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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ONDINE / Shannon Drake
ONDINE / Shannon Drake

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Inglaterra, 1679
Nas mãos do destino...
Subitamente envolvida num terrível jogo de influência e poder, lady Ondine viu-se a caminho da forca, sem que lhe dessem oportunidade de tentar provar sua inocência...
Os olhos cor de aço de lorde Warwick Chatham faziam jus à reputação de homem frio e implacável. Embora tivesse a seus pés todas as mulheres que desejasse, ele agora precisava de uma esposa, para poder executar seu secreto plano de vingança...
Ao ver Ondine no patíbulo, uma súbita inspiração impeliu Warwick a salvá-la, pedindo-a em casamento. Mas nenhum dos dois poderia imaginar que, em meio a intrigas e cercados de inimigos por todos os lados, encontrariam nos braços um do outro uma paixão capaz de aplacar a fúria de um homem e de realizar os anseios de uma mulher, numa gloriosa união de corpo, alma e coração!

 

 


 

 


Palácio de Westchester, Junho de 1678, Reinado de Charles II

Um sol luminoso lançava à terra seus raios abrasadores. Não havia nuvens no céu, tampouco o menor sinal de chuva para amenizar a alta temperatura da tarde. Montado em seu cavalo inquieto, Warwick Chatham praguejou mentalmente contra o calor insuportável. Detestava ostentação, pompas e jogos, mas esse torneio tinha sido ordenado pelo rei e, para ser honesto consigo mesmo, admitiu que estava feliz por ter aquela chance de enfrentar lorde Hardgrave, visconde de Bedford Place. As hostilidades entre ambos vinham desde a infância. As duas famílias tinham sido fiéis a Charles I, porém, depois que este fora executado por ordem de Cromwell, os Chatham mantiveram-se monarquistas e lutaram contra Cromwell, enquanto os Hardgrave deixaram sua lealdade ser levada pelo vento e seguiram aquele que havia mandado executar Charles I. Além disso, nas duas famílias sempre houve disputas por causa da divisa de terras.
- Calma, Dragon - Warwick murmurou para sua montaria, um grande cavalo de batalha, alazão de raça árabe, muito veloz.
Dragon estava mais acostumado com a ação de um combate verdadeiro do que com o requinte das liças. O mesmo acontecia com Warwick. Ele havia crescido lutando com os saqueadores escoceses para garantir a posse das terras que ficavam na fronteira com a Escócia. Aquelas eram batalhas de vida e morte, e não simples espetáculos para divertir o público.
Warwick olhou para as arquibancadas. No camarote central estava o rei e a rainha, Catherine. Mesmo sendo reconhecido libertino, Charles II era um cavalheiro e extremamente gentil com a rainha. As inúmeras fileiras de bancos estavam lotadas. Nos assentos mais próximos ao camarote real estavam os nobres, de acordo com a hierarquia. Atrás destes sentavam-se os lordes e ladies menos importantes. Cidadãos comuns ficavam de pé e pareciam muito felizes por estar passando aquele feriado com seu "alegre soberano". Todos amavam Charles II e suas festas. Flâmulas erguiam-se bem alto, demonstrando o apoio dos assistentes aos cavaleiros favoritos. Warwick sorriu. Aquele conjunto multicolorido de sedas, cetins, até peles, parecia um arco-íris.
Depois das justas haveria um banquete. Pelo menos, naquela noite, muitos pobres saciariam a fome.
"Vamos acabar logo com isso!", ele pensou.
Dragon, coberto de ornamentos, estava molhado de suor e empinava, cada vez mais impaciente. Sua manta ostentava o emblema azul e dourado dos antigos lordes de Chatham, representando a "besta da floresta", criatura única, metade leão, metade dragão. No escudo de Warwick havia o mesmo emblema.
- Quieto, Dragon! - Warwick murmurou, tão ansioso quanto o cavalo.
Trajava camisa e calções azuis, sobre estes tinha a túnica de malha dourada e a armadura de aço. Com aquele calor terrível suas roupas estavam tão molhadas de suor que Warwick pensou, com algum humor, que ele e lorde Hardgrave acabariam enferrujando caso não entrassem logo em ação.
Nesse instante, o rei ergueu a mão, as trombetas soaram, o mestre-da-justa levantou-se para anunciar que a disputa seria entre o conde de North Lambria e o visconde de Bedford Place. Hardgrave e Warwick aproximaram-se do camarote real, desmontaram e ajoelharam-se diante do rei, dizendo:
- Por Deus e nosso soberano, Charles!
Depois de ouvirem os regulamentos e, tendo sido advertidos de que aquela não era uma disputa de morte, cada cavaleiro abaixou o visor da armadura. Antes da disputa haveria ainda uma pequena encenação, Warwick pensou, irritado. Montou Dragon e seguiu ao longo das arquibancadas até uma certa lady, muito loira, delicada, pálida e linda. Sorriu para ela que se levantou, tirou a echarpe que tinha na cabeça e ao redor do pescoço e entregou-a ao cavaleiro. Warwick curvou-se, sorriu novamente e soltou as rédeas de Dragon, indo tomar sua posição. A multidão aplaudiu o gesto elegante.
Jake, o escudeiro do conde, que era também seu cocheiro e criado pessoal, veio correndo até o amo e entregou-lhe a lança, exclamando:
- Deus é o seu Senhor, milorde!
De pé, na frente do camarote real, o mestre-da-justa ergueu a bandeira com o emblema dos Stuart e abaixou-a. Dragon partiu como um raio. Warwick sentiu a força da musculatura do animal e teve a sensação de estar voando de encontro ao oponente, a lança firme e imóvel em seu braço. A terra tremia sob os cascos do animal, o mundo ao redor, o público, as cores, a agitação, tomou-se uma mancha indistinta: Warwick e Hardgrave se aproximavam mais e mais. Um segundo depois...
O som da lança atingindo o escudo de Hardgrave foi ensurdecedor. Todo o braço de Warwick doía como se picado por centenas de abelhas. Ele cambaleou, sentiu que o ombro estava deslocado, mas sua experiência, sua vontade de aço e a força de suas coxas, mantiveram-no sobre o cavalo. Quase cego pela dor e sentindo na boca o sal do suor, percebeu pelos gritos e aplausos da multidão que havia derrubado Hardgrave de sua montaria. Jogou fora a lança partida e pegou a espada que Jake acabara de lhe entregar. Foi até Hardgrave que já estava de pé munido de sua espada.
Warwick desmontou com um salto, ficando diante do adversário, em cujos pálidos olhos azuis notava-se o ódio. Rapidamente, Warwick compreendeu que essa fúria era uma arma poderosa, capaz de causar sua derrota. Hardgrave avançou e desferiu o golpe, porém Warwick desviou-se. As duas espadas se encontraram com forte estrépito. A luta continuou.
- Um dia eu o matarei, Chatham - ameaçou Hardgrave, furioso. .
- Será? - questionou Warwick.
Hardgrave atacou depressa demais, o que foi vantajoso para Warwick. Este se desviou e erguendo bem a espada, bateu na de Hardgrave, atirando-a longe. Quando Hardgrave tentou pegá-la, Warwick estendeu a perna, fazendo com que o adversário tropeçasse e caísse esparramado no chão. Ao encostar a ponta da espada no pescoço do visconde, Warwick notou que os olhos dele estavam injetados de ódio.
Nesse instante o rei levantou-se, gritou: "Bravo! Embainhem a espada!", e cumprimentou os dois cavaleiros. Hardgrave ficou de pé, apertou a mão que Warwick lhe estendera. Ambos se aproximaram do camarote real e ajoelharam-se.
- Muito bem, lorde Chatham. As terras em demanda agora lhe pertencem. Quanto a você, lorde Hardgrave, espero que cumpra a promessa de aceitar minha decisão - declarou o rei. - Eu os verei no banquete.
Os cavaleiros ficaram de pé. Warwick assobiou chamando Dragon e montou-o. Devia ir para sua tenda cuidar do ombro machucado, mas soltou as rédeas e cavalgou até a floresta. Precisava refrescar-se e ter um pouco de paz.
Chegando a um ribeirão, desmontou, tirou o elmo e matou a sede. Em seguida, livrou-se da pesada armadura e sentou-se na relva..
As folhas das árvores farfalhavam com a brisa, o sol estava se pondo, os rouxinóis começavam a cantar. Ele deitou-se e fechou os olhos, apreciando aquele sossego. Logo adormeceu.
Algo perturbou seu descanso. Warwick sentou-se, confuso. Parecia haver alguém do outro lado do ribeirão. Estreitou os olhos, mas não pôde ver nada por causa da pouca claridade.
Estaria sonhando?
Uma voz feminina chegou até ele.
- Não! Nunca! Assassino!
Seguiu-se uma voz masculina, ameaçadora.
- Sim, minha herdeira! Seu pai está morto. Você ficará sob a tutela de meu pai. Ele administrará tudo o que lhe pertence e arranjará provas para incriminá-la!
- Falsidades! Mentiras!
- Mas se apresentadas no tribunal, serão a sua condenação.
Você tem duas escolhas: aceitar a minha proteção ou enfrentar o carrasco.
- Vá para o inferno! Eu o desprezo!
Perplexo, Warwick levantou-se para atravessar o ribeirão, mas parou ao ouvir ramos se quebrando. Uma mulher corria entre a vegetação. Ao vê-lo na outra margem, ela parou, assustada. À luz fraca do crepúsculo, Warwick notou que ela era jovem, alta, magra, tinha os longos cabelos despenteados e estava ofegante. Subitamente, ela correu e atirou-se na água.
- Espere! Posso ajudá-la - Warwick gritou.
Correu até o ponto onde a jovem havia mergulhado e, não vendo nem sinal dela, mergulhou também no ribeirão, mas ela havia desaparecido. Frustrado e incrédulo, deduziu que a pobre moça havia tirado a própria vida. Nadou de volta à margem onde deixara Dragon, a armadura e o elmo. Montou o animal e, enquanto cavalgava, não conseguia esquecer a jovem.
Quando estava chegando às tendas, Jake o avistou e correu ao seu encontro.
- Ah, milorde, o senhor perdeu a parte mais emocionante! Houve um atentado contra a vida do rei! Mas Sua Majestade não foi ferido e insistiu para que a festa para o povo continuasse.
Warwick ficou em silêncio. Era incrível que alguém tentasse tirar a vida do rei tão facilmente. Charles Stuart, apesar de sua infidelidade para com a rainha, era um homem correto, inteligente e sábio. Um bom amigo.
- E então, milorde, não tem nada a dizer? - indagou o criado.
- Dizer o quê? Eu... acho que sonhei. Ou talvez tenha visto uma sereia...
Jake franziu a testa, preocupado.
- Levou uma pancada na cabeça, milorde?
- Não, Jake. Esqueça. No momento quero que você cuide de meus machucados. Depois vou ver meu soberano e minha querida esposa Genevieve.

Warwick entrou mancando no apartamento a ele reservado por Reemes, o camareiro real do palácio de Westchester. Quando, por fim, chegou à poltrona entalhada, perto da lareira, sentou-se com uma careta.
Ah, se Hardgrave o visse ali sentado! Tinha as nádegas feridas, o ombro deslocado e torcera o tornozelo. Pelo menos aquele longo dia terminara. No banquete certificara-se de que o rei estava realmente bem. Genevieve já tinha ido para a cama.
De repente, Warwick ficou tenso. Ouviu um leve ruído. Um ruge-ruge de sedas. Alguém havia entrado na sala. Ele permaneceu imóvel e atento. Quando o ruído fez-se ouvir novamente, ele virou-se e, com grande rapidez, agarrou o pescoço de alguém.
- Warwick! - lady Anne Fenton gritou, indignada.
- Anne, o que faz aqui? - Warwick perguntou secamente. A bela lady adejou os longos cílios escuros e ajoelhou-se aos pés do conde.
- Eu queria vê-lo. Você sabe que sempre foi meu primeiro amor.
- É mesmo? E quanto ao seu marido?
Anne riu.
- Ele detesta o ambiente da corte.
- Eu também detestaria se minha esposa fosse o mais recente caso do rei.
- Ora, Warwick, você não pensou em Geoffrey na última vez em que nos encontramos.
- Agora é diferente. Casei-me com Genevieve.
- Genevieve! A doce e inocente Genevieve! Eu o avisei, Warwick! Você não podia se casar com ela. - Anne riu e torceu os lábios, o que fez com que suas palavras soassem como os guinchos de uma harpia. - Segundo dizem, Genevieve tremeu ao saber que iria ser sua esposa. A delicada Genevieve casando-se com o belo e valente conde de North Lambria. Um demônio, uma fera com as mulheres! Seu tolo! Genevieve tem medo de você, do mesmo modo que teme os fantasmas dos ancestrais Chatham e a maldição da família...
- Anne! - Warwick interrompeu-a com voz calma; porém cortante. - Concordo com você em algumas coisas. Quanto a ser um demônio, uma fera com as mulheres, depende. Garanto que minha doce esposa não encontra demônio nenhum tampouco uma fera na sua cama. Quem é gentil, recebe gentileza. No entanto, uma devassa como você, minha cara lady, encontra uma fera ou um demônio. Mas tudo isso pertence ao passado. Genevieve espera um filho meu e eu não a magoaria por nada neste mundo.
- Você não a ama. Casou-se com ela para cumprir uma promessa! Você...
- Anne, eu lhe peço, gaste seus encantos com Charles esta noite. Estou cansado. Não importa o que você sente por Genevieve. Ela é minha esposa, espera um filho, meu herdeiro. Por favor, saia.
Anne Soltou os cabelos negros, deixando-os caídos sobre os ombros.
- Espera seu herdeiro, Warwick? Duvido que Genevieve sobreviva ao nascimento dessa criança.
Dando um passo, Warwick chegou até Anne e segurou-a pelos ombros.
- Por Deus, pare com isso! Não me obrigue a usar minha força contra você.
Ela encostou-se no peito dele.
- Eu o amo, Warwick!Preciso de você! Posso fazê-lo feliz e Genevieve não pode. .
- Estou casado, Anne. Tenho uma esposa bondosa e a amo por suas qualidades.
- Você voltará para mim, Warwick Chatham! Juro que até o próximo Natal você buscará a paixão que só pode encontrar comigo!
Virando-se, ela deixou a sala. Warwick ia voltar para a poltrona, mas viu Genevieve à porta do quarto. Com os cabelos loiros, tão claros, caídos às costas e sobre os ombros, a linda pele alva, os olhos azuis, ela parecia etérea à luz suave do fogo.
- Você ouviu? - o marido perguntou.
- Sim. Eu... tive um pesadelo e acordei assustada. - Genevieve caminhou até o marido. - Warwick, eu sei que você é um marido fiel. Receio tê-lo desapontado.
- Você nunca me desaponta, meu amor - declarou Warwick, sentando-se e colocando a esposa no colo.
Genevieve baixou a cabeça e deu um sorriso triste. Sabia que o marido não dissera a verdade. Ela o desapontava, sim, pois não o satisfazia. Warwick era um homem extremamente viril e ela ainda não se acostumara com a energia que ele demonstrava na cama. Mesmo amando demais o marido, muitas vezes fingia estar dormindo para não cumprir seu dever de esposa. Apesar de Warwick ser muito gentil e paciente, ela chegava a sentir medo nos momentos de intimidade. Ele exalava vitalidade e força, ao passo que ela era tão frágil. Afinal, desejava tomar-se freira, mas o pai, em seu leito de morte, pedira a Warwick para casar-se com ela e protegê-la.
Por longo tempo o casal ficou sentado em silêncio, sentido o calor do fogo. Os pensamentos de Warwick eram carregados de remorso. Em um ponto Anne estava certa. Não devia ter-se casado com Genevieve. Ela era tímida por natureza, era tão linda, meiga e frágil. Delicada demais para um homem fogoso e sensual como ele.
- Genevieve? - Warwick interrompeu o silêncio. - O que Anne disse não é verdade, você sabe disso. Há muitas lendas sobre minha família, mas não existe maldição nenhuma. A morte de minha avó foi um acidente. Ela caiu da escada.
- Eu sei. Mas... tive um pesadelo. Vi sua avó e ela disse que viria me buscar...
- Pare com isso, querida! Você está comigo e eu a protegerei. - Warwick abraçou a esposa com força.
Ela esforçou-se para afastar seus temores e lembrou-se de que tinham vindo ao palácio de Westchester para decidir a disputa sobre terras.
- Warwick, eu o amo e tenho o maior orgulho de ser sua esposa. Nenhum cavaleiro pode ser mais nobre do que você.
- Se você pensa assim, é tudo o que importa. Mas agora, minha linda e amada esposa, deve deitar-se. Vou tomar um cálice de Porto, depois me deitarei com você.
- Está bem. Eu o espero no quarto.
- É melhor não ficar acordada. Eu sei que você quer descansar.
- Não, Warwick, eu quero esperá-lo - declarou Genevieve. Levantando-se, foi para o quarto..
Warwick serviu-se de uma dose de vinho do Porto e voltou para a poltrona. Anne, com toda aquela conversa, o havia perturbado bem mais do que ele queria admitir. Sentia desejo, ansiava por satisfazer-se com uma mulher ardente, forte e madura, como Anne, feita para a paixão. Tomou o vinho, tentando desesperadamente engolir também aquele fogo que parecia consumi-lo.
Curiosamente, seus pensamentos voltaram-se para a mulher da floresta. Não a vira com nitidez porque estava escurecendo. Mas pelo modo como havia fugido do homem que a ameaçava, ela lhe parecera corajosa e ardente. No entanto, Genevieve era sua vida. Devia a ela lealdade e amor.
Warwick tirou as botas e ouviu um forte barulho. Virando-se, viu que a porta do quarto tinha sido fechada. Estranho. Genevieve jamais fechava a porta para ele. E nessa noite, ela dissera que ficaria acordada esperando-o.
- Warwick! Ela está vindo! Oh...
Ao ouvir o grito de horror ele correu para a porta, mas encontrou-a trancada.
- Genevieve! - chamou bem alto.
Não houve resposta. Desesperado, deu murros na porta, empurrou-a com o ombro, ignorando a dor, até que as dobradiças cederam, e ele entrou no quarto, cambaleando. Genevieve não estava ali. A brisa leve fazia com que as cortinas da cama e das janelas esvoaçassem como fantasmas sussurrando.
Chegou até ele um grito vindo do térreo. Horrorizado, foi até a sacada e olhou para baixo.
- Genevieve!

O corpo de Genevieve foi velado na capela particular do rei. No dia seguinte, seguiria para North Lambria, para ser enterrado na cripta da família Chatham.
Antes da viagem, Warwick foi para o quarto que havia ocupado com a esposa e sentou-se na cama, imensamente triste. Subitamente, sentiu uma corrente de ar que parecia vir da parede logo à sua frente. Achou aquilo muito estranho e levantou-se para observar de perto as tapeçarias penduradas na parede. Afastou uma delas e viu que escondia uma pequena abertura do lado da cornija da lareira. Pressionou o lado dessa abertura e uma falsa parede deslizou silenciosamente para trás, revelando uma passagem. Ele entrou no cubículo e quase rolou por uma escada úmida e escura. Voltou ao quarto, pegou uma tocha e desceu a escada, chegando a uma masmorra. Entre ratos e limo, encontrou uma capa de monge, com capuz, e uma máscara. Pegou os dois objetos e retornou ao quarto.

Sentindo muita falta do conde de North Lambria e preocupado com ele, que se isolara em uma de suas propriedades, o rei Charles decidiu visitá-lo. Mas nem a alegria e nem a vivacidade do soberano conseguiram animar Warwick.
- Você deve reagir, meu amigo. Case-se novamente aconselhou o rei. - O que aconteceu foi um acidente e não uma maldição como dizem. Fantasmas não existem, muito medo nos matam...
Warwick esmurrou a mesa, descarregando sua raiva.
- Genevieve não se matou nem sofreu acidente. Minha esposa foi assassinada!
- Assassinada? - Exatamente. - Warwick levantou-se, tirou de um armário a capa e a máscara e mostrou-as ao rei.
- Quem poderia ter cometido um crime desses?
- Não sei. Mas tenho certeza absoluta de que alguém matou minha doce Genevieve.
- Por Deus! Que loucura. De quem você suspeita? De Justin? Clinton?
- Nenhum dos dois. Mas há Hardgrave...
- Ora, vamos! Você e o visconde têm suas diferenças, mas uma acusação dessas...
- Bem, posso estar enganado.
- E está. - Charles suspirou. - Lamento, Warwick, mas acredito que Genevieve suicidou-se. A máscara e a capa não provam nada. Muitas pessoas da corte usam máscaras para esconder sua identidade quando planejam algum deslize. Um encontro amoroso, por exemplo. Vamos, homem, acabe com essa tristeza. Volte comigo para a corte.

Como lady Anne havia dito, Warwick passou o Natal nos braços dela. Com ela satisfazia seus desejos. Era um amante ardente, mas um homem frio.
O ano terminou. O tempo curou sua dor, mas suas suspeitas de que Genevieve fora assassinada e a determinação de que iria descobrir quem a havia matado continuavam firmes.
- Você deve se casar - Charles aconselhou-o novamente.
Casar-se... Ele acreditava que estaria arriscando a vida da mulher que escolhesse para esposa. Tinha certeza de que alguém estava determinado a deixá-lo sem herdeiros.

Com a morte de Geoffrey, marido de lady Anne, seus encontros com Warwick tomaram-se freqüentes. Certa noite, ela virou-se para ele, impetuosa.
- Agora podemos nos casar, querido.
- Não pretendo me casar novamente - ele respondeu. - Eu o farei mudar de idéia.
Não. Ela não o faria mudar de idéia, Warwick pensou. O que podia fazer era satisfazê-lo na cama, aplacar seus sentidos.
Genevieve estava sempre em seus pensamentos. E ele devia fazer justiça. Tinha de haver um modo de ele descobrir o assassino!

Em abril de 1679, Warwick caminhava com Charles pela Market Street. O rei procurava um presente para a esposa. Os guardas de Sua Majestade seguiam atrás dos dois amigos.
Subitamente, um homem saltou diante do rei, empunhando uma faca. Com grande agilidade, Warwick tirou a espada e, segundos depois, o agressor, homem corpulento, mas sujo e desdentado, estava no chão, ofegante, suplicando para ter uma morte rápida.
- Me mate agora, milorde! A forca, em Tybum...
- Para um traidor que tentou matar o rei, a condenação não será a forca! Sua morte será mais terrível - declarou um dos guardas que havia corrido para o lado de Charles. .
O homem foi levado dali. Charles suspirou.
- Eu gostaria de poder fazer alguma coisa para salvar esses infelizes. O homem, com certeza, é louco.
- Nesse caso ele será piedosamente enforcado.
- Não. Centenas de pessoas são condenadas à forca por crimes menores como dívida ou por roubar pão.
- Mas, sendo o rei, a sua intercessão...
- Sou governado pelo Parlamento. Lembro-me sempre de que meu pai foi decapitado. Eu amo o meu pescoço e a cabeça coroada que tenho sobre ele.
Na semana seguinte, Warwick estava indo para North Lambria quando, de repente, o coche parou. Ele inclinou-se na janela para falar com Jake, que conduzia o veículo.
- Por que paramos?
- Um cortejo para a morte, milorde. Três pobres-coitados estão indo para Tyburn, onde a forca os espera.
Warwick continuou olhando pela janela e viu passar por ele uma carroça levando um rapazinho, um velho e uma mulher bem jovem. Ela estava muito suja e tinha os longos cabelos loiros com reflexos avermelhados, embaraçados. Apesar do aspecto miserável, mantinha a cabeça bem erguida e tinha nos olhos azuis um brilho desafiador.
Warwick estreitou os olhos. A moça era bonita e iria perder a vida em poucos minutos.
- Jake, é verdade que um homem ou uma mulher pode livrar-se da forca se ele ou ela se casar antes de a corda ser puxada? - Warwick perguntou ao criado.
- Sim, milorde. É o que diz a lei.
- Jake, siga o cortejo - Warwick ordenou.

PARTE I
Capítulo I

Tybum, Maio de 1679

A vontade de Ondine era gritar e livrar-se da corda que lhe prendia os pulsos e do laço áspero que lhe esfolava o pescoço. Mas prometera a si mesma manter-se calma. Não iria contribuir para aumentar o espetáculo que aquele público já estava apreciando e que em poucos minutos iria tomar-se mais trágico. Tinha de se conformar. Antes morrer como uma ladra comum do que ter a cabeça separada do pescoço, sob a acusação de traição. Pelo menos podia orgulhar-se de ter lutado valentemente contra a supremacia. Perdera, e não tendo mais esperanças, estava decidida a não fraquejar. Não iria divertir aquela turba que se entretinha com a morte.
- Como você está, minha filha?
Ondine virou-se para o velho sentado junto dela. Seus olhos escuros e fundos estavam cheios de tristeza. Do outro lado estava Pat, um rapazinho de catorze anos que parecia ter perdido a fala, tal seu terror.
- Eu estaria melhor, Joseph, se eles não estivessem prestes a apertar o laço...
Ela parou de falar ao ver duas crianças seguindo do lado da carroça. Deus do céu! Que tipo de mãe deixava seus filhos assistirem a cenas de sofrimento e morte? Era impressionante o número de pessoas que havia nas ruas e que seguia a carroça desde que eles deixaram a prisão de Newgate, uma hora atrás.
- Já estamos perto da esquina da Endel com a Broad Street, onde vamos fazer uma parada, como é costume, para tomar cerveja - Joseph comentou.
Mais uma vez Ondine olhou para o rosto do amigo, cheio de rugas, marcado por uma vida de pobreza.
- Não vou beber para divertir essa gentalha.
Joseph sorriu. Tinha o coração apertado e não era por medo da morte. Era por Ondine. Ele já estava velho e preparado para a outra vida. Mas Ondine era tão jovem! E antes de a prisão lhe roubar a vitalidade, era linda. Mesmo no momento, com as roupas reduzidas a farrapos, havia nela uma dignidade e uma altivez dignas de uma lady. Na prisão infernal de Newgate ela ajudava os companheiros, repartia seu pão com quem lhe parecesse mais necessitado e protestara com fúria contra os carcereiros. Planejara fugir com Joseph e Pat e teriam conseguido, se ela não parasse para acudir o rapazinho que estava se sentindo mal.
Joseph suspirou. Lembrou-se do dia em que Ondine se juntara ao grupo dos pobres e sem-teto, na floresta. Todos notaram que ela era educada, tinha uma voz melodiosa e modos aristocráticos. Porém, quando era preciso lutar contra as injustiças, sabia ser desbocada. Ela era um mistério que nenhum dos integrantes do grupo tentou desvendar. Apenas a aceitaram sem perguntas.
Parecia que esse mistério morreria com ela naquela manhã. Subitamente, uma fúria surda tomou conta de Joseph. Eles iriam morrer porque haviam apenas tentado viver. Ou sobreviver. Na semana anterior, Maddie, o velho Tom e Sirnkins tinham sido executados.
- Beba o que lhe oferecerem e não se importe com esses estúpidos. Talvez a cerveja a ajude a tomar tudo mais fácil Joseph aconselhou Ondine.
A carroça parou. Os dois guardas, o frade, o carrasco e o magistrado, que seguiam a pé, também pararam. Como era costume, o dono de uma estalagem saiu do estabelecimento e ofereceu cerveja aos condenados. Ondine hesitou antes de estender os pulsos amarrados para aceitar o caneco que lhe estava sendo oferecido.
Tomou a cerveja pedindo a Deus que lhe desse coragem. Mas a bebida amarga só aumentou sua infelicidade. A cada gole sentia o nó em seu pescoço apertar-lhe a garganta.
O espetáculo terminou e a carroça pôs-se em movimento. Ondine tentou não ouvir os gritos e assobios dos homens que diziam ao carrasco que se divertiriam mais com a moça se ela continuasse viva. Eles estavam bem perto de Tybum, onde seria o enforcamento. Ao avistar as arquibancadas onde os espectadores pagavam dois xelins para assistir à execução, Ondine ficou atordoada e achou que iria desmaiar. Fechou os olhos e sentiu no rosto a brisa agradável. Abriu depressa os olhos, pois nunca mais voltaria a ver o sol.
- Apegue-se a Deus, minha filha - disse Joseph carinhosamente. - A vida eterna é melhor do que esta.
Morrer! Não! Não era verdade que iria morrer. Lutaria até o fim. Daria chutes, mordidas, gritos... Que pensamentos tolos, admitiu. Não tinha como escapar. Se aquela multidão gastara seu dinheiro para ver um espetáculo, todos ficariam desapontados.
A carroça parou junto das forcas. O frade gorducho murmurou uma bênção, e o carrasco perguntou se eles queriam dizer suas últimas palavras.
Pat gritou pedindo clemência e chorou. Ele era um garoto que tinha sido condenado por cortar uma árvore que crescera na floresta de um conde. O "crime" que ela cometera não tinha sido muito diferente. Vendo que os espectadores apreciavam cada minuto daquela cena, Ondine deu um passo para a frente. Tinha, sim, algumas palavras para dizer.
- O que há com vocês? - indagou com voz firme e clara. - Será que estão, realmente, gostando de ver este garoto suplicar pela própria vida? Queira Deus, em Sua justiça, que algum dia vocês se encontrem em tal penúria que não tenham nem os dois xelins que pagaram por esse assento onde se acham agora. Então, a miséria os levará a pescar ou a caçar nas terras de algum nobre para ter com que encher a barriga vazia...
- Enforque-a! - um homem gritou, furioso.
Outras vozes fizeram coro com ele. O público queria um espetáculo, não um sermão que os sensibilizaria e os faria sentir culpa.
- Silêncio! - ordenou sir Wilton, o magistrado, e o barulho cessou. - Temos alguma oferta de casamento?
Ondine olhou para Joseph de modo indagativo.
- É o costume, minha filha. Um condenado ficará livre se alguém lhe propuser casamento - o velho explicou.
Ondine voltou-se para a multidão. Aqueles homens, em sua maioria, eram sujos e devassos. Mesmo assim, ela sentiu o coração bater mais forte. Naqueles segundos soube que amava a vida. Seria capaz de enfrentar tudo para viver.
- Eu adoraria ficar com a garota - gritou um homem gordo e careca. - Mas, se eu fizer isso, minha mulher matará nós dois.
Gargalhadas estrondaram.
"Ralé imunda", Ondine pensou.
Preferia morrer a ser tocada por um tipo como aquele. Ela estreitou os olhos. Mas, pensando bem, se um homem lhe propusesse casamento, ela viveria. Depois de casada, desapareceria!
De repente, lembrou-se da própria aparência... E de seu cheiro. Por Deus, o que duas semanas em Newgate podiam fazer com uma pessoa! Sabia que estava com os cabelos embaraçados, as roupas imundas e rasgadas, o rosto magro e sujo. Quem iria querer se casar com ela?
- Bem, não temos mulher nenhuma interessada no velho ou no rapazinho. Também não há um homem disposto a se casar com a moça - anunciou o magistrado. - Vamos iniciar...
- Um momento, sir.
Ondine espantou-se ao ver um homenzinho esperto aproximar-se do magistrado. Era feio, baixo, mas nos olhos escuros havia bondade. Trajava-se como cocheiro. A camisa branca, os calções e o paletó pretos eram impecáveis. Notava-se que ali estava um criado de pessoa importante.
- O que é? Deseja casar-se com a moça? - perguntou o magistrado com ironia. - Com essa cara você só poderia arranjar uma condenada à morte.
- Eu gostaria de falar com a moça - respondeu o homenzinho. Aproximou-se de Ondine e indagou: - Você matou alguém?
- Não.
- Que crime você cometeu?
- Invadi as terras de um nobre.
- Está disposta a se casar para livrar-se da forca?
O carrasco, que estava bem perto dos dois, riu sob o capuz negro e comentou:
- Hah! A moça há de preferir a morte a se casar com você, gnomo!
O homenzinho apenas lançou para ele um olhar de desdém, fazendo-o calar-se.
A idéia de recusar aquele pretendente não passara pela mente de Ondine. Estivera pensando desesperada naqueles segundos entre a vida e a morte, imaginando o momento em que sentiria no rosto o sol e a brisa e, em seguida, o puxão da corda. Com certeza morreria instantaneamente para entrar num grande abismo desconhecido.
Mas o homenzinho diante dela, embora feio, era bondoso e viera salvá-la. Ela iria louvar sua bondade para os que haviam zombado dele.
- Sir, amo a vida e lhe serei sempre grata por sua oferta - declarou bem alto. - Terei orgulho de chamá-lo de marido, pois você é um homem clemente e generoso, muito superior a qualquer um dos que se encontram aqui e que se consideram cavalheiros.
O homenzinho sorriu.
- Não é com este sapo feio que você irá se casar, moça.
Há quem se refira ao seu futuro marido como uma besta-fera, mas ele...
- Ei! Ei! - o magistrado protestou. - A lei não permite que você leve a moça para se casar com outro. Ou se casa com ela aqui e agora...
- Pare! - alguém gritou. - Você falou em lei, pois trate de cumpri-la.
Ouviu-se um murmúrio geral. Os que estavam em pé, abriram caminho para um homem alto e bem vestido. Ao vê-lo, Ondine ficou boquiaberta, pois ele não era como nenhum daqueles espectadores. Trajava calções justos, camisa branca com babados, sobrecasaca, e era muito elegante, além de bonito.
Obviamente, ali estava um aristocrata. Os cabelos fulvos estavam presos na nuca, ele não usava barba nem bigode. Os grandes olhos castanho-claros eram vivos e penetrantes.
Ele aproximou-se da carroça e o magistrado afastou-se um pouco, tendo, evidentemente, reconhecido a autoridade do cavalheiro.
- Quero me casar com a moça, de acordo com a lei. Mas, antes disso, preciso falar com ela.
Sem esperar resposta, voltou-se para Ondine.
- Qual foi seu crime?
- Matei uma corça.
O cavalheiro franziu a testa, incrédulo.
- Você foi condenada à forca por ter matado uma corça?
- Sim, milorde. Isso não devia surpreendê-lo. A corça pertencia a um certo lorde Lovett. Ou, pelo menos estava na propriedade dele quando foi morta. Quem me mandou para a forca foi esse aristocrata. Um nobre, como o senhor.
Ela também pertencia à nobreza, pensou com amargura. Mas tinha vivido com Joseph e seus companheiros durante tanto tempo que se tomara igual aos miseráveis, que se abrigavam na floresta.
As sobrancelhas do cavalheiro se ergueram. Ondine perguntou a si mesma por que decidira ofendê-lo. Rapidamente pensou: "E por que não?", ele pertencia à classe poderosa, que tinha tudo e costumava condenar os miseráveis. Certamente estava ali por curiosidade e não se casaria com ela. Merecia ouvir umas verdades, ainda que ofensivas.
Porém, ele ignorou a insolência. Apenas olhou para ela da cabeça aos pés, como se a avaliasse.
- Você fala muito bem, senhorita.
Ondine teve vontade de rir. Conhecera muitos nobres incapazes de falar ou escrever corretamente uma linha que fosse.
Controlou-se. Não podia revelar quem era. Se morresse, levaria seu segredo para o túmulo. Se fosse possível viver, realizaria seu sonho de justiça e vingança. Fechou os olhos por um instante. Não iria viver. Tudo isso não passava de uma brincadeira cruel.
- Meu pai era poeta - mentiu. - Viajei com ele pelas cortes de muitos países.
O cavalheiro assentiu com um movimento de cabeça e continuou observando-a. Então, para espanto de Ondine, ele declarou:
- Solte-a para que eu possa me casar com ela.
- O quê? - o magistrado gritou, tendo o rosto vermelho.
- Milorde, a moça é uma ladra!
- Sir, liberte-a. Cumpra a lei.
Perplexa demais para dizer alguma coisa, Ondine apenas olhou para o estranho. Ele não podia estar falando sério. Aquilo era um gracejo para torturá-la. Mais espantada ainda ficou quando ele murmurou uma imprecação, subiu na carroça, tirou o laço do pescoço dela, ergueu-a nos braços e saltou com ela para o chão.
- Frade! - ele chamou, impaciente. - O senhor é um homem de Deus, não é? Certamente pode celebrar uma breve cerimônia de casamento.
- Milorde, quem... - começou o magistrado novamente.
- Pegue os papéis, sir - o estranho ordenou, irritado.
- Meu nome é Warwick Chatham. Podemos continuar? Sou um homem influente e não gostaria de levar ao conhecimento do rei que seus magistrados são lentos...
Foi o bastante. Houve um murmúrio de excitação entre os espectadores que estavam mais próximos. O frade gorducho começou a pronunciar algumas palavras. Ondine viu-se com os pulsos livres e sentiu Warwick Chatham segurando-a com firmeza pelo braço.
Tudo aquilo era por causa da cerveja, disse a si mesma. A bebida a fizera mergulhar numa espécie de sonho, uma ilusão para ela poder enfrentar a morte com maior tranqüilidade. Mas não era sonho. A corda não lhe feria mais o pescoço, dedos fortes apertavam-lhe o braço e uma voz imperiosa lhe ordenava:
- Repita os votos, a não ser que prefira ser enforcada.
Ela obedeceu. O frade disse umas palavras em latim e encerrou a cerimônia.
Warwick colocou uma moeda na mão do frade, assinou o pergaminho que lhe foi apresentado e sussurrou para a noiva:
- Assine ou faça a sua marca se não souber escrever.
Indignada, ela pegou a pena, mas estava tão nervosa que a mão tremeu e o nome ficou quase ilegível. Antes assim, pensou. Não seria reconhecida.
O frade as soprou a tinta para secar, esperou um pouco, enrolou o pergaminho e amarrou-o. Warwick pegou-o e segurou no braço de Ondine, ansioso para sair daquele lugar. Ela gritou para os amigos:
- Joseph! Pat!
- Vá, garota! Tenha uma vida longa. Nosso amado Jesus faz milagres - o velho respondeu.
- Vamos! Não olhe para trás! - Warwick ordenou. Pela primeira vez ela notou que havia bondade na voz dele.
Mais surpresa ficou ao sentir que ele passava o braço por seus ombros magros e fazia encostar a cabeça em seu peito para não ver a execução dos amigos. Um instante depois, estava diante de uma carruagem luxuosa, tendo nas portas um brasão elaborado. O homenzinho com uniforme de cocheiro que os esperava perguntou:
- E então, milorde?
- Está tudo certo, Jake.
- O que fazemos com ela, sir?
- Rum... - Warwick observou Ondine lentamente, deixando-a vermelha de vergonha. - Ela está um bocado suja e desarrumada, não Jake?
O comentário deixou Ondine furiosa. Que arrogante! Então ele pensava que as pessoas deixavam Newgate cheirando como rosas?
- Milorde, não sou nenhuma ingrata e lhe agradeço por salvar-me a vida. Mas não posso ficar ouvindo vocês dois discutirem coisas que me dizem respeito como se eu não estivesse presente ou fosse uma idiota, incapaz de entender meu próprio idioma.
Warwick ergueu as sobrancelhas, inclinou levemente a cabeça e continuou olhando para ela como se estivesse surpreso e achando graça.
- Não, senhorita, você nada tem de idiota. Mas há de convir que está desarrumada e temos de fazer alguma coisa para melhorar sua aparência.
Ondine baixou os olhos. Sua raiva desapareceu tão rapidamente como havia surgido. Lembrou-se de Joseph e de Pat que já haviam partido deste mundo. Ela estava viva. Acabara de escapar da morte.
- Eu o ofendi. Peço desculpas..
- Não precisa se desculpar. E sujeira é um problema que se resolve facilmente. O que você acha, Jake?
O criado coçou o queixo coberto por uma barba rala.
- Eu diria que devemos tomar o caminho de Swallow's Ford, milorde. Encontraremos coisas boas e necessárias.
- Coisas como um banheiro e roupas. Ótima idéia.
Jake abriu a porta da carruagem e Warwick ergueu Ondine pela cintura, colocando-a no assento com almofadas de veludo.
- Está confortável, senhorita?
- Confortável? Ah... muito. Obrigada.
Quando poderia imaginar que, em vez de se achar pendurada numa corda, estaria casada? Casada com um cavalheiro forte, de ombros largos, com lindos olhos castanho-claros e usando o traje mais fino que se poderia encontrar. Todavia, um homem duro que chegava a amedrontá-la. Teria de escapar e faria isso, prometeu a si mesma. Ele continuava com aqueles olhos fixos nela, esperando. Mas, esperando o quê? Talvez ele apenas lhe oferecera casamento para salvá-la e não a queria por esposa. Claro, devia ser isso. Ela limpou a garganta.
- Sir, quero me desculpar, mais uma vez, pelo que eu disse. Também lhe sou imensamente grata por me salvar. Devo-lhe a vida. Entretanto, não deve sentir-se responsável por mim. Pode me deixar aqui mesmo. Tenho amigos em Londres...
- Impossível. Posso jurar que minutos atrás a ouvi prometer me amar, honrar e obedecer até que a morte nos separe.
- O casamento... foi real?
- Foi.
- E você quer que eu seja... sua esposa?
- Naturalmente.
- Por quê?
- Preciso de uma esposa - Warwick respondeu bruscamente. Fechou a porta da carruagem e voltou-se para Jake. Para Swallow's Ford!
A carruagem pôs-se em movimento.

Swallow's Ford era um lugar pequeno, e Meg, a proprietária da estalagem local, senhora gorda, muito amável, simpatizou com Ondine assim que a viu.
Embora estivesse feliz e agradecida ao homem que a salvara da morte, Ondine mantinha o firme propósito de encontrar uma montaria e fugir. O que lorde Chatham poderia querer com ela? Esse pensamento lhe provocava calafrios. O cavalheiro era muito bonito e parecia correto. Além disso, era um nobre!
Jake a informara que Warwick Chatham era o conde de North Lambria e passara a chamá-la de condessa. Isso não deixava de ser assustador. Sendo um aristocrata, ele poderia reconhecer o sobrenome dela na licença de casamento, apesar de sua assinatura ter ficado quase ilegível. Sua esperança era que eles estavam indo para North Lambria, bem longe da sua casa, ou seja, da casa onde ela havia morado com o pai.
O quarto que Meg arranjou para Ondine era simples, muito limpo, arejado e tinha um cheiro agradável.
- Fique atrás do biombo, milady, e tire esses farrapos que devem ser queimados. Vou mandar trazer a banheira e água quente - disse Meg, deixando o quarto em seguida.
Com alegria, Ondine livrou-se das roupas malcheirosas. Quando se viu nua, estremeceu ao pensar no homem que se tomara seu marido. Ele chamava a atenção tanto por sua aparência como pela voz. E havia nele um ar de autoridade, de total segurança que desestimulava qualquer pessoa a fazer oposição à sua vontade. Mas o conde devia ser desses que desejava uma mulher apenas para um breve período, um interlúdio para satisfazer Sua sensualidade.
Ondine encolheu-se ao ouvir a voz de Meg.
- Depressa, rapazes. Encham a banheira.
Os lacaios cumpriram sua tarefa e saíram.
- Pronto, condessa, entre na água - disse Meg.
- Prefiro ter privacidade - Ondine murmurou timidamente.
Como esposa de lorde Chatham podia dar ordens e ser obedecida imediatamente. Porém, perdera o hábito de manter a voz firme e de exigir coisas. Além disso, Meg parecia ter um coração do tamanho da lua e só queria ajudá-la.
- Vamos, garota! Estamos sozinhas e tenho meia dúzia de filhas. Sei como desembaraçar seus cabelos que parecem um ninho de ratos. Vou deixá-los limpinhos e livres de piolhos.
Ondine não hesitou. Era muito bom ter alguém para lavar-lhe os cabelos e desembaraçá-los. Saiu detrás do biombo e entrou na banheira, deliciando-se ao sentir o corpo mergulhado na água tépida.
- Aqui está um esfregão para tirar toda essa sujeira. Mas garanto que você ficará limpa como um bebê saído do banho. Vamos usar estes dois sabonetes que meu marido trouxe de Paris. Têm perfume de rosas.
- Obrigada. Você é muito gentil.
- Gosto de jovens. Minhas filhas estão casadas e têm uma porção de filhos. Adoro bebês...
Meg continuou tagarelando. Ondine começou a esfregar-se com força, sentindo o agradável perfume de rosas.
- Agora vou cuidar desse ninho de ratos - declarou Meg, jogando um canecão de água morna na cabeça de Ondine. Em seguida ensaboou os cabelos e começou a massagear o couro cabeludo. - Ah, estes sabonetes são uma maravilha. Não fossem eles, eu teria de tosar esta sua longa cabeleira.
- Ah, minha criança, você é linda! Está muito magra, é verdade, mas tem belos seios. Quanto aos quadris e às costelas, precisam ganhar um ou dois quilinhos...
Um súbito rubor queimou o rosto de Ondine. Sentia-se constrangida não apenas por estar nua diante de Meg, mas também por ver-se submetida àquela avaliação. Entretanto, não se zangou. As palavras de Meg não eram ofensivas. Sorriu para ela e respondeu simplesmente:
- Não sou uma criança.
Todavia, no fundo do coração desejou poder voltar à infância. Ao tempo em que acreditava na bondade dos homens. Tempo em que não conhecia a traição e a morte, a miséria e a falsidade. Um sorriso tocou-lhe os lábios. Fechou os olhos. A mãe tinha morrido quando ela nascera. Mas lembrava-se muito bem de seu pai. Aquele dia da festa de seu décimo sexto aniversário ficara impresso na sua memória.
Seu pai lhe dera uma espada de presente. Era uma arma leve, fácil de manejar e tinha no punho o brasão da família. Encantada, Ondine desafiara o pai a lutar com ela e foram ambos para g pátio. Ondine demonstrara perícia, deixando o pai orgulhoso. Terminando a demonstração, ela perguntara:
- Papai, que utilidade tem para uma moça saber esgrima? - Ah, minha filha, é impossível prever o futuro. Chegará o dia em que não estarei mais com você para protegê-la, por isso, quero que esteja preparada para se defender de todo tipo de malandro que queira se aproveitar da sua ingenuidade.
O pai havia falado em tom casual, mas Ondine reconhecera que ele estava certo. Seu pai era muito rico e, se ele morresse, ela herdaria sua fortuna. Ao mesmo tempo, isso não era motivo para preocupar-se. Seu pai era jovem e saudável, não iria morrer tão cedo.
- E então, Meg? Está conseguindo realizar a tarefa que lhe atribuí?
A voz era profunda, agradável e com uma nota de humor.
Ondine abriu os olhos e viu, horrorizada, Warwick Chatham entrando no quarto.
Estonteada demais para protestar, limitou-se a cruzar os braços sobre os seios.
- Sim, lorde Chatham - Meg respondeu alegremente.
A naturalidade com que Meg recebeu aquele intruso irritou Ondine. Lorde Chatham podia ser seu marido, mas não deixava de ser um estranho. Portanto, não devia ter entrado no quarto para surpreendê-la nua. O pior é que a presença daquele homem extraordinariamente viril a estava deixando perturbada.
Se ela o tivesse conhecido um ano atrás, tudo seria diferente. Ambos teriam a mesma posição social e ela receberia dele os galanteios românticos, como era o costume na corte de Charles II. No entanto, não o conhecera um ano atrás e sim naquela manhã, naquele momento terrível, quando ele a salvara da morte. Sentia gratidão por aquele estranho que se tornara seu marido e que, ao mesmo tempo, a atraía e lhe enchia a alma de temores. Ainda assim, de algum modo, lorde Chatham despertava nela todo o seu orgulho. Tinha vontade de provocá-lo, de desafiá-lo e depois fugir para bem longe, onde não pudesse ser encontrada.
Ela ouviu passos. Passos leves demais para um homem tão alto e musculoso. A voz dele fez com que tremesse e sentisse um calor percorrendo-lhe a espinha.
- Vejamos o que temos aqui.
Ondine baixou a cabeça, mas Warwick segurou-lhe o queixo, obrigando-a a encará-lo. Humilhada, ela indagou, rudemente:
- Eu lhe agrado?
Um sorriso torto marcou os lábios de Warwick; ele arqueou as sobrancelhas. Os olhos dourados, entretanto, mantiveram-se frios, fixos no rosto dela. Ondine percebeu que o divertia e o irritava ao mesmo tempo.
Ele não respondeu. Continuou a analisá-la em silêncio, como se examinasse as rodas de uma carruagem. Virou o rosto dela para a esquerda e para a direita. Talvez ela devesse ficar agradecida por ele não reparar no seu corpo contraído, semi imerso na banheira. Sua vontade, no entanto, era dar-lhe uns tapas e arranhar seu rosto bronzeado.
Continuou sentada, imóvel, permitindo apenas que seu olhar dardejante revelasse a raiva que a dominava. Odiava sentir os dedos longos e calejados tocando-a, odiava a proximidade dele e odiava ainda mais o calor que essa proximidade e aquele toque provocavam nela, contra sua vontade.
Por fim, ele soltou o queixo dela e voltou-se para Meg.
- Naquele embrulho que deixei sobre a poltrona estão as roupas que comprei. Espero que sirvam em Ondine. Não estou acostumado a comprar trajes femininos.
- Qualquer coisa será melhor do que os farrapos que ela usava, milorde. - Meg fez uma pausa antes de acrescentar: - Onde preferem jantar, milorde? No salão ou aqui no quarto?
- Jantaremos no salão. - Warwick decidiu. Voltou-se para Ondine e curvou-se.
- Fique à vontade,milady.
Terminando de falar, saiu do quarto.
- Oh! Eu o odeio! - Ondine exclamou sem conseguir conter-se.
Sentia-se como uma bezerra em exposição, no mercado, e que depois de uma avaliação fora considerada... passável.
- O que você disse? - Meg perguntou, atônita.
Só então Ondine percebeu que acabara de dizer uma tolice.
Por Deus, como podia odiar o homem que a salvara da morte?
É que se sentia tão... Oh, não sabia explicar o que estava sentindo. Olhou para Meg, trêmula; e levou as mãos ao rosto.
- Lamento. Não foi o que eu quis dizer....
Meg ajudou-a a levantar-se e jogou sobre ela a água morna que restara no balde para enxaguá-la. Em seguida, enrolou-a numa toalha.
- Vamos, querida! É natural uma moça sentir medo do marido e odiá-lo quando a primeira noite com ele se aproxima. - Meg abraçou Ondine maternalmente. - Fique calma, não tenha medo. O conde pode parecer distante e duro como uma fortaleza, mas lhe asseguro que é um bom homem.
- Você... o conhece bem?
- Muito bem. Em suas viagens ele sempre passa por aqui. O conde é um dos favoritos do rei. Sua Majestade recorre a de toda vez que surge uma crise. O sonho de toda jovem solteira da corte é casar-se com lorde Chatham. Mas ele, até o momento, só teve romances - Meg parou subitamente, achando que havia falado demais. - Ah, querida, esteja certa de que o conde gosta muito de você. Se não gostasse, por que a escolheria para esposa? Afinal, ele poderia ter a mais rica e mais nobre lady desta terra.
O conde gostava dela! Pois sim. Ondine pensou. Será que Meg era cega? Então não havia enxergado o óbvio? Warwick não tinha o menor interesse nela.
Ondine tentou dar a Meg um sorriso tranqüilizador antes de perguntar:
- Meg, você já ouviu algum comentário... estranho sobre o conde?
- Estranho? Em que sentido?
Ondine ficou vermelha.
- Quero dizer... será que ele tem alguma tendência estranha?
Meg arregalou os olhos e arqueou as sobrancelhas grisalhas.
Depois começou a rir.
- Não, querida, não há nada "estranho" com ele. Tudo o que eu sei é que ele teve seus romances clandestinos. Nada mais do que isso. É corajoso, enfrentou muitas batalhas e é conhecido por sua franqueza e por ter sucesso com as mulheres. Também é um homem difícil de se compreender. Talvez seja isso que o toma tão fascinante. Minha querida, acredite em mim, é difícil encontrar um homem mais justo e mais bondoso do que seu marido. O conde está sempre disposto a condenar até um nobre por maltratar um criado ou um animal. Todos que o servem lhe são leais e o querem bem. - Meg deu o assunto por encerrado e perguntou: - Vamos ver o que Sua Senhoria comprou para você?
Ela abriu o embrulho que estava sobre a poltrona. À medida que ia tirando as peças, ficava maravilhada.
- Olhe! Há uma combinação de seda, uma anágua de linho, uma armação arrematada com rendas e um lindo vestido com corpete de veludo. O conde lembrou-se até das meias e dos sapatos! Que outro homem se preocuparia em comprar coisas tão finas e tão elegantes?
- Ele deve comprar roupas para suas amantes - Ondine observou acidamente.
Logo se repreendeu. Por que estava tão amarga? E por que se importar com o que o conde fazia ou deixava de fazer? Quanto a ter amantes, nada mais natural. O conde tinha algo especial, além da beleza física, de sua masculinidade e da fascinação de seus olhos. Havia um encanto em seus movimentos, em seu humor ocasional, no modo sensual como ele sorria e até mesmo no brilho desafiador impresso em seu olhar.
- Devemos nos apressar - Meg lembrou. - Não quero deixar Sua Senhoria esperando.
"Ele que espere!", Ondine teve ímpetos de dizer.
Entretanto, tratou de vestir-se. Estava faminta. E, por mais que estivesse ressentida, teve de reconhecer que Warwick escolhera roupas lindas e que lhe assentaram perfeitamente. Sentia-se maravilhosa com as roupas novas. Estava limpa e gloriosamente viva.
- Você está linda! - Meg falou, encantada, os olhos azuis brilhando de alegria. - Agora vou cuidar de seus cabelos. Acho melhor deixá-los soltos e bem escovados, como convém a uma noiva.
Ondine sorriu ao ver o contentamento de Meg. Sentou-se diante do espelho e a mulher, pacientemente, foi desembaraçando mecha por mecha dos longos cabelos. Enquanto ela trabalhava, Ondine tinha um único pensamento: fugir de lorde Chatham. Algum dia encontraria um modo de retribuir sua generosidade.
Sim, algum dia. Não nessa noite. Depois do jantar iria fugir e esconder-se na floresta onde já encontrara refúgio anteriormente.
- Terminei. Seus cabelos ganharam o brilho do cobre disse Meg interrompendo os pensamentos de Ondine. - Venha. Está pronta para ir ao encontro de seu marido.
Mas ela não estava pronta. Suas mãos tremiam e ela se perguntou por que tinha tanto medo de lorde Chatham.
- Hoje será servido um assado excelente com acompanhamento de batatas e cenouras, nadando em um molho delicioso. - Meg anunciou alegremente.
Ondine animou-se.
- Sim, vamos. Estou pronta.
As duas saíram para o longo corredor. Quando iam descer a escada, Ondine parou ao ouvir vozes e risadas vindas do salão, no andar de baixo, onde homens bebiam cerveja para relaxar depois de um dia de trabalho ou para descansar de uma longa viagem.
- Desça, querida, se quiser comer!
Como se despertasse de um sono, Ondine começou a descer os degraus. Logo viu Warwick no salão, andando de um lado para outro, impaciente. Ele estava de costas para ela, mas virou-se e olhou para cima, como se um sexto sentido o avisasse da presença dela.
Ela sentiu o coração bater mais forte. Warwick era, inegavelmente, um homem fascinante. Estava encantador, usando calções justos presos com fivelas logo abaixo dos joelhos. Havia tirado o casaco e a camisa de seda parecia ainda mais branca perto da pele bronzeada. Os olhos tinham extraordinário brilho dourado.

Warwick olhou-a admirado. Como se fosse um intruso e fulgurante raio de sol, seu olhar percorreu toda a figura esbelta, bem devagar e atrevidamente, sem apresentar desculpas.
Um sorriso leve marcou um canto dos lábios dele; um lampejo de riso tocou-lhe os olhos. Mais uma vez Ondine sentiu um calor percorrendo-lhe o corpo, o coração batendo aceleradamente, deixando-a toda trêmula.
Ela terminou de descer a escada e segurou na mão que Warwick lhe estendera, mantendo seu olhar fixo no dele.
Ele sorriu e seus olhos moveram-se para o decote de Ondine. Depois de admirar a curva dos seios, eles desceram para a cintura, os quadris e os pés.
- Você vai fazer muito bem seu papel. - ele murmurou, tendo terminado o exame.
Estava tão perto de Ondine que seu hálito tocou-lhe a garganta e o lóbulo da orelha, fazendo-a estremecer novamente.
- A que papel se refere milorde? - perguntou em tom gélido.
- Papel de minha esposa, naturalmente. O que mais poderia ser?

Capítulo II

Warwick e Ondine sentaram-se a uma mesa nos fundos do salão. Ela olhou ao redor e logo percebeu que seria impossível fugir dali. Bem, depois pensaria nisso. No momento o mais importante era comer. Estava faminta.
Vendo pão à sua frente, pegou-o. Imediatamente sentiu a mão de Warwick sobre a sua.
- Ninguém vai levar o pão embora. É melhor comer devagar senão ficará doente - ele aconselhou-a gentilmente.
Soltou a mão dela, despejou a cerveja em dois copos, partiu o pão e deu um pedaço a ela.
- Coma. Eu não disse que você não podia comer.
Ondine mordeu o pedaço de pão e manteve os olhos fixos em Warwick. Ele estava percebendo o nervosismo dela e parecia divertir-se com isso.
- Onde está Jake? - ela perguntou.
- Jake é meu criado, não minha propriedade. Ele emprega seu tempo livre como bem quiser.
Ondine tentou beber a cerveja delicadamente, mas a sede era tanta que tomou metade do copo de uma só vez. Para sua surpresa, Warwick encheu-o de novo.
Ela sentiu um súbito calor provocado pela bebida. Determinada a desconcertar o conde, perguntou:
- Você não considera os criados sua propriedade?
- Homem nenhum deve pertencer a outro.
- E uma esposa?
- Bem, esse é um assunto diferente.
- É?
- Sim. Muito diferente. Uma esposa jura ser fiel.
- Criados também devem ser fiéis.
- Certo. Mas o que se exige de um criado é que ele cumpra seu dever, nada mais.
- E de uma esposa?
- Uma esposa não deve se cansar de seu... dever, você não acha?
- Depende de que dever seja esse.
- Não se trata de algo difícil de cumprir. O que muitos consideram um dever, outros, com mais entusiasmo, chamam de prazer.
Ondine bebeu a cerveja muito depressa e começou a sentir-se zonza. Pegou o pão novamente, partiu um pedaço e levou-o à boca, mas ele perdera o delicioso sabor.
- O que é considerado dever da esposa também deve ser dever do marido - ela observou calmamente.
Que importava aquela troca de palavras? Não iria ficar com Warwick tempo suficiente para descobrir exatamente o que ele estava querendo dizer.
Ele, por outro lado, demonstrou desinteresse pela conversa e tomou sua cerveja em silêncio. Pouco depois, um rapaz trouxe a carne assada com acompanhamento de batatas e cenoura.
Warwick dispensou-o e ele mesmo serviu Ondine. Ao entregar-lhe o prato, recomendou:
- Coma devagar. Você não se alimenta bem há muito tempo e pode passar mal. Isso atrasaria a nossa viagem que é longa. Se partirmos amanhã cedo, chegaremos a North Lambria depois de amanhã, ao anoitecer.
Ondine recebeu o prato, murmurou um agradecimento e começou a comer. Achou a comida deliciosa, um êxtase para o paladar.
Warwick parecia não ter apetite. Encostou-se na parede e continuou:
- Creio que você deve saber alguma coisa sobre o solar Chatham. Mathilda é a governanta, portanto você não terá problemas com a administração da casa. Se tiver perguntas a fazer, ou quiser informações, me procure. Há muitos outros criados que você irá conhecer quando chegarmos. Clinton administra a propriedade. Jake é meu criado pessoal, e meu cocheiro. Tenho um irmão, Justin que mora no solar.
Percebendo que Ondine estava mais interessada na comida do que no que ele dizia, o conde empurrou o prato dela para o lado. Ela encarou-o. Notou que nos olhos dele não havia o menor sinal de humor. Sentiu a garganta seca e esperou que ele descarregasse nela sua fúria.
- Ouça! Como minha esposa tem de assumir um papel importante e eu lhe agradeceria se fizesse algum esforço para me ouvir. Ou melhor, exijo que preste atenção no que estou dizendo.
Ondine piscou e fez com a cabeça um movimento afirmativo. Passou-lhe pela mente que Warwick era um homem de muitas faces. A de um conquistador com incrível poder de sedução, a de um autocrata severo e um cavalheiro sensível que a abraçara para não deixá-la ver o enforcamento.
Irritado, ele repetiu o que já havia dito e acrescentou:
- Se você seguir Mathilda, não terá dificuldade de agir como uma condessa. Os criados, em sua grande maioria, trabalham na família há muito tempo e consideram Chatham seu lar. Nas minhas terras todos vivem felizes, ninguém é maltratado. Entendeu?
Ondine viu-se tentada a puxar seu prato de volta e jogar a comida em Warwick. Quem ele pensava que ela era? Até pouco tempo atrás ela cuidava da mansão do pai que era magnificente, muito maior e mais luxuosa do que um "solar" localizado no norte semi bárbaro.
Olhou para o conde com ar inocente e observou:
- Claro, lorde Chatham! Apesar de ser uma mulher do povo, farei o possível para controlar meu gênio e não açoitar seus criados. É isso que espera que eu compreenda?
- Senhora, você deve aprender a controlar sua língua. Durante alguns segundos eles se encararam, os olhos faiscantes. Ondine desviou o olhar. De nada adiantava provocar aquele homem. Em vez disso, devia focalizar a conversa na sua vida futura. Precisava descobrir quais eram as intenções dele e o que o levara a salvá-la da forca.
- Peço-lhe desculpas, lorde Chatham - murmurou.
- Por que não acredito que você esteja sendo sincera? - ele questionou.
- Pode acreditar. E, se me permitir, gostaria de lhe fazer uma pergunta.
- Faça.
- Por que Jake me disse que há pessoas que se referem ao conde de North Lambria como sendo uma "besta-fera"?
- Bem, há uma besta em meu brasão, nada mais.
- Mas, o que é essa besta?
- Uma criatura metade leão, metade dragão. Dizem que no passado bestas-feras como essa vagavam pelas florestas protegendo os saxões dos normandos, e os monarquistas da fúria de Cromwell. Mas tudo isso é lenda. - Inclinando-se, Warwick pegou uma mecha de cabelos de Ondine, deixando-a perturbada - Você é linda. É realmente muito bonita para uma mulher do povo.
Não se contendo, ela puxou a mecha de cabelos, tirando-a da mão do conde e desferiu:
- Então, as pessoas do povo são feias, lorde Chatham?
Ele suspirou como se estivesse cansado daquele comportamento inoportuno de Ondine.
- Não. Eu não quis ofender ninguém. Você tem feições delicadas e muito mais bonitas do que as "nobres" beldades da corte. Bem, se terminou o jantar, podemos sair daqui.
- Por quê?
- Já aparecemos em público. Em breve todos saberão que o conde de North Lambria esteve aqui, esta noite com a esposa, uma jovem linda, merecedora do título de condessa. Portanto, não precisamos mais ficar neste salão. Eu, pelo menos, estou cansado. Imagino que você também esteja ansiosa para se deitar numa cama limpa e macia como Meg oferece a seus hóspedes.
Uma cama! Com ele deitado perto dela...
O pensamento alarmou Ondine. Que tipo de homem era o conde? A besta-fera? Um homem dissoluto? Um cavalheiro? Não queria saber. No momento devia comportar-se como uma inocente donzela e preparar sua fuga.
- Na sua opinião, a aparência é tão importante, lorde Chatham?
- Sim, especialmente entre a nobreza. A propósito, eu gostaria que me chamasse de Warwick. Esse é o meu nome.
- Está bem, Warwick. Mas, voltando ao assunto, por que se casou comigo, uma mulher que, além de plebéia, cometeu um crime? Não me diga que precisava de uma esposa. Certamente você poderia ter uma dúzia de esposas, todas elas nobres.
- Uma dúzia de esposas? Um homem deve ter apenas uma. A verdade é que me cansei de ser pressionado para casar. Como eu não queria ter uma condessa me controlando, escolhi você. Uma noiva que foi salva da forca, na minha opinião, não me causará problemas. Você está viva e eu posso levar a vida como quiser. Está satisfeita?
Ondine baixou os olhos. Sentiu uma pontada de culpa. Graças ao conde estava viva, limpa, bem vestida e alimentada.
- Podemos ir agora?
- Se me permitir, eu gostaria de subir antes de você para ficar sozinha por alguns minutos.
- O quê? - Ele cruzou os braços, impaciente.
- Eu lhe peço apenas uns dois minutos.
- Ora, faça o que quiser.
Ondine deu um sorriso cativante e ficou de pé. Rezando para que seus joelhos não tremessem, passou pelo conde, andou por entre as mesas e saiu do salão, ciente de que Warwick a seguia atentamente com o olhar.
O que ela não sabia era que ele estava atônito. Ela havia superado todas as expectativas dele. Era esbelta, altiva, graciosa, elegante. Sua pele era macia como seda. Ondine tinha, de fato, uma beleza estonteante. Ninguém duvidaria que ele sentira atração por uma mulher tão linda e muito menos questionaria sua origem.
O único defeito que Ondine parecia ter era o temperamento.
Que mulher geniosa! Esperava que fosse mais humilde e agradecida. Ela devia ouvi-lo com toda a atenção e ficar contente com a vida que lhe estava oferecendo.
Warwick terminou de beber a cerveja e sorriu ao lembrar-se do modo como Ondine ficara alarmada ao ouvi-lo mencionar que estava ansioso para ir para a cama. A intenção dele tinha sido provocá-la. Devia ter dito de uma vez que não pretendia tocar nela. Nunca.
O sorriso dele desapareceu ao reconhecer que fora cruel. A pobre moça entendera que iria exigir que ela cumprisse seus "deveres" de esposa. Devia informá-la que nunca iria exigir dela os deveres conjugais. Eles estavam casados só no papel e com o tempo a deixaria livre e com dinheiro suficiente para se manter com todo o conforto, enquanto vivesse.
Tudo isso teria de ser feito mais tarde. No momento, devia mostrar-lhe que não precisava ter medo dele.
Não obstante...
Era estranho como a lembrança daqueles olhos azuis tinham ficado com ele. E o suave perfume de rosas. E o agradável toque dos cabelos sedosos entre seus dedos.
Ele deu um breve sorriso. Até gostava do orgulho e da altivez que Ondine usava como um escudo protetor. Mesmo considerando a atitude dela cansativa e irritante, admirava o modo como erguia o queixo e o encarava com insolência no olhar. Sim, ela, era uma mulher que parecia ter nascido e sido educada no seio da nobreza. Era perfeita para ser a senhora do solar Chatham. Se a salvara da morte, tornara-se responsável por ela. Era seu dever torná-la livre e feliz.
Subitamente, ficou apreensivo, com a sensação de que alguma coisa estava errada. Tinha certeza de que sua noiva lhe era grata por estar viva. No entanto, sua atitude havia demonstrado, que ela não estava nem um pouco interessada no título de condessa e muito menos queria consumar aquele casamento.
Warwick havia notado que Ondine não sentia medo dele, mas estivera o tempo todo alerta e cheia de suspeitas.
- Droga! - murmurou, furioso consigo mesmo por não ter percebido antes qual era a intenção dela.
Ela o fizera de idiota.
A "bela" estava tentando fugir da "fera".
Praguejando baixinho, saiu apressado do salão e subiu a escada de dois em dois degraus.

Ondine subiu a escada calmamente, mas assim que chegou ao primeiro patamar correu, desesperada, o coração aos saltos.
No fim do corredor, onde havia uma escada secundária, parou para tomar fôlego. Sabia que, descendo a escada, chegaria a um pequeno hall de acesso à cozinha e ao pátio dos fundos da estalagem. Não podia precipitar-se. Era imperioso manter-se alerta, atenta, com os ouvidos aguçados.
Começou a descer os degraus devagar. Como a taberna estava lotada, Meg e todos os empregados estavam ocupados. Além disso, quem haveria de imaginar que a noiva de um nobre importante pensaria em fugir dele?
A porta dos fundos estava emperrada e não quis abrir, por mais que Ondine a puxasse. Começava a desesperar-se quando fez mais uma tentativa e teve sucesso.
Uma vez lá fora, olhou ao redor. A claridade da lua era suficiente para ver o galinheiro e os campos férteis que iam até a floresta. Infelizmente, a distância até a floresta era muito grande. Caminhar com aqueles sapatos delicados que o "marido" comprara levaria muito tempo.
"Pense! Depressa!", disse a si mesma.
Por Deus, havia escapado muitas vezes dos guardas do rei e dos xerifes, não podia ver-se apavorada por causa de um único homem.
Bem, se era impossível correr até a floresta, via-se obrigada a roubar um dos cavalos da carruagem de lorde Chatham. Não podia sentir-se culpada pelo roubo. Não havia tempo para remorsos. Era imperioso vingar-se daqueles que tinham matado seu pobre pai e arruinado sua vida. Mais tarde pagaria sua dívida com o conde de North Lambria.
Determinada, Ondine correu até as cocheiras, rezando para não encontrar ninguém por perto. Teve sorte. As portas estavam abertas e uma lanterna no alto de uma parede era suficiente para ela ver as baias.
Bastava achar o cavalo certo...
Um calafrio a fez estremecer. Ainda podia sentir a corda áspera ferindo-lhe o pescoço, mas estava ali, pronta para roubar um dos cavalos do "marido". Que os anjos a protegessem. Não podia ser apanhada. Se isso acontecesse e fosse acusada de traição teria de enfrentar o machado do carrasco. O horror que sentiu só de pensar nessa possibilidade, impeliu-a à ação. Esgueirou-se entre os fardos do feno e, chegando às baias, procurou um dos alazões do conde. Encontrou-o com facilidade.
- Shh, belo garoto! - murmurou, alisando a pelagem brilhante do animal. - Você é um encanto, sabia? O que acha da idéia de sair para um passeio?
Rapidamente, tirou o animal da baia. Ele já estava com cabresto. Juntou as saias volumosas e montou-o em pêlo.
- Agora, meu garoto, temos de sair daqui bem devagar, depois você deve correr como o vento.
Obediente, o alazão seguiu para a porta. Mas antes de alcançá-la uma sombra obstruiu a passagem. À luz da lanterna Ondine reconheceu a figura alta, parada, com as mãos na cintura.
- Aonde pretende ir, madame, montada nesse alazão, "correndo como o vento"?
O tom de voz do conde soou cordial, mas nos olhos dele havia um brilho ameaçador. Seus dentes estavam cerrados e o rosto contraído. Ele deu um passo à frente e observou Ondine, seus movimentos negligentes, como se a presença dele ali fosse casual. Ela ficou em pânico, o coração disparou, não teve tempo de refletir. Pressionou o cavalo com os calcanhares, e rezou como louca para que ele saísse em disparada. Em vez disso, o alazão empinou. Ondine deu um grito, tentou controlar o animal, porém caiu num monte de feno. Fechou os olhos e encolheu-se com medo de ser pisoteada.
Percebendo que o conde havia controlado o cavalo, abriu os olhos e levantou-se, trêmula, mesmo assim, disposta a sair correndo.
O conde continuava bloqueando a passagem, impedindo que ela saísse para a brisa fresca da noite e para a liberdade.
Por algum tempo permaneceu imóvel, apenas olhando para ela, deixando-a apavorada. Por fim, falou com voz baixa e agradável.
- Talvez seja melhor você levar Wick de volta para a baia. Bons cavalos são difíceis de encontrar e por pouco não perco esse alazão excelente.
Ondine sentia-se incapaz de mover-se. Com grande esforço conseguiu dar uns passos cambaleantes e alcançou o cabresto de Wick. Trêmula, com os pés pesados como chumbo, levou o animal para a baia. Não percebeu que o conde a havia seguido e assustou-se quando o viu atrás do animal.
.Segundos depois, ele foi para o lado dela. A porta estava livre, a brisa e o cheiro da noite eram convidativos.
A cabeça de Ondine parecia girar. Só uma idéia lhe ocorria: tentar nova fuga. Abaixou-se e fingiu estar tendo dificuldade para amarrar a corda do cavalo. De repente, ergueu-se num salto e começou a correr com todo o vigor de sua juventude.
Aquela sensação era muito boa. Parecia flutuar nas nuvens. Depois a sensação era a de estar voando. Não havia nada sob ela. Nada, a não ser o ar.
Mas aquele momento foi passageiro e ela viu-se novamente caída no feno, mal podendo respirar e atordoada por ter batido cabeça na parede. Fechou os olhos e sentiu um peso sobre ,ela ia gritar, mas uma grande mão cobriu-lhe a boca. Abriu os olhos e deparou-se com o conde montado sobre seus quadris, parecendo fulminá-la com o olhar.
- O que pretende com esse comportamento, madame? Quer que eu me transforme numa besta? Numa fera?
Ondine encarou-o, mas não se atreveu a abrir a boca. Tinha consciência daquelas coxas prendendo-a, do cheiro de Warwick, limpo e fresco como a noite, mas sugerindo uma masculinidade rude e ameaçadora.
- Ingrata! - Warwick acusou-a, inclinando-se sobre ela continuando a observá-la, furioso. Em seguida ficou de pé e ordenou: - Levante-se! Quando a salvei você me disse que tinha sido condenada por invasão de propriedade. Agora vejo que também rouba cavalos. Que outras habilidades você tem, milady? Que mal posso lhe ter feito para você estar determinada a me abandonar? Quer voltar à vida miserável de antes? Quer continuar come uma renegada, vivendo suja e faminta? Por Deus, o que farei com você?
- Para mim pouco importa, milorde! Nada que você possa fazer será pior do que a prisão de Newgate, do que viver fugindo, morrendo de fome ou testemunhar assassinatos...
Lágrimas afloraram aos olhos de Ondine e ela parou de falar.
No momento não podia chorar. Precisava manter seu orgulho.
Ergueu a cabeça, enfrentou o olhar do conde e falou com indiferença:
- Bata em mim, me açoite, me enforque... não me importo.
- Ele chegou mais perto dela e sua expressão era tão severa que por um momento ela arrependeu-se de suas palavras precipitadas, certa de que ele pretendia infligir-lhe um dos castigos que havia sugerido... Ou todos.
O conde segurou-a pelo pulso, com firmeza.
- Se gostava tanto de viver miseravelmente, peço desculpas por livrá-la dessa vida - disse com sarcasmo. - Mas não vou deixá-la ir embora. E lhe peço para não tentar nenhum tipo de fuga novamente. Estou cansado. Vamos acabar com isto.
Não tendo como se livrar daquela mão que a segurava com tanta firmeza, Ondine viu-se obrigada a seguir o conde. Atravessaram o pátio, e entraram na estalagem pela porta dos fundos.
- Milorde... - Ondine tentou falar antes de começar a subir a escada.
- Siga adiante.
Ela fechou os olhos e lutou contra a sensação de que ia desmaiar. Lembrou-se de que para livrar-se da forca receberia para marido qualquer um daqueles homens de Tybum. Homens feios, velhos, gordos, fedorentos. E um marido, 'naturalmente, iria exigir intimidades da esposa. Mas jamais se entregaria a ele. Daria um jeito de fugir. No entanto, tinha sido salva pelo casamento e seu marido não era feio, nem gordo, nem velho e tinha um cheiro agradável como a brisa da noite...
Como não conseguira escapar, ali estava, trêmula, à mercê do marido. Tentou imaginar como seria deitar-se com ele, sentir as coxas musculosas nuas, pressionando as dela. Como ele se comportaria? Seria apaixonado? Ardente? Gentil, ou brutal, a ponto de machucá-la?
- Suba a escada. - A voz imperiosa interrompeu os pensamentos de Ondine.
Chegando ao quarto; Warwick abriu a porta, esperou que ela entrasse primeiro, e seguiu-a. Uma vez dentro do aposento, trancou a porta à chave. Ondine ficou parada, com vontade de gritar, imaginando qual seria o próximo movimento do conde.
Ele sentou-se na beirada da cama, tirou as botas, sem ao menos olhar para ela. Levantou-se, tirou a camisa e jogou-a do lado da cama. Que tórax, que ombros o homem tinha!
Com naturalidade, Warwick sorriu e aproximou-se de Ondine. Calmamente começou a desamarrar as fitas que enfeitavam o vestido, roçando a mão nos seios dela. Continuou a despi-la devagar, até deixá-la apenas com a combinação de seda, fina e transparente.
- Por favor... - murmurou, com medo de que ele a deixasse nua e a levasse para a cama.
Ele afastou-se com um sorriso lacônico nos lábios.
- Madame, sua castidade lhe pertence. Não vou tirá-la. Desejo apenas que represente bem o papel de condessa. Pelo que tenho observado você parece surpreendentemente perfeita para esse papel e sem nenhum esforço. Pode dormir. Deve estar exausta. Boa noite.
Ondine olhou para ele, perplexa.
- Isso é... tudo? Não espera nada mais... de mim?
- Nada, madame. Eu jamais forçaria uma mulher a aceitar minha afeição.
Ondine ficou parada, emudecida, incrédula.
- Pelo amor de Deus, será que podemos dormir?
- Você quer que eu durma... na cama?
- Na cama, no chão, levite se quiser, não importa! Simplesmente me deixe em paz!
Warwick deitou-se e virou-se para o lado da parede. Ondine esperou um pouco. Aproximou-se da cama, sentou-se, e foi estendendo o corpo, cautelosa, pronta para saltar ao menor movimento. Ele não se mexeu. Respirava tranqüilamente.
Ela olhou as costas dele. Sem dúvida um homem fascinante, incrivelmente musculoso. Ele a salvara da morte e não queria nada em troca. A não ser que ela representasse o papel de sua esposa. Pois faria isso com tal perfeição que o deixaria maravilhado.
O melhor disso tudo é que poderia vingar-se dos que a haviam arruinado. Sim, estaria sob a proteção do importante conde de North Lambria. Ele iria ajudá-la mesmo sem saber disso.

Warwick acordou com o sol batendo em seu rosto. Na noite anterior esquecera de fechar a janela. Levou a mão aos olhos por causa da claridade e só então se lembrou da mulher deitada do seu lado.
Ondine estava de costas para ele e curvada, bem na beirada da cama. Dormia profundamente. O sol não a perturbava. Ele levantou-se, contornou a cama e ficou observando Ondine adormecida.
Os cabelos que lhe emolduravam o lindo rosto estavam espalhados sobre a fronha branca do travesseiro, e a pele sem manchas parecia seda. Ela respirava calmamente e os lábio entreabertos sugeriam uma secreta sensualidade. Quando a viu pela primeira vez, na carroça, havia notado seus traços bonitos, mas não imaginara que tivesse aquela beleza extraordinária..
Apesar de magra, tinha belas curvas e os seios perfeitos erguiam-se contra o tecido fino da combinação, firmes, redondos e tentadores. Os mamilos róseos pareciam um convite, pediam a carícia de um homem...
Warwick não tinha a menor intenção de enamorar-se daquela irritante ladrazinha! Não podia admirá-la, muito menos desejá-la.
Vestiu-se e saiu do quarto, foi até o patamar da escada dos fundos, chamou Meg e pediu-lhe para providenciar um banho e mandar trazer seu desjejum.
Em poucos minutos os criados subiram com a banheira, a água quente, e Meg apareceu carregando alegremente uma bandeja. .
Warwick despiu-se, entrou na banheira e fechou os olhos. Ondine ocupou-lhe os pensamentos. Sentia pena dela. O que levara uma moça tão bonita e aparentemente educada a cometer um crime e a viver em tal desespero que a fazia lutar até mesmo com ele? Só esperava que seu plano impulsivo funcionasse e ele conseguisse descobrir o assassino de Genevieve.
Um gemido fez com que abrisse os olhos. Olhou para a cama e viu que Ondine se mexia, enrolava-se no lençol e parecia lutar com alguém.
- Meu Deus! Você o matou! Não... Nunca o perdoarei! Monstro! Prefiro a morte.
Perplexo, Warwick saiu da banheira, enrolou a toalha na cintura, sentou-se na cama e segurou nos ombros de Ondine, pensando em despertá-la suavemente.
Mas, ao sentir as mãos dele, ela começou a gritar:
- Assassino! Traidor! Suas mãos estão manchadas de sangue!
- Garota! - Warwick chamou-a e sacudiu-a, mas recebeu um soco no queixo.
Atônito, abraçou-a e a manteve junto do peito.
- Com quem está lutando? Acalme-se. Sou eu, seu marido. Ondine inclinou a cabeça para trás e arregalou os olhos, grandes, luminosos.
- Oh! Sinto muito...
- Você estava sonhando.
- Um pesadelo... - Ela parou ao sentir o contato com o tórax molhado.
Quando viu que Warwick tinha apenas a toalha ao redor da cintura cobrindo-lhe a nudez, ficou alarmada. Ele não se conteve e riu.
- Desculpe-me. Mas foi por sua causa que saí do banho às pressas.
Ondine baixou os olhos, ruborizada, percebendo que também estava quase nua. Apenas aquela combinação de seda lhe cobria o corpo e como tinha ficado molhada, tornara-se mais transparente. Warwick, que continuava a observá-la, sentiu um súbito e impiedoso calor, um desejo de tocar aqueles seios, roçar os dedos naqueles mamilos, explorar aquele corpo jovem e belo.
Levantou-se abruptamente e censurou-se por ter apenas a toalha para cobrir a evidente resposta do seu corpo.
- Ainda é cedo, volte a dormir, se quiser. Se preferir comer a bandeja com o desjejum está sobre a mesa - falou em tom casual. Tirou a toalha e entrou na banheira.
- Obrigada.
- A melhor maneira de me agradecer é continuar comigo Ondine levantou-se, vestiu-se e foi até a janela para admirar o lindo dia.
- Não precisa se preocupar. Não tentarei fugir de novo - ela assegurou, ficando de costas para a janela. - Estou ciente, de minha posição. Tudo o que você quer é uma jovem que sirva para fazer o papel de sua esposa. Estou disposta a representar esse papel.
- Hum - ele resmungou. A água estava quase fria. Esfregou-se vigorosamente. - Com quem estava sonhando instantes atrás? Você lutava com alguém. Quem era?
- Eu... devo ter dito alguma coisa durante o sonho. O que?
- Lady, você não respondeu à minha pergunta.
- Costumo ter pesadelos. Creio que eu estava lutando com o carrasco. Ou o carcereiro de Newgate.
- Por que você acusaria o carrasco ou o carcereiro de traição e assassinato?
- E por que não? Passe algum tempo em Newgate com seu amado rei, caro senhor. Só assim entenderá o que estou dizendo e poderá me julgar.
Warwick ficou furioso.
- Meça suas palavras. Se me insultar, cara lady, poderá despertar minha raiva. Mas se insultar o rei, certamente provocará minha vingança. Você não conhece o rei, madame.
Ela virou-se para evitar que Warwick visse as grossas lágrimas que lhe afloraram aos olhos. Conhecia o rei. O sincero interesse do soberano pelos outros, sua inteligência e seu modo galante de conquistar as mulheres faziam parte do seu charme. Mas Ondine compreendia que os anos amargos de Charles no exílio, a longa luta para conquistar sua coroa, também o haviam exaurido. O rei tinha suas próprias idéias e seus próprios princípios. Ninguém sabia ao certo o que se escondia em sua mente.
Charles detestava violência, no entanto, homem nenhum fora tão valente num combate. Ele desprezava duelos e abominava execuções. Apesar disso, não impedia que traidores fossem decapitados e ladrões enforcados. Era o rei e tinha o dever de assinar as sentenças de morte quando os juízes exigiam.
Aos olhos do rei, como também aos olhos dos que haviam testemunhado o acontecimento, depois da justa, naquela tarde quente de junho, quase um ano atrás, ela era uma traidora.
- Não tenho nada contra o rei - murmurou. Aprendera que era mais prudente não despertar a ira do marido.
- Melhor assim - tornou Warwick secamente. - E agora, se não for muito trabalho, poderia pegar o sabonete que deixei cair? Está perto do seu pé.
Ondine olhou para o sabonete, pegou-o e teve receio de se aproximar da banheira, especialmente porque Warwick estava despido. Ele percebeu a hesitação dela e observou:
- Não tenha medo. Dobrado como estou, dentro desta banheira, não posso ferir sua delicada sensibilidade.
Ela ignorou o sarcasmo. Prometeu a si mesma jamais deixá-lo perceber sua angústia. Foi até a banheira e entregou sabonete com um sorriso..
- Está enganado, sir. Nada pode ferir minha sensibilidade. Lembre-se de que estive em Newgate.
Warwick teve vontade de levantar-se e abraçá-la, assim como estava, nu e molhado, só para ver sua reação. No mesmo instante lembrou-se, com raiva de si mesmo, que queria distância dela.
- Ondine, ninguém a advertiu que não se deve brincar com uma besta-fera?
Ela apenas murmurou:
- Estou com fome.
- Vá comer.
Assim que ela se afastou, Warwick fechou os olhos e tentou controlar-se. Aquela jovem o fascinava e o irritava. Nunca se sentira assim. Minutos depois, Ondine interrompeu-lhe os pensamentos.
- Desculpe, lorde Chatham, posso lhe fazer uma pergunta?
-Sim.
- Quando chegarmos a sua casa, iremos viver... assim?
- Não. Você terá seu próprio quarto, do lado do meu, e poderá mantê-lo trancado se quiser. Não haverá muitas regras para você observar. Mas aquelas que existem devem ser seguidas à risca. E não quero ouvir nenhum de seus comentários sobre Newgate. Não fui eu quem a colocou lá e ontem à noite você demonstrou que tem hábitos condenáveis quando tentou roubar meu cavalo.
- Você não entende que...
- Nem quero entender. De hoje em diante você não tem esse passado. Você disse que seu pai era poeta. Vamos mudar isso. Você é filha de um nobre francês que perdeu a fortuna... - Ele interrompeu o que estava dizendo e suspirou. - Não. Se dermos essa versão, todos irão supor que você sabe falar francês.
- Eu falo francês. Minha... mãe era francesa. De família nobre empobrecida - Ondine mentiu.
- Isso explica melhor a correção de sua linguagem. Bem, quero sair do banho. Eu gostaria de saber onde está Jake, aquele malandro.
- Vou chamá-lo. Já acabei de comer - Ondine ofereceu-se c saiu do quarto.
Quando se viu sozinho, Warwick respirou aliviado e saiu depressa da banheira. A água tinha ficado gelada.

Meg acompanhou os recém-casados até a carruagem. Abraçou Ondine e lembrou-a:
- Seu marido é um homem como poucos e fez de você uma condessa! Desejo que vocês sejam muito felizes.
Ondine tentou sorrir; não teve sucesso. Queria gritar que era uma duquesa por direito e estava cansada de receber ordens do arrogante conde, seu marido.
Não disse nada. Como duquesa estava sendo procurada como cúmplice de um assassinato e pelo crime de traição. Era melhor fazer o papel de condessa até provar a inocência da duquesa. .
Warwick acomodou-a confortavelmente na carruagem e sentou-se no banco com Jake. Durante as longas horas de viagem, Ondine teve tempo de refletir sobre sua vida e de recordar o passado.
No fim da tarde, a carruagem parou perto de um riacho. Warwick apareceu para avisá-la que iam descansar um pouco e comer alguma coisa. Meg havia preparado para eles carne fria, pão, queijo, vinho e frutas.
A notícia foi mais do que bem-vinda para Ondine. Tinha o corpo dolorido por causa dos solavancos, estava exausta e amarrotada. Quando Warwick a colocou no chão, ela foi até o riacho, exercitou as pernas, lavou-se e sentiu-se um pouco melhor.
De volta, parou ao ver Jake e Warwick sentados na relva. Entre eles estava a cesta de vime com o lanche, sobre uma pequena toalha. De pernas cruzadas, alegre como sempre, Jake comia um pedaço de carne. Warwick estava reclinado numa pedra e tinha as longas pernas estiradas. Usava um chapéu de aba larga, com uma pluma vermelha, na mais elegante tradição monarquista. Era um homem encantador, mas não foi isso que, fez com que Ondine parasse para observá-lo. Foi seu riso, agradável, despreocupado e fácil. A sensualidade nos lábios dele era visível e o brilho nos olhos algo fascinante.
Warwick estava conversando com Jake como se fossem, grandes amigos e não patrão e empregado. A certa altura, Jake perguntou:
- O que acha que Sua Majestade irá dizer sobre esse seu casamento repentino, milorde? Talvez ele tenha pensado em uma noiva para o senhor.
- Charles nunca faria isso. Creio que ficará muito feliz quando souber que eu, enfim, me casei.
- Tenho afeição por essa moça, Ondine. Ela é mais linda do que qualquer uma das beldades aclamadas pela corte. Também é corajosa, decidida, refinada e meiga.
- Meiga? Pois sim! Não se deixe enganar por um rosto bonito, Jake.
- Não costumo me enganar. Essa lady Anne, por exemplo, tem um rosto de anjo, mas um coração de pedra. Há muito tempo ela quer colocar as garras no senhor. Eu daria um bom dinheiro para ver a cara dela quando receber a notícia do seu casamento.
Warwick encolheu os ombros.
- Nunca tive a intenção de me casar com Anne. Ela sabe disso.
- Não. Ela...
- Shh.
Warwick ergueu a cabeça e viu Ondine perto de umas árvores. Ficou de pé e alcançou-a dando apenas três largos passos. - Faz tempo que está aqui?
- Acabei de voltar do riacho...
- Mentira. Vou lhe dizer apenas uma vez. Não tolero ser espionado.
- Por que eu iria espioná-lo? Não estou interessada em nada que lhe diga respeito - ela devolveu, indignada.
Ficou constrangida apenas porque gostava muito de Jake e não queria que ele presenciasse aquela cena.
Jake conhecia bem o patrão e soube pelo brilho nos olhos dele que a explosão estava se formando. Levantou-se e sugeriu:
- Milorde! Convém continuarmos a viagem se o senhor quiser chegar esta noite ao cruzamento com a estrada para o norte.
Warwick olhou para o criado, depois para Ondine. Parecia ter relaxado um pouco. Mas segurou o queixo dela e advertiu-a:
- Trate de não me provocar. Estou dizendo isso para seu bem, sua ladrazinha, mentirosa.
- Se não me provocar, também não o provocarei.
- Viu só, Jake? - Warwick ergueu as mãos. - Ela quer ter sempre a última palavra. Procure ensiná-la a ter maneiras e se ela não mudar de atitude, terá de temer alguém: eu!
Acabando de falar, foi até o riacho e Jake disse a Ondine:
- Ele não é mau como quer parecer, milady.
Ondine sentou-se perto da cesta e abriu-a para ver seu conteúdo.
- Você me avisou que o conde era uma besta-fera, Jake, e agora quer mudar seu discurso?
- Não...
- Esqueça. Estou aqui porque sirvo para os propósitos do conde. E decidi que ele também me pode ser útil- ela declarou.
Jake sorriu para ela, não muito à vontade.

A carruagem parou tarde da noite. Ondine estava dormindo e só acordou porque Warwick chamou-a e iluminou-lhe o rosto com a luz da lanterna.
- Chegamos.
- Que lugar é este?
- Outra estalagem. Vamos. Ou melhor, eu a carrego. Quando sentiu os braços do marido envolvendo-a, ela protestou:
- Eu... posso andar..
- Como queira. Desde já a previno que esta estalagem não é como a de Meg.
Eles entraram no estabelecimento e o conde pediu um quarto. O cômodo era limpo e a roupa de cama tinha um aroma agradável de alfazema. Warwick apagou as velas, eles se despiram no escuro e se deitaram. Ondine estava tão cansada que só acordou de manhã. Virou-se e não viu o marido na cama nem suas roupas estavam no quarto. Sobre a mesinha havia, uma grande bandeja com o desjejum, esperando por ela. Com receio de não poder saborear tão cedo outra refeição como aquela, tomou o leite e comeu tudo que havia na bandeja: tortinhas de carne, pão, geléia, queijo e as maçãs.
Tinha acabado de se vestir e lavar o rosto quando ouviu uma batida na porta. Abriu-a e viu o marido elegante e encantador, usando casaco preto e o chapéu com a pluma vermelha.
- Está pronta?
- Estou.
Ele segurou a mão dela e ambos desceram para o andar térreo. Era muito cedo e tudo estava em silêncio. Apenas um bêbado ressonava, debruçado sobre uma mesa a um canto da taberna. Ondine surpreendeu-se quando Warwick levou-a para uma ruazinha onde havia inúmeras lojas.
- Para onde vamos?
- Fazer compras.
Ondine nem pensou em protestar. Como esposa do conde devia estar muito bem vestida. Assim, eles passaram o dia nas lojas e num ateliê, entre sedas, cetins, rendas e brocados, com uma costureira e suas ajudantes tirando medidas, costurando para ela e fazendo provas. Warwick permaneceu do lado dela observando tudo e opinando quando necessário. Por fim, alguns trajes lhes foram entregues, e os outros, quando estivessem prontos, seriam mandados para North Lambria.
Eles dormiram novamente na estalagem e ao amanhecer estavam na estrada. Ondine preparou-se para um longo dia de viagem. No fim da tarde a carruagem parou e Warwick sentou-se do lado dela.
- Estamos chegando ao solar - avisou-a. - Lembre-se: nos casamos em Londres, seu pai era um aristocrata francês empobrecido. Você não trouxe dote, por isso, seja encantadora diante dos criados. Eles têm de acreditar que fiquei tão fascinado quando a conheci que a tomei por esposa, sem me importar que você não trouxe nada para a nossa união. Se eles conhecerem seu ímpeto e os ataques de sua língua afiada, irão duvidar de minha sanidade mental.
- Eu duvido de sua sanidade mental - Ondine desferiu.
Recebeu como resposta um dos cortantes olhares de advertência do marido. Ele acrescentou:
- Condessa, há mais unia coisa que você deve saber. Tenho um vizinho, lorde Hardgrave. Nosso relacionamento nunca foi dos melhores. Jamais fique sozinha com ele. Evite-o. Não confio nele. Entendeu?
- Sim. Provavelmente, nunca o verei.
Warwick afastou a cortina da carruagem.
- Já estamos em casa.
O imenso solar Chatham surgiu majestoso no final do caminho de entrada da propriedade, ladeado de canteiros floridos, projetados com arte. Era uma construção sólida, de pedra, com janelas em arco, torres e arcobotantes. Ficava entre árvores, extensos gramados e jardins. Avistava-se a floresta ao leste, a , oeste os campos cultivados. Montanhas erguiam-se na direção norte. O solar era magnífico, grandioso como um palácio real.
Entretanto, Ondine, subitamente, estremeceu. O sol poente refletia-se nas vidraças, e ela sentiu um inexplicável medo do , que as sombras podiam esconder.
Absurdo, pensou. O solar era maravilhoso e grande, pertencia ao conde, um importante par do reino, estava localizado tão longe de Londres, no distante norte, um lugar onde ela podia viver ,em paz, lidando com seu próprio dilema, procurando respostas e planejando sua vingança.
Warwick segurou a mão dela e dirigiu-lhe o mais encantador dos sorrisos.
- Condessa, estamos em casa. Meu amor, comporte-se como uma recém-casada adorável e apaixonada pelo marido.

Capítulo III

A majestosa escadaria de mármore à frente do solar tinha de cada lado uma coluna, e sobre esta uma escultura representando a besta-fera, o animal fabuloso que Ondine vira no brasão do conde, impresso nas portas da carruagem.
Warwick deu ordens para Jake cuidar da bagagem e subiu os degraus segurando na mão da esposa. Os dois foram recebidos por Mathilda, a governanta, mulher alta, magra e muito ereta. Devia beirar os sessenta anos, tinha cabelos pretos com apenas uma mecha prateada. Usava vestido cinzento, de gola alta. Com um ligeiro estremecimento, Ondine lembrou-se de que a representação estava para começar. E ia começar com aquela mulher de aparência severa e inflexível.
- Caro lorde Chatham! - saudou a mulher, fazendo uma mesura. Seu sorriso caloroso e o brilho nos olhos verdes, diminuíram a apreensão de Ondine. - Eu não o esperava, milorde, e não sabia que traria uma hóspede...
- Esta não é uma hóspede, Mathilda. É minha esposa, lady Ondine - explicou o conde.,
A governanta ficou atônita. Olhou para Ondine e repetiu quando conseguiu falar:
- Sua esposa?
- Sim. Esposa. Estivemos viajando por tempo extremamente longo.
- Oh! - Mathilda recuperou-se da surpresa e curvou-se para Ondine. - Condessa, por favor, acompanhe-me.
Ela conduziu Ondine para o grande hall de mármore em estilo francês e subiram a suntuosa escadaria para os aposentos do primeiro andar. Warwick seguiu-as. Enquanto caminhavam, Mathilda deu informações para a nova senhora do solar.
- O salão de jantar fica além da escadaria, milady. Os apartamentos localizam-se neste andar. A família faz as refeições na ala oeste e nessa ala também ficam os apartamentos de Justino. Os do conde ficam na ala leste. Os criados ocupam o andar de cima. É claro que poderá fazer as mudanças que desejar, milady.
- Parabéns, Mathilda, estou percebendo que o solar é bem administrado - Ondine falou com simpatia.
Sentia-se muito bem. Era maravilhoso estar ali depois de viver durante um ano suja, fugindo e se escondendo.
Ela parou na galeria de retratos da família e ficou impressionada com o retrato de um homem de meia-idade, muito bonito e surpreendentemente parecido com Warwick.
- Este é o retrato de seu pai, não, meu amor? Posso afirmar que foi pintado por Van Dyck.
- Sim - Warwick concordou, amável. Procurou não demonstrar a surpresa ao constatar que Ondine reconhecera o trabalho do pintor flamengo. - Como eu já lhe disse, querida, meu pai apoiou Charles I até o fim.
Ondine continuou a andar. Lordes e ladies, de diferentes épocas, estavam diante dela com diferentes expressões. Fez nova pausa diante de outro retrato. O homem retratado também se parecia muito com Warwick, mas era mais jovem, tinha cachos loiros e parecia muito despreocupado e alegre. Ela sentiu a mão do marido sobre seu ombro.
- Esse é Justin, meu amor.
- Claro, meu querido! Achei que era seu irmão. - Ela virou-se para ele, rindo. - Quando vou conhecer meu jovem e sedutor cunhado?
- Mathilda irá chamá-lo - Warwick respondeu e voltou-se para a governanta. - Suponho que Justin esteja em casa.
- Sim, milorde. Ele teve um comportamento exemplar na sua ausência.
- É difícil acreditar. - Warwick respondeu. - Vamos esperar por ele na sala de família. E, Mathilda, por favor, veja se Irene pode apressar o jantar.
Warwick levou Ondine para uma sala espaçosa, elegante e confortável, de paredes apaineladas, com várias janelas que se abriam para os dois lados da ala oeste. Na frente da grande lareira havia um conjunto de sofás e poltronas revestidos de brocado. Mais adiante estava a mesa de jantar com seis cadeiras de espaldar alto, com entalhe representando a besta-fera, e pés em formato de garra. Nas paredes, entre cada janela, havia um candelabro duplo, de prata.
Warwick fechou a porta e comentou:
- Não imaginei que havia encontrado uma grande atriz.
- Eu lhe disse, milorde, que viajei muito com meu pai, conheci várias cortes, solares e castelos.
Ondine sentou-se numa poltrona e Warwick ficou de pé, o braço apoiado na cornija da lareira.
- Até mesmo eu fiquei pasmado com a sua atuação, meu amor - ele falou com leve ironia.
- Por que diz isso? Cumpri sua ordem, lorde Chatham. Pelo que entendi, é meu dever representar o papel de esposa meiga, agradável, bem-nascida e... amorosa.
- Convém não exagerar.
Ondine levantou-se e foi até uma das janelas.
- O que há do outro lado do jardim?
- As cocheiras - respondeu Warwick, chegando perto dela. - Além daquela colina ficam as casas dos arrendatários. Aos domingos, depois do serviço religioso, há uma feira muito movimentada. Temos nossa própria capela na ala leste, atualmente os Chatham assistem à missa na igreja da vila.
Nesse instante a porta se abriu e o riso aberto de Justin encheu a sala.
- Warwick, seu malandro! Casou-se e não nos disse uma palavra, deixando-nos perplexos. Quem é a beldade que conseguiu capturar seu coração?
Ondine virou-se e olhou para o rapaz alegre, loiro, que devia ser cinco ou seis anos mais jovem do que o irmão e tinha um brilho travesso no olhar. Ele tirou o chapéu emplumado e curvou-se elegantemente diante de Ondine.
- Milady!
Warwick recebeu um abraço do irmão e fez as apresentações:
- Ondine, este é Justin Chatham, meu irmão. Justin, minha esposa, Ondine.
- Um lindo nome com um significado mágico! Uma mulher de mágica beleza! - Justin declarou.
Ondine fez uma graciosa mesura e riu dos elogios exagerados do rapaz.
- Obrigada, Justin. - Estendeu a mão para o cunhado e ele beijou-a devagar.
Subitamente Warwick segurou Ondine pelos ombros e puxou-a para junto dele, mantendo-a abraçada, com a cabeça apoiada em seu peito.
- Caro irmão, ela é minha esposa. Se está com inveja, arranje uma namorada e case-se com ela.
Pelo tom do marido, Ondine percebeu que havia camaradagem entre ele e o irmão. Ao mesmo tempo, teve a impressão de que Justin cansava a paciência de Warwick.
Justin riu...
- Diga-me, Warwick, onde você encontrou esta lady? Preciso saber para ir caçar no mesmo terreno.
- Nas ruas de Londres! Onde mais poderia ser? - tornou Ondine, escapando dos braços do marido. Não saberia explicar o motivo de estar provocando Warwick. Parecia que o pequeno demônio que habitava sua alma não lhe dava descanso. Sorriu candidamente para Justin. - Seu irmão e eu nos conhecemos numa das ruas de Londres, nos apaixonamos e decidimos nos casar.
- Que romântico! - exclamou Justin.
- Hum - Warwick murmurou secamente. Quis ficar junto de Ondine, mas ela foi para o outro lado da mesa para manter uma grande e sólida distância entre eles.
- Muito romântico - ela concordou com o cunhado. Seu irmão demonstrou ser um pretendente apaixonado, encantador.
Justin olhou de Ondine para o irmão, depois riu.
- Perdoe-me, cara cunhada, mas devo dizer... Bem, meu irmão despertou a paixão das mais lindas mulheres. Mas ele tem sido tão frio e tão distante com elas. Warwick desencorajou todas as herdeiras e as beldades desta nossa boa terra que estavam determinadas a agarrá-lo. Como conseguiu esse feito? É muito rica?
- Justin! - Warwick zangou-se.
- Rica? Nem um pouco - Ondine respondeu suavemente.
- Seja como for, o casamento de vocês merece uma comemoração! - Justin foi até um móvel encostado na parede abriu um armário onde eram guardados copos, cálices e taças de cristal, além de garrafas com bebidas. Pegou uma delas, Colheita da Aquitânia! Vinho tinto, rico, agradável, da cor da paixão.
- A paixão é vermelha? - Ondine perguntou.
Estava prestando atenção em Justin e não viu que o marido tinha contornado a mesa e estava atrás dela. Ele abraçou-a pela cintura, puxou-a de encontro ao corpo dele e sussurrou-lhe ao ouvido:
- É bem vermelha... Você deve saber disso.
Aquele contato a fez sentir um estremecimento, um calor e forte desejo. Com medo de sensações tão estranhas, tentou fugir do círculo daqueles braços, inutilmente.
Justin salvou-a, aproximando-se deles com dois copos de vinho. Depois pegou o copo dele e brindou à saúde dos recém-casados.
Eles sentaram-se e Ondine perguntou ao cunhado:
- Com todo esse encanto pessoal, por que não se casou com uma dessas herdeiras?
Justin riu.
- Porque não sou o conde. Apesar do meu encanto pessoal, não importo com minhas maneiras. Parece que as mulheres ficam seduzidas por homens como meu querido irmão, distantes, altivos, indiferentes. Ah... o que não se pode conseguir é mais cobiçado.
Mathilda apareceu acompanhada de duas criadas e um criado carregando bandejas..
- O jantar, como pediu, milorde - disse a governanta.
A mesa foi posta com rapidez. Warwick inclinou a cabeça para Ondine e puxou uma cadeira para ela.
- Por favor, milady.
Ele e o irmão sentaram-se em seguida. Os pratos foram servidos pelas criadas e o rapaz serviu o vinho. Warwick informou Ondine que as moças eram Nan e Lottie, filhas da cozinheira, e o jovem criado era Joseph. Os três sorriam, o que fez Ondine lembrar-se de que o conde tratava muito bem seus empregados e eles amavam Chatham como se fosse seu lar. Era surpreendente constatar que seu marido, que ela considerava frio, arrogante, inflexível e amedrontador, também fazia seus sentidos queimarem quando ele a tocava. Agora, diante de tudo que estava presenciando, tinha de admitir que era um patrão decente, bondoso, justo, despertava o respeito dos criados e os tomava felizes.
A refeição foi servida e a governanta saiu da sala com os criados, fechando a porta. Justin pôs o irmão a par do que havia acontecido na casa e na propriedade durante sua ausência, depois quis saber o que o irmão tinha para contar sobre sua estada em Londres.
Satisfeito ao ouvir as novidades, perguntou:
- O que Charles achou de sua esposa, Warwick? Se bem conheço Sua Majestade, ele está arrependido de não tê-la seduzido antes de você.
- Ele ainda não a conhece - respondeu Warwick, tomando um gole de vinho.
- Se Ondine fosse minha esposa, eu faria o possível para que nosso rei jamais a conhecesse.
Os dois voltaram a falar sobre negócios e outros assuntos relacionados à propriedade. Ondine notou que Warwick estava sendo severo e exigente com o irmão. Justin explicou-lhe:
- Está vendo, cara cunhada? Fui expulso da corte por ter me batido em duelo e meu irmão decidiu me manter aqui, livre da influência de amigos cujo comportamento ele não aprova. Agora tenho de seguir suas ordens à risca para provar meu valor.
- Você acha que seu irmão é muito severo?
- Demais. Ele é a glória da família. Eu tinha dez anos e ele quinze quando tivemos de combater os holandeses. Warwick entrou na Marinha Real e lutou sob as ordens do duque de York. Tomou-se um herói aos dezesseis anos. Ninguém é melhor do que ele com uma espada.
- Justin! Estamos falando sobre o presente! - Warwick repreendeu-o.
- Quero saber sobre os cavalos.
- As éguas com sangue árabe estão fantásticas. Estou ansioso para vê-las nas corridas. Não há nada mais excitante do que as corridas de Newmarket.
- Nem pense em ir a Newmarket. Se tivesse evitado as corridas, não teria se batido em duelo.
Justin fez uma careta.
- Não haveria duelo se Charles se desse ao trabalho de arranjar uma justa para mim, como arranjou para você e Hardgrave. - Ele parou subitamente, como se tivesse tocado num assunto extremamente desagradável.
Ondine prendeu a respiração ao lembrar-se daquele dia terrível em que sua vida de conto de fadas tomara-se um pesadelo.
Olhou para o marido à cabeceira da mesa. Warwick era um daqueles cavaleiros com armadura que tinham participado do torneio. Deus do céu! Por um capricho do destino, eles não se conheceram antes. Se a tivesse visto naquela tarde, saberia que ela era a filha de um traidor. Ela baixou depressa a cabeça, mas os dois cavalheiros estavam conversando sem prestar atenção nela.
Bateram de leve na porta e ao ouvir a autorização de Warwick, um homem ainda jovem, trajando calções marrons e casaco de couro, entrou na sala.
- Clinton!- Warwick levantou-se e saudou-o com um sorriso.
- Olá, Warwick.
Clinton olhou para Ondine, e Warwick fez as apresentações. - Ondine, Clinton é o administrador das cocheiras e chefe dos cavalariços. Clinton, minha esposa, lady Ondine.
Clinton voltou-se para Ondine. Ela notou que os olhos dele tinham um tom verde profundo e teve a impressão de que havia alguma coisa familiar no homem, mas não soube determinar o que poderia ser. De certa forma algo nele a amedrontava. Porém, suas maneiras e suas palavras tranqüilizaram-na.
Ele curvou-se diante dela.
- Seu criado, milady.
- Tome um copo de vinho conosco - Justin ofereceu.
- Aceito, Justin. Espero não estar interrompendo...
Ondine notou que havia intimidade entre o conde, o irmão e Clinton e ficou curiosa para saber que tipo de relacionamento havia entre eles, mas o marido deu-lhe a mão para que se levantasse.
- Com licença, Clinton, vou levar minha esposa aos nossos aposentos. Não me demoro.
- Mas... - Ondine começou.
- Convém descansar, querida - interrompeu-a. - Você teve um longo dia.
Justin e Clinton estavam de pé e lhe desejaram boa-noite.
Minutos depois, Warwick abriu a porta de um cômodo amplo, com estantes cheias de livros, uma grande escrivaninha, uma elegante papeleira, uma harpa, uma espineta e um conjunto de sofá e duas poltronas.
- Esta é nossa sala íntima, mas as criadas preferem chamá-la de sala de música - explicou.
Mostrou-lhe o cômodo seguinte, que era um quarto masculino com uma cama enorme com dossel, dois criados-mudos, uma cômoda, outra escrivaninha e um lavatório. Esse cômodo comunicava-se com outro quarto, no fundo do qual havia uma banheira branca, esmaltada, e um lavatório com espelho para barbear. Um guarda-roupa ocupava toda uma parede.
Por fim, ele abriu a porta de um quarto feminino.
- Estes são os seus aposentos. Aqui você terá total privacidade.
O quarto era lindo e elegante. A cama tinha um dossel de seda azul, do mesmo tecido e da mesma cor da colcha e das cortinas. A um canto estava o toucador com um grande espelho com moldura dourada; diante dele havia uma banqueta. O quarto comunicava-se com o quarto de vestir. De um lado estava o closet e, do outro, o lavatório com a bacia, o jarro, ambos de esmalte branco com margaridas azuis. Ao fundo, Ondine viu a banheira branca, esmaltada, e uma alcova com uma cortina.
- A latrina - Warwick informou-a. - Suas roupas íntimas estão na cômoda e os vestidos já devem ter sido pendurados nos armários do closet. Se precisar de alguma coisa, basta puxar o cordão da campainha e será atendida imediatamente.
- Obrigada.
- No momento não há uma criada pessoal para cuidar de você, mas Lottie...
- Não quero criada nenhuma.
- Você deve ter uma criada pessoal, sim - Warwick insistiu, impaciente.
- Nesse caso, que seja Lottie.
- Precisa de mais alguma coisa?
- Sim.
- O que é?
- Gostaria que me explicasse o que está acontecendo.
- Não está contente? O que não lhe agrada? O solar é seu. Aqui você tem tudo. Os jardins, lazer, tranqüilidade e total privacidade. Em troca eu só quero que você faça o que lhe pedi. - Ele a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-lo. Havia fogo nos seus olhos. - O que há de difícil em cumprir a sua parte do nosso acordo?
- Nada! - ela gritou e contorceu-se para escapar das mãos dele.
Ele murmurou uma praga e soltou-a. Antes de sair do quarto, avisou com ironia:
- Há mais uma coisa, condessa. Tranque à chave a porta de comunicação com o meu quarto. Abra-a quando eu mandar. Fui claro?
- Sim!
Ele abriu a porta e antes de se afastar, acrescentou, de costas para Ondine:
- Sua atuação foi incrível. Por favor, não use seu talento para seduzir meu irmão. Ele pode esquecer que você é minha.
Ele saiu e bateu a porta. Gritou do outro lado:
- Use a chave!
Praguejando como uma mulher desbocada, Ondine foi depressa até a porta.
- É um prazer ficar trancada, livre de você.
Estava trêmula e tensa quando tirou a roupa e abriu a gaveta da cômoda para pegar uma linda camisola enfeitada com rendas. Deitou-se e continuou tremendo. Deus do céu, por que aquele homem provocava nela semelhante reação?
Durante longo tempo permaneceu acordada, inquieta, pensando no marido, lembrando-se claramente de suas feições, e da sensação que seu toque provocava nela.
Uma hora devia ter passado quando ouviu, vindo do pátio, o som dos cascos de um cavalo. Levantou-se, foi até uma das janelas, afastou a cortina e olhou para baixo. Viu Warwick puxando um baio enorme, já arreado. Ele saltou com agilidade para a sela e saiu a galope na direção oeste.
Para onde ele iria àquela hora? Voltou para a cama sentindo uma raiva irracional, o coração apertado. Com certeza o libertino tinha ido ver uma amante. Ela esmurrou o travesseiro. Não tinha de se importar com a vida dele, desde que ele a deixasse em paz. Mas se importava, sim. Estava furiosa e com uma dor ridícula no peito.
- Vá para o inferno, lorde Warwick Chatham! - sussurrou com veemência, à beira das lágrimas.
De repente ficou gelada. Ouviu uma batida na porta e em seguida a voz do marido.
- Ondine... Você está bem?
Ele havia voltado e ela nem percebera.
- Sim... Estou...
Warwick não disse mais nada. Ondine soltou a respiração. Curiosamente, adormeceu em seguida.

Uma batida na porta que se abria para o corredor despertou Ondine. Lottie entrou no quarto e avisou que o banho estava preparado e quando ela quisesse poderia tomar o desjejum na sala de família.
Maravilhada com a idéia de um banho, Ondine sorriu para a criada e correu para o quarto de vestir. Tirou a camisola e entrou na água quentinha. Inclinou-se apoiou a cabeça na borda da banheira e fechou os olhos, esquecida de todo, deliciando-se com a carícia da água perfumada com óleo para banho.
Quando abriu os olhos surpreendeu-se ao ver Lottie ainda parada na frente dela, esperando com uma grande toalha na mão.
- Lottie, o que faz aí? - Ondine perguntou, amável. A criada ficou vermelha e baixou a cabeça.
- Eu... não sei como deve ser o comportamento de uma criada pessoal. Nunca ocupei esse cargo, milady.
Ondine teve vontade de rir, mas se manteve séria. Não queria ofender a mocinha. Gostava de Lottie com aquele seu rosto redondo corado e sempre pronto para um sorriso ingênuo e sincero.
- Nesse caso, Lottie, vou lhe contar um segredo. - Ondine sorriu para a criada de modo encorajador. - Também estou um pouquinho nervosa. Então vamos sair desta situação juntas. Eu gostaria de tomar uma xícara de chá enquanto estou mergulhada nesta água deliciosa. Depois quero que você tire do guarda-roupa um vestido para mim e o deixe estendido na cama.
- Perfeitamente milady - tornou Lottie e saiu apressada do quarto.
Ondine fechou os olhos novamente. Pouco depois a criada estava de volta com o chá e entregou a xícara a Ondine.
- Pegue o banquinho do toucador, assim eu posso colocar a xícara sobre ele - Ondine sugeriu e a moça lhe obedeceu.
Quando voltou com o banquinho Ondine notou que ela tremia muito.
- O que há Lottie? Certamente não está com medo de mim.
- É claro que não, milady. A senhora é muito amável. É que... - Lottie olhou, ansiosa, para a porta de comunicação com o quarto do conde. - Eu... temo pela senhora.
- Teme por mim? Por quê? - Ondine indagou, atônita.
Curiosamente também estremeceu.
Seu marido estaria escondendo algum segredo terrível?
Mais uma vez Lottie olhou para a porta do quarto do conde, depois perguntou timidamente:
- A senhora não ouviu os uivos dos lobos, milady?
- Lottie, os lobos costumam andar pela floresta e uivam à noite.
- Senhora, terno por sua vida! - Lottie insistiu. - A primeira condessa tinha tanto medo. Era tão delicada! E morreu.
- A condessa tinha medo do marido?'.
- Oh, não! A criada pessoal, da condessa Genevieve, uma moça de Yorkshire, me contou que sua patroa tinha medo... dos fantasmas.
Lottie falou com assombro, Ondine teve vontade de rir. Ao mesmo tempo, sentiu um grande alívio.
- Lottie, não tenho medo de fantasmas. Todos os grandes castelos e solares têm fantasmas. Meu pai, que era um homem sábio ensinou-me desde cedo a não temer os mortos. Eles não nos fazem mal. Mas, diga-me, como a condessa morreu? De parto?
- Não, não, milady! Todos diziam que ela era... instável.
Todos, menos o conde.
- Instável? Como?
- Louca. Mas ela não era louca. Apenas frágil e... medrosa. Ela queria ser freira, mas o pai, em seu leito de morte pediu ao conde para se casar com ela.
- Como a condessa morreu?
- Ela ouvia vozes. Vozes dos fantasmas.
- Que fantasmas?
- Da avó de Sua Senhoria que caiu da escada da capela e morreu. Genevieve morreu do mesmo modo. A pobre ouviu vozes chamando-a e caiu de uma torre do palácio real. As vozes...
- Lottie! O que está dizendo? Não aborreça a condessa com essas histórias!
Ondine e Lottie olharam imediatamente para a porta, onde estava Mathilda, muito zangada.
- Ela não está me aborrecendo! - exclamou Ondine, irritada com a governanta por perturbar seu banho.
Mas Mathilda chegou até Lottie e agarrou-a pelo braço, furiosa.
- Eu não fiz por mal - a moça defendeu-se.
- Garota terrível! Você devia ter continuado na cozinha!
- Nada disso! Lottie é competente - protestou Ondine, determinada a fazer sua autoridade prevalecer.
- Pela cruz de Cristo! O que está acontecendo aqui? - indagou Warwick que estava à porta, usando traje de montaria.
Seu olhar acusador fixou-se em Ondine, como se ele tivesse certeza de que havia sido ela a causadora daquela incomum tempestade doméstica.
Os olhos azuis dardejaram. Naquele incidente ela era a vítima. Encontrava-se presa naquela banheira, nua e violentamente despojada de sua privacidade. Queria gritar, atirar coisas naqueles intrusos, em protesto contra aquela invasão.
- Qual é o problema? - Warwick quis saber.
- Não há problema nenhum. Mathilda só estava preocupada com o desempenho da tarefa de Lottie - Ondine explicou.
O conde voltou-se para a governanta.
- O que tem a dizer?
- Surpreendi Lottie contando histórias desagradáveis para a condessa, milorde.
- Oh! - A criada cobriu o rosto com a mão para abafar o grito. - Eu não fiz por mal!
- Lottie não disse nada de mais. E é muito eficiente - Ondine defendeu a moça. - Eu lhes agradeceria se me deixassem em paz com minha criada. Quero sair do banho.
Warwick entrou no quarto e foi até a desconsolada Lottie.
- Vamos, garota. O assunto está encerrado.
- Ela deve ser castigada - Mathilda declarou.
- Isso eu não vou permitir! - Ondine falou com firmeza e raiva. - Posso terminar meu banho?
- Mathilda, Lottie, podem sair. Atendam a condessa - disse Warwick brandamente.
- Preciso dos serviços de Lottie, meu marido - Ondine alegou. Não queria ficar sozinha e nua com Warwick. Dirigiu-se à criada. - Lottie, você fica.
Lottie olhou para Ondine, indecisa.
- Vá, Lottie - Warwick ordenou, a voz suave.
A criada assentiu com um movimento de cabeça e saiu apressada do quarto. Ondine aprendeu depressa a lição. As ordens do marido ainda que faladas suavemente, deviam ficar sempre acima das da esposa.
Warwick fechou a porta e aproximou-se da banheira.
- Qual a razão de tudo isso? - ele perguntou.
- Tudo aconteceu porque você deixou de me contar coisas que eu deveria saber. Você me incumbiu de representar um papel e não me apresentou o texto que devia ser decorado! Você devia ter-me dito que era viúvo. Também devia me prevenir que há histórias de fantasmas no solar. Fantasmas que, segundo dizem, atraíram sua esposa Genevieve para a morte!
- Condessa, você, certamente, não acredita nessas tolices.
- É claro que não. Mas por que você não me falou sobre sua esposa e sua morte trágica?
- Talvez eu tenha ficado com receio de deixá-la impressionada com essa história de fantasmas que fazem eco com os uivos dos lobos.
- Desde quando você se importa com meus sentimentos?
- Engana-se. Eu me importo com seus sentimentos e suas impressões. E, se você não tem medo de fantasmas, por que está tremendo desse jeito?
- Porque a água está fria. E de raiva por causa de sua falta de boas maneiras. Você quer que eu seja a senhora desta casa, no entanto, a governanta foi entrando no meu quarto, estando eu no banho, e você também apareceu para perturbar minha paz e minha privacidade!
Os olhos do conde brilharam e um riso gutural saiu de sua garganta.
- Minha querida, sou seu marido. Que mal há em vê-la no banho?
- Quero sair da banheira.
- Então saia, condessa, por favor. Não se importe comigo. Segundo me disse, você já viu tantos horrores que nada a pode perturbá-la.
- Saia daqui! - Ondine gritou.
Ele aproximou-se mais da banheira e falou com voz baixa, mas nem por isso menos ameaçadora:
- Nem pense em me dar ordens e nem me mande sair de um cômodo que, afinal de contas, é meu. Entro e saio dele sem precisar de sua autorização.
A raiva de Ondine chegou ao auge. Desfiou uma fileira de impropérios e ergueu a mão para agredir o marido. Ele segurou o pulso dela, mas já havia recebido o tapa no rosto. A expressão de triunfo de Ondine durou um segundo porque a resposta de Warwick foi rápida. Com os lábios comprimidos, olhar fulminante, maxilares cerrados, ele ergueu-a da banheira rudemente, colocou-a no chão, o corpo pingando, molhando o tapete. Em seguida puxou-a para junto dele. Ondine arregalou os olhos, chocada. Suas pernas tremiam, o corpo ficou arrepiado, o coração disparou. Percebendo a reação dela, Warwick deu aquele sorriso sedutor e seus olhos ganharam um brilho irônico.
- Ondine, o que exijo de você é tão pouco, no entanto, você insiste em me provocar, em testar a minha paciência por causa de bobagens. Para que isso?
Enquanto falava ele correu os dedos pelos cabelos molhados da esposa, acariciou-lhe a nuca e o pescoço, deixando-a excitada e, ao mesmo tempo, com medo. Medo de não resistir ao poder de sedução do marido. Medo de sua vulnerabilidade.
- Por favor, eu lhe peço...
Tarde demais. A boca de Warwick fechou-se sobre a dela, possessiva, insistente. Sem forças para reagir, ela entreabriu os lábios e entregou-se à delícia daquele beijo. Por fim, o bom senso mostrou-lhe a tolice que estava cometendo. Ela virou a cabeça com força e despejou nova torrente de termos ofensivos.
Ele riu simplesmente e a manteve presa entre seus braços.
- Meu amor, eu lhe peço uma coisa tão simples: quero a sua atenção quando eu estiver falando. Como seu marido, tenho outros direitos e, lembre-se, posso exigi-los. - Em vez de soltá-la, ele passou as mãos pelas costas dela, pelos quadris, e acariciou demoradamente as nádegas.
- Maldito, patife, safado, imbecil...
- Acrescente à sua lista: marido e senhor - ele lembrou-a e continuou com as carícias que se tomaram mais ousadas.
- Tirano, bárbaro, besta-fera...
- Seu coração está batendo como o de uma lebre quando perseguida pela besta-fera! É bom aprender quem é o senhor nesta caçada. Caça e caçador. - Ele soltou-a abruptamente, pegou a toalha e jogou-a para ela.
Ondine cobriu-se e olhou para o marido esperando ver os lábios curvados num riso irônico. Decepcionou-se. Seu rosto não revelava nenhuma emoção.
- Não se preocupe. Não a perturbarei novamente - disse ele.
Curvou-se com elegância e saiu do quarto, fechando a porta.
Trêmula de raiva e sentindo aquele calor estranho, uma emoção desconhecida, ela voltou para o quarto e vestiu-se depressa.
Pensou no marido e prometeu a si mesma vingar-se dele. Olhou ao redor e lembrou-se do que Lottie havia contado sobre a falecida condessa. De repente teve a impressão de que a doce Genevieve estava presente em todo o aposento. Virou-se e ergueu a cabeça com altivez. Não pretendia viver assombrada pelo "fantasma" de Genevieve. Estava faminta e o desjejum esperava por ela na sala ao lado. Depois iria conhecer seu novo lar.

Ondine tomou o desjejum sozinha e muito feliz. Quando terminou, mandou chamar Mathilda.
- Quero conhecer o solar esta manhã e ninguém melhor do que você para me mostrar todos os cômodos - disse Ondine, com um sorriso encantador.
A governanta mostrou-se surpresa e aparentemente aliviada.
Entretanto, Ondine teve a impressão de que a mulher achava lamentável o fato de o conde ter voltado para casa com nova esposa.
As duas saíram para o corredor e Ondine falou com firmeza: - Mathilda, exijo que Lottie não sofra nenhum castigo.
- Milady, me perdoe! - Mathilda torceu as mãos, angustiada. - Eu quis apenas evitar que se aborrecesse. A senhora também é tão jovem. Eu não suportaria vê-la sofrendo e amedrontada.
- Não acredito em fantasmas - tornou Ondine gentilmente, certa de que Mathilda amava a falecida condessa. - Lamento o que aconteceu a lady Genevieve.
- O retrato dela está na galeria. Gostaria de vê-lo?
- Sim. Vamos até lá.
Na longa galeria, depois dos inúmeros retratos dos Chatham, a governanta parou diante de um, recente. Ondine olhou fascinada para a mulher retratada. Tinha um cãozinho no colo e estava sentada numa poltrona revestida de veludo carmesim. Era loira, tinha olhos azuis e possuía uma beleza etérea.
- Ela era linda - Ondine murmurou.
- Sim. O conde a amava demais. O conde ficou desesperado e triste depois que ela partiu. E estava grávida.
Ondine ficou tensa, mas não o demonstrou. Começava a entender o comportamento de Warwick. Ele era apaixonado pela esposa, e sua morte trágica, bem como a perda do bebê, deixaram-no abalado. Como não desejava casar-se de novo, escolhera uma noiva condenada à forca e a tomara sua esposa só de nome. Assim destruía as esperanças das solteiras ou viúvas que o viam como um bom partido.
Uma escada em espiral levava ao último andar, onde ficavam os quartos dos criados. Ondine quis conhecê-los. Lá do alto ela descobriu que a planta do solar não era em "U", mas um quadrado. Os cômodos do último andar e do primeiro comunicavam-se em círculo, mas os aposentos da família, não.
- Há um corredor ligando os apartamentos de Justin com os outros, mas não com os do conde - Mathilda explicou.
No passado havia no solar passagens e escadas secretas de acesso a inúmeros cômodos escondidos. Algumas dessas passagens foram descobertas e fechadas pelos homens de Cromwell. O pai do conde atual não reabriu a passagem de comunicação com seus aposentos. Dizia que assim tinha privacidade.
- Você está com os Chatham há muito tempo?
- Nasci aqui - Mathilda respondeu.
Conduziu Ondine de volta à galeria dos retratos e dali passaram pelos aposentos de Justin para alcançarem a ala dos fundos, que era a ala norte. A sala de armas ocupava quase todo o andar térreo dessa ala. Era um lugar que preservava a história da família. Ali eram guardadas armaduras, espadas, lanças e escudos de várias gerações.
A ala leste começava com a lavanderia, as cozinhas e um corredor de acesso ao salão, um cômodo imenso, ricamente decorado, com piso de mármore e tapeçarias nas paredes. Mathilda descreveu com prazer os bailes que ali tinham sido realizados.
O escritório principal de Warwick ficava do lado do grande salão. Ondine aproximou-se das estantes cheias de livros e notou, surpresa que eles cobriam vários assuntos. Viu ricos volumes encadernados de Shakespeare, de poetas franceses e italianos, notas de Pepys, Christopher Wren, Thomas More.
Do escritório elas passaram por um hall, e Mathilda abriu uma porta dupla.
- A capela - anunciou.
Mais uma vez Ondine surpreendeu-se. A capela, com arcos normandos, impressionava pelo tamanho e a beleza. Dos lados havia nichos, cada um com um altar e maravilhosas esculturas.
Sobre o piso de pedra havia um tapete vermelho que ia da entrada até o altar-mor, de mármore, com uma grande cruz de ouro.
Ondine parou diante de um dos nichos para admirar a belíssima escultura representando o anjo da misericórdia, com asas douradas, segurando uma espada junto do peito.
- Uma homenagem ao pai do conde - Mathilda explicou.
- Ele está sepultado neste altar?
- Não. Na cripta logo abaixo.
Minutos depois as duas entraram em uma antecâmara, um cômodo pequeno com saída para um pátio interno e para fora do solar. Ao fundo havia uma escada de madeira.
- A avó do conde caiu dessa escada, depois de receber a triste notícia de que o marido morrera no campo de batalha.
- Aonde leva essa escada?
- Ela é o único acesso aos cubículos usados para esconder padres perseguidos. O conde pretende destruí-la - disse Mathilda e perguntou: - Deseja ver a cripta, milady?
- Não. Por hoje é só. Estou pensando em fazer alguma mudanças na casa, mas isso fica para outro dia. Obrigada, Mathilda. Está dispensada. Você me ajudou muito.
A governanta curvou-se e atravessou a passagem em arco, uma entrada para a cozinha. Ondine ficou no pátio, distraída pensando nas modificações que pretendia fazer no solar. Sentiu um formigamento na nuca e teve certeza de que alguém a observava. Ergueu a cabeça, olhou para as inúmeras janelas e notou o movimento de uma das cortinas do quarto de Warwick. O marido parecia estar em toda parte observando-a. Ele, que não admitia ser espionado!

Capítulo IV

O jantar transcorreu em um clima extremamente agradável, não por parte de Warwick, mas por causa do entusiasmo e do bom humor de Justin. Ele contou histórias sobre os primeiros lordes normandos que ocuparam as terras Chatham.
- Dizem que o primeiro lorde Chatham era um bárbaro, devasso, de cabelos ruivos, exaltado, que não se separava do grande machado de batalha, uma relíquia dos ancestrais vikings. Tendo um ancestral como esse, é natural que nosso brasão ostente a figura da besta.
Talvez Ondine tivesse consumido o delicioso vinho além do que era recomendável e se sentia ousada, decidida a fazer perguntas ao cunhado, mesmo sabendo que isso poderia despertar a ira do marido.
- Essa história é interessante - observou. - Mas o que desperta a minha curiosidade são as histórias sobre os fantasmas que assombram o solar.
Warwick dirigiu a ela um olhar ameaçador. Justin não percebeu nada e inclinou-se para ela.
- Não conheci meus avós. Quando eles morreram Warwick era um bebê. Na época a guerra dos puritanos, seguidores de Cromwell, contra os partidários de Charles I, estava no fim.
Houve uma batalha em nossas terras, na qual meu avô e meu pai tomaram parte, claro, tinham de defender o que lhes pertencia. Meu avô foi ferido e morreu. Ao receber a notícia da morte do homem que amava, minha avó quis correr para junto dele mas sofreu um acidente e teve uma morte trágica. Mas, de acordo com o que dizem, não foi acidente...
- Justin! - Warwick interrompeu o irmão, impaciente.
- O que há de mais em falar sobre o assunto com sua esposa? Ela deve saber a verdade sobre nossos "fantasmas". Ou você prefere que ela saiba dessas histórias por outras pessoas?
Warwick levantou-se e foi terminar de beber seu vinho perto da lareira..
- Dizem que a amante de meu avô matou a esposa dele, empurrando-a escada abaixo! - Justin continuou a história.
- Amante? O que ela fazia no solar?
- Ela morava aqui. Era a governanta. Mas teve o castigo merecido, pois também rolou pela escada e quebrou o pescoço.
- Ambas sofreram um acidente. A madeira estava podre! - Warwick comentou. - Graças a isso, pessoas ignorantes acreditam que o solar seja assombrado.
- Meu irmão está certo, Ondine. Foi um acidente. Nosso pai e nossa mãe viveram felizes e morreram recentemente, de febre. Portanto, não acredite que haja alguma maldição na família ou fantasmas querendo nos prejudicar.
Warwick voltou para perto da mesa.
- Querida, você já ouviu histórias demais por hoje. Dê boa noite a Justin e vamos para nossos aposentos.
- Mas é tão cedo!
- Vamos!
Justin riu.
- Ah, recém-casados! O que posso dizer, Ondine? Há bestas-feras famintas na família!
Ondine enrubesceu. Mas o marido abraçou-a pela cintura e antes de sair da sala com ela disse ao irmão:
- É uma pena que você ainda não possa voltar para a corte e nos deixar em paz.
- Bem que eu queria estar em Londres em vez de ficar aqui atrapalhando o romance de vocês. Podem ir e me deixem apreciando meu vinho.
Warwick e Ondine saíram da sala e foram para seus aposentos em silêncio. Quando entraram na sala íntima, Ondine perguntou:
- Por que você se recusa a me contar coisas que eu devo saber? Você quer que eu faça o papel de sua esposa, no entanto, vive me dando ordens, tira minha autoridade na frente dos criados e me deixa trancada à noite como se eu fosse propriedade sua, como um de seus cavalos ou cães.
- Você é propriedade minha desde que a libertei da forca. Uma propriedade que, aliás, está sendo bem cuidada.
Ondine estava inflamada pelo vinho e não se conteve.
- Foi você, milorde, quem me recomendou para jamais falar em forca.
Ele tirou o paletó, deixou-o sobre o banquinho da espineta, sentou-se na poltrona, estirou as pernas e colocou sobre a escrivaninha os pés calçados com botas.
- Talvez eu deva devolvê-la à forca, já que você parece disposta a morder a mão que a alimenta.
- Não pode me mandar para a forca. Casou-se comigo, milorde. Não sou mais uma condenada.
Warwick esfregou as têmporas. Sentia forte dor de cabeça.
O comportamento dela durante o jantar o deixara irritado e experimentando uma emoção desconhecida. Um misto de admiração, desejo e perplexidade.
- Certo. Não posso mandá-la de volta para a forca, mas posso devolvê-la àquelas pessoas do seu passado, com quem você luta em seus pesadelos - Warwick retrucou.
- O quê?
Ao ver Ondine tomar-se pálida, trêmula e assustada, Warwick arrependeu-se do que acabara de dizer. Não tivera a intenção de feri-la. Jamais iria atirá-la no poço de demônios que ela tanto temia. Quis abraçá-la e beijá-la.
Lembrou-se de que a havia tomado nos braços nessa manhã, nua, palpitante, sentira o gosto doce de seus lábios. Um desejo intenso, quente, percorreu-lhe o corpo. Ele tirou os pés da escrivaninha, virou-se e cerrou os dentes. Não! Tinha de afastar os pensamentos que o deixavam naquele estado. Casara-se com Ondine, mas tinha de rejeitá-la, uma vez que ela demonstrara ser uma ladra, mentirosa e ingrata.
Devagar, começou a acalmar-se e lembrou-se de que estava se comportando como um tirano ressentido. Admitia que Ondine tinha muitas qualidades. E ele não lhe desejava mal nenhum. Pretendia deixá-la livre para viver feliz. Levantou-se e foi até a esposa que estava pálida como cera.
- Desculpe. Eu não quis tocar na sua ferida. Nunca permitirei que lhe causem algum mal. E se eu não quero que falem de fantasma é porque essa história me deixa impaciente. Minha avó sofreu um acidente. Essa é a verdade. Além disso, era bondosa e jamais iria assombrar alguém ou causar-lhe mal.
Ondine baixou a cabeça. Aos poucos a cor voltou-lhe ao rosto.
- Eu compreendo o que sente. Você amava sua esposa. E se ela era louca...
- Louca! Não! Genevieve não era louca! - ele gritou. Foi até a janela e ficou olhando para o escuro da noite. Continuou de costas para Ondine e murmurou: - Ondine, vá para a cama.
Durante uns segundos ela não se moveu. Quando ele ouviu os passos dela se afastando, virou-se a tempo de vê-la sair da sala com a cabeça erguida, caminhando com graça, como se tivesse mesmo nascido para o papel de condessa.
A porta se fechou. Warwick sentiu nova onda de desejo. Foi até um armário e tirou dele uma garrafa de uísque. Tomou a bebida pura, sentindo o líquido queimar-lhe a garganta. Sentou-se na poltrona, trêmulo, e esmurrou a escrivaninha. Que Ondine fosse arder no inferno dos ladrões.
Tinha de aprender a manter-se longe dela.

Ondine já estava deitada, furiosa, quando ouviu, como na véspera, o som dos cascos de cavalo. Levantou-se, foi até a janela e afastou a cortina. Viu o marido montado no grande baio, muito elegante, usando capa preta e o chapéu com a pluma vermelha.
Ele cavalgou na direção oeste novamente. Com o coração apertado e consumida pelo ciúme, Ondine se perguntou se ele iria ver outra mulher.
Afastou-se da janela com raiva do marido e de si mesma por experimentar aquelas emoções. Tirou as roupas e vestiu a camisola que Lottie havia deixado estendida sobre a cama. Deitou-se, mas não conseguiu dormir, só pensando no marido, desejando ser acariciada e beijada por ele.
Tola! Repreendeu-se, furiosa. Warwick era um mestre na arte da sedução, mas não se deixaria enganar por ele. Tinha muito orgulho e muita raiva para ver-se presa dos seus encantos.
Só adormeceu depois de ouvir a porta do apartamento dele se abrindo e se fechando em seguida. Warwick havia voltado.

Os dias que se seguiram foram tranqüilos. Ondine inteirou se da rotina doméstica, conheceu todos os criados e outros empregados. Orientou os jardineiros para colherem diariamente flores para enfeitar seu apartamento, a sala de família, o hall e a capela.
Distraía-se lendo, tocando espineta e a harpa. Via o marido só ao jantar e ele mostrava-se extremamente cortês, mas distante. Justin continuava alegre e encantador.
Toda noite terminava da mesma forma. Warwick a levava até o quarto, desejava-lhe boa-noite e lembrava-a para trancar a porta de comunicação entre seu quarto e o dele. Depois saía para cavalgar. Na noite em que isso não acontecera, Ondine o ouvira andando em seu quarto, de um lado para outro.
No quinto dia no solar, ela decidiu começar a fazer mudanças nos seus aposentos. Os criados lhe obedeceram sem questionar até Mathilda surgir em cena. Queria que tudo continuasse como antes. Warwick não tardou a aparecer e foi a favor da esposa.
- Lady Ondine agora é a dona desta casa e pode fazer as mudanças que desejar.
Ele afastou-se deixando a governanta com lágrimas nos olhos. Com pena da mulher, Ondine lembrou-a amavelmente que Genevieve estava morta, e ela não se sentia bem cercada de lembranças da falecida condessa.

Nessa noite, assim que Warwick saiu para cavalgar, Ondine foi para a sala de música. Estava sentada diante da harpa, dedilhando melodias, esquecida de tudo, quando sentiu aquele formigamento na nuca, sensação com a qual já se acostumara. Virou-se e viu Warwick parado à porta. Ele aproximou-se e tocou a mão dela, interrompendo a melodia.
- Você toca muito bem, minha lady ladra.
- Como entrou? Tranquei a porta!
- Tenho chaves que abrem todos estes aposentos, condessa.
Mas eu estava falando sobre seu talento para música. Também a ouvi tocar a espineta.
- Ouviu?
- Sim. Não apenas hoje, mas todas as outras vezes que tocou esses instrumentos. É de estranhar que uma moça que vivia numa floresta roubando caça saiba tocar tão bem.
- Eu lhe disse, meu lorde Chatham, que meu pai era poeta e se apresentava nas cortes. Tive professores de música.
- É verdade. Um poeta. Meu amor, eu gostaria que você recitasse para mim poesias de seu pai.
Deus do céu! Ondine sentiu um branco na cabeça. Não conseguiu lembrar-se de duas palavras que rimassem ou soassem melodiosas.
- Por favor, não exija isso de mim. Meu pai morreu há pouco tempo e lembrar-me dele me faz sofrer.
A dor nos olhos dela era real. Warwick olhou para ela e comoveu-se. Parecia tão vulnerável e desprotegida. Ao mesmo tempo, não podia estar mais desejável, usando apenas a camisola e um négligé, tendo os cabelos sedosos caídos às costas.
Notando o ardor nos olhos dele, Ondine sentiu um fogo percorrendo-lhe as veias, o coração disparou e ela teve os pensamentos mais impróprios. Pensou em fugir, mas sabia que ele a prenderia em seus braços. Surpreendeu-se quando ele esboçou seu sorriso enigmático, inclinou a cabeça e falou suavemente:
- Durma bem, milady.
Ela não esperou mais nada. Foi depressa para seu quarto e fechou a porta, não esquecendo de girar a chave. Se bem que esse recurso não representava proteção nenhuma, pensou.
Correu para a cama e fechou os olhos desejando que o coração voltasse ao ritmo normal.
Ondine mexeu-se na cama, agitada. A cena parecia tão real. Ela e o pai, o duque de Rochester, caminhavam...
No passado, o duque de Rochester caíra no desagrado de Charles I por condenar a política autocrática do soberano. Porém, lutara energicamente contra sua decapitação. Quando Charles I recuperou o trono, o duque e Ondine voltaram a freqüentar a corte.
Naquela tarde quente de junho, um ano atrás, pai e filha assistiram ao torneio e quando este terminou, o rei cumprimentou-os alegremente e seguiram para o salão do palácio onde se realizaria um banquete. Perto do duque estava William, seu irmão de criação, e o filho deste, Raul. Os guardas reais ficaram mais para trás, rindo, pois aquele era um dia festivo.
De repente, uma espada reluziu no ar. Raul atracou-se com o duque e feriu-o de morte, alegando que Sua Alteza havia sacado a espada para matar o rei. Fora uma encenação perfeita, pois todos acreditaram em Raul. Tarde demais o duque de Rochester compreendera que o irmão de criação tinha arquitetado aquele plano sórdido para tomar-se tutor de Ondine e se apossar de tudo que ela iria herdar do pai. Por isso, antes de dar o último suspiro e fechar os olhos para sempre, aconselhara a filha a fugir e se esconder.
Ondine tentara correr para a floresta, mas Raul a agarrara e lhe dissera que se ela não se casasse com ele, seria acusada de cúmplice do pai e condenada pelo crime de traição.
Ao mesmo tempo em que Ondine se debatia e gritava no sonho, duas mãos fortes prenderam-lhe os pulsos e ela ouviu uma voz suave.
- Ondine, Ondine...
Ela abriu os olhos e viu com novo horror que estava nos braços do marido.
- O que foi? Por que você gritava tanto?
- Tive um sonho ruim. Nada mais. - Ela tentou sorrir.
- Você sonhou com Newgate?
- Isso... E com o laço da forca.
- Os pesadelos terminarão um dia. - Ele sentou-se na cama, recostou-se no travesseiro e esticou as pernas. - Agora, venha cá. Está trêmula.
Com essas palavras ele aconchegou-a nos braços e a manteve confortavelmente junto do peito. Alisou-lhe os cabelos gentilmente, e passou a mão nas suas costas.
- Durma, minha bela que sua fera manterá a guarda.
Seria impossível dormir encostada no peito nu do marido, sentindo os braços fortes e bronzeados ao seu redor, com ele tocando-a, pensou. Mas as carícias dos seus dedos em sua nuca, as palavras sussurradas como um acalanto e a segurança que ele transmitia fizeram-na adormecer.

Pela manhã Ondine acordou inquieta e também irritada por causa de sua fraqueza na noite anterior. Ansiava por ter liberdade, desejava sair do solar, fugir de seus pesadelos e dos fantasmas de Chatham.
Depois do banho e do desjejum, decidiu ir às cocheiras. Passou pela sala íntima e ao sair viu Jake sentado à porta afiando tranqüilamente um punhal. Não foi difícil para Ondine entender que não era o marido quem a vigiava e, sim, Jake. Ele se mantinha a distância, era muito esperto e discreto para ela não descobrir que estava sendo espionada.
O criado inclinou-se para ela, cumprimentou-a com um sorriso e perguntou:
- Como está, milady?
- Ótima. Muito melhor do que me sentia vivendo na floresta ou na minha cela e ainda melhor do que com a corda no pescoço.
Os olhos dele brilharam com humor e ele levou o indicador sobre os lábios.
- Shh! Cuidado, milady!
Ela abaixou a voz.
- Obrigada por me lembrar. Vou dar uma volta. Preciso de ar fresco. Lorde Chatham está por perto?
- Não sei onde ele possa estar. Quer que eu o procure, milady?
- Oh, não é necessário - respondeu Ondine docemente.
- Com licença, Jake.
Ela passou pelo criado sem dizer para onde ia. Saiu do solar pela porta oeste, andou devagar pelo jardim de rosas e não olhou para trás, embora estivesse curiosa para saber se Jake a seguia. Quando alcançou o pátio e ia para as cocheiras, mesmo sem ver o criado, teve certeza de que ele estava atrás dela.
Tad, um jovem cavalariço que limpava alguns arreios presos a um pilar, levantou-se depressa e curvou-se diante de Ondine, surpreso.
- Milady!
Ela sorriu.
- Bom dia, Tad. Você poderia arranjar um bom cavalo para mim? Quero fazer um passeio.
- Eu... - O rapazinho hesitou. - Clinton está lá dentro, milady Vou chamá-lo.
- Não é preciso. Obrigada, Tad. Continue seu trabalho.
Ondine encontrou Clinton numa das baias escovando um belo cavalo castanho. Cumprimentou-o e ele respondeu ao cumprimento respeitosamente, mas ela percebeu que ele ficou tenso ao vê-la.
- Magnífico animal - disse ela, afagando o pescoço do cavalo. .
- Sem dúvida, Dragon é incomparável. É o cavalo predileto de seu marido.
- Deve ser muito bom montar um animal como este.
- Como a senhora disse, condessa, Dragon é magnífico, mas indômito. Ninguém o monta a não ser Warwick - advertiu Clinton, fixando em Ondine os olhos intensamente verdes.
Ondine entendeu a mensagem, mas não se ressentiu com Clinton, mesmo porque não se sentia inclinada a ir contra os desejos do marido. Além disso, o olhar de Clinton a estava deixando intrigada. Teve a impressão de que conhecia o administrador das cavalariças de algum lugar. Não resistiu e perguntou:
- Clinton, algo em você me é familiar. Será que já nos vimos antes?
Ele riu..
- Condessa, todos dizem que tenho os olhos iguais aos de minha mãe. Sou filho de Mathilda. Daí a senhora achar que algo em mim lhe é familiar.
- Ah! - Ela mostrou-se aliviada. - Você também nasceu e cresceu no solar.
- Isso mesmo, milady.
- Quer dizer que você e Warwick são bons amigos? Cresceram juntos?
- Seu marido e eu somos primos.
- Primos? - Ondine repetiu, muito surpresa.
- É de se admirar que Warwick não tenha mencionado esse parentesco. Isso não é segredo nenhum. Sou filho ilegítimo. Bem, depois que eu nasci, meu pai se casou com minha mãe, mas desapareceu - Clinton falou com naturalidade, sem nenhum ressentimento.. - Com certeza, milady, já ouviu histórias sobre nossos fantasmas, não.?
- Algumas.
- Deve ter ouvido falar de uma certa amante que empurrou a avó de Warwick da escada, causando sua morte. Essa amante acusada também morreu rolando da mesma escada. Ela era minha avó. Mãe de Mathilda. Portanto, somos todos Chatham.
- Que história incomum. Você e sua mãe não guardam ressentimentos?
- Não. Tenho privilégios Nada me falta. Minha mãe foi abandonada por meu pai. Seu meio-irmão, o pai de Warwick, abrigou-a e encarregou-a de administrar a casa. Meu tio era um homem admirável. Éramos bem tratadas. Cresci com meus primos. Tive preceptores e chances na vida. Escolhi trabalhar para Warwick porque amo este serviço e não pode haver patrão melhor nem mais justo do que ele. Também amo. Chatham e North Lambria. Respondi às suas perguntas, milady?
- Eu não tinha a intenção de submetê-la a um interrogatório. - Ela sorriu para Clinton. - Você é da família e trata seus primos pelo primeiro nome. Pode me chamar de Ondine.
- Sim, Ondine.
- Vim até aqui para escolher um cavalo.. Quero fazer um passeio. Já que Dragon só é montado por Warwick, que montaria você sugere?
A expressão de Clinton mudou. Ele ficou sério e nada à vontade.
- Você já falou com Warwick que pretende sair por aí a cavalo?
- Preciso da autorização dele? - O tom de Ondine foi cortante.
- Receio que sim. Converse com ele e terei prazer de arranjar-lhe um cavalo excelente.
- Por que não posso fazer um passeio a cavalo pela propriedade?
- Quem pode lhe dar essa resposta é Warwick. E ali está ele.
Ondine virou-se depressa e viu o marido se aproximando.
- Olá, Warwick. Creio que sua esposa quer ter uma palavrinha em particular com você. - Clinton riu tocou no chapéu e afastou-se assobiando.
- Qual o problema, condessa? - Warwick indagou sem rodeios.
- Parece que não tenho autorização para cavalgar - Ondine queixou-se.
- Ah, você sabe montar?
- Ladrões de cavalas não montam?
- Você não tem permissão para montar.
- Por que não?
- É perigoso.. De mais a mais, não confio na sua habilidade de amazona.
- Quer dizer que sou uma prisioneira aqui?
- Pense o que quiser.
Os olhos de Ondine arderam, mas ela jurou a si mesma que não ia derramar uma lágrima. Qual era a verdadeira natureza daquele homem? Na noite anterior ele tinha sido sedutoramente gentil e pela manhã voltava a ser gélido e insensível.
- Não sou obrigada a suportar isso! Você não é meu dono, não sou sua prisioneira!
- E você não desrespeite minha autoridade, sua... - ele não completou a frase.
Ondine ergueu o braço e lhe deu um soco no peito acompanhado de alguns adjetivos impróprias.
Uma fúria silenciosa endureceu a expressão do conde. Ele avançou para a frente e Ondine tentou fugir, mas foi agarrada pelo braço com tal ímpeto que rodopiou e caiu de joelhos. Num segundo viu-se empurrada contra um fardo de feno.
- Parece que você gosta de se deitar e rolar num monte de feno - disse, inclinando-se sobre ela. - Bem, para você isso deve ser natural. Pode haver lugar melhor para ladras e vadias se divertirem?
- Bastardo! - Ondine sussurrou por entre os dentes, que rendo arranhar o marido, mas não tinha como se mover.
Quando achou que estava perdida, pois havia passado dos limites, insultara o marido e iria experimentar sua fúria, ele soltou-a. Ergueu as mãos e falou com ironia:
- Começo a entender por que os maridos espancam suas esposas! - Ele olhou ao redor. - Bem que você merece um corretivo e aqui há chicotes à vontade...
- Você não ousaria!
- Não. Mesmo porque os criados e os vizinhos comentariam. Prefiro usar a mão. - Havia centelhas douradas nos olhos dele. - Sim, algumas fortes palmadas nas nádegas, nuas, naturalmente, costumam ser um castigo satisfatório! Estou tentado a fazer isso.
Ondine olhou-o, abismada. Ele não podia estar falando sério. Baixou a cabeça e falou suavemente:
- Sinto muito por tê-lo ofendido. Mas não retiro o que eu disse sobre ter liberdade de cavalgar. Não quero me sentir como uma prisioneira.
- Não é nada disso. Só não quero que você cavalgue sozinha. Há javalis e lobos na floresta. E há lorde Hardgrave. Não quero que você encontre nenhum dos três. Se quiser cavalgar, basta me dizer; eu a acompanharei com prazer.
- Ótimo. Tenho mais uma coisa para lhe pedir. Eu gostaria que você me contasse coisas que, na qualidade de sua esposa, devo saber. Você não me disse que Mathilda é sua tia e Clinton filho dela.
Warwick deu de ombros.
- Não tive a intenção de esconder meu parentesco com Clinton e Mathilda. Creio que não achei necessário falar sobre isso. Você devia ter notado que Clinton, Justin e eu somos parecidos. Bem, cara esposa, há mais alguma coisa que a perturba?
- Há. Você!
- Eu? Como? Posso lhe assegurar que faço o possível para deixá-la em paz.
- Você me espiona! - Ondine acusou-o. - Vive me seguindo, me vigia...
- Discordo, madame. Tenho de cuidar de assuntos muito importantes. Não posso perder tempo com tolices.
- Pode ser, mas você manda Jake me espionar! Faz questão de me deixar trancada logo depois do jantar, enquanto sai a cavalo noite após noite, em total liberdade!
- Oh, minha ausência a incomoda? Sente falta do seu marido?
- De jeito nenhum! Sua ausência me alegra.
- Lamento, mas sua alegria não vai durar muito. Recebi um chamado de Charles II e iremos para a corte dentro de poucos dias.
A cor fugiu do rosto de Ondine.
- O quê? Eu não posso...
- Iremos para a corte - Warwick repetiu. - Não me venha com desculpas. Também não precisa ter medo. Ficarei longe do seu quarto toda a noite.
- Vá sozinho! Você ficará livre para perseguir a beldade que desejar...
- Estamos casados. O rei, principalmente, há de querer conhecer minha adorável esposa.
- Não! Não irei com você!
- Chega. Sua teimosia já me cansou. - Warwick apoiou as duas mãos na parede atrás de Ondine e seu rosto ficou bem perto do dela. - Ondine, escute. Você me acompanhará. Portanto, seja boazinha. A não ser que prefira fazer a longa viagem mal podendo sentar-se, tal estado de seu traseiro.

Capítulo V

Ondine mandou Lottie à sala de jantar dizer a Warwick que estava indisposta e não poderia reunir-se a ele e a Justin.
Ela se sentira mal, realmente, depois de o marido lhe dizer que, de um modo ou de outro a levaria a Londres. Passara a tarde tentando encontrar um modo de fugir do solar, mas isso lhe pareceu impossível. Era vigiada constantemente.
Uma batida na porta deixou-a assustada. Lembrou-se de que não podia ser apanhada andando nervosamente de um lado para outro e completamente vestida se estava "indisposta". Inspirou fundo e perguntou:
- Quem é?
- Mathilda, milady. Eu lhe trouxe chá e um caldo.
- Obrigada. Não estou com fome.
- Precisa se alimentar, milady. Não irei embora se não comer alguma coisa - a governanta insistiu.
Notando a determinação na voz de Mathilda e também sua preocupação, Ondine sentiu-se culpada.
- Um momento.
Despiu-se depressa, vestiu uma camisola, desarrumou a cama e correu até a porta.
- Oh, lady Chatham, não devia sair da cama descalça! Mathilda repreendeu-a. - Volte para debaixo das cobertas.
- É o que vou fazer Obrigada. Pode deixar a bandeja...
- Não sairei daqui enquanto não se alimentar, milady.
A governanta deixou a bandeja sobre a cômoda, foi até a cama e ajeitou os travesseiros. - Sente-se aqui, milady e recoste-se nos travesseiros para eu colocar a bandeja no seu colo.
Ondine ficou comovida com as atenções da mulher. Sentiu se mais culpada ainda.
- Não se preocupe, Mathilda. Tive apenas uma ligeira indisposição do estômago. Pela manhã estarei bem - comentou Ondine e sentou-se na cama. Mathilda ajeitou as cobertas sobre suas pernas.
- Cuidado nunca é demais, milady.
- Prefiro que me chame pelo primeiro nome. Fiquei sabendo que você também é uma Chatham.
Mathilda mostrou-se surpresa.
- Então você não sabia que Warwick é meu sobrinho?
- Até esta manhã, não.
A governanta adoçou o chá e entregou a xícara a Ondine. - Você compreende a minha preocupação com sua saúde. Essa criança terá meu sangue.
- Criança?! - Ondine repetiu e engasgou com o chá.
Mathilda bateu nas costas dela.
- Oh, minha querida. Com certeza você não queria que seu marido desse a notícia, por enquanto. Mas os homens são assim mesmo. Ficam tão orgulhosos quando se trata de um herdeiro. Não fique zangada com ele. Quando foi avisado que você estava indisposta, pareceu preocupado. Depois suspirou e começou a sorrir. Ah, aquele sorriso maroto e encantador... Você conhece o conde! Então ele disse que era natural uma mulher sentir algum desconforto no começo da gestação.
O homem era doido! Ondine pensou. Mas por que Warwick dissera aquela mentira? Por que ela era constantemente vigiada? O quê, em nome de Deus, estava acontecendo? Talvez fosse melhor ela dizer de uma vez que o conde era maluco ou se enganara. Não havia criança nenhuma.
- Milady... Ondine, você está bem? Receio tê-la deixado pior por ter falado demais.
- Estou bem. Só fiquei surpresa. Eu não esperava que meu marido desse a notícia. Ainda é cedo. Quero estar absolutamente certa...
- Uma mulher sabe dessas coisas. Um bebê no solar novamente! Mas tome cuidado, eu lhe peço. Você é jovem e saudável. Não é como... - Mathilda parou de falar, seus lábios tremeram.
- Genevieve?
- Sim. Como Genevieve.
- Oh, Mathilda, não se preocupe. Tudo vai correr bem.
- Eu sei que vai.
- Desculpe a minha emoção. Agora você deve tomar o caldo! Pelo bebê... E, por favor, se precisar de alguma coisa, a qualquer hora, pode me chamar!
- Obrigada, Mathilda.
- Não vou sair daqui enquanto você não tomar o caldo. Ondine tomou o caldo e o chá. Quando terminou, Mathilda sorriu para ela, satisfeita.
- Agora, descanse!
- Vou descansar. Prometo. - Ondine hesitou antes de perguntar: - Mathilda, quem estava na sala quando Warwick deu a notícia?
- Estavam presentes Justin, alguns criados e eu. Ah, e Clinton que acabara de chegar.
- Qual foi a reação deles?
- Todos ficaram contentes. Justin começou a rir, disse ao irmão que ele não perdia tempo. Disse também que morria de inveja e... - Mathilda parou, sentindo-se desconfortável.
- O que mais? Diga, senão não conseguirei dormir.
- Bem, Justin acrescentou que só queria ver a reação de lady Anne quando soubesse que o conde estava casado e sua esposa esperava um bebê.
- Lady Anne?
- Uma antiga paixão do conde. Você não a conheceu na corte?
- Não - Ondine respondeu, sentindo raiva. Mais uma coisa que o marido não lhe dissera.
- Não se preocupe, o romance terminou há muito tempo.
- Mathilda assegurou. - Seu marido disse que estava ansioso para que lady Anne e lorde Hardgrave soubessem que ele se casara e em breve haveria um herdeiro em North Lambria.
- Quem é lorde Hardgrave? Ocasionalmente Warwick menciona o nome dele com desagrado.
- O visconde é um vizinho. Ele e Warwick se conheceram aos três anos de idade e desde então há rivalidade entre ambos.
- Obrigada, Mathilda, pelas informações. - Ondine forçou um meigo sorriso. - Pode ir. Prometo que vou descansar.
Mal ouviu a governanta sair, fechando a porta, levantou-se, furiosa.
- Mas, seu patife! Que tipo de jogo é o seu? - ela murmurou, indo para a sala íntima.
Ficaria ali esperando Warwick para terem uma conversa séria.
Ocorreu-lhe então que encontrara, por fim, um meio de não ir a Londres. Iria dizer ao marido que se ele a obrigasse a acompanhá-lo, ela diria a todos que não estava esperando bebê nenhum.
Começou a andar de um lado para outro, ainda pensando sobre o assunto. Ocorreu-lhe que talvez Warwick iria responder que ela podia contar a quem quisesse, pois ele não se importava.
Nesse caso, quem sabe seria melhor contar a verdade ao marido. Diria que era impossível aparecer na corte porque, se fosse reconhecida, seria presa e condenada por traição.
Só de pensar nessa possibilidade, ela gelou. Não! Não iria revelar quem era, tampouco desejava envolver o nome da família em um escândalo novamente. Tinha de falar com o marido.
Saiu para o corredor e encontrou Jake sentado, com a cabeça encostada na parede, o chapéu caído sobre os olhos como se estivesse adormecido. Ele percebeu a presença dela e ficou de pé imediatamente.
- Milady? - indagou, embaraçado, vendo que ela estava só de camisola, descalça e com os cabelos despenteados. Precisa de alguma coisa?
- Onde ele está, Jake?
- Ele? Lorde Chatham?
Ondine cruzou os braços.
- Quem mais poderia ser? Onde ele está?
- Milorde... saiu.
- Aonde ele foi?
- Não sei, milady.
- Mentira! Jake baixou os olhos. Ondine soube que nem sob ameaça ele iria trair o patrão.
- Está bem, Jake. Quando ele volta?
- Se quiser falar com ele, é melhor deixar para amanhã.
Ele deve voltar tarde.
- O que está acontecendo, Jake? Por que Warwick está fazendo isso comigo?
- Fazendo o quê? Milady, pense nas boas coisas que lhe aconteceram. Confie no seu marido.
Ondine respirou fundo. De nada adiantava ficar impaciente com o bondoso Jake.
- Desculpe. Eu sei que você jamais trairia a confiança de seu patrão. Agradeço por estar viva. Só espero não ficar louca!
- Oh, milady, ouça o que eu tenho a lhe dizer: confie em mim e confie no seu marido. Agora entre e tranque suas portas!
De volta ao quarto Ondine sentiu-se exausta, frustrada e com raiva. Por que as saídas noturnas do marido a deixavam tão furiosa? As respostas que lhe ocorreram a desagradaram.
Tinha de admitir que Warwick exercia um fascínio sobre ela. Trazia impressos na memória seu belo rosto, sua figura elegante, os olhos cor de âmbar, os lábios sensuais. Estremecia só de pensar no modo como ele a tocava. Era verdade que ele a magoava com sua ironia e palavras ofensivas, mas seu lado humano, sua bondade compensavam suas faltas. Ela conhecera esse lado bondoso de Warwick no instante em que ele a abraçara para que ela não visse a morte dolorosa dos amigos Pat e Joseph.
Sim, ela queria Warwick. Não o Warwick sedutor, que despertava paixões nas mulheres da corte. Queria o homem que havia amado Genevieve. Queria vê-lo sorrindo e lhe dizendo que a amava, beijando-lhe a mão e os lábios. Mas ele a considerava uma ladra de cavalos. Uma propriedade dele.
Deitou-se, mas ficou acordada durante horas. Quando, por fim, adormeceu, sonhou com o primo, Raul. Viu seus olhos escuros e tão bonitos, o rosto magro. Ela nunca havia imaginado que um dia chegaria a odiar o primo. Eles tinham sido sempre companheiros. Nunca desconfiara que ele sentia ciúme dela e que o tio invejava o título e as propriedades do irmão de criação, a tal ponto, que arquitetara um plano diabólico para roubá-lo.
No sonho, o rosto de Raul continuou a girar diante de Ondine. Aos poucos os olhos escuros tornaram-se verdes e risonhos, e o rosto que ela passou a ver era o de Justin Chatham.
Depois não era Justin quem lhe sorria, mas Clinton. Por fim, o marido entrou em cena. Todos os homens avançaram para ela brandindo suas espadas. Ela sabia que estava sonhando e que um dos homens queria salvá-la, os outros queriam matá-la.
Acordou trêmula sem entender o sonho.
Ficou pensativa, olhando para o raio de luar que entrava pela janela. Se fosse mesmo obrigada a encontrar-se com o rei, tentaria falar com ele a sós e lhe suplicaria para dar-lhe uma chance de provar sua inocência. Charles II era conhecido por seu senso de justiça e por detestar violência, especialmente quando se tratava da condenação de uma mulher à morte.
Seus pensamentos foram interrompidos por um sussurro.
Era um som tão baixinho e suave que ela julgou estar imaginando coisas. O sussurro tornou-se mais audível. Parecia ter sido trazido pela brisa. Era triste. Um lamento.
- Ondine...
Ela sentou-se na cama e apurou os ouvidos.
- Ondine... Ondine, venha até mim. Sinto frio e estou só...
- Quem é você? Onde você está? - Ondine perguntou, levantando-se.
- Ondine...
Perplexa, Ondine acendeu uma vela, andou pelo quarto, procurou atrás das cortinas, entrou no quarto de vestir, abriu as portas dos armários. Não viu ninguém. Foi até a sala íntima e serviu-se de uma dose de uísque. Sentou-se numa poltrona, decidida a esperar pelo marido até amanhecer se fosse preciso.
Estava quase amanhecendo quando Warwick entrou na sala e surpreendeu-se ao vê-la ainda acordada, de camisola, com um copo na mão.
- É uma grande honra vê-la acordada até esta hora, esperando por mim - falou suavemente.
Ondine ergueu o copo. Os olhos azuis flamejavam.
- Milorde, creio que devemos ter uma conversa séria. Warwick tirou as luvas, atirou-as sobre a escrivaninha. - Fale, milady.
- Para começar, recebi esta noite parabéns por um bebê que não existe.
- Qual foi sua resposta? - Warwick serviu-se de uísque.
- Não desmenti sua história. Ainda não!
- Isto é uma ameaça?
- É. Você nunca me dá explicações. Seu jogo é desleal.
Então sou obrigada a criar minhas próprias regras. Ouço suas mentiras e tenho de sorrir. Agora vou dar o troco. Recuso-me a ir a Londres.
Com um movimento brusco warwick segurou o queixo de Ondine.
- Invasão de propriedade, roubo, e agora chantagem! Quantos talentos para uma pessoa tão jovem! - Ele soltou o queixo dela, curvou-se e sussurrou-lhe ao ouvido: - Você não vai desmentir o que eu disse. Se eu menti sobre o bebê é porque desejo que todos acreditem nessa mentira e, principalmente, quero que ela se torne uma verdade. E jamais me ameace, Ondine!
- Ora, não há necessidade de ameaças. Você devia ficar agradecido porque fiquei tão chocada que não disse a Mathilda que você era um mentiroso. Por Deus, quero saber o que acontece aqui! Sou constantemente vigiada, você diz mentiras, sai misteriosamente toda noite para cavalgar e não posso dormir porque sou perturbada por brincadeiras de mau gosto.
- O quê? - A pergunta soou como uma explosão. - De que está falando?
- Uma hora atrás, eu estava deitada e alguém sussurrou meu nome. Essa voz me chamou várias vezes, disse que tinha frio e estava só.
Warwick deixou-a, foi até seu quarto, andou pelos outros aposentos e quando voltou estava pressionando as têmporas como se tivesse dor de cabeça.
- Não há nada nestes aposentos. Você deve ter imaginado tudo isso.
- Não imaginei. Sou tudo o que você disse: ladra, invasora de propriedade, chantagista, mas não imagino coisas.
- Está bem. Se você ouvir sussurros outra vez, me chame imediatamente. Entendeu?
- Sim, meu senhor. Tenho de obedecer às suas ordens.
- Ondine, deixe de ser agressiva. Confie em mim. - O tom de Warwick era suave. - Você verá que só quero seu bem. Quero que você seja livre e viva bem enquanto durar sua vida natural.
Então era isso! Ele a estava usando com alguma finalidade. Depois se livraria dela! De cabeça baixa, com os lábios trêmulos, desferiu:
- Vai ser difícil chamá-lo, sir, uma vez que você nunca está por perto.
- Estarei. Deixe a porta de comunicação aberta. Bastará pronunciar meu nome. Eu a ouvirei. - Warwick aproximou-se dela, abraçou-a e murmurou: - Ondine, nome mitológico e mágico. Ondine era uma ninfa linda e sedutora que prendeu o coração de um homem. Casando-se com ele, ganhou vida mortal. Você também é linda e ganhou a vida... Confie em mim. Juro fazer tudo para que você a preserve.
Atônita e trêmula de emoção, Ondine encostou a cabeça no peito do marido. Ele a carregou no colo e deitou-a na cama.
- Não se esqueça. Dentro de três dias partiremos para Londres.
- Eu... não posso ir...
- Não vamos falar sobre isso novamente - disse Warwick com impaciência. - Não tente escapar porque a trarei de volta.
Tendo o olhar do marido fixo nela, Ondine não encontrou a voz para protestar. Queria gritar e ofendê-lo, mas ali ficou, imóvel e calada, presa ao fascínio que ele exercia sobre ela.

PARTE II
Capítulo VI

Ondine passou os três dias que se seguiram atormentada e ansiosa, tentando em vão evitar sua ida para a corte. Não havia como fugir do solar. Clinton não a deixava montar alegando que o exercício poderia prejudicar o bebê. Jake, embora discreto, a seguia constantemente. Ela praticamente tropeçava em Mathilda ou Lottie, bastava fazer um movimento.
Só via Warwick ao jantar. Ele a tratava com o maior carinho; comportava-se como um marido amoroso, preocupado com a esposa que esperava seu herdeiro. À noite, em vez de sair para cavalgar, ficava com ela na sala íntima.
Na véspera da viagem, Mathilda estava ajudando Ondine a arrumar os baús e comentou:
- Você fará o maior sucesso na corte! Posso assegurar que nem as consagradas beldades têm a sua beleza e a sua juventude.
- Você já esteve na corte?
- Sim, acompanhei Genevieve. - Mathilda enxugou uma lágrima, depois sorriu. - Como eu gostaria de vê-la brilhar naqueles salões, e deixar a orgulhosa lady Anne morrendo de inveja.
Ondine ficou em silêncio. Ela sim, iria morrer, não de inveja, mas de ciúme, pois estava certa de que Warwick iria para os braços da mulher por quem tinha sido apaixonado. Esperou Mathilda sair do quarto e atirou o travesseiro longe.
Nessa noite, ao jantar, mostrou-se encantadora, riu e flertou com Justin. Warwick manteve-se surpreendentemente quieto.
Ela terminou de comer, ele levantou-se e enlaçou-a pela cintura.
- Meu amor! Temos de partir ao amanhecer, por isso devemos nos deitar cedo. Ondine não teve alternativa senão dar boa-noite a todos e acompanhar o marido.
Quando ambos entraram na sala íntima, ela continuou a andar na direção do quarto.
Tinha de tentar fugir. Sua única chance era esperar que todos dormissem para ir às cocheiras e roubar um cavalo.
Em seu quarto, tirou apenas os sapatos, deitou-se, vestida como estava, e aguardou. Como o tempo demorava a passar.
Ouviu Warwick andando na sala íntima. Em que ele estaria pensando? Devia estar ansioso para chegar à corte e aos braços apaixonados da amante. Que se danasse! Tudo o que ela queria era sua liberdade para limpar o nome do pai e o seu.
Finalmente, Warwick deitou-se. Ondine esperou mais uma hora depois de ver que a última vela tinha sido apagada. Podia levantar-se. Que Deus a ajudasse.
De repente ficou rígida. Warwick estava de pé, à porta do quarto. Ela fechou os olhos e fingiu estar ressonando. Mais tempo se passou. Tornou a abrir os olhos e deu um grito. Warwick estava do lado da cama.
- Querida esposa, você não tem roupas de dormir mais confortáveis?
- Vá para o inferno!
- Lamento, mas é para a corte que eu vou, com minha adorável esposa! - Ele puxou-a da cama, colocou-a de pé e começou a despi-la.
- Pare com isso. Posso me despir sozinha.
Warwick ergueu as mãos.
- Está bem. Continue.
Mas ela tremia tanto que não conseguiu desamarrar os cordões do corpete. O marido ajudou-a em silêncio. O toque das mãos dele era ao mesmo tempo, um prazer e um tormento.
Por fim, o corpete caiu no chão, junto com a anágua enfeitada com rendas e babados. Ela tirou as meias e entrou debaixo das cobertas.
- Por favor, vá embora - pediu.
Ele ignorou o pedido e sentou-se na cama.
- Ondine, por que você reluta em ir para a corte?
- Não gosto da corte.
- Se você confiasse em mim e me dissesse a verdade...
- Eu já lhe disse tudo o que tinha a dizer.
- Nesse caso, lamento aborrecê-la, mas faremos a viagem. Ela estava com a cabeça coberta e percebeu que o marido se levantara e fora para quarto. Sentiu medo e uma forte vontade de chorar, mas lutou contra as lágrimas. Mais uma vez teve uma idéia e começou a traçar novo plano para não ir a Londres. Era um plano tão maravilhoso que adormeceu sorrindo.
Lottie entrou no quarto e acordou Ondine. Ela tomou o desjejum, depois o banho, vestiu-se para a viagem e orientou a criada para fazer-lhe um penteado elegante, mas fácil de manter. Quando ficou pronta, reuniu-se ao marido que esperava por ela na sala íntima, com Mathilda. Subitamente, ela deu um grito terrível e contraiu-se de dor.
Sentia-se muito bem, claro, mas sua encenação foi tão convincente que Warwick correu para ela e amparou-a.
- Oh, milady, é o bebê? - indagou Mathilda, alarmada.
- Não! Não é o bebê! Oh! - Ondine gemeu. - Se eu me deitar um pouco, a dor...
- Venha. Você não pode correr riscos com esse precioso bebê. - Mathilda abraçou-a e caminhou com ela devagar para a cama.
Ondine viu que o marido tinha ficado para trás.
- E Warwick?
- O conde terá de viajar sozinho. Deite-se. Vou arranjar uma camisola confortável para se vestir.
Mal contendo um sorriso de triunfo, Ondine deitou-se na cama macia e fechou os olhos. Mas sentiu dois braços erguendo-a de maneira nada gentil.
- Obrigado, Mathilda, mas minha esposa precisa é de ar fresco - Warwick anunciou.
- E... o bebê?
- Não se preocupe. Esta jovem é forte como uma égua criadeira. Só está um pouco nervosa. O ar puro da manhã vai operar maravilhas, garanto.
Ele saiu do quarto, apressado, carregando Ondine. Ela deixou de fingir e olhou furiosa para o marido.
- Bastardo!
- Nem mesmo Nelly Gwyn seria capaz de representar tão bem, meu amor. E ela era a paixão de todos no teatro antes de tomar-se a paixão do rei.
- Posso andar!
- Eu sei que pode.
Warwick desceu a escada e saiu para o pátio onde estavam Justin e Clinton.
- Uma crise nervosa - ele explicou brevemente. Colocou-a sem a menor delicadeza no assento do coche, bateu a porta e subiu para a boléia.
Durante as longas horas de viagem, sozinha, teve tempo de refletir. Talvez sua situação não fosse tão terrível. Naquela tarde fatídica, só o rei a tinha visto e alguns guardas. Ela e o pai tinham sido convidados para a justa e o banquete e quando o rei se adiantara para cumprimentá-los, a caminho do salão, tudo acontecera.
Charles! Tinha de falar com o rei... a sós. Como esposa de Warwick, grande amigo de Sua Majestade, teria chances. O rei era um homem bom, intuitivo e sensível, veria o desespero em seus olhos.
Iria dar certo!
O coche só parou ao anoitecer. Warwick abriu a porta e entrou com ela em uma estalagem. Eles sentaram-se a uma mesa e Jake cuidou da reserva dos quartos. Eles comeram galinha assada, legumes cozidos no vapor e tomaram cerveja. Durante a refeição foi como se Ondine não existisse. Warwick e Jake conversaram sobre o trecho que ainda teriam pela frente.
Ondine comeu com apetite e tomou bastante cerveja, o que lhe deu sono. Estava quase se debruçando na mesa quando Warwick tocou-lhe no braço.
-Vamos. Eu a levo para cama. - Não...
De nada adiantou seu protesto. Quando deu por si, Warwick a estava despindo. Momentos depois dormia numa cama limpa e confortável, nos braços do marido. Foi perturbada por um sonho ruim e teve consciência de ouvi-lo sussurrar carinhosamente:
- Durma, meu amor. Do que é que você tem medo? Estou aqui.
Ao acordar, pela manhã, viu-se sozinha no quarto.

Depois de mais um dia de viagem, o conde, Ondine e Jake chegaram à estalagem de Meg. Estavam bem perto de Londres.
Antes de subir para o quarto, Warwick sentou-se a uma mesa a um canto da taberna, para poder observar Jake e Ondine.
Nem ele mesmo agüentava seu mau humor. Ela era linda, tinha graça, riso cristalino. E o estava deixando louco!
Que tipo de idiota era ele? Afinal, Ondine era sua esposa. Se tivesse juízo, a levaria imediatamente para o quarto e a lembraria que ela havia prometido amá-lo, honrá-lo e respeitá-lo. No entanto, ali estava ele, tenso, ardendo de desejo e tudo porque tinha jurado protegê-la e lhe prometera a liberdade. Na corte ele teria de redobrar seus cuidados. Hardgrave e lady Anne estariam lá e, na sua opinião, um deles tinha assassinado Genevieve.

Ondine acordou nervosa. Dentro de poucas horas estaria diante do rei. Tomou o desjejum no quarto, vestiu-se com apuro e desceu para o salão. A primeira pessoa que avistou foi o marido e sentiu o coração bater mais forte, a pulsação acelerar.
Acostumara-se a vê-lo em Chatham na maioria das vezes com roupa de trabalho e constatou que não importava como ele se vestisse, havia nele aquela aura de poder e masculinidade que o fazia sobressair mesmo entre uma multidão. Naquela manhã ele estava esplêndido usando camisa de renda branca, casaco e calções de veludo azul-escuro. Os cabelos fartos estavam soltos e levemente ondulados. Ele não usava peruca nem mesmo para apresentar-se diante de Sua Majestade. Alto e bronzeado com os grandes olhos cor de avelã, Warwick era um exemplo perfeito da beleza e do vigor masculinos. E, certamente, ninguém usava com tanto elegância um chapéu emplumado.
Ele tirou o chapéu e curvou-se diante dela.
- Milady! Está encantadora. É um prazer ter a sua companhia!
- Não tive escolha. E não há necessidade de praticar seu charme comigo. .
- Se quer assim, condessa... - O sorriso de Warwick tornou-se gélido. - Podemos seguir viagem, não? Nossa próxima parada será em Hampton Court.
Ele colocou-a gentilmente no coche e preferiu viajar com Jake novamente.
Pouco tempo se passou e eles chegaram à margem do Tâmisa, muito azul naquela manhã, sob um raro céu sem nuvens. O coche transpôs os imponentes e pesados portões de Hampton. Ondine afastou a cortina para ver o movimento no pátio. Ali havia guardas uniformizados, lordes e ladies, religiosos, cavalariços, criados, jardineiros e comerciantes.
O coche parou na frente do palácio. A porta abriu-se e Warwick estendeu a mão para ajudar Ondine a descer. Eles entraram em um grande saguão e foram conduzidos por um camareiro a seus aposentos, no primeiro andar.
O camareiro abriu a porta dupla de um cômodo amplo, luxuosamente decorado, com mesinhas, sofás, poltronas e estantes cheias de livros.
- A sala de estar - anunciou e abriu outra porta dupla. O quarto.
O quarto tinha uma grande cama de casal, em madeira ricamente entalhada, com quatro colunas, cortinas de gaze e brocado. Ali também havia poltronas e um sofá, uma mesa redonda para o desjejum, e cômodas. Do lado ficava o quarto de vestir. Uma das janelas abria-se para os jardins. Ao longe se avistava o Tâmisa.
A bagagem foi trazida para os aposentos e o camareiro deixou-os. Warwick disse a Ondine:
- Sua Majestade está jogando tênis. Vamos encontrá-lo.
Embora estivesse ansiosa para defrontar-se com o rei, Ondine estremeceu. Saiu do palácio com o marido, ambos atravessaram os jardins e foram para a barcaça que transportava os convidados para as quadras de tênis.
- Você parece ansiosa para reverenciar nosso rei - ele observou. - Por quê?
- Ouvi dizer que ele é justo, um perfeito cavalheiro e admirador do belo sexo.
- Se você não o conhece, saiba que ele é moreno como um espanhol. Bem, a barcaça chegou. Você estará com o rei em poucos minutos.
Eles embarcaram. Ondine preferiu ficar em pé, sentindo o vento no rosto. Warwick ficou do lado dela. Logo a barcaça atracou e eles foram para uma das quadras. Ladies, sentadas em cadeiras confortáveis, assistiam ao jogo. A maioria dos cavalheiros estava de pé, estimulando os jogadores. Ondine não quis sentar-se e Warwick passou o braço ao redor dos ombros dela, o que lhe transmitiu uma sensação de segurança.
- A rainha Catherine - ele falou baixinho e indicou discretamente uma das cadeiras. Depois olhou na direção de três cavalheiros. - Aqueles são: o duque de Buckingham, lorde Burkhurst e Sedley, todos exibicionistas, mulherengos e preguiçosos. Eles se envolvem nas histórias mais escandalosas da corte. São grandes amigos de Justin.
- E quem é aquela com o duque de Buckingham? - Ondine indicou uma mulher muito bonita, pequenina, de cabelos pretos.
- É Louise, duquesa de Portsmouth.
Ondine ficou boquiaberta.
- A amante do rei! E a esposa dele também está presente! - A outra amante é a adorável Nelly Gwyn que está de frente para a rede.
Mas não foi Nelly Gwyn que chamou a atenção de Ondine, e, sim, uma morena sensual que estava perto de Louise, tomando vinho.
- Quem é aquela?
- Lady Anne. Venha. A rainha nos viu.
Ondine ficou tensa e furiosa. Então aquela era lady Anne!
Mas o que importava? Estava ali para ver o rei.
Warwick levou-a até a rainha.
- Warwick! Que prazer! - Catherine era portuguesa e ainda falava com um leve sotaque. Ele beijou a mão da rainha. Esta viu Ondine e chamou-a.
- Condessa, aproxime-se! - Catherine observou Ondine com atenção. - Sua esposa é linda, Warwick! Onde a encontrou? Vocês formam um lindo casal.
De repente a rainha bateu palmas.
- Oh, meu nobre marido venceu a partida!
Ondine olhou para a quadra e viu o rei apertando a mão do oponente. Um criado deu-lhe uma toalha e o soberano veio ao encontro da esposa. Ao se aproximar seus grandes olhos escuros fixaram-se em Warwick. Ele sorriu, muito feliz, o bigode bem aparado alargou-se pela face. Ondine sentiu-se semiparalisada. O rei era alto, tão alto quanto Warwick, moreno e sedutor. Charles era um rei Stuart, contudo, em suas veias corria sangue escocês, da realeza francesa e da linhagem italiana dos Médicis, duques da Toscana. Talvez ele devesse a essa herança sua aparência fascinante.
- Warwick!
O rei segurou o amigo pelos ombros e foi cumprimentado por Warwick com o mesmo entusiasmo.
- Pelo que ouvi dizer, você veio acompanhado de sua esposa! .
- Sim, Majestade. Esta é lady Ondine, minha esposa.
Rezando com fé, Ondine fez uma mesura diante do soberano, mantendo os olhos fixos nos dele. Ele não desviou o olhar! Ela continuou rezando, lembranças daquela tarde terrível girando em sua cabeça. Esperou que a qualquer momento o rei chamasse os guardas, apontasse, furioso o dedo para ela e gritasse uma única palavra.: "Traidora!"
Mas a palavra só existiu na mente dela. Entretanto, ela teve certeza de que o soberano a reconhecera.
- Lady Ondine, seja bem-vinda a Hampton Court - Charles falou suavemente.
Emudecida, ela sorriu e continuou a olhar para ele.
- Ora, Warwick, casou-se sem a permissão do rei! - Charles riu. - Porém, tendo conhecido sua esposa dou-lhe a minha bênção e só posso dizer que o invejo. Catherine, a condessa não é incrível?
- Uma linda jovem, sem dúvida - a rainha concordou.
- Chatham, meu caro, tenha cuidado. Buckingham e outros conquistadores estão por perto e podem cobiçar sua encantadora esposa. Mas eles não ousarão persegui-la na minha presença. Asseguro que todos eles também conhecem sua força, amigo. - Charles estendeu a mão para Ondine e disse à rainha: - Querida Catherine, vou mostrar os jardins e os campos à condessa.
Warwick quis acompanhar os dois, mas Charles murmurou com ar travesso:
- Você tem um assunto para resolver e terá de fazer isso agora!
Virando-se, Warwick entendeu o que o rei quisera dizer. Lady Anne estava vindo na direção dele com um sorriso nos lábios e veneno no olhar.
- Lorde Chatham!
Para evitar uma cena, Warwick esperou que lady Anne se aproximasse. O rei piscou para o amigo, para a rainha, e afastou-se com Ondine. Dois guardas seguiram-nos, mas Charles dispensou-os.
- Deixem-nos em paz. Ou vocês acham que a linda lady Chatham seja uma ameaça?
Os guardas curvaram-se e desapareceram. O rei levou Ondine para um lugar isolado onde eram cultivadas plantas exóticas. Ele ajoelhou-se perto de uma delas, tirou o canivete do bolso e colheu uma fruta muito estranha, com uma coroa espinhosa. Partiu a fruta ao meio e tirou um naco da polpa amarelada, suculenta, e deu-o a Ondine.
- Abacaxi. Estes são os primeiros pés cultivados na Inglaterra. Experimente.
Ela aceitou o pedaço da fruta, mas não o levou à boca.
- Sire... Eu sei que me reconheceu. Deve saber que eu jamais poderia representar uma ameaça para Vossa Majestade. No entanto, estou implicada em traição...
- Cara duquesa de Rochester, nunca acreditei que seu pai havia puxado aquela espada para me matar.
- Oh, Deus! - Ondine murmurou. Ele a reconhecera, realmente!
Charles jogou fora o abacaxi.
- Por onde você andou durante todo esse tempo? E onde aquele meu amigo sedutor a encontrou?
- Em Tyburn.
- Na forca? O que você fez para merecer um castigo desses?
- Fui apanhada numa propriedade caçando uma corça.
- E você foi condenada por isso?
- Por que está surpreso? Esse castigo é muito comum.
- Infelizmente. - Charles ficou sério, depois sorriu. - E aconteceu que Warwick estava por perto e libertou a donzela propondo-lhe casamento. Que história! Presumo que esteja sendo mantida em segredo.
- Sim, Majestade. E agora, o que faço?
- Houve testemunhas naquele dia. Dois guardas e um pajem. Um dos guardas desapareceu. Possivelmente foi ameaçado... Talvez tenha medo de dizer a verdade... Procurei-o por toda parte e não o encontrei. E há aqueles documentos. Acredito que sejam falsos, mas podem enganar os juízes num tribunal. Se você os encontrar e destruí-los, seu tio e primo não terão como acusá-la. Ainda assim, você terá de provar a inocência de seu pai. Ah, Ondine, legalmente seu tio é seu tutor e administra suas propriedades! E, pela lei, só poderei perdoá-la se eles retirarem a acusação. Sugiro que você procure descobrir fraquezas na sua família. Para isso terá de voltar para o que é seu, por direito. Procure seu tio e primo. Finja estar arrependida. Mas antes de tomar essa decisão, reflita bastante, planeje tudo cuidadosamente e sem pressa. Fique aqui com seu marido onde está segura. Tudo se resolverá com o tempo. Acredite.
- Não sei...
- Madame, sou um rei popular. No entanto, andei pela Europa como mendigo durante anos; pedi ajuda, aprendi a confiar nos homens bons, mas a maior lição que aprendi foi ser paciente e cauteloso. Assim, eu, filho de um homem extraordinário, mas fraco, que foi decapitado, subi ao trono; não porque enfrentei exércitos para recuperar a coroa, mas porque, no fim, o povo me chamou de volta. Dizem que sou um rei afável, acessível e até encantador, mas estou sempre alerta. Aprendi que esperar, observar e refletir pode nos trazer todas as coisas. Compreende?
- Sim. Mas como posso voltar para meu tio? Devo deixar meu marido?
- Faça uma viagem sozinha.
Charles encostou-se num carvalho e riu.
- Tenho certeza de que meu amigo Chatham mantém os olhos em você como se fosse um falcão. No lugar dele eu faria o mesmo. Vi muito bem a reação dele quando nos afastamos da quadra. No olhar dele havia raiva, ciúme, posse e frustração. Chocou-o o fato de que, justamente eu, pudesse cortejar a esposa dele.
- Eu...
- Não precisa ter medo de mim, cara condessa. Não lhe peço nada. Mesmo que não fosse esposa de meu grande e leal amigo, não lhe pediria nada. Jamais alguém poderá dizer que forcei um envolvimento com uma lady que não se interessasse por mim. - Ele riu novamente. - Chega a ser muito engraçado ver meu amigo, lorde Chatham, com toda a sua beleza, elegância, sua coragem, sua masculinidade e seu poder de atração, ter ciúme de mim!
Ondine baixou a cabeça. Warwick podia ter ciúme dela da mesma forma que tinha ciúme de Dragon, do solar ou de outra coisa que lhe pertencesse. Mas não ia falar sobre isso com o rei.
- Vamos voltar. Gosto de brincadeiras e hoje deixei seu marido confuso. Porém, não quero que passe pela cabeça dele que saí com sua esposa com a intenção de cortejá-la. Voltaremos a nos ver esta noite, no banquete. E tenha fé. A verdade há de prevalecer.
- Sim, Majestade. Deus o abençoe, sire!
- Não me olhe com essa intensidade, condessa, e enxugue as lágrimas, caso contrário posso imaginar que sou mais jovem e um amigo menos leal... Venha!
Ele segurou a mão dela e tomaram o caminho de volta para as quadras de tênis..

Capítulo VII

Certo de que Anne estava disposta a fazer uma cena, Warwick afastou-se com ela das quadras de tênis e foram para o jardim.
- Quem é essa... essa vadia?
- Controle sua língua, Anne. Ela não é vadia. É minha esposa.
Anne bateu o pé, furiosa.
- Não pode ser! Nós estávamos comprometidos. Você jurou que não se casaria de novo! Se isto for uma brincadeira, vou descobrir a verdade.
Warwick suspirou. Perguntou-se por que estava impaciente e cansado de Anne. Ela não havia perdido a beleza, nem sua vivacidade, tampouco aquela determinação que no passado tanto o encantavam.
Não. Anne não havia perdido nada. No entanto, seus lindos cabelos escuros não se comparavam com as tranças que brilhavam como um raio de sol. Seus olhos não eram azuis como o mar profundo. Os seios voluptuosos não tinham o encanto e o mistério dos seios de sua esposa. Anne não possuía a postura, a graça, o riso de Ondine, a pequena feiticeira que o estava deixando louco.
- Anne, jamais, nem remotamente estivemos comprometidos. Eu lhe asseguro que Ondine é legalmente minha esposa.
- Por que se casou com ela? Devia se casar comigo!
- Eu nunca falei em me casar com você. Sentíamos desejo um pelo outro, nada mais. E isso terminou!
Ela ergueu a mão para dar um tapa no ex-amante, mas ele segurou-lhe o pulso..
- Anne! Pare com este absurdo.
Ela levou a mão dele ao peito.
- Sinta meu coração, Warwick! Ele bate acelerado de desejo! De desejo!
Warwick sorriu. Ela era ótima atriz.
- Anne, nós dois sabemos que você satisfaz seus desejos sempre que quiser e com quem você escolher.
- Warwick! - ela zangou-se. - Já passamos por isso antes e você voltou para mim...
Nesse instante Warwick viu o rei e Ondine se aproximando. Ele olhou surpreso para a esposa. Parecia tão à vontade, não estava nervosa, muito menos amedrontada. Sorria, os olhos brilhavam. Sensações estranhas apoderaram-se dele. Sentiu raiva, espanto, curiosidade, ciúme. Ondine nunca sorrira para ele daquela maneira. Nunca havia olhado para ele daquele modo radiante como estava olhando para Charles.
Pela primeira vez notou a sensualidade da esposa. Havia paixão em Ondine. Paixão intensa, profunda, louca e deliciosa.
Quando Charles e Ondine se aproximaram, Warwick percebeu que ela olhava fixamente para Anne que ainda segurava a mão dele sobre os seios. Ele não se importou. Não iria empurrar a mão dela como se fosse um rapazinho encabulado. Fixou na esposa um olhar desafiador e afastou-se um pouco de Anne.
- Anne, creio que você não conhece minha esposa, Ondine. Ondine, esta é lady Anne.
Charles olhou para o amigo com expressão curiosa e quebrou o desconforto do encontro dizendo:
- Vamos para a barcaça. Um grande banquete espera por nós esta noite!
O rei seguiu na frente com Anne e Warwick segurou o braço de Ondine.
- O que há, milady? - perguntou num sussurro. - Você lutou como uma gata brava quando decidi trazê-la para cá e há pouco a vi como uma gatinha ronronando para o rei.
- Sua Majestade é um charme! - Ondine respondeu calmamente.
- Ah, você pretende fazer parte da sua coleção de amantes!
- Quem sabe. Um rei costuma enriquecer suas amantes e conceder-lhes títulos. E nosso soberano é encantador, bondoso e gentil!
- Ouça bem, porque não vou repetir. Lembre-se de que é minha esposa e trate de se comportar como uma condessa, não como uma vadia!
- Não se preocupe. O rei é seu grande e querido amigo.
- Sim, mas é homem. E poucos homens, mesmo os que respeitam uma grande amizade, resistem ao convite de uma mulher tentadora.
- Warwick! Ondine! Embarquem! - O chamado do rei era uma ordem.
Warwick olhou para a esposa por mais uns segundos, depois começou a andar depressa. Ondine acompanhou-o quase sem fôlego, mas contente por ver aquela discussão encerrada.

A primeira noite na corte foi empolgante. Ondine não teve chance de ficar novamente a sós com o marido. O rei apresentou-a a vários lordes e ladies, depois a deixou na companhia da rainha.
Durante o banquete o rei conversou com Warwick sobre seu desagrado com o Parlamento e sobre seus planos políticos. Catherine falou com Ondine sobre moda, poesia e artes. Foi uma noite mágica.
Porém, para Ondine terminou mais cedo. Warwick levou-a para seus aposentos e avisou-a que o rei estava tendo problemas com os escoceses e queria estudar a questão com o amigo para juntos tentarem resolver esse impasse. Quando ele a deixou, Ondine desejou que aquele encontro fosse mesmo com Charles, e não com Anne!
Ela achou que não conseguiria dormir depois de haver experimentado em um só dia tantas emoções. Mas o alívio por haver conversado com o rei e ter recebido dele tanta compreensão a fez relaxar. Acomodou-se bem na beirada da cama para nem tocar no marido e adormeceu tranqüilamente.
Pela manhã, não viu Warwick na cama. Levantou-se, abriu a porta da sala e encontrou-o adormecido em um dos sofás. Avaliou seu desconforto, pois ele era grande demais para um móvel tão pequeno e suas pernas pendiam para um lado. Devia estar exausto para continuar dormindo apesar da posição desconfortável. Subitamente, ela sentiu o aguilhão do ciúme. Ele teria passado a noite com o rei ou com Anne?
Fechou a porta e vestiu-se depressa. Acabava de se arrumar quando ouviu o marido praguejando. Pelo jeito ele acordara de péssimo humor.

Na sala de estar, Warwick fervia de raiva. Até o momento nada do que ele havia planejado dera certo. Charles o obrigara a ficar acordado até altas horas e ainda sentia sono, tinha o corpo dolorido e uma leve dor de cabeça.
Viera a Londres para montar uma armadilha e atrair para ela o assassino de Genevieve. Queria vigiar Hardgrave e Anne. Em vez disso, havia passado o tempo todo furioso com a esposa, a isca para sua armadilha. Sua mente estava toda ocupada com Ondine e seus mistérios, seu comportamento incompreensível. Ela relutara em vir para a corte, demonstrara ter medo do rei, no entanto, após seu encontro a sós com ele, tornara-se outra. Tratava Charles como se fosse um velho amigo... ou amante.
- Feiticeira! Me faz perder a calma, a concentração. Droga!
Ela me deve obediência - Warwick resmungou.
- Também deve amá-lo e honrá-lo!
Perplexo, Warwick virou-se e viu o rei à porta.
- O que é isso, Warwick? Está perdendo esta bela manhã!
Vamos nadar no Tâmisa. Onde está sua esposa?
Charles estava com seus amados cães spaniels que latiam, rosnavam e corriam ao redor do dono, aumentando a dor de cabeça de Warwick. Notando pelo brilho nos olhos do rei que ele se divertia às suas custas, teve vontade de atirar uma das botas nele. Acalmou-se aos poucos e sorriu. Compreendeu que Charles jamais o trairia. Oh, o rei podia ser um conquistador e manter seus romances com mulheres como Anne e outras, mas não tocaria na esposa de um amigo leal.
- Sim, Majestade, vamos nadar - ele concordou e saiu com Charles para o exercício.

Naquele dia Ondine só esteve com o marido ao jantar. Conheceu Nelly Gwyn e a admirou por sua franqueza e a sua presença de espírito. Passou toda a tarde com Catherine que se afeiçoara a ela, não dispensava sua companhia e fazia-lhe confidências.
- Já notei que você reprova o comportamento de Charles. Mas não fique zangada com ele por minha causa. Sei que os homens têm suas fraquezas - disse a rainha suavemente. O Parlamento quer que ele peça o divórcio porque sou estéril, mas Charles não aceita a nossa separação. E não pense você que sou santa. Alegra-me ver uma amante desprezada, contorcendo-se de raiva. Olhe para lady Anne! Está furiosa! Inveja a sua beleza, minha cara, e sente ciúme de você por ter-se casado com Warwick.
Na opinião de Ondine a linda viúva não parecia furiosa. No momento a encarava com olhar felino e tinha nos lábios um sorriso que falava de segredos e vitória. E por que não? Ondine mal vira o marido e Anne, com certeza, havia estado com ele.
À noite, Ondine estranhou o comportamento de Warwick. Ao sentar-se junto dela à mesa do jantar ele mostrou-se extremamente amável. Instantes depois pousou-lhe os olhos cor de âmbar, graves, avaliando-a. Durante a refeição, manteve-se calado.
O jantar terminou e eles se levantaram. De repente, Warwick ficou tenso e Ondine ouviu-o praguejar baixinho:
- Hardgrave, maldito!
Ela seguiu o olhar dele e viu o cavalheiro elegante que acabara de entrar no salão. Usava chapéu com uma pluma, bem parecido com o de Warwick, meias vermelhas, calções creme e casaco amarelo-tostado. Era baixo e musculoso, o que o fazia parecer mais largo e lhe roubava a graça no andar.
Hardgrave reverenciou o rei, cumprimentou Warwick cortesmente, apenas olhou para Ondine e afastou-se.
- Mantenha-se longe dele - Warwick advertiu a esposa, olhando para ela de modo feroz.
Nas galerias os músicos começaram a tocar e o rei abriu o baile dançando com Ondine. Estando nos braços de um homem encantador como Charles, ela sentiu o coração leve e a alegria da juventude. Eles fizeram uma pausa e foram até a mesa para tomar ponche de rum, onde encontraram o visconde.
- Hardgrave! Ah, você ainda não conhece a nova lady Chatham. Ondine, este é Lyle Hardgrave, visconde de...
- A condessa deve saber quem sou eu, Majestade. - Os olhos de um tom azul-pálido fixaram-se em Ondine. - Seu marido e eu, milady, somos vizinhos e inimigos de longa data.
- Não em minha corte! - protestou o rei em tom severo.
- Tem razão, Majestade. Nunca em sua corte - Hardgrave admitiu.
Ondine sentiu um calor percorrer-lhe o corpo e soube que o marido a estava vigiando. Não se enganou. Viu-o do outro lado do salão, na companhia de uma jovem lady que ela não conhecia.
- Muito prazer, lorde Hardgrave - respondeu, sorrindo para o visconde.
Ele bateu os calcanhares, inclinou-se e beijou a mão dela.
Charles voltou a dançar com Ondine. Depois de muito rodopiarem pelo salão, ela quis respirar o ar puro da noite. O rei deixou-a no terraço e foi ao encontro de Catherine. Ofegante e com o rosto afogueado por causa do riso e da dança animada, Ondine inclinou-se na mureta de pedra e fechou os olhos.
- Eu não a conheço. Nunca ouvi falar nela.
Ondine ficou tensa. Percebeu que não estava sozinha. Do outro lado da treliça que servia de apoio a uma roseira em plena floração, viu lady Anne sentada num banco com outra mulher. Cada uma se abanava com seu leque de plumas.
Pelos vãos da treliça Ondine observou as duas. A mulher que havia falado tinha leve sotaque francês. Era Louise, a amante do rei.
- Hum! - fez lady Anne com desdém. - Garanto que ela não é nobre coisa nenhuma. - Ele se casou com ela só para ter um herdeiro, o que não conseguiu com Genevieve. Homem tolo! Ele me ama, me adora. Sei esperar e me contento em ser sua amante. Assim que a vadiazinha tiver desempenhado seu papel, ele será todo meu!
- Vadiazinha? - Louise repetiu. - É uma mulher linda! - Você há de reconhecer que ela não tem classe.
- Nem todos têm essa opinião. O rei encantou-se com ela.
- Oh, os homens! Todos eles são atraídos por um rostinho novo. Mas logo se cansam.
- Talvez não. Lorde Chatham está loucamente apaixonado pela esposa.
- A paixão de Warwick, lhe asseguro, é por mim.
- Isso não quer dizer nada. O rei é apaixonado por mim e se interessa por outras, como você sabe. - Louise deu uma risadinha maliciosa. - Mas, como disse Bárbara Villiers, o rei é tão bem dotado que satisfaz inúmeras mulheres.
- É verdade. No entanto, eu que conheço muito bem Charles e o conde, afirmo que Chatham excede até mesmo Sua Majestade na arte de fazer amor. Seus dotes masculinos são uma absoluta maravilha.
As duas amigas, inimigas, competidoras, começaram a rir.
Ondine sentiu o rosto queimar de raiva e humilhação. Toda a beleza da noite desapareceu. Warwick! Bastardo! Por causa dele tomara-se objeto da maledicência da amante. Mas as duas intrigantes continuaram.
- Ah, está sentindo falta dele, não? Afinal, ele só tem olhos para a esposinha.
- Ela não ficará no meu caminho, isso eu garanto. Ela pode desaparecer. Já percebi que ela não é frágil como Genevieve, mas nunca se sabe.
Não suportando mais ouvir aquela conversa, Ondine voltou para o salão de baile. Ao entrar foi de encontro com lorde Hardgrave. Ela desculpou-se e ele tocou-a no ombro.
- Lady Chatham! Não precisa se desculpar. É sempre um prazer estar perto de você. Lamento que a besta-fera do Chatham a tenha visto primeiro. - Hardgrave baixou a cabeça e sussurrou: - Há de chegar o dia em que a besta-fera...
- Ah, minha querida! Afinal a encontrei!
Era o rei. Abençoado rei Charles! Ondine respirou aliviada.
Como pudera ter medo dele? Ali estava Sua Majestade salvando-a daquele homem.
- Permite-me, visconde? - Charles indagou a Hardgrave com um sorriso amável. - A condessa prometeu-me esta dança.
Logo que começou a dançar, o rei comentou:
- Salvei-a daquele galanteador indesejado, não?
- Seu convite para esta dança não podia ser mais oportuno, sire.
Estava sendo tão agradável ouvir o rei e dançar com ele que Ondine voltou a rir e alegrar-se. Foi então que viu o marido observando-a. Como ele ousava dirigir-lhe aquele olhar acusador? Ele, cujos dotes masculinos eram louvados e objeto de discussão, não tinha moral para encará-la daquele jeito. .
Ergueu a cabeça e voltou-se para o marido com expressão de desprezo. Mas ele foi obrigado a virar-se ao sentir uma delicada mão feminina tocando-lhe o peito. Anne apareceu do lado dele. O duque de Buckingham a acompanhava.
Ondine sentiu-se uma idiota por amar aquele homem. As palavras de Anne tinham sido verdadeiras. Warwick a desposara pensando apenas em usá-la. Depois se livraria dela.
Para piorar, o marido e Anne estavam juntinhos. Warwick aceitou outro copo de ponche e encostou-o nos lábios de Anne que tomou um gole da bebida. E tudo isso acompanhado de um sorriso sensual.

- Sire, permite que eu me retire? - Ondine indagou ao rei, não suportando mais ficar no salão.
- Vai deixar seu marido nas garras de lady Anne? - Charles sussurrou.
- Que Anne lhe arranque os olhos - ela respondeu. Sire, estou realmente com dor de cabeça.
Charles, cortesmente, levou-a aos seus aposentos. Ondine notou que Jake os seguiu.
Meia hora mais tarde, usando uma camisola de seda branca, enfeitada no decote e nos punhos com rendas de Bruges, ela pensou em ir para a cama e esquecer aquela noite. Tudo estava bem. Havia escapado da forca e agora, com o apoio do rei, iria provar sua inocência e recuperar o que era seu por direito. Como poderia deixar que aquela tempestade se formasse dentro dela?
Mas essa era a realidade. Viver era experimentar fúrias e glórias. Era conhecer a dor e a alegria. O riso e o pranto. Era ter esperança. Sentir ciúme, mágoa e humilhação.
Começou a andar pelo quarto esperando ficar exausta e entregar-se a um sono reparador.

Warwick olhava para Anne, tinha um sorriso nos lábios, parecia muito interessado no que ela estava dizendo, no entanto, não ouvia uma palavra. O duque de Buckingham deu-lhe outro copo de bebida que ele tomou sem sentir.
Conversou, riu, brincou.
Por dentro experimentava raiva, ciúme e uma dor que não conseguia abrandar. Ondine não lhe saía do pensamento. Ela deixara o salão de braço dado com o rei. Isso ele não podia admitir. Queria aquela mulher. Iria tê-la. Mas, não, isso era impossível.
Tomou outro copo de bebida e brindou-o mentalmente à sua feiticeira, à sereia que o encantava com seu modo de andar, as lindas pernas, os seios firmes e virginais...
Quis expulsá-la do pensamento. Não conseguiu. Continuou conversando, bebeu, dançou, flertou, riu. Sentiu-se pior.
Subitamente, cansou-se daquilo tudo. Atravessou o salão aborrecido, maxilares cerrados, e foi para seus aposentos.

Ondine ainda andava no quarto de um lado para outro, quando a porta abriu-se com violência, deixando-a assustada. O marido entrou no aposento com o chapéu na mão e curvou-se diante dela. Em seguida atirou o chapéu sobre uma poltrona e encarou a esposa em silêncio, os lábios curvados num sorriso tentador, os olhos brilhando como fogo à luz das velas.
O coração de Ondine contraiu-se de medo. Em seguida sentiu raiva. Como ele se atrevia a encará-la daquele jeito? Então não se envergonhava do seu comportamento no salão de baile? Havia passado horas dançando, bebendo e rindo com aquela mulher, a querida lady Anne que o agarrara na frente de todos. O que ele fazia ali, invadindo sua privacidade, se tinha interesse naquela ordinária?
Oh... Apesar de toda a sua indignação, não pôde evitar os sentimentos que invadiram seu corpo, sua alma e seu coração. Bom Deus, o homem era admirável! Tão másculo! Tão sedutor! Havia nele algo que despertava seus sentimentos primitivos. Queria desprezá-lo, ofendê-lo, e o que sentia era desejo.
- Ah, você está aqui - ele murmurou, por fim.
Tinha consciência de que havia bebido demais, que estava morrendo de ciúme. Nunca havia sentido por mulher nenhuma o que sentia por Ondine. Nunca havia experimentado tanta paixão. Aquilo só podia ser... Amor.
Era verdade. Estava apaixonado por Ondine. Uma magricela miserável que ele salvara da forca. Com o tempo, no entanto, ela mostrara que era uma mulher inteligente, espirituosa, cheia de vida e mistério. Linda. Mais linda estava à luz das velas, usando aquela camisola de seda branca, que mal escondia suas formas sensuais. Ele tinha vontade de tocá-la, de passar as mãos nos longos cabelos. E os olhos, azuis como o mar, profundos, feiticeiros. Não podia viver sem ela.
Mas não podia amá-la! Sua alma gritava, atormentada.
- Onde mais eu poderia estar?
- A julgar pelo seu comportamento, querida esposa, você poderia estar em qualquer outro lugar. Com certeza derramando seu charme sobre o rei. Ou como outras belas mulheres, mercenárias, esperando na fila pela vez de se deitar no leito real.
Ondine ficou boquiaberta. A raiva deixou-a cega. Infelizmente, não havia nenhuma arma letal no quarto. Em todo caso, um travesseiro com fronha ricamente bordada serviu de projétil e atingiu Warwick na cabeça. Ele cambaleou ao tentar agarrá-lo.
- Você está bêbado! Passou a noite bebendo com sua amante e com seus amigos com grandes títulos, mas sem moral, e tem a audácia de entrar em meu quarto para me fazer as mais torpes acusações. Fora! Saia daqui! Volte para sua preciosa Anne e me deixe em paz!
Warwick jogou o travesseiro no chão e aproximou-se da esposa.
- Bêbado, minha casta esposa? Talvez. Mas quem se derrama sobre o rei como óleo perfumado é você. E na presença de seu marido!
- Oh! Bêbado! Mentiroso! Está acostumado com sua amante ordinária e pensa que toda mulher é igual a ela. Pois volte para sua querida!
- E deixo você livre para se entregar a seu admirador real?
- Você está louco!
- Talvez. Louco de curiosidade para saber quem é realmente a ladrazinha com quem me casei. A ingrata que me faz de tolo. Que me engana com meu rei, o homem que sempre considerei o melhor amigo. - Warwick tocou nos ombros da esposa. - Ondine...
- Tire as mãos de cima de mim!
- Por que não posso tocá-la? Sou seu marido. O que você quer, hem? Nelly espera do rei dinheiro e um título. Louise se interessa por jóias. Bárbara Villiers está feliz com o talento que o rei tem na arte de amar.
- Bastardo! - Ondine esmurrou o peito de Warwick. - Está me insultando! Eu o desprezo!
Warwick segurou-a pelo pulso.
- Pare com isso. Vamos conversar.
- Nada tenho a dizer para um bêbado. Saia daqui.
Ela puxou o braço e, conseguindo libertar-se, passou a mão no jarro de porcelana alemã que estava sobre o lavatório e com a força emprestada pela raiva, atirou-o na cabeça do marido. Seus reflexos não o haviam abandonado e ele desviou-se, indo o jarro espatifar-se na porta, espirrando a água fresca em Warwick. Ele parou por uns segundos, atônito, então avançou em Ondine como uma fera.
- Não! - ela gritou e saltou para o lado.
Warwick conseguiu agarrar a camisola e puxou-a, rasgando-a. Seminua, Ondine sentou-se na cama. Ele sentou-se do lado dela.
- Quero saber o que você sussurra para o rei.
- Não é da sua conta.
- Charles é um conquistador. Você encorajou seus avanços?
- O rei é um perfeito cavalheiro. Jamais tomou liberdades comigo. Conquistador é você. Ordinário! Trouxe-me para um lugar onde sua amante fala livremente sobre seus fascinantes dotes masculinos, agarra-o diante de todos e ainda ri na minha cara! - Ondine retrucou, furiosa.
Tentou levantar-se, mas o marido inclinou-se sobre ela, obrigando-a a deitar-se.
- Saia de cima de mim!
- Oh, não! Não! Vamos falar sobre isso, meu amor. Parece que você está muito aborrecida porque Anne andou elogiando meus dotes masculinos.
- Não estou nem um pouco interessada nos seus... dotes.
- Ora, vamos! Feiticeira. - Os olhos flamejantes, olhos de demônio, percorreram o corpo dela, ávidos, sensuais.
Warwick passou a acariciá-la. Sua boca fechou-se sobre a dela. Com a língua ele forçou-a a entreabrir os lábios. Um calor tomou conta de Ondine, e uma sensação deliciosa, jamais experimentada antes, deixou-a inebriada. Foi como se tivesse mergulhado num universo desconhecido, um paraíso por onde podia circular sem medo porque o marido era seu guia. Ele encheu-lhe a boca, saboreou-a, e ela nem se lembrou de protestar.
Warwick afastou-se um pouco, só para acomodá-la melhor na cama e começou a acariciá-la. Sugou-lhe os seios, mordiscou-lhe os mamilos, suas mãos passearam pela cintura, pelo ventre, pelos quadris, pelas coxas de Ondine, arrancando de seus lábios gemidos e pequenos gritos de prazer. Seu corpo contraiu-se de gozo. Ela não compreendeu o que provocara seus gritos e gemidos, tampouco aquele estremecimento que a impeliu a entrelaçar os dedos pelos cabelos do marido e puxá-los.
- Ah, condessa, nunca imaginei que havia resgatado da forca um presente tão generoso. Quanta beleza! Que corpo! - Warwick exclamou. - Você é a perfeição em forma de mulher. Nenhuma outra chega a seus pés.
Nem bem acabou de falar, voltou a beijá-la. Correu os dedos pelos longos cabelos, deixando-a naquele estado de embriaguez, como se flutuasse em uma outra dimensão. De repente, o cérebro registrou o que ele havia dito. Então ele a comparava com Anne, aquela víbora, e com as outras amantes? A raiva dela reacendeu-se.
- Oh! Seu patife! - Ela virou-se bruscamente para libertar-se e bateu com o joelho nos dotes masculinos do marido. Ele gemeu de dor e soltou-a. - Você, Warwick Chatham, nada mais é do que um falo gigantesco e degenerado! Você prometeu...
- Eu sou o quê? - Warwick levantou-se da cama. - Lembro-me perfeitamente bem do que prometi. Mas o que há, meu amor? Você aceita as atenções do rei e rejeita seu marido?
- Pare de falar sobre o rei e... Oh!
Com um movimento rápido, ele acabou de rasgar a linda camisola e Ondine ficou nua. No minuto seguinte estava encostada na parede, quase sufocada pelos beijos possessivos e ardentes do marido. Mesmo assustada, sentiu de novo o apelo dos sentidos. O corpo vibrava e chegava a doer de desejo. Warwick levou-a de volta para a cama. Pensou que iria tê-lo nos braços, mas ele afastou-se. Tirou as botas, o casaco de veludo, a camisa, ajoelhou-se na cama e segurou o pé de Ondine.
Acariciou-o como se fosse uma peça da mais fina porcelana, beijou-o provocando nela uma sensação rara que excitava e queimava.
Essa carícia mágica continuou. Deixando-a enlouquecida com o toque de seus dedos e unhas, com o calor dos beijos, os golpes da língua. Ela permaneceu fascinada e satisfeita com cada nova experiência. As mãos e os lábios atrevidos iam lentamente descobrindo os pontos eróticos: a parte de trás do joelho, a parte interna das coxas, o centro da feminilidade.
Um arquejo, um murmúrio, um grito suave escaparam dos lábios de Ondine ao receber as carícias mais íntimas. Carícias que a fizeram fechar os olhos, extasiada, que a fizeram sentir como se em todo o corpo ardessem chamas turbulentas. O cérebro lhe dizia para afastar-se do marido. Porém, movida por uma paixão desesperada, aconchegou-se a ele. Não sabia onde estava nem quem era. Não podia ser aquela criatura que gritava, contorcia-se e murmurava sons inarticulados. Não conhecia a mulher que agarrava os cabelos do homem do seu lado para que continuasse a beijá-la.
De repente, sentiu-se sozinha. Ele a abandonara. Abriu os olhos. Ele estava ali, despido, fitando-a. Nos olhos o fogo do desejo. Sua expressão tensa. Ela estremeceu ao constatar a realidade. Amava aquele homem. Desejava-o.
Sentiu a mão dele deslizando pela parte interna de suas coxas. Instintivamente seus músculos se contraíram. Ele não notou essa reação. Curvou-se, apossou-se dos lábios dela, fez com que separasse as pernas e acomodou-se entre elas. Perdida naquele mar de sensações, ela só registrava na consciência a força do marido, o poder que tinha de despertar nela tanta paixão e aquele desejo que parecia consumi-la.
Não podia desejar um homem mais do que o desejava. Também não pôde evitar um grito quando ele, por fim, penetrou-a. Ela ouviu-o murmurar uma imprecação de total espanto. Maior do que a dor física que sentiu, foi a dor moral. Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Warwick não esperava que ela fosse virgem. Acreditava que ela havia se envolvido com alguém antes do casamento.
Empurrou o peito dele, querendo libertar-se. Ele não se moveu. Baixou a cabeça e beijou-a suavemente, murmurando entre os beijos palavras ternas e frases gentis que foram aos ouvidos dela como um acalanto. Sua dor aos poucos desapareceu.
O momento de agonia tornou-se uma lembrança distante.
No momento ele era parte dela, cumulava-a de uma maravilha explosiva, que parecia ter penetrado em cada poro de seu corpo. Excitou-a sussurrando palavras sensuais, acariciando suas coxas, os seios, e movimentando-se ritmicamente dentro dela. Os olhos dourados a desejavam.
O prazer que experimentou a seguir foi sublime. Um fogo percorreu-lhe o corpo, ela sentiu-se transportada às alturas e explodiu de gozo. Um grito escapou de seus lábios; Warwick emitiu um gemido ao deixar nela suas sementes. Aquilo era magia pura. Ela nunca havia imaginado que um mortal pudesse sentir êxtase semelhante.
Demorou um longo momento para Ondine descer à terra. Lembrando-se de seu comportamento voluptuoso, não conseguiu encarar o marido. Mas ele levantou-se para apagar as velas e, discretamente, ela pôde observá-lo nu, ainda esplêndido, a musculatura rija.
Quando voltou para a cama, deitou-se do lado dela, cruzou as mãos sob a cabeça e ficou olhando para o teto. Ondine fingiu estar adormecida, embora quisesse abraçá-lo, declarar que o amava e ser para ele uma esposa de verdade, uma vez que o casamento fora consumado.
Mas ainda era cedo para isso. Queria dar amor e receber amor em troca. E Warwick não a amava. Ele a considerava uma qualquer.
Não. Havia sérios problemas para ela resolver. Na primeira oportunidade deixaria o marido e iria reaver o que lhe pertencia.
Então o conde de North Lambria saberia que a noiva que havia salvado da forca não era uma plebéia, muito menos uma ordinária. Era a duquesa de Rochester.

Capítulo VIII

Ondine acordou com o sol batendo em seu rosto. As lembranças da noite provocaram nela um agradável calor.
Ainda entorpecida pelo sono, sorriu, feliz. Não vendo o marido do seu lado, correu os olhos pelo quarto.
Ele estava de pé, junto da janela, completamente vestido e com o chapéu na cabeça. O coração de Ondine bateu acelerado. Ao notar a expressão tensa do marido, seu entusiasmo arrefeceu. Sem saber por que, ergueu as cobertas até o pescoço. Seu sorriso desapareceu.
- Warwick...
Ele a olhou, tirou o chapéu, curvou-se sem ironia porém estava frio e distante.
- Milady, peço desculpa por meu comportamento deplorável. Receio ter bebido demais e me excedi. Perdoe-me.
Ondine julgou ter ouvido mal. Para esconder sua dor, mostrou-se fria como gelo.
- Por favor, saia daqui.
Ele hesitou, em seguida aproximou-se da cama.
- Eu não sabia... nunca imaginei...
- Não sabia o quê?
Warwick não podia estar mais constrangido.
- Pelo amor de Deus! Casei-me com uma moça que ia ser enforcada. Você tinha saído de Newgate. O que eu poderia esperar? Achei que você devia ter alguma experiência.
- Caro lorde Chatham, em que se baseia para concluir que todas as mulheres que vão para Newgate sejam prostitutas, ladras ou pedintes?
- Eu não poderia pensar que você era uma moça virtuosa se mentiu para mim, tentou me roubar e agora, condessa, parece caidinha pelo rei. Anda e dança com ele, ri e o provoca como se fosse uma amante versada na arte.
- Saia!
Warwick caminhou para a porta, mas antes de sair, olhou para trás e avisou:
- Hoje e amanhã estarei ocupado com o rei. Depois de amanhã partiremos.
Assim que ele saiu fechando a porta, Ondine levantou-se da cama e foi nua até o lavatório. Jogou bastante água fria no rosto e começou a se vestir.
O rei havia sugerido para ela fazer uma viagem sozinha e era o que pretendia fazer. Prostituta de Newgate, pois sim! Ela era uma duquesa! Iria provar isso e Warwick haveria de comer a poeira dos seus sapatos.
Parou e tentou acalmar-se. Não. Ele lhe salvara a vida. Estava em dívida com ele. Pagaria essa dívida e aí, sim, iria embora com a rapidez do vento.

Warwick passou o dia com o rei ouvindo os conselheiros advertirem Charles que os papistas ainda constituíam uma ameaça. O rei mostrava-se calmo, pois acreditava que o alvo dos ataques dos papistas era James, seu irmão, e herdeiro da coroa.
- Vamos acabar com esta discussão interminável! - Charles pediu. - Há assuntos mais sérios que exigem nossa atenção!
Eles passaram a tratar sobre as finanças do reino. Warwick parecia atento, mas estava voltado para si mesmo. Remorso, desejo e insatisfação consumiam-no. A cabeça latejava. Tinha sido um bruto. Atacara Ondine que era pura e inocente. Mas sua paixão tinha sido tão intensa que lhe entorpecera a mente. Essa paixão aliada ao ciúme, à inveja e ao sentimento de posse que o corroíam, levara-o a agir como um animal.
Isso não podia se repetir. Não podia sucumbir ao amor que sentia por ela. Ondine nem imaginava que estava sendo usada como isca para o marido descobrir o assassino de Genevieve. Era essa a dívida que tinha contraído pela sua vida e sua liberdade.
"Pense, homem de Deus", disse a si mesmo.
O momento exigia calma, atenção e discernimento. Anne, ressentida e cega pelo ciúme, estava pondo as garras de fora. Mostrava-se sedutora e súplice, porém, nos lindos olhos, havia uma ameaça. Hardgrave mantinha-se distante de Warwick e, como um grande urso, observava Ondine, seguia-a com seu olhar lascivo.
Ele iria permanecer na corte ainda dois dias e duas noites.
Chegara o momento de dar continuidade a seu plano.
No dia seguinte o conde de North Lambria anunciou que em breve teria um herdeiro. Charles e Catherine ficaram radiantes.
Anne estreitou os olhos felinos, carregados de ódio. Hardgrave não demonstrou emoção nenhuma.
Ondine encarou-o como se quisesse matá-lo.
Mas nada aconteceu, exceto que ele teve de ruminar sua raiva deitado no sofá e desejando ardentemente a esposa que dormia no cômodo ao lado, com aquele corpo sensual, feito para o prazer de um homem. Uma mulher com a paixão à flor da pele.
No terceiro dia, partiram antes do nascer do sol. Quando chegaram ao solar, Warwick sentiu-se mais infeliz do que nunca. Não podia deixar Ondine sozinha à noite porque tinha sido ali que ela ouvira a voz sussurrando, chamando-a.
Era uma agonia vê-la tão altiva e cordial andando pela casa, impregnando os ambientes com seu perfume. Falavam com ele como se fossem apenas conhecidos. Quando estava com Justin e Clinton conversava alegremente e sorria. Mathilda parecia adorá-la.
Na semana seguinte, Ondine andava pelo jardim com Justin e pediu-lhe:
- Fale-me sobre lady Anne.
Justin riu.
- Anne é uma mulher ardilosa, vingativa. Troca de amantes como troca de roupa. Foi amante do rei, de Warwick... Depois da morte de Genevieve, estava certa de que meu irmão se casaria com ela, mas acredito que ele apenas a desejava. Querida cunhada, as bestas-feras de Chatham são homens possessivos e sensuais. No entanto, escolhem sua companheira com o maior cuidado e estão dispostos a matar para defender sua honra e virtude. Você pode imaginar uma vida assim com uma esposa como lady Anne?.
Ondine não respondeu. O que Justin acabara de dizer não fazia sentido. Warwick a havia tirado da forca e acreditara que seus princípios morais fossem bem livres.
- Diga-me, Justin, sendo um Chatham, você se considera uma besta-fera?
- Não. Bestas-feras são os condes de Chatham. O segundo filho não tem direito ao título nem às terras. Por outro lado, não carrega pela vida afora a reputação de besta-fera. - Justin olhou na direção das cocheiras e observou: - Por falar em besta-fera, lá está Warwick com Dragon e Clinton.
Ele segurou-lhe a mão e ambos correram até o pátio. Clinton cumprimentou-os, mas Warwick não teve tempo de dizer nada porque Justin foi dizendo:
- Você viu meu potro no pasto, mano? Aposto que em um ano ele estará tão espetacular quanto o pai.
- Um ano é pouco tempo para aquele potro demonstrar que é forte e veloz como Dragon, mesmo sendo filho dele.
- Certo. Daqui a um ano, faremos uma aposta.
- Perfeito. E agora, se me dão licença, vou cavalgar.
- Espere, Warwick! Sua esposa e eu queremos acompanhá-lo.
A expressão do conde transformou-se.
- Lamento, mas não posso esperar que ela troque de roupa.
Tenho um compromisso. Além disso, cavalgar é um exercício violento para uma mulher no início da gravidez.
- Eu lhe peço, milorde, permita que eu o acompanhe. Não há necessidade de eu vestir um traje de montaria. E minha saúde é excelente. - Ela fez uma pausa e desafiou o marido com o olhar. - O exercício só fará bem a mim e ao bebê.
Ele engoliu sua raiva. Ondine teve prazer de vê-lo contrariado na frente do irmão e do primo.
- Vamos, então! Depressa!
- Num instante eu selo um cavalo para ela - tornou Clinton alegremente, recebendo de Ondine um olhar e um sorriso de agradecimento, o que aborreceu Warwick ainda mais.
- Eu selo minha montaria - Justin declarou, entrando na cocheira com Clinton.
Ficando a sós com a esposa, Warwick falou em tom ríspido:
- O que há, milady? Não bastou conquistar o rei? Agora quer seduzir meu irmão e meu primo?
- Vá para o diabo, Warwick - respondeu com um sorriso. Foi ao encontro de Clinton que vinha puxando uma égua, montou o animal e partiu a galope, deixando o marido para trás. - Ondine!
Ela ouviu o rugido e riu, deliciada. Riu com o vento e frescor do ar. A égua era veloz, parecia ter asas. Mas Ondine esqueceu que Dragon era excelente cavalo de batalha. Quando deu por si, o marido estava do seu lado.
- Pare com esta loucura! Você não conhece o terreno. Juro que não vou deixá-la montar novamente se...
A ameaça assustou Ondine. Não podia perder a liberdade que estava aos poucos conquistando. Puxou as rédeas da égua, mas não antes de descobrir o que Warwick quisera dizer com desconhecer o terreno. O animal tropeçou em uma grossa raiz e ela saltou da sela, indo cair sentada numa moita de capim. Warwick desmontou e correu para acudi-la.
- Estou bem! Afaste-se.
- Mulher tola. Só quero examiná-la. - Ele ajoelhou-se e tocou-a para verificar se havia quebrado algum osso. Em seguida, deu-lhe a mão e colocou-a de pé.
- Ah, a felicidade conjugal! - exclamou uma voz feminina.
Os dois olharam para trás e viram lady Anne a cavalo.
- Anne, o que...
Warwick interrompeu a frase quando viu Lyle Hardgrave se aproximando.
- Hardgrave - ele murmurou.
- Chatham - devolveu o visconde. Tirou o chapéu e curvou-se para Ondine. - Milady...
- O visconde convidou-me para visitar sua propriedade disse Anne suavemente. - E aqui estou. Warwick, você não ensinou sua esposa a montar? Que falta de atenção a sua. Pobre Ondine! Um tombo no seu estado! Espero que nada tenha acontecido a você e ao bebê.
- Monto muito bem. - Ondine deu um lindo sorriso. Segurou no braço do marido e olhou para ele, embevecida. Não houve tombo nenhum. Warwick e eu estávamos namorando. Gostamos de nos tocar em qualquer lugar, a qualquer hora.
Warwick passou o braço ao redor dos ombros da esposa.
- Hardgrave, o que fazem você e sua convidada em minhas terras? .
- Perdão. Eu devia fazer essa pergunta. Estas terras são minhas.
- Ah, querida, está vendo? Você me fez errar o caminho. - Warwick dirigiu a Ondine um olhar apaixonado, como se ela fosse a responsável por deixá-lo absorto, com a cabeça nas nuvens. - Não se preocupe, visconde. Não entraremos em suas terras novamente.
- Cavalgue conosco, lorde Chatham - Anne convidou-o.
- Como? - Warwick virou-se para ela e falou sem interesse: - Oh, não podemos acompanhá-los. Tenho um compromisso.
Ele segurou Ondine pela cintura e colocou-a na sela da égua. Em seguida foi buscar Dragon que estava a alguns metros dali, pastando. Anne aproveitou e tocou seu cavalo para perto de Ondine.
- Para mim você não é lady coisa nenhuma. Você não passa de uma talentos a prostituta. Vou descobrir a verdade sobre você.
- Faça isso, Anne - Ondine respondeu calmamente. Viu Hardgrave olhando para ela de modo lascivo e sentiu o sangue gelar. Ele curvou-se, tocou seu cavalo e partiu, seguido de Anne. Ondine reuniu-se ao marido que mal conseguia conter sua raiva.
- Tudo aconteceu por causa de sua corrida desvairada! Cuidado com esses dois. Eles não são confiáveis. Talvez seja melhor você não sair do solar, pelo menos por enquanto.
Nesse instante Justin apareceu para avisá-los que haviam ultrapassado a divisa de suas terras.
- Eu sei! Acredito que agora minha querida esposa também esteja ciente de seus limites! - Warwick gritou e tocou Dragon.
Justin olhou para a cunhada sem entender o motivo daquela explosão. Ondine abanou a cabeça com ar inocente e seguiu com Justin atrás do marido.

Mathilda esperava pelos patrões à entrada do solar e avisou Warwick que o sr. Deauvin, de Bruges, aguardava-o no escritório.
Warwick agradeceu, recomendou que lhes servissem um refresco e foi ao encontro do visitante. Ondine subiu para seus aposentos e, mesmo sem olhar para trás, teve certeza de que Jake a seguia para cumprir seu papel de cão de guarda novamente.
Ela fechou a porta da sala íntima e foi para o quarto de vestir. Trocou de roupa, sentou-se diante do espelho e ficou distraída escovando os cabelos.
Por Deus, como era difícil entender o que se passava naquela casa! Em primeiro lugar vinha Mathilda, a governanta servil, mulher estranha, filha bastarda do avô de Warwick. Clinton, filho da governanta, parecia não dar a mínima importância ao fato de ser primo do conde por bastardia. O alegre e extrovertido Justin, amava o irmão, mas tinha prazer de provocá-lo; não levava nada a sério e gostava de se divertir. Havia também aquela voz que sussurrava, parecendo surgir das paredes e desaparecia em seguida. Para completar, não podia esquecer do vizinho dissoluto, inimigo de Warwick que fora vencido numa justa. E o visconde, ao que tudo indicava, associara-se a lady Anne, ex-amante do conde, ansiosa para deixar de ser "ex". Aí estava o problema. Todos eles eram doidos e no topo da lista estava Warwick, cujo comportamento ela não entendia.
Terminou de escovar os cabelos e sentiu-se sufocada. Não podia ficar mais ali. Levantou-se e saiu para o corredor. Jake nem se dava mais ao trabalho de disfarçar que sua missão era vigiá-la.
- Vou ao jardim, Jake.
- Ao jardim? Mas já encheu a casa de flores esta manhã, milady.
- Vou colher rosas para a capela.
Jake não teve escolha senão acompanhá-la ao jardim.
Ao pé da escada estava Mathilda e ficou agitada ao vê-la. - Milady, fiquei sabendo do tombo que levou. Deve repousar. Lembre-se do bebê!
- Estou bem, Mathilda - Ondine assegurou. - Só vou colher algumas rosas.
- Nesse caso, mais tarde eu mesma levo um copo de leite de cabra a seu quarto.
- Vou adorar, Mathilda. Obrigada.
O velho Tim entregou-lhe uma cesta e ajudou-a a colher rosas vermelhas. Ondine foi para capela sempre seguida de Jake. Ao entrar encostou a porta, deixando o criado do lado de fora. Antes de arrumar as rosas nos vasos do altar-mor, Ondine deu uma volta pelos nichos para admirar as lindas esculturas em homenagem aos condes e condessas de Chatham. A tarde chegava ao fim e ela decidiu enfeitar o altar-mor enquanto havia claridade.
Estava absorta, quase terminando um bonito arranjo com as rosas quando ouviu um som parecido com um gemido. Interrompeu o trabalho e ficou atenta. O som se repetiu, muito leve, como um sussurro, um lamento. Ela olhou ao redor e não viu nada.
- Quem está aí? - perguntou, a voz baixa, mas firme, e com uma nota de irritação.
Não demonstrou medo. Aprendera com o pai que o medo é uma fraqueza que dá força ao inimigo.
Não houve resposta. Ela achou que talvez estivesse imaginando coisas. Voltou ao arranjo. Queria terminá-lo e sair dali. Mas o som que ouviu a seguir foi bem claro. Ouviu alguém chamá-la pelo nome. Assustada, espetou o dedo num espinho.
O susto cedeu lugar à raiva. Tinha de descobrir quem a estava atormentando. Virou-se e ficou tão perplexa que perdeu a fala. A uns três metros de distância havia uma... criatura. Ondine relutou em acreditar que aquilo fosse real. Devia ser uma miragem, uma ilusão criada pelas sombras e pelo medo que se escondia em sua mente.
Fixou o olhar. A criatura, completamente vestida de preto, tinha o rosto de um demônio, garras longas, curvas e letais.
Ondine teve certeza de que o que estava à sua frente não era demônio nenhum, tampouco um ser sobrenatural. Devia, sim, ser alguém que pretendia fazer-lhe mal ou até matá-la. Precisava fugir dali.
Correu pela nave principal, mas a criatura bloqueou-lhe o caminho. Desviou-se para a direita, continuou correndo e começou a gritar, esperando que Jake a socorresse. Não ouvindo resposta do criado, fez uma pausa, olhou para trás, mas não viu a criatura. Só então percebeu que na sua corrida às cegas, havia chegado ao lindo monumento em memória da última Chatham que havia passado pelo portal da morte.
A condessa Genevieve.
De repente, deu um grito e caiu num buraco. As saias aliviaram-lhe a queda, evitando que se machucasse. Ela olhou para cima e viu, a uns dois metros de sua cabeça, que a abertura por onde havia caído estava se fechando. Logo entendeu que a criatura tinha removido a pedra do piso da capela para que ela caísse na cripta, e recolocara a pedra no lugar.
Ondine fechou os olhos. Estava aterrorizada, trêmula, sentia calafrios. Abriu os olhos. Tudo estava escuro. Não teve coragem de se mexer, muito menos de sair dali. Respirou fundo para se acalmar e notou uma luz distante. Levantou-se para tentar descobrir uma saída, mas esbarrou em alguma coisa. Deu um grito ao ver um caixão aberto. Dentro dele havia um corpo. Devia ser o cadáver de Genevieve.
Tomada pelo pânico, correu ao longo do que parecia um túnel, que era de onde vinha a luz. O lugar era úmido, cheio de ratos e teias de aranha, tinha cheiro de mofo e eterno odor de morte impelida pelo terror, continuou correndo mantendo as mãos à sua frente para poder guiar-se.
Por fim, chegou a uma parede de pedra onde havia uma pequena abertura. Era por ali que a luz de um outro cômodo se filtrava. Devia ser uma passagem secreta, Ondine deduziu, mas o vão era estreito demais para ela poder passar.
Examinou a abertura na esperança de descobrir alguma pedra solta ou saliente, algum dispositivo para abrir a passagem. Não viu nada. Encontrou o cabo de uma ferramenta e usou-o como alavanca para empurrar a parede. Bateu nas pedras. Nada.
Fez uma pausa. Estava ofegante, toda arranhada, havia quebrado as unhas. Lógica, bom senso e paciência; precisava dessas virtudes. Voltou ao trabalho. Pôs todo o seu peso contra a parede, usou o pedaço de madeira novamente. Repetiu as mesmas operações outras vezes.
Inesperadamente, a pedra deslizou para trás. Maravilhada, Ondine passou pela abertura. Viu-se em uma adega iluminada por uma lanterna presa na parede. A um canto havia a escada de acesso à despensa.
Antes de subir a escada ela passou a mão nos cabelos e no vestido para tirar as teias de aranha. Iria evitar os criados e surpreender o querido lorde Chatham. Ele tinha muitas explicações para lhe dar.

- Como? O que você quer dizer com ela desapareceu? Tem certeza de que Ondine entrou na capela?
- Tenho. Ouvi-a gritar e quis socorrê-la, mas a porta foi trancada. Tive de arrombá-la, o que levou algum tempo. Quando consegui entrar, as rosas estavam no altar e Ondine havia desaparecido.
- Maldição! - Warwick praguejou, tenso, o coração batendo forte, o terror na alma.
Ia sair do escritório, mas a porta abriu-se de repente e Ondine avançou nele, esmurrando-lhe o peito, furiosa.
- Meu caro lorde Chatham, chega! Bestas-feras, sussurros, amantes, amigos, inimigos, prostitutas e fantasmas! Cansei-me! Seu miserável, você e suas falsas promessas sobre me proteger! Você e sua família são uns loucos! O que, em nome de Deus, está acontecendo aqui?
Warwick ficou tão estonteado com a aparência de Ondine e com sua fúria que recebeu os golpes no peito em silêncio. Sua mente trabalhou depressa. Teve certeza de que Ondine fora apanhada pela pessoa que assassinara Genevieve. Felizmente, estava ali diante dele. Viva! Sim, viva, furiosa, suja, descabelada, quase cômica, mas vibrante e com sua especial paixão pela vida!
Segurou-a delicadamente pelos pulsos e pediu-lhe com voz suave:
- Acalme-se e conte-me o que aconteceu.
- Você quer saber o que aconteceu a partir de que momento? Devo começar falando sobre seu gesto caridoso de salvar uma mulher da forca? Ah, seu bastardo, tudo não passou de um plano diabólico para me usar e depois me entregar à sanha de algum assassino louco!
- Está enganada - Warwick protestou e segurou-a com força. - Ouça...
- Milorde! - Mathilda chamou do corredor e deu uma batida na porta. - Precisa de alguma coisa?
Warwick olhou para Jake. O criado foi até a porta, abriu-a, conversou com Mathilda e não voltou para o escritório.
Mais calma, porém com lágrimas lhe aflorando aos olhos, Ondine pediu num murmúrio:
- Em nome de Deus, preciso saber o que acontece nesta casa.
- Está certo. Vamos ter uma longa conversa. Mas antes você vai tomar um banho.
- Não quero que minha criada me veja assim.
- É claro que não.
Warwick foi até a porta, abriu-a com cuidado e falou com Jake. Ordenou-lhe que providenciasse água quente para o banho da condessa e avisasse Mathilda que o casal não queria ser perturbado nem para jantar.
- Iremos para nossos aposentos abraçadinhos e rindo como jovens apaixonados - Warwick completou.
- Entendi milorde - Jake assentiu e se afastou.

Warwick voltou para junto de Ondine, ergueu-a nos braços e, sem lhe dar tempo de protestar, ordenou-lhe:
- Me abrace e ria! Ria bastante e me olhe como se me adorasse.
- Mas...
- Faça o que estou dizendo. Eu sei que você sabe representar. Vou carregá-la para os nossos aposentos. Caso alguém nos veja irá pensar que não pode haver casal mais feliz.
Acabando de falar Warwick saiu do escritório tão depressa e rodopiando que Ondine riu alegremente, sem precisar fingir. Passaram por Jake que naquele momento estava dizendo a Mathilda para deixar o conde e a condessa a sós. Justin também os encontrou no primeiro patamar e riu ao ver o bom humor dos dois.
Eles chegaram aos seus aposentos onde o banho de Ondine já estava preparado. Embora ela relutasse, Warwick ajudou-a a despir-se, depois a colocou na banheira. Quando se ajoelhou, com a esponja e o sabonete na mão para esfregá-la, ela protestou:
- Posso me lavar sozinha. Dê-me o sabonete e a esponja.
- Hum. - Ele abanou a cabeça. - Seus cabelos estão um horror. E não faça esse ar recatado. Sou seu marido.
Com um gesto brusco, mergulhou a cabeça dela na água, ergueu-a, e começou a massagear-lhe as têmporas, a nuca, o couro cabeludo. Ela fechou os olhos e suspirou, relaxada e contente. Deixou o marido continuar seu trabalho. Para que resistir?
Warwick carregou Ondine para a sala íntima e colocou-a sentada no sofá. Ela usava um roupão e estava com os cabelos soltos. Indo até o armário onde guardava as bebidas, serviu um copo de brandy a Ondine, em seguida preparou seu drinque e sentou-se na poltrona, diante dela.
Ela tomou um gole da bebida, sentindo que precisava tirar dos ossos aquele frio causado pelo terror que havia experimentado nos momentos em que se vira presa na cripta.
- Ondine, não a livrei da forca tendo em mente algum plano diabólico - começou. - No entanto, é verdade que a minha intenção ao casar com você era usá-la para esclarecer o mistério que há por trás da morte de Genevieve.
- Ah, estou servindo de isca para atrair a criatura que me fez cair na cripta?
- Conte-me exatamente o que aconteceu na capela.
Ondine tomou o resto do brandy para criar coragem. Era difícil relembrar o terror que experimentara poucas horas atrás.
- Jake me acompanhou até a capela, mas ficou do lado de fora quando entrei para arrumar as rosas nos vasos. Eu estava entretida quando ouvi um gemido. Ignorei o som e continuei meu trabalho. O gemido se repetiu, depois ouvi meu nome. Virei-me e lá estava a criatura.
- Criatura?!
- Uma figura coberta com uma capa preta com capuz, e uma máscara diabólica. E tinha garras. Certamente eram luvas com unhas compridas. Pois bem, a criatura me atraiu para a escultura em homenagem a Genevieve. Havia um buraco no piso e caí na cripta. Ah, você deve saber que o caixão da sua falecida esposa estava aberto.
- Aberto? Amanhã tenho de verificar isso.
- Você acredita que Genevieve tenha sido assassinada?
- Nunca duvidei disso. Mas ninguém acreditou em mim. Nem o rei.
- Então você decidiu descobrir o assassino por conta própria. Casou-se comigo esperando que o assassino atacasse novamente.
- Não! Jamais pensei em deixá-la exposta ao perigo! - Warwick protestou, indignado. - Eu queria atrair o assassino, mas meu plano era vigiá-la e protegê-la o tempo todo para que nenhum mal lhe acontecesse: Quando o assassino atacasse seria apanhado.
- Bela proteção. Quase me mataram esta noite.
- Culpa sua. Você se recusa a andar acompanhada. Insiste em sair sozinha!
- Por que você não me contou toda essa história antes?
- Tive de manter minhas suspeitas e meu plano em segredo.
O assassino pode ser uma pessoa bem próxima a mim.
- De quem você suspeita?
- De ninguém... e de muitos. Hardgrave me odeia e quer ver esta casa destruída. Anne é ciumenta, vingativa, entretanto, assassinato não parece fazer seu estilo.
- E quanto a seu irmão e seu primo?
- Pessoas do meu sangue. Não! É verdade que se eu não deixar herdeiro, Justin é o próximo na linha sucessória. Caso eu morra e Justin também, Clinton, legitimado pela lei, receberá as terras e o título.
- Bem, deixe-me refletir. Clinton nunca esteve em Westchester e foi lá que Genevieve morreu. Eu ouvi os sussurros nesta casa. Como poderiam Hardgrave e Anne fazer o papel de fantasmas se não moram aqui?
- As terras de Hardgrave fazem divisa com as minhas. Ele e Anne devem conhecer mais túneis e passagens secretas do que imagino. Além disso, assassinos podem ser contratados em troca de uma moeda de ouro.
Ondine ficou pensativa. Depois perguntou:
- Genevieve começou a ser atormentada por "fantasmas" depois que ficou grávida?
-Sim.
- Foi por isso que você anunciou que eu estava esperando um filho seu?
- Foi.
Ondine estremeceu. Warwick ajoelhou-se na frente dela e segurou-a pelos ombros.
- Juro pela minha vida, por meu nome, minha honra que vou livrá-la deste pesadelo. Depois disso a deixarei livre e com todo o ouro necessário para ter a vida que desejar. E eu lhe serei eternamente grato.
Ouro! Warwick lhe oferecia dinheiro, Ondine pensou, decepcionada. Não sentia nada por ela. Só queria usá-la. Ergueu a cabeça com dignidade.
- Muito bem! Você salvou minha vida e eu vou empenhar-me em solucionar esse mistério que envolve a morte de sua esposa. Então, lorde Chatham, estaremos quites. Cada um cuidará da própria vida. Boa noite.
Ondine levantou-se e foi para o quarto. Warwick a chamou, mas ela não se voltou. Estava tensa, sentia raiva e medo. Medo dos seus anseios. Medo dos próprios sentimentos.

Capítulo IX

Ondine escovava os cabelos, preparando-se para deitar e viu pelo espelho o marido atrás dela, os olhos brilhando de desejo. Levantou-se depressa da banqueta e foi para perto da lareira.
- Sir, não sou uma de suas conquistas. Eu...
- Você é minha esposa lembrou-a com humor.
- Esposa, não. Sou, digamos, uma sócia - ela corrigiu-o.
- Ou, se preferir, considere-me uma cúmplice, paga para cooperar. Oh!
Ela gritou e sentiu um calor que nada tinha a ver com raiva ou desejo. A barra do roupão encostara na lareira e estava pegando fogo. Warwick correu para ela, arrancou o roupão e apagou as chamas pisando nelas com as botas.
- Você se queimou?
- Não, graças a você. Obrigada. - Ondine correu até a cama e enrolou-se na colcha de brocado para cobrir a nudez. Warwick aproximou-se dela.
- O que você quer? Prometeu que me deixaria sozinha. Esqueceu suas boas maneiras?
- Tenho pensado muito em boas maneiras, em direitos, nessa liberdade pela qual você tanto anseia, no entanto, nada parece ter sentido quando as lembranças interferem nos meus pensamentos. Noite após noite tenho andado nos meus aposentos, sendo obrigado a me controlar para não vir até você. Quando durmo a vejo em meus sonhos. Tenho vivido atormentado e tudo porque eu acho que a decência deve prevalecer. Tenho suportado a força do desejo, tenho passado noites em claro, tudo para honrar a mulher que eu chamo de esposa. Entretanto, Ondine, nesta noite em que tantas coisas foram esclarecidas, concluí que nada nos impede de vivermos como marido e mulher. Para o inferno com essa farsa. Eu a quero, você me quer.
- Não! - Ondine gritou em pânico, porque, se ele a tocasse ela não resistiria. E não estava disposta a se entregar a quem não a amava. - Vá para os braços de sua voluptuosa Anne!
Um beijo ardente a impediu de continuar falando, transmitiu-lhe um calor e uma sensação de plenitude. Ah, que beijo! Queimava mais do que fogo. A língua dele, acariciante, provocante, insistente, penetrou bem fundo na boca de Ondine. Sentindo o corpo quente e macio vibrando em seus braços,
Warwick passou a acariciá-lo. Moveu os dedos sobre os seios firmes, os mamilos intumescidos, as mãos desceram para os quadris, as coxas. Ondine arquejava de prazer. Com medo das próprias emoções, empurrou o marido.
- Não!
Warwick encostou seu corpo no dela e perguntou:
- Você pode dizer, realmente, que não sente prazer? Não quer que eu continue a despertar em você sensações tão maravilhosas?
Apesar de estar vestido, ela sentia a musculatura das coxas dele contra seu corpo nu. Não tinha como deter a onda de desejo que se abatia sobre ela com o inexorável poder de uma maré. Fechou os olhos.
- Que escolha eu tenho, milorde?
- Não estou falando de escolha, e sim, de desejo! Admita que minhas carícias a excitam. Diga que seu corpo anseia pelo toque de minhas mãos, de meus lábios. Quero ouvir de sua boca que eu a completo. Confesse que o delicado recipiente de néctar entre suas coxas deseja receber minhas sementes.
Ele afastou-se, despiu-se, deixou as roupas sobre uma poltrona e voltou nu para junto de Ondine. Sem uma palavra, levou-a para a cama. Ela perdeu-se em seus beijos, no ardor de seus carinhos e na sensualidade de suas palavras sussurradas.

Ondine acordou e viu Warwick já vestido, sentado na cama, fitando-a, com admiração e carinho no olhar.
- Estive na cripta e não vi nada estranho. Tudo estava no devido lugar, o caixão de Genevieve continuava selado e não havia sinal de capa nenhuma ou de garras.
Ondine ficou perplexa e furiosa.
- Como? Está insinuando que tudo não passou de imaginação? Pois eu afirmo que uma criatura usando um manto preto com capuz, máscara e com garras, quis me atacar! Ou você pensa que caí na cripta, corri no meio de ratos e aranhas para me divertir?
- É claro que não. Acredito em você. Eu devia ter ido à cripta ontem à noite. - Warwick levantou-se, deu a volta e sentou-se do lado da esposa. - Ondine, já vi esse disfarce que você descreveu: o manto, a máscara.
- Onde? Quando?
- No palácio de Westchester, depois da morte de Genevieve. Descobri uma passagem secreta com uma escada que levava a uma masmorra. Desci os degraus e encontrei uma capa e uma máscara. A partir daí acreditei que Genevieve tinha sido assassinada. Conversei com o rei sobre o assunto e ele achou que eu estava perturbado por ter perdido minha esposa.
- Perdemos a chance de descobrir quem é essa criatura. Devíamos ter agido ontem à noite. Devíamos ter feito perguntas...
- Ora, não sou tolo. Enquanto eu estava com você, Jake fez suas investigações. Clinton esteve nas cocheiras o tempo todo. Justin não saiu dos seus aposentos. Mathilda disse que todos os criados mantiveram-se ocupados, cuidando de suas tarefas. Um homem foi mandado ao castelo de Hardgrave e voltou com a informação que Lyle e lady Anne estavam jantando.
- Estamos na estaca zero.
- Exatamente. Por isso tomei uma decisão. Voltaremos para a corte.
- Mas, acabamos de chegar de Londres! Você deve tentar descobrir o assassino, no entanto, está pensando em fugir.
- Não se trata de uma fuga. Preciso falar com o rei. No palácio você estará protegida. Confie em mim. Agora, levante-se partiremos dentro de uma hora.
Lottie entrou apressada no quarto da condessa e começou a arrumar sua bagagem. Mathilda não demorou a aparecer com o leite de cabra que Ondine tomou só para contentar a atenciosa mulher. Aquele leite lhe dava náuseas. Preocupada com o estado de Ondine, a governanta censurou Warwick por levar a esposa a Londres mais uma vez. Essas viagens longas e cansativas não faziam bem à futura mamãe nem ao bebê. O lugar de Ondine era ali no campo, onde a vida era mais saudável. Warwick tranqüilizou-a dizendo que teria cuidado e nenhum mal aconteceria à esposa nem ao bebê.
Ondine ficou surpresa quando viu Justin no hall e soube que o cunhado iria acompanhá-los. Ele explicou que, graças ao irmão, fora perdoado pelo rei e tinha autorização de voltar a freqüentar a corte.
Outras surpresas aguardavam Ondine em vez de viajar na boléia com Jake, Warwick sentou-se do lado dela, de frente para o irmão. Ele também avisou o criado que tinha urgência de chegar a Londres, por isso fariam apenas uma parada para jantar e dormir durante o dia tomariam um lanche na carruagem.
Justin protestou, dizendo que o irmão era um insensível e não tinha consideração com a saúde da esposa nem com o herdeiro Chatham que estava a caminho.
Irritado, Warwick ordenou que Justin viajasse com Jake. Não se contendo, Ondine disse ao marido:
- Warwick, eu sei que essa mentira sobre a minha gravidez faz parte do seu plano para descobrir o assassino de Genevieve. Entretanto, acho que Mathilda, Justin e Clinton deviam saber que não há herdeiro nenhum. Posso dizer que me enganei...
- E se você estiver grávida, realmente?
- Grávida? Impossível.
Warwick deu um sorriso malicioso, puxou-a para perto dele e sussurrou-lhe:
- Meu amor, você está a par das funções da natureza, não é mesmo?
- Estou! Sei muito bem o que você quis dizer. Solte-me!
- O que foi? Ficou aborrecida? A idéia de estar esperando um filho meu a desagrada?
Um filho dele...
A idéia era muito agradável. Mas era um sonho, uma fantasia. Ter sua família, ser amada, levar uma vida normal, era tudo o que desejava. Entretanto, não podia pensar no futuro com Warwick. Quando o assassinato de Genevieve fosse solucionado, ele a deixaria livre.
- Mesmo que a idéia me agrade, não posso acalentá-la, uma vez que em breve seguiremos caminhos separados.
- Ondine, eu jamais aceitaria separar-me de meu herdeiro. Se você ficar grávida e mesmo assim quiser sua liberdade, você a terá, mas só depois que a criança nascer. Ficarei com meu filho, e Mathilda me ajudará a criá-lo. Acredite, ela ficará tão feliz com essa tarefa que nem notará seu desaparecimento.
O primeiro impulso de Ondine foi lançar sobre o marido uma torrente de termos ofensivos que aprendera em Newgate. Bem que merecia ouvi-los, pois sabia como irritá-la. Olhou para ele e não pode deixar de admirá-lo. Era voluntarioso, forte, determinado, até arrogante. Mas também era terno, compreensivo e bondoso. Um homem superior que impunha sua vontade. E o amava assim como ele era.

Os viajantes jantaram e dormiram na estalagem Boar's Head. Partiram logo ao amanhecer. Tinham percorrido poucos quilômetros quando a carruagem parou de repente. Justin desceu da boléia e avisou o irmão:
- Lyle Hardgrave e lady Anne estão nos seguindo. Reconheci o brasão dele na porta da carruagem. Achei que devia avisá-lo.
Ondine estava cochilando e abriu os olhos. Ouviu o marido ordenar:
- Toquem os cavalos mais depressa. Temos de nos distanciar dos dois.
- Minha idéia era exatamente essa - Justin respondeu e olhou para Ondine dirigindo-lhe um sorriso exuberante. Adorava provocar o irmão. - Continue dormindo, bela cunhada. A fera vela seu sono.
Ondine também sorriu e quando a porta se fechou, voltou-se para o marido, mas ele olhava sisudo para os grandes carvalhos que margeavam a estrada. A carruagem pôs-se em movimento.
- Warwick, você está pensando...
- Não me atrevo a pensar em nada.
- Não há motivo para você pensar mal de seu irmão ou sentir ciúme. Vocês se amam e ele é leal, nunca iria prejudicá-lo.
- Parece que você gosta muito dele. Está sempre disposta a defendê-lo.
- É claro que sim! - Ondine gritou, ofendida com o tom do marido. - Justin é amável, alegre, encantador. Mas nunca me desrespeitou. Ele só gosta de provocá-lo, Warwick.
- É uma pena que não tenha sido Justin quem a encontrou com aquela corda no pescoço.
Ondine ia responder, mas segurou a língua porque Warwick não havia falado com raiva nem com ironia. Sua expressão era de cansaço. Ele passou a mão no rosto dela e falou com brandura:
- Durma um pouco. O dia será longo, monótono e fatigante.

Warwick e Ondine foram levados até o rei que se encontrava em seu laboratório. Ele usava um avental branco e estava atrás de uma mesa, ocupado em misturar um líquido borbulhante com outro fumarento. Seus olhos escuros brilhavam de alegria.
Ao ver os amigos seus lábios cheios se curvaram num amplo sorriso.
- Consegui! Acho que consegui!
Warwick arqueou as sobrancelhas.
- Se me permite a pergunta, conseguiu o que, sire?
- Com algumas raízes e ervas aperfeiçoei a fórmula e tenho aqui o "Bon Vivant"! - Charles ergueu um frasco contendo um líquido pardacento.
- "Bon Vivant"?
- Ah, você é muito jovem! Aprendi esta fórmula com um químico francês. É uma poção que retarda os efeitos da idade. Mas não vamos falar sobre isso. Sejam bem-vindos! Justin, é bom revê-lo! - O rei deixou o frasco sobre a mesa, tirou o avental e aproximou-se dos amigos.
Justin ajoelhou-se para beijar o anel do rei. - Está realmente arrependido, rapaz? - Muito arrependido, sire!
- Então, levante-se. E trate de comportar-se como um cavalheiro. Agora saia da minha frente que vou cumprimentar lady Chatham. A linda condessa alegra bem mais os meus olhos do que vocês dois!
Ondine fez uma graciosa reverência. Charles ajudou-a a levantar-se, beijou-lhe as mãos e as faces.
- Cara lady Ondine, está ainda mais bonita, e sua presença na corte me alegra. - Ele voltou-se para Justin. - Justin, leve sua cunhada para um passeio. Preciso falar com seu irmão.
Warwick ficou tenso e ia protestar, mas o rei ordenou que dois guardas seguissem o casal.
- O que há? Meu irmão acha que não sirvo para proteger sua esposa? - Justin indagou, irritado, quando saiu com Ondine para o jardim.
- Não! Warwick está preocupado. Apenas isso.
- Ora, não sou tolo. Ele não confia em mim, seu próprio irmão!
- Releve. Ele só quer me proteger. Ultimamente Warwick anda assim, cheio de cuidados comigo. Ele já estava de mau humor. Piorou depois que soube que o visconde e lady Anne estavam nos seguindo.
Uma mulher elegante, usando vestido de veludo azul, enfeitado com rendas, caminhou ao encontro deles.
Lady Anne.
- Justin Chatham! Ora, o rapaz encantador veio à corte com o irmão e a... cunhada.
- Sim, Anne, aqui estou - Justin respondeu, curvando-se diante da linda mulher.
- Lady Chatham! É sempre um prazer rever uma lady fascinante e cheia de mistério.
Tanto Justin como Ondine olharam para Anne desconfiados. Havia algo ameaçador no seu olhar. Ela estava alegre demais. Confiante. Parecia um tigre satisfeito por haver encurralado a presa. .
- Onde está Hardgrave? - Justin perguntou.
- Lyle? Está por aí.
- Achei estranho o fato de vocês decidirem vir para a corte ao mesmo tempo que nós.
Anne riu. Um riso vibrante que fez Ondine tremer. Lady Anne era linda, mas exalava maldade por todos os poros.
- Estranho? Coincidência, talvez - ela murmurou de modo evasivo. Perguntou a Ondine: - E você, como vai? Está conseguindo sobreviver à vida de casada?
- Adoro a vida de casada, Anne. Quanta ventura ela nos proporciona - Ondine respondeu, toda doçura.
- Ah, lá estão eles!
A voz do rei interrompeu a conversa. Charles e Warwick aproximaram-se dos três. O rei cumprimentou Anne com expressão severa.
- Fiquei sabendo que você estava de volta.
- A vida no norte é extremamente monótona, sire.
O rei não disse nada. Segurou na mão de Ondine e afastou-se com ela, dando a entender que os outros poderiam segui-los se quisessem, desde que a certa distância.
Ondine quis olhar para trás, ansiosa para saber por que Warwick e Anne conversavam em voz baixa e ela ria, pareceu divertir-se. Mas o rei exigiu sua atenção.
- Warwick contou-me o que aconteceu com você na capela, em Chatham, e isso me deixou preocupado. Eu não acreditava que Genevieve tinha sido assassinada, mas agora não tenho mais dúvida disso. Assassinada no meu palácio! Felizmente você não foi atacada.
- Não. Mas quase morri de susto.
- Você terá sempre a proteção dos guardas. - O rei hesitou antes de dizer: - Seu marido falou-me que deseja o divórcio. Não sou a Igreja, claro, mas há casos em que posso intervir.
Ondine ficou chocada.
- Divórcio?
- Lady, seu marido teme pelo que lhe possa acontecer. O assassino matou a primeira esposa dele e tentou matar você. Se continuar casada com ele, você estará arriscando a própria vida.
Era tão grande a angústia de Ondine que ela teve medo de irromper em lágrimas diante do rei.
- Perguntei sobre o filho que você estaria esperando e pela expressão dele entendi que não há criança nenhuma. Seu marido pretende mandá-la em segurança para uma de nossas colônias. Talvez tenha chegado o momento de você procurar seu tio e pôr em ação o plano de inocentar-se e limpar o nome de seu pai.
- Vossa Majestade revelou a Warwick quem eu sou?
- Não. O que você me contou foi confidencial.
- Obrigada. Deus o abençoe, sire - Ondine agradeceu com os olhos rasos d'água.
- Nada de lágrimas. Esta noite haverá um banquete e um baile. Quero dançar com você novamente. Não se desespere. Prometo ajudá-la em tudo que estiver ao meu alcance.
Eles voltaram ao encontro de Warwick, Justin e Anne, que tinham ficado para trás. Ondine sentiu-se inquieta perto de Anne. Além de estar alegre demais, ela a encarava como se soubesse de alguma coisa; como se estivesse preparada para atacar.
Atacar? Seria Anne a criatura que a aterrorizara em Chatham? Teria sido ela quem atraíra Genevieve para a morte?
Não, a atitude de Anne, no momento, estava sendo muito aberta e provocativa. Talvez Anne tivesse um trunfo para usar contra a rival.
Apesar de sentir-se cansada, tensa e infeliz, Ondine ergueu bem a cabeça e ignorou lady Anne. Que Warwick perseguisse seus próprios demônios. Ela iria cuidar de seu futuro. Como o rei havia dito, chegara o momento de ela provar que não era traidora e recuperar o que lhe pertencia.

Ondine deitou-se para descansar um pouco e adormeceu. Teve novamente o pesadelo que tanto a assombrava. Viu a espada erguer-se e, depois, o sangue do pai manchando o chão de pedras. Gritos, sua fuga, o terror de não conseguir escapar.
Os guardas, e Raul em sua perseguição.
Acordou sobressaltada com alguém a agarrando. Debateu-se, gritou apavorada, mas seus gritos foram abafados pela mão que lhe cobriu a boca.
- Shh! Sou eu. Com esses gritos você é capaz de atrair guardas armados para cá.
A voz de Warwick era suave. Por longo tempo ele a manteve abraçada junto ao peito. A força dos seus braços era para Ondine como uma torre onde encontrava abrigo seguro.
- Com quem você tanto luta em seus sonhos?
Ao ouvir a pergunta, ela empurrou o marido para afastar-se dele. Como ousava questioná-la, se naquele mesmo dia pedira ao rei que interviesse a favor de seu divórcio? Por Deus, nunca iria dizer quem ela era, muito menos revelaria os mistérios e falsidades de seu passado, que tanto a afligiam.
- Não se trata de ninguém que você conheça, Chatham!
- Quanto veneno! Só quero confortá-la.
- Eu lhe agradeço - Ondine respondeu, cansada. Talvez o marido se preocupasse realmente com a sua segurança. Agora, por favor, quero ficar sozinha.
- Está bem, vou deixá-la. Está quase na hora do banquete.
Mas devo avisá-la que teremos problemas sérios. Anne e Hardgrave estão tramando alguma coisa contra você.
Warwick levantou-se e saiu do quarto.
Ondine estava gelada. Teria Anne descoberto que ela era a filha do duque de Rochester? Pressentindo uma fatalidade, foi no guarda-roupa. Escolheu para essa noite um vestido de seda malva bordado com pérolas. Sabia que depois de arrumada, tendo feito um bonito penteado, chamaria a atenção mesmo entre as beldades da corte. Se Anne pretendia atacá-la, iria enfrentá-la de cabeça erguida e com ar de superioridade.
Quando se reuniu ao marido, momentos depois, ele pediu-lhe brandamente:
- Ondine, se cometeu faltas no passado, por que não as confessa?
- Warwick Chatham, você não é meu confessor.
- Sou seu marido, não se esqueça disso.
"É meu marido, mas quer livrar-se de mim", ela pensou contendo-se para não chorar.
- Você é que se esquece de que não ligo a mínima para o título de condessa de Chatham.
- Pois devia. Há tubarões prestes a atacar. Talvez você precise de ajuda.
- Não a sua, milorde.
Ondine baixou os olhos, furiosa consigo mesma. Por que tratava mal o marido? Por que rejeitava sua oferta de ajuda? Não teve mais tempo de pensar nos próprios problemas. Eles estavam entrando no salão lotado e uma voz forte, carregada de vingança, anunciou:
- Ei-los! Chatham e lady Ondine!
Os convidados se afastaram, abrindo caminho para Lyle Hardgrave.
Warwick puxou Ondine para bem junto dele e Justin logo apareceu, ficando atrás do irmão, pronto para defendê-lo.
- Sim. Aqui estão Chatham e esta lady - Hardgrave prosseguiu com sarcasmo.
- Chamem o rei! - alguém pediu.
Hardgrave curvou-se diante de Ondine e acrescentou no mesmo tom escarnecedor:
- Bons amigos, esta mulher não é lady coisa nenhuma.
Anne descobriu sua origem.
Anne colocou-se do lado de Hardgrave e falou em tom teatral:
- Warwick, como lamento fazê-lo passar por isto!
- O que está acontecendo? - A voz do rei soou forte. - Majestade! Esta mulher não é quem diz ser.
- Warwick casou-se com uma criminosa, sire. Esta mulher foi tirada da forca! - Hardgrave completou.
- Ela é uma ordinária. Veio das ruas! - Anne declarou.
- É mesmo? - perguntou o rei como se não soubesse de nada.
Warwick virou-se para a esposa tendo um fogo glorioso nos olhos ambarinos. Ele beijou a mão dela de modo reverente. Depois olhou para o rei.
- Sim, Majestade. Lady Anne está certa. Porém, quem pode me culpar? No meio da multidão vi o lindo rosto de Ondine. Sua beleza, sua altivez e coragem me seduziram. Como poderia uma criatura tão angelical merecer, aquele destino terrível? Aproximei-me. Vendo-a de perto, notei que era ainda mais encantadora. Sua beleza celestial me cativou. Casei-me com ela ali mesmo. Por Deus, que homem não faria o mesmo? Asseguro-lhe, sire, que estar casado com ela é conhecer o Paraíso.
Charles ficou em silêncio, impressionado com a habilidade de Warwick em contornar a situação. Por fim, ele aplaudiu e os convidados o acompanharam.
- Chatham, estou maravilhado com sua declaração. Eu também ficaria impressionado se encontrasse uma mulher com a beleza de sua esposa. - O rei curvou-se diante de Ondine. - Adorável lady, você tem realmente a classe de uma condessa. Eu a considero uma das mais belas ladies dos meus domínios. E agora, vamos ao banquete!
O rei dirigiu-se para a mesa e os convidados seguiram-no. Hardgrave e Warwick continuaram trocando olhares dardejantes. Anne estava furiosa e decepcionada. Ondine sentia o rosto queimando. O marido a defendera bravamente.
- Hardgrave, uma injúria feita à minha esposa é uma injúria feita a mim - Warwick falou em tom glacial. - Ela não pode se defender, mas eu posso e você conhece a minha força e a minha espada.
Justin, que estava perto de Anne, comentou, irônico:
- Anne, minha cunhada pode ter vindo das ruas, o que é melhor do que vir da sarjeta de onde vêm algumas das mulheres aqui presentes.
O palavrão que Anne murmurou era, definitivamente, próprio da sarjeta. Justin riu. Olhou para o irmão que seguia de braço com Ondine e ofereceu-lhe, galante, o outro braço.
Ela baixou os olhos, agradecida. Amava os dois irmãos Chatham.

Após o banquete, Charles disse a Warwick que precisava dele para decidir alguns problemas do reino.
Jake apareceu e levou Ondine para seus aposentos. Ela sentiu-se segura. Tinha certeza de que o fiel criado permaneceria do lado de fora da porta.
Em seu quarto, Ondine andou agitada de um lado para outro.
Amava Warwick, devia-lhe muito, e estava sofrendo porque ele decidira abandoná-la. Sem conseguir dormir, vestiu a camisola mais fina e sedutora que possuía, perfumou-se e soltou os cabelos. Serviu-se de vinho do Porto para criar coragem e foi tomá-lo diante da lareira enquanto esperava pelo marido.
Ele iria admirá-la. E desejá-la...
Passava da meia-noite quando Warwick entrou no quarto.
- Por que ainda está acordada?
- Eu... o esperava para lhe agradecer pelo que fez por mim. Você não permitiu que Anne me ridicularizasse. Ouvi comentários durante o banquete. Os convidados gostaram de sua história romântica.
- Não precisa me agradecer. É claro que eu teria de defendê-la. Você é uma Chatham. Há mais alguma coisa que queira me dizer?
Ondine sentiu-se tola e rejeitada. Quis sair dali, mas Warwick foi até ela colocou as mãos nos braços da poltrona, impedindo que ela se levantasse.
- Você tem o perfume de flores, é tão fugidia quanto um sonho, sedutora como o jasmim da noite. Sua camisola nada deixa para ser imaginado. Se eu não estivesse absolutamente certo de sua hostilidade para comigo, poderia até pensar que a sua intenção era me seduzir.
- Ora, me deixe! Quero sair daqui.
- Diga a verdade. Admita que ficou à minha espera vestida desse jeito porque me deseja.
- Oh, Deus! - ela murmurou mortificada. Não era capaz nem mesmo de seduzir o marido sem parecer ridícula. Que idiota! - Por favor!
Ele ergueu-se. Ondine levantou-se como um pássaro querendo fugir da gaiola, mas viu-se nos braços do marido, encostada no peito dele.
- Responda. Você me deseja, Ondine? - ele perguntou num sussurro.
Ela perdeu-se num turbilhão de sensações. Não pensou em mais nada. Ficou em silêncio, presa ao olhar de Warwick, enlevada pela magia da noite. Empurrou as alças da camisola e ela deslizou por seu corpo até seus pés, ali ficando como uma nuvem.
Warwick despiu-se. As chamas da lareira brincaram esplendidamente sobre os dois corpos nus.
Eles não foram para a cama. Fizeram amor deitados no tapete, sem coberta nenhuma, aquecidos pelo calor do fogo da lareira e de seus corpos ardentes.
Para Ondine o passado e o futuro deixaram de existir. Havia apenas a paixão flamejante daquela noite.

Capítulo X

Ondine tinha a sensação de que flutuava em uma terra mágica, feita de nuvens e paz. De repente, o som de passos pesados no corredor somado ao de fortes batidas na porta penetraram cruelmente no seu agradável mundo de sonhos. Abriu os olhos. Estava deitada no tapete, com a cabeça apoiada no braço do marido.
Warwick mexeu-se e levantou-se irritado. Vestiu depressa os calções e voltou-se para Ondine. Por um momento ele ficou sem palavras, encantado com tanta beleza. Os cabelos, tocados pelo sol e caídos sobre os ombros e os seios, brilhavam como chamas. A pele sedosa era como o marfim. Amava aquela mulher e doía-lhe ter de repudiá-la. Ele abaixou-se e segurou o queixo dela com carinho.
- É o rei. E a porta do corredor não está trancada - ele falou, por fim. - Fiquei de encontrá-lo assim que me levantasse, mas dormi demais.
- Oh! O rei! - Ondine exclamou.
Teve tempo apenas de pegar a camisola e cobrir-se com ela antes de a porta do quarto se abrir. Descalço, e usando só os calções, Warwick ajoelhou-se no tapete e abraçou a esposa.
Charles ficou parado à porta e sorriu diante da linda cena. O belo cavaleiro protegendo a delicada esposa. Em seguida curvou-se.
- Lady Chatham, peço-lhe desculpas. Warwick!
- Sire!
- Está atrasado! Lorde de Sudbury e lorde Wane nos guardam.
Atrás do rei os guardas também podiam ver a cena. Charles deu um sorriso perverso, pois conhecia o palácio. Dentro de pouco tempo todos ficariam sabendo que lorde e lady Chatham eram tão loucos um pelo outro que não tinham paciência de ir para a cama quando a paixão explodia.
Antes de sair, Charles perguntou:
- Já esteve em Newmarket para assistir às corridas, Ondine?
- Nunca estive lá, sire.
- Nesse caso, iremos esta tarde. E você, Warwick, acabe de se vestir.
O rei virou-se e saiu do quarto, fechando a porta.
- O assunto de sempre: a sucessão de Charles! - Warwick queixou-se, levantando-se e pegando as botas. - Catherine não teve filhos e James é o herdeiro católico do trono. Entretanto, metade dos nobres insiste com Charles para que ele torne legítimo seu filho bastardo, o duque de Monrnouth. Por Deus, James será um ótimo rei. Mas os que não aceitam James, falam em uma guerra civil se ele suceder ao irmão.
Ondine ouviu o marido muito feliz. Warwick conversava com ela como nunca havia falado antes.
Tratava-a como esposa.
- Por que toda essa preocupação com o sucessor de Charles? Ele não tem cinqüenta anos e goza de perfeita saúde ela comentou.
- É verdade, Mas um rei está continuamente cercado de perigo. Enquanto eu viver estarei entre aqueles que guardam a saúde e a vida de Sua Majestade. - Warwick terminou de se vestir, pegou a espada e beijou a esposa. - Eu gostaria de ficar com você, mas devo obediência ao rei. Espere por mim; não saia enquanto eu não chegar. Jake continuará aqui, bem como os guardas.
Ele beijou-a novamente e deixou o quarto.
A reunião foi longa, o que atrasou a viagem para Newmarket. Ondine ficou fascinada com a movimentação no palácio para organizar a comitiva real. Por fim, as carruagens puseram-se em marcha. A carruagem de Warwick, conduzida por Jake, seguia logo atrás do coche do rei. Justin acompanhava o irmão e a cunhada.
Todos estavam alegres conversando e rindo. A certa altura, Justin abriu a cortina da porta e exclamou:
- Droga! Hardgrave está nos seguindo! E Anne, aquela víbora, acena para nós toda risonha.
Warwick encolheu os ombros.
- Acenar não é proibido por lei.
Os olhos verdes de Justin estreitaram-se.
- Não é proibido, mas toda vez que vejo a megera tão alegre, perco a tranqüilidade.
Que noite aquela! Uma noite de rara e eterna beleza que permaneceu viva na memória de Ondine e que, mais tarde, nos momentos de solidão e temor, serviu-lhe de lenitivo.
Em Newmarket, ela e Warwick se hospedaram em um pequeno chalé com apenas um quarto e uma saleta. Sobre uma mesinha havia queijo, pão e uma garrafa de vinho que eles comeram por comer.
Sentaram-se na cama, de pernas cruzadas, o olhar de um preso ao do outro. Inclinando-se para a frente, Warwick tirou a faixa do roupão que Ondine usava, abriu-o, e por longo tempo acariciou o vão entre os seios, os mamilos, o ventre. Ela gemeu de prazer. Ergueu-se e tirou o roupão. Warwick fez o mesmo. As carícias passaram a ser recíprocas. Nenhum dos dois falou. Apenas seus olhos eram eloqüentes. O fogo crepitava na lareira. Ela correu os dedos pelos cabelos do marido, apoiou o queixo sobre a cabeça dele e sentiu que ele aninhava o rosto entre os seios rígidos.
Então ele se posicionou e, devagar, faminto, ardendo de desejo, deitou Ondine, moldou seu corpo ao dele. E na sombra cúmplice do quarto, acariciaram-se, amaram-se, seus corpos se fundiram, coração com coração, alma com alma, em perfeita harmonia. Todas as frases sussurradas, todos os sons, arquejos e gemidos, todos os gestos, os momentos de volúpia e desmedido prazer ficariam na lembrança de Ondine.
Ele também se, lembraria vivamente da beleza dessa noite mágica. Ah! Ele se lembraria.
Pela manhã, Ondine acordou muito alegre, feliz consigo mesma, feliz com a vida. À tarde o rei e seus convidados foram assistir às corridas. O céu estava claro e o sol brilhava. Só mesmo a proximidade de Anne e Hardgrave empanou a alegria de Ondine.
Ela olhou para trás. Anne estava mais gloriosa do que nunca. Hardgrave, apesar de atarracado, destacava-se por sua elegância. Usava camisa com punhos de renda, casaco e calções de veludo marrom.
Ele percebeu o olhar de Ondine e dirigiu-lhe um sorriso lascivo, como se estivesse pensando em realizar com ela todas as suas fantasias. Amedrontada, com o coração batendo acelerado, ela segurou com força no braço do marido. Ele estava conversando com Justin e acariciou a mão dela distraidamente.

A corrida começou. Warwick e Justin, entusiasmados, aproximaram-se mais da pista e Ondine acompanhou-os. Manteve se atenta a Anne e Hardgrave que estavam agora bem perto dela.
- Tem certeza de que encontrou o frasco correto no laboratório do rei?
A voz, embora sussurrada, era de Anne. Ondine apurou os ouvidos, mas o barulho dos apostadores impediu que ela ouvisse a resposta de Hardgrave.
Os dois aproximaram-se deles.
- Fez alguma aposta, Warwick? - Anne perguntou em tom cordial.
- Não. Chegamos tarde para fazer as apostas - ele respondeu, fixando nos dois cúmplices seu olhar alerta.
- Por que não vamos até o carvalho? - Anne perguntou subitamente. - A vista que se tem daquele lugar é excelente.
Warwick olhou para Justin. Ambos reconheceram que poderiam acompanhar melhor a corrida daquele ponto. Todos foram até o carvalho.
Os cavalos estavam alinhados para o novo páreo.
- Quem será o vencedor? - Anne indagou.
- A meu ver será o baio - Hardgrave opinou.
- O baio? Nunca! - Justin protestou. - O alazão tem peito mais largo e pernas fortes.
- Ambos estão enganados. - Warwick riu. - Aposto cem libras no garanhão negro.
- Aceito a aposta - disse Hardgrave.
"Que tolos. Parecem crianças. Divertem-se, como se tivessem,esquecido as hostilidades", Ondine pensou.
Anne voltou-se para ela.
- E você, o que diz, Ondine?
- Concordo com meu marido. O garanhão cor de ébano será o vencedor.
Um tiro estrondou no ar dando início à corrida. A multidão se movimentou para chegar bem perto da cerca e Ondine viu-se empurrada contra o carvalho.
De repente, alguém lhe cobriu a boca e o nariz com um pano molhado. Ela quis lutar e gritar, mas sentiu um cheiro enjoativo que a deixou sem forças, sufocada. Tudo girou ao seu redor. Ouviu Anne gritar e em seguida a viu cair no chão. Ela teve a sensação de estar sendo carregada.
Tudo ao seu redor escureceu.

Ondine acordou desorientada, com enjôo e a cabeça latejando. Abriu os olhos e fechou-os depressa porque tudo parecia rodar. Compreendeu que alguém a havia drogado e trazido para aquele lugar. Lembrou-se de ter visto Anne caída. Quem a havia atacado? Teria Anne sido atacada também? Uma dupla de bandidos? Como puderam agir no meio de tanta gente? Qual a razão daquele ataque e onde ela se encontrava?
Abriu os olhos novamente. A forte claridade aumentou a dor de cabeça. Tentou mover-se e percebeu que as mãos estavam amarradas nos lados de um beliche. Não tardou a reconhecer sua prisão: estava na cabine de um navio. Era um cômodo apertado, com apenas uma janelinha, daí o cheiro de mofo que impregnava o ambiente. Viu uma mesa sobre a qual havia cartas geográficas enroladas, uma garrafa de rum e um casaco sujo. A um canto estava um baú tendo sobre ele uma bacia e um jarro esmaltados, encardidos.
Ela rangeu os dentes, desesperada. Era evidente que tinha sido raptada e trazida para aquele navio. Mas por quem? E por quê?
Anne! Claro! Anne havia perguntado a Hardgrave se ele havia encontrado o frasco correto no laboratório do rei. O frasco continha algum tipo de droga que a deixara desacordada Será que iriam matá-la?
Em pânico, ela forçou as cordas para libertar as mãos, mas ficou com os pulsos feridos. Ouvindo passos e vozes ficou enregelada.
- Ei! O que você faz aqui?
- Estou a fim da belezura.
- Ela não deve ser tocada. As ordens foram essas!
- Que se danem as ordens. Quem arriscou a vida fui eu.
Mereço uma recompensa.
A porta abriu-se. Ondine fechou os olhos. Achou melhor fingir que ainda estava sob o efeito da droga.
Dois homens se aproximaram do beliche e o fedor de corpos sujos tomou o ar irrespirável. Ela rezou para não espirrar ou tossir. Tinha de manter-se imóvel e ouvir aqueles nojentos para obter alguma informação.
Para sua infelicidade, os homens permaneceram em silêncio por vários segundos, o que para Ondine pareceu uma eternidade. Por fim um deles falou:
- Ela é bonita, jovem e firme, Josh. Podia estar acordada.
- Para quê? Ela não pode ser tocada.
- Tolice. Ela é casada. Não é virgem. Quem sabe o marido é um velho. Ela vai me agradecer se praticar um pouco de esporte.
- Vê se te enxerga, fuinha. Esqueça! Vamos descer o rio e pegar o resto do ouro.
- Podemos pegar o ouro e nos divertir com a lady. Então a entregamos. Quem vai saber a diferença?
- O homem que nos pagou saberá. Ele foi bem claro: quer a lady sem um arranhão.
- Bah! Não pretendo arranhá-la.
- Ela pode dar com a língua nos dentes, seu idiota.
Em seguida Ondine sentiu que um dos homens passou a mão nos seus cabelos. Aterrorizada, abriu os olhos e gritou. O homem era horrível, mais asqueroso do que qualquer um dos carcereiros de Newgate. Era imundo, tinha dentes pontudos, escuros, a mão cinzenta.
- Não! Não ouse me tocar! Juro que o matarei! - ela falou com ódio.
O homem riu e apertou ainda mais as cordas que lhe prendiam os pulsos.
- Hum, a mulher tem fogo nos ventas. Melhor assim. Vai me matar, vagabunda? Como?
Josh, que era velho, e tinha melhor aparência do que o outro, estava limpo, embora suas roupas fossem remendadas, zangou-se com o companheiro.
- Deixe-a, seu idiota!
O fuinha riu e debruçou-se sobre Ondine. Ela aspirou o hálito fétido e achou que iria vomitar. Certa de que ele pretendia beijá-la, criou forças, dobrou um joelho e ergueu-o com toda a sua fúria, atingindo em cheio a virilha do bandido.
Ele deu um berro, encolheu-se de dor e olhou para Ondine, furioso.
- Sua vadia! Ordinária! Aquele ouro pode ir para o diabo. Espere que vou te ensinar. Você vai...
Ondine não esperou o término da frase. Torceu o corpo e ergueu a perna para chutar o nojento, mas Josh segurou-o e puxou-o para longe do beliche.
- Deixe a lady, maldito! - ordenou. - Parte daquele ouro é minha, outra parte é do capitão e você não vai roubá-lo de nós.
Josh deu um safanão no fuinha e colocou-o para fora da cabine.
- Onde estou? De que ouro vocês estavam falando? - Ondine perguntou. - Libertem-me e vocês terão uma recompensa muito maior.
Josh não respondeu. Deu as costas e aproximou-se da mesa.
- Por favor! Sou a condessa de North Lambria - ela continuou. - Eu posso...
Horrorizada, ela parou de falar. Josh estava de frente para ela com um pano úmido na mão.
-Não!
- Você vai nos causar problemas, milady. Muitos problemas.
Ela esperneou, deu chutes, inutilmente. Josh murmurou uma praga, segurou-a com firmeza com uma das mãos e disse que também iria amarrar-lhe as pernas.
Então o pano úmido cobriu-lhe o rosto. Ela não conseguia respirar. E a escuridão envolveu-a mais uma vez.

Ao ouvir o grito de Anne, e vê-la caída, com a blusa do vestido rasgada, Warwick desembainhou a espada, num gesto automático, dado o treinamento recebido quando prestara serviço a seu rei. No mesmo instante percebeu que Ondine não estava mais segurando no braço dele. A partir daí, ficou em pânico. Deixou Hardgrave cuidando de Anne e andou no meio da multidão gritando o nome da esposa, fazendo perguntas, tendo maus pressentimentos.
Justin seguiu o irmão e Jake materializou-se do seu lado.
Uma moça que vendia doces informou Warwick que tinha visto um cavalariço afastar-se do carvalho levando um grande volume de cobertores e seguira na direção da estrada.
Jake lembrou-se de ter visto, na beira da estrada, uma carroça de suprimentos que, segundo o haviam informado, ia levar a carga para o navio mercante Marianne.
- Nesses cobertores podia muito bem estar escondida uma mulher magra como Ondine - Jake argumentou.
Aterrorizado, Warwick quis partir a cavalo sozinho, mas Justin obrigou-o a esperar. Falou com o duque de Buckingham l este reuniu bem depressa dez amigos com seus velozes cavalos de corrida e seguiram pela estrada a galope.
Hardgrave ajudou Anne a levantar-se e ela sussurrou ao ouvido dele:
- Lyle, você tem de acompanhar os cavaleiros.
Hardgrave, nada sutil, respondeu, furioso:
- Eu? Você acha que vou me expor? E se aquele suíno a quem pagamos todas aquelas moedas de ouro me reconhecer?
- Fale baixo! - Anne murmurou. - Só o capitão viu seu rosto. É por isso que você deve acompanhar os cavaleiros. Se Warwick descobrir que a carroça de suprimentos foi para as docas do rio, não descansará enquanto não conseguir que alguém confesse quem foi o mandante do seqüestro. O capitão conhece você. Portanto, ele deve morrer numa luta antes de abrir a boca. Você quer ir para a Torre ou para o exílio? Eu não quero. Ou pior ainda, você quer enfrentar Warwick novamente? E, veja bem, sem o rei ordenar que as espadas sejam embainhadas.
- Enfrentarei Warwick a qualquer hora.
- Bem, não estou preparada para viver na Torre enquanto você tem uma morte gloriosa. Você falhou, mas ainda há tempo de se redimir. Vá!
Warwick e o grupo de homens galoparam como se voassem. Deixaram para trás a cidade, os campos e as colinas. Warwick estava quase cego de medo de não encontrar Ondine e salvá-la.
Amava-a e culpava-se amargamente por ter pretendido usá-la para atrair o assassino de Genevieve.
O amor que ele sentia estava lhe embotando a mente, deixando-o louco, incapaz de refletir. Não fosse Justin e Buckingham, ele teria partido a cavalo, matando todo o mundo que encontrasse pela frente. Por Deus, ele não era nenhum idiota.
Numa batalha mostrava-se sempre frio, um guerreiro que lutava tanto com sua inteligência como com sua força muscular.
Mas esse amor estava lhe roubando a prudência e a noção de estratégia.
Quando ele encontrasse a esposa, iria cuidar da segurança dela em primeiro lugar. Iria mandá-la para longe de Chatham, onde a vida dela corria perigo.
- Warwick! Lá está o Marianne e vai partir! - Justin gritou.
- Rápido! Vamos!.- Buckingham incentivou os amigos.
Eles chegaram às docas causando um tumulto. Pedestres que estavam no caminho saltaram para o lado, carrinhos de frutas e verduras tombaram na rua, cães ladravam e as pessoas que estavam por perto e seguras, acompanharam a cena, boquiabertas.
Com o coração aos saltos, Warwick desmontou antes mesmo de refrear o cavalo por completo. Só então percebeu que Hardgrave estava do seu lado.
- Marinheiros do Marianne, esperem, em nome do rei! - Justin gritou. - Capitão desse navio, é uma ordem! Espere!
- Esperar? Nunca!
O capitão, homem magro, com um tapa-olho do lado esquerdo, barba suja e cara de devasso, desembainhou a espada e ergueu-a, ameaçador.
- Como é, companheiros? Ali estão uns doze dândis e nós somos quarenta. Ordem do rei? Bah! Venham nos pegar se puderem. Companheiros, vamos partir. Eles, por certo, querem roubar.
Reinou no Marianne grande atividade. As últimas amarras estavam sendo soltas quando Warwick saltou da prancha de embarque para o convés e o grupo seguiu-o. Foram recebidos com pistolas, adagas e espadas. Eram em número menor, mas lutaram bravamente como anjos vingadores. Warwick deixara amarrado o primeiro tripulante quando viu Hardgrave lutando ferozmente com o capitão. O homem começou a dizer alguma coisa, mas antes de terminar uma palavra, Hardgrave desarmou-o e golpeou-o mortalmente com a espada.
Em pouco tempo, havia vários corpos de piratas, tombados no convés. Buckingham apesar de ferido no ombro, continuou lutando, usando a coronha da pistola para golpear os atacantes. Justin travava um combate com dois patifes e Warwick correu para o lado dele.
- Assim você me insulta, irmão! Posso acabar com esses porcos sozinho! - Justin riu. - Preciso de exercício.
- Prefiro insultá-lo a ter de enterrá-lo - respondeu Warwick, agarrando o pulso de um dos homens, fazendo-o cambalear e pedir clemência.
Warwick passou por ele. Não tinha inclinação para matança.
Só queria encontrar Ondine.
- Vá procurar sua esposa - disse Buckingham, segurando o ombro ferido. - Isto aqui está parecendo uma pocilga. Nós continuaremos a nos divertir.
Warwick encontrou uma escada e desceu para o convés inferior. Ia continuar descendo para o porão e foi barrado por dois homens barrigudos que, aparentemente, não sabiam que lá em cima a batalha estava perdida.
- Quero passar, cavalheiros. Seus companheiros estão morrendo e hoje eu já tive sangue demais nas mãos.
Em resposta um dos homens avançou em Warwick com uma faca. Warwick não saiu do lugar; apenas ergueu a espada. O homem foi de encontro à lâmina e caiu no chão, os olhos arregalados, consciente de que estava morrendo.
O segundo homem fugiu assustado, entrou na última cabine e trancou a porta. Certo de que aquela cabine era a do capitão e que Ondine devia estar ali, Warwick foi até lá. Imagens horríveis passaram por sua cabeça. Sua amada esposa, tão linda, prisioneira daquela tripulação imunda! Se tivessem tocado nela, ele seria capaz de cortar a garganta daqueles homens, sem a menor piedade.
Não, ninguém poderia ter feito mal a Ondine, tentou se convencer. Ela estava ali havia pouco tempo. Bem, mas uma mulher podia ser estuprada em alguns minutos. E assassinada em menos tempo ainda.
Ele chegou à porta da cabine e arrombou-a com o ombro.
Antes de entrar no cômodo parou, atento. Não queria ser atacado pelas costas. Da soleira viu Ondine deitada no beliche, com as mãos e os pés amarrados. Tinha os olhos fechados.
Estaria morta? Logo os olhos dela se abriram e ele respirou aliviado.
- Peguem ele! - ordenou o homem barrigudo.
A voz tinha vindo de um canto da cabine e Warwick viu três homens: o barrigudo, um muito magro, sujo e dentuço, e um velho.
- Cavalheiros, com licença - Warwick falou calmamente.
- E ouçam bem, se ela foi tocada...
- Josh, seu covarde! - gritou o homem sujo e dentuço erguendo uma faca. - Vamos matar ele! O homem está sozinho!
Warwick aproximou-se do beliche e cortou com a espada as cordas que prendiam as mãos e os pés de Ondine.
- Vá! - ele ordenou. - Justin está lá em cima.
Ondine hesitou. Ainda estava zonza e com as pernas meio entorpecidas. Ela viu o fuinha curvado, com uma faca, indo na direção de Warwick. Josh e um homem gordo que ela nunca tinha visto, avançavam pelos lados.
- Saia logo, Ondine!
Ela teve noção do perigo que o marido corria e não quis deixá-lo sozinho contra três. Olhou para o baú sobre o qual estavam a jarra com água e a bacia esmaltada. Como os homens não prestavam atenção a ela, inclinou-se para pegar a jarra.
O fuinha foi o primeiro a atacar Warwick. O infeliz não fazia idéia do talento do conde ao manejar uma arma. A espada sibilou no ar; o fuinha arquejou e caiu no chão numa poça do próprio sangue.
Os outros dois homens ficaram pasmados e em pânico. Juntos, correram para Warwick. Ondine ergueu a jarra para atirá-la em um deles, mas acertou na cabeça de Warwick, deixando-o atordoado.
Foi tudo muito rápido. Warwick conseguiu reagir a tempo de passar a espada no braço do barrigudo, desde o pulso até o ombro, deixando-o caído, gemendo e sangrando.
Josh voltou para o canto da cabine e deixou cair a faca.
Warwick voltou-se para Ondine que estava perplexa e mortificada.
- De que lado você está, hem?
- Sinto muito! Muito mesmo!
- Eu já disse para sair daqui! Vá!
Ela tentou andar, mas as pernas não lhe obedeceram. Teria caído, não fosse Warwick pegá-la. Ele a manteve junto do peito, sempre atento ao terceiro homem, a quem perguntou:
- O que vocês fizeram com ela?
- Poupe-me - pediu Josh, ajoelhando-se. - Ela foi drogada, nada mais. O efeito vai passar em alguns minutos. Juro pela minha alma.
- Quero saber o que aconteceu.
Josh sacudiu a cabeça.
- Tudo o que eu sei é que fomos bem pagos para levar essa lady a um cavalheiro que estaria esperando perto da foz do rio.
- Quem é ele?
- Não sei! Por Deus! Se eu soubesse, lhe diria. Só o capitão viu esse cavalheiro.
Warwick ouviu um barulho atrás dele e ergueu a espada.
- Calma! Sou eu! E Buckingham está comigo - Justin avisou.
Warwick passou Ondine para os braços do irmão.
- Leve-a daqui e volte com ela para Newmarket. Quando chegar lá, ela deve ficar no quarto. E ordene a Jake que a proteja o, tempo todo.
Justin carregou Ondine no colo. Ela fechou os olhos, exausta e aliviada por estar livre daquele pesadelo.
- Sobraram alguns imprestáveis vivos - disse Buckingham depois que Justin saiu com Ondine.
- Inclusive este aqui - Warwick indicou Josh que continuava ajoelhado. - O pior é que não descobri nada.
- Só o capitão viu o cavalheiro que mandou trazer a lady - Josh repetiu.
- O capitão está morto, mas temos um meio de descobrir toda a verdade. Espere só para experimentar o suplício da roda - ameaçou Buckingham.
Josh empalideceu. Jurou novamente que não sabia de nada. O duque voltou-se calmamente para Warwick.
- Parece que salvamos não apenas sua esposa, mas muitas outras beldades. O capitão e seus homens, piratas em sua maioria, é conhecido por raptar jovens bonitas que são levadas para os haréns de Marrocos.
Warwick arqueou as sobrancelhas. Agora que sabia o propósito daqueles criminosos, não sentia pena dos que tinham morrido. Também não estava aliviado, pois não conseguira descobrir quem estava por trás do rapto de Ondine.
Hardgrave e Anne! Pensou, furioso. Os dois estavam interessados em vingar-se dele e já haviam demonstrado do que eram capazes. Porém, não querendo ser injusto nem fazer juízos precipitados, lembrou-se com frieza do que havia acontecido. Anne, ao que tudo indicava, também fora vítima dos piratas, seqüestradores de escravas. E Hardgrave havia lutado bravamente do seu lado.
- Este homem não sabe mais nada sobre o rapto. Entregue-o aos tribunais para ser julgado, Buckingham - Warwick decidiu e subiu para o convés superior.
Em breve os guardas do rei chegariam para cuidar dos sobreviventes daquela tripulação de bufões. Ele deu um profundo suspiro. Iria voltar para o chalé de Newmarket onde, na noite anterior ele e Ondine haviam conhecido tanta ventura e tanta paz, nos braços um do outro.
Como ficara radiante ao vê-la com vida e bem. Mesmo sentindo-se zonza ela tentara ajudá-lo, tivera a intenção de lutar do lado dele, embora o atingisse por engano. Ah, sua expressão ao constatar seu erro!
Deus do céu, Ondine era tudo para ele. Seu coração, sua alma, o ar que ele respirava, seus desejos. Queria estar junto dela o quanto antes, queria abraçá-la, acariciá-la, queria ouvir seu riso, sentir seu calor.
Sabendo que nada disso seria possível, sentiu um estremecimento. Hoje ficara provado que ele era péssimo protetor.
Ondine não estaria segura em lugar nenhum enquanto estivesse casada com ele. Portanto, esta noite ele teria de repudiá-la fria e cruelmente. Se não agisse assim, ela, sendo tão corajosa determinada, não aceitaria separar-se dele.
Ondine teria de deixá-lo para poder viver! Se preciso fosse, ele faria o papel de besta-fera e a obrigaria a partir.
Ondine esperou o marido com grande ansiedade. Conhecia-o bem, mas não o compreendia. Seu comportamento era tão instável. Nessa tarde, por exemplo, percebera que ele havia mudado mais uma vez. Ele cavalgara nas asas do vento para salvá-la, depois a tratara friamente!
Jake, como sempre, era amável com ela, mas, atendendo às ordens do patrão, não saía de perto dela, vigiava-a o tempo todo.
Depois de um banho demorado para livrar-se da sujeira e do cheiro nauseante que parecia estar impregnado em sua pele, Ondine sentou-se na saleta com Justin. Bebiam um Porto enquanto conversavam.
- Warwick ficou quase louco, com medo de perdê-la, Ondine - Justin começou. - Agora está furioso porque não conseguiu descobrir quem foi o mandante do seqüestro. Você sabia que um homem pagou uma grande quantia para aqueles bandidos raptá-la e levá-la até ele?
Ondine ficou de pé, agitada.
- Anne!
- Anne? - Justin franziu a testa. - Como? Anne quase foi seqüestrada também. Alguém a atacou e rasgou sua blusa. Eu a vi caída no chão.
- Tudo fingimento. Eu a ouvi dizendo a Hardgrave alguma coisa sobre pegar um frasco no laboratório do rei. Eles roubaram a droga e a usaram para me deixar inconsciente.
- Não duvido que Lyle Hardgrave seria capaz de pagar uma grande soma para encostar um dedo em você, minha linda cunhada. Entretanto, ele lutou bravamente do nosso lado e até matou o capitão do navio.
- Encenação!
- Talvez. Mas pense bem. Hardgrave pode sentir atração por você, mas isso nada tem a ver com assassinato. Ele quer você bem viva, linda e... desejável.
Ondine sentou-se novamente. Justin tinha razão. Um homem interessado em satisfazer seu apetite sexual não se daria ao trabalho de fingir-se de fantasma ou de criatura maligna para assustar mulheres.
Nesse instante a porta abriu-se e Warwick apareceu na soleira. Ele tirou as luvas e disse ao irmão, sem rodeios:
- Saia, Justin. Quero conversar com minha esposa.
Justin levantou-se, beijou a mão da cunhada e deixou a saleta.
- Partiremos amanhã. Você é um problema, Ondine.
Ela encarou o marido, atônita. O que tinha feito de errado?
Ela era a vítima naquela história.
- Eu sou um problema? Por sua causa me vejo envolvida em toda essa loucura, você tem me usado como isca para atrair um pretenso assassino, já tentaram me matar, me raptaram e eu sou um problema?
- Sim, é verdade - o marido admitiu. - Sua beleza atrai todo tipo de indivíduo. Isso é um problema. Voltaremos para North Lambria. Depois, eu a levarei até Liverpool e você embarcará no navio Lady Crystabel. Viajará como a viúva, sra. Diana Brown e irá para Williamsburg, na Virgínia. Um advogado cuidará do divórcio e de toda a parte financeira. Você deve permanecer em Williamsburg durante um ano, depois estará livre para morar no lugar que escolher e com dinheiro suficiente para viver confortavelmente o resto da vida.

Charles já lhe havia falado sobre o divórcio. Mesmo assim, Ondine não queria acreditar que o homem por quem se apaixonara pudesse ser tão cruel, tão insensível. Ele só estava preocupado com a segurança financeira dela.
Que tipo de homem era Warwick? Fogo e gelo! Era capaz de amá-la apaixonadamente e de tratá-la com indiferença. O que acontecera com o amor que eles tinham vivido, com as emoções, o êxtase experimentados nos braços um do outro?
- Você está louco, Warwick Chatham! Arranjou uma esposa para apanhar um assassino. O assassino chega bem perto e você quer mandá-la embora? Talvez você não saiba, mas o que aconteceu hoje foi planejado por sua amante. Não vou para a Virgínia. Não preciso do seu dinheiro...
- Espere! - o marido interrompeu-a. - De que está falando? O que você sabe sobre o seqüestro?
- Ouvi Anne falar com Hardgrave sobre um frasco roubado do laboratório do rei. Foi aquele líquido volátil, repugnante, que me deixou desacordada. Tenho certeza de que Anne e lorde Hardgrave tramaram o seqüestro.
- Lady Anne também foi atacada e Hardgrave cavalgou conosco e enfrentou os piratas - Warwick alegou. - O que você ouviu não prova nada. O único homem que tinha conexão com o patife que pagou para você ser raptada era o capitão e está morto. Não posso fazer uma acusação perante o rei sem ter provas. E, se o que você acaba de dizer for mesmo verdade, você corre perigo. Tentarão atacá-la novamente. Portanto, quanto antes sair da minha vida, melhor.
- Pois me considero fora de sua vida esta noite!
Ela não ignorava que a intenção de Warwick era separar-se dela. No entanto, a noite mágica que eles tinham vivido a fizera mergulhar num mundo de fantasia em que tudo era felicidade.
Que tolice! Então não sabia que sonhos de amor eram ilusões? Mesmo assim, esperava de Warwick pelo menos um pouco de ternura.
Lágrimas brilharam em seus olhos e uma dor forte comprimiu-lhe o peito. Mas não iria chorar. Tinha de ser forte, dura, determinada. Não podia deixar a Inglaterra. Sua única saída era fugir de Warwick para limpar o nome do pai e recuperar suas terras que lhe pertenciam. Como poderia fazer isso, estando do outro lado do oceano?
- Você não irá a parte nenhuma esta noite - o marido declarou asperamente.
- Segundos atrás você disse que eu devia sair de sua vida o quanto antes. De minha parte, estou ansiosa para livrar-me da besta-fera. Mas não deixarei a Inglaterra! Não tenho medo dos seus fantasmas, nem de sua amante ou de Hardgrave.
- Mulher tola! Você deve temer Anne e Hardgrave! Não basta o que lhe aconteceu hoje? - ele explodiu. Aproximando-se dela, segurou-a com força e sacudiu-a com impaciência. Ela não tinha noção do perigo que corria. - Ouça bem, Ondine. Iremos para Chatham e enquanto estivermos lá você não sairá sem mim. Terá tempo suficiente para arrumar a bagagem, nada mais. Em seguida, a levarei para Liverpool onde você embarcará para a América. Fui claro?
- Eu já disse que não vou sair da Inglaterra - Ondine gritou, furiosa. Lutou para libertar-se e, conseguindo soltar um braço, arranhou o rosto de Warwick. Surpreso, ele soltou-a. Desapareça da minha frente! Volte para sua Anne que foi atacada, pobrezinha, ou vá para o diabo! Vou deixá-lo agora e para sempre!
Com dois passos Warwick estava novamente junto dela. Nesse instante parecia o próprio diabo encarnado. Tinha os lábios curvados com expressão sarcástica e amedrontadora. Nos olhos parecia haver chamas do inferno?
- Por que eu iria para Anne ou para o diabo? - Ele segurou-a e apertou-a junto do peito, indiferente aos gritos e esforço que ela fazia para livrar-se dele. - E você fará o que eu quiser.
Ao notar a insinuação no toque do marido e no seu tom de voz, Ondine parou de se debater, atônita, os olhos arregalados.
- Você parece tão ansioso para livrar-se da esposa plebéia. Com certeza envergonha-se dela ou tem medo de que a ladrazinha desonre a pureza de sua linhagem. No entanto, pensa que vou cair nos seus braços. O que você pretende, grande lorde Chatham?
Ele acariciou a nuca de Ondine, correu os dedos pelos seus cabelos e puxou-os para que ela curvasse o pescoço e o fitasse.
- Até os reis procuram prazeres carnais com mulheres do povo. Aliás, eu acredito que essas mulheres são mais ardentes. Há nesse relacionamento algo primitivo. Admiro seu talento entre os lençóis. E a beleza de suas coxas excede a beleza de seu lindo rosto.
- Bastardo! Você não...
- Ainda sou seu marido. Vou acariciá-la e você irá responder às carícias. É instintivo, minha querida - Warwick falou com um sorriso irônico.
Louca de raiva, Ondine chutou-o, esmurrou-o, perplexa ao constatar que havia julgado mal esse homem cruel e brutal que, apesar de ser o seu marido, era um estranho.
Ele ergueu-a como se fosse uma trouxa de roupa e jogou-a na cama, divertindo-se com seus protestos, seu linguajar e seus golpes. Por fim, ela deixou-se ficar na cama, exausta e quase soluçando. Como estivesse com dificuldade para respirar, falou por entre os dentes.
- Eu o odeio!
Ele ficou imóvel e respondeu baixinho:
- Eu sei.
Se o comportamento dele não tivesse sido tão brutal e suas palavras não a tivessem machucado tanto, Ondine acreditaria que havia angústia nessa resposta e no olhar dele.
Warwick a manteve por um momento com a cabeça encostada em seu peito, depois, deitou-a e começou a fazer amor com ela.
Ondine odiou-o ainda mais. Não se deixaria seduzir nessa noite. Mordeu o lábio e manteve-se rígida e fria. Fixou o olhar no teto até ouvi-lo dar um gemido e estremecer de prazer. Então ele rolou para o lado da cama, exaurido.
Faltava pouco para amanhecer quando Ondine levantou-se e sentou-se no tapete, diante do fogo da lareira, quase apagado.
Warwick acordou e percebeu que as costas dela tremiam com a força das lágrimas que ela derramava em silêncio. Ele cerrou os punhos e mordeu o lábio até fazê-lo sangrar. Queria ir até ela, abraçá-la e dizer-lhe que ela era a mulher mais extraordinária que ele conhecia. Que era linda de corpo e alma. Que sua coragem, sua dignidade, sua honradez brilhavam maravilhosamente nos seus olhos. Queria dizer-lhe que a amava acima de todas as coisas. Mas isso poderia custar-lhe a vida!

Capítulo XI

Para Ondine só o que tomou suportável a viagem de volta a Chatham foi a promessa feita a si mesma de fugir de Warwick quando chegassem a Liverpool. Então iria para suas terras, em Rochester. Haveria de encontrar as provas que tinham sido forjadas para incriminá-la e descobriria um meio de limpar o nome e a memória do pai.
- Chegamos - Warwick anunciou. Segurou o queixo dela e perguntou: - Que tipo de plano passa por sua mente, minha querida?
- Nada que seja do seu interesse.
Jake desceu depressa da boléia para abaixar os degraus da carruagem. Justin saltou para o chão em seguida. Mathilda e Clinton já estavam à porta do solar.
- Sejam bem-vindos! A casa estava triste sem vocês - Clinton declarou.
Mathilda saudou Warwick e Justin de modo cordial, mas sua maior preocupação foi com Ondine.
- Ah, milady, vejo que está bem e com ótima aparência.
Vou cuidar de você e dessa criança, será um garoto, tenho certeza disso. Um bebê trará juventude e riso de volta a esta casa!
Warwick ficou entre as duas mulheres.
- Lamento desapontá-la, Mathilda, mas não haverá bebê nenhum nesta casa. Não reconhecerei essa criança.
- O que está dizendo? - Justin inquiriu, perplexo.
- Esse bebê não é um Chatham. O casamento será desfeito não considero lady Ondine minha esposa. A partir de amanhã ela não estará mais conosco. Quem for contra minha decisão, pode ir embora e nunca mais voltar.
Todos ficaram estarrecidos. Warwick olhou devagar para cada um. Por fim, tirou o chapéu para Ondine e foi para as cocheiras.
- Ora, seu bastardo! - Justin gritou, furioso.
O irmão deu de ombros e continuou a andar. Mathilda irrompeu em lágrimas.
Clinton seguiu Warwick com o olhar e comentou:
- O que deu nele? Warwick nunca foi assim. - Clinton voltou-se para Ondine e segurou as mãos dela num gesto confortador. - Tenha paciência. Esse não é o homem, o primo que conheço. Temos quase a mesma idade, na infância brincamos juntos, tivemos os mesmos preceptores. Essa crueldade não faz parte da natureza dele. Isso vai passar.
Ele curvou-se e foi atrás do primo.
Justin foi para o lado de Ondine que estava lívida e tensa. - Tenho notado o comportamento estranho de meu irmão.
Estou quase acreditando que ele esteja ficando louco.
- Nada disso importa, Justin - Ondine falou suavemente. Ansiosa para ficar sozinha, entrou na casa, atravessou o hall e subiu depressa os lances de escada. Ao chegar ao quarto atirou-se na cama e entregou-se a um choro convulsivo e prolongado.
A certa altura, em meio a seu desespero e infelicidade, teve consciência de que batiam insistentemente na porta externa.
Sabia que não era Warwick. Ele entrava nos aposentos sem pedir licença. Ela enxugou as lágrimas, levantou-se, ergueu cabeça, foi até a sala íntima e abriu a porta. Era Mathilda segurava uma bandeja de prata com um copo com aquele horrível leite de cabra..
- Por favor, não fique tão aborrecida - disse Ondine, colocando a bandeja sobre uma mesinha.
- Clinton está certo. Warwick deve estar perturbado. Ele não é assim. Amanhã seu marido recobrará a razão. Essa história de divórcio é loucura.
- Mathilda, por favor, não quero mais falar nesse assunto.
- Mas isso não pode acontecer! E não vai acontecer porque não vou permitir!
Ondine estava tão cansada que preferiu não discutir com a governanta. A custo sufocou um bocejo.
- Oh, pobrezinha! Você precisa dormir. - Mathilda foi depressa pegar a bandeja. - Tome o leite. Ele a deixará bem calma e você terá um sono tranqüilo.
Para não desgostar a bondosa mulher, Ondine tomou o leite, que na verdade a repugnava. Quando Mathilda saiu levando a bandeja, Ondine fechou a porta e voltou para o quarto com um único pensamento: fugir do solar. Em vez de deitar-se, foi até a janela. A tarde ia em meio, e nuvens escuras, tempestuosas, cobriam o céu, dando a impressão de que a noite se aproximava. O vento soprava forte. Parecia que uma tempestade não tardaria a desabar.
Ela afastou-se da janela, pensativa. O temporal tanto poderia ajudar como atrapalhar sua fuga.
Lembrando-se da noite em que ouvira uma voz sussurrada chamando-a, naquele mesmo quarto, teve certeza de que ali havia uma passagem secreta. E uma passagem dessas seria ideal para fugir do solar sem que a vissem. Invadiu-a uma estranha excitação. Andou pelo quarto, examinou o assoalho com atenção, ergueu os tapetes finíssimos e não notou nada extraordinário.
Corno não costumava desistir facilmente, começou a examinar as paredes. Procurou por vãos, saliências e frestas, qualquer coisa que lhe parecesse estranha. Tudo estava perfeito. Cansada e exausta, fez uma pausa, mas continuou a refletir. Ocorreu-lhe que não havia examinado a alcova onde ficava a latrina. Foi até a parede do fundo, atrás do assento onde ficava o vaso sanitário e passou a mão pelas pedras. Eram muito regulares.
Porém, ao pressionar uma delas, uma seção da parede abriu-se como se fosse uma porta. Por um momento ela ficou pasmada, depois, exultou. Havia encontrado o que procurava. Agora era só verificar aonde conduzia essa passagem.
Pegou uma vela, passou pela abertura e seguiu por um corredor. Achou estranho não ver ratos nem teias de aranha pelo caminho. Sinal de que alguém usava essa passagem e a havia usado recentemente. Andou depressa, mas atenta. Devia ter dado cerca de quarenta passos quando chegou a uma escada em caracol. Desceu com cuidado os degraus estreitos e viu-se em um porão onde havia uma porta de madeira. Abriu-a, subiu vários degraus e recebeu no rosto uma rajada de vento frio. Estava ao ar livre, na parte oeste do solar. Aquela entrada não podia ser vista porque ficava escondida por algumas nogueiras e vários arbustos.
Sentindo uma forte tontura, encostou-se na parede do solar c fechou os olhos. Esse mal-estar fora provocado pela emoção da descoberta, pensou. Oh, se pudesse fugir naquele instante!
Anoitecera, o tempo continuava ameaçador, ninguém daria por sua falta.
Mas uma fuga naquele momento estava fora de cogitação.
Precisava de agasalho, dinheiro para a viagem e um cavalo naturalmente. Bem, poderia ir até as cocheiras para ver qual dos cavalos e das selas iria roubar. Não devia haver ninguém nas cocheiras.
Correu pelo gramado e viu que a distância até as cocheiras era bem maior do que imaginara. A corrida deixou-a mais zonza, seu estômago revirou e ela maldisse o leite de cabra que engolira com repulsa.
Quando chegou à cocheira mais próxima, entrou nela e teve de segurar na parede para não cair. As baias pareciam mover-se; diante de seus olhos. O que estava acontecendo? Estaria doente?
Fixou o olhar nas baias e decidiu que iria fugir na égua na qual já havia montado. As selas eram guardadas no cômodo à sua direita. Seria fácil chegar até ali sem ser vista, passando pelo corredor secreto, pela escada...
- Ondine, o que faz aqui?
Ela gritou, assustada. Alguém lhe tocou o ombro. Clinton.
Ele a olhava de modo curioso e tinha na mão uma faca.
Clinton, alto e musculoso, era sempre tão gentil... Mas seria capaz de assassinar alguém?
- Ondine, seu marido sabe que você está aqui?
Tomada de estranha letargia ela não pôde falar. Sentiu as pernas pesadas e a boca seca.
- Vamos para casa! - Clinton falou em tom severo.
Ergueu o braço e Ondine viu a lâmina da faca brilhando à luz da lanterna dependurada numa viga do teto. Apavorada, encolheu-se, imaginando que ele iria desferir o golpe mortal.
Abriu a boca para gritar; não emitiu nenhum som. Foi tudo muito rápido. A faca caiu num canto perto da parede.
- Você está doente. Vou levá-la para o solar.
- Não...
- Fique tranqüila. Eu sei que Warwick não quer que você saia de casa e não ficará contente se a vir comigo. Só a levarei até a porta dos fundos e chamarei minha mãe.
Sentindo-se incapaz de andar sozinha, Ondine não protestou. Amparada por Clinton conseguiu caminhar lentamente. A visão estava turva, a cabeça doía, ela não raciocinava. Parecia estar sob o efeito da droga que os piratas a obrigaram a cheirar quando a raptaram.
Ouviu Clinton falar como se estivesse muito longe dela: - Minha mãe está aqui e a levará para a cama.
Ondine pressentiu que alguma coisa estava errada. O perigo a espreitava. Ergueu a mão e quis chamar Clinton de volta. Dois braços a envolveram.
- Milady! Está doente?
- Sim...
- Vou levá-la para a cama. Não devia andar por aí. Sempre que quiser saber de alguma coisa, fale comigo. Tenho todas as respostas. Descobri o segredo de tudo na capela.
O cérebro de Ondine registrou duas palavras.
- Respostas? Capela?
- Sim. Vamos até lá. Agora. Warwick não saberá de nada
- Mathilda falou em tom conspiratório.
Acabando de falar, segurou no braço de Ondine, atravessou com ela o salão de baile, um hall e abriu a porta dupla da capela iluminada apenas por algumas lâmpadas de azeite. Mathilda conduziu Ondine diretamente para o altar onde havia a linda escultura em homenagem a Genevieve. Apesar da visão embaçada, notou que a pedra do piso tinha sido retirada. Duas cordas com um laço de forca em cada extremidade, pendiam da escultura de mármore, na direção da abertura que ia dar na cripta.
O terror fez com que Ondine raciocinasse. Compreendeu que Mathilda queria assassiná-la. Mas como reagir, se estava paralisada, não conseguia gritar, muito menos se mover?
- Você... me drogou...
- Oh, linda condessa! - Mathilda falou docemente, a loucura impressa nos olhos arregalados.
- Por quê? Você amava Genevieve... Pensei que também... gostasse de mim.
- É verdade. Veja, tenho dois laços. Você não morrerá sozinha. Cometi esse erro com a querida Genevieve.
- Não...
- É preciso! Você não ouviu as vozes da condessa e de minha querida mãe? Presenciei o crime. O horror. Minha mãe empurrou lady Chatham para a morte. Em seguida rolou sobre o corpo sem vida. Desde aquele dia elas clamam por mais vítimas. Pensei que a morte de Genevieve as satisfizesse. Mas não. Elas querem a morte da jovem condessa de Chatham e da filha bastarda da amante para que possam livrar-se daquele lugar de condenação eterna e venham para esta capela santificada.
- O leite... com droga...
- Meu bem, foi o modo que encontrei de aliviar sua partida.
Não tenha medo. Eu lhe dou a mão. - Mathilda colocou o laço no próprio pescoço. - Agora, você. Partiremos juntas desta vida para desempenhar nosso papel na outra.
Ondine quis lutar, mas não tinha forças nem vontade própria.
Olhou com horror para a pequena mulher que se aproximou da abertura no chão. Tarde demais compreendeu que a insanidade mental era motivo para se cometer um assassinato.

Warwick entrou nos seus aposentos fervendo de raiva. Durante todo o tempo em que estivera com Clinton, cuidando dos preparativos para a viagem a Liverpool, o primo não lhe dirigira a palavra. Limitara-se a olhá-lo de modo acusador. Isso era muito pior do que qualquer discussão.
Deixando as cocheiras Warwick fora a seu escritório pegar uma grande soma em moedas de ouro para dar a Ondine. Com certeza ela recusaria o dinheiro, mas ele saberia obrigá-la a aceitá-lo.
Depois de haver tomado uma dose dupla de brandy, saíra do escritório. Precisava da bebida para uma última confrontação com a esposa antes da viagem. Teria de reunir toda a sua força de vontade e todo seu autocontrole para não tocá-la, não lhe revelar que a adorava e explicar o motivo de sua decisão.
Apesar de não ser um homem supersticioso, sentia que as paredes de Chatham se fechavam ao redor deles e a tempestade que, afinal, desabara, era um aviso de que a morte os rondava mais uma vez.
Endireitou os ombros e entrou no quarto de Ondine. Ela não estava ali.
- Ondine! - chamou-a e só ouviu o uivar do vento.
Saiu do quarto apressado e, como sempre, viu Jake no corredor.
- Ela não está no quarto.
- Impossível! Lady Ondine não passou por aqui.
Justin dirigia-se para a sala de jantar e surpreendeu-se ao ver o irmão e Jake tão nervosos.
- O que houve?
- Ondine desapareceu.
- Por que estamos aqui, parados? Pressinto que ela corre perigo.
Clinton abriu uma porta e saiu para o corredor carregando dois livros de contabilidade.
- Você viu Ondine! - Warwick perguntou-lhe.
- Se você pretende ofender ainda mais a pobre moça, Warwick, não lhe direi uma única palavra. E, pela manhã,deixarei Chatham. Seu comportamento não é o de um homem decente, mas o de uma besta-fera...
- Clinton, pelo amor de Deus, não farei mal nenhum a Ondine. Estou aterrorizado! Você a viu?
- Sim. Ela parecia doente e minha mãe levou-a para o quarto.
- Ondine não está no quarto.
- Onde está Mathilda? - Justin indagou.
- A capela! Foi lá que lady Ondine desapareceu uma vez - Jake lembrou.
Warwick saiu correndo. Os três seguiram-no. Encontraram a porta da capela trancada. Os quatro homens arremeteram os ombros contra as duas partes de madeira, grossas e pesadas.
Depois de várias tentativas, conseguiram soltar o trinco e entrar na capela. A cena a pouca distância deles deixou-os paralisados. Mathilda estava sentada no piso de pedra com as pernas penduradas dentro de um buraco que havia no chão e puxava Ondine para perto dela. Ondine parecia morta. Tanto ela como Mathilda tinham um laço de corda ao redor do pescoço. Cada corda estava amarrada na escultura que ornamentava o altar.
Assim que caíssem no buraco Mathilda e Ondine seriam enforcadas.
- Warwick! Justin! Meu querido filho Clinton! Está quase tudo pronto, vêem? Vou partir e levarei minha senhora. Os futuros Chatham poderão viver em paz.
- Não! - Warwick gritou e correu para perto da governanta.
Ela sorriu docemente e ficou bem na beirada do buraco.
Warwick não a alcançou a tempo de impedir que ela se precipitasse na cripta, mas conseguiu agarrar o vestido de Ondine e puxou-a para seu lado. Justin já estava junto do irmão, tirando o laço da corda que apertava a garganta da cunhada.
- Ela respira! O coração bate! - Warwick exclamou, tendo encostado o ouvido no peito da esposa.
Ele levantou-se com ela no colo e ia sair daquele horrível lugar de morte, quando viu Clinton que acabara de puxar para cima o corpo da mãe e o abraçava.
- Minha mãe... louca! Meu Deus! Sinto muito, Warwick. Eu não fazia idéia...
- Também sinto muito, Clinton. As gerações passadas destruíram a pobre Mathilda.
- Quero bem sua esposa como se fosse minha prima, Warwick, e estou feliz porque ela está viva. Entretanto, é grande a minha dor pelo que acabo de descobrir sobre minha mãe e pelo que lhe aconteceu. Vou enterrá-la, em seguida partirei.
- Não, Clinton, temos laços de sangue e continuaremos juntos. Chatham também lhe pertence. Sua mãe será sepultada na cripta e com ela também enterraremos o passado.
- Leve Ondine daqui, irmão - Justin aconselhou. Clinton e eu cuidaremos de Mathilda.
Warwick foi para seus aposentos. Estava ansioso para que Ondine recobrasse a consciência. Tinha tanta coisa para lhe dizer. Tanto amor para lhe dar.
Ondine abriu os olhos devagar. Só o fogo da lareira iluminava o quarto. Ela percebeu que estava na cama do marido e usava camisola. Alguém lhe dera banho e a vestira.
Um calafrio percorreu-lhe o corpo ao recordar os últimos acontecimentos. O terror de ver seu fim se aproximar. A horrível sensação da corda lhe apertando o pescoço, experimentada pela segunda vez. A loucura nos olhos de Mathilda.
Novamente Warwick a salvara.

Agora que a morte de Genevieve fora esclarecida, Warwick não iria mais viver assombrado por suspeitas. O perigo não existia mais. O papel dela terminara. Ele estava livre e ela também. Apesar de amá-lo com todas as forças de sua alma. Iria deixá-lo. Só de pensar nisso sentiu um vazio horrível dentro do peito.
Um movimento na cama fez com que ela se virasse. Warwick estava do seu lado.
- Ondine, como está? Pode falar? Pode se mexer?
- Estou bem. O efeito da droga passou.
- Mathilda colocava sementes de papoula no leite. Pedi que Lottie revistasse a despensa, e ela encontrou as sementes em um vidro. - Warwick passou a mão no pescoço de Ondine.
- A corda áspera esfolou sua pele.
- Isso não é nada. E Mathilda?
- Está morta. Todos nós ficamos abalados, claro. Mathilda era minha tia. Como eu poderia imaginar... Bem, é mais fácil pensar que Mathilda agiu movida pela loucura e não por maldade.
- Pelo menos o pesadelo terminou.
- É verdade. Tive pena de Clinton. É ele quem está sofrendo mais. Além de perder a mãe de forma tão trágica, culpa-se por entregar você a ela, justamente quando, em sua loucura, ela deixara tudo preparado para acabar com a vida de vocês duas. Mas como ele poderia saber disso?
- A intenção de Clinton ao deixar-me com Mathilda era proteger-me de você!
- Eu iria zangar-me, claro! Você sabia que não podia sair destes aposentos. A propósito, como saiu do quarto, se Jake não a viu passar pelo corredor?
- Encontrei uma passagem secreta atrás da latrina.
- Ah, este solar tem inúmeros labirintos secretos. Os Chatham esconderam muitos monarquistas e padres que estavam sendo perseguidos: - Ele afastou uma pequena mecha de cabelos da testa dela e beijou-a suavemente. - Temos de conversar sobre o futuro e muitos planos para fazer, mas não esta noite. Estremeço cada vez que penso no que aconteceu. Enfim, tudo passou. Agora durma para se recuperar.
Ele levantou-se para deixar o quarto, mas Ondine segurou a mão dele.
- Não vá. Quero que fique comigo.
- Está bem. Não a deixarei, condessa. Vou sentar-me na poltrona, do seu lado, a noite toda.
- Oh, meu senhor conde de North Lambria, pensei que você fosse uma besta-fera, mas vejo que é um rematado tolo.
Um sorriso malicioso marcou os lábios de Warwick. Seus olhos brilharam.
- Cuidado com o que diz. É difícil manter a besta-fera sob controle quando estou perto de você. Meu coração esteve pesado de angústia. E agora, a maior felicidade para mim será tê-la em meus braços. Porém, depois do que passou, você deve dormir tranqüilamente.
Ondine saiu da cama e ficou diante do marido. Precisava fazê-lo entender que o desejava. Queria experimentar o êxtase que ele lhe proporcionava quando faziam amor. Queria tocá-lo, beijá-lo, entregar-se a ele de corpo e alma. Queria esquecer o mundo por algumas horas. Esta seria a última noite que ficariam juntos. Queria partir levando na lembrança os momentos de magia e de sonho que tinha vivido com o homem que tanto amava.
Impelida pelo desejo que a consumia, tomou-se ousada. Desamarrou o laço da camisola afastou-a dos ombros, fazendo-a deslizar lentamente pelo corpo, até os pés.
- Senhor meu marido, o que menos quero nesta noite é dormir tranqüilamente.
Olhando para o lindo corpo nu, Warwick ficou imediatamente excitado. Ondine era maravilhosa! Apesar da mágoa que lhe causara ao tratá-la tão rudemente, ela se oferecia a ele.
Sua ninfa das águas que, verdadeiramente ganhara vida casando-se com um mortal estava diante dele, gloriosa como uma Afrodite. Ondine era fogo, era luz, era tudo que o guiava. Plebéia ou condessa, era a mais admirável lady que ele já conhecera. Era seu grande amor. Ele segurou a mão dela e a fitou, perdido nas profundezas dos olhos azuis, ciente da força explosiva do desejo que ambos sentiam.
Abraçou-a, pressionou os lábios sobre os ombros nus, sobre o peito, sentindo o coração dela bater em descompasso. Então mordiscou o lóbulo da orelha, sussurrou com voz rouca:
- Tem certeza de que deseja continuar?
Ondine passou os braços ao redor do pescoço do marido, ficou na ponta dos pés e beijou-lhe os lábios repetidas vezes, mordeu-os, forçou-os para que se entreabrissem, suas línguas se encontraram, provaram seus sabores.
Warwick abraçou-a com mais força e um grito abafado de contentamento escapou de seus lábios. Uma torrente de volúpia inundou-o. Ele deitou-a na cama, despiu-se e voltou para junto dela.
Acariciou-a. Cada toque de seus dedos voláteis era uma reverência, cada afago uma adoração, cada beijo uma declaração de amor.
Ela respondeu sem reservas. Amou-o com total entrega. Ah, ninfa das águas, feiticeira! Que mulher poderia ser ao mesmo tempo tão doce e tão ardente? Sôfrego, faminto, sem poder mais resistir aos frêmitos da carne, seu corpo fundiu-se ao dela, em unidade perfeita, dois em um. Amaram-se até que se viram transportados a essa região extrema, etérea, eterna, paraíso dos amantes. E uniram-se de novo, experimentando as mesmas sensações de antes. Por fim, deixaram-se ficar um nos braços do outro, saciados, exaustos, felizes, em estado de graça.
Essa noite de amor tinha excedido todos os seus sonhos e fantasias, Ondine pensou. Não demorou muito, Warwick inclinou a cabeça e fechou os olhos. Sua respiração tornou-se serena. Ele adormecera.
Ondine observou-o por longo tempo. Admirou sua beleza, a textura da pele, as pequeninas rugas dos lados da boca de lábios cheios e sensuais, o nariz afilado, a testa alta. Relaxado como estava e com os cabelos em desalinho, parecia tão jovem. Guardaria para sempre essa imagem na memória e no coração. Correu os dedos pelo peito do marido, sentiu a força da musculatura e a suavidade dos pêlos escuros.
Lágrimas vieram-lhe aos olhos.
Por fim, levantou-se em silêncio, o coração apertado. Aproximou-se da cômoda, abriu uma das gavetas e viu uma grande quantia de moedas de ouro. O dinheiro que ele havia separado para ela levar para a América. Bem, precisava desse dinheiro. Seria um empréstimo. Quando recuperasse o que era seu, voltaria para pagar a dívida.
Foi ao quarto de vestir, escolheu um vestido simples, de veludo, uma capa, calçou meias de lã e seu melhor par de botas. Separou algumas peças de roupa, alguns objetos de uso pessoal e colocou tudo em uma valise. Não podia viajar a cavalo com muita bagagem. A velocidade era fator de extrema importância. Assim que acordasse, Warwick não a veria na cama e sairia à sua procura.
Voltou ao quarto, guardou nos bolsos todas as moedas e aproximou-se da cama. Não podia partir sem olhar pela última vez para o belo marido. Como o amava!
Mas o amor era traiçoeiro, fugaz e fragilizava as pessoas. Sua honra e o dever de filha a chamavam. O melodioso trinar de um pássaro tirou-a de seu hipnotismo. Não tardaria a amanhecer. Um último toque...
Beijou a testa do marido, controlando-se para conter as lágrimas. Saiu do quarto cobrindo a boca com a mão para abafar seus gemidos.
Jake não estava no corredor. O amigo leal não precisava mais manter a guarda. O perigo havia passado. Em poucos minutos estava na cocheira. Selou a égua baia procurando não fazer barulho e rezando para que o cavalariço não acordasse e aparecesse para importuná-la.
Ondine puxou a égua para fora da cocheira, montou-a e tocou-a para a estrada. A chuva e o vento haviam cessado. Ela olhou para trás. O solar erguia-se com toda a sua majestade e força, como tinha de ser para enfrentar os ventos e as tempestades do inclemente norte.
"Warwick!", seu coração clamava.
Ela não era mais a lady Chatham, condessa de North Lambria. A partir desse momento voltava a ser a duquesa de Rochester.
- Para minha casa! Para Rochester! - falou para a égua ao alcançar a estrada. - Vou recuperar meus direitos e minha herança.
Soltou as rédeas do animal e galopou dentro da noite.

PARTE III
Capítulo XII

Ondine cavalgou até Londres acompanhando um grupo de freiras que ia para o sul em peregrinação. Em Londres gastou várias moedas de ouro para comprar roupas e complementos finos. Como duquesa tinha de chegar a Rochester em esplendor.
Por fim, a vinte e um de outubro, a carruagem que havia alugado estacionou na frente de sua casa, Deauveau Place, nome da família. A construção, enorme e majestosa, com suas torres e coberta pela neve recente, parecia um palácio de cristal. A primeira neve da estação.
Sua casa... Era tão linda, tão delicada e fina, pensou com amor e saudade. Não era como Chatham, uma construção antiga. Fora edificada no início do século, no reino de James I.
O trisavô de Ondine, arquiteto e artista francês, conhecera Mary Stuart, rainha da Escócia quando ela estivera na França, por um breve período. Voltando para Edimburgo, Mary contratara os serviços de Deauveau. Depois, ele serviu a James, filho de Mary, tomando-se indispensável ao príncipe. Quando subiu ao trono da Inglaterra, sucedendo Elizabeth I, James I fez questão de que Deauveau o acompanhasse.
Nesse período, Deauveau recebeu suas terras, e foi agraciado com o título de duque de Rochester. Sua linhagem começou, não por atos de bravura, mas por seu talento artístico, por criar beleza.
Ondine puxou sobre a cabeça o capuz do casaco de raposa prateada e desceu da carruagem sem esperar pela ajuda do cocheiro. A grande porta dupla, em arco e entalhada, abriu-se. Com certeza os criados já tinham visto a carruagem transpondo os elaborados portões de ferro ostentando o brasão do duque, e avisaram o amo que visitantes estavam chegando.
O amo! William considerava-se o dono de tudo!
Jem, o velho criado pessoal do pai de Ondine apareceu à porta e olhou para a recém-chegada por um longo momento. Ao reconhecê-la, empalideceu. Desceu os degraus, trêmulo e murmurou, incrédulo, fazendo uma reverência:
- Ondine?
Ela sorriu, emocionada com aquela amável recepção. O velho aproximou-se e ela abraçou-o.
- Jem!
- Lady! Milady! Que alegria! - ele falou, boquiaberto, ainda segurando a mão dela, ainda abismado, imaginando-se diante de uma visão. - Nós a procuramos por quase todo o país. Depois de tanto tempo de buscas, todos acreditaram que você havia morrido. Mas no fundo do coração eu mantinha a esperança de que você estava viva. Quando eu soube do seu pai fiquei doente. Até hoje procuro entender o que aconteceu naquela tarde. Nada do que me contaram faz sentido. O duque jamais cometeria uma traição! Se ele foi contra a condenação de Charles I, por que haveria de atentar contra a vida de Charles II? E você, milady, acusada de fazer parte do plano! Nunca! - Subitamente Jem ficou em pânico. - Temos de escondê-la...
- Jem!
O chamado brusco soou da porta. Ondine estremeceu ao ouvir a voz do tio. Ele não podia reconhecê-la porque o capuz de pele lhe encobria o rosto.
- Não fique aí parado como um idiota! Faça os visitantes entrarem.
Ondine virou-se devagar e descobriu a cabeça, ficando de frente para o tio.
William não tinha o sangue dos Deauveau. O avô de Ondine, terceiro duque de Rochester, perdera a esposa logo depois de dar à luz e lhe deixara um filho. O duque casou-se em segundas núpcias com uma viúva, que também tinha um filho pequeno, William. O duque deu ao enteado o sobrenome Deauveau e sempre o tratou como filho. William foi criado como irmão de sangue do pai de Ondine, não como irmão de criação.
Na infância e na adolescência Ondine jamais percebera que o plano do tio era fazer o casamento dela com o filho, Raul.
Assim, este se tomaria o dono de Deauveau Place.
Ela encarou o tio, homem bem-apessoado, alto, magro, moreno, de olhos castanhos, cabelos ainda escuros, apesar dos cinqüenta anos, lábios finos e nariz comprido.
- Como vai, tio William? - Ondine saudou-o com um sorriso, embora sentisse repulsa por ele.
- Ondine... - ele pronunciou o nome dela como se achasse que tinha à sua frente um fantasma.
Não era para menos. Propositadamente, Ondine decidira apresentar-se em Deauveau Place usando vestido de veludo branco enfeitado com rendas, e o casaco de pele de raposa prateada. Com certeza, William havia imaginado que a sobrinha tinha sido devorada por alguma fera da floresta, e agora ela surgia esplendorosa, elegantíssima e bela.
Os olhos de William estreitaram-se. Ele levou a mão ao peito. Ondine continuou a sorrir com doçura, desejando que o miserável tivesse uma apoplexia.
- Você está viva! - ele disse, por fim.
- Sim, tio.
- Como se atreve a vir aqui? Traidora!
- Ora, meu tio, está falando comigo, lady Ondine, não com uma idiota.
- Entre! - William gritou, evidentemente contrariado. Jem, cuide da bagagem de lady Ondine.
Ela subiu os degraus e entrou na casa lembrando a si mesma que o jogo começava. Tinha de ser prudente e ganhar tempo.
- Ao meu escritório!
- Sim, tio - respondeu com afetada modéstia.
Escritório dele! O escritório do pai dela, pensou com tristeza ao entrar no cômodo decorado em estilo francês, com sobriedade e requinte.
- Onde esteve durante todo esse tempo? - William indagou, assim que fechou a porta.
Com um gesto descuidado, ela tirou o luxuoso casaco de pele e deixou-o numa poltrona.
- Em muitos lugares. No inferno, inclusive, acredite respondeu em tom casual.
William foi até um armário onde havia inúmeras garrafas de bebida e serviu-se de uma delas. Repetiu a dose. Estava alarmado.
- Não seja arrogante, sobrinha. Sou seu tutor legal até você completar vinte e um anos, o que acontecerá daqui a dois anos. Sabe que está nas minhas mãos. Posso estalar os dedos e meus homens a levarão para a Torre. Tenho provas de que você conspirou com seu pai para assassinar o rei.
Ondine começou a rir.
- Ora, meu tio, estamos sozinhos! Para que esta encenação? Nós dois sabemos que nem meu pai nem eu conspiramos para matar o rei! Conspirador é o senhor, que planejou tudo! Assassinou meu pai para ficar com o título e sua propriedade.
- Fale o que quiser! Há provas de que seu pai morreu quando tentava matar o rei e isso não pode ser mudado. Também tenho provas de sua cumplicidade. Propus que você se casasse com Raul, mas você desprezou meu filho. E agora aparece aqui. Por que cometeu essa tolice, Ondine? Isso pode custar-lhe a vida. Está ansiosa para morrer?
William ofereceu a Ondine um cálice de vinho do Porto que ela aceitou. Precisava da bebida para criar coragem.
- Não, tio, não quero morrer. Por isso voltei.
- Quer dizer que aceita se casar com Raul?
- Vamos falar sobre isso, tio. Se eu me casar com Raul, as "provas" que o senhor tem contra mim e que podem ser apresentadas ao rei, desaparecerão?
Nesse instante alguém bateu na porta.
- Quem é? - William indagou, impaciente.
- Raul.
- Entre.
Raul era a réplica do pai, só que mais novo. Devia estar usando prodigamente a fortuna da família, pois se vestia com extrema elegância. Usava calções de macio couro de gamo, camisa enfeitada com rendas nos punhos e na gola, casaco de finíssimo brocado.
Ele olhou para Ondine, atônito. Aproximou-se dela e, como se quisesse ter certeza de que ela não era uma miragem, tocou-lhe os cabelos, uma cascata de sol e fogo que caía sobre o vestido branco, abaixo dos ombros. A luxúria nos olhos dele deixou Ondine enregelada.
- Está de volta, querida prima!
- Sim, ela voltou - William respondeu secamente. - Como pode ver, está mais elegante do que quando nos deixou.
- Realmente, pai. Ela está mais elegante, mais linda e mais desejável do que nunca. Espero que tenha caído em si e aceite se casar comigo. O que me diz, prima?
- Bem, aceitarei seu pedido de casamento, com uma condição...
- Condição! - William trovejou, o rosto vermelho. - Quem dá as cartas aqui sou eu. Case com meu filho ou...
- Vamos ouvir o que ela tem a dizer, pai - tomou Raul com uma ponta de humor na voz. Ele voltou-se para Ondine e curvou-se. - Duquesa, que condição é essa?
- Meu tio, eu me casarei com Raul daqui a um mês se, nesse período, nem ele nem o senhor tocarem em mim. Ficarei morando aqui, como é meu direito, sem ser importunada. Quero me... acostumar com o futuro.
- Por que devo lhe conceder esse tempo? - questionou o tio.
- Se não fizer isso, gritarei aos quatro ventos que vocês são traidores. Contarei aos criados o que vocês fizeram. Eles sempre amaram meu pai e acreditarão em mim. Posso ir para a Torre, mas não antes de levantar as mais terríveis suspeitas sobre vocês. O caso poderá ser investigado novamente e, lhes asseguro, vocês não ficarão impunes! - Ondine suspirou e olhou para Raul. - Querido primo, um mês é tempo relativamente pequeno para um noivado. Compreenda, os noivos precisam se conhecer antes do casamento.
Raul mordeu logo a isca. A esperança de que ele teria Ondine fez seus olhos brilharem de concupiscência.
- Está certo. Um mês.
- Não se precipite, meu filho! Ficou todo entusiasmado sem saber dos fatos. Vamos, Ondine, por onde você andou?
- Eu já lhe disse, tio William. - Ela suspirou com expressão de cansaço. - Estive em muitos lugares. Escondi-me na floresta com ladrões, depois arranjei emprego em uma das mansões, no norte...
- Você não ganhou dinheiro para comprar essas roupas caras trabalhando honestamente. - Apesar da exigência de Ondine de não tocá-la, o tio encostou o indicador em seu peito. - Onde arranjou tanto dinheiro?
- Ganhei no jogo. Juntei o pouco que consegui no norte e voltei para Londres. Lá joguei nos dados e tive sorte. Odeio a pobreza, tio. Por isso, decidi voltar. Se eu me casar com Raul terei a vida que sempre tive. - Ondine baixou os olhos para que o tio e o primo não vissem a mentira espelhada neles.
Raul ajoelhou-se diante dela e juntou as mãos.
- Terá o tempo de que precisa. Não a tocarei. É uma promessa.
- Calma. Eu ainda não concordei com a exigência dela. Raul ficou de pé e enfrentou o pai.
- Eu a quero! Ela está mais linda...
- Linda, sim, mas estou interessado em descobrir se a nossa duquesa não se tomou uma prostituta. Vamos chamar um médico para atestar que sua noiva continua pura. Você está tão ansioso que não raciocina. Lembre-se de que se ela estiver esperando um filho de outro homem, essa criança será seu herdeiro. E não estou disposto a deixar esta propriedade a um bastardo que não tenha meu sangue!
- Concordo com o senhor, mas lhe peço para respeitar a condição de Ondine. Ela terá o tempo que exigiu em troca do seu silêncio. Chame o médico na véspera do casamento.
- Não confio nela.
- Por que não? Ela será minha esposa, pai. Saberei colocá-la na linha. Está preocupado à toa. Eu terei o título e o senhor o dinheiro. No fim, tudo será como planejamos originalmente. E então? Posso falar com o bispo sobre os banhos e a preparação para o casamento?.
- Vá, meu filho.
William esperou que o filho saísse e dirigiu-se a Ondine. - Querida sobrinha, sua bagagem será levada para a suíte que você ocupava anteriormente. Estarei de olho em você. Daqui a um mês você se casará com Raul e terá de andar na linha. Há, mais uma coisa: acho que você é uma mentirosa. Mas tenho meios de descobrir por onde andou, depois de sua fuga. E com quem. - Ele deu um sorriso sarcástico e curvou-se. - Seja bem-vinda, duquesa.

As paredes do solar Chatham tremeram com o rugido de Warwick quando ele acordou e descobriu que Ondine havia partido.
Reunindo-se a Justin e Clinton, a quem tinha ficado mais unido depois da tragédia familiar, Warwick contou-lhes como havia conhecido Ondine, por que se casara com ela e jurou que tinha sido cruel com ela pensando apenas em salvá-la. Afirmou também que ambos tinham passado uma noite maravilhosa, e ela não demonstrara guardar nenhuma mágoa. Pelo contrário, tinha sido extremamente carinhosa. Que motivo haveria para ela fugir? No entanto, ele não lhe dissera que, estando esclarecido o mistério que envolvia a morte de Genevieve, ele desistira de mandá-la para a América.
Refletindo juntos e trocando idéias, os três concluíram que tinham sido imbecis. Deviam ter desconfiado que Ondine guardava algum segredo. De repente, Warwick esmurrou a mesa. Charles! Tinha certeza de que o rei sabia de alguma coisa. Iria a Londres imediatamente. Não descansaria enquanto não descobrisse quem era a misteriosa mulher com quem se casara.
Ficou decidido que Justin o acompanharia. Clinton e Jake ficariam em Chatham até que Mathilda fosse sepultada, depois iriam também para Londres. Então, percorreriam todo o país à procura de Ondine.
Warwick e Justin fizeram a viagem a Londres em tempo recorde, porém de nada adiantou. O rei tinha ido justamente para o norte. O duque de Buckingham aconselhou-os a esperarem pelo soberano no palácio St. James.
Dois dias depois, Charles retomou. Mal entrou em seus aposentos, Warwick, foi ao encontro dele, desrespeitando o protocolo, deixando os criados perplexos e levando a guarda pessoal a apontar-lhe as armas.
- Preciso falar-lhe, sire. Agora! - Charles arqueou as sobrancelhas escuras.
- Vejo que tem urgência - o rei falou secamente. Então se voltou para os criados e guardas. - Saiam. Lorde Chatham lamentavelmente esqueceu as regras de etiqueta. Contudo, acredito que ele não pretenda me fazer nenhum mal.
- Onde ela está? - Warwick perguntou.
- Quem é "ela", caro amigo?
- Minha esposa. Ondine desapareceu. Você deve saber onde ela está.
- Ora, por que eu iria raptar ou esconder a esposa de um amigo? - tornou o rei, indignado.
- Perdão, Majestade. Não o acuso de nada! Mas acredito que Vossa Majestade saiba alguma coisa sobre Ondine. Quando eu a trouxe ao palácio pela primeira vez, ela tremeu de medo de encontrá-lo. Tentou até fugir. Depois, passou a sentir-se tão à vontade na sua companhia...
- Espere. Vamos conversar com calma. - Charles e Warwick sentaram-se. - Fiquei sabendo do que aconteceu no solar. Pobre Mathilda. Senti muito, Warwick, mas estou contente porque a morte de Genevieve foi esclarecida. Sua esposa está salva e os fantasmas não vão mais assombrar Chatham.
- Sire, por favor, o que sabe sobre o desaparecimento de minha esposa? Que motivo ela teria para fugir?
- Warwick, você me pediu para interceder junto à Igreja para que seu divórcio fosse aprovado e agora vem me importunar porque sua esposa fugiu?
- Pelo sangue de Cristo! - Warwick exclamou, descontrolado. - Você sabe que eu queria o divórcio simplesmente para proteger Ondine. Eu imaginava que ela poderia ser assassinada pelo simples fato de estar casada comigo!
- Meu amigo, você ama essa mulher?
- Charles, ela é minha esposa!
- Não foi o que perguntei.
- Sim, amo Ondine! Apaixonei-me por ela! Ela tornou-se minha vida, uma parte de mim. Charles, sempre o servi com lealdade. E agora lhe peço, lhe imploro: me ajude! Você me deve isso.
- Chatham, você está exaltado. Nós dois precisamos de uma cerveja bem forte. Quero matar minha sede antes de lhe dizer o que sei.
- Mas o tempo está passando...
- O tempo não é importante. Você não tem de sair correndo para livrar sua esposa de um perigo iminente. Peça a cerveja.
Warwick obedeceu. Transmitiu a ordem do rei ao criado que estava à porta, junto com dois guardas e esperou com impaciência que o homem voltasse com as garrafas e os canecos.
Minutos depois, estava sentado, enquanto o rei, andando de um lado para outro do quarto, começou a falar:
- Esta história teve início há muito tempo. O duque de Rochester estava a serviço real, porém opôs-se a meu pai, que havia dissolvido o Parlamento. Criticou o rei severamente porque sua política estava sendo desastrosa. Mas o duque não era um seguidor de Cromwell. Mesmo assim, tornou-se persona non grata e foi afastado do palácio. Meu pai era um grande homem, mas reconheço que não foi um bom rei. Contudo, nunca foi um traidor e não merecia ser decapitado. Rochester não votou pela decapitação de meu pai. Mais tarde, depois da morte de Cromwell, o duque foi um dos que lutaram para que eu fosse trazido de volta e ocupasse o trono. - Charles parou de andar. - Lembra-se daquele dia em que você e Hardgrave se enfrentaram em Westchester?
- Claro, eu não poderia me esquecer daquela ocasião. - Pois bem, naquele dia convidei o duque de Rochester e a filha para voltarem ao convívio da corte. Naquele dia também houve um atentado à minha vida. O duque foi acusado de haver tentado me matar e foi morto no mesmo instante. A filha, acusada de ser sua cúmplice..
Warwick quase se engasgou com a cerveja.
- A filha? Ondine?! - ele deu um grito estrangulado?
- Sim. A duquesa de Rochester.
- Em nome de Deus, como é possível? Eu a encontrei a caminho da forca, tendo saído de Newgate!
- Você ouviu metade da história. Ouça o fim. A situação de Ondine é delicada.
- Charles, por favor...
- Ora, acalme-se, homem! - Charles pediu com impaciência. - Toda essa história é obscura e você precisa me ajudar a refletir. Nunca acreditei que Rochester tivesse tirado aquela espada para me matar. E os que o assassinaram, alegando que fizeram isso para me defender, ficaram murmurando com horror que a filha era cúmplice do pai. A pobre Ondine teve de fugir.
- A moça do ribeirão - Warwick murmurou, de repente.
- De que está falando?
- Depois do torneio fui até a floresta para descansar e ouvi vozes. Duas pessoas discutiam. Então uma moça saiu correndo, desesperada, e atirou-se na água. Fui atrás dela, mas ela havia desaparecido. Certamente era Ondine.
- Warwick, peço-lhe para ser discreto. O que vou dizer deve ficar entre nós. Tenho quase certeza de que, naquele fim de tarde, na floresta, Ondine discutia com o tio, William Deauveau ou com o filho dele, Raul. Eu soube que William estava ansioso para Raul se casar com Ondine, mas Rochester era contra o casamento. Ondine jurou que o tio e o primo acusaram o duque de haver tirado a espada para me matar, mas tudo não passou de uma farsa para poder matá-lo legitimamente. Com o duque morto, eles forçariam Ondine a aceitar o casamento com o primo. Se ela o rejeitasse, seria acusada de traição e condenada. De um modo ou de outro, William e Raul ficariam com tudo que pertencera a Rochester.
- Se você sabe de tudo isso...
- Oficialmente não sei de nada. Tenho suspeitas apenas, e acredito em Ondine. A farsa foi tão bem encenada que os poucos que a presenciaram acham que Rochester desembainhou mesmo a espada contra mim. Você não imagina do que aqueles parentes ambiciosos de Ondine são capazes.
O desespero e a revolta de Warwick cresceram dentro dele.
O mundo parecia girar e estar envolto em sangue.
- Ondine não poderia ter voltado para junto daqueles dois!
- Ela precisa descobrir que provas eles têm contra ela.
- Você é o rei. Pode perdoá-la e salvar-lhe a vida.
- Você está demonstrando que não conhece sua esposa!
Salvar-lhe a vida não basta. Ela jamais descansará se não provar a inocência do pai.
- O que você sugere? Acha que devo esperar, enquanto minha esposa está nas mãos de dois criminosos que pretendem matá-la? Meu Deus, ela pode estar morta!
- Controle-se! Reflita antes de agir - disse o rei calmamente. - Em primeiro lugar, não posso ter certeza de que ela voltou para Deauveau Place, que é sua casa. Mas, se ela estiver lá, acho que William não fará nada contra a sobrinha, pois seu maior desejo é que ela se case com Raul, pelo direito incontestável ao título e às terras. Como Ondine é cuidadosa e esperta, saberá manter-se a salvo até descobrir as provas forjadas que o tio e o primo têm contra ela.
- Compreenda, sire, depois de saber tudo isso, não posso ficar sem fazer nada para defender minha esposa.
- Você e esse seu gênio impetuoso! Se ama sua esposa, encontre um meio de ajudá-la a provar sua inocência sem arriscar a vida de vocês dois.
- É o que vou fazer. Onde ficam essas terras de Rochester?
- A duas horas daqui, no sudoeste. Deauveau Place é um palácio, muito mais suntuoso e confortável do que aquele solar bárbaro que você tem lá no norte.
Warwick lançou ao rei um olhar feroz. Charles riu, embora soubesse que a situação era grave.
- Farei uma visita a Deauveau Place dentro de uma ou duas semanas. Será interessante saber o que está acontecendo. Será que o encontrarei por perto?
Warwick sorriu diante da provocação. Deixou o caneco sobre a cornija da lareira e, ao contrário de sua entrada selvagem naqueles aposentos, curvou-se respeitosamente diante do rei e falou antes de sair:
- Sire, asseguro-lhe que me encontrará em Deauveau Place.

Capítulo XIII

Ondine saiu do escritório do tio e subiu para seus aposentos. Trancou a porta e, por segurança, passou o ferrolho. Encostou-se na parede e respirou fundo. Estava em casa e saíra ilesa da primeira confrontação com o tio e o primo.
Atravessou a sala íntima e foi para o quarto. Deitou-se na cama com lágrimas nos olhos. Ali também nada havia mudado. A linda colcha de damasco era a mesma que o pai havia comprado de comerciantes espanhóis. O cortinado de seda que enfeitava a cama flamenga viera do Japão, a jarra e a bacia que estavam sobre o lavatório branco e dourado eram peças venezianas.
Ela mordeu o lábio para não soluçar. Aprendera a não se lamentar, mas ver-se de novo naquela casa, sem o pai, era emoção forte demais. Deauveau Place era dele, e os que o haviam enganado e assassinado se apoderaram de tudo, manchando o que tocavam.
Não podia entregar-se ao desânimo nem entrar em pânico. Tinha pouco tempo para descobrir as provas forjadas que a incriminavam. Encontrá-las seria tão difícil quanto achar uma agulha num palheiro. Com a ajuda de Deus iria encontrá-las e partiria antes de ser examinada pelo médico e, claro, antes do casamento.
As maiores dificuldades estavam por vir Instantes atrás William tinha declarado que não confiava nela; também havia dito que iria descobrir por onde e com quem ela havia andado:
Para não levantar suspeitas teria de sorrir, ser recatada e obedecer às ordens do tio.
Nervosa, abriu a porta que dava para a sacada e saiu do quarto. O gramado parecia coberto por um manto de cristal branco. Até os grandes carvalhos tinham toques de gelo como se estivessem enfeitados de estrelas brilhantes.
Ondine pensou em Chatham. Como estaria o solar naquele momento? E Warwick, por onde andaria? Sem dúvida se enchera de fúria quando descobrira que ela havia partido. Ah, como ele tinha sido carinhoso e ardente ao mesmo tempo!
Estremeceu ao pensar que, se William, no seu intento de investigar o passado dela, acabasse descobrindo que estava casada, encontraria um meio de matá-la.
Voltou para a cama, extremamente cansada. Não conseguiu dormir. Bastou fechar os olhos para a figura do marido permear-lhe o pensamento. Lembranças queridas, outras excitantes tiraram-lhe o sono e a paz.
Levantou-se tensa. Tinha de traçar seu plano para encontrar num imenso palheiro sua preciosa agulha de ouro! Nessa noite mesmo, quando todos estivessem dormindo, iria revistar o escritório do tio, embora duvidasse que William, sendo tão astuto e dissimulado, guardaria algum documento importante em lugar tão óbvio.
Bateram na porta, era Jem. Atrás dele estavam dois jovens lacaios carregando os baús com o luxuoso enxoval que ela havia comprado. Os dois deixaram a bagagem no lugar determinado por Jem e se retiraram.
- Se precisar de mim, basta me chamar, milady - disse o velho, segurando a mão de Ondine. - Peço-lhe que não se case com Raul.
- Psiu! - Ela colocou o indicador sobre os lábios e passou a falar baixinho. - As paredes têm ouvidos. É claro que não vou me casar com ele. Eu o aconselho a manter-se longe de mim porque se meu plano não der certo, só eu sofrerei as conseqüências.
- Darei a vida pela senhora, milady.
- Não! Será um sacrifício inútil. Terei cuidado, Jem.
O velho assentiu com um movimento de cabeça.
- Quer que eu mande uma criada para ajudá-la a desfazer a bagagem?
Os olhos de Ondine brilharam.
- Sim. Vou adorar ter Liza novamente como minha criada pessoal.
- William deu ordens para Liza permanecer na cozinha. Sua criada pessoal será Berta. É nova na casa. Devo alertá-la que Berta é a espiã do seu tio, milady.
- Nesse caso, que seja Berta - tomou Ondine, resignada.
A criada chegou logo depois de Jem ter saído. Era uma mulher alta, musculosa, de ombros largos, busto enorme, rosto quadrado e olhos cinzentos.
- Milady, fui indicada para ser sua criada pessoal. Estou às suas ordens - ela falou, amável.
- Obrigada. Poderia começar desfazendo minha bagagem? - Pois não, milady.
Berta mostrou que era eficiente. Acabou a tarefa depressa e antes de sair do quarto, avisou Ondine:
- O jantar será servido às oito, milady. Posso mandar que preparem seu banho?
- Não gosto de tomar banho à noite.
- É esse o horário que seu tio estabeleceu para seu banho.
- O quê?! Meu tio estabeleceu o horário do meu banho? - replicou Ondine, zangada.
- Eu apenas recebo ordens, milady.
Ondine suspirou. Reconheceu que estava sendo infantil. Não devia criar problemas nem irritar o tio por causa de tolices. Coisas muito mais importantes estavam em jogo. Concordou com o banho.
Durante os minutos em que esteve mergulhada na água tépida, relaxou e sentiu-se bem melhor. Saiu do banho com mais disposição. Berta ajudou-a a vestir-se e depois começou a penteá-la. Apesar da aparência rude, a criada demonstrou que tinha talento. Fez longos cachos nos cabelos e quando Ondine pediu-lhe que os prendesse no alto, Berta alegou que Raul queria ver a noiva com os cabelos soltos.
Por pouco Ondine não explodiu. Novamente o bom senso falou mais alto e ela sorriu para a criada..
Quando entrou na sala de jantar, o tio levantou-se.
- Boa noite, sobrinha. Seja bem-vinda à sua sala de jantar. - Está encantadora - Raul elogiou-a e serviu-lhe o vinho. - Então, você gostou?
- Muito. Era exatamente assim que eu queria vê-la.
O jantar começou a ser servido por um criado que Ondine nunca tinha visto. Ela esperou que o homem deixasse a sala e indagou ao tio:
- Onde está Jem?
- De agora em diante Jem trabalhará na cozinha - William respondeu.
- Ele é muito velho para fazer trabalhos pesados - Ondine protestou. - O senhor irá matá-lo.
- Jem é mais forte do que você imagina. E o trabalho não é tão pesado assim - o tio discordou.
Raul viu lágrimas brilhando nos olhos da prima e tocou-a de leve no braço.
- Meu pai tem razão. É melhor assim.
- Suspeito de Jem. E você sabe que não confio nem um pouco em você - o tio falou sem rodeios. - Fique longe dele, sobrinha, se não quiser causar um grande desconforto a seu velho amigo.
Ondine tentou beber o vinho, mas engasgou.
- Desprezo vocês dois! - irrompeu, furiosa.
Raul ficou atônito. William sorriu.
- Veja a linda gatinha que você tanto deseja, meu filho.
Ela começa a mostrar as garras.
- Não importa, pai. Eu a trarei na coleira. Um mês, Ondine, e você aprenderá a ser humilde e submissa.
Ondine baixou a cabeça e colocou as mãos no colo. O cordeiro temperado com ervas e hortelã estava uma delícia, mas ela não conseguiu mais comer.
- Não está comendo, cara sobrinha. Perdeu o apetite?
- Só estou cansada, tio William - ela respondeu suavemente.
- Você devia apreciar a companhia da família.
- Estou realmente cansada. A viagem e a emoção de estar novamente em casa foram demais para mim. Se me der licença... - ela não conseguiu terminar a frase.
William observou-a por alguns segundos, por fim, disse: - Pode ir para seu quarto.
Ela levantou-se e saiu da sala. Havia alcançado o corredor quando sentiu a mão de Raul em seu ombro.
- Ondine!
Ela virou-se e encarou o primo. Ele podia ser bonito para qualquer outra mulher, mas ela via no rosto dele crueldade, fraqueza e traição. O idiota era um fantoche nas mãos do pai.
- O que é, Raul?
Ele hesitou. Depois segurou o queixo dela, forçando-a olhar dentro dos olhos escuros. A proximidade dele e seu toque fizeram o estômago de Ondine revirar..
- Você é incrivelmente linda. Sempre gostei de você e há anos sonho em tê-la como esposa. Não quero magoá-la, Ondine. Seja amável e todos nós viveremos melhor.
- Estou aqui, Raul. Seu pai estabeleceu as regras da casa e vou tentar segui-las. O que mais você quer?
- Quero que me ame! Por Deus, eu jamais quis lhe fazer mal!
- Não quis me fazer mal e matou meu pai, Raul?
- Você o matou, Ondine! Se tivesse concordado em se casar comigo seu pai estaria vivo.
- Agradeço aos santos! Você acaba de admitir sua culpa!
- Não admiti nada! Só estou tentando pôr um pouco de juízo ria sua cabeça. Mas você é teimosa e arrogante. Desse jeito, terá o que merece!
Sem que Ondine esperasse, Raul abraçou-a com força e beijou-a selvagemente. Ela sentiu nojo, raiva, náusea e dor. Chutou-o, torceu o corpo e conseguiu libertar-se.
- Você prometeu não me tocar! Concedeu-me o tempo que pedi e não quer cumprir o que prometeu?
Os braços de Raul relaxaram.
- Boa noite. Vamos cavalgar juntos amanhã e conversaremos.
- Está bem. Até amanhã.
Ela afastou-se correndo e subiu para seus aposentos. Sentia enjôo e fortes espasmos no estômago. Mal teve tempo de entrar no quarto, ir até o lavatório e tirar a jarra da bacia...
Quando, por fim, pôs tudo para fora, sentiu-se fraca e suando frio. Lavou o rosto e foi cambaleando até a sacada para respirar o ar gelado da noite. Como poderia levar seu plano adiante se era tão pateticamente fraca?
Bastou esse pensamento para mexer com seus brios e fazê-la reagir. Não era fraca! Havia passado fome e frio na floresta e em Newgate, estivera duas vezes com a corda da forca no pescoço, fora raptada e drogada pelos piratas nojentos e, também por duas vezes, frustrara as intenções assassinas da pobre Mathilda. Suportara tudo isso. Não podia falhar agora!
Sem poder evitá-lo, lembrou-se de que estava viva graças a Warwick e não podia mais contar com ele. Estava sozinha. Sua única chance de sucesso alicerçava-se na meiguice, em fazer Raul acreditar que ela aceitava o casamento. Tinha de aprender a falar suavemente com ele e com o tio. Enquanto William desconfiasse dela, ficaria alerta.
"Vencerei", pensou.
Em primeiro lugar teria de endurecer o coração, depois o estômago.

Ondine tinha passado horas sentada numa poltrona diante do fogo; quando notou que a casa estava silenciosa, desceu a escada e foi ao escritório do tio. Acendeu apenas uma vela e começou a revistar as gavetas da escrivaninha. Só encontrou os livros de contabilidade, recibos, e coisas do gênero. Sabia de antemão que o tio não iria guardar ali documentos importantes. Apesar disso, sentiu uma enorme frustração.
O som de passos no corredor deixou-a apavorada. Correu para uma das estantes e pegou um dos livros.
Nesse instante a porta abriu-se com violência. William Deauveau estava na soleira usando camisa de dormir e gorro na cabeça.
- Tio!- ela falou, arquejando. - Que susto!
- O que faz aqui? - ele indagou rudemente.
- Não consegui dormir e vim pegar um livro para ler - ela respondeu, olhando dentro dos olhos dele, com expressão, inocente.
- Que livro é esse?
- Shakespeare. Rei Lear.
William aproximou-se dela, pegou o livro, verificou o título e devolveu-o.
- É muito tarde. Vá pra cama e trate de dormir - ele ordenou. - Se ficar lendo pode cabecear de sono, tombar o lampião, causando um incêndio capaz de matar todos nós.
Ondine não argumentou. Levou o livro junto do peito e subiu para seus aposentos. Suas mãos tremiam e o coração batia em ritmo frenético ao trancar a porta da sala.
Tinha de ser cuidadosa. Muito cuidadosa, pensou. Aos poucos, acalmou-se e foi para o quarto. Deitou-se, adormecendo em seguida.
Acordou com as têmporas latejando e com enjôo. Mesmo deitada sentia náuseas, tontura...
- Oh, Deus! - murmurou.
O sangue fugiu-lhe do rosto. Sua mente trabalhou depressa.
Lembrou-se de datas, fez as contas... Os momentos em que se relacionara intimamente com o marido passaram céleres por sua mente.
- Oh, Deus! - repetiu.
Soube então que seu enjôo nada tinha a ver com Raul, por mais que ele a repugnasse, nem com cansaço, nervosismo ou as emoções dos últimos dias.
Estava esperando um filho de Warwick Chatham.

Assim que Jake e Clinton chegaram a Londres, Warwick revelou-lhes quem era Ondine, contou-lhes sua história, deixando-os atônitos. A surpresa deles não foi menor quando Warwick lhes falou sobre sua decisão de procurar emprego em Deauveau Place.
Jake sugeriu que eles fossem até White Feather, uma taberna perto de Rochester, onde conseguiriam informações sobre William Deauveau e as terras que ele, na qualidade de tutor de Ondine, administrava. Clinton lembrou que eles tinham de comprar roupas baratas e Jake levou-os a uma loja da periferia de Londres.
Vestidos como trabalhadores, cavalgaram na direção sudoeste, até White Feather, lugar freqüentado por homens rudes, alguns honestos, outros nem tanto. Ali, dependendo da quantia disponível, o cliente podia obter informações, bebida, mulheres, poções diversas e até veneno.
Os quatro pediram cerveja e convidaram Molly, a proprietária da taberna, para sentar-se à mesa e beber com eles. Ela aceitou o convite com prazer e demonstrou estar com muita sede, pois tomou um caneco de cerveja atrás do outro. Warwick aproveitou para fazer-lhe perguntas.
- Diga-me, Molly, onde pode um homem com boas mãos, arranjar trabalho por aqui?
- Ah, meu caro, posso apostar que você é muito bom mesmo com essas mãos e outras coisas! - Molly exclamou, rindo alto.
Justin olhou sobre a cabeça loira da mulher e fez uma careta para o irmão. Clinton pigarreou. Jake achou que eles tinham pedido muita cerveja.
- Falo sério. Preciso de emprego. Ouvi falar de uma grande propriedade aqui perto...
- Deauveau Place! Pertencia a um homem muito bom, reservado, mas foi morto por atentar contra a vida do nosso querido rei Charles. Dizem que a filha, moça linda, era cúmplice do pai. Mas ela desapareceu. Agora o dono de tudo é o irmão do duque. Ora, o homem nem é um Deauveau verdadeiro. Era enteado do pai do duque. Dias atrás uma criada da mansão me disse que a filha do duque voltou e vai se casar com o primo.
- Molly levantou o caneco. - Uma história triste, não acha?
- Sim. Mas, e sobre trabalho, o que me diz?
- Se você tiver estômago para agüentar um patrão como William Deauveau, há uma vaga de ferreiro. O velho Nat morreu recentemente.
- Você acha que tenho chances de ser contratado?
- Com certeza o aprendiz é um garoto. Apresente-se amanhã mesmo para uma entrevista.
- Amanhã? Onde?
- No centro da vila, claro.
- Obrigado, Molly. Você foi muito gentil. - Warwick levantou-se.
- Aonde vai com tanta pressa?
- Dormir. Se eu quiser o emprego, tenho de levantar bem cedo. Não se preocupe, Molly. Meu irmão é um preguiçoso, não trabalha, mas é ótima companhia. Ele vai cuidar de você.
"Vou cuidar dela!", Justin pensou, olhando atônito para o irmão que se afastava.
Não teve como fugir porque Molly já estava segurando no braço dele e exigindo sua atenção. Clinton e Jake também se levantaram e seguiram Warwick.
- Molly! Fui prometido à Igreja. Vou ser padre.
- Padre? Um homem como você? Não!
- É verdade - Justin asseverou, conseguindo levantar-se.
Deu um lindo sorriso para a mulher, colocou uma moeda de valor sobre a mesa e saiu apressado da taberna.

Clinton, Justin e Jake tentaram convencer Warwick de que não era boa idéia trabalhar em Deauveau Place como ferreiro.
- Eu me candidato ao serviço - propôs Clinton. - Lido com cavalos o tempo todo.
- E eu não? - questionou Warwick.
- Não tanto quanto eu. Você passou a vida administrando sua propriedade ou na corte, atendendo ao chamado do rei apontou o primo.
- Entenda, Clinton, preciso estar perto de Ondine. Tenho de vê-la. Ela é minha esposa - Warwick insistiu, impaciente.
Jake alegou que seria perigoso.
Justin argumentou:
- Você está arrumado demais e muito limpinho, mano. Quem irá acreditar que você é capaz de fazer um trabalho tão pesado como o de ferreiro?
- É claro que eu não me apresentarei em Rochester assim como estou.
- Você já pensou que a vaga pode ter sido preenchida? - perguntou Justin.
- Já. Por isso, decidi não ir à vila para a entrevista. Vou-me apresentar diretamente em Deauveau Place. Mesmo que eu não seja contratado, poderei ver Ondine pelo menos para certificar-me de que ela está bem.
Certos de que Warwick não desistiria de seu intento, todos deixaram de argumentar. Ficou combinado que Justin e Clinton voltariam para Londres, mas não para a corte. Se não conseguissem alugar uma casa, iriam para um alojamento. Era importante que parecessem pessoas comuns, do povo. Jake se hospedaria na White Feather para ficar perto de Warwick e também para ouvir as conversas dos freqüentadores da taberna.

Ondine e Raul passaram a tarde cavalgando pela propriedade coberta de neve. Ele manteve respeitável distância entre os dois, o que a tranqüilizou. Ambos conversaram sobre teatro, ópera, artes, e Ondine mostrou-se extremamente amável.
A gravidez tomava sua situação ainda mais delicada, por isso, via-se obrigada a deixar Raul cada vez mais envolvido e mais seguro de que a estava conquistando. Precisava tê-lo do seu lado, contar com seu apoio, já que o tio, determinado a mantê-la sob contínua vigilância, parecia devassar-lhe a alma.
De fato, naquela noite William deu provas de que estava empenhado até em adivinhar-lhe os pensamentos. Ela desceu para jantar pensando no marido, tentando imaginar qual seria a reação dele quando soubesse que ela esperava um filho. O sonhado herdeiro Chatham. Ah, se pudesse voltar para o solar! Mas antes teria de encontrar os preciosos documentos que poderiam inocentá-la. Será que viveria para desacreditar o tio e o primo?
- Está doente, Ondine?
- Como? - Sobressaltada, ela olhou do primo para o tio.
- Não, tio William. Só estou um pouco sonolenta. Não dormi bem a noite passada.
- Preste atenção à comida.
- Sim, tio William. - Ela sorriu. - Está deliciosa. William colocou a mão sobre a dela.
- Você sabe ser encantadora quando quer, minha querida.
- Eu quero, sinceramente, meu tio.
- Hum... - William murmurou, desconfiado. Olhou para o filho que sorriu, como se dissesse que, da parte dele não tinha dúvidas. Perguntou em seguida:
- O que achou do novo ferreiro, Raul?
- Parece um bruto, mas competente.
- Bruto, sim, carrancudo. Esses tipos do norte são arrogantes. Ele é forte, tem ombros largos. Veremos como ele trabalha.
Ele olhou para Ondine, mas ela não estava prestando atenção à conversa entre pai e filho. Saboreava a ave, tenra e deliciosa.
Terminado o jantar, Raul pediu-lhe:
- Ondine, toque espineta para nós.
Ela pretendia recolher-se o mais cedo possível, mas não quis perder a oportunidade de agradar Raul. E gostava muito de tocar espineta.
- Sim, Raul, com imenso prazer.
Eles foram ao salão de baile que ficava na ala leste da mansão. William serviu-se de brandy e sentou-se confortavelmente numa poltrona. Raul preferiu vinho do Porto e ficou de pé, do lado da espineta. Sentada no banquinho, Ondine olhou para o tio que se sentia à vontade, como um verdadeiro gentleman, e teve ímpetos de gritar: "Esta casa é minha! Minha herança, assassino!".
Executou as melodias que sabia de cor e respirou aliviada quando o tio se levantou.
- Está muito frio. Vamos nos deitar.
Ofereceu-lhe o braço, levou-a gentilmente até seus aposentos. Deu-lhe boa-noite e Raul beijou-lhe a mão.
Ela sentiu-se no céu quando entrou na sala. Encostou a porta, deixando uma fresta aberta e apurou os ouvidos. Ouviu o tio dizer:
- Tem de ser agora, filho!
- Pai, ela confia em mim. Prometi esperar.
- Você quer ter uma prostituta como esposa?
- Para mim tanto faz. Lady ou prostituta, ela é uma duquesa e eu a desejo.
- Pois eu quero saber se ela já esteve com outros homens.
Vou chamar o médico.
- Pai, quem vai se casar com ela sou eu!
Eles se afastaram e Ondine não pôde ouvir mais nada. Trancou a porta e foi para o quarto. Assustou-se ao ouvir um som vindo da sacada. Afastou as cortinas e como não viu ninguém, achou que o barulho tinha sido provocado pelo vento. Trocou de roupa e deitou-se. Precisava ter uma boa noite de sono. Na manhã seguinte, pretendia revistar o quarto do tio enquanto ele estivesse no escritório, atendendo os arrendatários.
Fez suas orações e adormeceu pensando em Warwick que estava a milhas e milhas de distância.

Vários dias se passaram, sem que Ondine encontrasse os documentos falsos que procurava. Já havia estado nos aposentos de tio, mas só tivera tempo de revistar alguns móveis do quarto. Naquela manhã conseguiu entrar lá novamente e revistou o guarda-roupa, as estantes e os baús. Nada.
Estava indo para seu quarto quando Berta apareceu, ofegante, na extremidade do corredor, tendo subido pela escada de serviço.
- Onde esteve, duquesa? Bati várias vezes na porta de seu quarto.
Ondine fingiu bocejar.
- Bateu? Não ouvi. Com certeza eu estava dormindo. Ela sorriu para a criada. - Berta, por favor, você pode correr até meu quarto para pegar meu casaco de pele? O de raposa prateada. Vou encontrar-me com Raul e lá fora está muito frio.
Mesmo desconfiada, Berta obedeceu. Logo estava de volta. Ondine colocou o casaco nas costas, agradeceu, dispensou a criada e foi para as cocheiras.
Raul a esperava, impaciente e estranhou ao vê-la usando vestido e o casaco de pele.
- Por que não está usando traje de montaria?
- Está frio demais. Precisamos conversar.
- Vamos para casa.
- Lá, não. Quero ficar a sós com você.
- Aqui fora está muito frio. Vamos até o abrigo que fica ao lado da oficina do ferreiro. É bem quente por causa da forja, e tem um banco onde podemos nos sentar.
Juntos, eles foram ao prédio comprido que ficava depois das cocheiras.
- Raul... - Ela segurou na mão do primo. - Eu... nem sei como começar...
- Fale! Confie em mim. Só quero seu bem.
- É seu pai, Raul. Se ele souber...
- Esqueça meu pai: Eu é que vou me casar com você, não ele! Diga-me o que está acontecendo. Eu a protegerei. Você sabe que sempre gostei de você.
- Sei. E se eu fugi naquela tarde, foi por desespero. Tive muito medo. - Estava sendo fácil para Ondine dizer tudo aquilo, pois não passava de pura representação. Iria conseguir que Raul fizesse tudo que ela queria. - Nós poderíamos ter sido felizes juntos.
- Por que diz isso? Vamos ser felizes! Nada poderá nos separar. - Raul falou com veemência e a abraçou.
- Ah, se eu pudesse ter essa certeza! - Ela deu um gemido e baixou os olhos. - Raul, menti para você. Entenda que estou contando tudo isso, não por temer pela minha vida, mas pela salvação de minha alma imortal.
- Que tolice é essa?
- Ouça. Quando me escondi na floresta, conheci um homem que me ajudou. Era um camponês rude, desajeitado e de certa idade. Como me tratou bem, casei-me com ele. Não me acostumei com aquele tipo de vida e fugi.
- Então você não é nenhuma inocente! Mesmo assim me recusou!
- Não o recusei! Entenda que não posso me casar com você porque já sou casada! Por minha alma, Raul, temos de saber por onde anda meu marido. Se ele morreu, estarei livre. Se estiver vivo, o casamento pode ser anulado. - Ela mordeu os lábios e conseguiu até forçar lágrimas a lhe aflorarem aos olhos. - Oh, Raul, seu pai há de querer nos separar!
- Entregue-se a mim! É o que eu mais desejo!
- Não posso cometer um grave pecado como esse. E minha alma?
- Que se dane sua alma!
- Como? Se você não tem medo da condenação eterna, eu tenho!
A pouca distância dali, pela porta entreaberta, Warwick acompanhou a cena. Precisou de todo o seu controle para não sair da oficina, trazer Ondine para seu lado e matar Raul com um simples golpe do pesado martelo.
"Espere! Paciência!", disse a si mesmo.
Atiçou o fogo e continuou a observar a representação. O segundo ato seria dele e não iria demorar muito a ser encenado. Ouviu Raul dizer:
- Encontrarei esse homem, juro! Não permitirei que meu pai chame o médico. Confie em mim.
Eles levantaram-se e foram para a casa de mãos dadas.

Ondine fez questão de usar nessa noite o mais sedutor de seus vestidos. No momento era importante excitar o desejo de Raul. Pela primeira vez sentiu-se à vontade durante o jantar, conversou e sorriu com naturalidade; até flertou com Raul, sentado do outro lado da mesa.
William, aos olhos de quem nada escapava, demonstrou que estava feliz com o bom relacionamento do filho e da sobrinha. Ela tocou espineta depois do jantar e até permitiu que Raul lhe desse um beijo no rosto.
Surpreendeu-se quando o tio a acompanhou até seus aposentos e segurou-lhe a mão.
- Duquesa, até eu poderia jurar que você está mudada.
- Ah, meu tio, convenço-me cada vez mais de que aqui é meu lugar. O que eu faria sem o senhor para me proteger?
- Quer dizer que está resignada? -William soltou a mão dela.
- Quero dizer que estou contente.
Ondine sorriu e entrou na sala íntima. Tudo estava correndo bem. Não teria de lutar contra o tio. Raul se encarregaria disso. Pela manhã voltaria aos aposentos do tio e continuaria sua busca. Foi para o quarto e começou a desamarrar os laços do vestido.
- Boa noite.
As palavras interromperam-lhe os pensamentos. Virou-se depressa e viu um homem sujo de carvão sentado muito à vontade sobre a cômoda, balançando as pernas. Longas pernas.
Abriu a boca para gritar, mas o homem já estava atrás dela, apertando-a contra o peito e cobrindo-lhe a boca com a mão.
- Não grite. Ondine, a condenada que se livrou da forca porque foi pedida em casamento. Então se tornou condessa. Agora é duquesa. Que confusão. Não se assuste. Sou eu. O camponês rústico, desajeitado e de certa idade com quem você, lamentavelmente, se casou!

Capítulo XIV

Warwick!
- Ele mesmo.
Muitas emoções passaram pelo coração de Ondine. Alegria por estar nos braços dele. Espanto por constatar que o homem era mesmo Warwick. Terror porque, se ele fosse descoberto seria morto em segundos e ninguém condenaria um tutor por matar um homem que estava no quarto da sobrinha "donzela".
Amor! E terror novamente porque ele devia estar furioso com ela.
E que disfarce ridículo era aquele?
- O novo ferreiro! - exclamou subitamente.
- Ele mesmo.
O quarto girou. Ondine piscou algumas vezes, seus olhos se fecharam e ela sentiu que ia cair, mas o marido segurou-a e deitou-a no chão. Pouco depois um lenço tocava-lhe a testa.
- Você não está com Raul, duquesa, mas com seu marido camponês, rústico e desajeitado.
As palavras do marido pareciam vir de longe. Ela abriu os olhos. A expressão de Warwick era grave. Sua barba estava crescida e o rosto tinha uma cor escura por causa da constante exposição à fumaça, ao carvão, ao fogo e ao calor da forja.
- Você está sujo - ela murmurou.
Tentou sentar-se, mas o marido empurrou-a, obrigando-a a ficar deitada.
- E você, voltou aos círculos mais elegantes, duquesa.
- O que faz aqui?
- Vim por sua causa. Você continua sendo minha esposa.
- Como entrou no meu quarto? Não vê que eles podem matá-lo? Vá embora.
- Entrei pela sacada. E não vou embora tão cedo. Importa-se se eles me matarem?
- Naturalmente! Devo-lhe a vida e não quero que perca a sua! Por favor, saia!
- Você não sabe como eu teria prazer de atravessar aquele seu tio e o filho com minha espada ou de torcer-lhes o pescoço. Veja que mãos bonitas para um ferreiro. Têm força para manejar as ferramentas ou para torcer um pescoço. O pescoço da esposa que me abandonou.
- Nosso casamento estava terminado, Warwick Chatham! Você se casou comigo só para descobrir o responsável pela morte de Genevieve. Prometeu deixar-me livre. - Ondine levantou-se.
- Meu Deus! Você não ficou comigo para que pudéssemos conversar.
- Não pude! Você ia me mandar para outro país e eu tinha de voltar para Rochester! Estas terras e esta casa me pertencem por direito!
- Eu sei disso. Falei com o rei.
- Então você deve saber também que tenho de encontrar as provas que me incriminam. Posso ser condenada por traição.
- Charles pode perdoá-la. Ele sabe que você é inocente.
- Mesmo que me perdoe, carregarei pelo resto da vida a mancha da traição. Além disso, tenho o dever de limpar o nome e a memória de meu pai. Quero que os verdadeiros criminosos sejam punidos. - Ondine fechou os olhos, cansada. - Preciso encontrar as provas que procuro e só eu posso fazer isso.
- Ondine, duquesa ou não, você é minha esposa. Posso ir até o rei e aparecer aqui com metade do exército real para exigir a sua volta para mim.
- Por favor, Warwick, seja paciente. Tenho menos de um mês antes de ser obrigada a me casar.
- Bigamia é crime.
- Você sabe que só estou tentando ganhar tempo!
- Não posso esperar quase um mês.
- Então você irá embora? Não pretende interferir nos meus planos?
- Não irei embora coisa nenhuma! Ficarei aqui, para vigiá-la dia e noite. E não estou gostando disto nem um pouco. Seu plano é louco e perigoso. Dou-lhe duas semanas. Se não descobrir nada até lá, a levarei comigo.
- Duas semanas!
- Quanto mais perto você se aproximar desse "casamento", mais perigo irá correr.
- Oh, Warwick, não entende que é você quem está correndo perigo?
- Psiu! - ele pediu e foi depressa para a sala.
Ouviu passos no corredor. Ondine também ouviu e ficaram em silêncio, esperando o som desaparecer.
- Por favor, agora vá - ela sussurrou.
- Não vou a nenhum lugar esta noite.
Deus, ele estava louco!
- Não, Warwick...
- Você é minha esposa.
- Aqui não!
- Em qualquer lugar, meu amor.
- Você está sujo.
- Peço desculpas - ele falou e ao mesmo tempo tomou-a nos braços e beijou-a.
Foi um beijo suave, molhado, carinhoso e indagativo.
- Sentiu aversão por meu beijo?
- É claro que não!
- Deite-se comigo.
- Não posso. É perigoso. Uma criada gigante me vigia o tempo todo... e você está sujo. A roupa de cama vai ficar imunda.
- Isso não é problema.
Ele foi até a cadeira onde havia deixado a capa. Era bem larga, de lã grosseira, mas forrada com tecido macio. E estava limpa. Estendeu-a sobre a cama, tirou as botas e começou a despir-se sob o olhar fascinado de Ondine.
Ela sorriu discretamente, diante da maravilhosa evidência dos dotes masculinos do marido. Amava aquele homem. Amava-o por inteiro e já estava excitada, antecipando o êxtase que iria alcançar.
Despiu-se também e entregou-se a ele. Sentiu a barba áspera roçando-lhe a pele delicada, mas não se importou. A sensação estimulou seu desejo. O toque das mãos calosas fez seu sangue ferver. Ela esqueceu os perigos que rondavam lá fora. Sua mente não conhecia outra realidade que não fosse a união de seus corpos, a carne exigindo seu tributo de amor. Prendeu o marido na maciez de seus membros e ele penetrou-a. Suas arremetidas ritmadas levaram-nos num crescendo a uma região sublime, de nuvens sem fim. Seus pequenos gemidos sufocados e as batidas do coração soavam aos seus ouvidos como uma rapsódia.
Por fim, eles voltaram à terra novamente, mas continuaram unidos. Ele, relutando em sair daquele cálido abrigo. Ela, querendo prolongar aquele prazer. Mas as horas estavam passando. Ela suspirou.
- Você deve ir.
Por fim, ele rolou para o lado da cama e ficou de pé.
- Ondine, repito que não gosto disto.
- Por favor...
- Está bem. Mas ouça com atenção. Se eu perceber que sua busca está sendo inútil ou que você corre perigo, a levarei daqui. Entendeu?
- Sim.
- Amo você, milady.
- Também o amo e o amarei para sempre - ela murmurou.
Levantou-se e abraçou o marido com força. Junto dele as nuvens escuras pareciam se dissipar, fazendo surgir o sol que inundava o mundo de luz e calor.
- Ondine, peço-lhe que não aperte seu corpo contra o meu porque senão eu a levo de volta para a cama. Fazer amor com você novamente será a coisa mais excitante, mas não a mais sensata.
- Oh! - ela murmurou, sentindo o desejo retesado entre suas coxas. - Então... vá.
- Meu amor, voltarei sempre que puder. - Warwick beijou a testa da esposa.
Foi para a sacada e desapareceu na noite. Para Ondine todas as coisas pareciam possíveis. Desconhecia a fraqueza. Warwick estava com ela novamente. E a amava.

Ondine acordou radiante. Murmurava uma canção quando Berta entrou no quarto carregando a bandeja com o chá. Não ficou perturbada com a presença da mulher que normalmente a irritava, tampouco se importou com a expressão de suspeita nos olhos cinzentos.
Depois de vestida e arrumada, desceu para tomar o desjejum.
Cumprimentou o tio e Raul com entusiasmo. Sentia-se confiante agora que sabia da presença do marido em Deauveau Place. Não demoraria muito, iria ver a queda daqueles dois usurpadores.
- Dormiu bem, querida sobrinha?
Pelo tom do tio, Ondine soube que ele estava mais desconfiado do que nunca. Mas o que ele poderia descobrir? Ela deu um sorriso radioso.
- Dormi maravilhosamente bem, tio William. A cama estava muito confortável - respondeu e olhou para Raul como se estivesse ansiosa para ter o amor dele.
Raul riu, excitado, acreditando que os olhos da prima brilhavam por ele.
- Você terá mais conforto ainda quando estiver na minha cama.
Ondine conteve-se para não rir na cara dele. Baixou os olhos e enrubesceu, o que agradou demais ao tio.
Terminado o desjejum, William disse que ia trabalhar no escritório e pediu ao filho para acompanhá-to. Ondine serviu-se novamente de chá, um simples pretexto para demorar-se mais à mesa. Quando teve certeza de que os dois já estavam no escritório e que não havia criados por perto, subiu para os aposentos do tio.
Já havia revistado a escrivaninha, mas sentiu que precisava dar mais uma busca nesse móvel. Teve nova decepção. Sentou-se na poltrona, desalentada, quando notou alguma coisa no mata-borrão. Examinou-o de perto e estremeceu diante do que acabara de descobrir. No mata-borrão seu nome estava impresso inúmeras vezes. Era evidente que alguém havia praticado a assinatura dela até conseguir deixá-la quase perfeita. Que prova perfeita contra eles!
Ah, que vontade de tirar o mata-borrão da escrivaninha! Ali estava uma prova de que sua assinatura tinha sido falsificada!
Qualquer pessoa decente poderia atestar isso. Mas não podia sair correndo da casa levando o precioso objeto. Por enquanto, era importante não levantar suspeitas. Se o tio desconfiasse de alguma coisa, destruiria o mata-borrão sem que ela pudesse usá-lo como defesa.
Deixou o aposento com cuidado e foi para seu quarto. Berta apareceu em seguida.
- Voltei para fazer a limpeza. Há barro perto da cama.
- Barro? Ontem saí com Raul e minhas botas devem ter ficado sujas - Ondine respondeu tranqüilamente, seu olhar fixo no de Berta. - Vou ler na sala íntima.
- Raul quer vê-la no hall dentro de uma hora.
- Estarei lá. Obrigada.
Ondine desceu e ao encontrar-se com Raul, segurou carinhosamente a mão dele.
- Vamos terminar nossa conversa no mesmo lugar de ontem - disse ele, saindo com Ondine da mansão.
Chegando ao abrigo, pediu-lhe:
- Conte-me tudo sobre seu marido. Tenho de encontrá-lo o quanto antes.
Sabendo que Warwick estava no cômodo do lado ouvindo a conversa, Ondine ficou nervosa e teve dificuldade de representar.
- Ele é... loiro. Tem cabelos bem claros, olhos azuis. Descende de nórdicos, eu acho.
- Qual o nome dele?
- Tom. Tom Miller. É filho do moleiro, mas em vez de trabalhar no moinho, ajudando o velho pai, vive com ladrões. Se ainda não foi enforcado, deve estar escondido na floresta de Westminster.
- Eu o encontrarei! E então, meu amor, não haverá empecilhos para nossa felicidade. Dê-me um beijo, Ondine. Deixe-me acariciá-la.
A porta da ferraria se abriu e Warwick apareceu diante deles segurando um ferro incandescente. Olhou para os dois com fingida surpresa e não pediu desculpas pela intromissão.
- O que faz aqui? - Raul gritou.
- Sou o ferreiro. Vim pegar uma ferramenta.
Pelo olhar do marido, Ondine soube que ele não hesitaria em queimar Raul com aquele ferro. Puxou as mãos e disse depressa:
- Vamos embora. Podemos conversar em outro lugar. Nesse instante Raul viu o pai lhe acenando. Ele olhou para Ondine e, ignorando o ferreiro, tocou o rosto dela.
- Volto logo, meu amor.
Warwick não saiu do lugar e falou baixinho:
- Já lhe avisei para ter cuidado.
- Em breve tudo isto estará terminado. Descobri alguma coisa.
- Irei ao seu quarto esta noite.
- Não! Berta encontrou barro perto da cama.
- Suje suas botas de barro. Estarei lá.
Acabando de falar ele entrou na oficina. Ondine foi ao encontro de Raul que conversava com o pai.
- Está muito frio, querido primo. Nos veremos ao jantar.
Subiu para o quarto com o coração aos saltos. Estava, ao mesmo tempo, nervosa e contente. Tentou ler, mas não se concentrou na leitura.
Mais cedo do que de costume, Berta lhe trouxe o chá. Logo depois de ter levado a bandeja a criada voltou com os lacaios que trouxeram a água para o banho. Ondine mal prestou atenção nos três.
Mas Berta reparou muito bem no corpo dela quando saiu da banheira, quando a ajudou a enxugar-se devagar e depois, quando a ajudou a vestir-se.
Por fim, Ondine alegrou-se ao se ver sozinha. Não ficaria tão contente se soubesse que Berta tinha ido falar diretamente com William.
À hora do jantar Ondine não notou que o tio estava excessivamente gentil. Nessa noite ele nem quis que ela tocasse espineta.
- Você parece cansada. Além disso, o salão é muito frio. Suba e descanse - disse ele, amável.
Raul beijou-a e ela entrou no quarto.
Era meia-noite quando Warwick apareceu. Encontrou Ondine sentada perto da porta da sacada, usando apenas o casaco de pele.
- Oh, meu amor, é tão bom ver você, mas estou com medo. É perigoso.
- Eu precisava vir. Além de desejá-la, de estar louco para fazer amor com você, quero saber o que você descobriu. Depois falaremos sobre isso.
Warwick despiu-se e como na noite anterior, forrou a cama com a capa e deitou-se sobre ela com Ondine que, sem inibição, entregou-se prontamente ao marido. No quarto iluminado apenas pelas chamas mortiças da lareira, trocaram beijos famintos, sussurraram palavras excitantes e se amaram intensamente até ficarem saciados, estendidos na cama, vestidos de suor e em paz.
Ondine foi a primeira a se mexer. Provocou o marido com perguntas sobre o passado. Sobre lady Anne e as noites em que ele saía para cavalgar, em Chatham.
- Eu saía a cavalo por sua causa. Eu tinha sede de você, parecia que em meu corpo morava um lobo lúbrico que era obrigado a manter-se preso. Eu precisava sair para não ficar louco.
- Então não havia outra mulher?
- Nunca houve.
- E lady Anne?
- Tive um romance com ela antes de me casar com Genevieve. Depois de casado, terminamos. Nunca traí Genevieve nem traí você. Está satisfeita? Agora me fale sobre o que você descobriu.
Ondine contou sobre o mata-borrão com evidências de que alguém tinha praticado muitas vezes a letra dela e sua assinatura.
- Amanhã eu mesmo pegarei esse mata-borrão. Está proibida de entrar nos aposentos de seu tio novamente. Assim que eu conseguir essa prova, sairemos daqui. Iremos embora amanhã à noite.
- Por favor, preciso de mais alguns dias para encontrar provas que limpem o nome de meu pai.
Warwick suspirou.
- Dou-lhe mais três dias. Na terceira noite partiremos. Ele abraçou-a. - Voltarei amanhã. Não posso ficar longe de você. Agora devo ir. Logo vai amanhecer.

Londres

Clinton e Justin alugaram uma pequena casa perto do Tâmisa. Iam ao teatro, freqüentavam tabernas populares onde conversavam com bêbados, ofereciam jantares e festas para os quais convidavam cavalheiros e ladies conhecidos por sua falta de discrição.
Quem os via, achava que ambos eram nobres com dinheiro, cometendo os excessos da juventude, embora de maneira um tanto decadente..
Foi Sarah, a sexta filha de um conde, quem deu a Clinton a primeira informação valiosa. Ele gostou da moça e os dois passaram a se encontrar regularmente. Certa noite, Sarah falou sobre John Robbins, um antigo namorado que tinha pertencido à guarda real e presenciara a morte do duque de Rochester, acusado de haver atentado contra a vida de Charles. Depois disso, o guarda deixara o emprego. Clinton mal disfarçou sua euforia ao receber a informação e perguntou a Sarah se poderia levá-lo até esse ex-guarda. Na noite seguinte, Sarah veio com a resposta:
- Falei com John e ele concordou em falar com você e seu primo. Mas faz questão de encontrá-los numa cervejaria conhecida, onde há sempre muita gente. Não sei por que, mas ele tem medo de que alguém lhe tire a vida.
Clinton e Justin não esperaram mais nada. Alugaram uma carruagem e foram com Sarah até a cervejaria. Uma vez lá dentro, Sarah levou-os ao canto mais escuro e escondido do estabelecimento e avisou:
- Vamos nos sentar aqui. John Robbins virá até nós.
Justin pediu cerveja e aguardaram a chegada de John. Não tiveram de esperar muito. Um homem usando pesada capa de lã cinzenta, com capuz, sentou-se no banco, ao lado de Justin. Era difícil ver o rosto dele.
- Vim somente por causa de Sarah. Digam depressa o que querem saber. Só responderei o que for possível.
Por um momento ele olhou para Sarah e Justin viu o rosto dele. Aparentava trinta anos e parecia muito nervoso.
- Quero que nos conte o que sabe sobre o dia em que tentaram assassinar o rei e um homem foi morto na hora disse Justin.
John Robbins ficou tenso.
- Isso pertence ao passado. O duque está morto e a filha também deve estar.
Justin apertou o braço do homem.
- Não, ela está viva e precisa de ajuda.
John olhou ao redor, evidentemente apavorado.
- Homem, nós não vamos lhe fazer mal nenhum! - Justin assegurou. - Alguém o ameaçou?
- Sim! Ameaçaram me matar e matar toda a minha família. Minha mãe já é idosa e tenho quatro irmãs, lindas, jovens e inocentes. Não quero que nada lhes aconteça. - John encarou Justin. - Você disse que ela está viva. Está mesmo? Naquela tarde ela saiu correndo. Eu podia pegá-la, mas a deixei fugir. Foi o que pude fazer por ela.
- Por que fez isso?
- Eu não vi direito o que tinha acontecido, pois estava a certa distância do rei. Achei que a pobre moça não devia ser capturada. Quando tentei refletir sobre o incidente, um homem me procurou e exigiu que eu testemunhasse o que tinha visto.
- Que homem? William Deauveau?
- Não. O filho dele, Raul. Tinha as mãos sujas de sangue e foi me ameaçando. Disse que sabia onde minha mãe morava, que eu tinha irmãs... Mesmo que eu não fosse ameaçado, pouca coisa poderia fazer. O duque estava morto e a filha havia fugido. Eu não tinha certeza de nada. O que aconteceu foi rápido demais. Parecia um truque de mágica. Não havia espada nenhuma. De repente lá estava a arma suja de sangue e o duque morto. Os Deauveau, zangados, procuravam a filha do duque e falavam em traição.
- Não tenha medo, Robbins - disse Clinton. - O próprio rei está ansioso para que a moça seja inocentada e recupere o que lhe pertence.
- Como posso confiar em vocês? Como posso saber se a moça vive e se vocês têm o rei do seu lado?
- Meu irmão é o conde de North Lambria - declarou Justin.
- O grande paladino do rei - John murmurou.
- Sim. Ele é o marido da filha do duque. No momento está trabalhando para Deauveau como ferreiro. Foi o modo que encontrou de proteger a esposa. Sou Justin Chatham e este é meu primo, Clinton Chatham.
- Os Chatham! - alguém exclamou.
Justin reconheceu a voz e virou-se, irritado.
- Lady Anne.
- Que prazer vê-los aqui.
Ela aproximou-se e John Robbins fugiu apressado, empurrando tudo o que estivesse no seu caminho. Justin ignorou Anne e correu atrás do homem, mas ao chegar à rua ele havia desaparecido.
Sem ter alternativa, ele voltou para a mesa maldizendo Anne. A mulher era mesmo um espinho na sua carne. O que estaria fazendo naquele lugar? E tinha de aparecer justamente quando John Robbins começava a confiar neles? Agora teriam de perder longas horas procurando o ex-guarda para convencê-lo a ajudá-los.
- Justin, que falta de elegância, sair correndo daquele jeito assim que eu cheguei! - Anne falou suavemente.
- Você nos interrompeu, Anne - Justin respondeu secamente.
- Peço-lhe desculpas. Diga-me, Justin, quem era aquele homem?
- Anne, como eu estava lhe dizendo, roubaram um de nossos cavalos e aquele homem ia nos dar informações sobre o ladrão - Clinton falou com impaciência.
- Você ouviu. Está satisfeita? - tomou Justin.
- Anne... Lady Anne! O que faz numa espelunca como esta?
Anne deu de ombros.
- Cansei-me do tédio e do protocolo da corte. É excitante ver como as classes baixas se divertem, não acha?
Justin olhou para ela por vários segundos. Anne chamava a atenção. Era linda, sensual, atrevida, fazia ferver o sangue de um homem. Mas sua beleza não se comparava à da cunhada. Ondine tinha classe, mistério. Havia em Ondine uma paixão que faltava em Anne: o amor de Ondine era profundo e ela só era capaz de amar o homem a quem honrasse. E honraria para sempre. Apesar da excitação que Anne podia causar, seu amor era tempestuoso, mas efêmero. Labaredas que se consumiam, tomando cinzas. Ela não sabia ser fiel e não conhecia o sentido verdadeiro de honra. Ele decidiu provocá-la. Quem sabe ela iria embora logo. Indagou com um largo sorriso:
- Diga-me, Anne, você veio até aqui apenas para "ver" os outros?
- Por que a pergunta?
- Curiosidade apenas.
- Lady Sarah também veio até aqui.
- De braços com meu primo Clinton.
- Ah, belos braços, por sinal. Sabe, Clinton, acho você um belo espécime! Forte, musculoso. Ah, linda Sarah, você soube escolher. Mas não se engane, querida, seu pai, o conde, não aprovará Clinton. Ele é um Chatham pelo ramo bastardo. Pobre Sarah, não haverá casamento. Mas concordo num ponto: em matéria de luxúria, você não encontrará amante mais ardoroso.
Justin prendeu a respiração. Clinton teve vontade de torcer o pescoço de Anne. Ia dar-lhe uma resposta, mas Sarah não era nenhuma ratinha assustada.
- Ah, querida Anne, o que você disse sobre Clinton é verdade. Enganou-se ao afirmar que meu pai não aprovará o casamento. Clinton é um Chatham, uma das famílias mais antigas da Inglaterra; é nobre de sangue e de caráter!
- Bravo! - Anne aplaudiu. Deu o assunto por encerrado e voltou-se para Justin. - Por onde anda seu irmão, o grande conde de North Lambria? E a linda esposa, naturalmente?
- Eles são jovens, estão apaixonados e se isolaram para viver o grande amor que sentem um pelo outro. Não disseram a ninguém para onde iam.
- Que romântico! - Anne deu um sorriso tenso. - Preciso ir. - Eu soube que você e seu primo têm oferecido grandes jantares e festas animadas. Espero que me convidem.
- Com o maior prazer, Anne - disse Clinton, abraçado a Sarah. - Isto é, se você puder suportar a companhia de um bastardo.
- Não seja tolo, Clinton! Acho os bastardos adoráveis. Assim que ela se foi, Clinton comentou:
- Essa mulher causou-nos uma grande perda esta noite.
- Temos de encontrar Robbins e levá-lo até o rei - disse Justin, preocupado. - O tempo está contra nós. Receio que Warwick veja a esposa com aquele primo odioso e cometa uma loucura.
- Encontrarei John e ele marcará novo encontro - Sarah afirmou. - Agora vamos sair deste lugar horrível.
Em vez de sair da cervejaria, Anne foi ao reservado nos fundos do prédio, onde Hardgrave jogava dados com o dono do estabelecimento, enquanto esperava por ela.
- Vamos embora imediatamente - disse ela. Curvando-se, sussurrou algo ao ouvido dele. Embora relutante, ele levantou-se. Quando estavam na carruagem, Anne falou muito excitada:
- Lyle! Juntando o que ouvi esta noite ao que eu já sabia sobre Ondine, creio que descobri tudo sobre ela. E nós pensando que ela era plebéia! Imagine, ela apareceu nas nossas vidas naquele dia da sua justa com Warwick. A moça que saiu correndo. O círculo se completa, percebe? Você terá sua grande vingança tirando Ondine de Warwick, e ele será todo meu! Lyle, esta nossa associação, por fim dará frutos! Mas temos de planejar tudo com muito cuidado.
- Sua última idéia quase me mandou para a Torre.
- Agora é diferente. Acho que temos ótimos cúmplices. - Que cúmplices?
- Pense um pouco, homem! Não se lembra do que aconteceu naquele dia?
- Só me lembro do ódio que senti por ter sido derrotado. Depois eu soube que tinha havido um atentado contra a vida do rei.
- Pois bem, naquele dia, o duque de Rochester foi morto, acusado de traição contra a pessoa do rei. Nesse mesmo dia Genevieve morreu. Lembro-me muito bem disso. Ondine, a filha do duque, fugiu e a propriedade da família passou para as mãos de um parente. Um tio, eu acho. Recentemente, Ondine deixou Warwick e voltou para sua casa. Com o aparecimento da legítima herdeira, o tio será obrigado a entregar a propriedade para ela. Por isso, ele está pressionando o filho para se casar com Ondine, mesmo sem saber por onde ela andou. É aí que entramos com nosso plano.
- Você quer dizer... matá-la?
- Não. Prometeremos ao tio que ela será levada para fora do país e nunca mais aparecerá. Você ficará com ela até não a desejar mais. Então, sim, pode-se dar um jeito de ela desaparecer para sempre.
- Não dará certo.
- O que há? Você é um covarde? Está com medo de Warwick? - Anne perguntou.
Hardgrave ficou rígido e cerrou os punhos. Anne soube que havia mexido com os brios do visconde.
- Ora, vamos logo para bem perto desse lugar - ele falou impetuosamente. - Então mandaremos uma mensagem ao tal homem dizendo que... temos interesses em comum.
- É assim que se fala! - Anne exclamou, exultante.

Capítulo XV

O som de vozes despertou Ondine. Ela ainda estava embriagada de felicidade depois da noite de amor e demorou alguns segundos para perceber que o tio e Raul discutiam acaloradamente no andar de baixo. O som diminuiu e ela virou para o lado, relutando em levantar-se.
- Duquesa, acorde - a criada chamou-a. - Seu tio exige a sua presença na sala matinal.
- Estou acordada, Berta - Ondine respondeu e saiu da cama.
Lavou o rosto e esperou com impaciência que Berta lhe arrumasse os cabelos. Quando desceu, ficou surpresa ao ver William e Raul de pé, a um canto da sala, ignorando as travessas fumegantes que esperavam por eles no aparador. Ao lado, estava Berault, homem alto e forte, com cara de imbecil, que substitua Jem, esperando para começar a servir o desjejum.
- Até que enfim, querida sobrinha, você decidiu descer! - William exclamou, os olhos injetados.
- Estou atrasada? - Ondine indagou docemente e olhou para Raul. Ele desviou o olhar.
William ordenou a Berault que se retirasse. Ondine ficou apreensiva. Teve certeza de que o tio descobrira alguma coisa. Enfrentou-o.
- O senhor se queixa do meu atraso, mas parece que nenhum dos dois tomou o desjejum. Além disso, por que me olha desse jeito? Há alguma coisa estranha em mim?
- Estranha? Não. Você continua a criatura doce de sempre e pura como a neve. - O tio falou com sarcasmo. Sentou-se diante de Ondine e encarou-a. - Contudo, parece cansada e está com olheiras. Tem certeza de que não veio para cá com alguma doença?
- Estou perfeitamente bem, sir. Só não entendo o porquê da sua preocupação com a minha saúde. Sei que, por sua vontade, eu estaria morta.
- Você é muito nova, querida sobrinha, para deixar esta vida de modo natural.
- Correto, meu tio. Saiba que não tenho a menor intenção de facilitar as coisas para o senhor. E, como Deus sabe o que é meu por direito, tem me protegido. Pretendo continuar tendo saúde excelente.
- Saúde. Voltamos a esse assunto. Você é jovem, está noiva de meu filho, é natural que eu me preocupe. Se você não morrer, fará parte da minha família, para o prazer de Raul, não para o meu. Mas não se alegre antes da hora. Estou empenhado em descobrir tudo que você fez e por onde andou nesse tempo em que esteve desaparecida. Você pode enganar Raul, mas não me engana.
Ondine sentiu o sangue gelar. Será que o tio descobrira que Warwick havia estado em seu quarto?
Berault entrou na sala e William vociferou:
- Não o chamei! Você sabe que não tolero ser interrompido!
- O rei, sir - o criado falou depressa.
- O rei? - William repetiu, perplexo.
- Sim, com um cortejo de pelo menos doze. Não estamos preparados.
Ondine ficou aliviada. Lembrando-se de que devia ter medo de se defrontar com Charles, fingiu estar apavorada. - Meu Deus! Sua Majestade não pode me ver!
- Não seja tola e aja com naturalidade.
William dirigiu-se de novo a Berault e deu-lhe inúmeras ordens. Assim que o criado saiu, voltou-se para a sobrinha, agarrou-a pelos cabelos e arrastou-a pelo corredor, falando por entre os dentes:
- Não a denunciei, mas não ouse pronunciar uma palavra ou fazer alguma coisa contra mim. Se me trair, apresentarei a Sua Majestade as provas que tenho em meu poder. Posso cair, mas você irá comigo.
Ele só a soltou quando estavam na frente da casa esperando por Sua Majestade. Raul, que os seguira, postou-se do lado do pai.
Ondine respirou aliviada quando viu o marido entre os cavalariços, tomando conta da montaria de um dos guardas. Assim que o rei desceu da carruagem, ela fez uma mesura completa diante dele.
- Majestade!
- Duquesa, é um prazer ver novamente seu lindo rosto disse Charles alegremente, beijando as faces de Ondine. Você não devia ter fugido. Não houve provas de sua cumplicidade. É muito bom saber que está de volta à sua casa.
- Obrigada, sire - ela murmurou, tentando não rir ao ver a perfeita representação de Charles.
- William, Raul, é um prazer vê-los também.
- Majestade, sua visita nos honra - disse William. - Seja bem-vindo a esta humilde casa.
- Humilde! - Charles riu. - Ora, Deauveau Place mais parece um palácio. A propriedade é uma das mais belas do país. Afirmo que a fortuna de Rochester é maior do que a minha fortuna pessoal.
- Entre, Majestade - Ondine convidou o rei. - Será um grande prazer servi-lo.
- Sim, sim. Fizemos uma parada apenas para descanso. Ah, perdão, minhas botas estão sujas. - Charles olhou ao redor. Viu Warwick e acenou-lhe. - Você, rapaz alto de ombros fortes. Venha cá!
Warwick logo entendeu que Charles pretendia fazer uma das suas. Deixou com um ajudante as rédeas do cavalo que segurava e, aproximando-se do rei, ajoelhou-se.
- Belo homem para um ferreiro, Deauveau. Perfeito para o serviço. Está contente com o emprego, rapaz?
- Sim, Majestade.
- Limpe minhas botas enquanto está de joelhos, bom homem.
- Sim, Majestade.
Ondine desviou o olhar para não rir. Sabia que o rei estava apreciando o momento. O grande Warwick Chatham de joelhos, limpando suas botas.
- Obrigado, rapaz. Boa sorte para você - Charles agradeceu.
Passou pelo amigo, ofereceu o braço a Ondine e entrou com ela na casa. Enquanto andavam, segredou-lhe:
- Não resisti. Ferreiro, hem?
- Vossa Majestade sabia que ele tinha vindo para cá?
- Quando você desapareceu, ele me procurou, desesperado. Contei-lhe a verdade sobre você. Está zangada por eu ter traído sua confiança?
- Que Deus o abençoe por isso, sire.
- Descobriu alguma coisa?
Ondine não pôde continuar. William juntou-se a eles.
- Ficou sabendo que meu filho e a duquesa vão se casar?
- Sim, ouvi alguma coisa sobre esse casamento, Deauveau.
- Eles chegaram à sala. - Interrompi o desjejum de vocês. Sento-me à mesa para lhes fazer companhia.
Berault serviu-os. O rei aceitou chá apenas e continuou a conversar.
- Não guardo ressentimento pelo ato de seu pai. Ele devia estar perturbado. Eu também sabia, no fundo do coração, que você seria incapaz de conspirar contra mim. E aqui estou presenciando a harmonia que reina nesta casa. Tranqüiliza-me saber que estes dois homens, que são sua família, a querem bem e nada têm contra você.
- Nem imagina tomo lamentei o ataque de loucura de meu irmão - disse William. - Levantar a espada contra Vossa Majestade! Aquele foi o dia mais triste de minha vida. Mas tentamos esquecer o passado.
- Fazem bem. - Charles tirou uma pequena faca do bolso. - Lembrei-me de que esta faca está sem corte. Raul Deauveau, chame o ferreiro. Ele fará um belo trabalho nesta faca.
Raul saiu e quando voltou, Warwick estava nos seus calcanhares.
- De que me serve uma faca sem corte, hein? Deixe-a bem afiada. - Charles foi tirar a faca da bainha, mas deixou-a cair no chão. - Meus dedos estão adormecidos por causa do frio.
- Eu pego a faca, sire - tomou Warwick, ajoelhando-se perto de Ondine.
Para deixá-los sozinhos, o rei levantou-se e foi até a janela, demonstrando interesse pela propriedade: William e Raul foram imediatamente para o lado dele ansiosos para responder a todas as perguntas que ele lhes fazia.
- Encontrou o mata-borrão? - Ondine quis saber. - Podemos entregá-lo a Charles.
- Não. Não havia nada na escrivaninha quando estive lá.
Charles voltou.
- Levante-se, homem. Agora vá. Dentro de minutos irei até sua oficina. Aproveito para ver um pouco da propriedade. Minha capa!
Ele jogou a capa sobre os ombros e caminhou para a porta. William e Raul se entreolharam e correram para o lado dele.
Ondine permaneceu no seu lugar, pensativa. O mata-borrão desaparecera. Talvez Warwick estivesse certo. Eles deviam sair dali. No mesmo instante endireitou os ombros. Correndo perigo ou não, permaneceria em Deauveau Place. A casa era sua. A justiça haveria de prevalecer.

Charles entrou na ferraria e fechou a porta, mesmo sabendo que William e Raul o haviam seguido. Os dois não ousariam intrometer-se.
Warwick olhou para o amigo decidido a não se ajoelhar de novo, por mais que honrasse seu rei. Sorriu, entregou-lhe a faca dentro da bainha e curvou-se.
- Majestade, espero que esteja afiada a seu gosto.
- Afiada como sua língua! - Charles devolveu, e ficou sério. - Não podemos perder tempo. Diga-me, o que está acontecendo aqui?
- Ondine tinha encontrado algo que a inocentava, mas a evidência desapareceu. Charles, não temos esperança de encontrar os tais documentos falsos. Mas Ondine é orgulhosa demais para desistir. Dei-lhe três dias. Se nada for descoberto, a levarei embora. Iremos para outro país se for preciso. Esses dois são extremamente perigosos. Traiçoeiros. Já nos arriscamos demais. Meu Deus, quantas vezes ela terá de burlar a morte? .
-Meu amigo, foi por isso que vim até aqui. Depois desta minha visita os dois pensarão duas vezes antes de fazer algum mal a Ondine. Mas concordo com você. Não fiquem aqui além dos três dias. É melhor perder as terras do que a vida.
- Obrigado por acreditar em Ondine e por seu cuidado, Charles.
- Amigo, você salvou minha vida, lembra-se? E os Chatham sempre permaneceram leais. Compreendo muito bem o que Ondine está sentindo. Meu pai também foi acusado de traição e pagou com a vida.
Os dois se abraçaram e o rei saiu da oficina. Warwick voltou para a forja. Precisava manter as mãos ocupadas enquanto na mente persistiam as preocupações e o caos.
O rei e sua comitiva haviam partido e Warwick esperava o ferro fundir-se quando ouviu William e Raul conversando no abrigo do lado da oficina.
- Mesmo que seja apenas suposição, filho, você ainda a quer?
- Quero. O senhor não devia confiar tanto na palavra daquela criada grosseira.
- Berta é experiente. Ela não se enganaria. Sua querida virgem está grávida.
Warwick ficou gelado, o coração quase parou de bater. Como Ondine tivera coragem de deixá-lo, de fugir de Chatham, se esperava um filho dele? Seu herdeiro! Como podia deixar-se envolver naquele jogo perigoso, arriscando além da sua, uma outra vida?
- Eu sabia que ela não era virgem, pai. Ela me contou a verdade. Eu não sabia da criança, creio que nem ela sabia. Mas será fácil nos livrarmos do bebê.
- Você acha que ela poderá gostar de você e irá servi-lo, depois que você matar sua cria? - William indagou com escárnio.
- Qual é o problema? Já matamos o pai dela.
- Não estou disposto a esperar. Temos de nos livrar dela o quanto antes.
- Não! O rei suspeitaria. Além disso, pai, eu a quero! Ela será minha!
- Tolo! Todo o seu talento está dentro das calças. Enfim, se está decidido a tornar sua vida um inferno, case-se com a vadia.
- É o que eu mais quero.
- Bem, filho, está avisado. Fique com a sua viúva-negra todinha para si esta noite. Recebi uma mensagem de uma pessoa e vou encontrar-me com ela.
Warwick não ouviu mais nada porque pai e filho se afastaram. Estava vermelho de ódio e só mesmo seu autocontrole e o bom senso o impediram de matar os dois naquele instante.
Ainda bem que não agira impensadamente. Iria enfrentar os usurpadores com inteligência e coragem. Por Ondine, por seu filho, por si próprio. Os dois teriam de morrer, numa luta limpa, pelas mãos dele.

Sentado num banco nos fundos da taberna White Feather, Jake tomava sossegado sua cerveja, olhos bem abertos, ouvidos atentos. Ele sorriu para Molly que se aproximava, trazendo-lhe um prato de carne de caça com molho farto e um bom pedaço ' de pão quentinho.
- Ah, você é uma garota e tanto! - disse Jake, colocando entre os adoráveis seios de Molly a moeda pelo pagamento da comida.
- Coma enquanto está quente, sir. E cuidado com essa mão atrevida - tornou ela, corando como uma adolescente e, ao mesmo tempo, batendo de leve na mão de Jake.
Estava havendo entre os dois mais do que amizade. Ele a conquistara com sua simpatia, seu coração magnânimo e sua vivacidade. Ela parecia não se importar com o rosto de gnomo do criado.
- Que delícia! - Jake exclamou. - Ninguém sabe preparar um assado melhor do que você, linda Molly!
- E não existe maior lisonjeador que você. - Ela inclinou-se e beijou o rosto de Jake.
Subitamente ele ficou tenso. Anne acabava de entrar na taberna e com ela entrara uma rajada de vento gelado. Alguém reclamou por causa do frio e gritou para fecharem a porta.
Um grande vulto apareceu atrás dela, silenciando os gritos com sua simples presença. Seu tamanho e sua força evidenciavam que ali estava um homem perigoso, acostumado a usar a pistola e a espada.
- Hardgrave - Jake murmurou. Segurou Molly e deu-lhe um beijo na boca.
- Ora, Jake... - ela começou.
- Molly, fique quietinha e ouça - ele pediu com urgência, seus lábios pertinho dos dela. - Você me ama, mesmo que seja só um pouquinho? Preciso de sua ajuda.
- Sim, Jake. O que você quer?
- Sirva aqueles dois que chegaram. A lady e o cavalheiro. Ouça tudo o que eles disserem.
Nesse instante Hardgrave gritou:
- Ei! Há alguém para nos atender?
Molly olhou na direção de onde viera o grito.
- Que insolente! O homem nem se sentou.
- Vá, Molly. E não fale nada sobre mim. Eles não podem me ver.
Molly aproximou-se da mesa dos recém-chegados.
- Que vinho você tem para nos servir? - Hardgrave perguntou.
- Nenhum esta noite. Temos cerveja.
- Traga a melhor. Não quero lavagem para porcos.
- Certamente. A melhor, sir. E para comer? Temos carne de caça.
-Traga-nos a caça também.
- Para mim, só a cerveja. Dispenso a carne - disse Anne. Molly afastou-se. Anne riu ao ver o descontentamento de Hardgrave.
- O que você esperava encontrar num lugar como este?
Uma lista das especialidades dos vinhedos da França?
- Devíamos ter jantado em Londres.
- Como pode pensar em comida numa hora destas? - tornou Anne, impaciente.
Molly voltou com os canecos de cerveja, um pão acabado de assar e afastou-se depressa para buscar a carne. Quando trouxe o prato com o assado, colocou-o na mesa e ficou ali perto.
- O que está esperando, se já nos serviu? - indagou Hardgrave rispidamente.
- Só quero saber se precisam de mais alguma coisa, milorde.
- Não precisamos. Suma.
Molly foi depressa para a cozinha. Pouco depois estava de volta com um caneco de cerveja para Jake, embora ele não tivesse pedido cerveja nenhuma.
- Eles não querem que eu fique por perto, Jake.
- Não tem importância. Consigo ouvir alguma coisa, desde que eles não sussurrem. Volte para seu trabalho, amor.
Jake acompanhou Molly com o olhar, mas seu pensamento estava nos dois sentados à mesa, atrás da sua. O que estariam Anne e Hardgrave fazendo naquele lugar? Eles não tinham vindo até ali casualmente. Deviam ter algum plano em mente e coisa boa não podia ser. Sobressaltou-se pouco depois, quando ouviu Anne dizer:
- Não demore, Lyle! Quero estar sozinha quando Deauveau chegar!
- Por que não posso ficar com você?
- Eu o conheço, Lyle. Você costuma perder a paciência e se isso acontecer, acabará estragando tudo. Eu mandei a mensagem e Deauveau espera encontrar uma mulher, não um casal. Além disso, ele é homem e sei lidar com homens.
Hardgrave resmungou algo que Jake não ouviu. A menção do nome Deauveau foi bastante para lhe gelar o sangue. Deauveau, o tio ou o primo de Ondine, havia marcado um encontro com aquela dupla nem um pouco confiável. Isso significava problema ou, pior ainda, completo desastre.
Hardgrave ficou de pé, zangado.
- Vou esperar lá fora. O ar frio me fará bem.
- Por que essa fúria, Lyle? Pelo sucesso do nosso plano é importante que Deauveau não o veja comigo - Anne ponderou. - Deixe-me sondá-lo primeiro.
Hardgrave não respondeu e saiu pisando duro. Anne permaneceu sentada à mesa, tomando sua cerveja. O modo como batia a ponta da bota no chão denunciava sua impaciência.
Jake esperou mais impaciente do que ela. Parecia que o tempo havia parado.
Finalmente, a porta se abriu e um cavalheiro alto, magro, de meia-idade entrou no salão. Via-se, pelo traje fino e pelo porte, que era um aristocrata. Para Deauveau também não foi difícil localizar Anne entre aquela gente rude.
- Você é a lady que me mandou a mensagem? - perguntou, tendo se aproximado de Anne.
- Sou.
- Como posso confiar em você?
- Eu lhe direi. Sente-se.
- Quem é você?
- Prefiro não mencionar meu nome. Vou lhe dizer o que sei, depois você decidirá se quer ou não ouvir minha proposta.
- Diga.
- Você é irmão de criação do falecido duque de Rochester. As terras do duque pertencem por direito à filha dele, sua sobrinha, mas você não pretende devolvê-las. Quer que seu filho se case com a herdeira. Mas o tolo não sabe quem é a noiva...
- Aonde quer chegar?
- Quero dizer que a duquesa não é nenhuma inocente. Seu passado...
Com um movimento repentino, William agarrou o pulso de Anne e apertou-o.
- Isto é uma chantagem?
Anne pareceu surpresa, depois riu.
- Chantagem, sir? O que é isso! Quero oferecer-lhe uma considerável soma. Como eu mencionei na mensagem, creio que temos interesses comuns. Eu sei que você adoraria tirar sua sobrinha do caminho. O mesmo acontece comigo. Se ela desaparecer, você passará a ser legalmente, dono de tudo o que é dela. E, o melhor em tudo isso, é que você não terá de suportar a nora, como um espinho em sua carne.
- Quero detalhes.
- Um amigo meu está apaixonado pela duquesa. Ele pagará um bom preço para ficar com ela.
- Não. Ela é esperta o bastante para fugir dele e reaparecer.
- Meu amigo a levará para a França e quando se cansar dela poderá... digamos... fazer um outro negócio. Como, por exemplo, passá-la para outro.
- Ela continuará viva.
- Mas não será mais a duquesa, tampouco uma lady. A idéia é vendê-la a algum sultão do Marrocos. - Notando a hesitação de Deauveau, Anne colocou uma bolsa de couro sobre a mesa. - Moedas de ouro. Toque-as. Sinta o peso. Conte-as se quiser.
- Qual o seu interesse nisto?
- Lucrarei muito, mas não se trata de dinheiro.
- Qual é seu plano?
- Amanhã, enquanto vocês estiverem jantando, meu amigo e eu iremos até Deauveau Place numa carruagem fechada. Dentro da bolsa você encontrará um vidrinho com sonífero, que deverá ser colocado na bebida de sua sobrinha. Em seguida, retire-a depressa da sala. Então a levaremos para a carruagem. O resto será por nossa conta.
- Como explicarei ao rei sua morte, seu desaparecimento?
- Facilmente. Você deve ter um criado ou criada em quem possa confiar. Essa pessoa usará roupas de sua sobrinha, fazendo-se passar por ela. Pode ser uma capa com capuz. Pela manhã, faça de conta que vai sair de carruagem com ela. Depois, finja que foram atacados por bandidos. Bastará fazer uma gritaria e aparecer descabelado para todos acreditarem que raptaram a duquesa. Depois, em Londres, meu amigo e eu daremos um jeito de fazer aparecer um corpo que será identificado como sendo o da duquesa de Rochester. Tudo perfeito.
- Nem tanto. E meu filho? Ele está ansioso para que o casamento se realize.
- Tire-o de casa. Encarregue-o de cuidar de negócios. Ele nunca saberá a verdade.
Deauveau ficou pensativo.
- Parece viável - murmurou.
- É um plano perfeito. Ah, afaste aquele ferreiro durante a noite.
- Por quê? Você o conhece?
- Não. Sei apenas que é um bruto e pode ser perigoso. Decida, sir. Quer livrar-se da moça ou não? Se fizer exatamente o que eu disse, ninguém o culpará de nada.
Deauveau pegou a bolsa. Antes de sair falou em tom severo: - Madame, se este plano falhar e houver suspeitas sobre mim, esteja certa de que a encontrarei e você pagará com a vida.
- Vai dar certo. Estou muito mais interessada no sucesso deste plano do que você.
Jake viu Deauveau caminhar para a porta e quis levantar-se também. Precisava mandar uma mensagem urgente para Warwick. Porém, se saísse daquele lugar, Anne iria vê-lo. Tinha de esperar que Hardgrave voltasse para buscar Anne.
Novamente o tempo se arrastou. Por fim, o visconde apareceu.
- E então? Ele concordou?
- Sim.
- Vamos sair daqui.
Jake respirou aliviado. Ia levantar-se para procurar Molly na cozinha, pois ela não estava no salão, quando a viu entrar pela porta da frente, tremendo de frio e esfregando as mãos.
Ela sentou-se do lado dele e foi falando antes que ele abrisse a boca:
- Eu estava na cozinha e vi aquele lorde arrogante esperando lá fora. Ele andou de um lado para outro, parecia ter alguma coisa em mente. Fiquei só observando. Depois de uns minutos saí pela porta dos fundos e me escondi perto da cerca. Quando Deauveau saiu da taberna e foi pegar seu cavalo, o lorde aproximou-se. Deauveau não quis ouvi-lo, mas o homem foi insistente. Começou a falar sobre aquele seu amigo que estava procurando emprego. Sei que ele não é e nunca foi ferreiro.
- Warwick!
- Você não confiou em mim, Jake! Agora vai ter de confiar. Precisa da minha ajuda, não é mesmo?
- Entenda, Molly, tínhamos de guardar segredo. Vamos, conte-me o que você ouviu.
- O tal lorde apresentou-se a Deauveau dizendo que era o amigo da lady com quem ele havia conversado na taberna. Disse também que o ferreiro que estava trabalhando em Deauveau Place, era amante da duquesa. Deauveau encheu-se de ódio e disse que ia matar o miserável. O lorde pediu-lhe para não fazer isso, pois ele mesmo queria ter o prazer de matá-lo. Essa era uma vingança pela qual ele esperava há muito, muito tempo. Entregou alguma coisa a Deauveau e disse que devia usar aquilo para drogar o ferreiro na noite seguinte. O efeito seria imediato.
Jake abraçou Molly e deu-lhe um sonoro beijo.
- Molly, você é uma em um milhão. Adoro você! Tenho de me comunicar com Warwick imediatamente. Mas, como?
- Minha irmã é nora de Jem, o velho mordomo do duque. Ela fez uma manta de crochê para o sogro, e o filho dela poderá levar o presente para o avô com seu bilhete. Jem entregará o bilhete para o ferreiro. Ele é o maior amigo da duquesa naquela casa.
- Então me arranje uma pena, Molly! Você será muito bem recompensada. Warwick é um dos melhores amigos do rei.
- Não estou interessada em recompensa. O que estou fazendo é por amor.

Deitado no seu catre, no alojamento dos empregados, Warwick esperava o tempo passar para ir até Ondine. Só de pensar que ela havia deixado Chatham com um filho dele no ventre e viera para aquele covil de mentirosos, traidores e assassinos, tinha vontade de deitá-la sobre os joelhos e deixar bem vermelha certa parte de sua linda anatomia.
Levantou-se e vestiu a capa. Iria ver a esposa nesta noite, e no dia seguinte a levaria embora. Assim que a deixasse num lugar seguro, voltaria para fazer justiça e vingar-se.
Ele ouviu um ruído e ficou parado, atento. Alguém se aproximava. Segundos depois, bateram de leve na porta. Abriu-a, cauteloso. Um velho trêmulo estava parado no degrau.
- Entre, está frio. Fique perto do fogo.
O velho sentou-se numa cadeira, esfregou as mãos e, quando parou de bater os dentes, deu um envelope para Warwick.
- Meu nome é Jem, sir. Um homem chamado Jake mandou lhe entregar isto.
Surpreso e preocupado, Warwick abriu o envelope e leu:
Venha à taberna com urgência. Plano contra vocês. Não vá até Ondine esta noite!
- Quem trouxe esta mensagem? - ele perguntou ao velho enquanto lhe servia uma xícara de chá.
- Meu neto. Sua mãe é irmã de Molly, da White Feather.
- Você poderia levar uma mensagem para a duquesa? Veja bem, não quero que corra riscos...
- Sir, já percebi que você não é ferreiro. Se está aqui para ajudar a duquesa, não me importo de correr riscos. Estou disposto a tudo para impedir que minha lady se case com aquele traidor miserável.
- Meu bom homem! Diga à duquesa para vir até aqui amanhã pela manhã, antes do meio-dia. Insista. Diga que é urgente.
- Darei seu recado.
- Obrigado, Jem. Deus o abençoe. Se tudo correr bem, amanhã você poderá ver sua lady à hora que quiser.
- Vai levá-la daqui... amanhã?
- Sim.
- Louvado seja Deus! - Jem entregou-lhe a xícara e despediu-se.
Warwick acompanhou o velho até a porta. Depois, pegou a capa e saiu para selar seu cavalo. Não via a hora de falar com Jake para descobrir que plano estava sendo arquitetado contra ele e Ondine.

Capítulo XVI

Depois da partida do rei, Berault informou Ondine que seu tio e Raul passariam a tarde fora, cuidando de negócios.
Ela alegrou-se. A ausência dos dois era providencial. Iria dar uma busca nos aposentos do primo.
Estava no quarto de vestir, revistando o guarda-roupa, quando Raul a surpreendeu.
- O que faz aqui, Ondine? Não acredito que esteja interessada nas minhas calças e ceroulas.
- Eu... bem - ela gaguejou, em pânico -, eu só quis ver seus aposentos.
- Duquesa, quis ver o quê, exatamente? - Raul indagou, tenso.
Ondine controlou-se. Tinha de arranjar um pretexto convincente.
- Vamos nos casar em breve e pensei em sugerir que ocupássemos os meus aposentos. Depois achei que talvez você preferisse que eu me mudasse para este. Então decidi fazer uma comparação entre os dois. Abri o guarda-roupa para ver se havia espaço suficiente para meus vestidos e fiquei abismada com a desordem!
Raul ficou em silêncio durante o que pareceu a Ondine uma agonizante eternidade. Por fim, ele beijou-a na testa.
- Não sou muito ordeiro. Quando nos casarmos terei uma esposa para cuidar de mim.
- Claro. Uma esposa dedicada cuida do marido.
- Agora, vá. Nos veremos à noite. Meu pai tem um compromisso e não jantará conosco.
- É muito bom saber que ficaremos sozinhos!
Dizendo isso, Ondine foi para seu quarto, pensativa. Ainda não conseguira descobrir o que havia deixado o tio tão furioso nessa manhã. Alguma coisa muito séria devia ter acontecido. E tinha a ver com ela. A ausência do tio não podia ser mais oportuna.
Durante o jantar iria conversar com Raul.

- Está encantadora, meu amor! - Raul elogiou Ondine quando ela entrou na sala.
Ela odiou a expressão de cobiça nos olhos dele. Mas agradeceu com um sorriso e sentou-se à mesa. Raul ocupou o lugar do pai.
Quando Berault foi ao aparador onde estavam as travessas com a comida, Ondine inclinou-se para Raul e sussurrou-lhe:
- Não podemos dispensar o criado depois que ele nos servir? Assim teremos privacidade.
Raul olhou para ela de modo curioso, depois movimentou a cabeça em sinal de assentimento. Esperou que fossem servidos e disse a Berault:
- Pode ir. Está dispensado.
O grandalhão hesitou. Raul ergueu a voz.
- Eu já disse que pode ir!
Berault não teve escolha. Saiu da sala, fechando a porta.
Raul voltou-se para Ondine.
- O que há?
Ela empurrou o prato para o lado.
- Por que seu pai estava tão zangado esta manhã? Acordei com seus gritos. Depois ele me interrogou e quase me arrancou os cabelos. Por que você permite que ele aja assim? Raul, o duque será você, não seu pai! E por que não me defendeu?
- Ê difícil defendê-la, querida noiva, uma vez que meu pai tem razão de estar furioso. Você mentiu para mim.
- Menti? Eu lhe disse que era casada.
- O que deixou meu pai furioso foi descobrir que você está grávida.
Ondine ficou lívida. Não estava preparada para aquele golpe. Como William descobrira? Ela não havia engordado, não havia sinais... Berta! Claro! A "vaca gigante" havia percebido uma ligeira mudança no seu corpo e a denunciara a William.
- Acredito que meu pai queira matá-la - Raul opinou. Mas eu continuo leal. Quero você e estou disposto a reconhecer a criança.
Ondine encarou-o e viu a frieza nos seus olhos. Ele não era melhor que o pai. Sentia desejo por ela e queria tornar-se duque; Apenas isso. Ele daria um jeito de matar a criança assim que nascesse.
- Então você está disposto a reconhecer como seu o filho de um camponês. Estou impressionada. E agradecida, naturalmente.
- Prepare-se para suportar os insultos de meu pai. Ele pode ser brutal, mas estarei do seu lado. Farei tudo para ter você e conseguirei o que eu quero. Meu pai tem de ceder - Raul falou com ímpeto e segurou a mão de Ondine.
Ela puxou a mão e afastou a cadeira.
- Raul, estou aborrecida e...
- Temos a noite toda só para nós!
- Estou mal. Por favor, perdoe-me. Em breve nos casaremos e estaremos sempre juntos. Mas esta noite preciso descansar. Com licença.
Ela levantou-se e deixou a sala. Sentia-se extremamente infeliz, zonza e amedrontada. Chegando a seu quarto começou a andar de um lado para outro, pensando em William. Nada lhe tirava da cabeça que ele planejava livrar-se dela.
Warwick estava certo. Eles tinham de sair dali com urgência. Que tolice a sua! Estava arriscando sua vida, a do bebê e a de Warwick. Quando ele viesse vê-la, iria contar-lhe sobre a criança e ambos fugiriam nessa noite mesmo.
Ela despiu-se e entrou debaixo das cobertas, esperando pelo marido. As horas passaram e ele não veio. Relembrava os momentos que haviam passado juntos, quando fortes batidas na porta tiraram-na de seu devaneio.
- Abra, Ondine!
- Já vou, tio William!
Ela vestiu depressa uma camisola, correu até a sala íntima e abriu a porta. O tio passou por ela como um doido e foi direto para o quarto. Ondine seguiu-o. Ele aproximou-se do fogo para aquecer as mãos e falou com ironia:
- Querida sobrinha, estive na cidade e voltei muito preocupado. Disseram-me que há um louco assassino rondando esta área. Ele entra nos quartos pela sacada e mata donzelas em seu leito. Quando ouvi essa história, vim depressa para cá. Esse demente pode muito bem subir pelo carvalho e entrar aqui pela sacada.
Ansiosa para livrar-se do tio, receando que Warwick aparecesse, Ondine não fez rodeios.
- Tio, estou ciente de que o senhor já sabe tudo a meu respeito e adoraria me ver morta. Talvez hesite em me matar por causa do rei. Portanto, aonde quer chegar com essa história sobre louco assassino?
William sentou-se numa poltrona.
- Ondine... Sim, já sei que você é uma vadia. Mas aquele meu filho idiota está apaixonado e tenho de fazer tudo ao meu alcance para que nada aconteça à noiva que ele escolheu. Por isso, aqui estou para protegê-la de qualquer louco ou demônio que tente escalar estas paredes.
Pálida e trêmula, Ondine afastou-se do tio. Ele ficou olhando para ela com um sorriso vitorioso nos lábios. O miserável não pretendia ir embora. E se Warwick chegasse? Deus! William o mataria na hora!
- Garota, você está branca como um fantasma. Vá para a cama.
Ondine não conseguia se mexer. Será que o tio suspeitava de Warwick? Não era possível..
- Vá para a cama - William repetiu.
Por fim, Ondine reagiu, tinha de fazer alguma coisa para salvar o marido.
- Tio, o senhor me assustou. Existe mesmo um assassino? - Ela foi depressa até a porta da sacada e abriu-a, rezando para ver Warwick lá embaixo e poder avisá-lo.
Não havia sinal dele. William correu até ela, puxou-a para dentro e fechou a porta.
- Não tenha medo. Vou dormir na poltrona.
Dormir. Se ele dormisse, Warwick estaria salvo. Ondine deitou-se e começou a rezar para o marido não aparecer. O crepitar do fogo, o barulho do vento, o farfalhar das folhas do carvalho eram uma tortura para seus nervos.

O tempo passou. Ela tentou permanecer acordada, mas cochilou. Acordou assustada com o canto de pássaros. Estava amanhecendo. Warwick não viera.
O que acontecera? Teria sido avisado que corria perigo? Ou teria sido descoberto e jazia morto em algum lugar?
Os primeiros raios do sol dispersaram as sombras da noite. Ondine levantou-se, ansiosa para saber o que o tio descobrira para ficar tão desconfiado e, principalmente para ter notícias de Warwick.
Certificando-se de que o tio dormia na poltrona, Ondine tirou do guarda-roupa seu vestido mais quente, o casaco de pele, com capuz e arrumou-se depressa. Tinha de sair antes de Berta aparecer e de o tio acordar.
Desceu a escada e parou ao ver Raul à porta da frente, dando ordens a um dos arrendatários. Felizmente, ele estava entretido, de costas, e ela decidiu sair da casa pela cozinha. Lá encontrou apenas umas das ajudantes e Jem o rosto do velho iluminou-se ao vê-la.
- Milady! Tenho uma mensagem urgente. O ferreiro pediu-me para avisá-la que deve encontrá-lo no alojamento antes do meio-dia...
- Duquesa, está aí! E com esse lindo casaco, como se fosse sair.
Berta! Deus, o que menos Ondine queria era ter aquela mulher espionando-a.
- Vou dar uma volta, Berta. - Ondine ergueu bem a cabeça. - Preciso de ar puro.
Mal Ondine se virou para sair, Berta agarrou-a pelo braço falou-lhe, sorridente:
- Sairá depois do desjejum. Seu tio quer vê-la imediatamente. Ele está muito aborrecido porque acordou e não a viu mais no quarto.
- Vou sair, agora - Ondine insistiu.
Berta continuou sorrindo.
- Berault!
O grandalhão apareceu atrás de Berta. Certa de que seria arrastada pelo criado, caso oferecesse resistência, Ondine resolveu ceder. Mais tarde daria um jeito de fugir. Sorriu para Jem a fim de tranqüilizá-lo e falou docemente:
- Ora, por que tudo isso? Sairei depois do desjejum. Berault? Quer me dar licença?
Ele afastou-se. Ondine foi para o hall. Raul, que estava de pé, do lado da lareira, surpreendeu-se ao vê-la entrando pelo corredor da cozinha.
- Onde esteve?
- Eu ia dar uma volta, mas parece que outras pessoas se acham no direito de controlar meus atos.
- O que há? - Raul indagou a Berta e Berault que seguiam Ondine.
Os dois ficaram em silêncio. William apareceu no hall e gritou:
- Ah, enfim a encontro, sua ingrata!
- O que está acontecendo, meu pai?
- Fui à cidade e fiquei sabendo que há um louco assassino na região. Por isso, decidi proteger sua noiva, meu filho, e passei a noite numa poltrona, mantendo guarda. Mas vi, pela manhã, que ela havia desaparecido. Berta, tire o casaco da duquesa. Ela não precisa dele dentro de casa.
- Eu só queria dar uma volta! - Ondine alegou. - Tio, o senhor é um mentiroso! E você, Raul, um idiota!
- Você está nervosa. Eu a levarei para dar uma volta assim que comermos - disse Raul.
- Filho, lamento, mas você não poderá levar sua noiva para um passeio. Daqui a pouco terá de ir a Framingham.
- Framingham! É tão longe! O que vou fazer lá?
- Irá encontrar-se com um mercador espanhol que trouxe as mais finas sedas do Oriente. Compre cortes de seda para sua noiva e também para você. O casamento está próximo.
- Sedas para um vestido! - Ondine exclamou, simulando alegria.
Se Raul partisse, ela teria mais chances de chegar ao alojamento e encontrar Warwick.
Raul olhou para o pai com desagrado.
- Não vou a Framingham. O mercador pode muito bem vir até aqui.
Berault começou a servir o desjejum. William sorriu complacente para o filho.
- Raul, você será um duque e terá de se vestir de acordo com sua posição. Essas núpcias serão um grande acontecimento! Como o mercador não virá para cá, você terá de ir até ele. Entende, filho?
- Pai, não conseguirei trazer tanta mercadoria.
- Leve um dos empregados com você.
Os olhos de Raul brilharam.
- Ondine poderá me acompanhar.
Ao ouvir isso, Ondine teve vontade de gritar. Mas foi William quem gritou:
- Ela ficará aqui! Você confia nela, mas eu não! Quando vocês se casarem, deixo-a por sua conta, se é que conseguirá controlar esta mulher. Até lá, eu cuido dela.
- Não tem importância, Raul. - Ondine deu um suspiro, fingindo estar resignada. - Atenda ao pedido de seu pai.
Raul resmungou alguma coisa e todos comeram em silêncio.
Quando terminou, William olhou para o filho, impaciente.
- Ande, rapaz! Vá arrumar suas coisas e ponha-se na estrada!
Murmurando uma praga, Raul levantou-se da mesa. Foi até Ondine, passou a mão nos cabelos dela e, inclinando-se, sussurrou-lhe ao ouvido:
- Apenas uma noite, meu amor. Você terá o vestido de noiva mais lindo que já se viu.
- Obrigada - ela murmurou. Suportou até o beijo que ele lhe deu no rosto, pois essa era a última vez que ele a tocava.
Esperou que Raul deixasse a sala, em seguida bocejou.
- Sinto-me sonolenta. Preciso andar um pouco para despertar .
William segurou o pulso dela com força.
- Não, querida sobrinha, você não vai a lugar nenhum. Sei muito bem que você quer fugir com seu amante. Tenho outros planos para você. Vá para seu quarto.
Berault, que estava atrás de Ondine, segurou-a e arrastou-a na direção da porta. Ela berrou, esperneou e, ao passar pelo tio que continuava sentado, conseguiu arranhar-lhe o rosto. O criado cobriu-lhe a boca com a mão enorme, quase a sufocando.
- Não a machuque nem deixe nela nenhum sinal! - William ordenou. - Prometi entregá-la em perfeitas condições.
As forças de Ondine pareciam tê-la abandonado. Tudo girou ao seu redor. Ela não viu mais nada.

Preocupado com Ondine, Jem ficou na despensa atento ao que se passava na sala matinal, os ouvidos apurados. Ouviu William ordenar a Berta que mantivesse a sobrinha trancada no quarto e ele iria supervisionar a comida que seria mandada para ela.
Quando a sala ficou vazia, Jem voltou para a cozinha. Disse à ajudante da cozinheira que ia pegar uma das galinhas para fazer um bom caldo e saiu para o quintal. Com aquele frio, não havia ninguém lá fora. Ele correu até o alojamento dos empregados. O primeiro apartamento era o do ferreiro. Bateu na porta e Warwick abriu-a imediatamente.
- Ondine tentou vir para cá, mas eles a pegaram e a trancaram no quarto - Jem foi dizendo, ofegante por causa da corrida.
- Esperamos demais - Warwick murmurou. - Jem, não há tempo para longas explicações. Sou o conde de North Lambria, e Ondine é minha esposa. O homem que mandou o bilhete para você me entregar é meu criado fiel. Ele foi a Londres avisar dois parentes meus que devem vir para cá. Se eles chegarem e eu tiver partido com minha esposa, conte-lhes o que aconteceu. Quando eles forem embora, vá com eles. Agora você deve voltar para a mansão. Vou entrar no quarto de Ondine pela sacada.
Jem olhou para Warwick, atônito. Entretanto, o homem inspirava confiança. E, se havia alguém capaz de salvar a duquesa, era ele.
- Tome cuidado, milorde - foi tudo que ele conseguiu dizer, saindo novamente para o frio da manhã.

Ondine acordou na sua cama. Levantou-se e correu para a sala íntima. Como já imaginava, estava trancada. Sentou-se no chão tentando manter a calma. Entrar em pânico de nada adiantaria. Tinha de ir ao encontro de Warwick!
A sacada! Claro! Fugiria por ali.
Vestiu o casaco de pele e saiu para a sacada. Olhou para baixo e sentiu um calafrio. O chão parecia tão longe e os galhos do carvalho que estavam mais próximos eram finos e frágeis. Bem, se caísse na neve fofa, a queda não seria tão terrível.
Agarrou um dos galhos, outro, mais um, e alcançou o tronco.
Continuou a descer e quando chegou a uma altura razoável, saltou para o chão. Sentiu o coração batendo forte por ter conseguido aquela vitória. Agora era correr ao encontro de Warwick.
Chegou ao alojamento e abriu a porta, já pronunciando o nome do marido. A lareira estava acesa, mas não havia ninguém ali dentro. Com certeza Warwick tinha saído para fazer algum serviço e logo voltaria. Sentou-se no catre e decidiu esperar.

Warwick chegou ao velho carvalho que lhe dera cobertura nas noites anteriores e alcançou facilmente a sacada. Quando entrou no quarto, ficou perplexo e angustiado. Ondine não estava ali. Procurou nos outros cômodos e, não a encontrando, deduziu que ela tinha fugido pela sacada. Correu para lá, olhou para baixo e viu na neve as pegadas das pequeninas botas.
Ele devia saber que sua esposa, seu amor, não toleraria ficar presa sem lutar. Ela conseguira fugir. Mesmo assim, ele sentiu vontade de dar-lhe umas palmadas por sua imprudência. Inspirou fundo, desceu rapidamente para o chão e caminhou para o alojamento onde Ondine esperava por ele.

Raul desceu os lances de escada, furioso. Ainda não se conformara com aquela tarefa absurda e, a seu ver, desnecessária, que o pai lhe atribuíra. Entrou na cozinha e ordenou a Jem que lhe preparasse um lanche decente e um garrafão de vinho para a viagem.
William apareceu em seguida e disse ao filho que Jimmy, um dos cavalariços, iria acompanhá-lo.
- Vou até as cocheiras para ver se está tudo em ordem. Vocês devem partir daqui a meia hora - acrescentou o pai e saiu da cozinha.
- Jimmy? Pois sim! - Raul resmungou. - O novo ferreiro irá comigo. O bruto tem as costas e os ombros de um Atlas e será muito mais útil do que Jimmy.
Ouvindo isso, Jem tremeu. Entregou a Raul a mochila com o lanche e esperou que ele subisse para seus aposentos. Pegou a manta que deixara na despensa e enrolou-se nela. Tinha de ir mais uma vez ao alojamento do ferreiro.
Assim que a porta se abriu, Ondine correu para os braços do marido.
- Warwick, meu amor! Temos de fugir imediatamente. Ontem à noite quase morri de aflição. Tive tanto medo. William não saiu do meu quarto. Ele sabe de alguma coisa. Tenho certeza disso.
- Sim, querida, estou a par de tudo. Sei quais são os planos de seu tio. Por isso já mandei meu ajudante selar o cavalo que aluguei para vir até aqui. Um simples ferreiro não podia aparecer à procura de emprego montando um cavalo excelente como Dragon.
- Vamos, conte-me tudo o que sabe - pediu Ondine, ansiosa.
- Seu tio planeja drogá-la esta noite e vendê-la a meu maior inimigo: Lyle Hardgrave.
- Hardgrave! Não entendo. Como ele pode estar envolvido nisto?
- Não há tempo para conjeturas ou longas explicações. Ouça. Deixei Jake na taberna White Feather, cuja dona é a simpática Molly. Ela e Jake conseguiram informações valiosas. Em resumo, foi Anne quem descobriu, que você é a duquesa de Rochester e que seu tio quer obrigá-la a se casar com Raul. Anne marcou um encontro com William Deauveau, na taberna, e ofereceu-lhe muito dinheiro para que ele drogasse você e a entregasse a Hardgrave. Este a levaria para fora do país. Naturalmente, Anne está certa de que conseguirá me conquistar e eu voltarei para seus braços. Bem, ela não sabe que Hardgrave abordou William e contou-lhe que o novo ferreiro era amante da duquesa. Hardgrave combinou com William de vir aqui, hoje, ao meio-dia, para me matar e livrar-se do corpo.
- Meu Deus! - Ondine murmurou.
- Seu primo não sabe desse plano tramado pelo pai, Anne e Hardgrave. Por isso, William quer afastá-lo de Deauveau Place.
- Sim, ele ordenou que Raul fosse a Framingham.
O rosto de Warwick transformou-se quando ele acrescentou.
- Descobri uma coisa que você devia ter-me contado. Você está grávida. Como teve coragem de fugir, de correr tantos riscos, sabendo que esperava um filho meu?
- Não, Warwick! Eu não sabia da gravidez. Juro! Fugi porque você pretendia me mandar para fora da Inglaterra e eu tinha de voltar a Deauveau Place... Você sabe que eu o amo!
- Querida, eu também a amo, mas vou demonstrar meu amor quando sairmos daqui - ele declarou tomando Ondine nos braços.
- Prostituta!
Warwick não teve tempo de se mexer. Um tiro de pistola explodiu no ar. Ondine gritou, ciente de que a bala havia passado rente ao seu rosto. Nesse instante o marido caiu no chão. O sangue escorria de sua cabeça.
Ela abaixou-se chorando do lado dele e pedindo a Deus, entre os soluços, que ele não estivesse morto.
- Prostituta!
A acusação foi proferida por entre os dentes e Ondine sentiu as mãos fortes de Raul apertando-lhe o pulso. Desesperada para acudir o marido, mordeu a mão de Raul. Ele soltou-a, praguejando, e deu-lhe um soco no rosto, fazendo-a cambalear.
- Pronto, madame. Seu amante imundo está morto. Ele teve o que merecia, e você, em breve, receberá seu castigo.

Capítulo XVII

Para Ondine nada mais importava. Sem Warwick a vida não tinha mais sentido. Raul podia fazer com ela o que quisesse, pois também se sentia morta.
- Vadia! Fêmea de Satã, olhe para mim! - Raul ordenou e deu-lhe outro soco no rosto.
Ela ergueu a cabeça e fitou-o com olhos vazios. Isso o enfureceu ainda mais.
- Vou fazê-la olhar para mim!
Como um selvagem abriu o casaco que ela usava. Enfiou a mão no decote do vestido e puxou-o, rasgando-o. Ondine reagiu. O maldito não iria cometer o sacrilégio de tocar no que Warwick havia tão ternamente acariciado. Sem medo, com fúria renovada e força sobre-humana, avançou em Raul, chutou-o, mordeu-o, deu-lhe unhadas, gritou e berrou tão alto que poderia acordar os mortos.
Por fim, sentiu o corpo pesado cair sobre o dela.
- Raul! - A voz de William Deauveau estrondou.
O filho não deu atenção ao chamado. William agarrou e colocou-o de pé.
- A vagabunda dormia com o ferreiro e torcia o nariz para mim, pai.
- Sei disso.
- Sabe?! Como?
- Não interessa. Temos de nos livrar dela.
- Por enquanto, não! Ela será minha como foi de tantos outros.
- Sim, você a terá, prometo. Mas não desse jeito. - O tom de William tornou-se suave. - Ela não pode ser machucada. Você e sua impetuosidade! Por pouco não arrancou o vestido dela e deixou-a marcada quase arruinando meus planos. Por sua culpa estamos com um cadáver. Quem ia matar o ferreiro era outro. Recebi um bom pagamento pela vadia. Nos livraremos dela legalmente. Tenha juízo e não encoste a mão nela, pelo menos por enquanto.
- Eu não a entregarei a outro.
- Ora, homem, onde está sua dignidade? Esta meretriz não pode ser sua esposa.
- Esposa, não. Será minha amante.
- Não temos tempo a perder. O lorde que vai pagar por ela deve chegar a qualquer momento. Vá para casa.
William e o filho continuaram a discutir. Ondine julgou ver Jem à porta, mas o bom velho desapareceu em seguida. Por fim, Raul foi embora. William inclinou-se sobre ela e encostou uma faca no seu pescoço.
- Levante-se agora e me acompanhe quietinha até a casa. Se não me obedecer, eu a mato aqui mesmo e agora. Mas não pense que terá morte instantânea. Em primeiro lugar abro seu ventre com a faca e você morrerá lentamente, vendo seu feto em minhas mãos. Mas é claro que você não quer perder o filho dele. Portanto, fique de pé.
Com esforço, Ondine levantou-se, mas sentia as pernas pesadas e entorpecidas. William jogou o casaco nas costas dela e levou-a para fora.
Assim que os dois saíram do pequeno apartamento, Jem, que se escondera ali perto, correu para junto do corpo estendido de Warwick.
- Deauveau, o que aconteceu? Olhe o estado de Ondine! Vocês a machucaram. Maldição! Eu lhe disse para não tocar nela - Hardgrave desferiu, furioso.
- Ora, ela só levou uns safanões - William respondeu calmamente.
- Onde está Chatham?
- Suponho que esteja morto.
- Deauveau, seu maldito!
- Surgiu um probleminha. Foi preciso matá-lo.
- Será que você não é capaz de fazer nada direito?
- Que diferença faz o homem estar vivo ou morto? - questionou William. - A garota está aí. É sua.
Hardgrave observou bem Ondine.
- O que há com ela? Parece uma idiota.
- Estado de choque. Logo vai passar.
Hardgrave desferiu novos impropérios. .
- Caro lorde, se Chatham está morto, que prazer terei em roubar a mulher dele? Ele não verá o que pretendo fazer com ela. Onde está o sabor da vingança? Seu imbecil, miserável, espero que termine apodrecendo, pendurado numa corda! Nosso trato está desfeito. Dê um jeito de livrar-se do cadáver e faça o que quiser com a duquesa.
- Tenho o seu ouro e não vou devolvê-lo. Pra mim tanto faz livrar-me dela ou deixá-la a seu dispor.
Lyle Hardgrave hesitou. Fixou em Ondine os olhos desbotados.
- Onde está Chatham? Quero ver o corpo.
- Nos alojamentos dos empregados. Primeiro apartamento. Levou um tiro na cabeça e ficou lá, caído.
- Vou vê-lo. Trate de pôr umas compressas frias no rosto de Ondine e providencie um vestido que não esteja rasgado nem sujo. Se desobedecer às minhas ordens novamente, não hesitarei em matá-lo - ameaçou Hardgrave e afastou-se.
William cerrou os punhos e voltou-se para Ondine.
- Vamos, milady. Parece que esta será a última vez que verá Deauveau Place. Aproveite para despedir-se de seu noivo. Ele vai adorar.

Com lágrimas nos olhos, Jem ajoelhou-se perto do corpo de Warwick. O sangue na testa havia congelado. O velho quase deu um salto ao ouvir um gemido.
- Está vivo, milorde!
Ele levantou-se com a agilidade de um jovem e correu até o jarro de água. Rasgou um pedaço da camisa, molhou-o na água fria e voltou para junto do ferido. Limpou o sangue e constatou que a bala havia passado de raspão, do lado da cabeça, e não atingira o osso.
- Acorde, sir. Acorde ou tudo estará perdido!
Warwick emitiu novo gemido. Pouco depois abriu os olhos.
- Jem! - Ele tentou erguer-se. Tomou a gemer e levou as mãos à cabeça.
- Pensei que estivesse morto, sir.
- Minha cabeça parece que vai rebentar. Onde Ondine está?
- Levaram a duquesa. Ela ficou em estado de choque, certa de que o haviam matado.
Com grande esforço, Warwick ficou de pé. Segurou por um instante no ombro de Jem e quando conseguiu dar uns passos, sentou-se no catre.
- Levaram Ondine para a casa?
- Acredito que sim. - Jem ouviu passos e correu para a porta. - Um homem troncudo e bem vestido aproxima-se, milorde.
- Vá embora, Jem! - Warwick ordenou e deitou-se de novo no chão, tendo colocado sob o corpo a espada que mantinha escondida debaixo do colchão.
Hardgrave empurrou violentamente a porta do pequeno apartamento. A cena diante de seus olhos deixou-o exultante.
O grande conde de North Lambria nada mais era do que um corpo sem vida, estendido no chão de um quartinho miserável. Só lamentou não ter sido ele a dar fim ao arrogante senhor de Chatham. Abaixou-se e levou um susto. O cadáver moveu-se. Dois olhos dourados abriram-se cheios de fúria.
- Chatham!
- Sim, Chatham! Vivo!
Warwick levantou-se já empunhando a espada. Hardgrave deu um grito de batalha e também puxou sua arma. Apesar de ferido, Warwick levava vantagem. Não demorou muito, levou Hardgrave contra a parede. Avançando de novo, ele golpeou a espada do visconde fazendo-a voar longe.
- Renda-se! - Warwick encostou a ponta da espada na garganta de Hardgrave.
- Nunca! Pode me matar.
Os lábios de Warwick tomaram-se uma linha fina. Mantendo os olhos fixos no oponente, ergueu a espada do chão.
- Lute!
Hardgrave sorriu, achando que o conde era mesmo idiota. Pegou a espada, movimentou os pés sem sair do lugar, de repente investiu em Chatham, certo de que o apanharia desprevenido. Mas Warwick entendeu o que ele pretendia. Deu um passo para o lado e segurou com firmeza a espada para a frente. Hardgrave enterrou o peito na arma.
Nos olhos arregalados havia o brilho da morte. Assim mesmo ele sorriu. Por fim, fechou os olhos e morreu quase serenamente.

Pouco antes de entrar em casa, William soltou o braço de Ondine e abaixou-se para pegar uma bola de neve. Gelo era muito bom para atenuar as marcas que Raul deixara no rosto dela.
Ondine ficou parada, o olhar perdido no espaço. De repente, lembrou-se de que William pretendia entregá-la a Raul e depois a Hardgrave. O pensamento foi como um sopro de energia em seu corpo entorpecido. Com uma força que não julgava ter, chutou William, deixando-o caído com a cara enterrada na neve, e correu na direção da floresta. Ouviu gritos e olhou para trás. Raul havia saído da casa e vinha em sua perseguição.
Ela continuou a correr, desviando-se dos galhos das árvores nuas e pensando desesperadamente em chegar ao ribeirão que ia desaguar no Tâmisa. Uma vez o ribeirão lhe salvara a vida, pois Raul não sabia nadar. Mas agora era inverno e ela morreria congelada naquelas águas.
Todavia tinha de alcançar o ribeirão. Ele era sua única esperança.

Warwick correu para a mansão, sua espada ainda manchada com o sangue de Hardgrave. Parecia um anjo vingador ao surgir diante de William que xingava Ondine, o filho e Lyle Hardgrave, enquanto limpava o casaco sujo de neve e barro.
William virou-se, imaginando que Hardgrave estava de volta e perdeu a fala ao deparar-se com o homem alto, vestido de preto, com os cabelos empapados de sangue, empunhando a espada. Seria um fantasma?
- Onde ela está?
A ponta da espada feriu a garganta de William. Ele quis dizer que estava disposto a fazer tudo o que aquele homem quisesse, desde que tirasse a maldita lâmina de seu pescoço. Mas sua voz não saiu. Ele não podia engolir.
- Onde?
- Floresta... Raul...
A grande besta-fera saiu correndo pelo mesmo caminho que os outros dois haviam seguido.
William massageou a garganta arranhada e foi atrás de Chatham, embora a passos mais lentos. Não era homem de se precipitar. Sabia agir com inteligência e cautela. Caso a situação fugisse do controle, tinha uma pistola e uma faca no bolso.
- Parado aí, homem!
O tom autoritário fez com que William olhasse para trás.
Ele sorriu. Aquele parecia ser um inverno de fantasmas. Há pouco o ferreiro ressurgira dos mortos e agora aparecia aquele estranho que era uma cópia mais desbotada do mesmo homem, embora não tão alto e com olhos verdes. William piscou algumas vezes. Como? Outro fantasma atrás dele? O monstro de olhos verdes sacudiu-o.
- O que está acontecendo aqui?
Atordoado, ele viu uma carruagem no pátio da casa. E outra.
Dois homens e uma mulher. Todos elegantemente trajados haviam descido dos veículos. Que dia movimentado para Deauveau Place. O homem de olhos verdes sacudiu-o de novo, com mais força.
- Onde está Hardgrave? E Ondine? E Warwick Chatham?
- O ferreiro e a duquesa foram para a floresta. Hardgrave deve estar morto. - William começou a rir. - Eu devia tê-la matado no dia da sua chegada. Mas Raul, o idiota, queria tê-la. Agora ele vai morrer.
Clinton e Justin se entreolharam, preocupados. Mas ignoraram Deauveau e saíram correndo para a floresta.
Ali estava o ribeirão, cheio de pequenos cristais de gelo que brilhavam ao sol. Ondine parou na margem. Se Raul se aproximasse, iria jogar-se na correnteza, pois ele tinha medo da água. .
- Peguei-a, madame!
Apanhada de surpresa, Ondine não conseguiu fugir. Raul segurou-a e obrigou-a a sentar-se na neve.
- Maldita vadia! Mas eu posso salvá-la. Meu Deus, por que dá tão pouco valor à vida? Por que prefere morrer a entregar-se a mim?
- Você está louco. Como posso permitir que me toque? Assassino! Covarde! Você matou meu pai e atirou em Warwick pelas costas.
Vermelho de ódio, Raul ergueu o braço, mas Ondine rolou pelo barranco e foi parar na beira da água. Vendo que Raul descia depressa atrás dela, jogou-se no ribeirão. O frio era mortal, o casaco muito pesado, e ela afundou. Conseguiu voltar à tona e tentou nadar até a outra margem.
- Espere!
Ondine ouviu o grito vagamente. Já estava quase congelada.
Com certeza ia morrer.
- Ondine! Espere. Vou salvá-la.
Ela sorriu. A voz era de Warwick. Do outro lado da vida, ele viera encontrá-la. Nesse instante, sentiu-se segura. Olhou para cima e viu o lindo rosto do marido. Fechou os olhos novamente. Não, ela não estava morta. Nem Warwick. De repente, viu-se na margem tremendo de frio. Sozinha.
- Lute, Deauveau! Não posso matar um homem pelas costas.
Apoiando-se nos cotovelos, Ondine olhou para o lugar de onde viera a voz. Warwick havia arrastado Raul para fora da floresta e o covarde estava encolhido diante dele, implorando:
- Não me mate. Nunca toquei em sua mulher! Fique com ela.
- Levante-se, maldito! Seja homem!
Subitamente o som de passos parecia vir de várias direções.
A visão de Ondine ficou embaçada, ela batia os dentes, os ouvidos doía fechou os olhos e sentiu um grande manto cobrindo-a. Alguém a ajudou a levantar-se.
- Justin! - exclamou, abrindo os olhos e apoiando-se no ombro do cunhado.
- Levante-se, covarde.
Quem deu a ordem não foi Warwick.
- Ele vai me matar - Raul choramingou.
De repente, ele tombou para a frente, enterrando o rosto na neve. Havia uma faca cravada nas suas costas, de onde saía muito sangue.
Warwick deu um passo para trás. William aproximou-se do filho, ajoelhou-se e tirou a faca das costas dele. Dirigiu-se então a Warwick.
- Veja você, foi uma morte rápida, misericordiosa. Meu filho sofreria muito na Torre, esperando a execução. Ele não tinha honra, nem dignidade. Foi melhor assim.
Todos ficaram em silêncio. Warwick virou-se para ir até Ondine. Clinton, que estava a pouca distância de William, alertou o primo..
- Warwick! Cuidado!
William Deauveau tinha ficado de pé e avançara em Warwick pelas costas; como um cão raivoso. Warwick teve apenas tempo de virar-se, já com a espada erguida. Da mesma forma que Hardgrave, Deauveau arremessou-se sobre a lâmina mortal e tombou para o lado. Warwick curvou-se com o peso do homem e, devagar, deixou Deauveau estendido no chão.
Por mais estranho que pudesse parecer, o homem sorriu e murmurou:
- Obrigado. Eu também não suportaria enfrentar o machado do carrasco. Quanto à garota... Ondine...
Os lábios dele silenciaram para sempre. Warwick olhou para ele por um momento. Deixou a espada onde estava e desceu o barranco, indo ao encontro de Ondine que o esperava de braços abertos, os olhos azuis brilhando como safiras contra a brancura da neve.
- Você está vivo! - ela murmurou.
A agonia e a tensão das últimas horas cobraram seu tributo.
Os olhos deslumbrantes se fecharam e ela desmaiou nos braços do marido.

Quando abriu os olhos novamente, Ondine achou que havia chegado ao Paraíso. Não sentia mais frio nem o desconforto das roupas molhadas. O fogo crepitava na lareira. Estava em sua cama, usando camisola de musselina, coberta com lençol, cheirando a lavanda, e a colcha de brocado. O rosto mais próximo ao dela era o do marido. Estava barbeado. Lindo. Ela franziu a testa ao notar a bandagem ao redor de suas têmporas, o que a fez lembrar-se de que ele estivera bem perto da morte.
À sua direita estava o rei, sorrindo para ela.
- Ah, duquesa! É muito bom tê-la conosco novamente! Havia mais pessoas no quarto. O querido Justin, Clinton, uma mulher elegante do lado dele, um homem desconhecido, magro e um tanto sombrio.
- Majestade! - ela exclamou, meio confusa.
- Que surpresa acordar e ver tanta gente, hem, minha querida? - tornou o rei.
- Agradeço a presença de todos. Mas como veio a Deauveau Place, Majestade?
- Ontem, quando os visitei, Warwick me informou sobre o que estava acontecendo. Por isso, planejei voltar aqui esta manhã, certo de que pegaria alguém desprevenido. Quando cheguei, o tumulto havia terminado. Tive o prazer de ver você e seu marido sãos e salvos, voltando da beira do rio.
- Cunhada, você não está curiosa para inteirar-se da situação?
- Warwick contou-me que Jake e Molly, descobriram o que Anne, Hardgrave e William planejavam. Você e Clinton foram avisados que haveria problemas e chegaram a tempo de nos salvar. Estou tão grata a todos, do fundo do coração!
- Hardgrave, William e Raul estão mortos...
- Que estranho, William matar o próprio filho e depois atacar você, Warwick.
- Ele sabia que estava tudo perdido. Como ele próprio confessou, nem ele nem Raul suportariam ser condenados.
- Querida Ondine, este jogo terminou - assinalou o rei.
- Sim, mas com William e Raul mortos, receio não conseguir provar a inocência de meu pai.
- O duque já foi inocentado - Clinton declarou.
- Como?!
- Graças a Sarah, minha noiva, e a John Robbins, este jovem cavalheiro - Clinton indicou a moça elegante e o homem magro - chegamos à verdade.
Ondine olhou para os três, confusa.
- Justin e eu ficamos em Londres empenhados em encontrar alguém que se lembrasse de qualquer coisa sobre aquela tarde em que o duque de Rochester fora morto, acusado de atentar contra a vida do rei. Sarah então me disse que conhecia John Robbins, o guarda que presenciara o incidente.
John aproximou-se de Ondine.
- Milady, perdoe-me por ter sido covarde. Naquela tarde eu não sabia exatamente o que tinha acontecido. Foi tudo muito rápido e fiquei confuso. Mas Raul me ameaçou, disse que mataria minhas irmãs, caso eu não testemunhasse que o duque tentara matar o rei. Nesse instante entendi que tinha sido Raul quem havia tirado a espada e matado o duque.
- Meu Deus! Que alegria! Estou no céu - Ondine exultou.
- Deus o abençoe, John Robbins! Deus a abençoe, Sarah!
- Ainda falta uma vilã para receber o castigo merecido: lady Anne - lembrou o rei.
- Ela deve estar na White Feather, esperando por Hardgrave, sem ter idéia do que aconteceu aqui. Jake permaneceu na White Feather só para vigiá-la. - Warwick informou. - O que acham de irmos todos à taberna encontrar lady Anne?
A idéia foi aprovada por unanimidade. O rei e os cavalheiros deixaram o quarto. Sarah ficou fazendo companhia a Ondine.

Justin e Clinton foram os primeiros a entrar na taberna. Viram Jake sentado a uma mesa perto da parede. A pouca distância dele estava Anne, tomando vinho, parecendo muito agitada.
- Como vai, lady Anne? - Justin saudou-a sorridente, beijou-lhe a mão e sentou-se à sua direita.
Nem bem se recuperou da surpresa desagradável, Anne viu Clinton sorrindo para ela, sentando-se à sua esquerda.
- O que faz aqui? - Justin indagou.
- Eu já lhe disse que acho lugares como este muito divertidos - Anne respondeu secamente.
Ao mesmo tempo, pensou:
"E Hardgrave que não aparece! Por que o homem não é pontual? E o que fazem aqui estes dois? Será que vieram encontrar-se com Warwick?"
Ah, era isso mesmo. Warwick acabara de entrar na taberna e caminhava ao encontro deles. Estranho. Não parecia um ferreiro. Estava muito elegante, usando camisa de seda, calções de veludo, casaco preto e chapéu com plumas.
- Anne!
Como o irmão e o primo, Warwick também sorria e demonstrava estar muito feliz em vê-la.
- Warwick...
Ela tentou sorrir. Tentou mostrar-se contente. Não conseguiu. Entrou em pânico ao perceber que estava presa, tendo Justin de um lado, Clinton do outro e Warwick à sua frente.
- Vejo que você trouxe vinho para dois! - Warwick indicou os dois copos. - Posso? Ou você está esperando alguém?
- Eu... - Anne sentiu a garganta apertada, a voz não saiu.
Notou que Warwick estava olhando para alguém atrás dela e virou-se depressa. Jake ergueu o chapéu, gentilmente. Ela tentou levantar-se. Warwick e Clinton seguraram-na.
- O que está acontecendo? - ela perguntou.
- Anne, Anne, você não admite derrota! - Warwick suspirou.
- Derrota?
- Lorde Lyle Hardgrave está morto - disse Justin.
Por uns segundos Anne pareceu horrorizada. Depois se recuperou.
- Você o assassinou, Warwick Chatham! Assassinou um par do reino! Quando o rei souber disso...
Uma figura alta ergueu-se no meio da taberna e aproximou-se da mesa deles. Charles Stuart curvou-se com elegância e dirigiu a Anne seu sorriso encantador.
- Continue, lady Anne.
- Charles! Majestade! Nada tenho a ver com traição!
- É apavorante a simples idéia de ficar presa na Torre, esperando que sua linda cabecinha role do cepo, não? Bem, depois de pensar um pouco, decidi que seu destino será semelhante ao que você planejou para lady Chatham.
Anne empalideceu. - Sire, não!
- Receia que eu a venda para mercadores de escravas do Marrocos? Não é exatamente isso que tenho em mente. Dou-lhe a chance de escolher entre ir para a Torre ou casar-se com um governador de certa ilha do Caribe. O homem é gordo, careca, esperto e inescrupuloso. Perfeito para uma mulher como você.
- Não me casarei com governador nenhum!
- Não? - Charles fez um sinal e um grupo de homens ergueu-se de uma das mesas. Cada um tirou o casaco, revelando o uniforme da guarda real.
Anne ficou desesperada.
- Não! Charles, você não seria capaz...
- Eles estão esperando.
Clinton levantou-se para deixar Anne passar. Ela tentou comover o rei.
- Charles, por favor...
- Os guardas a levarão para o navio.
Pela primeira vez, Anne deu-se por vencida. Passou por Clinton, furiosa. Ergueu a cabeça e foi até os guardas.
- Não ponham as mãos em mim! - ela gritou, quando eles a conduziam para a porta.

Ondine e Sarah tomavam chá quando Warwick entrou no quarto. Ondine correu para os braços do marido que a ergueu, rodopiou com ela, depois a beijou e a manteve junto do peito.
- Terminou. Anne jamais nos causará problemas, meu amor. Charles obrigou-a a se casar com o governador de uma remota ilha do Caribe. Seria o casamento ou a Torre.
Vendo que os dois sorriam felizes e se olhavam com expressão de adoração, Sarah levantou-se.
- Vou deixá-los a sós.
- Clinton a espera no hall e tem uma boa notícia - disse Warwick.
- O que é? - Sarah franziu a testa, curiosa.
- Ele lhe dirá.
Sarah deixou o quarto e Warwick voltou a atenção para a esposa. Colocou a mão sobre seu ventre e pousou nela os olhos dourados, cheios de paixão.
- Como se sente? Será que tudo o que você sofreu não afetou o bebê?
- A criança e eu estamos muito bem, não se preocupe. Diga-me, qual é a boa notícia que Clinton tem para dar a Sarah? Estou ansiosa para saber. Ela o ama tanto e receia que o pai não aprove o casamento.
- A curiosidade matou o gato - ele provocou-a. - Mas você não é uma gata. É uma ninfa. Foi o que pensei quando a vi pela primeira vez, naquela tarde, depois da justa. Você fugia de Raul. É claro que na ocasião eu não podia imaginar que iria oferecer-lhe casamento e dar-lhe vida mortal.
- Então você me viu?
- Sim. Deixei a floresta imaginando que você era um sonho, uma fantasia. E agora você é minha, meu amor, por toda esta vida mortal e além dela, por toda a eternidade.
Warwick beijou-a com ardor até ficarem ofegantes. Ambos sentaram-se na cama.
- Bem, vou responder à sua pergunta. Hardgrave e o marido de Anne não deixaram herdeiros. Portanto, suas terras e os títulos, tomaram-se vacantes. Como o rei tem a prerrogativa de conceder terras e títulos, Charles decidiu que as terras do marido de Anne passam para Justin. Meu irmão tomou-se um duque. Clinton é o dono das terras de Hardgrave e o novo visconde de Bedford Place. Creio que isso irá satisfazer o pai de Sarah.
- Tudo isso é maravilhoso! - Ondine exclamou.
- Maravilhosa é você, adorável feiticeira, minha sereia, minha ninfa, meu amor! Quero você! - Warwick murmurou com urgência na voz, ao mesmo tempo em que se despia.
Ondine admirou aquele corpo prodigioso e perdeu-se no fogo da paixão que ardia nos olhos dourados. Ela suspirou, deliciada, e entregou-se nos braços do marido.

Epílogo

Hampton Court, Maio, 1681

Era uma fria e agradável manhã de primavera, mas Warwick suava. Ele e Charles jogavam tênis contra os duques de York e de Buckingham.
- Preste atenção ao jogo, Warwick! - Charles advertiu o amigo, durante o intervalo. - Céus, você quer que eu perca para meu irmão?
- Perdoe-me, sire...
- Você está preocupado, mas de que adianta ficar assim? Se a criança tiver de nascer hoje, nascerá. Isso não depende de você. Agora, jogue!
O jogo continuou. Para não desapontar o rei, Warwick procurou concentrar-se, mas a todo instante olhava para as cadeiras querendo certificar-se de que Ondine continuava sentada com a rainha e Sarah. Seu primeiro filho estava para nascer. O herdeiro das propriedades e dos títulos de North Lambria e Rochester.
Warwick e Ondine podiam passar bastante tempo na corte.
Jake casara-se com Molly e administravam o solar Chatham com eficiência. Clinton e Sarah, felizes no casamento, haviam tornado o antigo e lindo castelo de Hardgrave, antes negligenciado, em um verdadeiro lar. Jem parecia ter rejuvenescido dez anos e cuidava de Deauveau Place com amor. John Robbins ficara encarregado de orientar os arrendatários e proprietários para conseguirem obter das terras maior rendimento e lucro.
Justin aceitara as terras e o título que o rei lhe concedera e tornara-se admiravelmente responsável. No início do ano, embarcara para a América a fim de conhecer a colônia da Virgínia. Voltara à Inglaterra havia poucos dias, apenas para conhecer o sobrinho ou sobrinha que estava para nascer. No fim do verão, pretendia voltar para a América.
Uma bola mais violenta surpreendeu Warwick, e ele rebateu-a com força. O jogo seguia empatado e parecia não terminar nunca. Pouco depois, o grito de vitória do rei assustou-o. Charles atirou a raquete no ar. Confuso, Warwick olhou para o soberano, a testa franzida.
- Incrível, mas é verdade! - Charles exclamou. - Chatham, você nem parecia presente, mas ganhamos, homem! Conseguimos virar o jogo!
Buckingham e James cumprimentaram os adversários. Drinques foram servidos para todos. Warwick olhou para as cadeiras antes ocupadas por Ondine, a rainha e Sarah. Estavam vazias. Ele estremeceu. Tinha de ir para perto da esposa.
- Chatham, não entre em pânico - Charles aconselhou o amigo. - Herdeiros demoram um bocado para chegar a este mundo.
- Vou voltar ao palácio - Warwick insistiu.
O rei se enganara. Quando Warwick entrou nos seus aposentos, parou na soleira do quarto. Viu Ondine deitada, usando uma linda camisola enfeitada com rendas, os cabelos brilhando como raios de sol e parecendo gloriosamente feliz. Ele aproximou-se do leito e olhou para o pequeno embrulho do lado da esposa.
- Querida...
Ondine desenrolou o recém-nascido. Ele berrou, esperneou e, sem a menor cerimônia, deixou o sexo à mostra.
- Um menino! - Warwick exultou.
- E perfeitamente saudável. Oh, Warwick ele é muito parecido com você.
- Mas tem os seus olhos.
Ondine e Warwick ficaram olhando com ternura e encanto para o pequenino ser que eles haviam gerado.
- Outra fera Chatham. - Ondine sorriu e deu um suspiro afetado. - Fui capaz de domar uma, serei capaz de domar esta ferazinha. Mas seria interessante pensarmos em ter uma filha doce e mansa, como a mãe.
Warwick riu.
- Se você quer uma filha, esta "fera domada" atenderá seu desejo com prazer. Mas, doce e mansa? Impossível!
- Parece que nós dois estamos bem domados, meu amor - declarou Ondine.
Inclinando-se sobre o bebê, Warwick beijou a esposa. Mas o novo lorde Chatham decidiu protestar, batendo com o pequeno pulso no peito do pai.
Ondine e Warwick riram e deram ao recém-nascido toda a atenção.

 

 

                                                                  Shannon Drake

 

 

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