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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 2 - P.2
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 2 - P.2

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Sob os nossos pés, ficavam o motor principal e os dois reatores auxiliares e reguláveis. Os outros oito foguetes estavam distribuídos estrategicamente nas diferentes faces do módulo. A popa, à frente da despensa e dos beliches, abrigava complexos circuitos de rádio de medição ambiental interna e externa e uma bateria atômica - tipo SNAP 27 – capaz de transformar a energia calorífica do plutônio radioativo em corrente elétrica (50 W), com uma vida útil de um ano. Esta pilha, especialmente blindada, era o coração do módulo. Todos os circuitos e instrumentos dependiam dela em maior ou menor grau. Não quero nem pensar no que poderia nos acontecer se houvesse uma falha no fornecimento de eletricidade. Como medida de precaução, o Cavalo de Tróia acrescentou aos novos equipamentos uma bateria de espelhos metálicos - doze no total - que podiam ser montados na face externa do berço, aproveitando a radiação solar e podendo gerar até 500 W. Entre os assentos dos tripulantes encontrava-se o núcleo de controle dos eixos dos swivels, essencial para a inversão de massa e para o retrocesso no tempo. Este enxame de equipamentos era controlado pelo computador central - o Papai Noel -, cuja natureza nada tem a ver com a dos seus irmãos, os computadores de válvulas de elevado vácuo ou de estado sólido. A coordenação dos principais sistemas - propulsão, inversão dos eixos, verificação visual para vôos, descida do módulo, detecção e emissão, controle do meio biológico, alimentação geral dos equipamentos, etc. – era executada através da técnica conhecida como controle por retroação com o auxílio de computadores 1.


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A lista de alimentos ricos em vitaminas abrangia os sete grandes grupos essenciais. I: verduras e hortaliças; II: frutos cítricos (laranjas, tangerinas e limões); III: batatas e frutas diversas; IV: leite e seus derivados; V: carne, peixe e ovos. VI: pão, massa, cereais e seus derivados, e VII: manteiga, margarina enriquecida com vitamina A" e óleos vegetais. (N. do hl). Estes espelhos, de vidro revestido de prata, tinham 293 centímetros de diâmetro. Na parte posterior tinham coladas diversas películas de cobre, podendo ser fixos a um estribo de ferro, em disposição azimutal biaxial. Inventado pelo professor israelita Tahor, o sistema, graças à fórmula especular assimétrica e ao deslocamento do eixo de giro horizontal no centro da curvatura da imagem permitia que toda a radiação refletida incidisse num único ponto. Embora a capacidade de reflexão do vidro revestido de prata fosse alta - cerca de oitenta e oito por cento -, Cavalo de Tróia abasteceu-nos também de outras pranchas de reserva, à base de aço maleável prateado e metal eletroprateado, com índices de reflexão de noventa e um e noventa e seis por cento, respectivamente. (N. do M). * Este núcleo de controle tinha sido colocado numa pequena cúpula cilíndrica. A rede do sistema de inversão de massa estendia-se, no entanto, a toda a estrutura sólida do berço, incluindo, naturalmente, a membrana que recobria a blindagem externa. Qualquer partícula subatômica ou qrirn energético que se fechasse nesse recinto era invertido automaticamente, incluindo, é claro, as massas dos astronautas, os gases, etc. A inversão simultânea dos eixos orientados dos suivels alcançava também uma pequena área do invólucro cortical clinwe: até uma distância de 1111329 metros. (N. do M) * Veja-se o primeiro volume desta obra. (N. do A)
      E apesar de não pretender alongar-me nas sempre difíceis e complexas características técnicas dos instrumentos e dos sistemas utilizados,   tanto o meu companheiro de aventuras como eu próprio sentimos um profundo prazer quando, ao revistar o interior do berço, comprovamos que o Cavalo de Tróia tinha atendido algumas das nossas sugestões, imaginando a iminente exploração.       Na popa, devidamente acondicionados, encontravam-se, entre outros, os seguintes aparelhos e ferramentas: dois microscópios, um do tipo Ultropack, da casa Leitz, muito útil para a visualização de corpos opacos, e o segundo, mais complexo, que naquela altura iniciava os seus primeiros passos no mundo da   investigação científica - o denominado efeito túnel, que procurarei pormenorizar na devida altura e que se mostraria de grande utilidade para os objetivos da missão.       O considerável peso e volume do microscópio eletrônico fez-nos desistir da sua instalação no interior da nave. Além disso, havia um microdensitômetro e um sofisticado interpretador de imagens que contribuiriam - e de que forma! - para o que, sem dúvida, foi uma das descobertas mais sensacionais deste segundo salto.         O grosso do novo instrumental era complementado por um laser experimental destinado a comunicações a longa distância; um aparelho miniaturizado de raios X de modulações dirigidas; material termográfico de alta velocidade e outros dispositivos que irei revelarei  no momento adequado.      Num dos compartimentos da despensa - protegidos a baixa temperatura - foram introduzidos também diversos reagentes e uma ampla mostra dos antibióticos, das sulfamidas e outros fármacos sintéticos, imprescindíveis
num clima temperado, em especial para combater possíveis infecções microbianas2.       Além desta generosa representação da mais moderna quimioterapia - reservada, em princípio, de acordo com o rigoroso código ético da operação, aos ocupantes do módulo - o general Curtiss e alguns diretores tinham insistido na necessidade de abastecer a nave de uma extensa reserva de plantas medicinais. No total, 147 espécies altamente benéficas e que, em caso de necessidade, e segundo o nosso critério, podiam ser tiradas do berço. A maior parte delas, segundo os estudos dos nossos especialistas, existia naquele tempo na Palestina e nas regiões circundantes. Portanto, a sua presença não ia contra os esquemas ou o quadro evolutivo do momento. E devo reconhecer que a idéia se tornaria muito útil.       Cada erva, depois de devidamente seca foi introduzida em pequenos frascos de vidro, com o nome da   planta e a data em que fora colhida num rótulo. O Papai Noel recebeu também uma informação completíssima sobre a natureza, origem e propriedades curativas de todas elas.
*1 O Papai Noel, o computador central, operava, numa primeira fase, analisando as funções contínuas ou analógicas. Posteriormente por um processo automático de  amostragem estatística, selecionava os parâmetros básicos, efetuando os cálculos digitalmente. Desta forma oferecia-nos uma resposta definitiva e quantificada. O grau de confiança dos resultados era extraordinária: praticamente total. (N. do M). * Ainda haverá ocasião para falar disso, mas sirva de antecipação que entre o arsenal de medicamentos figuravam, por exemplo, penicilinas, ammoglicoidios e aminociclitois, cefalosporinas, macrolídeos e lincosamidas, tetraciclinas, peptídios, antibióticos, antimicóticos, clorofenicol, etc. (N. do M)
      Por último, entre as novidades, contávamos também com valiosas réplicas das tábuas astrológicas utilizadas pelos Egípcios no tempo de Jesus, assim como de uma série de astrolábios assírios - igualmente talhados em tabuinhas de madeira policromada - que deviam ajudar-me na minha tarefa de augure e adivinho.       Mas o que mais despertou a nossa atenção foi uma caixa de aço quadrada, hermeticamente fechada, colocada também na popa e ligada diretamente ao computador central. Por mais que inspecionássemos por todos os lados - de quarenta centímetros cada um -, fomos incapazes de
descobrir uma única inscrição ou pista que revelasse o seu conteúdo.       Como estava firmemente parafusada, foi impossível avaliar o peso ou sequer intuir a razão da sua presença no interior do módulo. Eliseu e eu, perguntamos a Curtiss o porquê de tão misterioso recipiente. O general parecia estar esperando a pergunta. O seu rosto ficou fugazmente sombrio e, num tom autoritário pouco comum nele, replicou: ,      - Lamento. Isso é material secreto. Altamente secreto.      E dando meia volta, afastou-se em direção à escotilha de emergência do fosso.   Naturalmente, acatamos a ordem. Mas Curtiss sabia que aquela atitude de sigilo militar só podia contribuir para excitar a nossa curiosidade, nos incitando a mais tarde, tentar desvendar a missão daquela caixa.       Por volta das quatro horas e meia, o general regressou à piscina. Ocupados em mais uma revisão dos equipamentos de bordo, não percebemos da sua chegada. Um dos engenheiros nos informou, apontando a cabeça pela escotilha aberta no chão do berço, que o chefe estava nos chamando. Ao descer pela escada hidráulica do módulo, aguardava-nos uma outra surpresa: todo o turno de trabalho e outros homens de folga tinham-se juntado diante da nave.       Curtiss, na primeira fila, e sorridente, tinha nas mãos um cilindro de vidro. Consultou o relógio e, transbordante de satisfação, exclamou:       - Rapazes, dentro de sete horas e trinta minutos, se tudo correr bem, daremos início à contagem regressiva. Desta vez não estarei fisicamente presente. A sua segurança, e a de toda a equipe, dependem desta minha ausência temporária. Vocês compreenderão porquê.      Baixou os olhos e, apelando a toda a sua energia resumiu numa única frase os desejos e sentimentos de todos os que ali estávamos:      - Boa sorte. E que Ele vos abençoe de novo!      Com os olhos úmidos estendeu as mãos para Eliseu, entregando-lhe uma oliveira pequenina dentro de um estojo.      - Um último pedido - acrescentou. - Levem também este rebento e plantem-no em nome dos que ficam deste lado. Será o símbolo humilde e secreto de uns homens que apenas buscam a paz. Uma paz sem fronteiras. Uma paz sem limites de espaço, e de tempo. Obrigado! E repito: boa sorte!      Antes de podermos reagir abraçou-nos, avançando imediata e rapidamente por entre os comovidos técnicos do Projeto, subindo as escadas rumo à superfície de Massada.       Eliseu e eu, com os corações batendo forte, só tivemos forças para balbuciar um duplo e trêmulo obrigado. Tal como acontecera na primeira
decolagem, na mesquita da Ascensão, as palavras negaram-se a fluir dos nossos lábios. Restabelecida a normalidade na estação, os diretores explicaram-nos o porquê da inesperada ausência do general nos últimos momentos da fase vermelha.       Dias antes, Curtiss tinha convencido Qasim, o xeque beduíno que erguera a sua tenda à distância de uma pedrada da plataforma-base do teleférico, a celebrar uma ceia nômade típica precisamente na noite de sexta-feira, 9 de Março. Os carneiros e um substancioso presente - em dólares, claro - tinham sido decisivos. A finalidade não era outra senão manter Yefet, o chefe do Acampamento Eleazar, afastado do cume do rochedo durante a abertura da piscina e o subseqüente lançamento do berço.      O capitão israelita e o nosso chefe eram os únicos convidados. Yefet interpretou o gesto como uma manifestação da tradicional hospitalidade beduíno, aceitando, encantado.       Por um lado, rejeitar o convite dos shammar   teria sido um insulto. Por outro, a festa quebrava a monotonia e o enclausuramento a que se encontrava submetido desde Fevereiro.       Às cinco horas dessa tarde, uma das cabinas do teleférico conduziu-os até ao sopé de Massada. Dado que o serviço do teleférico terminava com o crepúsculo, ambos teriam de pernoitar na tenda nômade. Como precaução adicional, o chefe do Cavalo de Tróia havia estabelecido um código secreto para ser utilizado nos casos seguintes: se qualquer coisa falhasse no fosso e a decolagem do módulo fosse anulada, um dos nossos homens deveria transmitir imediatamente para a estação de rádio situada na plataforma-base do teleférico uma das frases da conversa que o doutor Kissinger tivera com a jornalista da NBC, Barbara Walters, a propósito do que dissera em inglês Mao Tsé-Tung: "Sente-se, se faz favor".       Se, pelo contrário reclamassem inesperadamente a presença de Yefet no cume, vendo-se obrigado a abandonar a hospitalidade dos shamna antes da uma hora da madrugada de sábado, Curtiss teria de encontrar uma solução para fazer os duzentos metros que separavam a tenda da estação de rádio e transmitir para o acampamento outra das frases que nos recomendara memorizar durante a visita ao gerador: "Isso é mais do que o senhor consegue dizer em chinês".      - Esperemos, para o bem da missão e de todos - concordamos que não seja necessário recorrer a nenhuma dessas ridículas frases.      No entanto, do nosso ponto de vista, nem tudo parecia tão simples.
Apesar do perigoso Yefet ter sido afastado da meseta, ainda ali havia mais vinte e cinco israelitas. Como iríamos iludi-los. Sobretudo como neutralizar os vinte vigilantes? À primeira vista o plano do general era bom. Com os dois técnicos encarregados da manutenção de Charlie não havia problema. Como se encontravam na cisterna subterrânea, era pouco provável que vissem ou ouvissem algo de anormal. Quanto aos restantes - os cozinheiros e os grupos de vigilantes -, as ordens eram drásticas. Pouco antes do jantar por volta das nove horas da noite, um dos nossos homens devia infiltrar-se na cozinha colocando na comida, na água e no vinho uma pequena dose de nembutal, um sedativo cuja ação - dependendo da quantidade em miligramas - se mantém entre trinta minutos e cinco ou seis horas.      Assim, tanto o turno que iniciava a vigilância nas casamatas oriental e ocidental às dez da noite como o que a deixava e ia para o refeitório, ficariam sob os efeitos do hipnótico no máximo quarenta e cinco a cinqüenta minutos depois de o terem ingerido.         Com o fim de não levantar suspeitas, os vinte especialistas do Cavalo de Tróia, que terminavam o seu serviço na piscina às vinte e uma horas e trinta minutos, deviam dirigir-se normalmente para o refeitório e compartilhar com os nossos aliados o jantar e o nembutal. Se no dia seguinte, algum vigilante ousasse confessar que tinha adormecido no seu posto de observação - coisa pouco provável -, descobrindo-se assim que acontecera a mesma coisa aos outros, os militares israelitas se veriam obrigados a reconhecer que também os norte-americanos que não estavam de serviço tinham sido vítimas da mesma anomalia. A idéia não era ruim. No entanto, confiamos em que a situação não chegasse a esse extremo.       No  acampamento todos sabiam, apesar de ser segredo, que em geral e a partir das onze ou doze horas da noite, a maioria dos vigilantes acabava por acomodar-se nos seus improvisados catres e passavam pelas brasas. Se não fosse a inevitável abertura do fecho hidráulico do fosso e o ruído dos motores do módulo ao decolar talvez tivesse sido desnecessária aquela série de precauções. O berço dispunha de um sistema de emissão de radiação infravermelha que o tornava invisível aos olhos de qualquer hipotético observador. Esta fonte energética irradiava de toda a membrana, que, como também já expliquei, revestia totalmente a nave.
* As funções básicas desta membrana" eram as seguintes: Em primeiro lugar a camuflagem do módulo por meio de um escudo ou colchão" de radiação infravermelha (acima dos setecentos nanômetros). Este requisito
era imprescindível para as nossas observações, não afetando assim o ritmo natural dos indivíduos que se pretendia estudar ou controlar. Em segundo lugar, procurar a absorção – sem reflexo ou retorno - das ondas dessimétricas, fundamentalmente utilizadas nos radares. (No caso dos telas militares israelitas estes dispositivos de segurança foram previamente ajustados às ondas utilizadas por tais radares: 1347 e 240 2 megaciclos) Este método anulava a possibilidade de localização eletrônica do berço, enquanto era elevado a oitocentos pés, ponto ideal para a seguinte fase de inversão de massa dos swivels. Por último, a membrana que cobre a blindagem exterior da nave, cuja espessura de 00329 m, devia provocar uma incandescência artificial que eliminasse qualquer tipo de germe vivo que aderisse à sua superfície. Esta precaução evitava que os germes fossem invertidos tridimensionalmente com a nave. Uma entrada, involuntária desses organismos num outro tempo, ou noutro contexto tridimensional, poderia trazer conseqüências imprevisíveis de caráter biológico. Como informação puramente descritiva, posso dizer que a membrana tem propriedades de resistência estrutural muito especiais. Este revestimento poroso do berço, de cerâmica, tem um elevado ponto de fusão: 726061"C, sendo o seu poder de emissão externa igualmente alto. A sua condutibilidade térmica, em contrapartida, é muito baixa: 2071 13x 10 Col/Cm/s/oC. (Para esta membrana é muito importante que a ablação se mantenha dentro de uma margem de tolerância muito ampla) Para isso utiliza-se um sistema de arrefecimento por transpiração com base no lítio liquefeito. Além disso, foi envolvida de uma fina camada de platina coloidal colorida posta sobre a superfície externa. (N. do M.)
      Vinte e três horas.      Eliseu fechou a escotilha do módulo. - Sessenta minutos para o início da contagem decrescente. - Entendido. A voz dos técnicos chegava forte e clara. O nosso próximo passo foi vestir as roupas especialmente desenhadas para o processo de inversão de massa, comprovando no computador o novo dispositivo de RMN, colocado nos escafandros e que devia fotografar os tecidos neurônicos durante a mudança dos eixos dos swivels. Aquela fora uma das nossas exigências para prosseguirmos com a missão. Durante o tempo infinitesimal das duas inversões inicialmente previstas, o sistema miniaturizado de RMN, ou ressonância magnética nuclear, permitiria um
seguimento fiel e minucioso da atividade dos nossos neurônios, fornecendo, talvez, novas informações sobre o mal que afetava os nossos cérebros, tínhamos certeza - o Papai Noel verificou e interpretou aqueles primeiros cortes da massa cerebral, marcando a ignição automática seguinte da RMN para as vinte e quatro horas e quarenta e cinco minutos; isto é, um quarto de hora antes da decolagem. - supondo que regressássemos.       Isso permitiria – uma  análise comparativa do comportamento e possíveis alterações dos pigmentos do envelhecimento antes, durante e depois da inversão axial. Esta espécie de radiografias magnéticas são totalmente   inócuas. No entanto, o sistema foi posto de lado na nossa primeira exploração. Em princípio devia ter sido introduzido na vara de Moisés, com a missão básica de estudar o cérebro de Jesus de Nazaré durante a sua Paixão e Morte. Mas, o fato de a RMN provocar a orientação de alguns  tomos na direção do campo magnético foi visto como uma forma de alteração do organismo humano a observar. E isto, como se disse, estava terminantemente proibido.       O sistema, além disso, não foi miniaturizado a tempo e foi preciso deixá-lo de fora. Agora, pelo contrário, as coisas eram diferentes - De um ponto de vista ético não nos pareceu digno de reprovação tentar estudar um corpo glorioso com a ajuda da ressonância magnética nuclear. O objetivo, e nós sabíamos isso, tinha mais de sonho do que de realidade científica. Nem sequer tínhamos a certeza da existência desse organismo ressuscitado. E, no caso de que fosse visível e real, o que ‚ que nos esperava? Mas percebo que estou caindo na velha tentação de me antecipar aos fatos. Vinte e três horas e trinta minutos.
* O fundamento do RMN baseia-se no rostocterística peculiar do núcleo dos  tomos de hidrogênio. Utilizando palavras simples. são como microscópicos imunes, capazes de provocar um fenômeno de ressonância magnética. Submetendo estes átomos a um campo magnético de alta freqüência (01 teslas. os núcleos de hidrogênio ficam em linha. Ao serem excitados por meio de ondas de rádio, esses núcleos atômicos giram sobre si mesmos, perdendo a energia inicial sob a forma de radiação. Esta pode ser captada e processada com a ajuda de um computador, e será traduzida para imagens. 1 - trabalhando num campo, O nosso dispositivo RMN - especialmente miniaturizado magnético de dois teslas, podia explorar a fundo a totalidade
das nossas massas cerebrais, interpretando cada órgão e região em três dimensões simultâneas e reconstruindo os cortes em forma sagital, axial ou oblíqua. (N. do M).
      Sentados diante do grande painel de instrumentos, o meu irmão começou a fazer a última leitura do computador central.      - Medidores do campo gravitacional.      - Ok.      - Indicadores de velocidade.      - Ok.      - Painel de instrumentos de vigilância de motores temperatura.         - Ok.      A revisão ficou concluída às vinte e três horas e quarenta minutos. Na realidade, tanto a decolagem como o vôo e a aterrissagem, assim como a maioria das funções de fornecimento, pilotagem, etc, estavam controladas pelo Papai Noel. O nosso papel, era o de meros supervisores ou, em casos extremos, de retificadores.      - Zero hora.      - Sessenta minutos para levantar vôo.      O início da contagem decrescente acelerou a nossa freqüência cardíaca. Sinceramente, durante grande parte daqueles intermináveis sessenta minutos, apesar de acompanharmos mecanicamente a evolução dos parâmetros de vôo que o computador nos dava, os nossos pensamentos estavam fora da nave.       Precisamente na tenda que abrigava a estação de rádio. Naquela altura da noite - já madrugada de sábado, 10 de Março -, julgando pelas indicações dos técnicos que permaneciam em contato com o interior do módulo, o hipnótico fazia tempo que surtira efeito, mergulhando o acampamento num profundo silêncio.       Quanto ao receptor-transmissor de rádio, continuava maravilhosamente mudo. E, instintivamente, imaginamos o velho general rodeado de beduínos e com os olhos fixos no seu cronômetro.      - Zero horas e trinta minutos.      - A trinta da decolagem.      Nervosamente, digitei num dos terminais do computador central, à procura do último boletim meteorológico. Aquelas nuvens e o forte vento que se abatiam sobre Massada nas primeiras horas da tarde continuavam fixos na minha mente.   A resposta do Papai Noel foi tranqüilizadora: Temperatura: 718 graus centígrados. Umidade relativa: 81%. Velocidade
do vento: 11 Km/h. Respirei aliviado. Direção do vento: 270 graus. Havia amainado e rodado para oeste.  Nebulosidade: 7/8. Cumulonimbos. Altitude: 2100 metros. Últimas precipitações às vinte horas: 16 mm.         Eliseu olhou de  soslaio para o monitor e, depois de comparar aqueles dados com as previsões fornecidas pela estação de Kalya, a norte do mar Morto, comentou:      - Não se preocupe. O berço vai subir como uma bala.      - Zero horas e quarenta e cinco minutos.      O Papai Noel ligou o dispositivo de RMN.      - Zero horas e cinqüenta e cinco minutos.      - Pronta a absorção de ondas dessimétricas e a camuflagem infravermelha. - Sinais de alarme: negativo.      - Controle de graduação de pré-ignição em automático.      - Ok, rapazes - ecoou a voz do controlador no exterior. - O fecho hidráulico foi retirado.         - Zero horas e cinqüenta e oito minutos.      - Atenção! Ignição dentro de cento e vinte segundos!      - Teste de silenciadores?      - Roger. Aí vamos nós!      - Ok. Estamos ouvindo cinco por cinco. Ignição dentro de sessenta segundos e continua a contagem regressiva.      Aquele foi outro minuto interminável. Troquei um olhar com Eliseu. Apesar do vertiginoso ritmo cardíaco - quase cento e trinta pulsações -, os olhos dele cintilaram com uma luz especial.      Piscou-me um olho e continuou debruçado sobre os comandos eletrônicos, absorto, como eu, no medidor de combustível e da perigosa e iminente ignição do motor principal.      - Quarenta e cinco segundos.      Sobre as nossas cabeças, as negras nuvens de evolução vertical tinham começado a fragmentar-se. E a Lua - como um presságio -, na fase de quarto crescente, apareceu por breves instantes, com a sua afiada forma de foice.      - Atenção, rapazes!. Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um!.      Foram as últimas palavras do controle.      - Ignição!      - Roger!. Aí vamos nós!      E o módulo, envolto numa espessa e branca nuvem, foi catapultado
para  os céus de Massada. Os relógios marcavam uma hora de sábado, 10 de Março de 1973.         A aventura tinha começado. - Vamos! Vamos! Para cima! Para cima, meu lindo!      Os sistemas responderam com uma suavidade quase humana.         -  Altitude: trezentos pés sobre Massada e elevando-se a zero vírgula um por segundo. Trezentos e cinqüenta. Trezentos e setenta e cinco.         - Roger, meu lindo, Roger!      As nossas vozes misturavam-se, carregadas de emoção e nervosismo.         - Leitura do combustível e temperatura do motor?      - Corretas - respondeu Eliseu -, queimando a cinco quilos e duzentos por segundo.         O berço prosseguiu a sua ascensão.      - Setecentos pés. Setecentos e cinqüenta. A cinqüenta para o nível de vôo estacionário.      - Ok, vigie as leituras do Papai Noel.      - Foguetes auxiliares prontos!      - Roger. Oitocentos pés. Manobra de travagem!      - Ok, vamos bem.      - Ajustado nível estacionário: estamos a oitocentos pés sobre a Meseta.      - Diga-me quanto de combustível e tempo de ascensão.      - Trinta segundos desde a ignição. Consumo calculado até nível oito: cento e cinqüenta e seis quilos. Estamos a noventa e nove vírgula um por cento.      Aquilo significava que contávamos com um total de 16 244 quilos de combustível. Mais do que o necessário para os vôos de ida e volta e para as manobras de aterrissagem e decolagem. Mas, apesar das comunicações com terra terem sido cortadas no próprio instante da ignição e de o módulo estar camuflado não convinha prolongar a situação de imobilidade ou de estacionário. Nessas condições, o consumo de combustível era sempre brutal.      - Pronta a incandescência da membrana e blindagem exterior.      - Roger! Programada a cinco mil graus.      - Atenção! Ativação do sistema de inversão axial à uma hora e sessenta segundos.         - Dispositivo em automático.       - Diga-me o WX. Quero saber se vou precisar de guarda-chuva.      Eliseu agradeceu a piada. Os segundos que antecediam a inversão simultânea dos eixos das partículas subatômicas do módulo e de tudo
quanto encerrava no seu interior eram sempre de uma tensão fora do normal. Mais ainda quando ambos sabíamos que as novas mudanças de parâmetros tridimensionais podiam acarretar-nos conseqüências funestas para os neurônios.      - WX a dez milhas: visibilidade seis mil e trezentos BRKN. Vento: cento e noventa graus. Não há  alteração de velocidade no nível oito. Em altura: por cima dos cumulonimbos, ventos em trinta a vinte e cinco. Nível: dez mil pés.         - Ok, amigo - disse para o meu irmão. - Lá vamos nós.      - Uma hora e cinqüenta e cinco segundos.      - Boa sorte!      - Uma hora e sessenta segundos. O computador central destravou o mecanismo de incandescência da blindagem externa e, ao mesmo tempo, o sistema de inversão de massa, aniquilando todo o tipo de germes que eventualmente tivessem aderido à fuselagem, lançando-os, para o que poderíamos qualificar como outro agora no permanente fluir do tempo2. E os eixos do tempo dos swivels foram empurrados para um ângulo equivalente ao retrocesso desejado: para a uma hora de domingo, 9 de Abril do ano 30 da nossa Era. Décimos de segundo depois, o primitivo sistema referencial (1973) era substituído pelo novo tempo. Os cronômetros moniônicos da nave tinham começado uma contagem esperada e fascinante: 09-04-30, e a hora real da nossa aparição" uma hora da madrugada.       E, à nossa frente, um enigma maravilhoso: quarenta ou quarenta e cinco dias de exploração. Tínhamos retrocedido 709 637 dias.
* WX" ou condições meteorológicas. Visibilidade seis mil e trezentos BRKN quer dizer seis mil trezentos pés de altitude - base das nuvens - e BRKN", abreviatura de broken (partido, em inglês), significa que as nuvens aparecem partidas nalgumas zonas do céu. Estão cobertos mais de quatro oitavos do céu. Vento, cento e noventa graus: direção sudoeste. Nível oito: a oitocentos pés de altitude. Ventos em 030 a 25: que têm direção nordeste e que atingem uma velocidade de vinte e cinco nós ou cinqüenta quilômetros por hora, aproximadamente. (N. do M). *2 Não é meu desejo desviar-me agora para as descobertas revolucionárias dos especialistas do Cavalo de Tróia em relação ao Tempo e ao Espaço (parte delas  foram sumariamente descritas). Como simples apontamento complementar, referirei algumas definições do que nós entendemos agora
como tempo. No contínuo espaço-tempo" – ainda erradamente concebido por muitos físicos - o homem não ‚ mais que uma espécie de ruga, desse Espaço; uma "depressão, através da quarta dimensão, que poderíamos definir matematicamente em dez dimensões. Em suma, uma massa com volume e tempo associados. Para a maioria dos seres humanos atuais, esse homem é um ser de três dimensões que vive o fluir do tempo através de uma sucessão encadeada de fatos ou de acontecimentos. Para essas pessoas só há  lembranças de acontecimentos ou situações passadas. O presente é a única realidade e o futuro, naturalmente, não existe. As nossas descobertas demonstraram que essa concepção está errada. Vou dar um exemplo: imaginemos todos os acontecimentos que viveu, vive e viver um ser humano ao longo da sua existência. E imaginemo-los alinhados sobre um eixo que represente a dimensão tempo". Cada acontecimento aparece com uma data. Pois bem, de acordo com as nossas descobertas, o espaço e o tempo encontram-se tão intimamente ligados que, se fundirmos todos esses acontecimentos formando uma única imagem, resultará uma estranha criatura de quatro dimensões (volume mais tempo), muito semelhante a um cilindro" ou chouriço. Cada rodela" ou seção será a representação de um acontecimento.   Poderíamos classificar esse formidável tubo" como um contínuo e permanente presente". Um para cada indivíduo. E o que é que representa um corte ou seção desse contínuo presente"? Um acontecimento em que o ser humano é o protagonista. Mas esse acontecimento é uma mera ficção. Da mesma forma que seria uma ilusão interpretar ou pensar que a totalidade do cilindro, não pode ser cortada em rodelas, formando um todo inviolável. Vou usar outra imagem. Suponhamos um bosque pelo qual serpenteia um túnel de vidro ou plástico transparente. O interior desse túnel está cheio de móveis, utensílios e objetos diversos. E imaginemos um homem - a nossa consciência - que caminha por ele. É de noite e ele traz uma lanterna. Ao longo da sua caminhada, o indivíduo vai iluminando os objetos que encontra na sua passagem, e até parte das  árvores mais próximas das paredes de vidro do sinuoso corredor. Surpreendido, o nosso protagonista verá outros pontos luminosos (outras lanternas), que não são mais que uma infinidade de homens como ele percorrendo os seus respectivos túneis. Tanto o túnel como o bosque existiam antes de aparecer cada um dos homens. No   entanto, o que caminha pensa que o que está iluminando nesse instante acaba de ocorrer nesse preciso momento. E chama-lhe presente". O que deixou para trás é tido como passado, e os objetos que ainda não viu, como futuro. É claro
que nem um nem outro - passado" e futuro" - existem para esse ser humano. É evidente que está enganado. Tudo é um permanente presente. Pode argumentar-se, com razão, que esta situação diminuiria a liberdade. Aí, precisamente, intervém outro fator" – ao qual me referirei mais adiante - e que descobrimos" na nossa segunda exploração: aquilo a que muitos chamam alma. Uma entidade difícil de rotular, adimensional, que goza de uma sublime prerrogativa: poder  modelar a conduta do corpo em que se insere. Apesar de me referir a esta sensacional descoberta - a descoberta científica da "alma" -, talvez um  novo exemplo seja esclarecedor. Imaginemos de novo que esse túnel, longo e  flexível, é adquirido pelo seu proprietário (a alma), que pode encurvá-lo e estendê-lo pelo bosque com inteira liberdade. Obviamente, terá de adaptá-lo à topografia, contornando as  árvores e os acidentes geográficos e, muito especialmente, procurar que o percurso não perturbe o dos outros túneis. O verdadeiro "proprietário" só precisa olhar uma vez para contemplar a totalidade do seu" túnel. O homem que, ao nascer, começa a caminhar por ele, não é o seu autêntico dono. Trata-se apenas de um corpo e de uma consciência". A consciência real é outra coisa. Mas a diferença entre estas duas consciências" nos levaria muito longe. (N. do M) * O cálculo exato dos dias e horas que devíamos recuar" no tempo não constituiu   problema algum para os computadores do Cavalo de Tróia. Os especialistas basearam-se no sistema conhecido como data Juliana". Para saber o tempo entre duas datas muito afastadas é necessário considerar as correções dos diferentes calendários, as diferentes Eras, os anos bissextos, etc. A data Juliana", que nada tem a ver com o calendário Juliano, começa a contar os dias a partir da segunda-feira, dia 1 de Janeiro do ano 713A.C. Esse dia recebe o número 1. (N. do M)
9 DE ABRIL, DOMINGO (ANO 30)
      - Tudo operacional?      Eliseu respondeu piscando de novo o olho. E durante alguns segundos nos dedicamos à obrigatória e rotineira comprovação dos instrumentos. Os altímetros especiais - a que aludirei em breve - não tinham modificado as suas leituras: oitocentos pés sobre o terreno situado abaixo do berço. O passo seguinte foi conferir as nossas coordenadas. O meu companheiro, com a ajuda de um sextante, determinou as novas posições da Lua e de algumas estrelas, introduzindo os novos dados no Papai Noel.       O computador efetuou o cálculo e, segundos depois, líamos no monitor
o que já supúnhamos: o módulo não havia alterado a sua localização no espaço.         - Regulagem da plataforma de inércia sem alteração.      Um pouco mais calmos demos olhamos ao redor. A  Lua, às três da nossa posição quase cheia, brilhava com força sobre as imóveis águas do mar Morto. Não havia sinais da nebulosidade que cobriria a região mil novecentos e quarenta e três anos depois!       Aos nossos pés, tremulamente iluminada, a meseta de Massada. O luar cor de prata permitia vislumbrar o perfil dos edifícios herodianos, agora intactos. No setor norte, por trás dos armazéns e junto da torre ocidental, despontavam outras tantas fogueiras. Eram os únicos sinais de vida no alto do rochedo. Possivelmente, acesas pelos guardas  de turno da pequena guarnição.         - Uma hora e sessenta e cinco segundos.      Depois de consultar o WX - vento calmo, visibilidade ilimitada, baixa umidade e dez graus de temperatura, com tendência para aumentar -, o Papai Noel de acordo com o programado, começou a girar o motor principal (o J85), cujo anel cardan tinha sido modificado nesta ocasião, permitindo assim uma propulsão horizontal do módulo.         - Roger – exclamou Eliseu, mais uma vez surpreendido pela precisão do computador central -, pegeons: dez graus. distância calculada até ao ponto Gedi? Nove vírgula sete milhas2
* Da mesma forma que os Apolo, o nosso módulo também foi programado para utilizar dois tipos de métodos de navegação e direção: o inercial e o de orientação ótica. O primeiro assenta numa plataforma orientável situada numa posição constante, quaisquer que fossem os movimentos da nave, graças a três giroscópios. As estrelas e o horizonte podiam servir como sistema de referência. Três dispositivos sensíveis à aceleração mediam todas as mudanças de posição. Esses parâmetros eram transferidos para o Papai Noel que, depois de comparara-los com os correspondentes aos da trajetória de vôo programada efetuava as correções necessárias. Qualquer desvio desencadeava um impulso elétrico que disparava os propulsores de controle, com o objetivo de alterar a trajetória,  claro que nós podíamos desligar este sistema automático e utilizar os comandos manuais. (N. do M) *2 Dar pegeons, em linguagem aeronáutica, é fornecer o rumo e a distância. 10 graus: rumo nordeste. O ponto gedi correspondia à zona situada nas margens do mar morto: o oásis de Ein Gedi, situado a 97
milhas da vertical de Massada. (N. do M)
      - Ok. Leitura do combustível?      - Estamos a noventa e nove por cento.      E o berço iniciou o seu vôo para nordeste, em busca do chamado oásis de En Gedi. Uma vez ali, o computador retificaria automaticamente o rumo, virando para noroeste.      - Oscilação nula. Mantendo o nível.      - Ok, Eliseu. Tempo calculado para o ponto Gedi?      O meu companheiro consultou o plano de vôo.      - A partir deste instante, dois minutos e seis segundos.   À uma hora, dois minutos e cinco segundos - isto é, um minuto depois de ter abandonado a posição estacionária - a nave atingiu a velocidade de cruzeiro prevista: quatrocentos quilômetros por hora.         - Nível?      - Dois mil pés. Os nossos altímetros gravitacionais, bem como os barômetros e os radioaltímetros, mostravam que o berço se deslocava ao longo da margem ocidental do mar Morto.      - Ponto Gedi.      Eliseu continuou a ler no monitor.      - Retificação para radial trezentos e trinta e cinco. Ok, o Papai Noel é uma bênção!
* Os especialistas em engenharia aeronáutica e geofísica do Cavalo de Tróia tinham   preparado para esta missão altímetros que, um dia, quando forem conhecidos pela navegação comercial, substituirão os atuais métodos de medição da altitude a que voa uma aeronave. Estes altímetros especiais utilizam medidas que avaliam a altura em função do valor de g (constante da aceleração da gravidade). O valor de g, como se sabe, varia de acordo com a distância entre o ponto em que se mede e o centro do planeta. Assim, enquanto na superfície da Terra g" equivale a 98 m/seg2, um astronauta que suba num foguetão a uma velocidade constante perceberá uma paulatina redução desse valor inicial de g", que será sentido como uma perda de peso. Embora eu não esteja autorizado a revelar todos os pormenores desta nova tecnologia, não deixarei de apresentar algumas das suas principais características. Para começar, direi que esses altímetros foram reduzidos a um volume equivalente a alguns milímetros cúbicos, conseguindo, além disso, uma precisão equivalente a um centésimo
milésimo de gal. O volume total do instrumento não alcança os vinte e nove milímetros cúbicos. Quase todos os seus elementos estão integrados num minúsculo cristal de boro (isótopo estável de peso atômico onze). Eis aqui um sucinto esquema do seu funcionamento: a célula básica ‚ formada por um espaço cilíndrico, de nove micros de calibre, perfurada verticalmente num módulo miniaturizado de boro cristalizado, quimicamente puro e desidratado. O interior do espaço cilíndrico capilar não contém uma só molécula de gás e as suas paredes mantêm-se altamente ionizadas com carga eletrostática negativa. Na zona superior, um espaço esférico termoestável, i contém uma quantidade infinitesimal de gás rarefeito formado por moléculas ionizadas de tiocianato de mercúrio com cargas negativas. Uma célula discriminadora seleciona seqüencialmente moléculas isoladas de tiocianato, libertando-as na extremidade superior do capilar. Abandonando a molécula com um nível de energia cinética nulo, esta inicia um processo de queda livre no interior do capilar cujo eixo se mantém vertical e tangente às linhas de força do campo gravitacional. A molécula nunca chega a aderir às paredes do capilar, devido à força de repulsão que o campo eletrostático gerado pela distribuição de carga negativa exerce sobre a própria molécula, também ionizada negativamente. Num espaço circundante próximo – recinto esférico também escavado no cristal de   boro - um dipolo magnético (lâmina elíptica microscópica formada por uma liga de cromo e de ferro) é obrigado a girar com uma velocidade angular constante de   sessenta radianos por segundo. O dipolo encontra-se em suspensão numa massa líquida que preenche a cavidade (diâmetro: 0 74 mm. Emulsão lípida). Consegue-se assim um campo magnético rotatório muito débil, mas suficiente para ser detectado por um transdutor de bismuto (valor do campo H: 000002 Oersted).   Quando a molécula de tiocianato de mercúrio ionizado desce, gera, por sua vez, um campo magnético muito frio que perturba o campo girocírio gerado pelo dipolo anterior. Esta perturbação está em função da velocidade momentânea da molécula em análise em cada ponto do seu percurso. Mas, por outro lado, a velocidade momentânea molecular depende do valor de g. Tal perturbação é detectada e avaliada, ainda que o seu nível diferencial seja da ordem de um trilionésimo de milioersted. Um minicomputador recebe três canais de informação: 1. Informação, por via elétrica, do campo magnético detectado.   2. Informação, por via óptica (filamento de vidro), sobre a velocidade de rotação do   dipolo.
3. Informação, por via elétrica, acerca das acelerações do veículo sobre o qual se   monta o altímetro gravitacional". Esta última informação é muito importante para neutralizar os erros causados por outras forças atuantes sobre a molécula de tiocianato, discriminando-as da gravitacional. O computador de integração fornece diretamente por canal a informação sobre a altitude. (N. do N)            Com efeito, a nave tinha virado para noroeste, rumo ao ponto B.         - Distância calculada: vinte e quatro vírgula treze milhas. O Papai Noel calcula o tempo de vôo em seis minutos e cinco segundos.         - Roger. parece que tudo está correndo sobre rodas.      A verdade é que não tardaria a arrepender-me daquele comentário.         - Mantendo dezoito mil pés por minuto.      Três minutos depois de iniciado o novo rumo, os radares detectaram um núcleo humano às oito da nossa posição (aproximadamente, a sudoeste). Ao longe, efetivamente, a pouco mais de novecentos metros de altitude, a ondulante semi-obscuridade dos contrafortes do deserto da Judéia surgia quebrada por um tremeluzir cerrado e amarelado. Eram os archotes e os candeeiros de azeite de Hebron.      - O perfil do terreno continua a subir, mil e noventa e dois pés, mil duzentos e sessenta e três, mil quatrocentos e oitenta e cinco. Fazemos a correção da elevação?      Consultei os altímetros gravitacionais:      - Margem de segurança a quinhentos e quinze pés.      - Não, faremos isso por cima do ponto B - respondi, indicando-lhe a nossa altitude: dois mil pés. - Por hora vamos bem. Verifique  o combustível?      - Noventa e oito vírgula sete por cento.      - Entendido: noventa e oito vírgula sete.      - Afirmativo.      O radar alertou de novo o meu companheiro.      - Atenção!. Vejo o Herodium cinco por cinco. Setenta e dois segundos para a vertical do ponto B.         - Roger.      O Herodium com a sua forma cônica, semelhante a um vulcão, estava à vista. Isso significava que nos encontrávamos a uns oito quilômetros a sudeste do ponto B. A especial configuração deste promontório, isolado entre os áridos montes da Judéia, nos tinha levado a considerá-lo nos momentos iniciais quando planejávamos a presente expedição - como um
dos lugares possíveis de localização da estação receptora de imagens do Big Bird.      Subindo-se ao topo do Herodium descobre-se uma enorme cratera artificial e, no seu interior, um magnífico palácio fortificado, residências reais, piscinas e jardins em degraus, tudo isso comunicando com uma cidadela superior através de duzentos degraus de mármore. Foi outra das ciclópicas obras do rei Herodes, o Grande.       Ao que parece, o sanguinário Herodes morreu em Jericó, mas deixou escrito que queria ser sepultado na fortaleza que tem o seu nome. Na atualidade, apesar das escavações arqueológicas, o esplêndido túmulo de ouro com incrustações de pedras preciosas ainda não foi encontrado. A nossa idéia, como mostro neste diário, não chegou a vingar. Os judeus optaram por Massada.      - Herodium no tela e a quinze segundos.      - Recebido.      - Herodium na nossa vertical! Retificação para radial trezentos e sessenta graus.      - Verifique o nível.      - Mil e quinhentos pés e subindo. Mil e seiscentos.      - Distância calculada para chegada a ponto B?      - Quatro vírgula quatro milhas.      - Ok, controle o Papai Noel.      Eliseu seguiu as minhas ordens, constatando com satisfação como o computador forçava em vários graus a direção do jato do motor principal, elevando a nave para um novo nível de vôo.       - Roger. Alcançando os três mil pés. Trinta e cinco graus. Vinte graus. Módulo estabilizado. - Atenção! Ponto B à vista. O radar dá a leitura clara: colinas de pedra. Perfil: dois mil e quatrocentos pés.      - Repita nível de vôo.      - Estabilizado em três mil.      - Roger.      A verdade é que, se tivéssemos podido contar com uma margem de tempo mais ampla no momento de planejar esta nova exploração, e se tivéssemos contado, naturalmente, com um conhecimento prévio do lugar da estação, o Cavalo de Tróia teria podido simplificar o plano de vôo do berço, introduzindo no computador o sistema SMAC de navegação 1. Mas as coisas eram como eram.      - Contato com o ponto B!
      Senti um estremecimento. Ali em baixo, apenas a seiscentos pés, entre tortuosas colinas e azinhagas salpicadas de enormes e brancas pedras, estava outro dos objetivos da nossa exploração: Belém!
*1 O SMAC (Scene Malching Area Correlarion), um sistema utilizado nas tristemente famosas bombas ou mísseis inteligentes", consiste num dispositivo que regula a trajetória do aparelho, com base nas sucessivas imagens do solo, comparando-as com as previamente armazenadas no computador e que podem ser captadas por aviões de reconhecimento ou satélites artificiais, através da técnica de varrimento televisual. Desta forma, o projétil vai lendo" o terreno sobre o qual voa, evitando os obstáculos. (N. do N)
      A escuridão não nos permitiu visualizar com precisão a posição exata da aldeia. Por outro lado, o terreno irregular e pedregoso tornava difícil a leitura do radar.      Quase no topo de um daqueles outeiros, virado para   norte, desenhavase o perfil de um núcleo diminuto de pequenas casas, quase todas térreas. E aqui e ali, dispersas pelos arredores, uma luz ou outra.      - Ativada a correção automática de vôo. Virando para radial quinze graus Distância à vertical da base-mãe confirmada.         - Ok. Base mãe em quinze e quatro vírgula cinqüenta e seis milhas.      - Roger. reduzindo para nove mil por minuto.      - Verifique o nível.      - Perfil descendo. Dois mil pés. Agora subindo! Dois mil duzentos e vinte pés.      - Roger!. Aí está!      - Graças a Deus!      O tela do radar começava a desenhar o perfil sul do monte das Oliveiras, a nossa base-mãe.      - Confirme a redução de velocidade e combustível.      - Afirmativo. Continua a descer: seis mil pés por minuto. Tanques a noventa e oito vírgula dois.       A tensão daqueles últimos minutos envolveu-nos por completo. O módulo tinha sido programado para voar até à vertical da cota máxima do monte das Oliveiras - situada a norte e a 2454 pés sobre o nível do mar - e, uma vez ali, efetuar a descida. O ponto de contato era praticamente o mesmo do nosso primeiro salto.      - Verifique as coordenadas.
      - Ok: trinta e um graus, quarenta e cinco minutos norte. Trinta e cinco graus e quinze minutos leste. Afirmativo: o radar mostra o perfil de uma cidade às nove da nossa posição.      - Jerusalém!      - E o que é que esperava? Honolulu? Eliseu não respondeu à piada. De repente, o meu coração deu um salto. Sob a mortiça luz avermelhada da cabina, a sua testa parecia banhada de abundante suor.         - Você está bem?      Moveu a cabeça afirmativamente e continuou com os olhos fixos no mostrador dos instrumentos. Ao princípio não dei muita importância àquele suor. Embora a temperatura ambiente no interior do módulo não ultrapassasse os quinze graus centígrados, tentei acalmar-me atribuindo o suor à grande excitação daqueles últimos instantes.         - Ativados retrofoguetes. A sessenta segundos para posição estacionário.   O computador central, pontual e seguro, reduziu a força do J85, fazendo girar noventa graus.         - Verifique o nível de vôo.      Eliseu não respondeu.      - Repito: nível de vôo.      - Três mil pés e a trinta para estacionário. - Tanques?      - A um noven...      - Repita!      Meu Deus! O meu companheiro não conseguiu concluir a leitura. Jazia sobre o encosto do assento, com o rosto pálido e brilhantemente salpicado de suor.      - Eliseu, responda!. Eliseu!      Foi inútil. Comprovei as suas constantes vitais. O ritmo cardíaco tinha baixado bruscamente: de cento e vinte para noventa, provocando uma perda de consciência.      - Oh, meu Deus!      Com os nervos a ponto de explodir, os sinais acústicos e luminosos do painel de alarmes romperam o silêncio da cabina fazendo-me voltar à crítica realidade: era preciso aterrissar o módulo.      1 hora, 11 minutos, 41 segundos      A nave tinha percorrido as 3839 milhas de vôo (quase setenta quilômetros) e acabava de ficar em vôo estacionário a quinhentos e quarenta e seis pés sobre o topo norte do monte das Oliveiras. Não havia
tempo a perder. Se me deixasse arrastar pelo pânico, as nossas vidas e a missão podiam terminar ali mesmo. Zero graus. Oscilação nula      - Vamos l Para baixo, para baixo, meu lindo!. Isso mesmo!.   Descendo a vinte e três pés por minuto.      Em voz alta, animando-me a mim mesmo, fui controlando a descida, atento ao intenso fluxo de leituras do computador central. Papai Noel tinha calculado, com precisão matemática, a pequena clareira de dura pedra calcária sobre a qual o "berço" tinha pousado na primeira missão e que – se conseguíssemos chegar sãos e salvos constituiria a base-mãe na nova expedição.         - Roger!. Tanques a noventa e oito vírgula um por cento. Nível: trezentos e vinte pés e descendo a quatro. Roger, meu lindo!         Eliseu continuava inconsciente.      - É assim mesmo!. Duzentos pés e descendo. Quatro e meio e para baixo.      Embora tivesse sido previsto para o momento de aterrissagem liguei o dispositivo de segurança do módulo, projetando a trinta pés do berço um muro de ondas gravitacionais, em forma de cúpula, que nos protegeria perante uma provável presença de pessoas ou animais nos arredores.         Os registros eletrônicos continuavam a vomitar dados.      Setenta e cinco pés para contato. Redução de velocidade para dois pés e meio por minuto. cinqüenta pés. quarenta e cinco. Redução para dois         - Meu Deus! É quase nosso!      De repente, uma travagem brusca. Os quatro pés extensíveis da nave chocaram com a rocha, acendendo as luzes de contato no painel de comandos.      Respirei profundamente. Os cronômetros indicavam a uma hora da madrugada treze minutos e onze segundos. Enfim, de volta! Mas aquelas não eram as circunstâncias que eu tinha imaginado para o ansiado regresso à Palestina de Cristo.         Papai Noel anunciou uma pequena inclinação do módulo: quinze graus. Calibrei imediatamente as seções telescópicas do trem de aterrissagem, nivelando a nave.         Sem  me preocupar com o que tinha sido planejado pelo Cavalo de Tróia, desliguei o J85, anulando a ordem do computador que dizia para manter ligado o motor principal durante um minuto e meio a partir do momento da aterrissagem. Em caso de emergência, teria bastado uma rápida digitação e o Papai Noel - cumprindo o programa de regresso - teria elevado de novo o berço, executando o plano de vôo inverso ao que
acabávamos de completar.         Uns segundos mais tarde, silenciada a quase totalidade dos circuitos, comprovei a camuflagem infravermelha, deixando em automático os sensores do segundo cordão de segurança que rodeava o berço.       A cento e cinqüenta pés do módulo - a toda a nossa volta - qualquer ser vivo que atravessasse este perímetro podia ser visualizado nos monitores, graças às radiações infravermelhas emitidas pelos seus corpos. Como já comentei, se o intruso continuasse a avançar, a membrana exterior estava em condições de emitir um fluxo de ondas gravitacionais que se comportavam a trinta pés da nave - como um furacão, impossibilitando a passagem de pessoas ou animais.      E, completamente arrasado, dediquei-me por inteiro ao meu irmão.      - Responda!. Maldito seja!      De repente, ao agarrá-lo pelos ombros, descobri que o seu dispositivo RMN ainda estava funcionando. Desesperado, retirei-o, bem como o escafandro.         - Eliseu!. Deus do céu!      A palidez, o frio e o abundante suor tinham-me baralhado e angustiado. A que se deveria aquela perda súbita da consciência.      Naqueles minutos dramáticos não consegui associar o desmaio do meu companheiro ao processo de inversão dos eixos dos swivels e por conseguinte, da rede de neurônios. Se pelo menos o tivesse intuído, talvez a minha reação tivesse sido radicalmente diferente. O mais provável é que tivesse dado por concluída a missão, regressando imediatamente a Massada e ao nosso tempo.   Mas o destino como se verá, tinha outros planos. Procurei deitá-lo no chão da nave, colocando-lhe as pernas elevadas sobre o seu assento de pilotagem. Se aquele desmaio fosse devido à falta de sono e ao grande stress dos últimos dias, sem esquecer a tensão do vôo até à base-mãe, era possível que estivéssemos perante uma síncope por insuficiência de irrigação cerebral passageira e nada preocupante. Ao comprovar as constantes vitais de Eliseu durante aquele período de inconsciência, o computador confirmou o meu primeiro diagnóstico: descida brusca da pulsação cardíaca, problemas respiratórios e de tensão arterial. Conclusão: lipotimia.       No entanto, embora o controle rigoroso do Papai Noel acusasse a noxa como possível responsável pelo desmaio, alguns parâmetros não se encaixavam no quadro clínico deste tipo de síncopes. Chamaram-me a atenção, sobretudo, as insólitas alterações eletrocardiográficas e algumas
mudanças patológicas pouco comuns nas artérias carótidas: as que transportam o sangue para a cabeça. Mas a confusão do momento fez com que me esquecesse disso, pelo menos durante algum tempo.       Depois de lhe ter dado umas bofetadas, procurando desesperadamente - alguma reação, tomei-lhe o pulso. Continuava baixo. Cada vez mais aturdido, dirigi-me à reserva de remédios. Poucos minutos depois lutava para que ele bebesse uma mistura de água com vinte gotas de um analéptico respiratório, recomendado especialmente para estes casos de perda de consciência. O estimulante atuou sobre a sua circulação e, dez minutos depois, voltava a si.       Pouco a pouco, a pulsação cardíaca, o ritmo arterial e a cor foram-se estabilizando.
* Segundo o eminente professor Seyle - grande estudioso da origem dos estados de tensão ou stress -, os seus estímulos ou causas principais, a que ele pôs o nome "noxa", estão muito interligados. A noxaH, sumariamente, atua assim: estimula as glândulas endócrinas, ativando as supra-renais e o sistema adreno-simpático. As glândulas endócrinas enviam glucocorticóides para o sangue; o sistema referido faz o mesmo com quantidades adicionais de adrenalina e noradrenalina. (N. do M)
      - Jasão!. O módulo!      Aquelas primeiras e titubeantes palavras devolveram-me, em parte, a calma. Tentou levantar-se, mas eu obriguei-o a desistir, pedindo-lhe que ficasse mais alguns minutos na mesma posição.      - Calma! está tudo sob controle - tranquilizei-o. - O pior já passou. Estamos em terra.         Eliseu fechou os olhos e, depois de respirar profundamente, indicoume   com a cabeça que estava de acordo e que obedeceria à minha sugestão.       Obedecendo a um primeiro impulso, digitei o Papai Noel. A memória do computador deu-me imediatamente uma informação completa sobre as plantas medicinais existentes na nave e que podiam aliviar o meu irmão:Éfedra. Contém alcalóides (efedrina, pseudo-efedrina, etc), taninos, saponinas, tlavina, óleo essencial. Efeito: vasodilatador, aumenta a tensão arterial estimula a circulação, antialérgico Escila. Contém glicose cardíaca escilareno A, glicoescilareno A,   proescilaridina, muctna, tanino, um pouco de óleo essencial e gordura.   Efeito: diurético, estimula o músculo cardíaco, regula o ritmo cardíaco   Ginkgo. Contém óleo clavinóide
alcanforado (kamferol), quercetina,   luteolina, compostos de catequina, resina, óleo essencial e gorduras.   Efeito: aumenta o fluxo sanguíneo por vaso dilatação.       A lista começava a tornar-se interminável e optei, sem mais, pelo ginkgo, uma planta extraída da árvore com o mesmo nome e oriunda da China e do Japão.      Meia hora depois, Eliseu, com a sua habitual docilidade, ingeria o extrato preparado com aquele espécime. Não demorou a pôr-se de pé e às duas horas e trinta minutos, completamente recuperado, voltou para o seu lugar, diante dos comandos. As minhas recomendações para que se deitasse no beliche e descansasse não foram aceitas.       Nesse sentido, Eliseu tinha razão. Havia muita coisa a fazer e o tempo perdido já era preocupante. A minha presença no horto que era propriedade de José de Arimatéia tinha sido marcada pelo Cavalo de Tróia para as três horas, aproximadamente.   De comum acordo, antes de iniciar a primeira fase da exploração, efetuamos uma revisão minuciosa dos equipamentos básicos. A pilha atômica continuava fornecendo energia regularmente e os sistemas de infravermelho não detectavam qualquer anormalidade no exterior. A reserva de combustível estava no nível previamente calculado para o momento da aterrissagem: a noventa e oito por cento justos. A verdade é que, embora a nossa confiança no Papai Noel fosse quase absoluta e nós soubéssemos que ele teria sido o primeiro a alertar-nos para possíveis falhas ou deterioração dos instrumentos, tanto o meu companheiro como eu ficamos mais sossegados depois daquela última revisão geral.       A disposição de Eliseu estava definitivamente melhorando e, de acordo com o planejado, enfrentamos os preparativos para a minha imediata descida para terra.      Eram duas horas e quarenta e cinco minutos.      Não tive de deixar muitas coisas no módulo. Como disse algumas vezes, a operação não permitia, obviamente, que os exploradores de outro tempo transportassem objetos que pudessem ser anacrônicos para a população da época histórica em estudo.      - Cronômetro de pulso, anel de ouro. e a placa de identidade.      Eliseu encarregou-se das minhas coisas. Uma vez nu, tal como mandava o plano, cooperou comigo numa minuciosa revisão do meu corpo. Qualquer descuido podia ser comprometedor.       Foi durante esta operação, anterior à implantação da chamada pele de serpente que o meu irmão reparou numa coisa de que eu tinha esquecido.
      - Que é isto?      Ao apontar para as escamas que cobriam parte das minhas pernas e as zonas dorsais dos antebraços, só pude encolher os ombros.      Eliseu fulminou-me com o olhar. E, perante a sua insistência, não tive outro remédio senão contar-lhe a verdade. De fato, há  uns dias que aquelas zonas do meu corpo apresentavam um ressecamento anormal e aquelas escamas. Ao mesmo tempo, coloquei-o a par da não menos estranha colônia de sardas ou lentigem senil - cor de café - que salpicava o dorso das minhas mãos, parte do pescoço, braços e antebraços.      - E então.      O meu companheiro, pouco amante de rodeios, foi direito ao que ambos tínhamos em mente.      - Isso poder  ter alguma relação com o ataque aos neurônios?      Era muito difícil de saber. E foi o que lhe disse. Só era certo que aquela   descamação - um fenômeno conhecido como xerose - se devia a uma inegável mudança evolutiva das estruturas epidérmicas e outros anexos cutâneos. Um fenômeno muito bem estudado pela geriatria, ou especialidade que investiga os processos de envelhecimento, tanto nos seus aspectos biológicos e psicológicos como sociais. Havia, portanto, uma probabilidade de essas manifestações da minha pele terem tido uma origem muito mais profunda e grave: a alteração dos pigmentos do envelhecimento no seio dos neurônios.       No entanto, numa tentativa de desanuviar o ambiente que nos envolvia, cada vez mais carregado, coloquei uma ênfase especial noutra possível causa daquelas sardas e escamas:       - Talvez estejamos indo demasiado longe. Também não podemos descartar a possibilidade de ser um efeito da pele de serpente" sobre a epiderme, ou, até mesmo, na derme. Este ressecamento, em última análise - acrescentei com muito pouco poder de convicção - está diretamente relacionado com a diminuição da produção de gordura. E você deves saber que isso acontece às vezes devido ao uso de sabões não gordurosos ou pelo roçar da roupa de lã e de linho. Quando voltarmos falaremos disso com Curtiss.      Eliseu esboçou um semi-sorriso cético. A pele de serpente, fora tremendamente testada e nunca dera origem a problemas como aquele.
* Creio ter falado desta segunda pele, de grande utilidade nas minhas correrias. Por meio de uma abertura tubular de aspersão, o corpo era pulverizado com uma substância que formava uma fina película. O
elemento básico era um composto de silício em dissolução coloidal num produto volátil. Ao ser borrifado sobre a pele, este líquido evapora rapidamente o diluente e cobre-a com uma delgada camada porosa de caráter eletrostático. Esta epiderme artificial e milimétrica protegia o explorador de possíveis ataques bacteriológicos e mecânicos, suportando, por exemplo, impactos equivalentes ao disparo de uma bala (calibre vinte e dois americano) a uma distância de vinte pés. Este eficaz futo" protetor permitia, além disso, o processo normal de transpiração. (N. do M)
      E o meu companheiro inteligentemente, mudou de conversa, deixando de lado o incidente. Isso, pelo menos, foi o que eu pensei naquele momento.       Sem qualquer outra interrupção, submeti-me à pulverização, vestindo a valiosa e necessária armadura. Tal como da primeira exploração, escolhi também uma pele de serpente totalmente transparente, que evitasse perguntas ou situações comprometedoras.       Ao contrário da primeira aterrissagem, e tendo em conta a maior duração da missão atual e o virtual aumento dos riscos, a pulverização não se limitou às zonas críticas: tronco ventre, órgãos genitais e pescoço. Por desejo expresso dos diretores do Projeto, a pele de serpente cobriu também a totalidade dos meus membros superiores e inferiores, excluindo, unicamente, os pés e a cabeça.      Por estritas razões de continuidade, as minhas vestes não foram alteradas. Para as pessoas com as quais me relacionara desde quinta-feira, 30 de Março, até à madrugada de domingo, 9 de Abril do ano 30, tudo - incluindo a roupa – devia continuar a ser o mesmo.       A verdade é que para elas, do ponto de vista puramente cronológico, apenas tinham passado algumas horas desde que me tinham visto pela última vez.   Os céus quiseram que, ao ajustar a minha tanga, o meu irmão desatasse a rir. O meu aspecto não devia ser muito ortodoxo e aquela situação engraçada veio suavizar os momentos amargos pelos quais acabávamos de passar.       Aquela espécie de saq, muito semelhante à usada pela quase totalidade dos homens da Palestina do século I, tinha sido confeccionada e suavizada, na medida do possível, com algodão, tendo como modelos os saq, ou tangas que aparecem nos documentos arqueológicos do Egito e da Mesopotâmia. O algodão dado o caráter íntimo da peça, era uma concessão dos especialistas.       Na realidade, se tivessem seguido literalmente a informação existente,
a minha tanga devia ter sido fabricada num tecido muito mais grosseiro: pano de saco. Por outro lado, o fato de ser um rico comerciante grego de Tessalônica - dedicado ao comércio de vinhos e madeiras - autorizava-me a dispor de roupas mais adequadas ao meu status social.      Quando o saq foi atado à minha cintura, Eliseu ajudou-me a enfiar o saiote castanho-escuro e a túnica simples cor de marfim. Esta última, tecida sem costuras e à base de linho de sequeiro, por hábeis tecelões sírios - herdeiros do antigo núcleo comercial de Palmira - respeitando o costume grego, era um pouco mais curta do que o chaluk ou túnica judaica.       Tratava-se na realidade de uma réplica do chiton dos meus compatriotas os Helenos. De acordo com as medidas-padrão dessas túnicas ou chiton, a minha descia alguns centímetros abaixo dos joelhos.   Embora o cinto ou cordão pudesse ter sido de melhor qualidade, de acordo com a minha categoria e posição social, o Cavalo de Tróia considerou que não convinha despertar a atenção das pessoas, nem tentar a inveja alheia com uma peça de ouro ou de prata. Para o seu entrançado foram suficientes umas modestas cordas egípcias.      O manto ou Chlamys - ao qual nunca consegui habituar-me - dava mais nas vistas do que o usado normalmente pelos Judeus: o tale.      Igualmente tecido à mão, com lã dos montes da Judéia, apresentava uma cor azul-celeste, discreta mas aveludada, fruto do gasto utilizado na tintura. Esta peça, que eu estava tentando enrolar ao pescoço e aos ombros era completamente imprescindível na vida quotidiana daquela sociedade. Além de representar um símbolo de dignidade (para os judeus era de mau tom apresentarem-se sem ele no Templo ou diante de um superior), servia para múltiplas situações: como manta ou cobertor, para se taparem quando dormiam ao relento, para cobrir uma cadeira ou até para colocar aos pés de um herói ou personagem relevante.         Os dois pares de sandálias que me tinham sido entregues, esses, sim, foram modificados, de acordo com a perspectiva da última fase da nossa exploração, a qual como narrarei mais adiante exigia de nós um esforço físico especial.       Embora o material utilizado fosse basicamente o mesmo - espanto entrançado nas montanhas turcas de Angorá -, as solas foram substituídas por um sólido aglomerado de juncos e casca de palmeira. parcialmente oco. Os especialistas tinham camuflado os sofisticados sistemas nuns pequenos nichos. Dado que uma das últimas etapas da nossa estada em Israel previa várias e duras caminhadas, as sandálias tinham sido acondicionadas com um micro contador de passos com o correspondente
cronômetro digital e interruptor de programa. O sistema tinha sido experimentado havia algum tempo pelo astronauta Aldrin num dos seus passeios pela superfície lunar.      Os sensores colocados na sola permitiam conhecer as distâncias percorridas, o tempo que se demorava e, até, as calorias gastas em cada deslocamento. Além disso, se quiséssemos, podíamos ligar uma célula minúscula que elevava a temperatura do calçado, protegendo os pés em situações de extrema dureza2.      Aquelas sandálias eletrônicas - como lhes chamávamos entre nós – nos prestariam um serviço notável. Cada exemplar foi perfurado manualmente, incrustando no perímetro de cada sola finas tiras de couro de vaca, devidamente untadas de pez. Cada cordão era tão comprido - cinqüenta centímetros – que segurava perfeitamente o calçado, pois podia dar-se quatro voltas à perna. O segundo dispositivo, também introduzido na sola, tinha um caráter puramente logístico. Consistia num micro transmissor capaz de emitir impulsos eletromagnéticos a um ritmo de 0000138 5 segundos. Este sinal era registrado na vara de Moisés e logo a seguir, amplificado e transportado a longa distância por um laser muito especial, que procurarei descrever na devida altura. Graças a esta técnica, de uma precisão extraordinária Eliseu podia seguir os meus passos no radar do berço. Esta radio ajuda seria ligada unicamente quando me visse   obrigado - por exigências da exploração – a afastar-me do módulo mais de quinze mil pés. A partir desse limite, a banda de recepção da ligação auditiva, que eu também devia levar no interior do meu ouvido direito, tornava-se inútil.
      * O famoso domingo de Ramos" teve a oportunidade de o comprovar. O talith, ou manto judaico, desempenhava um papel tão vital naquela sociedade que a Lei - Êxodo, XXII, 26, e Deuteronômio, XXIV12 - obrigava o credor que o tivesse recebido em sinal ou garantia de uma dívida a devolvê-lo ao dono antes do cair da tarde. (N. do N.) *2 Como se sabe, os pés constituem uma das partes mais sensíveis às baixas temperaturas. Num ambiente de 23"C, por exemplo, só atingem um nível de 25oC. As mãos, pelo contrário, podem manter uma média de 30"C. E, apesar de o mês de Abril não ser um mês rigoroso na Palestina, o Cavalo de Tróia preferiu acrescentar este sistema, numa previsão de possíveis mudanças climáticas. (N. do M)
      E, após uma última revisão do meu uniforme, sentei-me, indicando ao meu irmão que estava pronto para receber a correspondente cabeça de fósforo. Assim tínhamos batizado as cápsulas acústicas miniaturizadas que eram ativadas por um equipamento de ondas gravitacionais. Esta ligação auditiva - de incalculável valor, como ficou demonstrado na missão anterior – nos proporcionaria uma comunicação nítida e permanente enquanto eu estivesse no exterior.      A colocação da prótese, embora simples, exigia mãos hábeis. E, em poucos minutos, ficava encaixada a poucos milímetros do orifício de entrada do canal auditivo externo, entre as paredes cartilaginosas.         Eliseu foi então colocar-se diante do receptor-transmissor, fazendo-me um gesto para que fizesse a experiência. Apertei com os dedos a parte central da orelha, empurrando o trago e o antitrago. Os respectivos alertas - um apito agudo e uma lusinha cor de laranja - confirmaram imediatamente a excelente ligação auditiva.         - Ok!. E não se esqueça de que é surdo de nascença 1.      Agradeci o bom humor do meu companheiro. Os cronômetros avançavam inexoravelmente e eu começava a ficar inquieto. A missão devia ter arrancado às duas horas e trinta minutos e eram quatro horas da madrugada.      Curtiss pôs de lado o terceiro dispositivo de ligação com a nave. Com a cabeça de fósforo e o micro transmissor na sola da minha sandália direita era mais do que suficiente para garantir uma ligação nítida e contínua. A fivela de bronze da minha capa durante a investigação anterior, que ocultava um emissor para mensagens de curta duração, foi, portanto, anulada. Ficou no berço, preparada para ser utilizada em caso de emergência. No lugar dela, foi colocada na chlamys uma fivela normal de elos, também de bronze, e muito parecida com os nossos alfinetes de segurança.      Finalmente, peguei no saco de borracha impermeabilizada e meti lá dentro os cem denários que tinham sobrado da última exploração, meia libra romana em pepitas de ouro, as incômodas, mas necessárias, lentes de contato crótalos e o salvo-conduto que ainda conservava e que me fora passado pelo procurador romano na manhã do dia 5 de Abril, quarta-feira. A primeira fase da missão consistia numa breve incursão, com uma duração máxima de oito horas. Quer dizer, supondo que eu tivesse descido do módulo no momento estipulado - às duas e meia da madrugada -, o meu regresso ao módulo devia acontecer às dez horas e trinta minutos. Durante esse tempo, estava encarregado dos primeiros e importantes objetivos:
tentar uma aproximação e análise do suposto corpo glorioso, do Mestre e apoderar-me de um tesouro. Um tesouro científico e arqueológico, entenda-se. Um tesouro que tinha de ser levado para a nave, submetido a uma exaustiva investigação e, naturalmente, devolvido ao seu lugar de origem no prazo mais breve possível.      Por esta razão, já que tinha de regressar naquela manhã de domingo, as outras peças do meu equipamento pessoal – a utilizar ao longo da exploração - não seriam retiradas do módulo nesta primeira saída.       Esta circunstância aconselhava, também, que o dinheiro manipulado naqueles momentos fossem os estritamente necessários para as primeiras necessidades. O Cavalo de Tróia, por conseguinte, determinou que eram suficientes os cem denários e a meia libra: uns cento e sessenta e três gramas em ouro. Mas é claro, primeiro tornava-se necessário trocá-los por moedas de circulação legal na Palestina: denários de prata e peças fracionárias; especialmente siclos, asses e óbolos ou sestércios.      - Quatro horas e quinze minutos.
*1 Como também Já expliquei, embora eu não pudesse receber a voz de Eliseu diretamente, as minhas chamadas para o módulo, em contrapartida, exigiam que eu, previamente, pressionasse a parte externa do meu ouvido direito, para ativar a cápsula acústica. Com o fim de evitar suspeitas entre os habitantes de Jerusalém e arredores, o Cavalo de Tróia tinha estabelecido que eu fingisse uma ligeira surdez. (N. do M)
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      O meu irmão montou a vara de Moisés e, ao entregar-me, exclamou com a voz entrecortada pela emoção:         - Boa sorte!      Embora a minha ausência não fosse longa, obriguei-o a jurar que ao menor sintoma de desmaio ou mal-estar me avisaria imediatamente. Eliseu compreendeu e apreciou a minha preocupação sincera e, depois de verificar que as proximidades do berço continuavam desertos e silenciosos, indicou-me o monitor e a última leitura meteorológica:      - Temperatura na superfície: doze vírgula oito graus centígrados. Vento: calmo. Umidade relativa: abaixo de dezessete  por cento.      E com uma pancada seca - sem desviar o olhar dos controles eletrônicos - ligou o mecanismo de descida da escada. Eu não gostava
muito das despedidas. Por isso, sem mais demoras, notando que os meus olhos se umedeciam, deixei cair a mão esquerda  sobre o ombro do meu irmão. E, girando sobre os calcanhares, me enfiei na escotilha de saída e desapareci.      Eram quatro horas e vinte e oito minutos.
Precisei de uns minutos. As minhas pupilas foram-se adaptando à escuridão e, pouco depois, a luz oblíqua da Lua provocava milhares de cintilações nas copas cinzentas das oliveiras que rodeavam a clareira pelo lado   sul. Dei quatro ou cinco passos e parei. Um silêncio pastoso e anormal apoderara-se do lugar. Tal como a primeira descida sobre a Palestina de   Cristo, as emissões de ondas e a poeira levantada pelo J85 tinham feito emudecer os insetos e avezinhas que colonizavam aquele segundo cume do monte das Oliveiras. Olhei a toda a minha volta, perscrutando a escuridão azulada que surgia recortada entre os troncos negros das oliveiras. Com efeito, tudo parecia calmo. Mas aquele silêncio. Se   pelo menos tivesse ouvido o gorjeio do zamir.
* No câmbio, aqueles 163 gramas de ouro equivaliam a cerca de 379 denários. Devo lembrar que o preço de um par de pássaros era um asse. Por sua vez quatro denários de prata ou dracmas representavam um siclo de prata. Um denário subdividia-se em 16 asses ou 61 quadrantes ou 128 leptas. O denário romano tinha então um sério competidor: o zuz, uma peça de prata de valor semelhante e cunhada pelos joalheiros fenícios de Tiro. (N. do N)
      Depois de uns segundos de hesitação recomecei a andar, metendo-me pelo pequeno monte que fechava pelo lado ocidental o lugar onde se encontrava a nave. Se não me estivesse me faltando o sentido de orientação, eu estava no sopé da ladeira dentro de poucos minutos. Uma vez lá, com Jerusalém do outro lado do desfiladeiro, o meu caminho seria mais cômodo.       Ao contornar os maciços de murtas e de acantos, à medida que me aproximava da beira do cume, o meu coração começou a palpitar e uma imparável excitação fez que as minhas pernas fraquejassem. Não tive outro remédio senão parar.      - Meu Deus!      Eliseu ouviu a minha exclamação. E, ligando o contato, perguntou:         - Estou recebendo em cinco por cinco. O que está acontecendo?
      Antes de responder, inspirei profundamente várias vezes, procurando acalmar a minha pulsação.      - Roger, eu também te recebo alto e claro. Nada! Deve ser da emoção. Estou a ponto de entrar na velha cidade e isso traz-me recordações. Câmbio.         - Ok! Ânimo!      Enxuguei o suor das minhas mãos e agarrando a vara com força voltei a respirar profundamente. A intensa e agradável fragrância do matagal, prenúncio da esplêndida Primavera judaica, invadiu-me por completo. E o meu espírito, agradecido e estimulado, recuperou.         Quando me encontrava a meia centena de metros do ponto de contato, a voz do meu solitário amigo voltou a soar na minha cabeça:         - Atenção, Jasão!. Você está no perímetro da segunda cintura de segurança. O radar está lhe vendo a cento e cinqüenta pés do berço. Câmbio.      Dei meia volta e, dirigindo o olhar para a plataforma rochosa onde estava pousado o módulo invisível, carreguei no meu ouvido e retorqui a meia voz:         - Entendido. Câmbio.      - Acho que, antes de continuar, você deve experimentar os crótalos. E diga-me o resultado.      Ele tinha razão. Com os nervos que eu tinha naquela altura, esquecerame da necessária verificação das lentes de contato especiais. Tirei-as do pequeno estojo que levava na minha bolsa e, depois de colocá-las, levantei o rosto para o centro da clareira. A radiação infravermelha emitida pela nave surgiu perante mim como uma visão vermelha e infernal, pulsando, gigantesca, no meio de um cenário negro e frio. Sob aquela massa cor de grenate cintilava uma faixa de um branco amarelado, conseqüência do calor acumulado pelo motor principal.      - Vejo-o cinco por cinco. Impressionante! Vou continuar descendo.         - Ok!. E de novo boa sorte!      Tal como esperava, alguns minutos depois, à beira do grande barranco do Cedron, a claridade do luar fez surgir diante de mim o perfil da Cidade Santa.      - Jerusalém!      E uma cascata de calafrios e sensações deixou-me paralisado. Lá estava ela: majestosa, com as suas altas muralhas tingidas de um azul espectral e a cúpula do Templo sobressaindo branca - quase cor de neve, em direção a um céu transparente e pontilhado por uma Via Láctea feita
espuma.      A quarta e última vigília da noite aproximava-se do seu fim e as sinuosas e apertadas vielas dos bairros alto e baixo - pessimamente iluminadas pelas tochas e lampiões de azeite - estavam desertas. Alheias ao extraordinário acontecimento que se dera uma hora antes e que, em breve, ao alvorecer, faria estremecer os seus habitantes.       Fiz uma nova ligação com o módulo e Eliseu disse-me a hora exata:         - Quatro horas e cinqüenta minutos.      Não havia tempo a perder. O nascer do Sol seria às cinco horas e quarenta e dois minutos. E, de acordo com os nossos cálculos, as mulheres surgiriam no jardim de José de Arimatéia, preparadas para lavar e amortalhar o cadáver do Galileu, de um momento para o outro se é que já não estavam lá.      Aquela lamentável cadeia de imprevistos e contratempos nos tinha atrasado perigosamente. Não faltava sequer uma hora para o nascer do Sol. Se tivesse ocorrido a primeira das supostas aparições do Mestre, me veria obrigado a tentar a sorte com a segunda, citada pelo evangelista Lucas. De acordo com Lucas, nesse mesmo dia - embora sem precisar a hora – o Ressuscitado tinha acompanhado dois dos discípulos quando iam a caminho da povoação de Emaús. Mas, o relato evangélico era confuso. Como e onde localizar esses discípulos?         Consolei-me ao pensar que, na pior das situações, se eu fracassasse nas duas tentativas, sempre restaria uma terceira oportunidade: a reunião dos apóstolos no entardecer daquele domingo, primeiro dia da semana, segundo as palavras de João.      Menos de uma hora para o amanhecer!      A situação era mais comprometedora do que imagináramos. Era preciso alterar os planos. O Cavalo de Tróia de acordo com as minhas sugestões, tinha previsto o meu acesso ao sepulcro pelo caminho mais longo e seguro. Uma vez no exterior devia procurar o caminho que, vindo de Betânia, atravessava o cume do monte das Oliveiras para descer até ao extremo sul da cidade. A minha entrada em Jerusalém seria pela Porta da Fonte e, aproveitando as ruas desertas, atravessaria a cidade sem ser notado e iria até ao extremo norte, pela Porta dos Peixes.      O troço entre a muralha setentrional e a propriedade de José podia ser percorrido em poucos minutos. Uma breve reflexão foi suficiente para me convencer. Era preferível esquecer o itinerário inicial e, com o fim de ganhar tempo, aventurar-me pelo caminho mais curto e perigoso. Não havia alternativa caso eu, na verdade, quisesse estar presente na primeira
aparição. Para não inquietar inutilmente o meu irmão, não lhe revelei a minha decisão. Era a primeira violação do plano estabelecido por Curtiss e, por sorte ou por infortúnio, não seria a última.      Com o espírito decidido, lancei-me ladeira abaixo, ao encontro do fundo do vale que me separava da muralha oriental do Templo. Aquele gesto voluntarioso me custaria caro.      A abrupta encosta recebeu-me como era de esperar. Mantendo com dificuldade o equilíbrio, agarrando-me aqui e ali aos lentiscos e giestas e evitando as rochas aguçadas fui ganhando terreno. Amaldiçoei várias vezes a minha estupidez.      A desalinhada chlamys ficava enganchada nos  espinhos daquela vegetação agreste. Se não fosse a minha  pele de serpente, os meus braços e as minhas pernas teriam ficado com um sangrento e deplorável aspecto.      Cerca de quinze minutos depois galgava o leito seco e pedregoso do barranco.      Detive-me para tomar ar. Compus o meu manto amarrotado, lamentando os rasgões e, com o coração aos saltos olhei à minha volta. Os cinqüenta ou sessenta metros de profundidade do Cedron, naquele ponto, e o iminente desaparecimento da Lua por trás da muralha ocidental tinham sepultado o desfiladeiro em trevas inquietantes.   Depois de alguns segundos de nervosa escuta e mais do que difícil observação, decidi atravessar o fundo do vale, dirigindo-me para o muro informe que fechava o Templo e a cidade e que se erguia como uma continuação da nova encosta que tinha diante de mim. Tudo naquele lugar tétrico era silêncio. Um plúmbeo e irritante silêncio.      Muito perto de onde me encontrava, um pouco mais para norte, passava outro caminho que vindo das aldeias próximas de Betânia e Betfagé, subia para o monte das Oliveiras e descendo pela encosta ocidental, ia morrer nas proximidades da Porta Dourada, na muralha oriental do Templo. Ali mesmo, muito perto da esquina nordeste do recinto sagrado, o caminho ramificava-se e, dobrando a muralha, perdia-se paralelamente ao muro norte e à Fortaleza Antónia, havendo uma nova bifurcação diante da Porta dos Peixes: um caminho dirigia-se para a costa, para Cesárea, o outro, diretamente para norte, para a Samaria e Galiléia. A minha intenção era ir ao encontro desse caminho e, contornando Jerusalém, chegar rapidamente à quinta e ao sepulcro. O caminho escolhido, sensivelmente mais curto, era também muito solitário e por conseguinte, teoricamente pouco aconselhável àquelas horas da noite.
      Por um momento veio-me à memória o desagradável encontro com um ladrão na noite de quinta-feira santa. E tive de reunir todas as minhas energias para poder continuar.         Procurando evitar os calhaus que salpicavam o leito do Cedron, avancei alguns metros. Subitamente uma coisa me fez parar. Eram grunhidos. Uns grunhidos horríveis. Imóvel como uma estátua, esforceime por perscrutar a escuridão do barranco. Mas as trevas eram tão densas que os meus olhos se perderam entre as rochas e ilhotas de moitas. De novo caiu o silêncio. Um negro silêncio.      Voltei-me, perscrutando inutilmente o lado sul do desfiladeiro.       O coração, em alerta máximo, palpitava com força. E uma inconfundível sensação de medo eriçou-me os cabelos. Pela segunda vez - agora atrás das costas -, aquele grunhido provocou-me uma descarga de adrenalina, prendendo-me os músculos. Virei-me lentamente. O que quer que fosse, estava a norte e, julgando pela intensidade do som, bastante mais próximo. Forcei a vista numa tentativa desesperada de localizar algum vulto ou, pelo menos o movimento da ramagem. Foi inútil. Com um ligeiro tremor, deslizei a minha mão direita para o alto da vara de Moisés, à procura de um dos pregos com cabeça de cobre. Se os grunhidos fossem de algum animal selvagem, aquela era uma ocasião única para experimentar o dispositivo de defesa integrado no meu novo equipamento.      Apertei no prego. Maldição!      Não trazia os crótalos. Sem as lentes de contato especiais, a eficácia do sistema diminuía notavelmente. Aturdido, peguei na bolsa de borracha. Mas, no momento em que ia abri-la, oscilaram com violência várias moitas a cinco ou seis metros de mim. Senti o sangue a gelar-me nas veias. Algo avançava em minha direção. Era uma sombra baixa e alongada. Não, duas!  Recuei uns passos, mas com tanto azar que tropecei numa pedra, estatelando-me estrepitosamente. Liguei o contato auditivo.      - Meu Deus!      - Jasão!. O que foi?      Eliseu tinha ouvido a minha exclamação e, assustado, fez também a ligação auditiva.      Os vultos pararam e, quase não houve tempo para uma resposta, simultaneamente, soltaram uivos agudos e estremecedores. - Jasão! - insistiu o meu irmão. - O que foi? Responda!      Levantei-me de um salto. Um novo calafrio impiedoso pôs-me de pé os
cabelos da nuca, eriçando-os como se fossem pregos. - Não sei! - respondi, quase sem forças. - Parecem chacais! Ou talvez cães selvagens!      Eu já tivera a oportunidade de ver, na minha exploração anterior, algumas matilhas de cães selvagens - metade lobos, metade chacais comuns ou canis aureus, tão perigosos como os seus congêneres os africanos de lombo reto ou os listrados - a andar pelos arredores da Cidade Santa e a devorarem carne de animal morto. Aqueles famélicos, ariscos e perigosos cães-chacal, muito diferentes dos cães domésticos que hoje conhecemos, eram um pesadelo para o infeliz peregrino que viajasse sozinho.         E o desfiladeiro, a lixeira localizada a sul - a célebre Geena - constituíam um território muito propício para as suas correrias.      As sombras foram-se aproximando. - Jasão!.      Quando estavam a pouco mais de três ou quatro metros, dois pares de olhos semi-rasgados e de cor de mel relampejaram na escuridão. Levantando as cabeças, intensificaram os uivos, que ecoaram várias vezes por entre as encostas do desfiladeiro.      Logo a seguir, os uivos cessaram e um dos animais, grunhindo surdamente, levantou as orelhas compridas e pontiagudas, mostrando-me uns   caninos afiados e úmidos. Lutei por abrir a bolsa.      - Oh, meu Deus!.      A besta retesou os seus robustos jarretes e arremeteu, saltando como um raio para o meu pescoço.      Com um movimento reflexo interpus o meu braço esquerdo, inclinando-me para trás instintivamente.         - Jasão. Responda!      As suas faces cravaram-se no meu pulso, fechando-se como um cepo sobre a minha pele. Melhor dizendo, sobre a pele de serpente. Poucos segundos depois, como um estalido, alguns caninos saltaram pelos ares. O animal, cego no seu ataque selvagem, continuou revolvendo-se no chão, sem soltar a sua presa.      - Maldito seja! Jasão!      Aterrorizado, com os músculos duros como pedras, resisti tentando libertar-me das mandíbulas. Mas a situação complicou-se quando o segundo chacal ou cão selvagem, talvez intuindo que o irmão dele conseguira imobilizar parcialmente a vítima, arremeteu contra o meu flanco direito, desferindo todo o tipo de dentadas nas coxas e baixo ventre.
Em alguns dos seus ataques furiosos, o último chacal rasgou parte da túnica e do manto.         Tentei bater-lhe com a base da vara, mas os ataques e os recuos contínuos e os puxões fortes do primeiro tornavam imprecisas as minhas pancadas e os meus pontapés.      Tinha que arriscar!      Assim, banhado em suor, quase exausto, apontei com a parte superior do bastão para a cabeça daquele que lutava, entre baba abundante e latidos para partir o meu pulso esquerdo. O dispositivo ultra-sônico de defesa falhou nas primeiras tentativas. Então, inclinando-me até sentir o fedor nauseabundo da fera aproximei a faixa negra da vara até a um palmo da base da cabeça. O segundo animal, num novo e frenético ataque, levantarase sobre os quartos traseiros, cravando as mandíbulas e as falciformes e aceradas unhas no meu braço e flanco. E os caninos e as garras deste tiveram o mesmo destino que os do primeiro.       Desta vez, sim tive sorte. E o feixe de ondas penetrou por um dos olhos da besta. Ao receber a descarga de 21000 Herz, emitiu um lastimoso e curto latido, soltando o meu braço.      - Jasão! Jasão!.      Cheio de dor, o segundo chacal saltou para trás, fugindo precipitadamente e, tal como o outro que recebera os ultra-sons, ganindo e gemendo com a longa cauda entre as patas. Em menos de um segundo desapareceram na escuridão. E os seus ganidos foram-se distanciando até que, pouco depois, o silêncio voltou a dominar a quebrada.      - Jasão! Responda!      Eliseu, desesperado, insistia mais uma vez. Deixei-me cair sobre uma pedra e tremendo dos pés à cabeça, apertei o ouvido, explicando o que acabara de acontecer.      - Pelo amor de Deus! Teve razão o meu companheiro para desabafar, acusando-me de inconsciente e insensato. Mas o pior já tinha passado. A defesa ultrasônica e a pele de serpente" tinham funcionado. Aquela freqüência, que podia ser aumentada até 10". Roçando quase os hipersons, tinha resultados fulminantes para determinadas espécies de animais. Eu disse que o pior já tinha passado?. Sim, isso foi o que eu pensei. Mas as surpresas, naquela madrugada tinham apenas começado. Não havia tempo para contemplações. Assim, pondo de lado os enormes rasgões que destroçavam o manto e a túnica pus-me a caminhar, ansioso por sair de uma vez para sempre daquele funesto vale.
      Só faltavam doze minutos para o amanhecer.      Que teria acontecido entretanto no horto de José?"
* Um dos dispositivos situados no interior do cajado - o de ondas ultrasônicas, de natureza mecânica, e cuja freqüência se situa acima dos limites da audição humana (superior aos dezoito mil Hertz) - tinha sido modificado tendo em vista esta nova missão. O Cavalo de Tróia proibia terminantemente que os seus exploradores ferissem ou matassem os indivíduos objeto das suas investigações. O código moral, como eu disse, era rigoroso. Mas, prevendo possíveis ataques de animais ou de homens, como meio dissuasório e inofensivo, Curtiss aceitara que os ciclos das referidas ondas fossem intensificados até ultrapassarem mesmo os vinte e um mil Hertz. Em caso de necessidade - como vimos -, o uso dos ultrasons podia resolver situações de perigo, sem que ninguém chegasse a perceber-se do sistema utilizado. Como também já expliquei, tanto os mecanismos de teletermografia" como os de ultra-sons eram alimentados por um microcomputador nuclear, estrategicamente inserido na base do bastão. A cabeça emissora", colocada a um metro e setenta centímetros da base da vara", era ligada por um prego de cabeça larga de cobre, trabalhado - como tudo o resto - de acordo com as antiqüíssimas técnicas metalúrgicas descobertas por Glueck no vale da Arab , a sul do mar Morto, e em Esyon-Gucher, o lendário porto de Salomão no mar Vermelho. Os ultra-sons, pelas suas características e natureza inócua, eram apropriados para a exploração do interior do corpo humano. Com base no efeito piezelétrico, o Cavalo de Tróia colocou na cabeça emissora, camuflada com uma faixa preta, uma placa de cristal piezelétrico, formada por titanato de bário. Um gerador de alta freqüência alimentava a placa produzindo assim as ondas ultra-sônicas. Com intensidades que oscilavam entre os 25 e os 28 milwatts por centímetro quadrado e com freqüências próximas aos 225 megaciclos, o dispositivo de ultra-sons transforma as ondas iniciais em outras audíveis, mediante uma complexa rede de amplificadores controladores de sensibilidade, moduladores e filtros de bandas sonoras. Com o fim de evitar o  árduo problema do vento - inimigo dos ultra-sons -, os especialistas inventaram um sistema capaz de aprisionar e conduzir os ultra-sons através de um finíssimo cilindro ou tubo, de luz laser de baixa energia, cujo fluxo de elétrons livres ficava congelado no próprio instante da emissão. Ao manter um comprimento de onda superior aos oito mil angstrons (OA micros), o tubo, laser continuava a manter a propriedade essencial do infravermelho, pelo que só podia ser
visto com o uso das lentes de contato especiais (crótalos"). Dessa forma, as ondas ultra-sônicas podiam passar pelo interior do cilindro" ou túnel" formado pela luz sólida" podendo ser lançadas a distâncias que oscilavam entre os cinco e os vinte e cinco metros. Chamavam-se crótalos, por se parecerem com o sistema utilizado por este tipo de serpente. As suas fossas infravermelhas" permitem-lhe caçar as vítimas através das emissões de radiação infravermelha dos corpos das presas. Qualquer corpo cuja temperatura for superior ao zero absoluto (menos 273oC) emite energia de tipo IV, ou infravermelho. Estas emissões de raios infravermelhos, invisíveis para o olho humano, são provocadas pelas oscilações atômicas no interior das moléculas e estão ligadas, por conseguinte, à temperatura de cada corpo. (N. do M)
      Enredado nessas reflexões, depois de andar outros cem ou cento e cinqüenta passos pelo Cedron acima, compreendi que continuava a perder tempo. E, num impulso, renunciei a procurar o caminho. Virei para a esquerda, enfrentando a suave e curta encosta que conduzia ao muro oriental do Templo.      Ao assomar ao estreito passadiço que se estendia paralelamente à imponente muralha, uma claridade malva ascendia por trás do monte das Oliveiras, ceifando estrelas e clareando cantos longínquos entre os galos madrugadores.       As trombetas dos levitas não tardariam a soar, anunciando o novo dia. Era preciso apertar o passo. Em poucos minutos, os locais fora de portas da cidade, agora solitários, ficariam paulatinamente animados por homens e animais. E os milhares de peregrinos que tinham celebrado a Páscoa, assim como os habitantes de Jerusalém, se dedicariam às suas ocupações quotidianas. Aquilo podia complicar ainda mais os nossos planos.      Sem pensar duas vezes, lancei-me numa frenética corrida. O bater das minhas sandálias na poeira do caminho e a espalhafatosa ondulação do manto assustaram os pombos que dormitavam entre os silhares da muralha. E um branco bater de asas elevou-se sobre os torreões. Dobrei a esquina nordeste e, animado pela solidão do lugar, acelerei o andamento, procurando controlar a respiração. Deixei à minha direita o obscuro promontório de Bezatha e os perfis imprecisos da Piscina dos Cinco Pórticos. enfrentado o último trecho: o que me separava do bastião norte da Antónia. A Fortaleza Antónia!      Um súbito sentimento de perigo fez-me abrandar o passo. Com o coração acelerado contra as paredes do peito, distingui ao longe os fogos
de duas das quatro stationes, ou postos de guarda, situados no ponto mais alto das torres que se erguiam airosas em cada um dos ângulos do formidável castelo.      De repente, quando me faltavam poucos metros para virar à altura do parapeito de pedra que circundava o fosso do quartel-general de Pilatos, ouvi gritos. Sem parar, levantei os olhos. Na torre mais próxima, entre as ameias acinzentadas, alguns legionários gesticulavam, gritando para as uigiliae, ou patrulhas noturnas, que estavam na torre noroeste. A gritaria não durou muito.       Com a forte suspeita de que aqueles gritos de alerta tinham muito a ver comigo, forcei as pernas. Só faltavam cem metros para a bifurcação do caminho.      Esforço vão. Num abrir e fechar de olhos antes que pudesse percorrer uma décima parte do trajeto, três soldados da infantaria romana irromperam no meio do caminho, cortando-me a passagem.
* O historiador judeu-romano Flávio Josefo assegura no seu livro - A Guerra dos Judeus (livro sexto) - que três dessas torres tinham cinqüenta côvados (uns 2250 m) de altura e a quarta, encostada ao muro norte do Templo, setenta côvados (cerca de 31 50 m). O castelo, sede dos procuradores romanos durante as grandes solenidades, tinha uma forma retangular, com cerca de cem metros de comprimento e cinqüenta de largura. Fora cercado por um muro ou parapeito exterior de metro e meio de altura e por um fosso de 2250 metros, mandado escavar por Herodes, o Grande, quando ordenou a reedificação da antiga fortaleza macabeia, e à qual deu o nome de Antónia. em honra do seu protetor, Marco Antônio. As fundações do castelo eram um penedo gigantesco, liso em cima, e muros. Herodes, na previsão de possíveis ataques, tinha revestido os muros com pranchas de ferro. Umas escadas ligavam a Antónia ao Átrio dos Gentios, facilitando assim o acesso da guarnição ao Templo. No centro, como Já ficou dito pormenorizadamente, havia um pátio empedrado, com um tanque central dedicado à deusa Roma.
      Era evidente que eu tinha cometido dois novos e lamentáveis erros. Primeiro, lançar-me numa corrida tão suspeita, e, segundo ignorar a vigilância noturna da Fortaleza Antónia, e a abertura ou porta existente no parapeito, permanentemente aberta.      Parei imediatamente. Esperei que se aproximassem. Fugir teria sido
um terceiro erro.      Enquanto enchia os pulmões numa fatigante tentativa por me acalmar, um ruído que me era familiar chegou aos meus ouvidos. Era a moagem diária do grão. Jerusalém despertava. E, como uma confirmação fatal, a repentina claridade do dia caiu sobre a cidade, fazendo reverberar os polidos e esverdeados capacetes de bronze dos legionários.      Lutei com o meu cérebro. Tinha de encontrar uma boa desculpa. Mas qual? Os soldados detiveram-se. Cautelosamente, sem dizer palavra, olharam-me dos pés à cabeça. Estremeci ao reconhecer os seus uniformes de campanha. Não pude evitar uma emoção profunda.       Eram os primeiros seres humanos com que me deparava naquele novo e acidentado salto. E o primeiro toque das trombetas de bronze do Templo anunciando o amanhecer, retumbou entre as muralhas, agitando o céu azul com dezenas de remoinhos de pombos e o negro planar das andorinhas.      Os levitas, do alto do santuário, seguindo um costume ancestral avisavam os habitantes da Cidade Santa de que o Sol estava a ponto de romper no azulado horizonte dos montes de Moab. Eram cinco horas e quarenta e dois minutos. A minha roupa suja e esfrangalhada e o suor que escorria das minhas fontes, banhando-me a barba não deve ter inspirado muita confiança aos soldados. Assim, colocando-se de ambos os lados, continuaram a avançar, apontando-me as compridas lanças ou pilum. Os três vestiam cotas entrançadas à base de malhas de ferro que usavam como uma túnica curta (até ao meio da coxa). Estas couraças muito flexíveis e sólidas, recobriam um gibão de couro de comprimento idêntico.   Por último, a pesada indumentária envolvia uma túnica vermelha de mangas curtas (até ao cotovelo), que era dez ou quinze centímetros mais comprida que a armadura, caindo sobre os joelhos. Quando se achavam a três metros, os legionários dos flancos detiveram-se pela segunda vez. E as brilhantes pontas de flecha dos seus pilum ficaram a um metro do meu ventre. Ao observar os seus rostos fatigados e sonolentos deduzi que se tratava duma patrulha de serviço durante a quarta e última vigília da noite1.      As horas durante a noite era ainda mais vaga do que durante o dia. No tempo de Jesus, tanto os judeus como os romanos dividiam a noite em vigílias: quatro no total. O nome vigília, estava associado às horas que a sentinela permanecia vigiando, ou o pastor a guardar o rebanho. Cada uma somava três horas, aproximadamente. Começavam com o ocaso e
findavam com a sombra, de manhã quando o horizonte se iluminava com os primeiros raios do sol. Para minha infelicidade, tinha chegado na pior altura: justamente no momento em que iam ser rendidos. O seu mal-humor e contrariedade revelavam-se na forte contração dos maxilares e no olhar, avermelhado e acusador.      Levantei o meu braço esquerdo, com a palma da mão aberta, em sinal de paz e submissão. Nesse mesmo instante, o soldado que estava no centro da formação levou a mão esquerda ao flanco direito, desembainhando a espada: uma hispanicus de cinqüenta centímetros e gume duplo.         Uma corrente de fogo pareceu devorar as minhas entranhas. Que tencionava fazer aquele soldado? O segundo toque das sete trombetas, avisando da abertura da célebre Porta de Nicanor, no Templo, fez o legionário hesitar. O seu gladius, a um palmo do meu esterno, cintilou por um breve instante, aumentando a minha copiosa transpiração.      Com voz rouca e levantando a espada até à minha garganta, o soldado pronunciou umas palavras que não compreendi. Devia tratar-se de um dos legionários da tropa auxiliar, integrada por trácios, sírios germanos ou espanhóis. Com um leve gesto de negação da cabeça, dei-lhe a entender que não   percebia a língua dele. Mas o soldado, possivelmente alterado, repetiu a pergunta num tom imperativo, cravando a ponta da hispanicus debaixo do meu queixo.      - Jasão.      Eliseu estava à escuta. Mas o que é que ele podia fazer num momento tão crítico. Senti o metal bem afiado a entrar ligeiramente na minha pele, obrigando-me a levantar a cabeça. Era evidente que ao menor movimento suspeito me podia considerar um homem morto. Esforçando-me por manter a cabeça numa posição tão violenta, respondi em grego na esperança de que algum legionário me compreendesse.      - Sou de Tessalônica.      O soldado que estava à minha esquerda pareceu compreender e, na mesma gíria utilizada pelo que mantinha a arma debaixo do meu queixo, comentou qualquer coisa com os seus colegas.       Avançou e, colocando-se junto ao da hispanicus, despejou uma série de perguntas acusadoras:      - Porque que corrias?. A quem roubaste?. Reconhece que és um bastardo e porco judeu! Fala!      Dificilmente o poderia fazer. Assim apontando com o indicador esquerdo para a ponta da espada, supliquei-lhes que baixassem a arma. A
pressão diminuiu, mas o gladius permaneceu a muito poucos centímetros do meu pescoço.      Engoli em seco e, simulando uma comichão inexistente, cocei-me fazendo força no meu ouvido direito, ao mesmo tempo que tentava esclarecer aquele mal-entendido:         - Lamento muito!. Não era minha intenção. Sou grego e amigo do procurador. Tenho um salvo-conduto!      A dureza do meu sotaque e a menção do salvo-conduto aliviaram a tensão. Mas o improvisado intérprete, desconfiando e levantando os pedaços rasgados da minha túnica com a ponta do seu pilum, insistiu:      - E isto.      Quando eu ia esclarecer a razão do estado lamentável das minhas vestes, o soldado colocou de novo a sua lança em posição vertical e, num furor súbito, deu-me uma forte e sonora bofetada. - Mentes! Porque que corrias?      O meu rosto endureceu e, pressionando os maxilares num ataque de ira, encarei o jovem soldado de infantaria lançando-lhe em pleno rosto:   - Civilis! Levai-me ao vosso primipilus!         O nome do centurião, comandante-chefe das sessenta centúrias e homem de confiança de Pilatos, provocou o efeito desejado. Os lábios do legionário que me tinha esbofeteado tremeram nervosamente e a expressão do seu rosto mudou. Balbuciou palavras ininteligíveis e a hispanicus regressou imediatamente para o seu invólucro de madeira. Quando me dispunha a mostrar-lhes o rolo com a assinatura e o selo do procurador, o intérprete, sem perder o seu tom autoritário, ordenou-me que os acompanhasse.      Ao franquear o parapeito de pedra e vislumbrar ao fundo, do outro lado da ponte levadiça a monumental porta coroada com um canhão e provida de dois sólidos batentes de madeira, novas e comoventes recordações longínquas e próximas recordações me vieram à memória, pareciam aquelas cenas dos interrogatórios de Pilatos e da enfurecida multidão a gritar pela libertação de Barrabás.      Um grupo numeroso de legionários apareceu no portão. Vestiam também o uniforme de campanha e cada um levava o seu escudo retangular, vermelho, - de uns oitenta centímetros de altura - com a mesma bela águia amarela que eu contemplara em ocasiões precedentes a decorar o umbon, ou protuberância central. Avançaram com alguma pressa e, mesmo à beira do fosso, juntaram-se aos meus três guardiões.       Trocaram algumas palavras entre si e, sem deixarem de me observar,
puseram-se novamente em movimento, ordenando-me que atravessasse com   eles a ponte de troncos grossos para entrar no interior da fortaleza.      Até àquele momento - quase seis horas da madrugada – A pouca sorte só nos proporcionara desgosto atrás de desgosto. Resignado, deixei-me conduzir.       Ao cruzar a muralha pensei que a patrulha se dirigia para o terraço onde Pilatos tinha tentado administrar justiça – na cadeira curul - na manhã de sexta-feira. Não foi assim. Mal pusemos os pés no grande pátio e nos brancos seixos que o pavimentavam, os legionários pararam.   Dois deles afastaram-se até a um quartito de adobe, encostado ao muro e à esquerda da grande porta aberta na muralha, a qual, ao que parecia, servia de posto de guarda. Por um momento, no silencioso espreguiçar do amanhecer, vieramme à memória os gritos da multidão, congregada naquele mesmo recinto, reclamando a liberdade de Barrabás, o  revolucionário, e a execução de Jesus.       Uma robusta silhueta, surgindo na penumbra da porta do posto de guarda, dispersou as minhas recordações. Era um optio, uma espécie de ajudante ou homem de confiança dos centuriões, e responsável pela vigília, ou vigilância noturna naquele setor. Vestia como os legionários, a túnica com o gladius à direita e no flanco oposto, um pequeno punhal  - espécie de greba - que se abmndolla desde o joe diferença estava numa  lho até ao começo do adaptava à perna direita, co p p pé. (Sem dúvida, um vestígio militar da época do manípulo.      Segundo   autores como Arriano e Vegécio, esta couraça só era usada na perna direita, porque a esquerda era protegida pelo escudo) As caligas, ou sandálias de correias, de sola dura e cravejada, envolviam os tornozelos e   o dorso dos pés, completando o uniforme de campanha.      Durante breves instantes, reclinado displicentemente no gonzo da porta e a tamborilar com os dedos dentro de uma escudela de madeira, revistoume dos pés à cabeça. Concluído o exame, foi-se aproximando com lentidão e ar cansado. Ao chegar ao pé de mim, baixou os olhos, entretendo-se com os rasgões do manto e da túnica. Tirou uma tâmara do fundo da tigela e, com um sorriso malicioso, levou-a à boca.       A negra  cárie que atacava os poucos dentes que lhe restavam, era um exato reflexo dos seus pensamentos. Mastigou o fruto parcimoniosamente e,   ante a expectativa dos seus homens, cuspiu o caroço entre as minhas sandálias.
      Não pestanejei. E, com idêntica frieza, agüentando o seu olhar desafiador, estendi-lhe o salvo-conduto.         A minha firmeza fê-lo hesitar. Com um safanão, tirou-me o rolo.         - E porque ‚ que queres ver Civilis? - perguntou, por fim, devolvendome o documento.   Era preciso arriscar. Supondo que a patrulha de vigilância no sepulcro  já tinha regressado à fortaleza e que a notícia do estranho desaparecimento do cadáver do Crucificado era sobejamente conhecida pelo optio, comuniquei-lhe que tinha acontecido qualquer coisa especial.         - Especial - acrescentou com curiosidade. - Onde?      - No túmulo situado na propriedade de José, o membro do Sinédrio, e que, como sabes era vigiado por levitas e homens desta guarnição.         Ele franziu o sobrolho.      - Que sabes tu desse assunto?      Mas abanando a cabeça, dei-lhe a entender que só falaria na presença de Civilis ou do procurador.         - Sabes que eu podia mandar espancar-te por isso? Quem és tu, miserável maltrapilho, para pretenderes incomodar o governador de toda a Judéia?      Pegou numa segunda tâmara e, antes de eu ter tempo para lhe responder, fez-me uma terceira pergunta:         - Não terás sido tu um dos ladrões?.      Sem querer, acabava de confirmar as minhas suspeitas: os dez legionários que faziam parte da escolta de vigilância no sepulcro deviam ter voltado. Não há  dúvida que, uma vez recuperados da sua inconsciência momentânea, ao comprovarem que o túmulo estava vazio, deviam ter optado por regressar à fortaleza, relatando o que tinha acontecido. Mas, porque utilizara ele a palavra ladrões?      Decidido a terminar com um diálogo tão estéril, declarei com severidade:         - Cuidado com as tuas maneiras! Pilatos está a par da minha recente estada na ilha de Capri, junto do divino Tibério. E duvido que ambos aprovem que se espanque um astrólogo ao serviço do velhinho.         O nome de César foI decisivo. O optio atônito engoliu a tâmara e, entre os cochichos sarcásticos da tropa, deu as ordens necessárias para que informassem Civilis da minha presença naquele lugar. Dez minutos depois, perante o assombro de todos os presentes, o próprio comandante-chefe aparecia no alto do terraço, descendo apressadamente a escadaria. Atrás dele, com evidente dificuldade para o
seguir, distingui outro centurião e o soldado que tinha sido o mensageiro.      Avancei e, atravessando o pátio, fui ao encontro do salvador primipilus.   Civilis, ao ver-me, sorriu. Trajava a sua habitual cota de malha e um fulgurante capacete prateado, encimado por uma crista ou cimeira transversal sobre a qual se destacava um penacho semicircular de penas vermelhas.       As suas grandes passadas faziam flutuar a capa cor grenate, que segurava elegantemente com a mão esquerda. Com a mão direita segurava o emblema dos centuriões, símbolo, ao mesmo tempo, da disciplina do exército romano: a uitis, ou ramo de videira, tão temida entre os soldados.       Ao chegar diante de mim, e sem deixar de sorrir, levantou o braço direito, saudando-me:      - Salve, Jasão!. Mas o que te aconteceu?      Satisfeito com aquele encontro com o leal e eficaz chefe de centuriões, correspondi-lhe com o mesmo afeto. E, logo a seguir, enquanto iniciavamos um curto passeio perante o olhar desconcertado do optio e dos seus soldados fui improvisando.       Eu não via Civilis desde sexta-feira de manhã e resumi-lhe como pude os passos que dera durante aquelas setenta e duas horas.      Em parte fui sincero mostrei-lhe como depois de ouvir várias vezes a estranha história que circulava em Jerusalém sobre a possível ressurreição do Rabi da Galiléia, a minha curiosidade de augure me levara a esconderme nos arredores do túmulo e como, por volta das três da madrugada, tinha presenciado um fenômeno luminoso ímpar e surpreendente que, saindo da entrada da cova sepulcral, se propagara até as árvores mais próximas, deitando ao chão os bravos legionários que faziam  a guarda. Os oficiais ouviam-me atentamente. - Depois - continuei fingindo estar muito cansado -, da mesma forma que os teus homens, também eu me vi surpreendido por uma força maléfica e caí no chão, perdendo os sentidos.       Quando os deuses quiseram que eu voltasse a mim, o túmulo estava vazio. E o medo fez-me correr e andar sem rumo certo. Sei que qualquer coisa sobrenatural, obra dos deuses, aconteceu nesse horto. E, ao alvorecer, com o espírito mais sereno, tomei a decisão de vir à Fortaleza Antónia para te contar tudo o que vi e ouvi. O comandante deteve-se. Levou a mão esquerda ao punho da espada e, com um gesto grave, perguntou:      - E porquê a mim? Sabes que não acredito nessas besteiras.       Senti-me apanhado. Mas Eliseu, atento no módulo, ofereceu-me um
argumento perfeito. E assim o expus a Civilis.      - É muito simples. Nas minhas caminhadas pelas ruas da cidade - menti -, tive a oportunidade de ouvir uma versão que, alimentada por essas ratos do Sinédrio, começou a circular em Jerusalém. Caifás e os seus sequazes lançaram o boato de que os levitas deles e os teus legionários adormeceram, e que, aproveitando essa circunstância, os discípulos do Galileu foram roubar o cadáver.      O comandante abanou a cabeça afirmativamente. - Eu, como te digo, fui testemunha privilegiada do que aconteceu e vi como os guardas do Templo, de fato, fugiram como covardes. Mas a patrulha romana não. Foram os deuses que dominaram os teus bravos soldados.      Desta vez Civilis não respondeu à minha calorosa exposição.       Aquele mutismo levou-me a supor que o centurião estava, de fato, a par dos acontecimentos. E, depois de alguns segundos de reflexão, perguntou-me de novo:         - Estarias disposto a repetir isso diante do procurador?         Aquela inesperada oportunidade de voltar a encontrar-me com Pilatos deixou-me perplexo. Não estava nos meus planos, mas, intuindo que podia ser altamente benéfico, apressei-me a aceitar, espicaçando a curiosidade dele com uma sentença que - eu tinha a certeza - avivaria a mente supersticiosa do governador.      - Além disso, Pilatos tem de saber que o milagre do sepulcro é só o princípio.      Fiz propositadamente uma pausa de outros fenômenos não menos prodigiosos.      - A que te referes?      À medida que improvisava, uma idéia tinha vindo a germinar no meu cérebro. Decidi utilizá-la. Sorri e, colocando a mão esquerda no ombro do meu amigo, pedi-lhe que não me perguntasse.      - Agora tenho de me ir arranjar e meditar. Amanhã, se o procurador o considerar oportuno, terei o maior prazer em vos transmitir o que li nos astros.      Civilis bateu na sua perna com a vara de videira e, dando o assunto por encerrado, propôs-me a hora tércia (nove da manhã) do dia seguinte para a reunião. Quando, finalmente. Deixei para trás o fosso e o parapeito da Antónia, o meu irmão estabeleceu de novo a ligação auditiva, interessado nos pormenores da minha captura e, sobretudo, na maquinação que eu concebera no pátio da fortaleza. O meu plano, como supunha, só
contribuiu para duplicar a sua inquietação.      Senti-me abatido. Os cronômetros do módulo, devorando dígitos, aproximavam-se das seis horas e trinta minutos da manhã. Tinham passado cinco horas, dezesseis minutos e quarenta e nove segundos desde o contato no monte das Oliveiras. e estávamos como no princípio!       Estávamos, ou, para ser mais correto, estava mais de cento e oitenta minutos de atraso em relação ao plano do Cavalo de Tróia. A uma centena de passos da bifurcação para Cesárea e Samaria - com a muralha cinzento azulada da Antónia à minha esquerda - hesitei: O que ‚ que adiantava dirigir-me ao horto de José? O mais provável era que ele estivesse deserto. Não seria mais prudente seguir o plano e entrar na Cidade Santa, à procura dos apóstolos e das mulheres? Elas é que deviam estar em condições de me contarem o que tinha acontecido.       Estive a ponto de confessar as minhas inquietações a Eliseu. Contudo, não querendo tornar mais sombria a sua solidão, fiquei calado. Se as minhas suposições estivessem corretas, há uma hora - ou até mais que os legionários tinham abandonado a quinta do de Arimatéia. Pela lógica, as mulheres deviam ter chegado ao sepulcro depois dos guardas terem ido embora.      Quando muito, ao mesmo tempo que eles - constatado o desaparecimento do motivo da sua vigilância - tomaram a decisão de voltar para o quartel-general. Com os dez romanos no jardim, as amigas do Mestre não se teriam atrevido a passar a cerca de madeira da propriedade. Que fazer?      E voltei a perceber um fenômeno curioso. Enquanto a minha lógica e senso comum me ditavam o caminho de Jerusalém, uma outra força que não sei explicar e que cada dia se tem tornado menos sutil, arrastava-me para o sepulcro.      Que podia eu encontrar ali?      Como um autômato, deixei o caminho e entrei num prado que subia para norte e ia morrer nos cumes achatados dos promontórios que em cadeia, rodeavam Jerusalém, do Gareb ao Cedron. Aquele atalho levavame a trezentos ou quatrocentos metros do horto de José. E decidi averiguar por que motivo o túmulo exercia tanta atração sobre o meu atormentado espírito.      Diante de mim, desde os oitocentos metros de altitude do Gareb - a oeste - até aos setecentos e trinta e cinco de Betsaida - à minha direita -, aquela suave sucessão de colinas estava semeada de pequenas e médias propriedades, repletas de figueiras, ciprestes de madeira perfumada e
compacta, zimbros que atingiam vinte metros de altura, terebintos ramificados e exuberantes, de folhas muito parecidas às da nogueira   e de penetrante fragrância e, finalmente, de abundantes e seletos pomares.       Perante semelhante jardim, compreendi as grandes dificuldades   de Tito quando, trinta e seis anos mais tarde, ao sitiar Jerusalém, avançou com o seu exército desde o monte Scopus, um pouco mais a norte de onde me encontrava.      Se eu tivesse continuado pelo caminho inicial, tomando, diante da Porta   dos Peixes, o desvio para a Samaria, talvez os meus problemas se tivessem   multiplicado. O meu aspecto era horrível e chamativo, e, muito provavelmente, teria despertado a curiosidade dos comerciantes, camponeses e pastores que, muito antes daquela aurora de dedos cor-derosa - como havia cantado Homero - tangiam os seus jumentos e rebanhos em direção ao grande mercado do bairro mais alto da cidade: o súq haelyon. (Muitas hortaliças, grãos e outros produtos do campo vinham, naquele tempo, da Samaria e da planície da fronteira com a Idumeia).      Observada da muralha norte de Jerusalém, bem como da Porta dos Peixes ou dos muros da Fortaleza Antónia, a quinta de José ficava à direita da referida Estrada do Norte - a da Samaria - perdendo-se para leste, num vale escondido no sopé dos montes de Bezatha. Era um verdadeiro prodígio os Israelitas terem conquistado aqueles solos calcários e pedregosos, transformando cada palmo de terra útil numa bênção.         Apesar disso, entre bosques cerrados e sementeiras despontavam aqui e ali brancas clareiras de pedras. O meu objetivo era, precisamente, uma daquelas formações rochosas. Atraído por aquela força irresistível aventurei-me pela verdejante pradaria. A suave Primavera e as chuvas de Março tinham feito crescer a erva, salpicando-a de gladíolos silvestres e das pequenas flores do vento - as anêmonas - com as suas campainhas cor de violeta púrpura. O orvalho da manhã não tardou a umedecer as minhas sandálias, e dezenas de gotinhas de água foram ficando presas entre os pêlos e a pele de serpente das minhas pernas.       Apesar de ter tomado algumas referências na minha primeira visita à quinta do ancião membro do Sinédrio - durante o triste traslado do corpo sem vida do Rabi -, assim que transpus o pequeno prado, um labirinto diabólico de cercas, veredas serpenteantes e sebes altas de artemísiasamargas atrasaram, como eu temia, o meu avanço. Orientando-me pelas quatro torres da Fortaleza Antónia (sempre nas minhas costas), pelo forte
brilho avermelhado do Sol a nascer (à minha direita) e pelos balidos esporádicos do gado que descia pelo caminho da Samaria (à minha esquerda), fui avançando por entre os campos, na esperança de me encontrar, de um momento para o outro, com a cerca de estacas pintadas de branco que fechava a propriedade de José.       De súbito, à minha esquerda, ouvi a típica saudação judaica.      - Schalom alekh hem!.      Aquele "a paz seja contigo" vinha de um camponês madrugador que, ao ver-me passar à frente do seu campo, saiu de trás de um sicômoro. Vestia o chaluk, ou túnica enrolada na cintura, mostrando as pernas peludas e esqueléticas. Carregava ao ombro direito uma pele de cabra inflada.      - Saúde! - apressei-me a responder, adotando um tom cordial. - Procuro o horto de José, o de Arimatéia.      Ao notar o meu sotaque estrangeiro, o judeu franziu o sobrolho, mostrando a sua contrariedade, resmungando algumas maldições - entre as quais cheguei a perceber um "maldita seja a tua mãe!" - virou-me as costas, continuando a sua singular rega da terra. Ao destapar o rústico odre, um jorro avermelhado caía nos sulcos. Era sangue. Não se tratava realmente de uma rega propriamente dita, mas de um fertilizante. Grande parte do sangue que corria nos pátios do Templo durante os sacrifícios rituais de animais era aproveitada pela casta sacerdotal, para ser vendida aos agricultores. Na esplanada do Santuário, perfeitamente empedrada e em declive, tinha sido feita uma rede de pequenos regos por onde se recolhiam os milhares de litros de sangue de bois, carneiros, etc. armazenando-os em cisternas subterrâneas.       O sangue que sobejava perdia-se na corrente do Cedron, para onde era sabiamente levado por um canal de desaguamento. Esta era a explicação para a misteriosa água vermelha que tínhamos detectado do módulo na nossa primeira aproximação à Cidade Santa.      Não muito contrariado pelo descaramento do hortelão – afinal de contas, aquelas saudações nunca eram dirigidas aos gentios - continuei no meu lento avançar. Ao contar-lhe o incidente e o curioso sistema de fertilização da terra, Eliseu, depois de consultar o Papai Noel, deu-me mais pormenores sobre esse particular.
* Segundo a informação acumulada no computador central, textos rabínicos como o Middot (III, 2), Pesahim (V, 8), Meila (III, 3), Tamid (IV1) e Yoma (V, 6 e 8), entre outros, descrevem estes canais de
desaguamento, assim como o uso que se fazia do sangue. Os hortelões, por exemplo, compravam o sangue aos tesoureiros do Templo e aquele que o aproveitasse sem pagar cometia um roubo contra o Santuário. O Talmud babilônico (em Pesahim, 65b) diz: "O orgulho dos filhos de Aarão consistia em andar com o sangue das vítimas até aos joelhos". A quantidade do sangue no átrio dos sacerdotes era, portanto, muito considerável. (N. do M.)
      Poucos minutos depois, entre a ramagem de umas amendoeiras ou espreitadores (saqed) - como eram chamados pelos Judeus estes precoces anunciadores da Primavera - julguei ver, semi-ocultas pelas flores brancas como a neve, as estacas pontiagudas, de um metro de altura, do horto tão desejado.       Corri para elas. De fato, o meu coração palpitou com toda a sua força ao descobrir, ao longe, como uma branca confirmação entre o verde carregado das ameixeiras, macieiras e romãzeiras, a casinha onde, sem dúvida, morava o corpulento jardineiro que ajudara José na tarde de sextafeira.      Tomando o Sol como referência, caminhei para a minha direita, sem me afastar da cerca. Não tardei a encontrar a cancela de entrada. A porta de tábuas estava aberta. Misteriosamente aberta. Desta vez avisei o berço das minhas intenções. Ia entrar na silenciosa quinta. Este é, talvez, outro conceito não muito bem interpretado pelos cristãos. Ao ler os textos evangélicos fica-se com a idéia de que o lugar onde o Mestre foi sepultado era um simples horto, com um sepulcro novo, como narra João. Na realidade, mais do que um horto, a propriedade de José podia ser classificada como um pomar. E nada modesto, digamos. Toda uma quinta de recreio, com dezenas de árvores de fruto e hortaliças, uma casa rústica, um pombal e, é claro, como correspondia à sua elevada posição, um jazigo familiar.       Como disse, não era normal que a cancela estivesse aberta de par em par. Aquilo me fez suspeitar de que algo anormal tinha acontecido - ou estava acontecendo - na herdade.      Lentamente, com os cinco sentidos despertos, fui avançando pelo caminho estreito que começava na cerca e virava para norte, por entre fileiras de bem cuidadas árvores de fruto.      O silêncio era absoluto. Muito significativo.      Parei uma ou duas vezes, esperando ouvir algum som. Talvez as brincadeiras ou os latidos dos dois cães que guardavam a propriedade.
Nada, nada mesmo.      A meia centena de metros da entrada, a trilha dividia-se em duas. O caminho da esquerda, como tivera a oportunidade de comprovar na minha visita anterior, passava ao pé da casa do hortelão, perdendo-se depois entre camoesas carregadas e açofeifeiras, ou açofaifas, brilhantes. Desta vez a lareira parecia apagada.         O da direita levava à cripta. A uns vinte passos, coberta com a sombra delicada das árvores que a rodeavam, vislumbrei a clareira rochosa que se erguia pouco mais de um metro e meio sobre o nível do terreno. Estremeci.      E se tudo tivesse sido um sonho? E se o Mestre não tivesse ressuscitado? Estes pensamentos tão absurdos ficaram praticamente desfeitos quando, meio escondido entre os pequenos troncos das árvores de fruta, compreendi que, de fato, as patrulhas judaica e romana tinham desaparecido. Era lógico que, se nada de anormal tivesse acontecido, continuassem ali, diante dos degraus e do rústico caminho que conduziam à gruta funerária.      Prudentemente, dediquei vários minutos a uma exploração pormenorizada dos arredores. Só descobri restos de comida, armas e algumas capas, espalhados no terreno argiloso em volta da formação calcária. Não   havia dúvidas: levitas e legionários tinham abandonado o lugar. E os primeiros, julgando pelo que fui encontrando, após uma fuga vergonhosa ainda não tinham regressado.       Um pouco mais confiante, afastei-me das árvores e aproximei-me cautelosamente dos restos da fogueira que iluminara e aquecera a guarda romana. As cinzas estavam ainda mornas. Soprei e alguns tições reavivaram-se fugazmente. Era provável que a lenha tivesse ardido pouco mais de meia hora antes.      De cócoras, dirigi um olhar rápido para o caminho que ia ao sepulcro. O meu coração respondeu com força. Mas, fazendo um esforço, contiveme. Primeiro tinha de examinar aqueles restos.      No pedaço de terra que tinha sido ocupado por aquela dezena de levitas ou guardas do Templo, a desordem era total. Roupões amarelos, tingidos de açafrão, cheios de pegadas da fuga; bastões e capas - típicos dos servidores dos sumos sacerdotes betusianos, e temidos pelos seus revestimentos de cravos - semi enterrados na vermelha e esponjosa argila; uma aljava de couro, cilíndrica, cheia de flechas de cinqüenta centímetros de comprimento e um duplo machado de combate igualmente abandonada durante a fuga, formavam aquele cenário desolador. Por último, tombada na seqüência de algum empurrão dos aterrorizados ammarklin, ou
guardiões do Santuário, uma bojuda tina de barro conservava no seu interior parte da ceia: um guisado espesso à base de sêmola de trigo cozido, com abundantes pedaços de carneiro. E um pouco mais à frente, cuidadosamente embrulhadas num pano branco, pequenas e rodelas de pão de trigo, e uma coroa ou fogaça redonda.       Perto de uma árvore descobri também um odre de pele de cabra, cuidadosamente curtida e fechado com uma cavilha de madeira. Pesava uns dez loq (pouco mais de quatro litros e meio) e ao pegá-lo deduzi que servia para armazenar água ou, talvez, vinho.   Joguei fora parte do conteúdo e, cheirando-o comprovei que se tratava de  aschechar, uma espécie de cerveja - muito fraca - feita à base de milho e cevada e com uma remota semelhança com a cervisia latina.   No setor ocupado pelos legionários, em contrapartida, e com exceção das cinzas da fogueira não consegui encontrar um único sinal que indicasse um desonroso abandono do lugar. Os romanos, comentei anteriormente1 sabiam muito bem que tipo de pena os esperava em caso de fuga ou deserção. Os levitas, pelo contrário, não estavam submetidos a uma disciplina tão férrea.       A esta circunstância nada desprezível é preciso acrescentar que, sem qualquer tipo de dúvidas os soldados do exército romano eram homens física e psicologicamente melhor preparados para enfrentar o medo e os perigos do combate ou, simplesmente, de uma guarda noturna. Por conseguinte, não tem sentido as afirmações do evangelista Mateus referindo-se às mulheres  8 6  diz textualmente: "Enquanto elas, alguns membros da guarda foram à cidade contar aos sumos sacerdotes tudo o que tinha acontecido. Estes reunindo com os anciãos, realizaram um conselho e deram uma grande soma de dinheiro aos soldados, dizendo-lhes: "Dizei: os seus discípulos vieram de noite e roubaram-no enquanto nós dormíamos. E, se isto chegar aos ouvidos do procurador, nós convencê-lo-emos e evitaremos que vocês tenham complicações" Eles pegaram no dinheiro e fizeram de acordo com as instruções recebidas. E circulou esta versão entre os Judeus até ao dia de hoje.
* Os castigos no exército romano encontravam-se muito bem identificados. Desde a época do manípulo, as infrações podiam dividir-se em delitos comuns e delitos de caráter militar. Pohôio, por exemplo fala disso em VI 379-10. Eram comuns o roubo no acampamento, o falso testemunho e os delitos contra os bons costumes, entre muitos outros. Nos delitos militares figuravam: a covardia, a
falsificação de fatos, abandono do armamento ou da guarda e a rebelião, sedição ou deserção. Estas faltas conduziam inexoravelmente à morte. As penas, além disso, podiam classificar-se em individuais e coletivas, e, de outro ponto de vista, em infamantes e corporais. Os soldados eram geralmente espancados e os oficiais executados com o machado do lictor. Como penas pecuniárias individuais existiam: a retenção do soldo, garantida ocasionalmente com o embargo (ver Polibio, VI 378), e o desconto na participação nos despojos de guerra e na pensão de reforma. Entre os castigos infamantes está ainda a degradação, 97 a expulsão do exército e os chamados Ignominia. Eram impostos pelo general e publicados na contio. Implicavam, além disso, a redução do soldo e dos direitos passivos. Entre os castigos coletivos, o mais grave era dizimar a unidade como referem Suetônio, Dion, Cássio, Tácito e outros. Costumava ser imposta por fuga desonrosa, sedição ou rebelião. Uma décima parte dos soldados, designada por sorteio, era condenada à morte por espancamento. Os restantes ficavam com a comida racionada à base de cevada - em vez de trigo - e, em caso de guerra, obrigados a pernoitar fora do acampamento ou da fortaleza. Entre as circunstâncias modificadoras da responsabilidade tinha um relevo especial a reincidência. Se era dupla, determinava a pena capital para qualquer infração (Polibio, VI, 379). (N. do M)
      Se Mateus se refere aos legionários romanos - coisa nada clara - comete, pelo menos, dois erros. Primeiro: estes soldados estavam sujeitos às ordens e à disciplina do exército romano e não à autoridade dos sumos sacerdotes judeus. Porque recorrer então a Caifás e aos seus sequazes no Sinédrio? Se falassem, o fariam com os seus comandos naturais: o optio ou o centurião respectivo.      Segundo: estes soldados - veteranos na sua maioria - conheciam o preço que teriam de pagar pelo abandono do serviço ou o que vinha a dar no mesmo por adormecerem em plena vigília, e, cúmulo dos cúmulos, ser roubados e ludibriados.      Neste aspecto, as palavras do evangelista não são muito sensatas. É preciso ser ingênuo para acreditar que os romanos - aceitariam semelhante trato. Não esqueçamos – que eles odiavam os Judeus - e que uma notícia daquela índole, a suposta ressurreição de um crucificado - era impossível de ocultar. E menos ainda ao procurador.       Desde sábado, 8 de Abril, que em Jerusalém só se falava da profecia do Rabi da Galiléia sobre o seu regresso à vida. Milhares de peregrinos e
moradores da Cidade Santa estavam pendentes do terceiro dia; isto é, do domingo. Se os soldados da Fortaleza Antónia tivessem aceitado o suborno quanto teria durado a satisfação pelo dinheiro recebido? Mais: de que lhes teria servido, se o castigo imediato e inapelável era a morte?       Os legionários podiam ser ambiciosos ou corruptos, mas não eram estúpidos. Pessoalmente, acho que o evangelista se referia à guarda do Templo:   aos levitas e não aos soldados romanos. Aqueles que tinham a obrigação de ir aos sumos sacerdotes, seus chefes. E tanto uns como outros eram muito capazes de propor e aceitar este tipo de suborno. Que terá  acontecido então com o texto de Mateus? Terá se enganado o escritor sagrado? Foi deformada ou mal interpretada a versão aramaica? Porque será que os outros evangelistas também não se referem a este assunto tão espinhoso? Mas voltemos àquela manhã de domingo, 9 de Abril do ano 30.         À  medida que me fui aproximando dos degraus que davam para a estreita passagem, antecâmara do túmulo, a minha alma foi ficando mais tensa. A minha respiração agitou-se e, ao ver-me diante da boca da cripta, surgiram inevitavelmente os velhos calafrios. Durante alguns minutos - quem sabe quantos! - fiquei imóvel e como que hipnotizado diante daquela abertura quadrada, parcialmente tapada pela tosca e pesada roda de moinho que servia de porta. Naqueles instantes - preso de uma angústia e de dúvidas inenarráveis - não percebi um pormenor muito interessante relacionado com esta pedra redonda. O meu espírito racional e científico continuava a dominar. Apesar do que eu tinha vivido com o Mestre, apesar do inegável poder daquele Homem, apesar da sua misteriosa e atraente natureza, apesar de tudo eu continuava a duvidar.      Não é possível, repetia eu para mim vezes sem conta. Não é possível que um cadáver, depois de trinta e seis horas.       Uns saquitos de serrapilheira familiares, cuidadosamente colocados em cima do último degrau, vieram tirar-me de tão profunda incerteza. Eram os utilizados por José e Nicodemo durante os minutos agitados que antecederam o fecho do sepulcro. Lembrei-me de como as mulheres, de volta a Jerusalém, tinham se encarregado das cem libras de aloés e mirra com que se propunham concluir rapidamente a lavagem e o embalsamamento de Jesus.         Desci as escadas e, inclinando-me sobre o saco maior, examinei-o. Estava abrindo-o. Me pareceu reconhecê-lo.  Tratava-se dos quinze ou vinte quilos de pó granulado, de um amarelo dourado e sumamente aromático. Devia ser o de aloés.
      Ao lado, um pano tapava o mesmo jarro campanudo de cobre que eu vira ser usado pelos amigos do Rabi no sepulcro. Estava cuidadosamente fechado com uma rolha de pano. Deduzi que estava perante aquela substância pastosa, uma goma-resina, que identifiquei como mirra. Num terceiro envoltório, firmemente atado, descobri com o tato um segundo recipiente de metal.      Agitei-o e pareceu-me ouvir um ruído de água. Talvez fosse uma vasilha trazida para o asseio do cadáver. Por último, num cesto de vime de tamanho regular, apareceram vários rolos de pano, uma esponja dura e enegrecida, um frasquinho de vidro com um líquido cor de conhaque - possivelmente nardo - e uma bolsa de couro de uns vinte centímetros, delicadamente fechada com um passador ou fivela de bronze em forma de arco. Fui vencido pela curiosidade. Apalpei o seu conteúdo e senti que era qualquer coisa dura e comprida. Tirei o alfinete de segurança e, muito excitado, retirei o que havia dentro. Era uma chave!      Uma dessas chaves curiosas que os judeus utilizavam para as portas e arcas. Tinha um cabo de madeira e um corpo – de bronze - dobrado em forma de L, com cinco dentes, compridos e paralelos, na ponta. Não pude deixar de sorrir. Aquele símbolo, colocado sobre um defunto, representava o seu celibato, ou estado de solteiro. Às vezes, em vez de uma chave, colocavam uma pena. Se se tratasse de uma noiva, esta tinha direito - assim o estabelecia a Lei - a um pálio. A delicadeza das mulheres para com o seu querido Rabi comoveume.   Não havia dúvida. As fiéis seguidoras do Mestre tinham estado ali. Transmiti ao módulo as minhas descobertas, acrescentando que os sacos pareciam estar abandonados. Era óbvio que não tinham sido utilizados. Mas porquê? Que estranho acontecimento tinha levado as Judias a suspender a lavagem e o embalsamamento do Crucificado?         A resposta - eu sabia-o - só podia estar ali: no fundo da gruta sepulcral.      Coloquei-me de pé e, sentindo que as minhas pernas fraquejavam, dirigi o olhar para a boca da cripta.       Porque duvidava? Não conseguia compreender. Eu tinha visto o sepulcro vazio. No entanto, o meu espírito racional e científico resistia em admitir o seu regresso à vida. Apesar de o ter conhecido, da sua irresistível personalidade, do seu poder e das suas próprias palavras - anunciando a sua ressurreição -, apesar de tudo isso, eu continuava duvidando.       Não é possível, repetia eu para mim mesmo insistentemente. Não é possível. Mas, passo a passo, fui percorrendo os dois metros e vinte centímetros que separavam aquele último lance  desde o umbral até àquela
boca quadrada de escassos noventa centímetros de lado. Já surgia a claridade da manhã. Senti a falta de uma tocha. E o medo voltou a assaltarme. Entrava?      Tem de ser, disse para mim próprio. Tenho de ter certeza. Preciso confirmar mais uma vez.  Obcecado por esta idéia, não percebi então da ausência dos selos do procurador. Depois do surpreendente deslocamento das pedras que tapavam o túmulo, tinham ficado espalhados pelo chão da estreita   passagem.      Apoiei a vara de Moisés contra a rocha e enchendo os pulmões de ar, pus-me de cócoras e lancei um olhar tímido para o fundo da cripta. Mas as trevas impossibilitavam qualquer observação. Não tinha outro remédio senão entrar.      Fechei os olhos e, obrigando os músculos a me obedecerem, entrei de repente. O pavor - mais do que medo - secou-me a garganta. Abri os olhos e, durante alguns segundos, permaneci na mesma posição: de joelhos sobre o chão  áspero e rochoso, esforçando-me por dominar os nervos e enxergar alguma coisa naquela câmara de três metros de largura por um metro e setenta de altura. Precisei de vários minutos - intermináveis como séculos - para ver a forma das seiras cheias de entulho e da picareta num canto da sepultura.      Estava frio ou era o terror que tinha gelado as minhas veias?      Lentamente, com a remota esperança de que os meus dedos tropeçassem no corpo do Mestre, estendi os braços. Se bem me recordava, o   banco escavado na pedra estava a pouco mais de meio metro do chão.      Entre tremores, os meus dedos chocaram com a parede e uma convulsão percorreu-me as entranhas. Tateei o muro. Fui levantando as mãos e senti logo o fio. Detive-me. Um pouco mais E num impulso estendi os dedos para a escuridão.      Meu Deus!      Só encontrei o vazio. Um espesso e revelador vazio. Vasculhei o ar, à direita e à esquerda, numa tentativa inútil de apalpar o cadáver. Nada.       Ao colocar as mãos em cima da plataforma rochosa, uma nova e intensa   cãibra sacudiu-me até à medula dos ossos. Identifiquei o lençol de linho.   Parecia estar na mesma posição em que eu o vira horas atrás. Levantei-me e, inclinando-me sobre a mortalha, comecei a examiná-la. Na cabeceira, por baixo dela, notei que havia uma forma dura, rígida e ovulada. Não pode ser!      Com toda a delicadeza de que fui capaz, levantei a parte superior do lençol, tentando confirmar as minhas suspeitas. Mas era tal a escuridão que
foi uma tentativa inútil.      Decidido a acabar com as minhas dúvidas, passei a mão direita por entre as duas metades do tecido até tocar naquela forma. Incrível!      Com efeito, tratava-se do xale ou sudário que Nicodemo tinha dobrado e atado em volta da cabeça de Jesus, levantando assim o maxilar inferior para evitar que ficasse com a boca aberta.         - Deus do céu! - exclamei, sem conseguir conter o meu espanto, Como é possível? O desconcertante desaparecimento do corpo não alterara a posição original do sudário, que continuava no mesmo lugar e abraçando uma cabeça inexistente.      A lógica e o meu senso comum ficaram seriamente afetados. E, durante mais de um minuto, continuei ali, totalmente desconcertado. Se o cadáver tinha sido roubado, lutava eu por racionalizar o assunto, porque é que os panos estavam como se ninguém tivesse tocado no Rabi?      O normal teria sido que, ao mexerem no corpo, o lençol que o envolvia caísse para o chão. Ou que fosse juntamente com os restos mortais do Crucificado. Teria sido mais cômodo transportá-lo, aproveitando precisamente aquele grande lençol.      Tive de render-me à evidência. Apesar de saber que, sem a menor consistência científica, aquele cadáver parecia ter-se esfumado ou evaporado. Só assim se podia perceber que o linho que repousava sobre a sua parte frontal tivesse caído docemente sobre a metade dorsal. Emocionado deixei-me levar, antes de abandonar o lugar, por outro impulso irresistível.       Aproximei os meus lábios do lençol e dei-lhe um beijo cheio de fervor. Nesse instante captei algo novo: um cheiro penetrante e, de certo modo, familiar. Mas não soube identificá-lo.       Dei um último olhar à cripta e, rapidamente, voltei para a radiante claridade. A minha habitual falta de jeito e o fato da abertura do sepulcro ser tão estreita fizeram com que, ao sair, desse uma pancada enorme no meu ombro direito. A minha intenção era regressar a Jerusalém e localizar as mulheres. Tinha de reconstituir os acontecimentos na propriedade de José durante os minutos que antecederam o nascer do Sol. Mas aquela pancada que dei na mó foi providencial. Peguei de novo na vara" e, enquanto alçava o meu ombro dorido, reparei noutro pormenor singular.      A pedra que habitualmente servia para tapar o poço e que fora colocada pelos soldados ao pé da pedra redonda para reforçá-la, - ao
contrário da segunda pedra -, esta mó de moinho não estava caída no caminho. Tinha rolado para a esquerda, seguindo o rego de vinte centímetros de profundidade e trinta de largura que havia ao pé e a toda a largura da entrada. Como foi possível?"      Nem os soldados nem eu próprio tínhamos visto sair ninguém de dentro do túmulo, que pudesse tirar aqueles setecentos quilos, ou talvez mais. Imaginar que alguém pudesse é pouco verossímil. A verdade é que a grande pedra circular de um metro de diâmetro tinha sido retirada, deixando a entrada praticamente escancarada. Só uma parte da mesma - uns trinta centímetros – continuava obstruída pela borda direita da mó. Naturalmente, aquele vão era suficiente para permitir a passagem de uma pessoa. Contudo, contrariamente ao que tinha sido revisto pelo Cavalo de Tróia, o movimento das pedras, a julgar pelo que eu tinha diante dos meus olhos, não pôde ser devido a uma explosão no interior da cova.         É verdade que eu vira sair uma labareda de luz" que se propagara até às árvores mais próximas. Aquela língua de um branco azulado, no entanto, não foi acompanhada de qualquer detonação e, além disso, fora posterior ao deslocamento da pedra que fechava o túmulo. Se tivesse produzido uma onda expansiva, a laje principal teria caído e teria se partido pela base.      Examinei a pedra sem encontrar qualquer vestígio da hipotética explosão. Era claro que algo" ou alguém - com uma força mais que respeitável - a tinha feito rolar. O mistério, longe de ser esclarecido, complicava-se de minuto a minuto.      Subi os degraus e, quando cheguei ao topo, voltei-me para o sepulcro. Era estranho, muito estranho, aquela labareda luminosa não ter chamuscado os degraus ou as paredes do fosso. Medi com os olhos a distância em linha reta desde a entrada até onde me encontrava. Não chegava a três metros. E logo a seguir guiado pela intuição, dei meia volta e olhei para as árvores de fruto, situadas a pouco mais de quatro metros. A língua  prolongara-se - seguindo uma via de escape natural - em sentido oblíquo e até à ramagem daquelas árvores. No total, uns sete metros. Fui andando até à base de um corpulento sicômoro que de acordo com   a trajetória da radiação, deveria ter sido o mais afetado. Eu estava certo.       Parte da folhagem e um grande número de bagas apresentavam um aspecto diferente do resto da árvore. A ramagem estava ressequida e cinzenta. Como se uma súbita onda de calor a tivesse calcinado. Parti uma pequena  mostra, apanhando também alguns figos. E ao cheirá-los, tive a
mesma sensação que ao beijar o lençol. As bagas, sobretudo, desconcertaram-me.       Estavam consumidas e duras como fósseis. Dei uma volta àquele belo exemplar, não consegui descobrir mais nenhum sinal de secura. O sicômoro apresentava uma florescência normal. Talvez uma análise minuciosa no berço pudessse fornecer alguma luz sobre este enigma tão desconcertante. E, depois de guardar no saco algumas bagas, várias folhas e dois ou três raminhos, dirigi-me para a cancela disposto a procurar as mulheres. Elas - eu tinha certeza - podiam ajudar-me.       Eram sete horas e trinta minutos. Dos pequenos montes do norte, Jerusalém aparecia ao caminhante como um veado deitado nas colinas. A luz da manhã branqueava as suas muralhas, pintando de vermelho e amarelo o calcário das suas casas bizarras, quadradas, que galgavam por ambas as encostas do vale do Tiropéon. Nos grandes bairros - o do noroeste e o de Acra ou súq ha-tajt“n - elevavam-se, preguiçosas, grande número de finas colunas de fumo cinzento.       A vida despertava, pujante e livre. Entre o ocre cúbico daqueles milhares de casebres, separados por outras tantas sombras móveis, os Palácios dos Asmonianos, de Herodes e dos Sumos Sacerdotes, com as suas torres de pináculos dourados e brancas açoteias. Mais além a oeste, o peregrino podia vislumbrar o quebrado perfil da muralha abraçando a cidade e estendendo-se, desafiador, até ao cume do cerro   do Gareb.      Uma comichão foi-me invadindo à medida que me aproximava da movimentada Porta dos Peixes, na muralha norte. Desde as primeiras horas que o vaivém de homens, animais e carros era constante. Lancei um olhar para a forma comprometedora como estava vestido e, com uma ponta de receio, agarrei-me com força à vara", caí naquela mar‚ de comerciantes, hortelãos, pastores, peregrinos de mil terras e rebanhos de balidos monótonos.      Jornaleiros tão andrajosos como eu, transportando toda a espécie de ferramentas agrícolas, saíam em bandos ou solitários, rumo aos hortos e campos de lavoura.      Às portas da cidade, aleijados, mendigos e vagabundos estendiam os seus famélicos braços à passagem dos viajantes fazendo soar um ou outro lepton no fundo das suas escudelas, apregoando as suas misérias entre lamentos ou suplicando benevolência e caridade.      Vários traficantes de Alexandria, trajando luxuosas vestes de linho, contemplavam, extasiados, a resplandecente e altiva cúpula do Templo,
provocando comentários de admiração entre os judeus menos favorecidos pela fortuna. E entre tanta confusão, centenas de peregrinos, entrando e saindo do recinto amuralhado, esquivando-se mutuamente ou desculpandose com gestos exagerados e intermináveis quando tropeçavam uns nos outros. Havia os de todas as latitudes: hebreus da Babilônia, de negros mantos até às sandálias, persas de rutilantes sedas recamadas de ouro e prata, judeus das mesetas da Anatólia com as suas típicas opas ou fraldas de pele de  cabra e fenícios de calções multicoloridos.         Ao atravessar o arco da Porta dos Peixes um cheiro penetrante de peixe fez-me recordar que ali era o lugar habitual dos Tírios. À sombra da muralha, uma dezena de fenícios - todos eles pagãos – animava a clientela para que provassem as excelências das recentes capturas do lago de Genesaret e da vizinha costa de Tiro". Ao olhar os carros pude distinguir alguns belos exemplares de percas, salmões, timalos e lúcios, cuidadosamente protegidos entre folhas de feto e grosso sal diamantino. Astutamente, punham à vista os peixes considerados puros - todos os que a Lei de Moisés classificava como impuros - eram escondidos debaixo dos carros - os que não tinham escamas ou barbatanas.      Depois de ter suportado doze a quinze horas desde a sua possível saída do litoral mediterrânico a mercadoria não estava muito deteriorada. A neve, embora conhecida e utilizada como meio de conservação de alimentos, ainda era um artigo de luxo, apenas acessível às mesas dos imperadores e dos ricos.      Quando rejeitei a oferta de um dos vendedores, e ao captar o meu sotaque estrangeiro, o tírio piscou-me o olho. Puxou um cesto escondido debaixo daquela improvisada banca e, num tom de cumplicidade, informou-me que as suas raias, lampreias, lagostas, enguias e siluros não tinham por que invejar os peixes "puros".      Correspondi-lhe com um sorriso e, desejando-lhe saúde, afastei-me daquele lugar empestado e enlouquecedor.       Curiosamente, a maior parte dos clientes eram homens – judeus de barbas espessas e bigodes - vestidos com os seus roupões clássicos às riscas verticais, vermelhas e azuis – agarrados aos cestos de palha, que levavam na mão e em que iam colocando as compras.      Fui abrindo passagem para o lado sul, aos tropeções, à procura da muralha que separava o setor noroeste no não menos concorrido bairro ou cidade baixa.
* Tal como narra Josefo em A Guerra dos Judeus, V 42143, esta muralha,
conhecida como a primeira, partia do flanco norte, onde está a Torre Hippico, estendia-se do Templo, seguindo depois até à Cúria e terminando no pórtico.
      As vielas de Jerusalém, com a sua desordem infernal sempre foram um tormento. E as que iam ao grande mercado do bairro mais alto - o súq haelyon - não o eram menos. As casas e oficinas de adobe, encostadas umas às outras e estas sobre aquelas, fundidas num labirinto de sombras, becos sem saída e centenas de degraus úmidos e pestilentos, devido à urina das crianças e dos animais de carga, eram um grande problema para quem quisesse orientar-se.       Embora pareça mentira  - cada zona da cidade possuía o seu cheiro característico - e foram os ruídos e os cheiros - que mais me ajudaram a descobrir onde diabo estava.      Naqueles momentos, por exemplo, o ruído surdo e monótono dos pisoeiros lavando, impermeabilizando e transformando em feltro a película da lã e os tecidos a saírem dos teares, fez-me recordar que ainda me encontrava no bairro alto; o setor pagão por excelência, onde - segundo os doutores da Lei – o cuspe daqueles pisoeiros era tido por impuro. Conforme fui descendo, tentando não escorregar nas pedras, gastas e redondas, da calçada - em Jerusalém era impossível caminhar mais de quinze minutos seguidos sem descer ou subir escadas - o bater inconfundível e ritmado dos caldeireiros foi abafando a atividade dos pisoeiros. De vez em quando via-me forçado a colar-me às paredes, para dar passagem a um dos numerosos e dóceis asnos de mascate, de orelhas compridas e altas, de um pêlo quase branco e tangidos sem piedade por crianças, velhos e adultos. Aqueles sofridos animais - carregados com canastros   sebentos a gotejarem, nos quais balançavam bojudas ânforas de azeite ou de vinho - eram tão abundantes na Cidade Santa e em toda a Palestina, que os seus excrementos, pisados pelo constante vaivém das pessoas, formavam um todo com o pavimento das ruas. Na realidade, só algumas praças e as poucas ruas principais -  as duas ruas com arcadas dos dois mercados, por exemplo - ‚ que eram varridas todos os dias   pelos coletores de lixo e vassoureiros oficiais. (R. Shemaya bar Zeera   escreve que as ruas de Jerusalém eram varridas todos os dias. E era verdade, Mas a limpeza limitava-se a uma parte mínima do centro urbano)         À porta das tenebrosas habitações, mulheres com grandes mantos verdes, castanhos e de outras cores indefinidas, de tão sujos que estavam,
atarefavam-se debruçadas sobre as panelas de barro cozido, enchendo o ar de cheiro acre da gordura quente e das especiarias e cobrindo o rosto à passagem dos homens. E entre os degraus e patamares daquela rede de vielas pestilentas dezenas de crianças de cabeça rapada, olhos negros e profundos e pele fustigada por nuvens de moscas e crostas purulentas, tudo conseqüência da péssima higiene.       A criançada, alheia a tanta miséria, enchia a manhã do primeiro dia da semana com os seus gritos, saltos e brincadeiras, sonhando aventuras com leviatãs ou pequenos crocodilos de madeira, passarinhos de barro avermelhado e tosco, matracas trepidantes e uma ou outra carica de pedra, decorada com lindas cores.   Embora a escola tivesse sido instituída havia alguns anos, muitas daquelas crianças e daqueles adolescentes eram instruídos pelos pais - quase   unicamente na Tora -, passando a partir dos cinco anos, para a aprendizagem do ofício do seu progenitor. Na maior parte dos casos, as suas vidas já estavam marcadas pela profissão do pai. Espero poder referir-me mais adiante a este curioso capítulo do ensino, dedicado exclusivamente aos rapazes.       Por fim, vislumbrei a larga rua principal, com arcadas, sede do mercado do bairro alto da cidade. Ali, o tumulto ultrapassava tudo quanto se pudesse imaginar.      Sob as colunas e sobre o empedrado central, os grêmios empenhavamse nas suas tarefas, chamando a atenção dos possíveis compradores com os seus gritos, cânticos e estentóreos pregões. Os bufarinheiros ambulantes propunham negócios e trocas: túnicas purpúreas de Sídon, anéis e meiasluas de ouro, tapetes ou tecidos finos de bysus em troca de plantas medicinais madeiras, frutas, mel ou é claro, denários de prata.   Muitos daqueles artesãos - a Bíblia chega a citar vinte e cinco ofícios - eram facilmente reconhecíveis pelos seus emblemas ou distintivos. Os carpinteiros, por uma apara na orelha. Os alfaiates, por uma agulha grossa de osso espetada na roupa. Um trapo de cor, por exemplo distinguia os tintureiros.         Enquanto atravessava aquele mercado, esquivando-me de toda a sorte de trastes velhos de bronze e das mais variegadas exposições de sandálias de couro de vaca ou de pele de camelo mantos da Judéia, xales e túnicas dos hábeis tecelões galileus, olaria de Hebron, Maresa, Cefáe Socob, redomas de vidro, marfim, refinado alabastro ou pedra calcária que continham ungüentos e perfumes, chamou-me a atenção o círculo, ocupado pelos médicos.       Naqueles tempos, o conceito de médico era muito mais impreciso do
que nos nossos dias. Eram considerados artesãos - úmanut - e, como diz uma passagem do tratado rabínico Kidduchin (LXXXII, a), tão pessimamente valorizados como em todos os outros tempos. O melhor dos médicos, lamentava-se um dos rabinos no referido Kidduchin está destinado à Geena Os seus honorários, como sempre, oscilavam de acordo com a sua categoria. Havia-os tão notáveis que nunca se ocupavam do povo preferindo os presentes e boas graças dos poderosos. Os médicos das tripas, por exemplo, eram os responsáveis pelo cuidado dos sacerdotes do Templo, quase sempre sofrendo de problemas intestinais por causa da excessiva alimentação em carne.      Outros, cujos preços eram muito baixos ou irrisórios, eram tidos por inúteis, um dos galenos, Ao perceber-se da minha curiosidade, pôs-se de pé e, apontando para a minha barba desalinhada, prontificou-se a apará-la por um assep.      Ao recusar, prosseguiu com o resto das suas habilidades: extração de algum queixal? Circuncisão? Uma sangria?. Uma beberagem?      O homem, empenhado em atender-me no que fosse preciso, convidoume a ver a sua botica. A verdade é que as suas explicações demonstravam um profundo conhecimento das virtudes curativas das plantas. O hebreu invocou o Livro de Salomão, fazendo-me ver que estava a par da lista pormenorizada de remédios nele contida:       - Áleo, unções suavizantes. Mel para as feridas abertas ou como remédio para as anginas.   Sofres de antraz? Tenho aqui um emplastro de figos prodigioso. Ou preferes o vinho misturado com aloés púrpura? Mudo e sorridente, deixei que ele explicasse. - Se tiveres filhos, dá-lhes desta avenca. Acaba com as lombrigas num abrir e fechar de olhos. O médico indicou então uma coleção de cestinhos de palha descolorida, repletos das mais variadas ervas: alecrim, hissopo, centinódia, arruda, charamela-de-pastor ou begônia.      - São excelentes contra as doenças da barriga. Também tenho água de Dekarim.      Ao perguntar-lhe sobre aquele remédio, o judeu informou-me que era extraído da raiz de algumas palmeiras. Mas, cioso dos seus conhecimentos, pediu-me que compreendesse a sua curta explicação.      - Sofres de palpitações? Tenho o que há  de melhor E, pegando num cântaro de bico, animou-me a examiná-lo. Um cheiro nauseabundo a leite coalhado obrigou-me a fazer uma careta. O médico sorriu.  
      - É uma mistura de cevada molhada e leite de camela coalhado.   Podes provar.      Neguei-me rotundamente.      E o artesão-médico-curandeiro - insensível ao desânimo prosseguiu na enumeração dos gêneros que tinha à vista:      - Cataplasmas de salmoura de peixe para o reumatismo. Alho ou raiz de parietária para a dor de dentes? Sal ou levedura para as gengivas? Ou preferes uma pitada de mandrágora?       Piscou-me o olho, acrescentando que aquela solanácea – tão parecida com a beladona - podia estimular a minha potência sexual.      - Tens pai?      Não me deixou responder.      - Este extrato de fígado é o indicado para curar cataratas. Também tenho ventosas, colírios contra o rigor do sol.      Esgotado o seu repertório, concluiu, mostrando-me uma adaga muito afiada.      - Se ainda não fizeste os quarenta, posso praticar-te uma benéfica sangria a cada trinta dias. O que dizes?      Pelo meu aspecto saltava à vista que já ultrapassara, e bastante, aquela idade. E para não o defraudar pedi meio log do empestado leite coalhado, de duvidosa eficácia como sedativo. Pouco depois, em casa de Elias Marcos, iria ter a oportunidade de comprovar as suas decantadas excelências. Ao deitar os duzentos e cinqüenta gramas da poção numa minúscula redoma de vidro esverdeado, o úmman não deixou de elogiar a minha grande inteligência e bom gosto, garantindo-me que tinha feito uma boa compra. Mas os seus exagerados elogios transformaram-se em gritos de admiração e surpresa quando, obrigado pelas circunstâncias, não tive outro remédio senão colocar nas suas engelhadas mãos um denário de prata. Naquele momento não tinha uma moeda mais pequena e, para minha desgraça, os uivos de alegria do médico, alertaram os outros vendedores, que se precipitaram sobre mim como corvos carniceiros sobre uma suculenta peça. Saltei como pude por entre aquelas bugigangas e os cestos de frutas e hortaliças, safando-me das garras dos gesticulantes e charlatões perfumistas, alfaiates, sapateiros e todo o tipo de artesãos, fugindo rua abaixo e   confundindo-me entre os peões que entravam e saíam do agitado bazar.         Ninguém me seguiu. Uma vez recomposto da investida atravessei a primeira muralha contornando o mastodôntico Palácio dos Asmonianos na
direção ocidental. O grandioso edifício – que seria restaurado e ampliado por Agripa II - marcava para mim o início da Cidade Baixa.         Aquela zona de Jerusalém estava ligeiramente mais bem urbanizada que o território dos tírios, gregos sírios e outros pagãos impuros. Algumas das suas vielas, com pedras brancas e calcárias, mantinham um simulacro de paralelismo, quase obrigatório devido ao profundo desnível entre os dois extremos do setor sul da Cidade Santa. O que se situava à sombra da muralha ocidental - dominado pelo Palácio de Herodes e pelos jardins reais - erguia-se sobre uma das cotas mais elevadas de Jerusalém: setecentos e sessenta metros. Dali, os cachos de casas cúbicas, caiadas e com portas e janelas minúsculas, precipitavam-se em sucessivos e intermináveis terraços sobre o lado oposto: o muro oriental.       Neste lugar,  junto à Piscina de Silo‚ e à Porta da Fonte, o nível do terreno era muito mais baixo: seiscentos e sessenta metros, aproximadamente. Uma inclinação tão pronunciada tinha obrigado os construtores a uma edificação escalonada, aberta cada cem ou cinqüenta metros por ladeiras - mais do que ruas - que, começando no citado palácio de Herodes, o Grande, cobriam os mil metros que separavam aquele lugar do ângulo sul. Eram estas as artérias mais bem pavimentadas, dispondo até de pequenos regos centrais que escoavam as águas das grandes chuvas. Havia também outra rua principal - a do mercado sul paralela ao muro ocidental do Templo e da qual partia outra teia de ruas mais pequenas, tão escuras, estreitas e pestilentas como as que acabava de deixar para trás.       O piso da rua com arcadas suportava as aduelas de um arco - hoje conhecido como arco de Robinson - que ligava o Átrio dos Gentios com a parte norte.       Pressionado pelo tempo e sem o menor desejo de repetir a minha agitada experiência anterior, tomei como referência as altas torres de Marianne e Phasael, no Palácio de Herodes, e dirigi os meus passos para poente. Dei a volta ao bairro das tinturarias e, após uns momentos de dúvida, identifiquei o grande casarão de Anás e o murinho gradeado que cercava o memorável pátio das negações de Pedro. Mais ou menos um minuto depois, ao dobrar uma das esquinas, surgiu diante dos meus olhos a luxuosa mansão dos Marcos. Com certa premência, Eliseu recordou-me que faltavam duas horas e meia para o meu regresso obrigatório ao módulo.      Avancei devagar, olhando a sólida fachada de pedra trabalhada, transportada pelos pais de Elias Marcos das pedreiras de Beth-Kerem,
numa colina próxima de Téqoa. A mansão de dois andares - de tão cálidas recordações – parecia morta.      Silencioso,  Pus-me diante da alta e pesada porta de carvalho, contemplando e reconhecendo a mezuza que enfeitava o seu lado direito: uma fina tira de madeira de sicômoro de dez por três centímetros, incrustada na ombreira e em cuja superfície tinham sido gravados a fogo os mandamentos de Deus. Todo o judeu respeitoso da tradição tinha o especial cuidado de tocar na mezuza com os dedos, levando-os depois aos lábios quando saía e quando   voltava ao lar. Inspirando profundamente, empurrei uma das portas, que girou preguiçosamente nos gonzos. Transpus o pequeno vestíbulo e, ao entrar no espaçoso pátio a céu aberto, distingui no fundo algumas caras conhecidas.  O jovem João Marcos, de cócoras, observava atentamente um dos criados. O criado com um pau comprido batia com força num odre de pele de cabra inchado que estava pendurado num tripé de madeira.       Um segundo criado, ajoelhado diante dos toscos madeiros, segurava dois deles procurando que as certeiras pancadas não os deslocassem do piso de ladrilhos vermelhos.      Era uma forma ancestral e habitual entre os povos do Oriente à hora de fazer manteiga. O odre era cheio com leite azedo - geralmente de cabra ou de ovelha, Já que o de camela não tem nata - e, de acordo com os costumes de cada região, golpeado ou agitado, remexendo assim o conteúdo.      - Paz aos desta casa!      Ao ouvir a minha tímida saudação, o filho de Elias voltou o rosto, ao mesmo tempo que o criado suspendia o seu trabalho. Os olhos negros do audaz adolescente abriram-se de par em par e, de um salto, lançou-se em direção a mim, abraçando-se ao meu peito.      - Jasão! Ouviste o que dizem as mulheres? Tomei o seu rosto entre as minhas mãos e, agradecendo aquele gesto de afeto, sorri para ele, negando com a cabeça.      - Onde tens estado? Todos falam do Mestre. O seu túmulo está vazio. As mulheres dizem.       Passei o meu braço sobre os seus ombros e, atabalhoadamente, enquanto nos aproximávamos dos criados, foi-me informando de alguns dos pormenores dos acontecimentos ocorridos pouco antes.      - Paz, irmão! - responderam os criados, retomando as pancadas no odre.      O rapaz, cada vez mais entusiasmado, saltava de um tema para outro, multiplicando a minha considerável confusão. Pedi-lhe que se sentasse e,
acariciando as suas faces empalidecidas, tomei a iniciativa.   - Diga-me, filho. As mulheres estão aqui?      - Estão, sim, amigo Jasão.      O esclarecimento veio da boca de Maria, a mãe, que, com o rosto radiante de felicidade, me contemplava de uma porta que estava por trás dos criados, no extremo oposto ao lugar por onde eu entrara no pátio. Embora não fosse costume entre os Judeus, apressei-me a ir ao seu encontro e aliviá-la do pesado cântaro que trazia à ilharga esquerda.      - Bem-vindo, irmão!      Sem mais comentários, encaminhou-se para um dos cantos do pátio, prestando atenção à cozedura do pão. Segui-a em silêncio. Ardia em desejos de lhe fazer perguntas, mas, prudentemente, esperei que acabasse.       A mulher inclinou-se sobre uma prancha de ferro convexa, observando as dez ou doze bolas redondas, que apresentavam uma apetitosa tonalidade dourada. Aquela espécie de escudo metálico descansava sobre uma lareira igualmente circular, feita de negras pedras basálticas. Junto ao fogo, espalhados pelo chão, contei três alguidares de pedra de diferentes diâmetros e profundidades, um grande caldeirão de bronze e uma tigela, também de metal.      Uma vez moído o grão, as mulheres tinham colocado a massa, feita à base de farinha, água, sal e levedura, distribuindo-a por aqueles recipientes. Depois de amassada à mão, a pasta leitosa era delicadamente cortada em forma de bolas e colocada sobre o ardente e improvisado forno.      Maria tocou num dos pães com a ponta do indicador esquerdo e, suspirando, endireitou-se e levou as mãos aos rins.         - Esta dor vai dar cabo de mim.      Antes que eu pudesse perguntar pela sua saúde, Maria perdeu-se pela porta escura por onde eu a vira aparecer. Coloquei o cântaro no pavimento de tijolo e reparei que se tratava de leite quente. João Marcos, de novo ao meu lado, tinha compreendido as minhas verdadeiras intenções. E, disposto a agradar ao pagão que, segundo ele, tinha demonstrado mais coragem do que muitos dos discípulos do seu amado Rabi, fez-me a pergunta-chave:      - Queres falar com elas?      Agradeci a sua boa vontade, insinuando-lhe que talvez devesse aguardar a licença da dona da casa. E estávamos nisso quando se apresentou de novo, tão diligentemente como tinha desaparecido da nossa vista, a mulher de Elias Marcos.       Segurava uma grande bandeja de madeira com duas pilhas de tigelas
fundas, igualmente de branca madeira de pinho. Ao ver-me, esboçou um sorriso de cumplicidade. Naquele instante não compreendi a razão da sua transbordante alegria. Mas soube logo a seguir. Ela, como David Zebedeu e muito poucos seguidores mais, recordavam-se e acreditavam na promessa do Galileu. Maria foi das primeiras a conhecer a realidade do sepulcro vazio e não hesitou em associá-la com a prometida ressurreição.       Fraco serviço o dos evangelistas ao não deixarem registro deste núcleo de personagens apagados que, ao contrário dos apóstolos, souberam estar à altura das circunstâncias! Mas não precipitemos os acontecimentos.      Indicou-me que a ajudasse com a bandeja. E, um a seguir ao outro foi pegando nos pães de trigo e colocando-os uns em cima dos outros ao lado das tigelas. Depois, ajeitando o cântaro no quadril, piscou-me o olho e fezme sinal para que a acompanhasse. A aguda intuição da hebréia vinha simplificar a minha tarefa.      João Marcos, alvoroçado, correu à frente, desaparecendo na penumbra do vestíbulo. Ao começar a subir os degraus que levavam ao andar de cima, o meu coração acelerou. Se as minhas informações não estivessem erradas, ali mesmo, na câmara onde se realizara a última ceia estava reunida a maior parte dos amigos íntimos de Jesus de Nazaré. Na tarde anterior – sábado -, os onze apóstolos e outros discípulos tinham realizado uma espécie de reunião de emergência, na qual analisaram a sua triste situação. Embora eu intuísse o estado de espírito generalizado, a extraordinária possibilidade de o comprovar por mim mesmo encheu-me de excitação. Que me esperaria do outro lado daquela porta? Enganei-me. A cena que surgiu diante dos meus olhos foi mais dolorosa e deprimente do que havia imaginado. Maria entrou em primeiro lugar. E o seu filho, segurando a porta   aberta, deu-me passagem.       Recordo que a minha primeira impressão foi um cheiro desagradável. Um característico cheiro acre a lugar fechado e ocupado durante muito tempo por seres humanos. A luz matinal entrava muito reduzida pelas frestas esguias das paredes daquela memorável sala retangular, de vinte metros de comprimento e seis ou sete de largura.       Os candelabros das  paredes, com as suas chamas brilhantes e amareladas, não eram  suficientes. Em cima da mesa em U, os criados tinham colocado outro par de lâmpadas de azeite, que só contribuíam para endurecer o perfil dos presentes.      Custei muito para perceber onde estava e começar a distinguir as formas e silhuetas dos ocupantes da escura e carregada sala. A maior parte
dos divãs continuava nos mesmos lugares onde eu os vira na noite de quinta-feira: estrategicamente distribuídos em volta da mesa em U. Só um tinha sido retirado e encostado à parede da direita (tomando sempre como referência a porta de entrada da sala). Os meus olhos foram-se adaptando à penumbra e, entre as sombras, enquanto a mãe de João Marcos deixava o leite junto da mesa e me tirava a bandeja pareceu-me ouvir uns gemidos.       Ao fundo no canto esquerdo, descobri então a origem dos velados lamentos. Eram quatro ou cinco vultos. Avancei um ou dois passos, sentindo o ranger do soalho. João Marcos agarrou-se ao meu braço, puxando-me para aquele canto.       Diante de mim, reclinados ou sentados em nove dos doze bancos, encontrava-se a maioria dos apóstolos. O mutismo entre eles era total. Numa primeira e deficiente observação não soube se os que se encontravam recostados estavam dormindo ou, simplesmente, descansavam. Creio que nem olharam para mim. Deixei-me levar pelo rapaz, caminhando lentamente perto dos abatidos galileus. Sim, talvez seja essa a expressão mais adequada: abatidos, com as cabeças inclinadas e as mãos tensas e crispadas entre as dobras dos mantos multicoloridos. Parei um instante, contando de novo e tentando identificá-los.      Faltavam dois. Judas Iscariotes, é evidente, e outro. Mas qual? O décimo homem, o que estava reclinado no divã retirado, tinha o rosto colado à parede. Em volta da mesa em U reconheci os irmãos Zebedeu, Mateus Levi, os gêmeos - os quais, com a sua habitual presteza, acabaram por se levantar e ajudar Maria a encher as tigelas com o leite quente -, Filipe, o intendente, e Bartolomeu - ambos deitados e com as cabeças semi tapadas com os roupões -, o chefe deles todos, André, que não deixava de olhar para o canto donde saíam os intermináveis soluços, e Pedro, sentado e a esfregar a suo rosto redonda com as duas mãos. O décimo apóstolo - o que se ocultava à direita da sala - só podia ser Simão, o Zelota, ou Tomé.         João Marcos acabou por me levar até ao lugar onde, de fato, se agrupavam cinco mulheres. Uma delas estava rodeada e assistida pelas outras. Mas, de repente, quando me dispunha a certificar-me da identidade daquela que gemia, uma voz conhecida, potente e rouca obrigou-me a virar-me para trás.      - Visões!. Isso é o que tivestes! Visões próprias de mulheres assustadas e malucas!         Pedro, de pé, gesticulando e com o pescoço inchado por aquele arrebatamento súbito, continuou num tom de censura.  
      - O túmulo vazio!. O jejum e o choro transtornaram-te. Malditas sejam! Porque não nos deixas em paz com a nossa dor?      André intercedeu, pedindo calma ao seu fogoso irmão. E Simão, resmungando, sentou-se de novo, enquanto Judas de Alfeu - um dos gêmeos - lhe oferecia uma tigela e um pão de trigo. Mas o pescador, com a mão, atirou a tigela para o chão, esparramando o leite no brilhante soalho de madeira. A típica reação violenta de Pedro só contribuiu para exaltar ainda mais os ânimos. Vários discípulos criticaram a sua atitude, enredando-se numa áspera troca de insultos e impropérios.       Aquela explosão - como me confirmaria André pouco depois – não era outra coisa senão a conseqüência lógica e humana da grande pressão a que estavam submetidos desde a prisão e crucificação do Rabi. Não eram as dúvidas ou o desespero que tinham ofuscado a inteligência daqueles homens.       Era algo muito pior: o medo do Sinédrio e da guarda do Templo e a vergonha individual e coletiva perante a ignominiosa execução do guia. O fato de terem permanecido durante tantas horas no andar de cima da casa dos Marcos, com as espadas atadas à cintura e sem forças para regressar aos seus lares, na Galiléia, era a melhor e a mais palpável demonstração do terror que os dominava. É claro que esta situação tão tensa tinha-os levado até a esquecerem-se das promessas de Jesus sobre o seu regresso à vida. Por isso, quando as hebréias correram a toda a pressa para o cenáculo, todos, sem exceção, as tomaram por loucas, estúpidas e visionárias. No meio dos gritos e das maldições, enquanto Maria procurava, silenciosa e pacientemente, limpar o leite derramado e João Marcos, assustado, se agarrava ao meu braço, umas pancadas secas ecoaram no aposento. O discípulo que estava deitado no divã encostado à parede, tinha começado a bater com a cabeça. João, o Zebedeu, saltou do seu assento e lançou-se sobre o seu companheiro, segurando-o pelos ombros. Mas o robusto apóstolo, invadido por um ataque de histeria e desespero, continuou a bater com a cabeça na parede.       Impotente, o magro e jovem discípulo voltou-se para o grupo pedindo ajuda. André e os gêmeos  acudiram logo e imobilizaram Simão, o Zelota. Efetivamente, tratava-se do impulsivo simpatizante do grupo revolucionário. Tal como o Mestre o tinha avisado na última ceia, aquela tragédia lançara-o numa desolação sem paralelo entre os seus irmãos. Todos os seus ideais, os seus sonhos e as suas ânsias de liberdade se tinham desmoronado com a notícia da morte de Jesus.      Desfiz-me repentinamente do cajado e, aproximando-me do agitado
galileu, esforcei-me por examiná-lo. Simão, com os olhos fechados, lutava por se libertar dos braços dos seus amigos. Cabeceava constantemente, procurando a parede, emitindo uma série entrecortada de gritos agudos e angustiados. Agarrei-o, como pude, pelo pulso, tentando calcular as suas pulsações. Estava muito acelerado. Peguei na redoma com a cevada e o leite coalhado e, a um sinal meu, André e o jovem Zebedeu obrigaram-no a abrir a boca.       Sem hesitar um segundo, verti parte da poção entre a sua negra e hirsuta barba. Ao sentir a repugnante mistura, os olhos dele abriram-se, espantados. Estavam vermelhos por causa daquelas longas horas de pranto. Pouco a pouco, entre suspiros e estremecimentos esporádicos, foi-se acalmando.       Não sei se foi a bebida ou as palavras de consolo dos seus irmãos, mas Simão, o Zelota, caiu num doce torpor, e, revirando outra vez os olhos, voltou a reclinar-se no divã, completamente alheio a tudo o que acontecia à sua volta.      Os gêmeos mantiveram-se ao lado dele enquanto João e André, com o olhar entristecido, voltavam para a mesa. O patético espetáculo de Simão arremetendo contra a parede acabara de repente com a discussão. E os abatidos seguidores do Nazareno entregaram-se, impotentes, a obscuras reflexões.         Mas o silêncio duraria pouco. Pegando de novo na vara, dei meia volta, disposto a prosseguir as minhas averiguações junto do grupo das mulheres. Não foi preciso.       Uma delas - a que  estivera soluçando - acabava de separar-se das suas companheiras, colocando-se a meio metro de Pedro. Era Maria Madalena, uma das mais destacadas hebréias ao mesmo tempo que temerária e sensata, de todas as que seguiam o Rabi. Ao vê-la, fiquei paralisado. Agora começava a compreender o porquê dos seus lamentos.      E aquela valente mulher, de queixo hipoplásico rosto estreito e triangular, olhos perdidos em órbitas profundas sombreadas por grandes olheiras, encarou com valentia o homem que a havia admoestado. A fúria inflamou as artérias do seu pescoço comprido e gracioso e um temível faiscar brilhou no seu olhar de azeviche. Pedro mal teve tempo de levantar os seus apagados olhos claros. Como um terremoto, a Madalena, colando as suas mãos ossudas e longas sobre o magro peito, jurou pelo nome de Deus vivo que não mentia, que não sofria de alucinação alguma e que - galileu teimoso! -, se quisesse, que fosse com ela mesma comprovar.
* Hipoplásico: de queixo recortado e desenvolvimento claramente incompleto. De acordo com a tipologia kretschmeriana, Maria Madalena enquadrar-se-ia, em grande parte, no biotipo dos leptossomicos": tipos de silhueta alongada, magros e esguios, nos quais predomina o eixo vertical do corpo. Só o seu nariz, reto e recolhido, não correspondia ao perfil típico desta classificação dos seres humanos. Em contrapartida, a pele, pálida e seca, os ombros estreitos e os membros compridos eram os habituais entre os leptossomicos". (N. do M)
      Simão Pedro empalideceu perante a justificada cólera de Madalena. Devido à veemência que mostrara, o manto que cobria a sua cabeça acabou por escorregar até ao chão, deixando a descoberto cabelos suaves, negros e desordenados. E os finos cordões dourados que pendiam dos orifícios dos lóbulos das orelhas oscilaram ritmadamente, ao mesmo tempo que naquela sala silenciosa se ouvia o entrechocar do seu colar de conchas.       Uma das mulheres, discretamente recolheu o manto e, entregando-o à furiosa Maria, tentou dissuadi-la. Mas ela - que não fora em vão cortesã na industriosa e dissoluta cidade de Magdala - sabia enfrentar os homens e, com a força que lhe dava a segurança e o conhecimento da verdade, afastou a companheira e acrescentou:      - E não só dou testemunho, como estas, de que o túmulo estava vazio. Como também vos juro que o vi e falei com Ele!         Pedro, farto de tanto palavreado, pôs-se a coçar a careca, e, encolhendo os ombros, voltou-lhe as costas. João Marcos veio salvar aquela situação embaraçosa. Antes que a Madalena arremetesse novamente contra o incrédulo apóstolo, o miúdo interpôs-se entre os dois contendores, pedindo à mulher que me contasse o que dizia ter visto e ouvido. Aquele impulso espontâneo do benjamim da casa pareceu acalmar os nervos da hebréia, e, perante a expectativa geral, fui acomodar-me num dos divãs vazios, ratificando o pedido de João Marcos.       Madalena observou-me com desconfiança. Ao que parecia, era o único homem, entre os ali reunidos, que mostrava interesse pelas suas palavras. Maria, a senhora da casa, contribuiu para distender aquela atmosfera desagradável, enchendo as tigelas restantes e oferecendo - solícita e conciliadora - o pão frio. Todos aceitaram com prazer, incluindo Pedro, que, com a mesma espontaneidade, pediu perdão à esposa de Marcos.       Madalena com um ar cansado, sem conceder muito crédito à minha boa fé, recolheu as pregas da sua túnica verde-erva e sentou-se de pernas abertas no divã de honra. Ao destapar parte das pernas, um leve brilho fez
com que eu reparasse num dos seus tornozelos. À trêmula luz dos candelabros, vi brilhar um alj“far - uma pequena pérola - presa numa fina corrente em volta do tornozelo.      Sorri para ela animando-a a começar. Depois de se cobrir com o manto, suspirou profundamente. Cravou os olhos em mim e, por fim, um sorriso de gratidão revelou uma dentadura impecável.      Eu estava prestes a conhecer o que - segundo aquelas mulheres - constituía o primeiro de uma longa cadeia de misteriosos e inquietantes acontecimentos.    - e a de Magdala indicou as quatro mulheres.      - Estas que vês aqui - e mais outras dez ou quinze que tinham ido sentar-se a seus pés - passaram a festa do shabbat crentes no reino do nosso Mestre, recolhidas na casa de José de Arimatéia. A nossa tristeza era tão grande, e a nossa desolação tão profunda, que muitas de nós julgávamos que íamos morrer. E, antes do alvorecer do primeiro dia da semana, de acordo com o prometido a José e a Nicodemo, pegamos nos óleos e aromas. - Então - interrompi-a, tentando encontrar o fio à meada - eram cinco?      - Sim.      E Maria foi apontando e identificando cada uma delas. - Joana, mulher de Chuzal. Maria, mãe dos gêmeos Alfeu. Salomé, de João e Tiago de Zebedeu, e Susana, a mais nova, filha de Ezra, o de Alexandria. Só o curtido rosto de Salomé me era familiar. A verdade é que eram tantas as mulheres que tinham seguido habitualmente Jesus e o grupo dos apóstolos que se tornava problemático reter os nomes ou as fisionomias. Mas qualquer dia terei de falar também destas esforçadas, imprescindíveis e esquecidas discípulas do Rabi da Galiléia. Sim, talvez mais a frente, supondo que Deus me continue a iluminar e a sustentar.      - Caminhávamos apressadas. Não tardaria a amanhecer e queríamos concluir o mais depressa possível o doloroso transe de lavar e preparar o corpo de nosso Senhor. Chegamos ao sepulcro e, ao ver a laje.       Maria Madalena ia depressa de mais na sua narração. Eu precisava de mais pormenores. Por exemplo o que sabiam elas das patrulhas de vigilância colocadas no sepulcro? O que pensariam fazer para que as deixassem entrar na cripta?      - Estava deslocada! Compreendes, Jasão?      Confrontava-me de novo com uma situação delicada. Tinha de proceder com muita delicadeza. Com a máxima. Por nada deste mundo eu
poderia sugerir, antecipar ou revelar o que sabia. Isso iria contra o rígido código moral da operação. Por isso, medindo as minhas palavras e os meus pensamentos, fui conduzindo a veemente Madalena para onde me interessava.       - No caminho - prosseguiu a mulher -, os meus irmãos e eu tínhamos mostrado alguma inquietação por causa da pedra. Tu viste-a e sabes que são precisos quatro ou cinco homens para a moverem. Porém, como eu estava dizendo, ao chegarmos às escadas vimo-la deslocada.       Levantei as mãos indicando que queria intervir. A de  Magdala, intrigada, deixou-me falar.         - Mas. e a guarda? A minha pergunta despertou interesse entre alguns dos esmorecidos discípulos.
* Chuza ou Cusa: ao que parece é um dos administradores da casa de Herodes, (segundo o evangelista Lucas 13) e Tanto Joana como Susana, foram curadas por Jesus de Nazaré. Desde essa altura seguiam-no. (N. do M)
      - Ah, sim! Esses bastardos!.      - Estavam lá? - insisti.      Com a mente confundida por tantas e tão excitantes emoções, a hebréia - como eu suspeitava - tinha-se esquecido de qualquer coisa. Foi Salom‚ quem se encarregou de recordar:       - Quando chegamos à Porta dos Peixes cruzamo-nos com uma patrulha da Fortaleza Antónia. Eram uns dez legionários. E pareciam ter muita pressa. Gritavam uns com os outros e não paravam de olhar para trás. Como se alguém os perseguisse.  Surpreendidas, tentamos averiguar o que estava acontecendo. Aquela zona, tu sabes, está deserta a essas horas e receamos que houvesse algum perigo.         - Qual, por exemplo?      - Não sei. Talvez bandidos ou animais selvagens. Mas os soldados, desfigurados e cheios de suor, ignoraram-nos e prosseguiram na sua precipitada correria para a fortaleza.      Era esquisito. Aqueles soldados da infantaria romana estavam mais do que acostumados a lutar com salteadores de caminhos e com animais. As mulheres deveriam ter percebido este fato indiscutível. Se pareciam fugir, a causa tinha de ser de outra natureza. Eu sabia qual era, mas durante alguns minutos, fiquei intrigado pelo fato de as cinco hebréias não terem
percebido o problema.      - Um momento - intervim novamente -, então ninguém as avisou da guarda enviada por Pilatos?      - Não, naquele momento não sabíamos que o sepulcro estava sendo guardado por uma patrulha.      Madalena, talvez adivinhando algo de anormal nas minhas perguntas, olhou-me diretamente nos olhos.      - E tu, como sabias isso dos guardas?      João Zebedeu, que não perdia nenhum pormenor, livrou-me da explicação:         - Ele estava comigo quando no sábado de manhã José nos deu a notícia da suja manobra do Sinédrio.         A mulher ficou satisfeita e, retomando o fio da narrativa, continuou, nos seguintes termos:      - Salomé tem razão. A atitude dos legionários em fuga tranqüilizo-nos. Mas não a associamos com a sepultura do Mestre. Como dissemos, nem sequer estávamos sabíamos que havia vigilantes.         As minhas suspeitas, portanto, tinham fundamento. José de Arimatéia - desconheço por que razão – não tinha informado acerca das patrulhas. As mulheres, por conseguinte, partiram de casa do ancião desconhecendo absolutamente o cerco policial em volta do túmulo. Talvez tenha sido melhor assim. Se soubessem, o mais provável seria que os fatos tivessem evoluído de outra forma. Talvez pensassem duas vezes antes de ir e até desistido das suas intenções. Na verdade, os caminhos da Providência são misteriosos. Madalena, como sempre, foi categórica. A julgar pelas suas palavras, nem ela nem as amigas chegaram a pensar sequer na possibilidade de o Rabi ter ressuscitado. Não me cansarei de insistir neste ponto. Salvo David Zebedeu, os outros discípulos e simpatizantes de Cristo não acreditaram em absoluto nas promessas do Galileu. Senão, aquelas mulheres não teriam se preocupado em preparar os ungüentos e demais utensílios necessários para o embalsamamento. - De modo que, mortas de medo - acrescentou -, atravessamos os hortos e entramos, por fim, na propriedade de José. - Já tinha amanhecido? Madalena, cada vez mais confusa com as minhas perguntas aparentemente superficiais, olhou para os companheiros, tentando lembrarse. - Não.
As amigas concordaram. - Mas não faltava muito. Acho que estávamos no final da última vigília da noite.   Por alguns pormenores que fui obtendo ao longo daquela instrutiva conversa, e pelas informações que consegui recolher no dia seguinte, no meu diálogo com os legionários da Antónia, estou quase em condições de afirmar que o encontro das mulheres com os soldados romanos os levitas tinham fugido muito antes deve ter acontecido por volta das cinco ou das cinco horas e quinze minutos daquela madrugada. Isto é, quando faltavam quarenta e cinco ou trinta minutos para o nascer do Sol. Assim sendo, João, o Evangelista, era o que mais se aproximava da verdade: Quando ainda estava escuro (João 20, 1). - Durante algum tempo, surpreendidas perante a visão do túmulo aberto, não conseguimos mover-nos de ao pé das escadas. Não sabíamos que fazer. E o medo foi-se apoderando de nós todas. Algumas sugeriram que devíamos regressar e informar os homens. Mas eu senti uma curiosidade irresistível. E animei-as a descerem as escadas. Deixamos as coisas no chão e, fazendo das tripas coração aproximei-me da abertura da gruta. Estava tudo escuro e, como não tínhamos nenhuma tocha, não consegui ver nada. Sorri para comigo. A narração da Madalena começava a ser familiar. E compreendi o terror dela. - As minhas irmãs, empacadas ao pé dos degraus, suplicaram-me que deixasse estar e voltasse com elas. No entanto, apesar de todo o meu corpo tremer, tomei a firme decisão de entrar e averiguar o que estava acontecendo. E assim fiz., desapareci no escuro daquele buraco. E, às apalpadelas, dei por fim com o banco de pedra sobre o qual devia estar deitado o cadáver do Senhor. Ao notar que estava vazio, ia caindo desmaiada. Gritei, horrorizada. Meio enlouquecida pelo susto, com as mãos estendidas, lutei por encontrar a saída. Mas o pânico perturbou-me os sentidos e fui bater numa das paredes da sepultura. Foram momentos angustiantes. Estremecendo com aquelas recordações fez uma pausa. - Quando, por fim, toquei nas arestas da abertura e saí para o exterior estas Já tinham desaparecido. Dirigi então o olhar para as quatro atentas mulheres; e uma delas, Susana, confirmou-o: - Ao ouvir o alarido de Maria, a tensão e o pavor explodiram e precipitamo-nos escada acima. Não sabíamos o que se passava mas corremos. Corremos como loucas tropeçando aqui e ali, até chegarmos às muralhas. Uma vez junto à cidade, enquanto tentávamos recuperar o
fôlego, Joana, mais calma do que nós, nos fez ver que tínhamos abandonado Maria. Discutimos, mas, por último, de mãos dadas e tremendo de medo, voltamos pelo mesmo caminho, entrando de novo no horto. Madalena desculpou as suas amigas com um sorriso. E acrescentou: - Quando as vi aparecer lancei-me ao encontro delas, gritando-lhes: , não está! Levaram-no! Estas primeiras expressões de Madalena, do meu ponto de vista, tinham especial importância. Refletiam as suas autênticas convicções e pensamentos naqueles momentos tão críticos. Não disse ressuscitou.   Simplesmente, a sua lógica materializou o que lhe parecia evidente: que tinham levado-o. Mas, decerto por ouvi-lo dos seus próprios lábios, insisti nos matizes do grito:   - Levaram-no? Foi isso a primeira coisa que pensaste? Humildemente, sem o menor desejo de arrogar-se uma falsa fé na promessa de Jesus, retorquiu com um sim categórico. Fiquei em silêncio, emocionado com a sinceridade dela. - Então, quase de rastos, conduzi-as até à entrada do sepulcro, obrigando-as a entrar e a certificarem-se do que eu lhes dizia.   - Fizemo-lo - confirmaram todas. - E qual foi o vosso primeiro pensamento? - O de Maria: que alguém tinha roubado ou levado o corpo para outro lugar.   Pouco faltou para lhes perguntar se tinham visto mais alguma coisa. Por exemplo os anjos de vestes luminosas citados pelos evangelistas, ou até se tinham visto ou sentido o terremoto de que fala Mateus. Mas optei por esperar e apalpar o terreno um pouco adiante - quando elas tivessem concluído a sua versão - e com a delicadeza suficiente para não levantar suspeitas. De qualquer forma, era muito revelador que nenhuma daquelas mulheres tivesse feito qualquer referência a um acontecimento tão invulgar como a possível aparição de um anjo do Senhor. Se ocorresse um acontecimento desses, nenhuma o teria omitido.   - E que fizeram depois? - Estávamos tão confusas que durante um bom tempo ninguém disse nada. Fomos nos sentar na segunda pedra, a que estava  atirada no meio do caminho, e começamos a discutir entre nós. Nem José nem Nicodemo nos tinham dito que o corpo tinha de ser transladado. Chegamos até a zangarnos, magoadas pelo que considerávamos uma falta de delicadeza. Mas rejeitamos logo a seguir essa possibilidade. O furto tinha de ser obra de outras pessoas. Com certeza, comentamos, que os responsáveis foram
Caifás e as suas ratazanas. Além disso, havia um outro pormenor inexplicável. Quando começou a clarear, com um pouco mais de luz e de calma, entramos outra vez no túmulo, confirmando a estranha disposição dos panos. Aquilo interessava-me sobremaneira. Simulando não ter percebido, pedi-lhes que repetissem as suas explicações. Efetivamente, as mulheres - mais perspicazes para estas questões do que os homens - também tinham reparado na singular disposição do sudário e do lençol. - Era muito estranho - insistiram. - Se alguém rouba um cadáver, para que perderia tempo deixando o sudário tão bem arrumado? Naqueles momentos de confusão, apesar da evidência da mortalha, Madalena e as suas companheiras continuaram convencidas de que tudo aquilo era obra humana. Teve de acontecer uma coisa muito especial para que começassem a entender. - O primeiro toque das trombetas do Templo - avançou a de Magdala - tirou-nos de tão emaranhada discussão. E nos dispúnhamos a regressar para ir contar estes acontecimentos quando, de repente, ao subirmos as escadas do jazigo, vimos um homem debaixo das árvores. - E como souberam que era um homem? A súbita pergunta de Simão Pedro vinha carregada de ironia. E a maioria dos discípulos riu do aparte. O rosto de Madalena voltou a endurecer. Nesse momento reparei no jarrão de barro colocado sobre a mesa. Lá continuavam os ramos de alfazema e os lírios brancos e roxos que eu colhera nos arredores de Getsémani e que tinham enfeitado a mesa em U durante a última ceia. Ainda conservavam grande parte da sua fragrância e frescura. Numa tentativa desesperada de aliviar a tensão e demonstrar a minha fé nas palavras da hebréia, estendi o braço para tirar uma daquelas delicadas flores. Levantei-me, abri as mãos dela e, com um doce sorriso, roguei-lhe que a aceitasse. Maria, comovida, passou da dor e da raiva à gratidão. Voltei para o meu divã e, perante a estupefação dos mordazes discípulos e o olhar de aprovação de João Marcos, fiz-lhe ver que queria saber o resto. Fazendo um esforço - e respondendo diretamente a Pedro -, Madalena continuou:   - A sua túnica e o seu manto eram de homem. Um pouco diferentes, mas de homem. - Porquê? - perguntei, intrigado. - Não sei explicar-te.
Olhou para as suas companheiras, como que à procura de apoio. - Eram de linho e de lã. Disso temos quase certeza. Mas as cores. As vestes pareciam de neve.   Pedro soltou outra inoportuna e sonora gargalhada. Mas desta vez Maria continuou como se não o tivesse ouvido. - Brilhantes queres dizer? - animei-a. A cabeça de Madalena oscilou para a direita e para a esquerda, em sinal de hesitação.   - Não exatamente. Era mate. Num primeiro momento tive a impressão de que as vestes estavam cobertas de milhares de pequeníssimos flocos de neve. Mas sei que isso é impossível. - Está bem. Por favor, continue. - Ficamos quietas. Em silêncio. Observando-o. Estava a certa distância. . - Quanto? - Não sei. Debaixo das árvores. Isso queria dizer a quatro ou cinco metros do primeiro degrau. - Parecia absorto em qualquer coisa que estava no chão. Penso que eram os mantos amarelos e uns bastões com cravos. - Uns bastões? - perguntei, simulando estranheza. Mas as mulheres encolheram os ombros. Era evidente que não sabiam o porquê da presença daqueles objetos nas proximidades do sepulcro. E guardei um prudente silêncio. - Uma das minhas companheiras sussurrou-nos qualquer coisa sobre o jardineiro de José. Mas não tínhamos certeza. Era tão alto e forte como o hortelão, isso sim, mas vestia-se de forma muito diferente. Além disso, o rosto dele. Ao pronunciar aquela palavra, o silêncio no aposento tornou-se mais denso. Embora alguns tentassem fingir, a verdade é que quase todos os apóstolos seguiam o relato com grande curiosidade. - O rosto dele, não rias, Jasão, era como o cristal. É claro que não movi um único músculo. E a mulher agradeceu a minha prudente atitude.   - É tão difícil de explicar!. - Quer dizer que o rosto era luminoso? - Não, nenhuma de nós se lembra que aquele homem emitisse luz. Era outra coisa. Apesar de nos termos mantido sempre a uma certa distância, pudemos apreciar os seus traços e os seus cabelos. Não eram como os de um ser humano. Pareciam transparentes!
Um cochicho inevitável de desaprovação espalhou-se pela sala.   - Estou dizendo-vos o que eu e estas vimos!. Que Deus me fulmine se não for verdade! Transparentes? Aquilo sim era novo para mim. E tenho de ser sincero. Ao ouvir aquilo, duvidei. Estava amanhecendo. A luz era ainda difusa. A visão das coisas, muito parcial e limitada. As mulheres estavam sob o efeito de um choque intenso. A imaginação e a vontade de voltar a ver o Mestre bem as podiam ter ludibriado. Era preciso que eu pudesse presenciar alguma daquelas supostas aparições. Assim, lutando por não deixar transparecer as minhas sérias dúvidas, tentei abreviar as descrições, perguntando-lhe sem rodeios: - E que aconteceu? As minhas irmãs não se atreveram a dar um único passo. Mas eu, pensando que aquele homem sabia alguma coisa acerca do desaparecimento do cadáver, dirigi-me a ele. E quando estava a dois ou três metros chamei a atenção dele, perguntando-lhe: - Para onde levaste o Mestre? Onde repousa? Diga lá , para irmos buscá-lo. O estrangeiro não respondeu. Nem sequer olhou para mim. Continuou ali, com os seus compridos braços desmaiados ao longo da túnica e a cabeça baixa, olhando para o chão. - Estrangeiro? - intervim eu. - Porque é que lhe chamaste estrangeiro?   - Porque não o conhecia. Além disso, as suas vestes. Apesar de agora, na nossa época, o gesto de Maria nos parecer normal, indo ao encontro de um homem e fazer-lhe uma pergunta, naquele tempo não era assim. Antes pelo contrário. A sociedade não via com bons olhos a mulher que tinha a ousadia de dirigir a palavra aos homens ou se detinha na rua falando com um estranho. O fato ‚ que Madalena, no limite da sua resistência e ao não conseguir uma resposta da misteriosa personagem, desatou a chorar, deixando-se cair no chão argiloso da quinta. - No meu desespero - acrescentou Maria com renovada energia - aquele estrangeiro, por fim, levantou o rosto e falou-nos.   - Lembras-te das palavras dele exatamente? - Uma por uma. Parece-me que o estou vendo e ouvindo. Maria levou o lírio aos lábios. E as suas narinas tremeram levemente. - Que buscais? Fiquei desconcertada. Aquela voz. Enxuguei as lágrimas como pude e olhando para ele, consegui responder: "- Buscamos Jesus. enterrado no túmulo de José. Mas Já lá não está. Tu sabes para onde o levaram?"
A impaciência me consumia. E, sem deixar que ela acabasse referime ao seu comentário sobre a voz do estrangeiro, pedindo-lhe mais pormenores. Madalena, com os olhos umedecidos, abanou a cabeça afirmativamente. Acho que lhe faltavam as palavras. Finalmente, num tom mais caloroso, quase confidencial dominou a sua emoção: - Era Ele. Soube-o então. A sua voz. A sua voz. Escondeu o rosto entre as mãos e, por uns instantes, julguei que ia começar a chorar outra vez. Todos os que ali estavam reunidos, comovidos, quase nem se atreviam a respirar.   - A  sua voz. Sim, eu conheço-a. Era Ele. - Mas, o que ‚ que Ele respondeu? -Esse Jesus não vos disse, até na Galiléia, que morreria, mas, que também ressuscitaria? - Tem certeza de que foram essas as palavras do estrangeiro? Maria, cerrando os dentes, sufocada pela emoção só conseguiu responder com vários e consecutivos movimentos de cabeça. No fim, as lágrimas corriam-lhe pelas brancas faces. Algumas mulheres foram logo consolá-la, enquanto o silêncio se fazia violento, pesado. - Todas nós ficamos comovidas - prosseguiu Salomé. – Todas nós compreendemos. Mas não soubemos reagir. Pouco depois voltou falando. A sua voz, doce e afetuosa, pronunciou um nome: Maria! Esperei que Madalena se acalmasse. Enxugou o pranto e, ao comprovar que os meus olhos continuavam fixos nela, pediu desculpa e que eu não fizesse caso da sua fraqueza. Deve ter notado alguma coisa no meu olhar porque, esboçando um sorriso exclamou: - Obrigada, Jasão! Tu és diferente de todos estes. O brilho dos meus olhos foi a melhor resposta. E a corajosa hebréia continuou: - Então, a ouvir o meu nome, deixei de ter dúvidas. Era o Mestre! Mas estava tão mudado! E, presa ao mesmo tempo de alegria surpresa e medo, prostrei o meu rosto no pó do chão, murmurando: "Meu Senhor. Meu Mestre! As minhas irmãs imitaram-me e caíram igualmente de joelhos, atônitas. Sei que pode parecer uma criancice, mas, ardendo em desejos de abraçá-lo, e de beijá-lo, de apertá-lo entre os meus braços, fuime aproximando dEle. E, quando me dispunha a fazê-lo, retrocedeu, dizendo: "Não me toques, Maria! Não sou o que tu conheceste em carne" Interrompi-a de novo. E a minha pergunta - eu sei – deve ter-lhe parecido absurda. Mas eu tinha de fazê-la.
- Chegaste a ver os pés? Maria desconcertada, sem acabar de perceber a minha intenção, franziu   o sobrolho. - Não sei. Acho que sim. - Como eram? - perguntei sem lhe dar tempo de refletir.   - Bom. Agora me lembro. Espera, sim eram como o vidro! Sim, meu Deus! Podia ver a terra através deles! Não fiz mais comentários. O pormenor da transparência tinha-me transtornado. Por um lado eu duvidava, mas, por outro, a segurança da testemunha parecia tão sólida. - É claro que não me atrevia a desobedecer-lhe. E fiquei ali, de joelhos, absorta.   - Visões! São tudo visões. Pedro voltou a insistir, remexendo-se, inquieto, no seu divã e remoendo a sua teoria.   - Porque que acha que Ele te disse que não era o que tu tinhas conhecido na carne? Neste momento, Maria respondeu com uma lógica demolidora: - Porque, embora tivesse forma humana, não parecia de carne e osso. - Disse mais alguma coisa? - Sim. Depois de me ordenar que não lhe tocasse, acrescentou: Sob esta forma permanecerei entre vós antes de ir para junto do Pai. Sob esta forma? A que estaria se referindo a mulher? Que tipo de corpo era aquele que asseguravam ter visto? Que novo mistério eu tinha diante de mim? A de Magdala levantou-se e, com os olhos fixos no teimoso Pedro, gritou: - E disse mais! Deu a volta pelos divãs e, aproximando-se do pescador, explodiu:   - Agora ide todas e dizei aos meus apóstolos - e a Pedro! - que ressuscitei e que falastes comigo. A reação do rude galileu surpreendeu-nos a todos. Ao ouvir o nome dele, levantou-se e, lívido, sem desviar os olhos de Madalena, gaguejou:   - Disse o meu nome? - Todas o ouvimos - responderam as mulheres em uníssono. - Tendes certeza? - Agora ide todas e dizei aos meus apóstolos, e a Pedro, que ressuscitei e que falastes comigo. Maria repetiu as palavras de Jesus, pondo especial ênfase na alusão ao incrédulo galileu.
Compreendi logo. Aqueles homens, com as suas troças e críticas, nem sequer as tinham deixado explicar-se e narrar integralmente o que acontecera. E algo que estava adormecido no coração de Pedro despertou, levando-o a reagir. Pôs o manto sobre os ombros e, noutro dos seus caraterísticos repentes, saiu correndo da sala. Um segundo depois, como que movido por outra mola, João Zebedeu imitava-o. Saltou do assento e correu atrás de Pedro. Nenhum dos outros discípulos moveu um dedo sequer. A incredulidade continuava desenhada nos seus rostos. Não pensei duas vezes. Peguei no cajado e, sem dirigir qualquer palavra aos presentes, percorri a distância que me separava da porta e desapareci. Na minha mente acumulavam-se ainda muitas perguntas. O relato de Madalena estimulou ainda mais a minha curiosidade. Mas tinha de cumprir o que fora planejado pelo Cavalo de Tróia. Era imprescindível que eu estivesse perto de Pedro e de João no momento em que descobrissem a demolidora realidade do túmulo vazio. Como iriam reagir? Os fatos aconteceriam como contam alguns dos escritores sagrados? Neste aspecto, pelo que tinha visto e ouvido, nem mesmo o fidedigno João tinha respeitado a ordem cronológica daqueles primeiros acontecimentos. Mais ainda: essa parte do seu evangelho aparece alterada. No capítulo 20, como é fácil de comprovar a famosa corrida para o sepulcro‚ intercalada antes da aparição do Rabi a Maria Madalena. Lendo o evangelista, tem-se a impressão de que Madalena foi ao túmulo sozinha, sem as mulheres. E que, assim que descobriu o sepulcro vazio, foi correndo à cidade. disse-o aos discípulos e Pedro e João saíram disparados para a quinta de José. Incompreensível. A correção dos evangelistas como historiadores e notários dos fatos e ditos de Jesus de Nazaré deixa muito a desejar. Quando saí da casa fiz uma rápida ligação com o módulo, para anunciar a Eliseu que me dispunha a cobrir outro dos objetivos do plano. Eram oito horas e quarenta e cinco minutos. O rebuço tinha aumentado nas ruas da cidade e, seguindo a inteligente recomendação do meu irmão, decidi evitar as aglomerações. Perdera de vista os discípulos, mas imaginava qual seria a sua rota. Estavam, com toda certeza, percorrendo - no sentido contrário - o mesmo caminho que eu fizera para ir até à mansão de Elias Marcos. Se agisse com   rapidez, talvez chegasse à quinta ao mesmo tempo que eles. Subi rapidamente a rampa que desembocava na fachada do Palácio
de Herodes, deixando o recinto amuralhado pela Porta dos Jardins ou do ângulo. E dali, sempre correndo ao lado dos setores oeste e norte da muralha, não demorei a avistar a dupla corcova rochosa do Gólgota. O meu espírito  estremeceu ao reconhecer as estipes verticais, negras e   nuas, recortadas sobre o fundo azul do céu. Procurei não olhar e continuei na minha frenética corrida, entre o olhar atônito dos peregrinos que tinham montado as tendas junto dos muros e que sentados nas suas esteiras, se ocupavam a moer o grão, penteavam as barbas e cabeleiras com largos pentes de madeira ou mexiam a comida nos grandes caldeirões comunitários. Deixei para trás o concorrido caminho que partia da Porta de Efraim em direção a Jafa, mas antes tive de ouvir as maldições de um aguadeiro indignado em quem eu tropeçara e cujo odre, inevitavelmente rolou por terra. Não estou muito certo, mas acho que a   minha descida do cerro do Gareb ao vale do Tiropéon foi acompanhado de algumas pedradas furiosamente atiradas pelo atropelado e pelos guardadores de ovelhas, cujos rebanhos ficaram meio descontrolados  à minha passagem. Ofegante, cruzei o caminho de Cesárea, correndo ladeira abaixo, ao encontro da via que conduzia ao norte. Ao pisar o caminho da Samaria detive-me durante alguns segundos. Precisava de oxigênio. Fui olhar à vertente oriental da calçada, tentando reconhecer a propriedade de José. Um brilho me fez virar o rosto para o lado esquerdo. E, com muita inquietação, vislumbrei no fim do poeirento caminho uma turma romana: uma pequena unidade de cavalaria. No total, uns trinta cavaleiros, com as suas reluzentes couraças de ferro entrançado e as características calças vermelhas ajustadas. Certamente regressavam à Fortaleza Antónia. E, embora os seus cavalos tordilhos fossem a passo e se encontrassem ainda a uns duzentos metros, evitei novo encontro com as longas e pontiagudas lanças dos soldados. Saltei o pronunciado barranco e me escondi entre os zambujeiros e as moitas. Desta vez a sorte esteve do meu lado. Pouco depois, quando senti que a patrulha se afastava, recomecei a andar, deixando pedaços do manto entre os cardos e as urtigas.   Não demorei para ver a cerca de madeira caiada. Saltei e, procurando fazer o menor ruído possível depois de verificar a posição do Sol, me dirigi para sudeste. Aquele lado ocidental da plantação estava cheio de hortaliças. Fui-me esquivando como podia às fileiras de escalônias - a cotizada variedade de cebola egípcia -, assim como aos alhos de cavalo ou porros, as belas e cuidadas escarolas e berinjela e, logo a seguir, à minha direita, entre as primeiras filas de árvores de fruto, reconheci as paredes
imaculadas da casa do hortelão. O silêncio continuava a reinar na quinta. Diante de mim surgiam altas videiras - as tamareiras de Beirute que o velho proprietário importara da costa fenícia e que cuidava com muito cuidado. No outro lado da vinha erguia-se o pombal, que me trazia angustiante recordação mim.   O que fazer? Esconder-me de novo naquele pombal? Rejeitei esta idéia. A primeira coisa que eu tinha de comprovar era se os discípulos tinham chegado. Escolhi o pomar e, sem o menor ruído, como em outras vezes, fui avançando entre as árvores. Era muito estranho os cães não darem sinais de vida. Mas atribuí isso à presença prolongada dos guardas e legionários. Rodeei a casinha pelo lado de trás e, deixando a boca do poço à minha direita, acabei por me agachar entre os pequenos troncos das árvores, que começavam a fazer sombra no suave promontório rochoso. Tudo em frente às escadas que davam para o sepulcro continuava inalterável: os mantos, as maças e a marmita continuavam ali, esquecidos. Não havia qualquer sinal de Pedro ou de João. Supus, acertadamente, que a sua passagem pelas vielas de Jerusalém não tinha sido tão rápida como a minha. Aqueles minutos ajudaram-me a recuperar o fôlego. Confirmei a Eliseu a minha posição e este, prudentemente, recordou-me que eram nove horas e que tinha noventa minutos para regressar ao berço. Não me esquecera. Mas antes tinha de descobrir uma forma de subtrair temporariamente uma das peças vitais em todo aquele enredo e, é claro, para a nossa nova exploração. Não tive de esperar muito. Poucos segundos depois da ligação auditiva, João surgiu na bifurcação do caminho que começava na cancela de entrada da quinta. Vinha suando, muito agitado, respirando pela boca, com os seus negros e grandes olhos quase fora das órbitas. No seu rosto havia uma mistura de medo e de esperança. Antes de optar pelo caminho que levava ao sepulcro, dedicou uns instantes inspecionando os arredores. O jovem discípulo sabia da guarda e, embora Madalena tivesse dito várias vezes que o lugar estava deserto, resolveu se certificar. Convencido de que a zona estava calma, deu cautelosamente alguns passos, detendo-se ao ver no chão os mantos dos levitas. Aquilo surpreendeu-o. Agachou-se e, pegando num dos bastões, murmurou com raiva: - Bastardos! Deitou fora a arma com nojo e, enxugando o suor da testa com a aba
da manga esquerda da sua túnica cor de osso, olhou em frente, diretamente para os degraus que desciam para o fosso ou antecâmara da gruta funerária. Hesitou. Depois de descer o primeiro degrau ficou imóvel.   Voltou a cabeça na direção do caminho por onde tinha vindo e, com um esgar de impaciência pela demora do amigo, encolheu os ombros. Desceu os pequenos degraus e parou de novo na estreita passagem. Como estava de costas não consegui ver a reação dele perante a visão das pedras deslocadas. Continuava indeciso. Colocou-se diante da boca da gruta e, depois de dar uma segunda olhada para trás de si, inclinou-se, tentando perscrutar o interior escuro da cripta. Permaneceu assim, de cócoras e com a mão esquerda apoiada na borda superior da pedra circular, que tapava metade da entrada, até que uns sonoros e dramáticos arquejos o alertaram e obrigaram a voltar-se pela terceira vez. Era Pedro. Embora, de fato, eu o tivesse visto sair primeiro da casa dos Marcos, a idade e a nada desprezível gordura que se acumulava no ventre e dorso tinham-no deixado para trás. Não pude evitar. Tive pena do esgotado pescador. João correu escadas acima e, ao vê-lo, Simão Pedro ficou parado interrogando-o com   os olhos. Mas o seu esforço fora excessivo e teve de encostar-se a uma árvore, preenchendo o silêncio daquele lugar com intermináveis inspirações ofegantes. A sua recortada barba branca gotejava um suor abundante, enquanto a túnica ficava encharcada e colada à pele. Mas a sua curiosidade e inquietação eram mais fortes do que o cansaço. E com um gesto da mão - incapaz de articular palavra - interrogou de novo o companheiro. João, junto do primeiro degrau, negou com a cabeça. Mas não percebi o que ele quis dizer. E imagino que Pedro também não interpretou corretamente aquele gesto de negação. Estaria o discípulo a referir-se à ausência do cadáver ou a explicar-lhe que não tivera tempo nem a oportunidade de entrar na gruta? Pesadamente, sem deixar de ofegar, com um mal dissimulado desgosto   que tornava mais pronunciadas as rugas do rosto Simão aproximou-se do   amigo e, sem qualquer pergunta ou comentário de qualquer deles, desceu as escadas. No meio do caminho, ao descobrir o negro buraco da entrada, titubeou. Foi uma fração de segundo. Como um meteoro, pôs-se de joelhos e entrou como uma bala no sepulcro. João, perplexo e admirado perante a indubitável valentia do seu companheiro, nem se mexeu. Ainda não tinha passado um minuto quando vi aparecer a careca do galileu. Desta vez, saiu da gruta, cansada e lentamente. Tanto João como eu estávamos pendentes do seu rosto e da sua possível reação. Levantou-se com dificuldade e, cambaleante, sem abrir os lábios, procurou   descanso na rocha que servia de proteção à boca do poço e que, como disse estava tombada à entrada do sepulcro. Os seus olhos claros estavam fixos em parte nenhuma. Parecia hipnotizado. Pálido e alheio a   quanto o circundava. João, nervoso e impaciente, gritou-lhe da boca do sepulcro. Então compreendi que o Zebedeu não tivera tempo de distinguir com nitidez a superfície do banco em que repousou o corpo do Mestre. Era lógico. Embora o Sol Já tivesse remontado o topo do monte das Oliveiras, iluminando as terras com uma doce claridade meridiana a luz que irrompia na câmara mortuária era escassa. E suponho que o decidido Pedro, como Madalena e como eu próprio, se havia contentado com apalpar o vazio.   - O quê. Simão Pedro nem pestanejou. E, com um gesto indefinido da mão esquerda, disse-lhe que entrasse.   João fez uma careta e, contrariado pelo mutismo do irmão, pôs-se de cócoras. Baixou a cabeça e desapareceu nas trevas do sepulcro. A sua permanência no interior foi um pouco mais prolongada que a de Pedro. Quando saiu, ao contrário de Pedro, o seu rosto parecia radiante, transfigurado. Durante alguns minutos não disse nada. Deixou-se cair de costas contra a fachada da cripta, e vi-o chorar com os olhos fechados. Foram lágrimas silenciosas, de paz, que diziam mais que todas as palavras do mundo. Pedro acabou por voltar à realidade e, com um rito amargo nos lábios, exclamou: - Filhos de mãe!Profanaram o túmulo! A reação do pescador deve ter chocado João, que, abrindo os olhos, foi sentar-se ao lado dele. Visivelmente alterado, apontando para a boca da gruta, o mais novo dos Zebedeus tentou convencer Pedro de uma coisa em que, ao que parecia, o amigo não tinha reparado: a estranha disposição da mortalha. Como explicar aquilo? Por que motivo os supostos profanadores não tinham levado o lençol e o sudário?.   Os argumentos – tão sutis como sensatos - não afetaram Pedro. Enquanto João discutia, resmungava e lhe chamava teimoso e néscio, Simão, inalterável, limitava-se a dizer que não com a cabeça, repetindo como um papagaio: - Roubaram-no! Roubaram-no!   O discípulo que parecia convencido da misteriosa ressurreição
invocou até a promessa do Rabi de voltar à vida ao terceiro dia. Foi inútil. A sua alegria e o seu avassalador entusiasmo tropeçavam sempre no cepticismo de Pedro. Numa desesperada e derradeira tentativa por fazer que Pedro entendesse que o sepulcro vazio não podia ser obra de ladrões, João puxou por ele convidando-o a entrar de novo. O galileu aceitou, contrariado. E ambos desapareceram pela segunda vez na escuridão do túmulo. Não sei de que falaram, mas tenho quase a certeza de que os dois tatearam a superfície da plataforma rochosa, encontrando, como eu, o suave lençol de linho e o lenço, misteriosa e inexplicavelmente lisos e vazios. Pouco depois regressaram à luz do dia. Pedro, sem mudança aparente: confuso e aferrado à idéia dos profanadores. João, pelo contrário, exultante. Mais convicto de que o Mestre tinha realmente ressuscitado. Vio saltar de júbilo. Bater nas pedras da entrada do sepulcro com as duas mãos e repetir aos gritos: - Ele o fez! Cumpriu!. As mulheres tinham razão Simão, mal-humorado e temeroso tentou fazê-lo calar-se. O seu receio em relação aos do Sinédrio não tinha desaparecido. O medo de ser também capturado continuava a dominar e a onerar a sua débil vontade. Ao ver que o seu jovem e impulsivo amigo não cedia, deu meia volta e afastou-se da passagem.   A verdade é que, ao rememorar esta passagem, eu não soube o que pensar. João, o Evangelista não se refere em nenhum momento à postura dura e arisca de Simão Pedro. Ao lermos o texto (João, 20 110), vemos que o autor deixa claro que ele, sim, viu e acreditou. Mas porque não menciona a incredulidade e teimosia do companheiro? Foi por compaixão? Talvez por benevolência? Ou, como vimos na última ceia, porque não convinha denegrir a imagem daquele que depois seria a cabeça visível da Igreja? As cenas da famosa correria e da entrada no sepulcro tinham acabado. Mas não as surpresas daquela agitada manhã de domingo, 9 de Abril do ano 30. No fundo, a entrada inesperada daquela mulher na quinta contribuiu - e não pouco – para multiplicar a minha desolação. Isto foi o que presenciei. Pedro, como eu estava dizendo, subiu os degraus e, gesticulando e resmungando incongruências, dirigiu-se para o caminho. Parecia decidido a   deixar ali o seu amigo. Porém, subitamente, uns passos apressados obrigaram-no a deter-se. Eu, que tinha levantado e me preparava para ir ao encontro dos
apóstolos, fiz a mesma coisa. Aquilo não estava previsto nem figura nos textos evangélicos. Ao fundo da vereda, por entre a ramagem das árvores, aproximava-se   rapidamente uma silhueta. João foi até ao pequeno largo em frente da rocha e, devagarinho, colocou-se junto do seu expectante companheiro. Não falaram. Pedro levou a mão esquerda ao punho da espada e os dois, talvez temendo um encontro desagradável, ficaram à espera. A figura, alta e esguia, chegou à bifurcação do carreiro e, ao descobrir a presença dos galileus, deteve o seu nervoso caminhar. Era uma mulher. Tinha o rosto tapado com um grande manto verde-erva. Julguei reconhecer o talhe e aquelas vestes delicadas. E foi João a confirmar o meu pressentimento. - Maria! - exclamou o Zebedeu. E, abrindo os braços precipitou-se em direção à hebréia. - Maria! Perdoa-me!. É verdade, é verdade. A de Magdala destapou o rosto, acolhendo o feliz discípulo. Simão tirou a mão da espada e, respirando, aliviado, permaneceu imóvel. João e Madalena tinham desatado a chorar. E continuaram assim durante alguns minutos, fortemente abraçados. Mas Simão, cuja paciência não era precisamente generosa tentou cortar aquela cena emotiva, censurando-lhes a credulidade infantil e instando João a sair quanto antes daquele lugar perigoso. Foi então, ao lançar um olhar inquieto à sua volta, que descobriu a minha presença entre as árvores. O pescador, sobressaltado, desembainhou a espada. Mas eu, saindo do meu esconderijo, deixei que me visse e pedilhe que não perdesse a calma. Quando me reconheceu, João enxugou as lágrimas e, perante o gesto contrariado de Simão, veio ter comigo para me relatar - entre soluços e sorrisos convulsivos - o que eu já sabia. Durante alguns instantes eu não soube o que fazer nem o que dizer. Estava plenamente consciente de que não devia influenciar em nenhum sentido o ânimo ou as decisões daqueles homens. O meu papel era o de mero espectador. No entanto, em situações como aquela, a fria e necessária imparcialidade tornava-se extremamente difícil. E limitei-me a ouvi-lo, acariciando os seus cabelos desgrenhados e sedosos. Foi Pedro quem, mais sereno, me tirou daquela embaraçosa situação. Deixando-se levar pela sua lógica e senso comum, ignorando Maria, deu um curto passeio entre os bastões e a marmita dos guardas do Templo, expondo o que, em princípio, me pareceu uma excelente sugestão:
- Temos de ir comunicar o roubo a José e aos outros. Ao ouvir a palavra roubo, Madalena desatou em pranto, presa de um novo ataque de desespero. Mas o teimoso galileu nem olhou para ela. Agarrando com pressa no pulso de João, levou-o pela vereda acima, desaparecendo da nossa vista. Por um lado, alegrei-me. A intransigência do pescador tinha começado a pôr-me os nervos em ponta.   A missão obrigava-me a permanecer no horto, atento à sorte dos panos mortuários. Esse era o meu imediato e delicado objetivo: pegá-los e, durante umas horas, submetê-los a uma análise científica exaustiva no interior do módulo. Uma vez trazidos para o berço, começaria a segunda fase daquela, no momento, acidentada aventura. Mas sigamos a ordem cronológica dos fatos. Comovido, aproximei-me de Maria. Tinha-se ajoelhado e, abatida, tapava o rosto com as mãos. Deixei-a chorar e desabafar. Quando vi que os seus soluços e suspiros começavam a espaçar-se, fui retirando delicadamente as suas longas mãos, pedindo-lhe que tivesse paciência. Mas Madalena, com os olhos inchados e vermelhos, abanou a cabeça, revelando-me a sua impotência e profunda angústia. Era triste e desesperante, para mim, não poder ajudar melhor aquela bonita hebréia de vinte ou vinte e dois anos. Teria gostado de lhe antecipar alguma coisa do que eu sabia. Mas o rigoroso código moral que regia o nosso trabalho impôs-se mais uma vez. De joelhos diante dela, pendente da sua amargura, tive de repente a sensação de que alguém nos observava. Senti um calafrio na nuca. E, de fato, ao voltar-me, deparei com a robusta figura de um homem. Estava descalço. Talvez por isso não o tenha ouvido chegar. Levantei o olhar e respirei com alívio ao reconhecer o hortelão de José. Vestia um grosseiro chaluk de lã, cinzento e descolorido, cobrindo a cabeça com um não menos gasto chapéu de folha de palma. Na mão esquerda trazia uma tocha. O am-ha-arez - assim eram chamados os sofridos trabalhadores do campo e a massa do povo - sorriu para mim, deixando ver os dois ou três únicos dentes que continuavam de pé nas suas inflamadas e negras gengivas. Parece-me que aquela foi uma das poucas ocasiões em que o ouvi falar. O homem, fiel seguidor dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, tinha ouvido os rumores que circulavam na cidade sobre o desaparecimento do cadáver do Mestre e, num quase indecifrável aramaico galileu, perguntoume se sabia alguma coisa a esse respeito. Pus-me de pé e improvisei apontando para Maria, explicando-lhe que
sim, que tinha ouvido dizer alguma coisa, mas que não estava muito certo. O hortelão caiu então no seu habitual mutismo. Olhou para a mulher e, direito como um poste afastou-se em direção ao fosso. Compreendi que estava decidido a certificar-se por si próprio e, após uns segundos de hesitação, decidi juntar-me a ele. A presença da tocha era importante. Até esse momento, as minhas idas sucessivas à cripta tinham sido sempre em condições precárias de visibilidade. E, sem mais, esquecendo-me por completo de Madalena, apressei-me a seguir os passos decididos do hortelão. Em má hora. O cheiro nauseabundo a sebo de vaca que impregnava a tocha invadiu tudo. E a vibrante chama, entre esporádicas chispas, foi arrancando reflexos avermelhados às paredes da gruta, estirando e deformando as nossas sombras. O silencioso hortelão, com a cabeça e o dorso inclinados para não bater no teto, ficou com os olhos fixos no banco vazio. Parecia hipnotizado. Durante alguns segundos fiquei a observá-lo, à espera de algum comentário ou alguma reação de surpresa. Enganei-me. Frio como o gelo, limitou-se a passar a tocha por cima da plataforma rochosa, comprovando, como eu, que o tecido estava numa posição anormal. Passados alguns minutos, fez um gesto de retirar-se daquele lúgubre recinto. Mas - estupidez minha! - fiz-lhe um sinal e o seco mas atencioso servidor de José acedeu ao meu pedido e aproximou a tocha do linho. Obviamente, devido à escuridão, nas vezes anteriores eu não tinha reparado num pormenor que agora, à luz da chama, me deixou atônito. Um pormenor do qual tivera conhecimento no meu tempo mas que, honestamente, nunca valorizei como sério e científico. Refiro-me às manchas estranhas, de tom caramelo que se viam em ambas as faces do pano de linho. Mas vamos por ordem. Recordo-me que, numa primeira exploração da metade superior do lençol, uma série de coágulos e fiozinhos de sangue me chamara a atenção. Pus o nariz mesmo em cima das manchas, observando com uma perplexidade nada pequena, que estavam intactas. Limpas. Perfeitamente definidas. Aquilo era incompreensível. Depois de trinta e quatro horas - tempo aproximado de permanência do cadáver na sepultura -, a maioria das feridas e grumos sanguinolentos devia ter ficado colada ao tecido. Se o corpo fora roubado ou transladado, o lógico teria sido que, na mudança, ao despregar-se, os coágulos manchassem o lençol. Pelo contrário, os coágulos de sangue continuavam intactos. Meu Deus! Que teria acontecido naquele negro lugar na madrugada de domingo?
* O sotaque dos galileus como vimos no incidente das negações de Pedro, era tão acentuado que, por exemplo uma palavra tão comum como cordeiro (immar), podia ser confundida com hamar (vinho) ou com hamor (asno). Este fato e os costumes mais liberais da Galileia ou Guelil, como a chamavam os judeus do Sul, tinham feito com que os conterrâneos do Nazareno fossem desprezados e discriminados e as suas terras batizadas com o nome de guelil-al-goyim ou o círculo dos pagãos". Mas destas interessantes diferenças entre judeus falarei mais adiante. (N. do M)
Levantei a face superior do linho e, à luz da tocha, entre uma constelação de marcas de sangue igualmente nítidas, descobri aquelas manchas douradas. Ou não seriam manchas? Nervoso e confuso diante de tanto desatino científico, tateei a superfície da metade inferior da mortalha. As pontas dos dedos roçaram primeiro alguns grumos de sangue. Sim, não havia dúvida: aquilo era só sangue. Mas ao fazer a mesma coisa nas supostas manchas de cor acastanhada, não senti a rugosidade dos coágulos. A deficiente iluminação e a proibição estabelecida pelo Cavalo de Tróia de manipular ou alterar a posição dos panos - pelo menos enquanto estivessem no sepulcro - não me permitiram chegar a nenhuma conclusão. Enquanto durou a curta e apressada exploração vieram-me à cabeça várias hipóteses. Tratar-se-iam de manchas provocadas pelos ungüentos? Ou estaria perante possíveis fluidos de origem orgânica - resultantes da decomposição do cadáver -, que teriam empapado o tecido? O assombroso era aquelas manchas reproduzirem o perfil do corpo que tinha sido envolvido naquele lençol. - Isto é coisa de loucos! A minha exclamação deve ter abalado o caráter frio do hortelão. Porque, imitando-me, aproximou o rosto dos panos. Cruzamos um olhar de incredulidade. No entanto, não foram as misteriosas manchas cor de ouro ou a desconcertante estrutura dos coágulos que surpreenderam o sagaz hortelão. Suponho que estas sutilezas escaparam ao seu fino instinto. Mas sim, pelo contrário, um outro pormenor que, se não fosse ele, certamente teria passado despercebido. Sem pronunciar uma palavra, apontou com o dedo para o centro do linho. Ao ver aquilo, o meu coração deu um salto. Quase no centro do banco, no meio das duas partes do lençol e justamente no ponto onde tinham repousado os pulsos do Nazareno, encontrava-se a tira de pano que,
uma vez pulverizada com aloés, servira para atar as mãos destroçadas. O incrível é que a ligadura em questão estava enrolada, como um anel, perfeitamente atada e envolvendo o vazio! Fechei os olhos. Estaria também eu sendo vítima de uma alucinação ou da histeria coletiva? Mas não. Ao abri-los, a descoberta do hortelão continuava ali, desafiando a lógica humana. Tal como acontecera com o lenço que segurara o maxilar inferior do Rabi e que, como disse, se encontrava firme e no seu lugar, aquela peça de pano - obrigatória nos enterros judaicos da época - não mostrava sinais de ter sido mexida por mãos humanas. Se um hipotético profanador tivesse levado o corpo, por que motivo iria entreter soltando as ligaduras para as atar de novo e, para cúmulo do absurdo, as colocar delicada e cuidadosamente no mesmo lugar e na mesma posição em que tinham estado? Ali acontecera algo extraordinário. Algo que superava a minha capacidade mental. Mas o quê? Tal como tinha imaginado, a faixa que Nicodemos atara à altura dos tornozelos do Mestre surgiu perante os meus olhos atônitos na mesma posição. Meticulosamente enrolada e com os nós intactos. Satisfeita a minha curiosidade - mas não as minhas dúvidas – voltei a colocar a metade superior do linho na posição original. Agora, mais do que nunca, eu tinha de conseguir aquela mortalha e submeter o tecido, os coágulos e as manchas douradas a uma análise médico-científica exaustiva. Como estava longe então de imaginar as múltiplas surpresas que nos reservariam esses estudos! Mas antes tinha de resolver um  pequeno problema: como e quando tirar os panos? Creio que estávamos para abandonar a cripta quando, de repente, uma sucessão de gritos fez com que o hortelão e eu olhássemos um para o outro, alarmados. Que tinha acontecido? De fato, acho que foi uma estupidez da minha parte. Não devia ter retido o hortelão no túmulo. Mas o destino, como se verá, tem destas coisas. Fui o primeiro a sair. Meio cego pela forte claridade da manhã, estive a ponto de tropeçar na segunda pedra. As vozes vinham do lugar onde, pouco antes, tínhamos deixado a amargurada Maria. Não pareciam gritos de medo ou de dor. Era difícil explicar. Soavam como invocações. Como se alguém - sem dúvida uma mulher - reclamasse a atenção ou a presença de outra pessoa. Ao chegar ao último degrau, fiquei estupefato. De costas, a Madalena, ajoelhada e com os braços no ar, não cessava de clamar, repetindo uma única e mesma palavra: - Rabboni!.
O termo - Mestre - referia-se ao falecido Rabi da Galileia. Disso tenho certeza. Mas porque invocava ela o seu nome? E, sobretudo, porque o fazia naquele tom tão estranho? Tive um pressentimento. Olhei à minha volta, mas logo rejeitei uma idéia tão absurda. Ali não havia ninguém. Tudo estava calmo. Além disso, os textos evangélicos consultados pelo Cavalo de Tróia não falam de uma segunda aparição de Jesus a Madalena. A mulher não se movera, praticamente, do limiar das árvores. Talvez, pensei, tenha sido vítima de outra depressão. O encarregado da quinta veio para perto de mim e de novo olhamos um para o outro sem compreendermos. E, devagar, procurando não assustá-la aproximamo-nos dela. - Rabboni! Aquilo era um apelo. Nos detivemo-nos, cada um a um dos lados dela e, durante alguns minutos,   contemplamo-la com tanta inquietação quanto curiosidade. Madalena   apresentava agora uma expressão diametralmente oposta. O abatimento anterior tinha desaparecido da sua face. Era muito estranho. Os olhos, muito abertos, sem pestanejar, pareciam presos num ponto invisível do espaço. Havia neles uma sombra de espanto e surpresa. Foi então, ao olhar para as mãos dela, que reparei na direção e posição dos dedos. Estavam rígidos, crispados e em atitude de querer receber ou agarrar qualquer coisa. - Rabboni! Maria, imóvel como uma estátua, não percebeu a nossa presença. Apenas repetia o título do Nazareno. E o seu tom, evidentemente, era de súplica. Eu não sabia o que pensar. Todos os sintomas indicavam uma nova crise. E comecei a perguntar-me se a saúde e o equilíbrio mentais da antiga cortesã estariam normais. Se não tivesse sido a fulminante reação do meu companheiro, talvez aquela situação se tivesse prolongado indefinidamente. Mas o homem, compreendendo que Maria estava fora de si, acabou por se lançar sobre ela e, sacudindo-a pelos ombros, quase a levantou no ar. As secas e violentas sacudidelas produziram o seu efeito. E Madalena pestanejou várias vezes, voltando à realidade. As faces foram recuperando a cor e, baixando a cabeça, suspirou ansiosamente. - Estás bem? – me atrevi a perguntar. Levantou os olhos, e as suas pupilas azeviche falaram em silêncio e com uma força tal que me fizera recordar o poderoso olhar do Filho do
Homem. Estremeci e ela, eu sei, percebeu. Sorriu com íntima satisfação e, levantando a mão esquerda para as árvores do pomar, comentou sem rodeios: - Eu o vi! O hortelão, instintivamente, voltou a cabeça para o lugar indicado pela   mulher. - Sim, já nos tinhas contado. - retorqui em tom conciliatório.   - Não! - explodiu a tremer. - Agora! Foi agora! Desta vez fui eu quem empalideceu. Mas, logo a seguir, suspeitando que Madalena podia estar sendo vítima das suas próprias emoções, esforcei-me por conservar a calma e fazer-lhe a vontade.   - Tenha calma. Sabes que acreditei no teu testemunho. Sei que o viste.   - Não! - interrompeu-me com violência. A sua face tinha mudado. Madalena compreendera que, mais uma vez, não acreditavam nela. - Repito-vos que o vi pela segunda vez!. Aqui!   E  avançando alguns passos foi colocar-se a um metro das árvores. O silencioso hortelão torceu o nariz. Voltamos a olhar um para o outro e, prudentemente, não fizemos qualquer comentário. Uma suposta segunda aparição do não menos suposto ressuscitado era de mais. E, sem querer, vi-me arrastado pelo mesmo ceticismo de Pedro que eu, paradoxalmente, criticara no meu íntimo. Era curioso. Apesar da veemência da hebréia, fui incapaz de acreditar nas suas palavras. Ou será que a sensação de frustração que tinha vindo germinar no meu espírito enevoava a minha mente ao ponto de rejeitar o testemunho dela, procurando assim a minha própria justificação? Agora sei que só a idéia de que aquilo fosse verdade, e de Ele ter estado tão perto, tinha começado a minar as minhas forças. - Era Ele! E Maria, sem ninguém lhe perguntar, repetiu a mesma descrição do estrangeiro de túnica e manto "da cor da neve". Deixamos falar. Que outra coisa podíamos fazer? - E falou comigo - prosseguiu com uma crescente emoção - Disseme: Não fiques na dúvida. Tem coragem. Acredita no que viste e ouviste. Volta para junto dos apóstolos e diz-lhes outra vez que ressuscitei. que aparecerei diante deles e que em breve, como prometi, os precederei na Galileia. Ela ficou examinando os nossos rostos. O significativo silêncio que se seguiu à sua exposição foi revelador. Mas desta vez Madalena não se
alterou. Não houve protestos ou lamentos. Compreendeu quais eram os pensamentos daqueles homens e, ocultando o rosto com a borda do manto, afastou-se em passos rápidos. Eram nove horas e quarenta minutos. Supondo que esta segunda manifestação do Mestre foi real, devia ter acontecido três ou quatro minutos antes.   Estupefatos, sem saber o que dizer vimos como a mulher meteu pelo caminho e começou a correr. Nesse momento, ao mesmo tempo que ela desaparecia em direção à cancela, surgiram outras duas figuras entre a ramagem. Ao cruzarem-se com Madalena detiveram-se, mas esta aparentemente, nem respondeu à saudação dos dois homens e, sem deixar de correr, desapareceu vereda acima. Os novos visitantes, contrariados visivelmente, hesitaram durante alguns segundos. Mas, ao descobrirem a nossa presença, retomaram o caminho. Eram José o de Arimatéia e dono do lugar, e o eficiente David, irmão dos Zebedeus e chefe dos mensageiros. Tanto um como o outro, da mesma forma que a maioria dos seguidores de Jesus que eu tivera a oportunidade de ver até àquele momento, traziam no rosto o esgotante cansaço de dois dias e duas noites sem dormir, a angústia e o horror da tragédia e sobretudo no caso de David Zebedeu, um brilho de esperança nos olhos. Ambos se alegraram quando me viram. E José desde o princípio sabedor da existência da férrea vigilância do sepulcro, elogiou a minha presença naquele lugar, comparando-a com a mesquinha e covarde atitude de muitos dos mais íntimos do Mestre. Tentei dissuadi-lo, mas o ancião, mudando de conversa, falou logo sobre aquilo que era o verdadeiro motivo da visita de nós os dois à sua propriedade: o sepulcro. As mulheres que naquela madrugada tinham acompanhado Maria Madalena - esclareceram-nos -, depois de transmitirem aos apóstolos as notícias do túmulo vazio, do desaparecimento das patrulhas e da suposta presença do Rabi no jardim, tinham ido a casa de José e contado à filha e às outras hebréias tudo o que - segundo elas - tinham visto e ouvido. Pouco depois, a filha de José de Arimatéia e as quatro testemunhas em questão apresentaram-se em casa de Nicodemo. Estavam lá  David Zebedeu e o ancião membro do Sinédrio. Repetiram a sua história, mas, segundo as próprias palavras de José, quase todos duvidaram da veracidade de tais fatos. Sobretudo da pouco credível ressurreição do   Nazareno. Tanto Nicodemo como os discípulos que se ocultavam na casa inclinavam-se a crer que o cadáver podia ter sido roubado. Só David e José recordavam as promessas do Filho do Homem e, movidos pela esperança e pela curiosidade - no caso de José, esta última
pesava muito mais do que a primeira -, tomaram a decisão de ir à cripta e tentar esclarecer o enigma. David quase não abriu a boca. Observou detidamente o terreno e, logo a seguir, tremendo de impaciência, pediu ao ancião que não perdessem mais tempo e entrasse à frente no sepulcro. José concordou e, a um sinal seu, o hortelão foi à frente do grupo. Eu, cautelosamente, fiquei para trás e aguardei no meio da escada. Durante os minutos - não muitos - que durou o novo exame, um pensamento, quase uma obsessão, me atormentou sem piedade: E se a segunda aparição tivesse sido real? Também não figuravam nos Evangelhos os acontecimentos que eu estava presenciando. Nem a segunda e até então suposta aparição do Mestre a Maria Madalena, nem a visita espontânea de José e David ao túmulo, nem muitíssimo menos o que iria acontecer pouco depois. Não me cansarei de repetir: é uma pena os escritores chamados sagrados não se terem empenhado num relato mais minucioso e completo dos acontecimentos que rodearam a vida e a morte do Filho do Homem! Se o tivessem feito, os cristãos e os não crentes teriam compreendido melhor os protagonistas daquela época. Quanta razão tem João Evangelista quando, no seu último versículo (21, 25), afirma que "muitas outras coisas há  que fez Jesus!". Curiosamente, aqueles dois homens seriam os últimos fiéis seguidores de Cristo a terem acesso à gruta enquanto ela ainda estava intacta; isto é, com os panos mortuários tal como tinham sido vistos depois do enigmático desaparecimento do cadáver. José de Arimatéia não tardou a sair. A sua atitude, a princípio, foi de aspereza. Levou as mãos às costas e, num pequeno vaivém pelo beco, limitava-se a abanar a cabeça, como que a repelir a possibilidade de uma ressurreição. De certo modo fez-me lembrar a Simão Pedro: David Zebedeu, pelo contrário, tal como João, seu irmão mais novo, surgiu como que renascido. Com uma eloqüente felicidade nos olhos. Antes que o responsável dos mensageiros emitisse qualquer comentário ou opinião, o euschemon - nome com que naquele tempo se designava um rico proprietário rural - colocou-se a dois palmos do seu amigo e, olhandoo fixamente, perguntou-lhe sem rodeios: - Que opinas? A resposta do galileu, no meu entender, foi perfeita: - Fiz bem em convocar os meus homens para hoje. Tenho curiosidade em conhecer as reações dos apóstolos. Vou a casa de Elias e pergunto-lhes. Jesus prometeu ressuscitar ao terceiro dia e cumpriu. Assim que chegar o meu último mensageiro darei as ordens oportunas para
divulgarem a boa nova. - Mas. A previsível impugnação de José não chegou a ser formulada. Uma gritaria distante fez com que nos voltássemos para o alto das escadas. David interrogou com o olhar o membro do Sinédrio. Mas este, encolhendo os ombros, consultou o hortelão. Ninguém sabia do que se tratava.   Subiram os degraus com todo o cuidado e, uma vez em cima, detiveram-se. Apressei-me a segui-los. Espalhados entre as árvores – juraria que em posição de combate - aproximavam-se uns vinte homens. Vestiam de forma bem diferente. Cinco ou seis, com longas túnicas verdes que arrastavam pelo solo argiloso e camisas de escamas metálicas até ao meio da coxa. Cobriam-se com capacetes polidos e em forma de cúpula e traziam arcos de dupla curvatura. Avançavam no centro da formação e um deles - talvez o chefe - vinha ligeiramente adiantado e com uma tocha acesa na mão esquerda. Outros vestiam roupões amarelos, idênticos aos que tinham sido deixados no chão. Reconheci nas suas mãos e nas faixas alguns daqueles compridos e temíveis bastões cheios de cravos. Os restantes, pelo menos os que vinham na primeira linha, vestiam umas peças curiosas - parecidas com as nossas camisolas interiores - de tecido grosseiro e mangas curtas, todas da mesma cor pardo-canela. Sobre uma pequena túnica da mesma cor - talvez se tratasse de uma peça única - cingiam a cintura com uma larga faixa de couro reluzente, de uns trinta centímetros, dividida em três barras, com todas as características de uma couraça abdominal. Na cabeça traziam turbantes do mesmo tom das vestes. Um dos pendentes daquele simulacro de capacete caía sobre a orelha direita, com franjas compridas que repousavam sobre a clavícula. Uma lança de madeira, com mais de dois metros e uma ponta de ferro triangular, e um grosso escudo ovalado também de madeira de sicômoro (capaz de resistir aos vermes), completavam o armamento. O aspecto dos guardas do Templo - porque deles se tratava - trouxe-me à memória o pormenor de um dos relevos descobertos no Palácio de Senaqueribe em Nínive, no qual está representada a conquista da cidade judaica de Lakis, em 701 antes de Cristo. Ao ver-nos no alto do caminho, a guarda do Templo deteve a sua marcha. Alguns deles, os que traziam os arcos em forma de jugo, levaram as mãos às costas e tiraram uma flecha da aljava cilíndrica de cor granate. Mas o que vinha à frente fez um sinal com o machado e as flechas
voltaram as aljavas. David Zebedeu, percebendo as intenções daqueles ammarkelin ou strategoi, como foram chamados por Flávio Josefo, desembainhou o seu gladius e, frio como o gelo, cobriu o seu amigo ancião. Mas este, consciente da superioridade dos soldados de Caifás, obrigou o discípulo a  guardar a arma. E, avançando até à orla do pomar, interpelou o que parecia o cabeça, chamando-o pelo nome. Tratava-se de um tal Eleazar, um Sagan ou chefe do Templo. O capitão dos levitas foi logo ter com o dono da plantação e durante uns breves minutos discutiram acaloradamente. Por último, depois de fazer um sinal ao grupo que se mantinha atento e a curta distância, saiu de detrás dos guardas um hebreu com uma túnica branca comprida, de linho, com um faixa na cintura de tecido da mesma cor, da qual pendia uma pequena caixa de madeira fina.   Impressionou-me o seu nobre porte, tranqüilo e comedido. Devia ter a mesma idade de José: uns sessenta anos. O recémchegado cumprimentou José de Arimatéia com uma ligeira vênia e metendo a mão na larga manga direita mostrou-lhe um rolo de pele de carneiro cuidadosamente atado com um cordel vermelho. José abriu-o e leu-o atentamente. Sem poder resistir à curiosidade, inclinei-me dissimuladamente sobre David, sussurrando-lhe ao ouvido se podia adiantar-me uma explicação. O Zebedeu, sem deixar de olhar para os três homens, disse-me que não tinha bem a certeza: - Talvez pretendam o fechamento do túmulo.
* Os chefes do Templo gozavam de grande consideração. Além da supervisão do culto, administravam tudo o que se referia à segurança e trabalhos policiais desempenhados pelos levitas. No ano 66, por exemplo, outro Eleazar chegou a ordenar a eliminação do sacrifício em honra do imperador romano. Foi quase uma declaração oficial de guerra contra Roma. Foi o começo da insurreição. (N. do M.)
Mas o chefe dos mensageiros enganava-se. A intenção daqueles indivíduos ou, para ser mais exato, do sumo sacerdote Caifás e dos saduceus que o secundavam no problema chamado Jesus, era muito mais sibilino. José de Arimatéia devolveu o pergaminho ao ancião e, dando meia volta, veio para junto de nós. O seu rosto, habitualmente sereno, estava congestionado. Indicou-nos com a mão que nos afastássemos para um lado, deixando livre o acesso ao fosso, e, com um conciso e seco comentário, resumiu a situação:  
- Ordem para revistar. - Mas porquê? De quem? José olhou para David e respondeu com um sorriso cínico. Foi Zebedeu quem respondeu a si mesmo, e corretamente, é claro:   - Caifás!. Esse bastardo! A princípio, tal como os meus companheiros, não compreendi o sentido daquela revista. O sumo sacerdote tinha sido informado pela própria patrulha judaica do desaparecimento do cadáver, e do não menos inquietante fenômeno das pedras a deslocarem-se sozinhas. Que obscuras intenções podiam ocultar-se, portanto, por trás daquela ordem absurda? Não tardaria a saber. Os levitas cercaram por fim o acesso à gruta e nós, em silêncio, continuamos afastados, atentos àquela surpreendente manobra. O capitão exigiu então a presença de dois indivíduos que não pareciam fazer parte do corpo de vigilantes do Templo. Vestiam como a maioria dos am-haarez ou plebeus: túnicas gastas e de uma cor desbotada pela inseparável imundície. Um deles tinha a cabeça enfaixada à altura das têmporas. A ligadura ocultava-lhe a orelha direita. E, ao olhar com mais atenção, pareceu-me reconhecer o criado do sumo sacerdote que provocara a rixa nas proximidades do horto de Getsémani. Aquele sírio ou nabateu, que se chamava Malco, e que eu procurara em vão nas últimas horas da minha primeira viagem, parecia bem recuperado da terrível cutilada desferida por Simão Pedro. Se as circunstâncias não fossem tão rígidas, eu teria certamente tentado satisfazer uma grande curiosidade minha: examinar a orelha e o ombro direitos do servo inoportuno. Mas não tive outro remédio senão dominarme. Talvez haja uma terceira oportunidade, disse para comigo. De qualquer forma, enquanto Eleazar, o capitão dos guardas, dava instruções aos esfarrapados, pude esclarecer outro ponto interessante. Aqueles indivíduos não eram na realidade criados, no sentido que hoje podemos dar a esse atributo. O ostensivo orifício no lóbulo da orelha direita do segundo personagem revelava claramente que se tratava de um escravo. Neste caso, escravo pagão. (Procurarei, mais adiante, penetrar no tenebroso e pouco conhecido mundo da escravatura em Israel no tempo de Cristo e à qual incompreensivelmente, Jesus, não prestou muita atenção) O caso é que, para minha surpresa e espanto o chefe do Templo entregou a tocha a Malco e este, na companhia do segundo escravo e de três levitas de túnicas verdes, desceram os degraus e dirigiram-se para a
entrada do sepulcro. O capitão ordenou que recolhessem os mantos, os bastões e a marmita da patrulha que prestara serviço à entrada do sepulcro, e, logo a seguir, desceu e entrou na cripta. Pelo que pude observar, só os escravos e o chefe daquele novo pelotão é que entraram na gruta. Este último, por acaso, até passou pela estreita abertura com precauções que me pareceram tão absurdas quanto excessivas. Os três levitas restantes mantiveram-se diante da entrada, vigiando o acesso ao interior.
 
*O nome Malco aparece freqüentemente nas inscrições palmirenses e nabateias. Dois reis da mítica Nabateia – Malco I (50 - 28 a. C) e Malco II (40 - 71 d. C) – parecem referendá-lo. Também o historiador Josefo o atesta (B. j, I, 29, 3 e Ant, XVII 3, 2). Segundo as nossas informações. Le Bas e Waddington inclinam-se mais para uma origem síria, apresentando um total de vinte e oito testemunhos epigráficos. (N. do M)
A explicação para a maneira quase teatral de Eleazar entrar no sepulcro - evitando por todos os meios roçar sequer a pedra redonda que servia para o fechar - foi-me dada por David, que, espontaneamente, relembrou uma das frases do Mestre: - Sepulcros caiados! Que queria dizer o Zebedeu? Muito simples. A lei mosaica era estrita no que se referia ao contato e à contaminação com cadáveres. Na Misna, por exemplo, capítulo Ohalotl, ordenam-se, entre outros, os seguintes preceitos, fundamentados no livro dos Números (19 14): A pedra circular que fecha o túmulo, reza o capítulo II, e as pedras de apoio propagam impureza por contato e sob a tenda, ainda que não por transporte [] As seguintes coisas são puras se forem imperfeitas - quer dizer, se não alcançarem a medida -: meia azeitona de um cadáver meia azeitona de substância cadavérica putrefata, uma colherada de podridão, um quarto de 1oq de sangue (um loq equivalia a meio quilograma), um osso do tamanho de um grão de cevada, um membro de um ser vivo a que falta o osso. Se uma pessoa tocar num morto e depois em objetos ou se projetar a sua sombra sobre um cadáver e depois tocar em objetos, estes tornam-se impuros. Se projetar a sua sombra sobre um morto e depois a projetar em objetos ou se tocar num morto e depois projetar a sua sombra sobre objetos, estes permanecem puros. Mas se a sua mão tiver a extensão de um palmo quadrado, os objetos tornam-se impuros []
* No tratado das Tendas" (ohalot), num total de dezoito extensos capítulos,
a Misn  estabelece os casos concretos de impureza por contato com cadáveres sob uma tenda. Neste sentido, o livro dos Números (19, 14) afirma: Lei para quando um homem morre na sua tenda: todos os que entrarem na sua tenda, e tudo o que nela houver, ficam impuros, Por tenda não se entendia apenas a tenda ou abrigo, mas tudo aquilo que, como uma tenda, oferece um teto ou projeta sombra, como por exemplo, um pau, uma mão, um animal, uma pedra, o próprio cadáver, etc. Escolheu-se precisamente o termo ohalot, com a desusada terminação no feminino para indicar que as tendas de que se fala têm um sentido mais amplo que o comum. No caso de um sumo sacerdote, o contato com um cadáver era muito grave: exigia uma cerimônia de sete dias até poder oficiar de novo. (N. do M)
Todas estas medidas - que no início tiveram sem dúvida um caráter higiênico-sanitário - tinham sido deformadas e manipuladas pelos doutores da Lei, transformando-se, com o passar dos séculos, num pesadelo. E embora a maioria do povo não fizesse caso daquelas centenas de regras e prescrições absurdas, o mesmo não acontecia com os sacerdotes e outras castas, direta ou indiretamente ligadas ao Templo ou à Lei. Era esse o caso do chefe de turno dos levitas. E essa era a razão pela qual se tinha feito acompanhar pelos dois desprezíveis escravos pagãos, que não estavam submetidos à força do ritual sobre impurezas. Como viria a ter ocasião de presenciar alguns minutos mais tarde, os sepulcros caiados cumpriam as formalidades ao ponto de se negarem a tocar nos panos mortuários, obrigando Malco e o segundo gentio a pegar neles. O estranho foi Eleazar ter-se dignado ultrapassar a porta da cripta. Mas as ordens que tinha, ao que parecia, obrigavam-no a essa aberração religiosa. Seguindo os costumes de Caifás, e dadas as especiais circunstâncias, a Lei, neste caso, tinha sido adaptada aos inconfessáveis interesses da hierarquia.   Poucos minutos depois, com efeito, a revista ficou concluída. E vimos aparecer o capitão e os seus homens. O da orelha perfurada levava debaixo do braço um embrulho. José reconheceu logo o lençol de linho que ele próprio comprara e que servira para o translado e amortalhamento provisório do corpo do seu Rabi. Enfurecido, foi ter com o chefe   da patrulha e exigiu-lhe os panos. Eleazar afastou-o bruscamente. Foram segundos de uma grande tensão. David levou a mão esquerda ao   punho da espada, mas, antes que a espada saísse da bainha de madeira, os levitas que nos cercavam encostaram o ferro das suas lanças aos nossos ventres. Os protestos do
ancião membro do Sinédrio foram inúteis. E, cumprida a missão, os soldados do sumo sacerdote dispuseram-se a abandonar o horto. Antes disso, aos empurrões e sob a ameaça contínua das lanças,  o hortelão, David e eu, fomos obrigados a retirar-nos para o caminho de saída da plantação. Mas José de Arimatéia, que não recuava perante as dificuldades, voltou a enfrentar o capitão, e, apontando para o velho da túnica de linho, recordou-lhe que aquela propriedade era sua e que ele, no mínimo, tinha a obrigação de lavrar a ata do que fora confiscado.   Eleazar, desorientado, esperou a resposta do rabino ou escriba. Este, conhecido pelo nome de Johanan ben Zakkai, concordou com parcimônia. O chefe do Templo cedeu e, a um sinal seu, os levitas obrigaram-nos a voltar para a clareira. Iamos servir de testemunhas. O criado que segurava a trouxa atirou-a para o chão e, depois de consultar Eleazar, apressou-se logo a desembrulhá-la. Tanto o capitão como os esbirros recuaram vários passos, como que impelidos por uma mola. O ancião, depois de se certificar que a sua sombra e as dos levitas não se projetavam sobre o embrulho fúnebre, foi sentar-se à maneira turca diante das peças que estavam sendo confiscadas. Colocou a caixa sobre as pernas e, em silêncio, recreando-se no que sem dúvida constituía todo um cerimonial, começou a abri-la. Fiquei fascinado. Tratava-se de uma espécie de módulo, chapeado em madeira fina, com duas concavidades numa das pontas. Nelas se guardavam bolas de tinta solidificada. Uma preta e outra vermelha. Tratava-se, possivelmente, de fuligem e de ocre, misturados com goma, que se diluíam em água no momento de usar. (Algo assim como a nossa tinta-da-china, que permitia lavagem fácil e, naturalmente, todo o tipo de falsificações) A massa avermelhada obtinha-se também com sikra, um pó que se extraía triturando cochonilhas e que, muitas vezes, era igualmente aproveitado pelas hebréias como cosmético. No centro da caixa tinha sido feito um terceiro buraco, onde se guardavam os utensílios próprios da escrita: os calamos ou pequenos juncos marítimos, utilizados como penas. Tinham sido aparados numa das extremidades e, na outra, esmagados, para poderem ser utilizados como pincéis. Por último, noutra concavidade da caixa, o escriba guardava uma série de tabuinhas de madeira - muito finas - cobertas de cera. Junto delas havia um estilete de osso. Uma das pontas tinha a forma de espátula que devia servir para amassar a cera e assim apagar o que se escrevera, aproveitando de novo a tabuinha. A extremidade oposta era muito afiada e pontiaguda. O tal Zakkai pegou numa daquelas tabuinhas e, com a mão esquerda,
dispôs-se a perfurar a cobertura de cera. Deu o sinal com o estilete e o escravo foi levantando as diferentes peças mortuárias e mostrando-as aos presentes. Da direita para a esquerda, em aramaico - só se utilizava o hebraico em assuntos religiosos -, o rabino foi escrevendo sem pressa e com letras grandes: Um sudário. Duas ligaduras para as mãos e para os pés. e um lençol de linho de Palmira. Ao levantar parcialmente o longo lençol, todos os ali reunidos, incluindo David e José de Arimatéia, puderam observar algo que nos surpreendeu, sobretudo a mim. À clara luz da manhã, entre os restos sanguinolentos, o lençol apresentava umas insólitas manchas douradas - as que eu descobrira na cripta - que reproduziam parte de uma figura humana. Embora breve, a exposição do tecido permitia distinguir as plantas de uns pés nus e a metade inferior de umas pernas. O incrível desenho - naquele momento não soube defini-lo melhor - não passou despercebido a Eleazar e ao escriba. Este, ao reparar nas manchas, ficou um instante com a pena no ar, atônito. David Zebedeu olhou para mim de soslaio interrogando-me com uma quase imperceptível elevação da cabeça. Limitei-me a arquear as sobrancelhas, dando-lhe a entender que eu também não tinha uma explicação para aquilo. A repentina reação do capitão foi muito significativa. Ao perceber-se de que naquele tecido havia muito mais do que coágulos de sangue, deu por concluído o protocolo, simulando uma súbita pressa e ordenando ao escravo que atasse de novo a trouxa. E o rabino, depois de estampar o selo no final de tão concisa ata, guardou os instrumentos e pôs-se de pé. A partir daí, tudo se passou com rapidez. Os levitas empurraram-nos com as armas, obrigando-nos a sair da quinta enquanto o resto do pelotão, com Eleazar à frente, nos seguia a curta distância. Transposta a cerca de madeira, os soldados deixaram-nos em paz. Foram juntar-se aos seus colegas, e José e David, indignados pelo que consideravam uma violência, convidaram-me a acompanhá-los até casa de Elias Marcos. Hesitei. Aquela parte da missão não tinha sido concluída. Eu tinha de conseguir os panos mortuários e levá-los para o berço. Mas como? O criado que os guardava não parecia disposto a perdê-los ou a entregá-los a alguém. E, pedindo desculpa, disse-lhes que nos veríamos mais tarde. Sem mais, os meus amigos desapareceram em direção à cidade. O hortelão perguntou ao chefe do Templo se podia voltar ao seu trabalho na plantação e uma vez autorizado, também desapareceu pelo caminho do horto. Quanto
a mim, como disse, as coisas voltavam a ficar difíceis. A minha única obsessão era apoderar-me do lençol. Mas a sorte não parecia estar do meu lado. Que deveria eu fazer? O diálogo de Eleazar com a sua gente foi brevíssimo. Eu tinha de manter os olhos bem abertos e seguir a pista do linho. Não havia outra solução. Assim, simulando um cansaço que não tinha, deixei-me cair ao pé da paliçada, sentindo a agradável e tépida carícia do sol no meu rosto. Semicerrei os olhos, lamentando não ter sido mais rápido a ir buscar a mortalha. O Cavalo de Tróia, na planificação desta segunda missão, fora taxativo: a análise daquele tecido era vital para a nossa tentativa de esclarecer o hipotético fenômeno a que os cristãos chamam ressurreição. Por conseguinte, eu tinha de levá-lo para o módulo custasse o que custasse. Mas aquele pensamento foi imediatamente rejeitado. Já não havia remédio. Além disso, teria ido contra o curso natural dos acontecimentos que, em parte, eu presenciara. Um erro desta índole, confiscando a mortalha antes de tempo, podia ter mudado substancialmente os fatos históricos, tal como hoje os conhecemos. Se eu tivesse ficado com o sudário numa das minhas primeiras incursões ao interior do sepulcro, o relatado por João, o Evangelista, por exemplo, não teria sido a mesma coisa. Nem ele nem Simão Pedro, depois da famosa correria, teriam tido a oportunidade de ver aqueles panos e a sua insólita disposição no banco de pedra. A minha responsabilidade, mais uma vez, era muito grande. Tinha de esperar. Era preciso esperar pelo momento mais propício. Um momento em que o envoltório passasse para segundo plano, historicamente falando. Mas, quando e onde? E se as intenções do sumo sacerdote fossem no sentido de o destruir? De Caifás e sua gente podia esperar-se qualquer coisa. Se o embrulho que o criado levava acabasse nalgum canto obscuro de Jerusalém ou, simplesmente, fosse incinerado, teríamos de dizer adeus aos nossos objetivos. Mas talvez eu estivesse a sobrevalorizar a agudeza daqueles soldados. A julgar pelo que tinham feito,  não estavam convencidos - longe disso - de que os rumores sobre o regresso à vida do Galileu fossem verdadeiros. A patrulha, reunida em volta do seu chefe, deu por concluído o conclave e, enquanto a maioria dos seus elementos se punha em movimento para a muralha norte, Eleazar, o escravo que levava o envoltório funerário e dois dos arqueiros deram meia volta e afastaram-se em sentido contrário ao da tropa. E um raio de esperança brilhou no meu abatido coração. O que é que eles pretendiam fazer?
Nem sequer repararam em mim. Os quatro passaram diante daquele estrangeiro esfarrapado e aparentemente adormecido, contornando a vedação da quinta em direção ao nordeste e dando grandes passadas. Vi-os desaparecerem no interior de umas espessas alfarrobeiras de vistosas flores vermelhas. Foi uma referência excelente. Levantei-me rapidamente e, depois de me certificar de que o grosso dos levitas prosseguia o seu caminho em direção à Porta dos Peixes, saltei a sebe de murtas da propriedade que ficava em frente da de José, tentando dar a volta ao pequeno bosque de alfarrobeiras pelo lado leste.   Não tive de caminhar muito. Na sua vertente oriental, a pequena mancha de árvores era bruscamente cortada por uma das múltiplas depressões dos contrafortes das colinas e desfiladeiros de Bezatha. Tratava-se de uma das mil encostas rochosas de marga calcária sinclínica, tão freqüentes na tortuosa superfície da Judéia. Colei-me ao pó avermelhado do terreno e, oculto entre o matagal, vi o capitão e os seus homens na borda do precipício. Eleazar apontou para o rochedo e o escravo, obedecendo à ordem, atirou o envoltório para o fundo do barranco. Cumprida a missão, afastaram-se pelo mesmo caminho por onde tinham vindo. Aguardei uns minutos. Tudo naquele recôndito lugar estava deserto e silencioso. O lugar escolhido para se desfazerem da mortalha era realmente o melhor. A estrada mais próxima - a da Samaria - ficava muito mais para ocidente e o barranco, afastado de qualquer caminho ou azinhaga. Quem poderia aventurar-se por semelhante precipício? Tomando todo o tipo de precauções fui-me aproximando do declive rochoso. Não tardei a vislumbrar o meu objetivo. Eu ficara meio enganchado nos rebentos de uma alcaparra silvestre. A verdade é que não teria sido muito difícil localizá-lo da orla do pequeno bosque. Qualquer hipotético observador teria visto sem dificuldade o estranho embrulho, salpicado por aquela infinidade de manchas sanguinolentas, obscurecidas pelo passar das horas. Estive tentado a desatar o envoltório e satisfazer a minha enorme curiosidade. As manchas de cor escura intrigavam-me extraordinariamente. Mas não era o momento nem o lugar mais adequados. Haveria tempo para examinar o tecido e surpreender-me com o seu conteúdo. Rasguei o meu destroçado manto e atei o farrapo a um ramo tenro da alcaparra. Desta forma, embora recordasse perfeitamente o lugar onde caíra o pano, talvez não tivesse muitos problemas à hora de voltar a pôr a trouxa no primitivo e histórico lugar em que foi escondida e abandonada.
Os evangelistas também não falam deste assunto. Talvez não o considerassem importante. Talvez João, o único dos escritores sagrados que viu os panos dobrados, não tivesse tido a oportunidade de reparar nas manchas misteriosas. Ou, se reparou, não lhes deu importância, como noutros muitos capítulos da vida do Filho do Homem. No entanto, na nossa opinião, como terei ocasião de demonstrar mais adiante, aqueles panos - em especial o lençol - teriam uma importância decisiva na altura de enfrentar o controverso fenômeno da ressurreição. Estou me referindo, naturalmente, ao lado científico do tema; não ao da fé. Como certamente terá adivinhado o possível leitor destas recordações e anotações apressadas, o grande pano de linho que serviu para envolver o corpo sem vida do Mestre tinha muito a ver com uma relíquia polêmica, venerada no século XX na cidade italiana de Turim. Eu, como já comentei, tomara conhecimento da mesma. Mas não lhe soube dar a devida atenção. Como tantas outras relíquias dos cristãos, pareceu-me uma coisa pouco séria, do ponto de vista da ciência. Como estava enganado! E, sem poder conter a minha alegria comuniquei a Eliseu a minha descoberta, anunciando-lhe que ia partir imediatamente para a base-mãe e com todas as peças mortuárias. Eram dez horas e quarenta e cinco minutos. Iria entrar no módulo com um atraso considerável em relação ao programa previsto pelo Cavalo de Tróia. Um atraso que provocaria novas frustrações a este péssimo explorador. Sem qualquer complacência, rasguei o linho da minha túnica, escondendo o meu tesouro no flanco esquerdo. O Sol corria desafiante para o zênite e, a passos largos, tomando como referência a Piscina dos Cinco Pórticos e o monumento ao pisoeiro, no ângulo nordeste da muralha setentrional, fui desembocar na estrada poeirenta que passava pela garganta do Cedron e que serpenteava pelo sopé ocidental do monte das Oliveiras. Com o auxílio dos crótalos, a localização do berço foi extremamente simples. E às onze e um quarto daquela manhã do domingo de glória, exausto e radiante de satisfação voltava a abraçar o meu irmão. Não havia tempo a perder. Substituí a minha roupa destroçada por outra túnica e por outro roupão exatamente iguais, prendendo ao cinto uma segunda bolsa feita à base de estopa grosseira (uma espécie de sarapilheira), quadrada, de vinte e cinco centímetros de largura, que continha os astrolábios assírios e os quadros astrológicos egípcios, tudo em madeira policromada. Eliseu, que parecia totalmente recuperado da sua passageira indisposição, não fez muitas perguntas. Ambos estávamos
conscientes do grave atraso no programa e do muito que ainda havia por fazer naquele intenso e memorável domingo, 9 de Abril. Nem tive a preocupação de meter mais pepitas de ouro na bolsa de borracha. Os primeiros 163 gramas-ouro e os cem denários - que eu não tivera tempo de trocar - continuavam a ser mais do que suficientes para as minhas necessidades. Apesar de tudo, o meu segundo regresso forçado ao módulo iria ser dentro de poucas horas. De acordo com o plano, depois de examinados, os panos tinham de ser devolvidos, intactos, logicamente, ao lugar de onde os tirara. Antes de sair da nave, e enquanto colaborava com o meu irmão na abertura da mesa giratória de alumínio e aço inoxidável, expressamente desenhada pelo Cavalo de Tróia para a investigação do grande sudário, Eliseu, morto de curiosidade, não conseguiu resistir à tentação e perguntou-me sobre um dos objetivos fundamentais daquela primeira fase da operação: a suposta ressurreição do Mestre. Não soube o que responder. E, mostrando-lhe a impressionante figura que se destacava no sujo e ensangüentado lençol, comentei: - Talvez as análises disto te digam muito mais do que eu, por hora, te poderia adiantar.   Ao observar a mancha dourada - réplica fiel de um corpo deitado - o meu companheiro ficou estupefato. - Isto. A surpresa e admiração de Eliseu eram justificadas. Também ele, como eu identificara a majestosa figura impressa no linho com a do Sudário de Turim, a enigmática relíquia a que me referi. - Você acha que é o mesmo? Preferi não me pronunciar. A origem e a história daquele Santo Sudário são francamente obscuras. E ali o deixei, entusiasmado com o seu novo trabalho. Um dos mais ambiciosos do projeto. Às doze horas e quinze minutos, com o ânimo refeito, afastei-me da clareira que nos servia de base. O resto do dia prometia ser especialmente intenso.   Desta vez fui pelo caminho que levava ao extremo meridional da cidade, com o propósito de entrar pela Porta da Fonte. Indo pela Baixa da cidade, a casa dos Marcos não ficava muito longe. E, enquanto passava junto das tendas improvisadas dos peregrinos galileus, muitos dos quais tinham começado a recolher os seus haveres com a evidente intenção de regressar às suas terras do Norte, fui recapitulando o que tinha visto e ouvido naquelas primeiras e agitadas horas. Não me saíam do pensamento as duas supostas aparições de Jesus a Maria Madalena e às outras quatro mulheres. Segundo os textos evangélicos, ainda deveriam ocorrer mais
duas ou três materializações do Rabi, para além das que se deram no lago de Tiberíade. Mas esta parte da missão ainda vinha longe. Era preciso encontrar a forma de estar presente em algum dos acontecimentos ocorridos em Jerusalém ou no caminho para a aldeia de Emaús. Se os evangelistas diziam a verdade, nesse mesmo entardecer, no andar superior da casa de Elias Marcos, iria acontecer uma dessas pouco críveis aparições. E digo pouco críveis porque, tendo em conta o que eu tinha visto até àquele momento, algumas passagens dos quatro escritores sagrados sobre a ressurreição não pareciam ter qualquer fundamento. Ninguém tinha falado, por exemplo, dos famosos anjos ou jovens com vestes resplandecentes que, dizem, foram vistos no interior do sepulcro, e até mesmo sentados na pedra que servira para tapar a gruta. O bom Mateus deixara-se levar pelo seu entusiasmo e ardente imaginação, fazendo crer aos cristãos que a abertura da cripta fora obra de um anjo do Senhor que, além disso, provocara um terremoto. Nem Madalena nem as outras hebréias viram tais personagens celestes, nem, é claro, houve sismo algum. Quanto às ligaduras - que Lucas e João referem -, também não é digno de confiança. Não estavam no chão, como diz João. Mesmo que estivessem, porquê acreditar que se tratava de algo sobrenatural? Antes pelo contrário, teria sido um claro sinal de profanação ou roubo do cadáver. Não me cansarei de repetir: os panos estavam dobrados e o lenço e os dois pares de ligaduras utilizadas para atar os pulsos e os tornozelos do Rabi estavam nos respectivos lugares, como se o corpo se tivesse esfumado. Tanto os tradutores destes textos como o próprio esforço dos evangelistas por enaltecer o acontecimento do túmulo vazio levaram, quase com toda a certeza, a erros e falsas interpretações. A verdade ia ser mais simples e sublime.   Mas antes de me defrontar com essa Verdade aguardava-me ainda uma grande corrida de obstáculos e decepções.
 
* Uma das muitas objeções suscitadas pelos cientistas a propósito do Sindon ou Santo Sudário de Turim foi a do arqueólogo francês F. de Mély. Numa publicação de 1902, Lê Saint Suaire de Turin est-il authentique?, Mély chegou a apresentar quarenta e quatro santuários que reivindicavam a custódia do autêntico sudário de Cristo. Algo realmente suspeito. Vejamos essa lista de santuários: Aix (Provence), Aix-la-Chapelle, Albi, Annecy, Aosta, Arl‚s, Besançon, Boukovinez (Rússia), Cidouin, Coulvirs, Campillo, Carcassonne, Chartres, Clermont, CompiŠgne, Constantinopla, Corbeil, Corbie, Enxobregas, Halberstadt, Jerusalém, Johanavank (Arm‚nia), Karltein, Le Mans, Lirey, Milão, Mogúncia, Mont-Dieu
Champagne, Pairis (Als cia), Paris, Port-dAussois, Rims, Rotna (São João de Latrão, Santa Maria Maggiore e São Pedro), Breines, S. Salvador (Espanha), Silos, Soissons, Turim, Utreque, V‚zelay, Vincennes e Zinte. De todos estes supostos lençóis mortuários, só o de Turim reúne uma série de curiosos fatores que o destacam dos restantes. No entanto, a sua origem não parece suficientemente documentada. Nalguns dos chamados Evangelhos Apócrifos - o dos Hebreus (século II), traduzido para o grego e o latim por S. Jerônimo e nos Atos de Pilatos (também do século II) - fazem-se referências breves e fantásticas a essa mortalha. No princípio, por exemplo, pode ler-se: "O Senhor, depois de ter entregado o Sindom ao servo do Sacerdote, foi-se embora e apareceu a Tiago". Francamente, esta alusão não parece muito séria. E parecer idêntico merecem os historiadores das lendas de Arcufo, dos ebionitas, etc. O primeiro dado medianamente rigoroso sobre o aparecimento do Sudário de Turim remonta ao século XIII, durante a IV cruzada (1204). No saque de Constantinopla, Roberto de Clary conta que o Santo Sudário costumava ser exposto aos fiéis todas as sextas-feiras, dobrado em ângulo diedro de forma x que as duas figuras - tanto a frontal como a dorsal - fossem vistas de pé"; isto é, na posição vertical. A relíquia era venerada na Igreja de Santa Maria de Blaquemae. E as crônicas medievais contam igualmente que um dos chefes da tristemente célebre cruzada, Otto de la Roche, conseguiu manter dominados os francos ali aquartelados, evitando o saque da referida basílica. Em 1206, o Sindon reapareceu misteriosamente. Desta vez em poder de Pôncio de la Roche, pai de Otto. A partir de então, depois de mil peripécias, o famoso pano acaba nas mãos dos duques de Sabóia, futuros reis do Piemonte e da Itália há  constatação histórica de que, em 1532, um incêndio em Chambéry quase destruía a relíquía. Um pingo de prata fundida da urna que a protegia queimou parte do lençol, que foi posteriormente remendado pelas freiras clarissas. Da capela de Chambéry, o Sudário foi levado para Turim (1578), onde se encontra a partir de então. Desde 1691, graças ao duque Vítor Amadeu II, o Sudário foi depositado numa sumtuosa capela, obra de Guarini, construída sobre a Catedral de S. João Evangelista, na mesma cidade de Turim. está enrolado num cilindro de madeira e guardado numa urna de prata colocada sobre o altar-mor, no centro da capela. (N. do n)
Na residência dos Marcos não observei mudanças importantes. Depois da minha saída precipitada, os discípulos tinham continuado enclausurados e mergulhados no medo e na tristeza.
A primeira a regressar foi Maria Madalena. Contou aos mais íntimos a segunda e suposta aparição de Jesus na quinta de José, mas, pelo que pude deduzir, eles tornaram a não acreditar. Simão Pedro e o jovem João voltaram pouco depois. A tentativa de localizarem José de Arimatéia tinha sido infrutífera. Tal como eu tinha imaginado, o ancião e David, alertados pelas outras mulheres, saíram da casa uns minutos antes de chegar o cético pescador e Zebedeu. Embora a versão dos dois sobre o sepulcro vazio não fosse muito convincente, a verdade é que os outros apóstolos riram mais de Madalena. Algo tinha acontecido na cripta. Isso era claro para todos. Mas quase todas as opiniões eram coincidentes: esse algo só podia ser devido a um roubo ou a uma astuta manobra de Caifás e seus odiados sequazes. E o medo daqueles galileus aumentou, ao ponto de pedirem à dona da casa madeiras para escorar a porta do cenáculo. E as discussões entre eles repercutiram de novo.   Entristecido por aquele panorama patético, acabei por descer para o pátio. Ali, na companhia de João Marcos e de Maria, sua mãe, Maria Madalena, que optara por ignorar os teimosos amigos de Jesus, relatou várias vezes a sua segunda visão. E foi ela quem me informou também da visita de José e de David Zebedeu aos discípulos. Ao que parecia, seguindo os desejos expressos pelo chefe dos emissários na plantação, os dois tinham ido diretamente da quinta para a casa de Elias Marcos. A conversa deles com os oito apóstolos começou por girar em torno do sepulcro vazio e da possível ressurreição do Mestre. Mas, apesar dos argumentos e do arrazoado de David, aqueles homens continuavam a defender a hipótese do roubo. - David não quis discutir - explicou-me Maria Madalena, elogiando a postura do irmão dos Zebedeus -, mas disse-lhes o que pensava. Estas foram as palavras dele: Vocês é que são os apóstolos e deveriam compreender estas coisas. Não vou discutir convosco. Seja como for, vou para casa de Nicodemo, para onde convoquei os mensageiros. Quando chegarem todos, envia-los-ei a cumprir a última missão: anunciar a ressurreição do Mestre. Ouvi-o dizer que, depois da sua morte, ressuscitaria ao terceiro dia. E eu acredito. Pela enésima vez fiquei espantado com a fé inquebrantável daquele discípulo de segunda linha. Os apóstolos, derrotados e, o que era pior desesperados, não lhe concederam muito crédito. David, depois de se despedir,  colocou nos joelhos de Mateus Levi a bolsa que Judas lhe confiara antes dos tristes acontecimentos de quinta-feira. Era o dinheiro do grupo. Não sei se
naqueles momentos eles conheciam a sorte do traidor. Possivelmente não. Mas também não estranharam a transferência dos fundos. A humilhação e o medo de uma rusga dos guardas do Templo eram tais que os seus pensamentos se concentravam só numa obsessão: fugir da cidade. Essa era a única preocupação deles: a sobrevivência. Alguns planejaram até a fuga para assim que se fizesse de noite. Que pouco e quão deficiente se mostraria depois esta dramática e prolongada angústia dos mais próximos de Jesus de Nazaré durante aquele interminável domingo. O tempo urgia, mas, embora um dos meus trabalhos obrigatórios daquele dia fosse recuperar o microfone que servira para a transmissão da última ceia, a informação de Maria Madalena sobre as intenções do chefe dos emissários pôs-me em alerta. Aquilo também não figurava nos textos dos evangelistas. Pensei que talvez fosse útil e interessante estar presente naquela reunião dos correios. Apesar de tudo, as supostas aparições seguintes de Cristo - sempre segundo os Evangelhos - não deveriam verificar-se até ao entardecer. O planejado pelo Cavalo de Tróia era tão simples quanto problemático. Se eu fracassasse nas primeiras manifestações do Ressuscitado - como de fato acontecera - tinha de dirigir o meu esforço para a localização dos discípulos citados por Lucas (24 1315) e que, segundo este relato, habitavam numa povoação chamada Emaús, a uns sessenta estádios da Cidade Santa. Se falhasse novamente, a operação fixara a minha indispensável presença no que parecia ser o último acontecimento prodigioso daquele domingo: a aparição no cenáculo. Em caso de novo fracasso, eu tinha pela frente outras oportunidades: a que ‚ mencionada por João, oito dias depois e na presença de Tomé, ou os intrigantes acontecimentos da Galiléia. Mas   estes últimos acontecimentos - que constituíam a nossa fase final - ainda estavam muito longe. De momento, como ia dizendo, a minha preocupação centrava-se nos discípulos de Emaús, e, antes de partir para a casa de Nicodemo, simulando um interesse especial pelos vimeiros que, ao que parecia, cresciam na Ammaus citada por Flávio Josefo (Guerra, VII, 217) 1, fiz algumas perguntas discretas aos criados de Elias Marcos, dirigindo-as fundamentalmente para o que me preocupava: a procura e identificação de alguém próximo do grupo de fiéis do Nazareno que vivesse na referida aldeia e que me pudesse ajudar na falsa missão de comprar vime. Como comerciante nada havia de estranho que eu mostrasse interesse pelo lucrativo negócio dos vimes. Era-me terminantemente proibido fazer qualquer alusão à suposta aparição no caminho para Ammaus ou Emaús e, por conseguinte, devia levar a cabo as minhas pesquisas com o máximo de
cuidado. Mas ninguém na casa - nem mesmo a mãe de João Marcos ou Maria Madalena - me soube informar. Rejeitei a idéia de perguntar aos apóstolos reunidos no andar de cima. E, um pouco preocupado por mais aquela frustração, consolei-me, pensando que talvez David Zebedeu - conhecedor excelente das pessoas que tinham rodeado Jesus - pudesse tirar-me as dúvidas. Com esta desculpa, e prévia autorização da mãe, o jovem João Marcos e o autor destas páginas dirigiram-se para a casa de Nicodemo, outra notável personagem na vida da Cidade Santa e amigo público - nada secreto, como insinuam os evangelistas - do Rabi da Galiléia. Pelo caminho, enquanto atravessávamos o bairro alto da cidade, o rapaz foi respondendo a algumas das minhas perguntas sobre aquele rico fariseu, membro do Sinédrio e aparentado com o ramo dos Ben Gorion. Alguns anos depois - segundo Josefo (B. j, IV 3, 9) -, um tal Gorion ou Gurion ocuparia um lugar de destaque na Jerusalém do ano 70. Nicodemo ou Naqdemon negociava com trigo e chegou a acumular uma invejável fortuna, calculada pelos seus amigos em mais de um milhão de sestércios. Entre os seis mil santos ou separados, como eram chamados os da casta dos fariseus, contabilizados na Palestina do tempo do rei Herodes 3, o nosso homem - como José de Arimatéia e outros membros da nobreza, - distinguira-se sempre pelo seu espírito liberal e aberto, mais próximo da escola de Hillel que da de Schammai. Ambas as ideologias ou tendências no seio do farisaísmo da época tendiam para uma espécie de direita e esquerda. Hillel, que foi ganhando terreno, simbolizava a esquerda: mais aberta, prudente e compreensiva que a de Schammai, rígida, reacionária e mais ritualista. Nicodemo, seguindo o exemplo do próprio Mestre - que teve muito em conta a escola de Hillel -, sentia-se próximo da cada vez mais numerosa ala esquerda. E, apesar de ainda termos outras oportunidades para penetrarmos no curioso mundo das comunidades de Fariseus ou haburot e dos Essênios, igualmente separados - ambos os ramos partiam de um tronco comum -, penso que não ser mau insistir de vez em quando num fato que já referi várias vezes neste  diário e que poderá ser útil para distinguirmos uns fariseus de outros. Infelizmente, o mundo moderno meteu-os a todos no mesmo saco. E não é justo. Houve fariseus que defenderam Jesus, que se distinguiram e se orgulharam da sua amizade com o Galileu e que até, como no caso de alguns dos dezenove membros do Sinédrio citados, não hesitaram em se demitir do Conselho quando perceberam as irregularidades de Caifás no processo contra o Mestre. As críticas do Rabi da Galiléia não eram dirigidas contra esses,
quase todos solidários com   os ensinamentos de Hillel - As famosas acusações de Mateus (13) - "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!" - foram lançadas contra os fariseus de direita. Todos sabiam que aqueles santos eram mentirosos, sepulcros caiados e que deitavam para as costas dos outros a carga que eles se negavam a levar. Eram os popularmente conhecidos como fariseus tingidos e que um antigo apólogo do Talmud   retrata na perfeição. O apólogo em questão reza a sim: "Há  sete classes   de fariseus: o fariseu "onde está o meu benefício. O fariseu "bem o   pareço". O fariseu "a minha cabeça deita sangue", porque caminha com os olhos tão baixos para não ver as mulheres que dá com a cabeça nas paredes. O fariseu malhador, que caminha tão encurvado que parece uma mão de almofariz a esmagar. O fariseu "qual é o meu dever para eu o cumprir?" O fariseu "faço uma boa ação todos os dias"   e, finalmente, o único e verdadeiro fariseu: o que o é por temor e amor a Deus."
* No período da preparação desta segunda exploração tivemos sérias dificuldades no momento de localizar a Emaús citada pelo evangelista. As coisas, mais uma vez, não estavam tão claras como possa parecer. O verdadeiro nome parecia ser Ammaus, citado na Biblia, em Josefo e na Misn . Era uma cidade destacada, onde nasceu o famoso Júlio, o Africano. Ficava situada no território da atual Ammâs, perto de Latrun. Mas não era a única Ammaus biblica. Em Josefo, como disse, também vem citada uma outra povoação com o mesmo nome, muito perto de Jerusalém, junto à estrada de Jafa e que hoje ‚ conhecida pelo nome de Kolonieh. Esta foi destruída pela guerra de 1948 e, ao que parece, ocupava o lugar da antiga Motza, citada no livro de Josu‚ (18, 26). O nome vinha da colônia para veteranos romanos, instalada em Kolonieh depois da destruição de Jerusalém no ano 70. No princípio pusemos de lado a primeira Ammaus dado que se encontrava a cento e sessenta estádios (uns trinta quilômetros): uma distância excessiva para ser percorrida num só dia, ida e volta. (N. do M) * Para fazermos uma idéia aproximada do que representava tal soma, nos reinados de Augusto e Tibério, um tal Gávio Apício tinha uma das maiores fortunas do Mundo: entre sessenta a cem milhões de sestércios. E dizem que se suicidou quando, por um erro de cálculo, pensou que tinha baixado para dez milhões. (N. do A) * Naquela época a população que se calcula que residia habitualmente em Jerusalém era de umas vinte e cinco mil a trinta mil pessoas. O total de
sacerdotes e levitas era de uns dezoito mil, e os Essênios contavam com cerca de quatro mil membros (Josefo, em Ant, XVIII, 15). (N. do M)
Nesta confusão de critérios e posturas, Nicodemo, tivera a coragem suficiente para enfrentar não só os de direita, como até muitos dos seus companheiros de esquerda, para quem os ensinamentos do Galileu crucificado eram duvidosos e excessivamente radicais, como de uma espécie de extrema esquerda. Assim foram qualificadas as palavras do Filho do Homem quando defendia as prostitutas e os gentios impuros ou quando aceitava no seu grupo mulheres e, até, um cobrador de impostos indiretos, como no caso de Mateus.
* No tempo de Cristo, estas eram as duas grandes escolas ou tendências dentro do grupo político-religioso formado pelos fariseus. Os seus chefes eram os doutores Hillel e Schammai, respectivamente. As suas diferenças eram tão grandes como numerosas. Na Beth Hillel praticava-se o liberalismo. Na Beth Schammai, o integrismo. Daniel Robs conta uma história neste sentido, realmente esclarecedora. Diz-se que um dia, um pagão se aproximou do rabino Schammai e lhe comentou com ironia: "Faço-me judeu se fores capaz de me explicar a Lei durante o tempo em que eu conseguir manter-me em equilíbrio num só pé". O rigoroso e austero Schamma satisfez o pagão dando-lhe uma pancada forte com o seu bastão. E conta-se que Hillel, ao perguntarem-lhe sobre o mesmo assunto, respondeu: Não faças aos outros o que não quiseres que te façam a ti: essa é toda a Lei. (N. do M)
  Meu Deus! Como parecem ter mudado pouco as coisas depois de dois mil anos há tantos membros das igrejas do século XX que se enquadrariam na rigidez e intransigência daqueles fariseus de direita!   De bom grado me teria acercado dos numerosos grupos de judeus que   fomos encontrando à medida que nos aproximávamos da muralha norte.   Discutiam, polemizavam e transmitiam uns aos outros as últimas notícias sobre o sepulcro vazio do Rabi da Galiléia. O acontecimento, logicamente, acabara por chegar à população, e em Jerusalém era um fervilhar de boatos, havendo até quem fizesse apostas sobre o destino do crucificado.   Era o prato do dia. E aquela situação tão excitante e inevitável alarmou-me. O sumo sacerdote e os que haviam conspirado para que condenassem o Mestre não veriam com bons olhos aqueles rumores
incessantes sobre a pretensa ressurreição, e a conseqüente glorificação, do odiado Galileu. Alguma coisa engendrariam para neutralizar tal movimento. Passei de novo pela Porta dos Peixes e, guiado pelo rapaz, enveredei pela Estrada de Cesaréia, para oeste. A casa de Nicodemo - muito mais luxuosa que a de José - ficava a uns três estádios da cidade (uns quinhentos metros). no topo das circunvoluções do cerro do Gareb: a 778 metros acima do nível do mar e naquilo que poderemos considerar a zona privilegiada fora dos muros de Jerusalém. Naquele monte, situado entre as   calçadas da Cesaréia e da Samaria, os judeus abastados tinham construído vivendas sólidas e espaçosas - muitas delas imitando as tendências   arquitetônicas romanas e helênicas - à sombra de corpulentos terebintos, azinheiras e ciprestes. Fiquei admirado com a paz do lugar e com as soberbas edificações, que nada tinham a ver com as míseras casitas de adobe e palha triturada dos grandes bairros da Cidade Santa. O solícito e eficiente João Marcos deteve-se, por fim, diante de um daqueles palacetes de dois andares, totalmente cercado por um muro de pedra rematado por um gradeamento de quase dois metros de altura e meio escondido por uma densa rede de trepadeiras. Um amplo jardim de fina erva muito bem cuidada estendia-se diante da casa. À direita da cancela de ferro avistei um poço, à sombra de vários carvalhos altos. Havia-os do tipo velani, com cerca de quinze metros de altura, e os quase eternos de galhos, mais pequenos. Um caminho estreito de imaculados calhaus de rio – brancos como os muros da casa - conduzia à fachada da casa. Seguindo a moda da época, Nicodemo construíra a sua vivenda de acordo com o mais puro   estilo das residências romanas ou domus. O atrium, ou parte semipública, destacava-se pela sua forma clara de tetrastilo, com um espaçoso pátio quadrado, com arcos em volta sustentados por um pilar em cada um dos ângulos do pátio. No centro do empedrado, tal como eu tinha visto em casa de Lázaro, abria-se uma cisterna retangular em que se recolhia a água da chuva. Escadas reluzentes e semicirculares, de mármore   branco, davam acesso à habitação propriamente dita. Mas, desta vez, não tive a oportunidade de visita-la. David Zebedeu, o dono da casa e um grande grupo de pessoas - talvez trinta ou trinta e cinco no total dialogavam à esquerda do tetrastilo, à sombra daquela parte dos arcos. Pelo menos uma vez eu tinha chegado a tempo. E ali fui testemunha de outro acontecimento que, embora breve, foi tão emocionante como inesperado. Quando nos aproximamos, vários daqueles hebreus, na sua maioria
jovens, com os típicos mantos às riscas verticais azuis e vermelhas, discutiam à maneira judaica: em voz alta e gesticulando desmesuradamente. Nicodemo, sentado numa cadeira de abrir e fechar, contemplava a cena em silêncio. Ao ver-me chegar sorriu levantando a mão esquerda em sinal de amizade. A minha presença obrigatória ao pé da cruz granjeara-me a estima de muitos daqueles fiéis seguidores do Mestre. Porque deduzi à medida que me fui aproximando e compreendendo o motivo da polêmica, todos os que ali estavam eram isso mesmo: discípulos do Rabi. David, de pé e à esquerda do anfitrião, seguia o debate com atenção mas com uma sombra de tristeza e decepção nos seus olhos verdeazulados. Uns vinte homens estavam sentados ao pé de Zebedeu pendentes do menor movimento ou palavra do chefe dos emissários. Seriam aqueles os correios convocados pelo irmão de João e de Santiago? A discussão girava - como é óbvio - em torno do sepulcro vazio e da suposta ressurreição de Jesus. A maior parte das opiniões dos discípulos soaram-me muito familiares. Pareciam contagiados pelo ceticismo de Pedro e dos outros apóstolos. Troçavam descaradamente de Maria Madalena, qualificando-a de cortesã bêbada, mentirosa como todas as mulheres e visionária transtornada. O tom dos insultos foi adquirindo níveis preocupantes e, com um gesto autoritário Zebedeu impôs o silêncio, recordando aos mais enfurecidos que entre aquelas mulheres visionárias estava a mãe dele Salomé. Envergonhados, aqueles hebreus baixaram a cabeça mas continuaram a resmungar a sua ladainha de impossível, incrível e fantástico. David, a quem não me lembro de ter visto perder a compostura, tirou o manto que cobria a sua cabeça, deixando a descoberto a sua grande cabeleira encaracolada e ligeiramente branqueada por umas cãs prematuras. E, dirigindo-se aos que estavam sentados no empedrado, falou-lhes assim:   - Vocês todos, meus irmãos, têm-me servido sempre de acordo com o juramento que fizemos uns aos outros. Agora tomo-os como testemunhas de que nunca dei uma notícia falsa. Não havia dúvida: aqueles vinte ou vinte e cinco homens eram os correios, que tão eficientes serviços tinham prestado ao grupo apostólico de Cristo.   - Vou confiar-vos a última missão como mensageiros voluntários do reino. Ao fazer isto, liberto-vos do vosso juramento. Amigos: declaro que terminamos o nosso trabalho. O Mestre já não precisa de mensageiros
humanos. Ressuscitou de entre os mortos!   O cálido timbre de voz de David fora aumentando em expressão e solidez, fazendo vibrar o coração dos seus homens. Alguns discípulos negavam com a cabeça. - Antes de ser preso - prosseguiu sem se alterar com os gestos de desacordo - Ele disse-nos que iria morrer e que ressuscitaria ao terceiro dia. Fez uma pausa e, cravando os olhos nos que discordavam, exclamou com uma força que não deixava margem para dúvidas: - Eu vi o túmulo. está vazio!. Falei com Maria Madalena e com mais quatro mulheres que viram Jesus. Agora despeço-vos e digo-vos adeus, ao mesmo tempo que vos envio para as vossas respectivas missões com a seguinte mensagem, que levareis aos crentes.   O silêncio apenas foi quebrado pelos alegres trinados das andorinhas que esvoaçavam sobre o pátio. - Jesus ressuscitou de entre os mortos. O túmulo está vazio. Logo a seguir, Zebedeu fez um sinal e um criado da casa avançou por detrás do grupo, trazendo nas mãos uma pilha de cartuchos cilíndricos, feitos de couro e com um cordel em forma de laçada num dos extremos. Foi colocar-se ao lado de David que, pegando num daqueles tubos castanhos, levantou a tampa e tirou um pequeno rolo de pele de cabra. Leu o conteúdo e, com um gesto de aprovação, recolocou-o no tubo. Como um só homem, os emissários puseram-se de pé e, um após outro, foram-se aproximando do chefe, que, depois de os abraçar, lhes entregava o cilindro correspondente. Chamou a cada um pelo seu nome. E a cada um desejou sorte. No total, vinte e seis correios. Todos, sem exceção, eram novos: entre os vinte e os trinta anos. Traziam armas e um par de sandálias a mais que levavam penduradas nas largas e apertadas faixas ou hagorah. Mas aquela cena emotiva ficou maculada por novas e acres intervenções dos discípulos, que procuravam convencer David Zebedeu a desistir da sua louca intenção: transmitir uma mensagem que - na opinião da maioria - era falsa. No entanto, o imperturbável chefe dos emissários não retorquiu nem se dignou olhar para eles. Continuou a sua entrega, sem deixar de sorrir para os seus homens. Estes, à medida que recebiam o cartucho, punham o cordão ao pescoço e deixavam o cilindro pendurado sobre o peito. Não tendo qualquer êxito com David, desolados e furiosos, meteramse com os emissários, tentando dissuadi-los. Mas o resultado foi igualmente desastroso. Aqueles jovens e entusiastas corredores tinham
uma fé cega em David. Nunca os defraudara e agora, como em tantas outras ocasiões, dispunham-se a cumprir o seu último trabalho no singular serviço de correio organizado pelo Zebedeu. Os últimos correios saíram de casa de Nicodemo às catorze horas e quinze minutos, rumo aos quatro pontos cardeais: Damasco e Síria, a norte, Bersab‚, a sul, Alexandria, a oeste, e Filadélfia e Betânia a leste. Graças àqueles esforçados e valentes emissários, a notícia da ressurreição seria conhecida pela primeira vez a centenas de quilômetros de Jerusalém e por milhares de seguidores do Filho do Homem. No fundo, era triste e paradoxal que, enquanto aqueles vinte e seis hebreus que quase nem tinham conhecido Jesus de Nazaré corriam pelos caminhos da Palestina com a boa nova, os mais íntimos do Mestre - a quem cabia a responsabilidade da expansão do reino - continuassem encerrados cheios de medo, incerteza e desespero. Sem querer, eu assistira a toda uma lição de audácia e fé. Uma lição que também não consta nos Evangelhos. Após a partida dos mensageiros, mal troquei umas palavras com David. Os incrédulos discípulos continuaram a fazer pressão sobre ele, que, desejando afastar-se deles, se despediu de Nicodemo dizendo-lhe o que pensava fazer a seguir. Passaria por casa de José de Arimatéia, para ir buscar a mãe, Salomé, e partiria logo de viagem para Betânia, para casa de Lázaro e das irmãs. Nela estava parte da família de Jesus. Pelo que consegui ouvir, o Zebedeu prometera a Marta e a Maria acompanhá-las até Filadélfia, a fim de se juntarem ao irmão, Lázaro, que fugira por causa das ameaças do Sinédrio.
* Tanto este curioso serviço de correio como os que existiam naquela época se baseavam no que fora inventado pelo rei persa Dario, no século V antes da nossa Era. Depois, o Império Romano viria a copiar este serviço, criando um autêntico ministério, com um complexo quadro de corredores, vigilantes e guardiões de rendição. Previam-se mesmo velocidades diferentes de acordo com a urgência das cartas ou mensagens. Neste sentido é muito ilustrativa a Vita Romana, de Paoli. O sistema, logicamente, não era muito rápido: o correio imperial de Roma a Cesaréia, por exemplo, demorava cinqüenta e quatro dias. E uma carta da Síria para a capital do Império, cem dias. (N. do M)
Dito e feito. David saiu do solar de Nicodemo e regressou à cidade. No curto trajeto em que João Marcos e eu o pudemos acompanhar, o chefe
dos correios, tal como eu supunha, forneceu-me uma curta mas valiosa informação. Efetivamente, conhecia os famosos discípulos de Emaús. Mas, para surpresa minha, garantiu-me que não eram exatamente discípulos ou crentes no reino. Eram dois irmãos, pastores por sinal, e por conseguinte, de péssima reputação. Um deles, um tal Cléofas, o mais velho, parecia sentir alguma simpatia por Jesus. Mas nada mais. O outro, Jacob, na opinião de David, era uma pessoa inquieta e curiosa que, de vez em quando, ia às assembléias e lições do Galileu. - Seguramente poderás encontrá-los em casa de José, acrescentou, avisando-me que, como bons pastores que eram - talvez tentassem enganar-me. Não era a primeira vez que ouvia um comentário como aquele. Para certos setores da Palestina do tempo de Cristo, além da pureza de origem, existia uma outra realidade de grande peso social: os chamados ofícios ou profissões desprezíveis, que rebaixavam de forma mais ou menos inexorável aqueles que a exerciam. Jeremias fez um estudo magnífico a este respeito. (Zollner und Sunder: ZNW 301931) E chegaram a redigir-se até quatro listas com estes trabalhos repudiados e repudiáveis 1. A verdade, como sempre, encontrava-se no meio termo. Embora muitos   destes ofícios pudessem levar os seus praticantes à tentação do roubo, à picardia ou à mentira, a realidade não era tão dramática. É verdade que para muitos sacerdotes, escribas fariseus e puritanos da Lei todos os médicos ou pastores ou bufarinheiros eram uns indesejáveis. Oficialmente, por exemplo, era proibido aos pastores venderem lã, leite ou cabritos. (Supunha-se que podiam ser produtos roubados aos donos legítimos dos rebanhos ou a outros pastores) Mas, em geral, o povo chão convivia encantado com estes artesãos e requeria os seus serviços quando precisava deles. De qualquer forma, a advertência de David - precisamente por proceder de um homem que eu considerava justo e sincero - pôs-me em guarda. E, ao passar a muralha norte, despedimo-nos. Ele continuou para o extremo meridional de Jerusalém e João Marcos e eu, para leste, em direção ao Templo.
* Segundo o texto rabínico Qiddushin (IV-2), os ofícios detestáveis eram os seguintes: guardador de asnos, cameleiro, marinheiro, cocheiro, pastor, tendeiro, médico e carniceiro. No Ketubot (VII-10): coletor de imundícies de cão, fundidor de cobre e curtidor. No iddushin (82 bary): ourives, cardador de linho, moleiro, bufarinheiro, tecelão, alfaiate, barbeiro, pisoeiro, sangrador, banhador e curtidor. E no Sanhedrin (25): jogador de
dados, usurário. organ d ‚  m// ostosreopubpco.
Se eu tivesse seguido o seu conselho e fosse com ele a casa de José de Arimatéia não teria tido de lamentar, mais uma vez, a minha pouca sorte. Antes de partir de casa de Elias Marcos, eu pedira a Maria, a dona, um pequeno favor. A mulher concordou sem reserva nem receios. Como estrangeiro, eu precisava de um guia que simplificasse as minhas idas e vindas pela cidade. De certo modo assim era. E o jovem João Marcos saltou de alegria ao receber a autorização da mãe. Durante aquele dia - e todos os que fossem precisos, segundo a senhora - eu poderia encontrar o seu filho mais novo, pronto e encantado, para me servir. E, graças à generosidade de tão afável família, os meus passos em Jerusalém não foram tão estúpidos nem infrutíferos como na primeira aventura. Apesar disso, como é evidente e como irei expondo pouco a pouco, o destino continuaria a zombar de mim. A razão por que não acompanhei David Zebedeu até casa de José de Arimatéia foi quase banal. Mas assim fora estabelecido pelo Cavalo de Tróia e eu tinha de me limitar, sempre que possível, ao programado. As sempre supostas aparições seguintes de Cristo não se dariam até ao entardecer. O ocaso seria às dezoito horas e vinte e dois minutos. Aproximava-se a hora nona (quinze horas) e, por conseguinte, ao dispor de uma relativa margem de tempo, devia concentrar todo o meu esforço noutro objetivo chave da missão: procurar, localizar e resgatar o microfone involuntariamente extraviado. O candeeiro em cujo interior eu dissimulara a minúscula e sofisticada peça eletrônica - que por nada do mundo podia ficar perdida naquele tempo - ficara danificado com os abalos sísmicos registrados nas primeiras horas da tarde de sexta-feira, 7 de Abril. E Maria Marcos mandara-o arrumar com um dos artesãos da parte alta da cidade. Esse era, enfim, o meu trabalho obrigatório e imediato. Mas antes eu tinha de cumprir um trâmite necessário e imprescindível: trocar parte da meia libra romana em ouro por moedas fracionárias. Assim, confiante, deixei-me conduzir pelo rapaz.   Sinceramente, se  tivesse tentado atravessar outra vez aquele setor do bairro mais alto da cidade sozinho, teria sido um enorme fracasso. Assim que perdi de vista o mercado dos tírios, João Marcos virou à esquerda, entrando num labirinto fétido e obscuro de voltas e reviravoltas, passadiços e becos sem saída à vista. Aquilo não eram ruas. Era uma rede
louca de casebres imbricados entre si, formando um labirinto infernal, pestilento, devorado por uma umidade que roia a caladas paredes de pedra e que me fez lembrar as piores zonas da Casba de Argel. Do interior de muitas casas (?), na sua maioria apenas com uma única e cavernosa assoalhada, saía um vapor agressivo, com um forte cheiro a urina, que me fez lembrar o carbonato de soda ou natrum carbonicum. Ao chegar ao negro umbral de uma porta, avistei a custo dois ou três indivíduos lavando e a esfregando uma série de panos dentro de uns vasos de barro enormes. Num canto, escavado no chão de terra batida, uma lareira rústica fazia ferver a água de um grande caldeirão de bronze do qual, precisamente, se elevava aquele vapor comum a toda a zona. Eram os pisoeiros ou lavadores, autênticos párias da sociedade judaica quase todos pagãos, lutando por fazer espumar as vestes encardidas dos seus conterrâneos. Utilizavam para isso o natrão, umas pastilhas de carbonato de soda, importado da Síria e do Egito, e que faziam as vezes do nosso sabão. Depois de lavadas, as túnicas, os roupões, saiotes, etc, eram pendurados em cordas de uma casa a outra, transformando as estreitas e confusas vielas num estendal multicolorido e gotejante. De vez em quando, devido àquele vapor irritante, os pisoeiros escarravam para o meio dos sinuosos e irregulares paralelepípedos. Aquele sujo e repugnante costume forçado, aliás, pelas duras condições do ofício tornara-se, com o passar dos anos, um símbolo de impureza religiosa. E, embora fosse um hábito generalizado em todas as classes sociais - incluindo as mais refinadas - a sutileza das leis e prescrições religiosas conduzira a situações tão absurdas como esta: o escarro de um pagão do bairro mais alto contaminava, o de um judeu de setor oposto - da parte alta da cidade - não. A contaminação, naturalmente, era de caráter ritual ou religioso. No ano 20, por causa de uma cuspidela daquelas, chegou-se até a impor a reclusão noturna do sumo sacerdote durante a semana anterior ao solene dia da Expiação. Pelos vistos, Simeão, filho de Kamith que exerceu a função de sumo sacerdote entre os anos 17 e 18 depois de Cristo, teve a pouca sorte de receber o cuspo de um árabe na noite anterior ao citado dia da Expiação ficando assim impossibilitado de oficiar. Evitando a confusão dos estendais, a criançada suja que surgia à nossa passagem, e que não hesitava em abrir as mãos na esperança de conseguir um lepton ou sestércio, e os fogareiros crepitantes que as mulheres colocavam no meio dos passadiços, chegamos por fim ao terreiro arenoso de Xisto, na margem direita do vale do Tiropéon. A altiva muralha ocidental do Templo surgiu diante de mim branca e aquecida pelo sol.
Respirei aliviado. Apesar das centenas de pináculos resplandecentes que coroavam o Santuário central, erguidos para afastar os pássaros, grandes bandos de pombos e de andorinhas faziam das suas sobre o majestoso edifício, ensombrando-o com os seus rápidos e anárquicos vôos. Passamos por uma das pequenas pontes de pedra construída sobre o leito seco que sulcava Jerusalém de norte a sul e subimos pelas escadas do Arco de Robinson. Aquela passagem, em forma de L, dava acesso a uma das treze portas do Templo: a situada no extremo sudoeste do grande retângulo amuralhado. Um grande vão, aberto na gigantesca muralha e provido de enormes portas de madeira de ébano recobertas com lâminas de ouro nas duas extremidades, dava diretamente para o Átrio dos Gentios: o largo imenso e belo de 225 metros de comprimento, onde se permitia o acesso de todos os goyims isto é, pagãos, homens e mulheres, e, até, hereges, impuros, gente de luto e excomungados. Em ocasiões anteriores aquele largo era uma espécie de praça pública, foro romano ou  gora ateniense, onde se passeava, se discutia, se pronunciavam os mais variados discursos e, é claro, se traficava com todo o tipo de mercadorias.   Embora a festa solene da Páscoa daquele ano - duplamente festiva por ter coincidido com um sábado - já tivesse acabado, a animação continuava a ser extraordinária. Ao longo do Pórtico Real e de Salomão, nas faces sul e oriental do grande retângulo, respectivamente, os vendedores e cambistas disputavam a atenção dos possíveis compradores, numa confusão diabólica de gritos e acesas polêmicas que, na maioria dos casos, não passavam de insultos ou mútuas acusações. Sob os tetos de madeira de cedro, entre a tríplice colunata de onze metros de altura do Pórtico de Salomão muitos hebreus - escribas na sua maioria - passeavam de mãos dadas, detendo-se, às vezes, para contemplar a embriagadora paisagem do monte das Oliveiras. Ao longe, para noroeste, os brilhantes capacetes dos legionários romanos, de guarda nas torres da Fortaleza Antónia, cintilavam  constantemente, anunciando a proximidade do pôr do Sol. Fomos contornando mesas e tendinhas dos vendedores de rolas e de pombas, mais abundantes agora do que os traficantes de especiarias, e que, com as suas monótonas cantilenas, mostravam aos possíveis clientes os excelentes e baratos passarinhos e aves, quase todos destinados às oferendas a que as parturientes e os leprosos curados eram obrigados.   A operação do câmbio de moeda era sempre aborrecida e  árdua. É claro que eu conhecia a técnica do regateio - obrigatória em qualquer tipo
de transação - e, mesmo sabendo que o cambista procurava sempre enganar o cliente, simulei diante de João Marcos uma escolha cuidadosa da mesa em que devia efetuar a operação. O adolescente, habituado a estas lides, recomendou-me desde o primeiro momento um velho caldeu, com um turbante cor de grenate na cabeça e umas largas sarabarae ou calças persas de seda púrpura. Concordei e, depois de uma grande vênia, o meu jovem acompanhante apresentou-me como um honrado comerciante grego de passagem por Jerusalém. Os olhinhos do cambista percorreram num relance as minhas esmeradas vestes e, indicando a pequena balança romana que estava sobre o tabuleiro de pinho da sua tenda, correspondeu com outra não menos falsa e pronunciada inclinação de cabeça. O rapaz, esperto como um esquilo, reparou na minha demora a responder à saudação e, com um dissimulado toque da sua sandália, fez-me compreender que eu estava sendo descortês. Dobrei a cabeça e, antes de ter tempo de expor o motivo da minha presença, o homem, num grego quase perfeito, e mostrando com orgulho os fios de ouro que lhe sustentavam vários dentes postiços (réplicas em marfim dos naturais), começou uma ladainha em que misturou a sua remota e sagrada origem babilônica com a minha sabedoria em ter escolhido o mais honesto dos cambistas de moedas puras. O monótono preâmbulo fazia parte do cerimonial e, sem a mínima intenção de o contrariar, aguardei pacientemente que ele acabasse. Soube assim que se chamava Serug e que descendia do bisavô do próprio Abraão. Também me fez ver que, desde tempos remotos, um ramo dos Serugá se instalara na parte ocidental de Jaran, fundando a cidade de Sarugi. É claro que não acreditei numa só palavra, embora os nomes e os dados fossem corretos. Por fim, quando se sentiu satisfeito entramos no assunto. Entregueilhe um dos dois saquinhos em que o Cavalo de Tróia dividira os cento e sessenta e três gramas de ouro e, depois de deitar o conteúdo na palma da mão, mexeu nas pepitas de ouro com a ponta do dedo mínimo. Pegou numa. Levantou-a à altura dos olhos. Comprovou o brilho e, por último, colocou-a cuidadosamente na mesa. Observou-me com um ar grave e, como se fosse pura rotina, pegou numa pedra de toque. Esfregou a pepita com muita força, deitou no contraste dourado um líquido (talvez um pouco parecido com a água-forte) e comparou o resultado com uma contraprova de outra pepita que lhe pertencia. Satisfeito, passou à verificação seguinte pegando num martelo de madeira que estava junto da balança. Ergueu-o uns dois palmos sobre a pepita e deu uma certeira e sonora martelada que, naturalmente, esmagou o nobre e brando metal. À primeira
martelada seguiram-se outras duas, que transformaram a pepita numa lâmina. Naturalmente, o ouro era excelente e, dando um grande suspiro, convencido da sua autenticidade, pegou naquele bocado e uniu-o ao resto dos 815 gramas. Perguntou-me que tipo de moeda eu queria e eu disse-lhe que queria sekels e sestércios. Eu sabia que aquele quarto de libra romana de ouro equivalia a 189 denários de  prata ou seja, cerca de 47 sekels ou 1134 sestércios. O problema, em princípio, estava nos pesos utilizados pelo cambista e nos juros que ele estipulasse pela operação. Despejou o ouro num dos pratinhos de latão da balança e procurou numa gaveta de madeira onde tinha uma bateria de pesos de bronze. Eu fora treinado para estas coisas e reconheci as minas (cujo peso oficial era de 571 gramas), os siclos (de 114 gramas), os meios siclos (de 57 gramas) e os óbolos   (de 06 gramas). Mas, tal como eu suspeitava, nenhuma daquelas peças atingia o peso exigido pela Lei. Não demorei a comprová-lo. Acostumado a este tipo de manipulações, o caldeu foi diretamente aos siclos, pegando em meia dúzia daqueles pesos cúbicos e gastos. Colocou-os com grande teatralidade no prato oposto da balança e, ao chegar ao número seis, a balança ficou equilibrada. Tive de fazer um grande esforço para não sorrir. Era óbvio que devia ter colocado sete, e mesmo assim ainda faltariam alguns décimos de grama. O cambista espertalhão acabava de me roubar   mais de 115 gramas de ouro. Ainda faltava a taxa ou juros fixados como margem do negócio. E o amigo Serug pegou na tabuinha de madeira encerada que pendia de um cordel encardido atado à sua faixa, rabiscando não sei que estranhas inscrições com um estilete de osso que tirou de baixo do turbante. Foi murmurando para si mesmo uma prolixa e indecifrável cadeia de operações matemáticas e, finalmente, com aquele falso sorriso afivelado no seu escuro rosto, mostrou-me a tabuinha e cantou o resultado final: - Quarenta sekels e oitocentos e setenta e quatro sestércios. Fiz um rápido cálculo mental e deduzi que, além de me roubar no peso, aquele maldito cambista aplicara-me a mais alta tarifa permitida: meio óbolo e meio quer  por cada meio siclo ou meio sekel entregue. Algo assim como dez por cento sobre o valor total.
* A prova do velho e esperto cambista não tinha outro fim senão verificar se o meu ouro era realmente puro. E claro que as pepitas tinham sido minuciosamente verificadas de forma a não conterem nem um pouco de quartzo, circunstância que teria feito baixar o seu preço. ao limitar o
conteúdo de ouro. (N. do M.) * Talvez o cambista pensasse, ao princípio, que eu tentava dar-lhe gato por lebre, isto é, pirita de ferro por ouro. Se bem que para descobrir isso fosse preciso queimar a pepita. E nesse caso, se fosse pirita a  mostra teria se desintegrado.
João Marcos voltou a dar-me outro pontapé, animando-me a rejeitar a oferta, ou pelo menos a regatear. Mas o tempo urgia e, ignorando os justos conselhos do rapaz, aceitei a proposta. O pagão abriu os olhos de par em par sem compreender, e, mudo diante da inesperada reação daquele grego supostamente tonto ou excessivamente rico, apressou-se a entregar-me a quantidade combinada. Desta vez a sua vênia quase o levou a bater com a cabeça na mesa de câmbio. Então, a grandes passadas, com as críticas do meu amigo atrás de mim, abandonei o agitado Átrio dos Gentios. João Marcos havia começado a sentir verdadeiro carinho por mim. E eu por ele. E embora o Cavalo de Tróia, nas suas normas rigorosas, proibisse qualquer relação que pudesse fazer surgir laços de caráter sentimental, deixei atuar o destino. Acariciei os seus negros cabelos sedosos e dei-lhe a entender que naquilo do cambista, o caldeu é que fora realmente enganado. Enquanto atravessávamos outra vez o Tiropéon, lembrei-lhe os ensinamentos do seu saudoso ídolo: Jesus de Nazaré. A mentira, disse-lhe, parafraseando Chesterfield e Geibel, é a única arte dos medíocres e o refúgio dos vis. E mesmo que seja astuta, sempre acaba por quebrar uma perna. Embora estas frases não tivessem sido ditas pelo Filho do homem, o rapaz elogiou a minha fidelidade para com o Mestre, e a sua estima pelo velho comerciante de Tessalônica cresceu um pouco mais. Quando me perguntou para onde nos dirigíamos, ficou surpreendido. Pedi-lhe que guardasse segredo e, em voz baixa, disse-lhe que queria dar um pequeno presente à mãe dele. Os seus olhos vivos iluminaram-se e, pegando-me na mão, levou-me para o setor noroeste da cidade. Eu pedira-lhe que me conduzisse à oficina para onde, ao que parecia, ele próprio levara o candeeiro quadrado de ferro forjado que ficara danificado pelo terremoto. Eu, de fato, queria agradecer as atenções da esposa de Elias Marcos e não me ocorreu melhor coisa que arcar com as despesas da reparação do referido candeeiro. Assim - era essa a minha intenção - o meu acesso ao microfone não se tornaria suspeito. Isso, supondo, naturalmente, que continuava no mesmo lugar.
Caminhamos ao longo de toda a muralha que separava os dois grandes bairros e, quando avistamos as torres do Palácio de Herodes, viramos para a direita e passamos pelo arco da Porta de Ginnot. Distingui imediatamente as marteladas do clã dos ferreiros: um som que, quando parava, servia para as pessoas das redondezas saberem que acabara o dia de trabalho. Fiquei espantado com a diferença entre aquela zona do mais alto bairro da cidade - perfeitamente pavimentada, de fachadas caiadas e sem urina nem excrementos de cavalos nas pedras de um cinzento azulado e as míseras vielas que eu percorrera pouco antes, no lado oposto. Talvez a explicação estivesse na relativa proximidade do Palácio de Herodes. Pouco depois, ao entrar numa das fundições e descobrir o que nela se fazia, compreendi as razões do tetrarca para manter contentes aqueles artesãos ou gentes de ofício, como também eram chamados. O caso é que me vi, de repente, num grande pátio descoberto de uns quinze por dez metros. À minha frente abria-se um espetáculo que os homens da Idade Média, e até os do século XIX, reconheceriam. Meia dúzia de homens musculosos, de pele bronzeada e banhados em suor, unicamente cobertos pelos saq ou tangas, trabalhavam debruçados sobre as bigornas. Com a mão esquerda, e com a ajuda de grandes tenazes de ferro, seguravam várias peças incandescentes, rítmica e sistematicamente martelavam com pesados martelos pretos. De vez em quando deixavam de martelar e metiam os rubros metais numas cubas de madeira cheias de água ou areia, provocando uma chiadeira de colunas de fumo branco. O estrondo era tão ensurdecedor que João Marcos, que avançara em direção a um dos ferreiros, quase teve de falar com ele por gestos. No fundo do recinto alinhavam-se três curiosas forjas. Duas eram semi esféricas, rematadas por altas chaminés em bico. A terceira – também construída com blocos calcários - tinha a forma de um poço. Na base das duas primeiras viam-se, através das janelas abertas na pedra, chamas de fogos rubros e vorazes. Segundo o quenita que dirigia a oficina - descendente de uma antiga família fenícia de ferreiros ambulantes - os fornos fechados destinavam-se habitualmente à fundição de pequenas quantidades de cobre. A torrefação preliminar do mineral, extraído nas minas do wadi Arab , a sul do mar Morto, era efetuada em fornos das proximidades das respectivas minas. Quanto aos lingotes destinados à exportação eram preparados numa outra grande fundição: Esyon-Gueber, obra de Salomão. O metal chegava, portanto, a Jerusalém pronto para a sua última e definitiva transformação. Um engenhoso sistema subterrâneo em forma de L e recoberto de tijolo fazia de conduta de ar. Este era insuflado,
mais do que por foles, por meio de grandes e não menos artesanais balões, feitos de pele de boi ou de vaca, atados pela cabeça e pelo rabo e cheios de ar a sopro. Uma prancha circular, de madeira de pinho, provida de uma braçadeira e fixa com cordas à parte superior de cada odre, servia para os esvaziar. Quando as fogueiras começavam a apagar-se, um dos ferreiros colocava a comprida cabeça do balão no orifício de entrada da conduta subterrânea e, com grande habilidade, soltava o nó que não deixava sair o ar, pressionando com todo o peso do seu corpo a tampa superior. Desta maneira o fole soltava o seu conteúdo, avivando a lenha ou o carvão vegetal depositado no crisol. Depois, lenta e penosamente, o operário tinha de soprar até voltar a encher o odre. No momento em que o cobre, ou qualquer outro metal, atingia o ponto exato de moldagem, os sofridos e excelentes artesãos retiravam os crisóis cônicos, de barro, segurando-os com uma das suas longas tenazes. Tanto o chão de terra como as paredes altas da oficina estavam cheias das mais variadas ferramentas, armas e utensílios domésticos da época. Fiquei fascinado. Havia ali relhas de arado, aguilhões machados simples – muito semelhantes aos atuais -, machados duplos, picaretas (uma espécie de machado e enxadão), freios de cavalos, grandes bocados de armaduras, facas das mais diversas formas e tamanhos, pulseiras, argolas, todo o tipo de vasos, copos e pratos e uma infinidade de pequenos utensílios de uso comum nas casas ou noutras oficinas: cinzéis, espátulas, agulhas, tenazes, fivelas, etc.   João Marcos interrompeu a minha observação. O capataz ou chefe da forja aproximou-se, na companhia dele, do lugar onde eu estava à espera. O rapaz explicara-lhe as minhas intenções e ele, falando mais alto que o frenético martelar dos seus companheiros, deu-me a entender que o candeeiro de Elias ainda não fora reparado. Compreendi-o. Embora a peça tivesse chegado na tarde de sextafeira, o sábado e a celebração da Páscoa haviam atrasado o arranjo. O quenita, convertido à religião judaica, aproveitou aqueles minutos de descanso para desatar a faixa de pano que cingia a sua fronte e cabelos, torcendo-a e escorrendo o abundante suor que a empapava. Depois convidou-me a segui-lo até ao canto onde guardava o famoso candeeiro. Habituado a distinguir e manipular todo o tipo de objetos metálicos, identificou logo o motivo da minha presença na forja, retirando-o, sem perder tempo, do meio de um montão de caldeirões e trastes velhos enferrujados. Receei que ele se entretivesse a examiná-lo. E dei graças aos céus pelo providencial dia festivo. Se os artesãos tivessem feito o trabalho,
teriam encontrado, quase com toda a certeza, a estranha peça e a antena camuflada entre os pingentes. Nesse caso eu ficaria numa situação comprometedora.   A pancada partira a base que sustentava a caixa de ferro, que também ficou danificada, numa aresta e em três das quatro lâminas de vidro colorido. Com algum nervosismo, simulando um interesse especial pelos pormenores do candeeiro, pedi-lhe que mo deixasse ver. E o homem, encolhendo os ombros, aproximou-o de mim. Senti fraquejarem-me as pernas. Por entre as fissuras dos cristais, vi a tríplice mecha de cânhamo e a concavidade do azeite. E por baixo, tateando com os dedos, o microfone, solidamente colado à base do candeeiro com um ímã. Agora eu tinha de descolá-lo e esconde-lo no saco de borracha. Mas o ferreiro e João Marcos continuavam atentos aos meus movimentos e à minha decisão. Tinha de encontrar a forma de os distrair ou afastar de mim durante uns segundos. Perguntei ao capataz quando calculava ele que estaria pronto e quanto iria custar o reparo. Não soube responder a nenhuma das perguntas. Aquilo, aparentemente tão fácil, começava a ficar complicado. E o chefe da oficina, impaciente pelo que, de fato, parecia uma coisa sem importância, fez o gesto de pegar o candeeiro. Por um momento senti-me desfalecer. Mas, recordando a minha promessa de dar um presente à mãe do moço, retive a peça e disse ao quenita algo que Lhe agradou muito. Aos gritos, aproximando o meu rosto do ouvido dele, disse-lhe que desejava comprar-lhe um objeto que fosse realmente valioso e original. Como não especifiquei que o destinatário era uma mulher, o artesão supôs que era para oferecer a um homem. A verdade é que naquele tempo, e na sociedade judaica, não era freqüente os homens oferecerem coisas às mulheres. E menos ainda um pagão e estrangeiro. O erro involuntário de nós dois me levaria a uma descoberta sensacional, pelo menos do ponto de vista da indústria metalúrgica. - Valioso e original? - repetiu o ferreiro. Concordei sem hesitar. Dando meia volta, dirigiu-se para o terceiro forno: o que tinha forma de poço. O meu guia foi atrás dele e eu, sem pensar duas vezes, meti a mão na base do candeeiro e desprendi o microfone. Sem me perceber muito bem do que estava fazendo, atirei a base metálica para cima dos tachos de bronze e apressei-me a guardá-lo. Sem me controlar, fechei os olhos e respirei com todas as minhas forças. O quenita e João Marcos voltaram logo a seguir. O primeiro trazia nas mãos um tecido fino de algodão preto, que, obviamente, vinha
embrulhando alguma coisa. Mas essa coisa, a julgar pelo tamanho do pano que a cobria, devia ser comprida. O ferreiro, ao ver a minha curiosidade, sorriu, divertido. E, retirando a parte superior do pano deixou a descoberto uma autêntica obra de arte: uma espada de uns sessenta ou setenta centímetros, enfiada numa bainha de marfim, finamente esculpida dos dois lados com um entrançado de estrelas de cinco pontas. Percebi que havia um erro. Mas, fascinado peguei no punho branco e cilíndrico, também de marfim, desembainhando a arma. Como o gladius romano, era uma espada de duplo gume e uma ponta pequena mas afiada. Ao brandi-la, notei algo estranho. Pesava muito pouco. De repente, o reflexo avermelhado das forjas espalhou-se pela lâmina, chamando a minha atenção. Examinei o suposto ferro e, desconcertado, descobri que ambas as faces eram cruzadas por uma série de belas e suaves marcas ondulantes que lhe davam uma tonalidade branco-azulada. Levantei os olhos e o sorriso de profunda satisfação do quenita confirmou as minhas suspeitas. Aquilo não era ferro. Era aço! Mas, como podia ser? As primeiras descrições conhecidas do chamado aço de Damasco datam do ano 540 depois de Cristo. Devia haver confusão. Aproximei-me de uma das aberturas dos crisóis e, à luz do fogo, examinei mais uma vez com os olhos e com os dedos a enigmática superfície da espada. Tivera a oportunidade de contemplar mais de uma vez o fascinante exemplar existente no Museu Metropolitano de Arte, de Nova Iorque - uma cimitarra persa do século XVII - trabalhada à base de aço com elevadas concentrações de carbono e com as típicas marcas verticais ou escada de Maomé  na  lâmina. Sim, não havia dúvida. Aquelas partes esbranquiçadas do aço eram carboneto de ferro ou cementite. E as faixas escuras do fundo eram de ferro, com um índice inferior de carbono. Certamente, eu sabia que o uso do aço de Damasco era provavelmente conhecido no tempo de Alexandre Magno (232 anos antes da nossa Era). Mas, até àquele momento, não havia uma constatação fidedigna de ter sido utilizado e manipulado no século I.
* O nome Damasco do aço não provém do seu lugar de origem, mas do ponto onde os Cruzados o descobriram. As melhores espadas deste tipo foram fabricadas na Pérsia e, difundidas pelos Muçulmanos chegaram à Rússia medieval, onde se lhes deu o nome de bulat. A proporção de
carbono nestas espadas oscilava entre um e meio e dois por cento. Eram de extraordinária resistência à compressão e, durante séculos, isso foi um segredo de Estado, bem protegido. (N. do M)
O ferreiro não queria revelar-me o seu segredo. Mas, depois de lhe garantir que eu só pretendia saber qual o lugar de origem do misterioso material que servia para fabricar uma arma assim, levou-me a uma pequena cabana de palha e mostrou-me uma pastilha de uns setenta e cinco milímetros de diâmetro, cor de chumbo e muito semelhante aos discos usados no hóquei sobre o gelo. Era o famoso wootz, ou aço fabricado na Índia, e que - isso ele não mo quis dizer - tinha começado a lhe ser entregue regularmente por uma caravana mesopotâmica. No terceiro forno, sempre no maior dos segredos, o ferreiro mergulhava a peça de wootz em temperaturas que oscilavam entre os seiscentos e cinqüenta e os oitocentos e cinqüenta graus centígrados, forjando depois o aço. (Os aços com um elevado teor de carbono são dúcteis a estas temperaturas) Como não tinham termômetros, estes engenhosos ferreiros calculavam as diferentes temperaturas por referências antiqüíssimas e transmitidas de pais para filhos, como a encontrada no templo de Balgala, na Ásia Menor. Dizia assim: "Aqueça-se o bulat aço de Damasco) até ele deixar de brilhar, tal como o sol nascente no deserto, arrefeça-se depois até abaixo da cor da púrpura real, e introduza-se no corpo de um escravo musculoso ) a força do escravo transfere-se para a lâmina e é a única que confere a sua resistência ao metal". À margem desta última e fantástica prescrição, a verdade é que as indicações das cores - sol nascente e púrpura real - eram bastante aproximadas. Cerca de mil graus Celsius para o sol nascente e uns oitocentos para a púrpura real. Por último, as peças eram temperadas em salmoura quente, a trinta e sete graus Celsius. Devo confessar. O meu primeiro pensamento foi adquirir aquele exemplar super-secreto - desconhecido, até, para as legiões romanas - e levá-lo para o módulo. Mas esta ação não teria sido aprovada pelo Cavalo de Tróia e, tal como planejara, optei por obedecer ao meu impulso inicial: oferecê-lo, não a Maria, a mãe do rapaz, mas a Elias, seu pai. No fundo, o meu presente seria igualmente bem recebido pelos dois.   Não houve problemas nem regateios na venda. Os cinqüenta denários exigidos pelo ferreiro pareceram-me justos. Em compensação, consegui que o arranjo do candeeiro entrasse também naquele preço final. Ao receber as moedas de prata, o quenita encantado com a inesperada e
perfeita operação, pegou no amuleto que tinha ao pescoço e beijou-o. Era um cravo de bronze de um supliciado na cruz! Talvez mais à frente surja uma oportunidade para falar também das incríveis superstições dos judeus e pagãos que povoavam a Palestina de Cristo. Mas, meu Deus, tenho tantas coisas para contar! Só peço forças para chegar ao fim do relato daquilo que foi a nossa segunda e terceira aventuras. Consultei a posição do Sol. Faltavam cerca de duas horas para se pôr. Devia apressar-me se quisesse localizar os pastores de Emaús. Lucas diz no seu evangelho que entardecia quando se aproximavam da povoação e que os discípulos tentaram convencer o Aparecido a pernoitar em casa deles, já que o dia declinava. Estas pistas, embora inseguras, eram as únicas de que eu dispunha. Se a aldeia em questão ficasse a sessenta estádios - dado fornecido também por Lucas (24, 13-14) – era lógico supor que os irmãos, bons andarilhos, dada a sua condição de pastores, deveriam partir de Jerusalém por volta das dezessete  ou dezessete  e trinta; isto é, uma hora ou hora e meia antes do ocaso, nessa data às dezoito horas e vinte e dois minutos. Com um pouco de sorte, talvez os encontrasse ainda em casa de José.   Como ficava em caminho, detivemo-nos uns minutos na residência do jovem João Marcos. O rapaz, feliz, correu ao encontro da mãe e contoulhe atabalhoadamente as nossas andanças. Elias, o esposo, ainda não tinha regressado, e, impaciente por ir ao encontro do ancião de Arimatéia, coloquei a minha prenda nas mãos de Maria, aproveitando para lhe agradecer as atenções que tivera comigo. Atônita, a mulher não conseguiu pronunciar uma palavra. E, sem lhe dar a hipótese de rejeitar o presente, despedi-me dizendo-lhe que tinha quase a certeza de nos voltarmos a ver ao cair da noite. O silêncio reinante na casa - em especial no andar de cima - deu-me a entender que tudo continuava igual entre os amigos do Mestre. E, sem esperar por João Marcos, saí correndo e desci rapidamente uma das rampas semi escalonadas que ia acabar no ângulo sul da cidade. Atravessei outra pequena ponte sobre o leito do Tiropéon e contornei a alta edificação que cercava a Piscina de Siloé. Os raios do Sol, muito oblíquos, iluminavam as colunas que rematavam os muros daquele tanque tão popular. O tempo continuava correndo contra mim. Desta vez não podia falhar. Era vital localizar os pastores e encontrar-me - face a face - com o misterioso ressuscitado.   A sólida casa de José, construída ao pé da muralha oriental e muito próxima da sinagoga dos Libertos, foi sempre um dos lugares mais fáceis de localizar. O escudo circular, com uma estrela de
David e as cinco letras hebraicas entre as pontas, formando a palavra Jerusalém, primorosamente lavrado no lintel de pedra, era para mim a última e definitiva confirmação. Antes de entrar fiz uma ligação de rotina com o berço. Eliseu parecia muito excitado e animadíssimo. Os seus trabalhos sobre o pano mortuário tinham começado a dar frutos surpreendentes. Confirmei a hora - dezesseis horas e cinqüenta e cinco minutos - e, depois de nos desejarmos boa sorte, atravessei o umbral com determinação. Mas o meu entusiasmo não tardaria a desvanecer-se. Logo da porta pude ouvir uma mistura de gritos e cânticos que me alarmou. Atravessei o vestíbulo e, ao pisar as tijoleiras do pátio central, o que vi acabou por me desconcertar. Homens e mulheres, discípulos e seguidores de Jesus na sua maioria, corriam de um lado para o outro, tropeçando uns nos outros e como se fugissem de alguma coisa. Gritavam, riam ou choravam, abraçando-se e levantando os braços ao céu. Num canto, no claustro em arcadas que rodeava aquele lugar, outro grupo de mulheres batia palmas e dançava numa roda. Não percebia nada. Ao ouvir os lamentos pensei que tivesse acontecido alguma desgraça repentina em casa do ancião membro do Sinédrio. Mas, por outro lado, as danças e demonstrações de alegria. Inesperadamente, vi aparecer José por uma porta que dava para o pátio, seguido de um dos criados. O escravo trazia um cântaro e um pano branco no braço direito. Os dois estavam com pressa. Quando me viu, José de Arimatéia fez-me um gesto, sem se deter, para que eu o seguisse. E assim fiz, intrigado e confuso. Entramos num quarto, fracamente iluminado por quatro ou cinco lâmpadas de azeite. A princípio apenas distingui uns vultos curvados que se agitavam na penumbra. José e o criado passaram entre as sombras, e foi então que reparei que se tratava de outro grupo de mulheres a choramingar. Olhei por cima das mulheres e vi no chão, desmaiada sobre as esteiras, a minha velha amiga: Maria Madalena. Senti um calafrio. Que lhe teria acontecido desta vez? Ajoelhei-me ao lado de José e, enquanto o criado molhava o pano na água do jarro, tomei-lhe o pulso. Não parecia grave. Ao contato com a frescura do lenço, a extenuada Madalena estremeceu. - Que aconteceu? - perguntei a José sem fazer idéia do que se passara. José teve dificuldade em responder. A suo rosto apresentava uma palidez tão acentuada como a da mulher. Fazendo um esforço, como se
Lhe faltassem as palavras, sussurrou, ao mesmo tempo que desenhava um círculo no ar, apontando para o grupo de mulheres: - Estas que dizem terem-No visto. Eu ouvira-o perfeitamente. Mas, durante alguns segundos, fiquei mudo. Perplexo. - Outra vez? - consegui balbuciar. José de Arimatéia pôs-se de pé e eu fiz o mesmo. E ambos nos afastamos do grupo que solícito assistia Madalena. Maria começava a recuperar do desmaio. Uma vez distanciados, pedi-lhe que se explicasse melhor. - Não sei - hesitou o ancião -, eu não estava aqui. Dizem que voltou a aparecer. - Mas quem? O meu interlocutor olhou para mim com uma certa reprovação. De fato, a pergunta tinha sido totalmente estúpida. - Ah, compreendo! - retifiquei, olhando-o fixamente. Mas José evitou o meu olhar e, antes que eu conseguisse manifestar o meu profundo ceticismo, adiantou-se e disse-me: - Sei o que pensas. Mas, desta vez, há  mais alguma coisa. Uma coisa que, certamente, ainda não sabes. Aguardei, expectante. Mas a entrada em cena do criado frustrou o esclarecimento do nervoso dono da casa. O escravo acabara a sua tarefa e perguntou ao patrão se seria preciso chamar um médico. José de Arimatéia repetiu-me a pergunta e eu, convencido de que os sintomas refletiam apenas um mal-estar passageiro e de pouca importância, disse que não com a cabeça. O criado inoportuno retirou-se e José, que parecia ter-se esquecido das suas palavras anteriores, deu meia volta e foi outra vez para junto do grupo. Maria, quase recuperada, estava recostada sobre várias almofadas. Acabavam de lhe dar um copo de vinho e ela, sorvendo-o aos poucos, tentava recuperar as forças. José de Arimatéia pediu silêncio e, dirigindo-se a Madalena, perguntou-lhe:   - Queres contar-nos de novo o que aconteceu? A mulher levantou os olhos. Olhou para nós com um cansaço infinito e acedeu, com um movimento de cabeça quase imperceptível. Uma lágrima solitária começara a rolar-Lhe pela face direita. Senti compaixão. Três aparições, e ela como testemunha de todas era de mais. Aquela situação começava a preocupar-me seriamente. Estaria Madalena no seu perfeito juízo? A morte do seu adorado Mestre tê-la-ia perturbado? Naquele momento lamentei não ter investigado os antecedentes de Maria.
Que teria querido dizer o evangelista quando assegura que Madalena foi curada por Jesus, expulsando dela sete demônios? Tratava-se de algum tipo de doença mental? Talvez de uma ninfomania. Ou estaria a referir-se a um contágio venéreo? Não podia me esquecer dos seus anos como prostituta na cidade de Magdala. E claro que essa expressão - sete espíritos malignos ou imundos – podia também ser um código ou uma imagem esotérica ou cabalística de que os orientais tanto gostavam. E decidi-me a, na primeira oportunidade, falar com ela e tentar reconstruir a sua história clínica. À primeira vista, Maria era uma mulher saudável. Com demasiada experiência para a sua idade – fruto do seu trabalho como cortesã -, valente e sincera. Revoltava-se contra a odiosa e forte opressão das suas companheiras na sociedade judaica. Sempre me tinham chamado a atenção a sua audácia e lucidez mental. E, pela enésima vez, perguntei a mim próprio se ela não estaria sendo vítima de algum tipo de alucinação ou neurose. Dentro do complexo mundo da   psicopatologia da percepção, o estado afetivo do indivíduo pode alterar   gravemente a objetividade do que observa ou do que julga observar. E o estado de espírito de Maria, como o de muitos discípulos, encontrava-se alquebrado pelos últimos e funestos acontecimentos 1. Revi os meus antigos conhecimentos de psiquiatria e psicopatologia, no intuito de racionalizar aquele cada vez mais complicado fenômeno das supostas aparições cristológicas. De acordo com a clássica definição de alucinação dada por Ballé ela é resultado de uma percepção sem objeto, com o pleno convencimento do sujeito da realidade do mesmo. Desta forma, a alucinação verdadeira ou psico-sensorial ‚ definida por Ey e Claude em função de três parâmetros: projeção objetivante no espaço exterior ao sujeito, cuja personalidade fica inteiramente implicada neste ato perceptivo anômalo; ausência do objeto e juízo de realidade positivo. Para aquela mulher de Magdala e restantes testemunhas o objeto - neste caso Jesus - era algo real e exterior a elas. Com formas físicas claras e, até, com voz. As coisas portanto, complicavam-se extraordinariamente. Esta suposta realidade externa descartava a primeira categoria de alucinações: a que Ey chama pseudo-alucinação ou alucinação   psíquica e que é freqüentemente um distúrbio comum nas esquizofrenias e outros delírios crônicos. Um dos dados que melhor a definem ‚ o seu aparecimento no interior do indivíduo. Que eu soubesse, nenhuma daquelas mulheres sofria de esquizofrenia. Quanto ao segundo tipo de alucinação - a alucinose -, também não aparecia com muita clareza. As alucinoses definem-se como
percepções sem objeto corretamente criticadas pelo protagonista, que as vive como algo patológico. Que eu recordasse, Maria Madalena sempre rejeitara a possibilidade de que fosse irreal o que vira ou ouvira. Tentou mesmo abraçar os pés transparentes do Mestre. De qualquer forma, tudo aquilo  era muito confuso. Eu desconhecia se a mulher havia sofrido, ou sofria nesse momento, de alguma doença somática. Restava a terceira categoria - a ilusão -, que pressupõe uma deformação de algo real e que costuma aparecer em pessoas saudáveis e em doentes. Se forem freqüentes e muito vivas chamam-se pareidolias. É bem conhecido o exemplo de indivíduos que, partindo dos ramos de uma árvore, julgam estar vendo as mais diversas caras ou figuras. Nesta nova hipótese, eu esbarrava com outro problema não menos espinhoso: o que poderia ter sido esse algo real que, tanto Madalena como as outras, haviam forjado nas suas mentes, transformando-o numa ilusão? Por não dispor de elementos concretos, não quis sequer pôr a hipótese da possível ou possíveis causas das alucinações em questão, supondo, repito, que o fossem. (É claro que algumas teorias patogênicas de alucinações não se adaptavam ao caso de Maria) E, no capítulo psiquiátrico da classificação dos distúrbios perceptivos, segundo o canal sensorial, as chamadas alucinações visuais também não se adaptavam totalmente ao descrito por aquelas hebréias. As características destas alucinações variam extraordinariamente: aparecem como elementares ou complexas, móveis ou estáticas, a preto e branco ou a cores, agradáveis ou ameaçadoras (que são as  mais comuns), de tamanho reduzido ou liliputianas ou gigantes (gulliverianas) 2. As descrições que eu ouvira - um Jesus estático, nada ameaçador, colorido e de tamanho natural - constituíam uma arrevezada miscelânea que coincidia em parte com os traços típicos das alucinações  visuais. Enfim: uma autêntica confusão. - Por favor. - animei Madalena. - O que é que aconteceu? Suspirou e, entre lamúrias começou: - Estava eu aqui, com estas, falando das duas aparições do Rabi em Betânia quando. Não consegui aguentar. Ao ouvir aquilo reagi com brusquidão. - Betânia? Duas quê?. Madalena não gostou do tom. E José, conciliador, pediu-me calma.  - Estava a meio do que aconteceu em casa de Lázaro - prosseguiu ela - quando, inexplicavelmente sentimos frio. Foi uma sensação muito nítida. Como a de um vento gelado. Olhamos umas para as outras, em silêncio, espantadas. Essa porta estava aberta, sim, mas lá  fora não havia vento nem
estava frio.
* Os especialistas sabem que a percepção humana acarreta uma complexa seqüência de acontecimentos que, baseando-se nos níveis mais biológicos (estruturas do SNC), envolve o sujeito nos seus aspectos mais psicológicos. Como diz o professor V. Ruiloba, "as anomalias num fator implicado no processo dão lugar aos chamados "transtornos perceptivosensoriais". (N. do A) * O grande especialista Ey atribui à alucinose as seguintes características: formas bem constituídas e de grande pregnância; anomalias intrínsecas dos estímulos, estrutura parcial, à margem da situação real, do contexto perceptivo e da faculdade de julgar; consciência de irrealidade e etiologia orgânica a nível periférico ou central. Por exemplo, ver figuras muito coloridas que se movimentam diante do sujeito, que está consciente do seu caráter irreal e, portanto, da sua significação patológica (Psicopatologia de la percepción, de J. Vallejo). (N. do A) * Baruk dividiu as alucinações visuais da seguinte forma correta:   1. Sensorial: como toda a alucinose, pressupõe uma consciência crítica do transtorno e ‚ produzida por afecção orgânica, cuja localização pode situarse a qualquer nível do sistema óptico. 2. Onírica: o que é característico nestes casos‚ o "onirismo", instalado, por definição, num estado de obnubilação da consciência. A base deste transtorno costuma ser uma psicose tóxica ou infecciosa, cujo modelo ‚ representado pelo delirium tremens, que se apresenta nos alcoólicos crônicos, freqüentemente durante os primeiros dias do período de abstinência. As zoopsias (visões de  animais) são típicas destas psicoses alcoólicas, que se fazem acompanhar de outros sintomas ou sinais característicos, tais como o tremor das mãos, a transpiração, a agitação, a desorientação espaço-temporal, etc.   3. Alucinações visuais que acompanham a desagregação de pensamento: têm uma componente sensorial reduzida e pertencem mais ao campo das pseudo-alucinações ou alucinações psíquicas do que propriamente ao das alucinações. Apresentam-se no contexto de uma personalidade profundamente desorganizada, como ‚ a psicótica, e produzem no paciente uma atitude de atenção e abstração notável. (Ver Introducción a la psicopatologia y la psiquiatria, de J. Vallejo, A. Bulbena, A. Gonzalez, A. Grau, J. Pochae J. Serralonga) (N. do A)
Apesar do evidente cansaço, Maria falava com o seu habitual
domínio e bom senso. E isto mergulhou-me numa confusão maior. -. E, de súbito, no centro do grupo, vimos a figura do Mestre. Ao ouvirem isto, algumas mulheres desataram a chorar nervosamente. Impacientei-me. Mas o ancião, com voz imperativa, ordenou silêncio.   - Era Ele! E saudou-nos, dizendo: "A paz seja convosco". Preferi não fazer perguntas. Primeiro tinha de ouvir a versão de Madalena. - Depois disse-nos: "Na comunhão do reino não haverá nem judeu nem gentio. Nem rico nem pobre. Nem homem nem mulher. Nem escravo nem senhor. Vós também sois chamadas a proclamar a boa nova da libertação da Humanidade pelo evangelho da união com Deus no reino dos céus. Ide pelo mundo inteiro anunciando este evangelho e confirmando os crentes nesta fé. Sempre que fizerdes isto, não vos esqueçais dos doentes e dai alento aos tímidos e temerosos. Estarei sempre convosco até aos confins da Terra". - E, dito isto, desapareceu. Nós, como Já sabeis, caímos de joelhos, mortas de medo. Suponho que perdi os sentidos. O resto já o sabeis. Terminada a exposição, fez-se um profundo silêncio. Evidentemente, Maria estava muito afetada. Eu diria que muito mais do que das vezes anteriores. A sua atitude era até diferente. Havia passado da euforia, dos gritos e da luta contra os céticos a uma introversão e melancolia impróprias do seu temperamento. Chorava, sim, mas doce e sossegadamente. Não mostrava desejo de falar ou de comunicar com alguém. Era muito estranho. Mas eu precisava de esclarecer aquele manicômio. Que teria querido dizer com aquilo das aparições em Betânia? Será que continuavam a repetir-se as supostas visitas do Ressuscitado? Aquilo não tinha pés nem cabeça. Os evangelhos não dizem nada de possíveis materializações de Jesus em casa de Marta e de Maria, nem daquela terceira e duvidosa presença diante de Madalena e das outras que a acompanhavam. É claro que também nesse aspecto eu não confiava nos evangelistas. Se Maria e as outras não estavam mentindo e não eram vítimas de uma alucinação, as palavras do Filho do Homem, e o fato em si de se fazer ver só por mulheres, eram sumamente interessantes e significativos. Repito: se fosse verdade a presença do Rabi, a confirmação do papel das mulheres na pregação do Evangelho do Reino fora escamoteada pelos homens. Assim, clara e categoricamente. E não era de estranhar, dado o secundário, quase infantil e menosprezado lugar das
mulheres na sociedade de então e dos séculos seguintes. Eis um testemunho que, se houvesse sido publicado, talvez tivesse alterado os esquemas estreitos, mesquinhos e machistas das igrejas em relação às mulheres. Desta vez respeitei o silêncio de Maria. E, pegando no braço de José, saímos da casa. Eram muitas as perguntas que eu lhe queria fazer. A minha pressa desapareceu. O rumo inesperado dos acontecimentos daquele agitado domingo fez com que eu me esquecesse temporariamente dos planos da missão. Se as supostas novas aparições fossem reais, o que ‚ que interessava localizar e seguir os pastores de Emaús? Jesus de Nazaré era capaz de se apresentar no lugar menos esperado. Tinha de manter os olhos bem abertos. Deixar-me guiar pela intuição e, naturalmente, tentar reconstituir aquela charada. Passeamos durante muito tempo sob o teto de cedro trabalhado dos claustros. As mulheres, mais sossegadas, continuavam com os seus cânticos. Um criado veio ter conosco, oferecendo-nos uma deliciosa e reconfortante taça de vinho tinto doce, aromatizado com mel. A verdade é que o bom José não soube dar-me muitas explicações sobre o assunto de Betânia. Estava ocupado noutras tarefas quando, por volta das quatro e um quarto dessa tarde, os criados lhe anunciaram a visita de Maria Madalena. Vinha de casa de Marta e Maria, na pequena aldeia do leste. Segundo parecia, depois da sua segunda visão no horto, e do seu novo e sonoro fracasso com os apóstolos, tomou a decisão de ir a casa de Lázaro a fim de lhes dar as notícias de que ela fora, em parte, protagonista. Algumas horas antes, como eu sabia, David Zebedeu passara pela casa de José de Arimatéia, para ir buscar a mãe, Salomé, e despediu-se de todos, dirigindo-se para o mesmo destino de Madalena. Quando esta chegou a Betânia, os rumores sobre o túmulo vazio circulavam pela povoação. Os numerosos peregrinos e caminhantes tinham-se encarregado de os divulgar e eram conhecidos pelas irmãs do Ressuscitado e pelos membros da família de Jesus que se haviam hospedado naquela quinta.   - Não sei muito bem - comentou José de Arimatéia -, mas imagino que os irmãos do Mestre também duvidaram das palavras de Madalena. O fato é que, por volta da hora sexta (mais ou menos meio-dia, quando Maria conversava com os de Betânia, aconteceu outra vez. José de Arimatéia deteve-se diante da caixa em que guardava as suas valiosas pedras ovais e esféricas e o vaso de diatreta encontrado na Germânia e, durante alguns segundos, encerrou-se num pesado silêncio. Depois como que tentando convencer-se a si próprio, murmurou:
- Mas nessa ocasião não foi visto por mulheres assustadiças. O ancião, com grande surpresa minha, terminou o seu curto relato - por sua vez tomado do de Madalena - informando-me que a testemunha dessa aparição (a terceira, segundo a minha contabilização) tinha sido Tiago, um dos irmãos do Nazareno. Este fato ainda confundira muito mais José de Arimatéia. De fato, Tiago era um homem muito sensato e correto. Maria, apesar da sua natural loquacidade, mostrara-se um pouco indecisa quando teve de descrever a visão. - Pelos vistos - acrescentou José -, o encontro com Jesus foi muito particular. A segunda visão de Betânia - sempre segundo o ancião – teria ocorrido algumas horas depois. Passava da hora nona (mais ou menos quinze horas). José falava por ter ouvido dizer, como no relato anterior. Mesmo assim, este quarto acontecimento - considerado apenas cronologicamente - parecia tê-lo afetado tanto ou mais que o de Tiago. A razão era muito simples: essa nova aparição do Filho do Homem, também na casa de Lázaro, fora compartilhada por Marta, Maria, a família do Galileu e por David Zebedeu e sua mãe, que, segundo parecia, acabavam de chegar à aldeia. Eu conhecia um pouco o caráter frio e sóbrio do chefe dos correios e compreendi, tal como o meu amigo, que David não era pessoa fácil de enganar ou sugestionar. O fato deixou-me perplexo. Ao interessar-me pelas circunstâncias desta última presença e pela possível mensagem de Jesus, o ancião encolheu os ombros. Maria Madalena - que também presenciara o incrível acontecimento - quase não se tinha referido a ele. Santo Deus! O labirinto começava a tornar-se um pesadelo. Madalena, nesse caso, vira e ouvira o Ressuscitado. Quatro vezes! Depois estavam aqueles homens - Tiago e David – dignos de toda a confiança. E as minhas convicções sobre o fenômeno das aparições começaram a desmoronar-se. Já não estava tão seguro de tudo ser pura imaginação, fruto da neurose de mulheres emocionalmente perturbadas ou simples alucinações individuais ou coletivas. Confesso honestamente: a minha mente, em branco, negou-se a raciocinar. Talvez fosse melhor assim. A única coisa que, suponho, me animou a continuar naqueles momentos difíceis e confusos foi o rígido sentido da minha educação militar. Agora, mais do que nunca, tinha de conservar a calma e a frieza. É claro que era obrigatória a minha ida a Betânia. Embora figurasse no programa do Cavalo de Tróia, decidi antecipá-la. Os encontros com David e com o irmão de Jesus eram vitais. Estava decidido a pôr em ordem a teia de
aranha que me envolvia e, graças aos céus, o conseguiria. Mas antes, ainda teria de agüentar mais sustos. Suponho que foi uma falha da minha memória. Nunca me tinha acontecido. E embora não entre nos meus cálculos justificar-me, aquele lapso e o que me aconteceria pouco depois, quando estava a ponto de entrar no cenáculo, foram totalmente alheios à minha vontade. Irei por partes. Por volta das dezoito horas, em pleno caminho de volta a casa dos Marcos, percebi que não tinha perguntado pelos irmãos de Emaús. Atribuí o esquecimento às emoções e à velocidade frenética dos acontecimentos. Com a casa à vista detive-me, colocando-me o dilema: que fazer? Aventurava-me pela Estrada de Jafa, no encalço dos pastores, ou permanecia na residência de Elias, à espera da suposta aparição aos amigos do Nazareno? Avaliei as minhas possibilidades. A noite cairia pelas dezoito horas e vinte e dois minutos. Na realidade, como diziam os hebreus, quase não se distinguia uma linha branca de outra negra. Se fosse atrás de Cléofas e de Jacob precisaria - com sorte - de cerca de hora e meia para fazer os onze quilômetros que me separavam da povoação dos vimeiros. Isto é, por muito que corresse - e o escuro não me facilitaria as coisas -, a noite me surpreenderia no meio do caminho. A pele de serpente e os ultra-sons da vara eram uma boa proteção. No entanto, o Cavalo de Tróia recomendava não correr riscos desnecessários. Não sei se comentei o problema dos caminhos de Israel naquela época. Os ladrões, bandoleiros, mendigos famintos, escravos fugitivos e assassinos, ou revolucionários que se constituíam em partidas contra os romanos ou contra as hostes da numerosa família herodiana, eram uma legião nas estradas e azinhagas. Sobretudo na parte oriental. Isso aconselhava nunca viajar de noite e muitíssimo menos sozinho. Por outro lado, o fato de não conhecer fisicamente os pastores e a possibilidade de cruzar com eles em plena caminhada acabou por   me fazer desistir. O mais prudente e prático seria esperar pelos acontecimentos na companhia dos Marcos. Apesar de tudo, pensei, enquanto batia à porta, se conseguisse estar presente na que‚ referida como a última aparição do Ressuscitado naquele domingo, os objetivos da missão estariam em grande parte satisfeitos. Alguém, do outro lado da porta, me obrigou a identificar-me. Só então, e com medidas de segurança exageradas, pude entrar na casa. Fiquei alarmado com aquela mudança. Que se estaria se passando?
Depressa o comprovaria por mim mesmo. O fato é que, entre os Marcos e os criados, reinava uma agitação especial, uma mistura de nervosismo e de alegria incontida. Ao princípio não percebi muito bem tão contraditória situação. O dono, de volta do campo, recebeu-me no pátio com o tradicional beijo da paz. Correspondi-lhe com outro beijo na face e, durante alguns minutos, tive de suportar, sorridente, as suas paternais repreensões. O meu presente - disse - era tão régio quanto desnecessário. Maria, a esposa, veio libertar-me, censurando o bom Elias pela sua  tagarelice e falta de tato para com um amigo. Vi que estava feliz. Obrigou-me a sentar num dos tamboretes estrategicamente espalhados à volta da fogueira, sobre a qual balançava uma caçarola de cobre com quase   meio metro de diâmetro. O enorme caldeirão estava suspenso por uma  corrente que, por sua vez, estava fixada numa das vigas de madeira calafetada que cruzava o pátio a céu aberto. O cheiro que vinha da panela fez-me lembrar que há  muitas horas que eu não comia nada. (Na realidade, mil novecentos e quarenta e três anos). Não vi João Marcos. A mãe dele continuava a mexer o guisado e, enquanto o anfitrião me servia uma generosa taça de vinho do Hebron, perguntou-me se eu estava a par das notícias que circulavam em Jerusalém. Respondi-Lhe que em parte, e ela, desejosa de me transmitir a sua alegria, foi-me contando alguns dos rumores que conhecia. Mas os meus pensamentos estavam no andar superior e com o pretexto de dar uma olhadela ao guisado, aproximei-me de Maria Marcos e perguntei-lhe como estavam os amigos de Jesus. A senhora recolheu o seu quase permanente sorriso, resumindo a situação com uma palavra: - Abatidos! Levantando os olhos para o andar onde continuavam encerrados, sugeriu que podia comprová-lo por mim mesmo. O aroma das lentilhas fervendo, sabiamente condimentadas com cebola e louro, distraiu-me momentaneamente. A mulher percebeu-se e, curiosa, perguntou-me se eu estava com fome. Reconheci que tinha muita, apesar de ter almoçado tanto, menti-lhe, e tão cedo que sessenta corredores não teriam conseguido alcançar-me. Maria sorriu, reconhecendo o velho adágio hebreu e, depois de provar as fumegantes lentilhas na ponta da sua colher de pau, chamou um dos criados para que me acompanhasse ao andar superior.   Levando uma concha do mar em que flutuava uma espécie de lamparina de azeite, o fiel criado foi à minha frente em direção ao lugar onde se encontravam os 10.
Naquele momento, o longo e triste som do sofar - um chifre de bode - anunciou o fim do dia. O luar de Nisan não tardaria a brilhar no sereno céu da Cidade Santa. Naquele momento não me pareceu grave. Agora sei que tenho de contá-lo. Aconteceu ao subir os dez ou quinze degraus de pedra que conduziam ao cenáculo. Foram só uns segundos. De repente a minha visão enevôou-se. Pareceu-me ter perdido a noção do tempo e do espaço. Tudo foi vertiginoso. Tive de apoiar-me na parede e, instintivamente, fazer várias respirações rápidas e profundas. Sacudi a cabeça sem compreender. Um suor frio empapou as minhas têmporas, e imediatamente a obnubilação cessou. Que me tinha acontecido?   Refeito daquela estranha tontura, tranqüilizei-me atribuindo-a às quase dezessete horas de constante ir e vir sem comer qualquer alimento. Dias depois, na terceira ida ao módulo, compreenderia que aquela indisposição passageira era devida a razões mais sérias. Mas  falarei disso a seu tempo. O criado bateu três vezes com o nó dos dedos, e logo a seguir se ouviu uma voz do outro lado da porta:   - Quem é? - Um crente! - respondeu o criado. Ainda não havia saído do meu espanto quando ouvi e identifiquei o ranger do pau que trancava a porta sendo tirado. A porta foi entreaberta e, comprovada a identidade do criado, o discípulo - um dos gêmeos deixounos entrar. O meu gentil acompanhante retirou-se e, em seguida, Judas Alfeu, como se a sua vida dependesse disso, foi trancar de novo a porta. Observei-o entre o atônito e divertido. Qualquer levita ou guarda do Templo teria podido abri-la com um pontapé. Mas o terror daquela gente era tanto que pareciam cegos. Será  que a absurda e quase grotesca contrasenha teria servido para alguma coisa na hipótese de a casa ser invadida pelos inimigos? Deus do céu! Que diferença abissal no ambiente dos dois andares! Em baixo, os seguidores de Cristo estavam praticamente convencidos da sua ressurreição. A esperança e o júbilo eram um dado físico palpável. Ali, a tão poucos metros, entre os grandes do reino, encontrei só desolação. Que mal e tão sumariamente foi esta dramática situação registrada pelos evangelistas!   A meia dúzia de lâmpadas de azeite que alumiava a sala fora reduzida, a muito custo, a duas precárias e insuficientes chamazitas. Uma na parede da direita e a outra em cima da mesa em forma de U. Nos primeiros momentos tive problemas para identificar as pessoas. A visão
era limitadíssima. O apóstolo que nos abrira a porta e João Zebedeu acolheram-me de imediato, bombardeando-me com perguntas. Pareciam os únicos com um mínimo de vitalidade naquele quadro decepcionante. Enquanto me aproximava de um divã desocupado, fui respondendo com monossílabos e sem a menor precisão. Pelo que consegui captar, o jovem João Marcos informara-os acerca da evolução dos acontecimentos, embora ignorassem os de Betânia e, é claro, o recentíssimo acontecimento em casa de José de Arimatéia. Prudentemente, não fiz a menor alusão a estes fatos. O meu papel continuava a ser o de um observador e por nada deste mundo eu podia, nem devia condicioná-los. Suponho que esta minha extrema sobriedade os ter  defraudado. Durante alguns minutos, deixaramme em paz. Os meus olhos, novamente acostumados à difícil penumbra, percorreram a sala tentando distinguir os ali enclausurados e adivinhar os seus estados de espírito. Tudo continuava mais ou menos como quando os deixara. Talvez pior. Simão, o Zelota, reclinado no seu assento e de cara para a parede. Parecia adormecido. Simão Pedro, sentado ao pé do irmão, com a cabeça apoiada entre as suas grossas mãos e resmungando sem cessar. Os outros, reclinados nos bancos avermelhados ou dormitando no soalho. Dois deles - o segundo gêmeo e Mateus Levi - ressonavam beatífica e ritmadamente. Pareceu-me a atitude mais inteligente. Tiago, o irmão de João, foi talvez quem mais me deixou preocupado naquela minha primeira vista de olhos. Tinha ido sentar-se no fundo do salão, recostando-se contra a parede. Num inabordável silêncio, matava o tempo numa tarefa que hoje poderia fazer estremecer os cristãos mas que na altura, dadas as circunstâncias e a sua deplorável concepção dos acontecimentos, nada tinha de estranho. Mecânica e pacientemente, fazia passar a lâmina da sua espada sobre uma pedra negrusca que, provavelmente, continha coríndon granulado, que afiava melhor a arma. Agora sei que o som sibilante - o único que quebrava aquele ambiente carregado, juntamente com o ressonar e os cochichos de Pedro e de André - era na verdade, o melhor resumo dos pensamentos dos ali presentes. Só importava a sobrevivência. Estava há  pouco mais de um quarto de hora na sala quando, talvez cansado de agüentar as lamentações do irmão, André – o que fora o chefe dos apóstolos - se veio sentar ao meu lado. E mantivemos uma interessante e esclarecedora conversa. Sobretudo para mim.   O sofrimento daquele pescador, como o da maioria dos seus companheiros, era digno de compaixão. O galileu, solícito e agradecido pela oportunidade de poder descarregar a sua angústia e os seus receios,
foi respondendo às minhas perguntas. Era verdade que tinham discutido a idéia de fugirem da cidade. Mas o medo que tinham do Sinédrio, não me cansarei de insistir nisto, era total. E, por unanimidade, decidiram fazê-lo de noite. Era inacreditável! Conheciam, não haja dúvida, os insistentes rumores que circulavam em Jerusalém. Rumores contraditórios, é verdade, mas que, na sua maioria, estavam de acordo com o possível e milagroso fenômeno do regresso à vida do saudoso Mestre. No entanto, nem um tivera a coragem de sair às ruas e interrogar as pessoas. De fato, a ida de Pedro e João ao túmulo apenas servira para aumentar as dúvidas, as agressões verbais e o pânico de uma possível prisão. Se Caifás foi capaz de pôr termo à vida de Jesus, pensavam eles com razão, que tipo de benevolência podemos esperar nós, os seus seguidores? André lamentou-se também pelo pouco valor que até então tinham dado ao excelente serviço de David Zebedeu e os seus correios. Agora, apesar de João Marcos e algumas mulheres os manterem informados, compreendiam a importância daquele trabalho. Tenho de ser sincero mais uma vez. O abatimento e a tristeza daqueles pobres e infortunados discípulos eram tão grandes que pouco faltou para que eu os pusesse a par do que sabia. Pouco a pouco, quase sem nos percebermos, André e eu fomos revendo a situação pessoal de cada um dos presentes. O antigo chefe dos apóstolos - que se sentia muito aliviado pelo fato de ter sido exonerado da sua responsabilidade em momentos tão difíceis - elogiou sem rodeios João Zebedeu. Foi o único a manter a fé na ressurreição de Jesus. Recordou-lhes cinco vezes as promessas do Rabi e - sempre segundo o meu informante - noutras três ocasiões referiu-se às palavras do Mestre sobre a data exata do seu regresso à vida: ao terceiro dia. Bartolomeu sentiu-se especialmente reconfortado com a insistência obstinada de João. Mas, segundo parecia a juventude do Zebedeu tirara seriedade e gravidade àquelas palavras cheias de esperança. E o grupo acabou por ignorá–lo ou dizer-lhe que se calasse. Tiago, um dos mais racionais, absorto no trabalho de afiar o seu gladius, tinha apoiado, a princípio, a sugestão de irem todos juntos ao túmulo e comprovar o que lhes tinha sido contado pelas mulheres, por Simão Pedro e pelo seu próprio irmão. É preciso chegar ao fundo do mistério, chegou a dizer de manhã. Contudo, perante as exigências de Bartolomeu, e de mais alguns, de não aparecerem em público para assim não exporem as suas vidas, como lhes pedira o Mestre, o Zebedeu acabou por ceder, encerrando-se naquele triste mutismo.
Limitou-se, como a maioria, a esperar os acontecimentos, muito desiludido, isso sim, diante do inexplicável comportamento de Jesus.   - Inexplicável comportamento?. - perguntei-lhe, sem compreender.   André, baixando o tom da voz, fez-me ver que não eram tão estúpidos e que, naturalmente, perante a avalancha de notícias sobre as aparições do Rabi, muitos pensavam que essas misteriosas presenças do Mestre podiam ser reais. Mas, nesse caso, por que motivo Jesus não se apresentava primeiro aos eleitos? Que razão havia para que o fizesse a umas mulheres tontas e inúteis, cujo papel na evangelização do reino era publicamente reconhecido como nulo? - Tens de concordar conosco - sentenciou, convencido -, que, se Jesus tivesse ressuscitado de entre os mortos e decidido tornar-se visível, fa-lo-ia primeiro, e antes de mais nada, aos seus amigos mais íntimos. A nós. Olhei para ele, surpreendido. André falava absolutamente a sério. Eis outro pormenor habilmente esquecido pelos evangelistas; homens, ao fim e ao cabo. Depois do que acabava de escutar não pude deixar de ouvir também as outras explicações com algum tédio e indiferença. Bartolomeu, com a sua típica conduta sempre indecisa, não conseguia definir-se. Nunca negou a possibilidade de Jesus ter ressuscitado mas também não se declarou a favor. Animou os seus irmãos, é verdade, mas apenas num nível puramente humano. - Quanto a Simão o Zelota - André apontou para o divã onde Simão continuava deitado -, é como vês. ainda não abriu a boca. Parece estar aterrorizado.   Pelos esclarecimentos do pescador deduzi que o simpatizante dos zelotas se negara a participar nas discussões. O seu conceito de reino caíra por terra. Num momento de lucidez chegou a intervir na polêmica, assegurando com uma perigosa carga de pessimismo que, realmente, o fato da discutível ressurreição do Rabi não vinha alterar a situação. Ele, pelo menos, sentia-se incapaz de ver em que medida o pouco provável regresso à vida do Crucificado alteraria a desonrosa situação geral. Tal como o Galileu previra, precisaria de muito tempo para vencer a decepção, o medo e a ruína moral.   O caso de Mateus Levi, docemente ausente graças ao sono, também refletia a sua particular idiossincrasia. Segundo André, o seu único problema eram as finanças. Como já comentei, David Zebedeu entregaraLhe a bolsa com o dinheiro da comunidade e, desde esse momento, o seu velho espírito de cobrador de impostos impusera-se sobre o resto. Não deu
uma opinião sobre a discutida ressurreição. Não era coisa que o preocupasse naqueles momentos. A sua obsessão era a falta de um chefe hábil e capacitado para levar adiante o projeto do reino e as contas. "Não tomarei decisões", resumiu Mateus "antes de ir dormir, enquanto não vir Jesus face a face". Sem querer, Mateus descobrira o seu subconsciente, reconhecendo que acreditava - ou queria acreditar – na ressurreição do Rabi. Os gêmeos de Alfeu, como sempre, eram um caso à parte. As suas únicas preocupações sérias tinham sido de caráter doméstico: comida, entrincheiramento da porta, contra-senha, etc. - Só numa ocasião - manifestou André com um sorriso de benevolência - se atreveram a dar a opinião, e porque forçados por uma pergunta diretíssima de Filipe. "Nós", disseram, "não percebemos muito bem toda essa história do sepulcro vazio e da ressurreição de Jesus, mas a nossa mãe diz que falou com o Mestre, e acreditamos nela". Não fiz mais comentários sobre os gêmeos ingênuos mas fiéis. Filipe, falador e chalaceiro, fizera jus à sua fama de brincalhão e tagarela incorrigível. Foi quem mais participou nas discussões, andando sem cessar de um lado para o outro da sala. André fez um gesto de censura, perante o que qualificou de dúvidas infantis do seu companheiro. Pelo visto, a máxima preocupação de Filipe, o intendente, repetida até à exaustão Durante toda aquela tarde, era a de saber se Jesus - depois de ressuscitado - continuaria ou não com as marcas físicas da crucificação. Como vemos, não era só Tomé - refugiado na aldeia de Betfagé - o único que tinha curiosidade por uma coisa tão banal. É claro que os outros nove, embora o ouvissem de bom grado e com paciência não tiveram em muita consideração as reflexões mórbidas de Filipe. Simão Pedro, em especial, mostrou-se corrosivo para com o inocente apóstolo. Deixar o irmão de André para o penúltimo lugar daquele exame apressado não foi casual. Eu tinha um interesse especial em Pedro. A sua personalidade contraditória, e tudo o que ele vivera desde a prisão de Jesus de Nazaré mereciam uma análise pormenorizada e o mais racional possível. A sua conduta naquele domingo - creio-o sinceramente - não foi mostrada na sua verdadeira dimensão. E é preciso conhecê-la para o compreendermos e compreender a sua gigantesca tragédia interior.   O fogoso pescador da Galiléia - isso eu percebi - fora passando, durante as horas que se seguiram à prisão e crucificação do seu Amigo,
pelas seguintes fases: tristeza, desalento e medo. Na madrugada do primeiro dia da semana, ao tomar conhecimento do sepulcro vazio e da suposta aparição de Jesus, sentiu irritação e um ceticismo brutal, e tudo isto mergulhado num pavor acrescido da polícia do Sinédrio. Depois, ao comprovar por si próprio a veracidade do sepulcro vazio, teve dúvidas também espantosas que foram perfeitamente controladas e dominadas até ficarem reduzidas à teoria do roubo do cadáver. Mas as notícias e os rumores sobre novas aparições continuaram a multiplicar-se, e Simão Pedro – que desejava como ninguém o regresso do seu Senhor - foi evoluindo para uma posição ao mesmo tempo mais maleável e mais perigosa. Com o passar das horas, sem muita força para negar com a tenacidade dos primeiros momentos, o atormentado apóstolo chegou a dizer: "Se ressuscitou e falou com as mulheres, porque é que não aparece aos seus apóstolos?" E um lamentável pensamento começou desde então a cristalizar no seu coração. André estava convencido - assim ouvira dizer a seu irmão - de que Simão Pedro se sentia culpado. - Porquê? - interrompi-o, sem saber onde ele queria chegar. André abanou a cabeça como se estivesse diante de uma criança. - E tu ainda perguntas, Jasão? Lançou um olhar complacente ao irmão e continuou: - Fugiu como todos nós e, além disso, renegou-O. Compreende-se que se sinta mal. Começava a perceber a nova obsessão do rude pescador. O que seria confirmado por André. Simão Pedro - apesar do relativo e passageiro consolo que significou para ele a menção do seu nome numa das aparições - caíra no erro de pensar que o Filho do Homem não se apresentava diante dos escolhidos por culpa da sua quadrupla traição no pátio de Anás, o sogro do sumo sacerdote. Por outro lado, para acabar de baralhar ainda mais a sua mente confusa, continuava a não querer aceitar o testemunho das mulheres. A alternativa e o pânico de ser feito prisioneiro mantinhamno encurralado. Pouco antes, quando o vira cochichar com André, Pedro tomara uma decisão: estava disposto a separar-se do grupo apostólico. Só assim – pensava o aturdido discípulo -, supondo que Jesus tivesse realmente ressuscitado, se daria a ansiada aparição do Mestre aos seus. Fiquei perplexo. - Tenciona, realmente, ir embora? O irmão assentiu com resignação. - E nada nem ninguém conseguirá  que ele mude de idéias - insistiu.
Disso, sim, estava seguro. Aquele que mais tarde viria a ser uma das cabeças do movimento cristão era lento e tardo nas decisões, mas, uma vez tomadas. - E quando pensa ele partir? André não tinha certeza. - Não me disse, mas imagino que esta mesma noite. Para mim era claro que Simão Pedro estava sendo vítima de uma crise neurótica aguda. Bastava vê-lo e saber das suas mudanças contínuas, complexas e absurdas, para perceber que atravessava o que hoje poderíamos definir como uma forma clínica de neurose: angústia histérica, fóbica ou obsessiva. Talvez fosse uma mistura da primeira e da última. O estado de espírito do meu companheiro - André - talvez fosse um dos mais estáveis: aliviado pela sua libertação como chefe daqueles homens e prudentemente esperançado. A sua grande preocupação naquele momento era Pedro. Somente Pedro. Do apóstolo ausente - Tomé - praticamente não falamos. De certa forma contagiado pela inquietação de André, fui ter com Pedro. Sentei-me ao lado dele e, durante breves minutos, pus-me a observá-lo. Qualquer psiquiatra se sentiria feliz – e eu também - se pudesse fazer ao pescador um teste ou questionário que servisse para medir o grau de neurose e ansiedade: Cattell, NAD, Hamilton, SriSy, Taylor, etc. Mas isso evidentemente, teria sido um pouco comprometedor. No entanto, decidi tentar mais adiante. A experiência poderia ser apaixonante.   No momento, contentei-me com uma ligeira exploração de algumas das suas constantes vitais. Passei-lhe um braço pelos ombros e, procurando transmitir-lhe todo o meu afeto e simpatia, tentei animá-lo. Quase não olhou para mim. E percebi logo algumas características dos indivíduos dominados pela neurose: uma grande rigidez perceptivo-motora e pouco controle corporal. Faltava-me um terceiro elemento e, num tom de cumplicidade, de forma a que os outros não me ouvissem, perguntei-lhe se a luz o incomodava. Negou com a cabeça e, de imediato, censurou os irmãos por terem apagado as luzes. Tal como suspeitava, a sua adaptação sensorial à visão no escuro era muito fraca. (Outro sintoma indicador do grave momento que atravessava)   Notei que o seu ritmo respiratório tinha altos e baixos e, recordando-lhe a minha condição de curandeiro, tomei-lhe o pulso. Consentiu sem muita vontade. Efetivamente, a sua excitação nervosa acelerava-lhe o ritmo cardíaco, com uma possível elevação da
tensão arterial. A condutância cutânea parecia muito alta. Apalpei-lhe os antebraços e o fluxo sanguíneo revelou-se muito acelerado 1. Se eu tivesse tido acesso a uma análise de sangue, talvez tivéssemos encontrado um aumento de colinesterassa. - Tens frio? - Um pouco. A verdade é que não havia motivo. A temperatura ambiente no exterior era moderada - talvez uns doze ou catorze graus -, mas na sala era um pouco mais elevada. Aquela sensibilidade especial de Pedro ao frio e ao cansaço eram novos sintomas que vinham enriquecer o meu diagnóstico provisório. E, embora eu saiba que este quadro biológico deva ser utilizado com prudência no momento de tomar uma decisão, era revelador de uma insuficiência energética geral e de um estado de hiperativação ou elevado drive ou ansiedade, próprio do que hoje chamamos stress. - O que é que eu tenho, Jasão?
*1 Num estudo mais consciencioso, no plano somático, os parâmetros bioquímicos de Simão Pedro nos teriam indicado, entre outras coisas, um elevado nível de cortisol, catecolaminas, 17-OHCS plasmáticos, ligeiro aumento da atividade tiroidéia, talvez inibição do sistema hipófisogonadal, incremento dos lípidos séricos e participação do tão fatado na síndrome da angústia. (N. do M)
A voz enrouquecida do apóstolo mergulhou-me numa tristeza indescritível. Os olhos dele, como os de João e Simão, o Zelota, estavam inchados, vermelhos pela falta de sono e pelas lágrimas, e marcados por umas olheiras horríveis. Senti tanta vontade de lhe dizer a verdade naquele momento! Anunciar-Lhe o que lhe reservava o destino e, assim, aliviar o seu sofrimento e o meu. Mas o meu trabalho não era esse. E, dando-lhe umas palmadas nas costas, apenas me saiu uma resposta vaga e nada reconfortante: - Trata-se de um mal-estar. passageiro. O bom Pedro tentou retribuir com um sorriso. Mas não conseguiu. Escondeu o rosto nas mãos peludas e calejadas de pescador, e começou a soluçar entre estremecimentos intermitentes. Tive de me retirar, maldizendo o código moral a que estava sujeito. Mas, de repente, umas pancadas na porta tiraram-me do meu aturdimento. A reação do grupo foi fulminante e digna de ter sido narrada pelos
evangelistas. Tiago Zebedeu pôs-se em pé de um salto, brandindo a espada. Pedro, com os olhos desfigurados pelo medo, foi entrincheirar-se atrás do divã, não conseguindo sequer, no seu nervosismo, desembainhar o gladius. João e os gêmeos, lívidos, não moveram um único músculo. Bartolomeu, na pressa de fugir para o fundo da sala escura, pisou o seu próprio manto e caiu de bruços no soalho. Filipe correu a despertar Mateus Levi, e André, tão pálido e indeciso como os restantes, permaneceu sentado, paralisado pelo terror. Eu, é claro, também me assustei. E, reunindo toda a minha serenidade, pus-me de lado, encostando-me à parede da direita. Por pouco tropeçava no divã de Simão, o Zelota. O seu estado de prostração era tão grande que nem ouviu as pancadas. Evidentemente, o que estava do outro lado da porta não sabia ou não recordava a contra-senha. No meio do silêncio e do rumor de uma ou outra respiração entrecortada, o intruso, bateu com mais força na porta, fazendo estremecer os assustados discípulos. Tiago Zebedeu, mais frio e audacioso que os seus amigos, deu uns passos sem fazer barulho e aproximou-se da porta. Pôs-se a um lado, levantou bem alto a sua arma afiada e, com a mão direita, disse a André que destrancasse a porta. Numa grande tensão, o irmão de Pedro caminhou devagarinho até à tranca e, quando ia tirá-la com um pontapé, uma voz aguda e familiar deixou-nos perplexos. Era João Marcos! Um suspiro de alívio ecoou no cenáculo, ao mesmo tempo que alguns dos amigos de Jesus se precipitavam para a porta. Mas Tiago o filho do trovão, com a espada no ar, obrigou-os a recuar. - Pode ser uma armadilha! Então, André, ajudado por Mateus Levi, procedeu a desimpedir o acesso. O rapaz entrou de rompante na sala. Suado e ofegante, gesticulando e apontando para o exterior, tentava articular as palavras. Mas era tão grande a sua excitação que precisou de alguns segundos para o conseguir. Desconfiados, os gêmeos, seguindo a direção indicada pelo benjamim, voltaram a cabeça para o exterior. Mas logo se viraram para os ansiosos companheiros, encolhendo os ombros. De fato, não havia ali ninguém. Passado o falso alarme, os discípulos, profundamente irritados, repreenderam o rapaz. Mas João Marcos, sem lhes prestar atenção, foi sentar-se num divã. Por fim, l conseguiu dizer: - Viram-no!. Outra vez! Pensei que se referia à última suposta presença de Cristo em casa de José de Arimatéia. Voltei a enganar-me. E, tão perplexo como os outros,
ouvi dos lábios daquela criança outra novidade não menos singular e incrível. Este foi o seu atabalhoado relato: - Foi por volta das quatro e meia. Na casa de Flávio. Foi visto por mais de quarenta gregos. André ajoelhou-se diante do moço e pediu-lhe calma. João Marcos engoliu em seco e disse que sim com a cabeça. Foi inútil. O coração estava a ponto de lhe saltar pela boca.   - E disseram-me - continuou com os olhos cheios de luz – que lhes falou. Os apóstolos, amontoados em torno do aturdido correio, devoravamno com os olhos atentos a cada gesto e a cada palavra. Alguém que os visse naquela altura juraria que eles não eram homens céticos e indecisos. Eu mesmo cheguei a duvidar. Pedro, sobretudo, com a boca aberta e o olhar ausente, esfregava nervosamente as mãos, concordando ritmadamente com a cabeça a cada uma das explicações do rapaz. E uma enorme, ainda que momentânea alegria, fez-me tremer de emoção. - E que disse Ele? - explodiu, impaciente, João Zebedeu. - Não me lembro. A decepção estampou-se nos rostos e alguns murmuraram um palavrão que me nego a transcrever. Mas João Marcos era tão sincero quanto eficiente. Assim, vasculhando entre as pregas da sua túnica, tirou um pedacinho de barro cozido - provavelmente os restos de um cântaro ou de uma tigela – no qual, com carateres mal traçados, copiara as palavras – ou supostas palavras - do Galileu nessa nova aparição. Orgulhoso, mostrou aquela espécie de ostraca e, adotando um tom solene leu as letras mal feitas com alguma pedra ou objeto pontiagudo: - A paz seja convosco. Ainda que o Filho do Homem tenha aparecido na terra entre os Judeus, trazia o seu ministério a todos os homens. O rapaz parecia ter problemas com a sua própria escrita apressada. - Que mais? Os incrédulos apóstolos agitaram-se nervosos. - Ah, sim! - disse João Marcos. - Já entendo. trazia o seu ministério a todos os homens. No reino do meu Pai não há  nem haverá  judeus nem gentios. Todos sereis irmãos. Os filhos de Deus. - Essa última coisa não está bem - sentenciou Mateus. João Marcos releu o pedaço de argila e, levantando os olhos para o impaciente grupo, repetiu: - Todos sereis irmãos, Os filhos de Deus - Foi isto que me disseram
que Ele afirmou. Aquele possível erro de transcrição - tão próximo e ainda quente, era muito simbólico. Se o voluntarioso benjamim dos Marcos não fora capaz de copiar com precisão algumas palavras do Mestre, que podia esperar-se de textos redigidos dezenas de anos mais tarde e por pessoas que nem sequer tinham conhecido ou ouvido os ensinamentos do Rabi da Galiléia? - Está bem!. está bem! Continua! - Ide, portanto, pelo mundo inteiro espalhando este evangelho de salvação, como o recebestes dos embaixadores do reino e eu vos receberei na comunhão da fraternidade dos filhos do Pai na fé - e na verdade O mensageiro ficou calado. - E que mais? - insistiram vários dos presentes. - Mais nada - esclareceu João Marcos. - Despediu-se e desapareceu.   Os discípulos trocaram alguns olhares, interrogando-se em silêncio. Ninguém se atreveu a pronunciar-se em primeiro lugar. Enquanto voltavam para os seus assentos, a atmosfera eletrizante alcançou o seu ponto máximo e um espontâneo comentário depreciativo foi o suficiente para que surgisse a discussão. - Gregos! Não sei muito bem quem pronunciou aquela palavra. Também não me senti atingido. Não havia razão. O fato é que Simão Pedro num segundo, como um furacão, com as mãos atrás das costas e sem deixar de andar de um lado para o outro, se impôs de novo como cabeça dos recalcitrantes. - Porquê aos pagãos?. João Zebedeu, paladino dos que acreditavam na ressurreição do Mestre, censurou Pedro pelo comentário tão pouco caridoso. E logo a seguir, enredaram-se no velho círculo vicioso de ressurreição sim, ressurreição não e porquê primeiro a mulheres estúpidas e infiéis impuros. Já era muito mau que se tivesse apresentado às hebréias antes que aos eleitos do reino, mas aquilo dos gregos - argumentavam os incrédulos ultrapassava todas as medidas. Os gritos, as acusações mútuas e os desaforos foram aumentando, transformando aquele lugar numa jaula de disparates onde só se respirava mal-estar. Cansado e deprimido, tirei João Marcos daquela loucura e desci para o pátio. O ar fresco da noite reconfortou-me. Maria e os criados continuavam felizes, entregues à tarefa da preparação do jantar. Peguei na mão do rapazinho e passeamos calmamente junto das heras e dos perfumados jasmins que enfeitavam o alto muro da direita. Soube assim
que Flávio era um pagão, morador em Jerusalém e velho conhecido de Jesus. Quanto aos gregos, segundo as informações do benjamim, eu tivera oportunidade de conhecer muitos deles no Átrio dos Gentios, durante o almoço em casa de José de Arimatéia e na quinta de Getsémani. Segundo parecia, eram os mesmos que tinham assistido à prisão do Filho do Homem e que, juntamente com Pedro e João Zebedeu, se lançaram contra Malco e os levitas.   Senti-me tão frustrado que não quis tirar conclusões. Se todas aquelas histórias eram verdadeiras, a minha missão começava a ser um estrondoso fracasso. Bastava rever a cronologia das supostas presenças do Galileu naquele domingo para reconhecer que não tivera muita sorte. Chegava sempre tarde. Primeiro, ao alvorecer, no primeiro encontro da Madalena e das quatro mulheres no horto de José. Onde estava eu? Perdido em problemas estúpidos. Depois, na segunda e não menos suposta visão da Madalena, pelas nove horas e trinta e cinco minutos, a poucos metros mas ausente, imerso no exame dos panos mortuários. Às doze horas, enquanto Ele aparecia em Betânia, preparava-me para sair do berço. Às quinze horas e trinta minutos, aproximadamente, na quarta aparição - também em casa de Marta e Maria - eu andava estupidamente ocupado no câmbio do ouro para trocos. E que dizer da quinta visão, ocorrida, segundo as testemunhas, pelas dezesseis horas e trinta minutos e na casa do ancião de Arimatéia! Se não me tivesse entretido no assunto do aço de Damasco. Em relação à sexta - a dos gregos - que talvez tenha tido lugar poucos minutos depois da de Maria Madalena e das restantes hebréias, apanhoume, como se sabe, em pleno lar de José. Tendo em conta que desistira da sétima - a dos irmãos de Emaús e da qual ainda não tivera notícia, que me restava? Apenas a do cenáculo. Pobre de mim! A corrida de obstáculos em que se havia convertido a minha perseguição particular do ressuscitado estava prestes a sofrer outro incrível fracasso. Por volta das dezenove horas e trinta minutos, um dos criados libertou-me destes pensamentos tão negativos. O jantar estava pronto. Apesar dos protestos da dona da casa, colaborei no transporte das tigelas de madeira, cheias de um apetitoso e fumegante guisado de lentilhas, ao qual Maria acrescentara uma pitada de jeezer, uma variedade de alecrim
silvestre. Era curioso. Ignorando olimpicamente as opiniões controversas dos amigos íntimos do Mestre, a família - feliz e convencida da realidade da ressurreição - decidira fazer uma grande celebração. Aquele jantar, na realidade, era uma das primeiras manifestações do regozijo e da fé dos verdadeiros crentes. E, além do delicioso primeiro prato, Maria e os seus tinham-se esforçado por aprimorar o pequeno banquete com uma das especialidades da mãe de João Marcos: os bolinhos de mel. Num fornilho ao lado, à medida que consumíamos as lentilhas, a mulher, com a ajuda de um criado, ia fritando num tacho grande de ferro porções de uma massa, previamente elaborada, à base de farinha, levedura, mel, ovos e leite de cabra. Alternadamente, ao mesmo tempo que desapareciam os bolinhos dourados e crocantes, completava a sobremesa com outros fritos não menos deliciosos: uns pastéis, também de farinha perfumada com cominhos, canela, hortelã e até bocadinhos de lagosta.   Estas iguarias, bem como várias bandejas cheias de figos secos, tâmaras e cidra, foram sucessivamente levadas para o cenáculo. Instalei-me numa ponta da mesa em U e tive de submeter-me previamente ao protocolo da lavagem dos pés. Os criados cumpriram diligentemente as normas obrigatórias da hospitalidade oriental. E embora alguns discípulos não estivessem com humor para aquelas abluções a verdade é que a suculenta ceia fez com que se esquecessem das suas divergências, reunindo-se todos em volta da mesa e devorando em silêncio os manjares que iam chegando do pátio. Cada um, também de acordo com o costume, devia lavar as suas próprias mãos. Bastava a direita. Acenderam todas as lâmpadas de azeite e, talvez com a generosa intenção de amenizar as angústias e tensões dos apóstolos, Elias mandou trazer da adega um espesso e excelente vinho tinto, rico em  álcool e tanino, e previamente coado. Seguindo uma moda greco-romana e a pedido de cada um, o anfitrião foi adicionando em algumas taças de bronze e latão pitadas de canela, tomilho e até flores de jasmim. Isto servia para aromatizar o vinho. Os mais prudentes - a minoria - preferiram misturar àquele vinho do Sul da Judéia apenas água. Os outros talvez com uma vontade muito humana de aliviar as suas mágoas, beberam várias taças, sem mais acompanhamento e ajuda que as generosas doses de lentilhas ou de bolos. Tiago Zebedeu, Simão Pedro, os gêmeos e Mateus Levi seguindo também as normas da boa conduta, libertaram-se previamente das
respectivas espadas, que repousaram cintilantes ao longo da baixa mesa de madeira. Simão, o Zelota, foi o único que nada provou. João Marcos, que se sentou com o pai e comigo junto aos nove, ofereceu-lhe uma tigela. Mas o discípulo recusou amavelmente. Durante dez ou quinze minutos apenas se ouviu na sala o surdo entrechocar das colheres de madeira mergulhando nas lentilhas, o barulho que faziam ao mastigar o alegre e cantante borboleio do vinho a ser constantemente despejado nas taças de metal estanhado e, como não podia deixar de ser, os obrigatórios arrotos. Elias procurou, sem êxito, animar a reunião, falando das boas notícias procedentes das suas propriedades na Galiléia e que concretamente na colheita do linho, eram altamente promissoras. (Este trabalho, que costumava realizar-se nos meses de Março e Abril, consistia em cortar as plantas rente ao solo para não estragar os talos, sendo utilizadas depois - quando estavam secas - no florescente negócio da confecção de tecidos e cordas). Com a maior das descortesias, os comensais não prestaram qualquer atenção ao dono da casa, ocupados como estavam em satisfazer a sede e o apetite. João Zebedeu e Pedro não conseguiam libertar-se facilmente do peso que tinham sobre si. Petiscaram aqui e ali, e, aparentando não terem vontade de comer, deitaram-se nos seus divãs. Pelas oito horas da noite, Simão Pedro, que não conseguia esquecer os acontecimentos do dia, pôs-se de pé, visivelmente perturbado. Ou muito me enganava ou estava com outra crise. Deu uns passos, bateu com o punho num tapete que pendia da parede e, virando-se para a mesa em U, permaneceu alguns minutos com o olhar fixo e vidrado na chama ambarina duma lâmpada de azeite. Nenhum dos presentes lhe prestou a menor atenção. Melhor dizendo, nenhum não.   André e eu, que seguíamos os seus movimentos trocamos um olhar de preocupação. Conhecíamos as intenções dele de desertar do grupo e perguntamo-nos se não teria chegado o momento. De súbito, sem se despedir e sem dar qualquer explicação, encaminhou-se para a porta, que continuava entreaberta. Esperei pela reação de André. No entanto, o irmão de Pedro nada fez. Empalideceu. Encheu a taça e, lentamente, bebeu o vinho de uma só vez. Senti-me confundido mais uma vez. Aquilo não estava nos Evangelhos. Cumpriria o pescador a sua promessa de fugir da cidade? Devia lançar-me atrás dele? Ou seria melhor permanecer na sala à espera dessa última e teórica aparição, tão esperada por todos, incluindo eu
próprio? Preocupado, reparei no manto e no gladius hispanicus de Simão. Tinham ficado sobre o divã e a mesa, respectivamente. Isso tranqüilizoume. Talvez viesse buscá-los. Mas, e se não o fizesse? Passados uns quinze minutos, o meu desassossego foi crescendo. Compreendi que tinha agido mal. Aquela situação, precisamente por ser nova, e por se tratar de quem se tratava, tinha prioridade. Por isso, pondo de lado a certamente próxima, mas sempre hipotética, aparição citada pelos evangelistas, optei pelo seguro: seguir o pescador. Pedi licença a Elias para me retirar, mas, quando estava prestes a fazê-lo, a inesperada intervenção de André reteveme por uns momentos. Tão impaciente quanto eu, aproveitou uma entrada dos criados para lhes perguntar pelo irmão. Um criado tranqüilizou-nos. O galileu andava no pátio, passeando. Talvez tenha mudado de idéias, disse eu para comigo, ao mesmo tempo que - contrariado – procurava apressadamente uma desculpa que me justificasse o fato de não ir embora. Os céus quiseram que o meu pequeno amigo João Marcos, perspicaz como poucos se levantasse do seu banco e viesse ter comigo para me perguntar onde pensava eu passar a noite. Não soube o que responder. Na verdade, eu ainda nem tinha pensado nisso. Perante a minha indecisão, o pai do benjamim interveio, fazendo o resto. Ofereceu-me a sua casa e, com a maior das facilidades - reconheço-o -, convenceram-me a aceitar a sua hospitalidade. Recusei por pura cerimônia e, finalmente, agradeci, encantado, voltando para o meu lugar na mesa.   Eram vinte horas e trinta e cinco minutos. Novos fatos insólitos estavam a ponto de nos deixarem espantados. Mas antes de tentar transcrever o que vivemos naquela sala - oxalá o Todo-Poderoso continue a dar-me luz e força para isso -, por apenas uma vez, e em benefício desta simples narração, pressinto que devo prescindir da ordem cronológica dos acontecimentos. E assim farei.   Naquela noite, quando os ânimos se acalmaram, mantive uma longa conversa com Pedro. Foi assim que soube o que Lhe passava pela cabeça quando aconteceu o que aconteceu. Tanto André como eu tínhamos razão para nos sentirmos preocupados com a sorte do perturbado pescador de homens. Continuávamos todos no cenáculo, mas Simão, que queria fugir mas tinha medo de ser reconhecido pelos espiões ou pelos levitas de Caifás, estava decidido a sair de casa quando a noite deixasse desertas as ruas de Jerusalém. E, sem vontade de voltar para o salão, refugiou-se no pátio. Os criados, com efeito, viram-no passear ao longo do muro, com as mãos
atrás das costas e de cabeça baixa. Porém, respeitando a dor e o silêncio de Simão, retiraram-se pouco a pouco. Naqueles momentos de dor - segundo me confessou o apóstolo -, os remorsos pela sua traição eram insuportáveis. O seu complexo de culpa era tão grande que chegou a pensar na morte. Estava convencido que perdera o seu lugar como embaixador do reino. A isto era preciso acrescentar a sua íntima convicção de que Jesus - se ‚ que realmente havia ressuscitado – não apareceria aos seus enquanto ele ali estivesse. No entanto, e sem saber como nem porquê, foram também surgindo no seu coração outras recordações repletas de esperança. Viu os olhos do Mestre, cheios de ternura, quando, ao sair do palacete de Anás, olhou para ele durante uns breves segundos. E igualmente lhe veio à memória a mensagem que Jesus dera às mulheres: "Ide dizer aos meus apóstolos e a Pedro". - Não sei o que me aconteceu, Jasão mas desatei a chorar. No fundo era muito simples. Simão Pedro, apesar das suas violentas e disparatadas reações, amava o seu Amigo e Senhor. Dominara durante muitas horas o seu ardente desejo de crer nas promessas do Filho do Homem. Mas, finalmente, um raio de luz iluminou o seu desespero e, enquanto caminhava pelo pátio, a sua fé adormecida triunfou.   - Não sei como foi, Jasão, mas, de repente, parei, apertei os punhos e, levantando os olhos para as estrelas, gritei: Creio que ressuscitou de entre os mortos! E vou dizê-lo aos meus irmãos! Feito este esclarecimento, voltemos ao cenáculo e à hora já mencionada: vinte e trinta e cinco.   Recordo-me de me ter servido de uma taça daquele espesso vinho do Hebron, assim que me sentei. Ia levá-la à boca, quando um ciclone humano, um terremoto ou um possesso - não tenho palavras para descrever aquilo - empurrou a porta, enchendo a sala com os seus gritos, saltos e gargalhadas. Era Pedro! Ficamos sem respiração. Até Simão, o Zelota, assustado, se levantou do seu divã. - Vi o Mestre! Foi a primeira frase que consegui entender. O galileu, com o rosto iluminado e os seus olhos azuis a dançarem nas órbitas, corria enlouquecido em volta da mesa em U. - Eu o vi! Os apóstolos pareciam ter perdido a fala e a cor dos seus rostos. Tiago Zebedeu,  ágil como um felino, ao ver Pedro irromper na sala com tanto estrondo e aparato, foi logo pegar na espada, convencido de que alguém perseguia o pescador.
Mas Simão, à beira da loucura ou de um colapso cardíaco, continuava a saltitar entre os divãs e, com os braços no ar, a gritar: - Eu vi o Mestre! Sinceramente, quando o vi naquele estado, pensei que fora muito brando no meu diagnóstico. À terceira volta, André e Mateus agarraramno, segurando-o. Os outros correram logo em auxílio do transtornado galileu. Isso era o que nós todos pensávamos. Mas estávamos enganados. Simão estava perfeitamente bem. O seu pulso, que tomei imediatamente, estava aceleradíssimo. A respiração também. Mas, segundos depois ao ouvi-lo, não tive outro remédio senão ceder perante a realidade. Aquele alvoroço todo era unicamente devido à sua alegria. - Eu o vi!. Ele esteve no jardim! Depois de o obrigarmos a sentar-se num divã, Elias, pedindo-lhe calma, ofereceu-lhe uma taça de vinho. Simão agarrou-se a ela com ambas as mãos e bebeu-a sofregamente. - Digo-vos que o vi! - exclamou de repente, engasgando-se. André sacudiu-o pelos ombros e, gritando-lhe a um palmo da cara, ordenou-lhe que não fosse criança e se deixasse de tolices. Foram momentos de um silêncio tenso. O pescador, compreendendo o paradoxo da sua situação, dominou os nervos. Deixou o vinho sobre a mesa e, afastando suavemente o irmão, contou o ocorrido com um autodomínio que ainda hoje me surpreende. - Eu estava no pátio passeando e decidido a renunciar à minha missão no reino quando apareceu diante de mim a figura de um homem. Não o reconheci, mas reconheci a sua voz. A voz. Aquele pormenor voltava a repetir-se. Porque será que nenhuma das testemunhas parecia reconhecê-lo pelo físico mas sim pela voz? - E aquela voz familiar falou-me. E disse-me: Pedro, o inimigo queria possuir-te, mas eu não te abandonei. Os seus lábios vermelhos e carnosos abriram-se num sorriso interminável e feliz. Olhou para nós, um a um, e, pedindo a nossa compreensão, abanou afirmativamente a sua cabeça grande e redonda. Mas ninguém respondeu. - Então disse-me: Eu sabia que no teu coração não me havias renegado. Por isso te perdoei antes de me pedires. Agora é preciso deixar de pensar em nós próprios e nas dificuldades que se apresentam. Prepara-te para levar a boa nova do evangelho àqueles que se encontram nas trevas. Não te preocupes pelo que possas conseguir no reino. Melhor, vê o que  é
que tu podes dar aos que vivem na terrível miséria espiritual. está preparado, Simão, para o combate de um novo dia, para a luta contra o obscurantismo espiritual e as nefastas dúvidas do pensamento natural dos homens. - Acreditai em mim! - acrescentou Simão ao ver as caras de espanto e incredulidade dos companheiros. - Depois disso, aquele Homem e eu passeamos pelo pátio durante mais de cinco minutos, recordando coisas do passado. E falamos também do presente e do futuro. Depois, ao despedirse, voltou a dizer-me: "Adeus, Pedro, até te ver junto dos teus companheiros". Depois daquela visão, Simão ficou uns minutos no pátio como que hipnotizado. Quando compreendeu que vira e falara com o Galileu, foi correndo - louco de alegria - para o andar de cima. - E como desapareceu? - Como estás seguro de que era o Mestre? - Viste as feridas? - Não o terás confundido com algum criado de Marcos? O turbilhão de perguntas dos discípulos foi inevitável. E Simão Pedro, com a boca aberta e sem saber a quem responder, acabou por baixar os olhos, consciente de que estava sendo objeto das mesmas dúvidas e suspeitas que ele próprio manifestara ao longo de todo o dia. E vi-o chorar amargamente. A partir desse momento, o desiludido pescador negou-se a pronunciar qualquer palavra. Como era previsível, a nova aparição veio agitar o rescaldo das divisões anteriores. Mas, curiosamente, pouco a pouco, a maioria dos apóstolos começou a ceder, dando o seu apoio ao hermético e silencioso galileu. E talvez tivessem deixado de ter dúvidas se não fosse a súbita, fria e impiedosa intervenção de André. Com expressões muito bem calculadas, lembrou aos presentes as fantasias do seu irmão, capaz de ver coisas irreais, até mesmo sobre as águas. Associei logo esta afirmação com uma das passagens evangélicas mais famosas e misteriosas: Jesus caminhando sobre as águas do lago de Tiberíade. O que teria querido insinuar o antigo chefe dos apóstolos? E, no mais íntimo do meu coração, fiz o propósito de o averiguar. Mas esta é uma história que talvez eu conte mais adiante. André, com uma dureza implacável, imprópria dele continuou a dirigir-se aos companheiros, com a única e manifesta finalidade de fazer com que se esquecessem das tolices de Simão. Este sentiu-se ferido no
mais profundo de si e, levantando-se do divã, foi para um canto da sala. Só os gêmeos tiveram a delicadeza e a coragem de ir para junto do humilhado pescador, consolando-o e dizendo em voz alta - de forma a que todos os pudéssemos ouvir - que eles acreditavam, sim, e que a mãe deles também vira o Senhor. O irmão de Pedro olhou depreciativamente para os Alfeus e, cada vez mais enfurecido, prosseguiu no seu empenho de conseguir apagar das mentes dos apóstolos as supostas aparições do galileu. Mas o fogoso discurso de André ver-se-ia subitamente frustrado. Em parte alegrei-me. O impertinente discurso do antigo chefe dos apóstolos estava fazendo estragos. Ao princípio ouvimos um pequeno tumulto. Vozes de homens e um ou outro breve mas agudo grito de mulher. O irmão de Simão Pedro titubeou. Elias virou-se para a porta e João Marcos, que brincava com um punhado de caroços de tâmaras, fazendo sobre o tampo da mesa a cabalística palavra Yeshus ou Jesus, mas que naquela língua significava também Yah (Jav‚ e saúde) apagou com a mão o querido nome do seu ídolo, com medo de que fossem os guardas do Templo. Ficamos em silêncio, e alguns discípulos, a um sinal de Tiago Zebedeu, empunharam as armas. Elias indignou-se. E, com um gesto autoritário, recordou-lhes que estavam em casa dele e que não permitia violências de nenhuma espécie. O alvoroço foi-se tornando mais nítido. Ouviram-se novas vozes e passos a subirem as escadas de acesso ao andar onde nos encontrávamos. Tiago e mais alguns puseram-se de pé, maldizendo os gêmeos por não terem trancado a porta. Mas já era tarde. Umas mãos fortes empurraram bruscamente a porta e apareceram logo dois indivíduos que eu ainda não tinha visto em nenhuma das minhas explorações. Atrás deles, entre cochichos mal contidos adivinhavam-se as pequenas silhuetas de Maria a mulher de Elias, e de outras mulheres. Interpretei o gesto do filho do trovão e dos outros, atirando os gladius para cima da mesa, como um novo falso alarme. Depois de uns segundos de hesitação, o anfitrião fez um gesto convidando os homens a entrarem. Quando se aproximaram da fraca e amarelada luz das candeias, vi pelas suas roupas que deviam ser pastores ou,   talvez, guardadores de porcos. Pastores? O meu pulso descontrolou-se. Seriam aqueles os irmãos de Emaús?   Um dos recém-chegados sentou-se ao lado do dono da casa, enquanto o seu companheiro e as mulheres - entre as quais reconheci
Maria Madalena - se colocavam em volta da mesa. Os homens, como acontecera com Simão Pedro um pouco antes, respiravam agitadamente. O suor corria-lhes abundante pela testa, fazendo brilhar o rosto queimado e as negras barbas revoltas. Pareciam cansados. Um deles, o que permanecia de pé, tirou o grosso e impermeável capote de pele de camelo que trazia aos ombros, deixando-o no chão. A peça era tão rígida e pesada que ficou direita, na vertical, sobre o soalho. Nos meus treinos eu tivera conhecimento destes capotes, feitos de propósito para o frio e a chuva e que costumavam ser fabricados nas terras da Cilícia e da Anatólia. Entre o cinto de couro que cingia uma túnica grosseira de lã distinguia-se o cabo de um enorme punhal. Da mesma forma que o seu companheiro, o desconhecido protegia as pernas até aos joelhos com polainas feitas de tiras de couro escuro e ensebado. (Aquele costume fora introduzido pelos romanos que, por sua vez, o tinham importado da Gália) Não havia dúvida. O cheiro a bodum que encheu a sala em poucos minutos, e que parecia fluir de cada centímetro quadrado daqueles indivíduos, confirmou o meu primeiro pensamento: eram pastores; os controversos pastores da Judéia.   - E então? - perguntou Elias, dando a entender que esperávamos uma explicação por tão brusca invasão. O que estava sentado, um pouco mais loquaz que o outro, começou por apresentar-se. Segundo parecia, salvo um ou dois dos presentes, ninguém os conhecia. Disse chamar-se Cléofas. O acompanhante era Jacob, o seu irmão mais novo. Senti um estremecimento. Estava a ponto de ouvir outras das supostas - ou não devia empregar este termo? - aparições do Mestre. Depois de um prolixo preâmbulo, no qual procurou agradar aos ali reunidos, assegurando que acreditava em Jesus e que por esse motivo fora expulso de uma sinagoga da sua aldeia - Ammaus -, o pastor explicou a razão da sua presença em Jerusalém. Como bons fiéis que eram tinham assistido aos sacrifícios, às cerimônias e demais festejos da Páscoa. Nessa mesma tarde, faltando umas duas horas para o pôr do Sol, partiram de casa de José de Arimatéia em direção à sua povoação, distante, como afirma Lucas, uns sessenta estádios. Umas duas horas antes do pôr do Sol? Fiz contas. E cheguei à triste conclusão de que os dois tinham partido da residência de José de Arimatéia entre as quatro e as quatro e meia. Tendo
em conta o tempo necessário para atravessar Jerusalém, era muito provável que Cléofas e Jacob chegassem ao caminho de Emaús antes das cinco da tarde. Digo triste conclusão, porque eu entrei naquela casa alguns minutos depois.   Mas vamos ao que importa. Os discípulos tinham acompanhado as longas explicações e circunlóquios dos dois irmãos sem saber aonde eles queriam chegar. Numa dada altura da exposição, levantei os olhos à procura dos de Maria Marcos ou de Maria Madalena, que estava atrás de mim, e só consegui vislumbrar o olhar da esposa de Elias. A mulher, sorrindo, fez-me uma das suas típicas piscadelas de cumplicidade. Ela sabia alguma coisa. O caso é que, pelo que consegui captar na linguagem arrevesada do rude pastor, quando se encontravam quase a meio caminho - isto é, a uns cinco quilômetros da cidade de Jerusalém - Jacob e Cléofas matavam a solidão da caminhada falando sobre a notícia do dia: o túmulo vazio. Discutiram. Ele sentia-se inclinado a acreditar no que as mulheres diziam sobre a figura de um ressuscitado. Jacob, pelo contrário, pensava que tudo isso era uma fraude. - E assim, conforme nos íamos aproximando da vila – resumiu ele - saiu-nos ao encontro um homem. Um murmúrio propagou-se entre todos os presentes. - Um homem? E como era? Agradeci a pergunta oportuna do impulsivo Filipe. Cléofas olhou para a esquerda procurando quem lhe fazia a pergunta. Então descobri umas cicatrizes profundas que Lhe marcavam a sobrancelha e o pômulo direitos. Aquele antigo corte vazara-lhe o olho. Parecia a marca de umas garras. - Um homem!. A resposta do pastor foi assim, simples e contundente. Aquilo fez-me pensar. Eu não tinha perguntado a Pedro sobre esse particular, mas nem o galileu nem o homem de Ammaus tinham feito referência alguma à estranha transparência mencionada por Madalena e as outras mulheres. - Queres dizer que era um homem de carne e osso e vestido como nós?   João Zebedeu, irritado com a nova questão do intendente, censurouo sem contemplação, ordenando-lhe que não interrompesse o pastor. Cléofas não sabia o que fazer. E, perante os gestos generalizados de impaciência, optou por continuar o seu relato. - A nós pareceu-nos um homem. Cobria-se com um manto leve e cor de vinho. João Marcos, atento a tudo, sobressaltou-se quando ouviu tal
descrição. A cor habitual do manto do seu Mestre era efetivamente, aquela. Mas isso não queria dizer nada. Mantos desse tom de cor havia-os aos milhares em Israel. - Eu já tinha visto o Rabi, perdão - desculpou-se ruborizando-se -, o falecido Rabi. Comi com Ele várias vezes e sei como era.   Alguns apóstolos entreolharam-se, intrigados. Não se recordavam de Cléofas e, muito menos ainda, que ele participasse nalguma refeição com o Nazareno. Tive a impressão de que duvidavam da veracidade das palavras do pastor. Não era por acaso que tinham fama de mentirosos. -  No entanto - continuou ele, pensativo -, não o reconheci. Aquilo era demais. Nem uns pastores, habituados a distinguir o gado a longas distâncias, tinham conseguido identificar o suposto Jesus? - Acompanhou-nos durante um bocado e, de repente, sem mais nem menos, desconcertou-nos com a seguinte pergunta: "Que palavras dizíeis entre vós, tão sérios, quando me aproximei?" O meu irmão e eu, perplexos, detivemo-nos, olhando para ele sem acreditarmos no que acabávamos de ouvir. Como sabia aquele homem o que nos preocupava? E eu disse-lhe: "É possível que vivas em Jerusalém e não conheças os acontecimentos que se deram?" E ele perguntou: "Quais acontecimentos?" "Se desconheces esses fatos", disse-lhe eu um tanto mal-humorado, "és o único na cidade que não está a par dos rumores referentes a Jesus de Nazaré, que era um profeta rico em palavras e obras diante de Deus e do povo. Os chefes dos sacerdotes e os dirigentes judeus entregaram-no aos romanos, exigindo a sua crucificação. Mas isto não é tudo", acrescentei, convencido de que, com efeito, aquele forasteiro nada sabia sobre o Mestre. "Muitos de nós esperávamos que Ele libertasse Israel do jugo dos gentios. Além disso, hoje estamos no terceiro dia após a sua crucificação e algumas mulheres assustaram-nos, dizendo que tinham ido de manhã cedo ao sepulcro e que encontraram o túmulo vazio. E estas mesmas mulheres repetem com insistência que falaram com Jesus e sustentam que Ele ressuscitou de entre os mortos. Quando o contaram aos homens, dois discípulos foram correndo ao túmulo e também viram que estava vazio. "   João Zebedeu, radiante, concordou com um gesto da cabeça. E Jacob, avançando até junto da mesa, interrompeu o irmão. - Diz-Lhes toda a verdade. Cléofas franziu o rosto. - Bom - consentiu contrafeito -, ele, depois das minhas explicações sobre a ida dos apóstolos ao sepulcro, comentou, para vergonha dos dois: Mas não viram Jesus. Jacob deu-se por satisfeito, voltando para o seu
lugar, junto do manto de pele de camelo. Não voltou a falar. - Continuamos a caminhar - prosseguiu o conturbado pastor -, e, depois de algum tempo em silêncio, aquele homem voltou a falar e dissenos: "Como sois lentos a compreender a verdade! Se dizeis que o motivo da vossa discussão eram os ensinamentos e as obras desse homem, vou esclarecer-vos, que estou mais habituado a esses ensinamentos. Não vos lembrais do que sempre disse e pregou Jesus: que o seu reino não era deste mundo e que todos os homens são filhos de Deus? Por isso, tendes de encontrar a libertação e a liberdade na alegria espiritual da comunhão fraterna do serviço afetuoso neste novo reino da verdade do amor do Pai celestial". Cléofas emudeceu. E, com alguma timidez, começou a interrogar os presentes. - Que terá querido ele dizer com essas palavras complicadas? Elias sorriu com carinho, pedindo-lhe que não se preocupasse agora com aquela questão. A memória do pastor era excelente, mas não o seu entendimento. - Ele continuou falando. E disse: "Não vos lembrais de como o Filho do Homem proclamou a salvação de Deus para todos os homens, curando os enfermos e os aflitos e libertando os que estavam atados pelo medo e que eram escravos do mal? Não sabeis que este Homem de Nazaré avisou os seus discípulos de que teria de ir a Jerusalém e de que o entregariam aos seus inimigos, que o condenariam à morte, ressuscitando ao terceiro dia? Não lestes as passagens das Escrituras relativas a este dia de salvação dos judeus e gentios, onde se diz que nEle todas as famílias da Terra serão, em verdade, benditas, que ouvir  o grito suplicante dos necessitados e que salvar  as almas dos pobres que buscam a sua ajuda e que todas as nações o qualificarão de bendito? Não ouvistes que este libertador aparecerá à sombra de uma grande rocha, num país desértico?  Que alimentará o rebanho como um verdadeiro pastor, acolhendo nos seus braços os cordeiros e levando-os docemente ao colo? Que abrirá os olhos aos cegos espirituais e libertará os presos do desespero para a plena liberdade e luz?" Ao ouvir aquelas últimas palavras, Simão Pedro saiu do seu canto escuro e juntou-se ao grupo com timidez e curiosidade. - "Que todos os que moram nas trevas verão a grande luz da salvação eterna? Que curará os corações destroçados, proclamará  a liberdade dos cativos do pecado e abrirá as portas da prisão aos escravos do medo e do mal? Que levará a consolação aos aflitos e estenderá sobre eles a alegria da salvação, em lugar da dor e da opressão? Que será o desejo de todas as nações e a alegria perpétua dos que buscam a justiça?
- Que este Filho da Verdade e da retidão se levantará sobre o mundo com uma luz que cura e um poder de salvação? Que perdoará os pecados aos seus fiéis? Que buscará e salvará os extraviados? Que destruirá os fracos, mas que levará a salvação a todos os que têm fome e sede de justiça? Não ouvistes que os que crêem nEle gozarão da vida eterna? Que estenderá o seu espírito sobre toda a carne, e que este Espírito da Verdade será em cada crente um manancial de água viva, mesmo na vida eterna? Não compreendestes a grandeza do Evangelho do Reino que esse homem vos deu? Não vedes quão grande é a salvação de que vós beneficiais?" O pastor fez outra pausa, sem dúvida por causa do peso de muitas daquelas idéias, estranhas e inatingíveis para o seu curto entendimento. Eu não tive, simplesmente, outro remédio senão ficar pasmado. Se o rude Cléofas - que não sabia ler nem escrever - era capaz de inventar frases como as que eu acabara de ouvir, de duas uma: ou era um gênio ou um louco iluminado. É claro que também podia considerar-se uma terceira solução: que estivesse, naturalmente, dizendo a verdade.   - Não nos atrevemos a abrir a boca - lamentou-se o judeu. - Que podíamos nós responder, pobres miseráveis guardadores de animais? E assim chegamos à aldeia. A noite aproximava-se a oriente e pedimos-lhe que ficasse conosco. mostramos-lhe a nossa humilde choça e, embora parecesse ter intenção de continuar o seu caminho, acabou por aceitar. Jacob e eu, nervosos e felizes por tão distinta companhia, esmeramo-nos na ceia: o melhor pão, o melhor queijo e o melhor vinho. Sentamo-nos à mesa e, à luz da lâmpada de azeite, entreguei-Lhe o pão de trigo. Pedi-lhe desculpa. Estava um pouco duro. Mas o homem sorriu e, partindo-o com toda a facilidade, abençoou-o, dando-nos um pedaço a cada um. - Pela minha santa mãe, que Deus tem! - os olhos do moço ficaram úmidos. - Então é que me percebi! Era Jesus! E, quando eu disse, depois de dar uma cotovelada ao meu irmão, É o Mestre!, desapareceu. Desta vez fui eu quem quebrou o silêncio que caíra sobre a sala.   - Desapareceu? Queres dizer que saiu pela porta? Cléofas negou com a cabeça. E, enxugando as lágrimas com a encardida manga de lã da sua túnica, disparou sem muito entusiasmo:   - Desapareceu da nossa vista! Não sei como, mas o fez. Outra onda de murmúrios e cochichos propagou-se entre os discípulos e as mulheres. - Não era de estranhar que os nossos corações ardessem inquietos enquanto caminhávamos para a povoação. – Cléofas parecia falar consigo
próprio. - Ele abria as nossas inteligências. A exposição do pastor terminaria com mais alguns pormenores finais e sem transcendência de maior: suspenderam a ceia e saíram precipitadamente de Ammaus, decididos a dar a notícia aos fiéis, amigos e seguidores do Rabi da Galiléia. Tinham vindo correndo sem respirar até Jerusalém, indo primeiro a casa de José de Arimatéia, que não estava em casa, e foram à de Maria Madalena e outras mulheres, que os aconselharam e acompanharam até onde nos encontrávamos. O resto já todos sabiam. Acabado o relato de Cléofas, Elias pediu a um criado que servisse aos pastores o que eles quisessem. Mas Cléofas, levantando-se, agradeceu as atenções do anfitrião dizendo-lhe que, uma vez que estava cumprida a missão deles, tinham de regressar à aldeia. O trabalho não podia esperar. Passadas as nove horas da noite, foram embora. Fiquei à espera dos acontecimentos. Não tinha forças para nada. Até perdera a conta das visões. Sentia-me desmoralizado e incapaz de pôr ordem nos meus pensamentos. Por estas razões, quase não prestei atenção às palavras de Maria Madalena, que veio ratificar a boa nova dos pastores com a conhecida aparição do Mestre em casa de José de Arimatéia. Desta vez participaram na inevitável discussão Maria Marcos, as mulheres que vinham com Madalena e até a criadagem. A unanimidade era quase total. Com exceção de André e de Simão, o Zelota - pasmados de espanto -, os restantes felicitavam-se e comentavam os pormenores das últimas visões. João Zebedeu, num impulso de alegria, começou a dançar, enquanto Filipe e Bartolomeu esvaziavam as esgotadas jarras de vinho. Durante dez ou quinze minutos, aquilo foi uma festa na qual eu próprio me vi obrigado a fazer coro com palmas. Talvez o mais emocionante tenha sido a reação de Simão Pedro. Assim que os irmãos de Ammaus se foram embora, atirou-se aos pés de Madalena e, gemendo como uma criança, pediu-lhe perdão. A rapariga, estupefata, obrigou-o a levantar-se e abraçou-o com a aprovação e alegria de todos. A festa, no entanto, duraria pouco tempo. Uma má notícia entrou de repente na sala, trazida pelo próprio José de Arimatéia. Foi como se caísse um raio. Ao ver o rosto grave daquele membro do Sinédrio, imóvel à porta, os risos, as palmas e os abraços afetuosos foram desaparecendo, dando lugar a um silêncio embaraçoso. Passava-se qualquer coisa. Qualquer coisa grave. Todos o sentimos. O rosto de José, como o de qualquer amigo ou simpatizante de Cristo, deveria apresentar outra expressão.
José de Arimatéia deixou que Elias se aproximasse. Então, perante a inquietação geral, sussurrou-Lhe qualquer coisa ao ouvido. O dono da casa encarou-o sem compreender mas, obedecendo, fez um gesto e os criados e as mulheres retiraram-se. Maria Marcos, discreta e submissa, pegou na mão do filho e fechou a porta atrás de si. A seguir, obedecendo às indicações de José, alguns apóstolos trancaram novamente a porta, reforçando-a com um divã.   No meio de um silêncio de morte - suponho que muitos dos presentes começavam a imaginar qual a natureza da informação que o membro do Conselho do Sinédrio trazia -, os íntimos do Mestre, excetuando Simão, o Zelota, sentaram-se em torno do U. José sentou-se no divã de honra. Recusou a taça de vinho que lhe oferecera um dos gêmeos e, escondendo as mãos entre as dobras do grosso manto negro, olhou entristecido para os nove apóstolos. - Pouco depois do pôr do Sol - começou ele ante a mal dissimulada expectativa de todos -, tive conhecimento de uma reunião urgente e secreta de Caifás e dos seus. Alguns rostos voltaram-se, lívidos. Uns mais, outros menos, sabiam o que isso poderia significar. - Suponho que estais bem informados sobre o conjunto de notícias e rumores que circulam pela cidade desde as primeiras horas da manhã. Alguns discípulos assentiram em silêncio. - Bem, esta é a situação. O sumo sacerdote, o sogro e os saduceus, escribas e demais fanáticos tiveram total conhecimento do túmulo vazio, de algumas visões das pessoas que dizem tê-lo visto e de não sei que concentração na Galiléia. José de Arimatéia devia estar falando de uma das mensagens de Jesus quando disse que precederia os seus no caminho para a Galiléia. Mais uma vez, como sempre, os boatos e os rumores, à força de circular, acabavam irreconhecíveis. - Nessa assembléia, segundo os meus confidentes, foram tomadas, entre outras, as seguintes medidas, que têm muito a ver convosco: primeira, todo aquele que citar ou comentar (em público ou em privado) os assuntos do sepulcro vazio ou da ressurreição do Mestre será expulso das sinagogas. Os apóstolos protestaram. - Segunda. Elias pediu silêncio. - Segunda - repetiu José, adotando maior solenidade -, aquele que disser que viu ou falou com o Ressuscitado. Será condenado à morte. Uma exclamação geral de repulsa e desconcerto pôs ponto final nas
graves notícias trazidas por José de Arimatéia. E a anterior alegria daqueles homens esfumou-se por completo. Lentamente, os comentários e os protestos foram-se extinguindo e o medo pairou de novo sobre os seus corações. - Esta última proposta - declarou o de Arimatéia numa tentativa inútil para animar os amigos de Jesus -, não pôde ser submetida a votação.   - Porquê? - interveio Elias que, junto com Mateus Levi, Simão Pedro e Tiago Zebedeu, parecia não ter perdido a serenidade. José esboçou um sorriso irônico. - Pelos vistos, perante o fluxo contínuo de notícias sobre as aparições (não só a mulheres, mas também a judeus honestos e a gregos valorosos), o medo apoderou-se da assembléia e mais de um teve de correr para sua casa para mudar de saq. A brincadeira não foi bem recebida. O pior que podia acontecer era Caifás e os seus esbirros verem-se ultrapassados pelo seu próprio terror. Nesse caso, os que estavam ali juntos, e muitos mais, podiam considerar-se homens mortos. Com razão anota João Evangelista que as portas estavam fechadas, com medo dos judeus. - Tendes - concluiu José - de sair da cidade. E quanto antes!   Simão Pedro opôs-se. E lembrou aos seus irmãos as palavras do Mestre no pátio: "Adeus, Pedro, até te ver junto dos teus companheiros". André rejeitou a sugestão do irmão. - Quem poderia saber quando se efetuaria essa aparição, supondo, rematou, repisando as sílabas, que tudo isso seja verdade. Tiago Zebedeu, Mateus e Elias manifestaram o seu acordo com a proposta de José, alegando que, além disso, faltava o Dídimo (Tomé). A justa observação confundiu, a princípio, Simão Pedro, mas este, recompondo-se, insistiu em que não deviam sair do cenáculo. E, em mais um dos seus clássicos arrebatamentos, apontou para as espadas que estavam em cima da mesa, jurando pela sua vida e da sua família que não voltaria a trair o seu Mestre. Pôs-se de pé e, com as veias do pescoço inchadas, vociferou: - Não! Nunca mais!. Ninguém me obrigará a fugir de novo! João Zebedeu aplaudiu o seu fogoso amigo, enquanto André, gritando mais alto do que Pedro, lhe chamava visionário e totalmente louco.   A disputa aumentou de tom. José e Elias eram incapazes de restabelecer a calma e o bom senso. Pouco faltava para uma cena de pancadaria quando, no meio daquela balbúrdia, as chamas das seis ou sete
lâmpadas de azeite oscilaram violentamente, como que atingidas por um repentino vento gelado. E a sala ficou às escuras. Depois daquilo, numa rápida ligação com o módulo, vim a saber que as chamas se tinham apagado por volta das vinte e uma horas e trinta minutos. O medo, como uma martelada - confesso-o -, deixou-me pregado ao assento. Foi tão rápido e inesperado que ninguém conseguiu reagir. Eu também senti aquela espécie de brisa gelada. E os outros, pelo que averigüei depois, estiveram de acordo comigo ao descrevê-la como um milhão de agulhas a entrarem na pele. Incrivelmente para mim, para Eliseu e para todos os membros do Cavalo de Tróia, que tiveram conhecimento deste fato, a pele de serpente que me protegia falhou. Como eu dizia, foi instantâneo. Quando ficamos às escuras, as maldições e os impropérios cessaram. E antes de voltarmos a abrir a boca, uma cintilação fez-nos voltar o olhar para o fundo da sala. Concretamente, para o lugar oposto à parede de entrada. Por causa das densas trevas, aquela espécie de ziguezagueante, infinitesimal e azulada faísca elétrica destacou-se no ar como um relâmpago na mais negra das tempestades. Devo ter ficado lívido. Dos outros não posso falar: não os via. O raio azul metálico surgiu mais uma vez. Mas, agora - oh, meu Deus, faltam-me as palavras!. -, desta vez a cabeça da faísca fendeu a escuridão, desenhando uma figura. humana! A minha garganta ficou completamente seca. O meu coração, o meu cérebro, os meus pulmões, todo o meu ser, negaram-se a funcionar. Nunca soube se estive vivo ou morto. Com uma precisão matemática - como se fosse governada por um computador - a faísca, acabado o seu mágico percurso, desapareceu. E ali ficou, nascida do escuro, uma silhueta de homem, maravilhosamente contornada por uma linha violeta muito sutil. E como se uma cascata de luz, também violácea, se derramasse de um ponto indeterminado do cérebro daquele ser, assim se foi completando a figura. Quando toda a sua estrutura ficou completa e cheia de luz mate, apareceu diante dos nossos olhos a massa de um homem luminoso. Lamento. Não tenho outra qualificação. Talvez fosse o medo. Não sei. Ou talvez a ausência de sombras e dos naturais relevos. O certo e verdadeiro é que não consegui reconhecê-lo. Era, parecia, a réplica de um ser humano. Um adulto de cabelos compridos, barba recortada e túnica até aos pés. Mas, insisto, talvez tudo isto apenas sejam suposições minhas e sempre a posteriori. Tive a impressão de que o tempo e o espaço estavam congelados. De
repente, os braços daquele ser de luz moveram-se. Numa situação tão crítica é difícil precisar ou fixar pormenores tão insignificantes, mas juraria que, à medida que levantava os braços em sinal de saudação, várias taças e espadas que estavam na curvatura do U - o ponto mais próximo da aparição - se entrechocavam e caíam no chão. Como num sonho, aquela forma violácea falou. Foi uma voz familiar que me eriçou até ao último pêlo. Era incrível. A voz não vinha de um ponto concreto - presumivelmente da parte superior - mas de todas e de nenhuma parte ao mesmo tempo. Enchia a sala, perfurando a minha mente como um sabre. Que pena não me ter ocorrido ligar o meu ouvido direito! Eliseu teria sido uma valiosa testemunha. Mas o meu companheiro estava absorto nas tarefas de investigação dos panos mortuários. - A paz seja convosco! Era Ele! O seu timbre de voz. Mas a sua figura. Porque não conseguira reconhecê-la?   - Porque estais tão assustados, como se tratasse de um espírito?   Os comentários que agora acompanham este acontecimento foram, logicamente, fruto das minhas reflexões posteriores. Naquele momento não pensava, não respirava. Só via e sentia. O caso ‚ que as primeiras palavras da visão - como poderia defini-la melhor? - não tinham muito sentido. Era lógico que qualquer ser humano sentisse não medo, mas terror! - Não vos disse que os principais sacerdotes e dirigentes me entregariam à morte, que um de vós me trairia e que eu ressuscitaria ao terceiro dia?   Jesus de Nazaré – porque tinha de ser Ele - foi baixando os braços lentamente. - Então - prosseguiu a voz -, porquê tantas discussões e dúvidas acerca do que disseram as mulheres, Cléofas, Jacob ou o próprio Pedro? E agora que me vedes, ides crer em mim? Ninguém respondeu. Quem, em seu pleno juízo, o teria feito? - Um de vós ainda está ausente. Quando vos juntardes mais uma vez e souberdes com segurança que o Filho do Homem ressuscitou, ide para a Galiléia. Partir para o norte? Outra vez aquela ordem. - Tende fé em Deus! Tende fé uns nos outros! Assim entrareis no novo serviço do reino dos céus. O ser fez uma brevíssima pausa. Era espantoso! Havia matizes no timbre da sua voz!
- Permanecerei em Jerusalém até estardes em condições de partir para a Galiléia. Deixo-vos em paz. E numa fração de segundo, toda a figura de luz se esfumou, recolhendo-se sobre si mesma, até ficar apenas um ponto brilhante, branco como o mais potente dos arcos voltaicos, no lugar que devia ser ocupado pelo suposto cérebro do não menos suposto homem. Depois, também esse ponto se diluiu. E na retina dos meus olhos continuou vivo, oscilando em cada movimento das pálpebras, como quando se olha fixamente para o disco solar. Do resto que aconteceu naquela sala na noite de domingo, 9 de Abril do ano 30 da nossa Era, quase nada posso dizer. Não sei se entretanto passara um minuto ou uma hora. A verdade é que alguém começou a gritar. Foi como um detonador. Contagiados, todos nos precipitamos em direção uns aos outros, procurando-nos na escuridão com os braços estendidos. Eu fui o primeiro. Tropeçamos nos divãs, na mesa e uns nos outros, rolando como bolas sobre o soalho. Um pânico irracional - quase químico - explodiu em toda a sua magnitude. Alguns choravam. Outros riam nervosamente. José e Elias, entre gritos e recomendações de calma e tranqüilidade, empurravam à direita e à esquerda, procurando, suponho, a porta. De nada me serviu a minha preparação nem a frieza que demonstrara noutras ocasiões. Deixara-me dominar pelo medo. E como mais um naquele histérico enredo humano, acabei por gatinhar como um coelho assustado e chocar frontalmente com uma parede. A pancada com a cabeça deixou-me inconsciente. Agora, só de pensar nas conseqüências fatais que aquela pancada podia ter causado, começo a tremer. Se tivesse fraturado a cabeça, talvez este diário não existisse. Foi uma importante lição para mim. A primeira coisa de que me lembro é do rosto choroso de João Marcos e, também entre brumas, as mãos solícitas de Maria, sua mãe,   molhando a minha testa com uma esponja. Tentei levantar-me. Mas uma dor aguda, entre as sobrancelhas, fezme desistir. Apertei os punhos e, fechando os olhos, tentei me acalmar  e recordar. - Que aconteceu? - Você deu uma  pancada - respondeu uma voz. De súbito, ao compreender que tinha perdido o meu cajado, me desvencilhei dos meus amigos e me levantei. Lancei um olhar à minha volta.   Continuava no cenáculo. Os candeeiros de azeite brilhavam de novo e os   discípulos, em silêncio, observavam-me dos seus assentos. Aos tombos, com as mãos sobre o enorme hematoma que crescia na minha
fronte, fui aproximando-me da poltrona que eu ocupara durante a aparição. A vara estava no chão, meio escondida pela mesa. Mas me detive. O meu instinto, embora bastante afetado, funcionou. Não podia levantar suspeitas. Depois daquele percalço, se o meu primeiro impulso consistisse em localizar e recolher uma vulgar vara de peregrino, os meus atentos e sagazes observadores talvez começassem a fazer perguntas. Devia agir com naturalidade. Assim, aparentando uma enorme ansiedade, fui examinando as taças que continuavam em cima da mesa. - Não, Jasão!. Agora não te convém beber. Era Maria. E com grande doçura, ajudada pelo rapaz, levou-me para um banco desocupado. Pegou numa moeda, um denário de prata, meteu-a num cântaro de mel e, seguidamente, colocou-a num pano que molhara numa mistura de vinho, azeite e aloés púrpura. Um dos criados pôs o denário em cima do hematoma, enquanto a senhora o segurava com o pano, atando a venda na zona occipital da minha cabeça. Senti um certo alívio. Peguei-lhe nas mãos e beijei-as. Era um costume desconhecido dos hebreus e Maria, desconcertada, ficou toda ruborizada. Por recomendação sua, deitei-me no divã, repousando durante alguns minutos. Fechei os olhos e logo aquela figura de luz e aquela voz regressaram à solidão e à escuridão do meu coração. Tentei racionalizar o fenômeno. Seguramente, pensei, tudo foi devido à extrema tensão em que estávamos, Não podia me enganar. Admitindo que a visão tivesse sido uma conseqüência dos nossos nervos ou de um stress passageiro, como explicar o repentino apagar das lâmpadas de azeite? Na situação generalizada de medo em que os apóstolos se encontravam, não fazia sentido que os atemorizados apóstolos, num mais que duvidoso movimento alucinatório coletivo, tivessem deitado mais lenha na fogueira e apagado, simultânea e inconscientemente, as chamas. Não, isso era demasiado confuso. Além disso, havia o vento gelado. Nenhum dos presentes sabia da minha proteção cutânea. Se eles tivessem sido capazes de provocar aquele tipo de brisa, isso não implicava que eu a sentisse. No entanto, afetou todo o meu corpo. Quanto à cintilação e ao incrível traçado da faísca, o que se podia dizer? Supondo - e era supor muito - que algum dos amigos tivesse algum tipo de poder mais ou menos paranormal, e aceitando que tivesse sido capaz de criar ou construir uma materialização ou fantasmogênese, porque teria de o fazer de uma forma tão sofisticada e seguindo um processo que, de certo modo, me fez recordar os complexos sistemas da holografia? E se
me inclinasse para um holograma, quem, no século I, estaria em condições de fazer o que só a partir de 1947, com Dennis Gabor, seria conhecido e desenvolvido? Onde estava o laser, necessário para este tipo de imagens em relevo? E no caso de ter usado uma luz branca em vez de uma luz coerente - quer através de uma lâmpada incandescente quer através da luz solar - deparava-me com o mesmo problema, sem contar que naquele momento, nove e meia da noite, estava totalmente escuro em Jerusalém.
* A holografia ou fotografia por reconstrução de frentes de onda foi inventada por Gabor, em 1947. A princípio, teve outra finalidade: o melhoramento do poder de resolução do microscópio eletrônico. Só por volta de 1960, graças a Júris Upatnieks e Leith, da Universidade de Michigan, é que foi possível ampliar a descoberta de Gabor. Aproveitando o laser, por exemplo, conseguiu-se pela primeira vez a construção de imagens holográficas de objetos refletores tridimensionais. (N. do M)
Se a aparição se devesse a um médium, eu só tinha de lhe dar os parabéns. Além de conseguir uma bela figura com uma luminosidade que não podia enquadrar-se nos limitados conhecimentos da época, aperfeiçoara os seus trabalhos com uma voz, que saía de todos os lados. Além disso, e tenho de dizê-lo claramente eu nunca acreditei nessas materializações espetaculares a que os entendidos em parapsicologia chamam ectoplasmia. (Segundo especialistas como Geley, Crookes, Crawffor e outros, o ectoplasma seria algo assim como uma substância nebulosa, esbranquiçada, com uma estrutura fluida e filamentosa que alguns médiuns são capazes de expelir pela boca, ânus, seios, ventre, etc, quando dizem estar em transe. Esse ectoplasma aparece algumas vezes sob a forma de uma estreita faixa serpenteante ou adquire as mais diversas configurações humanas ou de animais) E digo que não creio em tais superstições porque, embora a mente do homem disponha efetivamente de um poder tão extraordinário como desconhecido, de um ponto de vista puramente científico não tem lógica que uma energia mental - adimensional ou espiritual e submetida, portanto, ao indeterminismo quântico - possa transformar-se num ente dimensional e material, como no caso dos repugnantes ectoplasmas. Não, aquela explicação foi descartada. Talvez durante algum tempo me inclinasse a pensar que tudo resultara de uma alucinação coletiva. Mas de que tipo? A psiquiatria esforça-se por descrever algumas. Estaria perante uma mistura de
alucinação visual auditiva? Estas últimas - as auditivas ocorrem entre os doentes psicóticos; em especial entre os esquizofrênicos. O indivíduo distingue com nitidez o seu pensamento de outras vozes – quase sempre reprovadoras - que o invadem, reforçando o sistema delirante. É verdade que, noutros casos, essas alucinações são desagradáveis, aparecendo num quadro de delírio erótico ou místico. Nas esquizofrenias, essas vozes interiores ou exteriores dão todo o tipo de ordens, provocando mesmo situações-limite que podem chegar ao suicídio ou ao homicídio. Também não era este o caso. Das treze pessoas que estavam no salão naquele momento, suponho que a maioria era normal. Duvido que houvesse algum esquizofrênico ou doente de delírios crônicos. Como explicar então a hipótese da alucinação auditiva? Absorto em tais pensamentos, percebi outra penosa circunstância. Levantei-me como que impelido por uma mola. Maldição! E sorri para os meus botões, chamando-me de desastrado. Não utilizara os sistemas eletrônicos introduzidos pelo Cavalo de Tróia na vara de Moisés! Aquilo, sim, teria projetado alguma luz sobre tão grande enigma. Como ser humano que sou - que ganharia eu ocultando-o? - justifiquei-me imediatamente. Alguém disse uma vez que só os deuses não se justificam. Foi impossível. Como é que eu podia ligar os transdutores naquelas circunstâncias?. Tudo foi tão inesperado e fulminante!. Nem sequer sabia onde estava o cajado. Além disso, o medo paralisara-me. Para quê continuar? Era claro que eu tinha fracassado. E registrei o fato, para a ocasião seguinte. Mas, haveria uma segunda oportunidade? Soerguido sobre o divã, reparei então noutro pormenor que quase havia esquecido. Sim continuava ali. Levantei-me devagar e pegando num dos lampiões de barro, fui andando até à curva da mesa. Continuavam no chão, esquecidas, duas taças de metal e uma espada. A memória não podia enganar-me. Aqueles objetos? Depois de chocarem outros tinham caído do U. Mas como, alguém os teria empurrado? Levantei os olhos, aproximando a luz da penumbra que envolvia aquela parte da sala. Tentei recordar. Eu estava na extremidade esquerda da mesa em U, (vista da porta). O ser formou-se defronte à curvatura e a um metro e meio ou dois metros daquele setor da mesa. Curioso! Os únicos objetos que tinham se deslocado e caído no soalho eram os que estavam nesse segmento do U. Outras duas taças - também metálicas - estavam tombadas na borda da mesa. Procurei não tocar em nada. Auxiliado pela lâmpada de azeite fui percorrendo todo o comprimento do
U. As espadas e os copos do centro e das pontas continuavam de pé, tal e qual como os tínhamos deixado antes daquilo. E uma idéia - ou foi um pressentimento? - devolveu-me as esperanças. Nem tudo parecia perdido. O primitivo sistema da moeda deu resultado. Pouco depois excetuando uma dor de cabeça latente, senti-me em condições de reatar o meu trabalho. Os discípulos dormitavam, esgotados por tantas emoções intensas. As mulheres e José tinham-se retirado e, procurando não fazer muito barulho, pedi a um dos gêmeos que destrancasse a porta. O ar e a frescura da noite reanimaram-me definitivamente. A fogueira do pátio continuava a aquecer o caldeirão vazio e, ao pé das chamas distingui a robusta silhueta de Simão Pedro. Estava na companhia do dono da casa e de João Marcos. Dialogavam em voz baixa e com uma serenidade inveJável. Não me atrevi a interrompêlos. Assim deslizando entre os jasmineiros, fiz a ligação auditiva. No módulo não havia novidades. Melhor dizendo, havia, sim, mas eram de caráter científico. Falarei delas a seu tempo. Eliseu confirmou-me a hora. Dez horas e quarenta e cinco minutos. Isso significava que eu estivera inconsciente durante trinta minutos, aproximadamente. É claro que preferi ocultar-lhe o acidente da parede e o ainda inexplicável fenômeno do ser de luz. E, por prevenção pedi-lhe que me chamasse ao amanhecer. De pé, com a cabeça meio escondida entre os ramos e pendente da transmissão, não me percebi da chegada silenciosa de João Marcos. Tocou-me suavemente nas costas e assustei-me. - Com quem falas? Que língua é essa? O rapaz deve ter ouvido algumas das minhas palavras – em inglês e, logicamente perguntou espantado e com curiosidade. - Estava rezando. - respondi um tanto pálido. - Sempre o faço - improvisei - num dialeto da minha terra natal, Tessalônica, É uma língua que tu não conheces. Aquele pequeno incidente também nos serviu de lição. Embora o meu irmão e eu costumássemos conversar em koiné ou aramaico galileu - fundamentalmente com o propósito de praticar -, a partir de então, tanto as ligações auditivas como as conversas diretas, dentro e fora do berço, foram feitas nas línguas do tempo e do lugar em que nos encontrávamos.   Antes de me reunir com Simão Pedro e Elias Marcos, o benjamim, um pouco ruborizado, insinuou-me que ele também tinha uma coisa para mim. Olhei para ele intrigado. Que lhe teria ocorrido agora? Colocando diante dos meus olhos um saquinho de pano descolorido, fê-lo oscilar suavemente no cordãozinho
branco e imaculado que o fechava.   - O que é isso‚? - Uma coisa poderosa e secreta - respondeu em tom misterioso. Aguardei uma explicação. Mas antes pediu que me inclinasse. E ao fazêlo, passou a laçada sobre a minha cabeça. E o saquinho, de apenas cinco centímetros de comprimento, ficou pendurado sobre o meu peito.   - Isto livrar-te-á das febres terçãs e dos espíritos malignos que espreitam sob as sombras das alcaparras, figueiras e sorveiras rasteiras. Mas, olho vivo! Não te servirá se caíres sob a sombra de um barco.   - E o que é que me pode acontecer se cair sob a sombra de   um barco? O garoto abriu os seus grandes olhos negros, olhando para mim como se tivesse diante dele um perfeito cretino. - Corres o risco de ver o diabo! Fiz um grande esforço para não soltar uma gargalhada. A superstição entre aquela gente era tão variada como arraigada. Ao ponto do Talmude dedicar longas passagens a tais questões e às formas de combater as influências malignas. Apalpei o conteúdo do amuleto e agradeci-lhe efusivamente, pedindo-lhe que perdoasse a minha ignorância. - Como estrangeiro - disse-lhe -, ainda não estou muito a par desses grandes perigos. Ao que parecia, e segundo o benjamim, o seu presente continha os seguintes ingredientes mágicos: Sete espinhos de sete palmeiras. Sete aparas de sete vigas. Sete pregos de sete pontes. Sete cinzas de sete fornos e sete pêlos de sete cães velhos. - Ah! - exclamei, aliviado. E sem mais demora, fomo-nos juntar à serena tertúlia de Simão Pedro e do anfitrião. No decorrer da mesma, como disse, tomei conhecimento do que havia sentido o pescador momentos antes da aparição. E fui também informado das últimas decisões do grupo apostólico. Ninguém abandonaria Jerusalém. Na manhã seguinte, dois discípulos - seguindo a recomendação do ressuscitado na sua última materialização - dirigir-se-iam a Betânia em busca de Tomé. Tentariam convencê-lo a deixar o seu isolamento e a juntar-se aos outros. Uma vez conseguida a reunificação dos onze, partiriam para o Norte: para a Galiléia. Eu não disse nada, naturalmente, mas supus que essa tentativa de convencer e atrair o renitente Tomé iria tropeçar em sérios inconvenientes. Segundo o Evangelho de João, oito dias depois daquele estranho fenômeno - chamemos-lhe aparição -
registrado no cenáculo, os onze, por fim, realizaram o seu desejo de finalmente estarem juntos. Não o podiam saber ainda, mas essa seria a segunda aparição de Jesus aos seus embaixadores. Uma aparição que, é claro, eu não pensava perder e da qual felizmente, extrairíamos algumas conclusões inesperadas. A propósito, e apesar de não ter nenhuma importância, não consigo entender por que razão três dos quatro evangelistas não se referiram a esta nona e última aparição do Mestre, naquele histórico dia do chamado Domingo da Ressurreição. Apenas João fala dela e misturando palavras e gestos do Filho do Homem que correspondem à segunda presença no cenáculo, com Tomé incluído. Mas não quero precipitar-me. Falarei dessa aparição - ocorrida no domingo seguinte - 16 de Abril - no momento preciso, e não será difícil descobrir como foi igualmente manipulada com a introdução de frases que Cristo jamais pronunciou e que, no tema da confissão dos pecados, acabariam por se cristalizar noutra fórmula tão mágica quanto falsa. A casa de Elias Marcos, embora sóbria, encerrava influências helênicas e romanas, com pormenores de um requinte que me surpreenderam. Era alta madrugada quando decidimos recolher-nos. Na verdade, eu estava esgotado. Simão Pedro, que parecia transformado, despediu-se de Elias e de mim dando-nos o beijo da paz. O homem não se esquecera das minhas palavras de consolo e do meu precário exame como médico. A princípio, obcecado com a idéia de não causar incômodos, insinuei ao meu anfitrião que eu podia descansar junto às cinzas. O meu manto tinha servido em ocasiões semelhantes. Elias zangou-se. E, puxando-me, resmungando perante as idéias malucas daquele pagão, obrigou-me a entrar pela porta pela qual eu vira entrar e sair Maria durante a minha primeira visita à mansão. Encontrei-me diante de um longo corredor, estreito e alto iluminado nas suas extremidades por um candeeiro pendurado nas paredes de tijolo. Elias tirou o que estava à entrada e convidou-me a segui-lo. Àquela hora - deviam ser três horas da madrugada, pouco mais ou menos - a casa dormia pacificamente. Em vinte passos percorremos o corredor de tijolos de barro cozido, detendo-nos diante da última das cinco portas que contei na parede do lado esquerdo. Na parede oposta, frente a frente, abriam-se outras tantas portas de escura madeira de carvalho, cuidadosamente polidas com uma espécie de verniz. Marcos fez-me sinal para que segurasse a lâmpada de azeite e,
pegando no grosso molho de chaves que levava ao pescoço, procurou a que servia. À terceira ou quarta tentativa, a fechadura rangeu e o meu amigo empurrou a porta e entrou no quarto. Mostrou-me e, antes de se retirar, do umbral da porta, indicou-me o quarto que ficava em frente, dizendo-me que ali era a casa de banho. E com um cortês "a paz seja contigo", fechou a porta atrás de si. O pequeno quarto, sem janelas, era extremamente simples. Ergui o candeeiro de bronze e as sete chamas projetaram outras tantas sombras serpenteantes sobre os móveis: uma arca de madeira de azinheira, uma cama alta e, evidentemente, muito pequena para o meu metro e oitenta centímetros de estatura,  um jarrão de barro com um esplêndido ramo perfumado de brancos jasmins e, também sobre a arca, uma bandeja cuidadosamente tapada com uma gaze. Ao destapá-la, adivinhei a mão de Maria, a dona da casa. Sorri, agradecido. Ao lado de uma jarrinha repleta de compota doce estava uma tigela com figos secos e nozes descascadas, primorosamente cercadas de mel quase preto, que brilhou como um diamante à luz do candeeiro. A cama era soberba. Havia sido feita com madeira branca de pinho, formando um par de felinos, desmesuradamente estirados, cujas cabeças constituíam os pés. Não havia colchão. No seu lugar, sobre um trançado de lona, três mantas de lã esponjosa e várias almofadas de penas. O travesseiro, grande azar meu, era um apoio de cabeça de alabastro.   Provei as nozes, apenas por cortesia, e não toquei na compota. Embora as condições higiênicas da casa e da família fossem dignas de elogio, as normas da missão, nesse aspecto, eram rígidas. Rendido, deixeime cair na cama, depois de apagar seis dos sete orifícios do candeeiro onde assomavam outras tantas torcidas ou grossos pavios de linho que eram as mechas. E um adocicado aroma de azeite - típico das casas judaicas - foi invadindo o aposento, empurrando-me para um plácido sono reparador. Às cinco horas e quarenta e dois minutos, pontual como sempre, Eliseu devolveu-me à realidade. - Está amanhecendo - anunciou-me, eufórico. - A temperatura desceu um pouco. Os sensores exteriores marcam oito graus centígrados. Pela leitura do anemocinemógrafo deduzo que temos em cima um cadim (vento de leste). O tubo de Pitot assinala rajadas com velocidades até trinta nós. O céu continua limpo, com uma visibilidade praticamente ilimitada. Ao meio da manhã terei concluído as análises. Isto é incrível, Jasão! Espero-te para o chá? Câmbio. Agradeci a informação e a piada. E prometi voltar à base-mãe o mais
rapidamente possível para recolher os panos mortuários. Antes devia cumprir o combinado com Civilis, o chefe da Fortaleza Antónia. Por volta da hora terça iria falar com o procurador. A entrevista podia ser positiva para ambas as partes. Na nossa longa permanência nas altas terras do Norte - na Galiléia - todo o apoio oficial seria pouco. Quanto ao supersticioso Pilatos, o que eu tinha em mente o encheria de admiração. Estive a ponto de passar ao largo. Mas a curiosidade foi mais forte. Durante o primeiro salto, as numerosas entradas no berço aliviaram as minhas necessidades fisiológicas. Nesta segunda exploração - e não falemos na terceira (que nem Eliseu nem eu podíamos então prever) – a coisa foi diferente. Eu não dispunha do dispositivo para a eliminação das fezes 1 e, obviamente, tive de defecar nos lugares mais estranhos e, às vezes, em circunstâncias comprometedoras. O caso é que, ao empurrar a porta em frente ao meu quarto, descobri o que aquelas pessoas chamavam, com tanto pudor como eufemismo, o lugar secreto.
* Como se explica pormenorizadamente no volume anterior, Eliseu teve de ser submetido a uma delicada operação: a inserção no reto de uma sonda diminuta, preparada para recolher as fezes. Estas, previamente tratadas com jatos de água a 38º C, eram sugadas por um dispositivo miniaturizado que foi acoplado às suas nádegas. Desta forma, os excrementos eram decompostos nos seus elementos químicos básicos. Parte era gelificada e transformada em oxigênio e hidrogênio. O resto, sob a forma de gás, era lançado para o exterior. (N. do A)
A casa de banho, de uns cinco metros quadrados, era toda forrada de mármore númida, de finíssimos veios negros. Só o teto aparecia nu, engessado e com três grossas vigas de sólida madeira de azinheira de Baca. À direita da porta, ao longo da parede, abria-se uma espaçosa banheira - quase uma piscina - elevada um metro e meio acima do nível do solo. Umas escadas muito íngremes, cobertas com esteiras, como o resto da casa de banho, facilitavam o acesso. No extremo oposto, no canto esquerdo, o pavimento tinha sido esburacado. Aproximei-me cheio de curiosidade. Era um pequeno poço de uns trinta centímetros de diâmetro que comunicava, pelo que consegui perceber-me, com um sistema de esgotos, então existente no Templo e áreas adjacentes da parte baixa da cidade. A latrina - porque era disso que se tratava – fora rodeada com um estrado quadrado de madeira com quase cinqüenta centímetros de lado, e que se elevava ligeiramente sobre o
mármore. Muito perto da latrina - à mão, como se costuma dizer -, numa canastra de fibra de palmeira, amontoavam-se várias esponjas. Estas, juntamente com a água depositada nas pias que se alinhavam na parede, deviam constituir os utensílios para a necessária higiene depois de se fazer as necessidades. Um grande armário e uma série de prateleiras feitas na parede completavam o recinto. Naqueles vãos, em perfeita ordem, o visitante da casa de banho podia encontrar de tudo: desde barrilhas e natrão, que faziam as vezes do nosso sabonete, até pedra-pomes e uma infinidade de frasquinhos de vidro e cerâmica, com cosméticos e perfumes: póch para as sobrancelhas e pestanas, e a que os romanos chamavam stibium (uma substância de cor azul-escura à base de chumbo); folha de al-kenna, que produz uma cinza de tonalidade amarelo-escura, e que servia para as mulheres pintarem as unhas e a palma das mãos; sikra para os lábios e faces; macerações de lírio em azeite; ônix, também chamado unha perfumada; nardo e o não menos fresco e fragrante perfume de cinamomo e bálsamo de Jericó. Além disso, pentes de madeira e osso, colheres, espátulas e paletas de marfim para colocar os cosméticos e vários espelhos redondos de metal polido com cabos de madeira primorosamente trabalhados.   As afiadas facas largas, que deviam servir para o dono da casa fazer a barba, ocupavam apenas um cantinho entre semelhante arsenal feminino. Como nos nossos dias, a invasão das mulheres de então nas casas de banho era algo bem aceito pelos homens. Mas o que mais me chamou a atenção daquele lugar secreto foi um pequeno cartaz, pendurado numa das paredes. Dizia mais ou menos isto: "Quanto mais permaneceres aqui, mais longa será a tua vida". Minutos mais tarde, ao cumprimentar Elias, interroguei-o sobre aquela legenda. E o homem, sorrindo zombeteiramente, assegurou-me que era um adágio extraído do Talmude. - O Berakoth (LV) - acrescentou em tom de troça - conta, até, que o velho rabi chegava a deter-se até vinte e quatro vezes em outros tantos lugares secretos, no caminho entre a sua casa e a escola onde ensinava. Depois de me arranjar um pouco e purificar o meu hálito com um dos dentífricos de uso comum naquela época - uma pimenta de cheiro que se mastigava como os grãos de anis - examinei a minha testa. O hematoma havia baixado consideravelmente. Com prudente otimismo, depois de lançar um último olhar àquela casa de banho de luxo, dirigi-me para o pátio.
As trombetas dos levitas já tinham anunciado o novo dia. Como também era habitual, a dona da casa e a criadagem andavam nas lides domésticas há  bastante tempo. Entre canções, iam acabando de moer o trigo. Maria Marcos deixou de torrar o grão e veio ver a minha testa. Devolvi-lhe o denário e o pano e ela, esfregando as mãos de satisfação, voltou para a prancha abaulada onde se coziam as apetitosas bolas de flor de farinha. Havia tempo de sobra. Por isso aceitei, com imenso prazer uma caneca de leite de cabra fervendo e sentei-me junto à fogueira. A manhã, como dissera Eliseu, estava fria. Passei revista à minha roupa e ao saco com os quadros astrológicos e, após uma longa reflexão sobre o que acontecera no dia anterior despedi-me da família, elogiando e agradecendo a sua hospitalidade. Como eu supunha, passariam ainda uns quantos dias até poder estar com eles outra vez. Maria fez-me prometer que não abandonaria Jerusalém sem antes ir a sua casa e passar umas horas falando-lhe da minha família. A minha família? Os homens como eu - sempre sós, permanentemente descontentes e atormentados - não conhecem outra família além do suplício da solidão. Mas como explicarlhe isto? Elias abraçou-me como a um irmão e, com um "até logo", lancei-me às movimentadas ruas da Cidade Santa. O vento, com efeito, forte, frio e seco, fustigava Jerusalém. O ar e o céu pareciam um cristal. Protegi-me com o manto e, depois de informar o módulo de que me dirigia para o quartel-general romano e que talvez viesse a precisar dos serviços do Papai Noel, comecei a andar em direção à Porta dos Peixes. A nova e luminosa segunda-feira, embora um pouco mais calma que o domingo, seria igualmente rica em surpresas e experiências.
10 DE ABRIL, SEGUNDA-FEIRA
Enrolado no manto, não os vi. Mas ouvi os seus risos e os seus comentários. Voltei-me e descobri junto de um muro lateral da residência dos Marcos um grupo de hebreus que gesticulava e apontava para a parede entre gargalhadas sonoras. Ao aproximar-me, calaram-se e afastaram-se com uma pressa suspeita. Ao olhar para as pedras fiquei indignado, compreendendo a sua maledicência. Alguém, aproveitando a noite garatujara com cal umas enormes letras insultuosas que, supus, eram dirigidas aos seguidores do Mestre e aos que - como nesse caso - Lhes davam abrigo.
Ladrões. Era o que estava escrito. Não era o primeiro graffiti que eu via nas paredes de Jerusalém. Os judeus daquela época, como os cidadãos de Pompéia ou do Palatino, gostavam muito desta forma gratuita e clandestina de protesto, que remontava a tempos muito antigos. (Como vemos, "não há  nada novo sob o Sol".) Na base do Palácio dos Asmonianos, por exemplo, chamara-me a atenção uma daquelas inscrições, assinada, até, pelo seu autor: "Simão e a sua casa arderão no Inferno". O aramaico incorreto - obra talvez de algum pedreiro descontente - estava assinado por um tal Pampras. Noutros lugares, sobretudo nas muralhas e nos arcos das pequenas pontes sobre o Tiropéon, viam-se sentenças mais atrevidas, quase sempre contra o jugo dos odiados romanos: "Poncio, cattivo (Pôncio, o mau", parodiando o insulto que os habitantes de Capri dirigiam ao perverso imperador então reinante: Tibério. "Pôncio, o escravo de Sejano, Saduca e Judas de Gamala não estão mortos, Soldado, [referindo-se sem dúvida aos legionários de Roma], a tua vida vale dez asses"?) 2.   Este não era, naturalmente, o único meio de expressão do povo. Além dos arautos oficiais, as notícias voavam de boca em boca, graças aos vendedores ambulantes, bufarinheiros e mendigos errantes. A fonte ou o poço públicos, onde iam regularmente as mulheres e os rebanhos, eram outros dos focos de informação em toda a Palestina. Esta forma simples e rápida de difundir as boas e más notícias era conhecida por uma expressão muito plástica: "a asa do pássaro". Naturalmente, suspeitei desde o princípio que a autoria de semelhante canalhice podia estar ligada - direta ou indiretamente - ao sumo sacerdote e aos seus fanáticos saduceus. Entre os rumores que cruzavam Jerusalém de ponta a ponta desde as primeiras horas da manhã de domingo, havia um que apresentava especial afinidade com o graffiti em questão: o que assegurava que os discípulos de Jesus haviam roubado o cadáver do Rabi, aproveitando o fato de os guardas terem adormecido. Bastava ouvir aqueles boatos e comentários dos cidadãos - judeus ou gentios - para ver que só acreditavam naquelas notícias os de má fé. Nem o mais ingênuo na cidade admitia que a legião romana pudesse ser ludibriada de maneira tão grotesca. Mas a campanha de intoxicação - como se diria no século XX - fora meticulosamente planificada pelo Sinédrio. Ou, para sermos mais exatos, pelos leais a Caifás e seu sogro. Aquela nova medida de desprestígio público de Jesus e da sua gente nasceu certamente na reunião realizada na tarde anterior e da qual nos informara José de Arimatéia. Não me
enganava. À medida que fui avançando para a parte alta da cidade, outras pinturas recentes, nas paredes do terreiro de Xisto, na parte baixa do grande muro ocidental do Templo e na rua dos pórticos do mercado de cima vieram confirmar a minha convicção. O povo, à medida que as ia descobrindo, amontoava-se perto delas, divertindo-se e engalfinhando-se em várias discussões violentas. Também não é verdade que todo o povo estivesse contra o Galileu. Nas discussões havia opiniões para todos os gostos. Algumas, muito corajosas e sensatas. Perante o argumento da vigilância romana - numa fuga vergonhosa para os da Fortaleza Antónia - a maioria ficava calada, reconhecendo que era tudo muito estranho. Mas o medo, como em todas as épocas, era livre, e a maioria não tinha o menor desejo de perder a vida ou o seu patrimônio para defender uns galileus esfarrapados. Esta era a expressão mais repetida nos graffiti que cheguei a ler.
* Numa das minhas ligações à nave, o Papai Noel confirmaria que um fariseu com o nome de Saduca e um tal Judas de Gamala, chamado o Galileu, ambos simpatizantes ou membros do grupo de extrema esquerda dos zelotas ou "zelosos, incentivaram uma revolta contra os romanos no ano 6 da nossa Era, por motivo - segundo A Guerra dos Judeus (II, 118) - de um recenseamento. O motim foi esmagado, mas os zelotas, que contavam com a simpatia do povo, continuaram a praticar o terrorismo individual e a guerra de guerrilhas. Feriam e matavam os infiéis e traidores, armados com um punhal que os latinos chamavam sica. Daí derivou o qualificativo "sicários. S. Paulo conseguiu escapar por pouco. (Atos, XXIII, 14). (N. do M) * Este graffiti talvez procedesse de uma época anterior. Possivelmente do reinado de Augusto, durante o qual a paga diária de um legionário romano era idêntica à estabelecida por César: 225 denários anuais ou o equivalente: 10 asses por dia. Tácito (Ann, I 17, 6) explica que a revolta dos soldados no ano 14 foi devida a esta paga tão baixa. (N. do M)
O naggar designação em aramaico do carpinteiro de obras externas ou, mais genericamente, do construtor de casas da Galiléia, dizia uma daquelas inscrições, não  morreu E numa mordaz segunda frase mal intencionada esclarecia-se: "Está convalescente no lago, onde "aparecerá" a rameiras e a bastardos". Não há  dúvida que os inimigos também tinham conhecimento das notícias sobre uma futura presença do Filho do Homem nas terras do
Norte, precedendo os seus.   Os andrajosos galileus, dizia outra, "roubaram o seu rei. Roma sabê-lo- á. Ladrões! Impuros! A sombra da Lei perseguirá os andrajosos filhos do círculo dos gentios". (Assim era também conhecida a Galiléia) Talvez me tenha entretido excessivamente. Mas, na minha opinião, valeu a pena. Destas expressões nos muros da Cidade Santa também nada dizem os evangelistas e, no entanto, foram mais um fator - e de clara importância - na difusão da maior notícia de todos os tempos. Os amigos e os fiéis a Jesus de Nazaré souberam desde o princípio dessa suja manobra do Sinédrio, e isso contribuiu também para aumentar o medo e para continuarem, no caso dos dez, no andar de cima da casa dos Marcos, sem se atreverem a sair à rua. Pouco antes da hora terceira, um dos sentinelas do parapeito oeste da Antónia escoltava-me até ao túnel da fachada principal da fortaleza. Ali, junto ao posto da guarda, voltou a repetir-se a cena que eu vivera com José de Arimatéia no meu primeiro encontro com o procurador. Um optio consultou a tabuinha encerada em que registravam os nomes dos visitantes do dia, bem como as audiências previstas, e, com um sorriso, antecipando-me às intenções do romano, entreguei-lhe o meu cajado e levantei os braços para a revista de rotina. Desta vez não foi necessário. Na boca do túnel distingui a robusta figura de Civilis, o comandante da guarnição. Saudou-me com o braço estendido e o optio, condescendente, franqueou-me a passagem, dizendo-me que estava tudo bem e que podia passar. Civilis, sem capacete e sem a cota de malha, protegia-se do frio da manhã com a bela e longa capa cor de granate. Nunca o vi sem armas: a espada do lado esquerdo (ao contrário da tropa) e um pequeno punhal com um cabo em forma de antílope em pleno salto. Percebeu os sinais do meu hematoma mas, discretamente nada perguntou. E atravessamos em silêncio o pátio quadrado de tão tristes recordações. Tudo transpirava rotina. Os soldados de infantaria que não estavam de serviço reviam, como noutras ocasiões os seus uniformes. Alguns, com a simples e curta túnica vermelha de lã ou abrigados com os seus pesados capotes de campanha, jogavam aos dados nas lajes de dura pedra calcária acinzentada. Desta vez não havia cavalos junto à fonte da deusa Roma. Ao passar junto do marco de pedra ao qual Cristo fora amarrado revi as imagens dos açoites, com o estômago às voltas. Ao pé da polida escadaria de mármore branco que conduzia ao
vestíbulo e ao gabinete oval de Pilatos, o centurião cruzou-se com outro oficial. Civilis bateu amistosamente na couraça musculada de couro com o seu inseparável uitis ou vara de videira e o camarada deteve-se. Em latim e com evidente satisfação, recordou-lhe que tudo devia estar preparado para a marcha do dia seguinte. Alegrei-me pela oportunidade da minha entrevista. Pelos vistos - concluída a festa judaica da Páscoa - o procurador e as forças que o acompanhavam regressavam a Cesaréia, sede do representante de César naquela área da província da Síria, à qual pertencia a Judéia. Surpreendeu-me não ver as sentinelas junto à porta lavrada do gabinete do governador. Eu pensara até àquele momento que seria lá o nosso encontro.   Civilis, quando se percebeu da minha atrapalhação fezme um sinal. Eu segui-o até ao fundo do vestíbulo retangular. Ao chegarmos à parede de mármore cipriota do lado direito, colocou-se em frente de um singular adorno: um escorpião de bronze, com cerca de quarenta centímetros de comprimento, cravado na parede com uma grossa barra cilíndrica de ferro que o mantinha ligeiramente separado da superfície da parede. Representava o oitavo signo do Zodíaco: o do imperador Tibério. O oficial agarrou na cauda do brilhante aracnídeo e puxou-a com força. O bloco de mármore rangeu e, admirado, vi como uma parte da parede girava sobre um eixo oculto, deixando a descoberto uma portinhola de apenas um metro de altura. O oficial dispôs-se a entrar. Olhou para mim e, como único esclarecimento, comentou:   - Coisas do velho Herodes. E um negro túnel surgiu diante de nós. Enquanto penetrávamos num passadiço escuro, com o queixo quase colado às coxas, pensei que as palavras de Civilis se referiam a alguma extravagância de Herodes, o Grande, que foi quem remodelou a Antónia sobre o velho castelo dos Asmonianos. Aquele invento de uma porta secreta só podia ser coisa do criado idumeu. Assim que entrei no túnel, pareceu-me ouvir atrás de mim uma rápida sucessão de cliques. As trevas e a estreiteza daquele lugar não me permitiram descobrir a origem do ritmado ruído metálico, mas deduzi que se tratava do mecanismo para fechar a parede. Talvez um velho sistema de roldanas e pesos que, assim que se abre o alçapão reage automaticamente, começando a fechar gradual e inexoravelmente. Quando já tínhamos percorrido uns vinte metros, meio asfixiado pela
falta de oxigênio, uma pancada seca ressoou no úmido corredor. A parede acabava de voltar à sua posição original, sepultando-nos. O fato de o centurião não ter se detido nem ter feito qualquer comentário tranqüilizou-me relativamente. Aquele não era o lugar mais apropriado para terminar os meus dias.  Mas os meus receios dissiparam-se imediatamente. Civilis parara e eu, estupidamente, fui tropeçar nele. Não disse nada. Abriu uma portinhola de uma madeira fraca e carunchosa, e a luz feriu-me os olhos. Quando consegui levantar-me estava atrás de uns grossos cortinados de cor púrpura. O oficial deixou-me passar e entramos numa espécie de sonho. Jamais pude imaginar um luxo semelhante. O passadiço secreto conduzira-nos a uma sala quadrada - uma espécie de tetrastilum -, a céu aberto e com umas duzentas colunas semi-salientes numas paredes das mais variadas e refulgentes tonalidades. O teto era formado por largas lonas púrpuras com cerca de vinte metros de comprimento, estendidas de uma coluna a outra. Com o Sol no alto, filtrariam os raios, projetando um resplendor avermelhado sobre o pavimento de mármore. No centro erguia-se um pequeno repuxo - agora seco - em forma de uma grande concha e com seis pias de mármore em forma de taça, onde caía a água. Na parede virada para sul - no lado oposto à que escondia a saída do passadiço - tinham sido abertas janelas estreitas e altas, com vidraças, das quais se podia contemplar o Santuário do Templo e grande parte do Átrio dos Gentios. Entre esta espécie de ameias e o repuxo alinhavam-se três mesas de marfim, muito baixas, repletas de manjares que, à primeira vista, não identifiquei. Mais do que mesas pareciam arcas pequenas. E, a um lado, uma alta e belíssima lâmpada de pé, de alabastro translúcido rematada por três flores de loto, nas quais ardiam outras tantas mechas de azeite. Pouco a pouco, à medida que eu ia observando, reparei que o procurador - ou talvez a mulher - sentia uma atração especial pelos móveis e adornos egípcios. Na parede ocidental, em cima dos respectivos pedestais, eram exibidos - no centro - um barco faraônico prodigioso, em papiro e com incrustações de pedras multicolores e, de um lado e do outro, duas cabeceiras funerárias, também de origem egípcia. A da esquerda, dobrável e em marfim, enfeitada com duas cabeças do gênio protetor Bes. A outra, uma peça valiosíssima de pasta vítrea azul-opaco, com um friso de ouro decorado com os dois signos duplos da vida divina. Entusiasmado com estes possíveis vestígios do reinado de
Tutancâmon - que eu não conseguia entender como haviam chegado às mãos do governador - não me percebi da presença de Pilatos. Civilis tocou-me com o seu uitis e voltei-me logo, descobrindo um Pilatos rejuvenescido e jovial que me saudava com o braço estendido. Correspondi ao cumprimento com uma leve inclinação de cabeça e ele recusando todo o protocolo, aproximou-se de mim, sacudiu-me os braços e riu-se das minhas correrias matinais pelos montes de Jerusalém. Era claro que o obeso Pilatos tinha sido informado pelo seu fiel comandante. - Com que então viste o sepulcro vazio. Pilatos, que ostentava um belo manto cor de jacinto, dando várias voltas ao tronco, e uma túnica de lã até aos pés não esperou pela minha possível resposta. Com os seus olhos azuis e salientes fixos na cabeceira funerária que eu acabava de admirar, murmurou como para si mesmo: - énica!. Gostas, Jasão? Ia dizer-lhe que sim e perguntar pela origem de tão magnífica peça quando, deslizando para o centro da sala, levantou os braços e, girando sobre si mesmo como um pião, exclamou em voz alta: - Roma há -de invejar-me quando souber das minhas inovações! Civilis e eu trocamos um olhar. Depois, voltando para onde eu estava, pegou-me no braço, obrigando-me a acompanhá-lo. Apontou para as colunas e, sem dissimular o seu orgulho, foi enumerando as excelências da construção: - Olha para isto! Cada quinze são de porfírita encarnada, de Cipollino e de Povanazzeto. E os mármores?   Obrigou-me a tocar nas paredes enquanto ele cantava a procedência dos luxuosos materiais: - O negro, da ilha de Milo! Os finórios de Roma chamam-no mármore de Lúculo. Numídia! Eubeia! Tenaro!.   Mas, com a  mesma euforia com que havia arremetido ao informarme das suas inovações arquitetônicas - dominado pelo seu frágil e instável temperamento -, assim se apagou também aquela explosão de orgulho pessoal. E, ajeitando nervosamente a peruca ruiva, foi diretamente para as mesas. Deixou-se cair pesadamente sobre as grandes almofadas e, uma vez bem sentado, olhou para nós perplexo. Agitou as mãos, ordenando-nos que seguíssemos o seu exemplo e o centurião e eu procuramos imediatamente um assento diante do procurador.   O seu rosto, branco, inchado e redondo como um escudo, iluminouse ao reparar nos manjares. Abriu os lábios num sorriso carregado de gula, fazendo brilhar os seus três dentes de ouro.
- Oh, miolos de pavão real! Pegando numa dose, engoliu-a sem mastigar. Nem Civilis nem eu nos atrevemos a imitá-lo. Mas Pilatos, enquanto remexia numa travessa de passarinhos fritos, ordenou-nos que começássemos. - Então o milagre do sepulcro - lançou-me de rompante, repetindo quase literalmente as palavras que eu pronunciara no pátio de Antónia na presença do comandante - é só o princípio de uma série de fatos surpreendentes. Civilis, impassível, nem sequer olhou para mim. Agarrou numa pata de cabrito e começou a devorá-la com volúpia. Eu tinha de agir com extrema cautela. Estava disposto a informá-lo de alguns acontecimentos futuros - baseados nas minhas prospecções como  augure -, mas naturalmente, a troco de algo. E, seguindo uma velha tática, fiz-me rogado. Percorri distraidamente os olhos pelos alimentos e, apontando para duas bandejas de prata, perguntei sobre a natureza do seu conteúdo. Pilatos, astuto e divertido, aceitou o jogo. - Fígado de cavala, e isto é moréia. Tudo importado diretamente das costas de Gades. Desculpei-me, alegando que o meu estômago não resistiria. E o procurador continuou a decifrar-me o pequeno-almoço: -. Também tens aperitivos: ouriços do mar, ostras de Tarento, bolotas marinhas (brancas ou negras) tordos com espargos da Sicília ou se preferires, rins de veado, pasta de peixe, pães de Piceno e, para sobremesa, figos de Malta, tâmaras ou passas do Levante. Ficou sério. Julguei que me ia fazer mais perguntas. Mas não. Bateu as palmas com força e, de imediato, por uma porta estreita camuflada junto dos cortinados, apareceu um dos criados. Não foi preciso aproximar-se. Aos gritos e por entre alguns insultos, repreendeu-o pelo lamentável esquecimento do vinho. Minutos depois, o mesmo criado estava de volta com uma pequena ânfora de metal dourado. Encheu as taças e, deixando o recipiente num suporte de ferro, retirou-se mudo e pálido.   -  Saúde! Prova-o, Jasão. Tu és comerciante de vinhos. Adivinhas de onde é? Senti-me apanhado. Embora eu tivesse sido treinado como provador dos mais apreciados vinhos da região mediterrânica, a minha perícia neste assunto ainda deixava muito a desejar. - Amosela?. - aventurei, depois de o cheirar e saborear um bochecho. - Chipre! - retificou, com uma ponta de ironia.
Com o meu prestígio profissional arruinado, optei por ir direto ao assunto que me levara à fortaleza. - Sim, estimado governador - anunciei com gravidade. – O assunto do túmulo vazio é só o princípio.   - O túmulo vazio! - explodiu Pilatos. - Esses fanáticos querem tornarme louco. Sabes o que andam a apregoar os ratos do Sinédrio?   Fingi que não sabia. - Que os meus soldados adormeceram! Mas isso não é o pior. Ainda por cima têm o descaramento de caluniar a legião, murmurando que os discípulos desse Jesus roubaram o seu cadáver. Sabes qual é o castigo por adormecer durante a guarda? Naturalmente que eu sabia. Eu próprio presenciei uma dessas brutais execuções por espancamento. -. Os meus agentes informaram-me do dinheiro que Caifás pagou a cada um dos seus covardes guardas para calarem o bico: duzentos ases, Jasão! O pagamento de vinte homens! Disso não falam, claro!   Cuspiu os ossinhos do passarinho frito que estava comendo e, maldizendo os sacerdotes, continuou:   - Filhos de mil rameiras! Mentem, subornam e, para cúmulo, envolvem os meus homens nisto! - Tu sabes que os teus legionários não fugiram - repus, conciliador. - Eu estava lá. Pilatos mostrou-se muito interessado por aquela circunstância. Brincou durante um momento com o falo que tinha pendurado ao pescoço e avisou-me, sem rodeios, que não abusasse da sua amizade. - Não minto, excelência. Podes confrontar a minha versão com a dos teus soldados. Quando acabei a exposição dos fatos que eu presenciara na quinta, os meus acompanhantes olharam um para o outro abertamente. E o comandante concordou categoricamente.   - Então - perguntou, nervoso -, achas que ressuscitou? Encolhi os ombros e Civilis aprovou a minha sensata resposta. - O que te posso dizer, isso sim, ilustre governador é que um acontecimento tão misterioso é só o princípio de uma cadeia de sinais.   Pilatos arregalou os olhos. - Já consultaste os astros? Apressei-me a mostrar-lhe os quadros astrológicos, dando-lhe a entender que descobrira coincidências enigmáticas e preocupantes. Atemorizado, refugiou-se noutra taça de vinho. Prevendo o indispensável
auxílio do computador central, carreguei dissimuladamente no meu ouvido direito. Eliseu respondeu logo: - Ok. Tudo pronto. Papai Noel à espera. Fico à escuta. Câmbio.   - Vejamos - anunciei-lhe com uma teatralidade que ainda hoje me espanta, em primeiro lugar quero que repares nos seguintes fatos prodigiosos. O número nove aparece suspeitosamente. repetido.   Guiado pelo Papai Noel e pela Providência - não posso entendê-lo de outra forma - aquilo que no princípio era uma brincadeira inocente acabou por nos desconcertar: a Pilatos, ao centurião, a Eliseu, e a mim. Nem falemos. - Repara. Ontem foi dia nove. E as aparições do ressuscitado durante esse mesmo dia também foram nove.   - Nove visões? Pilatos ignorava este dado. Por isso olhou com precaução para o comandante. - Segundo as minhas notícias - continuei sem saber exatamente aonde podia ir parar, Jesus de Nazaré nasceu no nono mês do ano.   Levantei os olhos para as lonas, fingindo consultar a minha memória. Na realidade, a memória que entrou em ação foi a do computador do módulo. Poucos segundos depois, o meu irmão - sem dar crédito ao que surgia no monitor - exclamou: - Incrível, Jasão! Segundo o calendário romano e os dados do banco do Papai Noel, Jesus nasceu no ano setecentos e quarenta e sete, que soma nove! - No nono mês - repeti - da sua gestação, do ano setecentos e quarenta e sete. O procurador, contando com os dedos gordurosos, fez o mesmo cálculo que nós.   - Sete mais quatro são onze, que somados a sete. são dezoito. A casualidade - ou não o seria? - deslumbrou Pilatos. - Por Zeus! Nove! O oficial abanou a cabeça, desautorizando aquela comédia. Mas o governador, que tinha bem presente o meu vaticínio acerca do estranho fenômeno solar da manhã de sexta-feira, não fez caso dele. - Continua! Eliseu veio em minha ajuda. - Acho que devemos estar loucos, Jasão, mas repara só no que leio no monitor. Seguindo o calendário de Roma, o atual ano trinta corresponde ao setecentos e oitenta e três do mesmo cômputo imperial. (O ano zero não se contabiliza). E sete mais oito mais três são, outra vez, nove. Continua por
aí. Papai Noel está à procura de possíveis coincidências entre o número nove, o governo ou a vida de Pilatos e outros acontecimentos futuros, também ligados à vida de Cristo ou dos seus profetas. Câmbio.
* Sabíamos que a morte do rei Herodes, o Grande, tinha ocorrido no ano 750, segundo o computo romano. Jesus nasceu três anos antes (no menos 7 da Era Cristã). (N. do M)
Transmiti esta última descoberta ao meu cada vez mais desolado amigo e, por pura intuição, somei os anos de Jesus naquele ano: 36. (Completá-los-ia oficialmente em Agosto, embora os tivesse, tendo em conta o período de gestação) - Outra vez o nove - disse-lhe eu forçando a situação. Pilatos resumiu o que expulsáramos: - Nascimento ligado ao nove. A sua vida soma nove, e também o ano da sua morte. - E a sua ressurreição foi no dia nove! - rematei. - Jasão, escute! - a voz de Eliseu forneceu-me mais dois dados, também ligados ao nove. - A suposta desaparição ou ascensão do Galileu aconteceu, ou acontecerá, a dezoito de Maio, quinta-feira. Também somado, da nove! E eis outra curiosa casualidade: sabemos que o governo de Pilatos terminou (ou terminará) no ano setecentos e noventa e dois, ou ano trinta e seis da nossa Era. Da sempre nove! Aí tens uma ponta para amarrar o teu amigo! Sorte! Continuo atento. Demônios! Aquilo era de mais para ser uma série de coincidências. E, embora eu não desse muita importância à chamada numerologia, ou ciência dos números tão próxima da Cabala hebraica, propus-me - mergulhar na simbologia de tais números. Que tinha a perder? Tratava-se de uma simples e inocente curiosidade. Deus do céu! O que fui descobrindo encheu-me de espanto. Escolhi a segunda informação: a do fim da procuradoria de Pilatos. Mas como utilizá-la sem o ferir e sem violar o código do Cavalo de Tróia? Foi o próprio e pusilânime governador que me deu uma deixa   com a sua pergunta seguinte: - O nove! E o que ‚ que isso tem a ver comigo? Simulei uma certa resistência. - Fala ou prendo-te! Inclinei a cabeça em sinal de assentimento. Aquele louco era capaz de   cumprir a sua ameaça.
- Os astros indicam que o teu destino vai estar, a partir de agora, irremediavelmente ligado à recordação desse Homem. E ao nove.   - Explica-te com clareza! - exigiu sem contemplações. - Os sinais prodigiosos que começaram a produzir-se - argumentei, preparando-lhe uma armadilha - estender-se-ão até às terras da Galiléia e por um período de quarenta dias. Talvez lá possamos conversar com mais calma e com novos elementos de julgamento. - Galiléia? - o governador dirigiu-se a Civilis. - Não são estas as notícias que os nossos espiões trouxeram?
* O Major, nos seus escritos, não revela quais foram estas descobertas". Mas, tal como eu, o leitor não terá muitas dificuldades para - guiado pela numerologia" e pela Cabala - as encontrar sozinho. Como o meu amigo, o Major, eu também fiquei atônito. (N. do A.)
O centurião manifestou a sua concordância. - Queres fazer-me crer que o Galileu voltará a aparecer no Norte?   - É o que os astros dizem - menti descaradamente. – E abusando da tua confiança, dir-te-ei ainda mais: talvez tu mesmo ou Procla tua mulher, o possais ver. Ao ouvir o nome de Claudia Prócula ou Procla empalideceu. Pilatos estava a par das inclinações da esposa pelos ensinamentos e pela figura do Mestre. E, receando os assuntos mágicos ou divinos, não a contrariava. O sonho da distinta romana, pouco antes da condenação de Jesus, continuava impresso no débil espírito daquele homem. Alguns dias mais tarde, durante a nossa acidentada e intensa campanha exploratória no Norte da Palestina, Eliseu e eu teríamos a sorte de conhecer Procla, os pormenores do sonho e as inquietações sinceras que nela despertara o Filho do Homem. - Um momento. Não me confundas com os teus ardis. Vamos por partes. Que dizem os astros acerca do meu destino? Cedi em parte. - Em troca desejo solicitar da tua magnanimidade um pequeno favor. Civilis fez uma careta. - Diga.  - concedeu o governador, resignado. - Tenho ouvido dizer que na Cesaréia vive um centurião cujo criado foi milagrosamente curado (à distância) pelo Ressuscitado. Quero ir até lá e preciso de uma autorização tua para o interrogar. - Concedido!. Com uma condição. O desejo do governador veio facilitar os meus objetivos.
- A entrevista tem de ser feita na minha presença e na de Procla.   Correspondi com uma vênia exagerada. - E então? - Terás de permanecer muito atento ao nove - esclareci, na medida em que me foi possível. - Se os astros e as minhas observações não estiverem erradas, o teu governo desaparecerá num ano que some nove. Aquilo deixou-o estupefato. Eu sabia, como já disse, que o ano da queda política de Pôncio Pilatos seria o ano 36 da nossa Era 1 ou o 789 (ab Urbe Condita UC) da cronologia romana. Naturalmente, joguei com vantagem. O ano a que me referia devia ter sido calculado pelo calendário cristão: algo então inexistente e impensável.   Pilatos deve ter recordado que nos encontrávamos em 783 - cuja soma dá nove - e, tremendo, beijou o falo de marfim, na tentativa de conjurar o malefício que acabava de cair sobre o seu espírito.   - Mas há mais.
* Pilatos foi destituído do seu posto como governador por Caio, chamado Calígula, na seqüência de um grave erro político. Poucos anos depois da morte de Jesus, numerosos samaritanos juntaram-se em torno de um suposto messias, que lhes prometera descobrir os vasos sagrados enterrados por Moisés num dos montes da Samaria. Pilatos soube desta concentração multitudinária no monte Garizim e mandou atacar os samaritanos, levando a cabo uma carnificina. Perante as acusações de judeus e samaritanos, Vitélio, supremo governador da Síria, enviou-o para Roma, mas, durante a viagem, Tibério viria a falecer. O novo imperador, Calígula, desterrou Pilatos para as Gálias. (N. do M)
Papai Noel - genial - descobrira outra casualidade que fez aumentar o meu prestígio como adivinho e deixar o meu interlocutor embasbacado. - Continuando com o nove e com os acontecimentos prodigiosos que vejo nos astros chamo a tua atenção para algo que também foi profetizado pelo Rabi de Nazaré e que, segundo todos os indícios, preocupará Roma. Noutro ano que deverá somar nove, esta província   levantar-se- á contra o Império. (Embora tivesse o especial cuidado de não mencionar a data exata - 819 romano, ou 66 depois de Cristo - estava a referir-me, obviamente, à insurreição da Primavera do citado ano de 66, que marcaria o princípio do fim de Jerusalém. Nessa data, como se sabe, o procurador Cássio Floro requisitou um elevado tributo em ouro do Templo judaico, provocando graves alterações. O croel Floro enviou as suas tropas contra o povo,
matando três mil e seiscentos judeus. Os rebeldes hebreus responderam à matança apoderando-se da zona do Templo e assaltando Massada. Com as armas tiradas à guarnição romana dirigiram-se de novo para Jerusalém, sitiando e aniquilando as forças da Antónia. Floro fugiu e a guerra estendeu-se a todo o Israel. Depois da fracassada incursão de Cástio Galo, governador da Síria, em terras da Judéia, Nero encarregou o prestigiado general Vespasiano de submeter a província rebelde. O resto é bem conhecido) Era incrível, mesmo para Eliseu e para mim. Desde o momento em que Jesus vaticinou o cerco e a destruição da Cidade Santa - ano 30 - até acontecer aquela primeira insurreição - ano 66 -, passariam outros trinta e seis anos. Isto é, um número cuja soma seria outra vez nove.   - E não ficará  pedra sobre pedra Suponho que estarás falando da profecia sobre a destruição de Jerusalém. O governador voltou a surpreender-me. Os seus agentes também o tinham informado devidamente das manifestações públicas do Mestre. O que me aliviou a consciência. No entanto, mostrou-se cético em relação à hipotética sublevação dos judeus. - Fanfarronices! - resumiu, enquanto voltava a bater palmas, chamando os criados. - O nosso exército ‚ o mais poderoso do Mundo. A pista que eu acabava de dar - um ano que devia somar nove - continuou flutuando no coração do procurador. O moço aproximou-se do seu senhor e este, dizendo-lhe que se agachasse, sussurrou-lhe uma coisa ao ouvido. O criado retirou-se e Pilatos, retomando o fio da conversa, perguntou-me: - Em todas as guerras e calamidades (tu deves saber isso melhor do que eu) se produzem sinais que as anunciam. Poderias adiantar-me algum? Tomou a minha atrapalhação como uma resistência natural a não tentar os deuses ou o destino. Assim, com a sua habitual presunção, acrescentou que estava disposto a recompensar-me generosamente. Não era essa a minha intenção. Mas dissimulei e aceitei a oferta, insinuando-lhe que a melhor recompensa era contar com o seu apoio e beneplácito. Sentiu-se tão lisonjeado pela minha falsa adulação que chegou até a prometer-me uma escolta permanente enquanto eu andasse no Norte. Recebi do módulo informações de sobra relacionadas com a questão do meu incondicional amigo. - Vou abrir uma exceção. Um dos primeiros sinais mais importantes que precederão e se mostrarão antes da queda e destruição desta cidade - proclamei, seguindo os textos de Flávio Josefo na sua obra A Guerra dos
Judeus - será uma estrela, formando uma espada flamejante que, durante um ano, brilhará dia e noite à vista de todos os habitantes de Jerusalém. - Um cometa? - interveio, maravilhado. A verdade é que eu não podia responder a semelhante pergunta. Talvez Josefo estivesse a referir-se à passagem do Halley, registrada também pelos astrônomos chineses. A aproximação máxima desse cometa naquele tempo foi no dia 25 de Janeiro do ano de 66. No entanto, não pode ter sido observado durante tanto tempo. Seriam dois cometas ou o historiador  judeu romanizado estaria a descrever outro fenômeno celeste? - E nos astros - continuei, perante o ceticismo de Civilis e a progressiva curiosidade do governador - lê-se também que uma luz muito forte será visível para o povo no altar e em volta do próprio Templo, um pouco antes da primeira rebelião. Mas estes teimosos gentes o no aviso do céu. E haverá mais. Um boi parir  um cordeiro no meio do Templo 2. Perante uma tolice tão evidente, o comandante, atacado por um súbito ataque de riso, engasgou-se. - E à porta oriental - prossegui com a maior solenidade -, para a qual, como sabes, são precisos vinte homens para ser fechada aparecer misteriosamente aberta, sem intervenção de mão humana. Por último, para não te cansar mais, pouco antes do fogo e da morte, toda a Jerusalém ficará espantada e comentará  ao ver os muitos carros que correrão pelo ar 4. Eu podia ter acrescentado mais sinais - os textos de Josefo são excepcionais nesse aspecto -, mas pareceu-me desnecessário. Pilatos estava boquiaberto.
* Flávio Josefo escreveu textualmente: "aos oito dias do mês de Abril, às nove da noite, surgiu tanta luz em volta do altar e do templo que até parecia que era um dia muito claro, e isto durou uma longa meia hora". (N. do M) 2 Na sua mesma obra - A Guerra dos Judeus (XII) – assegura no mesmo sentido: "Neste mesmo dia, e na mesma festa, um boi que traziam para sacrificar pariu um cordeiro no meio do templo". (N. do M) 3 "A porta oriental do templo interior, - continua no mesmo parágrafo, - sendo de cobre, muito grande e muito pesada, que só podia ser fechada cada noite por vinte homens, e que tinha os ferrolhos todos de ferro e as aldrabas muito altas, que entravam num buraco de uma pedra muito grande que estava no umbral da porta, apareceu aberta uma noite às seis horas sem que ninguém se tivesse aproximado dela". (N. do M)
4 Josefo narra assim este fato surpreendente: "Poucos dias depois das festas, aos vinte e um dias do mês de Maio, um outro sinal incrível apareceu a todos muito claramente.Talvez o que quero dizer fosse tomado por fábula se não vivessem ainda alguns dos que o viram, e se não tivessem acontecido os fins e as mortes tão grandes como os sinais: porque, antes do pôr do Sol, apareceram no ar muitos carros que corriam em todas as direções e esquadrões armados, passando pelas nuvens espalhadas por toda a cidade: porque no dia da festa a que eles chamam Pentecostes, depois de os sacerdotes terem entrado de noite na parte do Templo mais fechada, para fazerem, como era costume, os sacrifícios, sentiram ao princípio um certo movimento e ruído e, prestando atenção para ver o que seria, ouviram de súbito uma voz que dizia: "Vamo-nos daqui"" (N. do M)
A presença no tetrastilum de dois criados tirou-o do transe. Enquanto um abria espaço entre os restos daquela comezaina, o que recebera a ordem colocou em cima de uma mesa uma bandeja de madeira. Nela vi uma caixinha de osso trabalhado, um martelo pequenino e uma taça de prata de boca larga. Vi que havia no seu interior um punhado de pérolas.   O procurador despediu-os com um grunhido. Esforçou-se por chegar a tão estranha encomenda, mas o seu abdômen, duro e pesado como um odre cheio de pez, resistiu. As sucessivas tentativas agitaram-lhe o estômago e arrotou cavernosamente. Por fim, conseguiu o seu objetivo e, destapando a caixinha, sorriu, satisfeito. Pegou logo numa pérola, examinou-a entre os seus dedos curtos e roliços e, com um suspiro de resignação, colocou-a sobre a toalha. O centurião encheu as taças e, com a maior naturalidade, como se tratasse de um costume rotineiro, agarrou no martelo e deu uma terrível martelada na pérola. O nacar branco acinzentado - de bom oriente, sem dúvida - cintilou tristemente. Com mais duas ou três marteladas, a peça ficou pulverizada. Civilis, serviçal, foi recolhendo o pó com a ponta do punhal, deitando-o no vinho, que agitou e ofereceu ao seu chefe. - Saúde! Lá se vão mil sestércios! Pôncio bebeu até à última gota e arrotou novamente. Compreendi. Se não me falhava a memória, as pérolas – que mais não são do que uma aragonita - contêm uma percentagem elevada de carbonato de cálcio (oitenta e quatro por cento), uma substância orgânica que de cor a conquialina (treze por cento), e água (285 por cento). O carbonato de cálcio é um sal e usa-se habitualmente como antiácido, absorvente e  anti
diarréico. Supus que o efeito antiácido da pérola aliviaria a sua pesada digestão. E, lembrando-me de que é insolúvel em água e  álcool, atrevi-me a recomendar-lhe que, no futuro, o tomasse diretamente. O procurador desconhecia a minha faceta de curandeiro e, entre os vapores do vinho, propôs-me que passasse a fazer parte da sua equipe de médicos. Prometi pensar na sua proposta tão atrativa assim que acabasse os negócios que reclamavam a minha presença na Galiléia. O encontro estava chegando ao fim. Mas, antes de nos despedirmos, Pilatos, numa demonstração de agradecimento, pôs nas minhas mãos a misteriosa caixinha de osso. Olhei para ele sem compreender.   - Abre-a! É para ti, com o meu reconhecimento. Repeti a vênia e, intrigado, obedeci. O estojo continha uma esmeralda com uma anêmona talhada. Examinei-a entre vivas mostras de alegria e gratidão. O embriagado governador encheu-se de orgulho e satisfação. O que procurei ocultar foi, é claro, a minha decepção. Ao pegar nela e deixar que os raios do sol a iluminassem, percebi que se tratava de uma hábil falsificação. Sem dúvida, um crisopraso. Mas, como disse, tive muito cuidado em não contrariar o ufano anfitrião. Prometeu receber-me em Cesaréia - de acordo com o combinado e, depois de lhe pedir licença para interrogar a patrulha que montara guarda no sepulcro do Nazareno, Civilis e eu retiramo-nos. Na verdade, a minha entrevista com seis dos dez soldados - quatro estavam de serviço nas torres - também não trouxe novos dados sobre o acontecimento. Civilis, sempre presente, prestou uma inestimável ajuda. Mas os legionários não souberam explicar o que acontecera. Ninguém se aproximara do lugar e ninguém deslocara as pedras. Isso ficou claro. Quanto ao desmaio coletivo, silêncio. Não houve nenhum, como era de esperar, que me soubesse dizer porquê. As cabeças foram invadidas por um fortíssimo zumbido e caíram por terra, como mortos Quando voltaram a si, alguns vomitaram. Foi tudo o que pude extrair deles. Por volta da hora sexta - ao meio-dia -, despedi-me do centurião e enveredei pelo caminho do Norte, rumo ao topo do monte das Oliveiras. Sentia-me satisfeito. Acelerei o passo, desejoso de conhecer as descobertas do meu irmão acerca dos panos mortuários. O vento uivante de leste favoreceu-nos de certo modo. As pessoas não se arriscavam a sair da cidade. E a minha segunda entrada no berço foi rápida e sem contratempos. Pelas doze horas e trinta minutos - quase vinte e quatro horas depois de ter saído dele -, consegui ver, com a ajuda dos
crótalos, a estrutura do módulo, luminosa, firme e altiva na clareira pedregosa, como uma bandeira de paz de outro tempo e de outros homens. O meu irmão, sem mais demoras, passou a informar-me. Era muito o que havia descoberto e mais ainda o que iria surgindo com o passar dos dias. Agora, por estritas razões de economia e eficiência, mencionarei apenas algumas destas descobertas. Teremos tempo para voltar ao assunto. espero. Um dos dados que não quero passar em claro é o do peso, textura e dimensões do lençol que serviu para envolver o cadáver do Filho do Homem. Exatamente: 234 gramas por metro quadrado. Isto é, observando os seus 4,36x1,10 metros, obtivemos um total de 1123 quilogramas. O tecido, opaco e espesso, mostrou-se muito irregular, tanto na fiação como na textura. Esta era tipo sarja - também conhecida na atualidade como espinha de peixe -, com uma média de quarenta fios por centímetro quadrado na urdidura e trinta na trama. Eliseu contabilizou vinte e sete inserções por centímetro. Com a ajuda do microscópio - e em ampliações até cinco mil vezes -, confirmou a natureza da fibra: linho, com presenças solitárias e escassas de algodão do tipo herbaceum. Possível procedência: o centro comercial de Palmira, a dez dias de Jerusalém. Talvez estas informações possam parecer pouco importantes. Porém, na nossa opinião, são importantes. Especialmente porque estão de acordo - eu diria que são o mesmo - com as análises realizadas sobre o sudário ou Sindon, que se guarda na cidade de Turim. Assim, categórico, Como diria o Mestre: "Quem tiver olhos para ver que veja".
* Como o grande especialista T. Walsh já esclareceu, a sarja só começou a ser tecida na Europa no final do século XIV. No Egito e em Palmira, pelo contrário, este tipo de sarja - tanto de lã (Antinoe, no Egito) como de linho (Palmira, no Nordeste da Palestina) - era trabalhada há  muito tempo. Quanto aos pedacinhos, de algodão encontrados no tecido - como diz Raes - também era conhecido no Oriente Médio no tempo de Jesus. Nas ampliações foi possível apreciar perfeitamente o tipo de sarja: de quatro" em espiga. Num fio da urdidura encontraram-se três de trama por cima e um por baixo. (N. do M)
Graças ao microscópio Ultropack e às sofisticadas técnicas espectrofotométricas de que dispúnhamos no berço, foi possível identificar e confirmar no lençol resíduos de urina, suor, bem como outros compostos
orgânicos, fundamentalmente ungüentos. Seria prolixo e esgotante enumerar a constelação de dados resultantes destas prospecções. Me limitarei, por conseguinte, e já que estes escritos têm uma finalidade somente descritiva, a constatar aquelas descobertas que chamaram a nossa atenção. Por exemplo falando da urina - presente entre os fios do lençol devido, sem dúvida, ao relaxamento dos esfincteres -, a sua concentração era muito grande, com um considerável índice de potássio, um excesso de açúcar e, até, resíduos de proteínas, derivadas, certamente, da mioglobina. Resumindo, uma urina muito  ácida 2, sinal de algo que sabíamos: o tremendo sofrimento daquele Homem durante a sua Paixão e Morte.
* Na toxicologia forense, as técnicas espectrofotométricas são muito úteis. Fundamentam-se no estudo dos espectros de absorção. Ao contrário dos de emissão, que são produzidos por corpos incandescentes, os primeiros são devidos à absorção de determinadas radiações. O espectroscópio consiste num prisma que recebe - por uma fenda - a luz do foco luminoso. Esta é decomposta ao atravessar o prisma numa série de linhas que constituem o espectro de emissão do foco. Mas as vibrações luminosas, ao atravessarem certos corpos, são em parte absorvidas, diferenciando-se a luz transmitida da primitiva. Esta absorção é variável, segundo a substância e, em muitos casos, totalmente característica. Por meio de um espectrofotômetro e um espectrocolorímetro   podemos realizar uma determinação quantitativa fácil e exata das substâncias que impregnavam o linho: suor, urina, sangue etc. O Cavalo de Tróia escolheu para esta fase da missão o espectrofotômetro de Beekman (modelo DB), de duplo feixe. O raio procedente da fonte luminosa desdobra-se em dois feixes: o de referência e o de  mostra. O primeiro atravessa a célula de referência. O segundo passa sobre a célula que contém a  mostra (neste caso, dado que não podíamos danificar o lençol). Depois, os dois feixes juntam-se e alcançam o detector. Uma vez colocada a  mostra, o detector mede o grau de desequilíbrio entre os dois raios. Basicamente, o nosso aparelho era composto pelos seguintes elementos: uma fonte (para os comprimentos de onda de luz visível   - quatro a sete mil e quinhentos angstroms - utilizou-se uma lâmpada de tungstênio). Para o ultravioleta e infravermelho, a fonte de radiação foi uma lâmpada de hidrogênio ou um Nerst, respectivamente. As moléculas de hidrogênio, estimuladas eletricamente, emitem uma radiação ultravioleta. A de Nerst era uma barra de óxido de   zircônio, óxido de cério e óxido de tório, que aquece eletricamente entre mil e mil e oitocentos graus emitindo uma radiação infravermelha. Um
monocromador que consiste num filtro de luz que permite a passagem do comprimento de onda desejada e absorve a radiação restante, a qual perturbaria a análise. Uma célula de  mostra, das   produzidas in vitro para o espectro visível (em cloreto de sódio para o infravermelho e   em quartzo para o ultravioleta). E um detector: uma fotocélula que transforma a energia radiante em elétrica. Esta fornece a leitura direta sobre um quadro indicador ou   sobre um gráfico. Tudo isso, naturalmente, ligado ao computador central. (N. do M) 2 Na urina expulsa diariamente por um adulto saudável, em condições normais   (numa quantidade que oscila entre os mil e trezentos e os mil e seiscentos centímetros   cúbicos), obtêm-se novecentos e sessenta por mil de água e quarenta de elementos sólidos: uréia, vinte e três por mil; cloreto de sódio, onze por mil;  ácido fosfórico, 23; ácido sulfúrico, 13; ácido úrico, 05, e o resto é constituído por  ácido hipúrico, leucomaínas, urobilina e sais orgânicos. Pois bem, do nosso ponto de vista, a grande acidez da urina de Jesus - muito acima da média normal - podia ser conseqüência do seguinte processo: no exercício muscular realizado em presença de oxigênio, ou sem ele, o glicogênio desagrega-se na cadeia metabólica até formar  ácido pirúvico. Este, captando um íon de hidrogênio (H"), forma ATP (adenosina trifosfato) e  ácido láctico. O ATP, como se sabe, ‚ um fornecedor de energia para a atividade. Melhor dizendo, a única fonte de energia. Por cada duas unidades de  ácido láctico formam-se três de ATP, que são a fonte energética na ausência de oxigênio (metabolismo anaeróbico). Mas o  ácido láctico não pode permanecer como ácido no sangue e, por isso, une-se aos bicarbonatos:  ácido  láctico mais CO3HNa = latato sódico mais CO3H (bicarbonato de sódio). O íon bicarbonato (CO3H-) une-se a um íon de hidrogênio, produzindo anidrido carbônico e água. Assim, surge no sangue uma grande acidose que obriga - para ser compensada - à eliminação de íons de hidrogênio pela urina, tornando-a mais  ácida. No entanto, na presença de oxigênio (metabolismo aeróbico) o ácido láctico entra no ciclo de Krebs, onde, na presença de O2, produz CO2 e HzO, que são facilmente eliminados pelos pulmões e pela urina, respectivamente. Na presença de oxigênio, uma molécula de glicogênio produz trinta e oito de ATP. (N. do M) * A cromatografia, também em toxicologia forense, é um método muito eficaz. Graças a ela é possível separar substâncias orgânicas e inorgânicas, quer em grandes quantidades quer em proporções microscópicas. No nosso
caso, a análise foi qualitativa. A cromatografia pode ser definida como um método de análise em que um diluente ou um gás favorecem a separação de substâncias por migração diferencial, a partir de uma estreita zona inicial num meio poroso ou absorvente. As substâncias assim separadas podem ser identificadas posteriormente por meios analíticos. Entre as técnicas utilizadas em cromatografia, o Cavalo de Tróia escolheu a chamada cromatografia de gases". Para a levar a cabo foi preciso um aparelho especial constituído por quatro elementos básicos: uma fonte de fornecimento da fase móvel gasosa, um bloco de injeção uma coluna e um detector. A fonte de fornecimento do gás portador era um cilindro de aço que o mantinha sob pressão. O gás utilizado foi o hidrogênio. O bloco de injeção era um dispositivo para a vaporização das substâncias voláteis, bem como para a introdução de  mostras no aparelho. Quanto à coluna, era formada por um tubo de aço inoxidável preenchido com um sólido poroso e inerte, impregnado de um líquido com elevado ponto de ebulição. O suporte sólido era constituído por diatomito. Por último, o detector era um dispositivo automático que registrava a presença de diferentes componentes. O nosso era do tipo densidade gasosa, que mede a diferença entre a densidade do efluente gasoso e o de uma coluna de comparação através da qual só passa azoto. O detector estava ligado a um registrador potenciômetro, que inscrevia automaticamente um cromatograma no qual se elevavam, sobre uma linha de base, os picos correspondentes aos componentes da  mostra analisada. A altura do pico e a sua  área correspondem quantitativamente àqueles componentes. Neste caso foram utilizados como  mostra vários fios, que em nada danificaram a integridade do tecido. (N. do M)
O suor, mais abundante que as mostras de urina, era inequívoco. Os níveis de cloro e potássio, sobretudo, mostraram-se igualmente elevados. (Também detectamos um pouco de colesterina,  ácidos gordos e vestígios de albumina e uréia) Os resíduos das glândulas sudoríparas, sebáceas, etc, eram outro sinal inequívoco da rigidez cadavérica, que afeta, em primeiro lugar os órgãos de músculos lisos. Por outro lado, não conseguimos encontrar vestígios de esperma. (Nos enforcados, como é sabido, costuma dar-se com freqüência) Embora o tivéssemos constatado pessoalmente as experiências com espectrofotometria de absorção e as levadas a cabo com o sistema de cromatografia de gases, forneceram-nos as provas definitivas e científicas de que aquele lençol envolvera um cadáver com evidentes manifestações de putrefação primária. (Muitos cientistas e historiadores
ainda hoje continuam a interrogar-se se Jesus de Nazaré morreu realmente na cruz se a ressurreição não foi mais do que uma súbita reanimação de um corpo gravemente ferido) Encontramos também alguns cabelos - dos quais falarei dentro em pouco - e que, juntamente com os exames realizados ao suor e, obviamente, aos coágulos de sangue, nos permitem crer que o tipo sanguíneo do Rabi da Galiléia era AB. Entre os resíduos de origem natural - partículas de pó, mineralógicas (especialmente de calcário cenomaniano, margocalcário, senoniano e arenito) e fragmentos isolados de tecidos vegetais - conseguimos identificar um elemento que, meses depois do nosso regresso definitivo a 1973, pôde ser descoberto sobre a urdidura do Sudário de Turim, confirmando assim as nossas fundamentadas suspeitas, no sentido de que ambos os lençóis são a mesma peça. Estou me referindo aos grãos de pólen. Talvez pela nossa experiência e pela lógica falta de tempo, o inventário feito por Eliseu foi mais curto que o apresentado pelo grande palinólogo e reconhecido criminalista, Max Frei, da Suíça. Com a ajuda do microscópio óptico - que pena não termos disposto de um eletrônico -, foi possível identificar grãos de pólen de plantas do deserto, em especial das regiões do Neguev (íris e túlipas vermelhas), das que abundavam na floresta da Jordânia e, até, das que atapetavam os estratos sedimentares das terras altas do Norte; sobretudo, das encostas que dão para o lago de Tiberíade. Quando tive conhecimento das investigações do senhor Frei, apressei-me a enviar-lhe os nomes e as características de alguns dos espécimes de pólen encontrados por nós. A informação, por ser, logicamente, anônima, talvez tivesse sido interpretada como obra de um brincalhão. O fato é que nunca vim a saber se o palinólogo teve a oportunidade de aprofundar as suas interessantes descobertas, comprovando a presença do pólen, que lhe anunciei poder detectar da mesma forma com que conseguira distinguir outras quarenta e oito plantas 2. Estou certo de que, no futuro, quando a Igreja Católica der luz verde para a investigação direta do Sudário de Turim, tudo o que aqui fica escrito poderá ser ratificado. Bastaria varrer superficialmente o linho para que a palinologia referendasse as minhas palavras. Naturalmente, o que nós não conseguimos encontrar foram grãos de pólen de regiões por onde, ao que parece, andou o Sudário: Turquia, França, Itália, etc.
* Entre os tipos de pólen encontrados pelo Cavalo de Tróia, recordo-me dos seguintes:   Iris Haynei, que costuma existir no monte Gilboa, a oeste dos agora conhecidos por montes Golã, e no leste da região da Samaria; Orchis sanctus, de floração tardia e que crescia, , justamente, naquele mês de Abril; Centaurea eryngioides, da qual Já se fala no G‚nesis   (3, 18) e que era muito abundante na Judéia e na Samaria; Íris Bismarckiana, muito freqüente nas montanhas que rodeiam Nazaré; Amygdalus communis, que anunciava a Primavera e que também ‚ citado na Biblia (G‚nesis, 43, 11, e Jeremias 1, 11); Anthemis   melanolepis e Acacia tortilis, também das zonas desérticas de sul e de leste. (Naturalmente, estes nomes científicos são relativamente modernos) (N. do M) . 2 Na noite do dia 23 de Novembro de 1973, Max Frei, com a ajuda do professor   Guio, teve acesso ao Santo Sudário de Turim, conseguindo doze  mostras de pó, de uma superfície de duzentos e quarenta milímetros quadrados. Valeu-se, para isso, de fitas suspensas especiais, sem tocar na parte da imagem. Nos estudos seguintes conseguiu identificar quase meia centena de plantas, representadas por outros tantos tipos de pólen. Entre estes destacavam-se dezesseis, quase exclusivas das regiões desérticas e da alta concentração de salinidade do mar Morto (halófitos). Havia, é claro, outros espécimes das estepes da Anatólia, França e Itália. (N. do M.)
Quanto aos cabelos encontrados no pano, assim como a mecha que consegui ocultar, depois da selvagem flagelação a que foi submetido o Mestre durante os interrogatórios no Pequeno Sinédrio, merecem uma atenção especial. Depois de os submeter a um exame preliminar - servindo-nos, fundamentalmente, do microscópio Ultropack - e a outros estudos complementares, a fim de estabelecer índices, estado das células e das medulas, bem como dos componentes orgânicos e inorgânicos, confirmamos o que já sabíamos. e surpreendemo-nos com outras informações que desconhecíamos. Os cabelos presos no linho - lisos e de diâmetro uniforme - eram, na sua maioria, da cabeça. Encontramos também alguns ondulados e de diâmetros variáveis (três centímetros de comprimento e sessenta micros em média), que procediam, possivelmente, do tronco ou de algum membro. Alguns apresentavam um claro traumatismo - falta do bulbo da raiz, como no caso da mecha -, o que demonstrava claramente que tinham sido arrancados. Embora não precisássemos confirmar, o índice medular inferior a 030, a rede aérea finamente granulada e as células medulares, invisíveis
sem dissociação, demonstraram que se tratava de cabelo humano. (Nos animais, por exemplo, o índice medular é superior a 050) Após ter feito um corte transversal do pêlo e uma inclusão de celoidina, apareceram dados suficientes para resolver o problema da raça: branca. Através dos exames morfológicos, o estudo da cromatina de Barr e da fluorescência do cromossoma Y, vimos também uma coisa que não precisávamos demonstrar: os cabelos eram de um homem e de uma fortíssima e marcada masculinidade. (Em geral, como os médicos legistas sabem, os cabelos femininos são mais grossos que os dos homens. Um cabelo com diâmetro superior aos oitenta micros, por exemplo, corresponde quase sempre a uma mulher. Por outro lado, não costumam ter medula e as pontas aparecem geralmente desfiadas pelo pentear). Ao mergulhar no estudo dos compostos orgânicos mais abundantes, fomos encontrar os normais: queratina e melanina. Entre os menos abundantes estavam as vitaminas, o colesterol e o ácido úrico. Quanto aos elementos inorgânicos, além dos habituais - silício, fosfatos, chumbo, etc. -, descobrimos índices elevados de ferro e iodo. Naquele momento não o soubemos interpretar. Movidos pela curiosidade, recorremos até a uma análise por ativação neutrônica. Esta técnica torna-se muito eficaz, dado que a composição mineral dos cabelos pode ser devida aos hábitos alimentares, à profissão, ao lugar em que se vive e à exposição a uma determinada contaminação ambiental. Não havia dúvidas. As propriedades físicas daquelas  mostras - densidade, índice de refração, bi-refringência, etc. - davam a entender que Jesus de Nazaré estivera em contato durante longos períodos de tempo com o mar ou com algum lugar ou elemento onde houvesse muito iodo. Em relação à alta contaminação em ferro, de onde poderia proceder? Só uma estreita ligação continuada a minas forjas ou fornos poderia explicar uma anomalia tão estranha. Mas sobre este assunto, como tantos outros relacionados com a vida de Cristo, não tínhamos qualquer informação. Algum tempo depois viríamos a esclarecer estas duas incógnitas. Com efeito, os resíduos de iodo e ferro nos cabelos do Galileu estavam plenamente justificados.
* A chamada cromatina de Barr, ou cromatina sexual, é o cromossomo X inativo que aparece de forma condensada nos núcleos interfásicos. Esta cromatina sexual do cabelo foi investigada por Schmid em 1967, Culberton, em 1969, e Egozcu‚ em 1971. (N. do M)
Também descobrimos claros sintomas de um progressivo
encanecimento do cabelo (não podemos esquecer que Jesus morreu quando contava quase trinta e seis anos de idade e que, naquela época, podia ser considerado como estando na fronteira da maturidade. A média de vida oscilava ao redor dos quarenta ou quarenta e cinco anos). Ao submeter o lençol a um bombardeamento por ativação neutrônica apareceram sinais de algum tipo de afeção bucal (possivelmente cárie) e resíduos de algo que nos intrigou muito: uma doença aguda, muito distante no tempo (talvez durante a infância), que apontava para uma sintomatologia de caráter viroso. (Numa das minhas longas entrevistas com os membros da sua família, em especial com Maria, sua mãe, tive conhecimento de que Jesus, quando ainda era muito pequenino sofrera de uma perturbação intestinal: talvez uma disenteria). A análise do sangue que manchava o lençol reservou-nos também várias surpresas. Para começar, a nitidez das marcas – quase perfeitas - deixou Eliseu atônito. Eu tivera a oportunidade de observar aquele fenômeno tão singular no interior do sepulcro e também para mim era inexplicável. Se o corpo fora separado do lençol - e isso era evidente -, porque ‚ que isto não fez com que os coágulos e fiozinhos de sangue ficassem esborratados? Quando se tira um pano de uma ferida provoca-se sempre um borrão.
* O Cavalo de Tróia utilizou também, nas suas investigações, o chamado AAN (Análise por Ativação Neutrônica). Este processo permite estudos não destrutivos. Além disso, com o AAN conseguem-se análises múltiplas de elementos presentes. Isto é, consegue-se determinar com grande precisão quantidades que oscilam entre 10 b e 10 yg. Com uma só radiação neutrônica é possível também estabelecer a identidade, de quinze a dezoito elementos presentes na  mostra e nos referidos níveis de 206 e 109. (No caso de que estamos falando foi suficiente a utilização de poucos milímetros quadrados da superfície sanguinolenta do tecido) Fundamentalmente, a nossa metodologia consistiu no seguinte: os elementos submetidos ao bombardeamento neutrônico tornaram-se radioativos, de acordo com as suas características nucleares, por pressão de um neutrôn, emitindo, em conseqüência, radiações a, B e y. Por último, utilizamos as radiações gama, que possuem uma energia característica para cada elemento. Portanto, a presença de um elemento ‚ detectada através da identificação por radiações gama. No que se refere à quantidade ‚ fácil fixá-la através da medição da intensidade da radiação gama, comparada com a de um padrão. A nossa análise procurou sobretudo os conteúdos de
natureza mineral do sangue (macroelementos e G elementos), de acordo com as tabelas científicas de Geigy. Ao todo, conseguimos localizar iodo, cloro, bromo, potássio, sódio, zinco, ferro, fósforo, cálcio, cobre, enxofre, estanho, flúor, silício, magnésio e chumbo. (A ordem está relacionada com o volume encontrado nas mostras) Estas foram submetidas a radiações neutrônicas com um microejector alimentado pela nossa pilha nuclear. O primeiro bombardeamento foi de dois minutos, com um fluxo equivalente a 45x10Z neutrôns por centímetro quadrado o que permitiu determinar núcleos com semiperíodos de transformação compreendidos entre as dezenas de segundos e centenas de minutos. Um segundo bombardeamento" de quase cento e vinte minutos e um fluxo de lx 10" neutrôns por centímetro quadrado localizou e transformou os núcleos de mais longo semiperíodo de transformação. Para a experiência de espectrometria gama foi utilizado um cristal semicondutor tipo GelLi de 35 cc unido a um analisador-elaborador Laben 701. (N. do M)
Mas isso não era tudo. O sangue, em lugar de penetrar e empapar os fios do lençol, correra por entre a trama, trespassando o tecido. Ao princípio atribuímos isto a um processo de fibrinólise. (A permanência do Nazareno na cruz fez com que grande parte das feridas secasse, transformando os pontos e os derrames de sangue em coágulos. As malhas da fibrina atuaram como uma espécie de muro, que reteve as descargas de glóbulos vermelhos. Essa fibrina pode, provavelmente ter depois amolecido devido à desidratação do cadáver e aos alcalis produzidos pela humidade amoniacal). O doutor Barbet escrevera sobre este fenômeno, afirmando que, talvez, no ambiente úmido da gruta, o sangue seco tivesse amolecido, dando lugar a uma pasta mais ou menos mole, que acabou por impregnar o linho e dar origem a decalques de grande nitidez. Mas esta hipótese tinha alguns inconvenientes. Por exemplo: a grande hemorragia causada pela descida da cruz e durante a trasladação do cadáver para o sepulcro. Nesta inevitável manipulação do cadáver o sangue retido numa das cavas saíra pela ferida da lança e escorrera, devido à gravidade, por toda a zona dorsal, à altura dos rins. Este grosso fio não teve tempo para secar ao ar livre e, no entanto, também não empapara os fios da mortalha num processo normal de capilaridade. Todas as manchas de sangue examinadas pelo meu companheiro eram superficiais. A explicação da fibrinólise não era, portanto, convincente. Em síntese, não pudemos ou não soubemos esclarecer o fenômeno. A não ser que isso tivesse, é claro, alguma relação
com o assunto também obscuro e complexo das manchas douradas. Mas vou deixar este tema apaixonante para o fim. Foi a crua realidade que tínhamos diante de nós – o misterioso desaparecimento do corpo de Jesus - que nos obrigou a rever tudo e com extrema cautela. Sangue incluído. Estávamos conscientes de que aqueles coágulos tinham pertencido ao Homem da Cruz mas, com a pressa de desfazer o enigma, submetemo-lo também às mais variadas provas de laboratório. Quase setenta e duas horas depois da morte, o sangue daquele tecido apresentava uma típica coloração vermelho-escura. Nalgumas partes começara a ficar escuro. Eliseu tirou várias  mostras, raspando os coágulos com uma paleta de alumínio - devo recordar que não podíamos destruir o pano nem submetê-lo a uma maceração, nem mesmo em água, como teria sido aconselhável numa prova de cristais de Teichmann - e efetuou os ensaios preliminares e concludentes do sangue, as provas de identificação como  mostra humana, de individualidade, grupo sanguíneo, sexo, etc.
* Outro dos inconvenientes que fez com que duvidássemos do processo de fibrinólise foi a dificuldade em considerar a liquefação da fibrina de uma forma geral e simultânea em todas as manchas do sudário. Os doutores Vignon e Barbet são partidários da formação desses decalques, única e exclusivamente quando a fibrina está a meio da dissolução. Nem antes nem depois. Tudo depende, portanto, de um momento muito concreto que, no caso a que nos referimos, duvidamos muito que se tenha registrado de forma generalizada e idêntica para cada fiozinho de sangue, coágulo, etc, das duas faces do linho, muito forçado e improvável. (N. do M.)
Tanto a prova de benzidina como a microscopia para detectar hematias foram positivas. A espectroscopia foi igualmente de grande ajuda. Ao Ultropack, as hematias apareceram como montes de moedas. Ainda se encontravam relativamente bem conservadas, sendo possível a verificação das suas formas ainda que não os seus núcleos, que as definiram claramente como humanas. (Às vezes, as pequenas hematias de cordeiro podem ser confundidas com eritrócitos do homem. Os camelos, por exemplo, têm hematias ovais ou elípticas não nucleadas, e os pássaros, peixes, répteis e anfíbios têm eritrócitos semelhantes, mas nucleados) A detecção última de proteína humana foi verificada seguindo a prova da precipitina. Na sondagem da hemoglobina - praticada utilizando uma técnica especial de diferenças espectrográficas – conseguimos
estabelecer, entre outros, pormenores como a idade (incluindo o período fetal: 441 meses; de novo aparecia o misterioso nove), a especificidade da espécie e algumas características patológicas, como, por exemplo, uma anemia hemorrágica e secundária, a que não demos muita importância, dado que, provavelmente, se devia à perda considerável de sangue durante as torturas e a execução. A fim de não me perder em complicadas e prolixas explicações técnico-científicas, que não são o objetivo básico deste diário, vou concluir o assunto do sangue com outra descoberta: o grupo sanguíneo de Jesus de Nazaré, que foi considerado do tipo AB. Entre os muitos métodos existentes para conseguir este objetivo, escolheu-se o chamado teste de Nickolls-Pereira, que permite uma identificação segura e excelente em manchas secas, seguindo o princípio de aglutinação mista 2.  Este grupo sanguíneo - AB - ‚ proporcionalmente escasso entre os brancos, embora não seja estranho ou anormal. (Sirva de comparação a estatística efetuada pouco antes da operação - em 1972 - entre grupos humanos de raça branca em países como a França e Inglaterra: quarenta e sete por cento pertencia ao grupo O; quarenta e dois por cento ao A; oito por cento ao B e, por último, três por cento tinham grupo AB).
* O meu companheiro levou a cabo dois tipos de provas preliminares: a referida da benzidina e a mais fidedigna, à base de fenolftaleína. Com a primeira, a presença do pigmento sanguíneo apresentou logo a clássica cor azul intensa. Mas, conhecendo a potencial natureza carcinogenética da benzidina, foi feita a prova da fenolftaleína (cento e trinta miligramas), de hidróxido de potássio (13 gramas) e água destilada (cem mililitros). Depois de ferver até ao seu branqueamento. deitou vinte gramas de pó de zinco durante a ebulição e algumas gotas de peróxido de hidrogênio (vinte volumes). A cor rosa resultante demonstrou, mais uma vez, que se tratava de sangue. É claro que podíamos ter continuado com outras provas mais concludentes, mas para o Cavalo de Tróia isto era suficiente. (N. do M). 2 Um dos fios extraído do tecido foi mergulhado em soros anti-A e anti-B. Depois de lavada a  mostra, foi tratada com células de prova A, B e O, detectando-se assim as aglutininas absorvidas. Como as hematias estavam secas - processo que destrói a aglutinabilidade, ainda que não o seu antigênio - conseguimos o mesmo fim, demonstrando a capacidade para absorver as aglutininas dos soros de reserva e assim diminuir a sua força anti-A e anti-B, da mesma forma que com os outros tipos de genes. (N. do
M)
Como é fácil de adivinhar, ao descobrirmos o grupo sanguíneo do Mestre, fomos invadidos por uma grande excitação. De acordo com os princípios mendelianos acerca da hereditariedade - elaborados por Bernstein -, um gene de um grupo sanguíneo só pode aparecer numa criança se esse gene também estiver presente num dos pais (ou em ambos). Que significava isto? Algo que, repito, nos encheu de emoção. Entre os planos do Cavalo de Tróia figurava também, uma vez identificado o grupo sanguíneo do Filho do Homem, a tentativa de descobrir o da mãe. (O falecimento de José anos atrás tornava impossível determinar o grupo sanguíneo do pai terreno de Jesus) No entanto, se conseguíssemos obter uma pequena mostra do sangue de Maria, um exame genético-biológico exaustivo poderia aproximar-nos do de José. E, embora possa parecer uma blasfêmia, do ponto de vista puramente científico, o fato hipotético de encontrarmos genes comuns aos do Nazareno nos seus respectivos progenitores (tanto do tipo A como do B), talvez pudesse fornecer-nos muita luz sobre o tão controverso dilema da concepção virginal de Maria. Sei que para muitos cristãos só a menção deste projeto significar  uma aberração. A fé diz-lhes que Jesus foi concebido por obra e graça do Altíssimo. Contudo, embora eu partilhe esta recusa natural, também é verdade que a Ciência - quando se situa ao serviço da procura da Verdade - se transforma num instrumento maravilhoso que só pode ratificar o que, segundo as Escrituras, é palavra de Deus. Entendo que o medo da Verdade pode ser uma das piores fraquezas do homem. Por isso aceitamos tão delicada e apaixonante missão. Naturalmente, como cientistas, partimos da única base de que podíamos partir: não ter em consideração a teórica origem divina do Mestre. E concentramo-nos no estudo como se fosse de mais um ser humano, sujeito, em princípio, às referidas leis da hereditariedade 1. Eu, convencido da divindade do meu amigo Jesus, talvez tenha sido quem mais sofreu com esta experiência. Mas o resultado valeu a pena e falarei dele - longamente - na sua devida altura. Por último, os exames das mostras de sangue confirmaram o que descobríramos nos estudos dos cabelos de Cristo. Mas corrigido e aumentado. A questão do sexo, como disse, foi espectacular. Eliseu pôs em prática a metodologia de Zech, demonstrando que as manchas com fluorescência Y positiva - encontradas no sangue do Nazareno - correspondiam a um indivíduo do sexo masculino, com uma acentuada masculinidade. Algo que, não era preciso
demonstrar em laboratório 2.
Naquela altura da investigação, e de acordo com as tabelas universalmente aceitas sobre a hereditariedade, só podíamos contemplar as seguintes possibilidades, sempre com base no grupo sanguíneo descoberto (AB): progenitores A e B = filhos possíveis: O, A, B e AB. Progenitores AxAB = filhos A, B, ou AB. Por último, progenitores ABxAB = filhos A, B ou AB. Cabia, portanto, a probabilidade teórica de Maria e José serem A, B ou AB, entre os cálculos mais normais. (N. do M). 2 Em 1969, Zech  demonstrou que a porção distal do cromossoma Y tem uma acentuada fluorescência, depois de tingido com máquina crina. Posteriormente, observar-se-ia que há homens normais que não têm fluorescência. Repief descobriria uma incidência negativa em 1/458 dos recém-nascidos masculinos. Phillips comprovou oitenta e seis por cento de leucócitos com corpos Y fluorescentes no homem e meio por cento na mulher. (N. do M)
E, para acabar esta apressada revisão de algumas descobertas realizadas no tecido mortuário – me verei obrigado, certamente, a voltar a elas quando escrever acerca das aventuras sensacionais que nos foi dado viver nas fases seguintes da missão -, me referirei àquela que, do meu ponto de vista, foi a mais incrível e transcendental. Me esforçarei por economizar explicações técnico-científicas, procurando ir ao âmago da questão. Vamos ver se consigo. Como tenho repetido, além das marcas de sangue, o tecido surpreendeu-nos também com umas manchas de cor dourada, de natureza desconhecida, e que constituíam uma réplica ou cópia - faltam-me outra vez as palavras - do corpo que cobrira. As sucessivas investigações - à base de chapas fotográficas em diferentes freqüências do espectro, processos de digitalização da imagem e todo o tipo de explorações com o microdensitômetro, microscópio de efeito túnel, etc. - lançaram três grandes realidades científicas: as manchas em questão constituíam um negativo fotográfico autêntico, tal como hoje o podemos entender 1. Além disso, a intensidade da figura gravada variava em relação inversa à distância linho-cadáver. E, como se tudo isto não fosse suficiente, o estudo das nuvens superficiais de elétrons das faces internas do lençol (as que apresentavam as manchas em questão), veio demonstrar que o desaparecimento misterioso do corpo do Filho do Homem tinha muito a ver com a manipulação do conceito de tempo.
Não foram necessárias muitas comprovações ao microscópio para ver que a imagem tinha um caráter muito superficial: só haviam sido afetadas as camadas mais externas do linho por uma espécie de chamuscadura generalizada. Aquilo confundiu-nos ainda mais. Que acontecera no interior do sepulcro? Como explicar racional e cientificamente que um cadáver tivesse podido queimar o lençol que o cobria?   E continuamos a aprofundar, cada vez mais confusos e admirados. A incrível réplica em negativo do corpo de Jesus era absolutamente estável. Com muito cuidado, submetemo-la a altas e baixas temperaturas, bem como à ação da água, mas foi inútil. Não houve mudanças nem alterações. Além disso, de acordo com as técnicas de análise de Fourier, descobrimos que não existia um único sinal de direção. Já sabíamos, pela lógica e pela exploração microscópica, que as manchas não continham resíduos de pigmentos de nenhum tipo de tinta: nem mineral nem vegetal nem muito menos sintéticos. As chapas com radiações infravermelhas acabaram por confirmar isso. Aquilo - meu Deus! - nada tinha em comum com uma pintura. E começamos a intuir a possível origem da imagem. Mas não quisemos precipitar-nos.
* Eis outro dado que coincide com o que foi observado até ao momento no Sudário de Turim. Secondo Pia descobri-lo-ia em 1898. As nossas placas apresentavam - nas películas negativas - o positivo, da imagem que tínhamos diante dos olhos, no linho. Para espanto nosso, aquele negativo fotográfico - impensável no século I - reunia todas as características que hoje atribuímos a essas imagens: tanto a luz como a sombra e a posição direita-esquerda apareciam invertidas. Além disso, as manchas rarearam à radiação ultravioleta numa clara resposta fluorescente. Que poderia ser tudo aquilo? Como é que se podem dar circunstâncias tão extraordinárias num tecido de linho? A verdade é que só essa descoberta teria merecido toda a nossa atenção. (M do M).
A digitalização das duas grandes manchas - a frontal e a dorsal converteu a imagem em milhões de dígitos. Só o rosto projetou um total de cento e sessenta mil sinais luminosos. O estudo dessa transformação demonstrou que a imagem continha uma informação, oculta. Uma informação que - confessamo-lo humildemente - quase não foi decifrada. De momento ficamos presos ao fato indiscutível de se tratar de uma imagem tridimensional. A pergunta-chave, e final de todo aquele labirinto era apenas uma.
Inconscientemente, fomos formulando desde os primeiros passos da investigação: o que, ou quem, fora capaz de modificar a textura superficial das faces internas do lençol até formar uma imagem tão singular? Sei que parece coisa de loucos, mas a resposta surgiu, em parte, quando exploramos as superfícies das manchas douradas com o providencial microscópio de efeito túnel. No nosso caso, ao contrário do que afirmava o fisico Wolfrang Pauli - "a superfície foi inventada pelo diabo -, a superfície foi a porta que nos abriu o caminho da Divindade". Tentei encontrar uma explicação, embora não fosse fácil. Para Pauli, a sua frustração partia de um fato que, na época, era quase um princípio físico inalterável: a superfície de um sólido era a fronteira entre este e o mundo exterior. Em parte tinha razão. Enquanto um átomo situado no interior de um corpo sólido aparece rodeado por outros  tomos, o da superfície - como explicaram perfeitamente os ilustres especialistas Ged Binnig e H. Rohrer - pode interagir com outros  átomos da mesma superfície ou com os que estiverem imediatamente abaixo dela. Como conseqüência, as propriedades da superfície de um sólido divergem drasticamente das do interior. Assim, os  átomos da superfície colocam-se com freqüência numa ordem geométrica diferente da dos outros átomos do sólido, minimizando a energia total do sistema. Em virtude deste tipo de processo, as estruturas superficiais possuem tal complexidade que resistiram, até, a uma descrição teórico-experimental precisa. Mas, graças ao excelente microscópio de efeito túnel, é possível explorar essas diabólicas superfícies dos sólidos, vendo até   os  átomos um a um.
* Como indicara o doutor Vignon no princípio do século em relação ao Sudário de Turim, a intensidade da imagem nele estampado varia inversamente à distância tecido-corpo. Por outras palavras, quanto mais perto do cadáver estava o linho, mais escura era a mancha". Os nossos instrumentos referendaram este postulado certeira e matematicamente. Isto significava que fora encerrada na imagem uma informação sobre a distância em níveis de intensidade variáveis da imagem ao linho. Mas, em pleno século I? Ao transformar as intensidades das manchas em graus de relevo vertical, obtivemos, atônitos, a reconstituição matemática de uma figura em relevo. Incrível! Que conseguimos deduzir de tudo isto? Em primeiro lugar, que a formação daquela imagem era uniforme e independente das qualidades superficiais do cadáver. Segundo que o tecido devia estar relativamente liso no momento da formação da imagem.
Terceiro, que os processos utilizados para mudar a intensidade das manchas ou atuaram uniformemente ou não atuaram. A tridimensionalidade tem de ser uma característica distintiva, dado que não existe distorção quando a imagem é transformada em relevo vertical. E talvez uma das conclusões não menos importantes: essa imagem maravilhosa não pode ter sido fruto do contato; isto é, da ação de vapores amoniacais ungüentos, etc. Se tivesse sido desta forma, a descoloração do tecido só teria ocorrido nas zonas onde o lençol tivesse tocado no corpo. Um contato direto teria provocado que a imagem em questão aparecesse plana na parte superior com uma elevação vertical idêntica para todas as zonas de contato. Mas não era nada disto que se passava com o enigmático linho. Era muito mais. Como explicar que as impressões dorsal e frontal apresentassem o mesmo grau de intensidade? Pela lógica, um cadáver com oitenta centímetros cúbicos repousando sobre o linho subjacente deveria ter produzido uma marca ou sinal muito diferente da registrada no pano superior. No entanto, as duas imagens são idênticas. Só havia uma explicação: que o corpo, no momento da formação da imagem, estivesse no ar, em plena levitação. Mas esbarrávamos novamente com um impossível científico: nenhum corpo - e menos ainda o de uma pessoa morta - pode elevar-se por si mesmo. A não ser que. Não: era demasiado fantástico. Do que estamos convencidos, isso sim, é que, com o tempo, quando essa informação, codificada na imagem puder ser estudada em profundidade, a Humanidade se surpreenderá perante dados novos e arrepiantes sobre o que hoje se entende - ou não se entende - por ressurreição. Será apenas uma questão de tempo, embora eu saiba que nessa altura não estarei vivo. (N. do M)
Foi isto, para empregar termos infantis, aquilo que o meu irmão fez no módulo. A ele se deve o que, poderia ser o primeiro passo na incansável carreira da investigação científica em torno da ressurreição do Mestre. Talvez as gerações futuras de cientistas lhe façam justiça.  Cada ponta de tungstênio do microscópio de efeito túnel foi percorrendo a  mostra. (Neste caso, naturalmente, o tecido de linho. Mais exatamente, as superfícies nas quais se desenhava a fantástica imagem de um corpo martirizado)2.
* Este aparelho, preparado pela IBM, pode decifrar estruturas que tenham apenas uma centésima parte do tamanho do átomo. Como se sabe, o microscópio óptico não tem capacidade para captar estruturas atômicas. (A média do comprimento de onda da luz visível é
cerca de duas mil vezes maior que o diâmetro típico de um átomo que, como se recordará é da ordem de três angstrons. Uma destas unidades de comprimento equivale a um décimo milésimo milionésimo de metro) Isto é, tentar visualizar um átomo ou uma estrutura atômica com luz visível seria como pretender descobrir gretas da grossura de um cabelo humano num campo de tênis, atirando bolas para a sua superfície e observando a sua deflexão. Não quero entrar em pormenores técnicos da estrutura de um microscópio de efeito túnel, mas mencionarei algumas características importantes que possibilitaram a nossa descoberta. A diferença principal em relação a outros microscópios consiste em não utilizar partículas livres. Portanto, não precisa de lentes nem de fontes especiais de elétrons ou fótons. A sua única fonte de radiação são os elétrons ligados que existem na  mostra que é examinada. Para compreender melhor este princípio, imaginemos os elétrons ligados à superfície da  mostra como a água de um lago. Da mesma forma que parte da água se infiltra no terreno, formando correntes subterrâneas, também alguns elétrons da superfície da  mostra fogem" desta, dando origem a uma nuvem de elétrons em torno da  mostra. De acordo com a física clássica - e continuo a basear-me nos escritos de Binnig e Rohrer - esta nuvem, não deveria existir, porque a reflexão no limite da superfície confina as partículas dentro dela. No entanto, isto não é assim na mecânica quântica, onde cada elétron se comporta como uma onda: a sua posição não está bem definida. É como se esfumasse. Isto explica a existência de elétrons mais além da superfície da matéria. A probabilidade de encontrar um elétron diminui rapidamente - de forma exponencial - com a distância da superfície. Este efeito é conhecido como efeito túnel, dado que os elétrons parecem cavar túneis para lá da sua fronteira clássica. 2 O nosso, microscópio de efeito túnel", em vez dos dois eletrodos que habitualmente possuem esses aparelhos, fora retificado da seguinte forma: o Cavalo de Tróia substituiu um dos eletrodos pela  mostra a investigar (o sudário), e o segundo por uma ponta afiada como uma agulha. Por último, trocou-se o revestimento isolante rígido por outro não rígido. Neste caso, o vazio. Deste modo foi possível passar a ponta pelos contornos da superfície da  mostra. (N. do M)
Enquanto a ponta varria o lençol, um mecanismo eletrônico de realimentação foi medindo a corrente de túnel, mantendo o esporão a uma distância constante das nuvens atômicas da superfície. Esse movimento da ponta foi lido e armazenado pelo Papai Noel, aparecendo,
simultaneamente, numa tela diretamente ligado ao computador central. Assim se obteve uma imagem tridimensional da nuvem na superfície. Para que possamos fazer uma idéia desta maravilha, um comprimento de dez centímetros na mancha, ou imagem, representava uma distância de dez angstroms na superfície, conseguindo-se aumentos até cem milhões de vezes. Pois bem, assim que se delineou a topografia anatômica da imagem o Papai Noel quase enlouqueceu. A composição das nuvens que flutuavam sobre aquelas zonas do tecido era basicamente diferente das do resto do lençol que não tinha este tipo de manchas douradas. Mas o dado revelador - o que nos transtornou - foi-nos dado pela posição dos eixos ortogonais dos swivels da colônia quântica. Estavam alterados! Algo ou alguém os manipulara, colocando-os num agora que não correspondia ao dos restantes swivels do tecido. Estes, como era lógico e natural, estavam orientados para o momento presente. Aqueles, pelo contrário, conservavam uma inversão axial que nós conhecíamos bem. Não estou autorizado a revelar a tecnologia utilizada para reconhecer este tipo de mudanças nas anteriormente definidas e familiares unidades quânticas elementares a que chamamos swivels. No fundo, isso é o menos. O que é verdade, e transcendental, é que estávamos diante de um acontecimento único. A partir daí, com a ajuda do computador central, fomos ligando as pontas e chegamos à conclusão - tão teórica como provisória, naturalmente - que explicaria com alguma lógica o desaparecimento misterioso do cadáver de Jesus. Os swivels de todas as nuvens atômicas da superfície da imagem estavam estacionados - e continuo a usar palavras excessivamente pueris - num agora que, naquele momento (Abril do ano 30), poderia ser definido como futuro. Mais exatamente, um hipotético Abril do ano 35. Que significava esta descoberta? Só encontramos uma explicação satisfatória: o corpo do Mestre devia ter sido submetido a um processo intenso e infinitesimal de aceleração da sua natural decomposição. Se esta, de acordo com as características do lugar de enterro, da constituição fisiológica do cadáver e de outros parâmetros bem conhecidos dos médicos legistas, tivesse seguido um curso normal e humano, a transformação dos restos mortais em pó teria levado um tempo cronológico variável. Dependendo desses fatores, teria sido necessário cerca de cinco anos (!) para ficar reduzido a cinza. Cinco anos! Exata e casualmente a inclinação que apresentavam os eixos dos swivels. Muito suspeito. Por razões fáceis de imaginar, o mecanismo promotor dessa aceleração da putrefação afetara ligeiramente as superfícies do lençol que estavam em contato direto com o
corpo. O resto, pelo contrário, como disse, não sofreu alteração alguma. Verificado este fato incrível, a pergunta imediata não podia ser outra: Quem, ou o quê, alterara tão drasticamente o curso evolutivo da decomposição do cadáver do Senhor? É evidente que, ao encontrar-se a cripta perfeitamente encerrada, era necessário procurar a possível origem no interior da mesma. Por outro lado, ninguém naquela época podia sonhar com uma tecnologia capaz de mover os ângulos dos swivels. Precisamos de algum tempo para obter resposta a uma pergunta tão decisiva. E, embora a solução não viesse pelos caminhos que desejávamos - os cientistas -, a origem da mesma merece-nos todo o crédito. Hesitei. Deveria contar esta parte da missão? Deixaria para mais tarde? Finalmente, pensei que, apesar do momento próprio para contar extensa e profundamente há -de chegar, me sinto obrigado a dizer alguma coisa. Uns dias mais tarde, nas altas terras da Galiléia, no decurso de uma das conversas inesquecíveis com o Ressuscitado - disse bem: conversas - recebemos uma explicação para o fenômeno que nos intrigava. Pelo que consegui deduzir, não há tecnologia no mundo capaz de medir ou detectar as forças espirituais que foram diretamente responsáveis pela liquidação do corpo do Rabi. E talvez tenha usado as palavras incorretamente. Talvez fosse melhor ter escrito entidades espirituais e não forças. "Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça". Isto foi o que nos disse, e assim me limito a transcrevê-lo: "a aceleração” quase instantânea do processo de putrefação do suporte corporal do Mestre foi assunto alheio ao Filho do Homem. Foi iniciativa dos seres celestiais que presenciaram o ato da ressurreição. Foram eles que - uma vez consumada a ressurreição - removeram as pedras que tapavam a entrada da cripta. “Mas ninguém os viu". É, Até aqui o que, de momento, posso dizer. Isto é por sua vez, mudou o nosso conceito da Ressurreição propriamente dita. Adiantei-o timidamente em páginas anteriores. Mas como resumi-lo com clareza? Os cristãos, que acreditam na Ressurreição, identificam-na e associam-na com o sepulcro vazio e a ausência do cadáver de Jesus. Têm razão, mas só em parte. Por simples dedução, depois da nossa descoberta no módulo, era difícil acreditarmos que um fenômeno tão singular pudesse ficar circunscrito à simples - ainda que quase mágica - dissolução no tempo de uma matéria orgânica. Mesmo para nós, pobres ignorantes era demasiado grosseiro e prosaico. Tinha de haver mais alguma coisa. Algo de sublime de ordem sobrenatural, de acordo com o poder e a personalidade do Enterrado. Logicamente, também não o pudemos medir
com o nosso instrumental. Não existe ainda ciência humana que se atreva a isso. Foi o próprio Cristo quem nos insinuou o sucedido. E mais uma vez comprovamos como a intuição raramente se engana. Oxalá  nos deixássemos guiar por ela com mais freqüência. A RESSURREIÇÂO - com maiúsculas - do Filho do Homem fora algo anterior e independente do fato físico da aceleração do tempo cronológico. Em outras palavras: quando essas entidades adimensionais - encarregados da ressurreição de todos os mortais - levaram a cabo o seu trabalho de dissolver em décimas ou centésimas de segundo os sagrados restos mortais do Galileu este, por um poder que escapa à nossa mente, já tinha regressado à Vida. A verdadeira Vida: a de ordem espiritual. Mas faltam-me os conceitos, e as palavras tornam-se insuficientes. Será  mais prudente deixar as coisas como estão. A Ressurreição, definitivamente, deve ser vista em duas fases. A primeira e mais importante: a auto-ressurreição de Jesus de Nazaré para uma ordem mais complexa que a da densa matéria corporal. Uma ordem à qual - segundo as suas palavras - todos nós somos chamados depois do trânsito da morte. A segunda: a aceleração física da putrefação do cadáver. Este último passo não teve praticamente nada a ver com o primeiro, como me referi. Foi uma delicadeza ou um sentimento de respeito dos súditos celestes do Criador que não queriam ver o corpo que servira para a encarnação do seu chefe degradar-se sob os efeitos da decomposição natural. Pensando bem, acho que foi o mais acertado. Não quero nem pensar o que teria acontecido com os ossos do Mestre se chegassem a cair nas mãos dos seus fiéis seguidores. E para encerrar estes assuntos de índole mais ou menos científica, quero que conste uma coisa que pode ser esclarecedora e comprovatória de tudo o que afirmei até agora, muito especialmente da nossa descoberta na superfície das manchas douradas. Sei que o dia em que a ciência puser um microscópio de efeito túnel sobre o Sudário de Turim, as diferenças nas estruturas e na distribuição das nuvens atômicas que flutuam diretamente sobre a imagem, em relação ao resto do linho, abrirão um novo caminho nas investigações e, de passagem, demonstrarão que não somos um sonho. Ao conhecer estas coisas, o meu espírito fortaleceu-se. E embora a minha mente cartesiana - como a de qualquer cientista - continue a não querer aceitar o que não for previamente provado em laboratório, a intuição veio novamente sustentar a minha fé, cambaleante e anêmica. Naquele anoitecer de segunda-feira, dia 10 de Abril do ano 30, concluídos os trabalhos, Eliseu e eu, emocionados, caímos de joelhos perante a
majestosa imagem do sudário de linho: sem dúvida, e emendando Einstein, a sombra de Deus. Em silêncio, pedimos luz e força para prosseguirmos a dura mas fascinante missão que nos fora cometida. O nosso pedido deve ter sido ouvido, a julgar pelo que nos foi dado viver.   Depois de beijarmos o lençol, dispusemo-nos a descansar. Naquele gesto, o meu irmão percebeu também o cheiro familiar que eu captara no interior do sepulcro, quando me inclinei sobre a mortalha. E soube identificá-lo logo. Era o mesmo que se registrava na nave de cada vez que se produzia uma inversão de massa, com a conseqüente manipulação dos eixos dos swivels. Um cheiro de difícil definição que talvez seja remotamente parecido com o incenso queimado. No dia seguinte, recuperado o microfone e analisados os panos mortuários, começaria uma nova etapa da operação. Na realidade, um antigo, e até àquele momento fracassado, projeto: investigar o fugidio corpo glorioso do Galileu.
DE 11 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA, A 14 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA
Daqueles dias - de terça a sexta - guardo uma lembrança doce e serena. Nas nossas agitadas aventuras, tanto nas que eu vivera até àquele momento como nas que o destino nos reservava a Eliseu e a mim, os dias passados na aldeia de Betânia foram os únicos de alguma maneira repousantes. E fizemos bem ao desfrutar deles e recuperar as forças. O que nos esperava a partir de segunda-feira, dia 17 desse mesmo mês de Abril, iria ser tão esgotante quanto imprevisto. Mas vamos lentamente, como é meu costume. Ajustando-nos ao estabelecido no plano do Cavalo de Tróia, assim que clareou naquela manhã de terça-feira, 11 de Abril, coloquei-me a caminho. As quatro ou cinco horas de sono não tinham sido suficientes, mas considerei-me satisfeito com o pequenoalmoço à americana que, solícito como uma mãe, o meu irmão teve a bondade de me preparar. O café e as batatas - naquele tempo desconhecidos em Israel - foram uma bênção. Com os panos mortuários prudentemente ocultos sob a minha túnica, dirigi-me para a quebrada onde tinham sido atirados pelo servo do Sinédrio. As condições meteorológicas não variaram naquelas horas. As rajadas do vento leste continuavam a soprar incessantemente, dobrando as colunas de fumo dos animais sacrificados no Templo, escurecendo e empestando a cidade com um cheiro desagradável a carne queimada.   Nessa ocasião - em plena luz do dia - a descida pela encosta ocidental
do monte das Oliveiras e o cruzamento do desfiladeiro do Cedron, não tiveram o perigo da minha primeira incursão, na madrugada de domingo. Contornei a cidade pela muralha norte e, quando me encontrava relativamente próximo do pequeno bosque de alfarrobeiras - cujas flores de um vermelho-vivo me serviram de guia e referência -, senti uma sensação especial. Voltei-me, mas nada vi de suspeito. Encolhendo os ombros, continuei a caminhar. No entanto, aquele estranho desassossego - como se alguém me seguisse - não desapareceu. Receoso de que se tratasse de algum soldado do Sinédrio ou, até mesmo, um agente do procurador, cheguei a esconder-me entre as moitas, decidido a tirar dúvidas. Não o consegui: Talvez me tornara excessivamente receoso, tranqüilizei-me. Dias depois comprovaríamos com espanto que a suposta perseguição fora real, o que nos forçou até a antecipar a decolagem do berço, rumo à alta Galiléia. Além disso, continuei eu com os meus raciocínios enquanto deslizava em silêncio para o fundo da escarpa, que interesse poderia ter para Pilatos ou para Caifás e sua gente seguir um "inocente e infeliz" comerciante grego?   O incidente desapareceu rapidamente da minha memória. Coloquei os panos no lugar onde os encontrara, procurando envolvê-los como a um embrulho tal como tinham sido colocados pelo criado do sumo sacerdote. Tudo devia manter uma aparência de normalidade. Como se ninguém tivesse tocado neles desde aquela manhã de domingo. Assim o exigia o nosso código. Antes de abandonar aquele lugar, enquanto contemplava a mortalha, não pude evitar pensamentos tentadores que, suponho, não teriam agradado a Curtiss. Era uma lástima que aquele tesouro - carregado da evidência física e constatável do além - se perdesse ou fosse destruído. Ergui os olhos para o límpido céu azul, vendo com inquietação o vôo planado de algumas aves de rapina. Talvez corvídeos. Era verossímil que elas chegassem a descobrir a trouxa de panos e fossem atraídas pelo forte cheiro de ácido sulfídrico, outro dos sinais da decomposição cadavérica do corpo do Senhor. Nesse caso, lamentável, aquela relíquia valiosa poderia ficar seriamente danificada. E se eu não fizesse caso das normas do Cavalo de Tróia? Que aconteceria se, em vez de os ignorar, entregasse os panos aos amigos mais íntimos do Rabi? Pus-me de cócoras diante da mortalha e, durante alguns minutos,
enquanto acariciava o tecido, lutei comigo mesmo. No fundo, era tão simples. Bastava passar pela casa de Marcos ou de José de Arimatéia e deixá-la nas mãos de qualquer um dos dois. Mais ainda, continuei a pensar, dominado por um crescente entusiasmo, este seria um presente esplêndido para a família do Ressuscitado. O meu objetivo seguinte, como disse, era Betânia. A fazenda de Lázaro. Porque não aproveitar semelhante oportunidade e evitar o risco de o sudário se perder? Peguei nele outra vez e levantei-me. Mas, no derradeiro instante, o meu sentido de responsabilidade impôs-se. Mesmo correndo o risco de se estragar ou, o que era muito pior, de se perder para sempre, eu não tinha o direito de interferir na flecha da História. E, com grande pesar, coloquei os panos entre a ramagem, procurando - isso sim - que o forte vento não os arrastasse. Pus algumas pedras à volta, escondendo-os debaixo de uns gamões de cheiro tão nauseabundo que logo o do linho desapareceu totalmente.   E com o Sol subindo sobre os cerros de Moab, desandei o caminho e fui para o alto do monte das Oliveiras. A minha passagem pelo lado sul da clareira onde estava a nave foi aproveitada pelo meu companheiro de aventuras e desventuras, para me recordar que iria dedicar aquele dia e os seguintes a um estudo mais profundo dos dados recolhidos nas investigações sobre o sudário, e que eu não me deveria esquecer, embora ele se encarregasse de avivar a minha memória, do meu regresso ao módulo, previsto para sexta-feira,  dia 14. Os preparativos para a última etapa da exploração eram sumamente complexos. - A propósito - anunciou Eliseu, quando ia dar por terminada a ligação -, o Papai Noel e eu descobrimos outra espantosa coincidência ou acaso (como você costuma chamar a essas coisas), relacionado com o nove. Eliseu sabia da minha ardente curiosidade e, divertido, deixou-me com água na boca. Não consentiu em adiantar-me nada do que ele e o computador central tinham descoberto. (Depois me confessaria que a descoberta fora, única e exclusivamente, obra do Papai Noel). Aquela deixa de Eliseu fez despertar em mim a lembrança do curioso assunto dos nove e da vida de Jesus de Nazaré, e estes pensamentos e elucubrações encurtaram a minha descida pela encosta oriental. Não conseguia compreender o porquê daquela coincidência. Ou não seria uma coincidência? Um nove marcava o nascimento do Rabi. Outro nove, a sua própria existência e, um terceiro nove, a sua morte,
ressurreição e ascensão ou desaparecimento da Terra: 999. Que pena eu não ser um perito na Cabala ou em numerologia para decifrar aquele enigma!   A única coisa que eu então sabia era que o 999 era um número oposto ou contrário ao apocalíptico 666, de S. João, que era múltiplo de três - outro símbolo esotérico da Trindade – e que, segundo os meus poucos conhecimentos o nove foi considerado pelos iniciados como o número da Humanidade ou do Homem. Seria verdade o que o antigo provérbio diz: "Deus goza do número ímpar e tudo o que é trino é perfeito?" A súbita visão da branquíssima aldeia de Betânia devolveu-me à realidade. E o meu coração, tal como os meus passos, viu-se alegremente acelerado. Nem Marta nem Maria sabiam do meu regresso e isso tornava ainda mais excitante a fase seguinte da minha observação.   O meu regresso foi acolhido com surpresa. Na minha despedida eu dera uma explicação a Marta, a senhora, dizendo que tinha de fazer uma viagem inadiável. E assim seria de fato. Mas, perante a impossibilidade de lhe explicar a natureza daquela viagem, agora, ao ver de novo as irmãs, não tive outro remédio senão pedir desculpa, alegando uma mudança repentina de planos. Este motivo foi perfeitamente compreendido e elogiado pela nova chefe da família do Ressuscitado. (Lázaro, tivera de fugir precipitadamente para leste - para Filadélfia -, por causa das ameaças de morte de Caifás) O motivo foi apenas a prisão e execução do Mestre. Marta e Maria - em especial a primeira - passaram da surpresa a um vivo contentamento. Os seus corações, sobretudo a partir dos fatos ocorridos na fazenda durante a manhã de domingo, estavam transbordantes de esperança. David Zebedeu também se congratulou pela minha chegada, mostrando-se muito interessado pelos últimos acontecimentos. É claro que os ali reunidos estavam a par das aparições de Jesus nas casas de José de Arimatéia, de Flávio, da família Marcos e da que se dera no caminho de Jerusalém para Emaús. A feliz circunstância de me encontrar presente na última manifestação do Rabi foi-me muito útil. Nos dias seguintes ao da minha chegada à fazenda de Lázaro - cumprindo o plano do Cavalo de Tróia - eu deveria levar a cabo uma intensa investigação em torno da juventude e dos anos não menos obscuros que precederam a vida pública do Filho do Homem. O fato providencial de Maria, a mãe de Jesus, estar naquela casa, com vários irmãos carnais do Rabi, era uma coisa que eu tinha
necessariamente de aproveitar. Por outro lado, as pesquisas e indagações iam ser decisivas - como se ver face à última etapa do nosso trabalho na Galiléia. O meu seguimento constante do Nazareno nas suas últimas horas foi visto pela família e pelos amigos de Cristo como uma prova definitiva do meu amor e dedicação ao Condenado. E os seus corações, de certo modo agradecidos, abriram-se de par em par para as muitas, e por vezes delicadas perguntas que eu fazia. Tiago, sobretudo, que adorava o irmão mais velho, e com o qual partilhara penas e alegrias, foi uma fonte de informação a que nunca serei capaz de dar o devido valor. Mas tentarei não perder o fio da cronologia. Para dizer a verdade, quando pus os pés na casa do amigo ressuscitado de Jesus de Nazaré, as opiniões sobre o regresso à vida do Galileu não eram de todo uniformes. Em casa estavam, juntamente com as donas, David Zebedeu e Salom‚, sua mãe; Maria e o seu segundo filho, Tiago e mais quatro irmãos do Rabi:   José, Simão, Jude, ou Judas, e a mais nova de Nazaré, Rute.   Por antigos e complexos motivos que explicarei no momento oportuno, parte da família terrena de Jesus não partilhava as suas idéias e os seus ensinamentos. Daí que, ao ser desonrado publicamente se reavivassem de novo os velhos receios acerca das ânsias de grandeza do primogênito de Maria, pondo uns contra outros. Uma situação, enfim,   tão vulgar quanto humana na vida das pessoas. A segunda aparição do Ressuscitado em Betânia - a quase todos os ocupantes da casa naquela altura - retificara em grande parte as várias posições. Apesar de tudo, as dúvidas continuavam a pairar no espírito de alguns dos irmãos de Jesus. Não negavam a realidade da estranha presença, mas, repletos das ancestrais crenças judaicas sobre a morte, diziam que aquilo que tinham visto talvez fosse uma refa: uma espécie de sombra que - de acordo com essas idéias - era a única coisa que se mantinha depois da morte, e a qual até se podia invocar, tal qual como se diz no Livro I de Samuel (XXVIII). (Este texto narra como, a pedido do rei Saul, a bruxa de Endor conseguiu tornar visível a sombra de Samuel) Para os hebreus daquele tempo, as refaim ou sombras dos mortos viviam no seol ou região das trevas e das sombras da morte, como cita Job. No Antigo Testamento - como ‚ o caso de Job, XIV, 13 - faz-se uma alusão direta ao seol, especificando que está tão longe da terra dos homens que nem sequer a cólera de Javé chega até lá. A morte - e isto é importante para entender a postura daqueles homens - era o fim. Com ela tudo se acabava. É o que se repete mais de cem vezes nos
livros sagrados do Antigo Testamento. Quando o anjo da morte citado no Talmude depositava as gotas do fel amargo - primeiro sinal, sem dúvida, da putrefação - entre os lábios do defunto, arrebatava-lhe a alma e desaparecia. Era o último sinal: a ruach ou alma ou sopro da vida subia – como diz o Eclesiastes (III) - aos céus. E a respiração cessava. A partir da presença do anjo da morte, começava a decomposição do corpo ou bachar, transformando-se em pó.
* Como cita Rops nos seus estudos, certas lendas rabínicas defendem que esse abismo metafísico - o seol - poderia ser também uma realidade física e tangível, ao qual se teria acesso removendo uma grande rocha que se encontra no centro do Sancta Santorum, no Templo. Para outros, pelo contrário, as refaim do seol não são nada, não fazem nada, não sabem nada e não podem nada. O conceito mada seria o contrário de existência. No livro de Isalas XXXVIII, 18), o próprio profeta chega a gritar a Javé: "O seol não te pode louvar" é preciso ter em conta que para um judeu medianamente piedoso, deixar de louvar o Senhor era quase como ser reduzido a nada. Por conseguinte, o próprio seol não podia ser considerado como um lugar de prêmio ou de castigo. O Eclesiastes (XLI, 18) o diz claramente: "No seol não recriminarão a tua vida". Naturalmente, nem todos partilhavam desta crença no seol. Outros rabis falaram do lugar destinado a cada justo, mencionado também no Salmo XLI. Se a vida do defunto tivesse decorrido de acordo com a Lei, o anjo da morte gritava: "Preparai um lugar para este justo". (N. do M) * Ainda que possa parecer incrível, as crenças dos hebreus acerca da morte eram muito pobres - apesar de tão ricas noutros aspectos materiais e espirituais. Quase asfixiantes para um espírito medianamente sensível. Quanto à ressurreição, como acho que já referi noutra ocasião, a Lei não se pronunciava com clareza. Deixava livre escolha a cada seita. Cada qual podia acreditar nela ou não. Assim, por exemplo, a casta dos Saduceus negava-se categoricamente a aceitar a ressurreição dos corpos. Não está no Pentateuco, diziam eles nas suas acesas e contínuas polêmicas com os seus mais diretos adversários: os Fariseus. Os Samaritanos apoiavam este argumento. Quanto ao povo não preferia, como sempre, consolar-se com a poética possibilidade de um além, mais complacente que a sua dura existência. Alguns mestres ou rabis tinham a preocupação de pregar esta esperança. Gamaliel, entre outros, edificou a sua crença na ressurreição e no prêmio ou castigo divinos, com base em citações soltas dos profetas (Isaías, XXVI, 19, ou Ezequiel, XXXVIII), do Deuteronômio
(XXXI, 16) ou em aforismos, como aquele que diz: "E depois da minha pele se ter desprendido da minha carne, na minha carne contemplarei a Deus". (Job, XIX, 26). Em suma esta confusão nada contribuiu para assentar as coisas. O cepticismo de alguns membros da família de Nazaré - tal como acontecera com os discípulos - era tão rígido em relação à ressurreição de Jesus que até durante o sábado discutiram a necessidade de honrar a memória do Crucificado com um mínimo de decência e dignidade. Falou-se da celebração no primeiro dia da semana (domingo) do chamado pão de luto, citado por Oséias (IX, 4) e Ezequiel (XXIV, 17) e que era uma espécie de refeição fúnebre com que a família do morto obsequiava parentes e amigos. Maria, mãe de Jesus, manteve-se à margem. Não só porque não estivesse de acordo (ela acreditava na ressurreição), mas pelo fato de, como mulher, não ter voto na matéria em decisões deste tipo. A princípio, devido ao enterro precipitado e pouco regular do Mestre, os mais exigentes no cumprimento da Lei hesitaram sobre se deviam deixar crescer a barba e o cabelo desordenadamente, rasgar as vestes e deitar cinza na cabeça, tal como manda o Talmude para casos de morte. Finalmente levaram-no à prática. E as polêmicas foram tão ácidas como intermináveis. Era lógico que Marta, sua irmã Maria, a mãe de Jesus, Salomé e o filho David acreditavam que o Rabi tinha regressado do mundo dos mortos. Porquê submeterem-se então às exigências do luto oficial? Do ponto de vista estritamente exegético, aceitando de momento a realidade de uma ressurreição, os Judeus sentiam-se perdidos. Deveriam celebrar-se rituais fúnebres por uma pessoa ressuscitada? Oito horas depois do falecimento, uma vez lavado e ungido com perfumes, era costume levar o cadáver do lugar onde morrera - em geral em padiola de féretro aberto para a sepultura. Concluída a cerimônia da trasladação, o costume obrigava os familiares a reunirem-se para o pão de luto. Podia beber-se, mas com moderação. Seguidamente, os que não tinham podido assistir às exéquias, faziam as habituais visitas de condolências. O tratado Baba bathra (Talmude) dizia que, neste caso, deviam levantar-se sete vezes dos seus assentos, saudando a família outras tantas vezes. (N. do M)
O mais provável seria, se não se tivessem acontecido as aparições em Betânia - em especial a segunda - os céticos (para os chamar de uma forma caridosa) terem avançado com os preceitos estipulados pela Lei para estes casos. Isto é, um luto de trinta dias; destes, nos três primeiros estava
proibido o trabalho, não se devendo sequer responder a uma saudação. Também não podiam tomar banho nem fazer a barba nem levar filatérias para a oração. E, se fossem rigorosos no cumprimento das normas, vestiriam roupa velha e suja. (Dava-se o caso de viúvas fiéis que, no momento da morte do esposo, colocavam um saq ou tanga de pele de camelo em sinal de penitência e com ele viviam o resto da vida)   Graças a Deus, o Mestre ressuscitou. Mas, como estávamos vendo, até depois de morto foi motivo de escândalo e contradição. E, o que era mais doloroso e incompreensível: no seio da sua própria família. Quando recebi uma informação completa sobre estes assuntos, não pude deixar de sentir uma sensação de repulsa em relação aos evangelistas pelo muito que omitiram para crentes e não crentes. O meu coração, no entanto, recuperou a sua força ao ouvir os relatos das aparições dos lábios das mesmíssimas testemunhas. Nessa manhã, a meu pedido, Tiago levou-me ao lugar onde assegurava ter visto o seu irmão ressuscitado. Dirigimo-nos para a parte de trás da casa, para o frondoso horto com cerca de quatrocentos metros de comprimento e, ao chegar diante da rocha onde estava o sepulcro familiar, o galileu apontou com a mão esquerda para o ponto exato onde - segundo ele – se formara a figura de Jesus.   Deixei-o falar à vontade: - Seria pela hora sexta [meio-dia]. Estávamos todos muito nervosos pelas notícias da possível ressurreição do meu irmão. Os rumores circulavam sem cessar. Eu, na verdade, tinha as minhas dúvidas. Fui testemunha dos seus prodígios e sinais e aceitava os seus ensinamentos. Mas, daí a considerá-lo o Messias e a acreditar no seu regresso à vida.   Olhou para mim à procura da minha compreensão. - Suponho que era lógico. - continuou, afastando os olhos acastanhados para a pedra que tapava a entrada do sepulcro. - Agora sei que estava enganado. - Que foi que aconteceu? - interrompi, ao ver que ele estava prestes a cair num imperscrutável silêncio.   - Sim, claro. A aparição - disse, voltando a si. - Olha, quando os ânimos começaram a exaltar-se, decidi sair de casa. E vim para cá. Não sei porquê. Naqueles momentos, enquanto meditava sobre estas coisas, chegou Maria, a de Magdala. Só soube isto depois. E, ainda com mais excitação, ela começou a contar a Marta e à irmã e a toda a família o que vivera e presenciara na plantação de José. Pelo visto, quando Madalena acabou, alguns dos meus irmãos saíram à minha procura. Jude chegou a ir até Betfagé. Mas ninguém pensou em olhar para esta parte do jardim. Foi
então que aconteceu.
* As filatérias - tradução grega dos tefilin - eram e são uns estojos negros e quadrados, de pequena dimensão, fabricados com pele de animais puros. Neles se metiam passagens do Êxodo e do Deuteronômio, escritas em pergaminho. O estojo era amarrado à palma da mão com correias igualmente negras. (N. do M)
Aquele homem feito - no dia dois desse mesmo mês de Abril completara trinta e dois anos - estremeceu. Apesar da sua corpulência, quase tão notável como a de Jesus, percebi-me do seu esforço para conter as lágrimas. - Foi como uma sensação. - e tremeu, cruzando os seus braços peludos. - É tão difícil de explicar! Tu me compreendes, não é verdade? Respondi que sim. Tirei a minha capa e o cobri com ela. O vento, imperativo, fustigava, agitando as árvores com rajadas sibilantes e frias. Sugeri que fôssemos para casa, mas ele negou-se. - Foi como se alguém me tocasse no ombro. Voltou a tremer intensamente. Mas eu não soube a que atribuir esses estremecimentos. Seria pelas condições atmosféricas desagradáveis ou pelas suas eletrizantes recordações? - Dei meia volta e vi-o. - O quê? - Fez-me lembrar uma nuvem. Ou talvez fumo. Não sei. Era uma massa brumosa que, partindo da cabeça, foi modelando uma figura. Espantado, não tive forças para fugir. E, pouco a pouco, a nuvem converteu-se num homem. O nervosismo começou a travar-lhe a língua. Tentei ajudá-lo.   - Tens certeza de que era fumo? Os finos lábios de Tiago abriram-se. Mas não conseguiu responder. Concordou sem dizer palavra e, depois de encher os pulmões com o vento de leste, gaguejou: - Fumo. Sim. Imóveis diante da pedra da cripta funerária ficamos os dois em silêncio. Tiago tentou compor os negros, lisos e longos cabelos, onde brilhavam muitos brancos, e, dominando-se, continuou:   - A figura então, falou-me. E disse: "Tiago, chamo-te para o serviço do reino. Junta-te seriamente aos teus irmãos e segue-me". - Reconheceste-o?
Abanou a cabeça negativamente. E eu não quis acossá-lo com novas perguntas. - Mentiria se dissesse que sim. Era impossível. Aquilo nada tinha a ver com o Jesus que eu conheci em vida. Era outra coisa. Uma névoa? Fumo? Uma nuvem? Só a voz. Pensei adivinhar o que ele estava para me dizer. - Ao ouvir o meu nome, Tiago, então soube que era Ele. A voz. Era significativo que as pretensas testemunhas das aparições estivessem de acordo na mesma coisa. Quando se deu aquela terceira presença, Tiago não podia ter ainda conhecimento de uma coisa tão sutil. Maria Madalena chegou à fazenda quando o irmão de Jesus tinha saído para o horto. No entanto, coincidia com ela, com as outras mulheres, com os pastores de Emaús, com Simão Pedro, com os discípulos e comigo próprio. Demasiada coincidência para suspeitar de uma maquinação. - Era a voz dele, Jasão! A de sempre! - E que fizeste? - Aturdido e morto de medo pensei em prostrar-me a seus pés. Apontou para a erva sobre a qual tinha aparecido o ser de névoa. - Meu pai e meu irmão! Foi a única coisa que fui capaz de dizer. Mas, quando eu me ia a deitar para o chão, Jesus pediu-me que continuasse de pé.   Desta vez, as lágrimas -  incontroláveis - bloquearamlhe a garganta. Foi ocultar o seu rosto contra a pedra sepulcral e, durante um bocado, gemeu e desabafou como uma criança. O profundo sentimento daquele galileu - mistura talvez de alegria, perturbação e remorso pelas suas velhas dúvidas - acabou por invadir também a minha alma, enchendoa de uma terna compaixão. - Então passeamos - acrescentou, uma vez recomposto. - Para onde? - Não me lembro com exatidão. Talvez em direção à casa. Das nove presenças que eu conseguira contabilizar no domingo, três apresentavam aquela variante: o passeio com a testemunha. (Primeiro Tiago pelo horto. Depois os pastores, durante mais de cinco quilômetros, e, finalmente, Simão Pedro, no pátio dos Marcos) Muito interessante. sob todos os aspectos.   - Falamos durante alguns momentos sobre as coisas que tinham acontecido e as que. Tiago interrompeu as suas explicações. Olhou-me de soslaio e, dando um salto na narração, continuou: -  Hão-de vir. Era claro que acabava de ocultar alguma coisa. Insisti mas foi inútil.
A única coisa que consegui que me dissesse foi que o Mestre o tinha informado sobre certos fatos que iriam acontecer no futuro e dos quais não devia falar, por hora. Resignei-me em parte. A que acontecimentos teria se referido o ser de névoa? A morte do próprio Tiago, ocorrida catorze anos mais tarde (no ano 44 da nossa Era)? Talvez à necessidade de o seu irmão de sangue escrever o seu próprio testemunho? (Anos mais tarde apareceria um evangelho que a Igreja Católica classificaria entre os apócrifos e que é conhecido como Proto-Evangelho de S. Tiago 1. Ter-lhe-ia anunciado os acontecimentos da Galiléia ou falar-lhe-ia do seu ministério ativo como embaixador do reino e do qual quase não há  registro nos textos canônicos? - Passado um bocado - retomou a sua narração - despediu-se, dizendo: "Adeus, Tiago, até que vos saúde a todos juntos". E deixei de vêlo. Havia dois pontos que me interessavam: quanto tempo caminharam? Como desapareceu? À primeira questão, o segundo filho da família de Nazaré respondeu com precisão: - O tempo que se gasta num passeio calmo de um estádio e meio, aproximadamente.
* O Proto-Evangelho de S. Tiago, atribuído a Tiago Menor - assim era chamado o irmão de Jesus para o distinguirem do outro Tiago, o Zebedeu - é um dos apócrifos mais antigos. O texto atual foi fixado por Tischendorf, utilizando para tal cerca de vinte textos diferentes. Basicamente, conta a vida de Maria até ao nascimento de Cristo, as maravilhas que o acompanharam e a matança dos inocentes. Possivelmente, data dos séculos II e IV e, francamente, não é muito crível. (N. do M)
Os Judeus recorriam a estas comparações. Deduzi que tinham caminhado cerca de duzentos e oitenta metros; isto é, de três a quatro minutos. O outro assunto foi mais complexo. - De repente deixei de o vê-lo. Não houve maneira de o fazer sair disto. - E fui correndo para casa, aos gritos: Acabo de ver Jesus! Falei com Ele! Estivemos conversando! Não morreu! Ressuscitou!. Jude, o meu outro irmão voltou de Betfagé e acreditou nas minhas palavras.   - E os outros?
Encolheu os ombros. - A princípio, duvidaram. Eu também teria duvidado. Agora, como tu viste, estão convencidos. Agachei-me e examinei a erva. Naquele lugar, segundo Tiago, pusera os seus pés o Ressuscitado. Dali lhe falara. Mas não encontrei qualquer marca que revelasse que a erva, por exemplo, de um palmo de altura, tivesse suportado um peso de oitenta quilos. Estava direita e brilhante.   Era evidente que ao não manipular conceitos vulgares e correntes, tudo era possível. Até mesmo que o ser de fumo não pesasse nada. No entanto, continuei, persistente, deveria ter dobrado aqueles caules tão frágeis. - Tens certeza de que foi aqui? O homem ouviu sem compreender. Desviou os olhos para a pedra do sepulcro e, como se buscasse referências, colocou-se no lugar onde se encontrava naquele preciso instante. Por fim, afirmou categoricamente: - Absoluta! Era desconcertante. Os lugares por onde tínhamos caminhado apresentavam uma erva logicamente calcada. O espesso tapete vegetal do horto - pisado e levantado - mostrava claramente os nossos trajetos. No círculo ocupado pelo Mestre, pelo contrário, não vi uma só folhinha pisada. De repente, ao reparar na espada de ferro, sem bainha, que Tiago trazia sob o cinto, lembrei-me do estranho acontecimento na casa dos Marcos. A minha pergunta deixou-o perplexo. Fechou os olhos, como se estivesse reconstituindo a cena, e, acariciando a barba farta e grisalha, forneceu-me um dado importante: - Agora que o dizes‚ é verdade que senti algo estranho na barriga. Era como se me puxassem para Ele. Era suficiente. O singular fenômeno da atração dos objetos de ferro parecia repetir-se. E tive isso bem presente, sobretudo quando tive de utilizar a vara de Moisés. De caminho para casa Tiago fez um comentário que depois, ao conversar com David Zebedeu, seria plenamente ratificado.   - Até esse momento - manifestou com satisfação - Jesus tinha sido visto por mulheres nervosas e pouco credíveis. Mas, como sentenciou David, agora é diferente: Também foi visto por um homem valente.   Compreendi o orgulho do irmão do Nazareno - realmente era verdade: Tiago era um indivíduo valente - e a sua atitude para com as mulheres depreciativa. Essa era a triste realidade da sociedade judaica de
então. Enquanto nos reuníamos com o resto da família, decidido a ouvir a segunda das aparições, censurei-me por não ter dado maior credibilidade aos escritos de Paulo. O Cavalo de Tróia, quando estudou todas as aparições de Cristo, fixou-se também na citação do apóstolo de Tarso (I Coríntios, 15, 5-9). Diz-se nesta passagem que Jesus se mostrou a Tiago. Mas a ordem em que apresenta estas aparições - primeiro a Cléfas, depois aos doze e a mais de quinhentos irmãos e, por último, a Tiago - não nos pareceu correta, pelo que rejeitamos aquelas pistas. Enfim, não tinha solução. De qualquer forma, agora que o refiro, parece que os cristãos não perceberam outro pormenor muito curioso. Paulo cita esta aparição a Tiago - supõe-se que seja o irmão de Jesus -, mas os evangelistas oficiais não. Porquê? Será  que  não a consideraram importante? Ou será  que havia um ressentimento oculto e uma rejeição da figura do irmão do Rabi, talvez por não ter revelado a misteriosa mensagem do Ressuscitado? É claro que depois do que vira e ouvira, por que motivo deveria eu estranhar este novo silêncio nos Evangelhos canônicos? Coisas mais graves me reservava o destino, que também não foram registradas. Faltava muito pouco para o almoço e, na companhia de Tiago, senteime à espaçosa mesa que ocupava o centro da grande sala retangular, onde tinha entrado outras vezes. Num canto, como sempre, estalavam alguns troncos que alimentavam a lareira. As mulheres foram servindo o primeiro prato: uma espécie de sêmola ou purê quente, feita à base de grossos grãos de trigo moído. (Lembrou-me de certo modo, embora não pelo sabor, a polenta, dos Italianos) Quando nós, as vinte e tantas pessoas, já tínhamos à nossa frente a dose respectiva, Tiago - o mais velho dos homens presentes - pôsse de pé. Todos o imitamos. E, com palavras simples, agradeceu os alimentos que íamos comer:   - Senhor, dai-nos o necessário. Quando nos sentamos, o alvoroço, o sorver tumultuosamente a sopa e as exclamações formavam um todo. Notei a falta de Marta. Mas, poucos minutos depois, apareceu na sala com um cesto de vime cuidadosamente tapado com um pano. Olhamos uns para os outros enquanto ela procurava assento, e a senhora baixou os olhos, ruborizando-se. Naquele momento - sou mesmo estúpido! - não percebi nem a razão da sua perturbação nem porque mudara de roupa e de penteado. A
grosseira túnica castanha que ela trazia quando me recebera de manhã tinha desaparecido. Em vez disso vestia um lindo chaluk ou túnica de seda bordada, de um verde-azeitona deliciosamente brilhante. Naquele tempo, a seda era muito pouco utilizada. Chegava com as remotas caravanas do Oriente e era caríssima. Os ombros estavam cobertos com uma espécie de xale de lã branca, atado com cordões entrançados da mesma cor. Também o cabelo tinha sido mudado. O lenço escuro que trazia na cabeça na altura em que cheguei tinha sido suspeitamente esquecido. E a senhora apresentou-se com um novo penteado: o cabelo preto, com o risco ao meio, caía sobre o peito, com as pontas dobradas para fora, com dois estudados caracóis. O seu rosto largo ficava assim enquadrado e estilizado. Uma quase imperceptível sombra de malaquita nas pálpebras completava a maquiagem, dando maior profundidade aos seus olhos de azeviche. Estava realmente bonita. É claro que a súbita e aparentemente inexplicável transfiguração de Marta não passou despercebida às mulheres, que não deixaram de cochichar e fazer insinuações matreiras. Eu, insisto, fui o último a saber. Por uns momentos, enquanto me explicavam os pormenores da segunda aparição, pedi que fosse David Zebedeu a contar. O irmão dos filhos do trovão aceitou com prazer. Com a seriedade que o caracterizava, resumiu assim o sucedido: - Aconteceu pouco depois de chegarmos a casa. Como recordarás, depois de enviar os mensageiros com a notícia da ressurreição do Mestre, passei pela mansão de José para trazer a minha mãe, Salomé e dirigimonos para Betânia. Não passaria muito da hora nona [três da tarde], quando, aqui mesmo, quase como agora, nos encontrávamos revendo os acontecimentos que todos conheceis e, de repente, alguém gritou. Os presentes, apesar de ele ter contado aquilo várias vezes, detiveram até o movimento das colheres de madeira. Fez-se um silêncio eloqüente e pesado. - A porta, essa que vês aí, estava aberta, como neste momento,   e, ao ouvir os gritos, os olhares dirigiram-se para onde apontavam os dedos. Era um homem. Olhava para nós de fora da sala. Talvez a um passo do umbral. A sua figura, alta e atlética, recortava-se contra a   claridade do pátio. - Um momento - interrompi-o -, tens certeza que estava fora da sala? O Zebedeu moveu a cabeça afirmativamente. - Nem dentro nem sob a ombreira da porta. Fora! E todos pudemos ouvi-lo. Levantou o braço esquerdo e saudou-nos: "A paz seja convosco".
Ficamos mudos. Mas Ele continuou: "Saudações para os que estiveram perto de Mim na carne e na comunhão dos meus irmãos e irmãs no reino dos céus. Como pudestes duvidar? Porque haveis esperado tanto para seguir de todo o coração a luz da verdade? Entrai para a comunhão do Espírito da Verdade no reino do Pai". David calou-se. - Isso foi tudo? A minha pergunta não agradou. Mas Zebedeu, compreensivo, concluiu:   - Quando já estávamos meio recuperados do susto, alguns levantaram-se e correram para o abraçar. Mas ele esfumou-se. Serviram o segundo prato: ovos cozidos com um apetitoso acompanhamento à base de favas cruas, muito tenras, e uns bolbos e raízes do gênero das estáquidas. O almoço animou-se de novo e, entre uma e outra colherada, fui discutindo com David e com as restantes dezenove testemunhas vários pormenores que me interessavam. - Então, se dizeis que alguns dos presentes se levantaram e tentaram abraçá-lo ‚ porque era de carne e osso. Zebedeu, sagaz, recordou-me que não dissera nada disso. E acrescentou: - Era um homem. As suas vestes eram como as nossas. Mas quem pode realmente garantir que tinha sangue e ossos como os nossos? Tiago deve ter lido o meu pensamento. Assim, intervindo na conversa, esclareceu:   - Como sabes, eu também estava presente quando isso aconteceu. E posso garantir-te que aquele corpo não era como o fumo ou a nuvem que te descrevi. - Via-se o pátio através do corpo? Os que estavam à mesa olharam uns para os outros. Todos concordaram que não.   - Alguém o viu formar-se pouco a pouco, como aconteceu com Tiago? As respostas foram igualmente negativas. Quando a descobriram, a figura estava completa; como a de um ser humano, insistiram. - Naturalmente - observei com segundas intenções -, também não o reconheceram. Ao princípio, David e os outros olharam para mim atônitos. Logo a seguir, desataram a rir. Interroguei Zebedeu com o olhar. O que era tão
engraçado? - Querido Jasão - explicou-me David em tom benevolente -, pensas que somos cegos? - Como?. - retorqui admirado. - Então. - É claro que o reconhecemos. Era Ele. Não insisti. David Zebedeu era um excelente observador e homem pouco dado a visões ou fantasias. Além disso, havia mais dezenove testemunhas. Continuei a comer em silêncio, um pouco envergonhado por causa das minhas perguntas, aparentemente infantis. Tudo aquilo era confuso para mim. Porque é que nas primeiras aparições - às mulheres e a Tiago - e nas últimas daquele domingo -, incluindo a que eu vivi - o corpo do Ressuscitado não apresentara o aspecto e a morfologia de um humano normal? Era inútil continuar a procurar uma explicação racional. Na melhor das hipóteses, talvez encontrássemos a resposta nas próximas aparições. Mas isso ainda vinha longe. De repente, lembrei-me das palavras de José de Arimatéia, recomendando que tanto Maria Madalena como as outras testemunhas não tornassem públicas as aparições em casa de Lázaro. Enchendo-me de coragem, interroguei Tiago sobre esse particular. Suponho que muitos dos presentes agradeceram a minha pergunta. Também eles desejavam esclarecer o porquê dessa recomendação. Tiago não cedeu. - Tenho de ser fiel à promessa que fiz ao meu irmão e Senhor. Esta frase encerrou a questão. Marta, oportuna, suavizou a tensão momentânea. Pegou no cesto e, cantarolando qualquer coisa que não entendi muito bem, mas que provocou o bom humor e a descontração, foi distribuindo umas bolinhas cor de chocolate. Quando chegou ao pé de mim, com o rosto afogueado como uma papoula, colocou seis no meu prato. Duas mais que aos restantes. Agradeci-lhe a gentileza e, curioso e preocupado diante do que ia comer, perguntei quais os ingredientes daquilo. - Amido, extraído por cozedura, recoberto com mel e perfumado com essência de rosas e alfóstico. Provei, intrigado. Parecia um bombom! Me fez lembrar os bombons a que os orientais chamam lukum. Foi uma sobremesa deliciosa. Mas o meu trabalho na fazenda de Betânia estava só ainda começando. Os meus olhos e o meu coração fixaram-se naquela silenciosa hebréia de olhar atento, de cabelos negros e lisos cobertos com um grande lenço preto: Maria, a mãe de Jesus. A Senhora.
Eram tantas as questões e perguntas que eu tinha para lhe fazer! Eram tantas as minhas dúvidas, que não sabia por onde começar!. E no decurso daqueles dias - felizes e sossegados -, sempre com o apoio dos filhos, tive a maravilhosa oportunidade de ir desvendando uma infinidade de informações relacionadas com os seus anos em Nazaré e com o seu primogênito, que enriqueceram o que eu sabia e contei. Que acontecera ao longo da juventude de Jesus de Nazaré? Por que motivo os evangelistas ignoraram esses quase trinta e dois anos anteriores à sua vida de pregação? Seria porque o Filho do Homem nada fizera durante aquele período tão longo? Como terá sido a sua educação? Quem foram os seus amigos? Quais os seus problemas e angústias? Viveu sempre na pequena aldeia de Nazaré? Quando e como teve consciência de quem era, na realidade? Porque se lançou a percorrer as estradas? Estas e mil perguntas mais ficariam completamente satisfeitas durante a minha estada em Betânia, a partir da nossa expedição à Galiléia e na terceira aventura, que foi livre e voluntariamente assumida por Eliseu e por mim. Se adio agora a narração de tudo o que tivemos a oportunidade de conhecer sobre a vida adulta do Mestre‚é simplesmente, porque entendo que tão fascinante e longo capítulo se enquadra melhor e mais oportunamente entre as aventuras e correrias destes exploradores pelas altas terras do Norte. Dito isto, vou continuar a relatar os acontecimentos que tive a sorte de viver a partir de sexta-feira, 14 de Abril desse ano 30 da nossa Era. De acordo com o planejado pelo Cavalo de Tróia, eu devia voltar ao berço antes da décima aparição, prevista para oito dias depois de domingo, 9 de Abril. Mas.
[NOTA DO AUTOR
Como talvez o leitor esteja lembrado, no volume anterior desta obra - Operação Cavalo de Tróia - eu fazia uma referência àquilo que o Major acaba de expor. Nos seus escritos, o oficial da USAF, depois de uma conversa de três horas e meia em casa de João Zebedeu, em Jerusalém, na manhã de sábado 8 de Abril, com Maria, a mãe do Mestre, fazia interessantíssimas revelações acerca do nascimento e da infância de Jesus de Nazaré. Como digo numa nota de rodapé, por razões de ordem técnica, vi-me obrigado a deixar para mais tarde esse relato. Penso que este ‚ um bom momento para o incluir.
E antes de seguir adiante, uma advertência que não quero deixar de fazer: como afirmei no principio de Operação Cavalo de Tróia II, alguns pontos que vamos expor a seguir são tão agudos que eu recomendaria aos leitores com idéias e princípios religiosos excessivamente conservadores que abandonem a leitura. Cumprido este sincero esclarecimento, passemos a essa parte dos documentos. A partir daquele momento - oito horas da manhã, aproximadamente - e depois de João Zebedeu lhe ter explicado quem eu era e por que motivo estava ali, Maria aceitou com prazer falar-me de Jesus, dos seus primeiros anos em Nazaré, das suas viagens pelo Mediterrâneo e da morte num acidente de trabalho do seu esposo, o construtor e carpinteiro chamado José. Tentando pôr ordem nas minhas idéias e nos milhares de temas que se agitavam na minha cabeça, comecei por lhe perguntar sobre o nascimento do Gigante.   Mas, poucos minutos depois compreendi que devia recuar na História. O tão debatido assunto da concepção virginal do Filho do Homem intrigavame de uma maneira especial. Ou, para ser mais preciso, sentia curiosidade por conhecer a versão da própria pessoa. Como será  fácil de adivinhar, Maria não podia intuir o que sobre ela e o seu primogênito os evangelistas escreveriam vários anos mais tarde. Tendo em conta que o falecimento da Senhora - assim a chamarei a partir de agora - ocorreria um ano depois, mais ou menos, da morte do seu Filho, a versão do Evangelho aramaico de Mateus (escrita talvez uns dez ou quinze anos depois do ano 30) podia ser, perfeitamente, um relato do que ele ouvira. Por outras palavras, Cavalo de Tróia nutria sérias dúvidas sobre o que disseram Mateus e Lucas acerca destas questões. Seria real a pretensa e antinatural concepção da Senhora? Ter-lhe-ia aparecido um anjo, como rezam as Escrituras? A fim de não ferir os seus sentimentos com perguntas cruas e diretas - pelo menos neste terreno delicado - fui conduzindo a conversa por vias bastante próximas, de forma a que fosse ela própria a abordar, espontânea e singelamente, a questão. O estratagema deu resultado. Assim, soube que Maria e José se conheceram quando este como carpinteiro e pedreiro, trabalhava na ampliação da casa dos pais da então quase menina Miriam (verdadeiro nome de Maria). A adolescente, que tinha uns onze anos de idade, foi levar água a José. Era a primeira vez que se viam. E surgiu uma atração mútua. Embora o tenha dito em páginas anteriores, os costumes dos judeus daquele tempo eram muito diferentes dos de hoje. A partir dos doze anos e meio, coincidindo com a primeira menstruação, a menina
adquiria a condição de mulher, podendo passar - pelo casamento - da tutela do pai para a do esposo. (E às vezes não se sabia o que era pior) Os esponsais - uma etapa que na atualidade poderíamos traduzir mal por noivado - prolongaram-se durante dois anos. Quando José fez os vinte e um anos, a segunda fase do ritual hebraico - o casamento propriamente dito - foi celebrado com todas as honras e, como mandava a tradição, na casa de Maria. O contrato foi assinado numa quarta-feira, dado que Maria era donzela, e em meados do mês de Março do ano menos oito da nossa Era. (A lua cheia trazia boa sorte) Como dote, ou mohar, Joaquim, o pai da noiva recebeu o estipulado pela Lei - cinqüenta siclos de prata - e a totalidade dos móveis da nova casa dos recém-casados. Ao contrário do que acontece nos nossos dias, na altura não era o pai da prometida que arcava com o dote. Era ele quem o recebia do noivo ou do pai deste. Portanto, Maria tinha treze anos quando entrou em casa do esposo e este, como disse, vinte e um. A Senhora sentiu prazer ao recordar aqueles tempos. E falou-me com grande carinho da casa nova de Nazaré, construída por José e seus irmãos, no sopé dos cerros que dominavam a comarca do Tabor e de Nain. Antes de continuar quero chamar a atenção para esta data: Março do ano menos oito. Nesse mês tiveram lugar as bodas dos esposos. A Senhora deteve-se com prazer na descrição da modesta casa em que iniciaram a sua infeliz vida de casados. (Por ocasião do nosso segundo salto no tempo, terei oportunidade de voltar a este curioso e interessante capítulo do mobiliário e dos costumes do casal). Suave, prudentemente interessei-me também por José. Como era? Que tipo de caráter tinha ele? Qual era o seu aspecto físico? Maria, sorridente, só teve elogios para o seu falecido esposo. Esta foi a sua descrição: - Era um homem de maneiras doces. Moreno. Olhos negros. Forte e trabalhador incansável. Os seus antepassados (pai, avô bisavô, etc) foram carpinteiros, construtores pedreiros e ferreiros. Ao princípio dedicou-se à carpintaria de obra. Depois entrou nos negócios da construção. Pensava muito e falava pouco. Era extremamente fiel aos costumes e práticas religiosas do meu povo. Demasiado, para o meu gosto. A dolorosa situação de Israel, sob o jugo estrangeiro, aborrecia-o. A sua família era, como a nossa, numerosa: oito irmãos e irmãs. Quando o conheci era alegre, mas, à medida que o tempo foi passando (sobretudo a partir dos primeiros anos de casados), tornou-se taciturno e passou por uma grande crise espiritual. Pouco antes da sua
morte, quando a nova ocupação como construtor começava a melhorar a nossa situação econômica, sentiu um alívio considerável e o seu espírito se recuperou outra vez. Foi inevitável. Ao abordar a morte de José não resisti à tentação e perguntei-lhe em que circunstâncias se dera.
* No direito judaico, o matrimônio constava de dois momentos ou fases bem distintas e intimamente ligadas: os esponsais e o casamento ou bodas. Quando os jovens decidiam unir-se para toda a vida entravam no primeiro estágio. Na realidade, já eram considerados como esposos; no entanto, a união definitiva, tal como determina o Deuteronômio, só se dava quando o noivo tomava a esposa de sua casa (XX, 7). Apesar disso, os esponsais não podem ser vistos como um simples noivado. Levavam em si mesmos o selo de um autêntico contrato matrimonial". Até ao ponto de uma mulher que fosse surpreendida em adultério - estando no período dos esponsais" - poder ser repudiada e executada. Parece que era um costume tolerado, embora mal visto, os esposos terem relações sexuais, como marido e mulher, antes das núpcias propriamente ditas. Estas tinham lugar quando a noiva ou esposa era levada para a casa do marido. As festas chegavam a durar sete dias, às vezes mais. (N. do M)
Foi numa terça-feira, 25 de Setembro do ano 8 da nossa Era. Jesus tinha catorze anos. Ao entardecer desse dia fatídico, um mensageiro levou uma notícia trágica à oficina onde trabalhava Jesus. O seu pai na Terra caíra do alto de uma obra, na vizinha cidade de Séforis, estando gravemente ferido. O primogênito de Maria acompanhou o enviado até ao domicílio da família, comunicando a infeliz notícia à mãe. Jesus queria ir correndo para junto de seu pai, mas a Senhora proibiu-o. Foi Tiago, irmão de Jesus, quem a acompanhou até à residência do governador, onde, segundo parecia, se dera o que hoje chamamos um acidente de trabalho. Jesus, contrariado, teve de ficar em Nazaré, cuidando da casa e dos pequenos. Quando Maria chegou a Séforis, José Já tinha falecido. Levaram o cadáver para a aldeia de Nazaré e lá  foi sepultado, no dia seguinte, dia 26, no sepulcro dos seus antepassados. Por acaso, vivera trinta e seis anos: a mesma idade do Filho. Na ocasião deste acontecimento, Jesus conhecera Herodes Antipas, um dos filhos de Herodes, o Grande: a raposa detestável e degenerada que, vinte e dois anos depois, tentaria interrogá-lo. Mas esta ‚ outra história que deverei contar no futuro.   Já que falamos de José, atrevi-me a perguntar
pela sua suposta ascendência davídica. No Evangelho de Mateus (1, 1-16) está indicada a genealogia de Jesus e, nela, como ‚ bem claro o pai carnal de Cristo aparece como descendente direto do rei David. Devo confessar que a Senhora ficou muito surpreendida com a minha insólita pergunta. - E como que tu sabes isso?. - Então é verdade. - disse eu, fugindo à pergunta de Maria. - Não, não é. A sua explicação deixou-me atônito. José, logicamente, já lhe tinha falado disso. Mateus, mais uma vez, foi mal informado. Tudo partia de um antepassado de José - por parte do avô paterno - que foi adotado por um tal Zadoc, o qual, esse sim, era descendente direto de David. Este antepassado de José, órfão, foi acolhido por Zadoc, e daí o erro. A partir de então (sexta geração antes de José), os sucessores receberam o falso título de nascidos ou pertencentes à casa de David. Mais adiante, quando descrever o que aconteceu na segunda exploração, falarei dos erros cometidos nas genealogias que são atribuídas a Jesus de Nazaré. A maior parte dessas listas de antepassados - como muitas profecias messiânicas – são posteriores à vida do Galileu e, por conseguinte, adaptadas aos fatos de que Jesus foi protagonista. Na realidade, a verdadeira descendente direta do rei David era a Senhora. A sua linhagem, pelo que ela me explicou, perdia-se na mais antiga nobreza, tendo entre os seus antepassados mais remotos representantes de hititas, sírios, egípcios, fenícios e, até, gregos. Para os que querem ver em Maria uma mãe representativa da Humanidade, este é, sem dúvida, um dos esteios em que podem basear a sua pretensão.
* Efetivamente, seis gerações antes de José - segundo o texto de Mateus - aparece um tal Sadoc ou Zadoc, que gerou Aquim. Este gerou Eliud e este, por sua vez gerou Eleazar. Este gerou Matan e Matan gerou Jacob. E este foi o nome do pai de José, esposo de Maria. (N. do M)
Poucas mulheres judias daquele tempo tinham no seu sangue uma mistura tão nobre de raças. De acordo com o seu caráter, embora a morte do marido lhe causasse uma dor corrosiva, Maria não exteriorizou nunca a sua profunda tristeza e solidão. Suponho que irá surgindo de forma natural. Mas, mesmo assim, não vou perder a oportunidade e vou comentar o que considerar importante em relação ao temperamento da Senhora. Os cristãos de quase todos os tempos parecem ter forjado uma imagem de Maria de acordo com as suas próprias
crenças, conveniências e interesses. Assim, ao longo destes dois mil anos, não é difícil encontrar textos abençoados pelos Papas, pelos Santos Padres da Igreja Católica ou pelos ilustres teólogos, nos quais se atribuem à mãe do Senhor rótulos tão absurdos e tão pouco reais como os de virgem permanente, mulher submissa e tímida, exemplo de virtudes humanas e divinas, co-redentora, medianeira entre Deus e o gênero humano, concebida sem pecado original, e eu sei lá  quantos atributos mais, elogiáveis mas duvidosos. Os próprios acontecimentos que irei contando serão a melhor prova de que a Senhora era uma mulher hebréia inteligente, mas, como qualquer ser humano, com defeitos e limitações. Alguns, como o seu sentido profundo de nacionalismo, farão tremer os cristãos que parecem viver nas nuvens. Passo a passo, pelo que fui captando e pelo que recolhi de quantos conviveram com ela, cheguei à conclusão de que Maria era uma mulher alegre. Não se deixava vencer pelo desânimo. Com uma força vital invejável e uma liberdade mental que a obrigavam a exprimir os seus sentimentos e as suas opiniões aberta e claramente, sem rebuços, sem rodeios, sem hipocrisia. Ao contrário de José, a Senhora tinha nos genes aquilo a que hoje chamaríamos sentido liberal da vida. A sua filosofia era esta: respeitar todas as convicções e credos. Mas também era teimosa e obstinada. Esta postura criou-lhe vários desgostos. Sobretudo durante a juventude de Jesus. Analisando o caráter do Filho, deduzia-se que grande parte dos seus dons de educador e condutor de massas e a sua capacidade característica para a justa indignação tinham sido herdados da mãe. Do pai, pelo contrário, tinha a amabilidade e uma compreensão maravilhosa da fraqueza da natureza humana. Às vezes, Jesus ficava pensativo e com um ar de tristeza diante dos homens que o rodeavam. Essa forma de ser tinha, sem dúvida, uma relação muito íntima com o temperamento de José. Mas, na maioria das vezes, o Galileu mostrava-se tão otimista e decidido como a mãe. Penso que não me engano se disser – em jeito de síntese - que o caráter da Senhora reinava com clareza no do seu primogênito. De José herdou também o seu amor ao estudo das Escrituras hebraicas. Maria soube infundir-lhe - talvez inconscientemente - um sentido natural de respeito e liberalidade. As duas famílias - a de José e a de Maria -, além de gozarem de uma posição econômica desafogada, podiam ser consideradas famílias cultas, tendo em conta o baixo nível da população em geral. A Senhora, depois do
falecimento do esposo, teve sobretudo a preocupação de que os seus filhos recebessem a instrução necessária. Ainda voltarei a isto, mas também me surpreendeu a extraordinária habilidade desta mulher para a arte da tecelagem. Foi uma tecedeira excepcional. Jesus sempre vestiu túnicas e mantos feitos por ela. Quanto aos seus dotes como dona de casa e mulher previdente - qualidades que foi obrigada a desenvolver perante a situação econômica angustiante em que a família   ficou depois da morte de José -, falarei disso por ocasião da nossa visita à Galiléia. - Então as vossas núpcias ou bodas foram no mês de Março do ano setecentos e quarenta e seis. (Obviamente utilizei o calendário romano) A Senhora concordou, ainda que sem saber onde eu queria chegar.   - Conversando com uns e com outros - acrescentei, procurando dissimular - tive conhecimento também de um acontecimento prodigioso, ocorrido antes do nascimento de Jesus. - Referes-te ao do anjo? - Perdoa a minha incredulidade, mas. - Compreendo, Jasão - sussurrou, resignada. - Não é a primeira vez que alguém duvida de mim. Eu tinha de ser extremamente cauteloso. Por isso, fiz as perguntas pondo nelas os meus cinco sentidos. - Quando foi? - Uma tarde, em meados do oitavo mês, em pleno marjesvanl. (Isso queria dizer Novembro) - Recordas o dia exato? - Não. Pareceu-me estranho que uma mulher não guardasse na sua memória uma data tão notável. - Encontrava-me na casa de Nazaré, ocupada nas tarefas da casa. José não tardaria a chegar. De súbito, ao lado de uma mesa baixa de pedra, vi-o. Era um jovem muito bonito. Com luz a toda a sua volta. Disse que se chamava Gabriel. - Estou interessadíssimo em saber o que te disse exatamente. Isso sim, tinha ficado gravado no seu coração. - As suas palavras foram estas: Venho mandado por Aquele que e o meu Mestre, a quem deverás amar e manter. A ti, Maria, trago boas; notícias, já que te anuncio que a tua concepção foi ordenada pelo céu. A seu devido tempo serás mãe de um filho, a quem porás o nome de Yehosua [Jesus ou "Javé salva"] e que instaurará  o reino dos céus na Terra e entre
os homens. Disto, fala só a José e a Isabel, tua parente, a quem também apareci e que em breve dar  à luz um menino que se chamará João. Isabel prepara o caminho para a mensagem de libertação   que o teu filho proclamará com força e profunda convicção, aos homens. Não duvides das minhas palavras, Maria dado que esta casa foi escolhida para morada terrena deste Menino do Destino. Recebe a minha bênção. O poder do Altíssimo sustentar-te-á. O Senhor de toda a Terra estenderá  sobre ti a sua proteção
* Entre os judeus de então, o ano começava na Primavera. Concretamente, no mês de Nisan, que correspondia quer ao nosso Março quer a Abril. Este ciclo de culto inspirava-se no calendário babilônico. A seguir ao desterro, o povo de Israel adotou também os nomes dos meses babilônicos: Iyyar era o segundo mês (Abril-Maio), Sivan o terceiro (Maio-Junho), Tammuz o quarto (Junho-Julho), Ab o quinto (Julho-Agosto), Elul o sexto (AgostoSetembro), Tisri o sétimo (Setembro-Outubro), Marjesvan o oitavo (Outubro-Novembro), Kisleu o nono (Novembro-Dezembro), Tebet o décimo (Dezembro-Janeiro), Sabat o décimo primeiro (Janeiro-Fevereiro) e Adar o décimo segundo e último mês do ano (Fevereiro-Março). O ano era lunissolar, com doze meses de vinte e nove ou trinta dias e um mês suplementar cada dois ou três anos para compensar o atraso do ciclo lunar sobre o ano solar. (N. do M)
A minha perplexidade foi aumentando. Aquelas palavras não tinham qualquer relação com as de Lucas (1, 26-39). Como se verá, Maria não era virgem no sentido que parece querer lhe dar - a todo o custo - o evangelista 1. Era impossível, porque as bodas, repito, tinham sido celebradas em Março: oito meses antes da chamada anunciação! Na minha opinião os relatos, supostamente sagrados, sobre o acontecimento foram deformados e desnecessariamente circunscritos a uma situação - a virgindade física da Senhora - que envolvia o nascimento do Senhor numa auréola de mistério e divindade, muito própria dos   Orientais. Algo que em nada afetava a transcendência da missão do Filho do Homem. Mas tentarei ir por partes. No citado Evangelho de Lucas (versículos 31 a 33) está escrito: "conceberás no teu ventre [diz o anjo a Maria] e darás à luz um   filho, a quem porás o nome de Jesus". À luz da lógica, é incongruente * as forças do Céu - que dificilmente contrariam o curso normal da Natureza - programarem uma concepção em pleno período de esponsais. Porquê criar problemas desnecessários?
Se o tema da concepção misteriosa de Jesus ia ser uma fonte de polêmicas, receios e desgostos  na própria família de Nazaré, porque se deveria deitar mais lenha na  fogueira com uma concepção extemporânea? A informação de Lucas está errada até no pormenor da gravidez de Isabel, prima afastada de Maria. Segundo o texto de Lucas, Gabriel apareceu à Senhora no sexto mês da concepção não menos misteriosa de Isabel. Quando perguntei a Maria acerca da gravidez da sua prima, da aparição de Gabriel também a ela e sobre o nascimento de João, chamado o Baptista as datas não coincidiram com as de Lucas. O anjo - apresentouse a Isabel nos últimos dias do mês de Junho desse mesmo ano menos oito. Isto é, na altura em que o enviado celeste apareceu   pela segunda vez - a Maria -, Isabel estava grávida de cinco meses e   não de seis, como escreve o evangelista. (João nasceria a 25 de Março do ano seguinte: menos sete) No seu Evangelho, Lucas insiste várias vezes na palavra "virgem": "No sexto mês foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David; o nome da virgem era Maria " Em tão poucas linhas encontram-se dois erros: uma virgem desposada com um homem chamado José e da casa de David. Quanto ao resto da passagem em questão, também está cheio de modificações ou de erros. Por exemplo, referindo-se a Jesus Lucas põe na boca do anjo: "e o Senhor Deus dar-lheá  o trono de David". Jamais houve qualquer referência a tal trono. Para quê? A missão do Mestre era outra e Ele se encarregaria de repeti-lo durante a sua vida várias vezes. Lucas, que escreveu o seu Evangelho muitos anos depois da morte de Maria, não foi bem informado, ou, talvez tenha se deixado levar pelas correntes que pretendiam exaltar tudo o que se relacionava com Jesus, incluindo uma mãe permanentemente virgem. Algo que ia contra todos os costumes e normas da sociedade judaica de então. (N. do M) De qualquer forma, com toda a delicadeza de que fui capaz, insisti no assunto tão íntimo da sua virgindade na altura em que o anjo apareceu. A resposta foi categórica: - Naturalmente que estava casada com José e naturalmente também mantínhamos relações conjugais normais. A Senhora não podia compreender o porquê daquelas perguntas. Ignorava, obviamente o que dela se escreveria anos depois. No que se manteve firme foi na concepção não humana do seu primogênito. Aceitei a sua palavra. Quem melhor do que ela para saber se Jesus tinha sido fruto ou não da sua união matrimonial com José?
Nesta altura da missão não tenho dificuldade em aceitar que Deus possa levar a cabo um ato semelhante. No século XX começamos a assistir a outros fenômenos que seriam mágicos para as pessoas do tempo de Cristo ou da Idade Média: a inseminação artificial ou os bebês-proveta, para citar dois exemplos.   - E qual foi a reação de José perante o anúncio do anjo? A Senhora sorriu, mostrando-me aqueles esplêndidos dentes brancos e regulares. Fez um gesto malicioso com as sobrancelhas e disse:   - Primeiro, esperei. Na minha estupidez, não me percebi do sentido da afirmação. - O quê? - perguntei estupidamente. Maria corou. - Que poderia ser? Tinha de me certificar de que a visão do anjo não fora um sonho mau ou qualquer coisa parecida. Poucas semanas depois, quando já tinha a certeza da minha maternidade, falei com ele.   - E que disse ele? - O meu esposo sempre teve grande confiança em mim. Mas como era de esperar, sentiu-se mal. Desassossegado. Não conseguiu dormir durante vários dias. Mas, isso sim, nunca me acusou de nada impuro. Duvidou, é claro, da história de Gabriel. No entanto, pouco a pouco, acreditou nas minhas palavras.  Surgiram então outros problemas.   Animei-a a que me contasse. - Para José, o mais difícil não era eu ter visto ou ouvido um mensageiro dos céus, ou mesmo que o Altíssimo (bendito seja o seu nome!) operasse em mim semelhante milagre. O que o transtornou foi o fato de um menino nascido de uma família humana ter um destino divino. No entanto, depois de refletir e, sobretudo, depois do seu sonho, mudou e aceitou os fatos. - Um sonho? - intervim, como se nada soubesse. - Sim, uma noite acordou sobressaltado. E contou-me que um mensageiro brilhante lhe tinha dito o seguinte: "José, apareço-te por ordem dAquele que agora reina nos céus. Recebi o encargo para te dar instruções sobre o filho que Maria vai ter e que será uma grande luz neste mundo. Nele estará  a vida e a sua vida será a luz da Humanidade. De momento irá para o seu povo. Mas este aceita-lo-á com dificuldade. A todos os que o acolherem ele revelará que são filhos de Deus". Depois desta experiência dramática, deixou de duvidar. Fiquei em silêncio. Aquela versão também não se assemelhava à do evangelista Mateus. No capítulo 1, versículos 19-25, diz textualmente o
escritor sagrado: "E José, seu esposo, sendo justo e não a querendo difamar, resolveu repudiá-la em segredo. Assim o tinha ele planejado quando o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, dizendo: "José, filho de David não temas receber Maria como tua esposa, porque o que nela foi concebido é do Espírito Santo. Dará à luz um filho, a quem tu porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados. Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o oráculo do Senhor por meio do profeta: "Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Emanuel", que traduzido significa "Deus conosco". Despertando José do sono, fez como o anjo do Senhor lhe tinha mandado, e aceitou a sua mulher. E não a conhecia, até que ela deu à luz um filho, e pôs-lhe o nome de Jesus. A passagem em questão está cheia de manipulações, quer do próprio Mateus quer dos que copiaram a sua versão original: a aramaica que se perdeu.   Se José era justo – se poderia argumentar - porque ia ele repudiála em segredo? A justiça, naquele tempo, era interpretada como cumprimento rigoroso e justo da Lei. Isso significava o divórcio imediato e, talvez, o apedrejamento de Maria. Segundo problema: se Mateus tivesse consultado Maria, dificilmente se teria atrevido a pôr na boca do anjo o qualificativo de filho de David para o esposo da Senhora. Terceiro: mesmo aceitando que Maria e José se tivessem encontrado durante o período dos esponsais, porquê ficar espantado com a gravidez se as   relações sexuais na primeira fase eram toleradas? É claro que na versão original não se diz que Ele salvará o seu povo dos seus pecados. O evangelista, como judeu que era, supondo que tenha tido acesso ao verdadeiro texto da mensagem, ignora a semi-acusação do anjo ao povo - o seu - que aceita-lo-á com dificuldade. Por último, a respeito das supostas profecias sobre o Messias e a virgindade de sua mãe tendo em consideração as lacunas, manipulações e contradições de que fora testemunha, tudo era possível. Até mesmo que fossem interpolações muito posteriores à vida de Jesus, para fazer encaixar a desnecessária virgindade. Não sou teólogo, nem quero ser. Mas, no meu curto entendimento, faço apenas uma simples pergunta: porque é que a Igreja Católica e os cristãos se empenham em defender o tema secundário e intranscendente da virgindade permanente de Maria? A única coisa vital em tudo isto - essa é a minha forma de ver – são os frutos ou o resultado final: a maravilhosa maternidade da Senhora. Por outras palavras: Jesus. Dando por admitido que a concepção foi de caráter misterioso ou divino, que importância tem que tenha sido virgem ou não, antes, durante e depois
da gestação?   Quando me interessei pelas reações das famílias de José e de Maria em relação ao nascimento do menino do destino, como fora chamado por Gabriel, a Senhora - na sua resposta - pôs em evidência a grave confusão que se criou entre aquelas pessoas acerca do verdadeiro papel que viria a desempenhar o Mestre: - Os meus dois irmãos, as minhas duas irmãs e toda a minha família, comentou com mágoa, receberam a notícia com ceticismo. Ninguém acreditou que o meu filho fosse realmente o Messias esperado. Este foi, sem dúvida, um erro grave. Em nenhuma das duas mensagens celestes - na de Gabriel e na do sonho de José - se menciona sequer que Jesus fosse o Messias, ou o Libertador, ou que Deus lhe fosse dar o trono de David, como pontualiza Lucas. Os Judeus esperavam o Messias, é verdade. Mas não de origem divina! A convicção popular associara-o a um guia ou libertador político, que faria da Palestina uma nação forte e poderosa. A péssima interpretação das palavras dos anjos viria a ser uma fonte interminável e terrível de conflitos entre os que conheceram Jesus, incluindo sua mãe e seus irmãos. Mas não quero meter-me neste espinhoso e fascinante problema. Quando examinarmos o comportamento de Maria durante a juventude do seu Filho, haverá tempo para comprovar tudo o que digo. Os inimigos de Jesus tinham razão numa coisa: o Rabi da Galiléia não podia ser o Messias. Se a origem do Mestre era divina - como ele próprio se encarregou de afirmar pública e categoricamente -, o seu papel devia ser outro, mas não o de libertador do povo de Israel. Hoje, todos nós que conhecemos a mensagem de Cristo estamos de acordo com essa premissa. Jesus de Nazaré foi um libertador, mas de outra ordem, tal como anunciou Gabriel. É mais uma prova de que os seus imediatos colaboradores não entenderam a ampla missão de esperança do Galileu: difundir a mensagem de irmandade entre todos os homens e a graça de serem filhos do Pai. Se tivessem compreendido, não haveria motivos para Lucas e Mateus insistirem tanto no banal e político sentar-se no trono do rei David.   Mas continuemos com os fatos, tal como eles se deram cronologicamente. Esse ano menos oito (746 do calendário de Roma) não provocou mais sobressaltos ao casal de Nazaré. A vida continuou na sua rotina. E a Senhora, que guardava no coração o anúncio de Gabriel sobre a gravidez da sua prima Isabel, foi convencendo o marido para que a deixasse ir à Judéia, a sul, visitar a sua familiar.  
- Não foi fácil - esclareceu Maria -, mas, finalmente, José concordou. E, em Fevereiro do ano seguinte, pude abraçar a minha prima. As duas estavam impacientes por se verem e trocar as suas experiências. Realmente, a obra de Jesus na Terra foi iniciada pelo seu primo afastado, João, cuja história, quando a conheci da boca da Senhora, dos mais íntimos do Batista e, sobretudo, quando o conheci a ele, me encheu de perplexidade. Que pouco sabemos deste gigante de dois metros de altura e coração sensível! Zacarias, o pai de João, era sacerdote. Isabel, a mãe, estava entroncada num dos grupos mais prósperos do ramo de Maria. Embora estivessem casados há muitos anos, certos problemas - a que me referirei a seu devido tempo – haviam frustrado as tentativas do casal para ter filhos. A aparição de Gabriel a Isabel ocorreu, nos últimos dias do mês de Junho do ano 8 antes da Era Cristã. (Maria e José já estavam casados há mais de três meses)   - Que disse o anjo a Isabel? - A aparição foi ao meio-dia. Gabriel disse-lhe assim: "Enquanto o teu marido, Zacarias, oficia diante do altar, enquanto o povo reunido reza pela vinda de um salvador, eu, Gabriel, venho anunciar-te que em breve terás um filho que será o precursor do Divino Mestre. Por-lhe-ás o nome de João. Crescerá  consagrado ao Senhor, teu Deus, e, quando for grande, alegrará o teu coração, dado que levará almas para Deus. Anunciará a vinda dAquele que cura a alma do teu povo e‚ o libertador espiritual de toda a Humanidade. Maria será a mãe desse menino e também aparecerei a ela". - Mas - perguntei, sem poder travar a minha curiosidade, recordando a passagem de Lucas (1, 5-24) em que se conta a história da mudez de Zacarias - o anjo não se apresentou também ao esposo da tua prima? A Senhora, que não conseguia habituar-se às minhas perguntas esquisitas, olhou para mim com estranheza.   - A Zacarias? Que eu saiba, não. Só foi visto por Isabel. Então, disse para comigo próprio, e todo esse complicado assunto de Lucas? - É verdade que ele não ficou mudo? O meu aparente gracejo fez sorrir Maria, que, se não fosse a tristeza que a dominava, talvez tivesse soltado uma grande gargalhada.   - Zacarias nunca sofreu de um mal desses. Mudei de tema. Estava claro que o evangelista se deixara levar pela imaginação, ou talvez as suas investigações não tivessem sido corretas.
Embora houvesse também uma terceira possibilidade: que Zacarias se tivesse apropriado da aparição do anjo, acrescentando e modificando a seu bel-prazer. Não devemos esquecer que estávamos no reino dos homens e que as mulheres não contavam para nada. A Senhora completou a informação, garantindo que a sua prima só falou do anjo com o marido. Mas este, cético, só começou a acreditar quando Isabel apresentou os primeiros sinais de estar grávida.   - Considerando a idade avançada da minha prima – sublinhou era lógico que Zacarias não soubesse o que fazer. Mas, do mesmo modo que José, nunca pôs em dúvida a fidelidade da mulher. Tudo acabaria quando, seis semanas antes de dar à luz, o meu primo teve um sonho impressionante. Então convenceu-se de que aquele filho era também obra divina e que seria na verdade um precursor do meu Jesus.   João nasceria em Judá, a 25 de Março desse ano 7 antes da nossa Era. A alegria dos pais foi indescritível. E, ao oitavo dia, como mandava a Lei, foi circuncidado. Um sobrinho de Zacarias partiria de imediato para Nazaré, com a notícia do nascimento. Aquela visita à aldeia de Judá, uns sete quilômetros a sul de Jerusalém, nos montes, foi muito importante para ambas. Tanto Isabel como Maria fortaleceram as respectivas convicções ao ouvirem-se uma à outra. Três semanas mais tarde, a futura mãe de Jesus regressava a Nazaré, feliz, e definitivamente convencida. Mas os seus problemas, na realidade, começariam com o nascimento do menino do destino. Pode parecer incrível, mas pouco faltou para que o nascimento de Jesus se desse em Nazaré. Se Maria tivesse sido realmente uma mulher submissa - tal como apregoam muitos cristãos - não teria havido a viagem a Belém. Quando lhe perguntei sobre as circunstâncias que rodearam o nascimento de Jesus, a Senhora recordou com saudade as suas discussões com José. Vendo o meu espanto, esclareceu: - Quando chegou à aldeia a ordem para o recenseamento, o meu marido preparou tudo para a viagem até Belém. Mas sozinho. Sem mim. Eu sabia muito bem que não era preciso eu ir em pessoa para o recenseamento. José estava autorizado a inscrever toda a família. Essas eram as suas intenções. Mas disse-lhe que não. - Porquê? - Tinha medo de ficar sozinha e, sobretudo, de que nascesse o menino durante a sua ausência. Além disso - precisou com uma pitada de malícia -, Belém ficava muito perto de Judé e era uma ocasião excelente
para visitar Isabel outra vez.   E assim o casal - como acontece também nos nossos dias - enredou-se numa grande discussão. José, mais prudente, tentou convencê-la a ficar em Nazaré. Ele tinha muita razão. A gravidez já estava no final e não convinha, naquele estado, meter-se nos caminhos da Palestina. A concepção de Jesus, segundo os cálculos aproximados da mãe, ocorreu por volta do dia 15 de Novembro. A partida dos dois para a aldeia de Belém foi ao amanhecer do dia 18 de Agosto do ano menos sete da nossa Era (747 do calendário romano). Isto é, tinham passado nove meses. No entanto, tenaz e decidida, conseguiu impor-se e o esposo não teve outro remédio senão ceder. De nada serviram as recomendações nem as proibições. - E, alegres como crianças, juntamos provisões para três ou quatro dias e partimos para Belém. Corria o alvorecer do dia 18 de Agosto. O casal tinha na altura uma mula e nela carregaram a bagagem. A jovem grávida, que ia fazer catorze anos de idade, montou o animal e José, segurando as rédeas, iniciou a pé uma caminhada que se prolongaria por dois dias e algumas horas. A boa memória da Senhora permitiu-me reconstituir o essencial da viagem. O esposo, bom conhecedor dos perigos que ameaçavam os viajantes, escolheu a rota mais curta, ainda que não a mais cômoda: a do Jordão 1. No primeiro dia chegaram ao monte Gilboa. Ali, nas margens do rio, acamparam e passaram a noite.   - Recordo que os nossos pensamentos e o tema constante de conversa – precisou Maria - era o filho que estava para nascer. José continuava a censurar a minha loucura. Ele tinha muita razão. Não sei o que seria de nós se o pequeno nascesse ao pé daquela montanha.
* Na Palestina de então, os caminhos que a sulcavam de norte a sul, bem como os que a atravessavam de oriente a ocidente, não eram fáceis. Entre os primeiros havia três grandes rotas: a de Sefela, que ia dar à cadeia montanhosa do Carmelo; o Jordão, que era muito incômodo durante os meses de calor; e a mais usada, Samaria, muito escarpada, e que os judeus de estrita observância religiosa procuravam evitar a todo o custo. (O contato com os Samaritanos era motivo de impureza) Se não fosse o estado delicado de Maria, talvez José se tivesse decidido por esta última. (N. do M.)
No dia seguinte, de madrugada, retomaram o caminho. Maria estava
bem. Almoçaram ao pé do monte Sartaba, sobranceiro ao vale do Jordão, e, ao anoitecer, entraram na cidade de Jericó. Não tiveram problema para encontrar uma pousada. - Depois do jantar, José, outros peregrinos e eu falamos de muitas coisas: da odiosa ocupação romana, de Herodes, do recenseamento e suas nefastas conseqüências para o povo e até da influência de Jerusalém e Alexandria como centros de estudo e cultura judaicos.   No dia 20 de Agosto, também ao alvorecer, enfrentaram a última etapa da viagem. Avistaram Jerusalém perto do meio-dia e, depois de visitarem o Templo, prosseguiram viagem para sul: para Belém.   - A que hora chegaram? - Pouco antes do pôr do Sol. Aquela parte da narração foi igualmente esclarecedora. - A pousada estava abarrotada - continuou a Senhora - e, como a noite avançasse rapidamente, dirigimo-nos a casa dos parentes do meu marido. Foi impossível. Todos os quartos estavam também ocupados. Desiludidos e cansados, voltamos para o albergue. Não sabíamos o que fazer. Ali informaram-nos que, devido à grande afluência de viajantes, tinham decidido desalojar os estábulos situados no flanco da rocha, mesmo debaixo da pousada.   - Para que serviam esses estábulos? Maria observou-me, indecisa. Mas, compreendendo que eu era estrangeiro, não fez caso daquela pergunta tão absurda.   - Para que poderiam servir? Para os animais das caravanas e para armazéns de cereais.   - E que aconteceu? A Senhora reparou na minha impaciência. - Porque estás tão interessado, Jasão? Desta vez respondi com a verdade. - Interessa-me tudo (absolutamente tudo) o que se relaciona com o Mestre. Agradeceu-me com um sorriso e continuou. -  Ora bem, José amarrou a mula no pátio e, carregando com os fardos (a roupa, a comida e o resto), ajudou-me a descer as escadas que conduziam à gruta. Montamos as lonas que nos serviam de tenda diante de umas manjedouras e preparamo-nos para descansar. Estávamos exaustos.   - Suponho que se sentiam mal instalados. A Senhora abriu os seus olhos verdes em forma de amêndoa e, surpreendida, foi ela que perguntou:  
- Porquê? Dizes isso por ser um estábulo? Não, meu filho. Pelo contrário, sentíamo-nos felizes por ter encontrado um lugar tão silencioso e agradável. Depois de jantar, José comentou que pensava ir imediatamente recensear-se, mas, como eu te dizia, sentia-me muito cansada. E, de repente, começaram umas dores muito fortes. O meu marido assustou-se e deixou o recenseamento para outra hora. - Dores fortes? - retorqui, imaginando que talvez se tratasse das primeiras contrações. - Sim, espantosas. Depois tornaram-se mais fáceis de suportar. Mas não conseguimos dormir durante a noite toda. - De quanto em quanto tempo tinhas essas dores? - Não me lembro bem. Acho que de meia em meia hora, mais ou menos. A descrição podia corresponder perfeitamente ao processo natural de dilatação do canal cervical, fechado durante a gravidez. Cada uma daquelas dores pressionaria a parede superior do útero contra o colo uterino, preparando assim o deslizamento do bebê. (Como se sabe, normalmente o útero encontra-se firmemente apoiado no fundo da pélvis) - Foi então que se deu a ruptura das águas 1? - Oh, filho, não me lembro! Já passaram quase trinta e seis anos! Do que não me esqueço é que estava muito assustada. Algumas mulheres ficaram comigo e confortaram-me. Uma delas até pôs o ouvido na minha enorme barriga, (estava gordíssima!) e disse que ouvia o menino. Coisas de mulheres!   - Em que momento chegou a hora? - Ao alvorecer comecei a sofrer mesmo a sério. As dores tornaram-se mais intensas e freqüentes. Pouco antes da hora sexta pensei que ia morrer. As dores vinham uma atrás da outra 2. Ajudaram-me a encurvar as costas e uma mulher pôs-me um lenço na boca, ordenando-me que o mordesse com força. Outras duas agarraram-me nos pulsos e incitavam-me a fazer força. Bendito seja Deus! Tive tanto medo!. Arquejava, gritava e suava! - Não te lembraste do anjo? - Nem do anjo nem de nada. Nesses momentos é difícil pensar. - E José? - Ao meu lado, branco como a cal, tentando animar-se. O pobre estava mais aterrorizado que eu. Passou as horas molhando um pano em água fria e a colocando-o na minha testa. Não permiti que se separasse de mim. As leis. Ora!   A exclamação de Maria estava justificada. Naquele tempo, entre os judeus, era muito freqüente o pai ser proibido de estar
presente no parto. Tinha de esperar no exterior ou noutro lugar até lhe anunciarem o nascimento. Assim se fazia desde tempos imemoriais, cumprindo o versículo de Jeremias: "Maldito aquele que felicitou o meu pai dizendo "nasceu-te um filho varão", e o encheu de alegria!" (XX, 15). Já disse que a Senhora tinha um sentido muito liberal da interpretação religiosa. Por fim, por volta do meio-dia, apareceu a cabeça. Eu estava no limite das minhas poucas forças. E o meu filho veio ao mundo.
* O líquido fetal, logicamente, não pode ser comprimido, e ao derramar-se contribui para dilatar as membranas para o ponto de menor resistência. Geralmente, depois da dilatação das membranas, pressionando o canal cervical, a cabeça do feto vem atrás, dilatando ainda mais a passagem. É muito possível que essa ruptura das águas, como se denomina popularmente essa perda do líquido fetal, se tenha dado em Maria durante aquela noite de 20 de Agosto. (N. do M) 2 Esta descrição poderia enquadrar-se na última fase das dores. Talvez acontecessem com intervalos de cinco minutos. Em cada contração, as fibras musculares da parede uterina comprimem mais a cavidade, preparando assim a saída do bebê, que cada vez dispõe de menos espaço. Entre duas contrações, o normal é haver uma pausa. Nesses momentos, entra sangue fresco na placenta e as palpitações do bebê recuperam a sua freqüência e intensidade. (N. do M) As mulheres lavaram-no e, depois de o esfregarem com sal, embrulharam-no nas fraldas e entregaram-no ao pai 1. - Talvez não te lembres, mas, quando conseguiste pensar, o que te veio à cabeça? - A primeira coisa que fiz foi examinar o meu bekor. Era lindo, com uma abundante cabeleira negra e enrrugadinho como uma passa. Era perfeito. E senti-me feliz. (Com a palavra bekor designava-se o primogênito. Ao ser varão, a alegria da família chegava ao máximo. Pelo contrário, se fosse menina era recebida com tristeza e indiferença). Não pude evitá-lo. Ao ouvir as explicações da Senhora senti uma grande ternura. Jesus nascera como qualquer menino. Quanto teria dado para assistir a um parto tão histórico! Nenhum dos acontecimentos milagrosos que contam as tradições e os Evangelhos apócrifos sobre a Natividade do Senhor parecem verdadeiros. Repito: aquele bebê tão especial veio ao mundo como todos nós. Mas não posso me esquecer de outro dado interessante: a data desse nascimento. Segundo estas notícias, Jesus de Belém nasceu às doze horas
do dia 21 de Agosto do ano menos 7, ou 747 do calendário de Roma. Uma data incompreensivelmente esquecida pelos evangelistas e que, com o passar dos séculos, seria fixada no mês de Dezembro do ano um 2.
* O costume de esfregar o recém-nascido com sal baseava-se na crença de que, assim, a pele adquiria consistência. Quanto ao fato de o entregarem primeiro ao pai, era um rito de reconhecimento e legitimidade. O normal era o pai, ao receber o bebê, colocá-lo sobre os joelhos. Se estivesse um avô presente, esse privilégio era-lhe cedido a ele tal como se dizia no Gênesis (L, 23). (N. do M) * Muito provavelmente, a adoção por parte da Igreja do dia 25 de Dezembro como festividade do Natal (refiro-me à Igreja do Ocidente) remonta aos séculos IV ou V da nossa Era. A opinião mais comum e aceita baseia este fato na institucionalização do cristianismo a partir do imperador Constantino, que deu grande impulso à expansão e consolidação pública definitivas da religião dos cristãos. Parece muito provável que a Igreja florescente tivesse decidido transformar, uma das celebrações pagãs de então na Natividade do Senhor. Embora haja divergência de critérios a este respeito, pode pensar-se que a celebração pagã que serviu para a mudança foi a do Sol invicto ou as Angeronalias ou Diualias, todas elas festas romanas. Estas últimas realizavam-se no dia 21 de Dezembro. Segundo Varrão (L, L, 6, 23), era oferecido um sacrifício à deusa na cúria Aculeia. Ao que parece, eram festas estabelecidas, o mesmo que Dea Dia, nos dias mais curtos do ano (solstício), e que anunciavam a renovação do ano ou a "vitória do Sol". (Os dias, com efeito, começavam a ser mais longos) A Igreja do Ocidente (a do Oriente nunca celebrou o Natal; só a Epifania), segundo os especialistas, pode ter trocado a festa que comemorava o nascimento ou chegada e vitória do Sol triunfante" pelo nascimento do verdadeiro Sol: Jesus de Nazaré. Nas célebres homilias do papa S. Leão Magno (ano 450) já se fala desta festa cristã moderna do dia 25 de Dezembro. Como referi em alguns livros meus - e não vou agora entrar nisso -, nem os costumes pastorais daquela época nem a meteorologia da Palestina permitiam que os pastores guardassem o rebanho ao ar livre nos meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro. Quanto ao segundo erro a que se refere o diário do Major – a marcação do nascimento de Cristo no ano um -, eu também estou de acordo. Não pode ter sido assim. O padre Igartua, jesuíta, na sua excelente obra Los Evangelios ante la Historia (p. 73), leva a cabo um estudo pormenorizado
sobre esta falha, reconhecida por todos os historiadores e que faz com que transportemos um considerável atraso no calendário oficial. Eis o estudo de J. M. Igartua:   1. Jesus nasceu no tempo de Herodes, o Grande, segundo os mesmos evangelhos (Mateus, 2, 1, e Lucas, 1, 5). Mas Herodes morreu antes do ano 1, logo ‚ necessário antecipar a data do nascimento de Cristo. 2. Em que ano morreu Herodes? Conseguiu-se a data precisa pelo historiador judeu Flávio Josefo. Eis os seus dados: o ano em que Herodes começou a reinar está fixado por ele, conforme a contagem grega existente, na 184a Olimpíada, sendo o intervalo de cada Olimpíada de quatro anos, o que d  um total de 736 anos. Determina o ano pelo consulado romano contemporâneo de Calvino e Assínio Polião (Ant. Jud, XIV, 14, 5). Mas ainda não se pode estabelecer a Era cristã, pois não temos ainda um dado que relacione os dois cálculos cronológicos.   3. A duração do reinado de Herodes ‚ estabelecida pelo historiador Josefo em "trinta e quatro anos depois de ter matado Antígono [seu opositor], e desde que recebeu o reinado dos romanos, trinta e sete anos". (Ant. Jud, XVII, 8, l, e 8e11. Jud, I, 33, 8). A morte ocorreu no quinto dia após ter mandado matar o seu próprio filho Antípatro. Mas continuamos na mesma incerteza acerca da correlação com a era cristã de Dionísio, o Exiyuo [a atual]. Os 736 anos gregos das   Olimpíadas [na 184a Olimpíada, segundo Josefo] correlacionam-se com os anos romanos, restando vinte e três, pois, segundo Varrão, a fundação de Roma foi no ano 23 das Olimpíadas, e correspondem assim a 736 - 23 = 713 ab UC. Como Josefo acrescenta que Herodes reinou trinta e sete anos, somando estes aos 713 temos 750 ab UC para o ano romano da sua morte. Como fazer corresponder agora com a era cristã este ano 750 ab UC da morte de Herodes?   4. Providencialmente, um dado quase perdido no conjunto permitiu estabelecer a correspondência. Josefo narra (Ant. Jud, XVII) um assalto dos extremistas religiosos ao Templo, contra as insígnias romanas, dirigido por dois doutores da Lei e executado por jovens audazes, não mais de um mês antes da morte de Herodes. Este, que mesmo doente ainda tinha arrebatamentos cruéis, mandou queimar vivos os dois doutores e alguns jovens assaltantes, e nesse mesmo dia da execução - diz Josefo - "houve um eclipse da Lua", que foi interpretado como sinal celeste contra Herodes, acrescendo que a sua morte ocorreu quase na Páscoa. Ora bem, os astrônomos modernos identificaram esse eclipse da Lua, visível na Judéia, no ano 4 antes de Cristo, no dia 13 de Março. Temos assim um dado certo de correlação: o ano da morte de Herodes, o Grande, foi o ano
-4, antes de Cristo, e o nascimento de Jesus teve de ser, de acordo com o que se recorda nos Evangelhos da sua vida, e portanto antes do -4. Se acrescentarmos o cálculo de dois anos que fez o próprio Herodes em Mateus, quando mandou matar os meninos com menos de dois anos, estaremos no ano -6. E assim se calcula, com bastante precisão, que o nascimento de Jesus foi no ano -6 ou -7 da Era cristã" (N. do A)
 
É claro que, embora nem merecesse ser dito, não havia naquele lugar nenhum animal (os tradicionais boi e asno) durante o parto. E sinto muito em frustrar também os que sempre acreditaram nas aparições dos anjos aos pastores dos arredores da aldeia de Belém. Pelas informações de Maria, ninguém estranho foi, além dos seus amigos e parentes, para conhecer o Menino. O evangelista Lucas, segundo parece, inventou toda essa bonita história dos coros celestiais e do anúncio aos pastores. A única visita que, naturalmente, deixou um bocado confuso o casal de Nazaré foi a dos sacerdotes de Ur, identificados como Magos. Mas isso aconteceu quando Jesus já tinha três semanas de vida. E também não foi como conta Mateus (21-12). Antes disso ocorreriam outros fatos não menos curiosos. Embora pense que, como médico, devesse omiti-lo, farei uma concessão e falarei de passagem sobre o tema, também polêmico, da virgindade de Maria depois do parto. O ideal, naturalmente, teria sido fazer um reconhecimento. Mas isso não foi possível nem eu me teria prestado a ele. Entre outros motivos, porque a evidência saltava à vista. Adiantando-me aos acontecimentos, direi que a Senhora teve mais filhos, tal como se afirma nos próprios Evangelhos: Marcos 3, 20-21, 3035; Mateus 12, 46-50, e Lucas 8, 19-21. (Dos seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas, bem como das suas irmãs, falam também os habitantes de Nazaré em Marcos 6, 3, e Mateus 13, 55-56, para não citar João (212 e 7, 3-5)). O próprio evangelista Mateus, em 1, 25, encerra o assunto quando afirma: E não a conhecia, até que deu à luz um filho, e lhe pôs o nome de Jesus. (A expressão conhecer significa, em termos bíblicos, ter relações sexuais) E voltamos ao velho problema. Porquê esse medo ou pudor, ou escrúpulos, de numerosos setores da Igreja Católica em aceitar que a Senhora pudesse ter mais descendência, como era costume nas famílias normais daquele tempo? Estes moralistas e hipercríticos do alheio não ignoram que, no tempo de Jesus, a esterilidade era quase uma maldição divina. As famílias tinham de ser numerosas. Isso era o normal e bem visto. Se partirmos do
pressuposto que o casal de Nazaré foi em tudo um casal comum e normal, por que motivo esses cristãos se empenham em corrigir a própria Natureza, convertendo José e Maria em dois seres humanos ilógicos e quase à beira da aberração? Parte dessa triste deformação mental de que ainda sofrem muitos cristãos em relação a este assunto deve ser procurada num papa de nefasta memória: São Sirício, elevado, ainda por cima, à santidade. O tal Sirício (384-398) chegou a escrever a este respeito, numa carta dirigida a Anísio, bispo de Tessalônica, no ano da graça de 392, o seguinte: "Na verdade, não podemos negar ter sido com justiça repreendido aquele que fala dos filhos de Maria, e com razão sentiu horror Vossa Santidade de que do mesmo ventre virginal de que nasceu, segundo a carne, Cristo, pudesse ter saído outro parto. Porque não haveria escolhido o Senhor Jesus nascer de uma virgem, se tivesse julgado que esta havia de ser tão incontinente que haveria de manchar com sêmen de união humana o seio onde se formou o corpo do Senhor, aquele seio, palácio do Rei eterno. Porque aquele que isto afirma, outra coisa não afirma senão a perfídia judaica dos que dizem que não pôde nascer de uma virgem. Porque aceitando a autoridade dos sacerdotes, mas sem deixar de opinar que Maria teve muitos partos, com mais empenho pretendem combater a verdade da fé 1". É quase impossível introduzir em tão poucas linhas tanto absurdo e desatino, fruto não se sabe se de um caráter doentio ou de um grau de demência altamente preocupante. O desprezo de Sirício - recuso-me a colocar antes do nome o qualificativo de santo - pela maternidade e pela extraordinária manifestação de amor que pressupõe o ato sexual, afigura-se quase épico. Como tantas vezes, o homem congratula-se por corrigir a obra do Altíssimo. O trágico está na visão mesquinha daquele papa ter continuado a imperar até aos nossos dias. Por sorte, numerosos teólogos, exegetas e cristãos de mente mais aberta e racional começaram a questionar o problema, chegando à importante conclusão de que o vital não ‚ Maria ter sido virgem ou não, mas a grandiosa e bela realidade da sua maternidade. Embora saiba que alguns rasgarão as suas vestes, eis aqui os filhos que se seguiram ao primogênito de Maria e dos quais me irei ocupando pouco a pouco: Tiago, nascido na madrugada do dia 2 de Abril do ano 3 antes da nossa Era; Miriam ou Maria, nascida na noite de 11 de Julho do ano menos 2; José, nascido na manhã de quarta-feira, 16 de Março do ano 1; Simão, na noite de sexta-feira14 de Abril do ano 2; Marta, nascida a 15 de Setembro do ano 3; Jude ou Judas, quarta-feira, 24 de Junho do ano 5.
(por causa desta gravidez, Maria caiu enferma); Amos, nascido na noite de domingo, 9 de Janeiro do ano 7; Rute, na noite de quarta-feira, 17 de Abril do ano 9 da nossa Era. (Foi filha póstuma José, seu pai, falecera no ano anterior)   Juntamente com o seu irmão mais velho - Jesus -, fazem um total de nove filhos. (De novo aparece o misterioso nove). Mas deixemos para outra altura a inevitável polêmica sobre os irmãos do Filho do Homem. Na aldeia de Belém em breve se daria um acontecimento que alteraria a bússola da Humanidade. - No mundo também há gente boa. Assim resumiu Maria o fato providencial da mudança de morada do casal e do bebê. No dia seguinte ao nascimento de Jesus, o seu pai na Terra cumpriu a sua obrigação recenseando a família. - E não com muita vontade. - esclareceu a Senhora. A razão era simples. Os recenseamentos escondiam uma inconfessada intenção por parte de Roma: ter os seus súbditos controlados, a fim de aumentar os impostos, na medida do possível. Na província da Judéia, a resistência do povo e do próprio Herodes tinham atrasado esta ordem de Augusto em mais de um ano: o édito do César foi promulgado em Março do ano menos 8 (exatamente no mês em que se casaram Maria e José). O recenseamento na Palestina não foi efetuado antes do ano menos 7. O fato é que, por mediação de um homem que tinham conhecido durante a sua estada em Jericó, José conseguiu fazer amizade com outro viajante que dispunha de um quarto na pousada de Belém. Este, compreensivo e compadecido, aceitou trocar o seu alojamento pelo da família. - Foi um bom homem. - suspirou Maria. Dessa forma - até terem um lugar na casa dos parentes de José -, o casal e o filho desfrutaram de um lugar mais próprio do que um estábulo. A sua permanência no albergue se prolongaria pelo período de três semanas. Desde o primeiro momento, a Senhora preocupou-se em amamentar Jesus. E esta amamentação - por razões que esclarecerei em pormenor mais adiante – se prolongaria durante mais de dois anos. Como também era de supor, Maria apressou-se a avisar a sua prima do feliz acontecimento. No dia 23 desse mesmo mês de Agosto enviou-lhe um correio. A resposta de Isabel foi imediata, convidando José a ir ao Templo para dar a notícia a Zacarias. E o entusiasmado pai não tardou a ir a Jerusalém.
Pelo que deduzi das explicações da minha informadora, o casal de Judá  e o de Nazaré estavam convencidos - tanto naquele momento como durante muitos anos - que Jesus seria o libertador político dos judeus, e João, o seu braço direito e chefe dos ajudantes. Não me cansarei de insistir neste fato. E como mais uma prova do que afirmo - saltando até a ordem cronológica dos acontecimentos - vou expor um fato ocorrido no ano 11 da nossa Era, quando Jesus tinha dezessete anos. Creio que vale a pena alterar momentaneamente a cronologia, se com isso se consegue uma visão mais exata dos pensamentos e sentimentos da Senhora e sua família em relação ao papel de Jesus. Os cristãos, como poderá deduzir do que vou contar a seguir, têm uma recordação errada e cândida de Maria. As coisas não foram como gostaríamos que tivessem sido. Naquela altura - ano 11- Jesus crescia em Nazaré. Em todo o território de Israel começara a desenvolver-se um sério movimento antiromano. A agitação em Jerusalém e na Judéia contra o pagamento dos impostos foi-se alargando até chegar também ao Norte: à Galiléia. Entre a população surgiu um partido nacionalista, clandestino mas poderoso, que, com o tempo, daria lugar a toda uma organização guerrilheira que havia praticado algumas ações bíblicas no ano 6, com um chefe chamado Judas de Gamala, vulgo o Galileu. Eram os zelotas, que tinham pressa de se tornar independentes de Roma e que não queriam esperar a vinda do Libertador, ou Messias. A sua filosofia podia resumir-se em duas palavras: rebelião política. Pois bem, este grupo apareceu na Galiléia, fazendo adeptos. Entrou também em Nazaré, e, dada a liderança e o brilho do jovem primogênito de Maria foi um dos primeiros objetivos principais dos nacionalistas judeus. O futuro Mestre ouviu-os, mas negou-se a entrar nas suas fileiras. Aquela decisão influenciou muitos jovens da terra, os quais - já fiéis seguidores da atraente personalidade de Jesus - acabaram por rejeitar os zelotas. E aqui surge o incrível: Maria, que partilhava plenamente as idéias dos nacionalistas, sentindo uma rejeição absoluta pelo jugo de Roma, lutou com todas as suas forças e os seus argumentos para que Jesus aceitasse e entrasse para o partido. O filho opôs-se e a Senhora, inflexível, chegou a recordar-lhe a promessa que ele fizera a José e a ela própria quando regressaram de Jerusalém, depois da famosa escapadela do rapaz, aos doze anos. (O primogênito, devido àquele incidente, aceitaria a ordem dos pais
de acatar em tudo as suas disposições). Ao ouvir a palavra insubordinação, o filho pôs a mão no ombro de Maria e, fitando-a nos olhos, disse-lhe: Mãe, como podes pensar isso? A Senhora retratou-se das suas palavras, conseqüência da sua tensão, mas continuou a insistir - ajudada por Simão, um dos irmãos, e por Tiago, seu outro filho - na necessidade de Jesus reconsiderar a sua negativa e tornar-se zelota, abraçando assim a nobre causa nacionalista.   Esta crise somada a outros acontecimentos posteriores, levariam a que o Filho do Homem estabelecesse a sua residência na vizinha povoação de Cafarnaum. As cisões e polêmicas tornaram-se insuportáveis e Jesus viu-se obrigado a partir. Mas vou deixar as coisas assim. Os capítulos da juventude e idade adulta do Mestre são tão importantes e sugestivos que merecem um tratamento à parte.   Como se vê, a idéia da Senhora acerca da missão do seu filho não era muito clara. No seguimento da visita de José a Zacarias surgiria uma história curiosa e até divertida que vou contar. Mas antes, como contraponto ao que verdadeiramente aconteceu na apresentação de Jesus no Templo, vejamos primeiro o que sobre esse particular escreve Lucas: "Quando se concluíram os dias da purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram Jesus a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, segundo o que está escrito na Lei do Senhor: "Todo o varão primogênito será consagrado ao Senhor"; e para oferecerem em sacrifício "um par de rolas ou dois pombos", conforme o que está escrito na Lei do Senhor. E eis que havia em Jerusalém um homem chamado Simeão; este homem era justo e piedoso, e esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava nele. Tinha-lhe sido revelado pelo Espírito Santo que não veria a morte, sem ver primeiro o Cristo do Senhor. Conduzido pelo Espírito, veio ao Templo; e, quando os pais levaram o menino Jesus, para cumprirem o que mandava a Lei a seu respeito, ele tomou-o em braços e louvou a Deus, dizendo: "Agora, Senhor, podes, segundo a tua palavra, deixar partir o teu servo em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste à vista de todos os povos, uma luz para iluminar os gentios e glória do teu povo, Israel". O seu pai e a sua mãe estavam admirados com as coisas que dele se diziam. Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: "Este foi colocado para queda e elevação de muitos em Israel, e para ser sinal de contradição - e uma espada atravessará a tua alma! - a fim de se descobrirem as intenções de muitos corações".
Havia também uma profetisa, Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser, de idade avançada; depois de casar, vivera sete anos com o seu marido, e permanecera viúva até aos oitenta e quatro anos; não se afastava do Templo, servindo a Deus noite e dia com jejuns e orações. Como apareceu naquela mesma ocasião louvava a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém (2, 22-39).   Agora descreverei os fatos tal como me foram contados. De fato, Moisés ensinou ao povo eleito que cada filho primogênito - por ordem de Javé - pertencia a Deus. Mas, em vez de ser sacrificado como noutras culturas pagãs, podia ser resgatado pelos pais, mediante o pagamento simbólico aos sacerdotes de cinco siclos. Outra lei mosaica estabelecia que as mães deviam ir ao Templo depois do parto, a fim de cumprirem o ritual da purificação. No tempo de Cristo, era costume juntar as duas cerimônias numa só. Foi por isso que Maria, José e o menino foram a Jerusalém, dispostos a cumprirem as normas religiosas estabelecidas. (A verdade é que nunca percebi muito bem a que impureza se referia Javé) Alguns dias antes, - iame esquecendo, os pais de Jesus tinham cumprido igualmente o requisito obrigatório da circuncisão do menino. E foi-lhe posto - oficialmente – o nome de Yehosua, que significa Javé salva. (Talvez não tenha importância, mas Jesus nunca foi chamado Jesus, mas Yehosua, Rabi e Mestre). Onde é que eu ia? Ah, sim, o casal entrou no Templo, fez as compras e o sacrifício obrigatório e, quando iam apresentar o bebê aos sacerdotes aconteceu uma coisa que os deixou perplexos. Um homem e uma mulher levantaram os braços à passagem do cortejo, apontando para o casal que levava Jesus. Então, o homem - um ancião chamado Simeão e habitante da Judéia - entoou um cântico original. Dizia assim: Bendito seja o Senhor, Deus de Israel. Pois visitou-nos e resgatou o seu povo. Levantou o seu cálice para cada um de nós, na casa do seu servo, David. Livra-nos dos nossos inimigos e da mão dos que nos odeiam. Tem misericórdia dos nossos pais e recorda a sua santa aliança: o juramento a Abraão, nosso pai. O que nos permitirá, depois de nos livrar da mão dos nossos inimigos, servi-lo sem medo, com santidade e retidão diante dele todos os dias da nossa vida. Sim, e tu, filho da promessa, serás chamado o profeta do Altíssimo, já que irás diante do Senhor para estabelecer o seu reino, para dar a conhecer a salvação do seu povo, na remissão dos seus pecados. Gozai da misericórdia do nosso Deus, pois a luz do alto nos chega para iluminar aqueles que se encontram nas trevas e na sombra da morte. Para conduzir
os nossos passos pelo caminho da paz. E agora, deixa o teu servo partir em paz, Senhor, segundo a tua palavra. Os meus olhos viram a tua salvação, que colocaste diante de todos os povos. Uma luz para iluminar até os gentios e a glória do teu povo, Israel. Tal situação, como é natural, perturbou Maria e desconcertou José. De regresso a Belém, ambos concordaram que aquilo tinha sido tão exagerado quanto prematuro. E interrogavam-se como fora possível o ancião ter adivinhado que o filho deles era o Messias. Algum tempo depois saberiam a verdade. Isabel contaria à prima, mostrando-lhe até o texto do cântico que o seu marido, o sacerdote, tinha guardado. Zacarias era um velho conhecido de Simeão e da mulher que também levantara os braços à passagem de Jesus. Chamava-se Ana. Era da Galiléia e gostava de poesia. Ambos, Ana e Simeão, iam assiduamente ao Templo. Faziam companhia um ao outro e, com o tempo, tinham feito uma boa amizade com Zacarias. A verdade é que este – que ardia em desejos de revelar o seu segredo sobre João e Jesus - acabou por contar tudo ao ancião e à poetisa. O esposo de Isabel sabia antecipadamente em que dia iriam José e a Senhora ao Templo. E pôs-se de acordo com Ana e Simeão para que, à passagem do menino, levantassem os braços em sinal de saudação e reconhecimento. Para essa ocasião a poetisa fez um poema e Simeão encarregou-se de o declamar. Esta foi a simples história, da qual se poderiam tirar proveitosas conclusões. Em especial, no que se refere ao evangelista citado, Lucas, que talvez tenha ouvido uma versão muito deformada pelos anos, tomando-a por boa. Nem Ana era profetisa, nem Simeão falou de nenhuma espada que atravessasse o coração de Maria, nem as palavras eram de sua autoria, nem fora levado pelo Espírito ao Templo naquela ocasião, nem tomou o menino nos braços. E eu interrogo-me de novo: quantas passagens da vida de Jesus não terão sofrido a mesma sorte? Se o Altíssimo continuar a abençoar-me com a sua luz e a sua força, talvez chegue a contar as nossas experiências e aventuras nas aldeias de Belém e Judá, e nas quais - graças à sua bondade - pudemos comprovar muitos dos fatos que agora descrevo de forma apressada. Outros dos acontecimentos singulares de que fui informado pela Senhora referia-se aos famosos Magos.   Maria não escondia a sua surpresa. - Como é que tu sabes - perguntou-me ela - todas essas coisas? Mas continuemos com o que importa.
Também neste assunto teve alguma coisa a ver o bom e linguarudo Zacarias. Eu teria dado o que fosse preciso para conhecê-lo. Mas, quando nós chegamos à Palestina (ano 30), o velho sacerdote - que devia andar pelos setenta ou oitenta anos - já tinha morrido. Tudo começou com a aparição na cidade caldeia de Ur 1 de um misterioso educador religioso que, ao que parece, informou uns sacerdotes-astrólogos daquela cidade de um sonho que tivera e no qual lhe fora anunciado que a luz da vida estava prestes a aparecer no mundo, sob a forma de menino e entre os judeus. A Senhora continuou o seu relato nos seguintes termos: Os sacerdotes puseram-se a caminho e, depois de várias semanas de pesquisas em vão por toda a cidade de Jerusalém, quando já estavam para desistir e regressar à sua pátria, encontraram no Templo o meu primo Zacarias. Este disse-lhes que, de fato, o Messias nascera em Belém.   Indicou-lhes o lugar onde nos encontrávamos naquele momento e foram prontamente com os seus presentes. Depois partiram e não os voltamos a ver. A visita dos caldeus não passou despercebida ao rei Herodes. Os seus espiões e confidentes estavam em toda a parte. E mandou-os chamar. Os sacerdotes de Ur Já tinham estado com José e Maria e, de fato, confirmaram ao idumeu o nascimento do rei dos judeus. A notícia abalou o medroso e decrépito Herodes, o Grande. Mas os Magos - possivelmente por desconhecimento - não souberam dar muitas referências. Apenas que o menino nascera de uma família que acabava de chegar a Belém para o recenseamento. O rei, astuto, despediu-os com uma boa bolsa de dinheiro, pedindo-lhes que o procurassem, para que ele também o pudesse conhecer e adorar, dado que - como disse - ele também estava convencido de que o seu reino era espiritual e não temporal ou transitório. Mas os três sacerdotes não voltaram.   Então Herodes, desconfiado, continuou a matutar naquele incômodo assunto do outro rei. Sabia que era um usurpador e que arrebatara o trono ao rei legítimo: Antígono 2. Enquanto refletia sobre estas coisas chegaram novas notícias. Os seus agentes trouxeram-lhe informações do que acontecera no Templo durante a apresentação do menino. Até lhe deram parte do cântico entoado por Simeão. Herodes explodiu, qualificando os seus espiões de inúteis, por não terem localizado os pais do recém-nascido. E destacou novos agentes, encarregados da missão específica de localizar a família de Nazaré. Desta vez, Zacarias agiu providencialmente. Ao tomar conhecimento das manobras do rei avisou José e ele próprio - temendo pelo seu filho João - saiu de Jerusalém, permanecendo junto de Isabel e longe de Belém.
Perante a grave ameaça de Herodes, Maria e José ocultaram o bebê em casa dos parentes que tinham em Belém.   - A situação foi angustiante - comentou a Senhora, estremecendo ao recordar aqueles momentos. - Os nossos recursos esgotavam-se rapidamente e vendo o perigo que corríamos, José duvidava se devia procurar trabalho e ficarmos naquele lugar.
* Embora haja dúvidas a este respeito, a cidade de Ur foi identificada como a pátria de Abraão. O Gênesis (11, 31) diz que o pai do famoso patriarca Taré, emigrou para Haran saindo de Ur dos Caldeus, uma grande cidade suméria situada perto do Golfo Pérsico. (N. do M) *2 No ano 39 a. C, Herodes, o Grande, vindo de Itália, entrou em Israel com um exército de mercenários. Durante dois anos enfrentou Antígono, o monarca legítimo, que tinha os Judeus do seu lado. Jerusalém cairia nas suas mãos depois de dois meses e meio de assédio. Milhares de hebreus foram executados e Antígono foi enviado sob prisão para Antioquia, onde seria decapitado pelo célebre Marco Antônio. A sua morte pôs ponto final aos cento e três anos de legítima dinastia dos Asmonianos. (N. do M)
   Um ano depois, desesperado pela busca infrutífera dos seus asseclas e suspeitando que o menino continuava oculto em Belém, Herodes ordenou o registro imediato e sistemático de todas as casas e a passagem à espada de todos os meninos varões, com menos de dois anos, que conseguissem encontrar. Por sorte, entre os que rodeavam Herodes havia alguns que acreditavam na vinda do verdadeiro libertador de Israel. Um deles conseguiu avisar Zacarias. Este avisou José, e, nessa mesma noite, o casal saiu de Belém rapidamente. Em total solidão e com os recursos proporcionados por Zacarias, a família dirigiu-se para o Egito. Concretamente, para a populosa cidade de Alexandria, onde José tinha familiares. A matança atingiu dezesseis meninos. Era o mês de Outubro do ano 6 antes da Era Cristã. Jesus tinha então catorze meses de idade. Alguns exegetas modernos puseram em dúvida a realidade histórica deste infanticídio. Examinando a trajetória de Herodes, o Grande, chega-se à triste conclusão de que a crueldade do usurpador era tal que esta ação encaixa perfeitamente na sua conduta habitual. Vejamos alguns exemplos que, no meu entender, justificam o que digo: a partir do ano 37 a.C, o reinado de Herodes converter-se-ia num pesadelo. Foram executados quarenta e cinco partidários de Antígono,
pertencentes às famílias mais nobres. A sua vingança não se deteve nem diante do Conselho Supremo. Numerosos anciãos e escribas foram também executados e desterrados. A sua desconfiança atingiu até a própria família. Em Jericó, por ordem sua, foi assassinado, durante o banho o seu cunhado Aristóbulo III que na altura tinha apenas dezessete  anos de idade. Depois ordenou o assassinato da sua esposa Mariamme e da sua mãe, Alexandra. Por último, tirou a vida a dois dos seus filhos. Formou um autêntico exército de espiões e informantes, que semearam o terror, provocando um contínuo banho de sangue. No seu testamento chegou a incluir uma cláusula secreta segundo a qual - assim que morresse - milhares de dignitários de Israel deveriam ser reunidos no hipódromo e mortos à espada. Deste modo, explicava o próprio Herodes, "o pranto e o luto pela minha morte será muito maior". Como vimos, pouco antes da sua morte, o odiado servo idumeu" - assim era chamado pelo povo - mandou queimar vivos vários doutores da Lei e os guerrilheiros (possivelmente, zelotas) que tinham assaltado o Templo, deitando por terra as águias e os escudos de Roma. Antes de entrarmos nessa outra etapa ignorada da vida de Jesus - a sua estada no Egito -, quis desfazer algumas dúvidas que continuavam na minha mente. - Não foi um anjo que avisou José em sonhos que tinha de fugir de Belém? Maria retorquiu imediatamente: - Sim. Um anjo chamado Zacarias o meu primo. Mateus falhara outra vez. E tive de aceitar a repreensão da Senhora, que qualificou a minha imaginação de febril e possuída por demônios malucos. Sorri para comigo. No fundo, a admoestação devia ser dirigida ao confiante e singular evangelista. A segunda questão foi recebida com idêntica perplexidade. - Uma estrela? - De fato - insisti -, dizem que aqueles sacerdotes de Ur foram guiados por uma estrela muito brilhante. - Ouvimos qualquer coisa, sim, mas nós não vimos nada tão extraordinário. Talvez José, se estivesse vivo, pudesse dar-te mais pormenores. Tenho muita pena. Tive de me conformar. A história da não menos célebre estrela de Belém ficou em suspenso. Mais tarde, na nossa exploração nas colinas a sul da Cidade Santa, essa e outras incógnitas ficariam desvendadas. Por exemplo, a sangrenta matança dos inocentes. Como foi levada a cabo?
Salvaram-se mais meninos além de Jesus. Como reagiu a aldeia perante o brutal extermínio? Mas ainda havia tantos temas por tratar. Que aconteceu em Alexandria? Quanto tempo permaneceram na cidade egípcia? Como foram as viagens de ida e volta? Como foram aqueles primeiros anos da vida de Jesus? - O tempo urgia e concentrei as minhas perguntas na fuga para o Egito. . .
NOTA DO AUTOR
O destino parecia troçar novamente de mim e dos meus propósitos. Pela segunda vez, e por idênticas razões – de rigoroso caráter técnico, sou obrigado a interromper aqui a informação do Major sobre a infância e juventude do Mestre. Espero que o resto possa ver a luz no futuro. Peço desculpa. Prosseguirei agora até ao fim dos documentos.
* Perante tão grande mar de sangue e destruição, como duvidar da historicidade da chamada matança dos inocentes de Belém. Se alguma coisa lhe era preciosa  na vida era precisamente o trono que usurpara. De nenhuma maneira podia deixar que algum rei o arrebatasse. E menos ainda o prometido libertador" (N. do M)
14 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA
Como é possível que a vida de um ser humano possa ruir em minutos?   Naquela sexta-feira, 14 de Abril, tal como havíamos planejado, saí da fazenda de Lázaro e subi ao alto do monte das Oliveiras, disposto a pôr em andamento a última fase da missão em terras de Jerusalém. Ia feliz e profundamente satisfeito com a informação recolhida em Betânia. Os meus conhecimentos sobre a juventude e idade adulta do Mestre foram copiosamente enriquecidos. E a minha visão das coisas melhorou. Não há nada como a informação para entender e amar. O nosso plano era o seguinte: nessa sexta-feira comprovação dos preparativos para o segundo lançamento da nave. Se tudo acontecesse como tínhamos imaginado, na semana seguinte sairíamos da base-mãe para voarmos até ao Norte, até ao local previamente estabelecido por Cavalo de Tróia na Galiléia. Dali passaríamos à que considerávamos a
última etapa da exploração e que abrangia dois objetivos básicos - o acompanhamento das aparições de Jesus e toda uma série de comprovações em relação à sua infância e juventude em Nazaré e arredores - e outros objetivos secundários. Mas tudo mudou em poucos segundos. Entrei no módulo às dez horas e vinte minutos. Nunca me esquecerei. Eu tinha reparado em algo de anormal nas últimas ligações. A voz do meu companheiro soava ligeiramente apagada. Atribuí isso ao cansaço ou, talvez, à sua demolidora solidão. Assim que o vi e reparei no seu rosto consumido, compreendi que algo de grave estava acontecendo. Pensei mesmo que talvez tivesse desmaiado. Ao fechar a escotilha, produziu-se um silêncio violento. Não quis forçá-lo e esperei. Parecia hesitar. Olhou para mim fixamente durante vários e intermináveis minutos e, por fim, os seus olhos ficaram úmidos. Tive de ser eu a dar o primeiro passo. Pus as mãos nos ombros dele e disse-lhe que falasse. - O que aconteceu? Alguma coisa vai mal? É a nave? Negou com a cabeça cada uma das minhas palavras. - Então?. - Estamos perdidos! - explodiu. Não compreendi o significado daquela explosão. - Que se passa com o berço? Fale, por amor de Deus! Eliseu enxugou as lágrimas e sentando-se diante dos comandos, digitou no computador central. Observei cada um dos seus movimentos, convencido de que durante a minha ausência, o módulo sofrera algum dano irreparável. Mas não. Não era esse o problema. Nesse mesmo instante, no monitor, foi desfilando uma série de dígitos esverdeados. Concluída a operação, apontou para o tela, dizendome que fosse eu próprio ver. Depois de uma leitura atenta e nervosa, apenas consegui exclamar: - Deus do céu!. Então, você. E, sem esperar a possível explicação de Eliseu dei meia volta, abri o armário onde os técnicos do Cavalo de Tróia tinham parafusado a misteriosa caixa de aço de quarenta centímetros de lado e que estava ligada ao Papai Noel. Tal como supunha, estava aberta. E vieram-me à memória as palavras do general Curtiss: Tenho muita pena. "Isso" é material reservado. Altamente secreto. Nenhum de nós dois havia esquecido a enigmática urna metálica. Mas Eliseu, morto de curiosidade, ou por um pressentimento, adiantou-se às minhas intenções,
desvendando o trágico segredo. Nunca lhe perguntei como tinha conseguido abri-la. Isso agora era o menos importante. A realidade - ao mesmo tempo triste e providencial - estava ali, diante dos meus olhos. Compreendemos as boas intenções do general ao não querer nos revelar o conteúdo e a finalidade da caixa. De que serviria assustar-nos. O fato é que o Cavalo de Tróia, como ficou dito a seu tempo descobrira uma possível alteração no tecido nervoso, em conseqüência do processo de inversão de massa dos swivels. Curtiss informara-nos disso e nós aceitamos, livre e conscientemente, continuar com a missão. Apesar de tudo, os cientistas de Edwards - com a cumplicidade do chefe da operação - tinham introduzido na nave uma experiência que serviria para comprovar as suas suspeitas. Ligada direta e intimamente ao computador central, aquela experiência - juntamente com os dados fornecidos pelos dispositivos RMN, ajustados ao nosso crânio - tinha mostrado que os receios dos especialistas eram verdadeiros. Dentro da caixa estavam dois tubos de plástico incombustível, cheios de drosophilas de Oregon, umas moscas pequeníssimas de três milímetros (num só grama podem entrar mil desses exemplares) e cuja composição celular - uniforme - as torna adequadas para os ensaios e estudos sobre o envelhecimento. No fundo das provetas tinham sido colocadas soluções de açúcar e levedura de cerveja com alto poder vitamínico para servir de alimento às drosophilas. Numa espécie de teste que tinha alguma semelhança com o da geotaxis negativa, o Papai Noel vinha examinando o comportamento das moscas antes, durante e depois da inversão axial dos eixos dos swivels. Na proveta da esquerda havia cinqüenta moscas velhas (de oitenta e quatro dias de idade) e na da direita, o mesmo número, mas com exemplares novos (com sete dias). Por serem constituídas por um único tipo de células - do mesmo modo que os neurônios -, eram ideais para se tentar compreender o que acontecia no mais íntimo dessas células. Talvez assim se pudesse descobrir o nosso mal e o possível remédio.
* De acordo com as teorias dos doutores Warburg, Harman e Miquel, entre outros, os estudos e as experiências com ratos e drosophilas indicam que, entre as alterações mais importantes provocadas pelo envelhecimento ao nível subcelular, figuram: inclusões intranucleares, invaginação da membrana nuclear, acumulação do pigmento lipofuscina e diminuição do número de ribossomos e mitocôndrias. O pigmento, que é um dos efeitos do envelhecimento mais intensamente estudado, em grande parte tem a sua origem nas mitocôndrias que, como se sabe podem sofrer uma degradação
das membranas com participação das enzimas lisossômicas. Esta desorganização estrutural, em última análise, era do que Eliseu e eu sofríamos, e é acompanhada de uma grande variedade de alterações bioquímicas, entre as quais se destacam uma diminuição da síntese de proteínas, uma tendência para a oxidação dos aminoácidos sulfurados e uma depressão da oxidação intramitocondrial dos lipídios. (N. do M)
Evitarei explicações demasiado científicas. A questão – a gravíssima questão - era o fato de o Papai Noel ter detectado o problema, armazenando-o na sua memória. Pode ser resumido assim: durante os processos de inversão das partículas subatômicas, qualquer coisa - que não chegamos a identificar com toda a certeza - provocava uma mutação ou perda de ADN nuclear nos neurônios do nosso cérebro. O resultado era um envelhecimento generalizado, irreparável e progressivo – eu diria até galopante -, de toda a rede de neurônios 1. Em outras palavras: estávamos condenados a uma rápida degeneração fisiológica, em conseqüência da morte em massa dos neurônios. De acordo com os cálculos do computador aplicáveis de certo modo ao cérebro humano, essa perda de colônias de neurônios podia ser estimada numa percentagem que andava à volta dos dez por cento anual. Isto é, considerando que o número teoricamente aceito como fronteira limite, antes de cair no envelhecimento cerebral patológico (com manifestações clínicas), de oitenta e cinco por cento, a nossa margem de vida ativa - ou relativamente ativa - foi fixada pelo Pai Natal em nove anos e poucos meses 2. Isso, em última análise, era o que nos restava de vida. Agora compreendia o porquê das escamas do meu corpo, o desmaio de Eliseu e a minha fugaz perda dos sentidos em casa dos Marcos.    Havia sempre a esperança - muito vaga, mas esperança, enfim - de que a ciência descobrisse um remédio para a nossa situação crítica. (O grande cientista Miquel, do Ames Research Center da NASA, em Moffett Field, Califórnia, faria por esses anos ensaios com uma substância - o bromureto de etídio - que deu um excelente resultado com as drosophilas, prolongando-lhes a vida até vinte por cento. Mas nós, logicamente, não éramos drosophilas ainda)   A meu pedido, o monitor ligado ao Papai Noel forneceu o mesmo balanço trágico, com a agravante de que as necessárias inversões de massa futuras poderiam provocar novas mutações. Sábia e corretamente programado, o nosso fiel amigo, o computador, concluiu o seu veredicto com uma coisa que nós já sabíamos: Só mantendo o consumo de oxigênio em níveis prudentemente baixos nas mitocôndrias
das suas linhas germinais se poder  atenuar a perda da capacidade mitótica da célula e assim diminuir o risco de mais alterações na informação genética   Isso significava sujeitarmo-nos a uma vida praticamente vegetativa. Desanimados, caímos numa profunda prostração. Penso que a incrível idéia sugerida por Eliseu no decorrer de tão longa e penosa noite não foi improvisada naquelas últimas horas de sextafeira, 14 de Abril do ano 30. Deve ter nascido muito antes.   - Visto que estamos marcados – explicou ele procurando a minha concordância -, porque não ir até ao fim nesta aventura
* Tínhamos registro da inativação do ADN da mitocôndria, causa quase segura da degeneração mitocondrial e, por sua vez, do envelhecimento final. Miquel, por exemplo, nas suas experiências na NASA, havia adiantado que essa inativação do ADN poderia ser causada - em geral - pelos produtos nocivos (radicais livres e peróxidos de lípidos) que têm origem na mitocôndria durante a produção de energia através da respiração celular. Segundo esta teoria, o envelhecimento humano e animal seria uma manifestação do desgaste e uma conseqüência inevitável da falta de equilíbrio entre os processos desorganizadores e regeneradores nas células diferenciadas. Infelizmente, nós conhecíamos os efeitos, mas não a causa, ou as causas, dessa mutação, ainda que tudo parecesse apontar para o consumo mortal de radicais livres dos neurônios durante o processo infinitesimal de inversão de massa. De fato, as drosophilas jovens - com mais capacidade de consumo desse oxigênio ativado - tinham morrido mais rapidamente e em mais proporção que as velhas durante o processo de inversão dos eixos dos swivels. A chave, devia estar nos radicais livres. (N. do M) *2 De acordo com as medições de Von Economo e Koskinas, o total de neurônios de um ser humano adulto e normal atinge a quantidade astronômica de catorze mil milhões! As nossas perdas anuais, com base nesse número, foram calculadas em pouco menos de mil e quatrocentos milhões. Isto é, para entrar na perigosa fase de morte ou quase-morte, cerebral faltavam-nos apenas uns nove anos e meio. Num adulto, a partir dos vinte anos e em condições normais, essas perdas foram fixadas nuns 36.500.000 neurônios. Como qualquer especialista em anatomia humana sabe, o córtex cerebral recobre, formando uma camada de substância cinzenta, a superfície dos hemisférios cerebrais, excetuando as partes que se mantiveram rudimentares, como ‚ o caso da K área coroidéia". Constitui, portanto, uma camada contínua que forra não só as partes das
circunvoluções que são visíveis à superfície como também as faces laterais e o fundo dos sulcos. A sua superfície é, portanto, consideravelmente mais extensa do que faz pensar o aspecto exterior do cérebro. Esta superfície, avaliada por métodos planimétricos, seria, para um indivíduo adulto, de duzentos e vinte mil milímetros quadrados. (Quer dizer, um quadrado com cerca de meio metro de largura). Destes, só um terço corresponde à superfície das circunvoluções, enquanto os dois terços restantes pertencem às faces laterais e ao fundo dos sulcos. Esta espessura" do córtex varia muito de uma zona para outra: de menos de 2 a 45 mm, considerando-se uma média de 25 mm. Aceitando esta média e a superfície indicada anteriormente, o seu volume" seria de cerca de quinhentos e sessenta centímetros cúbicos. Como o seu peso específico seria de 1038, teríamos um peso de cerca de 581 gramas. O córtex ‚ formado principalmente por células nervosas e fibras que são prolongamentos destas mesmas células ou procedentes de outras que se situam noutras zonas do sistema nervoso. O elemento nobre corresponde a células nervosas ou neurônios. Contando o número de células existentes num quadrado de córtex de 1 mmx25 mm de espessura, os mencionados cientistas - Economo e Koskinas - estabeleceram o seu número em sessenta e três mil, que, multiplicadas pela superfície total (duzentos e vinte mil milímetros quadrados) daria a quantidade referida de catorze mil milhões de neurônios. Destes, oito mil milhões corresponderiam a células grandes e médias e o resto a pequenas. Se colocassemos todas essas células juntas,  ocupariam um volume de cerca de 204 cm, com um peso insignificante de vinte e um gramas! É assombroso que o homem pense" com um peso tão desprezível. (N. do M)
E, sem esperar pela minha opinião, abriu o coração, lamentando-se da sua má  sorte naquela endiabrada missão. Ele tinha muita razão. Já tinha insinuado em Massada e noutras conversas no hotel de Jerusalém: não tivera a oportunidade de ver nem ouvir o Mestre.   - Porquê? - perguntou-se a si próprio. - Porquê? - Talvez na Galiléia. - comentei, recordando-lhe que a exploração ainda não terminara e que faltava o acompanhamento das aparições de Jesus no lago. O meu irmão reconheceu que tudo aquilo era possível, mas a sua idéia ia muito mais longe. E, ao expô-la - longe de a rejeitar - fui-me apaixonando por ela. O que tínhamos a perder? O rol das nossas vidas respectivas acabava de ser dramaticamente fixado em mais nove ou, com sorte, dez anos. Vendo bem, quando voltaríamos a ter uma oportunidade
como aquela? - Nunca! Tu sabes que, se conseguirmos voltar, seremos afastados do serviço ativo para sempre. Apesar de tudo, pedi-lhe tempo. Precisava pensar. Tinha de avaliar os prós e os contras. Compreendeu, mas suplicou-me que tomasse uma decisão antes de o módulo levantar vôo para a Galiléia. Prometi. A idéia não era outra senão ampliar, por nossa conta e risco, o tempo daquela segunda exploração, vivendo os quase quatro anos da vida pública de Jesus, passo a passo e colados ao Mestre! É difícil descrever o entusiasmo do meu companheiro quando me rendia a sua idéia. - Está vendo? Poderíamos conhecer muitos dos seus segredos. Seguilo no deserto. Investigaríamos os milagres. Será verdade que transformou a água em vinho? Como terá escolhido os doze apóstolos? Quem era João Baptista? Porque não fez qualquer coisa para salvá-lo? Terá  realmente caminhado sobre as águas? Já imaginou, Jasão? É claro que sim. Do ponto de vista técnico, a proposta era viável. Bastava manipular mais uma vez os swivels. Mas isso podia significar mais riscos para o nosso cérebro já tão castigado. Em Massada não tinham que saber desta aventura extra. Quanto ao berço, fora equipado nesta viagem com elementos e equipamentos suficientes para aceitar aquele fascinante desafio. Tudo, em última análise, dependia de mim. Eliseu compreensivo, adiantou-me que no caso de uma decisão negativa, a aceitaria e regressaríamos ao nosso tempo de acordo com o plano do Cavalo de Tróia.   E tenho de confessar que aquelas últimas horas foram as mais difíceis da minha vida.
16 DE ABRIL, DOMINGO
Ainda que seja só por uma vez, devo felicitar-me e felicitar os meus instrutores pela preparação que me deram. Apesar do que sabíamos acerca do nosso destino, nada foi alterado no programa da operação. Ao amanhecer de sábado, 15 de Abril, ambos nos tínhamos esquecido da nossa tragédia comum e mergulhamos na complexa preparação da próxima decolagem do berço, do vôo para as imediações do lago Tiberíade e da descida no novo ponto de contato. Reprogramamos o Papai Noel e, quando tudo ficou pronto, fizemos uma última revisão exaustiva do plano da exploração propriamente dito. Assim, como se nada tivesse acontecido, vimos passar o sábado.
Pelas seis horas da manhã seguinte - dezoito minutos depois do nascer do Sol -, saí do módulo e pus-me a caminho de Jerusalém. Os dados meteorológicos colhidos na nave mudaram visivelmente. Já não havia vento de leste, agora substituído por uma suave brisa de noroeste que pressagiava frentes de tempestade não muito distantes. A temperatura no topo do monte das Oliveiras desceu para 7 graus C. Isto, muito provavelmente, foi a causa do espesso nevoeiro que me recebeu e que avançava velozmente, varrendo a base-mãe e o monte do sul no sentido este-sudeste. O forte calor do dia anterior tinha aquecido o ar, tornando-o menos denso. Este trepara pelas encostas – num movimento anabático típico -, condensando-se e dando origem a tão incomoda neblina. O vale do Cedron, pelo contrário, estava limpo. Protegendo-me do frio com o meu grande manto, escolhi o caminho que levava à Porta Dourada, no muro oriental do Templo. Atravessei o Átrio dos Gentios, ainda quase deserto, e, sem pressa, dirigi-me para a casa dos Marcos. A cidade, como todos os dias, começava a despertar para o ritmo habitual de moer o grão.   Não tínhamos muitos dados sobre a segunda aparição de Jesus de Nazaré aos seus. João diz no seu Evangelho que foi oito dias depois da primeira, que ocorrera na noite do último domingo, 9 de Abril. Se o evangelista não estava enganado, essa nova presença acontecendo no primeiro dia da semana; isto é, na segundafeira. E, por prudência, decidi apresentar-me em Jerusalém vinte e quatro horas antes. O meu plano não era complicado. Assim que entrasse em casa do meu bom amigo Elias Marcos, tentaria averiguar o paradeiro de Tomé, o discípulo desertor. Seguidamente, tentaria encontrá-lo e conversar com ele. Era o único com quem eu não conseguira ter uma conversa sobre os últimos acontecimentos. Depois, se possível antes do pôr do Sol, voltaria à cidade e esperaria pela segunda-feira. Mas, como quase sempre, tudo sairia ao contrário. Os meus projetos naufragaram quando assim que atravessei a porta da residência dos Marcos, vi Tomé no pátio a aquecer-se ao pé da fogueira, e devorando o pequeno-almoço. Maria, a restante família, os discípulos e, sobretudo, o benjamim da casa receberam-me com o melhor dos sorrisos. A mãe do rapaz, assim que me viu, deixou no chão o tabuleiro de madeira que levava à cabeça com massa fermentada para fazer pão, e pôs-se a observar a minha testa. A verdade é que nem eu mesmo me lembrava da pancada. Tive de lhe prometer que não ia embora, pelo menos antes do esposo dela voltar. E, com prazer aceitei uma tigela de madeira com leite de cabra
fervendo e muita nata. Ao sentar-me diante de Tomé, procurei observá–lo dissimuladamente. Os acontecimentos agitados e frenéticos daquela longa semana - contando a minha primeira exploração - não me tinham permitido, como teria sido meu desejo, estudar a fundo cada um dos doze. Que sabia eu das suas vidas, das suas famílias, dos seus desejos e inquietações? Praticamente nada. Só conhecendo os seres humanos os podemos comprender e amar. E Tomé, como os restantes, era um mistério. Com a sua compleição reduzida mas atlética, e pelo pouco que fui apanhando aqui e ali do seu caráter, talvez se enquadrasse no temperamento enequético descrito por Kretschmer, Mauz e Minkowska. Isto é,  um homem pouco nervoso, que reagia com parcimônia aos estímulos, de falar lento e cadenciado - eu diria que era mesmo um filósofo -, com uma invulgar tendência para a perseverança. muito trabalhador, lógico-analítico e de uma higiene pessoal que se destacava. Sirva como exemplo o fato sintomático de ser, ao contrário dos seus irmãos, o único que trazia sempre as unhas limpas e o cabelo perfeitamente penteado e atado em rabo de cavalo. Olhou para mim várias vezes, mas nada disse. Limitou-se a baixar o seu rosto muito moreno, quase egípcio, estendendo a palma das mãos para o reconfortante calor da lareira. Tomé não conseguira vencer a sua timidez, agravada pelo estrabismo do seu olho esquerdo. Nem sequer tentei fazer-lhe qualquer pergunta. Não achei que fosse o momento oportuno. Parecia mergulhado em reflexões complexas. E, pensando bem, dirigi-me para o andar superior. Lá  continuava o grupo todo. O ambiente geral era muito diferente do dos dias anteriores. Havia otimismo e só se falava nos preparativos para a viagem até à Galiléia. Vários daqueles homens, em especial os irmãos Zebedeu, Simão Pedro e André, tinham os seus familiares nas povoações das margens do lago e estavam ansiosos por vê-los de novo. João fez-me mil perguntas sobre a sua mãe e David, o seu outro irmão, que eu deixara em casa de Lázaro. E aproveitei a ocasião para lhe perguntar sobre o estado de Tomé. O Zebedeu abanou a cabeça, preocupado. Era o único que continuava a resistir à idéia já aceita da ressurreição do Mestre.   - Ontem, sábado - explicou-me o jovem Zebedeu -, Pedro e eu, cansados de esperar, decidimos ir à sua procura. João Marcos tinha-o visto em Betânia e para lá  nos dirigimos. Por volta das nove ou nove e meia da noite demos finalmente com ele. Estava em casa de Simão, o Leproso. Mas tivemos muita dificuldade em convencê-lo a regressar à cidade. - Porquê?
- A morte do Rabi deixara-o, e ainda está, perturbado. E não faz senão repetir a mesma pergunta: Porque que se deixou matar? Na sua angústia, segundo o pouco que conseguimos que nos dissesse, foi para o monte e lá  passou a semana toda. Assim que amanhecia, saía de casa de Simão e errava como um espírito pelas colinas que rodeiam Jerusalém. Nem sequer tomava banho. E João acompanhou aquela afirmação com um gesto de incredulidade. Sim, devia estar realmente muito abatido para se esquecer até do seu meticuloso asseio pessoal. - Conheço Tomé - continuou com indulgência - e sei que, no fundo, ele desejava voltar para junto de nós. Mas é tímido e certamente esperava que fôssemos nós a dar o primeiro passo e a pedir-lhe que viesse. Como fizemos. Vou dizer-te um segredo. Pedro estava disposto a trazê-lo à força. Mas não foi preciso. - Exatamente, porque foram-no buscar? O Zebedeu olhou para mim, espantado. - Então tu não sabes? Estavas aqui quando Jesus se apresentou e nos disse que partíssemos para o Norte. - Sim, claro - fingi -, não me lembrava. A viagem. E quando será a partida? - Amanhã, ao amanhecer. Primeiro passaremos por Betânia. Seguramente irão conosco Maria, a mãe do Mestre, e outros familiares. Quanto à minha mãe e a David, não sei que planos têm. Eu ‚ que podia esclarecer aquele ponto. Pelo que ouvira em Betânia, David tinha planejado ficar com Marta e Maria e, uma vez concluídos os negócios delas, acompanhá-las até Filadélfia (a atual cidade de Amã), onde se juntariam ao seu irmão Lázaro. - E o que pensa Tomé sobre as aparições do Rabi? O meu jovem amigo voltou a abanar a cabeça, dando-me a entender que não havia nada a fazer. - É teimoso e frio, e diz que tem de ver para crer. Nessa mesma tarde, pouco antes do jantar, o cético discípulo juntouse aos dez e, como era de esperar, enquanto devorávamos o excelente guisado de carneiro com lentilhas feito por Maria, alguns apóstolos começaram falando sobre a última presença de Jesus e a misteriosa convocação para a Galiléia. Tomé ouviu-os em silêncio mas, no fim, sem poder agüentar mais, disse-lhes que estavam loucos. A polêmica aumentou outra vez e alguém mencionou as mulheres, lembrando-lhe que também elas o tinham visto.
Para Tomé, aquilo foi o cúmulo. Na sua aversão ao sexo feminino - Conseqüência quase certa da sua timidez e do defeito na vista -, investiu com azedume contra Maria Madalena, recordando até as palavras dos profetas no Antigo Testamento: - Essas são todas ridiculamente vaidosas, voluptuosas e perversas, como diz Isaías. Eu não conhecia a misoginia do galileu e acompanhei a discussão entre divertido e atônito cheias de duplicidade, segundo Jeremias e Ezequiel, e gulosas, preguiçosas, ciumentas e quezilentas. Assim são as mulheres! - sentenciou Tomé. - Além disso, andam escutando atrás das portas. E, todo excitado, concluiu o seu parecer sobre as mulheres com um velho e mordaz aforismo, muito popular entre os rabis: - Será que não conhecem o que pensou o Altíssimo, bendito seja o seu nome, quando decidiu, em má hora, criar a mulher? Escutem, ingênuos. De que parte do homem a tirarei? - interrogou-se o Onipotente. - Da cabeça? Não, seria demasiado orgulhosa. Do olho? Não, seria demasiado curiosa. Da orelha? Também não - refletiu Javé, bendito seja o seu nome! - escutar  atrás das portas. Da boca? Seria uma tagarela. Da mão? Não, porque seria pródiga. Por fim, pegou numa parte do corpo, muito escura e muito escondida, na esperança de a fazer modesta mas, como vêem, saiu-se mal. Os discípulos protestaram energicamente, saindo em defesa de Maria Madalena e das outras. Mateus Levi, um dos mais instruídos, respondeu-lhe com outro apólogo, atribuído ao rabi Gamaliel:   - Um imperador disse a um sábio: O teu Deus é um ladrão: para criar a mulher precisou roubar uma costela a Adão quando estava dormindo. Como o sábio tivesse dificuldade em responder, a filha deste tomou a palavra e respondeu: Trago uma queixa. Uns ladrões entraram em casa durante a noite, roubaram um lavatório de prata e deixaram no seu lugar um lavatório de ouro. E o imperador respondeu: Assim tivesse eu todas as noites visitas desse gênero! E Mateus sentenciou: - Pois bem, foi isso que o nosso Deus fez. Tirou ao primeiro homem uma simples costela, mas, em compensação, deu-lhe uma mulher. Os presentes riram-se e aplaudiram entusiasticamente. Tomé, sem se perturbar, limitou-se a deixar bem claro que ele não acreditaria nessa patranha da ressurreição enquanto não visse o Mestre e não tocasse com os dedos nas feridas dos cravos.
O destino estava a ponto de pregar-lhe uma peça. Creio que os cronômetros do módulo deviam indicar as dezoito horas, aproximadamente. Os criados dos Marcos já tinham acendido há muito tempo as lâmpadas de azeite e estávamos em pleno jantar. Desta vez, a pedido dos íntimos de Jesus, a dona da casa concordara em antecipar a última refeição daquele domingo, 16 de Abril. O grupo tinha intenção de madrugar e era lógico que tentasse recuperar as forças antes da longa viagem até à Galiléia. Mas surgiu o que ninguém podia prever. Recordo-me de que, seguindo o meu costume, tinha me sentado num divã ao fundo da mesa. Tomé estava reclinado entre Pedro e Bartolomeu, no mesmo braço do U em que eu comia e conversava calmamente com João. Ainda ressoavam na sala os ecos da polêmica quando, de repente, as chamas amareladas dos candeeiros oscilaram ligeiramente. Fez-se um silêncio de morte, Instantâneo. E suponho que o mesmo calafrio que me percorreu dos pés à cabeça atingiu igualmente os outros onze. Mais do que um ficou com a colher de madeira a meio caminho entre o prato e a boca. Houve um relampejar vertiginoso dos olhares e os corações quase que pararam. Desta vez, alertado pela dolorosa oscilação das lâmpadas, agarrei no cajado, disposto a tudo. Não tive de esperar. Diante de mim, como que saindo do outro lado da parede, avançou uma figura alta e corpulenta, meio esfumada pela penumbra da sala. As chamas recuperaram a verticalidade e eu, espantado, senti que o meu coração se partia em dois. O homem - porque desta vez não houve fenômenos luminosos nem estranhos - deteve-se entre os divãs ocupados por Tiago e Mateus Levi, em frente do lugar de Tomé. Era Ele! Trazia as suas vestes habituais: manto cor de vinho e a túnica branca imaculada. Acho que fui o único que se pôs de pé, impelido por uma descarga feroz de adrenalina. Os outros, apanhados de surpresa, nem reagiram. E, com os nervos à flor da pele, sem sequer reparar nos crótalos, liguei os dispositivos da vara de Moisés, sobretudo o squid, apontando às cegas para aquele corpo. absolutamente humano! Foi essa, pelo menos a minha impressão. Era o mesmo Jesus que eu conhecera ainda vivo! Mas, como podia ser Ele se eu o tinha visto morto? Os meus olhos cravaram-se no seu rosto, nos seus cabelos, no seu tronco, nos seus braços, nas sandálias. Tudo era normal! Normal? Meu Deus, que loucura! Além disso, por onde tinha entrado?
E ao colocar-se diante dos discípulos, mudos e quase hipnotizados, saudou-os assim: - A paz seja convosco. Não havia dúvida. Era a voz dEle. E articulava as palavras como qualquer ser humano. O seu rosto estava sério. - Esperei uma semana - continuou, movendo a cabeça por todo o comprimento da mesa e abrangendo assim a todos com o olhar até que estivésseis todos juntos, para aparecer de novo e vos dar mais uma vez, a ordem de correr o mundo divulgando o evangelho do reino. O tom era suave, Repousado. Não me percebi de qualquer sinal de artifício nem sonoridade ou eco metálico que pudesse trazer suspeitas sobre a origem da voz. - Repito-vos: assim como o Pai me enviou ao mundo, eu vos envio. Do mesmo modo que revelei o Pai, vós ides espalhar o amor divino, não só com palavras, mas também com a vossa vida quotidiana. Envio-vos, não para amar as almas dos homens, mas para amar os homens. Não basta que proclameis as alegrias do céu. É preciso também demonstrar as realidades espirituais da vida divina na vossa experiência diária. Sabeis pela fé que a vida eterna é um dom de Deus. Quando tiverdes mais fé e o poder do alto (o Espírito da Verdade) tiver penetrado em vós, não ocultareis a vossa luz. Aqui, atrás das portas fechadas, dareis a conhecer a toda a Humanidade o amor e a misericórdia de Deus. Por   medo, fugis agora diante de uma experiência desagradável. Mas, ao serdes batizados pelo Espírito da Verdade, ireis felizes e contentes propagar as novas experiências da vida eterna no reino do Pai. Por uns instantes, desviei os olhos da aparição - ou não deveria chamá-la assim? - concentrando-me, na medida em que mo permitia a minha perturbação, na ativação dos ultra-sons e da teletermografia, que se mostrariam também de notável utilidade naquela primeira análise, apressada, daquele homem incrível. - Podeis ficar aqui ou na Galiléia durante um curto período - disselhes Ele, baixando ligeiramente o timbre da voz. - Assim podereis refazervos do golpe da transição entre a falsa segurança da autoridade do tradicionalismo e a nova ordem da autoridade dos fatos, da verdade e da fé nas realidades supremas da experiência viva. A vossa missão no mundo baseia-se no que eu vivi convosco: uma vida revelando a Deus e   em torno da verdade de que sois filhos do Pai, como todos os homens. Esta missão concretizar-se-á  na vida que levareis entre os homens, na experiência afetiva e viva do amor a todos eles, assim como eu vos   amei e servi. Que
a fé ilumine o mundo e a revelação da verdade abra os olhos cegos pela tradição. Que o vosso amor destrua os preconceitos gerados pela ignorância. Ao aproximar-vos dos vossos contemporâneos com simpatia compreensiva e uma entrega desinteressada conduzi-los-eis à salvação pelo conhecimento do amor do Pai. Os Judeus   exaltaram a bondade. Os Gregos, a beleza. Os Hindus, a devoção. Os   antigos ascetas, o respeito. Os Romanos, a fidelidade. Mas eu peço a vida dos meus discípulos. Uma vida de amor ao serviço dos seus irmãos na carne. Após este discurso, o Mestre fez uma breve pausa. E concentrando nos olhos de Tomé aquela mágica luz e aquela força aguda que os seus olhos continuavam a irradiar, disse-lhe sem ar de censura:   - E tu, Tomé, que disseste que não acreditarias a não ser que me visses e pusesses os teus dedos nas feridas dos cravos dos meus pulsos, agora me vês e me ouves. Olhei de soslaio para o espantado discípulo. Estava lívido. Apesar de não veres nenhum sinal dos cravos. Jesus acompanhou aquelas palavras com um movimento dos braços. Levantou-os até as palmas da mão ficarem à altura do rosto e, por efeito   da gravidade - outro detalhe a considerar - as amplas mangas deslizaram para baixo. Os antebraços e pulsos, de fato, não apresentavam cicatrizes ou sinais das torturas sofridas.   Os olhares de todos - como os de um só homem - fixaram-se nos   membros superiores do Rabi, que ficou uns segundos na mesma posição. Foi desconcertante! A sua pele estava limpa, com os mesmos pêlos abundantes de antes e com as veias perfeitamente marcadas. - Pois agora vivo sob uma forma que tu também terás quando deixares este mundo - retomou o seu importante esclarecimento. - Que dirás aos teus irmãos? O próprio Jesus respondeu à sua pergunta: - Reconhecerás a verdade, pois, no teu coração, Já tinhas começado a crer, apesar de manifestares insistentemente a tua incredulidade. É este precisamente o momento em que as dúvidas começam a desmoronar-se. Tomé, peço-te que não percas a fé. Crê. Sei que crerás com todo o teu coração. Ao ver os pulsos do Mestre e ouvir estas palavras, Tomé levantou-se do divã e caiu de joelhos no soalho. E, assustado, exclamou:   - Creio, meu Senhor e meu Mestre! Foi a única vez que vi Jesus sorrir. Foi um sorriso fugaz mas claro. E o homem replicou:
- Tu creste, Tomé, porque me viste e ouviste. Bem-aventurados nos tempos vindouros. Gelou-se-me o sangue nas veias. Jesus girou ligeiramente o rosto, fitando-me nos olhos. E repetiu: - Bem-aventurados nos tempos vindouros os que acreditarem sem me terem visto com os olhos da carne, nem ouvido com os ouvidos humanos! Um misto de emoção, medo e vontade de gritar inundou a minha alma, deixando-me como morto. Concluídas estas frases históricas caminhou para a ponta da mesa em que eu estava e, ao chegar ao pé de mim voltou-se para as espantadas testemunhas. E os sistemas eletrônicos da vara conseguiram examiná-lo a todo o comprimento e a toda a largura das suas costas. Então, em despedida, comunicou-lhes: - Agora, ide todos para a Galiléia. Ali vos aparecerei muito em breve. Voltou-se novamente para mim, sorriu-me e caminhou devagar, sem pressa, para a penumbra da parede por onde o víramos entrar. E deixamos de o ver. Simplesmente, dissipou-se. E eu, com os dispositivos ligados, continuei de pé, como uma estátua, tão absorto, perplexo e confuso como os outros. Nem sequer percebi da imediata e tumultuosa confusão que explodiu na sala.   Claro que, ao regressar à nave e fazer a leitura do squid e dos restantes sistemas ultra-sônicos de ressonância magnética nuclear e teletermográficos, a minha surpresa foi ainda maior. Aquele corpo, entre outras características incompreensíveis, tinha duas que iam contra todos os princípios físicos estabelecidos: não tinha sangue nem aparelho digestivo. Deus do Céu! Dai-me forças para continuar o meu relato! Incompreensivelmente para mim, os documentos do Major terminam aqui. E como o leitor pode ver, repentinamente. Como se alguma coisa ou alguém tivesse impedido a sua continuação. No fim da última e patética súplica - Deus do Céu! Dai-me forças para continuar o meu relato! - o meu amigo introduz umas frases enigmáticas. Eis o texto completo:
VÒ, ENVIO O MEU MENSAGEIRO DIANTE DE TI MARCOS 12 HAZOR É O SEU NOME E AS SUAS ASAS LEVAR-TE-ÇO AO GUIA MARCOS 620 O NÚMERO SECRETO DAS SUAS PENAS
É O NÚMERO SECRETO DO GUIA, O QUE HÁ-DE PREPARAR O TEU CAMINHO
Ignoro, por hora, o seu significado. Mas imagino que deve ter uma estreita relação com o resto do Diário. Esse ´r, pelo menos, o meu desejo mais ardente. E suplico a todos os que lerem este enigma tão intrincado e conseguirem decifrá-lo, que se dignem informar-me. A minha ânsia e o meu interesse pela figura e pela mensagem de Jesus de Nazaré não começaram senão a despertar. Com a minha gratidão.

 

 

                                                                                                    J. J. Benitez

 

 

 

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