho, mas suas contribuições eram invariavelmente apropriadas e sensatas.
        Sua lealdade a Xan era total.  
        Durante as reuniões do Conselho ele era o único a rabiscar. Rabiscar, sempre pensei, era um sinal de stress, uma necessidade de manter as mãos ocupadas e um expediente útil para evitar o contato dos olhos dos outros.
        Os rabiscos de Martin eram únicos. A impressão que dava era que ele era relutante em perder tempo. Podia ouvir apenas com metade da mente e desenhar no papel suas batalhas, planejar suas manobras, conseguia desenhar meticulosamente soldadinhos de brinquedo usualmente em uniformes das guerras napoleônicas.
        Deixava os papéis na mesa depois de sair e eu ficava atônito com o nível de detalhe e seu talento para desenhar.
        Gostava um pouco dele, pois era invariavelmente cortês e não demonstrava nenhuma discordância quanto à minha presença que, morbidamente sensível naquela atmosfera, eu detectava nos outros.
        Mas nunca senti que o compreendia e duvidava que alguma vez ele tentasse me entender. Se o Governador me queria lá, estava bom para ele. Ligeiramente acima do peso, cabelos poucos e ondulados e um rosto sensato que me recordava uma fotografia de um astro de cinema de 1930, Leslie Howard.
        A semelhança, uma vez percebida, reforçava aos meus olhos a sensibilidade e a intensa dramaticidade que era estranha a sua natureza essencialmente pragmática.
        Nunca me senti bem quanto a Felicia Rankin. Se Xan queria um colega que fosse ao mesmo tempo uma jovem mulher e um notável advogado, ele tinha ao seu dispor escolhas menos complicadas. Nunca me vi capaz de entender por que escolhera Felicia. Sua aparência era extraordinária. Invariavelmente aparecia nas televisões e nas fotografias, de perfil, passando uma sensação de calma, uma amabilidade comum, uma estrutura óssea clássica, sobrancelhas altas e arcadas, cabelos loiros presos para trás em um coque. Quando vista de frente, porém, esta simetria desaparecia. Como se sua cabeça possuísse duas metades, ambas atrativas, mas em discordância, perto da deformidade.  O olho esquerdo era maior que o direito, a orelha direita maior do que a outra. Mas os olhos eram memoráveis, enormes e irisados de cinza. Costumava pensar como se sentiria por ser enganado pela beleza por um minuto no máximo. Às vezes no Conselho achava difícil manter meus olhos nela e de repente ela virava o rosto e seus olhos irritados me pegavam observando-a.
        Imagino agora que muito da minha mórbida obsessão por sua aparência explicasse nossa antipatia mútua.
        Harriet Marwood, aos sessenta e oito anos, era o membro mais velho, responsável pela Saúde, Ciência e Recreação, mas a sua principal função no Conselho ficou óbvia para mim após a primeira reunião e óbvia  igualmente para todo o país.
        Harriet era a velha sábia da tribo, a avó universal, tranqüilizadora, confortadora, sempre lá, se apoiando em seus modos anacrônicos e fazendo com que os netos a obedecessem.
        Quando aparecia na televisão, para explicar as últimas medidas tomadas, era impossível não acreditar que aquilo era para o bem de todos.
        Ela conseguia fazer uma lei universal de suicídio parecer razoável; metade do país, suspeitava, iria concordar.
         Ali estava a sabedoria da idade, certamente, inflexível e piedosa.
        Antes dos ômegas, ela tinha sido diretora de escola pública de moças e ensinar era a sua paixão.
        Mesmo como diretora ela continuava a ensinar para as mais velhas, mas eram os jovens que ela queria ensinar.
        Ela desprezava meu compromisso em ensinar para adultos, de forma jocosa, o patíbulo da história popular e, mais ainda, a literatura popular da enfastiada meia idade. A energia, o entusiasmo que antes tinha enquanto moça era agora direcionado para o Conselho. Eles eram seus pupilos, suas crianças e, por extensão, era também todo o país.
        Suspeitava que Xan a achava útil de maneiras que não podia adivinhar.
        Também a achava perigosa.
        As pessoas que se davam ao trabalho de cogitar sobre a personalidade dos conselheiros diziam que Carl Inglebach era o cérebro; que toda a brilhante organização e planejamento que mantinha o país junto partiam de sua cabeça e que, sem seu gênio administrativo, o Governador da Inglaterra seria um inútil.
        É o tipo de coisa que se pode falar sobre o poder e ele pode ter encorajado isso, contudo eu duvido.
        Ele era impenetrável à opinião pública.  Sua fé é simples. Existem coisas sobre as quais nada pode ser feito e tentar mudá-las é uma perda de tempo. Existem coisas que devem ser feitas para mudar e uma vez que a decisão seja tomada, a mudança deve ser colocada em prática sem delongas e sem clemência.
        Ele era o membro mais sinistro do Conselho e, com exceção do Governador, o mais poderoso.
        Não falei com o motorista até alcançarmos Sheperd´s Bush, quando me inclinei e bati na janela entre nós e disse:
         — Gostaria que fosse pelo Hyde Park e então pela Constitution Hill ou Birdcage Walk se preferir.
        Ele disse, sem mover os ombros ou emoção na voz: — Esta senhor, é a rota que o Governador me instruiu para fazer.
        Passamos pela frente do palácio, as janelas fechadas, o mastro sem a bandeira, as cabines de vigia vazias, os grandes portões fechados e trancados.
        O parque de St. James parecia mais abandonado do que a última vez que vira.
        Este era um dos parques que o Conselho decretara que deveria ser mantido e, de fato, havia um grupo distante de figuras em uniformes amarelos e marrons trabalhando, a maioria estrangeiros, catando lixo e aparentemente realizando podas. Um sol frio de inverno iluminava a superfície do lago, que dois patos mandarins fazia parecer de brinquedo. Um punhado de neve da semana passada permanecia sob as árvores e vi, com interesse, porém sem excitação, que se tratavam dos primeiros flocos de neve do ano? Do inverno?.
        Pouco trânsito em Parliament Square e os portões de ferro da entrada do palácio de Westminster estavam fechados. Ali, uma vez por ano, o Parlamento se reunia, os membros eleitos pelos Conselhos distritais e regionais. Nenhum projeto de lei era debatido, nem lei decretada, a Bretanha era governada por decreto pelo Conselho da Inglaterra. A função oficial do Parlamento era discutir, deliberar, receber informações e fazer recomendações. Cada um dos cinco membros do Conselho reportava-se pessoalmente para aquilo que a mídia descrevia como mensagem anual para a nação.    
        A sessão durava um mês e a agenda era concebida pelo Conselho. Os assuntos discutidos eram inócuos.
        Resoluções por dois terços da maioria eram levadas ao Conselho da Inglaterra, que podia rejeitar ou aceitar conforme quisessem. O sistema tinha o mérito da simplicidade e dava a ilusão de democracia ao povo, que não possuía mais a energia para se importar com quem eram seus governantes, desde que o Governador lhes desse o prometido: Libertá-los do medo, libertá-los do querer e do aborrecimento.
        Nos primeiros anos após o Ômega, o Rei, ainda não coroado, abria o Parlamento com seu velho esplendor, mas atravessava ruas praticamente vazias. De símbolo supremo da continuidade e da tradição, se tornara uma lembrança arcaica do que nós perdemos. Atualmente ele ainda o abre, mas em silêncio, vestindo terno, entrando e saindo de Londres quase sem ser noticiado.
        Lembro de uma conversa que tive com Xan, uma semana antes de pedir demissão do posto.
        — Por que você não pega a coroa de Rei? Achava que você se preocupava em manter a normalidade—
        — Qual seria o motivo disso? O povo não se interessa. Eles se ressentiriam pelo gasto de uma cerimônia que se tornou sem sentido.
        — Quase nunca ouvimos falar dele. Onde ele está, em prisão domiciliar?
        Xan deu sua gargalhada íntima.
        — Restrito em casa. Restrito ao palácio ou castelo, se preferir. Está bastante confortável; de qualquer forma, não penso que o arcebispo de Canterbury concordaria em coroá-lo.
        Lembro que respondi.
        — É difícil de crer. Você sabia quando indicou Margaret Shivenham para Canterbury que ela era uma republicana fervorosa.
        Dentro parque, nas trilhas caminhando em fila pelo gramado, vinha um grupo de penitentes. Estavam quase despidos, vestindo, mesmo para o frio de fevereiro, pouco mais do que  tangas amarelas e sandálias. Enquanto andavam, balançavam uma corda pesada que usavam para lacerar as costas já sangrando.
        Mesmo através das janelas fechadas pude ouvir as chibatadas na carne nua. Olhei fixo para a parte de trás da cabeça do motorista, a meia lua meticulosamente cortada de cabelo escuro sob o quepe, a verruga solitária acima do colarinho que tinha irritantemente atraído minha atenção durante a viagem silenciosa.
        Agora, determinado a arrancar alguma resposta dele, eu disse:
        — Achei que este tipo de demonstração publica havia sido proibida.
        — Só em vias públicas ou em calçadas, senhor. Acho que eles têm o direito de andar pelo parque.
        Perguntei :
        — Você não acha o espetáculo ofensivo? Eu imaginava que os flagelantes estavam banidos. O povo não gosta da visão do sangue.
        — Eu acho ridículo, senhor. Se Deus existe e Ele decidisse que estava cansado de nós, ele não mudaria sua forma de pensar por causa de um bando de desesperados de amarelo lamentando-se no parque.
        — Você acredita nele? Acredita que ele existe?
        Estávamos naquele instante diante da entrada do velho Ministério das relações exteriores.
        Antes de sair para abrir a porta para mim, olhou à volta e me encarou:
        — Talvez seu experimento tenha dado terrivelmente errado, senhor. Talvez ele tenha simplesmente desistido. Vendo toda a confusão sem saber como colocar as coisas no lugar certo. Talvez ele só tivesse o poder para uma última e final intervenção. E o fez. Onde quer que esteja, quem quer que seja, eu espero que ele queime em seu próprio inferno.
        Falou com extraordinária amargura e sua face assumiu uma mascara fria e imóvel. Voltou sua atenção para mim e abriu a porta do carro.
        Theo reconheceu dentro do prédio o granadeiro em serviço. Disse:
        — Bom dia, senhor. e sorriu quase como se o lapso de três anos não tivesse existido e se Theo estivesse chegando para ocupar seu cargo como sempre.
        Outro granadeiro, desconhecido, veio em sua direção e o saudou. Eles guardavam juntos a escadaria.
        Xan havia rejeitado a residência oficial em Downing Street, tanto como local de trabalho e residência e escolhera, ao invés, o velho prédio da Comunidade Estrangeira frente ao parque Saint James.
        Ali ele tinha seu apartamento próprio, no terraço onde, como Theo sabia, morava em meio à simplicidade, sustentada graças ao dinheiro e pelo seu pessoal. A sala frontal do prédio fora usada vinte e cinco anos antes pela Secretaria do Exterior e tinha sido o primeiro escritório de Xan e da câmara do Conselho.
        O granadeiro abriu a porta sem bater e anunciou seu nome em voz alta.
        Ao invés de estar de frente para Xan, Theo encontrou todo o Conselho.
        Estavam sentados na mesma mesa oval da qual se lembrava, mas apenas de um dos lados e mais próximos um dos outros. Xan sentava no meio, cercado de Felicia e Harriet, com Martin na esquerda e Carl a direita.
        Uma cadeira vazia fora colocada de frente imediatamente oposta a Xan. Era um cenário obviamente calculado pretendendo desconcertá-lo e momentaneamente conseguiram.
        Sabia que aqueles cinco pares de olhos observadores tinham percebido sua hesitação involuntária ao entrar, um flash de contrariedade e embaraço. Mas a surpresa deu vez à raiva e a raiva foi útil.
        Eles haviam tomado a iniciativa, mas não havia razão por que eles deveriam conservá-la.
        As mãos de Xan repousavam sobre a mesa, os dedos curvados. Theo viu o anel e teve um choque ao reconhecê-lo e sabia que ele sabia que ele o reconheceria. Ele não o escondera.
        Xan usava, no terceiro dedo da mão esquerda, o anel da Coroação, o anel devocional da Inglaterra, a grande safira cercada por diamantes, acima de uma cruz de rubis.
        Olhou para o anel, sorriu e disse:
        — Foi idéia de Harriet. Pareceria terrivelmente vulgar se ninguém soubesse que é verdadeiro. O povo precisa de suas bugigangas. Não se preocupe, não pretendo ser ungido por Margareth Shivenham em Westminster em seu trono. Você está pensando que houve um tempo que eu não o usaria.
        Theo falou: — Um tempo quando você não sentia necessidade disso, nem de me dizer que era uma idéia de Harriet.
        Xan caminhou para a cadeira vazia. Sentou-se e disse:
        — Pedi por uma audiência privada com o Governador da Inglaterra e eu entendi que era isso que eu teria. Não vim pedir emprego, nem sou candidato a um exame oral.
        Xan disse:
        — Faze três anos desde que nos encontramos ou falamos. Achamos que você poderia gostar de encontrar os velhos - como diria Felicia? - amigos, camaradas, colegas?
        Felicia falou:
         — Eu diria colaboradores. Nunca entendi exatamente qual era a função do Senhor Faron como consultor do Governador e isso não se tornou mais claro ao longo de sua ausência passados esses três anos.
        Woolvington olhava para baixo, para seus rabiscos.
        O Conselho devia estar reunido há algum tempo.
        Tinha a companhia massiva de uma companhia inteira de soldados de pé.
        Ele disse:
        — Nunca foi claro. O Governador pediu sua ajuda e isso estava bem o bastante para mim. Ele não contribuiu muito, como me lembro, mas também não foi um estorvo.
        Xan sorriu, mas o sorriso não acompanhava seus olhos.
        — Aquilo foi no passado. Bem vindo de volta. Diga o que veio dizer. Somos todos amigos aqui. Ele fazia palavras banais soarem como uma ameaça.
        Não havia motivos para circunlóquios.
        Theo falou:
        — Estive no Quietus em Southwold na última quarta. O que eu vi foi um assassinato. A metade dos suicidas estava drogada e aqueles que sabiam o que estava acontecendo não estavam desejosos de fazê-lo.
        Vi uma mulher empurrada para dentro do barco e algemada. Outro morreu na praia. Estamos tratando nossos velhos como se fossem animais que ninguém mais quer? Será que este desfile de morte o que o Conselho entende por segurança, conforto e prazer? Este é o tipo de morte com dignidade? Estou aqui por que eu penso que vocês deveriam saber o que está sendo feito em nome do Conselho.
        Theo disse para si mesmo: Estou sendo bastante veemente. Estou antagonizando-os antes mesmo de começar. Preciso manter-me calmo.
        Felicia falou:
         — Este Quietus em particular foi mal gerenciado. As coisas saíram de controle. Pedi um relatório. É possível que alguns guardas excederam-se em seus deveres.
        Theo falou:
        — Alguém se excedeu. Esta não é sempre a desculpa? E por que precisamos de guardas armados e algemas se as pessoas estão indo voluntariamente para a morte?
        Felicia disse novamente controlando sua impaciência: — Este Quietus em particular foi mal gerenciado. Uma ação apropriada será tomada contra os responsáveis. O Conselho registrou sua queixa, sua racional e louvável queixa. É só isso?
        Xan aparentemente parecia não ter ouvido a pergunta. Disse:
        — Quando a minha vez chegar, pretendo tomar minha pílula letal no conforto da cama em casa e preferencialmente sozinho. Nunca entendi a questão do Quietus, contudo vocês parecem se comover com ele, Felicia.
        Felicia disse:
        — Eles começaram de forma espontânea. Vinte pessoas, de 80 e poucos anos, de uma casa de repouso em Sussex, decidiram organizar uma festa em Eastbourne, então, de mãos dadas, pularam do precipício. Começou como um tipo de modismo. Ai então um ou dois Conselhos locais pensaram que era uma necessidade e organizaram aquilo. Saltar de precipícios pode ser fácil para os anciões, mas alguém tinha o desprazer de recolher os corpos. Um ou dois deles sobreviviam por um curto tempo, eu acredito. A coisa era uma bagunça e também insatisfatória. Levá-los para o alto mar era obviamente mais sensato— .
        Harriet começou a falar, sua voz era persuasiva, racional:
        — As pessoas precisam de seus ritos de passagem e querem companhia no final. Você é forte o bastante para morrer sozinho, Governador, mas a maioria das pessoas encontra conforto no toque da mão humana.
        Theo disse:
         — A mulher que eu vi não teve este toque da mão humana, exceto muito brevemente da minha. O que ela teve foi uma pistola quebrando seu crânio.
        Woolvington não afastou os olhos de seu desenho e murmurou: — Todos nós morremos sozinhos. Temos que aturar a morte como o nascimento. Não é possível compartilhar estas experiências.
        Harriet Marwood virou-se para Theo:
        — O Quietus é, claro, absolutamente voluntário. Existem todas as salvaguardas. Eles precisam assinar um documento em duplicata, não é, Felicia?
        Felicia disse curto:
        — Triplicata. Uma cópia para o Conselho local, uma para o parente mais próximo e que pode reclamar os bens e uma fica com a pessoa e é coletada quando eles a colocam de volta no barco. Esta vai para o escritório de Censo e População.
        Xan disse:
        — Como vê, Felicia tem tudo sob controle. Isto é tudo Theo?
        — Não. A colônia penal. Vocês sabem o que acontece por lá? Os assassinatos, a fome, a total ausência da lei e da ordem?
        Xan falou:
        — Nós sabemos. A questão é: como você sabe disso?
        Theo não respondeu, mas a ameaça da pergunta soou como um alarme.
        Felicia disse:
        — Acho que tenho que lembrar que você estava presente em nossas reuniões com sua pouco ambígua capacidade, quando a colônia penal estava sendo discutida. Você não fez objeção, exceto em interesse que a população residente recebesse tratamento devido no reassentamento. E foram reassentados com conforto e algumas vantagens, não tivemos reclamações.
        — Eu assumi que a colônia seria dirigida de forma apropriada, com as necessidades básicas garantidas para uma vida razoável.
        — E foram. Abrigo, água e sementes para plantar a comida.
        — Assumi também que a colônia seria policiada, governada. Mesmo no século 19, quando presos eram deportados para a Austrália, o assentamento tinha um governador, algo liberal, algo rígido, mas com toda responsabilidade por manter a paz e a ordem. O assentamento não ficaria a mercê dos mais fortes e dos mais perigosos presos.
        Felicia disse:
        — E eles não foram? É uma questão de opinião. Mas não se trata da mesma situação. Você conhece a lógica do sistema penal. Se as pessoas escolhem roubar, assaltar, aterrorizar e explorar uns aos outros, deixem que vivam com pessoas que pensam do mesmo modo. Se este é o tipo de sociedade que querem, então dê para eles. Senão, a sociedade deles irá degenerar até o caos, que eles impuseram a si próprios. A escolha é inteiramente deles.
        Harriet interrompeu:
        — Como contratar um governador ou oficiais de prisão para manter a ordem, onde encontrar estas pessoas? Você veio aqui como um voluntário? Se não quiser esse trabalho, quem vai querer? As pessoas já estão cheias dos criminosos e da criminalidade. Não estão preparadas hoje para viver com medo. Você nasceu em 1971, não foi? Deve lembrar dos anos 90: as mulheres tinham medo de andar nas ruas de suas próprias cidades devido ao aumento dos crimes de violência sexual, as pessoas velhas estavam presas em suas casas, alguns eram queimados atrás de suas grades, desordeiros bêbados acabando com a paz das cidades, as crianças e os velhos estavam em perigo, não havia propriedade que estivesse a salvo mesmo com alarmes caros e cercas. Tentou-se de tudo para curar a criminalidade no homem, todo tipo de tratamento, cada administrador de prisão. Crueldade e rigidez não funcionavam, nem bondade ou indulgência. Agora, desde o Ômega, as pessoas passaram a dizer para nós: “Agora chega!” Padres, psiquiatras, psicólogos, criminologistas - ninguém achou a resposta. O que nós garantimos foi libertar do medo, libertar do querer, libertar do aborrecimento. Mas as outras promessas são ineficazes sem a primeira: libertar do medo.
        Xan falou:
         — O antigo sistema não era inteiramente sem vantagens, era? A polícia era bem paga. E a classe média se beneficiava de maneira geral, oficiais, sociólogos, magistrados, juízes, oficiais da corte, uma pequena indústria rentável, dependente do infrator. A sua profissão, Felicia, fazia isso particularmente bem, exercendo seus bem remunerados talentos legais para condenar pessoas e para que seus colegas tivessem a satisfação de apelar os veredictos. Hoje em dia, encorajar criminosos é uma indulgência da qual não podemos pagar, mesmo para prover um modelo confortável para a classe média liberal. Mas eu desconfio que a colônia penal não seja a última das suas questões.
        Theo disse: — Há uma inquietação a respeito do tratamento dos forasteiros. Nós os importamos e tratamos como escravos. E por que a cota? Se eles querem vir, deixe-os vir para cá. Se querem ir embora, deixe-os ir embora.
        As duas primeiras linhas de cavalaria estavam completas e dispostas elegantemente no papel de Woolvington. Ele olhou para mim e disse:
         — Não está sugerindo que não tenhamos restrições imigratórias? Lembre do que aconteceu na Europa nos anos 90? O povo se cansou das hordas invasoras vindas dos países com as mesmas vantagens que aqui, que tinham permitido que fossem mal governados por décadas apenas por covardia, indolência e estupidez, e aqueles que esperavam explorar os benefícios ganhos ao longo de séculos de inteligência, industrialização e coragem, enquanto acidentalmente pervertiam e destruíam a civilização da qual queriam fazer parte.
        Theo pensou:
         — Até falando eles se parecem agora. Mas, quando falam, é a voz de Xan.
        Ele disse:
        — Não falamos de história. Não temos deficiência de recursos, de empregos ou de moradia. Restringir a imigração em um mundo sub-povoado e que está morrendo, não é particularmente uma política generosa.
        Xan disse:
        — Nunca foi. Generosidade é ima virtude para indivíduos, não para governantes. Quando governantes são generosos é com o dinheiro do povo, com a segurança do povo, com o futuro do povo.
        Foi quando Carl Inglebach falou pela primeira vez. Estava sentado de um jeito que Theo já vira dezenas de vezes, um pouco pra frente no assento, as mãos fechadas como se tivesse um tesouro que era importante que o Conselho jamais soubesse que possuía, ou como num jogo de crianças, bastando abrir a palma da mão e passar o anel. Parecia cansado, como uma edição benevolente de Lênin, com sua cabeça polida e olhos negros e brilhantes. Detestava a constrição de gravatas e colarinhos e sua aparência era acentuada pelo amarelado do traje de linho que sempre vestia, belamente cortado, pescoço alto e abotoado.
        Mas agora parecia espantosamente diferente, Theo havia percebido que ele estava mortalmente doente, talvez próximo da morte. A cabeça era um crânio coberto com uma camada de pele marcando os ossos, o pescoço flácido como de uma tartaruga saindo da camisa, como nunca Theo vira antes. Apenas os olhos não mudaram.
        Quando falou, sua voz era forte, como sempre.
        Como se toda sua força se concentrasse em sua mente e na sua voz, bela e ressoante, que dava àquele cérebro sua expressão vocal.
        — Você é um historiador. Você sabe sobre os males perpetrados através das eras para garantir a sobrevivência das nações, seitas, religiões, até das famílias individualmente. O que quer que o homem tenha feito para bem ou para o mal, foi com o conhecimento que seria formatado pela história, que sua vida era breve, incerta, insubstancial, mas que haveria um futuro para a nação, para a raça, para a tribo. Esta esperança finalmente se foi, exceto na cabeça dos tolos e fanáticos. O homem é diminuído se vive sem o conhecimento de seu passado, sem a esperança no futuro ele é um animal. Assistimos pelo mundo a perda desta esperança, o fim da ciência e da invenção, exceto por descobertas que possam estender a vida ou acrescentar conforto e prazer, o fim do nosso interesse por um mundo físico e por nosso planeta. O que importa que merda deixamos para trás como legado de nossa breve ocupação? A emigração em massa, os grandes tumultos internos, as guerras religiosas e tribais dos anos 90 nos deram o sentimento global da falta de regras, leis que deixaram plantações por semear e serem colhidas, animais negligenciados, fome, guerra civil, a cobiça dos fracos pelos fortes. Vemos a reversão de velhos mitos, velhas superstições, até do sacrifício humano, às vezes em larga escala. Foi isso que poupamos à nação, esta catástrofe universal, graças aos cinco nesta mesa. Em particular, o Governador da Inglaterra.
        Temos um sistema que se estende do Conselho aos Conselhos locais, que retêm um vestígio de democracia para aqueles poucos que ainda se importam. Temos um controle humanitário do trabalho que paga alguma recompensa aos talentos individuais e garante que as pessoas continuem trabalhando, mesmo que estas não tenham na posteridade um herdeiro para receber pelos seus trabalhos. Apesar do inevitável desejo de gastar, de adquirir, de satisfazer desejos imediatos, temos uma moeda forte e baixa inflação. Temos planos para garantir que a última geração seja rica o suficiente para viver nesta nação multirracial que chamamos de Grã Bretanha com comida, medicina, luz, água e energia. Perto destas façanhas, será que o país se importa tanto assim se alguns estrangeiros estão satisfeitos, que idosos morram acompanhados, que a colônia penal não seja um local pacifico?
        Harriet disse:
        — Você se distancia destas decisões, não? É pouco honrado optar não tomar parte da responsabilidade e depois reclamar, quando não gosta dos resultados dos esforços de outras pessoas. Você foi aquele que decidiu renunciar, lembra? Vocês, historiadores, ficam felizes de viver no passado, então por que não fica por lá?
        Felicia falou:
        — É certo, pois ele passa a maior parte do tempo em casa. Mesmo quando ele matou sua cria, estava dando marcha-ré.
        No silêncio, curto mas intenso, que encontrou o comentário, Theo foi capaz de dizer: — Não critico o que vocês conseguiram, mas seria realmente prejudicar a ordem, o conforto, a proteção e as coisas oferecidas ao povo, fazer algumas reformas? Acabar com o Quietus. Se as pessoas querem se matar, e eu concordo que seja um modo racional de morrer, então distribuam pílulas de suicídio, mas façam sem persuasão em massa, sem coerção. Mandem um destacamento para a ilha penal para restaurar a ordem. Acabem com os testes compulsórios de esperma e os exames de saúde para mulheres jovens; são degradantes e não servem para nada de qualquer forma. Fechem os shoppings de pornografia do estado. Tratem os forasteiros como seres humanos e não como escravos. Vocês podem fazer estas coisas facilmente. O Governador pode fazer com uma assinatura. É tudo que peço.
        Xan disse:
         — Parece, para este Conselho, que você está pedindo demais. Sua queixa poderia ter um peso maior se você estivesse conosco, se estivesse sentado deste lado da mesa. Sua posição atual não é diferente do resto da nação. Você deseja o fim, mas fecha os olhos para os meios. Você quer que o jardim seja belo desde que o cheiro do estrume fique longe de seu enfastiado nariz.
        Xan ficou de pé. Um por um, todos os membros do Conselho o imitaram.
        Mas ele não ofereceu a mão.
        Theo estava alerta por conta do granadeiro que se movera silenciosamente para o seu lado, em obediência a algum sinal secreto. Quase esperava a mão fechando-se em seu ombro. Virou-se e sem dizer coisa alguma o seguiu para a câmara do Conselho.
        O carro o esperava. Ao vê-lo o motorista veio abrir a porta. Mas de repente, Xan estava ao seu lado.
        Disse para Hedges:
         — Leve o carro até o Mall e nos espere em frente da estátua da Rainha Vitória—  e voltando-se para Theo disse:
        — Vamos caminhar pelo parque. Espere enquanto eu pego meu casaco.
        Voltou em menos de um minuto vestindo seu costumeiro tweed, que invariavelmente usava nas aparições televisivas, estilo regente, que no século 21 por certo tempo fora algo caro e na moda. O casaco estava velho, mas ele o conservava.
        Theo lembrava de quando pela primeira vez discutiram sobre ele:
        — Você é maluco. Tudo por um casaco.
        — Vai durar para sempre.
        — Não vai. Nem a moda.
        — Não me importa a moda. Gosto do estilo mais do que qualquer coisa que qualquer um esteja vestindo.
        E ninguém vestia um igual aquele agora. Atravessaram a rua entrando no parque.
        Xan falou: — Você foi burro em vir hoje aqui. Existe um limite do quanto eu posso protegê-lo, você ou as pessoas com que você anda se relacionando.
        — Acho que não preciso de proteção. Sou um cidadão livre consultando democraticamente o Governador reeleito da Inglaterra. Por que precisaria da sua proteção ou de alguém?
        Xan não respondeu.
        Num impulso, Theo falou: — Por que você faz isso? Por que você quer este trabalho? Era, pensou, uma questão que só ele podia - ou se atrevia - a fazer.
        Xan fez uma pausa antes de responder, focando seu olhar no lago, como se algo invisível aos outros olhares surgisse para seu interesse.
        Mas certamente, pensou Theo, ele precisava hesitar, devia ser uma pergunta que ele mesmo se fizera muitas vezes. Então se virou e disse:
         — Primeiro por que eu pensei que gostaria disso. O poder, eu suponho. Mas não só isso. Não agüentaria ver alguém fazer algo que eu sei que faria melhor. Depois dos primeiros cinco anos, acho que passei a gostar menos da coisa. Mas já é tarde. Alguém tem que fazê-lo e os únicos que querem tal coisa são aqueles quatro à volta da mesa. Você prefere Felicia? Harriet? Martin? Carl? Carl poderia, mas está morrendo. Os outros três não conseguiriam manter o Conselho junto, nem o país.
        — Então é isso. Um dever gerado pelo desinteresse público?
        — Já conheceu alguém que desistisse do poder, do poder de verdade?
        — Algumas pessoas.
        — Morto-vivos? Mas não é o poder, não inteiramente. Direi o motivo real. Não estou enfadado. Qualquer coisa que eu faça, nunca me canso.
        Caminhavam em silêncio ao redor do lago. Então Xan falou:
        — Os cristãos acreditam que o último advento chegou exceto por Deus estar reunindo-os um por um ao invés de descer dramaticamente dos céus, entre as prometidas nuvens de glória. Desta forma ele pode controlar a entrada no céu. Fica mais fácil proceder com aquela história de redenção e roupas brancas. Gosto de pensar que Deus se preocupa com a logística. Mas eles já abandonaram a ilusão de ouvir a risada de uma criança.
        Theo não respondeu. Então Xan disse calmamente:
         — Quem são eles? É melhor me dizer.
        — Não existem “eles”.
        — Toda aquela encenação na sala do Conselho não partiu de você. Não digo que fosse incapaz de pensar naquilo. Acho que é capaz de coisa melhor. Mas nos últimos três anos você não se importou e agora parece que se importa bastante.
        — Não é ninguém especificamente. Moro no mundo real, mesmo em Oxford. Converso com caixas de mercado, faço compras, pego ônibus, eu as ouço. As pessoas às vezes me procuram para falar. Ninguém que eu conheça, apenas gente do povo. Eu quase só me comunico com pessoas desconhecidas.
        — Desconhecidas? E seus alunos?
        — Alunos não. Ninguém em particular.
        — Estranho que tenha se tornado tão acessível. Você costumava andar por ai com esta membrana impenetrável de privacidade, sua rede invisível particular. Quando falar com estes misteriosos desconhecidos, pergunte se podem fazer melhor do que eu. Se sim, diga para virem falar isso na minha cara; você não é particularmente um emissário muito persuasivo. Seria uma pena se fechássemos a escola para educação de adultos em Oxford. Ninguém diria nada contra, se aquele lugar se tornasse um foco de amotinados.
        — Você não fará isso.
        — É o que Felicia diria para fazer.
        — Desde quando você passou a dar importância para o que Felicia diz?
        Xan sorriu a reminiscência de seu sorriso íntimo.
        — Você está certo, é claro. Não dou a mínima para Felicia.
        Cruzando a ponte que se lançava sobre o lago, eles pararam para olhar para Whitehall. Ali, sem nenhuma mudança, estava uma das mais excitantes visões que Londres tinha a oferecer, uma Inglaterra ainda interessante, os elegantes e esplêndidos bastiões do Império, vistos além das águas e emoldurado pelas árvores.
        Theo relembrou que uma vez, uma semana após entrar para o Conselho, estar naquele mesmo lugar, vendo a mesma vista e Xan vestindo o mesmo casaco.
        E podia lembrar cada palavra que dissera como se tivesse acabado de pronunciá-las:
        — Deve acabar com o teste compulsório de esperma. É degradante e pode continuar sendo feito por mais vinte anos sem sucesso. De qualquer forma, você apenas testa os homens saudáveis. E os outros?
        — Se os outros puderem se reproduzir, sorte a deles, mas enquanto houver limitações para o teste, vamos continuar com aqueles física e moralmente adequados.
        — Então seus planos não são apenas para a saúde, mas para a virtude também.
        — Pode dizer que sim. Ninguém com registro criminal ou com parentes com registro, devem ser permitido se reproduzir, se tivermos esta escolha.
        — Então a lei criminal é a medida da virtude?
        — Como poderia ser feito então? O Estado não pode olhar dentro do coração das pessoas. Está bem, é injusto e estaremos deixando de fora as pequenas delinqüências. Mas por que reproduzir os estúpidos, os fracos e os violentos?
        — Então em seu novo mundo, não há lugar para o preso arrependido?
        — Podemos aplaudir seu arrependimento sem querer que ele se reproduza. Mas veja Theo, isso não vai acontecer. Nós planejamos apenas por segurança, fingindo que o homem tem um futuro. Quantas pessoas realmente acreditam que encontraremos uma solução?
        — E vamos supor que se descubra que um psicopata agressivo tem espermas férteis. Você os usaria?
        — É claro. Se for a última esperança, nós o usaremos, faremos o que for preciso, mas as mães serão cuidadosamente escolhidas pela saúde, inteligência, sem ficha criminal. Tentaremos expurgar a psicopatia.
        — E os centros pornográficos. São realmente necessários?
        — São tolerados pelo estado, mas não providos por ele.
        — Não existe uma grande diferença. E que mal fazem? Não há nada como manter o corpo ocupado e a mente tranqüila.
        Theo então disse:
        — Mas não é para isso que foram feitos, não é?
        — Obviamente não. Não há esperança de reprodução se não houver cópula. Uma vez que isso caia em desuso, nós estaremos perdidos.
 Mas agora, andavam bem devagar. Quebrando um silêncio quase amistoso, Theo disse: — Você volta com freqüência a Woolcombe?
        — Aquele mausoléu? O lugar me dá arrepios. Costumava fazer visitas por obrigação a minha mãe. Não volto lá há cinco anos. Ninguém morre mais em Woolcombe. O que o lugar precisa é seu próprio Quietus. Esquisito não? Quase toda pesquisa médica é dedicada a melhorar a saúde dos idosos e estender o tempo de vida e temos mais senilidade, não menos. Estender pra que? Damos a eles drogas que melhoram a memória de curto prazo, drogas para melhorar o humor, drogas para aumentar o apetite. Só não precisam de drogas para dormir, pois é a única coisa que parecem fazer bem. O que eu imagino, passa pela mente de um idoso durante longos períodos de semi-consciência. Memórias, eu suponho, preces.
        Theo disse:
         — Uma prece. “Que eu possa ver o filho de meu filho e a paz sobre Israel”. Sua mãe ainda o reconhecia antes de morrer?
        — Infelizmente sim.
        — Você me disse uma vez que seu pai a odiava.
        — Não consigo pensar na razão de dizer isso. Acho que estava tentando chocá-lo, ou impressioná-lo. Você era à prova de choques, mesmo quando garoto. Nada que fiz, na Universidade, militarmente, me tornando um Governador, nada realmente impressionou você não é? Meus pais serviam para isso. Meu pai era gay, é claro. Nunca percebeu? Eu costumava me importar com isso, mas agora me parece terrivelmente pouco importante. Por que ele não foi viver sua vida como ele gostaria? Eu sempre fiz assim. Isso explica o casamento, é claro. Ele queria respeitabilidade e precisava de um filho, então escolheu uma mulher que ficaria tão encantada por morar em Woolcombe e ter um título de Baronesa, que não iria se importar quando se desse conta que isso era tudo que ela teria. —
        — Seu pai nunca fez nenhuma aproximação para comigo.
        Xan riu: — Que egoísta você é, Theo. Você não era seu tipo, e ele era morbidamente convencional. Nunca defeque na própria cama. Além disso, ele tinha Scovell. Scovell estava no carro com ele quando sofreu o acidente. Eu tive que cuidar para abafar a coisa toda - uma espécie de piedade de filho, imagino. Eu não me importo que soubessem, mas ele teria gostado disso. Fui um péssimo filho, devia isso a ele.
        De repente Xan disse:
        — Não seremos os dois últimos homens no planeta. Este privilégio vai para os Ômegas, Deus os ajude. Mas se fôssemos, o que acha que deveríamos fazer?
        — Beber. Saudar a escuridão e relembrar da luz. Gritar alguns nomes e então atirar um no outro.
        — Que nomes?
        — Michelangelo, Leonardo da Vinci, Shakespeare, Bach, Mozart, Beethoven. Jesus Cristo.
        — Seria uma lista de nomes da humanidade. Deixe para os deuses, os profetas e fanáticos. Queria que fosse no verão, o vinho seria um Claret, e o lugar, a ponte em Woolcombe.
        — E desde que somos ingleses, poderíamos terminar com o diálogo de Próspero em “A Tempestade”.
        — Se não estivermos velhos o bastante para lembrar as palavras e quando o vinho terminar, estaremos fracos demais para empunhar armas.—
        Estavam agora no final do lago. Junto ao Mall, atrás da estátua da Rainha Vitória o carro aguardava.
        O chofer, do lado de fora, braços cruzados, esperando por eles debaixo de seu quepe, lembrava um carcereiro talvez um carrasco. Theo imaginou ao invés do quepe um capuz escuro, uma máscara, o machado ao lado. Então ouviu a voz de Xan, ou parte das palavras:
        — Diga aos seus amigos, quem quer que sejam, para serem sensatos. Se não puderem, que sejam prudentes. Não sou um tirano, mas não estou em posição de ser misericordioso. O que for necessário fazer, eu farei.
        Olhou para Theo, pensou por um momento que vira nos olhos de Xan um apelo por compreensão. Então repetiu: — Diga a eles, Theo. Farei o que precisar ser feito.
       
        Theo continuava achando difícil encontrar uso para uma St.Giles vazia.
        A memória de seus primeiros dias em Oxford, as fileiras de carros estacionados sob os elmos, e sua frustração crescente em ter que esperar para atravessar, devido ao trânsito incessante, haviam se instalado de maneira mais duradoura do que qualquer outra lembrança significativa.
        Ainda se achava hesitante ao meio fio, ainda não conseguia ver aquele deserto sem surpreender-se.
        Atravessava dando uma olhadela, para um lado e para o outro, atravessava ainda sempre na mesma faixa e caminhava para o museu. Os portões estavam fechados e por um momento de medo achou que o museu também.
        Estava irritado consigo mesmo por não ter telefonado.
        O portão abriu assim que o puxou e viu que a porta do interior de madeira estava entreaberta.
        Adentrou na grande sala de vidro e aço.
        O ar estava frio, mais frio do que na rua e o museu estaria vazio se não fosse pela anciã, tão encapotada que apenas seus olhos eram visíveis e que estava sentada na loja de souvenir. Viu os mesmos postais no mostrador, dinossauros, gemas, borboletas, arquitetura, personagens famosos, John Ruskin e Sir Henry Ackland sentados juntos em 1874, Benjamin Woodward com sua expressão melancólica. Ficou em silêncio olhando para as estruturas do teto, os ornamentos entre os arcos ramificando-se com elegância em folhas, frutas, flores, árvores e arbustos, mas sabia que aquela excitação pouco familiar, mais uma preocupação do que um prazer, tinha menos a ver com a construção do que com seu encontro com Julian e ele tentava se controlar concentrando-se na engenhosidade e na qualidade do trabalho de fundição e na beleza dos entalhes.
        Isso era afinal de contas, seu mundo. Ali estava sua confidência vitoriana, a gravidade vitoriana, o respeito ao aprendizado, a perícia profissional, a arte, a convicção de que toda a vida humana poderia viver em harmonia com a natureza.
        Não tinha estado ali nos últimos três anos e nada tinha mudado.
        Nada, é verdade, havia mudado desde que tinha entrado como aluno.
        O dinossauro com suas garras ainda era o orgulho do local.
        Olhando para ele era como voltar para a escola primária em Kingston.
        Mrs.Ladbrook tinha colocado no quadro uma pintura do dinossauro e explicado que o grande dinossauro com sua pequena cabeça era apenas corpo e um pequeno cérebro e, portanto tinha falhado ao se adaptar, e por isso se extinguira. Mesmo aos dez anos já achava a explicação pouco convincente.
        O dinossauro, com seu pequeno cérebro, tinha sobrevivido a milhares de anos, muito melhor do que o Homo Sapiens.
        Passou pelo arco ao final do prédio principal entrando no Museu Pitt Rivers, que possuía uma das maiores coleções mundiais de etnologia. Os stands de exibição estavam tão próximos que era difícil saber se ela já o esperava por lá, de pé talvez ao lado do totem de vinte metros de altura. Mas ao ficar parado, não conseguiu ouvir passos, o silêncio era absoluto e soube que estava só, apesar de saber também que ela viria.
        O Pitt Rivers parecia mais entulhado do que da última visita.
        Nos atravancados expositores, modelos de barcos, máscaras, mármore e bordados, amuletos e oferendas votivas pareciam misturadas disputando a atenção.
        Caminhou entre as caixas e parou junto ao seu velho favorito ainda em exibição mas com o rotulo agora sujo e apagado que era quase indecifrável. Um colar com vinte e três dentes polidos de uma baleia espermacete, dada pelo Rei Thakombau em 1874 ao reverendo James Calvert e presenteada ao museu por seu neto, um piloto morto na Segunda Guerra. Theo sentiu-se novamente fascinado como antes, quando aluno, com a estranha concatenação de eventos que ligavam as mãos do artista de Fiji com o aviador infeliz. Imaginou a cena da cerimônia da presente do Rei em seu trono cercado por guerreiros vestindo saiotes, o sério missionário aceitando o curioso tributo. A guerra de 1939-45 tinha matado seu próprio avô que servira na RAF, teve derrubado seu bombardeiro no grande ataque a Dresden.
        Quando aluno, sempre obcecado com os mistérios do tempo, que aquilo que dava uma tênue ligação com a do bem morto Rei, cujos ossos estavam enterrados do outro lado do mundo.
        Então ouviu os passos. Olhou em volta esperando, até que Julian viesse até ele.
        Seus cabelos estavam descobertos e vestia calças compridas e jaqueta.
        Quando falou, sua respiração transformou-se em pequenas explosões de vapor:
        — Desculpe-me, estou atrasada. Vim de bicicleta e um pneu furou. Você o viu?
        Não houve uma saudação entre eles e ele sabia que, para ela, ele era apenas um mensageiro.
        Saiu dali e ela o acompanhou, andando ao seu lado, esperando, pensou, que desse suas impressões, mesmo naquele vazio de dois visitantes que se encontravam casualmente.
        Não era convincente e não imaginava por que ela se importaria.
        Disse: — Eu o vi. Vi todo o Conselho. Depois o encontrei a sós. Não foi muito bom; acho que devo tê-los ofendido. Ele sabia que alguém tinha incitado minha visita. Agora se vocês forem à frente com seus planos, ele estará alerta.
         — Você explicou sobre o Quietus, sobre o tratamento dos estrangeiros, o que acontece na Ilha penal?
        — Foi o que me pediram para fazer e foi o que fiz. Eu não esperava ter algum sucesso e não tive. Eu o conheço. Oh, é claro que ele pode fazer mudanças, mas ele não me prometeu nada. Ele irá provavelmente fechar os shoppings de pornografia, mas gradualmente irá liberar os testes de sêmen compulsórios. É uma perda de tempo, de qualquer forma; além disso, não acho que vai conseguir que os técnicos de laboratório em escala nacional continuassem a trabalhar. Metade deles já parou mesmo de se importar. Perdi duas horas marcadas no último ano e ninguém se importou em verificar. Não penso que ele fará algo sobre o Quietus, exceto talvez garantir no futuro que sejam mais organizados.
        — E a colônia penal?
        — Nada. Não vai gastar homens e recursos para pacificar a ilha. Por que deveria? Ter feito a colônia penal foi provavelmente a coisa mais popular que ele já fez.
        — E o tratamento aos forasteiros? Dar-lhes direitos civis plenos, uma vida decente aqui, a chance de ficarem?
        — Parece pouco importante para ele comparado ao que é mais importante: a boa ordem na Bretanha, garantindo que a raça morra com alguma dignidade.
        Ela disse:
        — Dignidade? Como pode ser digno não se importar com a dignidade dos outros?
        Estavam próximos agora do grande totem. Theo colou suas mãos na madeira.
        Sem se incomodar ela disse:
         — Então nós iremos fazer o que pudermos.
        — Não existe nada que possam fazer, exceto que no fim serão mortos ou enviados para a ilha - isso se o Governador e o Conselho forem tão cruéis quanto aparentemente vocês acreditam. Como Miriam pode dizer-lhe, a morte é preferível a ser mandada para a ilha.
        Ela falou, como se considerando o plano seriamente: — Talvez se algumas pessoas, um grupo de amigos, se exilassem deliberadamente para a ilha, poderiam fazer as coisas mudarem. Ou se nos oferecêssemos a ir voluntariamente, por que o Governador iria proibir, por que se importaria? Mesmo um grupo pequeno poderia ajudar se levasse o amor.
        Theo pode ouvir o desdém em sua voz: — Segurando a cruz de Cristo ante os selvagens, como os missionários fizeram na América do Sul. Como eles, serão massacrados nas praias? Você nunca leu a História? Só existem duas razões para este tipo de tolice. Uma é o anseio pelo martírio. Não há nada de novo nisso, se este é o único caminho pelo qual sua religiosidade te leva. Sempre me pareceu uma mistura de masoquismo e sensualidade, mas posso entender a atração disso para certas mentes. O que é novo é que seu martírio não será sequer comemorado, sequer será notado. Em setenta anos não terá valor, por que ninguém ficará vivo na Terra para dar valor, ninguém sequer levantará um santuário pelos mártires de Oxford. A segunda razão é mais ignóbil e Xan entende muito bem disso. Se vocês conseguirem, que embriaguez de poder! A ilha penal pacificada, os violentos vivendo em paz, as plantações crescendo e sendo colhidas, os doentes sob cuidados médicos, serviços dominicais nas igrejas, o beijo redentor nas mãos do santo vivo que fez tudo possível. Então vocês saberão o que o Governador da Inglaterra sente a cada manhã, do que ele goza, do que ele não consegue viver sem. Poder absoluto em seu pequeno reino. Consigo entender a atração disso, mas não acontecerá.
        Ficaram calados juntos, por um instante, então ele disse:
        — Deixe para lá. Não perca o resto da sua vida em uma causa fútil e impossível. As coisas vão melhorar. Em quinze anos - é pouco tempo - 90 por cento das pessoas na Grã Bretanha terão passado dos 80. Não haverá energia bastante para o mal ou para o bem. Pense como será. Os prédios vazios e silenciosos, as ruas abandonadas entre o mato que cresce, a humanidade restante se unirá atrás de conforto e proteção, a manutenção dos serviços da civilização e então, o fim, falha nos sistemas de energia e luz. Os castiçais guardados serão acesos e até mesmo a última vela irá se apagar. Será que então o que aconteceu na Ilha será importante?
        Ela disse:
        — Se formos morrer então que seja como seres humanos e não como demônios. Adeus e obrigado por encontrar-se com o Governador.
        Mas ele fez mais um esforço e disse:
        — Não consigo pensar em um grupo menos preparado que vocês para confrontar o aparato do Estado. Não têm dinheiro, nem recursos, sem influência, nem retorno popular. Nem sequer vocês possuem uma filosofia coerente para se revoltar. O que Mirian quer é vingar seu irmão. Gascoigne aparentemente quer se vingar por que o Governador se apropriou da palavra Granadeiros. Luke tem um vago idealismo cristão e uma queda por coisas abstratas, como compaixão, justiça e amor. Rolf sequer tem uma justificativa de indignação moral. Seu motivo é ambição; se ressente do poder do Governador e gostaria de estar em seu lugar. Você está fazendo isso por que é casada com ele. Ele está arrastando você para o perigo apenas para satisfazer suas próprias ambições. Ele não se importa com você. Deixe-o. Seja livre.
        Ela disse calma:
         — Não posso me separar dele. Não posso deixá-lo. E você está errado, não é essa a razão. Estou com eles por que preciso fazer algo.
        — Sim, algo que Rolf quer que você faça.
        — Não, por que Deus quer.
        Ele queria bater sua cabeça contra o totem de tão frustrado.
        — Se você acredita que Ele existe, então presumivelmente você acredita que Ele te deu sua mente, sua inteligência. Use-a. Acho que você é muito orgulhosa a ponto de se fazer passar-se por boba.
        Mas ela era impenetrável a elogios. Ela disse:
         — O mundo vai mudar não pelo auto-respeito, mas por homens e mulheres preparadas para se fazer passar por bobos. Adeus, Doutor Faron. E obrigado por tentar.
        Virou-se sem tocá-lo e ele a olhou partir.
        Ela não pediu para que ele não os traísse. Não precisava, mas ele estava contente que ela não tivesse feito. E ele não podia prometer isso. Não acreditava que Xan permitisse a tortura, mas para ele bastava a ameaça da tortura, e isso o atingiu pela primeira vez, talvez, julgando mal a Xan, pelo motivo mais ingênuo, não acreditava que um homem tão inteligente, com tanto humor e charme, um homem que chamava de amigo, pudesse ser mau.
        Talvez fosse ele, e não Julian, que precisasse de uma lição de História.
        O grupo não esperou muito. Duas semanas depois do encontro com Julian, no café da manhã, encontrou espalhada entre a correspondência no capacho de entrada uma folha dobrada.
        As palavras impressas haviam sido organizadas de modo a parecer um peixe, como num desenho infantil.
        Theo leu a mensagem, compadecido:
       
        PARA O POVO DA GRÃ BRETANHA
        NÃO PODEMOS MAIS FECHAR OS OLHOS AOS HORRORES DE NOSSA SOCIEDADE. SE NOSSA RAÇA MORRER, DEIXE-NOS AO MENOS MORRER COMO HOMENS E MULHERES LIVRES, NÃO COMO ALGOZES.
        FAZEMOS NOSSAS EXIGÊNCIAS AO GOVERNADOR DA INGLATERRA.
        1. CONVOCAR UMA ELEIÇÃO GERAL E ENTREGAR A POLÍTICA AO POVO.
        2. DAR AOS FORASTEIROS DIREITOS PLENOS, INCLUINDO O DIREITO DE VIVER EM CASAS PRÓPRIAS E DE PERMANECEREM AO FIM DO CONTRATO DE SERVIÇO.
        3. ABOLIR O QUIETUS.
        4. PARAR DE DEPORTAR PRESOS PARA A COLÔNIA PENAL, E GARANTIR QUE AS PESSOAS LÁ POSSAM VIVER EM PAZ E COM DECÊNCIA.
        5. PARAR OS TESTES COMPULSÓRIOS DE SÊMEM E EXAMES DE SAÚDE PARA MULHERES JOVENS E FECHAR OS SHOPPINGS PORNÔS.
       
        OS CINCO PEIXES.
       
        As palavras o afrontaram em sua simplicidade, seu bom senso, sua essencial humanidade.
        Por que ele estava tão certo, imaginou, que Julia as havia escrito?
        E ainda assim não podiam fazer nada. O que os Cinco Peixes estavam propondo? Que o povo marchasse até seus Conselhos locais ou se reunissem no velho prédio das Relações Exteriores? O grupo não possuía uma organização, não tinha poder, nem dinheiro, nem aparentemente um plano de campanha.
        O máximo que podiam conseguir era fazer as pessoas pensarem, provocar o descontentamento, encorajar aos homens a não mais fazer o próximo teste de sêmen e as mulheres a recusar marcar seus exames médicos. E que diferença isso faria?  Os exames já começavam a deixar de valer e em breve se extinguiriam como a esperança. O papel era barato, a mensagem impressa amadoristicamente.
        Provavelmente eles tinham uma impressora escondida na cripta de alguma igreja ou em um barracão remoto dentro da floresta.
        Mas por quanto tempo permaneceria secreto se a Polícia começasse a caçá-los?
        Leu uma vez mais as cinco exigências.
        A primeira não iria incomodar Xan. O país dificilmente aprovaria os gastos e a perturbação de uma eleição geral, mas, se ele a convocasse, seu poder seria confirmado por uma maioria esmagadora tendo ou não alguém se arriscado a temeridade de concorrer com ele.
        Theo se perguntou que outras reformas ele teria alcançado se ele tivesse continuado como conselheiro de Xan. Mas sabia a resposta. Ele tinha sido ineficaz na época e agora os Cinco Peixes seriam também.
        Se não tivesse havido um Ômega, estes seriam propósitos pelos quais um homem poderia lutar por eles, mesmo se tivesse que sofrer por isso.
        Mas se não tivesse ocorrido o Ômega, estas aberrações não existiriam. Seria razoável brigar por isso, talvez morrer por isso, por uma sociedade mais compassiva, mas não em um mundo sem futuro, onde em breve as palavras — justiça— , — compaixão— , — sociedade— , — luta— , — aberrações— , seriam ecos não audíveis no ar.
        Julian diria que valia a pena a luta e o sofrimento para salvar os forasteiros dos maus tratos ou prevenir que alguém fosse deportado para a colônia penal. Mas por mais que os Cinco Peixes fizessem, isso não aconteceria. Não tinham o poder para isso.
        Relendo as cinco demandas ele sentiu esvaziar-se de sua simpatia inicial.
        Disse para si mesmo que a maioria dos homens e mulheres, intrépidos humanos privados da posterioridade, ainda assim carregavam sua carga de culpa e remorso com tanta coragem quanto conseguiam reunir, criando prazeres recompensatórios, permitindo-se pequenas vaidades pessoais, portando-se com decência diante do outro e dos forasteiros que viesse a conhecer. Que direito tinham os Cinco Peixes para impor sobre eles esta carga fútil de virtude heróica? Levou o papel até o lavabo e depois de rasgá-lo precisamente em quatro pedaços, atirou no vaso e deu descarga. Enquanto eram sugados, girando e desaparecendo em um segundo, não podia mais compartilhar a paixão daqueles tolos que se juntavam em um frágil companheirismo lamentável.
       
       
       
      Sábado, 6 de Março de 2021.
       
        Hoje Helena ligou depois do café da manhã e convidou-me para um chá, para ver os gatinhos de Mathilda.
        Ela tinha me mandado um postal, cinco dias antes, para dizer que eles haviam chegado com segurança, mas eu não fora convidado para a festa de nascimento. Imaginava se eles haviam tido uma, ou se mantiveram o nascimento como um acontecimento privado, uma experiência partilhada, que seria posteriormente celebrada e consolidada em sua nova vida juntos. Se fosse assim, parecia desagradável que tivessem esquecido o que geralmente é aceito como uma obrigação, a oportunidade de deixar seus amigos serem testemunhas do milagre do surgimento de uma vida. Seis pessoas, no máximo, eram convidadas geralmente, mantidas cuidadosamente a uma distância segura, para não perturbar a mãe. Depois do acontecimento, se tudo tivesse sido de acordo, uma refeição para celebrar, quase sempre com champagne. A chegada de gatinhos não era marcada por tristeza.
        Os cuidados para garantir a fecundidade de animais domésticos eram planejados e seguidos rigorosamente.
        Mathilda agora seria esterilizada e Helena e Rupert poderiam manter um filhote fêmea para acasalamento.
        Ou então Mathilda poderia dar a luz a só mais uma ninhada, porém os machos teriam que ser mortos sem sofrimento.  
        Depois da ligação de Helena, liguei o rádio para ouvir o noticiário das oito horas.
        Ouvindo a transmissão do dia, me dei conta de que fazia exatamente um ano que ela me deixara por Rupert.
        Isso talvez tornasse o dia apropriado para minha primeira visita ao seu lar. Escrevo lar e não casa, por que tenho certeza de que seria assim que Helena a descreveria, dando dignidade a um edifício banal em North Oxford com a sacramentada importância do amor compartilhado e da lavagem de roupa compartilhada. O comprometimento a total honestidade com uma dieta bem balanceada, uma nova e higiênica cozinha e sexo higiênico duas vezes por semana.
        Pensava no sexo, meio deplorando meu prurido, mas me dizendo que minha curiosidade era natural e permitida.
        Além disso, Rupert agora devia estar apreciando, ou talvez não, o corpo que uma vez eu conhecera quase tão intimamente quanto conhecia o meu.
        Um casamento fracassado é a confirmação mais humilhante da transitória sedução da carne.
        Amantes podem explorar cada linha, cada curva e cavidade do corpo do amante, podem juntos chegar ao êxtase inexplicável; ainda sim, o pouco que isso importa quando o amor ou a luxúria termina e somos deixados com disputas de posses, contas do advogado, os restos tristes, quando a casa escolhida, mobiliada, possuída com entusiasmo e esperança se torna uma prisão, quando as faces se tornam rabugentas e perdem o encanto aos olhos. Imagino se Helena falou para Rupert sobre o que se passara entre nós, na cama. Imaginava que sim, não que isso precisasse de grande autocontrole e delicadeza que sempre vi nela. Havia uma camada de vulgaridade em Helena cuidadosamente preservada do respeito social e posso bem imaginar o que ela contara para ele.
        — Theo era um amante maravilhoso, mas era tudo tão técnico. Você pensaria que ele aprendeu sobre sexo em um manual. E ele nunca falava comigo, não realmente pra mim. Eu poderia ser qualquer uma.
        Posso imaginar as palavras porque sei que são justificáveis. Fiz mais mal a ela do que ela a mim, mesmo se retirássemos deste cálculo eu ter matado sua única filha. Por que me casei com ela? Porque era a mãe da minha filha e isso me conferia prestígio, porque ela também tinha formação em história e achei que tivéssemos os mesmos interesses intelectuais e porque eu a achei fisicamente atraente e estava querendo convencer meu frugal coração de que, se não fosse amor, era algo perto, tão perto que era como se fosse.
        Ser o genro do seu pai me deu mais irritação do que prazer (ele realmente era um homem horrorosamente pomposo, não me espantava que Helena quisesse sair de perto dele); seus interesses intelectuais eram nulos (ela tinha sido aceita em Oxford por que era a filha de um diretor e tinha, através de trabalho duro e caro ensino, alcançado o nível necessário. Então Oxford corroborava uma escolha que eles, de outra forma, não fariam).
        A atração sexual? Bem, durou um pouco mais, até eu finalmente acabar com tudo quando matei Natalie.
        Nada é mais efetivo do que a morte de uma criança para expor, sem possibilidade de conserto, o vazio de um casamento fracassado.
        Penso se Helena está tendo melhor sorte com Rupert.
        Se eles estão aproveitando sua vida sexual, se fazem parte de uma minoria afortunada. 
        Sexo se tornara, entre os prazeres sensoriais do homem, o menos importante.
        Alguém poderia imaginar que sem o medo de uma gravidez, permanentemente removido, e a parafernália não erótica de pílulas, camisinhas e a aritmética da ovulação não eram mais necessárias, o sexo seria livre para novos e imaginativos delírios.
        Aconteceu exatamente o oposto.
        Mesmo aqueles homens e mulheres que normalmente não teriam o desejo de ter filhos, aparentemente tinham que se assegurar que poderiam ter filhos se quisessem.
        Sexo totalmente divorciado da procriação era quase como uma acrobacia sem significado.
        As mulheres reclamavam sobre o que descreviam como dolorosos orgasmos; o espasmo era alcançado, mas não o prazer. Páginas eram dedicadas a este fenômeno nas revistas femininas. As mulheres, críticas e intolerantes aos homens durante as décadas de 80 e 90 tinham uma última e irresistível justificativa para firmar um ressentimento de séculos. Não podíamos mais lhe dar filhos e nem sequer prazer.
        Sexo podia ainda ser um conforto mútuo, mas raramente um êxtase mútuo.
        O governo mantinha shoppings pornôs e a literatura explícita, todos os mecanismos para estimular o desejo, mas nenhum deles funcionava. Homens e mulheres continuavam a se casar, com certeza menos freqüentemente, com menos cerimônia e até com o mesmo sexo. As pessoas ainda se apaixonavam ou diziam estar amando, havia uma busca desesperada pelo outro, preferencialmente jovem, mas ao menos da mesma idade, com o qual enfrentariam o declínio inevitável e a caduquez.
        Precisávamos do conforto da carne, de estar de mãos dadas, de unir os lábios.
        Mas líamos os poemas de amor de eras passadas com um certo tipo de surpresa.
        Caminhando pela Walton Street, esta tarde, não senti qualquer relutância em particular sobre encontrar Helena novamente, e pensava em Mathilda com um prazer antecipatório.
        Como um co-proprietário registrado de um animal doméstico fecundável licenciado, eu podia, é claro, requisitar a sua custódia à Corte de Custódia de Animais, mas não tinha a intenção de me submeter a tal humilhação. Alguns casos de custódia de animais eram terríveis e caras disputas públicas, e eu não tinha o desejo de aumentar estes números.
        Sabia que tinha perdido Mathilda e ela, perfidamente, uma criatura que amava agrados, como todos os gatos, já teria me esquecido.
        Quando a vi, não foi difícil me recriminar.
        Deitada em sua cesta, tinha dois filhotinhos, como pequenos ratinhos brancos, puxando gentilmente suas tetas. Ela olhou-me com seus expressivos olhos azuis e começou um ronronar baixo que parecia fazer tremer a cesta. Coloquei minha mão sobre ela e toquei o pêlo sedoso de sua cabeça e disse:
        — Tudo bem?
        — Oh, perfeitamente. É claro, nós tínhamos um veterinário de plantão aqui desde antes do trabalho de parto, mas ele disse que seria um parto tranqüilo. Ele ajudou com o nascimento dos dois filhotes. Ainda estou me decidindo com qual dos dois quero ficar.
        A casa era pequena, de arquitetura indistinguível, uma construção de tijolos aparentes, numa vila suburbana e com o longo jardim dos fundos terminando no canal. Muitos dos móveis e todos os carpetes pareciam novos, escolhidos, eu suspeitava, por Helena, que havia se livrado da parafernália de sua vida amorosa anterior, os amigos, o clube, os consolos solitários, trocando-os por móveis de família e quadros que deviam ter vindo com a casa.
        Ela tinha prazer em montar um lar para ele - tenho certeza que esta seria a frase que ela usaria - e ele se conformaria com o resultado, como uma criança sob novos cuidados.
        Por todo canto o aroma de pintura nova.
        A sala de estar, como era usual nas casas de Oxford, tivera a parede dos fundos retirada, para fazer parecer uma sala maior, com a janela francesa levando a um arco de vidro dos fundos.
        Uma das paredes expunha as pinturas originais de Rupert para livros, emolduradas em branco.
        Havia dezenas delas e pensei se deveriam ser uma idéia de Helena ou dele. De qualquer modo, isso justificava para mim um instante de contemplação e desaprovação. Queria parar e estudar as pinturas, mas isso iria requerer um comentário meu e não havia nada que eu quisesse dizer. Mas mesmo minha olhadela ao passar mostrou-me que tinham um certo poder, Rupert não era um artista negligenciável, o egotístico display de seu talento, meramente confirmava o que eu já sabia.
        Bebemos chá no jardim de inverno, um generoso banquete de sanduíches de patê, bolo de frutas caseiro trazidos em uma bandeja com toalha de linho nova e pequenos guardanapos combinando.
        A palavra que me veio a mente foi — regalo— .
        Olhando para a toalha, a reconheci. Helena tinha bordado pouco antes de ir embora. Este cuidadoso trabalho de renda tinha sido parte de seu enxoval caseiro de adultério.
        Seria este banquete fino - e eu sou indolente com adjetivos pejorativos - planejado para impressionar-me, para mostrar quão boa uma esposa podia ser para um homem preparado para apreciar seus talentos?
        Era óbvio para mim que Rupert os apreciava.
        Ele quase gozava com seu tratamento maternal. Talvez, como um artista, ele achasse que esta preocupação fosse um dever seu. O jardim de inverno seria, eu penso, muito confortável na primavera e no outono.
        Mesmo agora, apenas com um aquecedor, era confortavelmente aquecido e podia ver pelo vidro que eles haviam tido bastante trabalho com o jardim.         
        Uma fileira de botões de rosa, as raízes embaladas em sacos de aniagem, estava alinhada contra o que parecia ser uma cerca nova. Segurança, conforto e prazer.
        Xan e seu Conselho aprovariam.
        Depois do chá, Rupert desapareceu por um pouco na sala de estar. Retornou de lá e me deu um panfleto.
        Reconheci de imediato. Era idêntico ao que os Cinco Peixes haviam deixado na minha porta.
        Fingindo ser uma novidade, li com cuidado.
        Rupert esperava uma resposta minha.
        Quando não a fiz, ele disse:
        — Eles estão se arriscando indo de porta em porta.
        Percebi-me falando sobre o que eu sabia que devia ter acontecido, irritado comigo mesmo por não conseguir manter a boca fechada.
        — Eles não fariam isso. Não é uma publicação para fregueses, certo? Deve estar sendo entregue por alguém de confiança deles, talvez de bicicleta, talvez a pé, colocando na caixa de cartas, quando não há ninguém por perto, deixando alguns em pontos de ônibus, outros no limpador de pára-brisa, dos carros estacionados.
        Helena disse:
         — Ainda sim é arriscado, não? A polícia pode decidir ir atrás deles.
        Rupert disse:
        — Não acho que vão se incomodar. Ninguém vai levar isso a sério.
        Eu perguntei:
        — E você?
        Ele, apesar de tudo, tinha levado a sério. A pergunta, feita de forma mais incisiva do que eu planejara, deixou-o desconcertado. Olhou para Helena hesitante. Pensei se já tinham discordado um do outro antes. A primeira briga talvez. Mas estava sendo otimista. Se tivessem brigado alguma vez por isso, o folheto deveria ter sido rasgado, como prova de reconciliação.  
        Ele disse:
        — Imaginava se deveríamos fazer menção disso ao Conselho local, quando fomos registrar os filhotes. Decidimos por não fazer, por achar que eles não poderiam fazer nada - o Conselho local, é claro.
        — Exceto contar para a polícia e prender você por posse de material sedicioso.
        — Bem, não pensamos nisso. Não queremos que as autoridades pensem que damos apoio a isso.
        — Alguém mais na sua rua recebeu um desses?
        — Eles não disseram e não perguntamos também.
        Helena falou: — Estes não são assuntos que o Conselho local possa tomar qualquer atitude de todo modo. Ninguém quer que a colônia penal feche.
        Rupert ainda segurando a palheta como se não soubesse o que fazer com ela. Disse:
        — De outro modo, ouviu-se rumores do que acontece nos campos de forasteiros e eu suponho, desde que estão lá, que deveriam lhes dar um tratamento condizente.
        Helena disse afiada:
        — Estão melhores aqui do que se fossem mandados de volta para suas casas. Estão satisfeitos por ter vindo. Ninguém os forçou a isso. E é ridículo sugerir que fechem a colônia penal.
        Isso era o que lhe incomodava, pensei. Era o crime e a violência que os prendiam naquela casinha de toalhas bordadas, na aconchegante sala de estar, o jardim de inverno com suas paredes de vidro vulneráveis e a vista para o jardim escuro, que agora ela podia confiar que não havia ninguém a observando com más intenções.
        Eu disse:
        — Não estão sugerindo que o fechem. Mas você pode concordar que ele deveria ser policiado apropriadamente e fosse dado aos presos uma vida razoável.
        — Mas não é o que estes Cinco Peixes sugerem. No papel diz que as deportações devem parar. Querem fechá-la. E policiada por quem? Não deixaria que Rupert fosse voluntário para este trabalho. E os presos podem ter uma vida decente, depende deles. A ilha é grande o bastante e eles têm comida e abrigo. É claro que o Conselho não evacuou a ilha inteira. Iria gerar protestos e tudo mais - todos aqueles assassinos e estupradores soltos de novo. E os internos do Broadmoor (hospital psiquiátrico) não estão lá também? São loucos, loucos e maus.
        Notei que usou a palavra “internos” e não “pacientes”.
        Eu disse:
        — Os mais perigosos devem estar velhos demais para serem perigosos.
        Ela atacou:
        — Mas alguns estão por volta dos quarenta e tanto, e todo ano novas pessoas são mandadas, mais de duzentos no ano passado, não foi? Virou-se para Rupert: — Querido, acho que devemos parar com isso. Não há razão em continuar. Não podemos fazer nada. De qualquer forma, eles não têm o direito de imprimir isso. Só faz deixar as pessoas preocupadas.
        Ele disse:
         — Vou jogar no vaso do banheiro e dar descarga.      
        Quando saiu, ela se virou para mim.
        — Você não acredita nestas coisas, não é Theo?
        — Consigo acreditar que a vida é peculiarmente desagradável na ilha.
        Ela reiterou obstinadamente: — Isto é problema dos presos, não?
        Não mencionamos mais o panfleto e dez minutos depois, após uma última visita à Mathilda, que Helena obviamente esperava de mim e Mathilda tolerava, os deixei.
        Não estava arrependido de ter ido lá.
        Não apenas pela necessidade de ver Mathilda; nossa breve reunião tinha sido mais dolorosa do que prazerosa.
        Algo tinha ficado mal resolvido, agora ficava a minha frente.
        Helena estava feliz. Parecia inclusive mais jovem, mais charmosa.
        Aquele jeito gracioso que eu costumava confundir com beleza, amadurecera em elegância e confiança.
        Não podia dizer honestamente que estava feliz por ela.
        É difícil ser generoso com pessoas a quem ofendemos enormemente.
        Ao menos eu não era mais responsável por sua felicidade ou infelicidade.
        Não tinha o desejo em particular de voltar a vê-los, mas podia pensar neles sem amargura ou culpa.
        Só por um momento antes de partir, quando me senti mais do que cínico, ao reparar com interesse na sua auto-suficiência doméstica. Tinha deixado-os para ir ao lavabo, a toalha de rosto limpa e bordada, o sabão novo, desinfetante azul, um pequeno pote de pot-pourri; notei e desdenhei.
        Quando voltei vi que estavam sentados um pouco separados, esticando suas mãos um para o outro, e ao me ver chegar, as soltaram, quase que de forma culpada.
        Aquele momento de delicadeza, de tato, talvez até de piedade, produziu um segundo de emoções conflitantes, experimentadas tão suavemente que passaram quase tão rápido quanto as percebi.
        Sabia que o que eu tinha sentido fora inveja e remorso, não por algo perdido, mas por algo nunca alcançado.
       
      Segunda, 15 de Março de 2021.
       
        Tive hoje a visita de dois membros da Polícia de Segurança do Estado.
        O fato de ser capaz de escrever sobre isso demonstra que não fui preso e que eles não encontraram o diário.
        Tenho que admitir que eles não o procuraram, eles não procuraram coisa alguma.
        Deus sabe que o diário era incriminante o bastante para alguém interessado em deficiências morais e inadequações pessoais, mas suas mentes estavam voltadas para crimes mais tangíveis.
        Como disse, eram dois deles, um jovem obviamente um Ômega - extraordinário como podemos sempre identificá-los - e um oficial sênior, um pouco mais novo que eu, de capa de chuva e uma pasta de couro preto.
        Apresentou-se como o Inspetor chefe George Rawlings e seu companheiro era o sargento Oliver Cathcart. Cathcart era sombrio, elegante e sem expressão, um típico Ômega.
        Rawlings, obtuso, um pouco desajeitado nos movimentos, tinha uma cobertura fina de cabelo cinza-branco, que parecia ter sido cortado demais para enfatizar as laterais e atrás. Seu rosto forte com olhos marrons, fundos e de íris invisíveis, uma boca longa, com o lábio superior em forma de seta, pontudo como um bico. Ambos usavam roupas civis, e os ternos eram extremamente bem cortados.
        Em outras circunstâncias eu estaria tentado a perguntar se iam ao mesmo alfaiate.
        Eram onze horas quando chegaram. Deixei-os entrar na sala de estar do térreo e perguntei se queriam café.
        Recusaram. Pedi que sentassem, Rawlings sentou-se confortável em uma cadeira junto à lareira enquanto Cathcart depois de um momento de hesitação, sentou-se do lado oposto a ele, formalmente ereto.
        Eu escolhi a cadeira giratória na escrivaninha, de onde podia olhar para eles.
        Rawlings disse:
         — Uma sobrinha minha, filha mais nova de minha irmã, que escapou de ser um Ômega, apenas por um ano, freqüentou suas aulas. “Vida vitoriana e o tempo”. Não é uma mulher muito inteligente, você provavelmente não lembra dela. Ou talvez lembre. Marion Hopcroft. Era uma turma pequena, ela disse, e ficava menor a cada semana. As pessoas não têm persistência. Começam com entusiasmo e logo se cansam, particularmente se seu entusiasmo não é estimulado.
        Em poucas palavras ele reduzira as minhas leituras a uma coisa entediante e para pessoas burras.
        O insulto não ficara subentendido, porém duvidava que o intuito fosse esse. Eu disse:
        — O nome é familiar, mas não me recordo dela.
        — ”Vida vitoriana e o tempo”. Acho que a palavra tempo era redundante. Por que não apenas “Vida vitoriana”? Ou poderia ser “Vida na Inglaterra Vitoriana”.
        — Eu não escolhi o título, é claro.
        — Não? É estranho. Eu pensava que você tinha escolhido. Acho que você deve insistir em mudar este nome.
        Não respondi. Tinha dúvidas se ele sabia que eu assumira o curso que era de Colin Seabrook, mas se não, eu não pretendia esclarecê-lo.
        Depois de um instante em silêncio, que nem ele ou Cathcart parecia mostrar embaraço, ele disse:
        — Acho que poderia ter um desses cursos para adultos. Em história, não em literatura. Mas não escolheria a Inglaterra vitoriana. Iria preferir antes disso, os Tudors. Sempre fui fascinado por eles, Elizabeth em particular.
        Eu falei: — O que o atrai sobre o período? A violência e o esplendor, a glória das conquistas, a mistura de poesia e crueldade, aqueles rostos astutos saindo da gola rufa, a magnífica corte sustentada pela tortura?
        Ele aparentemente considerou a questão por um momento e disse:
        — Não diria que a era Tudor foi unicamente cruel, Doutor Faron. Morria-se jovem naqueles dias e eu posso dizer que morriam agonizando. Toda época tem sua crueldade. E se considerarmos agonizar, morrer de câncer, sem remédios o que foi do que a maioria dos homens da história morreu, então vivemos os tempos mais terríveis do que os Tudors poderiam imaginar. Principalmente para as crianças, você não diria? É difícil entender o propósito disso, não? O sofrimento de crianças.
        Eu disse:
        — Não devemos assumir, contudo, que a natureza tem um propósito.
        Ele continuou como se eu não tivesse falado:
        — Meu avô foi um daqueles pregadores do fogo do inferno - dizia que tudo tinha um propósito, particularmente a dor. Nascido fora de seu tempo, ele teria sido mais feliz no século 19. Lembro que quando tinha nove anos, eu tinha uma dor de dente terrível , um abscesso. Eu não dizia nada, com medo do dentista, mas uma noite eu acordei em agonia. Minha mãe disse que iríamos ao médico assim que este abrisse, mas fiquei até de manhã sofrendo. Meu avô veio até a mim e disse: “Podemos fazer algo quanto às pequenas dores do mundo, mas nada podemos fazer quanto ao sofrimento eterno do próximo mundo. Lembre-se disso rapaz!” Ele certamente escolheu o momento certo. Uma dor de dente eterna. Foi algo terrível para um menino de 9 anos pensar.
        Eu disse: — Ou um adulto.
        — Bem, nós abandonamos esta crença, exceto por Roaring Roger. Ele ainda parece ter seus seguidores.
        Ele parou por um minuto, como se ruminando sobre as explosões verbais de Roaring Roger, então continuou sem mudar o tom: — O Conselho está preocupado, “interessado” seria uma palavra melhor, sobre as atividades de algumas pessoas.
        Esperou, talvez para que eu perguntasse: “Que atividades? Que pessoas?.
        Eu disse:
        — Terei que sair daqui a menos de trinta minutos. Se o seu colega quiser vasculhar a casa, poderá fazê-lo agora, enquanto conversamos. Tenho poucas coisas realmente valiosas, e normalmente eu faria questão de estar presente durante a busca, mas tenho total confiança na probidade da polícia.
        Com estas palavras, olhei direto para os olhos de Cathcart. Sequer piscaram.
        Rawlings permitiu-se uma pequena nota de reprovação em sua voz: — Não há necessidade de uma busca, Doutor Faron. O que o senhor acha que estaríamos procurando? Procurando o que? O senhor não é um subversivo. Não, esta é somente uma conversa, uma consulta se preferir. Como eu disse, existem coisas acontecendo que preocupam o Conselho. Falo agora em confidência, é claro. Estes assuntos não devem vir a público pelos jornais, rádio ou televisão.
        — O Conselho é precavido. Perturbadores da paz , assumindo que existam, crescem com a publicidade. Por que dar a eles?
        — Exato. É preciso ser experiente neste trabalho para saber que não é necessário manipular notícias ruins. Basta apenas não mostrá-las.
        — E o que vocês não estão mostrando?
        — Pequenos incidentes, pouco importantes por si só, mas possivelmente uma evidência de conspiração. Os dois últimos Quietus foram interrompidos. As rampas foram dinamitadas na manhã da cerimônia, meia hora antes que as vítimas - talvez a palavra “vítima” não seja apropriada, vamos dizer, mártires, chegassem.
        Ele parou e continuou: — Mas “mártires” seja talvez redundante. Vamos dizer, antes que os suicidas em potencial chegassem. Isso causou um embaraço considerável. O terrorista, ele ou ela, foi bastante preciso. Trinta minutos depois e aqueles velhos teriam uma morte mais espetacular do que o planejado. Houve um telefone avisando - a voz de uma mulher jovem - mas veio tarde demais para que detivéssemos a população de chegar na cena.
        Eu disse:
         — Uma irritante inconveniência. Fui ver um Quietus mês passado. A rampa pela qual o barco era preso poderia, imagino, ser construída bem rápido. Não creio que este ato particular de destruição criminosa poderia cancelar o Quietus por mais do que um dia.
        — Como disse, Doutor Faron, um inconveniente menor, mas não, contudo, sem significância. Outros também de menor importância ocorreram recentemente. E os panfletos apareceram. Alguns deles diziam respeito aos forasteiros. O último grupo de forasteiros, de sessenta anos e alguns doentes, teve que ser repatriado à força. Cenas lamentáveis no cais. Não posso dizer que houve uma conexão entre aquele tumulto e a disseminação dos panfletos, mas foi mais do que uma coincidência. A distribuição de material político entre os forasteiros é ilegal, mas sabemos que estes panfletos circularam nos acampamentos. Outros foram entregues de casa em casa, reclamando sobre o tratamento dos forasteiros em geral, e as condições da ilha penal, testes compulsórios de sêmen e o que eles vêem como um erro no processo democrático. Um panfleto recente incorpora todas estas listas de demandas. O senhor talvez já tenha visto.
        Ele pegou a maleta de couro preto e a abriu sobre o colo. Ele estava jogando, como um desconhecido amigável, não muito confiante sobre o propósito da visita e eu meio que esperando que ele procurasse entre os papéis  aquele que buscava. Ao invés disso, me surpreendeu indo direto nele.
        Passou-o para mim e disse:
        — Já tinha visto um desses antes, senhor?
        Olhei para o panfleto e disse:
         — Sim, já o vi. Um desses foi colocado debaixo da minha porta semanas atrás.
        Não havia motivo para negar. Quase que certamente a polícia sabia que os panfletos haviam sido distribuídos na minha rua e por que a minha casa ficaria de fora?
        Após ler novamente eu o devolvi.
        — Alguém mais que o senhor conheça recebeu um?
        — Não que seja do meu conhecimento. Mas imagino que esteja sendo amplamente disseminado. Não me interessei o bastante para perguntar.
        Rawlings o estudou como se fosse uma novidade para ele. Disse:
         — Os Cinco Peixes. Ingênuo, mas não muito inteligente. Suponho que seja um grupo pequeno de cinco pessoas. Cinco amigos, cinco parentes, cinco colegas de trabalho, cinco camaradas conspiradores. Talvez tenham tirado a idéia do Conselho da Inglaterra. É um número comum, não diria senhor? Em qualquer discussão, fica claro que haverá uma maioria— .
        Eu não respondi. Ele continuou:
        — Os Cinco Peixes. Imagino que cada um tenha um nome em código, provavelmente baseado no nome de batismo, que é fácil de lembrar. — A—  contudo é difícil, não me lembro de um peixe começando por — A— , talvez nenhum deles tenha esta letra como inicial. — B—  poderia ser bacalhau, — C—  para cação. — D—  de ...E—  poderia ser complicado. Apesar disso, posso é claro, estar enganado. Mas reconheço que eles não se chamariam assim se não pudessem achar um peixe apropriado para cada membro da gangue. O que pensa disso senhor? Como um processo de raciocínio, quero dizer.
        Eu disse: — Ingênuo. É interessante ver a Polícia em ação. Poucos cidadãos tem esta oportunidade, pelo menos aqueles em liberdade.
        Eu poderia é claro, não ter falado. Ele continuou estudando o panfleto, então disse:
        — Um peixe. Muito fácil de desenhar. Não para um artista profissional, mas para alguém com queda para desenho. O peixe é um símbolo cristão. Poderia ser um grupo cristão?
        Olhou então para mim:
        — Você admitiu que tem um desses senhor, mas não fez nada a respeito. Não achou que seria seu dever reportar?
        — Tratei como trato toda correspondência pouco importante e não solicitada.
        Então, achando que era hora de sair para a ofensiva, disse:
        — Perdoe-me Chefe Inspetor, mas não vejo o que precisamente está aborrecendo o Conselho. Existem descontentes em qualquer sociedade. Este grupo em particular, provocou aparentemente pouca confusão, explodindo algumas rampas improvisadas e distribuindo críticas ao governo.
        — Alguns podem descrever os panfletos como literatura sediciosa, senhor.
        — Use as palavras que quiser, mas dificilmente é uma grande conspiração. Você com certeza está mobilizando os batalhões da força de segurança por que alguns poucos descontentes aborrecidos preferem passar o tempo com algo mais perigoso do que golfe.  O que preocupa o Conselho? Se for um grupo de dissidentes será jovem ou de meia idade, mas o tempo vai passar para eles, para todos nós. Esqueceu dos números? O Conselho da Inglaterra vive nos lembrando. A população de cinqüenta milhões em 1996 caiu para trinta e seis este ano, vinte por cento tem mais de setenta anos. Somos uma raça condenada, Chefe Inspetor. Com a maturidade, com a idade, todo entusiasmo acaba desaparecendo, mesmo a emoção mais atraente de conspiração. Não existe oposição real ao Conselho da Inglaterra. Não existe desde que eles tomaram o poder.
        — É nosso negócio senhor, zelar para que não haja.
        — Você fará, é claro, o que achar necessário. Mas eu apenas levaria isso a sério, se é que pode ser sério, de fato como oposição talvez ao Conselho, sobre a autoridade do Governador.
        As palavras tinham um risco calculado, talvez até perigosas e vi que eu o havia preocupado.
        Tive tal intenção. Depois de um momento de pausa, involuntário, não calculado, ele disse:
        — Se existe qualquer questão a respeito disso, o assunto não está nas minhas mãos, senhor. É de um nível mais acima.
        Fiquei de pé e disse:
        — O Governador é meu primo e meu amigo. Ele foi bom comigo na infância, quando bondade era algo particularmente importante. Não sou mais seu conselheiro, mas não quer dizer que não seja mais seu primo e amigo. Se eu tiver qualquer evidência de uma conspiração contra ele, eu o avisarei, não para você Chefe Inspetor, nem entrarei em contato com a Polícia. Eu direi para a pessoa mais afetada, o Governador da Inglaterra.
        Aquilo fora uma encenação, é claro, mas nós sabíamos disso. Não apertamos as mãos quando os mostrei a saída, mas não por que o tinha como inimigo. Rawlings não se permitia a indulgência de uma antipatia pessoal mais do que se permitia sentir simpatia ou pena das vitimas que visitava ou interrogava. Achava conseguir compreender este tipo: O pequeno burocrata da tirania, homens que saboreavam com cuidado a recompensa dada pelo poder que lhes era permitido exercer, que precisavam caminhar pela aura de medo manufaturado, saber que o medo os precedia quando entravam numa sala e ficava como um perfume por onde passavam, mas que não possuíam o sadismo ou a coragem para serem cruéis de fato. Mas precisavam desta parte da ação.
        E não era suficiente para eles, como para a maioria de nós, ficar apenas para ver as cruzes no calvário.
       
        Theo fechou o diário e o colocou na prateleira mais alta da escrivaninha, fechou-a com a chave que depois guardou no bolso. A escrivaninha era bem feita, as prateleiras fortes, mas dificilmente resistiria a um atacante determinado. Mas se fosse assim, tinha tomado todos os cuidados para que sua conversa com Rawlings fosse inócua. Aquele sentimento de que devia se auto-censurar era, ele sabia, evidência de sua preocupação.
        Era irritante que esta precaução fosse necessária. Tinha começado o diário menos como um registro de sua vida (para quem e por quê? Que vida?) do que uma costumeira e auto-indulgente exploração de si mesmo, um meio de recuperar o sentido dos anos passados, parte catarse, parte uma afirmação confortante.
        O diário, que se tornara uma rotina em sua vida, não teria sentido se ele tivesse que se censurar, se ele decidisse se enganar e não se esclarecer.  
        Pensava de novo na visita de Rawlings e Cathcart.
        Tinha sido surpreendido com a maneira destemida que os tinha enfrentado. Depois de saírem, sentira certa satisfação em ter perdido o medo, com a competência que ele lidara com o encontro. Agora ele se perguntava se sua confiança fora justificada. Tinha quase certeza do que fora dito, lembrança verbal sempre fora um de seus talentos. Mas o exercício de escrever suas conversas elípticas fazia crescer nele uma ansiedade que não sentia há tempos.
        Disse a si mesmo que nada tinha a temer. Só mentira uma única vez, quando negou conhecer alguém que tivesse recebido um daqueles panfletos. Era uma mentira que podia justificar se preciso. Por que ele daria o nome de sua ex-esposa e expô-la ao inconveniente e a inquietação de uma visita policial? Não havia particular relevância no fato de que ela ou alguém mais tinha recebido um panfleto, já que tinham sido jogados por debaixo da porta de praticamente toda casa na rua. Uma mentira não era evidência de culpa.
        Não gostaria de ser preso por causa de uma única e pequena mentira.
        Apesar disso, ainda havia a lei na Inglaterra, ou pelo menos, para os britânicos.
        Desceu para a sala de visitas e ficou andando impaciente pela sala ampla, misteriosamente acautelado com o pavimento vazio e as escuras acima e abaixo dele, como se estas salas silenciosas guardassem uma ameaça.
        Parou na janela para olhar a rua. Uma chuva fina caía. Podia ver dardos prateados caindo contra as luzes da rua e abaixo o pavimento escuro. As cortinas do outro lado tinham sido puxadas e o prédio de pedra não mostrava qualquer sinal de vida, nem mesmo no espaço deixado pelo encontro das cortinas.
        A depressão se abateu sobre ele como uma manta familiar.
        Pesada com a culpa, as lembranças e a inquietação, quase sentia o cheiro dos anos mortos acumulados.
        Sua confiança se fora e o medo o apertava. Disse para si mesmo que durante o encontro ele tinha pensado apenas em si próprio, sua segurança, sua esperteza, seu auto-respeito. Mas eles não estavam primeiramente interessados nele, estavam procurando Julian e os Cinco Peixes. Não tinha contado coisa alguma, não precisava se sentir culpado sobre isso, mas ainda assim tinham vindo até ele, o que significava que eles suspeitavam que ele sabia algo. Claro que sabiam; da próxima vez o verniz da polidez estaria enfraquecido, as perguntas seriam mais sérias, as conseqüências mais dolorosas.
        O quanto mais eles sabiam do que Rawlings tinha revelado? Subitamente pareceu para ele que eles não tinham sequer ainda chegado ao grupo para interrogá-lo. Ou talvez tinham. Teria sido esta a razão do encontro de hoje? Será que já tinham prendido Julian e o grupo e estavam testando-o para saber seu envolvimento?
        E certamente podiam chegar a Miriam rápido o bastante. Lembrou de seu questionamento ao Conselho sobre a colônia penal e a resposta: — Nós sabemos; a pergunta é como você sabe?
        Procuravam por alguém com conhecimento sobre as condições da ilha e já que as visitas eram proibidas, nada de cartas entrando ou saindo, sem publicidade, como poderia então saber o que se passava? A fuga do irmão de Miriam estaria nos registros. Era notável que uma vez que os Cinco Peixes tinham começado suas ações eles não a prendessem para interrogatório. Mas talvez tivessem. Talvez agora ela e Julian estivessem em suas mãos.
        Seus pensamentos se fechavam em círculo e sentiu pela primeira vez uma extraordinária solidão.
        Não era uma emoção com a qual estava habituado. Estava receoso e ressentido disso.
        Olhando para a rua vazia, desejou pela primeira vez ter alguém, um amigo para confiar, em quem confiasse. Antes de Helena deixá-lo, ela havia dito: — Vivemos na mesma casa, mas somos como hóspedes ou convidados de um mesmo hotel. Nunca nos falamos realmente.
        Irritado com aquela banal e previsível queixa, o lugar comum das esposas descontentes, ele tinha respondido:
        — Falar de que? Eu estou aqui. Se quiser falar agora, eu estou ouvindo.
        Pareceu que seria confortante até falar com ela, ouvir sua relutante e inútil resposta ao seu dilema.
        E misturado ao medo, a culpa e a solidão, havia uma nova irritação - com Julian e seu grupo e consigo, que de certa forma, estava envolvido. Ao menos ele fizera o que eles haviam pedido.
        Tinha encontrado o Governador e então avisara Julian. Não era sua culpa se eles não tivessem entendido o perigo. Sem dúvida eles podiam dizer que ele tinha uma obrigação de levar a mensagem até eles, de avisá-los de que corriam perigo.
        E como poderia avisá-los? Não sabia o endereço deles, onde trabalhavam ou o que faziam.
        A única coisa que podia fazer se Julian tivesse sido capturada era interceder ao seu favor com Xan. Mas como saberia se ela estava presa? Só seria possível se procurasse, se achasse alguém do grupo, mas como fazê-lo de maneira segura sem tornar a procura muito óbvia? A Polícia deveria estar mantendo-o sob vigilância.
        Não havia nada para fazer a não ser esperar.
       
      Sexta-feira, 26 de Março de 2021.
       
        A vi pela primeira vez desde nosso encontro no museu Pitt Rivers.
        Comprava queijo no mercado de rua e me virei no caixa com meus pequenos pacotes cuidadosamente embrulhados de Roquefort, Danish Blue e Camembert, e ela estava apenas a alguns metros de mim.  Escolhia frutas, não apenas fazendo compras, mas escolhendo, experimentando o odor, analisando os globos de laranjas, as curvas das bananas, o vermelho das maçãs. Eu a vi de relance envolta em cores fulgurantes, sua pele e cabelo pareciam absorver a irradiação das frutas, como se não fosse apenas atingida pela iluminação do mercado, mas ao sol quente do sul.
        Observei-a enquanto lidava com uma nota e depois contava moedas para entregar ao atendente o dinheiro exato. Ainda sorrindo ela passou a alça da sacola sobre o ombro, sentindo seu peso.
        Alguns compradores surgiram entre nós dois, mas eu ainda enraizado ali, indeciso, sem talvez se conseguiria me mover, com a mente tumultuada por uma quantidade extraordinária de sensações inoportunas.
        Veio a urgência de ir até o balcão da florista, colocar algumas notas em sua mão, agarrar um daqueles buquês de narcisos, tulipas, rosas e lírios, colocá-los em seus braços e tirar aquele estorvo de seus ombros.
        Era um impulso romântico, infantil e ridículo que eu não sentia desde que era garoto.
        Tinha o receio e rancor disso na época, mas agora aquilo me encheu de força, era irracional e repleto de potencial destrutivo.
        Ela virou sem me ver e tomou o caminho da saída da Hight Street.
        A segui no meu caminho pelos vendedores das sextas pela manhã, com seus cestos sobre rodas, impaciente quando meu caminho era momentaneamente bloqueado. Disse para mim mesmo que agia feito um tolo, que devia deixá-la perder de vista, que era apenas uma mulher que eu encontrara quatro vezes e em nenhuma destas vezes ela demonstrara interesse em mim, além daquela sua determinação de que eu deveria fazer o que ela queria, que eu nada sabia dela exceto de que era casada, da esmagadora necessidade de ouvir sua voz, de tocá-la, não era mais do que um sintoma de minha doentia instabilidade emocional, comum na solidão da meia idade. Eu tentaria não me precipitar. Ainda assim, planejei alcançá-la quando virasse na High Street.
        Toquei seu ombro e disse:
        — Bom dia.
        Qualquer cumprimento soaria banal. Este ao menos era inócuo.
        Ela se virou ficando de frente para mim e por um segundo fui capaz de me enganar que seu sorriso era uma prova de felicidade em me reconhecer. Mas era o mesmo que dera ao verdureiro.
        Pousei minha mão sobre a sacola e disse:
        — Posso carregar isso para você?
        Pareceu como um inoportuno garoto de escola.
        Ela fez que não com a cabeça e disse:
        — Obrigado, mas minha van está estacionada logo ali.
        Que van? Pensei. Para quem pretendia dar aquelas frutas? Com certeza não era só para duas pessoas, Rolf e ela.
        Será que trabalhava em alguma instituição? Mas não perguntei, sabendo que ela não me diria.
        Disse:
        — Está tudo bem com você?
        De novo ela sorriu: — Sim, como pode ver. E você?
        — Sim. Como pode ver.
        Ela me deu as costas. Seu movimento fora gentil - não queria me magoar - mas foi deliberado e queria dizer que era o fim.
        Eu disse em voz baixa: — Tenho que falar com você. É importante. Não demora. Não tem um lugar que possamos ir?
        — É mais seguro no mercado do que aqui.
        Deu a volta e eu comecei a andar ao seu lado casualmente, sem olhar para ela, duas pessoas fazendo compras na multidão, forçados a uma proximidade temporária pela pressão dos outros corpos. Uma vez dentro do mercado ela parou para olhar um homem velho e seu assistente que estavam vendendo tortas de forno.
        Parei ao seu lado, fingindo um interesse no queijo borbulhante e no molho que vazava.
        O odor chegou-me forte e apetitoso, um odor carregado de lembranças.
        Eles vendiam tortas aqui desde que eu era estudante.
        Continuei olhando como se considerasse como uma oferta, então disse baixo em seu ouvido: — A polícia foi me ver - eles podem estar bem próximos. Estão procurando por um grupo de cinco pessoas.
        Ela se virou e continuou andando. Fiquei do seu lado.
        Ela disse:
         — É claro. Eles sabem que somos cinco. Não há segredo nisso.
        Ao seu lado eu disse:
        — Não sei mais o que eles sabem ou imaginam. Pare agora. As coisas não vão bem. Pode não ter tempo bastante. Se os outros não pararem, caia fora.
        Então ela entrou na minha frente e olhou para mim. Nossos olhos se encontraram por segundos, mas agora, longe das luzes e da riqueza das frutas brilhantes, vi algo que não tinha notado ainda; que seu rosto parecia cansado, envelhecido e fraco.
        Ela falou:
        — Por favor, vá embora. Melhor que a gente não se veja de novo.
        Apesar do risco, segurei sua mão.
        Eu disse:
         — Não sei seu segundo nome. Não sei onde mora ou onde encontrá-la. Mas você sabe onde me achar. Se algum dia precisar de mim, me procure em St.John Street e eu a ajudarei.
        Então saí sem precisar ver se ela se afastava também.
       
        Escrevo isso após o jantar, olhando pela janela da frente na longínqua Wytham Wood. Tenho cinqüenta anos e nunca soube o que era amar. Posso escrever estas palavras, sabendo serem verdadeiras, mas sentindo o arrependimento que só um homem sem ouvido para a música deve sentir porque não consegue apreciá-la, um arrependimento que só consegue ser amenizado por não se saber o que se perdeu. Mas as emoções têm seu próprio tempo e lugar. Cinqüenta anos não é uma idade para escolher a turbulência do amor, principalmente neste planeta condenado e sem prazer, onde apenas sobre para o homem, seus últimos pensamentos e todos os desejos apagados. Então devo planejar minha saída. Não é fácil para qualquer pessoa com menos de sessenta e cinco conseguir uma permissão de viajar, uma vez que os Ômegas são os únicos com idade para viajar para qualquer parte se quiserem. Mas não espero qualquer dificuldade. Ainda existe alguma vantagem em ser primo do Governador, sem mesmo mencionar o relacionamento. Assim que entro em contato com um oficial, isso fica claro. Meu passaporte já está carimbado com a permissão de viagem. 
        Devo escolher alguém para assumir os cursos de verão, libertando-me daquele aborrecimento compartilhado.
        Não tenho novos conhecimentos nem o entusiasmo de comunicar-me.
        Pegarei o trem e viajarei, visitarei grandes cidades, catedrais e templos da Europa enquanto as estradas ainda estão lá, os hotéis ainda têm funcionários para prover um conforto aceitável e padrão, onde ainda se possa comprar o que for preciso, pelo menos nas cidades. Devo deixar para trás a memória do que vi, de Xan e seu Conselho e desta cidade cinzenta, onde até as pedras são testemunhas da transitoriedade da juventude, do aprendizado e do amor.
        Devo arrancar esta página do meu diário. Escrever estas palavras foi um prazer, deixá-las seria uma tolice.
        E eu devo tentar esquecer a promessa feita pela manhã em um momento de loucura.
        Não acredito que ela vá aceitar.
        E se o fizer, encontrará esta casa vazia.
       
       
       
    LIVRO DOIS
     
      ALPHA.
     
       
      Outubro de 2021.
     
       
        Ele voltou para Oxford no último dia de Setembro, chegando ao meio-dia.
        Ninguém o havia impedido de partir e ninguém o recebeu em casa.
        A casa cheirava a sujeira, a sala de refeições no porão estava úmida e bolorenta, os quartos no andar superior abafados. Tinha instruído a Mrs.Kavanagh que abrisse as janelas de tempos em tempos, mas o ar, com desagravo reparou, cheirava como se estivesse fechado por anos. O corredor estreito estava apinhado de correspondências, com algumas parecendo que os envelopes tinham aderido ao carpete. Na sala de visitas, as cortinas compridas impediam a passagem do sol da tarde como numa casa abandonada, pequenos pedaços de cascalho e gotas de fuligem tivessem caído da chaminé, fazendo um tapete debaixo de seus pés.
        Respirou a fuligem e a decadência. A casa parecia se desintegrar diante de seus olhos.
        O pequeno quarto do alto, com a sua visão do campanário da igreja de St.Barnabas e as árvores de Wytham Wood tingidas com as primeiras tintas de outono, o recebeu com o frio de sempre.
        Ali ele sentou-se e com cuidado virou as páginas de seu diário, onde havia registrado cada dia de sua viagem, prazerosamente, meticulosamente, mentalmente arrancando um pouco de cada cidade e das vistas que planejava revisitar, como se fosse um garoto adiando um trabalho de final de semana.
        Auvergne, Fontainebleau, Carcassonne, Florença, Veneza, Perugia, a catedral de Orvieto, os mosaicos de San Vitale, Ravenna, o templo de Hera no Paestum.
        Viajara na onda de excitação da antecipação, não procurando aventura ou lugares não familiares, onde novidades e descobertas seriam mais compensatórias do que a monótona comida e as camas duras.
        De forma organizada tinha ido de uma capital para outra: Paris, Madri, Berlin, Roma.
        Não estava consciente de se despedir da beleza e do esplendor que tinha conhecido quando jovem.
        Ele tinha esperança de voltar algum dia, não precisava ser uma visita final.
        Era uma jornada de fuga, não uma peregrinação em busca de sensações esquecidas.
        Mas ele sabia que a parte dele que mais precisava escapar tinha ficado em Oxford.
        Lá por agosto a Itália tinha ficado quente demais.  
        Fugindo do calor, da poeira, da companhia de velhos que pareciam se arrastar através da Europa, como uma névoa cinzenta, tomou a tortuosa estrada para Ravello, delicada como um ninho de águia, entre o azul profundo do mediterrâneo e o céu. Ali encontrou um hotel de família, caro e praticamente vazio. Ficou ali pelo resto do mês. Não lhe daria paz, porém encontrou conforto e solidão.
        Sua memória mais forte vinha de Roma, de frente para a Pietá de Miguelangelo em São Pedro, com seus castiçais gotejantes, as mulheres ajoelhadas, ricos e pobres, novos e velhos, de olhos fixos na face da Virgem com uma intensidade ardente quase dolorosa de se ver.
        Lembrava-se de seus braços distendidos, as palmas pressionadas contra o vidro protetor. O murmúrio baixo e continuo dos que rezavam, como se viesse de uma só garganta e carregasse o desespero de todo um planeta.
        Voltou para encontrar uma Oxford confusa e exausta após um verão calorento, para uma atmosfera que o afetava, ansiosa, irritável, quase intimidante. Caminhou pelas quadras vazias, suas pedras douradas no sol suave de outono, os últimos adornos do alto verão ainda brilhando nos muros, e não encontrou nenhum rosto conhecido. Pareceu, para sua imaginação doente e distorcida, que os antigos habitantes tinham sido misteriosamente despejados e estranhos caminhavam pelas ruas cinzentas e sentados como fantasmas saudosos sob as árvores dos jardins da faculdade.
        A conversa no quarto de hóspedes dos seniores fora forçada e sem sentido.
        Seus colegas pareciam sem vontade de encará-lo.
        Aqueles poucos que souberam que estivera ausente o perguntaram sobre o sucesso de sua viagem, mas sem curiosidade, apenas por educação. Sentiu que trouxera consigo do exterior algum contágio desrespeitoso. Retornara para sua cidade, seu lugar de nascimento, mas ainda assim era revisitado por aquele peculiar e pouco familiar desassossego que ele supunha poder ser chamado de solidão.  
        Depois de uma semana telefonou para Helena, surpreso que ele desejasse não somente ouvir sua voz, mas esperando por um convite. Helena não o fez. Ela não se importou em esconder seu desapontamento ao ouvi-lo.
        Mathilda estivera indiferente e afastada. O veterinário fizera alguns testes e esperava pelo telefonema dele.
        Ele disse:
        — Estive fora de Oxford todo o verão. Aconteceu alguma coisa?
        — O que quer dizer com isso? Que tipo de coisa? Nada aconteceu.
        — Suponho que não. Quem retorna depois de seis meses espera encontrar alguma coisa diferente.
        — As coisas não mudam em Oxford. Por que deveriam?
        — Não pensava em Oxford. No país como um todo. Não li jornais enquanto estive fora.
        — Bem, não aconteceu nada. E por que me pergunta? Houve algum problema com dissidentes, foi só. Mais é muito boato. Aparentemente alguém andou explodindo píers, tentando parar o Quietus. Passou na televisão mês passado. O locutor disse que um grupo planeja libertar todos os presos da ilha penal, que podem estar organizando uma invasão a partir de lá e que tentariam depor o Governador.
        Theo disse:
        — É ridículo.
        — Foi o que Rupert disse. Mas eles não iriam dizer isso se não fosse verdade, não é mesmo? Só serviu para deixar as pessoas irritadas. Tudo costumava ser tão tranqüilo.
        — Alguém sabe quem eles são?
        — Acho que não. Acho que não sabem; Theo, tenho que desligar. Estou esperando o veterinário ligar.
        Sem esperar adeus, ela encerrou o contato.
       
       
        Nas primeiras horas do décimo dia após sua volta, o pesadelo retornou.
        Mas desta vez não era seu pai ao pé da cama exibindo sua ferida sangrando, mas Luke, que não estava na cama, mas sentado no carro, não do lado de fora da casa em Lathbury Road mas na nave da igreja Binsey.
        As janelas do carro fechadas.
        Podia-se ouvir uma mulher gritando, como Helena tinha gritado.
        Rolf estava lá, o rosto vermelho, socando o carro e gritando:
        — Você matou Julian, você matou Julian.
        Na frente do carro, Luke, mudo e mostrando seu toco sangrento.
        Ele não podia se mover, trancado em um rigor como o — rigor mortis— .
        Ouvia as vozes raivosas: “Saia daí! Saia! 
        Mas não podia se mover. Ficava sentado lá olhando com os olhos vazios através do pára-brisas na figura acusatória de Luke, esperando que a porta de abrisse, por mãos que o arrancassem de dentro e o confrontassem com o horror que ele sozinho, havia feito.
        O pesadelo deixou seu legado de inquietação, que se aprofundava dia a dia. Ele tentou retirá-lo da cabeça, mas nada em sua rotina solitária diária era forte o bastante para se encarregar disso.
        Dizia a si mesmo que devia agir normalmente, parecer despreocupado, que estava sob algum tipo de vigilância.
        Mas não havia sinal disso. Não ouvia falar de Xan, nada sobre o Conselho, não recebia telefonemas, não havia provas de que estivesse sendo seguido.
        Retornou aos seus exercícios habituais e duas semanas depois de voltar, tirou as primeiras horas da manhã para dar sua volta de Port Meadow até a igreja de Binsey. Sabia que não seria sábio visitar e perguntar ao velho padre e mesmo para si era difícil explicar por que revisitar Binsey era tão importante, ou o que esperava ganhar.
        Atravessando Port Meadow por um momento preocupou-se se estaria levando a polícia para um dos locais normais de encontro do grupo. Mas ao alcançar Binsey, viu que a vila estava completamente deserta e disse a si mesmo que dificilmente eles continuavam a encontrar-se em algum dos velhos abrigos.
        Aonde quer que estivessem, sabia que estavam em terrível perigo.
        Agora ele se via, como todo dia, envolto em conflitantes e conhecidas emoções; pela irritação de ter se deixado envolver, sentindo-se culpado por não ter se saído melhor na entrevista com o Conselho, temendo que Julian estivesse agora prisioneira da polícia, frustração por não poder entrar em contato com ela, ninguém com quem pudesse falar.
        O caminho para a igreja de Santa Margareth estava mais desgrenhado e coberto de vegetação do que a última vez que passara por ali, os galhos aéreos entrecruzados providenciavam um escuro e sinistro túnel.
        Quando chegou no jardim da igreja, viu uma van mortuária do lado de fora da casa e dois homens carregando um caixão de pinho pelo caminho.
        Ele disse:
         — O velho pastor morreu?
        O homem que o respondeu olhou-o rapidamente: — É melhor que sim. Ele está no caixão.
        Deslizou o caixão com eficiência dentro da traseira da van, bateu as portas e os dois entraram e dirigiram para longe.
        A porta da igreja estava aberta e ele se moveu dentro da penumbra secular vazia.
        Ainda estavam lá os sinais de sua iminente degradação.
        Folhas sopradas pela porta aberta e o chão estava sujo e manchado com algo que parecia sangue.
        Os bancos cobertos de poeira e havia um cheiro de animais, talvez de cães.
        À frente do altar, sinais curiosos haviam sido pintados no chão, alguns vagamente familiares. Sentia-se mal por ter vindo a aquele lugar profanado.
        Saiu fechando a porta pesada atrás dele com uma sensação de alívio.
        Mas não havia aprendido nada, feito nenhum bem.
        Sua pequena peregrinação sem sentido apenas aprofundara sua sensação de impotência de impedir um desastre.
       
       
        Passava das oito da noite quando ouviu uma batida na porta.
        Estava na cozinha preparando uma salada para seu jantar, misturando com cuidado o óleo de oliva e o vinagre nas proporções corretas. Iria comer, como sempre de noite, sobre uma bandeja no estúdio, com uma toalha limpa e uma mesa já pronta e esperando.
        A costela de carneiro estava já na grelha e o claret aberto uma hora antes e acabara de beber o primeiro copo de vinho enquanto cozinhava. Se ocupava das coisas comuns sem entusiasmo.
        Supostamente precisava comer. E era seu costume ocupar-se com a salada. Mesmo que suas mãos se ocupassem com o preparo sua cabeça lhe dizia que não era importante.
        Tinha fechado as cortinas cujas janelas davam ao pátio e os degraus para o jardim, menos para preservar a privacidade, que dificilmente era preciso - por que era seu hábito de toda noite. Além dos ruídos feitos por ele mesmo, estava cercado de total silêncio, os andares vazios acima se empilhavam sobre ele como um peso psicológico. E no momento que levava o copo aos lábios ouviu um bater na porta.
        Baixo mas urgente, um simples toque, seguido de outros três, que podia ser definido como um sinal.
        Abriu as cortinas e pode ver um rosto quase pressionado com o vidro.
        Um rosto escuro. Sabia mais do que podia ver que era Miriam.
        Abriu os dois ferrolhos e destrancou a porta e imediatamente ela deslizou para dentro.
        Não perdeu tempo em cumprimentá-lo: — Está sozinho?
        — Sim. O que é isso? O que aconteceu?
        — Pegaram Gascoigne. Estamos fugindo. Julian precisa de você. Não era possível para ela vir, então ela me mandou.
        Se surpreendeu que ele pudesse ao ver sua exaltação, quase um terror meio suprimido, com tanta calma.
        Mas então aquela visita apesar de imprevista seria o ponto mais alto de sua ansiedade semanal.
        Ela sabia que alguma coisa traumática iria ocorrer, e que aquilo iria requerê-lo. Agora a convocação chegara.
        Quando ele não respondeu, ela disse:
         — Você disse a Julian que deveria vir se precisasse de você. Ela precisa de você agora.
        — Onde estão?
        Parou por um segundo como se pensando se era seguro contar para ele então disse:
        — Numa capela em Widford, fora de Swinbrook. A polícia já conhece a placa do carro de Rolf. Precisamos do seu carro e de você. Temos que fugir antes que eles consigam dobrar Gascoigne e ele comece a dar nomes.
        Nenhum deles duvidava que Gascoigne fosse entregá-los.
        Nada tão cruel como tortura física seria necessária. A Polícia de Segurança do Estado tinha as drogas necessárias e o conhecimento e a desumanidade para usá-las.
        — Como você chegou aqui?
        Ela disse impaciente:
        — Bicicleta. Deixei-a junto do seu portão dos fundos. Estava fechado, mas por sorte seu vizinho colocou a lata de lixo para fora e eu subi por ela. Olhe, não há tempo pra jantar. É melhor trazer toda comida que puder carregar. Temos pão, queijo e algumas latas de comida. Onde está seu carro?
        — Em uma garagem em Pusey Lane. Pegarei meu casaco. Tem uma bolsa atrás da porta do armário. A despensa é logo atrás. Veja que comida você quer levar. Recoloque a rolha do vinho e traga com você.
        Ele subiu para pegar seu casaco mais grosso e subindo mais um lance até o quarto dos fundos, pegou seu diário e o guardou no bolso interno grande. Sua ação fora instintiva; se fosse perguntado teria dificuldade de explicar até para si mesmo.
        O diário não era particularmente incriminador;  ele tinha se encarregado disso. Ele não tinha a premonição de que passaria mais do que algumas horas fora. E mesmo que esta jornada fosse o começo de uma odisséia, este era o mais útil, mais valioso, mais relevante amuleto que poderia carregar consigo.
        O último chamado de Miriam para que se apressasse fora desnecessário.
        Sabia que o tempo era curto.
        Se estava sendo levado até o grupo para discutir com eles como seria melhor usar de sua influência com Xan, principalmente se iria ver Julian antes de ser presa, então deveria pegar a estrada sem esperar um segundo.
        Uma vez que a polícia soubesse que o grupo se desfizera, eles iriam concentrar sua atenção nele.
        A placa de seu carro estava nos registros. Seu jantar abandonado, mesmo que se desse o trabalho de jogá-lo no lixo, seria uma evidência de sua saída apresada. Em sua apreensão por encontrar Julian sentia somente uma pequena preocupação com sua própria segurança.
        Ele ainda era o ex-conselheiro do Governador.
        Havia apenas um homem na Grã-bretanha com o poder absoluto, autoridade absoluta, controle absoluto e ele era primo desse homem. Mesmo a Polícia de Segurança do Estado não poderia ao final impedi-lo de ver Xan. Mas poderiam impedi-lo de ver Julian, ao menos poderiam tentar.
        Miriam, segurando uma sacola esperava por ele ao lado da porta da frente. Ele a abriu, mas ela o empurrou para o lado, colocou a cabeça de fora e olhou para os lados e disse:
         — Parece limpo.
        Devia ter chovido. O ar estava fresco, mas a noite escura, as luzes de rua espalhavam sua luz fraca sobre as pedras cinzentas, e gotas de chuva repousavam no teto dos carros estacionados.
        De ambos os lados da rua as cortinas estavam cerradas, exceto por uma janela no alto onde um quadrado de luz brilhava e ele podia ver cabeças escuras passando e ouviu de lá o som da música. Alguém naquele quarto aumentara o volume e subitamente a rua cinzenta recebeu uma enxurrada doce, misturados tenor, baixo e soprano cantando Mozart, mas não conseguiu reconhecer a ópera. Por um momento de nostalgia e tristeza o som o levou de volta aquela rua que primeiro conhecera quando estudante, trinta anos atrás, aos amigos que moravam aqui e que haviam ido embora, a memória das janelas abertas para a noite de verão, vozes jovens chamando, música e risos.
        Não havia sinal de vida exceto por aquele som glorioso, mas ele e Miriam caminhavam rapidamente e quietos por quase trinta metros pela rua Pusey, cabeças baixas e em silêncio, como se até um sussurro ou um passo mais pesado pudesse ser capaz de acordar a rua de volta a vida. Viraram na travessa Pusey e ela esperou, ainda em silêncio, enquanto ele destrancava a garagem, ligava o Rover e abria a porta do carona para que ela deslizasse para dentro. Dirigiu veloz por Woodstock Road, mas cuidadosamente cuidando do limite de velocidade. Estavam na periferia da cidade quando ele falou:
        — Quando pegaram Gascoigne?
        — Quase duas horas atrás. Ele estava colocando explosivos em uma rampa em Shoreham. Era para acontecer outro Quietus. A polícia estava esperando por ele.
        — Não me surpreende. Vocês tem destruído rampas de embarque, obviamente eles ficaram vigiando. Então eles estão com ele há duas horas. Estou surpreso que ainda não tenham prendido você.
        — Eles provavelmente estão esperando para interrogá-lo em Londres. E não creio que tenham tanta pressa assim, nós não somos tão importantes assim. Mas eles virão.
        — É claro. Como soube que eles pegaram Gascoigne?
        — Ele ligou para dizer o que iria fazer. Foi uma iniciativa própria, Rolf não havia autorizado a ação. Nós sempre ligamos de volta quando um trabalho é completado, ele não ligou. Luke foi até seu apartamento em Cowley. A polícia tinha estado por lá, ao menos foi o que o senhorio disse. Obviamente foi a Polícia de Segurança do Estado.
        — Não foi esperteza de Luke ir até a sua casa. Podiam estar esperando por ele.
        — Nada que fazemos é esperteza, apenas necessidade.
        Ele disse:
        — Não sei o que vocês esperam de mim, mas se querem mesmo a minha ajuda é melhor me falarem melhor sobre vocês. Não sei seus sobrenomes. Onde vivem? O que fazem? Como se encontram?
        — Direi a você, mas não vejo a importância disso ou por que precisa saber. Gascoigne é - era - um motorista de caminhão. Foi por isso que Rolf o recrutou. Acho que se conheceram em um bar. Ele podia distribuir nossos panfletos por toda a Inglaterra. 
        — Um motorista que é especialista em explosivos. Posso ver sua utilidade.
        — Seu avô ensinou tudo sobre explosivos. Ele estava no exército e eram bem, bem próximos. Não precisava ser um especialista. Não há nada de complicado sobre explodir rampas ou qualquer outra coisa. Rolf é um engenheiro. Ele trabalha na indústria de fornecimento de energia.
        — E no que Rolf colabora além de ser o líder?
        Miriam ignorou seu escárnio:
        — Você sabe de Luke, ele era um padre, suponho que ainda seja. Segundo ele, uma vez padre sempre padre. Nunca se tornou vigário por que não sobraram muitas igrejas que sirvam para o seu modelo de cristandade.
        — Que modelo é esse?
        — Do tipo que havia nos anos 90. A velha Bíblia, o velho livro de preces. Ele pratica serviços ocasionais se as pessoas pedem. Está empregado no jardim botânico e aprendendo sobre criação de gado.
        — Por que Rolf o recrutou? Dificilmente para prover consolo espiritual ao grupo.
        — Julian o queria.
        — E você?
        — Você sabe sobre mim. Sou parteira.É tudo que sempre quis ser. Depois do Ômega eu peguei um emprego no supermercado em Headington. Agora eu dirijo o estoque.
        — E o que faz nos Cinco Peixes? Coloca panfletos em pacotes de cereal?
        Ela disse:
        — Olhe, eu disse que não tinha a ver com esperteza, não disse que éramos estúpidos. Se não fossemos cuidadosos, se fôssemos incompetentes como você quer fazer parecer, não teríamos durado tanto.
        Ele disse:
        — Vocês duraram tanto porque o Governador assim o quis. Ele poderia ter capturado vocês meses atrás. Ele não o fez por que vocês são mais úteis soltos do que presos. Ele não quer mártires. O que ele quer é uma pretensa ameaça a ordem pública. Isso o ajuda a impor sua autoridade. Todos os tiranos precisam disso de tempos em tempos. Tudo que ele fez foi dizer ao público que havia uma sociedade secreta operando cujos manifestos podiam parecer liberais, mas tudo que queriam de verdade era fechar a ilha penal, deixar aqueles dez mil criminosos psicopatas livres em uma sociedade de velhos, mandar para casa os forasteiros de maneira que o lixo não seria mais coletado e as ruas ficariam imundas e finalmente derrubar o Governador e seu Conselho.
        — Por que as pessoas acreditariam nisso?
        — Por que não? Entre vocês cinco, provavelmente você gostaria de fazer isso. Rolf certamente gostaria desta última. Sob um governo não democrático não existe lugar para dissidentes mais do que existe para motins. Sei que se chamam de Cinco Peixes. Me diga quais são seus nomes em código.
        — Rolf é Carpa, Luke é Bagre, Gascoigne é Peixe-gato, eu sou Peixe-Dourado.
        — E Julian?
        — Este foi difícil, só encontramos um peixe que servisse. O Alfaquim (peixe-galo).
        Ele não conseguiu conter o riso e disse:
        — Por Deus, qual é o motivo disso tudo? Vocês disseram para o país que se chamam Cinco Peixes? Suponho que quando Rolf liga para você ele se identifica dizendo “Carpa para Peixinho dourado...” na esperança de que se existir alguém da Polícia ouvindo-os, ele irá morrer de raiva e morder o tapete de frustração? —
        Ela disse:
        — Tudo bem, você tem razão. Nós não usamos nossos nomes, não sempre. Foi só uma idéia de Rolf.
        — Eu achei que tinha sido.
        — Olhe, pare com este papo arrogante, certo? Sabemos que você é inteligente e o sarcasmo é uma maneira de mostrar o quão inteligente você é, mas eu não preciso disso agora. E pare de criticar Rolf. Se você se importa mesmo com Julian, vá devagar, ok?
        Pelos próximos minutos eles seguiram em silêncio.
        Olhando para ela ele viu que ela tinha o olhar fixo na estrada de maneira intensa como se esperasse que estivesse minada. Suas mãos apertavam a sacola a ponto dos nós dos dedos ficarem brancos, e parecia que sua onda de excitação era quase palpável.
        Ela tinha respondido suas perguntas, mas como se sua mente estivesse em outro lugar.
        Então ela falou e quando o fez, ele experimentou surpreso, uma intimidade inesperada:
        — Theo, tem algo que preciso lhe contar. Julian me pediu que não falasse enquanto não estivéssemos a caminho. Não se trata de um teste da sua fé. Ela sabia que você viria se ela o chamasse. Mas se não, havia algo de importante que deveria ser escondido de você, se você não viesse, então eu não deveria falar. Não haveria mesmo motivo.
        — Dizer o que?
        Ele a olhou demoradamente; ela não tirava os olhos da estrada, os lábios se moviam sem som como se procurasse as palavras.
        — Me dizer o que Miriam?
        Ela ainda não olhou para ele. Disse:
         — Você não vai acreditar em mim. Não espero mesmo que acredite. Sua descrença não importa, por que em pouco mais de 30 minutos, você verá a verdade por si só. Só não me pergunte como. Não estou querendo ouvir protestos, argumentos, nem vou tentar convencê-lo, Julian o fará.
        — Fale logo. Eu decidirei se acredito ou não.
        E ela virou-se e o encarou. Disse claramente, audível apesar do ruído do motor:
        — Julian está grávida. É por isso que ela precisa de você. Ela vai ter um bebê.
        No silêncio que se seguiu ele estava atento primeiro esperando o desapontamento seguido de uma irritação e então a náusea.
        Era repugnante acreditar que Julian fosse capaz disso, de se auto enganar, desta besteira, ou que Miriam fosse tola o bastante para ser conivente com isso. Em seu primeiro e único encontro em Binsey, apesar de breve, ele gostara dela, parecia ser sensível e inteligente. Não queria fazer julgamento de uma pessoa tão abominável.
        Depois de um momento ele disse:
        — Não vou argumentar nada, mas não acredito em você. Não estou dizendo que está deliberadamente mentindo, eu acredito que você acha que é verdade. Só que não é.
        Era comum, apesar de tudo, ser uma ilusão bem comum.
        Nos primeiros anos depois do Ômega, as mulheres por todo o mundo acreditavam estar grávidas, mostravam sintomas de gravidez, caminhavam por ai com suas barrigas orgulhosas, tinha visto elas caminhando pela High Street em Oxford. Faziam planos para o nascimento, até se submetiam a falsos trabalhos de parto, gemendo e se torcendo em esforço, para nada além de vento e agonia.
        Depois de cinco minutos ele disse:
        — Há quanto tempo acredita nessa história?
        — Eu disse que não iria discutir contigo. Eu disse para esperar.
        — Você disse que não iria e eu não estou discutindo. Só fiz uma pergunta.
        — Desde que o bebê chutou. Julian não sabia até então. Como poderia? Então ela veio me falar e eu confirmei sua gravidez. Sou uma parteira, lembra? Achamos que seria melhor não ficarmos juntos mais do que o necessário durante os últimos quatro meses. Se eu tivesse a visto mais freqüentemente eu teria sabido antes. Mesmo depois de vinte e cinco anos, eu saberia.
        Ele disse:
         — Se acredita nisso - no inacreditável - então você está enfrentando a coisa muito calmamente.
        — Eu já tive tempo bastante para dar glórias quanto a isso. Agora estou mais preocupada com o lado prático.
        Mais uma vez o silêncio. Então ela falou:
        — Eu tinha vinte e sete quando o Ômega aconteceu e trabalhava na maternidade do John Radcliffe. Fazia um plantão na clínica de pré-natal na época. Lembro de agendar a próxima consulta de uma paciente e de repente me dei conta que as páginas dos sete meses passados estavam em branco. Nem um único nome. As mulheres costumavam agendar assim que sua menstruação estava atrasada há dois meses, algumas até antes do primeiro mês.
        Nem um único nome.
        Pensei, o que estava acontecendo com os homens da cidade?
        Liguei para uma amiga que trabalhava no Queen Charlotte. Ela me disse a mesma coisa.
        Disse que iria telefonar para uma conhecida no Hospital Maternidade Rosie, em Cambridge. Me ligou de volta em vinte minutos. A mesma coisa. Foi quando eu soube, devo ter sido uma das primeiras pessoas a saber. Eu estava lá no fim e agora preciso estar lá no início.
        Chegavam em Swinbrook agora e ele diminuía a velocidade, regulando os faróis, como se estas precauções o pudessem de alguma forma fazê-los invisíveis. Mas a vila estava deserta. A lua de cera crescente dominava o céu azul cinzento de trêmula seda, perfurada por poucas estrelas. A noite não tão escura quanto esperava, o ar calmo e doce, com um perfume de grama. No pálido luar, as pedras pareciam emitir um brilho esmaecido, como se fundindo-se ao ar e ele pode ver claramente as formas das casas, os telhados altos e os muros floridos. Não havia luz em nenhuma das janelas e a vila descansava silenciosa e vazia como um set de filmagem, por fora sólido e permanente, mas efêmero, as paredes pintadas sustentadas por detrás por suportes de madeira. Teve uma momentânea impressão de que bastava colidir contra um daqueles muros e ele se desfaria. Mesmo assim o local era familiar. Mesmo sob a luz irreal ele reconhecia os pontos de referência: a faixa de grama ao lado do tanque com sua grande árvore caindo sobre ele e um banco circundante, a entrada estreita que levava para a igreja.
        Já tinha estado ali com Xan em seu primeiro ano no colégio. Um dia quente em Junho quando Oxford se tornara um lugar de onde se fugia, seus pavimentos bloqueados por turistas, o ar fedendo a cigarro e ruidoso com o embate de línguas estrangeiras, suas quadras invadidas. Dirigiam por Woodstock Road sem uma idéia clara de seu destino quando Theo lembrou-se de seu desejo de ver a capela de Saint Oswald em Widford. Era um destino tão bom quanto qualquer um. Feliz que a expedição tivesse um propósito, pegaram a estrada para Swinbrok.
        O dia, na memória, era um ícone do que se podia usar para representar o perfeito verão inglês: um céu azul quase sem nuvens, a tranqüilidade de vacas pastando, o cheiro da grama, o vento nos cabelos.
        Isso podia lembrar também outras coisas, mais transitórias do que o verão, coisas perdidas para sempre como a juventude, a confiança, a diversão e a esperança de encontrar o amor. Eles não tinham pressa. Fora de Swinbrook havia uma vila com um campo de cricket, onde uma partida era disputada, eles estacionaram o carro e sentaram-se na grama para ver o jogo, comentar e aplaudir. Já tinha feito isso antes, o mesmo caminho que Miriam e ele fizeram, além do velho posto de correio, pela trilha estreita entre muros de heras selvagens até a igreja da vila. Um batizado estava ocorrendo lá. Uma pequena procissão de aldeões se encaminhava para a entrada, os pais na frente, a mãe carregando o bebê em sua manta cristã branca, a mulher com chapéu de flores, os homens sérios, em ternos azuis e cinza. Ele se lembrava e pensou que esta cena fosse eterna e distraiu-se por um momento imaginando os primeiros batizados, as roupas com certeza diferentes, mas os rostos dos aldeões, uma mistura de seriedade com antecipação do gozo, imutáveis.
        Pensou então, como agora, na passagem do tempo inexorável, implacável e impossível de se deter.
        Mas o pensamento se detinha no exercício intelectual destituído de sofrimento ou nostalgia, desde que o tempo seguia em frente e dezenove anos pareceu uma eternidade.
        Agora, fechando o carro, ele disse:
         — Se o lugar de encontro for a capela de Saint Oswald, o Governador a conhece.
        A resposta dela veio calmamente:
        — Mas ele não sabe o que fazemos.
        — Saberá quando Gascoigne falar.
        — Gascoigne também não sabe. Este é um lugar de reserva que Rolf mantinha em segredo, caso um de nós fosse capturado.
        — Onde ele deixou seu carro?
        — Oculto em algum ponto fora da estrada. Planejavam caminhar os últimos quilômetros a pé.
        Theo disse:
         — Através do campo e no escuro. Não é exatamente um lugar fácil para se evadir.
        — Não, mas é remoto, abandonado e a capela está sempre aberta. Não precisamos nos preocupar com rotas de fuga, ninguém sabe onde nos achar.
        Mas devia haver um lugar melhor, pensou Theo e novamente se viu tendo dúvidas sobre a competência de Rolf em planejar e liderar. Confortável com o menosprezo, disse para si mesmo: Ele tem uma aparência que remete a força bruta mas não deve ser muito inteligente, um bárbaro ambicioso. Como ela foi se casar com aquilo?
        A trilha chegou ao fim e eles viraram a esquerda descendo por um estreito caminho de terra e pedras entre os muros de eras, atravessando um curral e depois um pasto, à esquerda havia uma pequena fazenda que ele não tinha lembrança de ter visto antes.
        Miriam disse:
         — Está vazia. Os proprietários se foram. Não sei muito bem como acontece. Parece que algumas pessoas resolvem partir e as outras, em pânico, as seguem.
        O campo era selvagem, com muitas moitas e eles caminhavam com cuidado, de olhos no terreno. Vez por outra um tropeçava e o outro estendia a mão para ajudar. Pareceu para Theo que eles pareciam um casal de velhos, os últimos habitantes do lugar deserto fazendo seu último passeio pela escuridão final até a capela, de uma maneira perversa e atávica de precisar morrer em solo sagrado. A esquerda iniciava um caminho entre cercas vivas que Theo sabia, levava para Windrush. Ali, depois de visitar a capela, ele e Xan tinham se deitado a grama olhando para as águas lentas do rio de peixes brilhantes então, virando de costas, fixado os olhos para o alto através das folhas prateadas contra o azul do céu. Tinham bebido vinho e colhido morangos pelo caminho.
        Achou que poderia se lembrar de cada palavra dita.
        Xan, jogando um morango na boca, virou-se para pegar a garrafa de vinho:
        — É tão Brideshead, querido jovem. Acho que preciso de meu ursinho de pelúcia—  e sem mudar o tom de voz, disse:
         — Acho que vou me alistar no exército.
        — Pra que Xan?
        — Nenhuma razão em particular. Ao menos não será entediante.
        — Será indescritivelmente chato, exceto para quem gostar de viajar e de esportes, e você nunca particularmente se interessou por um ou outro, exceto cricket, e nem posso dizer que seja um jogo que se pratica no exército. Aquela gente joga pesado. De qualquer forma, eles provavelmente não o aceitariam. Agora que são tão poucos, ficaram por demais cuidadosos nas escolhas.
        — Oh, mas vão me aceitar sim. E depois eu devo tentar a política.
        — Mais entediante ainda. Você nunca sequer mostrou o menor interesse em política. Você sequer possui convicções políticas.
        — Posso adquiri-las. E não será tão chato quanto o que você planejou para si mesmo. Primeiro você vai se formar e depois Jasper conseguirá um trabalho nas pesquisas para seu pupilo favorito. Então vai ficar preso naquelas reuniões provincianas, passando o tempo com sujeitos de noventa anos, publicando seus trabalhos, escreverá um ocasional bem recebido livro. Então voltará para Oxford como um membro da fraternidade, se tiver sorte e se já não estiver trabalhando, irá dar aulas para alunos que acham que história é uma opção fácil. Oh, esqueça! Uma mulher adequada, inteligente o bastante para ter uma conversa aceitável na mesa de jantar, mas não tão inteligente que possa competir com você, uma casa hipotecada em Norte Oxford e dois inteligentes e enfadonhos filhos que irão imitá-lo.
        Bem, ele quase acertou, tudo estava certo a não ser pela esposa inteligente e pelos dois filhos. E se tudo que ele havia dito naquela conversa casual, tivesse sido parte de um plano? Ele estava certo, o exército o aceitou. Ele se tornou o coronel mais jovem em cento e cinqüenta anos. Ele ainda não possuía uma fidelidade política, sem convicções por detrás de suas convicções de que teria que ter aquilo que queria e que quando colocasse as mãos em algo aquilo teria que ter sucesso. Depois do Ômega, com o país afundando em apatia, sem ninguém querendo trabalhar, os serviços quase deixando de existir, o crime incontrolável, toda a esperança e ambição perdidas para sempre, a Inglaterra estava pronta para que ele a colhesse. A metáfora era trivial, mas nenhuma outra seria mais acurada. Estava lá pendurada, madura e apodrecendo e Xan só precisava esticar sua mão. 
        Theo tentou arrancar o passado da memória, mas as vozes daquele último verão ecoavam em sua mente e mesmo sob esta noite outonal sentia o calor do sol nas costas.
        E agora estava diante da capela, santuário e nave debaixo do mesmo teto, a torre central do sino.
        Parecia exatamente a mesma da primeira vez que a vira, incrivelmente pequena, uma capela construída por um deísta excessivamente indulgente, como uma brincadeira de criança. Conforme chegaram à porta ele se viu tomado de uma súbita relutância que por instante, congelou seus passos, assustando-o pela primeira vez com uma onda de curiosidade e ansiedade pelo que encontraria. Não conseguia acreditar que Julian engravidara, este não era o porque dele estar ali. Miriam podia ser uma parteira, mas ela não praticava há 25 anos e havia inúmeras condições médicas que poderiam simular a gravidez.
        Algumas eram perigosas; e se fosse um tumor maligno que havia ficado sem tratamento porque Miriam e Julian resolveram alimentar esperanças? Tinha sido uma tragédia bem comum nos primeiros anos depois do Ômega, quase tão comum quanto a gravidez psicológica.
        Odiava pensar que Julian fosse uma tola iludida, mas odiava mais ainda o medo dela estar mortalmente doente. Meio ofendido pela preocupação que parecia sua obsessão por ela. Ma o que mais o traria para aquele campo selvagem e deserto?
        Miriam golpeou a porta com a lanterna e então a apagou. A porta se abriu fácil. A capela estava escura, mas o grupo havia acendido oito lampiões e os colocado em frente ao altar. Pensou se teria sido Rolf quem os montara ali ou haviam sido trazidos por visitantes transitórios. As chamas tremeram brevemente ao abrir a porta, lançando sombras no chão de pedra e na madeira desgastada antes de voltar a tornar-se um brilho gentil e aleitado.
        A princípio o pensamento que a capela estava vazia, e então viu as três cabeças escuras em um dos bancos de encosto alto. Eles se moveram na sua direção. Estavam vestidos para uma viagem, Rolf com um gorro largo e uma jaqueta de couro de ovelha, Luke em um casaco maltrapilho preto e cachecol e Julian com um longo manto sem mangas quase raspando o chão.
        Na penumbra seus rostos pareciam emitir uma luz macia.
        Nenhum deles falou.
        Então Luke virou, pegou uma vela e segurou-a alto. Julian se moveu para frente de Theo e olhando-o nos olhos disse sorrindo:
         — É verdade, Theo, eu posso sentir.
        Sob o manto ela vestia uma bata sobre calças largas. Pegou sua mão direita e a guiou sob a bata de algodão até a grande área convexa que era tão pouco visível sob as roupas. A primeira impressão a pele parecia esticada, mas era suave ao toque, sentiu sua mão fria, mas imperceptivelmente o calor passava de sua pele para ela de forma que logo não sentia mais qualquer diferença como se a sua carne e a dela fossem uma só. E então houve um súbito espasmo e ele retirou a mão. Ela riu, e foi como se sinos enchessem o lugar de jovialidade.
        — Ouça, ouça seu coração.
        Ele se ajoelhou, inconsciente, não como se fosse um gesto de respeito, mas sabendo que era certo que o fizesse assim de joelhos. Colocou seu braço direito a volta de seu quadril e pressionou o ouvido contra o estômago dela. Não ouviu um coração batendo, mas sentiu os movimentos da criança, sentiu a vida.
        Uma onda de emoção explodiu, o engoliu, o estapeou numa turbulenta vaga de terror, excitação e medo, então retrocedeu deixando-o esgotado e fraco. Por um momento permaneceu de joelhos, incapaz de se mover, meio que amparado ao corpo de Julian, sentindo seu cheiro, seu calor, a sua essência derramando-se sobre ele.
        Então se endireitou e ficou de pé, consciente de seus olhares. Mas não disse nada.
        Desejava poder ir embora com Julian, levá-la para a noite, para o grande silêncio escuro e tornarem-se parte dela.
        Precisava descansar a mente, sentir e não falar. Mas sabia que tinha que dizer algo e precisaria de todo seu poder de persuasão. E as palavras não seriam o bastante. Precisaria casar vontade com vontade, paixão com paixão. Tudo que tinha agora era a lógica, argumentos inteligentes e neles ele havia depositado sua fé por toda a sua vida. Agora se sentia vulnerável e inadequado onde certa vez fora confiante e seguro.
        Afastou-se de Julian e disse para Miriam:
        — Me passe a lanterna.
        Ela o fez sem dizer uma palavra e ela a ligou e dirigiu o facho para seus rostos. Eles se afastaram.
        Os olhos de Miriam estavam cheios de alegria, os de Rolf, ressentidos, mas triunfantes, Luke parecia desesperado.
        Foi ele quem falou:
        — Você percebe, Theo, que temos que ir embora, para manter Julian segura.
        Theo
        : — Não vão conseguir correndo por ai. Isso muda tudo, não somente para vocês, mas para o mundo inteiro. Nada importa mais do que a segurança de Julian e da criança. Ela deveria ir para um hospital. Telefonem para o Governador ou deixem-me fazê-lo. Uma vez que isso se tornar público, ninguém vai se importar com aqueles panfletos de revoltados ou dissidentes. Não existe ninguém no Conselho, ninguém no país, ninguém de importância no que sobrou do mundo, que não estaria preocupado apenas com uma coisa, o nascimento seguro deste bebê.
        Julian colocou sua mão deformada sobre a dele e disse:
        — Por favor, não faça isso. Não quero que ele esteja presente quando meu bebê nascer.
        — Ele não precisa estar presente. Ele fará o que você quiser. Todos farão o que você quiser.
        — Ele estará lá. Você sabe que sim. Ele estará lá no nascimento e sempre. Ele matou o irmão de Miriam, está matando Gascoigne agora mesmo. Se eu cair nas mãos dele nunca mais serei livre. Meu bebê nunca será livre.
        Como, pensou Theo, ela queria manter seu bebê longe das mãos de Xan? Será que ela pensava em manter a criança em segredo para sempre?
        Ele disse:
         — Deve pensar primeiro na criança. Suponha que ocorram complicações, uma hemorragia?
        — Não vai. Miriam vai cuidar de mim.
        Theo virou-se para ela.
        — Fale com ela, Miriam. Você é uma profissional. Você sabe que ela deveria ir para um hospital. Ou está pensando em você mesma? É só no que vocês pensam, em vocês mesmos? Na sua própria glória ?  Que incrível, não? Parteira do primeiro ser da nova raça, se for isso que esta criança estiver destinada a ser. Você não quer compartilhar a glória, tem medo que sequer possa dividir a glória. Quer ser a única a ver o milagre de uma criança neste mundo.
        Miriam disse calma:
        — Eu trouxe duzentos e oitenta bebês para este mundo. Todos parecem milagres para mim, pelo menos no momento do nascimento. Tudo que desejo é que a mãe e o bebê fiquem bem. Não entregaria sequer uma puta grávida às graças do Governador da Inglaterra. Sim, eu preferiria que ela nascesse no hospital, mas Julian tem o direito de escolher.
        Theo virou-se para Rolf: — O que pensa o pai?
        Rolf estava impaciente: — Se ficarmos muito tempo aqui conversando não teremos sequer uma alternativa. Julian está certa. Uma vez que o Governador ponha as mãos nela, acabou. Ele estará lá durante o nascimento e ele anunciará isso para o mundo. Será ele que estará na televisão mostrando o bebê para a nação. Eu é que deveria fazer isso, não ele.
        Theo pensou, ele acha que está apoiando a esposa. Mas tudo que ele se importa é ter a criança a salvo de Xan e do Conselho, antes que eles descubram.
        Furioso e frustrado berrou: — Isso é loucura! Vocês não são crianças com um novo brinquedo que podem manter para vocês, brincar entre vocês, ao invés de deixar que outra criança o saiba. Este nascimento diz respeito ao mundo inteiro, não só a Inglaterra. A criança pertence à humanidade.
        Luke falou:
        — A criança pertence a Deus.
        Theo voltou-se para ele: — Cristo! Será que não podemos discutir isso ao menos sendo racionais?
        Foi Miriam quem falou:
        — A criança pertence a si própria, mas a mãe é Julian. Até que ela nasça e pelo tempo depois do nascimento, o bebê e sua mãe são um. Julian tem o direito de dizer onde ela vai dar a luz.
        — Mesmo se isso significar arriscar o bebê.
        Julian falou:
        — Se eu tiver meu bebê com o Governador presente nós, ambos morreremos.
        — Isso é ridículo!
        Miriam disse calmamente:
         — Você quer correr o risco?
        Ele não respondeu. Ela aguardou e reiterou:
        — Está preparado para assumir a responsabilidade?
        — Então quais são seus planos?
        Foi Rolf quem respondeu:
        — Achar algum lugar seguro, ou tão seguro quanto possível. Uma casa vazia, um abrigo onde possamos ficar por 4 semanas. Tem que ser algum lugar remoto fora da cidade, talvez na floresta. Precisamos de provisões e água e um carro. O único que nós temos é o meu e eles conhecem a placa.
        Theo falou:
        — Não podemos usar o meu também. A polícia a esta hora está em St,John Street. A coisa toda é em vão. Uma vez que Gascoigne fale, e irá falar, não precisam torturá-lo, eles têm drogas, uma vez que o Conselho fique sabendo da gravidez, irão vir atrás de vocês com tudo que têm. Quão longe vocês acham que podem ir antes de os encontrarem?
        A voz de Luke veio calma e paciente. Parecia explicar a situação para uma criança não muito esperta:
        — Sabemos que eles virão. Estarão procurando por nós e vão querer nos destruir. Mas pode não ser já, pode levar algum tempo. Eles não sabem do bebê. Nunca contamos isso para Gascoigne.
        — Mas ele era parte do grupo. Ele não suspeitou? Ele tinha olhos e não via?
        Julian disse:
        — Ele tinha 31 e duvido que tenha visto uma mulher grávida na sua vida. Ninguém deu a luz em vinte e cinco anos. É algo que sua mente não entenderia. E os forasteiros com quem trabalho no campo, eles também não perceberam. Ninguém sabe, só nós cinco.
        Miriam disse:
         — E Julian tem quadris largos. Não seria óbvio para você se não tivesse sentido o feto se mover.
        Pensou que eles não haviam confiado em Gascoigne, pelo menos não o maior segredo de todos. Gascoigne não valia isso, aquele sujeito simples e decente, o homem que pareceu para Theo, no primeiro encontro, ser a âncora do grupo. E se eles tivessem acreditado nele, ele teria obedecido as ordens.
        Como se lesse seus pensamentos, Rolf falou:
         — Foi para sua própria proteção e nossa também. Quanto menos gente souber, melhor. Disse para Miriam, é claro, nós precisávamos de suas habilidades. E contei para Luke por que Julian assim o queria. Era algo a ver com ele ser um padre, superstição quem sabe. Poderia nos dar boa sorte. Foi contra minha vontade, mas eu disse.
        Julian disse: — Fui eu quem contou para Luke.
        Theo pensou que mesmo contra o conselho de Rolf ele fora chamado. Julian o queria e eles faziam tudo que ela queria, mas o segredo, uma vez revelado, não podia ser desprezado. Podia se negar a ajudar mas não podia deixar de saber.
        Pela primeira vez, percebeu uma nota de alteração na voz de Luke:
        — Vamos embora antes que eles apareçam. Podemos ir no seu carro. Continuaremos conversando durante a viagem. Você terá a chance de persuadir Julian a mudar de idéia.
        Julian falou:
         — Por favor, Theo, venha conosco. Nos ajude.
        Rolf disse impaciente:
        — Ele não tem escolha. Já sabe demais. Agora não podemos deixá-lo livre.
        Theo olhou para Julian, queria perguntar: — Este foi o homem que você e Deus escolheram para repovoar o planeta? Mas falou friamente:
        — Por Deus, não comece a me ameaçar. Você parece conseguir diminuir tudo isso a ponto de parecer um filme barato. Se eu for com vocês é porque escolhi isso.
        Uma por uma as velas foram apagadas e a capela retornou a sua paz.
        Rolf fechou a porta e eles começaram a cruzar o campo com cuidado, com Rolf na frente. Ele levava a lanterna e uma pequena lua movia-se brincalhona sobre a grama amarronzada, iluminando brevemente pequenas flores e buquês de margaridas em botão.
        Atrás de Rolf as duas mulheres caminhavam juntas, com Julian de braços dados com Miriam e Theo logo atrás.
        Não falavam, mas Theo percebeu que Luke gostou que ele viesse. Ele estava interessado em como ele pudesse estar tão fortemente possuído por sentimentos, por ondas de excitação e pavor e ainda assim, ser capaz de observar e analisar o efeito disso em seus atos e pensamentos. Estava interessado também, que conseguisse no meio de tudo, ainda ficar irritado. Mas a situação toda era um paradoxo. Poderia o propósito e o significado estarem tão em desacordo? Que tamanha importância desta empreitada em que embarcava pudesse ser para  frágeis e pateticamente inadequados aventureiros? Mas ele não precisava ser um deles.
        Sem armas eles não poderiam forçá-lo e ele ainda tinha as chaves do carro. Podia escapulir, telefonar para Xan e por um fim naquilo. Mas se o fizesse, Julian morreria. Ao menos pensava que sim e a convicção pode ser uma coisa poderosa suficiente para matar a ela e ao bebê. Já se sentia responsável pela morte de uma criança.
        E aquilo era o bastante.
        Quando chegaram no local onde estava estacionado o Rover, meio que esperava encontrar-se cercado pela polícia do estado, figuras de preto imóveis, olhos de pedra, armas prontas. Mas a vila estava deserta como quando eles partiram. Como conseguiram chegar ao carro ele decidiu que poderia fazer mais uma tentativa.
        Foi para Julian que ele disse:
         — Qualquer jeito que se sinta em relação ao Governador, qualquer que seja seu medo, deixe-me ligar para ele agora. Deixe-me falar com ele. Ele não é o demônio que pensa.
        Foi a voz de Rolf, irritado, que respondeu:
        — Você não desiste? Ela não quer sua proteção. Ela não acredita nas promessas dele. Vamos fazer o que planejamos fazer, ir tão longe quanto pudermos e achar abrigo. Roubaremos a comida que precisarmos até que a criança nasça.
        Miriam disse:
        — Theo, você não tem escolha. Em algum lugar há um lugar para nós, talvez uma cabana abandonada nas profundezas da floresta.
        Theo se virou para ela: — Idílico, não? Posso ver a cena. A pequena cabana numa clareira no meio de uma floresta remota, a fumaça saindo da chaminé, um rio de águas claras coelhos e passarinhos sentados à volta, esperando ser capturados, o jardim repleto de vegetais. Talvez algumas galinhas e uma cabra para prover leite. E sem dúvida os moradores anteriores terão deixado um berço.
        Miriam disse de novo calma mas firme, com os olhos fixos nele:
        — Theo, não temos opção.
        E nem ele. No momento que ficara de joelhos aos pés de Julian, e tinha sentido o bebê se mexer debaixo de sua mão, tinham seqüestrado-o irrevogavelmente. E eles precisavam dele.
        Rolf podia ter seus motivos mas precisava dele.
        Se o pior acontecesse, poderia interceder a favor junto a Xan. Se todos fossem presos, apenas a sua voz seria ouvida.
        Pegou as chaves no bolso. Rolf esticou a mão pedindo-as. Theo disse:
        — Eu dirijo. Vocês podem escolher a direção. Eu a seguirei e você pode usar o mapa, não?
        A zombaria não fora inteligente. A voz de Rolf era perigosamente clara:
        — Você nos despreza, não?
        — Não, por que deveria?
        — Você não precisa de uma razão. Você despreza o mundo todo exceto pelo seu povo, aqueles com a sua educação, seus privilégios, suas escolhas. Gascoigne era duas vezes mais homem que você. O que você fez da sua vida? O que fez, além de falar sobre o passado? Não me espanta que escolha museus como locais de encontro. Deve se sentir em casa. Gascoigne conseguia destruir uma rampa e acabar com um Quietus sozinho. Você consegue?
        — Usar explosivos? Não, admito que não está entre as minhas habilidades.
        Rolf imitou sua voz:
        — Eu admito que não está entre minhas habilidades. Você devia se ouvir. Você não é um de nós, nunca será. Não tem coragem. E não pense que realmente queremos você. Não pense que gostamos de você. Só está aqui por ser o primo do Governador e pode vir a ser útil.
        Ele usara o plural, mas todos sabiam de quem ele falava. Theo retrucou:
        — Se você admira Gascoigne tanto assim, por que então não confiou nele? Se você tivesse contado sobre o bebê ele não teria desobedecido ordens. Posso não ser um de vocês, mas ele era. Tinha o direito de saber. Você é responsável por ele ter sido capturado e se estiver morto, é responsabilidade sua tal morte. Não me culpe se você está se sentindo culpado.
        Ele sentiu a mão de Miriam em seu braço. Ela disse, autoritária:
        — Calma Theo.  Se brigarmos, estaremos mortos. Vamos embora, ok?
        No carro, Theo e Rolf sentaram-se nos bancos da frente. Theo perguntou: — Que direção?
        — Norte para oeste em direção a Wales. Será mais seguro. A ditadura do Governador chega até lá mas ele é mais odiado do que amado por lá. Nos moveremos à noite, dormiremos de dia. Seguiremos pelas rotas secundárias. É mais importante não ser detectado do que avançar muitos quilômetros. E eles procuram por este carro. Se pudermos, o trocaremos.
        Foi então que uma inspiração tocou Theo.
        Jasper. Jasper era tão convenientemente isolado e tão bem abastecido.
        Jasper que desesperadamente desejava morar com ele em St.John Street.
        — Tenho um amigo que vive fora de Asthall. Tem bastante comida guardada e acho que posso persuadi-lo a emprestar seu carro.
        — O que faz você pensar que ele vai concordar?
        — Tenho algo que ele deseja e eu posso dar a ele.
        — Não temos tempo a perder.. Quanto tempo esta sua persuasão leva?
        Theo controlou sua irritação e disse:
        — Conseguir um carro novo e estocar nele toda comida que precisamos não é perda de tempo. Eu diria que é essencial. Mas se tiver uma sugestão melhor, vamos ouvir.
        Rolf falou:
        — Ok, vamos lá!
        Theo pisou o acelerador e cuidadosamente dirigiu através da escuridão.
        Quando chegaram nas cercanias de Asthall disse:
        — Pegaremos seu carro e deixaremos o meu na garagem. Com sorte levarão tempo para achá-lo. E posso prometer, eu acho, que ele não vai falar nada.
        Julian, acomodada atrás disse:
         — Não estará colocando seu amigo em perigo? Não queremos fazer isso.
        Rolf disse impaciente:
         — Ele terá que fazer suas escolhas.
        Theo disse para Julian:
        — Se formos pegos, tudo que eles terão para ligá-lo conosco será o carro. Ele pode dizer que foi roubado durante a noite, que nós roubamos ou que o forçamos a cooperar.
        Rolf falou: — Suponha que ele não coopere? É melhor que eu vá com você para ver se ele coopera.
        — Pela força? Não seja bobo. Quanto tempo permaneceria em silêncio depois disso? Ele vai cooperar, mas não se você começar a ameaçá-lo. Preciso que alguém vá comigo e levarei Miriam.
        — Por que ela?
        — Ela sabe o que é necessário para fazer um parto.
        Rolf não disse mais nada.
        Theo pensava se devia tratar Rolf com bastante tato, então sentiu ressentir-se pela arrogância que o fazia precisar agir assim. Mas, de qualquer maneira, devia evitar um embate. Comparada a segurança de Julian, o caráter mais importante daquela empreitada, sua crescente irritação com Rolf parecia uma indulgência trivial mas perigosa. Estava com eles por que escolhera estar, de fato, não tinha saída.
        Era para Julian e seu filho não nascido que ele devia dedicar-se.
        Quando ergueu a mão para pressionar a campainha do portão viu para sua surpresa que estava aberto.
        Acenou para Miriam e eles entraram juntos. Fechou o portão atrás de si.
        A casa estava escura exceto pela sala de estar. As cortinas puxadas, mas com uma nesga de luz saindo de lá.
        Viu que a garagem também estava destrancada, o portão levantado e a traseira escura do Renault estacionado dentro. Não ficou surpreso por encontrar a porta lateral aberta. Acendeu a luz no interruptor do corredor, e chamou, mas sem resposta. Com Miriam ao lado, caminhou até a sala.
        Assim que abriu a porta já sabia o que iria encontrar. O fedor chocou-o, forte e perturbador como contágio: Sangue, fezes, a marca da morte.
        Jasper se colocara confortável para o ato final de sua vida.
        Estava sentado na poltrona frente ao fogo apagado da lareira, as mãos penduradas nos braços largados.
        O método escolhido fora certeiro e catastrófico. Colocara o revólver na boca e disparara arrancando o topo da cabeça. Os restos estavam espalhados pelo seu peito onde havia uma língua escura de sangue marrom semelhante a vômito. Era canhoto e a arma repousara no chão junto da cadeira, debaixo de uma mesa pequena onde estavam as chaves de casa e do carro, um copo vazio, uma garrafa vazia de claret e uma nota escrita a mão, a primeira parte em latim.
        “Quid te exempta iuvat spinis de pluribus una? Vivere si recte nescis, decede peritis. Lusisti satis, edisti satis atque bibisti: Tempus abire tibi est.”
        Miriam aproximou-se e o tocou com dedos frios em uma instintiva e fútil gesto de compaixão.
        Disse:
         — Pobre homem. Pobre homem.
        — Rolf diria que ele nos prestou um serviço. Não gastaremos tempo persuadindo-o.
        — Por que fez isso? O que diz a nota?
        — É uma frase de Horácio. Diz que não há prazer em livrar-se de um espinho entre tantos. Se não pode viver bem, desista. Provavelmente achou-o no Dicionário Oxford de citações em latim.
        O trecho em inglês era curto e direto:
        — Peço desculpas pela bagunça. Sobrou uma bala na arma.
        Era, pensou Theo, um alerta ou um convite? E o que o levara a isso? Remorso, tristeza, solidão, desespero ou a certeza de que aquele espinho seria arrancado, mas a dor permanecia e o que o passado podia curar?
        Disse:
        — Vai provavelmente encontrar cobertores no andar de cima. Eu verei o armazém.
        Estava satisfeito por estar vestindo seu casaco comprido. O bolso de dentro facilmente recebeu o revolver.
        Checou que havia uma bala na câmara, removeu-a e guardou ambas no bolso.
        A cozinha com seus potes arrumados e alinhados era suja, mas bem ordenada, sem nenhum sinal de ter sido usada exceto por uma toalha para chá, dobrada e recentemente lavada, deixada no rack da pia.
        A única e discordante nota naquela precisava e caprichada ordem eram as duas esteiras grossas enroladas e deixadas contra a parede. Teria Jasper talvez pensado em se matar ali preocupado se o sangue não seria facilmente limpo do assoalho? Ou teria percebido a futilidade do último ato em preservar de forma obsessiva as aparências?
        A porta do depósito estava destrancada.
        Depois de 25 anos de economia, não se atrevendo a colocar em risco seu tesouro, ele tinha o deixado aberto, tinha deixado aberta sua vida para espoliadores anônimos.
        Ali tudo estava em ordem. As prateleiras de madeira suportavam largas caixas seladas com fita.
        Cada uma delas estava etiquetada com a caligrafia elegante de Jasper:
        Carne, Frutas em caldas, Leite em pó, Açúcar, Café, Arroz, Chá, Farinha.
        A visão dos rótulos, as letras meticulosamente escritas, provocaram em Theo um espasmo de compaixão, dor e desconforto, uma onda de piedade e pesar, que a visão do borrifo do cérebro e sangue de Jasper não conseguira provocar.  Deixou se levar um pouco por aquilo e então se concentrou no trabalho. Seu pensamento inicial foi fazer uma seleção das coisas que mais precisaria, ao menos na primeira semana, mas disse para si mesmo que não tinha tempo para tal. Tirar a fita já o ocuparia, melhor seria fazer uma seleção sem abrir as caixas: carne, leite em pó, frutas secas, café, açúcar e vegetais em lata.
        As caixas menores onde se lia remédios e seringas, purificador de água e fósforos eram escolhas óbvias e uma bússola. Dois fogareiros de parafina representavam uma escolha mais difícil. Um era do tipo antigo, o outro mais moderno, desajeitado, com três queimadores, que rejeitou por ser grande demais. Se ocupou procurando óleo e gasolina. Esperava que o tanque do carro não estivesse vazio.
        Podia ouvir Miriam movendo-se rápida e quieta acima dele e assim que terminou de levar um segundo lote de caixas para o carro ele a encontrou descendo as escadas, trazendo 4 travesseiros.
        Ela disse:
        — Ao menos ficaremos confortáveis.
        — Já encontrou tudo que precisava?
        — Algumas toalhas e lençóis de solteiro. Podemos usar os travesseiros como assento. Tinha um armário de medicamentos no quarto de dormir, peguei tudo que achei e coloquei em uma fronha. O desinfetante será útil, mas a maioria são remédios simples, aspirina, bicarbonato, xarope para tosse. Esse lugar tem de tudo. Uma pena que não podemos ficar aqui.
        Não era, ele sabia, uma sugestão de verdade, mas ele a considerou.
        — Uma vez que eles descubram que desapareci, este será um dos lugares que irão me procurar. Todas as pessoas que conheço serão visitadas e questionadas.
        Trabalharam juntos e silenciosamente, metodicamente. O porta-malas ficou cheio então ele o fechou e disse:
        — Vou colocar o carro na garagem e trancar. Fecharei o outro portão também. Não vai manter a polícia de fora, mas pode prevenir uma descoberta prematura.
        Assim que fechou a porta da cabana, Miriam o segurou pelo braço e disse:
        — A arma. Melhor não deixar Rolf saber que você a tem.
        Não tinha a intenção de deixá-lo saber.
        — Melhor não dizer para Julian também.  Rolf poderia tentar tirá-la de você e Julian iria querer que você a jogasse fora.
        Ele disse breve:
        — Não pretendo contar para eles. E se Julian quer proteger a si e sua criação vai precisar de mais do que coragem. Ou ela acha que seu Deus o fará?
        Cuidadosamente dirigiu o Renault para fora do portão, estacionou atrás do Rover. Rolf, ao lado do carro, estava indignado.
        — Que demora! Teve problemas?
        — Não. Jasper está morto, suicídio. Pegamos tudo que o carro consegue carregar. Leve o Rover para a garagem e eu a fecharei e também o portão. Já tranquei a casa.
        Não havia nada que valesse a pena levar do Rover para o Renault exceto os mapas das estradas e um livro que encontrara no porta-luva. Colocou o livro no bolso de dentro do casaco, com o revólver e seu diário.
        Dois minutos depois estavam todos juntos no Renault. Theo sentou-se ao assento do motorista.
        Rolf, depois de hesitar, sentou-se ao lado dele. Julian estava sentada atrás entre Miriam e Luke. Theo fechou o portão e atirou longe a chave. Não podia se ver nada na casa as escuras exceto o declive do telhado escuro.
        Na primeira hora de viagem tiveram que parar das vezes para Miriam e Julian desaparecerem na escuridão.
        Rolf tentava segui-las apertando os olhos, uma vez que estavam fora de vista. Em resposta a sua impaciência obvia, Miriam disse:
         — Isso acontece no começo da gravidez. A pressão na bexiga.
        Na terceira parada, todos saíram para esticar as pernas e Luke também, com uma desculpa resmungada, sumiu no mato. Com o motor desligado e as luzes apagadas o silêncio parecia absoluto. O ar era morno e doce como se fosse verão ainda e as estrelas brilhavam distantes. Theo achou poder sentir o odor de um campo de vagens, mas estava certo de que era uma ilusão, as flores já estavam desabrochadas agora.
        Rolf chegou junto dele: — Você e eu temos que conversar.
         — Então fale.
        — Não podemos ter dois líderes nesta expedição.
        — Expedição, é isso que é? Cinco fugitivos mal equipados, sem idéia de onde ir ou o que fazer quando lá chegar. Dificilmente precisamos de um líder para isso, mas se lhe satisfaz, ser chamado de líder, não me aborrece contando que isso não signifique uma obediência sem questionamento.
        — Você não é parte de nosso grupo, nunca será. Teve sua chance e virou-nos as costas. Só está aqui por que eu quis assim.
        — Só estou aqui por que Julian quer assim. Estamos presos uns aos outros. Não tenho escolha. Eu sugiro que você exercite similar tolerância.
        — Quero dirigir. Então, como se não tivesse sido claro o bastante disse:
        — Quero dirigir daqui em diante.
        Theo riu, espontâneo e genuinamente.
        — O bebê de Julian será saudado como um milagre. Você será saudado como o pai do milagre. O novo Adão, origem de uma nova raça, o salvador da humanidade. É poder suficiente para um homem - mais poder, eu suponho, do que você é capaz de lidar. E você está aborrecido por não ter sua parte em dirigir o carro!
        Rolf parou antes de responder:
         — Certo, faremos um acordo. Talvez eu possa usar você . O Governador achava que você tinha alguma serventia para ele. Eu posso querer um conselheiro também.
        — Parece que eu sou um confidente universal. Provavelmente ficará insatisfeito como ele ficou.
        Theo ficou quieto por um momento e disse:
        — Então está pensando em assumir o comando?
        — Por que não? Se querem meu esperma, eles vão precisar de mim. Não podem ter um sem o outro. Posso fazer o serviço tão bem quanto ele.
        — Acho que seu grupo pensa que ele não faz bem seu serviço, que ele é um tirano sem piedade. Então você está propondo ficar em seu lugar, substituindo um tirano por outro. Benevolente desta vez, eu suponho. A maioria deles começa assim.
        Rolf não respondeu.
        Theo pensou: Estamos sozinhos. Ele usou a chance de falar comigo sem os outros estarem presentes.
        Disse:
        — Olhe, ainda acho que devíamos telefonar para o Governador, dar a Julian os cuidados que necessita. Você sabe que é a única coisa sensata a fazer.
        — E você sabe que ela não concorda com isso. Ela ficará bem. Dar a luz é algo natural, não é? E ela tem uma parteira com ela.
        — Que não ajuda em um parto faz vinte e cinco anos. E sempre tem a chance de ocorrerem complicações.
        — Não vai acontecer, Miriam não está preocupada com isso. De qualquer jeito, ela estará em mais perigo se for levada a força para um hospital. Ela morre de medo do Governador, ela pensa que ele é o demônio. Ele matou o irmão de Miriam e provavelmente vai matar Gascoigne também. Ela fica aterrorizada em pensar no mal que ele faria ao seu bebê.
        — Isso é ridículo! Nem eu nem você acreditamos nisso! É a última coisa que ele faria. Uma vez que ele tenha a posse do bebê, seu poder será imenso, não apenas na Bretanha, mas no mundo.
        — Seu poder não, meu! Não estou preocupado com a segurança dela. O Conselho não fará mal a ela ou ao bebê. Mas serei eu, e não Xan Lyppiatt, quem apresentará minha criança para o mundo, então eles saberão quem é o Governador da Grã-Bretanha.
        — Então quais são seus planos?
        — O que quer dizer?
        A voz de Rolf era carregada de suspeita.
        — Bem, você deve ter uma idéia do que planeja fazer, assim que tirar o poder do Governador.
        — Não será uma questão de tirar seu poder, o povo o dará para mim. Eles vão querer repopular a Inglaterra.
        — Entendo. O povo vai lhe dar. Bem, digamos que esteja certo. E daí?
        — Montarei meu próprio Conselho, sem Xan Lyppiatt como membro. Ele já teve sua fatia de poder.
        — Provavelmente você fará algo para pacificar a ilha penal.
        — É difícil que isso vá ser uma das prioridades. O país não vai me agradecer por soltar um bando de psicopatas criminosos. Esperarei até que se reduzam a poucos. O problema então se resolverá sozinho.
        Theo disse:
        — Acho que Lyppiatt pensa assim também. Não deve agradar muito a Miriam esta idéia.
        — Não tenho que agradar Miriam. Ela tem um trabalho a fazer, e será recompensada apropriadamente.
        — E os forasteiros? Está planejando um tratamento mais digno para eles, ou irá parar com a imigração de novos forasteiros? Afinal, seus próprios países precisam deles.
        — Vou tomar conta disso e garantirei, para que aqueles que entrarem, terem o tratamento justo.
        — Imagino que é o que o Governador pensa que está fazendo. E sobre o Quietus?
        — Não vou interferir com a liberdade das pessoas em se matar do jeito que for mais conveniente.
        — O Governador concordaria com isso.
        Rolf disse:
        — O que eu posso fazer, e ele não, é ser o pai de uma nova raça. Já temos os detalhes da saúde de todas as mulheres com trinta e poucos anos no computador. Vai haver uma tremenda competição por esperma fértil. Obviamente existe um perigo na fertilização. Teremos que selecionar cuidadosamente por aspectos de saúde e inteligência.
        — O Governador aprovaria. Este era seu plano.
        — Mas ele não tem o esperma. Eu tenho.
        Theo disse:
        — Tem uma coisa que aparentemente não considerou. Dependerá do que vai nascer, não? A criança terá que ser normal e saudável. Suponha que ela esteja carregando um monstro?
        — Por que seria um monstro? Por que não seria normal, meu filho e seus herdeiros?
        O momento de vulnerabilidade, de troca de confidências, de dar voz a um medo secreto, provocou em Theo um segundo de simpatia. Não o bastante para o fazer apreciar de sua companhia; mas o bastante para impedi-lo de falar aquilo que lhe vinha na mente: Vai ter sorte se a sua criança for um anormal, deformada, um idiota, um monstro. Se for saudável, você será um fecundador, um animal para experimentos pelo resto da vida. Você imagina que o Governador irá desistir de seu poder em favor do pai da nova raça? Podem precisar de seu esperma, mas podem conseguir o bastante para povoar a Inglaterra e metade do mundo e então decidir que não precisam de você. Uma ver que for visto como uma ameaça, isso é o que provavelmente ocorrerá.
        Mas não disse nada.
        Três figuras surgiram do escuro, Luke primeiro, depois Miriam e Julian, de mãos dadas, caminhando com cuidado sobre o terreno irregular verde.
        Rolf assumiu a direção: — Ok, vamos embora! A parir de agora estarei dirigindo.
        Assim que partiram, Theo percebeu que Rolf dirigiria muito veloz.
        Olhou para ele, imaginando se tinha idéia do risco.
        No facho dos faróis, a estrada pustulenta parecia lúgubre e alienígena como uma paisagem lunar, até misteriosamente remota e eterna.
        Rolf conduzia com a intensidade de um piloto de rally, virando o volante com firmeza a cada obstrução da pista que surgia da escuridão. O caminho, com suas crateras, saliências e depressões, seria perigoso mesmo para um motorista cuidadoso. Rolf tinha um jeito brutal de lidar, o carro saltava como um animal, balançando os três passageiros da traseira, de um lado para outro.
         Miriam se curvou para frente e disse:
        — Calma, Rolf. Vai devagar. Isso não é bom para Julian. Você quer um parto prematuro?
        Sua voz era calma, mas com uma autoridade concreta, e fez efeito imediato em Rolf que deu uma folga ao pé no acelerador.
        Mas foi tarde demais.
        O carro estremeceu e foi arremessado, numa guinada violenta por segundos sem controle.
        Rolf pressionou o freio e eles pararam.
        Quase sem fôlego, ele disse:
        — Maldição. O pneu furou.
        Não havia motivos para recriminações.
        Theo desfez-se do cinto de segurança.
        — Tem um pneu reserva na traseira. Vamos tirar o carro da estrada.
        Saíram e permaneceram na escuridão de um abrigo natural enquanto Rolf empurrava o carro para cima do gramado. Theo percebeu que estavam nos arredores de um povoado, talvez, pensou, uns dez quilômetros até Stratford.
        Julian, enrolada em seu manto, permanecia calma e silenciosa, como uma criança dócil em um piquenique e esperando pacientemente para que um percalço menor fosse resolvido pelos adultos.
        A voz de Miriam era tranqüilizadora, mas com uma nota de ansiedade: — Vai demorar muito?
        Rolf olhava ao redor e disse:
        — Uns vinte minutos, ou menos se tivermos sorte, mas ficaremos seguros fora da estrada, onde não podemos ser vistos.
        Sem mais, caminhou se afastando. Eles aguardavam com os olhos fixos nele. Depois de quase um minuto, ele voltava da escuridão:
        — Uns duzentos metros a frente tem um portão e uma trilha irregular. Ficaremos seguros lá. Sabe Deus que esta estrada é praticamente intransitável, mas se pudermos passar por ela, outros também podem. Não podemos nos arriscar que algum tolo pare e nos ofereça ajuda.
        Miriam reclamou:
        — O quão longe estamos? Não podemos ir muito longe a pé e será difícil ficarmos no acostamento.
        Rolf falou:
         — Temos que permanecer escondidos. Não sei quanto tempo vai levar para fazer o trabalho. Temos que ficar fora da vista da estrada.
        Theo concordou com ele em silêncio. Era mais importante permanecer escondido do que cobrir muita distância.
        A polícia não tinha idéia da direção que viajavam e a não ser que tivessem já descoberto o corpo de Jasper, não tinham o modelo ou a placa do carro. Sentou-se no assento do motorista e Rolf não fez objeção.
        Rolf disse:
        — Com todo este suprimento na mala, precisaremos aliviar o peso. Julian pode ficar dentro do carro, o resto irá andando.
        O portão e a trilha estavam mais perto do que Theo esperava.
        O caminho seguia gentilmente para cima ao longo do topo de um campo não lavrado, obviamente deixado para ser semeado à muito tempo atrás.
        O caminho estava ainda marcado pelos sulcos dos pneus de máquinas pesadas, o cume central tomado pela grama alta que se movia como frágeis antenas.
        Theo dirigia vagarosamente e com grande atenção, com Julian sentada ao seu lado.
        As três figuras silenciosas seguiam ao redor nas sombras da noite.
        Chegaram a um local onde as árvores densamente ofereciam uma proteção e esconderijo, mas era o fim.
        Entre o caminho e elas, um profundo regato de mais de seis metros.
        Rolf colocou a cabeça pela janela do carro e disse:
        — Espere um pouco aqui—  e afastou-se seguindo a frente.
        Depois voltou e disse:
        — Tem um jeito de passar, trinta metros daqui. Parece que vai dar num tipo de clareira.
        A entrada pela floresta era uma ponte estreita feita de toras e terra e coberta por mato quase. Theo viu com alivio que era larga o bastante para o carro, mas esperou por Rolf com a lanterna, inspecionar as toras para ter certeza de que não se partiriam. Fez um sinal e Theo manobrou o carro pela ponte com pequena dificuldade. O carro seguiu tranqüilamente entre as árvores torcidas, as copas tombando em arco em um dossel de folhas douradas, intricadas como um telhado esculpido a mão.
        Saindo dali, Theo viu que chegavam a uma parada coberta de folhas mortas e mato.
        Theo e Rolf se encarregaram do pneu furado, com Miriam segurando a lanterna.
        Luke e Julian, juntos no silêncio, observavam calados enquanto Rolf lidava com a chave de rodas e o macaco. Mas remover o pneu foi bem mais complicado do que Theo esperava. Os parafusos estavam bem apertados e nem ele ou Rolf conseguiram soltá-los.
        O facho da lanterna movia-se erraticamente, enquanto Miriam buscava uma posição mais confortável.
        — Por Deus, segure direito. Não consigo ver o que estou fazendo!  reclamou Rolf impaciente.
        Um segundo depois a luz se apagou.
        Miriam não aguardou pela pergunta e disse:
        — Não temos outra bateria. Desculpe, teremos que ficar por aqui até amanhecer.
        Theo esperava que Rolf explodisse. Mas não aconteceu. Ao invés disso, ele disse:
        — Podemos aproveitar para comer alguma coisa e nos arranjarmos confortavelmente para a noite.
        Theo e Rolf escolheram dormir no chão e os outros três dentro do carro, Luke no banco da frente e as duas mulheres atrás. Theo recolheu algumas folhas para cobrir o chão, colocando sobre elas a capa de chuva de Jasper e cobriu-se com um cobertor. Sua última lembrança consciente foi o som distante de vozes femininas, pouco antes de pegar no sono. Antes disso, o vento se tornara forte, não o bastante para agitar os galhos sobre sua cabeça mas fazia um som como se a floresta despertasse.
        Na manhã seguinte ele abriu os olhos para a cama de folhas cor de bronze, iluminadas por uma luz leitosa. Sentia a dureza do chão, o cheiro de lama e folhas pungente e estranhamente confortante.
        Saiu debaixo da coberta pesada sentindo os ombros e as costas doerem.
        Surpreendera-se por conseguir dormir tão profundamente numa cama que a princípio era bem macia, mas compactada sob seu peso parecia agora uma tábua.
        Parecia ter sido o último a acordar.
        As portas do carro estavam abertas e os bancos vazios.
        Alguém já preparara o chá matinal. Sobre uma face plana de um tronco se viam cinco xícaras, todas da coleção de Jasper, xícaras da coroação, e um bule de metal para chá.
        As xícaras coloridas pareciam curiosamente festivas.
        Rolf disse: — Sirva-se.
        Miriam, com um travesseiro em cada mão, os batia vigorosamente. Levou-os de volta ao carro, onde Rolf já começara a trabalhar no pneu.
        Theo bebeu o chá e depois foi ajudá-lo, dois homens trabalhando juntos, com eficiência de companheiros.
        As mãos grandes de dedos grossos de Rolf eram bastante ágeis.
        Talvez por estarem descansados, sem nenhuma ansiedade e não dependessem mais do foco de luz, aquelas porcas antes intratáveis não resistiram agora ao esforço conjunto.
        Limpando suas mãos em algumas folhas, Theo perguntou:
        — Onde estão Julian e Luke?
        Rolf respondeu: — Fazendo suas orações. Fazem isso todos os dias. Quando voltarem faremos um desjejum. Deixei Luke encarregado das rações. É bom que tenha algo mais útil para fazer do que ficar rezando com minha esposa.
        — Por que não oram aqui? Devemos ficar juntos.
        — Não foram longe. Gostam de alguma privacidade. De qualquer modo, não pude detê-los. Julian gosta disso e Miriam me disse que tenho que mantê-la calma e contente. É um tipo de ritual para eles. Não faz qualquer mal. Por que não vai se juntar a eles se está tão preocupado?
        Theo disse:
        — Acho que não me querem com eles.
        — Não sei, talvez queiram. Podem querer converter você. Você é cristão?
        — Não, não sou cristão.
        — Então acredita no quê?
        — Acreditar em quê?
        — Nas coisas que gente religiosa pensa ser importante. Que existe um Deus. Como explica o mal? O que acontece quando morremos? Por que estamos aqui? Como devemos viver nossas vidas?
        Theo disse:
         — A última é a única que importa. Não tem que ser religioso para isso. E não precisa ser católico para encontrar uma resposta.
        Rolf virou-se para ele e perguntou como se realmente quisesse saber:
        — Mas no que você acredita? Não quero dizer religião. Do que você tem certeza?
        — Que ontem eu não existia e agora existo. E que um dia não mais existirei.
        Rolf deu uma risada curta, rude e curta:
        — É certo. Ninguém pode dizer o contrário. No que ele acredita, o Governador da Bretanha?
        — Não sei, nunca falamos sobre isso.
        Miriam veio, sentando-se com as costas no carro, esticou as pernas, fechou os olhos, sorrindo para o céu, ouvindo sem falar.
        Rolf disse:
        — Costumava acreditar em Deus e no Diabo e então numa manhã, quando tinha doze anos, perdi a minha fé. Acordei e descobri que não conseguiria acreditar em nada que os irmãos diziam. Acho que se algo acontecesse, eu sentiria medo de continuar vivendo, mas não fez nenhuma diferença. Uma noite, fui para cama acreditando. e na manhã seguinte acordei sem acreditar em nada. Nem podia dizer para Deus que estava arrependida, por que Ele não estava mais lá. E ainda não fazia diferença. Não fez mais, desde então.
        Miriam disse sem abrir os olhos: — O que você colocou em Seu lugar vazio?
        — Não há este lugar vazio. É isso que estou dizendo.
        — E sobre o Diabo?
        — Eu acredito no Governador da Bretanha. Ele existe. Ele é diabólico o bastante para mim, isso basta.
        Theo afastou-se deles e seguiu pelo caminho estreito entre as árvores. Ainda não estava confortável com a ausência de Julian, inquieto e com raiva. Ela devia saber que precisavam ficar juntos, precisavam saber que alguém, um lenhador, um trabalhador rural, poderia vir pelo caminho e vê-los. Não era somente a polícia e os granadeiros que deviam ser temidos. Sabia estar alimentando sua irritação com pensamentos irracionais. Quem naquele lugar deserto poderia surpreendê-los?
        E então os viu. Apenas a cinqüenta metros da clareira e do carro, de joelhos em um pequeno carpete verde de musgo.
        Totalmente absorvidos, Luke havia construído seu altar, uma das caixas de metal virada e coberta com uma toalha de mesa. Sobre ela, um pires e neste uma vela. Junto disso, outro pires com duas fatias de pão e uma pequena xícara. Ele vestia uma estola cor de creme. Theo imaginou se ele a levara no bolso este tempo todo. Estavam distraídos, sequer perceberam sua presença e lembravam duas crianças totalmente absorvidas em algum jogo primitivo; as faces sérias, escurecidas nas sombras dos galhos.
        Viu Luke erguer as mãos e colocar a palma direita sobre Julian, curvada com o rosto quase até o chão.
        As palavras lembravam-no de sua distante infância, quando eram ditas bem baixo, mas que vinham a Theo claramente:
        — Ouça-nos, ó piedoso Pai, ...receba estas criaturas de pão e vinho... em lembrança de sua morte e paixão... aquele em que na mesma noite traído, aceite o pão...
        Ficou ali escondido ao abrigo das árvores observando.
        Em sua memória estava de volta a pequena igreja em Surrey, em seu traje azul dos domingos, Mister Greenstreet, com seu convencimento sob controle, conduzindo a congregação, de banco em banco na fila da comunhão.
        Lembrava de sua mãe com a cabeça curvada.
        Se sentia excluído entre eles e se sentia excluído agora.
        Escapando entre as árvores, voltou para a clareira.
        Disse:
        — Eles estão acabando. Não demoram muito.
        Rolf falou: — Nunca demoram. Podemos ter nosso café com eles. Suponho que devíamos estar agradecidos por Luke não querer nos premiar com seu sermão.
        Sua voz e seu sorriso eram indulgentes. 
        Theo pensou sobre seu relacionamento com Luke, parecia tolerá-lo como se fosse uma criança mimada que seria incapaz de contribuir como adulto, mas que se esforçava e não dava trabalho. Ou somente era indulgente com as fantasias de uma mulher grávida? Se Julian necessitasse dos serviços de um capelão pessoal então Rolf estava inclinado em aceitar e incluir Luke nos Cinco Peixes mesmo que não tivesse nenhuma habilidade com a qual pudesse contribuir. Ou será que Rolf guardava um vestígio de sua completa rejeição a religião de sua infância, a ponto de manter certa superstição? Será que ele o via como um tipo milagroso que pudesse transformar pedaços de pão seco em carne, trazer sorte ou possuir poderes místicos, que pudesse com sua presença entre eles, protegê-los dos perigos da floresta e da noite?
       
        
       
      Sexta-feira, 15 de Outubro de 2021.
       
        Escrevo sentado num toco de madeira, com as costas contra uma árvore. É tarde e as sombras começam a ganhar tamanho, mas no interior do bosque o calor do dia ainda permanece. Tenho a convicção que este será o último dos apontamentos que farei, mas mesmo que estas palavras não sobrevivam, preciso registrar este dia que tem sido de uma extraordinária felicidade, e eu o passei com quatro desconhecidos. Nos anos antes do Ômega, no começo de cada ano acadêmico, costumava escrever algo para ser lido para os alunos admitidos no colégio. Este registro, com uma fotografia de seu formulário, guardava no arquivo. Ao final dos três anos sempre me interessava em olhar como este retrato a pena fora acurado, o quanto eles haviam mudado, como eu não tinha poderes em alterar sua natureza essencial. Eu raramente estava errado sobre eles.
        O exercício reforçava minha confiança natural no meu julgamento, talvez este fosse seu propósito.
        Eu acreditava poder conhecê-los tão bem quanto eles se conheciam.
        Eu não sentia isso sobre meus companheiros de fuga.
        Ainda não sabia nada praticamente sobre eles, suas famílias, pais, sua educação, amores, esperanças e desejos. Ainda assim nunca me sentira tão à vontade com outros seres humanos como hoje com aqueles quatro estranhos a quem eu ainda um tanto relutante, aprendi a apreciá-los.
        Era um dia perfeito de outono, o céu de claro azul sem nuvens, a luz do sol quente, porém gentil de junho, o ar perfumado e doce, carregando a ilusão de queima de madeira e feno recolhido, as lembranças agradáveis do verão. Talvez por conta do bosque ser tão isolado, tão fechado, nós compartilhávamos uma sensação de absoluta segurança. Ocupávamos nosso tempo fazendo pequenas coisas, conversando, jogando jogos bobos com pedras e pedaços de papel rasgados do meu diário.
        Rolf verificava e limpava o carro. Olhando com atenção cada centímetro, limpando e polindo-o com energia, era quase impossível acreditar que aquele sujeito trabalhando inocentemente numa tarefa mecânica por simples prazer de realizá-lo, era o mesmo Rolf que ontem havia exibido com tanta arrogância sua fria ambição.
        Luke ocupava-se das conservas.
        Rolf mostrara alguma liderança natural em dar a ele esta responsabilidade.
        Luke decidia que iríamos comer primeiro os alimentos mais frescos e depois as conservas a partir da ordem das datas de validade, exibindo obviamente sua sensível confiança em suas habilidades administrativas. 
        Ele tinha colocados os alimentos em ordem, feito listas, escrito cardápios.
        Depois de comermos, ele se sentava com seu livro de preces ou vinha se juntar a Miriam e Julian enquanto eu lia para elas.
        Deitado de costas nos bancos de folhas e com os olhos fechados apontando o céu azul, sentia um prazer inocente, como se estivéssemos num piquenique.
        Nós estávamos num piquenique.
        Não discutíamos planos para o futuro ou dos perigos pela frente.
        Agora aquilo parecia extraordinário para mim, mas achava ser menos uma decisão consciente, não planejar ou discutir, do que um desejo de não perturbar aquele dia. E não gastei meu tempo relendo as notas antigas do diário. Na minha presente euforia não desejava reencontrar aquele homem cínico e solitário.
        O diário não tinha sequer dez meses e depois de hoje eu já não teria uso para ele.
        A luz estava se indo e agora mal conseguia ver a página. Numa outra hora qualquer deveremos voltar a nossa jornada. O carro, brilhando sob os cuidados de Rolf, estava abastecido e pronto.
        Assim como me sentia confiante para dizer que este seria a última anotação no diário, sabia que estávamos prestes a ficar frente a frente com perigos e horrores inimagináveis agora para mim.
        Nunca fora um supersticioso, mas esta certeza não podia ser discutida.
        Acredite, ainda assim estava em paz.
        Estava feliz por podermos ter tido aquelas horas felizes e inocentes, a despeito do tempo inexorável.
        Nesta tarde, enquanto limpava o banco de trás do carro, Miriam achara uma segunda lanterna, pouco maior que uma caneta, caída atrás do assento. Não era adequada para substituir a outra que não funcionava, mas seria útil.
        Nós precisávamos daquele dia.
        O relógio do painel do carro mostrava cinco para as três, mais tarde do que Theo pensava ser.
        A estrada, estreita e deserta, mostrava-se pálida a frente deles. A sua superfície estava deteriorada e de tempos em tempos o carro pulava violentamente assim que caiam em uma cratera.
        Era impossível dirigir rápido naquela estrada, ele não devia se expor ao risco de um segundo estouro de pneu.
        A noite era escura, mas não totalmente; a lua minguante imprensada por nuvens. Poucas estrelas brilhando, quase formando constelações, a Via Láctea era uma mancha de luz.
        O carro, facilmente manobrável, era um refúgio móvel, aquecido pelo hálito, cheirando a odores familiares, coisas reconhecíveis, gasolina, corpos humanos, o velho cão de Jasper, até um leve aroma de hortelã.
        Rolf estava ao seu lado, silencioso, mas tenso, olhando para frente.
        No banco de trás, Julian sentara entre Miriam e Luke. Era o assento menos confortável, mas ela o escolhera, talvez por estar delimitada entre dois corpos tivesse a ilusão de estar melhor amparada.
        Seus olhos estavam fechados, a cabeça apoiada no ombro de Miriam. Então, enquanto olhava pelo retrovisor, viu-a se mexer e Miriam gentilmente, a colocou em uma posição mais confortável.
        Luke também, aparentemente dormindo, dormia com a cabeça pendendo e a boca aberta.
        A estrada se tornou repleta de curvas, mas a superfície era bem melhor. 
        Theo gozava daquele período de paz, confiante nas muitas horas dirigindo sem problemas.
        Afinal, a jornada não precisava ser desastrosa.
        Gascoigne poderia ter falado, mas ele não sabia sobre o bebê.
        Aos olhos de Xan, os Cinco Peixes eram somente um pequeno e desprezível bando de amadores.
        Ele sequer devia se importar em procurá-los.
        Pela primeira vez, desde o inicio da jornada, parecia haver um crescer de esperança nele.
        Então ele viu a carroça tombada há tempo e freou bruscamente, um momento antes do carro parar raspando. Rolf despertou.
        Theo desligou o motor.
        Houve um momento de silêncio em que dois pensamentos quase instantaneamente o trouxeram de volta sua plena consciência.
        O primeiro foi alívio, o caminhão não parecia pesado, apesar das folhas de outono.
        Ele e outro homem podiam provavelmente tirá-lo sem problemas.
        O segundo pensamento foi de terror.
        Não poderia ter tombado tão inconveniente, não havia ocorrido tempestades recentes e aquilo tinha que ser deliberado.
        Naquele segundo os Ômegas os cercaram.
        Vieram primeiro silenciosos.
        Em cada janela um rosto pintado apareceu olhando-os, iluminados por tochas.
        Miriam soltou um grito involuntário.
        Rolf berrava
         — Dê a marcha ré!  e tentou girar o volante.
        Theo engatou a ré.
        O motor voltou à vida e o carro saltou para trás. Bateram em algo com violência que o atirou para trás.
        Os Ômegas tinham agido com precisão e posto outra obstrução na pista, aprisionando-os.
        Os rostos estavam de volta à janela de novo.
        Ele olhava para dois olhos sem expressão, brilhantes, com pintura branca como numa mascara de azul, vermelho e amarelo.
        Acima da testa o cabelo estava preso num penteado excêntrico. Numa das mãos ele tinha uma tocha e na outra um cassetete decorado com tranças de cabelo. Theo lembrou com horror que havia lido que quando os Cara-Pintadas matavam, eles cortavam o cabelo da vitima para usar como troféu, um boato que ele apenas acreditara ser parte do folclore.
        Agora ele observava aquele pedaço de couro que tanto podia ter vindo da cabeça de um homem quanto de uma mulher.
        Ninguém no carro falava.
        O silêncio parecia estabelecer-se por minutos embora fossem apenas poucos segundos.
        Então a dança ritual começou. Com grandes saltos as figuras tomaram as cercanias do carro, batendo seus tacapes nos lados e no teto, um ritmo de tambor para as vozes que gritavam.
        Usavam apenas shorts e seus corpos estavam sem pintura. Os dorsos nus brancos como leite no brilho do fogo, as costelas aparentemente frágeis. As pernas se dobravam ao saltar, os ornamentos balançando nas cabeças, os rostos padronizados, de mesmas bocas e feições, tornava possível vê-los como uma gangue de crianças brincando seus jogos inocentes.
        Seria possível, pensou Theo, falar com eles, ser razoável com eles, estabelecer ao menos um reconhecimento da humanidade em comum? Não gastou mais tempo naquele pensamento.
        Ele se lembrou ter certa vez encontrado com uma de suas vítimas e um pedaço da conversa lhe voltou a mente: — Eles diziam que nos matariam como vitimas de sacrifício, naquela ocasião, mas graças a Deus, eles ficaram satisfeitos apenas com o carro. Não brinque com eles, abandone seu veiculo e corra.
        Para eles, escapar não seria fácil, presos a uma mulher grávida, seria impossível.
        Mas podia haver um fato que poderia convencer-lhes a não os matarem, se é que eram capazes de raciocinar e acreditar neles: A gravidez de Julian.
        A evidência disso era agora suficiente até para um Ômega. Mas não precisava perguntar a Julian para saber qual seria sua reação; não havia tentado escapar de Xan e do Conselho para cair nas mãos dos Cara-Pintadas. Olhou para Julian atrás.
        Estava sentada com a cabeça curvada. Presumivelmente rezando.
        Desejava a ela boa sorte com seu Deus.
        Os olhos de Miriam abertos tomados de terror. Era impossível ver o rosto de Luke, mas de seu assento Rolf gritava uma seqüência de obscenidades.
        A dança continuava, os corpos em convulsão cada vez mais rápidos, o canto mais alto. Era difícil saber quantos eram mas ele julgou que não passassem de uma dúzia. Não haviam tentado abrir os carros, mas as travas, ele sabia, não serviriam de nada. Eram em número bastante para virar o carro. E tinham tochas para colocarem fogo nele. Era uma questão de tempo até tentarem forçá-los a sair de dentro.
        Theo pensava em correr. Havia uma chance, pelo menos para Julian e Rolf? Através do caleidoscópio de corpos em movimento ele estudou o terreno. Para a esquerda havia um muro baixo de pedras, em ruínas, de uns três metros de altura. Atrás dele, uma barreira de árvores escuras.
        Ele tinha uma arma, uma única bala, mas sabia que apenas mostrar a arma causaria impacto. Ele poderia apenas matar um deles, o resto cairia sobre ele com a fúria da retaliação. Seria um massacre. Não havia como pensar em usar a força física já que eram muitos. A escuridão era sua única esperança.
        Se Julian e Rolf chegassem até as árvores havia uma chance de conseguirem fugir. Se continuassem correndo, se batendo ruidosamente pelo campo escuro e desconhecido era um convite para a perseguição, mas também poderiam se esconder. O sucesso iria depender de quanto os Ômegas quisessem alcançá-los.
        Havia uma chance, mesmo que pequena, que eles se satisfizessem apenas com o caro e ainda assim lhes sobrariam três vitimas.
        Pensou: Eles não podem perceber o que estamos planejando, o que estamos falando.
        Os gritos quase abafavam seus pensamentos e seria o bastante para encobrir suas vozes. Seria necessário falar baixo para que os três na traseira pudessem ouvir, mas tinha que ter cuidado para não virar sua cabeça.
        Disse:
         — Eles vão conseguir nos pegar ao fim. Temos que planejar exatamente o que faremos. Vai depender de você, Rolf. Quando sairmos, pegue Julian e vá para aquele muro, salte e corra para as árvores e se escondam.
        O resto de nós vai tentar mantê-los ocupados.
        Rolf disse:
        — Como planeja dar cobertura? Como vai mantê-los ocupados?
        — Falando. Atraindo a atenção deles. Me juntando a eles na dança.
        A voz de Rolf era alta quase histérica: — Dançar com aqueles fudidos? Que tipo de piada você acha que isso é? Eles não falam. Esses desgraçados não falam e não dançam com suas vitimas. Eles matam.
        — Nós vamos fazer com que não seja Julian ou você.
        — Eles virão atrás de nós. Julian não consegue correr!
        — Duvido se tiverem que se ocupar com as outras três vitimas e o carro para queimar. Temos que escolher o momento certo. Leve Julian para cima do muro, então vão para as árvores. Entendido?
        — É loucura.
        — Se tem outra idéia, vamos ouvi-la!
        Depois de um instante, Rolf disse:
        — Podemos mostrar Julian para eles. Diga para eles que ela está grávida, vamos ver o que acontece. Diga que sou o pai. Podemos fazer um pacto com eles. Ao menos nos deixarão viver. Falemos agora antes que eles decidam nos arrastar para fora.
        Do banco de trás, Julian falou pela primeira vez. Disse claramente:
         — Não!
        Depois daquela simples palavra ninguém mais falou.
        Então Theo disse: — Eles nos farão sair ao fim. Ou colocarão fogo no carro. Por isso temos que planejar logo o que faremos. Se nos unirmos na dança, se não nos matarem antes, poderemos conseguir distraí-los tempo bastante para dar a você e Julian uma chance.
        A voz de Rolf estava próxima da histeria:
        — Não sairei! Vão ter que me arrancar daqui.
        — É o que farão.
        Luke falou pela primeira vez: — Se nós não provocarmos talvez eles fiquem cansados e vão embora.
        Theo falou: — Não irão embora. Sempre queimam os carros. É nossa escolha, estarmos dentro ou fora quando acontecer.
        Houve uma batida.
        O pára-brisas transformou-se em pedaços, mas não se partiu. Um dos Ômegas balançava seu tacape.
        O vidro se partiu caindo em pedaços sobre o colo de Rolf. O ar da noite adentrou o interior com seu perfume de morte.
        Rolf tossiu e se esquivou quando o Ômega o ameaçou com a tocha.
        O Ômega riu, então disse numa voz agradavelmente educada, quase tentadora: — Saia, saia, quem quer que você seja!
        Duas batidas mais e os outros vidros se partiram. Miriam gritou quando uma tocha foi contra seu rosto.
        O cheiro de cabelo queimado no ar.
        Theo só teve tempo de dizer:
        — Lembrem. A dança. Então corram para o muro.
        Então os cinco foram arrastados para fora.
        Estavam cercados. Os Ômegas segurando suas tochas no alto das mãos esquerdas, as armas nas mãos direitas, começaram a dançar de novo, ritualmente, com os capturados ao centro da roda.
        Mas desta vez seus movimentos eram mais lentos, mais cerimoniosos e o canto mais profundo, não era mais uma celebração mas um lamento. Theo se uniu a eles, erguendo os braços, mexendo o corpo, misturando sua voz a deles. Um por um, os outros quatro tomaram seu lugar na roda separados.
        Aquilo era ruim.
        Queria que Rolf e Julian ficassem juntos, de modo que pudessem correr ao seu sinal.
        Mas a primeira parte do plano, a mais perigosa, tinha funcionado. Ele tivera medo de que eles os derrubassem ao primeiro movimento, o que o responsabilizaria pelo extermínio do grupo. Isso não aconteceu.
        E agora, como se obedecendo a um comando secreto, os ômegas passaram a bater o pé em uníssono, mais e mais rápido, então paravam e começaram a dançar de novo.
        O Ômega da frente se retorcia com passos delicados como um gato, balançando o tacape sobre a cabeça.  Encarou Theo sorrindo, com os narizes quase se tocando.
        Theo conseguiu sentir seu cheiro, um cheiro bolorento, não muito agradável, podia ver os desenhos intrincados de sua pintura, azul, vermelho e preto, ressaltando os ossos da face, cobrindo a linha da sobrancelha, cobrindo cada palmo do rosto num padrão entre o bárbaro e o sofisticado.
        Por um instante lembrou dos nativos dos mares do sul, com seus topetes, que vira no museu Pitt Rivers, quando Julian e ele estiveram juntos naquele momento de quietude.
        Os olhos do Ômega, piscinas negras entre o esplendor colorido, fitando os seus.
        Não se atrevia a olhar para Julian ou Rolf.
        Volta a volta, dançaram mais e mais rápido. Quando Rolf e Julian iriam agir? 
        Então os ômegas se separaram , indo dançar mais à frente e ele pode virar sua cabeça.
        Rolf e Julian estavam do lado oposto a ele na roda.
        Rolf fazia sua imitação da dança cerimonial, Julian amparava a barriga com a mão esquerda, a mão direita balançando-se, o corpo movendo-se acompanhando o clamor dos dançarinos.
        E então um momento de terror. O Ômega dançando atrás dela, agarrou seu cabelo.
        Deu um puxão e a trança se desfez.
        Ela parou por um segundo então continuou dançando, com o cabelo caindo no rosto.
        Ele pode ver iluminada pelas tochas as pedras caídas na grama e a forma negra das árvores atrás.
        Queria gritar — Agora, vão, vão!  e naquele instante Rolf agiu, agarrou a mão de Julian e juntos começaram a escalar o muro.
        Rolf pulou antes, depois ajudou Julian puxando-a para cima.
        Alguns dançarinos absortos em êxtase foram bem para próximo do muro, mas o Ômega mais próximo deles estava esperto. Largou a tocha e com um grito selvagem partiu atrás deles enquanto o manto de Julian ainda era visto sobre o muro.
        Luke saltou na frente dele. Cercando o Ômega ele tentava sem efeito fazê-lo recuar, gritando:
        — Não, não, me pegue! Me pegue!
        O Ômega desviou a atenção do manto e com um grito de fúria partiu para cima de Luke.
        Por um instante Theo viu que Julian hesitou, estendeu um braço, mas Rolf a puxou para as sombras das árvores. Foram apenas segundos, deixando em Theo uma imagem confusa dos braços esticados de Julian e os olhos atônitos, e Rolf levando-a para longe do brilho das tochas.
        Agora os ômegas tinham sua vitima selecionada.
        Um silêncio terrível caiu quando eles se fecharam ao redor de Luke, ignorando Theo e Miriam.
        Ao primeiro som da madeira rachando ossos, Theo ouviu um singelo grito, mas não soube dizer se saíra de Miriam ou de Luke.
        E então Luke estava no chão, e seus assassinos sobre ele, como bestas , empurrando-se por um lugar, soltando golpes em frenesi.
        A dança chegara ao fim, a cerimônia de morte também, a matança tinha começado.
        Matavam em silêncio, um silêncio pavoroso que pareceu a Theo poder ouvir o partir e esmigalhar de cada osso, podia sentir nos ouvidos as explosões de golfadas de sangue de Luke.
        Agarrou Miriam e a levou para o muro. Ela gaguejava:
        — Não! Eles não podem! Não podem! Não podemos deixá-lo.
        — Nós precisamos. Não podemos ajudá-lo. Julian precisa de você.
        Os ômegas não fizeram qualquer movimento para segui-los.
        Quando ele e Miriam chegaram aos limites da floresta pararam e olharam para trás.
        Agora o assassinato parecia menos com um frenesi de sangue e mais como um ato calculado.
        Cinco ou seis ômegas ainda segurando as tochas em um círculo ao redor do corpo, enquanto os outros, sombras negras meio nuas, com os braços esforçando-se para golpear, subindo e descendo em um balé ritualístico mortal.
        Mesmo a distância, parecia para Theo que o ar estava em fragmentos com o quebrar dos ossos de Luke.
        Mas sabia que não podia ouvir coisa alguma a não ser a respiração ofegante de Miriam e o som de seu próprio coração.
        Tinha certeza de que Julian e Rolf estavam bem à frente.
        Juntos eles observaram em silêncio como os ômegas, ao terminar o trabalho, reiniciaram uma dança de triunfo e cercando o carro capturado. À luz das tochas, Theo pode ver a forma do portão no campo, ao longo da estrada.
        Dois ômegas o abriram e o carro foi empurrado através dele, dirigido por um da gangue, enquanto o resto seguia empurrando-o.
        Eles deviam, Theo sabia, ter seu próprio carro, provavelmente uma van pequena, apesar de não ter conseguido ver uma.
        Por um instante de esperança ridícula, ele achou que poderiam abandonar o carro batido, e esta poderia ser a chance, contudo pequena, dele conseguir reavê-lo, poderiam inclusive ter deixado as chaves na ignição.
        O pensamento, sabia, nada tinha de racional.
        Assim que entraram pôde ver uma pequena van negra vindo pela estrada e passando pelo portão.
        Não iriam longe, Theo calculou, não mais do que cinqüenta metros.
        Então uma batida e a dança selvagem recomeçou.
        Houve uma explosão e o Renault ardeu em chamas.
        E com ele os suprimentos médicos de Miriam, a comida, a água, seus cobertores.
        Com ele toda esperança.
        Ouviu a voz de Julian: — Podemos pegar Luke agora enquanto estão ocupados.
        Rolf falou: — Melhor deixá-lo. Se eles descobrirem que sumiu eles com certeza se lembrarão de nós. Nós o pegamos depois.
        Julian tocou gentilmente Theo:
        — Por favor, pegue-o. Pode haver uma chance dele ainda estar vivo.
        Miriam falou saindo do escuro:
         — Ele pode não estar vivo, mas eu não vou deixá-lo lá. Vivo ou morto, estamos juntos.
        Ela já avançava naquela direção quando Theo a segurou pelo braço.
        Disse baixo:
        — Fique com Julian. Rolf e eu daremos um jeito.
        Sem esperar por Rolf, tomou o rumo da estrada.
        A princípio achou que estava só, mas em pouco tempo Rolf já andava ao seu lado.
 Quando chegaram até a sombra caída ao chão, de lado, como se dormisse, Theo falou: — Você é o forte. Pegue a cabeça.
        Juntos viraram o corpo. O rosto de Luke se fora. Mesmo sob a fraca luz fornecida pelo carro em chamas, pode ver que toda a cabeça tinha sido esmagada transformando-se numa confusa mistura de sangue, pele e ossos partidos. Os braços repousavam flácidos e as pernas se dobraram quando Theo as abraçou para levantá-lo.
        Era como se tentassem colocar uma marionete de pé.
        Ele era mais leve do que Theo esperava, mesmo assim pode ouvir a sua respiração e a de Rolf ofegando enquanto transpuseram o espaço entre a estrada e o muro e quando atiraram o corpo sobre ele.
        Quando se juntaram aos outros, Julian e Miriam viraram-se sem uma palavra e começaram a caminhar na frente, como parte de uma cerimônia fúnebre pré-planejada.
        Miriam acendeu a lanterna e eles seguiram o pequeno ponto de luz no chão.
        A caminhada parecia sem fim mas Theo achou que não tinham caminhado sequer um minuto até chegarem próximos a uma árvore tombada.
        Disse:
        — Vamos enterrá-lo aqui.
        Miriam tivera o cuidado de não apontar a luz para Luke.
        Disse para Julian:
         — Não olhe para ele. Você não precisa olhar para ele.
        A voz de Julian estava tranqüila:
        — Eu tenho que ver. Senão vai ser pior. Me dê a lanterna.
        Sem protestar, Miriam obedeceu. Julian iluminou lentamente o corpo de Luke, então de joelhos, tentou limpar o sangue da sua face com sua roupa.
        Miriam disse gentilmente:
        — Não precisa. Não há mais nada a fazer.
        Julian disse:
         — Ele morreu para me salvar.
        — Morreu para salvar a todos nós.
        Theo se viu tomado por um grande cansaço.
        Pensou:
        — Temos que enterrá-lo, antes de continuarmos. Mas pra onde ir? De alguma forma precisam arranjar outro carro, comida, água e cobertas— . Mas principalmente água. Sentia mais sede do que fome. Julian estava de joelhos junto do corpo de Luke, embalando sua cabeça deformada em seu colo, seu cabelo negro caindo sobre o rosto. Quieta.
        Então Rolf se curvou e tirou a lanterna da mão dela. Iluminou o rosto de Miriam. Ela piscou sob a luz intensa, instintivamente cobrindo-o com a mão.
        Sua voz era seca e baixa, como se saísse de uma garganta doente.
        Disse:
         — De quem é esta criança que ela está carregando?
        Miriam baixou a mão e olhou fixa para ele, mas nada falou.
        Ele repetiu:
        — Eu te perguntei, de quem é esta criança? Sua voz era clara agora, mas Theo viu que todo seu corpo tremia, instintivamente, foi para junto de Julian.
        Rolf virou-se para ele:
        — Fique fora disso! Isso não tem nada a ver com você. Estou perguntando para Miriam!
        Então ele repetiu mais violento:
         — Nada a ver com você! Nada!
        A voz de Julian veio da escuridão:
        — Por que não pergunta pra mim?
        Pela primeira vez desde que Luke, morrera ele se virou para ela.
        O foco de luz moveu-se lentamente de Miriam para o rosto dela.
        Ela disse:
        — É de Luke. O filho é de Luke.
        A voz de Rolf veio baixa:
        — Tem certeza?
        — Sim, tenho.
        Ele iluminou o corpo caído e escrutinou-o como um interesse frio e profissional de um executor checando se o condenado estava morto, certificando que não era necessário o golpe final.
        Então, com um gesto violento virou-se e afastou-se deles, tropeçou entre as árvores e abraçou-se a um dos troncos.
        Miriam disse:
        — Meu Deus, que hora para perguntar isso! E que hora para isso ser revelado!
        Theo disse:
         — Vá vê-lo, Miriam.
        — Minhas habilidades não podem ajudá-lo. Ele terá que se resolver sozinho.
        Julian ainda de joelhos junto à cabeça de Luke.
        Theo e Miriam de pé, olhavam fixo para aquela sombra, temendo que de alguma forma, pudesse desaparecer entre as sombras da floresta. Não era possível ouvir nenhum som, mas pareceu a Theo que Rolf cobria seu rosto contra a árvore, como um animal atormentado tentando se livrar das abelhas. Agora ele usava todo o corpo para se esfregar, como se desafogasse toda sua ira e agonia contra a madeira inflexível.
        Observar toda aquela obscena paródia de lascívia reforçou em Theo a indecência de testemunhar tanto sofrimento.
        Virou-se para Miriam e sussurrou:
        — Você sabia que Luke era o pai?
        — Sabia.
        — Ela contou para você?
        — Eu perguntei.
        — Mas não disse para ninguém.
        — O que esperava que eu dissesse? Nunca perguntei a ninguém sobre a paternidade dos bebês que ajudei a nascer. Um bebê é um bebê!
        — Este é diferente.
        — Não para uma parteira.
        — Ela o amava?
        — Ah, é tudo que os homens sempre querem saber. Melhor perguntar a ela.
        Theo disse:
        — Por favor, Miriam, me conte.
        — Acho que ela tinha pena dele. Não acho que amava nenhum deles, nem Rolf nem Luke. Ela começava a amar você, o que quer que isso signifique, mas acho que você sabe disso. Se não soubesse, ou não esperasse, você não estaria aqui.
        — Luke nunca foi testado? Ou ele e Rolf não faziam o teste de esperma?
        — Rolf fazia, pelo menos nos últimos meses. Ele achava que os técnicos eram descuidados ou não se davam o trabalho de realizar o teste em todos. Luke estava isento do teste. Tinha tido crises epilépticas quando criança. Como Julian, Luke era um rejeitado.
        Afastaram-se um pouco de Julian.
        Agora olhando para o seu vulto ajoelhado, Theo falou:
        — Ela está tão tranqüila. Qualquer um pensaria que ela está prestes a ter seu filho sob as melhores circunstâncias.
        — O que seriam as melhores circunstâncias? Mulheres dão a luz nas guerras, revoluções, na penúria, em campos de concentração, em marcha. Ela tem o essencial, você e uma parteira em quem confia.
        — Ela acredita em seu Deus.
        — Talvez você deva fazer o mesmo. Você pode ter um pouco da sua paz. Depois, quando o bebê chegar, eu precisarei de sua ajuda. Certamente não preciso de você ansioso.
        — Vai mesmo? Perguntou.
        Ela sorriu, compreendendo a pergunta.
        — Acreditar em Deus? Não, é tarde demais para mim. Acredito na força e na coragem de Julian e na minha própria habilidade. Mas talvez se Ele nos tirar disso, talvez eu mude minha idéia e possa fazer algo com Ele.
        — Eu não acho que Ele barganhe.
        — Ah sim, barganha sim. Posso não ser religioso, mas conheço a Bíblia. Minha mãe o fazia. Ele barganhava muito bem. Mas Ele supõe ser justo. Se quiser que acredite, Ele pode providenciar algumas evidências.
        — Que Ele existe?
        — Que Ele se importa.
        E ainda ficaram de pé, de olhos fixos no vulto escuro, difícil de discernir contra o tronco escuro do qual ele parecia fazer parte, mas agora quieto, sem se mover, repousando contra a árvore, somo se tremendamente exausto. Theo disse para Miriam, mesmo sabendo da futilidade da questão: — Ele ficará bem?
        — Não sei. Como posso saber?
        Ela saiu do seu lado e caminhou na direção de Rolf, então parou bem perto dele e esperou quieta, sabendo que se ele precisasse de conforto do toque humano, poderia ter se ele se virasse.
        Julian levantou-se.
        Theo sentiu sua manta roçar seu braço, mas não precisou virar-se para vê-la.
        Estava atento para uma mistura de emoções, ódio que ele sabia que não tinha o direito de sentir, e alívio, tão forte que quase era um prazer, por saber que Rolf não era o pai da criança.
        Mas o ódio naquele instante era mais forte.
        Ele queria poder dizer para ela: Então é isso que você é? E Gascoigne? Como sabe se o filho não é dele? Mas estas palavras seriam imperdoáveis e pior, inesquecíveis. Sabia que não tinha o direito de questioná-la, mas não conseguia engolir ou esconder o sofrimento por detrás.
        — Você os amou, algum deles? Ama seu marido?
        Ela respondeu baixo: — Você ama sua esposa?
        Esta fora uma pergunta séria, não apenas uma retaliação, e ele deu uma resposta séria e verdadeira.
        — Eu achava que sim quando casei com ela. Eu me cerquei dos sentimentos apropriados sem saber quais eram estes. Eu coloquei nela qualidades que ela não possuía e a puni por não tê-las. Afinal eu poderia ter aprendido a amá-la, se eu tivesse pensado mais nas suas necessidades e menos nas minhas.
        Pensou: O retrato de um casamento. Talvez a maior parte deles, bons ou maus, poderia ser resumida em quatro frases.
        Ela olhou para ele considerando-o por um momento e disse:
         — Esta é a resposta para sua pergunta.
        — E Luke?
        — Não, eu não o amava, mas eu gostava que ele me amasse. Eu o protegia por que ele podia amar muito e sentir também. Ninguém nunca me quis com tanta intensidade. Então eu lhe dei o que ele queria. Se eu o tivesse amado teria sido…—  Parou por um instante e disse:
         — Teria sido menos pecaminoso.
         — Não é uma palavra forte demais por um simples gesto de generosidade.
        — Mas não foi simplesmente um ato de generosidade. Foi um ato de auto-indulgência.
        Não era hora para conversas, mas quando seria? Ele precisava saber, precisava entender.
        Ele disse:
        — Mas seria certo, menos pecaminoso como disse, se o amasse. Então você concorda com Rosie McClure de que o amor justifica tudo, desculpa qualquer coisa.
        — Não, mas é natural, é humano. O que fiz foi usar Luke, talvez para recuperar um pouco da atenção que Rolf dava ao grupo e que eu precisava, punindo Rolf por ter deixado de me amar. Você entende isso, da necessidade de magoar alguém por que não mais o ama?
        — Sim, entendo.
        Ela acrescentou:
        — É algo comum, previsível e mesquinho.
        Theo disse:
        — E espalhafatoso.
        — Não, nada com Luke era assim. Mas isso o afetou mais do que o satisfez. Mas você não pensava que eu fosse uma santa.
        — Não, mas eu pensava que você era boa.
        — Agora você sabe que não sou.
        Ainda na meia escuridão, Theo viu Rolf se separar da árvore e voltar caminhando até eles.
        Miriam vinha na frente. Os três pares de olhos se fixaram no rosto de Rolf, esperando que dissesse algo.
        Quando chegaram bem perto, Theo viu que seu rosto estava marcado, a pele machucada.
        A voz de Rolf soou perfeitamente calma, mas estranhamente modulada, de forma, que por um momento ridículo, Theo achou que um estranho tomara seu lugar vindo da escuridão:
        — Antes de continuarmos, precisamos enterrá-lo. Significa que teremos que esperar até haver luz. Melhor pegarmos seu casaco, antes que ele fique rígido demais. Vamos precisar de todas as roupas quentes que pudermos conseguir.
        Miriam disse:
        — Precisaremos de um tipo de pá. O solo é macio mas precisamos cavar um buraco de algum jeito. Não podemos somente cobri-lo com folhas.
        Rolf disse:
        — Isso não pode esperar até de manhã. Temos que pegar o casaco já. Ele não precisará dele.
        Tendo feito a sugestão, ele não tomou nenhuma ação e foram Miriam e Theo quem viraram o corpo para facilitar tirar o casaco pelos braços. As mangas estavam pesadas de sangue coagulado, Theo podia sentir em suas mãos.
       
        Colocaram o corpo novamente deitado de costas, os braços ao lado.
        Rolf disse:
        — Amanhã eu tentarei conseguir outro carro. Neste meio-tempo descansaremos o quanto puder.
        Eles se abrigaram juntos sob uma faia tombada. Os galhos ainda traziam pendentes folhas outonais, provendo uma falsa sensação de segurança, se aninharam debaixo como crianças conscientes de seus graves delitos, escondendo-se dos adultos que os procuravam.
        Rolf ficou de vigia, com Miriam atrás dele, então Julian entre ela e Theo.
        Seus corpos rígidos pareciam infectar o ar com inquietação. 
        A árvore em si já era perturbadora, cheia de pequenos ruídos e sussurros no vento.
        Theo não conseguiu dormir e sabia que pelos ruídos e tosses e pequenos grunhidos e sinais, que os outros compartilhavam de sua vigília.
        Não era tempo para dormir.
        Tudo que se dera naquele dia ainda era uma presença viva em suas mentes.
        Estava consciente do calor do corpo de Julian contra o seu e sabia que ela devia sentir o mesmo conforto.
        Miriam tinha envolvido Julian com o casaco de Luke e parecia para Theo poder sentir o cheiro do sangue.
        Sentia-se suspenso em um limbo temporal, ciente do frio, da sede, dos inúmeros sons da floresta, mas não do passar do tempo.
        Como seus companheiros, ele agüentou como pôde e esperou pelo alvorecer.
       
       
        A luz do sol, fria e desanimadora, como o hálito frio da floresta, prendendo-se em cascas e ramos quebrados, tocando os troncos das árvores e os galhos nus, dando forma à escuridão e substância ao mistério.
        Abrindo os olhos, Theo não acreditava ter dormido e sim perdido momentaneamente a consciência, desde que não se lembrava de Rolf ter se levantado e os deixado.
        Agora ele o viu longe entre as árvores.
        Rolf disse:
        — Estive explorando o lugar. Não é propriamente uma floresta, mas uma mata. Com aproximadamente oitenta metros de comprimento. Não poderemos nos esconder aqui por muito tempo. Tem uma espécie de fosso entre o fim da floresta e o campo. Deve bastar.
        Novamente Rolf não fez qualquer movimento para pegar Luke. Miriam e Theo se encarregaram de levantá-lo Miriam segurando as suas pernas partidas. Theo ergueu a cabeça e os ombros, sentindo já o rigor mortis.
        Desta forma, com o corpo curvado entre eles, seguiram Rolf através das árvores. Julian caminhava ao lado, a manta enrolada ao corpo, o rosto tranqüilo, mas pálido, o casaco ensangüentado de Luke e a estola cor de creme sobre seu braço.
        Carregava-os como troféus de batalha.
        Apenas a cinqüenta metros do ponto mais alto da mata, eles se encontraram olhando para o campo.
        O sol, uma bola de luz branca já começava a dispersar a nevoa que ainda cobria campos e colinas, absorvendo as cores de outono e misturando-as em um verde oliva claro no qual as árvores se destacavam como  negros desenhos para recorte. Parecia que seria outro dia agradável dia de outono.
        Com um aperto no coração, Theo viu que havia alguns arbustos carregados de amoras pretas no fim da floresta.
        Teve que usar de todo seu auto-controle para não largar o corpo de Luke e sair correndo para colhê-las.
        O fosso era raso, não mais do que um estreito rego entre o campo e a mata.
        Mas seria difícil encontrar outro lugar mais conveniente para enterrar alguém.
        O campo havia sido arado recentemente e a terra parecia relativamente macia.
        Curvando-se, Theo e Miriam deixaram o corpo rolar pela borda e cair ao final do rego.
        Theo desejava ter feito isso de um modo mais reverenciável, menos como se livrar de um animal indesejado. Luke ficara com o rosto contra o chão. Sentindo que não era como Julian queria, ele pulou dentro do buraco e tentou ajeitar o corpo virando-o. A tarefa foi mais difícil do que esperava, melhor seria não fazê-la.
        Ao final, Miriam teve que ajudá-lo com o que sobrara daquele surrado Luke e sua face imunda de lama virada contemplando o céu.
        Miriam disse:
        — Podemos cobri-lo primeiro com folhas e depois com a terra.
        Rolf ainda não fez qualquer gesto para ajudar, mas os outros três voltaram à floresta e de lá vieram com os braços repletos de folhas secas e deterioradas. Antes de iniciarem o enterro Julian cobriu Luke com sua estola.
        Por um segundo Theo pensou em protestar.
        Eles já tinham tão pouco, suas roupas, a pequena lanterna, a arma com uma bala. A estola poderia ser útil.
        Os três cobriram o corpo com as folhas, então começaram a cavar com as mãos o solo da beira do rego.
        Teria sido mais fácil e rápido se Theo chutasse os pedaços de terra para dentro do buraco mas na presença de Julian ele sentiu-se incapaz de agir com tamanha e brutal eficiência.
        Por todo o enterro Julian se conservava quieta e perfeitamente tranqüila.
        De repente ela disse:
        — Ele deveria ser enterrado em solo sagrado.
        Pela primeira vez ela soou estressada, confusa e queixosa como uma criança aborrecida.
        Theo sentiu uma leve onda de irritação.
        O que, quase perguntou, ela esperava que eles fizessem?   
        Esperar até a noite, desencavar o corpo, carregá-lo até um cemitério e reabrir uma cova?
        Foi Miriam quem respondeu, olhando para Julian, disse calmamente:
        —  Qualquer lugar onde um homem bom está enterrado é um solo sagrado.
        Julian virou-se para Theo:
         — Luke gostaria que fizéssemos um cerimonial fúnebre. Seu livro de preces está em seu bolso. Por favor, faça isso por ele.
        Ela abriu o casaco ensangüentado e tirou de dentro do bolso do peito um pequeno livro de capa de couro preto, então o passou para Theo. Levou apenas um minuto para achar a passagem. Ele sabia que o serviço não demoraria, mas mesmo assim, decidiu reduzi-lo. Ele não podia recusar o pedido de Julian, mas não era uma tarefa que ele gostaria de fazer. Começou a falar as palavras, com Julian a sua esquerda e Miriam à sua direita.
        Rolf continuou ao pé da cova, esticando as pernas, os braços cruzados, olhando para frente.
        Seu rosto desolado era tão pálido, o corpo tão rígido que Theo quase teve medo de que ele caísse para frente sobre a terra macia. Mas sentiu um crescente respeito por ele. Era impossível imaginar a enormidade de seu desapontamento ou da amargura pela traição. Mesmo assim continuava firme e de pé.
        Pensou se ele mesmo seria capaz de tanto controle. Apesar de ter os olhos no livro de preces, estava atento aos olhos escuros de Rolf contemplando-o do outro lado da cova.
        No inicio sua voz soou estranha aos próprios ouvidos, mas com o tempo sentiu as palavras do salmo tomarem lugar e falou baixo e confidente, como se as conhecesse de cor:
        “Senhor, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração. Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, sim, de eternidade a eternidade, tu és Deus. Tu reduzes o homem à destruição; e dizes: Volvei, filhos dos homens. Porque mil anos são aos teus olhos como o dia de ontem que passou, e como a vigília da noite. Tu os levas como corrente de água: são como um sono: são como a erva que cresce de madrugada, De madrugada cresce e floresce: à tarde, corta-se e seca.”
        Depois, ao terminar dizendo — do pó ao pó— , Julian se agachou, pegou uma mão de terra e a atirou sobre o tumulo. Depois Miriam fez o mesmo. Com a agilidade de seu corpo literalmente roubada, era difícil para Julian se agachar e Miriam a amparou. Na cabeça de Theo veio a imagem desagradável de um animal defecando. Ao dizer as palavras da graça, a voz de Julian se juntou a dele.
        Então fechou o livro.
        Ainda assim, Rolf não participara em nada, não se moveu nem falou.
        Subitamente, com um movimento violento, caiu de joelhos e disse:
         — Esta noite temos que conseguir outro carro. Agora eu vou dormir. Melhor que façam o mesmo.
        Mas antes, fomos até o bosque e enchemos nossas bocas de amoras, com nossas mãos e lábios pintados de púrpura. Os arbustos estavam pesados com cachos de amoras, pequenas granadas doces.
        Theo admirou-se que Rolf pudesse resistir a elas. Ou teria ele comido o bastante pela manhã? As frutas partindo-se contra a língua, restaurou a esperança e sua força devido ao suco inacreditavelmente saboroso.
        Então, com a fome e a sede parcialmente aplacadas, retornaram ao matagal, ao mesmo tronco caído que parecia ao menos oferecer psicologicamente a segurança de um lugar para se esconder.
        As duas mulheres deitaram-se juntas, com o casaco de Luke as cobrindo. Theo acomodou-se aos pés delas. Rolf achou seu leito do outro lado do tronco. A terra estava macia com um colchão de décadas de folhas caídas por cima e mesmo assim pareceu dura como aço.
        Ainda assim Theo tinha que dormir.
       
        Era madrugada quando acordou.
        Julian estava acordada e disse:
        — Rolf se foi.
        Ele instantaneamente despertou
        : — Tem certeza?
        — Sim, estou certa disso.
        Ele acreditava nela, ainda assim tinha que dizer algumas palavras de esperança:
        — Ele pode ter ido dar uma volta, podia precisar ficar só, querendo pensar um pouco.
        — Ele pensou e se foi.
        Ainda obstinadamente querendo convencê-la, mesmo que não a si mesmo, ele disse:
        — Ele está zangado e confuso. Ele não quer mais estar com você quando o bebê nascer, mas não acredito que vá trair você.
        — Por que não? Eu o traí. É melhor acordar Miriam.
        Mas não foi preciso. Suas vozes tinham trazido Miriam à consciência. Sentou-se abruptamente e olhou para onde Rolf tinha se aninhado para dormir. Ficando de pé, disse:
        — Então ele se foi. Devíamos ter desconfiado que ele faria isso. De qualquer jeito não poderíamos convencê-lo do contrário.
        Theo falou:
        — Eu devia tê-lo mantido conosco. Eu tenho uma arma.
        Foi Miriam quem respondeu a pergunta nos olhos de Julian.
        — É, nos temos uma arma. Não se preocupe, ela pode ser útil.
        Então virou-se para Theo e disse:
        — Você o manteria conosco mas por quanto tempo? E como? Um de nos ficaria segurando a arma contra sua cabeça dia e noite, em turnos quando dormíssemos, tomando conta dele?
        — Você acha que ele foi ao Conselho?
        — Ao Conselho não, ao Governador. Ele mudou de aliado. Sempre foi fascinado pelo poder. Agora está procurando se juntar as forças do poder, na fonte. Mas não acho que vá telefonar para Londres. Esta notícia é importante demais para se perder por ai. Ele vai querer contá-la diretamente ao Governador, sozinho.  Isso nos dá algumas horas, talvez cinco horas se tivermos sorte. Depende de quando ele partiu, de quão longe chegou.
        Theo pensou: Cinco horas ou cinqüenta, que diferença faz? O desespero começava a tomar sua mente e corpo, deixando-o fisicamente fraco como se a vontade de afundar-se na terra fosse mais forte. Por um segundo, não mais, em que o pensamento ficou entorpecido; mas passou.
        Sua inteligência não permitiria, pensou com renovada esperança.
        O que ele faria se fosse Rolf? Iria para a estrada e acenaria para o primeiro carro, procuraria o telefone mais próximo? Seria tão simples?
        Rolf era um homem procurado e sem dinheiro, transporte ou comida. Miriam estava certa. O segredo que ele carregava era tão importante que teria que mantê-lo inviolado, até poder revelá-lo para aquele homem que mais pudesse recompensá-lo.
        Xan.
        Rolf precisava chegar a ele e de forma segura. Não podia se arriscar a ser capturado, ou ser casualmente baleado por algum exultante membro da polícia de segurança do estado. Mesmo se capturado pelos granadeiros seria menos desastroso; numa cela de prisão seria tratado com misericórdia, suas exigências de encontrar pessoalmente o Governador imediatamente seriam risíveis.
        Não, ele tentaria chegar a Londres, viajando, escondido pela noite, mantendo-se as margens.
        Uma vez que chegasse na capital, poderia ir até o velho prédio do exterior e então procurar pelo Governador, seguro de que chegara ao local onde suas exigências seriam ouvidas.  
        E se sua persuasão falhasse e seu acesso fosse negado, tinha ainda uma última carta para jogar:
        — Tenho que vê-lo, digam-lhe que ouviram de mim que uma mulher está grávida.
        Xan então deveria vê-lo.
        Uma vez que a notícia fosse dada e que acreditassem, eles viriam rápido.
        Mesmo se Xan pensasse que Rolf pudesse estar mentindo ou que estivesse louco, ainda assim viriam.
        Mesmo que achassem se tratar de sintomas falsos de gravidez fantasma, destinados a alimentar uma farsa, eles viriam.
        Era importante demais para se cometer um engano.
        Viriam em helicópteros com médicos e enfermeiras e uma vez que a verdade fosse estabelecida, com câmeras de televisão também.
        Julian seria amarrada a uma cama de um hospital público, a todo aparato medico tecnológico para parto que não era usado a vinte e cinco anos.
        O próprio Xan iria dar as novas para um mundo incrédulo.
        Disse:
        — Estamos a pouco mais de quinze quilômetros ao sudoeste de Leominster. Nosso plano original ainda está de pé. Acharemos um refúgio, uma cabana ou casa, o mais dentro da floresta possível. Obviamente não poderemos chegar a Wales.  Podemos conseguir chegar a sudeste na Floresta de Dean. Precisamos de transporte, água e comida. Logo que fique escuro, irei até a vila mais próxima e roubarei um carro. Estamos a poucos quilômetros de uma. Vi as luzes ao longe, pouco antes dos Ômegas nos pegarem.
        Ele esperava que Miriam perguntasse como, mas, ao invés disso, ela disse:
        — Vale a pena tentar. Não corra mais riscos que o necessário.
        Julian falou: — Por favor, Theo, não leve a arma.
        Ele virou-se para ela, lutando contra sua raiva.
        — Eu vou levar o que for preciso levar e farei o que for preciso fazer. Quanto tempo você consegue viver sem água? Não dá pra vivermos de amoras. Precisamos de comida, bebida, cobertores, coisas para o parto. Precisamos de um carro. Se conseguirmos nos manter escondidos depois que Rolf chegar ao Conselho então haverá uma chance. Ou talvez você mude de idéia. Talvez queira seguir o exemplo dele e se entregar.
        Ela balançou a cabeça, mas nada falou.  Viu lágrimas em seus olhos. Quis abraçá-la. Ao invés disso, manteve a distância e, colocando sua mão no bolso, sentiu o peso frio da arma.
        Partiu assim que escureceu, impaciente por partir, ressentido por perder tempo.
        A segurança deles dependia da velocidade que ele conseguisse um carro. Julian e Miriam o seguiram até o limite da floresta e o observaram sumir na distância. Depois de um instante de indecisão teve que brigar com a sensação de que seria a última vez que as veria. Lembrava-se das luzes da vila ou uma pequena cidade, a oeste da estrada.
        O caminho mais direto seria cruzando pelo campo, mas havia deixado a lanterna com as mulheres e tentar atravessar o campo sem luz e sem conhecer a região seria um convite ao desastre.
        Começou a correr e então passou a caminhar e depois quase correndo, segundo a rodovia que tinham viajado. Depois de meia hora chegou a uma encruzilhada e tomou o caminho da esquerda.
        Levou ainda mais uma hora caminhando até chegar aos limites de uma cidade. As margens da estrada eram de um lado cercadas por cercas vivas e do outro por uma mata baixa. Caminhava daquele lado e quando ouvia um carro se aproximar, mergulhava na sombra das árvores, parte por instinto de esconder-se, parte por medo, não totalmente irracional, pois um homem caminhando solitário na escuridão sempre despertava atenção. O mato deu lugar aos poucos a casas isoladas, distantes da estrada, com grandes jardins. Certamente teriam um carro na garagem, provavelmente até mais de um.
        Mas casas e garagens costumam ser bem protegidas. Propriedades ostentosas eram dificilmente vulneráveis a um ladrão casual e sem experiência. Procurava por vítimas mais facilmente intimidáveis.
        E então chegou à cidade. Começou a caminhar mais lentamente. Sentia seu coração batendo rápido, o ritmado bater contra as costelas. Não desejava entrar por demais no centro. Era importante encontrar o que precisava o mais rápido possível e fugir. Então ele viu a pouca distância, uma coluna de pequenas casas de vila de paredes de seixo. Cada par idêntico, com janelas ao lado da porta e uma garagem no muro dos fundos. Caminhou até elas quase que na ponta dos dedos dos pés, para inspecionar o primeiro par.
        A da esquerda estava vazia, a janela tampada por tábuas e um gradil na porta da frente.
        Deixava visível que estava vazia há algum tempo.
        A grama estava bem alta e o jardim era uma massa fora de controle de roseiras selvagens e outras espécies entrelaçadas, sendo que as mais antigas pendiam caindo.  
        A casa da direita tinha ocupantes e parecia totalmente diferente.
        Uma luz na sala da frente por trás de cortinas, o jardim frontal bem cuidado com crisântemos e dálias marcando um caminho.
        Uma cerca nova marcava os limites da propriedade, talvez para separar a desolação da casa seguinte, ou manter as ervas daninhas longe.
        Parecia ideal para este propósito.
        Sem vizinhos, não havia ninguém para ver ou ouvir secretamente, e devido a pouca distância da estrada, poderia ter uma fuga relativamente rápida.
        Mas será que havia um carro na garagem?
        Indo até o portão, olhou pelo caminho de pedregulhos e viu uma marca de pneus e uma mancha de óleo.
        O fio de óleo era preocupante, mas a casa parecia tão bem cuidada, o jardim tão imaculado, que não podia acreditar que o carro, mesmo velho ou pequeno, não estivesse em ordem.
        Mas e se não estivesse? Então teria que tentar na próxima casa e uma segunda tentativa seria duas vezes mais perigosa.
        Parou junto ao portão, olhando para a esquerda e para a direita para ter certeza que ninguém o observava enquanto sua mente explorava as possibilidades.
        Poderia impedir que as pessoas da casa dessem o alarme, mas seria necessário que cortasse o telefone e as amarrasse.
        Mas supôs que seria igualmente uma tentativa mal sucedida se procurasse na casa seguinte e então na seguinte a esta. A perspectiva de fazer uma sucessão de vítimas era tão risível quanto perigosa.
        Não teria mais do que duas chances.
        Se fosse mal sucedido ali, talvez o melhor plano fosse tentar parar um carro na estrada e forçar os passageiros a sair. Desta forma teria certeza de que o carro funcionava.
        Com uma última espiada a volta, deixou o portão e caminhou quase na ponta dos pés até a porta da frente.
        Respirou aliviado. As cortinas estavam abertas o bastante e havia um intervalo entre as metades para que pudesse ver claramente o que se passava na sala.
        Não havia lareira e a sala era dominada por uma enorme televisão. Em frente a ela, duas poltronas e pode ver duas cabeças grisalhas de um casal de velhos, provavelmente marido e mulher.
        A sala era frugalmente mobiliada com uma mesa e duas cadeiras junto da janela lateral e uma pequena escrivaninha de carvalho.
        Nada de quadros, livros, nenhum ornamento, nada de flores, mas pendurada em uma das paredes uma fotografia colorida de uma jovem e junto dela  uma cadeira de criança com um urso de pelúcia sentado nela com um laço de fita imenso.
        Mesmo através do vidro podia ouvir o som da teve claramente.
        Os velhos deviam ser surdos. Reconheceu o programa de tv.
        — Vizinhos— , uma série de baixo orçamento do final dos anos 80 e inicio dos 90, feita na Austrália e precedida por um jingle de uma banalidade sem igual. O programa tivera uma grande audiência da primeira vez que fora exibido em velhos aparelhos de televisão e agora, adaptados para os aparelhos modernos de alta-definição, era um revival, transformando-se em objeto de culto.
        A razão era obvia. A história que se passava em um remoto e ensolarado subúrbio, evocava a nostalgia de um mundo distante de inocência e esperança. Mas, sobretudo, era por causa dos jovens.
        A insubstancial, mas magnífica imagem dos rostos jovens, o som das vozes jovens, criavam a ilusão que em alguma parte sob o céu australiano este confortante mundo ainda existia e poderia ser alcançado a vontade.
        Pelo mesmo espírito e devida mesma necessidade, as pessoas compravam vídeos de nascimentos, ou de canções de ninar e velhos programas para jovens. — The Flower-pot men— e — Blue Peter— .
        Tocou a campainha e esperou.
        Depois do anoitecer ele imaginou que fossem atender a campainha juntos.
        Ouviu através da madeira o arrastar de pés e então de trancas sendo mexidas.
        A porta abriu-se segura por uma corrente de segurança e pelos centímetros de abertura pode ver que o casal era mais velho do que esperava. 
        Um par de reumáticos olhos, mais desconfiados do que nervosos, olharam para os seus.
        A voz do homem era inesperadamente firme:
        — O que quer?
        Theo achou que sua voz tranqüila e educada seria bem recebida, disse:
        — Sou do Conselho local. Estamos fazendo um levantamento sobre o interesse e hobbies das pessoas. Tenho um formulário para você preencher. É rápido. Tem que ser preenchido agora.
        O homem hesitante tirou a corrente. Com um movimento rápido Theo entrou, de costas para a porta e com a arma na mão. Antes que pudessem falar ou gritar, disse:
         — Está tudo bem. Vocês não correm perigo. Não vou machucar ninguém. Fiquem quietos, façam o que digo e ninguém será ferido.
        A mulher começou a tremer, segurando-se ao braço do marido. Era uma mulher pequena de ossos frágeis e parecia bem abaixo do peso normal.
        Theo olhou em seus olhos, sentindo o terror manifestado e disse, com toda sua persuasão no comando:
        — Não sou um criminoso. Preciso de ajuda. Preciso de seu carro, de comida e água. Vocês têm um carro?
        O homem fez que sim.
        Theo prosseguiu: — Que carro?
        — Um Citizen.
        — Um carro popular, barato e econômico. Deviam ter parado de ser fabricados ha dez anos, mas ainda rodavam e eram confiáveis. Poderia ser pior.
        — Tem gasolina no tanque?
         O homem de novo fez que sim.
        — Está em ordem?
        — Oh, sim. Sou cuidadoso com ele.
        — Certo. Agora quero que vocês subam.
        A ordem os deixou petrificados. Será que pensavam que seu propósito fosse assassiná-los em suas camas?
        O homem implorou:
        — Não me mate. Sou tudo que ela tem. Ela está doente do coração. Se eu morrer ela terá que fazer o Quietus.
        — Ninguém precisa ficar nervoso. Não vai haver nenhum Quietus.
        Ele repetiu com veemência:
         — Nada de Quietus!
        Lentamente, passo a passo, subiram, a mulher ainda se apoiando no marido.
        No andar de cima, uma olhadela revelou que a casa era bastante simples. O quarto principal ficava a frente e no canto oposto o banheiro, com um lavatório separado porta ao lado. Ao fundo, dois quartos menores.
        Com a pistola ele os dirigiu para um dos quartos menores. Havia uma cama de solteiro feita.
        Disse para o homem:
        — Corte o lençol em tiras.
        O homem fez uma tentativa pouco efetiva tentando rasgá-lo. Era muito difícil para ele.
        Theo falou impaciente: — Precisamos de tesouras. Onde estão?
        A mulher então disse: — No quarto da frente. Na minha mesinha de cabeceira.
        — Por favor, vá pegar.
        Ela saiu com dificuldade em andar e voltou alguns segundos depois com um par de tesouras de unhas.
        Eram pequenas mas adequadas.
        Mas seria tempo por perder se deixasse a tarefa para as mãos trêmulas do velho.
        Disse áspero:
        — Afastem-se, vocês dois, fiquem juntos contra a parede.
        Eles obedeceram, ficando do lado oposto da cama. Então passou a rasgar o lençol. O som foi inesperadamente alto, como se rasgasse o ar. Quando terminou disse para a mulher:
        — Venha aqui e deite-se na cama.
        Ela olhou para o marido como se pedindo sua permissão.
        — Faça o que ele diz, minha querida.
        Ela teve alguma dificuldade em subir na cama e Theo a ajudou. Seu corpo era extremamente leve. Depois de tirar seus sapatos, amarrou seus tornozelos juntos e depois as mãos nas costas.
        Ele disse:
        — Você está bem?
        Ela assentiu. A cama era estreita e pensou que seria melhor se levasse o homem para o outro quarto, mas ele adivinhando seus pensamentos disse:
        — Não nos separe. Não me leve para o quarto ao lado. Não me mate.
        Theo disse impaciente:
        — Não vou atirar em você. A arma sequer está carregada.
        A arma tinha servido já ao seu propósito.
        Disse curto:
        — Deite-se ao lado dela.
        Amarrou as mãos do homem nas costas e então prendeu seus tornozelos e com uma tira final de lençol, prendeu os pés dele nos pés dela. Deitados de lado, postados bem juntos. Não dava pra crer que fosse uma posição confortável, com os nós nas costas mas não se atrevia a deixar que o velho pudesse usar os dentes para se livrar.
        — Onde estão as chaves da garagem e do carro?
        — Na escrivaninha na sala de estar, na gaveta de cima, na direita.
        Os deixou. Encontrou rápido as chaves, então voltou ao quarto.
        — Vou precisar de uma mala grande. Vocês tem uma?
        A mulher falou:
        — Debaixo da cama.
        Tirou-a de lá, era grande, mas leve, de cartonado reforçado nos cantos.
        Enquanto hesitava pensando na mala em suas mãos o homem falou:
        — Por favor, não nos amordace. Não vamos chamar ninguém, eu prometo. Por favor. Minha mulher não vai conseguir respirar.
        Theo disse:
        — Eu avisarei a alguém que vocês estão presos aqui. Não poderei fazê-lo pelo menos nas próximas vinte horas, mas o farei. Esperam por alguém?
        O homem, sem olhar para ele, disse:
        — Mrs. Collin, nossa enfermeira, estará aqui amanhã às sete e meia da manhã. Ela vem cedo por que tem outro trabalho depois.
        — Ela tem a chave?
        — Sim, sempre traz uma chave.
        — Ninguém mais é esperado? Nenhum membro da família, por exemplo?
        — Não temos família. Tínhamos uma filha, mas ela morreu.
        — Mas tem certeza de que Mrs.Collin virá?
        — Sim, ela é confiável. Ela estará aqui.
        Ele abriu as cortinas floridas de algodão e olhou para a escuridão lá fora.
        Tudo que podia ver era um pedaço de jardim e parte de uma colina.
        Poderiam gritar a noite toda que suas vozes fracas não seriam ouvidas.
        Ainda assim, tinham deixado a televisão ligada ao máximo volume.
        Disse:
        — Não vou amordaçá-los. Deixarei a tevê ligada em um volume que ninguém vai poder ouvi-los. Não gastem energia tentando. Vocês serão soltos quando Mrs.Collins chegar. Tentem descansar, dormir. Me desculpem por ter feito isso. Vocês vão eventualmente recuperar seu carro.
        Depois de dito aquilo sentiu-se ridículo e desonesto com a promessa. Por fim falou:
        —  Tem algo que vocês possam querer?
        A mulher falou fracamente:
         — Água.
        A simples palavra o lembrou de sua própria sede. Parecia extraordinário que depois de tantas horas sentindo sede, tinha se esquecido dela por um momento. Foi até o banheiro, pegou um copo usado para escovas de dente, sem se preocupar em lavá-lo, encheu-o de água e bebeu até seu estomago não mais agüentar. Então encheu-o novamente e voltou ao quarto. Ergueu a cabeça da mulher, colocou-o nos seus lábios e deixou-a beber.
        A água respingou em seu rosto e na roupa. As veias púrpuras ao lado da cabeça pareciam como se fossem explodir e os tendões do pescoço fino rígidos como cordas. Depois que terminou, pegou uma ponta de tecido e secou sua boca. Então encheu novamente o copo para que seu marido pudesse também beber.
        Sentiu-se relutante em deixá-los. Um pouco bem vindo e maligno visitante, não conseguia encontrar a palavra certa para se despedir.
        Na porta virou-se e disse:
        — Me desculpem pelo que fiz. Tentem dormir. Mrs.Collin estará aqui pela manhã.
        Não sabia se estava tentando tranqüilizá-los ou a si mesmo. Pelo menos estavam juntos. Disse:
        — Estão razoavelmente confortáveis? A pergunta doentia o atingiu assim que a terminou. Confortáveis?
        Como poderiam estar confortáveis, amarrados feitos animais na cama estreita e a qualquer movimento poderiam cair dela. A mulher sussurrou algo que seus ouvidos não captaram, mas que seu marido pareceu entender. Balançou a cabeça e olhou para Theo, fechando os olhos com compreensão, com pena.
        Ele disse:
        — Ela quer ir ao banheiro.
        Theo quase riu alto. Ele tinha oito anos de novo ouvindo a voz impaciente de sua mãe.
        — Você tinha que ter ido antes de partirmos.
        O que esperavam que dissesse?
         — Tinha que ter ido antes de eu amarrá-la.
        Um deles tinha que ter pensado nisso. Agora era tarde. Tinha perdido muito tempo com eles.
        Pensou que Julian e Miriam deviam estar impacientes, em meio às sombras das árvores, de ouvidos atentos a qualquer som de automóveis, desapontadas com cada carro que passava sem parar.
        E ainda havia tanto para se fazer, checar o carro, pegar alimentos. Levaria muitos minutos para desamarrar os múltiplos nós e ele não os tinha de sobra. Tinham que ficar ali na sua própria sujeira até Mrs.Collin chegar.
        Mas ele sabia que não podia fazer isso. Presa e desamparada como ela estava, cheia de medo e embaraço, sem poder ver seus olhos, era uma indignidade que ele não podia infligir a ela.
        Seus dedos começaram a desfazer os nós. Foi mais difícil do que esperava e ao final, acabou usando das tesouras para cortar, tentando não reparar nas marcas na pele. Tirá-la da cama não foi fácil, leve como um passarinho, não parecia tenso de terror. Quase um minuto se passou antes que ele começasse a se arrastar para o lavatório, seguindo-o pelo braço.
        Ele disse, envergonhado e impaciente tentando fazer uma voz autoritária:
        — Não tranque a porta.
        Esperou do lado de for a, resistindo contra a vontade de ir embora, ouvindo suas batidas do coração conforme os segundos passavam como minutos até ouvir a descarga e ela lentamente aparecer. Sussurrou:
        — Obrigado.
        De volta a cama, ajudou-a a deitar-se de novo, fez novas tiras de lençol e a amarrou mas desta vez menos forte que da anterior. Disse ao marido:
         — É melhor que você vá também. Você pode pular até lá, se eu soltar suas mãos.
        Mas aquilo não foi fácil. Mesmo com as mãos soltas e segurando o ombro de Theo, o velho não tinha forças e não conseguia saltar, Theo praticamente o arrastou até o lavatório.
        Ao fim, levou-o de volta a cama. Tinha pressa. Já havia perdido muito tempo.
        De mala à mão, foi até a parte dos fundos do primeiro andar. Tinha uma cozinha pequena por lá, meticulosamente limpa e ordenada, com um enorme congelador e uma mínima despensa.
        Mas os espólios foram desapontadores.
        O congelador, apesar do tamanho, tinha apenas uma embalagem de leite, um pacote com quatro ovos meia barra de manteiga em um prato coberto, um pedaço de queijo cheddar e um pacote de biscoitos aberto.
        No compartimento do freezer descobriu apenas um pacote de ervilhas congeladas e um duro e congelado pedaço de bacalhau. A despensa era igualmente ridícula, uma quantidade mínima de açúcar, café e chá. Era ridículo que uma casa assim estivesse tão mal de provisões. Sentiu raiva do casal de velhos como se seu sentimento e decepção fosse culpa deles. Presumivelmente deviam fazer compras toda semana e ele tivera azar quanto ao dia da semana. Pegou tudo que pode, colocando num saco plástico. Haviam quatro canecas na prateleira, pegou duas e achou três pratos sobre um escorredor na pia. De uma gaveta, pegou um par afiado de facas, três conjuntos de faca, garfo e colher. Colocou um pacote de fósforos no bolso. Correu para cima e desta vez no quarto da frente encontrou lençóis, cobertores e travesseiros na cama. Miriam teria que lavá-los para usar no parto. No banheiro pegou uma dúzia de toalhas que descansavam pegando ar. Devia ser o bastante.
        Guardou tudo na mala. Tinha guardado as tesouras no bolso, lembrando que Miriam havia falado sobre elas.
        Achou também no banheiro uma garrafa de desinfetante e a acrescentou aos espólios.
        Não podia ficar mais tempo na casa, mas um problema permanecia. Água.
        O leite não seria o bastante. Procurou por um vasilhame. Não achou sequer uma garrafa.
        Quase voltou a importunar os velhos em sua ânsia de encontrar algum tipo de receptáculo onde pudesse guardar água. Tudo que achou foi alguns cantis térmicos pequenos. Ao menos Miriam e Julian teriam café quente.
        Assim, começou a carregar o carro e ao final bebeu mais um pouco de água, molhando o rosto.
        Em um gancho junto a porta achou um velho casaco, um lenço de pescoço e duas capas de chuva, bem novas.
        Hesitou um momento antes de pegá-las e pendurá-las ao seu braço.
        Julian poderia precisar para não dormir no chão úmido.
        Mas estas eram as únicas coisas novas na casa e roubá-las pareceu o ato menos importante de sua mesquinha depredação. Abriu a porta da garagem.
        O citizen tinha apenas uma pequena mala, mas ele ajeitou tudo dentro dela cuidadosamente.
        O que não coube dentro foi parar no banco de trás.
        Quando saiu, notou para sua satisfação que chovia. O carro obviamente estava muito bem cuidado.
        Mas viu que no tanque havia menos que a metade de combustível e que não havia mapas no porta luvas.
        Provavelmente os velhos só o usavam para viagens curtas e para as compras. Parou o carro na rua, saiu e fechou a porta da garagem. Lembrou de aumentar o volume da tevê. Disse a si mesmo que tanta precaução não tinha tanta importância. Com a casa vizinha vazia, os gritos do casal nunca seriam ouvidos.
        Enquanto dirigia pensava no próximo movimento. Continuar com o plano ou arriscar-se? Xan devia saber por Rolf que eles planejavam cruzar a fronteira para Wales e procurar uma floresta. E ele iria esperar que eles mudassem o plano. Poderiam ir para qualquer lugar a oeste. A busca levaria bastante tempo mesmo se Xan enviasse um grande contingente de policiais ou granadeiros.
        Mas ele não o faria.
        Se Rolf tivesse sucesso em chegar até ele, revelando as novidades, até o encontro final, Xan manteria tudo em segredo até que a verdade fosse verificada. Ele não podia ariscar de que Julian caísse nas mãos de policiais inescrupulosos ou oficiais granadeiros ambiciosos. E Xan não sabia quanto tempo teria até o nascimento.
        Rolf não poderia contar o que não sabia. Ainda assim, será que ele confiava totalmente nos outros membros do Conselho?
         Não, Xan viria sozinho, provavelmente com uma pequena e seleta tropa.
        O que ocorreria ao final era inevitável. Mas ainda levaria algum tempo. A necessidade de manter a busca em segredo e o tamanho da área a cobrir, tudo iria lhe custar bastante.
        Então, em qual direção ir? Por um instante pareceu-lhe inventivo e acertado voltar a Oxford, esconder-se em Wytham, além da cidade, certamente o último lugar que Xan procuraria. Mas e quanto ao perigo da jornada?
        Qualquer estrada era perigosa e o seria em dobro quando os velhos fossem descobertos as sete e meia e contassem a historia. Porque parecia mais perigoso voltar do que continuar? Talvez porque Xan estava em Londres. E mesmo para um fugitivo comum Londres era um lugar óbvio para se esconder. Apesar de sua população decrescente, ainda possuía uma quantidade bastante grande de vilarejos, de becos secretos, de enormes e desertos blocos habitacionais. Mas Londres era cheia de olhos. Seus instintos diziam que precisava colocar no máximo e distancia entre Julian e Londres e continuar o plano original de se esconder em uma área remota dentro de uma floresta.
        Cada quilômetro de distância de Londres parecia um quilômetro de segurança.
        Enquanto dirigia cuidadosamente pela estrada deserta, ia sentindo o automóvel, procurava se convencer de que a fantasia de que encontrariam um lugar seguro era racional. Visualizava uma cabana de madeireiros, de cheiro adocicado, as paredes resinadas ainda mantendo o calor do sol de verão, apodrecida naturalmente como uma arvore dentro da floresta sobre a proteção de galhos como um dossel, por anos desertos e agora decaindo, mas com alguns trapos, fósforos, comida quente suficiente para os três.
        Haveria um regato de águas frescas, madeira cortada para a fogueira quando o outono desse a vez para o inverno.
        Podiam viver lá por meses se necessário, talvez até por anos.
        Seria o cenário idílico que sonhara ao lado do carro em Swinbrook, que ele havia zombado e menosprezado, mas agora encontrava conforto nele, mesmo sabendo que este sonho não passava de fantasia.
        Em algum lugar no mundo outras crianças nasceriam; esta criança não seria a única, não estaria mais em perigo. Xan e o Conselho não precisariam tirá-la de sua mãe mesmo sabendo tendo sido ela a primeira de uma nova era. Mas tudo que dizia respeito ao futuro e como seria encarado e tratado viria quando o tempo chegasse.
        Pelas próximas semanas os três poderiam viver em segurança até a criança nascer.
        Não precisava ver além disso e disse para si mesmo que ele não precisava ver além disso.
        Sua mente e toda sua energia física estivera tão focada na tarefa que não lhe ocorreu que seria tão difícil localizar o local onde elas estavam.
        Virando a direita na encruzilhada, tentou lembrar o quão longe tinha caminhado antes de chegar ali na cidade.
        Mas a lembrança da caminhada em sua memória tornara-se medo, ansiedade e sede agonizante, sem conseguir se lembrar claramente da distância ou do tempo gasto.
        Uma tímida mata surgia à esquerda, parecendo-lhe familiar, o que o encheu de confiança. mas quase imediatamente as árvores chegaram ao fim dando lugar a um campo aberto cercado. Então mais árvores e o começo de um muro de pedras.
        Dirigia vagarosamente, com os olhos na estrada. Então viu algo que temia, mas esperava achar.
        O sangue de Luke espalhado no asfalto, não mais vermelho, uma mancha escura aos faróis, e a esquerda as pedras e as ruínas do muro.
        Dirigiu o citizen para próximo do muro, saltou e entrou na floresta.
        Sobre o som de seus passos ele ouviu a imprecação de Miriam:
        — Graças a Deus, começávamos a ficar preocupadas. Conseguiu um carro?
        — Um citizen. Foi tudo que arranjei. Não havia muita coisa na casa. Temos algumas garrafas térmicas com café.
        De volta ao carro, Miriam abriu uma delas e bebeu o café cuidadosamente, cada preciosa gota e então a passou para Julian.
        Disse com sua voz calma habitual:
        — As coisas mudaram, Theo. Não temos muito mais tempo. O bebê começou a nascer.
        Theo disse:
        — Quanto tempo?
        — Não dá para precisar. Pode ser daqui a algumas horas. Pode ser em 24 horas. Julian está nos primeiros estágios, mas temos que achar um lugar rápido.
        E então, toda sua previa indecisão deu lugar à clareza. Um nome veio a sua mente, tão claro que for a como uma voz lhe falando baixo.
        Wychwood. A floresta de Wychwood.
        Lembrou de um passeio solitário de verão, um caminho na sombra de um muro de pedras semi demolido conduzindo para dentro da floresta então uma clareira de musgo e um lago e um caminho à direita, uma cabana de madeira. Wychwood não fora sua primeira escolha nem a mais óbvia. muito pequena, muito fácil de ser vasculhada, menos de 20 quilômetros de Oxford. Mas agora a proximidade parecia uma vantagem.
        E Xan apostaria em um lugar que ele se lembrasse, que conhecia e que certamente teriam encontrado abrigo.
        Disse:
        — Vamos para o carro. Vamos voltar. Vamos para Wychwood. Comeremos no caminho.
        Não havia tempo para discussão, para pesar possibilidades alternativas. As mulheres já tinham muito com que se preocupar. Ele devia decidir para onde ir e como chegar lá.
        Não tinha medo de ser atacado novamente pelos Cara Pintadas. Este medo agora parecia preencher aquela sua convicção meio supersticiosa ao inicio da jornada de que eles estavam destinados a uma tragédia de maneira que não poderiam escapar e que seria imprevisível quando ocorresse.
        E chegara a hora.
        Como um passageiro de avião, com medo de voar e esperando cair a cada vez que o avião decola, só lhe restava esperar pelo desastre a frente e que houvesse sobreviventes.
        Mas sabia que nem Julian nem Miriam poderiam tão facilmente exorcizar a experiência aterrorizante com os caras pintadas. O medo se apoderara do pequeno carro. Pelos primeiros dez quilômetros, sentaram-se rígidas atrás dele, os olhos fixos na estrada como se esperassem a cada curva, uma pequena obstrução e ouvir novamente os gritos selvagens de triunfo e ver de novo as tochas, o fogo e aqueles olhos brilhantes.
        Havia outros perigos também. Não podiam dizer a que horas exatamente Rolf se fora. Se já tinha chegado a Xan, então a caçada devia estar já acontecendo, os bloqueios de estrada estariam sendo montados e os helicópteros sendo abastecidos aguardando a primeira luz do dia. Como qualquer criatura sendo caçada, o instinto de Theo dizia que precisava se esconder, buscar abrigo na escuridão. Mas as ruas da cidade representavam uma ameaça própria. Por quatro vezes, temendo o risco de uma segunda batida, teve que frear violentamente frente a fendas e rachaduras profundas no asfalto e dar ré. Uma vez, quase perto das duas horas da manhã, sua manobra quase resultou em um desastre. As rodas de trás caíram em um fosso e precisaram de meia hora para ele e Miriam devolverem o citizen à estrada.
        Amaldiçoou a falta de mapas, mas à medida que as horas passavam, o céu se tornava mais claro e pode ver ainda as estrelas e a mancha da Via Láctea e conseguiu se orientar pela Ursa maior e a estrela Polar.
         Todo seu conhecimento erudito não fornecia mais do que um cálculo grosseiro de sua rota e o perigo de perder-se era constante. De tempos em tempos uma placa de sinalização, lembrando patíbulos do século dezoito, e ele pode fazer seu caminho de forma cuidadosa pelo caminho arruinado, meio que esperando ouvir o bater de correntes, e ver um corpo dançando na luz do fogo. A noite ficara mais fria agora, um antegozo do inverno que chegava; o ar não cheirava mais a grama e a terra morna, feria suas narinas com o odor penetrante e anti-séptico, como se estivesse próximo do mar.
        Cada vez que desligava o motor o silêncio era absoluto. De pé junto a uma placa de trânsito cujos nomes inscritos pareciam de uma língua estrangeira, sentiu-se desorientado, como se a escuridão dos campos vazios, a terra sob seus pés, o estranho perfumado ar, não fosse mais seu habitat natural  e que não havia local seguro ou lar para sua espécie ameaçada, em qualquer parte sob aquele céu impiedoso.
        Logo depois de começarem a rodar o trabalho de parto de Julian praticamente parou. Isso diminuiu sua ansiedade, as dilatações não eram menos desastrosas e a segurança tinha precedência sobre a velocidade.
        Mas ele sabia que as dilatações costumavam enfraquecer as mulheres.
        Achava que agora teriam pouca chance de iludir Xan por semanas ou dias. Se o trabalho de parto fosse um alarme falso eles ainda assim podiam cair nas mãos de Xan antes da criança nascer. De temos em tempos, Miriam se debruçava para frente e pedia a Theo que parasse na margem da estrada para que Julian pudesse se exercitar. Ele também aproveitava para sair e esticar as pernas, enquanto observava as duas figuras escuras andando para lá e para cá, podia ouvir suas vozes sussurrando e sabia que estavam distantes dele, por mais que alguns metros de pista , que compartilhavam uma intensa preocupação e que ele estava excluído.
        Elas mostravam pouco interesse e mostravam pouca preocupação sobre a rota e os detalhes da jornada. Tudo aquilo, e aquele silêncio, parecia reforçar era problema seu.
        Mas pela manhã ainda cedo, Miriam disse que as contrações haviam recomeçado e que estavam mais fortes.
        Ela não podia esconder a felicidade de sua voz. E antes da alvorada eles tiveram certeza de onde estavam.
        A última placa dizia Chipping Norton. Era hora de deixar as ruas e arriscar-se pela estrada principal.
        Ao menos teriam agora uma pista melhor.
        Não teria que dirigir com medo de colidir. Nenhum carro passava por eles e depois de dois quilômetros, suas mãos relaxaram ao volante. Dirigia com cuidado, mas rápido, preocupado em chegar rápido à floresta.
        O nível de gasolina começara a ficar perigosamente baixo e não havia como reabastecer.
        Estava surpreso pelo pouco terreno que haviam percorrido desde que saíram de Swinbrook.
        Parecia para ele que estavam há semanas na estrada: insones, sem provisões, viajantes infelizes.
        Sabia que nada poderia fazer para evitar serem capturados.
        Se chegassem a uma barreira policial não haveria como blefar ou tapeá-los, a polícia estadual não tinha Ômegas. Tudo que podia fazer era dirigir e rezar.
        De tempos em tempos ouvia Julian gemer e o murmúrio baixo e apaziguador de Miriam, mas pouco se falavam.
        Depois de quase um quarto de hora ele ouviu Miriam mexendo nas panelas e com uma caneca a mão.
        — Temos que preparar alguma comida. Julian precisa estar forte para o parto. Bati alguns ovos com leite e acrescentei açúcar. Esta é a sua parte, eu farei o mesmo pra mim e Julian beberá todo o resto.
        A caneca, apenas cheia quase pela metade e a doçura da mistura normalmente o deixariam enjoado. Mas bebeu ávido de uma vez só, querendo mais, sentindo-se ganhar força. Devolveu a caneca e recebeu um biscoito besuntado com manteiga com um pedaço duro de queijo cheddar por cima.
        Nunca comeu nada tão gostoso.
        Miriam disse:
         — Dois para mim, dois para você e quatro para Julian.
        Julian protestou:
        — Devemos repartir igualmente... sua última palavra fora interrompida por dor.
        Theo perguntou:
        — Estamos guardando algum de reserva?
        — De três quartos de um pacote de biscoitos e de duzentos gramas de queijo? Precisamos ficar fortes agora.
        O queijo e os biscoitos secos aumentaram sua sede e terminaram a refeição bebendo água de uma panela.
         Miriam guardou as canecas e o resto em um saco plástico ao chão Então, como se sentindo que suas palavras tivessem sido de reprovação, acrescentou: — Você teve azar, Theo. Mas conseguiu um carro e não foi fácil. Sem ele nós não teríamos qualquer chance.
        Ele achou que ela estava dizendo: — Dependemos de você e você não pode falhar conosco. e sorriu pensando que ele, que pouco se importava com a aprovação alheia, precisasse de seu elogio ou aprovação.
        Afinal chegaram aos arredores de Charlbury. Ele diminuiu, procurando pela velha estação de Finstock, na curva da estrada; Depois da curva, procurou a pista da direita que levava para a floresta. Costumava vir de Oxford e mesmo assim podia facilmente se enganar e perder a entrada. Com alivio passou pelos prédios da estação, fez a curva e viu a direita a coluna de cabanas de verão feitas de pedra. Estavam vazias, com tábuas nas janelas e portas, quase abandonadas. Por um instante pensou que poderiam providenciar refúgio, mas eram óbvias demais, muito perto da estrada. Sabia que Julian preferia ficar dentro da floresta.
        Dirigiu pela trilha em direção à distante barreira sólida de árvores.
        Logo haveria luz. Olhou para o relógio e imaginou que Mrs.Collins já teria chegado e solto o casal de velhos. Agora deveriam estar provavelmente se deliciando com uma xícara de chá, contando sobre sua provação, esperando pela polícia chegar. Passou uma marcha para vencer uma parte difícil em subida ele ouviu Julian soltar um som entre um grito e um gemido.
        E a floresta os acolheu com braços fortes e negros.
        A trilha ia ficando mais estreita à frente e as árvores se fechavam. Um muro de pedras na direita, meio demolido e pedaços quebrados dele no caminho. Engatou a primeira marcha e tentou manter o carro nivelado.
        Depois de quase um quilômetro e meio, Miriam disse:
        — Acho que podemos seguir andando. Será melhor para Julian.
        As duas mulheres saíram, com Julian apoiada contra Miriam, caminhando com cuidado.
        Um coelho apareceu petrificado sob as luzes dos faróis do carro, então sumiu. Era um cauda branca.
        Subitamente houve uma imensa agitação e uma forma pálida saiu dos arbustos, quase acertando o carro. Um veado e seu filhote. Deixaram os arbustos juntos e desapareceram além do muro, com os cascos batendo nas pedras do pavimento.
        De tempos em tempos as duas mulheres paravam e Julian se reclinava apoiada pelo braço de Miriam.
        Depois que isso se repetiu pela terceira vez, Miriam sinalizou para que Theo parasse.
        Ela disse:
        — Melhor ficarmos no carro agora. Quanto falta?
        — Ainda estamos nos domínios do campo aberto. Deve vir ainda um desvio a direita e então mais um quilômetro e meio.
        O carro estremeceu. A lembrança do desvio se revelou como uma encruzilhada e por um momento ele ficou indeciso.
        Virou a direita onde o caminho ainda estreito subia. Estava claro que este era o caminho certo para o lago e depois ele lembrava da cabana de lenhador. Miriam disse:
         — Tem uma casa à direita.
        Ele virou a cabeça a tempo de ver, uma distante forma escura ao final de uma abertura estreita em meio a profusão de arbustos e árvores. Solitária em um declive aberto do campo. Miriam falou:
        — Não, muito óbvia e muito visível. Melhor continuarmos.
        Se moviam agora pelo coração da floresta. O caminho parecia interminável. E a cada metro parecia tornar-se mais estreito e já ouvia os galhos arranhando as laterais do carro. No alto, um sol fortalecedor lançava uma luz difusa e branca visível acima dos ramos nas copas trançados e espinheiros. Pareceu para ele, controlando a velocidade, de que escorregavam impotentes para dentro de um túnel verde escuro que terminaria em um recanto impenetrável. Imaginava que sua memória poderia tê-lo traído e que deviam ter virado a esquerda quando o caminho então se abriu num gramado.
        Viram à frente o pálido brilho de um lago.
        Parou o carro alguns metros da margem e saiu para ajudar Miriam a tirar Julian meio deitada em seu assento.
        Por um instante ela o abraçou, respirando forte, então o soltou, sorriu e caminhou para o lago, com a mão no ombro de Miriam. A superfície do açude - não dava para chamar de lago - era tão rasa que lâminas verdes de folhas e erva d´ água que parecia ser uma extensão do mato.       
        Além desta fria cobertura verde e viscosa como melado, de tempos surgiam bolhas que vinham à tona se avolumavam, estouravam e morriam.
        Nas partes claras de água entre as ervas podia ver refletido partes do céu assim que a névoa da manhã se dissipava para revelar a opaca primeira luz do dia. Por baixo da superfície brilhante, nas profundidades ocres, tendões de plantas marinhas, brotos confusos e ramos partidos revelavam-se em meio a lama e na distancia um pato preto singrava com pressa e agitado e um cisne solitário abria caminho majestoso entre a vegetação marinha.
        O fim do açude era marcado por árvores que cresciam quase que no limite, carvalhos, fraxinus e plátanos, fornecendo um fundo verde escuro, amarelo e dourado avermelhado que parecia a primeira luz do dia, apesar das sombras outonais, manter algo do frescor e do brilho da primavera.
        Julian havia se sentado a beira. — A água parecia limpa aqui e a margem bem firme. É um bom lugar para nos lavarmos.
        Eles se juntaram a ela e de joelhos, mergulharam os braços no lago e molharam seus rostos e cabeças.
        Riram com prazer. Theo viu que parte de seu braço estava esverdeado de musgo e lama. Não dava para beber aquela água, mesmo fervida.
        Quando voltavam para o Citizen, Theo disse:
        — A pergunta é aonde vamos nos desfazer do carro. Pode ser seguro como abrigo, mas é muito visível e estamos quase sem combustível. Provavelmente só nos levaria por mais um quilômetro.
        Foi Miriam quem disse:
        — Deixe-o aí.
        Ele olhou seu relógio. Quase nove da manhã. Pensou que deveriam ouvir as notícias. Banal, previsível, sem interesse, poderia se dizer, ouvir as notícias das nove era um pequeno gesto de despedida antes de cortarem o contato com o mundo. Surpreendeu-se de não ter pensado no radio antes disso, que não o tivesse ligado durante o caminho.
         Tinha dirigido tão tenso que o som de uma voz desconhecida e mesmo o som da música seria intolerável.
        Esticou o braço pela janela aberta e o ligou. Ouviram impacientes os detalhes do tempo, informações sobre rodovias que estavam oficialmente fechadas ou que não seriam mais reparadas até as pequenas preocupações de um mundo que definhava.
        Estava quase desligando quando a voz do locutor mudou, tornando-se pausada e mais portentosa:
        — Este é um alarme! Um pequeno grupo de dissidentes, um homem e das mulheres, estão dirigindo um citizen azul roubado, pelos lados de Welsh. Na última noite um homem conhecido como Theodore Faron de Oxford, forçou entrada em uma casa nas cercanias de Kington, amarrou seus moradores e roubou seu carro. A esposa, Mrs. Daisy Cox, foi achada esta manha amarrada e morta na cama. O homem está sendo agora procurado por assassinato. Ele está armado de revólver. Qualquer pessoa que avistar este veiculo ou as três pessoas não deve se aproximar deles e sim telefonar imediatamente para a polícia. A placa do carro é MOA 694. Vou repetir o número, MOA 694. Repetirei agora o alerta. O homem está armado e é perigoso. Não se aproximem.
        Theo não percebeu ter desligado o rádio. Estava consciente apenas do bater de seu coração e de uma sensação doentia de penúria que o envolvia, fisicamente como uma doença mortal, o horror e auto-repugnância forçando-o a cair de joelhos. Pensou: — Se isso é culpa, não consigo carregá-la.
        Ouviu Miriam dizer:
        — Então Rolf encontrou o Governador, já sabem sobre os ômegas e que somos em três agora. Mas ainda temos um consolo, eles ainda não sabem que o nascimento é iminente. Rolf não saberia dizer a data esperada do nascimento. Ele não sabia. Ele acha que Julian ainda tem um mês pela frente. O Governador não poderia pedir às pessoas que procurassem o carro se houvesse a chance de haver uma criança recém-nascida dentro dele.
        Ele disse a tempo:
        — Não há consolo algum. Eu a matei.
        A voz de Miriam foi firme, mais alto que o normal, quase ferindo seus ouvidos:
        — Você não a matou! Se ela fosse morrer do choque era para acontecer quando lhe mostrou a arma. Você não sabe do que ela morreu. Pode ter sido por causas naturais, deve ter sido. Aconteceria de qualquer jeito. Ela era velha e tinha um coração fraco. Você nos contou. Não foi culpa sua, Theo, você não quis matá-la.
        Não, ele balbuciou, não queria isso. Eu não queria ser um filho egoísta, um pai desalmado, um péssimo marido. Quando eu me tornei estas coisas? Cristo, o que eu não faria se eu pudesse saber como!
        Disse:
        — O pior foi que eu gostei. Eu realmente gostei!
        Miriam tirava os cobertores do carro.
         — Gostou de prender aquele velho e sua mulher? É claro que não gostou! Você fez o que precisava fazer.
        — Não por ter prendido, não, mas gostei da excitação, do poder, de saber que podia fazê-lo. Não foi de todo ruim. Para eles sim, não pra mim!
        Julian não falava. Chegou perto e pegou sua mão. Rejeitando o gesto, ele virou-se para ela com ódio:
        — Quantas outras vidas sua criança irá custar antes de nascer? E para que? Você está tão calma, tão tranqüila, tão segura de si. Fala de uma filha. Que tipo de vida ela vai ter? Você acha que ela será a primeira de muitos nascimentos que virão, que mesmo agora existem outras mulheres grávidas que ainda não sabem que carregam uma nova vida no mundo. Mas vamos supor que esteja errada. Vamos supor que esta seja a única. A que inferno você a condenou? Pode imaginar a solidão dos últimos anos, quando ela tiver mais de vinte, anos sem fim, sem esperança de ouvir outra voz humana? Nunca, nunca, nunca! Meu Deus, já imaginou isso?
        Julian disse baixo:
        — Você acha que eu não pensei nisso e em muito mais? Theo, não posso desejar que ela não tivesse sido concebida. Não posso pensar nela sem sentir felicidade.
        Miriam, sem perder tempo, já tinha colocado para fora a maleta e as capas de chuva e as panelas de água.
        Falou mais irritada do que com raiva:
        — Por Deus, Theo, controle-se. Precisávamos de um carro e você conseguiu um. Talvez você pudesse ter conseguido um melhor e talvez custasse menos. Mas você fez o que fez. Se quer se acabar em culpa, se quer assim, deixe para depois. OK, ela está morta e você se sente culpado e sentir-se assim não é algo que você goste. Muito mal. Dê um jeito. Por que você não se sentiria culpado? É parte do ser humano. Ou não sabia?
        Theo queria dizer que nos últimos quarenta anos muita coisa ele não sabia, mas as palavras, com aquele pesado remorso, soavam falsas e mesquinhas.
        Ao invés, ele disse:
        — É melhor escondermos o carro e rápido. Aquela transmissão nos causou um problema.
        Ele soltou o freio de estacionamento e colocou seu ombro contra a traseira do Citizen, firmando o pé na grama, satisfeito pelo chão estar seco. Miriam cuidou do lado direito e juntos empurraram.
        Por segundos, seus esforços se mostraram inexplicavelmente inúteis. Então o carro começou a se mover.
        Ele disse:
         — Dê um empurrão forte quando eu disser. Não queremos que ele atole na lama.
        As rodas da frente estavam quase no limite do lago quando ele gritou :
        — Agora—  e puseram toda sua força contra o carro. O carro foi para borda e caiu n’água com um — splash—  que pareceu acordar todos os pássaros da floresta.
        O ar se encheu de piados e gritinhos e os galhos altos das árvores se agitaram.
        Um bocado de água respingou nele, no rosto. A cobertura de folhas flutuantes se moveu e dançou. Observaram, em agonia, lentamente, quase em paz, o carro começar a afundar, a água gorgolejando pelas janelas abertas.
        Antes que desaparecesse, num impulso, Theo tirou o diário do bolso e o atirou no lago.
        E então veio um momento de terror, vivo como um pesadelo, mas do tipo que não poderia escapar acordando.
        Que eles estavam lá dentro, presos dentro do carro que afundava, a água entrando e ele procurava desesperadamente pela maçaneta da porta , tentando prender o fôlego sentindo a agonia, gritando por Julian mas sabendo que não podia abrir a boca ou ela se encheria de lama e Julian e Miriam estava atrás, afogando-se e nada havia que ele pudesse fazer. Suando, com a testa e as mãos úmidas, forçou seus olhos a se afastarem do horror do lago e olhou para o céu, tentando arrancar de sua mente o terror imaginário e substituí-lo pelo terror da normalidade.
        O sol era uma lua cheia pálida, mas brilhante e luminosa, auréola na nevoa. Fechou os olhos e esperou passar o horror e então pode olhar de novo para o lago.
        Olhou para Julian e Miriam meio que esperando ver em seus rostos o mesmo pânico que momentaneamente havia transformado o seu. Mas elas olhavam o carro que afundava com uma calma, quase interessada, vendo as bolhas e a vegetação tumultuada. Ele se maravilhou com a calma delas, a aparente habilidade de apagar coisas da memória, todo o horror em relação aquele momento.
        Ele disse, com a voz áspera:
        — Luke. Você nunca falou dele quando estávamos no carro. Nem mencionou seu nome desde que o enterramos. Você pensa nele? A pergunta soou como uma acusação.
        Miriam virou seu olhar do lago para ele e disse:
        — Nós pensamos nele tanto quanto nós podemos. O que interessa agora é dar segurança para sua criança.
         Julian veio até ele e tocou seu braço. Ela disse, como se ele fosse quem mais precisasse de alento.
        — Haverá um tempo para chorarmos por Luke e Gascoigne, Theo.
        O carro desaparecera. Ele tivera medo de que a água não o cobrisse por ser uma parte não tão funda, que o teto ficasse visível mesmo sob a cobertura da vegetação, mas sumiu na escuridão lamacenta.
        Miriam disse:
         — Tem uma faca?
        — Não. Você não tem?
        — Droga, ficaram no carro. Agora não importa. Não sobrou nada para comermos.
        Ele disse:
        — É melhor levarmos as coisas para a cabana. Fica a uns duzentos metros por aquele caminho à direita.
        Deus, pensou, por favor faça com que esteja lá, que ainda esteja no mesmo lugar. Era a primeira vez que pedia algo a Deus, em quarenta anos, mas as palavras eram menos um pedido do que um desejo um tanto supersticioso de que alguma forma, devido à intensidade de seu pedido, ele pudesse assegurar a existência da cabana. Agarrou um travesseiro e as capas de chuva, um pote de água em uma das mãos e a mala na outra. Julian cobriu-se com um dos cobertores e pegou uma das panelas, até que Miriam a tirasse de suas mãos:
        — Carregue o travesseiro. Eu tomo conta do resto.
         Assim carregados, tomaram lentamente o caminho que subia. Foi quando ouviram o matraquear do helicóptero. Meio cobertos pelos galhos entrelaçados ainda assim precisavam de um pouco mais de encobrimento mas instintivamente trocaram o caminho pela massa confusa e verde de velhos arbustos e lá ficaram sem se mexer, quase sem respirar, como se suas respirações pudessem alertar aquele objeto ameaçador, para olhos e ouvidos atentos. O ruído cresceu tornando-se um estridor.
        Certamente deviam estar acima deles.
        Theo esperava que os arbustos se balançassem violentamente. Então o helicóptero passou a circular, indo e então vindo, voltando sempre com renovada apreensão. Foram quase cinco minutos antes que o som do motor finalmente desaparecesse distante.
        Julian disse baixo:
        — Talvez não estejam procurando por nós. Sua voz era fraca e de repente ela dobrou-se de dor e agarrou Miriam.
        A voz de Miriam era severa:
        — Acho que não estavam apenas passeando. De qualquer forma, não nos encontraram. Virou-se para Theo:
        — Estamos ainda muito longe?
        — Uns cinqüenta metros, se me lembro corretamente.
        — Esperamos que sim.
        O caminho ficara mais selvagem agora, estreitando a passagem, mas Theo que caminhava no final da fila, se sentia pior do que simplesmente pelo esforço da sua carga. Sua primeira avaliação sobre as intenções de Rolf pareciam agora ridiculamente otimistas. Porque ele teria que tomar o caminho mais devagar e seguro até Londres? Por que precisaria se apresentar pessoalmente ao Governador? Tudo que precisava era um telefone público. Todo cidadão tinha acesso ao número de telefone do Governador. Esta aparente acessibilidade era parte da política de franqueza de Xan. Você não podia sempre falar com ele, mas podia tentar. Alguns até conseguiam. Estes, uma vez identificados e minuciosamente examinados, recebiam uma prioridade. Lhe diriam então para não dizer nada a ninguém, para não falar nada,  até que o procurassem, quase certamente um helicóptero. E provavelmente em vinte horas ele estaria em suas mãos.
        E fugitivos não eram difíceis de ser achados. Pela manhã Xan já devia saber do carro roubado, o quanto de gasolina havia no tanque, e de quantos quilômetros eles poderiam viajar. Bastava cravar um compasso em um mapa e desenhar um círculo. Theo não tinha dúvidas do significado daquele helicóptero.
        Já os procuravam do ar, marcando as casas mais isoladas, procurando pelo carro. Xan já devia ter organizado a busca pelo solo. Mais ainda tinham uma esperança. Ainda daria tempo para a criança nascer, como sua mãe queria, em paz, em privacidade, sem ninguém para ver, somente as duas pessoas que ela amava. Não seria uma busca rápida, tinha certeza disso. Xan não iria querer que um exército chamasse a atenção pública, ainda não, não até que ele pessoalmente pudesse checar a veracidade da história de Rolf.
        Ele usaria apenas homens selecionados cuidadosamente para esta ação.
        Ele não podia ainda ter certeza de que estavam escondidos na floresta. Rolf poderia ter dito que este era o plano original, mas Rolf não estava mais no comando.
        Ele contava com isto, com a certeza de que era ele que Julian precisava e contava, quando ouviu:
        — Theo, olhe! Não é linda?
        Ele foi para junto delas. Julian estava de pé ao lado de um enorme espinheiro alto e pesadamente carregado de bagas vermelhas.
        Do alto pendia uma cascata branca de barba-de-velho (Clematis vitalba), delicada como um véu, onde as bagas brilhavam como jóias. Olhando para sua face alegre, pensou: Eu só sei que é belo, mas ela pode sentir seu encanto. Olhou para além dela, os arbustos carregados de frutinhas vermelhas. Era como se em um instante a floresta tivesse se transformado de um lugar sombrio e ameaçador, onde pensava que iriam morrer, em um santuário, belo e misterioso, despreocupado com os três intrusos, mas um lugar em que nada vivente fosse estranho ou perigoso para eles.
        Então ouviu Miriam, sua vez era feliz e exultante:
        — A cabana continua aqui!
        A cabana era maior que ele esperava. Ao contrario do que costumava acontecer, a memória diminuía as coisas, não aumentava. Por um momento parou imaginando se aquela cabana dilapidada, de três paredes de madeira escura, de trinta metros era a mesma que ele se lembrava.
        Reparou na bétula prateada a direita da entrada. Da última vez a árvore era apenas uma arvorezinha nova e inexpressiva, mas agora os galhos maiores chegavam ao telhado. Viu com alívio que o teto parecia sólido, apesar de faltarem algumas tábuas. Algumas na lateral também faltavam ou arrancadas e a cabana, em sua solidão decrépita, parecia não ter visto mais do que alguns poucos invernos. Um grande transportador de madeira jazia enferrujado em meio ao mato alto, os pneus arrebentados e apodrecendo e uma imensa roda caída ao lado dele. Nem todas as toras haviam sido despachadas quando o processo de extração chegou ao seu fim, uma pilha ainda perfeita permanecia próxima a duas enormes árvores. O caminhão desnudo se assemelhava a ossos polidos espalhadas ao chão.
        Lentamente, quase cerimoniosamente, entraram na cabana, olhos ansiosos, como inquilinos tomando posse de uma desejada porém desconhecida residência.
        Miriam disse:
        — Bem, ao menos temos um teto e parece ter madeira seca e cortada para fazer fogo.
        Apesar da sebe de arbustos desordenados e algumas árvores, era menos privado do que Theo se recordava. A segurança poderia depender menos da cabana ser desconhecida do que da improbabilidade de um  passeador casual encontrá-la na floresta. Não era um passeador casual que ele temia. Se Xan decidisse implantar uma busca pelo chão em Wychwood, seria uma questão de horas até eles descobrirem-no ali, por mais secreto fosse seu covil.
        Disse:
        — Não estou seguro se devemos acender um fogo. É muito importante?
        Miriam respondeu:
        — O fogo? Agora não muito, mas será quando o bebê tiver nascido e a luz do dia se for. As noites estão ficando mais frias. O bebê e a mãe precisam ficar aquecidos.
        — Então nós arriscaremos, mas só quando for necessário. Eles podem estar procurando por fumaça.
        A cabana parecia ter sido abandonada com alguma pressa, a não ser talvez, que os trabalhadores esperassem voltar e foram frustrados ao saber que a empresa fechara as portas. Havia duas pilhas de pranchas aos fundos e uma de pequenas achas e parte de uma arvore cortada obviamente usada como mesa, pois estava repleta de latas e duas xícaras esmaltadas. O telhado era firme e o chão macio, coberto por cascas e serragem.
        Miriam disse:
         — Acho que aqui está bom.
        Começou a chutar e a juntas as cascas para formar uma cama improvisada, cobriu com duas capas de chuva e ajudou Julian a se deitar e pôs um travesseiro sob sua cabeça. Julian soltou um murmúrio de bem estar, virou-se de lado dobrando as pernas.  Miriam a cobriu com um cobertor e o casaco de Luke.
        Então ela e Theo foram se ocupar de arrumar seu deposito; o tacho, o resto da água da panela, as toalhas, as tesouras e uma garrafa de desinfetante. O pequeno estoque pareceu patético para Theo, em sua inadequação.
        Miriam ajoelhou-se junto a Julian e gentilmente a abraçou. Disse para Theo:
         — Se você quiser dar uma volta, fique a vontade. Vou precisar da sua ajuda, mas não agora.
        Ele saiu, sentindo-se rejeitado e foi se sentar na arvore cortada. A paz do bosque o envolveu.
        Fechou os olhos e aguçou os ouvidos. Depois de alguns minutos parecia poder ouvir uma miríade de pequenos sons, normalmente inaudíveis para os ouvidos humanos, a queda de uma folha, um galho fino se partindo, a vida da floresta, secreta, diligente, abstraída dos problemas dos três intrusos. Mas não ouviu nenhum som humano, nada de passos, nenhum som de carros, os sons das pás do helicóptero.
        Duvidava que Xan tivesse rejeitado Wychwood como um esconderijo possível, onde podiam estar a salvo, ao menos por algumas horas, o bastante para que a criança nascesse.
        E pela primeira vez, Theo entendeu e aceitou o desejo de Julian de dar a luz em um local secreto.
        Este refúgio na floresta, mesmo sendo inadequado, com certeza era a melhor alternativa.
        Imaginou outra vez a alternativa: o leito altamente esterilizado, das máquinas para tratar qualquer emergência médica, os distintos obstetras reunidos, de máscara e luvas, de pé juntos, por que depois de 25 anos havia uma esperança de segurança em suas memórias e experiências, cada qual desesperado pela honra de entregar ao mundo uma criança milagrosa, e ainda assim, um tanto assustado por tamanha responsabilidade.
        Podia ver os ajudantes, as enfermeiras e parteiras uniformizadas, anestesistas e por trás, em maior número, as câmeras de televisão e as equipes, o Governador esperando para dar a notícia do momento ao mundo em expectativa.
        Isso era mais do que a destruição da privacidade, arrancando fora qualquer dignidade pessoal, que Julian temia. Para ela, Xan era o demônio. A palavra tinha um significado para ela. Ela havia enxergado claramente através da força, do charme, da inteligência, o que havia dentro do coração dele, que não era vazio e sim repleto de trevas.
        Qualquer que fosse o futuro para seu filho, ela queria que o mal não estivesse presente em seu nascimento.
        Podia entender agora sua escolha obstinada e pareceu para ele, sentado em paz e na quietude, ter sido uma escolha certa e sensata. Mas esta obstinação já custara a vida de duas pessoas, uma delas do pai da criança.
        Ela poderia argumentar que coisas boas poderiam vir de acontecimentos ruins, era mais fácil do que dizer o contrário. Ela acreditava fortemente na misericórdia e na justiça de seu Deus, mas que opção tinha ela agora a não ser acreditar? Não tinha mais o controle da sua vida, ou parar as forças que operavam em seu corpo. Se seu Deus existia, como podia ser ele o Deus do Amor? A pergunta era banal, mas para ele nunca fora devidamente respondida.
        Ouviu a floresta novamente, em sua vida secreta. Agora os sons pareceram ficar mais audíveis, ameaçadoras e cheias de terror; os comedores de carcaça se alimentando de suas presas, a crueldade da satisfação da caça, o instinto irreprimível por comida, por sobrevivência. O mundo físico suspenso em dor, o grito na garganta e no coração. Se seu Deus era parte de seu tormento, criador e provedor, então Ele era o Deus dos Fortes, não dos fracos. Contemplava o abismo estabelecido entre Julian e ele através de sua crença, mas sem se espantar.
        Não podia diminuí-lo, mas podia esticar suas mãos através dele. E talvez ao final encontrasse o amor.
        Sabia pouco sobre ela, e ela dele. A emoção que sentia por ela era tão misteriosa quanto irracional.
        Ele precisava entendê-la, definir sua natureza, analisar o que ele sabia estar além da análise. Mas alguma coisas ele sabia agora, e talvez fosse tudo que precisava saber. Ele desejava o seu bem. Colocaria isso a frente do seu próprio. Não podia mais separar-se dela. Morreria por ela.
        O silêncio foi quebrado por um gemido seguido por um choro. Consciente de sua necessidade de estar com ela, correu para dentro do barraco. Ela estava deitada de lado, quase em paz e sorriu para ele. Miriam segurava sua mão, ajoelhada junto dela.
        Ele disse:
        —  O que posso fazer? Deixe-me ajudar. Quer que eu fique?
        Julian disse:
        — É claro que pode ficar. Queremos que fique. Mas talvez você prefira se ocupar preparando já a fogueira. Assim teremos fogo quando precisarmos.
        Viu que seu rosto estava inchado, a testa úmida de suor. Mas ficou maravilhado com sua calma.
        E ele tinha trabalho por fazer, o que o fazia sentir-se confiante. Se achasse algumas achas secas, poderia ter certeza de fazer um fogo que produzisse pouca fumaça. Praticamente não ventava, mesmo assim tinha que ter cuidado para que não construísse de modo que a fumaça não fosse em direção a Julian ou do bebe.
        Se a fizesse perto da frente da cabana seria melhor, onde o teto estava partido, mas ainda perto bastante para aquecer a mãe e a criança. E ele precisava contê-lo de maneira que não houvesse perigo de se espalhar.
        Algumas das rochas da parede serviriam bem para a fogueira. Foi pegá-las, cuidadosamente selecionando-as por tamanho e formato. Pensou que poderia usar as mais pedras maiores e chatas para produzir um tipo de cano de chaminé. Arranjou as pedras em um círculo, encheu o círculo com as lascas de madeira seca que achou, então acrescentou algumas achas. Finalmente deitou as pedras por cima, direcionando a fumaça para fora da cabana.
        Ao terminar, sentiu-se satisfeito como um menino. E quando Julian se ergueu e riu com prazer, riu com ela.
        Miriam disse:
        — Seria melhor se você se ajoelhar-se ao lado dela e segurasse sua mão.
        O próximo espasmo de dor a fez se dobrar tão violentamente que ouviu suas articulações.
        Vendo sua expressão desesperada por ajuda, Miriam disse:
         — Tudo bem. Ela está indo maravilhosamente bem. Não posso fazer um exame interno. Não seria seguro, não tenho luvas esterilizadas e a bolsa se partiu. Posso estimar que o colo está quase totalmente dilatado. O próximo estágio será mais fácil.
        Disse para Julian: — Querida, o que eu posso fazer? Diga-me.
        — Só segure minha mão.
        Ajoelhado ao lado delas, ele se espantava com a confiança silenciosa com que Miriam, mesmo após 25 anos exercia sua antiga arte, suas mãos negras e gentis segurando o estômago de Julian, sua voz passando segurança:
        — Descanse agora, até a próxima onda. Não resista a ela. Lembre-se de respirar. Está ótimo, Julian, ótimo!
        Quando o segundo estágio do parto começou, ela disse para Theo se ajoelhar às costas de Julian e segurar seu corpo, então pegou duas achas e as colocou contra o pé de Julian. Theo amparou o peso do corpo dela, seus braços a mantendo-a passando sob os seios. Ela deitou contra o peito dele, empurrando os pés contra a madeira.
        Por um momento ao olhar para ela não a reconheceu, o rosto distorcido e vermelho, ela grunhia enquanto sofria, seus olhos fixos em Miriam, esperando a próxima contração. Neste momento de paz a seguir, quase pareceu dormir. Seus rostos estavam tão perto um do outro que seu suor pingava e ele gentilmente secava-lhe a testa. Este ato primitivo, do qual ele era participante e espectador, isolava-os em um limbo de tempo em que nada importava, nada era real fora a mãe e a escura jornada dolorosa da criança da secreta vida do útero em direção a luz do dia. Ele ouvia o incessante murmúrio de Miriam, calmo, mas insistente, encorajador, instruindo, conduzindo a criança para o mundo, e pareceu que a parteira e a paciente eram uma só e que ele também era parte da dor e do parto, não realmente necessário ali, mas que foi graciosamente aceito, e ainda assim excluído do coração do mistério.
        E ele desejou, com um súbito surto de agonia e inveja, que fosse sua criança que com tanto esforço eles estavam trazendo para o mundo.
        Então viu espantado que a cabeça emergia, uma bola  besuntada emplastada com fios de cabelo negro.
         Ouviu a voz baixa de Miriam triunfante:
        — A cabeça saiu. Pare de empurrar Julian, agora só respire.
        A voz de Julian era a de um atleta após uma corrida dura. Ela deu um grito e com um som indescritível, a cabeça foi repousar nas mãos atentas de Miriam. Ela o pegou, gentilmente o virou, imediatamente quase com um puxão e a criança escorregou entre as pernas da mãe, num fluxo de sangue e então Miriam a deitou sobre o estômago da mãe. Julian se enganara. Era um menino.
        O sexo tão predominante, desproporcional ao pequeno corpo era como uma proclamação.
        Gentilmente Miriam o cobriu com o cobertor de Julian, deixando-os juntos. Ela disse:
        — Veja, você teve um menino. E riu.
        Pareceu a Theo que toda a decrépita cabana rangeu ao som de sua voz triunfante.
        Olhou para o rosto transfigurado de Julian e afastou o olhar. A alegria era quase demais para ele suportar.
        Ouviu Miriam: — Tenho que cortar o cordão. Melhor que você acenda o fogo agora Theo, e veja se consegue aquecer a água, Julian precisa de algo quente.
        Foi até sua fogueira improvisada. Suas mãos tremiam tanto que o primeiro fósforo se quebrou.
        Mas com o segundo, as raspas de madeira se inflamaram e um ponto de fogo saltou como se celebrasse, enchendo o barraco com o cheiro de madeira queimada.
        Cuidadosamente posicionou as achas e pedaços de casca, então foi cuidar da panela de água.
        Mas neste momento veio o desastre. Tinha colocado a panela perto demais e ao erguer-se a chutou.
        Viu com horror a preciosa água misturar-se a serragem e penetrar a terra. Já tinham usado toda ela e não sobrar mais nada.
        Miriam foi alertada pelo som metálico. Ainda estava ocupada com a criança, e sem virar a cabeça falou:
        — O que foi? Foi a panela?
        Theo disse sentindo-se mal:
        — Desculpe. É terrível. Eu virei a água no chão.
        Miriam se ergueu e veio até perto. Disse baixo:
        — Vamos precisar de água, de água e comida. Tenho que ficar junto de Julian até ter certeza que é seguro deixá-las só então eu poderei ir até aquela casa que vimos. Com sorte encontraremos água lá.
        — Mas você não pode atravessar o campo aberto. Eles irão vê-la.
        — Eu tenho que ir Theo. Precisamos de algumas coisas e eu tenho que correr este risco.
        Mas ela estava sendo gentil Precisavam mais do que tudo de água e a culpa era dele.
        Ele disse:
        — Deixe que eu vou. Você fica com ela.
        — Ela quer que você fique, agora que o bebê nasceu, ela precisa mais de você do que de mim. Tenho que ter certeza de que o nascimento se deu por completo. Quando tiver certeza, poderei deixá-la. E o quanto antes ele comece a mamar melhor.
        Pareceu a Theo que ela gostava de explicar os mistérios de sua profissão, usando palavras que por muito estavam esquecidas.
        Vinte minutos depois ela estava pronta para partir. Havia queimado a placenta e limpado todo o sangue de suas mãos com grama. Tocou gentilmente com as mãos experientes pela última vez o estomago de Julian.
        — Posso me lavar no caminho, no lago. Irei tão rápido quanto puder. 
        Em um impulso ele pôs os braços em volta dela e a abraçou por um instante e disse:
        — Obrigado, obrigado—  então a soltou e observou-a sair.
        O bebê precisou ser encorajado a mamar. Era uma criança esperta, abrindo seus olhos brilhantes para Theo, balançando as mãozinhas como estrelas do mar, colocando a cabeça contra o peito da mãe, a pequena boquinha sugava vorazmente o mamilo. Era extraordinário que algo tão novo pudesse ser tão vigoroso.
        Ele mamou e depois dormiu. Theo deitou junto deles e passou um braço sobre os dois.
        Sentia a maciez deles contra seu peito. Deitados sobre a coberta suja de sangue, lágrimas e fezes, porém ele nunca havia conhecido tal paz, nunca imaginara que o prazer podia ser tão doce mesmo se acompanhado da dor. Ficaram deitados meio adormecidos em uma paz sem palavras e pareceu a Theo que partia da criança aquele calor fresco, transitório mas forte apesar do cheiro de sangue, um estranho aroma agradável de recém nascido, seco e pungente, como feno.
        Então Julian se mexeu e disse:
        — Há quanto tempo Miriam se foi?
        — Há quase uma hora.
        — Ela não deveria demorar tanto assim. Por favor, Theo, vá procurá-la.
        — Não é apenas água que precisamos. Se a casa estiver abastecida, tem outras coisas que ela precisaria pegar.
        — Só algumas coisas. Ela poderia voltar depois. Ela sabe que ficaríamos ansiosos. Por favor, vá procurá-la. Eu sei que algo aconteceu com ela. Nós ficaremos bem.
        O uso do plural, o que ele viu nos olhos dela ao olhar para a criança, quase o abalou. Disse:
        — Eles podem estar por perto. Não quero te deixar. Quero estar com você quando Xan aparecer.
        — Querido, você estará. Mas ela pode estar em perigo, pode ter sido presa, pode estar machucada e esperando socorro. Theo, eu preciso saber.
        Ele não protestou mais. Levantou-se e disse:
         — Voltarei assim que puder.
        Por alguns segundos ficou do lado de fora apenas ouvindo. De olhos fechados para as nuances de outono da floresta, para o brilho da luz do sol nos troncos e na grama, tentando concentrar todos seus sentidos em ouvir.
        Mas não ouviu coisa alguma, nem o som de um pássaro. Então, quase como um velocista, começou a correr, chegou ao lago, pelo túnel estreito e verde e além da encruzilhada, saltando buracos, sentindo o chão irregular sob os pés, desviando-se dos galhos mais baixos. Seu cérebro confuso em medo e esperança. Tinha sido loucura deixar Julian. Se a polícia estivesse perto e tivesse capturado Miriam não havia nada que pudesse fazer por ela. E se estavam tão perto seria uma questão de tempo até de encontrarem Julian e o bebê. Seria melhor ter ficado junto e esperado, esperado até a manhã tornar-se tarde e tivessem certeza de que não veriam mais Miriam de novo, esperado juntos pelo marchar de botas sobre o gramado.
        Mas desesperado por alguma certeza, disse a si mesmo que havia outras possibilidades. Julian estava certa. Miriam podia ter se acidentado, caído, estaria esperando por alguém vir atrás dela. Sua mente estava repleta de imagens de desastres. Tentava acreditar que sim, convencer-se que uma hora era pouco tempo, que Miriam estava ocupada pegando outras coisas que poderiam precisar - calculando o quanto poderia carregar, esquecida em sua ausência de quão longos são sessenta minutos para quem está esperando.
        Na encruzilhada ele pode ver, pelo caminho estreito de arbustos pequenos, o campo aberto e o telhado de uma casa. Parou um minuto para recobrar o fôlego, sentindo uma dor lateral, então seguiu passando pelos espinheiros altos até alcançar a clareira. Não havia sinal de Miriam. Agora mais devagar, consciente de sua vulnerabilidade, fez o percurso até a casa. Era uma construção antiga, de telhado irregular, com altas chaminés elisabetanas, provavelmente já fora uma casa de fazenda. Era separada do campo por um muro baixo de pedras.
        As janelas eram pequenas e sem cortina. Tudo era silêncio. A casa era como uma miragem, o tão esperado símbolo de segurança, normalidade e paz e que bastaria ser tocada para desaparecer.
        A porta de trás era de carvalho negro com detalhes em aço. Estava entreaberta. Ele a empurrou e a luz outonal fria se espalhou sobre o chão de pedra de uma passagem que levava para frente da casa.
        Entrou, parou e ouviu. Nada ouviu, nem o som de um tique-taque de um relógio.
        Á esquerda havia uma porta de carvalho que devia esconder a cozinha, presumiu.
        Estava encostada e ele lentamente a empurrou até abrir. Precisou de um pouco de tempo para que seus olhos se acostumassem com a sala na penumbra de janelas pequenas cobertas de poeira.
        Era bem fria, o chão de pedra e algo horrível no ar, um cheiro de gente e de medo. Procurou na parede o interruptor de luz, desejando que ao achá-lo, que houvesse ainda eletricidade.
        A luz se acendeu e ele a viu.
        Ela tinha sido estrangulada e o corpo jazia em uma larga poltrona na direita da lareira.
        Os membros estendidos, as pernas tortas, os braços caídos, a cabeça jogada para trás com a marca da corda profunda na carne e ainda visível.
        Tal foi seu horror que depois afastar os olhos correu para a pia de pedra junto a janela e vomitou furiosamente.
        Queria ir até ela, fechar seus olhos, tocar suas mãos. Ele devia a ela mais do que virar-se diante da visão aterrorizante de sua morte e vomitar sua aversão.
        Mas sabia que não conseguiria tocá-la ou mesmo olhar para ela de novo.
        Com a cabeça contra a pedra fria da parede, alcançou a torneira e derramou uma mão de água fria sobre sua cabeça. Que seu terror escorresse com ela, sua vergonha e piedade.
        Ele queria gritar de raiva. Por segundos permaneceu escravo de suas emoções que o fizeram incapacitado de mover-se. Então voltou a torneira e jogou água nos olhos e recuperou um pouco da realidade. Tinha que voltar para Julian rápido. Viu sobre a mesa o escasso resultado das buscas de Miriam. Achara uma larga e fraca cesta e tinha enchido-a com alguns enlatados, um abridor de latas e uma garrafa de água.
        Mas não podia deixar Miriam assim. Não devia ser sua última visão dela. Ainda assim apesar de urgentemente precisar voltar para Julian e a criança, havia uma pequena cerimônia que devia a ela. Combatendo contra o terror e a repugnância, foi até ela. Tirou-lhe a corda do pescoço e fechou seus olhos.
        Sentindo que devesse levá-la para fora, pegou-a nos braços e a carregou para fora da casa, deitou-a cuidadosamente sobre uma sorveira. Seu rosto pareceu quase em paz.
        Cruzou seus braços sobre o peito e por um minuto como se pudesse se comunicar, diria a ele que a morte não era o pior que podia acontecer a um ser humano, que tinha mantido a fé em seu irmão, que tinha feito o que nascera para fazer. Tinha morrido, mas ajudado a trazer uma nova vida. Pensando no horror e na crueldade de sua morte, disse a si mesmo que mesmo Julian diria que haveria clemência para tal barbaridade. Mas tal não era sua crença. De pé por um momento olhando para o corpo, bem perto dele, jurou que vingaria Miriam.
        Então pegou a cesta e sem olhar para trás, correu pelo jardim e mergulhou na floresta.
        Estavam perto, era óbvio. Estiveram observando. Sabia disso. Mas agora, como se o horror tivesse galvanizado seu cérebro, ele pensava claramente. O que estavam esperando? Por que haviam deixado ele escapar? Deviam querer segui-lo. Deviam estar perto e perto do fim de suas buscas. Não tinha dúvidas sobre duas coisas: Deviam ser poucos e Xan estaria com eles. Os assassinos de Miriam não deviam ser parte de um grupo isolado seguindo na captura com instruções de encontrar os fugitivos, deixá-los sem dar a perceber de sua presença e voltar com as novidades. Xan não arriscaria que alguém a não ser ele ou de sua absoluta confiança encontrasse uma mulher grávida. E Xan não tinha descoberto nada com Miriam, com certeza.
        O que ele esperava achar não era uma mãe com seu filho, mas uma grávida, com ainda algumas semanas pela frente antes do nascimento. Não queria assustá-la ou provocar um parto prematuro.
        Teria sido por este motivo que Miriam fora estrangulada e não morta a tiros? Mesmo a esta distância, não quis arriscar o som de um disparo.
        Mas era um raciocínio absurdo. Se Xan queria proteger Julian, garantindo que ela ficaria calma até o nascimento que ele acreditava estar perto, por que matar a parteira? Ele devia saber que alguém iria procurá-la.
        Era uma chance para que ele, Theo, e não Julian, ficasse frente a frente com aquela intumescida língua protuberante, os olhos salientes e mortos, naquela medonha cozinha.  
        Será que Xan estava convencido que uma vez que a criança estivesse pronta para nascer nada, mesmo aterrorizador, poderia fazer mal a ela? Ou ele precisava se ver livre de Miriam urgentemente apesar dos riscos? Por que fazer prisioneiros com todas as conseqüentes complicações quando um simples torção de uma corda, resolveria o problema para sempre? E quem sabe se este horror não fosse proposital? Não estaria ele proclamando — Vejam o que eu posso fazer, e o que eu fiz. Agora só restam dois de vocês nesta conspiração dos Cinco Peixes, só dois conhecem a verdade sobre o parentesco da criança. Vocês estão sob o meu poder para sempre?
        Ou será que tinha um plano ainda mais audacioso?
        Uma vez que a criança nascesse tinha apenas que matar Theo e Julian e poderia dizer a todos que o bebê era seu. Será que em seu egoísmo arrogante tinha se convencido que mesmo isso seria possível? E então Theo lembrou das palavras de Xan:
        — O que quer que seja necessário fazer, eu farei.
        Na cabana Julian estava deitada e primeiro ele pensou que ela dormia. Mas seus olhos estavam abertos e fixos no bebê. O ar estava repleto do perfume adocicado de madeira queimada, mas o fogo havia se apagado.
        Theo largou a cesta e com a garrafa de água na mão, abriu sua tampa. Ajoelhou-se ao lado dela.
        Ela olhou em seus olhos e disse:
        — Miriam está morta, não é?
        Quando Theo não respondeu, ela disse:
        — Ela morreu para conseguir isso para mim.
        Levou a garrafa aos lábios.
         — Então beba e fique agradecida.
        Ela se virou atordoada de maneira que se ele não tivesse segurado a criança, ela teria rolado.
        Ela permaneceu deitada como se estivesse cansada demais para ataques de choro, mas suas lágrimas romperam atravessando seu rosto e ele podia ouvir um som queixoso quase musical e baixo, de uma tristeza profunda.
        Chorava por Miriam como nunca o fizera pelo pai de seu filho.
        Ele a segurou em seus braços, desajeitado, com o bebê entre eles, tentando acercar ambos.
        Ele disse:
        — Lembre-se da criança. Ela precisa de você. Lembre que era o que Miriam queria.
        Ela nada disse, mas concordou com um movimento de cabeça e tirou o bebê dele.
        Ele colocou a garrafa de água em seus lábios.
        Tirou as três latas da cesta. Uma delas o rotulo havia descolado, a lata era pesada mas não dava para saber seu conteúdo. A segunda estava escrito — Pêssegos em calda. A terceira era uma lata de feijão cozido em molho de tomate. Por elas e uma garrafa de água Miriam tinha morrido. Mas não era tão simples assim. Miriam morrera por que ela era um dos poucos que sabia a verdade sobre o bebê.
        O abridor era de um tipo antigo, de lâmina rombuda. Mas funcionava.
        Cortou a tampa, dobrou-a para trás e amparando a cabeça de Julian com o braço direito, passou a alimentá-la levando a comida com os dedos até sua boca. Ela estava faminta. O processo de alimentá-la era um ato de amor. Não precisavam se falar.
        Depois de cinco minutos, com a lata pela metade, ela disse:
        — Agora é a sua vez.
        — Não tenho fome.
        — É claro que tem.
        E passou a alimentá-lo, coma criança repousando em seu colo,
        Ele disse:
        — Está delicioso.
        Quando a lata se esvaziou, ela suspirou e reclinou-se, dando o seio ao bebê.
        — Como Miriam morreu?
        Ele sabia que ela perguntaria. Ele não queria mentir para ela.
        — Foi estrangulada. Deve ter sido rápido. Talvez ela nem sequer os viu. Não acho que teve tempo de sentir medo.
        Julian disse:
        — Teve ter levado um segundo, dois, talvez mais. Não dá pra imaginar o que ela sentiu, o terror, o medo.
        Ele disse:
        — Querida, para ela acabou. Ela está além do nosso alcance. Miriam, Gascoigne, Luke, nem o Conselho pode lhes fazer mal agora. Cada vez que uma vitima morre é uma pequena derrota para os tiranos.
        — É um consolo. Depois de um momento continuou:
        — Eles não vão tentar nos separar, vão?
        — Nada nem ninguém irá nos separar, nem a vida nem a morte, principados ou poderosos, nada abaixo deste céu, por nada na Terra.
        Ela pousou sua mão em seu rosto:
        — Querido, não pode prometer isso. Mas eu gostei de ouvir.
        Depois ela disse:
         — Por que eles não vêm? Mas não havia sequer angustia na pergunta, só genuíno espanto.
        Ele segurou sua mão, tocando com carinho os dedos de carne torcida que uma vez achou repulsivos.
        Ficaram sem se mover, lado a lado. Theo estava ciente do cheiro forte da madeira queimada e do fogo apagado, e da luz do sol oblonga como um véu, de silêncio, sem vento, sem canto dos pássaros, somente o bater do coração dela e o seu. Ouviam atentos, presos em miraculosa falta de ansiedade.
        Era isso que as vitimas de tortura sentiam ao passar da extrema dor para a paz? Pensou, fiz o que me propus fazer. A criança nasceu como ela desejava. Este lugar é só nosso, nosso momento, e o que quer que façam, não poderão tirar de nós, nunca.
        Foi a voz de Julian que quebrou o silêncio: — Theo, acho que estão aqui. Eles chegaram.
        Ele não ouviu nada, mas levantou-se e disse:
        — Espere aqui, fique quieta. Não se mexa.
        Virando-se para que ela não pudesse ver, tirou o revolver do bolso e colocou a única bala.
        Então saiu para encontrá-los.
         Xan estava sozinho.
        Parecia com um lenhador com suas calças de veludo, camisa e suéter pesado. Mas lenhadores não andavam armados, e havia um volume de um coldre debaixo do suéter.
        E nenhum lenhador desfilava por ai com tanta confiança, com tanta arrogância de seu poder. Brilhando na sua mão direita, a aliança da Inglaterra.
        Ele disse:
         — Então é verdade.
        — Sim, é verdade.
        — Onde ela está?
        Theo não respondeu. Xan disse:
        — Não preciso perguntar. Sei onde está. Mas ela está bem?
        — Está bem. Está dormindo. Temos alguns minutos antes dela acordar.
        Xan jogou os ombros para trás e soltou um suspiro de alivio, como um nadador exausto emergindo.
        Respirou por um instante então disse com calma:
         — Não posso esperar para vê-la. Não quero assustá-la. Trouxe uma ambulância, um helicóptero, médicos, parteiras, trouxe tudo que ela pode precisar. A criança nascerá com conforto e segurança. A mãe será tratada como o milagre que é, ela precisa saber disso. Se ela acredita em você, então você é quem vai dizer isso a ela. Deixe-a calma, deixe que saiba que nada tem para temer de mim.
        — Ela tem muito a temer. Onde está Rolf?
        — Morto.
        — E Gascoigne?
        — Morto.
        — E já vi o corpo de Miriam. Então ninguém que sabe a verdade sobre a criança ficará vivo. Você eliminará a todos!
        Xan disse com tranqüilidade:
         — Exceto você.
        Como Theo não respondeu, ele continuou:
        — Não planejo matar você, não quero matar você. Preciso de você, mas temos que conversar antes que eu a veja. Tenho que saber o quanto posso confiar em você. Você pode me ajudar com ela, com o que eu preciso fazer.
        Theo falou:
         — Me diga o que você fará.
        — Não é obvio? Se for um menino e se for fértil, será o pai de uma nova raça. Se ele produzir espermas, espermas férteis, aos treze, quem sabe doze, nossas fêmeas ômegas só terão trinta e oito. Podemos fertilizá-las, sem precisar procurar outras.
        — O pai da criança está morto.
        — Eu sei. Tiramos a verdade de Rolf. Mas se existem homens férteis, devem haver outros. Temos que redobrar esforços no programa de testes. Estávamos ficando descuidados. Testaremos todos, epiléticos, deformados, cada homem no país. E se a criança for uma fêmea, uma fêmea fértil, será nossa melhor esperança. Esperança para o mundo.
        — E Julian?
        Xan riu.
        — Eu provavelmente me casarei com ela. De qualquer forma, verei isso depois. Volte para ela, acorde-a. Conte para ela. Estarei aqui. Tranqüilize-a. Diga-lhe que você me ajudará a cuidar dela. Bom Deus Theo, você percebe o poder que temos nas nossas mãos? Volte para o Conselho, seja meu tenente. Pode ter tudo aquilo que quiser.
        — Não.
        Houve uma pausa e Xan perguntou:
        — Lembra da ponte em Woolcombe?
        A pergunta não fora um apelo sentimental por uma antiga lealdade ou pacto de sangue, nem a lembrança da infância roubada. Xan simplesmente havia se lembrado e sorriu.
        Theo disse:
        — Lembro de tudo que aconteceu em Woolcombe.
        — Eu não quero matá-lo.
        — Você vai ter que fazê-lo Xan. E vai precisar matá-la também.
        Puxou a própria arma. Xan riu ao vê-la.
        — Sei que não está carregada. Você disse para os velhos, lembra? Não deixaria Rolf fugir se tivesse uma arma carregada.
        — Como esperava que eu o parasse? Atirando em seu marido na frente dela?
        — Seu marido? Não imaginei que ela se importasse tanto assim. Não foi bem o retrato que ele nos passou antes de morrer. Não acha mesmo que está amando esta mulher, acha? Não romantize a situação. Ela pode ser a mulher mais importante do mundo mas não é a Virgem Maria. A criança que ela está carregando ainda é a filha de uma promíscua.
        Seus olhos se encontraram. Theo pensou, o que ele está esperando? Será que acha que não pode me matar a sangue frio assim como eu também não posso?
        Tempo passou, segundo após interminável segundo. Então Xan esticou seu braço e mirou.
        E naquele mesmo segundo, a criança chorou, como um grito de protesto.
        Theo ouviu a bala da arma de Xan atravessar seu casaco. Naquele meio segundo viu algo que se lembrava claramente. A face de Xan transfigurada pelo prazer do triunfo, não pode ouvir seu grito de afirmação, como o grito na ponte de Woolcombe. Mas foi com esta lembrança que atirou no coração de Xan.
        Depois dos dois disparos, um enorme silêncio. Quando ele e Miriam haviam empurrado o carro para dentro do lago, a pacifica floresta havia se tornado uma cacofonia de gritos selvagens, galhos que se partiam, e pássaros agitados. Mas agora nada aconteceu. Pareceu para ele que andava até o corpo de Xan, em câmera lenta, como um ator, um espaço infinito entre ele e o corpo de Xan, tão distante que tornou árduo o caminho suspenso no tempo.
        E então, como um soco, de volta a realidade e simultanemanete consciente de seu próprio corpo e de cada pequena criatura movendo-se nas árvores, cada folha de grama, debaixo da sola de seu sapato, o ar contra seu rosto, e mais do que tudo, Xan deitado aos seus pés.
        Deitado sobre as costas, os braços abertos, o rosto tranqüilo, não surpreso, como se fingisse de morto.
        De joelhos, Theo viu que seus olhos eram bolas estupidificadas, antes brilhantes, mas agora sem vida.
        Tirou o anel do dedo de Xan, ficou de pé e então esperou.
        Eles vieram lentamente, movendo-se pela floresta, primeiro Carl Inglebach, então Martin Woolvington, então duas mulheres. Atrás deles, pouco atrás, seis granadeiros. Se moveram até próximo do corpo e então pararam.
        Theo ergueu o anel e então deliberadamente colocou-o em seu dedo e apontou a mão na direção deles.
        Disse:
        — O  Governador da Inglaterra está morto e a criança nasceu. Ouçam-me.
        De novo, aquele comovente mas autoritário choro de recém nascido. Começaram a se mover em direção da cabana, mas Theo barrou o caminho deles e disse:
        — Esperem. Eu preciso falar com a mãe antes.
        Dentro da cabana, Julian estava sentada, a criança contra o peito, sua pequena boca sugando com vigor.
        Assim que Theo entrou, viu o medo nos olhos dela brilharem em alivio. Pousou a criança e esticou os braços em sua direção.
        Disse com um soluço:
        — Ouvi dois tiros. Não sabia se iria ver você ou ele.
        Segurou seu corpo que tremia, contra o seu e disse:
        —  O Governador está morto. O Conselho está lá fora. Você vai vê-los, mostre-lhes sua criança.
        Ela disse:
        — Em breve. Theo, o que vai acontecer?
        O terror drenara sua coragem e pela primeira vez desde o nascimento, ele a viu vulnerável e com medo. Sussurrou, com os lábios em seus cabelos:
        — Nós iremos para um hospital. algum lugar tranqüilo. Você será atendida. Não deixarei que te perturbem. Você não vai ficar muito tempo lá e eu estarei contigo. Não a deixarei jamais. O que quer que aconteça, ficaremos juntos.
        Ele a soltou e saiu. Eles esperavam em semicírculo, os olhos fixos nele.
        — Podem entrar agora. Os granadeiros ficam aqui, só o Conselho entra. Ela está cansada e precisa de repouso.
        Woolvington disse:
        — Temos uma ambulância esperando perto daqui. Podemos chamar os para-médicos, para levá-la até lá. Temos um helicóptero a um quilometro, fora da vila.
        Theo disse:
         — Não arriscaremos com o helicóptero. Chame os maqueiros. E tirem o corpo do Governador daqui. Não quero que ela o veja.
        Assim que dois granadeiros vieram pegar o corpo, Theo disse:
        — Tenham respeito por ele. Lembrem quem ele era.
        Virou-se para o Conselho e os guiou para a cabana Um tanto relutantes, as duas mulheres primeiro, depois Woolvington e depois Carl, sendo que Woolvington não se aproximou de Julian ficando a uma certa distância como se guardando o local. As duas mulheres se ajoelharam mais em reverencia do que precisando ficar perto do bebê. Olharam para Julian como se buscando sua permissão. Ela sorriu e mostrou a criança.
        Murmurando, chorando, entre lágrimas e risos, colocaram suas mãos na sua cabeça, nos bochechas, nos bracinhos que se balançavam. Harriet  esticou um dedo e a criança o segurou com surpreendente firmeza.
        Ela riu e Julian, olhando para Theo, disse:
        — Miriam disse que recém nascidos podiam segurar assim. Mas não dura muito.
        A mulher não respondeu. Estavam rindo e chorando, fazendo sons estúpidos. Pareceu a Theo que se tratava de prazerosa camaradagem feminina. Olhou para Carl, perplexo que ele pudesse ter feito a jornada e ainda permanecer ali de pé. Ele olhou para baixo, para a criança com seus olhos de defunto e disse seu ‘ Nunc Dimittis’ , a prece de Simão com a apresentação de Jesus ao templo: — Então começou de novo.
        Theo pensou: Começou de novo, com inveja, traição, com violência, com assassinato, com aquele anel no meu dedo. Olhou para a safira deitada entre diamantes, e a cruz de rubi, girando o anel no dedo ciente de seu peso.
        Colocá-lo na sua mão fora instintivo e deliberado, um gesto de  afirmação de autoridade e seguro de proteção. Sabia que os granadeiros viriam armados. O brilho daquele símbolo em seu dedo os faria parar e dar tempo para que ele falasse. Precisaria continuar usando-o? Tinha todo o poder de Xan para si. Com Carl morrendo, o Conselho ficaria sem um líder, por um tempo devia tomar o lugar de Xan. Havia muitas coisas para serem consertadas, mas teriam que esperar. Não podia fazer tudo de uma única vez, tinha que ter prioridades.
        Não foi o que Xan descobrira? E não fora esta súbita intoxicação de poder o que Xan tinha conhecido todos os dias de sua vida?  A sensação de que tudo era possível para ele, tudo o que quisesse seria feito, tudo que odiasse seria abolido, de acordo com seu desejo. Puxou o anel do dedo e parou e o colocou de novo.
        Haveria tempo para decidir, teria tempo para isso, o quanto precisasse.
        Disse:
        — Deixem-nos agora. e ajudou a mulher a se levantar.
        Eles saíram silenciosos como entraram.
        Julian olhou para ele e pela primeira vez viu o anel e disse:
        — Isso não foi feito para o seu dedo.
        Por um segundo ele se sentiu irritado.
        Disse:
         — Vai ser útil no momento. Vou tirá-lo depois.
        Ela pareceu por um momento em dúvida e podia ser sua imaginação, mas viu o que parecia ser uma sombra sobre seus olhos.
        Então ela sorriu e disse:
        — Batize meu filho para mim. Por favor, agora, enquanto estamos sós. É o que Luke iria querer. É o que eu quero.
        — Como quer chamá-lo?
        — Chame-o de.... LUCAS.
        — Primeiro vou ajudá-la.
        A toalha entre suas pernas estava bastante manchada.
        Removeu-a sem repugnância, quase sem pensar e pegando outra, colocou-a em seu lugar.
        Ainda havia um pouco de água na garrafa. 
        Suas lágrimas pingavam sobre a testa da criança.
        De algum lugar na memória ele se lembrou do ritual.
        A água tinha que jorrar, havia palavras que precisavam ser ditas.
        Com o polegar molhado em suas próprias lágrimas e manchado com seu próprio sangue, ele fez na testa da criança o sinal da cruz.

 

 

                                                                  P. D. James

 

 

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