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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ONZE FORMIGAS / Alec Baurer
ONZE FORMIGAS / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O que é que voa, mas não tem asas, bate, mas não tem mãos e vê, mas não tem olhos?
— Uma charada sobre avalanches, contada desde a Idade Média.

 


 


O Formigueiro

I.


O Dr. Lèfevre tinha as pálpebras baixadas e ligeiras rugas na comissura dos olhos e quase não sentia os sacolejos do trem de cremalheira a vapor. Isso lhe dava um aspecto brandamente... exótico.

Pensava em seu filho que, há duas semanas, tivera uma parada cardíaca. Por causa de uma combinação de cerveja e metadona. Algo comum — disseram — numa época em que os jovens abusam de remédios para resfriado feitos com dextrametorfano. Duas a três caixas ingeridas de uma vez, para induzir um estado de psicose. Algo comum?! Para ele, a maior provação de sua vida. Um pai que não conhecia (e não conseguira coibir) o filho? Aquela reserva no Albergue Branco, no alto dos Alpes, viera em boa hora. Quinze dias...

Olhou pela janela do trem. Viu a entrada de uma espantosa ravina; à esquerda, um rio impetuoso. O Dr. Lèfevre contou túneis e pontes... uma garganta se abrindo... um vale estreito. Alguns minutos depois, uma aldeia escondida entre plátanos e nogueiras. Lembrou-se do pouco que sabia sobre o albergue. Idealizado por Jules Pélanger, franco-canadense, um tenente cheio de galões dourados na farda... mais tarde vendido para Mme. Marguerite Pardout, ilustre curadora de uma galeria de artes em Frankfurt. Então... sim, então houvera aquele incêndio que tinha arruinado todo o setor oeste. Após a restauração, fora adquirido por Généreux Morret, um sujeito de cabelos ralos, penteados para cima e pele flácida, anteriormente dono de um pub. Agora... quem era mesmo o dono? Ah, Jean Bouffler! Ou melhor, Monsieur Bouffler.

O Dr. Lèfevre pareceu meditar por alguns segundos, contemplando as mãos que pousara sobre os joelhos. Dava-se muito bem com o hoteleiro. Alto, ombros largos e enormes bigodes, o que lhe dava um aspecto de italiano. A seu ver, alguém sem o menor tino para negócios, e até falante demais, tedioso e banal. Mesmo assim, uma pessoa que caíra em suas graças. Podia ouvi-lo dizendo: “Wilkommen, doutor! É sempre um prazer hospedar uma personalidade como o senhor”.

Sorrindo, o Dr. Lèfevre se recostou no banco, antegozando o efeito que sua chegada causaria em Monsieur Bouffler. Quinze dias...


II.

 

Importa dizer que havia uma segunda pessoa no vagão, a quem ninguém prestara muita atenção até ali. Gregory Stracker estremeceu, refletindo em seu rosto a angústia que atormentava o seu espírito. Dava a impressão de estar pronto para fugir, à menor oportunidade. Era incrível! Ele, descendente de uma família magnificamente rica, era um ser invisível, atravessando o vazio infindável de uma vida vã e sem sentido.

— É, Greg, você representa a dicotomia da existência — suspirou.

Olhou para baixo, para si mesmo. Vestia uma jaqueta de bom tecido, mas gasta, e calças cinza, remendadas nos joelhos. Numa coisa tinha que concordar — seu aspecto não inspirava muita confiança! Nada nele revelava sua verdadeira condição social, que poderia desfrutar quando e como quisesse. Desde que... Sempre existia um desde que.

— Volte para casa, Gregory — podia ouvir a voz de seu pai. — A firma, os empregados... Tudo está à sua espera. Se não for por mim, volte por sua mãe! Por sua mãe...

Assumir o comando da empresa! Uma proposta que encantaria nove entre dez rapazes de sua idade. Mas Gregory era a exceção. Ele conhecia a própria constituição; ficar o dia todo num escritório, regulando a simétrica produção de brocas com ponta de diamante... Enfadonho! Um massacre para nervos e músculos inquietos como os seus, que ansiavam pela liberdade e a aventura — o mistério.

Pena que o velho Stracker achasse que ele desperdiçava a vida praticando rapel e mountain biking. A verdade é que o perigo pulsava em suas veias. Era como um... chamado. Um apelo que o estimulava a ir em frente, a fazer coisas em que a morte estava sempre ali, a um passo de distância.

As perguntas (“Quais serão as consequências se o salto der errado ou se o equipamento de segurança falhar? Será apenas um arranhão, ou existe a probabilidade de grave ferimento ou morte?”) não significavam nada. Ele, Gregory Stracker, fora talhado para aquilo.

— Papai, eu sei o que o senhor quer de mim — dissera ele, semanas atrás. — Não posso fazer isso. Não eu...

— Não, não, Greg. Você pode. Conheço o seu talento, o seu potencial. Investi tudo em sua educação. Sua mãe... ela amava tanto você. Tanto...

— É inútil insistir — respondera num tom seco e categórico. — E, pai, não fale nela, eu peço. Mamãe está morta. Há cinco anos... Eu gostaria de poder ser como você. Mas não sou. Não sou! Você sabe que não suporto aquela mulher.

— Não diga isso — suplicara o velho Stracker, os olhos fora das órbitas e a voz trêmula e arquejante. — Eu e Marie-Ange nos amamos. Nunca mais fale nela nesse tom, Greg.

Gregory nada dissera, para não contrariar ainda mais o pai. Evidentemente, não gostava da madrasta. Ela, com seu rosto de garota, muito sério, de olhos imensos, cabelos escuros com franjinhas na testa. Vinte e sete... ou vinte e oito anos? Apaixonada por um homem de cinquenta e cinco? Amor? Marie-Ange era uma aproveitadora — disposta a tudo para dar o golpe do baú.

Cada vez que pensava nisso um estremecimento sacudia o corpo do rapaz. Consultou o relógio. Nove e meia da manhã. Mais alguns minutos...

Um sorriso de triunfo curvou os seus lábios. Com um gesto, Gregory afastou Marie-Ange (a má) de sua mente e concentrou-se num outro nome. Sali Grogan! Doce Sali...

Mais alguns minutos e estaria nos braços da moça que amava.


III.

 

Atrasada!... Xingando a si mesma, a palavra não parava de ecoar nas profundezas do subconsciente de Sali Grogan.

Atrasada. De novo.

E esse táxi que não ia, que parecia grudado no asfalto.

Isso já tinha se tornado como que um estigma. Não compreendia como podia ter tanto azar.

A culpa era daquele homenzinho turco da véspera. Baixinho, de nariz adunco e pele repuxada nas faces. Sim, ele mesmo... que a levara àquele restaurante belga e, depois de sentar, dissera:

— Precisamos que faça uma coisinha por nós, Miss Grogan.

Sali lembrava-se de tudo. A orquestra que enchia o ar. Pares dançando entusiasmados. Garçons que iam e vinham, realizando prodígios de equilíbrio com as bandejas.

— Que coisinha? — perguntara, apavorada.

— Que nos ajude a investigar uma pessoa — comentara o homenzinho, com um trejeito que lhe tornara as feições ainda mais feias.

Como assim? Investigar uma pessoa? Que pessoa? Será que o turco pertencia a alguma agência de espionagem... ou coisa pior?

Sali sentira-se tão perdida!

— Investigar quem?

— O seu namorado, Miss Grogan — dissera ele.

O coração de Sali galopava louco.

— Greg? Por que Greg?

— Nada demais. Digamos que ele viaja muito, atravessa uma fronteira aqui outra ali.

— O que... ele fez?

— Aí está... Pequenos aviões, navios de transporte de contêineres, submarinos e até mesmo viajantes disfarçados contrabandeiam drogas através dos oceanos ou de países vulneráveis.

O seu coração fizera uma pausa para depois começar a pulsar desordenadamente.

— O senhor disse... drogas? Está louco! Greg não é um traficante.

— Também achamos que não. Mas temos que ter certeza, não é, Miss Grogan?

O turco, com voz fria, metálica, foi dizendo lentamente:

— A senhorita morou na Avenida Joffre, na Argélia, creio.

— Como... como sabe?

— Temos nossas fontes. Também sabemos o que a senhorita fez lá, dois anos atrás. Na casa do Senador Edoaurd.

— Aquilo já foi reparado. Eu... devolvi tudo.

O sorriso zombeteiro dera lugar a uma expressão de maldade, visivelmente ameaçadora.

— Existem, digamos, alguns registros. Se nos ajudar, podemos dar um jeito nisso, Miss Grogan. A bola está em jogo e cabe à senhorita impulsioná-la.

Podemos dar um jeito nisso! Atrasada... Atrasada!

As coisas se confundiam e fundiam na cabeça de Sali.

“Meu Deus”, pensou amargurada. “Perdoe-me, Greg. Eu não pretendia... Não pretendia...”


IV.

 

Largando a mochila com força, Nigel Ronet atirou-se preguiçosamente num canto do banco do vagão.

— Puxa vida, que frio! — gemeu, proclamando sua opinião em voz alta.

A única outra passageira, uma jovem loura, de olhos azuis suaves e acariciantes, que teria quando vinte e três anos, levantou a cabeça. Durante alguns instantes, permaneceu rígida, tensa. Depois de olhar para o francês, continuou a leitura do e-mail no smartphone que sustinha no colo.

“Nenhum sorriso, nenhum ‘oi’!”, avaliou Nigel decepcionado. “Uma garota tão bela... e sisuda. La maudite salope!”

Tentou por várias vezes dizer alguma coisa, mas desistiu enquanto as palavras lhe morriam na garganta.

Com um gesto de desprezo, ele voltou a se erguer e saiu do vagão. O maquinista, batendo as mãos enregeladas, veio para o seu lado:

— Algum problema, amigo?

Era magro como uma espada e com um nariz que parecia uma adaga curva.

— Oh, não — disse Nigel. Interrompeu-se por alguns segundos e prosseguiu: — Um pouco preocupado, eu diria.

— Entendo... Deve estar se perguntando se vamos chegar lá em cima. Pois eu lhe garanto que é muito mais seguro dentro deste trem do que em sua própria casa! A locomotiva usa óleo em vez de carvão, o que reduz a poluição. Usa também rolamentos para diminuir a fricção e bom isolamento para evitar a perda de energia e reduzir o tempo de aquecimento.

— Mesmo no inverno?

— É, as coisas ficam um pouco mais difíceis. Há os deslizamentos, a neve e a neblina implacável.

— Não entendo por que tanta gente vem para cá...

— Questão de gosto. Alguns vêm para se divertir na estação de esqui... outros vêm desfrutar do clima ou da cozinha local.

Os olhos de Nigel Ronet estavam esbugalhados numa expressão de terror. Murmurou:

— Em caso de nevasca... O albergue...

— Sempre que a tempestade é forte, o lugar fica isolado por um tempo. Caiu muita neve, e ainda cairá mais, talvez por vários dias.

— O lugar fica isolado por um tempo... — repetiu Nigel.

Um sorriso distendeu os lábios do maquinista.

— Oito ou dez dias. Os trilhos ficam sob diversos metros de neve. Existe sempre a opção do helicóptero... em casos de emergência.

— Ou seja, pobre de nós!

— Anos atrás, talvez. Hoje em dia, não mais. O albergue tem sistema de calefação. Relaxe, filho. Tudo vai acabar bem.

Pela primeira vez, Nigel olhou montanha acima. Apesar do incentivo descontraído, estava longe de relaxar.


V.

 

Miss France Paxter ouvia fiapos da conversa dos dois homens na plataforma. De onde estava podia ver o rapaz com a pequena mecha marcando a testa alta e saliente que, minutos antes, sentara no banco em frente.

Ele não simpatizara com ela, disso France estava certa. Quem seria ele? Ela não sabia, mas, pelo pouco que ouvira, também ia para o hotelzinho no alto da cordilheira.

Ensimesmada, ela recolheu-se outra vez ao seu smartphone. Releu cuidadosamente o e-mail que datava de uma semana atrás:


Querida France,


Lamento muito informar a você que sua tia-avó Agnes faleceu hoje, quinta-feira, no Hospital Uddevalla, Suécia. Apesar das limitações e debilidade impostas pela doença, ela se manteve lúcida até o fim. Não há como dissipar a dor de uma perda tão inesperada...

Ela, em todos esses dias de agonia, não cansou de falar de você.

France, ela amava você! Havia nela, em sua maneira de falar, uma intensa gratidão... Movida por essa gratidão, sua tia-avó legou uma coisa para você. Uma coisa que você merece... por tudo que fez por ela.

Quero e vou dá-la a você. Compareça a esse endereço: Albergue Branco, Suíça; dia 27 de novembro.


Seu tio,

Frank


Comovida, France esmagou um soluço.

Tia-avó Agnes... Tão querida, doce e terna!

Morta...

— Oh, querida, sinto tanto sua falta quando você está longe de mim! — dissera ela da última vez que estiveram juntas.

O fulgor em seus olhos! Um fulgor juvenil, repleto de coragem e decisão, apesar dos setenta e oito anos. Movera a cabeça de um lado para outro, enquanto suas feições se crispavam num gesto indecifrável.

— Eles... eles querem me matar, France! Se eu morrer, quero que faça o que puder para que paguem pelo crime. Você pode fazer isso por mim?

— Titia?! — perguntara France, admirada. — Eles querem matar a senhora? Quem... me diga! Eles quem?

De súbito, France vira-a levar o dorso da mão à boca e olhar, de olhos arregalados, para algo que devia estar às suas costas.

France tinha se virado...

E...

E agora sua tia-avó estava morta.

Sim, sua morte não fora natural. Alguém, ou alguma coisa, devia tê-la matado. Mas o quê, quem e como?

Miss France Paxter moveu-se irrequieta em seu banco. Um sentimento inusitado havia-se introduzido em seu coração.

Com movimentos lentos, tirou da bolsa uma pequena pistola de cabo de nácar. Fosse o que fosse que a aguardava no albergue, dessa vez estaria preparada.

Para o que desse e viesse, murmurou resolutamente.


VI.

 

Frank Schippendale se considerava um sonhador. Ali de pé, ele contemplava as linhas sinuosas da mansão Mayflower. Mais aos fundos, uma estrada subia serpenteando pela colina, onde se divisavam vilas e chalés. Mas nenhuma tão bela quanto a sua mansão. A sua propriedade.

Lógico, nada daquilo era seu. Ainda não. Era difícil de acreditar que Mrs. Agnes Dreyhorn, antes de morrer, legara toda sua fortuna para a sobrinha-neta — France Paxter. E imaginar que a moça sequer fora notificada disso! Ninguém conseguira localizá-la para dar a notícia. Exceto ele.

— Ainda bem que mantive seu endereço eletrônico — refletiu Mr. Schippendale, satisfeito.

O seu olhar vagou pelo ar... até Miss Paxter, a nova milionária. Uma moça bonita... vestindo um traje de noite em “chiffon dorée” que se ajustava ao busto para cair num amplo véu, desde a cintura. O obstáculo que se interpunha em seu caminho? Pelo contrário... casaria com ela!

Frank e France...

Até os nomes combinavam.

Se ela recusasse o pedido?

Uma luz irônica se acendeu em suas pupilas. Murmurou:

— Existem sempre meios para convencer uma mulher.

Aquelas palavras tiveram o dom de transformar radicalmente a expressão de seu rosto. Era um homem poderoso — nada poderia atingi-lo no alto de seu pedestal.

Mr. Schippendale sonhava com sua mansão.


VII.

 

Catherine Roskov tinha os lábios caídos, o nariz torcido, os olhos apertados, como se fosse chorar. Olhou demoradamente a foto de seus dois filhos e o neto que tinham ficado na Varsóvia. Sentia um latejar tumultuoso nas têmporas.

Ah, estar com eles... à moda antiga.

Passear livremente, patinar no gelo, ir às apresentações do Bolshoi!

Nunca mais fariam nada daquilo...

Tudo por culpa de seu ex-marido, que literalmente os afastara dela. Para piorar, ele ainda pusera alguém em seu encalço para caçá-la. Para trazê-la de volta. Se possível — viva.

— Você não vai escapar, Cathe — ameaçara ele. — Deseja ser posta a par de todos os detalhes, à medida que fizer minhas investigações? Não importa aonde for, irei atrás de você.

— Não, não, Julius! — suplicara ela.

Falara com voz comovida, com palavras entrecortadas. Continuou:

— Deixe-me ver meus filhos... eu rogo! Não posso viver sem eles! Meus filhos...

Ele respondera muito depressa, sem medir bem o tom de voz, que lhe saiu aguda e descomposta:

— Você não vai vê-los, Cathe! Nunca mais! Quer um conselho, que vai ser muito útil? Não ligue para cá. Basta todo o mal que você causou para nós.

— Eu não causei mal nenhum, Julius! Julius...

A ligação caíra antes que ela concluísse.

Isso acontecera no dia anterior.

Um relâmpago de fúria assomou nos belos olhos negros da russa. Olhos que se mesclavam com a brilhante catarata de cabelos da mesma cor que caía em seus ombros.

Catherine Roskov releu o site aberto à sua frente.


Hotel Branco


Ideal para você que pratica esportes de inverno. Situado num lugar idílico, em plena montanha, rodeado de matas e escarpas.

Aberto na primavera e no verão, para você que precisa de repouso.

Nos meses de inverno, aproveite a neve e as escaladas.

Etc.


Era disso que ela precisava. Um lugar ermo, rodeado de matas e escarpas. Inexpugnável.

Fechando o notebook, Catherine agarrou a mala do chão e dirigiu-se para a porta. Se Julius estava à sua procura, ótimo.

Ela já tinha encontrado um esconderijo!


VIII.

 

Lady Hilary Dobney podia ser muita coisa, menos supersticiosa. As coisas que se dizia por aí! Se uma serpente ou um camaleão cruzar seu caminho, saia correndo antes que algo de ruim lhe aconteça... Se uma ave entrar voando em sua casa, alguém ali irá morrer...

Não à toa que existiam tantos charlatães que se aproveitavam explorando a crendice alheia! Médiuns, adivinhos, numerólogos, leitores de tarô...

Ela gostaria de dizer umas verdades para certa gente que acreditava nessas coisas!...

Lady Dobney tinha quarenta e sete anos. Tinha o nariz arrebitado e o gorro graciosamente ajeitado para o lado, sobre curtos cabelos morenos.

De pé no Terraço da Esfinge, com vista para a geleira Aletsch, ela se congratulou por ser uma mulher racional. Nunca cancelara uma viagem agendada para uma sexta-feira, dia treze, e nem tinha a mania de consultar o horóscopo no jornal da manhã.

Não, Lady Dobney era uma estilista. Não qualquer estilista. Ela primava pela etiqueta! O bem vestir-se... uma boa conduta...

Ficava indignada com esse desleixo e essa falta de modos das pessoas. Quase todo mundo ultimamente se divertia em violar as leis: leis de trânsito, leis contra drogas, leis sobre onde jogar o lixo. Qual o resultado? A baderna, o vandalismo, as pichações...

Horrível!

Ela não tivera uma educação tão solta e irresponsável... e nem admitia semelhante tipo de comportamento.

Hilary Dobney deu graças a Deus por ter um cérebro criativo. Como era bom refugiar-se no reino da inspiração, distante do atual mundo permeado de sofrimento, doenças e atos maus!

Refugiar-se num cenário como aquele... O vento gelado que soava, lúgubre, na cavidade das rochas. O ar tonificante. Os picos cobertos de neve. Um lugar tão encantador!

Tinha vindo para lá ansiosa, com medo de não aprontar a tempo os desenhos para os modelos da próxima estação. Tantas preocupações desnecessárias!

Os seus lábios cálidos e polpudos se abriram num sorriso.

Mais um dia e estaria no Albergue Branco. Já se imaginava comodamente instalada em uma das confortáveis poltronas... Num tripé, dentro do balde com gelo, uma Pommery. A iluminação fluorescente contrastando com a escuridão do entardecer...

Lady Dobney sentia-se bem consigo mesma.


IX.

 

O Eng. Simon Peters comia num restaurante em Zurique. Um almoço frugal, regado a gim e água tônica. De vez em quando largava o garfo e, discretamente, esperava até que aquela sensação ruim em seu peito passasse. A sensação que todo jogador compulsivo sente após uma semana longe das apostas.

Afinal, o eng. Peters era um jogador em fase de reabilitação.

A jogatina se introduzira em sua vida muito cedo. Mesmo jovem, já jogava dados nas ruas de München, e mais tarde pôquer a bordo dum navio, quando fugira para o mar, à idade de dezessete anos.

Antes de casar com Veronica, ele prometeu a ela e a si mesmo que jamais jogaria outra vez. Palavras vãs. Após um mês voltara ao seu hábito, começando a jogar às nove horas da noite, e terminando às cinco ou seis horas da manhã.

Insensatez, paixão, frenesi, fuga da realidade, aventura — tudo se misturava ao seu anseio de ganhar. Loteria, roleta, dados e cartas... nas eleições presidenciais, quanto a se o governo cairá ou não, e até na eleição do papa.

Durante anos ele ficara noites acordado, calculando as probabilidades dos cavalos — escolhendo em qual ia apostar no dia seguinte. Fazia qualquer coisa a fim de estar livre para passar os dias no hipódromo. Pedia, tomava emprestado ou roubava dinheiro para jogar. Tudo o que possuíam de valor estava em alguma loja de penhor.

A jogatina passara a arruinar seu casamento e sua personalidade. O pôquer requer muito blefe. Por fim estava blefando e mentindo em praticamente tudo na vida real. Além disso, havia o problema financeiro. Quando ganhava, tinha o impulso de gastá-lo imediatamente, de modo que o dinheiro não durava muito tempo.

Até que Veronica...

(Veronica... que por anos suportou tudo heroicamente.)

— Eu avisei, Simon — dissera ela. — Eu lamento...

Ele caíra de joelhos, entre soluços e lágrimas.

— Não, não... Eu imploro.

Ela falou, então, calculadamente fria:

— Adeus, Simon...

E assim — com seus gestos calmos, deliciosamente femininos — Veronica partiu.

Muito bem, aquele fora o começo de seu inferno particular! Viver sem a esposa... com a casa permanentemente em silêncio... sem ninguém nela para recebê-lo depois do trabalho... Oitos anos decorridos numa solidão patética e autoimposta.

Simon recorrera a um profissional para romper o laço de seu estúpido vício.

— Sugiro, Herr Peters, que tire férias — foi o recomendação do Dr. Hammes. Era um homem alto, de aspecto grave, com os cabelos ligeiramente prateados. — Férias... Acho que sei o nome de um local conveniente.

Albergue Branco... Perdido num recanto da Suíça. Cuja porta de entrada ficava sob um pórtico de pedra de três arcos, construído em estilo espanhol.

Queira Deus que dê certo, pensou Simon, esperançoso. Podia parecer um trocadilho, mas estava apostando todas as fichas... num jogo de cartas marcadas.


X.

 

Ludwig Hoerbst estava intrigado com o sujeito que, na outra mesa, espalmava pela quarta vez a mão no peito, como se estivesse travando uma luta tenaz e angustiante.

“Deve estar doente, o infeliz. Ou sofreu uma decepção amorosa e está vendo se encontra a mulher no fundo do copo. Essa gente bebe por qualquer coisinha! Todo esse êxodo na Síria... as privações na África... e aqui esse cara chorando por um rabo-de-saia!”

Anos atrás, Ludwig já tivera sua cota de problemas com o álcool. Numa época em que outros tomavam as decisões por ele, julgando que ele fosse um idiota ou coisa parecida.

A bem dizer, Ludwig Hoerbst sempre quisera ser agente secreto. Enfrentar guerrilheiros na América Central e do Sul... desmantelar redes de tráfico infantil... intervir em investigações de assassinato de políticos e famosos...

Que contradição!

Ludwig era alto e delgado, bem constituído, de forte personalidade e caráter firme. Homem de ação, capaz de reflexos instantâneos. Seus pais, por outro lado, o massacravam dizendo que ele não levava jeito, que era um incompetente — um fracassado.

Entretanto, isso ficara para trás.

Agora ele não prestava contas a ninguém. Dono de seu nariz, decidia por si mesmo aonde ia... a profissão que adotaria... ou o que quer que fosse.

Uma única coisa maculava a sua felicidade. Aquele incidente em Mulhouse, Alsácia... Espumava de raiva só de imaginar que, naquela ocasião, poderia ter sido indiciado!

A audácia de algumas pessoas! Faziam acusações como se fosse a coisa mais normal, sem se importar com as consequências ou o prejuízo que sobrevinha a outros. Ludwig quase fora vítima de um desses imbecis!

Felizmente fora salvo pelas câmeras de vigilância.

Ele não gostava de injustiças. Muito menos quando essa injustiça punha em risco a sua liberdade. Tributava um ódio louco por essa gente que acusava sem ter nenhuma prova... que acusava só para ver o circo vir abaixo.

O caso de Mulhouse merecia troco. Ludwig Hoerbst fizera algumas perguntas... até obter as respostas que queria. Estava munido de tudo o que precisava para seu projeto.

Conferiu o mapa aberto sobre a mesa. Ali ao sul, os bosques... Acima, o desfiladeiro e o rio... uma ponte alta. Num certo trecho, a garganta... e o túnel paralelo à encosta íngreme... No alto, o albergue!...

Ludwig balançou a cabeça.

— Você está aí, meu amigo! — disse à meia-voz, falando com alguém imaginário. — Wer zuletzt lacht, lacht am besten.

Logo, um esgar de furor e inquietação se estampou em sua face.


XI.

 

Cinco anos atrás...

— Bess?

A condessa Emily du Barry mal conseguiu articular o nome. Com a testa franzida, olhava fascinada para a arrumadeira que, depois de abrir o portão, se aprontava para tomar a rua.

Os olhos pardos de Bess se dilataram pelo assombro. Era uma jovem ruiva, com cabelos muito repuxados e recolhidos num tufo. Devagarinho virou-se. Vacilou, perplexa e sem saber o que fazer.

— Oh! — choramingou ela, com o rosto alterado pelo pânico.

A condessa era alta, bem feita como uma valquíria, de cabelos claros quase brancos. Usava um primaveril vestido cinza. Os olhos, no entanto, eram como dois poços sem fundo, intensamente negros. Por dias estivera observando a moça... espionando... espionando...

Ali estava Bess — saindo de fininho... Uma fuga...

Sua voz soou com inflexão gelada:

— O que é isso, Bess? Que... que mala é essa?

— São minhas coisas, senhora...

— Suas-coisas — repetiu a mulher, separando as sílabas. — Por quê? Você... está indo embora, Bess?

À esquerda, alguns coelhos saltaram para o matagal, assustados. O bosque formava uma massa negra e sinistra.

— N-não, senhora — balbuciou a arrumadeira.

— Não? — perguntou a condessa du Barry. Riu ostensivamente. — Minha Bess... minha pobre e descabeçada Bess!

A moça notou a leve insinuação implícita na frase.

— Deixe-me ir, senhora... Por favor!

— O que você tem aí dentro, hein? O que é, Bess? Pode dizer para mim, sim?

A jovem aproximou-se, com o olhar exprimindo ansiosa súplica.

— Não é nada, senhora... nada!

Ela falava com a voz entrecortada pelo pavor.

O riso em falsete elevou-se exultante. Uma atmosfera malévola, inquietante, desprendia-se da condessa.

De repente, a sua mão se ergueu. Um lampejo... o eco de um tiro... e Bess estremeceu. Um grito de surpresa, mortal, rompeu o ar da manhã. Em seguida, o ruído da queda de um corpo.

Do jardim do chalé vizinho, veio correndo um rapaz em mangas de camisa.

Tinha nas mãos uma tesoura de podar.

— Meu colar de berilos, meu colar de berilos — murmurava a condessa, enlouquecida. — Você ia levá-la de mim... é, querida? Você ia levá-la, Bess? Eu não poderia...

Um fio de sangue pingava da boca da arrumadeira moribunda:

— Não... eu não!... Me ajude! Oh!...

O rapaz com a tesoura de podar agachou-se, indeciso e atormentado por uma terrível luta interior.

— Deus do céu!... A senhora... atirou nela!

Atrás dele, a condessa revirava desvairadamente a mala, espalhando o conteúdo ao redor de si.

— Onde você a colocou? Onde?...

Largando a pistola, deu um grito de indefinível angústia, de selvagem e imensa dor. Um grito de agonia diante da terrível constatação...

Não havia nenhum sinal do colar de berilos...


As Formigas


I.

 


Monsieur Bouffler e o Dr. Lèfevre estavam sentados no pátio do albergue; contemplavam, muito abaixo, a paisagem no vale.

— Não achei que fosse tão alto!

— Alto para nós. Sempre tem gente disposta a se matar. Semanas atrás, um alpinista escalou o rochedo acolá.

— É esplêndido! — elogiou o doutor.

O gerente acenou. Olhou em volta, lisonjeado. Tinha rosto redondo e nariz achatado, que lhe davam um ar de buldogue. Com uma voz bem timbrada:

— E pensar que quase pulei fora quando recebi a oferta! — disse. — Comprei mais por insistência do pobre Morret. O homem estava endividado até o pescoço! Vendeu mesmo porque não tinha escolha.

O Dr. Anthur Lèfevre balançou a cabeça vigorosa. Fazia uma figura e tanto com seu cabelo crespo, enquanto longos bigodes de mongol caíam de ambos os lados da boca.

— Achei que sua esposa ajudasse na administração!

— Ela ajuda, doutor — disse Monsieur Bouffler. — Ajuda até demais. Houve uma emergência... Um acidente com a irmã. Teve que ir... não teve jeito.

— Nada grave, suponho.

— Não, não... Nada grave.

O médico teve a impressão que a resposta fora dada num tom um pouco brusco. Evasivo. Que curioso!

— Evie estará de volta no sábado — continuou o gerente, hesitante. — No sábado... depois de amanhã.

— Sei...

Nesse instante, um criado apareceu com uma garrafa de uísque. Aparentava uns trinta anos, alto, magro, de mãos grandes e ossudas.

— Obrigado, Jing. Todos já levantaram?

— Estão no refeitório, senhor.

— Bon.

— Muita gente? — perguntou o médico depois que Jing se afastou.

— Vejamos... O senhor, Gregory Stracker, Sali Grogan, Miss France Paxter, Frank Schippendale, Catherine Roskov, Nigel Ronet, Lady Hilary Dobney, Eng. Simon Peters e Ludwig Hörbst. Deixe-me contar... São dez. Falta só a Condessa du Barry.

— Condessa du Barry?

— Ela virá hoje. Recebi a notícia esta manhã. Pensei que traria seu filho dessa vez, doutor.

O Dr. Lèfevre, por um momento, não sabia se devia contar a verdade ou calar. Resolveu-se pela segunda opção.

— Houve... uns impedimentos. Fica para a próxima.

— Filhos! É por isso que eu e Evie...

Interrompendo o hoteleiro, Nigel Ronet irrompeu pelo pátio. Respirou, enchendo os pulmões; olhou para o vale longínquo.

— Que beleza! Parece uma pintura. Como disse a Rainha de Sabá a Salomão: “Só acreditei no que ouvi depois de vir e ver com os meus próprios olhos. E, na verdade, não me contaram nem a metade”.

Ele era um sujeito de rosto anguloso, com um bigode, e nariz reto, denunciando claramente sua nacionalidade.

— Fico feliz, meu jovem.

— Minha mãe fez doutorado em física. Meu pai estudou estatística na Universidade de Purdue, em Indiana. Hoje vivem lá, presos a seus empreguinhos e a sua vidinha de luxo. Vai soar até bobo o que o vou dizer... mas... eu adoro a NE-VE!

O seu berro se propagou pelo desfiladeiro.

— Então somos dois! — disse France Paxter avançando elegantemente até o trio.

O seu rosto formoso parecia muito alegre sob a maquilagem que o cobria, perfeitamente dispensável, aliás.

— Ora, vejam! — assobiou Nigel. — Parece, senhores, que não sou o único, afinal.

— Espere... Vou mostrar uma coisa a vocês.

Abrindo os braços, Miss Paxter inclinou-se por cima do parapeito.

— Miss! — apavorou-se Monsieur Bouffler.

Ela abriu os olhos desmesuradamente. Depois, retrocedendo vários passos, soltou uma forte gargalhada.

— O que foi? Fiquem calmos, eu não ia pular.

— Você é louca, France — riu Nigel.

— Não sou, não.

O Dr. Lèfevre mordeu o lábio.

“Ronet... já ouvi esse nome em algum lugar. Um industrial na área da borracha? Esse rapaz se parece com... Allan! Desocupado... sem nenhum futuro... Tomara que essa moça não arraste a asa para ele. Seria uma pena se fosse desvirtuada por um sujeito desses.”

— Tem que me dar um pouco da sua coragem — dizia Nigel, ainda admirado. — Odeio altura. Quase morri no trem a vapor.

— Eu sei. Eu estava lá, se lembra? Ouvi você falando com o maquinista. Pobrezinho... Achei que você ia surtar.

— Odiei você naquela manhã, sabia? Eu querendo puxar conversa, e você nem aí para ninguém. Que mulher sem compaixão!

— Não chore, bobinho. Você teve foi azar. Naquela hora eu estava cuidando de um assunto pessoal... e muito importante.

— Bah, no mínimo envolvendo a conta de seu cartão de crédito. Vocês, mulheres, tem a insuperável... não, a invencível... capacidade de gastar mais do que ganham.

— É claro. Você acha que andar assim produzida sai barato? Não mesmo, meu amor.

France girou o corpo esbelto.

— Salve, salve, Miss Insensibilidade! Está quase me convencendo.

Ainda trocando comentários cáusticos, o par saiu de cena.

— Jovens! — comentou Monsieur Bouffler. — Às vezes me pergunto se também éramos assim quando tínhamos essa idade.

— Provavelmente não — disse Anthur Lèfevre, azedo. — Nossa geração possuía princípios. Outros tempos, outros costumes. Agora cada um vive como quer e veja só a confusão.

— Nisso eu concordo.

— Pena que não haja mais gente como nós para comandar o mundo. As coisas seriam diferentes. Hoje as pessoas recorrem a amigos e a parentes, ou a livros de autoajuda, em busca de informações sobre medicação. Quanta bobagem! Quem é que garante que o diagnóstico dos pacientes é mesmo correto? Todo mundo está cada vez mais imediatista e perdeu o interesse em descobrir as causas de seus problemas. Acham que basta um comprimido para resolvê-los.

Durante alguns segundos, o gerente ficou calado. Seria difícil adivinhar os pensamentos que povoavam a cabeça hirsuta do médico.

Alguma revolta engasgada? Ou só um desabafo?

— Como eu disse, concordo com o senhor — respondeu Monsieur Bouffler. Levantou-se: — Felizmente ainda existem homens como nós, não é? Se me dá licença... Vou cuidar dos andamentos para o almoço.

Fazendo uma careta, e com uma pressa talvez exagerada, dirigiu-se para a porta do hall.

— Homens como nós! — resmungou o Dr. Lèfevre. Ele voltou-se para beber, de um trago, o que restava do uísque. — Logo não existirá mais nenhum!

Quanto a isso, estava absolutamente certo. De uma forma que nem mesmo ele poderia prever.


II.

 

Frank Schippendale subiu pela margem esquerda do rio, por entre um espesso bosque de pinheiros e cedros. Havia um cheiro de tempestade no ar.

Em todo caso, andar lhe fazia bem. Talvez assim conseguisse esquecer os acontecimentos da véspera.

Ele tinha chegado ao albergue ao entardecer, depois de uma longa e cansativa jornada, com direito a engarrafamentos, atrasos e tudo mais.

Aquilo, no entanto, não tinha sido o pior. O pior fora encontrar-se com France.

France... aquela menina com pose de madame!

Frank teve um calafrio, lembrando-se dela. A sua fria receptividade... as suas respostas, dadas com irritante má vontade... tudo para constrangê-lo diante dos outros hóspedes... como se não lhe devesse um pingo de consideração.

Rilhou os dentes.

“Eu sei o que há, France. Você quer me humilhar... Acha que tenho alguma relação com a morte de Agnes! Lembro-me do dia em que flagrei as duas confabulando aos cochichos... do susto que levaram quando entrei impressivamente no quarto! Pois pense o que quiser... Eu vou domá-la, France! Vou cortar essas suas unhas de gata ferida. Ah, se vou!”

Frank sorriu cinicamente.

À sua direita, a uns cem metros, uma cabana (de carvoeiro?) feita de troncos. Andou mais um pouco, cercado de plátanos e faias.

Surpreso, Frank notou um homem na trilha.

Estatura média, compleição corpulenta, a cabeça larga, plantada num pescoço vigoroso, em harmonia com a envergadura dos ombros. Era o engenheiro.

Simon Peters...

“O rei da jogatina... Que fulano chato!”

Simon esperou que Frank se aproximasse. Revirava uma ficha de pôquer na mão.

— Bom dia, Mr. Peters — disse Frank.

— Bom dia!

— Fazendo uma caminhada?

Simon deu um risinho.

— Faz parte de minha reabilitação. Mas não me arrisquei a ir muito longe. Dizem que tem uma nevasca vindo aí.

De repente, como se precisasse dar uma explicação, acrescentou:

— Quis descer até a beira do rio. Fui criado num lugar como esse, sabe. Meu bisavô era faroleiro. A sua única função era manter os reservatórios de óleo cheios, os pavios acesos e os vidros das lâmpadas sem fumaça... Para muita gente, uma coisa monótona. Para ele, um trabalho honroso!

Frank olhou para ele.

“Nervoso, o amigo. O que será que tem a esconder?”

— Já tinha vindo antes ao albergue?

— Não — disse Simon.

— Que tal a experiência?

— Vim ontem... ainda não sei. Tudo é meio rústico... e isso me atrai.

— Conhecia algum hóspede?

— O doutor... Creio que já ouvi falar dele, só não lembro onde e quando.

— É a minha quarta estada. Acompanhei todo o rodízio de proprietários... Monsieur Bouffler é o terceiro só nos últimos cinco anos.

— Os outros dois morreram?

— Nada tão sinistro — disse Frank, retomando a marcha de volta. — Faltou audácia, capacidade para decidir e compreender que a terra é o feudo dos lobos e que é preciso converter-se num deles, ou fazer frente para acabar com eles. Quando o dinheiro esgotou, pediram falência.

— Aquela mulher... a russa — disse Simon, após uma pausa. — É impressão minha, ou ela parece estar fugindo de alguma coisa?

— Vai lá saber! — grunhiu Frank. — Roskov... Esses comunistas não encaram as coisas como nós encaramos.

— Ela é comunista?

— Tem cara de ser. Ficou lá, no cantinho dela... mal beliscou a comida... e, como se não bastasse, foi se deitar cedo. Boa coisa é que não é.

— Talvez estivesse cansada...

— Mais cansada do que eu? Duvido. Não, algo nela me diz que não veio só para se recrear.

— Isso é meio assustador — sussurrou Simon, à meia-voz.

Por um momento, seu olhar perdeu a serenidade, e suas pupilas brilharam estranhamente.

— O que é assustador?

— Toda essa gente reunida lá, num só lugar... Ninguém conhecendo ninguém. A neve... o isolamento...

Frank observou-o detidamente antes de responder:

— Sabe a ilustração dos porcos-espinhos?

— N-não creio.

— No inverno, a manada dos porcos-espinhos se abriga toda ela numa só toca. Logicamente os espinhos... juntos aos milhares... devem causar alguns inconvenientes! Mas para os porcos é a única maneira de sobreviver. Dentro da toca, a vida. Fora da toca, a morte. Ha! Ha! Se a neve nos isolar, o que vamos preferir? A toca... com os eventuais espinhos... ou, se não estivermos a fim de nos socializar, o frio extremo fora dela? Boa história, não é? Ha! Ha!

Simon olhou-o boquiaberto. Que memória privilegiada! Falou com uma rapidez que contrastava com sua lerdeza habitual:

— Sim, muito boa.

— Mr. Peters, a sua cara não me engana. Por acaso receia que vamos morrer congelados?

A pergunta maliciosa de Frank foi respondida por uma espécie de bufado, um som de difícil interpretação.

— Morrer... congelados? — gaguejou Simon. — Não, não... Estou só apreensivo. Sintomas de minha doença. Há semanas que não aposto...

Frank deu ombros.

“Primeiro France me esnoba... Depois passo uma noite insone. Agora caio na companhia desse camarada complexado.”

O que mais poderia dar errado?


III.

 

Gregory Stracker olhou para Sali. A ternura de seus lábios... a sua pele macia... a calidez de suas mãos... o pescoço, delicado e suave, como o de um cisne... tão branco...

Sali tinha o rosto ruborizado e a respiração alterada.

Diante deles havia uma clareira. No meio, no sentido da largura, uma elevação no terreno, e em cima, de novo a densa floresta.

— Casar, eu? — dizia Gregory — Enfrentar redes de cabelo e peignoirs de flanela... Uma mulher que, no café da manhã, está irritada... e que interrompe você e diz: “Ai, meu bem, você tem que falar com o homem do açougue; precisamos de bife para domingo”, ou “Dá para fazer uma massagem aqui? Está coçando!”... Eu não, obrigado! Sou livre. Posso ir caçar na África, dedicar-me à pesca de trutas no Reno ou ir ao Quilimanjaro.

— Até parece!

Ele piscou. Olhou-a e beijou-a.

— Sali... minha amada Sali! O que você fez comigo? Eu sempre gostei de viver serenamente e sem qualquer desprendimento. Aqui estou eu... enfeitiçado. Totalmente louco. Não sei o que eu faria se perdesse você!

O sorriso da moça, leve a princípio, foi se acentuando.

— Falou sobre isso a seus pais, Greg?

Gregory tremeu; o rosto tornou-se violáceo e os lábios e o nariz incharam.

— Eles me viam por uma hora de manhã e no fim da tarde — respondeu, com um gesto de enfado. — Homens como meu pai ficam à frente de suas empresas, obtendo de cada euro o seu rendimento, vivendo o sonho dourado das mil e uma noites, sufocando seus concorrentes para acumular mais e mais poder, mais e mais riqueza. Se há uma coisa que não interessa aos Stracker é com quem saio e o que eu faço.

Sali assumiu uma expressão de perplexidade.

— Não seja tão mau, Greg. Se não consegue contar, vou com você. Podemos...

— Nem pense nisso. Não venha me ensinar o que devo fazer. Zelo muito pela valorização pessoal.

Gregory calou-se. Seus ombros se foram encolhendo, como se sobre eles gravitasse um enorme peso.

Houve um silêncio tenso.

— Sali, estou preocupado com você. Há alguma coisa que queira me dizer?

Aquilo atingiu a moça como setas envenenadas. A pergunta foi tão inesperada que ela quase perdeu o fôlego.

— Eu, Greg?

— Sim. O que aconteceu? Você está... mudada!

— Como assim?

— Mudada, ora. Diferente... outra pessoa, sei lá.

Sali olhou-o diretamente nos olhos e sentiu-se um pouco aliviada.

— Na verdade, Greg, não falei tudo que devia.

— Eu sabia! — respondeu Gregory. Sorriu e, ao fazê-lo, seu rosto se tornou maravilhosamente iluminado. — Vamos lá, Sally! Pode contar-me o que é?

Isso fez com que a conquistasse definitivamente.

— Perdoe-me, querido, eu devia ter contado tudo ontem. Um homem conversou comigo, há dois dias. Ele sugeriu que você poderia ser um...

— Um o quê? Diga!

— Um intermediário na venda e revenda de drogas.

Gregory ficou na mesma posição, imóvel, petrificado. Tinha os olhos vermelhos de ira, os dentes apertados.

Ela viu a surpresa dele e seus lábios vermelhos se entreabriram num débil sorriso.

— Você disse que queria saber! — queixou-se.

Gregory mordeu os lábios percebendo que acabava de cair numa cilada.

— Claro, claro... É que fiquei tão chocado! Lembra-se do homem? Consegue descrevê-lo?

— Baixo, a pele esticada e lisa... turco. “Vai nos ajudar, Miss Grogan”, disse ele. “Por bem ou recorrendo a uma ordem judicial, se for necessário.” Greg, foi o homem mais cínico e desprezível que conheci em toda minha vida!

— Turco? — avaliou Gregory. Fazia um enorme esforço para coordenar seus pensamentos dispersos. — Já vi um turco... Mas onde? Onde?

Sally atreveu-se a perguntar, em voz trêmula:

— Oh, Greg, ele é perigoso?

Gregory fez um gesto de asco, bastante expressivo:

— Daí se é perigoso ou não? O que importa é que estamos juntos. Venha cá, Sally... Abrace-me.

Abraçado à moça, nada parecia tão aflitivo.

Mas na mente de Gregory aquele mesmo advérbio continuou retumbando, vivo e pungente:

Onde?... Onde?...


IV.

 

Catherine Roskov olhou pelo quarto.

Os móveis eram caros e luxuosos, sem espalhafato, o que contribuía para acentuar a nota de bom gosto existente no hotel.

— Dessa vez tivemos a possibilidade de renovar o mobiliário — dissera Monsieur Bouffler, envaidecido. — Tudo escolhido pela própria Evie.

“Só mesmo uma mulher para inserir um pouco de aconchego neste lugar!”, aprovou Catherine com uma exclamação de prazer.

Penteou cuidadosamente a cabeleira negra, que caía numa cascata sedosa e brilhante, e desceu para o térreo. Abriu uma porta e entrou num salãozinho, de pequenas dimensões, também decorado e mobiliado com toque perfeitamente feminino.

— Oh!

Parou abruptamente quando viu que havia alguém ali.

— Desculpe-me...

— Entre... — disse Lady Hilary Dobney. — Estou só terminando uns rabiscos.

Rosto ovalado... Lábios generosos e grandes olhos claros. Pernas cruzadas... uma prancheta de desenho no colo...

Languidamente, Lady Dobney fazia traços com o lápis.

Madame Roskov não simpatizava muito com a australiana. Devia isso a seu olfato para reconhecer as verdades ocultas, ou mentiras que constituem o fundo das personalidades humanas.

— Se tivéssemos menos filhos, menos empregados, menos armas e menos desejos, seríamos mais felizes — dissera a estilista durante o jantar da véspera.

Se tivéssemos menos filhos...

O comentário tinha aborrecido Madame Roskov. Filhos... Varsóvia...

Tudo se interligava dentro de si... Não compreendia como uma solteirona podia falar de forma tão crítica e negativa do milagre da maternidade!

Mantendo seus nervos sob controle, Catherine foi para a janela. Lá fora, um vento glacial baixava das montanhas do norte.

— É a sua primeira vez?

A pergunta de Lady Dobney foi lacônica.

Sem querer, Catherine estremeceu.

“Que voz... estranha!”

As mulheres, em geral, têm voz de contralto... tranquilizante, amena, branda e macia.

A voz de Lady Dobney era quase uma aberração.

Áspera, esganiçada... Igualzinha à dona, acostumada a mandar e desmandar, a ter o mundo a seus pés.

— Sim, a primeira vez — disse Catherine.

— Aqui é adorável, você vai ver — acrescentou a estilista. — No início a gente sente um pouco falta do agito, da correria diária. Mas é até um alívio, sabe? Livrar-se das tarefas intermináveis da casa... dos prazos... das contas e impostos. Nem que seja temporariamente! Ah, já vale a pena.

Havia duas cômodas cadeiras de couro, de braços acolchoados. Catherine sentou-se numa delas.

Acenou com a cabeça.

Se sua saudade não fosse tão grande, talvez dissesse a mesma coisa.

Como invejava essas mulheres que não tinham marido possessivo... que podiam voltar à sua vidinha (boa ou má) à hora que quisessem!

— Você é russa, não é?

Outra pergunta... e feita com a mesma impetuosidade. A única diferença é que, desta vez, Lady Dobney espiava por cima da armação dos óculos.

— S-sim — disse Catherine. Seu falar era rouco, pausado. — Nasci em Leningrado. Desde que casei, porém, moro na Polônia.

— Separada?... Desquitada?...

— Nem uma coisa nem outra. Meu ex-marido se nega a assinar os papéis.

Lady Dobney fez um gesto complacente:

— Homens! — sentenciou, como se tivesse muito conhecimento na área. — Não têm moral nem respeitam ninguém, pensam apenas em si mesmos. Sabia, querida, que o Dr. Lèfevre já foi acusado de tentar matar a esposa?

Catherine piscou.

— Ele não escreve uns artigos sobre o perigo da automedicação? Achei-o um homem tão... bom!

— Talvez seja, quem é que vai saber? A defesa alegou que ele deu a dose de sonífero por engano. Para mim, foi uma jogada com a promotoria. Uma propina aqui, outra propina ali e... pronto.

Lady Dobney suspendeu o lápis. Inclinou-se e, num tom intimista, disse:

— Quer a minha opinião? Acho que ele era culpado. De fio a pavio. Não é por nada que o filho dele vive metido com más companhias. Quem planta o que não deve, colhe o que não quer.

Muito convicta, Lady Dobney balançou a cabeça.

“Pobre doutor!”, pensou Catherine.

Nesse instante, no vestíbulo, a porta bateu com um estrondo seco e as paredes vibraram perceptivelmente. As duas mulheres se entreolharam.

— Parece que um vendaval arrancou a porta do albergue! — disse Lady Dobney, com um divertido espanto.


V.

 

O vendaval em questão chamava-se Condessa du Barry.

Depois de abrir a porta, Monsieur Bouffler retrocedeu devido à rajada de vento. A neve começava a cair em flocos e o frio externo era cortante como o vidro.

A condessa penetrou no amplo hall, em cujo lado esquerdo iniciava-se uma escada que levava ao andar de cima. Tinha o aspecto lamentável, com as roupas encharcadas e o rosto extremamente ruborizado.

Incrível que tivesse chegado até ali!

— Madame... — disse o embaraçado gerente.

A mulher estava pálida, serena, cheia de ira. Seus olhos procuravam fulminá-lo. Por fim, falou determinada:

— Penso que combinamos que alguém ficaria à minha espera na plataforma!

Um tom amarelado se estendeu sobre a pele morena de Monsieur Bouffler.

— A tempestade deve ter derrubado a torre. Não consegui ligação.

— É essa a sua desculpa? Monsieur... Saiba que estou profundamente desapontada! Faça o favor de mandar buscar a minha bagagem... o quanto antes!

Ele enrubesceu, como se houvesse sido esbofeteado, e disse, com a voz alterada pela emoção:

— Será feito, Madame!

— Conduza-me a meu quarto, por favor!

Monsieur Bouffler não respondeu, limitando-se a passar a língua nos lábios ressequidos, e a engolir em seco.

Pegou uma chave do quadro atrás do balcão e, solícito, precedeu a condessa até o andar superior. Aberto o quarto, acendeu logo a luz, mostrando um ambiente sobriamente decorado.

— Espero que lhe agrade, Madame. Se precisar, temos um médico que... Basta tocar a campainha...

Os olhinhos carregados de malignidade fixaram-se nele.

— Monsieur... Minha bagagem!

Nunca ele havia sido tratado assim. Seus lábios chegaram a abrir-se, para retrucar no mesmo tom.

— Sim, Madame — acabou por dizer.

Fazendo uma reverência, Monsieur Bouffler girou sobre os calcanhares e retirou-se.

“É muito cômodo receber sempre o melhor, sem dar nada em troca”, resmungou entre os dentes.

A Condessa du Barry virou-se e, devagar, começou a descalçar as luvas. Os dedos estavam dormentes e todo o seu ser clamava por um banho quente.

Lembrou-se da praia Grand Anse, em Granada...

As estradas em ziguezague...

Céu azul... areia branca...

As ondas calmas.

O calor...

Em vez disso, estava ali — imersa na neve...

— Calma, Emily... — dizia uma minúscula seção de sua mente. — Concentre-se em seu objetivo! O objetivo... É isso que interessa — nada mais!

Buscou se lembrar do teor da carta recebida há cerca de quinze dias:


Örebro, Suécia


Prezada Condessa,


Eu sei sobre o seu colar de berilos!

Venha ao Albergue Branco, Suíça...

Anexos vão o recibo do pagamento de sua estadia e as demais especificações.


Um amigo.


O colar...

A carta reavivara nela todas as recordações do dia em que atirara em Bess...

O conteúdo da mala esparramado na grama.

Batons, uma lista de compras, pinças, alfinetes de segurança, cartões de crédito, souvenires de uma viagem à Estônia e amostras de tecido.

Lembrara-a dos procedimentos policiais...

O julgamento.

O juiz dizendo:

— Não existem sólidos argumentos em evidência, mesmo tomados cumulativamente, para provar que...

Ela fora inocentada... Sob a alegação de que a pistola tinha disparado acidentalmente.

Não só isso — que a pistola tinha disparado acidentalmente porque estava em posse de Bess!

Sim, Bess — a vítima.

Por aí se via como a justiça era falha...

Pelo simples fato do rapaz com a tesoura de podar não ter comparecido ao tribunal. Ele... o único que vira toda a cadeia de acontecimentos e que poderia ter testemunhado contra ela! O único cujo depoimento teria sido decisivo.

Tinham decorrido tantos anos...

Até que — do nada — viera aquela carta!

A Condessa du Barry teve que admitir que, naquele momento, estava um pouco assustada. Parecia que, de algum modo, o espectro do passado sempre voltava para assombrá-la...


VI.

 

Ludwig Hoerbst estava num tipo de escritório, bem mobiliado, sem muito luxo, mas com certa solidez. Uma grande janela, muita luz.

— Bonito albergue — disse para si mesmo.

Uma estrutura de madeira de dois andares... Porão com paredes de pedra, sala de estar, sala de cinema, cozinha, lavanderia, quinze quartos e, no térreo, uma sala de jogos. Nenhuma construção suplementar, exceto um chalé que servia de depósito.

— Muito bonito — repetiu Ludwig.

Bebericou outro gole de gin com limão.

Era muito louro, robusto, de ombros largos...

Tudo o que ele fazia apoiava-se num só lema:

— Não existe paralisação. Ou as coisas vão adiante ou voltam atrás. Ou melhoram ou pioram.

Aquela ideia foi como uma faísca brilhante em seu espírito.

Para ele, as coisas definitivamente tinham ido adiante!

O que acontecera em Mulhouse estava prestes a se tornar uma página virada. Mais um pouco, e a pessoa culpada por todo seu vexame teria a devida retribuição!

— Sem libertar-se de certos traumas, não é possível gozar a vida plenamente — grunhiu Ludwig.

Isso foi o que ele disse, mas no seu tom, apesar da violência que empregava, havia certa hesitação.

Não se deixe vencer pelo mal, mas continue vencendo o mal com o bem, dizia o texto bíblico.

Sacudiu vigorosamente a cabeça.

Não, nada de hesitações... Precisava desfazer seus temores!

Iria até o fim com o que tinha planejado! Fosse como fosse...

Quase com preguiça, Ludwig deu uma olhada pelo escritório. Era uma peça atapetada de vermelho onde as estantes estavam praticamente sem livros. Algumas paisagens pintadas à aquarela adornavam os espaços vazios das paredes. Entre os quadros, atrás da escrivaninha, uma coisa chamou sua atenção. Um papel cravado com um dardo no reboco.

Levantou-se e caminhou até lá. Havia um verso escrito no papel. Dizia:


Ao toque do sino, a colheita da uva temporã começou;

O coração da primeira formiga — que triste! – parou


Sino... Formiga...

Que diabos significava aquilo?

Antes que chegasse a uma conclusão, a porta se abriu e Monsieur Bouffler entrou. Bufando — como se estivesse com muita pressa.

— Herr Hoerbst... Perdoe-me por incomodá-lo. Viu Jing?

— Quem é Jing? — perguntou Ludwig.

— O meu assessor.

— Não, não vi.

O gerente ficou ainda mais lívido. Chocou uma mão contra a outra:

— Mais essa! Onde foi parar esse rapaz?

Bufou pela segunda vez e saiu chispando. Se não encontrasse Jing logo, ele mesmo teria que ir à estação atrás das malas da condessa!

Ludwig sorriu. Meu assessor? Engraçado como as pessoas conseguiam relativizar as coisas...

Ficou pensativo por alguns segundos e depois comentou, em voz alta:

— Até o fim com o que planejei. Haja o que houver...


VII.

 

O Dr. Lèfevre mirou-se no espelho. Conforme a norma da casa, o jantar era servido às 6 e meia.

A notícia sobre o desaparecimento de Jing havia chegado a todos os ouvidos. Por conta disso, cada recinto, cada nicho e saliência tinham sido revirados na esperança de localizar o empregado.

Nada. Jing parecia nunca ter existido.

Alguém sugerira fazer uma busca nos entornos. Iniciativa imediatamente abortada por causa da piora das condições do tempo. Sem cessar, turbilhões de neve fustigavam os vidros da janela, desestimulando qualquer ato de heroísmo impensado.

Para o médico tudo aquilo era interessantíssimo. Jing... o jovem atendente...

A condessa dissera ter visto, em seu desembarque, um casal de pé na plataforma da estação. Não, não vira o rosto de nenhum dos dois.

Um casal?

As perguntas eram: teria Jing embarcado no trem a vapor? Se sim, quem seria a pessoa com ele?

Ajeitando o casaco, o Dr. Lèfevre acariciou o queixo pensativamente. Depois desligou as luzes e saiu do quarto.

Ainda na escada, ouviu vozes altas no térreo.

— Contei-lhe tudo o que sei, Monsieur — dizia Sali Grogan. — Se lhe prometi ser franca, não vejo por que duvidar de mim. Ela não está em parte alguma!

— Não! — contestou Monsieur Bouffler taxativamente. — Ela tem que estar em algum lugar! Tem que estar...

Seu rosto cobria-se de uma tonalidade cinzenta. Levou a mão ao peito, como se quisesse controlar os atrapalhados batimentos cardíacos.

Lèfevre olhou para Sali.

— O que aconteceu?

Ela devolveu o olhar.

— A cozinheira!...

— O que tem a cozinheira?

— O que tem? — perguntou Sali, com ar desencantado. Encolheu os ombros e disse: — Ela também sumiu!


Morte no Formigueiro


I.

 

O jantar foi excelente.

Chateaubriand ao molho béarnaise... rosbife de forno...

Graças à Catherine Roskov, que se mostrou uma cozinheira-substituta a altura da gravidade do caso.

A sala de jantar... a luz das inúmeras lâmpadas dos lustres de bronze e cristal... O bom humor logo voltou a reinar.

Os hóspedes travaram relações entre si. Jogaram cartas, no salão de estar, junto ao belo fogo da chaminé, consumindo o melhor uísque da casa. O Dr. Lèfevre era o mais comunicativo e falou sobre seu tema da vez: de como a mistura de sedativos, ansiolíticos e opioides é perigosa para a saúde. Gregory Stracker e a namorada escutavam com respeito quase filial a dissertação. Sali vestia um modelo cinza, com laivos de vermelho e seus olhos verdes faiscavam. Miss Paxter bocejava, enquanto Frank Schippendale discorria sobre as causas da morte de Mrs. Dreyhorn. Nigel queria saber sobre o tratamento do eng. Peters que, como sempre, brincava com sua ficha de pôquer.

— Querem ouvir uma poesia? — perguntou Ludwig, que até ali estivera calado.

Todos se viraram, curiosos. Houvera até alguns que achavam que ele era mudo!

Nigel deu um assovio de admiração.

— Que poesia, Herr Hoerbst?

— Ouçam só isto: — Ludwig limpou a voz e leu:


Ao toque do sino, a colheita da uva temporã começou;

O coração da primeira formiga — que triste! – parou


— Verso interessante, não?

— Muito — disse France.

— É mesmo.

— Parabéns.

— Ridículo! — disse a condessa du Barry, sentada à parte.

— Quando o escreveu?

— Não é meu — respondeu Ludwig. — Estava no escritório, pregado à parede.

— Onde? — perguntou Monsieur Bouffler, repondo lenha na lareira.

— É esquisito, mas estava lá... Fincado na parede com um dardo.

Houve uma breve troca de olhares. Dardo?

— Nos países democráticos sempre acontece alguma coisa, graças à liberdade de que gozam os homens bons... e os maus — disse Frank com uma sutil ironia.

— Frank! — ralhou Miss France Paxter.

— O quê?! Falei alguma coisa errada?

— Quando vai publicar as suas memórias, doutor? — perguntou Sali, retomando o assunto com o médico.

— Só depois que eu morrer — respondeu o Dr. Lèfevre.

— Oh, tomara que seja logo — disse ela, toda empolgada, sem dar-se conta de sua gafe.

Gregory tamborilou nervosamente no braço da poltrona, e seu ar preocupado e distante pareceu contagiar Sali.

— O que foi, Greg?

— Humm?

— Está aí, olhando para mim como se não me visse!

— Meu celular — disse Gregory. — Desde à tarde que não pega sinal.

Sali dirigiu-lhe um olhar perscrutador:

— O celular... sei!

Gregory parou de executar o movimento mecânico dos dedos e ficou de pé, possuído por uma firme resolução.

— Eu já volto — disse, e deixou a sala.

Catherine Roskov e Lady Dobney discutiam o sumiço de Jing e da cozinheira.

— Podem ter morrido na neve — dizia Catherine, horrorizada com os estralos no telhado.

— Pouco me importa — disse Lady Dobney secamente. Afastou o desenho para vê-lo de outro ângulo.

Catherine se surpreendeu com a resposta.

— E se tiverem caído numa ravina?

— Eles não caíram numa ravina — disse Lady Dobney com a maior naturalidade. — Estou certa de que estão vivos... bem vivos.

— Aqui?

— Claro que não — riu Lady Dobney. — Nalgum lugar... lá embaixo.

Madame Roskov esbugalhou os olhos.

— Mas como?

— Como? — Lady Dobney esboçou um gesto indiferente: — Essa gente tem o mesmo perfil. Veja... Criado e cozinheira. Homem e mulher. Mesma classe social. Nem ele nem ela muito apetecíveis na aparência. O que isso sugere? O que acha que aconteceu?

— Tiveram um caso?

— Tiveram um caso! E depois?

Lady Dobney conduzia as perguntas com a habilidade de uma veterana. Deixando Catherine cada vez mais assombrada com as óbvias deduções.

— Depois fugiram juntos!

— Na Rússia não existem essas coisas? Entre nós isso é completamente normal.

— A condessa disse ter visto um casal na estação de trem. Eram eles!

Lady Dobney deu uma risadinha.

— Bravos!

— Coitado de Monsieur Bouffler! — disse Catherine, penalizada.

— Coitados de nós, isso sim! Quem acha que vai ter que cozinhar, agora que ficamos sem Frau Kroth?

— Eu me disponho. Não tenho mesmo nada para fazer.

— É um anjo, Madame Roskov — congratulou Hilary Dobney. — Um anjo abnegado, o que é melhor.

Catherine gostou do elogio. Até mesmo as cores lhe voltaram às faces.

Ninguém mais estava jogando. Todos tinham se espalhado em grupinhos, conversando para passar o tempo.

Ludwig Hoerbst bocejou; depois da inatividade do dia, mal conseguia se manter acordado. Era um mistério por que ainda não havia ido se recolher. Num lado, o Dr. Lèfevre observava a pintura de uma rua estreita, flanqueada por casas de um só pavimento — casas que se retorciam em ângulos totalmente inverossímeis. Frank tinha desistido de assediar Miss Paxter e agora tomava em goles e pausados a sua bebida. Mulheres, pensou sorrindo. Quanto mais esperneiam, mais querem...

Aguardando a volta de Gregory, Sali Grogan sentou-se perto do fogo. Olhou para a condessa.

— Muito frio, não?

— Nojento — grunhiu a sueca com evidente hostilidade.

Sali vacilou. Depois, sem se abalar, disse prontamente:

— Nem tudo é como a gente quer.

A condessa du Barry deu outro grunhido desarticulado.

— Bobagem. Tudo pode ser como nós queremos... desde que se queira.

— Monsieur Bouffler não é homem de muita ação.

— Franceses! Nenhum deles foge à regra.

— Suíço.

A condessa franziu as sobrancelhas.

— Ele não é francês — explicou Sali, como se falasse para si mesma. — É suíço... naturalizado.

— Dá na mesma. É irônico que ele não conheça o métier a que se dedica. Hoje quase morri congelada!

E Sali:

— Deve ser terrível perder dois funcionários de uma vez só.

— Eu gosto de previsibilidade — retrucou a Condessa du Barry. — Se pudesse...

Foi interrompida no meio da frase.

Como um som saído das profundezas da terra, um ribombo cavo, forte e trovejante, reboou pela montanha. Tudo no albergue (desde as traves de madeira até a fundação na rocha) tremeu com o espetacular estrondo.

O murmúrio das conversas aquietou-se como por encanto.

— Deus do céu! — empalideceu Lady Dobney, levantando o corpo.

Tornou a sentar-se, sem vontade de fazer novos comentários.

Dando um salto, Sali gritou:

— Greg! Greg!

Disparou para a porta, com um fulgor de pânico no olhar.

Surgindo não se sabe de onde, Gregory irrompeu na sala. Todos o contemplaram num silêncio embevecido, quase religioso.

Gregory passeou os olhos pelos ouvintes:

— É, gente! Essa avalanche sepultou de vez nossas perspectivas de sair daqui...


II.

 


Eram duas horas da madrugada...

Monsieur Bouffler revolvia-se na cama sem conseguir dormir. Sobre o teto, o vento assobiava sua música monocórdica.

Como gostaria que Evie estivesse ali!

Evie... que, na adolescência, fazia tão bem aquela Desdêmona, de Otelo! Ária apos ária... em modulato seguro...

Evie... com seus lábios rosados, sem batom, e o rosto um tanto pálido. Evie... num vestido negro, de gola alta.

Ela sempre fora uma boa conselheira.

Como nunca, Monsieur Bouffler precisava de orientações!

Parecia que uma maldição havia se abatido sobre ele. Primeiro Jing e Frau Kroth tinham ido... provavelmente voltado à cidade.

Por quê?

Será que ele não pagava o suficiente? Não, a remuneração sempre fora justa. Ele denotava tratar-se de pessoa de pouca ou nenhuma cultura, mas felizmente era honesto — e isso devia valer alguma coisa!

Jing era detentor de uma renda modesta, um sujeito estável e meio enfadonho. Ele não faria uma coisa dessas por nada. Deveria haver uma razão para sua partida. Mas qual?

Mais tarde, a avalanche... Era para matar!

Monsieur Bouffler lutava para juntar as peças...

Ali deitado, ouviu uma batida na porta do quarto. O toc-toc ressoou em seu espírito como o som de um clarinete. Trêmulo, sentou-se na cama.

Viu que, pela fresta, coava-se uma luz mortiça. A luz bruxuleante de uma vela...

Jogou a coberta para o lado. Pé ante pé, aproximou-se da porta tremendo de emoção, concentrando todos os seus sentidos.

Entreabriu. Levou um choque... No corredor, na semiobscuridade, estava um vulto de capa e capuz.

Recuou um passo, receoso. Num tom ciciante, o vulto pediu:

— Siga-me!

A voz parecia familiar, apesar de não conseguir identificá-la momentaneamente devido à tontura.

— Para... onde? — perguntou Monsieur Bouffler, a muito custo.

Mas, quem quer que fosse, já tinha se afastado. Siga-me?

Ele arquejou, limpando o suor da testa. Aquilo lhe devolveu um pouco de coragem.

Puxando o roupão, saiu para o corredor. O foco de luz estava lá, descendo sorrateiramente os degraus da escada. Decidido, foi atrás.

Escutou uma porta se abrindo no vestíbulo. Uma das que levavam à cozinha ou aos quartos inferiores? Ou...

Apressou-se e chegou ao térreo a tempo de ver o vulto entrar no escritório. Monsieur Bouffler hesitou. E agora? Deveria continuar indo atrás?

Inspirou fundo e bateu com o nó dos dedos na porta. Ninguém respondeu. Abriu e, com cautela, entrou.

Seus olhos perfuraram a escuridão. Nada. Nada alterava a imobilidade geral. Então ele viu...

O personagem de capa estava em frente à janela, que recortava a sua silhueta contra a brancura da neve que caía.

Os olhos de Monsieur Bouffler adquiriram um estranho brilho opaco à vista do enigmático fantasma, ali diante dele.

Os lábios tremeram-lhe convulsivamente. Ficou parado, as pernas abertas em forma de compasso e os braços pendentes.

— Quem... quem é você? — perguntou, interrompendo o prolongado e incômodo silêncio.

O vulto olhou-o com atenção. Parecia um animal contemplando a sua presa.

— Seja lá quem for... — disse Monsieur Bouffler, sem compreender o que ocorria.

Ele piscava furiosamente, e sua palidez havia aumentado. Por um curto instante a vela iluminou um rosto por baixo do capuz.

— Você?! — exclamou Monsieur Bouffler com voz pastosa.

Foi um grito de angústia, como um protesto.

Sobressaindo ao lamento da ventania, ouviu-se o espocar de um tiro.

Monsieur Bouffler oscilou e, abrindo os braços em cruz, bateu no chão com um baque seco.


III.

 


Na manhã seguinte, a neve continuava a cair, mas verticalmente, sem torvelinhos.

— Oito e meia! — disse Gregory puxando as cortinas do quarto de Sali. — Hora de acordar, dorminhoca.

Sali esfregou os olhos.

— Isso são modos, Greg? Deixe-me dormir, vai?

— Negativo, Miss Ronrom. Outro lindo dia no Morro dos Ventos Uivantes!

— Nem me fale! — disse a moça, espreguiçando-se. — Não diga que estamos mesmo presos aqui.

— Olhe só a quantidade de neve que desmoronou. Dá para encher a bacia do Mar Morto.

O cenário era desolador. A cinquenta metros, os entulhos de gelo desciam a montanha numa larga faixa.

— Adeus estação de trem!

— Você ainda não contou aonde foi ontem à noite.

— Aonde-eu-fui?

Sali olhava para ele com a mesma graça felina com que uma menina olha para o seu cãozinho. Ela vestia um negligé preto, sem mangas, o que deixava à mostra a pele branca dos braços.

— Esqueceu, é, Greg?

— A neve esgota meus nervos — disse Gregory, como desculpa. — Venho aqui há anos, mas não me acostumo com ela.

— Eu vou ajudá-lo a lembrar. Na hora da avalanche. Você havia saído da sala, Greg.

— Eu fui... respirar. Estava tonto com o cheiro da fumaça.

Sali levantou o queixo belicosamente, um tanto sarcástica.

— Por que não me disse? Eu poderia ter providenciado um chazinho.

— Você estava tão entretida com o doutor!

— E você é um mau mentiroso. Aliás, você não é bom em nada, não é, querido?

— Eu sei ceifar feno muito bem, se quer saber — disse Gregory. — Ainda vou pisar o cascalho da lua... vai ver!

No mesmo instante, ouviram passos alvoroçados no corredor e alguém gritando:

— Dr. Lèfevre! Dr. Lèfevre!

— Estou aqui, Madame Roskov — respondeu a voz do médico. — Calma, o que foi?

— O senhor tem que vir, por favor!

Houve algumas exclamações. Após alguns segundos, mais passos, desta vez se afastando velozmente.

— Que será que está acontecendo? — estranhou Sali.

— Troque de roupa e vamos descer — disse Gregory.

Sali voltou-se airosa e altivamente e caminhou para a porta.

— Bobagem! Venha...

Desceram. Uma turba de gente se aglomerava no escritório. Sali dirigiu-se a Ludwig, que era um dos retardatários:

— O que aconteceu? Tem alguém doente?

— Eu não diria doente — respondeu Ludwig, muito baixo. — A coisa é um pouco pior.

— Pior? Quanto pior?

A pergunta soou seca e insistente.

— Monsieur Bouffler foi assassinado.

— Assassinado?

— Uma bala... Direto no peito.

Gregory e Sali se entreolharam.

— Quando foi isso?

— Durante a noite.

— Quem atirou?

— Ninguém sabe — disse Ludwig, atordoado.

— Ninguém sabe? Ora, isso é impossível. Alguém deve ter visto alguma coisa!

Outros se envolveram na discussão.

— Eu não vi nada — disse Miss Paxter, na defensiva.

— Nem eu.

— Nem eu.

— Eu acho que ouvi uma coisa — disse o eng. Simon Peters.

— Ouviu? — perguntaram todos.

Simon prosseguiu, agora num tom surpreendentemente diferente:

— Eram umas três horas. Creio que ouvi um disparo. Mas... mas pode ter sido a nevasca.

“Pode ter sido a nevasca”, arremedou Gregory, indignado. “Esse cara devia estar num hospício!”

Dentro do gabinete, o Dr. Lèfevre examinava o morto.

Havia uma poltrona niquelada atrás da escrivaninha. Nela, Monsieur Bouffler... O rosto cor de terra e os lábios violáceos transformavam o homem num cadáver de aspecto repelente.

Nas costas, na altura do ombro esquerdo, o buraco por onde saíra a bala.

— Parece que atiraram nele sentado — disse Frank Schippendale, de certa distância.

— Não necessariamente — respondeu o Dr. Lèfevre. — Ele pode ter sido morto em outro lugar e trazido para cá depois.

— É, faz sentido — concordou Frank.

Para o médico era mais prático deixar de lado a psicologia e outros métodos habituais dos investigadores modernos. Acrescentou:

— Não há vestígios da bala no espaldar da poltrona. Ouçam-me todos! Temos que apurar o que aconteceu aqui. Por isso, quero que saiam, ok? Estou proclamando a extraterritorialidade desse setor.

Ninguém teve objeções. Apesar do fascínio exercido pela cena do crime, todos obedeceram.

— Madame Roskov! — disse o Dr. Lèfevre. — Pode me dar uma mão?

O lábio inferior de Catherine tremeu perceptivelmente.

— Oh, doutor... Eu não posso! Não consigo...

— Alguém outro? Monsieur Ronet...

Nigel engoliu em seco.

— S-sim...

— Esplêndido, meu rapaz. Vamos fazer o seguinte... Temos que reconstituir as circunstâncias do assassinato. Suicídio não foi, se não teríamos achado a arma. Verifique se há sangue no chão... ou onde quer que seja.

— Aqui! — disse Nigel, após um ou dois minutos.

O doutor acorreu e ajoelhou-se no lugar indicado.

— Ótimo trabalho, Monsieur Ronet. Tapete... respingos quase invisíveis... Daqui até a cadeira dão uns três metros. Ou seja, o corpo foi transportado por três metros até lá. Peso? Cerca de 80 quilos. Teria que ser alguém robusto para fazer essa proeza.

Nigel estalou os dedos.

— A menos...

Atrás das lentes de seus óculos de aros de tartaruga, os olhos do Dr. Lèfevre expressaram alarma.

— A menos o quê?

— Que o corpo tenha sido carregado por duas pessoas — disse Nigel.


IV.

 


— Explique — disse o Dr. Lèfevre.

— Duas pessoas, doutor! Jing e a cozinheira.

— Mas eles foram embora. A condessa viu...

— Não — disse Nigel. Ao que parecia, ele focalizava a questão de outro modo. — Ela os viu na estação. Podem ter voltado para cá... ter se escondido no depósito... e, de madrugada, tê-lo matado.

O médico, sem pensar duas vezes, ergueu sua mão resolutamente.

— Talvez. Sim, guarde consigo essa possibilidade, Monsieur. Ainda pode ser útil... mais tarde.

— Acredita no que eu disse, doutor?

— Acredito, mas só condicionalmente. Aprendi, meu jovem, que muitas vezes a verdade pode ser bem estranha.

“Há muita gente aqui”, pensava o doutor. “Sim, muita gente...”

— Temos que ouvir melhor essa história — concluiu energicamente. — Obrigado por seu espírito cooperativo, Monsieur Ronet.

Deixaram o escritório. Todos olharam para ele, na expectativa.

— Creio que a situação é muita clara — disse o Dr. Lèfevre. Sua atitude desembaraçada e independente mostrava autoridade. — Nosso anfitrião foi morto por alguém... ou alguéns... Para agravar, a torre de transmissão sofreu uma avaria e cortou nosso contato com o mundo exterior. A neve isolou o albergue, e vai reter-nos por alguns dias. Se for como penso, devemos ter suprimentos na despensa; portanto, não há por que se preocupar. Para quem quiser, Madame Roskov pode preparar o café. Pode me conceder um minuto, Lady Dobney?

Lady Dobney meneou a cabeça lentamente. Distanciaram-se até a um canto do saguão.

— A senhora parece uma mulher sensata e ponderada — explicou o Dr. Lèfevre, impassível. — Há algumas coisas nesse crime que... bem, não me satisfazem.

— Nem a mim — disse a estilista com franqueza.

— Pretendo confrontar essa gente. Não me agrada a ideia de ter um assassino entre nós...

— Compreendo. E onde eu entro nisso?

— Quero que, enquanto faço as perguntas, assente os depoimentos por escrito. Se puder, Lady, eu ficaria muito grato.

O esforço da mulher para sorrir mais pareceu um esgar de dor ou de fadiga.

— Posso sim — resignou-se.

— Bom, bom...

O médico abriu a porta que dava para uma espécie de salinha de estar, onde não havia ninguém à vista. Ideal para a sua improvisada sessão de interrogatórios.

Devidamente convocados, dali a meia hora todos apareceram na sala. Entraram, vencidos, esperando quem sabe lá que espécie de catástrofe ou súbito golpe do destino.

— Estamos ao seu dispor, doutor — disse Gregory.

— Sentem-se.

Lady Dobney estava na poltrona; de pernas cruzadas, encarnava a imagem da estenógrafa sóbria e competente.

— A morte é a musa da filosofia e da arte — começou o Dr. Lèfevre. — É certo que há crimes que até merecem troféus. Mas não se pode estabelecer tal norma. Se assim fosse, as ruas de nossas metrópoles estariam juncadas de cadáveres. Por isso mesmo, temos que descobrir o que houve com Monsieur Bouffler. É preciso caçar seu assassino que não pode ser senão algum de nós.

— O que o senhor quer conosco? — perguntou Sali. — Julga que nós os assassinamos?

— Assassinaram?

— Por que faríamos isso? Nós... eu mal conhecia esse homem. Dormi como uma pedra. Não vi nem ouvi nada.

— E o senhor, Mr. Stracker?

— Eu? — ofegou Gregory, estupefato. — Ratifico as palavras de Sali. Dormi até de manhã.

— Alguma rixa? Desentendimento?

— Não... E se tivesse, eu não diria, não?

Um por um, com poucas variações, a maioria disse substancialmente a mesma coisa. A única exceção foi o eng. Peters, que insistiu em sua versão.

— Um disparo?

— Sim.

— Que horas eram?

— Cerca das três...

A voz era roufenha, como a de um homem a quem acabaram de arrancar bruscamente do sono.

— Isso confere com o que eu mesmo constatei— disse o médico, em tom apaziguador. — Três horas... Talvez a hora aproximada da morte. Conte-nos, Madame Roskov, como foi que encontrou o corpo?

Catherine instintivamente ia levantar-se, mas, reagindo, sentou-se novamente:

— Desci para ir à cozinha... Entrei na porta errada. Estava tudo escuro... Acendi a luz e vi... Oh, fico arrepiada só de imaginar!

Frank atalhou:

— Admiro a sua determinação, doutor. Pelo que entendi, um de nós... teoricamente... assassinou Monsieur Bouffler. Falta o motivo!

— O motivo? — rosnou o Dr. Lèfevre. — É a primeira vez que vem ao albergue, Mr. Schippendale?

— Isso tem importância?

— Deixe para eu julgar se tem ou não importância. Limite-se a dar a informação que pedi.

Os olhos de Frank pareciam querer sair das órbitas.

— Não — irritou-se. — É a quarta vez.

— Por que voltou?

— Não vem ao caso.

— Voltou para tirar satisfações?

— Ora, doutor — respondeu Frank. — Meu avô era promotor adjunto da Coroa para a cidade de Toronto quando se alistou como cadete das forças blindadas canadenses. Alcançou o posto de brigadeiro e foi condecorado com a Legião do Mérito. Nada mal, hein? Descendo de pessoas civilizadas, não de uma tribo de assassinos.

— Frank está aqui por minha causa — disse France.

— Por sua causa, Miss Paxter?

France:

— Minha tia Agnes morreu há poucos dias. Frank enviou-me um e-mail... Afirmou que ia me entregar o que ela tinha legado para mim.

— E o que é?

— E-eu não sei.

— O que tem a declarar a isso, Mr. Schippendale? — perguntou o médico friamente.

Frank empacou. Seu rosto estava congestionado e tudo nele indicava o aspecto de quem momentaneamente perdeu a razão.

— Não interessa. Quanto ao mais, o caso é seu, doutor. Talvez o senhor, com a mente desintoxicada, possa dizer o que é.

— Frank! — suplicou Miss Paxter.

— De que lado você está, France? Dele?

— De ninguém, Frank. Diga só a verdade. O que foi que titia queria que você me desse?

Frank olhou para ela, sentindo tudo desmoronar dentro de si.

— Basta com essa farsa! — resmungou.

E saiu da sala. O Dr. Lèfevre umedeceu os lábios.

— Mais alguém que não quer que esse caso seja desvendado?

Ninguém se promulgou.

— Vamos, então, à nossa segunda teoria. Embora eu dissesse que o assassino deva estar entre o grupo dos hóspedes, existe outra possibilidade. Pode compartilhá-la conosco, Monsieur Ronet?

Nigel se remexeu, tímido.

— Eu sugeri, há pouco, que poderiam ser o criado e a cozinheira.

A Condessa du Barry retrucou, azeda:

— Quanta criancice... Eles nem sequer estavam mais no hotel. Já disse que os vi na plataforma, às quatro horas.

Nigel:

— S-sim. A senhora viu. Não temos provas, porém, de que eles realmente tenham embarcado.

— Opa! — disse Gregory. — Isso está ficando eletrizante!

E Nigel:

— Talvez eles quisessem mesmo partir. Mas podem ter mudado de ideia. Talvez houvesse uma conta em aberto com Monsieur Bouffler. Assim, eles resolveram regressar e acabar de uma vez com o desacordo.

Gregory:

— Uh, adoro uma boa conspiração!

Ludwig Hoerbst esboçou uma careta.

— Discorda de alguma coisa, Herr Hoerbst? — perguntou o Dr. Lèfevre, ao ver a reação do alemão.

— Sim — disse Ludwig. — Pelo que sei sobre a topografia, só há uma estrada que vai até a estação ferroviária. Se eles voltaram, Monsieur Bouffler não teria esbarrado neles quando foi apanhar a bagagem da condessa?

Nigel nada disse.

— A sua dúvida é justificada, Herr Hoerbst — disse o médico. — Como quer que seja, não podemos desconsiderar nenhuma hipótese. Nada me convence de que aquela avalanche, ontem à noite, foi um simples capricho da natureza.

Nove rostos paralisaram.

— O que quer dizer, doutor?

— Quero dizer que, junto com o desmoronamento, ouvi o que me pareceu ser uma explosão.

Todos perguntaram em coro:

— Uma explosão?

— Exatamente — disse o Dr. Lèfevre. — Dinamite. Tenho certeza de que alguém provocou a avalanche... de propósito.


V.

 

Frank Schippendale bufou.

Representava uns quarenta anos, mais pelos fios prateados que havia em seus cabelos do que pelos impenetráveis traços. Traços que agora estavam congestionados de raiva.

Aquele doutorzinho de araque! Falara com ele como se fosse um colegial!

— O sol é de todos! Cada um faz e vai aonde quiser.

E France, então! Em vez de ficar do seu lado... Não!

Que moça infantil! Que France fosse pastar...

Frank subiu para o andar de cima. De vez em quando os degraus deixavam escapar um melancólico rangido.

Quando chegou à soleira do quarto, viu o papel fixo na porta. O que era aquilo?


Ao toque do sino, a uva madura por fim alguém espremeu

Um golpe de peso, e a queda — a segunda formiga morreu


Zangado, arrancou o papel e o amassou.

Ah, se pegasse o engraçadinho por trás daquilo!

— Vou fazê-lo pagar caro. Ah, se vou...


VI.

 

Depois do almoço, o cadáver do hoteleiro foi carregado para o quintal atrás do albergue. Munido de uma pá, e sob instrução do doutor, Nigel o cobriu com gelo.

— Não é o enterro de um rei, mas é melhor que nada.

— Amém — disse Nigel, modelando o monturo com a pá.

— Ainda bem que a esposa não está aqui — disse France. Algo parecia minar seu organismo. — Ela ficaria traumatizada se visse uma coisa dessas.

— É quase um vilipêndio — disse Sali, baixinho.

— Pode até ser, miladys — disse o Dr. Lèfevre. Tinha um jeito ponderado de ser agradável. — Gelo é o melhor conservante que temos. Não há outro jeito.

— O lado bom é que não vai faltar carne fresca — disse Gregory num tom macabro.

Sali deu uma cotovelada nele.

— Greg!

— Ui! Calma, só estou brincando. Não sou um profanador de túmulos, não, viu?

— Já terminou o show? — estridulou a Condessa du Barry. — Se já, prefiro a lareira.

Com essa declaração concisa e implacável, foi até a porta dos fundos e entrou.

— Se já, prefiro a lareira — imitou Gregory. — Falou e disse.

— Onde está Ludwig? — perguntou France. — Achei que ele tinha vindo com a gente.

— Esse cara é meio misterioso — disse Nigel.

— Misterioso e sacana — concordou Gregory.

— Você diz isso, Greg, porque você e ele se conhecem — disse Sali. — Acha que não vi o ódio com que se encaram?

— Ódio... nós dois? Você enlouqueceu?

Houve alguns segundos de explosiva tensão. A seguir, Gregory se afastou furioso.

“Isso — fuja!”, pensou Sali. “Não faz mal. Eu mesma descubro o que está acontecendo!”

Em consternação geral, entraram e pouco depois estavam instalados na sala.

— Não sei vocês, mas eu preciso de um drinque — disse Frank.

O Dr. Lèfevre aceitou. Beber era sempre uma boa forma de aquecer os músculos entorpecidos.

Catherine Roskov ficou junto de Lady Dobney. A estilista parecia estar num período especialmente criativo e raramente era vista sem a prancheta e o lápis.

Sali Grogan, assim que se viu só, rumou para a área da piscina coberta. Tal como imaginava, Ludwig Hoerbst estava lá, semideitado numa cadeira de praia.

Ludwig notou a moça e disse:

— Que lugar exótico! Uma piscina no topo do mundo. Esses suíços sabem mesmo viver!

— Herr Hoerbst, podemos conversar um minutinho?

Ludwig fitou Sali com ar ausente e cerrou os lábios, entreabrindo-os em seguida como se pretendesse cuspir.

— Conversar é bom. Já fizeram o enterro?

— Se está se referindo à deposição do corpo num buraco na neve, então sim. Já fizeram.

— Nada mal — disse Ludwig.

Fez uma pausa, deixou a frase no ar e balançou a cabeça em sentido afirmativo. Acrescentou:

— Nada mal mesmo. Sabia, Miss Grogan, que tem gente que congela corpos humanos na esperança de que a ciência consiga reanimar células mortas e, assim, fazê-los reviver?

— Sim — acenou Sali. — Li algo a respeito.

— É incrível, não é? Supor que um corpo morto possa voltar à vida... sem a intervenção divina! Crê em Deus, Miss Grogan?

Sali olhou para ele. A expressão de cólera se transformou imediatamente em outra de curiosidade.

— S-sim... Creio que sim.

— Por quê?

— Ora, porque Deus é o criador de tudo. Sem ele não haveria sol, nem a lua, nem as estrelas... Nem sequer nós existiríamos.

Ludwig sorriu condescendente.

— Ah, uma resposta lógica. Muito lógica. Acha que Deus criou as pessoas para morrer, Miss Grogan?

— Não sei... Pelo que aprendi, deveríamos viver para sempre.

— Viver para sempre! — aprovou Ludwig. — Que triste envoltório é a morte. Num dia estamos ali, pulando, rindo, e dizemos: “Proponho-me a jogar, esta tarde, a minha primeira partida de golfe da temporada. Alguém se habilita?”. De repente... sem mais nem menos... já era. Tudo acabado. “Pois os vivos sabem que morrerão, mas os mortos não sabem absolutamente nada, nem têm mais recompensa, porque toda a lembrança deles caiu no esquecimento”. Viramos pó.

Ele parou de falar por um momento. Seus olhos, sem brilho, se cravavam nela, impassíveis, desafiantes.

— Escute, Herr Hoerbst — disse Sali, aproveitando a pausa. — Não sendo inoportuna, mas o senhor poderia ser sincero comigo?

Ludwig pareceu acordar.

— Sincero? Ah, sim... sobre o quê?

— Sobre Greg... meu namorado... Notei que existe uma franca antipatia entre vocês. Aconteceu alguma coisa que eu deveria saber?

Ludwig refletiu naquilo. Finalmente, disse:

— Não é a hora para perder-se em conjecturas. Sim, Miss Grogan. Existe certa antipatia entre Mr. Stracker e eu... Não está enganada nisso. Só não consigo lembrar por que. Tenho que fazer antes uma consulta délfica a meu sumo sacerdote.

— Está mentindo, Herr Hoerbst.

— Estou?

— Sim.

— O que lhe sugere isso? — perguntou Ludwig.

— Intuição.

— Intuições falham.

— Não a minha — disse Sali asperamente. — Está bem, não vou obrigá-lo. Se quiser falar, sabe onde estou.

Muito composta, deixou a área coberta.

“Que moça!”, ruminou Ludwig. “Falo ou não a verdade a ela? Veremos... Não há pressa. Pressa nenhuma.”


VII.

 

Miss France Paxter estava no terraço de seu apartamento.

As nuvens formavam um toldo uniforme, cinzento.

France sentia-se presa e deprimida.

Não devia ter vindo! Não devia...

Que falta de discernimento.

Tia Agnes morrera e o que ela poderia fazer sobre isso?

Nada.

“Sinto falta de seu humor, titia. Desde a sua morte, nada tem sido como era.”

Como um filme indelevelmente gravado em sua memória, France reviu a última vez em que estivera com ela. Sua tia-avó parecia tão acuada, pálida e abatida pelo sofrimento. E então... aparecera Frank, com olhos famintos e perscrutadores. Estudando alternada e cuidadosamente as duas... desconfiado e atento. Frank — nariz adunco, pômulos ligeiramente salientes e queixo pontiagudo.

Frank — que sempre fora ambicioso, competitivo.

Ah, se pudesse exorcizar essa lembrança!

Pec-pec... Pec-pec...

O estalido atrás de si fez France retornar ao presente.

Ficou dura quando viu quem era.

Empurrando a porta de vidro, Frank Schippendale veio para o terraço.

— Ainda nevando? — perguntou na base do bom-moço.

Ela fez que sim maquinalmente.

— Escute, France — disse ele, consciente de que sua presença era um estorvo. — Quero me desculpar por hoje de manhã. Eu me descontrolei... O doutor... é um bom homem.

Ela arquejou, e não conteve as lágrimas.

— Oh, Frank! Fiquei com tanto medo... Estou agoniada... agoniada!

— Sim, querida, eu sei... — e Frank aconchegou-a ao peito, num gesto protetor. — Você é o único pedaço colorido nesse cenário sem cor. Venha, France. Venha...

Conduziu-a para o quarto e sentou-a na beirada do sofá. Ela obedeceu, quase instintivamente.

— Eu já quis lhe contar tudo. Mas não sabia como você reagiria. Pensei em conquistar primeiro a sua confiança. Queria que você gostasse de mim, France. Você era tão amiga de Agnes! Minha pobre Agnes... A única irmã que tive — que me acolheu quando passei por um revés. É evidente que as preocupações não a deixavam em paz e isso se refletia em seu estado físico. Quando ela faleceu... meu mundo se foi com ela! (“Se foi, é?”, pensou France.) Minha maior razão para ciúme, porém, ainda estava por vir. Dias antes de sua tia morrer, France, ela fez um testamento. E... com todo o direito que sua lucidez lhe concedia... ela...

— O quê, Frank? Fale...

— Ela legou toda a herança... todos os bens... o patrimônio... para você, Miss Paxter.

A moça piscou.

— O que quer dizer?

— Você foi nomeada herdeira universal de Agnes Dreyhorn.

— Não... Isso não!

— É verdade — jurou Frank. Ele dizia as coisas com a necessária exatidão. — Você está milionária. Rica a mais não poder.

Ele começou a sentir o fogo da vaidade masculina.

— Eu a amo, France... você não percebe? Amo você! Quero me casar com você. Constituir um lar. Ter nossas próprias coisas... Nossos filhos. Nossa mansão.

Ela teve um ataque de fúria. Gritou:

— Nossa mansão? Eu sabia que você era interesseiro, Frank. Nunca imaginei que fosse tanto!

A sua fisionomia ia mostrando, de forma crescente, um ar de ira e de tédio.

— As cartas. Você escreveu-me várias vezes. Inflamado de amor, contando-me os seus projetos... e eu guardei todas elas.

Frank recebia olhares de desprezo e ódio, e os comentários só serviram para exasperá-lo ainda mais.

— Eu sei o que está pensando, France. Você acha que matei Agnes. Que eu matei minha irmã! É por isso que vem me rejeitando. Ouça-me! Acho que há muita coisa sobre mim que você ainda não sabe.

Segurou-a pelos ombros.

Ele viu que talvez tivesse ido longe demais.

Ela empalideceu e enrijeceu o corpo. Depois deu um passo atrás e sacou a pistola da bolsa, animada por uma admirável força interior. O seu magnetismo e a sua personalidade eram tão fortes que era quase impossível abstrair-se deles.

— Saia, Frank! Saia!

France falava de dentes tão cerrados que as sílabas sibilavam. Dera a conversa por terminada, resolutamente.

Frank compreendeu que seria inútil continuar dissimulando. Com passadas bruscas, foi para a porta e saiu.

“Maldita seja! Você e toda a sua descendência!”

Ela aquietou-se, soluçando amargamente.

— O que foi que eu fiz? Frank, eu não queria... não queria...


VIII.

 

Um suor frio inundou a testa de Frank Schippendale. Durante algum tempo não fez nada além de ofegar, procurando ar.

Véus cobriam seus olhos e os joelhos tremiam. Acabaram vergando.

Caiu com a visão nublada, sem forças para virar-se, nem compreender o que acontecia.

A segunda pancada deixou-o inconsciente.


Morrendo como Formigas


I.

 

Passos leves, ligeiros, aproximaram-se da sala de jantar. Todos pararam de comer, contrariados com o atraso.

Quem entrou foi Sali Grogan. Trajava um vestido de cor vermelha e tinha os cabelos, negros e lisos, recolhidos à nuca num grande coque.

— Até que enfim, Sali! — exclamou Gregory. — Que demora em se arrumar.

Sali ignorou a cobrança do rapaz.

— Acho melhor vir comigo, Dr. Lèfevre — disse. O seu tom era franco e um pouco altivo. Pestanejando, prosseguiu: — Acabei de ver Mr. Schippendale... Receio que ele não esteja nada bem.

Um raio de temor iluminava seus olhos verdes, que brilhavam excitados, inquietos.

Os demais se entreolharam, demonstrando não ter compreendido perfeitamente.

Dando uma risada, Gregory falou, zombeteiro:

— Deixe disso, querida. Você só está nervosa.

— Se não acreditam, vão e vejam.

Silêncio tenso.

Uma gargalhada metálica, ensurdecedora, ecoou.

— Não!... — disse France. — Frank? Não pode ser! Falei com ele... à tarde.

Virou-se como se pedisse socorro ao médico, que interveio:

— Calma aí, temos que averiguar isso. Onde é que está Mr. Schippendale, Miss Grogan?

— Por aqui — disse Sali. — Eu mostro...

Todo mundo seguiu a moça que, sem se intimidar, tomou logo a vanguarda.

O Dr. Lèfevre, apressadamente, ia logo atrás; era um homem cujo rosto parecia talhado em granito.

Acharam Frank Schippendale caído na quadra de tênis, perto das listras laterais. O Dr. Lèfevre agachou-se e debruçou-se sobre ele.

— Este homem... está morto! — diagnosticou, após checar a sua carótida.

Ninguém conseguiu evitar uma exclamação de assombro. Toda aquela cena dava náuseas.

— Deus! — exclamou Lady Dobney, trêmula.

— Como assim... morto? — perguntou Gregory.

O médico demorou em responder, falando muito baixo:

— Deram-lhe golpes na cabeça. Foi ferido entre o parietal esquerdo e o temporal. Um tipo de morte não muito espetacular, mas talvez a mais efetiva de todas... e que não deixa nenhum rasto da arma empregada.

— Está dizendo que foi assassinato? — aventurou Nigel.

— Sim.

Vários fatores mantiveram a todos imóveis. Talvez o mais evidente fosse este: se fora mesmo assassinato, então era o segundo crime ocorrido em menos de vinte e quatro horas.

À luz da perspectiva que a revelação apresentava, as possibilidades se ampliavam numa escala gigantesca.

France levou as mãos à boca, afogando um grito de protesto. E entre soluços exclamou:

— Frank! Oh, me perdoe... Frank! Frank!

Houve uma sensação generalizada de surpresa.

Frank! Oh, me perdoe...?

— Do que é que ela está falando? — perguntou Lady Dobney.

— Madame Roskov, poderia tirar Miss Paxter daqui, por gentileza? — orientou o Dr. Lèfevre. — Dê a ela um calmante, se tiver.

Catherine amparou France e levou-a dali.

— Deve ter ficado pinel — disse o eng. Peters. — Afinal, o cara era tio dela. Também já passei por isso. Quando perdi mamãe, fiquei três dias no hospital, submetendo-me a um tratamento de vitaminas e de reconstituintes.

— Não é nada disso — disse a Condessa du Barry, mostrando claramente a sua reprovação. — Miss Paxter não ficou pinel.

Num só movimento, todos olharam para ela.

A condessa vestia-se com esmero e tinha se penteado meticulosamente. Seus olhos eram apagados, desprovidos de vivacidade.

— Por que então ela disse aquilo? — atreveu-se Lady Dobney a perguntar.

— Porque foi ela quem matou Mr. Schippendale — respondeu a condessa, sumária e mecanicamente.


II.

 

Os presentes se entreolharam, desconcertados.

— Miss Paxter matou Schippendale? — perguntou o Dr. Lèfevre.

— Ouvi a briga que tiveram hoje à tarde — disse a condessa. — Infelizmente nossos apartamentos são anexos. Depois de discutirem, ela o escorraçou do quarto. Pelo tom com que falou, creio que estava armada.

— Armada?

— Sim.

— A senhora viu?

— Doutor! — retrucou a sueca, impaciente. — Não é preciso ver tudo. Basta discernir.

“Não adianta rebater certas coisas quando a pessoa que as afirma já fez suas próprias suposições e crê firmemente no que diz”, conformou-se o médico.

— Bem, obrigado, Madame. Estou em busca de um facho de luz nebuloso ou de uma chama indistinta nisso tudo. Quanto a você, Miss Grogan... Pode resumir para nós a sua história?

Sali anuiu:

— Greg e eu estivemos aqui ontem à tarde. Hoje, enquanto estava me arrumando, dei pela falta de meus grampos de cabelo. Lembrei-me que os tinha deixado ali nos bancos, e vim buscá-los. Quando entrei, vi alguém estendido na quadra.

— Chegou a certificar se estava morto?

— Não... como poderia? Eu quase caí para trás. Reconheci que era Frank e saí correndo.

— Mais uma pergunta — disse o Dr. Lèfevre. — As luzes estavam ligadas?

— Sim.

— Hum...

Seguiram-se minutos de pesado silêncio.

Uma mesma interrogação se interpunha entre eles, como um organismo vivo e incômodo.

— Que tal uma votação? — sugeriu Simon.

— Até que é uma boa — disse Gregory.

— Apoiado — disse Nigel.

O Dr. Lèfevre pigarreou:

— Uma votação... Que seja. Quem está a favor de fazermos o sepultamento imediatamente? Um, dois... São seis votos. Quem é contra?

— Eu sou contra — disse Sali.

— Condessa?

— Não quero opinar.

— Sim, estamos numa democracia, não? Creio que isso decide a questão. Seis votos a favor, um contra e uma abstenção... Pela vontade da maioria, vamos levar o corpo de Schippendale. Temos que arranjar lanternas... ou algo do tipo.

— Sei onde tem archotes — arriscou Nigel.

— Archotes, meu jovem?

Nigel corou.

— Pode ser qualquer coisa — disse Gregory. — Peters, que tal armarmos uma padiola?

Em meia hora estava tudo pronto. Em formação de cortejo, carregaram o corpo para o quintal. Mal se via a estrutura de pedra do albergue na espessa escuridão.

Miss Paxter veio, cercada pelos cuidados maternais de Madame Roskov. A expressão do rosto da moça continuava sendo do mais genuíno terror.

A cerimônia fúnebre foi extremamente curta. As rajadas de vento eram intermitentes; os archotes flamejavam. Línguas de fogo eram jogadas de um lado para o outro.

— Alguém fique de vigia! — comandou o Dr. Lèfevre. — Não podemos vacilar...

Assim como de tarde, Nigel cavou a neve com o enxadão. Com jeito, Gregory e Simon deitaram o cadáver na cova.

Quando o cortejo entrou no albergue, estavam polvilhados de neve. Solidárias, as mulheres foram para o andar de cima, falando consoladoramente com Miss Paxter. O pelotão masculino, por sua vez, procurou refúgio na sala de estar.

— Que férias! — disse Gregory, servindo-se de uma bebida. — Se a coisa mantiver o ritmo, em três dias não haverá mais vivalma nesta pocilga.

— Acha? — perguntou Ludwig, preocupado.

— Espero qualquer coisa de um assassino tão sanguinário e sem escrúpulos como esse.

— Pensei que não existisse relação entre os crimes.

— É claro que existe uma relação — disse Gregory. Bebeu dois ou três tragos e começou a animar-se. — Estou pouco me lixando para a versão da condessa. Miss Paxter, uma assassina? Puro delírio dessa velha. Miss Paxter pode ter tido uma briga com Schippendale, não duvido. Mas daí até quebrar o crânio dele em mil pedaços vai uma boa distância. Não, essas mortes estão interligadas. Lembrem-se que Schippendale já tinha estado no hotel outras vezes, conforme ele mesmo disse. Isso significa que ele e Monsieur Bouffler foram mortos por um motivo específico, não importa qual seja. Um motivo que, depois desta noite, passa a ser de conhecimento exclusivo de uma só pessoa: do assassino. Estou piamente convicto de que esses são os fatos.

— Talvez — disse Simon. Nervoso, murmurou apressadamente: — Ou não.

Gregory sorriu com malícia e perguntou, arqueando as sobrancelhas:

— Opa! Nosso amigo apostador tem uma teoria.

— Que diabo quer dizer? — rosnou Simon com ar ameaçador. — Não sou um apostador... não mais.

Gregory tornou a franzir as sobrancelhas, mas ficou calado. O queixo quadrado projetava-se à frente, arrogante.

— Fale, Mr. Peters — interveio Ludwig. — O que ia dizer?

Simon tinha as mãos crispadas, o que demonstrava claramente a sua horrível agonia.

— Eu ia dizer que, a meu ver, Miss Paxter está sim implicada no crime. Hoje de manhã, durante o interrogatório, Schippendale disse que veio para o albergue com o propósito de entregar uma coisa para a moça. É por isso que ele pode ter ido ao quarto dela à tarde. De alguma forma, os dois se desentenderam. Acho que, antes de sair, ele falou algo que enfureceu Miss Paxter. Algo que tenha soado como uma ameaça, digamos. Algo que fez com que ela o matasse.

Gregory desatou a rir.

— É essa a sua teoria? Genial...

— Patife! — gritou Simon com o rosto congestionado. — Patife... Eu vou mostrar...!

Simon fez menção de avançar sobre seu oponente, mas a voz do Dr. Lèfevre abafou no nascedouro a indignação.

— Obrigado, Mr. Peters. É sempre melhor trabalhar a partir de várias hipóteses. Talvez Miss Paxter seja a culpada... Pelo sim pelo não, quero lembrá-los de que existe uma terceira teoria que devemos contabilizar. A teoria de Ronet sobre o criado e a cozinheira que sumiram.

— Eu ia justamente falar nisso — disse Ludwig, que assistia a tudo, grave e impassível.

— Então... — disse o Dr. Lèfevre, os olhos semicerrados. — Que acham de fazer uma inspeção no albergue e nos arredores?

— Agora? — espantou-se Nigel.

— Não, não... Isso seria inviável à luz precária que temos. Amanhã de manhã...

“Sim, amanhã de manhã”, pensou. “Se ainda estivermos vivos até lá...”


III.

 

Ao toque do sino, o vinho na pipa é totalmente selado;

um veneno na artéria da terceira formiga é inoculado


Sali leu o bilhete e disse:

— Que coisa mais sem graça!

Seu busto, de esplêndidas curvas, se destacou por baixo da seda do vestido.

Diante dela desfilaram, fugazmente, numa sequência alucinante, cenas de um passado que, apesar de distante, continuava vivo.

Argélia...

O seu erro... e o castigo.

Sali olhou o quarto acolhedor e comentou, falando consigo mesma:

— Quem será que entrou aqui?

Um profundo rancor agora palpitava nela.


IV.

 

Na manhã seguinte o céu estava encoberto, escurecido por nuvens baixas; ventos do sul faziam a neve rodopiar.

Divididos em pares, os homens vasculhavam o platô, à procura de indícios de alguém escondido.

Gregory e Nigel pareciam ter-se vestido para uma excursão: jaqueta impermeável, calças de lã grossa, botas, luvas...

— Eu sou mesmo um idiota! — resmungou Nigel.

— O que foi?

— Aqui estamos nós... congelando na neve! (Já nem sinto mais os dedos!) E tudo por quê? Porque falei ao nosso ilustre doutor que pode haver um criado-assassino vagando por aí!

— Azar, hein! — riu Gregory.

— Azar é apelido! — disse Nigel, azedo. — Não entendo como você gosta disso!

— Sempre gostei — disse Gregory. — Aprendi a escalar nos Alpes. No Eiger e no Materhorn. Depois, andei por outras montanhas da Europa, e também pela Ásia. Perigo é o meu sobrenome.

Gregory Stracker era de estatura regular, boa constituição e olhos de cor desbotada, piscando à luz da manhã, pele tostada de sol e cabelos grisalhos nas têmporas.

— E agora? — perguntou Nigel. — Para onde vamos, timoneiro?

— Por ali! — e Gregory apontou uma direção.

Caminharam até o ponto onde os abetos eram mais abundantes. Mais adiante se via o rastro da avalanche que, há duas noites, rasgara a face da montanha.

— Gozado!

— O que é gozado?

— O que disse o Dr. Lèfevre — respondeu Gregory. — Ele acha que foi proposital.

— Também acha isso?

— Difícil dizer. Se foi, o cara que fez merece uma medalha. Montou uma bela bomba!

— E que bomba! — exclamou Nigel.

— Sou um homem dotado de nervos de aço, sou capaz de me sobrepor aos impulsos — disse Gregory. — Mas isto... Isto quase me matou de susto!

— Você não estava na sala na hora...

— É, eu não estava.

Gregory parou de falar.

— Você não julga que fui eu, julga?

— Você ficaria chateado?

— Não. Simplesmente sou contrário a certas insinuações.

Nigel sorriu.

— Está bem. Eu não julgo que foi você.

— Ufa! — suspirou Gregory ruidosamente. — Já basta a desconfiança de Sali.

— Ela comentou alguma coisa?

— Comentou e fez.

— Fez o quê?

— Foi tirar satisfações com aquele alemão esclerosado.

— Que alemão? — perguntou Nigel, intrigado.

— Hoerbst, ora.

— Por quê?

— Você é um sujeitinho curioso, hein Ronet? — alfinetou Gragory Stracker. — Tudo bem. Eu preciso mesmo desabafar os meus pecados. Então ouça... A história é a seguinte... Há anos, passei uns dias numa cidadezinha da Alsácia... cujo nome não lembro. Chovia e eu tinha me abrigado numa marquise. Uma dessas marquises com aspecto de templo grego estilizado, você sabe. Deviam ser onze da noite quando, num beco próximo, vi acontecer um crime. Um homem agredindo uma mulher. Ela gritava, numa vozinha fina, de gata inquieta: “Me largue! Vá embora!” Era uma mulher loura, linda, de porte esbelto e espigado. Em vez de se afastar, um murmúrio rouco saía da garganta do homem. Ele ia falando com ela e se aproximando, ameaçadoramente. Nisso ele deu a punhalada. O espetáculo era assustador, fascinante e repulsivo ao mesmo tempo. A mulher gemeu. Os ombros dela tremeram, suas pernas pareceram insuficientes para mantê-la de pé. Com a voz alterada, ela sussurrou alguma coisa e... caiu morta. Eu via tudo meio embaralhado. Tentei ficar firme, mas tudo começou a girar a minha volta. Sentia uma náusea intensa. O homem endireitou-se repentinamente e virou a cabeça, com os olhos ligeiramente dilatados. Pude olhar bem para ele. Tinha a testa encrespada, e a cara quase desaparecia sob a barba. Depois, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele saiu correndo e sumiu.

— Deixe-me adivinhar o resto — atalhou Nigel. — Você foi convidado a depor e...

— ... acabei acusando...

— ... alguém que...

— ... nada tinha que ver com o crime — completou Gregory.

— No caso, Herr Hoerbst — ironizou Nigel Ronet. — Que, na época, usava barba.

— Exato.

— Como é que ele provou a inocência?

— Câmeras de vigilância — voltou a suspirar Gregory. — Porcaria! Meti-me num tremendo apuro, isso sim. Valeu ter um pai cheio da grana para me salvar de um processo!

— Sabe o que eu acho? — disse Nigel. — A julgar pelas aparências, esse cara está aqui por sua causa.

— Será?

— Ele veio para a desforra, meu amigo. A desforra...

Ambos trocaram um olhar de mútua compreensão.

Enquanto ocorria esse diálogo, Ludwig Hoerbst e o eng. Peters realizavam suas próprias buscas.

Entraram num edifício de troncos, cujas janelas estavam abertas. Era o depósito de coisas imprestáveis.

— Me chamou de apostador! — dizia Simon, comentando os eventos da noite anterior. — Quase dei um soco nele! Gosto de gente que, como eu, sofre as contingências da vida. Esse cara é um paspalhão!

— Esqueça isso! — respondeu Ludwig. — Todo valentão um dia encontra quem lhe faça frente. Stracker vai ter a sua vez.

— Nada vai me dar mais prazer.

— Espere e veja.

Os minutos, cheios de angústia, passavam como séculos para Simon. Um suor frio banhou sua testa, à medida que o tempo transcorria.

Aquela tarefa insípida estava dando em seus nervos.

— Aqui não há ninguém — concluiu Ludwig, após conferir o último vão.

— O Dr. Lèfevre está é louco! — resmungou Simon. — Manda na gente como se fôssemos empregados dele. “Vão... Fucem isso! Fucem aquilo!” Quem ele pensa que é? Para mim, a condessa é que matou a charada.

— Aquela gralha tonta?

— Ela pode ser uma gralha tonta, mas foi muito sensata quando culpou Miss Paxter. É lógico que essa moça liquidou Schippendale. Talvez Miss Paxter não seja uma assassina nata... como tanto se vê por aí... Mas que ela é a responsável pela morte do homem, isso é!

— Fala como se tivesse assistido ao assassinato! — disse Ludwig.

— Não é preciso ver tudo — Simon imitou a voz da condessa. — Basta discernir. Não vai me dizer que você acredita nessa lengalenga sobre o criado e a cozinheira que decidiram matar todo mundo!

— Matar todo mundo não digo — ponderou Ludwig. — Acho que coisas estranhas estão acontecendo... Você não?

— Não vou aderir a isso. Já falei e repito: Miss Paxter é a culpada, e pronto.

— Incluindo a morte de Monsieur Bouffler?

— Aquele cara era o avatar de um francês animado e descontraído — disse Simon. — Foi suicídio, não importa o que o doutor diz. Imagine a situação... O indivíduo havia acabado de perder seus funcionários... a mulher tinha ido sabe-se lá aonde... Não aguentou a pressão e — pah!

— Isso não explica o sumiço da arma — disse Ludwig.

— Bem, isso está fora de minha esfera de ação — hesitou Simon. — Talvez Madame Roskov a tenha apanhado.

— Como que finalidade?

— Oh-oh, devagar aí, Hoerbst. Está fazendo muitas perguntas. Você é um detetive... um agente secreto?

— Sou um filósofo utilitarista — disse Ludwig. — Aprecio quando tudo é devidamente explicado.

— Ah, é? — riu Simon. — Muito bem, Sr. Filósofo. Você me considera um protozoário, não é?

— Um proto... o quê?

— Deixe para lá... Vamos sair daqui. Odeio esse fedor de mofo.

Saíram do prédio, sob a neve que caía. Estavam no jardim. Ao fundo, à direita, havia um telheiro de troncos. Ludwig e o eng. Peters foram para lá.

Eram dez e meia da manhã...


V.

 


O Dr. Lèfevre sentou-se na cadeira ao lado da cama de Miss France Paxter.

France parecia aterrorizada, tomada pelo pânico, mas estava bem. Ela possuía tudo para triunfar: juventude, energia, beleza!

“Essa moça... tão forte e tão formosa... vai ter um período de luto muito curto”, avaliou o médico. “Dois dias e já vai ter se recuperado!”

Ele inclinou-se, rompendo o silêncio:

— Já foi casada, Miss Paxter?

— S-sim...

— Como era seu marido?

France aprumou-se e fincou os cotovelos nos joelhos.

— Meu marido, doutor? Bebia café demais, entupia os cinzeiros, acendia todas as luzes e deixava a casa toda acesa. Era dono de um entreposto terceirizado. Morreu num... assalto.

— Ninguém jamais é exatamente do jeito que nós gostaríamos que fosse, não é?

— Sim — disse France.

— Como se sente agora?

— Sinto-me só, insignificante, longe de um mundo que com certeza passa muito bem sem mim.

— Miss Paxter, se sintomas como febre, cefaleia, vômitos, dores abdominais, torácicas e pélvicas, não cederem, se não tiverem causa aparente, ou ainda se forem agudas e de forte intensidade... vá a um médico! — brincou o Dr. Lèfevre.

Os olhos de France animaram-se um pouco e um esboço de sorriso apareceu em seus lábios descoloridos.

— Acho que é minha vez, doutor. Posso perguntar uma coisa?

— Claro.

— Como é sua esposa?

— É uma mulher convencional, eu diria.

A moça piscou sem jeito, mas continuou insistente:

— Convencional, doutor?

— Minha mulher sofre de paralisia supranuclear progressiva, doença irreversível que ataca o sistema nervoso. A doença, aos poucos, está fechando o cerco.

— Eu sinto muito — disse France.

— Eu também — disse o Dr. Lèfevre. Pareceu conformar-se com aquelas palavras; mudou de assunto: — Sobre ontem, Miss Paxter...

— Ontem?

— A morte de seu tio...

— O que é que tem?

— Tem havido rumores...

— Que rumores?

— Bem, de que a senhorita cometeu o crime.

— Eu, doutor?

Ele assumiu uma atitude de perfeita inocência.

— Dizem que sim. Dizem que tinha uma arma quando discutiu com ele no quarto.

— Quem... quem disse?

— Alguém que diz tê-la visto.

Juntando as pontas dos dedos, ela refletiu sobre o que iria responder:

— Sim, não vou negar. Eu trouxe uma pistola... está nesta bolsa. Mas Frank não morreu baleado, morreu?

— Não — admitiu o doutor. — Mas a senhorita é inteligente... precavida...

— O que está insinuando?

— Nada.

France olhou-o demoradamente, desta vez sem dissimular a perturbação.

— Se isso for fofoca da condessa!... Ela não é quem diz ser, doutor. Ela manipula os outros para fazer o que ela quer! Aquela mulher é do mal.

O volume de sua voz ia aos poucos diminuindo e sua ira, como um tsunami, extravasava em seu íntimo.

— Ela é uma assassina — acrescentou France em tom feroz. — Uma assassina que só está solta graças à vagarosidade da justiça. Nada nem ninguém vão mudar isso.

O Dr. Lèfevre sorriu. Mas aquilo foi de pouca duração.

Subitamente a porta rangeu e se abriu. Uma moça surgiu — aparentava uns vinte e cinco anos, alta. Era Sali Grogan. Ou o que sobrara dela.

Vacilando, Sali atravessou o umbral, contemplando-os com os olhos muito abertos. Uma negra paina caía-lhe sobre os ombros.

— Doutor?

— Sim? — incitou ele.

A resposta foi um som rouco e ininteligível, deformado pelo medo.

— Me... me... me... ajude! — gaguejou ela.

O médico empertigou-se angustiado. Sem qualquer aviso, Sali tombou para frente.

— Miss Grogan!

Tudo marchou com relativa rapidez.

Com um salto, o Dr. Lèfevre ajoelhou-se perto da moça. Sali, em espasmos curtos e irregulares, inalava o ar como se estivesse sufocando. Sua pele adquirira uma coloração acinzentada nada boa.

— Miss Grogan! Consegue me ouvir? Miss...

O médico sentiu um arrepio. A maleta de primeiros socorros estava ali, à sua disposição, mas, de algum modo, ele sabia que não havia nada a fazer.

Branca de pavor, France saiu da cama e deu um grito histérico.

— Ah!

— Fique aí, Miss Paxter! — ordenou o Dr. Lèfevre. — Fique aí!

Recuando sempre, France espremeu-se num canto, soluçando convulsivamente.

Nisso, alarmados pelo barulho, Gregory e Nigel subiram as escadas, correndo. Ao chegar à porta, ambos pararam, olhando para dentro do quarto.

— Sali? — estremeceu Gregory. — Sali, é você?

A moça levantou a cabeça, surpresa por vê-lo ali. O rapaz se agachou e pegou-lhe a mão. Sali arquejava. Olhou para ele com olhos fantásticos e estúpidos.

Ela pendurou-se em seu pescoço, enquanto ele abraçava sua cintura, trazendo-a para junto de si.

Ele beijou-a repetidas vezes.

— Oh, querida... eu a amo — disse Gregory. — Amo! Amo!

— Formiga... — balbuciou Sali, com dificuldade. — For... mi... gahhh...

Então, numa última convulsão, sua voz se calou.

Eram onze horas, e no quarto reinou um silêncio mortal.


VI.

 

— Envenenamento?

O termo causou admiração entre sete das nove pessoas reunidas na sala. Apenas Gregory não se mexeu, apático a tudo e a todos.

— Sim — confirmou o Dr. Lèfevre.

— Intoxicação alimentar? — perguntou Madame Roskov, ansiosa.

— Sem chance — disse Nigel. — Sali só comeu uma ou duas fatias de pão com presunto. Isso não faria mal a ela, faria, doutor?

— Não foi da comida.

— Foi do quê?

— Sua namorada, Stracker, tinha alguma doença... algo do qual se queixou alguma vez?

Gregory fechou os olhos, cerrou os punhos, comprimiu os lábios. Todos se alarmaram com a palidez dele.

— Hipoglicemia aguda — murmurou.

— Aí está — disse o Dr. Lèfevre.

— Ela morreu de overdose, coitadinha! — disse Madame Roskov. Sua voz era clara e harmoniosa, embora ligeiramente metálica. — Sali tinha um frasco de pílulas soporíferas... Eu mesma vi!

— Não foram pílulas.

— Não?

— Foi isto aqui!

Cofiando os bigodes, o médico exibiu uma ampola de vidro.

— A hipoglicemia tem vários sintomas: tremores, suor, cansaço, fome, irritação, entre outros. Em casos graves, é preciso uma injeção de glucagon, um hormônio que estimula a liberação de açúcar armazenado no fígado.

— Isso mata? — estranhou France.

— Não, Miss Paxter. Ajuda a elevar a taxa de açúcar no sangue, nada mais. Acontece que aqui dentro há outra coisa.

Desta vez o murmúrio foi ruidoso:

— Que outra coisa?

— Não há como saber sem testes mais apurados. Talvez uma solução de dextrose... Seja como for, quando entrou na corrente sanguínea de Miss Grogan...

Os músculos de Gregory se retesaram, por mais que ele procurasse se conter.

— Por favor, doutor! Sem detalhes...

— Como quiser — pigarreou o médico. — Interessa dizer que as ampolas originais foram substituídas e...

— O quê? — interrompeu Simon. — Está dizendo que alguém substituiu as ampolas deliberadamente?

— Justamente.

— Bom Deus! — disse Madame Roskov. — Uma moça tão bonita!

“Uma boneca empetecada!”, rosnou a Condessa du Barry sem que ninguém a ouvisse.

— Mas se foi um ato deliberado — disse Nigel —, então foi assassinato!

— Não pode ser — revidou Ludwig. — Nós revistamos tudo dentro do albergue e nas adjacências. Se houvesse um assassino por aí, teríamos achado.

— Isso significa... — começou Miss France Paxter.

Seu rosto transfigurou-se.

— Significa? — perguntaram todos.

— Que o assassino é um de nós — finalizou France, chocada com a própria conclusão.

Aquela era uma afirmação direta, que não admitia evasivas.

— Besteira! — disse um.

— Rien n’échappe à la justice de Dieu! — disse outro.

— Um de nós?

— Será?

— Não sou eu!

— Nem eu.

Simon acenou lentamente, como se aquilo o divertisse.

— Pois eu concordo com ela.

Cabelos louros anelados, gravata cor de anil, camisa azul-pálida — todos se viraram para olhá-lo de alto a baixo.

— O que disse, Peters?

— Eu disse que concordo com Miss Paxter. O hotel, em realidade, não é senão o biombo de uma série de assassinatos. Cometidos por algum de nós.

— É uma autoacusação? — disse Gregory. Seu tom era calmo, quase irônico.

A ficha de pôquer imobilizou-se na mão de Simon.

— Suas ofensas não me afetam, Stracker.

— Canalha!

A voz de Gregory estava impregnada de ódio, de uma fúria homicida.

O Dr. Lèfevre olhou para aquele moço, cheio de saúde e de energia, de temperamento generoso, nobre, mas também impetuoso, arrojado, que estava disposto a saltar por cima de qualquer coisa para se vingar. Deu uma tossida:

— Por favor, senhores. Não é hora para isso. Por mais desagradável que seja, creio que devemos considerar o que disse Miss Paxter. Se ainda não foi localizado, é por que o autor dos crimes está em nosso meio. É uma desconfiança legítima. Alguém daqui tem um álibi que possa livrá-lo de qualquer suspeita? Francamente falando, eu não tenho.

— Essa não! — comentou Ludwig com ar depreciativo. — Vamos mesmo entrar nesse campo de debates?

— Vamos sim, Hoerbst. Quer ser o primeiro a apresentar a sua defesa?

— Que defesa? Ora... o que é isso? Vocês não estão imaginando...

— Tem algum álibi? — o Dr. Lèfevre inclinou-se para frente.

— Meu pai era alemão, filho de um general russo e de uma mãe etíope — Ludwig começava a impacientar-se. Acentuou rudemente: — Meu irmão foi convocado pelo exército, e designado para a infantaria. E eu — eu fiz curso de contraespionagem. Se eu fosse o assassino, já estariam todos mortos.

— Não é um argumento muito bom, mas vá lá! E você, Peters? Poderia nos dizer o que fez nesses últimos dias?

— Fiz o que todo mundo fez — disse Simon, displicente. — Recomendação de meu terapeuta. Disse que eu devia ser sociável. Cultivar o interesse por coisas novas — artes (pintura, por exemplo), quebra-cabeças e palavras cruzadas. Aprender a dizer “olá” e a iniciar uma conversação.

— Trouxe uma arma ou um taco de golfe?

— Não.

— Como fez a reserva de seu apartamento?

— Por telefone.

— Já havia falado com Monsieur Bouffler?

— Nunca — respondeu Simon.

— E Schippendale?

— Nem ele, nem Miss Grogan.

O Dr. Lèfevre acenou. Tudo parecia se enlaçar. Virou-se para a pessoa seguinte:

— Madame Roskov...

— Sim, doutor? — a russa se endireitou.

— Por que está aqui?

Catherine Roskov já esperava a pergunta, mas mesmo assim gaguejou:

— Problemas familiares...

— Marido?

— Prefiro não falar, doutor.

— Medo de represália?

— Sim.

— Olhe em volta, Madame. Reconhece alguém nesta sala? Alguém que tenha visto em outro lugar?

— Não... acho que não.

— Certo — disse o médico. Interrompeu-se e pouco depois continuou: — Lady Dobney...

Lady Dobney tinha uma suntuosa capa de pele atirada descuidadamente nos ombros nus. A australiana apertou os lábios:

— Estou desenhando minha próxima grife. Madame Roskov pode confirmar; estamos sempre juntas.

— Ah, um álibi bilateral. Obrigado, Lady Dobney. É só.

O Dr. Lèfevre voltou-se para a Condessa du Barry. Tão orgulhosa e altiva! Será que ela responderia à sua pergunta?

— Lamento, Madame, mas, dadas as circunstâncias...

A Condessa du Barry mostrou sua dupla fileira de dentinhos brancos.

— Não quero me envolver nisso. Acho um abuso. Não gosto de mexericos.

— Por que veio para cá?

— Vim porque fui convidada.

— Convidada por quem?

— É um assunto meu, doutor — disse a Condessa du Barry.

(Na verdade, nem mesmo ela sabia.)

— Está bem — resignou-se o doutor. Assoou o nariz. —Ronet, sua vez.

As pernas de Nigel moveram-se imperceptivelmente.

— Vim para me descontrair.

— Algum revólver?

— Não mesmo. De jeito nenhum.

— Álibi?

— Estive aqui e ali. Nada que valha a pena mencionar.

O Dr. Lèfevre coçou o queixo.

— Miss Paxter... Sei que já a interroguei sobre isso, mas sempre é bom frisar. Quer repetir o que contou para mim essa manhã?

France tinha uma aparência péssima.

— Alguns acham que matei Frank — disse ela, com um soluço inarticulado. — Mas eu não matei! Frank era mau sim... Mesmo assim, eu não seria capaz! Não seria, doutor. Vão colocar o corpo de Sali do lado de Frank, não vão? Ele...

Uma careta de dor impediu-a de terminar a frase.

— Tem a nossa gratidão, Miss Paxter. E você, Stracker? Há alguma coisa que queira partilhar conosco?

Gregory sacudiu a cabeça com ares de superioridade.

— Não.

— Quem acha que fez isso com sua namorada?

— E se eu dissesse, doutor, o que faria? O que vocês fariam? Nada trará Sali — minha Sali! — de volta.

— Sou um mau oráculo para essas coisas — prosseguiu o Dr. Lèfevre. — Mas, pelo ouvi, Miss Grogan morreu pronunciando uma palavra, não foi?

— Não lembro — disse Gregory secamente. — Talvez.

— Se esforce, Stracker. Pode ser importante!

— Ela... ela disse...

— Formiga?

O rapaz se assustou.

— Foi isso mesmo! Como é que sabe?

— Porque é o que diz neste bilhete que encontrei no cabide de Miss Grogan.

Todos olharam alternadamente para o Dr. Lèfevre e o pedaço de papel em sua mão.

— É um verso só. Querem ouvi-lo?


VIII.

 

A leitura do verso deixou a todos atônitos.

O que significava aquilo?

No subconsciente de cada um existia uma única certeza: tudo coincidia fielmente com a descrição feita pelo doutor acerca da causa mortis de Sali Grogan.

Um veneno na artéria da terceira formiga é inoculado, dizia o trecho final.

Seria acaso?

Ou uma semelhança premeditada?

— Hoerbst! — disse Simon vivamente.

— O quê? — pestanejou Ludwig.

— Você se lembra do que fez há duas noites?

— Na noite da morte de Monsieur Bouffler?

— Sim — empolgou-se Simon. — Você leu um verso... Ele não falava de uma formiga... ou algo assim?

— De uma formiga... — repetiu Ludwig, saboreando cada letra. — É claro! Sim, é mesmo... Uma formiga que acaba morrendo... não sei do quê.

— Você guardou o papel?

— Não, eu o queimei.

Havia um entusiasmo cada vez maior no semblante de Simon.

— Ei, mas é isso!

Parecia que uma mola o tinha lançado a vários metros de distância. Num ato fugaz, e sem esclarecer mais nada, ele saiu vertiginosamente da sala. Todos puderam ouvir seus pés calcando os degraus da escada.

Ninguém ousou falar. Cada um meditava nas consequências advindas da descoberta que tinham acabado de fazer.

Após alguns minutos, o eng. Peteres reapareceu. Estava lívido, como se fosse portador das piores notícias possíveis.

— E aí, Peters? — instigou Nigel. — O que está havendo com você?

— Tive um estalo — disse Simon. Procurou moderar-se: — Pelo que vimos, os assassinatos de Monsieur Bouffler e Miss Grogan tiveram uma coisa em comum: os dois receberam um verso declarando de que forma morreriam. Assassinos agem seguindo um padrão... Assim sendo, a morte de Schippendale devia estar nele. Fui ver e, como imaginei, lá estava o bilhete — no cesto de lixo.

— Não vai dizer que também fala de uma formiga — protestou Ludwig. — Isso já seria demais!

— Prestem atenção... Eu vou ler.

Depois de terminar, Simon viu que todos os olhares estavam fixos nele.

— É, minha gente — disse. Concluiu de maneira incisiva: — Muito motivacional, não é? Estamos morrendo que nem formigas. Quem será o próximo?


Pânico no Formigueiro


I.

 

Uma atmosfera de suspeita se instalou entre os hóspedes.

E havia mais coisas por vir.

Às duas horas, após o sepultamento da namorada, Gregory saiu para o pátio. O verde dos abetos tinha se tornado num cinza-sujo que, com a brancura da neve, formava um conjunto de tons deprimentes.

Sentado à esquerda da entrada, o doutor olhou para ele.

— Tudo bem, meu rapaz?

— Ah, com certeza. Estamos sem internet, sem ninguém para nos tirar daqui e eu perdi a mulher que amava! Está tudo fabulosamente bem.

Em vez de acalmá-lo, a bebida o deixara ainda mais nervoso.

— Se estiver sentindo alguma coisa...

— Nada... nada. Um ligeiro mal-estar que logo passará. Minha vida é uma constante roda-viva. Acha, doutor, que vamos mesmo ser todos exterminados?

— Concretamente falando... não sei — disse o Dr. Lèfevre. Sorriu tristemente. — Isso o amedronta, Stracker?

— Nem um pouco — replicou Gregory, sem qualquer hesitação. — Prefiro encarar a escuridão em vez de recuar. Já pratiquei snowboard a 6.000 metros de altura, doutor. Ter a vida em risco lá ou aqui... que diferença faz?

— Não acha isso um pouco egoísta?

— Não vejo como...

— Ora, Stracker, ninguém morre simplesmente e acabou. Pense na gente que fica... O pai, a mãe, os amigos...

— Não sou tão sentimental — Gregory deu de ombros, em atitude fatalista. — Morre-se e pronto. Se estivesse para morrer, doutor, qual seria seu maior arrependimento?

— Por vezes, tinha doentes a atender e não ficava em casa à noite — respondeu o médico. — Esse seria um deles.

— Bravos! Eis um homem dedicado à família.

O rapaz sentou-se; respirou fundo.

— Escute, doutor, sobre aquele verso... Disse que estava no cabide de Sali.

— Estava.

— Calcula que ela o leu?

— Julgo que sim.

— Fico me questionando... Por que ela não falou comigo sobre isso?

— Nada mais simples — respondeu o Dr. Lèfevre. — Até hoje de manhã ninguém sabia que aquilo tinha relação com os crimes. Mesmo que...

Nesse ponto foi interrompido por uma gritaria no hall do hotel.

— Não faça isso, Nigel! É... é loucura. Não vá! Pense no que pode acontecer.

— Eu já pensei em tudo, France. Em tudo. Aqui eu não fico. Saia da frente. Para mim foi a gota d’água.

Nigel abriu a porta com um pontapé e saiu, a fisionomia carrancuda. Estava possuído de um furor demoníaco. Carregava o que parecia ser uma mochila grande e volumosa.

Logo atrás veio France. Os cabelos lisos e compridos batiam-lhe na testa, dificultando a visão. Ela virou-se para o doutor e Gregory, suplicante:

— Vocês têm que impedi-lo! Ele vai se jogar...

— Pare de falar, France! Ninguém vai me impedir.

Gregory, com seus ombros largos e músculos desenvolvidos, interveio:

— Eh, Ronet. O que está fazendo?

Sem se deter, Nigel atravessou o pátio; com um pulo ágil, subiu no parapeito de pedra. Olhou para France.

(Ela era uma moça bonita, lânguida. Sentira-se atraído por ela, mas não a ponto de amá-la.)

— O que eu estou fazendo? — A ira apoderou-se dele. Gritou: — Vou buscar ajuda... é isso o que estou fazendo!

O grupo de pessoas que tinha sido reunido olhava, fascinado, a ousadia do jovem francês.

— Vai buscar ajuda... desse jeito? Qual é, Ronet? Desça daí. Vamos, desça. Não é se matando que vai melhorar a nossa situação.

— Me matando? — riu Nigel sarcasticamente. — São muitas as vantagens auferidas pela instrução.

Mantendo o equilíbrio, pôs a mochila às suas costas e fechou as fivelas.

— Um paraquedas! — disseram todos a uma voz.

— Desça daí! — Gregory foi em direção do colega.

— Não, não... Um passo atrás, Stracker! Se quer me fazer um favor, leia isto — e Nigel arrancou um bilhete do bolso da jaqueta. — Isso vai responder a todas as perguntas. Morrer envenenado com cianeto?! Nunca! Adeus, senhores...

E, virando o corpo, precipitou-se pela borda do penhasco.

Houve um “oh!” coletivo de perplexidade...

— Ele pulou!

— Essa não...

Um corre-corre... desespero...

Abaixo deles, o paraquedas se abriu. Mas (o que era aquilo?) em vez do gigante cogumelo...

— Céus! — gritou Lady Dobney, horrorizada.

... como um meteoro, Nigel mergulhou nas nuvens mais baixas e, em queda livre, sumiu de vista.

— O que aconteceu? — perguntou o Dr. Lèfevre, que tinha permanecido em sua cadeira.

Todos quiseram responder simultaneamente.

— O paraquedas...

— ... estava cortado...

— .... em tiras.

— Raios! — gaguejou Gregory, esforçando-se em manter a serenidade. — As pedras... no vale... Ronet caiu direto para a morte!


II.

 

— Que pirralho!

O termo soou na boca de Ludwig como uma maldição.

— Deixe de esperar que os outros sejam o que você quer e aceitei-os pelo que eles são — chiou Gregory. — Ronet pelo menos tentou alguma coisa!

Ludwig:

— Falou comigo?

A pergunta fez o copo transbordar. Gregory:

— Falei. E daí?

— Achei que houvesse um distanciamento entre nós! — disparou Ludwig. — Geralmente você arma a confusão e depois cai fora.

— Você é um imbecil, Hoerbst! Ainda aquela história? Não dá para esquecer isso?

— Falar é fácil. Não ia ser você que ficaria na prisão! Estou determinado a limpar meu nome.

Erguendo os olhos, como se estivesse se lembrando de algo, France choramingou:

— Ele disse que não gostava de altura! Ele disse... e pulou!

— Essa porcaria de paraquedas estava no depósito! — disse Simon, ainda pasmo. — Há quanto tempo? Devia estar podre... Quis dar uma de herói... e morreu.

— Esperem... — disse Gregory conferindo o bilhete dado por Nigel. — Ouçam essa...


Ao toque do sino, a adega é aberta, a chave que gira;

cianeto de potássio, lá tomba e morre a quarta formiga


— Quarta formiga, viram? — exultou Simon. — Está tudo explicado!

Madame Roskov (apreensiva):

— Quarta formiga?

France:

— O que quer dizer, Greg?

Gregory:

— Ronet deveria ser a quarta vítima do nosso assassino. Pelo que diz aqui, morto por cianeto. Tentou escapar e... blóf! Saiu da frigideira para morrer no fogo.

Simon:

— Mas... com a breca!... ele foi a quarta vítima. Não estão vendo?

Gregory:

— Vendo o quê?

Após uma exclamação pouco acadêmica, Simon acrescentou:

— Devíamos extrair alguma coisa desses versos. Dessa forma, abrangemos todas as possibilidades... as previsíveis, pelo menos. O paraquedas... Não foi casualidade. O assassino sabia que, cedo ou tarde, um de nós o usaria. Ele sabia... e o retalhou de propósito!


III.

 

A Condessa Emily du Barry manteve os joelhos muito juntos e começou a calçar as luvas.

Encarou a mulher que a espiava do espelho... Olheiras. Deprimida. Desanimada. Talvez paranoica.

A condessa tremeu como se tivesse febre.

Nuvens de jasmim, rosa, almíscar e alfazema enchiam o quarto. Para quê?

Nada animava seus pensamentos.

De relance, viu o pedaço de papel. Debaixo do pé do abajur...

Arregalou os olhos, muda de espanto, sem acreditar no que via. Exclamou:

— Era só o que faltava! Queira que não seja...

Dominada pela incerteza e pela emoção, leu:


Lembra-se de Bess, condessa?

Lembra-se do que fez a ela?

Toda essa gente...

Tantos que vão morrer...

Formigas — que nada significam para mim.

Onze formigas...

Quatro já morreram.

Vai ter a honra de ser a última...

A décima primeira formiga.


A Condessa du Barry gemeu. A pele de seu rosto adquiriu um tom amarelado.

Estava farta daquilo e esgotada.

Bess...

Sempre Bess!

Uma silhueta meio apagada... que insistia em se perfilar, em se pôr de pé...

Acusando... acusando... acusando...

Os seus receios eram fundamentados.

Tinha sido atraída a uma armadilha.

Uma armadilha da qual não sairia viva.


IV.

 

Oito pessoas à mesa do jantar. Oito pessoas apreensivas, que se estudavam, se mediam, com olhos que não perdiam nada e que pareciam adivinhar tudo.

Com os acontecimentos do dia, a maioria não teve coragem para provar a comida de Madame Roskov.

De feições simpáticas e expressão um tanto ingênua, Lady Dobney era a única que comia sem pudor.

— Meus queridos! — murmurou com voz cálida, insinuante. — Sobre brasas, no forno ou na frigideira... mal passada ou ao ponto... Carne é sempre bom. Mas em lata?! Uh...

Dizendo isso, trinchava sua fatia de filé com os dentes pequenos e vorazes.

Nem café... nem uísque...

A ameaça de veneno imprimira neles uma repulsa por qualquer produto aberto ou pós-preparado.

Terminado o jantar, Ludwig e o eng. Peters se sentaram no living, à parte dos demais.

— Ao toque do sino... — filosofou o alemão, coçando o queixo. — Quem é que escreveria desse jeito?

— Alguém com grau de inteligência variável? — sugeriu Simon. — A meu ver, um poeta frustrado...

— Não só isso: alguém que deve ter trabalhado numa vinícola. Veja: a uva amadurece, é colhida, vai para a adega... É a sequência do processo de produção do vinho.

Simon recostou-se.

— O Dr. Lèfevre. Ele é o homem.

— Por que ele? — perguntou Ludwig.

— Despeito, malícia. Hoje o poder, a supremacia, o dinheiro e o prazer são mais importantes do que a vida humana e os valores morais. Barões da droga mandam matar famílias inteiras. “Apaguei fulano!”, dizem eles; ou “Silenciei beltrano!”. Acha que um médico não pode surtar e... seguir pela mesma vereda? Estou cismado desde a morte de Miss Grogan. Aquela troca de ampolas... E, ontem, os golpes certeiros que mataram Schippendale! Mais a citação sobre o cianeto... Apenas uma pessoa com formação técnica, e com conhecimentos específicos, saberia fazer tais coisas tão bem.

— É, vou incorporar isso à minha teoria — disse Ludwig. — Eu supus que fosse a condessa, mas pode ser engano meu.

— Hum, a Condessa du Barry... Qual o seu critério?

— Eram só conjeturas. Há alguns anos, ela foi julgada pelo assassinato de uma moça. A arrumadeira, pelo que sei. Se ela já matou uma vez...

Simon esfregou as mãos com evidente satisfação.

— Como saber se é ou não é verdade, enquanto não estudarmos a coisa bem a fundo? — disse com voz ausente, mergulhado em reflexões. — Eu expus a minha hipótese e você a sua, Hoerbst. Tudo pode ser sintetizado num só fato: Estamos ilhados aqui, sendo mortos um por um. Temos um culpado. Um assassino que não é razoável e nem negociável. Se queremos descobrir quem ele é, precisamos ficar espertos. É um caminho duro, desigual, mas mútuo, entendeu?

— Não importa — respondeu Ludwig. — Eu topo.


V.

 

Quando a tempestade parecia iminente, os hóspedes deram boa-noite e subiram a seus aposentos.

France entrou e chaveou a porta. O terraço correspondente ao seu quarto estava coberto pela neve.

Não lhe saía da cabeça o que Frank tinha dito. Conforme as disposições de sua tia-avó, ela agora era rica. Mais do que isso — milionária.

Frank... Enterrado lá embaixo...

O vermelho reflexo dos archotes... a neve turbilhonando...

France sentiu-se desfalecer.

Conseguia vê-lo ali parado, diante dela. Frank e suas pretensões donjuanescas. Ela se lembrava de seu rosto enérgico, o olhar profundo de seus olhos claros, que se cravavam nela e... perdiam gradualmente o brilho, até se apagar completamente...

Morto a pauladas!

Perto das linhas brancas da quadra de tênis...

— Tão bom — murmurou ela. — Seco e conciso, e um pouco pretensioso. Mas sim, um bom homem.

Devagar, France apertou o travesseiro contra si e chorou. Um choro de dor e remorso.


VI.

 


O Dr. Lèfevre remexeu-se na cama...

Pensava em suas habilidades arduamente conquistadas.

Na residência nos Alpes Marítimos, cerca de 50 km ao norte de Nice.

A mulher...

Allan. Sobretudo Allan...

Que fora criado com todo o amor, amigos em quantidade, um lar equilibrado e uma irmã a quem era muito ligado. Mesmo assim... O que acontecera com ele?

Lembrou-se de sua primeira noite no albergue... Pouco movimento, clientela escassa... Monsieur Bouffler dizendo que nos últimos tempos vinha pouca gente; que a chegada de novos hóspedes o enchia de novo ânimo. Onze clientes — numa ocasião em que não esperava contar com nenhum. Onze — todos tendo pagado à vista.

O médico fechou os punhos.

Onde estava agora Monsieur Bouffler?

Morto — como uma formiga que se espezinha sem a menor piedade.

Ergueu-se da cama e foi conferir a porta.

— Se não for muito, é o que será — e escorou uma cadeira contra o trinco.


VII.

 

Gregory custou a pegar no sono. Uma hora mais tarde acordou assustado.

O quê?!

Um ruído...

Sim, no corredor...

Ele recorreu a toda a sua coragem e foi até a porta. Deteve-se por um momento de reflexão visual e mental.

O esporte deixara seu corpo vigoroso, tornando as palmas das mãos um tanto calejadas. Ligou a lanterna do celular e rodou a chave.

Avançando cautelosamente, saiu do quarto. Tinha o coração na boca e a respiração curta. Em compensação, interessou-se muito em escutar tudo quanto acontecia no albergue. Afinou os ouvidos, mas não distinguiu nada.

A mandíbula projetava-se para frente, agressiva.

Depois ouviu...

Com um estrondo, alguma coisa rolou escada abaixo, fazendo os degraus rangerem.

Alguém gemeu.

Gregory esperou um pouco, tomado por um sentimento muito próximo ao pânico. Finalmente, com grandes precauções, resolveu assomar com a cabeça e olhar para baixo. A visibilidade era precária.

Naturalmente não viu muita coisa. Ele começou a descer a escada, grudado à parede, mas pronto para voltar correndo, se preciso fosse. Nada aconteceu até chegar ao andar de baixo. Então pôde ouvir distintamente um gemido rouco.

Retrocedeu um passo.

Notou outra lanterna. O facho de luz iluminava a coluna de sustentação no meio do hall. Segurando a lanterna, uma figura masculina.

Um elegante roupão leve de seda e uma echarpe...

Gregory adiantou-se bruscamente.

— Parado aí! — disse, com inflexão feroz.

Havia um temor evidente em sua voz, o que arrancou um sorriso inescrutável do vulto.

— Não me reconhece, Stracker?

Fronte ampla, nariz reto, lábios delgados e franzidos numa careta divertida... Aos poucos, tudo se tornava mais claro.

Gregory sentiu-se como alguém que estivesse perdido no vácuo e voltasse a pisar terra firme.

— Hoerbst?

Expressando a mais completa indiferença, Ludwig riu discretamente, dizendo:

— Desculpe... Tropecei no degrau.

Gregory apertou os olhos, com expressão maliciosa, e perguntou:

— Não diga! Fez dodói?

Ludwig continuou inalterável ante o cinismo do outro.

— Bem, posso afirmar categoricamente que não... Mas achei uma coisa. Venha ver!

E indicou a coluna de madeira. Gregory aproximou-se; com espanto, viu o que estava pregado nela.


VIII.

 

Madame Roskov estava imóvel, sem atrever-se a se mexer. Tinha ouvido algo rolando pela escada...

Seus olhos giraram horrivelmente.

O que estava acontecendo?

Oh não, e se...

A imagem do ex-marido cristalizou-se no forro do quarto.

Julius... Metido num paletó de cheviote de corte impecável, calças de vinco bem passado, sapatos negros e engraxados, camisa branca e gravata azul.

Olhos malignos, inteligentes e quietos...

Ela pôde vê-lo vindo pelo corredor... e parando à sua porta.

Arma em punho...

Lívida de pavor, Catherine puxou a ponta do cobertor.


IX.

 

Lady Dobney estava sonhando... E no sonho ela era casada.

Com um consultor do Ministério da Aeronáutica.

Alto, musculoso e ágil como um felino, com feições corretas e másculas.

— Meus daiquiris de morango são irresistíveis — dizia ele.

— Sou louca por daiquiris — respondeu Lady Dobney, sorrindo.

Iam ambos de mãos dadas. A paisagem — plátanos e palmeiras... a calçada... uma casa de caseiro de pedra calcária...

Repentinamente, ela viu...

A casa... oh! não era mais uma casa. Era um imenso vulcão, do qual saíam legiões de... formigas?! Formigas de todas as cores e formas.

— Não dificulte tudo, Hilary — disse o marido malevolamente. — Renda-se... Junte-se a nós!

Ele cambaleou... e, horror!, duas pinças foram crescendo em seu rosto... até...

A mão de Lady Dobney chicoteou violentamente o ar.

Ela acordou arquejante.

Ouviu vozes...

Quem? Onde?

No andar de baixo. Outro incidente?

Colocou as pantufas e moveu o comutador da luz.

Vestiu um quimono caseiro e, furtivamente, saiu do quarto. Deu de cara com a Condessa du Barry, que vinha silenciosa pelo corredor.

— Sussurros — disse a estilista, sem jeito.

— Já sei — respondeu a condessa, extravasando a irritação. Usava uns antiquados óculos que lhe davam um aspecto pouco atraente. — Eu ouvi.

Lady Dobney acenou encabulada. Não conseguiu sustentar aquele olhar arrogante. Tomou a dianteira e foi até a escada. A condessa seguiu-a maquinalmente.

No saguão estavam Gregory, Ludwig, o doutor, France e Simon.

— Sejam bem-vindas, Madames — disse Gregory. — Agora a patota está completa.

— Falta Catherine — disse Lady Dobney, após uma rápida olhada.

— O quê?

— Catherine... não está aqui.

Todos contaram. Sete! Faltava Madame Roskov.

Alvoroço...

France, prevendo as consequências, interveio conciliadora:

— Eu vou chamá-la.

Não parecia muito confiante.

— Sozinha? Não, não — disse Ludwig. — É melhor que alguém vá junto.

— Eu vou — ofereceu-se Lady Dobney.

As duas voltaram a subir.

— Cauteloso, Hoerbst? — provocou Gregory.

— Prevenido.

— E se uma delas for a assassina?

— Fazer o quê! — respondeu Ludwig, com ar ausente.

Em cima, as duas mulheres deram pancadinhas na porta da russa. Não obtiveram resposta. Bateram mais forte.

Madame Roskov abriu uma fresta. Soltou uma rude exclamação em voz baixa.

— O-o que vocês querem?

— Estão todos no saguão — disse Lady Dobney. — Hoerbst achou mais versos. Uma montoeira deles.

Madame Roskov ficou imóvel, sem enrubescer ou baixar os olhos.

— Esperem...

A parlamentação tivera os frutos desejados. O trio desceu.

— A nossa cozinheira está bem, hurra — saudou Gregory.

Com um canivete, Ludwig despregou a folha de papel fixa na coluna do hall. Como ovelhas indo para a tosquia, o grupo foi para a sala de estar.

Havia uns móveis de luxuoso entalhe, que davam à sala um ambiente de distinção e riqueza.

— Acho que está nos devendo uma explicação, Hoerbst — disse o Dr. Lèfevre, sério.

— Escutei batidas de um martelo — disse Ludwig. — Desci para ver o que era.

— Viu alguma coisa?

— Não. Exceto isto.

Ludwig assumiu uma postura fleumática. Leu:


Ao toque do sino, a pipa vai para o estoque na adega;

répteis que furam, a quinta formiga na morte sossega


Ao toque do sino, a praga aniquila a safra restante;

fim da sexta formiga – zás! com a lâmina cortante


Ao toque do sino, no porão a temperatura estabiliza;

a sétima formiga arsênico engole - seu corpo esfria


Ao toque do sino, cada tonel recebe seu tratamento;

mais um tiro, a oitava formiga cai no esquecimento


Ao toque do sino, você que compra, deguste o vinho!;

a nona formiga, em sua inquietude, aciona o estopim


Ao toque do sino, é a sobra do bagaço descartada;

por sua presunção, a décima formiga é estrangulada


Ao toque do sino, estraga o vinho que não fermentou;

décima primeira formiga – sua morte termina o show!


X.

 

— Raios! — vociferou Simon. — Não posso tolerar isso de modo nenhum.

Ludwig olhou longamente para ele.

— Do que está falando, Peters?

— Dessa maluquice! Primeiro o assassino envia cada verso à própria vítima. Agora ele resolveu expor todo o pacote de uma só vez!

— Muito melhor, não? Saber o que está por vir é uma grande vantagem. Dá tempo para elaborar uma estratégia de defesa.

— Defesa contra nós mesmos? — observou Simon. Sorriu com o canto da boca e suas pálpebras se semicerraram.

Gregory adiantou-se um pouco.

— Aceite isso e tudo o que vem junto. Nenhum de nós sairá daqui vivo. Por que continuar nos iludindo? Verdade seja dita... já estamos todos mortos.

Madame Roskov arregalou os olhos, contemplando-o com vigor.

— Não!

— Madame?

— Ninguém deve morrer — disse a russa. Cada vez mais empolgada, insistiu: — Ninguém deve... Ninguém!

O Dr. Lèfevre continuou a ouvir, procurando captar algo mais. Elaborou mentalmente uma frase inteligível.

— Acho que Stracker está certo.

Todos encararam o médico.

— Têm gente que se mete nos varais da cobiça e acaba cometendo os piores crimes. Tudo em nome de supostos ideais de civilização e prosperidade. Estamos fadados a morrer aqui... um por um.

— Ah!

— Vocês ouviram... Répteis que furam, arsênico, mais um tiro... O círculo está se fechando e nós no mesmo ponto de partida. Todos nós ansiamos por alguma coerência. — O médico moveu a cabeça afirmativamente, devagar. — A única coerência é esta: se preparem para morrer, só isso.


Morte das Operárias


I.

 

Ludwig Hoerbst dormiu num estado de torpor. Quando acordou já passava das oito e meia.

Nevava. Era uma mistura de neve fresca granulada e cristalina...

Levantou-se preguiçosamente. Andou pelo quarto. No chão, um grosso tapete, cor de couro velho.

Belo tapete! Macio como um jazigo...

Parou diante da janela. Abaixo, pôde ver as três sepulturas provisórias.

“Se Nigel não tivesse... Seriam quatro!”

Ele olhou o quintal por alguns segundos, e sua expressão voltou a suavizar-se. Em breve, mais corpos seriam transferidos para lá.

Ludwig pensou em Gregory Stracker. O seu declarado algoz...

— Sujeitinho besta!

Buscava na lembrança do passado o esquecimento do presente.

Não se ouvia um pio no albergue. As provações da noite pareciam ter nocauteado os hóspedes.

— Quem é que vai cozinhar num clima tão depressivo?

Depois de trocar de roupa, Ludwig decidiu agir. Escapuliu para o corredor e bateu na porta do quarto do eng. Peters.

Um móvel foi arrastado; o rosto infantil de Simon apareceu na abertura. Um gorro ocultava parcialmente sua fronte larga.

— Ué, de pé tão cedo? — saudou, envolvendo o amigo num olhar provocante e risonho.

— Que horas são?

— Nove e dez.

— Não acho que seja tão cedo.

Simon chupou o nó dos dedos:

— Alguma emergência, Hoerbst?

— É uma pergunta de retórica — disse Ludwig afavelmente. — Com a nossa vida por um fio, é mais do que uma emergência.

— Nenhuma morte, quero crer.

— Quem é que vai saber!

— Ainda julga que é a condessa? — Simon se espreguiçou lentamente.

— Você não?

— Sinceramente não sei. É você quem diz que deu de cara com os versos da noite passada.

Direta, quase instintivamente, Ludwig se sublevou:

— O que quer dizer?

— Não quero dizer nada. Estou só me atendo aos fatos. Não ligue... Há em mim um comportamento transgressor que ocasionalmente quer romper com tudo.

— Comportamento transgressor... Estamos todos nos debatendo contra algo muito maior do que nós. Vamos suspender as hostilidades ok?

— Acha que estou sendo hostil, Hoerbst? — cutucou Simon. — Para mim, o Dr. Lèfevre é o assassino... já lhe disse isso.

— Ele monopoliza qualquer conversa... discute assuntos ambíguos... cita casos inéditos... — disse Ludwig. — Se não fosse você, jamais pensaria nele nesses termos.

— Está dizendo que posso ter razão?

— Sim.

— Vejam só — disse Simon. — Os rataplãs da glória nunca soaram para mim. Sempre há a primeira vez.

— Mas o balanço de nosso trabalho ainda é zero.

— Vamos com calma, meu amigo. De acordo com os versos, o próximo assassinato vai envolver um réptil, não é?

Ludwig balançou a cabeça.

— A-hã. Répteis que furam, dizia o verso.

— Que réptil acha que é?

— Um crocodilo... não. Uma víbora... Ou outra espécie de serpente.

Simon trincou os dentes.

— Exato! É isso o que vai ser. Mas não uma serpente normal, dotada de escamas ou placas. Não, apenas o veneno... a secreção venenosa, por assim dizer. Coisa que se enquadra com quem? Com o Dr. Lèfevre. Picada de uma agulha... Conforme o que aconteceu com Miss Grogan.

Desceram para a sala. Madame Roskov estava lá, ajoelhada diante da lareira. Seus olhos arregalaram-se.

— Nós não mordemos, Madame — brincou Simon. — Posso acender o fogo, se me permite.

Logo um tênue anel de fumaça saía da chaminé.

Miss France Paxter veio a seguir. Tinha os cabelos recolhidos num artístico penteado.

— Olá — disse, com embaraço.

Depois foi a vez de Gregory. Vestia um impermeável sobre seu traje de rigor.

— Vou dar uma volta — disse, e saiu.

O Dr. Lèfevre cruzou o umbral, fechou a porta às suas costas e logo puxou as cortinas.

— Vocês não gostam da paisagem?

— Acho tudo isso tedioso, cinzento e monótono! — disse Simon.

A Condessa du Barry entrou na sala. Seus dedos estavam cheios de anéis, e todas aquelas joias eram incrustadas de ofuscantes brilhantes. Usava também sapatos de saltos muito altos, para completar a suntuosa vestimenta.

— Bom dia! — disse, embora sem alterar a voz.

Os outros retribuíram o cumprimento. A condessa:

— Mais mortes, ou estão todos vivos?

Ludwig:

— Todos vivos...

Madame Roskov:

— Alguém quer ovos fritos? Estralados?

Simon:

— Vou querer cozidos, obrigado.

Ludwig (aos cochichos):

— Não acha que...?

Simon (em resposta):

— A quinta formiga não morre envenenada, morre?

Ludwig:

— Nunca troque um perigo remoto por outro imediato.

Dr. Lèfevre:

— Onde está Lady Dobney? Já são dez horas. Ela sempre dorme até tarde?

Simon:

— Artistas não são regidos pelo relógio. Certa vez fiz um estojo azul-turquesa para a caneta-tinteiro de meu avô. Eu sei como essas coisas roubam nosso tempo.

Passaram-se os minutos. No fogão a gás a chaleira fervia.

Simon tamborilava os dedos acompanhando o ritmo da música em seu smartphone. O doutor cruzara as pernas e lia um artigo do Medical World News.

France arrumava os talheres na mesa. Nisso, uma xícara escapou da mão e, com um giro no ar, espatifou-se no piso.

Todos deram um pulo.

Quase em seguida, Gregory invadiu a sala.

— Senhores, quero que venham comigo!

A declaração saiu brutal, espontaneamente. Meia dúzia de olhares se voltou para ele.

— O resgate!

— Um helicóptero...

— Outra avalanche.

— Mais uma tragédia.

Gregory ajeitou o cabelo em desalinho.

— Sigam-me!...

Batendo os calcanhares, todos saíram correndo em direção da escada. Foram até o quarto de Lady Dobney. A porta estava trancada.

— Estão vendo? Ela não está só dormindo.

Madame Roskov bateu; nada.

— Temos que arrombar — disse Simon.

— ... o que não me seduz particularmente — disse Ludwig.

Lançaram-se contra a porta. Após a terceira arremetida, a lingueta cedeu.

Como um bando de antílopes, o grupo assomou ao quarto.

A porta que dava para o terraço — escancarada.

O corpo de Lady Dobney estava estirado de bruços no chão. Nenhum músculo se movia.

O doutor se agachou e tocou nela.

Hilary Dobney estava morta, levando consigo o segredo da identidade de seu assassino.


II.

 

— Morta por um peso de papel. Vejam aqui o ferimento — disse o médico, apontando para a base do pescoço da vítima. — Dois ou três golpes, que seccionaram a artéria principal.

— Um peso de papel?!

— Este!

Era uma figura de ferro, no formato de um jacaré. A cauda, pontuda e reta, tinha uma espessa mancha de sangue coagulado.

— Répteis que furam — disse Simon. — Fiiu... Jamais teria imaginado algo assim.

— O assassino entrou enquanto Lady Dobney estava no térreo. Deve ter ficado atrás desta cortina. Foi intuição, Stracker?

Gregory tinha os olhos baixos, fixos no chão. Disse num murmúrio:

— Estava passeando e vi um rastro de pegadas abaixo de terraço. Achei pouco provável que tivessem sido feitas pela australiana. Olhando para cima, notei que a porta de correr estava aberta.

— Hilary! Oh, Hilary — soluçou Madame Roskov, agachada ao lado da estilista.

O rosto da Condessa du Barry estava branco. Ela, que até ali fora fria e impessoal, parecia completamente abalada.

— Se foi um ataque, por que é que ninguém escutou nada? — perguntou, com um leve tremor na voz.

— Deve ter sido tudo muito rápido — disse o Dr. Lèfevre. — Lady Dobney entrou sem suspeitar que o assassino estivesse no quarto. Veio até a cortina e... zás, recebeu as estocadas.

— Eu e Peters subimos juntos — disse Ludwig, tentando colocar as coisas numa ordem lógica.

— Eu vim com o doutor — disse France, a respiração tensa.

Pronunciou a frase ligeiramente transtornada.

— Acho que vim logo depois — disse Gregory. — Daí veio...

— Eu — replicou a condessa, como uma rainha ofendida.

— Eu e Hilary fomos as últimas a subir — disse Madame Roskov. Adivinhando o que imaginavam, esclareceu: — Ela comentou que vinha tendo pesadelos. Resolvi fazer um chá para nós duas. Era o que convinha a ela. Quando viemos, Hilary estava bem. Antes de ir se deitar, ela olhou para mim e disse: “Cathe, eu...” Não encontrou a palavra adequada e concluiu, sorrindo: “Obrigada!”.

Ludwig assobiou entusiasmado ao receber o relatório.

— Ora, mas isso é excepcional! Poderíamos fazer uma reconstituição disso, Madame Roskov?

A russa piscou, desorientada.

— Fazer uma reconstituição?

— Exatamente. Venham, vamos sair.

Todos obedeceram a contragosto, sem entender muito bem.

Sete pessoas se perfilaram no corredor.

— Ótimo — aprovou Ludwig, estendendo as mãos informalmente. — Madame narrou sucintamente os fatos. As duas vieram andando dali... Miss Paxter, pode tomar o lugar de Lady Dobney?

Madame Roskov e France fizeram uma breve demonstração.

— Faltam as falas...

— Como?

— As falas. Sobre o que estavam conversando?

— Eu não lembro...

— Certo. Lady Dobney parou aí, em frente da porta. Ela estava com a chave?

A resposta foi peremptória:

— Não. Hilary só torceu o trinco e entrou.

Gregory impacientava-se com todo o drama.

— Vamos evitar as complicações, sim? Onde está querendo chegar, Hoerbst?

A pergunta arrancou Ludwig de suas meditações. Franziu o cenho ao responder:

— Não está tudo claro? Acabamos de provar que qualquer um de nós poderia ter se emboscado no quarto e assassinado Lady Dobney.


III.

 

— Qualquer um de nós... E quanto ao rastro de pegadas? — perguntou o Dr. Lèfevre. — Não deveríamos ver isso antes de recomeçarmos as acusações?

Voltaram ao terraço.

— Daqui até lá embaixo dá uns quatro metros — calculou Simon. — Uma altura e tanto para um salto no escuro!

— Salto? Não, alguém usou uma escada — disse Gregory. — Olhem, as marcas vão para o depósito.

— Bem — replicou Simon friamente. — Talvez cheguemos a um acordo.

— Acordo, Peters? Que acordo?

Simon era um homem benévolo, um pouco rústico. Quarenta e cinco anos presumíveis, nariz aquilino e queixo firme.

— De que foi você quem fez essas marcas! — disse numa torrente de fúria.

Encarava Gregory com firmeza, sem excessiva agressividade, mas inexoravelmente.

— Eu-fiz-as-marcas?

— Sim, você!

— Você é um fanfarrão insuportável! É isso o que pensa de mim?

— Vou dar uma volta, disse você — acrescentou Simon, esmagando o outro sob o peso de um olhar acusador. — Tudo mentira! Você cometeu o crime... e precisava afastar as suspeitas. Eu vi você rodear o hotel.

— E daí que me viu? Eu admiti ter saído... todos vocês ouviram. Creem que eu escrevi os famigerados versos? É de se rir! Meu pai quer que eu cuide da fusão de empresas. Acha que perderia meu tempo matando gente que sequer conheço? Caso tenham dúvidas, pesquisem mais. Vão descobrir que tipo de homem eu sou.

— Você não se envolveu em roubo e tráfico de drogas, pelo que foi preso? — atalhou Ludwig. — É esse o tipo de homem que é, Stracker? Quando a frustração e o egoísmo se avolumam, muitas pessoas se voltam para o crime.

O rosto de Gregory transformou-se e nos seus olhos apareceu um fogo de cólera.

— Caramba! — Seu queixo caiu.

Inadvertidamente, flexionou os dedos e desferiu o soco. Simon se esquivou em parte, o que amorteceu o impacto do punho em seu maxilar.

Todos ficaram petrificados.

— Greg. Oh, não. Greg — gemeu France.

— Essa você mereceu, Peters — esbravejou Gregory, deixando o quarto. — Da próxima vez, meça o que vai dizer!

Simon teve que empregar uma força monumental para não cair. Havia sangue em sua boca e o sangue fazia-o tossir.

— Peguei bem na ferida, hem?

Estranhamente, um sorriso flutuava em seus lábios.


IV.

 

— Tome um anti-inflamatório, aplique gelo e repouse. É a única coisa que posso recomendar, Peters.

Simon fitou o médico por um longo tempo, carrancudo.

— Fique tranquilo, doutor. Eu vou me safar dessa.

Ludwig entrou na sala, trazendo uma bandeja e um sifão. Despejou whisky num copo e misturou a soda. Passou-o para o amigo.

— Isso sim é que é remédio! — Simon estalou a língua.

O Dr. Lèfevre emitiu um grunhido. E, girando nos calcanhares, retirou-se dali.

Remédio!, pensou, trepidando de indignação.

Foi para a cozinha, onde Madame Roskov cortava um frango. Lágrimas finas desciam pela face da russa, que ela enxugava com as costas da mão.

Estava assustada, aterrada.

— Quando vão...? — perguntou ela, ao vê-lo entrar.

O Dr. Lèfevre deu um suspiro.

— Depois do meio-dia. Desde que estamos aqui temos tido um enterro cada tarde. Não podemos perder o hábito.

Disse isto com determinação, fitando-a fixamente.

— Se eu soubesse quem tocou em Hilary! — exclamou Madame Roskov severamente. Apertou o cabo da faca. — Eu mataria essa pessoa... Mataria!

Ele olhou para a russa.

“Para uma mulher que foge do marido, é uma ameaça e tanto!”

— Sabe aonde foi Stracker, Madame?

— Está no pátio. Que inglês grosso! Bater assim nos outros. O senhor deveria falar com ele, doutor! Um rapaz tão novo... e tão violento. Ele deve ser contido... a todo custo.

— Não sou súdito britânico, Madame. Acho que minha intermediação teria pouco efeito sobre ele.

— Mas tem que falar! Precisa falar!...

Ele não fez caso daquele protesto inacabado. Revirou os olhos e saiu da cozinha. Em seu estado de exaustão era incapaz de afligir-se com o que quer que fosse.

Madame Roskov continuou cortando o frango.

— Tenha santa paciência! — disse com raiva. — Outro que não presta para nada!... Um homem que tentou se livrar da esposa! Bah...


V.

 

— Pensei num modo de me expressar — disse Simon. — Acha que fiz feio com meu espírito combativo?

Ludwig comentou em tom zombeteiro:

— Eu não consigo ver nenhum espírito combativo nisso. Foi quase um suicídio.

— Pode dizer o que quiser, eu não ligo.

— Tanto melhor. O que eu não entendo é que, há uma hora, você estava colocando a cabeça do Dr. Lèfevre a prêmio. Do nada, você parte para cima de Stracker.

— Eu sei e me reprovo — respondeu Simon. — Procurei obter um preço baixo, mas acho que fracassei. Que soco! Que bom que não foi em cheio. Ai!...

— Que bom, não?

— Acha que vai prejudicar nossa investigação?

— Talvez não. Reincidir nisso é que poderia prejudicar.

Simon olhou para o colega:

— Quer dizer que vamos manter nossa parceria?

— Quer dissolvê-la?

— Você sabe que não!

Ludwig inclinou-se e sussurrou:

— Dessa vez vamos deixar as coisas fluir. Não há como fugir. Temos que pegar esse assassino com a boca na botija. Na próxima, Peters. Na próxima...


VI.

 

— Não tolero coisas assim — disse France, ofegante. — Não tolero... Por que Greg fez aquilo? Ele não deveria... nunca... Bem, espero que ele seja, pelo menos, maleável.

Estava pálida, parecia fatigada, e não havia dúvida de que estava nervosa.

Emily du Barry exalou lentamente o ar.

— Já disse que não gosto de tocar neste assunto, mocinha. Eles são homens — eles que se entendam.

France contava cuidadosamente os pontos nas agulhas de tricô. Não deu a mínima atenção à condessa.

— Hem? — disse. — Sim, é mesmo. Até me dá arrepios. Estávamos todos lá... com o cadáver da pobre Lady Dobney. Então Simon disse aquela coisa sobre Greg... e as pegadas na neve. Sim, ele disse isso intencionalmente.

A Condessa du Barry não conseguia disfarçar sua admiração. Numa voz que parecia veludo se rasgando, disse:

— Gostaria que não falasse sobre coisas que não nos dizem respeito. Eu realmente não me interesso por isso.

France não aparentava o menor embaraço.

— Greg agiu como um bobo! Precisava ter batido em Simon? Foi sujeira o que ele fez. Um jovem de nível superior!...

E falava, falava, falava...

Teria continuado debulhando incoerências, se a Condessa du Barry não a interrompesse com um latido:

— Com licença!

E saiu da sala.

France esbugalhou os olhos, atônita.

— Na ocasião certa, terei umas palavrinhas a dizer sobre a senhora, Madame de Araque — disse ela obscuramente.

No vestíbulo, a condessa parou num desvão de janela.

Nunca encorajava boatos, nem estava ansiosa por ouvi-los.

Miss Paxter... aquela menina mimada... fazia seus ouvidos zunir! Era uma criança... Uma criança cuja inteligência devia ter um atraso de alguns anos.

No fundo, porém, não era só isso. Havia outra coisa que martirizava a condessa. Ela bem sabia o quê.

O caso Bessie Verdér.

Não o caso em si.

Os desdobramentos... A investigação...

A investigação! E, acima de tudo — o julgamento.

— A senhora alegou que se sentiu ameaçada, não foi? E que temia por sua vida.

O promotor do Estado (como se chamava ele?) havia sido contundente. Um homem elegante, mas insignificante, se não tivesse aquele cargo. Quarenta e poucos anos, bem vestido, bem conservado e bem perfumado.

— Sim — dissera ela.

— Peço desculpas, Madame, mas eu não compreendo. Como é que uma moça desarmada poderia oferecer um risco para a senhora?

— Ela não estava desarmada! Bess havia pegado o revólver de meu marido. Ela o apontou para mim! Para mim!...

— Sei, ela estava com o revólver. Na luta que se seguiu, porém, a senhora conseguiu arrebatá-lo dela.

— Sim.

— Houve uma testemunha que disse o contrário, Madame du Barry. Deixe-me ver...

Seus argumentos feriam como alfinetadas. Tirou do bolso uma caderneta, virou-lhe as páginas e leu uma anotação:

— “A condessa tinha a arma”, disse Mr. Poelm. “A condessa disparou... ouçam essa... sem dar chance nenhuma à moça”, acrescentou Mr. Poelm.

— Protesto, Meritíssimo! — interveio o advogado de defesa.

— Esse Mr. Poelm vai depor, Sr. Promotor?

— Estamos tentando localizá-lo, Meritíssimo. Pelo que consta, ele abandonou a casa e não atende a nossas ligações. Não há registro de seu novo endereço.

O juiz fora impiedoso:

— Pois eu dou um dia, Sr. Promotor! Um dia... para trazê-lo até aqui.

Bom juiz! Um homem venerável de longa cabeleira branca e rosto afilado.

Ele havia deduzido que ela era culpada das acusações!... Sim, um magistrado com a sua têmpera... a sua experiência... sabia dessas coisas!

Mesmo assim, fora ele que promovera uma verdadeira batalha para arrancá-la das garras afiadas do promotor.

A Condessa du Barry sacudiu a cabeça.

Por que será que o juiz fizera aquilo? Por simpatia... solidariedade? Outro mistério...

Formigas... Todas mortas!

Até agora tinham sido cinco. Haveria mais seis. Seis...

Ela precisava conversar com alguém... Precisava expor qual a parte que lhe cabia naqueles crimes.

Não... a parte que lhe cabia, não!

Tudo era sua culpa. Tudo.

Mas expor para quem? A quem recorrer?

Aos mais jovens? Não, tolice. A Madame Roskov? Ela era mais centrada, prudente. Mas também russa... e desquitada!

Não, fora com aquilo.

Havia só uma pessoa. Alguém que talvez a compreendesse. Alguém que poderia ouvi-la imparcialmente.

Aquela já era uma perspectiva mais atraente.

Essa pessoa estava no pátio.

Tomando ar, a condessa foi para lá. O vento cessara por completo, mas a neve caía em flocos enormes.

Hirta de frio, ela andou direto para a mesa onde o Dr. Lèfevre parlamentava com Gregory.

— Todo mundo devia dar mais de si — dizia o rapaz. — Se ficarmos de braços cruzados, não sairemos mesmo daqui.

— Doutor!...

Ambos se viraram para ela.

— Condessa!

Ele falou assumindo um tom formalista e profissional.

— Posso falar em particular com o senhor?

O médico continuou a observá-la.

— Vai lá, doutor — estimulou Gregory.

O Dr. Lèfevre e a sueca se afastaram até uma mesa no outro extremo.

— Aqui está bom, Madame?

Sentaram-se. Ela tornou a elevar a sua voz de soprano.

— Está sim.

— Há alguma coisa que eu possa fazer pela senhora?

A condessa estava cansada demais para entrar em minúcias.

— Toda essa gente está morrendo por minha causa — disse secamente.


VII.

 

O Dr. Lèfevre:

— A senhora está dizendo que...?

— Não, não — disse ela. — Não matei ninguém... não pessoalmente!

Obviamente havia ali um ponto a ser explorado.

— Devo dizer que não estou entendendo, Madame.

Uma leve coloração tingia as faces da condessa.

— O que eu quero dizer, doutor, é que anos atrás fiz algo. Algo do qual eu já me arrependi muitas vezes. Uma moça morreu... fui acusada, depois absolvida...

— A senhora a matou?

Ela se absteve de comprometer-se verbalmente.

— Como eu disse, fui absolvida. Acho, no entanto, que o que está acontecendo tem relação com a morte de Bessie Vérder.

Sua fala era precisa, isenta de extravagâncias.

— Bessie Vérder?

— É o que diz aqui.

O médico apanhou o papel que lhe foi estendido. Fez uma leitura exclusivamente contextualizada.


Lembra-se de Bess, condessa?

Lembra-se do que fez a ela?

Onze formigas...

Vai ter a honra de ser a última...

A décima primeira formiga.


Ele recostou-se, repousou os cotovelos nos braços da cadeira e enclavinhou as mãos.

— Que coisa!

— Isto é segredo; espero que não diga a ninguém o que lhe contei, doutor.

— Sem dúvida! — disse ele, enfático.

Em verdade, não dispunha de nenhum esquema no qual encaixar aquele caso.

— Tem uma ideia de quem escreveu isto?

— Nenhuma.

— Hum...

Olhou para a mulher. Seu nervosismo, sua palidez, tudo isso eram indícios significativos de culpa.

— Quem é exatamente Bess?

— Prefiro não tocar nesse assunto. Está tudo nos jornais.

— Ah... — Ele ficou rubro.

— Sim, e isso me aborrece. Em termos de rejeição, eu lidero o ranking! Eles mantiveram o caso na pauta da imprensa durante meses. Oh!

Emily du Barry engoliu em seco. Recompôs-se:

— Agora o senhor já sabe.

— O que deseja de mim, Madame?

— Que me ajude a descobrir quem está fazendo isso. Não sei a diferença entre uma apólice e uma ação. Mas o senhor não; o senhor lidou com pessoas a vida toda. O senhor vai chegar ao âmago desse caso... agora que conhece a verdade.

Ele ergueu os olhos, em busca de inspiração. E se aceitasse? Isto o faria permanecer sentado, horas a fio, cismando e ponderando. Por outro lado, como declinar?

— Madame, desde o começo estou querendo chegar ao âmago do caso. E o que este bilhete diz elucida muitas coisas. (Que a senhora é a décima primeira formiga... E que, portanto, é a última da lista.) Mas, daí a deter um assassino inescrupuloso e fulo de ódio? Convenhamos, não vai ser brinquedo.

A condessa cerrou os dentes.

— Já viu uma infestação de vespas, doutor? O que elas causam numa colmeia de abelhas? Ou a uma colônia de formigas? Ainda restam sete pessoas. Seis formigas e, no meio delas, uma vespa. Uma vespa, doutor. Em vista do que nos espera, suponho que minha proposta é bem razoável.


VIII.

 

Duas horas da tarde.

Lady Dobney foi depositada em seu túmulo de neve.

Em sua cabeça, um chapeuzinho enfeitado com plumas multicores e nos pés sapatos de salto, vermelhos. Coisa de Madame Roskov, que quisera dar a australiana um visual digno de uma estilista.

Retornaram à sala de visitas.

Ninguém se prontificou a falar.

Três grupos bem definidos tinham se formado. O primeiro grupo, Ludwig e Simon, que se mantinham juntos por uma afinidade puramente ideológica.

O segundo grupo envolvia o Dr. Lèfevre e a Condessa du Barry. Desde o almoço, havia uma aproximação muita clara entre o médico e a Sua Excelência sueca. Isso incomodava especialmente os segregados.

Os segregados compunham o terceiro grupo. Nele, cada um cuidava apenas de si mesmo. Não havia alianças — só o instinto de sobrevivência.

Gregory e Simon se vigiavam como dois cães prestes a partir para o ataque. Eram duas pessoas fortes, enérgicas, ambiciosas. Agora que eram inimigos, procuravam as fraquezas um do outro, com o fim de tirar partido.

“Depois dessa manhã, ele sabe qual é o seu lugar, e ainda há mais umas coisinhas que vou lhe dizer”, ruminava Gregory consigo mesmo.

A elegante sala era a arena para um silencioso duelo de olhares.

O Dr. Lèfevre estava meditando no bilhete da condessa. Seria mesmo ela a culpada (indireta) por todo o morticínio? Tudo parecia apontar que sim. Seis formigas! E uma vespa... matando toda a colônia. Quem seria a vespa?

O Dr. Lèfevre não sabia. Mas, por outro lado, podia interrogar, com direito indisputável, quem ele quisesse. Isso já contava alguma coisa.

France Paxter, o busto comprimido por um apertado suéter de cor magenta, cantarolava baixinho. Tinha uma expressão lânguida, talvez um pouco sonhadora.

Miss Paxter pensava...

Quais seriam as motivações do assassino? Por que ele estava cometendo aqueles crimes?

“O que ele espera ganhar? Os quadros de pintores famosos... as joias e algumas porcelanas, que são peças únicas? É pouco. Deve ser um vigarista. Vigarista não! Um falsificador. Não, um falsificador não. Um trapaceiro. Ou alguém que sofre de uma forma de demência. Demência... Sim, demência! Só um louco para fazer coisas tão más.”

Todos se assustaram com o apito do temporizador.

Ludwig corou.

— Desculpem, só esquentei um pão com presunto — disse, como que se desculpando.

— Mais uma dessas — cutucou Simon —, e adeus ponte de safena.

Como uma criança, France estremeceu.

— Ai, que nervoso!

Gregory:

— Calma, France. Enquanto estivermos todos juntos, nenhum assassino, por mais ousado que seja, vai nos importunar.

Simon:

— Se for certa pessoa... que nós conhecemos... duvido muito!

Gregory:

— Quer uma revanche, Peters?

Simon:

— É só marcar a hora.

Gregory:

— E se fosse agora!

Simon:

— Quando você quiser.

France:

— De novo não! Vocês dois, parem com isso!

Gregory:

— Vocês ouviram... Não fui eu que comecei.

— Fique quieto, Greg! Sali amava você... Acha que ela aprovaria o que está fazendo? Acha que ela aprovaria?

Simon:

— Ele não tem tanta consideração! Caras como Stracker são autônomos e autossuficientes.

Gregory hesitou. Autônomos... autossuficientes? Que é que Peters pretendia dizer com aquilo?

Coçou a nuca:

— Bem, de volta à vida normal. Eu vou assistir a um filme? Alguém está a fim?

Moveram-se para a sala de TV. Por ironia, só havia cópias de um mesmo DVD na estante.

— And then there were none — disse Ludwig. — Com Barry Fitzgerald e Walter Huston. Antiguíssimo! Vão gostar das semelhanças...

— Que semelhanças?

— Não vamos estragar o suspense!

Uma ilha... Algumas pessoas... todas sendo eliminadas uma por uma...

O tempo fechou de vez.

— Foi... foi terrível! — choramingou France, ao término da sessão.

— Que gozado! — constatou Simon. — Há pelo menos umas dez cópias. Nosso amigo Bouffler era fã dessa velharia!

— Isso não foi coisa de Monsieur Bouffler — disse Gregory. — Achei que não precisassem de tradução!...

A origem do DVD... seu enredo... Tudo contribuiu para acirrar ainda mais os maus presságios.

Permaneceram na sala até a noitinha. Despertos e vigilantes. Cada qual preparou sua própria janta e comeu sentado em seu canto ou mesmo em pé.

Nove horas.

Dez...

Veio a hora em que o sono sobrepujou as melhores intenções.

— Querem ficar nessa agonia — bocejou o Dr. Lèfevre —, fiquem! Eu vou me recolher.

Queixas:

— Já?

— Fique mais um pouco!

— Talvez seja perigoso.

— Não sei não.

— É melhor ir acompanhado.

A Condessa du Barry pôs-se a seu lado, altivamente:

— Eu vou! Isso é desgastante.

Novas queixas.

Quem era ela? Eu não vou coisa nenhuma. Era cedo...

O doutor e a condessa saíram.

— Esses não verão outro dia — prognosticou Gregory.


IX.

 


— A senhora vem, Madame?

A russa fez um gesto com a cabeça.

— Obrigada. Irei daqui a pouco.

France olhou para Gregory, em busca de apoio. Não lhe parecia certo largar Madame Roskov sozinha na sala. Principalmente nesse horário!...

O rapaz deu de ombros, num indicativo de que não havia nada que eles pudessem fazer.

— Tem certeza? — insistiu France.

— Tenho, querida.

— Cuide-se, Madame.

— Qualquer coisa, chame — emendou Gregory.

Os dois se foram.

Catherine Roskov tomou outro trago de gim. Alguma coisa dizia que já tinha bebido demais. Sentia os membros moles, pesados. A consciência disto não lhe caía bem.

Ela nunca ficara bêbada. Nunca mesmo.

Mas, afinal, o que é que importava isso? A dor da saudade dilacerava seu peito. Iria beber, e daí? Beber até desmaiar, se precisasse. Não diziam que o álcool afogava as mágoas?

Ninguém mais estava ali. Ótimo.

Um pouco cambaleante, ficou de pé. Deu dois ou três passos para frente; parou ereta. Fixou o olhar num ponto qualquer e, depois de respirar fundo, ergueu os braços à meia altura. Fingiu que tinha um par e, com ele a conduzi-la, começou a dançar pela sala.

Dançar! Oh, como era bom. Ela adorava dançar.

Uma valsa... Um para cá, três passinhos. Um para lá, três passinhos...

Sentiu-se nas nuvens. Girando sempre, Madame Roskov valsava entre o vão dos móveis, o copo suspenso na mão esquerda. Girando. Algo dentro dela entrara em combustão.

Em sua mente, lembranças...

Lembranças de casa...

Seu filho... Apesar do seu aspecto grave, um rapaz alegre e aristocrático.

A filha... Os olhos, imensos e levemente oblíquos, debaixo de umas compridas pestanas; olhos nem verdes nem dourados.

Girando.

Julius!... Por que ele fizera isso a ela?

Ela... que já tivera tudo. Ela... que fora o retrato vivo da primavera...

Agora... reduzida a nada. A nada.

Girando. Girando. Mais rápido. Mais rápido. Mais... Mais...

Madame Roskov falseou o pé.

Caiu como um trapo na poltrona. O copo saiu rolando, rolando... Bufou, exausta.

No marasmo dos sentidos, ouviu...

O quê?!

Um estalido...

Tornou a se erguer, alerta. O que fora aquilo? Não viu ninguém. Com cautela, e andando de costas, foi até a cozinha. Mexeu nas gavetas. Facas, cordéis, espátula... Apanhou uma frigideira.

Retornou à sala; olhou em volta.

— Quem é? — perguntou, arrastando as sílabas.

Cuidadosamente, empunhou a frigideira e seguiu andando. Deveria gritar? Qualquer coisa, chame, dissera Gregory.

Não, talvez fosse só o medo pregando peças nela.

Madame Roskov recobrou um pouco da lucidez. Foi para o saguão; farejou o ar, como se tivesse o poder de detectar a presença de um intruso pelo olfato.

“Você está doida, Catherine!”, murmurou. “Doida...”

Que horas seriam?...

Meia-noite... ou mais.

Checou o vestíbulo palmo a palmo até se deter ao pé de uma porta fechada — por baixo dela saía uma débil luz. Lembrou-se de lá. Era um salão de reuniões, com estantes ao longo das paredes, tendo ao centro uma mesa para quatro pessoas.

Abriu a porta e acionou o interruptor.

Catherine Roskov voltou-se ao ouvir o ruído, e retrocedeu com o espanto pintado em sua face.

A lâmina afiada de um punhal brilhou à luz.


Morte dos Machos


I.

 

— Quem encontrou o corpo?

— Fui eu, doutor — disse Ludwig. Acrescentou: — Acordei e desci para tomar água.

— Que horas eram?

— Umas seis e meia. Não há nada aqui, mas talvez o senhor ache que vale a pena olhar.

— Perfeitamente.

O Dr. Lèfevre contemplou o cadáver. Estava jeitosamente esticado na mesa de reuniões, os olhos muito abertos. Havia estampadas neles várias sensações: medo, desespero, estranheza... No peito, acima do busto, um ferimento do qual alguma coisa tinha escorrido... e um punhal cravado.

Simon puxou o lenço e esfregou a testa úmida.

— Parece o trabalho de um cirurgião. Direto no coração, não é, doutor?

O médico estava em posição delicada, e aquela pergunta era extremamente embaraçosa. Acenou gravemente.

— Sim... Receio que sim.

Gregory compôs uma careta intrigada.

— Eu bem que pedi a ela... Que chamasse por nós se estivesse em apuros.

— Ah, é? — replicou Simon. — Quando foi isso?

— Ontem... Antes de subir. France... France estava comigo.

— Foi, Miss Paxter?

France não desgrudava o olhar do corpo da russa. Deliciosamente aterrorizada com a tragédia.

— Foi — respondeu, com o rosto cansado e os olhos que tinham um brilho febril.

— Não a viram mais depois disso?

— Não.

— Que cretinice! — disse Simon. Seu tom era recriminatório. — Quer dizer que vocês deixam a mulher aqui embaixo e vão dormir? Não sabiam o que poderia acontecer?

— Corte essa! — disse Gregory. — Pensa que eu sou trouxa? Você queria que eu fizesse o quê — que a levasse no colo?

— Devagar com a louça, meu amigo! Você pode se ferir.

— Então pare de fazer suposições absurdas! Eu e France não fizemos nada de errado. Era tarde... Se Madame Roskov quis ficar, foi escolha dela. Não fale de coisas cujo sentido você ignora!

— Você vai amolecer uma moita de urtigas com a sua pregação — respondeu Simon.

— Senhores! — atalhou o doutor. — Basta de discussões. O que pode ter acontecido foi o seguinte — disse, saindo para o saguão: — Madame Roskov está na sala; nisso ela ouve alguma coisa. Ela vem para cá... inspeciona tudo, tentando ver o que pode ter sido. Aí, por alguma razão, ela é atraída para a sala de reuniões. Lá, de tocaia atrás da porta, está o assassino. Tchum!... a punhalada e está morta mais uma formiga.

— Caramba, é isso! — disse Ludwig. — Os versos!... Como é que eu me esqueci disso?! O senhor é detentor dos predicados essenciais de um bom detetive, doutor. Sobre o que falava mesmo o sexto verso?

— Falava sobre uma lâmina cortante — disse Simon. — Fim da sexta formiga – zás! com a lâmina cortante, para ser exato. Um crime que se adequa bem a alguém acostumado a manusear facas e... bisturis.

O Dr. Lèfevre ruborizou.

— Está se referindo a mim, Peters? Acha que eu matei Madame Roskov... e os outros?

— Foi só uma sugestão, meu caro doutor. Não me leve a mal.

— Você quer que eu aceite suas sugestões com urbanidade? Então fale com jeito! Essa é a melhor fórmula de conservar os amigos e o prestígio.

— Não crie mau juízo, homem. Eu...

Simon ainda quis objetar, mas foi em vão.

Com um gemido, o doutor se dobrou ao meio, como se estivesse sendo acometido por uma súbita dor de vesícula.

— Deus do céu! — exclamou France. — Ajudem aqui!

— Está tudo bem, filha. Fiquei tonto, só isso.

— Tonto, que nada! — disse Gregory. — Suco industrializado... Dieta orgânica à base de soja... Essa gororoba ainda vai acabar conosco.

Ampararam o médico até a sala.

— Quer que eu faça um chá, doutor? — perguntou France.

— Não se incomode, Miss Paxter.

— Mas não é incômodo...

— O que o doutor quer dizer é que... dadas as circunstâncias... um chá não seria... digamos... muito conveniente — disse Simon.

— Vocês acham que eu... o chá...?

Os olhos da moça estavam fora das órbitas.

— Eu juro que não... Eu nunca faria...

— Não ligue, France — disse Gregory. — Tem gente obcecada com tudo. Eles veem o mal em cada sombra que se move.

— Você é um fenômeno, Stracker! Ao seu lado, eu participo de experiências humanas absolutamente apaixonantes.

— E você é muito devoto, Peters.

Atrás deles, alguém deu um gorjeio. Um gorjeio alto e que pegou todos desprevenidos.

E essa agora!...

Todos se viraram para ver quem era.

— E quanto à Madame Roskov? — perguntou a Condessa du Barry. — Vão colocá-la no frigorífico agora ou mais tarde?


II.

 

— Disse que queria algo de mim, não é verdade? Já sabe que estou à sua disposição. De que se trata?

— Você e sua maldita ansiedade! E eu que o tinha na conta de perito nesses assuntos.

— Acha que me precipitei, Hoerbst?

— Não! Você?! É lógico que se precipitou. Custava ter ficado quieto? Um crime que se adequa bem a alguém acostumado a manusear facas e bisturis. Que absurdo!... E você diz isso a quem? Logo a ele! A ele!

— É, não foi muito inteligente.

— Meu amigo Peters... Definitivamente você tem problemas! Soube disso no dia em que vi você no restaurante.

— Eia, Hoerbst, que história é essa? Você me viu... Você estava es-pio-nan-do?

— Não é nada disso. Por acaso, almoçamos no mesmo restaurante. Peguei a mesa ao lado da sua. Vi você se contorcendo, como se mal conseguisse segurar o talher.

— É um sintoma...

— ... de sua abstinência, eu sei. Mas o leopardo não muda as manchas, não é o que dizem?

Simon suspirou.

— Já entendi, Hoerbst. Me ocorreu uma coisa. A próxima vítima será por arsênico, não?

— Bem lembrado. Vê se não diz isso ao doutor, está bem? Temos que cevá-lo e... no momento certo!... —


III.

 

— Agora — disse Gregory — vou tomar as rédeas do caso. Tivemos seis mortes, e o assassino não deve continuar à solta. Peço-lhe, pois, a máxima discrição; não faça nada que possa pôr minhas investigações a perder.

France anuiu, fascinada.

— E quanto a mim? Você quer que eu faça o quê, Greg?

— Você vai cuidar de minha retaguarda, France. Você vai ser minha escudeira.

— Oh, estou com medo!

— E eu, então! E olhe que estou no meu elemento!

— Mas e se... e se nós morrermos?

— Se morrermos, morremos.

— Poupe-me do seu sarcasmo, Greg! Deus me livre!...

Gregory sorriu, afável.

— Calma, menina. Acha que fico feliz com a perspectiva? Tenho uma estância na América do Norte. Ainda quero desfrutar tudo o que possuo.

— Só você? Lembre-se do que Frank disse... Sou uma multimilionária, queridinho. Multi!...

— Oh! Agora vai poder ter o ideal estético, tão ostentado e divulgado pela mídia! Hoje são abundantes os acessórios, aparelhinhos e artifícios de beleza. Você vai virar uma teteia!

— Se eu estiver viva até lá!

— Você vai estar viva. Não seja tão pessimista. Escute... Descobri uma coisa!

— Que coisa?

— Talvez você prefira vir e ver!

Sorrindo, complacente, Gregory levou a moça para a sala de estar. Diante do console da lareira, parou e virou-se:

— Fomos uns verdadeiros idiotas.

Havia uma carga de malícia na declaração.

— Até aqui, várias mortes aconteceram no próprio albergue, correto?

— Sim.

— E sempre quando a vítima estava sozinha.

— É.

— Eu fiquei me perguntando... Como é que o assassino sabia quando agir?

— Eu não sei.

— Foque-se nisso, France. Eu vou reforçar... Como é que ele sabia quando agir e consumar o crime sem ser pego?

— Greg!

— Está bem, chega de enrolação. A resposta está ali!

— Ali onde?

France olhou para o ponto indicado sobre o console. Entre os objetos dispostos havia...

— O quê é isso!? — esganiçou incrédula.

— Isso, Miss Paxter, é um olho eletrônico.

— Olho eletrônico?

— Uma câmera oculta... Estamos sendo vigiados desde o primeiro dia em que pisamos aqui!


IV.

 

— Vigiados por quem?

— Por quem? — explodiu Gregory. — Quem haveria de ser? O assassino, claro. Quando fazemos uma barricada... quando trancamos nossas portas — tudo é monitorado por esta porcaria! É assim que ele vê quem está vulnerável e calcula a melhor hora para outro de seus ataques.

France verificou minuciosamente o console.

— Parece só uma pastorella com seu cajado.

— Você disse bem, France. Parece uma pastorella. Note o ponto preto na cesta de flores. É a câmera...

— Câmera, Greg?

— Ora, vamos, eu estudei!...

— Há mais alguma coisa que queira me dizer? — perguntou ela, notando a hesitação do rapaz.

— Venha comigo!...

Subiram para o andar de cima. Ninguém.

— Abra o quarto, France.

— Não, não, não, Greg!

Gregory tornou a sorrir benevolamente.

— Ok, vamos para o meu.

Entraram num quarto cuidadosamente mobiliado. Na parede, dois quadros: Uma paisagem e uma natureza morta.

— Belo alojamento! — elogiou France.

— Adequado às necessidades. Ignore isso... Veja lá, em cima do guarda-roupa.

— Outra pastorella?!

— Outra pastorella!

— Quer dizer, Greg, que...

— ... que está em todos os quartos!


V.

 

— O que vamos fazer?

— Nada... por enquanto — disse Gregory. — Quanto menos transpirar, melhor.


VI.

 

Do terraço onde estava, a Condessa du Barry viu o doutor saindo do depósito. Ao vê-la, ele fez um gesto com o polegar para baixo.

Lá dentro — nada!

Depois, puxando o zíper da jaqueta, deu a volta no albergue.

Ele tinha que fuçar. Sentia-se compelido a isso. Não só fuçar — também apurar. Apurar envolvia mais coisas.

Qualquer um poderia fuçar — até os porcos fuçavam! Mas apurar não. Apurar englobava um exercício de logística e habilidade.

Um exercício de logística e habilidade. Nisso o Dr. Lèfevre era bom.

O ruim era a neve, que lhe chegava aos joelhos.

Bufando, e quase sem sair do lugar, foi até a orla do bosque.

Ia embalado pela teimosia.

Este era o Anthur Dr. Lèfevre! Um homem que acreditava no dinheiro, na solidez das instituições capitalistas, e nos pequenos atos de ousadia individual.

A trilha para o vale estava interrompida — e daí? Havia mil outros caminhos a seguir.

A morte de Lady Dobney tinha acendido o sinal luminoso. A invasão do quarto... o jacaré de ferro cravado no pescoço... as pegadas na neve...

Aquela sequência de fatos... Alguma coisa destoava naquilo tudo. Se soubesse o quê!...

O Dr. Lèfevre fungou. Fungou tão forte que os bigodes se curvaram como duas vírgulas.

A condessa...

Ela não era má pessoa. Não era mesmo.

Mas aquela história do tiro... da morte da arrumadeira... Tudo estava muito mal contado!

E o que dizer daquele bilhete? Décima primeira formiga...

No mínimo, assustador.

Seis já tinham morrido. Faltavam cinco! De doze hóspedes, apenas um sairia vivo dali. Um!

Um plano muito bom, he, he. Sim, muito bom. Matar toda aquela gente só para quê? Só para apavorar a condessa. Apavorá-la aos poucos.

Aos poucos, he, he.

Será que o assassino era parente da tal Bess? Em que grau? Sobrinho?... irmão?...

Ou talvez irmã.

Tipo Miss Paxter.

Pouco provável! Miss Paxter não tinha cara de criminosa...

O Dr. Lèfevre sacudiu a cabeça com ar de censura. Miss Paxter não tinha cara de criminosa, mas a julgar pelos retratos que a gente vê, ninguém tem, não é mesmo?

E quanto aos homens? Quanto a eles, todos pareciam suspeitos. Não só suspeitos — altamente suspeitos.

Hoerbst tinha a sua birra com Stracker. Stracker, para complicar, dera um murro em Peters. Peters, na conjuntura atual, era amiguinho de Hoerbst.

O triângulo anglo-alemão.

Com os músculos doendo, o Dr. Lèfevre chegou até o paredão rochoso. À direita, os pinheiros; à esquerda, a uns cem metros, o precipício.

Olhou na direção do precipício. Lembrou-se de Monsieur Bouffler dizendo: “Semanas atrás, um alpinista escalou o rochedo”!

Bum-bum-bum... Um tambor viking tocou dentro dele.

Um alpinista! Ora, ora, he, he.

Arsênico — a causa da morte da sétima formiga. Que método antiquado! Arsênico.

O Dr. Lèfevre sorriu. Não seria a sua vez! Não, nessa ele não cairia! Arsênico na bebida... ou no alimento...

Além disso, se morresse, azar! Tinha cumprido seu dever de marido, de pai... Não todo o dever de pai! Allan e sua rebeldia — fazer o quê? Nunca houve regra fixa para guiar ninguém.

Olhou para o paredão.

Para onde ir agora? Para a direita! À direita...

Quis dar um passo.

Antes que apoiasse o pé...

... sentiu uma fisgada em suas costas... Costas vigorosas, largas, quase quadradas, que desciam em trapézio.

Algo gelado... duro... afiado...

Sumiu o seu ar de análise e desembaraço.

Fui a última coisa que sentiu.


VII.

 

Numa maca improvisada, o cadáver de Madame Roskov foi transportado para o quintal.

Simon:

— Sobrou tudo para nós! Onde está o doutor?

Ludwig:

— Shhh, cale essa boca. Em vez disso, cave!

Simon:

— Você poderia dar uma força, Stracker.

Gregory:

— Que tal um exemplo do poder do espírito sobre a matéria, Peters?

Simon (azedo):

— Vá encontrar o doutor, vá.

Gregory:

— Ué, agora sou um cachorrinho? “Stracker sente-se aí!”, “Stracker role um pouquinho”!

France:

— Não, Greg. Simon tem razão. É muito estranho que o Dr. Lèfevre não esteja aqui. Nós... você e eu... temos que ver aonde ele foi.

Efetivamente, aquilo não agradou ao rapaz. Cabisbaixo, acompanhou France. Já no saguão, foram alcançados pela Condessa du Barry.

Ela falou em tom confidencial:

— Eu o vi antes do almoço.

— O quê?

— O médico... Eu o vi umas onze da manhã.

— Onde?

— Estava indo para a floresta — disse a condessa com solenidade.

— Essa não!

Os dois saíram às pressas, apagando a luz com um estalido.

— Estava indo para a floresta — imitou Gregory. — Esse é o tipo de rumor sujo de que não gosto.

— Rumor sujo? Pare de falar e corre, Greg.

— Correr por quê? Nosso amigo doutor é doido. Pode até ser corajoso, mas é um tanto curto de visão. Sair por aí sozinho... Onde é que já se viu?

— Talvez estivesse seguindo uma pista.

— Seguindo uma pista?! Francamente, France. Eu poderia lhe dizer umas coisinhas sobre ele.

— Depois, Greg. Depois...

O rasto deixado pelo médico descrevia uma ligeira curva, ao sair do depósito.

— Foi para lá!

A cortina de neve impedia a marcha.

Viram um pontinho bege mais adiante.

France explodiu em uma catarse de euforia.

— Ali! Ali está ele!

E se adiantou, gritando:

— Dr. Lèfevre! Dr. Lèfevre!

Nenhuma resposta. A alegria se desvaneceu do rosto da moça, que ficou momentaneamente alarmada.

— Por que ele não responde, Greg?

— Talvez não possa...

Um pressentimento ruim assaltou o rapaz.

Eles avançaram coleando em direção ao pontinho.

Aproximaram-se. O médico estava deitado sobre o ombro direito, inerte.

Ali imóvel, era um homem roliço, de feições flácidas. Os bigodes estavam duros, brancos de gelo.

— Não, não! — balbuciou France, aturdida.

— A coisa vai engrossar! — disse Gregory. — Parece que isso estreita o nosso campo.

Um arpão de caça estava fincado em suas costas.


VIII.

 

— Um arpão, quem diria!

— Como é que é?

— Fisgado como um peixe. Pobre doutor!

— Estão falando de um arpão-arpão?

— Sim.

— E como é que se dispara um arpão?

— Meu caro Peters!... Como se dispara um arpão? Isso é coisa que se pergunte numa hora dessas?

Um Ludwig irritado balançou a cabeça diante de um Simon apatetado e confuso.

No sofá, France soluçava agarrada a Gregory.

— E vocês abandonaram o corpo... lá? — perguntou a Condessa du Barry. Seus imensos olhos superiores, num olhar tímido, cravaram-se no rapaz.

— Sim... nós não podíamos...

— A senhora queria que o trouxéssemos? Ora, Madame! Eu lá tenho cara de Hércules?

— Greg, cale essa boca!...

— Eu não disse que tinha sobrado para a gente? — arfou Simon. — Enterramos um morto... Depois vem uma nova remessa de mortos... e outra... e outra!

— Pare de reclamar e vamos! — disse Ludwig. — Não podemos largar o homem para os ursos.

— Aqui têm ursos?

— É só uma forma de falar, Peters. Só uma forma de falar.

Saíram.

— Que bela dupla! — disse Gregory. — Quando duas pessoas se entendem, elas veem algo na outra sem que nada precise ser dito.

— Perdemos o Dr. Lèfevre! — chorava France. — O que faremos sem ele?

— Ou-ou-ooou, sem essa! O que ele fez por nós, afinal de contas. Nada, pelo que eu saiba. Quem é que ele salvou? Não salvou ninguém. Nem mesmo Sali... Ela morreu em meus braços! Grande doutorzinho!

— Desculpe, Greg... Eu não queria...

Ele levantou-se, aborrecido. Espreguiçou-se.

— Vamos pular essa parte, ok?

— Como é que ele estava?

A pergunta da condessa foi súbita e impactante. Tinha a voz embargada.

— Quem — o doutor? Quer que eu lhe conte a triste saga? Ah, ele estava esplendidamente bem. Deitado lá fora, torto como um bumerangue, o rim perfurado por um arpão!...

“Essa mulher não goza de minha simpatia”, rosnava Gregory. “Não goza!”

— Não, não, eu me expressei mal — disse a sueca. — Eu quero dizer... como é que foi... a morte?

France:

— Ele foi flechado...

— ... arpoado!

— ... foi arpoado perto das rochas. Deve ter sido depois... depois que a senhora o viu indo para lá.


IX.

 


Eram sete da noite.

A condessa tirou a capa de pele e a pendurou no guarda-roupa.

Usou um quimono vermelho e semideitou-se na cama.

Externamente era a mesma pessoa, mas...

Curvou-se, como se tivesse cólicas.

Aquela tensão tinha um efeito desumanizante.

Ela lembrou-se do Dr. Lèfevre.

Por que ele tivera que morrer? Qual o motivo para um assassinato tão brutal?

Oh! céus, quantas perguntas!

Além dela, havia agora quatro pessoas no albergue. Dessas quatro...

Os cílios da condessa piscaram.

Maldita Bess...

Mulherzinha bem cuidada, bastante jovem e de rosto liso; e selvagem. Cintura estreita, quadris de ânfora e pernas longas. Natural de Flémalle-Haute...

Que não sabia mudar os lençóis, nem bater um bolo!

Não como mostarda. Causa indigestão, dizia ela.

Exibida! Exibida e ladra.

— O que há nessa mala, Bess?

— Não é nada. São minhas coisas, senhora...

Minhas coisas... Uma campainha tilintou na cabeça da condessa. Lembrou-se daquela tarde... no tribunal...

— Com rápidos traços se delineia o perfil de uma pessoa. Estudando o perfil dela, se pode predizer o que fará, antes mesmo que ela se decida a fazê-lo.

— O que quer dizer, Sr. Promotor?

— Em rápidas tintas, Meritíssimo, quero dizer que Madame du Barry é uma assassina! Tudo o que ela fez foi devido ao prazer de matar. A alegação de que a vítima furtava coisas é uma farsa.

Furtava coisas? Aquela sugestão fora um pontapé na sua vaidade. Não haviam sido só coisas. As baixelas... a camisa xadrez verde e branca... o paletó de tweed... — e o colar — o colar, principalmente ele!

Emily de Barry entesou o corpo. Consultou o relógio. Sete e vinte. Nada de choro. Iria ser forte. Sim, forte! Só os covardes é que eram fracos.

Pegou a bolsa e as luvas e ficou em pé. Tomando o corredor, desceu até o térreo. Começou a cantar suavemente, num tom bastante natural.

Ao entrar na sala, todos se viraram com a cantoria.

— Boa noite! — cumprimentou-os e sentou-se numa poltrona.

Subitamente soou o som da voz de Gregory, cheia de tranquilidade, como se nada tivesse acontecido.

— E daí que ele tenha quebrado as regras, Peters? Você acha que um homicida megalomaníaco se atém a regras?

Embora fosse isso o que pensasse, Simon assustou-se com a pergunta tão incisiva.

— Continuo achando que há alguma coisa aí.

— Pois ache o que quiser.

— Não, sério. A morte devia ser por arsênico, não é? Em vez disso, o assassino matou o doutor com um arpão. Por quê? Só se foi a fim de se livrar...

— A fim de se livrar do quê?

— ... da descoberta de alguma coisa que... Ah, cara! Como é que eu vou saber? O doutor está lá, perto do bosque. Não se sabe de onde, vem um arpão e... Vão me dizer que não veem nada de errado aí! Eu vejo... e muito!

— Para um estreante a detetive, você está indo muito bem.

Dizendo isso, Gregory encerrou a sua parte na discussão. Foi para bancada servir-se de um drinque.

Ressentido, Simon olhou para ele por alguns segundos. À esquerda, France parecia fora do ar. Fitava o forro, alheia a tudo.

Simon caminhou até onde estava Ludwig. Não conseguiu esconder o aborrecimento:

— O que é que há com esse cara? A gente tenta parlamentar, e ele dando patadas.

— O que foi que ele disse? — perguntou Ludwig, sem muito entusiasmo.

— Dizer, não disse nada. É esse ar de onisciência que me exaspera.

— Não ocorreu a você que isso mostra que ele pode ser o assassino?

— Pensei que tivéssemos concordado que o assassino era o doutor...

— ... cuja inocência já ficou provada!

— ... ou a condessa.

— Outra possibilidade que não existe mais.

— Não diga! — exclamou Simon. — Passou a confiar nela agora?

— Nela sim. Nele não. Aquele arpão não foi disparado por uma mulher — muito menos uma mulher na idade dela. Creio que você estava certo, Peters. Stracker é o nosso homem!

Simon deu um olhar penetrante no colega.

“Você é muito ladino, Hoerbst. Essa sua cara de sonso não me engana!”

— Stracker é o nosso homem — repetiu, como se quisesse uma confirmação do fato.

— Tenho quase certeza — afirmou Ludwig. — A não ser que...

— AHH!

Um uivo interrompeu o raciocínio de Ludwig.

Foi um uivo horripilante, que desafiava qualquer descrição. Como o berro de um boi sendo carneado. Um berro indefinível como o fogo.

Uma pontada imediata gelou a medula de todos os presentes.

O que era aquilo?

Logo descobriram sua origem.

Gregory — que já tinha tomado metade de seu gim. Com um paroxismo, ele soltou o copo.

— Greg! — exclamou France, correndo para ele.

A fisionomia do rapaz estava dormente, petrificada. Em pânico, ele arqueou-se até encostar a falange dos dedos no chão.

Afrouxando a gola do suéter, Gregory Stracker resvalou até cair ao comprido.

— Greg!

France ajoelhou-se e ajudou a colocá-lo de barriga para cima.

A condessa não cantarolava mais; Ludwig e Simon se aproximaram moralmente abalados.

— O... assassino... — murmurou Gregory.

A menção daquele nome ecoou como a sirene de um barco.

— O... o... assassino!

— Cara! — disse Simon. — Você sabe quem é o assassino, Stracker?

As pálpebras de Gregory se moveram, em sinal de assentimento. Abriu a boca, mas dela saiu apenas um tosco sopro de ar.

— Diga quem é, Stracker. Depressa!

O rapaz se mexeu convulsivamente. Com um esforço, levantou o indicador. Lentamente, apontou o dedo — apontou o dedo sobre todos os que estavam inclinados à sua volta. Como se estivesse escolhendo... escolhendo...

— Foi... foi...

Estavam todos em contraluz, o que fazia com que ele não os enxergasse com clareza.

— Fale logo, Greg! Diga!

— Foi...

Antes que conseguisse dizer, o braço tremeu... e desabou como se fosse feito de borracha.

— Greg! — soluçou France.

Desesperada, debruçou-se sobre ele e auscultou seu peito.

Quando voltou a se endireitar, grossas lágrimas rolavam pelas covinhas de suas bochechas.

Não era preciso falar nada.

A oitava formiga acabara de exalar o último suspiro.


X.

 

Viram-se inopinadamente diante do mesmo panorama de morte e horror.

Alto, hercúleo, sem um pingo de gordura em seu organismo além da necessária, Gregory jazia ali — morto! Uma baba esbranquiçada pingava da boca — o que aumentava a dramaticidade da cena.

— Porcaria! — disse Simon. — O drinque... — o arsênico!...

— O que foi que ele bebeu?

— Gim.

— Esta garrafa! — disse Ludwig. Encostou o nariz na boca do gargalo. — É, o cheiro não é nada bom. Pelo jeito, Stracker rompeu o lacre... o primeiro trago...

— Alguma digital?

— Não sou perito em datiloscopia, mas acho que só dele.

— Lembra-se do que eu disse a você? Lembra-se do que eu disse? O doutor... o arpão... aquilo cumpriu um objetivo. Está vendo isso? Aqui está a prova!... Nosso assassino é metódico! Ele estabeleceu um cronograma... e está disposto a segui-lo à risca!

— Que babilônia! — disse Ludwig, ainda inspecionando a garrafa.

Simon arqueou as sobrancelhas.

— Agora não somos nem uma mão cheia! Você, eu, Miss Paxter e a condessa. Você supõe mesmo que foi um homem que vitimou o Dr. Lèfevre?

— Sim, suponho que sim.

— Ah, parabéns! Sem Stracker no páreo, onde acha que isso nos leva? A mim e a você. A mim e a você!... Perdoe-me, mas eu é que não vou ser alçado à condição de astro dessa comédia!

— Que beleza! — zombou Ludwig. — Está assumindo que é o responsável por essa matança? Porque eu é que não sou!...

— É mesmo?!

— Gente! — suplicou France. — Um pouco de respeito, por favor! Greg... morreu!... Ele era legal.

— Legal e necessitado — respondeu Simon, de pronto.

O rosto da moça ficou violeta:

— Seu... seu...

— Ué, falei alguma coisa que não devia?

France recuperou parte de sua energia. Gritou com ferocidade:

— Greg... Greg era decente... espontâneo... Ele amava Sali. Ela... morta... tão poucos dias...

— Não foi o que eu quis dizer — gaguejou Simon.

— Gim — disse Ludwig, insistindo em seu assunto. — Poderíamos estar no lugar de Stracker! Os versos... Eu preciso dos versos. Onde você colocou os versos, Peters?

— Os versos? Acho que... na cornija da lareira.

— Na cornija...

Ludwig cruzou a sala a passos largos. Verificou a moldura sobreposta da lareira.

Simon, calado, limitou-se a olhá-lo, impassível, os olhos semifechados debaixo das sobrancelhas acinzentadas que formavam duas linhas alvacentas na testa.

A agitação de Ludwig atingiu o auge. Quando se virou, tinha o rosto pálido e contraído.

— É bom você contar uma história mais plausível, Peters.

— O-o que houve?

— Os versos... Eles não estão aqui.


XI.

 

Simon:

— O que faremos com Stracker?

— Faremos a mesma coisa que fizemos com o doutor. Vamos levá-lo ao quarto dos despejos.

Enquanto os homens se ocupavam com o fardo macabro, France ficou sentada, se balançando para frente e para trás, entretida em pensamentos.

Subitamente a Condessa du Barry inclinou-se para a moça. Tinha as faces chupadas, fundas e olhos sem brilho.

— Sei que isso não compete a mim, mas você e Stracker estavam tendo um caso?

France ergueu a cabeça, chocada:

— Madame? Oh, não! Eu juro... juro pelo que é mais sagrado que não! Eu jamais venderia minha integridade por tão pouco.

— Que bobagem perniciosa é essa?

— Oh, Madame! Às vezes me sinto tão inadequada!

— Inadequada — uma garota como você? Ele não fazia seu tipo?

— Não, não, é que... — France parou. Logo acrescentou: — Acontece que eu não queria... não poderia...

“Que menina tola! Tão desprovida de imaginação...”, suspirou a grande dama.

— Odeia fazer alarde de seus sentimentos, não é? Pobre, pobre Miss Paxter!

A moça não estava para conversas frívolas como aquela; ergueu-se de um salto. Entrelaçou os dedos e arfou.

— Bem, eu vou deitar. Se me dá licença, Madame...

— Já? Durma bem, querida.

Lépida, France saiu correndo.

Nesse momento, os homens voltavam do quarto do despejo.

— Naturalmente, tenho pena do camarada — dizia Simon. — Mas ele era um grande metido, essa é a verdade.

— Condessa! — disse Ludwig quando viu a fidalga. — Que bom! É mesmo com a senhora que quero falar.

Ela atirou os ombros delgados.

— Comigo, Mr. Hoerbst? Sobre o quê?

— É sobre o assassinato do Dr. Lèfevre.

— Creio que já lhe disse...

—... que o viu indo para o bosque, eu sei. Mas não é só isso, é?

A sueca empinou o queixo.

— Isso faz parte de alguma representação? Não vejo graça nenhuma.

— Não é uma representação, Madame. O doutor era seu amigo. O que exatamente ele foi fazer no bosque?

— Meu amigo? — replicou a condessa com arrogância. — O doutor era um individualista. Homens como ele desdenham as pequenas satisfações, e perseguem objetivos de maior envergadura. Na verdade, não sei aonde ele ia, nem o que fazia. Aliás, que importância tem isso?

Mas aquela resposta não o satisfez.

— Ele foi assassinado, Madame. Com o que isso não tem importância?

— Não esforce as meninges, Mr. Hoerbst. Não vai arrancar nada de mim.

— Não creio que seja questão de arrancar alguma coisa — respondeu Ludwig. — Sobramos nós quatro, e esse caso está se desmanchando nas costuras. Para dizer vulgarmente, três estão em perigo. Três, Madame. O assassino posso ser eu, pode ser Simon, a senhora, Miss Paxter... Presumo que queira saber em quem vai poder confiar!

A Condessa deu um bocejo; pôs-se de pé.

— Não gosto de seu tom, Mr. Hoerbst. Quisera ter alguém em quem pudesse confiar! Vai ter que fazer suas pesquisas esotéricas com outra pessoa. Vou tomar meu leite maltado.

E, sem mais rodeios, saiu majestosamente. Um silêncio embaraçoso reinou na sala.

Simon deu um assobio:

— Você tem tutano de sobra, hein? O seu espírito inventivo está fraquejando?

Ludwig irradiava um sorriso de querubim.

— Você é sempre negativo assim, Peters?

— Vai mesmo investir nela?

— Vou — replicou com voz mais aguda.

Simon lançou-lhe um olhar de estranheza.

— Que aspiração nobre! Não quer deixar nenhuma pedra solta.

— Não, não quero — disse o alemão. — O terror nos rodeia. Chegou a hora de dar um basta nisso.


Extinção


I.

 

Uma da madrugada.

Você não terá medo dos terrores da noite, nem da flecha que voa de dia, nem da pestilência que ronda nas trevas...

O coração de France batia descompassado.

Mil cairão ao seu lado, e dez mil à sua direita; mas nada a atingirá... Nada a atingirá. Nada a atingirá.

Como o repique de um congo, o salmo reboava em sua mente. Com cuidado, ela se aproximou do guarda-roupa.

No escuro, France tateou a borda superior do móvel. A pastorella... a pastorella... Onde estava? Onde?

Continuou tateando... tateando...

A mão tocou em algo.

Bingo! — a pastorella.

Embutida nela, a câmera oculta. A câmera que vigiava seu quarto... que servia aos propósitos escusos do assassino!

Na ponta dos pés, e submetida a convulsões tremendas, jogou o pano para cima. Ouviu um baque.

Pronto! Rezava para ter acertado.

Com a mesma cautela, retrocedeu até o comutador de luz.

Click!

Olhou para o topo do guarda-roupa. A estátua não estava mais à vista, coberta pelo pano.

Ufa!

Tinha conseguido. Era justamente isso o que ela queria. Agora poderia movimentar-se livremente, e pôr em prática o plano de ação que lhe havia ocorrido.

Apesar de desconcertada, estava bem disposta.

Sorrateira, France passou para o corredor.

Nada a atingirá. Nada a atingirá.

Ligou a lanterna do celular. Percorreu apressada o trecho até a escada e disparou com a leveza de uma pluma pelos degraus abaixo.

Que albergue incrível! Construído solidamente — com quadras de tênis, piscina, ginásio — com todo o conforto de uma hospedaria de boa qualidade. Um três estrelas... se não fossem aqueles crimes, claro.

France sentiu uma pontada de raiva.

O hoteleiro que primava pela pontualidade — achado na poltrona niquelada atrás da mesa do gabinete.

Frank — que enviara um e-mail dizendo que tinha algo a ser entregue a ela — morto a pauladas.

Saly — cujos olhos rasgados emprestavam-lhe uma beleza toda particular — que sofria de hipoglicemia aguda — envenenada...

Nigel — trinta e cinco anos, um metro e oitenta e cabelos castanho claro — que se jogara no precipício...

A solteirona australiana.

A russa desquitada.

O médico francês — a pele tostada pelo sol e o olhar sereno, duro ou trocista, conforme as ocasiões — prostrado por um arpão de caça.

E Gregory — com sua roupa colorida e espalhafatosa — ex-noivo de Saly...

France sentiu uma corrente de ar emanar do saguão. Não havia uma só centelha de luz em todo o albergue. Se pegou dando meia-volta.

Para onde ir?

Meio perdida, rumou para a esquerda.

Atenta aos menores ruídos, France estacou na frente da porta do quarto de despejo.

A intuição era uma coisa no qual ela havia aprendido a confiar, e algo dentro dela lhe dizia para ir com calma.

... todo o mal que fora gestado e gerado nesses últimos dias!

Seu maxilar se contraiu. As têmporas latejavam.

Respirando fundo, torceu a maçaneta. O breu era total do outro lado. A extensão do negrume parecia infinita. Sentiu-se cegada pelo medo.

Avançou um passo... depois outro.

Engoliu em seco. Era como se entrasse numa cripta subterrânea, e ela já estava se sentindo claustrofóbica.

— Greg! — chamou baixinho. — Greg...

Numa reação involuntária, esticou o braço até a parede. Às apalpadelas...

O clarão da lâmpada a ofuscou. Piscou rapidamente para ajustar a vista.

Verificou a peça em que acabara de entrar. O que ela viu encheu-a de estupor.

Um terror incontrolável invadiu seu espírito.

Numa cadeira de couro preto estava sentado Gregory. Em sua mão, um florete apontava para ela.


II.

 

Gregory estava em mangas de camisa. Talvez o chapéu fosse a única nota dissonante em seu traje. Um chapéu de feltro com uma fita de seda e forro de boa qualidade.

Gregory ficou contemplando a graciosa silhueta da moça. Pouco a pouco a dureza foi se apagando de seus lábios.

— Oi, e aí?

— Abaixe... abaixe isso, pelo amor de Deus!

— Ops!, desculpe...

France adiantou-se.

— Que susto você me pregou, Greg! Precisava babar daquele jeito? Precisava?

Havia um toque de vulgaridade na voz, mas os olhos eram belos e cheios de vida.

O rapaz deu uma risadinha.

— Sempre pensei em ser ator. Tenho ou não tenho uma veia artística?

— Oh, Greg! Está ciente dos riscos que correu, Greg? Está?

— Ei, garota! Deu tudo certo, não deu?

— Deu tudo certo, deu tudo certo!... É só isso que sabe dizer? Por que você não fez as coisas da maneira como eu quis?

Gregory fez uma cara cética.

— Da maneira como você quis? Então você tinha um plano! Um plano... Quem acha que pode enrolar com esse blefe penoso, France? A mim é que não!

— Não banque o durão, Greg! Não banque... Eu me preocupo com você.

— Vamos pular as generalidades, tudo bem? Sim, sim, eu já saquei tudo. Você quer que nos limitemos a juntar os cacos e cair fora? Fácil assim? Esqueça! Quero devolver com juros tudo pelo qual passei. Quer você me apoie quer não. Quer haja um assassino por aí quer não. Sei muito bem como tratar gente dessa laia.

— Seu louco! — disse ela, socando-o com os punhos. — Seu, seu louco suicida! E se eles tivessem percebido?

— Hoerbst e Peters são dois otários. Acha que perceberiam alguma coisa? Se lembro bem, eles sequer checaram meu pulso. Graças a você, aliás, que desempenhou muito bem o seu papel! Nunca vi ninguém chorar com tanto realismo e autenticidade.

France recuou incrédula.

— Você é tão leviano, Greg! Não mais me peça uma coisa dessas. Nunca mais!

— Venha cá — disse ele, envolvendo-a com os braços. — Já passou, já passou... Quando vi o lacre rompido, logo intuí que devia haver algo de errado com o gim. “O arsênico está aí dentro!”, disse eu. “Safado!” Bastava um trago — um só! — e o assassino teria matado mais uma formiga. Não podíamos decepcioná-lo, podíamos? O que me falta de força, me sobra de astúcia. Ou você quer acabar como este aí?

Fazendo um gesto, Gregory apontou o sofá no meio daquele espaço bagunçado. Sobre ele, France se surpreendeu ao ver um amplo lençol, e debaixo dele, um corpo. Deu uma olhada naquela massa que até um dia antes era o Dr. Lèfevre.

France ficou com náuseas. Estava sendo incoerente, e recobrou-se quase de imediato.

Olhou para Gregory.

Gregory era a imagem da normalidade.

— Nós vamos fazer duas coisas agora, está entendendo, France? Primeiro, eu vou sair daqui e me aquartelar no sótão. De lá vou poder monitorar tudo o que estiver acontecendo no albergue. Grande parte, pelo menos. Segundo, você vai voltar ao seu quarto.

— Você vai para o sótão?

— É inútil rodear com certas coisas. De qualquer forma, estou disposto a arriscar. Amanhã, tente sondar a condessa. Fale com ela... tão logo esteja apta para isso. Ela sabe mais do que aparenta.

— A condessa? Mas, Greg, o que você quer que eu fale com ela?

— Sei lá, invente.

— Isso não é resposta!

— É a única que vai ter. Ela é inconstante, volátil, mas você vai se sair bem. O que você apurar pode salvar nossas vidas, France. Pense nisso. Viver não é para os fracos. Agora vá, durma um pouco.

Ela olhou para o rapaz.

— Espero que saiba o que está fazendo, Greg.

— Eu já matei muitas raposas em minhas batidas de caça. Isso vale?

Gregory deixara de rir, mas a boca estava entreaberta.

— A plenitude está ao nosso alcance, baby. Vá, vá...

Deu um beijo nela.

— O que... é isso? — perguntou France, abobalhada.

— Digamos que é um pequeno pagamento pelos seus préstimos, Miss Paxter. Está bem para você?


III.

 

Oito e cinquenta.

Simon esfregou o cabelo com uma toalha, enrolou-a na cintura e saiu do banheiro.

Quase se via seu cérebro em funcionamento, a testa ora se franzindo, ora relaxando.

Ele não fumava, não bebia e nem era mulherengo. Era um homem calejado. Mas não calejado a ponto de não tremer diante da morte e não se horrorizar ao ver tantos assassinatos ocorrendo tão perto de si.

E pensar que viera ao albergue só para curar seu deplorável vício em jogos!

Vestiu-se. Ajeitou o paletó de tweed e, depois de checar os botões na camisa, atravessou o cômodo e entreabriu a porta.

Corredor vazio.

Saiu.

Embaixo, virou à esquerda, percorreu o corredor largo e após um minuto abriu a porta de carvalho maciço do quarto de despejo.

Simon olhou em volta, registrando tudo.

Balançou a cabeça devagar, assombrado. Suas mãos tremeram. Sem acreditar no que via, ele cambaleou para trás.

O corpo!...

Talvez por uma combinação de medo e nojo, conteve uma forte ânsia de vômito.

Esfregou as têmporas, sentindo uma fisgada lancinante.

O que era aquilo?

Invadiu o aposento. Isso era o pior — a curiosidade é quem o governava agora em lugar da discrição, do raciocínio, da prudência.

Será que tinha se enganado? Não, isso estava fora de cogitação.

As recordações da noite anterior eram todas muito nítidas. Stracker servindo-se de um drinque... Stracker tomando um trago... e sendo acometido pelos efeitos do veneno...

Stracker agonizando e...

Depois tinham trazido o corpo para cá.

Mas onde estava ele?

Afora os restos mortais do médico, não havia mais ninguém ali. Ninguém.

Agora que a adrenalina diminuía, os olhos de Simon entravam e saíam de foco.

Ele inclinou a cabeça enquanto relembrava os acontecimentos da véspera.

Não, não havia engano algum. O cadáver devia estar ali. Se não estava...

O que teria acontecido?

As persianas estavam fechadas e não dava para ver nada pela janela.

Tudo estava limpo e em perfeita ordem. Menos o corpo de Stracker, que havia evaporado misteriosamente.

Simon aguçou os ouvidos.

Olhando em torno mais uma vez, virou-se e refez o caminho até o saguão. Não era um detetive, mas também não era bobo.

Havia qualquer coisa de muito estranha naquele caso.

Atravessou a porta e olhou atentamente pela sala de estar.

Percebeu que havia alguém sentado defronte da lareira.

Hoerbst!

Simon sentiu uma pontinha de arrependimento.

Intelectualmente não era páreo para o alemão.

Deveria falar com ele?

E se ele fosse o perpetrador daquilo tudo?

Antes que pudesse se decidir, Ludwig virou a cabeça e olhou diretamente para ele.

— Que bicho mordeu você, Peters? Caiu da cama?

Simon o fitou por entre as pálpebras semicerradas.

Quando falou, foi em voz baixa, parecendo quase constrangido:

— Quase isso.

— O que aconteceu?

— É melhor que veja por si mesmo. Venha comigo, Hoerbst.

“Venha comigo, Hoerbst?”, pensou Ludwig irritado. “Desde quando sou assistente executivo desse cara?”

Espreguiçou-se, alongando bem os braços; depois foi atrás do inglês.

Aonde aquilo ia dar, Ludwig não sabia.

— Para onde vamos, Peters? Está me levando para o cadafalso?

Em vez de responder, Simon torceu o trinco de uma das portas.

— Stracker... o corpo...

Ludwig não entendeu direito a alusão. Stracker... o corpo? Como odiava quando as pessoas falavam por meio de frases incompletas! Por isso mesmo, ficou intrigado. Ou pareceu ficar intrigado.

Olhou para dentro do quarto.

Daí ele viu...

Viu e gelou.

No lugar onde deviam estar dois embrulhos brancos, havia apenas um. Um...

— Que diabos!

— Pois é.

— Que sacanagem é essa?

— É o que estou dizendo a você. Stracker sumiu!

Um traço de preocupação marcou a testa de Ludwig quando ele pensou nas diversas possibilidades. Stracker sumiu? Que coisa mais estapafúrdia? Desde quando é que mortos somem?

Era irreal demais. Não só irreal. Era impossível!

Simon esfregava nervosamente o pescoço. Limpou a garganta para não parecer um idiota, e perguntou:

— Será que ele planejou a fuga por alguma rota alternativa?

— Rota, Peters? Que rota?

Ludwig postou-se de braços cruzados e olhar determinado. Tinha a testa franzida, com linhas bastante pronunciadas.

— Talvez ele não tenha fugido. Talvez esteja mesmo morto. Pode ter sido abduzido pelo próprio assassino.

— Abduzido pelo assassino... Mas a troco do quê?

— Não sei.

Simon estremeceu ligeiramente ao ouvir aquilo.

— O que vamos fazer, Peters?

Eles se encararam.

— Temos que localizar o homem.

— Você acha que sou um babaca, não acha?

— Um babaca? Não, Peters, eu não acho que seja. Você ainda está engajado em nossa causa?

— Você nunca pega leve, não é? É óbvio que estou engajado. Lá tenho outra opção?

— Bom menino — disse Ludwig. — Então vamos passear um pouco.

— Quais são as especificações?

— Sem especificações. Apenas passear... ver o que aconteceu com o sujeito.

— Há uma coisa nisso que me incomoda, e quero que saiba de uma vez por todas — começou Simon, depois se calou e enrubesceu.

— É mesmo? O que é que o incomoda?

— A sua tese sobre o sumiço de Stracker. Não acredito que o assassino tenha raptado o corpo... independentemente das motivações.

— Tem outra tese, Peters? Se tiver, desembuche logo, puah!

— Sim, tenho outra tese. Não deliberei muito, mas acho que ele ainda estava vivo quando o colocamos lá.

— Creio que já disse isso!

— É, eu disse. Mas não custa reforçar.

— Continue...

— Suponha que Stracker seja o assassino. Se for, ele poderia querer que pensássemos que estivesse morto. Talvez ele precisasse sair de cena e não soubesse como. Eu tirei D em álgebra, sei como são essas coisas. Assim sendo, ele simula a própria morte. Enche o copo com o conteúdo de uma garrafa previamente selecionada. Toma um gole e, enquanto estamos distraídos, começa a gorgolejar e fazer toda aquela encenação que nós vimos. Quem disse que ele estava morto foi Miss Paxter. Nós apenas aceitamos a declaração dela. Eu não entendo nada sobre livor mortis. Nem você. Nós só o trouxemos para cá. Ele já aprontou poucas e boas com você antes disso, não foi? Quem é que garante que não está fazendo a mesma coisa conosco?

Simon terminou bruscamente. Havia soltado a sua história.

Ludwig assentiu. O seu ceticismo foi desaparecendo até converter o seu rosto numa máscara de pedra, de vincos duros. Os olhos negros cintilaram.

Tomando a dianteira, rumou de volta para a sala.

Ludwig esticou o braço e tocou uma campainha.

France não tardou a aparecer.

— O que foi?

Olhava alternadamente para um e para outro, ligeiramente ofegante.

— Já vai saber, Miss. Por favor, sente-se.

France relutou. Depois, certamente convenceu-se de que não era nada de anormal, e sacudiu a cabeça.

Ludwig:

— Aconteceu uma coisa que não deveria ter acontecido. Achamos que você, Miss Paxter, pode nos ajudar a dar uma resposta a isso. Queremos que nos diga a verdade. É a coisa mais sensata que tem a fazer.

— Eu? — France, sentada em estado catatônico.

— Sim, você — disse Ludwig. Deu de ombros, cansado: — Miss Paxter, onde é que foi parar o corpo do seu amigo?


IV.

 

France não escondeu sua incredulidade.

Não era hora de entrar em pânico. Tinha que ser mais forte do que nunca. Mesmo que tivesse que mentir. Sim, mentir.

Seria a palavra dele contra a dela.

Para mudar o desfecho daquele drama que estava se arrastando mais do que deveria.

France julgava que sabia qual era o melhor jeito de resolver isso.

Ela o encarou com firmeza.

— O corpo? Que corpo?

Ludwig escolheu cuidadosamente as próximas palavras. Evidentemente o exercício mental o deleitava.

— Miss Paxter, não diga que está completamente alheia à situação! A senhorita sabe do que estou falando. Ontem à noite nós colocamos Stracker naquela peça. Junto ao doutor. Acontece que o corpo sumiu... E, a menos que tenha havido um ato de feitiçaria ou de abdução por alienígenas (o que duvido muito!), ele saiu de lá, vivinho e por conta própria.

— Greg sumiu?! E por que acha que eu saberia onde ele está?

— A senhorita passou bastante tempo com ele ontem... na mais íntima camaradagem. Notou se ele planejava alguma coisa?

France remexeu na bolsa. Tirou um estojo; começou a empoar o nariz.

— Se planejava alguma coisa? Como o quê?

A resposta dele foi imediata:

— Acho que está metida nisso até o pescoço, Miss Paxter.

— Prove.

— Eu posso e eu vou provar.

— Tem um vasto arsenal de conhecimento sobre crimes, Mr. Hoerbst?

— O suficiente. Sei a verdade, justamente o que todos se esforçam por ocultar, pequenos segredos, tolas fraquezas, histórias que se fossem publicadas...

— Quer dizer que tenho um segredo.

— Tem, Miss.

— Qual?

— A senhorita sabe mais do que diz.

— Mesmo?

— Sim.

— E o que pretende fazer?

— Caçá-lo... onde quer que ele esteja.

— Como?

— Nem que eu tenha que virar tudo de ponta cabeça.

— E se não o encontrar?

— Eu vou encontrar.

— Por que essa gana?

— Porque ele é um criminoso.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Isso soa meio ilusório.

— Pouco importa. Nunca financiei meus admiradores.

France repuxou o canto da boca com o indicador.

— Quer mesmo saber?

— Cem por cento — Ludwig fustigou-a sem piedade. — Se puder nos falar, vai nos poupar muitos desgostos.

— Se o encontrar, vai espancá-lo?

— Até que seria uma boa.

— Vai?

— Não foi o que eu disse.

— Vai ou não?

— Não.

— Muito bem. Nesse caso, talvez eu possa ajudá-los.

Ludwig vislumbrou a possibilidade de se alçar ao nível seguinte.

— Vai nos dizer?

— Sim. Tem um papel?

— Devo ter. Serve este?

— Sim.

France apanhou o bloco de notas estendido por ele. Rabiscou umas anotações, as sobrancelhas arqueadas.

Os olhos deles estavam fixos nela. Ludwig se sentou, na expectativa.

France devolveu o papel.

Ele leu; engasgou; pareceu ficar ofendido.

— Isso não bate com os fatos.

— Talvez sim. Os indícios são muito sutis, mas estão aí.

Ele se recostou na poltrona, sem saber o que dizer. Levantou as mãos abertas e perguntou:

— Quer protegê-lo por omissão, Miss Paxter? É essa a sua definição de ajuda?

— Com sorte e dedicação tudo se resolve, Mr. Hoerbst.

France lhe dirigiu um olhar arguto e, erguendo-se, abandonou a sala.

Simon finalmente se mexeu.

— Que cara feia, Hoerbst! O que foi que ela escreveu?

— Algo mau, Peters. Muito mau.

— Me dê aqui... Eu malho bastante. Aguento mais essa.

Simon deu uma lida. As suas narinas fremeram.

— Que o céu fulmine essa mulher! De onde ela tirou isso?

— Você é que deve explicar.

— Eu? Que belo eufemismo!

— O que mais eu não sei sobre você, Peters?

Simon estava indignado com tanta familiaridade.

— Ora, que porcaria! “Simon é o assassino”?! Ela deve estar maluca para insinuar uma coisa dessas. Eu não cultuo a crueldade, não senhor. Quem ela pensa que é?

Ludwig tirou os óculos, deixou-os sobre a mesa e se recostou.

— Acho que deveríamos reformular essa pergunta. Quem é você, Peters? Conte para mim... Quem é você?


V.

 

— Acha mesmo que premeditei a morte de Bess, oficial?

— Só estou colhendo informações, Madame. Meu dever é definir os envolvidos. Aconselho que arranje um bom advogado.

— Já tenho um advogado.

— A senhora vai ter que ser resistente para enfrentar o que está por vir.

— Eu sou resistente.

— Ótimo, Madame. A moça não morreu de uma overdose de digitalina ou de qualquer outra droga semelhante. A acusação é de assassinato. A promotoria vai voar para cima da senhora.

Após tantos anos, Emily du Barry ainda se lembrava do oficial! Bem trajado... segurando uma valise... com um chapéu de copa alta.

Vai voar para cima da senhora!

Que frase profética!

Ela ainda conseguia rever os gestos do promotor exigindo a pena máxima... o burburinho no tribunal... Aquela tinha sido a experiência mais dolorosa de sua vida.

Ela já tivera tudo: um marido... uma mansão frequentada por chefes militares, estrelas de cinema, políticos e diplomatas.

O que restara?

Toda uma trajetória reduzida a pó por um crime estúpido!

Num limbo de quase inconsciência, a condessa ouviu o schlép-schlép de sandálias.

Que horas eram?

Dez.

Por trás das cortinas drapeadas, a mesma neve, inclemente e impiedosa.

Nisso, soou uma batida na porta.

Na sua porta.

Quem será que era?

Desfazendo-se dos últimos fios de sono, a condessa levantou-se da cama.

Outra batida.

— Já vai — disse acrimoniosamente.

Ajeitou o cabelo como pôde e, um tanto sem jeito, enfiou as pantufas nos pés. Trinta segundos depois estava à porta; entreabriu uma pequena fresta.

— Quem é?

— Oi, sou eu — disse France. — Posso falar com a senhora? Vou ser breve.

A respiração da Condessa du Barry ficou mais relaxada.

A seu ver, Miss Paxter era um bom exemplo de desperdício de matéria-prima. Bonita, dentes brancos e bem-alinhados — mas sem qualquer resquício de inteligência!

— Entre. O que foi?

— Nada, nada.

— Se não é nada, o que veio fazer aqui?

— Eu só vim dizer... — France fez uma pausa; acrescentou: — ... que o corpo de Greg sumiu.

Ela se deteve no meio do quarto, olhando para a condessa, que procurava de todas as formas entender o que significava aquela afirmação da moça.

— Defina sumiu.

— Ora, sumiu do verbo sumir, não estar mais lá. E pelo jeito já faz algum tempo.

— Mas como?

— Pensei que a senhora soubesse.

France mantinha a postura muito ereta.

— Eu? — alarmou-se a condessa. — Está brincando comigo, menina? Como é que eu poderia saber se acabei de acordar?

— Talvez tenha escutado alguma coisa... durante a noite.

— Garanto-lhe que não.

— Que pena!

— Onde estão os dois cavalheiros?

— Lá embaixo...

— Vivos?

— Até o momento.

Emily du Barry dirigiu um olhar inquisitivo para France.

— Por que veio me contar isso? Julga que fui eu que tirei o corpo de lá? O garfo da salada é o pequeno, garota!

France, no entanto, se mostrou irritantemente calma.

— Apenas vim dizer como vão as coisas, Madame. Muitas pessoas morreram neste lugar. Estamos no mesmo barco; temos que permanecer juntas se quisermos sobreviver. Favores tem que ser retribuídos, a senhora não acha?

— Favores? Eu lhe fiz algum favor?

— A mim não. Mas a Greg sim.

A condessa teve uma reação súbita — uma reação de completa descrença.

— Minha filha, meu pai se inscreveu na escola de treinamento de oficiais, e foi reprovado no teste psiquiátrico. Acho, porém, que você está pior do que ele. Eu nunca fiz nada por esse rapaz.

— Não?

— Absolutamente não!

France fingiu se atrapalhar.

— Ah, que distração a minha! Peço perdão, Madame. Acho que começamos com o pé esquerdo. Eu vou sair. Eu vou...

— Hunf!

Sempre de frente para a mulher, France recuou até a porta; reiterou as desculpas.

Antes que ela conseguisse sair...

BUM!

O albergue foi sacudido de forma violenta. As janelas e o chão começaram a trepidar. Parecia que o telhado ia cair em cima delas.

— Que foi isso?! — exclamou France.

A condessa nada respondeu. Apenas seu humor ia se tornando cada vez mais azedo.

— Uma explosão! Essa não... No pátio!

France saiu correndo a passos largos.

Correu como nunca antes, num ritmo frenético e alucinante.

Quando chegou ao térreo, teve que parar. O saguão estava obstruído pela poeira.

Havia sido mesmo uma explosão.

A onda de choque havia estilhaçado os vidros e arrancado a porta de entrada do batente.

De pé, olhando estupidamente toda aquela destruição, estava Ludwig Hoerbst. À primeira vista, não aparentava ter sido ferido.

— Mr. Hoerbst, o senhor está bem?

France teve que refazer a pergunta antes que ele prestasse atenção nela.

— Sim, Miss Paxter. Estou bem.

— O que houve?

Ludwig fuzilou-a com o olhar.

— Peters estava indo lá para fora — disse num tranco. — Alguma coisa explodiu!...

France sentiu-se nauseada.

— Simon? Então ele...

— Exatamente — acenou Ludwig. — Ele acabou de ir pelos ares!


VI.

 

— Uma granada — declarou o alemão. — Aqui (estão vendo?): um barbante esticado. Quando passou, Peters sem querer arrancou o pino de segurança... Isso destravou o sistema mecânico e... bem, soltou o gatilho. Depois de alguns segundos houve a explosão.

— Granada?

— Sim, Miss Paxter. Granada.

Ludwig estava agachado no pátio. Diante de si, lascas de pedra e a rocha chamuscada. A uns vinte metros, o cadáver de Simon jazia entre os ciprestes.

Os danos no osso e nos tecidos tinham sido consideráveis.

Não era uma coisa bonita de se ver.

France:

— Meu Deus! Isso significa...

Ludwig:

— Que foi tudo armado de antemão. É uma formiga a menos entre nós.


VII.

 

— Vamos fazer isso de um modo civilizado, Miss Paxter. Vou perguntar pela vigésima vez: Onde está ele?

France sentou no banco de troncos junto ao depósito. Dali se vislumbrava o rombo na fachada do hotel... e a Condessa du Barry parada no pátio, os olhos cheios de terror.

France encarou o alemão:

— Eu não sei, Mr. Hoerbst.

— Ah, sabe! E a senhorita vai me dizer.

— Vai me obrigar?

Em volta deles, o vento zunia. O frio era tanto que chegava a machucar a pele.

Engraçado que ela percebesse isso naquelas circunstâncias!

— Vamos torcer para que não.

Ludwig deixou a frase ambígua pairar no ar.

France olhou para ele, e dessa vez as palavras foram claras e diretas:

— Acha que Greg matou seu amigo?

— As pessoas não são como nós queremos que sejam. Temos forças opostas dentro de nós. Ying e yang, entendeu? Dois lados que não dá para conciliar.

— Está falando por experiência própria?

— Também.

— O que isso tem a ver comigo?

Ludwig balançou a cabeça.

— Tem a ver, Miss, que o Sr. Stracker a está usando. Ele a seduziu para que ficasse do lado dele... para que não comprometa as ações dele.

— Que ações?

— Os crimes, garota! Os crimes. Ouça-me... Foi ele que matou todas essas pessoas. E vai terminar matando a gente! Ouça-me, Miss. Sou altamente qualificado nessas coisas.

France expirou devagar enquanto absorvia aquilo.

— Pois eu tenho outra opinião, Mr. Hoerbst.

— E qual seria?

— A de que o senhor é o assassino. Veja bem... Simon falou com o senhor minutos antes de morrer. Vocês dois estavam na sala. Não sei como, mas foi o senhor quem pôs aquele dispositivo diante da porta do albergue. Hoje cedo, talvez. De alguma forma, o senhor convence Simon a sair. Quando ele roçou o pé no barbante... Cabum! — cumpriu-se o seu propósito de matá-lo.

— Puxa, que excitante!

— Tem mais — emendou France. — Com Simon morto, o senhor agora está livre para destruir a mim e a condessa. Duas mulheres frágeis, desprotegidas... “Tarefa simples”, deve ter dito para si mesmo. Ah, mas não tão simples assim! E por que não? Porque há mais alguém além de nós! Alguém que poderia embolar o seu grand finale. Greg!... Resta ao senhor só uma solução: achá-lo e dar um jeito nele. Mas para isso, precisa de mim. O senhor crê que eu conheço o paradeiro de Greg.

— Eu creio mesmo.

— Mas não pode me persuadir a falar.

— Não posso?

— Conclusivamente não.

Ludwig sacudiu a cabeça. Nunca tinha visto uma moça tão obstinada! Além disso, havia outra coisa em seu olhar. Uma coisa que ele não soube definir. Afeto?

— Apaixonou-se por ele, não?

— E se for?

— Por nada. A senhorita deve saber o que faz. Mesmo que isso não faça o menor sentido!

— Só o amor sobrevive à morte.

— Dadas as circunstâncias, acho que o amor nos levará à morte.

— Está com ciúmes, Mr. Hoerbst?

— Ciúmes pelo quê?

— Por Greg e eu.

Ludwig transferiu o peso do corpo de um pé para o outro.

— Venho de uma linhagem de monógamos, Miss. Já fui casado. Minha mulher vivia em orgias de compras e trocas. Liquidou as minhas economias numa temporada de duas semanas num campo de esquiação. O tempo cicatriza muitos de nossos desgostos. Nem todos. Sei o que o amor deslocado faz com as pessoas.

France fez um gesto indiferente.

— Confio nele. No senhor não.

— Isso é definitivo?

— É.

Ludwig deu um suspiro.

— Faça como quiser, Miss. Está cometendo um erro... é um direito que lhe compete. Que Deus tenha misericórdia de nós!


VIII.

 

Uma formiga gritando para a enorme locomotiva: ‘Pare! Não pode me atropelar! Não se atreva a fazer isso!’

Era assim que a condessa se sentia.

Ela era a formiga... de pé no trilho ferroviário... tentando deter o avanço da Morte.

A boca contraída, a Condessa du Barry olhou para o homem jogado entre os ciprestes.

Deus, outro assassinato! Uma granada?... Fora isso o que dissera Mr. Hoerbst.

Pobre Peters! Pobre em todos os aspectos...

Um paletó fora de moda... calças marrons folgadas... sapatos gastos.

Mesmo assim, um bom rapaz.

Apesar do frio, Emily du Barry tirou o agasalho e cobriu o torso e o rosto de Simon.

O sangue coagulado manchava a neve.

Virou-se e contemplou melancolicamente a paisagem.

Dali podia ver Miss Paxter falando com o alemão. Sobre o que é que aqueles dois tanto conversavam?

A cabeça da condessa girava mais depressa do que imaginava que fosse possível.

Oh, como ela queria que aquilo terminasse logo!

Sim, logo.

Antes que todo o formigueiro fosse extinto.


IX.

 

Ludwig Hoerbst estava inconformado.

— Que Deus tenha misericórdia de nós — disse, encerrando com Miss Paxter.

A moça levantou-se do banco e, atravessando a densa camada de neve sobre o solo, foi até onde estava a condessa.

Ah, se ela fosse um pouco mais razoável! Aquela teimosia não levava a parte alguma. Se ele pudesse obrigá-la a falar!...

Mas não podia — e isso era desesperador.

A morte de Peters... Que ato calculado!

Uma granada... um barbante...

Quem pensaria em algo tão sofisticado?

Só mesmo alguém com Q.I. acima da média.

— Que maneira degradante de matar uma pessoa — murmurou Ludwig.

Obviamente, o mundo já era assim muito antes disso.

Soldados, rebeldes, bandidos... e, por que não dizer, os chamados cidadãos!... matavam desde os primórdios da história.

Não fora Caim o primeiro assassino?

Destacadamente sim. O crime estava indissoluvelmente ligado à imperfeição humana.

Balançou a cabeça, tentando conter a náusea.

O que fazer agora?

A única coisa a fazer era juntar os cacos e ficar de olho vivo.

Esperou alguns minutos e, quando as mulheres foram para dentro, caminhou até o cadáver de Peters.

— Que coisa, meu camarada. Que coisa...

Embrulhou-o no agasalho deixado pela condessa e, a duras penas, carregou-o para o quintal atrás da hospedaria.

Ludwig repetiu a operação com o corpo do Dr. L.. Depois de um adequado enterro (que, em seus devaneios, supunha ser temporário!), recostou-se no cabo da pá, moído. Estava mais quebrado do que qualquer outra coisa

Um alemão despenteado e barbudo — essa era a sua aparência atual.

— Está feito — disse para si mesmo. — Voltamos à perfeita normalidade.

Essa foi a frase que sua boca emitiu. Mas — e disso ele sabia muito bem — não era essa a realidade que tinha diante de si.

Não, a normalidade não existia mais.

Agora era quase um salve-se quem puder!

Se houvesse pelo menos sinal de internet!...

Mas não havia. E se não havia, era preciso se resignar.

Se resignar e torcer para que as coisas não piorassem.

Não piorar — que piada! Era evidente que as coisas iriam piorar. Só Deus sabia quanto!

Ludwig ouviu um estalido. Não poderia dizer de onde.

Da cabana da ferramentas?

Sim, dali mesmo — a cabana das ferramentas.

Jogou a cabeça para trás e se virou para lá, com os olhos brilhando de ansiedade.

O-que-fora-aquilo?

Um estalido... mas de quê?

Como que uma moeda batendo num cano de ferro.

Deveria ir ver? Talvez tivesse sido o martelo... ou o serrote...

Desejava desesperadamente que fosse só isso.

Uma consideração prática, porém, o assaltou.

Stracker!

O nome refulgiu como um farol sobre o mar tempestuoso.

Fosse como fosse, era Stracker!

Ele... seu algoz... estava ali.

Estava ali — para o confronto final!

O episódio em Mulhouse varou a mente de Ludwig.

O assassinato daquela mulher... Um caso em que ele também havia sido vítima.

Vítima de uma trama que envolvia acusações falsas! Que símbolo maravilhoso de humilhação!...

— Não posso morrer agora! Não posso...

Toda uma vida para aproveitar. Tinha até dado entrada numa casa no fiorde de Geiranger!

Não, não iria morrer. Não iria!

Agarrou a pá e a ergueu atrás de si. Se manuseada corretamente, poderia ser uma boa arma.

Ouviu outro estalido.

Com a audição aguçada ao máximo, Ludwig foi para a porta da casa das ferramentas.

Abriu-a com um pontapé.

Deu uma olhada.

Não distinguiu muita coisa. Apetrechos de jardim, em sua maioria.

Lenta e instintivamente, continuou andando... rodeando a construção.

Atrás de si, os túmulos na neve. Quantos eram mesmo? Sete? Oito?

Chegou à quina.

Nesse instante, um sibilo. Antes que desse por si, o cano de ferro acertou-o na têmpora.

Com o impacto, Ludwig tropeçou. Algo quente e úmido molhou a sua orelha.

Ludwig arquejou uma vez, os olhos turvos; teve que se amparar nas tábuas para firmar-se.

Outro sibilo.

Tudo escureceu...


X.

 

A condessa balançou a cabeça, tentando clarear as ideias.

Onde estava Miss Paxter?

Para onde ela disse que iria? Que ia buscar alguma coisa no quarto. As cápsulas de vitamina? O bicarbonato?

A Condessa du Barry não sabia. Estava ali sozinha na sala vazia...

Há quanto tempo?

Dez minutos...

Ou vinte?

O relógio tiquetaqueava, mas a condessa não conseguia se concentrar em nada.

Recordações do passado iam e vinham... como puzzles que se montavam a torto e a direito em seu cérebro. Fragmentos de vozes...

— Por favor, Madame! Não!...

— Meu irmão é assistente da promotoria. Se quiser, falo com ele.

— Aqui estão as notas acessórias do caso. A senhora deve lê-las para conhecer o teor das acusações.

— Se puder adiantar a investigação, oficial, consideraríamos isso esplêndido.

— Receberá a petição, devidamente formalizada, dentro de dois dias, talvez menos.

— Não havia marcas abrasivas... nem queimaduras na pele... O tiro, portanto, foi disparado de certa distância.

— Um entomologista determinou a hora da morte.

— Não tenha muitas ilusões, Madame. A gente tem tudo para perder a causa.

— Temos que elucidar definitivamente essa questão, membros do júri. Madame du Barry agiu ou não de má-fé?

— Não podemos mais ficar protelando. Esta mulher é um perigo público, senhores!

— O júri chegou a um veredito, Meritíssimo.

— Inocente!

— Eu proponho um brinde. À declarada inocência da Condessa du Barry! Tim-tim...

— Dessa vez a mão é sua. Vamos ver como se sai na próxima!

Vamos ver como se sai na próxima!

Emily du Barry estremeceu. Sentiu as lágrimas lhe chegarem aos olhos. Aquela ameaça!... A voz ao telefone!

Essa ameaça esclarecia tudo o que estava acontecendo no albergue!

Durante uma fração de segundo, o impacto da suspeita tonteou a condessa.

Como é que não havia lembrado daquilo antes?

Antes que conseguisse se recobrar, a porta se abriu.

Era France.

A moça rescendia a perfume, como se tivesse acabado de tomar banho. Tinha o casaco aberto e descaído para um lado.

France aproximou-se da janela. Estendeu a mão, hesitante, até as pontas dos dedos tocarem a vidraça.

Era meio-dia.

— O Sr. Hoerbst já voltou?

A Condessa du Barry:

— Não... Acho que não.

France não fez mais perguntas. Acho que não? Que resposta era aquela?

Ou era sim ou não!

— Vou procurá-lo — afirmou, decidida.

— O quê?

— Vou procurá-lo.

France voltou a sair da sala, na direção da porta lateral. A condessa avançou devagar atrás dela.

A neve caía intensamente no quintal.

France tinha a ponta do nariz vermelha e o hálito formava nuvens de vapor.

Adivinhou — mais que notou — as pegadas do alemão.

As pegadas iam rumo à cabana. France seguiu para lá. Olhou para o interior da cabana. Tudo quieto. Foi para a direita e adiantou-se mais um pouco.

Dali viu Hoerbst — perto da cerca de madeira.

France apoiou-se com uma das mãos.

Acenou para que a condessa viesse, com movimentos lentos do braço.

France sentiu o pulso acelerar à medida que se aproximava do alemão.

Ajoelhou-se ao lado do corpo.

Inspecionou os ferimentos, centímetro a centímetro. Não que aquilo adiantasse de alguma coisa. Estava morto.

Não tinha havido luta.

Ela cerrou os dentes ao sentir o nó em seu estômago.

— Foi estrangulado! — afirmou num sussurro rouco.

A Condessa du Barry a fitou com estranheza.

— C-como é que sabe?

— A gente tem que se valer por si mesma, Madame.

— Ah!...

France sentiu um aguilhão de remorso e de dor.

Greg...

Teria sido Greg que fizera aquilo?

— Não pode ser! — exclamou.

— O que foi, menina?

Se tivesse olhado para trás, teria visto a expressão de choque e de surpresa da condessa.

France cerrou os dentes para não responder.

Sufocava.

E se tivesse sido Greg?

Podia ter sido ele.

Podia ter sido!

Era como se estivesse tendo um pesadelo. Todos os seus medos e temores se misturavam num turbilhão desenfreado.

Com esforço, France engatinhou, exausta física e emocionalmente.

As pernas estavam geladas, como se o sangue tivesse deixado de circular nelas.

— Ficamos nós duas, Madame.

As perspectivas, tanto as de curto como as de longo prazo, não poderiam ser mais sinistras.

Esmagada pela depressão, France caiu em prantos.


XI.

 

Pela gelosia da janela do sótão, Gregory olhava para baixo.

O choro de France era uma nota inesquecível na cena a que assistia.

Gregory leu os versos que havia apanhado no rebordo da lareira:


Ao toque do sino, você que compra, deguste o vinho!;

a nona formiga, em sua inquietude, aciona o estopim


Ao toque do sino, é a sobra do bagaço descartada;

por sua presunção, a décima formiga é estrangulada


Estava feito!

Peters e Hoerbst eram cartas fora do baralho.


A Vespa


I.

 

Emily du Barry tinha o rosto sem cor.

Encontrava-se à beira de um ataque de nervos.

Olhava ora para o cadáver de Hoerbst ora para Miss Paxter.

A moça tremia incontrolavelmente, ali ajoelhada...

Tremia como se quisesse que a abraçassem, que dissessem que tudo ia ficar bem.

Ou será que...?

A condessa ficou com um nó no estômago.

Disse:

— Foi você, garota! Você!


II.

 

France ficou momentaneamente confusa.

— O quê?

— Estamos só eu e você aqui... Eu e você, ninguém mais... Eu serei a última a morrer... Ou seja...

France partiu para o contra-ataque:

— Escute, Madame... Não é hora para maluquices. Não estamos sozinhas. Há outro alguém...

— Não, não... Pare de mentir!... As coisas estão tomando forma!

— O que é q...?

— Não se mexa! — gritou a condessa. — Fique quietinha.

— O que vai fazer?

— Era você esse tempo todo! O colar... a carta...

— Colar?

Emily du Barry disse com hostilidade:

— Por que fez isso comigo? Não, não me diga! Ela era sua irmã, não era? Ah, o queixo... o nariz... tudo igual!

Um sexto sentido advertiu France de que as coisas não estavam nada bem!

— Se a senhora insiste!...

— Shhh... Quieta! Eu devia ter imaginado!... A morte de uma pessoa da família... Nem todos conseguem se reconstruir. Com você foi assim?

— Olha, Madame... Se falar a minha língua!...

A condessa mal mexia os lábios. Passou a mão pela testa, como se estivesse tonta.

— Tudo bem? — perguntou France, tocando em seu ombro.

— Eu só... preciso de uma aspirina.

— Eu tenho... Venha... Espere!

A moça tirou o casaco e jogou-o sobre a cara do alemão.

— Vai deixá-lo aí? — perguntou a condessa.

— Depois a gente vê isso...

Isso mesmo, elas cuidariam do enterro depois. Havia coisas mais importantes para resolver.

“Ela era sua irmã... o queixo... o nariz... tudo igual!” — que história era aquela?

France ouviu um arquejo atrás de si.

Girou sobre si mesma.

Plóc!

Com um som oco, o ancinho abateu-se em suas costas. Como óleo na água, um borrão se insinuou em seu campo de visão.

Outro plóc...

O borrão cresceu...


III.

 

A Condessa du Barry largou o ancinho. Teria matado a moça?

Não... — dava para ver que ainda respirava.

Dera os golpes por... — nem mesmo ela sabia o por quê.

— Você não me fará mal!... — disse ela com uma gargalhada. — Eu vou sair daqui. Sim, eu vou...

Mas — sair para onde?... E como? Tudo estava congestionado... os trilhos... o bosque...

Para onde quer que olhasse, frustração e vias fechadas.

Isso fulminava todos os seus planos.

Além do mais, France dissera...

O que era? Ah, sim, ela dissera que havia outro alguém...

Alguém!

A condessa balançou. Parecia uma apóstata temerosa do que tinha feito.

E se fosse verdade? Quem poderia ser?

Talvez não houvesse sido...

Outra pessoa! Sim...

Quem quer que fosse, não tinha boas intenções. Não com relação a ela!...

A cólera começou a apertar sua garganta.

Começou a recuar, e correu para o albergue. Perseguida por todos os horrores do mundo.

Ocupou uma das poltronas no living. O receio fervia dentro dela, como uma panela de pressão.

Ruídos... em algum lugar... De onde vinham? De cima... de fora... de todos os lados.

Viu alguma coisa se mover no vestíbulo.

Uma sombra?

O assassino — querendo a fechar a conta?...

Era intolerável! Ela... que já tivera criados, carruagens, cavalos, cantores e comediantes....

Ser morta como uma qualquer.

Jamais!

Não se entregaria como uma ovelhinha.

Ninguém furtaria a sua dignidade!...

Fez um gesto, como se quisesse afastar tudo aquilo.

Lembrou-se de seu primeiro dia ali... da trapalhada de Monsieur Bouffler...

A majestosa Emily! Tratada como uma plebeia...

Tentou se controlar... Quase matara Miss Paxter!

Por senso de preservação?

Ou por que o prazer de matar se tornara parte do que ela era?

Podia até prever o que viria a seguir.

Mais falatório... publicidade... Todos caindo sobre ela.

Tinha setenta e quatro anos... Não, não uma segunda vez o mesmo calvário!

Nem que tivesse que...

A condessa ficou branca como a cal.

Um estranho calor a invadiu.

Ela sabia o que devia fazer...


IV.

 

Trôpega, Emily du Barry subiu os velhos degraus até ao segundo andar.

Apesar do luxo com que era mobiliado, fazia uns quinze graus negativos no apartamento.

A essa altura dos acontecimentos, a baixa temperatura era o de menos!

Tocou no interruptor, mas a lâmpada não acendeu.

Nem se deu conta...

Pelo seu cérebro perpassavam cenas diversas.

Sentou-se diante da penteadeira.

Não se reconheceu no espelho...

Olheiras... a cabeleira em mechas...

Uma rasura do que ela fora anos atrás!

Notou, ao lado do frasco de creme facial, uma caixinha. O que seria aquilo? Uma caixinha laminada em tons dourados.

Os seus olhos se acenderam. Lutando contra si mesma, levantou a tampa da caixinha e examinou o conteúdo. Empalideceu ainda mais. Lá dentro estava uma tesoura de podar e... enrolada nela... o...

O colar de berilos!

O seu rosto apergaminhado ruborizou-se. Pareceu faltar-lhe o fôlego. Parou para respirar.

E agora isto!

Vacilou. Mas só por três ou quatro segundos.

“Não”, pensou, com uma indefinida raiva. “Chega disso tudo! Chega!...”

Dentro de si, as coisas finalmente estavam se encaixando.

Agora ela sabia a verdade!

A condessa verificou sua maquiagem e retocou o batom. Calmamente...

Tinha todo o tempo ao seu dispor.

Caprichou nos traços, como se estivesse para ir a um baile de formatura.

Bom. Muito bom.

O primeiro passo... Agora mais um.

Foi até a bolsa e curvou-se.

Retirou o frasco de barbitúricos.

Pôs a mão em concha e derramou o conteúdo.

Alguns comprimidos saltaram e se espalharam, como nódoas de cera, no carpete.

Teria coragem para aquilo?

Teria que ter.

A Condessa du Barry inspirou um hausto de ar.

Não podia recuar.

Dane-se o colar de berilos... e tudo o mais que fosse.

Olhou novamente para o espelho.

Lenta e inexoravelmente, ergueu a mão.


V.

 

France voltou a si...

A neve — na boca... Cuspiu com nojo.

O que será que está acontecendo?

Olhou de relance para o cadáver... o casaco...

A condessa... a pancada...

Meio grogue, conseguiu se sentar, fazendo uma careta de dor.

France se levantou cambaleando, com uma expressão angustiada.

Já não sabia em que acreditar.

As costas doíam, varadas por agulhas em brasa.

Ela ficou parada, tentando se situar.

Automaticamente, olhou para cima. O quarto...

A condessa... e também Greg.

Com um tranco, apalpou o bolso da calça. Encostou em alguma coisa...

O revólver... Extraiu-o devagar.

Bom.

Como em um sonho, caminhou para a hospedaria.

Movia-se como uma boneca de estopa, flácida e pesadamente.

Se lhe perguntassem, não saberia dizer aonde estava indo e nem por quê.

Chegou no hall no exato instante em que, à sua direita, uma figura saía para o pátio.

Ela! Era ela...

France enveredou para lá, tropeçando nos destroços que lhe dificultavam o caminho.

— Pare aí!... — gritou.

Fez-se um silêncio atormentado.

A condessa sentou-se a uma mesa que continuava intacta. Voltou-se... olhou para a arma.

Parecia atarantada, mas não com medo.

— Eu vou atirar! ... não se mova!

— Atirar? Em mim... Querida!...

A fala era pastosa... enrolada.

Ela bebeu!, pensou France.

Prudentemente, manteve o revólver apontado.

— Bess... tão linda!

— Fique aí!...

— Tão linda... Bess... “Vamos ver como se sai na próxima”... Foi o que ele disse!

— O quê? Quem disse?...

— Ele!... “Oh, é tipo de homem que uma mulher pode chegar a amar com todas as forças!”, disse ela. Estava tão apaixonada... pobrezinha! Na época, ela contava as calorias. “Vou casar com ele”, dizia Bess. “Preciso manter a forma.” E... eu a matei! Eu a tirei dele... Por isso... Se eu tivesse visto... Cega... tão cega!

Ela pintou os lábios!...

— Por que me agrediu? — France voltou à carga.

— Estava aqui... desde o início...

— Estava aqui, Madame? Quem? Fale!... Quem estava aqui?

— Acho que sei o que ela fez! — soou uma voz masculina.

Aquela voz!

Greg! — a moça empalideceu.

Vindo de trás, Gregory se aproximou, coleando entre os paralelepípedos arrancados.

— Ela ingeriu um pote de remédios. É morte certa se não fizermos alguma coisa.

— Pare!...

Com determinação, a moça mirou nele.


VI.

 

— Pode abaixar, France!... Está tudo bem.

À primeira vista, o revólver não significava nada para o rapaz.

— Nem mais um passo!...

— Qual é! Não entendeu? Essa mulher tomou uma overdose e...

— Você conhecia ela, Greg? Conhecia?

Gregory estacou. Parecia perplexo.

— Você matou essa gente, Greg! Foi você?

— Não sou seu inimigo...

— Responda!...

Gregory fixou os olhos no cano da arma... o ângulo de tiro...

— France... Afaste isso para lá!... Vamos...

— Não foi o que eu perguntei. Eu...

Sem qualquer aviso, ele deu um pulo. Para arrancar-lhe a arma? Por reflexo? Tudo junto, talvez.

France premeu o gatilho. Pám...

Gregory se torceu.

Seus músculos sofreram um espasmo e ele caiu para a frente.

O eco da detonação reboou pelo vale.


VII.

 

Gregory se retorcia espasmodicamente, o rosto coberto de suor.

— O que você fez? Você... você...

— Você ia matar a nós duas, Greg. Você ia me matar!...

— Não... escute! Eu sei quem fez aquilo com Hoerbst... com os outros. Eu ia contar...

France ainda tinha a arma em punho, mas não o mesmo entusiasmo.

— Pare de me enganar. Assuma que foi você! Assuma...

— Não, não... Foi ele!... — e nós pensávamos que estivesse morto.

— Ele... ele! — disse a condessa mecanicamente.

— Calem a boca, os dois! Vou atirar de novo, Greg. Não me obrigue!...

— Eu ia contar... Me dê uma chance! Eu sou muito ruim nisso...

A moça ficou observando-o atentamente.

Uma chance! Era uma concessão razoável.

— Tem a sua chance! Convença-me...

— Fiquei escondido no sótão... Eu prometi que era lá que ficaria! Não vi quando e como a bomba para Peters foi armada...

— Granada!

— Mas vi quando Hoerbst sepultou os corpos... Também vi Hoerbst indo para a cabana... Lá... lá...

— ... ele foi assassinado...

— Sim...

Gregory gemeu, apertando a perna. A dor tomava proporções que iam além da sensação carnal.

— E depois, Greg? Depois...

— Ai, meu Deus. Ajude-me... Estou sangrando!

— Fale primeiro.

— Quando Hoerbst já estava morto... ao lado da cerca... eu vi ele... se esgueirando pela neve.

— Ele? Ele quem?

— Curiosa, Miss Paxter? — soou uma voz atrás deles. — Belo tiro!... Não achei que mulheres se dessem bem com armas de fogo. Preciso revisar meus conceitos.

Os músculos de France ficaram tensos.

Quem...?

Girou sobre os calcanhares...


VIII.

 

France julgou tratar-se de uma alucinação.

— NIGEL!

— Miss!... Olá, Stracker!

Nigel Ronet!

Nigel adiantou-se. Tinha na mão um copo de bourbon, que bebia negligentemente. Acocorou-se.

— Como vai a perna, meu camarada? Hum... não tão ruim quanto parece. Você vai sair dessa. Se não me engano, há uma equipe limpando os trilhos. Amanhã, no mais tardar, vocês dois já terão saído daqui. Um brinde ao Casal 20!

France sentiu os braços ficarem dormentes... e tateou freneticamente por um local de apoio.

— O paraquedas... Nós vimos!...

— Lógico, o paraquedas... Um toque teatral muito bom, não acham? Não é o único capaz de forjar a própria morte, Stracker!... “Morrer envenenado com cianeto?! Nunca! Ouviram? Adeus, senhores...” Ha! Ha! Bastante impressionante, eu diria. Depois... chúmp!... aquela queda no abismo... A queda em que vocês viram o que eu queria que vissem. As brumas... o pavor pulsando entre vocês... Meu paraquedas rasgado e, por baixo, um paraquedas reserva. Gostaram do efeito? Gostaram?... E aqui estou eu — o Mestre dos Fantoches — ileso!

— Você é louco de pedra! — disse Gregory.

— Ho! Ho! Ho! Que virada dramática, Stracker! Finalmente está vindo às claras? Mais alguma carta na manga?

— Ipso facto, cara. Acompanhamos a contagem dos corpos. O que você quer?

— O que eu quero? É uma boa pergunta... Satisfação pessoal? Glória? Não, muito trivial! Fiz o que tinha que ser feito? Estava em busca de libertação e redenção? É o que diria um psicólogo, mas não!... A razão é outra. Epa!, quem temos aqui? A Condessa du Barry!

— Afaste-se dela! — exclamou France, recuperando a presença de espírito.

— Afastar-me? — sorriu Nigel. — Que comovente, Miss Paxter! Tentando defender a mulher que a agrediu... Isso sim é que é senso de solidariedade! Oi, como vai, Madame du Barry! Não está podendo olhar para mim? Ah, eu lamento por isso!... Mes amis, apresento-lhes a encantadora Condessa Emily du Barry. A mulher que assassinou a minha noiva... Bess Verdér.


IX.

 

— Minha noiva... que a senhora baleou por causa de um mísero colar! Aliás, é isso que a trouxe para cá, Madame du Barry! O colar!... Ainda revejo a senhora lá, de joelhos, virando e revirando a mala de Bess, como um bicho desarticulado. Os batons... os souvenires... Com que fúria a senhora se atracou a eles! Os músculos do queixo tensos... as narinas dilatadas... a impaciência — a doentia impaciência... E tudo para quê? Por nada! Não havia nem rastro do colar! Nenhum... Que decepção! A grande Madame du Barry estava com uma joia a menos em sua coleção! Tudo o resto não tinha mais sentido. As chaleiras de cobre... as cafeteiras de barro... os bules de porcelana... Não, aquilo era lixo. A senhora queria o colar! O colar era sua vida... e sua morte, se preciso fosse. Que coisa sórdida! Enquanto isso, eu via Bess... minha Bess!... trespassada por uma bala... sangrando... sangrando... até que a centelha de vida se apagou em sua retina! Eu vi, Madame... eu vi! Poderia ter matado a senhora ali mesmo... Ah, está começando a se lembrar, não é, condessa? Está começando a se lembrar de mim? O filho do jardineiro! O filho do velho Poelm — “aquele velho bêbado!”, conforme dizia a senhora. Lembra-se?

— Êee... — gemeu a condessa.

— Sim, eu mesmo. Quero que tudo fique bem claro, Madame. Bess e eu éramos noivos nessa época. Eu a amava. Amava de toda a alma e todo o meu ser. Sempre levei uma vida licenciosa, mas foi ela que me colocou nos eixos. Incrivelmente, foi ela que veio com a ideia de praticar o roubo. Disse que seria o pé-de-meia antes de ultimarmos os preparativos para nosso casamento. Não aprovei aquilo — não mesmo! —, já sabendo que nada do que eu dissesse a demoveria de sua decisão. “Se tiver alguma coisa a dizer sobre isso, diga logo, Ni”, respondeu ela. “Mas saiba que não vai me dizer nada que eu já não tenha dito a mim mesma.” Assisti a tudo o que aconteceu naquela manhã. Bess saindo da mansão... a senhora se esgueirando atrás dela... a discussão... Ela implorou para que não atirasse nela, Madame. Bess implorou!...

“Durante semanas... meses... a terrível verdade pairou sobre mim como uma nuvem de desconforto. Apesar de minha perda, eu acalentava a esperança de que a justiça seria feita. Acompanhei o seu julgamento... os argumentos do promotor... as perorações do advogado... A defesa era tão pífia, tão frágil. Já podia ouvir até o veredito: Coupable! Mas aí os membros do júri a absolveram. Absolveram! Como explicar o inexplicável? Senti-me um vaso quebrado. A dor do luto... a tirania do quarto vazio — tudo isso eu podia suportar. Menos vê-la sendo inocentada, sendo adulada pela imprensa, quase reverenciada como uma heroína! Não, isso era demais. Jurei a mim mesmo que, não importa quanto anos se passassem, a senhora quitaria o seu débito comigo. Fosse onde fosse, e da forma que se fizesse necessária — os seus dias estavam contados.

Formulei várias estratégias... Atraí-la ao cabo Spear, Terra Nova, e empurrá-la de um promontório. Envenená-la com Trimetileno... E muitas outras. Todas se mostraram inviáveis — por essa ou aquela razão. Mas houve outro fator que me fez rejeitá-las. Eu não queria que a senhora morresse simplesmente! Isso seria muito misericordioso. Dente por dente?... não, era preciso algo mais. A senhora teria que sofrer... sofrer física e psicologicamente. Teria que sofrer uma angústia mental tão grande que, depois de um tempo, a senhora ansiaria pela morte. Sim, teria que ser algo tão medonho que a senhora visse a morte como único e último recurso.

Esperei por uma ocasião propícia. Cedo ou tarde chegaria a minha hora. Contrariando a minha boa vontade, o tempo se escoou e nada. Reclusa em sua mansão, e repousando sob o seu dossel dourado, a senhora tinha se tornado quase uma asceta. Como atingi-la e tirá-la de lá? Tive que bolar uma coisa diferente. Então eu me recordei do colar. O colar de berilos que Bess havia roubado... e que ela tinha cerzido na barra de um dos tecidos que estavam na mala na manhã do crime. Um dos tecidos que a senhora, sem perceber, tinha manejado com as próprias mãos! Aquele colar... que eu mantinha no cofre de meu banco em Bruxelas... poderia servir de isca! Fiquei fora de mim de alegria com essa possibilidade. Se funcionasse... e tudo levava a crer que funcionaria...

Esquematizei tudo aos poucos, um detalhe de cada vez. Sempre guiado pela seguinte premissa: teria que ser uma coisa impactante, capaz de arruiná-la emocionalmente. Procurei na internet... em sites especializados... e, depois de muito procurar, encontrei o lugar que correspondia às minhas pretensões. O Albergue Branco... sob a gerência de um francês gordo e bonachão. Dediquei dias averiguando, conferindo a viabilidade de meu plano. Coletei informações sobre as reservas feitas para a temporada de inverno. O ponto importante é que o número cambiante de hóspedes variava entre doze ou treze pessoas. Doze ou treze! Isso tinha uma semelhança com o enredo de um filme que eu assistira — algumas pessoas... uma ilha... o assassino... E se eu promovesse algo parecido nesse hotel? Dei uma olhada no histórico de cada hóspede: um médico que já fora indiciado, um jogador compulsivo, uma solteirona narcisista, uma russa desquitada... Um monte de pessoas que não acrescentavam nada à sociedade... descartáveis... pessoas para quem a morte seria até uma bênção. Imaginei-as morrendo, uma após a outra... e a senhora ciente de que seria a última da lista! Imaginei o terror psicológico, o efeito desgastante! Pessoas morrendo que nem formigas... até chegar a vez da rainha-mãe.

Formigas! Era um tema mais do que inspirador... Era sofisticado. Com base nisso, elaborei os versos. Onze formigas.

Isso trouxe à tona um desafio: como manter todos vocês sob minhas vistas, evitando que acontecesse algum imprevisto? Uma coisa dessa magnitude não poderia ser deixada ao acaso. Havia só um jeito — câmeras. Ou melhor — microcâmeras. Era algo tão inusitado que fiquei dois dias de cama, prostrado de febre e excitação.

Esses foram os arranjos técnicos. Também fiz, como é de imaginar, a sondagem in loco do terreno. Vim para cá, há mais ou menos um mês, escalando o paredão ali. Foi uma subida e tanto, mas que se revelou muito enriquecedora para os meus propósitos. (Monsieur Bouffler me viu naquele dia — ouvi quando ele comentou isso, certa tarde, com o Dr. Lèfevre!) Lá de cima, localizei uma caverna semiescondida pelo bosque, atrás do albergue. A caverna... Foi nela que instalei esta semana o meu sistema de vigilância particular: duas telas de monitoramento e um minigerador de energia. Outra coisa que notei... Devido à altitude, a névoa era abundante, densa e constante abaixo de determinado ponto da montanha. Ah, a boa e velha neblina!... Ela deu a autenticidade que eu precisava quando fiz o meu suposto salto para a morte!

Como veem, elaborei minuciosamente cada detalhe do que deveria acontecer e de como deveria acontecer. Até mesmo verifiquei a ficha criminal de Jing, o criado, e descobri que havia um mandado de prisão expedido em seu nome. Não à toa que ele e a cozinheira bateram asas quando lhes mostrei uma cópia da acusação de estelionato que pesava contra eles!

Apesar de tudo, existia uma variável sobre a qual eu não possuía o menor controle... uma variável que poderia pôr tudo a perder. A sua reação, Madame! Não sabem o quanto suei na hora de postar e enviar a carta!

Quando eu soube que a senhora havia engolido a isca!... Oh! Que prazer... A embriaguez do triunfo tomou conta de mim!


X.

 

— Não, não morra, Madame. Estamos chegando ao trecho mais interessante da história. O trecho em que vou narrar os fatos documentados. Não só documentados, como devidamente filmados! No mundo atual, em que a cultura popular celebra o desafio aos limites — ah, que gravação maravilhosa!...

A voz de France soou esganiçada:

— É disso que se trata, Nigel? De notoriedade?

— Isso horroriza a senhorita, Miss Paxter? Não deveria. Eu elevei a arte de matar a um novo nível. A um nível que ninguém ousou elevar antes. A um nível lírico... poético. Não houve profanação. Apenas entretenimento, nem melhor nem pior do que é exibido por aí.

Nigel fez uma pausa. Podia observar-se o trabalho voraz de sua mente, que o obrigava a contrair penosamente a testa.

— Tentei convencer a sua namoradinha a ficar longe daqui, Stracker, mas não deu.

— Você falou... com Sali?

— Bem, digo eu no modo de falar. Alguém fez isso por mim.

— O turco?

— O-oou! Você está bem informado! O turco... Pois é, ela não acreditou muito na mentirinha que ele contou a ela. Aquela coisa sobre tráfico de drogas e tal e coisa.

— Seu crápula!

— Crápula? Não, eu quis poupá-la.

— Não me faça rir!

— Verdade!... A mãe dela nasceu em Lion... Achei que seria legal poupar a vida da filha de uma conterrânea.

— Tentou poupá-la... Teve coragem de fazer uma chantagem tão miserável?

— Mundo cão! Mas, como eu dizia, vamos aos eventos ocorridos nessa semana no albergue. Minha primeira ação, depois de vir para cá, foi espalhar as câmeras — esses aparelhinhos milagrosos! — pelos aposentos. A primeira ação... e também a mais efetiva de todas. Depois, como o som da trombeta que antecederia cada crime, era chegada a hora dos versos entrarem em cena.

Fixei o primeiro verso no escritório, visando estritamente Monsieur Bouffler. No entanto, fiquei extasiado quando, de noite, Herr Hoerbst leu o verso em voz alta, diante de todos. A encomenda estava saindo melhor do que o pedido! Depois... pum! — a avalanche! Claro — conforme disse o doutor sagazmente na manhã seguinte —, a avalanche não fora um mero capricho da natureza. Só eu sabia o quanto ele tinha razão. Não havia sido fácil, na tarde da véspera, determinar o melhor ponto para plantar a bomba-relógio. Mas, com a explosão, aconteceu exatamente o que eu queria: a obstrução de todos os acessos e saídas do albergue.

“É possível que queiram saber de que modo consegui atrair Monsieur Blouffler para o escritório. Eu havia achado uma indumentária no depósito de tralhas. Uma dessas indumentárias usadas por membros de certas seitas da antiguidade! Era bizarro, para dizer o mínimo — especialmente à luz embaçada da vela!

— Você? — balbuciou ele, aterrado, quando me reconheceu.

Foi a única coisa que disse. Dei o tiro e ele tombou sem um ai, fulminado, as pernas esticadas, tremendo numa última contração. Como não convinha deixá-lo ali, à soleira da porta, arrastei o corpo e, a duras penas, o ajeitei na cadeira.

“Fiquei surpreso quando, de manhã, o Dr. Lèfevre me pediu para ajudá-lo a procurar vestígios de sangue. Achei que seria divertido confundir um pouco a sua investigação e fiz algumas insinuações — discretas — sobre uma suposta culpabilidade do criado e da cozinheira... Por incrível que pareça, ele levou a sério minha sugestão...

“Naquela tarde conversei com Frank Schippendale. Disse-lhe que tinha uma pista sobre o autor do crime da noite anterior... e convenci-o a vir à quadra de tênis. Ele veio e... pude eliminá-lo comodamente com um bastão de críquete.

“De noite, pendurei o terceiro verso no cabide do quarto de Miss Grogan. Eu tinha lido, em seu perfil do facebook, que ela sofria de hipoglicemia. Não foi difícil matá-la; simplesmente troquei as ampolas de hormônio que estavam em seu criado-mudo. Na manhã seguinte, enquanto você, Stracker, se gabava de amar o clima daqui — sem desconfiar de mim —, Miss Grogan tomava sua injeção diária de glucagon. Acabáramos de chegar ao saguão quando escutamos o grito de Miss Paxter no andar de cima. Subimos voando e, por infelicidade, Miss Grogan ainda estava viva. Sim... eu confesso... fiquei comovido quando vi você chorando, beijando-a, e ela ali, se contorcendo, abarcando a todos nós com o olhar, em agonia, sem conseguir respirar, até... depois de uma eternidade... morrer. Fiquei comovido, não nego.

Aquilo me transtornou. Três pessoas tinham morrido... Deveria eu prosseguir... ou deveria desistir de tudo e tirar meu time de campo, por assim dizer? Providencialmente, uma coisa aconteceu... uma coisa que me ajudou a decidir ir em frente. Foi descoberta a ligação entre os versos escritos e os assassinatos! Era a motivação que faltava para dar sequência ao meu plano. Um plano preparado com esmero, em que tudo andou como previsto. Com o pretexto de que seria o próximo alvo, e apresentando o verso que comprovava isso, joguei-me à tarde pelo precipício.

Dias antes, eu percebera a existência de uma aresta sólida... Com o paraquedas reserva aberto, manobrei até pousar numa plataforma de rochas... que distava só uns trinta metros da aresta. De mãos nuas, em quinze minutos cheguei à base de uma cornija; alcei-me à plataforma. Olhei em volta, ansioso. Felizmente para mim, o meu equipamento estava lá, intacto. Agora eu dispunha de cordas e de bastantes espeques para a subida. Cravei o primeiro, prendendo nele a corda de nylon que passei pela cintura. Isso era vital, pois assim ficaria suspenso pela corda, caso o pé falseasse. Prendi o segundo espeque. Um novo esforço... e estava pronto para instalar o terceiro. Lá em cima, a linha de nuvens, a uns quinhentos metros de distância. Havia uma passagem, uma chaminé — e... bem, o que importa é que, depois de uma árdua escalada, cheguei de volta ao platô, já noite alta. Meu cansaço, porém, logo se esvaiu quando vi o albergue, branco e majestoso. Louco de alívio, eu fui até a caverna na parede rochosa, que eu já tinha provido de alimento e roupas quentes.

Meu plano incluía duas fases. Ali começava a segunda.

Agora eu poderia me mover nas sombras, o que me dava algumas vantagens. Para começar, expus a folha com todos os versos de uma só vez. A partir dali era consumo livre — ou seja, eu eliminaria aleatoriamente qualquer um... não como antes, em que assassinava só a pessoa a quem destinara antecipadamente um dos versos.

Tudo correu bem. Houve um único vacilo. Foi na manhã da morte de Lady Dobney. Aquelas marcas na neve! Se tivessem investigado, as pegadas teriam levado vocês diretamente para meu esconderijo. Casualmente, a sua discussão, Stracker, com Simon salvou a situação. E ainda dizem que um desentendimento bobo não tem seus benefícios! Eu atesto que tem sim.

E, assim, as mortes se sucederam. Lady Dobney, Madame Roskov, Dr. Lèfevre... Este último, um bastardo, na verdadeira definição do termo. Uma família desajustada... um filho metido com drogas... Digo bastardo porque, apesar de todos os reveses que já havia tido, o doutor foi o único que esteve perto de descobrir a localização de meu QG. Ouvi quando a senhora, Madame, e ele confabularam... e vi quando ele, depois disso, fez a busca pelas cercanias do albergue. Não fosse a minha intervenção!... Atirei com a espingarda de pressão sem qualquer certeza de que iria acertá-lo. Zup!... e lá estava o honorável homem — o arpão cravado em suas costas!

Gregory:

— Deve ter sido efeito de um porre daqueles!

— Digira essa informação como puder — retrucou Nigel. Sorriu ao dizer isso. — Confesso, Stracker, que você me enganou direitinho com o seu engasgo e aquelas convulsões... Só mais tarde é que vim a entender a frase que você disse para Miss Paxter: “Quanto menos transpirar, melhor!” Você tinha descoberto as câmeras. Você tinha visto que a garrafa de gim havia sido violada e supôs que o arsênico devia ter sido injetado nela. Você planejou dar o bote. Como? Fingindo; depois, agindo nos bastidores a fim de desmantelar o meu joguinho. Admito que, para algo feito de improviso, foi uma coisa realmente admirável. Muito, muito engenhoso! Ainda mais com a senhorita acobertando a dissimulação.

Imagino que ficaram um pouco perplexos com a forma como assassinei Simon Peters! Uma granada... É, não seria uma opção que muita gente usaria. Mas cumpriu o objetivo a que me propus... A essa altura, o terror já tinha penetrado em seu espírito, Madame! Dentro de seu coração, a fortaleza ia desmoronando. Bastava mais uma morte... ou duas... Foi isso o que pensei, e foi isso o que aconteceu. Procurar por Hoerbst... e achar o seu corpo na neve... despedaçou de vez o seu mundo. Golpear Miss Paxter... voltar ao seu quarto... e se entupir de pílulas... Que expressões de desespero e inquietação! O que mais eu poderia querer? O que mais, Madame du Barry?

Não houve resposta. Ali, bem no centro deles, jazia o corpo da Condessa du Barry.

A cabeça pousada no tampo da mesa... os cabelos esvoaçando como um véu mortuário...

Emily du Barry estava morta.


XI.

 

Nigel balançou a cabeça meio por descrença, meio por repugnância.

— Esse era o eixo em torno do qual girava minha vida. Acabou-se!... Ha! Ha! Acabou-se...

Gregory:

— Por Júpiter! Ela morreu? O que... vai fazer conosco?

— Com vocês? Se comporte como um bom menino, viu? Não vou fazer nada com vocês.

— Cretino!

— Veja lá como fala! Você é o cara mais indisciplinado que já vi, Stracker. Com essa gritaria, vai acabar estourando o fígado.

— Vespa assassina!

— Vespa assassina?

Diante do casal perplexo, Nigel subiu para o parapeito. A mesma cena de dias atrás, num déjà-vu à beira do abismo.

— Sim, eu sou a vespa. Que seja...

Num lance hábil, recitou:

— ...décima primeira formiga – sua morte termina o show! Isso encerra com esse assunto de uma vez por todas.

Parecia um cavalheiro.

Um cavalheiro voltado para a própria realização a todo custo.

... O rosto moreno, crestado pelo sol e o vento do mar.

Nigel abriu os braços em cruz.

— A bolsa não é para estudos universitários. É uma bolsa artística, Bess. Você sempre quis ser pintora.

Bess... que adorava colorir... nunca seria pintora. As caixas de giz-de-cera... os pincéis... as telas em branco...

Querida Bess... Como eu a amo! Amo. Amo.

A jornada é dura para quem viaja só.

Os seus olhos se fixaram no céu, inexpressivamente vazios.

Sem o menor temor, Nigel deu um passo para trás.

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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