Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O N D I N A
Como o cavaleiro chegou à casa do pescador
Era uma vez - e já devem ter passado bem algumas centenas de anos - um velho e bondoso pescador que certo dia, ao cair da tarde, estava sentado diante de sua porta consertando suas redes. A região em que morava era muito agradável. O solo verdejante sobre o qual sua cabana estava construída estendia-se longamente por uma grande lagoa adentro, dando a impressão de que o promontório havia avançado até tão longe por amor à correnteza azulada, límpida e muito transparente, ou então, que a água havia estendido seus braços apaixonados para cingir a bela campina, suas relvas e flores altas e flexíveis, e a sombra refrescante de suas árvores. Um abrigava o outro e, justamente por isso, cada qual era tão formoso.
Apesar disso, raramente ou quase nunca se via pessoas nesse belo lugar, exceto o pescador e seus familiares. Isto porque atrás do promontório havia uma floresta muito selvagem que - devido à escuridão e falta de caminhos transitáveis e também às estranhas criaturas e fantasmagorias que, segundo se dizia, podiam ser encontradas lá dentro - amedrontava por demais as pessoas para que estas por lá se aventurassem sem necessidade. No entanto, o velho e bondoso pescador nunca era incomodado nas muitas vezes em que a percorria, levando os magníficos peixes apanhados em seu belo promontório para uma grande cidade que ficava logo atrás da extensa floresta. Para ele era tão fácil atravessar a mata, talvez, em particular, porque quase só se ocupava com pensamentos devotos, e além disso, sempre que penetrava as sombras agourentas, costumava entoar à viva voz e de coração aberto um cântico religioso.
Mesmo assim, nessa tarde, enquanto trabalhava muito despreocupado com suas redes, foi inesperadamente tomado de um susto ao ouvir na penumbra da floresta um ruído - semelhante ao de um homem à cavalo - que se acercava cada vez mais do promontório. Aquilo que em muitas noites de tempestade sonhara acerca dos mistérios da floresta veio-lhe de repente à memória, sobretudo a imagem de um homem gigantesco e alvo como a neve, que sem parar acenava de modo estranho com a cabeça. E de fato, ao levantar os olhos em direção ao arvoredo, teve realmente a impressão de ver emergir, por entre o gradil de folhagens, o homem que acenava. Mas logo controlou-se, ponderando que, se jamais lhe ocorrera algo de inquietante na própria floresta, então com certeza aqui fora, no promontório aberto, o espírito malévolo seria ainda menos capaz de exercer seu poder sobre ele. Rezou ao mesmo tempo um versículo bíblico, com uma voz forte e decidida que provinha do fundo da alma. De fato, sentiu que com isso recobrava a coragem e o ânimo e, quase a ponto de prorromper em uma risada, viu o quanto se havia enganado. Pois, de um instante para outro, o homem branco acenando tornou-se um pequeno regato, de há muito seu conhecido, que corria espumante da floresta, caindo em jorros na lagoa. O ruído, na verdade, havia sido ocasionado por um cavaleiro formosamente ornado que despontou das sombras das árvores e vinha cavalgando em seu corcel rumo à cabana. Um manto vermelho escarlate caía sobre seu gibão azul escuro bordado a ouro; do barrete de cor dourada ondulavam plumas vermelhas e azul escuras; no boldrié dourado reluzia uma belíssima espada ricamente adornada. O ginete branco que levava o cavaleiro era de compleição mais esbelta do que comumente se vê em cavalos de contenda, e marchava com tanta leveza sobre a relva que o colorido tapete verde parecia não receber disso qualquer mácula. O velho pescador não se sentia ainda totalmente confiante, embora se acreditasse obrigado a reconhecer que nada de mal poderia advir de uma figura tão afável. Em conseqüência, tirou com muita modéstia o chapéu diante do cavaleiro que se avizinhava, e aguardou tranqüilo junto às suas redes. Quando o cavaleiro se deteve, indagou se seria possível que ele e seu cavalo recebessem ali pousada e alimento por essa noite.
- Para seu cavalo, caro senhor - redargüiu o pescador - não posso oferecer melhor estábulo do que esta campina sombreada, nem melhor alimento do que a relva que nela cresce. Mas quanto ao senhor, ficarei feliz em servi-lo em meu casebre com uma ceia e um leito do melhor que nós, gente pobre, temos.
O cavaleiro deu-se por muito satisfeito com isso, apeou de seu ginete - o qual os dois juntos desselaram e desarrearam - e a seguir deixou-o vagar livre sobre o prado florido, dizendo ao seu hospedeiro:
- Ainda que fosse menos acolhedor e benévolo, meu velho pescador, creio que por hoje o senhor não se teria visto livre de mim pois, como vejo, há diante de nós um extenso lago e, quanto a retornar à estranha mata ao cair do crepúsculo, que Deus me proteja disso!
- Não falemos demasiado sobre isso - disse o pescador, e conduziu seu hóspede para dentro da cabana.
Lá dentro, em uma ampla poltrona junto ao fogão, cujo fogo esparso aclarava a saleta obscurecida e asseada, estava sentada a mulher do pescador, já de idade avançada. À entrada do distinto hóspede, ela levantou-se e cumprimentou-o amavelmente, mas voltou a sentar-se em seu lugar de honra sem oferecê-lo ao forasteiro, ao que o pescador disse com um sorriso:
- Não se zangue, jovem senhor, por ela não lhe ceder a poltrona mais confortável da casa, pois é costume entre os pobres que esta pertença exclusivamente aos anciães.
- Ah, homem - disse a mulher com um sorriso sereno - mas que idéias são essas?
Nosso hóspede há de contar-se entre os cristãos e, nesse caso, como poderia ocorrer a esse sangue juvenil expulsar pessoas idosas de seus assentos?
- Sente-se, meu jovem senhor - prosseguiu ela, voltada para o cavaleiro - ainda há ali uma pequena cadeira de braços bastante cômoda, apenas o senhor não deve empurrá-la para lá e para cá muito impetuosamente, pois uma das pernas já não está lá muito segura.
O cavaleiro trouxe a cadeira com cuidado e nela sentou-se com polidez, sentindo-se como se pertencesse a essa pequena família e tivesse justamente retornado para casa vindo de longe.
As três boas almas começaram a conversar com muita cortesia e familiaridade. O cavaleiro vez por outra fez perguntas sobre a floresta, mas o ancião não queria saber de falar sobre isso, acreditando que naquele momento, com o cair da noite, uma conversa a esse respeito seria ainda menos apropriada. Essa relutância, porém, era compensada pelo ânimo redobrado com que o casal contava de seu trabalho e demais afazeres. Também lhes aprazia ouvir o cavaleiro narrar suas viagens e contar que possuía um burgo junto às nascentes do Danúbio, e era tratado como senhor Huldbrand von Ringstetten. Ao longo da conversa, o forasteiro já tinha ouvido de quando em quando um chapinhar junto à janela pequena e baixa, como se alguém estivesse borrifando água contra ela. Sempre que se faziam ouvir esses ruídos, o velho pescador franzia a testa, contrafeito. Ao final, porém, quando todo um jato foi lançado contra as vidraças, respingando água para dentro da saleta através da esquadria mal vedada, ele ergueu-se aborrecido e bradou ameaçadoramente em direção à janela:
- Ondina, pare de uma vez com essas infantilidades! Ainda mais hoje, quando temos um senhor estranho na cabana!
Do lado de fora realmente se fez silêncio, ficando audível apenas uma risadinha em voz baixa, e o pescador disse ao retornar:
- O senhor, meu honrado hóspede, terá que desculpar isso e possivelmente até algumas diabruras mais, contudo, ela não o faz por mal. Trata-se de nossa filha adotiva, Ondina, que não consegue perder o costume de fazer traquinices, muito embora já deva contar dezoito anos. Mas, como já disse, no fundo ela tem um ótimo coração.
- Para você é fácil falar! - retorquiu a anciã abanando a cabeça. - Ao retornar da pesca ou de uma viagem, os gracejos dela podem lhe parecer muito agradáveis.
Mas agüentá-la o dia inteiro sem ouvir uma palavra ajuizada sequer e, com o avançar da idade, ao invés de receber ajuda no trabalho doméstico, ter sempre de estar à espreita para impedir que as suas doidices nos levem à completa ruína isso é muito diferente e basta para esgotar até a mais santa das paciências.
- Ora, ora - disse sorrindo o dono da casa - você tem a sua labuta com Ondina e eu com o lago. Repetidas vezes ele também rompe meus diques e rasga minhas redes e, ainda assim, eu lhe quero bem, tal como você à graciosa menina, apesar de todo o sofrimento e atribulações. Não é verdade?
- Não se pode realmente ficar de todo zangada com ela - respondeu a mulher com um sorriso de aquiescência.
Nesse momento a porta foi aberta bruscamente e uma linda loirinha entrou ágil e sorridente, dizendo:
- O senhor estava apenas fazendo troça de mim, meu pai. Onde está afinal o seu hóspede?
No mesmo instante, porém, ela já divisara o cavaleiro e ficou parada, atônita, diante do belo mancebo. Huldbrand deleitou-se à vista da graciosa figura e dispôs-se a fixar na memória com muita atenção aqueles traços encantadores, supondo que só teria tempo para isso enquanto perdurasse o assombro da donzela, pois, logo a seguir, ela iria esconder-se de seus olhares, tomada de acanhamento redobrado. Sucedeu, porém, algo bem diferente. Pois, após o observar durante um bom tempo, ela aproximou-se confiante, ajoelhou-se diante dele e, brincando com um pequeno adorno de ouro que ele trazia ao peito em uma preciosa corrente, disse:
- Ah, como foi que você, meu belo e gentil hóspede, chegou por fim até a nossa pobre cabana? Terá sido mesmo necessário que vagueasse anos a fio pelo mundo até nos encontrar? Você está vindo da floresta erma, meu formoso amigo?
Uma reprimenda da anciã não lhe deixou tempo para responder. Ela exortou a moça a levantar-se com bons modos e aplicar-se ao seu trabalho. Ondina, porém, sem dar resposta, puxou um banquinho para perto da cadeira de Huldbrand, sentou-se ali com a sua tela e disse muito cortês:
- Trabalharei aqui.
O velho pescador agiu como costumam agir os pais de crianças mimadas: fez como se não tivesse notado a má conduta de Ondina e fez menção de introduzir um outro assunto. Mas a jovem não lhe deu chance para isso, pois disse:
- Perguntei de onde veio o nosso amável hóspede, e ele ainda não me respondeu.
- Venho da floresta, minha bela - respondeu Huldbrand, ao que ela prosseguiu:
- Então você precisa contar-me como chegou lá, uma vez que as pessoas costumam evitá-la, e quais as aventuras extraordinárias por que passou, pois dizem, afinal, que é impossível atravessá-la sem que tais coisas ocorram.
Huldbrand sentiu um pequeno calafrio a essa lembrança e dirigiu involuntariamente o olhar para a janela, pois tinha a impressão de que alguma das formas bizarras com que se deparara na mata lá estaria, espreitando para dentro com uma careta. Nada viu além da noite densa e escura que já pairava lá fora defronte às vidraças. Controlou-se, então, e ia justamente dar início à sua história quando o ancião interrompeu-o com as seguintes palavras:
- Não faça isso, senhor cavaleiro, agora não é um bom momento para isso.
Ondina, entretanto, saltou furiosa de seu banquinho, fincou os formosos braços na cintura e, postando-se bem em frente ao pescador, exclamou:
- Ele não deve contar, pai? Não deve? Mas eu quero! Ele deve contar! Deve, sim!
E assim dizendo, batia com força o delicado pezinho no chão, mas tudo isso com uma elegância tão divertida e encantadora que, para Huldbrand, era quase mais difícil desprender os olhos dela assim furiosa do que antes, quando a vira amável. O resultado que isso produziu no ancião, no entanto, foi provocar a violenta irrupção da ira que até então estivera contida. Censurou veementemente a desobediência e o comportamento atrevido de Ondina para com o forasteiro, e a boa anciã fez coro a essa reprimenda. Ondina disse então:
- Se vocês querem discutir ao invés de fazer a minha vontade, então durmam sozinhos em sua cabana velha e esfumaçada.
E, qual uma flecha, saiu pela porta e correu pela tenebrosa noite adentro.
Como Ondina chegou à casa do pescador
Huldbrand e o pescador saltaram de seus assentos para seguir a encolerizada donzela. Mas antes que alcançassem a porta da cabana, Ondina já havia desaparecido há muito, lá fora, na nebulosa escuridão, e seus pés ágeis não produziam qualquer ruído que denunciasse para onde ela poderia ter dirigido seus passos. Huldbrand lançou um olhar de interrogação para seu hospedeiro. Tinha quase a impressão de que toda aquela adorável aparição, que submergira outra vez na noite com tanta rapidez, não fora nada além do que o prolongamento das singulares visões que anteriormente o haviam perseguido na floresta. Mas o velho pescador murmurou à meia voz:
- Não é a primeira vez que ela age assim conosco. Agora, pela noite inteira teremos o coração assaltado pelo temor, e os olhos abandonados pelo sono, pois não há como saber se ela ainda não acabará sofrendo algum dano ficando lá fora assim sozinha até o despontar da aurora.
- Vamos segui-la então, meu bom ancião, por Deus! - bradou Huldbrand alarmado.
O velho respondeu:
- De que serviria isso? Seria um pecado se eu o deixasse seguir assim sozinho pela noite e pelo ermo atrás dessa menina imprudente. E minhas velhas pernas não alcançam aquela cabeça-de-vento, ainda que soubéssemos para onde ela correu.
- Então, pelo menos temos que chamá-la e pedir-lhe que retorne. - disse
Huldbrand, começando a chamar de modo muito comovente:
- Ondina! Oh, Ondina! Por favor, volte!
O velho pescador, enquanto abanava a cabeça de um lado para o outro, assegurou que no final toda aquela gritaria não ajudaria em nada, e que o cavaleiro ainda não sabia quão obstinada a mocinha era. Mesmo assim, não pôde abster-se de também chamar diversas vezes rumo às trevas da noite:
- Ondina! Oh, querida Ondina! Eu lhe peço, volte só dessa vez!
Apesar disso, aconteceu como o pescador dissera. Nada de Ondina aparecer ou de se fazer ouvir, e, como o ancião de forma alguma queria admitir que Huldbrand fosse ao encalço da fugitiva, os dois viram-se por fim forçados a entrar de volta na cabana. Ali encontraram as chamas do fogão já quase extintas, e a dona da casa - que nem de longe se preocupava tanto como seu esposo com a fuga e o perigo de Ondina - já se recolhera. O ancião reacendeu os carvões, deitou madeira seca por cima e, enquanto o fogo tornava a se avivar, buscou uma bilha com vinho que depositou entre si e seu hóspede.
- O senhor, cavaleiro, também teme pela tola menina - disse - e será melhor passarmos uma parte da noite a conversar e beber do que rolando para lá e para cá nas esteiras de junco esperando inutilmente pelo sono, não é verdade?
Huldbrand aquiesceu satisfeito. O pescador convidou-o a sentar-se no lugar de honra que a dona da casa deixara vazio ao ir deitar-se, e os dois beberam e conversaram como compete a dois bons e íntimos amigos. Cumpre dizer que todas as vezes em que percebiam o menor movimento diante das janelas, ou mesmo quando nada se movia, um dos dois levantava o olhar de tempos em tempos dizendo: "Ela está vindo!" Ficavam então silenciosos por alguns momentos mas depois, como nada aparecesse, retomavam o fio de sua conversa, meneando a cabeça e suspirando.
Não obstante, como ambos não conseguiam pensar em quase mais nada além de
Ondina, não restou nada melhor ao cavaleiro do que ouvir de que modo Ondina veio a ter com o velho pescador, e ao velho pescador contar justamente essa história.
Assim sendo, ele deu início da seguinte maneira:
- Certa vez - já devem ter-se passado uns quinze anos desde então - eu atravessei a funesta mata com minha mercadoria para a cidade. Minha mulher ficara em casa como de costume mas, nessa ocasião, havia ainda um motivo muito especial para isso, pois Deus tinha-nos presenteado - quando já contávamos então com uma idade bastante avançada - com uma linda criancinha. Era uma menininha, e nós já estávamos pensando se, para o bem da recém-chegada, não deveríamos abandonar nosso belo promontório para, no porvir, criar melhor a nossa querida dádiva divina em local mais povoado. Entre pessoas pobres, essas coisas certamente não são como o senhor, cavaleiro, deve estar imaginando, mas... Deus do céu! Cada um deve fazer o melhor que pode. Pois bem, pelo caminho eu ia pensando muito no assunto. Eu amava esse promontório do fundo de meu coração, e sentia um grande sobressalto quando, em meio ao barulho e às contendas da cidade, pensava: "Logo também você fixará sua residência em um lugar desses ou, pelo menos, em algum não muito mais tranqüilo!" Mas com isso eu não estava protestando contra o nosso amado Senhor, pelo contrário, no íntimo agradecia-Lhe pela recém-nascida. Também estaria mentindo se dissesse que, no caminho de ida ou volta através da floresta, tivesse me deparado com qualquer coisa mais inquietante do que de costume, sendo que nunca observei de fato nada de sinistro lá. Nosso Senhor sempre esteve comigo naquelas assombrosas penumbras.
Ao dizer assim, retirou o pequeno gorro da cabeça calva e permaneceu algum tempo orando em silêncio. Depois, recolocou o gorro e prosseguiu:
- Deste lado da mata, oh, foi deste lado que a calamidade veio ao meu encontro.
Minha esposa aproximou-se com olhos que marejavam como dois regatos; ela vestira roupas de luto. "Oh, meu Deus", gemi, "onde está nossa amada criança? Diga!" "Junto Àquele que você está invocando, querido esposo", respondeu, e fomos juntos então à cabana, chorando mansamente. Procurei pelo pequeno cadáver, e só então fiquei sabendo como tudo ocorrera. Minha esposa estivera sentada com a criança à margem do lago e, enquanto brincava com ela muito despreocupada e feliz, a pequena de repente inclinou-se para a frente, como se visse algo maravilhosamente belo na água. Minha esposa ainda viu a menina - o adorado anjo
- rir e estirar as mãozinhas, mas, nesse exato instante, levada pelo movimento brusco, ela despencou de seus braços para dentro do úmido espelho. Procurei longamente pela pequena morta, mas tudo em vão: não pude encontrar nem a menor pista dela.
"Despojados de nossa filha, estávamos, pois, nessa mesma noite sentados juntos na cabana, em silêncio. Nenhum de nós tinha vontade falar, mesmo que as lágrimas o tivessem permitido. Estávamos simplesmente observando as chamas do fogão. Em certo momento, fez-se ouvir um ruído lá fora, junto à porta; ela abriu-se de um golpe e uma linda menininha de uns três ou quatro anos, ricamente vestida, estava parada na soleira, sorrindo para nós. Ficamos totalmente mudos de assombro e eu não soube, de início, se se tratava simplesmente de um pequeno ser humano ou, de fato, de uma aparição fantasmagórica. Mas aí notei água gotejando dos cabelos dourados e dos ricos trajes e me dei conta de que a bela criancinha estivera mergulhada na água e necessitava de ajuda. "Mulher", disse, "ninguém pôde salvar nossa amada filha, façamos pelo menos para os outros aquilo que nos faria ditosos na face da Terra se alguém o fizesse por nós." Tiramos as vestes da pequena, levamo-la para a cama e demos-lhe bebidas quentes. Enquanto isso, ela não disse palavra alguma, limitando-se a nos fitar, sempre sorrindo, com seus olhos celestiais, azuis como o lago.
"Na manhã seguinte pudemos verificar que ela com certeza não sofrera maiores danos e eu lhe perguntei, então, sobre seus pais e sobre como chegara até aqui.
O resultado, contudo, foi uma história confusa e estapafúrdia. Ela deve ter vindo de muito longe, uma vez que, não apenas foi-me impossível nesses quinze anos descobrir qualquer coisa sobre a sua origem, como também ela contava, e de vez em quando ainda conta, coisas tão extravagantes que nós não sabemos se, no final de contas, ela não terá descido da Lua. Ela fala de castelos dourados, telhados de cristal e Deus sabe o que mais. O que ela narrou de mais inteligível foi que estava passeando no grande lago com a mãe, caiu da barca para dentro da água e recuperou seus sentidos apenas aqui debaixo das árvores, sentindo-se bastante confortável junto à acolhedora margem.
"Uma grande dúvida e preocupação ainda oprimia nossos corações. É certo que sem tardar já decidíramos que iríamos conservar e educar a menina encontrada, em lugar da adorada filha que se afogara - mas quem poderia saber se a criança era batizada ou não? Ela própria não sabia informar a respeito. Diversas vezes ela nos asseverou saber muito bem que era um ser criado para louvor e alegria de
Deus e estava disposta a se submeter a tudo aquilo que concorresse para o louvor e alegria de Deus. Minha mulher e eu achávamos que se ela não era batizada, não haveria tempo a perder; mas se ela já o fosse, em se tratando de algo benévolo, o excesso não poderia ser tão prejudicial como a falta. Em conseqüência, começamos a pensar em um bom nome para a criança, à qual, ademais, ainda não sabíamos direito como nos dirigir quando queríamos chamá-la. Por fim, concluímos que Dorothea seria o mais adequado para ela, já que me haviam dito certa vez que esse nome significa 'dádiva de Deus' e, afinal, ela nos fora enviada por Deus como uma dádiva para consolar-nos em nosso desalento. Ela, porém, não quis saber disso, declarando que seus pais lhe haviam dado o nome de Ondina, e Ondina ela queria continuar sendo chamada. Esse, porém, pareceu-me um nome pagão que não consta de nenhum calendário e, por isso, fui buscar conselho junto a um sacerdote na cidade. Ele também desaprovou o nome Ondina e, aquiescendo às minhas numerosas súplicas, acompanhou-me através da misteriosa floresta para a realização do batismo aqui em minha cabana. A pequena postou-se diante de nós tão lindamente enfeitada e graciosa que o coração do sacerdote logo se rendeu a ela. A menina soube agradá-lo com tanta cortesia e, vez por outra, afrontá-lo com tanta graça que ele por fim não conseguia mais se recordar de nenhuma das objeções que tinha preparadas contra o nome Ondina. Assim sendo, ela foi batizada Ondina e, a despeito de seus modos selvagens e buliçosos de costume, manteve-se durante a cerimônia religiosa excepcionalmente doce e bem comportada.
Pois nisto minha mulher tem toda a razão: nós já passamos por maus bocados com ela. Se eu fosse contar-lhe..."
O cavaleiro interrompeu o pescador para chamar sua atenção para um ruído, semelhante a torrentes de água rugindo furiosamente, que já ouvira antes entremeando-se à fala do ancião e que agora se precipitava com ímpeto crescente diante das janelas da cabana. Ambos lançaram-se para a porta. Nesse momento, à luz da Lua que já nascera, viram lá fora que o regato que corria da floresta arrojara-se ferozmente sobre suas margens e arrastava consigo pedras e troncos em um torvelinho arrebatador. Como que despertada pelo estrondo, a borrasca irrompeu das nuvens noturnas, atiçando-as defronte à Lua com a velocidade de uma seta, o lago bramia sob as asas do vento que se agitavam, as árvores do promontório gemiam da raiz até o cimo e arqueavam-se como que estonteadas sobre as águas caudalosas.
- Ondina! Pelo amor de Deus, Ondina! - gritaram os dois homens espavoridos.
Nenhuma resposta veio ao seu encontro e, sem atentar mais para qualquer pensamento de cautela, correram ambos para fora da cabana, procurando e chamando, um nessa, outro naquela direção.
De que forma Ondina foi reencontrada
Huldbrand, quanto mais seguia procurando sob as sombras noturnas sem nada encontrar, tornava-se cada vez mais temeroso e confuso. Novamente tomou posse dele a idéia de que Ondina era apenas uma aparição da floresta. Tendo em vista os uivos das ondas e ventos, os estalos das árvores, a total transformação da região que agora em nada lembrava a placidez de antes, ele quase chegava a considerar todo o promontório, inclusive a cabana e seus habitantes, como uma ilusão ardilosa e mordaz. É certo, porém, que continuava ouvindo ao longe, por entre os bramidos, os apreensivos chamados do pescador por Ondina e as altas preces e cantos da idosa senhora. Chegou por fim junto à margem alagada do arroio e avistou à luz da Lua que este dirigira seu curso desenfreado justamente para a horripilante floresta, transformando a língua de terra em uma ilha. "Oh, meu Deus," pensou consigo mesmo, "e se Ondina tiver ousado dar algumas passadas pela temível floresta adentro - talvez justamente levada pela sua caprichosa obstinação, já que não me foi permitido contar-lhe a respeito da mata - e se nesse momento a correnteza lhe cortou o caminho de retorno, e ela agora estiver lá chorando sozinha em meio aos fantasmas?" Um grito de horror escapou-lhe e ele desceu por algumas rochas e troncos de pinheiros tombados, a fim de entrar na impetuosa correnteza e, a vau ou a nado, procurar do outro lado pela desaparecida. Sem dúvida veio-lhe à memória tudo de pavoroso e estranho que mesmo à luz do dia cruzara seu caminho sob aqueles galhos que ora uivavam e chiavam. Em especial parecia-lhe haver na outra margem um homem alto e branco o qual já tivera a oportunidade de conhecer muito bem - que sorria e acenava com a cabeça. Eram, porém, precisamente essas imagens horripilantes que o atraíam com força para si, pois imaginava Ondina entre elas, totalmente aterrada e só.
Empunhou de imediato um forte ramo de pinheiro e, nele se apoiando, fincou os pés na corrente em torvelinho. Apesar de mal conseguir manter o equilíbrio, avançou impávido ainda mais para dentro dela. Nesse momento ouviu uma voz gentil chamando perto de si:
- Não se fie nele, não se fie! Ele, o rio, é traiçoeiro, esse velho!
Ele conhecia esses sons maviosos e ficou como que fascinado sob as sombras que acabavam de obscurecer a Lua, enquanto cambaleava com o rolar contínuo das vagas que sentia arremessarem-se contra suas coxas com a rapidez de flechas. Ainda assim, não quis ceder.
- Se você não estiver de fato aqui, se for apenas um espectro incorpóreo à minha volta, então também não tenho vontade de viver e quero tornar-me uma sombra como você, querida, querida Ondina!
Isto ele proferiu em voz alta, voltando a avançar para dentro do caudal.
- Olhe à sua volta! Ei, olhe à sua volta, belo e absorto mancebo! - ele ouviu mais uma vez perto de si. Ao voltar os olhos para o lado, avistou à luz da Lua que acabara de descobrir-se novamente, a sorridente e encantadora Ondina aconchegada a ervas floridas, sob os ramos de altas árvores entrelaçadas, em uma pequena ilha formada pela inundação.
Oh, em comparação a momentos antes, quão maior era a alegria com que o mancebo usou de seu galho de pinheiro à guisa de bastão! Com alguns passos atravessou a correnteza que se arrojava entre ele e a donzela, e lá estava ele ao seu lado sobre o pequeno gramado, sentindo-se confortável e seguro sob o farfalhar das árvores antiqüíssimas que os abrigavam. Ondina ergueu-se um pouco em meio a essa vegetação enrediça e lançou então seus braços em torno do pescoço de Huldbrand, a fim de puxá-lo para junto de si sobre o macio assento.
- É aqui que você deve contar-me sua história, formoso amigo - disse ela em baixo sussurro - aqui os velhos rabugentos não conseguem ouvir-nos. Além do mais, nosso teto de folhas sem dúvida equipara-se em conforto à sua mísera cabana.
- Aqui é o paraíso! - exclamou Huldbrand, abraçando e cobrindo de beijos ardentes a carinhosa beldade.
Entrementes o velho pescador havia chegado à margem do rio e gritou para os dois jovens:
- Ei, senhor cavaleiro! Eu o recebi como é costume entre os homens de bem, e em paga o senhor fica agora namorando às escondidas minha filha adotiva e, para completar, ainda me deixa correndo amedrontado atrás dela pela noite afora.
- Eu mesmo acabei de encontrá-la, meu bom ancião. - bradou o cavaleiro em resposta.
- Tanto melhor, - disse o pescador - mas então traga-a para terra firme sem mais delongas.
Mas Ondina absolutamente não quis saber disso. Ela afirmou preferir adentrar de uma vez a floresta bravia com o belo forasteiro do que retornar à cabana, na qual não se fazia a sua vontade e da qual, mais cedo ou mais tarde, o formoso cavaleiro partiria. Com indizível graça, ela cantou, enquanto abraçava
Huldbrand:
De nebuloso vale partiu a onda a resvalar,
a felicidade suprema estava indo buscar.
No momento preciso ao mar aberto chegou,
agora não quer voltar pois já a encontrou.
O velho pescador chorou amargas lágrimas ao ouvir essa canção; Ondina, contudo, não pareceu compadecer-se muito. Beijava e acariciava seu dileto que, por fim, lhe disse:
- Ondina, talvez o seu coração não se enterneça à vista das lamentações do velho, mas o meu sim. Voltemos para junto dele.
Admirada, ela voltou para ele os grandes olhos azuis e finalmente respondeu, devagar e irresoluta:
- Pois bem, se esse é o seu desejo. Para mim, tudo o que você desejar está bom.
Mas aquele velho lá precisa prometer-me que vai permitir, sem protestos, que você conte o que viu na floresta. Quanto ao resto... bem, o resto há de se resolver por si mesmo.
- Pode vir! Venha! - gritou o pescador, incapaz de articular qualquer coisa mais. Ao mesmo tempo, estendia longamente os braços para ela por sobre a correnteza e assentia com a cabeça para mostrar consentimento à sua exigência.
Com isso, os cabelos brancos lhe caíram sobre o rosto de modo bizarro, fazendo assim Huldbrand recordar-se do homem alvo que acenava na floresta. Sem deixar-se, porém, confundir por coisa alguma, o jovem cavaleiro tomou a formosa donzela em seus braços e carregou-a pelo curto trecho, entre a pequena ilha e a margem firme, pelo qual o rio passava bramindo. O velho abraçou efusivamente
Ondina, sem conseguir pôr um fim aos seus beijos e demonstrações de alegria; também a velha senhora aproximou-se e afagou muito carinhosamente a donzela reencontrada. Ninguém pensou em reprimendas, especialmente porque Ondina, deixando de lado sua obstinação, quase se excedia ao cobrir seus pais adotivos de palavras e carícias ternas.
Quando finalmente deram por si, após dar vazão à alegria do reencontro, a luz da aurora já despontava sobre o lago. A tempestade acalmara-se e os passarinhos estavam cantando alegremente sobre os ramos molhados. Como Ondina insistia em que fosse narrada a história prometida, os dois anciães anuíram sorrindo ao seu desejo. Foi trazido um desjejum para debaixo das árvores que ficavam atrás da cabana em direção ao lago e, com o coração cheio de alegria, eles sentaram-se para comer. Ondina sentou-se - porque assim o exigira com intransigência - sobre a relva aos pés do cavaleiro. Com isso, Huldbrand começou a narrar o que se segue.
O que o cavaleiro encontrou na floresta
- Há uns oito dias aproximadamente eu entrava a cavalo naquela cidade livre (1)
situada lá do outro lado da floresta. Logo teve início ali um belo torneio de justas e de argolinhas (2) e eu não poupei nem meu corcel nem minha lança. Certa feita, quando me detive junto à liça para descansar daquela alegre atividade, ao entregar o elmo de volta a um de meus pajens, meus olhos depararam-se com uma belíssima dama, ataviada com as mais esplêndidas jóias, que se encontrava em uma das tribunas e assistia ao espetáculo. Indaguei ao meu vizinho e fui informado de que a sedutora donzela se chama Bertalda e é a filha adotiva de um dos duques mais poderosos residentes nessa região. Notei que também ela olhava em minha direção e, como afinal é comum entre nós cavaleiros, se antes eu havia disputado com valentia, agora o meu esforço era redobrado. À noite, durante as danças, fui o par de Bertalda e isso perdurou por todos os dias da festividade.
Uma dor aguda em sua mão esquerda, que Huldbrand deixara pendendo para baixo, fê-lo interromper aqui sua fala, e ele dirigiu o olhar para o local dolorido.
Ondina havia cravado com força seus dentes de pérolas nos dedos de Huldbrand mirando-o, enquanto isso, muito taciturna e contrariada. De súbito, porém, fitou-o nos olhos com melancólica candura e sussurrou em voz muito baixa:
- Você também o fez por merecer.
A seguir, ocultou o rosto, e o cavaleiro, estranhamente confuso e pensativo, continuou sua narrativa:
- Essa Bertalda é uma moça altiva e extravagante. Logo no segundo dia já nem de longe me agradava tanto como no primeiro e, no terceiro, menos ainda. Mas fiquei ao seu lado porque era mais afável comigo do que com os outros cavaleiros e assim foi que, por gracejo, pedi-lhe uma de suas luvas. "Dou-lhe a luva se entrar, e entrar sozinho, na mal-afamada floresta e me contar como é lá dentro", disse ela. Eu não tinha de fato tanto interesse assim em suas luvas, mas o que está dito está dito, e um cavaleiro que preza sua honra não espera ser desafiado para uma prova dessas pela segunda vez.
- Eu imagino que ela lhe queria bem. - interrompeu-o Ondina.
- Era o que parecia. - retrucou Huldbrand.
- Ora - exclamou a jovem rindo - ela deve ser realmente uma tola se manda para longe de si aquele ao qual dedica amor. E ainda, para completar, para dentro de uma mata da qual se conta tantos horrores! Eu, no lugar dela, deixaria a floresta e seus segredos esperando por mim até cansar.
- Pus-me então a caminho na manhã de ontem. - continuou o cavaleiro sorrindo ternamente para Ondina. - Os troncos das árvores, avermelhados e esguios, cintilavam à luz da manhã que se estendia limpidamente sobre a verde relva, e as folhas sussurravam alegremente umas com as outras, de tal modo que me vi forçado a rir das pessoas que podiam imaginar haver algo de sinistro em um lugar tão encantador. "Será obra de pouca mora atravessar o bosque a trote e retornar!", dizia eu alegre e satisfeito comigo mesmo e, antes de dar por mim, já adentrara profundamente aquela verde penumbra, sem conseguir divisar mais nada da planície que ficara para trás. Só então pesou em meu coração a idéia de que poderia facilmente perder-me no selvagem matagal e que talvez esse fosse o único perigo ameaçando o peregrino solitário nessas bandas. Detive-me, portanto, e observei a posição do sol, que nesse meio tempo galgara um pouco mais para o alto. Ao olhar assim para cima, notei uma forma escura nos ramos de um alto carvalho. Pensei de imediato tratar-se de um urso e empunhei a minha espada; nesse instante, porém, a coisa disse com uma voz humana mas extremamente roufenha e desagradável: "Se eu não debicar essas ramas aqui em cima para servirem de espeto, em que, afinal, você seria assado hoje à meia-noite, hem, seu intrometido?" E enquanto isso fez tais caretas e armou tanto barulho com os galhos que meu ginete ficou desvairado e saiu comigo em disparada antes que eu pudesse ganhar tempo para averiguar que besta demoníaca, afinal, era aquela.
- Dele o senhor não deve pronunciar o nome - comentou o pescador, fazendo o sinal da cruz.
Em silêncio, a anfitriã da casa fez o mesmo. Ondina fitou seu dileto com olhos serenos e disse:
- O melhor da história é que não o assaram de fato. Continue, formoso mancebo.
O cavaleiro retomou sua narrativa:
- Eu e meu cavalo espavorido quase nos chocamos contra troncos e hastes de árvores e, embora o medo e calor fizessem escorrer-lhe o suor, ele ainda não se deixava refrear. Por fim, estávamos rumando diretamente para um abismo rochoso quando, de súbito, pareceu-me que um homem alto e branco arrojou-se bem em meio ao caminho diante do corcel alucinado. Este, sobressaltando-se, estacou.
Consegui dominá-lo outra vez, e somente então percebi que meu salvador não era um homem alvo, mas sim um regato cristalino que se arrojava para baixo de uma colina ao meu lado, cruzando bruscamente a trajetória de meu corcel e detendo-o.
- Obrigada, querido regato! - exclamou Ondina aplaudindo com as mãozinhas.
O ancião, no entanto, balançava a cabeça e olhava para o chão, perdido em pensamentos.
- Mal eu me havia acomodado outra vez sobre a sela e retomado devidamente as rédeas - assim continuou Huldbrand - e eis que se encontrava ao meu lado um curioso homenzinho, minúsculo e feio ao extremo, todo de um marrom amarelado e com um nariz não muito menor do que todo o restante do sujeito. Ademais, com sua larga bocarra, sorria com uma polidez assaz estúpida, fazendo-me milhares de mesuras e reverências. Como essa bufonaria muito me desagradava, fiz-lhe um rápido agradecimento e volvi meu ginete, que ainda continuava a tremer, dispondo-me a ir em demanda de outra aventura ou, na falta desta, a procurar o caminho de regresso, pois durante a minha sôfrega corrida o sol passara pelo cimo e já avançava rumo ao poente. Nisso, porém, o pequeno sujeito virou-se com um salto rápido como um relâmpago, e lá estava ele de novo diante de meu corcel.
'Saia da frente!', disse-lhe aborrecido, 'O animal está indócil e poderia muito bem derrubá-lo.' 'Ai', disse com voz roufenha o pequeno vilão, dando uma risada ainda mais horrivelmente estúpida, 'por que não me dá antes uma gorjeta, pois afinal fiz parar seu cavalinho. Considere que, não fosse por mim, tanto o senhor como o seu cavalinho estariam agora estendidos lá embaixo no precipício rochoso, ui!' 'Não fique fazendo tantas caretas', respondi, 'e tome seu dinheiro, muito embora você esteja mentindo, pois saiba que foi aquele bondoso arroio ali que me salvou, não você, seu pobre diabo'. Ao mesmo tempo lancei uma moeda de ouro em seu curioso gorro, o qual ele tirara à minha frente como que a pedir esmolas. Em seguida, saí cavalgando, ele, porém, encetou a gritar atrás de mim e, de inopino, com inacreditável rapidez, apareceu ao meu lado. Incitei meu ginete ao galope; o homenzinho galopou também - a despeito de isso parecer ser-lhe atroz e apesar das bizarras torceduras, em parte ridículas, em parte horripilantes, que enquanto isso ia aplicando a seu corpo. Entrementes, segurava a moeda de ouro para o alto e a cada pulo do galope berrava: 'Dinheiro falso! Moeda falsa! Moeda falsa! Dinheiro falso!' Isso ele grasnava com voz tão cavernosa que, a cada grito, tinha-se a impressão de que ele cairia morto ao chão. Também a sua língua vermelha e hedionda pendia longamente de sua goela. Detive-me, perturbado, e indaguei: 'O que você pretende com essa gritaria? Tome mais uma moeda de ouro, tome mais duas, mas depois deixe-me em paz.' Nesse momento ele recomeçou as suas mesuras desagradavelmente polidas e rosnou: 'Ouro não, não deve ser em ouro o meu pagamento, meu jovem senhorzinho. Disso eu mesmo tenho mais do que o suficiente. Vou mostrar-lhe.' "De súbito, foi como se eu pudesse ver através do chão firme e verde, como se ele fosse de vidro verde e a terra plana fosse esférica; e dentro dela uma grande quantidade de duendes brincava com ouro e prata. Uns de cabeça para cima, outros de cabeça para baixo, eles rolavam para lá e para cá e divertiam-se arremessando uns aos outros os nobres metais e, como gracejo, soprando ouro em pó em seus rostos. Meu feio acompanhante, que tinha um pé dentro e outro fora, mandou que os outros lhe trouxessem muito, muito ouro para cima, o qual então mostrava rindo para mim, sempre lançando-o de volta para as incomensuráveis profundezas, onde caía tilintando. Exibia então outra vez para os duendes lá embaixo a moeda de ouro que eu lhe dera, ao que esses sempre quase morriam de rir e me vaiavam. Por fim, todos eles estiraram seus dedos pontudos e sujos de metal em minha direção e, cada vez mais ferozes, cada vez em maior número, cada vez mais furiosos, vieram, num formigueiro pululante, escalando em minha direção. Nesse momento fui tomado do mesmo pavor que antes assaltara meu ginete.
Aticei-o com ambas as esporas, e não saberia dizer quão longe precipitei-me pela floresta adentro nessa segunda carreira insana.
"Quando finalmente estaquei, já havia esfriado ao meu redor com o cair da tarde.
Por entre os ramos entrevi uma estreita senda da qual supus que deveria conduzir para fora da mata, de volta rumo à cidade. Tencionava abrir caminho por ela, mas um semblante completamente alvo e indistinto, com traços em permanente mutação, mirava-me por entre a folhagem. Procurei esquivar-me dele, contudo, para onde quer que fosse, lá também estava ele. Irado, dispus-me finalmente a conduzir meu ginete para cima dele; diante disso, ele expeliu uma espuma branca sobre mim e o cavalo, ofuscando-nos, de sorte que vimo-nos forçados a retroceder. Assim, passo a passo, ele foi nos impelindo sempre para longe da vereda, deixando, na verdade, o caminho livre somente em uma única direção. Quando, porém, nos mantínhamos seguindo por ela, não nos fazia qualquer mal, muito embora permanecesse bem atrás de nós. De tempos em tempos, quando eu me voltava para ele, podia observar claramente que aquele rosto branco e borbulhante se assentava em um corpo igualmente alvo e deveras gigantesco. Algumas vezes cogitei tratar-se de um repuxo ambulante, mas nunca pude chegar a uma conclusão definitiva a respeito. Fatigados, cavalo e cavaleiro cediam ao homem alvo que os conduzia, sempre acenando com a cabeça como se quisesse dizer: 'Assim está bom!
Assim está bom!' E foi dessa maneira que finalmente chegamos aqui à borda da mata, onde avistei a relva e o lago e a sua pequena cabana, e onde o homem alvo e comprido desapareceu.”
- Felizmente ele se foi - disse o velho pescador e, em seguida, começou a falar sobre a melhor maneira de seu hóspede retornar outra vez para junto dos seus serviçais na cidade. Ouvindo isso, Ondina começou a dar umas risadinhas muito baixas para si mesma. Huldbrand notou-o e disse:
- Pensei que gostasse de me ver aqui. Por que agora fica feliz quando tratamos da minha partida?
- Porque você não pode ir embora - retorquiu Ondina. - Por que não tenta atravessar a enchente do rio da floresta com um bote, ou a cavalo ou sozinho, como bem lhe aprouver? Ou melhor, não tente, pois seria destroçado pelas pedras e troncos que estão sendo velozmente arrastados pela correnteza. E quanto ao lago, sei muito bem que meu pai não poderá adentrá-lo longe o suficiente com a sua barca.
Huldbrand ergueu-se sorridente para averiguar se era assim como Ondina dissera, o ancião acompanhou-o, e a mocinha seguiu ao lado deles aos saltos e gracejos.
Encontraram, de fato, tudo tal como ela dissera, e o cavaleiro teve de conformar-se em permanecer no promontório, agora transformado em ilha, até que a torrente se escoasse. Quando os três, após a caminhada, dirigiam-se novamente à cabana, o cavaleiro segredou ao ouvido da pequena:
- E então, o que acha, Ondinazinha? Está zangada por eu ficar?
- Ah, - respondeu-lhe ela com mofa - deixe estar. Se eu não o tivesse mordido, quem sabe o quanto ainda haveria daquela Bertalda em sua história!
Eram denominadas de "cidades livres" aquelas cidades que, até 1806, eram independentes dentro do Império Alemão, não pertencendo, portanto a nenhum feudo ou principado. (N.T.)
Antiga justa na qual o cavaleiro, passando rapidamente a cavalo, tinha que acertar com sua lança uma argola. (N.T.)
Como o cavaleiro vivia no promontório
Talvez você, meu prezado leitor, depois de muitas idas e vindas pelo mundo afora, já tenha chegado a um recanto no qual se sentia bem. Aquele amor inato que cada um de nós tem pela paz serena e pelo próprio lar desabrochou novamente em você, e foi como se de sepulturas mui amadas a terra natal despontasse de novo com todas as flores da infância e com o mais puro e terno amor, e você acreditou que ali seria o lugar acertado para morar e construir uma cabana. Se isso foi um equívoco que você mais tarde expiou com penar, não vem ao caso, e decerto você não quererá mortificar-se voluntariamente com o gosto amargo que lhe restou. Apenas desperte em seu íntimo aquele doce e inefável prenúncio, aquela oração de paz - e você poderá imaginar o estado de espírito do cavaleiro
Huldbrand enquanto vivia no promontório.
Era amiúde com íntima satisfação que ele observava como o rio da floresta a cada dia se revolvia com maior turbulência, como rompia as margens alargando mais e mais o seu leito e como ampliava, assim, o isolamento da ilha por um tempo cada vez mais longo. O cavaleiro passava uma parte do dia vagueando com uma velha besta, que encontrara em um canto da cabana e que consertara, à espreita dos pássaros que por ali voavam de passagem, fornecendo aqueles que conseguia acertar à cozinha, para que se tornassem bons assados. Quando trazia uma presa, quase nunca Ondina deixava de censurá-lo por despojar de forma tão hostil os adoráveis e felizes animaizinhos de sua alegre vida no azulado céu marítimo.
Muitas vezes ela chegava mesmo a chorar grossas lágrimas à vista das aves mortas. Contudo, se em outra ocasião ele retornava à casa sem nada ter caçado, ela não deixava de repreendê-lo com a mesma severidade visto que eles, devido à sua inabilidade e negligência, teriam agora que contentar-se com peixes e caranguejos. A cada vez, ele aguardava ansioso essas graciosas admoestações, notadamente porque em geral ela procurava compensar mais tarde esse seu mau humor com as mais ternas carícias. Os anciães tinham-se habituado à familiaridade entre os dois jovens, os quais já viam como noivos ou mesmo como um casal que com eles vivia na ilha isolada para ampará-los na velhice. Esse mesmo isolamento, aliás, também incutiu com muita força no jovem Huldbrand a idéia de que já era o noivo de Ondina. Sentia-se como se não houvesse mais mundo algum para além daquela correnteza que os rodeava ou, pelo menos, como se nunca mais fosse possível alcançar o outro lado e reunir-se a outras pessoas. Vez por outra seu corcel relinchava para ele enquanto pastava, como a lembrá-lo de seus feitos de cavaleiro e a reclamar por novos, ou então seu escudo, de cima da sela bordada e do xairel, reluzia circunspecto em sua direção, ou sua bela espada caía de súbito do cravo do qual pendia na cabana e, com a queda, resvalava para fora da bainha; ainda assim Huldbrand acalmava seu coração hesitante, dizendo para si mesmo que Ondina não poderia ser filha de um pescador mas, com toda a probabilidade, procedia de uma misteriosa família estrangeira, da alta aristocracia. Sentia-se seriamente incomodado apenas quando a anciã admoestava Ondina em sua presença. Ainda que em geral a caprichosa donzela risse disso de modo galhofeiro e sem reservas, era-lhe como se a sua honra estivesse sendo desafiada; e, não obstante, não podia deixar de dar razão à velha mulher do pescador, pois Ondina sempre merecia pelo menos dez vezes mais reprimendas do que recebia, de modo que Huldbrand continuava a nutrir pela sua hospedeira um grande carinho, e assim, a maneira como eles viviam manteve-se em seu curso pacato e agradável.
Ao final, porém, uma perturbação interveio para quebrar a paz. O pescador e o cavaleiro estavam habituados a deleitar-se com uma caneca de vinho no almoço e também no jantar, quando o vento uivava lá fora, como quase sempre sucedia ao cair da noite. Ocorreu, no entanto, que todo o estoque que o pescador havia outrora trazido aos poucos consigo da cidade chegara ao fim, e isso tornou os dois homens bastante aborrecidos. Ondina rira deles a valer por todo o dia sem que os dois, ao contrário do usual, aderissem alegremente a seus gracejos. Ao final da tarde ela havia saído da cabana, dizendo querer escapar de suas caras amuadas e enfadonhas. Com o cair da noite, uma nova tempestade parecia iminente e já se ouvia os estrépitos e bramidos da água, de modo que o cavaleiro e o pescador, lembrando-se do pavor daquela noite em que Huldbrand estivera na cabana pela primeira vez, lançaram-se sobressaltados para a porta a fim de trazer a moça de volta. Mas Ondina já vinha risonha a seu encontro, batendo palmas com as mãozinhas.
- O que me dão se lhes arranjar vinho? Ou melhor, não precisam dar-me nada - ela continuou - pois já ficarei satisfeita se vi-los mais alegres e bem-humorados do que estiveram ao longo de todo este dia tedioso. Venham comigo, o rio impeliu até a margem um barril e quero ser condenada a dormir por uma semana inteira se não for um barril de vinho.
Os homens seguiram atrás dela e de fato encontraram na margem, no lugar em que esta formava uma enseada coberta de arbustos, um barril que lhes despertou a esperança de que contivesse a nobre bebida pela qual ansiavam. Rolaram o barril em direção à cabana o mais rápido possível, pois um forte temporal avolumava-se no céu noturno, e podia-se entrever na penumbra que as ondas do lago erguiam suas alvas cabeças de espuma como a espreitar a chuva que logo iria abater-se ruidosamente sobre elas. Ondina auxiliou os dois tanto quanto suas forças lho permitiam, e quando de súbito a ventania uivou demasiado célere pelos ares, ela alegremente exclamou, em ameaça às pesadas nuvens:
- Ei! Ei! Não venha você nos molhar. Ainda falta muito até estarmos abrigados sob um telhado.
O ancião proibiu-lhe tais palavras, considerando sua ousadia um pecado; ela, no entanto, deu umas risadinhas consigo mesma e, de fato, ninguém sofreu nenhum mal por isso. Antes, ao contrário do que supunham, todos três chegaram secos com a sua presa para junto do aconchegante fogão, e foi somente depois de terem aberto o barril, e averiguado tratar-se de um vinho singularmente magnífico, que a chuva desabou das negras nuvens e a tempestade rugiu por entre os cimos das árvores e sobre as revoltas ondas do lago.
Em pouco tempo várias garrafas estavam repletas do vinho daquele enorme barril, que prometia provisão para muitos dias. Todos estavam sentados juntos em frente ao calor do fogão, bebendo e gracejando, confortavelmente protegidos da furiosa tempestade. Repentinamente, o velho pescador disse então muito sério:
- Oh, Deus poderoso, aqui estamos nós a regozijar-nos com esta nobre dádiva, e aquele a quem ela pertencia de início, e de quem a correnteza a arrebatou, provavelmente teve que abandonar por causa dela a própria vida.
- Não necessariamente! - opinou Ondina, enchendo sorridente o copo de Huldbrand.
Este, no entanto, disse:
- Pela minha honra mais sagrada, bom ancião, se estivesse em meu poder encontrá-lo e salvá-lo, eu não haveria de lastimar nenhuma caminhada pela noite afora nem qualquer perigo. Mas uma coisa posso lhe assegurar: se porventura algum dia voltar a terras mais povoadas, hei de encontrá-lo, ou a seus herdeiros, e compensar em dobro e em triplo esse vinho.
Isto alegrou o ancião, que acenou ao cavaleiro com a cabeça em sinal de aprovação e esvaziou sua caneca, agora com maior satisfação e com a consciência mais tranqüila.
Ondina, no entanto, disse para Huldbrand:
- Faça como quiser com a sua compensação e seu ouro. Mas quanto a sair e procurá-lo, isso foi uma idéia tola. Se com isso você viesse a perecer, eu haveria de chorar até secarem-me os olhos. Ademais, não é verdade que também você preferiria ficar aqui comigo e com este bom vinho?
- Sobre isso, nenhuma dúvida - respondeu Huldbrand sorrindo.
- Pois bem - disse Ondina - então você teve uma idéia tola. Pois afinal, cada um é o próximo para si mesmo, e de que nos interessam os outros?
A anfitriã virou-lhe as costas suspirando e meneando a cabeça; o pescador pôs de lado a sua habitual predileção pela graciosa jovem e censurou-a:
- Isto soa como se você tivesse sido educada por pagãos ou turcos, - e, encerrando seu discurso, disse: - que Deus me perdoe e a você, sua menina de má índole.
- Pois muito bem, mas é assim que me sinto - retrucou Ondina - não importa quem me tenha educado, e de nada adiantam todos esses sermões.
- Cale-se! - ele interrompeu-a rispidamente. E ela, que a despeito de sua ousadia se assustava facilmente, sobressaltou-se, aninhou-se trêmula junto a
Huldbrand e perguntou-lhe em voz bem baixa:
- Você, formoso amigo, também está zangado?
O cavaleiro apertou sua delicada mão e afagou seus cachos. Não respondeu, pois a indignação pela severidade com que o ancião tratara Ondina selava-lhe os lábios.
E assim, repentinamente, os dois pares viram-se sentados defronte um do outro, desgostosos e mergulhados em um silêncio constrangido.
Uma cerimônia de casamento
Uma leve batida na porta soou em meio a esse silêncio e assustou todos que estavam sentados na cabana, como de fato costuma acontecer: até mesmo algo insignificante, ao sobrevir de modo totalmente inesperado, pode causar um grande sobressalto ao nosso espírito. Ali, porém, somava-se ainda a proximidade da agourenta mata e o fato de que o promontório parecia agora inacessível a visitantes humanos. Houve uma troca de olhares hesitantes, repetiu-se a batida acompanhada de um profundo gemido. O cavaleiro foi em busca de sua espada. O ancião, porém, disse em voz baixa:
- Se for aquilo que eu temo, nenhuma arma poderá ser-nos de alguma serventia.
Ondina, nesse meio tempo, aproximou-se da porta e exclamou muito contrariada e audaciosa:
- Se vocês gnomos pretendem fazer travessuras, Kühleborn irá ensinar-lhes uma lição.
O horror dos demais foi intensificado por essas palavras desusadas. Eles olhavam receosos para a jovem, e Huldbrand estava justamente criando ânimo para dirigir-lhe uma pergunta quando ouviu-se lá fora:
- Não sou nenhum gnomo e sim um espírito que ainda habita um corpo terreno. Se acaso os senhores aí de dentro da cabana se dispuserem a me acudir, e se forem tementes a Deus, abram a porta para mim.
A essas palavras Ondina já havia aberto a porta e dirigia para a noite tempestuosa a luz de um candeeiro, deixando com isso entrever um velho sacerdote que, diante da imprevista aparição da linda mocinha, recuou aterrado. Ele imaginou com certeza que só por obra de algum feitiço ou fantasmagoria poderia uma figura tão formosa aparecer à porta de uma cabana tão modesta, de modo que encetou a orar:
- Todos os espíritos benevolentes veneram a Deus nosso Senhor!
- Não sou nenhum fantasma. - disse Ondina sorrindo - Pareço, afinal, tão feia assim? Ademais, o senhor viu perfeitamente bem que nenhum dito sagrado me assusta. Além disso, também tenho conhecimento de Deus e também sei venerá-lo; certamente cada qual fá-lo a seu modo, e é para esse fim que Ele nos criou.
Entre, venerável padre, o senhor está chegando à casa de pessoas de bem.
O eclesiástico entrou fazendo cortesias e olhando ao redor, e parecia muito bondoso e respeitável. De sua roupa escura, porém, pingava água de todas as dobras, como também de sua longa barba branca e dos alvos cachos de seus cabelos. O pescador e o cavaleiro conduziram-no para um quartinho e deram-lhe outras vestimentas enquanto entregavam o fato do sacerdote para as mulheres na saleta, para que secasse. O idoso forasteiro agradeceu com muita humildade e gentileza, mas de modo algum aceitou abrigar-se no resplandecente manto que o cavaleiro lhe oferecia, preferindo ao invés disso uma velha capa descolorida do pescador. Retornaram em seguida à saleta, onde a dona da casa cedeu de imediato sua espaçosa poltrona ao sacerdote e não descansou até ele acomodar-se nela.
- Pois - exclamou ela - o senhor é idoso e está cansado, e ainda por cima é um religioso.
Ondina empurrou para debaixo dos pés do forasteiro o banquinho sobre o qual costumava sentar-se ao lado de Huldbrand e, de modo geral, mostrou-se deveras comportada e agradável nos seus cuidados para com o bom velho. Por causa disso
Huldbrand segredou-lhe um gracejo ao ouvido, mas ela retorquiu com gravidade:
- Afinal, ele serve Àquele que criou a todos nós. Com isso não se brinca.
O cavaleiro e o pescador confortaram em seguida o sacerdote com alimentos e vinho, e este, depois de recobrar um pouco as forças, começou a contar como no dia anterior fora incumbido de sair de seu mosteiro, situado a longa distância além do grande lago, para dirigir-se à residência do bispo a fim de notificá-lo acerca da penúria que, em decorrência dessas espantosas inundações, está agora afligindo o mosteiro e as respectivas aldeias que lhe pagam tributos. A despeito das muitas voltas que dera, justamente por causa das inundações, viu-se hoje forçado, ao final da tarde, a atravessar com a ajuda de dois bons barqueiros um braço transbordado do lago.
- Mas, - continuou ele - mal a nossa pequena embarcação adentrara as ondas, abateu-se a portentosa tempestade que ainda agora continua esbravejando sobre nossas cabeças. Era como se as águas apenas estivessem nos esperando para então envolver-nos em um bailado dos mais turbulentos e rodopiantes. Os remos logo foram arrebatados das mãos de meus condutores e impelidos aos pedaços pelas ondas à nossa frente, cada vez para mais longe. Nós mesmos estávamos submetidos à surda força da Natureza, que nos impulsionava, desamparados, com as mais elevadas vagas até esta distante margem que já víamos sobressair-se por entre as névoas e águas espumosas. Por fim, o barco começou a girar cada vez mais furioso e em maior torvelinho. Não sei se ele emborcou ou se fui arremessado para fora.
Sentindo indistintamente o temor diante da morte próxima e terrível, fui sendo levado até que uma onda jogou-me aqui, sob as árvores desta ilha.
- Ilha, deveras! - disse o pescador - Há pouco era ainda um promontório. Agora, porém, desde que o rio da floresta e o lago simplesmente enlouqueceram, nossa situação mudou.
- Notei que deveria ser algo desse tipo. - disse o sacerdote - Quando, no escuro, arrastei-me pelas imediações do curso das águas, divisando apenas o frêmito bravio à minha volta, avistei por fim uma trilha que se perdia diretamente em meio ao furor das vagas. Foi então que percebi a luz em sua cabana e ousei aproximar-me. Não há como expressar suficiente gratidão ao nosso
Pai celestial por ainda conduzir-me - após salvar-me do caudal - até pessoas tão bondosas como os senhores, especialmente porque não tenho como saber se, além dos quatro, ainda verei outras pessoas nesta vida.
- O que quer dizer com isso? - perguntou o pescador.
- Ora, o senhor tem como saber por quanto tempo a agitação dos elementos ainda perdurará? - retorquiu o sacerdote - E eu estou em idade avançada. A corrente de minha vida pode muito bem exaurir-se e ir para o seio da terra antes que o transbordamento da correnteza do rio lá fora o faça. E além disso, não seria de todo impossível que essa água escumante fosse se interpondo mais e mais entre o senhor e a floresta do outro lado, até que estivesse tão apartado da terra firme que seu barquinho pesqueiro não mais conseguiria alcançá-la, e os habitantes da terra firme estivessem tão atarefados que não se preocupariam nem um pouco com sua idade avançada.
Ouvindo isso, a idosa anfitriã sobressaltou-se, fez o sinal da cruz e disse:
- Que Deus não o permita!
Mas o pescador contemplou-a sorrindo, e falou:
- Como é o ser humano! Ao menos para você, querida mulher, as coisas não ficariam afinal muito diferentes do que são agora. Pois terá você, já há muitos anos, avançado além dos limites da floresta? E terá visto outras pessoas que não
Ondina e eu? Há pouco o cavaleiro e o sacerdote juntaram-se a nós. Eles permaneceriam conosco se nos tornássemos uma ilha esquecida, de modo que, nesse caso, seria você a tirar a melhor sorte.
- Não sei - disse a anciã - mas, de qualquer forma, uma sensação lúgubre me sobrevém quando nos imagino irrevogavelmente apartados de outras pessoas, ainda que em geral não as veja nem conheça.
- Então você ficaria conosco, então você ficaria conosco! - sussurrou Ondina em voz muito baixa, quase cantando, e aconchegou-se ainda mais perto junto à espalda de Huldbrand. Este, no entanto, achava-se perdido em profundos e estranhos pensamentos. Desde as últimas palavras do sacerdote, sentiu que a região do outro lado da água ia se afastando e tornando-se indistinta, ao passo que a florida ilha na qual vivia ia parecendo-lhe mais risonha e arraigava-se com mais vida em seu íntimo. A noiva radiava como a mais bela rosa desse pequeno recanto e mesmo do mundo inteiro; o sacerdote encontrava-se à mão. Para completar, um olhar irritado foi nesse momento lançado pela anfitriã em direção à formosa moça, por ela achegar-se tanto a seu dileto na presença do religioso, e parecia que uma torrente de palavras ásperas se seguiria. Foi então que, dirigindo-se ao sacerdote, o cavaleiro deixou irromper de seus lábios:
- O senhor, venerável padre, tem diante de si um casal de noivos, e se esta jovem e os bons anciães nada tiverem a opor, o senhor irá unir-nos ainda esta noite.
O velho casal ficou muito surpreso. Com certeza os dois anciães já haviam diversas vezes pensado em algo semelhante, embora nunca o tivessem expressado em voz alta. E agora que o cavaleiro assim o fizera , o fato pareceu-lhes totalmente novo e inusitado. Ondina de súbito tornara-se séria e olhava meditativa diante de si, enquanto o sacerdote indagava acerca dos pormenores da situação e solicitava o consentimento dos anciães. Depois de muito falatório, as coisas foram postas em pratos limpos. A dona da casa foi preparar o aposento de núpcias para o jovem casal e trouxe, para a cerimônia de casamento, duas velas consagradas que já há bastante tempo mantinha guardadas. O cavaleiro revirava sua corrente de ouro pretendendo desprender dois elos a fim de servirem de anéis para a troca entre os noivos. Mas Ondina, ao percebê-lo, despertou de suas profundas reflexões e disse:
- Não faça isso. Meus pais não me trouxeram ao mundo em total penúria. Pelo contrário, eles com certeza anteviram já há muito tempo que uma noite como esta viria a ocorrer.
Assim dizendo, ela rapidamente desapareceu pela porta, retornando a seguir com dois soberbos anéis, um dos quais entregou ao noivo, guardando o outro para si.
O velho pescador ficou estupefato, e mais ainda a dona da casa que acabava de retornar, pois nenhum deles jamais avistara aquelas preciosidades com a menina.
- Meus pais - redargüiu Ondina - mandaram costurar estes dois pequenos mimos na bainha daquele formoso vestido que eu estava justamente trajando quando aqui cheguei. Eles também proibiram que eu contasse qualquer coisa a respeito antes da noite de minhas bodas. Por isso eu os tirei às escondidas e os mantive em segredo até hoje.
O sacerdote interrompeu as demais perguntas e manifestações de assombro acendendo as velas consagradas, dispondo-as sobre uma mesa e chamando o casal de noivos para que se colocassem à sua frente. Uniu-os então com palavras rápidas e solenes, após o que o casal de anciães abençoou os jovens, e a noiva, pensativa e um pouco trêmula, encostou-se ao cavaleiro. O sacerdote disse então, repentinamente:
- Os senhores são mesmo estranhos! Por que me disseram que são as únicas pessoas nessa ilha se durante toda a cerimônia um homem alto e galhardo, com um manto branco, olhava para dentro por aquela janela à minha frente? Ele ainda deve estar diante da porta, se acaso quiserem convidá-lo a entrar.
- Que Deus nos proteja! - disse a anciã estremecendo.
O velho pescador meneou em silêncio a cabeça enquanto Huldbrand saltava até a janela. Ele próprio teve a impressão de ainda poder divisar uma linha branca que logo desapareceu por completo na escuridão. Persuadiu o sacerdote de que ele devia ter-se enganado, e todos sentaram-se em afetuosa comunhão ao redor do fogo.
O que ainda ocorreu na noite de núpcias
Ondina mostrara-se muito bem comportada e serena antes e durante a cerimônia, mas agora foi como se em compensação todos os seus extravagantes caprichos viessem à tona aos borbotões de modo ainda mais atrevido e petulante. Com toda sorte de gracejos pueris, ela importunou o noivo e os pais adotivos, e inclusive o sacerdote, já não mais tão venerável assim. Quando a anciã se dispôs a repreendê-la, algumas palavras graves do cavaleiro - com as quais salientava enfaticamente que Ondina agora era sua esposa - fizeram-na silenciar-se. Mesmo assim, tampouco a ele estavam agradando as maneiras infantis de Ondina, não havendo, porém, como detê-la: nem acenos, nem tossidelas, nem quaisquer palavras de censura surtiam qualquer efeito. Tão logo a noiva percebia a insatisfação de seu amado - e isso deu-se várias vezes - ela tornava-se de fato um pouco mais tranqüila e sentava-se ao seu lado, afagava-o ou segredava-lhe sorridente algo ao ouvido, com o que se alisavam as rugas que haviam se formado na testa de Huldbrand. Mas logo em seguida, alguma idéia desatinada levava-a de volta a seu comportamento caprichoso, desta feita de maneira ainda mais desagradável do que antes. O sacerdote disse-lhe então, muito sério e muito amável:
- Minha graciosa e jovem mocinha, é de fato um prazer contemplá-la assim, mas lembre-se a tempo de afinar sua alma para que ela soe sempre em harmonia com a alma do noivo ao qual se uniu.
- Alma! - riu-se Ondina para o sacerdote - Isso soa muito bem e pode ser um conselho muito útil e edificante para a maioria das pessoas. Mas, diga-me, por favor, o que há para harmonizar se alguém não tem alma? E esse é o meu caso.
O sacerdote calou-se, irado; e, muito ferido em seu sentimento religioso, voltou consternado as costas à jovem. Ela, porém, acercou-se carinhosamente dele e disse:
- Não, primeiro ouça com atenção antes de ficar zangado comigo, pois sua zanga magoa-me e o senhor não deve magoar nenhuma criatura que de sua parte nada lhe fez. Apenas mostre-se tolerante para comigo e eu lhe contarei exatamente qual foi a minha intenção.
Podia ver-se que ela estava disposta a narrar algo em minúcias mas deteve-se de repente - como que tomada em seu íntimo por um calafrio - e prorrompeu em uma farta torrente de lágrimas da mais profunda tristeza. Ninguém sabia mais como agir com ela e fitavam-na calados, cada qual mergulhado em uma preocupação diferente. Finalmente, secando suas lágrimas e encarando o sacerdote com gravidade, ela disse:
- Com certeza há algo agradável, mas também algo extremamente terrível com relação à alma. Por Deus, meu bom homem, não seria talvez melhor que nunca se viesse a ter alma?
Deteve-se outra vez, como que esperando uma resposta; suas lágrimas haviam estancado. Todos na cabana tinham se levantado de seus assentos e dela se afastaram espavoridos. Ela, no entanto, parecia só ter olhos para o clérigo, e em seu rosto desenhava-se uma expressão de curiosidade cheia de receio, a qual, precisamente por isso, parecia aos demais extremamente assustadora.
- A alma deve ser uma carga pesada - continuou ela, visto que ainda ninguém respondia - muito pesada! Pois a mera aproximação de sua imagem cobre-me com uma sombra de temor e pesar. Oh, e eu sempre fui tão despreocupada, tão alegre!
E novamente prorrompeu em uma torrente de lágrimas e debateu-se contra o véu que cobria seu semblante. Nesse momento, o sacerdote acercou-se dela muito grave e falou-lhe, esconjurando-a com os mais sagrados nomes a revelar se algum mal habitava em seu íntimo. Ela, entretanto, prostrou-se de joelhos à sua frente, repetiu todas as palavras sagradas que ele ia dizendo, e louvou a Deus e assegurou que só queria o bem de todos. Por fim, o sacerdote disse ao cavaleiro:
- Senhor noivo, deixo-o sozinho com aquela que lhe confiei. Tanto quanto consigo averiguar, nada há de maligno nela, apenas coisas estranhas, e delas há muito.
Aconselho-o a ter amor, cautela e fidelidade.
Assim dizendo, ele retirou-se, e os anciães seguiram-no fazendo o sinal da cruz.
Ondina havia caído de joelhos. Retirando o véu de seu rosto e lançando um tímido olhar para Huldbrand, disse:
- Ah, agora com certeza você não me quererá mais, embora eu nada tenha feito de mal - pobre, pobre de mim!
Enquanto dizia isso, ela parecia tão infinitamente doce e tocante que o seu noivo, esquecendo todo o horror e incerteza, apressou-se a ir ter com ela e ergueu-a em seus braços. Diante disso, ela sorriu por entre as lágrimas, e foi como se o sol nascente se refletisse em pequenos regatos.
- Você não consegue deixar-me! - sussurrou ela com confiança e ternura enquanto acariciava com suas mãozinhas delicadas as faces do cavaleiro. Este, com isso, afastou os pensamentos medonhos que ainda estavam à espreita nas profundezas de sua alma e que procuravam persuadi-lo de que contraíra matrimônio com uma fada ou alguma outra criatura perversa do mundo dos espíritos. Restou uma única pergunta, que escapou de seus lábios quase contra sua vontade:
- Querida Ondinazinha, responda-me só essa pergunta. Quando o clérigo bateu à porta, o que você quis dizer com gnomos e com Kühleborn?
- Contos da carochinha! Contos da carochinha para crianças! - disse Ondina rindo novamente com a sua habitual alegria. - Primeiro eu os assustei com isso, e mais tarde vocês acabaram me assustando. Esse é o final da história e da noite de núpcias.
- Não, isso não é verdade - disse o cavaleiro inebriado de amor. Ele apagou as velas e, enquanto a beijava inúmeras vezes, carregou sua formosa amada docemente iluminada pela Lua que enviava seus raios pela janela - para dentro do aposento de núpcias.
O dia após a celebração do casamento
Uma refrescante luz matinal despertou o jovem casal. Ondina ocultou-se com pudor sob as suas cobertas enquanto Huldbrand permanecia deitado, refletindo consigo mesmo. Durante a noite, em todas as ocasiões em que adormecera, fora perturbado por sonhos estranhos e horripilantes, ora sobre fantasmas que, sorrindo às escondidas, procuravam mascarar-se em belas mulheres, ora sobre belas mulheres que de uma hora para outra assumiam faces de dragões. E quando acordava sobressaltado por causa das medonhas imagens, via lá fora, diante da janela, a luz fria e pálida do luar. Horrorizado, voltava-se para Ondina, em cujo seio adormecera e que repousava ao seu lado com a mesma graça e beleza de antes.
Nesses momentos imprimia um leve beijo nos lábios rosados e adormecia outra vez, voltando a ser acordado por novos sustos. Agora, totalmente desperto, após ter refletido sobre todas essas coisas, censurou a si mesmo por ter acalentado quaisquer dúvidas que pudessem perturbá-lo em relação à sua formosa esposa. De fato, pediu-lhe explicitamente desculpas por essa injustiça; ela, porém, apenas estendeu-lhe sua formosa mão, emitiu um profundo suspiro e permaneceu em silêncio. Mas um olhar infinitamente terno, tal como Huldbrand nunca vira, deu-lhe absoluta certeza de que Ondina não guardava qualquer rancor contra ele.
Levantou-se então alegremente e dirigiu-se à saleta principal para reunir-se aos demais. Os três estavam sentados ao redor do fogo com expressões preocupadas, sem que qualquer um se atrevesse a expressar seus sentimentos em voz alta.
Parecia que o clérigo orava silenciosamente, pedindo pelo afastamento de todo o mal. Entretanto, quando viram o jovem recém-casado aproximar-se tão festivamente, desanuviaram-se também os semblantes dos demais, chegando mesmo o velho pescador a gracejar com o cavaleiro de uma maneira bastante polida e decorosa, fazendo com que até a velha senhora sorrisse muito amável. Também Ondina finalmente ficou pronta e entrou pela porta. Todos quiseram ir ao seu encontro, mas permaneceram em seus lugares tomados de assombro, tão diferente lhes parecia a jovem esposa e, ao mesmo tempo, tão familiar. O sacerdote, com amor paternal rebrilhando em seus olhos, foi o primeiro que dela se acercou, e, quando ergueu a mão para abençoá-la, a formosa mulher caiu de joelhos à sua frente, arrebatada pela devoção. Em seguida, com algumas palavras gentis e humildes, ela pediu-lhe perdão por quaisquer tolices que tivesse dito na noite anterior e rogou-lhe em um tom muito comovido que rezasse pela salvação de sua alma. Depois, ergueu-se, beijou seus pais adotivos e disse em agradecimento por todas as coisas boas que deles recebera:
- Oh, agora realmente sinto no fundo de meu coração quão bondosos, quão infinitamente bondosos vocês foram comigo, oh, vocês que me são muito, muito queridos!
No início ela não conseguia interromper os afagos; mal notou, porém, que a dona da casa pretendia cuidar do desjejum, já postou-se junto ao fogão, cozinhando e preparando, e não permitindo que a boa e velha senhora fizesse qualquer trabalho que a fatigasse.
Ela permaneceu assim ao longo de todo esse dia - serena, amável e cuidadosa uma dona de casa maternal e, ao mesmo tempo, uma donzela delicadamente pudica e virginal. Os três, que já a conheciam há mais tempo, aguardavam a cada momento uma transformação brusca e caprichosa de seu temperamento inconstante. Mas esperaram em vão. Ondina manteve-se terna e doce como um anjo. O sacerdote não conseguia desviar os olhos dela, e disse diversas vezes ao recém-casado:
- Meu senhor, um tesouro foi-lhe confiado ontem pela Divina Providência através de minha indigna pessoa. Guarde-o como convém e ele será para o senhor a fonte de sua bem-aventurança tanto terrena como celestial.
Ao entardecer, Ondina tomou com humilde ternura o braço do cavaleiro, puxando-o suavemente para fora da porta. O sol poente refulgia graciosamente sobre as relvas frescas e por entre os troncos altos e esguios das árvores. Os olhos da jovem mulher estavam como que umedecidos pelo orvalho da nostalgia e do amor, em torno de seus lábios pairava como que um delicado e apreensivo mistério, o qual, porém, só se manifestava em suspiros quase imperceptíveis. Em silêncio, ela conduziu seu amado sempre para mais longe. A tudo que ele dizia ela respondia unicamente com olhares, os quais, embora não fossem uma réplica direta às suas perguntas, continham todo um paraíso de amor e tímida devoção. Dessa maneira ela alcançou a margem do rio alagado e o cavaleiro surpreendeu-se por vê-lo esvaindo-se mansamente em plácidas ondas, não restando mais quaisquer vestígios de sua antiga selvageria e corpulência.
- Até amanhã ele terá se exaurido totalmente. - disse a bela mulher, em tom choroso - e você poderá partir sem impedimento para onde quiser.
- Não sem você, Ondinazinha. - retorquiu o cavaleiro rindo - Afinal, lembre-se que, ainda que eu desejasse fazê-lo, certamente a Igreja e o clero e o imperador e o império interviriam para trazer-lhe de volta o fugitivo.
- Tudo isso depende de você, tudo isso depende de você. - sussurrou a donzela, em parte sorrindo, em parte chorando. - Mas eu acredito, sim, que você irá mesmo ficar comigo; afinal, dedico-lhe o amor mais profundo. Carregue-me agora até o outro lado para pequena ilha que está à nossa frente. Lá tudo deverá decidir-se.
É verdade que eu poderia facilmente transpor por mim mesma essas pequenas ondas, mas seus braços são tão reconfortantes e, se você vier a me repudiar, ao menos ainda terei repousado neles por uma última vez.
Huldbrand, tomado por uma estranha comoção e ansiedade, não soube o que responder. Tomou-a em seus braços e carregou-a para o outro lado, só agora atentando para o fato de ela ser a mesma pequena ilha de onde, naquela sua primeira noite, a carregara de volta para o velho pescador. Lá chegando, pousou-a sobre a relva macia, pronto a sentar-se afetuosamente ao lado de sua formosa carga; ela porém lhe disse:
- Não, sente-se lá, à minha frente. Quero ler em seus olhos antes mesmo que seus lábios falem. Agora, ouça com muita atenção o que vou lhe contar. - E começou. Você precisa saber, meu doce amado, que nos elementos existem seres muito semelhantes a vocês, os quais, entretanto, só em raras ocasiões se mostram aos seus olhares. Nas chamas faíscam e brincam as bizarras salamandras, nas profundezas da terra habitam os áridos e pérfidos gnomos, pelas florestas vagueiam as sílfides que pertencem ao ar, e nos mares e rios e lagos vive a extensa raça dos espíritos aquáticos. Eles residem em belas e tilintantes abóbadas de cristal que deixam entrever o céu com o sol e as estrelas; elevadas árvores de coral com frutos azuis e vermelhos refulgem em seus jardins; passeiam sobre a límpida areia do mar e sobre lindas e coloridas conchas; e tudo o que o velho mundo possuía de formoso, e que o novo não mais é digno de apreciar, as marés cobriram com seus misteriosos véus prateados, e lá embaixo agora estão expostos os nobres monumentos, altos e sóbrios, e graciosamente cobertos pelo orvalho das amorosas águas que deles fazem brotar belos e floridos musgos e tufos de junco enlaçados. E aqueles que lá moram são muito garbosos e adoráveis de se ver, sendo em geral mais belos do que os seres humanos. Muitos pescadores já tiveram a sorte de espreitar uma delicada sereia enquanto ela se elevava das ondas e entoava seu canto. Esses pescadores contaram então de sua formosura, e essas mulheres incomuns são chamadas pelos homens de ondinas. E o que você está vendo agora, meu querido amigo, é realmente uma ondina.
O cavaleiro quis persuadir-se de que sua linda esposa estava tendo algum de seus estranhos caprichos e divertia-se, provocando-o com histórias que brotavam a esmo de sua imaginação. Porém, por mais que repetisse isso para si mesmo, não podia acreditá-lo sequer por um momento, e um estranho calafrio percorreu seu íntimo. Incapaz de articular qualquer palavra, fitava com olhos imóveis a graciosa narradora. Esta, entristecida, balançou a cabeça, lançou um profundo suspiro e logo prosseguiu:
- Nós poderíamos estar em condições muito melhores do que vocês, outras pessoas; veja que também nos denominamos pessoas, e de fato o somos, no que diz respeito a nossas maneiras e aparência. Mas temos uma grande desvantagem. Tanto no corpo como no espírito, nós, e nossos semelhantes nos demais elementos, fenecemos e nos dissipamos de tal modo que não restam quaisquer traços; e, enquanto vocês um dia acordarão para uma vida mais pura, nós teremos permanecido onde permaneceram a areia e a centelha e o vento e a onda. Por conseguinte também não temos alma.
O elemento nos move, freqüentemente nos obedece enquanto vivemos e sempre nos reduz a pó tão logo morremos, e somos alegres sem nunca nos afligirmos, do mesmo modo que os rouxinóis e peixinhos dourados e outros adoráveis filhos da Natureza igualmente o são. Mas todos querem evoluir além do ponto em que estão. E assim, meu pai, que é um poderoso príncipe no Mar Mediterrâneo, desejou que sua única filha obtivesse uma alma, ainda que para isso ela tivesse que submeter-se a muitos sofrimentos que afligem as pessoas que têm almas. Mas criaturas como eu só podem obter uma alma por meio da mais profunda união amorosa com alguém da sua estirpe. Agora, graças a você, tenho uma alma, meu infinitamente amado, e oferecerei minha gratidão a você se não fizer aquilo que me tornaria miserável por toda a vida. Pois, o que será de mim se tiver receio de mim e me abandonar?
Mas eu não quis conservá-lo por meio de um logro. Portanto, se quiser abandonar-me, faça-o nesse instante e volte sozinho para a outra margem. Eu mergulharei nesse arroio - que é o meu tio e que, longe dos demais amigos, leva aqui na floresta a sua estranha vida de eremita. Mas ele é poderoso, prezado e estimado por muitos grandes rios, e, tal como me conduziu até o casal de pescadores quando eu era uma criança leve e sorridente, assim também poderá conduzir-me de volta para meus pais, agora que sou uma mulher que sofre, ama e tem alma.
Ela ainda ia prosseguir em sua fala, mas Huldbrand, tomado da mais profunda emoção e amor, abraçou-a e carregou-a novamente até a outra margem. Só aqui ele jurou, sob lágrimas e beijos, que nunca abandonaria sua adorável esposa e confessou-se mais feliz do que o grego chamado Pigmalião, cuja bela estátua de pedra a deusa Vênus dotou de vida para ser sua amante. Com doce confiança,
Ondina tomou seu braço e caminhou de volta para a cabana, só agora sentindo no fundo do coração que não poderia lastimar-se por ter abandonado os palácios de cristal de seu fabuloso pai.
Como o cavaleiro levou sua jovem esposa consigo
Quando Huldbrand acordou na manhã seguinte, sua bela companheira não se encontrava ao seu lado, e ele começou outra vez a abandonar-se à extravagante idéia de que seu matrimônio e mesmo a encantadora Ondina não passariam de uma fugaz ilusão e fantasmagoria. Mas lá vinha ela, naquele mesmo momento, entrando pela porta; beijou-o, sentou-se junto dele na cama e disse:
- Saí um pouco mais cedo para ver se meu tio manteve sua palavra. Ele já conduziu toda a enchente de volta ao seu sossegado leito, e agora flui tal como antes, solitário e pensativo, pela floresta. Também seus amigos da água e do ar apaziguaram-se; tudo nesta região voltará a ficar pacífico e em ordem, e você poderá fazer sua viagem de regresso a seco, tão logo queira.
Huldbrand tinha a impressão de continuar sonhando, embora estivesse acordado, tão estranhos lhe pareciam os parentes de sua mulher. Não deixou, porém, que isso transparecesse e, além do mais, os infinitos atrativos de sua graciosa esposa logo acalmaram todo e qualquer pressentimento funesto. Pouco depois, quando estava parado com ela junto à porta observando o verde promontório e as águas cristalinas que o circundavam, sentiu-se tão acalentado nesse berço de amor que disse:
- Mas por que, afinal, deveríamos viajar ainda hoje? Certamente lá fora não encontraremos dias tão aprazíveis como os que vivemos nesse pequeno recanto oculto e protegido. Proponho que ainda fiquemos aqui para presenciar o pôr do Sol mais duas ou três vezes.
- Como meu senhor ordenar. - respondeu Ondina, gentil e humilde - Preocupo-me apenas com os anciães. De qualquer forma, eles hão de sofrer ao se separarem de mim, mas se além disso ainda perceberem a lealdade em minha alma, e quão sinceramente agora sei amar e honrar, com certeza verterão tantas lágrimas que seus olhos, já fracos, acabarão por anuviar-se por completo. Por ora eles ainda tomam minha serenidade e devoção por nada mais do que aquilo que outrora significava: a mansidão do lago quando o ar está calmo; e eles aprenderão a afeiçoar-se a uma pequena árvore ou uma florzinha tal como antes o fizeram comigo. Não deixe que percebam esse meu coração recém-recebido - que palpita de amor - exatamente no momento em que eles estão para perdê-lo nessa vida terrena.
E como poderia eu ocultá-lo se permanecêssemos juntos ainda por um período prolongado?
Huldbrand deu-lhe razão. Ele procurou os anciães e falou da viagem, que deveria ocorrer imediatamente. O sacerdote ofereceu-se para acompanhar o jovem casal; ele e o cavaleiro, após uma breve despedida, ergueram a formosa donzela sobre o cavalo e com ela caminharam apressadamente rumo à floresta, atravessado o leito seco do rio. Ondina chorou em silêncio, mas com amargura, ao passo que os anciães pranteavam-na aos brados. Parecia que nascera neles o pressentimento do quanto ora estavam perdendo com a partida de sua amável filha adotiva.
Os três viajantes haviam chegado aos recônditos mais densos e sombreados da floresta. Eles formavam um belo quadro: no verde salão formado pela vegetação, a linda figura feminina assentada sobre o nobre corcel graciosamente adornado, e, caminhando com cautela, de um lado, o venerável sacerdote no hábito branco de sua ordem, do outro, o vigoroso cavaleiro em trajes claros e coloridos, com sua soberba espada à cintura. Huldbrand só tinha olhos para sua encantadora esposa; Ondina, que havia secado suas afetuosas lágrimas, só para ele; e logo eles entabularam um terno e silencioso colóquio com olhares e gestos, o qual só muito mais tarde foi interrompido por uma conversa em voz baixa que o sacerdote mantinha com um quarto viajante que nesse ínterim se havia juntado a eles sem ser notado.
Este envergava uma indumentária alva, semelhante ao hábito do sacerdote, só que o capuz lhe pendia profundamente sobre o rosto. Além disso, as vestes voluteavam em tantas dobras ao seu redor que a todo momento ele tinha que ocupar-se em erguê-las, em enrodilhá-las no braço ou em outros arranjos desse tipo, sem que isso, no entanto, parecesse embaraçar seus passos. Quando os jovens recém-casados se aperceberam de sua presença, ele estava justamente dizendo:
- E assim, moro já há muitos anos aqui na floresta, meu venerável senhor, sem que se possa chamar-me de eremita, no sentido que o senhor dá à palavra. Pois, como disse, nada sei de penitência e também não acredito estar especialmente necessitado dela. Agrada-me tanto assim estar na floresta apenas porque acho divertido e também belo, de um modo todo especial, quando passo com minhas vestes brancas e esvoaçantes por entre as folhas e as penumbras soturnas, e vez por outra sou inesperadamente atingido por um doce raio de sol.
- O senhor é um homem deveras incomum - retorquiu o sacerdote - e eu bem que gostaria de saber mais a seu respeito.
- E o senhor, quem é, para retribuir-lhe a questão? - indagou o estranho.
- Chamam-me Padre Heilmann - disse o religioso - e venho do mosteiro de Mariagruß, no outro lado do lago.
- Ah, sim. - respondeu o estranho. - Eu me chamo Kühleborn e, em se tratando de cortesia, poderia perfeitamente bem ser titulado de Senhor von Kühleborn ou
Barão von Kühleborn, uma vez que sou livre (3) como os passarinhos na floresta, e talvez até um pouco mais. Por exemplo, agora tenho algo a dizer para a jovem senhora ali.
E antes que alguém pudesse dar-se conta do que sucedia ele já se encontrava do outro lado do sacerdote, bem perto de Ondina, e esticava-se muito para o alto para segredar-lhe algo ao ouvido. Ela, porém, desviou-se assustada, dizendo:
- Não tenho mais quaisquer assuntos a tratar com o senhor.
- Ha, ha! - riu-se o estranho - mas que matrimônio tão ilustre a senhora fez a ponto de não conhecer mais seus parentes! Quer me dizer que não sabe mais do tio
Kühleborn que a trouxe nas costas com tanta lealdade para esta região?
- Sim, mas eu lhe imploro - retrucou Ondina - para não aparecer mais na minha frente. Agora sinto temor em sua presença. Ademais, quer que o meu marido comece a ter medo de mim ao ver-me em companhia de parentes tão singulares?
- Querida sobrinha - disse Kühleborn - você não deve esquecer-se de que estou aqui como guia, pois, caso contrário, os gnomos que fazem aqui as suas fantasmagorias poderiam tentar alguma travessura maldosa com você. Deixe-me, portanto, acompanhá-la. Aliás, o velho sacerdote ali soube recordar-se de mim melhor do que você aparentemente o faz, pois asseverou-me há pouco que eu lhe pareço muito familiar e provavelmente devo ter estado naquela barca da qual ele caiu na água. De fato estava mesmo, pois fui justamente a tromba d'água que o arremessou para fora e que acabou por trazê-lo para a cerimônia de suas núpcias em terra firme.
Ondina e Huldbrand olharam para o Padre Heilmann. Este, no entanto, parecia caminhar mergulhado em sonhos, sem ter noção de nada daquilo que vinha sendo dito. Ondina disse então para Kühleborn:
- Já vejo ali o final da floresta. Não precisamos mais de sua ajuda, e nada nos atemoriza além do senhor. Peço-lhe por isso com amor e respeito que desapareça e nos deixe partir em paz.
Ao ouvir isso Kühleborn pareceu ficar contrariado; fez uma cara feia e sorriu maldosamente para Ondina que lançou um grito pedindo ajuda a seu amado. Como um raio, o cavaleiro contornou o cavalo e brandiu a afiada espada contra a cabeça de Kühleborn. Seu golpe, no entanto, atingiu uma cascata que jorrava espumosa de uma alta escarpa ao seu lado e que, de repente, com um gorgolejo que soava quase como uma gargalhada, derramou-se sobre eles molhando-os até os ossos. Como se subitamente acordasse, o sacerdote disse:
- Há tempos eu já estava imaginando isso, pois o arroio vinha nos acompanhando lá em cima muito de perto. No início cheguei a pensar que fosse um homem e que podia falar.
Aos ouvidos de Huldbrand a cascata murmurava muito claramente essas palavras:
- Cavaleiro célere, cavaleiro robusto, não estou encolerizado, não vou me zangar. Mas proteja sempre tão bem como agora sua sedutora mulherzinha, robusto cavaleiro de sangue fogoso!
Mais alguns passos e eles estavam a céu aberto. A cidade livre refulgia à sua frente, e o sol poente, que dourava suas torres, secava cordialmente as roupas dos viajantes molhados.
(3) Há aqui um trocadilho com a palavra "Freiherr", que significa "barão" e é uma junção de "frei" (= livre) com "Herr" (= senhor) (N. T.)
Como eles viviam na cidade
Grande alarido produziu-se na cidade quando repentinamente se deu pela falta do jovem cavaleiro Huldbrand von Ringstetten, deixando aflitas as pessoas que, em sua totalidade, tinham-se tomado de afeto por ele, tanto pela sua destreza nas justas e na dança como também pelas suas maneiras brandas e gentis. Seus servos não quiseram partir sem o seu senhor, muito embora nenhum deles se armasse de coragem para procurá-lo na penumbra da mata temível. Permaneceram portanto em sua estalagem, inativos e esperançosos como é habitual nas pessoas, e mantiveram viva com suas lamentações a lembrança do desaparecido. Quando logo a seguir se tornaram mais perceptíveis as grandes tempestades e inundações, deu-se por quase certa a perda do belo forasteiro, pelo qual também Bertalda sinceramente sentia pesar, maldizendo-se por ter enviado o cavaleiro à floresta. Os duques, seus pais adotivos, haviam chegado para buscá-la, mas Bertalda induziu-os a ficar ali com ela até que se tivesse conseguido notícias precisas acerca da vida ou da morte de Huldbrand. Ela tentou impelir diversos jovens cavaleiros que diligentemente a cortejavam para que seguissem o nobre aventureiro na floresta.
Não quis, porém, oferecer sua mão como prêmio do arriscado empreendimento, talvez porque ainda tivesse a esperança de Huldbrand retornar e ela vir a pertencer-lhe. E, por outro lado, se a dádiva era apenas uma luva ou fita, ou mesmo um beijo, ninguém se dispunha a arriscar a vida para trazer de volta um rival tão perigoso.
Quando, então, súbita e inesperadamente Huldbrand apareceu, isso foi motivo de regozijo para os servos e os habitantes da cidade e, de modo geral, para quase todos, exceto justamente para Bertalda. Aos outros podia muito bem agradar o fato de ele ter trazido uma esposa tão formosa, além do Padre Heilmann, como testemunha do matrimônio; para Bertalda, porém, isso não poderia ser motivo senão de consternação. Em primeiro lugar, ela de fato havia-se apaixonado do fundo da alma por ele, e, ademais, seu pesar pela ausência do cavaleiro havia descortinado esse afeto aos olhos das pessoas muito além do que seria decoroso.
Ainda assim, agiu como uma mulher prudente, ajustando-se às circunstâncias e convivendo da forma mais gentil possível com Ondina, que todos na cidade tomavam por uma princesa que Huldbrand tinha salvado na floresta de algum maléfico encantamento. Quando ela ou mesmo seu consorte eram indagados a respeito, sabiam encontrar uma forma de guardar silêncio, ou então, de contornar o assunto com habilidade. Quanto ao Padre Heilmann, seus lábios estavam selados para qualquer falatório leviano, e, além disso, retornou a seu mosteiro pouco depois do regresso de Huldbrand, de modo que as pessoas tiveram de se contentar com suas próprias conjeturas fantasiosas, e a própria Bertalda não ficou sabendo da verdade mais do que qualquer outra pessoa.
Ondina, aliás, afeiçoava-se cada dia mais àquela galharda donzela.
- Nós já devemos nos ter encontrado antes - costumava dizer - ou então, deve haver alguma extraordinária relação entre nós, pois assim sem motivo, quero dizer, sem um motivo profundo e misterioso, ninguém se afeiçoa tanto a outrem como eu me afeiçoei desde o primeiro momento em que a vi.
E também Bertalda não podia negar a si mesma que sentia por Ondina um traço de confiança e afeto, por mais que em geral acreditasse ter razões para o mais amargo ressentimento em relação a essa afortunada rival. Por causa dessa mútua afeição, as duas - uma junto a seus pais adotivos, a outra, junto ao seu esposo
- souberam adiar mais e mais o dia da partida, e já se comentava que Bertalda por algum tempo deveria fazer companhia a Ondina no burgo Ringstetten, às margens do Danúbio.
De fato, certa noite eles conversaram a esse respeito enquanto caminhavam à luz das estrelas entre as altas árvores que orlavam a praça do mercado da cidade.
Embora já fosse tarde, o jovem casal ainda havia buscado Bertalda para um passeio, e agora os três vagueavam familiarmente de um lado para outro sob o céu de um intenso azul, interrompendo amiúde a conversa para expressar sua admiração pelo esplêndido repuxo no centro da praça e seu maravilhoso murmúrio e burburinho. Sentiam um grande bem-estar e aconchego; por entre as sombras das árvores imiscuía-se a claridade das casas nas cercanias, e ao seu redor palpitava um leve bulício de crianças brincando e de outras pessoas que também passeavam. Ao mesmo tempo em que estavam a sós, sentiam-se amistosamente integrados a esse mundo faceiro e garrido. Aquilo que durante o dia parecera uma dificuldade agora aplainava-se como que naturalmente, e os três amigos não conseguiam mais entender como pôde ter persistido a menor dúvida quanto a Bertalda acompanhá-los em sua viagem. Nesse momento, quando iam justamente acertar o dia em que haveriam de partir juntos, acercou-se deles, vindo do centro da praça, um homem alto que fez ao grupo uma respeitosa reverência e disse algo ao ouvido da jovem senhora. Aborrecida com a interrupção e com quem a causou, ela afastou-se alguns passos com o estranho, e ambos começaram a sussurrar entre si, aparentemente em uma língua estrangeira. Huldbrand acreditava conhecer aquele homem estranho e mirava-o tão fixamente que não ouvia nem respondia as atônitas perguntas de Bertalda. Subitamente, Ondina bateu palmas de alegria e afastou-se rindo do estranho que, insatisfeito, distanciou-se com passos bruscos, balançando muito a cabeça, e desceu para dentro do chafariz. Agora Huldbrand acreditou ver confirmada sua suspeita, mas Bertalda perguntou:
- Mas o que o encarregado do chafariz queria com você, querida Ondina?
Ao que a jovem respondeu, sorrindo misteriosamente consigo mesma:
- Depois de amanhã, no seu aniversário, você o saberá, querida amiga.
E nada mais se conseguiu extrair dela. Ondina convidou então Bertalda, e através desta seus pais adotivos, para um almoço naquele dia, e pouco depois eles se separaram.
- Kühleborn? - perguntou Huldbrand à sua bela esposa, com um calafrio em seu íntimo, depois que eles se haviam despedido de Bertalda e voltavam para casa sozinhos pelas ruas cada vez mais escuras.
- Sim, era ele. - respondeu Ondina - Ele queria convencer-me de um monte de tolices! Em meio a tudo isso, porém, sem ter a menor intenção, ele alegrou-me com uma informação muito bem-vinda. Se você quiser sabê-la agora mesmo, meu galhardo esposo e senhor, então basta ordená-lo e tudo lhe direi com a maior sinceridade. Se, no entanto, quiser dar uma alegria muito, muito grande à sua Ondina, então espere até depois de amanhã, e aí poderá também ter o prazer da surpresa.
O cavaleiro de bom grado fez o que a sua esposa assim pedia com tanta brandura; e ela, enquanto adormecia, ainda sussurrava sorridente para si mesma:
- Oh, como ela irá alegrar-se, e também surpreender-se com a informação dada pelo seu encarregado do chafariz, a querida, querida Bertalda!
O aniversário de Bertalda
Os convivas encontravam-se à mesa. Na cabeceira estava Bertalda, adornada de jóias e flores como uma deusa primaveril, cercada pelos variados presentes dos pais adotivos e amigos, e tendo Ondina e Huldbrand cada um de um lado. Enquanto o faustoso banquete chegava ao fim e a sobremesa estava sendo trazida, as portas permaneciam abertas de acordo com a boa e antiga tradição nos reinos alemães, para que também o povo pudesse observar e tomar parte na alegria de seus senhores. Criados distribuíam vinho e bolo entre os espectadores. Huldbrand e Bertalda, ocultando sua impaciência, aguardavam a explicação prometida e, tanto quanto podiam, não desviavam os olhos de Ondina. Mas a formosa anfitriã ainda permanecia calada, limitando-se a sorrir disfarçadamente com grande satisfação.
Quem tinha conhecimento de sua promessa podia ver que ela estava prestes a revelar seu alegre segredo a qualquer momento, mas sempre voltava a adiá-lo em prazerosa renúncia, como as crianças às vezes fazem com suas guloseimas preferidas. Bertalda e Huldbrand compartilhavam dessa aprazível sensação, aguardando com esperançosa ansiedade por essa nova felicidade que deveria advir-lhes dos lábios de sua amiga. Nesse momento, diversos convivas pediram uma canção a Ondina. Isso pareceu-lhe oportuno, e imediatamente ela mandou que lhe trouxessem seu alaúde, cantando as seguintes palavras:
A manhã tão límpida, as flores tão coloridas, a relva tão alta e perfumada junto às margens do agitado lago!
O que é isso que tanto resplandece por entre a relva?
Será uma flor grande e alva, caída do céu no berço da pradaria?
Oh, é uma criança delicada!
Brinca com flores, despreocupada, quer tocar os raios da dourada luz matinal...
Oh, de onde vem, minha graciosa, de onde vem?
De terras remotas para cá foi trazida pelo lago.
Não, não toque em nada com a mãozinha, criatura delicada
Não encontrará nenhuma mão afetuosa:
as flores, tão estranhas e silenciosas, embora saibam enfeitar-se com tamanho primor e também inebriar-nos com seu doce odor, não poderão tomá-la em seus braços.
Está distante o amoroso regaço maternal.
Tão cedo, mal atravessou as portas da vida, nos lábios ainda o sorriso celestial, e já perdeu o que há de mais precioso, oh, querida criança, e ainda não o sabe.
Um distinto duque vem a cavalo e detém o corcel ao vê-la.
Em seu burgo irá educá-la para a excelência das artes e as maneiras mais gentis.
Por muito que tenha recebido, pois floresce e é a mais bela em todo o reino, ah, o mais sublime deleite
Ficou lá distante no berço desconhecido.
Com um sorriso melancólico, Ondina baixou seu alaúde. Os olhos dos duques, os pais adotivos de Bertalda, estavam rasos de lágrimas.
- Foi assim que aconteceu na manhã em que a encontrei, minha pobre e adorável órfã - disse o duque profundamente comovido - a formosa cantora deve ter razão:
apesar de tudo, o que há de mais precioso nós não pudemos oferecer-lhe...
- Mas ainda precisamos ouvir o que aconteceu aos pobres pais - disse Ondina, tangeu um acorde e cantou:
A mãe pelos seus aposentos, arruma e desarruma os armários, lamenta-se, procura e não sabe o quê pois nada encontra além da casa vazia.
Casa vazia! Oh, palavras de queixume para quem tinha uma criança adorável que ao dia lá dentro ensaiava os primeiros passos à noite lá dentro era docemente embalada.
As faias estão novamente verdes,
Mais uma vez retornou a luz do sol,
Mas a mãe deve cessar sua busca pois sua amada criança não voltará jamais.
E quando junto com a brisa noturna o pai chega de volta ao lar sente em seu íntimo quase uma alegria à qual logo já se mistura uma lágrima.
O pai sabe que em seus aposentos encontrará o silêncio da morte além dos suaves soluços maternais
E nenhuma criança sorridente lá está.
- Oh, por Deus, Ondina, e onde estão meus pais? - exclamou Bertalda aos prantos.
- Decerto você sabe, alguém contou-lhe, maravilhosa senhora, caso contrário não teria feito meu coração assim em pedaços. Será que eles já se encontram aqui?
Seria ...?
Seus olhos percorreram os esplendorosos convivas e fixaram-se em uma dama coroada, sentada ao lado de seu pai adotivo. Nesse momento Ondina inclinou-se rumo à porta, as lágrimas transbordando de seus olhos na mais doce emoção.
- Onde estão os pobres pais que estavam aguardando? - ela perguntou, e o velho pescador e sua esposa saíram hesitantes da multidão de espectadores. Seus olhos interrogativos voltavam-se ora para Ondina, ora para a bela donzela que deveria sua filha.
- É ela! - balbuciou a emocionada hospedeira, e os dois anciães lançaram-se a abraçar a filha reencontrada enquanto choravam alto e louvavam a Deus.
Mas Bertalda, horrorizada e enfurecida, desvencilhou-se abruptamente de seus braços. Para uma natureza altiva como a sua, um reencontro assim era intolerável no exato momento em que havia acreditado firmemente que seu atual esplendor iria crescer ainda mais, sonhando inclusive que ascenderia ao paraíso de tronos e coroas. Parecia-lhe que sua rival engendrara tudo aquilo como um artifício especialmente escolhido para humilhá-la diante de Huldbrand e de todo o mundo.
Ela insultou Ondina, insultou os dois anciães - de seus lábios escaparam os vitupérios:
- Embusteira que pagou a essa gente!
Nesse momento, a velha mulher do pescador limitou-se a dizer em voz baixa para si mesma:
- Oh, meu Deus, ela tornou-se uma pessoa perversa e, no entanto, sinto em meu coração que ela nasceu de mim.
O velho pescador, porém, juntara as mãos e rezava silenciosamente para que aquela ali não fosse sua filha. Ondina, mortalmente pálida, cambaleava dos pais para Bertalda, de Bertalda para os pais; de inopino, todo o paraíso com que sonhara transfigurara-se em um tal medo e horror como até agora ainda não conhecera nem em sonhos.
- É verdade que você tem uma alma? Terá você realmente uma alma, Bertalda? gritou diversas vezes para sua enfurecida amiga, como se quisesse acordá-la à força de um súbito ataque de loucura ou de um pesadelo desvairado. Mas a cólera de Bertalda apenas aumentou, os pais rejeitados prorromperam a chorar, e os convivas dividiram-se em dois partidos, em meio a disputas e altercações.
Subitamente, Ondina solicitou o direito de ser ouvida, pois se achava nos aposentos de seu esposo, e o fez de modo tão digno e sério que todos ao seu redor silenciaram de uma vez, como que obedecendo a um sinal. A seguir, com orgulho e humildade, ela encaminhou-se até a cabeceira da mesa, onde antes
Bertalda estivera sentada, e, tendo todos os olhos fixamente dirigidos para si, falou da seguinte maneira:
- Os senhores parecem tão hostis, tão consternados, e destruíram minha bela festa com tamanho rancor. Oh, Deus, eu não conhecia nada de seus desatinados costumes e sua intolerante maneira de pensar, e, provavelmente, em toda a minha vida nunca poderei conformar-me com eles. Não foi culpa minha que eu tenha começado tudo da maneira errada, acreditem, foi tudo culpa dos senhores, ainda que não lhes pareça ser assim. Por isso mesmo não tenho muito a dizer-lhes, mas uma coisa precisa ser dita: eu não menti. Além da minha palavra, não posso nem quero dar-lhes qualquer prova acerca do que falei, mas quero jurá-lo. Quem me contou isso foi o mesmo que levou Bertalda dos seus pais, atraindo-a para a água, e que a deixou mais tarde no verde prado por onde passaria o duque em seu caminho.
- Ela é uma feiticeira - gritou Bertalda - uma bruxa que mantém contato com espíritos maléficos! Ela própria o admite.
- Isso eu não faço - assegurou Ondina, ostentando em seus olhos um mar de inocência e confiança. - Também não sou nenhuma bruxa, basta olhar para mim.
- Então ela está mentindo para se vangloriar - interrompeu-a Bertalda - e não pode afirmar que sou filha dessa gentalha. Meus pais ducais, eu lhes suplico, levem-me para longe destas pessoas e para fora dessa cidade, na qual só me querem infamar.
Mas o velho e honrado duque manteve-se firmemente onde estava e sua esposa disse:
- Precisamos ter absoluta certeza sobre essa situação. Que Deus não permita que, antes disso, eu dê sequer um passo para fora desse salão.
Nesse momento a velha mulher do pescador aproximou-se, fez uma profunda reverência diante da duquesa e disse:
- Suas palavras ressoaram em meu coração, minha senhora digna e temente a Deus.
Preciso dizer-lhe que, se essa maldosa senhorinha for minha filha, ela tem um sinal semelhante a uma violeta entre os ombros e um igual no peito do pé esquerdo. Bastaria que ela se ausentasse do salão comigo.
- Não me desnudarei em frente dessa camponesa. - exclamou Bertalda, voltando-lhe altivamente as costas.
- Mas o fará na minha frente, espero. - retorquiu a duquesa com muita gravidade.
- Você, donzela, irá acompanhar-me até aquele aposento ali, e esta boa senhora irá conosco.
As três retiraram-se e os demais ficaram aguardando em silêncio com grande expectativa. Após um curto intervalo de tempo as mulheres retornaram, Bertalda muito pálida, e a duquesa disse:
- O que é legítimo tem que ser respeitado. Por isso declaro que a nossa anfitriã falou a plena verdade. Bertalda é a filha desse pescador e isso é tudo que se deve saber.
O casal de nobres afastou-se com sua filha adotiva. Em resposta a um aceno do duque, o pescador e sua esposa seguiram-nos. Os demais convidados partiram em silêncio ou murmurando às escondidas, e Ondina caiu nos braços de Huldbrand, chorando dolorosamente.
Como eles partiram da cidade
Decerto o senhor von Ringstetten teria preferido que nesse dia tudo tivesse corrido de outra forma; mesmo assim, o rumo tomado pelos acontecimentos não podia de todo deixá-lo insatisfeito, já que a sua sedutora esposa tinha-se mostrado tão piedosa, cordial e benevolente.
- Se lhe dei uma alma - sentiu-se induzido a refletir consigo mesmo - decerto dei-lhe uma alma melhor do que a minha própria. - E agora sua única preocupação era confortar a chorosa e, logo no dia seguinte, partir com ela desse lugar que, desde aquele incidente, com certeza lhe era odioso. É bem verdade que as pessoas não formaram um mau juízo de Ondina. Visto que antes já se esperava dela algo fantástico, a extraordinária descoberta das origens de Bertalda não causou grande surpresa, e só contra esta última voltou-se a indisposição despertada em todos aqueles que presenciaram o ocorrido e a tempestuosa reação da moça. O cavaleiro e sua esposa, entretanto, ainda não sabiam disso. Para Ondina, além disso, uma coisa seria tão dolorosa como a outra, e assim eles estavam dispostos a deixar para trás o mais rapidamente possível os muros da velha cidade.
Com os primeiros raios da aurora, uma elegante carruagem destinada a Ondina deteve-se diante dos portões da estalagem, enquanto a seu lado os ginetes de Huldbrand e de seus pajens golpeavam o pavimento com os cascos. Quando o cavaleiro conduzia sua formosa esposa porta afora, uma peixeira se interpôs em seu caminho.
- Não queremos sua mercadoria - disse-lhe Huldbrand - estamos justamente partindo de viagem.
Com isso a mocinha começou a chorar amargamente e somente então o casal percebeu que se tratava de Bertalda. De imediato retornaram com ela à estalagem e a donzela contou-lhes que o duque e a duquesa ficaram tão encolerizados pela sua rudeza e arrebatamento do dia anterior que destituíram-na totalmente de sua proteção, não sem antes terem-lhe presenteado um rico dote. O pescador foi igualmente bem recompensado e ainda ontem à noite tomou o caminho de volta para o promontório em companhia de sua esposa.
- Eu quis ir com eles - ela prosseguiu - mas o velho pescador que dizem ser o meu pai...
- Ele de fato o é, Bertalda - interrompeu-a Ondina. - Veja, aquele que você tomou pelo encarregado do chafariz, contou-me isso em pormenores. Ele quis convencer-me a não levá-la ao burgo Ringstetten e aí deixou escapar o segredo.
- Pois bem - disse Bertalda - meu pai - se é assim que deve ser - meu pai disse:
"Não vou levá-la comigo até que se tenha tornado diferente. Aventure-se sozinha através da floresta agourenta até a nossa casa, esta será a prova de que nos quer bem. Mas não venha como uma donzela nobre, venha como uma peixeira!" Por conseguinte, farei como ele disse, pois fui abandonada por todos e estou disposta a viver e morrer solitariamente na penúria com meus pais, como uma pobre filha de pescadores. É verdade que a floresta me amedronta muito. Dizem que lá dentro moram fantasmas abomináveis, e eu sou muito temerosa. Mas de que adianta?... Vim ainda para cá somente para suplicar à nobre senhora von Ringstetten que me perdoe pelo comportamento impróprio de ontem. Percebo muito bem que sua intenção foi boa, amável dama, mas a senhora não sabia o quanto iria magoar-me, e então, em meio ao medo e à surpresa, muitas palavras tolas e petulantes irromperam de meus lábios. Ah, perdoe-me, perdoe-me! Afinal, já sou tão desditosa. Pondere a senhora mesma o que eu era ainda ontem pela manhã, ainda ontem no início de sua festa, e o que sou hoje!
Essas palavras submergiram em uma torrente de lágrimas dolorosas, e Ondina envolveu-a em seus braços chorando também com amargor. Passou-se muito tempo antes que Ondina, que estava profundamente comovida, pudesse falar alguma coisa.
Quando o conseguiu, disse:
- Você irá acompanhar-nos até Ringstetten. Tudo deverá permanecer como havíamos combinado antes. Mas não me chame mais de dama e nobre senhora e sim de você.
Veja, quando crianças, fomos trocadas; já naquela época nossos destinos se entrelaçaram, e doravante ainda iremos entrelaçá-los tão fortemente que nenhum poder humano será capaz de os separar. Antes de mais nada, venha conosco para Ringstetten. Sobre a maneira como conviveremos tal qual irmãs, discutiremos lá.
Bertalda levantou timidamente os olhos para Huldbrand. Este condoía-se da bela mocinha em apuros; ofereceu-lhe a mão e disse-lhe afetuosamente para confiar-se aos cuidados dele e de sua esposa.
- Mandaremos notícias a seus pais, - disse - explicando-lhes porque não foi ter com eles.
Ainda desejou acrescentar mais coisas a respeito do bom casal de pescadores, mas, vendo que à menção deles Bertalda estremecia constrangida, preferiu calar-se sobre o assunto. Contudo, segurando-a sob o braço, ergueu-a primeiro para a carruagem, depois Ondina, e saiu alegremente a trotar, inclusive instigando o cocheiro de modo tão resoluto que dentro em pouco já haviam deixado para trás o perímetro da cidade e, com ele, todas as recordações sombrias. A partir de então, as donzelas sentiram maior prazer em atravessar as belas regiões pelas quais seu caminho as conduzia.
Uma bela noite, depois de alguns dias de viagem, chegaram ao burgo Ringstetten.
Os intendentes e vassalos do jovem cavaleiro tinham muito a relatar-lhe, de modo que Ondina ficou a sós com Bertalda. As duas passearam no alto baluarte da fortaleza, deleitando-se com a formosa paisagem que se estendia ao derredor pela magnífica Suábia. Nesse momento juntou-se a elas um homem alto que as cumprimentou cordialmente e que Bertalda quase tomou por aquele encarregado do chafariz na cidade. Ainda mais evidente pareceu-lhe essa semelhança quando Ondina lhe acenou agastada, e até ameaçadoramente, para que retornasse, ao que ele se afastou com passos rápidos e balançando a cabeça, tal como naquela ocasião, desaparecendo a seguir em um arvoredo próximo. Ondina, no entanto, disse:
- Não tenha medo, querida Bertalda, desta vez o horrível encarregado do chafariz não irá lhe causar nenhum mal.
E com isso contou-lhe minuciosamente toda a história, e também quem ela própria era, e como Bertalda foi levada para longe dos pescadores e Ondina, ao contrário, trazida para junto deles. A donzela inicialmente encheu-se de temor ao ouvir aquelas palavras, acreditando que sua amiga fora tomada subitamente por um acesso de loucura. Entretanto, as palavras coerentes de Ondina, que se enquadravam tão bem aos últimos acontecimentos, e, mais ainda, um certo sentimento em seu íntimo, que invariavelmente se manifesta quando estamos diante da verdade, pouco a pouco foram convencendo Bertalda de que tudo era verdade.
Parecia-lhe estranho que agora ela própria estivesse vivendo como que em meio a um dos contos de fadas dos quais de ordinário apenas ouvira falar. Ela fitava
Ondina com profundo respeito, muito embora não conseguisse mais se desvencilhar de um certo estremecimento que se imiscuíra entre ela e sua amiga e, durante a ceia, sentiu-se bastante surpresa pelo fato de o cavaleiro mostrar-se tão amoroso e gentil para com um ser que desde as últimas revelações lhe parecia mais fantasmagórico do que humano.
Como viviam no burgo Ringstetten
Este que está registrando a presente história - porque ela lhe comove o coração e porque deseja que ela faça o mesmo a outras pessoas - pede-lhe, meu prezado leitor, um obséquio: seja indulgente se ele agora transpuser em poucas palavras um período bastante longo e lhe contar apenas superficialmente o que ocorreu durante esse tempo. Ele sabe muito bem que seria possível descrever passo a passo e de forma muito artística como o coração de Huldbrand começou a se apartar de Ondina e volver-se para Bertalda, como Bertalda correspondia cada vez mais ao mancebo com um amor ardente e os dois pareciam antes temer a pobre esposa e vê-la como um ser estranho do que compadecer-se dela, e como Ondina chorava e suas lágrimas provocavam remorsos no coração do cavaleiro, sem contudo despertarem o antigo amor, de modo que ele a tratava às vezes com candura, embora logo um calafrio gelado dela o afastasse e o impelisse para junto de Bertalda, a filha dos homens. O escriba sabe que seria possível expor tudo isto em minúcias, e talvez até devesse fazê-lo. Mas seu coração sofreria demasiado com isso, pois já viveu circunstâncias análogas, e as sombras daquelas recordações ainda o atemorizam. É provável que você conheça um sentimento parecido, prezado leitor, uma vez que esse é, afinal, o destino dos homens mortais. Bem-aventurado você terá sido se, nessa ocasião, tiver recebido mais do que ofertado, pois nesses assuntos é mais ditoso quem aceita a dádiva do que aquele que a concede. Se assim for, diante de uma tal alusão, sua alma apenas será tocada de mansinho por um doce pesar e, talvez, uma terna lágrima deslizará de sua face por entre os canteiros de flores murchas que outrora alegravam seu coração. Mas basta com isso; não fiquemos a espicaçar o coração com múltiplas alfinetadas e contentemo-nos em saber que as coisas afinal ocorreram tal como lhes disse acima. A pobre Ondina estava muito tristonha e também os outros dois não estavam nada felizes. Bertalda, curiosamente, já à menor discordância em relação ao que desejava, acreditava sentir uma oposição ciumenta da parte da ofendida dona da casa. Em conseqüência, havia adotado maneiras assaz imperiosas, às quais Ondina cedia em melancólica renúncia e que em geral eram firmemente apoiadas pelo ofuscado Huldbrand. O que afligia ainda mais os moradores do burgo eram diversas assombrações extravagantes que cruzavam o caminho de Huldbrand e Bertalda nas curvas galerias do castelo, e das quais, desde os tempos mais remotos, nunca se ouvira falar. Amiúde um homem alto e branco - que Huldbrand reconhecia muito bem como o tio Kühleborn, e Bertalda como o sinistro encarregado do chafariz - postava-se ameaçadoramente diante dos dois, mas em particular de Bertalda, de modo que esta algumas vezes ficara acamada por causa do susto, chegando de tempos em tempos a pensar em abandonar o burgo. Contudo, por um lado, ela amava demasiado Huldbrand - e, em relação a esse assunto, apoiava-se em sua inocência, já que nunca os dois chegaram de fato a declarar-se - por outro, não saberia para onde dirigir seus passos. O velho pescador, tendo recebido a mensagem do senhor von Ringstetten de que Bertalda se encontrava com ele, mandou em resposta algumas linhas de difícil leitura, que traçara com a pena tão bem como a idade avançada e a longa falta de prática lho permitiram:
"Tornei-me agora um pobre e velho viúvo, pois a minha querida e fiel esposa faleceu. Contudo, não importa quão solitário fico na cabana, é-me preferível que Bertalda esteja aí do que comigo. Mas que ela não faça qualquer mal à minha querida Ondina! Nesse caso teria a minha maldição." Às últimas palavras Bertalda não deu a menor importância, mas - a exemplo do que nós seres humanos sempre costumamos fazer em casos análogos - recordou-se bem da parte que se referia a manter-se afastada do pai.
Certo dia, quando Huldbrand acabara de sair a cavalo, Ondina reuniu os criados, mandou que trouxessem uma grande pedra e ordenou que com ela fosse cuidadosamente coberto o magnífico poço situado no centro do pátio do castelo. A isso os serviçais levantaram a objeção de que doravante teriam que ir buscar água muito longe, no vale. Ondina sorriu pesarosa.
- Sinto muito pelo seu trabalho redobrado, minha boa gente, - retrucou - quisera eu mesma trazer os cântaros de água até aqui em cima, mas o poço terá mesmo que ser fechado. Acreditem na minha palavra: não há como evitá-lo, pois só assim estaremos em condições de evitar um mal maior.
Toda a criadagem ficou satisfeita por poder obsequiar sua meiga senhora e, deixando as perguntas de lado, agarraram a pedra colossal. Com suas manobras, ela foi erguida e pairava justamente sobre o poço quando Bertalda chegou correndo e ordenou que parassem, pois era desse poço que vinha a água com a qual se banhava e que tanto bem fazia à sua pele, de modo que em hipótese alguma haveria de permitir que ele fosse fechado. Mas Ondina, contrariamente ao seu costume, dessa vez manteve-se firme em seu intento, ainda que conservasse sua brandura habitual. Disse que, em virtude de sua condição de senhora da casa, cabia-lhe providenciar os assuntos domésticos da melhor maneira que lhe aprouvesse, não sendo obrigada a justificar-se diante de ninguém além de seu esposo e senhor.
- Vejam, oh, vejam - exclamou Bertalda, contrariada e temerosa - a pobre água, tão primorosa, está se arrufando e retorcendo porque deverá ficar escondida da luz do sol e da agradável visão dos rostos humanos para cuja reflexão foi criada!
De fato, a água do poço sibilava e crespava-se de modo curioso; era como se algo estivesse lutando para sair dali, mas isso só fez com que Ondina instasse com maior rigor a execução de suas ordens. Esse rigor não era realmente necessário.
Os criados do castelo estavam satisfeitos tanto em obedecer a sua cândida senhora como em quebrantar a pertinácia de Bertalda, e, a despeito da rudeza com que esta repreendia e ameaçava, em pouco tempo a rocha estava firmemente assentada sobre a abertura do poço. Circunspecta, Ondina debruçou-se sobre ela e, com seus formosos dedos, escreveu algo sobre a superfície. Para isso ela com certeza tivera em mãos algo muito cortante e corrosivo, pois quando afastou-se e os outros se acercaram, eles puderam perceber sobre a pedra vários sinais estranhos, que ninguém se lembrava de ter visto ali antes.
Ao retornar à noite, o cavaleiro foi recebido por Bertalda com lágrimas e queixumes por causa do comportamento de Ondina. Ele lançou um olhar severo para sua pobre esposa, que olhava melancólica para o chão. Muito composta, porém, ela disse:
- Meu senhor e esposo certamente não repreende sequer um servo sem antes ouvi-lo, tanto menos o fará então com a sua esposa.
- Diga o que a levou a agir dessa estranha maneira. - disse o cavaleiro com semblante austero.
- Gostaria de dizer-lhe isso totalmente a sós! - suspirou Ondina.
- Você pode fazê-lo igualmente na presença de Bertalda - ele retrucou .
- Sim, se assim o ordenar - disse Ondina - mas não o ordene. Oh, por favor, por favor, não o ordene.
Ela parecia tão humilde, amável e obediente que o coração do cavaleiro se enterneceu e deixou entrar um raio de sol vindo dos velhos bons tempos. Ele tomou-a gentilmente pelo braço e conduziu-a a seus aposentos, onde ela começou a falar da seguinte maneira:
- Você conhece, meu amado senhor, o malvado tio Kühleborn e, malgrado seu, cruzou com ele por diversas ocasiões nas galerias deste burgo. Algumas vezes ele assustou Bertalda a ponto de deixá-la enferma. Isto porque ele não tem alma, é um mero espírito elementar, um espelho do mundo exterior que não consegue refletir o íntimo. Assim, ele percebe que de tempos em tempos você fica insatisfeito comigo, que o meu temperamento infantil me faz chorar por isso, e que por acaso Bertalda talvez justamente nesse momento esteja rindo. Em conseqüência, ele imagina as coisas mais terríveis e, sem ser chamado, intervém de diversas maneiras em nosso círculo. De que tem adiantado o fato de eu admoestá-lo? Ou de rispidamente mandá-lo embora? Ele não acredita em uma só palavra do que digo. Em sua mísera existência, sequer suspeita que, no amor, o sofrimento e a felicidade à primeira impressão parecem tão iguais e estão tão intimamente unidos que nenhum poder é capaz de separá-los. Sob a lágrima brota o sorriso, e o sorriso por sua vez faz emergir a lágrima de seus recônditos.
Sorrindo e chorando ela levantou os olhos para Huldbrand, que experimentava em seu coração todo o encantamento do antigo amor. Ela sentiu isso, apertou-o com mais força contra si, e, com lágrimas de felicidade, assim continuou:
- Como não conseguia afastar com palavras o perturbador de nossa paz, tive que trancar-lhe a porta. E a única porta que ele tem até nós é aquele poço. Ele está indisposto com os espíritos das outras fontes aqui das cercanias desde os vales mais próximos, e só mais adiante, quando alguns rios seus amigos fluem para dentro do Danúbio, recomeça o seu domínio. Por isso mandei que rolassem a rocha para cima da abertura do poço, e nela inscrevi sinais que tolhem todo o poder do zeloso tio, de modo que agora ele não pode mais interpor-se nem no meu caminho, nem no seu, nem no de Bertalda. Cumpre dizer que mesmo assim os seres humanos podem removê-la com esforço perfeitamente usual; os sinais não os impedem.
Portanto, se você quiser, faça a vontade de Bertalda, mas a verdade é que ela não sabe o que está pedindo. O descortês Kühleborn tem especialmente Bertalda em sua mira, e se algumas coisas que ele profetizou para mim sucedessem - e elas podem muito bem ocorrer sem que você deseje qualquer mal - oh, querido, nesse caso também você não estaria fora de perigo!
Huldbrand sentiu no fundo de seu coração a generosidade de sua graciosa esposa, que impedia com tanto diligência o acesso de seu terrível protetor e, ademais, ainda recebia por causa disso as censuras de Bertalda. Portanto, envolveu-a muito carinhosamente nos braços e, comovido, disse:
- A rocha permanece onde está, e tudo permanece e sempre deverá permanecer como você o deseja, minha querida Ondinazinha.
Ela acariciou-o com humilde alegria por aquelas amorosas palavras que há tanto não ouvia, e finalmente disse:
- Meu muito amado amigo, como você hoje está tão terno e bondoso, poderia eu ousar fazer-lhe um pedido? Veja, você é como o verão. Se em um momento mostra-se em seu maior esplendor, no outro pode cobrir-se com as coroas de possantes tempestades, formadas de raios e trovões, as quais lhe conferem a aparência de um verdadeiro rei e deus da terra. Dessa forma, de quando em quando você repreende e relampeja com a língua e os olhos, e isso lhe cai bem, ainda que vez por outra eu comece tolamente a chorar por causa disso. Mas nunca o faça sobre a água ou mesmo se apenas estivermos em sua proximidade. Veja, meus parentes então ganhariam um direito sobre mim. Em sua fúria, eles inexoravelmente me arrastariam para longe de você por considerarem que alguém da raça deles foi ofendido, e durante toda a minha vida eu teria que morar lá embaixo nos palácios de cristal, sem nunca mais poder retornar para você, a não ser que eles me enviassem para junto de você, oh, Deus, o que seria infinitamente pior. Não, não, meu doce amigo, não permita que chegue a isso, por maior que seja o seu afeto pela pobre Ondina.
Ele solenemente prometeu fazer como ela pedia, e o casal saiu do aposento demonstrando imensa alegria e carinho. Nesse momento, Bertalda aproximou-se com alguns obreiros que nesse meio tempo já mandara chamar, e disse com um tom irritado que adotara ultimamente:
- Agora que a conversa secreta chegou ao fim, a pedra pode ser retirada. Vão lá, vocês aí, e façam o serviço.
O cavaleiro, no entanto, observando com indignação essa descortesia, disse com severidade em breves palavras:
- A pedra fica onde está.
Além disso, também censurou Bertalda por ter sido tão rude com sua esposa, ao que os obreiros se afastaram satisfeitos, sorrindo às escondidas, enquanto Bertalda, empalidecendo, corria para o outro lado, rumo aos seus aposentos.
Chegada a hora da ceia, esperaram em vão por Bertalda. Quando mandaram chamá-la, o camareiro encontrou seus cômodos vazios e trouxe de lá apenas uma carta selada, endereçada ao cavaleiro. Este abriu-a consternado e leu: "É com vergonha que percebo que afinal não passo de uma pobre filha de pescadores. Esqueci-me disso por alguns momentos e esta falta eu expiarei na pobre cabana de meus pais.
Meu adeus, e seja feliz com sua formosa esposa!"
Ondina estava sinceramente aflita. Pediu com ternura a Huldbrand que fosse ao encalço da amiga que fugira e a trouxesse de volta. Ah, não era necessário instigá-lo! A inclinação de Huldbrand por Bertalda retornara impetuosamente. Ele apressou-se a correr por todo o castelo indagando se alguém vira qual fora o caminho tomado pela bela fugitiva. Não obteve nenhuma informação, e já se encontrava no pátio do castelo montado em seu ginete e decido a seguir a esmo pelo caminho pelo qual trouxera Bertalda para cá, quando chegou um escudeiro assegurando ter cruzado com a donzela na trilha que segue rumo ao Vale Negro.
Como uma flecha, o cavaleiro galopou pelo portão na direção indicada, sem ouvir a angustiada voz de Ondina que lhe gritava pela janela:
- Para o Vale Negro? Oh, para lá, não! Huldbrand, para lá, não! Ou, pelo amor de
Deus, leve-me com você!
Quando viu, porém, que seus chamados eram inúteis, mandou que lhe selassem às pressas seu palafrém branco e seguiu atrás do cavaleiro sem aceitar que qualquer criado a acompanhasse.
Como Bertalda retornou para casa com o cavaleiro
O Vale Negro fica entalhado muito profundamente entre as montanhas. Como se chama agora não é possível dizer. Naquela época os habitantes locais assim o denominavam por causa da densa escuridão estendida sobre a planície pelas elevadas árvores, dentre as quais se contavam especialmente pinheiros. Por isso, mesmo o arroio que descia borbulhante por entre os penhascos tinha um aspecto negro, e de nenhum modo parecia tão alegre como costumam ser as águas que têm o céu azul diretamente sobre si. Agora, com o cair do crepúsculo, tudo ficara muito bravio e tenebroso nas elevações. O cavaleiro, tomado de apreensões, trotava ao longo das margens do arroio. Temia, por um lado, que por uma delonga sua a fugitiva ganhasse uma excessiva dianteira, por outro, que na sua grande sofreguidão deixasse de avistá-la em algum lugar onde pretendesse se ocultar dele. Nesse meio tempo, já adentrara bastante o vale e podia imaginar que, se estivesse na pista correta, logo alcançaria a donzela. A idéia de que talvez não estivesse no caminho certo impelia seu coração a bater com um temor cada vez maior. Se acaso ele não a encontrasse, onde ficaria a delicada Bertalda durante a noite de temporal que ameaçadoramente vergava-se sobre o vale? Por fim, pôde vislumbrar indistintamente entre os ramos alguma coisa branca junto à encosta da montanha. Acreditou reconhecer o vestido de Bertalda e dispôs-se a ir até lá.
Seu corcel, porém, não quis seguir adiante e empinou-se com tamanha impetuosidade que Huldbrand - decidido a não perder tempo e considerando que, de qualquer forma, a cavalo os arbustos o estorvariam em demasia - desmontou, amarrou o ofegante ginete a um olmo e foi a seguir cautelosamente abrindo caminho por entre as moitas. Os ramos, frios e úmidos do orvalho noturno, batiam-lhe rudemente contra a testa e as faces; um trovão longínquo murmurava além das montanhas; tudo parecia tão estranho que ele começou a sentir receio da figura branca deitada no chão, agora já a pouca distância dele. Contudo, podia distinguir com toda a clareza que se tratava de uma donzela, desmaiada ou adormecida, em trajes longos e brancos, tais como os que Bertalda estivera usando naquele dia. Ele chegou bem próximo dela, agitou uns galhos, fez a espada tinir; ela continuou imóvel.
- Bertalda! - disse ele, primeiro em voz baixa, depois cada vez mais alto. Ela não ouvia. Quando finalmente com grande esforço gritou o precioso nome, um eco surdo e indistinto ressoou das altas montanhas do vale.
- Bertalda! - mas a figura adormecida permaneceu imóvel. Inclinou-se sobre ela, mas a escuridão do vale e da noite que caía não lhe permitiam discernir qualquer de seus traços. Quando por fim, com certa dúvida e aflição, havia justamente chegado bem perto dela no chão, um relâmpago caiu de chofre, iluminando o vale.
E ele viu, bem próximo de si, um semblante horrivelmente distorcido que, numa voz abafada, exclamou:
- Dê-me um beijo, meu apaixonado pastor!
Huldbrand recuou com um grito de horror, o abominável vulto ergueu-se também.
- Vá para casa! - murmurou o vulto - Os espíritos malignos estão alertas. Para casa! Senão eu o pego! - E tentava agarrá-lo com os longos e alvos braços.
- Pérfido Kühleborn - gritou o cavaleiro, cobrando ânimo. - Que importa? É você, diabrete! Aí está um beijo! - E, furioso, golpeou o vulto com a espada. Este, porém, desfez-se encharcando Huldbrand com um jorro de água que não lhe deixou mais dúvidas quanto ao inimigo que estivera enfrentando.
- Ele quer atemorizar-me para que fique longe de Bertalda - disse em voz alta para si mesmo, - ele pensa que vou assustar-me com suas tolas fantasmagorias e assim deixar a pobre e assustada moça em suas mãos, para fazê-la sentir sua vingança. Não permitirei que ele, débil espírito elementar, faça tal coisa. O impotente embusteiro não faz idéia do que é capaz o coração humano quando realmente deseja, quando deseja realmente do fundo da alma.
Ele sentia a verdade de suas palavras e também que, com elas, insuflara em seu peito uma coragem renovada. Pareceu-lhe igualmente que a sorte se colocava a seu favor, pois ainda nem chegara para junto de onde seu corcel estava amarrado e, das cercanias, já lhe chegava distintamente aos ouvidos a voz plangente de Bertalda, cujo pranto soava através do crescente fragor dos trovões e da tormenta. Com passos ligeiros caminhou guiando-se pelo som, e encontrou a trêmula donzela no momento em que ela estava justamente tentando galgar a montanha para escapar a qualquer custo da horripilante escuridão daquele vale.
Ele, porém, interpôs-se meigamente em seu caminho e Bertalda, não obstante a ousadia e arrogância com que antes tomara sua decisão, foi tomada de felicidade por estar sendo salva daquele lugar ermo e terrível pelo seu amigo tão amado, e por este tão afetuosamente lhe possibilitar o retorno com segurança à alegre vida no amistoso burgo. Ela acompanhou o cavaleiro quase sem protestar, mas estava tão extenuada que ele sentiu-se aliviado quando chegaram junto de seu corcel, que Huldbrand apressou-se a desatar, para erguer a formosa peregrina até a sela e depois puxá-lo com cautela pelas rédeas através das sombras daquele vale inseguro.
Mas o ginete estava totalmente arisco por causa da desabrida aparição de Kühleborn. Mesmo o próprio cavaleiro teria tido dificuldade em alçar-se ao dorso do animal, que se empinava e arquejava com tamanha fúria que era totalmente impossível erguer a trêmula Bertalda para a sela. Decidiram, portanto, retornar para casa a pé. Enquanto puxava o ginete pelos arreios, o cavaleiro amparava com a outra mão a cambaleante donzela. Bertalda reuniu todas as forças que podia a fim de que atravessassem o mais rápido possível o fundo do temível vale, mas o cansaço pesava-lhe como chumbo. Ao mesmo tempo, tremia da cabeça aos pés, em parte devido aos vários sustos que Kühleborn lhe pregara a fim de açular seus passos para longe, em parte também por causa do contínuo pavor diante da tempestade e dos trovões que uivavam pelo arvoredo das montanhas.
Por fim, resvalou do braço com o qual seu guia a sustinha e, tendo se deixado cair sobre o musgo, disse:
- Deixe-me estendida aqui, nobre senhor. Estou purgando a culpa pela minha insensatez, e de qualquer forma terei agora que perecer aqui, de cansaço e medo.
- Nunca irei abandoná-la, graciosa amiga! - exclamou Huldbrand, esforçando-se debalde por acalmar o turbulento cavalo que segurava e que começava a agitar-se e a espumar mais ainda do que antes. Por fim o cavaleiro já se contentava apenas em mantê-lo suficientemente afastado da donzela caída no chão, para não incutir-lhe o pavor diante do animal e assustá-la ainda mais. Mas bastou que ele se afastasse apenas alguns passos com o cavalo enfurecido para que ela de imediato começasse a chamar por ele muito lastimosamente, acreditando que o cavaleiro de fato pretendia abandoná-la ali naquela horripilante desolação.
Huldbrand já não sabia mais o que fazer. De bom grado teria dado total liberdade ao animal para que saísse em disparada pela noite e assim acalmasse seu frenesi, se não temesse que, nesse desfiladeiro estreito, ele fosse precipitar-se com seus cascos recobertos de ferraduras justamente para o lugar onde Bertalda jazia.
Nesse momento de grande necessidade e apreensão, foi-lhe de um imenso consolo ouvir uma carroça aproximar-se lentamente pelo pedregoso caminho atrás dele.
Chamou por auxílio. Uma voz masculina respondeu, exortando-o a ter paciência mas prometendo que viria socorrê-lo, e logo a seguir já se podia entrever dois cavalos brancos por entre a vegetação, ao lado deles a tosca jaqueta branca de carreiro usada pelo seu condutor e, em cima, uma ampla peça de linho branco com a qual estavam cobertas as mercadorias que ele provavelmente levava consigo. Ao ouvirem um alto "Brr!" da boca de seu senhor, os obedientes cavalos estacaram.
Ele acercou-se do cavaleiro e ajudou-o a dominar o animal que espumava.
- Sei muito bem - disse ele enquanto isso - o que está acontecendo com este bruto. Quando atravessei esta região pela primeira vez, deu-se o mesmo com meus cavalos. Isto ocorre porque aqui mora um perverso espírito das águas que se compraz nesse tipo de provocações. Mas eu aprendi um versinho; se o senhor permitir que eu o diga ao ouvido de seu ginete, ele ficará tão tranqüilo como os meus cavalos brancos que aí estão.
- Tente a sua cura e ajude-me o quanto antes! - gritou o impaciente cavaleiro.
O cocheiro puxou então para baixo a cabeça do cavalo que empinava, e disse-lhe algumas palavras ao ouvido. No mesmo instante o corcel ficou parado, submisso e pacífico, e apenas a sua respiração forte e arquejante dava testemunho de sua indocilidade de há pouco. Não havia tempo para que Huldbrand perguntasse como isso fora possível. Ele acordou com o carreiro que este acomodaria Bertalda em sua carroça na qual, segundo este asseverara, havia pacotes de algodão muito macio, e assim a levaria até o burgo Ringstetten, enquanto o cavaleiro os acompanharia a cavalo. O corcel, entretanto, devido à sua agitação anterior, parecia esgotado demais para ainda transportar seu senhor até tão longe, motivo pelo qual o carreiro convenceu Huldbrand a juntar-se a Bertalda na carroça, já que, afinal, o cavalo poderia ser amarrado na parte de trás.
- O caminho agora é uma descida - disse - o que tornará a tarefa fácil para os meus cavalos.
O cavaleiro aceitou o convite, subiu com Bertalda à carroça, o ginete seguia calmamente atrás, e o cocheiro caminhava ao seu lado com vigor e cautela.
A escuridão da noite se adensava enquanto os trovões e a tempestade iam se perdendo, cada vez mais distantes e silenciosos. Em meio a essa calma, Huldbrand e Bertalda encetaram uma conversa tranqüila, agradavelmente embalados pela locomoção confortável e a sensação de segurança. Com palavras carinhosas ele censurou-lhe a voluntariosa fuga; comovida e humilde, ela pediu desculpas. E de tudo que ela dizia, tal como uma lâmpada (4) em meio à noite e ao mistério, irradiava-se a mensagem de que ela ainda estava à espera do amado. A atenção do cavaleiro dirigia-se muito mais a esse significado silencioso do que às palavras pronunciadas e, em suas respostas, era também esse sentimento apenas que tinha em mente. De súbito, o cocheiro gritou com voz estridente:
- Levantem, cavalos! Levantem as patas! Controlem-se, cavalos! Lembrem-se direitinho do que vocês são!
O cavaleiro inclinou-se para fora do carro e viu que os animais caminhavam ou quase já nadavam na água espumante. As rodas da carroça reluziam e soavam como as rodas de moinhos, e o carreiro subira ao veículo para escapar da correnteza que se avolumava.
- Que tipo de caminho é este? Ele leva diretamente para dentro do rio! - gritou
Huldbrand para seu guia.
- Não, meu senhor, - retrucou este rindo - é justamente o contrário. O rio está vindo diretamente para o nosso caminho. Olhe à sua volta, veja como tudo ficou alagado.
De fato, por todo o fundo do vale revolviam-se e rugiam ondas que, de súbito, haviam se erguido e iam perceptivelmente elevando-se ainda mais.
- Quem está fazendo isso é o Kühleborn, o pérfido espírito das águas, que quer afogar-nos! - exclamou o cavaleiro - Você, meu companheiro, não saberá nenhum versinho contra ele?
- De fato eu saberia um - disse o cocheiro - mas não posso nem quero usá-lo antes que saibam quem sou.
- Isso não é hora para charadas! - gritou o cavaleiro. - O rio está subindo cada vez mais, e de que me interessa saber quem você é?
- Interessa-lhe, sim - disse o cocheiro - pois eu sou Kühleborn.
E com isso riu, voltando seu semblante distorcido para o interior da carroça.
Mas a carroça não era mais carroça, os cavalos brancos não mais cavalos. Tudo se transformava em espuma, tudo se desvanecia em vagas sibilantes, e o próprio cocheiro empertigou-se na forma de gigantesca onda, arrastando para o fundo das águas o corcel que em vão se debatia. A seguir, tornou a crescer e crescer como uma torre úmida por sobre as cabeças dos dois que nadavam, e dispunha-se justamente a sepultá-los de vez.
Nesse momento a suave voz de Ondina ressoou por entre os estrondos. A Lua saiu detrás das nuvens e, com ela, Ondina tornou-se visível na elevação acima do vale. Ela repreendeu e ameaçou a correnteza a seus pés, e a ameaçadora onda em forma de torre desapareceu aos murmúrios e resmungos. Sob a luz do luar, as águas foram docemente se esvaindo e, como uma pomba branca, Ondina mergulhou da elevação, segurou o cavaleiro e Bertalda e levou-os consigo até um viçoso e verdejante gramado na montanha, onde, com cuidados especiais, afugentou todo o medo e fraqueza. Depois ajudou a erguer Bertalda para cima do palafrém branco que a trouxera e, assim, todos os três retornaram para o burgo Ringstetten.
(4) Referência ao mito do amor entre Leandro e Hero, uma sacerdotisa de Afrodite. Leandro morava na cidade de Abido, junto ao Helesponto, mas na margem oposta ao templo da deusa. Todas as noites Hero acendia uma tocha para que a luz guiasse Leandro, quando este atravessava o estreito a nado para encontrar-se com ela. Em uma noite de forte tempestade, os ventos apagaram a tocha e Leandro afogou-se. Ao encontrar o corpo, Hero suicidou-se.
A viagem a Viena
Desde o último incidente, eles viviam com tranqüilidade e sossego no castelo. O cavaleiro reconhecia cada vez mais a celestial bondade de sua esposa, que tão maravilhosamente se demonstrara por ocasião de sua busca e salvamento no Vale Negro, no qual o poder de Kühleborn recomeçava. Quanto a Ondina, ela fruía a paz e segurança que nunca faltam a um coração prudente, enquanto tem a consciência de estar no caminho acertado. Ademais, como o amor e o respeito novamente despertavam em seu consorte, ela sentia redobrar-se o lume da esperança e felicidade. Bertalda, por outro lado, mostrava-se agradecida, humilde e tímida, sem que considerasse essas expressões como um mérito. Sempre que um dos dois esposos pretendia dar-lhe quaisquer explicações acerca do fechamento do poço ou sobre as aventuras no Vale Negro, ela pedia com veemência que a poupassem disso, uma vez que, com relação ao poço, sentia demasiada vergonha e, com relação ao Vale Negro, demasiado temor. Por conseguinte ficou sem saber mais nada sobre essas duas ocorrências. E afinal, por que seria isso necessário, se a paz e a alegria visivelmente haviam tomado o burgo Ringstetten por morada? Disso todos estavam certos, e acreditavam que a vida nada mais poderia trazer-lhes senão agradáveis flores e frutos.
Em meio a esse deleite o inverno chegara e já se fora, e a primavera, com seus rebentos verde-claros e seu céu azul-celeste, sorria para essas felizes pessoas.
A disposição da primavera era como a deles, e a deles como a da primavera.
Assim, não é de surpreender que as cegonhas e andorinhas primaveris tenham despertado neles o desejo de viajar também! Certa feita, quando passeavam próximo às nascentes do Danúbio, Huldbrand contava dos esplendores do nobre rio: como ele se avolumava à medida que fazia sua travessia por lugares abençoados, como a deslumbrante Viena resplandecia às suas margens e como, de modo geral, a cada passo de seu percurso ele ganhava em poder e graça.
- Deveria ser magnífico viajar por ele algum dia até Viena! - deixou escapar Bertalda, mas logo a seguir, resvalando outra vez para a sua atual humildade e modéstia, enrubesceu e calou-se.
Foi exatamente isto que comoveu muito Ondina. Arrebatada pelo forte desejo de satisfazer uma vontade de sua querida amiga, disse:
- Afinal, o que no impede de realizar essa viagem?
Bertalda deu pulos de alegria, e de imediato as duas moças começaram a pintar na imaginação, com as mais risonhas cores, essa adorável viagem pelo Danúbio.
Huldbrand concordou alegremente mas, em certo momento, disse apreensivo ao ouvido de Ondina:
- Mas Kühleborn não volta a ser poderoso mais adiante?
- Deixe estar - retrucou ela sorrindo - afinal, estou junto de vocês e, na minha presença, ele não ousa fazer qualquer mal.
Com isto removeu-se o último obstáculo. Os preparativos para a viagem foram realizados e eles partiram logo a seguir, imbuídos de ânimo renovado e das mais joviais esperanças.
Mas não se espantem vocês se tudo sempre acaba acontecendo de modo diferente do que se esperava. O poder traiçoeiro que está à espreita para nos pôr a perder prefere acalentar a vítima eleita com doces canções e dourados contos de fadas, ao passo que o mensageiro celeste, disposto a nos salvar, muitas vezes bate à nossa porta com assustadora aspereza.
Eles haviam sido extraordinariamente felizes nos primeiros dias de sua viagem pelo Danúbio. Tudo, de fato, tornava-se melhor e mais belo quanto mais navegavam pelo orgulhoso e turbulento rio abaixo. Contudo, numa região em geral extremamente aprazível, cuja graciosa paisagem haviam esperado poder apreciar com deleite, o indômito Kühleborn começou a demonstrar sem reservas o poder que aqui exercia. Suas intervenções, na verdade, não passavam de meras provocações, pois sempre que Ondina dirigia uma admoestação para as ondas revoltas ou para os ventos enfurecidos a violência do inimigo instantaneamente tornava-se em submissão. Mas de novo sucediam-se as investidas, e de novo eram necessárias as repreensões de Ondina, o que perturbava completamente a alegria do pequeno grupo de viajantes. Acrescia-se ainda que os barqueiros receosos cochichavam continuamente entre si, olhando com desconfiança para os três passageiros. Seus próprios criados começaram mais e mais a suspeitar de algo sinistro e a seguir seus senhores com olhares estranhos. Com freqüência Huldbrand dizia em pensamento consigo mesmo: "Isto é o que acontece quando cada qual não está com seu igual, quando um homem e uma sereia se unem em uma insólita aliança."
Justificando-se - como aliás tendemos em geral a fazer - ele amiúde pensava:
"Afinal, eu não sabia que ela era uma sereia. Sem dúvida, o infortúnio que tolhe e embaraça cada um de meus passos ao sabor dos caprichos da desatinada parentela - esse infortúnio de fato é meu, mas minha não é a culpa." Com esse tipo de pensamento sentia-se de certo modo fortalecido, mas, em compensação, tornava-se cada vez mais aborrecido e até hostil com Ondina. Ele já a mirava com olhares carrancudos, e a pobre donzela compreendia muito bem o que eles significavam. Em vista disso, e também devido ao esgotamento pelo incessante esforço contra os ardis de Kühleborn, ela caía à noite em profundo sono, docemente embalada pelo brando resvalar da barca.
Mal fechava os olhos, porém, cada um no navio julgava divisar, no lugar para o qual estava olhando nesse momento, uma abominável cabeça humana que se erguia das ondas, não como se alguém estivesse nadando, e sim totalmente vertical, como que cravada em posição ereta sobre a superfície da água, embora acompanhasse a barca à medida que esta se movia. Cada um queria apontar aos demais aquilo que o atemorizava, mas, embora percebesse no rosto alheio o mesmo horror, via o outro indicando com a mão e os olhos uma direção diversa daquela em que ele próprio avistava o monstro, que em parte sorria, em parte ameaçava. Mas quando queriam chegar a um acordo, e todos exclamavam: "Olhe para lá, não, para lá!", nesse momento tornavam-se visíveis a cada um as monstruosidades avistadas por todos os demais, e toda a correnteza em torno do navio fervilhava com as horríveis criaturas. O alarido que então se produzia despertava Ondina. Ao erguerem-se as suas pálpebras, desaparecia a fantástica multidão de rostos deformados. Mas Huldbrand ficou indignado com essa quantidade de detestáveis fantasmagorias, e prorromperia em ferozes imprecações se Ondina, com um olhar muito humilde e uma suplicante voz baixa, não dissesse:
- Por Deus, meu esposo, nós estamos sobre o rio. Não se zangue comigo agora.
O cavaleiro manteve-se em silêncio, sentou-se e caiu em profunda reflexão.
Ondina disse-lhe ao ouvido:
- Não seria melhor, meu querido, se deixássemos essa desatinada viagem e retornássemos em paz ao burgo Ringstetten?
Mas Huldbrand murmurou hostil:
- Devo então ser um prisioneiro em meu próprio burgo? E poder respirar apenas enquanto o poço permanecer fechado? Se assim for, preferiria que a desvairada parentela...
Ondina, nesse momento, apertou carinhosamente sua formosa mão sobre os lábios de seu esposo. Huldbrand de fato calou-se e manteve silêncio, pois ponderou diversas coisas que Ondina lhe havia dito anteriormente.
Entrementes, Bertalda havia-se entregue a toda sorte de pensamentos dos mais estranhos e dispersos. A respeito da origem de Ondina, ela sabia bastante, mas não tudo e o temível Kühleborn, em particular, permanecia-lhe como um enigma assustador mas totalmente indecifrado, tendo sequer chegado a ouvir seu nome.
Refletindo sobre todas essas coisas extraordinárias, e sem se dar realmente conta do que fazia, ela desatou um colar dourado que Huldbrand para ela comprara de um mercador ambulante numa das últimas jornadas. Como em um sonho, deixou pender o colar bem próximo à superfície do rio, regozijando-se com o delicado resplendor que ele lançava sobre as águas iluminadas pelo crepúsculo.
Subitamente, uma grande mão emergiu do Danúbio, agarrou o colar e mergulhou com ele na correnteza. Bertalda deixou escapar um grito alto, e um riso sardônico ressoou das profundezas do rio. Nesse momento, a ira de Huldbrand não mais se conteve. Levantando-se de um salto, lançou injúrias para dentro das águas, amaldiçoando todos que queriam se intrometer em sua vida e na dos seus, desafiando-os - seja espírito das águas, seja sereia - a postar-se diante de sua espada desembainhada. Bertalda, enquanto isso, chorava por causa da jóia perdida que lhe era tão imensamente cara e, com suas lágrimas, jogava lenha na fogueira da fúria que acometia o cavaleiro. Nesse ínterim, Ondina, passando sua mão por sobre a amurada do navio, mantinha-a mergulhada nas ondas, enquanto sem parar emitia um doce murmúrio. Somente de vez em quando interrompia seus estranhos e misteriosos sussurros para suplicar ao seu marido:
- Meu amado, não me repreenda aqui. Censure tudo o que quiser, mas não me censure aqui. Você sabe!
E Huldbrand, de fato, ainda que vociferando encolerizado, reprimia quaisquer palavras que mesmo indiretamente fossem contra ela. Então, com a mão molhada, que mantivera sob as ondas, Ondina trouxe à mostra um formosíssimo colar de coral, tão magnificamente resplandecente que quase ofuscou os olhos de todos.
- Tome - disse, oferecendo-o meigamente a Bertalda - fiz com que isso fosse trazido para compensá-la. Não se aflija mais, minha pobre amiga.
Mas o cavaleiro interveio. Arrancou a jóia das mãos de Ondina, arremessou-a de volta para o rio e gritou enfurecido:
- Então você está sempre em contato com eles? Com mil diabos, fique pois junto deles com todos os seus presentes, e deixe a nós humanos em paz, sua feiticeira!
A pobre Ondina fitou-o com os olhos hirtos mas repletos de lágrimas, tendo ainda a mão estendida com a qual pretendera entregar tão gentilmente seu belo presente a Bertalda. Começou em seguida a chorar de modo sentido, cada vez com mais força, como uma adorável criança que foi amargamente injuriada embora fosse de fato inocente. Por fim, disse com voz muito apagada:
- Oh, querido amigo, oh, adeus! Eles não lhe farão nenhum mal. Apenas permaneça fiel para que eu possa mantê-los afastados de você. Oh, terei que partir, partir para sempre. Ai, ai de mim, o que você fez! Ai de mim, ai de mim!
E desapareceu por sobre a amurada da barca. Entrou na correnteza, ou desvaneceu-se nela - não se poderia dizer qual das duas coisas - era como se fosse ambas e, ao mesmo tempo, nenhuma delas. Seja como for, logo ela se dissipou no Danúbio, e somente restaram pequeninas ondas que murmuravam soluçando em torno da embarcação - e quase se tinha a impressão de ouvi-las dizer:
- Ai de mim, ai de mim! Ah, permaneça fiel! Ai de mim!
Huldbrand, entretanto, jazia sobre o convés do navio, banhado em lágrimas amargas, e logo um profundo desmaio encobriu o infeliz em seu apaziguante véu.
O que daí em diante aconteceu a Huldbrand
- Deveríamos dizer "Que infelicidade!" ou "Que sorte!" por nossos pesares não serem de fato permanentes? Refiro-me àquele nosso pesar mais profundo, que se alimenta na fonte da vida, que se torna tão unido ao ente amado que perdemos a ponto deste não nos parecer mais perdido e estarmos dispostos a exercer por toda a vida um sacerdócio consagrado ao pé de seu retrato, até que a barreira que atrás dele se fechou também seja por nós transposta! Há decerto pessoas bondosas que se transformam na verdade em tais sacerdotes, mas, mesmo nesse caso, já não se trata mais daquele pesar inicial e verdadeiro. Outras imagens, diversas daquelas do princípio, já se imiscuíram entre elas, de modo que percebemos, por fim, que a efemeridade de todas as coisas terrenas se dá inclusive em nossa dor.
Devo portanto dizer: "Infelizmente nosso pesar não é de fato permanente!"
Por essa experiência passou também o senhor von Ringstetten - se foi ou não para o seu bem, veremos no decorrer desta história. No princípio ele não conseguia fazer nada além de chorar muito amargamente, assim como a pobre e gentil Ondina havia chorado quando ele lhe arrancou da mão a resplandecente jóia com a qual ela tão amavelmente pretendera reparar todo o infortúnio. Nesses momentos, estendia a mão tal como ela o fizera e, como ela, sempre recomeçava a chorar. Em seu íntimo, nutria a esperança de também dissipar-se por inteiro em lágrimas - e não terá um pensamento semelhante ocorrido em doloroso regozijo também a muitos de nós outros quando imersos em grande sofrimento? Bertalda também chorava, e ambos viveram um ao lado do outro no burgo Ringstetten em grande quietude, celebrando a memória de Ondina e esquecendo quase por completo sua antiga inclinação mútua. Para completar, nesses tempos Ondina aparecia com freqüência nos sonhos de Huldbrand. Ela o acariciava com doçura e amabilidade e depois partia outra vez, chorando em silêncio, de modo que, ao despertar, ele muitas vezes não sabia por que suas faces estavam tão umedecidas: seria das lágrimas dela ou somente das dele?
Mas essas visitas em sonho foram se tornando mais raras com o tempo, e o desgosto do cavaleiro também mais brando. Contudo, é muito provável que ele jamais viesse a ter outro desejo na vida além de continuar cultivando assim serenamente a lembrança de Ondina e dela falar, se o velho pescador não tivesse de repente aparecido no castelo e com muita decisão reclamado Bertalda de volta como sua filha. Ele soubera do desaparecimento de Ondina e não queria consentir mais que Bertalda prolongasse sua estadia no burgo junto a um homem fora dos laços matrimoniais.
- Pois não me interessa agora - disse - se minha filha me estima ou não. O que está em jogo é o decoro, e quando é assim, ele fala mais alto do que tudo o mais.
Esta convicção do velho pescador, bem como a solidão que pavorosamente ameaçava envolver o cavaleiro em cada salão e cada corredor do castelo deserto após a partida de Bertalda, fizeram irromper aquilo que antes estivera adormecido e que, devido à lamentação por Ondina, fora totalmente relegado ao esquecimento: a inclinação de Huldbrand pela formosa Bertalda. O pescador muito tinha a objetar contra o matrimônio proposto. Ele nutrira um forte afeto por Ondina, e acreditava que ainda era por demais incerto se, afinal, a querida donzela desaparecida estava morta de fato. Por outro lado, se o seu corpo realmente jazia frio e enrijecido no fundo do Danúbio, ou estivesse sendo carregado pelas ondas rumo ao oceano, então Bertalda tinha parte da culpa pela sua morte, e não convinha que ela tomasse o lugar da pobre moça que fora repelida. No entanto, o cavaleiro era igualmente muito estimado pelo pescador. A isso acresciam-se as súplicas da filha - que se tornara muito mais meiga e dócil - e as lágrimas que ela vertia por Ondina. Ele deve finalmente ter dado seu consentimento, pois permaneceu no burgo sem mais objeções, e um mensageiro especial foi enviado para trazer ao castelo o Padre Heilmann, que nos dias felizes de outrora havia consagrado Ondina e Huldbrand, para que celebrasse as segundas núpcias do cavaleiro.
O devoto homem, porém, mal leu a carta do senhor von Ringstetten, pôs-se a caminho do castelo muito mais aceleradamente do que o mensageiro o fizera de lá para cá. Quando, durante essa célere caminhada, faltava-lhe o fôlego, ou os velhos membros doíam de cansaço, costumava dizer para si mesmo:
- Talvez ainda seja possível evitar esse erro. Oh, corpo ressequido, não se deixe abater antes de chegar ao destino!
E empertigando-se então com forças renovadas, caminhou e caminhou sem qualquer descanso até que certa noite, já tarde, alcançou o frondoso pátio do burgo Ringstetten.
Os noivos, de braços dados, encontravam-se sentados debaixo das árvores, tendo a seu lado o velho pescador, mergulhado em pensamentos. Mal haviam reconhecido o Padre Heilmann, levantaram-se de um salto e reuniram-se ao seu redor, desejando-lhe boas-vindas. Mas este, sem perder muitas palavras, tentou puxar consigo o noivo para dentro do burgo. Como o cavaleiro, no entanto, se mostrasse surpreso e hesitante em seguir os sisudos acenos, o devoto sacerdote disse:
- Afinal, por que estou perdendo tempo querendo falar-lhe a sós, senhor von Ringstetten? O que tenho a dizer-lhe diz respeito igualmente a Bertalda e ao pescador; e aquilo que alguém deverá ouvir mais cedo ou tarde, é melhor que o ouça o quanto antes. Cavaleiro Huldbrand, o senhor tem absoluta certeza de que a sua primeira esposa realmente faleceu? Isso parece-me muito pouco provável.
Certamente não desejo entrar em detalhes acerca das curiosas circunstâncias que possivelmente a envolviam; tampouco nada sei ao certo sobre isso. Mas que ela era uma mulher devota e leal, isso está fora de dúvida. E há quatorze dias ela tem-se postado em sonhos junto à minha cama, atemorizada e torcendo as delicadas mãozinhas, suspirando incessantemente: "Oh, meu prezado reverendo, impeça-o! Eu ainda vivo! Oh, salve-lhe o corpo! Oh, salve-lhe a alma!" Eu não entendia o que a aparição noturna desejava, mas quando o seu mensageiro chegou, corri para cá, não para dar a benção nupcial, mas para apartar o que não deve ser unido.
Deixe-a, Huldbrand! Deixe-o, Bertalda! Ele ainda pertence a uma outra; além disso, não vê você que suas faces ainda estão pálidas devido ao pesar pela esposa desaparecida? Esta não é a aparência de um noivo. Outrossim o espírito noturno assegurou-me: ainda que não o deixe, Bertalda, você nunca poderá ser feliz com ele.
Os três sentiram no ponto mais recôndito do coração que o Padre Heilmann dizia a verdade, mas o fato é que não queriam acreditar nisso. Mesmo o velho pescador já estava tão seduzido que não podia conceber que as coisas tomassem outro rumo além daquele por eles decidido nas muitas conversas que tiveram nesses dias. Por isso, todos de imediato investiram furiosa e obstinadamente contra as advertências do religioso, até que este finalmente se afastou do burgo, entristecido e meneando a cabeça, sem ter aceitado sequer por aquela noite a hospedagem que lhe ofereceram e sem ter provado de qualquer dos alimentos que lhe trouxeram. Huldbrand, porém, convencido de que o religioso era um homem cheio de cismas, mandou chamar ao raiar do dia um padre do mosteiro próximo, que, livre de objeções, lhe prometeu realizar a cerimônia religiosa dentro de poucos dias.
O sonho do cavaleiro
Entre o alvorecer e a noite profunda, o cavaleiro jazia deitado em seu leito, em parte acordado, em parte adormecido. Sempre que estava prestes a entregar-se inteiramente ao sono, sentia-se na iminência de ser acometido por um sobressalto, o que fazia com que recuasse assustado diante dos fantasmas que encontraria nos sonhos. Quando, porém, pensava seriamente em despertar, ouvia ao seu redor uma aragem tal como o som de asas de cisnes acompanhado pelo doce murmúrio das ondas, levando-o sempre a retroceder, agradavelmente enlevado, ao estado de hesitação. Entretanto, ao final ele deve ter adormecido de vez, pois pareceu-lhe que o sussurro de cisnes o assentava sobre fortes asas e, enquanto entoava um suave canto, transportava-o sobre terras e mar para muito distante.
"Som de cisnes! Canto de cisnes!" - via-se continuamente compelido a dizer consigo mesmo - "isto deve significar a morte!". Mas provavelmente também tinha um outro significado. Pois, de repente, teve a impressão de estar flutuando sobre o mar Mediterrâneo. O canto do cisne, muito melodioso, dizia-lhe aos ouvidos que este era de fato o Mar Mediterrâneo. E, ao olhar para baixo, as águas tornaram-se um puro cristal, permitindo-lhe avistar até o fundo.
Alegrou-se muito com isso pois podia ver Ondina sentada sob diáfanas abóbadas de cristal. É verdade que ela estava chorando copiosamente e parecia muito desolada, como jamais o estivera nos tempos felizes que haviam passado juntos no burgo Ringstetten, especialmente no começo e também mais tarde, pouco antes de darem início à funesta viagem pelo Danúbio. O cavaleiro recordou-se longa e ternamente de tudo isso; Ondina, porém, não parecia aperceber-se de sua presença. Enquanto isso, Kühleborn dela se acercara, pretendendo admoestá-la por estar chorando. Controlando-se, ela o fitou então com tanta imponência e altivez que este quase se assustou com isso.
- Ainda que esteja morando aqui embaixo das águas - disse ela - eu trouxe comigo a minha alma. E por causa dela posso chorar, ainda que você não consiga sequer adivinhar o que essas lágrimas representam. Também elas são bem-aventuradas, como são bem-aventurados todos aqueles que são habitados por uma alma repleta de lealdade.
Kühleborn balançou incrédulo a cabeça e disse, depois de alguma reflexão:
- E mesmo assim, sobrinha, você está submetida às mesmas leis que nós, espíritos elementares; e mesmo assim terá que sentenciá-lo e tirar-lhe a vida, caso ele venha a contrair novo matrimônio e lhe seja infiel.
- Até o momento ele ainda é um viúvo - disse Ondina - e, com o coração pesaroso, dedica-me seu amor.
- Ao mesmo tempo, porém, está noivo. - disse Kühleborn rindo com sarcasmo Basta que se passem alguns dias e então a bênção religiosa terá lugar. Aí você terá de subir à tona e o homem com duas esposas morrerá.
- Isso não posso. - retrucou Ondina sorrindo - Eu selei o poço firmemente, tanto para mim como para os de minha espécie.
- Mas poderá, quando ele se afastar de seu burgo - disse Kühleborn - ou quando algum dia mandar reabrir o poço! Pois ele com certeza não dá a menor importância a essas coisas.
- Justamente por isso - disse Ondina, ainda sorrindo em meio às lágrimas justamente por isso ele está flutuando em espírito sobre o Mediterrâneo e, como advertência, está sonhando com esta nossa conversa. Arranjei tudo isto com muito cuidado.
Kühleborn olhou enraivecido para o cavaleiro lá no alto, ameaçou, bateu os pés, e imediatamente afastou-se com a rapidez de uma flecha por entre as ondas. Era como se sua perversidade o fizesse inchar até transformar-se em uma baleia. Os cisnes recomeçaram a entoar seu canto, a bater as asas e a voar. O cavaleiro teve a impressão de que flutuava sobre os Alpes e sobre rios e, finalmente, que flutuava para dentro do burgo Ringstetten e despertava em seu leito.
E ele de fato despertou em seu leito, no mesmo instante em que entrava seu pajem, relatando-lhe que o Padre Heilmann ainda se encontrava ali na região, pois havia-o encontrado na floresta na noite anterior, dentro de uma cabana que construíra para si vergando ramos de árvores e que depois recobrira com musgo e feixes de lenha. Ao perguntar-lhe o que fazia ali, já que não quisera dar a bênção matrimonial, deu a resposta: "Também existem outras bênçãos além daquela no altar nupcial e, se bem que não tenha vindo para as bodas, posso tê-lo feito para uma outra cerimônia. Teremos que aguardar. Além disso, dar o sacramento matrimonial e o último sacramento (5) não são duas coisas de todo dissociadas, e quem não fechar propositalmente os olhos pode ver isso muito bem."
O cavaleiro inquietou-se bastante com essas palavras e com seu sonho. Mas é muito difícil fazer alguém recuar de uma coisa que já tenha decidido em sua cabeça, e assim tudo permaneceu como antes.
(5) O autor faz aqui um trocadilho com as palavras "trauen" (realizar a cerimônia de casamento) e "trauern" (estar de luto, prantear um morto).
Como o cavaleiro Huldbrand celebrou suas bodas
Se eu fosse contar-lhes como se deram as festividades nupciais no burgo
Ringstetten, vocês haveriam de sentir-se como se presenciassem um grande acúmulo de coisas agradáveis e faustosas que, no entanto, tivessem por cima de si uma tarja negra, de modo que sob o efeito desse toldo obscurecedor toda a suntuosidade parecesse menos destinada a trazer deleite do que a zombar da insignificância dos prazeres terrenos. O motivo disso, decerto, não foi nenhum incidente fantasmagórico que tivesse conturbado a festiva reunião - afinal, nós sabemos que o burgo estava protegido dos malefícios dos ameaçadores espíritos das águas. Mas o cavaleiro e o pescador e todos os convidados tinham a impressão de que a pessoa mais importante da festividade ainda estava ausente, e de que esta pessoa mais importante era sem dúvida a amável Ondina, por todos tão estimada. Sempre que uma porta se abria, todos os olhares para lá se dirigiam involuntariamente e, ao perceberem tratar-se apenas de um serviçal com novas travessas ou do escanção trazendo tragos de um vinho ainda mais nobre, todos retomavam um olhar triste e absorto, e as eventuais centelhas de alegria e gracejos que vez por outra relampejavam eram extintas pelo orvalho de melancólicas recordações. De todas as pessoas, a mais despreocupada, e, portanto, a que mais se regozijava, era a noiva, mas mesmo ela estranhava de vez em quando estar sentada à cabeceira da mesa com aquela verdejante grinalda e aqueles trajes bordados a ouro, enquanto o corpo de Ondina jazia frio e enrijecido no fundo do Danúbio ou estava sendo carregado pelas ondas rumo ao oceano. Pois desde que seu pai dissera semelhantes palavras, elas ressoavam-lhe sem cessar aos ouvidos e, notadamente hoje, não havia como escapar-lhes.
Mal caíra a noite, o grupo de convivas dispersou-se. Não se desfizera por causa da impaciência esperançosa do noivo, como é usual em festas de casamento, mas dissipara-se de maneira lenta e taciturna, levado por um triste desalento ao qual se misturava o pressentimento de um porvir de infortúnios. A fim de se prepararem para a noite, Bertalda afastou-se com suas damas de honor e o cavaleiro com seus servos, mas nessa soturna festa não se poderia falar de uma alegre e galhofeira comitiva de donzelas e moços solteiros acompanhando a noiva e o noivo.
Bertalda desejava desanuviar-se, e mandou que fossem dispostos à sua frente uma esplendorosa jóia que Huldbrand lhe presenteara, juntamente com suntuosos trajes e véus, para que pudesse escolher as vestimentas mais belas e festivas para o dia seguinte. Suas criadas aproveitaram a ocasião para dizer toda sorte de coisas alegres à sua jovem senhora, não deixando de louvar com as palavras mais calorosas a formosura da recém-casada. Elas foram se estendendo mais e mais nessas considerações até que Bertalda, por fim, suspirou ao olhar no espelho:
- Ah, mas vejam essas sardas formando-se aqui ao lado, junto ao pescoço!
Elas olharam para lá e viram que era verdade o que sua bela senhora havia dito, mas asseveraram tratar-se de um adorável sinal, de uma pequena marca que fazia realçar ainda mais a brancura da delicada pele. Bertalda abanou a cabeça, afirmando que, de qualquer maneira, era uma mácula.
- E eu poderia livrar-me delas - suspirou por fim - mas o poço do castelo está fechado. Era dele que sempre mandava retirar a maravilhosa água que limpava minha pele. Ah, se hoje tivesse ao menos um frasco daquela água!
- É só isso? - riu uma esperta criada, e saiu ligeira do aposento.
- Será ela tão atrevida - perguntou Bertalda agradavelmente surpresa - a ponto de mandar remover ainda hoje a rocha do poço?
Nesse momento já se ouvia homens atravessando o pátio, e da janela podia-se ver que levavam alavancas e outras ferramentas aos ombros, e que a solícita criada os conduzia diretamente rumo ao poço.
- Sem dúvida, essa é a minha vontade - disse Bertalda sorrindo - só espero que não seja por demais demorado.
E, sentindo-se satisfeita porque um mero sinal seu podia agora realizar aquilo que antes lhe fora negado de modo tão doloroso, ficou observando o trabalho no pátio iluminado pela Lua.
Os homens esforçavam-se por içar a grande pedra e, de tempos em tempos, um deles suspirava ao pensar que ali se estava destruindo a obra de sua amada senhora anterior. Mas, de qualquer modo, a tarefa corria muito mais fácil do que se havia suposto. Era como se uma força de dentro do poço ajudasse a erguer a rocha.
- Até parece - disseram surpresos os trabalhadores uns aos outros - que a água ali dentro formou um repuxo.
E a rocha foi sendo erguida mais e mais até que, quase sem assistência dos obreiros, rolou lentamente para o pavimento com um ruído surdo. Da abertura do poço alçou-se solenemente algo como uma nívea coluna de água, e no início eles acreditaram que a idéia do chafariz de fato se tornaria realidade, até perceberem que aquela massa ascendente era uma pálida mulher, envolta em véus brancos. Chorando amargamente, ela ergueu as mãos em desespero por sobre a cabeça e caminhou com passadas lentas e graves até o edifício do castelo. Os serviçais do burgo dispersaram-se para longe do poço; enquanto isso, junto à janela e acompanhada de suas criadas, postava-se a noiva, empalidecida e petrificada de horror. No momento em que passava bem perto sob aquele aposento, o vulto olhou para cima, gemendo, e Bertalda acreditou reconhecer debaixo do véu os pálidos traços de Ondina. Mas a queixosa continuou em frente com passos pesados, forçados, hesitantes, como se estivesse a dirigir-se ao patíbulo.
Bertalda gritou para que fossem chamar o cavaleiro. Nenhuma das damas de honor ousou sair do lugar, e mesmo a noiva emudeceu outra vez, como se estremecesse ao som de sua própria voz.
Enquanto ainda se encontravam junto à janela, tomadas pelo medo e imóveis qual estátuas, a estranha peregrina alcançara o burgo, subira as familiares escadarias, atravessara os familiares salões, sempre em silencioso pranto. Oh, como outrora fora diferente perambular por aqui!
O cavaleiro havia despedido seus criados. Taciturno e meio despido, achava-se em pé diante de um grande espelho. A vela ardia sombriamente ao seu lado. De súbito, alguém bateu muito, muito delicadamente à porta. Fora costume de Ondina bater assim quando queria gracejar carinhosamente com ele.
- É apenas minha imaginação! - disse consigo. - Preciso ir ao leito nupcial.
- Sim, você precisa, mas para um leito frio! - disse aos prantos uma voz lá fora, diante do aposento.
Huldbrand viu então no espelho que a porta se entreabria, muito, muito lentamente, e que a alva peregrina entrava e, com bons modos, empurrava a lingüeta da porta para a sua fechadura.
- Eles descerraram o poço - disse em voz baixa - e agora estou aqui, e você terá de morrer.
Ele sentiu em seu coração abalado que as coisas realmente não poderiam passar-se de outro modo, mas cobriu os olhos com as mãos e disse:
- Em minha hora final, não me enlouqueça de terror. Se você tiver um semblante pavoroso por baixo do véu, não o levante, e execute-me sem que eu a veja.
- Oh - retrucou a viandante - você não irá querer ver-me uma última vez? Eu sou formosa, assim como no promontório, quando pediu a minha mão.
- Oh, se assim fosse! - suspirou Huldbrand - E se eu pudesse morrer de um beijo seu.
- Com prazer, meu amado. - disse ela.
E afastou seu véu, e com celestial formosura seu gracioso semblante apareceu sorrindo por debaixo dele. Trêmulo, tanto de amor como pela proximidade da morte, o cavaleiro curvou-se ao seu encontro. Ela deu-lhe um beijo celestial mas não o soltou mais, apertou-o mais fortemente ao peito e chorou como se através desse pranto quisesse despojar-se de sua alma. As lágrimas penetraram nos olhos do cavaleiro e propagaram-se em ondas pelo seu peito com uma dor maviosa, até finalmente seu fôlego esvair-se, e seu corpo inanimado resvalar suavemente dos formosos braços para as almofadas do leito.
- Afoguei-o com minhas lágrimas! - disse ela para alguns criados com quem cruzou na antecâmara, e dirigiu-se vagarosamente, por entre os assustados serviçais, até o poço.
Como o cavaleiro Huldbrand foi sepultado
O Padre Heilmann viera para o castelo tão logo a notícia da morte do senhor von
Ringstetten correu pela região, e chegou exatamente na mesma hora em que o monge que unira os dois infelizes noivos fugia pelos portões, tomado de assombro e terror.
- É melhor assim - respondeu Heilmann, quando esta fuga lhe foi anunciada. - E agora tem início o meu santo ministério, e não preciso de nenhum ajudante.
Em seguida procurou trazer conforto espiritual para a noiva que se tornara viúva, muito embora isso pouco vingasse em sua disposição mundana e vivaz. O velho pescador, ao contrário, mesmo com profundo pesar no coração, estava bem mais resignado com o destino que se abatera sobre a filha e o genro. E enquanto Bertalda não parava de acusar Ondina de assassina e feiticeira, o velho dizia impassível:
- Não poderia mesmo ter sido de outro modo. Nada vejo aqui além dos desígnios de Deus, e provavelmente ninguém sofreu mais em seu coração pela morte de Huldbrand do que aquela que foi obrigada a sentenciá-lo: a pobre e abandonada Ondina!
Enquanto isso, ajudava nos preparativos da solenidade fúnebre, tal como convinha à nobre condição do falecido. Este deveria ser sepultado na paróquia em cujo cemitério estavam todas as tumbas de seus antepassados, e tanto estes como o próprio Huldbrand haviam honrado essa paróquia com abundantes dádivas e privilégios. O escudo e o elmo já estavam dispostos sobre o ataúde para serem igualmente depositados na cripta, pois o senhor Huldbrand von Ringstetten havia expirado como o último remanescente de sua linhagem. Os acompanhantes deram início ao seu doloroso cortejo, entoando cânticos fúnebres que se perdiam no azul límpido e sereno do céu. Heilmann ia adiante com um alto crucifixo, e a inconsolável Bertalda seguia atrás, amparada por seu idoso pai. Subitamente notou-se então no cortejo da viúva, entre as carpideiras em luto, uma figura alva como a neve, totalmente coberta por véus, que erguia as mãos aos céus, lamentando-se com grande veemência. Aqueles perto de quem ela se encontrava sentiram-se intimamente tomados de horror e afastaram-se para trás ou para os lados; os outros, dos quais a nívea figura então se aproximava, assustaram-se com inquietação ainda maior, fazendo assim com que surgisse uma perturbação no cortejo fúnebre. Alguns guerreiros atreveram-se a dirigir a palavra à desconhecida e a tentar forçá-la a abandonar o séquito, mas ela sempre conseguia escapulir deles para logo após ser novamente vista acompanhando a comitiva com passos lentos e solenes. Por fim, como as criadas continuamente se esquivavam, ela aproximou-se por trás até bem perto de Bertalda. Desse momento em diante passou a caminhar com grande lentidão - de maneira que a viúva não se apercebia dela - e prosseguiu muito humilde e modesta, sem ser molestada.
Isto durou até que chegassem ao cemitério e o cortejo fúnebre formasse um círculo em torno do sepulcro aberto. Bertalda notou então a intrusa que a acompanhava e, parte encolerizada, parte amedrontada, ordenou-lhe que se afastasse do jazigo do cavaleiro. Mas a figura encoberta de véus balançou suavemente a cabeça em sinal negativo e ergueu as mãos para Bertalda como que em humilde súplica. Esta sentiu-se com isso muito comovida, recordando entre lágrimas como Ondina lhe quisera ofertar com tanta gentileza aquele colar de corais no Danúbio. Além disso, o Padre Heilmann fez um sinal pedindo silêncio a fim de que orassem em muda devoção junto ao túmulo sobre o qual a terra já estava sendo assentada. Bertalda calou-se e caiu de joelhos, e os demais se ajoelharam, inclusive os coveiros quando terminaram de trabalhar com a pá.
Quando, porém, voltaram a se erguer, a alva desconhecida desaparecera. No lugar onde estivera ajoelhada brotava da relva uma fontezinha cristalina que continuou fluindo e fluindo até quase circundar por completo o túmulo do cavaleiro; depois, seguiu adiante e desaguou em um tranqüilo açude que havia ao lado do campo-santo. Dizem que mesmo quando muito tempo já se passara os habitantes da aldeia ainda apontavam para a fonte, acreditando firmemente que ela era a pobre e desprezada Ondina, que dessa maneira continuava envolvendo seu amado com braços apaixonados.
Friedrich de La Motte Fouqué
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