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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA - 3
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA - 3

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Muitas pessoas, após a leitura dos volumes anteriores de Operação Cavalo de Tróia, fazem-me a mesma pergunta: «Mas é verdade? Tudo isto é crível?» E vejo-me obrigado a repetir a única coisa que sei: que tais documentos existem e que – embora alguns se empenhem em afirmar o contrário – a minha imaginação não é assim tão grande. Desafio quem o deseje a elaborar uma Vida de Cristo tão rica de lógica, audácia e beleza. Não é assim tão simples «inventar discursos de Jesus de Nazaré» [...] ou esses trinta e dois anos que os crentes designam como «vida oculta». Inventá-los, claro, com dados nomes, acontecimentos e circunstâncias credíveis. [...] Em suma – e não me cansarei de insistir nisso -, é o coração do leitor que deve «sentir» se estas narrações acerca de Jesus são ou não credíveis. Que cada qual, portanto, no mais íntimo do seu ser, julgue e decida de acordo com os ditames da sua consciência. Essa nunca se engana...


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A Irma e Jenny Ao fim de uma rápida caminhada penetrámos num amplo salão em obras. À escassa luz de algumas lâmpadas presas das colunas, envoltos numa atmosfera de gesso fresco e de madeira acabada de serrar, quatro indivíduos lidavam com pranchas e martelos. Um deles, curvado sobre uma tina de cimento, cantarolava uma dolente melopeia árabe. Cerrei os punhos, dominado pela emoção. Qual dos atarefados trabalhadores seria o depositário daquilo por que tanto ansiava? Depois de identificar o nosso homem, o meu acompanhante passou pelos operários mais próximos, saudando-os com repetidas e amistosas palmadas nas costas. Vi-o chegar até junto daquele que remexia a massa e, inclinando-se, sussurrar-lhe alguma coisa ao ouvido. Então ambos se ergueram, observando-me da penumbra. A iluminação deficiente impediu o homem de dar-se conta da minha curiosidade ostensiva. No entanto, mantive-me quieto, como sugerira o meu improvisado guia. Presumo que as palpitações do meu coração devem-se ter ouvido num amplo raio em volta. Mas ninguém parou a sua tarefa. Concluído o breve diálogo, aquele que trabalhava de pedreiro atirou com a ferramenta para o balde da massa e, esfregando as mãos nas calças, avançou na minha direcção. Não pude evitá-lo. Comecei a tremer. Teria chegado o grande momento? Que poderia eu dizer-lhe? Como abordar tão peregrina e enigmática história? Espanha Sim, aquele foi de facto um momento de alta tensão. Em poucos segundos, tudo ficou esquecido: as intermináveis jornadas de nervosa e, por vezes irritante busca a solidão dos caminhos e mesmo os múltiplos assomos de desespero e de tentativas de abandono. Como ao fim de um pesadelo num abrir e fechar de olhos, tudo isso passou para as páginas da recordação. No entanto, em atenção e agradecimento a quantos se sentiram atraídos por este enigma ou me encorajaram a não desanimar em semelhante empresa, será bom que relate, ainda que apenas de modo sucinto, algumas das peripécias, sucessos e desventuras em que me vi
envolvido por obra e graça do criptograma que serve de fecho ao volume anterior: Operação Cavalo de Tróia II. As pessoas que tenham lido o primeiro volume recordarão, sem dúvida, como, para me entender com o fascinante Diário do major norte-americano, em que se contam os últimos onze dias da vida de Jesus de Nazaré, foi necessário uma paciência quase franciscana. Naquela tarefa de tipo policial desempenharam um papel decisivo um total de cinco enigmáticas e aparentemente absurdas frases: A SENTINELA QUE VELA DIANTE DO TÚMULO REVELAR-TE-Á O RITUAL DE ARLINGTON. CHAVE E RITUAL CONDUZEM A BENJAMIM. ABRE OS OLHOS PERANTE JOHN FITZGERALD KENNEDY. O IRMÃO DORME EM 44-W. A SOMBRA DA NESPEREIRA COBRE-O PELO ENTARDECER. PASSADO E FUTURO SÃO O MEU LEGADO. Pois bem, como ia dizendo, o jogo favorito do Major – os criptogramas – não tinha terminado. O manuscrito apresentava-se bruscamente interrompido, precisamente no final da histórica jornada de domingo 16 de Abril do ano 30 da nossa era, após a primeira das misteriosas aparições do Ressuscitado aos seus onze íntimos. Inexplicavelmente, pelo menos para mim, a narração ficava interrompida no ponto em que os apóstolos e o berço se dispunham a viajar rumo a norte, para a Galileia. Como fecho, após uma patética súplica – Deus do céu! Dai-me forças para continuar o meu relato! -, o Major rematava o seu Diário com este segundo e não menos inquietante enigma: ENVIO O MEU MENSAGEIRO DIANTE DE TI MARCOS 1. HAZOR É O SEU NOME E AS SUAS ASAS LEVAR-TE-ÃO AO GUIA MARCOS Ó.Z.O O NÚMERO SECRETO DAS SUAS PENAS É O NÚMERO SECRETO DO GUIA,
O QUE HÁ-DE PREPARAR O TEU CAMINHO MARCOS 1. Como é natural, eu conhecia esta suposta chave muito antes de ela vir a público, em Março de 1986. Nessa altura não podia imaginar o porquê de tão dramático e exasperante final. Que se tinha passado? Terminava ali a aventura de Jasão? Tudo parecia indicar que não; que o Diário se deteria nas restantes aparições do Mestre. Ou seria apenas o meu ardente desejo de continuar a conhecer novos pormenores sobre Jesus? Durante algum tempo, muito a contragosto, vivi com uma inseparável sensação de raiva, quase de frustração. Não me sentia com forças para dar início a uma segunda e incerta exploração do criptograma. E pouco faltou para que, antes mesmo de qualquer tentativa, esquecesse ali mesmo e para sempre este novo desafio. Mas está claro que cada ser humano vem a este mundo com uma ou várias tarefas das quais ninguém pode dispensá-lo, nem sequer o próprio. E o meu destino é, claramente, sair de uma aventura para me meter noutra... O facto é que – tal como temia – aquele meu distanciamento relativamente ao último código do Major foi temporário. Essa força que vive em mim encarregou-se de dissipar os iniciais sentimentos de impotência e de desencanto, arrastando-me, subtil e magistralmente para o inevitável. E um belo dia pus de lado as minhas outras indagações e pesquisas e aceitei o repto. Não sei se vale a pena insistir nisso. As minhas primeiras escaramuças com este segundo enigma foram tão estéreis como desencorajadoras. Durante semanas não fiz mais que aborrecer-me sem remédio. Agora, com a vantagem do tempo entretanto decorrido compreendo que incorri, naquela altura, em dois erros. Influenciado pelo primeiro dos criptogramas, suspeitando mesmo que existia uma relação entre ambos, esforcei-me por descobrir alguma pista que me levasse a uma nova chave ou apartado dos Correios. O meu desejo era que este mistério pudesse materializar-se em outro maravilhoso maço de folhas manuscritas, ou seja, naquilo que eu supunha ser a continuação do Diário do Major. Foram estes, de facto, os primeiros e lamentáveis equívocos que vinham a atrasar o
meu trabalho. Desde o início houve uma frase que me perturbou: O que há-de preparar o teu caminho; MARcos,12. Que queria isso dizer? Qual era esse caminho? Ou não se tratava de um caminho, tal como eu supunha? Agora vejo com clareza. Oxalá tivesse sido então suficientemente hábil para esquecer a ideia preconcebida de um legado, canalizando as minhas forças para outras possibilidades. Mas as coisas tinham de seguir o seu curso natural. Nem é preciso dizer que gastei dezenas de horas entretecendo as mais afastadas e mesmo inverosímeis possibilidades, dentre as hipotéticas combinações de letras, palavras e frases. Tal como no primeiro desafio. Baralhei incansavelmente os vocábulos do criptograma, à procura de uma secreta leitura do mesmo. Fracassei vezes sem conta; aquilo não fazia o menor sentido. Nem no original, em inglês, nem em castelhano, consegui alinhavar uma única frase que projectasse um pouco de luz no meu cérebro exausto. Pensei por vezes que me estava a envolver em elocubrações tão profundas quanto inúteis. Talvez a solução se encontrasse mesmo à superfície, do enigma. Contudo, obstinado em tais maquinações, levei muito tempo a compreendê-lo. Lembro-me, ao rever agora as minhas notas, que houve uma altura em que cheguei a tomar o caminho certo. Abstraindo dos três exasperados MARcos e das suas respectivas numerações, a mensagem do Major – aceitando-a como tal – apresentava uma certa lógica, dentro do hermetismo próprio de qualquer criptograma. Nesta perspectiva, e lido correntemente, o texto rezava assim: Olha, envio o meu mensageiro diante de ti. Hazor é o seu nome e as suas asas te levarão ao guia. O número secreto das suas penas é o número secreto do guia, o que há-de preparar o teu caminho. A mais elementar dedução – digamos que lendo à superfície colocou perante mim duas personagens aparentemente distintas: o mensageiro, cujo nome era Hazor e um guia. Esforçando-me por deslindar as imtenções do meu amigo, o Major, considerei uma infinidade de hipóteses. Quem era esse tal Hazor, mensageiro alado? Que significaria que o enviava diante de mim? Seria preciso
esperar que algo ou alguém aparecesse na minha presença? Desde o primeiro instante afastei a última incógnita. Conhecendo um pouco o estilo labiríntico do ex-oficial da Força Aérea norte-americana, era mais que duvidoso que quem se confrontasse com o enigma devesse sentar-se e aguardar a misteriosa aparição do citado Hazor... O Major jogava mais uma vez com os símbolos, e era esse o problema. Evidentemente, a prosseguir com essa interpretação literal o mensageiro dispunha de asas e de penas. Pensei num açor, a conhecida ave de rapina. Mas, além do H a mais, a árdua tarefa de contar o número exacto de penas dessas aves predadoras fez-me desistir. Consultei peritos ornitólogos. As respostas – como imaginava – foram desanimadoras: era muito difícil, quase impossível, encontrar dois açores com o mesmo número de penas. Claro que também podia tratar-se de um açor de pedra, ou de uma pintura dessa ave, escondidos sabe Deus em que lugar do Mundo. A possível pista apresentou-se-me tão débil quanto trabalhosa. E a pouco e pouco foi-se diluindo entre as minhas mãos. Foi por aqueles dias de 1985 que, ao seguir o rasto do mensageiro, numa das primeiras consultas bibliográficas, surgiu perante mim como que um presságio. Hazor ou uHãsõr existia de facto. Li aquela documentação sofregamente. Tratava-se de uma remota cidade bíblica, localizada no topo de um tell, ou colina artificial, denominado Tell el-Quedah ou Tell Waqqãs, entre os lagos el-Hñleh e Tiberíades, a norte de Israel. Como dizia, foram instantes de lucidez e de lógica excitação. Uma cidade bíblica chamada Hazor? Não estava lá a chave? Mas, infelizmente, ao voltar ao enigma, as minhas tímidas esperanças caíram por terra. Nele falava-se de um mensageiro, não de uma cidade. Era muito possível que o Major tivesse conhecido Hazor, mas como associar a hipótese de um ser com asas e um conjunto de ruínas arqueológicas? O meu já proverbial torpor e talvez um asfixiante sentido da racionalidade sepultaram aquilo que, sem qualquer dúvida, teria sido uma excelente intuição. Quando aprenderei eu a deixar-me levar por esse oculto e maravilhoso sentido? Além disso, e para eliminar de vez esta luz inicial, os três
Marrcos e os números que vinham junto apanharam-me como autênticas ratoeiras. Simplesmente, perdi-me na astuta armadilha do Major. Logo desde o início, quase desde a primeira leitura do criptograma, várias das frases – com o ardiloso remate do Marcos 12 ou Marcos 6.2.0 – levaram-me inexoravelmente à Bíblia. Reli o Evangelho de Marcos e comprovei como parte do Capítulo 1, versículo 2, era de facto idêntico ao escrito pelo Major na primeira, segunda e última linhas. O citado evangelista diz, textualmente, em 1,2: Começo do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Conforme está escrito no profeta Isaías: “Eis que envio o meu mensageiro diante de ti, aquele que há-de preparar o teu caminho.” Quanto à segunda suposta citação do Novo Testamento (Marcos 62.0), a leitura do mesmo só contribuiu para me arrefecer os ânimos. Para começar, tal citação não existe. Eu explico-me. Não existe como Marcos 62.0, mas sim como Marcos 6,2. O escritor sagrado, no seu Capítulo 6, versículo 2, diz assim: Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de assombro e diziam: De onde é que isto Lhe vem e que sabedoria é esta que Lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por Suas mãos? Não pude ou não soube decifrar a possível ligação entre ambos os textos. Além disso, havia outro pequeno-grande pormenor que me confundia. Consultei vários especialistas bíblicos e todos foram taxativos: os números das citações do Antigo ou do Novo Testamento nunca se apresentam separados por pontos, mas sempre por uma vírgula e um guião ou com o primeiro dos números – o correspondente ao capítulo -, num tipo mais carregado. O Major tinha lido a Bíblia. Conhecia-a muito bem. Como interpretar então aquela falha? Ou não se trataria de uma falha? Neste caso, que teria querido dizer com estes três algarismos – 6.2.0 – vinculados, ou supostamente vinculados, ao nome de Marcos? Obstinado, aventurei-me no tortuoso mundo das citações bíblicas, esforçando-me por desvendar as possíveis ramificações daquelas duas passagens de Marcos. E de um texto fui saltando para outro, numa louca correria, cada vez mais vertiginosa. Talvez
fosse a minha preocupação em encadear as pistas – ou quiçá a indubitável magia do criptograma, tal como mais à frente se verá – que, de vez em quando, me fazia ver insuspeitados e assombrosos vínculos entre muitas das citações consultadas. Por sorte, e por desgraça, em princípios do ano 1986 – uma vez publicado o segundo volume de Operação Cavalo de Tróia -, comecei a receber dezenas de cartas, informações e sugestões em torno do enigma. Tudo aquilo, durante algum tempo, acabou por conduzir-me a um perigoso e permanente estado de excitação e nervosismo, muito próximo da loucura. No entanto, algumas das ideias proporcionadas pelos leitores, embora não tenham levado à solução última e concreta do criptograma, apontaram algo que jazia no mais profundo da mensagem e que, como anteriormente assimalava, lhe confere um halo mágico. Como se não tivesse sido elaborado por uma mente humana. Como se encerrasse entre as suas palavras e letras vários e preciosos tesouros, só discerníveis com as ferramentas da Cabala, da Numerologia ou da imaginação. Mas vamos por partes... Felizmente, as minhas incursões na Bíblia – sempre em busca de alguma chave segura – terminaram poucas semanas depois e como consequência de um cansaço total. O encadeamento das citações, além das mil possíveis interpretações, todas elas perfeitamente subjectivas, não me levou a nada de palpável ou de concreto. Uma destas pesquisas – pacientemente engendrada por um dos meus leitores: Luis Astolfi – levantou, em parte, o meu depauperado ânimo. Partindo do primeiro dos textos de Marcos (1,2), fomos parar a outro de Malaquias no qual pode ler-se: Eis que vou enviar um mensageiro, que preparará o caminho diante de mim... Por sua vez, como tinha já tido oportunidade de experimentar em dezenas de exemplos anteriores, esta passagem catapultou-nos para outra, também de Malaquias (4,5), aparentemente encadeada na primeira: Eis que enviarei Elias, o profeta, antes que venha o dia de Iavé, grave e terrível. E daí, com a esperança de que Elias pudesse significar alguma coisa na cada vez mais intrincada teia de aranha do enigma, fomos saltando para Malaquias (3,23), para Mateus (11, 10- 14), com um novo contributo referido à fuga para o Egipto, para Mateus (17,1-13), para Marcos (9,2-13), novamente
a Malaquias (3,1), para Lucas (1, 17-76), para João (1, 6-26), para Isaías (63,9), etc. Paralelamente, de Marcos (6,2) poderíamos passar para textos de Mateus (13,53-58) e de Lucas (4,16-30)..., e assim quase até ao infinito. Seja como for, Astolfi concluía a sua exposição com algumas frases que reproduzo literalmente e que, repito, constituíam uma possibilidade. Uma difícil e remota possibilidade, de facto, que eu já tinha ponderado anteriormente naquele manicómio. De tudo isto deduzo, dizia o meu amável correspondente, que Hazor está na sinagoga. O açor é uma ave. Ignoro por que está com H. Pode ser que nas sinagogas (ou numa em particular) exista a imagem simbólica do açor, com penas, cujo número tem algo a ver com Elias ou João Baptista. Como não conheço nenhuma sinagoga próxima, detive-me aqui. Tratar-se-ia de investigar em sinagogas e procurar um açor (imagem ou outra coisa), ver se o H tem alguma razão de ser, contar as penas contidas nas suas asas (suponho que serão limitadas, dado tratar-se de uma imagem), ou ver se tem algum número simbólico associado, e ligar esse número com o guia Elias ou João Baptista (que ignoro o que possa representar). Isso preparará o caminho. A sugestão deu-me novo ânimo. Desenterrei a velha pista e, durante alguns dias, fiz árduas pesquisas. Foi inútil. Nem os rabinos a quem interroguei, nem a Associação para a Amizade HispanoJudaica, nem os meus amigos em Israel souberam orientar-me. E o assunto do açor nas sinagogas, do guia Elias ou João Baptista foi arquivado. Era preciso abrir novos caminhos, novas possibilidades. Mas quais e em que direcção? Uma coisa eu tinha aprendido naquele caótico vaivém pela Bíblia, deslumbrado pelas alusões evangélicas do Major: estas, quase seguramente, não tinham qualquer relação com o decifrar do criptograma. O meu instinto dizia-me que eram uma pura miragem. Um truque, que fazia eventualmente parte do jogo. E esse firme, se bem que subjacente, sentimento continuava a recordar-me uma palavra, uma pista – Hazor – que eu, com idêntica obstinação, teimava em relegar. Para quê enganar-me e enganar o leitor? Logo desde o
início, desde que soube da existência da cidade bíblica, compreendi que tinha de viajar para Israel. Mas antes, talvez pelo meu exacerbado espírito analítico, tratei de esgotar até à última probabilidade. Em algum momento deste desordenado relato – que reflecte em certa medida o carácter precipitado e confuso da minha própria pesquisa – fiz alusão à inegável magia contida no enigma. Pois bem, esta seria outra das causas das minhas contínuas e prolongadas divagações em direcções aparentemente improdutivas, em ordem à solução do criptograma, mas todas elas fascinantes. Nunca me cansarei de repeti-lo: a mensagem parece ter vida própria. Encerra e esconde outras mensagens secundárias que, sei-o bem, maravilharam todos os leitores que tiveram a paciência e o instinto de as descobrir e trabalhar. Uma dessas surpresas chegou-me vinda da Cabala. Embora continue a ser um lobo solitário em muitas das minhas aventuras e investigações, compreendi há muito que o trabalho em equipa produz sempre resultados altamente proveitosos. Daí que, sem tergiversar, a partir da altura em que fiz meu o novo desafio do Major, tenha solicitado a opinião e generosa ajuda de um grupo de peritos nas mais variadas disciplinas. E os cabalistas aceitaram, naturalmente, o que à primeira vista se apresentava apenas como um jogo. Seria fastidioso esmiuçar aqui as assombrosas deduções que, um após outro, estes estudiosos da outra face da Bíblia foram extraindo do enigma. Sirva de pequena amostra daquilo que afirmo a parte inicial de uma das missivas, vinda de um eminente médico – o doutor Larrazábal -, em resposta às minhas solicitações. A primeira coisa que chama a atenção, escrevia este notável investigador da Cabala, referindo-se ao criptograma, é o nome do mensageiro: Hnzor. Que ave tão rara essa, porquanto em espanhol «azor» não se escreve com `h. Logo, este nome está camuflado e quer dizer outra coisa. Esta forma de ocultar palavras é frequente nos livros sagrados e resolve-se mediante uma operação chamada «Gilgul», que em hebraico significa transposição e que consiste em transpor a ordem
das letras da palavra para descobrir o seu real significado. Por exemplo: o Êxodo diz “enviarei diante de ti a Mlaki [o anjo).” Por transposição obtemos Mikael, o arcanjo guia e protector do povo hebreu. Assim, por transposição da palavra HnzoR, obtemos ZoHAR, que em hebreu significa luz. O Zohar, juntamente com o Sepher Ietzirah, constituem os dois principais tratados de Cabala teórica, tal como o Tarot e as Schemanphoras o são da Cabala prática ou aplicada. De maneira que já temos o nome do “mensageiro”; agora vam contar as suas “penas” para ver se averiguamos a natureza do “guia” e do “caminho”. A palavra Zohar consta, como vês, de três letras hebraicas, que têm os seguintes valores numéricos: resch = 200, hé = 5 e zain = 7. Ou seja, os três somados, 212. Estas seriam as “penas do açor”: e o seu número secreto (2 + 1 + 2), o 5. Se te lembrares agora do que te escrevi na minha carta anterior, o “cinco” constitui o número secreto de Jesus. Lembrar-te-ás que eu te dizia que “Iavé” era o grande nome de quatro letras – o “quatro” -, ao passo que “Iesué” era o “cinco”, assim como a grande relação que existia entre ambos os nomes. Não insistirei nisso. Este “cinco”, repito, é o número secreto de Jesus, porque a sua valorização numérica, correspondente a cada letra hebraica, dá a soma total de “2”. Isto é lógico, já que é a manifestação do Verbo ou segunda pessoa da Santíssima Trindade. O “dois” seria, portanto, o seu número “natural”, ao passo que o secreto seria o “cinco”, por provir do seu grande nome de cinco letras... Deste modo, as asas do “hazor” levaram-nos ao guia que veio preparar o nosso caminho. Acerca deste Guia não farei nenhum comentário; tu conhece-lo melhor do que eu, e sabes que Ele mesmo é o caminho... “Mas prossigamos e vejamos o que é que nos diz Zohar do “caminho”. Para tanto, vamos utilizar um processo diferente. Em vez de tomar os valores numéricos cabalísticos das três letras da palavra, vamos dispor, simplesmente, dos números de ordem em
que tais letras aparecem no alfabeto hebraico. Assim, resch é a letra 20; hé é a 5 e zain a 7. De modo que 20+5+7=32 (que também daria “5”). Deste modo temos o número principal que se desprende do conteúdo da análise do Zohar: o 32. São, precisamente, os 32 “caminhos” do Sepher Ietzirah, ou Livro da Formação... O estudo, apaixonante, atinge níveis inimagináveis, só compreensíveis para os que conhecem os mistérios da Cabala. Mas não vou alongar-me nos “achados” do meu bom amigo e conselheiro, doutor Larrazábal. Apraz-me que o leitor jogue e participe comigo, ainda que só minimamente, em todas e cada uma das minhas iniciativas. E esta é outra magnífica oportunidade para que, quem o deseje ou se sinta atraído pelo oculto, aceite o desafio e prossiga, por si mesmo, a “exploração” do enigma através dos insuspeitados meandros cabalísticos. A sua surpresa será seguramente tão grande como a minha. Para já, estas descobertas – do ponto de vista da Cabala permitiram-me dispor de algo mais concreto: o número secreto das penas de Hazor, o mensageiro, era o 212. Consequentemente, o do não menos fugidio “guia” tinha de ser o mesmo: o 212, ou a soma destes. Mas a questão, longe de se clarificar, continuava a apresentar-se muito nebulosa. Admitindo que tivesse descoberto o “número secreto”, qual seria o passo seguinte? O enigma dizia claramente que “as asas de Hazor, o mensageiro” me levariam ao guia. Agora a questão era: onde encontrar essas asas? Por outro lado, embora carecesse de provas contra a dedução do médico e cabalista, a sugestão de que o guia podia ser Jesus de Nazaré apresentava-se-me como vaga, demasiado espiritual. Não era esse o estilo do Major... Assim, apesar da nuvem de dúvidas que toldava o meu horizonte, não tive outro remédio senão maravilhar-me perante o insuspeitado e hermético potencial daquelas oito frases. Como, de que modo, teria conhecido o Major semelhante enigma? Teria tido consciência, na altura da sua elaboração, de tão secreta e sugestiva leitura cabalística?
Depois de baralhar várias hipóteses, houve alturas em que, sinceramente, cheguei mesmo a duvidar da paternidade do exoficial norte-americano relativamente à mensagem. Como é óbvio, acabaria por afastar tais pensamentos. Aquela letra era de facto a do meu amigo, o Major. E havia ali – tinha de haver! - algo de oculto que eu não conseguia desvendar. E uma vez mais naqueles meses, à vista da estéril sucessão dos dias, caí noutro obscuro período de desalento. A situação era análoga à vivida nas semanas que precederam a resolução do primeiro criptograma. Talvez ainda mais dolorosa, se é que era possível. Sentia-me perdido. Cravado na minha alma, o enigma transformou-se num fantasma, que me acompanhava dia e noite. Cada letra, cada palavra, levantavam-se como grades espessas de uma prisão. Via-o como uma obsessiva alucinação, em qualquer dos meus movimentos. Mas o Destino não permite que um ser humano enlanguesça ou fique para sempre imerso na confusão. E ao caminhar, quando menos se espera, lá aparece uma mão, uma voz, um amigo ou uma ideia que nos devolve a coragem e, o que é mais importante, a esperança. E foi justamente o que me aconteceu em plena Primavera de 1986. Aquelas duas cartas constituíram um lenitivo. Eu continuava a receber numerosa correspondência. A maior parte dos meus correspondentes – quase todos de boa-fé -, tão inquietos e ansiosos por desvendar o mistério como eu próprio, esmagavam-me com um variadíssimo rol de possíveis pistas e soluções. Referir-meei mais à frente a algumas das mais insólitas. A questão é que, como ia dizendo duas dessas missivas fizeram o milagre de oxigenar o meu espírito, devolvendo-me à luta. Uma delas, proveniente de Corrientes, na Argentina, insistia na necessidade de eu prestar toda a minha atenção à cidade bíblica de Hazor. Mas o que mais me emocionou na carta assinada por Eduardo Alfredo López foi este brevíssimo parágrafo: [...] Rezo muito por si. Trago o enigma numa bolsinha de nylon atada ao meu pulso. Levo-o, rezando, para todo o lado: no autocarro, enquanto trabalho... Talvez possa parecer uma ninharia. Para mim, no entanto, e para o meu fatigado coração, foi uma verdadeira descarga eléctrica.
A segunda carta chegou em 20 de Abril. Vinha de Dublim. Assinava-a Maria-Ángel, uma excelente amiga. No início desse ano eu visitara a Irlanda e, deixando-me levar por uma intuição, comunicara-lhe o enigma. Creio, se não me falha a memória, que foi uma das raras pessoas que teve conhecimento da mensagem do Major antes de aparecer publicada no meu segundo volume. E, sinceramente, dado o longo silêncio da minha amiga, quase esqueci o assunto. A minha surpresa, ao receber a sua mensagem, foi total. O árduo trabalho de investigação levado a cabo pela jovem abria um novo e desconcertante caminho, que, de resto, vinha confirmar o mágico halo do criptograma. Quando me entregaste o enigma, dizia na sua carta, não sabia sequer o que fazer com ele. Estive mesmo para não fazer caso dele, até que me ocorreu dar a cada letra um valor numérico. Assim, o “a” valia 1, o “b” 2, etc., até ao “z”. (Não tive em conta o “w” nem os grupos “ch” e “rr”.) O segundo passo foi somar esses valores, reduzindo sempre o resultado a um dígito apenas, com o que cada frase equivalia a um número concreto... A primeira somava “1”; a segunda “7”; a terceira 8; a quarta “6”; a quinta “2”; a sexta “7”; a sétima “3”; e a última frase, também “3”. Quer dizer, no total, 37. Ou, o que é o mesmo, 3+7=10=”1”. A unidade!... Esta descoberta de Maria Ángel, insisto, foi providencial. Estimulou-me, libertando-me das pesadas trevas em que mergulhara. E da noite para o dia, a força que vive em mim empurrou-me para uma procura febril. Estaria a chave nos números? A partir daquela altura experimentei todo o tipo de conversões e combinações numéricas. De um ponto de vista ocultista, o facto de o criptograma ter somado UM era altamente significativo. Os peritos em Numerologia e Cabala sabem-no bem... Coloquei o problema nas mãos de matemáticos e de especialistas em computadores e o mágico halo do enigma reapareceu em todo o seu esplendor. Aquilo era desconcertante. Enlouquecedor. O total das letras em espanhol - contabilizando os números das citações, ou supostas citações bíblicas, como outras tantas letras – era de 170. Na versão original, a inglesa, e seguindo
o mesmo processo, o volume total de dígitos ou símbolos a manejar era de 184. Pois bem, tendo em conta cada um dos alfabetos – o espanhol e o inglês -, as combinações possíveis para cada caso deram um resultado de pôr os cabelos em pé: 2910 para o castelhano e 275 para o inglês. As sucessivas tentativas dos hábeis programadores de computadores para obter a combinação concreta que configura o enigma, partindo dos mencionados parâmetros, foram-se escaqueirando irremediavelmente. O parecer final foi demolidor: qualquer computador de média capacidade precisaria de cerca de trezentos anos (!) para obter essa combinação específica, ressalvando, naturalmente, que a concretização da mesma poderia sugir em qualquer momento desses três séculos. E a velha interrogação não se fez esperar: como é que um ser humano pode conceber um texto de tão diversas e simultâneas leituras secretas? Os especialistas em informática replicaram com a única resposta ao alcance da ciência: tudo é fruto do acaso. Mantive silêncio. No mais íntimo do meu ser, eu sabia que a casualidade jogava um papel insignificante em tudo aquilo. Provavelmente até nenhum. A pista da Irlanda, em suma, mostrou-se duplamente útil. Fez com que me erguesse das minhas próprias cinzas e,definitivamente, por eliminação, pôs-se num rumo que eu tinha deixado para trás: Hazor. E digo por eliminação porque, ao fim e ao cabo, todas aquelas sugestivas possibilidades – Cabala, Numerologia, etc. -, embora intrigantes e dignas de estudo, não conduziam a um final como o que eu desejava e necessitava. A minha obsessão era mais prosaica: acertar com uma chave que pusesse ao meu alcance o resto do Diário do Major. E Hazorfosse lá o que fosse – apresentava-se-me como algo de concreto de físico, de tangível. Os laboriosos estudos de Numerologia tinham, além disso, colocado à minha disposição outra subtil informação, muito ao estilo de Jasão. Ao analisar o texto em inglês do criptograma, numa das leituras verticais, vi com clareza o problema. A primeira palavra de cada uma das oito linhas da mensagem formavam uma frase com uma certa
Lógica: «LOOK AHEAD HAZOR AND TO THE IS HE» OLHA DIANTE HAZOR E A O É ELE). Instintivamente, desdobrei o conjunto em duas partes: Olha diante de Hazor e a o. É ele. E lembrei-me como, no primeiro enigma, o Major se tinha servido deste sistema para reafirmar a sua mensagem: A chave abre o passado. Eu tinha reparado na existência desta frase forçada durante as primeiras tentativas, quando sujeitei os vocábulos e dígitos do criptograma a toda a espécie de saltos e permutas. Mas nessa altura, alheio ao verdadeiro peso de Hazor, não me detive nisso. Agora, porém, ganhava uma especial dimensão. O Major parecia insistir na transcendência dessa palavra. Olha diante de Hazor... Não havia dúvida. O objectivo era Hazor. Era necessário localizá-lo, situar-se perante ele e analisá-lo. Fui eu o primeiro a ficar surpreendido diante daquela súbita e incontível vaga de entusiasmo e coragem. Era tão absurdo como paradoxal. Ardia em desejos de investigar algo que nem sequer sabia onde procurar... É certo que existia um hipotético indício: as ruínas arqueológicas israelitas. Mas tratava-se apenas disso mesmo: um indício. Apesar de tudo, e não obstante as censuras do meu senso comum, tomei a firme decisão de viajar até Israel. A verdade é que, no fundo, não tinha outra alternativa: ou me deixava levar pela intuição ou perdia a batalha. A minha fraca memória não me permite recordar com precisão como nasceu em mim aquela ousada ideia. O caso é que, dias antes da partida, activei um plano que – não sei se acertadamente – foi concebido como uma cortina de fumo. Contactei o então embaixador israelita em Madrid e, sem rodeios, pedi-lhe que me concedesse uma entrevista. Eu já conhecia Samuel Hadas muito antes de ele ter sido nomeado para este cargo e, desde o nosso primeiro encontro, reconheci nele as maneiras e o estilo de um homem aberto e fundamentalmente bom. A sua ajuda em outras investigações e consultas foi sempre crucial. A minha ardente imaginação intuía que aquela iminente viagem à Terra Santa podia complicar-se. A verdade é que não me apetecia nada passar por outro transe como o sofrido em Washington na altura de retirar do país os
documentos manuscritos pelo Major. Tinha consciência da eficácia dos serviços secretos israelitas de informações – sem dúvida, os melhores do Mundo – e optei por proteger a minha retaguarda, sendo eu a tomar a iniciativa de lhes anunciar quais eram os meus propósitos. Naturalmente – e isto fazia parte do plano -, na altura de revelar a Hadas os meus objectivos, não podia sequer insinuar o autêntico motivo daquela nova aventura: o enigma. E horas antes da minha partida para Telavive, o embaixador fez um intervalo nas suas ocupações habituais, recebendo-me no seu escritório da Rua Velázquez, na capital de Espanha. Ouviu-me com grande atenção e carinho, mostrando-se especialmente interessado por um dos capítulos: uma caminhada, a pé, de Nazaré a Belém de Judá, numa tentativa de reconstituição da histórica viagem de Maria e José, por motivo do famoso censo do imperador Augusto. Samuel tinha lido alguns dos meus 24 livros, incluindo Operação Cavalo de Tróia, e, segundo suponho, aceitou como inevitável que um louco aventureiro como eu quisesse empenhar-se em semelhante caminhada – um pouco mais de cento e setenta quilómetros -, assim como em outras investigações relacionadas com um possível terceiro volume acerca da vida de Cristo. Dessas investigações falei-lhe muito por alto. Não é que pretenda justificar-me, mas, à minha maneira, disse-lhe a verdade. Nessas outras indagações escondiase, de facto, a razão primeira do meu périplo. Prudentemente, e como prova de sinceridade, proporcionei-lhe uma cópia do mapa, com a rota a seguir desde Nazaré a Belém, pela margem direita do rio Jordão, assim como os nomes de alguns dos hotéis em que imaginava poder vir a alojar-me. Desejava que o meu comportamento fosse transparente, pelo menos na aparência. Uma vez em Israel, e embrenhado na investigação, logo se veria... Aqueles dias que precederam a viagem foram singularmente excitantes. Um formigueiro já familiar e o nervosismo, sempre premonitórios de próximas aventuras, instalaram-se no meu espírito, não me deixando respirar livremente. Eu sabia, pressagiava, que algo de muito especial me aguardava do outro lado do Mediterrâneo. Revi repetidamente o vago plano de trabalho, procurando,
intencionalmente, que a minha solitária caminhada chegasse ao conhecimento de pessoas e círculos muito específicos. Quase sem prévio projecto, por si mesma, a audaciosa ideia de repetir a viagem dos pais de Jesus à Judeia foi tomando posse do meu coração, apresentando-se como um magnífico pretexto, que desviou qualquer outra suspeita a respeito de tão repentina viagem. E cheguei mesmo a iludir-me com o que, em princípio, seria apenas uma manobra de diversão. Se falhasse na minha autêntica missão, disse para comigo próprio, sempre podia ficar-me a consolação dessa outra aventura. Tal raciocínio, para falar verdade, não conseguiu tranquilizar- me. Começava mal se, ainda antes de partir, pretendia enganar-me e justificar a viagem com um projecto alheio ao que tinha entre mãos. Procurei mentalizar-me. O meu primeiro e principal desejo era resolver o enigma do Major. Ele, segundo o texto do criptograma, enviava um mensageiro diante de mim. O seu nome era Hazor. E as suas asas deveriam levar-me ao guia. Era isso o que realmente contava. E finalmente, às treze horas e dezasseis minutos de 19 de Novembro de 1986, o airbus Islas Cies da companhia Iberia atingia os 188 nós horários. Era a velocidade limite, sem retorno, antes de se lançar no espaço. Para mim, significava também o não retorno... A sorte está lançada. No meu íntimo, sorri. Enquanto o comandante De La Torre nos elevava até à altura de cruzeiro prevista – trinta e três mil pés -, afastando-nos da costa catalã, rumo à Itália, reparei no número daquele voo: era o 888 Curioso: 888 é a equivalência numérica do nome de Jesus, em grego (1). que foi relativamente fácil, com a ajuda de uma enciclopédia. *1 – Para os Gregos, os números eram representados por letras do seu próprio alfabeto. Assim, o nome de Jesus, em grego Iesous”, adquire o referido valor numérico de 888. (I=10; B=8; S=200 O=70; U=400 e S=200.) Um número – 888 – que, reduzido a um só dígito, encerra também um profundo significado esotérico e cabalístico: o K6H. E embora ao longo dos meus quarenta anos tenha acumulado
abundantes provas para não acreditar na mera casualidade, a verdade é que não prestei atenção de maior a tão curiosa coincidência. Não podia passar a vida sujeito à tirania dos números e às suas hipotéticas mensagens secretas. Por isso, registei muito simplesmente o assunto no meu caderno de campo, convencido – isso sim – de que, pelo menos, iniciava o meu caminho com o pé direito. (Pobre pateta! Os fracassos não tardariam a devolver-me à realidade dura e crua...) No entanto, tinha diante de mim quatro longas e aprazíveis horas de voo e procurei aproveitá-las ao máximo, deixando-me arrastar num torvelinho de ideias, sonhos e projectos. Contudo, as dúvidas escondidas numa das minhas grossas pastas de trabalho continuavam à espreita. Naquela altura não podia ser de outra forma. E ao olhar com atenção algumas das anotações e cartas dos leitores dos dois volumes anteriores, a dúvida traiu-me. Estaria eu a viajar numa direcção errada? E se não fosse Israel o meu lugar de reunião com Hazor? Esbocei o gesto de fechar a documentação e fixar os meus sentidos na Palestina. Não consegui. Aquelas sugestões tinham merecido e mereciam ainda o meu respeito. Algumas dessas atentas missivas chamavam-me à atenção para a suspeita semelhança entre HnzoR e Jnsno, o nome de guerra do Major. E alertavam-me para a possibilidade de investigar nas selvas mais do Iucatão, onde o meu enigmático amigo tinha passado os seus últimos dias. A proposta não era absurda. E se o mensageiro fosse um símbolo alado, um ídolo, ou mesmo o próprio Laurencio Rodarte, fiel companheiro do Major até à sua morte? Outra das comunicações – de Santiago de los Santos, de Valênciaesboçava-me um panorama diametralmente oposto, mas tão sugestivo como o anterior. Numa minuciosa pesquisa em torno da palavra Hazor, este amigo – como acontecera com outros leitores – tinha detectado algo de interessante. E reli mais uma vez a sua carta... (...] Como suponho que saberá, dizia textualmente, Hazor é uma antiga cidade da Palestina, na Galileia. Mas o que mais reteve a minha atenção foi o facto de em 1959 terem sido descobertas nos
seus limites as ruínas de vinte e uma cidades, construídas umas sobre as outras. Outra vez o ditoso número! [...]. (O 21, como talvez o leitor recorde, constituiu uma das chaves – o ritual da sentinela do cemitério norte-americano de Arlington -, quando se tratou de resolver o primeiro criptograma.) [...] Aqui embaracei-me, prosseguia De los Santos. Levei uma semana a compreender de que forma as “asas” de Hazor poderiam levar-me ao “guia”. A chave estava em MaRcos 6.2.0 (1), ”porque Herodes respeitava João e protegia-o”. Tudo se tornou fácil ao descobrir que a cidade foi fortificada pelo rei Salomão. As “asas” tinham de ser as muralhas, e o guia, Salomão. O “número secreto das suas penas” era, evidentemente, o número de cidades construídas de modo sobreposto. Para confirmá-lo tinha de descobrir “o número” secreto do “guia”, o  *1 – Ainda um dia terei de deter-me a escrever sobre o 6, e suas curiosas vinculações com a minha própria vida. (N. do A.)
Salomão, além de ser o nome do famoso rei, é um arquipélago da Oceânia, situado no Pacífico, entre os 5 e os 12 graus de latitude sul e os 154 graus, 40 e 162 graus, 30 de latitude leste. A parte britânica do arquipélago é administrada por um conselho executivo de oito membros e um conselho legislativo de vinte e um (!). Curiosa coincidência! Era evidente que Salomão tinha de dizer-me onde encontrar o resto do Diário. E tudo devia manter relação com o número “21”. Por conseguinte, a única via tinha de ser o seu livro Provérbios. Todavia, ao ver que o citado livro não tem vinte e um capítulos, decidi concentrar a minha atenção nos versículos. Qual não foi a minha surpresa ao ler em Provérbios 1, 21: ...] grita do alto dos muros, à entrada das portas da cidade. Estava resolvido o enigma (...].
Talvez se devesse à minha natural desconfiança, ou à minha não menos acentuada lentidão, mas a verdade é que eu não via a questão de modo assim tão claro. Em todo o caso, tomei boa nota e fiz minhas as reflexões e inquietações deste dedicado leitor. Em outra das comunicações, as coisas complicavam-se ainda mais. Hazor podia ser entendido como um antigo instrumento musical, usado pelos Hebreus. Uma espécie de harpa de dez cordas oblíquas, semeIhante ao quinor e destinado a acompanhar o náblio. E aqui surgia a possibilidade: Nabeul, uma cidade da Tunísia, a dois quilómetros do golfo de Hamamet... Devia pesquisar nas ruínas de Nabeul? Ou seria antes em Veneza? Segundo este correspondente, São Marcos é o padroeiro da referida cidade italiana, sendo representado com um leão alado. Por outro lado, Veneza encontra-se a escassos quilómetros do meridiano situado a 12 graus leste do de Greenwich. (Recordemos Marcos 1.2.) E Veneza, além disso, dispõe de um gueto judaico, com uma sinagoga. (Recordemos Marcos, 6.2.0: “e no sábado pôs-se a ensinar na sinagoga”). Houve quem apontasse outro não menos perturbador caminho: o do Egipto. Na mitologia deste país, a vaca Hathor – Hazor? -poderia conduzir-me a Hórus, uma deusa com cabeça de falcão... Ter-me-ia eu enganado no rumo? Seria no Egipto que deveria investigar? E se todo o enredo – como insinuava outro leitor -obedecesse ao desejo do Major de transmitir uma data, um número de telefone ou uma determinada combinação de um cofre-forte? Como muito bem descobrira Ramon Ramos, das Canárias, entre os jogos a que os números do enigma se prestavam, um deles, por exemplo, podia ser interpretado como 12, 6, 2.012 (12 de Junho do ano 2012, na leitura espanhola, ou 6 de Dezembro do mesmo ano, segundo o costume inglês). Uma data? E que significado teria? Segundo os documentos que tinha em meu poder, o Diário – pelo menos a parte que eu conhecia – tinha sido concluído em Abril de 1979. Subtraí, somei, multipliquei e fiz mil cabalas com esta e outras sequências numéricas. Não houve resultados, ou eles foram tão pobres e incertos que apenas contribuíram para complicar o quebra
cabeças. Só uma das operações – subtrair 1979 de 2012 – parecia querer dizer alguma coisa: 33 anos ou, somando ambos os dígitos, 6. Este número tem-me mantido transtornado. E não me faltam razões para tal, como eu viria a descobrir pouco depois. Cheguei a pensar, dada a mágica natureza do criptograma, que talvez essa data – 12 de Junho ou 6 de Dezembro do ano 2012 – seja um momento de grande transcendência, ainda que eu ignore porquê e para quem... Mas será tudo questão de esperar e comprovar. E à medida que nos fomos aproximando de Telavive, posso dizer que, como um providencial milagre, este furacão de dúvidas se foi desvanecendo. E a minha mente, em branco, esqueceu a aparente teia de aranha do enigma para traçar um único objectivo: Hazor. Às dezassete horas e quinze minutos (hora espanhola), ao aterrar no aeroporto israelita de Ben Gurion, o meu coração estremeceu e uma familiar e inesgotável força me fez vibrar. Tinha chegado a hora da verdade.
Israel A noite tinha já caído sobre as longínquas luzes de Telavive. Percorri devagar os escassos metros que nos separavam do edifício terminal do aeroporto, desfrutando daquele firmamento limpo e calmo: o mesmo que, 1956 anos antes, tinha contemplado Jesus de Nazaré. E dei-me conta de como os meus joelhos tremiam. Israel sempre me fascinara. E muito mais, sem qualquer dúvida, desde que tomei conhecimento do Diário do Major. O meu objectivo naquele primeiro dia na Terra Santa era muito simples: viajar para Jerusalém, instalar-me e tomar posições. Tinha de começar por algum lado e, depois de não poucas hesitações e de apaziguar o meu instinto jornalístico, achei que o mais prático era adiar a exploração nas ruínas bíblicas de Hazor. A minha genética tendência para a análise -tão própria dos do meu signo, Virgem – ordenava-me uma outra tarefa prévia, essencial para um bom funcionamento do plano. Antes de avançar para norte convinha estudar, rever e pesquisar toda a bibliografia existente sobre a cada vez mais atraente Hazor.
Mais ainda, no meu diário de bordo, aparecia, a vermelho, uma auto-recomendação, tão vital como o referido estudo dos textos e documentos arqueológicos: Interrogar os especialistas. No entanto, como veremos mais adiante, tal como costuma acontecer-me com frequência, uma mal programada volta nas pesquisas atrasar-me-ia sensivelmente. Na realidade, as minhas preocupações, que já não eram poucas, aumentaram ali mesmo, enquanto aguardava a chegada das minhas bagagens no tapete rolante. Tudo parecia correr normalmente – incluindo a sempre delicada operação do controlo do passaporte – quando, de súbito, alguém se postou diante de mim. Lembro-me que estava absorto na inútil tarefa de adiantar o meu relógio uma hora, com o propósito de me ajustar à hora local de Israel. E digo inútil porque nunca me dei bem com estes mecanismos electrónicos... - Shalom! Bem-vindo a Israel, senhor Benítez... Levantei o olhar e, perplexo, observei um indivíduo jovem, magro e de aspecto nórdico. Sorria dissimuladamente, talvez divertido perante o meu estúpido esgar de espanto. Falava um castelhano correcto, com aquele indelével e característico sotaque dos argentinos. Disse chamar-se Livne e representar a agência de turismo através da qual eu adquirira a minha passagem. Mostrou-se requintadamente amável e solícito, interessando-se de vez em quando, e com a habilidade muito própria dos serviços de informação, pelos motivos da minha viagem, lugares que pretendia visitar, amigos ou conhecidos em Israel e mesmo pelas características da minha aparelhagem fotográfica. Tudo isto me pôs de atalaia, decidindo-me a ver-me livre dele o mais depressa possível. As minhas suspeitas ficaram quase confirmadas quando, já a caminho da saída, Livne, espontaneamente, me confessou ter lido Operação Cavalo de Tróia, fazendo generosos elogios ao livro. Era muito pouco crível que aquele judeu tivesse conhecimento do meu trabalho, a não ser que figurasse no dossier que, com toda a probabilidade, tinha sido transmitido a partir da embaixada israelita em Espanha. Imaginava, naturalmente, que desde a minha visita a Samuel Hadas, os serviços hebraicos de informação estavam
ao corrente dos meus movimentos. O que não conseguia entender era o motivo de tão fulminante recepção. Horas mais tarde, já no hotel, tive um pressentimento. Não sei se o meu loquaz amigo acusou o toque. Quero crer que sim. A verdade é que, submissamente, aceitou o meu desejo de viajar sozinho para Jerusalém. As minhas contínuas evasivas e meias respostas evidenciavam a minha mal disfarçada desconfiança. E o homem, como disse, cedeu, aconselhando-me – isso sim – que, antes de pôr em marcha as minhas investigações, procurasse contactar com ele ou com qualquer dos organismos oficiais do país. Estava tudo muito claro. E, devolvendo-lhe o mesmo falso sorriso, perdi-me no meio do trânsito do Ben Gurion. Uma hora depois, o taxista árabe deixava-me à entrada do Hotel Moriah Jerusalém, a sudoeste, relativamente próximo da Cidade Velha. O encontro com o suposto agente secreto israelita deixarame desconcertado. Que se passava? Porquê aquela estreita vigilância? Para falar verdade, eu era apenas um inofensivo jornalista, ansioso por percorrer Israel e reunir informação sobre um assunto tão pouco comprometedor como a vida de Cristo... Ou haveria mais alguma coisa? E nessa noite, na solidão do quarto 724, fazendo um esforço por recordar a minha conversa com o embaixador israelita em Madrid, ressaltou um pequeno pormenor. Quase uma ninharia, mas que, agora que o recordo me lembro que alterou fugazmente o rosto de Hadas. Naquela altura, entre as minhas múltiplas investigações, figurava uma que, envolta como estava em tão densas trevas, não duvidaria em abandonar no esquecimento. Refiro-me à pouco clara queda de um avião da Iberia, em 19 de Fevereiro de 1985, no monte Oíz, no País Basco. Nunca pus em dúvida o profissionalismo e a perícia dos pilotos, e na verdade, aquele suposto acidente, em que pereceram 148 pessoas, despertou a minha insaciável curiosidade. Trabalhei silenciosa e meticulosamente na possível reconstrução dos factos, averiguando alguns pormenores tão estranhos como alarmantes. Em resumo: segundo informações confidenciais dos serviços de informação espanhóis, havia um alto índice de probabilidade de
que o Boeing 727, Alhambra de Granada, tivesse sido derrubado por um míssil terra-ar – talvez um Sam-7 ou um Strella – disparado pela organização terrorista ETA. Mas o que, no meu entender, alarmou o representante diplomático foi o facto de eu ter sabido que um dos motores, aparecido a uma considerável e inexplicável distância, tinha sido transportado para Israel. Concretamente para uma das bases militares, com o fim de ser inspeccionado por peritos em terrorismo. Naquele Novembro de 1986 eu não tinha a menor intenção de prosseguir as pesquisas referentes a este caso e, muito menos, de me introduzir na referida base israelita. Mas os judeus, desconfiados por natureza, não devem ter pensado o mesmo. Talvez aquele meu inoportuno comentário a Hadas fosse a causa de tão subtil e, ao mesmo tempo, férrea vigilância. Se os israelitas suspeitavam que os meus propósitos não eram totalmente transparentes, então as dificuldades podiam vir a acentuar-se. Foi o que aconteceu. Na manhã seguinte, 20 de Novembro, quinta-feira, depois de uma noite mal dormida, com o coração apertado pelas suspeitas, apressei-me a pôr em andamento uma imediata acção preventiva. Se o meu telefone se encontrava sob escuta, talvez aqueles primeiros passos em Jerusalém tenham tranquilizado os meus hipotéticos controladores. Segui à letra as recomendações do embaixador, pondo-me em contacto com as personalidades e instituições oficiais que ele tão gentilmente me tinha indicado. Primeiro com Salomão Lewinsky, director da revista Semana; com um médico chamado Blezcof e, muito especialmente, com o Instituto Central de Relações Culturais. Neste último, tanto o seu director – doutor Moshe Liba, veterano diplomata -como a amabilíssima Raquel Eldar foram incansáveis para me ajudar, orientando-me e combinando um bom número de entrevistas com destacados arqueólogos, antropólogos, professores universitários e muitos outros. Tudo isso, é claro em prol de muito estimáveis e interessantes investigações em torno da vida e época de Jesus Cristo, mas que não constituíamde facto o objectivo da minha presença em Israel.
Contudo, porelementar prudência, concordei, encantado, enriquecendo-me, é justo que o reconheça, com todas elas. Esta cadeia de reuniões e entrevistas – que se prolongariam durante toda a minha estada na Palestina – atrasou, obviamente, as pesquisas principais. Mas as circunstâncias são como são e, por vezes, é preferível acomodar-se a elas, jogando as sempre imprevisíveis cartas do Destino. Naturalmente, embora a marcação dos funcionários israelitas naquelas primeiras jornadas em Jerusalém tivesse sido suficientemente intensa e eficaz para controlar a maioria dos meus passos. Não é menos certo que, em nenhum momento, esqueci o meu verdadeiro objectivo: o enigma do Major. E entre um encontro e outro pude organizar-me no sentido de visitar a Biblioteca Nacional, a do Museu de Israel e outras livrarias da cidade, sempre à procura de uma teórica bibliografia histórica. Os judeus não estranharam tais consultas, permitindo-me assim esporádicos tempos livres e um mínimo de liberdade de acção. Como é de supor, na habitual intimidade destas bibliotecas, a minha intenção fixou-se em Hazor. Examinei catálogos, ficheiros e estantes, à procura de qualquer livro ou documento sobre o assunto. Mas a incómoda realidade acabaria por desarmar-me. Os estudos sobre a velha cidade cananeia eram tão prolixos e numerosos que teria necessidade de vários meses para a sua leitura atenta. Só na biblioteca do Museu de Israel contabilizei um total de quarenta e seis fichas relacionadas com Hazor. Para cúmulo, numa daquelas minhas precipitadas incursões pelos intermináveis e densos textos arqueológicos, confirmei com desalento como, na realidade, os especialistas admitiam a possibilidade de terem existido umas cinco ou seis cidades com este mesmo nome. Uma delas – Hãsõr Hãdattãn ou Hasor a Nova – podia ser excluída, uma vez que nem sequer se conhecia a sua exacta localização na geografia de Israel. É claro que este raciocínio só era válido no pressuposto de que o criptograma se referia a Hazor como essa tal cidade. Mas se realmente isso não acontecesse? Libertei-me como pude daquelas dúvidas angustiantes, agarrando-me ao meu instinto.
Quanto às restantes Asor, Hasor e Azor – povoações mencionadas também no Antigo Testamento – decidi retirá-las temporariamente da investigação. Era mais cómodo e positivo concentrar as forças na Hazor mais popular e mais exaustivamente trabalhada pelos arqueólogos: a de norte. Se falhasse no meu intento, ainda teria tempo para desenterrar as restantes pistas. Falei em tempo? Eu próprio me respondi: os meus recursos económicos, como sempre, não durariam indefinidamente. O consolo do tempo era pois pouco fiável... Devo reconhecer que as minhas incursões pela bibliografia fruto talvez do nervosismo e da pressa – foram de mal a pior. Muitos dos documentos estavam escritos em hebraico, outros em alemão e a maioria em inglês. Tal facto limitou ainda mais as minhas possibilidades. A esta precária realidade veio juntar-se o pesado lastro de quem pesquisa e indaga... às cegas. Com efeito, o que é que eu procurava naquela montanha de livros? Um mensageiro alado que dava pelo nome de Hazor? E se não tivesse nada a ver com as ruínas em questão? Mas, não sendo assim, para onde encaminhar os meus passos? Durante horas, o meu ânimo sofreu toda a espécie de convulsões. Via passar o tempo e os resultados, aparentemente, brilhavam pela ausência. Dentro da minha capacidade e dos minutos disponíveis, dei uma olhadela e alguns dos trabalhos de Galling, Johanan Aharoni, Trude Dothan, Abel, Ruth Amiran, Maass, Perrot, Moshe Pearlman, Inmanuel Dunayevsky e Yigael Yadin, entre outros. Foram dois dias de frenética busca. Contudo, quando Asher Kupchik, um dos responsáveis da gigantesca Biblioteca Nacional de Israel, com quem cheguei a travar uma certa amizade, me anunciou às primeiras horas da tarde de sexta-feira, 21, que a jornada chegava ao seu fim, o meu desânimo foi total. Meu Deus! Apenas tinha tido acesso – e um precipitado e superficial acesso – a uma dezena de livros... Nos arquivos, rindo-se de mim, escondiam-se ainda mais de trinta volumes, documentos, mapas e centenas de fotografias que era forçoso estudar. O meu caderno de campo apresentava-se repleto de notas sobre a história, as sucessivas escavações, os achados arqueológicos e as diferentes hipóteses à volta da agitada vida das vinte e uma cidades que
formavam o tell de Hazor. Em suma, uma estéril sucessão de dados, cifras e seguríssimas considerações técnicas que não projectaram um único raio de luz sobre o meu cérebro congestionado. A chuva mansa e o frio de Jerusalém serenaram um pouco o meu espírito. A iminente entrada no sábado paralisaria tudo em  *1 Segundo textos extraídos do livro de Josué (15,25), esta Hasor a Nova” poderia ter sido uma cidade do Sul de Judá. Por seu turno, Eusébio situa-a a leste do território de Ascalon. Outros investigadores associaram-na com Yãsñr e com Hattã, ainda que, como disse, a sua localização exacta continue a ser muito difícil. (N. Do A.) Israel. Deste modo, enquanto regressava ao hotel, procurei mentalizar-me. A minha resignação viria no entanto a esgotar-se bruscamente. Não sou homem que se renda facilmente e, atormentado na penumbra do meu aposento, decidi mudar o rumo das investigações. Não podia esperar até domingo para reatar as consultas nas bibliotecas. Tinha de agir. Deixando-me levar pela intuição, pus em marcha um novo plano. Não havia tempo a perder. Localizei Raquel Eldar e expus-lhe o meu propósito. (Felizmente para mim, esta mulher não praticava a sua religião com o fanatismo e ortodoxia de alguns círculos judaicos que se negam mesmo a atender o telefone durante a festividade do sabbath. Este, como creio ter referido, inicia-se com o pôr do Sol de sexta-feira, prolongando-se até ao ocaso seguinte. Durante esse tempo, as dificuldades para um estrangeiro como eu podiam ser contínuas e quase insolúveis. Muito em breve teria ocasião de o experimentar.) Desde o meu primeiro contacto com o Instituto Central de Relações Culturais, e por pura curiosidade científica, eu manifestara o meu desejo de conhecer e conversar com Shelley Waschsmann, um eminente arqueólogo, que tinha a responsabilidade dos trabalhos de estudo e restauração de uma embarcação descoberta na margem ocidental do lago da Galileia. Tratava-se de um barco que, segundo os primeiros cálculos dos cientistas, podia corresponder a uma época relativamente próxima da de Jesus. Este, como outros, foi um simples pretexto para
justificar as minhas idas e vindas por Israel. E agora convinha-me às mil maravilhas para o meu objectivo imediato. Raquel, com a admirável eficácia dos judeus, tinha accionado os mecanismos necessários para a concretização dessa entrevista. Shelley concordou, convidando-me para a sua casa de Cesareia. Aquela súbita mudança nos planos não pareceu alarmar a funcionária. Era lógico que eu desejasse aproveitar as horas mortas do sábado preenchendo-as com aquela actividade. Além disso, Cesareia encontra-se a norte de Jerusalém, precisamente na direcção oposta à da localização da base militar que – era suposto – eu não podia visitar... Gentilmente, e com subtil habilidade, Raquel procurou averiguar quanto tempo pensava eu demorar-me na cidade costeira de Cesareia, se dispunha de um meio de transporte e se tinha intenção de me alojar em algum hotel próximo. Não satisfiz a sua curiosidade. Em parte porque nem eu próprio o sabia e, principalmente, porque não estava nas minhas intenções revelar-lhe os meus verdadeiros objectivos. Um tanto confusa, lembrou-me uma série de visitas previstas para os dias imediatos, recomendando-me que lhe telefonasse aquando do meu regresso. Reconheço que sou hábil a persuadir e assumo também o meu grande pecado de mau cumpridor de promessas. De modo que, docilmente, prometi-lhe tudo o que desejou. Quanto a cumpri-lo ou não, isso era outra coisa... Preparei uma sumária e austera bagagem e iniciei confiadamente os trâmites para sair nessa mesma tarde para Cesareia. A fatalidade paralisou, porém, todos os meus movimentos. Quase me esquecera de que era sábado. No hotel insinuaram-me – como única maneira de poder dispor de um veículo – que contratasse um motorista árabe. É realmente triste, mas em muitas destas pesquisas, as maiores perdas de tempo, de dinheiro e de energia, foram provocadas por contratempos desta natureza. Naquela altura, enquanto dialogava com a atraente e severa recepcionista, algumas das suas perguntas passaram-me quase despercebidas. Respondi seca e mecanicamente que não pensava deixar o hotel e que se tratava apenas de uma excursão de fim-desemana. Foi só depois, ao marcar o número de telefone de um dos
meus amigos árabes de Jerusalém – Anthony Salman, director de uma agência de viagens -, que as palavras da judia ecoaram na minha memória. Estremeci. Mas, automaticamente, censurei-me a mim próprio por tanta suspeita. Começaria eu a ver espias por todo o lado? O problema ficou resolvido. Anthony arranjar-me-ia um carro. Mas com duas condições: como já era muito tarde, só podia estar disponível à primeira hora da manhã do sábado e com a estrita obrigação de contratar um motorista e um guia, igualmente árabes. Tais condições indignaram-me, mas não tinha alternativa. E nessa noite, enquanto revia o plano, propus-me ludibriá-los na altura oportuna. Não via com muita clareza o motivo de tais exigências. E a minha natural desconfiança pôs-me de pé atrás. Os meus receios – não sei já se infundados – aumentaram quando, na manhã desse sábado, 22 de Novembro, um tal Michael se me apresentou como o guia designado por Salman. Tinha vivido em Espanha, falava castelhano e, durante os mais de cem quilómetros que nos separavam de Cesareia, mostrou-se igualmente interessado nas minhas actividades profissionais e, em especial, no meu plano de trabalho para aqueles dias. Correspondi-lhe com idêntica amabilidade, mas sem nada adiantar sobre os meus verdadeiros objectivos. Tanto e tão específico interesse pelo meu trabalho como jornalista e escritor não era normal. Por isso, sem pensar duas vezes, optei por desembaraçar-me dos meus acompanhantes antes do pôr do Sol. Após a instrutiva reunião com Waschsmann, o arqueólogo judeu canadiano, ordenei ao silencioso condutor que tomasse a estrada de Nazaré. Não houve muitas perguntas. Ao iniciar a última subida que desemboca na pequena cidade de Jesus, disse-lhes que estacionassem o automóvel à entrada do Hotel Nazaré, nas imediações da povoação. E antes de poderem reagir, despedi-me deles, informando-os de que prescindia dos seus serviços e que podiam regressar a Jerusalém, se assim o desejassem. Nem sequer me atrevi a olhar para trás. Ao chegar à porta do obscuro e vetusto hotel, ainda guia e motorista continuavam numa animada discussão, em árabe, da qual, naturalmente, nada entendi.
Na realidade, tratava-se de uma velha táctica. Sempre que empreendo uma investigação – digamos que arriscada – tomo a precaução de reservar alojamento em dois ou três hotéis, simultaneamente. Às vezes compensa. A noite já caíra sobre as ruas de Nazaré e, muito a contragosto, tive de me resignar e esperar pelo novo dia. A luz era vital para a minha transcendente pesquisa seguinte. Creio que, nessa altura, já estou antecipadamente disposto a acomodar-me em todo o tipo de alojamento. Sinceramente, após quinze anos de infatigáveis correrias pelo mundo, acho que já vi e sofri até mais do que o aconselhável. Mas a tristeza daquele hotel nazareno não pode descrever-se. Por isso, incapaz de o suportar, lancei-me na cidade quase deserta. Nazaré, como tantos outros lugares santos, não é, nem de perto nem de longe, o que se possa imaginar. O turismo, a civilização e os séculos eliminaram todo e qualquer vestígio da aldeia que albergou o Filho do Homem durante mais de vinte anos. Actualmente, dominada por uma maioria árabe, é tão-só um lugar de obrigatória e sempre rápida passagem de peregrinações de toda a índole e confissão. Só aquele céu de azeviche, que as desordenadas colinas sobre as quais assenta a povoação tornam mais próximo, pode emocionar um visitante medianamente desperto. As miríades de estrelas, resplandecentes ao frio da Galileia que então fazia, são as mesmas que velaram sobre os trabalhos e preocupações dessa personagem que cativou o Major e a mim próprio me mantém cativo. Os meus passos, tal como em anteriores ocasiões, levaram-me à Basílica da Anunciação. E não com a intenção de rezar – coisa que deveria fazer com maior frequência -, mas para saudar alguns dos pacientes e veneráveis franciscanos. Apesar do ainda escasso tempo passado em Israel, as tensões tinham sido suficientemente intensas para eu necessitar de uns instantes de companhia. Felizmente, aqueles agradáveis momentos de convívio com os padres Rafael e Uriarte viriam a revelar-se duplamente úteis. Por um lado, como dizia, preencheram a minha solidão. Dias mais tarde, servir-me-iam de álibi, tirando-me de sérios apuros... Mas não devo
antecipar-me aos acontecimentos. A inquietação e o nervosismo dominaram-me. De tal modo que, após mais uma noite em claro, saltei da cama, esperando o amanhecer. Às cinco horas e trinta e nove minutos daquele domingo, uma difusa luz alaranjada foi subindo por detrás das colinas, despertando a cidade. Duas horas depois, ao fim de não poucos regateios, consegui convencer e contratar um dos taxistas. Estive tentado a prescindir daqueles árabes casmurros e a servir-me do autocarro 431, que faz o percurso até Tiberíades, costeando depois a margem ocidental do lago. Mas, segundo as minhas informações, esses autocarros públicos circulavam muito longe do meu verdadeiro ponto de destino. Não tinha outra hipótese. Fez-se o contrato e, depois de desembolsar os seiscentos dólares acordados, Soliman Hakim, meu novo guia, desfez-se em saudações e reverências – tudo isso numa caótica mistura de inglês, italiano e árabe -, jurando-me pela sua saúde que não me arrependeria de tão acertada decisão. O céu, muito azul, prometia um dia morno e luminoso. Acomodei-me junto do tagarela Soliman e, respondendo com monossílabos à sua interminável verborreia, vi desaparecerem atrás de mim os últimos contrafortes de Nazaré. Fui-me animando dizendo para comigo: Este tem de ser um dia decisivo... O potente Mercedes desafiava bem as curvas. E em pouco mais de dez minutos deixou para trás Caná (hoje conhecida por Kafr Kannã) e seus abruptos e claros despenhadeiros, em direcção ao cruzamento de Haifa-Tiberíades, na Estrada Setenta e Sete. Vinte minutos depois rodávamos a toda a velocidade para o mar da Galileia. Seguindo as minhas instruções, Soliman evitou o populoso núcleo urbano de Teverya ou Tiberíades, rodeando o lago pela Estrada Noventa. Pouco faltou para que, obedecendo a outro dos meus típicos impulsos, interrompesse a viagem e aproveitasse a ocasião apresentando-me na sede da Polícia, na mencionada cidade de Tiberíades. Ao expor-lhes o meu propósito de reconstituir, sem companhia, a caminhada de Maria e José desde Nazaré a Belém de
Judá, tanto no consulado da Espanha em Jerusalém, como o próprio doutor Liba me tinham recomendado que – dado o perigo da zona do rio Jordão, que faz fronteira com a Jordânia – fosse junto das autoridades policiais e militares judaicas, a fim de lhes explicar o meu projecto e obter assim os imprescindíveis salvo-condutos. Mas venci a tentação. Éra preciso respeitar as prioridades... De súbito, o mar da Galileia apresentou-se à minha direita. Aquele azul imóvel, com tons de verde e névoa nas suas distantes margens, lembrou-me que estava a viajar através dos cenários que tinham sido, em grande parte, os da vida terrena do Mestre. E uma contida emoção se apoderou do meu espírito. Aqueles sítios sim, conservavam toda a sua pureza, todo o poder e todo o magnetismo dos campos, encostas, caminhos ou águas pelos quais Jesus tinha passado. E prometi a mim mesmo um intervalo para descer de novo às negras e pedregosas costas, daquele mar. Tinha necessidade de respirar a sua brisa, sentir os leves passos do Mestre e o tímido chapinhar das ondas entre o cascalho de basalto. Soliman tirou-me de tão aprazíveis e reconfortantes pensamentos, apontando-me o kibbutz Ginnosar, na margem do lago. Shelley Waschsmann tinha-me de facto informado de que a chamada barca de Jesus” -descoberta, como já referi, em princípios desse ano de 1986 pelos irmãos Yuval e Moshe Lufan – tinha sido transportada para um pequeno museu, especialmente aberto e equipado para tal no kibbutz que se apresentava agora diante de mim. Ali deverá permanecer, durante sete a nove anos, submersa numa solução de cera sintética. O árabe, desejando agradar-me, insistiu para que parássemos um pouco na granja-hotel que o citado kibbutz constitui, para visitarmos a valiosa barca. Uma relíquia de inestimável valor arqueológico – nada menos que a primeira embarcação dos tempos de Cristo encontrada no referido Kinneret ou mar da Galileia -, mas que, infelizmente, os interesses económicos já catalogaram como um novo motivo de peregrinação religiosa. Assim se faz a História. Mas eu fui categórico. Era preciso continuar. O meu objectivo era outro e muito diferente. O guia resmungou umas ininteligíveis
palavras em árabe, demonstrando a sua contrariedade com brusca aceleração. A minha recusa manteve- o, felizmente, em silêncio durante os últimos dezassete quilómetros. Subimos em bom andamento, sempre pela Estrada Noventa, e, deixando para trás à esquerda Rosh Pinna, o cume nevado do Hérmon no horizonte anunciou-me a proximidade iminente do meu destino. E como uma premonição, uma descarga nervosa trouxe complicações ao meu estômago. Soliman sorriu. Indicou-me o lugar e reduziu a velocidade. Poucos minutos depois virava à esquerda, deixando a estrada principal e tomando um péssimo caminho que subia exactamente até à entrada daquele gigantesco triângulo isósceles. Foi inevitável. Eu pressentia qualquer coisa no meu íntimo. E as palmas das minhas mãos começaram a transpirar. Soliman, com um recuperado bom humor, pediu-me que esperasse no carro. Desceu vagarosamente e dirigiu-se à simples choupana que fazia as vezes de posto de controlo. Um enfastiado guarda recebeu-nos com curiosidade. As visitas não deviam ser muito frequentes naquele afastado recanto da Galileia. E, muito menos, a de um suposto turista estrangeiro que, além disso, vinha sozinho. Ignoro o que terão dito, mas a julgar pela exuberante gesticulação do guia e pelas intermitentes e incisivas olhadelas que o guarda me lançava, devo ter sido tomado por um excêntrico milionário ou coisa pior... Satisfeito o obrigatório cerimonial, o alto e azedo guarda – tendo-me sempre debaixo de olho – procedeu ao levantamento da pequena barreira, deixando-me a passagem livre. Soliman, visivelmente satisfeito, entregou-me os três bilhetes e penetrou no terreiro que se abria diante de nós. Eram nove horas da manhã. Li os bilhetes e mal pude acreditar. Em todos eles – no azul, no verde e no castanho – aparecia a mesma inscrição: National Parks Authority,, e um nome longamente acarinhado: Tell-HnzoR. O Mercedes parou. Senti medo. Ali, algures naquele pequeno planalto, podia estar a chave do enigma. Vês, envio o meu
mensageiro diante de ti, Marcos 1.2. Hazor é o seu nome e as suas asas levar-te-ão ao guia Marcos 6.2.0. O número secreto das suas penas é o número secreto do guia, o que há- de preparar o teu caminho, Marcos 1.2. O criptograma, permanentemente instalado na minha memória, ecoou desta vez com um timbre especial. Estremeci. Encontraria ali o que tão ansiosamente procurava? Mas o que é que eu procurava exactamente? O árabe observava-me sem compreender. Os meus dedos tremiam, e eu, com a vista fixa no horizonte, parecia atarraxado ao assento. - Passa-se alguma coisa, senhor? Não me lembro sequer se lhe respondi. E Soliman, intrigado, pressionou o meu braço esquerdo, insistindo: - Senhor!... O senhor sente-se bem? - Como?... Ah! Sim – balbuciei por fim, saindo daquela espécie de bloqueio mental. Fiz apelo às minhas forças e, decidido, abandonei o automóvel. Abri a minha inseparável bolsa de aparelhagem fotográfica e, procurando apaziguar a minha excitação, dediquei alguns minutos à inspecção do equipamento. O guia, curioso, deixou-me actuar, preso de cada um dos meus movimentos. Pendurei uma das máquinas ao pescoço e, depois de comprovar o bom funcionamento da bússola, fita métrica, conta-passos e outros aparelhos, postei-me perante as ruínas. Por onde começar? Hazor é o seu nome..., Sim, finalmente estava em Hazor., Mas que quereria o Major insinuar? Não tinha nem a mais remota ideia do tempo que me seria necessário para aquela exploração. Por isso, e com o firme propósito de gozar de inteira liberdade de acção, fiz ver a Soliman que a minha visita poderia prolongar-se e que o mais prudente era ele organizar o seu dia como muito bem entendesse. Mas o guia recusou-se a sair do seu lugar. Encolhi os ombros e, virando-lhe as costas, avancei em direcção
ao meio do tell. Pelo que eu tinha lido e estudado, aquela pequena colina artificial, de quarenta metros de altitude na sua zona mais elevada, fora construída há mais de cinco mil anos, desempenhando – ao longo da sua história – um papel de grande importância estratégica no nó natural de comunicações em que se achava inserida. Por ali tinham passado os caminhos de Damasco a Megiddo e de Sídon a Beisan. A transparência e luminosidade daquele dia permitiam divisar, a oeste, as terras azuis do Líbano e, a leste, as verdes encostas dos montes Golan. Mas talvez o meu objectivo se encontrasse ali mesmo: naquela meseta ou plataforma que vista do alto, lembrava a figura de um descomunal triângulo isósceles de cor avermelhada, dominando uma fértil campina. À entrada das ruínas consultei algumas das notas contidas no meu caderno de campo. As consideráveis dimensões da cidadefortaleza intimidaram-me: 470 metros de oeste a leste e 175 de norte a sul, na sua parte mais larga. Para o oeste – ou seja, no imaginário vértice do triângulo -, a meseta perde altura em sucessivos socalcos. E todo o conjunto devidamente cercado por restos de muralhas e fossos. Em última análise, um compacto e monumental conglomerado de restos arqueológicos que, segundo os peritos, pertence a vinte e um estabelecimentos humanos e, naturalmente a outros tantos remotos períodos da História. Demasiado para a minha escassa capacidade e informação... Neste singular tipo de pesquisa – sei-o por experiência - a disciplina e método são de vital importância. Convém proceder com extrema cautela, sem descurar nenhum pormenor, por muito irrelevante ou pueril que possa parecer. E sem perder de vista tais premissas dei início àquilo que poderia qualificar como uma inicial tomada de contacto com o lugar. Esta incómoda situação de inferioridade, não me cansarei de insistir nisso, de não saber exactamente o que buscava, tornou ainda mais tensos os meus sentidos. Talvez a pista das asas fosse o único apoio, se bem que débil em tão louca investigação. E lentamente, como se uma força extra-humana tivesse congelado o tempo, iniciei aquela nova fase da minha tarefa. A luz oblíqua da manhã despertara um exército de sombras, que
avançava lentamente para ocidente. E os amarelos, ocres e brancos de labirinto arqueológico foram-se avivando.
* 1 – O tell de Hazor ou Hãsfir, depois das sondagens iniciais de Gastang em 1927, foi meticulosamente escavado pelo célebre arqueólogo judeu Yigael Yadin (de 1955 a 1958). Hazor foi a maior cidade-fortaleza de Caná e, durante longo tempo, um centro comercial e político de primeira grandeza. Em fins do século xII a. C. Contava com uma população aproximada de quarenta mil almas. Segundo Yadin, embora se suponha que o tell possa ter sido habitado há uns cinco mil anos, a arqueologia localizou apenas um total de 21 estratos. O mais antigo é do período do Bronze Antigo (II), ou seja de há 2750 a 2600 anos antes de Cristo. O mais recente foi datado da época helenística. A Cidade Alta ocupava cerca de seis hectares e estava rodeada de uma sólida muralha. Depois de ser destruída pelo biblico Josué, Hazor ficou reduzida a uma colina de escombros, salpicada de toscas e miseráveis cabanas de nómadas. No século x a. C., o rei Salomão reedificou parte da Cidade Alta, transformando-a numa guarnição real que vigiava os acessos do Norte de Israel. Um século mais tarde, destruída pelo fogo, foi reedificada por Ajab, sendo definitivamente arrasada pelos Assírios em 733 a. C. O seu passado esplendor ficaria assim sepultado durante vinte e sete séculos. (N. Do A.) Tomei o estreito carreiro arenoso que rodeia a meseta pelo lado norte alcantilado, com os olhos e o coração atentos a tudo o que me rodeava. Eu era o único visitante e isso permitia-me uma total liberdade de movimentos. Hazor é o seu nome... À primeira vista, aquele emaranhado caótico de muros, pátios, palácios meio desmoronados, de colunatas ceifadas pela destruição e pelo tempo, de edifícios públicos sem tecto e restos do fortim helenístico meio derrubado, não parecia apontar qualquer indício ou sinal que despertassem a minha atenção. Eram só pedras. Pilares e envasamentos adormecidos, importunados agora, aqui e ali pelo monocórdio crepitar da areia sob as minhas botas. Aqueles minutos iniciais de busca infrutífera atiçaram o meu ânimo. Tinha de manter a calma. E retomei a lenta caminhada, bordejando a fortaleza em todo o seu perímetro. ... e as suas asas levar-te-ão ao guia. A mensagem do Major – ou seria imaginação minha?
continuava em primeiro plano, e eu via-a em cada bloco de pedra, em cada esquina, em cada sombra... Pelas dez horas, quando estava para terminar a minha primeira volta de inspecção, umas húmidas e toscas escadas situadas no lado leste do terreiro e que se perdiam nas entranhas de Hazor, fizeram-me hesitar. Cartazes amarelos, em hebraico e inglês, anunciavam a entrada de um túnel. E um sopro de esperança fez-me tremer; mas contive-me. Primeiro tinha de passar a pente fino a superfície da cidade-fortaleza. Ao regressar ao ponto de partida consultei o conta-passos. A agulha marcava quatrocentos e dois. Aquele dado não revelava grande coisa. É verdade que somando os dígitos, lá aparecia o misterioso 6. Mas de que me servia? No entanto, anotei, esta e outras observações imprecisas e, depois de inspirar profundamente, procedi a um segundo assalto. Soliman dormitava, lá longe, no interior do automóvel. Dividi mentalmente a fortaleza em três sectores, penetrando no primeiro: no que se situava a norte. Pondo de lado todas as normas, abandonei as veredas que ziguezagueavam entre as ruínas, entregando-me aos meus próprios impulsos. Saltei muros, toquei nas colunas ásperas, trepei às casamatas desmoronadas e, cheio de suor, subi mesmo ao ponto mais elevado das paredes do fortim. Felizmente, como já referi, Hazor encontrava-se então solitária e em silêncio, e o posto de controlo ficava relativamente afastado. Não corria o risco, pelo menos de momento, de que a minha heterodoxa visita pudesse chamar a atenção dos vigilantes. ... e as suas asas levar-te-ão ao guia. As suas asas? Na minha crescente perplexidade cheguei a imaginar que o Major, no seu hipotético deambular por aquela plataforma, poderia ter descoberto algum tipo de desenho ou figura geométrica que lembrasse umas asas. Sempre com a bússola na mão, mudei repetidas vezes de posição, explorando aquele amontoado de pedras. Fui incapaz de descobrir o menor vestígio. Nem as rudimentares ruas nem o confuso traçado da cidadela se pareciam com o que eu procurava. Ali, as únicas asas eram de facto
as da minha escaldante imaginação. Desci para o terroso pavimento, repetindo a exploração ao longo do segundo e terceiro sectores. Era desolador! Se o Major tinha jogado com algum símbolo, restos de cerâmica ou estela funerária, era evidente que tinha de pesquisar noutra direcção. As ruínas de Hazor, pelo menos o que eu vira até então, eram apenas isso mesmo: ruínas sem mais, desprovidas de quaisquer inscrições, estátuas ou recheio, incapazes de projectar alguma luz. Mas, de súbito, sentado numa das pedras, enquanto me esforçava por recapitular, tive um pressentimento. E se as famigeradas asas pertencessem a alguma coisa que tivesse sido desenterrada em Hazor e transferida sabe-se lá para onde? Aquele flash, perturbador, mergulhou-me no desalento. E ali, humilhado no meio de remotas ruínas arqueológicas, fui rememorando o que tinha visto e lido na volumosa documentação bibliográfica sobre Hazor. Nos três anos de escavações, os arqueólogos tinham recuperado uma enorme quantidade de objectos de culto, figurinhas de divindades, centenas de vasos, inscrições egípcias – uma delas com o nome de Amenófis III -, relevos de carácter religioso, máscaras litúrgicas óstracos, a famosa estrela circunscrita (signo da realeza hitita), formidáveis esculturas de leões e, por fim, cerca de nove masseboi ou estelas, uma com enigmáticas mãos em atitude de súplica. Todo um espólio pertencente a vinte e uma cidades e períodos distintos. E tudo aquilo, se a memória me não atraiçoava, sem a menor relação com umas asas. Faltava, certamente, ainda muito por ver. E se acabasse por não descobrir um único motivo alado? E se as intenções do criptograma fossem noutra direcção? Levantei-me e, batendo no muro com raiva, ergui os olhos ao céu, clamando por uma pista. Estava de novo perdido. A resposta, ainda que uma vez mais não tivesse sabido vê-la naqueles momentos críticos, acabou por chegar, subtil e pontual. Suspirei e, um tanto envergonhado do meu próprio dramatismo, voltei a sentarme. Acendi um cigarro e, sem saber porquê, debrucei-me novamente sobre o caderno de campo. Reli as notas e, pouco a pouco, ao mesmo tempo que me acalmava, fui-me aproximando de um comentário – sublinhado a vermelho – e que transcrevera de uma carta procedente de Munique, antes de iniciar a viagem para
Israel: ...] Claro que, em princípio, pode pensar-se que Hazor se refira antes a um animal ou personagem com asas. Por isso duvido um pouco da sua relação com a cidade bíblica do mesmo nome. No entanto, também poderá acontecer que qualquer figurinha retirada de Hazor, e actualmente num museu, tenha alguma coisa a ver com o assunto. É evidente que não soube interpretar aquele sinal. O que me chamou a atenção foi a curiosa e oportuna coincidência de ideias. Mas tudo ficou por ali. Por vezes, a excessiva autoconfiança ou uma estúpida presunção desembocam em rotundos fracassos. Aquela prostração foi-se, contudo, esfumando, juntamente com o cigarro. Recompus as minhas forças e, como se nada se tivesse passado, afastei-me da cidadela na direcção leste disposto a fazer uma tentativa no misterioso túnel que tinha visto duas horas antes. Não é que eu seja muito praticante da religião em que fui educado, mas instimtivamente, ao pôr o pé no primeiro degrau, benzi-me. A entrada do túnel intimidou-me. Que me esperaria naquelas profundidades? A escavação feita por Yadin – respeitando sempre os traços de origem – desce na vertical. Trata-se de um enorme poço quadrangular de pouco mais de dez metros de lado, com uma sucessão de rampas escalonadas que avançam pelo terreno avermelhado do tell por cada uma das paredes laterais do poço. E fui avançando muito devagar, com o coração agitado. Por mera precaução, antes de pisar o primeiro e húmido degrau, liguei o conta-passos, pondo a agulha no zero. A luz entrava sem dificuldade até ao fundo da perfuração, situada a uns doze metros da superfície. O silêncio era completo. Consultei a bússola em cada um dos patamares, mas não me dei conta de qualquer alteração. As paredes, cuidadosamente aplainadas pelos arqueólogos, não apresentavam sequer outros aspectos ou sinais que não fossem os logicamente derivados dos trabalhos de remoção de detritos e da humidade. Em todo o caso, dediquei algum tempo ao exame dos diferentes cortes, patentes nos muros. A experiência foi nula. No poço não pude, ou não soube, encontrar um único pormenor que tivesse a ver com o criptograma. Mas faltava ainda uma segunda
galeria. Ao chegar ao último degrau, parei. À minha frente abria-se um corredor de uns cinco metros de altura, muito mal iluminado por alguns mortiços e espaçados pontos de luz amarelada. O túnel, certamente tenebroso, descia sabe-se lá até onde num brusco desnível de trinta ou trinta e cinco graus. As paredes gotejavam humidade. Apurei o ouvido, procurando captar algum som. Rigorosamente nada. Só o meu descompassado coração ecoava no meu peito. Esperei alguns segundos para que as minhas pupilas se adaptassem ao escuro. Mas não consegui distinguir o fundo do corredor. Foi então, ao remexer na bolsa do equipamento fotográfico, à procura de uma lanterna inexistente, que reparei no conta-passos. À luz do isqueiro ao mesmo tempo que amaldiçoava a minha falta de previsão, tratei de desenganchá-lo do cinto. A agulha estava imobilizada nos cento e cinquenta passos. Cento e cinquenta?, repeti em voz alta. O eco propagou-se na obscuridade. Senti um calafrio. A soma dos dígitos dava 6. Outra vez o misterioso número... Como era possível? E se o aparelho estivesse avariado? Era duvidoso. Entusiasmado com um dado tão débil, regressei por onde tinha descido, contando os degraus. ... O número secreto das suas penas é o número secreto do guia. Num passo rápido, nervoso por confirmar a cifra, fui subindo as rampas, chegando à superfície já sem fôlego. Maldito tabaco!... Não havia erro, de facto. As escadas perfaziam cento e cinquenta degraus. Deixei-me cair sobre o corrimão que protegia o último dos ressaltos de acesso ao poço e, enquanto recuperava o fôlêgo, fui desfiando algumas hipóteses. Todas se me apresentavam pelo menos retorcidas. Deveria associar as asas com aquelas rampas escalonadas? Poderiam conduzir-me ao guia? Seria o 6 o número secreto das penas das asas de Hazor? Agora, ao recordar tamanhas desventuras, não pude deixar de sorrir. O Major, quase com certeza, tinha visitado as ruínas de Hazor. Sem saber, ao fazer a contagem dos degraus, tinha acertado em cheio. Mas, absorto pelo achado, perdi de vista um factor inerente ao Major e aos seus
enigmas: a sua natural inclinação para o jogo do despiste... Admitindo a tese forçada de que tais rampas de terra fossem as asas do mensageiro e de que o número secreto fosse o seis, aquelas escadas tinham de levar-me ao guia. Mas quem ou o quê era o guia? Encontrá-lo-ia no subterrâneo? Só havia uma maneira de tirar as dúvidas. No fundo estava-lhe grato. Aquilo que eu tinha averiguado até àquele momento em Hazor era tão pouco relevante que aquela luz – ou qualquer outra, por muito débil que tivesse sido – fez o milagre de devolver-me a esperança. Precipitei-me pelas escadas abaixo e, ansioso, por penetrar no túnel, pouco faltou para que desse com o costado em terra num dos escorregadios lanços. O susto fez-me reflectir. Tinha de proceder com cautela. À entrada da segunda galeria continuavam a reinar o silêncio e uma viscosa penumbra. De isqueiro na mão avancei pelo meio do túnel. O acentuado declive tornava-se incómodo e, prudentemente, encostei-me para o lado, apoiando-me à gotejante e irregular parede da direita. Foi uma marcha lenta, expectante. Com a frágil chama azul-amarelada do isqueiro fui explorando cada centímetro quadrado de pedra. Mudava de parede em cada quatro ou cinco passos, repetindo a minuciosa operação de busca. A abrupta abóbada do subterrâneo também não apresentava qualquer inscrição ou indício. Senti frio. A humidade aumentava. Subitamente, enquanto examinava uma das paredes à luz do isqueiro, pareceu-me ouvir alguma coisa. Apaguei a chama e, imóvel como uma estátua, aguardei. O coração tinha começado a bater com violência. Mas aquele fugaz e surdo som – algo parecido com um chapinhar – não se repetiu. O fundo do corredor continuava envolto em trevas. Era difícil precisar os seus contornos e o que eventualmente pudesse albergar lá no mais fundo. Não posso ocultar que uma familiar sensação de medo fez tremer os meus joelhos e frias gotas de suor me deslizaram pelas costas. Interroguei-me, procurando raciocinar. Ali, com toda a certeza não havia ninguém. Era tudo fruto da tensão em
que me encontrava. Mas não saí do lance muito convencido. O instinto – mais que a inteligência -dificilmente se equivoca. Que deveria eu fazer? Continuava a avançar ou dava meia volta, obedecendo à lógica e natural inclinação para sair daquele antro? Engoli a pouca saliva que me restava e, aceitando o imprevisto desafio, avancei cautelosamente, sem me afastar da parede da direita. Desta vez fi-lo às escuras. Se se tratava de um falso alarme, raciocinei com dificuldade, haveria tempo e oportunidade para rever com cuidado os lanços de percurso que estavam por explorar. Segundo os meus cálculos, tinha já percorrido uns dez ou quinze metros, ignorando quanto faltava para chegar ao fim do túnel. Seguindo uma velha táctica, inspirei profundamente e repetidas vezes, procurando acalmar o ritmo cardíaco. Só em parte o consegui. Tinha a certeza de ter ouvido aquele ruído. Esta ideia, aliada à escuridão e ao não menos lúgubre silêncio do recinto, fizeram aumentar os meus receios. O piso tornava-se cada vez mais escorregadio. Procurei agarrarme às saliências pedregosas da parede, não dando um único passo sem antes testar a solidez do inclinado pavimento. Depois de ter avançado uns vinte a vinte e cinco metros, outro golpe seco chegou com nitidez aos meus ouvidos. Agora não tinha dúvidas. Era como se uma pedra, ou coisa parecida, embatesse contra uma parede. Senti grandes e repetidos calafrios. Num ímpeto acendi o isqueiro, ao mesmo tempo que gritei algo timidamente: Quem está aí? Não obtive resposta. Mas, coincidindo com o acender da chama, dois novos golpes, mais próximos, gelaram-me o sangue. Agora, e só agora, ao relembrar a cena, esta se me apresenta como tragicómica. Naqueles instantes, consequência do medo e dos nervos, o único impulso que me dominou foi uma premente necessidade de urinar. É claro que soube conter-me. Olhei em redor e, forçando a vista, julguei distinguir à distância uma mescla informe de sombras verticais e horizontais. Que diabo
seria aquilo? A curiosidade – nunca consegui compreender a tremenda força de tal atributo – impôs-se ao medo. No entanto, precisei de alguns segundos para mexer as pernas. Com o braço direito tenso como um pau, suportando o doloroso contacto com o isqueiro sobreaquecido, avancei em direcção àquilo que me parecia ser o fim do subterrâneo. O silêncio era de novo completo. Um silêncio carregado de presságios, saturado pelo meu próprio medo. Sombras estilizadas? Sombras imóveis, desenhando um incerto emaranhado de linhas (?) verticais e horizontais? Ou não estavam imóveis? Estas interrogações acompanharam-me nos últimos metros, ao mesmo tempo que, afortunadamente, a fraquíssima luz do meu isqueiro foi rompendo a escuridão. Detive-me. Apontei a fraca luz para a direita e para a esquerda e, de repente, um cheiro fétido chegou-me às narinas. Procurei fixar a chama com a mão em concha, mas ela oscilou, agitada por alguma corrente. Poucos minutos depois descobria diante de mim – a cerca de três ou quatro metros – um rudimentar e semi-apodrecido tapume de madeira, que me impedia a passagem. Respirei com alívio. Ligeiramente encurvado, ainda com os músculos retesados, pus-me diante das ripas que delimitavam aquela zona do túnel. A barreira teria cerca de um metro de altura. Espreitei calmamente e, estendendo o isqueiro, compreendi. Acabara simplesmente de percorrer os trinta a trinta e cinco metros de um subterrâneo que ia dar a uma piscina ou cisterna, cheia de uma água fedorenta e verde-negra. Quanto ao entrelaçado de sombras, não era mais que um amontoado de estacas e de postes que escoravam o tecto do cubículo, à direita e à esquerda. Não sabia se rir se chorar. O medo tinha-me pregado uma boa partida. Incompreensivelmente, esqueci-me dos tais estranhos ruídos. Recuperei a calma e, desejoso de prosseguir a busca, levei algum tempo a examinar as madeiras do tapume, andando para cima e para baixo. Era tudo normal. Do outro lado, o declive do terreno acabava bruscamente. Semi-enterrados, avistei quatro reluzentes e enormes degraus de basalto que se afundavam no charco. O meu rudimentar sistema de iluminação não me permitia
ver para além de dois ou três metros. Consequentemente, desconhecia as dimensões da cisterna e o que poderia haver do outro lado das primeiras fileiras de postes. Era a altura de avaliar a minha situação. Em frente do sujo tapume, respirando as emanações nauseabundas da água estagnada, fixei a vista e o pensamento na negra incógnita que tinha diante de mim. Rebusquei na memória. A verdade é que tinha lido muito pouco sobre aquele sector das  escavações de Hazor. Tratava-se, sem dúvida, de um antiquíssimo sistema hidráulico, idealizado para o abastecimento de uma cidade-fortaleza que, como a história regista, se viu submetida a vários e prolongados cercos. O espanto é que, tantos séculos depois, a água ainda continuava a chegar ao fundo do subterrâneo. Calculei o caminho percorrido, concluindo que poderia encontrar-me a vinte e cinco ou trinta metros de profundidade. A minha grande dúvida era se deveria arriscar-me a continuar a marcha, explorando o resto do túnel. (Falar de marcha era uma maneira de dizer, claro. O tapume de madeira estava ali por alguma razão.) Senti um incómodo desassossego, que no entanto atribuí ao acumular de contrariedades que me estavam a acontecer. E se a chave do mistério estivesse mais para além? A tirania do criptograma fez-se sentir uma vez mais. Iria desistir perante a primeira séria dificuldade que se me deparava? A decisão estava quase tomada quando, no meio da escuridão, ouvi um novo e misterioso golpe. Foi como que um plof. Peguei no isqueiro e notei o lento avançar de pequenas ondas à superfície da cisterna. Alguma coisa se precipitara nas águas. E voltou o medo. Levantei a chama com o intuito de observar o tecto da galeria. Talvez se tratasse de algum desprendimento, coisa habitual em túneis desta natureza. A simples ideia de um desabamento apanhou-me de surpresa. Mas, seguidamente, ao verificar o rochoso e compacto tecto abobadado, afastei tal possibilidade. Mas então, se não se tratava de uma pedra, o que é que acabava de agitar a superfície das águas?... A recordação deste e dos anteriores golpes intimidou-me. Como disse atrás, tinha-os esquecido completamente. Num ápice, a minha imaginação encarregou-se de pôr de rastos o meu já enfraquecido ânimo. E se o charco – cuja profundidade desconhecia – escondia algum animal?, perguntei a mim próprio.
Isso não era razoável. Que tipo de animal poderia sobreviver em semelhante lodaçal? Já tinha visto pior. É claro que também havia a possibilidade de, no extremo oculto do túnel... Refutei-me a mim próprio sem contemplações. Isso não fazia muito sentido. Se a galeria continuava, e dispunha mesmo de uma segunda entrada, porquê supor que ali, em algum obscuro e incerto nicho do subterrâneo, teria de haver um abrigo de cães ou animais bravios? Além do mais – rematei com convicção -, esse ou esses supostos cães não teriam desaparecido sob as águas!... ... e as suas asas levar-te-ão ao guia. Maldição! A curiosidade continuava a minar o meu senso comum. Que haveria do outro lado da cisterna e da barreira de sustentação do túnel? Era necessário clarificá-lo. Se voltasse à superfície sem tentar esclarecê-lo, jamais mo perdoaria. E, o que era pior, talvez perdesse a ocasião de decifrar o enigma. Mandei tudo para o diabo e pendurei a bolsa com as máquinas fotográficas às costas com a correia a tiracolo e, cheio de coragem e de insensatez, saltei o tapume. O terreno a seguir aos degraus de basalto, era lamacento. À esquerda enterradas no barro, levantavam-se as primeiras escadas de madeira. O meu propósito era trepar por elas e, com todas as precauções possíveis, ir deslizando sobre as traves até ao outro extremo. Naqueles agitados instantes não vi uma melhor fórmula para transpor o charco. As minhas mãos ficaram húmidas ao apalpar as tábuas do lado esquerdo. Mau negócio!, sentenciei. À luz do isqueiro inspeccionei as bases. Estavam apodrecidas, como era de esperar. Aquela armação, montada pelos homens de Yadin, já tinha um desgaste de trinta anos. A humidade da cisterna tinha-a apodrecido implacavelmente quase toda. Examinei as cavilhas que ligavam os barrotes horizontais aos verticais. A maior parte – corroída pela ferrugem – não oferecia muita segurança. Resistiriam ao meu peso? Decidi experimentar. Apoiei-me com ambas as mãos na trave mais baixa, situada a
cerca de oitenta centímetros do solo, comprovando a sua consistência com vários e fortes abanões. A estrutura ressentiu-se, rangendo ameaçadoramente. Foi um aviso. Mas as coisas não terminaram ali. Além de patinar perigosamente na curvatura do madeiro, ao terceiro ou quarto embate ouvi um novo plof. Desta vez à minha direita e muito próximo. Virei-me, frenético. A única resposta foi outra lenta série de ondas circulares avançando em direcção aos meus pés e o silêncio. Um silêncio que me secou a garganta. O irritante mistério daqueles golpes começavam a encolerizar-me. Desci até ao último dos degraus e, de cócoras, aproximei a chama da água. Foi inútil. A escuridão era impenetrável. Agitei a superfície com a mão esquerda e, ao aproximar os dedos do nariz, um intenso odor a podre fez-me recuar. Fiquei pensativo e na expectativa, enfrentando a escuridão. Pouco depois, à minha esquerda, junto a um dos postes situado a cerca de metro e meio, emergiram várias borbulhas. Senti como os pêlos da nuca se me eriçavam. Mas tive coragem para me mexer. Aquelas bolhas, as únicas que observara desde que tinha chegado à cisterna, confirmaram as minhas suspeitas iniciais. Ali por baixo habitava ou movia-se alguma coisa... Segundos depois, outro borbulhar, mais intenso, denunciou a presença do suposto animal junto à base do poste contíguo. Parecia afastar-se para o meio do charco. Tremendo de medo, transido no húmido degrau, fui abrindo devagar o fecho da bolsa, à procura das máquinas. Se aquilo – fosse o que fosse – emergisse à superfície, um oportuno flash permitir-me-ia fotografá-lo e deixá-lo temporariamente cego... Em caso de perigo, essa cegueira jogaria a meu favor. Os segundos transcorreram, tensos e intermináveis. Com os músculos hirtos fui passando a vista pelo conjunto do lago, esperando que, a qualquer momento, o ou os bichos irrompessem à superfície. Dei-me conta, de súbito, que estava com meio corpo fora do degrau, praticamente em cima das águas. E se o responsável pelas borbulhas viesse até à borda da cisterna? A repentina e angustiante ideia deu cabo dos restos da minha coragem. Com um salto retrocedi até ao tapume. O suor frio de medo escorria já pelas minhas costas.
Mas o túnel continuou em silêncio. Nada alterou as suas águas. E devagar, muito devagar, fui recompondo o meu espírito aterrado. Os que me conhecem um pouco sabem que, nestas alturas da vida, só fico indignado comigo mesmo. Pois bem, esta foi uma das ocasiões em que amaldiçoei a minha escassa fortaleza de ânimo. Guardei a máquina fotográfica e, resmungando toda a espécie de impropérios contra mim mesmo, avancei até ao andaime da direita. Estavam terminadas as inspecções e o rosário das minhas fantasias. Aqui não há nada e nada se passa, fui repetindo para mim próprio enquanto me agarrava a uma das estacas, dando início à escalada. Aqui só há medo... Quanto ao medo não me enganava. Quanto ao resto, infelizmente, sim. Estúpido que eu fui! Nunca aprenderei. Os primeiros movimentos foram muito simples. Lentos e cuidadosos por causa da superfície escorregadia dos troncos, mas sem grandes dificuldades. As escoras acabavam a uns cinco metros da superfície das águas. Experimentei várias das traves horizontais, acabando por escolher uma das mais grossas. Com a pressão do meu pé, rangeu levemente, mas suportou o peso. O longo madeiro, pregado aos postes verticais, encontravase a uns dois metros da superfície das águas, perdendo-se na profundidade do túnel. Aquele conjunto de postes e traves, tal como o que tinha sido implantado no lado esquerdo do subterrâneo, constituía um intrincado labirinto de difícil acesso. Os troncos horizontais tinham sido dispostos com cerca de meio metro de intervalo, reforçados no interior dos andaimes com dezenas de estacas entrecruzadas. Tentar avançar pelo centro da estrutura teria sido extremamente difícil. De modo que, com a minha preocupação de ganhar tempo, preferi o lado de fora: liso e perpendicular às águas. Diante desta carcomida e improvisada ponte – a cerca de quatro ou cinco metros – dispunha-se paralelamente, como disse, a estrutura da esquerda. Fixei o isqueiro entre os dentes e, experimentando passo a passo, palmo a palmo, a integridade e resistência do tronco a que me agarrava, fui avançando. A humidade ia aumentando à medida
que penetrava no interior da cisterna. Um bolor escuro envolvia a maior parte das madeiras, desfazendo-se entre os meus dedos e na sola das botas. Respirei fundo e olhando para baixo, a mancha negra das águas e a lembrança das bolhas fizeram-me estremecer. Se alguma das traves cedesse, a minha situação podia complicar-se. Afastei tão funestos presságios e, com os cinco sentidos concentrados em cada centímetro de madeira, reatei a marcha. Tudo correu relativamente bem até que, a cinco ou seis metros da borda, ao escolher outro dos postes, os já conhecidos golpes gelaram-me o sangue. Colei o rosto ao madeiro e, contendo a respiração, fiquei à escuta. Os ruídos eram agora contínuos, encadeados, muito próximos. E dei-me conta de como todos os pêlos do meu corpo se eriçavam ao mesmo tempo. Após uns segundos de indecisão, abraçado ao poste com todas as minhas forças, inclinei a cabeça, procurando o charco. A obscuridade não me facilitou a tarefa. Não conseguia perceber... De repente, algo bateu na minha bolsa. Foi um impacte seco, violento. Dobraram-se-me as pernas e como que uma dolorosa língua de fogo se propagou nas minhas entranhas. Cravei os dedos na madeira, aterrorizado perante a agressão e,   principalmente, perante a ideia de perder o equilíbrio e cair. Meu Deus! Alguma coisa se movia nas minhas costas, arrastando-se e arranhando a bolsa do equipamento fotográfico! Era pesado e batia-me violentamente nos rins. O pânico bloqueou-me a garganta. Não podia voltar-me. Ignorava o que se passava nas minhas costas e, embora o instinto me ordenasse que soltasse uma das mãos para me defender, a possibilidade de escorregar e precipitar-me nas águas foi mais decisiva. Naqueles segundos que me pareceram uma eternidade dei-me conta de que o animal se colocava por cima da bolsa, desequilibrando-me. E cego pelo pânico, comecei a agitar-me, balanceando a aparelhagem fotográfica para a direita e para a esquerda com histérico desespero. Nos primeiros movimentos, a coisa deve ter cravado as suas garras no cabedal do estojo, resistindo, imperturbável, às violentas oscilações. À quinta ou sexta sacudidela, a bolsa recuperou o seu peso habitual. O animal tinha
saltado, sem dúvida. Ao diminuir a tensão, senti-me sem forças. Tive de abraçar-me à trave, tremendo dos pés à cabeça. Os calafrios e o terror fizeram com que os meus dentes se cravassem no isqueiro, perfurando o plástico. Fechei os olhos, esforçando-me por controlar a respiração agitada. Mas as pancadas continuavam à minha volta, quebrando o silêncio do túnel e das minhas desordenadas tentativas por recuperar a calma. Sentia-me impotente, incapaz de avançar ou retroceder. A minha obsessão em tão dramáticos instantes era de que outro ou outros bichos pudessem precipitar-se sobre o meu corpo. Os impactes na água que eu ouvia eram evidentemente provocados por aqueles seres invisíveis. Não sei quanto tempo permaneci agarrado à trave, acobardado e indefeso. Só quando os golpes diminuíram, tornando-se mais espaçados e distantes, a lucidez voltou de novo ao meu espírito. Tinha de actuar. Não podia ficar ali, especado sobre os andaimes, sem saber que fazer e com a permanente ameaça de uma queda naquelas águas infestadas sabe-se lá de que criaturas. Bem, primeiro, antes de tomar uma decisão, é iluminar o local. O medo – quem já o tenha experimentado saberá compreenderme – tem estas e outras consequências. Começa-se a falar sozinho. E eu comecei de facto a dialogar comigo mesmo, com a voz entrecortada, num fervente desejo de me sentir acompanhado... O isqueiro! Claro... Mas o mecanismo não funcionou. Meu Deus!... Que se passa? Uma, duas, três tentativas. Era inútil. Abracei-me de novo ao malcheiroso e húmido madeiro e, às apalpadelas, abri ao máximo a passagem do gás. As minhas estéreis tentativas de acender o isqueiro tinham feito recrudescer o ritmo dos golpes e do chapinhar nas águas. Vamos, vamos! À segunda ou terceira tentativa, uma longa e trepidante chama
irrompeu por fim impetuosamente diante dos meus olhos. E com o pulso trémulo levantei a luz por cima da minha cabeça até aos barrotes superiores. O túnel iluminou-se. E quando descobri o que se mexia sobre o madeiramento, os cabelos e toda a minha pele eriçaram-se-me como agulhas. O pavor e a repugnância fizeram-me vomitar entre dolorosos espasmos. Pensei que ia desmaiar. E numa suprema tentativa para não perder os sentidos, bati com a testa contra um poste... Jesus Cristo! * * * Aquela reacção instintiva salvou-me momentaneamente. Com a boca seca e amarga, sem poder controlar os tremores que me sacudiam como um boneco, urinei-me de medo. Nunca tal me tinha acontecido. Confesso-o. Com os olhos esbugalhados de espanto aproximei a chama da trave horizontal que estava situada a um meio metro dos meus eriçados cabelos, proferindo um dilacerante: Fora!... O uivo, mais que guincho, e a proximidade do fogo surtiram efeito: dezenas de ratazanas que pululavam e se amontoavam no madeiramento da galeria treparam e fugiram em todas as direcções, atropelando-se e caindo à cisterna. Eram ratazanas cinzentas. Muitas delas, enormes como gatos, apresentavam-se gotejantes e com repulsivas pelagens, erectas como espinhos. Entre calafrios, fui dirigindo a chama para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda, procurando averiguar o número das que se retorciam e corriam velozes pelos postes próximos. Era impossível calculá-lo. Talvez fossem mais de uma centena. É curioso. O instinto de conservação prevaleceu e, enquanto agitava ameaçadoramente o braço esquerdo, uma precipitada sequência de possíveis soluções desfilou pelo meu cérebro. O mais sensato era retroceder imediatamente e escapar dali para fora. Tinha lido em algum lado qualquer coisa sobre tais roedores e sabia
da sua voracidade, inteligência e capacidade destruidora. Também era verdade que raramente atacam ou se confrontam com um inimigo superior. Mas como saber se aquela colónia reagiria assim? E se estivessem famintas? A louca dispersão dos núcleos mais próximos tranquilizou-me em parte. Algumas, talvez as mais velhas, foram refugiar-se na confusão do entrelaçado de paus, desaparecendo no escuro. Outras, em contrapartida, revolviam-se nervosamente a uma prudente distância do fogo, agitando as suas caudas peladas no vazio e levantando os focinhos pontiagudos em atitude duvidosa. As suas unhas e dentes cintilavam em cada movimento, enchendo-me de pavor. Várias das ratazanas – nunca saberei se as mais audazes se as mais famintas – atreveram-se a atravessar pelo barrote horizontal mais próximo e paralelo ao que me servia de apoio. Centímetros antes de chegarem à altura dos meus olhos, detidas pelos trémulos movimentos da chama que eu sustinha entre os dedos, davam meia-volta ou apoiavam-se nas patas traseiras, fixando a atenção na anárquica movimentação do isqueiro. Em atitude de desafio, como ia dizendo, algumas chegavam a aventurar-se ao longo da trave, correndo velozes mesmo diante do meu rosto. Numa das vezes, meio enlouquecido, consegui acertar com os nós dos dedos na espessa pelagem de um dos bichos e o fogo pegou-se-lhe. A ratazana revolveu-se e, entre grande chiadeira, deu uma dentada na parte incendiada. A dor obrigou-a a procurar o poste mais próximo e, enroscando a cauda ao madeiro, desceu velozmente até à água da cisterna. O ciciar do fogo em contacto com a água e uma pequena fumarada puseram ponto final ao lance. Sem poder reprimir a minha angústia, explodi num novo e prolongado grito, que provocaria outro afastamento precipitado dos roedores. Com espantosa agilidade, saltando umas por cima das outras, muitas das ratazanas, socorrendo-se sempre das suas caudas, tomaram o caminho do charco, correndo pelos postes abaixo até mergulharem na água. Algo reconfortado (?) por este meu pequeno triunfo, deslizei a mão esquerda pelo barrote vertical e, de cócoras, procurei iluminar o charco. Por debaixo dos meus pés, no madeiramento, não distingui,
graças a Deus, nenhum dos escorregadios e negros vultos. Em contrapartida, o fosso parecia um fervedouro. As ratazanas cinzentas, resistentes nadadoras, dirigiam-se velozmente para a borda da esquerda. Meu Deus! Se caísse à água podia considerar-me morto... Então, obedecendo ao instinto de conservação, comecei a retroceder, à procura de terra firme. Hazor é o seu nome... Nunca consegui perceber Como é que um homem atemorizado pode dominar a sua natural inclinação para fugir e, em poucos segundos, enfrentar aquilo que o aterrorizava? Talvez seja esse um dos maravilhosos paradoxos da condição humana... O caso é que, mal percorrera alguns metros, a força que sempre me acompanha ressurgiu em mim. E as frases do criptograma entrecruzavam-se no meu íntimo com outras não menos fortes censuras. ...e as suas asas levar-te-ão ao guia. Não, não posso abandonar... ... O número secreto das suas penas... São apenas ratazanas! .o que há-de preparar o teu caminho. É preciso lutar! Maldição! O meu ânimo, contra a minha vontade, começava a fortalecer-se. As ratazanas, pelo menos até ali, não tinham dado grandes mostras de agressividade. Talvez pudesse atingir o outro extremo do subterrâneo. O meu medo, porém, tão forte como o desejo de chegar ao outro lado oculto da galeria, fez-me hesitar. Deus do céu! Decide-te! Se ao menos tivesse alguma coisa com que defender-me... Não tinha outro remédio senão apagar o isqueiro. A cápsula mecânica já me queimava os dedos. Mas a simples ideia da escuridão, rodeado por todo aquele fervilhar de ratazanas, fez-me estremecer. Lembrei-me do caderno de campo. Sim, podia ser uma
solução. As suas folhas, estreitas e alongadas, poderiam dar uma folga ao isqueiro. Arranquei várias das páginas em branco e, retorcendo-as, improvisei uma espécie de tocha. Estava decidido. Ajustei o providencial bloco à cintura e, noutro impulso, precipitei-me para o interior do túnel. Tinha de agir com rapidez. Aquele frágil archote não duraria muito. O fogo devorava o papel e eu continuava a ignorar a profundidade da galeria. Tremendo, agarrado ao barrote horizontal com a mão esquerda e dividindo os olhares entre a trave sobre que caminhava, as inquietas ratazanas e a chama, consegui avançar uma dúzia de passos. Em parte para libertar a tensão e o pânico e também para afugentar os habitantes do subterrâneo, fui acompanhando os movimentos com outros tantos sonoros uivos, cujo eco fez aumentar ainda mais as correrias das ratazanas e os baques na água. Aguentei enquanto pude a proximidade do fogo até que, a escassos milímetros dos dedos, o calor me obrigou a soltar a improvisada tocha. A escuridão invadiu o local. Intensifiquei os gritos, enquanto atabalhoadamente preparava um segundo archote. O aparecimento da luz não apaziguou o frenético bater do meu coração. O meu peito agitava-se violentamente. Perscrutei os barrotes próximos. As ratazanas, cada vez mais perturbadas, tinham deixado de fugir, amontoando-se convulsivamente e chiando a três ou quatro metros de mim. Outras recuavam, evitando as traves em que me encontrava. Gritei com mais força ainda, protegendo o meu corpo com a chama. Não percebia aquela perigosa contenção e recuo dos roedores. Por que não fugiam mais lá para o fundo da galeria? A resposta estava diante de mim. Confuso e apenas atento às ratazanas, não percebi até quase chocar com ela. Num dos movimentos do archote julguei vê-la. Sim, agora tinha a certeza. O brilho amarelado da chama iluminou-a fugazmente. Mas só quando o pé esquerdo embateu nela, o pressentimento se tornou realidade... A mais decepcionante das realidades.
Oh, não! Tacteei, incrédulo. A rugosidade da parede não deixava dúvidas. Ali mesmo se esvaíram as minhas forças e as minhas últimas esperanças. O túnel terminava afinal numa parede de cimento, lisa e nua. Atónito, movi o archote para a direita e para a esquerda procurando um vão, uma passagem, uma continuação da galeria. Nada. Os únicos buracos eram os que tinham sido feitos pelos trabalhadores de Yadin na altura em que perfuraram o subterrâneo com os barrotes de sustentação. Umas brechas que as ratazanas se tinham encarregue de alargar, transformando-as em esconderijos. O crepitar do lume, chamuscando-me os dedos, chamou-me à realidade. Deixei cair o que restava da tocha e o silêncio, as trevas e a desolação abateram-se sobre mim. Por um instante esquecera onde me encontrava. A sensação era de frustração total. Que estupidez a minha! Restava-me apenas regressar, refazer o caminho em sentido inverso. Mas antes, claro, tinha de ultrapassar aqueles vinte metros, encavalitado numas traves semiapodrecidas, escorregadias e infestadas de ratos... A sensação de inutilidade foi tão profunda que eliminou mesmo o medo nos primeiros minutos. Maquinalmente, retirei as últimas folhas do caderno, pegando-lhes fogo. A sorte não estava do meu lado. Ao tentar guardar o isqueiro no bolso das calças, ele escapouse-me entre os dedos húmidos, caindo à água. Merda! Foi a gota de água que fez transbordar o copo da minha indignação. Como iria agora atravessar aquela densa estrutura de madeira? Sem a protecção do fogo, o bando de roedores podia abater-se sobre mim... E um suor frio copioso inundou-me as têmporas. Contemplei a chama oscilante como que hipnotizado. Apenas tinha luz para um ou dois minutos. Assim, o medo apoderou-se de mim e sacudiu o meu cérebro exausto.
Ainda restavam folhas no meu caderno de campo. Mas essas repletas de anotações – eram sagradas. Pensei em sacrificar o casaco ou a camisa... Felizmente, reparei noutro elemento, de mais fácil e cómodo manejo. Mudei o archote para a mão esquerda e sem perda de tempo, lancei mão de um ou dois rolos de película. Prendi a ponta entre os dentes e retirei-o do bastidor. Ao segundo toque, o metro e meio de filme saiu, enrolando-se entre as minhas pernas. Tinha de actuar com precisão e sem demoras. Avancei até ao barrote vertical mais próximo e, antes que a débil chama se apagasse, envolvi a tocha com a película. O Tri-X retorceu- se, desprendendo um odor penetrante e tóxico. As ratazanas, desorientadas pela súbita mudança de direcção do fogo, amontoaram-se nas traves que eu tinha de atravessar. Hesitei. Era preciso afastá-las. Avancei mais dois passos sobre a trave que rangia, afugentando-as com o fogo e os meus gritos. Algumas fugiram, de facto. Outras, desorientadas e irritadas, ficaram paradas ou começaram a girar sobre si próprias, como que enlouquecidas. Temendo o pior, peguei no meu lenço e, lançandolhe fogo, atirei-o juntamente com os restos do archote para cima das mais próximas. O pano e as faúlhas caíram sobre as ratazanas, provocando a debandada geral. O caminho ficou livre. As línguas de fogo verde-azuladas do filme prosseguiam a sua lenta e árdua ascensão. Três, quatro novos passos. Tirei mais dois rolos e, ao mesmo tempo que varria o madeiro com o filme em chamas, vigiando os roedores e proporcionando-me um mínimo de visibilidade, fui puxando e preparando um outro filme. ... seis, sete passos mais. Parei. Faltava-me o ar. Prendi a película seguinte e, quando me preparava para percorrer o lanço final, o poste rangeu sob os meus pés, cedendo e inclinando-se. Foi quase instantâneo. A película escapou-se-me de entre os dedos, mergulhando na cisterna com um
pedaço da trave. Instintivamente, ao dar-me conta do desabamento do madeiro, agarrei-me ao poste superior. Jesus Cristo! Não consegui articular nem mais uma palavra. O terror pôs-me um nó na garganta. Pendurado e balanceando-me, esforcei-me por alcançar a trave salvadora. Outro sinistro estalido perturbou-me ainda mais. Com medo de que a trave quebrasse, optei por avançar, valendo-me das mãos e do impulso do corpo no vazio. O poste mais próximo não se encontrava muito distante. Se conseguisse alcançá-lo, supondo que os restantes barrotes horizontais não tivessem sofrido a mesma sorte que o anterior, poderia apoiar de novo os meus pés e descansar o pulso. Gemendo, resfolegando e rezando para que o poste húmido não viesse abaixo, fui avançando palmo a palmo pelo madeiro, com os dedos crispados e sujos do bolor. Meu Deus, ajudai-me! Num dos movimentos de vaivém, os meus pés tropeçaram no tão almejado poste. Aí está!... Um pouco mais! As forças começavam a faltar. Mas tinha de lá chegar. Suspendi a respiração e, cerrando os dentes, avancei mais um palmo. Inesperadamente, porém, os meus dedos pisaram uma robusta e fria pata. Fiquei para morrer. Desprendi a mão direita e, numa reacção instintiva, adiantando-me a um possível ataque, retesei os músculos, içando-me a pulso até tocar a base inferior da trave com o crânio. Não sei onde fui buscar as forças e a coragem. E entre convulsões urrando de raiva e de pânico, bati às cegas com o punho cerrado. Um dos murros atingiu em cheio a ratazana, projectando-a no vazio. Só tive tempo para me agarrar à trave, que oscilou perigosamente, suportando o peso. O vulto escuro caiu como um pedaço de chumbo, indo estatelarse contra a minha bota esquerda, e, ágil e precisa, cravou as unhas no couro da bolsa do material, equilibrando- se sobre o ventre.
Oh, não! Fiz enorme alarido, pateando na escuridão. Mas a ratazana do tamanho do meu pé, resistiu a todas as investidas. Se aquele bicho se lembrasse de trepar pelas calças não tinha outro remédio senão soltar-me do barrote... Um frio cortante subiu-me pela coluna vertebral. E notei que a perna esquerda, esgotada, ia ficando sem forças. A minha mente recusou-se a pensar. Em alguns segundos tinha-me transformado num louco selvagem e irracional, dominado pelo pavor. Agitei-me convulsivamente, cuspi e dei um pontapé na ratazana com a bota direita, ao mesmo tempo que enchia o túnel com uma catadupa de gritos e imprecações. Meio esmagado, o bicho cedeu, finalmente, caindo à água. Tomado de um irresistível desespero quase voei até ao poste. De gatas, sem tomar qualquer precaução, gemendo e ululando, deslizei pela trave horizontal, sem o menor sentido de orientação e sem saber para onde me dirigia. Segundos depois chocava violentamente com outro poste. Só me lembro de, com o choque, ter perdido o equilíbrio. E a temida imagem do charco acompanhou-me na queda. Pode parecer pueril. A verdade é que sempre acreditei na proximidade do anjo-da-guarda. E naquela ocasião, com mais fundamento. Foi o frio que me espevitou. Ao recuperar do choque vi-me de bruços, com o rosto meio enterrado no lodo. Tentei erguer-me, mas a correia da bolsa e uma aguda dor na fronte retiveram-me na mesma posição. Que tinha acontecido? Onde estava eu? Movi as pernas e apanhei um susto. Parte do meu corpo estava submerso no charco. Oh meu Deus! Agora percebia. Recordei a cena da ratazana, a louca corrida sobre a trave e o golpe final. A Providência, no momento crítico, permitira que eu caísse na borda do charco, junto aos degraus de
basalto. Arrastei-me para fora da água e, aos tropeções, passei para o outro lado do tapume. Estava todo molhado, sujo de lama e, o que era pior, completamente abatido. Caminhei como um autómato, subindo de novo o declive do subterrâneo sem parar até que, no fundo do túnel, a morna luz do dia me banhou dos pés à cabeça. Libertei-me do equipamento fotográfico, contemplando desoladamente as minhas roupas. A cabeça continuava a doer-me, se bem que não fosse o que mais me preocupava de momento. Encostei-me contra a parede e fechei os olhos, deixando que o sol retemperasse os meus nervos. Pouco faltou para que começasse a chorar. Tinha sido tudo inútil. Tinha arriscado a vida... para nada. Ali, naquele inferno, só tinha descoberto – uma vez mais – a minha rematada estupidez e uma ilimitada capacidade de medo... O enigma, o Major e o Destino acabavam de zombar de mim. Descoroçoado, sem ter sequer coragem para inspeccionar as máquinas fotográficas, iniciei uma lenta ascensão por aqueles malditos e inesquecíveis cento e cinquenta degraus. Nunca mais voltaria a Hazor. Nunca mais... Mas a tormentosa jornada ainda não tinha acabado. Nas ruínas reinava a paz. Uma calma que eu naturalmente perdera. Aspirei com sofreguidão a fresca brisa que descia do Hérmon e, junto dos cartazes que anunciavam o túnel, levantei os olhos para o céu azul, agradecendo o facto de, depois de todas aquelas vicissitudes, o bom Deus e os seus intermediários se terem mostrado misericordiosos para comigo. A prece não durou muito. Os números do relógio – marcando as treze horas e trinta minutos – lembravam-me que devia regressar. Tinha perdido a noção e a medida do tempo. Ao longe, no vértice do triângulo arqueológico, um grupo de estudantes, alvoroçados e tagarelas, visitava a cidadela. Estremeci perante a possibilidade de as crianças penetrarem na galeria e cometerem a travessura de saltar o tapume de madeira. E inevitavelmente, ao ver aqueles rapazes, o meu pensamento voou para junto dos meus filhos.
O Mercedes estava fechado e sem ninguém. Soliman, talvez aborrecido com aquela espera de quatro horas e meia, tinha desaparecido. Mais sereno, aproveitei para pôr as minhas coisas em ordem. Descalcei-me, examinando a bota esquerda com repugnância. A bolsa estava de facto perfurada em vários pontos. Procurei esquecer o que acontecera. Tentei enxugar a metade inferior das calças, mas, com elas vestidas, não podia torcê-las. O resto do equipamento, à excepção do caderno de campo, não parecia ter sofrido demasiado. Coloquei as botas e as meias no tejadilho do veículo e, encostado a uma parede, sentei-me no chão quente de Hazor. O hematoma da testa começava a tornar-se visível pelo inchaço. Olhei-me de cima a baixo e o velho sentimento de frustração veio misturar-se ao nojo. É que eu cheirava mesmo mal. Sem querer, voltado para o sol, caí na tentação de analisar e avaliar o que tinha feito e investigado até então. O enigma continuava por decifrar, distante e selado. Não tinha adiantado um único passo. Pelo contrário. Tudo estava consumado, perdido. Não me sentia com forças para prosseguir. E para quê? Hazor era um fracasso. Sinceramente, aqueles foram os minutos mais decepcionantes de toda a minha aventura em Israel. Estava decidido. Regressaria a Jerusalém e, sem mais demoras, apanharia o primeiro avião para Espanha. Dava-me por vencido. Mas o Destino tinha, é claro, outros planos. - Homem de Deus! Onde se tinha metido? A grossa voz do guia, vinda de trás, foi providencial para me arrancar, ainda que só por instantes, a tão negros pensamentos. Quando me voltei para ele, Soliman fez um esgar de espanto. - O que é que lhe aconteceu? Levantei-me, tentando em vão dissimular o meu lamentável aspecto. Boquiaberto, olhou-me com toda a atenção, e mudo de surpresa, apontou para os meus pés descalços, interrogando-me com o olhar. Encolhi os ombros e, sem grande entusiasmo nem demasiados
pormenores, insinuei que sofrera um estúpido acidente no fundo da galeria. O rosto do nazareno abriu-se num sorriso de cumplicidade. Os seus olhinhos brilharam. Não compreendi. Fazendo-me um gesto com a mão convidou-me a regressar ao automóvel. Calcei-me em silêncio e, uma vez dentro do carro, o perspicaz árabe estendeu-me umas tangerinas, que devorei. Soliman esperou uns segundos. Observou-me sem qualquer rebuço e, quando o julgou conveniente, perguntou-me em tom conciliador: - Afinal o que é que o senhor procura, realmente? O meu olhar esquivo e o embaraçoso silêncio que se seguiu denunciaram-me. - Talvez eu possa ajudá-lo... - acrescentou com habilidade. Sorri interiormente. Como poderia fazê-lo? - Já outros, antes do senhor, o tentaram – voltou ele à carga. Desta vez olhei-o de frente. - Outros?... Quando? Tinha caído na armadilha. Soliman, satisfeito, recostou-se no assento, respondendo com outro interminável sorriso. - Mas de que é que está a falar? - repliquei num desajeitado e tardio esforço por corrigir o meu erro. Tirou a mão esquerda do volante e, apontando as ruínas com o indicador, sentenciou: - A lenda fala de um tesouro oculto nas entranhas de Hazor. Aquilo era novo para mim. Incitei-o a prosseguir. - Na época helenística, o fortim foi reconstruído e a sua guarnição testemunhou a batalha de Jónatas contra Demétrio II. Pois bem, os sobreviventes, ao que parece, enterraram os despojos algures na meseta... Com uma sonora gargalhada cortei as suas explicações. Não consegui evitá-lo. Pedi desculpa e, negando com a cabeça, fiz-lhe
ver que desconhecia o assunto e que não era de modo nenhum um tesouro o que eu perseguia. Pelo menos, um tesouro daquela natureza... - Então?... Suspirei, desalentado. Lancei-lhe um breve e inquiridor olhar e, após uns segundos de reflexão, aceitei o desafio. Que podia eu perder? - Tem razão, Soliman. Procuro alguma coisa... Atento, assentiu com a cabeça. - Procuro uma coisa que não soube descobrir. Algo que pertenceu ou pertence a Hazor... Algo que tem asas... O homem emudeceu. Por um momento pensei que me tomasse por um louco. - Asas, diz o senhor? Sem esperar resposta, concentrou-se em novas reflexões. Tive um sobressalto. Porque se mantinha ele em silêncio? Haveria de facto alguma coisa? Era incrível. Em fracções de segundo, uma chispa de esperança voltava a colocar-me em estado de tensão, afastando o meu ainda escaldante fracasso. Esperei, ansioso. Mas o árabe nem pestanejou. Peguei na carteira e, antes de ele abrir a boca, mostrei-lhe uma nota de cem dólares. - Se me ajudar a encontrá-lo – disse-lhe com veemência -, se me ajudar a encontrar um ídolo, uma pintura, uma pedra... não sei..., algo que tenha umas asas, isto será para si. Girou lentamente a cabeça. Examinou o dinheiro com avidez e, saltando do carro, gaguejou: -Não saia daqui!... Espere um pouco! Atónito, vi-o correr e desaparecer em direcção ao posto de controlo. Saí do automóvel e pouco faltou para correr atrás dele. Têlo-ia ofendido? Porquê aquela violenta reacção? Comecei a tremer. A espera prolongar-se-ia por uma irritante e interminável hora.
Durante esse tempo tive oportunidade de engendrar toda a espécie de hipóteses. No entanto, o mais curioso é que o meu aparente firme propósito de abandonar a empresa se tivesse dissipado num abrir e fechar de olhos. Nunca consegui entender as minhas loucas contradições... Soliman apareceu por fim pela íngreme rampa de acesso às ruínas. Vinha a correr, cheio de suor, ofegante e, cheio de satisfação, entrou para o Mercedes. Imitei-o e ele, sem dizer palavra, arrancou, dirigindo-se para a zona de saída. Vi-o tão ensimesmado que não tive coragem para o interrogar. Ansiava por fazê-lo, mas o seu mutismo inibiu-me. Conduzia velozmente, com gestos nervosos. Passámos diante da guarita de controlo como um turbilhão envolvendo o guarda numa branca nuvem de pó. O motorista, com ar de indiferença, desviou o olhar para o espelho retrovisor, esboçando um sorriso malicioso. Ao voltar-me distingui a irada figura do funcionário, que agitava os braços no meio de toda aquela poeirada. Minutos depois, Soliman deixava a estrada principal, estacionando diante de um moderno e funcional edifício de um só piso, à distância de pouco mais de um quilómetro do tell. - E então? Como única resposta, o hermético guia levantou as mãos em direcção ao edifício, exclamando: - O museu de Hazor. Santo Deus! Tinha-o esquecido. Desta vez fui eu quem correu até às portas envidraçadas, deixando-o para trás. Como é que não tinha pensado nisso muito antes? Ali me esperava, certamente, a solução do criptograma. Hazor é o seu nome... Tremendo de ansiedade irrompi pelo recinto. Ao ver-me, o porteiro, um homem já encanecido, sorriu. Estava obviamente a par dos manejos de Soliman, porquanto ao passar o obrigatório bilhete de entrada, fez um sinal para o Mercedes, acentuando o seu largo sorriso e franqueando-me a passagem.
- Compreendo – correspondi-lhe eu. - Obrigado... Lancei uma aturdida olhadela à minha volta. O recinto baixo, que faz as vezes de vestíbulo e recepção, apenas continha uma dúzia de peças e várias fotografias aéreas das escavações. Tem calma!, ordenei a mim próprio com severidade. Muita calma! O exame tinha de ser minucioso. Deambulei em torno das tinas e restos de cerâmica, mas nada vi de particularmente significativo. ...e as suas asas levar-te-ão ao guia. Concentrado na pesquisa, só ao fim de alguns minutos reparei no anómalo daquela situação. O guia, incompreensivelmente, não tinha saído sequer do carro. Observei-o através das grandes janelas. Não parecia ter intenção de sair do veículo. Era muito estranho. Será que toda a sua descoberta consistia em trazer-me ao museu? Não, não era lógico. Poderia ter evitado tais correrias, conduzindo-me simples e directamente ao local. Por outro lado? Se sabia de facto alguma coisa, porquê todo aquele mutismo? Ou não estaria interessado na substancial gorjeta? Estive tentado a ir ter com ele e interrogá-lo. A verdade é que, com toda aquela pressa e a excitação do momento, não lhe tinha dado oportunidade para se explicar. Contudo – pensei, aborrecido – o normal é que ele me tivesse acompanhado até ao edifício. A curiosidade impôs-se e, esquecendo o incidente, dirigi-me para a escadaria que conduz à parte superior, ao museu propriamente dito. Pouco depois lamentaria este novo erro. O único e espaçoso salão estava deserto. Imóvel, junto à escada, com o pulso acelerado, pretendi abarcar tudo num segundo. Calma!, disse para comigo mais uma vez, ao mesmo tempo que o senso comum insistia com devoradora curiosidade. ... O número secreto das suas penas é o número secreto do guia. Pressentia que a chave do enigma estava ao meu alcance. Quase podia farejá-la... Ou seria apenas a minha ansiedade? Carecia ainda de informação a respeito da natureza do mensageiro
Hazor, mas alguma coisa no meu íntimo me dizia que mal o visse o reconheceria. Foi assim que, em bicos de pés, fui examinando as vitrinas. Cerâmicas avermelhadas de diferentes períodos, pontas de flecha... Nada daquilo continha a mensagem de que eu necessitava. Fui dando a volta pela sala, desinteressando-me dos inúmeros cântaros, escudelas, teares, mesas de libações de basalto e das pesadas rodas de moinho, utilizadas na antiguidade para esmagar os cereais. Ao chegar a um grupo de estátuas, também de basalto, contive a respiração. Examinei uns negros leões deitados, esculpidos em pesados blocos prismáticos, todos eles – como todo o recheio do museu extraídos das escavações de Hazor. A forma da juba tinha uma certa semelhança com a de um corpo emplumado. Mas as figuras não tinham asas. Via-se logo que aquilo não eram asas. Apesar disso, levado pela minha obsessão, entretive-me a contar as que adornavam uma das monumentais cabeças. O número obtido – 205 – não me serviu de muito. Recuei um par de metros, procurando uma leitura secreta na disposição do conjunto. Tive de render-me, mas a minha coragem não esmoreceu. Devia ser paciente. Consultei as minhas notas. «Vê, ENVIO O MEU MENSAGEIRO DIANTE DE TI, MARCOS 1.2.» Apesar de saber o criptograma de cor, apesar de tê-lo desmontado e decomposto durante centenas de horas, fiz uma nova tentativa. A palavra vê – sempre a partir do hipotético ponto de vista do autor – podia conter um significado puramente literal: olhar ou fixar deliberadamente a vista num objecto. Claro que, segundo outra acepção, também queria dizer reflectir num assunto antes de tomar uma resolução. Qualquer delas era válida. Estaria o Major a insinuar que eu devia concentrar os meus cinco sentidos numa coisa chamada Hazor ou oriunda de Hazor? Ou, pelo contrário, tratava-se de uma advertência ou de um convite à reflexão? O instinto não hesitou, inclinando-se para a primeira hipótese. Hazor tinha de ser qualquer coisa; e coisa sólida, visível, susceptível
de ser medido e contemplado. ... e as suas asas levar-te-ão ao guia MARcos 6.2.0. Asas? Aí estava o problema. Se aceitasse o termo no seu sentido natural, o lógico era pensar num ser alado. Mas em qual? Num animal? Num deus? Num homem ou numa mulher? Num símbolo? Se, pelo contrário, me ativesse ao segundo significado - fila, fileira” -, o dilema complicava-se. As ruínas não apresentavam uma especial simetria, não fui capaz de descobrir uma única fileira de pedras, colunas ou caminhos que apontasse ou me levasse ao guia. Além disso se o Major tivesse concebido o vocábulo asas como filas, que significado tinham as penas no resto do enigma? Fechei o caderno de campo e, persuadido de que o mensageiro, era outra coisa – quem sabe se uma pintura, uma moeda ou uma estatueta -, retomei as pesquisas. Não era necessária demasiada agilidade mental para deduzir que o que se exibe no museu de Hazor é apenas uma mínima parte do realmente descoberto e recuperado no tell. Na documentação consultada em Jerusalém aparecia uma legião de objectos que não figurava naquele modesto museu do Norte da Galileia. Esta realidade foi moderando o meu entusiasmo. Apesar disso, detiveme diante de cada um dos utensílios e peças, dissecando-os milímetro a milímetro. Onde demorei mais tempo foi talvez diante de uma tabuinha rectangular milenária, de pedra, na qual tinha sido feita uma série de incisões horizontais e verticais. Tratava-se de um jogo, conforme rezava a legenda. Uma espécie de raiazinhaz rudimentar, com um total de 21 quadradinhos em três fileiras: uma central com dez, e duas laterais com cinco cada uma. A fila da direita apresentava um sexto quadrado, inserido a meia altura. Em quatro desses quadradinhos, o artífice gravara grandes X. Somei, diminuí e multipliquei as cruzes daquela charada, até que, aborrecido, convenci-me de que também não era ali que encontraria uma clara relação com o criptograma. Numa primeira tentativa, ao descobrir que as séries de quadrados somavam vinte e um, alvorocei-me. Lembrei-me do ritual do cemitério de Arlington, mas as coisas ficaram por aí. Pura coincidência? Subestimei igualmente um grande búzio seccionado no vértice, perfurado em
dois ou três pontos, e que constituía um velho instrumento musical: o conhecido shofar da Bíblia. Os delicados escaravelhos sagrados de marfim e osso – repletos de inscrições egípcias – também nada adiantaram à minha investigação. Quanto às estatuetas de bronze, armas, colares e outros objectos de adorno, nem um único correspondia às características assinaladas no enigma: nem asas, nem penas, nem números secretos, nem a mais remota pista ou indício. *1 – Neste caso, o duplo sentido a que o autor se refere só ocorre no castelhano, com a palavra ala. (N. Do T.) *2 – Em castelhano rayuela, um popular jogo infantil. (N. Do T.)
Sentia-me totalmente derrotado. Ao regressar ao vestíbulo, a amargura e a decepção que me dominavam rapidamente deram lugar à indignação. É que Soliman conversava com o porteiro com ar cúmplice. Senti-me enganado. Avancei com ar de poucos amigos para o guia, decidido a descompô-lo. O árabe, alertado pelo seu companheiro, deu meia volta e, ao descobrir a minha irritação, foi perdendo o sorriso. Mas nem me deixou falar. Recuperou de imediato o seu bom humor e, erguendo as mãos em sinal de paz, adiantou-se: - Não me diga nada. O senhor sofre do problema da juventude... Olhei para ele, desconcertado. - Amigo, o senhor é demasiado impulsivo. O senhor não encontrou o que procura porque não confia em Soliman. E, tomando-me pelo braço, conduziu-me para fora do museu. - Venha comigo – foi o seu único e seco comentário. Não retorqui. Abriu a porta do carro e convidou-me a sentar-me a seu lado. Era espantoso. Da amargura, decepção e enfado eu tinha saltado, em poucos minutos para a surpresa e a expectativa. Aquele indivíduo sabia alguma coisa. E eu, como um néscio, tinha voltado a malbaratar um tempo precioso. Acabava de aprender algo de muito importante: é preciso saber
não abrir a boca e escutar. Sem perder o sorriso, pegou numa escura e sebenta carteira tirando de lá algo que, à primeira vista, parecia um postal ilustrado. Os nervos atraiçoaram-me. Estendi o braço para tomá-lo, mas ele, com ar divertido, disse que não com a cabeça, tornando a guardá-lo. Acto contínuo aproximou a mão direita do meu rosto, agitando os dedos indicativo e polegar, sinal inequívoco de que exigia que lhe desse primeiro o dinheiro. Entreguei-lhe os cem dólares americanos e, continuando com aquele mudo mas eloquente diálogo, apresentei-lhe a palma da minha mão direita, reclamando o misterioso postal. Soliman congelou o sorriso, repetindo o internacional e conhecido gesto que simboliza o dinheiro. Aquilo era de mais. Recordei-lhe o combinado. Tentei persuadilo de que ao menos me mostrasse primeiro o que tinha na carteira, mas o astuto árabe não mordeu o anzol. Indiferente aos meus pedidos, sugestões e argumentos, continuou silencioso no seu petrificado sorriso sacudindo incansavelmente os dedos, numa irredutível exigência de mais dólares. Acabei por ceder, claro. Era o preço da minha inconsequente desconfiança anterior. O guia não perdoava e agora, seguro de si, ali me tinha preso. Não é que eu tenha um especial fraco pelo dinheiro, mas ao ver voar uma segunda nota de cem dólares pressenti que as minhas modestas finanças acabavam de sofrer um duro revés. Bem, consolei-me, resta-me ainda o recurso aos cartões de crédito... A minha estada em Israel podia ser longa e os gastos nestas investigações e peripécias são sempre vultosos. Mas a minha confiança na Divina Providência – e, repito, nos seus intermediários – é quase suicida. Por isso, como disse, acedi às suas exigências. - Bom menino! - exclamou por fim Soliman. Abriu de novo a carteira e, satisfeito, entregou-me o que de facto mais não era que um reluzente e recém-comprado bilhete postal ilustrado de uns vinte ou trinta centavos de dólar... Fez estalar a segunda nota e, desconfiado, ergueu-a até à altura do
pára-brisas, para comprovar a sua autenticidade. Olhou-me curioso e satisfeito, estudando as minhas reacções. No postal estavam reproduzidas as duas faces de uma antiquíssima moeda: um stater de prata, cunhado provavelmente na cidade fenícia de Tiro durante o período persa, ou seja, no século iv a. C. O meu pulso começou a bater mais forte. Afinal, dei por bem empregues os duzentos dólares. - Santo Deus! - exclamei, em alvoroço. - Era isso que procurava? - perguntou-me ele, feliz. Não soube nem pude responder-lhe. A emoção bloqueava-me. Aquilo, sim, poderia constituir uma pista. Uma valiosa pista... Soliman esperava que eu o bombardeasse com perguntas. Onde, como, quando tinha ele localizado aquelas imagens? Embora essas e outras perguntas aflorassem ao meu espírito, limitei-me a devorar com os olhos e em silêncio as faces da velha e deteriorada moeda. Especialmente a que estava situada à esquerda do postal. E os minutos voaram. Finalmente, cortês mas firme, o meu acompanhante interrompeu as minhas divagações. Estava já a entardecer e, cheio de razão, perguntou-me quais eram as minhas intenções. - Sim, claro... - murmurei por fim. - Um momento, por favor. Voltei ao museu e, de postal na mão, pedi ao funcionário que me mostrasse todos os postais, folhetos e demais documentos à venda. Não tinha grande coisa. Além do postal ilustrado que eu já tinha – ali mesmo adquirido pelo árabe pouco antes -, o resto do material não correspondia aos meus anseios. Consequentemente, aquele era o único testemunho alado existente no tell de Hazor. Pretendia, tinha necessidade de um máximo de segurança antes de reatar as investigações. Enquanto saía ao encontro do Mercedes e de Soliman certamente devido ao cansaço acumulado – tomei a decisão de dar por terminada a nossa visita a Hazor. O meu corpo e o meu espírito reclamavam um pouco de sossego e um banho retemperador.
Depois, no silêncio do meu aposento no hotel, logo se veria. O guia recebeu com satisfação a ordem de regressar a Nazaré. Na realidade, pouco ou nada ficava por perguntar a respeito daquele oportuno postal. Não fazia sentido pô-lo ao corrente do meu objectivo final. De modo que, salvo alguns poucos, esporádicos e irrelevantes comentários, remeti-me a um mutismo total. Soliman, respeitoso, não insistiu na história do tesouro nem nas tramóias que, evidentemente, supunha que eu tivesse entre mãos. Despedimo-nos já noite dentro. O bom homem, que parecia terme ganho amizade, desfez-se em sábios conselhos, oferecendo-me a hospitalidade do seu lar e obrigando-me a prometer-lhe que o chamaria e contrataria para futuras incursões na Galileia. O cansaço acabou por vencer-me. As emoções, sustos e esbanjamentos de energias daquela jornada ditaram as suas leis e, à volta da uma da madrugada, contra a minha vontade, tive de interromper a análise da moeda. Em sonhos, como acontece com frequência, a minha mente continuou a trabalhar e a pesquisar, à procura de uma interpretação. Foi outra noite de pesadelos, em que se entrecruzaram a longínqua voz do Major – ditando-me o criptograma -, os angustiosos ataques de centenas de ratazanas em gigantesco mocho, planando em silêncio sobre as ruínas de Hazor. Ao alvorecer acordei sobressaltado e com o corpo moído de cansaço. Precisei de algum tempo para me lembrar onde estava. Não era a primeira vez que tal me acontecia. Em outras pesquisas – fruto das tensões ou da poderosa dinâmica das mesmas -, ao despertar na obscuridade de um aposento, a minha consciência, confusa, reclama e leva de facto alguns segundos até conseguir situar-se no lugar exacto. Coloquei o postal ilustrado junto do espelho e, enquanto me barbeava, fiz o balanço do que conseguira assimilar e descobrir no dia anterior. A verdade é que não podia sentir- me satisfeito. A face da moeda situada à esquerda apresentava um mocho, com o corpo quase de perfil e a cabeça de caras com o observador. Tratava-se provavelmente de um mocho real ou grão-duque, com uma longa
cauda e os característicos penachos nas respectivas aberturas auriculares. Por detrás da nocturna ave de rapina via-se uma espécie de báculo do qual pendia um apêndice triangular. Tratavase, quase de certeza ,de um enxota-moscas. A efígie da direita, bastante mais deteriorada, parecia corresponder a uma divindade mitológica: uma espécie de tritão ou deus das águas cavalgando um cavalo com cauda de peixe. O herói, guerreiro ou divindade estava na atitude de disparar um arco. Por debaixo do cavalo-peixe via-se a superfície da água e, no extremo inferior da moeda, um delfim, orientado na mesma direcção do grupo superior. Logicamente, desde o momento em que deparei com a reprodução do stater de prata, a minha atenção centrou-se no mocho. Como já referi, era o único indício, relacionado com Hazor, que apresentava asas e penas, ou melhor, uma única asa. Com efeito, de perfil como estava, a ave apresentava apenas a asa direita. Esta circunstância confundiu-me porquanto o enigma falava de asas, no plural. Para cúmulo da infelicidade, esta única e solitária asa encontrava-se muito desgastada, apresentando-se como um todo uniforme e monocolor, sem o menor vestígio de penas. Apesar disso examinei o resto do corpo que, esse sim, apresentava uma nítida e abundante plumagem. A soma final das penas – aquelas que tinham resistido ao passar dos séculos – voltou a surpreender-me. Eram exactamente trinta e três, ou seja, somando ambos os dígitos, seis. De novo aquele enigmático seis... Por ali se ficavam os meus achados. Mas não me dava por vencido. Sem a necessária documentação e sem a imprescindível assistência dos peritos em numismática, em mitologia persa, fenícia, egípcia e assirobabilónica, era inútil tirar conclusões. O que é que aqueles símbolos podiam representar? E, muito especialmente, que secreta interpretação teria a imagem do mocho real e do enxota-moscas egípcio? Ou não se trataria de um enxotamoscas? ... e as suas asas levar-te-ão ao guia. Não devo esconder que esta frase do criptograma me fez
desconfiar, de tão precisa que era. E se não fosse o stater de Tiro o mensageiro anunciado pelo Major? Como é que uma só asa poderia conduzir-me ao guia? O caos implantava-se de novo por momentos. Tinha de reflectir e agir com sagacidade. Para começar, além de reunir um máximo de informação sobre a moeda, a localização da mesma era vital. Onde teria sido depositada? Convinha estudá-la e estudar o seu contexto e situação actual com todo o rigor. Quem sabe se a localização ou o proprietário da milenar peça não poderiam lançar mais luz que as próprias imagens cunhadas nas suas faces? Certamente que nem no tell de Hazor nem em Nazaré teria grandes possibilidades de deslindar no novo mistério. A maior parte dos tesouros arqueológicos descobertos em solo israelita encontram-se nos magníficos museus de Jerusalém, Nova Iorque, Paris e Londres. E o planalto de Hazor não constitui uma excepção. Tinha de regressar a Jerusalém e recomeçar praticamente do zero. Não hesitei mais. Nessa mesma manhã, navegando entre a esperança e o desalento, paguei a conta, para logo a seguir abandonar o hotel e a cidade de Nazaré. Desta vez decidi-me pelo serviço de autocarros interurbanos. As minhas finanças não teriam resistido ao custo de um táxi ou de um carro de aluguer. Ao meio-dia daquela terça-feira empurrava eu a porta giratória do número trinta e nove da Rua Keren Hayesod em Jerusalém. Como sempre, o vestíbulo do Hotel Moriah era um movimentado ponto de encontro de turistas dos confins mais remotos. E, mais uma vez, ao cruzar com aquela barulhenta e eufórica turba de alemães, japoneses, italianos e norte-americanos, senti-me só e estranho. Quão diversos eram os meus objectivos dos de toda aquela gente! David, o único recepcionista capaz de articular algumas frases em espanhol, entregou-me as mensagens que me aguardavam, interessando-se, curioso e solícito, pelo inchaço que eu ainda exibia na testa. Agradeci a atitude, não dando importância ao caso. Quanto às chamadas telefónicas, todas elas vinham do Instituto de Relações Culturais. As peripécias em Hazor tinham varrido da minha lembrança as obrigações contraídas com o citado organismo oficial
judaico. A situação assim criada incomodou-me. Procurei uma desculpa que justificasse o meu silêncio, mas não era fácil. Que podia eu argumentar? Como explicar verosimilmente o hematoma da minha fronte? Aquele estrito e asfixiante controlo começava a irritarme. Por isso, fazendo ouvidos de mercador daquelas mensagens, concentrei-me na leitura de um dos guias turísticos de Jerusalém. O mais razoável seria iniciar as minhas novas investigações pelos mais importantes museus da cidade. Como segunda opção tinha os peritos em numismática e, por último, os diferentes departamentos de Arqueologia e Antiguidades da Universidade Hebraica e do Serviço de Conservação do Património Histórico do Governo de Israel. Tarefa árdua e trabalhosa, sem dúvida, que, no entanto, não me atemorizou. Estava disposto a remover céus e terra para encontrar o stater. Curiosamente, a minha busca terminaria muito antes do previsto...
Não sei muito bem por que é que, entre tantos museus, fui escolher o Rockefeller. Talvez por o dia já ir declinando e pela sua relativa proximidade do hotel em que me hospedava. Em Jerusalém, quase todas as instituições deste tipo fecham as suas portas entre as cinco e as seis da tarde. Dispunha portanto de umas três horas. Por outro lado, na extensa lista de cientistas com quem tinha começado a encontrar-me figurava um, Joe Zias, do departamento de Antiguidades do referido Museu Rockefeller, que, seguramente, me poderia orientar. Suponho que foi tudo isto que me levou a marcar, sem mais delongas, o número 278624. Tive a sorte do meu lado. Zias encontrava-se efectivamente no museu e receber-me-ia. Alguns minutos depois o táxi deixava-me no fim da Rua Suleiman, em frente das muralhas do vértice norte da Cidade Velha. Fiquei absorto durante alguns segundos a desfrutar o branco azulado daqueles muros. Era imperdoável. Desde que chegara à Cidade Santa ainda não concedera a mim próprio um minuto de lazer. Encolhi os ombros e, após um minucioso registo do meu equipamento fotográfico, o guarda do museu ficou-me com a bolsa. As medidas de segurança, tanto no exterior como no interior do
palacete que serve de sede ao museu, eram plenamente justificadas. Os tesouros ali depositados são de facto excepcionais. Zias ouviu-me com curiosidade, examinando as figuras do postal ilustrado. Nem pestanejou. Observou-me atentamente e, desconfiado, perguntou sem rodeios: - Por que é que lhe interessa uma peça tão antiga? - É uma longa história – improvisei. - Faço investigação sobre o mundo mágico e iniciático das velhas civilizações semíticas, e este mocho é, sem dúvida, uma peça-chave. Pretendo localizar a moeda e reunir o máximo de informação em torno da sua origem e possível significado. O cientista humedeceu os lábios com a ponta da língua e, não muito convencido, deixou a atafulhada mesa de trabalho e pesquisou numa das estantes. Deu uma olhadela ao índice de um grosso livro e, depois de localizar o capítulo desejado, abriu-o, voltando ao seu local de trabalho com a mesma discrição. Lancei um furtivo olhar sobre as páginas que retinham a sua atenção. Entre as quatro ilustrações distingui duas que reproduziam moedas, mas não me atrevi a mover-me. O meu coração começou a bater mais forte. Zias, imperturbável, continuou a sua atenta leitura, recuando duas ou três folhas. A tensão acumulada começava a incomodar-me. Que teria ele encontrado? Finalmente, voltando ao ponto de partida, estendeu-me o pesado livro, convidando-me a examiná-lo. Tratava-se de um volume sobre mitologia geral, de F. Guirand, aberto nas páginas cento e seis e cento e sete. Naquele capítulo fazia- se uma exaustiva descrição dos deuses e heróis mitológicos fenícios. E na citada página cento e seis podiam ver-se, de facto, duas gravuras a preto e branco com antiquíssimas moedas de Arvad, Biblos e Tiro. Uma das peças – na ilustração situada no canto superior esquerdo – deixou-me atónito. Precipitei-me sobre o texto da legenda. A sua leitura desiludiu-me. Dizia assim: Moedas de Arvad (em cima) e de Tiro (em baixo), com temas mitológicos. Paris, Biblioteca Nacional
(Gabinete de Moedas). Levantei a vista, desanimado. - Santo Deus! - balbuciei. - Está depositada em paris. O arqueólogo não pôde conter um sorriso irónico. Naufragavam assim todas as minhas esperanças. A moeda encontrava-se a mais de nove mil quilómetros de Jerusalém... - Sim – precisou o judeu -, essa sim... Olhei para ele sem compreender. Então, Zias, apontando com o indicador esquerdo para a gravura em questão, sugeriu- me que prestasse maior atenção ao que tinha diante de mim. Examinei de novo ambas as faces da moeda inferior, a de Tiro, e, de facto, ao vê-la pela segunda vez, compreendi que laborava num erro. Embora os motivos fossem semelhantes aos cunhados na de Hazor, tanto o mocho como o cavaleiro e seu hipocampo tinham um realce maior e algumas variantes, se bem que muito ligeiras. Na de Paris, a cabeça do grão-duque e o enxota-moscas, por exemplo, apresentavam uma inclinação mais acentuada para a esquerda que a que se notava na moeda do tell. Não havia dúvida, eram mesmo diferentes. Contudo, a trégua duraria pouco. O cientista não soube resolver a seguinte e mais importante questão. Consultou os catálogos do museu e, perante o meu desespero, disse que não com a cabeça. A peça encontrada nas ruínas de Hazor não se encontrava nas vitrinas nem nos depósitos do Rockefeller. - Já procurou no Museu de Israel? - Tenciono fazê-lo – repliquei, resignado. Zias também não soube adiantar-me nada sobre o significado das figuras. Para ele, como bom profissional da ciência, o mocho, o enxota-moscas ou o não menos enigmático cavaleiro que montava um cavalo-marinho, eram simples alegorias mitológicas. Nada mais que isso. A minha insistência foi inútil. A possível simbologia esotérica do stater era assim relegada para o mundo da fantasia e dos loucos... Apesar do meu desapontamento agradeci-lhe a sua valiosa
ajuda. Então o israelita, talvez impressionado pela minha teimosia em continuar a procurar a moeda de Hazor, recomendou-me que fosse ter com Michal Dayagi-Mendels, conservador e responsável pelos períodos persa e judaico no referido Museu de Israel, certamente um dos museus mais relevantes do Mundo. Um lugar que jamais esquecerei... Deus, ou os seus intermediários, escrevem direito por linhas tortas. Sábia máxima esta... Este tosco aprendiz de quase tudo estava a ponto de comprová-lo mais uma vez. Raquel, a prestável funcionária do Instituto de Relações Culturais, voltou a telefonar. Sabia do meu regresso a Jerusalém e eu não tive outro remédio senão enfrentar a realidade nua e crua. A jornada extinguia-se e, não obstante os meus bons propósitos, a fase seguinte das investigações – no Museu de Israel – teve de ser adiada. A conversa telefónica com Raquel só contribuiu para complicar ainda mais a minha situação. Precisava de liberdade de movimentos e, perante o desconcerto da rígida e disciplinada Raquel, anunciei-lhe a minha intenção de congelar as entrevistas até nova ordem. O único pretexto verosímil que me veio à lembrança foi o da grande caminhada a pé, de Nazaré a Belém. Desejava levar a cabo o projecto quanto antes e, consequentemente, as reuniões programadas passariam para segundo plano. Tal como em encontros anteriores, procurou dissuadir-me, alegando que uma caminhada de tais proporções exigia uma preparação e infra-estrutura mais sólidas e minuciosas. Não cedi nem um milímetro. Melhor dizendo, o único ponto em que me mostrei de acordo foi em trocar impressões com o doutor Liba, director do Instituto, e em aceitar uma carta oficial do citado organismo que, de algum modo, apoiasse a minha aventura e fizesse as vezes de salvo-conduto. Assim, logo à primeira hora do dia seguinte, transpunha eu a porta de entrada do número seis da Rua Sokolov, recebendo o utilíssimo documento, em hebraico, das mãos do próprio Moshe Liba. Tratava-se de um documento em que se especificavam os meus objectivos e se recomendava a ajuda e a colaboração das autoridades militares das zonas pelas quais tinha previsto passar.
Tal escrito – então eu nem sequer poderia imaginá-lo – viria a revelar-se providencial em determinados momentos da dura e inesquecível caminhada de quatro dias pela margem direita do rio Jordão. Mas isso é outra história que pouco ou nada tem a ver com o enigma do Major e que talvez um dia ganhe coragem para contar. A partir daquela luminosa manhã de quarta-feira o autocarro número nove tornara-se familiar para mim. Foram dias cheios de emoção, em que, salvo ocasiões excepcionais, o citado autocarro representou o meu único elo de ligação com a rua e com a população de Jerusalém. Ao tomá-lo pela primeira vez na Avenida Jorge V, em frente ao Hotel Plaza, os meus pensamentos continuavam virados para o stater e suas enigmáticas figuras. Em especial a do mocho era para mim uma obsessão. Porque seria que as suas asas somavam seis? Poderia ser a ansiada pista? Como atrás afirmei, os caminhos da Providência são imprevisíveis. Naquela mesma noite, de regresso ao hotel, rir-me-ia de mim próprio. Mas sigamos o fio dos curiosos acontecimentos que se aproximavam. Eu tinha visitado o Museu de Israel na minha anterior estada no país. Tenho um velho fraco pelos museus, reconheço-o. Ao descer na zona sudoeste da cidade, o espaçoso complexo abriu-se diante de mim como um novo repto. Por onde começar? O museu tem um total de vinte e sete secções, com um pequeno núcleo de salas dedicado às mais heterogéneas disciplinas: arte, pré-história, arqueologia judaica e asiática, etnografia, biblioteca e muitas outras. Era elementar. Talvez Dayagi, o curator ou conservador dos períodos judaico e persa, pudesse facilitar a minha tarefa. Como primeira medida seria indispensável pô-lo a par dos antecedentes e localizar a moeda. Mas, como dizia, o Destino tinha outros planos. Michal não estava no seu gabinete; e ninguém soube informar-me sobre o seu possível regresso ao museu. Mostrei o postal ilustrado a uma das empregadas do serviço de informação e relações públicas, mas ela tão ignorante como eu sobre o assunto, aconselhou-me a consultar a biblioteca do centro. A sugestão não me entusiasmou. Aquilo significava – quase seguramente – uma nova e
irreparável perda de tempo e de energias. Havia também a possibilidade de me lançar numa obsessiva procura do stater por entre as dezenas de salas e as centenas de vitrinas. E curioso. O razoável teria sido aceitar os sensatos conselhos da minha informadora e do próprio senso comum, reconendo aos bibliotecários ou a outros arqueólogos e especialistas em antiguidades. Inexplicavelmente, pondo de lado os argumentos da minha consciência, escolhi o mais difícil... e atractivo: empreender a pesquisa pelos meus próprios meios. Esta perigosa e suponho que genética tendência minha custou-me sérios reveses. Mas aceitei o desafio. Eu sabia que a operação poderia saldar-se num rotundo fracasso. Não obstante, este método – como tudo o que é imprevisto e misterioso – exerce sobre mim uma influência dominadora. Nunca encontrei nada de mais excitante que a aventura do desconhecido. E com um entusiasmo transbordante desci as escadas que conduzem às caves do pavilhão de arqueologia. Não posso explicá-lo com clareza, mas qualquer coisa parecia chamar-me a partir das entranhas do museu. Abençoada intuição! Ou não foi a intuição que guiou os meus passos? Nunca o saberei... Consultei o relógio. Eram dez horas. O museu fechava às dezassete, pelo que eu dispunha de uma ampla margem, mais do que suficiente, para explorar as salas repletas, correspondentes aos nove ou dez séculos anteriores a Cristo. Hazor é o seu nome... As imagens da moeda e o tell de Hazor eram as minhas únicas pistas. Lenta e tranquilamente dei início à investigação, com os cinco sentidos atentos a qualquer peça, mapa, escultura ou referência que levasse o nome de Hazor ou Tiro. ...e as suas asas levar-te-ão ao guia. Meio-dia. As pesquisas estéreis começavam a minar o meu ânimo. E se aquele processo se revelasse tão improfícuo como os anteriores? Como poderia eu estar seguro de que a moeda tinha sido contemplada e utilizada pelo Major? Examinei sucessivamente um sem-número de vestígios correspondentes aos períodos do Bronze, remontando, inclusivamente, a séculos tão fora de questão como O XVIII e XVII a. C.
Descurei os vestígios encontrados nos estratos do primeiro Período do Ferro e, pelas treze horas, os acontecimentos precipitaram-se. Ao entrar na sala trezentos e nove de arqueologia, o correspondente quadro-resumo do segundo Período do Ferro israelita (1000-586 a. C.) despertou-me a atenção. O stater, segundo os arqueólogos, tinha sido cunhado cerca de quatrocentos anos antes da nossa era. Estava, pois, muito próximo do possível objectivo. Fiel à táctica de explorar cada sala começando sempre pela direita da porta de acesso, fui deambulando em frente da primeira parede, examinando algumas diminutas estátuas de terracota e uma valiosa colecção de selos e de moedas. Dobrei a esquina e, ao iniciar a exploração da segunda parede, um nome e uma pequena cabeça de argila fulminaram-me: Hazor! Precipitei-me sobre a peça. A legenda explicativa falava de Astarte, deusa da fertilidade, encontrada nas ruínas do tell, do século vIII a. C. Claro, disse para mim próprio, esta finíssima escultura de greda foi extraída por Yadin na escavação do quarto estrato. Atenção! Sem me dar conta disso, tinha penetrado numa sala em que Hazor podia ocupar um lugar proeminente. De facto, não me enganava. No solo, junto à mutilada representação de Astarte, exibia-se um ciclópico lintel de pedra, utilizado numa das portas da cidadefortaleza. Tremi de emoção. Os meus sentidos ficaram bem despertos, prontos a captar o mais insignificante dos pormenores. Recuei até junto da cabeça da deusa, subjugado pelos seus olhos e, especialmente, diante do quase imperceptível e malicioso sorriso que brotava dos seus finos e delicados lábios. Não sei como explicar. Na realidade, eu próprio não compreendo. A verdade é que o meu olhar e o meu coração ficaram presos da doce e ao mesmo tempo irónica expressão daquele rosto avermelhado. Tive a clara sensação de que, apesar do vazio dos seus olhos, a divindade me transmitia alguma coisa. Mas isto é ridículo, conclui, ao fim da intensa observação. Voltandome então, lancei uma olhadela pela sala. O enigmático sorriso de Astarte – agora atrás de mim – continuou vivo e flutuante na minha memória.
Um momento... Aquela intuição – seio-o bem – não foi apenas resultante do meu tosco entendimento. E a força que me acompanha levou- me a voltar a cabeça, ao encontro dos olhos da deusa. Um momento... Fui colocar-me à esquerda do pedestal que sustinha a figura, procurando seguir a direcção apontada por tão fascinantes olhos. Não havia dúvida. Astarte olhava para o centro geométrico da sala quadrangular. Mas a lógica revelou-se de novo. Estás louco! Censurei-me a mim próprio. É bem possível. Mas também era certo que muitas dessas loucuras me tinham proporcionado estimulantes surpresas... Um já familiar estremecimento interior pôs-me de sobreaviso. Já não podia recuar. A curiosidade tinha levado a melhor. Encarei Astarte de novo e, desta vez, o subtil sorriso acentuou-se na minha imaginação. Ou não teria sido apenas coisa da minha imaginação? Dei meia volta e, sem me atrever a mover sequer um músculo espiei o pedestal que se levantava a quatro ou cinco metros. Que continha ele? Porque é que a sua simples contemplação alterava o ritmo do meu pulso? A situação era ridícula. No fim de contas, tarde ou cedo teria chegado até ele... Não estaria a exagerar? Por que razão prestar tanta atenção a um obscuro sorriso e a uns olhos de barro? Sempre gostei de enfrentar situações-limite. São situações que podem desembocar, ou não, em surpresas ou  ganhos altamente proveitosos. De modo que, medindo cada um dos meus passos, fui-me aproximando do negro pedestal – provavelmente mecânico - sobre o qual repousava uma urna cúbica. À sua direita, num nível inferior ao da arca de cristal, uma base igualmente de metal abria-se num atril. Parei a meio caminho. Estava seguro, mas queria certificar-me. Voltei-me e procurei os olhos da deusa. De facto, mantinham a trajectória que levava à coluna. Uma pungente mistura de ansiedade e angústia reteve-me uns segundos. A minha vista percorreu toda a
face do pedestal, sem descobrir a obrigatória legenda explicativa. Estava com certeza no interior da urna. A tensão desencadeou-se e, com um salto, lancei-me sobre o cofre. O instinto bradava-me que ali, entre aquelas paredes de vidro, tinha de estar o que eu perseguia: a milenar moeda de Hazor, com o macho real. Foi um golpe muito duro. O meu orgulho, a minha fantasia e as minhas loucas esperanças desvaneceram-se. Não conseguia afastarme da urna. No seu interior não figurava o ambicionado stater. Apenas três objectos, em osso ou marfim pertencentes a um enxoval feminino. A decepção atingiu-me tão profundamente que nem sequer reparei nas pequenas etiquetas escritas à máquina que aclaravam a natureza e origem dos utensílios que estavam à vista. Encontrava-me de facto hipnotizado pelo desencanto, com as mãos aferradas às arestas daquela maldita urna de quarenta e cinco centímetros de lado. Ali mesmo amaldiçoei a deusa e, é claro, a minha néscia precipitação. Contorci-me com raiva e, fixando os olhos nos de Astarte, interroguei-me a mim próprio. Como poderia eu ter sido tão ingénuo e estúpido ao mesmo tempo? Não tinha emenda... Naquele momento, enquanto fulminava o pétreo e brincalhão sorriso da divindade desenterrada em Hazor, o subconsciente ressuscitou, subliminarmente, a imagem de uma das peças depositadas na urna. Meu Deus! Mas o que é que acabei de ver ali atrás? Pestanejei, nervoso. E a máscara de argila, como pouco antes tinha já acontecido, pareceu confirmar as minhas suspeitas, dilatando o seu irónico trejeito e fazendo-me vacilar. Não é possível! Inclinei-me para a vitrina. Confirmei que o que se encontrava no seu interior não era mera criação da minha desenfreada imaginação e logo a seguir li sofregamente a legenda que se encontrava junto do objecto. Um estremeção fez-me recuar. Assustado, a única coisa que me ocorreu foi sair dali, refugiando-me num dos cantos da sala. Que espécie de jogo era aquele?
... e as suas asas levar-te-ão ao guia. O criptograma iluminou-se no meu cérebro. Tudo aquilo era absurdo!... Vê, envio o meu mensageiro diante de ti... A cabeça da deusa. O enigmático sorriso. Os seus olhos vazios. E agora... aquilo. Meu Deus! Sabia que era proibido fumar. Mas mesmo assim acendi um cigarro, deixando que as grossas e obedientes colunas de fumo me acalmassem os nervos. Apaguei-o após a segunda e relaxante fumaça, voltando com decisão para junto da urna. Incrível! Dei uma volta em torno da caixa de cristal, observando-a de ângulos diferentes. ... o número secreto das suas penas. Tudo parecia encaixar-se. Ou era a minha alegria que, atabalhoada e falsamente, estava a conceber um novo fantasma? Impus-me serenidade. Abri o caderno de campo e, quase sem pulsação, copiei a legenda, em inglês, que acompanhava a minha descoberta. Dizia textualmente: «DecoxAzED BoNE HANDLE. Hazor, 9th. Century B.C.E. Probably part of a mirror or sceptre, the handle shows a winged figure grasping the open volutes of a “tree of life” in relief.» Traduzido, aquilo queria dizer que a peça – um cabo de osso decorado – vinha de Hazor. A sua antiguidade, na opinião dos arqueólogos, remontava ao nono século antes de Cristo. A etiqueta acrescentava que se tratava, provavelmente, de parte de um espelho ou ceptro na qual aparecia, em relevo, uma figura alada segurando as volutas abertas de uma árvore da vida. Uma figura alada! E originária de Hazor! Um ser com asas, infinitamente mais atractivo que o mocho! Fiquei colado ao cristal, absorto e maravilhado. O delicado relevo - trabalhado sobre um cilindro de osso de uns vinte centímetros de altura por seis ou sete de diâmetro – representava, de facto, uma espécie de anjo com
quatro grandes asas estendidas. Duas nasciam das suas costas e as outras, voltadas para baixo, da cintura. Apresentava o típico perfil egípcio-babilónico, com os braços ligeiramente separados do corpo: o direito estendido para a frente e o esquerdo para trás. As mãos, como dizia a legenda, agarravam vários ramos (?) de um arbusto acaçapado. Aquela híbrida criatura enchia a quase totalidade da superfície do cabo. Quanto à árvore da vida, tinha sido gravada na face oposta. As duas peças que acompanhavam o anjo – foi assim que o baptizei desde o primeiro momento – não despertaram a minha atenção. Uma consistia numa colher de marfim, utilizada seguramente em cosmética, com o cabo gravado com folhas invertidas de palmeira. Um pequeno espelho rectangular colocado na superfície da urna permitia que se visse a sua face inferior. A outra – também desenterrada nas ruínas de Hazor – era parte de uma taça ou recipiente cilíndrico, também de marfim. Mas se o achado do cabo de osso com o anjo foi vital, a observação do desenho exibido no atril contínuo à urna foi-o muito mais. Os responsáveis do museu, com um critério acertado e providencial, tinham reproduzido no papel, de modo integral e exacto – minuciosamente exacto, diria eu -, todo o alto-relevo lavrado no mencionado cilindro. Ali, as características e pormenores da árvore da vida e da personagem apresentavam-se com total nitidez. Ajoelhei-me em frente do esquema e, durante um longo momento, permaneci absorto e saboreando aquilo que à primeira vista parecia uma importante chave. Infelizmente, a recordação do stater vinha de vez em quando perturbar os meus pensamentos. Qual dos dois teria a ver com o criptograma? E se nenhum deles tivesse a ver com o assunto? No museu ainda havia muito por ver... As circunstâncias exigiam uma especial frieza. Convinha analisar e esmiuçar ambas as pistas, sempre à luz do texto do Major. Vê, envio o meu mensageiro diante de ti, MARcos 1.2. Hazor é o seu nome e as suas asas levar-te-ão ao guia MaRcos 6.2.0. O número secreto das suas penas é o número secreto do guia, o que há-de preparar o teu caminho, MaRcos 12.
Uma primeira chispa fez-me saltar de alegria. Como o não tinha intuído antes? A palavra mensageiro também podia ser entendida ou traduzida por anjo. Em sentido literal, é esse o seu significado genuíno. Aquela criatura – com quatro asas e ligada à biblica Hárvore da vida – tinha de simbolizar o famoso anjo guardião do Paraíso: o querubim cuja missão era guardar a árvore da imortalidade - Quer o cabo de osso tivesse sido obra de judeus ou de persas, tanto uns como outros conheciam e eram depositários da mesma tradição. Vê, envio o meu mensageiro, o meu anjo?, diante de ti. Estaria, portanto, diante do mensageiro citado no criptograma? Quanto à terceira frase – Hazor é seu nome - talvez o jogo de palavras do Major estivesse a insinuar que o anjo ou mensageiro tinha esse nome. A quarta e quinta frases continuavam a resistir. Se era realmente aquele o mensageiro alado, como ou de que forma as suas asas poderiam levar-me ao guia? Impaciente, saltei para a sexta e sétima referências: as penas e o número secreto. Ao somálas, o resultado deixou-me confuso. Incrédulo, repeti a operação. Não pode ser! Talvez a réplica do atril seja defeituosa. No fundo, conhecendo eu a eficiência dos judeus sabia que tal possibilidade era uma quimera. Mas, por uma questão de segurança, fui até junto do original e, com paciência franciscana, contei as penas esculpidas no cilindro. Não havia erro. E a certeza de que me encontrava perante o Hazor do enigma ganhou terreno no meu íntimo. Não podia desperdiçar um minuto. A impossibilidade de fotografar a peça e o desenho – as máquinas fotográficas eram proibidas no museu – obrigou-me a recorrer a uma fórmula intermédia: fazer eu próprio uma cópia. Teria tempo para localizar a documentação correspondente e agir em consequência. Concluída a minha rústica obra de arte e ansioso por concentrarme a estudá-la estive quase a tomar o caminho da saída.
Precisei de uma dose extra de disciplina. O magnetismo do anjo da sala trezentos e nove atraía-me para o hotel. Mas, como dizia um inato sentido da responsabilidade amarrou-me àquele lugar. Tinha de examinar todas as outras dependências; observar ao menos as que tivessem alguma relação com as escavações e achados do tell da Galileia. Pouco antes do fecho do museu – fatigado e excitado – dei por concluída a exploração. Paradoxalmente, a infrutífera busca tranquilizou-me. Nenhuma das salas continha o menor vestígio de cerâmica, escultura, pintura ou utensílios com representações ou símbolos alados de Hazor. Quanto à moeda cunhada em Tiro, nenhum rasto. Nunca me agradou deixar fios soltos nas minhas investigações. Daí que, dada a impossibilidade material de obter informações sobre a moeda nos dias que se seguiram à descoberta do anjo, no meu regresso a Espanha fiz algumas pesquisas. Numa atenta carta, o professor Yaakov Meshorer, conservador de numismática do museu de Israel, esclareceu-me que deste tipo de stater existem milhares de peças, distribuídas por numerosas colecções. Nos fundos do Museu de Israel existe uma centena de moedas semelhantes se bem que todas elas provenientes das proximidades de Haifa; nenhuma de Hazor. É evidente que eu nunca teria encontrado a moeda desenterrada. E com prudente optimismo preparei tudo para o assalto à enigmática figura do anjo de Hazor. Teria chegado o grande momento? O número secreto das suas penas é o número secreto do guia... Estas frases – sexta e sétima, respectivamente – foram a minha principal obsessão naquela longa noite de quarta-feira. Admitindo que o Major – que podia ter visitado o museu exactamente como eu – tivesse posto os olhos em tão bela e simbólica imagem, tornando-a no eixo do seu enigma, que reservada informação teria ele escondido sob o conceito de número secreto das suas penas? Cada uma das asas superiores apresentava 12 penas, o que fazia um total de 24, ou seja: 2 + 4 = 6. Curioso. Em contrapartida, as inferiores levavam a um resultado diferente.
A que se situava junto da perna direita dispunha de 10 penas. Na quarta distinguiam-se 8 apenas. O desconcertante é que a soma última – a das penas das quatro asas – também dava 42, ou seja: 4 + 2 = 6. Este número – o endiabrado 6 – aparecia invariavelmente, tanto nas somas de cada asa superior ou inferior como na mencionada adição final. (12 + 12 = 24 = 2 + 4 = 6, que somando a 10 + 8 = 9 era igual a 6+9=15=1+5=6.) Durante horas, aquele aparente jogo catapultou-me para um universo de especulações, jogando com as asas e os números em todas as direcções, de todos os modos possíveis, até ao esgotamento. A última e provisória conclusão foi a mesma que eu já tinha entrevisto nas primeiras análises na sala trezentos e nove do Museu de Israel: talvez o número secreto das penas daquela criatura fosse o 6. (Exactamente o número de degraus que conduziam aos túneis das ruínas de Hazor.) Se estava no caminho certo, o número secreto do guia tinha de ser, obviamente, o mesmo. *1 – no tell da Galileia nas instalações do Museu de Israel, em Jerusalém. Para Yaakov, o mocho constitui uma derivação ou cópia das moedas atenienses daquele período (350-333 a. C.). Os restantes elementos adicionais são bem conhecidos como símbolos reais do Egipto, cuja influência na cultura de Tiro foi muito notável. Por seu lado, outro prestigioso investigador e estudioso do antigo Egipto – Esteban Llagostera Cuenca – veio, como sempre, em meu auxílio, proporcionando-me uma valiosa informação a tal respeito. Ao que parece, o stater de Hazor – de 13 37 gramas de peso e 24 milímetros de diâmetro - apresenta no seu anverso a figura de Melkart ou Melgrat, deus dos Fenícios, que os Gregos identificaram com Hércules (o Hércules fenício) e que em Israel foi conhecido como Baal. (Os seus templos, como diz a Bíblia em Reis I e II, foram destruídos.) Este deus cavalga, de facto, um hipocampo ou cavalo-marinho, tendo sob si ondas e delfins. No reverso, a moeda apresenta o mocho real com os atributos faraónicos: o kheka e o nekheka, isto é, o báculo e o látego: poder e justiça ou castigo. O mocho representa, em geral, diversas atribuições ou atributos: a sabedoria, a timidez, a solidão, o pássaro do demónio, o emblema de Atenas, a deusa Minerva ou Ateneia, as bruxas e, nas mitologias alemã e escandinava, o espírito das selvas ou bosques. Quanto ao antigo Egipto, a sua simbologia era igualmente ampla: morte, frio, noite, passividade, o reino do Sol morto, o Sol sob o horizonte quando atravessa as trevas,
etc. O seu símbolo hieroglífico é a letra M. Na minha opinião, nenhuma destas possíveis pistas teria conduzido à resolução do enigma. (N. Do A.)
Havia, além disso, outro pequeno-grande pormenor – ao peculiar estilo do Major – que aumentou a minha segurança. A frase que levava ao misterioso número secreto das penas constituía, justamente, o número seis no enigma. Não seria demasiada coincidência. No entanto o mais importante – crucial, no meu ponto de vista – continuava obscuro e distante. ... e as suas asas levar-te-ão ao guia MaRcos 6.2.0. Admitindo insisto, que fosse aquele o ansiado Hazor, como interpretar o sentido de ambas as frases? Que se devia entender? Aquele «levar-te-ão» só podia esconder um significado puramente simbólico. O cilindro de osso estava encerrado numa urna. Isso era óbvio. Não era preciso ter uma especial inteligência para deduzir que as asas em questão eram talvez um meio, uma fórmula ou uma simples orientação para chegar ao não menos confuso guia. Foi assim que pus a questão. Sabia-a por experiência: embora aparentemente complicada, a linguagem dos criptogramas do oficial norte-americano acabava por ser sempre muito mais directa e elementar do que eu próprio me empenhava em imaginar. Levar-teão, em suma, podia ser associado a conduzir-te-ão ou a guiar-te-ão. Infelizmente, a modesta cópia que eu desenhara no meu caderno de campo não me permitiu avançar mais. Era claro. Tinha de inspeccionar as asas no próprio local. Talvez a posição ou orientação das mesmas no cilindro escondesse algo de que não me tinha dado conta. Tais raciocínios – aliás elementares – ganharam consistência quando, numa das minhas inúmeras deambulações pelo aposento, me veio à memória outra das chaves do criptograma: a que era constituída pela primeira palavra de cada uma das frases: olha diante Hazor e a o. É ele. Lendo nas entrelinhas, o enigma era um contínuo sobressalto. A caixinha das surpresas – e dos trovões – tinha sido destapada.
É uma coisa que costuma acontecer-me frequentemente. Aqueles que tenham acompanhado as minhas peripécias e desventuras pelo mundo, estão a par das bruscas reviravoltas que, mais vezes do que o recomendável, me acontecem a mim e consequentemente às investigações em que estou envolvido. Mas a vida é assim. Na manhã seguinte com tudo preparado para a exploração no terreno, mudei de ideias. Adiaria esta fase do trabalho em benefício de um mais aprofundado conhecimento bibliográfico da origem, natureza e simbologia do anjo de Hazor. Havia, além disso, outra poderosa razão. Na minha espartana e metódica consciência – supondo, claro, que ainda me reste algo dela... - continuava a pesar a densa relação de livros e documentos inéditos que falavam do tell da Galileia. Não me sentiria em paz comigo mesmo enquanto não a examinasse na sua totalidade. Este desprezo por aquilo a que muitos chamam intuição acalmaria o meu espírito, sem dúvida, mas fazer-me-ia perder um tempo precioso. Dito e feito. Nas jornadas seguintes – fazendo ouvidos moucos como um estúpido Ulisses aos contínuos apelos da sala trezentos e nove -, o meu tempo e inteligência foram sacrificados na biblioteca do Museu de Israel. A batalha com os ficheiros, catálogos e volumes foi tão esgotante como inútil. E ao meio-dia de sexta-feira, prestes a render-me e seguramente pelo nervosismo que me dominava, tive a feliz ideia de mostrar às pacientes bibliotecánas o desenho que tinha feito no caderno de campo. Ao ver o anjo, a mais jovem piscou-me um olho, exclamando: - E porque não disse antes!? Poucos minutos depois, satisfeita e sorridente, punha-me nas mãos um livro de capa avermelhada. Tratava-se de uma obra de Yigael Yadin – Hazor – editada em Nova Iorque, em 1975. Impaciente, folheei rapidamente as suas duzentas e oitenta páginas, cheias de imagens e gráficos relacionados com as escavações do célebre professor judeu. De repente, uma fotografia a preto e branco – de página inteira – deixou-me preso na página
156. Abri o caderno de apontamentos e, antes de avançar, dei graças a Deus. Até que enfim! Mas a minha euforia ir-se-ia esfumando lenta e inexoravelmente, à medida que fui lendo o texto que acompanhava as ilustrações. Na mencionada página apresentavam-se três excelentes imagens do cilindro que eu tinha descoberto no museu. A da esquerda apresentava a face mais plana do osso, com a árvore ou arbusto da vida. As duas restantes correspondiam à superficie convexa, com o alto relevo do anjo. Na página contígua, reforçando o texto em inglês, Yadin reproduzia um desenho de 4 x 6 centímetros, idêntico ao que se exibia na sala trezentos e nove. Sob a grande fotografia da esquerda podia ler-se o seguinte texto: O espelho da vizinha da senhora Makhbiram. Na página anterior reconheci também – desta vez a cores – a colher de marfim, igualmente depositada na urna e que, segundo o texto, tinha sido propriedade da tal senhora Makhbiram, na cidadefortaleza de Hazor. Como é fácil de supor, não deixei uma única sílaba daquelas setenta e uma linhas de texto por esquadrinhar – incluindo os dezanove versos de um poema do profeta Amós acerca de um terramoto que abalou a região. Contudo, como ia dizendo, os esclarecimentos dos arqueólogos em torno do anjo eram pouco mais que nulos. As únicas novidades – se assim se lhes pode chamar – foram que a peça tinha sido desenterrada no estrato sexto de Hazor (o 6 parecia indelevelmente vinculado a toda a história), sendo propriedade de uma anónima vizinha da abastada senhora Makhbiram. Estes utensílios teriam ficado soterrados no ano 763 a. C., por força do referido terramoto. Por dedução, verificava-se que a figura do querubim-guardião do jardim do Éden punha a claro uma notória influência das civilizações fenícias e cananeias sobre os israelitas implantados no Norte do país. De certa maneira, aquele símbolo - se é que na verdade constituía a autêntica pista do enigma - encaixava às mil maravilhas na hipotética vontade do Major de resguardar o seu tesouro. Com efeito, que melhor guardião do próprio criptograma que o mítico
anjo do Paraíso? Houve também outro subtil factor que, francamente, me fez pensar. Na opinião dos peritos, a cabeça de mulher que adorna a colher de cosmética podia ser a efígie de Astarte, a deusa da fertilidade. Sei que o argumento parece frágil, mas durante bastante tempo não pude dissociar o enigmático sorriso da divindade que encontrara na parede da sala trezentos e nove desta outra réplica, talhada num extremo da colher de marfim e que, casualmente, fazia companhia ao cilindro de osso interior da urna. Mas isto, logicamente, pertencia apenas ao reino das suspeitas ou, quando muito, das crenças íntimas que, no fim de contas não serviam para materializar aquilo por que tanto ansiava. A verdade, fria e inalterável, é que os textos científicos não traziam qualquer indício sobre o anjo nem sobre as suas asas. A consulta serviu também para precisar as dimensões exactas do cilindro de osso: dezoito centímetros de altura por cinco centímetros e meio de diâmetro. Felizmente, concluiria aí a minha penosa e prolongada incursão nas bibliotecas de Israel. E com idêntica amabilidade, as bibliotecárias prestaram-se a fotocopiar algumas das páginas do livro de Yadin, um volume que, se tivesse podido folheá-lo a tempo, me teria poupado não poucos aborrecimentos. Mas – não me cansarei de o repetir – Deus escreve direito por linhas tortas. O pior é que há intermediários que parecem ter uma habilidade especial para complicar as coisas simples... O declinar daquela sexta-feira fez-me esquecer a sala trezentos e nove, pelo menos até às dez horas do dia seguinte. Mas o dia não tinha passado em vão. Para mim não há outra explicação. Desde o momento em que comecei a trabalhar sobre o tema do anjo, descobrindo que o número secreto das suas penas talvez fosse o 6, uma ideia ia ganhando corpo nas profundidades do meu subconsciente. À primeira hora da tarde, enquanto contemplava o sinuoso deslizar da chuva pelas vidraças do autocarro da carreira nove, decidi tentar a minha sorte. Embora a operação fosse o que há de mais inócuo e inocente, tomei as minhas precauções.
O meu súbito interesse por aqueles documentos podia inquietar os, até então, tranquilos serviços de informação israelitas. Prescindi da utilização do telefone do hotel e, de uma cabina pública, marquei o 28 29 36. Momentos depois, um dos meus amigos franciscanos do Convento da Flagelação, na Cidade Velha, proporcionava-me a informação necessária. O tempo urgia. Por isso, quase correndo, cheguei ao local exacto: a confluência da Rua Jaffa e da Shlomzion Hamalka. Nessa esquina – tal como me informara o bom monge -, em frente de uma loja de flores, no segundo andar, encontraria o que procurava. Tive sorte. Embora a repartição estivesse para fechar, um dos funcionários, de origem sefardita, mostrou-se encantado por poder atender-me e, ao mesmo tempo, refrescar o seu arcaico castelhano. A verdade é que eu não sabia muito bem qual daqueles mapas militares de Israel podia ser o indicado. De modo que, indo pelo seguro, fiquei com uma meia-dúzia seleccionando diferentes áreas do Norte, Centro e Sul do território. Até aí correu tudo pelo melhor. Mas um funesto presságio me abalou da cabeça aos pés, quando, ao entregar-me as cartas topográficas, o empregado do Governo me pediu o passaporte, tomando nota da minha filiação. O imprevisto contratempo – que de resto eu não podia evitar – traria consequências... Os mapas – à escala de um para cem mil – eram minuciosos. Perfeitos. Entusiasmado com a aquisição e, em especial, perante a atractiva ideia de poder comprovar a hipótese acerca das asas, apressei a marcha, enclausurando-me de novo no hotel. ...e as suas asas levar-te-ão... Procurei um guia rodoviário entre os meus papéis. Ao desdobrá-lo, tremeram-me os dedos. Não sei como explicar, mas sabia que estava para acontecer alguma coisa. Escolhi a cidade de Jerusalém como centro de ensaio. Vendo bem, é lá que se encontra o Museu de Israel e o anjo. Seguidamente desenhei duas linhas rectas sobre o mapa. Uma vertical, ou eixo de coordenadas, seguindo a direcção norte-sul;
outra horizontal, ou eixo de abcissas, de leste a oeste. A Cidade Santa, repito, ficava na intercepção dos dois eixos. Examinei de novo a fotocópia do livro de Yadin, confirmando o que já sabia: se tomasse a silhueta alada como eixo vertical imaginário, cada uma das asas ocuparia um quadrante. E o velho pressentimento tomava corpo... Pois bem, de acordo com esta proposta, as penas mais longas, correspondentes a cada uma das asas, podiam ser associadas a outras tantas direcções ou rumos. As duas superiores marcariam assim o Nordeste e o Noroeste, respectivamente; as inferiores, o Sudeste e o Sudoeste. A hipótese parecia válida. Se as asas – como assegurava o enigmadeviam conduzir ao guia, era lógico supor que ocultassem alguma informação. Quem sabe se a posição de uma cidade, de uma povoação, de um monumento ou de um acidente geográfico... Para desfazer o dilema só vi um caminho: trabalhar com as penas. As asas que nasciam das costas do querubim – como já foi dito – tinham vinte e quatro penas (doze em cada uma). O passo seguinte era elementar. Que aconteceria se transformasse os números em graus? Ora bem, estaríamos perante quatro rumos muito precisos:12, 98,190 e 282 graus, respectivamente, tomando como base, insisto, o número de penas de cada asa (12, 8,10 e 12), e estes mesmos números com a magnitude angular a considerar, partindo dos eixos-base de cada um dos quadrantes. Não dispondo de um transferidor ou de um esquadro tive de improvisar pacientemente. Dividi cada quadrante em dez ângulos mais ou menos iguais, fazendo então um exame meticuloso dos quarenta rumos. Numa primeira abordagem, o emaranhado feixe de rectas desanimou-me. Cada linha pisava dezenas de povoações, montanhas e cidades israelitas. Estaria ali a resposta? Teria de começar por algum lado. Assim, acabei por decidir-me pelo mais razoável: o rumo 10 graus, ou seja, a primeira das divisões. A mecânica de exploração foi igualmente simples: partindo do centro dos eixos – de Jerusalém -, fui seguindo a linha que tinha traçado a lápis sobre o mapa, primeiro na direcção norte e, seguidamente, para o sul. A leitura daquele rumo nada adiantou. A maioria das
povoações – árabes ou judaicas – nada me dizia. Não encontrei uma única relação com Hazor ou com o anjo. Avancei para a segunda direcção – 20 graus – e, ao cruzar o mar da Galileia, o nome de Hazor surpreendeu-me. As ruínas do tell, rigorosamente registadas no mapa, ficavam entre ambos os rumos, muito próximas dos dez graus. A aparente casualidade deixou-me um tanto perplexo. Mas, sem lhe prestar demasiada atenção, continuei no paciente rastreio. Duas horas mais tarde, com o caderno cheio de anotações, dei-me por vencido. Tinha falhado de novo. Mos não eram mais que um emaranhado de vãs ilusões. Impossível descobrir a mais remota ligação entre as centenas de números que coincidiam com a passagem das linhas. Desmoralizado, deitei-me na cama, recusando-me a pensar. Mas o Destino não me costuma dar tréguas. Poucos minutos depois, passando por cima do desencanto e da melancolia essa misteriosa força que nunca me abandona agitou a minha memória trazendo já esquecido o lance da posição da cidade-fortaleza de Hazor, entre os rumos dez e vinte graus. Visualizei na minha imaginação a airosa figura do anjo, e, instantaneamente, reparei num pormenor que, à força de o ter diante dos olhos, tinha escapado aos meus pensamentos. Diabos me levem! Como que impelido por uma mola sentei-me na cama, surpreendido pelas minhas próprias especulações. Doze penas! Mas não, rectifiquei, sem poder esquecer o rosário de desacertos. De certeza que não coincide. Seria um milagre. O germe da dúvida estava lançado. Além disso, rematei no meu íntimo, para o comprovar seria necessário um transferidor... Foi inútil. Aquela tentativa de me forçar a mim próprio estava desde o início destinada ao fracasso. E onde vou eu buscar um maldito transferidor?
Consultei o relógio. Eram quatro e meia. O sábado judaico aproximava-se. Fui até à janela, comprovando o rápido obscurecimento de Jerusalém. Sim, talvez ainda possa... Saí do hotel rapidamente, ordenando ao taxista que me conduzisse à Porta de Jafa, nas muralhas da Cidade Velha. Tanto os árabes como os cristãos aproveitavam o encerramento maciço das lojas e estabelecimentos judaicos no sabbath para patentearem os seus produtos à multidão de estrangeiros que passa pelos seus bairros. Com toda aquela precipitação só reconheci o meu erro quando, em pleno coração da Cidade Velha compreendi que me tinha enganado na porta de entrada para a tortuosa e escura cidadela. Pela de Damasco, um pouco mais a norte, o acesso ao sector cristão teria sido directo. Mas não era altura para lamentações. O importante era encontrar uma livraria, uma papelaria ou um qualquer bazar onde adquirir o instrumento necessário para as minhas pesquisas. Sem rumo certo fui penetrando nas animadas e malcheirosas ruelas, perguntando aos muçulmanos receosos: - Book-shop? Os poucos árabes que acabavam por entender o meu propósito de encontrar uma livraria arrastavam-me invariavelmente para o seu próprio estabelecimento ou para o de um parente ou amigo, metendo-me pelos olhos dentro os ,típicos e batidos livros sobre a Terra Santa, sempre rodeados de uma constelação de souvenirs. Não me foi fácil escapar de algumas daquelas verdadeiras pocilgas. E, entrada já a noite, exausto do incessante palmilhar de ruela em ruela e de bazar em bazar, renunciei ao meu intento, descobrindo com desolação que – para cúmulo dos males e desventuras – me encontrava irremediavelmente perdido no interior do nada recomendável bairro árabe. Os que conhecem este negro labirinto – especialmente se já o atravessaram durante a noite - compreenderão a angústia que começou a infiltrarse no meu já deprimido ânimo. Quanto às escassas indicações dos cada vez mais raros transeuntes, só contribuíram para o meu progressivo enjoo, fazendo-me penetrar em becos fétidos e
tenebrosos, povoados de gatos e de sombras furtivas. Ignorava qual das portas da muralha – Jafa, Nova, Damasco ou Herodes – podia estar mais à mão. E a verdade é que se algum malfeitor se desse conta do meu problema, eu e os meus dólares tínhamos já a sentença lida... Por volta das nove da noite, ao entrar numa das ruelas, tão exiguamente iluminada como as anteriores, resolvi fazer uma pausa. Tinha de encontrar uma saída para aquela estúpida e irritante situação. Se ao menos tivesse a sorte de encarreirar os meus passos para o Convento da Flagelação... Acendi um dos últimos cigarros e, como em outras ocasiões limite, levantei os olhos para o céu tempestuoso, suplicando ajuda. O leitor incrédulo pode imputar o que depois aconteceu – e tem todo o direito de o fazer – a uma mera casualidade. Compreendo e respeito tal posição. Quanto a mim, felizmente que já há muitos anos não acredito em acasos. A verdade é que, passados não mais de trinta segundos, divisei ao fundo da rua as inconfundíveis silhuetas dos monges e não pude reprimir um franco e agradecido sorriso. Um sorriso dirigido aos céus, naturalmente, e que só o meu coração entendeu. Os solícitos franciscanos, embora não se dirigissem naquela altura para o Convento da Flagelação, fizeram um desvio para me ajudar, orientando-me para a Via Dolorosa. A partir daí, o resto foi simples. O prior do célebre convento – padre Justo Artazar Ocerinjaureguin -, compatriota e amigo, confiou-me a outro ilustre frade, o sábio Frederic Manss, que resolveu o meu problema. E às onze horas dessa noite de sexta-feira – munido do transferidor – preparei-me para comprovar aquilo que, pouco antes, eu próprio quase menosprezara. - Se resultar – acrescentei, falando sozinho para comigo próprio -, não terei outro remédio senão acreditar em milagres... Fiz deslizar o simples semicírculo de plástico azulado sobre o mapa do território israelita, socorrendo-me na medição com o canto de um livro.
- Santo Deus! Repeti a operação e o rumo doze encaixou-se matematicamente. Não havia dúvida nem erro possíveis. Relativamente ao meridiano de Jerusalém, as ruínas de Hazor encontravam-se a doze graus. - Fantástico! Acariciei o desenho do anjo e, ainda incrédulo perguntei-me uma e outra vez como era possível. A soma das penas da asa localizada no primeiro quadrante coincidia exactamente com o rumo de Hazor! Um rumo perfeitamente exacto, sem o menor desvio. Directo. E o meu espírito sentiu-se, por fim, reconfortado. * * * ...e as suas asas levar-te-ão ao guia Marcos 6.2.0. O criptograma ganhava assim uma certa lógica. Algumas das suas frases começavam a fazer sentido. Creio que naqueles instantes de júbilo, natural consequência do que se passara, as três pouco claras menções do evangelista Marcos apareceram-me, pela primeira vez, como o que na realidade talvez fossem: um meio-jogo do Major, astutamente colocado para despistar. Dias mais tarde viria a compreender que tal dedução era correcta... mas só em parte. O resto da noite, até ao clarear do novo dia, dediquei-o a um mais atento exame do rumo que, nascendo em Jerusalém, passava por Hazor doze graus norte ou doze graus leste, assim como dos indecifráveis dígitos 62.0. A minha excitação era tal que o sono e o cansaço devem ter fugido, espantados. Ran... o monte Bet E1, Mizrat Sharkiye..., a montanha denominada Shiloh... Karyut... Talpit... Salim..., o monte Ein Faria... Mueir... Gazit... Sharona... Migdal... Amiad e Hazor. Nenhuma daquelas povoações e elevações sobre as quais voava o rumo me infundiu confiança... As asas deveriam levar-me ao guia. Mas a que lugar? Talvez ao alto de algum dos três picos mencionados? Encontraria ali o misterioso guia? Ou não se tratava de um ser humano? Não posso negá-lo. Apesar do pequeno-grande triunfo que tinha significado a descoberta do rumo doze, o enigma continuava ainda envolto em tanta névoa que foram necessárias grandes reservas de calma e resignação para não enviar o assunto
para o inferno. A possibilidade de ter de subir às montanhas de Bet EI, Shiloh e Ein Faria, sinceramente, desmoralizou-me. Investiguei também o rumo oposto ao de Hazor – 192 graus -, mas os frutos não foram melhores. A simpática cidade de Bethlehem (a Belém dos cristãos) quase roçava a linha imaginária. Segundo o transferidor, o lugar do nascimento de Jesus fica situado numa direcção de 190 graus, quer dizer, menos dois do que o que eu explorava. Nessa altura não me dei conta de outro curioso pormenor... O referido rumo acabava por perder-se no deserto do Neguev, sobrevoando o pico de Zior e a cidade de Amasa, muito a sul. Cansado de elucubrar à volta das povoações e montanhas que coincidiam com o 12 graus-192 graus, mudei de táctica. Então, a magia dos números apoderou-se de mim e o nervosismo disparou de novo. Por pura inércia entretive-me a averiguar os quilómetros existentes entre Jerusalém e Hazor sempre em linha recta e seguindo o mencionado rumo, norte 12 graus leste. A cifra obtida -142,5 quilómetros – também não me pareceu significativa... Mas, ao somar os dígitos, o resultado intrigou-me. Obtinha um número muito familiar:12. Outra coincidência? O senso comum não contestou. Havia ali de facto algo oculto e inebriante. E no meio de uma autêntica selva de cálculos, as minhas averiguações acabaram por conduzir à descoberta de outro facto singular. A longitude de Hazor – 35-31 graus leste -, uma vez somados os seus dígitos, também dava 12. Quanto à latitude – 33 graus 00 norte -, para maior suspense, somava 6. Ou tudo isto era fruto do acaso – o disfarce favorito de Deus - ou o Major pretendia reafirmar o importante papel do número secreto: o inefável 6. Não soube a que apegar-me. A confusão e o optimismo tomaram posse de mim sem contemplações. Recapitulei a situação pela enésima vez. A asa superior direita (na realidade, a situada à esquerda do anjo), com as suas 12 penas, apontava para Hazor. (Rumo 12 graus). A distância entre o lugar onde se exibe o anjo e o ponto onde ele foi desenterrado também somava 12. O mesmo acontecia com os dígitos da longitude das ruínas (12). A latitude, por seu turno, apresentava um
6. Cheguei mesmo a duvidar do número secreto. E se fosse o 12? O estranho é que, fundindo estas cifras – graus, quilómetros, longitude e latitude -, o resultado era 6. Os meus neurónios cederam. O total de penas do anjo – 42 – coincidia com a soma anterior! Era muito difícil de acreditar que aquilo fosse pura e simples casualidade. Tinha de obedecer a uma metódica e escrupulosa preparação. E a imagem do Major materializou-se na minha memória, com o seu inconfundível e malicioso sorriso. É de crer que ele se tenha divertido muito ao elaborar o criptograma e ao imaginar as minhas peripécias. Não o censuro por isso. Eu, à minha maneira, mais mal do que bem, também trabalhava com um inesgotável espírito desportivo. E estava disposto a ir até onde fosse preciso. A extrema precisão destes cálculos e medidas – no que se refere à asa do primeiro quadrante – fez-me compreender que talvez as pesquisas levadas a cabo sobre o rumo oposto a Hazor não estivessem correctas. Naquele meu torpor, esquecia-me de que tinha de ater-me sempre ao sugerido ou assinalado pelo mensageiro que tinha diante de mim. Neste caso, a direcção ou rumo que resultava do número de penas da ala do terceiro quadrante era 190o (180+10). Obcecado como estava, ao prolongar o rumo 12 para sudoeste (terceiro quadrante), estava a errar em dois graus). Pois bem, dado que não havia muito a perder, tracei a linha correspondente, com a nova magnitude -190 graus – concentrandome na revisão do rumo determinado pela referida asa inferior esquerda. O primeiro ponto que atraiu a minha atenção foi Belém. Como já referi, encontra-se a sudoeste de Jerusalém, justamente nos 190 graus. O resto da projecção perdia-se igualmente nas areias do Neguev, praticamente sem referências dignas de menção. Belém? ... e as suas asas levar-te-ão ao guia MaRcos 6.2.0. Qual o papel da cidade de David naquela embrulhada? Marcos, o Evangelista, não falava de Belém. O seu Evangelho começa com a pregação de João Baptista. Não conseguia ver a possível relação com Hazor ou com a frase do criptograma. Apesar disso saltava à vista que, entre os nomes localizados em ambos os rumos -12 e 190 -, os de Belém e Hazor avultavam notavelmente
entre os demais. Eram, definitivamente, os que prendiam a atenção desde o primeiro momento. Deixando-me levar pelo instinto, repeti a dança dos números, tomando o novo rumo e a cidade de Belém como referências. As surpresas não se fizeram rogadas. A distância de Jerusalém a Belém – 7,5 quilómetros – voltava a somar 12. E os 142,5 quilómetros, que separam Hazor da Cidade Santa, adicionados a estes 7,5 quilómetros, projectaram de novo diante de mim o inevitável 6 (142,5 + 7,5 =150 =1 + 5 = 6). Santo Deus! Aquilo era de mais. 1=.. I Mesmo assim, tirei a prova com a longitude e a latitude de B; O número final -121 = 4 – não parecia relacionado com o conjunto  de 12 e 6 anterior. (Os adeptos da Cabala, esses, pelo contrário, saberiam por certo espremê-lo...) A verdade é que, para uma noite, foi mais que suficiente. Os números falavam por si. Aquela desconcertante sintonia BelémHazor – no que se refere aos rumos e aos dígitos – não podia deixar de ter um significado. Mas tinha de certificar-me; sentia que os meus passos estavam certos, mas precisava de novas provas. Era vital um exaustivo reconhecimento do anjo no próprio local. Se a intuição não me atraiçoava, talvez no interior da urna do Museu de Israel pudesse detectar algum indício ou informação complementares. O Major, homem meticuloso mais que qualquer um, devia tê-lo previsto. O que não fui capaz de prever – como poderia sequer imaginá-lo? - é que nessa mesma manhã de sábado, 29, alguém de quem me tinha esquecido me forçaria a suspender as investigações, atirandome, em poucas horas, para outra aventura sem par. Ainda meio adormecido por tão precário descanso, e absorto em mil e uma conjecturas precisei de umas duas horas para descobrir que estava a ser controlado. Para falar verdade, foram eles a desvendar o seu jogo, e não eu... Mas antes, a meio da sala trezentos e nove das de arqueologia do Museu de Israel, dar-se-ia
outra descoberta, bastante mais feliz. Às dez horas e poucos minutos, mal abriram as instalações, digamos que tomei posse da solitária sala em que se exibe o cabo de osso de Hazor. Não posso negá-lo. Depois do que tinha averiguado na noite anterior, o meu encontro com o anjo foi especialmente emotivo. A figurinha convertera-se para mim em algo de querido e familiar. Era mais um motivo a unir-me, ainda que só espiritualmente, ao falecido e saudoso Major norte-americano. (Ainda um dia me atreverei a contar o que nunca revelei sobre este homem singular. Os leitores que tenham podido acompanhar as minhas investigações nestes últimos quinze anos e que conheçam alguns dos meus vinte e dois livros publicados, não estranharão se lhes disser que, por múltiplas razões, por vezes não dou à luz da publicidade nem dez por cento do material que tenho em meu poder. Mas lá iremos.) Após uma saudação mental – curiosamente, a minha loucura dá-me sempre para dialogar com as coisas com que contacto, e o alto-relevo do querubim não foi excepção -, preparei tudo para o controlo definitivo: bússola, mapas militares, fita métrica e caderno de campo. Destravei a agulha magnética e coloquei-a sobre a vidraça da urna, precisamente na vertical do anjo. Terminada a natural oscilação inicial, a bússola imobilizou-se, marcando o norte magnético. Inspirei profundamente antes de verificar a posição da criatura alada. Norte... Inseguro, repeti a verificação. Jesus! Um formigueiro inconfundível tirou-me deste mundo. Contudo, pragmático e teimoso, quis demonstrar a mim próprio que não estava a sonhar. Peguei de nowo na bússola e avançando até uma das janelas, procurei um ponto de referência conhecido. Ao longe distinguia parte do airoso Knesset, o parlamento israelita. Desdobrei uma planta de Jerusalém, colocando ambas as coisas, planta e bússola, no peitoril da janela. A agulha, fiel e obediente à sua natureza, marcou de imediato o rumo lógico: norte. Satisfeito,
assinalei a posição do Knesset com um círculo vermelho. Grave erro que não tardaria a lamentar... A bússola de azeite funcionava perfeitamente, pelo que as suas indicações eram fiáveis. Recoloquei-a no ponto que me interessava – na vertical do cilindro -, procedendo a uma terceira leitura das medições. Norte..., noroeste. Apesar de estar ali à minha vista, custou-me a acreditar. A figura do guardião da árvore da vida estava – e está - orientada para o nordeste, ou seja, na direcção de Hazor. A bússola, cega e imparcial, ali estava a marcar um rumo por de mais conhecido e significativo: 12 graus! Dominado pela surpresa, não soube que fazer nem que pensar. Como era possível? Por um lado, no exame a que submetera o anjo, a asa situada no primeiro quadrante revelara a direcção das ruínas e o conhecido rumo: 12a. E agora, sobre o terreno, o próprio alto-relevo ratificava-o. Era de enlouquecer. A ideia de que o Major tivesse manipulado o cilindro, colocando-o na sua actual posição, pareceu-me descabida. A urna de cristal, firmemente atarrachada ao pedestal metálico, era inviolável. Tudo aquilo emitia um halo mágico... O penúltimo sobressalto veio logo a seguir ao explorar as direcções das quatro asas e do arbusto sagrado. Estando a peça virada para nordeste, tanto a árvore da vida como a asa de dez penas – a oposta à que apontava para Hazor – assinalavam outro importante rumo: sudeste. Por outras palavras, o da cidade de Belém. A confirmação foi definitiva. A mencionada asa de dez penas, tinha sido a chave para traçar o rumo 190 graus. Tudo se encaixava na perfeição. As incógnitas pareciam solucionar-se. Anotei minuciosamente estes últimos achados e, rendido à evidência, utilizando a urna como secretária improvisada, escrevi: <<OLHA, ENVIO O MEU MENSAGEIRO DIANTE DE TI, MARCOS 1.2.>> (O Major adverte da existência-presença de um anjo ou mensageiro..., diante de mim: criatura híbrida depositada no Museu de Israel, sala trezentos e nove. Correcto.) Nota: o Major aproveita a frase do evangelista (Marcos 1.2). Se leio de seguida os
versículos 1, 2 e 8 do criptograma, coincide com o expresso por Marcos no seu primeiro capítulo: Vê envio o meu mensageiro diante de ti, o que há-de preparar o teu caminho. Faz sentido. O anjo e suas chaves são o meio para avançar. Se bem que também separadamente pareça viável: será o guia quem deverá apontar o meu caminho? <<HAZOR É O SEU NOME.>> (O do mensageiro-anjo: Hazor. Não vislumbro outra explicação. É de lá oriundo. Hazor é, pois, o seu nome.) «E AS SUAS ASAS LEVARTE-ÃO AO GUIA MARCOS 6.2.0. » (As asas parecem guiar ou conduzir a dois lugares praticamente opostos: Belém e o tell de Hazor. Pelo menos, é isso que eu penso...) Nota: Marcos 6.2.0, incompreensível! Como deve entender-se esta quinta frase do enigma: guia Marcos?, guia. Marcos 620?, guia Marcos 6.2.0? Cuidado!, pode não ser um homem. Talvez um determinado documento ou direcção? Até agora, exploração negativa. «O NÚMERO SECRETO DAS SUAS PENAS É O NÚMERO SECRETO DO GUIA. » (Convém baralhar as cifras mais significativas: 42, 12 e 6. Inclinome para a última, até porque a soma total também remete para o 6.) Nota: estou longe de imaginar o significado de número secreto do guia.) Não faço a mínima Ideia... Frase vertical: «OLHA DIANTE DE HAZOR E A o ELE.»
(Nada a objectar. Tenho a certeza de que o querubim de Hazor é a chave. É ele.) Não me foi possível ponderar aquela espécie de balanço-evocação do que até então tinha conseguido obter. Alguém tocou, com delicadeza, o meu ombro direito. Sobressaltei-me. Ao voltar-me, três indivíduos sorriram-me simultaneamente. Nem sequer tinha dado pela sua chegada. O mais baixo de meia-idade e revólver à cintura, pediu desculpa pela interrupção. Identificou-se como guarda do museu, pedindo-me que prestasse atenção aos que o acompanhavam. Tratava-se de dois jovens, correctamente vestidos e de maneiras impecáveis. Sem deixar de sorrir, um deles tirou do bolso posterior das calças uma pequena carteira de plástico castanho. Abriu-a e deu-me a ler: Agaf Hamodün. Instintivamente pus-me à defesa. O Agaf é o serviço de informação do exército judaico. Juntamente com o célebre Mossad (Mossad Lemodün Vetafkidim Meiujadim ou Instituto de Informação e Operações Especiais), constitui a mais perfeita máquina da espionagem mundial. Foi em vão que tentei reflectir. Que diabo se estava a passar? - Não se alarme – interveio o da credencial, adivinhando a minha inquietação -, chamo-me Tzipori. O meu colega Ivri e eu próprio desejamos fazer-lhe algumas perguntas... - Mas, como é que sabem...? O que dizia chamar-se Tzipori guardou a carteira e, fitando-me friamente com os seus olhos azuis, ladeou a estúpida pergunta. - A nossa obrigação é saber, senhor Benítez. Sabemos que o senhor é basco, jornalista e que, entre outras coisas, adquiriu uma certa cartografia militar... - Não compreendo. Com um gesto calculado da mão direita, o israelita incitou o seu colega a que refrescasse a minha memória. Como um autómato, Ivri
foi enumerando os mapas que, de facto, eu tinha comprado no dia anterior: - Mapa nove: Jericó; quatro: Teverya; seis: Bet Shean; dois... - Já percebo... - disse eu aliviado. E procurei esclarecer o malentendido. Mas os judeus travaram os meus desejos com outras perguntas. -Diga-nos porque é que os adquiriu? E porquê os mapas treze e catorze? Fiz um esforço, mas, na verdade, nem me lembrava a que parte do território correspondiam aquelas folhas. A minha sincera ingenuidade confundiu-os. - Treze e catorze?... A que zona pertencem? - Ao Neguev! - esclareceram eles gravemente. Em segundos julguei descobrir o motivo de tanta preocupação. Estupidamente, tinha caído numa armadilha. Aquelas plantas do Sul de Israel contêm dois enclaves de especial interesse estratégico-militar: uma base aérea e o controverso silo atómico de Rifidimi. Segundo o que eu sabia, na primeira destas instalações – tal como eu comentara com o então embaixador israelita em Madrid – devia encontrar-se ainda um dos motores do avião da Iberia que caíra sobre o monte Oíz, nas proximidades de Bilbau, no País Basco. É claro que, como oportunamente referi, não tinha a menor intenção de aventurar-me por semelhantes paragens. Mas uma coisa eram os meus íntimos propósitos e outra, muito diversa, as suspeitas do Agaf. Estava a pisar um terreno muito escorregadio. - É muito simples – defendi-me eu, suavizando as palavras. Tenho a intenção de reconstituir a histórica viagem de Maria e José de Nazaré a Belém de Judá, e esses mapas são imprescindíveis. O doutor Liba, do Instituto de Relações Culturais, o consulado espanhol em Jerusalém e o próprio Samuel Hadas, vosso embaixador no meu país, estão ao corrente. - Também já sabemos disso – contra-atacaram eles com obstinação. - E o senhor não ignora que o deserto do Neguev fica muito distante da rota que pretende reconstituir...
Estava apanhado. Felizmente, a impaciência de Tzipori evitou males piores. - Quando é que pensa empreender essa caminhada? - Se não houver mconvementes, amanhã mesmo. Talvez segundafeira... A fulminante improvisação relaxou um pouco os duros olhares dos agentes da Informação Militar, mas, em contrapartida, mergulhou-me na incerteza. Acabava de hipotecar o meu tempo e as imediatas e, sem dúvida, cruciais investigações. Mas as escorregadelas não acabavam ali. -Está bem. Tzipori estendeu-me a mão e, ao despedir-se, disse algo que parecia queimar-lhe a língua: *1 – Para mais informações, veja-se Operação Cavalo de Tróia II, pp. 90 e seguintes (N. Do A.) - Estranha a visita a esta sala em especiál. Não sabia que se interessava tanto pela arqueologia... Compreendi a indirecta. Muito possivelmente – ou, melhor dizendo, com toda a certeza – os serviços de informação israelitas estavam a controlar todos os meus actos e movimentos. A prova disso é que eles me tinham encontrado. Tive de morder a língua. Mas, na minha preocupação por apresentar naturalidade e transparência, mostrei-lhes o caderno de campo, metendo de novo os pés pelas mãos... - Trata-se do anjo de Hazor – expliquei-lhes, ao mesmo tempo que Tzipori, astuto e vigilante, me arrebatava o bloco, esquadrinhando-o de ponta a ponta. - Um tesouro do século nono antes de Cristo que pode servir-me para a elaboração de um futuro livro... Ignoro se os agentes percebiam o espanhol. O facto é que sem qualquer rebuço, foram passando folhas e plantas, trocando rápidos comentários em hebraico. De repente, Ivri, ao desdobrar a planta de Jerusalém que eu consultara e sobre a qual trabalhara com a bússola, chamou a atenção do seu colega, indicando-lhe um determinado ponto. Eu, como um perfeito tonto, continuei com o meu discurso sobre as excelências do tell de Hazor. Mas notei entretanto, como Tzipori cerrava os dentes, passando a pente fino
todo o mapa com semblante carregado. Alguma coisa se estava a passar. Por fim, pondo-me ostensivamente a planta diante dos olhos, perguntou de chofre: - E isto? Correspondi com idêntica sem-cerimónia afastando com firmeza a mão que segurava o mapa. Sem me alterar, baixei a vista, examinando o lugar que suscitava o seu tão vivo interesse. Maldição! Tratava-se do pequeno desenho feito por M. Gabriefi, autor do referido mapa, a assinalar a localização do Knesset. Mecânica e inconscientemente, como atrás referi, eu encerrara-o num círculo vermelho, ao comprovar a fiabilidade da agulha magnética. Disse-lhes a verdade, mostrando-lhes mesmo a bússola. Duvido que tenham aceitado tão peregrina saída... E a pergunta seguinte confirmaria as minhas suspeitas: - Muito bem. E então por que é que o Knesset foi marcado a vermelho e as restantes direcções e lugares a azul? Sagazes e desconfiados, nada lhes escapava. Imaginei o pior. Aqueles sujeitos – ou a legião de agentes disfarçados em Israel – podiam estar a par dos meus contactos com os árabes e, dada a minha condição de basco, associá-los a outra eventual actividade terrorista que, naturalmente, detesto. Meu Deus! Como explicar-lhes que tudo aquilo não passava de uma cadeia de infelizes coincidências? - Pensam por acaso que sou um terrorista? - explodi. Os judeus devolveram-me o caderno de campo e, do alto da sua irritante suficiência, Tzipori deu por encerrada a entrevista com uma frase que jamais esquecerei: - Se o fosse, meu amigo, já estaria morto... Não houve mais comentários, conselhos nem esclarecimentos. Tal como tinham chegado, assim desapareceram. A partir de então, a minha estada em Israel tornou-se num contínuo sobressalto. Atemorizado pelo cariz que os acontecimentos iam tomando, não hesitei. Cumpriria a minha promessa. As pesquisas à volta do
enigma podiam esperar. Não podia sequer pensar em contrariar os perigosos Serviços de Informação. E nessa mesma tarde preparei a grande caminhada. Seguindo as prudentes recomendações do doutor Liba – dada a elevada conflituosidade e teórica periculosidade de um dos lanços do percurso: a franja fronteiriça entre Israel e a Jordânia -, telefonei a vários meus colegas e correspondentes de imprensa em Jerusalém e Telavive, a fim de lhes anunciar o meu objectivo. Desta forma, se a notícia saltasse para os meios de comunicação judaicos, a minha aventura seria por certo apoiada, sobretudo em face dos postos de controlo militar dispostos ao longo da fronteira direita do rio Jordão. Contudo, não tive muita sorte. A notícia, que eu saiba, jamais teve eco na imprensa de Jerusalém. Não desanimei. Correria todos os riscos. Tudo somado, assim até era mais excitante. Ao amanhecer, um autocarro levou-me até Nazaré; e por volta das nove e meia, com uma incómoda mochila vermelha às costas e o espírito inflamado perante semelhante desafio, dei início à caminhada. Após uma breve prece, iniciei a descida para as planícies de Israel, rumo a Bet Shean, a antiga Scythópolis, fim da primeira etapa. O meu plano previa quatro etapas, de um pouco mais de quarenta quilómetros cada, descendo paralelamente ao Jordão, com uma segunda paragem no sopé do monte Sartaba. A terceira jornada, em pleno deserto de Judá, terminaria no oásis de Jericó; e a partir daí, finalmente, subindo as íngremes encostas que vão dar à Cidade Santa, cobriria numa quarta e derradeira etapa o resto da distância que separa Jerusalém de Belém. Seriam ao todo cerca de cento e setenta quilómetros. Mas, como já referi, não é este o momento nem o lugar para relatar tão memorável e acidental excursão. Modestamente, isso sim, creio ter contribuído para demonstrar que a rota mais lógica para uma viagem como a empreendida por Maria e José não é a da Samaria – pelo centro de Israel – mas a do rio Jordão. Um espanhol terá sido, enfim, o primeiro louco – e orgulho-me disso – a reconstituir a decisiva peregrinação dos pais terrenos de Jesus, da Galileia à cidade de David. Mas voltemos ao que agora importa: o criptograma e as peripécias em que me vi envolvido até ao fim.
Na quarta-feira, 3 de Dezembro de 1986 à luz neutra do crepúsculo, avistava – por fim – a cidade de Belém. Com andar inseguro e passo curto – mais próprio de um velho que de um homem de quarenta anos, consequência lógica da dureza do caminho, dos pés doridos e daquela persistente dor na coluna, terminei a odisseia diante das paredes brancas da Igreja da Natividade. Talvez fosse mera casualidade (?). O facto é que, ao terminar a caminhada no terreiro pavimentado e me encostar ofegante ao pedestal sobre o qual se levanta a estrela de cinco pontas o repicar de um dos sinos do recinto sagrado encheu-me o coração de júbilo. Levantei o olhar para o céu purpúreo daquele ocaso e agradeci o oportuno sinal e a benevolência do Pai Eterno, que me permitira chegar até ali. Durante algum tempo, alheio a tudo, chorei em silêncio, afugentando assim os medos, as angústias e a solidão daqueles dias. O frio e cintilação das primeiras estrelas secaram as minhas lágrimas e a placidez que me inundava. Regressei de imediato a Jerusalém. No hotel não havia Serviços de Informação – apostaria nisso a minha própria vida. No hotel estavam a par das minhas andanças, mas souberam guardar as distâncias. No entanto, a partir dessa altura todo o cuidado era pouco. Pelo menos durante algumas horas, não seria eu a quebrar as tréguas. O meu único desejo era tomar um banho retemperador e e atirar-me a um prolongado descanso. O céu e os homens respeitavam a minha vontade, mas, por volta das nove da manhã do dia seguiinte, o telefone – diabolicamente pertinaz – arrancar-me-ia a um quase cataléptico e reparador sono de catorze horas. Ao erguer-me da cama, uma fortíssima e generalizada dor muscular manifestou-se inopinadamente acabando por derrubar-me. Era-me impossível alcançar o auscultador. Ao quinto ou sexto sinal, deixou de tocar. - Meu Deus! Não posso mexer-me! Aquelas picadelas – nada de grave, na verdade – não deixaram de ter consequências. Esperei uma hora e, perante o risco de adormecer de novo, apertei os punhos, dando início a uma lenta e
cómica saída da cama. Várias pastilhas de glicose, um bom duche e uma forte aplicação de linimento aliviaram momentaneamente o meu estado deplorável. E estava preocupado por não ter atendido o telefone. Quem poderia ter sido, Pressenti por detrás a actuação silenciosa dos serviços secretos e, na previsão de males maiores decidi averiguar. Marquei o 528658 e de imediato o meu bom amigo Elias Zaldívar, correspondente da Agência Efe – com quem tinha mantido contacto na primeira etapa da caminhada a pé -, satisfez as minhas dúvidas, negando ser o autor da chamada. Nem sequer sabia do meu regresso a Jerusalém. Alegrou-se ao ouvir-me, prometendo-me enviar para Espanha um breve relato da minha pequena façanha. Não foi preciso dar grandes voltas. Logo que desliguei, Raquel telefonava-me, dizendo que tinha sido ela a fazer a chamada anterior que eu não pudera atender. O caso fez-me pensar. Na realidade, porque deveria eu surpreender-me... Continuei, no entanto, a sopesar a suspeita pontualidade da funcionária do Governo israelita. Era casualidade a mais o ter-me telefonado precisamente poucas horas após o meu retorno ao hotel. Quando lhe confirmei a conclusão da minha aventura por terras do Jordão, mostrou alguma incredulidade e – directa como sempre – relembrou-me as reuniões que estavam pendentes. Uma delas, aprazada para o Museu de Medicina Antiga de Israel, vinha-me mesmo a calhar. Hoje, sinceramente, arrependo-me da loucura cometida. Acedi, como era lógico e natural. Compareceria, submissamente, a quantas entrevistas fosse preciso. Deste modo, ficava com quase todos os meus movimentos controlados. É claro que nem preciso de dizer que, apesar destes empecilhos oficiais, o meu plano se mantinha de pé. Estava já a engendrar um processo para romper o cerco e reatar as investigações em torno do criptograma. Para começar, até às quatro da tarde, hora prevista para a primeira das reuniões na Universidade Hebraica, dispunha ainda de uma margem que não estava disposto a malbaratar.
Durante as oito horas em que fiquei sozinho ao longo de cada um daqueles quatro dias, dispus do tempo suficiente para reflectir sobre o enigma. As frases quarta e quinta - ...e as suas asas levarte-ão ao guia Marcos 6.2.0 – ocuparam boa parte dessas prolongadas meditações. A palavra guia podia ser encarada sob aspectos muito diversos: como uma pessoa que conduz outra ou lhe ensina o caminho; como um guia turístico, tão numerosos em Israel; como um mestre ou guia espiritual; como um poste ou pilar servindo de indicação; como um livro ou tratado de preceitos ou, por fim, entre outras traduções, podia ser mesmo entendido como o sarmento ou vara que se deixa nas cepas e nas árvores quando se faz a poda. Tendo em consideração que as asas do anjo pareciam conduzir a Hazor ou a Belém, o normal era pesquisar nesses lugares. O tell da Galileia, por influência da lembrança da minha desastrosa visita e também pela distância a que se encontrava a cidade-fortaleza, foi relegado para segundo plano. Belém atraía-me muito mais. Tomada assim a decisão de pesquisar na cidade de David, o passo seguinte não era tão cómodo como isso. Como e por onde começar? Não sei se foi de facto o mais correcto, mas foi certamente o mais exequível: pus de lado as interpretações mais complexas do termo guia, limitando o campo de acção a uma das facetas mais fáceis de comprovar: a de guia turístico. Sei que avançava às cegas e que essa coisa de guia turístico era muito prosaico. Mas como dizia, por algum lado tinha de começar. Na minha indomável fantasia – erro lamentávelmantinha-se viva a imagem de um guia igualmente fantástico, oculto pelos véus do mistério e talvez inacessível. Estava mais uma vez a esquecer a peculiar simplicidade e o estilo directo do Major. Era impossível dar-me conta de como estava perto da resolução do enigma e dos tortuosos acontecimentos que a acompanhariam. Os telefones do Ministério do Turismo de Israel – 240141 e 4661516 – estavam sempre ocupados. Por isso, e apesar das dores que me atormentavam, decidi-me pela única fórmula viável para resolver aquela primeira incógnita. Três quartos de hora mais tarde depois
de invocar os nomes de dois dos meus contactos com o citado Ministério – os senhores Hod e Kotzer -, um dos funcionários apresentava-me à responsável pelos staff guide, dependentes, na sua maioria, das centenas de agências de turismo radicadas no país. - Se bem entendi – retorquiu a funcionária israelita com requintada amabilidade -, o senhor deseja consultar as listas dos guias oficiais de turismo de Hazor e Belém... Concordei com impaciência. - A que guias se refere, exactamente? - Não compreendo. Com excelente capacidade de precisão pormenorizou a sua pergunta informando que os guias autorizados a trabalhar na cidade de David eram mais de quinhentos. A cifra desanimou-me. De repente, o piscar alaranjado de uma das linhas do telefone interrompeu a conversa. A mulher escutou atentamente durante um ou dois intermináveis minutos alternando os seus concisos monossílabos com várias e esquivas olhadelas para a minha pessoa. Não lhe atribuí importância de maior. No entanto, ao reatar o diálogo, apercebi-me de uma notável mudança no tom da sua voz. A cordialidade inicial, se bem que sempre presente, tinha descido de nível. Foi algo de instintivo. No nosso diálogo começou a aflorar um clima de mútua desconfiança. Aquela chamada tinha, sem dúvida, muito a ver com os meus velhos amigos do Agaf... - É uma questão diferente – prosseguiu ela, reatando o fio da conversa – se o senhor se refere aos que residem de forma habitual em Belém ou no tell de Hazor e, ao mesmo tempo, desenvolvem a sua actividade nessas zonas. Os seus olhos brilharam com uma mal contida curiosidade, aguardando a minha resposta. A verdade é que eu não dispunha de muitas opções. Se fosse preciso, queimaria as pestanas sobre a extensa lista, à procura do mais insignificante indício. Mas o melhor seria começar pelo mais cómodo. Decidi-me então pelo último. Em boa lógica, os guias legalmente
autorizados, que habitam permanentemente em Belém ou Hazor, não podiam ser muito numerosos. E confiei na minha boa estrela. Enquanto a funcionária remexia na sua mesa, à procura da referida relação, assaltou-me uma incómoda dúvida: e se não fosse um guia oficial? Não é segredo nenhum que em Israel, os que vivem como guias ocasionais ou clandestinos – muito especialmente os árabes – são uma legião. E eu sempre a complicar a minha vida... - Cá está – interveio ela, desfazendo a minha repentina incerteza. - Vejamos... Foi passando as folhas plastificadas de uma grossa agenda negra e, uma vez localizados os guias de Belém e Hazor, ergueu o olhar, sugerindo-me que me sentasse. Agradeci a atenção, até porque as minhas pernas ainda me doíam. Percorreu com o indicador esquerdo uma coluna de nomes, endereços e números de telefone e, ao passar à página seguinte, murmurou quase de si para si: - Tal como eu supunha, em Hazor não reside nenhum guia. Os mais próximos (que se ocupam da visita ao tell vivem em Teverya, Nazaré e, naturalmente, aqui, em Jerusalém. Recebi a informação com alívio. Tinha a pesquisa simplificada. E sem aviso prévio, a funcionária disparou duas perguntas que eu já esperava desde o início: - E porque lhe interessam essas pessoas? Está a pensar em alguma em especial? Em momentos tão críticos não me dei conta das segundas intenções da minha interlocutora. Mas depois percebi tudo. Conforme pude e Deus me ajudou, informei-a de que desejava visitar a zona e por isso precisava de um guia sério e competente. - Quanto à pessoa em concreto – dissimulei com frieza -, não tenho preferências especiais. - Compreendo... Uma densa pausa fez-me pressagiar novas complicações. - Afinal, nem há muito por onde escolher – concluiu com fingido
desalento. - Veja e decida o senhor. Às vezes acontece. Com os dedos trémulos impaciente por apanhar a lista, nem sequer reparei na hábil manobra. Ou estaria eu a ver espiões infiltrados por todo o lado? A verdade é que só depois, ao tomar um táxi e confirmar que estava a ser seguido, é que me dei conta. O mais lógico teria sido que ela própria tomasse a iniciativa de recomendar-me a um qualquer dos guias. Mas não. Astuta e premeditadamente, deixou-me actuar. E eu, estupidamente, mordi o anzol. Invoquei todos os santos. Mas os escassos vestígios de serenidade que ainda me restavam desapareceram exactamente ao receber a agenda. O escandaloso tremelicar do bloco de endereços não passou despercebido à minha felina observadora. Segura de si, continuou a perscrutar as minhas reacções. Topei um par de vezes com o seu olhar inquiridor, mas baixei os olhos, impotente. Mais inquieto e perturbado pelo incontrolável tremor que pela lista que se abria sobre os meus joelhos, só me concentrei nela à segunda ou terceira leitura. Por fim, uma vez de posse da relação de guias autorizados que residiam habitualmente em Belém, os nervos acalmaram-se, dando lugar a uma não menos implacável emoção. Na página esquerda sob o brilho traiçoeiro do plástico, aparecia uma série de nomes e apelidos, precedidos de diferentes números de cinco dígitos que, francamente, não fui capaz de interpretar. A seguir vinham os respectivos domicílios, telefones, caixas postais, nacionalidade e raça, a data do início da sua actividade como guia e a ou as agências turísticas com as quais trabalhavam. A funcionária judia, por detrás do seu silêncio, pareceu surpreendida com a minha rápida recuperação. Abri o caderno de campo e, disposto a desafiá-la, fui copiando a lista. Por razões óbvias, vejo-me obrigado a omitir parte da informação ali reunida. O que primeiro me chamou a atenção foi o facto de a maioria dos guias ser árabe. No fundo, era o mais natural, já que boa parte da população de Belém o é. Terminadas as minuciosas anotações, passei a cotejá-las com o original. Ao chegar ao meio da lista, o
meu coração sobressaltou-se. Voltei atrás estupefacto, relendo as inscrições anteriores. Por último, ansioso, avancei até ao último dos guias inscritos. A funcionária notou a minha excitação. E, sem poder conter a sua venenosa curiosidade, quebrou o silêncio: - O que é que se passa? Encontrou o homem que procurava? - Bom..., não sei – disse eu com hesitação, ao mesmo tempo que fazia um grande esforço por controlar o júbilo que, como uma rajada de vento, quase me levantava da cadeira. - Assim, à primeira vista... Insatisfeita com a minha evasiva, pressionou sem contemplações. - Há algum que lhe sirva? Quer contactá-lo já daqui? Trocou a dureza do seu semblante por um acolhedor sorriso, passando-me o auscultador do telefone. Mas desta vez a Providência acudiu à minha perigosa espontaneidade. Além disso, eu nem sequer tinha a certeza. Convinha sopesar aqueles dados longe de possíveis interferências oficiais... - Não, obrigado – interrompi com decisão. - Tendo em conta que todos são bastante antigos no serviço - acrescentei com uma teatralidade que ainda agora me espanta – qualquer deles me parece ser bom candidato. Vou pensar... Sem dar-lhe trégua, devolvi-lhe a milagrosa agenda, inquirindo quanto àqueles enigmáticos números e nomes que encabeçavam cada página e que tanto me intrigavam... A mulher acentuou o seu sorriso, pagando-me na mesma moeda. - Isso não lhe diz respeito... Digamos que se trata de um código secreto e cifrado, de uso exclusivo do Governo. - Um número secreto! A minha exclamação, a torrente de alegria e a não dissimulada surpresa que em mim provocou a lacónica mas reveladora insinuação, esgotaram a sua paciência e creio eu, a sua capacidade de entendimento: O deslize punha ponto final à minha visita à sede do turismo judaico. Apertei com força a sua mão. O aparente gesto de amizade e
gratidão desconcertou-a completamente, levando-a a corresponder com um impreciso sorriso. Momentos depois, eufórico, abandonava o local, estreitando contra o peito a valiosa informação. Caminhei três ou quatro metros ao longo do corredor e, assaltado por uma invencível curiosidade, fiz meia volta e retrocedi. A velha táctica daria os seus frutos. Violando as mais elementares normas de educação, empurrei a porta de vidro do gabinete onde tinha sido recebido assomando a meio corpo. O meu inesperado aparecimento apanhou desprevenida a funcionária, precisamente quando ela, de telefone em punho e em hebraico, avisava alguém da minha partida. Isso foi pelo menos o que eu deduzi do seu visível nervosismo. Um pouco mais tarde, o taxista que me conduziria ao hotel, ao traduzir as três frases que consegui ouvir e fixar, confirmaria as minhas suspeitas. Foram mais ou menos estas as palavras que, como dizia, consegui reter: «Ha-ish sheljá iachá ka-rega... Beseder... Eeséh ma she-ujal». Palavras essas que, traduzidas, não ofereciam grandes dúvidas: O seu homem acaba de sair... Está bem. Farei o que puder. Ao reconhecer-me, interrompeu a conversa telefónica, encostando o auscultador ao peito. - Desculpe! - adiantei eu sem soltar o manípulo da porta. - Esqueci-me de perguntar qual a tarifa oficial por dia... - Isso é estabelecido pela agência, senhor! - trovejou ela lá do fundo do seu gabinete. - Ah, claro! Desculpe. A teia de aranha dos Serviços de Informação continuava a envolver-me, invisível mas certeira. Contudo – que insensatez a minha! -, o perigoso jogo, longe de me atemorizar, libertou a minha adrenalina, excitando-me ainda mais. Não tinha nada de que me envergonhasse. Por isso, com uma temerária inconsciência, resolvi despistá-los. (Relembro agora com pavor esse velho e sábio adágio popular que diz que a ignorância é atrevida.)
Não foi difícil notar a presença no vestíbulo daquele indivíduo rechonchudo, de fartos bigodes e guarda-chuva pendurado no braço. Apesar de esconder a cara de lua-cheia atrás de um exemplar do Jerusalem Post, os nossos olhares cruzaram-se. O que acabava de passar-se no gabinete falava por si. Aquele podia ser o homem da comunicação telefónica. Em breve o saberia. O número 24 da King George Street, sede do Secretariado do Turismo, não era muito longe do Moriah Jerusalem Hotel. Poderia ter feito o percurso a pé. Mas, dadas as persistentes dores musculares e a mórbida curiosidade de comprovar se estava a ser seguido, escolhi o mais cómodo e seguro. À entrada do edifício, ocupando parte do passeio e com dois ocupantes no seu interior, estava estacionado um Mercedes 300-D, cinzento. A movimentada avenida não é exactamente um lugar onde se possa estacionar daquela maneira. Aquilo fez-me desconfiar. E enquanto esperava por um táxi, fixei a matrícula: 699-518, placa amarela. Ao entrar no primeiro táxi livre que apareceu, hesitei. Dirigir-me-ia para o hotel ou daria uma volta pelas ruas adjacentes. Se o Mercedes como eu suspeitava – pertencesse aos Serviços de Informação judaicos, em breve o confirmaria. Por outro lado, pedir ao motorista que despistasse o potente automóvel afigurou-se-me arriscado. O mais prudente era regressar ao Moriah. Intencionalmente, sentei-me ao lado do motorista, espiando as manobras dos hipotéticos agentes através do espelho retrovisor. De facto, mal arrancámos, o gorducho do jornal dirigiu-se rapidamente para o Mercedes que, misturado no fluxo do trânsito, veio colocar-se a uns cinquenta metros atrás do carro em que eu seguia. Quinze minutos depois, diante das portas amarelas do hotel, simulei um inexistente regateio com o taxista. Eu explico-me. Para um observador exterior a minha gesticulação e o meu esbracejar com o dinheiro na mão poderiam ser interpretados como uma normalíssima discussão do preço, tão comum entre os turistas experientes e os profissionais do táxi em Israel. Na realidade, a
conversa seguia rumos bem diferentes... O pretexto da tradução para inglês das palavras hebraicas que eu tinha apanhado no ar no escritório da funcionária veio-me mesmo a calhar para demorar a saída do táxi, dispondo assim de um tempo precioso para poder observar as evoluções do Mercedes cinzento. O motorista agradeceu a gorjeta e a possibilidade de quebrar a monotonia da manhã, prestando-me, sem saber, um inestimável serviço. Nesse lapso de tempo, dividido entre o retrovisor e as prolixas explicações do meu oportuno tradutor, comprovei com pérfido regozijo que os meus perseguidores abrandavam a marcha. Hesitaram dois ou três segundos e, convencidos de que eu me preparava para entrar no hotel, viraram à sua esquerda, tomando a rampa de acesso ao estacionamento subterrâneo do Moriah. Tinham, pois, caído num erro. Se as minhas intenções tivessem sido outras, poderia tê-los despistado, quer afastando-me do local no mesmo táxi quer apanhando qualquer dos autocarros com paragem diante do edifício do hotel, de ambos os lados da rua. Mas, para já, não era esse o meu objectivo. O meu maior desejo era sentar-me calma e sossegadamente e proceder a uma exaustiva análise do que tinha descoberto no Ministério do Turismo. Pedi a chave do meu quarto e, quando estava para entrar num dos elevadores, pensei melhor. Aquela situação divertia-me. Faltavam duas horas para a minha entrevista na Universidade Hebraica e esperando tirar daí algum proveito, instalei-me num canto do vestíbulo, de forma a observar e ser observado sem dificuldade. Cinco minutos depois, eu pensava quando o cara de lua-cheia e um segundo indivíduo entravam a porta giratória. Debrucei-me sobre o caderno de campo, aparentemente alheio a tudo o que me rodeava. A chegada de uma das empregadas fez-me lembrar que estava praticamente em jejum, conferindo à cena uma maior naturalidade. De soslaio, enquanto pedia um copo de leite e uma dose de torta de queijo, fui seguindo os movimentos dos meus contumazes amigos. Vi-os a trocar algumas frases, olhando-me de esguelha, até que finalmente se dirigiram à recepção, solicitando a presença de
um dos empregados. A distância – cerca de vinte metros – e o facto de os indivíduos me terem virado as costas anularam toda a possibilidade de eu captar directamente a cena, se bem que imaginasse tudo ou quase tudo o que se passou nos cinco ou dez minutos que durou o conclave. A única coisa que consegui observar foi como o companheiro do gorducho buscava e rebuscava nos bolsos de trás dos seus coçados jeans, acabando por tirar qualquer coisa – talvez um pequeno bloco de notas – em que fez algumas rápidas anotações. Logo a seguir, com a mesma discrição, depois de se certificarem de como eu tomava o meu frugal almoço, abandonaram o hotel. Para falar verdade, o desaparecimento dos supostos agentes não me serviu de consolo, seguro como estava de que tramavam qualquer coisa contra mim. Ainda estive tentado a espreitar lá para fora, mas compreendi que o mais inteligente era seguir o jogo deles, fazendo-lhes crer que ignorava a sua presença. Tal situação proporcionava-me uma certa vantagem. ...e as suas asas levar-te-ão. Ao guia MaRcos 6.2.0 O número secreto das suas penas é o número secreto do guia... Aquilo, sim, era importante. O Destino, talvez cansado de tanto mistério, acabava de prestar-me uma ajuda inestimável. Na relação de guias autorizados pelo Ministério do Turismo de Israel, com residência habitual em Belém, figuravam doze nomes. (Seria também casualidade que fossem precisamente 12?) Destes, quatro – Toufite, Abraham, Mike e Elias – desempenhavam as suas funções na própria cidade de David. Os outros – Emin, Raimundo, José, Michel e outros três Elias – levam os turistas e peregrinos a todos os locais da Terra Santa. Premeditadamente apenas mencionei onze dos doze profissionais incluídos na lista. É que o último, que se encontrava a meio da lista oficial, foi o causador do meu já referido júbilo. Na breve referência – da qual omito alguns dados por razões de segurança – pude ler e copiar o seguinte: 00006. Marcos Gabriyeh. Morada... Apartado 620. Belém. (Não tem telefone.) Árabe cristão. Exerce desde 1965. Fala
hebraico, árabe, inglês, espanhol, francês, italiano e português. Trabalha para a Agência... Endereço... P.O.B... Telefones... Caboama... Telex... Jerusalém. Como o leitor já terá percebido, nestas telegráficas linhas apareciam alguns dados reveladores que levaram ao auge a minha excitação. Para começar, aquele era o único guia de Belém que tinha o nome de Marcos. Quanto aos três dígitos do apartado, quem poderia imaginar? 620! A mesma cifra que acompanhava a inicialmente suposta citação bíblica: MARcos 6.2.0. ...e as suas asas levar-te-ão ao guia Marcos 6.2.0. O quebra-cabeças começava a resolver-se. As asas do anjo de Hazor estavam a levar-me a um guia, de nome Marcos, cujo número secreto oficial – 00006 – coincidia com o das penas do querubim: 6. Estudei o criptograma, sem dar crédito ao que agora, após tantos esforços e congeminações, resplandecia perante mim como o que há de mais cristalino no mundo. E recordei com um estremecimento a carta de Munique. Se tudo aquilo era algo mais que uma miragem as minhas velhas e inseguras deduções tinham acertado em cheio. O Major, jogando na desorientação, soube extrair a oportuna utilização do número e dos textos do evangelista, incrustando um segundo Marcos no ponto exacto. E como já tinha acontecido com a primeira das mensagens, que me levou a Washington, as sucessivas chaves foram introduzidas como se se tratassem de peças complementares, com um papel de apoio ou ratificação do essencial. Em suma, aceitando que os meus passos e elucubrações estivessem certos, o enigma parecia estar a chegar ao fim. No entanto, apesar da solidez das aparências, o meu espírito desconfiado não era capaz de assimilá-lo e, o que era mais importante, não conseguia admitir que tivesse triunfado. Suponho que é a minha maneira de ser. Naturalmente, continuei a admitir a possibilidade de o ditoso guia ser uma coisa ou pessoa diferente. Mas o senso comum rebelava-se contra tal hipótese. Inegavelmente, tudo aquilo fazia sentido. Tudo engrenava na
prodigiosa roda da lógica. E assim deixei-me arrastar pelos sonhos. Talvez o Major, sabe-se lá quando, tenha conhecido um homem chamado Marcos. Talvez tenha sido seu amigo e lhe tenha confiado algo que prepararia o meu caminho... Por que não? Abandonei tais pensamentos e, travando a minha imaginação anotei o que entendi como de imediata e obrigatória realização: Localização e entrevista com o tal Marcos, de Belém. Desconhecia o que me aguardava e, por isso, calculei os riscos, considerando que tal encontro deveria efectuar-se sem testemunhas; muito especialmente, fora da órbita dos Serviços de Informação Militar israelitas. Naquele momento à vista do leque de dados e de acontecimentos que se abria diante de mim, felicitei-me pelo silêncio guardado no gabinete da funcionária do Turismo. Não podia esquecer – e os serviços secretos muito menos – que a região de Belém constitui um dos mais virulentos focos do terrorismo em Israel, tendo-se transformado num verdadeiro canteiro donde brotam inúmeros palestinianos, dispostos a combater pelos seus legítimos direitos. No caso de ter pronunciado o nome de Marcos, ou qualquer outro, as minhas dificuldades com o Agaf teriam sido dramáticas. Vendo bem esta poderia ser uma das razões, entre outras, pelas quais a espionagem Judaica me mantinha sob controlo. Era absolutamente necessário organizar tudo conscienciosa e meticulosamente. E o meu atrevido cérebro começou a maquinar um plano. O tempo piorou. O frio e a chuva intensificaram-se em Jerusalém e, não de muito boa vontade, dispus-me a apanhar o autocarro 4A, que deveria levar-me à Universidade Hebraica, no monte Scopus,: a cidade. Aquele compromisso irritou-me, mas, resignado, que não convinha dar um único passo em falso. Enquanto deambulava à entrada do hotel fazendo tempo, ou nas imediações, junto à paragem do autocarro, Olhei em especial para a entrada do parque subterrâneo e para a porta giratória do vestíbulo: Do Mercedes e seus ocupantes nem rasto. Era como se a terra os tivesse tragado. Dois judeus ortodoxos, com as suas fúnebres levitas, os
inconfundíveis caracóis pendentes de ambos os lados dos pálidos rostos e os chapéus de veludo negro protegidos da chuva por amplas capas de plástico, juntaram-se a mim na espera do autocarro. Depois, com idêntica desconfiança, vi chegar uma mulher alta e atraente de rasgados olhos negros. Ao passar diante dela aguentei o seu olhar inquiridor. Não sabia como proceder. Qualquer daqueles hirtos semblantes podia ocultar um astuto agente secreto. Mas porquê esta obsessão?, censurei-me de imediato. A minha visita a Scopus recebeu a «bênção. Talvez tenham desistido, para já..». No entanto, decidi tirar as dúvidas, na medida das minhas possibilidades. O autocarro chegou pontualmente e as suas portas hidráulicas resfolegaram, franqueando-nos o acesso. Os judeus, sem a menor consideração, puseram-se à frente. A mulher, mais prudente, ficou para trás. E eu pus em acção a primeira das provas. Imóvel sobre os degraus que conduziam ao motorista e cobrador, toquei no ombro do indivíduo que me precedia, perguntando-lhe, em inglês, se era aquele o autocarro da Universidade. Sabia que estes fanáticos da religião – talvez moradores do Bairro de Mea Shearim – levam o seu radicalismo ao ponto de nem sequer dialogar em outra língua que não seja o hebraico. Se se tratasse de um membro da Informação Militar, o mais provável seria que se tivesse dignado responder à inocente pergunta daquele estrangeiro. Não foi isso o que aconteceu. Voltou a cabeça. Inspeccionou-me de alto a baixo e, com o mais olímpico dos desprezos, prosseguiu a sua conversa com o segundo hassidim, ignorando-me. Perfeito, pensei cá para mim, encaixando aquela reveladora desconsideração. Já só faltava a mulher. O normal, na suposição de que fosse o que eu suspeitava, era que dispusesse de uma arma. Tinha de confirmá-lo. Cedi-lhe gentilmente a passagem e, já no corredor do autocarro, fiquei atrás dela. O arranque brusco foi o pretexto indicado para apoiar-me à sua cintura com ambas as mãos. O imcidente – tão comum nestas circunstâncias – não pareceu tê-la aborrecido demasiado. Com o seu ágil braço esquerdo seguro a uma das barras de segurança, resistiu ao esticão. Soltei a minha presa e
aproveitando a oscilação do veículo, provocada pela entrada da segunda velocidade, agarrei-me de novo ao corpo da rapariga, desta vez por debaixo das axilas, deslizando as minhas mãos, sem o menor pudor, pelos seus flancos. Uma vez recompostas a estabilidade e a posição, pedi-lhe desculpa, aliviando-a da firme pressão das minhas mãos. A jovem, imperturbável, sorriu maliciosamente, piscando-me o olho. O meu rubor chegou até aos pés... Os meus temores eram infundados. A formosa judia não ia armada. À hora combinada, Daniel Schwartz, professor de  História do Povo de Israel, recebia-me num dos gabinetes do edifício Truman. Durante uma hora, na presença de Pessy Druker, também professor da Universidade Hebraica, o jovem cientista satisfez a minha curiosidade, falando-me das suas investigações em torno de Pôncio Pilatos. Diga-se de passagem que algumas das audazes teorias de Schwartz coincidiam com o exposto no diário do Major norteamericano acerca deste discutido e injustamente difamado governador romano. Embora tenha prestado toda a minha atenção à entrevista, a verdade é que o meu coração estava muito longe. Para ser exacto, em Belém. O meu plano inicial não comportava a procura do enigmático Marcos até ao dia seguinte. Contudo à medida que a tarde foi avançando, modifiquei os meus projectos. Actuaria de imediato. Nem os nervos nem a curiosidade aguentariam que eu cruzasse os braços. Dito e feito. Por volta das seis, de regresso ao Moriah, pus em marcha a recém-baptizada Operação Marcos. Procurei o recepcionista que tinha dialogado com os ocupantes do Mercedes, pedindo informações sobre algo que eu estava farto de conhecer: a zona comercial mais próxima. Com a planta da cidade na mão, recomendou-me o triângulo formado pelas ruas de Jaffa, Ben Yehuda e George V, no centro. Trata-se, de facto de um verdadeiro paraíso para o comprador. Não havia pressa. Por isso, desafiando a chuva e o persistente mal-estar que me
chegava até aos ossos, dei início a um despreocupado passeio, por Keren Hayesod acima. O movimento de peões muito escasso naquela altura, jogou a meu favor. Mas como não tinha a certeza fiz uma pausa, como medida preventiva, diante de um estabelecimento de música que se ergue na mesma rua do hotel, a cerca de cem metros. O silêncio envolvente foi quebrado por um rápido bater de tacões. Alguém se aproximava. Não me mexi, aparentemente absorto na contemplação dos discos que se exibiam na vitrina. O reflexo de um homem gordo, de baixa estatura, apareceu na vidraça que se erguia a dois palmos do meu nariz. Voltou a cabeça para o lugar onde eu me encontrava, afrouxando o passo automaticamente. Era o cara de lua-cheia! Indeciso, trocou o guarda-chuva de mão, continuando o seu caminho. Esperei dez ou quinze segundos e, sem querer reprimir a minha alegria, recomecei a marcha. Engraçado! De perseguido tinha passado a perseguidor. O atrapalhado agente, naquela penosa situação só conseguiu virar a cara umas duas vezes, comprometendo ainda mais a sua tarefa. O meu objectivo encontrava-se a cerca de meio quilómetro e, divertindo-me como uma criança, deixei-o seguir. Inteligentemente, foi para o outro passeio da rua e, com toda a naturalidade, deteve-se numa das paragens de autocarro. Ao chegar a sua altura, o cara de lua-cheia mudou de táctica. A partir de então, passaria a seguir-me a uma prudente distância e sempre em paralelo, do lado oposto àquele que eu utilizava. A minha estratégia, elementar, consistia em alcançar a concorrida confluência das ruas Ben Yehuda e George V. Uma vez ali, com alguma sorte procuraria despistá-lo. No entanto, ao ultrapassar o Hotel Plaza – já a meio da Avenida George V -, tive uma ideia melhor e mais arriscada. Tal como esperava, o gorducho, sempre atento, ficou desorientado. Quase de certeza, a informação recebida do recepcionista fê-lo cair no meu propósito de visitar lojas e fazer algumas compras. Por ver como eu me detivera sob o abrigo do autocarro número 9, a sua
desolação deve ter sido notável. Apesar de tudo, tenho de reconhecer, a sorte estava do seu lado. Se naquele preciso momento tivesse chegado um autocarro, o meu golpe teria resultado plenamente. Com grande desgosto meu o primeiro veículo de transporte público a aparecer na avenida deu-lhe tempo mais que suficiente para atravessar a rua e misturar-se com o reduzido grupo de pessoas que se encontravam sob o abrigo. Ao entrar no autocarro, aumentou a minha contrariedade. E agora? O cara de lua-cheia, imperturbável, passou ao meu lado, instalandose num dos assentos lá do fundo, muito perto da saída. Eu fiquei de pé, diante da porta dupla situada no centro geométrico do veículo e que era accionada em todas as paragens. Tinha de agir. Mas como? O número de passageiros foi aumentando nas duas paragens seguintes, o que poderia beneficiar-me. De soslaio, ocultando-me entre os passageiros, procurei vigiar o indivíduo. Naturalmente, ele fez o mesmo. Não dispunha de muitas alternativas. Era imperioso jogar uma cartada, mesmo correndo o risco de me denunciar. Nervoso, esperei pela paragem seguinte. Ao avistar o iminente cruzamento com a Rua de Hillel, alguém accionou a campainha prevenindo o motorista. O autocarro parou e, aberta a porta, desci sem pressas. Foi coisa de segundos. A surpresa atrasou a reacção do agente que, embora com dificuldade, acabou por descer também. Era o que eu esperava. O seu sentido profissional fez com que, ao pôr o pé em terra me virasse as costas, num elementar gesto de dissimulação. Aquele foi o seu erro. Antes que ele se apercebesse saltei como um gato para o degrau da porta central, exactamente na altura em que o veículo arrancava com o seu ronco peculiar. Fiquei preso na porta dupla, mas pouco depois consegui forçar o sistema hidráulico, libertando-me. O cara de lua-cheia, desarmado, nem sequer se mexeu ou esboçou um gesto. Atónitos ficaram os passageiros mais próximos, que evidentemente não conseguiam perceber o meu estranho comportamento. A maioria, quero crer, têlo-á atribuído a um erro na identificação da paragem.
Um quilómetro depois abandonava definitivamente o autocarro salvador, perdendo-me na noite. Desta vez tinha sido eu a ganhar. E na próxima? A pequena peripécia, embora me tivesse devolvido a liberdade de acção, podia provocar consequências imprevisíveis. Agora, eles sabiam que eu também sabia... Mau negócio. Fosse como fosse, acontecesse o que acontecesse, não tinha intenção de desperdiçar a minha temporária vantagem. Apanhei um táxi e, quarenta minutos depois, descia diante da Basílica da Natividade, em Belém. Coloquei-me junto de uma das portas do templo, disposto a verificar se o já familiar Mercedes, ou qualquer outro veículo suspeito, apareciam no terreiro. Passada meia hora, convencido de que isso não acontecia, contratei os serviços de um taxista da cidade que me conduziu com precisão ao endereço que, de acordo com o Secretariado de Turismo de Israel, pertencia ao guia e suposto amigo do Major: Marcos Gabriyeh. Os dados estavam lançados. Agora, diante daquela casa de um só piso, o mar de dúvidas que me assaltava encrespou-se ainda mais. Teria escolhido o bom caminho? Por mais que me esforce não encontro palavras para descrever o fogo e o vazio que, como verdadeiro nó górdio, eu sentia nas minhas entranhas ao transpor o portão da entrada. Pode parecer exagero, mas a verdade é que me fui abaixo. Fiquei literalmente em branco. Por onde começar? Se aquele era realmente o indivíduo que eu perseguia com tanto empenho, como me devia dirigir a ele? Como deveria apresentar-me Partindo do princípio – o que talvez fosse um excesso de optimismo de que ele guardava algo para mim, como convencê-lo a entregar-mo Tremendo como a chama de uma vela, toquei à campainha. Cinco, dez, quinze segundos... Silêncio. Alarmado, insisti com energia. E se ele não estivesse em Belém? Dada a sua condição de guia oficial, nada mais natural. ...Vinte, trinta segundos. Chamei pela terceira vez. A resposta foi idêntica. A casa parecia deserta. Maldição! Da incerteza e do espanto passei a uma raiva surda.
Aquilo era injusto. Não havia direito... Foi inútil. Ninguém respondeu à minha meia-dúzia de toques de campainha. Desiludido, dei meia volta, parando no meio da rua deserta. O impasse abateu-se sobre mim como uma negra e pesada fatalidade. Incapaz de reflectir e de tomar uma decisão, as minhas esperanças derramaram-se pelo reluzente asfalto juntamente com a chuva miudinha que caía. Mas a minha boa e acalentadora estrela acompanhava-me lá do alto, embora a não pudesse divisar. De repente, uma voz chamou por mim vinda de uma janela contígua à casa do desaparecido Marcos. Era uma mulher. Para meu azar, só falava árabe. Deduzi, no entanto, que tinha ouvido as minhas chamadas. Pronunciei o nome de Marcos o mais lentamente possível, soletrando como uma criança e apontando para o seu domicílio. A senhora replicou na sua língua, indicando-me, por sua vez, o fundo da rua. Após uns minutos de estéril diálogo, retirou-se da janela, pedindo-me por gestos que esperasse. Pouco depois voltava com um rapaz com o qual pude fazer-me entender. Amável e bem-disposto, prestou-se a acompanhar-me até ao local onde, segundo parecia, se encontrava o seu viziniho e amigo. Segundo o jovem árabe, Marcos estava a trabalhar na montagem de um restaurante. Ao fim de uma rápida caminhada, penetrámos num amplo salão em obras. À escassa luz de algumas lâmpadas presas das colunas, envoltos numa atmosfera de gesso fresco e de madeira acabada de serrar, quatro homens lidavam com pranchas e martelos. Um deles, curvado sobre uma tina de cimento, cantarolava uma dolente melopeia árabe. Cerrei os punhos, dominado pela emoção. Qual daqueles atarefados trabalhadores seria o depositário daquilo por que tanto ansiava? Depois de identificar o nosso homem, o meu acompanhante passou pelos operários mais próximos, saudando-os com repetidas e amistosas palmadas nas costas. Vi-o chegar até
junto do que remexia a massa e, inclinando-se, sussurrar-lhe alguma coisa ao ouvido. Então ambos se er gueram, observando-me da penumbra. A irregular iluminação impediu o homem de dar-se conta da minha ostensiva curiosidade. No entanto, mantive-me quieto, como sugerira o meu improvisado guia. Presumo que as palpitações do meu coração devem ter sido ouvidas num amplo raio à volta. Mas ninguém parou a sua tarefa. Concluído o breve diálogo, o que trabalhava de pedreiro atirou com a ferramenta para o balde da massa e, esfregando as mãos nas calças, avançou na minha direcção. Comecei a tremer. Não podia evitá-lo. Teria chegado o grande momento? Que poderia eu dizer-lhe? Como abordar tão peregrina e enigmática história? Um foco amarelado, vindo ao encontro dos meus desejos, eliminou por fim a escuridão que envolvia a silhueta que se aproximava, mostrando-me o homem. Parecia ter chegado àquela idade indefinida que só aparece depois dos cinquenta. Como bom árabe, conservava uma crespa e abundante cabeleira negra, algo acinzentada já e descuidada. Um ventre saliente enchia uma camisa de caqui, salpicada aqui e além por pingos de cal, diminuindo aparentemente o seu já escasso metro e sessenta de altura. Um rosto liso, mais largo que alto, constituía um todo com o pescoço robusto. No meio de uma tez bronzeada brilhavam uns olhinhos fundos, sempre em movimento, mas ao mesmo tempo sorridentes e confiantes, como em todo o homem de bem. Não me gabo de ter muitas virtudes. Mas entre elas, arriscando um pouco, acho que tenho a de ver o fundo das pessoas, depois de duas ou três atentas olhadelas. Pois bem, este pequeno dom – fruto do ofício – fez-me confiar. Espontaneamente, estendeu-me a sua maciça e vigorosa mão e eu, apanhado um pouco desprevenido e à deriva, apenas correspondi, apertando-a com força. Julgo não me enganar quando digo que, em geral, um sincero e intenso gesto desta índole abre logo muitas portas; sobretudo as da amizàde. Aquele apertão de mãos, apesar do mútuo desconhecimento, prolongou-se por mais tempo que o normal. Eu e o guia ficámos em sintonia, tenho a certeza disso.
- Diga então, senhor... A voz firme de Marcos, sem sombra de reserva, animou-me. Sorri-lhe. E o bom homem, expectante, fez o mesmo. -Bem... - disse eu finalmente, sem saber muito bem que rumo tomar -, desejaria ter uma conversa com o senhor. -Comigo? - Não se alarme – atalhei. - Trata-se de um assunto privado que requer um pouco de calma. Nada de grave. Espantou-me que não tentasse aprofundar ou sondar as razões da minha tão insólita visita, fazendo-me algumas perguntas que seriam perfeitamente pertinentes. - Pode esperar um minuto? Concordei, creio eu, com um vago movimento de cabeça. A tensão baralhara-me completamente. Despediu-se dos companheiros e, indicando a saída com ambas as mãos, convidou-nos a precedê-lo. - Iremos para minha casa – acrescentou. O jovem árabe e eu obedecemos em silêncio. Poucos minutos depois, com uma franqueza que marcaria todo o encontro, abriu o seu coração, lamentando-se da crise que o sector turístico atravessava naquela altura. A falta de trabalho tinha-os empurrado – a ele e a outros guias de Belém – para o pluriemprego, tentando a aventura do restaurante. Apreciei o pormenor e a confiança demonstrada. Marcos era um homem sem duplicidade, aberto mesmo para quem não conhecia. O seu gesto estimulou-me. A caminho da sua casa tomei a firme decisão de lhe falar sem rodeios nem meias verdades. O rapaz que me tinha prestado tão providencial serviço deixounos a sós. Uns minutos depois – quase sem poder acreditar – ali estava eu sentado diante do guia de Belém, no seu austero e solitário lar. Apesar dos meus bons propósitos, as coisas não eram fáceis. Sentia-me deslocado, impotente e até ridículo. Como explicar-lhe quem eu era e porque estava ali? Penetrante e sagaz como falcão,
Marcos adivinhou o estado de nervos que me paralisava. Levantouse e, com cordialidade e simpatia, ofereceu-me um chá. Claro que não poderia jurá-lo, Mas, através do vaporoso fumo da infusão, pareceu-me intuir no seu olhar o porquê da minha visita. Em todo o caso, não estaria a exagerar? Isso era impossível. No entanto, aquela «luz e o silêncio dominador dos seus olhos» continuaram a inquietar-me. Em última análise acabaram por estender-me uma ponte salvadora. Falei-lhe de mim. Do meu trabalho e do histórico dia em que conheci o Major. Não me interrompeu. Deixou-me falar à vontade. A sua imperturbável atenção, aliviada apenas por um ou outro sorriso de cumplicidade, convenceu-me de que não estava a falar em vão. Se não fosse o homem que eu procurava que sentido tinha tão paciente e generosa escuta? Ao pormenorizar-lhe, por exemplo, as minhas venturas e desventuras na resolução do criptograma, o mais razoável da sua parte teria sido – se nisso não estevesse interessado – cortar desde logo tão prolixas e estranhas explicações. Pelo contrário... As minhas peripécias em Washington cativaram-no visivelmente. Acabei o reconfortante chá e ele, sem dizer palavra, serviu-me uma segunda taça, convidando-me, com o seu respeitoso mutismo, a que prosseguisse. Fi-lo como um potro selvagem, sem ordem nem comedimento, com uma exaltação progressiva que, naturalmente, não escapou à sua inteligência. Houve alguns pornenores, isso é verdade, que obscureceram claramente o seu olhar, traindo a sua emoção. O primeiro foi a alusão à morte do ex-oficial da Força Aérea norte-americana. O segundo, a surda batalha com os Serviços de Informação Militar israelitas. Pouco faltou para que, perante tão eloquente envolvimento, encurtasse o resto da história, passando de imediato à questão que me consumia. Contudo, não desejando forçar os acontecimentos, completei a narração. O último capítulo consistiu em mostrar-lhe o caderno de campo, com o texto do segundo enigma e os desenhos do anjo de Hazor.
Ele pegou no bloco e leu rapidamente o criptograma. Logo a seguir, em tom grave, pediu-me que lhe mostrasse o meu passaporte. O insólito do pedido apanhou-me desprevenido, perturbando-me. - Fique descansado – acrescentou ele, suavizando o tom das palavras. - Trata-se de uma simples verificação. Mas eu continuei fortemente desconcertado. Ter-me-ia enganado na pessoa? Seria este Marcos outro esbirro dos Serviços de Informação? No entanto, a explicação do guia veio pôr um ponto final na minha inquietação. - Compreenda – sorriu, satisfeito, devolvendo-me o documento. Tenho de ter a certeza... - Então o senhor... A minha explosão de alegria comoveu-o. Mas não disse nada. Levantou-se e, dirigindo-se à janela, reflectiu uns instantes. Ao voltar-se, a sua pergunta – evitando o essencial da questão – arrefeceu a minha expectativa. - Julga possível que o tenham seguido até aqui? Neguei com firmeza. - E outra coisa que me preocupa: eles sabem ou suspeitam da minha identidade? Repeti a negativa, contando-lhe em pormenor o meu silêncio no Secretariado de Turismo e como tinha dado com ele. Marcos conhecia bem a astúcia dos Serviços de Informação de Israel e as minhas palavras não chegaram para o tranquilizar. No entanto, pelo menos para já, deixou de lado o espinhoso assunto. O seu rosto readquiriu a natural luminosidade e, estendendo-me ambas as mãos, resumiu em poucas palavras a única coisa que eu desejava ouvir naquele momento: - Há anos que espero esta visita... Embora a intuição já me tivesse aberto a alma desde há algum tempo antes, a minha garganta ficou embargada pela emoção. Fui incapaz de responder. Peguei nas suas mãos e apertei-as, com simplicidade, transmitindo-lhe assim os meses de pesadelo, desalento e esperança. Os nossos olhares falaram por si sós. A
partir daquele momento inesquecível, foi ele quem tomou a iniciativa, tirando-me todas as dúvidas. Tinha conhecido o Major ao longo do ano de 1973, em Jerusalém, e por motivos alheios aos que agora nos reuniam. Entre eles nasceu uma corrente de fraternidade e, anos mais tarde, a partir do remoto Iucatão, voltou a ter notícias do velho piloto norte-americano. Incumbia-o da guarda de qualquer coisa que só poderia ser entregue ao homem ou mulher que acreditasse ter resolvido e decifrado o criptograma que estava em meu poder. A última chave do enigma era ele próprio. Desde que aquilo tinha chegado ao seu poder, apesar das suas tentativas no sentido de contactar o Major, nunca mais tinha tido notícias dele. Ignorava que tivesse falecido e, naturalmente, que existisse uma primeira mensagem. Leal e prudente como os que o são, Marcos assegurou-me que nunca tinha aberto a encomenda do nosso amigo comum. Acreditei nele. Ardendo em desejos de receber o misterioso legado, supliquei-lhe que mo mostrasse. Sorriu com benevolência, desculpando a minha excessiva fogosidade. E logo depois, sem rodeios, fez-me compreender que aquela justa entrega devia ser feita no momento e lugar adequados. Aceitei as suas razoáveis exigências. Muito provavelmente, o Agaf poderia estar à espreita. Se nessa noite eu me apresentasse no hotel com o precioso carregamento – foram estas as suas palavras -, os meus sacrifícios, os dele e os do Major corriam o risco de ser ingloriamente imolados, em benefício dos Serviços de Informação. Valia a pena esperar. - O meu plano é este... - resumiu ele, expondo a ideia que acabava de conceber e que, de tão surpreendente, me fez dar uma gargalhada, a primeira – se bem me recordava – que este infeliz soltava em toda a sua estada na Terra Prometida. Rendido, concordei. Aquilo era excitante e, sobretudo, eficaz.
Submeti-me à sua vontade e não voltei a interrogá-lo nem a pressioná-lo acerca daquilo que o Major lhe tinha confiado. Um legado cuja natureza eu pressentia. A nossa conversa – entremeada de confidências - prolongar-se-ia até altas horas da madrugada. Foi assim que entrámos no mútuo conhecimento de factos e circunstâncias, intimamente ligados ao Major, que, além de nos enriquecerem, aumentaram ainda – se possível – a nossa sincera estima para com aquele homem singular e corajoso. Já passava das quatro horas quando um outro taxista de Belém concluía o seu frete no cruzamento das ruas Smolenskin e Keren Hayesod, a trezentos metros do Moriah Jerusalém. Por uma questão de segurança, dispensei o motorista e amigo de Marcos num lugar suficientemente retirado do hotel para evitar qualquer mau encontro ou curiosidade malsã... Caminhei decidido. Toda aquela zona iluminada e adormecida parecia em paz. Nas imediações do Moriah não se distinguia um único veículo. Passei pela frente do estacionamento subterrâneo e, de súbito, senti medo. Parei. Inspeccionei a obscura e solitária entrada do parque de estacionamento, sem avistar o guarda. Que fazer? Entraria pela cave? A partir de lá, com a ajuda dos elevadores, o acesso ao meu quarto era mais discreto. Por fim, acabei por desistir. O meu abalado coração não resistiria a outro susto. Além disso, o que importava que me vissem entrar pelo átrio? Naquela altura do negócio já tudo estava consumado... para o bem ou para o mal. Encolhido e receoso, empurrei devagar a porta giratória. No átrio, envolto em penumbra, não se via vivalma. Minto: à esquerda, numa das poltronas, ressonava um vigilante. Percorri em bicos de pés os sete ou oito metros que me separavam dos elevadores e escapulindo-me como uma serpente, subi para o meu quarto. Nenhum dos recepcionistas – possivelmente tão em êxtase como o agente de segurança – detectou o regresso daquele noctívago. Mas os sobressaltos – no fundo eu sou um ingénuo – não acabariam assim...
Transbordando de felicidade, preparava-me para, enfim, descansar. Parei diante da porta do quarto e, de repente, tive a sensação de que meio mundo desabava: tinha-me esquecido da chave na recepção. - Esta agora é muito boa!.. Não sabia se rir, se chorar. Nova pesquisa nos meus bolsos revelou-se tão inútil como a primeira. Incrível! Em poucos segundos, a euforia transformou-se em cólera. Os que me conhecem sabem que já só me indigno... comigo próprio. Pois bem, aquela foi uma excelente ocasião para exercer uma das minhas actividades predilectas: maldizer a minha sombra e os meus já proverbiais despistes. Concentrei-me para tentar uma solução. Tudo menos descer e denunciar assim a minha presença. Até era possível que não acontecesse nada, Mas... e se acontecesse? A análise da estúpida situação propôs-me duas únicas alternativas, A primeira: tentar forçar a porta. A segunda: acomodar-me no corredor e aguentar até ao amanhecer. Esta última não foi do meu agrado. De modo que, de mau humor, inventariei tudo o que trazia comigo. A lista não foi de molde a estimular-me: algumas canetas – de que tanto gosto – e o caderno de campo, com três ou quatro folhas soltas , cheias de nomes e endereços e presas ao resto do bloco mediante alguns clips de aço inoxidável. - Pouca coisa! - lamentei-me. - Se ao menos o isqueiro fosse de gasolina... Como já tinha feito noutras ocasiões igualmente loucas, bastava injectar o combustível no interior da fechadura e pegar-lhe fogo. Geralmente, dependendo, é claro, do tipo de engrenagem, o pequeno incêndio-explosão acaba por desarranjar o mecanismo. Não era este o caso. Restava apenas uma solução: os clips. Endireitei um deles, e com o arame daí resultante confeccionei uma espécie de gazua. Foi absurda a minha preocupação de olhar para um lado e para o outro do solitário corredor. A uma hora daquelas, quem poderia de facto estar a observar-me? A grosseira chave
esgaravatou nos interstícios da fechadura à procura da lingueta. À terceira ou quarta tentativa um familiar clique veio recompensar a minha persistência, abrindo-me a passagem. O Destino, se bem que não saiba já o que pensar, tinha previsto tudo. Até mesmo que eu não recolhesse a chave do meu quarto, dando assim a entender que tinha passado a noite fora. Era o que eu já esperava. Logo às primeiras horas da manhã de sexta-feira, quando me preparava para sair, o telefone tocou. Imaginei a origem da chamada, pelo que, ignorando-a, saí do quarto, dando assim início à operação planeada por Marcos. Julguei oportuno continuar a ocultar a minha presença no hotel. Assim, para evitar encontros comprometedores, dirigi- me directamente para o estacionamento subterrâneo. Lá me esperava outra surpresa. Quando me encaminhava para a saída, um dos veículos – estacionado a pequena distância da barreira de controlo – despertou o meu interesse. Cautelosamente, fui esconder-me atrás de uma das colunas. Não havia dúvida. Era o tal Mercedes 300-D! Esquadrinhei a medo o seu interior. Ninguém. Também nas imediações não havia rastos dos obsidiantes agentes. Era óbvio que a localização do veículo na cave – tão estrategicamente preparado para uma fulminante partida – não era casual. Se estivesse na rua em frente do hotel ou nas suas proximidades, teria chamado de imediato a minha atenção. Por outro lado, se estava desocupado, onde localizar os seus passageiros? Não muito longe, imaginei. Se eles estavam a par da minha prolongada ausência, o mais lógico era supor que, naquela altura, vagueassem pelo átrio. A chave do meu quarto continuava na recepção... Que caminho devia eu tomar? É claro que afastei a ideia de me apresentar no átrio. E se estivessem de vigia no exterior? Não havia escolha. Correria o risco. Saí do esconderijo e optei pela rampa do subterrâneo.
O empregado que accionava a barreira da entrada - esgotado pelo longo turno da noite que agora terminava – lançou-me uma rotineira e fatigada olhadela. Saudei-o com um simples movimento de cabeça e, de repente, a minha vista deparou com algo que – quem sabe – talvez pudesse vir a ter utilidade. Fiz-lhe sinal para que abrisse a vidraça da guarita e, uma vez diante do enfastiado e sonolento personagem, sorri-lhe, apontando um gorro azul que pendia das costas da cadeira. - Está à venda? A pergunta deixou-o perplexo. E antes de ele abrir a boca mostreilhe cinco notas de dez dólares. - Desculpe – acrescentei -, é que sou coleccionador... O homem deve ter-me tomado por um turista endinheirado e excêntrico. Sem pensar duas vezes pegou no dinheiro, entregou-me a poeirenta e desbotada preciosidade. Ainda incrédulo, contou as notas. Quando quis dizer alguma coisa já eu me afastava do parque de estacionamento com o gorro enterrado até às sobrancelhas. (No meu regresso a Espanha, ao contar este episódio à pessoa a quem mais quero, esta, com inteligência, fez-me ver que um gorro não é exactamente o meio mais discreto para passar despercebido. Tinha razão. Neste caso foi a Providência quem permitiu que eu saísse indemne do lance.) Seja como for, o bom e proveitoso de tudo aquilo foi que, à hora combinada, lá estava eu reunido com uma das relações públicas da Universidade Hebraica – Gina S. cumprindo o prometido ao Instituto de Relações Culturais. Conforme tinha ficado acordado com Marcos, convinha ir dando uma no cravo e outra na ferradura... A jovem judia introduziu-me na Academia Rubin de Música, ajudando-me a localizar uma série rara de livros sobre instrumentos musicais bíblicos. Satisfeita a minha curiosidade, pedi-lhe que me acompanhasse ao Moriah. E às onze horas, levando-a pelo braço, entrámos no hotel. O movimento dos turistas não me permitiu explorar todo o átrio com precisão. Se a Informação Militar se encontrava ou não no local, nunca o vim a saber. Recebi a chave na recepção e, sem largar Gina, convenci-a a subir. Não recordo muito bem o pretexto, mas creio que
lhe falei de um livro hebraico, escrito pelo grande especialista no mar de Tiberíades, Mendel Nun, que eu tinha comprado dias antes e sobre o qual necessitava de uma certa informação. A generosa e complacente mulher aceitou, encantada. Mas, antes de tomar o elevador, soltei o seu braço e, voltando ao balcão da recepção, informei-me acerca do modo mais rápido de fazer chegar ao meu quarto uma garrafa de champanhe e duas taças. A pergunta, em tom de voz mais alto que o habitual, deu resultado. Vários dos recepcionistas, ao ouvir-me, fixaram os seus olhares, alternadamente, na jovem e no seu suposto cortejador. Os sorrisos que entretanto se espalharam foram o fruto do meu estratagema. Uma vez no quarto, tirei o casaco e, convidando-a a sentar-se, pus-lhe nas mãos o referido volume de Nun: Sea of Kinnereth. Pedilhe que o folheasse, esclarecendo-a de que precisava da tradução da bibliografia. A verdade é que nem sequer sabia se o livro incluía uma relação bibliográfica. Gina, creio que um pouco desiludida, pôs mãos à obra, ao mesmo tempo que cruzava as pernas provocadoramente. Não sei o que ela terá pensado. Talvez que lhe tinha calhado um tímido ou um excêntrico. Em parte, acertou. Simulei que procurava alguma coisa. Peguei na minha documentação, nos cartões de crédito e nalguns dólares e, com o estafado pretexto de ir comprar cigarros, desapareci perante o seu olhar atónito. O resto foi menos angustioso. Repeti a descida até à cave, saindo do hotel pela entrada do parque de estacionamento. O Mercedes lá continuava no mesmo lugar. Eram onze e vinte. Quinze minutos mais tarde – com algum peso na consciência, tenho de confessá-lo – apanhava o autocarro 22, na Porta de Jafa, com destino a Belém. Naqueles onze ou doze quilómetros de viagem – como justo castigo da minha perversidade – outra dúvida me assaltou: e se a jovem das relações públicas que eu abandonara mexesse nos meus papéis? A lembrança do caderno de campo que eu deixara sobre a escrivaninha do meu aposento fez-me perder a serenidade. Ao meio-dia e meia hora, já com algum atraso, irrompia eu pela Basílica da Natividade. Marcos e um fransciscano amigo, cuja
identidade deve manter-se oculta, aguardava-me numa pequena antecâmara. Pedi desculpa pelo atraso e um pouco de tempo para respirar. Estava sem fôlego. O bom guia recebeu-me com o melhor dos seus sorrisos. Perguntou-me se tudo tinha corrido bem e, sem mais preâmbulos, apontou-me uma cadeira. - Não há tempo a perder – sentenciou. Obedeci, e pegando nas roupas que estavam sobre o assento, levantei-as à altura do rosto sem poder reprimir um riso nervoso. O frade, desculpando a minha falta de jeito, apressou-se a ajudar-me. Senti a falta de um espelho. - Perfeito – declararam em uníssono. - Será que vai dar resultado? Marcos olhou-me fixamente, no intuito de me infundir coragem. - Claro que resultará! Agora convém esperar pelo menos uma hora... Resignado, agradeci a sua paciência e dedicação. Naquele momento, inebriado na contemplação do hábito franciscano que me cobria e que fazia parte do plano não prestei atenção àquilo que, desde o princípio, ocupando boa parte da mesa da antecâmara, presidia ao aposento. Foi o árabe cristão quem me conduziu até à volumosa bolsa acastanhada. Uma vez em frente dela, abriu a palma da minha mão direita e, radiante, deixou cair uma chave. Não compreendi logo. - Promessa cumprida - balbuciou num fio de voz. - Que Deus (o Deus de todos nós) o abençoe... Fixei-o atentamente. - Então... isto... As minhas palavras, atropelando-se umas nas outras, fizeram-no sorrir. Disse que sim com a cabeça, fechando os meus dedos em torno da fria e diminuta chave prateada. - Sim, isto... Aquelas duas palavras ecoaram no silêncio da sala. Não podia
acreditar. Não podia... Acariciei a lona, sem atrever-me a apalpar. Um fecho e um cadeado, quase de brinquedo, fechavam a bolsa. Olhei para Marcos. Os meus olhos, mais eloquentes que as frases escassas e desligadas que consegui articular, gritaram-lhe Obrigado!. Fiz menção de abri-la. Enérgico, o guia deteve-me. - Por favor – pediu com firmeza. - Foram sete anos de fidelidade ao nosso amigo comum... Prefiro ignorar o conteúdo. Desta vez fui eu quem concordou em silêncio. Senti como que um nó na garganta e todo o meu ser estremeceu. A minha admiração não tinha limites. Diante do silencioso franciscano, Marcos mandou-me sentar e, fazendo uma viragem de cento e oitenta graus no seu tom de voz, lançou-me uma advertência que me deixou perplexo mas que, com o passar do tempo, acabei por aceitar. - E agora, oiça-me bem. Pela sua própria segurança, e pela minha, eu não sei nada! Rigorosamente nada! O seu olhar, surpreendentemente inflamado, acentuou a ênfase da palavra nada. - Não sei quem é o Major. Nunca me deu nada. Nunca lhe entreguei nada a si. Sei que virá a compreender esta exigência. Se alguém me perguntar por si, encolherei os ombros. Não posso negar que o conheço. Mas será para mim apenas mais um jornalista à procura de emoções e histórias fantásticas. Compreendido? A dureza das advertências reflectiu-se no meu rosto. E o meu amigo, lutando consigo próprio, virou-me as costas, indo sentar-se no outro extremo da antecâmara. Alguns minutos depois, após uma silenciosa e embaraçosa espera, consultou o relógio, concluindo que era altura de actuar. Atravessámos o sector cristão da Basílica, acedendo ao exterior pela fachada oposta ao átrio. Daí, por um tortuoso labirinto de ruelas sem passeios, o guia e o franciscano autêntico escoltaram-me
até uma agência de viagens. Marcos e eu tínhamos combinado que a minha partida de Israel devia ser fulminante. Não era aconselhável tentar a sorte. Tendo marcado lugar para o voo de domingo, pouco antes das duas da tarde, instalava-me num dos transportes públicos com destino a Jerusalém. A aparente frieza daquela despedida lançou-me numa dolorosa melancolia. Voltaria a vê-lo? Apesar das aparências, serei sempre um sentimental... E falando de aparências: ao descer na Estação Central de Camionagem, para os lados de Yafo, a proximidade de um reduzido grupo de franciscanos fez-me empalidecer. Felizmente não se deram conta da presença daquele falso irmão de ordem, e afastaram-se num dos sherouts, ou táxis colectivos. Recuperado o fôlego, ajustei a cinta, ajeitando as pregas enrugadas do hábito. Pelas três da tarde, aquele monge inquieto e feliz, esgueirava-se pelo estacionamento subterrâneo do Moriah, perante o olhar displicente do vigilante. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o Mercedes, ou melhor, a sua ausência. O desaparecimento do veículo inquietou-me. Agarrei-me à bolsa com paixão, jurando a mim próprio que, a partir daquele instante, não cometeria mais qualquer loucura. Nem eu próprio acreditei em tal promessa... Gina, farta de esperar ou furiosa pela minha escapadela, volatilizara-se. Nunca mais a vi. E duvido seriamente que tenha coragem para combinar um segundo encontro. Dei duas voltas à chave e, cheio de nervosismo, coloquei a bolsa em cima da cama passando depois longamente em revista o quarto e os meus haveres. Estava tudo no seu lugar, intacto e sem vestígios de ter sido tocado. Mais tranquilo, tirei o hábito. A bolsa continuava a fascinar-me e, como se fora um ser vivo, começou a falar... Foi todo um ritual. Embora enferrujado, o cadeado abriu-se docilmente. Acariciei-o com as minhas mãos trémulas, lançando um olhar quase lascivo a todo o conjunto. A julgar pelo aspecto, cor, resistência da lona e correias de aperto, parecia uma típica mochila de soldado , como as utilizadas pelo exército judaico.
E então, suave e cerimoniosamente, fui abrindo o fecho. O toque inesperado e brusco do telefone fez-me sobressaltar, pregando-me um susto de morte. Hesitei. Mas, sensível ao desejo sincero de não enredar mais as coisas acabei por atender. Era Raquel. Mostrou-se como sempre, encantadora. Possivelmente, desconhecia as minhas andanças. Com entusiasmo contagiante anunciou-me que, vencendo as reticências dos especialistas de medicina antiga de Israel, conseguira destes uma entrevista para a manhã seguinte. Tive de espevitar a memória. A verdade é que a tensão e as peripécias das últimas horas tinham bloqueado o meu cérebro, fazendo-me perder a noção daquela outra actividade paralela. O.K.  Muito obrigado... A que horas? - Muito bem..., lá estarei..., sim. Museu da Medicina Antiga... O assunto, imediatamente arquivado e relegado, viria a ressucitar horas mais tarde quando, empenhado num imprudente e delicado lanço de distracção da Informação Militar, tive a infeliz ideia de os utlizar como engodo. Em má hora o fiz! Eu sabia. A intuição não me defraudou. Ao examinar o interior da bolsa, quatro grossos pacotes surgiram diante de mim. Eram extraordinariamente pesados. Mediam à volta de trinta centímetros de comprimento por vinte a vinte e cinco de largura e outro tanto de altura. Peguei num, acariciando a espessa tela de estopa que, cosida lateralmente, o envolvia e fechava hermeticamente. A curiosidade fazia-me transpirar. Meu Deus! Coloquei-o em cima da colcha virando-me para os outros. Praticamente, não notei diferenças substanciais. Mediam e pesavam mais ou menos o mesmo. E todos eles, tal como o primeiro estavam cobertos por uma serapilheira idêntica à dos sacos, amarelada e cuidadosamente cosida com um resistente fio de nylon azulado. Alinhei-os em cima da cama e, durante cinco ou dez minutos – perdi de facto a noção do temPo – fiquei ali enfeitiçado, dando livre curso a recordações e sensações. Confesso que foi um abandono íntimo, como que o prelúdio de
jogo amoroso... Meu Deus! Obrigado! Obrigado! Muito obrigado!... Quão díspares sentimentos nos podiám assaltar ao mesmo tempo! Gratidão, ansiedade, medo... tudo à uma Eu sabia. Mesmo antes de o abrir, já conhecia a natureza do legado do Major. Ou foi o meu febril desejo que operou o milagre? Por fìm, saboreando pausadamente cada movimento, escolhi um dos pacotes. Desfiz a costura e, com a delicadeza com que se despe um bebé, retirei a cobertura de estopa. Bendito seja! Uma etiqueta adesiva sobressaiu logo sobre um invólucro de plástico preto. Escrito à mão, a vermelho, podia ler-se um número. Inexplicavelmente pus de lado este primeiro pacote, passando a descoser os restantes. A estrutura que os envolvia era idêntica: uma capa dupla resistente e impermeável de material plástico, refractário à luz. Cada embrulho apresentava também um número: de 1 a 4. Optei pelo primeiro. (Tal como seria muito capaz de começar pelo último... Com uma tesourinha que tinha à mão perfurei um dos cantos e rasguei o plástico. Bendito, bendito seja! Numa reacção difícil de classificar, saltei da cama, abandonando o pacote. Pus-me em frente da janela e, tocando com as mãos na vidraça, procurei uma resposta no tempestuoso céu de Jerusalém, indo mesmo para além das nuvens. O meu espírito e a minha mente foram muito mais além, até se reunirem com o homem que tinha sido capaz de revelar-me um Jesus de Nazaré novo, humano, incomensurável e divino. E algumas lágrimas silenciosas e apaziguadoras correram pelas minhas faces. O embrulho continha um maço compacto de folhas  manuscritas, com uma única e lacónica frase por título: Diário DE... (com o nome do Major).
Alguns traços característicos da sua caligrafia denunciaram-no de facto. Aquela era mesmo a sua letra. Então, ébrio de alegria, abri os outros pacotes. Santo Deus! Continham muito mais do que eu esperava. Fui incapaz de contálas, mas as folhas passavam seguramente das duas mil. Estavam minuciosamente classificadas, subordinando a narração – como logo deduzi de uma leitura apressada e saltitante – a uma rígida sequência cronológica dos acontecimentos vividos pelos protagonistas da Operação Cavalo de Tróia. Uma operação que em boa hora tinha desafiado todos os limites imagináveis. , Já alta noite, tive de suspender, muito a contragosto o incrível relato do Major. Mas a dura realidade perspectivou-se diante de mim. Uma questão – adormecida pelo ardor da leitura – despertou de novo no meu íntimo, contorcendo-se como uma víbora: e se o legado caía em mãos judaicas? Estremeci. Aquela história fascinante, tal como a identidade dos pilotos norte-americanos que a tornaram possível, podia interessar – e de que maneira! - aos Sérviços de Informação norte americanos (CIA) identificados com a Agência Central de Israel. Durante algum tempo, com a mente assolada pela preocupação, andei de um lado para o outro do aposento, esforçando-me por dirimir o problema. Era óbvio que, sujeitos a qualquer fiscalização, aqueles papéis atrairiam de imediato o interesse dos militares ou dos Serviços de Informação israelitas. Era preciso encontrar uma fórmula, um caminho, qualquer coisa que funcionasse como cobertura, desviando a atenção dos abutres. E com algum desatino tirando partido da entrevista do Museu da Medicina Antiga de Israel fui elaborando um plano de ataque e defesa tão atrevido quanto altamente perigoso. Nessa mesma noite, antes de cair vencido pelo cansaço, depois de uma revisão exaustiva de todos os obstáculos previsíveis, cheguei à conclusão de que havia apenas um meio para disfarçar – na medida do possível – aquele vultoso material manuscrito. A realização de tal tarefa ficou para o dia seguinte.
A Rua Straus, sede do Museu da Medicina Antiga de Israel, desemboca na Avenida Haneviim, a uns vinte ou trinta minutos, a pé, do Moriah. A manhã, morna e azul, convidava a passear. E assim, cheio de projectos e de ilusões, após um pequeno-almoço substancial, dirigi-me para o local da reunião. No hotel, a chegada do sabbath tinha afrouxado o frenético vaivém dos turistas. Por mais que inquirisse com o olhar, não tive sorte. O cara de lua-cheia e o seu amigo, o do cabelo espetado como relva acabada de cortar, não se encontravam no átrio. Pelo menos não consegui localizá-los. Naturalmente, depois do incidente do autocarro, era possível que tivessem sido substituídos. Mas essa não era, para já, a minha maior preocupação. Os meus pensamentos – à medida que ia avançando para o número dez da Rua Straus – navegavam noutra direcção. Tinha de conseguir. Era preciso desviar o ponto de mira dos Serviços de Informação judaica de tal maneira que, no caso de vir a ser revistado, o seu objectivo fosse algo completamente alheio às duas mil e tal folhas que constituíam o meu tesouro. Talvez viesse a encontrar naquele museu aquilo de que necessitava. No cruzamento com a Rua Jafa, a fortuna continuou a sorrir-me. Uma papelaria dirigida por árabes fornecer-me-ia as bisnagas de cola e os adesivos de que precisava. E exactamente às nove e meia, com uma pontualidade que me não era peculiar, lá estava eu a tocar a campainha da porta do museu, no rés-do-chão do edifício. As cuidadosas diligências de Raquel tiveram êxito absoluto. O doutor Samuel S. Kottek, especialista em medicina antiga, e o director receberam-me de braços abertos. Agora, sinceramente, chega a doer-me ter atraiçoado a sua generosidade. Durante mais de uma hora trabalhámos nos pontos que me interessavam (?), transcrevendo uma extensa lista de volumes e de especialistas nos mais variados diagnósticos, doenças e fármacos da antiga Caná. Mas não era aquilo que mais me importava, naturalmente. Desde a altura das apresentações iniciais ficara-me debaixo de olho uma das salas do pequeno e até certo ponto desordenado museu, na qual, em meia-dúzia de vitrinas se exibia toda a espécie
de maquinetas, velharias e instrumental médico-mágico-cirúrgico de épocas e culturas muito distintas. Com uma frieza mórbida, o meu cérebro continuou a trabalhar. Finalmente apresentou-se a oportunidade. Kottek convidou-me a passar à modesta sala que, como ia dizendo, constituía a zona nobre do museu, deixando-me nas mãos eficientes – e sibilinas acrescentaria eu, a julgar pelo que viria a ocorrer pouco depois – da idosa responsável pelas peças expostas. Uma mulher prestável e encantadora cujo nome não recordo, que se desdobraria para me mostrar o mais valioso do que estava exposto. Esse foi o seu erro involuntário. Samuel pediu desculpa e regressou ao gabinete onde tínhamos estado a conversar. Durante perto de uma hora a minha anfitriã foime acompanhando – vitrina a vitrina – até tudo ficar visto. Ainda não tinham passado quinze minutos desde o início da visita quando, ao observar uma das mesas situadas no canto direito da sala, um conjunto de amuletos de bronze, prata e marfim despertou o meu espírito maquiavélico. Isto podia servir..., pensei eu com alguma inconsciência. A judia, complacente para comigo, levantou a cobertura de vidro, pegando em algumas das antiquíssimas relíquias cananeias. Examinei-as, deliciado, dando mostras de um exagerado interesse pelas suas origens e fundamentos. Perante o ardor das minhas palavras, a guardiã – desejosa de enriquecer o mais possível a minha visita – afastou-se um pouco de mim procurando algo. As minhas mãos começaram a transpirar. Sim, é isso... E o plano estava prestes a arrancar, incontrolavelmente. Mas, quando me preparava para pôr em execução a iníqua manobra a velha senhora reclamou a minha atenção. De um armário tinha retirado uma pequena caixa de papelão branco que, com todo o cuidado, foi colocar sobre outra das vitrinas centrais. Desisti momentaneamente do meu plano. Contrariado e enervado, fui ter com ela. A caixa continha uma dúzia e meia de cartuchos de uns seis ou sete centímetros de
comprimento, numerados à mão. Consultou uma lista colada na parte de dentro da tampa do recipiente, escolhendo – suponho que intencionalmente – um dos mais antigos e valiosos: o 15. Retirou o papel que o envolvia, depondo nas minhas mãos pecadoras um estreito pergaminho de quase meio metro de comprimento, coberto de caracteres e de símbolos hebraicos. - Tem dois mil anos – disse com orgulho. - Cremos que se trata de um amuleto. A beleza do esbranquiçado e áspero tesouro cegou-me. E ali mesmo mudei de objectivo. Aquilo era muito mais excitante e atractivo. E era até mais fácil de ocultar. Perante a minha curiosidade insaciável, a velha senhora – incapaz de traduzir o hebreu arcaico – pediu desculpa e saiu da sala. Foram segundos dramáticos aqueles. Que fazer? Apoderar-me do pergaminho? Mas como subtraí-lo sem que dessem por isso? Kottek veio logo, encantado. As suas explicações – de amuleto na mão – não foram muito explícitas. Tomei todas as notas que pude, sem saber muito bem do que é que ele falava. Toda a minha inteligência – uma vez tomada tão reprovável decisão – estava polarizada num único e inconfessável sentido. Bem depressa me viria a arrepender... É evidente que era impossível apoderar-me do pergaminho enquanto Samuel ou a guardiã permanecessem junto de mim. Esperei. A observação dos cartuchos terminou e, sem pressa, continuámos a visita. A caixa, com os rolos à vista, ficou momentaneamente esquecida sobre a vitrina. Em três ocasiões, enquanto desenhava algumas das peças no caderno de campo, a judia teve de prescindir da minha gratíssima companhia, sendo a sua presença reclamada quer pelo telefone quer pelo próprio Kottek. Nas duas primeiras oportunidades, por causa do pavor que me invadia ou do seu regresso precipitado, a minha movimentação foi nula. Mas na terceira e última saída da velha senhora, muito próximo da caixa e tremendo como varas verdes, introduzi a mão entre os cartuchos e apoderei-me do quinze. Com a pulsação baixíssima,
afastei-me da vitrina, encostando-me a um móvel contíguo. Era impossível fingir que tomava apontamentos. A lapiseira escapou-seme entre os dedos húmidos, aumentando a minha taquicardia. Todavia, com um repugnante sangue frio, aguentei o regresso da mulher e as suas últimas explicações. Estava terminada a visita. Com a mente perturbada e uma única obsessão – sair do museu -, agradeci as atenções de todos com um aperto de mão. Estava quase a desmaiar quando cheguei à porta de saída. Samuel, extremamente atencioso, convidou-me a voltar sempre que quisesse. Balbuciei alguma coisa – nem sei bem o quê – e, aterrorizado, preparei-me para sair. Nesse momento crucial, o director saiu precipitadamente do seu gabinete, dirigindo a Kottek algumas frasas em hebraico. E este, fazendo um sinal de assentimento, segurou-me pelo braço impedindo a minha fuga. Pensei morrer de vergonha. - Um momento – disse o médico, com um sorriso de satisfação.O director deseja pedir-lhe um favor... A palidez do meu rosto devia ser tal que o médico, ao conduzir-me de novo ao museu, perguntou-me com estranheza: - Sente-se bem? - Perfeitamente... Foi uma mentira de todo o tamanho... Kottek e o responsável do museu levaram-me para um dos cantos da sala, abrindo diante de mim um grosso volume com as folhas em branco. - Sentir-nos-íamos muito honrados – esclareceu o director – se assinasse o Livro de Honra da casa... Meu Deus! Aquele gesto amigável pôs ainda mais em evidência a minha própria desonra. Fiz o que me pediam e ao retirar-me, um furtivo olhar à guardiã, que estava a arrumar os cartuchos e a conferir a lista dos pergaminhos, gelou-me o raro sangue que ainda circulava nas minhas veias. Astuta e desconfiada como um lince, tinha
começado a passar revista ao insubstituível tesouro arqueológico. Estava perdido. Às onze e meia daquela nefasta manhã estava finalmente na rua, escapulindo-me como um rato. Os meus pensamentos, lacerados por um arrependimento súbito, atropelavam-se uns aos outros. Que nova loucura tinha perpetrado? Como podia ser tão miserável e, o que era pior, tão insensato e estúpido? Quase de certeza, não tardariam a dar-se conta de que faltava um dos pergaminhos. Meu Deus! A angústia encurralou- me contra mim próprio. No tempo que levei a percorrer três ou quatro quarteirões, um tétrico filme de muito possíveis e justíssimas represálias desfilou pelo meu espírito. Um tal deslize podia custar-me caro. Parei a meio da Avenida Jorge V. Hesitei. Voltaria atrás e devolveria o rolo aos seus legítimos proprietários? Não tive coragem. A vergonha foi superior. Até pode acontecer - consolei-me no cúmulo da minha idiotice – que não tenham dado pelo seu desaparecimento. Ou talvez – supondo que o detectam - nem saibam o que pensar... Mas, por cima de todas aquelas pueris elucubrações, uma coisa acabou por impor-se: tinha de restituir o documento. Uma coisa era brincar aos espiões; outra, muito diferente, o furto de uma peça que, ainda por cima, nada trazia de novo ao que eu já conseguira. A verdade é que eu me tinha descontrolado. Só esperava que os meus anfitriões soubessem perdoar a este infeliz. Junta com o pecado ia já a penitência. A partir daquela altura, o desgosto, os remorsos e o terror torturar-me-iam impiedosamente. Mas o mal estava feito. Agora tinha de actuar com diligência e sensatez. Possivelmente – isso dependia da Providência – o meu objectivo de distrair a atenção dos serviços de informação, na suposição de ser associado ao desaparecimento do pergaminho, estava mais que garantido. As próximas horas o diriam. E num rompante, na previsão de que a rapidez de acção dos homens do Museu da Medicina Antiga fosse tão vertiginosa como seria de esperar, escondi-me num portal, passando o cartucho para o interior do sapato esquerdo. Agora, a frio, só tenho de sorrir perante tamanha ingenuidade. Se tivesse sido interceptado, é claro
que os hábeis judeus nunca me teriam revistado no meio da rua. Dispõem de outros meios – incomparavelmente mais eficazes – para levarem a água ao seu moinho. Em marcha acelerada, procurei uma fórmula que me permitisse reparar o dano e salvar a pele. É algo de muito típico em mim... E creio que também desta vez dei com ela. Não falando do implacável desespero que me corroía, o regresso ao hotel não foi marcado por qualquer incidente. Furtivamente, temendo que alguém, a qualquer momento, pudesse deter-me, corri a refugiar-me no meu quarto, amaldiçoando a minha triste figura. Carente de um consolo imediato, pus em andamento a primeira das três fases da manobra que entretanto idealizara para a devolução do amuleto. Perante o carácter desproporcionado do golpe, desisti do meu propósito inicial de desviar o interesse do Agaf para um objectivo secundário. Se fosse detido com o pergaminho, não era só a minha integridade física que estava em perigo. Nessa mais que verosímil suposição, os documentos do Major correriam talvez o mesmo risco que o cartucho... Tinha de mudar de táctica. Para começar, era imprescindível desfazer-me do corpo do delito. Pensei em depositá-lo, anonimamente, no Instituto de Relações Culturais. Em boa lógica, se Kottek e a guardiã me relacionassem com o furto, o assunto seria comunicado às pessoas que tinham organizado a minha entrevista no museu. Também era possível que comunicassem o caso à polícia. Em princípio – continuei eu a concentrar-me – não havia provas de ter sido eu o autor do desvio. Quem sabe, talvez se tivesse extraviado... O argumento, infantil em excesso, não me convenceu. Do que não havia dúvida era de que, em caso de busca, a presença do pergaminho junto de mim podia significar a prisão, a expulsão do país ou coisa ainda pior. Tinha de devolvê-lo, procurando no entanto confundir os seus legítimos proprietários; por outras palavras, sem que eles pudessem demonstrar a minha intervenção em tão amargo episódio.
Uma aguda dor de estômago veio juntar-se a tudo o resto, quando – uma vez escolhida a fórmula menos má de restituição – me aventurei até à zona comercial do hotel, à procura dos necessários selos de correio. O pequeno quiosque-livraria estava fechado. Um cartaz informava a hora da reabertura. Faltava meia hora. Foram minutos pesados os da espera, com a espada de Dâmocles da amplificação sonora do hotel pendente sobre o meu desânimo, no temor de que, a cada aviso, a justiça caísse sobre mim. A Providência teve compaixão. E às 12 horas e 30minutos, adquiridos os selos, escapei pelo estacionamento, à procura de uma caixa de correio. Às 12h45m previamente desenrolado, dobrado ao meio, aconchegado entre duas folhas em branco e introduzido num sobrescrito com o endereço do hotel (Moriah Jerusalem – 39 Keren Hayesod Street. Jerusalem 94188 Israel), o pergaminho caía no fundo de uma caixa de correio, com destino ao meu domicílio, em Espanha. Relativamente aliviado, procurei de novo o amparo do meu quarto, suspenso do telefone e das consequências que – se o Altíssimo não me ajudasse – podiam derivar de semelhante desvario. Curiosamente, não houve uma única chamada. Arrasado, caí num sono convulsivo. Foi o melhor que poderia acontecer-me. Ao despertar, convencido de que não devia render-me pelo que já era irreparável, empenhei-me na tarefa de camuflar o Diário do Major. De acordo com o planeado, meia dúzia de grossos e altos volumes adquiridos dias antes serviriam de veículos. Arranquei as respectivas páginas e, um tanto atabalhoadamente colei as centenas de folhas às capas dos volumes sacrificados, distribuindoas equitativamente. À hora do jantar, os falsos textos sobre A Terra da Biblia, Os Segredos dos Mares da Biblia Jerusalém, O Atlas da Biblia, A Terra da Galileia e Animais Biblicos, dissimulados entre uma vintena de livros autênticos, foram parar ao fundo da minha mala, prontos para a viagem final. Agora só restava esperar...
Não sei se consegui descansar uma ou duas horas. Foi uma noite sem princípio nem fim, saturada de presságios e temores. Ao raiar da madrugada preparei a bagagem. O voo, a partir de Telavive, tinha a descolagem prevista para as dezoito horas. O Destino, irónico e contraditório, presenteava-me com um tempo que eu não desejava. Seguindo o programa esboçado por Marcos, enquanto aplicava novas e vigorosas massagens aos meus doloridos músculos, rememorei os obrigatórios movimentos que se seguiriam. Desgraçadamente, tudo estava alterado por causa do lamentável episódio do museu. Já só podia confiar na sorte, e desde logo, na possibilidade de as pesquisas e decisões dos proprietários do pergaminho terem sido suspensas por algum motivo ainda que apenas durante algumas horas. O prolongado silêncio dos meios oficiais oprimia-me cada vez mais... Como de costume, o restaurante do Moriah encontrava-se repleto de turistas. Esse era outro factor-chave. Embora o suspeitasse, tinha de o confirmar: quem estaria agora encarregue da minha vigilância? Entre tantos anglo-saxões, latinos e orientais, descobrir os possíveis agentes da Informação Militar hebraica era tarefa votada ao fracasso. Qualquer daqueles ávidos comensais – com os quais cruzei mais que um olhar – podia ser um deles. Prudentemente, procurei a companhia de alguns daqueles forasteiros. Não podia dar-me ao luxo de tomar o pequeno-almoço sozinho. Quanto mais tempo estivesse rodeado por estranhos, mais sólida era a possibilidade de escapar das garras dos meus invisíveis controladores. Junto do self service – com notável acerto – fui escolher um par de risonhos japoneses. Eu sabia que os diferentes ramos dos serviços secretos judaicos dificilmente incluíam nos seus staffs indivíduos que não sejam da sua raça. Esta norma sagrada levou-me a confiar nos nipónicos. E em boa hora o fiz porquanto – por insondável coincidência – os cerimoniosos Tatsuhiro Kataoka e Yutaka Matsukawa eram de facto meus colegas. O primeiro, como editor de livros de arte, da firma Kodansha, Ltd.
O segundo, como fotógrafo da mesma editorial, com sede em Bunkyo-Ku (Tóquio). Era pelo menos o que constava nos cartões de visita que trocámos. A ocasião – bem a propósito – foi aproveitada ao máximo. Tatsuhiro conhecia a Espanha. Na realidade, toda a sua bagagem cultural sobre o meu país estava reduzida à obra de Picasso, Dali e ao bairro chinês de Barcelona. Para mim foi mais que suficiente, conseguindo o que precisava naquela altura: prolongar o pequenoalmoço retemperador por uma hora e, entre risos e piadas, oferecerme depois como guia turístico. Os cândidos e providenciais amigos aceitaram, encantados. Desta forma, tão simples como inesperada, acabei por ver ocupada toda aquela luminosa manhã. Pelas três da tarde – agradecidos e emocionados como crianças pelo festivo périplo pela Cidade Velha - despedimo-nos até à próxima. Não havia tempo a perder. Fazendo apelo às forças e à ténue serenidade que ainda me restavam, requeri os serviços de um dos recepcionistas, explicandolhe que desejava dormir nessa noite na cidade de Tiberíades e que, se fosse possível, telefonasse para o Golan, a confirmar a reserva. Perante a minha insistência, o judeu efectuou a diligência solicitada logo de seguida. Não houve problemas. O hotel, em que me tinha alojado em 1985, tinha quartos livres. O plano foi concluído com uma segunda consulta: quanto poderia custar o frete de um táxi para aquela povoação? Preparado o isco, dirigi-me aos elevadores. Faltava, no entanto, a operação mais delicada. Como confundir os hipotéticos e desconfiados membros do Agaf? Se andavam pelo hotel não deixariam de ser rapidamente informados dos meus projectos de viagem para as margens do mar da Galileia. Nesse caso, duas coisas podiam acontecer: ou me acompanhavam ou confiavam tal missão a outros colegas, em Tiberíades. O perigo radicava na primeira hipótese. Só me restava uma opção. Era arriscada, mas, francamente, nesta altura já tudo ia dar ao mesmo. 15 horas 30 minutos.
Tirei o máximo partido do tempo. Se aquilo desse resultado, dispunha de cerca de escassos minutos para recolher a bagagem, pagar a conta e em poucos momentos sair. 15 h 35 m. Benzi-me. Escondi duas garrafas de cerveja sob a capa e, rapidamente, precipitei-me para os elevadores, marcando a saída do estacionamento subterrâneo. O meu objectivo continuava no mesmo lugar, solitário e envolto nas sombras da cave. De coluna em coluna, evitando os olhares do guarda da barreira, fui-me aproximando do Mercedes. 15 h 40 m. Recurvado e com os bofes na boca, coloquei-me por fim do lado direito do cano. Era preciso esperar a entrada ou saída de algum outro veículo. Preparei as garrafas vazias e, postando-me em frente da roda da frente. Debrucei-me sobre o nariz do motor. A chapa quente, revelou-me que o carro tinha sido utilizado pouco antes. Por certo tinham observado o nosso anterior percurso turístico. Mais uma vez, de igual modo. Tinha que aceitar que a minha iminente viagem podia ser seguida 15 h 45 m. O roncar de um automóvel na entrada do estacionamento pôs termo à irritante espera. Era a altura de actuar. Estilhacei as garrafas contra o pavimento, fazendo coincidir o estalido provocado com o ruído do cárro na rampa de acesso. Lancei uma última olhadela ao vigilante e coloquei os afiados cacos de vidro junto das rodas dianteiras do Mercedes. De imediato, esvaziei os pneus, abafando o silvo provocado pela saída do ár com o lenço. 15 h 50 m. Voltei ao meu quarto e peguei na bagagem. Dois minutos depois, exibindo uma falsa tranquilidade, liquidava a avultada conta do hotel, saí calmamente pela porta giratória do Moriah. Tinha de agir com rapidez, aparentando a maior calma possível. Transe difícil. Sobretudo, imaginando os agentes a caminho do subterrâneo do hotel... Com total premeditação regateei uns momentos com o primeiro dos taxistas estacionados junto do hotel. O preço para Tiberíades
era justo e razoável. No entanto, recusei a proposta e passei ao segundo árabe. Desta vez parei diante da janela do motorista, para lhe pedir que abrisse o porta-bagagens. Acomodada a bagagem, com os nervos mais relaxados, dei-lhe uma ordem muito simples: - Para Telavive! Às dezasseis horas o táxi partia veloz e, o que era mais importante, sem qualquer escolta. A travessura com o Mercedes, aprendida com alguns amigos dos serviços de informação espanhóis, dava-me uma certa vantagem. Se os ludibriados agentes interrogassem o primeiro dos taxistas, só obteriam a confirmação da minha suposta deslocação a Tiberíades. Tendo em conta que o tempo calculado de Jerusalém ao lago podia cifrar-se numa hora ou hora e meia, a vantagem daí resultante para mim era considerável. Mas não podia confiar muito. Se detectassem a minha presença no aeroporto Ben Gurion, tudo teria sido inútil. O anúncio de uma gorjeta quase fez voar o voluntarioso taxista. Quarenta minutos mais tarde, esfalfado e com a língua de fora, tomava lugar na longa fila de passageiros que, tal como eu, pretendiam voar para Barcelona. O medo, longe de esfumar-se, penetrou nos meus ossos. Cada rosto, cada indivíduo, que se aproximava ou afastava, tornara-se para mim numa ameaça. Mas a lista dos meus erros não estava ainda completa. Inconscientemente – fruto da tensão – esqueci-me de apresentar a bagagem aos funcionários de segurança. A assistente lembrou-me esse pormenor ao colocá-la no tapete rolante. Com efeito, a mochila e as malas não apresentavam a pequena etiqueta obrigatória com o visto da Polícia. Pus-me a tremer. Uma jovem funcionária encarregou-se da minha bagagem, exigindo-me os documentos. Teoricamente nada tinha a ocultar. Mas o olhar inquiridor da rapariga intimidou-me. - Jornalista? - perguntou com desconfiança. Disse que sim com um gesto. - E por que veio a Israel?
Expliquei-lhe o melhor que pude, aludindo às minhas investigações como escritor. Impassível, continuou a examinar o passaporte, obrigando-me a responder a uma interminável sucessão de perguntas: - Acompanharam-no durante a sua estada?... Quem. ... De automóvel ou de autocarro?... Entregaram-lhe alguma coisa? Em que hotéis se alojou?... As facturas, por favor... Todos os seus amigos em Israel são judeus?... Que é que escreve?... Porque traz uma mochila. Esgotado, depois de mostrar mil e um papéis, a funcionária solicitou a presença de outro oficial de segurança. Não aparecia a factura do hotel de Nazaré. - Então, segundo afirma – repetiu calmamente o recém-chegado – o senhor trabalhou e pernoitou em Nazaré... Mas não encontra a respectiva factura... procurando Mal-humorado abri o meu inseparável caderno de campo com todos os nomes e telefones dos franciscanos amigos da Basílica da Anunciação. Mostrei-lhos e ele, desconfiado, tomou nota do número. - Muito bem. Aguarde aqui. Enquanto o seu companheiro se misturava na barafunda do aeroporto, disposto a telefonar aos padres Uriarte e Rafael certificando-se das minhas afirmações, a funcionária lançou-se à minha bagagem. Apesar de ter aberto a mala em primeiro lugar, o insólito de uma mochila vermelha na bagagem de um jornalista fez pender a balança da fortuna. Convencida da transparência do conteúdo, introduziu a mão entre os livros, apalpando os cantos da mochila. - E isto? A pergunta deixou-me sem fala. Tirou um dos volumes e, de súbito, lembrando-se de alguma coisa, sentenciou: - Essa mochila não lhe quadra lá muito bem... Sorri sem grande vontade, explicando-lhe que – para determinadas andanças e excursões – era mais prática. Felizmente, a conversa ficou por aqui. O oficial voltou da sua diligência e, laconicamente, ordenou:
- Está bem. Adiante. A chamada telefónica para Nazaré desviou o curso da ingrata situação. Apressei-me a fechar a bolsa dos documentos e, aturdido, meti o maço de recibos e facturas nos vários compartimentos da mochila. Ao vê-la depois correr sobre o tapete rolante respirei fundo. E sem mais delongas corri para o controlo de passaportes. A minha falta de cuidado a guardar os papéis esteve quase a custarme um último e catastrófico desgosto. Mas antes – Deus é misericordioso! -, à entrada da zona internacional, esperava-me uma grata e inimaginável surpresa: - Marcos! Sorridente, o guia deixou que o abraçasse. Trocámos apenas quatro palavras. Ofereceu-me um pequeno pacote e com os olhos húmidos, apontando a mochila que tinha guardado durante tantos anos, desejou-me sorte, incitando-me a que passasse o controlo. Não voltei a vê-lo. Um minuto depois, ao apresentar o passaporte, o mundo pareceu desabar de novo. A agente policial folheou o documento. Olhou-me de frente e fulminou-me com três palavras: - Falta o visto. Era o que eu menos podia imaginar. Peguei no passaporte e, estupefacto, repeti a operação da funcionária, Era verdade: o obrigatório visto turístico não constava entre as folhas. É evidente que eu o obtivera antes de entrar no país. E mais: sem aquela formalidade cumprida antes nem sequer poderia ter entrado no território israelita. O visto, disso tinha eu a certeza, tal como costumo fazer em todas as minhas viagens, tinha sido meticulosamente guardado entre as páginas do passaporte. Como era possível? Sem o documento, as autoridades poderiam reter-me. Senti-me perdido. Por entre cãibras, inspeccionei cuidadosamente todos os recônditos da minha roupa. Foi inútil. De repente, compreendi. A fugidia folhinha com caracteres verdes devia ter-se misturado com os recibos e facturas, estando agora sepultada sabe-se lá onde na mochila. Há anos, em pleno aeroporto da Cidade do México, sofri um
percalço semelhante. No entanto graças à pessoa que me acompanhava, e depois de ter revolvido a maleta dos meus documentos, a contrariedade tivera um final feliz. Agora as circunstâncias eram radicalmente distintas. Se perdesse o avião, já tinha a sentença lida. Optei por dizer-lhe a verdade. A funcionária ouviu-me com indiferença. Apelei aos céus e – por que não? - deu-se o milagre”. A agente folheou o passaporte pela segunda vez. E eu, impaciente, aguardei a pergunta-chave. Conhecia o truque. Tudo dependia do arquivo policial e da minha resposta. Eu explico-me. Como estrangeiro não judeu, a única possibilidade de passar o controlo tinha a ver com os meus antecedentes e com o grau de simpatia que fosse capaz de demonstrar para com o Estado de Israel. Este último e singelo gesto – a polícia de fronteiras de determinados países domina-o na perfeiçãodeveria reflectir-se nas minhas próximas palavras. A responsável policial levantou os olhos do passaporte e utilizou o teclado de um termimal de computador, oculto sob o balcão. A elementar operação consistia em averiguar a data da minha entrada em Israel e o meu currículo policial. Se o monitor – como de facto aconteceu – respondesse com a frase-chave nada consta”, que me livraria de qualquer suspeita, o desfecho da situação dependeria dessa decisiva resposta. E a máquina – o mais surpreendido fui eu – apostou na minha inocência. - Quando entrou em Israel? - Em dezanove de Novembro passado – respondi sem hesitar. E a agente, com olhar severo, lançou a esperada pergunta: - Muito bem. Deseja que carimbe o passaporte? - Claro. Ficar-lhe-ia muito grato! Se no meu íntimo eu albergasse qualquer ódio ou receio relativamente ao povo judaico, o mais natural teria sido recusar a proposta. Em alguns países árabes, por exemplo, um passaporte com o timbre de Israel é garantia de desconfiança, de penosos
interrogatórios e, inclusivamente, de recusa de entrar no país. A ênfase e o entusiasmo que coloquei nas minhas palavras foram determinantes. A funcionária sorriu e, apondo o carimbo de saída, deixou-me passar. Mas o Destino, sempre tortuoso, não parecia disposto a concederme um segundo de trégua. O voo 889 da Iberia, anunciado para as dezoito horas, estava com atraso. Sei que parece absurdo – mais ou menos o mesmo que praticar a política da avestruz -, mas, desmoralizado e inferiorizado pelo medo, fui esconder-me nos lavabos, ali ficando, agarrado à mala, até que, finalmente, através da instalação sonora, os passageiros da Iberia com destino a Barcelona foram alertados. E assim, às 19 horas, 11 minutos e 51 segundos – quase como um indulto -, o jacto deixou o solo da Terra Santa, em direcção às estrelas, cúmplices da minha angústia. Em segredo e silenciosamente, dei graças à força que sempre me acompanha, celebrando a fuga com dois largos tragos do sabra – o espírito de Israel – que o bom Marcos tinha posto nas minhas indignas mãos. Nunca um licor foi tão bem recebido... por um homem tão arrasado.
Espanha No meu íntimo eu sabia e já esperava. O incidente no Museu da Medicina Antiga de Israel, apesar da minha fuga, continuava vivo e actuante. Os Serviços de Informação israelitas nunca esqueceram. Daí que as semanas que se seguiram ao meu regresso a Espanha não foram de modo nenhum amenas e tranquilas como eu precisaria. A carta com o pergaminho chegou-me às mãos oito dias depois de ter sido depositada na caixa do correio em Jerusalém. Constituiu um enorme alívio que no entanto, seria perturbado por uma significativa e alarmante chamada telefónica. Na manhã daquela segunda-feira, 15 de Dezembro de 1986, poucos minutos depois de receber o pergaminho, o primeirosecretário da embaixada israelita em Madrid punha-se em contacto
com este aterrorizado jornalista. Foi uma conversa tão curta como angustiante, na qual mal consegui construir uma frase coerente. Hábil e prudente, depois de vários e lisonjeiros circunlóquios, foi direito ao assunto: - Por acaso não lhe entregaram um amuleto muito antigo no Museu de Medicina Antiga de Jerusalém? Já não me lembro bem da resposta, mas é claro que não se ajustou à verdade. A advertência – subtil e generosa, é certo, mas sempre advertência – foi como que um tiro de misericórdia. Para os israelitas eu era um indivíduo marcado para sempre. Fotocopiei o texto hebraico do pergaminho e, de acordo com o combinado comigo próprio, apressei-me a executar a segunda fase da já referida manobra de restituição do documento. Introduzi-o em novo sobrescrito e este, por sua vez, em outro que, com urgência e registado, seguiu nessa mesma tarde de segunda-feira para a República Federal da Alemanha. Duas grandes amigas minhas, cuja identidade não posso naturalmente revelar, encarregar-se-iam da terceira e última operação: o imediato envio do corpo de delito aos seus legítimos proprietários, na Rua Straus de Jerusalém. A carta chegou à Alemanha já muito perto do Natal e o meu pedido preciso foi cumprido fiel e diligentemente. Poucas horas depois o sobrescrito lacrado e anónimo com o pergaminho partia de Munique, rumo a Israel. As minhas simpáticas amigas não fizeram perguntas, limitando-se a telefonar para minha casa, confirmando – em código – que a misteriosa carta já ia a caminho do seu destino final. Por uma questão de segurança, dado que o meu telefone não oferece demasiadas garantias, eu tinha transmitido às amigas alemãs uma espécie de código que, uma vez concluída a operação, elas deveriam transmitir-me simples e concisamente. E assim aconteceu, graças a Deus. No próprio dia de Natal ao anoitecer, com o oportuníssimo pretexto de nos apresentar as boas-festas, Jenny telefonou-me da Alemanha Oci dental: - A tia Margarida está melhor... Saltei de alegria. - Tens a certeza?
- Sim – atalhou, categoricamente -, a tia Margarida encontra-se melhor. Muito melhor. A aventura – assim espero e desejo – terminaria com duas atentas e significativas cartas de Samuel S. Kottek, o médico que me acompanhou na visita ao citado museu, de tão triste recordação. A primeira, com data de 7 de Dezembro; a última, escrita em 5 de Janeiro de 1987. Ambasx estão incluídas no presente trabalho e falam por si sós. Advertência preliminar É curioso. Há já vários dias que luto comigo mesmo, tentando o impossível. Para ser sincero, gostaria de resumir em meia-dúzia de linhas aquelas duas mil folhas que constituem o novo legado do Major. É claro que tenho de dominar a minha tresloucada ansiedade e deixar que as coisas se passem como foram escritas e dispostas por essa mão invisível a que, por vezes, chamamos Destino. Lamentavelmente, temos as nossas limitações. Neste caso, a palavra constitui, paradoxalmente, a maior das minhas limitações. Farei o que puder. Prestes a iniciar a transcrição desta parte do legado do falecido piloto da USAF, ouso propor algumas reflexões. Acho justo adiantar e confessar que a leitura de tais manuscritos me impressionou profundamente. E não apenas pela sua extensão e riqueza de pormenores. Creio que o nais importante e assombroso é a verdadeira montanha de informação acerca da vida de Jesus de Nazaré. João Evangelista, nos seus últimos versículos (21, 25) escrevia com sobeja razão que muitas outras coisas sobre Jesus. É verdade. E atrever-me-ia a acrescentar que tantas e tão decisivas que, mesmo faltando uma única o nosso conhecimento e perspectiva da sua obra ficam diminuídos. Agora isso é claro para mim. ; vital – eu diria mesmo, imprescindível – conhecer a infância e a juventude do Filho do Homem para nos aproximarmos da sua Verdade. I essencial o acesso aos anos que precederam a chamada vida pública de Jesus para, pelo menos, intuir os seus propósitos e, desse modo, encaixar melhor as peças da complexa, agitada e sempre fascinante etapa da sua pregação. Só assim, com essa maravilhosa informação em
nosso poder poderemos valorar com alguma equidade a irrepetível passagem do Filho de Deus pela Terra. Também sei isso. Muitas pessoas, após a leitura dos volumes anteriores de Operação Cavalo deTróia, fazem-me a mesma pergunta: «Mas é verdade, É crível tudo isto?» E vejo-me obrigado a repetir a única coisa que sei: que tais documentos existem e que – ainda que alguns se empenhem em afirmar o contrário – a minha imaginação não é assim tão grande. Desafio daqui quem o deseje a elaborar uma vida de Cristo tão rica de lógica, audácia e beleza. Não é assim tão simples inventar discursos de Jesus de Nazaré – práticas inéditas e, o que mais interessa, cheias de sabedoria – ou esses trinta e dois anos que os crentes definem como vida oculta. Inventá-los claro, com dados, nomes, acontecimentos e circunstâncias credíveis. É o coração do leitor que deve sentir se estas narrações acerca de Jesus são ou não credíveis. Que cada qual, portanto no mais íntimo do seu ser, julgue e decida, de acordo com os ditames da sua consciência. Essa nunca se engana... Dito isto, a mais elementar prudência obriga-me a prevenir o leitor. Pelo menos, aos pusilânimes e ancorados nos velhos e inamovíveis portos do conservadorismo. A julgar pelas centenas de cartas e comunicações recebidas a partir da publicação dos volumes anteriores de Operação Cavalo de Tróia, sei que uma notável maioria não se sentiu ferida ou desconcertada com a leitura desta inédita Vida de Cristo. Pelo contrário. Tal como no meu caso, este novo, mais humano e infinitamente mais próximo Jesus de Nazaré fez o milagre de cativar os corações, apaziguando ansiedades, preenchendo lacunas e, principalmente, confirmando suspeitas e intuições. Este Jesus – mais nosso – fez-nos pensar, o que não é pouco. A outros, em contrapartida, a torrente de revelações sobre a sua pessoa, vida e mensagem, irritou-os ou afundou-os em nada aconselháveis trevas. Naturalmente, não era essa a minha intenção. Pois bem, a estes – cujos princípios e esquemas religiosos já não podem evoluir – se dirigem as minhas presentes e respeitosas
palavras de advertência. Como já tinha acontecido com os textos publicados em Operação Cavalo de Tróia II, entendo que é meu dever alertá-los de novo. A natureza dos factos, ideias e situações que me disponho a narrar – poderia magoar os inseguros ou aqueles que, infelizmente, não podem avançar na apaixonante aventura da busca pessoal. Cada um tem, naturalmente, a sua Verdade e a sua razão. Por consequência – como medida preventiva -, sugiro-lhes que NÃO SIGAM EM FRENtE. Se a sua mente não está preparada para se confrontar com outras verdades, por favor, Não Leiam Operação Cavalo de Tróia III. Se, apesar de tudo, decidir continuar, não perca de vista que a Verdade, como o mais valioso dos diamantes, tem mil faces. Talvez, no fundo, todos tenhamos razão. E antes de entrar no que na verdade importa e é motivo do presente trabalho – o Diário do Major -, dado o considerável volume do legado (duas mil folhas, de vinte por trinta e um centímetros cada), é mais que provável que tal informação deva ser dividida em duas partes. Sei que o sempre paciente leitor o compreenderá. Mas deixemos que seja o próprio Diário a fixar as normas. Um Diário em que, na verdade, ocorre uma triste e significativa mudança. Ao contrário do que sucedera com a primeira das entregas – a verificada em Washington -, esta última não se apresenta dactilografada, mas manuscrita. E manuscrita com evidente dificuldade. Como se o autor, já sem forças, tivesse consciência de que era aquela a sua última missão. Uma missão que agora como no futuro, só poderá beneficiar os homens de boa vontade. Que Deus o abençoe.
O diário (Terceira Parte) Outono de 1978. Estou a perder a noção de tempo. Pressinto o fim. Já nada me preocupa. Apenas terminar. A vida e o alento escapam-se-me. Em breve me juntarei ao meu irmão. Mas antes, ó Deus misericordioso, dai-me forças para concluir o começado. Tenho ainda tanto para rememorar e deixar escrito! Hoje,
quando me disponho para retomar o fio das nossas experiências e explorações na Palestina de Jesus de Nazaré – bendita seja a sua memória -, continuo sem conhecer o homem ou mulher que deverá guardar e difundir tudo o que tenho anotado e que, é esse o meu único objectivo: pretende reflectir, tosca e pobremente, sei-o bem, a maravilhosa “luz” do Mestre. Nem sequer tenho a certeza de que estas rápidas memórias cheguem a ser lidas. No entanto, tal como aprendi com Ele, devo confiar na mão avisada e amorosa do Pai. Ele tem um plano para cada um de nós. Portanto, Ele saberá como e quando fazer chegar quanto aqui é narrado àqueles que estão, na verdade, sedentos da sua palavra. E antes de mergulhar de novo na apaixonante aventura deste par de “loucos” nas terras altas da Galileia, solicito a benevolência e compreensão de todos aqueles que vieram a ler esta espécie de diário. Sem dúvida, um escritor consumado tê-lo-ia feito com maior acerto e brilho. Creio, mesmo assim, que estou em dívida para com esse ainda anónimo destinatário de tudo o que já escrevi e daquilo que, espero, ainda me resta para contar. O final abrupto que precede o que agora me ocupa não foi gratuito, nem deve ser interpretado como o capricho de um homem senil ou decadente. O que tivemos oportunidade de viver e presenciar na Palestina, a partir daquele inolvidável domingo, 16 de Abril do ano 30 da nossa era foi tão espectacular e decisivo que, honestamente, julguei necessário adoptar um máximo de precauções. O criptograma, que em certa medida encerra a primeira fase do segundo “salto” da Operação Cavalo de Tróia, apenas pretende salvaguardar o nosso «tesouro» E foi concebido de tal forma que, assim como no primeiro dos enigmas, só uma pessoa sedenta de conhecimentos e disposta a enfrentar toda a espécie de riscos e sacrifícios está capacitada para o desvendar e por fim, respeitando o seu conteúdo, dar-lhe o devido tratamento. Estou certo de que esse anónimo e não menos “louco” personagem só pode ser um admirador de Jesus de Nazaré. Nele confio.
*1 – É claro que no Outono de 1978 o meu amigo, o Major norte-americano, não
conhecia ainda a identidade da pessoa que descobriria o seu legado. O Diário foi terminado em 7 de Abril de 1979 e o meu primeiro encontro com o velho piloto só viria a verificar-se um ano depois (Abril de 1980). Já nessa altura - estou convencido -, o legado, dividido em duas partes, tinha sido depositado nos Estados Unidos e em Israel, respectivamente. (Nota de J. J. Benitez.)
17 DE ABRIL, SEGUNDA-FEIRA (ANO 30) Agora, ide todos para a Galileia. Lá vos aparecerei muito em breve. Assim, com esta ordem terminou a aparição número dez do Ressuscitado. Era o domingo, 16 de Abril do ano 30, da que hoje denominamos como nossa era. E o Mestre, voltando-se para mim, sorriu-me. Caminhou devagar para a penumbra, desaparecendo diante da parede pela qual o tínhamos visto surgir. Desvaneceu-se, simplesmente. E eu, como uma estátua tão confuso e atónito como os demais, não soube que fazer nem que dizer. Como médico e como simples e incrédulo mortal, aquele homem – não tenho outro remédio senão refugiar-me nos únicos e limitados conceitos que estão ao meu alcance – morto 219 horas antes, era o maior desafio científico da História. A sua presença – aparentemente tão física e tangível como a nossa – excedia toda a possibilidade de compreensão racional. Reconheço-o humildemente: aquela era a segunda vez que o via e ouvia e, mesmo assim, custava-me a aceitá-lo. Mais tarde, quando a calma desceu sobre o lar da família Marcos, dei-me conta de algo que, à primeira vista, parecia uma contradição. Desde muito antes de consumar aquele segundo salto no tempo, o meu empenho em voltar a ver o Mestre tinha sido constante. Sentia a sua falta. Precisava de o sentir. Ouvi-lo. Contemplá-lo. Era uma sensação irreprimível. Sem querer, apesar do rígido código moral da Operação Cavalo de Tróia, as palavras, o olhar e o halo mágico daquele Ser tinham-me transtornado. Sem querer, insisto, tinha-me tornado num silencioso seguidor da sua
obra e da sua pessoa. Pois bem, naquela tarde, ao reconhecê-lo, o espanto sobrepujou a alegria. Inexplicavelmente, o meu coração não vibrou de júbilo perante o fugaz reencontro. Durante os escassos cinco minutos que o Galileu permaneceu no cenáculo, quem isto escreve não recorda o mínimo assomo de íntima satisfação que em boa lógica, eu deveria ter experimentado. Talvez fosse do susto. Ou quem sabe se o duríssimo treino a que tínhamos sido sujeitos. A verdade é que, analisando os factos, este paradoxal comportamento me afundou durante algum tempo numa dolorosa depressão. Mas vamos aos acontecimentos, tal como tive ocasião de os viver e contemplar. Como ia dizendo, as últimas frases do Galileu – ordenando aos seus íntimos que partissem para o Norte – marcariam o resto daquele agitado domingo. De acordo com a minha contagem particular, esta tinha sido a décima aparição. As nove primeiras tiveram lugar em Jerusalém, Betânia e no caminho que conduz à aldeia de Emaús. Todas elas como já referi, ao longo do anterior domingo, 9 de Abril. Semanas depois ver-me-ia obrigado a rectificar este cômputo. Jesus de Nazaré também se apresentou a outras pessoas e em lugares insuspeitados. Tais acontecimentos – é claro! - seriam igualmente ignorados pelos escritores sagrados. É possível que os cronómetros do módulo marcassem as dezoito horas e cinco minutos quando, no meio de um surpreendente silêncio, o Rabi desapareceu da nossa vista. O pasmo dos presentes – ou deveria antes qualificá-los de ausentes? - perdurou ainda por cinco ou dez segundos. E, de súbito a sala enlouqueceu. Não recordo com clareza como é que os factos se desenrolaram. Foi como que um trovão ou uma caldeira que explode. João, Simão Pedro e os gémeos foram os primeiros a voltar a si. Saltaram para cima da mesa e, berrando, cantando e vociferando como energúmenos, abraçaram-se, arrastando os demais para uma espécie de histeria colectiva. Copos, pratos e os restos da ceia inacabada espalharam-se pela mesa em U e pelo soalho, salpicando os galileus enlouquecidos. Ninguém reagiu mal ao sucedido. Na realidade, aquelas reacções foram tão lógicas como necessárias. A
tensão, as dúvidas, os medos e as incertezas foram assim imolados no fogo de uma incontível alegria. Estive tentado a juntar-me àquela saudável algazarra. Mas contive-me, desfrutando daquele caos, tão compreensível como justificado. Bartolomeu e Filipe desfigurados, olhavam sem ver, vítimas de um riso nervoso. Simão o Zelota, refeito momentaneamente do seu profundo abatimento, batia palmas também ao ritmo dos que folgavam sobre a maltratada mesa. Os seus olhos abertos e imensos como galáxias, iam e vinham, detendo-se sobre os companheiros, na ânsia – creio eu – de corroborar tudo o que tinha presenciado. Tomé, sentado no mesmo divã era um dos mais afectados pela aparição. Parecia ausente. Com os cotovelos cravados nas coxas, escondia o rosto entre as mãos, gemendo e chorando mansamente. Mateus Levi, solícito, passou o seu braço pelos ombros do tímido e perturbado Didimo, no intuito de o consolar. Quanto a André tão desconcertado como Tomé, precisou de algum tempo para reagir. As suas recentes piadas, impropérios e censuras a todos os que tinham acreditado na ressurreição deviam pesar na sua alma como uma mó de moinho. E por fim, branco como a cal, juntou-se aos outros. Subiu para a mesa e, com suavidade, afastou o delirante João Zebedeu, pondose em frente de seu irmão. Pedro, ao vê-lo, parou com as suas manifestações e saltos de júbilo. Observaram-se mutuamente e, sem pronunciar qualquer palavra o antigo chefe do grupo precipitou-se para Simão abraçando-o. Os aplausos e vivas aumentaram. No meio daquele tumulto, Tiago de Zebedeu, como sempre, foi o homem prático, frio e calculista. Embora o seu olhar, tão radiante como os dos demais, o atraiçoasse, foi o único que conservou um mínimo de lógica e de senso comum. Movido por estes sentimentos, e por uma curiosidade tão forte como a minha, pegou numa das candeias, dirigindo-se para a parede. Discretamente juntei-me a ele. Aproximou a lamparina de azeite do soalho por onde Jesus tinha caminhado, examinando o percurso do Ressuscitado. Ao chegar à parede, coberta naquele ponto por uma longa e delicada tapeçaria de linho de En-Gedi, o filho do
trovão – alheio ao tumulto do cenáculo – ergueu a candeia, concentrando a sua atenção na zona pela qual o Galileu se tinha volatilizado. Aproximou a frágil chama até cerca de um palmo dos finos fios púrpura e carmesim, certificando-se de que o tecido não apresentava o menor sinal de deterioração. Segui os seus movimentos. Tanto ele como eu sabíamos que do outro lado da tapeçaria havia apenas uma grossa parede de pedra calcária. Apesar de tudo, desconfiado, fez pressão sobre a tela em vários pontos. Finalmente, descarregando o seu cepticismo confesso num profundo e interminável suspiro, voltou o seu rosto anguloso na minha direcção, dirigindo-me um olhar pleno de satisfação. Sorri-lhe. Nem Tiago nem eu podíamos compreender. Mas era de facto assim. O Mestre desmaterializara-se diante da parede ou, quem sabe, talvez tenha sido capaz de atravessá-la. Achei melhor não pensar mais nisso. E o Zebedeu, decidido, avançou para a porta dupla, destrancando-a com um seco e contundente pontapé. Minutos mais tarde, alertados pelo discípulo, a família e criadagem de Marcos irrompiam em tropel pela sala dentro, juntando-se àquela barafunda. Os gritos, perguntas, cânticos, palmas e risos prolongaram-se durante mais de meia hora. Pouco a pouco, Elias, Simão Pedro e Tiago conseguiram acalmar os ânimos, fazendo ver aos seus companheiros que o tempo urgia. Se desejavam cumprir a ordem do Mestre e partir assim o mais depressa possível para a Galileia, era preciso deitar mãos à obra. A viagem até ao mar de Tiberíades era longa e os preparativos já tinham sido interrompidos mais de uma vez. Pelas oito horas, a quase totalidade dos íntimos de Jesus tinha descido para o espaçoso pátio ao ar livre. E ali, à volta da fogueira, enquanto Filipe, o intendente, se atarefava com os gémeos na preparação da bagagem, os outros – recuperado o sangue-frio – dedicaram uma boa parte das duas primeiras vigílias (a da noite e a da meia-noite) a examinar a situação. Apesar da euforia, tinham consciência da sua delicada situação frente à casta sacerdotal que tinha perseguido e crucificado o Rabi. André, prudente e receoso, recordou as preocupantes notícias
trazidas uma semana antes por José de Arimateia. As medidas promulgadas por Caifás, o sumo sacerdote, e seus sequazes na noite do domingo anterior continuavam a fazer lei: «Aqueles que se atrevessem a proclamar o regresso à vida de Jesus de Nazaré serão expulsos das sinagogas.» A segunda dessas medidas – que, segundo os confidentes do velho membro do Sinédrio, não pudera ser submetida a votação – especificava que todo aquele que declarasse ter visto ou falado com o Ressuscitado poderia ser condenado à morte. Apesar da força moral que, evidentemente, a presença do Mestre lhes tinha insuflado, aqueles galileus, sabedores do ódio e do poder da classe dirigente judaica, envolveram-se numa nova e acesa polémica. Pedro, fogoso e impulsivo como sempre, levou a mão esquerda ao punho da es pada, apelando aos seus companheiros para que enterrassem os velhos temores e se lançassem pelas ruas, anunciando a boa nova. A maioria repeliu a perigosa e prematura ideia de Simão. É verdade que aqueles sete dias de silêncio e total ocultamento dos discípulos tinham acalmado o furor dos homens do Sinédrio. E mais ainda: o fluxo ininterrupto de notícias que chegava até à mansão de Marcos apontava para um absoluto e definitivo esmagamento do grupo evangélico. Esta era, ao que parece a convicção de Caifás e da sua gente. Quanto aos rumores da absurda e fantasiosa ressurreição do Galileu, os saduceus e escribasuma vez promulgadas as já referidas normas – consideraram-nos e definiramnos como os últimos restos de sequazes de um movimento a que O passar do tempo e a mentalidade reinante da subornada guarda do Templo fariam o resto. Esta era a situação em Jerusalém, ao amanhecer daquela segunda-feira 17 de Abril. Como era de prever os veementes discursos de Simão, se bem que atraentes, não foram atendidos. Tiago, Mateus Levi e seu irmão André interromperam-no mais de uma vez e, com o silencioso apoio dos demais, procuraram convencê-lo dos riscos de semelhante empresa. De momento, se na verdade davam valor às palavras de Jesus, a única coisa que importava era cumprir a sua ordem. Curiosamente, e creio que devo referir-me a isso antes de prosseguir, a partir daquela noite de domingo, 16 de Abril, a figura
de Simão Pedro foi-se impondo de maneira notável. O Mestre – apesar de alguns evangelistas sugerirem que lhe outorgara a chefia e direcção do corpo apostólico – Também não houve qualquer votação ou manobra dos íntimos para a sua designação como cabeça visível dos novos evangelizadores. Na realidade, os factos foram-se encadeando por si mesmos e, com o passar dos dias, o inquebrantável entusiasmo de Pedro e a sua inegável capacidade oratória fizeram o resto. Os discípulos de forma tácita, aceitaram o vulcânico galileu como o homem indicado para os representar e proferir os discursos. Estas, e não outras foram as verdadeiras razões que o conduziriam ao lugar de todos conhecido. (pela quárta hora da madrugada, hora antes da vigília, do canto do galo), o grupo, temendo ser descoberto pelos espias do Sinédrio, adoptou por unanimidade a resolução de abandonar a Cidade Santa antes da aurora. Confundidos na obscuridade da noite, a sua partida de Jerusalém poderia ser menos arriscada. Maria Marcos, com a sua proverbial diligência, aparentemente alheia às discussões e polémicas dos discípulos, não tinha tido um momento de descanso. Durante toda a noite, vi-a entrar e sair do pátio, trocando impressões com Filipe e, sempre discreta e silenciosa, orientando a necessária moagem do grão. Nesta ocasião, a criadagem não utilizou o pequeno almofariz de pedra, tão comum nas casas judaicas. Pela meia noite, dois dos criados colocaram no pátio um pesado mecanismo que consistia em dois grandes discos de basalto. O inferior, de cerca de noventa centímetros de diâmetro por vinte de altura, apresentava a face superior acentuadamente convexa. No centro emergia um sólido eixo de ferro de uns trinta a trinta e cinco centímetros de comprimento. Ao aparecer, intrigado, deixei por instantes a fogueira acolhedora observando as suas hábeis manobras. Um deles estendeu um pano de linhagem sobre o solo de ladrilhos e, seguidamente, não sem esforço, ambos pegaram na já referida mó, colocando-a ao centro da escura serapilheira. Em seguida repetiram a operação, encaixando a segunda roda de basalto no eixo da primeira mó.
A superior, de um pouco mais de meio metro de diâmetro, tinha sido trabalhada de tal forma que a sua superfície inferior, acentuadamente côncava, se acoplasse perfeitamente com a que assentava no pavimento. O orifício que perfurava este disco superior, no qual entrava o eixo de ferro, parecia um funil. Compreendi que se tratava de um moinho caseiro, com uma maior capacidade de trituração e, por conseguinte, muito útil em determinadas circunstâncias. E aquela era, sem dúvida, uma situação de emergência. Encaixadas as duas mós – era este, ao que parece, o nome do aparelho – um dos criados foi buscar um recipiente de pedra avermelhada cheio de trigo, iniciando a moedura propriamente dita. Com a mão esquerda accionou um cabo de madeira encravado verticalmente na roda de cima, fazendo-a girar com força. Ao mesmo tempo, com a mão direita, foi deitando punhados de grão no funil central. Durante alguns minutos fiquei absorto e maravilhado diante daquele primitivo mas engenhoso sistema. O áspero ranger do basalto, girando lenta e eficientemente, acabou por dominar todo o local, obrigando os discípulos a elevar o tom das suas vozes. Passada uma meia hora, o segundo criado ajoelhou-se diande do moinho, rendendo o primeiro. A monótona e cansativa trituração terminaria já depois das duas da madrugada. Os criados, cheios de suor, desmontaram então as mós e Maria, ajudada pelo jovem João Marcos, foi depositando o fruto da moenda numa peneira de cerdas, de cujo aro de madeira estava suspenso um engordurado saco de oleado, que levava meia efa, aproximadamente, ou seja, cerca de vinte e dois quilos. Quando a farinha chegou a meio do saco, o benjamim fechou-o, entregando-o a Filipe, o responsável pelos abastecimentos. A partir de então, com o que sobrou da moagem, a dona da casa concentrou a sua atenção na amassadura e cozimento das apetitosas roscas redondas que tinha tido oportunidade de saborear noutras alturas. Prudentemente, conhecedora do seu secundário papel entre os homens, aguardou que estes fixassem a hora da partida. Eram, como disse, quatro horas da madrugada. Trocou então um sinal com Elias,
seu marido, e, de imediato, os criados começaram a distribuição das douradas roscas de trigo e de tigelas de argila cheias de leite de cabra bem quente. Bem-disposto, o prestável João Marcos ocupouse do meu pequeno-almoço. Abriu o pão crepitante e, imitando os restantes comensais, untou-o com azeite. Um espesso e dourado azeite de oliveira que impregnou a massa, tornando-a, se possível, ainda mais saborosa e digerível. A refeição foi rápida. Filipe, no centro do círculo formado pelos galileus, bateu palmas, chamando à atenção dos presentes. Até essa altura não tinha ainda tido oportunidade de assistir aos preparativos de uma daquelas frequentes viagens do grupo. Cada qual sabia, evidentemente, o seu papel. O intendente apontou para os volumes e mochilas que se alinhavam ao longo de uma das paredes e, com um lacónico «Vamos lá!», animou-os a iniciarem a caminhada. A cena que a seguir contemplei deixou-me agradavelmente surpreendido. À excepção de Filipe, de Judas e Tiago Alfeu, todos os outros, em silêncio, foram pôr-se em fila, diante do responsável pelos abastecimentos e dos gémeos. Estes, sob o olhar atento de Filipe, abriram dois sacos de couro e tiraram de cada um deles um par de sandálias com solas lisas, de madeira ou matéria vegetal prensada, e uma cabaça oca, respectivamente. Esta última tinha pendente uma longa e escura corda já com muito uso. No interior de cada um dos nísticos cantis podia ouvir-se o bater seco de um seixo. Tudo aquilo era desconcertante. Apesar do seu contínuo e intenso contacto com Rabi da Galileia e de terem sido beneficiários dos seus abertos e liberais ensinamentos, aqueles judeus continuavam agarrados a muitas das ancestrais e asfixiantes normas religiosas da comunidade hebraica. *1 – Entre as medidas de capacidade (para secos e líquidos), o kor era uma das mais frequentes na pesagem de grãos. Equivalia a qualquer coisa como 364-450 quilos e dividia-se, por sua vez, em dez efas e bats. A efa representava setenta e dois log. Este último, uma das unidades mais pequenas, equivalia a cerca de seiscentos amas. (N. Do M.)
Esta era uma delas. Numa posterior ligação com o berço, o Pai
Natal, nosso computador central, fornecer-me-ia os antecedentes originários de semelhante costume. Segundo o capítulo xvII, 6, do Sabbath os caminhantes e peregrinos deviam prover-se de uma daquelas cabaças secas e ocas, introduzindo no seu interior uma pedra que, tornando-as mais pesadas, lhes permitia tirar água dos poços, sem necessidade de recorrer aos serviços de homem ou mulher impuros. Cada homem atou o seu par de sandálias de reserva à cintura, dependurando a cabaça a tiracolo. Terminada a distribuição, Filipe reclamou a presença de Simão, o Zelota, e de Tiago Zebedeu. Ambos se encarregariam da pesada lona que enrolada à volta de três longos e rugosos páus de conífera, serviria de tenda de campanha. Na dramática madrugada de quinta para sexta-feira – como talvez recorde quem tenha seguido estas memórias – o corajoso David Zebedeu, chefe dos “correios”, teve a precaução de desmantelar o acampamento montado no horto de Getsémani, transferindo parte dos utensílios para a casa de Elias Marcos. Também a bolsa com o dinheiro do grupo tinha sido colocada por David nas mãos do novo e provisório administrador: Mateus o Publicano. Durante a primeira etapa da viagem – pelo que deduzi das palavras do intendente -, os gémeos carregariam com o odre destinado à água e o saco dos víveres. O odre em questão, de pele recamada de breu, tinha uma capacidade de dez bats ou jarras (cerca de trinta ou quarenta litros. A curtida e enegrecida pele de cabra fora provida de um par de correias de couro, cosidas dos lados facilitando assim a sua manipulação e tornando-o melhor de transportar. Ninguém protestou. Todos deram por assente que na segunda jornada as bagagens passariam para outras mãos. Na verdade, aqueles homens dispunham de uma rigorosa e eficaz organização, que eu ignorava quase por completo. Sabia, por exemplo que Judas Iscariotes tinha sido o responsável pela tesouraria e que a Filipe cabia a obscura e por vezes ingrata tarefa do abastecimento e da intendência-geral. Também soube do papel de André, até então chefe indiscutível do grupo. Mas que sabia eu dos demais? Cada um estava incumbido de uma missão, conforme fui descobrindo pouco a pouco. Era o mais
lógico. Caso contrário, aqueles anos de estreita cooperação com o Mestre ter-se-iam perdido. E pena que os evangelistas não tivessem feito menção dessas tarefas específicas, decisivas para o bom andamento  da chamada vida pública do Mestre. Que se sabia, por exemplo, de Mateus Levi? Qual tinha sido a sua tarefa? Porque é que João, seu irmão Tiago e Pedro tinham permanecido mais perto que o demais da figura de Jesus? Será que o Rabi fazia distinções pessoais. Não, por certo... E que dizer dos gémeos? *1 – A Misná, na sua Ordem Segunda, dedicada às Festas diz o seguinte: «pedra que está na cabaça oca, se se enche esta e aquela ,[a pedra] não cai, encha-se com ela dentro; senão pode (X V I6) a( pode encher-se com uma varinha a que se atou um pequeno (n. Do M.)
Quanto a Simão, o Zelota, Bartolomeu e Tomé, o meu desconhecimento acerca das suas tarefas específicas era igualmente total. Ao longo dessa madrugada julguei descobrir a missão do Didimo. No meio de toda aquela azáfama, pouco antes da partida, vi-o trocar impressões com Filipe. Falavam do itinerário a seguir. Tomé, sem hesitações, como quem já fizera muitas vezes aquele percurso, propôs-lhe o plano da viagem. A jornada daquela segunda-feira levá-los-ia até Jericó, o que representava cerca de 183 estádios (trinta e quatro quilómetros, aproximadamente). A terça-feira dedicá-la-iam à etapa mais dura: Jericó-monte Gilboa, seguindo a margem direita do Jordão. Por último, na quarta-feira, 19, fariam o percurso GilboaBetsaida, no extremo nordeste do mar de Tiberíades, passando pelas cidades de Tarichea, muito perto da segunda desembocadura do Jordão, Hippos e Kunsi, ambas na costa leste do lago. Ao todo, à volta de cento e trinta quilómetros. Segundo as palavras de Tomé, um pouco mais de oitenta e cinco milhas romanas. Devo recordar que, na Palestina desde a conquista grega, os judeus tinham acabado por aceitar diferentes unidades de medida. O estádio, para não falar de outras, era uma delas. Equivalia a 600 pés ou 185 metros. Por seu turno, os Romanos tinham introduzido, entre outras, a milha (1478 metros). Nas nossas múltiplas peripécias por aquelas terras do ano 30, e nos acontecimentos que
tivemos oportunidade de viver desde o ano 26, tanto o meu irmão como eu tivemos múltiplas ocasiões de deparar com os famosos marcos miliários do Império. Mas isso é outra história... O intendente aceitou o plano de Tomé. Como ia dizendo, comecei a suspeitar que o papel do Didimo fosse exactamente esse: o de guia ou responsável pelos itinerários. Tinha de encontrar tempo para dialogar com os onze e conhecer a fundo os seus trabalhos, os seus pensamentos, preocupações e, principalmente, a situação das suas respectivas famílias. É algo de que quase nada dizem os textos sagrados e que, partilhar desta opinião, também tem a sua importância em nós quando? A primeira fase da nossa missão chegava ao fim. Nessa mesma manhã deveríamos activar o módulo e transferir-nos para o Norte. Judas de Alfeu, um dos gémeos, responsável pelo odre, carregou-o às costas, tendo o cuidado de deixar o gargalo estreito e pontiagudo virado para o solo. Nem era preciso perguntar porquê. Desta maneira em caso de necessidade, poderia tirar-se água sem ser preciso descer ao depósito. Bastava que o caminhante se inclinasse e retirasse o tampão de madeira para prover-se da quantidade desejada. De acordo com outro costume romano, a água do odre tinha sido cortada com um pouco de vinagre. Para ser mais preciso com uma espécie de vinho fermentado, que dava à bebida um toque tão agradável como refrescante, a que os legionários romanos e etíopes chamavam posca. Em mais de uma ocasião, quando o vinho escasseava, os nómadas e judeus substituíam-no por um acre sumo de palma, também fermentado. As vitualhas, gentilmente fornecidas pela dona da casa, consistiam em legumes – favas e lentilhas -, grão torrado, cominhos e hortelã-pimenta (óptimos para temperar a comida), um jarro de mel branco e um abundante sortimento de passas de Corinto, tâmaras e figos secos e prensados, constituindo uma espécie de pão escuro e brilhante. Tudo isto, mais a referida porção de farinha moída na altura, constituía uma aceitável dieta, suficiente para três ou quatro dias.
Alguns homens, obedecendo a outro velho hábito, enrolaram o respectivo sudarium à volta da cabeça. Ao vê-los assim com os mantos pela cabeça, uma imagem saudosa perfilou-se na minha memória. Emocionado, recordei o meu primeiro encontro com Jesus, em casa de Lázaro. O Gigante trazia também pelas fontes uma daquelas faixas de pano, tão úteis para conter o suor nas longas caminhadas. Meu Deus! Quando voltaria a vê-lo? O Destino tinha a palavra. A quase totalidade do grupo, à excepção de Tomé e Mateus Levi, recolheu e enrolou as respectivas túnicas à cintura, cingindo os rins. A sábia expressão de Lucas (XII, 35) era plenamente justificada. Assim, as amplas peças de lã ou linho não travavam o andar do caminhante. Coloquei-me ao lado de João e, discretamente, perguntei-lhe por que é que Mateus e o Didimo não punham o seu chaluk como os outros. O Zebedeu sorriu maliciosamente. As razões de um e do outro não podiam ser mais opostas. A de Levi pareceu-me lógica. Na sua cinta estava guardado todo o dinheiro do grupo. Em caso de necessidade, o acesso à bolsa tinha de ser rápido e sem constrangimentos. - Quanto a Tomé – sussurrou João, fazendo um gesto em direcção a Maria Marcos -, fá-lo-á daqui a pouco... Compreendi a alusão velada. A aversão daquele galileu pelas mulheres chegava a tais extremos. O que eu então desconhecia era a causa de tal misoginia ou aversão pelo sexo feminino. Por volta das quatro e meia da madrugada, o tagarela e bemdisposto Filipe procedeu à última revista. A ideia do próximo retorno a suas casas tinha-lhes devolvido parte do perdido bom humor. Ao encarar com Tiago Alfeu, o intendente resmungou. Bateu carinhosamente na bainha de madeira, vazia, que emergia por debaixo da hagorahh, ou faixa larga que fazia as vezes de cinturão, interpelando o despistado gémeo. O dócil pescador fez menção de pousar o saco de víveres para ir em busca da esquecida espada. Mas o voluntarioso João Marcos adiantou-se, precipitando-se para o piso superior. Não me cansarei
de insistir nisso. Embora pareça um contra-senso, a verdade é que todos os discípulos traziam à cinta, naquela altura, a espada que sempre os acompanhava. Desconheço se eram destros no seu manejo – provavelmente não muito -, mas acreditem que ao vê-los armados, se experimentava uma desagradável sensação. Como os cristãos e crentes estão pouco informados a respeito daqueles homens! Terminada aquela última inspecção, os galileus – de acordo com o seu costume e arraigada fé religiosa – entoaram o «Ouve, Israel». O cântico elevou-se vigoroso e compacto para as últimas estrelas de Jerusalém. Nos seus corações, a desvanecida esperança no reino brotava de novo, pujante e incontidamente. A família Marcos uniu-se à oração e eu respeitosamente, como pagão, retirei-me para um dos cantos do pátio. O meu propósito era juntar-me à expedição até à vizinha Betânia ou suas imediações. Dali subiria ao monte das Oliveiras e encontrar-me-ia com o meu irmão. O facto de abandonar a Cidade Santa acompanhado tranquilizou-me. A despedida foi parca em palavras. Elias, sua esposa, o benjamim da casa e os criados, corresponderam aos carinhosos beijos e sem mais, os onze foram desfilando até ao portão de saída. Intencionalmente, deixei-me ficar para trás. A minha gratidão para com os anfitriões era tão sincera como ilimitada. - E tu Jasão, também nos deixas? O tom de Elias, apagado e tristonho, fez-me vacilar. Fiz que sim com a cabeça e, quando dispunha a abraçá-los, João Marcos, acocorado até então entre os braços de sua mãe, explodiu num amargo pranto. Entre soluços suplicou a seus pais que o deixassem juntar-se aos amigos de Jesus. Agarrado a Maria, lembrou-lhes que também ele desejava ver o Mestre. Elias e eu entreolhámo-nos, enternecidos. A mãe acariciou os cabelos do adolescente numa tentativa vã de o convencer. O rapaz redobrou de lágrimas e lamentos, esperneando com força. Foi inútil. O dono da casa perdeu a paciência e pôs fim à cena com um imperativo Banim. (Menino!). E apontando com o dedo a direcção dos seus aposentos, obrigou-o a retirar-se.
Uma vez mais, por pura cortesia, prometi regressar a Jerusalém logo que me fosse possível. Elias resignou-se, admitindo que a mão de Deus, bendito seja o Seu nome me tinha levado até ao seu lar e que, apesar dos meus negócios na Galileia, esse mesmo poder divino me devolveria à Cidade Santa. Não se enganou. Infelizmente, os seus dias estavam contados e eu não voltaria a vê-lo. Na ombreira da porta recomendou-me que não deixasse de visitar um seu velho amigo – um tal Maraschu -, judeu helenizado e honrado monopolei, estabelecido na cidade de Teverya (Tiberíades). Os comerciantes gregos davam esse nome aos grossistas que comerciavam com trigo, azeite, peixe salgado e conservas de frutas secas, entre outras actividades 1. O monopolei em questão – segundo Elias – homem bem relacionado na Galileia poderia aconselhar-me nas minhas transacções de vinho e madeiras, abrindo-me muitas portas. Fixei o nome de memória e, depois de nos beijarmos em ambas as faces, penetrei na obscuridade das ruas de Jerusalém. O grupo dos onze adiantara-se-me um pouco, o que me inquietou. Tinha de os alcançar. Àquela hora – cinco da madrugada -, não era muito recomendável atravessar sozinho a parte baixa da cidade e transitar pelos caminhos que confluíam para ela. Nessa ocasião, os meus receios não eram infundados. Em passadas largas, com a ajuda duvidosa das mortiças lâmpadas de azeite que iam piscando nas encruzilhadas daquele dédalo de ruas e rampas fui-me orientando para o extremo sudeste da cidade, à procura da Porta da Fonte. Os únicos sinais de vida na zona baixa da cidade eram constituídos pelas inquietantes filas de ratos, que deslizavam negros e velozes de uma parede para a outra ou trepavam pelos montes de lixo e imundícies, alertados e desconfiados pela minha passagem. O ranger ritmado da moenda foi crescendo em extensão e intensidade, coincidindo, aqui e ali, com o aparecimento de novas candeias no interior dos pátios e casinhotos. *1 – Em Mateus (XXV, 9), Jesus ao falar das virgens néscias e sensatas, alude, muito provavelmente, aos monopolei.
Tanto em Israel como no resto do Império, estes grossistas gozavam de uma situação económica privilegiada. Armazenavam nos seus diplostoon toda a espécie de mercadorias exercendo um controlo especial sobre o comércio dos cereais. Em Roma, por exemplo, esses judeus instalaram-se perto do Tibre, onde atracavam os barcos de trigo. (N. Do M.)
 O aconchego do manto veio em boa hora, porquanto a madrugada se apresentava fresca. Eliseu respondeu preocupado. Há horas que eu não restabelecia o contacto auditivo. Confirmei-lhe a minha posição e intenções, acrescentando que, com um pouco de sorte, chegaria à base mãe trinta ou quarenta minutos depois do nascer do Sol, marcado naquele dia 17 de Abril para as cinco horas e quarenta minutos. O meu irmão mostrou-se de acordo. Estava tudo preparado para a descolagem do berço. - ... Tal como prevíamos – acrescentou de passagem -, a frente borrascosa detectada a oeste na manhã de ontem, domingo, penetrou na minha mira, Jafa-Sídon e ameaça cobrir toda a região. Eliseu procedeu à leitura dos dados meteorológicos. O laser do ceilómetro não se prestava a dúvidas: os Cb (cumulonimbos), espessos e verticais, deslocando-se a pouco mais de seis mil pés (cerca de seis mil metros), podiam trazer-nos dificuldades no voo para o mar da Galileia. Segundo os dados do Pai Natal, estes ventos do Mediterrâneo tão frequentes e benéficos na Palestina entre os meses de Março a Maio, eram imprevisíveis. Por vezes, dependendo de múltiplos factores, tomavam a direcção sul, rumo aos montes de Judá; outras vezes, subiam até às alturas do actual Líbano, saturando-se de humidade nos cumes nevados do Hérmon e, descendo tormentosamente, varriam o Norte de Israel. Esta última possibilidade podia representar graves riscos para a nossa missão. O módulo não tinha sido concebido para suportar as fortes turbulências que, em geral, acompanhavam os Cb: ventos intensos, granizo, fenómenos eléctricos e congelamento. - Dentro de uma hora – sintetizou Eliseu com o seu habitual pragmatismo – o rawin verificará a direcção e força dominantes dos
ventos. Esperaremos. Fim da comunicação. Pareceu-me excelente. Os cumulonimbos – ou melhor, o nosso hipotético encontro com eles – eram apenas uma contingência longínqua. A vida ensinara-me a ocupar-me das coisas uma a uma e na altura própria. E, de momento o meu único objectivo era alcançar os galileus. Respirei, aliviado. O nobre pórtico que rodeava o Tanque do Enviado, também conhecido então como Piscina de Siloé, foi um bom ponto de referência. Dali até ao arco da Porta da Fonte, na muralha meridional eram apenas cem ou cento e cinquenta passos. Mas, ao dobrar a esquina sul da cisterna, algo travou a minha marcha. A uns trinta metros, esfumados no claro-escuro do alvorecer, distingui o ondear de uns mantos. Eram cinco homens. Desciam rapidamente pela encosta que morria às portas da cidade. Numa primeira olhadela confundi-os com os discípulos de Jesus. Mas não. O seu andar era diferente. Além disso as suas túnicas, ou chaluks não estavam presas à cintura. O inusitado da hora e o facto de irem todos na mesma direcção que nós fez-me desconfiar. Detiveram-se sob o pórtico. E ali, do meio dos mendigos, aleijados e vagabundos que dormitavam ao abrigo das grandes pedras lavradas, destacou-se um indivíduo. Trocaram breves palavras e depois retomaram o passo. O sexto homem juntou-se ao grupo e, apressadamente, afastaram-se da muralha em direcção ao viaduto que transpunha a torrente do Cédron. A imponente ponte – a quarenta metros sobre o vale – constituía o início de um dos caminhos que levava à aldeia de Betânia a leste de Jerusalém. Talvez tenha sido o instinto. A verdade é que ao vê-los tomar aquela rota, senti um certo desassossego. Mantive as distâncias, amaldiçoando a minha má estrela. Aquela meia-dúzia de judeus ocupava a quase totalidade da calçada, dificultando o meu avanço. Para os ultrapassar – dado o vigoroso ritmo que imprimiam ao seu passo – teria de o fazer em corrida – Francamente, não me pareceu muito sensato. De modo que, resignado, aproximei-me, mantendo-me na expectativa.
Como já disse, aquele grupo tinha qualquer coisa de especial. Qualquer coisa que não encaixava. Não levavam qualquer volume, nem sequer os típicos e quase obrigatórios bastões de peregrino. Além disso, aquela pressa não parecia muito normal. De vez em quando atavam os braços – cop -, apontando ora na direcção dos cerros de Moab, como se discutissem a leste, ora para o fundo do caminho. Cruzámo-nos com dois felahs, ou camponeses, agasalhados com grossos capotes de lã, que tocavam um daqueles altos e garbosos burros mascate, de pêlo branco acinzentado e longas orelhas, totalmente carregado de legumes e de molhos de vides. Ao aproximar-se do grupo, o felah que caminhava à frente reagiu de maneira peculiar. Conteve o animal, que se imobilizou, ao mesmo tempo que, submisso e respeitoso, inclinava a cabeça à passagem dos judeus. O gesto deixou-me perplexo. Os indivíduos prosseguiram, quase sem reparar nos camponeses. Mas, de súbito, um deles deu meia volta e, voltando atrás, perguntou alguma coisa ao felah que segurava as rédeas. A claridade do novo dia começava a despontar sobre as distantes colinas do deserto de Judá. Foi quando, entre as pregas do roupão do que tinha retrocedido, descobri algo que revelou a identidade de todo aquele grupo. Preso ao cinto e pendendo do flanco direito via-se um daqueles temidos porretes guarnecidos de metal, de uso comum entre os guardas do Templo. Por certo, deviam ter estado a rondar as imediações da casa de Elias Marcos, vigiando os movimentos dos maltrapilhos galileus, como eles qualificavam os discípulos do Mestre. No fundo, era lógico. A casta sacerdotal não descansaria enquanto não aniquilasse o blasfemo e incómodo movimento que o Rabi tinha encabeçado. Os discípulos ainda constituíam uma ameaça, e o mais provável era que Caifás tivesse dado ordens severas aos levitas e aos espias. Mas quais seriam as suas intenções. Tratar-se-ia de uma simples missão de vigilância e informação? Percorridos os três ou quatro primeiros estádios – dos quinze
(2755 metros) que nos separavam de Betânia -, o caminho atingiu a sua cota máxima 680 metros), inflectindo à esquerda, na direcção nordeste. Daquele ponto, bordeando sempre a falda sul do monte das Oliveiras, precipitava-se suavemente para Betfagé, numa recta de quase meio quilómetro. Ao chegar à encosta detive-me. Por trás de mim ressoou o duplo toque de bronze das trombetas do Templo, anunciando o nascer do Sol. Os levitas não tardariam a abrir a porta dupla do Templo, também chamada de Nicanor, permitindo assim a entrada no Átrio dos Gentios. Ao fundo do caminho, a uns trezentos metros, avistei o compacto grupo dos galileus. Caminhavam rapidamente. Aparentemente, não se tinham dado conta da proximidade dos esbirros. Estes, ao identificarem o seu objectivo, aceleraram a marcha. Um já longínquo e solitário toque de trombeta, recordando a primeira oração do dia, serviu de detonador. Os guardas, excitados, pegaram nos seus porretes, dando início a uma veloz corrida em direcção aos onze. Fiquei paralisado. A gritaria dos fanáticos chegou até ao grupo da frente. E os discípulos, tão atónitos como eu voltaram-se e testemunharam a louca correria. Que podia eu fazer? Muito, obviamente. Teria sido suficiente accionar o sistema ultrasónico da vara de Moisés para deixar a maioria deles inconsciente. Cego de ira, corri atrás deles disposto a neutralizá-los. Mas a meio caminho travei a minha louca corrida. Por pouco não violei a mais estrita e sagrada das normas da operação. Não era esse o meu papel. Apesar do que sentia e da minha natural simpatia para com os galileus, devia manter-me à margem. E assim foi. Os meus amigos, numa demonstração de serenidade, lançaram por terra as bagagens, formando um grupo compacto. Simão, o Zelota, Tiago de Zebedeu e Pedro ficaram na primeira fila e, com um sangue-frio que ainda agora me comove, deixaram que os outros se aproximassem. Os seis homens do sumo sacerdote, confiados perante a aparente passividade dos seus opositores, foram aumentando o tom das suas imprecações e levantaram os bastões por cima das cabeças.
Os últimos metros foram dramáticos. Os guardas, imparáveis, dispunham-se a descarregar os seus porretes quando, subitamente, a um grito de Simão, os onze desembainharam as espadas, que reluziram afiadas e ameaçadoras. A fulminante e sincronizada reacção do grupo, com os gládios apontados ao peito dos esbirros, foi decisiva. Estes, desconcertados, ficaram pregados ao chão. O Zelota e os seus aproveitaram aquele instante de dúvida e como um só homem, passo a passo, avançaram para os intimidados judeus. O que aconteceu nesses momentos críticos não se apresenta com muita clareza na minha memória. Como fui ingénuo. Suspenso do confronto iminente, nem sequer reparei no arriscado da minha posição, por detrás e a escassos metros do grupo que brandia os cacetes. Lembro-me, isso sim, de um forte e furibundo grito de Pedro, que tinha a ver com a mãe de um tal Ben Bebay... Este esbirro, ao que parece, era o chefe daquele grupo de guardas e muito famoso em Jerusalém pela sua triste missão entre os sacerdotes do Templo. (Segundo consta no Yoma, norma vigésima terceira, competia-lhe açoitar os que tentavam interferir no sorteio das funções cultuais). E num ápice todo o bando se desfez dos seus bastões, fugindo precipitadamente. No meio daquele tumulto, vários dos esbirros, completamente desnorteados, vieram chocar com o autor destas linhas, derrubando-o e písando-o. Quando procurei recompor-me o fio de uma espada sobre a minha garganta impediu-me de fazê-lo. Alquebrado e meio cego pela poeira, fui incapaz de reagir. Senti no meu pescoço o frio metal do gládio e, por um momento, julguei que tinha chegado a minha hora... É que naquele transe eu não dispunha da protecção da pele de serpente. - Jasão!... Mas és tu, com mil diabos?!... A pressão da arma cessou e, com dificuldade, limpando o pó que tinha no rosto, tentei levantar-me. Alguém veio em meu auxílio. Quando, por fim, compreendi o que sucedera, Simão, o Zelota, brandindo a sua espada, confirmou-me que tinha estado a um passo da morte e que, de futuro, devia ter mais cautela. Tomei bem nota, é claro... A infeliz situação não devia repetir-se.
No entanto, afastado o perigo, o grupo alegrou-se por me ter recuperado. Satisfeitos e desenvoltos, pegaram de novo nas bagagens e retomaram o caminho. Se descrevi este incidente não foi apenas para ser fiel ao que tive ocasião de presenciar. Acho que a atitude dos chamados embaixadores do reino numa emergência destas – prestes a pegar nas suas armas e a repelir qualquer ataque – é um elemento da maior importância para compreender melhor as suas ideias e impulsos. Não obstante os ensinamentos e a eventual ressurreição de Jesus, os discípulos precisariam ainda de um prolongado processo de mudança e amadurecimento para virem a ser os dóceis e pacíficos apóstolos que, anos mais tarde, não hesitariam sequer em sacrificar as suas vidas em benefício da evangelização dos homens. Creio sinceramente que, nestes dois mil anos, os cristãos sublimaram a imagem individual e colectiva do corpo apostólico, elevando-a a uma categoria que não corresponde à realidade. Naquele tempo, como acabo de relatar, o comportamento dos galileus pautava-se por padrões muito mais lógicos e humanos do que os que as Igrejas pretendem inculcar. Mas haverá oportunidade de continuar a aduzir provas. Os contratempos não tinham ainda terminado. Já muito perto de Betânia, que brilhava nas suas paredes caiadas, surgiu o segundo problema da manhã. A casa de Marta e de Maria era uma pausa obrigatória na caminhada. Os irmãos Zebedeu desejavam abraçar sua mãe, Salomé, e ao mesmo tempo receber Maria, a mãe do Mestre, acompanhando-a até Betsaida. Mas, inesperadamente, dentre as figueiras e sicómoros que davam sombra à estrada, uma conhecida personagem saltou para o meio do caminho, obrigando-nos a suspender a marcha. Perplexos, os onze olharam uns para os outros, sem saber que fazer. E o filho mais novo dos Marcos, ofegante pela corrida desde Jerusalém e ainda com os sinais do choro recente, esboçou um sorriso não muito confiante. - Quero ver o Mestre... A desculpa não lhe serviu de muito. André trocou algumas palavras com os demais e, convencidos de que se tratava de uma nova
travessura do rapaz, adoptaram a posição mais sensata. O ex-chefe dos galileus ajoelhou-se diante dele e, acariciando os seus cabelos transpirados, tentou persuadi-lo, fazendo-lhe ver que semelhante fuga não teria tido a aprovação do seu ídolo. João Marcos, impaciente, desviou o olhar, procurando o apoio dos silenciosos discípulos. Ninguém cedeu e o assunto ficou assim resolvido. O adolescente baixou a cabeça e, esperneando com raiva, partiu como um raio em direcção à cidade. Antes de se porem novamente em marcha aproveitei a circunstância para resolver a minha incómoda situação. Alguns estranharam a minha inesperada despedida. Apesar da minha condição de gentio, a maioria sentia um sincero apreço por aquele esgrouviado e aparentemente corajoso comerciante grego que não os tinha abandonado em tão difíceis momentos. João e André insistiram para que os acompanhasse até à Galileia. O pretexto dos meus negócios em Jerusalém não foi muito convincente. Contudo, habituados ao meu comportamento contraditório, não insistiram. Fui-lhes dizento que determinadas transacções comerciais me levariam em breve às cidades de Tiberíades e Cafarnaum, e que essa seria uma óptima oportunidade para retomar os nossos contactos e continuar a aprofundar a minha leal admiração para com Jesus que – rematei eu – estava a mudar as minhas ideias. Suponho que me acreditaram. Instantes depois partíamos em direcções opostas. Eles para Betânia e eu, cheio de remorsos, ao encontro do módulo. Esperei que desaparecessem no emaranhado casario da aldeia. Não havia tempo a perder. Abandonei a deserta rua principal e tal como em ocasiões anteriores, iniciei a ascensão do monte das Oliveiras pelo estreito carreiro que serpenteava até ao cimo. O vivo escarlate daquele amanhecer anunciava um dia de sol brilhante, pelo menos naquela latitude. Senti-me reconfortado. A operação estava a caminhar. E a iminência da nova etapa rumo a norte, encheu-me de força. À minha passagem, bandos de cotovias levantavam voo, planando inquietas sobre as filas de oliveiras e zambujeiros. Tudo parecia tranquilo. É claro que me enganei nas
minhas apreciações. O Destino, imprevisível, reservava-nos outra surpresa. Qualquer coisa que nem Eliseu nem eu podíamos imaginar e que, a curto prazo, nos colocaria numa delicada situação. Foi a pouca distância do cume. Ao parar para enxugar o suor e estabelecer a ligação prévia à minha entrada no berço, um estalido sobressaltou-me. O pequeno olival que eu atravessava naquele momento continuava solitário brilhando ao morno sol da manhã, e a sua quietude era apenas perturbada pelo rápido voo das madrugadoras andorinhas. Talvez me tivesse enganado. A encosta oriental, até onde a vista alcançava, encontrava-se deserta. Premi o meu ouvido direito e, sem mais, anunciei ao módulo a minha posição e imediata aproximação do ponto de contacto. Retomei a marcha, deixando a vereda à minha esquerda e penetrando no matagal que subia para norte. A pedregosa clareira em que a nave assentava não distava mais de trezentos a quatrocentos pés. Mas não o pude evitar. Foi superior a mim. À medida que ia vencendo os abrolhos e giestas, aquela sensação tornou-se incómoda e opressiva. Era semelhante à que experimentara na manhã de terça-feira quando, em plena tarefa de recuperação dos panos mortuários, muito perto do bosque de alfarrobeiras, julguei notar a presença de alguém. - Não pode ser. Quem e por que razão havia de me espiar? O raciocínio não me tranquilizou. E dando uma volta sobre mim mesmo, dei uma olhadela à minha volta. O meu coração sobressaltou-se. A uma centena de metros, na orla do olival que eu acabava de atravessar, distingui confusamente uma silhueta humana, oculta entre os galhos de uma árvore. Estremeci. Fiz a ligação com a nave, acelerei o passo e avisei Eliseu da inesperada companhia. - Recebido. Activo dispositivo de infravermelhos até trezentos pés. Continua à escuta. Procurei os crótalos e, nervoso, ajustei-os aos olhos, na intenção de localizar o módulo e nele ingressar sem demora.
Ao contacto com as lentes especiais, as cores da paisagem mudaram drasticamente. O verde do matagal e do olival transformou-se num vermelho sangue, ao passo que o céu via intensificado o seu azul e a pedra calcária adquiria uma tonalidade de cinzento-claro. De súbito, no centro da clareira a uns duzentos pés, levantou-se diante de mim a mole da nave, palpitante e avermelhada. A membrana exterior, submetida a elevadas temperaturas, apresentava uma larga faixa branca no meio das paredes, ao passo que a zona dos motores, agora fria, aparecia num suave e esfumado tom verde-violeta. O meu irmão não tardou a confirmar as minhas suspeitas. Como é sabido, qualquer corpo cuja temperatura seja superior ao zero absoluto (-273 graus centígrados) emite energia infravermelha, ou IR. Esta emissão de raios infravermelhos, invisíveis ao olho humano, é provocada pelas oscilações atómicas no interior das moléculas e, por conseguinte, está estreitamente ligada à temperatura corporal. Ao entrar no raio de acção do primeiro dispositivo de segurança do módulo, o intruso era imediatamente detectado 2. - Roger 3! Atenção, Jasão! Afirmativo. Target 4 no ecrã... A verificação fez-me tremer. Quem poderia ser? Que pretenderia? - Move-se num rumo cento e sessenta... Muito devagar. Tem-lo no teu cinco5. Distância do módulo: duzentos e dez pés e avança. Estás a receber? Escuto. - Oiço-te cinco por cinco – repliquei, arquejando. Entendi, no meu cinco. Escuto. - Roger. No teu cinco. Avistas o berço? Escuto. - Afirmativo. Dentro de um minuto estou contigo. - Okay. No momento em que entrares na nave libertarei o escudo gravitacional. Escuto. Esta segunda defesa como creio ter especificado consistia numa poderosa emissão de ondas gravitacionais que, partindo da membrana situada na fuselagem, se projectava à distância de trinta pés, envolvendo a nave. Em caso de emergência, esta semiesfera
invisível actuava como uma muralha de contenção. Qualquer indivíduo que tentasse passar esse limiar, deparar-se-ia com algo semelhante a um ar impossível de furacão. *1 – Estas pequenas lentes, como já expliquei na devida altura, permitiam uma visão infravermelha acima dos setecentos nanómetros. Os especialistas do Cavalo de Tróia incorporaram nelas uma série de bandas periféricas dotadas de centenas de microcélulas que não eram mais que outros tantos filtros Wraaen 89 B, que só deixavam passar a referida radiação infravermelha. O peso específico conseguido foi de 119. A sua força flexional (ppi), dez mil-quinze mil e a sua dureza Rockwell, de M85M105. Os sais monoiónicos permitiam uma aceitável circulação das lágrimas e da oxigenação da córnea, ainda que não se devesse abusar do seu uso. (N. Do M.) 2 – Os dispositivos termográficos, ligados ao computador central e a um dos radares primários, estavam em condições de captar variações de temperatura até dois décimos de grau (Farenheit). Num target estático, o Pai Natal era capaz de diferenciar as possiveis doenças de um indivíduo e mesmo as oscilações de temperatura do nariz e dos lábios nas respectivas inalações e exalações do ar. (N. Do M.) 3 – Roger, expressão usada nas comunicações via rádio que equivale a afirmativo, sim”, de acordo”. (N. Do M.) 4 – Target, em gíria aeronáutica, um objecto localizado no radar. (N. Do M.) 5 – Em linguagem aeronáutica, na posição assinalada pelos ponteiros de um relógio às dezassete horas. (N. Do M.) Com um ruído surdo, a escadinha hidráulica desceu até tocar na laje de pedra. - Vamos, Jasão! Já falta pouco. Vejo-te no ecrã a trinta pés. Mas, perante a surpresa de Eliseu, em vez de me introduzir no berço, girei sobre mim mesmo, detendo-me no limite de segurança do escudo gravitacional. - Jasão, que é que se passa? Não sei muito bem porque o fiz; talvez por curiosidade. A verdade é que, de costas para a nave, procurei localizar o intruso. - Jasão... A voz de Eliseu, entre suplicante e imperativa, fez-me hesitar. O intruso, ao comprovar que eu me detinha, abandonou a sua atitude esquiva, aventurando-se na clareira a corpo descoberto. E devagar, sem deixar de me observar, foi ganhando terreno. - Responde!... Jasão... Que diabo se passa?
- Um momento – repliquei a meia voz. - Creio que devemos identificá-lo. Está armado? Escuto. - Negativo. A barragem IR não detecta qualquer objecto metálico. A informação tranquilizou-me relativamente. Na previsão de qualquer eventualidade, deslizei a mão direita para o extremo superior da vara de Moisés disposto a accionar os ultra-sons perante o menor indício de agressividade. Lógo estas ondas – numa frequência que oscilava entre os dezasseis e os 10 hertz – podiam ser projectadas e dirigidas à cabeça da personagem que se aproximava e provocar-lhe uma passageira alteração do aparelho vestibular. Em décimos de segundo, o ouvido interno do sujeito ficava bloqueado pelos referidos ultra-sons, com a consequente e transitória perda da posição da cabeça e do corpo no espaço. Nada de grave, de facto, mas algo de suficientemente drástico e eficaz para imobilizar o presumível agressor durante alguns minutos. A pouco mais de cem pés (cerca de trinta e três metros) do lugar onde me encontrava, o indivíduo parou. Os crótalos não me permitiam identificá-lo com nitidez. O seu rosto, à distância, apresentava uma tonalidade avermelhada que lhe deformava as feições. A túnica, originalmente branca, apresentava-se azulada e as pernas e mãos de uma intensa coloração verde-laranja. Como consequência do seu esforço, a sua temperatura corporal tinha aumentado em zonas muito concretas. Assim, por exemplo, o pescoço, axilas e têmporas apresentavam, na visão infravermelha, um tom branco-mate. Reparei nos olhos, algo em que até então não tinha reparado, fezme passar do espanto ao medo. Quase teria preferido deparar com uma fera ou com um dos fanáticos guardas do Templo a ter de passar por semelhante prova... *1 – O aparelho vestibular, em questão é vital na percepção de sensações e facilita uma permanente informação sobre a posição do corpo e cabeça humanos no espaço. Juntamente com as impressões visuais e tácteis, dá a conhecer ao sujeito as variações de situação por que passa o corpo, desencadeando as correspondentes e automáticas reacções que asseguram a manutenção do equilíbrio, em colaboração com a contracção sérgica dos músculos antagonistas. (N. Do M.)
 E o meu coração, pressentindo uma situação muito penosa bateu mais forte. Aquela criatura não tinha mais de um metro e meio de altura. Talvez menos. Era uma criança! Um pressentimento perturbou-me. Retirei uma das pequenas lentes e, de facto, ao normalizar a visão no olho direito, a figura franzina de um João Marcos imóvel e tão desconcertado como eu apareceu perante mim, derrubando as minhas ideias feitas. Senti-me apanhado. Aquela situação, de uma especial gravidade, não tinha sido prevista pelos especialistas do Cavalo de Tróia. Que devia fazer? Sabia da inteligência e pertinácia do rapaz. Sugerir-lhe ou ordenar-lhe que desse meia volta e se afastasse seria tão inútil como contraproducente. Não dispunha de muitas opções. É claro que não duvidei dos seus bons propósitos. Talvez aquela inoportuna atitude fosse apenas mais uma das suas diabruras infantis ou resultasse tão-só da necessidade de consolo perante as suas frustradas expectativas. Repeli a ideia de que estivesse a par das minhas entradas e saídas da nave. Isso era impossível. O seu comportamento para comigo teria sido radicalmente diferente. Além disso, os sistemas de localização do módulo tê-lo-iam descoberto. Empenhei-me a fundo para encontrar uma solução. Mas qual? Que podia eu explicar-lhe? Passados aqueles segundos de mútua e tensa observação, o rapaz reagiu. Levantou o braço esquerdo em sinal de saudação e, na disposição de juntar-se ao seu velho amigo, continuou a avançar. Impotente, deixei-me levar pelo instinto. Levantei o cajado e, lançando um forte grito, intimei-o a parar. O gesto brusco, a gravidade do meu semblante e o tom imperativo da voz deram resultado. O menino, embora sem compreender, obedeceu. Assustado, olhou em redor, tentando localizar algum invisível perigo. Não tendo dado por nada, ergueu a vista para mim, encolhendo os ombros. É evidente que não compreendia o meu estranho comportamento, mas eu não estava disposto a entrar em pormenores. Premi o meu ouvido direito e, resolvido a levar a questão a bom termo, transmiti a
Eliseu a ordem de ligar o motor principal e ficar alerta para uma descolagem de emergência. O meu irmão, eficiente como de costume, não fez perguntas. Sabia que qualquer coisa de grave e singular se passava comigo e, segundos depois de cortada a ligação auditiva, o fino sibilar dos silenciadores do J 85 irrompeu na clareira, aumentando o espanto de João Marcos. Aterrado, retrocedeu alguns passos, movendo a cabeça em todas as direcções numa frenética tentativa para localizar e identificar o agudo e, para ele, misterioso som que se espalhou por todo o cume, provocando a debandada dos pássaros e insectos. Hábil e oportunamente, Eliseu cobriu a minha retirada, accionando outra das medidas de segurança incorporadas na nave: das suas quatro arestas superiores brotaram densos jorros de fumo 1. Um fumo branco *1 – No tejadilho e nas quatro arestas superiores do berço,, os especialistas do Cavalo de Tróia tinham instalado um duplo sistema de camuflagem de emergência. Ambos consistiam numa rápida e maciça produção de névoa fumo, bruma ou vapor – conforme as necessidades -, que podiam produzir-se mediante a utilização de neve carbónica ou de um simples Fogmaker 1%3, de M. Richardson. (N. Do M.) Géssno que, vindo aparentemente do nada (não se esqueça que a camuflagem IR tornava o módulo invisível), foi-se derramando lento e compacto até às rochas amareladas, transformando-se em segundos numa mágica e gigantesca nuvem cúbica. E aconteceu o inevitável. O adolescente, completamente transtornado, tomando a névoa por uma visão celeste, caiu por terra, escondendo o rosto contra o solo. Foi uma situação especialmente dolorosa. Teria desejado tranquilizá- lo e aclarar o erro. Mas, impotente, permaneci mudo. O mal estava feito. Talvez mais tarde, supondo que voltaríamos a encontrar-nos, tivesse ocasião de desfazer o equívoco, diminuindo a importância do que acabava de ouvir e contemplar. Não debalde, entre os meus atributos figurava o de mago e adivinho... Aproveitando a sua confusão, dei meia volta, penetrando na providencial cortina de fumo e entrando na nave. Aturdido com uma amarga sensação no mais fundo da minha alma, libertei-me da chlamys e, sem perder um segundo, fui ocupar o meu
lugar diante do painel de comando. Eliseu, atento aos instrumentos e ao monitor em que continuava presente o eco do jovem João Marcos, fez menção de activar o cinturão gravitacional. Mas, dada a imobilidade do rapaz sugeri-lhe que prescindíssemos do segundo escudo. Em princípio, o sibilar do motor e a espessa camuflagem que nos envolvia eram mais que suficientes. E às oito horas e dezasseis minutos – quase uma hora antes que o previsto – a nave descolou do cume do monte das Oliveiras. O plano de voo, minuciosamente estudado, foi revisto por Eliseu tendo em conta a situação verificada nos últimos e críticos momentos, anulando o programa inicial do computador central no que se refere ao momento da descolagem. Este, dadas as circunstâncias, foi feito manualmente,estabelecendo-se a ligação automática com o Pai Natal a partir do estacionário. - Subindo... Roger!... Enquanto Eliseu comandava a manobra de elevação, passei em revista o painel de instrumentos. - Temperatura dos motores, okay... Regulagem da plataforma de inércia sem variação... Ligeira vibração... Indicações de velocidade... - Okay. Índice de consumo?... segundo a. A queimar segundo a estimativa... Leio 5,2 quilogramas por... - Roger, Jasão! Estamos a subir a trinta por segundo... Quatrocentos pés e continuamos a subir... - Okay... A quatrocentos para o estacionário. - Combustível? - A treze segundos da descolagem leio 67,6 quilogramas. - Percebi 67,6... - Afirmativo... Estamos a 97,6 por cento. - . Quinhentos... Quinhentos e cinquenta... Tempo para estacionário
- A seiscentos pés, seis segundos e sete décimos. - Preparados foguetes auxiliares... - Roger... Setecentos pés e subindo a um por segundo. Os sistemas – dóceis e precisos – elevaram o berço até ao nível de estacionário. - Oitocentos pés! Travo.... não tenho bandeiras. - Combustível e tempo? - Leio 138,3 quilogramas. Estamos a 97,2 por cento. Tempo de ascensão a nível oito: vinte e seis segundos e seis décimos. - Percebi vinte e seis. - Afirmativo. - Roger. Passo ao automático. - Eliseu teclou no terminal do computador central, restabelecendo o programa directo. A partir desse instante, o nosso eficiente Pai Natal encarregou-se do resto da viagem.Amigo, agora é tudo contigo... - Okay. Rectificando a radial setenta e cinco. A nave girou para nordeste, ao encontro do ponto J: Jericó. O plano de voo incluía as seguintes fases: uma vez consumada a descolagem e estabilizado ao nível oito, o berço dirigir-se-ia ao referido ponto J, situado a catorze milhas (vinte e três quilómetros). Dali, com uma ligeira mudança de rumo, deveríamos situár-nos na vertical do rio Jordão (ponto J2), a cinco milhas (nove quilómetros) de J. Numa terceira etapa, o módulo mover-se-ia em torno da radial trezentos e trinta, cobrindo as quarenta e duas milhas que separavam J2 da cidade helenizada de Citópolis (ponto S). Num quarto movimento, passaríamos ao rumo trezentos e sessenta, à procura do extremo sul do mar de Tiberíades, num total de quinze milhas (vinte e sete quilómetros). Por último, atravessando o lago de sul a noroeste (radial trezentos e vinte), desceríamos na base mãe-2, a noroeste de Cafarnaum. No total, noventa milhas (um pouco mais de 166 quilómetros).
... Procedo à leitura de WX 2. - Roger. Atingimos os dezoito mil pés por minuto (quatrocentos quilómetros por hora). O Pai Natal calcula a chegada ao ponto J dentro de três minutos e quatro segundos. Okay... Três minutos. WX ilimitada... Parece que estamos com sorte. Nem rasto dos Cb. Vento trezentos e cinquenta. Sem problemas a nível oito. Temperatura: dez graus. Consultei os altímetros gravitacionais 3. - Três mil e duzentos pés. Embora o módulo mantivesse o seu nível de cruzeiro (oitocentos pés sobre a cota máxima do monte das Oliveiras, ou seja, três mil e vinte pés), o paulatino e acentuado declive do terreno foi aumentando essa altitude inicial. De acordo com os nossos cálculos, na vertical do oásis de Jericó (ponto J), a nossa posição ficaria fixada em 3770 pés (1256 metros). (Convém recordar que a milenária cidade de Jericó se encontrava a duzentos e cinquenta metros abaixo do nível do mar). Aquilo proporcionava-nos uma margem acrescida de segurança. *1 – Bandeiras”, em gíria aeronáutica, significa aviso de falha no painel electrónico de alarme (bandeira de aviso de falha ou failure flag). (N. Do M.) 2 – uWX, condições meteorológicas. (N. Do M.) 3 – Sobre altímetros gravitacionais, veja-se a ampla informação proporcionada em Operação Cavalo de Tróia II, pp.168 e seguintes. (N. Do M.)
- Atenção! Ponto J no radar... Tempo estimado: noventa segundos. O meu companheiro manteve-se atento à iminente correcção de rumo. Em baixo, amarelado ao sol, o deserto de Judá estendia-se redondo e solitário, precipitando-se em inúmeras lombas até à fossa do Gort. A luz oblíqua sombreava dezenas de torrentes e gargantas que abriam caminho em direcção à profunda depressão do mar Morto com um áspero leito de calhaus avermelhados. A dura luminosidade daquela paisagem árida – mesmo 1 assim ocre e cinzenta – não
tardaria a despertar. O Sol ia subindo majestoso sobre os cerros violáceos de Moab, a sudeste, transformando os sessenta e sete quilómetros do lago salgado numa fulgurante lâmina de estanho, engastada, quase encurralada entre rochas nuas e desafiadoras. - (Quinhentos pés) e a aumentar Nível trinta e cinco (três mil e quinhentos por segundo. Às 8 horas, 19 minutos 30 segundos e 6 décimos, o Pai Natal modificou a posição do anel cardã e o J 85, suave, quase imperceptivelmente, girou um grau, projectando o berço para a radial setenta e seis. O módulo tinha sido programado para utilizar dois sistemas de navegação e direcção: o inercial e o denominado de orientação óptica. O primeiro tipo, baseado numa plataforma orientável situáda numa posição constante, quaisquer que fossem as viragens da nave, graças a tregioscópios. Tanto as estrelas como o horizonte podiam servir de pontos de referência. Três dispositivos sensíveis à aceleração mediam todas as mudanças de posição. Estes parâmetros eram transferidos para o computador central que, depois de os comparar com os correspondentes aos da trajectória de voo programado, efectuava as oportunas correcções. Qualquer desvio desencadeava um impulso eléctrico que disparava os propulsores de controlo, com o objectivo de modificar o rumo. Como aconteceu com a descolagem de emergência no cume do Olivete, podíamos desligar o sistema automático de direcção, manobrando manualmente.) - Roger. Luz de contacto. Verificação da radial? - Okay: ponto J2, situado a setenta e seis. Adiante... Oscilação nula. - Sessenta e três segundos. - Okay: Dá-me combustível. - Estamos a 93,2 por cento. - Fantástico!
A exclamação de Eliseu justificava-se plenamente. De súbito, os vinte durmá de terra calcária árida e gretada do deserto de Judá haviam-se transformado num vasto vergel. O oásis de Jericó! Densamente arborizado, com mil tonalidades de verde manchado aqui e além por pequenos bosques de tamargueiras, pintalgados por milhares de flores vermelhas e brancas. Toda uma luxuriante flora, bem irrigada por límpidos mananciais que emergiam entre álamos, roseirais, flexíveis muralhas de papiros e, dominando aquela incrível e imensa bênção, a rainha do oásis: a palmeira. A famosa phoinikon já cantada por Tácito Flávio Josefo e Plínio, o Velho. Meu irmão e eu ficámos mudos. Meu Deus, que beleza indescritível. O radar, com a sua frieza, foi mais eloquente do que as nossas pobres palavras: só o palmeiral ocupava uma extensão de quase treze quilómetros de comprimento por, aproximadamente, quatro quilómetros de largura. E entre as gráceis e esbeltas palmeiras, um mundo de cabanas, culturas de regadio, árvores de fruto e os tão apreciados arbustos de bálsamo. No horizonte, ziguezagueando entre a mancha verde, as águas escuras e plácidas do rio bíblico por excelência: o Jordão. Ao vê-lo correr entre meandros eriçados de canaviais e de amieiros de madeira branca, uma intensa emoção se sobrepôs por um momento à rígida disciplina de voo. Ali, em algum sítio daquelas águas terrosas, João tinha baptizado Jesus de Nazaré. E subitamente recordei a promessa feita a Eliseu. Como já contei em páginas precedentes, numa sexta-feira, 14 de Abril deste ano 30, depois de constatarmos o mal que nos afligia e de sabermos do pouco tempo de vida de que dispúnhamos, o meu entusiasta companheiro avançou com uma louca e tentadora sugestão: porque não desafiar o Destino? Porque não forçar a operação e acompanhar o Mestre ao longo de toda a sua vida pública? Naquela noite prometi- lhe reflectir sobre o assunto e darlhe uma resposta precisa e definitiva antes da descolagem para a Galileia. Mas as circunstâncias que rodearam a nossa partida do cimo do monte das Oliveiras fizeram-nos esquecer o assunto.
*1 – A terceira região natural em que se divide a Palestina era conhecida como o Gor. Trata-se de uma extraordinária zona de afundamento – o raben para os arqueólogos – que atinge a sua depressão máxima no mar Morto, 793 metros abaixo do nível do Mediterrâneo. As outras duas regiões naturais correspondem à costa e às terras altas”, que atravessam o país de norte a sul. (N. Do M.)
Esquecê-lo temporariamente, é claro. Ao contrário da minha, a memória de Eliseu continuava a ser esplêndida. E, inexplicavelmente, embora a minha decisão já estivesse tomada, mantive-me em silêncio. - Aí a tens – exclamou Eliseu, apontando para terra com o dedo indicador esquerdo. - Ao teu nove... - Jericó! A cidade mais antiga do Mundo... A pouco mais de onze quilómetros a oeste do Jordão a mile pria cidadela – com os seus quase dez mil anos de existência despertava para o novo dia, banhada de cal, tortuosa com as suas casas cúbicas aglomeradas no interior de uma muralha de cinquenta pés de altura, ocre e escarlates sob o sol nascente. Ocupava uma planície oval de quase dez estádios de diâmetro maior, serena e magistralmente implantada entre cerros escalonados que, como descrevia Estrabão se assemelhavam aos degraus de um ciclópico anfiteatro. A sudoeste, um profundo wadi, o célebre leito da torrente de Qelt, igualmente frondoso e escoltado por negros e vigilantes ciprestes (talvez da mesma espécie dos utilizados por Salomão para pavimentar o Templo), constituía o caminho natural para Jerusalém. De ambos os lados do wadi, a um escasso quilómetro das portas da cidade elevava-se um deslumbrante edifício, com terraços lajeados, fontes, jardins e um complexo labirinto de altas colunatas brancas e vermelhas. Tratava-se sem dúvida do luxuoso palácio de Inverno de Herodes, o Grande, com as suas instalações de banhos 1, os seus caldaria (aposentos aquecidos), tepidaria (salas temperadas), salões de recepção, cavalariças e uma piscina de águas esverdeadas de quase trinta metros de comprimento.
*1 – Supõe-se que numa destas instalações de banhos terá sido assassinado Aristóbulo, cunhado de Herodes. Tratava-se de uma considerável piscina dupla tendo ao meio uma divisória sobre a qual repousavam os banhistas. (N. Do M.) A observação, necessariamente exígua e apressada, não nos permitiu captar muitos pormenores. A cerca de duzentos e cinquenta metros a oeste desta dupla e airosa construção de mármore branco erguia-se outro palacete sensivelmente mais pequeno, que, . segundo as nossas informações, podia constituir a velha residência asmoneia. E à entrada do Wadi – erguida sobre um cerro – a torrefortaleza de Cypros, construída por Herodes, o criado idumeu, em honra de sua mãe e como baluarte para proteger o acesso a Jerusalém. Diferentemente do que sucede em pleno século xx, naquele tempo (ano 30) o oásis ocupava uma boa parte dos contrafortes do deserto de Judá. A cidade do vale inferior do Jordão, mil metros abaixo das colinas que rodeiam Jerusalém, podia sentir-se orgulhosa. O verde e próspero mar vegetal em que estava implantada atraía centenas de comerciantes e de ricos proprietários da Judeia que, tal como o rei Herodes, se mostravam orgulhosos por possuírem uma propriedade de recreio no suave e inalterável clima do oásis. - ... Prevenidos – anunciou Eliseu, atento às leituras do computador. - Ponto J2 no ecrã. Na vertical do rio Jordão – no cruzamento com o wadi, o Pai Natal modificou a radial, passando a trezentos e trinta. - Roger. Verifica pegeons. - Roger... Derivação correcta. Voando no rumo previsto: noroeste, e mantendo nível trinta e sete. - Tempo calculado para o ponto S? - Leio onze minutos e seis segundos. - Okay. Repete pegeons... - Quarenta e dois e trezentos e trinta. - Estávamos a quarenta e duas milhas do ponto S. - Como vamos de WX?
Fiz de novo a leitura dos dados meteorológicos, que não me agradaram. - A frente de perturbação (linha de fortes aguaceiros com ventos e trovões) continua a avançar. Leio base média abaixo dos dois mil e quinhentos pés. O laser apanha uma ampla frente, a norte, com lóbulos frontais a setenta e duas milhasz... - Percebi setenta e duas... - Okay. Precisamente na costa norte do lago. Vento na base dos Cb... trezentas e sessenta e vinte e cinco 3. - Meu Deus! Olhei de soslaio para Eliseu. Ambos sabíamos o que podia representar o encontro sobre o mar de Tiberíades com aquelas nuvens de desenvolvimento vertical e com ventos de cinquenta nós. Mas, sem mais comentários, rodeámos o inquietante problema. Ainda faltavam vários minutos para o temido confronto com a frente de cumulonimbos. *1 – Fornecer pegeons: na linguagem aeronáutica, dar distância e rumo. (N. Do M.) 2 – O ceilómetro-laser detectara a base média dos cumulonimbos (Cb) a dois mil e quatrocentos pés de altura, com um tecto de trinta e seis mil pés. Naquela altura, a frente encontrava-se a setenta e duas milhas. (N. Do M.) 3 – O vento na base dos cumulonimbos soprava de norte (radial trezentos e sessenta), com uma velocidade de vinte e cinco nós (à volta de cinquenta quilómetros por hora). (N. Do M.)
...Roger, Jasão. Decidiremos no ponto S. A ideia pareceu-me prudente. O módulo – permanentemente protegido pela radiação IR – deslocava-se velozmente a dezoito mil pés por minuto, num sobrevoo teórico do Jordão. Na realidade, a faixa ocre do rio – que na maior parte das vezes desaparecia sob uma selva impenetrável que desafiava o deserto em ambas as margens – era uma simples referência posicional. Era, por assim dizer, uma via natural, cómoda e directa, que deveria conduzir-nos ao objectivo final: o Kennereth ou mar da Galileia. Desde o primeiro momento chamou-nos a atenção a selvagem fecundidade dos bosques e da cúpula vegetal que crescia
sob a protecção, e à custa, do Jordão. Hoje, no nosso tempo, nem vestígios restam de semelhante selva, que, naturalmente, não devia ser muito recomendável para os peregrinos e caravanas. Com efeito, o poeirento caminho que, partindo de Jericó, subia paralelamente ao rio, até às povoações de Arquelaus, na Samaria, e Citópolis, na Decápole, raramente se aproximava da referida selva. A sua distância do Jordão oscilava entre uma e seis milhas. Embora o programa do Cavalo de Tróia tivesse estabelecido uma série de filmagens obrigatórias e de registos fotográficos infravermelhos, a partir da radial trezentos e vinte no limite sul do lago, o meu irmão mostrou-se de acordo quando, à altura de três mil e setecentos pés (1233 metros), sugeri que talvez fosse interessante aproveitar a ocasião para fazer uma cobertura fotográfica de alguns dos trechos do rio. Meses depois, quando os especialistas examinaram a valiosa colecção de imagens aéreas infravermelhas, a sua surpresa não teve limites. Os filmes Kodak aerochrome infrared 2443 (base star) e infrared 3443 (base star fina), de setenta milímetros, captaram uma prodigiosa fauna e flora que, dois mil anos mais tarde, só perduram na memória dos textos bíblicos. Uma folhagem verde, sã, exuberante – quase me atreveria a dizer amazónica – aparecia nas cores vermelho-arroxeado, púrpura-escuro, vermelho-pardo e amarelo. As acácias e jujubas eram aos milhares, descobrindo-se bosques compactos de bananeiras silvestres – exemplares insólitos e praticamente ignorados, carriços de escova, pujantes macieiras de Sodoma e milhões de juncos odoríferos, tão apreciados na preparação do óleo santo. Estas técnicas infravermelhas revelaram igualmente a presença na cerrada selva do Jordão de felinos e outros animais selvagens, a que aludem determinados escritos bíblicos e que, em pleno século xx, se nos afiguram fantásticos ou anacrónicos. Pois bem, Pedro, na sua Primeira Epístola (1 Ped 5, 8), ao evocar o rugido do leão, não utilizava uma parábola. Realmente, há dois mil anos, aquela selva tropical era um território dominado por leões, leopardos, linces, raposas, crocodilos e até hipopótamos. (Por certo, o behemoth e o leviatã referidos na
Bíblia). Aos cinco minutos desta terceira etapa de voo, no meio da espinha dorsal formada pelas terras altas a pouco mais de vinte e quatro quilómetros para oeste, apareceram diante de nós os cumes de Garizim e Ebal, em plena Samaria, de um verde-azulado pela distância e em evidente contraste com o amarelo avermelhado do deserto. E para leste a não menos árida região da Pereia – o Abasim ou montes fronteiros -, onde o planalto se apresenta quebrado por mesetas abruptas e brumosas, atravessadas por caravanas que vão para ou vêm de Damasco, Mas as nossas observações ver-se-iam bruscamente interrompidas. Foi o primeiro sinal do que nos aguardava. Sobrevoámos a desembocadura do Yabboq no Jordão, às três da nossa posição. Lembro-me de que me preparava para comentar com Eliseu a célebre história de Jacob, lutando num dos vaus do referido afluente com o misterioso anjo que lhe mudaria o nome para o de Israel quando, na cabina do módulo, soou um dos alarmes. O Pai Natal, através dos sensores exteriores, tinha detectado um aumento brusco da velocidade do vento. - Roger. Doze alarme. Dá-me pegeons. Enfim apagou a luz alaranjada do panel panic, esperando a minha informação. - O ceilómetro e os sferic (1) assinalam ventos de quinze nós a nível trinta e sete... Rumo norte. Não há dúvida: a frente está a cairnos em cima. - Dá-me potência. - Queimando a quatro por segundo. - Okay. Tempo estimado para o ponto S? - Creio seis minutos e seis segundos. - Roger. Sincronizo a cinco quilos. Creio que será suficiente. O berço acusou uma pequena sacudidela. Eliseu não se enganava. O aumento de potência – a cinco quilos por segundo – equilibrou
homogeneamente a velocidade. Mas que sucederia ao aproximarmonos do lago? Quando me preparava para activár o radar meteorológico, embrenhado nos meus pensamentos, o TGT AleRTa provocou um segundo alerta acústico e luminoso. No ecrã, a sessenta e cinco milhas, apareceu uma grande mancha verde, amarela e vermelha. Especialmente esta última – de nível três – representava uma séria perturbação meteorológica. Premi o FR 2, retendo a imagem da frente e pedindo ao Pai Natal um máximo de informação. Com a abertura de cento e vinte graus, a antena não tardou a explorar a tormenta. E através do outro dos pulsores – o CYC – as células mais activas da tempestade começaram a brilhar a vermelho. Olhámo-nos em silêncio. - Roger – murmurou o meu companheiro, esperando o pior.O que é que diz o Pai Natal? Resumi os parâmetros. - Zona crítica a sessenta e cinco milhas. O radar não capta o tipo de turbulência... *1 – O berço, tinha sido dotado de vários radiogoniómetros, em apoio de outros tantos sferic ou detectores dos «parasitas» produzidos no campo electromagnético. Embora não esclareça a natureza da perturbação, o seu grande alcance acaba por ser de extrema utilidade. (N. Do N.) 2 um dos quatro pulsores, localizado no canto superior esquerdo do ecrã do radar meteorológico. Activa um circuito que avisa automaticamente o piloto quando qualquer área de nível três aparece num sector de 71/2 graus de cada lado do eixo longitudinal da nave e a distâncias compreendidas entre sessenta e cento e cinquenta . (N. Do M.)
Nem era preciso. Aquela inoportuna linha de tempestade podia trazer de tudo: desde granizo até forte carga eléctrica. - Rawin e ceilómetro confirmam leituras anteriores: corrente em jorro subtropical... Nada de bom! Ao que parece, apresenta uma largura de trezentos quilómetros. Força de vento no centro: oscilando de oitenta a cento e cinquenta nós. Na tropopausa, forte cisalhamento vertical. - Nível? - Leio quatrocentos [quarenta mil pés].
- Percebi quatrocentos. - Afirmativo. Cisalhamento horizontal à esquerda do eixo e superior ao da direita do jorro... Tecto dos cumulonimbos a trezentos e sessenta (trinta e seis mil pés). Sem variação. - Alguma alteração ao nível da base? - Negativo. Mantendo-se a dois mil e duzentos pés. Eliseu esperou a última leitura, sem dúvida, crucial na altura de tomar decisões. - Ventos de componente norte na base. Força vinte e cinco. Empalidecemos ao mesmo tempo. - Repete. - Trezentos e sessenta graus vinte e cinco. Durante alguns segundos, cada um de nós mergulhou nos seus próprios pensamentos. Imagino que numa única e comum interrogação: como livrar-se daquela perigosa muralha? As nuvens de desenvolvimento vertical varriam o centro do mar de Tiberíades, com ventos de base de cinquenta quilómetros à hora. Se mantivéssemos o mesmo nível de voo (três mil e setecentos pés), penetraríamos em cheio na linha de turbulência. Se fosse caso disso, poderíamos descer de nível, aumentando assim a margem de segurança. Apesar disso, iludir a tormenta pela sua zona inferior não eliminava os riscos. - Roger. A seis segundos para o ponto S. - Okay. Dá-me o combustível. - De J2 leio três mil e trinta quilos. Estamos a 73,2 por cento. - Resistência parasitária em okay. Vento a trezentos e sessenta graus e a aumentar para dezassete nós. - Dá-me indicador de velocidade. - Mantida em dezoito mil... - Este maldito vento... O berço continuava a vibrar e a balancear. Aquele caixote voador, com as suas escassas – para não dizer nulas – formas
aerodinâmicas, não tinha sido concebido para enfrentar turbulências como as que presumíamos. Ponderámos a possibilidade de tornear os cumulonimbos, mas, definitivo e sem contemplações, o radar meteorológico fez-nos desistir de tal intento: em cada uma das suas catorze varredelas por minuto, a muralha reflectia-se numa área de sessenta graus de cada lado do eixo longitudinal da nave. *1 – A corrente em jorro ou jet stream, segundo G. Rossby, é uma forte e estreita corrente concentrada ao longo de um eixo quase horizontal na alta troposfera ou estratosfera, caracterizada por forte cisalhamento horizontal e vertical do vento, apresentando um ou mais máximos na velocidade. A OMM (Organização Meteorológica Mundial) acrescenta: Normalmente, uma corrente em jorro corre ao longo de vários milhares de quilómetros, numa largura de centenas de quilómetros e com uma espessura de vários quilómetros. (Nota de J. J. Benitez.) O combustível e tempo necessários para tentar a aproximação da base mãe-2, pelo leste ou pelo oeste, tornavam a manobra proibitiva. A hipótese de sobrevoar a formação de nuvens, elevando-nos a trinta e seis mil pés, nem sequer foi considerada. À razão de 5,2 quilos por segundo, a nave teria necessidade de mais de sessenta e duas toneladas de propulsor para se sobrepor ao tecto dos cumulonimbos. (A nossa carga total disponível, no momento da descolagem na meseta de Massada era de dezasseis mil e quatrocentos quilos.) Só nos restavam duas alternativas: aterrar e deixar passar a tempestade ou arriscar, contornando-a por baixo. Absortos no exame dos instrumentos, mal reparámos na branca e quadriculada cidade de Citópolis, a seis quilómetros a oeste do Jordão. O Pai Natal modificou o rumo, passando para a radial trezentos e sessenta. O tempo estimado até ao ponto L (margem sul do lago) era de três minutos e quinze segundos. - Agarra-te! Isto começa a complicar-se. Às oito horas e trinta e quatro minutos – exactamente a quarenta segundos de tocarmos no ponto L – as oscilações do berço aumentaram. O vento, em rajadas de direcção variável, fazia saltar e alterar continuamente os parâmetros do computador central, num esforço por equilibrar a potência do J 85. Se a nave entrasse em
perda, a nossa situação e a de toda a operação podiam ficar seriamente comprometidas. - Roger. Modificação para trezentos e vinte. Atenção, Jasão! Um último esforço. Base mãe-dois a doze milhas e meia. O Pai Natal orientou o motor principal para noroeste. E a nave registou quarenta graus. O vento bateu forte a estibordo, fazendo soar, pela primeira vez os avisos de nave em perda. - Alt! [Altitude]... Alt a trinta e cinco! Maldição! Descendo a vinte por segundo. Correcção! Correcção! Stall! O sistema automático reagiu de imediato, elevando a potência para 5,2 quilos por segundo. - Reduzindo inclinação... Quarenta graus... Trinta... Bem! Dá-me DGI [indicador de giroscópio direccional]. - Estabilizado. - W/D... Jasão, dá-me W/D! [Direcção do vento]. - Continua em trezentos e sessenta graus. Força dezassete. A nave reduziu o balanceamento. - Combustível. - No ponto L, 756 quilos. Estamos a 68,7 por cento. - Okay. Mantendo no nível trinta e cinco [três mil e quinhentos pés]. Sem nos apercebermos, tínhamos penetrado no espaço aéreo do mar de Tiberíades. O radar meteorológico continuava a apresentar o vermelho. Aqueles malditos cumulonimbos atingiam uma profundidade aproximada de trinta e cinco quilómetros. - Cinco milhas para a zona crítica. Os cumulonimbos estavam à vista. Observados de baixo apresentam-se negros e altos como montanhas, com a típica forma de bigorna na sua zona superior. Sobrevoavam o lago, estendendose muitas milhas a leste e oeste. No interior da nuvem serpenteavam, ameaçadoras, esporádicas descargas eléctricas. - Estás a receber a intensidade de turbulência?
- Roger. Muito forte na orla da frente e aumentando de baixo para cima. O Pai Natal calcula o nível de grau zero a quatro mil e quinhentos pés. - Gradiente de potencial eléctrico? - Superior a um milhão de vóltios por metro. Campo electromagnético nos Cb entre cinquenta e quinhentos. - Preparado protector antiabrasão 2. *1 – Em geral, a intensidade dos cumulonimbos depende da distância entre a base dos mesmos (neste caso situada a dois mil e duzentos pés) e o nível de zero graus (quatro mil e quinhentos pés): níveis de condensação e congelação. Quanto mais dilatada é a distância, mais activos são os cumulonimbos. Na nossa situação, os dois mil e trezentos pés representavam um perigo muito considerável. (N. Do M.) 2 – O chamado «protector antiabrasão» consistia num dispositivo especial, criado pelos engenheiros do Projecto Swivel e que, embora tenha sido concebido para outro tipo de navegação (a espacial), foi igualmente introduzido no «berço». Futuramente se Deus quiser esta «barreira protectora» resultará de suma utilidade nas viagens intergalácticas. Como é bem sabido, uma nave espacial cria à sua volta um campo gravitacional que, embora não excessivamente intenso, se vê aumentado em determinadas regiões do espaço. A poeira cósmica e partículas de natureza vária chocam inevitavelmente com a estrutura do veículo, provocando, a longo prazo, uma abrasão e um desgaste perigosos. Pois bem, o protector antiabrasão evita esse problema. A camada superficial da membrana exterior (a que já me referi noutra altura) foi provida de uma finíssima subcamada, composta de partículas coloidais de platina e empulsionadas num meio de elevado coeficiente. Na periferia da nave instalaram-se igualmente «células ionizadas» que desempenham uma dupla tarefa. Em primeiro lugar, reforçam os gradientes electrostáticos em redor do veículo. No caso, por exemplo, de uma grande nebulosa de poeira cósmica, com partículas sólidas de metano, níquel-ferro silício ou amoníaco, que envolva a nave, estas partículas podem ser de natureza neutra (sem carga eléctrica) ou ionizada (em positivo ou negativo). Na primeira hipótese – neutras -, tais partículas orientar-se-iam para a nave, dado o gradiente gravitacional favorável a este fluxo. Previamente, o computador central regista e analisa a densidade espacial dessas partículas, o seu espectro gravimétrico (isto é, a distribuição estatística em função das suas massas e morfologias), a sua composição química e a sua carga electrostática média (nula neste caso), assim como a sua função cinemática em relação aos núcleos galácticos emissores de referência. Analisados estes parâmetros, a resposta do sistema antiabrasão é fulminante. As células geradoras de iões emitem electrões, impelidos por uma elevada energia, que se projectam em trajectórias parabolóides para o exterior. Ao mesmo tempo, a
membrana de platina coloidal carrega-se de um potencial electrostático que pode atingir valores de cento e oitenta mil a novecentos mil e seiscentos volts (potencial negativo). Qualquer partícula que se dirija à membrana exterior capta um ou vários electrões, procedentes do fluxo emitido pela nave. A partícula fica ionizada. Como o gradiente de potencial eléctrico é muito elevado à volta do veículo, a repulsão eléctrica compensa tanto a enera cinética daquela como a força de atracção gravitacional, não estabelecendo contacto com a superfície exterior da referida nave. No caso de a poeira cósmica estar previamente ionizada, a submembrana de platina ioniza-se com carga idêntica à do elemento agressor. É preciso ter em conta que a subcamada de platina coloidal está protegida por outro estrato superior do mesmo material cerâmico que a camada superficial da membrana.) Um efeito secundário de transferência de cargas entre a superfície livre da membrana e a subcamada de platina coloidal dá origem a uma emissão fotónica do córtice cerâmico dentro do espectro visível, em ondas de longitudes no vácuo de 596,9 milimícrons e 602,34 ou 612,68 milimícrons. Esta electroluminescência não é provocada pelo impacte de electrões sobre a massa, mas sim pelo campo eléctrico gerado por eles, à sua passagem pela massa cerâmica translúcida. Um observador exterior apreciaria uma intensa luminosidade, cujos matizes dependem da longitude da onda emitida, oscilando entre o verde amarelado e o carmim. O controlo do potencial electrostático em cada unidade superficial do córtiou membrana exterior está projectado de tal forma que a distribuição de cargas densidade superficial electrostática) possa variar de um contorno para outro até ao ponto de que, numa área, a densidade apenas atinja alguns décimos de microcolúmbio, mesmo que circule por zonas de potencial eléctrico muito elevado. A função potencial não é, pois, constante para áreas da mesma curvatura ou arqueamento. Em suma, não é harmónica na periferia da nave. Várias são as razões pelas quais se faz uso dessa flexibilidade na distribuição da carga eléctrica. Primeiro, porque a densidade de partículas agressoras não é a mesma em toda a periferia. Além disso, como estas vão orientadas numa direcção (caso típico do «ventoH de partículas cósmicas», obviamente, nem incidirão com a mesma energia cinética sobre a nave. A abrasão seria mais intensa que em outras áreas, numa zona definida que terá de proteger-se com um potencial mais intenso. Por último, nesta descrição sumária convém lembrar que, num dado momento pode suceder que o elevado potencial de uma zona perturbe qualquer medição ou análise de um transductor de funções, e assim a rede de computadores anula a carga superficial usurpadora. (M. Do M.) - Okay... CP [ponto crítico] a três milhas. Vento em trezentos e sessenta graus e aumentando para vinte. Sob o berço, as águas do lago, cinzentas e encrespadas, batiam força, branqueando a costa ocidental. Eliseu, precavido, chamou a si o controlo manual pronto a accionar o sistema de comando.
...Aí vem!... Altímetros, altímetros! - Trinta e cinco... - Temperatura dos foguetes... - Sem variação... Que Deus nos ajude! A nave penetrou no grande lóbulo frontal dos cumulonimbos. Uma forte sacudidela fez estremecer a estrutura, ao mesmo tempo que a chuva intensa e em rajadas nos deixava às cegas. A turbulência fez saltar os altímetros gravitacionais, provocando viragens bruscas na plataforma giroscópica. - Inclinação!... Trinta graus! Rectifica! - Aumenta a potência!... Nível a trinta! Perda! Perda! - Desligar! O meu irmão, desdobrando-se em actividade, anulou o sistema automático, puxando com força a alavanca. As ALT (barras de comando que fornecem o roteiro vertical) continuavam enlouquecidas. - Aumentar a potência! Foguetes no limite!... Queimando a sete por segunto! Já se levanta Vamos, vamos!... O berço recuperou em quinze graus a sua perdida horizontalidade. Mas a força do vento, ora vertical ora horizontal, continuava a alterar a altitude, deslocando o rumo. - Assim! Assim!... Mantém-no em trinta! Mas os alarmes continuaram a dar-se. Desta vez foram os anemómetros periféricos. - Meu Deus!... Cisalhamento vertical... Quarenta nós! Nível! Nível! Estamos em perda!... Stall!... Tínhamos entrado no raio de acção de um fortíssimo vento vertical que se precipitava dos cumulonimbos para o solo, com um temido efeito de redemoinho sobre a nave. E o berço,, entre sacudidelas, desabou como um cubo. - Stall!...
- Três mil!... Dois mil e oitocentos!... Dois mil e quinhentos!... Luzes, luzes!... Descendo! Perigo!... Oh, meu Deus!... Luzes de sobrecarga na estrutura!... Dois mil e duzentos pés! Eliseu puxou a alavanca, formando o ângulo de viragem do J 85. Mas o balanceamento continuou, sensivelmente acentuado pelos golpes de água provocados pelo cisalhamento. - Correcção do arqueamento!.. - Vou tentar! Sessenta graus!... Cinquenta e cinco.... Vamos, vamos!... , - Nível vinte!... Alarme. Luzes de baixa na pressão de óleo. Aguenta-o, aguenta-o! , - Meu Deus! Jasão, reduz o ângulo de arqueamento. Liga os auxiliares! Os pequenos motores, sob o controlo do Pai Natal, entraram em acção estabilizando o módulo. - Roger... Finalmente sob controlo!... Dá-me secção de cisalhamento! - Uma milha... SODAR localiza dissipação a trezentos e cinquenta pés. - Roger. Não temos outra alternativa. Lá vamos. Activa dispositivo antiabrasão! A membrana exterior abriu o escudo, criando um poderoso fluxo de electrões em torno da nave. E um redemoinho de um vermelho amarelado envolveu o berço. Água e vento chocaram com a invisível parede, mantendo-se a pouco mais de um metro da fuselagem. Isto aliviou as fortes tensões que a estrutura estava a suportar e o J 85 reduziu a sua potência. O meu irmão, tão pálido como eu, sem perder de vista o variómetro, inclinou o módulo, à procura do nível de dissipação de cisalhamento. - Queimando a cinco ponto dois... Dá-me nível. - Mil e oitocentos pés... Mil e seiscentos... Trinta e cinco graus. - Pegeons. - Trezentos e trinta... Correcção dez graus – Okay. Para baixo a vinte e três por segundo!... Rumo trezentos e vinte.
Estabilizado! - Continua a descer. Mil e duzentos pés... Mil pés... Parece que afrouxa! Vento? *1 – Os sensores externos, incluindo o SODAR (radar acústico), estabeleceram a secção do cisalhamento em cerca de uma milha (quase dois quilómetros). Baseandose no efeito Doppler, analisaram o retorno de um sinal acústico emitido por uma das antenas especiais e capaz de chegar até aos seis mil metros, na vertical. Desta forma consegue-se uma aceitável medição do vento: a sua força, direcção, turbulência e estruturas térmicas. A análise do deslizamento em frequência do eco em retorno e em intensidade permite uma precisão de 0,5 milhas/hora e de cinco graus em direcção. Neste caso o jorro vertical descia até trezentos e cinquenta pés do solo, abrindo-se horizontalmente sobre as águas do lago. (N. Do M.) - Em trezentos e sessenta graus e a dez. - Nível oitocentos pés... Um pouco mais!... Setecentos pés... Para baixo a quinze. Travando! Para baixo a dez... Nível! - Seiscentos pés... Vento a oito. Zona de dissipação! Agora! Eliseu estabilizou o módulo em velocidade horizontal. O cisalhamento tinha perdido a sua força. - Desactiva o antiabrasão! - Roger... A luminosidade escarlate desapareceu e a chuva, mais leve, envolveu de novo o berço. Para baixo a duzentos metros, o lago agitava-se à passagem dos cumulonimbos. Reflecti por um instante sobre o que se passara. A nossa temeridade podia ter-nos custado muito caro. Sem o escudo de electrões, a nave poderia ter entrado num stall de alta velocidade, precipitando-se no mar de Tiberíades. E ali teria terminado a Operação Cavalo de Tróia. É claro que nem o meu irmão nem eu fizemos qualquer comentário. Naquele momento, a única coisa que importava era chegar à costa norte e descer. A tormenta, agora por cima do módulo, corria velozmente para o sul. A navegação tornou-se mais suave, mas não havia que confiar. - Verificar a rota.
- Em trezentos e vinte. Tempo estimado para a base mãe-dois... leio quarenta e cinco segundos. Eliseu retomou o plano director. - Linha de costa no radar. Verifica coordenadas. - Roger. Base mãe-dois em 32 graus 527” (latitude norte) e 35 graus 302” (longitude leste). - Okay. Elevando para trinta e três graus... Vinte e cinco segundos... Nível estabilizado a novecentos pés. Reduzindo para quinze por segundo. Reduzindo para nove... Cavalo de Tróia tinha previsto o novo ponto de contacto num suave promontório que se ergue a noroeste do mar de Tiberíades e cuja cota máxima coincide praticamente com o nível do Mediterrâneo. As referências evangélicas identificam essa colina com o célebre monte das Bem-Aventuranças. Na opinião dos geólogos, era mais que provável que o perfil orográfico do referido promontório não tivesse experimentado alterações sensíveis naqueles dois mil anos. No entanto, dada a lógica dificuldade para o comprovar, os directores da operação tinham-nos confiado a decisão final a respeito da zona de descida. Resumindo: antes de proceder à aterragem era necessário um cuidadoso reconhecimento do terreno. - Roger. Base mãe-dois à vista. Que diz o Pai Natal? O módulo sobrevoou terra firme e os sistemas de detecção, em conjugação com um CLC-3D modificado, apresentaram no monitor algumas das mais salientes características da colina: - Cota máxima a seiscentos pés sobre o nível do lago. Encosta sul de mil e seiscentos pés, em declive de quarenta graus. Sólida formação calcária com abundante fluxo basáltico em declives a oeste e sudeste e uma série de vãos perfeitamente delimitados (sem dúvida de origem artificial) no subsolo do lado leste. As radiações IR não detectaram qualquer presença humana em todo o promontório. Mas não é preciso dizer que aquelas covas ou galerias nos intrigaram sobremaneira. - O radar assinala uma dupla formação rochosa, plana, na encosta
sul. Cota cem. Distância do lago: quatrocentos pés. Configuração calcária. Leio trinta e nove pés de diâmetro, respectivamente. A primeira pode servir. Ligeira inclinação da superfície rochosa para oeste; dez graus. - Okay. Compreendido. Pronto. Altitude novecentos. Vamos lá. Vinte e um para baixo... Trinta e cinco graus... Seiscentos pés... Para baixo a dezanove... O berço iniciou a descida, à procura de uma das brancas e pétreas manchas. - Roger... Trezentos pés e três e meio para baixo... Adiante! Para baixo num minuto. Vento? - Leio cinco nós e direcção estável: trezentos e sessenta graus. - Roger. Um e meio para baixo... Dezanove adiante. Atenção! Onze adiante... Luzes altitude! Três e meio para baixo... Duzentos pés... Já é nossa!... Quatro e meio para baixo... Cento e sessenta pés e metade para baixo... Adiante! Já!... Quarenta pés... para baixo dois e meio... Poeira! Recolhemos pó!... Quatro para diante, desviando para a direita. Cá está! Luz de contacto! Luz de contacto!... Santo Deus, obrigado! A nave tocou o solo bruscamente. E o Pai Natal corrigiu automaticamente os dez graus de desnível, equilibrando as secções telescópicas do trem de aterragem. Eliseu desligou os circuitos, procedento à ventilação do oxidante. - Pronto o dispositivo infravermelho a cento e cinquenta pés. - Roger. Ancorados na base mãe-dois. Algum target no ecrã? O meu irmão fez sucessivas verificações com os feixes. - Negativo. Parece que lá fora está tudo calmo. - Bandeiras? - Negativo. Tudo pelo melhor... Fizeste um bom trabalho. Eliseu sorriu matreiramente. E, apontando a minha insólita indumentária de piloto, replicou: - Para comerciante de vinhos e madeiras de Tessalónica, também não estiveste mal de todo...
A piada descontraiu o pesado e tenso ambiente da cabina. O pior, em princípio, já tinha passado. Os cronómetros marcavam oitenta e nove horas, quarenta e sete minutos, cinquenta e sete segundos e seis décimos. Isso significava que tínhamos gasto dez minutos mais que o previsto no plano de voo. Uma vez mais me equivoquei. Apesar de termos vencido o temporal, a nossa situação não era tão boa como presumíamos. Ao verificar os sistemas, um dos controlos de rotina deixou-nos perplexos. O combustível consumido nas últimas vinte e sete milhas e meia (do ponto S até à base mãe-2) era muito superior ao previsto pelos especialistas da operação. Em vez de 1492 quilogramas fixos previamente, o módulo – como consequência das fortes acelerações – tinha consumido 2992 quilogramas. Recorremos ao computador central. Os cálculos estavam correctos. O Pai Natal tinha sido atestado com minuciosa exactidão. Não havia possibilidade de erro. Estávamos com 59 6 por cento de combustível. Sem nos descontrolarmos, repetimos e verificámos os cálculos uma e outra vez. O problema surgia sempre na última etapa. Só naquelas 12,5 milhas finais o berço, de quatrocentos quilos iniciais tinha consumido 9,1 por cento dos dezasseis. Visivelmente desanimado, o meu irmão voltou a cabeça, contemplando a chuva que batia na escotilha de bombordo. Compreendi o seu desalento. Não era a viagem de regresso à meseta de Massada o que o preocupava. A reserva de combustível de que dispunhamos – sse bem que exígua – permitia-nos atingir o nosso objectivo. (Na realidade, dispúnhamos de 9774,4 quilogramas, mais três por cento na reserva de emergência, equivalente a 492 quilogramas.) Contando com bom tempo e com uma navegação sem excessivos contratempos, estas dez toneladas eram suficientes. Com o fim de poupar tempo e combustível seria preciso modificar as rotas. E durante alguns minutos, aparentemente alheio à profunda e silenciosa frustração do meu companheiro ocupei-me do tratado e programação dos possíveis novos rumos desde o nosso actual nível de contacto até à piscina de Massada. O Pai Natal não
tardou a apresentar um plano de voo minuciosamente ajustado às circunstâncias: da zona noroeste do lago ao ponto L e daí, esquecendo o ponto S, direitos como um tiro ao J 2. Na confluência do Jordão com o wadi Nimrin, o berço deveria passar a radial cento e noventa, sobrevoando a zona oeste do mar Morto. Ao todo, 109,2 milhas, com um tempo calculado de trinta minutos e quatro segundos, a uma velocidade de cruzeiro de dezoito mil pés por minuto. Esta travessia – a uma média de quatro quilogramas por segundo – representava um consumo total de 7216 quilogramas. Por outras palavras, descontada a viagem de regresso a Massada, as nossas disponibilidades cifravam-se nuns nada confortáveis 2558,4 quilogramas de combustível. Apesar disso, tentei levantar o moral de Eliseu. - Nem tudo está perdido – sentenciei, convidando-o a examinar o programa. O meu irmão acedeu sem demasiado entusiasmo. - Esqueces-te de uma coisa – interveio, ao fim de alguns minutos. a operação prevê a elaboração dos mapas digitalizados do lago. Sabes que, sem eles, o olho de Curtiss ficará fora de serviço... Neguei com um movimento de cabeça. O computador central, esse sim tinha tido em conta essa parte do programa. Como já referi, Cavalo de Tróia achou conveniente que, no sobrevoo do mar de Tiberíades , as câmaras de bordo filmassem diferentes áreas do lago. Essa informação, previamente codificada, era de importância vital para o bom funcionamento de outro dos dispositivos fantásticos de que dispúnhamos e que os engenheiros tinham baptizado familiarmente de olho de Curtiss, em honra do nosso querido general e director do Projecto. (adiante, se não me faltarem as forças, falarei deste curioso e Mais mágico – companheiro de expedição, - que quase matou a estes loucos aventureiros.) que tão excelentes serviços prestou. Mas a tempestade tinha impossibilitado a execução dessas filmagens. Era preciso esperar e, com boa visibilidade elevar-se de novo sobre a zona, procedendo então ao estudo e registo do perfil do terreno. Isto representava um consumo adicional de combustível. E Eliseu, frustrado, dava-se bem conta disso. Contudo, como disse, ao
elaborar o plano de voo, o Pai Natal não tinha perdido de vista esta contingência. Na suposição de que a nave percorresse o perímetro total do lago (cinquenta e dois quilómetros), o combustível necessário para tal sobrevoo ascendia quase a duas toneladas. (Tendo em conta as sobrecargas da descolagem e posterior aterragem, assim como o consumo médio durante os sete minutos e oito segundos previstos para o desenvolvimento da operação, o consumo total - sempre segundo o computador – somava 1988,6 quilogramas. Ou seja, se obedecêssemos aos planos da operação, a descida final em Massada poderia verificar-se com um superavit de combustível mesmo à justa: 569,8 quilogramas, além da reserva de emergência. E embora essa perspectiva não nos tranquilizasse, a realidade acabou por se impor. Estávamos onde estávamos e, uma vez verificados todos os parâmetros, de nada servia lamentarmonos. O Destino tinha a última palavra. Além disso, tanto Eliseu como eu conhecíamos perfeitamente os pormenores da chamada fase tigre. Cavalo de Tróia tinha contemplado também a remota mas verosímil possibilidade de que, devido a uma avaria ou acidente irreparáveis, o berço e os seus ocupantes fossem sujeitos a alguma nova e grave emergência, as ordens eram taxativas e invioláveis: regressar ao nosso tempo, procedendo à imediata destruição do módulo. Fosse qual fosse o lugar em que se produzisse essa desintegração do berço, o nosso regresso a Massada não tinha por que ser especialmente problemático. Mas vejo que estou a afastar-me de novo do que na verdade importa. Eliseu continuou em silêncio. Os planos e estimativas eram relativamente tranquilizadores. Todavia, aquele mutismo encerrava algo de mais profundo e íntimo. E eu sabia o seu significado. - Repito-te que nem tudo está perdido... Olhou-me sem compreender a minha insistência. Sorri maliciosamente, exibindo um ar descontraído, e adiantei-me aos seus pensamentos. - Sabes bem a que me refiro.
- Então... O meu sorriso abriu-se definitivamente, dissipando as suas dúvidas. - Sei que podemos fazê-lo – acrescentei, simulando uma segurança que teria desejado possuir de facto. A minha atormentada existência foi sempre assim: cheia de contradições. - Se ainda te sentes com forças, vamos em frente. Acompanhemos o Mestre! Mas... Não o deixei terminar. - Julgavas que tinha esquecido a minha promessa? Reflecti na tua ideia e estou de acordo: vamos correr o risco. Vale a pena. Vejo apenas uma dificuldade... - Só uma? Pus-me diante do monitor e, teclando no terminal do computador central, mostrei-lhe algo que já conhecia: os 59,6 por cento de combustível. - Esta é a nossa dificuldade... - Compreendo. Eliseu, prudentemente, deixou-me concluir. - Se bem que haja uma solução: imobilizar a nave, haja o que houver. Só assim poderíamos conjugar a nova exploração e o regresso. O meu irmão começava a adivinhar as minhas intenções. - Estás a sugerir que durante esses três ou quatro anos de acompanhamento do Rabi da Galileia, o berço permaneça inactivo? - Não exactamente. Os seus sistemas e dispositivos electrónicos, como sabes, são necessários para levar a cabo esta e a futura terceira exploração. Em contrapartida podemos prescindir dos serviços da pilha atómica e principalmente, do voo da nave. Substituiremos a alimentação da SNAP 27 recorrendo à bateria de placas solares. (Como medida de precaução, os responsáveis do Cavalo de Tróia tinham incluído neste segundo salto um total de doze placas,
susceptíveis de serem montadas no exterior do berço, placas de radiação solar. Todas de vidro com revestimento de práta, tinham 29,3 centímetros de diâmetro, podendo gerar até quinhentos watts. Por detrás tinham sido fixadas diversas películas de cobre com possibilidade ideal pela base de ferro em posição azimutal biaxial. O sistema do professor israelita Tabor, permitia que toda a radiação reflectida incidisse num único tempo. Isso era possível graças à forma espectacular assimétrica e ao deslocamento do eixo de rotação horizontal no centro da curvatura da imagem. Embora a capacidade de reflexão do vidro com revestimento de prata fosse elevada – cerca de oitenta e noventa por cento, -, os especialistas equiparam- nos também com outras lâminas de substituição, à base de aço maleável prateado e metal electroprateado, com índices de reflexão de noventa e um e de noventa e seis por cento, respectivamente.) O plano, ainda que viável do ponto de vista estritamente técnico, exigia uma longa e conscenciosa maturação. Eram muitos os aspectos a considerar que, naquele momento exacto da vida de Jesus de Nazaré deveríamos encarar? O início da sua actividade pública não aparece com muita clareza nos textos evangélicos. Era preciso confirmá-lo com um máximo de rigor. E essa devia ser, indubitavelmente outra das minhas missões na já iminente exploração na Galileia , (Apenas Lucas é explícito quanto à data em que João Ba tista deu início à sua actividade como pregador: O décimo quinto do reinado de Tibério César... (2 A manipulação dos eixos dos swivels requeria uma precisão absoluta. Sobrecarregar as nossas debilitadas colónias neuronais com sucessivas e frustradas inversões de massa das partículas subatómicas teria constituído um risco inútil e perigoso (3). Mas não era esse o único problema a ser encarado na atractiva terceira exploração. Uma expedição complexa e prolongada, com o peso suplementar de um módulo forçosamente imobilizado em terra, exigia a procura de um refúgio seguro e inacessível aos humanos daquele tempo. Uma base mãe era o que fazia falta, em última análise, na qual pudéssemos esconder o berço e a partir da qual pudéssemos partir tranquilamente para as várias missões. Esse lugar só podia ser algum dos abruptos picos que circundavam o
lago. A escassez de combustível assim o aconselhava. Por outro lado, segundo os textos evangélicos, a Galileia tinha sido uma das regiões mais intensamente frequentada por Jesus de Nazaré durante a sua vida pública. *1 A SNAP 27 localizada à popa do «berço», transformava energia calorífica do plutónio radioactivo em corrente eléctrica de cinquenta watts), com uma vida útil de um ano. Esta pilha,, com uma blindagem especial, era o coração do módulo. Todos os circuitos e instrumentos em maior ou menor grau, dependiam dela. (N. Do M.) 2 As dúvidas sobre esta data são consideráveis. Será possível começar a contar esse ano 15 como o ano 765 da era romana ou o ano 12 depois de Cristo, quando Tibério foi associado ao governo do seu predecessor, Augusto? Se assim fosse, a pregação de João teria de ser fixada no Outono do ano 26 ou talvez 27 da nossa era. Muito impreciso, em suma. (M. Do M.) 3 Ampla informação sobre o grave problema que afectava os pilotos, em Operação Cavalo de Tróia II, pp 363 e seguintes. Nota de J. J. Benitez.)
Era, pois, presumível que uma boa parte do acompanhamento do Mestre se desenrolasse por aquelas paragens. Durante uma hora vimo-nos assim arrastados para uma viva, electrizante e esperançosa discussão na qual cada um, paradoxalmente, procurou convencer o outro da bondade e dos inúmeros atractivos da futura missão. A decisão estava tomada: retrocederíamos no tempo, desenvolvendo aquela que, sem dúvida, podia constituir a nossa mais ambiciosa e histórica exploração. Estávamos convencidos de que o sacrifício redundaria num mais extenso e aprofundado conhecimento do que se passou na referida vida pública do Mestre. E aquele ideal - vejo-o agora com emoção – manteve-nos firmes nos momentos de perigo e desalento. E foi com entusiasmo que nos entregámos à árdua tarefa de programar e planificar aquele que seria o terceiro salto à Palestina do século I. Eliseu ficou encarregue de tudo o que se refere à infra-estrutura: equipamentos, manutenção da nave, protecção pessoal, sobrevivência, etc. A minha tarefa consistiria essencialmente na recolha de dados: data do início da pregação de Jesus, itinerários das suas viagens estadas, acompanhantes, etc.
Estas informações, fornecidas ao computador central, serviriam para a elaboração de um minucioso plano de trabalho. Dez horas. Notavelmente reconfortado, o meu irmão recuperou a sua habitual e eficiente frieza. E tentou dissuadir-me. A revisão do módulo podia esperar, os aguaceiros e ventos intensos açoitavam a colina incessantemente. Todavia, impaciente por reconhecer o terreno e a estrutura da nave, ignorei os seus conselhos, accionando o mecanismo de descida da escada hidráulica e vim para fora. Eliseu tinha razão. Durante os primeiros momentos fui obrigado a permanecer sob o bojo do berço, flagelado por rajadas de quinze a vinte nós que arrastavam consigo terra, tufos de vegetação e um autêntico dilúvio. O sibilar do vento entre as patas do módulo era tão ensurdecedor que a própria ligação auditiva ficou seriamente afectada. - Jasão, estás a receber-me?... Escuto. - Em condições precárias. A tempestade é muito forte. Estou mesmo debaixo dos teus pés... Não distingo grande coisa. Escuto. - Roger. Desiste... - Espera um momento. Inspeccionei a massa rochosa. Parecia sólida, embora fortemente marcada pela erosão. Provido dos crótalos fui-me deslocando de um ponto de sustentação para outro, verificando a inclinação e natureza da laje. Apresentava de facto um desnível de cerca de dez graus para oeste. Embrulhei-me o melhor que pude no capote e, lutando contra a tempestade, circundei o módulo, inspeccionando as suas paredes. - Atenção! Não vejo marcas na estrutura. A máquina não fendeu a rocha. Há no entanto uma forte radiação no J 85. Escuto. - Recebido. Sobe já... - Um minuto. Tens target no ecrã?
- Negativo. A pergunta foi uma estupidez. Quem poderia aventurar-se até àquele promontório com semelhante tormenta? Agarrado ao trem de aterragem tirei as lentes IR, na tentativa de captar o maior número po ssível de pormenores da colina e seus arredores. Não foi fácil. A base das nuvens tinha descido consideravelmente talvez abaixo dos mil e oitocentos pés (cerca de seiscentos metros) – e espessas formações de Cb precipitavam-se para terra em forma de negras cortinas de água. A cerca de seiscentos pés do ponto de contacto, a superfície do lago, encrespada, era uma plúmbea e confusa massa de chuva e de vagas. Para leste, nas margens do lago turbulento e a uns dois quilómetros de distância, destacava-se o núcleo urbano mais próximo da nossa posição: um alongado conjunto de casas de pedras escuras, que reluziam sob o aguaceiro persistente. Se não me falham os cálculos, só poderia tratar-se de Cafarnaum. Apenas da visibilidade precária, fiquei surpreendido perante o rosário de pequenas e grandes aldeias que balizavam o litoral. A costa oeste, em especial, era a mais densamente povoada. Esta circunstância tranquilizou-me. Teríamos escolhido o lugar indicado para o assentamento do módulo. Era vital e urgente que procedêssemos a uma exploração exaustiva do promontório. Se o ponto de contacto se encontrasse numa zona de passagem os quebra-cabeças podiam ser contínuos e altamente desagradáveis. Pensei em deslocar-me até ao ponto mais alto. De lá, a localização dos vários carreiros seria mais rápida. Impossível. A furiosa tempestade tornava inviável qualquer tentativa de reconhecimento. Aparentemente, os arredores do berço não apresentavam sinais de qualquer caminho ou vereda. O terreno parecia improdutivo. Contudo, tínhamos de nos certificar. A cerca de cem passos, na direcção leste-sudeste, perfilava-se uma formação de grossas e arredondadas rochas basálticas. Se a memória não me falhava, aquele era o ponto em
que tinham sido detectadas as estranhas galerias ou construções subterrâneas, aparentemente artificiais. O senso comum impôs-se e, completamente encharcado, optei por ingressar na nave, à espera de uma melhoria do tempo. O resto daquela segunda-feira passou-se sem incidentes de maior. Descansámos por turnos, presos a cada momento dos sensores infravermelhos e da evolução da metereologia. Uma boa parte do meu tempo foi gasta na revisão do programa estabelecido por Cavalo de Tróia e que deveria iniciar-se a partir de quarta-feira, dia dezanove. Se tudo corresse normalmente, o grupo dos galileus apresentar-se-ia no lago até ao entardecer da referida quarta-feira, ou, o mais tardar, na manhã do dia seguinte. Por razões óbvias, a minha presença em Betsaida ou Cafarnaum não era aconselhável até ao anoitecer de dezanove. E mesmo, se possível, só deveria aparecer uma vez confirmada a chegada dos discípulos do Ressuscitado. (Por muito veloz que tivesse sido o meu meio de transporte desde Jerusalém, o lógico é que tivesse precisado de uns dias para percorrer o acidentado caminho que atravessa a Samaria. Não tinha outra alternativa. Só me restava esperar.)
18 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA De madrugada, o vento parou. A frente nebulosa afastou-se para sul e, como costuma acontecer nestes casos, a melhoria do tempo foi espectacular. 5 h 42 m. O Sol despontou num ápice – como se estivesse impaciente -, aquecendo a linha uniforme das elevações que emergem junto à costa oriental do lago. Uma luz rasante e de múltiplos cambiantes revelou-nos um espectáculo difícil de imaginar. Atónitos, ficámos como que hipnotizados. Flávio Josefo tinha sido demasiado sóbrio na sua descrição da pujante Galileia.
Em todas as direcções, colinas, vales e planícies apresentavam- se cobertos de um manto vegetal sem princípio nem fim, onde os bosques de azinheiras e terebintos, frondosos e ramificados, se contavam por dezenas. Intermináveis campos de trigo e de cevada perdiam-se no horizonte, dourando e verdejando encostas e planícies. E ali mesmo, na suave colina que nos servia de poiso, uma erva alta e húmida atapetava os declives, em competição com fileiras de vermelhas anémonas, lírios, margaridas de pétalas brancas e amarelas e cardos de um metro de altura, carregados de flores violetas que se estendiam desde o cimo do promontório até às rochas basálticas – agora amareladas – da encosta leste. A ocidental, mais pedregosa, encontrava-se igualmente colorida de gladíolos e karKom de um amarelo luminoso. Para norte, até ao cume, a vegetação era semelhante, com compactos círculos de espécies baixas, entre as quais sobressaíam murtas, urtigas e acantos. Meu Deus, como descrever semelhante vergel? O Pai Natal processou as últimas leituras dos sensores externos e ofereceu-nos um emagrama de Stüve francamente optimista: os níveis de condensação tinham descido, a visibilidade era ilimitada, a calmaria – entre mil e novecentos milibares – quase total e a pressão em contínua subida. A jornada parecia perfeita e, eufóricos, pusemos mão à obra. O primeiro e obrigatório passo consistia num meticuloso rastreio dos arredores. O dispositivo infravermelho mantinha-se inalterável. Então, munido da minha inseparável vara de Moisés, saí da nave. Durante vários minutos, presa das mil cores e da fragrância que a terra molhada exalava, hesitei quanto ao rumo a tomar. Enchi os pulmões daquele ar fresco e perfumado e, deixando que sandálias, pernas e túnica se impregnassem de orvalho, dirigi-me para norte, para o ponto mais alto da colina. Uma vez ali, a uns quatrocentos metros do ponto de contacto, esforcei-me por localizar e reter na memória os caminhos mais próximos do promontório. Ao sul, quase em paralelo com o litoral, corria uma larga vereda que, sem dúvida, ligava a localidade da esquerda (a referida Cafarnaum)
aos núcleos situados na costa ocidental do mar de Tiberíades. Ao longe, entre bosques, esta vereda perdia-se na direcção leste possivelmente ao encontro da margem oriental do lago. Da suposta Cafarnaum arrancava outro caminho, mais estreito que o anterior, que, rodeando trigais e altos zimbros, corria em ziguezague até à encosta leste da nossa colina. A cerca de quilómetro e meio da povoação, o referido caminho dividia-se em dois. O ramal situado à minha esquerda continuava pela base da colina e, dobrando-se num arco das curvas, acabava por subir até ao cume onde eu me encontrava. Examinei os arredores, mas não encontrei nada que justificasse a presença e o remate de tal carreiro no cimo da colina. Felizmente, o promontório era uma zona inculta com abundantes eflorescências basálticas – de três a quatro metros de diâmetro – espalhadas pelo cume e talvez o cultivo daquela tterra aléM das outras circunstâncias tornasse pouco transitável. Mas o que mais me intrigou foi o segundo ramal. Trepava pela mesma encosta leste do promontório, vindo a morrer na formação rochosa que se erguia a uma centena de passos do berço, precisamente, aquele, dada a sua proXimidade da nave, como referi, no sítio das galerias subterrâneas. Apresentava-se como ponto mais conflitual. Era preciso esclarecer a natureza e o porquê de tão enigmático ramal. O Sol elevou-se acima das colinas e as calmas águas do lago palpitaram com cintilações de prata, verde-jade e azul-safira com manchas ocres e ferruginosas junto das margens alcantiladas consequência da recente tempestade. Mais ao longe, bandos de aves chilreantes vindas dos cerros precipitavam-se como nuvens brancas sobre o pequeno mar onde a vidda retomava o seu ritmo. A razoável distância, vogando livremente e ao acaso alguns peixes, que, com precisão matemática, os pássaros, nos seus voos picados, iam assinalando. O branco das povoações, rodeando o Kennereth, apareceu em todo o seu explendor. Aquele sítio era, evidentemente, muito mais povoado do que tínhamos suposto. A norte, as neves perpétuas do Hérmon brilhavam num desafio.
Com o tempo, os rudes mas sábios pescadores do mar de Tiberíades ensinar-me-iam a vigiar aquele colosso, infalível anunciador de ventos e de tempestades. Em definitivo, a nossa instalação parecia segura. Exceptuado o núcleo situado a leste, o resto das povoações encontrava-se tão afastado que não devia inquietar-nos. A segunda aldeia mais próxima, - uns cinco quilómetros para o norte – estava implantada num cerro, diminuta e branca de cal, e igualmente encurralada por bosques e campos cultivados. Talvez fosse a não menos célebre Corozam ou Korazim, amaldiçoada por Jesus nos seus Evangelhos. Transmiti ao módulo as tranquilizadoras notícias, anunciando a Eliseu a minha intenção de descer até às rochas da encosta oriental. A bifurcação do caminho, com o ramal que se extinguia no baluarte de basalto constituía um enigma irritante. A extensa mancha violeta que cobria aquela parte do promontório, ligando a plataforma rochosa em que o berço assentava à referida formação basáltica, serviu-me de guia e de ponto de referência. Talvez deva anotá-lo agora. Este belíssimo tapete de flores violáceas visível à distância foi de grande utilidade para o autor destas linhas, servindo-lhe de orientação nas futuras e sucessivas incursões fora do módulo. Mas continuemos. A uma centena de passos do berço, de facto, a encosta oriental apresentava-se semeada de enormes e esféricas massas de basalto negro que, com toda a certeza, se tinham desprendido do cume, rodando sabe-se lá quando para a sua actual implantação. Intrigado, subi até ao ponto mais alto; e quando lá cheguei comecei a compreender. O carreiro de terra avermelhada conduzia a um terreno circular, protegido por aquela espécie de cintura rochosa. Sob as pedras orientadas para norte, alguém tinha escavado o terreno modelando uma tosca fachada de quase quatro metros de altura à qual se tinha acesso por uma série de degraus, também de natureza calcária. Apressei-me a descer e, aproximando-me dos degraus, descobri uma pesada pedra circular que com toda a evidência, cerrava a entrada a uma qualquer câmara ou gruta. Isto explicava em parte os misteriosos perfis subterrâneos detectados quando sobrevoámos o local. A pedra, de quase um metro de diâmetro, estava encaixada
numa calha de trinta centímetros, ligeiramente inclinada para oeste. Uma cunha de madeira sob a pedra funcionava como travão. Teria sido suficiente um pequeno esforço para a retirar e libertar a rocha, que teria assim rodado sem entraves até ao extremo da fachada. Venci a tentação. O retorno da pedra ao seu lugar exigiria a colaboração de, pelo menos, três ou quatro homens. De momento não podia correr o risco de deixar a descoberto o acesso às intrigantes galerias. Quer tratando-se de um túmulo quer de qualquer outra construção, o mais razoável era não chamar a atenção dos possíveis utentes ou proprietários. A povoação estava relativamente próxima e toda a precaução era pouca. Enquanto regressava à nave reflecti sobre o assunto. Se na verdade nos encontrávamos ao lado de um cemitério ou de uma cripta familiar ou colectiva, a nossa localização na colina podia considerar-se óptima. Salvo na altura dos enterros propriamente ditos, os judeus não eram muito propensos a frequentar tais lugares, nem as suas imediações. Neste caso, as estritas normas sobre impureza por contaminação de cadáveres constituíam um excelente e providencial aliado. Mas... e se não se tratasse de um túmulo? A única forma de sair da dúvida era deslocar a pedra circular, penetrando no interior. Para semelhante aventura é claro que precisava da ajuda do meu irmão. Às sete horas, concluída aquela primeira volta de inspecção, regressei ao ponto de contacto relatando ao meu companheiro tudo o que tinha observado. Ao referir-lhe a descoberta do possível acordo, decidimos explorar o patamar basáltico enquanto nos fosse possível. Uma hora depois, ultimados os preparativos para o seguinte e indeclinável objectivo, o berço elevou-se até ao nível estacionário (oitocentos pés), dando assim início à operação de prospecção televisual do lago e das terras próximas do litoral, até uma distância de cinco quilómetros. Estas imagens, juntamente com o perfil topográfico traçado pelos altímetros gravitacionais, eram de vital importância para o sistema de condução do olho de Curtiss. Partindo do local de aterragem do módulo, os especialistas do Cavalo de Tróia tinham dividido aquele
contorno do mar de Tiberíades num total de treze secções, de quatro quilómetros de comprimento por cinco de profundidade. Cada uma delas foi identificada com a palavra-chave Galileia e o número correspondente. Embora as fontes evangélicas não fossem precisas, todos os indícios apontavam para as áreas Galileia-1 e Galileia-2, na zona norte do lago como os possíveis cenários das aparições de Jesus de Nazaré na referida região. E o módulo, obedecendo ao plano, dirigiu-se para nordeste. Nos campos e veredas via-se já uma certa actividade. Camponeses, bois, carroças e pequenos rebanhos de cabras entravam, ou saíam do núcleo urbano que, a priori, associámos a Cafarnaum. Esta aldeia – talvez devesse qualificá-la de cidade – corria paralelamente à linha da costa, com uma extensão aproximada de mil e oitocentos pés (seiscentos metros), por novecentos de largura. Formava uma meia-lua, positivamente encaixada entre o mar e uma série de cerros suaves que descia em cascata a partir de norte. Um pequeno rio - que identificámos nas nossas cartas como o Korazim - desembocava no extremo oriental da povoação. O largo caminho que bordejava o lago e que eu tinha localizado lá de cima do alto da colina não era o mesmo que continuava para leste. Já fora da localidade enveredava para norte e, quase paralelo ao Korazim, perdia-se entre lombas e bosques, passando muito perto da branca e altiva aldeia que tínhamos identificado com esse mesmo nome: Korazim ou Corazam. Dias mais tarde averiguaria que se tratava de uma importante estrada romana – a Via Máris – que passando por Magdala, rodeava as costas ocidental e norte do mar de Tiberíades, dirigindo-se a Tiro, no Mediterrâneo. Apesar da velocidade vertiginosa do nosso voo, um dos aspectos que nos chamou a atenção da suposta Cafarnaum, foi o seu porto. Como teríamos oportunidade de comprovar ao longo daquele circuito, o Kennereth carecia então de enseadas que desempenhassem a função de portos naturais. Esta séria deficiência
tinha sido colmatada mediante a construção de terraplenos – geralmente constituídos por blocos de basalto - que funcionavam como paredões de protecção. No caso de Cafarnaum, essa espécie de dique (cujo corte vertical se assemelhava a um trapézio) tinha um comprimento considerável: dois mil e cem pés (setecentos metros). Acompanhava a linha da costa e nele se inseria uma dezena de atracadouros - perfeitamente perpendiculares ao referido terraplano - rectangulares e em forma de ponta de flecha, com dimensões que oscilavam entre dez a quinze metros. Neles se alinhavam umas cem pequenas e médias embarcações. Ficámos maravilhados... Creio que devo insistir nisso. Lá do alto, a frondosidade daquela parte da Galileia apresentava-se em toda a sua grandeza. O que hoje, em pleno século xx, o nativo ou visitante pode contemplar ao chegar ao lago, é uma triste e empobrecida relíquia. Os bosques de ciprestes, azinheiras velani, alfarrobeiras, alfóstigos, zambujeiros, palmeiras e plátanos orientais, entre outras espécies, disputavam as margens dos rios, os barrancos, as línguas de terra e as encostas dos promontórios. E, entre semelhante espessura vegetal, todo um labirinto de leiras e campos de cultivo, só comparáveis, de certa maneira, ao esplêndido oásis de Jericó. Aquele ia ser o nosso teatro de operações. E, sinceramente, sentime reconfortado. A segunda secção – Galileia-2 – incluía a desembocadura do Jordão e uma ampla várzea de quase doze quilómetros quadrados, sulcada por quatro rios principais e uma complexa rede de afluentes e de torrentes. As recentes chuvas tinham aumentado o seu caudal, que penetrava, impetuoso e barrento, no ângulo Nordeste do Lago. Estes rios (conhecidos hoje como Najal Mesusim, Najal Yehudiyeh, Najal Daliot e Najal Shemafnun) desciam dos penhascos basálticos situados a leste (actualmente denominados por montes Golam), a uma altitude de oitocentos a mil metros, percorrendo distâncias que oscilavam entre os vinte e os trinta quilómetros. Esta inclinação emprestava às suas águas um ímpeto considerável, arrastando toneladas de pedras e terra que acabavam por deter-se na várzea, transformando o local num belíssimo mosaico de lagunas
de todos os tamanhos, muitas delas comunicando entre si. Os materiais menos densos – seixos, argila e fragmentos de basaltoeram conduzidos até ao lago, configurando na desembocadura um amplo delta que – segundo as fotografias infravermelhas 1 – se prolongava sob as águas. No exame posterior das filmagens comprovámos que aquele fértil e paradisíaco rincão do mar de Tiberíades era cruzado por quinze riachos que se fundiam a curta distância da costa, formando dois pequenos lagos cuja largura ultrapassava mesmo a do Jordão. (A maior destas lagunas recebia o caudal de sete riachos: cinco provenientes do Najal Mesusim e dois de Yehudiyeh. Ao comparar estes dados com os fornecidos aos especialistas do Cavalo de Tróia pelo Kennereth Mimnological Laboratory e pelo investigador israelita Mendel Nun, numa das maiores autoridades no estudo do mar de Tiberíades, chegámos à conclusão de que aquela área norte não tinha mudado substancialmente durante os dois últimos milénios. Não aconteceria o mesmo com outras zonas do Kennereth.) Quanto à segunda laguna, foi identificada como sendo o actual Nahar AI-Magarsa, conhecido pelo nome de Masudiya. Sob a espessa vegetação que quase ocultava estas lagunas – algumas chegavam a ter três metros de profundidade -, os registos IR detectaram uma variada colónia de aves aquáticas, assim como zonas pantanosas nas quais proliferavam répteis, tartarugas e lontras. Todo um paraíso em que, por elementar prudência, não devíamos entrar. A quilómetro e meio da margem esquerda do Jordão, a oeste das desembocaduras de dois rios menores (talvez o Zaji e o Masudiya) e no meio da exuberante várzea, descobrimos outro núcleo humano, de apenas trezentos metros de comprimento, com pequenas casas cúbicas, tão negras como as da suposta Cafarnaum. Sinceramente, não soubemos que pensar. Tratar-se-ia de Betsaida? A casa dos pescadores – tradução de Betsaida – era outro dos meus objectivos. Ali, segundo os evangelistas, tinham-se registado alguns dos prodígios do Rabi. Lamentavelmente, nem os arqueólogos nem os estudiosos cristãos se puseram de acordo sobre a verdadeira localização da vila ou povoação em que tinham nascido André, Simão, Pedro e Filipe. A nossa confusão foi completa ao verificar que, numa colina situada a
uns três quilómetros a norte – muito perto do leito do Jordão – se erguia outro povoado, bastante maior que o situado na costa, em que brilhavam ao sol brancas e airosas construções, entre as quais se evidenciava uma espécie de palácio fortificado. Talvez esta última cidade, construída sobre um promontório de trinta metros de altitude e de paredes escarpadas, fosse a mítica Betsaida Julias, mencionada por Yosef ben Matatlahu (mais conhecido por Flávio Josefo) na sua obra Guerra dos Judeus (3,10, 7). Nesse livro, o general e historiador judeu romanizado assegura que, antes de desembocar no lago, o Jordão passa junto da cidade de Júlias. Contudo nesse caso, como interpretar o nome de Betsaida ou casa do pescador? Se se tratava de uma povoação de pescadores o mais lógico é que se encontrasse nas margens do mar da Galileia e não a três quilómetros da costa e no cimo de uma colina. A solução elementar viria algumas horas depois, ao observarmos o porto de Cafarnaum. *1 – Nos estudos hidrológicos, a fotografia infra- vermelha é de grande utilidade, podendo delinear as marcas longitudinais provocadas pelas marés nas costas e os sedimentos em tonalidades esverdeadas. É de grande importância obter imagens de cores modificadas, a fim de registar plantas marinhas e algas flutuantes em águas turvas. Interpretando esses reflexos de cor já conhecidos e outros que se podem determinar experimentalmente, é possível localizar fontes de contaminação. Nas imagens IR, a água clara apresenta-se negra e a coberta de algas, vermelha. As camadas com baixo nível de oxigénio apresentam um tom leitoso. (N. Do M.)
Este segundo núcleo costeiro dispunha também de um pequeno porto, formado por um espigão implantado perpendicularmente à linha do litoral, que penetrava cerca de duzentos metros no lago e inflectia depois, em ângulo recto, na direcção oeste. A uns cinco quilómetros do Jordão – num local hoje denominado Jiabert A-Diqa -, nascia outra interessante construção: um canal de dois metros de largura, cujas paredes tinham sido escavadas na rocha viva, que conduzia à água através da várzea, numa extensão de dezasseis quilómetros. Ao longo desta importante obra alinhavam-se inúmeras granjas e moinhos. Nas cinco secções seguintes – até ao extremo sul do lago – contámos oito núcleos humanos de alguma importância – a maioria
deles junto ao lago – e uma infinidade de pequenas concentrações de cabanas e casas de lavoura disseminadas pelos cerros. Obviamente carecíamos de uma informação fidedigna e a definitiva identificação de tais núcleos só chegaria com a terceira exploração. A cerca de oito quilómetros da desembocadura do Jordão, quase no equador do lago, um rio de caudal médio precipitava-se entre bosques e barrancos dividindo aquele sector oriental da costa em duas grandes metades. O traçado do rio era muito semelhante ao que se via nos nossos mapas, proporcionados pelo Serviço Cartográfico do Exército Israelita. Provavelmente, tratava-se do Samak. Isso ajudou-nos a identificar, ainda que só provisoriamente algumas das povoações. Assim, de norte a sul, julgámos localizar as milenárias cidades de Kefar Aqbiya Kursi (também conhecida como Gérasa) Ein Gafra Suscita ou Hipos (uma das mais povoadas), En Gev e Kefar-Zemaj, entre outras. Ao todo ao longo do litoral leste, contando com o da suposta Betsaida, somámos sete portos. A sul da secção Galileia-2, relativamente perto da zona pantanosa do ângulo nordeste, estava implantado o primeiro e mais setentrional destes oito núcleos: uma modesta concentração de pequenas casas de terraços ocres e que, segundo o Pai Natal, podia ser a origem de uma pequena povoação árabe, desaparecida em 1967, que dava pelo nome de Duqat ou Duqal. Aquele lugarejo, tal como a maioria, parecia imobilizado em terra, exigia a procura de um refúgio seguro e inacessível aos humanos daquele tempo. Uma base mãe era o que fazia falta, em última análise, na qual pudéssemos esconder o berço e a partir da qual pudéssemos partir tranquilamente para as várias missões. Esse lugar só podia ser algum dos abruptos picos que circundavam o lago. A escassez de combustível assim o aconselhava. Por outro lado, segundo os textos evangélicos, a Galileia tinha sido uma das regiões mais intensamente frequentada por Jesus de Nazaré durante a sua vida pública.
 
*1 – Segundo os dados do computador central, a povoação de Duqat foi conhecida na antiguidade como Kefar-Aqbiya, do período do Segundo Templo ainda que a cerâmica encontrada na zona leve os peritos a pensar que possa ter sido fundada muito antes. Tratava-se, portanto, de uma das mais antigas povoações do mar de Tiberíades. No século vi da nossa era, um judeu vizinho da localidade visitou os balneários de Hamat Gader, oferecendo um donativo para a construção de uma sinagoga. Como sinal de agradecimento, no mosaico do solo da sala aparece o nome de Kiros [senhor] Patrik, de Kefar Aqbiya”. (N. Do M.)
A partir do suposto Kefar Aqbiya, o mar ganhava terreno, formando uma baía de dois quilómetros de extensão. Pois bem, no meio do suave promontório, sobre uma pequena colina natural de vinte metros de altura, Eliseu e eu próprio descobrimos uma curiosa construção: algo de parecido com uma torre-fortaleza circular, com um segundo muro – também circular – no seu interior. O diâmetro da muralha exterior era de sessenta e oito metros. A do interior atingia os cinquenta. A considerável construção, com muros de três metros e meio de espessura e entre dois e três metros de altura, intrigou-nos bastante. Mas o banco de dados do módulo não dispunha de uma informação clara a tal respeito. Parece que terá sido construída nos tempos do Primeiro Templo e com fins puramente defensivos, como mais um elo na cadeia de fortificações judaicas que vigiava os caminhos de leste. (Além do estreito e poeirento caminho que descia de norte, circundando o litoral, aquela região do Kennereth tinha ao seu dispor uma esplêndida estrada romana que, procedendo de Citópolis, ao Sul, atravessava montes e vales, passando junto de várias cidades - Hipos e Gérasa? - e da própria torre-fortaleza circular 1, dirigindo-se depois para Nordeste). Na secção Galileia-4, a cerca de doze quilómetros do Jordão, junto à desembocadura do suposto rio Samak, situava- se uma autêntica cidade: a mais extensa e formosa daquela franja do Kennereth. Em ambas as margens do rio abria-se um fértil vale de três quilómetros de comprimento por quatro de largura, intensamente cultivado. A cidade, implantada a sul do leito do rio, ocupava quase metade do vale, com uma notável quantidade de edifícios greco-romanos, entre os quais sobressaíam uma colossal
colunata circular, dois anfiteatros e um hipódromo. Tomando como ponto de referência o Samak, suspeitámos de que estávamos perante a evangélica Kursi ou Gérasa. (Em algum dos abruptos montículos que fechavam o vale podia ter tido lugar o famoso incidente da vara de porcos que, segundo os Evangelhos, se lançou ao mar como consequência da cura de um endemoninhado pelo Rabi de Nazaré. Este era outro dos inúmeros e atractivos motivos que justificavam o nosso futuro campos que rodeiam as ruínas da milinária Kursi. (N. Do M.) *1 – Esta estrada romana corria então em nível superior ao da estrada que bordeja o lago actualmente. Marcos e lanços da mesma podem ver-se ainda hoje nos arredores do kibbutz de Ein-Guev, assim como nos  salto à vida pública do Mestre. As coisas ter-se-iam passado como no-lo contam os escritores sagrados? Mas demos tempo ao tempo. O Pai Natal alertou-nos. Kursi, segundo as suas informações, albergava então uma notável guarnição romana, dependente das legiões estacionadas na Síria, Tal dado, na previsão de futuros encontros com os legionários foi tido muito em conta. O porto de Gérasa tal como a cidade, era também um dos maiores e i mais bem equipados da costa oriental. Um terrapleno, que fazia as vezes de molhe, quebrava a linha do litoral, curvando-se em forma de arco e com um comprimento de cento e cinquenta metros. Terminava na sua zona norte, formando um estreito canal. Em terra, um cais de cem metros de comprimento e vinte e cinco de largura completava o recinto portuário. O grande terrapleno tinha sido feito com grandes pedras de basalto que chegavam a ter um metro de espessura, solidamente apoiadas nos seus flancos. A norte do embarcadouro detectámos também uma piscina rectangular de três por cinco metros, esmeradamente branca no seu interior e cheia de peixes. Estávamos perante uma insólita realidade: já então prosperava a piscicultura... A piscina não se alimentava da água do lago (As surpresas que se nos apreSentaram de um canal que partia do rio Samak foram constantes.) mas de construções hidráulicas. As sondagens do radar revelaram a presença, em frente da
desembocadura do rio, de um extenso banco de pedras que, sem qualquer dúvida, fazia daquele lugar uma das mais ricas zonas de pesca. Estas deduções ver-se-Iam plenamente confirmadas na última expedição. Com efeito, o termo samak, nas línguas ugarítica, árabe e aramaica, significa peixe e peixes. A curta distância de Kursi, sempre para sul, no sopé de um montículo de quarenta e quatro metros de altitude, as filmagens infravermelhas e os sensores externos detectaram um manancial de águas sulfurosas, que brotavam a trinta graus centígrados. Este tipo de águas termais – em especial na margem ocidental – era bastante comum e sabiamente aproveitado pelos naturais do Kennereth. A meio quilómetro deste promontório, outra fonte semelhante irrompia nas águas do lago, provocando uma permanente e branca nuvem de enxofre em suspensão. Já na secção cinco, junto a minúsculas aldeias portuárias que não conseguimos identificar, sobrevoámos o segundo porto importante da costa leste. A verdade é que as dimensões e configurações do cais não eram consentâneos com a cerca da centena de pequenas construções que constituíam o lugarejo situado junto dos molhes. Esta aldeia estava ligada a uma povoação muito mais densa, acocorada a trezentos e cinquenta metros sobre o nível do lago, muma meseta isolada e separada do mar por cerca de dois quilómetros. A estrada romana subia até ao alto da cidade, ramificando-se depois noutra via secundária, mais estreita, que terminava no citado porto. Este, como ia dizendo, apresentava características únicas. O molhe principal tinha um comprimento de cento e vinte metros, com uma largura de cinco a sete metros na sua base. Partia perpendicularmente à costa e uns quinze metros depois, mudava de direcção, correndo paralelamente ao litoral, em direcção a sul. Este segundo lanço tinha um comprimento de oitenta e cinco metros. Subitamente, o terrapleno mudava de orientação, virando para oeste. Este curioso Z invertido, maltratado sem dúvida por ventos do sul, tinha sido fechado por um segundo molhe de quarenta metros, que seguia perpendicularmente a partir da costa. O que mais nos intrigou foi aquele cais de vinte metros de comprimento que penetrava para oeste, em águas relativamente profundas
(quatro a cinco metros). Talvez servisse para a atracagem e operações de carga e descarga, sem necessidade de penetrar no porto. (Durante o terceiro salto resolvemos esta incógnita, assim como a razão daquela área portuária aparentemente tão desproporcionada. Posso adiantar desde já que o lugarejo de pescadores e a cidade da meseta – Hipos ou Susita – eram na realidade uma e a mesma povoação. Tinha sido fundada em meados do século iII a. C. como um florescente empório helenístico. Depois de cair nas mãos de Pompeu e aderir ao pacto que vinculava as cidades da Decápole, foi reconstruída, crescendo e transformando-se no segundo aglomerado urbano da costa oriental do mar de Tiberíades.) Ao entrar na secção sete, a nave foi girando e tomou a radial duzentos e sessenta. Aquele percurso sobre o extremo meridional do lago foi especialmente confuso. Nos mapas da Operação Cavalo de Tróia apontava-se a existência de, pelo menos, três ou quatro cidades de algum relevo: Bet- yeraj, Senabris, Taricha e Kinnereth ou Kennereth. Na hora da verdade, as coisas não foram tão simples como tinham previsto e traçado os peritos. É que o sul do lago constituía de facto um todo urbano. Estas povoações estariam certamente ali, mas tão entrelaçadas que, a partir dos nossos oitocentos pés de altitude, era impossível precisar onde começava uma e terminava outra. Centenas de casas, edifícios públicos, torres, celeiros, casas de campo e cabanas espalhavam-se por uma planície de quase quatro quilómetros. De semelhante metrópole, se me é permitida a expressão, partiam várias rotas de caravanas. Uma para Citópolis, no Sul. Outra subia pelo leste do lago e uma terceira demandava o litoral ocidental. A este nó de comunicações tinha de acrescentar-se uma intrincada teia de aranha de veredas e caminhos secundários que bordejavam e delimitavam inúmeras parcelas de regadio, pequenos pomares e a massa verde-azulada da mata que abobadava a segunda desembocadura do Jordão. O progresso daqueles núcleos humanos devia ser esplêndido, a julgar, por exemplo, por um dos celeiros, situado a um quilómetro da margem sul do Kennereth: de construção circular, dispunha de dez torres de oito a nove metros de diâmetro cada.
Ao contrário do que tínhamos visto no resto do lago, esta zona não dispunha de portos artificiais. As escassas embarcações alinhavam-se na foz do rio e numa laguna de duzentos metros de comprimento por cinquenta de largura, localizada a sul da referida segunda desembocadura. O braço de terra que separava essa laguna do mar – de dois a seis metros de largura – parecia inteiramente natural. Provavelmente tinha sido formado pelo arrastamento de sedimentos e pelo bater contínuo das ondas. Os habitantes do lugar limitaram-se a estreitar a abertura da enseada, na zona sul, com um curto terrapleno de quatro metros. Naquela altura não nos demos conta de outro interessante fenómeno. Ao estudar e contrastar as imagens e os dados recolhidos no circuito aéreo, comprovámos que, naquele tempo, a segunda desembocadura do Jordão não ocorria no local que hoje conhecemos. O antigo leito encontrava-se a um quilómetro e meio mais a norte. (No século xx, entre a moshava de Kinnereth e o tell de Bet-Yeraj). O Pai Natal esclarecia em parte o assunto. Ao que parece, se bem que arqueólogos, geólogos e demais especialistas não estejam completamente de acordo, as causas desta variação no curso do rio haverá que procurá-las num forte sismo registado pouco depois da época bizantina, ou seja, há cerca de mil anos. Outra das obras a destacar naquele lanço sudoeste do mar de Tiberíades, que demonstrava o grau de prosperidade e desenvolvimento técnico da Galileia de Jesus era uma tubagem de vinte quilómetros de comprimento que, partindo do rio Yavneel, a sul, se dirigia para norte , atravessando as populações meridionais do lago e a cidade fortificada de Hamat, para terminar na esplêndida e luminosa Tiberíades. Esta singular obra de engenharia, construída a céu aberto, assentava sobre dezenas de pequenas pontes, avançando penosamente pelo sopé das colinas e ramificando-se numa infinidade de valas e pequenos canais que abasteciam de água os vários aglomerados humanos, os moinhos de farinha e a agricultura. (Mais tarde tivemos conhecimento de que esta BetlYeraj et
SenabgSa se deveu ao esforço conjugado de Tiberíades, A cinco quilómetros e meio a norte da primitiva segunda desembocadura do Jordão. O berço sobrevoou Hamat, uma das três cidades fortificadas do território da tribo de Neftali 3. Também aqui foram detectadas fontes termais. Na realidade, se não fosse a muralha que a envolvia, Tiberíades teria passado a nossos olhos como um prolongamento de Tibe, Como descrever a pérola do lago? Tiberíades era então, sem qualquer dúvida a capital do Kennereth. A partir da porta do norte da muralha de Hamat estendia-se branca e impecável, ao longo de uma estreita faixa do litoral de apenas quinhentos metros, com uma extensão de uma milha. Um monte de cento e noventa metros de altitude ocupava o seu flanco oeste. Na encosta, Herodes Antipas tinha mandado erguer uma espessa muralha de quarenta e cinco metros de altura que, ziguezagueando, servia de protecção à novíssima cidade. No topo do promontório levantava-se a mais poderosa das fortalezas daquela região da Galileia: um castelo de pedras negras e elegantes paredes de calcário que faiscavam ao sol e que, como pudemos comprovar na devida altura constituía o palácio de Inverno do detestável filho de Herodes, o Grande. *1 - Os curiosos e visitantes podem hoje identificar o palmeiral ali existente (o Hjardim de Raquel,), plantado em memória da citada poetisa. (N. Do M.) 2 – O primeiro dado histórico sobre esta mudança no leito do Jordão remonta ao ano 1106, quando um peregrino russo – um tal Daniel – observou «como do Kinnereth partiam dois braços de água que a meio quilómetro da margem, se uniam a um rio chamado Jordão». Com efeito, estiveram à vista até ao ano 1950 os restos de uma ponte romana levantada sobre o antigo leito do Jordão. (N. Do M.) 3 – Segundo Josué (19, 35), estas três cidades fortificadas eram Hamat, Raqat e Kinnereth. Mesmo antes da conquista da terra de Israel, Hamat e seus arredores eram famosos Pelas nascentes de água quente, pelo clima suave e pelas suas paisagens paradisíacas. Num Papiro do século xiI a. C. (Anastácio I) qualifica esta zona de Hamat como «lugar de passeio». Na verdade a beleza e placidez daquela zona litoral só podia comparar-se com a não menos célebre várzea de Ginosar, na costa norte. (N. Do M.) 4 – Ao que parece, Tiberíades foi fundada por volta do ano 20 da nossa era por Herodes Antipas, um dos filhos de Herodes, o Grande. O seu nome deve-se a um gesto de clara adulação de Antipas para com o imperador Tibério. A verdade é que, apesar de ter sido edificada nas proximidades de um cemitério – circunstância que indignou os judeus -, no ano 30 tal
facto tinha praticamente sido esquecido pelas gentes da Galileia. Como terei ocasião de relatar, nas suas ruas conviviam gentios e hebreus de todas as proveniências, que não pareciam muito preocupados pelo repugnante sacrilégio de Herodes. (N. Do M.) Esta cadeia de colinas, que protegia Tiberíades dos fortes ventos do oeste, encontrava-se perfurada por numerosas grutas. Numa delas, aberta para poente e a curta distância da face ocidental do castelo, os sensores detectaram uma forte corrente de ar quente, assim como altos índices de vapor de água. Suspeitámos que a gruta em questão devia estar ligada com um dos numerosos mananciais de águas termais que desembocavam também nos limites da cidade. Tiberíades era um modelo de construção tipicamente helénica. Uma via principal abria passagem de norte a sul, com duas portas monumentais nos seus extremos. O resto, traçado a régua e esquadro, girava em torno dessa artéria principal, com ruas, praças e jardins meticulosamente desenhados, com grande número de edifícios que rivalizavam em mármores, colunatas e fontes públicas. (Quando o Destino quis que eu e meu irmão entrássemos em Tiberíades, a magnificência do lugar impressionou-nos. Só as sinagogas eram em número de treze e o seu mercado, teatros e o edifício do Conselho de Cidadãos ultrapassavam tudo o que possa imaginar-se.) O porto decepcionou-nos. Embora espaçoso, não estava de harmonia com a categoria da cidade. Além disso, apresentava-se ainda por acabar. Três molhes de cem, duzentos e oitenta metros, respectivamente, formavam com o cais costeiro um rectângulo, aberto pelo norte e, isso sim, habilmente protegido dos temíveis ventos do Leste (o sharqiya) e do tempestuoso vento sul qibela. A cerca de duas milhas e meia a norte de Tiberíades, seguindo a costa ocidental, localizámos as ruínas de uma pequena povoação – possivelmente a antiquíssima Raqat 1 – espalhadas pela encosta oriental do actualmente denominado tell de Aqlatiya. A seus pés morria um riacho, atravessado pelas lajes cinzentas e gastas de uma das ramificações da Via Máris. No pequeno delta brotavam outras quatro fontes termais. As filmagens IR detectaram umas sete correntes submarinas com temperaturas de trinta graus centígrados que se perdiam no mar, a uns doze metros de profundidade. Na base do tell foram captadas imagens de dois reservatórios de oito e doze metros de diâmetro, respectivamente, com muros enormes de mais de cinco metros de altura. A água armazenada nos mesmos devia servir para a irrigação das terras circundantes e ainda de uma boa parte do vale que se prolongava, acompanhando o rio, até ao desfiladeiro do Hittim no oeste. (Esta apertada garganta, também conhecida como cornos de Hittim ou Hattim, encontra-se no caminho de Nazaré para o lago e, como pormenorizarei na devida altura, foi de grande utilidade para a ocultação do nosso módulo.) O último lanço deste périplo – parte da secção doze e a Galileia-13 – foi simplesmente espectacular. *1 - Raqat outra das povoações fortificadas do lago, remontava ao terceiro milénio, sendo contemporânea de Bet-Yeraj. A sua existência prolongou-se até fins do período
do primeiro Templo. Os árabes dão actualmente ao vale de Raqat e às suas fontes o nome de Fuliya, embora o local também seja conhecido como jardim dos russos,, por causa do convento levantado na zona pela igreja ortodoxa russa de Moscovo, em fins do século acx. (N. Do M.)
A nossos pés apareceu o mítico jardim de Ginosar: um vale de quase sete quilómetros quadrados onde não foi possível descobrir um único palmo de terra por cultivar. Era um autêntico vergel, cheio de nogueiras, palmeiras, oliveiras, figueiras e centenas de pequenas e médias hortas, abundantemente irrigadas por três rios que desciam da cordilheira noroeste (os chamados montes da Galileia, situada a cerca de seis quilómetros da costa do Kennereth. Esta várzea cantada por Flávio Josefo 1, era o orgulho de todo o mar de Tiberíades. Estreito nos seus extremos, o vale ia-se alargando, até atingir uma largura máxima de quilómetro e meio. O jardim apresentava-se praticamente dividido ao meio por uma colina pedregosa cuja encosta oriental se espraiava suavemente até à costa. Nessa encosta observámos pela primeira vez uma cidade de uns três mil pés de comprimento. Era menos vistosa que a sua vizinha Tiberíades, de ruas empedradas e casas de um só piso que desciam até ao porto, muito semelhante ao de Cafarnaum, no qual homens, fileiras de cavalgaduras pela arreata e embarcações se misturam em frenética actividade. Aquela povoação, em que passaríamos horas inolvidáveis, era Migdal ou Magdala: a cidade de Madalena. À sua volta, entre a espessa vegetação, reluziam valas, canais e reservatórios de água de todas as dimensões. Dois deles surpreenderam-nos especialmente pelas suas dimensões e localização. O primeiro, na encosta da colina, tinha uns vinte e sete metros de diâmetro. O segundo, no meio da povoação, tinha sido construído sobre uma torre circular de seis metros de altura. A abundância de água em Migdal e no resto da várzea ficou explicada não só pelo caudal dos rios como, sobretudo pelos ricos mananciais subterrâneos que afloravam por todo o lado. Um destes mananciais (actualmente conhecido pelo nome de Ein-Nun) proporcionava um caudal da ordem dos dois milhões de metros cúbicos de água por ano. A maior parte
deste caudal perdia-se no lago sob a forma de nacho. E foi ali, na desembocadura da torrente, que os sistemas de bordo descobriram algo que nos alarmou: as águas continham um gás nobre – o rádon – e um índice de radioactividade superior ao tolerado pelo organismo humano. As investigações posteriores, efectuadas no local, confirmariam que uma parte da população de Migdal e dos que bebiam actualmente da referida fonte se encontrava afectada – em maior ou menor medida – por uma doença bem conhecida no século xx 1. *1 – Na sua obra Guerras dos Judeus (3,10,8), Flávio Josefo faz a seguinte descrição do vale de Ginosar: «Ao longo do mar estende-se uma terra chamada Ginosar, maravilhosa pela sua disposição e beleza. E a terra desta zona é fértil e, por isso, não tem falta de vegetação, pois os seus habitantes semearam nela toda a espécie de plantas. Porque o clima é agradável e bom para toda a espécie de plantações. Há inúmeras nogueiras que são dentre todas as árvores aquelas que mais gostam do frio, e junto delas levantam-se palmeiras, que absorvem o calor do sol e perto destas crescem figueiras e oliveiras, para as quais é bom um clima intermédio, pois pode dizer quem isto escreve Que a Natureza combinou as suas forças para reunir aqui todas as diferentes espécies, que competem umas com as outras» [...) (N. Do M.)
Meio quilómetro a norte do porto de Migdal sobressaía o último aglomerado humano naquela zona da costa. Dispunha de um pequeno embarcadouro e as suas dimensões eram notavelmente inferiores às da industriosa terra de Maria Madalena. Segundo o computador central, dada a sua localização – muito próxima do pico denominado Kinnereth -, podia tratar-se de uma quase esquecida aldeia bíblica, de nome Guinosar, mencionada por Marcos, o Evangelista, no seu capítulo 6, versículo 53: [...] «e passaram [Jesus e os seus discípulos) e chegaram à terra de Guinosar e aproximaram-se da costa. E estavam ainda a sair do barco quando os habitantes do lugar O reconheceram». Dois quilómetros mais acima, fechando o vale, divisámos por fim as vertentes escarpadas e vermelhas do Kinnereth com os seus oitenta e sete metros de altitude. Do outro lado, a cerca de meia milha, encontrava-se o ponto de contacto: a base mãe-2. Muito perto de Kinnereth sobrevoámos a não menos evangélica terra de Tabja (em grego, Heptapegón: lugar das sete fontes), que
a tradição cristã associa à pesca milagrosa. (Uma tradição, diga-se de passagem, igualmente errada. A famosa pesca, como pude verificar, nem foi milagrosa, nem aconteceu naquela minúscula baía, tão apreciada pelos pescadores galileus.) Na realidade, mais que uma aldeia, aquele local, com a sua meia-dúzia de cabanas, parecia um reduto industrial, com três fontes importantes e inúmeros mananciais que forneciam água a um complexo sistema hidráulico, integrado por moinhos e uma densa rede de canais. Um dos mananciais, localizado no fundo de uma piscina octogonal de vinte metros de diâmetro e oito de profundidade, deixou-nos atónitos. O seu caudal oscilava então entre mil e quinhentos e três mil metros cúbicos por hora. Naquela altura não compreendemos a utilidade de tais águas, de natureza sulfurosa e aflorando a vinte e sete graus centígrados. A pequena enseada, de uma grande riqueza piscícola, tinha sido equipada com dois cais de cinquenta e trinta e cinco metros. O primeiro em forma de arco; o segundo, prependicular à costa. Finalmente, às oito horas, sete minutos e oito segundos, depois de um voo quase perfeito, o berço pousava de novo na laje de pedra da encosta sul do até então suposto monte das BemAventuranças. Como é de imaginar, embora o controlo durante o périplo de reconhecimento do lago tivesse sido contínuo, a nossa primeira preocupação – quase obsessão - ao regressar a terra dirigiu-se para a verificação das resérvas de combustível. O consumo, tal como o Pai Natal tinha fixado, não ultrapassou as duas toneladas: 1988,6 quilos. Isso reduzia o volume total do remanescente para cerca de 47,5 por cento. A partir desse momento, se na verdade desejávamos voltar a Massada, a ignição do J 85 deveria ficar desligada ou, quando muito, limitada a uma ou duas operações de curtíssima duração. A eventual transferência da nave para um lugar mais seguro constituiria uma dessas indispensáveis manobras. *1 – Segundo as informações em poder do Cavalo de Tróia, a perigosidade destas àguas obrigou o Governo de Israel a proibir nos anos cinquenta, o seu consumo, pondo marcha a um plano de aproveitamento das suas propriedades medicinais. Ao que
parece, passados alguns dias o referido gás acaba por desvanecer-se, desaparecendo da água os elevados índices de radioactividade. (N. Do M.) De acordo com o programado, aquela terça-feira, até já bem entrada a noite, foi destinada à recolha das imagens, perfis topográficos e mapas que deveriam servir de guias e sustentação ao olho de Curtiss. A laboriosa tarefa – vital para a obtenção de um máximo de dados nas aparições que se aproximavam – proporcionou-nos algumas surpresas, muito sugestivas do ponto de vista científico. Por exemplo: ainda que a sua forma de pêra invertida e as suas dimensões 1 não tenham aparentemente variado, as análises revelaram que, há dois mil anos, o lago era ligeiramente mais estreito. A linha da costa passava por lugares actualmente submersos. (A quase totalidade dos portos descritos encontra-se hoje oculta sob as águas. Felizmente, graças às modernas técnicas de arqueologia e exploração submarinas, tais vestígios estão a ser localizados. Oxalá que num futuro próximo, tudo o que aqui se narra possa ser ratificado por essa moderna disciplina científica.) Isto significa que, no tempo de Jesus, o nível do mar de Tiberíades era sensivelmente mais baixo: cerca de dois metros em relação ao de hoje. *1 – O mar de Tiberíades, da Galileia ou Kennereth, como comummente se denomina, mede vinte e um quilómetros de norte a sul. A sua largura máxima corresponde à linha Migdal-Kursi, com doze quilómetros. Geologicamente, o lago é muito jovem,: quinze mil e trezentos anos antes da era cristã. A depressão em que assenta é parte de uma bacia muito mais antiga – formada pelos rios Jordão e Aravá – que, por sua vez faz parte da grande fractura sírio-africana. De todas as falhas continentais, a do Jordão é a mais profunda. No Plistoceno – há um milhão ou milhão e meio de anos -, uma dessas fracturas telúricas determinou a forma actual do Kennereth. Durante o Plioceno, o mar irrompeu através do vale de Yizreel e de BetShean alcançando a bacia do Jordão. E assim continuou até que as alterações geológicas e climáticas isolaram este mar interior. Este último mar plistocénico existiu na referida bacia do Jordão entre os anos 75.000 e 17.000 antes da nossa era. Estendia-se desde o Kennereth, a norte, até Hatzevá, a sul do mar Morto. As suas águas eram salgadas com um nível que era trinta metros mais baixo que o do lago que hoje conhecemos. No seu fundo encontrava-se um material maleável denominado argila de línguaH. (Daí, também, outro dos nomes por que é conhecido: mar da LínguaH.) Depois do Plistoceno, cerca do ano 20.000 a. C., Israel sofreu uma importante alteração climática. O clima húmido tornou-se mais seco e as abundantes chuvas diminuíram. Deste modo, no grande mar da Língua iniciou-se um
processo de dessecação que, com o passar do tempo, acabaria por torná-lo no que hoje conhecemos como mar Morto, no Sul e mar de Tiberíades, no Norte. Este último herdou as suas margens principais do referido mar anterior: a oeste e leste, as linhas da grande fractura; a norte, a barreira de basalto e a margem sul a mais jovem. Esta constituiu-se como consequência dos sedimentos que o rio Yarmuk arrastava, elevando-se de oito a dez metros sobre o nível do lago. Muito antes de o Kennereth ou mar da Galileia adoptar a sua forma definitiva, o Jordão vertia já as suas águas doces no mar da Língua, abrindo lentamente passagem até alcançar a costa norte do mar Morto. Desde muito cedo, estas paragens exerceram um poderoso influxo sobre todas as culturas. Nas margens do lago foram encontrados restos das mais variadas épocas pré-históricas. Não falando dos descobertos em África, um dos assentamentos humanos mais antigos do planeta foi localizado precisamente em Batar Abudiya a três quilómetros a sul do mar da Galileia junto ao kibbutz de Bet-Zerah. Estes homens primitivos – os primeiros a povoar a Terra Santa – chegaram a Israel há três ou quatro milhões de anos, procedentes do continente africano, através da citada fractura sirioafricana. Estabeleceram-se nas margens do mar de água doce, alimentando-se da abundante caça e de uma rudimentar agricultura. Estas tribos assistiram às últimas fases de depressão do Jordão. Prova disso é o facto de os restos dos seus utensílios e sedimentos terem aparecido num estrato com uma inclinação de sessenta graus. (fim de nota).
Também foi possível constatar outro interessante fenómeno: o Kennereth move-se para sul. Isso deve-se a um duplo processo. Por um lado, o contínuo bater das ondas está a minar e a fazer retroceder a costa meridional, à razão de dez centímetros por ano2. Por outro lado, no extremo oposto verifica-se o fenómeno contrário: a acumulação de sedimentos do Jordão alargam o delta, fazendo avançar a linha nordeste da costa. O perfil submarino do lago interessava-nos especialmente. Um conhecimento exacto da sua configuração poderia proporcionar-nos elementos de juízo para, futuramente, valorar na sua justa medida alguns dos prodígios protagonizados pelo Rabi e aos quais aludem os textos evangélicos. A famosa tempestade que, segundo as Escrituras, foi amainada por Jesus, e a já referida pesca milagrosa tinham despertado a minha curiosidade. Terão esses factos ocorrido exactamente como são narrados pelos evangelistas? Por isso, como dizia, era importante conhecer a sua estrutura, correntes, ventos e demais factores meteorológicos, físicos,
geográficos e bioecológicos, próprios do Kennereth. Comprovámos, por exemplo, que o seu fundo era assimétrico. A costa oriental descia bruscamente. Foi aí, entre Ein-Guev e Kursi, que registámos a máxima profundidade: 253 metros abaixo do nível do Mediterrâneo. (A altura média do nível do lago era então de duzentos e oito metros abaixo do nível do mar Mediterrâneo. Actualmente, o Kennereth anda à volta dos duzentos e dez metros, se bem que em muitos mapas modernos, por erro, figure a cifra de duzentos e doze metros. Isto faz do mar de Tiberíades o lago de água doce mais baixo do Mundo.) Estes 253 metros representavam uma fossa de quarenta e um metros. O litoral oeste, em contrapartida, à excepção da área da cidade *1 – Já em 1869, o escocês McGregor levou a cabo as primeiras explorações do lago, embora as marés de Inverno o tenham impedido de encontrar vestígios importantes. Anos mais tarde, em 1970, a Associação para a Investigação Arqueológica Submarina de Israel, através de Abner Raban e J. Shapiro, teve a sorte de localizar os portos de Kursi, Migdal e Tabja. (N. Do M.) 2 – Segundo os especialistas israelitas, entre os anos 1940 e 1970, este ritmo de destruição da costa azul do lago atingiu a sua expressão máxima, em consequência dos seguintes factores: a construção da barragem de Degania (em 1932) e do Canal Nacional (em 1963). Estas obras provocaram um aumento nos níveis do lago. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma agricultura intensiva no vale do Jordão fez aumentar o volume das águas que chegavam à referida costa meridional, promovendo a erosão. Com efeito, o litoral sul recuou a um ritmo de trinta-quarenta centímetros por ano. Como consequência de tudo isso, a margem sul ficou submersa. Testemunhas mudas deste lamentável processo são as bananeiras e as vinhas que acabariam por tombar sobre as águas, deixando a descoberto algumas secções dos canais que as irrigavam. Os mergulhadores comprovaram de igual modo que as colunas de betão que foram implantadas na zona como defesas antitanque pelo Exército judaico se encontram actualmente no fundo do Kennereth. (N. Do M.)
As imagens de infravermelhos explicariam o porquê das extensas franjas castanhas que coloriam a superficie do lago naquela altura e que, numa primeira análise, interpretámos como resultado das terras arrastadas pelas águas do Jordão e demais rios que desaguavam no lago. Estávamos, na realidade, perante uma maciça colonização de algas, do tipo peridimiium (1). Obviamente, tal como previam os projectos dode Tiberíades, como em 3 de Dezembro de 1986. De
facto, os vestígios de alguns dos portos das cidades percorridas por Jesus – actualmente ocultos sob as águas do mar de Tiberíades – estão a ser localizados pela moderna arqueologia submarina. Descia de forma mais suave. O resto da bacia acusou uma profundidade média de vinte e cinco metros com um volume aproximado de quatro mil e trezentos milhões de metros cúbicos de água. *1 O Peridinium é uma alga esférica protozoária do grupo das «brilhantes». A partir do mês de Janeiro reproduz-se maciçamente e entre Fevereiro e Abril, aparece em largas zonas do lago. Os nossos sistemas detectaram naquela altura um número de três mil e trezentas unidades por centímetro cúbico. Com a luz matutina este género de alga sobe até à superfície colorindo-a com um castanho intenso. Às primeiras horas do dia, recebida a natural radiação solar, submerge-se de novo, concentrando-se em profundidade. Os pescadores do lago conheciam muito bem este ritmo e a circunstância de uma das espécies piscícolas, a «tilápia» se alimentar Precisamente deste tipo de alga. Assim introduziam-se ao amanhecer nos bancos de peridinium, obtendo desse modo importantes capturas. (N. do M.) Cavalo de Tróia, os estudos do Kennereth deveriam ser concluídos a partir de terra. Eliseu seria o responsável por boa parte dessas investigações científicas, que incluíam capítulos tão ambiciosos como o acompanhamento dos ciclos do nitrogénio e do fósforo, da cadeia alimentar do lago, informações sobre as duas diferentes camadas, fitoplâncton, transparência, oxigenação e níveis das suas águas, principais ventos e correntes, salinidade, evaporação, natureza dos mananciais sulfurosos, fauna e, de uma maneira geral, tudo o que concerne à moderna ciência da limnologia (estudo dos lagos e pântanos). Este banco de dados: além de nos enriquecer e de enriquecer o projecto, foi de uma ajuda inestimável nas movimentações e aventuras em que a partir de então nos vimos envolvidos. Mas há que prosseguir, porquanto as forças se vão diluindo e muito resta por contar... Como julgo ter explicado, uma das regras da operação proibia a presença dos expedicionários em momentos, digamos, de certa intimidade entre Jesus e seus discípulos, como ocorrera, por exemplo, no decurso da chamada última ceia. Neste caso, a situação foi compensada com informações indirectas
e mediante a ocultação de um microfone especialmente sensível na lanterna que iluminava a mesa do cenáculo. No entanto, tendo em conta o grave risco que representaria o abandono – ainda que apenas temporário – destes dispositivos electrónicos num quadro histórico desajustado, os directores do Cavalo de Tróia acordaram em substituir tais sistemas por outro, incomensuravelmente mais seguro e eficaz. E o general Curtiss, com a sua proverbial habilidade, conseguiu da AFOSI (Agência de Investigações Espaciais da Força Aérea norte-americana) um protótipo quase mágico que, com rara oportunidade, foi baptizado pelos homens do projecto com o nome de olho de Curtiss. O berço foi equipado com seis dessas maravilhas da engenharia electrónica: umas esferas de aço de 2,19 centímetros de diâmetro, totalmente blindadas, susceptíveis de serem lançadas a partir do módulo e convenientemente camufladas na faixa do espectro IR, teledirigidas a distâncias não superiores a dez quilómetros, podendo mesmo imobilizar-se a uma altitude de mil metros. Estes equipamentos – que fariam hoje as delícias dos serviços de espionagem de todo o Mundopermitir-nos-iam registar cenas e conversas que, em condições normais, seriam de difícil ou impossível acesso 1. *1 – Embora o olho de Curtiss entre especificamente no âmbito do segredo militar, não estando eu, portanto, autorizado a revelar as chaves dos seus microssistemas, acho que não violo nenhuma norma se me limitar unicamente a referir as funções que estiveram directamente relacionadas com o nosso trabalho. Em síntese, estas esferas tinham sido dotadas de várias câmaras fotográficas electrostáticas, com uma propulsão magnetodinâmica que, como eu dizia, lhes permitia elevarem-se até uma determinada altitude, podendo captar imagens fotogramétricas e toda a espécie de sons. No seu interior tinha sido instalado um microfone diferencial, integrado por 734 células de ressonância, cada uma delas sensibilizada numa gama muito restrita de frequências acústicas. O campo de audição estendia-se dos dezasseis até aos dezanove mil e quinhentos ciclos por segundo. Os níveis compensados, - com resposta praticamente planadispõem de um limiar inferior aos seis decibéis. (É preciso acrescentar que as células de registo de frequências infra-sónicas devido às suas microdimensões” não funcionam com ressonância própria.) O nível de corte superior era de cento e dezoito decibéis. Outro dos dispositivos instalado no olho de Curtiss” consistia num detector de hélio líquido extremamente preciso, capaz de registar frequências electromagnéticas que se estendem desde a gama centimétrica até à banda beaa. O equipamento de resto
discrimina frequências, amplitude e fase, controlando, simultaneamente o tempo em que se verificou a detecção. Também dispõe de um emissor de banda múltipla, e gerador de ondas gravitacionais, que era de grande utilidade nas comunicações com os órgãos de controlo situados no berço, assim como de um retransmissor para a informação captada pelos vários equipamentos. O «olho» podia imobilizar-se no ar, graças a um equipamento, igualmente miniaturizado, de nível gravitacional, que lhe permite ficar «estacionário» a diferentes altitudes mediante o registo do campo gravitacional e o correspondente dispositivo propulsor. [A medição do campo faz-se lhe permite o registo do campo um acelerómetro que valora a constante g em cada ponto, controlando o comportamento de queda livre de uma molécula de SCN2 Hg (.tiocianato de mercúrio)]. O delicado engenho podia deslocar-se de acordo com dois sistemas de controlo. Em alguns casos, um transceptor de campo gravitacional em alta frequência emitia impulsos codificados de controlo que eram automaticamente corrigidos quando o olhoH se encontrava nas imediações de um obstáculo. O operador, a partir de terra podia observar num ecrã todo o campo visual detectado pela esfera. Este procedimento era complementado mediante a Hcarga de uma sequência de imagens e perfis fotográficos do terreno que se desejava «espiar». Daí a importância do «circuito», aéreo sobre as treze secções em que o litoral do lago tinha sido dividido. Esse impulso televisual servia de «guia» ao «olho de Curtiss». A sucessão de imagens levava fixada a trajectória, que por sua vez era memorizada numa célula de titânio cristalizado quir, llómente puro. Dentro do olhoH microcâmara, cujo filme foi substituído por um ecrã que traduz a recepção de fotões em impulsos eléctricos, recolhe as sucessivas imagens dos locais sobrevoados pela esfera. (A sensibilidade desse ecrã vai até uma frequência de 7.102 ciclos por segundos, O espectro infravermelho -, sendo assim possível a sua orientação, mesmo em plena escuridade.) Tais imagens são sobrepostas, às registadas na memória e que, insisto, eram previamente captadas pelo módulo no referido voo. À volta do mar de Tiberíades Este equipamento óptico explora ambas as imagens e, quando as primeiras não coincidem com as memorizadas, alguns impulsos de controlo corrigem a trajectória dos equipamentos propulsores e de direcção. Deste modo, o «olho de Curtiss», pode orientar o seu movimento sem necessidade de manipulação exterior, teledirigida. No nosso caso, o controlo a partir do berço foi praticamente contínuo. Lamentavelmente, hoje em dia uma parte deste prodigioso sistema acabou por penetrar em outros círculos mas que, embora de forma incompleta começaram a desenvolver o que designam nto sistema de guia TERCOM (Terrain Contour Mapping) e sistema MAC (Scene atching Area Correlation), tristemente conhecidos pelo seu uso como guias de míssão. (N. Do M.)
Nas iminentes aparições do Ressuscitado aos seus íntimos teríamos ocasião de comprovar o grau de eficácia do olho de Curtiss . Se não fosse ele, alguns dos acontecimentos que se passaram nas margens do lago teriam ficado mutilados ou lamentavelmente deformados. Dava-se, além disso, outra circunstância que, por si mesma justificava a utilização destes minúsculos, quase humanos, dispositivos. No caso por exemplo, das aparições de Cristo no lago, nenhuma das passagens evangélicas relata com exactidão em que ponto da costa ou do interior se registaram. Todas as suspeitas apontavam para as áreas de Betsaida ou Cafarnaum e para o monte das Bem-Aventuranças. Mas isto não era suficiente nem rigoroso. Daí que, chegado o momento na suposição de não me encontrar presente, um destes olhos, poderia previamente ser programado e ser conduzido para o local desejado, registando imagens e sons. E a jornada foi-se assim extinguindo. Eliseu e eu próprio aguardámos impacientes o novo dia. Os planos da operação iriam, uma vez mais, ser modificados em plena marcha.
19 DE ABRIL, QUARTA-FEIRA Previdente e meticuloso, o meu irmão avisou-me. As reservas alimentares e de água estavam a esgotar-se. Estas coisas, aparentemente de pouca importância, desempenhavam também o seu papel. E, por vezes, como adiante se verá, forçaram-nos a mudanças bruscas nos planos. Neste caso, a alteração do programa revelar-se-ia providencial. Os víveres, como já expliquei, tinham sido programados para doze dias. Reduzindo a dieta poderíamos resistir até ao meio-dia de sextafeira, 21. Mas também não era caso para nos estarmos a preocupar demasiado com questões desta índole. As nossas forças e inteligências deveriam estar prontas e disponíveis para
necessidades menos prosaicas. De modo que, de mútuo acordo, decidimos quebrar com o que tinha sido programado pelo Cavalo de Tróia. Nessa mesma quarta-feira, 19 de Abril, desceria à povoação próxima, em busca de alimentos. Mas antes, aproveitando a serena e ensolarada manhã, tentaríamos resolver um outro assunto. A colina continuava deserta. Isso encorajou-nos a pôr em marcha a nossa primeira saída conjunta do módulo. A temperatura no exterior - onze graus centígrados às sete horas -, com possibilidades seguras de ir aumentando até aos vinte e um ou vinte e dois até ao meio-dia, e uns quarenta e nove e meio por cento de humidade relativa, anunciavam um dia temperado, muito adequado aos nossos propósitos. Sem reprimir a emoção, Eliseu trocou o seu habitual fato de trabalho por roupas próprias da época, substancialmente semelhante à minha: uma camiseta castanha escura e uma túnica preta, de linho, com duas franjas vermelhas e paralelas no centro, que se prolongavam à frente e atrás, à maneira das que eram confeccionadas em Gedi, na costa ocidental do mar Morto. O cíngulo ou cinturão, de couro e de dez centímetros de largura, era diferente do meu. Consistia numa utilíssima peça oca, idêntica às encontradas nas ruínas de Massada, que permitia guardar dinheiro e pequenos objectos. Uma fíbula de bronze, simulando um arco, servia de fecho. O calçado para esta fugaz escapada da nave também não era muito diferente do usado habitualmente por mim próprio: sandálias com sola de esparto entrançado nas montanhas turcas de Ancara, belamente perfuradas por vários pares de tiras de couro de vaca, devidamente enceradas, que se enrolavam na canela da perna. Prescindimos das chlamys. A temperatura agradável e o estorvo que tais mantos traziam desaconselhavam o seu uso. Uma vez modificado o alcance dos sensores de radiação infravermelha – prolongando o seu raio de acção até trezentos pés -, o meu companheiro pôs numa bolsa de oleado os instrumentos de que, segundo os nossos cálculos, poderíamos necessitar nesta nossa exploração. E lenta e ponderadamente, como se nisso empenhasse a sua vida, desceu para o patamar rochoso. Segui-o
com curiosidade. Aquele era, de facto, o seu primeiro contacto directo com a Palestina de Jesus. Um Jesus de Nazaré que, de resto, ele ainda não tinha tido a fortuna de contemplar cara a cara. Eu sabia-o, tinha conhecimento das suas inquietações e o seu acalentado sonho e ali mesmo, sob a estrutura do berço, supliquei aos céus que essa oportunidade não se malograsse. Nenhum de nós imaginava então como estávamos perto de tão crucial e decisivo encontro... Tal como tinha sucedido comigo aquando da segunda saída, Eliseu quedou-se silencioso durante uns instantes. A beleza da colina verdejante e perfumada não era para menos. Passeou a vista à sua volta e, deixando-se arrastar por um dos seus impulsos, pôs o joelho direito em terra , apanhando uma mancheia húmida de ervas e de flores. Levou-a aos lábios e, semicerrando os olhos, beijou-a. Depois sorriu para mim, como que escusando-se daquele gesto que eu talvez pudesse interpretar como um tanto pueril. É claro que não era isso que eu pensava. Bem pelo contrário. Emocionado perante a sensibilidade e cristalina transparência do seu coração, correspondilhe com o melhor e mais eloquente dos meus sorrisos. De súbito, mal nos separámos do invisível berço, a cabeça de cera ajojada no meu ouvido direito começou a vibrar. Era o sinal previamente combinado. O Pai Natal, conforme o programado, tinha iniciado a emissão de uma série de impulsos electromagnéticos de 0,0001385 segundos cada um, perfeitamente identificável através da ligação auditiva. O dispositivo não era mais que um reajustamento do escudo protector IR. Na hipótese de alguém penetrar no círculo infravermelho de trezentos pés de raio, os sensores depois de captarem a presença do intruso , convertiam o sinal em impulsos eléctricos e, automaticamente, o computador central reemitia-o sob a forma de mensagens de curta duração. Mesmo que nos encontrássemos a quinze mil pés da nave, o Pai Natal podia interpretar e reconverter o alerta IR, transmitindo-o até à nossa posição. Este sistema, de grande fiabilidade, permitia-nos abandonar o
módulo, sem deixarmos de registar a proximidade de homens ou animais na referida zona de segurança da máquina. No caso presente, estes impulsos electromagnéticos foram provocados por nós próprios, situados como estávamos em pleno campo de acção dos sensores de radiação infravermelha. Quando chegámos perto do círculo de pedras de basalto , saindo assim para fora do alcance do escudo IR, os pequenos silvos cessaram. Subimos ao cimo das rochas e, depois de nos certificarmos da ausência de gente nos arredores, dispusemo-nos a desvendar o mistério guardado pela pedra circular. Alguns pontapés secos foram suficientes para que a cunha cedesse. O pesado pedregulho, quase sem ajuda, deslizou por efeito da gravidade para a esquerda, rangendo ao roçar na parede de calcário. Uma escura abertura rectangular, de uns noventa centímetros de altura, apareceu diante de nós. Olhámo-nos com inquietação. Devíamos prosseguir? A tenebrosa escuridão fez-me hesitar. Até que ponto era necessário arriscar-nos numa aventura como aquela, à margem da nossa verdadeira missão? Mas Eliseu, adivinhando os meus pensamentos, atirou o saco lá para dentro e, sem mais contemplações, introduziu-se de gatas na galeria. Acompanhei-o com o coração acelerado. E já no estreito túnel, começámos a sentir um cheiro acre e esquisito que nos deu desde logo uma ideia do que na verdade a gruta encerrava. As minhas suspeitas eram fundadas. Assim, seguros da completa ausência de testemunhas, decidimo-nos a utilizar uma potente lanterna de trinta e três mil lúmenes, a bateria, com uma autonomia de quase duas horas.1 *1 – A magnífica lanterna, de cristal de quartzo dispunha de cinco acumuladores cádmio-níquel blindados, com uma capacidade de seis amperes-hora cada um. (N. Do M.)
(Noutras circunstâncias, obviamente, este foco nem sequer teria saído da nave.) O corredor, de uns dois metros de profundidade, desembocava numa antecâmara rectangular, igualmente escavada
na rocha, cujo tecto – a quase três metros de altura – permitiu que nos erguêssemos. O piso, ligeiramente mais baixo que o do corredor de acesso estava rodeado de prateleiras de pedra. No centro geométrico de cada uma das paredes abriam-se vários arcos – à maneira de portas e com um metro e oitenta de altura – que conduziam a outras tantas câmaras, todas quadradas, de oito metros de lado. Naqueles cubículos, apesar do carácter hidrófilo da caverna, que absorvia boa parte dos gases, o cheiro a gás sulfídrico e amoníaco era tão intenso e nauseabundo que tivemos de recorrer às máscaras, que prudentemente tínhamos incluído entre os utensílios colocados na bolsa. (Como médico, eu sabia que, passados uns minutos, a pituitária acabaria por saturar-se e a membrana nasal deixaria de captar aquele molesto e opressivo cheiro fétido. Mas respeitei os lógicos desejos de meu irmão.) Encontrávamo-nos, de facto, numa cripta funerária de grandes proporções que, com toda a probabilidade, guardava os restos mortais de alguma endinheirada família de Cafarnaum, ou talvez de toda uma colectividade. Nas paredes, sobre as prateleiras, abriamse os kokim, ou nichos (em algumas contámos até nove), cerrados por outras tantas pedras circulares. Quando removemos as pedras apareceram-nos umas pequenas celas de dois metros de comprimento por oitenta centímetros de altura e cinquenta e cinco de largura. No seu interior repousavam uns curiosos sarcófagos rectangulares de madeira – quase todos de cipreste e sicômoro -, feitos de pranchas ligadas por dobradiças e cavilhas. Envergámos o vestuário de protecção – dois pares de luvas cada um, óculos, gorros e vários aventais que nos cobriam do pescoço aos pés – e, procurando não desconjuntar os carcomidos caixões, removemo-los para o meio da sala. Ao destapá-los fomos encontrar um sistema de sepultura – muito comum no século I antes de Cristo – que consistia na sobreposição, num mesmo ataúde, de dois ou mesmo três corpos, separados por coxins de couro. (Geralmente, um adulto e uma criança ou dois adultos e uma criança.) Junto aos restos mortais alinhavam-se caçarolas e recipientes de barro e, em cinco deles, ocupados por mulheres, sandálias e uma
moeda cunhada na época de Herodes. A maioria encontrava-se reduzida ao esqueleto. Apenas alguns tinham passado ao estado de desintegração pulverulenta. Várias das crianças apresentavam-se mumificadas e dessecadas. Em contrapartida, três das sepulturas, muito mais recentes, apresentavam-se na segunda e terceira fases de pu trefacção – períodos enfisematosos e de liquefacção – com os cadáveres apresentando todas as características habituais nesta situação. Muitos provavelmente tinham sido inumados no decurso dos últimos dois ou três meses. Mas não era aquilo o que de facto procurávamos. E, uma vez concluí das as análises e investigações nas câmaras funerárias, encerrados de novo os nichos, dirigimo-nos ao piso inferior da cripta. No pavimento do pubículo que se encontrava diante do túnel de entrada, alguns degraus permitiam o acesso a uma segunda sala, de quase trinta metros de fundo, cheia de nichos e arcossólios. Ali, em mísulas igualmente escavadas na rocha viva, se encontrava o nosso principal objectivo: uma trintena de ossários rectangulares talhados em peças únicas de pedra calcária, com tampas separadas. Quase todos apresentavam os nomes, origem da família e dados pessoais da vida de cada um dos inumados gravados em hebraico e grego. Estas inscrições ajudar-nos-iam a estabelecer os parentescos e a comprovar outros dados antropológicos. Cada ossário – de cinquenta centímetros de altura por setenta de comprimento e vinte e cinco de largura – continha os ossos desarticulados de um ou vários indivíduos, para ali trasladados após uma primeira inumação e subsequente decomposição da carne. Outros, mais pequenos, guardavam as ossadas de crianças. No meio da câmara num largo poço de dois metros de diâmetro, um caótico montão de ossos humanos, misturados com vasos de barro, na sua maioria quebrados e sem préstimo. Uma oportunidade como aquela talvez não se repetisse. Por razões fáceis de compreender um estudo antropológico dos judeus vivos daquele tempo era quase impossível. Daí que ao detectarmos as galerias subterrâneas e suspeitarmos da sua natureza, tanto eu como Eliseu decidimos que, à margem da missão propriamente dita não devíamos menosprezar a ocasião de estudar os restos humanos
ali depositados e que, sem dúvida revelariam dados de grande interesse científico. Assim, em empenhados com o projecto, demos início a uma febril análise osteológica. (Em dias sucessivos, o meu companheiro encarregar-se-ia de concluir as medições, aventurando-se sozinho na cripta. Lamentavelmente, tal temeridade valer-nos- ia um susto de morte e uma lição que jamais esqueceríamos. Conseguimos, ao todo, examinar o resto de 197 indivíduos pertencentes a três gerações da família de um tal Yejoeser ben Eleazar e sua esposa Slonsion. O apelido Goliat estava gravado na maioria dos ossários. Pois bem, as conclusões mais importantes deste estudo – em boa parte extensíveis à generalidade da população da Galileia seguintes: - foram as que cerca de metade dos indivíduos tinha falecido antes dos dezoito anos. (Dentro desse grupo, a mais alta cifra de mortalidade correspondia aos primeiros cinco anos de vida.) Isso reflectia algo que, no fundo, já sabíamos: o índice de mortalidade infantil era muito elevado. Também observámos uma alta incidência de anomalias 1 no sistema ósseo, com forte predomínio da artrite, em especial entre os homens e mulheres mais idosos, *1 – As principais anomalias consistiam em sutura metópica, patente em um entre quinze crânios; ossinhos na sutura lambóide, em dois; redução unilateral do canal condilar num dos crânios e ausência do mesmo num segundo crânio; toros auditivos em quatro de cinquenta e sete; fusão congénita do áxis e da terceira vértebra cervical em dois de vinte e sete; formação incompleta do arco nervoso em um de vinte e nove atlas e um em vinte e sete áxis; formação de duplo arco em dois de vinte atlas; diversos graus de fusão da última vértebra lombar com o sacro em quatro de doze casos; um caso de coluna bífida e dois de pélvis com aplasia congénita do acetábulo. No referido e extenso problema da artrite observámos todos os graus: desde a erosão e corrosão das superfícies articulares até à formação osteófita. E em certos casos, a ossificação de ligamentos (nota interrompida).
Estendendo-se particularmente à região cervical e lombar da coluna. Quanto à dentição, o quadro geral era igualmente calamitoso. Encontrámos cáries em 37 por cento das mandíbulas. (Verificavamse, em geral, nos caninos e molares.) Também descobrimos
abcessos alveolares em 28,5 por cento dos maxilares e em 30,2 por cento das mandíbulas: a maioria na região dos molares, caninos e incisivos. O desgaste era maior nos espécimes mais antigos. (Muito acentuado nos molares e pré-molares.) A reabsorção alveolar denotava uma grave afecção periodontal, causa, sem dúvida, da frequente perda prematura dos dentes. Segundo as nossas observações, os primeiros a cair eram os molares. (Descobrimos também dois caninos inferiores com dupla raiz; um crânio com ausência congénita de caninos superiores e um canino e um incisivo com raízes e coroas fundidas.) As condições dentárias da população  eram, manifestamente, lamentáveis. (Aos problemas degenerativos de natureza congénita, avitaminose, etc., tinha de acrescentar-se o excessivo consumo de pão – fundamental na dieta dos hebreus – que levava seguramente à afecção periodontal e a um notável desgaste dos dentes.) Os crânios daqueles galileus, eram, no caso dos varões, claramente mesocéfalos 1, ao passo que os das mulheres – relativamente mais largos – se apresentavam como braquicéfalos2. A proliferação de crâneos (continua a nota). Intervertebrais resultou, ao que parece, da fusão de duas ou mais vértebras da região torácica. Também aparecem compressões laterais das vértebras torácicas, dando origem a corpos vertebrais em forma de cunha. (A cifose seria para o lado direito.). As alterações artríticas em outras junções da coluna vertebral eram frequentes na região dos ombros. Os casos mais graves apareceram nos ossos que apresentavam fracturas curadas, podendo estar associados às consequentes alterações de postura. Ao todo encontrámos vestígios de quatro fracturas antigas: uma na clavícula, outra no metatarso e as restantes no cúbito e no perónio. Todas elas se soldaram com pouca ou nenhuma deformidade, embora a do perónio, com uma proliferação excessiva do osso, sugerisse uma infecção benigna. Estes padrões foram considerados como uma condição degenerativa da coluna e das articulações, muito espalhada e relacionada com a idade. Vários dos cúbitos e rádios apresentavam-se também atrofiados e outros inflamados e curvados. Num dos números, a epínse estava pouco desenvolvida. Associámos tal facto a uma deformidade do pescoço e da região tuberosa do deltóide. A verdade é que todos, até certo ponto, indicavam um certo grau de paralisia dos músculos da extremidade superior. Suspeitámos que várias das anomalias congénitas podiam estar relacionadas com
alterações patológicas no sistema neuromuscular. A aplasia do acetábulo provoca um marcar acentuado, já que não se forma articulação nos quadris. Quanto ao grau de lesões no sistema nervoso do indivíduo que sofrera de coluna bífida foi, localmente, difícil de avaliar, porquanto não dispúnhamos dos ossos associados. (Pensamos que tal condição estava ligada a vários índices de paralisia, podendo estar na origem de um dos casos de atrofia da parte superior do braço.) Por vezes, também o sistema nervoso se vê afectado por outra das anomalias congénitas que observámos – fusão das cervicais -, situação registada na chamada síndroma de Klippel-Feil,. (N. Do M.) *1 – Mesocéfalos: crânios médios, mais ou menos arredondados e de dimensões semelhantes. (N. Do M.) *2 – Braquicéfalo: crânio mais curto. A média entre as mulheres foi de 77,7 por cento. Os rostos num e noutros sexos eram mais curtos, com um índice nasal mesorrino. No capítulo das medições pós-cranianas computou-se a distribuição de frequência das medidas para determinar se existia uma distribuição bimodal, que pudesse ajudar no esclarecimento do sexo de forma individual. O fémur trouxe a evidência maiS (nota interrompida).
Masculinos mesocéfalos, com uma média de 81,5 naquelas latitudes, obrigar-nos-ia a rectificar o critério até então defendido em relação ao crânio de Jesus de Nazaré, igualmente mesocéfalo e que, fazendo fé nos estudos de Von Luschan e Renan tínhamos considerado como pouco frequente entre os judeus da Galileia. Segundo os compassos de arco, réguas e medidas utilizados, a estatura média daqueles espécimes – ratificada em observações posteriores e directas – oscilava à volta de 1,66 m nos homens e 1,48 m nas mulheres. Consequentemente, com o seu 1,81 m, Jesus de Nazaré também nisso foi uma excepção. A título de curiosidade direi que, ao classificar os ossos da cripta, descobrimos dois esqueletos extremamente altos e robustos: um com 1,88 m e o outro com 1,77. Dadas as suas notáveis diferenças relativamente aos restantes, estes indivíduos – varões – não foram incluídos na análise métrica geral, na qual o Pai Natal desempenhou naturalmente um papel decisivo. Três horas depois de termos penetrado no complexo funerário, com a segunda bateria quase esgotada, impacientes por respirar ar puro e inquietos por tão longa estada fora do módulo, demos por terminada a primeira sessão de trabalho, à qual se seguiram outras
não menos apaixonantes jornadas. O que não foi assim tão fascinante foi o obrigatório fecho do panteão. Apesar dos nossos esforços o pesado pedregulho – com os seus quatrocentos ou quinhentos quilogramas – mal se moveu. A calha em rampa sobre a qual deveria rodar constituiu um obstáculo inultrapassável para nós, expedicionários desesperados e suados. Fizemos uma, várias tentativas, dobrando-nos literalmente sobre a pedra e empurrando até nos sangrarem as mãos. Nada. Extenuados, não soubemos o que fazer. Mas Eliseu, confiante e optimista, encarou o percalço pelo lado bom: afinal, tal facto facilitaria o acesso a futuras investigações. No entanto, o raciocínio não me tranquilizou. Se os habitantes descobrissem – como viria a acontecer – que a cripta tinha sido violada, os estudos e até mesmo a própria segurança da nave poderiam correr graves riscos. A minha intuição não falharia... (continua a nota). Clara de dimorfismo. O comprimento oblíquo, a largura bicondiliar e o diâmetro da cabeça do fémur foram especialmente úteis nesse sentido. Num dos crânios os ossos frontais eram muito densos e as rugosidades superorbitais, maciças. Uma grande mandíbula com osso denso que encontrámos em separado pertencia provavelmente, a este crânio. Um meticuloso exame osteológico mostrou uma nova formação ordenada do osso. Noutro dos crânios descobrimos uma lesão erosiva na região frontal. Tínhamos conhecimento de que este tipo de lesão tinha sido detectado também em exemplares do Egipto e da Núbia. Provavelmente, representava a reabsorção do osso, como consequência de uma irritação crónica de uma úlcera do tecido mole que o recobria. Observou-se ainda criba orbitalis na maioria dos crânios das crianças e mos nos ossos parietais e occipitais. Possivelmente isso devia-se a uma deficiência de ferro e proteínas ou talvez a uma infecção da mãe. Esta hipótese viu-se apoiada pelo achado de crânios de adultos com uma forte díploe e estenae hyperplastica, dos que se registam em consequência da destruição de eritrócitos pela malária. (N. Do M.) * - Nas análises osteológicas foram utilizadas as medidas de Martin-Saller. A idade e o sexo foram determinados usando, entre outros, o critério de Krogman. Com o fim de estabelecer afinidades raciais, os achados foram comparados pelo Pai Natal com os de Arensberg (para os restos do período romano-bizantino de Jerusalém e En Gedi) e com os de Haas e Nathan (para os restos de Acre). Os fémures eram platiméricos e as hôias, pelo contrário, mesocnémicas, com sinais de rigidez. Esta circunstância pode ter a ver com uma contínua flexão das pernas, devida talvez ao acidentado do terreno
naquela região do país. (N. Do M).
Hora sexta. (Aproximadamente, doze horas.) Como tínhamos combinado, preparei-me para descer à ainda suposta cidade de Jesus: Cafarnaum. Inspeccionei a minha indumentária e a bolsa de oleado; acabei por mudar de calçado. O programa ordenava que, a partir da aterragem nas margens do lago, as habituais sandálias de esparto deviam ser substituídas pelas electrónicas. Para a caminhada que estava para iniciar e para as que me aguardavam nos dias seguintes, aquele invento era tão útil como imprescíndível. O material e as suas formas eram basicamente idênticos. Só as solas – parcialmente ocas – as tornavam diferentes das outras. No seu interior tinham sido instalados dois sistemas miniaturizados: um microtransmissor e um conta-passos. O primeiro, vital para a minha localização nos ecrãs do berço. (Quando, por necessidades da exploração, me visse forçado a deslocar-me para distâncias superiores a quinze mil pés do módulo, este dispositivo substituía, em parte, a escassa ou nula fluidez da ligação auditiva. Um sinal emitido pelo referido microtransmissor era então captado e ampliado no extremo superior da vara de Moisés e reenviado para as antenas da nave mediante um poderoso laser. Deste modo, Eliseu e eu próprio mantínhamos um razoável contacto. Com efeito, em determinadas missões, o sistema foi utilizado como uma chave para assinalar o princípio e o fim de operações e manobras específicas.) O segundo equipamento electrónico incluía um micropedómetro, um cronómetro digital, um sensor-medidor do consumo energético em cada deslocação e uma célula programada para elevar a temperatura do calçado em caso de externa inclemência 1. Em princípio, a minha presença no referido núcleo humano devia ser o mais breve e cautelosa possível. O estritamente indispensável para adquirir uma razoável quantidade de víveres que aliviasse a nossa penosa situação. Mais tarde, depois de os discípulos do Ressuscitado terem
chegado à zona, as minhas idas e vindas ficariam menos limitadas. Eram estes os planos; mas, como diz o ditado, o homem põe e Deus dispõe... Pelas doze horas, com os crótalos, quarenta shekels e um pouco mais de oitocentos sestércios na bolsa de oleado impermeabilizado, deixei a base-mãe, pletórico de energia e – porque não dizê-lo – com um subtil formigueiro nas entranhas. Aquele ia ser o cenário das minhas próximas aventuras e – o que era mais importante – dos meus possíveis reencontros com o saudoso Rabi da Galileia. Tomei a direcção do círculo basáltico e depois de transpor as grandes rochas negras, fui descendo pela verdejante encosta oriental, seguindo o  estreito carreiro de terra avermelhada que terminava no terreiro da cripta. Não se encontrava ninguém no caminho, o que me tranquilizou. *1 – O sensor do micropedómetro foi instalado na entressola: na zona correspondente aos dedos. Os dados registados pela sandália eram armazenados num minúsculo disco magnético, localizado na zona do tacão. Posteriormente, podia ser lido” e descodificado pelo computador central. Quanto à célula térmica, estava programada para regular a temperatura dos pés entre cinco e sete graus centígrados acima da média ambiental. (N. Do M.) A minha condição de estrangeiro e gentio não me favorecia. Se alguém me visse a descer por aquela vereda, talvez não deixasse de se pôr algumas perguntas. Que andaria a fazer um pagão nas imediações de um lugar tão sagrado como um cemitério judeu? Tomei então consciência que, enquanto a pedra circular não fosse devolvida à sua posição primitiva, deveria evitar aquele caminho. Mas, por sorte, os campos contíguos em plena maturação, estavam desertos. Ao chegar à bifurcação respirei, aliviado. A distância percorrida desde o ponto de contacto até à divisão da vereda era de cerca de seiscentos metros. A partir daí, por uma rampa mais suave, o caminho conduzia directamente ao extremo ocidental da povoação, contornando – à direita e à esquerda – uma infinidade de dourados trigais. Não pude evitá-lo: levado pela curiosidade detive-me junto de um dos campos, examinando as espigas carregadas. A colheita
antevia-se esplêndida, com trinta e até cinquenta grãos por planta. Uns grãos duros, sem casca e ricos em glúten – típicos do chamado trigo duro, muito frequente na Palestina de Cristo -, que produziam uma farinha excelente. Mais adiante noutras searas curvada também ao peso do fruto, distinguia-se uma segunda espécie de trigo: a escândea, de inferior qualidade. A poeirenta vereda desembocava na estrada que contornava parte da costa oeste do lago e que tínhamos tido ocasião de contemplar em voo e do local onde o módulo tinha aterrado. Se os meus cálculos não falhavam, a distância percorrida entre o círculo de basalto e a confluência do caminho com a estrada podia calcular-se em pouco mais de uma milha. Ao fim desta vereda principal a uns trezentos ou quatrocentos metros para leste, avistavam-se os negros muros da cidade em que eu devia entrar. Senti um calafrio. Apesar do meu treino e das muitas horas vividas em Jerusalém, Betânia e arredores da Cidade Santa, experimentei uma incómoda e estranha sensação. Foi como se começasse a partir do zero; como se aquela nova fase da exploração escondesse emoções e perigos com que não tinha contado. Afastei tais presságios e durante alguns minutos, depois de comunicar a Eliseu a minha posição, entretive-me a examinar a estrada. Porque era realmente disso que se tratava: de uma das magníficas vias de projecto e construção inteiramente romanos, de quatro metros e meio de largura, elevando-se cerca de oitenta centímetros acima do terreno circundante e perfeitamente pavimentada com grandes e lisas pedras de basalto, quadradas e rectangulares, cujas junturas tinham sido invadidas e coloridas por verdes tufos de erva e mato. À direita da berma e da vedação que marginavam a estrada (neste caso, voltadas para a povoação), corria um caminho estreito, pavimentado por pequenos seixos negros, menos duros que as lajes da estrada e pensado, sem dúvida para o trânsito de homens e animais. O summum dorsum ou leito da estrada apresentava-se ligeiramente abaulado, para facilitar o escoamento das águas pluviais. Mais uma vez fiquei maravilhado. Apesar do acidentado e
da dificuldade do terreno , os excepcionais construtores romanos tinham dado uma boa prova da sua perícia e competência. *1 – Aquela estrada – a famosa Via Máris -, tal como a maioria das traçadas pelos romanos, obedecia a padrões (que foram descritos numa das obras de Estácio (Silvas, IV, 3 v. 40-55), na qual se relata a construção da Via Domiciana (ano 95 d. C.) que, partindo de Roma, penetrava nas areias e salinas da costa. O primeiro trabalho – diz Estácio – foi traçar os sulcos, abrir a rede de pistas e, mediante uma profunda cava, revolver a fundo o terreno. O trabalho seguinte consistiu em encher as valas e implantar uma base para a parte inferior do revestimento, de forma a que o solo não aluísse, os fundamentos aguentassem e o leito não oscilasse sob o pavimento. Depois vinha a tarefa de cercar o caminho mediante vedações dispostas de ambos os lados e bermas. Quantas equipas trabalhavam ao mesmo tempo! Uns derrubavam as árvores e arrasavam os montes, outros alisavam com o ferro as lajes e aplainavam as vigas de madeira. Estes juntavam as pedras e completavam a contextura da obra com cal em pó e gravilha de calcário. Aqueles procediam à dessecação dos terrenos e ao desvio de nascentes e riachos.” Entre os sulcos que tinham delimitado a largura da estrada tornava-se necessário escavar uma vala, cuja profundidade fosse até à rocha ou, pelo menos, até uma camada suficientemente sólida para suportar o peso da via. Avançava-se mediante a construção de lanços sucessivos que se iam unindo uns aos outros, conforme descreve Jeannine Siat no seu estudo O Império: as Suas Estradas. Depois cobria-se a vala. Os materiais utilizados eram dispostos em camadas sucessivas, sendo constituídos por pedra, cascalho batido e areia. Uma cobertura de lajes dava o acabamento final ao summum dorsum. De ambos os lados havia uma vedação ou umbo, formada por lajes dispostas verticalmente e apoiadas da parte de fora por pequenos contrafortes. Uma espécie de cunhas de pedra ou gomphi de forma angular, aparecem distanciadas na estrada, unindo a vedação com o empedrado, que assim ganha em solidez. (N. Do M.) De cócoras e absorto no exame da estrada, nem reparei na silenciosa aproximação daquele indivíduo até que, praticamente, dei por ele mesmo atrás de mim. Fiquei sobressaltado. O ancião – um simples agricultor, a avaliar pelo seu tosco chaluk de lã e pelo sacho ou pequena enxada para plantação que pendia do seu cinturão – sorriu, desejando-me paz e saúde. Observou-me intrigado e, antes mesmo de poder corresponder-lhe, perguntou-me se tinha perdido alguma coisa. Ergui-me e, apontando para o calçado cheio de poeira inventei uma desculpa: estava só a pôr em ordem as correias das sandálias, que se tinham desapertado pela caminhada. Ao contrário do que eu esperava, o hebreu não manifestou qualquer espécie de contrariedade ao notar o meu sotaque estrangeiro.
Diferentemente de muitos dos habitantes de Jerusalém, aquele galileu – tal como a maioria daqueles com quem tive oportunidade de contactar – fez jus à liberalidade por que era conhecida aquela região. Uma liberalidade duramente criticada pelos ortodoxos e pelas castas sacerdotais da Judeia. E muito naturalmente, sem tê-lo sequer pensado, vi-me a caminhar junto do camponês em direcção à aldeia. O certo é que Jonas, era esse o seu nome, tinha uma pequena horta nas proximidades da zona de Tabja, muito perto das nascentes e, valha a verdade, prestar-me-ia uma inestimável ajuda naquela minha primeira abordagem. Timidamente, perguntei-lhe como se chamava a povoação que estava à nossa vista e o meu providencial amigo, espantado replicou cheio de razão se a pergunta fazia parte de algum jogo ou adivinha ou se, pelo contrário, eu estava a fazer pouco da sua boa vontade. Acalmei como pude a sua lógica estranheza, assegurando-lhe que não era essa a minha intenção e suplicando-lhe com veemência que desculpasse a rudeza daquele cansado peregrino. Foi assim que, aceitando a mais que justificada censura do ancião, confirmei o que já suspeitávamos: aquela era de facto a célebre Kefar Nahum (aldeia de Nahum), como era conhecida a Cafarnaum dos tempos de Jesus. Ao que parece, o título de Nahum remontava ao século II a. C. - data da sua fundação – e tinha-lhe sido concedido em honra de uma célebre personagem local (Nahum). Ao longo de todo o flanco ocidental da povoação – entre a estrada romana e as casas – alinhavam-se dezenas de pequenas hortas, meticulosamente cercadas por muros de pedra negra de um metro e meio de altura, nas quais se viam figueiras, nogueiras, amendoeiras, e densos sicômoros, além de outras árvores de fruto que não consegui identificar. Vários carreiros partiam da artéria principal, perdendo-se entre os pequenos muros de basalto daquela rica e florescente cintura agrícola que cercava Nahum por aquele lado e que começou a darme uma ideia mais precisa da prosperidade do lugar. Ao chegar a uns cinquenta metros da triplice e colossal porta da cidade, situada a norte, hesitei. Sob os arcos, entre mendigos andrajosos e
aleijados, distingui uma patrulha de legionários, com as suas características túnicas vermelhas sob as cotas de malha e os seus capacetes de bronze estanhado brilhando ao sol. Pensei em despedir-me ali mesmo de Jonas e tomar uma das veredas que contornavam as hortas, esquivando-me assim aos soldados. Mas contive-me. Não tinha nada a esconder e a companhia do vizinho de Nahum – como chamarei a partir de agora a Cafarnaum – favorecia-me. E, inesperadamente, seguindo outro dos meus impulsos, parei e fiz-lhe uma proposta. Esbocei o mais convincente dos sorrisos e, mostrando-lhe dois shekels, perguntei-lhe se aceitava conduzir aquele rústico e desamparado gentio até à casa dos Zebedeus. Aquela era a minha única referência, medianamente válida, que podia justificar a minha presença ali. Jonas não aceitou o dinheiro. Conhecia de há muito a família dos construtores de barcos – como a definiu – e, precisamente em atenção a essa velha amizade, recusou a generosa paga oferecendo-se gentil e hospitaleiramente para me levar não à casa dos Zebedeu, mas ao seu estaleiro. Parece que a casa de João e de Tiago ficava na outra margem do lago, num local que o lavrador denominou Saidan. - Saidan? Retomámos a marcha e Jonas, satisfeito perante a possibilidade de mostrar a sua superioridade sobre aquele desconcertante grego – mesmo que fosse apenas no conhecimento da zona e dos seus topónimos -, explicou-me que era assim que chamavam a Betsaida. O comportamento do camponês – gesticulador, familiar e multiplicando-se em informações – não despertou suspeitas entre a meia-dúzia de legionários que, aborrecidos e indolentes, nos viu passar sob as pedras de basalto da tríplice arcada. *1 – O nome de Cafarnaum viu-se envolvido numa longa e já antiga polémica. Orígenes, por exemplo, interpretou Kefar Nahum como a aldeia da consolação,, por causa do significado etimológico da raiz hebraica nhm (consolação,). São Jerónimo, por seu turno, traduziu-a como cidade formosa (da raiz hebraica nm, formosura,). No entanto, o nome de Kefar Nahum é sempre transcrito como uma só palavra nos idiomas não semíticos, eliminando o h gutural. Nos evangelhos gregos aparece em duas modalidades: Caphamaum e Capernaum. A primeira, adaptada por Flávio Josefo, está mais de acordo com a pronúncia hebraica, pelo que se supõe a mais correcta; ao
passo que a segunda é considerada entre os especialistas como um termo idiomático da região de Antioquia. Até muito depois da sua destruição, o lugar foi conhecido pelo antigo nome semita de Kefar Nahum. Em 1333, o escritor judeu Ishak Chelo escrevia: [...] de Arbel fomos a Kefar Nahum, que é a Kefar Nahum mencionada nos escritos dos nossos sábios., (N. Do M.)
- Referes-te a Betsaida Julias? Jonas não cabia em si de assombro. A minha ignorância parecia não ter limites. Mas, sem perder o bom humor, fez-me ver que uma coisa era Saidan ou Betsaida – na realidade, um bairro pesqueiro de Nahum – e outra, muito diferente, Betsaida Julias, construída por Filipe muito perto do Jordão e a pouco mais de dezasseis estádios [cerca de três quilómetros] de Saidan. Começava a compreender. Saidan era o nome popular e abreviado de Betsaida, que pouco ou nada tinha a ver com Betsaida Julias. De repente, encontrei-me diante de uma rua ampla, de seis metros de largura e trezentos de comprimento, que atravessava Nahum de norte a sul. Era a artéria principal, balizada à direita e à esquerda por dezenas de colunas de três metros de altura sobre as quais se erguiam edifícios de um, dois ou mesmo três pisos, todos eles, tal como a própria colunata construídos com pedra de origem vulcânica. Com toda a franqueza, fiquei surpreendido. Aquilo não tinha nada a ver com a paupérrima ideia que os cristãos do nosso tempo têm da cidade de Jesus. Tratava-se, dentro das lógicas limitações de um sólido, florescente e cuidado aglomerado humano, palpitante de vida e em contínuo fervilhar, onde os gritos dos aguadeiros, os monótonos pregões dos vendedores e artesãos instalados sob os pórticos, o impacto dos cascos dos animais no empedrado húmido e enegrecido e o apressado vaivém de pessoas de todas as condições e origens, confundiam-se e anulavam-se mutuamente, transformando a rua num torvelinho de cheiros, gestos e luzes. Jonas deve ter-se apercebido da minha perplexidade. E pegandome pelo braço, convidou-me a prosseguir, dizendo-me que as oficinas dos Zebedeus se encontravam no outro extremo da povoação, junto do rio que vinha de Korazim.
Na verdade, Nahum justificava a sua condição de vila fronteiriça, entre a tetrarquia de Herodes Antipas e os domínios do seu irmão Filipe. Ali, em plena encruzilhada de rotas de caravanas, em harmonia completa com os autóctones, traficavam e descansavam estrangeiros de Indumeia, Tiro, Decápole, Transjordânia, Sídon; gregos comerciantes de trigo do distante Egipto, pescadores de todos os pontos do Kennereth, nómadas beduínos e, naturalmente, hebreus, israelitas e judeus de todo o país e de além-Mediterrâneo. De ambos os lados da rua principal abriam-se numerosas vias e ruelas secundárias, igualmente pejadas de pequenos estabelecimentos comerciais, entre os quais uma loja de louça multicolor, pilhas de tecidos a esmo, cestos de fruta e hortaliça. Alfaiates com uma grossa agulha de osso enfiada no tecido, oleiros de mãos e pés húmidos, perfumistas, sapateiros e uma interminável fila de bancas invadiam o pavimento, dificultando ainda mais o já problemático e complicado trânsito de homens e animais. Naquela primeira e fugidia observação pude comprovar que a quase totalidade das casas tinha sido edificada com pequenas e médias pedras basálticas, em forma de discos, com os interstícios tapados com barro e pequenos calhaus. Só as colunas e os lintéis e ombreiras de algumas das portas incluíam pedras lavradas. À excepção dos edifícios que davam para a rua principal os outros pareciam carecer de alicerces. Tinham uma altura máxima de três metros, com escadas exteriores que, obviamente, conduziam aos terraços. Com o passar dos dias, as sucessivas incursões pela cidade proporcionar-me-iam uma ideia mais ajustada da configuração de Nahum, desenhada segundo o modelo helénico-romano de cardo maximcis e decumani, ou seja, com uma vida básica – de norte a sul – interceptada em ângulo recto por outras ruas de menor importância. Nesta malha urbana, com grande surpresa minha, viria a descobrir interessantes construções: balneários públicos, estalagens e prostíbulos, um teatro ao ar livre, praças, uma bela sinagoga – o único edificio, creio eu trabalhado à base de pedra branca calcária -, centros comerciais semelhantes aos que foram descobertos nas ruínas de Pompeia e cinco ilhas. (Estes blocos de habitações, origem dos actuais apartamentos, eram alugados por
pisos ou aposentos individuais a toda a espécie de viajantes, comerciantes ou turistas.) Sob os pórticos da rua pela qual caminhávamos abundavam as tendas de alimentos cozinhados e de bebidas. Estas, em especial, eram as mais pretendidas. Grandes portas de acesso com letreiros como NarANAEL , «O LAVRADOR», aHEBER VENDE «O MELHOR» OU «AQUI, VINHO DE HeBRoN», introduziam os clientes em salas escassamente iluminadas por candeias de azeite penduradas nas paredes. À volta de longos balcões de pedra, com bojudas vasilhas de barro neles fixadas uma confusa mistura de caravaneiros, camponeses e carregadores do porto bebia, discutia aos gritos ou saciava o apetite. Servia-se um vinho tinto denso, áspero e quente, cerveja de palma e fritos preparados à porta do estabelecimento ou em pequenos pátios interiores, enfumarando e empestando o local com o inconfundível cheiro do azeite a ferver e da gordura de peixe. No meio da rua, importunados por nuvens de moscas, jumentos e mulas carregados das mais variadas mercadorias, aguardavam os seus sedentos donos. Não pude recusar. Jonas, ignorando a minha suposta pressa, levou-me até ao interior de um daqueles antros, abrindo passagem sem grandes considerações por entre a animada concorrência. Ninguém protestou. E o taberneiro um obeso e transpirado sírio de nome Nabu, obedecendo ao pedido do impulsivo ancião, colocou sobre o mármore do balcão umas vasilhas de argila, cheias de um líquido espumoso. O camponês não tardou em imiscuir-se na conversa geral que, segundo o que pude apurar, andava à volta das novas burritas da estalagem de um tal Jacob, o Coxo. As burritas mais não eram que uma esplêndida remessa de prostitutas fenícias, recém-chegada a Nahum. Com certa prevenção – dadas as duvidosas condições higiénicas da taberna – molhei os lábios naquela bebida. Era uma espécie de schechar: uma cerveja leve e quente, destilada de cevada e de milho. Um tanto afastado do grupo esperei que o meu acompanhante esvaziasse o seu jarro e a sua verborreia. Por detrás de Nabu, fixos à parede de pedra e como único adorno do estabelecimento, viam
se dois grossos remos cruzados. Numa das pás, gravada a fogo, liase a seguinte inscriÇãO: «AI DO PAÍS QUE PERDE O SEU CHEFE, AI DO BARCO QUE NÃO TEM CarrÃo»! A outra, também em grego, ostentava a seguinte adivinha: «QUAIS AS TRÊS COISAS QUE FAZEM ALVOROÇAR A TERRA, E A QUARTA QUE ELA NÃO PODE CONSENTIR? O SERVO QUANDO REINAR; O NÉSCIO QUANDO SE FARTAR DE PÃO; A ENJEITADA QUANDO SE CASAR; E A SERVA QUANDO HERDAR.» Muitas das tabernas de Nahum, como viria a descobrir, apreciavam aqueles provérbios e outras alegorias e hipérboles, retirados na maioria das vezes dos discursos do filósofo hebraico Filipe de Alexandria, de grande prestígio e influência no judaísmo daquele tempo, cujo método foi, nomeadamente, seguido por Paulo de Tarso na sua Epístola aos Gálatas (4, 21-31). E de repente meti-me na conversa do grupo, perguntando se aquelas frases tinham sido ditas por Jesus. Eu sabia que uma delas, a segunda, pertencia ao Livro dos Provérbios. Mas quis auscultar a opinião dos que ali estavam reunidos sobre a figura do Mestre. Foi como se lhes desse um murro. Ao ouvir o nome do Rabi, os presentes emudeceram, varando-me com olhares nada tranquilizadores. - Jesus... - acrescentei, vacilante, e sem perceber a razão de tão súbita e áspera reacção -, o Ressuscitado. Penso que viveu aqui... O taberneiro tomou a iniciativa e, em tom jocoso, resumiu o que todos pensavam: - É verdade que esse louco ressuscitou? Uma sonora gargalhada colectiva subscreveu as palavras incrédulas e depreciativas de Nabu. Jonas, perspicaz e conciliador, interveio na embaraçosa situação, lembrando aos presentes que eu era apenas um recém-chegado e, como tal, desconhecedor das maldições lançadas pelo construtor de barcos contra Nahum e seus honrados habitantes. O litígio foi esquecido e cada um voltou à sua. O incidente servir-me-ia de lição. Uma boa parte da população desprezava o Mestre e, o que naquela altura era mais importante, ignorava que tivesse ressuscitado. As notícias do seu retorno à vida
ainda não tinham chegado ao lago. Posteriormente, deveria ter mais cuidado com as minhas perguntas e afirmações. O resto do passeio pela rua principal de Nahum decorreu sem mais nada de especial. Já quase no fim, com as águas azuis do lago à vista e desejoso de corresponder de alguma maneira à desinteressada ajuda do meu amigo, parei em frente de um dos bazares, repleto de peças de olaria, ânforas, vasos de cristal, tapetes, panos multicolores, roupas e até coleiras para cães. Jonas, paciente e de certo modo orgulhoso pelos meus contínuos elogios da cidade, não reclamou. Os trabalhadores de olaria eram realmente esplêndidos. Havia vasos importados do vale do Pó, na Itália; taças de fina terracota vermelha com as assinaturas do artesão e do seu operário, Naevius e Primus, respectivamente; tigelas de Mégara; fogareiros de barro com bases para os utensílios de cozinha ; caixas do período herodiano e uma infinidade de recipientes em forma de chaleira, com bico, denominados guttus, utilizados para encher as lâmpadas e candeias de azeite. Por fim, decidi-me por um belo prato para peixe, com uma concavidade circular ao meio, que servia para escorrer o azeite. O preço – meio shekel de prata – pareceu-me exorbitante. Mas a verdade é que tudo naquela cidade de comerciantes e gente de passagem – à excepção dos produtos agrícolas, do pescado e do artesanato de vidro – era de preço proibitivo. Nahum via-se na necessidade de importar a maior parte das matérias-primas, assim como a carne e outros produtos de primeira necessidade, e é claro que isso encarecia a vida, tornando-a mesmo mais cara que a de Jerusalém. Jonas, incrédulo, quase perdeu a fala. Custava-lhe a compreender que um desconhecido, assim, espontânea e generosamente, lhe oferecesse um presente tão valioso. A mudez, no entanto, duraria pouco. Até que, finalmente, consegui ver-me livre dele; as suas promessas de eterna amizade, a sua adulação e as suas ofertas de hospitalidade martelaram-me penosamente os ouvidos. Apesar de tudo, tomei boa nota das suas calorosas palavras dizendo-lhe que
talvez mais tarde viesse a precisar dos seus serviços. A experiência ensinara-me, de facto, a ter muito presente aquele tipo de amizades, tão úteis ao longo da exploração. A Providência estava em todo o lado. Ao atravessar a última rua transversal à grande artéria uma baforada de calor saiu de uma das portas. Espreitei intrigado. Estava perante uma das numerosas oficinas de fundição e sopro de vidro de Nahum. Aquele bloco de edifícios térreos praticamente ligado ao porto, era o bairro dos famosos artesãos e fabricantes de utensílios de vidro e cristal. À volta de um pátio a céu aberto erguiam-se vários telheiros com cobertura de cana, nos quais trabalhavam seis homens, todos eles apenas de tanga e com os cabelos cobertos por turbantes. Ao fundo diante da entrada formando corpo com a parede de basalto e rodeado de altas pilhas de troncos, distinguia-se um forno de pedra de um metro de altura, permanentemente alimentado por um dos operários mais velhos. A seu lado, com o torso brilhante pelo calor sufocante, um outro artesão repisava com um maço de madeira uma mistura poeirenta e leitosa que ia saindo de pequenos sacos de serapilheira na concavidade circular feita na parte superior de uma pedra maciça e escura que lhe servia de mesa. Ao ver-nos, o indivíduo que atiçava o fogo apressou-se a recebernos , mostrando com orgulho a variadíssima colecção de vasos, frascos para unguentos e recipientes de todo o género que repousavam no empedrado dos pavilhões, sobre esteiras extensas e amarelas de folha de palma. Disse-lhe que, de momento, me movia apenas a curiosidade e, como bom fenício, longe de se mostrar contrariado, ofereceu-se, falador e calculista, para responder a todas as perguntas ou dúvidas que houvesse por bem formular-lhe. Azemilkos, o proprietário da oficina, não soube informar-me quanto às origens daquela indústria em Nahum. Herdara-a de seu pai e este, por seu turno, do seu. Alguns dos mais velhos artesãos – isso sim recordava-o – tinham-se estabelecido na vila muitos anos antes, provenientes do Egipto, donde trouxeram as técnicas da fundição, sopro e preparação das misturas. Estas, tanto quanto pude deduzir, eram feitas à base de
areia, pó, soda e cal. Uma vez misturados e triturados, estes materiais – cujas proporções faziam parte do segredo profissional do fenício – eram submetidos a elevadas temperaturas – até alcançarem a cor do sol no horizonte (possivelmente à volta dos mil e quinhentos graus centígrados) -, obtendo-se assim uma massa fluida e suficientemente homogénea. Em seguida, aquela pasta avermelhada era transvasada para umas caldeiras de metal, ficando em repouso. As impurezas e partículas não dissolvidas subiam à superfície, formando aquilo a que Azemilkos chamava as fezes do vidro. Por último, ao diminuir a temperatura, aquela massa adquiria a viscosidade necessária para que os especialistas pudessem trabalhá-la. Para tanto - seguindo a técnica do sopro -, enganchavam uma porção de pasta na extremidade de um tubo de ferro, injectando ar no interior do vidro. Esta operação era, naturalmente, executada a pulmão. Fiquei maravilhado com a destreza do chefe. Em poucos segundos, tomando ar em curtas e rápidas inspirações, conseguiu inflar uma das ampolas transformando-a, com várias e hábeis cortes, numa bela e prometedora vasilha. Por puro formalismo prometi voltar e adquirir algumas peças. Não podia então sequer suspeitar que a minha prometida visita à oficina de Azemilkos se concretizaria logo no dia seguinte e por razões totalmente alheias ao puro prazer de comprar. Mas continuemos com o desenrolar daquela jornada tão rica em surpresas e imprevistos. A rua principal de Nahum desembocava perpendicularmente ao porto, dividindo-o praticamente em dois. Ao pisar o negro e encharcado empedrado do cais (de cerca de quinze metros de largura), a sensação inicial de sufocação aumentou de intensidade. Se o centro urbano fervilhava de gentes e animais, aquele espigão – de uns setecentos metros de comprimento – não lhe ficava atrás. Dezenas de carregadores seminus, banhados em suor e curvados sob o peso de grandes fardos e barricas, iam e vinham a partir dos dez ou quinze atracadouros, descarregando as mercadorias junto dos animais ou de pesadas carretas de duas ou quatro rodas, puxadas por bois avermelhados e de grande porte. Outros, sempre sob o olhar atento e os chicotes de couro dos capatazes, faziam o
caminho contrário, depositando as mercadorias nos terraplenos perpendiculares ao espigão ou descendo cambaleantes pelos húmidos e escorregadios degraus feitos nas paredes laterais dos referidos terraplenos, colocando ânforas, tonéis ou caixas no fundo das embarcações. Um vento de oeste, de uma certa intensidade, começou a soprar sobre o lago, levantando pequenas ondas que faziam balancear os barcos. Não cheguei a contá-los, mas eram seguramente mais de cinquenta. A maioria, de dez a quinze metros de comprimento, parecia destinada ao transporte de passageiros e de carga. Haviaos de cores vivas – vermelhos, azuis e brancos - ou simplesmente untados com pez com proas esguias e pequeno calado. Ânforas de todos os tamanhos peles de cabra, sacos, gaiolas com pombas e até cordeiros eram retirados ou acondicionados nos seus lugares por aquela turba de carregadores, dóceis e esquálidos, na sua maioria escravos e am-ha-arez: a escória do povo. Ainda que a palavra significasse o povo da terra, com o correr do tempo o termo am-ha-arez tinha adquirido um matiz pejorativo, permanentemente alimentado pelo ódio e má vontade dos rabis e das castas sacerdotais. Hillel, por exemplo, assegurava que os am-ha- arez não tinham consciência, não atingindo assim a categoria de homens. Outros como o rabi Jónatas, pretendiam que fossem pura e simplesmente estripados, sentenciando que nenhum judeu se devia casar com a filha de um am-ha-arez. Os judeus ortodoxos acabaram por dar este qualificativo a todos os grupos humanos. *1 – A repulsa para com estes desgraçados era tal que o rabi Eleázar ensinava que era lícito esquartejá-los ao sábado. Toda a Galileia – e muito especialmente Kefar Nahum – era considerada como o principal reduto dos am-ha-arez e, por consequência, contínua e sistematicamente vilipendiada. O próprio nome – Galileia – significava o círculo dos gentios. Aos que, segundo eles, tinham usurpado as terras de Israel, especialmente a partir do exílio para a Babilónia. Durante esta deportação, muitas das terras da Palestina foram ocupadas por povos de origem pagã e impura aos olhos dos hebreus: samaritanos, filisteus, arameus etc. Aquando do seu regresso, os judeus não lhes
perdoaram esta usurpação, e o ódio e desprezo para com os am-ha-arez fizeram com que chegassem ao extremo de os designar no Talmude (Berakhoth XIVII b) como aqueles que não comem o seu pão em estado de pureza ritual. (N. do M.) Ao longe, aproveitando o vento súbito, algumas embarcações tinham desfraldado as suas velas quadradas, de cores berrantes, vermelhas e negras na sua maioria. Uma vez carregado ou descarregado, cada barco era retirado em perfeita ordem do atracadouro, dando lugar ao seguinte. Um ou dois marinheiros à proa e à popa, remavam e manobravam a embarcação com grande destreza. O tráfico de mercadorias era desgastante. Ali se descarregavam produtos vindos de todos os portos do litoral: desde carnes e toucinho salgados da pagã Kursi até barris de pescado em salmoura de Tarichea, passando por borrachos de Migdal, frutas e legumes das várzeas de Ginosar e de Betijá, cordoaria de Arbel, gado de Hipos e toda a espécie de produtos manufacturados do Sul, da Pereia e da Decápole, transportados até ao lago em contínuas e intermináveis caravanas de camelos, mulas e jumentos. Da mesma forma, mas inversamente, ricas sedas da Índia, madeiras do Líbano, especiarias de todo o Oriente, produtos cosméticos, artesanato de Roma e até a neve do Hérmon entravam no Kennereth pelo florescente porto de Nahum, seguindo as rotas do Norte e do Leste, numa frenética e pacífica invasão de homens, línguas e costumes. Sem qualquer espécie de dúvida aquele tinha sido o cenário quotidiano de muitos dos momentos da vida do Mestre. No meio de toda aquela agitação, à medida que Jonas me conduzia até ao extremo oriental do cais, não pude nem quis afastar do meu coração a possível imagem de um Jesus descalço e seminu, como aqueles fenícios, sírios e galileus empenhado na dura tarefa de carregador ou lutando pelo respeito da dignidade desprezada daqueles am-ha-arez. Um amargo sentimento - mistura de raiva e piedade – foi-se apoderando da minha vontade. Aqueles homens – anciãos adultos e mesmo crianças – eram tratados impiedosamente. Os chicotes, pontapés e imprecações caíam sobre eles à menor vacilação ou tentativa de recobrar forças.
Muitos, com o lóbulo da oreLha perfurado, eram ainda menos que os am-ha-arez: constituíam o escalão mais baixo da sociedade, o da escravatura. Nas palavras de Varrão , «uma espécie de ferramenta que podia falar». Embora tivessem fama de preguiçosos, dissolutos e ladrões a verdade é que o modo como eram tratados e as condições de trabalho que lhes eram proporcionadas não eram de molde a fazer esperar outra coisa. O sentir geral daquelas pessoas para com os escravos talvez possa resumir-se nas frases do mesmo Varrão: A forragem, o pau e a carga, para o burro; o correctivo e o trabalho, para o servo. Obriga o teu servo a trabalhar e terás descanso; dá-lhe rédea solta e ele procurará a liberdade. Tal como o jugo e a soga fazem dobrar a cerviz, assim ao servo mau o açoite e a tortura; fá-lo trabalhar e não o deixes ocioso. Posteriormente, a História, com um eufemismo mais que reprovável, procuraria dissimular esta angustiosa realidade, substituindo mesmo o termo escravo pelo de servo ou criado... Mas a verdade nua e crua era aquela. No meio do porto, ao longo de dois dos terraplenos triangulares as operações de carga e descarga eram facilitadas por outros tantos artefactos bastante engenhosos – semelhantes a gruas -, dos quais me aproximei com curiosidade. Os responsáveis pelo tráfico comercial tinham escavado várias calhas paralelas na superfície de rocha basáltica de cada um dos cais. Umas plataformas de madeira de dois metros de largura, dotadas de rodas, circulavam pelas grosseiras guias, cobrindo assim os quinze metros de comprimento de cada terrapleno. Nas pranchas tinham sido instaladas umas trípodes – também de madeira – de metro e meio de altura, que serviam de ponto de apoio a várias penas metálicas, em cujas extremidades oscilavam umas enferrujadas e barulhentas roldanas de ferro de trinta a quarenta centímetros de diâmetro. Por meio deste processo, sob a fiscalização dos capatazes ou dos proprietários das embarcações, vários escravos ou am-ha-arez elevavam ou arreavam os volumes mais pesados até os depositarem no chão do embarcadouro ou no fundo dos barcos. Tratava-se quase sempre de animais – bois, vitelas ou cavalos – ou de avantajadas redes de corda repletas de talhas, barris e panelas. Muitas daquelas mercadorias – tanto
chegadas por terra como pelo Kennereth – passavam directamente para os armazéns de alvenaria, que, em número de quinze ou vinte, se erguiam em frente do cais, fechando assim o flanco sul da cidade. Lá dentro ouvia-se um intenso martelar. Eram os encarregados de guardar e acondicionar as mercadorias. As peças mais frágeis – cerâmica, vidro e ânforas com vinho, azeite ou garum (procedente das costas da Itália e da Espanha) - passavam para caixotes das mais variadas dimensões, meticulosamente enterrados na areia ou protegidos e isolados entre si por erva e palha seca. Os operários, com um leque de pregos entre os lábios, iam fechando os caixotes, empilhando-os junto às paredes de pedra. De quando em vez, grupos de carregadores entravam nos pavilhões para retirar caixas ou acumular novos fardos sobre os já armazenados. Em alguns daqueles depósitos tinham sido feitos pequenos muros para armazenamento de grandes quantidades de sal – originário das salinas do mar Morto – e de neve. Esta última, pelo que pude observar neste segundo e no terceiro saltos, chegava a Nahum, Migdal, Tiberíades e outras povoações do lago, ao lombo de mulas que desciam diariamente dos cumes do Hérmon, seguindo as margens do Jordão. A dificuldade do transporte – as cavalgaduras mais rápidas levavam entre oito e dez horas até Kefar Nahum – e o facto de se tratar de um produto muito apreciado e perecível tinham-no tornado um artigo de luxo, só acessível às famílias endinheiradas ou aos espertalhões lá do sítio, em especial aos taberneiros, que em troca de uns bons odres de vinho conseguiam arrancar dos depósitos algumas pazadas do apreciado produto. Para sua melhor conservação, a neve era transportada e armazenada sobre camadas de fetos frescos. Mas, é claro que aqueles largos espaços despertavam também a cobiça a muitos dos escravos e am-ha-arez empregados no porto. E era vê-los, ao anoitecer, depois de concluídas as suas tarefas, dormitando sobre as redes ou sentados entre as mercadorias, à luz fraca das candeias de azeite, devorando um pequeno pão escuro acompanhado, quando muito por um punhado de favas cruas ou um pedaço de peixe. , Durante a jornada de trabalho, à sombra destes armazéns, hortelãos e pequenos comerciantes estendiam os seus produtos no empedrado, apregoando as excelências dos respectivos
pomares e hortas. Mulheres de olhos perscrutadores, envoltas em mantos de cores claras, bufarinheiros barulhentos e camponeses de pele tisnada levantavam das esteiras molhos de legumes, alhos, cebolas, frutas, plantas aromáticas e medicinais, finas peças de bysus, tapetes, pequenos cofres para jóias e cestas de figos ou frutos secos, numa raivosa e por vezes desesperada luta para atrair as atenções dos transeuntes. Tudo aquilo me recordou o motivo da minha descida até Nahum. Consultei Jonas e ele, com um gesto de desconfiança relativamente à qualidade e aos preços dos produtos que ali estavam patentes, recomendou-me que, se me fosse possível, esperasse pelo mercado do dia seguinte. Poderia dispor então de uma gama de produtos mais abundante e mais em conta. Mas os planos da operação previam uma quinta-feira inteiramente dedicada ao acompanhamento dos discípulos de Jesus. De modo que, vencendo a resistência do ancião, acabei por adquirir os víveres de que necessitava: legumes, alguns quilos de lentilhas e grão-de-bico, favas, cebolas, alhos-porros, alhos, vários saquinhos de tâmaras de Jericó (as doces adélfidas e as não menos afamadas cariotas , de sumo leitoso e um elevado poder nutritivo), mel branco, ovas de peixe de conserva, sal, nozes, ovos, azeitonas, farinha, azeite e uma certa quantidade de cominhos, endro e alfarroba. Para já, renunciei ao peixe e carne salgados. As nuvens de moscas que os envolviam não tornavam muito recomendável o seu consumo. Quanto ao abastecimento de água tive, pura e simplesmente, de prescindir dele. O cesto das provisões já era suficientemente pesado para aguentar com mais um odre de trinta ou quarenta litros. Talvez no dia seguinte pudéssemos resolver o problema. Afinal, as nascentes que brotavam em Tabja estavam apenas a uma meia milha do berço. De início, entretido como estava no pagamento dos víveres não reparei naqueles gritos. Mas, à medida que se tornavam mais agudos, o palavreado dos hortelãos e vendedores interrompeu-se subitamente e todos os olhares se voltaram para o meio do cais. Os escravos e carregadores mais próximos afrouxaram o passo, ao
mesmo tempo que vários capatazes, entre manifestações de espanto e imprecações, se precipitavam para um dos am-ha-arez, caído por terra. Ao seu lado espalhavam-se os restos de uma talha de barro que contivera tilápias sem cabeça, em salmoura. Um dos vigilantes, cego de raiva, descarregava o chicote sobre o desgraçado. Com a chegada dos restantes capatazes, os pontapés, insultos e chicotadas intensificavam os gemidos e lamentos daquele pobre-diabo que, acocorado e retorcendo-se entre os cacos e a salmoura, protegia a cabeça com os braços, implorando piedade. Aquele repentino silêncio no cais duraria pouco. Passados os primeiros instantes de surpresa, os grupos de carregadores – açulados pelas pragas e chicotadas dos chefes de cais – retomaram o ritmo de trabalho normal, evitando o círculo formado pelos energúmenos que se assanhavam contra o infeliz que tivera o azar de cair ao chão. Olhei à minha volta e, estupefacto, reparei que os outros trabalhadores, comerciantes, aguaceiros e carpinteiros dos armazéns, retomavam as suas tarefas, aparentemente insensíveis perante o tratamento infligido àquele indivíduo. A cena, ao que parece era bastante frequente. Interroguei Jonas com o olhar mas este, encolhendo os ombros, deu-me a entender que não havia nada a fazer. Os capatazes, brutais e sanguinários, teriam arremetido contra qualquer um que ousasse interceder em favor do pobre homem caído no solo. Hesitei. O código da Operação Cavalo de Tróia impedia-me de intervir. Mais uma vez, apesar dos meus desejos e impulsos, tinha de ter presente que o meu papel era o de mero observador. Nada mais. Mas, indignado perante o desproporcionado e injusto castigo, optei por experimentar. Talvez tivesse violado uma das normas da operação. Não sei, nem nunca saberei, nem isso tem demasiada importância. A verdade é que com passo decidido, antes de o meu companheiro poder deter-me, percorri os escassos metros que me separavam dos capatazes, travando no ar um dos chicotes. A minha reacção fulminante deixou-os perplexos. Pus-me no meio do círculo e, esboçando um sorriso hipócrita, apontei para a carga derramada, perguntando qual o seu preço.
Os desconcertados sírios, com a respiração entrecortada pelo esforço ficaram mudos e imóveis. Levei a mão à bolsa de oleado e, mostrando-lhes um punhado de moedas repeti a pergunta. O brilho dos shekels teve efeitos milagrosos. Os chicotes voltaram às cinturas e o que parecia ser o responsável pela talha, incrédulo e desconfiado, interrogou-me por sua vez, interessando-se pela identidade daquele inconsciente grego que tinha tido o descaramento de os interromper. Sem perder o sorriso proclamei-me amigo do procurador romano. Ao ouvir o nome de Pilatos, dois daqueles impostores retiraram-se e o meu interlocutor começou a ficar pálido, mudando de tom e de táctica e gaguejando. Aproveitei aquela sua quebra e, antes que ele se arrependesse, peguei-Lhe na mão, entregando-lhe dois shekels. (O preço do deteriorado pescado pareceu-me mais do que razoável. Uma jornada de trabalho de sol a sol, era então paga com o equivalente a um denário. O shekel, por sua vez, costumava ser trocado por quatro denários.) Os olhinhos do miserável capataz brilharam de cobiça. Ambos sabíamos que aqueles oito denários eram uma autêntica dádiva. Dando meia volta encaminhou-se para um dos armazéns, seguido por outro dos chefes de cais. O am-ha-arez continuava no solo, com a pele aberta e ensaguentada pelas chicotadas, soluçando e sem se atrever a abrir os braços com que protegia a cabeça. Meu Deus! Só ao ajoelhar-me é que reparei que se tratava de uma criança. Deveria ter uns doze ou treze anos. O seu corpo, esquelético, com as espáduas em chaga pelo roçar diário dos fardos, tremia e agitava-se, dominado pelo medo e pela dor. Separei as suas mãos e, com doçura, como creio jamais ter falado a um ser humano, procurei consolá-lo. O rapaz, com os seus intensos e espantados olhos negros, olhoume confuso. Sorri-lhe e, tomando-o entre os meus braços, conduzi-o até à tenda do hortelão que me tinha vendido as provisões. Jonas, espantado e maravilhado, cumpriu as minhas ordens sem retorquir. Arranjou-me azeite e vinho e, com carinho e delicadeza, fui limpando as feridas, sem deixar de lhe sorrir. A escassos metros do local em que se encontrava, à entrada do armazém por onde os tinha visto
desaparecer, o sírio e o seu companheiro manipulavam uma pequena balança de mão, com dupla escala, na qual pesaram por duas vezes as moedas que eu lhes entregara. Satisfeitos, depois de lançarem um olhar de desprezo para o jovem carregador, perderamse entre as filas de estivadores, fazendo estalar os chicotes contra o pavimento do cais. A notícia do incidente deve ter-se propagado à velocidade do vento porquanto, poucos minutos depois, uma legião de mendigos e esfarrapados apareceu no local, mantendo-se na expectativa e a curta distância das tilápias. O meu acompanhante sugeriu-me que recolhesse a carga quanto antes. É evidente que eu não tinha qualquer interesse em recuperar aquele peixe. Por isso autorizei-os pura e simplesmente a disporem dele como entendessem. A cena que seguidamente presenciei abalou-me profundamente. Entre empurrões, gritos, pragas e insultos, aquela turba de famintos e desesperados lançou-se sobre os despojos, disputando os próprios cacos da talha. Aturdido e impotente perante tanta miséria e crueldade, acariciei os cabelos do rapaz e, desta vez, obedeci às recomendações de Jonas, afastando-nos em direcção ao extremo oriental do porto. Naquele ponto terminava a zona portuária propriamente dita, dando lugar a outra das florescentes indústrias de Nahum: os estaleiros. De ambos os lados da foz do rio Korazim, ocupando cerca de trezentos metros de costa, sucedia-se uma série de varadouros nos quais se construíam e reparavam embarcações de todos os tipos. Precedido do camponês desci os degraus de pedra que conduziam do nível superior do cais à rampa que delimitava o primeiro e mais próximo dos estaleiros: o da família dos Zebedeus. O terreno, de razoáveis dimensões (cerca de cinquenta metros de comprimento por trinta de largura), estava coberto por uma camada de seixos brancos e negros que rangiam à nossa passagem. Entre a água e a cobertura de madeira e tecto de ramagens que se erguia ao fundo da suave rampa, três carpinteiros, com as túnicas apanhadas à cintura e grandes bolsas de pregos a tiracolo, martelavam à volta de uma velha embarcação de carga. Na parte baixa do varadouro, a quatro ou cinco passos da margem, jaziam
outros quatro barcos - um deles de apenas seis metros de comprimento -, em tão más condições de conservação como o primeiro. Ao vê-las, o meu coração agitou-se. Quem sabe se não estaria junto de alguma das barcas habitualmente utilizadas pelos discípulos e íntimos do Mestre nas suas tarefas de pesca. Jonas saudou os operários e perguntou pelo chefe. Não souberam dar-nos muitas explicações. Ao que parece já há dois dias que não se apresentava no estaleiro, afectado por um mal ainda não identificado. Um dos galileus apontou para o coberto, aconselhando-nos a que, se desejássemos mais informações, nos dirigíssemos ao mestre, uma espécie de naggar ou carpinteiro naval, mistura de marceneiro, entalhador, ferreiro e reparador de barcos. Foi o que fizemos e, ao entrarmos dentro do barracão que servia de armazém, entre baterias de formões, cinzéis, serras, machadas, compassos de bronze, curiosos trados de arco, plainas e lâminas de todos os tamanhos, descobrimos um ancião, sentado no empedrado do solo e ocupando-se no polimento de uma, para mim, estranha pedra calcária em forma de pirâmide truncada de quase meio metro de altura. Protegia os olhos com uns curiosíssimos óculos de madeira – muito semelhante aos usados pelos lapões -, com uma fina ranhura ao meio. Como o teria feito qualquer soldador do século xx, mal nos viu retirou os óculos para o cimo da cabeça, saudando-nos com as palavras a paz esteja convosco. Identifiquei-me como amigo dos filhos de Zebedeu, expondo-lhe o meu desejo de falar com o chefe do estaleiro. O bom homem, depois de sacudir o pó que branqueava o seu avental de couro, fez um trejeito de contrariedade, confirmando as palavras do operário. Uma dor terrível mantinha-o prostrado na cama e, não obstante os esforços e unguentos dos curandeiros de Saidan e Nahum, a sua saúde vinha piorando nos últimos dias. A única possibilidade de o ver – acrescentou – era visitá-lo na sua casa de Betsaida, e mesmo assim, dada a sua enfermidade, tinha dúvidas que ele me recebesse. Antes de me ir embora, dominado pela curiosidade, interessei-me pela função da pedra sobre a qual ele trabalhava. No centro da
pirâmide via-se um orifício de oito a nove centímetros de diâmetro que a atravessava de lado a lado e que, sinceramente, não fui capaz de relacionar com nada do que conhecia. O mestre olhou-me de alto a baixo e, antes de ajustar de novo os óculos, replicou com algum enfado e quase ofendido pelo absurdo da pergunta: - Ora, o que é que há-de ser!... Uma âncora! Entregue de novo ao cinzelamento da pedra não reparou na minha perplexidade. A partir de então, nas minhas frequentes caminhadas do módulo à costa de Saidan, teria numerosas ocasiões de comprovar como os pescadores e marinheiros do lago se serviam de pedras de todos os tamanhos, convenientemente perfuradas, para imobilizar as embarcações e ainda determinado tipo de redes. (As âncoras de ferro ainda não eram conhecidas no Kennereth.) Não pensei duas vezes. Depois de verificar a posição do Sol despedi-me do prestável camponês e, seguindo pela margem direita do pequeno Korazim, fiz rumo ao norte, na direcção do caminho que corria para a extremidade oriental do lago. A minha instintiva decisão revelar-seia providencial. Anunciei a Eliseu uma mudança nos planos e, não falando do incidente com os capatazes do porto, prometi regressar ao módulo num prazo máximo de cinco horas: exactamente ao pôr do Sol. A intuição indicava-me que devia entrar em Saidan antes dos discípulos do Senhor. Porquê? Obviamente, não podia sabê-lo. A resposta surgiria no casarão dos Zebedeu. Tal como acontecia no sector oeste, aquele flanco de Nahum estava primorosamente cultivado. Deixei para trás o intrincado labirinto de hortas muradas e, poucos minutos depois, já caminhava decidido pela estrada romana. A curta distância, à direita da Via Máris e junto à ponte que atravessava o riacho, erguia-se uma casa de um só piso, de paredes tão escuras como as da cidade. Duas grandes figueiras silvestres davam sombra à sua fachada norte. De início não lhe prestei muita atenção. Mas à medida que me fui aproximando, a presença à porta de dois legionários e de um terceiro indivíduo fez-me recear. O calor e o cesto dos víveres começavam a pesar-me e, com a desculpa de descansar um pouco deixei a estrada e entrei num pequeno jardim que rodeava a
moradia. Os soldados, encostados à parede de pedra e meio adormecidos, nem para mim olharam. Sem querer, acabava de cumprir um dos requisitos obrigatórios estabelecidos para todos os que iam ou vinham do território de Filipe para o de seu Irmão, o tetrarca Antipas. Pus a canastra no chão e quando me dispunha a interrogá-los sobre a distância entre Nahum e Saidan, o dono da casa – um grego com o típico gorro de feltro na cabeça e uma placa de latão na túnica – levantou a vara que tinha na mão direita, interrogando-me num péssimo aramaicogalilaico acerca do conteúdo do cesto. Comecei a compreender. - Víveres – respondi em grego. O indivíduo deu um passo em frente e, com a maior das naturalidades, inclinou-se, metendo as mãos entre os alimentos. Fiquei em silêncio. Como ia dizendo, sem dar-me conta disso, tinha parado mesmo em frente do edifício que fazia as vezes de alfândega. - Está bem – concluiu o publicano sem demasiado entusiasmo. Um asse é quanto tem de pagar. Paguei a taxa e, felicitando-me pelo acerto e oportunidade da minha iniciativa atravessei a ponte, tomando a vereda de terra que partia dos contrafortes da estrada. Esta, logo depois de atravessar as águas acastanhadas do Korazim, inflectia bruscamente para o norte, escalando cerros e desaparecendo entre campos de oliveiras e de cereais. Consciente da importância daquele caminho, procurei registar na minha memória o maior número possível de pormenores que, em caso de necessidade – pelo menos durante as primeiras explorações -, me serviriam como ponto de referência. A partir do rio, num percurso de um quilómetro e meio, o carreiro estava praticamente livre, com algumas formações à esquerda e as ondulantes águas do lago a cem ou duzentos passos à direita. Seguidamente deslizava até ao fundo de um wadi ressequido e estéril, de encostas pontilhadas por plantas de alcaparra, cardos, giestas e outros arbustos. Aquele era o ponto mais afastado da costa quase meio
quilómetro. Dali até ao Jordão, com algumas pequenas curvas, a vereda atravessava um sombrio e espesso bosque de tamargueiras e grossos álamos do Eufrates. Ao todo segundo os meus cálculos, desde a alfândega até às espessas e lamacentas águas do rio biblico, mediavam cerca de três quilómetros e meio. Esse era exactamente o limite para a minha ligação auditiva com a nave. Informei disso mesmo o meú irmão. Seguidamente de acordo com o que estava previsto, as comunicações com o berço deveriam efectuar-se através do microtransmissor instalado na sandália electrónica. Por razões técnicas esses sinais – retransmitidos a partir da vara de Moisés – não permitiam retorno. Eliseu podia, assim receber as minhas mensagens, mas não podia responder-me. De mútuo acordo, dado o carácter excepcional desta incursão, decidimos não utilizar o laser, salvo em situações de extrema emergência. Uma sólida ponte, com a tradicional silhueta do dorso de jumento e três grandes arcadas assentando sobre grossos pilares e travejamentos, permitia transpor o Alto Jordão, que naquele ponto tinha um leito de oitenta metros de largura, por onde fluíam águas impetuosas se bem que silenciosas e carregadas de troncos e restos de mato. (Na impossibilidade de construir grandes abóbadas rebaixadas, os engenheiros romanos - que tinham edificado aquela ponte – tinham colocado o piso central a grande altura, economizando assim pilares e arcos e defendendo a estrutura de eventuais cheias.) Do outro lado do rio, fazendo frente à direita e à esquerda do caminho, erguiam-se vários marcos de um metro de altura, sinalizando e avisando o caminhante da sua entrada nos domínios de Filipe. A paisagem e a vegetação mudaram radicalmente. O denso bosque de álamos continuava ao longo do curso do Jordão, rumoroso e ondulante por força do vento. A cinquenta passos da ponte, no entanto, os habitantes do local tinham-se instalado, devastando a massa florestal e cultivando a grande planície pantanosa que se estendia até aos longínquos cerros orientais, convertendo aqueles doze quilómetros quadrados num quebracabeças de minifúndios, valas e canais, pequenos pomares, casas de lavoura com coberturas de colmo, moinhos e pequenos tanques,
tudo isso atravessado por um labirinto de carreiros que naturalmente evitei a todo o custo. À margem do bosque, a vereda principal dividia-se em duas: o ramal da esquerda serpenteava para nordeste, ladeando as árvores e perdendo-se na várzea. Aquele braço do caminho, mais bem cuidado que o da direita, levava, com toda a probabilidade, à cidade que sobressaía branca e airosa a cerca de dois ou três quilómetros, encarrapitada numa colina, e que, segundo informações recentes, ostentava o título de capital de Betijá: Betsaida Julias, em honra da filha de Augusto. O segundo ramal, pelo qual obviamente me decidi, seguia quase paralelamente ao Jordão, evitando um mosaico de lagunas não muito profundas, de águas esverdeadas e pouco recomendáveis, pejadas de canas, juncos marinhos, adelfas, papiros, helénios viscosos, e um espinhoso entrançado de bathah, pequenos arbustos que não consegui identificar. Borboletas esplêndidas ziguezagueavam entre túlipas de fogo, abrindo-se como orquídeas sobre as flores rosadas das adelfas, as anémonas multicolores, as açucenas perfumadas e as moitas verdeescuras de menta. Impelidos pelo vento de oeste, bandos de inquietos martim-pescadores de peito branco e dorso azulesverdeado revoluteavam e planavam sobre o pântano, trocando ruidosos trinados. Enquanto atravessava aqueles quinhentos metros imaginei como deveria ser aquele lugar durante o tórrido Verão de Kennereth. A insalubridade da zona, com as suas colónias de mosquitos, podia significar um perigo latente para a qual deveríamos estar preparados. A um passo da foz do Jordão, o caminho obliquava para sudeste, deixando para trás os pântanos e avançando em linha recta por um terreno plano e desimpedido, praticamente em paralelo à linha da costa. À minha esquerda surgiram de novo as hortas de verduras e legumes, entre os quais avultavam o grão-de-bico e as favas. Junto às cabanas comecei a distinguir as silhuetas dos campOneses, dobrados sobre a terra, carregando baldes de água ou estáticos e vigilantes debaixo das rodas de pistáceas, amendoeiras e sicômoros.
Com os dedos entumescidos pelo peso da canastra, optei por fazer uma pausa. À direita do caminho, distante um tiro de pedra do local onde me encontrava, via-se e ouvia-se o rítmico e surdo marulhar das águas, precipitando-se em pequenas ondas na praia rochosa. Um cheiro intenso e agradável a algas reconfortou-me, lembrando-me os anos distantes da minha juventude no Oeste dos Estados Unidos. Mas o meu objectivo estava à vista. A cerca de meia milha, colada à costa, semioculta por um pequeno bosque de esguios salgueiros e tamargueiras do Jordão e ligeiramente encavalitada sobre a várzea, Saidan perfilava-se escura e retraída com débeis colunas de fumo branco contrastando com o céu azul. Diante da pequena cidade – talvez devesse qualificá-la como uma aldeia de tamanho médio -, imóvel naquele caminho de terra, experimentei uma indizível sensação. Ansiedade? Alegria e tensa emoção? Medo? Foi como uma premonição. Como se algo me anunciasse que aquelas brilhantes e negras paredes que se espraiavam até ao lago iriam ser testemunhas de acontecimentos e momentos inolvidáveis... Retomei a marcha, mas poucos minutos depois parei de novo. Uma larga franja da costa tinha sido invadida por centenas de pequenas tartarugas de couraças verde-amareladas imóveis ao sol ou movendo-se preguiçosamente entre os seixos e pedras da costa. Eram quelónios dos pântanos, excelentes nadadores, parecidos com os seus irmãos de terra , se bem que um pouco mais ligeiros. A partir daquele momento, tanto na minha memória como no banco de dados do Pai Natal, aquele lugar ficaria registado sob o nome da praia das tartarugas. Enquanto contemplava os simpáticos inquilinos daquela zona do Kennereth, o vento parou; e fê-lo tão brusca e repentinamente como tinha começado. Pouco a pouco ia-me acostumando àquele fenómeno, tão frequente no lago durante os meses de Primavera e Verão. As nossas observações posteriores confirmariam a enorme importância desse vento de oeste que pontualmente, dia após dia, soprava desde o meio-dia até às primeiras horas da tarde, levantando ondas de tamanho médio, que eram vitais para a várzea de Saidan.
Sistematicamente, durante séculos , aquela ondulação vinha arrancando do fundo do lago toda a espécie de conchas e fragmentos de basalto negro que os rios arrastavam, formando na margem um largo talude que funcionava como muro de protecção da dita várzea. Isso explica, em parte, a formação das lagunas e pântanos que eu acabava de atravessar, cujo nível era ligeiramente mais alto que o do Kennereth. A uns duzentos metros dos salgueiros que abobadavam o caminho, parei pela terceira vez. Ali encontrei os primeiros vestígios da principal fonte de riqueza da vila: a pesca. Entre algumas embarcações varadas no porto viam-se longas redes estendidas no terreno pedregoso. Sentados ao abrigo dos barcos, alguns indivíduos com as cabeças cobertas por turbantes e chapéus de palha afadigavam-se silenciosos no remendo das malhas. Convencido de que me tinham visto a mim muito antes que eu a eles, resolvi aproximar-me. Deixei o caminho e, sem pressa, dirigi-me ao que estava mais perto. O pescador, como a quase totalidade dos habitantes de Saidan, só falava aramaico. Ao perguntar-lhe pela casa dos Zebedeus, sem deixar de manipular uma larga agulha de madeira de dupla ponta, levantou os olhos e, após uns segundos de atenta e inquiridora observação do meu aspecto e da canastra que eu tinha colocado sobre os seixos, respondeu com laconismo: Na praia, diante da quinta pedra. E baixando o rosto, sem mais, ignorou-me. A sua destreza no conserto da rede era espantosa. O dedo grande do seu pé esquerdo mantinha a rede enganchada e retesada, ao mesmo tempo que, com a mão direita, ia remendando os rasgões, ligando-os com um resistente fio de algodão tingido. Em vez de continuar pela costa, à procura da misteriosa quinta pedra, voltei para o caminho. Tinha de ultimar as medições iniciadas na base-mãe. A cerca de cem metros da aldeia, coincidindo com os primeiros salgueiros e tamargueiras, o terreno inclinava-se, formando uma rampa com uns trinta graus de desnível. Como julgo ter referido, Saidan estava edificada numa meseta natural – a uns trinta a trinta e cinco metros acima do lago -, bem resguardada das frequentes cheias do zaji e da rede de torrentes que cruzavam a
várzea. À entrada da vila consultei o micropedómetro e o cronómetro digital. A distância percorrida desde a ponte sobre o rio Korazim até ao Jordão aproximava-se dos quatro mil metros. Quanto à última etapa – desde os marcos divisórios do território até ao ponto onde me encontrava -, os registos marcavam outros mil e quinhentos metros, o que perfazia um total de 5,5 quilómetros, desde as imediações de Nahum. O tempo gasto era de cerca de noventa minutos. É natural que, sem aquele pesado cesto das provisões, e num passo mais ligeiro, aquela hora e meia pudesse ser significativamente encurtada. O cômputo final, desde o berço até à povoação pesqueira dos Zebedeus, ficou assim estabelecido em pouco mais de sete quilómetros. Juntando outros tantos para o regresso, o tempo mínimo necessário para cada uma das incursões a Saidan deveria pois oscilar em torno das quatro horas. (Estes cálculos, como adiante se verá, foram da maior importância quando se tratou de programar as explorações ao longo daquela franja costeira.) E às quinze horas e trinta minutos, um tanto inquieto pela escassa margem de tempo disponível para a minha primeira visita ao chefe dos Zebedeus, penetrei nas poeirentas ruas da aldeia que tinha visto nascer e crescer homens tão singulares e privilegiados como Filipe, o intendente, João e Tiago e os também irmãos André e Simão Pedro. Que me reservaria o destino naquela pacata e aprazível localidade? Para já, entre outras surpresas, um sensacional achado, intimamente ligado à vida oculta de Jesus. Algo que, ao que parece, os próprios evangelistas nunca souberam e cujo depositário era o homem que estava a ponto de conhecer. Tinha de agir sem demora. Às dezassete horas, o mais tardar, deveria dar início à viagem de regresso à nave. Se Nahum, com os seus nove ou dez mil habitantes, se apresentava como um núcleo vibrante, em contínua agitação, Betsaida ou Saidan, pelo contrário, era um lugar silencioso, familiar,
onde a vida decorria monótona e placidamente. Foi um local de gratas recordações, onde não encontrei vestígios de avidez, brutalidade e insídias que imperavam na vizinha Kefar Nahum. O caminho que me tinha conduzido até ali atravessava Saidan de um lado ao outro, constÌtuindo a única via importante. Era assim uma espécie de rua principal da povoação. A oeste e leste desta rua amontoava-se um emaranhado anárquico de casas de pedra vulcânica, sem a menor ordem urbanística, a que se tinha acesso mediante uma não menos confusa teia de aranha de ruelas e pátios que, apesar dos meus esforços, nunca consegui conhecer na sua totalidade. O sistema e os materiais empregues na construção das casas – a maioria de um só pisoeram idênticos aos de Nahum: blocos de basalto negro, tão abundantes na região, constituindo fileiras mal alinhadas, mais ou menos niveladas e ligadas mediante terra e calhaus. Os telhados, leves e frágeis em quase todas as casas, tinham sido dispostos em declive. Eram formados por vigas de madeira e uma rudimentar mistura de terra batida e alha, que, após a época das chuvas, tinha de ser refeita. Seguindo o mesmo modelo que em Kefar Nahum salvo uma ou outra excepção, as habitações, os celeiros, depósitos de forragens e armazéns em geral comprimiamse uns contra os outros sempre à volta de um pátio central, a céu aberto, com uma porta única e comum para as famílias que compartilhavam essas elementares unidades urbanas. Levado pela curiosidade, atravessei a aldeia de uma ponta à outra. Esquivas e tímidas, algumas mulheres espiaram a passagem daquele estrangeiro da penumbra das janelas abertas nas paredes de pedra. De vez em quando, tocados por meninos descalços, de cabeças rapadas e faces sujas, bandos de patos, galinhas e gansos esvoaçavam inquietos e barulhentos, levantando a poeira do caminho e precipitando-se no interior dos pátios. Alguns dos rapazes, sentados no meio da calçada, brincavam com barcos de madeira, lançando e recolhendo pedaços de rede que na sua imaginação, ora vinham repletos ora vazios. Imitavam a rítmica vozearia dos remadores ou o ulular do vento e
o fragor de supostas tempestades. Sorri no meu íntimo. No fundo e na própria forma, as brincadeiras das crianças pouco mudaram com o passar dos séculos. Saidan, pelo menos no que se refere à sua rua principal, podia atravessar-se em pouco mais de duzentos passos. No extremo sul o caminho precipitava-se por uma ladeira tão acentuada como a do flanco norte , embora muito mais curta. Um rio – o Zaji – estreito, tortuoso e entaipado nas suas margens por altas canas cardadoras e eleph ha-elah, separava o núcleo urbano do porto pesqueiro. Tal como já tínhamos detectado a partir da nave, um terrapleno de duzentos metros de comprimento corria perpendicularmente à costa, inflectindo em ângulo recto para o noroeste do lago. Algumas dezenas de embarcações alinhavam-se no seu interior, fundeadas ao meio do abrigado porto ou amarradas aos grossos blocos de basalto do cais principal. Um pontão de pedra, sem parapeitos, fazia com que o caminho chegasse até um conjunto de casas e cabanas que se erguiam junto à doca. Dali para diante o caminho perdia-se na direcção sul. A curta distância da velha ponte, mesmo à borda da margem esquerda do Zaji um grupo de mulheres lavava roupa entre risos e grande palração estendendo-a depois em cima de giestas e alecrim. No sopé de um penhasco próximo brotava uma nascente cujas águas eram armazenadas num reservatório semicircular. Daqui partia um simples e estreito aqueduto que, passando por cima do rio, irrigava as culturas situadas a leste da povoação. Aquele lugar – a fonte pública de Saidan – era um dos pontos de encontro, de cavaqueira e de transmissão de notícias entre os habitantes da aldeia. Um autêntico mentideiro oficial onde, a qualquer hora do dia, qualquer um podia encontrar-se com mães de família, pescadores ou operários dos secadouros de peixe, que ali iam encher os seus cântaros e odres. Era, em suma, uma espécie de centro cívico em que nada nem ninguém passava despercebido. Contornando a meseta por aquele sector sul cheguei de novo à praia. Muitas das casas voltadas para o lago dispunham naquela zona de íngremes escadas que permitiam o acesso directo à margem do lago. A língua de terra existente entre a margem e as
escadas, de apenas sessenta metros de largura, estava repleta de embarcações varadas e de redes empilhadas ou estendidas sobre os seixos e uma areia grossa constituída por um espesso granulado basáltico de fortes tonalidades negras vermelhas e brancas. A partir dali, na foz do Zaji, numa extensão de meio quilómetro, pescadores isolados ou em pequenos grupos remendavam as redes ou trabalhavam dentro e fora dos barcos, repassando aparelhos e preparando-se para as próximas fainas no Kennereth. Muito perto da água, solidamente enterradas, emergiam pesadas pedras, de formas prismáticas, de vinte a trinta centímetros de largura e de quarenta a cinquenta de altura, com umas perfurações – à maneira de botoeirana parte superior e pelas quais eram introduzidos os cabos e cordas de atracação dos barcos que flutuavam na margem. Estavam estrategicamente alinhadas ao longo da margem e, por simples dedução, pensei que uma delas – a quinta a começar do extremo oposto – devia ser a que ficava em frente da casa dos Zebedeus. Não me enganei. Vários dos pescadores, muito mais simpáticos que o primeiro a quem eu me tinha dirigido, levaram-me até à escadaria de pedra que do meio da praia, subia até à casa dos filhos do trovão. Ali – tinha de ser -, esperava-me uma dupla e comprometedora situação. Foi um erro. Um erro involuntário que, noutras  circunstâncias, poderia ter-me custado muito caro. Mas a bondade e a tolerância daquela família eram ilimitadas. A questão é que, ansioso por estabelecer contacto com o pai dos Zebedeus, não me dei conta de que tinha penetrado no casarão por uma porta privada, de uso exclusivo dos donos e amigos da casa. Ao empurrar a grossa porta de madeira vi-me dentro de um quinteiro rectangular onde debicavam numerosas galinhas. À direita, à sombra de um pequeno coberto, agitou-se inquieto um pequeno rebanho de cabras de compridas orelhas pendentes e carneiros de enormes caudas do género dos barbariscos, conhecidos popularmente como de cinco quartos, dado o tamanho daqueles apêndices (o quinto quarto). A presença de tais animais, oriundos da Líbia, deu-me logo uma ideia de prosperidade da casa. Atravessei o solo de terra batida e, ao transpor uma segunda
porta aberta na parede de pedra do quinteiro, encontrei-me perante um espaçoso pátio a céu aberto que tinha sensivelmente a forma de L. Diferentemente do do quinteiro, o pavimento deste segundo recinto apresentava-se calcetado e impecavelmente limpo. À sua volta dispunham-se seis casas de um piso, de diferentes alturas, com estreitas escadas contíguas às paredes de basalto negro que permitiam o acesso aos telhados. Várias mulheres e crianças iam e vinham entre alguidares, fogões, utensilios de cozinha e mós de moinho. A minha súbita e clandestina entrada deixou-os perplexos. Uma das galileias cochichou ao ouvido da mais velha e esta abandonando o braseiro onde crepitava uma fumegante e apetitosa fritada de peixe, desapareceu a correr por um dos escuros aposentos. Não compreendi então, a razão de tão esquivo comportamento. O meu aspecto, apesar de tudo não era incorrecto, embora me apresentasse algo cansado da viagem. Saudei-os, desejando- lhes a paz, mas não obtive resposta. Uma das meninas, de quatro ou cinco anos, começou a chorar, refugiando-se nas pregas da túnica de sua mãe. Alarmado e indeciso, não soube que dizer. Dei dois passos com a intenção de perguntar pelo chefe da família mas as mulheres, atemorizadas, retrocederam. Felizmente, tão embaraçosa situação não durou muito. Poucos instantes depois, apareceram por uma das portas dois homens e a anciã que, evidentemente, se tinha apressado a adverti-los da suspeita presença daquele esgrouviado e intrometido estrangeiro. O meu coração agitou-se. Aqueles galileus eram João e Tiago, filhos de Zebedeu. Como era possível? A sua chegada à costa norte do lago estava prevista para a noite daquela quarta-feira ou, como já referi, para a manhã do dia seguinte. A surpresa foi mútua. Ao reconhecer-me, João tranquilizou os seus parentes e, de braços abertos, saiu ao meu encontro, abraçando-me. O carinhoso acolhimento distendeu os ânimos e as hebreias, curiosas, sem tirarem os olhos de cima de mim, voltaram às suas ocupações. Tiago distante como sempre, limitou-se a esperar à porta da casa. O seu rosto anguloso apresentava-se mais grave e olheirento que de costume. Devolveu-me a saudação e, frio e
directo, perguntou-me como tinha conseguido chegar ao yam tão rapidamente. (A palavra yam era a designação mais corrente do Kennereth ou mar de Tiberíades, entre os pescadores e habitantes das margens do lago.) Senti-me encurralado. Mas quando me preparava para improvisar uma explicação, João interveio pondo termo à questão. - Não precisavas de te incomodar... Então pegando na canastra das provisões levantou-a, sorridente e feliz, mostrando-a aos presentes. As crianças, alvoroçadas, precipitaram-se sobre a canastra, procurando averiguar o seu conteúdo. Mas João, em tom severo, conteve- as. Não tive coragem para desfazer o mal-entendido e, resignado, esbocei um sorriso de circunstância. A iniciativa do impulsivo João tinha-me salvado das perguntas do seu irmão, pelo menos de momento. Em contrapartida, lá se foram as nossas reservas de alimentos... Tiago regressou ao interior do aposento e, aproveitando a sua ausência, interessei-me pelo resto do grupo. A explicação, no fundo, era muito simples. Ele e o seu irmão tinham-se adiantado; os outros chegariam a Saidan ao amanhecer. Atendendo os desejos dos gémeos, cuja família residia muito perto de Kursi (Gérasa) os discípulos de Jesus tinham feito uma pausa no caminho. Com grande entusiasmo, João resumiu o peregrinar dos onze pelo Jordão durante aquelas três jornadas, aludindo às numerosas paragens que se viram obrigados a fazer, a fim de satisfazer as perguntas das pessoas à volta das notícias sobre a pretensa ressurreição do Mestre. Pedro, em especial, fora o mais ardente, espraiando-se em discursos que comoveram as populações simples das margens do Baixo Jordão. Eram, como já referi, os primeiros sinais daquilo que, mais tarde, acabaria por urdir uma chefia, tacitamente aceite pelo flamante colégio apostólico. Satisfeito parte do meu interesse, expliquei-lhe que os negócios – como já anunciara ao grupo no caminho de Betânia – tinham-me trazido até à costa norte do yam e que, uma vez concluídos, se a
minha presença não lhes fosse incómoda, pensava acompanhá-los, tomando assim alguns dias de descanso. João mostrou-se encantado, pedindo-me que soubesse compreender e perdoar a desolação que naquela altura se abatia sobre a sua família. O estado de saúde de seu pai não era bom e isso trazia-os preocupados. Lembrei-lhe a minha condição de médico e, sem reflectir suficientemente, pedi-lhe que mo deixasse examinar. Dito e feito. Conduziu-me imediatamente ao aposento em que eu vira pouco antes desaparecer o seu irmão. A casa, tal como as outras que formavam o pátio familiar, não tinha porta. No umbral alinhavam-se vários pares de sandálias. Um pouco contrariado, descalcei-me eu também. A verdade é que não me agradava nada perder de vista as preciosas sapatilhas electrónicas. Mas, se o não fizesse, isso constituiria uma descortesia para com os meus anfitriões. A moradia, de uns sete metros de lado, estava dividida ao meio por um tabique que, tal como o solo e as paredes, tinha sido rebocado a gesso. Uma lâmpada de azeite pendia do tecto do primeiro dos aposentos, espargindo uma luz ténue e amarelada. Junto à porta de entrada, presas à parede por vários aros de metal, estavam duas bojudas vasilhas de argila vermelha, com as respectivas bocas tapadas por folhas e ramos aromáticos que ao mesmo tempo protegiam e davam um sabor refrescante à água que continham. À esquerda, na parede do fundo, várias prateleiras guardavam todo o tipo de utensílios de cozinha: coadores, colheres, garfos, frigideiras, peneiras, filtros, vasilhas, chapas para colocar sobre o fogo, facas, pratos de madeira e um fole rudimentar feito de pele de cabra. No solo, sobre esteiras de folha de palmeira, estavam colocadas cestas com legumes, jarras de bronze e um banco de madeira. Na sala contígua, tão simples como a anterior, a luminosidade era um pouco maior. Na parede virada para ocidente, uma pequena janela com as portadas abertas deixava passar um feixe de luz solar que desenhava um rectângulo no chão, igualmente atapetado. Numa estante que se erguia junto do tabique que servia de divisória, viam-se, cuidadosamente enrolados, os edredões que serviam para
dormir. Completavam o escasso mobiliário uma cómoda, pintada de cores vivas, e duas lâmpadas herodianas de azeite, colocadas uma sobre o mencionado móvel, e outra no solo, à cabeceira do enxergão sobre o qual jazia um ancião. Aos pés do colchão de palha, Tiago, de joelhos, contemplava, atento e em silêncio, um homem de túnica branca e densa barba negra que, de cócoras, procurava qualquer coisa numa caixa de madeira. O instinto pôs-me de sobreaviso. Imóvel no limiar da porta, esperei que João se aproximasse do leito. Aquela situação podia ser comprometedora. A insígnia presa ao peito do indivíduo vestido de branco, uma haruta, com um ramo de palmeira, significava que estava perante um médico ou «curador» possivelmente um rofé -, chamado pela familia. Tinha de actuar com discrição, sem ferir a dignidade daquele pensativo Galeno. Pelo nosso código, se a doença fosse grave, deveria abster-me de intervir. João inclinou-se sobre o seu pai e, tomando as mãos dele entre as suas, fez-me um gesto, indicandome que me aproximasse. Disse-lhe que, dada a presença do médico, talvez os meus serviços não fossem necessários. Mas, ignorando os meus conselhos, insistiu para que o examinasse. Assim, o rofé, velho amigo dos Zebedeus e, o que era ainda mais interessante, de Jesus de Nazaré e do seu grupo, saiu do seu mutismo e, com um sorriso conciliador, apontou-me o paciente, encorajando-me a que interviesse. O mais novo dos Zebedeus, não me apresentou como comerciante ou simples curioso e seguidor da doutrina do Rabi, mas como sincero amigo do Mestre. Cheio de satisfação, fui colocar-me à cabeceira do chefe da casa: um ancião, de uma idade que podia rondar os sessenta anos extremamente delgado ainda que de compleição forte e fibrosa musculatura, fruto sem dúvida, dos muitos e duros anos como pescador e construtor de barcos. Tinha o cabelo branco e um rosto endurecido e bronzeado pelo sol e pelos ventos do lago, naquela altura ligeiramente pontilhado por uma barba grisalha de três ou quatro dias. Observou-me sem reservas lá do fundo dos seus olhos claros e, confiado, deixou-me à vontade. O
pulso estava algo alterado mas não muito. Quanto à temperatura, também não me pareceu irregular. Com a maior delicadeza, a meia voz, pedi a Zebedeu que me indicasse como é que o mal tinha aparecido. Fechou os olhos e, levando as mãos à cabeça murmurou que primeiro tinha sido aquele intenso zumbido, como se uma nuvem de insectos revoluteasse na sua cabeça. Depois vieram as dores, a perda da audição e as tonturas. Num gesto de dor, apertou as orelhas com as suas enormes e calejadas mãos. Levantei a vista sobre o diagnóstico do «Curador», que pertencia á seita dos Essénios e que tinha desenvolvido uma intensa actividade como médico durante os anos da vida pública de Jesus, atendendo os muitos doentes que vinham regularmente até Kefar Nahum com a esperança de serem curados pelo Rabi da Galileia, moveu a cabeça negativamente e, com toda a franqueza, expôs-me as suas dúvidas. Desde que tinha sido chamado pelo Zebedeu – há já uns quatro dias -, a quase totalidade das suas observações não dera resultado. A memória, o estado geral de consciência do paciente, possíveis tremores, a expressão do rosto, a cor da pele, face e olhos, assim como a respiração, o odor do corpo e a inspecção diária da urina e excrementos eram normais. Os exames funcionais de Assi – não era em vão que tinha recebido treino nas excelentes escolas de medicina de Alexandria e no per-ankh ou Casa da Vida, de Assi -, com movimentos e rotações de cabeça e extensões e flexões de pernas (ante a possibilidade de luxações cervicais ou traumas de natureza lombar), afiguraram-se-me oportuníssimos e muito acertados. Contudo, o problema era muito mais simples. * 1 – Segundo os manuscritos descobertos em Qumrân a noroeste do mar Morto, e os escritos de Flávio Josefo, Fison e Plínio, o Velho, os Essénios, eseos ou essenoi, como indistintamente os denominavam estes autores, constituíam uma das três grandes seitas judaicas de então que incluíam ainda os Fariseus e os Saduceus. Embora a sua origem não tenha sido totalmente esclarecida, parece que se desenvolveram a partir do século II a. C., tendo-se extinguido no final do século I d. C. Provavelmente terão surgido como consequência do agitado período que se seguiu à revolução dos Asmoneus. Segundo Josefo e Fison, o seu número oscilou em torno dos quatro mil,
espalhados pela Judeia e Galileia. Viveram em comunidades rurais, evitando as cidades e seguindo «uma forma de vida que já foi ensinada aos gregos por pitágoras», (Antiguidades Judaicas, XV, 371). Por certo, esses curiosos indivíduos tiveram muito em comum com os «pitagóricos»: organizavam-se em Hcomunas, compartilhavam a terra e os bens e praticavam virtudes como a abstinência, a modéstia, a autodisciplina, a discrição e uma estrita pureza espiritual e corporal. Eram excelentes curadores, pois dominavam nomeadamente as virtudes terapêuticas de uma infinidade de plantas e raízes. Vestiam sempre de branco e, graças à minha amizade com Assi, tive oportunidade de aprofundar o meu conhecimento da sua filosofia e dos seus fascinantes costumes, que foram, evidentemente, do conhecimento do Filho do Homem. (N. Do M.)
- A princípio – prosseguiu Assi, medindo cada uma das suas palavras – cheguei a pensar numa forte enxaqueca, provocada por um vento mau 1. E mostrando-me a colecção de poções e infusões que guardava na sua caixa acrescentou: - Mas as aplicações locais de coriandro, sementes de pinho, tomilho, fígado de burro e ganso, natrão, tamargueira e espinhas de peixe queimadas foram infrutíferas. O voluntarioso auxiliador – Assi recusou reiteradamente o meu qualificativo de rofé, afirmando que só o Bendito (Deus) tinha o poder de curar – tinha mesmo experimentado um dos ritos de transferência do mal, muito comum no antigo Egipto e recomendado para a hemicrania ou dor numa das metades da cabeça. Durante quatro dias esfregara a cabeça do paciente Zebedeu com a cabeça de um peixe, tentando – com escasso êxito, é bem de ver – que os vasos temporais restituíssem o ar ao enfermo. Contudo, apesar destas e outras superstições que tive a oportunidade de presenciar, o auxiliador – dada a sua dilatada experiência – não se enganou muito no diagnóstico final. O zumbido, as fortíssimas dores de ouvidos e a perda de audição – sentenciou plenamente convencido – podiam ser sintomas de uma otorreia ou de uma otite. (Ambos os males eram perfeitamente conhecidos desde há muito tempo). Para Assi, como para o resto dos médicos de há dois mil anos, cada um dos ouvidos recebia dois vasos, que chegavam por cima dos ombros. Através deles entrava a
vida ou a morte. A primeira, pelo ouvido direito e a segunda, pelo esquerdo. *1 – Naquele tempo, tanto na cultura hebraica como na egípcia, mesopotâmica e grega, a imensa maioria das enfermidades era atribuída à acção de espíritos ou agentes maléficos, à possessão demoníaca e ao castigo das divindades. Só uma parte das doenças costumava ser atribuída a uma origem natural. O vento, por exemplo, segundo o papiro de Edwin Smith (1550 anos a. C.), era considerado como portador de doenças (possivelmente relacionadas com os miásmata) e como sopro, ppneuma e «venta dos deuses». Também a bílis, determinadas combinações de alimentos, a fleuma e todo (um factor que podia originar-se da putrefacção intestinal), entre outros eram causas de múltiplos quebrantos. Para muitos destes povos, as doenças penr travam nos corpos pelos orifícios naturais, mesmo que tivessem origem divina e demoníaca. Uma vez no interior do corpo, espalhavam-se através dos seus canais. (N. Do M.)
(Uma concepção derivada do poder atribuída à palavra falada.) Pois bem, segundo Assi, acausa daquela possível surdez de Zebedeu tinha de ser procurada no desarranjo dos dois vasos que terminavam na base dos olhos ou nas têmporas. - Nesse caso – concluiu – o mais indicado seria uma aplicação à base de sais minerais, folhas de legumes ou uma orelha de burro num unguento-base. Desconcertado, não me atrevi a replicar-lhe. - ... Claro que talvez fosse mais eficaz um emplastro de excremento ou, Simalão, qual é a tua opinião? Que podia eu dizer. Fiz que reflectia e evitando uma confrontação directa, procurei ganhar tempo. Pedi a João uma das lucernas de azeite e erguendo o torso do ancião, aproximei a candeia do seu ouvido direito. Assi e os dois irmãos apressaram-se a ajudar-me. Apesar da fraca iluminação não tardei a constatar a possível origem do mál. Repeti a exploração no ouvido esquerdo, chegando à mesma conclusão: as sensações acústicas captadas por Zebedeu e as dores sequentes eram devidas àquilo que em medicina denominamos acúfenos ou acusmas. Embora esta perturbação apareça com frequência, na maior parte das enfermidades do ouvido
Por vezes deve-se à natural acumulação no condutor auditivo externo de cerume uma depressão séria das glândulas sebáceas do referido condutor que, por vezes, se torna espessa formando um tampão). Esta era a causa principal daquele transtorno que, se diagnosticado a tempo, não oferecia excessivas complicações. O carácter benigno e de certo modo, sem importância de maior do caso, autorizava-me a intervir, sem que por isso quebrasse as normas rígidas da Operação Cavalo de Tróia. Em resumo, tratava-se de conseguir um progressivo amolecimento do cerume, procedendo depois à sua extracção. Para tanto, pelo menos durante os próximos três ou quatro dias, deveria administrar-Lhe algum medicamento ou infusão que actuasse como dissolvente da massa de cera. O problema era como fazê-lo sem despertar suspeições; e tinha de actuar de imediato por uanto a dolorosa prostração de Zebedeu assim o requeria. Sem muitas alternativas, lancei mão da improvisação. Invocando uma inexistente receita do Livro das Sentenças, de Jesus ben Sirac, escrito cento e cinquenta anos antes de Cristo, tranquilizei a consciência médica do essénio provocando ao mesmo tempo a lógica admiração de João e Tiago. De momento tinha de trabalhar com os únicos elementos que tinha à mão. Mais tarde, de regresso à nave a preparação dos unguentos seria menos heterodoxa e precipitada. Seguindo as minhas instruções, Assi preparou um analgésico, à base de folhas de melissa (cujo conteúdo em azeite essencial citral, citronela, geraniol, linanol e tanino dava um resultado muito aceitável) e uns gramas de samê de Sinta, um poderoso analgésico. Com idêntica diligência, João aqueceu na minha presença uns centímetros cúbicos de azeite puro de oliveira e, quando achei que a temperatura tinha chegado aos vinte a vinte e cinco graus centígrados, verti umas gotas em cada um dos ouvidos do paciente. Aquele foi o único momento em que o auxiliador mostrou um ar contrafeito, reprovando em silêncio a minha atitude. No entanto, discreto e respeitoso para com os métodos daquele médico estrangeiro, não disse nada. Em posteriores encontros, uma vez ganha a sua confiança, confessar-me-ia a razão daquela muda
censura. Tal como relata Josefo, os Essénios consideravam o azeite como impuro e por isso, quem quer que, mesmo acidentalmente, entrasse em contacto com ele, manchava a sua pessoa. Esta era uma das razões que os obrigava a manter a pele seca e a vestir sempre de branco (Antiguidades Judaicas, II, 8, 3, 123). Esta interessante seita – da qual também deverei falar - estava em confronto aberto com as interpretações religiosas e os hábitos das castas sacerdotais judaicas. O Talmude, por exemplo, estabelecia a unção como uma necessidade. Tomar um banho e não se ungir, rezava o Shabbat, 41a, é como pôr água num jarro. O forte analgésico não tardaria a fazer efeito. De modo que, eu e Assi, de mútuo acordo, recomendámos aos filhos do Zebedeu que o deixassem repousar, administrando-lhe duas novas doses de azeite quente durante a primeira vigília da noite e ao alvorecer. A terceira já seria sob a minha orientação nessa mesma manhã de quintafeira. Tiago, um pouco mais reconfortado pelas minhas palavras de alento, que ficaram gravadas no seu íntimo, opôs-se a que eu me fosse embora. João, num dos seus arroubos juvenis, perante a minha firme decisão de não pernoitar em Saidan, correu para a porta e apoderou-se das minhas sandálias, fugindo com elas, na boa intenção de me forçar a desistir das minhas pretensões de partir de imediato para Nahum. Fiquei assustado. Ainda que fosse improvável que ele viesse a descobrir os ocultos microssistemas electrónicos, havia de facto a possibilidade e o grave risco de num daqueles seus rompantes – as destruir ou, simplesmente, as esconder, prejudicando assim o desenrolar dos planos da operação. Assi e Tiago riram-se com o caso, declarando-me, divertidos, que, agora sim, estava perdido. Corri atrás dele exactamente a tempo de vê-lo transpor a porta de acesso ao quinteiro. João não se deteve e, com um salto, lançou-se pelas escadas abaixo, em direcção à praia. A meio dos íngremes degraus travou e, indeciso, como se procurasse um esconderijo para o calçado, deu uma rápida olhadela aos barcos varados entre as redes. Gritei-lhe para que acabasse com aquela incómoda
brincadeira, mas ele , levantando as sandálias por cima da sua cabeça, desafiou-me a apanhá-lo. Ágil como um gato, desistiu dos últimos degraus, saltando com toda a facilidade para a praia. Maldizendo a minha má sorte, corri atrás do endiabrado jovem, ferindo os pés nos calhaus da praia. A perseguição, em que naturalmente ele levava a melhor, prolongou-se pela praia fora, até quase um quilómetro de Saidan. Estando eu já esgotado, prestes a desistir daquela corrida louca, eis que João parou de repente. Vi-o largar as sandálias e, de costas começar a retroceder com passos inseguros e vacilantes. Diante dele estendia-se a grande colónia de tartarugas dos pântanos a que atrás aludi. Estranhei que ele não seguisse em frente: Aqueles quelónios eram tão feios como inofensivos. Quando cheguei ao pé dele, João, transtornado, incapaz de articular palavra, apontou para o solo recoberto de cascalho escuro. Confundida entre os seixos retorcia-se uma serpente de um metro de comprimento. Desta vez fui eu quem soltou uma gargalhada; e aproximando-me do hofídio, apanhei-o pela base da cabeça, levantando-o e mostrando-o ao apavorado jovem. O assustado animal, único na fauna da Palestina era afinal uma pobre cobrad’água incapaz de causar danos a quem quer que fosse e cuja dieta básica eram os peixes do Lago. Nos actuais mosaicos da igreja de Tabja vê-se um demónio lutando com um destes pacíficos répteis do Kennereth. João, com os olhos esbugalhados, pediu-me que lhe perdoasse e suplicou Que me desfizesse daquele demónio. Era inconcebível. Apesar dos seus muitos anos de intensa amizade com Jesus de Nazaré, aqueles rudes pescadores continuavam aferrados a toda a espécie de superstições e malefícios, claro que também era possível que aquele terror para com as serpentes constituisse uma hofidiofobia, um medo patológico aos ofídios, cujas causas só podem desvendar-se mediante uma profunda análise psicológica do indívíduo. Para alguns autores, em geral a hofidiofobia – ou medo patológico dos animais – poderia ser interpretada como uma oculta recusa de ter filhos. Curiosamente, João viria a morrer solteiro... Incapaz de manter ou alimentar tão desagradável situação
apressei-me a largar a serpente perto da água. O réptil, tal como eu esPerava, submergiu de imediato, desaparecendo no yam. João, banhado num suor frio, deixou-se cair sobre a areia, exausto e a tremer. Peguei nas minhas sandálias e, esquecendo a sua travessura, quedei-me em silêncio enxugando-lhe a fronte. Fronte. Durante breves segundos observou a minha roupa. De súbito aqueles inquietos olhos negros fixaram-se nos meus e perguntou-me: - Quem és tu na realidade? Foi como se uma lâmina de fogo se propagasse pelas minhas entranhas e adivinhando uma secreta intenção atrás das palavras do meu amigo, esquivei-me à medida que lhe explicava a complexidade, com um forçado sorriso, acrescentando uma coisa ao que ele já sabia: - Já o sabes muito bem: um tosco grego que, finalmente, encontrou a verdade. - Como era de esperar, não aceitou a minha evasiva. E com a audácia da sua juventude continuou a acossar-me: - ... Porque é que o Mestre mal te viu em casa de Lázaro te recebeu como a um velho e querido amigo? Porquê o teu interesse por ele? De onde vens? Porque desafiaste os odiosos romanos permanecendo ao lado do rabi enquanto os outros fugiam? Como podes saber quando e onde?... Não permiti que ele continuasse. Fechei os seus lábios com a minha mão direita e, dizendo-lhe que não com a cabeça, procurei demovê-lo de tão inoportunas cogitações. Penso que foi inútil. João sabia ou intuía uma coisa anormal. A sua última pergunta foi a clara confirmação e o anúncio de que, pela primeira vez, me encontrava numa situação comprometedora. - ... porque desapareceste numa nuvem branca? Ao ouvir a referência à névoa, confesso que me senti desarmado. - Como é que sabes isso? Na sua candura, o discípulo confessou a única origem possível da sua correcta informação, João Marcos. Para meu azar, o Benjamim da família Marcos, uma vez refeito da cena do monte das Oliveiras, correu ao encontro do grupo, juntando-se à expedição em Betsaida.
No caminho, perante a incredulidade geral, deu-lhes conta da estranha névoa surgida atrás de mim e de como Jasão tinha entrado nela, esfumando-se como um anjo do Senhor. - ... É claro que – concluiu o Zebedeu – nenhum dos meus companheiros deu crédito às suas fantasias... excepto eu. - Então João Marcos veio convosco... João confirmou triunfante, na convicção de que me tinha apanhado. - Muito bem – concluí enfaticamente. - Amanhã demonstrar-te-ei que estás enganado. E sem dar-Lhe ocasião de responder, afastei-me em direcção ao caminho, iniciando a viagem de regresso ao berço. A jornada de quinta-feira, 20 de Abril, prometia ser tão animada como a que estava prestes a terminar. Bem vistas as coisas, a corrida atrás de João Zebedeu teve também o seu lado bom. Permitiu-me abandonar Saidan mais rapidamente do que pensava e, por acréscimo, pôr-me ao corrente da presença, entre os discípulos, do pequeno João Marcos. Não sabia muito bem como, mas a verdade é que tinha de agir. Era preciso pôr em andamento um estratagema suficientemente claro e contundente para dissipar os receios e as insinuações que acabava de ouvir. No fundo, aquela situação  inesperada serviu-nos de lição. Cavalo de Tróia tinha subestimado os supostamente primitivos e incultos homens do século I. Alguma coisa me ocorreria. Às dezoito horas e dez minutos, sem qualquer entrave, avistei a ponte sobre o rio Korazim. Eliseu alegrou-se ao ouvir a minha voz. Os cálculos estavam correctos. Sem carga e num bom andamento, o caminho de Saidan a Kefar Nahum podia fazer-se em pouco mais de uma hora, reduzindo em cerca de vinte minutos a primeira caminhada. Paguei a obrigatória portagem (duas leptas, que equivaliam a um quarto de asse, ou seja, apenas uns trocos) ao funcionário da alfândega, e seguindo a estrada, rodeei a cidade pelo lado norte até alcançar o caminho que subia para a colina onde estava assente o módulo. Restavam uns quarenta e cinco minutos para o ocaso e,
depois de prevenir o meu irmão, optei por andar mais uns passos – até ao extremo sul do promontório -, evitando assim a vereda que utilizara na descida e que, como disse, se bifurcava a uma milha de Nahum. Não era prudente que me vissem tomar o caminho do cemitério. A uns cem metros do lugar onde me tinha encontrado com Jonas, o ainda suposto monte das Bem-Aventuranças era cortado na encosta sul pela Via Máris. Aquela era uma das passagens mais estreitas da costa norte. À esquerda da estrada, o terreno precipitava-se literalmente sobre as águas, formando um talude inclinado de vinte a trinta metros. O precipício servir-me-ia de referência nos sucessivos retornos à basemãe. Dali, encosta acima, a nave encontrava- se a uns seiscentos pés. O caminho, a partir daquele ponto, afastava-se um pouco do litoral, desenhando um amplo arco que bordejava as cabanas e o complexo hidráulico de Tabja. Naquele momento reparei num aqueduto de cerca de dois metros de altura, meio encoberto pela vegetação, que partia da zona dos moinhos; nas Sete Fontes, perdendo-se entre os rochedos da costa, em direcção a Nahum. Na manhã seguinte confirmaria que se tratava de uma das mais importantes condutas de água potável que abastecia a «cidade de Jesus». Dispunha ainda de uma certa margem de luz solar e, por isso, para obviar à falhada aquisição de víveres, julguei oportuno aproximarme do povoado que estava à minha vista. Com toda a certeza, os habitantes de Tabja poderiam fornecer-me água e algumas provisões. Eliseu não julgou oportuno, mas, mesmo contra a sua vontade, percorri os trezentos metros que me separavam das cabanas. Fiquei de novo agradavelmente surpreendido. O aproveitamento industrial de Nahum era perfeito. Se os estaleiros, o fabrico de vidro, o artesanato e o comércio se centralizavam na cidade propriamente dita. Ali, entre hortas, pomares e um airoso palmeiral, palpitavam os rumorosos mananciais que moviam os moinhos e as forjas. Os primeiros eram, na sua maioria, de farinha, embora também os houvesse para serrar madeira, triturar a azeitona e a uva
e até para moer pimenta e cortar pedra. Todos os dias, grupos de operários e especialistas das vizinhas localidades de Guinosar, Nahum e Migdal deslocavam-se até àquele belo ; local para pôr em funcionamento as curiosas maquinarias, idealizadas e construídas pelos romanos e que são citadas por Vitrúvio. Entre aquela engenhosa rede de tanques, canais e aquedutos erguiam-se ainda os tradicionais moinhos de cereais, movidos à mão ou com a ajuda de animais. Mas o que verdadeiramente chamou a minha atenção fora aquela invejável obra de engenharia para uso dos seus habitantes, que pouco ou nada teria a perder dos ingleses e norte-americanos até aos anos quarenta e cinquenta do nosso século. Os habitantes do lugar, prestáveis e acostumados a tratar com toda a espécie de forasteiros, corresponderam de imediato à minha solicitação,  enchendo um áspero odre de pele de cabra, de uns quarenta litros de capacidade, com água de uma das fontes que brotava muito perto do grande depósito octogonal de vinte metros de diâmetro que tínhamos detectado lá do alto. *1 – Os mais numerosos eram feitos a partir de dois cones” de basalto – de um metro de diâmetro nas respectivas bases -, unidos pelos vértices. Neste ponto de união havia uma braçadeira e a pedra superior ficava suspensa por meio de um espigão de ferro, tocando o cone inferior de forma a poder triturar o pão que entrava pela abertura superior do moinho. Ajustando o espigão obtinham-se moendas de diferente granulação: fina, média ou grossa. Na referida confluência dos cones, uma alavanca de madeira ou de metal permitia a rotação do moinho, por tracção humana ou animal. À medida que o grão era triturado, a farinha ia saindo pela base do cone inferior, caindo a um canal de pedra especialmente instalado para isso. Os moinhos movidos por mulas ou jumentos – como o que acabo de descrever, foram caindo em desuso sendo paulatinamente substituídos pelos hidráulicos. Em caso de guerra, por exemplo, a requisição dos animais acabava por desactivá-los, lançando as populações na penúria e na fome. (N. Do M.) 2 – a quase totalidade destes moinhos hidráulicos estava instalada nos aquedutos, canais ou reservatórios, de forma a que as correntes fossem mais fáceis de controlar. Uma roda de madeira dentada, ou provida de alcatruzes, era movida pela referida corrente, transmitindo a força necessária ao resto da maquinaria. Esta, em linhas gerais, constava de uma pia circular de pedra com uma coluna central à qual se fixavam duas alavancas que controlavam a mó. Estas encontravam-se uma em frente
da outra, de cada lado da coluna. Na parte interna eram planas, na externa convexas, encaixando-se assim nas paredes do recipiente. Juntavam-se de forma a não tocarem na pia, deixando um espaço para ir esvaziando o grão ou a azeitona. As pedras eram movidas graças a uma alavanca instalada de lado a lado sobre a zona superior da pia. (Até certo ponto moviam-se sobre o seu próprio eixo como consequência da pressão do cereal, originando um duplo movimento.) (N. Do M.)
Porém, o capítulo dos víveres ficou em branco. Nakdimon, o funcionário judeu responsável pelo fornecimento de água a Nahum e à indústria dos moinhos, que acorrera, encantado e complacente, em meu auxílio, aconselhou-me tal como Jonas, a que visitasse o mercado do dia seguinte, em Kefar Nahum. A minha curta estada em Tabja, sempre guiado por Nakdimon, foi extremamente frutuosa. Enquanto percorria as instalações, o funcionário pôs-me a par de alguns pormenores que eu ignorava por completo. Sem dissimular o seu desgosto, o capataz-chefe do Bairro das Sete Fontes lamentou a nacionalização das águas pelos romanos. Com efeito, desde que o Império tinha colonizado a Palestina, a riqueza hídrica tinha passado para as mãos de Roma. César era o legítimo proprietário que delegava, em cada província, numa densa rede de funcionários. As tarifas cobradas pelo consumo da água iam directamente para os cofres de Tibério. O controlo para evitar as fraudes era levado a cabo com extremo rigor. De cada aqueduto – assim o especificava a legislação romana – partia um determinado número de tubagens. Para inserir uma nova canalização era preciso solicitar uma autorização especial ao Governo. Quando este concedia a licença, o inspector da zona entregava ao novo usuário um calix, ou chave de passagem, de determinadas dimensões, de acordo com o volume de água solicitado. Esta peça regulava o caudal de forma inexorável. Se o consumidor era um industrial, o calix recebido era naturalmente de maior secção, mas sempre de acordo com o marcado na respectiva licença. Mas, exceptuando essas chaves de passagem, a canalização era de propriedade privada e cada um tinha de ocorrer às despesas de instalação e manutenção. (Existia de facto uma lei que obrigava a que as dimensões do calix se mantivessem em cada conduta até uma distância de cinquenta pés da referida chave de passagem.) Era
terminantemente proibido obter água de outro lugar que não fosse o depósito do aqueduto, assim como ramificar as canalizações. Tal como acontece no século xx com o serviço telefónico ou o fornecimento de electricidade, naquela época, o direito à água tinha carácter pessoal. Desta maneira, quando um inquilino abandonava uma casa ou um moinho, os engenheiros e inspectores fechavam o calix. Contudo, diferentemente dos actuais procedimentos na matéria, o Império Romano autorizav a venda das licenças. Os novos proprietários ou arrendatários, antes 1de tomarem posse da moradia ou da indústria, tinham de verificar se a respectiva licença não tinha passado para as mãos de terceiros. O elevado custo do fornecimento de água forçava numerosas famílias a prescindir desses serviços, abastecendo-se nas fontes ou nascentes públicas. Jesus, pelo menos durante a sua vida em Nazaré, não teve oportunidade de desfrutar deste cómodo e dispendioso sistema de água corrente ao domicílio. Só os mais abastados podiam, de facto, permitir-se semelhante luxo. Pelas dezanove horas, com o pesado odre de água às costas, que Deus misericordioso quisesse que este imprudente expedicionário regressasse são e salvo ao nosso querido lar, na encosta sul do promontório que dourava o já avermelhado lago de Tiberíades. Eliseu, posto a par das minhas primeiras andanças e correrias pela costa do yam, concordou comigo em que a Providência nos assistia. Apesar da perda dos víveres e da arriscada intromissão no caso do jovem carregador do cais de Nahum, a mudança nos planos tinha valido a pena. No entanto, com a sua habitual sensatez, advertiume de que não convinha abusar da sorte e que fizesse um esforço no sentido de me conformar com o programado pela Operação. A minha incursão a Tabja e o transporte da água para o berço podiam ter esperado. É curioso. Embora eu fosse mais velho e de patente militar superior à do meu companheiro, foi Eliseu quem, durante toda a aventura na Palestina, desempenhou sempre o papel de paciente e sábio irmão mais velho, que sabia ouvir, animar ou repreender na altura adequada. Agora, no fim dos meus dias, continuo a ter saudade dos seus conselhos, da sua tolerância e do seu coração de ouro. Naquela noite, enquanto preparava um dissolvente para o cerume
do Zebedeu, o meu amigo – uma vez analisado e fervido o carregamento de água – colocou-se diante dos painéis de controlo do módulo, caindo num férreo mutismo. Eu tinha-o posto a par da minha breve conversa com João e ambos concordámos, naturalmente, na necessidade de encontrar uma solução sólida e urgente que pusesse fim ao falatório provocado pelo benjamim da família Marcos. Não era fácil. Mas Eliseu, após uma longa reflexão, encontraria meio para remediar tão comprometedora situação. Por sorte, a farmácia da nave era excelente. Após uma consulta ao banco de dados do Pai Natal, decidi-me por uma composição à base de óleo ou azeite de terebinto, numa proporção de um e meio por cada dez centímetros cúbicos, e uma série de complementos não irritantes, como o clorbutol (quinhentos miligramas), a benzocaína (trezentos miligramas) e o benzofenol (também à razão de um e meio por cada dez centímetros cúbicos). Um volume de dez centímetros cúbicos seria suficiente para duas ou três doses diárias, a introduzir nos ouvidos do Zebedeu durante dois dias. Assim se conseguiria um progressivo amolecimento da massa de cera, que me permitiria – não sabia ainda bem como – a extracção dos dolorosos tampões. Colocada a infusão numa pequena ampola de barro, entreguei-me à revisão do programa de quinta-feira. A partir da chegada dos onze a Saidan, os acontecimentos podiam precipitar-se a qualquer momento. O nosso principal objectivo no lago consistia em tentar observar as pretensas aparições de Jesus. Nesse sentido, os evangelhos dos cristãos não são muito explícitos. Como já referi, só o texto de João faz uma vaga alusão à presença do Mestre nas margens do yam, sem especificar nem o dia nem o lugar exactos. Nas margens do mar de Tiberíades, como reza parte do versículo 1 do capítulo 21 não constituía uma grande ajuda. Esta expressão podia querer dizer frente às costas de Nahum, de Saidan ou de qualquer outro ponto do grande arco formado pelo litoral norte, com os seus quase catorze quilómetros, desde Migdal a Betsaida. A única possibilidade de estar presente em tal acontecimento obrigava-me a permanecer junto dos discípulos, sem os perder de vista nem um minuto. Quanto à segunda possível aparição na Galileia – referida pelo Evangelho de Mateus (28, 16
20) -, também não era um primor de informação. A que monte se referia o evangelista? O citado litoral está semeado de colinas... *1 – Da casca do terebinto, sangrando-o, obtém-se a terebentina de Quio, conhecida naquele tempo pelos «curadores» gregos, egípcios e babilónicos com os nomes de terebinthos e terebinthina. Esta resina oleosa contém catorze por cento de essência, formada basicamente por «pineno». O resto são resinas, com pequenas quantidades de ácido benzóico. (N. Do M.)
Pelo que eu tinha visto e ouvido, as palavras de Mateus não eram muito exactas. Por seu turno, diz o escritor sagrado nos referidos versículos, os onze discípulos foram para a Galileia [até aqui, correcto], para o monte que Jesus lhes tinha indicado [...]. (O Filho do Homem não lhes indicou monte algum durante as suas aparições em Jerusalém. Apenas que fossem para a Galileia, onde voltariam a vê-lo.) Por último, o bom Saulo ou Paulo, na sua primeira carta aos Coríntios (15, 5-8), faz uma afirmação – não contida nos Evangelhos – que também não soubemos como interpretar: (...] depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez [...]. Onde e quando se registou tal aparição multitudinária? As coisas, como veremos, apresentar-se-iam muito mais complexas, apaixonantes... e diferentes. Mas vamos por ordem. Por fim, Eliseu, ressurgindo do seu mutismo, voltou-se para mim e, com um sorriso malicioso, perguntou: - Como te dás com os jogos de mãos? Então, astuto e eficiente, passou a apresentar-me em pormenor a sua ideia. Uma ideia que podia tirar-me do atoleiro para o qual as circunstâncias e João Marcos me tinham arrastado.
20 DE ABRIL, QUINTA-FEIRA Nervoso com a perspectiva dos acontecimentos que se aproximavam mal pude dormir. O dispositivo de segurança IR, no automático, não acusou qualquer presença humana nas imediações da nave; apenas alguns bandos de aves que, ao raiar do novo dia, se lembraram inoportunamente de revolutear e pousar muito perto da pequena laje de pedra, contígua ao nosso local de implantação. Tal como a anterior, a jornada daquela quinta-feira apresentavase radiante, do ponto de vista meteorológico. Tendo em conta que os íntimos de Jesus – se o anúncio de João Zebedeu não sofresse alterações – podiam ter entrado em Saidan ao anoitecer de quarta-feira, o mais conveniente para os nossos planos era aguardar até ao meio-dia ou primeiras horas da tarde para marcar presença na casa dos Zebedeus. Depois de tão longa e cansativa marcha pelo Jordão, o mais provável é que os discípulos dormissem até bem tarde. A partir da minha entrada em Saidan, como disse, deveria mostrar-me especialmente cauteloso e atento. Dispúnhamos, consequentemente, de umas seis horas para concluir outras duas operações, que por prosaicas, nem por isso eram menos importantes. A primeira, a cargo de meu irmão, consistia em preparar os elementos que – com um pouco de sorte – deveriam ajudar-me a destruir o equívoco da névoa e da minha nada recomendável condição de anjo do Senhor. Esse simples instrumental (um par de pequenas esferas de cortiça de cinco centímetros cada e um fio de seda) deveria ser completado com a aquisição em Nahum de uma barra de vidro de tamanho médio absolutamente comum e corrente. Nenhum daqueles materiais – perfeitamente conhecidos pelos habitantes do lago – violava as normas do código do Cavalo de Tróia. A segunda acção, vital para a nossa subsistência e, em especial, para a de Eliseu, obrigava-me a descer a Kefar Nahum e, numa ou duas viagens, abastecer a enfraquecida despensa do berço. Havia a possibilidade de, uma vez em Saidan, a minha ausência do módulo se prolongar por vários dias. De modo que, aproveitando a frescura do amanhecer, dei início à que seria a definitiva e quotidiana via de descida e subida do módulo às povoações do
lago. Encosta abaixo, fui ter à estrada na passagem do precipício e a partir dali, em coisa de vinte a trinta minutos, cheguei às portas da cidade. A fim de não perder tempo repeti o itinerário do dia anterior. O ruído produzido pela moedura de grão estava no seu máximo, assim como o vaivém dos comerciantes e artesãos, ocupados na abertura dos seus bazares e oficinas ou no atiçar dos fogões sobre os quais douravam redondas tortas de farinha ou ferviam negros panelões com fumegantes e apetitosos guisados de carneiro, grossos rabos de ovelha ou simples sopas de cereais e sêmola de cevada. No meu caminho para a oficina de Azemilkos observei um maior número de muares e camelos que no dia anterior, perfeitamente alinhados e amarrados à borda da rua principal e das ruas adjacentes. Também esse facto tinha a sua explicação: a realização do mercado semanal, que constituía todo um acontecimento económico-social. O velho chefe da oficina de fundição de vidro recebeu-me com exagerada reverência, agradavelmente surpreendido com a prontidão do meu regresso. Numa rápida olhadela pela exposição compreendi que a compra da pequena barra de vidro não era uma coisa assim tão trivial como tínhamos suposto. Obviamente, tais barras não tinham qualquer utilidade e por isso não se fabricavam. A única solução consistia em adquirir um jarrão de dupla asa e, uma vez no berço, serrá-las. Para a experiência que me propunha executar, a forma da peça de vidro era o que menos importava. O objectivo seguinte – aquisição dos víveres – levou-me de novo ao cais. O tráfico de mercadorias e a agitação dos carregadores e capatazes nada tinham a invejar ao de quarta-feira. Alguém me indicou o extremo oeste do porto como o lugar onde, tradicionalmente, se instalava o mercado. Com efeito, no final do espigão, no limite de Nahum, descobri uma praceta de uns cinquenta metros de diâmetro, pavimentada com lajes negras – idênticas às utilizadas para o pavimento da Via Máris – e fechada, na sua zona mais ocidental, por um muro de uns três metros de altura e dez de comprimento do qual emergiam seis grossos canos
de ferro. Por detrás perfilava-se o aqueduto que partia dos depósitos de Tabja e que trazia a água potável para a cidade. O líquido corria incessantemente por quatro das seis tubagens e ficava depositado num tanque rectangular, passando deste para um longo e estreito bebedouro em que se dessedentavam densos magotes de jumentos, mulas, camelos, bois e ovelhas. Aquela, tal como a que já tinha observado nas imediações de Saidan, era a fonte pública de Nahum, sempre assediada por mulheres com cântaros apoiados nos quadris ou em milagroso equilíbrio sobre as cabeças. Uma legião de crianças chapinhava no tanque, brincando com troncos de madeira ou cortiça ou dando de beber a barulhentos e ariscos patos que, com toda a razão, resistiam a participar naquele caos. Os protestos e imprecações dos vendedores, salpicados ou entontecidos pelas brincadeiras da criançada e pela gritaria das gordas e agressivas matronas eram contínuos e, de certo modo, faziam parte do ritual que envolvia tais centros de reunião. Ao longo de todo o perímetro da praça, comerciantes e vendedores ambulantes chegados dos quatro pontos cardiais exibiam os seus produtos e habilidades, numa louca, permanente e atroadora gritaria, em que ninguém queria ficar atrás. Uma patrulha de legionários, postada no limite do cais com o terreiro, seguia atentamente as evoluções dos regateios inevitavelmente acompanhados de exclamações teatrais, murros no peito e juramentos apaixonados que, em geral, não passavam dali. O desfile de galileus de longas barbas e bigodes rapados, com as suas cestas de compras na mão esquerda, atentos às novidades chegadas de Tiro, da Decápole, da Idumeia ou da própria Cidade Santa, foi engrossando com o despertar da luminosa manhã. Tal como em Jerusalém, em Nahum eram os homens que faziam as compras; em especial, tudo o que se referia aos víveres e artigos de primeira necessidade. Numa espantosa mistura de aramaico, grego, egípcio e outras línguas caldaicas e mesopotâmicas, mercadores de roupa e calçado, barbeiros, oleiros, perfumistas, adivinhos, curadores, negociantes de gado, pescadores e hortelãos, entre outros, obrigavam os curiosos a examinar, cheirar, provar e apalpar os seus produtos, invectivando e até puxando para que o possível
comprador não passasse ao largo. Sobre alcatifas e esteiras de palha, os objectos importados de Roma, da Gália, das ilhas do Mediterrâneo ou das remotas Ursa e Índia, gozavam da especial predilecção dos habitantes de Nahum e das aldeias e povoações vizinhas. Ali podia comprar-se de tudo: do mais inverosímil ou luxuoso até ao mais pitoresco. Desde um banco (subselium) finamente lavrado e em madeira de carvalho pelos carpinteiros do Tibre, até uma espécie de caixa forte (glosso-komon) onde guardar o dinheiro ou documentos, passando por sagum ou capas curtas, abertas lateralmente, sem mangas, muito em moda entre a gente do Império. Lá encontrei tabulas ou bandejas para o serviço de mesa; mappas ou toalhas de mesa de seda e rendas de Palmira e Séforis; roupa interior para senhora, túnicas curtas ou Kolgur transparentes, meias de lã, chapéus e sandálias de laodisseia, véus brancos, de luto, para as viúvas, flautas e harpas de Tebas ou Creta; instrumental médico; sombrinhas coloridas para se proteger do Sol nos degraus dos anfiteatros; preservativos egípcios, feitos de bexiga de antílope e gato, convenientemente conservados em frascos de azeite; cestaria beduína também; e modelos de utensílios de barro e vidro de Samos e do Egipto respectivamente. Um tal refinamento deixou-me espantado. O homem do século xx, na sua soberba, julga ter alcançado o limite da comodidade e da perfeição quando, na realidade, já tudo, ou quase tudo, estava inventado. No meio do tumulto, um boquiaberto círculo de crianças, adultos e mulheres rodeava os barbeiros-médicos-dentistas, assistindo, atónitos e perplexos, à rapadela das barbas, à extracção de dentes ou à pintura de cabelos. Fenícios, gregos, galileus e egípcios sentavam os seus clientes em pequenos tamboretes ou enferrujados pipos, amolecendo as suas barbas com água quente e, à falta de sabão, com espessos e escuros produtos oleaginosos, fazendo deslizar sobre as faces e pescoços longas navalhas de ferro, de gumes já gastos na sua contínua ida e vinda pelos caminhos do país. A pintura do cabelo – em preto e ruivo para os homens e lourodourado para as mulheres – fazia-se à luz do dia, sem o menor assomo de pudor até à última das cãs. Mas o trabalho preferido dos
curiosos – o mais arrepiante e patético – era a extracção de dentes. Concluída uma barba ou a pintura de uma cabeleira, o barbeiro acomodava o timorato paciente e, depois de se inteirar do seu problema, procedia ao exame da dentadura. A seu lado, se se tratava de um profissional com certo desafogo económico, um ou dois aprendizes – geralmente escravos – preparavam os unguentos, os anestésicos e o instrumental médico do homem dos dentes, como popularmente eram conhecidos. Aqueles curadores dispunham, em geral, de um arsenal cirúrgico relativamente aceitável: sondas, lancetas e escalpelos de diferentes modelos, facas de lâminas rectas ou recurvas, agulhas para coser cortes, elatores para levantar crânios abatidos, seis tipos de fórcipes (lisos ou rematados por dentes e com protecção ou sem ela), catéteres, tesouras de cirurgia (algumas, mesmo para cortar a parte doente da úvula), espátulas para examinar a garganta e até um instrumento para dilatação. Se as gengivas apresentavam ulcerações (juntamente com as cáries eram as afecções mais comuns), o odontólogo ou os seus ajudantes aplicavam-lhes um emplastro feito à base de resinas de terebinto, leite de vaca, tâmaras, alfarrobas secas e outras plantas que não consegui identificar; ou então esfregavam essa mistura nas zonas atingidas ou faziam que o paciente a mastigasse. Quando a deterioração do dente – segundo o critério do barbeiro – aconselhava a sua extracção, o infeliz era amarrado com as mãos atrás das costas, de modo que as suas convulsões não prejudicassem a tarefa do mestre. Como nos preparativos de uma execução, a assistência guardava um significativo silêncio, suspensa das manobras e actuação do verdugo e seus ajudantes. Especialmente um daqueles egípcios, extremamente ossudo, demonstrava uma habilidade e força nos dedos como nunca antes tinha visto. Enquanto um dos aprendizes afastava as mandíbulas, o dentista introduzia um pano na boca do paciente (geralmente um homem ou mulher de idade avançada) e, sentando-se no chão com firmeza, prendia o dente condenado entre o polegar e o indicador, arrancando-o com um seco esticão. Depois, como se se tratasse de um número de circo, o egípcio mostrava ao público o lenço com o dente ensanguentado (de uma ou duas
raízes), recebendo então o aplauso e a aprovação gerais. No pressuposto de que habitualmente a extracção era seguida de hemorragia, o Curador aplicava à cavidade uma infusão de ervas que actuava como hemostático. Travado o fluxo de sangue, o paciente fazia um bochecho de vinagre, retirando-se seguidamente com uma bolsinha de pano apertada entre os dentes. Ao interrogar um dos ajudantes sobre o conteúdo dessa bolsa, senti um verdadeiro calafrio; gordura, mel, óleo de microbálano e excrementos de mosca... Enojado, retirei-me em direcção às bancas dos hortelãos e tendeiros, enchendo duas grandes cestas com o mesmo tipo de provisões que escolhera na manhã anterior, às quais juntei ainda alguns queijos da Bitínia, espargos, mostarda do Egipto, passas de Corinto – o fruto preferido de Jesus – e o meu fraquinho de sempre: as nozes. O regateio foi duro, como de costume. A cada par de palavras, o camponês de Ginosar que me calhou em sorte levantava os braços, jurando pela sua cabeça, pelos céus, por Jerusalém, pelos seus filhos ou pelo leite que lhe dera sua mãe, que aquelas favas, alhos ou lentilhas tinham sido regados com o seu sangue e que bem mereciam os quatro miseráveis denários que me pedia em troca. Pelas dez horas, com a cabeça em água, conseguia por fim escapar de semelhante manicómio, iniciando a viagem de regresso ao módulo. Uma hora mais tarde, com as duas esferas de cortiça, a asa de vidro de uma jarra, o fio de seda, meia-dúzia de minúsculas barras de neve carbónica e a ampola de barro com o dissolvente na bolsa de oleado, despedia-me de Eliseu, disposto a enfrentar aquela que ia ser sem dúvida a primeira grande aventura da nossa estada na Galileia. De acordo com o planeado pelos especialistas do Cavalo de Tróia, se as aparições do Mestre tivessem lugar para além dos limites estabelecidos para a ligação auditiva, o meu companheiro deveria ser alertado de imediato através do laser, activando e dirigindo para a zona em questão um dos olhos de Curtiss. Nenhum de nós suspeitava então que a primeira dessas prodigiosas presenças de Jesus nas margens do yam se registaria menos de vinte e quatro
horas depois... A caminhada para Saidan foi, desta vez, mais interessante. Até à ponte sobre o Jordão tive oportunidade de me cruzar com várias caravanas que desciam pela estrada de Sídon, com destino aos portos e núcleos comerciais de Nahum, Migdal e Tiberíades. Desde a linha fronteiriça situada na ponte, em contrapartida, o meu caminho foi praticamente solitário. Pouco antes de passar pelos marcos divisórios do território de Filipe, aquele vento do oeste que eu já conhecia soprou de novo sobre o lago, vergando as copas dos álamos e arrancando intermináveis zumbidos às suas folhas verde-brancas. Pouco depois da hora sexta estava eu a apresentar-me no grande pátio. Do casarão dos Zebedeus, desta vez pelo portão principal que se abria, junto do caminho que atravessava a aldeia. Os onze, sentados em torno de um braseiro quadrangular no qual fervia um caldeirão de leite, con versavam animadamente. Durante uns segundos fiquei quieto, com a vara de Moisés firmemente assente nas lajes do pavimento. A vista dos discípulos encheu-me de emoção. Um fumo branco, impelido pelo vento de poente, saía lá de dentro esfumando os corpos dos discípulos situados à minha direita. Era evidente que não se tinham dado conta da minha chegada, mas de súbito, fez-se silêncio. Os que estavam sentados à minha frente alertaram os restantes e os quatro ou cinco que estavam de costas para mim voltaram as cabeças, fixando os olhares no recémchegado. Então algo de estranho pairou sobre aqueles corações, endurecendo os seus semblantes. Foi um olhar altamente significativo: misto de medo, curiosidade e receio. Naquele instante fiquei a saber que as revelações feitas por João Marcos – embora o não tenham confessado – tinham semeado as dúvidas no crédulo e supersticioso grupo. Tinha de agir. A missão podia ficar comprometida se eu não eliminasse radicalmente a falsa ideia de um Jasão anjo, pouco menos que aparentado com a Divindade. A tensão atingiu o auge quando, de repente, apareceu o benjamim pela porta que conduzia à casa de Zebedeu pai, Trazendo um recipiente de barro. Recuou áo descobrir a minha presença,
arregalou os olhos, espantado, e cambaleante, como se tivesse diante de si um fantasma deixando cair o recipiente, que ficou em cacos, no meio de grande estrondo. João, perturbado, levantou-se correndo para o rapaz. Mas, antes de o alcançar, João Marcos saltou por cima dos cacos e das tilápias, refugiando-se no quinteiro. O jovem Zebedeu hesitou. Então, mudando de direcção veio ao meu encontro, pedindo-me que desculpasse o frio e injusto acolhimento. O incidente ficou temporariamente esquecido e, depois de uma discreta saudação geral, os galileus retomaram a sua conversa que, naturalmente, girava em torno dos extraordinários acontecimentos vividos em Jerusalém. Fizeram- me o convite para partilhar o pequeno-almoço colectivo, manifestando o mmeu desejo de visitar o enfermo. João concordou, agradecido. No caminho. Inclinei-me para desatar as sandálias e, ao começar pelas tiras de couro da perna esquerda, o Zebedeu, retirando com suavidade os meus dedos dos nós, sugeriume que começasse pela sandália direita. - Dá azar – acrescentou ele sem mais explicações. Aceitei aquela pequena sugestão. Pouco a pouco ir-me-ia familiarizando com aquelas superstições e manias que, naturalmente, estava disposto a respeitar. No quarto do chefe dos Zebedeus aguardava-me uma muito grata surpresa: Maria, a mãe de Jesus, encontráva-se à cabeceira, na companhia de Salomé, a esposa do ancião, e de algumas das mulheres da casa. Os filhos do «patrão» tinham cumprido fielmente as minhas prescrições médicas e o paciente, embora ainda abalado pelas dores, apresentava um aspecto mais calmo. Ao ver-me no limiar, Salomé e a senhora deixaram as compressas de água fria que administravam sobre a fronte do doente e, com vivas manifestações de alegria, beijaram-me nas faces, desejando-me paz. Aquele gesto reconfortou-me, devolvendo-me a segurança. A mulher do Zebedeu agradeceu os meus cuidados para com o seu marido, censurando-me depois pelo desnecessário presente de víveres da véspera. Ajoelhei-me em silêncio junto ao colchão e, sem prestar demasiada atenção às carinhosas palavras de Salomé, peguei nas
mãos do Zebedeu, verificando o seu pulso. O bom homem sorriu. Pedi a João que me ajudasse a erguê-lo e, recorrendo à ampola de argila, verti algumas gotas do preparado em cada um dos ouvidos. Seguidamente, depositando o pequeno recipiente nas mãos do discípulo, informei-o sobre o seu conteúdo, modo e frequência com que devia administrá-lo até nova ordem. Se tudo corresse normalmente, talvez no sábado ou no primeiro dia da semana (domingo) pudesse proceder à dissolução definitiva e extracção do cerume. Após uma rápida troca de palavras com as mulheres, eu e João regressámos ao pátio. João Marcos ajudava os gémeos de Alfeu, junto ao lume. Os outros, muito bem-dispostos, estavam ainda entretidos com os restos do tardio pequeno-almoço, molhando umas tortas de farinha, ainda quentes, num fundo prato de barro cheio de azeite. Chegara a altura de pôr em prática a ideia de Eliseu. O benjamim, mais calmo, deixou-me aproximar. Em sinal de amizade mostrei-lhe o amuleto que me oferecera em Jerusalém e que ainda tinha ao pescoço e, em tom conciliador, pedi-lhe que me escutasse. Os discípulos, que apesar da sua conversa não tiravam os olhos de cima de mim, baixaram o tom de voz, mais presos das minhas palavras que das suas. Medindo bem as minhas explicações, e falando de modo que todos pudessem ouvir, lembrei-Lhe que, além de homem de negócios e médico, Deus me tinha concedido o privilégio de estudar e praticar a muito nobre profissão de áugure e de mago. Tal como os demais, o rapaz acompanhou as minhas explicações com a dúvida estampada nos olhos. - E para que vejas que não minto, agora mesmo, se assim o desejares – acrescentei sem perder o sorriso -, estou disposto a mostrar-te alguns dos meus poderes... João Marcos, indeciso, desviou o límpido e profundo olhar para os discípulos. Filipe, o mais dado a partidas e brincadeiras, erigiu-se em espontâneo porta-voz dos demais, aceitando a proposta sem dissimular a sua curiosidade. Disposto a aproveitar o talvez irrepetível momento e a excelente disposição dos galileus, pedi a João que colocasse sobre o braseiro um caldeiro com água. Por seu turno, o benjamim, com idêntica
rapidez, correu para o pátio, à procura de uma simples varinha. Entretanto, perante os olhares inquietos dos restantes, procedi com um mais que teatral silêncio à atadura de cada uma das esferas de cortiça a outras tantas porções (de cinquenta centímetros de comprimento) do fio de seda. João Marcos regressou de pronto, entregando-me uma tosca vara de um metro. Parti-a em duas e, atando os pêndulos improvisados a cada um dos paus, dirigi-me aos gémeos. Pedi-lhes que se adiantassem até ao meio do círculo formado pelos expectantes galileus e, depois de lhes entregar as varas, ordenei-lhes que procurassem manter as esferas no ar, totalmente imóveis e protegendo-as do vento com os seus próprios corpos. Filipe, nervoso, desatou a rir. Ordenei silêncio e, pegando na asa de vi dro, esfreguei-a energicamente com o fio da minha túnica. Levantei os braços para o céu e, pronunciando palavras absurdas e ininteligíveiscom o único fim de aquecer o ambiente, é claro -, inclinei-me para a pequena esfera que Judas Alfeu sustentava. O efeito desejado não tardou a produzir-se. Ao aproximar a barra de vidro da bola de cortiça, esta, obediente, moveu-se, aproximando-se da ponta da asa. Um murmúrio de admiração brotou espontâneo de todas as gargantas. E o gémeo: assustado, largou a vara, correndo para junto do lume. A reacção de Judas provocou a hilariedade geral. Repeti a singela experiência com o pêndulo do seu irmão Tiago e a esfera, mais uma vez como que empurrada por mão invisível, deslocou-se até tocar no vidro. Observei João Marcos e João Zebedeu. Ambos, de boca aberta e olhos fixos nas oscilações do pêndulo, pareciam hipnotizados daquela simples experiência, sobejamente conhecida dos estudAntes do século xx. (baseava-se no natural processo de electrização por friccionamento. Um elementar pêndulo electrostático fazia o resto. Vidro e cortiça electrizados com cargas opostas, atraem-se durante algum tempo. Depois, quando as cargas se tornam do mesmo sinal, repelem-se.) Poucos minutos depois, pedi a João que pegasse no pêndulo de Judas. Como era de esperar, ao aproximar de novo o vidro electrizado da cortiça, a esfera moveu-se em sentido contrário. O jovem, maravilhado, não saía do seu
assombro. Quando achei que os meus poderes como mago tinham ficado claros, guardei as peças e, dissimuladamente, peguei nas cápsulas de neve carbónica, escondendo-as entre os meus dedos. A água do caldeiro tinha começado a ferver. Lancei uma olhadela sobre o grupo e, com idêntica teatralidade, estendi os braços para a abertura do caldeiro fumegante, invocando os deuses do Olimpo. Ao erguer o rosto para o azul do céu , quase todos os galileus, intrigados, me imitaram. Nesse instante, com total premeditação, deixei cair as cápsulas de CO2 (de um centímetro de diâmetro e cinquenta milímetros de comprimento) na água. Registou-se uma reacção imediata. Reforcei as minhas invocações e esconjuros e, como por arte de magia (o termo nunca foi tão oportuno...), uma névoa branca e densa – idêntica à provocada por meu irmão no alto do monte das Oliveiras – começou a borbulhar e a subir pelas paredes do caldeiro. Alguns dos discípulos perante o ameaçador avanço do fumo, recuaram entre lamentos, vítimas de um pânico supersticioso. João Marcos, abraçando-se à minha cintura, suplicoume que acabasse com tais demonstrações. A «névoa» foi-se dissipando. Recuperada a calma, João Zebedeu com os olhos no chão pediu publicamente desculpa, admitindo que, contra o que o Mestre sempre tinha pregado, tinha caído no erro de me julgar. Um murmúrio de aprovação ratificou as palavras do discípulo e, quem isto escreve, imitando o gesto de amizade favorito de Jesus, colocou as suas mãos sobre os ombros do pesaroso João, agradecendo a sua nobreza de coração. Nunca mais se voltaria a falar da minha possível origem ou natureza angélica. A experiência resultara em cheio. Terminado o pequeno-almoço, Simão, exultante e pletórico de entusiasmo polarizou de novo a atenção geral, arengando aos seus companheiros para que, tal como tinham feito na viagem de Jerusalém até ao lago saíssem aos caminhos a pregar a boa nova e a iminente chegada do Reino. O seu irmão – André, Tomé, o Dídimo, e Mateus, mais cautelosos – não apoiaram as sugestões do fogoso Pedro recordando-lhe que, de momento, as ordens do Rabi eram
outras: permanecer na Galileia até que ele voltasse a apresentar-se diante deles. As opiniões ficaram pois divididas. João, Filipe e Bartolomeu apoiavam incondicionalmente os desejos de Simão. Tiago era da opinião de André e os gémeos, como de costume, mantiveram-se à margem, mais atentos às tarefas domésticas que ao problema de fundo. Quanto ao Zelota, mudo e cabisbaixo, não houve processo de lhe arrancar uma única palavra. O aguerrido patriota, apesar das evidências, tinha caído numa nova e profunda depressão. Ninguém conseguiu consolá-lo ou infundir-lhe um mínimo de alento. Era inútil. A vergonhosa morte do seu líder e a desintegração do grupo e dos seus velhos ideais de libertação política pesavam mais que a própria ressurreição e que as – para ele – nebulosas promessas de Jesus acerca de um longínquo e incompreensível Reino espiritual. Às primeiras horas da tarde, perante o desacordo e a crítica da maioria, Simão, o Zelota, pegou nas suas coisas e, quase sem dizer palavra, com o rosto endurecido pela desesperança, partiu para sua casa, na vizinha Nahum. Aquela deserção – como a sua atitude foi qualificada por Pedro – acabou por transtornar os planos do grupo. Durante uma hora envolveram- se em outra das suas azedas e pouco caridosas discussões, chamando ao Zelota indigno e pouco fiável embaixador do Reino. Só João e Mateus protestaram. Mas Simão Pedro, que começava a afirmar-se como líder, foi quem aplacou as censuras da maioria, chegando a insinuar uma coisa que me deixou perplexo: era o próprio Mestre, lá dos céus, quem afastava o patriota dos autênticos eleitos, como o pescador honrado separa a pesca pura da impura. (Muitas vezes me perguntei porque é que os evangelistas – João e Mateus estavam presentes – ocultaram estas duras reacções do colégio apostólico, mostrando, pelo contrário, na maioria das ocasiões, a falsa imagem de um conjunto de homens tolerantes, generosos e fiéis aos ensinamentos do Filho de Deus.) Às três e meia da tarde, terminada a polémica, Pedro pôs-se de pé. Esquadrinhou o céu azul e, numa das suas típicas e bruscas mudanças de atitude, adoptando um tom amistoso e conciliador,
propôs que saíssem a aproveitar o tempo. O grupo, desejoso de esquecer as recentes e amargas acusações, aceitou em bloco a sugestão. Aproveitar o tempo?, pensei eu, intrigado, Com efeito, não captei logo o verdadeiro sentido da expressão. Como se se tratasse de uma coisa de rotina e sobejamente conhecida de todos, os dez mobilizaram-se em uníssono. Filipe, o ecónomo do grupo, e os gémeos encheram dois cântaros de água, recolhendo e guardando os restos do pequeno-almoço em dois pequenos sacos de linhagem. Os Zebedeus e Pedro, por seu turno, enquanto os outros se dirigiam para o pátio, penetraram no aposento situado à direita do portão de entrada. E eu, sem saber que atitude tomar, permaneci no meio do pátio, absolutamente confundido. João foi o primeiro a sair. Levava dois caldeiros cheios de barbos, mergulhados numa calda oleosa e putrefacta. Olhou-me e, levantando levemente a cabeça, apontou-me a porta do pátio, perguntando: - Vens connosco? Sem esperar resposta, partindo do princípio que eu aceitaria, avançou à minha frente em direcção ao pátio. O seu irmão e Simão apareceram logo depois, transportando uma volumosa alcofa, cujo conteúdo não podia descortinar porque estava oculto por um feixe de tiras atadas e empapadas em resina. Não pude resistir à tentação e, timidamente, interroguei-os sobre as suas intenções. Tiago sorriu com benevolência. Pedro, porém, incomodado com a minha falta de discernimento, murmurou algo irreproduzível, acrescentando quase só para si: - O que é que há-de ser?... Nem todos nós somos ricos comerciantes como tu! Magoado pelo desabafo de Simão, precisei de alguns instantes para reagir. E maldizendo a minha espontânea ingenuidade, lá fui correndo atrás deles. Ao chegar à escadaria que conduzia à praia percebi então o verdadeiro significado daquela expressão «aproveitar o tempo». Os discípulos, junto das redes e dos barcos, tinham começado a despir-se. Agora era claro: preparavam-se para a pesca. Durante uns instantes, imóvel sobre o último lanço das íngremes escadas,
hesitei. Pus todos os meus sentidos alerta. Se os escritos de João, o Evangelista, estavam certos, a primeira das aparições de Jesus no lago ter-se á verificado depois de uma noite de estéril pesca. Estaria eu a assistir aos prolegómenos desse acontecimento? Um frémito percorreu-me todo o corpo, sinal inequívoco de que algo de muito especial estaria para se passar naquele sítio. A partir de então deveria manter-me de olhos bem abertos... De início, os meus escassos conhecimentos sobre navegação e pesca em geral constituíram uma dura desvantagem. Vi-me obrigado a formular uma infinidade de perguntas, muitas delas tão elementares que teriam despertado o riso dos próprios filhos dos pescadores e marinheiros do yam. Felizmente, nem todos os discípulos eram tão secos como Peddro. Foi a eles que recorri uma e outra vez. A maioria dos discípulos, como ia dizendo tirou a roupa e o calçado, que ficaram amontoados na margem, ficando,em saq ou tanga ou, quando muito com a túnica repuxada e enrolada à cintura. Em perfeita coordenação, os sais ou chefes de grupos - pedro, por um lado, e Tiago Zebedeu, por outro, foram dando as oportunas ordens – a meu ver desnecessárias – porquanto cada um parecia saber muito bem o que tinha a fazer. Foi assim feita a distribuição das provisões nas duas embarcações que flutuavam na água a curta distância da margem, João e André encarregaram-se dos caldeiros com o peixe já putrefacto e, tendo-os despejado na areia escura, deram início à trituração dos peixes, servindo-se de pedras para tal tarefa. A carniça pestilenta e ensanguentada era misturada com areia húmida, formando umas bolas que eram atiradas para o fundo dos caldeiros. Ao mesmo tempo sob o olhar atento de Tiago, Filipe, Tomé, Mateus e Natanael (Bartolomeu) colocaram-se de um e outro lado de uma longa rede estendida sobre os seixos. Com extrema rapidez e precisão começaram a dobrá-la. Pelas explicações do Zebedeu e pelo que deduzi ou só depois ao vê-los manobrar, aquele aparelho – de uns cento e cinquenta metros de comprimento – actuava como uma rede de arrasto. Tinha o nome de jerem e a forma de um rectângulo, entrançado com fortes fios de linho recoberto de breu,
mais largo na sua zona central (entre cinco e seis metros) que nos extremos (cerca de dois metros e meio. As bordas mais longas tinham várias cordas ligadas. Uma delas (que na água ficava à superfície) estava dotada de dezenas de cortiças e tábuas. A outra apresentava um número semelhante de pedras e pedaços de chumbo perfurados que, obviamente serviam de lastro. Duas varas de madeira nos extremos da rede permitiam a sua verticalidade, quando submersa no yam. De cada uma das pontas das varas partiam vários cabos que confluíam num só e grosso nó do qual partiam outras tantas cordas de uns setenta a cem metros de comprimento, respectivamente. Pedro, entretanto, aprontava os remos no barco maior. De vez em quando via-o avançar até à proa e com as mãos a servir de viseira, parecia procurar algo no horizonte. O vento tinha parado e a superfície do lago, azul e plácida, só era agitada por distantes e esporádicos chapiscos das aves que planavam ou caíam em voo picado, à procura de alimento. Dobrado e reduzido ao tamanho mínimo, o jerem foi transportado para a popa do barco; e um dos longos cabos foi meticulosamente enrolado por Simão Pedro no fundo do barco. A segunda corda ficou na costa, ao cuidado de Filipe. André e João, com as bolas de areia e peixe macerado, entraram com decisão pela água dentro, colocando os caldeiros na proa da embarcação. Tiago apressou-se a segui-los e Tomé, o quinto tripulante, dirigindo-se à pedra de amarração, soltou o cabo, esperando que os seus companheiros subissem para bordo. De súbito, fazendo-me sinal, João trocou algumas frases com os sais. Pedro encolheu os ombros e o mais novo dos Zebedeus, regressando à margem, convidou-me a acompanhá-los. Foi uma oportunidade que, naturalmente, não deixei de aproveitar. O Sol estava ainda a uns quarenta e cinco graus do poente e, consequentemente, não era previsível que ocorresse nada de anormal. Estive tentado a atar as sandálias ao cinturão; mas, consciente de que aquele gesto de desconfiança podia cair mal nos mais susceptíveis, optei por depositá-las, tal como a vara de Moisés, junto do montão de roupas e sapatilhas dos meus amigos
pescadores. Não me agradava muito perder de vista aqueles delicados instrumentos, mas não podia proceder de outro modo. E depois, cheio de emoção, penetrei no yam. Apesar da protecção da pele de serpente, que me cobria até aos tornozelos, senti a frialdade das águas. Era a primeira vez que entrava em contacto directo com o mar de Tiberíades. E não seria a última, graças à Divina Providência... O barco estava fundeado a um metro da areia. Saltei para dentro e, nervoso, agradeci-lhes a sua gentileza. Ninguém ligou muito às minhas palavras. Pedro, encarrapitado em cima do jerem, ordenou que me sentasse à proa. Obedeci de imediato. Era curioso: uma vez embarcados, aqueles homens – e muito especialmente Simão Pedro – mudavam por completo de atitude. Tornavam-se rígidos. Falavam pouco, só o imprescindível e, principalmente, utilizavam uma linguagem de mímica comunicando desse modo de barco para barco. O Didimo foi enrolando o cabo de amaração. Encaminhou-se vagarosamente para o barco e, uma vez junto à popa, empurrou a embarcação. Acto contínuo, ágil como um gato, trepou pelo monte formado pelo jerem, indo ocupar o seu lugar junto de João. Ao centro tinham sido colocadas duas pranchas, à maneira de bancos. André e Tiago, mais corpulentos, ocuparam o que estava mais próximo da proa. Simão Pedro, ajoelhado sobre a rede, incitou os remadores a que arrancassem. Quatro remos escuros e ensebados foram introduzidos nos estropos. Uma vez dispostos nos toletes, lenta, silenciosa e coordenadamente, as duas parelhas fizeram avançar a embarcação. Esta – de uns oito metros por dois -, construída com tirzah (um pinheiro manso duro e resinoso, muito abundante nas proximidades do lago), não se distinguia nem pelo seu calado nem pelos cuidados da sua manutenção. Parecia abandonada ou não utilizada já há meses. O entabuamento, muito desigual, apresentava brechas e lascas, com preocupantes perdas dos fios de algodão que impermeabilizavam as junturas. A sentina estava permanentemente inundada. Entre as cadernais
amontoavam-se feixes de cordas, várias lâmpadas de azeite vazias, e sem os respectivos vidros, uma concha (talvez utilizada nas refeições), um vertedor para esvaziar a água (com uma curiosa forma de ferro de engomar ou de sapato, todo de madeira, fechado na parte posterior , com um cabo na sua zona superior e a boca à medida das cadernais), trapos velhos e empapados, um cântaro de barro e um saco de oleado que pendia da cavilha de estibordo. À proa e à popa estavam duas pedras negras, lisas e perfuradas nas suas extremidades, que funcionavam como âncoras. De início não reparei nisso. Mas, à medida que penetrávamos no yam, chamou-me a atenção uma pequena carranca encravada na proa. Representava a figura de uma mulher-peixe com as mãos na cabeça e pintada de vermelhovivo. Mais tarde, os galileus explicar-me-iam que se tratava da deusa Atargatis, adorada em Áscalon e na costa fenícia, cuja presença na embarcação garantia uma segura protecção contra os ventos de leste – súbitos e traiçoeiros – e dava a possibilidade de uma excelente pesca. (Uma destas estatuetas seria descoberta pelo investigador McLister nas escavações arqueológicas do tell Zakaria, em Eretz Israel.) Soube-o logo. Aquela primeira fase da operação de pesca era uma das mais delicadas. Eram precisos remadores experientes capazes de impulsionar o barco com um mínimo de ruído. Ninguém falava. A embarcação foi-se afastando, prependicular à costa sempre ligada à terra pelo longo cabo amarrado a uma das extremidades da rede. Na margem o resto do grupo acompanhava imóvel e expectante, as manobras da tripulação. A cerca de quarenta ou cinquenta metros do litoral, Pedro, permanentemente atento à superfície do lago, levantou a mão esquerda. Os remadores deixaram de remar e todos os olhares se dirigiam para o ponto que atraía a atenção do chefe. O silêncio apenas quebrado pelo gotejar das pás dos remos e pelo distante gritar das gaivotas, impresionou-me. Também eu esquadrinhei a superfície do yam, mas, francamente, nada vi de especial ou extraordinário. Dez segundos depois com uma palmada seca na amurada de bombordo, Pedro ordenou uma rotação. Muito devagar, André e João, sentados
do mesmo lado, mergulharam os remos na água ao mesmo tempo que os seus companheiros de estibordo faziam o mesmo, remando com firmeza. Completada a manobra, a embarcação ficou paralela à costa e os quatro prosseguiram no lento e silencioso avanço. Assim continuámos durante algum tempo tendo por única companhia o choroso ranger dos estropos e uma ou outra descompassada respiração. Ao chegar ao ponto desejado, o sais levantou a mão pela segunda vez. E os remadores suspenderam de novo os remos. A embarcação ficou à deriva, balouçando suavemente. Simão pôs- se de pé, com os olhos fixos na superfície das águas que se estendia entre nós e a margem. A avaliar pelo que nos tínhamos distanciado, aquela zona do lago não devia ser muito profunda; deveria oscilar entre os cinco e os seis metros. Passaram-se alguns minutos tensos e intermináveis. Ninguém se mexeu. Eu próprio, acocorado no fundo do barco, mal me atrevia a respirar. De vez em quando, impelida pelo suave balanceio, a água da sentina molhavame os pés. De repente, como um trovão, ao mesmo tempo que apontava para estibordo, Simão Pedro soltou uma imprecação. A quinze ou vinte metros do costado direito do barco – para o interior do lago -, as águas começaram a ferver e a espumejar. O banco de peixes que o sais estava a acompanhar tinha-se deslocado, enganando assim os galileus. Entre o borbulhar da superfície vi saltar alguns exemplares, cujos ventres brilharam como a prata à luz do Sol. - Filhos de mil rameiras!... As imprecações do guia sucederam-se em turbilhão. Jamais poderia imaginar um futuro chefe da Igreja Católica tão descontrolado e fora de si. A primeira operação – aquilo a que os galileus do yam chamavam situar o barco – tinha falhado. Atemorizado perante o péssimo génio de Simão, cheguei a lamentar ter aceitado o convite. Se eu cometesse o mínimo deslize, a carga de mau humor daquele homem voltar-se-ia, sem dúvida, contra mim.
Contudo, a nenhum dos remadores pareceu incomodar aquela torrente de impropérios e rudes palavras cuspida pelo homem que, poucas horas antes, os tinha incitado a sair pelos caminhos pregando a paz e a fraternidade. O espumejante cardume acabou por submergir e, como se nada tivesse acontecido, a tripulação concentrou-se em novo, silencioso e paciente rastreio da zona, navegando sempre a uma distância máxima de cinquenta a setenta metros da costa. Passada uma meia hora, alguns esporádicos e solitários saltos de peixes entre o barco e a margem alertaram o sais. Simão Pedro levantou o braço, fazendo sinal aos de terra, e a barca, energicamente impulsionada pelos remadores, começou a navegar com força, mantendo um rumo paralelo à costa. Com os músculos tensos, perfeitamente sincronizados, os quatro galileus, animandose mutuamente com pequenos gritos, inclinavam-se para a popa e tombavam seguidamente para a proa, até que as suas costas quase chegavam a alinhar-se com as respectivas bordas. O chefe do grupo, inclinado sobre a popa, foi largando o jerem. Com grande destreza, as mãos enormes e calosas de Pedro foram arriando a rede, ao mesmo tempo que, entre gritos e insultos, incitava os remadores para que acelerassem o ritmo. À popa foi ficando um rasto de pedaços de cortiça e madeira, agitados pelo forte balanço do barco. Os homens que tinham ficado em terra começaram a puxar o cabo e a rede começou a encurvar-se. Depois de a rede estar praticamente na água, o sais, voltando a cabeça para os seus companheiros, ordenou nova manobra. E o barco mudou de rumo, virando-se para a orla. Pedro, com os pés solidamente fincados no fundo da embarcação, fez apelo a todas as suas forças – que não eram poucas -, sustendo e arrastando o segundo cabo. A quatro ou cinco metros da margem, como que impelidos por uma mola, os remadores saltaram à àgua e, pegando na corda, puxaram vigorosamente o barco para a margem. Desejoso de colaborar em alguma coisa, imitei-os, puxando juntamente com eles. Durante vinte ou trinta minutos, as duas colunas de homens esforçaram-se ininterruptamente, puxando os cabos, lenta mas firmemente. E o
jerem, formando uma meia-lua, foi- se aproximando da costa. A uns vinte passos da água, cada um depositava em terra a porção de corda que lhe coubera, regressando sem pressa à margem. Uma vez lá, por meio de um curto cabo, uma espécie de estropo, com uma pedra atada na ponta enroscava esta na maroma principal, puxando com o auxilio do referido estropo. O aparelho – que poderíamos hoje identificar com a chincha – funcionava como uma rede varredora. Os chumbos e pedras mantinham-se no fundo, varrendo o yam como uma barreira vertical. Tratava-se, diga-se de Passagem, de uma pesca bastante destruidora, que acabava com todas as espécies e ovas depositadas no fundo do lago. Quando as varas de madeira flutuavam a uns passos da costa, dois dos pescadores precipitaram-se sobre as extremidades do jerem, enquanto os restantes multiplicavam os seus esforços no sentido de que ambas as fileiras se aproximassem até chegarem a uns dez metros uma da outra. Os que puxavam a rede foram-se aproximando da costa. Os gritos de apoio eram tantos e assim continuou até que o zut ou copo apareceu à vista. Bastava uma simples olhadela cá de terra para que, com escassa margem de erro, os pesc adores soubessem do êxito ou do fracasso da faina. Por acaso, a súbita interrupção da gritaria e a furiosa patada desferida por Simão Pedro à superfície da água foram sinais que não davam lugar a dúvidas. Com efeito, o jerem vinha vazio. O fundo da rede foi arrastado até à areia e, entre pragas e impropérios, os guias procederam à sua abertura e exame. - Só lixo! O qualificativo de Simão foi o melhor resumo: o copo só trazia lama, pedras, um amontoado de algas esverdeadas (do tipo das Botricocum) e outras, bastante mais nocivas (a Nostoc) cuja matéria gelatinosa obstruía os olhos da rede, prejudicando e atrasando o trabalho dos esforçados galileus; alguns búzios (a Melania tuberculata); uma infinidade de minúsculos caranguejos do grupo dos Cladocera e meia-dúzia de tilápias pequenas e médias, «tão estúpidas», segundo o Dídimo, «como os pescadores que tinham conduzido a dugit» (a barca).
A inoportuna observação de Tomé desencadeou a ira do sais que tinha dirigido a embarcação da falhada faina e, para minha perplexidade, Pedro e Didimo envolveram-se numa violentíssima disputa. Tomé chamou a Simão velho, cego e inapto; e Pedro que não se ficava atrás, explorou o estrabismo do pobre Tomé, culpando-o por tão infeliz pesca. Alguns dos presentes intervieram na azeda discussão tentando acalmar os ânimos. No terceiro salto teríamos ocasião de comprovar como aqueles choques eram como que o «pão nosso de cada dia» entre os grupos, chegando-se mesmo a vias de facto. Uma imagem tão real como lamentável, da qual no entanto os evangelistas também não falam... Como que por encanto, passada a discussão, cada qual voltou à sua tarefa. O jerem foi limpo das algas e depois de devidamente dobrado foi colocado de novo à popa. Maravilhado, assisti assim à mais natural e absoluta das reconciliações entre o sais e Tomé. Ambos, tal como os restantes remadores, embarcaram novamente como se nada tivesse acontecido, reiniciando a procega e a manobra do barco. Desta vez, não obstante as reiteradas chamadas de João para que me juntasse à tripulação decidi permanecer em terra. A varredela do fundo do lago repetiu-se mais duas vezes apenas com uma diferença: de vez em quando Pedro levava as mãos aos caldeiros, lançando à água as bolas de areia e peixe esmagado. Deduzi que se tratava de uma maneira de atrair os peixes. Mas a sorte, apesar da carniça e do contínuo vaivém da embarcação, não estava de feição. Perante a desolação geral, o jerem só apanhava lixo. Pelas sete horas, já com o Sol posto, os persistentes galileus enrolaram os cabos e, de mau humor, lavaram e estenderam a rede sobre a pedregosa margem. Ali ficaria até uma nova oportunidade. Vestiram-se e, depois de acenderem uma fogueira, ofereceram-se uns momentos de descanso. Os pavios utilizados pelos gémeos surpreenderam-me especialmente. No yam, entre os pescadores, aquelas pequenas cargas de enxofre eram de uso corrente e, naturalmente, mais rápidas e eficazes que os que actualmente usamos, mas de pequenas lascas de oito a dez centímetros de comprimento, totalmente envoltas em enxofre. As cargas eram
colocadas junto da pederneira e a chispa fazia o resto. Filipe cortou as cabeças e estripou algumas tilápias, assando-as com a ajuda de um espeto. Entretida a fome, os homens, feridos no seu amor-próprio, reiniciaram a faina. Desta vez participaram os dez, distribuindo-se em dois grupos. Um, no barco capitaneado por Pedro; o segundo, sob o comando de Tiago Zebedeu, numa embarcação um pouco mais pequena, de uns seis metros de comprimento. Substituíram as redes, carregando no barco de Simão uma rede a que os nativos chamavam ambatan (mãsõd ou me.súdãh) e um jerem ou chincha de cem metros no de Zebedeu. A primeira (gill-net em inglês), de origem babilónica, constava de três malhas. A pançuda, como popularmente era conhecida, utilizada em águas profundas e só de noite, para que os seus fios de linho e algodão passassem despercebidos aos peixes. A rede central estava cosida às cordas ou relingas, providas de cortiças e de chumbos, respectivamente. As malhas exteriores - de um metro e meio cada uma – apresentavam uns olhos muito maiores que os da rede central (cerca de duzentos milímetros). O comprimento total do aparelho não era inferior a trinta e dois ou trinta e cinco metros. Tornava a tocar o fundo do lago. Lançava-se também apartir da popa ou de uma das bordas, formando na água uma espécie de U. Em geral, os pescadores escolhiam zonas próximas da costa, assustando os peixes das mais variadas formas: batendo na água com os remos, com as mãos ou com ramos, fazendo arder benzina na superfície, com a ajuda de cães especialmente adestrados ou, a partir da costa, arrastando correntes. Os peixes, assustados, fugiam do lugar onde fundeavam ou navegavam as embarcações, precipitando-se para a tríplice rede. Atravessavam a primeira malha, chocando de imediato com a segunda – muito mais apertada – que era arrastada para a terceira. Ao recuar o cardume ficava bloqueado no grande saco e a rede dava um estremeção, perfeitamente visível da costa. As bóias submergiam e as companhas apressavam-se a levantar o ambatan, esvaziando o pescado no fundo dos barcos. Numa noite, a
pançuda podia ser lançada e recolhida de dez a vinte vezes, com uma média de capturas que oscilava entre os cinquenta, e os cem quilos. O yam não tardou a tingir-se de vermelho. Nas povoações costeiras foram-se acendendo as Primeiras luzes e os nossos amigos esfumaram-se nas sombras do anoitecer rumo à desembocadura do Jordão. Se não fossem as tochas amarradas à proa e à popa de cada um dos barcos nem João Marcos nem eu teríamos sido capazes de os localizar na escura noite que se aproximava. Uma noite e um amanhecer dificeis de esquecer, diga-se desde já. Foram minutos deliciosos aqueles. De paz. Durante longo tempo, nem o benjamim nem eu trocámos uma única palavra. Desfrutávamos, simplesmente, aquele momento. Os últimos remendadores de redes acabaram de colocá-las sobre altas estacas e, sem pressa, desapareceram em direcção às luzes amareladas que piscavam nos pátios e postigos da aldeia. Retardatários bandos de gaivotas dirigiam-se com urgência para oeste, à procura de Tiberíades. E o crepúsculo sem aviso , passou de cor malva a um azul sombrio. Foi um sinal. Em plena lua nova, o firmamento precipitou-se sobre o lago, pejado de estrelas e constelações. Nunca consegui acostumar-me à serena majestade daqueles céus. Uns céus que precisamente pela sua branca quietude pareciam pressagiar algo... encheu-se de tochas. Dezenas de embarcações concentravam-se diante dos ricos pesqueiros das costas de Kursi, Tabja e do litoral onde nos encontrávamos. Calculo que pelas oito ou oito e meia da noite, as embarcações inicialmente solitárias de Simão e de Tiago ficaram confundidas entre as luzes dos outros barcos, provenientes, na sua maioria, do cais de Saidan. Inspirei-me profundamente, inebriado pelo intenso perfume de algas que a suave brisa de poente trazia consigo. E sob o olhar vigilante de João Marcos levantei os olhos para o profundo cintilar das estrelas. Espontaneamente como num jogo fui-as nomeando uma a uma movido pela paz do lugar e – porque não dizê-lo E a cada uma delas, movido pela paz do lugar e – porque não dizê-lo – por uma incontrolável melancolia dediquei uma improvisada
recordação: «Sírio: meu anjo-da-guarda... Carina: hoje no Sul, recordando o meu tempo... Oríon: talvez a minha verdadeira “pátria”...» Curioso e ávido de conhecimentos o adolescente juntou-se a tão estranha prece, pedindo-me que o ajudasse a identificar as estrelas. Passei o meu braço sobre os seus ombros e como se se tratasse de um filho (o filho que nunca tive), fui-lhe apontando as mais brilhantes: a constelação de Leão, a leste, com Régulo ao meio da elipse. A norte, Draco, a Ursa Maior e a estrela-chave dos navegantes: a Polar, muito próxima do Pólo Norte celeste. Abaixo de Sírio a sul, Cão Maior. E roçando as colinas do extremo meridional do Kennereth, o cacho cintilante de Vela. - E tu, Jasão – perguntou João na sua candura. -, que pensas que sejam estas estrelas? Aproveitei a sua excelente disposição e, suave e subtilmente, levei-o para onde me interessava. - O Mestre disse-o... Ao falar no Rabi, os seus olhos cravaram-se nas chamas ondulantes. Pareceu-me perceber neles uma sombra de tristeza. Em  meu reino – prossegui com o olhar fixo na intensa manranqueava o oriente celeste – há outras moradas. - Então, lá em cima também há homens, lagos e gaivotas? Concordei, sem poder reprimir um assomo de ternura. - E o Mestre – continuou ele, mostrando-se altamente surpreendido – é o chefe desses mundos? - Mais ou menos isso... Ficou em silêncio, distraído pelo súbito, negro e geométrico voo de dois morcegos. - Agora compreendo... - murmurou, convicto. - Esses homens das estrelas devem ser melhores que nós. Senão, porque se teria ido embora? Entendi que se referia ao Rabi. - Pensas mesmo que partiu para essas paragens? Pegou num ramo e, atiçando as labaredas da fogueira, encolheu os ombros, acrescentando:
- E para onde, senão para lá?... Estava morto e agora vive. Mas não está aqui connosco. Insisti, procurando atraí-lo para o meu objectivo: - Desejas vê-lo? Deixou de brincar com o lume e, vibrando dos pés à cabeça, adiantou-se aos meus pensamentos: - Tu és um mago. Podes consegui-lo? - Não, filho. Eu apenas consulto os astros e, quando muito, vaticino. - E que dizem as estrelas? - perguntou logo João Marcos. - Ele vai aparecer em breve? Fiz-me rogado, alegando que não convinha abusar de semelhante dom. Por fim, acedi, pondo em andamento o meu modesto e inocente plano. Eu sabia que naquelas noites de Abril – entre as dez da noite e as três horas da manhã – a Terra atravessava um núcleo de asteróides em que inúmeras estrelas cadentes (as Virgínidas) se precipitavam nas altas camadas da atmosfera, incendiando-se. Tal fenómeno poderia servir os meus propósitos. Levantei-me e com solenidade, comecei a caminhar à volta do fogo. Atento e medroso, o rapaz seguiu-me com a vista. À terceira ou quarta volta parei. Lancei a cabeça para trás e assim permaneci por uns instantes, com o olhar fixo na Via Láctea. Quando calculei que a pantomima tinha tornado tensos os nervos do meu amigo coloquei-me de novo a seu lado e, apontando com o indicador direito para a estrela Hidra, prognostiquei: - Esta noite, precisamente ali e durante a primeira vigilia, verás cair muitas estrelas. Não te assustes... Fiz uma estudada pausa. - Mas veremos o Mestre? - A resposta a essa pergunta, meu filho, tem um preço... Atónito, emudeceu. Apalpou as pregas da sua túnica e, desolado, fez-me ver que não dispunha de uma única lepta. - Não – apressei-me a intervir – não quero dinheiro... E antes que pudesse interpretar mal as minhas palavras,
acrescentei com suavidade: - Sabes bem da minha simpatia por Jesus. Estive perto dele nas últimas horas da sua vida... Sem conseguir compreender, foi assentindo com rápidos movimentos de cabeça. - Pois bem, desejo conhecer a fundo os seus ensinamentos. Tudo o que disse ou fez. Graças à vossa generosidade e paciência, o meu espírito está-se enchendo da sua mensagem. Há no entanto um ponto que ainda permanece obscuro no meu coração. Só tu podes desfazer as minhas dúvidas. - Eu?!... Eles – interrompeu-me apontando-me para as tochas que oscilavam a noroeste do lago – é que sabem tudo sobre o Mestre. Neguei com firmeza. - Eles nunca souberam o que aconteceu nas colinas de Jerusalém durante a jornada do quarto dia da segunda semana deste mês de Abril. Avivei a sua memória. Naquela quarta-feira, 5, véspera da prisão de Jesus na encosta do monte das Oliveiras, João Marcos acompanhou o Rabi desde as primeiras horas da manhã ao anoitecer. Ninguém conseguiu saber aonde tinha estado nem o que aconteceu durante aquela enigmática jornada. Era um dia em branco nas pesquisas do Cavalo de Tróia. - Esse é o meu preço – sentenciei, com uma frieza que logo se transformaria em remorso. O que eu estava a fazer era, no fundo e na forma, pura chantagem. Mas o meu impetuoso desejo de averiguar tudo sobre Cristo aquietou a minha consciência. - Aceitas o acordo? A resposta foi um duro olhar de reprovação. - Mas se eu lhe prometi... Tentei persuadi-lo, assegurando-lhe que os meus lábios ficariam selados, levando o segredo para Tessalónica. - Bom – balbuciou ele – Não importa assim tantotudo somado, Ele está morto... Na realidade, naquela jornada de descanso nos
montes que rodeavam a Cidade Santa, nada de prodigioso ou espectacular se tinha passado. - Passeámos sem rumo fixo e eu aproveitei a ocasião para confessar-lhe a minha pena por não ter podido acompanhá-lo naqueles anos de pregação – prosseguiu João Marcos, entusiasmando-se com as recordações. - recomendou-me que não desencorajasse pelos acontecimentos que estavam a ocorrer. E profetizou-me algo. Os seus olhos brilharam de felicidade. - Disse que eu chegaria a viver o suficiente para ser um poderoso nensageiro do Reino. - De que te falou Ele? - Sobretudo, da sua infância em Nazaré.. Os seus pais eram mais pobres que os meus. O jovem desviou a conversa, concentrando-se no ponto que, logicamente, iluminava e iluminaria para sempre o seu coração. - quando lhe perguntei como chegaria a ser um poderoso mensageiro do Reino, o Rabi disse o seguinte: “Sei que serás fiel ao Evangelho do Reino porque conheço a tua fé e amor, enraizados em ti graças aos teus pais. És o fruto de um lar em que o amor está presente, embora, felizmente para ti, os teus progenitores não tenham exaltado em excesso a tua própria importância. O seu amor não distorceu o teu coração. Desfrutas do amor paterno, que assegura uma louvável confiança em si próprio, fomentando os normais sentimentos de segurança. Também foste feliz porque, além do afecto que mutuamente se dedicam, os teus pais souberam actuar com inteligência e sabedoria. Foi essa sabedoria que os levou a ser inflexíveis com os teus caprichos e fraquezas, respeitando ao mesmo tempo a tua personalidade e as tuas próprias experiências. Tu, com o teu amigo Amós, procurasteme no Jordão. Ambos desejáveis vir comigo. Ao regressar a Jerusalém, os teus pais consentiram. Os de Amós recusaram. Amam tanto o seu filho que lhe negaram a bendita experiência que tu estás a viver. Fugindo de casa, Amós poderia ter-se juntado a nós; mas essa actuação teria ferido o amor
e sacrificado a lealdade. Os pais sábios, como os teus, procuram que os seus filhos não se vejam forçados a ferir esse amor ou a quebrar a lealdade, permitindo-lhes, quando chegam à tua idade, que desenvolvam a sua independência e que gradualmente, vão saboreando a sua liberdade. Nada existe de mais desprendido e justo que o verdadeiro amor. O amor, João Marcos, é a suprema realidade, quando é outorgado com sabedoria. Mas os pais mortais, lamentavelmente, transformam-no em algo de perigoso e egoísta. Quando te casares e tiveres os teus próprios filhos, procura que o teu amor seja sempre aconselhado pela sabedoria e guiado pela inteligência. O teu jovem amigo Amós crê neste Evangelho do reino tanto como tu, mas não posso confiar plenamente nele. Não tenho a certeza do que fará nos anos vindouros. A sua infância não foi adequada. Ele é como um dos meus discípulos, que também não teve uma educação baseada no amor e na sabedoria. Tu, pelo contrário, serás um homem digno de confiança, porque os teus primeiros oito anos foram vividos num lar normal e equilibrado, tens um carácter forte e bem formado porque cresceste numa casa em que prevalece o amor e reina a sensatez. Tal educação leva a um tipo de lealdade que me inclina a crer que terminarás o que começaste.” A que discípulo se referiria Jesus? Inevitavelmente, lembrei-me logo do infeliz Judas. Ou tratar-se-ia de outro? No fundo, as minhas indagações sobre o carácter e as famílias dos íntimos de Jesus estavam por começar. João Marcos não me soube esclarecer. O resto daquela quarta-feira – segundo o benjamim – fora absolutamente tranquilo. O Rabi da Galileia continuou a falar-lhe da vida familiar explicando-lhe uma coisa que os psicólogos bem conhecem: A vida futura de uma criança será fácil ou difícil, feliz ou infeliz, conforme o que lhe tenha sido dado viver no seu lar ao longo desses cruciais primeiros anos da sua existência. Ainda que eu não tenha tido filhos, vislumbro que o Mestre tinha razão e que as suas apreciações eram tão válidas então como agora. No nosso mundo, apesar dos seus avanços e da maior informação dos pais em geral, os lares deixam muito a desejar.
Salvo raras excepções, o amor estipula-se sob o peso do egoísmo, da pressa e de uma civilização (?) que não pode, não sabe ou não quer valorizar a beleza e a transcendência das crianças. É certo que as famílias desfrutam actualmente de uma liberdade como nunca antes existiu. Essa liberdade, no entanto, não obedece nem é gerada pelo amor; não é motivada pela lealdade nem dirigida pela inteligente disciplina da sabedoria. “Enquanto os pais continuarem a ensinar a rezar o “Pai Nosso” assegurou Cristo ao seu jovem acompanhante, “sobre eles recairá a tremenda responsabilidade de ordenar os seus lares de forma que essa palavra [pai] encerre e signifique um autêntico valor na mente e no coração dos seus filhos.” De súbito, João Marcos emudeceu. Uma estrela esverdeada rasgou o firmamento. Logo a seguir, uma segunda estrela cadente mais volumosa, irrompeu por cima da brilhante Espiga, riscando vertiginosamente o negrume do céu. A espectacular chuva de meteoros prolongar-se-ia durante quase cinco horas. E o jovem, perplexo primeiro e atemorizado depois ante a precisão do meu vaticínio acabou por agarrar-se ao meu braço, tremendo perante a possibilidade de que algum daqueles demónios se abatesse sobre nós. Procurei convencê-lo de que não havia perigo e de que tais demónios eram apenas pedras a arder. - Pedras a arder? Compreendi que, longe de emendar o seu erro as minhas explicações só tinham contribuído para aumentar a sua confusão. Sem dar por isso estava a ponto de infringir uma das sagradas normas da Operação Cavalo de Tróia. O nosso código proibia o fornecimento ou sequer a simples insinuação quanto a informações sobre matérias que não correspondessem ao âmbito cronológico em que as explorações se desenvolviam. E a verdade é que a realidade dos meteoros e meteoritos foi sistematicamente negada pelos homens de ciência até meados do século XVIII. Ali terminou o caudal de informações à volta da jornada daquela quarta-feira, 5 de Abril. João Marcos, fosse por medo fosse por puro cansaço, recusou-se a prosseguir. E esgotado, recostou a sua cabeça no meu regaço caindo num sono profundo.
Foi melhor assim . Que poderia eu ter-lhe dito a respeito da próxima aparição do Filho do Homem? Mesmo admitindo que Jesus cumprisse a sua promessa, apresentando-se no yam, era impossível predizer o dia a hora e o lugar. Para cúmulo, o anteriormente citado texto de João Evangelista assegura que o Mestre se manifestou quando estavam juntos Simão Pedro, Tomé, chamado o Didimo, Natanael, de Caná da Galileia, os Zebedeus e outros dois dos seus discípulos (21, 2). Isto perfazia um total de sete homens, e ali, naquela altura, estavam a pescar dez. Alguma coisa não condizia . Quem eram esses dois pescadores anónimos? Seria de esperar que Pedro convidasse para pescar apenas seis dos seus companheiros? Tal como as coisas se apresentavam, isso não parecia lógico nem provável. A intuição dizia-me que não: que a madrugada em questão tinha de ser aquela... E habituado às imprecisões e erros dos evangelistas, apostei de facto no amanhecer próximo. Entretanto – é justo que o reconheça -, à medida que a noite avançava, as minhas dúvidas foram-se tornando insustentáveis. As embarcações continuavam a deambular pelo nordeste do lago. Se a pesca fosse infrutífera, repetia a mim próprio uma e outra vez, o mais natural é que Tiago e Simão Pedro tivessem ordenado o regresso à praia. Ou não?» O evangelista era muito claro a esse respeito: «[...] mas naquela noite não pescaram nada.» Significaria a longa permanência do yam que os discípulos estavam a fazer uma boa pesca? Em caso afirmativo, a minha intuição teria errado... Só havia uma forma de resolver tão obsidiante incógnita: acalmar os nervos e esperar pelo amanhecer. Antes, porém, seria testemunha de outro desconcertante fenómeno, inconcebível de um ponto de vista racional e científico.
21 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA Aconteceu duas horas antes do amanhecer. O cansaço começava a vencer-me. Necessitado de uns momentos de sono, tapei João Marcos com o meu manto e recostei-me junto à fogueira já quase apagada. A lenha chegara ao fim, mas sentia-me incapaz de ir à procura de mais nas redondezas. A incomodidade do terreno, cheio de calhaus, obrigou-me a mudar várias vezes de posição numa mais que problemática tentativa de conciliar o sono. Quando, finalmente, consegui descansar um pouco, aquilo – sintome incapaz de defini-lo melhor – começou a mover-se. Eu estava deitado de costas, virado para a majestosa cúpula celeste, quando, como ia dizendo, algo, começou a deslizar lá no alto, no meio da extensa constelação de Hidra. Num primeiro momento, atribuí tal visão ao meu próprio esgotamento. Talvez estivesse a ser vítima de uma alucinação visual. Fechei os olhos, mas ao abri-los, a luz continuava lá, deslocando-se lentamente para a elíptica. Seria uma estrela cadente desgarrada? Evidentemente que não. O seu comportamento, não tinha qualquer relação com as fulgurantes e oblíquas trajectórias dos meteoros e meteoritos. Além disso a sua luminosidade não coincidia com a dos rastos verdeamarelados das fugazes estrelas que tínhamos contemplado pouco antes. Aquilo era branco. Um ponto de luz definido – sem cauda – e de um brilho bastante semelhante ao da alaranjada estrela Alfard (2m,2), da qual, justamente, o tinha visto partir. Fosse o que fosse movia-se a grande altitude e com uma cadenciada oscilação lateral. Rememorei o incidente que eu e o meu irmão tínhamos presenciado na noite de Quinta-Feira Santa, no acampamento de Getsémani. Senti um calafrio. De repente a luz deteve-se na constelação de caranguejo. Fiquei perturbado. Levantei-me e, extraordinariamente tenso, aguardei que se deslocasse de novo. Mas a coisa permaneceu imóvel, camuflada entre as miríades de estrelas. Na realidade, se a não tivesse visto mover-se pouco antes, a sua presença ter-me-ia passado
absolutamente despercebida. Deus do céu! Que se estaria a passar! Que diabo seria aquilo,? A simples ideia de que, em pleno século I, alguém pudesse tripular um veículo espacial repugnava ao meu espírito científico. Contudo, malgrado meu e os meus esquemas mentais, o registado nos radares do módulo na referida madrugada de quinta-feira, 6 de Abril, o não menos misterioso objecto circular que se interpôs entre o Sol e a Terra na manhã de Sexta-Feira Santa, provocando o obscurecimento de que falam os Evangelhos, e agora a luz que vagueava sobre a minha cabeça, pareciam manejados por um ser inteligente. E diria mesmo mais. Ainda que correndo o risco de perturbar as mentes mais ortodoxas, estou quase convencido de que os três fenómenos tinham muito em comum. Os dois primeiros coincidiram, com outros tantos acontecimentos, intimamente vinculados à pessoa de Jesus. E o terceiro. Deveria considerá-lo como um presságio? Tolices! O sono dissipou-se. Observei João Marcos. Dormia profunda e tranquilamente. Com uma crescente agitação encaminhei-me para a margem. A praia continuava deserta e escura, sem outro sinal de vida que não fosse o rubro rescaldo da fogueira. Naquela altura não registei a distância. Mas depois, ao analisar a inacreditável cena que estava para viver verifiquei que o brasido se encontrava a oito metros do yam. Uma distância insigmificante que pude cobrir em escassos segundos. Pus-me de cócoras a um passo da água e, com ambas as mãos refresquei o rosto e o pescoço. Achei que o melhor para me libertar da ansiedade e das ideias baralhadas que a enigmática luz em mim produzira era precisamente isso: espevitar-me com uma boa e fresca lavagem. Quanto tempo posso ter permanecido junto do lago? Um minuto? Talvez menos. O caso é que de repente, pareceu-me ouvir um ruído. Sim, foi como o crepitar de labaredas. E logo uma corrente de ar frio soprou nas minhas costas. Os cabelos da nuca eriçaram-se-me e, sem explicação aparente, experimentei uma nítida sensação de medo. Era como se alguém – pessoa ou animal - me espreitasse. O meu coração começou a bater mais forte ao descobrir na superfície
da água o reflexo de uma luz. A costa apresentava naquele lugar uma ligeira inclinação e, consequentemente, a imagem ondulante que tinha aparecido à minha esquerda só podia vir da zona do litoral onde me encontrava. Pensei na vara de Moisés. No caso de ser atacado não teria tido tempo de recorrer a ela. Voltei a cabeça muito devagar e uma descarga de adrenalina sacudiu-me pela segunda vez. Junto do benjamim, no mesmíssimo lugar onde – um minuto antes – se extinguiam as brasas, elevava-se agora um alto e vigoroso lume. Petrificado, distingui alguém que com uns ramos na mão alimentava a fogueira. Encontrava-se do outro lado das chamas, de pé e voltado para mim. O meu ritmo cardíaco estabilizou. O mais provável é que se tratasse de algum dos habitantes de Saidan, atraído, talvez, pelo brilho da fogueira. Mas... como é que não tinha dado pela sua chegada? Naquela discussão comigo mesmo, procurei outro argumento tranquilizador: seguramente, a sua aproximação tinha coincidido com o meu afastamento para a margem. Mesmo assim, como explicar, então, o súbito ressurgir das chamas? Não era plausível que, em tão curto período de tempo – não mais de um minuto – tivessem ganho semelhante altura e consistência. Foram instantes intermináveis. Espessos. Electrizados. E uma ideia brilhou no meu cérebro. Ou terá sido um desejo? Afastei-a, acusando-me a mim de pueril e fantasista. O resplendor das chamas iluminava-o generosamente, mas mesmo assim não consegui identificá-lo. O indivíduo – de notável corpulência – inclinou-se para um monte de lenha seca. Só ele podia tê-la trazido para ali. Pegou num molho e pouco a pouco, foi lançando a lenha à fogueira. Receoso, decidi-me a aproximar-me. O homem levantou a vista das chamas e durante um ou dois segundos, não mais, observou-me atentamente. Acto contínuo baixando de novo os olhos quebrou um ou dois ramos, esperando talvez que eu acabasse de aproximar-me. Mais uma vez não tenho palavras. Limitam-me. Desejaria abrir a minha alma e que cada um pudesse ver e sentir como eu próprio. A quatro metros da fogueira fiquei cravado na
areia. E todo o meu ser estremeceu numa convulsiva onda de medo, confusão, incredulidade e alegria indescritíveis. - Meu Deus! O pavor – não tenho vergonha de o confessar – levou a melhor naquele confuso ziguezaguear de sentimentos e emoções. Dando meia volta, corri, espavorido, sem destino. De que tinham servido tantas horas de treino? De nada, rigorosamente! Eu era um pobre mortal, fugindo às cegas e topando no escuro com pedras, redes e embarcações varadas. Suponho que assim teria continuado, se não fosse aquela rede providencial. Providencial? No violento choque derrubei uma das estacas que a sustinham no ar e, enredado nas malhas, rolei pela encosta como a mais néscia das capturas obtidas no yam. Esbracejei e dei pontapés a esmo, tentando escapar da armadilha. Em vão. Quanto mais me agitava, mais enredado ficava. O sangue gelou-se-me nas veias: o meu próprio medo acabara por me imobilizar. Não via forma de me libertar. Do pânico passei a outro sentimento mais amargo: o do ridículo. Creio que nunca me senti tão humilhado. Travei os meus impulsos, tentando raciocinar. Se ao menos tivesse à mão uma faca... Cheguei a morder os fios de linho embebidos em pez, numa furiosa tentativa de abrir uma brecha. Impossível. Esforcei-me então por levantar-me. E estava nisto quando, no meio das trevas descobri uma tocha que se aproximava. Caído e amordaçado estive para gritar, pedindo ajuda. Não foi necessário. O portador da luz parecia conhecer muito bem a minha posição e a crítica e estúpida situação em que me encontrava. Ao reconhecê-lo, o meu coração acelerou de novo. Desta vez, porém, não foi o terror que me agitou. Foi a mais profunda, a mais intensa das alegrias. Não me equivocara. Era Ele! Mas como podia ser? Quando e de que maneira se apresentara na praia? O Gigante observou-me uns instantes. Depois, em silêncio, inclinou-se sobre aquele humilhado despojo humano e, com o maior tacto, foi queimando as malhas da rede. Livre daquela armadilha,
apressei-me a levantar-me. Foi uma sensação embaraçosa. Violenta. Incapaz de articular palavra, limitei- me a contemplá-lo. Apesar de o ter visto no Cenáculo, não podia acreditar no que tinha perante mim. Santo Deus! Não havia dúvida: era Ele! Trazia o seu habitual manto cor de vinho, que Lhe envolvia o tórax vigoroso, a sua túnica branca, de amplas mangas. Que difícil e apaixonante repto para a ciência e que absurda posição a minha! Eu, um cientista, acabava de ser liberto de uma rede por um homem ressuscitado! Porque, evidentemente, tratava-se de um ser vivo. Trazia uma tocha, tinha queimado parte de um aparelho de pesca e, enfim, estava ali, diante de mim, ocupando um lugar no espaço. Mas como assimilar tamanha loucura? É que eu tinha-o visto morrer. Tinha comprovado o rigor mortis. Tinha tocado o seu cadáver... Como era possível? Adivinhando tão tormentosos pensamentos, o Homem aproximou a tocha do seu peito. E a luz banhou-Lhe a face alta e serena, produzindo cintilações nos cabelos lisos e acastanhados que caíam sobre os ombros largos e fortes. O nariz proeminente, a barba fina e apartada e, sobretudo, aqueles rasgados, profundos e intensos olhos cor de mel, eram os de Jesus de Nazaré. A proximidade do fogo impressionou as suas pupilas. Num movimento reflexo, as longas pestanas movimentaram-se uma e outra vez. Aquele pestanejar, absolutamente natural, não podia ser fruto da minha imaginação. E o Homem com aquele suave e acolhedor sorriso que tanto me impressionava, falou por fim. A sua voz grave, inconfundível, fez-me estremecer. - Não te preocupes em saber como. Pergunta-me, isso sim meu querido e assustado Jasão, pergunta-me porquê... E, voltando-se, Jesus aproximou-se, de novo, da fogueira. Aturdido, fui atrás dele, procurando acompanhar as suas passadas largas. Que dizer, tímido e nublar-se, na minha mente mil e uma perguntas. Contudo, queria agradecer a sua ajuda, mas envergonhado pela minha fuga, não fui capaz. Continuei a seu lado, caminhando como um autómato e tentando pôr em ordem o meu
cérebro bloqueado. Ao contornar uma das embarcações varadas na margem, voltei a tropeçar, apesar da luz da tocha. Instintivamente, apoiei-me ao seu braço direito. Jesus parou, Dobrou o antebraço e retesou os músculos numa pura e simples reacção de ajuda evitando assim que eu caísse sobre os seixos. Ao agarrar-me ao seu braço pude captar sob a túnica a dura massa dos bíceps, braquial e supinador. Longo esforço. Obviamente aquilo não era um fantásma momentâneo João Marcos continuava adormecido. E o Ressuscitado, depois de acariciar os cabelos revoltos de João Marcos, foi sentar-se junto à fogueira, de frente para o lago. Eu, sem poder libertar-me daquela sensação de solenidáde, a um metro dele, permaneci uns instantes de pé, contemplando o monte das chamas, obedeci ao meu coração. Finalmente, com um nó na gargamta, imitei-o, sentando-me a seu lado. Tinha a vista perdida nas distantes luzes do yan. Parecia esperar. Durante algum tempo – que podiam significar os minutos naquela situação – não me atrevi a interromper os seus pensamentos. Dobrou as pernas. Envolveu-as com os longos braços e, descansando o queixo em mim, inspirou profundamente. De seguida, fixando o olhar, exclamou: - Obrigado pelos vossos sacrifícios! Espantado, olhei-o fixamente. Sorriu com uma leve sombra de amargura e, compreendendo a minha perplexidade, acrescentou: Sabes bem a que me refiro. A vossa decisão de conhecer a verdadeira história do Filho do Homem não é fruto do acaso. Estes – e com a mão esquerda apontou as embarcações do yam. de hoje, acabarão por alterar involuntariamente a minha mensagem... Estúpido que fui! Em vez de lhe permitir que aprofundasse tais reflexões, decidi-me a intervir, interrompendo-o: - Mestre, eu sou um cientista. Como poderei compreender e transmitir a tua ressurreição? Tu estavas morto... Jesus cedeu com benevolência à minha indagação. Levantou o rosto para as estrelas e, a meia voz, comentou com firmeza: - Há realidades que dificilmente poderão ser provadas pela ciência ou
pelas deduções da pura razão. Ninguém pode conceber tais verdades enquanto permanecer no domínio da experiência humana. - Quando tiverdes terminado cá em baixo, quando tiverdes completado o vosso tempo de prova na carne, quando o pó que forma o tabernáculo mortal for devolvido à terra donde provém, então, só então, o Espírito que nos alimmenta, que foi Deus que volo concedeu e a tua pergunta ficará plenamente satisfeita. - Então – insisti eu sem ocultar a minha incredulidade -, é verdade que a morte é apenas uma passagem? - Tão natural e obrigatória como a calma que sucede à tempestade. - Mas os homens de ciência não crêem... Desta vez foi Ele quem se adiantou à minha exposição. - A corrente de ferro da verdade, que vós qualificais de invariável, mantém-vos cegos num círculo vicioso. Tecnicamente pode ter-se razão nos factos e, no entanto, estar-se eternamente equivocado na Verdade. E, esboçando um imenso sorriso, acrescentou: - Eu sou a Verdade. Tocaste-me e agora vês-me e ouves as minhas palavras. Porque continuas a duvidar? O facto de não a compreenderes não significa que essa realidade superior seja uma quimera ou o fruto de mentes visionárias. Quando chegar a tua hora, os meus anjos ressuscitados despertar-te-ão num mundo que nem sequer podes imaginar... - Os teus anjos ressuscitadores? O Mestre apontou para as estrelas. Julguei compreendê-lo. - Tu, querido amigo – continuou sem deixar de observar o brilhante firmamento -, à tua maneira, já respondeste a essa pergunta: no meu Reino há muitas moradas... E uma delas é passagem obrigatória para os mortais que procedem dos mundos evolucionários do tempo e do espaço. - E tu, também foste ressuscitado? - Não, meu filho – e a sua voz encheu-se de ternura. - Acabo de dizer-te que eu sou a Vida. Os meus anjos, não a meu pedido
dispúséram já do meu invólucro carnal. Mas o poder de ressuscitar, no Espírito, é um dom que devo apenas ao Pai. Um dia, quando fores para o outro lado, compreendê-lo-ás. Desculpa a minha rudeza. O Mestre envolveu-me no seu olhar cálido animando-me a prosseguir: - Se não entendi mal, nenhum dos seres humanos tem o poder de auto-ressuscitar-se... - É verdade. No entanto, podeis desfrutár de soberana verdade que ninguem mesmo ninguém, perde esse direito. Todos, como aconteceu comigo, despertareis para uma vida qué é apenas o princípio de uma longa caminhada para o Paraíso. Uma continuada ascensão para o Pai Universal. Uma viagem... sem retorno. As palavras de Jesus – taxativas – não davam lugar ao menor resquício de dúvida. - Que queres dizer com isso de que os teus anjos apenas dispuseram do teu invólucro carnal? - Já to disse, mas, na tua perplexidade, não ouves as minhas palavras. Reconheço-o. A sua presença tinha-me transtornado. A minha limitada inteligência não fazia mais que dar voltas em torno da realidade física daquele corpo, surgido do nada. Suponho que, no fundo, era inevitável e até lógico que tal acontecesse. Não era assim tão simples sentar-se junto de um ressuscitado e dialogar como se tal coisa... - Eu sou a Vida! Em verdade te digo que nenhuma das minhas criaturas pode devolver-me o que é meu e que só compartilho com meu Pai. Os meus discípulos, e a maioria dos homens dos tempos vindouros, associaram e associarão a maravilhosa realidade do regresso à vida eterna e espiritual com o mero desaparecimento do meu corpo terrestre. Enganam-se. A desintegração desse invólucro carnal foi um fenómeno posterior à minha verdadeira ressurreição. Um fenómeno necessário fruto do poder dos meus anjos. , Com o passar do tempo – relembrando estas frases do Mestre – creio ter chegado a compreender o seu significado. O desaparecimento do cadáver era absolutamente necessário e conveniente. Por um lado se não fosse assim, os judeus nem sequer se teriam colocado a
hipótese,de um Cristo ressuscitado. E nesse caso, como diz Paulo, a nossa fé seria vã. Por outro lado, os restos mortais do Filho do Homem teriam acabado por converter-se num motivo de lógica veneração dos seus seguidores, com os riscos de uma quase idolatria, ou mórbida adoração, totalmente contrárias à mensagem do Rabi. - Desintegração? Toda a gente pensa que o desaparecimento do corpo foi um milagre... Durante alguns instantes permaneceu com o olhar fixo na mágica dança das chamas. Pensei mesmo que não teria ouvido as minhas palavras. - A ti posso dizê-lo – sussurrou por fim. - Os milagres, tais como os concebem muitos seres humanos, não existem. O poder de meu Pai é tão grande que não precisa de alterar a ordem do criado. O verdadeiro milagre é a vossa cega crença nos milagres. - Continuo sem entender. Esse cadáver esfumou-se... Jesus sorriu, infundindo-me confiança. - Será que os teus anjos conhecem uma técnica...? - Tu o disseste. Mas, tal como acontece com o vosso código moral , o dessas criaturas às minhas ordens também não deve ser violado. Sei que compreendes isso. Não é o lugar nem o momento para o fazer. - Desculpa a minha curiosidade. Essa técnica tem alguma coisa a ver com a manipulação do tempo, que nós próprios estamos a utilizar? O sorriso acentuou-se. Foi a melhor das respostas. E num cálido tom de censura, acrescentou: - Quando compreendereis que o tempo é apenas a imagem em movimento da eternidade? Que mais precisais para considerar que o espaço é apenas a sombra fugaz das realidades do Paraíso? Orgulhais-vos das vossas descobertas e pensais que a Verdade absoluta está ao vosso alcance. Não compreendeis que sois como crianças recém-chegadas a uma ordem imensamente antiga e inconcebivelmente sábia. - E tu, Mestre, que lugar ocupas nessa ordem?
- Sou um Filho Criador. Mexi com a cabeça, dando-lhe a entender que não conseguia acompanhállo. - Não queiras captar o que ainda é invisível aos teus olhos de mortal. Bastar-te-á a fé na existência do Pai. Muitas das minhas criaturas, apesar de terem passado a barreira da morte, também não estão preparadas para enfrentar, cara a cara, a luz ofuscante do Pai Universal. Uma torrente de perguntas começava a inundar o meu coração. O Pai? A morte? Aquelas outras criaturas?.. - Tudo parece tão simples!... Falas da morte sem medo... No entanto, nós... - Vós empenhais-vos a apagar a luz que lateja em cada um dos corações e que lá foi depositada, precisamente para vencer o medo. Se os homens escutassem a sua própria voz, ninguém temeria essa passagem. Porque creis que voltei? Não me deixou responder. ...É preciso que uns poucos me vejam agora para que muitos outros aprendam a olhar para si próprios. A morte, meu filho, é apenas uma pórta. Não temais atravessá-la. - Alguns seres humanos – reagi timidamente – temem mais a incógnita do depois da morte que o facto físico da mesma... - Esses – apressou-se a intervir -, no escandaloso troar das suas dúvidas, silenciam a íntima e sábia voz das suas consciências. Deixai que seja ela a guiar-vos. Tudo, na criação de meu Pai, está meticulosa e – misericordiosamente posto para vosso bem – Ninguém morre. Nada morre. Tudo é um contínuo progresso para o Paraíso. E nem sequer é o fim... - Mas as religiões e algumas Igrejas pregam a salvação e a condenação... Foi a única vez que o seu rosto se endureceu. - Não meças o nosso Pai Universal com a bitola dos homens, nem
confundas a religião da autoridade com a do espírito. Um dia todos os mortais compreenderão que só o caminho da experiência e da procura pessoal da chispa divina é que alimenta cada um de vós. Enquanto as orações não evoluírem, o mundo assistirá a essas cerimónias religiosas, mas supersticiosas, tão características dos povos primitivos. Enquanto a Humanidade não alcançár um nível superior, reconhecendo assim as realidades da experiência espiritual, muitos homens e mulheres preferirão as religiões autoritárias, que só exigem o assentimento intelectual. Essas religiões da mente, apoiadas na autoridade das tradições religiosas, oferecem um cómodo refúgio às almas confusas ou assediadas pelas dúvidas e pela incerteza. O preço a pagar por essa falsa e sempre provisória segurança é o fiel e passivo assentimento intelectual às suas verdades. Durante muitas gerações, a Terra acolherá mortais tímidos, temerosos e vacilantes que preferirão esse tipo de pacto. E eu digo-te que, ao unirem os seus destinos ao das religiões da autoridade, porão em perigo a sagrada soberania das suas personalidades, renunciando ao direito de participar na mais apaixonante e vivificante de todas as experiências humanas: a busca pessoal da Verdade e psíquica... - E que representa essa busca pessoal? Aquele Homem abriu os braços e, mostrando-me as luzes do lago, a infinita beleza do firmamento e o crepitar do fogo, sentenciou vibrantemente: - E tu, embarcado que estás nessa apaixonante aventura, perguntas-me isso? Que dizes de todas as gerações que acompanham as vossas descobertas? Não valeu a pena? Guardei silêncio. Uma vez mais Ele tinha razão. ...As descobertas intelectuais, meu amigo, constituem sempre uma aventura e um risco. Mas só os audazes, os que obedecem ao seu próprio eu, têm capacidade para enfrentar isso. Só esses, os autênticos pesquisadores da Verdade, sabem explorar resolutamente e sem medo as realidades da experiência religiosa pessoal. Tu próprio e teu irmão estais a experimentar a suprema satisfação do triunfo da fé sobre todas as intelectuais! Agora, com a ajuda do tempo e daquela perspectiva, a minha
estranheza parecia-me ridícula. Agarrado ainda ao pesado lastro do material, a directa alusão a Eliseu, assim como a familiar fórmula com que o venho designando (meu irmão), deixou-me perplexo. O poder daquele Ser era, simplesmente, absoluto. ..E essas vitórias, único objectivo da existência humana, só conduzem a uma busca pessoal de nós que todo o homem que se empenhe nessa suprema aventura, encontrará meu pai no mesmo no meio do desalento das dúvidas. A religião do espírito significa luta, conflitos, esforço, amor, fidelidade e progresso. O dogmatismo, pelo contrário, exige apenas dos seus fiéis uma parte ínfima desse esforço. Não esqueças, Jasão, que a tradição é um caminho fácil e um refúgio seguro para as almas tíbias e receosas, incapazes de enfrentar as duras lutas do espírito e da incerteza. Os homens de fé viajam sempre pelos difíceis oceanos à procura de novos horizontes; os submissos limitam-se a navegar junto à costa ou fundeiam as suas inquietações ao abrigo de portos limitados impróprios para navios que foram construídos para corajosas e longínquas navegações. - Essas palavras – repliquei sem poder conter-me, - no meu tempo levar-te-iam de novo à morte. - Não te esqueças de que a minha passagem pelo mundo será sempre motivo de divisão e de confronto. Interrompeu de novo. - Diz-me! Que deve fazer um homem que deseja encontrar a verdade? - Também tu não compreendeste a minha mensagem? Uma onda de vergonha fez-me baixar os olhos. Mas aquele Homem passou logo o braço esquerdo sobre os meus ombros obrigando-me a aguentar o seu olhar. O contacto daquela mão agarrada firmemente ao meu ombro, foi como que uma descarga eléctrica. - Confiar no nosso Pai. Só isso. Em cada manhã, em cada momento da tua vida, põe-te nas Suas mãos. Luta fraternidade entre os homens, luta pela tolerância e pela justiça. Luta em prol dos mais fracos. Ele encarregar-se-á do resto. - O Pai! - exclamei, contagiado pelo seu entusiasmo. - Deve ser um grande tipo! A minha prosaica definição fez rir o Homem. As suas
reacções, como ia verificando, eram tão «humanas» e naturais como as de qualquer mortal. Uma loucura! Tomando um punhado de areia estendeu a mão, mostrando-me os grãos escuros. - É tão sem medida – replicou lenta e pausadamente – que mede os mares na concha da sua mão e os universos na distância de um palmo! Ele quem está sentado na órbita da Terra, quem estende os céus como um manto e os ordena para que sejam habltados. Mas não confundas: Deusro símbolo verbal, que designa todas as personalidades da divindade... Jesus pegou na minha mão direita e, deitando nela o punhado de areia, insistiu em algo que já tinha comentado: - Nu caso que esqueças que a morte desse Deus, do noso Pai, entrou em ti há muitos anos. - Qüando? - Digamos, para simplificar, que no momento em que tomaste a tua primeira decisão moral. - Entãoeu sou Deus? - Tù o disseste. E a partir de hoje, procura-te no mais íntimo da tua alma. A curiosidade consumia-me. E deixando-me levar pelo mais infantil dos impulsos, perguntei-lhe de chofre: - Como te chamas? O Ressuscitado não iludiu a pergunta. Ele sabia que eu não me referia ao seu nome na Terra. Observou-me com ar divertido e, dirigindo o indicador esquerdo para as estrelas, exclamou: - No meu reino, as minhas criaturas conhecem mepor Micael. - E porque não adoptaste esse mesmo nome na Terra? O mestre parecia divertir-se com aquelas pueris perguntas. Sorriu de novo e a dentadura branca e perfeita iluminou-se com o resplendor das chamas. - De início, por meu expresso desejo, nem eu próprio tomei consciência de quem era aquele jovem de Nazaré. Assim o exigia a minha experiência entre os humanos evolucionários do tempo e do
espaço. Só uns tantos, muito chegados a Micael, souberam deste segredo e o guardaram ciosamente. Não saía do meu assombro. Santo Deus! Era tanto o que eu ignorava sobre aquele Homem!... - O meu nome na Terra tinha de ser outro. - Satisfeito? - Então tu, durante a tua infância e juventude, nunca soubeste... Negou com a cabeça. - E quando...? - Isso, querido Jasão – replicou divertido -, é uma coisa que devereis descobrir vós próprios... na devida altura. Agora já sei. Mas naquele momento nem sequer o imaginei. Jesus de Nazaré referia-se à nossa terceira e fascinante aventura, durante a qual teríamos, de facto, a extraordinária oportunidade de conhecer os pormenores de tão decisiva mudança na personalidade do Filho do Homem. - Porque falas da minha experiência entre os humanos? - E que outra coisa posso dizer? Insisti, perplexo. - Experiências? Só isso? - Na tua opinião – perguntou por sua vez -, como deveria qualificála? - De desperdício – retorqui sem dar-lhe tempo para replicar. - Um puro desperdício, se mo permites, desnecessário e, a julgar pelos resultados próximos e futuros, catastrófico. - O Soberano Criador deste universo interveio, abandonando momentaneamente o seu acolhedor sorriso. - também faz a vontade do Pai. Uma vez satisfeita a minha sede de conhecimento dos humanos, pude abandonar o mundo e receber do Pai Universal o definitivo reconhecimento da minha soberania. Mas, como te digo, não era essa... a vontade do Pai. Estas palavras foram para mim confusas, Enigmáticas. Desde quando o Criador tem necessidade de conviver com as suas criaturas
para Ele aprender num mundo como este. A que tipo de experiência se referia? Que entender por aquele definitivo reconhecimento da sua soberania? - Por onde começar. Queres – como o Pai pôde – desejar para ti uma morte tão cruel e sanguinária? Pôs-se de pé. Por de trás dos cerros de Kursi e Hipos começava a clarear. As tochas continuavam a oscilar no lago. Atirou um molho de lenha para a fogueira e, com um leve gesto de cabeça convidou-me a caminhar com ele. Tomou a direcção da foz do Jordão e, devagar, afastámo-nos do pequeno João Marcos. Durante alguns metros não disse nada. Cheguei a pensar que se tinha esquecido da minha pergunta. De súbito, com especial ênfase, falou assim: - Antes da minha encarnação na Terra, os homens podiam crer num Deus colérico, sedento de justiça. A sua ignorância era perdoável, agora revelei-lhe um pai misericordioso que só conhece a palavra amor. - Crês então que um pai pode desejar essa morte a seu filho? - A Sua võntade era que eu permanecesse no vosso mundo até ao fim e esgotasse o cálice que todos os mortais, por sua natureza, beberam e beberão com partilha e foi para vos demonstrar que a fé em Deus nunca é estéril. Sei que, apesar das minhas palavras, muitos dão outro sentido à minha morte na Cruz. Eu não vim ao mundo para saldar uma suposta velha dívida dos homens para com Deus... Parei. E Jesus, adivinhando a minha surpresa, acrescentou: - Sei o que estás a pensar. Enganas-te e enganam-se todos os que assim pensam. O Pai celestial jamais poderia conceber a grave injustiça de condenar uma alma pelos erros dos seus antepassados. - Então, essas ideias dos cristãos sobre a redenção pela Cruz... O Mestre pousou as suas mãos sobre os meus ombros, transmitindo-me a sua compreensão. - A tendência para o vício pode ser hereditária. O pecado,pelo contrário, não se transmite de pais para filhos.
O  pecado é úm acto consciente e deliberado de rebeldia contra a vontade do nosso Pai Universal e ir contra as leis do filho. Toda a ideia de resgate ou expiação é, por conseguinte, incompatível com o conceito de Deus. O amor infinito do nosso Pai ocupa o primeiro lugar dentro da natureza divina. Em verdade te digo, Jasão, que o sentido de salvação pelo sacrifício está arraigado no egoísmo. Sei que a vida de serviço e o conceito mais elevado da fraternidade entre os crentes. E dir-te-ei mais: a salvação é crer na paternidade de Deus, a maior preocupação dos fiéis do reino não deveria ser o seu desejo egoísta de salvação pessoal, mas sim a necessidade de amar os seus semelhantes acima de si mesmos. Os autênticos crentes não se preocupam com o possívél futuro castigo de seus erros. Interessam-se tão somente pelo restabelecimento do contacto com Deus. Por certo, um pai pode castigar os seus filhos, mas fá-lo por amor e com um fim e um sentido puramente disciplinares. - Logo, há um castigo futuro... - Mas não como tu o imaginas. O nosso Pai é amor. E o amor é contagioso e eternamente criador. Crês que não existem outros meios melhores que o castigo para corrigir os erros das limitadas criaturas mortais? Antes de eu ter vindo a este mundo (mesmo antes de o ter criado), todos os mortais do reino dispunham já da salvação. O nosso Pai, repito-to, não é um monarca ofendido, severo e implacável, cujo principal prazer consista em detectar e perseguir as criaturas que agem na obscuridade ou no pecado. A simples ideia de um resgate ou expiação colocaria a salvação num plano de irrealidade. Este conceito é puramente filosófico. A salvação humana é inegável e baseada em dois únicos princípios: Deus é nosso Pai e, consequentemente, todos os homens são irmãos. Custava-me a aceitar tão béla utopia. E sem dissimular o meu cepticismo perguntei-lhe: - Quando é que isso acontecerá? Quando desaparecerão amaldade e a injustiSa? - Só há um caminho: o amor. O amor disssolve o pecado e as fraquezas humanas. Ama os teus semelhantes, Jasão! Ama-os na penúria e na riqueza! Ama-os mesmo quando penses que eles estão
enganados! Ama-os, simplesmente! Suponho que perdi a noção do tempo. Ouvi-lo era muito mais que aprender: era viver, sentir e palpar uma nova realidade. Uma realidade que eu ignorava. E com as primeiras claridades regressámos para junto da fogueira. João Marcos tinha desaparecido. Não dei atenção de maior à repentina ausência do benjamim. Jesus também não fez qualquer comentário. A aurora, rápida e alaranjada, obscureceu as estrelas, despertando o Kennereth. As suas águas, primeiro acinzentadas, foram esverdeando e, quase simultaneamente, as embarcações apagaram as suas luzes. Na costa oeste, entre Hamat e Migdal, uma compacta bruma ocultava as escarpas, das quais começavam a escapar brancos e alvoroçados bandos de gaivotas. O yam retomava o seu ritmo quotidiano, animado pelas longínquas vozes dos pescadores. Quando já amanhecia, estava Jesus na margem... A frase de João, no seu evangelho, pôs-me num alerta total. A aparição oficial aos seus íntimos não tardaria a verificar-se. Mas o Ressuscitado, absolutamente tranquilo, não parecia prestar atenção às obscuras embarcações que deslizavam a cerca de uma milha, em frente da desembocadura do Alto Jordão. Dali, pelo menos para mim, era impossível distinguir os barcos de Pedro e Tiago. O Mestre avivou o fogo e, durante uns dois minutos, ficou de cócoras, absorto na dança das chamas. A luz nascente daquela sexta-feira e a reverberação do fogo iluminaram uma pele bronzeada, exactamente igual à que tinha em vida. Mas como falar de vida ou de morte? Para alguém que ignorasse os horríveis acontecimentos ocorridos duas semanas antes, e que contemplasse o Rabi naqueles precisos instantes, teria sido difícil de aceitar que se tratasse de um homem morto e sepultado. O meu cérebro rebelou-se pela enésima vez. No entanto, passados alguns segundos tive de render-me à evidência. Aquele corpo também dava sombra! E mais: num dos movimentos das chamas, uma baforada de
fumo apanhou-o de surpresa (?). Instintivamente, esbracejou, tentando dissipá-la. Mas o fumo, implacável, penetrou-lhe na garganta e provocou-Lhe a tosse. Jesus ergueu-se e como a coisa mais lógica e natural (?) do mundo, apressei-me a ajudá-lo, dandolhe repetidas palmadas nas largas costas. O Mestre afastou-se da fogueira e, tendo-me piscado um olho, caminhou para a margem. Agora, sinceramente já não sei o que pensar. Se era capaz de ler as minhas dúvidas e pensamentos, devo atribuir este pequeno e significativo incidente à mera casualidade ou ao seu desejo deliberado de dissipar as minhas incertezas? Depois vi que se descalçava. Abandonou as sandálias sobre a areia e como uma criança, levantando a túnica com a mão direita, foi entrando pela água dentro, chapinhando e brincando com a esquerda. Acompanhei-o com a vista, entre atónito e emocionado. Aquele menino grande, capaz de sentir prazer com o simples tocar na água, era o Jesus de Nazaré que eu conhecera. Subitamente, talvez ao pisar em falso, começou a oscilar. E o seu robusto corpo, tendo-se desequilibrado, acabou por cair de costas, agitando as águas em redor. Corri em sua ajuda. Mas, ao chegar à margem, o Mestre, sentado no fundo e com a água pelo estômago, voltou-se para mim e, entre sonoras gargalhadas, com o seu habitual bom humor, gritou-me, feliz: - Estou a ficar velho! Julguei enlouquecer. O seu comportamento – incluindo a aparatosa queda – era tão natural que ninguém, em seu juízo perfeito, poderia acreditar no que eu estava a presenciar. (Por vezes, quando acordo a meio da noite, muitas daquelas cenas agitam-se na minha memória e tenho dificuldade em discernir se, de facto, se trata de um sonho... ou da realidade.) Tirando partido do incidente, o Mestre  permaneceu uns minutos na água. Refrescou o rosto e, deitando a cabeça para trás, fechou os olhos, saboreando aqueles primeiros e mornos raios de sol. De repente, reparei nas suas sandálias. Agachei-me e, pegando numa delas, examinei-a atentamente. Pareciam as mesmas de sempre, com uma já gasta sola de matéria vegetal prensada e as tiras de couro que serviam para prendê-las aos dedos. Levantei a vista. Jesus
continuava com as mãos apoiadas no leito do yam recebendo a cálida bênção de um novo dia que prometia ser tão quente como o anterior. P Como um ladrão, aproveitando o momentâneo ensinamento de Jesus aproximei a sandália do nariz e cheirei-a. Não havia dúvida: mantinha o odor característico destas peças de calçado, um misto de suor e de terra. Um tanto envergonhado pela minha insaciável desconfiança, pu-la ao pé da outra e regressei para junto do fogo. Jesus, de pé, com a túnica de lÌnho gotejando, ficou alguns instantes a perscrutar o horizonte. Alguns dos barcos aproavam já para Saidan. O grande momento aproximáva-se. Prudentemente, retirei-me para as escadas que davam acesso à casa dos Zebedeus. Dali, a meio dos degraus, dominava-se toda a praia. Jesus regressou à costa. Calçou-se e de pé junto à fogueira, ficou de costas para mim, a observar o avanço das embarcações. Aquela parte do litoral continuava deserta. O Mestre afastava-se de vez em quando da fogueira, dando pequenos passeios junto à água. Pouco antes das seis horas, muitos dos barcos passaram diante da praia, vogando rapidamente para o embarcadouro da aldeia. Não reconheci nenhum dos discípulos. Atrás, a algumas centenas de metros, avistavam-se outros barcos. Forcei a vista, procurando descobrir a silhueta de Pedro. Impossível. De súbito, lembrei-me de que não tinha alertado o módulo. Activei o microtransmissor e, de acordo com o planeado, dei início à transmissão de sinais – via laser -, comunicando a Eliseu a minha posição e a iminência da operação. Ajustei os crótalos e, poucos minutos depois respondendo ao código de impulsos electromagnéticos, o berço catapultou um dos olhos de Curtiss, que voou lesto e convenientemente oculto pela radiação IR, até se imobilizar a pouco mais de quarenta metros sobre o yam e a curta distância da fogueira. Parece incrível. Mas, tal como aconteceu, assim o devo registar neste apressado diário. Tornando-se estacionário sobre as águas, consoante as ordens do meu irmão, a pequena e invisível esfera
começou a transmissão de imagens e sons. Pois bem, nesse preciso instante o Ressuscitado levantou a vista em direcção ao olho de Curtiss. Tanto Eliseu como eu estamos convencidos de que a sua presença foi captada pelo Mestre. Durante alguns segundos observei-o com preocupação. Foi então, ao seguir os seus movimentos com as lentes especiais, que notei algo que me deixou novamente confuso e que já tínhamos detectado na sua última aparição, no Cenáculo. Um ser vivo – sempre que a sua temperatura corporal esteja acima de zero absoluto – emite uma radiação infravermelha, cujas tonalidades variam consoante o grau de calor acumulado ou libertado das suas diferentes áreas. No entanto, o corpo de Jesus, quase não irradiava calor. Devo registá-lo. Era como se carecesse de fluxo sanguíneo. É absurdo, sei-o bem. Além disso, eu tinha tocado num dos braços e não me dera conta de nada de anormal. Um corpo sem aparelho circulatório? A minha inteligência negou-se a admiti-lo. Mas a visão através dos crótalos não mentia... Às seis e meia daquela sexta-feira 21 de Abril, as duas embarcações aproximaram-se finalmente da costa de Saidan. Eram eles! Jesus, atento às manobras dos remadores, afastou-se da fogueira. (O posterior visionamento das imagens captadas pelo olho de Curtiss permitiria reconstituir as palavras e gestos que trocaram entre si, difíceis de captar do lugar onde me encontrava.) A pouco mais de cem metros da orla, o primeiro dos barcos – capitaneado por Simão Pedro – afrouxou a marcha. Alguns dos remadores repararam então no homem que parecia esperá-los perto do lume. Houve uma breve troca de palavras. Simão e André insistiam com os seus companheiros, assegurando que devia tratar-se de algum dos habituais compradores de peixe de Nahum ou Tarichea, que viera recebê-los. O sais resmungou uma das suas irreproduzíveis imprecações. A pesca, evidentemente, tinha sido um completo fracasso. Tomé, talvez por causa do seu defeito na vista, aventou a hipótese de se tratar do jovem João Marcos. A sugestão foi rejeitada por entre dichotes e zombarias. De facto, aquele homem era muito mais alto.
Curiosamente, ninguém chegou a identificar o Mestre. Quando o barco se encontrava a pouco mais de cinquenta metros, Jesus levantou o braço esquerdo e, dirigindo-se aos pescadores, gritoulhes: - Rapazes! Pescastes alguma coisa? Simão Pedro com um gesto severo, respondeu-lhe com um seco e lacónico não. Cheguei a temer que a sua resposta viesse acompanhada de alguma das suas menos polidas expressões. João Zebedeu levantou-se e, pegando numa das pedras lisas, preparou-se para fundear a embarcação. Mas, dez ou quinze segundos depois daquele curto diálogo, o Ressuscitado dirigiu-se de novo à tripulação e, apontando para estibordo, ordenou com voz forte: - Lançai a rede à direita do barco... e encontrareis peixe! O Zebedeu olhou para o sais. Este, voltando a cabeça para o ponto indicado pelo desconhecido, inspeccionou a superfície das águas. Os restantes remadores fizeram o mesmo. Na zona apontada verificava-se um intenso borbulhar. Logo depois, a estibordo, a superfície do yam agitava-se perante o súbito aparecimento de um cardume. Pedro, esquecendo o homem da praia começou a vociferar e a gesticular, avisando os ocupantes do segundo barco da proximidade do peixe. João Zebedeu deixou a âncora e, juntando-se aos remadores, dirigiu o barco rumo ao cardume. Jesus continuava atento às evoluções dos amigos. A escassa distância da espumejante mancha, com admirável precisão, as embarcações atracaram uma à outra. Os remadores sentados a bombordo e a estibordo de cada um dos barcos retiraram os remos, mantendo ligadas as respectivas amuradas. Simão tomou o comando de ambas as companhas e em simultâneo, cadenciadamente, os quatro remadores livres foram dirigindo os barcos para o cardume. O jerem foi disposto a cavalo entre ambas as embarcações. A um grito do sais, quando se encontravam a três ou quatro metros da mancha, os que seguravam as bordas soltaram as respectivas pegas, proporcionando vários e fortes impulsos ao barco contrário. E, logo depois, iniciaram a manobra de cerco. Assim que os barcos se distanciaram, os homens, agora libertos dos remos, arriaram a
rede, envolvendo os peixes saltitantes. Aquele sistema de pesca – denominado entre os galileus como shavaq qosiv – era de facto uma técnica bastante mais complexa que a que eu estava a presenciar (uma espécie de método combinado) na qual, além do jerem, se costumava utilizar também o ambatan. Para tanto, logicamente, eram necessárias no mínimo três ou quatro embarcações. Velozes e precisos, os barcos lançaram o jerem, traçando um círculo. Ao atracarem um ao outro, oito dos dez homens, entre gritos de entusiasmo, apressaram-se a recolher a rede, arrastando a bolsa para as popas das embarcações. Muitos peixes pressentindo o perigo, saltaram por cima das bóias do jerem, pondo-se em fuga. (Se contassem com uma terceira e uma quarta embarcações, o ambatan, estendido à volta das bóias teria evitado a fuga do peixe.) Mesmo assim, a julgar pelas manifestações de espanto e pelas exclamações de júbilo das tripulações, a captura terá sido muito fora do comum. É meu dever anotá-lo aqui e agora: não creio, em absoluto, que aquela pesca possa ser qualificada de milagrosa. Qualquer observador médio colocado no litoral poderia ter detectado o cardume que fazia espumar a superfície do yam. Objectivamente falando, Jesus limitou-se a assinalar uma mancha de peixes que, a partir dos barcos, talvez tivesse passado despercebida. Depois – já se sabe -, com o passar do tempo, aquele facto, totalmente fortuito, foi deformado e guindado à categoria de pesca milagrosa. Basta reler atentamente o que foi escrito por João - testemunha presencial – para deduzir que o acontecimento em questão nunca foi considerado como extraordinário, no sentido sobrenatural da palavra. Ao episódio viria a ser retirada importância – a nível dos exegetas e estudiosos bíblicos – por causa de uma outra pesca, mais ou menos semelhante, narrada por Lucas (5,1-8) e situada pelo evangelista muito antes da morte de Jesus de Nazaré. Mas dessa outra pesca ocupar-me-ei a seu tempo 1. O arrasto foi extremamente laborioso. Os sais esfalfaram-se, saltando de proa a popa a cada momento cobrindo espaços vazios e puxando cai bos e aparelhos até ficarem
banhados de suor. Nem é preciso dizer que Simão Pedro elevou a sua voz cantante durante toda a peleja invocando o humano e o divino de cada vez que, por um mau movimento, o jerem se detinha ou era arrastado com mais força de qualquer das popas, provocando novas fugas de tilápias. Passada meia hora, exaustos, os galileus agarraram, por fim, o saco do jerem. Tiago e o seu grupo, a partir da embarcação mais pequena, trataram de ajudar os companheiros a introduzir a rede no barco de Simão. Após repetidos e vãos esforços – em que alguns dos pescadores estiveram a ponto de cair ao lago -, Simão renunciou à manobra da carga da rede. Os remadores voltaram aos seus postos e, firmemente seguro nas respectivas popas, o jerem foi rebocado até à costa. O Mestre, visivelmente satisfeito, deu meia volta, regressando para junto da fogueira, e, cruzando os braços sobre o peito, esperou. Tiago marcou o ritmo dos remadores e, lentamente, dispuseram-se a percorrer os cinquenta ou sessenta metros que os separavam da margem. Desta vez, porém, João Zebedeu não chegou a remar, e por uma razão muito simples: ao mesmo tempo que os seus companheiros se precipitavam para os bancos e pegavam nos remos, este discípulo – muito mais intuitivo que os demais – aproximou-se de Simão, que sustinha um dos extremos do jerem, desfechando-lhe ao ouvido um rotundo e sonoro: - É o Mestre! O sais voltou o rosto para a praia procurando o desconhecido. Mas o Sol nascente ofuscou-o, prejudicando-lhe a observação. É possível que essa circunstância tivesse muito a ver com o estranho comportamento dos galileus que, como dizia anteriormente não chegaram a identificar o Mestre lá do lago. Simão fez um esgar de incredulidade, replicando que lhe parecia muito improvável que o Rabi pudesse apresentar-se ao ar livre. *1 – A referida passagem de Lucas diz assim: «Achando-se junto ao lago de Genesaré e comprimindo-se sobre Ele a multidão para escutar a palavra de Deus, viu duas barcas paradas à beira do lago. Os pescadores que delas tinham descido lavavam as redes. Subindo para uma das barcas, que era de Simão, pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra e, sentando-se, pôs-se a ensinar, da barca, a multidão. Quando acabou de falar, disse a Simão: “Faz-te ao largo; e vós lançai as redes para a
pesca”. Simão respondeu: “Mestre, trabalhámos toda a noite e nada apanhámos, mas, porque Tu o dizes, lançarei as redes”. Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe. As redes estavam a ponto de romper-se e eles fizeram sinal aos companheiros que estavam na outra barca, para que os viessem ajudar. Vieram e encheram as duas barcas a ponto de quase se afundarem. Ao ver isto, Simão caiu aos pés de Jesus, dizendo: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador!”» (Nota de J. J. Benitez.) Nisso, Pedro tinha uma certa razão. Até àquela altura – ao menos que eu saiba -, Jesus sempre tinha aparecido em lugares fechados. O caso é que, após hesitar uns momentos, o impulsivo capitão mudou de parecer. Entregou a João a ponta do jerem que segurava e perante a estupefacção dos demais, despiu a túnica e mergulhou de cabeça no lago. Os tripulantes interpelaram o mais jovem dos Zebedeus. Mas João limitou-se a encolher os ombros. Julgo que é meu dever – antes de prosseguir com a narração dos factos que vivi – fazer uma pequena observação. Se se consultar o Evangelho de João, observar-se-á que o último capítulo (21, 7) traz um pormenor, totalmente oposto ao que acabo de referir. Esse versículo assegura que quando Simão Pedro ouviu “é o Senhor”, vestiu-seporquanto estava nu – e lançou-se ao mar. Tal afirmação – que duvido muito possa ser atribuída a João – está errada. Para começar, em pleno mês de Abril, as noites no lago são ainda frescas de mais para que o dayyag ou pescador se lance nu na faina da pesca. Durante o dia é diferente. Por outro lado, mesmo aceitando a circunstância improvável de o sais se encontrar em saq ou tanga – o mesmo é dizer, nu -, nenhum bom nadador (e Pedro era-o) teria cometido a tolice de se vestir e depois lançar- se à água. Muito pelo contrário. Como entender então a absurda afirmação do evangelista? No meu fraco entender, só há uma explicação: é muito provável que, na totalidade ou em parte, o capítulo vinte e um (o Epílogo) seja um acrescento ao texto primitivo, esse, sim, obra de João. O facto é bem conhecido dos exegetas cristãos. Já em 1947, o eminente Boismard 1 observava que o citado capítulo vinte e um era uma confusa mistura de estilos em que se percebia a mão do discípulo e a de outros escritores. É como se, baseando-se em recordações nebulosas uma pena
estranha tenha procurado arredondar o texto joanino. Boismard assegura que o estilo do remendador apresenta uma suspeita semelhança com o de Lucas. Uns anos antes, em 1936, outro especialista – Vaganay – afirmava também que, por exemplo, o versículo vinte e cinco do Epílogo não era do mesmo molde que o precedente, podendo dever-se a um acrescento2. Pouco depois, estas conjecturas – que levantaram grande celeuma entre os eruditos – ver-se-iam plenamente ratificadas pelos achados permitidos pela fotografia com raios infravermelhos e ultravioletas. Tendo comprado o Códice Sinaitico, os ingleses fotografaram a última página do Evangelho de João e comprovaram, com surpresa, que, no seu estado primitivo, o referido capítulo vinte e um terminava com o versículo vinte e quatro e não com o vinte e cinco. Uma coronis rematava o texto original, com as palavras Evangelho segundo São João. Como digo, um qualquer escriba raspou estes dados, acrescentando – sabe-se lá por conselho de quem – o versículo vinte e cinco: Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se fossem escritas uma a uma, creio que o próprio mundo não poderia conter os livros que tinham de ser escritos. Uma vez que a caligrafia deste último versículo é a mesma que a dos parágrafos anteriores, os especialistas inclinam-se a crer que o acrescento se deveu à iniciativa do próprio calígrafo. Mas porquê? Tê-lo-á descoberto noutro manuscrito? Alguém lhe terá sugerido? Possivelmente, nunca o viremos a saber. Tudo isto, em suma, levou os estudiosos das diferentes Igrejas – em especial da Católica – a uma conclusão muito interessante: o capítulo vinte e um do Evangelho de João pode ter sido um acrescento. *1 – Boismard Le chapitre XXI de saint Jean. Essai de critique littéraire”, publicado em Revue Biblique (LIV pp. 473-501). (N. Do M.) 2 – Vaganay La finale du quatrième évangile, publicado na mesma Revue Biblique (-V, pp. 512-528). (N. Do M.) Será pois um precedente que arrasta consigo outra não menos inquietante questão: quantos outros acrescentos, interpolações e falsas afirmações, atribuídas a Jesus de Nazaré, terão sido camuflados nos chamados evangelhos canónicos? Para mim, um
grande número. Alguns, obviamente, de extrema gravidade. Só isso, insisto, poderá explicar os erros de João à volta do nada transcendente assunto da roupa de Simão Pedro e do não tão insignificante caso do primado... E o bom do sais - cuja devoção por Jesus estava fora de qualquer suspeita – nadou até à costa, provocando o sorriso do Mestre. É preciso, reconhecê-lo. Apesar das suas temíveis maneiras, o tosco galileu amava o seu Senhor acima dos seus amigos e parentes. Mas, mcompreensivelmente, ao chegar à orla, Simão deteve-se. Ofegante, permaneceu imóvel como uma estátua, olhando alternadamente para o Ressuscitado e para a fogueira. De início não consegui perceber o seu estranho comportamento. Atribuí-o ao pasmo – talvez ao medo -, ao achar-se cara a cara e a tão curta distância de Jesus. Mas não. Ao que parece – segundo me confessaria pouco depois -, o motivo de tão súbita paralisação foi outro. Ao ver o fogo, o temperamental galileu não pôde evitar a recordação das suas negações no pátio do palacete de Anás, E durante alguns minutos sentiu-se novamente deprimido e acobardado. Felizmente para ele, aquele negro pensamento esfumar-se-ia com a chegada dos barcos. Às sete e meia a um passo da margem, as tripulações lançaram as pedras e saltaram para a água. É curioso: nem um só se preocupou com a rede. Os nove, intrigados pelo comportamento anormal de Pedro, foram-se aproximando da praia, parando junto ao sais. Assisti ao espectáculo. Durante vários minutos, ninguém fez ou disse nada. A maioria reconheceu de imediato o Ressuscitado, e, tal como tinha acontecido comigo próprio, os rostos passaram de surpresa ao medo. Só o de João se iluminou de alegria. Houve mesmo alguns que recuaram. O silêncio era pesado como chumbo. Significativo. O Mestre, com um olhar capaz de perfurar o próprio aço, foi perscrutando cada um dos seus homens. Mas também não disse nem fez qualquer gesto. Naqueles momentos críticos João Marcos apareceu no cimo das escadas. Desceu até onde eu estava. Saudoume e com a sua costumada candura perguntou-me o que se passava lá em baixo. Mudo, esperei a sua reacção. De reflexos rápidos, não tardou a
perceber que alguma coisa estranha se passava. Acomodou-se a meu lado e, com a ajuda do indicador esquerdo, foi contando os pescadores. - Onze? Olhou-me, desconcertado. Tive de fazer um esforço para não sorrir. Reinìciou a contagem – desta vez em voz alta – e, ao obter um idêntico resultado, a sua face transfigurou-se. Pôs-se de pé e, dando um salto, exclamou fora de si: - É o Mestre! Num abrir e fechar de olhos, arriscando-se a sofrer uma perigosa queda, o benjamim voou literalmente sobre os últimos degraus, correndo como uma lebre até à fogueira. No seu maravilhoso estonteamento tropeçou nos seixos e caiu de bruços. Não sei se chegou a tocar na areia. Ao tentar erguer-se, quase de gatas, foi estatelar-se contra as pernas do Ressuscitado. Abraçou-se a elas e, entre lágrimas, soluços e um riso nervoso, repetiu uma e outra vez: - Meu Senhor e meu Mestre! No fundo a cena era tragicómica. Mais uma vez, o moço dos recados tinha-lhes ganho a partida. Os dez, atónitos, pareciam estátuas de sal. Por fim, Jesus, tomando João Marcos pelos braços, obrigou-o a levantar-se. O garoto, radiante, encostou o rosto contra o peito do Gigante. Creio que foi a primeira vez que senti uma sã inveja. Confesso-o: em mais de uma oportunidade teria gostado de imitar o filho dos Marcos. Além disso, que excelente ocasião para estudar a frequência cardíaca daquele corpo! O Mestre agitou carinhosamente os revoltos cabelos do jovem e, num tom descontraído, disse: - João, estou contente por voltar a ver-te na Galileia, onde poderemos ter uma boa conversa. Fica connosco para o pequenoalmoço. Dirigindo-se aos petrificados discípulos, ordenou-lhes: - Trazei o vosso pescado e preparai alguns peixes para o desjejum. Temos o lume aceso e muito pão. Pão? Aquilo era novo. Com efeito, para meu espanto, junto dos
restos de feixe de lenha, viam-se – meticulosamente empilhados – seis grandes e redondos pães brancos. Donde teriam vindo? Eu não me lembrava de os ter visto durante a nossa conversa. João, no seu Evangelho, não faz referência à enigmática presença do pão porque, muito possivelmente, não reparou nele ou, ao desembarcar talvez tenha pensado que alguém da sua casa o tivesse trazido para ali. O certo é que nenhum dos habitantes do casarão dos Zebedeus – nem sequer a senhora – chegou a ver o Mestre, à excepção, naturalmente, de João Marcos e dos discípulos. Ainda hoje continuo a perguntar-me como diabo terão aparecido aqueles pães na praia. A única resposta – tanto para a lenha como para os pães – é tão incrível que preferi esquecê-la... Os discípulos, animados pelas palavras do Ressuscitado, conseguiram sair do aturdimento em que tinham mergulhado e, falando em voz baixa recuaram um pouco e arrastaram a rede para terra firme. Como era diferente a atitude daqueles homens na presença de Jesus! Enquanto permaneceu junto deles não ouvi uma única imprecação, nem sequer uma palavra em tom mais alto. Pedro também reagiu. Mas, em vez de juntar-se aos seus companheiros, foi ao encontro do Rabi. Caiu de joelhos a seus pés e, abrindo os braços, exclamou com aquele grosso vozeirão que o caracterizava, quebrado agora pela emoção: - Meu Senhor... e meu Mestre! Jesus não disse nada. Ou melhor, ao sorrir-lhe e ao obrigá-lo a levantar-se retribuiu amplamente a suplicante exclamação daquele impulsivo e volúvel amigo. Depois, dando palmadas suaves e carinhosas nas costas molhadas do sais, convidou-o a concluir a sua faina. Simão foi logo para a margem, colaborando no arrasto do jerem. Aberta a rede, dezenas de tilápias e barbos estremeceram, saltando, serpeando e provocando a hilaridade, o bom humor e um ou outro desabafo, bastante contidos, dada a presença do Mestre. Tiago e Simão Pedro, como chefes de companha, procederam à classificação do pescado, por espécies e tamanhos. Além de inúmeros peixes de reduzidas dimensões, o jerem proporcionou aos galileus 135 tilápias e 18 barcos de um peso considerável. Todos eles foram cuidadosamente alinhados sobre a areia, tornando assim
mais fácil a sua contagem. Não sei se o acaso existe. Há já muito tempo que tenho as minhas dúvidas. A verdade é que, ao somar os peixes, tanto por espécies como globalmente, o dígito final era sempre o mesmo: 9. (153=1+5+3=9. 135=1+3+5=9. 19=1+8=9.) Aquela cifra (9 ou 999) trouxe à minha memória as perturbantes vinculações do 9 com a vida de Jesus de Nazaré... Os siluros – considerados impuros pela lei – foram para o yam. Algumas das tilápias eram realmente esplêndidas: atingiam os quarenta centímetros de comprimento e entre um e meio e dois quilogramas, aproximadamente. O seu predomínio relativamente aos barbos não tinha nada de singular. A melhor época para a sua pesca era justamente aquela: do Inverno à Primavera. Quando as águas do lago se tornam frias, as tilápias concentram-se em grandes cardumes, procurando refúgio e alimento na costa nordeste. A partir de Abril e Maio – com o progressivo aquecimento do yam -, estes cardumes desmembram- se e as tilápias dirigem-se, aos pares, para as desembocaduras dos rios da costa oriental, especialmente para a pequena enseada do Zaji. Os pescadores mudavam então a sua técnica, utilizando outro tipo de rede: a gela (um aparelho individual de seis a oito metros de diâmetro, actualmente conhecido por tarrafa). Se a aparição de Jesus se tivesse registado umas semanas mais tarde, aquela volumosa pesca não teria sido possível. João Marcos, agarrado ao braço direito do Mestre mostrou-se encantado com a captura. Puxou Jesus ao longo das filas de peixes, manifestando o seu regozijo diante dos mais vistosos. Ao chegar junto de uma das tilápias – uma fêmea, a julgar pela sua cor cinzento-pardo – o Ressuscitado ajoelhou-se junto ao peixe, cuja boca se abria e fechava em espasmos. Pegando nela, mostrou-a a João Marcos. A tilápia defendeu-se, agitando-se. O Rabi, em silêncio, pôs a palma da sua mão esquerda sob a cavidade oral do peixe e, ante os olhos pasmados do jovem, a tilápia expeliu um punhado de minúsculas crias. (Neste tipo de peixes, após a eclosão dos ovos, as crias permanecem na boca da mãe até serem capazes de nadar e sobreviver sozinhos. Em caso de perigo são expulsos pela fêmea, voltando à cavidade oral materna uma vez passado o
perigo.) E o Senhor, enternecido, aproximou-se do lago, depositando na água a mãe e suas crias. João Marcos aplaudiu o gesto do seu ídolo. Concluída a contagem e a classificação dos peixes metade das tilápias e dos barbos (a maioria de cabeça longa, ou Barbus longiceps e de grandes escamas, ou Barbus canis) foi parar ao fundo do barco de Pedro. A outra metade ficou guardada no de Zebedeu. Duas horas mais tarde, o peixe seria vendido no cais de Nahum. Tal como estabeleciam as ancestrais leis da pesca no Kennereth, quarenta por cento do produto da venda ficaria em poder dos donos dos barcos e das redes: os Zebedeus e André e Simão Pedro, respectivamente. Os restantes sessenta por cento eram repartidos pelos tripulantes. Além do já referido, Tiago e Pedro – na sua qualidade de sais ou guias – recebiam outras duas partes cada um; os gémeos, como remendadores, uma parte e meia e, por último, os remadores e puxadores, uma só parte. Por expresso desejo do Ressuscitado João Marcos escolheu sete belas tilápias. E, enquanto os galileus procediam à lavagem das redes, o Rabi ocupou-se da preparação do lume. Escolheu uma pedra basáltica de tamanho médio, com a superfície relativamente plana, e colocou-a no meio da fogueira. As línguas de fogo retorceram-se e Jesus, sentindo o roçar das chamas, retirou os braços. Não posso assegurá-lo, mas quase juraria que chegou a queimar-se. Filipe e os gémeos, ao darem-se conta da movimentação do Mestre, vieram logo, com a boa intenção de o substituir. Mas Jesus não o permitiu. E a fogueira começou a lamber a superfície da pedra, aquecendo-a. Seguidamente, pedindo a Tiago uma das longas facas guardada na barca mais pequena, o Rabi foi para a borda do yam. Arregaçou as mangas e com destreza foi estripando e tirando a cabeça aos peixes, lavando-os depois. Tendo voltado para junto da fogueira, esperou que a improvisada grelha aquecesse o suficiente. Minutos depois, as apetitosas tilápias estavam a assar sobre a pedra escura, destilando uma suculenta gordura e um excelente aroma que, naturalmente, não passou despercebido aos famintos galileus. As redes foram estendidas ao longo da praia e, esfregando as mãos
de satisfação, todos rodearam o diligente cozinheiro. Servindo-se da longa e estreita faca, o Mestre foi controlando a assadura dos peixes, ora mudando-os de posição ora estendendo-os melhor, com o fim de extrair o máximo de gordura. Dissimuladamente, vários dos pescadores entraram um pouco no lago, urinando ao abrigo das barcas. Quando o pequeno-almoço ficou pronto, Jesus, com os olhos lacrimejantes por causa do fumo, disse aos amigos que se sentassem. Os gémeos, segundo o seu costume, dispuseram-se para servir o pão e o peixe. - Não – interveio o Rabi -, sentem-se também vocês; João Marcos fá-lo-á. E o benjamim, exultante, ocupou-se dos peixes, distribuindo-os entre os discípulos. Jesus partiu o pão, entregando-o a João Marcos e este, por sua vez, com a alegria estampada no rosto, fê-lo chegar aos pescadores. Quando todos estavam servidos o Ressuscitado ordenou ao jovem que se sentasse na areia e, pegando num pedaço de pão e de peixe, pô-lo nas suas mãos. Logo a seguir foi juntar-se junto dos gémeos, fechando o círculo. Durante cerca de dois ou três minutos, ninguém falou. A fome, creio eu, era mais forte que a curiosidade. Como sempre,  lentos de reflexos, a maioria deles não se deu conta de um pequeno e aparentemente pouco significativo pormenor. Jesus, sentado à turca, era o único que não comia. Sobre um dos pães abertos restavam ainda alguns pedaços de tilápia. Contudo, o Rabi não parecia disposto a acompanhar os amigos no desjejum. Tal facto intrigoume. Por fim, Judas de Alfeu, um dos gémeos, sempre atento às pequenas coisas dentro do grupo levantou-se e, pegando na porção que ainda restava, ofereceu- a ao Mestre. Os semblantes endureceram. Como dizia, ninguém tinha tido a delicadeza de servilo. O Ressuscitado, com ambas as mãos, acariciou a espessa barba de Judas, recusando a sua parte. Sim, era de facto muito estranho. Porque é que Jesus se recusava a ingerir alimentos? Seria porque aquele enigmático corpo não estava preparado para isso? As minhas dúvidas ver-se-iam relativamente dissipadas algumas horas depois...
O incidente adensou ainda mais o mutismo geral. Com os olhos no chão, os íntimos apressaram-se a terminar a refeição sublinhada apenas com um ou outro sonoro arroto. Naturalmente, foi Jesus quem – mais uma vez – quebrou o gelo, gracejando sobre o mergulho de cabeça de Simão Pedro e a sua já pouco estética barriga. Os risos afloraram de novo e, durante uma meia hora, entretiveram-se a rememorar velhas recordações e experiências vividas em comum, muitas delas ali mesmo, no lago. Jesus ria com gosto, absolutamente feliz. A meio da conversa descalçou a sandália direita e, com toda a naturalidade, sacudiu-a, desalojando os grossos grãos de areia que, pelos vistos, o incomodavam. Pelas nove horas a conversa decaiu e o Mestre, levantando-se, fez sinal a João Zebedeu e a Simão Pedro para que o acompanhassem. O rosto do Ressuscitado tornou-se grave. Os restantes, acostumados como estavam àquelas súbitas mudanças de atitude do Mestre, permaneceram sentados à volta da fogueira. Jesus, ladeado pelos seus homens, caminhou devagar junto à água, em direcção à foz do Jordão. A dada altura, passando o seu braço esquerdo sobre os ombros do Zebedeu, perguntou-lhe: - João, tu amas-me? O discípulo, que evidentemente não esperava semelhante pergunta, apressou-se a replicar: - Sim, Mestre!... De tódo o coração! E o Ressuscitado, perante o olhar atónito dos dois galileus, exclamou com veemência: - Então, renuncia à tua intolerância e aprende a amar os homens como eu te amei. Consagra a tua vida a demonstrar que o amor é o que há de maior no mundo. E o amor de Deus que conduz os homens à salvação. O amor é a bondade espiritual e a essência da verdadeira beleza. E voltando-se para o rude Pedro, atravessando-o com aquele olhar de falcão, fez-lhe a mesma pergunta: - Pedro, tu amas-me? O sais, com os olhos arregalados como luas, apressou-se a satisfazer o enigmático Mestre: - Senhor, sabes que te amo com toda a minha alma!
- Se me amas – retorquiu com um acento de tristeza -, alimenta os meus cordeiros... Imparável, como sempre, o pescador quis replicar, mas o Ressuscitado, tapando os lábios do galileu com a sua mão esquerda, prosseguiu: - Não regateies o teu ministério aos mais fracos, aos pobres e aos jovens. Prega o Evangelho sem temor nem preferências. Não esqueças que Deus não faz distinção de pessoas. Serve os teus contemporâneos como eu te servi. Perdoa aos homens como eu te perdoei. Deixa que a experiência te demonstre o valor da meditação e o poder da reflexão inteligente. Creio não me enganar se disser que naqueles instantes Simão mal terá entendido as recomendações do Rabi. Em especial, a última frase. Continuaram a caminhar em silêncio. Alguns passos adiante, o sais foi surpreendido por uma segunda e idêntica pergunta: - Pedro, amas-me realmente? Desconcertado de boca aberta, Pedro precisou de alguns segundos para se refazer. Por fim, em tom persuasivo, afirmou: - Sim, Senhor, sabes que te amo. - Cuida bem das minhas ovelhas – disse Ele, como se não tivesse ouvido a resposta. - Sê um bom pastor para o meu rebanho. Não atraiçoes a confiança que tenho em ti. Não te deixes surpreender pelo inimigo. Está sempre vigilante. Vela e reza! O confuso discípulo ficou imóvel, pelo que Jesus e o Zebedeu se adiantaram alguns metros. Mas o Mestre voltou-se de novo para o pescador, interpelando-o pela terceira vez: - Pedro, amas-me de verdade? Simão baixou a cabeça, entristecido. Não era muito difícil adivinhar os seus tumultuosos pensamentos. As três negações na casa de Anás, em Jerusalém, devem ter ressurgido implacavelmente no seu atormentado coração. Jesus esperou. E o sais, saltando por cima da sua tristeza, gritou sem esconder o seu agastamento: - Conheces tudo o que me diz respeito, Senhor!... Por isso, sabes bem quanto te amo!
E o Ressuscitado, autoritário, ordenou-lhe: - Alimenta as minhas ovelhas!... Não abandones o rebanho! Serve de exemplo e inspiração a todos os teus companheiros pastores!... Ama o rebanho como eu te amei! Consagra-lhe toda a tua felicidade, como eu fiz contigo! E segue-me!... Acompanha-me até ao fim! Estas recomendações foram acompanhadas de bruscos e sucessivos afirmativos de cabeça de Pedro. O Rabi preparava- se para retomar o andamento quando, noutro dos seus irreflectidos repentes, Simão apontou para João, perguntando: - Seguindo-te eu, que fará este? Jesus olhou-o com benevolência. O fogoso e primário sais não captara o sentido das suas palavras. Com infinita paciência respondeu-lhe: - Não te preocupes com o que fazem os teus irmãos. Se eu quiser que João permaneça aqui e tu partas, até que eu volte, que te importa a ti? Avançou uns passos até ficar a cerca de meio metro do galileu e, colocando as suas mãos sobre os ombros de Pedro, repetiu com firmeza: - Cuida apenas de seguir-me! É paradoxal. As palavras de Cristo seriam, uma vez mais, pessimamente interpretadas. Quase todos acreditaram que aquele até que eu volte garantia um seguro e iminente retorno do Mestre, que asseguraria assim a definitiva instalação do Reino na Terra. Alguns, incluindo Pedro, qualificaram o tema de profético, dando por adquirido que João não morreria, enquanto não se verificasse o referido retorno de Jesus. E digo que é paradoxal porque, graças a este mal-entendido, Simão, o Zelota, recuperaria a coragem perdida, reintegrando-se no grupo algumas horas mais tarde. João Zebedeu, em contrapartida, esse, sim, captou a intenção do Mestre, tendo em consideração o que ele próprio escreveu no versículo vinte e três, do último capítulo do seu Evangelho 1. Jesus deu por concluído o breve passeio, pedindo aos desconcertados Pedro e João que avisassem os seus respectivos irmãos para virem ter com ele. Eles assim fizeram. André e Tiago de
Zebedeu abandonaram o círculo e os restantes, ardendo em curiosidade, bombardearam o primeiro par com toda a espécie de perguntas. João não abriu a boca. Pedro, pelo contrário, utilizando um tom solene, pô-los a par da profecia. O mais jovem dos Zebedeus enrubesceu e, incapaz de conter o aceso discurso de Simão, limitou-se a negar com a cabeça. Mas foi uma negação tão fugaz que nenhum dos presentes a tomou em consideração. A partir dessa altura, como bem diz o evangelista, as absurdas e falsas ideias sobre a volta do Mestre e a quase imortalidade de João propagar-se-iam como o lume na palha. Muito astutamente, o sais, que lá bem no seu íntimo aspirava a liderar o grupo apostólico, silenciou a tríplice pergunta do Rabi. Aquela insistência de Jesus poderia ter levantado falatório e alguns incómodos melindres... Evidentemente, a actual imagem de Pedro, transmitida pelos seus discípulos e sucessores, dista muito da primitiva e autêntica realidade. Também André e Tiago acompanharam o Senhor pela orla do lago. Passados alguns minutos de embaraçoso silêncio, Jesus falou assim ao ex-chefe dos discípulos: - André, tens confiança em mim? O introvertido irmão de Simão parou. Possivelmente, tal como Tiago, não esperava uma pergunta aparentemente tão despropositada. E com uma calma excepcional respondeu: - Sim, Mestre, tenho absoluta confiança em ti..., e tu sabe-lo. O Ressuscitado sorriu-lhe, satisfeito. - André, se tens confiança em mim – replicou Jesus, tocando num dos graves defeitos do galileu -, tem mais confiança nos teus irmãos e, sobretudo, em Pedro... André, baixando os olhos, aceitou de bom grado a subtil reprimenda. Jesus sabia ler muito bem nos corações daqueles homens. - Primeiro – prosseguiu em tom amistoso - encarreguei-te da sua direcção. Agora é preciso que lhes dês confiança, enquanto te deixo para ir para o Pai. Quando os teus irmãos se dispersarem por causa das perseguições, sê um sábio e previdente conselheiro para Tiago,
meu irmão de sangue, já que terá de suportar um pesado fardo, demasiado pesado para a sua experiência. Depois continua a ter confiança. Não te faltarei! E por fim virás para junto de mim. Na minha humilde opinião, aquelas sim, foram palavras proféticas. *1 – O versículo em questão diz textualmente: «Correu, pois, entre os irmãos, o boato de que aquele discípulo não moreria. Jesus, porém, não lhe disse que não moreria, mas sim: Se Eu quiser que ele fique até que Eu venha, que tens tu com isso?», Estas últimas palavras, como acabo de referir, não foram ditas como as transcreve o Evangelista, ainda que o seu sentido venha a ser o mesmo. (N. Do M.)
A morte de Tiago, o irmão carnal de Jesus, verificar-se-ia trinta e dois anos mais tarde, e as sangrentas perseguições dos cristãos por Nero em 64, após o incêndio de Roma. Seguidamente, voltando-se para o frio e distante Tiago de Zebedeu, fez-lhe a mesma pergunta: - Tens confiança em mim? O duro rosto do sais não se alterou. Mas a sua voz, repousada e firme, denunciou o grande afecto que lhe dirigia: - Sim, Mestre, de todo o coração... - Tiago, se é certo que tens confiança em mim, deverias ser menos impaciente com os teus irmãos... O Zebedeu nem pestanejou. O Rabi tinha toda a razão. Mas, demasiado orgulhoso para o admitir, aguentou em desafio o olhar do Ressuscitado. - Se realmente desejas gozar da minha confiança, isso ajudar-te-á a ser melhor para com a irmandade dos crentes. A irresistível luz daqueles olhos venceu finalmente a audácia do Zebedeu, que, inclinando a cabeça, assentiu em silêncio. - Aprende a pensar nas consequências das tuas palavras e actos. Lembra-te de que a colheita é resultado da sementeira. Reza pela paz de espírito e cultiva a paciência. Com fé viva, essas graças sustentar-te-ão quando chegar a hora de beberes o cálice do sacrifício. Não temas nunca. Quando tiveres acabado na Terra virás morar junto de mim. Nova e dramática profecia: [...] quando chegar a hora de beberes
o cálice do sacrifício). Tiago viria a morrer catorze anos depois... Diferentemente de Simão Pedro nem o seu irmão André nem Tiago – demasiado impressionados pelas palavras de Jesus – aceitaram compartilhar o conteúdo da simples conversa com o Mestre. Preferiram refugiar-se num impenetrável mutismo. Em seguida foram chamados Tomé, o Didimo, e Bartolomeu. E o Ressuscitado, passando amistosamente os braços por cima dos seus ombros, afastou-se da fogueira. Que terna imagem a daquele Gigante caminhando entre os rudes e modestos galileus como o mais fiel dos companheiros! - Tomé, estás disposto a servir-me? Educado e meticuloso, o discípulo sem saber muito bem o que Ele queria dizer com pergunta tão singular, respondeu com algum receio: - Sim, Senhor... Estou disposto a servir-te agora e sempre. - Se queres servir-me – disse-lhe ao mesmo tempo que o apertava contra o seu lado direito -, serve os teus irmãos mortais como eu te tenho servido. Não te canses de trabalhar nesse sentido e persevera, pois foste destinado por Deus para este serviço de amor. Depois de terminares na Terra servirás comigo na glória. Tomé, tens de deixar de duvidar. Aumenta a tua fé e o teu conhecimento da Verdade! Se o desejares, crê em Deus como um menino, mas não actues infantilmente... E, após uma pausa, animou-o com veemência: - Tem coragem! Sê forte na fé e no reino de Deus! Tomé também não divulgou esta conversa com o Mestre. Bartolomeu (Natanael) ouviu a mesma pergunta: - Estás disposto a servir-me? - Sim. Mestre, com uma entrega total. - Se me amas de todo o coração – prosseguiu Jesus -, trata de trabalhar pelo bem-estar dos teus irmãos terrenos. Junta a amizade aos teus conselhos e acrescenta o amor à filosofia. Serve os teus conterrâneos como eu servi. Sê fiel aos homens, tal como eu velei por ti. Não sejas crítico e espera menos
de alguns homens. Assim, a tua decepção será menor. No fim do teu trabalho na Terra servirás lá em cima comigo. Aqueles breves mas acertados conselhos a cada um dos seus discípulos fez-me lembrar a despedida pessoal da chamada última ceia. Ambas as situações viriam a ser silenciadas pelos evangelistas. Quando chegou a vez de Mateus Levi e Filipe, o intendente, Simão Pedro, desarmado perante o férreo silêncio geral, foi-se apagando como uma candeia. E cada qual se ensimesmou nas suas reflexões. O brincalhão do grupo – Filipe – parecia ter perdido o seu habitual e louvável sentido de humor. Cansado e com olheiras pela noite passada no yam, deu-me a sensação de que estava quase a adormecer. - Filipe obedeces-me? - Sim, Senhor, obedecer-te-ei mesmo que isso me custe a vida. Sem poder evitá-lo bocejou ruidosamente. O Mestre, paciente para com o honesto ainda que pouco espiritual galileu, esperou que ele recuperasse uma certa compostura. Depois, apontando para oriente, disse-lhe algo que marcaria o seu destino: - Se queres obedecer-me, vai até ao país dos gentios e proclama o Evangelho. O intendente seguiu a direcção apontada pelo dedo do Mestre. No entanto, creio que não o compreendeu totalmente. O país dos gentios? A que nação se referia o Mestre? - Os profetas disseram que vale mais obedecer que sacrificar. Pela fé, conhecendo a Deus, és um filho do Reino. Só há uma lei a observar: difundir o Evangelho. Deixa de temer os homens! Não tenhas medo de pregar a boa nova da vida eterna a teus semelhantes que jazem nas trevas e que têm sede de luz e de verdade! Morto de cansaço, Filipe ouvia sem assimilar. Mas, subitamente, quando ouviu pronunciar a palavra dinheiro, despertou de imediato. - Não te ocupes mais do dinheiro – concluiu Jesus – nem das provisões. A partir de agora, tal como os teus irmãos serás livre para espalhares a boa nova. Preceder-te-ei e acompanhar-te-ei até
ao fim. Com um sorriso de alívio, Filipe voltou para junto do lume. Mateus Levi, o ex-cobrador de impostos, um dos homens mais sérios e dedicados do grupo, aguardou a sua vez com evidente curiosidade. - Mateus, o teu coração está disposto a obedecer-me? - Sim, Senhor – replicou o discípulo com serenidade -, estou inteiramente devotado ao cumprimento da tua vontade. - Então, se queres obedecer-me – ordenou-lhe o Ressuscitado - , vai ensinar a todos os povos o Evangelho do Reino. Não continuarás a proporcionar aos teus irmãos as coisas materiais da vida mas proclamarás a boa nova da saúde e da salvação espiritual. A partir de agora, o teu único objectivo será cumprir o mandamento de pregar este Evangelho do Reino do Pai. Tal como eu segui na Terra a vontade do Pai, tu cumprirás também a tua missão divina... Jesus pôs especial ênfase nestas três últimas palavras: (...) «tua missão divina». - Lembra-te de que judeus e gentios todos são teus irmãos. Não tenhas medo de nenhum homem quando proclamares as verdades salvadoras do Evangelho do Reino dos Céus. Para onde eu vou, tu virás também em breve. O último par com quem o Ressuscitado dialogou naquela manhã foi o constituído pelos dóceis e ingénuos gémeos. - Tiago e Judas – perguntou-lhes, conjuntamente -, acreditais em mim? A resposta foi imediata: - Sim, Mestre, cremos. Jesus contemplou-os com ternura. Não havia dúvida: apesar da sua reduzida capacidade intelectual, os irmãos Alfeu idolatravam-no. Sorriu-lhes e eles, contagiados por aquele imenso afecto, precipitaram-se sobre o Rabi, abraçando-o. - Vou deixar-vos muito em breve – disse-lhes com doçura e como
se temesse magoá-los. - Vedes que já o fiz fisicamente... O seu delicado tacto não evitou que os irmãos, pressentindo a partida, começassem a chorar. Comovi-me. Jesus procurou infundirlhes ânimo: - Estarei pouco tempo na minha actual forma, antes de ir para junto do Pai... A sua actual forma? Aquilo interessou-me sobremaneira. Mas o Ressuscitado evitou o interessante tema: - Creis em mim. Sois meus discípulos e sempre o sereis. Continuai a crer depois de eu ter partido e recordai sempre a vossa associação comigo, mesmo quando voltardes ao vosso antigo trabalho. Não permitais nunca que a mudança de actividade influencie na vossa obediência. Tende fé em Deus até ao fim dos vossos dias terrestres. Não esqueçais que sois filhos de Deus pela fé e que todo o trabalho honesto é sagrado para o Reino. Nada do que faça um filho de Deus pode ser desprezível. Por conseguinte, fazei agora o vosso trabalho como se fosse para Deus. Quando tiverdes acabado neste mundo - Jesus levantou o rosto para o azul do céu – tenho outros melhores, onde trabalhareis também para mim. Nessa tarefa, neste e noutros mundos, trabalharei convosco e o meu espírito viverá sempre convosco. Também aquelas frases seriam de facto proféticas. Contudo, como é lógico, eu não soube interpretá-las naquele momento. E pelas dez horas, na companhia dos gémeos, angustiados, Jesus de Nazaré voltou para junto dos seus pensativos homens. Pediu dois voluntários para irem à procura de Simão, o Zelota; com o pedido de que voltasse a juntar-se ao grupo. André e Pedro prometeram trazê-lo nesse mesmo dia. Acto contínuo, de pé, a uns dois metros do círculo formado pelos galileus, de costas para o lago, despediu-se com as seguintes palavras: - Adeus!... Até que eu volte amanhã para todos, à hora sexta, na montanha da vossa ordenação. Nem os pescadores nem nós próprios poderíamos explicar cabalmente o que se passou em seguida. As palavras não chegam
ou são supérfluas. Nem a tecnologia, nem todo o saber do século xx poderiam esclarecer como se deu semelhante desaparição. Simplesmente, Jesus – ou o que quer que fosse – deixou de estar. Aniquilou-se? Mas como? De repente, insisto, os galileus, o olho de Curtiss e eu próprio deixámos de vê-lo. Dissolveu-se sem ruído, sem deixar rasto, sem qualquer clarão e sem a implosão que, logicamente, deveria ter provocado. Absolutamente nada! Nessa tarde, quando fui ter com o meu irmão e lhe contei os incríveis acontecimentos da jornada, o assunto da possível desmaterialização da forma humana (?) do Ressuscitado levou-nos a uma longa, complexa e infrutífera discussão. Mesmo aceitando a difícil hipótese de uma aniquilação da matéria (porque aquele corpo era formado por átomos), como admitir que tal desintegração não tivesse provocado um holocausto termonuclear na zona? Se o corpo foi liquidado, seguindo um hipotético processo de fissão nuclear, o lago, por exemplo, teria desaparecido do mapa... Por conseguinte, tal desintegração não é sustentável desse ponto de vista. A partir daqui só podemos especular, invadindo o terreno da ficção científica. Terá o corpo de Jesus podido viajar a uma velocidade próxima da da luz, sem necessidade de se mover nem de emitir energia radiante, mecânica ou térmica? Para começar, deveríamos perguntarnos o que entendemos por viajar. Nós próprios, sem ir mais longe com a manipulação dos swiveis 1, estávamos a fazê-lo e de uma forma fantástica para muitos. Poderíamos imaginar uma hiperagitação, a nível atómico, que, aumentando progressivamente de velocidade, levasse cada uma das subpartículas do corpo do Filho do Homem a um processo de oscilações vibratórias com velocidades semelhantes à da luz? É difícil, sei-o bem, mas não serei eu a recusar semelhante possibilidade. Continuando com essa suposição teríamos que, no momento da conversão da matéria em luz, a massa, que iria aumentando até ter uma vez e meia o seu valor original, passaria bruscamente a zero, ao transformar-se em energia lumínica. Mas, atenção!, esta energia lumínica jamais poderia ser como a do Sol. Se fosse assim, tudo à sua volta teria ficado destruído 2.
Que espécie de energia lumínica poderia ser essa? *1 – É presumível que se produzisse uma circunstância favorável para que a matéria do corpo do Mestre começasse a vibrar vertiginosamente dentro dos seus próprios limites espaciais, e que a citada vibração alcançasse uma velocidade próxima da da propagação da luz. Em tal circunstância, a massa do corpo do Mestre perderia as suas propriedades como massa ponderável,, ao mesmo tempo que adquiriria as correspondentes a uma massa inercial de proporções semelhantes à que poderia ter alcançado aquele corpo movendo-se pelo espaço a uma velocidade próxima da da luz (precisamente a velocidade a que supostamente chegam a vibrar as suas moléculas). Os efeitos cinéticos dessa massa inercial seriam milhares de vezes superiores aos que poderiam produzir-se, considerando a massa do corpo no estado normal de vibração molecular (o estado que, em linhas gerais, qualificamos como de repouso,). A elevadíssima velocidade atingida em todas e cada uma das moléculas daquele corpo, segundo as teorias de Fitzgerald, tenderia a comprimir a matéria até fazê-la chegar a limites adimensionais, que a subtrairiam do nosso espaço, tornando-a, portanto, invisível. Nesse instante crítico, ao desaparecer o corpo de Jesus, o volume que este ocupava no espaço ficaria bruscamente vazio. O aparecimento desse vazio originaria uma formidável implosão, já que o ar que rodeava o corpo ocuparia rapidamente o vazio produzido. O efeito é semelhante ao estampido do trovão, que é produzido pelo próprio ar que rodeia a colina de vácuo produzida pela trajectória do raio quando, de todas as direcções aflui para o preencher e restabelecer o equilíbrio atmosférico. (N. Do M.) 2 – Se a energia tivesse sido semelhante à do Sol, a sua equivalência em watts – na suposição de que tivesse sido libertada ao longo de um segundo – teria sido de 81 x 10” watts; ou seja, oito mil e cem milhões de gigawatts. (Um gigawatt são mil milhões de watts.) Se a massa do corpo de Jesus tivesse aumentado uma vez e meia o seu valor original, essa energia teria atingido a monstruosa cifra de 12 150 milhões de gigawatts. Uma coisa difícil de imaginar. Como simples exemplo comparativo podemos dizer que para alcançar uma potência de 19o watts seriam necessárias milhões de lâmpadas eléctricas de cem watts cada uma. (Tal potência é maior que a fornecida actualmente por todas as centrais eléctricas norte-americanas juntas. ) Mesmo os processos de fusão nuclear encontram-se abaixo dessa descomunal cifra de 12 150 milhões de gigawatts. Actualmente, necessitam de uma potência da ordem dos 103 watts... (N. Do M.) Uma energia, além do mais, invisível ao olho humano. Como já referi, ninguém nessa ocasião, foi capaz de captar o mínimo clarão, resplendor ou luminosidade.) Sinceramente, não temos resposta. Este é um desses momentos em que a Ciência deve admitir com humildade que não conhece, não sabe, não compreende..., mas aconteceu.
Eliseu avançou uma segunda teoria. Teria o corpo desaparecido como consequência de uma súbita e maciça emissão de raios infravermelhos, ultravioletas ou de qualquer outra natureza, por cima do espectro visível É aceitável como hipótese de trabalho, ainda que tão difícil de verificar como a da possível radiação lumínica de origem desconhecida. A Operação Cavalo de Tróia estava, de resto, a utilizar a emissão IR para nos proteger e camuflar o módulo ou o olho de Curtiss. No entanto, da simples camuflagem de uma máquina à criação de semelhante fonte energética no interior de um organismo vivo vai um verdadeiro abismo... Lamentei não ter utilizado a teletermografia localizada na vara de Moisés. Talvez tivesse podido desfazer a incógnita. Mas foi tudo tão rápido e imprevisto... Nem Eliseu nem eu éramos fáceis de derrotar. Se o Ressuscitado cumprisse a sua promessa – a verdade é que sempre as tinha cumprido -, na manhã seguinte, pelas doze horas, poderíamos dispor de uma nova ocasião para passar a pente fino aquele corpo. A propósito, qual era a montanha designada para a segunda aparição na zona do lago? O termo não se ajustava à realidade. Nos arredores do Kennereth não havia uma única montanha. Quando muito, cerros, colinas e montes. Mateus, no seu Evangelho, fala de facto de um monte. Mas a pista é nebulosa: Por seu turno, os onze discípulos caminharam para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha indicado. E ao vê-lo adoraram-No; alguns, no entanto, duvidaram... (28,16-20). E a que é que Jesus se referia com o termo ordenação? Por puro senso comum imaginamos que se tratasse de algum acontecimento ocorrido durante os anos da pregação. Ao interrogar os galileus acerca da localização da referida montanha, todos apontaram o Norte de Nahum. Os gémeos, mais explícitos, indicaram – pelo menos foi o que pareceu – a direcção do suave promontório em que estava implantado o berço. A coincidência manter-nos-ia em suspenso. Com efeito, se os onze se aproximassem do ponto de contacto, não haveria outro remédio senão descolar e descer noutro
ponto. Antes de prosseguir com a narração das peripécias que nos foi dado viver na jornada do sábado, 22 de Abril – uma delas de amarga recordação -, não resisto a referir uma coisa igualmente relevante e que, mais uma vez, põe a claro a contínua e grave manipulação de que foram objecto as palavras e os factos protagonizados pelo Filho do Homem. Refiro-me às conversas tidas por Jesus naquela manhã de sextafeira, na sua primeira presença no yam. O Evangelho de João é o único que as menciona, ainda que, a bem da verdade, se deva utilizar o singular, porquanto no seu último capítulo apenas se fala da conversa com Pedro, acrescentando e omitindo o juízo do autor. A que deverá atribuir-se essa censura? O que terá levado os evangelistas – especialmente Mateus e João – a esquecer um acontecimento e umas palavras tão significativos? É evidente que João silencia o que lhe diz respeito. E do mesmo modo procedem os demais. Porquê? Como já referi esta passagem leva um deles à outra passagem das despedidas da última ceia, igualmente ignoradas pelos escritores sagrados. Que têm elas em comum? Salta à vista: Jesus, sempre sincero, vai pondo a nu os principais defeitos de cada um dos seus íntimos. Pois bem, se tivermos em conta que a redacção definitiva do Evangelho de João pode ter ficado concluída na última década do século I, quando a Igreja primitiva começava a consolidar-se como tal, a resposta não parece disparatada: não interessava depreciar a imagem colectiva e individual do grupo apostólico pioneiro que – supõe-se -, por ter estado em contacto directo com o Mestre, tinha assumido um carácter sagrado. Muito menos, claro está, a do cabeça e chefe espiritual da comunidade nascente: Simão Pedro, que no ano 64 seria executado. Transcrevendo unicamente – e com os retoques oportunos – a conversa de Jesus com Simão, o seu papel de líder ficava notavelmente fortalecido e justificado. Suponho que, involuntariamente, o autor ou autores deste capítulo vinte e um, ao reconstituir a tríplice pergunta do Mestre, cai num erro fatal: Simão, filho de João, reza o escrito, amas-me mais que a
estes? Quem quer que conheça minimamente a forma de ser e de se comportar de Jesus Cristo ao longo da sua vida terrena compreenderá que o Senhor nunca - nunca! - fazia distinções entre os seus. A pergunta parece, pois, tendenciosamente manipulada e apresentada com o fim de consolidar o primado de Pedro. E a verdade é que este acaba por constituir um dos pontos de apoio de muitos exegetas católicos que defendem a designação de Pedro – feita pelo Ressuscitado – como seu sucessor na formação da Igreja. Embora espere poder ainda dedicar mais adiante algumas linhas ao delicado problema de saber se o Filho de Deus quis ou não fundar uma Igreja tal como a interpretam os fiéis cristãos, desejo apontar agora um dado que se me afigura significativo nesse sentido. Se tivesse desejado que se constituísse semelhante instituição – além de a ter planificado e erigido Ele próprio -, Jesus, por certo, não teria entregue a sua chefia a um homem com as características de Simão Pedro: irreflectido, de carácter inconstante, temperamental e de uma fogosidade imprudente. De facto, durante os anos da vida pública de Jesus, o chefe do grupo tinha sido o seu irmão André. Quanto a Mateus, Tiago de Zebedeu, Bartolomeu e mesmo João, eram indivíduos muito mais preparados, reflectidos e carismáticos que o tosco sais de Betsaida. Se Pedro chegou a ser o que foi - não me cansarei de o repetir -, tal não se deveu à expressa vontade do Mestre, mas às circunstâncias e, como disse na devida altura, à tácita aceitação dos seus companheiros. (Não de todos, por certo.) Também é possível que a tudo o que fica exposto se juntasse o irredutível silêncio dos discípulos que conversaram naquela manhã com o Ressuscitado. Provavelmente, João e Mateus tiveram problemas para obter informações dos seus companheiros acerca dessa conversa. Mas isso não justifica que ambos – testemunhas presenciais – tenham silenciado a realidade dos diálogos por pares. Mateus Levi, no último versículo do seu Evangelho, parece insinuar parte do que Jesus repetiu durante aquela aparição: [...] “E eis que eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo”. Naturalmente, não podemos esquecer uma derradeira
possibilidade, a que aliás já me referi. Se o Epílogo do Evangelho de João – como parece – é um acrescento, obra de estranhos, então Zebedeu ficaria, em boa medida, isento de responsabilidade. Nesse caso, as intenções do ou dos autores do referido capítulo vinte e um seriam muito mais suspeitas... Mas prossigamos com os acontecimentos. Durante um bom lapso de tempo até que as brasas acabaram por consumir-se, os dez e o jovem João Marcos permaneceram em círculo, cabisbaixos e silenciosos. Repito: ninguém, excepto o impetuoso Pedro, abriu o seu coração aos demais. O meu sinal ao módulo – anunciando o fim da operação – foi quase desnecessário. Com efeito, uma vez desaparecido o Mestre, Eliseu fez regressar o olho de Curtiss. E lentamente desci dos degraus, reinserindo-me no melancólico e taciturno grupo. Por fim, pelas dez e meia, André, levantando-se, pôs termo àquela situação. Nessa altura, eu ainda ignorava o que tinham conversado com o Rabi, assim como a ordem de irem à procura de Simão, o Zelota. Consequentemente, mantive-me num discreto segundo plano. Foi o benjamim dos Marcos quem me deu a notícia sobre a anunciada segunda aparição na montanha da Ordenação. E, como disse atrás, ao perguntar qual a sua localização, alguns dos discípulos apontaram para o Norte de Nahum. Alguns minutos mais tarde, à excepção de João Zebedeu, dos gémeos e de João Marcos, os restantes embarcavam com uma dupla missão: proceder à venda do pescado e localizar o Zelota. Aceitei o convite de Tiago e, entrando na mais pequena das barcas, atravessei aquela zona do lago, em direcção ao porto de Nahum. À medida que nos afastávamos de Saidan, um pensamento foi ganhando terreno no meu coração. Era duro de aceitar, mas contra factos não havia argumentos: uma das pessoas que mais intensamente teria desejado ver e ouvir o Mestre – sua mãe – tinha ficado à margem. As duas longas milhas que separavam ambos os portos foram percorridas sem contratempos. Atracámos a um dos cais do flanco oeste de Nahum e, de imediato, André e Pedro saltaram para terra, perdendo-se no tumulto da cidade, à procura do desertor. O peixe foi descarregado e Tiago de Zebedeu, como chefe e responsável,
procedeu às negociações, regateando o preço da venda como lhe competia e acabando por obter pelos setenta quilos de tilápias e barbos (uns dezasseis peixes tinham sido retirados para o consumo dos discípulos e suas famílias) um total de oito denários. Refilando contra o que qualificou de roubo e miserável perda de tempo, o sais guardou o produto da venda, aproveitando a breve estada em Nahum para dar uma olhadela ao negócio familiar: o estaleiro. Eu aproveitei a oportunidade e, depois de me despedir da companha com um até logo, afastei-me para a praça do mercado, com a intenção de regressar à nave. Não tinha tempo a perder. Tinha muita coisa a organizar, face à anunciada segunda aparição de Jesus de Nazaré. Desta vez, se a sorte nos acompanhasse, toda a nossa artilharia pesada estaria apontada para o enigmático e intrigante corpo do Ressuscitado. Os pontos obscuros naquela forma carnal eram um desafio excitante. As anteriores leituras do squid, dos sistemas ultra-sónicos, teletermográficos, etc. - verificadas após a última presença de Jesus no cenáculo -, tinham-nos alertado e confundido. Aquele corpo, do ponto de vista da mais estrita das interpretações médicas, não podia existir. Impunha-se, pois, passálo a pente fino, até onde fosse possível. Se a aparição se registasse na nossa colina, todo o instrumental do módulo, além do olho de Curtiss e dos dispositivos instalados na vara, seria destinado a uma análise implacável e rigorosa dos tecidos e órgãos internos e externos, fluxo sanguíneo, funções vitais, metabolismo, natureza do sistema nervoso e, naturalmente, à exploração de um dos capítulos mais intrigantes: o cérebro. Os resultados ultrapassariam todas as expectativas.
22 DE ABRIL, SÁBADO Desta vez foi Eliseu quem – nervoso e impaciente – não conseguiu dormir. Ao acordar, encontrei-o com o rosto colado aos painéis de comando, atento aos detectores de radiações infravermelhas e ao radar. Os sensores externos anunciaram a presença a cinquenta quilómetros, sobre o Mediterrâneo, de um vento não muito forte (vinte quilómetros por hora) que soprava para o interior do país. Era o costumado maarabit – uma corrente estival, muito frequente no yam entre os meses de Abril e Outubro -, mas que, naquele sábado, tinha madrugado bastante. Dentro de algumas horas penetraria no lago pelo corredor formado pelos vales de Bet-Netofa e Arbel. Isso significaria um considerável aumento de temperatura – de três a sete graus centígrados – e a consequente redução da humidade relativa (possivelmente entre vinte a quarenta por cento). O dia apresentava-se, pois, ventoso e quente, com uma temperatura previsível que oscilava entre os vinte e cinco e os trinta graus centígrados. - Tens a certeza de que a montanha é esta? O meu irmão sabia tanto como eu. Assim, procurei tranquilizá-lo, fazendo-lhe ver que era tudo uma questão de paciência. Chegada a hora sexta, se os onze se encaminhassem para qualquer das elevações dos arredores, o lançamento do olho de Curtiss supriria a nossa presença. É claro que isso representaria para nós uma contrariedade. Se a aparição se registasse longe do berço, o emprego do instrumental científico careceria de sentido. - Mas – insistiu o meu companheiro -, como podes estar tão seguro de que Ele aparecerá? Sorri-lhe. Aquela inquietação já me era familiar. É claro que eu não podia estar seguro de nada. Contudo, a minha confiança naquele Homem começava a ser incondicional. - Se foi Ele quem o disse – sentenciei com uma segurança que ainda agora me surpreende -, assim será. Os minutos foram passando lentamente. Eliseu optou por não fazer mais perguntas. Os seus cinco sentidos concentraram-se sobre o quadro e os monitores de controlo.
Mas, a cada passagem do dispositivo IR, o resultado era sempre o mesmo: presença negativa. A partir das nove horas, o espesso silêncio no interior do módulo tornou-se um tormento. De vez em quando os nossos olhares cruzavam-se. Creio que agora compreendo bem a sua angústia. Ele não tinha tido a maravilhosa oportunidade de contemplar Jesus de Nazaré face a face. E embora, tal como eu, não pertencesse nem simpatizasse com nenhuma religião, as múltiplas vivências e os prodígios que vínhamos observando faziam-no ansiar por esse encontro. Suponho que os nossos pensamentos foram muito semelhantes naqueles duros minutos de espera: Onde e como apareceria? Chegaria caminhando por alguma daquelas veredas? Apresentar-se-ia de repente tal como sucedeu na praia de Saidan? Que atitude devíamos tomar? Como iniciar as análises?... 9 h 15 m. Segundo os nossos cálculos, faltavam três horas para o momento decisivo. Eliseu, ansioso, alargou o raio de acção das radiações infravermelhas até aos quatrocentos pés. A única resposta, como vinha acontecendo, esteve a cargo dos pássaros. 9 h 25 m. Angustiado pela atmosfera electrizante da cabina resolvi descer a terra. Eliseu nem me ouviu. 9h 30m. Na verdade, a temperatura ambiente começava a subir. Passeei à volta da nave, esquadrinhando o horizonte. A solidão na encosta sul do promontório era total. Bandos de pássaros voavam em torno das pedras basálticas que rodeavam a cripta, alegrando a tórrida manhã com os seus trinados e evoluções. O lago, intensamente azul, era sulcado aqui e ali, por barcos que andavam na faina nas águas de Nahum, Kursi e Tiberíades. Se de facto é esta a «montanha» designada por Jesus, disse para mim mesmo o mais lógico e presumível é que os discípulos cá venham ter por um dos dois acessos. Mas qual deles...? Absorto em tais pensamentos – de vital importância na hora em que tínhamos de decidir se retirávamos ou não o módulo -, precisei de uns dois
minutos para reparar numa coisa que, subitamente, inundou a colina. Como o definiria? Foi um silêncio sonoro. Sem mais nem menos deixei de ouvir os trinados dos pássaros. Levantei o olhar para o círculo rochoso. Efectivamente tinham desaparecido. Tudo à minha volta - o zumbido dos insectos e o leve e multicolor movimento das flores – parecia extinto. Ou talvez devesse dizer adormecido. E uma estranha sensação de asfixia, acompanhada de um suor frio, invadiu-me de repente. É difícil de explicar. Os meus passos, sem que eu me propusesse tal, levaram-me para o lado norte do berço. E a sensação de asfixia desapareceu repentinamente, transformando-se num quase ataque de histeria. Os meus joelhos agitaram-se e todo o meu ser se convulsionou, cerrando-me a garganta. Quis abrir a ligação auditiva, tentei, mas não consegui. De novo, como tinha acontecido na praia de Saidan, o medo, os nervos e a surpresa fulminaram-me, transformando-me noutra pessoa. E os calafrios tolheram-me uma vez mais. Tacteando, esquecendo os crótalos, apalpei as paredes da nave procurando a também para mim invisível escadinha de acesso. Aturdido, choquei com um dos suportes e quase caí por terra. Quando por fim consegui entrar no módulo lancei-me sobre os painéis de controlo. Eliseu, surpreendido, viu-me manipular os registos IR. O meu aspecto, confessar-me-ia ele, depois de tudo aquilo ter terminado era terrível: encharcado de suor, com os olhos esbugalhados e os dedos crispados como ganchos... Tal como eu supunha, o dispositivo de segurança – mesmo projectado a quatrocentos metros – apresentou uma leitura negativa. Ali não havia ninguém! Mas então... - Que se passa? A pergunta do meu companheiro ficou no ar. Não era possível! Os sistemas de alerta e detecção deveriam ter disparado! Verifiquei os circuitos pela segunda vez. Negativo! Lentamente, deixei-me cair sobre o assento de pilotagem. Os meus nervos foram-se relaxando e o nó na garganta desfez-se.
- Maldição! Pode saber-se que diabo se passa contigo? Devo tê-lo olhado como um estúpido. Com a boca aberta, aponteilhe para o exterior da nave. Eliseu, adivinhando a razão do meu lamentável estado, saltou da sua cadeira, colando o rosto a uma das escotilhas. Creio que nunca uma exclamação foi tão adequada: Jesus Cristo! Eram 9 h 40 m. O meu irmão, felizmente, não foi tão tolo como eu. Numa demonstração de sangue-frio, com uma serenidade que a mim, paradoxalmente, me faltava, permaneceu alguns segundos atento ao que se passava no topo do promontório. Depois, girando sobre si próprio e lançando-me um luminoso olhar, disse: - É Ele, não é verdade? Não pude responder-lhe. Avançou para mim e, sacudindo-me, forçou-me a recuperar o autodomínio. - Calma, rapaz! - E, sorridente e divertido, rematou: - Eu é que devia estar cheio de medo! Inspirei profundamente. Sacudi a cabeça como quem procura afastar um pesadelo e, agradecendo em silêncio os seus encorajamentos, ergui-me. Eliseu convidou-me a que olhasse lá para fora. Não, não tinha sofrido uma alucinação. O Gigante ali estava, a uns quatrocentos metros da nave, de pé ao cimo da colina e voltado directamente para a nossa posição. Estava imóvel, com os braços ao longo do corpo e com o mesmo aspecto do dia anterior. - E então?... Era incrível! Apesar da pormenorizada e escrupulosa planificação desenvolvida em ordem a este momento, não soube que fazer nem por onde começar. Faltavam mais de duas horas para o meio-dia. Como explicar semelhante antecipação? Estúpido que eu fui! Só agora compreendo... - E então? - repetiu Eliseu. Eliseu esperava ordens. Mas, incapaz de coordenar ideias, só fui capaz de encolher os ombros. Como podia aparecer e desaparecer?, repetia eu como um autómato. Como...? O meu irmão – estarei sempre em dívida para
com ele - tomou a iniciativa. Orientou os instrumentos para o Ressuscitado e, deixando o dispositivo IR a cargo do Pai Natal, levou-me para junto da escada hidráulica. Se não fosse ele, ter-meia até esquecido da vara de Moisés... A encosta, fragrante e luminosa, tranquilizou-me. Procurei explicar-lhe o estranho silêncio, mas, na realidade, aquilo já nada importava. Além disso, tudo tinha voltado à normalidade: ouviam-se de novo os ruídos, o zumbido dos insectos, o gorjeio das aves... Com passo decidido, Eliseu pôs-se a caminho do cume. Eu não saía do meu assombro. Que era feito da sua habitual timidez? Acompanhei-o e, quando cheguei ao pé dele, observei- o de soslaio. O seu olhar parecia magnetizado em direcção ao Homem. Julguei distinguir no seu rosto – extremamente pálido - um contido esgar de desafio e desconfiança. Imóvel como uma estátua, o Mestre contemplava-nos lá de cima. Eu notava a força e o calor dos seus olhos. A uns cinquenta passos, Eliseu parou. O seu rosto, a tão grande distância do Ressuscitado, mudou bruscamente. A mandíbula distendeu-se. Exalou o ar com violência e, sem desviar o olhar da figura do Mestre, exclamou num fio de voz: - Não posso, Jasão!... Tenho medo! Naquela louca dança de sensações e de sentimentos opostos compreendi que era a minha vez. O ânimo aparentemente sólido do meu compatriota fraquejou. Compreendi-o. E uma poderosa força se instalou no meu espírito, equilibrando a balança. - Não posso... Das têmporas de Eliseu brotou um suor abundante. Os seus lábios, trémulos, só conseguiam repetir aquele lastimoso Não posso. Obriguei-o a desviar os seus olhos para mim e, apontandolhe para o cume, gritei-lhe, tentando contrariar o seu pânico: - Vale a pena!... Este Homem é o mais sublime que àlguma vez conheceste! Pestanejou, indeciso. E pegando-lhe pelo braço fui-o arrastando até às altas ervas que coroavam o promontório. Segundo me confessaria mais tarde, fez aqueles últimos metros
como um robô, sem poder desviar o seu olhar do do Gigante. - Era tudo muito confuso, Jasão. O medo do desconhecido tinhame tolhido. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim (e não precisamente tu) me impelia, desejoso de o conhecer... A meia dúzia de passos do Ressuscitado detivemo-nos. Nada tinha mudado no seu aspecto. Os seus profundos olhos cor de mel estavam fixos nos do meu irmão. Vimo-lo esboçar um lento e compreensivo sorriso e, sem dizer palavra, avançou na nossa direcção. O meu irmão estremeceu. Mas, deslumbrado diante da majestosa e serena figura daquele Homem, não se moveu. E o Mestre, levantando a mão, enxugou o suor que inundava a fronte e as têmporas do meu desconcertado amigo com a borda da manga esquerda. A emoção e o agradecimento foram certamente tão fortes em mim como em Eliseu. Então, voltando-se para mim, disse em tom de carinhosa censura: - Só nosso Pai, Jasão, é o mais sublime... E dando meia volta foi sentar-se sobre a erva, voltado para a distante Nahum. Entreolhámo-nos. Eliseu, sem poder crer no que acabava de escutar. Quanto a mim, permanentemente perplexo diante da força daquele Ser. A seguir, chamando-nos pelos nossos verdadeiros nomes, convidou-nos a que nos sentássemos a seu lado. Eu obedeci de imediato. O meu irmão, porém, mudo e trémulo, continuou de pé. Os seus olhos estavam presos nas moitas de erva acabadas de pisar pelo Rabi. E Jesus, repetindo o convite com ambas as mãos, foi ao encontro dos seus pensamentos: - Os espíritos, se é isso o que crês que eu sou, não pisam a erva. Também tu... - e aqui aparece o verdadeiro nome de Eliseu – deves aprender a confiar. E em verdade vos digo que chegará o dia em que não duvidareis e, do mesmo modo que os meus mensageiros de hoje, também vós (de outra maneira e em outro tempo e lugar) proclamareis a boa nova do Reino. - Nós? O Mestre – e nem é preciso dizê-lo, eu próprio
alegrou-se ao ouvir a voz do meu companheiro. Com certo receio, acabou por se instalar à minha esquerda. Jesus contemplou-nos como se fôssemos duas crianças ansiosas por aprender. - Porque julgais que estais aqui? A questão colocada pelo Mestre parecia óbvia. A sua interpretação, contudo, nem tanto. - Digo-vos que, nos universos do nosso Pai, nada que envolva o domínio do espírito fica sujeito ao acaso. Tudo é obra do amor, da sabedoria e da misericórdia. - Não te compreendemos, Senhor. - Não tardareis a fazê-lo... O Ressuscitado assinalou com os seus olhos a posição do berço. Eliseu e eu voltámos a olhar-nos, desarmados. - Quando fordes devolvidos ao mundo e ao momento de onde vindes, uma só realidade brilhará nos vossos corações: ensinai aos vossos semelhantes, a todos, o que vistes, ouvistes e experimentastes a meu lado. Sei que, à vossa maneira, acabareis por confiar em mim. Sei também que não temeis os homens, nem o que eles possam representar, e que proclamareis a minha Verdade. E muitos outros, graças ao vosso esforço e sacrifício, receberão a luz da minha promessa. Ao ouvi-lo tive a nítida sensação de que estava a par do nosso projectado terceiro salto no tempo. Mas acho que devo ser fiel aos acontecimentos e a mim próprio. Naquele momento, ao ouvir as suas serenas e também proféticas palavras, caí de novo na tentação da dúvida. Sei-o bem. Ele estava ali diante de mim. O seu corpo, banhado pelo sol, projectava a natural e correspondente sombra; ocupava um volume no espaço; sob o seu peso as flores e a vegetação tinham ficado pisadas. Tudo parecia normal. E no entanto não o era. Não podia sê-lo. Aquele corpo, tal como em ocasiões anteriores, tinha surgido do nada. E isto, científica e racionalmente, era pouco menos que impossível. Acabrunhado por semelhante incerteza, as minhas ideias não faziam sentido.
Tinha de encontrar uma explicação. Como podia aparecer e desaparecer numa fracção de segundo? A física moderna – também sei disso – conseguiu criar (?) matéria a partir da energia 1. E embora as quantidades sejam minúsculas, o campho é prometedor. Significaria isso que alguém, em alguma parte, seguia o mesmo processo no momento de formar o corpo que tínhamos diante de nós? Custava-me a aceitá-lo. A energia mímima necessária para que surja um par de partículas elementares é de duas vezes a massa em repouso de tais partículas elementares, pela velocidade da luz ao quadrado. Por outras palavras: 1.02 MeV ou 10 electrões-volts. Numa palavra: o consumo energético, tratando-se não já de um par de partículas mas de todo um corpo, seria tão brutal que – insisto -, do ponto de vista da nossa física, é inconcebível. Tinha de haver outra fórmula. Mas qual? Jesus aguardou que as minhas torturadas reflexões chegassem ao inevitável beco sem saída em que me encontrava. Observou-me com atenção e eu, dando-me conta disso, corei como um idiota. Ainda tentei desculpar-me. Que absurdo! Porque haveria de justificar-me perante um Ser que lê os pensamentos e que, sobretudo, é capaz de uma compreensão infinita? Moveu a cabeça, como se estivesse perante um subordinado que não tivesse emenda. E acertou. Mas, condescendente, aliviou em parte a minha casmurrice: - Porque te atormentas? Eliseu, que logicamente não podia saber das dúvidas que me assaltavam naqueles instantes, fez-me um sinal com a cabeça, pedindo-me um esclarecimento do que se passava. Não me atrevi nem a respirar. - ..Tem fé. Já te disse: também as criaturas ao meu serviço têm um código – sublinhou esta palavra – que, tal como vós, não podem desrespeitar. Lembra- te das minhas palavras a Lázaro: Meu filho, o que te sucedeu, acontecerá de igual modo a todos os que creiam no Evangelho, mas ressuscitarão sob uma forma mais gloriosa. Eu sou a ressurreição... e a VIDA! Isto que vedes e que podeis tocar – Jesus estendeu as palmas das suas mãos – não é fruto de fantasias nem de milagres. Vede-o bem! É uma das formas de que desfruta toda a
criatura mortal dos mundos do tempo e do espaço, uma vez vencido o sono da morte... *1 – Hoje, a nível teórico e experimental, sabe-se que, a partir de um quanto” de radiação electromagnética, é possível criar um par de partículas (um electrão e um positrão). Para que isso aconteça, o fotão terá de passar pelas proximidades de um núcleo, de forma que se cumpram os requisitos de conservação da energia e momento desse sistema isolado. (N. Do M.) O meu irmão discorreu rápido e, com invejável espontaneidade, interrompeu-o: - Posso...? O Ressuscitado, como se já esperasse a pergunta, estendeu a sua mão direita – a mais próxima de Eliseu -, convidando-o a comprovar. Não sei se voltei a ruborizar-me. Eu teria sido incapaz de semelhante audácia. Mas aquele engenheiro de telecomunicações e perito em computadores era uma caixinha de surpresas. Ajoelhou-se em frente do Mestre e, tomando a mão entre as suas, pressionou, apalpou, acariciou, cheirou sem o menor pudor e, ante a divertida expressão do Homem, tomou-lhe o pulso. Passados dois minutos, pálido como um morto – e talvez mais morto que vivo -, enfrentou o olhar do Ressuscitado. Vi-o franzir o sobrolho, como que a procurar uma explicação. Lamentavelmente, não havia. Ou melhor, tinha de haver, embora não estivesse ao alcance das nossas pobres e limitadas mentes. Uma explicação que não contradizia as leis universais da física e que, todavia, nós desconhecíamos. Foi toda uma lição de humildade para a orgulhosa Ciência que acreditávamos representar. De repente, sem palavras – que necessidade havia delas! -, o meu companheiro inclinou-se e beijou a mão que ainda retinha e que acabara de explorar. Foi espontâneo. E devo anotá-lo, pelo que foi e pelo que representou. Os olhos de Jesus humedeceram-se. Santo Deus! Aquele Ser era capaz de emoções! Agora, esta dedução parece- me ridícula. - Satisfeito? Eliseu, perplexo, deixou-se cair sobre a relva. E, como única resposta, disse que não com a cabeça. Logo a seguir, porém, suponho que por pura cortesia, rectificou, assentindo em silêncio.
- Não estranheis – continuou Jesus -, se notardes que  esta forma carnal pouco ou nada tem a ver com a que conheceis. Lá, onde fordes devolvidos à verdadeira vida, as limitações que vos constrangem aqui em baixo não têm sentido. Lá sentireis outro tipo de fome, outro tipo de sede, outro tipo de sentimentos e necessidades. Repito-vo-lo: não vos atormenteis. Agora é muito difícil que o homem mortal possa alcançar as estrelas. Deve bastarvos saber que elas estão lá e que, na devida altura, as estrelas – e não só... - farão parte do vosso conhecimento. A corrida para o Pai Universal é prodigiosamente reveladora. Nada ficará oculto. Não esqueçais que os vossos conhecimentos são finitos e que toda a compreensão, por parte das criaturas mortais, é relativa. Qualquer informação, mesmo a que procede de fontes elevadas, é só relativamente completa, localmente exacta e pessoalmente verdadeira. Apenas isso. Os factos físicos podem ser uniformes, mas a verdade é uma realidade viva e flexível na filosofia do Universo. As pessoas que evoluem como vós o estais agora a fazer só parcialmente são sábias e relativamente verídicas nas suas mensagens. Só podem ter certezas dentro dos limites da sua experiência pessoal. Algo que pode parecer certo num lugar, poder ser relativamente verdadeiro noutro segmento da criação. A verdade divina, a verdade final, é uniforme e universal. A história das criaturas espirituais, tal como é contada por numerosas individualidades originárias de esferas diversas, pode mudar por vezes nos pormenores. Isso deve-se à relatividade na plenitude dos seus conhecimentos e da sua experiência pessoal, assim como à extensão e amplitude dessa experiência... - Parece-me que te contradizes, Senhor... O comentário de Eliseu deixou-me atónito. - A vida e as vicissitudes dos seres humanos – argumentou com frieza – opõem-se a essa ideia de soberania universal de Deus... O Mestre aceitou o repto. - O plano do nosso Pai é fruto do amor e por consequência, perfeito. E a tal ponto é assim que as criaturas evolutivas, como vós, vêem-se necessariamente assaltadas por toda a espécie de
contingências, apenas para seu benefício. - Contingências? - replicou o meu irmão com amargura. - Eu empregaria um termo mais duro. E antes de o Rabi abrir de novo a boca, atirou, inclemente: - Que me dizes do desespero, da mentira, da injustiça?... O Mestre levantou as mãos, pedindo-lhe calma. - Vejamos: a esperança é desejável? Assentimos em uníssono. - Pois bem, então é necessário que a existência humana se apresente permanentemente confrontada com a incerteza e com a insegurança. - E que nos dizes da mentira? - Dizei-me: é bom o amor à verdade? Nem esperou a nossa resposta. Era óbvia. - ...Nesse caso, é preciso que o homem cresça num mundo onde o erro esteja presente e a falsidade seja uma companheira de todos os dias. - Que podes dizer diante da decepção? - Exactamente o mesmo: é desejável a força de carácter? Sendo assim, a Humanidade deve ser educada num ambiente que a obrigue a enfrentar duras provas e a reagir perante a decepção. As respostas tão taxativas, não desarmaram o mordaz Eliseu. - E que podes dizer sobre a dor? Já a experimentaste amplamente. Será mesmo necessária? Será justa? O rosto do Galileu endureceuse levemente. - Tu desejas a felicidade, não é assim? - Mais que qualquer outra coisa neste mundo! - exclamou o meu irmão, recuperando a combatividade. - Então – sentenciou sem possibilidade de apelo – deverás viver num mundo em que a alternativa da dor e a probabilidade do sofrimento sejam possibilidades experienciais sempre presentes. As
tribulações são a melhor fonte de sabedoria para os mortais. Em verdade, em verdade vos digo que não se pode captar a realidade espiritual se antes a não tivermos sentido pela experiência. E muitas dessas verdades só se intuem e compreendem no meio da adversidade... Quanto ao meu próprio sofrimento, em nada se diferenciou do de muitos outros mortais. Quando alguém sucumbe por causa da dor, eu, ou os meus anjos, estamos lá... - Para quê? A ingenuidade deve ter comovido o Mestre. Sorriu-lhe e, levantando o rosto para o céu azul, replicou: - Ainda que o enfermo não o perceba claramente, com o único fim de lhe lembrar que, como eu fiz, deve abandonar-se nas mãos do Pai. Já vo-lo disse: nada no reino do nosso Pai é obra do acaso. - O Pai! - desta vez tomei eu a iniciativa. - Falas tanto do Pai... Mas, na verdade, Mestre, agora que ninguém nos escuta, quem é o Pai? Jesus soltou uma gargalhada. - Crês realmente que ninguém nos escuta? Como duas crianças assustadas, Eliseu e eu olhámos à nossa volta. Sem perder o esplêndido sorriso, o Senhor moveu a cabeça, rindose perante a nossa candura. - Tu amavas o teu – disse com aquele especial brilho que irradiava quando se referia ao Pai. - Isso permite-te aproximar-te um pouco, só um pouco, da magnífica realidade do nos-so ver-da-dei-ro Pai. Intencionalmente, foi separando as sílabas. - O pai Universal não é um ser humano, com longas barbas brancas, como por vezes o pintam as suas criaturas. Mas o exemplo é válido. Ele é o Deus de toda a criação. A causa-primeira-central de todas as coisas e de todos os seres. Deveis pensar nEle como um criador. Depois como um controlador. Por último, como um apoio infinito. A verdade sobre o Pai Universal começou a despontar sobre a Humanidade quando o profeta disse: Tu, Deus, estás só e ninguém existe a teu lado. Tu criaste os céus e os céus dos céus com todos os teus exércitos. És tu quem os
preservas e os controlas. Pelos Filhos de Deus é que os universos foram feitos. O Criador cobre-se de luz como de uma roupagem e estende os céus como um manto. Todos os mundos iluminados reconhecem e adoram o Pai Universal, o autor eterno e o sustento infinito de toda a criação. Em inúmeros universos, criaturas dotadas de vontade empreenderam a longa, muito longa viagem para o Paraíso e a luta fascinante da aventura eterna para alcançar a Deus, o Pai. As criaturas que conhecem a Deus têm apenas uma suprema ambição, um único e ardente desejo: o de parecer-se no seu próprio mundo ao que Ele é em sua perfeição paradisíaca personalizada... - Mundos iluminados, dizes? - Eliseu, atento aos mínimos pormenores, desceu para um plano mais prosaico. - Será que existe vida inteligente e organizada fora da Terra? Percebi que Jesus hesitava. Apanhou uma mão-cheia daquela fresca erva e, arrancando-a pela raiz, mostrou-lha, perguntando: - Dizei-me: o que é mais importante: isto ou vós? Nenhum de nós se atreveu a responder. Foi ele quem o fez por nós: - Diante do nosso Pai, vós, sem lugar para dúvidas. Credes então que o Pai pode permitir que a erva seja mais numerosa que a Sua prole? - Não respondeste à minha pergunta, Senhor: quem é o Pai? - Já respondi, Jasão... Acariciou os verdes e sumarentos talos, mordiscando um deles. ...Mas vou propor-vos um exemplo. Há milhares de milhões de tempos, o primeiro Inteligente que alcançou a consciência de si mesmo entrou no não-tempo, depois de experimentar um processo que também durou milhares de milhões de tempos. No próprio instante da transição para o não-tempo, soube que, desse modo, iniciava um longo caminho de realização absoluta de si mesmo que igualmente se prolongaria por milhares de milhões de tempos, à espera de que as humanidades a caminho chegassem a fazer parte dEle. E aquele Ser pensou: Eu serei a vossa meta, mesmo que me ignoreis. Eu serei o vosso propósito, mesmo que apenas suspeiteis
da minha existência. Eu serei a vossa imagem quando crerdes em mim. Eu só serei Deus quando vós fordes um todo comigo: quando chegardes a ser Deus comigo. E juntos voltaremos a iniciar um processo para além do não-tempo, pois o tempo terá perdido a sua razão de ser. Quem isto escreve – devo confessá-lo humildemente – não conseguiu assimilar esta parábola. - E tu que nome dás ao Pai? - Eliseu não recuava diante de nada.Porque, segundo creio, tu também és Deus... Como entender esta charada? Sendo tu Deus, porque é que o Pai é mais que tu? Mas o Mestre também não era dos que desistiam... - Responde primeiro a uma pergunta: crês que serias capaz de beber toda a água do yam? - Não, Mestre... - Pois o nosso Pai é um lago que se esqueceram de cercar... Não pretendes compreender a natureza de Deus: empenha-te em sentila! Os nomes que as criaturas lhe atribuem dependem da forma como concebem o Criador. A causa-primeiracentral do Universo nunca se revelou pelo seu nome: só pela sua natureza. Ao Pai pouco se lhe dá como o chames. Ele não impõe nenhuma forma de reconhecimento, nem de culto oficial nem de adoração servil às criaturas dotadas de inteligência e vontade. O importante é que, no mais profundo dos vossos corações, o reconheçais, o ameis e o adoreis... voluntariamente. O Criador recusa exercer uma prepotência no livre arbítrio espiritual das suas criaturas materiais e, muito menos, forçálas à submissão... - Mas as religiões... - Sabeis qual é o dom mais precioso do homem? - interpelou-nos, pousando o seu penetrante olhar ora num ora noutro de nós, alternadamente. - A liberdade – adiantei eu não com muita segurança. - A consagração amorosa da vontade humana à do Pai. Com efeito , meus filhos, é o único dom válido que o homem pode oferecer a
Deus. - Queres então dizer que não podemos oferecer mais nada? - Fazer a vontade do nosso Pai é tudo. Nele, os humanos vivem, movem-se e têm a sua existência. Esse é o verdadeiro culto, que satisfaz plenamente a natureza do Pai Criador, dominado pelo amor. Eliseu voltou à carga. - E tu, Mestre, como te chamas? - Já te disse: Abbá. Aquela palavra aramaica significava de facto paizinho: o mais carinhoso dos vocábulos que, por certo, nunca era utilizado pelos judeus quando se referiam a Deus. - Em espírito – continuou – todos os nomes atribuídos a Deus têm idêntico significado, ainda que, em palavras e símbolos, cada uma das denominações exprima o grau e a profundidade com que o Pai é entronizado no coração das Suas criaturas... - E por lá – o meu irmão apontou para o céu -, como é que Lhe chamam. O Rabi sorriu de novo. - Junto do centro do universo dos universos, o Pai Universal é geralmente conhecido sob os nomes que vêm a significar a Causa Primeira. Mais além, no exterior, nos universos do espaço, os termos empregados para designá-lo coincidem com o de Centro Universal. Mais longe, na criação estrelada, é conhecido por Primeira Causa Criadora e Centro Divino. Numa constelação próxima da vossa, Deus é chamado Pai dos Universos. Noutra: Apoio Infinito. A oriente recebe o nome de Divino Controlador. Também foi qualificado como o Pai das Luzes, o Dom da Vida e o Único Omnipotente. O universo dos universos, os universos do espaço, a criação estrelada... Aquilo escapava ao meu reduzido conhecimento. Teria desejado perguntar-lhe mais coisas sobre tão magna citação, mas, com franqueza, faltaram-me as forças.
Eliseu, pelo contrário, continuava desperto e disposto... - Antes mencionaste o Paraíso. Existe na realidade ou trata-se de outra bela metáfora? - Vós associai-lo a um lugar cheio de felicidade e não estais equivocados. Mas enquanto permanecerdes sujeitos à carne, jamais podereis aproximar-vos sequer do meu magnífico e imenso esplendor. Eliseu, que não conhecia o desânimo, insistiu: - Atrever-te-ias a defini-lo em poucas palavras? - Centro de gravidade absoluta. Ou, melhor dizendo, ilha nuclear de luz. - Meu Deus! - exclamou o meu irmão. - Então é verdade!... E antes de Jesus prosseguir, foi directamente ao assunto: - Muitos seres humanos pensam que, ao morrer, entrarão logo no Paraíso. Estão enganados? - Querido amigo, o homem é como uma criança: possessivo, inconsciente e ligado apenas ao mundo próximo que o rodeia. Já te disse que a corrida para a Perfeição, para o Paraíso, ou, se preferires, para o nosso Pai, exige uma longa preparação noutras moradas... - Então, quando veremos Deus face a face? - Por vezes – lamentou-se o Ressuscitado – pareceis cegos... Porque O procuras fora se Ele te ofereceu parte da Sua essência? O meu companheiro – a julgar pela expressão do seu rosto – não o compreendeu. - Ele disse: Vós não podeis ver o Meu rosto, já que nenhum mortal pode ver-Me e continuar vivo. Pois bem, eu digo-vos que nenhum ser material poderia contemplar o espírito de Deus e preservar a sua existência terrestre. É impossível aos grupos inferiores de seres espirituais e a todas as ordens de personalidades materiais captar a glória e o resplendor espiritual da presença da personalidade divina. A luminosidade espiritual dessa presença do Pai é uma luz que nenhum mortal pode suportar, que nenhuma criatura material viu
ou poderá ver. - Em resumo – deduziu Eliseu na sua honesta simplicidade -, depois da morte não O veremos... - Meu filho, na imensidade da criação, Deus não trata directamente com as personalidades dotadas de vontade. Fá-lo de outras maneiras: como te disse, instalando-se no mais íntimo de cada ser e através de um vasto circuito de personalidades celestes. Vês bem o alcance do que acabas de dizer? Suponho que aquela perplexidade no rosto do Mestre foi simulada. - Se Deus se instala em cada um de nós porquê o sentimento do mal? - prosseguiu Eliseu O Senhor não tinha pressa em responder. Fez uma pausa de alguns segundos, multiplicando assim a ansiedade do meu irmão. - Essa, pequeno curioso, é a maior verdade que poderás ouvir dos meus lábios. E deslocando os seus olhos para a minha pessoa, acentuou: - O teu irmão sabe-o bem: a falsidade não pode alojar-se na minha alma. E eu digo-te que cada criatura mortal dotada de inteligência e vontade recebe, directamente do Pai, uma centelha dEle mesmo, enviado do Paraíso e que vive no órgão mental dos mortais, ajudando-os a desenvolver a sua alma imortal, destinada a sobreviver por toda a eternidad. A presença deste ajustador divino (poderíamos qualificá-lo assim na mente humana é revelada graças a três fenómenos experienciais: a aptidão intelectual para conhecer Deus, a necessidade espiritual de O encontrar e o intenso desejo de toda a personalidade de se parecer com Ele. Foi como uma faísca. De repente julguei entender a famosa frase bíblica: «Feito à Sua imagem e semelhança». E o Mestre reparando na minha descoberta, voltou-se para mim com vivacidade: - Assim é, Jasão! E em verdade te digo que em todas as vossas
aflições, Ele se aflige. Em todos os vossos triunfos, Ele triunfa em vós e convosco. O Seu divino espírito é realmente uma parte de vós, embora a imensa maioria dos humanos nunca chegue a descobri-lo. - Ajustador divino... Gosto da tua definição! - Eliseu avesso a rodeios, perguntou à queima-roupa: - Sendo como dizes, Senhor, se cada ser humano recebe essa centelha do próprio Deus, que sucede com aquelas criaturas que não chegam a nascer? Não ignoras que ontem, hoje e amanhã, o aborto provocado é uma realidade... Ao mencionar a palavra aborto, o rosto do Mestre ficou sombrio. O meu irmão, conhecendo-o como eu o conhecia, deve ter pensado que o tinha apanhado... - Olha à tua volta. Que vês tu? - Não sei..., campos florescentes, belas colinas, um lago... - Diz-me agora: crês que tudo isso é resultado do acaso? Eliseu não disse nada. Tal como eu, tinha as suas dúvidas. - Já vo-lo repeti: toda a Criação é obra do nosso Pai. O maarabit não sopraria, as searas não amadureceriam e as tilápias não alimentariam os homens se Ele não o tivesse desejado. Tudo obedece a uma ordem, baseada no amor. Qualquer profanação dessa ordem repercute-se no resto. Consequentemente mesmo por puro egoísmo pessoal, as criaturas humanas devem respeitar as leis da Natureza. Acreditais mesmo que o nosso Pai está sujeito ao erro? As Suas leis são fruto do amor. - Se o amor é a única moeda válida no Universo, impossível de falsificar – Intervim eu – Se o pai é amor, porque permite o mal? - O mal, meu atormentado amigo, é conceito relativo. O mal potencial é inerente ao carácter necessariamente incompleto de Deus, como expressão  da infinidade e da eternidade limitadas pelo espaço-tempo. O facto do elemento parcial, em presença do total aperfeiçoado, constitui a relatividade da realidade. Em todo o universo, cada unidade é considerada como uma parte do todo. A sobrevivência da fracção depende da cooperação com o plano e a intenção do todo, do desejo sincero e do consentimento perfeito de
fazer a divina vontade do Pai. Se existisse um mundo evolucionário sem erro, sem possibilidade de juízos imprudentes, esse seria um mundo sem inteligência livre. No meu universo há mil milhões de mundos perfeitos, com os seus habitantes perfeitos, mas é preciso,que o homem em evolução seja falível, se deseja ser livre de verdade. É impossível que uma inteligência livre e sem experiência seja uniformemente sábia a priori. Mas não confundais erro com pecado. A possibilidade de juízo erróneo só se torna pecado se a vontade humana assume e adopta conscientemente um juízo imoral intencional. - Sendo assim – acrescentei eu -, crer que as desgraças são enviadas por Deus pode ser uma absoluta estupidez... - Mais que uma estupidez, Jasão, é uma consequência da cegueira humana. O Deus eterno é incapaz de sentir a cólera ou de castigar os seus filhos. Essas são emoções humanas, vulgares e desprezíveis, indignas de serem chamadas humanas e, muito menos, divinas. Pelas onze horas da manhã, as primeiras rajadas do vento de oeste – o maarabit – fizeram-se sentir sobre a colina. Os cabelos e a túnica do Homem agitaram-se e, tal como prevíramos, a temperatura ambiente elevou-se notoriamente. Passados poucos minutos, tanto Eliseu como eu cõmeçámos a transpirar copiosamente. Ambos nos daríamos conta em seguida de outro fenómeno singular: apesar do sufocante calor, igual para todos, a epiderme de Jesus manteve-se seca e fresca, sem o menor indício de suor. O rosto, pescoço, axilas e palmas das mãos não apresentavam qualquer vestígio de refrigeração cutânea. Ao passo que a escura túnica de Eliseu, ou a minha, acabaram por colar-se aos corpos, a do Galileu continuou solta e seca. Ao longo da conversa, o meu companheiro fez um dissimulado sinal com os olhos, apontando-me a parte superior do cajado, com o claro propósito de se proceder a um exame completo do organismo do Ressuscitado. Reconheço que foi uma falha ou uma negligência. Mas, sinceramente, senti-me incapaz de o espiar naquela altura. As suas palavras interessavam-me muito mais que todas as análises
médicas juntas. Jesus, ao captar a minha silenciosa negativa, agradeceu com um olhar que me tocou profundamente. E aguardou a pergunta seguinte. Era curioso. Nos meus momentos de solidão entretivera-me a levantar toda uma torre de perguntas. Mas agora, frente a Ele, não me ocorria nenhuma. O meu irmão, de mente mais ágil, esse, sim, estava disposto a espremer o nosso singular interlocutor. - Porque não nos falas um pouco mais desse Paraíso? O Mestre encolheu os ombros. - Fá-lo-ei, se assim o desejais, mas será um pouco como se vós procurásseis fazer compreender aos meus pequeninos de hoje o sentido da vossa missão... Antes disso teriam de conhecer muitas outras coisas. Suspirou profundamente e, durante uns segundos, entreteve-se – suponho eu – a procurar as palavras adequadas. - O Paraíso ou a ilha nuclear de luz deriva da Deidade, se bem que não possa dizer-se que seja uma Deidade. As criações materiais não são só uma parte da Deidade: são uma consequência. Poderíamos dizer que sem qualificação especial, é o Absoluto do controlo material-gravitacional, pela causa primeira central. Essa imensa ilha cujas dimensões nem sequer poderíeis conceber com a vossa limitada mente humana permanece imóvel. É a única criação estática no universo dos universos. A ilha do Paraíso tem um lugar no universo, mas carece de posição no espaço. Trata-se de uma ilha eterna, origem efectiva dos universos fisicos passados, presentes e futuros... Para quê negá-lo! A meio da explicação tinha voltado a perder-me. - O Paraíso é um termo que inclui os Absolutos locais pessoais e impessoais de todas as fases da realidade universal. O Paraíso pode implicar e reunir todas as formas da realidade: Deidade, Divindade, personalidade e energia espiritual, mente ou material. Tudo tem o Paraíso como ponto de origem, de função e de destino, no que se refere ao seu valor, seu significado
e sua existência de facto. Mas não confundais. A ilha eterna não é um Criador. É um controlador único de numerosas actividades universais. De um extremo ao outro dos universos materiais, o Paraíso influencia na conduta de todos os seres relacionados com forças, energias e potências. Mas, em si mesmo, é único, exclusivo e isolado nos universos. Não representa nada e nada significa. Não é uma força nem uma presença. O Paraíso é, simplesmente, o Paraíso. Nem Eliseu nem eu nos atrevemos a formular qualquer comentário. Era impossível. Eu, como sempre aceitei a sua palavra. O Paraíso existe e deve tratar-se de um lugar (?) inenarrável. - E porque é que todas essas coisas – retorquiu Eliseu com melancolia – não são reveladas claramente? Talvez desse modo os homens encontrassem um verdadeiro sentido para a vida... - Meu filho, é conveniente que os homens não recebam uma revelação excessiva... Espantado, quase indignado, Eliseu protestou. - Isso – prosseguiu o Mestre com absoluta calma - asfixiaria a imaginação. O progresso exige que a individualidade se desenvolva. A mediocridade procura perpetuar-se na uniformidade. Fora do contacto com o Pai Universal, nenhuma revelação pode alguma vez ser completa. Porque o vosso mundo ignora geralmente a origem das coisas, mesmo físicas, julgou-se conveniente dar-lhe, de vez em quando, noções de cosmogonia, mas isso sempre provocou confusões. As leis que regem a revelação limitam grandemente porque proibem, como vos acontece agora a vós, a transmissão de conhecimentos imerecidos ou prematuros. A revelação é uma técnica que permite economizar séculos e séculos de tempo no trabalho indispensável de selecção minuciosa dos erros da evolução, a fim de extrair as verdades adquiridas pelo espírito... - Mas essas revelações – interveio o meu irmão com nervosismo – ajudariam a Ciência... O Mestre negou com a cabeça.
- ...A revelação não deve engendrar ciência, nem sequer religiões. A sua função é coordenar ambas com a verdade da realidade. - Mas a Ciência... - A vossa ciência, como a de todos os tempos, é apenas um espelho, que reflecte a vossa própria imagem cambiante. E dir-te-ei mais: tanto a Ciência como a Religião têm permanente necessidade de uma autocrítica mais corajosa e de uma mais clara consciência da insuficiência dos seus respectivos estatutos evolutivos. Em ambos os campos, os educadores humanos caem com frequência no dogmatismo e num excesso de confiança em si próprios. O meu companheiro sorriu maliciosamente. -Tu, Mestre, não pareces muito amante das religiões. Quem o diria!... - O sectarismo, meu querido filho, é uma doença das religiões institucionais. O dogmatismo é uma escravização da natureza espiritual. É muito melhor ter uma religião sem Igreja, que uma Igreja sem religião. - Isso interessa-me – sublinhou Eliseu, tirando partido daquela inacreditável liberalidade do Ressuscitado. - Quais são, na tua opinião, os perigos das Igrejas? - Noutra oportunidade falei disto com o teu irmão. Mas repeti-lo-ei, se é esse o teu desejo. As religiões formalistas tendem à fixação das crenças e à cristalização dos sentimentos; fossilizam a Verdade; desviam-se do serviço de Deus para o da Igreja; lutam entre si e entre os irmãos, em nome do amor, dando origem ao aparecimento das seitas e das divisões; estabelecem autoridades eclesiásticas opressivas; conduzem ao nascimento do falso estado mental aristocrático de povo eleito; mantêm ideias falsas e exageradas sobre a santidade; tornam-se rotineiras e petrificadas e acabam por venerar o passado, ignorando as necessidades do presente... - Meu Deus! - lamentou-se o meu companheiro. - Mas tu também formarás uma Igreja! Um pesado silêncio caiu sobre a colina. O Mestre olhou-o com dureza. Por fim, apontando para mim com a sua mão esquerda, respondeu sem rodeios: - Se não queres ouvir as minhas palavras, ouve ao menos as de Jasão. Quando o Pai permitir
que me acompanhes, analisa bem o meu procedimento. Julga então no mais íntimo do teu ser e lembra-te do que acabas de afirmar. É importante que transmitas a verdade. Eu não vim ao mundo para criar Igrejas, mas tão-só para dar testemunho do nosso Pai. A natureza humana é fraca (sei-o bem) e, involuntariamente, a minha mensagem será alterada, surgindo assim uma nova religião... a pretexto da minha pessoa. Palavras proféticas, as de Jesus de Nazaré... - E qual é a tua religião? - Já vo-lo disse: fazer a vontade do Pai. Entregar-se generosamente ao amor e à apaixonante aventura da busca pessoal de Deus. Eu não desejo credos nem tradições que fossilizem a alma humana. Os que aceitaram a minha mensagem jamais serão dogmáticos. São as metas (e não os credos) que devem unir os homens. E a que eu vos revelei é simples e cristalina: chegar ao Pai. Fazer a Sua vontade. Descansar nEle. Não pude conter-me. E saltando por cima das muitas questões que Eliseu guardava ainda no seu insaciável e inquieto coração, interessei-me pelo destino desta caótica Humanidade a que pertenço. - Em verdade vos digo – sentenciou com os olhos radiantes de esperança – que o futuro do mundo é esplêndido. As tribulações passarão. Chegará o dia em que os homens esquecerão rixas e interesses obscuros. Nesse dia, as nações da Terra, como um só povo, aceitarão a dupla mensagem que vos trago: que o Pai existe e que todos sois irmãos. O vosso destino é a luz e ninguém vos arrebatará esse direito. Então, só então, encontrareis a paz. Para chegar a isso tendes de aprender primeiro a gozar dos privilégios sem abusar deles, a dispor da liberdade como de um delicado recipiente de cristal que convém manejar com toda a delicadeza e a assumir o poder, recusando utilizá-lo para concretizar ambições pessoais. Tais são os indícios de uma alta civilização. - Então estamos muito longe...
A insinuação de Eliseu ficou no ar. O dispositivo de segurança em torno do berço, projectado para seiscentos pés, tinha detectado um target. O computador central transferiu o alerta, fazendo vibrar a ligação auditiva. Pus-me de pé. Alguém rondava ou se aproximava da colina. Uma discreta indicação foi o suficiente: o meu irmão compreendeu que algo se passava e, erguendo-se de imediato, olhou em silêncio o extraordinário Homem. Foi um olhar de admiração. Jesus correspondeu-lhe com uma piscadela de olho. Levantou as mãos e despediu-se com um lacónico: “Ide, pois...” Pelas onze e meia, o radar 2DT 1 confirmava os sinais infravermelhos. Alguma coisa se movia na radial 135, avançando lentamente na direcção norte praticamente em paralelo à encosta oriental do promontório. A posição coincidia com a segunda vereda: a que serpenteava pela referida encosta leste, até chegar ao cimo, onde continuava o Ressuscitado. Hesitámos. Conviria accionar o escudo gravitacional? Se fossem os discípulos, a julgar pelo caminho que tinham tomado, passariam a uns oitenta a cem metros a leste do berço. Era preciso que nos certificássemos. Enviámos um dos olhos de Curtiss, estacionando-o a cento e cinquenta pés de altitude sobre o eco. Ao identificar o grupo humano, respirámos, aliviados. Eram eles, de facto. Quinze minutos antes do meio-dia detiveram-se a curta distância do cume. O Mestre, de pé, esperava-os lá em cima. A partir dessa altura, com a ajuda do olho de Curtiss e do restante instrumental entregámo-nos a um febril trabalho de observação do grupo da Galiléia, principalmente, de análise do enigmático corpo do Rabi. *1 – Este tipo de radar, de alerta prévio (AP), caracterizava-se pelas suas grandes amplitudes. (no nosso caso PW, dois a vinte usec), baixa frequência de repetição PRF, cem a quatrocentos pps) e uma frequência de transmissão da ordem dos quinhentos a três mil megahertz (em bandas C a F). A sua grande amplitude permite a transmissão de potências muito elevadas (um a dez megawatts) que, juntamente com a sua baixa PRF, nos permitia uma detecção até duzentas e cinquenta milhas. O tipo de projecção – circular – girava trezentos e sessenta graus à volta de um eixo vertical fixo, com um
período lento: entre três e oito rotações por minuto. Os valores de abertura dessa face eram de um a dois graus em azimute e de vinte a trinta em elevação. Isso proporcionava-nos uma excelente resolução em azimute e uma boa cobertura em altitude. Com efeito, no incidente com o estranho objecto no monte das Oliveiras, o seu papel foi decisivo. (N. Do M.) O que aconteceu no cimo da colina não foi fácil de compreender. O Senhor saudou-os, convidando-os a que se aproximassem. O Zelota, mais impressionado que os demais, foi o último a chegar junto dEle. E, a uma ordem do Ressuscitado, os onze ajoelharam-se à sua volta. Então, levantando o rosto para o céu, pronunciou algumas solenes palavras. Mais do que falar, Jesus bradou, pleno de segurança, poder e majestade. Ao ouvi-lo, estremecemos. - Meu Pai, trago-te de novo estes homens, meus mensageiros! De entre os filhos da Terra, escolhi estes para que me representem, tal como eu vim representar- te. Ama-os e acompanha-os como me amaste e acompanhaste a mim! E agora, Pai, dá-lhes a sabedoria, já que ponho nas suas mãos todos os assuntos do Reino. Novamente, meu Pai, Te dou graças por estes homens e os deixo sob a Tua protecção... Aquilo parecia uma confirmação como mensageiros e embaixadores do Reino. Mas, por não sabermos o que tinha sucedido em vida do Mestre naquela montanha da Ordenação foinos impossível fazer uma ideia exacta da transcendência do que o Rabi dizia e fazia. (Durante o terceiro salto – creio que devo adiantá-lo -, a cena em questão repetir-se-ia com os doze, e, finalmente compreenderíamos o seu transcendente significado. A montanha da Ordenação, tal como a denominavam Jesus e os seus homens, foi o lugar onde os íntimos receberam a designação oficial como discípulos do Mestre, numa cerimónia, valha a verdade, desde há muito esperada por todos eles. Mas não nos adiantemos aos acontecimentos.) Concluída a prece, no meio de um silêncio respeitoso, o Ressuscitado aproximou-se de cada um dos presentes colocando as mãos sobre as suas cabeças. Em cada imposição, o Senhor fechava os olhos, permanecendo assim durante alguns segundos.
Só Filipe e Simão Pedro – os mais curiosos – se permitiram levantar ligeiramente os olhos, espiando os movimentos de Jesus. Terminada a imposição das mãos, pediu-lhes que se erguessem. E recuperando o seu bom humor, conversou com eles durante uma meia hora, recordando – como acontecera na praia de Saidan – os velhos tempos. Por último, pelas doze horas e quarenta e cinco minutos dirigiu-se a Simão, o Zelota, abraçando-o durante quase um minuto. Não houve palavras naquele abraço efusivo, mas os olhos do patriota encheram-se de lágrimas. Logo a seguir, um por um, repetiu a comovente despedida. Por fim, voltando ao centro do círculo formado pelos discípulos esfumou-se no ar... O meu companheiro olhou-me, perplexo. Eu, impotente, apenas franzi as sobrancelhas, rendendo-me à evidência. Desta vez não houv anúncio de uma terceira aparição. Significava isso que as presenças de Jesus na Galileia tinham terminado? Após uns minutos de confusão, os discípulos iniciaram a viagem de regresso a Nahum. Por onde começar? O pouco que captámos com os nossos aparelhos foi tanto e tão inconcebível que estive quase a render-me e a passar por cima do capítulo das análises do chamado, pelos crentes, «corpo glorioso de Jesus Cristo». Uma expressão muito feliz que, no entanto, me atreveria a modificar pela de «corpo milagroso», se bem que os milagres não existam... Também sei que a ciência ortodoxa sorrirá com suficiência perante o que vou expor. Tal não me preocupa. Chegados a este ponto poderá importar-me a sua estúpida rigidez? Que com o fim de não fatigar o leittor deste diário, limitar-me-ei a expor sumariamente as descobertas com que a divina providência houve por bem prodigalizar-nos. Primeira: aquele corpo como imaginávamos, não tinha sistema circulatório. Durante a longa hora que o Ressuscitado permaneceu ao alcance dos detectores de ultra-sons, tanto as explorações à superfície (a 7,5 MegaHertz como as de maior penetração (numa frequência de 3,5 megahertz, resultaram negativas. Nos ecrãs não obtivemos imagens de artérias, veias, vasos capilares, nem do sistema linfático. Nada!
Segunda: apesar dessa ausência – de uma coisa vital para um ser vivo como o homem -, o corpo apresentava uma formação aparentemente perfeita do sistema muscular, pelo menos no que se refere aos músculos voluntários. Os viscerais, pelo contrário, não contavam... A natureza e disposição dos primeiros – com as suas estrias característicasnão se diferenciam dos nossos 2. Essa estrutura parecia sustentada por algo semelhante a uma estrutura óssea. E digo pparecia porque o suposto esqueleto não era visível com os ultra-sons, traduzindo-se em zonas de sombra. Um dos aspectos mais desconcertantes foi o estranho líquido (as palavras constituem, de novo um rude obstáculo) que impregnava – sem necessidade de vasos nem de qualquer rede capilar – o que talvez pudéssemos definir como um tecido conjuntivo no qual assentava a massa esponjosa. A sua circulação actuava (?) como a água que empapa uma esponja.foi impossível de precisar com exactidão, embora suspeitemos de que poderia ter alguma relação com a solução de Ringer, desempenhando, entre outros, o importantíssimo papel – de captador do oxigénio do ar, que seria difundido pela totalidade das unidades celulares. (Este postulado, obviamente, tem um carácter especulativo.) *1 – Como já pormenorizei noutras alturas, Cavalo de Tróia seleccionou o mecanismo ultra-sónico pela sua natureza inofensiva e pelas suas características especiais, próprias para a exploração e posterior conversão em imagens de órgãos internos, assim como para o controlo do fluxo sanguíneo, coração, olhos e tecidos moles em geral. Com intensidades que oscilam entre os 2,5 e os 2 8 milivátios por centímetro quadrado e com frequências aproximadas dos 2,25 megaciclos, o dispositivo de ultra-sons transforma as ondas iniciais em outras audíveis, mediante uma complexa rede de amplificadores, controlos de sensibilidade, moduladores e filtros de bandas, todos eles miniaturizados. Com o fim de dar solução ao difícil problema do ar inimigo dos ultrasons que as medições só podiam efectuar-se à distância, os especialistas do Projecto idealizaram um revolucionário sistema, capaz de reter e guiar os citados ultra-sons através de um finíssimo cilindro ou tubagem de luz laser de baixa energia, cujo fluxo de electrões ficava congelado no preciso instante da sua emissão. No caso que nos ocupa, uma vez que o corpo se encontrava a uma distância de quatrocentos metros, as bandas foram reforçadas por um duplo gerador de alta frequência. (N. Do M.) 2 – Os músculos apresentavam as típicas partes contrácteis e os tendões. As primeiras, formadas pelos elementos cilindróides alongados – as fibras musculares
propriamente ditas – providas de numerosos núcleos. Tudo normal, incluindo a fina e transparente membrana que cobre a citada fibra muscular. Quanto aos tendões, também eram de natureza fibrosa, com os correspondentes motores e sensitivos, cujos filetes se ramificam dentro dos habituais corpúsculos musculotendinosos de Golgi. (N. Do M.) 3 – Como é do conhecimento dos especialistas. A solução de Ringer, de natureza salina, - é composta de cloreto de sódio, cloreto de potássio, cloreto de cálcio, bicarbonato de sódio, fosfato monossódico, dextrose e água. É um meio ideal para a conservação de vísceras, sendo utilizada também em todas as formas de desidratação, acidose ou alcalose, assim como para melhorar a actividade renal. (N. Do M.)
Terceira: aquele corpo não apresentava vísceras. Quer dizer, não tinha – ou pelo menos nós não conseguimos localizá-los – aparelho digestivo, fígado, pâncreas, etc. , assim como pulmões... e coração! Talvez isso justificasse o facto de Eliseu não ter encontrado o pulso e de o Ressuscitado se ter negado a comer. O que é que captámos no interior? Uma coisa tão invulgar que me sinto incapaz de a definir. A ressonância magnética nuclear e os ultra-sons revelaram um autêntico torvelinho de filamentos e zonas espaciais, de um rico cromatismo, vibrando e fracturando-se a velocidades vertiginosas, com as nuvens atómicas em perfeita ordem! Se tivesse de descrever aquele vazio, talvez me inclinasse pela pobre e inexacta expressão de «forno gerador». Mas era, seguramente, muito mais... Nesta deficiente exposição, entre os muitos erros que, por certo, estou a cometer, há um que posso rectificar. Embora não tivéssemos conseguido localizar o aparelho digestivo, pelo menos encontrámos um elemento residual, que esclarecia em parte o incompreensível fenómeno da voz e das gargalhadas de Jesus. Para um ser humano que não tivesse pulmões, a coluna de ar necessária para fazer vibrar a glote deixaria de existir e os sons dificilmente aflorariam à garganta. O corpo de Jesus apresentava uma boca e uma faringe normais, com um tubo (?) rudimentar e curto que se fundia com o forno interno. A única explicação possível para a fala de Jesus podia estar na substituição do ar por uma série de impulsos eléctricos (?) que faziam vibrar a referida área da glote. Quarta: tanto os sentidos do ouvido e da vista como o do tacto
apresentavam estruturas idênticas às humanas, ainda que as conexões cerebrais fossem imperceptíveis, devido à especialíssima configuração e natureza daquilo que - arriscando muito – poderíamos qualificar de cérebro. O aparelho lacrimal, por exemplo era perfeito, à excepção das vias lacrimais que, no homem normal, conduzem o excedente às fossas nasais. Nele não existia. Quanto à pele (?), estávamos perante outro mistério. Tanto o meu companheiro como eu tínhamo-la tocado e contemplado à vontade. Nem na praia de Saidan nem na montanha da Ordenação captámos diferenças substanciais. A temperatura corporal, inclusivamente parecia correcta. Mas, sendo assim, porque é que aquele corpo não emitia radiação infravermelha? O bombardeamento teletermográfico serviu apenas para corroborar aquilo que já sabíamos 1. *1 – Em páginas anteriores, o Major explica assim alguns dos fundamentos do sistema de teletermografia dinâmica: A detecção da temperatura cutânea à distância realizou-se graças à propriedade da pele humana, capaz de se comportar como um emissor natural de radiação infravermelha ou IR. Tal como se sabe, pela fórmula da lei de Stephan-Boltzmann (W = eJT4), a emissão é proporcional à temperatura cutânea, e dado que T se acha elevada à quarta potência, pequenas variações no seu valor provocam aumentos ou diminuições assinalados na emissão infravermelha (W: energia emitida por unidade de superfície; s: factor de emissão do corpo considerado; J: constante de Stephan-Boltzmann; e T: temperatura absoluta). Em numerosas experiências, iniciadas por Hardy em 1934, tinha sido possível comprovar que a pele humana se comporta como emissor infravermelho, semelhante ao corpo negro. (Este espectro de radiação infravermelha emitido pela pele humana é amplo, com um pico máximo de intensidade fixado em 9,6Ic). O nosso dispositivo de teletermo grafia consistia por conseguinte, num aparelho capaz de detectar à distância intensidades de radiação infravermelha. Basicamente consta de um sistema óptico que focava a IR sobre um detector. Este era formado por substâncias semicondutoras (principalmente Sbin e Ge-Hg) capazes de emitir um sinal eléctrico mínimo de cada vez que um fotão infravermelho de um determinado conprimento de onda incida na sua superfície. E embora o detector fosse métrico, Permitindo detectar a IR procedente de um único ponto, o Cavalo de Tróia tinha conseguido ampliar o seu raio de acção mediante um complexo sistema de projecção, formado por miniespelhos rotativos e oscilantes. A alta velocidade dessa projecção permitia analisar a totalidade do corpo em questão (neste caso de Jesus, várias vezes por segundo. Isto por sua vez, tornava possível a obtenção de imagens dinâmicas. A seguir à emissão,,o sinal eléctrico correspondente à presença de fotões infravermelhos era amplificado e filtrado, sendo conduzido posteriormente a um osciloscópio miniaturizado.
Nele, graças à alta voltagem existente e a uma projecção, que ficava armazenada na memória de cristal de titânio do computador. Naturalmente, o nosso teletermógrafo dispunha de uma escala de sensibilidade térmica (0,1, 0 2 ou 0,5 graus centígrados, etc.) e de uma série de dispositivos técnicos adicionais que facilitavam a medição de gradientes térmicos diferenciais entre zonas do termograma (isotérmico, análise linear etc.). As imagens assim obtidas podiam ser de dois tipos: em escala de cinza (muito adequada para o estudo morfológico dos vasos) e de cor (entre oito e dezasseis), muito útil para efectuar medições térmicas diferenciais com precisão. Ambos os sistemas podiam ser utilizados complementarmente., (Nota de J. J. Benitez). O tegumento externo ou pele, graças às imagens macroamplificadas revelou-se como um envoltório normal com as suas duas camadas – a derme e a epiderme -, com o pigmento correspondente nas células de Malpighi, mas com algumas diferenças radicais. Por exemplo: as papilas dérmicas eram de um só tipo (nervosas). Faltavam igualmente as glândulas sudoríparas. Como pudémos constatar aquando da passagem do maarabit, pura e simplesmente não transpirava. Os órgãos da sensibilidade térmica, tanto os receptores sensíveis ao frio (corpúsculos de Crauss), como os do calor (rufini) eram normais. Isso confundiu-nos muito, muito mais. Que finalidade poderiam ter num organismo que não necessitava de respiração cutânea e que – embora não chegássemos a constatá-lo – talvez fosse igualmente insensível ao frio? Os órgãos da sensibilidade dolorosa apresentavam-se perfeitamente diferenciados, através de uma rede de terminais nervosos que se ramificava nos interstícios do epitélio cutâneo. Compreendi então porque é que Jesus tinha retirado as mãos tão precipitadamente do fogo e porque é que sacudiu uma das sandálias das incómodas areias da praia de Saidan. Quinta: não possuindo aparelho urogenital interno, aquilo que entendemos por funções secretoras, excretoras e de reprodução era desnecessário. Isso, obviamente, levava-nos a um não menos interessante duplo dilema. Supondo que o necessitasse como efectuaria as eliminações metabólicas e a transmissão da vida? Esta última questão afigurou-se-nos deslocada. Por vezes esquecíamos que aquele corpo não se encontrava sujeito às leis da nossa natureza... À medida que íamos avançando, as descobertas confundiam-se
cada vez mais. E o clímax chegaria com as análises do sistema nervoso e da zona, sem dúvida mais nobre de tão prodigioso organismo. Sexta: não houve dificuldades de maior para constatar que aquele corpo – esta palavra é cada vez mais inadequada – dispunha de algo muito semelhante aos nossos sistemas nervosos central e periférico. O primeiro – apesar das dificuldades para penetrar o osso com os ultra-sons – apresentava uma forma conhecida: uma longa haste, com o correspondente engrossamento no extremo superior. Presumivelmente, encontrava-se alojado no condutor ósseo crânio-raquidiano (aquilo a que chamamos eixo cérebro-espinal ou neuro-eixo,). O periférico, por seu turno, apresentava-se ramificado por todo o revestimento muscular, partindo do neuro-eixo. Uma infinidade daqueles cordões nervosos ou nervos, perdia-se no vibrante forno interior. Mas a grande surpresa verificar-se-ia, como ia dizendo, ao explorar a protuberância superior do sistema nervoso central, que a medicina define como encéfalo,. Com a inestimável ajuda das imagens obtidas por ressonância magnética nuclear, a partir do olho de Curtiss com o fim de obter o necessário retorno das secções transversais, o interior do crânio do Ressuscitado apresentou-se diante dos nossos olhos atónitos como um mundo irreal. A massa encefálica não existia como tal. Cérebro, cerebelo, dura-máter, bolbo raquidiano, hipófise, etc., tinham sido substituídos por um esferóide – uma espécie de supergaláxia – luminescente, em perpétua palpitação e constituído por triliões de circuitos de algo semelhante às substâncias branca e cinzenta, com corpos-celulares, hastes protoplásmicas e cilindros-eixos... puramente atómicos. A nível teórico e especulativo, imaginamos que aquela intrincada teia de aranha desempenharia as mesmas funções que os nossos hemisférios, ventrículos, etc. Mas não podemos assegurá-lo. O certo é que aquele poderoso encéfalo imaterial, parecia regular as operações motrizes, em estreita colaboração com o sistema periférico. Duvidamos, naturalmente, que existisse qualquer tipo de rede nervosa visceral ou vegetativa.
 *1 – A técnica RMN (ressonância magnética nuclear) foi estabelecida pelos professores Bloch e M. Purcell, da Universidade de Harvard, que fixaram as bases experimentais para a espectroscopia da RMN. Muito antes, os cientistas já sabiam que os núcleos atómicos dispõem de um momento angular derivado da sua propriedade intrínseca de rotação: o spin. (Não é meu propósito entrar aqui e agora em polémicas, mas, como já pormenorizei, na devida altura, a estrutura actual da mecânica quântica está viciada de raiz. Daí que não possa aceitar de modo algum a formulação do princípio do spin. Por exemplo: os físicos, incapazes de explicar satisfatoriamente o efeito Zeeman, criaram o conceito de momento angular do referido spin, construindo assim um modelo matemático dificilmente sustentável. Simplesmente – e ao falar dos swivel creio que já o referi -, aquilo a que os cientistas chamam «spin» é algo de muito diferente. Se considerarmos uma rede espacial de M dimensões, a deformação nos dois eixos axiais orientados ortogonalmente e que se cruzam num swivel, ou ponto espacial,, dará lugar a um efeito que, no caso de um campo electrostático ou magnético, é representado pelos físico-matemáticos por um vector, atribuindo-lhe um número quântico. Grave erro, no meu entender.) Pois bem, feito este esclarecimento, estando os núcleos electricamente carregados, o spin corresponde a um fluxo de corrente à volta do eixo do referido spin, que gera por sua vez um pequeno campo magnético. Só os núcleos com um número ímpar de nucleões (protões ou neutrões) têm um spin total ou completo e apresentamse, por conseguinte, à espectroscopia por RMN. Entre esses núcleos conta-se o protão (H-1), que é o núcleo de 99,98 por cento de todos os átomos de hidrogénio que existem na Natureza; o de carbono-13 (C-13), que é o núcleo de 1,1 por cento de todos os átomos de carbono; e o do fósforo-31 (P- 31), que é o de todos os átomos de fósforo. (N. Do M.)
A perfeita ordem dos núcleos atómicos daquele «corpo» e do seu «encéfalo» - desafiando toda a entropia – facilitou-nos as coisas. Mas, nós, naqueles momentos de confusão não chegámos a descobri-lo. Mais tarde, os especialistas de Cavalo de Tróia ao analisarem a documentação, depararam com uma característica daquele supercérebro que, com a evolução das pesquisas, culminaria numa das mais extraordinárias descobertas da nossa era. Uma revelação científica que, se algum dia for proclamada pública e oficialmente, abalará os alicerces da Humanidade, enchendo de alegria e optimismo – penso eu – filósofos, pensadores e, naturalmente, todas as religiões. Estou a referir-me àquilo que, sem lugar para dúvidas, poderia ser considerado como o habitáculo, suporte ou receptáculo (as definições terminológicas mostram-se
neste caso curtas e pobres) da alma humana. Seria impossível desenvolver aqui a infinidade de experiências levadas a cabo pelos meus compatriotas, com base na nossa descoberta acidental e que, insisto, os conduziu à constatação científica desse ente em que milhões de seres humanos crêem pela fé. Acho, porém, que é meu dever referir alguns dados – os mais significativos -, com a única finalidade de desvendar o feliz acontecimento. Tudo começou quando, numa das áreas daquele filamentoso e singular encéfalo – que vinha a corresponder ao córtex do terceiro ventrículo, sob o tálamo -, os cientistas, praticamente por acaso 2, detectaram átomos de um gás nobre (o crípton). Ao todo, oitenta e seis conjuntos biatómicos que giravam em órbitas comuns. Os planos orbitais, sensivelmente paralelos, dispunham de um eixo, comum que, por sua vez, descrevia um movimento vibratório harmónico cuja frequência e amplitude estava em função da temperatura (0,2 megaciclos para trinta e cinco graus centígrados). Num primeiro momento, os investigadores não prestaram demasiada atenção a esses átomos. Na realidade, desde muito antes, alguns laboratórios que procediam a ensaios com a fecundação de óvulos, já tinham detectado a sua presença no interior de tais óvulos (concretamente, na desoxirribose). Estes átomos de crípton encontram-se nos extremos da cadeia helicoidal do ácido desoxirribonucleico, formando vários pares: os oitenta e seis já mencionados.
 
*1 – Como é do conhecimento dos especialistas em RMN, este tipo de espectroscopia exige que o corpo a explorar seja previamente submetido a um campo magnético, com o fim de ordenar” os seus átomos. Só então podem enviar-se as ondas propriamente ditas. Geralmente, na ressonância magnética nuclear aplicam-se dois campos às células ou tecidos. O primeiro, mais intenso, provoca a orientação dos dipolos nucleares (hidrogénio-1, carbono-13 e fósforo-31). Então, o dipolo de cada núcleo alinha-se no sentido do campo ou contra ele. Ao dirigir o segundo campo – uma radiação electromagnética na zona da radiofrequência do espectro – chega uma altura em que esse tipo de núcleos ressoam, ou seja absorvem os radiofotões. Por exemplo, num campo magnético de uma intensidade de oitenta e quatro mil gauss, o núcleo de hidrogénio-1 ressoará a uma frequência de uns trezentos e sessenta megahertz (trezentos milhões de ciclos por segundo). O do fósforo-31 fá-lo-á a 146 megahertz e o do carbono-13 ressoará à razão de
noventa megahertz. A partir desses sinais é possível reconstituir, em imagens qualquer parte do corpo, com ajuda de um computador. Os nossos sistemas de RMN desenhados pelos peritos da Technicare Corporation, de Ohio, tinham sido dotados ,de um íman de 0,15 tesla (mil e quinhentos gauss) e tinham sido reforçados por um completo dispositivo – baseado nos squid -, destinado à medição de interferências quânticas supercondutoras, capaz de registar ínfimas variações de natureza magnética. (O campo normal terrestre – entre 0,2 e 0,5 gauss – foi «apagado» pelo Pai Natal que pôs em écran o squid à relação de dez levantado a menos sete gauss.) Estas medições atingiam até a centésima- milésima parte do gauss. Um desses squid instalado na zona inferior da vara de Moisés, constava, basicamente de uma bobina de medida de uma sonda criogénica da necessária união e do circuito ressoante ou detector final. Nas primeiras aparições de Jesus ressuscitado, como já referi, revelaram-se de extrema utilidade. (N. Do M.)
2 – Embora, como disse, eu já não acredite no acaso, o certo é que a localização destes oitenta e seis pares de átomos de crípton foi considerada como fruto do acaso. Basta dizer que, por exemplo, num milímetro cúbico de gás crípton rarefeito podem contar-se cerca de dez mil milhões de átomos livres. (N. Do M.) Ao que parece, segundo informações que me chegaram, tais séries ordenadas de átomos só tinham sido detectadas nas células germinais de homens e animais pluricelulares, embora, com o passar do tempo, a descoberta se alargasse ao resto das células. Mas a primeira das grandes surpresas surgiu quando um dos especialistas teve a genial e intuitiva ideia de analisar a distribuição electrónica de tais átomos. Como os peritos em física quântica sabem, os electrões ocupam posições instantâneas, cuja função probabilística se rege pelo acaso. Este princípio do indetermimismo – comum no mundo microfísico – era, sagrado. E digo era porque, como veremos, a dialéctica dos cientistas não tardaria a ser pulverizada. Em tais átomos de crípton, as posições apresentavam-se regidas por um sincronismo desconcertante! Os átomos homólogos nas cadeias de crípton dos vários espermatozóides investigados apresentavam uma distribuição semelhante e sincrónica; como se fossem relógios que funcionassem sincronicamente, ligados, talvez, por ocultas emissões de radiação, que estimulassem esse comportamento, ou como se um misterioso fenómeno de ressonância obrigasse todos os electrões a reger-se pelo mesmo padrão. Pensou-se que a proximidade das células em estudo podia provocar tal efeito de ressonância. Mais tarde – com idêntica surpresa – os pesquisadores puderam comprovar que todos os seres vivos se comportavam nas suas cadeias de átomos de crípton de idêntica forma. (Parece mesmo que este fenómeno é universal e que o código genético encerrado no ácido desoxirribonucleico não é mais que um dos elos dessa cadeia de factores que
explicam o comportamento da matéria, animada pela vida. Uma vida, no fim de contas, inspirada por Deus.) Pois bem, esta cadeia de átomos de crípton apresenta uma dupla função: a de armazenagem, no seio dos seres vivos, de uma informação codificada sobre todos os possíveis seres orgânicos integrados no universo e, em segundo lugar, a captação no meio ecológico circundante de toda a espécie de informações. Ao comparar estas últimas com as primeiras, o ser vivo estaria em condições de provocar as necessárias mutações, dando lugar a um indivíduo novo ou diferente. Por outras palavras: estes átomos de crípton contêm as chaves codificadas para a formação de todas as possibilidades. De seres orgânicos que possam dar-se na Natureza. As cifras são estonteantes: suspeita-se que as possibilidades de mutações poderiam ultrapassar os dezoito milhões. As im, cada mudança de um electrão no seio de uma subcamada orbital, das oito que existem em cada átomo de crípton, codificaria um philum. E cada um dos quatro saltos electrónicos representaria, consequentemente outros tantos ramos. A morfologia que um animal adoptasse, no caso de se produzir uma mutação, estaria em função das mencionadas posições electrónicas dos electrões dos restantes átomos do pequeno núcleo de crípton. Este é a matriz, por conseguinte, de toda a filogenia dos seres vivos possíveis no universo, gravada em forma de código. Algo de transcendente, portanto! Mas entremos já na descoberta final e mais sugestiva. Qualquer observador medianamente informado poderá argumentar: Como é possível determinar cientificamente a existência de um “ente” adimensional, como se supõe que é a alma, e portanto inacessível ao controlo dos instrumentos de um laboratório? Partindo do postulado de que a Ciência valoriza sempre a existência de um factor em função dos efeitos que produz, talvez estejamos em condições de responder a essa pergunta. Após a descoberta desses átomos isolados no encéfalo do Ressuscitado, os cientistas investigaram uma considerável amostra de cérebros humanos, comprovando que a tal nuvem ou núcleo se encontrava sempre na mesma zona e a idêntica profundidade, no hipotálamo. (Este gás, como é sabido, não se combina com nenhum outro corpo ou elemento químico. A sua presença era, pois, muito estranha; e mais ainda tendo em conta o seu reduzidíssimo volume Era pois definitivamente claro que não se encontravam perante um fenómeno aleatório. E uma noite, em pleno exame da coroa electrónica desses átomos – com o objectivo de observar possíveis alterações quânticas por prováveis transferências energéticas – os nossos investigadores detectaram «algo» de surpreendente. O corpo de um dos voluntários jazia numa câmara especialmente preparada da qual tinham sido eliminados todos os resíduos de gás crípton. Tinha uma série de sondas fixadas no seu crânio (zona parietal direita). Embora submetido a anestesia local, os seus restantes mecanismos reflexos e conscientes não se encontravam inibidos. Toda uma rede de detectores de funções fisiológicas tinha sido distribuída pelo seu corpo. Num ecrã, os computadores projectavam cifras e parâmetros perfeitamente ordenados
em colunas. Cada um desses dígitos reflectia a situação probabilística de cada electrão, em relação a um tomado como referência em cada instante, mas com expressão de tempo factorizado (em movimento ao retardador). Quando uma cifra saltava para outra coluna, registava-se assim um salto quântico para outro nível energético. Essa era a finalidade do estudo. Este problema poderia ser também colocado em muitos outros campos da Ciência. Por exemplo, na astronomia. Uma pessoa não informada poderá contrapor: como é possível averiguar a distância de estrelas situadas a milhões de anos-luz? Um astrónomo sorriria compreensivo e far-lhe-ia ver que certas estrelas – as «cefeidas», emitem um fluxo de luz intermitente, de modo que no intervalo entre dois máximos, o seu logaritmo varia proporcionalmente ao seu brilho. A comparação do brilho aparente e real é a base de estimativa para essas distâncias estelares. (N. Do M.) De súbito, como ia dizendo, os peritos ficaram paralisados. O ecrã da equipa detectora foi desligado e os cientistas lançaram-se sobre as colunas de números. Aquilo era impossível. Os dígitos mantinham uma relação sequencial, ou seja, apresentavam-se distribuídos harmonicamente, segundo uma função periódica. Os electrões, que se deveriam! Localizar nos seus níveis energéticos de um modo anárquico, pareciam ultrapassar o teórico e obrigatório caos, regulando a sua função probabilística e rompendo assim com a suposta lei imutável do referido indeterminismo microfísico. A impressão foi tão forte que, naquela altura, a maioria procurou uma explicação no simples acaso. Mas não. A experiência, repetida até à saciedade e em indivíduos diferentes, tinha sempre o mesmo resultado: aqueles movimentos harmónicos dos electrões corticais do átomo de crípton coincidiam com os impulsos nervosos emitidos pelo córtex cerebral dos voluntários em experimentação. Por outras palavras: com os movimentos conscientes dos seus braços, pés, mãos, vozes, etc. No entanto, não acontecia o mesmo com os movimentos chamados reflexos ou com os impulsos emitidos pelo sistema neurovegetativo. Inicialmente, chegou a propor-se a hipótese de que tais movimentos codificados no córtex electrónico de crípton pudessem estar condicionados: que fossem, em suma, um efeito dos neuroimpulsos emitidos pelo encéfalo do ser vivo. Mas a verdade é que não se chegava a compreender a funcionalidade desse código num átomo isolado de um gás inerte.
Um ano mais tarde verificar-se-ia uma nova e assombrosa – eu diria mesmo vital – descoberta: aqueles movimentos harmónicos dos electrões da coroa do átomo PRECEDIAM (isso mesmo: precediam!) a conduta voluntária dos homens e mulheres sujeitos à experiência. O avanço, em questão oscilava à volta de um milionésimo de segundo sobre as reacções neurofisiológicas do organismo. Por palavras mais simples: era como se aqueles electrões fossem a alma do indivíduo, ditando as ordens necessárias ao corpo. Isto, obviamente, parecia absurdo. Os electrões não têm vida. Mas então, se não se moviam como consequência do acaso, devia existir um factor, independente que fosse capaz de exercer um controlo sobre eles. A conclusão final – para não tornar mais longo este relato – foi tão simples como transcendental: esse factor invisível, intangível e desconhecido tinha de ser aquilo a que a filosofia e as religiões chamam alma. Pela primeira vez na história, a sua constatação científica era um facto. A Ciência, uma vez mais, vinha em auxilio da religião... Como é fácil de imaginar, estas experiências não se limitaram exclusivamente ao campo humano. Os cientistas, dominados pela curiosidade quiseram pôr a claro uma velha incógnita: teriam os animais alma, tal como a concebemos nós os seres inteligentes? E as investigações estenderam-se a muitos outros seres orgânicos – unicelulares e pluricelulares -, incluindo vírus e compostos orgânicos auto-reproduzíveis. Os resultados foram desanimadores. Detectaram-se átomos isolados de néon e xénon em muitos seres vivos e milhões de átomos de gás hélio nos sinais dotados de estruturas nervosas superiores. Houve mesmo um lampejo de esperança quando os átomos de crípton apareceram nos mesmos encefálicos dos inteligentes símios. Mas as suas nuvens, de crípton moviam-se segundo a função probabilística habitual no resto dos átomos na Natureza. Não foi registado nenhum código. Persiste, portanto, a dúvida até hoje: existirá uma alma nos seres biológicos não humanos? Curiosamente, Jesus de Nazaré, sempre que se referiu à alma fê-lo em relação directa com os seres dotados de inteligência e
vontade... Após estas sensacionais descobertas as investigações adquiriram um ritmo vertiginoso. Nas nuvens atómicas de crípton de cada encéfalo humano foram localizadas as funções de três destes átomos. Dois tinham um carácter emissor e o terceiro receptor. Os primeiros são os responsáveis pelo envio de todas as informações – convenientemente codificadas – que o sistema nervoso cortical pode fornecer (1). Um pouco se transmitisse uma espécie de código de morse para um pequeno emissor «o hélio». Produz-se então o efeito cortical de ressonância entre a coroa electrónica dos átomos de hélio e os de crípton e este, por sua vez, volta a transformar o código recebiddo em outro de características semelhantes, mas inteligível para a alma. Salvo as devidas distâncias o átomo de crípton faria as funções de uma espécie de receptor de televisão ou de rádio que recebe e emite para a alma, numa linguagem que só ela conhece, tudo o que acontece no homem e à sua volta. Por seu turno os átomos receptores seguindo um processo inverso, enviam ao corpo uma série de instruções procedentes da alma. Essas mensagens são catapultadas dos átomos de crípton para milhões de átomos de hélio, modificando-se os seus estados quânticos de forma que irradiam um quantum de frequências menores que as da luz (radiação infravermelha). A partir daqui, outro tipo de órgãos nervosos – também ainda desconhecidos pelos fisiólogos -, que funcionam de maneira semelhante aos pares termoeléctricos, transformam essas mensagens termomoduladas em impulsos nervosos canalizados pelas redes neuronais. Estes órgãos nervosos estão distribuídos nas áreas motoras de ambos os lóbulos frontais; concretamente, nas zonas situadas atrás e debaixo do grande sulco central. Como o Mestre costumava dizer: «Quem tem ouvidos para ouvir, que oiça...» Voltando ao corpo glorioso, do Ressuscitado, à maneira de resumo, eis o que se nos oferece dizer – dentro das tremendas limitações que isso implica. 1. Aquela estrutura, aparentemente humana, não estava sujeita aos grandes constrangimentos da natureza humana terrena. Isso, evidentemente, colocava-a em vantagem. As chamadas
necessidades fisiológicas básicas não contavam para ela. 2. Ao estudar todo o desenvolvimento das aparições, chegámos à conclusão de que, por razões que nos escapam, a formação do dito corpo experimentou diferentes e bem definidas fases ou processos de materialização,, passando por etapas nebulosas,, cristalinas ou transparentes – nas quais o Mestre não permitiu que se tocasse – e de uma materialidade externa perfeitamente delineada. Nas primeiras etapas – digamos, de semiformação -, tais presenças provocaram intensíssimos campos magnéticos (de cerca de duzentos mil gauss), que, sem dúvida, foram responsáveis pelo arrasto das espadas, taças metálicas, etc., no interior do Cenáculo. É impossível comprovar se esses diferentes estádios do corpo glorioso de Jesus correspondem a outras tantas formas de vida, independentes entre si, às quais o homem pode ter acesso depois da morte, ou se, pelo contrário, todas elas constituem um único e escalonado processo. *1 – Todas as imagens ópticas, acústicas, olfactivas etc. Recebidas através dos neurónios ligados aos órgãos dos sentidos, procedentes dos estímulos do mundo exterior, todas as imagens armazenadas na memória, todo o desenvolvimento dos processos mentais, são remetidos por certas vias nervosas até certos órgãos, ignorados ainda pela neurologia onde se produz uma reacção química exotérmica que, ao libertar calor, excita o estado quântico de uma rede de átomos livres de hélio. (N. Do M.). 3. Seja como for, o certo é que o estado terminal que nos foi dado ver e examinar parecia estar orientado – nas suas funções nobres e básicas – para algo que só o ser humano mortal pode sonhar e ansiar: O CONHECIMENTO. Aquele supercérebro, dominando e dominante, tinha de ser uma fonte incalculável de sabedoria, de emoções e de sentimentos. 4. Se aquela – como assegurou o Mestre – era uma das formas de vida depois da morte, devo confessar, humilde e sinceramente, que já não temo essa passagem... E mais: rogo ao Pai Todo-Poderoso que encurte os meus dias sobre a Terra e me permita comprovar quanto sei e vislumbro. O medo de morrer, pela graça de Jesus de Nazaré, foi superado. Que o Pai Universal – o de todos – o abençoe...
23 DE ABRIL, DOMINGO Tenho de o reconhecer. A nossa missão também se viu humilhada por erros e fracassos. Alguns, como o daquele 23 de Abril, primeiro dia da semana para os Judeus, poderia ter-nos custado muito caro. Suponho que muitos desses problemas foram inevitáveis. Mesmo assim, dada a natureza do nosso trabalho, não temos justificação. Como se verá, um erro de rota ou uma simples falta de coordenação podia originar uma catástrofe e até a morte dos exploradores. Na realidade, eu só tive consciência do sucedido quando a tarde já ia longa. Tudo começou nessa manhã... Ao examinar o programa do dia, vimo-nos confrontados com um difícil dilema: teriam terminado as aparições do Mestre na Galileia? Sendo assim, quais eram os pensamentos e intenções dos discípulos? Regressariam a Jerusalém? Os textos de Marcos e de Lucas – incluindo os chamados Actos dos Apóstolos – referem um duplo acontecimento que, evidentemente, não tinha ainda tido lugar: a derradeira aparição do Senhor na Cidade Santa e a sua ascensão (?) aos céus. Nos Actos (1,3 e 2,1) encontramos possíveis pistas, em relação à data em que poderão ter sucedido tão extraordinários acontecimentos. A estes mesmos (aos discípulos) diz o versículo três do mencionado primeiro capítulo dos Actos, se apresentou, depois da sua paixão, dando-lhes muitas provas de que vivia, aparecendolhes durante quarenta dias... Desde a madrugada de domingo, 9 de Abril, dia da Ressurreição, até à segunda aparição no yam, tinhamse passado dezoito dias. Se Lucas, presumível autor dos Actos, estava certo, a última das presenças de Jesus e a sua enigmática ascensão deveriam registar-se por volta de 18 de Maio. Esta data era corroborada, implicitamente, pelo primeiro dos versículos do capítulo dois do referido texto de Lucas: Ao chegar o dia de Pentecostes... Quer dizer, concluído o período de cinquenta dias que medeia entre a Páscoa e a referida festa das colheitas e da renovação da Aliança. Portanto, o dia da descida das supostas línguas de fogo (?) sobre
as cabeças dos discípulos era anterior à Ascensão. Aceitando como correctos os textos sagrados (uma suposição problemática, tendo em conta os erros e contradições apontados), tudo isto significava que, a partir daquele domingo 23 Cavalo de Tróia dispunha de trinta dias para o remate da segunda fase da exploração. Um período de tempo minuciosamente estudado em que, no entanto, as linhas mestras da investigação deviam ajustar-se ao natural desenrolar dos factos. Mas quais iriam ser esses acontecimentos? Os evangelistas, como de costume são parcos nas suas narrações e esse lapso de um mês estava em branco. A primeira medida a adoptar, evidentemente, consistia em averiguar os propósitos dos íntimos. Agora a nossa actuação, repito, dependia dos seus movimentos. Por exemplo: se optassem por regressar de imediato à Judeia os planos teriam de ser modificados. Um dos trabalhos – a visita a Nazaré – constituía uma peça-chave na reconstituição da infância e juventude de Jesus. De modo que, de mútuo acordo, considerámos que a minha presença em Saidan era obrigatória e urgente. Além disso, a questão da doença do pai dos Zebedeus continuava de pé. Assim, com a frescura do amanhecer abandonei o módulo, encaminhando-me em boa passada para a vizinha aldeia de pescadores. O erro, fruto da pressa, consistiu em não coordenarmos as nossas respectivas actividades para essa jornada. Eliseu – foi isso que eu percebi – permaneceria no berço, entregue à classificação, estudo e codificação do volumoso material científico obtido na recente aparição do Rabi. Quem iria imaginar que ele mudaria de ideias? Na bolsa de oleado, depois de muito reflectir e puxar pela cabeça, incluí um artefacto simples, destinado a resolver o problema auditivo de que sofria o chefe dos Zebedeus: uma seringa auricular de ferro tosco, de vinte centímetros de comprimento por cinco de diâmetro, dotada de uma agulha oca, do mesmo material, apoiada por um êmbolo maciço de madeira. O instrumento não chocava com os modos e maneiras porque, à época, já se conhecia desde há muito tempo este tipo de aparelhos. (Ebers – 1550 anos antes de Cristo – fala de seringuinhas para lavagens muito comuns, por exemplo, no
tratamento de obstruções intestinais.) Eu devia tê-lo previsto. Aquela movimentação de pessoas não era normal. Provenientes da margem ocidental do lago, de Nahum e dos caminhos do Norte e do Leste, homens, mulheres, velhos e crianças encaminhavam-se apressadamente para a aprazível Saidan. Em grupos, isoladamente, a pé ou a cavalo, todos se dirigiam para a casa dos Zebedeus, com um objectivo comum: comprovar a veracidade dos rumores que, inevitavelmente se tinham espalhado pelo Kennereth. Essas notícias – pelo que pude ir captando no caminho para Betsaida – falavam das aparições, nas margens do yam, do discutido construtor de barcos. As opiniões, como é fácil de imaginar, eram as mais diversas. Havia quem aceitasse tais presenças milagrosas a pés juntos, recordando aos incrédulos muitos outros prodígios do Rabi. Alguns, em especial os letrados sacerdotes ao serviço das sinagogas de Nahum e Migdal, mostravam-se reticentes. A maioria guardava silêncio, à espera do testemunho dos discípulos. Pelas sete horas, ao chegar à rua principal de Saidan fiquei impressionado: dezenas de curiosos aglomeravam-se em frente da casa dos Zebedeus. Foi impossível chegar ao portão. Este, solidamente trancado, vedava a entrada à multidão. De vez em quando, alguns batiam com força à porta para pedirem explicações do sucedido aos proprietários da casa. À cautela, voltei para trás e desci até à praia. Ao passar pelos restos da fogueira estremeci. De certeza que se me tivesse aproximado ainda teria encontrado na areia os rastos das sandálias do Mestre. Mas o meu objectivo era outro. Felizmente, o flanco ocidental do casarão encontrava-se livre. Subi os degraus, mas ao empurrar a porta de serviço encontrei-a igualmente bloqueada... e vigiada. Aos meus golpes, porém, a portinhola entreabriu-se. A primeira coisa que vi foi a lâmina reluzente de uma espada. Por detrás, o escuro rosto do Zelota, com os seus profundos olhos negros revelando medo. Hesitou. Mas João, que tinha acorrido prontamente à chamada, disse-lhe que me deixasse passar. No meio do pátio, os discípulos, as mulheres, o pai dos Zebedeus (claramente recuperado); Assi, o ajudante essénio, e
a criadagem participavam também numa acalorada assembleia. O Zebedeu sussurrou-me a notícia. Fingi não estar a par da aparição do Mestre na montanha da Ordenação, interessando-me pelos pormenores. Mas, pedindo-me paciência, integrou-se de novo na discussão. Aquela cimeira dos homens de Jesus de Nazaré viria a ser altamente instrutiva e, em certa medida, premonitória. Sem o saber, estava a assistir ao nascimento de uma ruptura – que seria total ao fim de uma semana – entre os discípulos. Também entre aqueles vinte galileus as opiniões divergiam. O motivo era muito claro. Todos, evidentemente, aceitavam a realidade das aparições. O que estava em jogo, porém, era muito mais profundo: teria chegado a hora – como defendia Pedro – de sair pelos caminhos a proclamar a boa nova? Que deveriam fazer com o povo que por eles reclamava lá fora? Naquele choque dialéctico debatia-se, além disso, outro assunto de vital interesse. À excepção de João Zebedeu, Mateus Levi e André, todos os outros defendiam o imediato regresso a Jerusalém. (Tiago, o irmão de João, como de costume, reservou a sua opinião.) Simão Pedro, por exemplo, estava convencido de que Jesus se encontrava definitivamente junto do Pai e de que não regressaria por muito tempo. O intuitivo João, baseando- se em algo que o Ressuscitado lhes tinha insinuado na última aparição e que, francamente, nós não captámos defendia o contrário: a permanência do grupo na Galileia até se verificar essa terceira presença do Rabi. A insinuação de Jesus ressuscitado deve ter sido tão subtil que, pelo que pude comprovar, a maioria nem deu por ela, opondo-se por isso à proposta do jovem Zebedeu. Presa de um dos seus já habituais ataques de fervor e entusiasmo, Pedro acabou por impor-se aos demais e, gesticulando e vociferando, começou a recriminar os dissidentes. Com a sua linguagem mordaz, humilhou o seu irmão sem dó nem piedade e também, indirectamente Mateus e João por se atreverem a pôr em questão os seus explosivos discursos. Não me cansarei de insistir nisso: estávamos a assistir ao nascimento de um chefe e, o que era mais penoso, ao surgir de um distanciamento ideológico
entre os discípulos. De resto, algo de muito humano em toda a associação de pessoas livres , mas que, obviamente, não foi transmitido pelos evangelistas. A acesa polémica prolongar-se-ia durante mais de duas horas. Por fim, a obstinação do trio representado por João – que ameaçou separar-se do grupo – levou-os a uma espécie de pacto. É curioso. Na minha humilde opinião, aquele constituiu outro dos graves transes por que passou o nascente colégio apostólico. O pacto, promovido por Pedro à maneira de ultimato consistia em todos aceitarem aguardar uma semana. Uma vez chegado o sábado seguinte, dia 29, se o Rabi não se tivesse manifestado de novo, ele mesmo [Simão Pedro], só ou acompanhado, abriria os olhos do mundo, pregando a boa nova. A trégua foi aceite por ambos os lados. E, sem dar satisfações a ninguém, o temperamental sais – talvez com o objectivo de demonstrar a firmeza dos seus propósitos – encaminhou-se para o portão de entrada. Com um violento e mal-humorado pontapé destrancou a viga que encerrava as duas portadas, abrindo-as de par em par. O povo ali concentrado, ao vê-lo, subiu de tom nas suas confusas petições. Pedro, porém, levantando os braços como um iluminado, ordenou silêncio. Os seus companheiros, confusos e receosos, mantiveram-se de início a uma distância prudente, com as espadas prontas para qualquer eventualidade. Aquele arrojo do irreflectido Pedro seria uma das chaves do seu posterior êxito como cabeça visível e porta-voz dos embaixadores do Reino... ou do que restou deles. Num tom grandiloquente e corajoso – convém também sublinhá-lo – expôs à multidão parte do que tinham visto e ouvido tanto na praia de Saidan como no monte da Ordenação. E digo parte porque, astutamente, Pedro passou em silêncio as conversas aos pares havidas com o Mestre. As suas vibrantes palavras foram interrompidas em diferentes ocasiões. Por alguns que troçavam descaradamente dos visionários; por outros, solicitando pormenores e, em especial, para lhe suplicar que lhes dissesse o que deviam fazer e como encontrar o Reino de que
lhes falava. Não por sua vontade, mas obrigado pelos imperiosos puxões na roupa que lhe davam os seus companheiros, Simão Pedro não teve outro remédio que não fosse terminar o improvisado discurso, convocando os que o desejassem para uma próxima assembleia popular, naquela mesma praça, à hora nona (três horas da tarde) do próximo sabbat. “Então” concluiu, “vos falarei com mais calma”. O portão voltou a fechar-se e as pessoas, um tanto defraudadas nas suas expectativas, envolveram-se em mil discussões. E, apesar da promessa de Pedro, o desfile popular continuaria até noite cerrada. O irreflectido gesto do sais foi de imediato recriminado por André e pelos outros Zebedeus, acusando-o, inclusivamente, de inconsciente. O aborrecimento destes homens era tal que, durante algum tempo, se recusaram mesmo a dirigir-lhe a palavra. Quando, por fim, os ânimos acalmaram procurei isolar-me no interior da casa com o preocupado João e Assi, o essénio. Expuslhes o meu desejo de examinar o chefe da família e, se dessem o seu consentimento, submetê-lo à cura definitiva do mal que o apoquentava. Poucos minutos depois, o Zebedeu levava o seu idoso pai para o quarto, onde me preparava para levar a cabo aquela simples intervenção. O ancião disse que estava muito melhor, mas, dócil e sorridente, aceitou as minhas sugestões, sentando-se diante da pequena janela virada para poente. Pedi a João que aquecesse água e, logo a seguir, com a ajuda de Assi, transportou para o quarto uma curiosa braseira de ferro quadrangular. O artefacto – um authepsa – era um dos escassos utensílios importado da Itália (possivelmente de Pompeia). Ao meio, uma braseira mantinha quente a água armazenada nos depósitos laterais. Perante o curioso e inquiridor olhar do ajudante, examinei os ouvidos do Zebedeu. Tal como esperava, o rígido tratamento daqueles dias tinha dado efeito: o cerume, amolecido, flutuava, praticamente, no canal auditivo externo. Quando julguei que a temperatura tinha atingido o nível
pretendido (cerca de vinte graus centígrados), tirei a seringa da bolsa e procedi ao seu enchimento. A uma indicação minha, Assi, cheio de boa vontade, segurou uma tigela de madeira debaixo da orelha direita do paciente ancião. De início procurei que o velho Zebedeu não visse o grosso artefacto. Tranquilizei-o, dizendo-lhe que não sentiria qualquer dor e avivando a sua confiança naquele médico e amigo. João piscou-me um olho, animando-me. Introduzi então a agulha de metal no ouvido e, suave e lentamente, injectei-lhe a água quente. O ancião, ao notar o fluxo, fechou os olhos, mas conteve-se. Rapidamente, uma negra bola de cera – do tamanho de um feijão – saltava para o recipiente. O essénio, que o segurava, sorriu, maravilhado. A segunda extracção foi tão rápida e certeira como a primeira. Guardei de novo o instrumento e, após uma última e rotineira exploração dos canais auditivos já desimpedidos, mostrei ao ancião os incómodos tampões. Contemplou-os, surpreendido e, levantando os seus olhos azuis, sorriu-me, agradecendo-me em silêncio a minha suposta perícia como curador. Quem então poderia imaginar que aquela elementar intervenção me abriria as portas da sua confiança... e do seu grande segredo? Eu digo que foi a Providência. Quem sabe?... Os objectivos na aldeia dos pescadores estavam cumpridos. O cerume foi passeado como um troféu, valendo-me – seja dito sem presunçãoas felicitações gerais e o carinho dos anfitriões. De certo modo, aquelas manifestações de afecto foram para mim um balão de oxigénio. Dito simplesmente, senti-me feliz. Sabia, além disso, as intenções do grupo: permanecer no Lago, pelo menos até sábado, dia 29. Isso facilitava as coisas. Se não surgissem contratempos, parte do que tinha sido planeado pelo Cavalo de Tróia poderia desenrolar-se ao longo dos próximos seis dias. Mais concretamente, a meticulosa investigação – feita no terreno – na não muito distante Nazaré. Uma exaustiva verificação, em suma, dos muitos dados recolhidos até então acerca da infância e juventude do Filho do Homem.
Com o Sol a brilhar no zénite, quando me preparava para regressar ao Berço, aconteceu algo de providencial. Como atrás disse, já nem Cheio de razão, Bartolomeu - cuja familia residia em Caná – anunciou a sua intenção de ir até à sua aldeia, a oeste do yam, para abraçar a família. A sua iniciativa teve um efeito multiplicador. Os gémeos aplaudiram a ideia comunicando aos demais que fariam o mesmo, deslocando-se até à casa de seus pais, nas proximidades de Gérasa. João Zebedeu ainda tentou fazer abortar a debandada, recordando-lhes a possibilidade de o Mestre se apresentar de novo, inesperadamente. As suas pretensões cairiam no entanto a pique quando fazendo causa comum, Levi – pacífica mas contundentemente – lhe fez ver que já se tinham passado várias semanas sem saberem de suas mulheres e filhos e que era justo que atendessem também aos assuntos terrenos. - Afinal de contas – observou Filipe ao Zebedeu, apoiando assim as razões do antigo publicano - “nós estamos em casa...” O assunto ficou resolvido quando a senhora, dirigindo-se ao inconformado João tentou persuadi-lo de algo que no fundo, parecia elementar: o seu Filho, quase certamente no caso de voltar a apresentar-se, fá-lo-ia perante a totalidade dos discípulos, e não apenas de alguns. Paradoxalmente, ele, que se tinha manifestado acérrimo  defensor da permanência em Saidan, reconsiderou, comprometendo-se mesmo a acompanhá-la até Nazaré. A verdade é que também a mãe de Jesus desejava visitar os seus, e João, que não se tinha esquecido das palavras de Jesus na margem, renunciou exemplarmente à sua ideia, preparando tudo para a da manhã seguinte. Portanto, em princípio a Senhora , o Zebedeu e Natanael fariam juntos o caminho até Caná. Nem é preciso dizer que me apressei a juntar-me à expedição. O Zebedeu acolheu a minha proposta com tanta alegria como alívio. - Os caminhos – argumentou, brincalhão – não são seguros e a companhia de um mago é sempre uma garantia... Encaixei a piada com desportivismo. Combinado o encontro no cais de Nahum – entre as horas prima e
tércia do amanhecer às nove horas, aproximadamente) – abandonei o casarão e a aldeia. Que mais podia eu pedir? Visitar Nazaré sob a protecção da Senhora era uma bênção. Mas antes, essa mesma esquiva fortuna reservava-me uma amarga experiência. A viagem de regresso, desta vez na companhia de Mateus e do Zelota (ambos tinham as suas residências habituais em Nahum), correu bem até à cidade. Falámos pouco. Os discípulos, envoltos nos seus mantos para não serem reconhecidos pelos caminhantes, tinham pressa em chegar. Por volta das duas e meia da tarde, uma hora e dez minutos depois da nossa partida de Saidan, avistámos a cidade de Jesus. Despedimo-nos com fineza. Eu prossegui pela estrada, à procura do caminho habitual de acesso ao berço, Pela vertente sul do promontório. A tragédia pairava sobre nós. Ultrapassada Nahum, já muito perto do desvio que levava à bifurcação, comecei a pressentir alguma coisa. Ao efectuar a ligação auditiva de rotina, com o fim de alertar Eliseu do meu regresso, não obtive resposta. Perplexo, pressionei uma e outra vez o meu ouvido direito, repetindo a chamada. Era impossível que não me recebesse. Num lapso de segundos, perpassou pela minha mente uma infinidade de possíveis explicações. Seria uma falha da ligação auditiva? Ter-se-ia registado uma grave queda de energia na nave? Mesmo sem eu querer veio-me à lembrança o dramático momento do desmaio do meu irmão, em plena descida sobre o monte das Oliveiras. Teria ele sofrido outra perda de consciência? Senti o coração bater mais forte. Tinha de chegar ao módulo quanto antes. Mas mal iniciei a corrida, atalhando pelo carreiro que desembocava no círculo rochoso, uma longínqua vozearia fez-me parar. Por aquela mesma vereda poeirenta descia um grupo de gesticulantes e, à primeira vista, furibundos galileus. Recuei de imediato. Foi instintivo. Cruzar com gente de Nahum ou seus arredores, em tão comprometedora situação, não era recomendável. A segurança do berço poderia ter corrido um risco desnecessário. Corri como uma lebre até à estrada, desaparecendo na direcção de Tabja. Não tenho a certeza, mas creio que não fui detectado pelo referido grupo. Mais tarde viria a compreender as
razões da sua indignação. Em momentos tão críticos não reparei noutro pormenor, altamente suspeito: os possíveis habitantes de Nahum não levavam a direcção do cume da colina. Vinham pelo ramal que ia dar ao pequeno terreiro em frente à cripta funerária! Ataquei a encosta sul e a cerca de cem metros do ponto de contacto, com as grandes pedras basálticas que rodeavam o cemitério à minha direita, parei já sem fôlego, ajustando as lentes especiais. Ao invadir a área de segurança IR, a ligação auditiva começou a vibrar. Os sistemas estavam, portanto, no automático. A ligação funcionava. Mas que era feito do meu companheiro? Não conseguia compreender. Que teria acontecido na minha ausência? Ao avistar o fulgurante módulo, o coração, batendo descontroladamente, quase parou de susto: a escada hidráulica tinha sido accionada. É evidente que só Eliseu podia ser o responsável por aquilo. Mas por que motivo? Introduzi-me na nave como um furacão. Era um facto: o meu irmão tinha desaparecido. Lutando com a incerteza, era difícil acalmar-me. Que podia ter acontecido? Inspeccionei os painéis de controlo. Tudo funcionava na perfeição. O Pai Natal também não forneceu qualquer informação sobre a embaraçosa situação. Os únicos indícios eram a transferência do alerta infravermelho para o sistema de comando – que de resto respondeu com precisão – e a presença da escada em terra. Uma coisa era certa: o meu companheiro levava consigo a sua ligação auditiva. E mais: o facto de ter fixado em trezentos pés o limite do escudo protector tranquilizou-me um pouco. Se tivesse tido a intenção de se afastar para mais longe, teria sido prudente estabelecer o alcance da radiação IR num raio superior. Isso era obrigatório e, naturalmente, o cuidado de Eliseu estava fora de toda a dúvida. Contudo, este raciocínio falhava num ponto. Se Eliseu se encontrava dentro desse raio de acção de trezentos pés, o lógico é que o computador central, como no meu caso, o tivesse alertado. O intruso – que naquelas circunstâncias era eu próprio – não teria passado despercebido. Isso, naturalmente, admitindo que a sua localização fosse correcta. Na previsão de que tais deduções estivessem certas, instalei-me frente aos painéis de comando, accionando o canal da ligação auditiva.
Aquela era outra das deficiências do programa: enquanto o explorador que permanecia fora do módulo não tomasse a iniciativa, activando a sua cabeça de cera, o receptor – neste caso o piloto que se encontrava no berço – via-se incapacitado de estabelecer contacto. (Devido a este incidente, Eliseu rectificaria os dispositivos, conseguindo que tal ligação auditiva pudesse ser aberta e estabelecida por ambas as partes, indistintamente.) A espera foi angustiosa e interminável. Insisto: eu não conseguia compreender o que se passava. Se o meu irmão – como tinha de se admitir em boa lógica – tinha recebido os sinais do Pai Natal, advertindo-o da entrada presente, porque não dava pelo menos a segurança da base mãe ou porque não tentava uma ligação derotina com a nave? Nos seus cálculos figurava certamente a hipótese qe o intruso ser eu próprio. A não ser que... A funesta hipótese de que tivesse sofrido um acidente foi rejeitada visceralmente. Mas a semente da dúvida estava lançada. E um suor frio acompanhou-me naqueles momentos dramáticos. Tinha de actuar! Tinha de sair à sua procura! Mas para onde? Numa derradeira tentativa para encontrar alguma luz examinei os discos do computador, comprovando que a codificação das informações e estudos sobre o corpo glorioso do Mestre – tarefa em que o tinha deixado embrenhado na altura em que abandonei a nave – estava ainda no impressionante capítulo do supercérebro. Tenho de o confessar. Naqueles momentos de ansiedade não tive a percepção necessária para inferir que talvez aquelas espantosas descobertas pudessem ser a causa de tão brusco e inexplicável desaparecimento. Quando é que aprenderei a ouvir a subtil voz da intuição? A única coisa que tirei a claro foi que esse trabalho tinha sido interrompido pelas dez horas. Tendo em conta que os cronómetros do módulo assinalavam naquela altura as dezasseis, havia a possibilidade de ele estar no exterior há nada menos que seis horas! Em tão dilatado período de tempo podia ter ido muito para além de Saidan, Migdal ou Corozain, paradar apenas alguns exemplos. Mas a que tolices estava eu a entregar-me? Nenhuma dessas caminhadas tinha qualquer relação com os nossos planos. E se ele tivesse sofrido algum percalso, perdendo a memória? Não,
não devia cair na ratoeira do derrotismo... No entanto, eu não podia esquecer o que tinha acontecido na segunda aterragem... Tentando pôr em ordem os meus cada vez mais confusos pensamentos – enquanto aguardava com ansiedade uma comunicação que tardava a chegar -, organizei mentalmente uma lista dos possíveis lugares para onde o meu companheiro poderia ter-se dirigido. Eliminei a cripta funerária. Embora as suas visitas ao cemitério tivessem sido frequentes nos últimos dias, para completar as análises antropológicas, a autonomia da potente lanterna usada nessa tarefa não dava para tantas horas de investigação. Teria descido aos depósitos de Tabja? As nossas reservas de água eram ainda abundantes. Além disso, esse local estava a uns vinte minutos do módulo e, consequentemente, fora do limite IR. Nahum? Muito menos... E se tivesse tentado localizar-me em Saidan? Mas com que finalidade? No berço tudo funcionava como um relógio... Pus de lado também esta possibilidade. Se tivesse querido contactar-me tinha sempre à sua disposição a frequência laser. E eu tê-la-ia recebido de imediato. Às dezasseis e trinta definitivamente confundido, decidi sair à sua procura. O segundo lamentável erro da minha parte foi o facto de não ter inspeccionado o compartimento das ferramentas. Ter-me-ia poupado tempo e preocupações. A busca na colina foi infrutífera. Não consegui identificar nem o mais leve vestígio da sua passagem. E, não sei muito bem porquê, o pressentimento de que pudesse encontrar-se em Tabja ou Nahum foi cristalizando na minha angústia. De maneira que, sem perda de tempo, apresentei-me na zona dos moinhos. Nakdimon, o funcionário encarregue das águas encolheu os ombros. Não tinha visto ninguém com as características de Eliseu. Desanimado, fiz marcha atrás e, ao encontrar-me de novo no estreito acesso à estrada, junto do talude que me servia de ponto de referência para subir pela encosta até à nave, mudei subitamente de planos. Sim, antes de prosseguir para Nahum, daria outra olhadela ao berço. Valia a pena perder uns minutos diante
dos controlos, aguardando a ansiada comunicação. Quem sabe, procurei animar-me, talvez esteja de regresso e tudo isto não seja senão um mal-entendido... Mas o módulo, como eu pressentia, continuava deserto. E a voz do meu companheiro continuou muda. Agora, reflectindo sobre o assunto, fico espantado com a minha actuação. Não há dúvida: fomos magnificamente treinados. Ainda hoje não compreendo como não entrei em pânico. Sentado no meio daquele horrível silêncio, sozinho e sem poder acreditar no que se estava a passar, deveria ter enlouquecido. Que teria sucedido se não aparecesse Eliseu? Que teria sido da Operação? Eram demasiadas dificuldades para um homem só!... Felizmente, a minha coragem não vacilou, reforçou-se até. Disposto a tudo, saltei de novo para terra. Seriam umas dezoito e trinta. Recordo que a ameaça do anoitecer se vislumbrava já no horizonte. Restavam-nos apenas uns trinta minutos de luz do dia. E com um nó na garganta tomei o rumo de Nahum. Cego de raiva, capaz de liquidar quem quer que lhe tivesse feito mal (o código ético do Cavalo de Tróia não me interessava minimamente naquela altura), galguei os negros blocos de basalto do círculo, mentalizando-me para passar Nahum a pente fino. E se isso não fosse suficiente, esquadrinharia Saidan, Migdal e tudo o que fosse preciso. O meu irmão era para mim prioridade absoluta. Atravessei o pequeno terreiro e, ao entrar na vereda que levava para leste, uma imagem – ou teria sido uma sombra? -, fugaz como um relâmpago, cravou-me ao pó do caminho. Na minha obsessão, quase a não distinguia. Tremo só de imaginá-lo. Hesitei. Não é possível... A excitação começava a perturbar-me. Tinha de me controlar. Contive a respiração, com medo de voltar o rosto e descobrir o que julgava ter descoberto. E de repente, por associação de ideias, a cena dos galileus descendo pela colina instalou-se na minha memória. Foi uma sequência rápida, confusa, impregnada de fatalismo. Não sei como, mas nesse espaço infinitesimal de tempo soube o
que tinha acontecido. E a angústia abriu-se diante de mim como um poço sem fundo, eriçando-me os cabelos. Voltei-me devagar, lentamente, com a respiração agitada, rezando para que aquela impressão não se confirmasse. Mas, lamentavelmente, confirmou-se... Oh, não? De facto, o enorme pedregulho – que na altura não tínhamos podido deslocar – tinha sido rolado para o seu lugar, fechando a cripta. Só havia uma explicação: alguém, nunca soubemos quem descobriu a profanação e avisou os proprietários do panteão, que se deslocaram ao círculo rochoso e encerraram de novo a sua entrada. Aquele grupo de indignados galileus que eu vira descendo a colina era com certeza o responsável pelo fecho da cripta. Mas que era feito do meu irmão? Que lhe teria acontecido? Se se encontrasse lá dentro, em qualquer dos dois pisos, por certo deveria ter ouvido as vozes, os passos ou o ruído da pedra roçando a fachada. Sendo assim, ao ver-se sepultado vivo, porque não tinha pedido ajuda através da ligação auditiva? Ou não se encontraria na cripta? Meu Deus que angústia! E se tivesse sido atacado pelos habitantes de Nahum? Eliseu, que eu soubesse, não andava armado. Recusei-me a aceitar tal hipótese. O lugar era sagrado para os judeus. Dificilmente o teriam manchado com um derramamento de sangue. Mas quem poderia assegurá-lo, Aqueles fanáticos eram capazes de tudo. Colei-me à pedra circular, tentando captar algum som proveniente do interior. A única coisa que ouvi foi o bater violento do meu coração, que estava a ponto de me sair pela garganta. Não podia permanecer naquela dúvida angustiante. Não havia outra solução que não fosse deslocar de novo a pedra a aventurar-me pelo interior da gruta. Após um tremendo esforço, consegui retirar o calço de madeira e fazer rolar a enorme pedra pela respectiva calha, até ela se deter, rangendo no lado oeste da fachada. Com os olhos esbugalhados cheguei ao curto corredor que conduzia à primeira das câmaras. - Eliseuuuuuu... O eco devolveu o meu grito. Esperei. Nada. Silêncio. A cripta negra como boca de lobo parecia solitária. E se eu estivesse
enganado? Talvez o meu companheiro tivesse tido a excelente ideia de não prosseguir com os estudos. Talvez estivesse a perder o meu tempo. Devia era ter continuado o meu caminho para Nahum... Apesar de todas aquelas hesitações continuei a avançar, descendo às apalpadelas até à antecâmara. Além do mais, ali não se via nada... Em todo o caso deveria regressar à nave e trazer uma lanterna. De súbito, uma ideia sinistra obrigou-me a recuar. E se os judeus regressassem e encerrassem de novo a cripta? A macabra ideia esgotou-me o último alento. Nesse caso poderia considerarme morto... e sepultado. Um homem sozinho, lá dentro, não tinha a mínima possibilidade de deslocar aquela rocha, uma vez calçada na calha. Senti frio. Um frio seco, resultado do meu próprio pavor. - Eliseuuuuu... Se de facto ele estava ali, porque não respondia? No fundo, aquele silêncio, apenas quebrado pela minha desordenada respiração, era um bom sintoma. É evidente que estou enganado... Disposto a desafiar o meu próprio pânico, com os braços estendidos, agitando a vara de Moisés no tenebroso vazio à maneira de improvisado bastão de cego, penetrei na primeira das câmaras funerárias que desembocavam na referida antecâmara. Não havia maneira de acostumar as pupilas àquele espesso negrume. Repeti os apelos. Bati no solo, nas paredes e nos cantos, numa vã tentativa de o localizar ou de tropeçar com qualquer coisa que me desse alguma pista. Os nichos ou kokim encontravam-se perfeitamente fechados, tal como os tínhamos deixado. A busca repetiu-se nas salas funerárias seguintes, com idêntico resultado. Não seria capaz de explicar porquê, mas a ideia de descer até à galeria inferior torturava-me. Atribuí tal sensação ao medo. Nunca tinha gostado de cemitérios e muito menos naquelas circunstâncias. Mas tinha de lá ir. Tacteei os degraus com a ponta do cajado. O caminho estava livre. E, uma vez na segunda e espaçosa câmara, parei, indeciso, com o impossível desejo de perfurar as trevas. - Eliseuuuu!!! Escolhi a parede da direita e, colando-me à rocha fria, fui
avançando lentamente, reconhecendo pelo som das pancadas do bastão os vários sarcófagos de pedra que repousavam nos arcossólios. O coração batia vigorosamente no meu peito, num esforço por manter desperto o cérebro. Agora entendo as pessoas que desmaiam como consequência do terror. A língua, como se feita de esparto, foi incapaz de modular um novo apelo. Completado o percurso, voltei ao ponto de partida e respirei de alívio junto dos degraus. Se bem me recordava tinha esquadrinhado todos os cantos. Definitivamente, Eliseu não se encontrava no cemitério. Mas então... A pressão psicológica redobrou de intensidade. Estava a zero! Como no princípio! Meu Deus!... Esquecendo o macabro do lugar – que podia eu temer daquelas centenas de esqueletos! -, fui sentar-me nos últimos degraus. Não podia render-me. Aquele pesadelo só podia ser isso mesmo: um mau sonho fugaz. A qualquer momento, quando menos o esperasse, despertaria – talvez no módulo – e os meus olhos reconheceriam o diligente Eliseu. Mas não estava a sonhar, infelizmente. O meu irmão tinha de facto desaparecido. Aquele foi um dos raros momentos, em toda a operação, em que dei rédea solta aos meus sentimentos. E chorei com raiva, com amargura, com desespero. Mas a Providência é a Providência... Subitamente, lá mesmo ao fundo da maldita fossa, julguei ouvir alguma coisa. Levantei o rosto, sentindo calafrios que me tolhiam. - Meu Deus!... Que terá sido aquilo? Pus-me de pé, pressentindo um qualquer perigo. Juraria que o estranho som tinha vindo lá do fundo da galeria. Não é possível! Aquela zona também tinha sido batida pela vara. Alucinações, Jasão!, recriminei-me a mim próprio. Uma segunda onda de cãibras e calafrios foi a resposta imediata e fulminante a um novo e mais nítido craque. Tentei engolir saliva. Impossível. O medo tinha-me tolhido completamente. Era um som seco. Como o do entrechocar de ossos... Os joelhos dobraram-se-me. Ossos? Não, calma, Jasão! Os mortos não ressuscitam... Bom, nem todos! Os confusos estalidos cessaram. Não havia dúvida: vinham lá do fundo. Tinha dado conta e lembrei-me:
Maldição , o fosso!... Sem saber Como e tremendo dos pés à cabeça, avancei pelo meio da galeria. Outro sinistro ruído fez-me parar novamente. Desta vez não foi como os anteriores. Parecia um gemido... Deus do céu! O poço! A fossa comum! Tinha-me esquecido! A um metro do ossário, consumido pela incerteza, tropecei numa coisa metálica. Agachei-me e, apalpando no escuro, reconheci o obstáculo: era a lanterna e a respectiva bateria! - Eliseu!... Paralisada pelo pavor, a minha voz mal se ouviu. - Aqui!... Era ele! Era o meu irmão! Transformado num feixe de nervos, liguei a lanterna. A carga estava praticamente esgotada. Mas a mortiça luz residual foi suficiente para o localizar. Eliseu, caído sobre aquele amontoado de ossos e caveiras, tinha o rosto ensanguentado. A seu lado, o grande saco das ferramentas. Saltei para o fundo do ossário, abraçando-o. Foi a primeira vez que o vi soluçar e encostar o seu rosto ao meu peito. Ao examinarlhe a fronte verifiquei que apresentava uma brecha e que o sangue tinha já coagulado. Há quanto tempo estava ele ali? Que diabo tinha sucedido? Não era altura para o interrogar. Perguntei-lhe apenas se podia andar. Disse que sim e, depois de o ajudar a sair do poço, passando o seu braço esquerdo sobre os meus ombros, carreguei com ele e com o seu material, fugindo daquele inferno. Uma vez na segurança da nave, feito um primeiro curativo de emergência, explicou-me o que acontecera. De facto, por volta das dez horas da manhã, saturado pelo trabalho sobre as descobertas, optou por interromper os estudos sobre o corpo glorioso de Jesus. - Reconheço o meu erro – confessou -, não calculei bem os riscos e decidi aliviar a tensão com um trabalho mais terreno. Foi assim que penetrou na cripta, disposto a continuar as investigações antropológicas. - Estava tudo sob controlo, Jasão: o cinturão IR no automático, a minha ligação... Mas, pelas treze horas, a segunda bateria começou
a falhar. Preparava-me para regressar quando, inesperadamente ouvi ruídos na galeria superior. Recolhi precipitadamente o material de trabalho – prosseguiu com amargura – e, suspeitando que pudesse tratar-se de algum habitante do lugar, corri no escuro, com o objectivo de me esconder no mais profundo da gruta. Deixei cair a lanterna ao chão e, no meio de todo aquele nervosismo (meu velho amigo, como me fez falta a tua serenidade ), esqueci-me daquela fossa traiçoeira, caindo lá dentro como um fardo. Depois, não me lembro de mais nada.. Quando recuperei os sentidos apareceste tu. Que Deus te abençoe! Estremeci, horrorizado. Não apenas perante a comprometedora situação que se nos depararia, no caso de Eliseu ter sido descoberto, como, muito especialmente, ao pensar nas consequências de uma queda como aquela. Por outro lado, quem podia assegurar que não tinha sido detectado pelos galileus? Provocar-lhe então novos sofrimentos não era justo. Por isso não lhe falei no fecho da cripta. Nunca soube que tinha sido sepultado vivo. Tudo aquilo explicava por que é que não tinha captado os sinais do Pai Natal e, logicamente, o seu longo silêncio. O golpe da sua fronte não se revestia de importância de maior, felizmente. No entanto, na previsão de uma sempre possível infecção, apliquei-lhe, localmente, um antibiótico de penetração rápida e uma dose de vacina antitetânica, por via subcutânea. Quase não voltámos a falar daquele lamentável incidente, que, no entanto, nos serviu de lição. A partir de então, por simples e pouco significativas que pudessem ser ou parecer, as nossas acções foram sempre submetidas a uma exposição e análise prévias. Assim, em cada momento da exploração sabíamos sempre onde se encontrava o outro, quais os seus objectivos e os limites geográficos e temporais de cada manobra. Mesmo assim – não tenhamos ilusões -, ainda houve os seus quês... Embora a recuperação de Eliseu tivesse sido rápida, o resto do dia não foi fácil para mim. Os meus propósitos de viajar para Nazaré na manhã seguinte estavam ameaçados. Não me atrevia a deixá-lo sozinho. E não com medo de que ele fizesse outra asneira – nesse aspecto eu era muito pior que ele -, mas perante a
possibilidade de, entretanto, sobrevir uma qualquer das formas de tétano conhecidas. (As feridas, em geral, são susceptíveis desse tipo de infecção, tanto sendo provocadas por uma arma como pelo impacte de uma pedra, um pau, ossos, etc. Em especial, se foram previamente contaminados pela terra ou por estrume.) O meu perturbado silêncio não lhe passou despercebido. E, ao pedir que lhe contasse a minha estada em Saydan, percebeu a causa da minha inquietação. Eliseu não procurou convencer-me ou animar-me para que prosseguisse com o plano previsto. Em silêncio, mas decididamente, pôs mãos à obra, preparando a minha bagagem. Deixei-o actuar. Eu sabia que, uma vez tomada uma decisão, dificilmente ele voltava atrás. Naturalmente, embora sem lhe dizer nada, também eu tomei uma decisão: esperaria pela manhã de segunda-feira; se o seu estado inspirasse confiança, partiria, caso contrário, nada nem ninguém me obrigaria a acompanhar a Senhora e o Zebedeu. Na realidade, o pequeno saco de viagem que eu levava não tinha grande coisa: um par de sandálias de reserva, uma razoável quantidade de frutos secos (de alto poder calórico) – figos prensados, passas e nozes, fundamentalmente -, uma cabaça com a conveniente porção de água previamente filtrada e fervida e, isso sim, uma dezena de fármacos, *1 – As normas da Operação Cavalo de Tróia, neste capítulo, eram rígidas e inflexíveis. Além de uma rigorosa profilaxia química, as regras de higiene a seguir enquanto nos encontrássemos em contacto directo com aquela civilização eram sagradas. A água, por exemplo, veículo de importantes doenças transmissíveis, tais como a desinteria bacilar, a febre tifóide, o paludismo (no Egipto era conhecido pelo nome de aat), a amebíase e uma longa lista de poliparasitismos, só podia ser consumida depois de ter sido previamente potabilizada por nós mesmos. Neste sentido, os exploradores viam-se obrigados a recusar qualquer oferta de líquido que não tivesse sido convenientemente tratado na nossa presença. No berço, tanto a água da chuva como a que era trazida do exterior tinham sempre de ser filtradas e sujeitas a ebulição, pelo menos durante dez minutos. Com o fim de evitar os possíveis quistos de Entamoeba histolytica e Giardia lamblia - parasitas frequentes naqueles climas e resistentes à cloração – a água recebia as correspondentes doses de tintura de iodo, de cinco a dez gotas a dez por cento em cada litro (N. Do N.) Embora, felizmente, não fossem utilizados com grande profusão, cada vez que um
dos expedicionários empreendia uma viagem de determinada duração, na sua bagagem devia figurar uma colecção de fármacos, imprescindíveis em caso de emergência. Esta farmácia habitual – sempre acondicionada e disfarçada em recipientes da época – incluía diversos analgésicos antitérmicos (paracetamol e aspirinas preferentemente), analgésicos mais fortes à base de codeína), antibióticos de amplo espectro (Tetraciclina, Cotrixocsazol e Amoxicilina, entre outros), antidiarreicos (loperamida), antiácidos ( de alumínio), anti-histamínicos, antibióticos para uso local neomicma e bacitracina geralmente), a cloroquina (importantíssima como antipalúdico), um amebicida (tinidazol ou metronidazol), uma mistura essencial para reidratação por via oral e, inclusivamente, consoante as viagens e expedições, soros antiofídicos polivalentes e soluções antifungos (clatrimazol ou miconazol). O inevitável capítulo dos alimentos foi outra constante preocupação. Muitas daquelas doenças causa dos víveres contaminados por moscas ou, como no caso dos legumes e outros vegetais, por causa do contacto com águas residuais. Os nossos cuidados foram extremos no concernente ao consumo de carnes. É sabido que, por exemplo, a carne de vaca pode transmitir a Taenia saginata e a carne de porco – impura para os judeus -, a T. Solium ou Trichinella spiralis. Quanto a determinados peixes de água doce – hóspedes intermediários de Diphillobothrium latum – ou de mar (transmissores da clonorquiase), as cautelas deviam ser igualmente minuciosas. Também era proibida a ingestão de serpente capaz de originar uma rocefalose, e algumas famílias de caranguejos muito específicos, portadoras da paragonimiase. Para além de todas estas determinações, os alimentos consumidos no exterior da nave deviam encontrar-se rigorosamente bem cozidos ou fritos a temperaturas que atingissem os cinquenta graus. (A estas temperaturas a maioria dos agentes patogénicos é destruída.) A fruta crua, obviamente, só podia ser comida depois de descascada. Com os ovos e os doces em geral os cuidados eram ainda mais severos. Entre nós havia um dito que poderia sintetizar esse rigoroso e necessário controlo higiénico-sanitário: No trópico [embora a nossa situação geográfica não correspondesse exactamente à dos países tropicais], ou fervido, ou cozido, ou descascado... ou posto de lado. Com o vestuário, pelo contrário, não tivemos problemas. A pele de serpente constituiu uma magnífica e insubstituível protecção. Com respeito às túnicas e mantos eram lavados no módulo, destruindo assim qualquer depósito de ovos de moscas e insectos, cujas larvas poderiam constituir um perigo. Por último, sempre que era possível, evitávamos caminhar descalços. Desta forma se evitava o sempre latente risco das infestações por helmintos (fundamentalmente anquilóstomos, estrongilóides e larvas cutâneas). Nem é preciso dizer que, durante o terceiro salto”, estas medidas se acentuaram ao extremo. (N. Do M.) devidamente acondicionados em vários frascos de argila. Na bolsa
de oleado pendente do cinturão: os crótalos, o dinheiro – cada vez mais reduzido – e o último e ainda inédito salvo-conduto de Pilatos. Preparada a bagagem, olhámo-nos em silêncio. Creio que cada um de nós adivinhava o pensamento do outro. Mas, mortos de cansaço e abatidos pelas emoções do dia, deitámo-nos deixando que fosse o Destino – como tantas vezes acontecia – a estabelecer o caminho a seguir. E o Destino, como é seu timbre, mostrou-se uma vez mais férreo e inflexível.
DE 24, SEGUNDA-FEIRA A 28 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA Pouco a pouco, fomo-nos acostumando, chegando a tornar-se algo de familiar para nós. Em cada amanhecer – enquanto o módulo permaneceu na encosta do monte da Ordenação – bandos de pássaros accionavam os alarmes infravermelhos, despertando-nos. Eliseu foi o primeiro a levantar-se. Estive a observá-lo. Pareceu-me recomposto. Aconteceu mesmo – nunca soube se fingia -, que, enquanto preparava o pequeno-almoço, o ouvi cantarolar. E curioso: quem estava esgotado era eu. E atribuí-o às peripécias do dia anterior. A verdade é que tive de fazer apelo a toda a minha energia para me pôr de pé. E foi o meu irmão quem tocou no assunto. O susto – disse ele – já tinha passado. Encontrava-se em perfeita forma e, consequentemente, os planos da Operação não deviam alterar- se. Eu iria para Nazaré, como estava programado. Permitiu que o examinasse. A cicatrização avançava normalmente e, apesar da minúcia dos meus controlos, a sua temperatura e funções vitais estavam melhores que as minhas. Desconfiado, insisti: - Tens a certeza de que estás bem? Só me permitiu que lhe fizesse tal pergunta uma única vez. E
então, convencido de que o seu estado físico e anímico era excelente, demos uma última vista ao programa. A expedição calculada em cinco dias no máximo – envolvia algumas dificuldades. E a mais séria: a falta de comunicação. Em linha recta, a distância que nos separaria era de vinte e oito quilómetros. Os obstáculos naturais que se interpunham entre o berço e Nazaré – em especial a cadeia de montes situada a noroeste da referida povoação, com cotas até 573 metros – inviabilizavam a ligação via laser, único meio exequível de transmissão a partir dos quinze mil pés (cinco quilómetros). Dispúnhamos ainda do olho de Curtiss, susceptível de ser lançado até uma distância limite de dez quilómetros. Mas um mínimo sentido de prudência desaconselhava o seu uso em tais circunstâncias. Outro dos riscos, a ter sempre em conta, era constituído pelo caminho propriamente dito, com a permanente ameaça dos bandidos, os possíveis ataques de animais selvagens e as imprevisíveis inclemências meteorológicas. Segundo os nossos cálculos – totalmente teóricos, é claro -, a distância entre Nahum e Nazaré podia ser coberta, em bom andamento e sem contratempos, num período de cinco a seis horas. A rota habitual, utilizada pelas caravanas procedentes da fértil planície de Esdrelão e Damasco, incluía – segundo as nossas informações – alguns pontos obrigatórios: o wadi Hamam ou Vale das Pombas, a sudoeste da cidade de Migdal; Arbel e o desfiladeiro dos Cornos de Hattin e, a partir desse colossal maciço rochoso – sempre para oeste -, deixando à direita as povoações de Lavi e a actual Turan, as colinas de Caná. Daqui a Nazaré restaria apenas uma meia-dúzia de quilómetros. A nova aventura – confesso-o – fascinava-me. Percorrer e investigar até ao último canto a aldeia onde Jesus tinha vivido tantos anos era um repto e uma oportunidade que não podíamos desperdiçar. Era ponto assente que daquela visita surgiriam esclarecedoras revelações sobre essa vida oculta, como a qualificam erradamente, por certo – os cristãos. E a emoção do desconhecido animou-me, tirando-me daquele abatimento físico em que tinha mergulhado.
Durante este período de tempo em que me encontrasse ausente, Eliseu encarregar-se-ia de completar os estudos e a codificação de tudo o que dizia respeito ao corpo glorioso de Jesus, assim como das observações e recolha de amostras do yam, vitais para a não muito distante terceira exploração. De mútuo acordo estabelecemos essa área de investigação no triângulo formado pelo ponto de contacto, Tabja e Nahum. De momento, a cripta funerária foi considerada como zona proibida. Em caso de alta emergência, o meu irmão tinha ordens rigorosas: primeiro, utilização das defesas convencionais (dispositivo gravitacional etc.) e, na hipótese de ter de abandonar a encosta, transferência para os quase inacessíveis picos de Hattin. Só se fosse absolutamente necessário é que deveria recorrer – em meu nome – à protecção da casa dos Zebedeus, em Saidan. Pedindo aos céus que nada disso acontecesse, Eliseu e eu próprio despedimonos com um afectuoso abraço. Os dados estavam lançados. Às cinco e meia da manhã, com os primeiros alvores do dia, desci até Nahum, evitando a vereda que partia do círculo rochoso. Nuvens negras cobriam o lago e refrescavam a temperatura. A mudança do tempo podia ser boa ou má, conforme o ponto de vista. A chuva encheria os depósitos quase vazios do berço mas ao mesmo tempo podia criar-nos problemas na caminhada para Nazaré. Não tive de esperar muito. Embora os encontros marcados não tivessem naquela altura nada a ver com os nossos hábitos de hoje, os meus amigos foram pontuais à sua maneira 1. Pelas seis e meia, o barco comandado por Simão Pedro, atracava a leste do porto, num dos cais triangulares, perto do estaleiro dos Zebedeus. Fiquei surpreendido ao ver os gémeos e o chefe da casa. Este foi o único a desembarcar. Saudou-me com cordialidade e, com a sua proverbial parcimónia de palavras levantou a mão esquerda, despedindo-se dos restantes passageiros do barco. Em seguida, vi-o desaparecer na direcção do estaleiro. Sem perda de tempo, acomodei-me à proa, junto da Senhora. E, de imediato, João, Bartolomeu e os irmãos de Alfeu recomeçaram a viagem navegando junto à costa até Tabja.
Estava enganado. Com grande sentido prático, o Zebedeu preferiu cobrir aqueles quilómetros que nos separavam do wadi Hamam, ponto de arranque da caminhada -, não pelo caminho junto à costa, mas pelo lago. Isso proporcionava-nos uma poupança de energias – em especial para Maria – e uma deslocação mais rápida até ao nosso objectivo. Nos olhos da Senhora descobri um especial brilho de alegria. Mas, durante a larga meia hora que a travessia durou, pouco falámos. Por razões de segurança, segundo João, o desembarque fez-se a meia milha a sul do porto de Migdal, numa praia deserta. A Senhora agradeceu com um sorriso e um pedido, que lhe estendesse a mão e a ajudasse a descer para terra. Ao que parece dada a inquietação que reinava à volta do yam por causa das aparições do Mestre, os discípulos – Zebedeu em primeiro lugar – acharam oportuno evitar qualquer tipo de encontro, em especial nas povoações que davam para o lago. Haveria tempo, argumentou João, lembrando as ardorosas intenções de Pedro, de enfrentar as pessoas e falar claro... *1- Como julgo ter assinalado em ocasiões anteriores a medição do tempo naquela época era diferente da actual. Mesmo entre as culturas do Oriente e do Ocidente havia diferenças substanciais. Os judeus, por exemplo, consideravam o pôr do Sol como o início de um novo dia. O Génesis assim proclamava: A noite e a manhã eram um só dia. Em contrapartida os Romanos, começavam a contar o dia a partir da aurora. É claro que existiam as horas, tanto para uns como para os outros. Mas não com a interpretação que hoje conhecemos. O cômputo dos minutos e segundos era conhecido desde os tempos do exílio na Babilónia, se bem que raramente fizessem uso dele. Marcar encontro com alguém às nove e um quarto, por exemplo, teria sido um absurdo. As pessoas marcavam encontro ao entardecer, ao amanhecer ou entre as diferentes e principais horas do dia ou vigilias, da noite. Só as familias abastadas dispunham do luxo de um relógio. Talvez mais adiante ainda fale desses curiosos artefactos. Em suma, o tempo era concebido de outra forma: sem pressas nem urgências, não sendo conhecida a actual e lamentável escravatura do relógio,. (N. Do M.)
Bartolomeu e o Zebedeu transportaram vários sacos de viagem e eu, como mais um elemento do grupo, encarreguei-me do odre que continha a água. Rapidamente, após um mútuo e lacónico «que a paz esteja convosco», Judas de Alfeu empurrou a barca para o Yam,
saltando lá para dentro. Minutos depois, os gémeos perdiam-se na superfície cinzenta das águas, rumo a Saidan. E Bartolomeu, tomando a iniciativa, pôs-se à cabeça do grupo, penetrando na planície que nos separava de Hamam. Inspirei profundamente e, dirigindo um último olhar para o distante promontório onde se encontrava o meu irmão, coloquei-me imediatamente atrás de João, fechando a pequena comitiva. Uma nova e excitante aventura acabava de começar... [NOTA DO AUTOR Acho que, uma vez chegados a este ponto do Diário do Major, antes de prosseguir com as suas vicissitudes, convém saldar uma divida para com o leitor. No volume anterior – Operação Cavalo de Tróia – II, página 362 -, por razões alheias à minha vontade e de carácter puramente técnico, vi- me obrigado (pela segunda vez) a interromper o espantoso relato sobre a infância e juventude de Jesus de Nazaré. Este é pois, o momento ideal para retomar o fio de tão substancial e esclarecedora narração, interrompida em plena fuga de José e Maria para o Egipto. Tal como naquelas ocasiões, antes de proceder à exposição desse relato, sinto a necessidade de advertir de novo os pusilânimes, ou todos aqueles cujos principios religiosos se encontrem irremediavelmente cristalizados, que, por favor abandonem a leitura das páginas que se seguem. Não é meu desejo ferir a sensibilidade desses possiveis leitores, mas tão-somente, como já o repeti em múltiplas oportunidades, procurar aprozimar-me de uma das mil faces da verdade. Dito isto, entremos em cheio, sem medo, na assombrosa «vida oculta» do Filho de Deus. ] (...) A matança (o Major refere-se à morte dos inocentes na aldeia de Belém] atingiu dezasseis meninos. Era o mês de Outubro do ano 6 antes da era cristã. Jesus contava então catorze meses de idade. E antes de entrarmos nessa outra etapa da vida de Jesus – a estada no Egipto -, quis desfazer algumas dúvidas que continuavam a pairar na minha mente.
- Então foi um anjo quem avisou em sonhos José que devia fugir de Belém? Maria replicou de pronto: - Sim..., um anjo chamado Zacarias, meu primo. Mateus falhara de novo nesse ponto. E tive de aceitar a reprimenda da Senhora, que qualificou a minha imaginação de febril e possuída pelos demónios. Sorri no meu íntimo. No fundo, a admoestação deveria era ser feita ao crédulo e inefável evangelista... A segunda questão foi recebida com idêntica perplexidade. - Uma estrela? - De facto – insisti eu -, contam que aqueles sacerdotes de Ur foram guiados por uma estrela de grande brilho... - Sim também ouvimos alguma coisa a esse respeito, mas nós não vimos nada de tão extraordinário... Talvez José se ainda fosse vivo, pudesse dar-te mais pormenores sobre isso. Sinto muito... Tive de me resignar. A história da não menos célebre estrela de Belém ficou em suspenso. Mais tarde como já referi, na nossa exploração pelas colinas situadas a sul da Cidade Santa, essa e outra incógnitas ficariam esclarecidas. Por exemplo, a sangrenta matança dos inocentes. Como foi levada a cabo? Salvaram-se mais meninos, para além de Jesus? Como reagiu a aldeia perante tão brutal extermínio? Mas ficavam ainda tantos temas por abordar... Que aconteceu em Alexandria? Quanto tempo permaneceram na cidade egípcia? Que aconteceu nas viagens de ida e volta? Como foram aqueles primeiros anos da vida de Jesus? O tempo urgia e centrei as minhas perguntas na fuga para o Egipto... Aquela foi uma etapa tranquila na vida da família. A estada na populosa e arrogante Alexandria prolongar-se-ia por dois anos. Concretamente, até Agosto do ano menos quatro. A Senhora guardava uma afectuosa recordação dos hospitaleiros
hebreus que os acolheram desde o primeiro momento: uns abastados parentes de José. O carpinteiro de Nazaré não tardaria a encontrar trabalho e, alguns meses mais tarde, a sorte voltaria a sorrir-lhes: José seria contratado como contramestre de um grande grupo de operários, dirigindo a construção de um edifício público. Este emprego proporcionar-lhe-ia a suficiente experiência para – no seu regresso à Galileia – se aventurar na profissão de empreiteiro de obras. Um trabalho que, associado à marcenaria propriamente dita, acabaria por levá-lo à morte. Ao ler os textos evangélicos de Mateus, tem-se a sensação de que essa permanência no Egipto teve um carácter puramente transitório. De facto foi assim. No entanto pelo que pude deduzir das palavras de Maria, o casal esteve quase a ceder às pretensões e pedidos dos seus familiares e amigos de Alexandria, instalando-se no Egipto em definitivo... - Desejávamos e precisávamos de iniciar uma nova vida – explicou com nostalgia – e aquela boa gente fez o impossível para que ficássemos por lá. De certo modo tinham razão: o nosso filho poderia ter exercido uma maior influência a partir de Alexandria do que numa remota aldeia da Galileia... - Então – interrompi-a, confuso -, os vossos amigos sabiam?... Sorriu, procurando a minha compreensão. - O nosso segredo, querido Jasão, era difícil de guardar. De início só o souberam os parentes mais próximos de José. - O que é que eles sabiam... exactamente? Os seus olhos profundos voltaram a assombrar-se perante as minhas aparentemente absurdas perguntas. - Que podíamos nós dizer-lhes que tu não saibas? Simplesmente, que Jesus era o filho da Promessa. Durante muito tempo, no seio da família de Nazaré, esta seria a forma secreta de designar o Primogénito. - Como era de esperar – prosseguiu, com indulgência -, um daqueles parentes acabaria por revelar o segredo a outros amigos
de Mênfis e, como bons crentes, apressaram-se a visitar-nos, procurando, como dizia, encontrar a maneira de nos convencer a ficar definitivamente. Lá – e isso era verdade -, o nosso filho receberia uma educação mais esmerada. Fizeram muitos planos. Todos eles, tal como nós, acreditavam na vinda do Messias libertador. O seu amor e generosidade foram ao ponto de oferecer a Jesus um exemplar da tradução grega dos textos sagrados da Lei. (Aquele livro viria a desempenhar um importante papel na educação futura do jovem Jesus.) - Hesitámos. Mas, de mútuo acordo, declinámos o convite e decidimos regressar à nossa terra. Rememorando esta situação, perguntei-me que teria sido do Mestre e da sua obra se, de facto, os pais terrenos tivessem aceitado viver no Egipto. Talvez que o Filho do Homem fosse hoje conhecido como Jesus de Alexandria... Mas a Providência, obviamente, tinha outros planos. Estas pressões de familiares e amigos atrasariam, no entanto, o regresso à Judeia. Ao perguntar-Lhe pela vida de Jesus menino durante aqueles meses, a Senhora encolheu os ombros. Pouco havia que contar. O mais relevante – sempre segundo Maria – foi o tardio desmame do Menino e as contínuas discussões com José, por causa da segurança de Jesus. Quanto à primeira questão, as causas estavam à vista. A sua estada em Belém e os dissabores e angústias da fuga para o Egipto fizeram com que a Senhora o amamentasse até quase aos dois anos. Só depois de instalados em Alexandria mudaria a sua alimentação. Esta prolongada lactação materna – ainda hoje o tema é controverso -, longe de prejudicar a criança, beneficiou-o. A maior parte dos especialistas do nosso tempo defende este tipo de alimentação, pelo menos até aos sexto ou sétimo mês, como a melhor garantia imunológica e nutricional. Estou convencido de que, inconscientemente ao dar o peito a Jesus durante tantos meses, Maria proporcionou ao filho uma excelente reserva defensiva, conjurando ou protelando assim, os inevitáveis riscos de uma alimentação baseada exclusivamente no leite de vaca, cabra ou ovelha, que era então a normal. *1 – Apesar da eficácia das medidas higiénico-sanitárias da lactação artificial – mais
que duvidosas no século I -, os peritos em puericultura e nutrição sabem que uma parte das responsabilidades dos fracassos deste tipo de alimentação recai justamente nas deficiências higiénicas do leite não humano. Os germes patogénicos e saprófitos são inúmeros e perigosos na lactação artificial. Basta um simples exemplo: segundo os estudos de Freudenreich e Miquel, se no momento da ordenha existirem num centímetro cúbico de leite nove mil e trezentas unidades bacterianas, três horas depois essa cifra terá duplicado; passadas seis horas, é vinte vezes maior, atingindo um milhão de unidades bacterianas em nove horas. (N. Do M.)
Não podemos esquecer que, naquele tempo, o índice de mortalidade infantil era aterrador (em muitos casos, superior a cinquenta *1 – Especialistas do prestígio de Bacialli Brusa e Lucca, entre outros, estudaram muito a fundo os perigos da alimentação infantil à base de leite animal. O número de germes que nele pode desenvolver-se é ilimitado. Kufferath, por exemplo, estabeleceu as seguintes contaminações bacterianas no leite de origem animal: oito por cento dos leites examinados continha de uma a cem mil unidades por centímetro cúbico; vinte e seis por cento atingia uma percentagem que oscilava entre as cem mil e o milhão de unidades bacterianas por centímetro cúbico. Alguns destes germes aparecem de maneira ocasional, por contaminações fortuitas. Outros, pelo contrário, são próprios do habitat desses animais domésticos. Naquele tempo, em que a pasteurização estava ainda muito longínqua, os germes patogénicos – tanto os termolábeis como os termorresistentes - provocavam verdadeiras razias. O bacilo da tuberculose, por exemplo, do tipo bovino ou humano, era particularmente agressivo. E o mesmo sucedia com a chamada bactéria melitense, (Brucella melitensis) patogénica para a vaca e para a cabra. A bactéria de Bang muito comum naqueles estábulos, podia provocar no homem uma síndroma semelhante à febre de Malta. As vacas infectadas por esta bactéria podem não apresentar sintomas, mas vão de igual modo eliminando germes através das ecreção láctea contaminando assim os consumidores de leite cru. O bacilo do tifo podia também chegar ao leite, com o uso de água contaminada não potável ou através de indivíduos que tivessem contraído essa doença, continuando a eliminar germes através da urina, fezes e, principalmente, através de uma deficiente higiene na ordenha. Outro tanto sucedia – e ainda sucede – com os diferentes tipos de bacilo disentérico. A importância das afecções locais da mama está igualmente demonstrada por todos os processos supurativos desta, devidos aos piogémicos comuns, em especial a alguns estreptococos (Streptococcus mastiditis), muito temíveis pela gravidade com que podem evoluir as afecções do aparelho digestivo que provocam. Rosenau descreveu uma epidemia de angina estreptocócica que provocou onze casos de morte numa população de mil e duzentos
habitantes. Esta epidemia desenvolveu-se quarenta e oito horas depois de se ter consumido leite proveniente de vacas afectadas de mastite supurada com presença do estreptococo. A este lamentável quadro tinha que juntar-se os germes saprófitos, comuns no leite animal, mesmo no recém-ordenhado. Nem mesmo os condutos galactóforos se mantêm estéreis nos intervalos entre as ordenhas, já que alguns germes – hóspedes habituais da superfície cutânea dos animais – encontram neles as condições apropriadas para a sua fixação e proliferação. Entre a numerosa flora saprofítica do leite encontram-se os estreptococos, enterococos, as lactobactérias assim como a do cólon e o B. Lactis aerógenos. Estes germes, ao fermentarem a lactose, precipitam a caseína por acidificação, mas sem passar para o leite propriedades perniciosas. (São os chamados germes de acção fermentativa,, normalmente não esporógenos.) Os de acção proteolítica” - com frequência esporógenos – incluem bactérias do grupo p roteus e bacilos subtilis e mesentericus. Estes últimos, esporógenos não são destruídos pela pasteurização, ainda que o seu desenvolvimento se veja dificultado pela presença simultânea dos germes fermentativos da lactose que acidificam o meio. A acção destes germes desenvolve-se quando o leite é conservado durante longo tempo. Como são activos produtores de enzimas proteolíticos, pode ter lugar a peptonização da caseína e mesmo a putrefacção. Esta é apoiada na maioria das vezes pelo B. Putricus, que se encontra com frequência (Nota interrompida). Por cento). Lamentavelmente, uma parte dessa mortandade tinha as suas raízes nas extensas colónias de germes que infestavam esses animais produtores de leite – sobretudo cabras e ovelhas -, de primordial importância na economia daqueles povos. (O leite era consumido frio ou quente, mas nunca era fervido.) O segundo problema – a obsessão de Maria pela integridade física de Jesus – levá-la-ia àquilo que hoje definimos como um estado de stress. - Era superior às minhas forças - reconheceu com humildade.Na casa onde estávamos alojados havia duas crianças, e outras quatro ou cinco na vizinhança, da mesma idade do nosso filho. Pois bem, não era capaz de vê-lo a brincar com elas. Nem sequer no jardim interior. Tremia diante da possibilidade de que se magoasse. José e eu discutimos muitas vezes por causa disto. Ele desejava que a criança crescesse num ambiente normal, sem todos aqueles cuidados que (sei-o bem) chegaram a ser doentios. Os sensatos conselhos de José e do resto da família convencê-laiam por fim a abandonar semelhante atitude, que poderia ter deformado o carácter ou a personalidade de Jesus Menino. E a criança pôde assim mover-se e brincar livremente, embora sempre sob o olhar vigilante de sua mãe, como é normal.
No entanto, aquele temor acompanhá-la-ia durante toda a infância do filho da Promessa. E em Agosto do mencionado ano 4 antes da nossa era, quando Jesus completou o seu terceiro aniversário, a família partiu de Alexandria, embarcando num dos navios do seu amigo Azraéon, rumo ao norte: ao porto de Jopé (Jaffa), a cerca de trezentas milhas. Ali arribariam nos últimos dias do referido mês de Agosto. Aquela foi a primeira viagem de Jesus por mar. Uma experiência inolvidável, segundo a Senhora... - Era incansável. Corria, saltava e brincava pela coberta, contemplando o mar, deslumbrado. Acamaradou com a marinhagem. As contínuas perguntas que fazia começavam a ser embaraçosas para todos. A partir de Jopé, dirigir-se-iam de imediato para Belém, via Lida e Emaús. Ali permaneceriam todo o mês de Setembro, resolvendo outro assunto de importância vital: deveriam estabelecer-se na cidade de David ou, como sugeria José, regressar ao Norte e instalar-se em Nazaré? Antes que a Senhora esclarecesse este pormenor, que eu desconhecia, abri um parêntese. Segundo Mateus (2,19-21), a saída de José, Maria e o Menino do Egipto teve um carácter sobrenatural. Morto já Herodes, assegura o evangelista, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José no Egipto e disse-lhe: Levanta-te, toma o Menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, porque estão mortos os que atentavam contra a vida do Menino. Como de costume, tive problemas para falar à Senhora, desta vez sobre o sonho de José. Negando com a cabeça, dissipou todas as minhas dúvidas: (Continua a nota). Nas forragens mal conservadas. Além destes germes termorresistentes e esporógenos devem ser tidos em conta outros igualmente termorresistentes, mas não esporógenos. Por exemplo, o S. Thermophilus e o B. Bulgaricum, já mencionados, e os chamados mamococos” de Gorini, que procedem dos úberes dos bovinos e que são considerados como pertencendo ao grupo dos enterococos. (N. Do M.) - Um sonho? Nada disso, que eu saiba... A presença de um anjo – sorriu com condescendência – não era necessária.
Queríamos regressar e regressámos, pura e simplesmente. Tens cada uma, Jasão! Uma vez mais, o evangelista tinha inventado ou tinha-se deixado arrastar por um engrandecimento desnecessário dos acontecimentos mais comezinhos. As coisas foram mais naturais e lógicas. Como também o foi a resolução do dilema: Belém ou Nazaré? A Senhora – assim mo disse – era de opinião que o filho deveria ser educado na antiga aldeia de David. Os cristãos que, voluntária ou involuntariamente, forjaram nas suas mentes umas imagens espiritual e estereotipada de Maria, podem não compreender esse desejo da mãe terrena do Mestre. Embora haja futuramente novas oportunidades para insistir nisso, convém desde já não perder de vista que, tanto então como ao longo da vida de Jesus, Maria concebeu a missão do seu primogénito como a de um libertador político, chamado a ocupar o trono do rei David. O ansiado Messias – já o disse muitas vezes – era um símbolo, uma esperança, que derrotaria o invasor e elevaria a nação judaica acima das restantes nações. José, por seu turno, com um mais agudo sentido prático não via com bons olhos o acesso ao poder de Arquelau, um dos filhos do sanguinário Herodes o Grande, falecido nesse mesmo ano menos quatro. O carácter igualmente violento do novo tetrarca da Judeia não lhe inspirava confiança. O prudente e intuitivo empreiteiro De Nazaré – que não estava muito certo da missão messiânica do seu filho – suspeitava que maus ventos não tardariam a cair sobre a Judeia. O tempo viria a dar-lhe razão. *1 – Herodes o Grande, falecido aos setenta anos, deixou uma numerosa e confusa prole, fruto das suas dez esposas e inúmeras concubinas. Um dos seus filhos foi Arquelau, nascido da sua união com Maltace. O cadáver de Herodes o Grande, foi trasladado com grande pompa de Jericó para a fortaleza Heródio, a sul de Jerusalém, e ali, segundo parece, foi sepultado em féretro dourado. Nesse mesmo dia, o chanceler do tesouro e conservador do grande selo, Ptolomeu, tornou público o testamento do tirano. Os seus sucessores eram três dos seus filhos mais jovens: Arquelau herdava a Judeia; Herodes Antipas – a velha raposa” que anos mais tarde interrogaria Jesus – foi designado tetrarca da Galileia e da região da Pereia, a leste do Jordão, e, por último, Filipe ficou com os territórios a leste e nordeste do lago de Tiberíades. Arquelau, terminados os funerais de seu pai, dirigiu-se a Jerusalém, onde ofereceu sacrifícios no Templo. E ali se confrontaria com um povo ansioso de justiça, revoltado pelos assassínios perpetrados às ordens do falecido Herodes, o Grande, e exigindo uma redução dos
impostos e demais sobrecargas tributárias. Arquelau, temendo uma revolta, enviou as suas leais tropas de mercenários para o Templo, carregando contra a multidão. Na refrega que se seguiu foram feridos à espada cerca de três mil peregrinos e habitantes da Cidade Santa. A festa da Páscoa foi suspensa e, a partir daquela carnificina, o sucessor de Herodes passou a ser tão odiado como o seu antecessor. Arquelau devia dirigir-se a Roma para confirmar o seu título de rei. Ao chegar à presença de Augusto, encontrou-se com o seu irmão Antipas, sua tia Salomé e outros membros da família que Lhe disputavam o trono. O povo aproveitou a ausência do também Hodiado idumeu e levantou-se contra a tirania da familia herodiana. Olegado romano na Síria, Públio Quintilio Varo, responsável pela paz na Judeia enviou uma legião a Jerusalém, ao mesmo tempo que por mandato do imperador, Sabino era designado procurador e comissário para a Judeia, a fim de velar pelos interesses romanos, na ausência de Arquelau. O referido Sabino instalou-se na Fortaleza Antónia a noroeste do Templo, mas, logo à chegada roubou a câmara do tesouro organizando um regime de terror. Coincidindo com a festa judaica de Schawot – a festa das colheitas -, os peregrinos amotinaram-se e os legionários romanos irromperam pelo santuário (o pior delito que podia ser cometido contra os Judeus), incendiando os pórticos que rodeavam o Templo e saqueando o tesouro. O novo procurador receberia a bela soma de quatrocentos talentos (Nota interrompida).
Foram necessárias três semanas para vencer a tenaz resistência de Maria, empenhada em fixar a residência em Belém. Passados apenas cinco meses desde a tomada de posse de Arquelau, já a Judeia estava a ferro e fogo, ameaçando o resto do país de morte e destruição. Não era preciso ser extraordinariamente arguto nem recorrer a sonhos sobrenaturais, à maneira do evangelista Mateus, para deduzir que o novo governante só traria consigo a desgraça e o luto. Por isso, não é preciso andar à procura de estranhas razões para justificar a decisão de José de ir para Nazaré. O cadastro de Arquelau falava só por si. Seja como for – também há que o admitir -, pode pensar-se que a Providência teve muito a ver com isto. A permanência da família em Alexandria, até Agosto, seria, oportuníssima. No caso de ter regressado meses antes, as revoltas na Galileia e na Judeia teriam constituído uma ameaça constante para a sua segurança. Nos primeiros dias de Outubro desse ano 4 antes da nossa era, José, Maria e o Menino Jesus empreenderiam por fim a viagem de
regresso a Nazaré. A Senhora e o Menino montando o burro adquirido pelo empreiteiro José. Este, a pé, na companhia de cinco parentes que não consentiram (Continua a nota). (O talento hebreu – posterior ao cativeiro de Babilónia – equivalia então a um pouco mais de mil e duzentos dólares. Quatrocentos talentos em ouro valeriam, portanto, à volta de meio milhão de dólares, à cotação de 1973). Mas a ira do povo era incontrolável e os romanos recuaram para a Torre Antónia, onde ficaram isolados. A revolta estendeu-se rapidamente a todo o país. A norte, na Galileia, a pátria dos Zelotas, um dos mais populares rebeldes – Judas, o Galileu – organizaria uma série de guerrilhas, atacando sem tréguas os romanos. A leste levantar-se-ia Simão, um antigo escravo de Herodes, autonomeando-se rei. A breve trecho, Israel ficou a ferro e fogo. Athronges, um pastor de força quase mítica, revestido também do diadema real e acompanhado dos seus quatro irmãos, lançou-se contra os legionários, conseguindo destroçar toda uma corte romana em Emaús. Varo enviou duas novas legiões e a Galileia foi arrasada, sendo incendiada Séforis, a capital. A maioria dos seus habitantes, partidários do patriota Judas ben Ezequias, foram vendidos como escravos. As legiões de Varo passaram à espada a população de Emaús, incendiando a aldeia. Por fim, conseguiram entrar em Jerusalém, pondo fim ao cerco à Fortaleza Antónia. A vingança de Roma viria a ser cruel. Dezenas de povoações foram calcinadas e mais de dois mil guerrilheiros foram crucificados e deixados expostos nas cruzes ao longo dos caminhos. Só depois de a rebelião ter sido sufocada é que Augusto se decidiu a resolver o espinhoso caso da sucessão de Herodes, o Grande. Uma embaixada judaica chega então a Roma e o imperador convoca uma assembleia no novo templo de Apolo, no Palatino, deixando falar todas as partes em litígio. Os representantes do povo judaico pedem a autodeterminação para a Judeia, com uma constituição republicana e sempre sob a tutela de um procurador romano. Mas Augusto acabou por confirmar o testamento de Herodes: Arquelau receberia a Judeia, embora não com o título de rei, mas sim como etnarca. Também a Samaria e a Idumeia, a sul, seriam entregues ao novo tirano. As prudentes recomendações do imperador, sugerindo a Arquelau que governasse com moderação, seriam esquecidas logo que ele chegou a Jerusalém. Digno filho de seu pai Herodes, o etnarca põe e dispõe, criando um clima de terror. Anos mais tarde, outra embaixada se dirigiria de novo a Roma, apresentando as suas queixas a Augusto; este viria a destituir Arquelau, desterrando-o para as Gálias, tal como viria a suceder anos mais tarde com o seu irmão Antipas, sob o mandato de Calígula. Era o ano 6 depois de Cristo. Em vista do cadastro, José agiu muito acertadamente, ao escolher a Galileia como residência definitiva para a sua família. (N. Do M.) que viajassem sozinhos. Desta vez, o itenerário foi pelo interior:
de Belém a Lida e, daqui, a Citópolis e Nazaré, pela planície de Esdrelão. Na caminhada, que se prolongaria por quatro jornadas, José teria dito a sua esposa que julgava aconselhável não espalhar entre os seus familiares e amigos a notícia de que eram os pais do filho da Promessa. Maria concordou. - Ao subirmos a última colina – disse ela agradecida por aquela possibilidade de recordar tempos tão felizes – e avistarmos a aldeia sentimos uma profunda emoção. Finalmente em casa!.. A Senhora fez uma pausa, com uma expressão contrariada no rosto. - ... Mas não. Os problemas não tinham terminado. A nossa casa estava ocupada, desde há três anos, por um dos irmãos de José. A culpa foi nossa. A saída do Egipto foi tão bem escondida que toda a gente em Nazaré nos julgava ainda em Alexandria. O meu cunhado, logicamente contrariado, resistiu. Foi uma situação delicada e desagradável. Até que na manhã seguinte ele se mudou e, finalmente, pudemos gozar de alguma paz no nosso pequeno lar... Jesus tinha então três anos e dois meses de idade. Segundo a sua mãe, era um rapazão saudável, forte... e lindo. Tinha resistido bem às contínuas mudanças de residência e às viagens, enchendo a humilde casa de Nazaré com alegria transbordante. - A única sombra de tristeza no seu coração – salientou a Senhora – deveu-se à natural saudade dos amigos de Alexandria. Mas muito em breve encontraria novos companheiros de brincadeira. Um deles, chamado Tiago, um excelente rapaz, chegaria a ser discípulo do meu filho... Segundo as minhas informações, aquele quarto ano da vida de Jesus correu assim sem contratempos de maior. Ele crescia forte e são, com um apetite devorador e, utilizando as palavras da Senhora, fazendo mil e uma perguntas sobre o que o rodeava. Com toda a certeza, o acontecimento mais marcante para o jovem
casal (Maria devia ter então uns dezassete anos) e naturalmente para Jesus, foi o nascimento, na madrugada de 2 de Abril daquele ano 3 antes da nossa era, do segundo filho. Também foi varão e obviamente, encheu José de alegria. Ainda que os judeus neste sentido não chegassem aos cruéis extremos de egípcios, gregos e romanos – que desprezavam abandonavam e chegavam mesmo a matar as meninas recém-nascidas – o certo é que o nascimento de uma fêmea era motivo de desolação e tristeza. Falso tesouro das filhas, assim rezava o Talmude. Além do mais somos obrigados a vigiá-las sempre.) Foi-lhe posto o nome de Tiago e, ao oitavo dia, como a Lei determinava, foi colocado nas mãos do mohel do povo: o perito na delicada operação da circuncisão 1. *1 – Como assegura Rops nos minuciosos estudos sobre o povo judaico, o rito da circuncisão foi – e continua a ser – sagrado para a raça judaica. Um exemplo bem claro desta prática encontramo-lo nas mães que preferiram morrer a renunciar à circuncisão dos seus filhos, em plena época dos Macabeus (I Macabeus, I, 63 e II, 46). Viam nela o grande sinal da aliança com Deus. Tratar alguém de incircunciso, era uma das maiores injúrias. Naturalmente, os antigos hebreus sabiam muito bem que aquele rito – de clara finalidade higiénico-sanitária – não era exclusivo do seu povo. Antes de ter sido ordenado por Iavé, muitos outros povos o conheciam e praticavam. As modernas investigações etnológicas descobriram que tal prática já vigorava no Antigo Império Egípcio, em inúmeras tribos da África Oriental e Ocidental, da Austrália, Polinésia e América Meridional, entre outros. Os Fenícios, por exemplo, segundo Heródoto, aprenderam tal prática dos Egípcios e estes, possivelmente, dos Etíopes. (N. Do M.) À minha pergunta de como reagiu o pequeno Jesus à chegada do seu primeiro irmão, a Senhora esboçou um doce sorriso, respondendo: - Ficou feliz! Passava horas a contemplá-lo. Ria às gargalhadas quando o via chuchar no dedo... As coisas, pouco a pouco, começavam a compor-se. Em meados desse Verão, José conseguiu finalmente concretizar um dos seus sonhos: montar uma oficina num ponto estratégico da povoação, perto da fonte pública e da pousada. Associou-se com dois dos seus irmãos e os negócios prosperaram. Conseguiram reunir um grupo de operários, que enviavam a trabalhar nas aldeias a cidades circunvizinhas, fundamentalmente na construção de edifícios.
Paulatinamente, a sua especialidade de entalhador e marceneiro foi ficando para segundo plano e, embora passasse muitas horas na oficina, ocupado na construção de carretas, cangas e outros utensílios de madeira, o seu principal entusiasmo e objectivo era a contratação de obras. Por aquele tempo alternaria também a madeira com o trabalho sobre couro, lona e fabrico de cordas. - O nosso filho passava muitas horas na oficina do pai, observando José e ouvindo de boca aberta as discussões, conversas e relatos dos guias de caravanas e dos viajantes que solicitavam os serviços do meu marido. Desta forma nasceria em Jesus um vivo interesse pelos costumes de outros povos distantes. Como iremos vendo, este contacto com estrangeiros dos quatro pontos cardiais seria altamente proveitoso para o vivo e sempre atento jovem de Nazaré. Em Julho desse ano, no entanto, as visitas de Jesus à oficina familiar ver-se-iam bruscamente interrompidas. Uns viajantes, portadores de algum tipo de infecção parasitária, espalharam-na na humilde povoação, provocando uma epidemia intestinal de graves consequências. Maria, com apurado sentido da prudência e assustada perante as dimensões que o mal começava a adquirir, optou por preparar a bagagem e fugir, levando consigo os seus dois filhos. José, apesar das súplicas da Senhora, não saiu de Nazaré. - A toda a pressa – prosseguiu Maria, lembrando com inquietação os momentos vividos -, desesperada diante da possibilidade de o irrequieto Jesus, que brincava e andava por todo o lado, ter já contraído a doença, partimos nessa mesma noite para a granja de um dos meus irmãos, quarenta e quatro estádios a sul de Nazaré, na estrada de Megido, muito perto de Sarid. Ali nos refugiámos durante dois meses. Graças a Deus (bendito seja o Seu nome), nenhum dos meus pequenos se contagiou. Aquela foi uma extraordinária experiência para Jesus. Divertiu-se imenso com os animais, sobretudo com os gansos... - A Senhora partilhou do meu sorriso. Não era difícil imaginar a irrequieta e activíssima criança, correndo atrás das aves domésticas no quinteiro ou dando de comer aos animais. - Uma delas, já velha e trôpega, fez especial amizade
com o meu filho. A despedida, irmão Jasão, foi um drama... Jesus queria levá-la para Nazaré. No fim tive até de o repreender. O caminho de regresso a casa foi um mar de lágrimas. Pelos pormenores fornecidos sobre a epidemia em questão é muito provável que se tratasse de uma disenteria bacilar, extremamente perigosa e de alto risco de contágio - provocada pelo bacilo de Shiga. Este tipo de disenteria aguda era praticamente mortal naquele tempo. Durante as nossas explorações constituiu um permanente e funesto fantasma, que tínhamos de vigiar sem descanso. Maria fez muito bem em sair de Nazaré. Estas epidemias propagam-se por contágio, sendo o homem – e seus dejectos – o depósito do vírus. A transmissão directa pode efectuar-se através das mãos que tenham tido contacto por exemplo, com os dejectos contaminados. E, embora seja desagradável referi-lo, não se pode ignorar que, nos tempos de Jesus, a maioria das pessoas não observava uma estrita higiene dos corpos depois de fazer as suas necessidades fisiológicas. O povo simples e rude utilizava para essa necessária acção higiénica folhas, pedras ou cacos de cerâmica e, em inúmeros casos, a mão esquerda. Se o afectado pela disenteria bacilar não tivesse a precaução de se lavar convenientemente após uma das típicas diarreias o perigo de levar o contágio a tudo quanto tocasse era óbvio. Havia, além disso, muitas outras formas indirectas de transmissão; nomeadamente, através dos objectos em contacto com os dejectos dos disentéricos, do vestuário, da roupa da cama, da louça e utensilios de cozinha, dos alimentos contaminados e mesmo através da terra, das moscas e outros insectos e da própria água. A Divina Providência salvaguardara uma vez mais o Filho da Promessa... Entretanto, a Senhora deu à luz o seu terceiro filho – neste caso uma menina – na noite de 11 de Julho desse ano menos dois. Recebeu o nome de Miriam (Maria), tal como sua mãe. - Foi o melhor presente de aniversário para Jesus - sintetizou Maria. - Como sabes, completou cinco anos no dia 21 de Agosto...
Na noite seguinte, o curioso Jesus faria pela primeira vez perguntas sobre o mistério da vida e do nascimento dos seres vivos. Como já referi, durante aqueles anos da infância o Menino não deixaria de formular perguntas. Tudo o interessava. Tudo o surpreendia. A sua curiosidade era insaciável e os pais chegaram a ter verdadeiros problemas para responder. Por vezes, viam-se na necessidade de esperar um ou dois dias até que, à sua maneira e nem sempre com acerto, procuravam satisfazer as dúvidas do bekor, ou primogénito. No tema que nos ocupa – o da procriação, gestação e parto -, é muito possível que Jesus não se sentisse inteiramente satisfeito com as claras, mas insuficientes, explicações recebidas. É evidente que a culpa não era deles. Naquela época, os fundamentos da maternidade não eram de todo claros. A medicina egípcia, grega e babilónica conhecia bem os órgãos genitais externos, assim como o útero. Mas o papel dos ovários não é menncionado nos órgãos, pelo documento. Os egípcios por exemplo, pensavam que os testículos podiam mover-se livremente e que, quando se magoavam, deviam ser fixos mediante fumigações. Em contraste com a importância dada aos testículos - cujo significado fisiológico era bem conhecido -, o papel da mulher na reprodução era muito confuso. A ideia então mais generalizada apontava para um útero permanentemente aberto e disposto para a concepção. A influência egípcia fazia-os crer que os ossos e tendões provinham do pai e a carne da mãe. *1 – O solo, pelos dejectos que nele se depositam, torna-se um agente de contágio de enorme importância. Widal refere a história de uma epidemia ocasionada em Paris por tapetes persas. Como é sabido estes são envelhecidos artificialmente, sendo enterrados em covas onde são  empilhados e polvilhados com esterco muito seco, do qual não estão excluídos os excrementos humanos. (N. Do M.)
Quanto ao esperma, aceitava-se que ficava armazenado nos ossos. Após o parto de Miriam, a Senhora deve ter sofrido algum transtorno passageiro e de pouca importância porquanto - como ela contava divertida – para aumentar o fluxo de leite friccionaram-me
as costas com uma espinha de peixe embebida em azeite.... E com o seu quinto aniversário chegaria também uma mudança obrigatória na vida do pequeno e feliz Jesus de Nazaré. A mãe do Mestre não era uma excepção. Como qualquer ser humano também ela guardava na sua memória pequenas e grandes recordações da infância dos seus filhos. Um desses aparentemente vulgares pormenores era constituído pelo berço de madeira que Jesus nunca teve. Ao que parece, José encontrava-se tão ocupado na oficina e nos negócios que – como acontece com frequência em muitos lares – não conseguiu arranjar tempo para satisfazer tão básica necessidade. Já se sabe: Em casa de ferreiro... Mas a Senhora, que quase sempre levava a sua avante, fez-lhe prometer que o berço apareceria em casa antes do nascimento do terceiro filho. E assim foi. Miriam teve, pois, o seu berço. E chegou o dia. Em 21 de Agosto daquele ano 2 (antes da nossa era), ao completar cinco anos, e de acordo com os costumes vigentes, Jesus passou a depender do seu pai terreno em tudo o que se referia à educação moral e religiosa. Até àquela altura, os varões permaneciam sob a tutela da mãe. As meninas, pelo contrário, continuavam a depender dela até aos doze anos e meio. Com a primeira menstruação, o normal é que fossem desposadas, passando assim para tutela do marido. Como já ficou dito, a sociedade judaica de então centrava todo o seu interesse nos varões. As mulheres não contavam. Nesse dia, Maria confiou o seu primogénito a José. A partir dessa data, o pai tinha a obrigação de lhe ensinar um ofício – geralmente o seu – e de lhe dar educação. Principalmente, uma sólida formação religiosa. Instrui o menino no seu caminho, determinava o texto sagrado, que mesmo quando velho não se afastará dele Provérbios XXII, 6). Se bem que a escola pública fosse insubstituível na educação dos rapazes, a Lei especificava como é que os pais deviam instruir os seus filhos nos mandamentos de Iavé, nos gloriosos feitos protagonizados pelo seu povo, no sentido das festas e de
toda a liturgia e, por fim, num profundo respeito para com Deus. Apesar desta inevitável mudança, a Senhora, como era natural, não perdeu de vista o primogénito, colaborando com José em tudo o que se referia à formação humana e familiar de Jesus. O forte temperamento de Maria – mais ousada que o seu marido – não lhe teria permitido ficar à margem. Pela mão de sua mãe, Jesus aprendeu a conhecer e cuidar dos vinhedos e das flores e trepadeiras que enchiam o pequeno jardim e as paredes da casa de Nazaré. - Foi uma época tranquila e maravilhosa – prosseguiu Maria, rememorando, calmamente, as suas vivências. - Lembro-me que arranjei o terraço da casa como local de brincadeiras para os meus filhos. José fez umas caixas de madeira, que eu enchi de areia. Ali, Jesus primeiro e Tiago depois, começaram a garatujar as suas primeiras letras. Encantavam-se a fazer mapas e a brincar às guerras... Aquele ponto interessou-me especialmente. Hoje em dia, alguns exegetas duvidam de que o Mestre soubesse escrever. Uma das razões para tão louca opinião é a da inquestionável realidade de que não deixou escritos. Nesse aspecto têm razão. Não os deixou... directamente quer dizer, de seu punho e letra. Mas, como veremos mais adiante, a verdade é que os ditou. Eu sabia-o. Jesus conhecia o grego. Falava-o perfeitamente. Mas, aquela segunda escola, procurei averiguar quando e em que língua aprendeu. - Foi coisa de que se ocupou o seu pai – esclareceu a Senhora.Ele falava-o muito bem. Eu, pelo contrário, como tu vês – ruborizou-se -, só sei dizer duas ou três coisas... Maria exagerava na sua modéstia. A verdade é que o seu grego era perfeitamente inteligível, embora vacilante e com forte sotaque. - José era um homem inquieto, consciente da importância dos vários idiomas. Quando o Menino começou a exprimir-se em na nossa língua natal, o aramaico, empenhou-se em que aprendesse também o grego. Se tivesse de continuar o ofício de seu pai, viajando daqui para ali, era fundamental que soubesse defender-se
na língua dos comerciantes. O texto que lhe ofereceram em Alexandria foi de grande importância na sua aprendizagem. O meu Jesus era vivo e inteligente como ninguém e ounosEg pto.depois começou a ler a tradução da Lei que nos oferecéram. Em toda a Nazaré – segundo a Senhora – só havia então dois exemplares em grego das Escrituras. Uma delas encontrava-se na casa de José. Esta circunstância contribuiria também para fomentar uma série de visitas à casa da família que, indirectamente, enriqueceriam o primogénito pelos contactos que proporcionavam. Por ali passaria umsem número de sábios e pacientes investigadores, cujas práticas e conselhos causaram em Jesus uma profunda impressão. Mais tarde quando o rapaz já dominava o grego, ele mesmo, por sua iniciativa, se lançou na árdua tarefa da aprendizagem do hebraico. Jesus era, pois, bilingue, lendo e escrevendo também em língua sagrada das Escrituras: o hebraico. O facto de não ter deixado nada escrito não é razão para dizer que era semianalfabeto, como pretendem alguns. Também não deixou descendência. E quem é que poderá, em seu perfeito juízo, concluir que era estéril ou impotente. As causas pelas quais se negou, de facto, a deixar atrás de si filhos ou documentos escritos foram outras. Razões que tiveram muito que ver com certas decisões por Ele tomadas pouco antes de iniciar a vida de pregação. Isto descobri-loíamos mais tarde por ocasião do terceiro salto. , O seu quinto ano de vida enfim, passou-se sem sobressaltos de maior, à excepção de uma mudança temporária de domicíllio e de uma ligeira perturbação digestiva a que, exagerando um pouco, Maria chamou doença. Teria sido a primeira doença de Jesus. Na realidade, por aquilo que a Senhora me revelou, deve ter-se tratado de uma vulgar indigestão provocada por alguns figos a mais. Afinal, uma coisa normalíssima em crianças. - Antes de completar os seis anos – recordou subitamente a Senhora – sucedeu algo que o desiludiu profundamente... Aguardei impaciente. - Jesus estava convencido de que nós, os pais, sabíamos tudo.
Imagina a surpresa que teve quando, no início daquele Verão, um pequeno tremor de terra abalou Nazaré! Olhou para nós, atónito. Perguntou o que era aquilo, mas José não soube dar-lhe uma explicação cabal. (Naquela época, este tipo de fenómenos naturais era associado à acção de Deus ou aos espíritos malignos.) (1) *1 – Os Hebreus – em especial após o seu exílio na Babilónia e por efeito dessa longa estada em terra estrangeira – criam firmemente na intervenção ora benéfica ora maléfica, de uma legião de espíritos. Os bons estavam sujeitos a Iavé, convertendo-se em seus servidores ou mensageiros (os anjos). Acompanhavam-no na brisa ou no fogo. Por isso diziam que transforma o vento em Seu mensageiro e as chamas nos Seus ministros (Salmos 104, 4). Segundo o Livro dos Jubileus, Deus criou os espíritos do vento e das nuvens, do branco orvalho, da neve e do granizo, dos trovões e dos raios, do frio e do calor e das quatro estações. Segundo a crença popular, estes espíritos bons protegiam o moribundo, alimentavam o faminto, guiavam os caminhantes e, por vezes, ocupavam-se também dos castigos e calamidades. Depois do exílio entre os Persas – autênticos inventores da angelologia, -, os Judeus começaram a dar nomes a muitos desses mensageiros de Iavé. Quatro desses espíritos ocupavam as quatro esquinas do trono de Deus, dominando daí os quatro cantos da Terra. Setenta anjos governavam os destinos das setenta nações que, segundo se cria, formavam o Mundo. Os Judeus encontravam-se sob a tutela de Miguel e de Gabriel. Cada ser humano – à excepção dos escravos, claro – tinha o seu particular anjo-da-guarda. Por vezes, havia mesmo dois. O vazio entre Deus e os homens era assim preenchido por uma miríade de espíritos de diferentes ordens e categorias. Os demónios constituíam um capítulo à parte. Durante as nossas explorações tivemos muitas ocasiões de comprovar até que ponto as pessoas se encontravam dominadas por estas crenças e superstições, incluindo, naturalmente, os próprios discípulos do Mestre. Estes espíritos perniciosos eram tão numerosos e poderosos como os bons. A sua única ocupação – dizia-se – era provocar o mal. Assim, a maior parte das doenças, físicas ou espirituais, tinha a sua origem nesses espíritos malignos. Eralhes mesmo atribuída toda a espécie de calamidades: más colheitas, incêndios, granizo, raios, inundações, nevões, etc. Para conjurar ou contrabalançar o seu poder foram aparecendo os feitiços e fórmulas mágicas, publicamente usados entre os Judeus. Apesar das críticas dos profetas e do rigor da Lei, nunca se extinguiram completamente. Eminentes doutores chegaram a formular várias hipóteses sobre a origem destes demónios. Teriam saído da alma de Adão, depois da sua primeira desobediência? Ou seriam fruto da relação entre os filhos de Deus (assim chamavam também aos anjos bons) e as filhas dos homens? Tratar-se-ia das almas dos ímpios que sobreviveram ao dilúvio ou as dos que edificaram a Torre de Babel? O certo é que,
segundo o povo, vagueavam por todo o mundo e a todas as horas, à caça de algum adormecido. Outros actuavam durante a noite, provocando falsos e maus sonhos (pesadelos), pelo que era preferível não saudar ninguém no escuro, dormir com alguma luz e evitar as casas em ruínas ou vazias. O homem tinha mil demónios à sua esquerda e dez mil à sua direita. E um velho ditado assegurava que se pudesse abrir os seus olhos e pudesse vê-los, o ser humano perguntar-se-ia como era possível viver. Esses espíritos malignos habitavam nos pontões, nos lugares ermos, à sombra dos barcos, nas casas em ruína, nos matagais... (Ainda hoje, em pleno século xx, quando um árabe do deserto lança uma pedra ou deixa cair um objecto ao chão, pede desculpa àqueles espíritos, aos quais poderá eventualmente ter magoado...) Para os Hebreus, estes espíritos malignos encontram-se divididos – e porque não? - em múltiplas categorias. Os mais notáveis (Nota interrompida). - Meu filho, respondeu o meu marido, na realidade, não sei. Jesus ficou mudo, com uma sombra de incredulidade no rosto. Como vês... falhámos em relação àquilo que esperava de nós! Nunca no-lo disse, mas eu soube que, a partir de então, começou nele uma progressiva série de decepções. Ainda tentámos convencêlo de que a nossa sabedoria era muito limitada. Foi inútil. Suponho que aquele foi um dia amargo para a sua imaginação fervilhante. Já desde há muito tempo que eu e o meu marido tínhamos sérios problemas para saciar a sua inesgotável curiosidade. A intervenção dos bons e maus espíritos em muitos dos acontecimentos físicos (doenças, tempestades, calamidades, etc.) não o convencia. Não via as coisas com clareza. Passava o tempo a discutir. A sua lógica era temível e imprópria da idade. Por vezes chegávamos a ter medo. As coisas chegaram a tal extremo – sorriu com bondade – que José se escondia, para não ter de responder às embaraçosas perguntas... Não sei se é este o momento adequado. Talvez devesse falar disso mais tarde. Para já, apenas um ligeiro apontamento. Muitos crentes estão convencidos de que Jesus teve consciência da sua natureza divina desde a mais tenra infância. Para isso contribuiu bastante a série de lendas fantásticas, todas elas de carácter apócrifo, que foram circulando ao longo da História sobre a infância de Jesus. A realidade foi outra. O jovem de Nazaré necessitaria de muitos anos para descobrir quem era na verdade. Em todo esse tempo as suas ideias e comportamento foram os de
um ser humano normal. Um homem, isso sim, inquieto, curioso e em permanente luta consigo próprio. Mas esse drama, insisto, merece um capítulo à parte. A Senhora referiu-se depois a outro acontecimento, ocorrido no início daquele ano, 1 antes da nossa era: a visita a Nazaré dos seus primos Isabel e Zacarias. - Que alegria, Jasão! João, seu filho, estava lindo... Aquele era, efectivamente, um encontro histórico. Era a primeira vez que Jesus e o seu primo afastado se viam. - Tornaram-se muito amigos. O meu filho mostrou-lhe as caixas de madeira do terraço e ali permaneciam horas e horas brincando com a areia. *(Continua a nota). eram os destruidores e danificadores Como já referi, eram responsáveis por quase todas as doenças. Sobretudo, pela lepra, pela loucura, etc. A crença nestes demónios estava tão arraigada, desde uma simples enxaqueca até à morte, que passando nos tempos de Jesus chegamos a conhecer uma espécie de sociedade destinada à vigilância e ao tratamento dos possuídos e endemoninhados. Traziam os mais assombrosos talismãs e utilizavam mil esconjuros e beberagens mágicas. Os espíritos do Mal eram Azapel, Asmodeu (Ashmedai em hebraico) e Boelzebuf (também conhecido como Satã) entre outros. No dia da solene festa da Expiação, os Judeus soltavam um bode do Templo, em honra de Azazel. Constituía um símbolo: todos os pecados do povo passavam assim para o bode expiatório. Asmodeu era o rei dos demónios. Quanto a Belzebu citado pelo próprio Jesus – parece que tinha a sua origem em Baalzebeb, antigo deus filisteu das moscas, na cidade de Ekron (II Peis 1, 2). Com o tempo viria a receber o nome de Satã, que significava adversário. (O termo diabo derivou, na realidade da palavra grega diabolos – caluniador – pois se supunha que estes seres levavam todo o tempo a acusar os homens diante de Deus.) (N. Do M.) Embora a visita fosse breve – apenas uma semana -, as famílias tiveram tempo suficiente para prosseguir com os seus planos relativamente ao futuro do filho da Promessa e o seu lugar-tenente, como consideravam aquele que, anos depois, seria conhecido como João, o Anunciador. Tais planos – não me cansarei de o repetir – assustariam actualmente os fiéis cristãos. Não se tratava de preparar uma missão espiritual. Nada disso. Tudo andava à volta do decisivo Messias político, que expulsaria o odiado estrangeiro [os Romanos] do sagrado solo
de Iavé. Agora, com o cadáver do Mestre no túmulo de José de Arimateia, sua mãe baixou os olhos, consciente do seu grave erro de então. Isabel e Maria, naqueles anos distantes, não podiam sequer conceber que os filhos fossem anunciadores ou mensageiros de um reino espiritual. E a Senhora, naturalmente, nem podia aventar a possibilidade de Jesus ser realmente o Filho de Deus. Esta firme crença num Messias revolucionário e libertador – como veremos – conduzi-los-ia, sobretudo a Maria, a desagradáveis choques com os seus filhos. Como hoje nos aparece deformada a imagem daquela patriótica galileia! Os crentes, na sua maioria, empenham-se a sustentar uma falsa e artificial recordação de uma mulher que, mesmo sendo a mãe terrena de um deus, nem por isso era menos humana. A amizade com João estimulou em Jesus o interesse pela história, festas e tradições de Israel. O primo falou-Lhe de Jerusalém, da sua grandeza, dos seus edifícios e do Templo, e essas imagens ficariam gravadas a fogo na mente do primogénito. - A partir de então – sintetizou a Senhora -, a cada momento nos repetia a mesma pergunta: “Quando é que vamos a Jerusalém?” José, com a sua infinita paciência, foi-Lhe explicando o porquê de cada uma das nossas festas e celebrações: a Páscoa, o Pentecostes, o Ano Novo, a Dedicação... Mas o que mais o perturbava era o sagrado rito do sábado. - Porquê? - Não entendia o rigorismo da Lei. E eu também não - confessou ela, baixando o tom de voz... A postura de Maria – muito liberal em assuntos religiosos – era compreensível. A Galileia distinguia-se pela sua hospitalidade e por uma maneira de ser muito mais aberta que o resto do país. Nazaré era, neste aspecto, um dos núcleos populacionais mais tolerantes. O velho ditado Será que de Nazaré poderá sair algo de bom? Condizia perfeitamente com a atitude dos seus habitantes, totalmente integrados entre os prosélitos estrangeiros. (Eles constituíam uma verdadeira lepra nacional, segundo os fariseus da Judeia.) Com um gesto de desânimo, a Senhora acrescentou:
- O pior foi quando, por aquela altura, Jesus começou a manifestar um desejo blasfemo de falar directamente com Deus. Queria dirigir-se ao Divino (bendito seja o Seu nome) da mesma forma que o fazia com José! Estás a imaginar, Jasão? Claro que eu imaginava. Como bem acentuava sua mãe, aquela louca pretensão poderia ter sido qualificada de blasfema pela comunidade judaica mais ortodoxa. A palavra YHVH – Yod-Hé-Vau-Hé ou Iavé – era absolutamente sagrada. Nunca era pronunciada pelos hebreus. Só o sumo sacerdote estava autorizado a invocar tal vocábulo (1), uma vez por ano e no meio dos gritos do povo. Como entender então que uma criança pretendesse falar, conversar com o Divino? Inconscientemente, Jesus Menino começava a revolver no mais íntimo de si o que a seu tempo seria a razão da sua vida, a mensagem: o Pai. Mas ele, logicamente, era ainda muito pequeno para compreender o verdadeiro alcance daquele maravilhoso e sublime desejo... Aqueles estranhos desejos encheram de angústia e perplexidade como não podia deixar de ser , o modesto casal. A singularidade de Jesus estava, inevitavelmente, a abrir um profundo abismo entre Ele e os seus. (Hoje chamar-lhe-íamos conflito de gerações.) - Mortos de receio diante da possibilidade de que as suas absurdas pretensões chegassem aos ouvidos dos sacerdotes e da vizinhança – concluiu ela -, esforçámo-nos em vão por convencer Jesus de que devia rezar como nos tinham ensinado. Ele, porém, incorrigível e teimoso como eu, insistia em ter uma conversa com o seu Pai do céu. Foi uma batalha perdida. Agora entendo-o, Jasão. Em Junho daquele ano 1 antes de Cristo, José tomou uma corajosa decisão. Cedeu a oficina de carpintaria aos seus irmãos e, apesar das dúvidas da mulher, lançou-se em cheio na contratação de obras. - Ah, querido irmão! - lamentou-se a Senhora -, porque será que nós, as mulheres somos tão desconfiadas? Era esse o seu sonho e eu, cega e estúpida, fiz-lhe a vida impossível, renegando a cada momento o que considerava uma loucura. Como vês voltei a enganar-me... Com efeito, antes de o ano terminar, tínhamos triplicado os nossos ganhos...
Foi uma das poucas vezes que lhe ouvi algumas palavras de amor. Uma frase simples que me revelou quanto gostava do nobre e voluntarioso José. Suspirou e, quase só para si, exclamou: - Meu amor!... Como preciso de ti! A partir de então e até pouco depois do falecimento do empreiteiro José, a família de Nazaré deixou de temer a miséria. - O que ganhávamos, sem que fosse uma grande riqueza, deu-nos algum desafogo. - Por exemplo? - perguntei sem reprimir a curiosidade. - Não sei... Estudos das crianças, algumas viagens... uma linda vaca, um pombal ... Nos anos seguintes, o novo trabalho de José obrigou-o a viagens constantes. Arrancou com numerosas obras em povoações como Caná, Migdal, Naim, Nahum, Endor, Séforis e, naturalmente, na própria Nazaré. *1 – De facto – e os cabalistas sabem-no bem -, o nome YHVH que nunca devia ser pronunciado pelos profanos era substituído pela palavra Tetragram aton ou por Adonai (Senhor). Segundo a antiga tradição oral dos Hebreus, esta palavra sagrada e secreta conferia ao mortal que conseguia desvendar a sua verdadeira pronúncia todas as chaves das ciências divinas e humanas. Segundo a Cabala, YHVH é o cume de toda a iniciação, uma palavra que irradia no centro do triângulo flamejante do emblema do grau XXXIII da maçonaria escocesa. No Sepher Bereshit ou G reesis de Moisés, este vocábulo designa a divindade. A sua construção gramatical é tão insólita e peculiar que, na sua própria estrutura, aparecem os atributos que o homem houve por bem outorgar a Deus. O seu significado mais aproximado poderia ser este: “O Ser que é, que foi e que será”. (N. Do M.) Uma destas construções – na referida Séforis, capital da Galileia -, como já disse, levá-lo-ia à morte... Jesus tirou grande partido da profissão de seu pai terreno. O irmão Tiago já ajudava a Senhora nas tarefas da casa e isso permitiu que Jesus acompanhasse o pai em muitas das suas deslocações pela região. Nem era preciso lembrá-lo: Jesus era um observador nato, e aquelas curtas viagens foram-lhe muito úteis. Como a qualquer criança daquela idade, estas primeiras experiências encheram-no de espanto, conservando-as no coração.
- Não imaginas as histórias que nos contava quando regressava. Punha-me a cabeça louca; mas eu ficava feliz ao ver a alegre expressão do seu rosto! Era, realmente, uma alegria! Pouco antes do ano 1 da era cristã (é sabido que o ano zero não conta), Maria e José tiveram de repreender Jesus. - Não – corrigiu-me a Senhora -, não foi um problema de indisciplina ou desobediência. Jesus era atento e cumpridor. Mas a paixão pela Natureza, pelas viagens e por aprender faziamno esquecer com frequência as obrigações domésticas. Pedi-lhe várias vezes que me ajudasse nas tarefas da casa. Mas desaparecia sempre... Até que um dia, depois de tratar do assunto com José, o pai sentou-se junto dele, explicando-lhe muito sério que, de momento, tinha de sujeitar-se à disciplina do lar, para bem da felicidade de todos. Jesus ouviu-o em silêncio. Ele sabia escutar, de facto. Reflectiu e, de bom grado, pediu perdão. Nunca mais foi preciso repreendê-lo. Era o primeiro a ir à fonte, a dar de comer aos irmãos mais pequenos, a estar atento para que o lume não se apagasse e todas essas coisas... Mas quando tinha um minuto livre, isso sim, lá ia brincar, observar as flores e as plantas ou deitar-se de costas na colina próxima. - E o que é que fazia nessa colina? Maria levantou os olhos para o tecto. - Tinha uma paixão pelas estrelas. As perguntas que fazia sobre esse assunto eram um verdadeiro suplício para o pobre José. Queria saber tudo: porque é que o Sol não brilhava durante a noite? Porque é que a Lua era redonda? Porque é que de vez em quando as estrelas se moviam? Porque é que outras permaneciam quietas? Porque é que a escuridão durava exactamente o que durava? A que distância estava o Sol?... Enfim, era um nunca mais acabar! Já podes compreender os apuros em que o meu marido se via e porque é que muitas vezes acabava por escapar-se quando o Menino arremetia com o seu interminável questionário. Há dois mil anos, a concepção do Universo e das suas leis era extremamente rudimentar e confusa para a maioria dos seres
humanos. E os Judeus não eram uma excepção. Por volta do ano 580 antes da nossa era, a escola dos livres-pensadores gregos deu início a um tímido estudo do Cosmos. Os filósofos de Mileto, por exemplo, criam que todo o Universo era racional e que podia ser entendido e explicado através de uma cuidadosa observação científica. Não estavam enganados. Mas nem todos pensavam assim. Desta forma iniciou-se a elaboração de uma teoria sobre o universo físico visível. Os Gregos pensavam que os corpos celestes giravam em torno da Estrela Polar, considerando que o Sol passava por debaixo da Terra durante a noite e não à volta, como pensavam outros astrónomos. Naturalmente, a ciência de então supunha que o nosso mundo era o centro do Universo. Séculos depois, Aristarco de Samos exporia uma teoria nova e revolucionária: a Terra girava à volta do Sol, descrevendo uma circunferência. Plutarco defendeu a acertada hipótese de Aristarco mas a ciência oficial acabou por isolar aquela ideia louca, acabando por prevalecer a teoria geocêntrica. Só Copérnico e Galileu, séculos mais tarde, se atreveriam a interpelar de novo as certezas oficiais. Era este, a traços largos, o panorama científico em que Jesus teve de mover-se. O sétimo ano de vida na terra do Filho da Promessa seria igualmente intenso. No mês de shebat (Janeiro-Fevereiro) daquele ano 1 da hoje denominada era cristã, Jesus receberia uma das maiores e mais agradáveis surpresas da sua ainda curta vida. Numa manhã, ao levantar-se, os belos olhos cor de mel abriram-se mais que o normal. - Jamais esquecerei a sua expressão. Estava perplexo... Toda a povoação tinha acordado coberta por uma espessa camada de neve. Embora as temperaturas médias de Nazaré nos meses mais rudes raramente sejam inferiores a oito ou dez graus centígrados, aquele Inverno foi excepcional, meteorologicamente falando. Segundo Maria, o nevão atingiu um ammáh de altura (um côvado, aproximadamente; ou seja, cerca de quarenta e cinco centímetros). Fora o mais intenso das últimas décadas. Nem os mais velhos se recordavam de fenómeno semeLhante. Para o Menino e seus amigos – passado o primeiro susto -, a novidade converteu-se logo a seguir num excelente motivo de brincadeira e divertimento.
Este episódio permitir-me-ia interrogar a Senhora sobre outro interessante capítulo da infância de Jesus. A que brincava ele? Quais eram os seus divertimentos favoritos? Maria olhou-me com ternura. - Tu Jasão, não tens filhos, pois não? Assenti com um gesto de cabeça. - Para falar verdade, agora que me perguntas isso, já não me lembro muito bem... Sei que brincava com as tais caixas de areia, mas... (Dias mais tarde, durante uma inolvidável estada na casa de Lázaro, em Betânia – creio que entre 11 e 14 desse mês de Abril – os irmãos de Jesus suprimiriam esse lapso de memória da Senhora.) - A brincadeira favorita de Jesus – explicar-me-ia Tiago – consistia em esconder-se na parte mais recôndita da oficina de carpintaria e, sozinho ou na companhia de Jacob e de mim próprio, construir cidades e aldeias imaginárias com restos de tábuas, aparas e tacos de madeira. Também guerreávamos pelas ruas e campos ou simulávamos casamentos e funerais. Quando se tratava de brincar aos enterros, havia sempre disputas. Todos queriam ser o morto... Soube assim – e teria ocasião de o confirmar mais que uma vez – que as crianças de Nazaré como, de resto, as de todo o mundo e de todas as épocas, gostavam de brincar às escondidas, à cabra-cega, ao pião, à roda, à bola, aos baloiços, aos dados, às adivinhas, à apanhada e, naturalmente, a outros jogos menos inocentes, como o myinda (ainda hoje praticado em Creta), em que os travessos rapazes apanhavam um escaravelho e, depois de lhe atarem uma linha ou qualquer outro material ligeiro, Lhe pegavam fogo, correndo depois atrás dele. Jesus não compreendia a proibição de brincar ao sábado. Mas, respeitoso e obediente como era, nunca protestou ou deixou de cumprir o estabelecido pela Lei judaica. Outra das suas ocupações preferidas era tratar do pombal recémadquirido graças aos ganhos substanciais do empreiteiro José. O produto da venda dos pombos era destinado a um fundo especial
que o próprio Jesus administrava e que, na maioria dos casos, era gasto em obras de caridade ou em ajudas aos mais necessitados da povoação. No mês de ab (Julho), o cada vez mais robusto mocetão sofreria o primeiro e mais espectacular dos acidentes da sua meninice. Ao que parece – sua mãe também já não o recordava com precisão – estava a brincar no terraço quando, de repente, a aldeia se viu açoitada por uma fortíssima tempestade de areia, vinda de leste. (Este tipo de tormenta é relativamente frequente nos meses de Março e Abril, mas francamente anormal em Julho.) A verdade é que, ao tentar descer apressadamente as escadas de madeira presas a uma das paredes da casa, o vento e a areia cegaram Jesus, fazendo que rebolasse pelos degraus. - Foi só o susto e um ou outro arranhão – acrescentou Maria, comovida. - Eu já tinha dito a José: Qualquer dia temos aí uma desgraça... Na manhã seguinte, depois de ouvir em silêncio os meus lamentos, colocou um corrimão e o perigo foi afastado. Talvez seja simplismo da minha parte, mas não ocultarei os meus pensamentos. Ao ouvir o relato deste acontecimento – aliás, perfeitamente normal -, perguntei-me algo que, só muito mais tarde, me atreveria a formular ao Mestre. Se é verdade que existem os chamados anjos-da-guarda e que cada pessoa tem o seu, por que é que eles não evitaram tão perigosa queda? Que teria acontecido se Jesus tivesse morrido em consequência daquele acidente? Repito: sei que pode parecer uma frivolidade da minha parte. Tal não era possível. Mas a verdade é que a queda se deu... O Mestre teria, por certo, uma explicação. O acidente fez com que ressurgissem em Maria os velhos temores. E a sua ansiedade aumentou. No quarto dia da semana (quarta-feira para os Judeus) 16 de Março daquele ano 1, o feliz casal conheceu de novo a alegria de mais um fiLho. A Senhora deu à luz o seu quarto rebento: José. - Em Junho do ano anterior – revelou Maria, enrubescendo um pouco -, quando apareceram os primeiros sintomas da nova gravidez, José e toda a família sentiram-se felizes. Deus, bendito seja o seu nome, abençoava-nos outra vez. Mas eu não tinha a
certeza. Por isso, e pela primeira vez, o meu marido me obrigou a submeter-me às provas de gravidez... Uma destas, digamos, provas laboratoriais – que a Senhora aceitou, submissa – consistia em verificar os efeitos da urina sobre determinados vegetais. Se as folhas murchassem ou os cereais não crescessem, a gravidez estava afastada 1. Naturalmente, deu positivo. *1 – Hoje está cientificamente comprovado que a urina dos varões – e das fêmeas não grávidas – impede esse crescimento em cem por cento dos casos. A das grávidas, em (Nota interrompida). Ao completar os sete anos de idade, Jesus – tal como todos os meninos judeus – era obrigado a iniciar a sua educação nas escolas públicas ou nas sinagogas. Em Agosto, portanto, entrou pela primeira vez numa escola. Nessa altura, já dominava o grego com certa desenvoltura. Esta frequência daquilo a que poderíamos chamar estudos elementares, prolongar-se-ia até aos dez anos. Ali aprenderia os rudimentos do livro da Lei, tal como foi escrito no idioma hebraico. Nos três anos seguintes passaria a uma escola superior, aprendendo, pelo tradicional método da repetição em voz alta, os ensinamentos mais profundos da Lei sagrada. Aceita-se como um dado seguro – se bem que alguns historiadores duvidem disso – que na Palestina de Cristo havia escolas, sendo o ensino obrigatório e gratuito. Tratava-se, isso é verdade, de uma invenção relativamente recente, com uma centena de anos, aproximadamente. Simeão ben Schetach, um rabi presidente do Sinédrio e irmão da rainha Alexandra Salomé, foi o fundador da primeira beth hasefer ou casa do livro, segundo consta no Kethouboth (vIII, 11). O exemplo frutificou rapidamente e, pouco a pouco, institucionalizou-se uma verdadeira instrução pública. O ensino era sagrado. Se possuis o saber dizia uma máxima, tens tudo; se não tens o saber não possuis nada. E alguns doutores da Lei proclamavam: Mais vale que se destrua um santuário que uma escola (Bab. Sabbat, cxIx, 6). Depois da morte do Mestre – pelo ano 64 da nossa era -, um preclaro sumo sacerdote, Josué ben Gamala promulgaria um decreto que poderia ser considerado como a
primeira lei escolar. Nela se estabeleciam os mais pequenos pormenores: a obrigação dos pais de enviarem os seus filhos à escola, as sanções contra os alunos distraídos ou rebeldes e a organização de um segundo grau para os mais adiantados. Jesus conheceu esta sagrada obrigação e, naturalmente, beneficiou dela. O professor costumava ser um hazán, ou seja, uma espécie de gerente-sacristão da sinagoga. O seu salário dependia do que os pais dos alunos houvessem por bem entregar-Lhe. Mais tarde, quando as escolas começaram a reunir mais de vinte e cinco alunos, foram nomeados professores especiais. Apesar da evidente penúria económica por que estes professores costumavam passar, a comunidade judaica tinha por eles uma grande estima. Eram popularmente chamados os mensageiros do Eterno. *(Continua a nota). contrapartida, permite-o em quarenta por cento. Naquele tempo, estas provas de gravidez, eram o que havia de mais fantástico e peregrino. Os egípcios foram pioneiros neste campo. Se a paciente vomitava depois de ter estado sentada sobre farinha de tâmaras misturada com cerveja, tinha possibilidades de conceber. O número de vómitos assinalava os filhos que podia procriar. Se depois de uma fumigação genital aparecessem gases ou a doente evacuasse urina com as fezes conceberia. Outra «prova», recomendada, nomeadamente, pelo célebre Hipócrates (Afor. 5, LIX), baseava-se na introdução de alho na vagina, verificando depois o hálito da mulher. (Isto lembra, de certo modo a prova de Speck: injectar fenolftaleína no útero e investigá-la na urina.) Outra das obsessões de então – e de todos os tempos – era procurar saber qual o sexo do bebé antes do nascimento, possivelmente com reflexo do perene interesse machista por uma descendência masculina. Os Egípcios acreditavam que as propriedades da urina de uma grávida variavam de acordo com o sexo do feto. Se a ceváda crescia mais depressa – diz o papiro de Berlim (vI. 2, 2-5) -, estávamos perante um varão. Se fosse o trigo a comportar-se assim ao ser regado com a urina de uma grávida, o feto era uma menina. Na realidade como afirma Grapow, uma tal associação tinha um carácter linguístico: sendo a cevada uma palavra masculina em egípcio, «referia» a urina da mulher que tivesse concebido um varão. Pelo contrário, sendo o trigo do género feminino, «referia» uma menina... Os textos populares egípcios também relacionam a cevada e os homens e o trigo e as fêmeas criando assim curiosos jogos de palavras: it (pai), e hit (cevada), e mwt (mãe) e mtwt (germe). Apesar do carácter fantástico e supersticioso destas provas, muitos outros povos – Gregos, Árabes, Judeus, etc. - conservaram-nas durante milhares de anos. Ebrs encontrou vestígios de tudo isto até Constantino o Africano. Por seu turno Iversen ao encontrá-las nas obras do florentino Petrus Bayrus pensou que elas Lhe tinham
chegado através do Codex Paulinae Lipsiensú, semelhante ao Peri europeísta que se atribui a Galeno, ou então por meio de traduções tardias de Sorano, já que ambas as obras mencionam provas semelhantes. (N. do M.)
Em Nazaré, como em quase todas as escolas do país, os meninos sentavam-se no chão – geralmente ao ar livre -, formando um semicírculo. O professor postava-se ou deambulava à sua frente. Não é difícil imaginar o jovem Jesus, repetindo em coro, de memória, palavra por palavra, os textos do Levítico (o primeiro livro por onde começavam as lições), dos Profetas, dos Salmos, etc. A sinagoga da sua terra contava, além do mais, com um valioso exemplar das Escrituras em hebraico. Os processos mnemotécnicos eram essenciais naquela aprendizagem das extensas e complexas Escrituras. Repetições, paralelismos e aliterações eram fórmulas obrigatórias para memorizar. Actualmente, imersos que estamos na cultura do livro e das imagens, é-nos difícil assimilar um processo de transmissão oral, aparentemente tão monótono e cansativo 1. No entanto, há que reconhecer a sua eficácia. Modernas investigações demonstraram a importância fisiológica e psicológica deste tipo de pedagogia, que tão proveitosa viria a ser, futuramente, para o Rabi da Galileia. Não se pode estranhar, portanto, o seu inesgotável domínio das Escrituras. Desde muito criança as esmiuçou e memorizou como só aquele povo o sabia fazer. Penso que o poder divino de Jesus – que se manifestaria na sua plenitude a partir dos trinta anos, aproximadamente – nada teve a ver com o exaustivo conhecimento dos textos e citações bíblicos. Esta enorme erudição consolidou-se muito antes e por mecanismos puramente humanos. Como dizia, os rabis davam uma grande importância às fórmulas de memorização. O rabi Dostai, filho de Janai, dizia em nome de rabi Meir: O que esquece algumas palavras do que aprendeu, causa a sua perdição (Pirké Aboth, ur, 8). Nas escolas repetia-se incessantemente, com o fim de estimular os alunos: *1 – Esta forma de ensino e de transmissão é antiquíssima. Obras como os Salmos, os Provérbios, os cantos nupciais do
Cântico dos Cânticos foram inicialmente peças recitadas ou cantadas. Só mais tarde seriam postas por escrito. Outro tanto sucede com os poemas de Homero. Em Atenas, Pisístrato tornou-se célebre ao fixar os textos por escrito. E que dizer do Corão, cujo nome inclui a ideia de palavra recitada? O ensino dos rabis judeus era oral. O tratado talmúdico Gittin (LX, a) fala, inclusivamente, da proibição de fixar esses ensinamentos por escrito. A própria palavra Talmud significa aprendido de memória”. Por volta do ano 1000, Sherira Gaón afirmava que os sábios consideram que é seu dever recitar de memória,. Tudo isto deve conduzir-nos a uma premissa vital para podermos compreender melhor o povo judeu daquele tempo: a palavra era todo um instrumento, toda uma arte, todo um meio de expressão e de transmissão de ideias, sentimentos e tradições. Uma coisa que, desgraçadamente, o homem ocidental de hoje está a perder em ritmo acelerado. (N. Do M.) Serás como uma cisterna bem firme que não perde uma gota de água (pirké Aboth IV, 8). Esta obsessão pela fixação de memória levava ao extremo de considerar o que recitava como um homem piedoso, e ímpio o que descurava tais exercícios. As meninas, lamentavelmente, não tinham acesso às escolas nem ao ensino. Até aos doze anos e meio nada podiam possuir; deviam respeitar o pai e os irmãos; o que encontrassem na rua ou no campo pertencia ao pai; podiam ser vendidas como escravas; não tinham capacidade jurídica; não podiam herdar mesmo que fossem primogénitas; não podiam decidir por si mesmas e, em caso de mutilação ou violação, a possível indemnização passava automaticamente para a posse do progenitor. Talvez fosse o uso exclusivo das Escrituras na pedagogia o que inclinou os judeus a negar este elementar direito de instrução às meninas. O problema era simples: se a mulher não ocupava nenhum lugar oficial na religião, para quê ensinar-Lhe a Lei? No escrito rabínico Sota (IX, a), o assunto é dirimido com a seguinte frase taxativa: Valeria mais ver a Tora devorada pelo fogo que ouvir as suas palavras em lábios de mulheres. Naturalmente, nem todos eram tão radicais na Palestina de Jesus. A família de Maria e José, por exemplo, soube educar e instruir as
suas filhas, à margem da escola. Por outro lado, a escola, com mais frequência do que possamos suspeitar, era um lugar onde a disciplina era sinónimo de castigo corporal. Os sábios doutores aprovavam abertamente o uso da vara para com os estudantes indisciplinados ou simplesmente rudes e distraídos. Odeia o seu filho, diz o Livro dos Provérbios, aquele que deixa a vara em paz. E outro versículo reza assim: Não poupes o teu filho à correcção, que não é por o castigares com a vara que ele morrerá. Na verdade, um livro muito pouco edificante este, do ponto de vista pedagógico, que no entanto, era levado à letra pela maioria daqueles hazán, ou mestres de sinagoga, sempre de pau na mão. A estupidez oculta-se no coração do menino sentencia o mesmo livro (Provérbios XX, 6): A vara da correcção,faz com que ela saia dele. Felizmente para Jesus, a vara do professor nunca o atingiu. Teve problemas, sem dúvida, mas de outra índole... Além do estudo, o primogénito de Maria tinha também outro fraco: ouvir atentamente os mercadores e guias de caravanas que paravam habitualmente em Nazaré. O seu conhecimento do grego permitiuLhe dialogar com toda a espécie de gentios, procedentes dos mais remotos países, enriquecendo assim a sua formação humanística. Estes anos de contínuo diálogo com pessoas de todos os credos e raças estimulariam os seus cada vez mais ardentes desejos de empreender longas viagens. Mas tais sonhos só viriam a concretizarse muitos anos mais tarde. Teria dado tudo para presenciar algumas daquelas animadas conversas com os viajantes e guias que pernoitavam na pousada ou que faziam uma paragem junto da fonte pública de Nazaré e ouvir os comentários e perguntas do jovem Jesus... Creio não estar enganado se disser que tais encontros com os gentios foram providenciais, marcando em parte o seu destino. Foi através deste contacto directo com a realidade do mundo de então que o Mestre começou a conhecer e a amar todos os seus semelhantes. Os seus pais terrenos e a escola influenciaram poderosamente na sua formação, sem qualquer espécie de dúvida.
Mas essa maravilhosa oportunidade de se relacionar com homens de todas as condições acelerou o seu processo de amadurecimento, transformando-o, pouco a pouco, num Homem aberto e tolerante. - Se era bom estudante? Maria, levada pelo seu lógico zelo de mãe, respondeu-me com entusiasmo, não de todo isento de parcialidade. Era normal. - Foi um aluno brilhante, Jasão. Além disso, tinha uma grande vantagem sobre os seus companheiros: sabia grego... Não me acreditas? A Senhora deve ter notado em mim uma ponta de cepticismo. - Dir-te-ei apenas uma coisa. Ao terminar o curso, o professor disse a José: Suspeito que fui eu quem aprendeu mais com as pertinentes perguntas do vosso filho... Naquele primeiro ano escolar aconteceu algo de premonitório. Era costume que cada aluno, ao entrar na escola, escolhesse um texto sagrado sobre o qual iria trabalhar e aprofundar os seus conhecimentos – uma espécie de texto académico -, preparando uma tese que devia ser apresentada no fim do ciclo primário: aos treze anos. Pois bem, Jesus escolheu um parágrafo do profeta Isaías (III, 61, 1-2) que menciona aquela que seria a sua missão. O texto diz assim: «O espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu. Enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres, a curar os de coração despedaçado, a anunciar a amnistia aos cativos, e a liberdade aos prisioneiros...» Isaías, possivelmente sem o saber, tinha profetizado o anúncio do grande Evangelho de Jesus. O primogénito de José e de Maria aprendeu muito naquele ano escolar, tirando igualmente grande proveito dos sermões e práticas dos sábados, na sinagoga. Em Nazaré, tal como noutras povoações da Galileia, havia um costume muito saudável: os sacerdotes e anciãos do lugar pediam sempre aos visitantes de renome que lessem ou se dirigissem à comunidade nos habituais ofícios sabáticos. Deste modo, teve o ávido moço a ocasião de ouvir notáveis pensadores do mundo judaico de então, assim como outros
– menos ortodoxos – que, sem dúvida, o fizeram meditar, tanto ou mais que os primeiros, sobre as realidades religiosas do momento. Nazaré era um dos vinte e quatro centros sacerdotais reconhecidos oficialmente em Israel. Contudo, a sua liberalidade no que tocava à interpretação das leis e preceitos religiosos – como sucedia no resto da Galileia – tornava possíveis essas intervenções públicas tão pouco ortodoxas, impensáveis na Judeia, por exemplo. É preciso realçar esta importantíssima circunstância – a grande tolerância religiosa de Nazaré – para entender melhor o futuro comportamento do Mestre. Isso explica, por exemplo, o costume de José de passear nas tardes de sábado pelos arredores da aldeia, na companhia de Jesus. Entre o conjunto de proibições estabelecidas para o sabbat, havia uma que determinava, inclusivamente, o máximo de passos que poderiam dar-se nesse dia sagrado. É claro que, feita a lei, feito o alçapão... E essa dificuldade para viajar ou deslocar-se no sábado era atenuada com o truque do erub e dos dois mil côvados, a partir do lugar de residência. (Se na vigília do sábado se tivesse a precaução de deixar a comida preparada para o dia de festa seguinte, o ponto escolhido era considerado como uma nova morada. Consequentemente, os dois mil côvados – cerca de um quilómetro – contavam-se a partir deste último falso domicílio)1. José, tal como a maioria dos seus vizinhos, apesar das suas profundas e sinceras convicções religiosas, não estava disposto a deixar-se cilindrar por semelhante loucura burocrática. E muito menos no seu único dia de descanso. Daí que, ignorando a absurda determinação legal, em cada sabbat pegava no seu primogénito e passeava com ele até ao alto da colina situada a noroeste de Nazaré. - Era o seu passeio favorito. Divisava-se dali um panorama maraviLhoso: as neves do Hérmon, o monte Carmelo, o Jordão e, nos dias mais claros, até as velas dos barcos no Mediterrâneo. Jesus adorava aqueles passeios. Depois, quando o meu marido faleceu, manteve o mesmo hábito. Gostava muito daquela colina... Ao longo desse sétimo ano, sua mãe ensiná-lo-ia a ordenhar, a fazer o queijo e, sobretudo, a tecer. A Senhora era uma excelente
tecedeira e nunca consentiu que José e seus filhos vestissem outras roupas que não as que ela própria confeccionava. Por aquele tempo, Jesus e o vizinho e íntimo amigo Jacob fariam uma interessante descoberta: a oficina do oleiro Nathan, perto da nascente. Este bom velhote, habilíssimo com o barro, gostava dos meninos e muito especialmente do vivo e espontâneo Jesus. *1 – O legalismo judaico em matéria religiosa era verdadeiramente asfixiante. O tratado do Shabbat, por exemplo, com os seus 24 capítulos e 139 disposições é uma viva amostra desse rigorismo contra o qual Jesus lutou desde sempre. Seria fastidioso recordar aqui essa infinidade de normas – absurdas, na sua maioria – que, segundo a Lei, deviam ser respeitadas para o cumprimento do sábado. Basta citar alguns exemplos para entender melhor essa decidida oposição do Mestre à escravatura que tal festividade representava. Assim, por exemplo, eram proibidas algumas formas de dar esmola. (No caso de um pobre estar fora de uma casa,, diz a Mishná, e o dono dessa casa estar lá dentro, se o pobre introduzir a mão e depositar algo na mão do dono ou se recolher algo daquele, então o pobre é culpado e o dono da casa fica isento de culpa.) Não se podia ir ao cabeleireiro nem ao balneário. O alfaiate devia ter o máximo cuidado com a agulha que levava espetada na roupa: se saísse de sua casa ou oficina em dia de sábado e a levasse, incorria em pecado. O mesmo sucedia com o escriba e sua pena. Ninguém devia catar insectos da roupa ou dos cabelos em dia de sábado nem ler à luz de uma candeia. (Isto podia levar a pessoa a reavivar a chama, inflingindo assim a lei do repouso sabático.) Não se podia comer junto de uma mulher que estivesse na menstruação. Era igualmente proibido vender escravos ao sábado, carregar animais e fritar carne, cebolas ou ovos. (É que na operação de cozinhar corria-se o risco de ter de atiçar o lume, caindo assim em culpa.) Não se podia furar a casca de um ovo, enchê-la de azeite e colocá-la sobre a candeia para ir gotejando. Se alguém apagasse uma vela, candeia ou mecha, pelo simples facto de economizar, mesmo assim era culpado. Esta série de proibições mais ou menos demenciais chegava ao ponto de estabelecer que no sábado se podia movimentar uma candeia nova, mas não uma velha. O rigor da Lei atingia mesmo determinados adornos femininos. Uma mulher não podia sair à rua com fios de lã, nem com um novelo de linho, nem com laços na cabeça. O homem ainda estava em pior situação: não podia sair ao sábado com sandálias cosidas com agulha, nem com uma só sandália, nem com amuletos, nem com couraça ou elmo nem com botas. Quem transportar alguma coisa com a mão direita ou com a esquerda”, determinava a Lei, no seio ou às costas, é culpado, porque é assim que costumam carregar os filhos de Coat [responsáveis pelo transporte dos objectos do tabernáculo (números 7, 9)). Aquele que transportar no dorso da mão, no pé, na boca, no dedo, na orelha, no cabelo, na bolsa com abertura para baixo, entre a bolsa e a camisa ou no enfeite da camisa, no sapato na sandália, está isento de culpa, porquanto não transporta de modo que é habitual nos carregadores.” Continuar para quê?..
(N. do M.)
- Inúmeras vezes chegou a casa – comentou Maria, suspirando – com a ideia de vir a ser oleiro. Nathan era muito bondoso e oferecia-lhes pequenas quantidades de argila para as suas experiências. Punha-me a casa em alvoroço! Jesus adorava modelar... Estimulados pelo oleiro rivalizavam entre si, a ver quem fazia a melhor figura. Este seu pendor viria a custar-nos alguns dissabores! O seu lamento justificava-se. A Lei judaica proibia qualquer tipo de representação de imagens humanas. Assim tinha estabelecido o próprio Iavé. Mas o primogénito não conseguia entender o motivo dessa restrição a sentimentos tão nobres como os da expressão artística. Meses mais tarde, essa inclinação levá-lo-ia a uma grave crise. Através das minhas conversas com a mãe e demais familiares de Jesus – em especial com os seus irmãos – soube que o seu oitavo ano (2 da nossa era) seria especialmente intenso. No capítulo escolar, pelo que pude deduzir nas minhas posteriores indagações em Nazaré, as coisas correram bem. Jesus, por muito que a Senhora nisso se empenhasse, não era um aluno extraordinário. As conversas com o velho professor da sinagoga seriam esclarecedoras. O Menino era um estudante aplicado, aberto e com um extraordinário desejo de conhecer. Mas nada mais. De resto, essa dedicação valeu-lhe, da parte dos responsáveis da escola, uma aliciante concessão: uma semana livre em cada quatro. Esta dispensa foi acolhida com entusiasmo por Jesus, que pôde assim conciliar os estudos com outras actividades de que gostava: a pesca e o trabalho no campo. Alternadamente, passava cada uma daquelas semanas nas margens do yam, nas proximidades de Migdal, com um dos tios, e na granja do irmão de Maria, a quarenta e quatro estádios a sul de Nazaré. Pouco a pouco, graças a estas férias, foi-se interessando pelas técnicas de pesca e pelas mais variadas tarefas agrícolas. (No nosso terceiro salto teríamos a maravilhosa oportunidade de observar os seus
excelentes dotes como pescador, exercidos desde a infância.) A primeira experiência de Jesus com uma rede de pesca teria lugar em Maio (o mês de Lyyar) desse ano 2. A sua maneira de ser, alegre e prestável, contribuiu para que as famílias dos tios acabassem por ter por Ele uma enorme ternura, a ponto de disputarem entre si a presença de Jesus nas tais semanas livres de compromissos escolares. Quem mais sofreu com aquelas ausências periódicas foi a mãe. Era-lhe impossível libertar-se da ideia de um eventual acidente ou de uma doença. - Estava acostumada a tê-lo junto de mim – explicou, resignada – e essas ausências faziam-me sofrer. Nesses dias vivia sempre na expectativa de qualquer possível notícia proveniente da granja ou de Migdal. Contudo, nisto como noutras coisas, tive de me ir habituando à ideia de um dia vir a perdê-lo... Naquele ano apareceu em Nazaré um professor de matemática, oriundo de Damasco. Quando tentei localizá-lo, a misteriosa personagem tinha desaparecido. Ao que parece, aquele judeu era muito mais que um mestre em números... Jesus entabulou contacto com ele e, além de receber uma esmerada e avançada instrução em tudo o que se referia às matemáticas da época, igualmente abriu os olhos para outro fascinante e esotérico mundo: o da Cabala. Esse foi outro dos seus segredos... E também pela primeira vez na sua curta vida, Jesus iniciou uma tarefa que, afinal, viria a desempenhar até à morte: a de ensinar. - Como um homenzinho – salientou a Senhora com orgulho – o meu Jesus começou a ensinar ao irmão Tiago os rudimentos do abecedário. Sentava-se com ele à porta da casa e, uma e outra vez, repetia-Lhe as letras, escrevendo-as em cacos de cerâmica. - Era paciente? - Muito. Apesar da natural inabilidade de Tiago, nunca vi que se impacientasse. Quem perdia a paciência eram os mestres. Conforme ia avançando no curso, as perguntas que fazia – por vezes demolidoras – tornavam-se inquietantes, impertinentes e até sacrílegas. As explicações do professor não o satisfaziam. Por que é que Deus
completou a Criação em seis dias. Isso era impossível, argumentava ele cheio de razão. O meu pai José precisa de um mês para construir uma casa... A Geografia e a Astronomia, sobretudo, eram o seu cavalo de batalha. Ninguém sabia explicar-lhe satisfatoriamente o porquê das estações secas ou chuvosas, as variações de clima existentes entre Nazaré e o vale do Jordão, por exemplo, ou os eclipses. Pelo que pude averiguar, o rapaz começou a tornar-se num verdadeiro pesadelo para os professores, sacerdotes e, naturalmente, para a própria familia, que tinha que suportar, dia após dia, as críticas e reprimendas dos instrutores, feridos no seu orgulho profissional. Sem se dar conta disso, Jesus estava a criar uma atmosfera de rejeição e antipatia entre determinados círculos da vila. Uma situação irreversível que, com o passar dos anos, o obrigaria ao definitivo abandono de Nazaré. No mês de Adar (Fevereiro) surgiria para Jesus a primeira grande oportunidade. Uma ocasião para mudar de ares e receber uma educação religiosa mais aprimorada. Tudo aconteceu a partir de uma confidência do indiscreto primo afastado de Maria: Zacarias, o esposo de Isabel. O pai de João apesar do mútuo acordo entre as famílias de manterem em segredo o que dizia respeito ao Filho da Promessa, falou do assunto a Nahor, um professor de uma das academias rabínicas de Jerusalém. Este visitou a casa de Isabel, examinando João. Depois, por conselho de Zacarias – e foi essa a sua inconfidência -, foi a Nazaré, com idêntica finalidade: observar Jesus. - Os mais surpreendidos fomos nós – comentou a Senhora. - José chegou mesmo a zangar-se com Zacarias, perante a sua leviandade. Mas o mal já estava feito. E assim, Nahor acabou por entrevistar Jesus. Fez-lhe muitas perguntas e, a julgar pelos seus comentários e pelas expressões do seu rosto, não gostou lá muito da postura do nosso filho... - Porquê? - Suponho que lhe pareceu um tanto atrevido. As respostas do meu filho em matéria religiosa não foram do seu agrado.
Mas, segundo nos confessou particularmente, até o compreendia, dado que vivíamos na Galileia... - E afinal que é que ele queria exactamente? Encolheu os ombros. - Já podes imaginá-lo!... Não, não o imaginava. ...Levá-lo para Jerusalém! Pelo menos, foi isso o que ele disse. A verdade é que viu em Jesus alguma coisa, porquanto, sem mais nem menos, nos propôs que fosse estudar para a Cidade Santa. E de graça! - Não percebo – acrescentei, simulando perplexidade. - Era uma boa oportunidade. Por que é que a proposta não foi aceite? - José e eu discutimos o caso durante muitas horas. Mas o meu marido não via o caso com clareza. Eu sim. Quanto a mim, Jerusalém teria sido o culminar da sua carreira... Convém sublinhar que esta expressão – o culminar da sua carreira – tinha um sentido... muito especial. Maria, como já disse, acreditava no filho como um Messias político. Por isso, aquela oportunidade teria, sem dúvida, sido benéfica... desse ponto de vista muito concreto. No entanto, embora estivesse persuadido de que Jesus era, de facto, o filho da Promessa, o seu pai terreno nunca viu com clareza o papel messiânico do primogénito, tal como a Senhora o perspectivava. E morreu com essa dúvida. Pressentia que lhe estava reservada uma grande missão, mas obviamente não podia conhecer a sua natureza. E assim, tal como declarou sua esposa, rejeitou a oferta de Nahor. As discrepâncias entre José e Maria levaram o Rabi a optar por uma fórmula intermédia. Pediu-Lhes autorização e, sem mais rodeios, perguntou ao próprio Jesus se aceitava estudar em Jerusalém. - O meu filho ouviu-o atentamente, mas não disse nada. Depois da exposição de Nahor veio ter connosco, pedindo-nos a nossa opinião. Com Jacob, seu amigo íntimo, fez a mesma coisa. - E qual foi a sua decisão?
- Passados dois dias encontrou-se de novo com o rabi, explicandolhe que havia grandes diferenças de critério entre seus pais e conselheiros e que, em resumo, não se sentia capaz de se decidir. Perante isto, acrescentou, enchendo-nos de confusão, decidi falar com meu Pai que está nos céus e consultá-lo. (Eram os primeiros sintomas, os primeiros sinais, daquele Jesus Deus que todos conhecemos e no qual muitos cremos. A sua consciência superior – passe a expressão – começava a despertar.) ...Horas mais tarde, reunia-se de novo com o rabi, dizendo-lhe: Sinto que devo ficar em casa, com o meu pai e a minha mãe. Eles amam-me e, consequentemente, farão muito mais por mim que outros que podem ver o meu corpo e conhecer o meu pensamento, mas que não me amam. A Senhora enterneceu-se ao recordar aquela declaração. - Ficámos maravilhados e Nahor mais do que ninguém. Não se voltou a falar do assunto. O rabi regressou a Jerusalém e Jesus continuou connosco. Naturalmente, nem tudo foram provações e dissabores naquele oitavo ano. Na noite de sexta-feira, 14 de Abril, chegaria ao mundo Simão, o terceiro dos seus irmãos. E nessa mesma altura, o primogénito iniciar-se-ia também em outra das suas secretas paixões: a música. Achei isso lógico. Um ser humano com aquelas características – sensível e intuitivo – tinha por força de gostar da música. - Foi tudo ideia dele – adiantou Maria. - Nós não teríamos podido custear as aulas de música, mas Ele encontrou um processo de arranjar o dinheiro necessário. Como? Vendendo os queijos e a manteiga que ele próprio fabricava. José nunca disse nada, mas eu sei que se sentia orgulhoso do pendor de seu filho pela harpa. E foi assim que começou a receber as primeiras lições. Anos mais tarde, mesmo que o não acredites, Jasão, viria a ter a sua própria harpa... Um instrumento – não exactamente uma harpa, aliás – que eu, graças à Providência, chegaria a ter nas minhas mãos pecadoras...
Falando da Providência... Embora já me tenha   referido a isso noutros passos deste pobre e despretensioso diário, por vezes não posso furtar-me à ideia - sempre hipotética, é claro – de como teria sido a formação de Jesus em Alexandria ou Jerusalém. Tive oportunidade de viver e estudar em ambas as cidades. Não me é, pois, difícil imaginá-lo. Se se tivesse instalado no Egipto, a sua educação teria ficado, mesmo assim, sob a responsabilidade de judeus. Toda a sua mente teria eventualmente ficado imbuída da rígida teologia rabínica. Na Cidade Santa, essa formação poderia ter sido muito mais rápida. Mas a Providência,quis que fosse em Nazaré e podemos dizer que acertou em cheio... E que, assim, podemos comprovar que o Mestre se movimentou num muito desejável equilíbrio, a idêntica distância da ortodoxia oriental e da permanente abertura aos gentios e à cultura helénica. Quanto mais conheço esta figura, mais claros se me  antolham os desígnios desse grande Deus a quem Jesus chamava Pai! O ano 3 foi decisivo para o desenvolvimento físico do Jesus Menino. No seu nono aniversário na Terra, Jesus conheceu as vulgares enfermidades infantis – o sarampo, a varicela, etc. - que, em todo o caso, não eram assim tão vulgares naquele tempo. Felizmente, essas doenças infecciosas sobrevieram numa idade em que as defesas naturais próprias, a muito aceitável alimentação e a forte e saudável constituição física constituíram uma barreira sólida e providencial evitando assim possíveis e perigosas complicações. Se tivesse enfrentado tais males mais cedo, talvez os problemas e sequelas tivessem sido diferentes, para pior. Após esses processos o corpo de rapaz experimentou um notável crescimento, que o faria sobressair da numerosa população infantil da povoação. Um visível desenvolvimento que, como espero ter ocasião de contar, Lhe traria vantagens e inconvenientes... As suas aulas na escola prosseguiram normalmente, tirando partido em cada mês da já falada semana de férias. Tudo caminhava sem excessivos contratempos até que, num bom dia de Inverno... - Fiquei assustada. José não estava em casa. O professor trazia Jesus pelo braço e, com evidente indignação, acusou-o de sacrílego
e de não sei quantas coisas mais. Mas o que se tinha passado? Isso foi o que eu lhe perguntei. Pediu-me que o acompanhasse até à escola. Jesus, entretanto permaneceu em casa, mudo e sem sequer procurar defender-se. No chão daescola via-se um desenho. Era a cara do professor! Mas perfeita, Jasão. Ao compreender que estava perante uma nova travessura do meu filho fiquei cheia de angústia. Aquilo era proibido pela sagrada Lei de Deus, bendito seja o Seu nome. Eu sabia que ele gostava de desenhar. Em casa tinha mesmo uma colecção de paisagens e figuras de argila. Mas aquilo... O incidente, embora agora possa parecer uma ninharia sem importância, daria origem a uma reunião dos anciãos do lugar e, como é compreensível, a profundo desgosto no seio da família. José foi admoestado, exigindo-se-lhe que mostrasse desgosto pelo sucedido e castigasse o primogénito incorrigível, trazendo-o ao bom caminho. A comissão de anciãos de Nazaré reuniu-se depois com José, explicando-lhe com toda a nitidez e firmeza que semelhante blasfémia podia custar-lhe a definitiva expulsão do seu filho da escola. - Angustiado, o meu marido guardou silêncio. Não era a primeira acusação desta índole contra Jesus, mas a mais severa, sem dúvida. - E que fez Jesus? - Não adivinhas?... - Francamente, não. Maria moveu a cabeça, sem poder ainda compreender a audácia do Menino... - Para surpresa de todos, apresentou-se voluntariamente diante dos anciãos, defendendo o que fazia. Ficaram estupefactos. A verdade é que, à excepção de uns tantos, a maioria encarou a situação com um certo sentido de humor. Falou, argumentou e, por último, disse que acataria a decisão do tribunal. De acordo com José, os anciãos decidiram que, enquanto estivesse connosco, Jesus não voltaria a pintar nem a modelar com argila. O Menino ouviu a sentença em silêncio, sem mover um único músculo. Mas cumpriu. Enquanto permaneceu em Nazaré nunca mais o vi pegar num pedaço de barro ou pintar.
Aquela seria uma das mais duras provas da infância de Jesus. No fundo, teve sorte. Se tivesse sido julgado pelo conselho de Jerusalém o castigo poderia ter sido bem mais duro e infamante. Por certo, ninguém o teria livrado dos açoites, apesar da sua menoridade. Mas nem tudo foram aborrecimentos e frustrações. Naquele nono ano de vida, Jesus, sempre na companhia de José terreno, escalou pela primeira vez o mítico monte Tabor, a uns seis quilómetros a leste de Nazaré. (Uma colina arredondada de mil pés de altura em cujo cume, segundo a tradição cristã, teve lugar a famosa transfiguração. Mais tarde viríamos a concluir que tal evento ocorreu de facto noutro lugar, muitas milhas a norte) 2. *1 – Em geral, a partir dos doze anos, os varões começavam a tomar parte, de pleno direito, na assembleia do povo judeu. O filho rebelde e contumaz”, especificava a Lei, podia ser castigado até à pena capital., E a partir de que momento é que seria considerado filho rebelde e contumaz,? O capítulo VIII do tratado Sanhedrin-Makkot diz textualmente: «Desde que lhe tenham nascido dois pêlos [puberdade], até que lhe tenha crescido em torno a barba, a inferior, não a superior... E a partir de que momento era imputável? Se comeu um trúemor [a terceira parte de um peso) de carne e bebeu meio log de vinho italiano. (N. Do M.) 2 – O Tabor era famoso desde tempos remotos. Concretamente, desde a derrota de Jabin por Débora e Barac (Juízes IV). Sob o comando de Débora, Barac reuniu um exército de dez mil homens, pertencentes às tribos de Zabulão e Neftali, acampando no alto do Tabor. Por seu turno, o capitão Sísara dispôs os seus nove mil carros de ferro”, na planície de Esdrelão, no sopé do Tabor, onde viria a sofrer uma ignominiosa derrota. Ao longo da História, o cume do Tabor foi sempre utilizado como fortaleza. No ano 218 a. C., Antíoco o Grande, antes de levar a sua campanha até ao Jordão, tomou o Tabor e nele estabeleceu uma guarnição. Gabino, cinquenta e três anos antes de Cristo, travou também uma batalha nas suas proximidades, vencendo os judeus comandados por Alexandre. Este, segundo Flávio Josefo (Guerras, I, 8-7), perdeu dez mil guerreiros. Quando se deu a guerra judaica, Flávio José reforçou as defesas do Tabor, instalando ali um quartel. Segundo Plácido, general de Vespasiano, enviado para atacar o Tabor, era impossível subir até ao cimo”. Só mediante um estratagema conseguiu a conquista do topo da colina e da sua fortaleza. (N. Do M.)
- A aventura – contaria a Senhora – emocionou-o. Regressou radiante. Dizia que, lá de cima, podia contemplar- se o mundo inteiro, menos a Índia, a África e Roma. Em 15 de Setembro nasceria Marta, a segunda das irmãs de Jesus, o que obrigaria José a ampliar a primitiva casa. E num dos novos aposentos, acedendo aos desejos do filho mais velho, instalaria uma banca de carpinteiro. Durante vários anos, aquela pequena oficina faria as delícias de Jesus. Ali se entretinha tempos esquecidos, aperfeiçoando-se no ofício e especializando-se na construção de jogos. Aquele Inverno e os seguintes foram especialmente rigorosos. Nevou com intensidade e Jesus teve a oportunidade de conhecer uma coisa que Lhe deu que pensar: o gelo. - As suas perguntas, Jasão continuaram a atormentar-nos a nós próprios e a estranhos. Queria saber por que é que a água se tornava sólida e por que é que, por sua vez o gelo se transformava em água... Quase nos enlouqueceu durante todo o Inverno. Nos meses de sivan e tammuz (Junho-Julho, aproximadamente), Jesus foi ajudar o seu tio, o agricultor na colheita dos cereais. Era a primeira vez que pegava numa foice. Como era de esperar, a sua mãe ficou indignada. - Ainda era uma criança, Jasão! Tinha apenas nove anos... Tu terias permitido que um dos teus filhos daquela idade manejasse uma tão perigosa ferramenta? Maria, ao saber do facto, levada pelo seu impulso maternal, chegou mesmo a gritar a seu irmão, admoestando-o. - Sei que foi inútil – acrescentou convicta. - Sei muito bem que continuou a segar às escondidas... Como dizia, antes de completar os dez anos, Jesus experimentou um notável desenvolvimento físico. Esta circunstância, junta à agilidade mental e à não menos considerável maturidade intelectual, fez que fosse nomeado chefe de um grupo de sete companheiros da mesma idade. Naturalmente, nenhum daqueles amigos notou nada de
sobrenatural em Jesus. Era mais um. Irrequieto, curioso e em permanente actividade, mas, no fim de contas, um rapaz como os outros. Só um pormenor causava estranheza e por vezes crispava os nervos do resto do grupo: o chefe, apesar da corpulência, sentia uma repulsa natural pela violência. Em inúmeras ocasiões, mesmo tendo razão, evitou as bulhas. Isto, de início, fazia sofrer os companheiros de brincadeira. Mas, pouco a pouco, foram-se habituando e aceitando a especial docilidade e mansidão do primogénito do empreiteiro. No entanto, há que dizer tudo: a verdade é que Jesus encontrou um excelente apoio em Jacob, seu íntimo amigo, o filho do pedreiro associado a José na construção. Um ano mais velho que Jesus, mantinha à distância todos os que tentavam abusar da bondade do amigo. Lenta mas progressivamente, graças à sua equidade e simpatia, o filho mais velho de Maria acabaria por ser aceite como um chefe. (Isto sucederia anos mais tarde, dando origem a uma grave crise quando o Mestre contava dezassete anos. Mas vamos dar tempo ao tempo.) No ano do seu décimo aniversário (4 da nossa era) aconteceria uma coisa que, naquela altura, passou quase despercebida aos seus pais terrenos. Devo dizer que eram apenas fugazes e esporádicos fogachos do que dormia no seu interior. - Foi num sábado, cinco de Julho. Recordá-lo-ei enquanto viver.A Senhora, sem que pudesse evitá-lo, sentia-se culpada por tantos anos de cegueira, como ela própria dizia. - O meu marido e Jesus tinham saído para o campo, dispostos a desfrutar do seu habitual passeio semanal. Segundo José me contou, o nosso filho, muito natural e espontaneamente, fez-Lhe uma confidência: Sentia que seu Pai celeste o reclamava e que ele não era na realidade quem todos acreditavam que fosse. Foram palavras incompreensíveis para um carpinteiro. José, muito preocupado, não soube dar-lhes sequência, mas não as comentou com ninguém. No dia seguinte, Jesus falou comigo. Foi uma longa conversa em que reparei que Ele estava inquieto, confuso... Era como se tivesse tido uma revelação. Lamentavelmente, nem ele nem eu pusemos as coisas inteiramente a claro. Que poderia ser aquilo do Pai Celeste? José e eu, como te dizia, guardámos absoluto silêncio sobre tais revelações. No caso
de chegarem aos ouvidos dos vizinhos e sacerdotes poderia ser tratado como louco ou blasfemo. Era muito perigoso falar assim de Deus, bendito seja o Seu nome. Toda a gente em Nazaré sabia que ele era nosso filho... A partir daquelas manifestações, o carácter de Jesus mudou notavelmente. - Sim, tornou-se taciturno e solitário. Começou a frequentar (mais que o devido, na minha opinião) a companhia dos adultos. Sentiase bem entre eles, pois o escutavam com agrado. Nem eu nem José apreciávamos, no entanto, aquele afastamento dos outros rapazes. E repreendemo-lo muitas vezes por isso, pedindo-lhe que se deixasse de tantas e tão profundas conversas com os mais velhos e voltasse ao que era natural: as brincadeiras com os outros rapazes. Foi escasso o nosso êxito em tal tentativa. Em Agosto, ao completar dez anos, entrou na escola superior. Longe de melhorar, a situação piorou... - Era incorrigível. As perguntas foram aumentando e a inquietação dos professores acabou por transmitir-se ao resto da povoação. Fomos novamente convocados pelos responsáveis da sinagoga e chamados à ordem. Que vergonha, Jasão! Nesta ocasião, José adoptou uma atitude mais severa: Jesus tinha de moderar as suas intervenções na escola. E mais, ordenou, limitar-te-ás a perguntar o estritamente necessário. Obedeceu durante algum tempo. Estes escândalos foram aproveitados pelos inimigos, que também os tinha. Era natural, numa terra onde todos se conheciam. Os que mais se insurgiram contra Ele e a família foram os pais dos alunos mais rudes e atrasados. Sem o menor pudor acusaram-no de orgulhoso, atrevido e presunçoso. Mas o rapaz não se sentiu ofendido por tais mexericos e calúnias. Prosseguiu os estudos e trabalhos, dedicando especial atenção à pesca. As estadas periódicas junto ao lago libertaram-no em parte da intriga e da hostilidade injusta de que era objecto em Nazaré. A paixão pelo lago chegou ao ponto de dizer a José que, no futuro, desejava ser pescador.
- José ouviu aquelas palavras com interesse e carinho. Mas não as tomou em consideração. Até então já tinha querido ser oleiro, agricultor, professor, músico, carpinteiro, guia de caravanas e não sei quantas coisas mais... O meu marido, sempre prático, aproveitou a oportunidade para insinuar que o mais rendível e seguro era a agricultura ou a carpintaria. Posso dizer-te um segredo? Animei-a com um sorriso. - ... Se se tivesse decidido pela empreitada de obras, José teria sido feliz. Mas Deus (bendito seja o Seu nome) levou-o para Si antes de Jesus completar os quinze anos. O lamento era justificado. A prematura morte do empreiteiro, num acidente de trabalho em Séforis, modificaria o curso da vida de Jesus e de toda a família. Como sabemos, o Destino tinha outros planos para o filho da Promessa. Aquele seria um dos últimos períodos de calma e relativa felicidade de que gozaria. Jesus estava prestes a ter de enfrentar um conjunto de duras provas. O ano 5 não começou mal de todo. A moderação na escola surtiu efeito e os ânimos voltaram à normalidade. Em meados de Maio, seguindo o costume estabelecido tempos atrás, Jesus acompanhou José noutra das suas habituais viagens de negócios. Desta vez dirigiram-se à cidade grega de Citópolis, na Decápole, muito perto da margem direita do rio Jordão. Durante a caminhada – de uns trinta e cinco quilómetros – José falou-lhe do rei Saul, da sua derrota  contra os Filisteus no monte Gelboé e do seu suicídio, lançando-se contra a própria espada. - Aquela viagem - relatou a Senhora com algumas reticências – foi bastante desagradável... para o meu marido. Com delicadeza, insisti. Maria não parecia muito disposta a entrar em pormenores. - Para quê recordar coisas tristes? - É preciso conhecer tudo – insisti com veemência. - Um dia o mundo no-lo agradecerá...
Sorriu com cepticismo. Mas acedeu a contar o mais importante... - ... O meu filho deve ter ficado muito impressionado pela beleza e grandiosidade da cidade. Já tinha estado anteriormente em Séforis, mas Citópolis era outra coisa. Segundo José me contou, os seus elogios dos  monumentos e edifícios foram aumentando e, como era natural, o meu marido sentiu-se melindrado. Procurou contrabalançar então aquele excessivo entusiasmo para com uma cidade pagã falando da magnificência de Jerusalém. Mas Jesus não lhe prestou atenção, insistindo nas perguntas, o que entristeceu o já abalado ânimo do pai. Para cúmulo, naquela altura celebravam-se na Decápole os tradicionais jogos e competições desportivas anuais. José (que não sabia dizer não) acedeu aos insistentes pedidos do nosso filho e levou Jesus ao anfiteatro. As exibições dos atletas entusiasmaram-no. E José, estupefacto, ouviu-o dizer que seria uma grande ideia organizar uns jogos semelhantes em Nazaré. *1 – A única das dez cidades gregas (a Decápole) situada a ocidente do Jordão era Citópolis, a antiga Beth-Sean ou cidade dos Citas, fundada pelos belicosos nómadas nas suas movimentações no século vII a. C. A maioria destas populações helénicas constituiu-se quando os descendentes dos generais de Alexandre, lágidas do Egipto e selêucidas da Síria conquistaram a Palestina. As mais notáveis eram Gérasa, Péla, Hipos, Gádaros, Filadélfia e, mais a norte, Damasco. Pompeu tinha-lhes concedido a autonomia municipal, sempre sob o governo e a soberania de Roma. Os Macabeus lutaram por devolver estas cidades ao judaísmo, mas o seu êxito foi relativo. O próprio Alexandre Janeu teve de se render à evidência: a Decápole, apesar de estar incrustada nos territórios de Israel, era um mundo à parte”, claramente helenizado, sob a influência do comércio, da cultura e dos deuses gregos. O caso de Péla, por exemplo, foi dramático. Preferiu que a destruíssem a cair sob a órbita de Jerusalém. Herodes, o Grande, mais astuto que os Macabeus, chegou a um pacto com a Decápole, beneficiando assim do seu inegável progresso. Com o tempo surgiram também na Palestina outras cidades gregas ou claramente helenizadas, tais como Ptolemais (a antiga Acca ou Acre), Gaza e Cesareia ( o grande porto de Israel). Siquém foi reconstruída igualmente por Herodes, recebendo o nome de Sebasta e alojando uma importante população grega. O mesmo sucederia com Tiberíades e com Séforis, a capital da Galileia. Os Romanos, ao apoderarem-se da Palestina após a morte de Herodes, contribuíram para o distanciamento e para o receio que se instalou entre os Judeus e os habitantes dessas cidades, estabelecendo nas mesmas várias guarnições, com importantes tropas auxiliares de origem samaritana. (N. Do M.)
Procurou convencê-lo de que tudo aquilo não era mais que uma detestável manifestação de vaidade, mas Jesus não aceitou a opinião de José. E já na pousada estalou a crise. Tu, Jasão, não o conheceste. O meu marido era um homem bom, incapaz de fazer mal a alguém. Nunca bateu em nenhum dos filhos. Mas naquela noite (contou-me ele entristecido) enervou-se e, no meio de uma acalorada discussão com o nosso primogénito, chegou a sacudi-lo pelos ombros... - Porquê? - Jesus, esquecendo os sagrados preceitos da Lei, sugeriu-lhe a possibilidade de construir em Nazaré um daqueles anfiteatros. Foi a gota de água que fez transbordar o copo. Tanto quanto sei – lamentou a Senhora -, foi a única vez que José se confrontou violentamente com Jesus. Meu filho, disse-lhe ele, que nunca mais, em toda a minha vida, eu ouça de ti semelhante coisa! E Jesus que fez? - Ao ver o pai tão indignado, assustou-se... e replicou: Assim farei. Posso assegurar-te que, enquanto José viveu, nunca mais se falou desse tema dos jogos em Nazaré. Interroguei-me muitas vezes ao longo daquelas conversas com a Senhora e demais parentes do Mestre. Dadas as especialíssimas circunstâncias que concorriam em Jesus e o seu não menos singular carácter, terão chegado os pais terrenos a temê-lo? Acaso sentiriam por ele um afecto especial ou mesmo uma preferência? Quando lho insinuei, Maria foi categórica: - Medo de Jesus? Que coisas te ocorrem, Jasão! O meu filho, apesar de todos os problemas era prestável, doce e amoroso até extremos que nem podes imaginar. Se não fosse assim, como julgas que teria feito o que fez quando eu adoeci? E quanto às preferências – hesitou uns instantes -, pois sim, reconheço-o. Alguma coisa havia. Era natural. Mas dir-te-ei uma outra coisa. De cada vez que qualquer de nós procurava ter com Jesus alguma atenção especial, recusava imediatamente. Nunca consentiu nesse tipo de deferências. A Senhora doente? As minhas informações a tal respeito eram
nulas. O que é que tinha acontecido? A doença da mãe marcaria o começo de uma nova e dura etapa na infância de Jesus. Na realidade, terminariam então os anos felizes e despreocupados, as brincadeiras e as viagens. Segundo me contou a Senhora, o problema surgiu a partir do nascimento de Judas, numa sexta-feira, 24 de Junho daquele ano 5. O sétimo filho – um dos partos mais difíceis, por certo – traria consigo uma perigosa infecção: umas febres malignas que, a julgar pela sintomatologia identifiquei a priori com a chamada septicémia das parturientes ou febre puerperal. Uma doença especialmente perigosa, sobretudo naquele tempo. Dado que o parto não foi distócico, isto é, não apresentou dificuldades especiais o mais provável é que a anemia ou a fadiga da mãe tenham constituído factores determinantes na etiologia. Não o posso garantir, naturalmente, mas há a possibilidade de se ter tratado de uma infecção estafilocócica e tardia, muito mais benigna que as generalizadas e estreptocócicas. A verdade é que a Senhora se viu obrigada a ficar de cama durante várias semanas, sofrendo – segundo contouobstipação de ventre, febre alta, dores de cabeça e uma sede angustiante, além, logicamente do típico quadro de alterações mamárias. Esta penosa e delicada situação de Maria obrigou o seu marido a permanecer em Nazaré. E Jesus viu assim caírem por terra todos os planos que idealizara. Teve de ficar a fazer os recados ao pai, a ajudar os irmãos mais pequenos, a atender às necessidades da casa e, naturalmente, a assistir a mãe. A escola ficou em suspenso e só a boa vontade de um dos professores – que ia a casa de José uma tarde por semana – ajudou Jesus a não perder o curso. Este bom judeu, paciente, amável e compreensivo, ajudou muito o primogénito de José naqueles dias aziagos. *1 – O puerpério é, basicamente, um processo de regressão fisiológica, excepto na glândula mamária. Clinicamente, caracteriza-se por uma série de sintomas genitais, mamários e gerais. Entre os primeiros figuram as conhecidas cólicas e os corrimentos sanguíneos e serosos após o parto. Em geral são mais frequentes nas multíparas. A abundância das secreções – sudorosa, urinária e loquial – provoca uma perda de peso durante os primeiros oito dias: cerca de quatro quilos. Estas febres podem facilmente complicar-se, por causa dos micróbios patogénicos (estrepto, estafilococo e colibacilo),
podendo mesmo provocar a morte. Na realidade, deveria falar-se de infecções puerperais, e não de infecção, já que correspondem a um conjunto múltiplo de factores ou acidentes toxi-infecciosos. Quando a mulher é saudável – como era o caso de Maria -, o mais provável é que a infecção tenha a sua origem na flora microbiana vaginal ou perineal latente, atiçada na sua virulência pelo traumatismo obstétrico ou pelas deficientes condições higiénicas da parteira. Talvez fosse este o caso da mãe de Jesus. Se se tivesse dado uma infecção generalizada, a vida de Maria teria corrido sérios riscos. (N. do M.)
Felizmente, a Senhora não veio a sofrer as temidas complicações puerperais – cardíacas, digestivas, respiratórias, etc. - e o tratamento dos curandeiros da povoação, se bem que elementar, foi eficaz no que se refere à assepsia. - Nunca me tinha sentido tão mal – acentuou. - O bater de dentes, as tremuras e aquelas dores de cabeça insuportáveis quase acabavam comigo. Mas todos (e Jesus em primeiro lugar) se portaram comigo maravilhosamente. Jesus aprendeu mesmo a cozinhar. Era ele quem me preparava o leite, os caldos quentes, os ovos e a carne crua... Coitadinho, muito sofreu por minha causa! A partir de então acabaram-se as brincadeiras, os passeios... Com efeito, uns dois anos antes do previsto, Jesus viu-se obrigado a substituir o chefe da família em muitas das suas funções à frente da casa. Naquele Verão, ao completar onze anos, era já um homenzinho, carregado de responsabilidades – demasiadas para tão tenra idade – e com uma cada vez mais insistente angústia interior: Quem era Ele na realidade? Que significava o Pai do Céu para Ele? Qual era na verdade a sua missão? Que lhe reservava o Destino? E Jesus foise tornando mais fechado. Desde a doença da mãeembora nunca tivesse perdido aquela contagiosa e invejável alegria de viver – deixou de ser o mesmo. As brincadeiras e conversas com os viajantes e guias de caravanas foram-se espaçando, ao mesmo tempo que, muito lentamente, surgiu nele uma grande interrogação: Se devia ocupar-se das coisas do Pai, que fazer então com as irrecusáveis obrigações familiares? Anos mais tarde este duro
dilema transformar-se-ia num angustiante drama pessoal. Um drama não contemplado pelos evangelistas e que, na minha modesta opinião, é de vital importância para conhecer melhor Jesus. A infância e a juventude deste Homem como as de qualquer ser humano, foram de transcendente importância. A obra, a mensagem e o conjunto das acções de Jesus durante a chamada vida pública podem entender-se com maior clareza quando se tem acesso a esses cruciais primeiros anos. Daí que, neste sentido, a minha crítica para com os evangelistas seja inequívoca. Com o seu silêncio privaram os crentes e não crentes de informações e de uma perspectiva essenciais num estudo medianamente sério. Mas prossigamos com o não menos decisivo décimo segundo ano da via de Jesus. Este período, que precede a adolescência, foi fortemente influenciado pela doença da mãe e pelas crescentes dúvidas em torno da missão que deveria cumprir na Terra. A Senhora resumiu esse período do seguinte modo: - É verdade que voltou à escola e também à pequena oficina de carpintaria. Mas o coração do meu filho tornou-se solitário. Se antes nos aborreciam as perguntas contínuas e difíceis, a partir de então começámos a preocupar-nos pelo contrário: os longos silêncios. Aos olhos dos vizinhos, aquela mudança na maneira de ser de Jesus foi interpretada como um regresso à sensatez e à discrição. E Jesus nada fez para desfazer tal equívoco. Quem teria podido compreendê-lo?, nem sequer os pais tinham essa possibilidade. José e Maria, permanentemente atentos, estavam conscientes de que alguma coisa de estranho e intangível crescia no mais íntimo do seu filho. José foi quem mais se aproximou da verdade. Mas, como já disse, a sua morte repentina impedilo-ia de aprofundar tão singular mistério. Quanto à Senhora, a sua ideia de um Jesus messiânico, revolucionário e libertador fez que se afastasse do filho mais velho, enchendo-a de amargura. Um dos irmãos, Tiago contar-me-ia isso mesmo, à revelia de sua mãe: - Naqueles anos, as graves divergências entre os meus pais chegaram aos ouvidos de Jesus. Ele ouvia-os discutir durante a noite. Julgavam que dormia, mas não. A
minha mãe não entendia o sentido da missão do meu irmão e Mestre. E desesperava-se ao ver que Jesus não aceitava as suas directrizes em relação ao futuro. Ela pretendia que o filho da Promessa se afirmasse como um chefe e que arrastasse as massas, expulsando os odiados invasores de Roma. O meu pai, pelo contrário inclinava-se por uma acção espiritual. Talvez como uma necessária válvula de escape o jovem Jesus intensificou as lições de música, dedicando-se com ardor ao cuidado e educação dos irmãos. Este interessante capítulo – que espero poder desenvolver em seu devido tempo – viria a trazer-lhe grandes alegrias, mas também – há que reconhecê-lo – sérios dissabores. Em especial com José e Judas. Este último foi, durante bastantes anos, o rebelde da família. Em Agosto, ao completar os doze anos, verificou-se um pequeno incidente – apenas uma pequena história – que reflecte a subtil inteligência de José e a inegável influência que Jesus começava a exercer sobre a família e na vizinhança. Uma influência que iria aumentar incessantemente. Entre os judeus havia o costume – cada vez que se entrava ou saía de casa – de tocar a mezuza (uma pequena caixa rectangular de madeira, incrustada numa das ombreiras da porta, que continha um minúsculo pergaminho com os mandamentos divinos), levando depois os dedos aos lábios. Pois bem, num daqueles dias, Jesus interpelou os seus pais sobre tal tradição, fazendo-lhes ver que, do seu ponto de vista, o facto de tocar a mezuza era um rito tão idolátrico como pintar ou representar figuras humanas. A lógica de Jesus era tão esmagadora que, no dia seguinte, perante o assombro da vizinhança, José retirou o pergaminho, aceitando os argumentos do filho. Com o passar do tempo Jesus mudaria muitos dos costumes religiosos no lar, sobretudo as orações. O incomparável Pai Nosso foi uma das suas inovações geniais. Mas isso pertence a outro momento da sua vida fascinante... Como consequência destes esforços para se adaptar – talvez a palavra adequada aqui fosse submeter-se – ao critério e vontade da
maioria no que concerne aos ditames sócio-religiosos, o adolescente cairia no final do ano num profundo abatimento. Tiago, seu irmão e confidente, explicou assim as razões desse desânimo passageiro: - Honra teu pai e tua mãe. Foram eles que te deram a vida e a educação. Assim determina um dos principais mandamentos. Jesus teve de se confrontar com este árduo dilema: seguiria os conselhos da sua consciência, rejeitando muitas das inibidoras práticas religiosas tradicionais ou permaneceria fiel aos desejos dos nossos pais? O futuro Rabi da Galileia não tardaria a ultrapassar tão angustiante incerteza. Uma vez mais a decisão foi correcta: conciliaria ambos os critérios. Respeitaria a vontade dos maiores e, na devida altura, entregar-seia à missão que começava a clarificar-se no seu coração. O que Jesus não sabia é que tais planos estavam a ponto de soçobrar brusca e clamorosamente. No ano 7, o do seu décimo terceiro aniversário, consumou-se o salto da infância para a adolescência. Maria, os irmãos de Jesus e a família de Lázaro, em Betânia, foram os meus meticulosos informadores. Graças à sua bondade pude reconstituir as linhas mestras de tão decisivo ano. A voz começou a mudar, apontando para aquele timbre grave e sonoro que viria a caracterizá-la. Também o corpo sofreu modificações consideráveis. Surgiu a penugem, anunciando a virilidade. Na noite do domingo, 9 de Janeiro, nasceria Amós. Judas tinha então apenas catorze meses e Rute, a filha póstuma de José, chegaria ao mundo dois anos mais tarde. No mês de adar (Fevereiro), Jesus já tinha ultrapassado a fase de abatimento a que me referi. Diferentemente dos restantes jovens de Nazaré, na sua mente fervilhavam grandes ideias. Uma delas, sobretudo, ia germinando, obscura e silenciosamente: Iluminar a Humanidade. Falar aos homens sobre o seu Pai celestial. Segundo a Senhora, a feliz conclusão dos exames na escola da sinagoga contribuiu – e não pouco – para o tirar daquele
retraimento. Os treze anos eram uma data solene para as famílias judaicas. Os filhos eram proclamados maiores perante a Lei. Oficialmente, ele passava a ser considerado filho maior resgatado do Senhor. Daqui para diante, como qualquer adulto, o novo membro da comunidade de Iavé deveria recitar o Shema Israel três vezes ao dia, proclamando assim a sua fé no Único. Também se veria obrigado a jejuar, em especial durante a festa da Expiação, e a peregrinar a Jerusalém durante a solene festa da Páscoa, gozando do direito de se juntar aos homens no templo. Ser filho da Lei constituía um orgulho e um motivo de intensa alegria, compartilhado por todos os parentes e amigos 1. Para estar presente em festa tão assinalada – o dia do Bar Mizvá -, José regressou de Séforis na sexta-feira anterior. O empreiteiro iniciara aquela que seria a sua última obra: um edifício público, planeado e financiado por Herodes Antipas. Em 20 de Março Jesus viveu um momento particularmente feliz. Ao ouvir as serenas e sugestivas  leituras que fazia, todos se sentiram orgulhosos daquele jovem, que prometia dias de glória para Nazaré. O velho professor, os anciãos e a própria família vaticinaram sobre o futuro que o aguardava, traçando planos para o ingresso de Jesus nas mais prestigiosas academias rabínicas da Cidade Santa. O entusiasmo de Maria e dos seus vizinhos foi tal que Jesus chegou a acreditar que estaria em Jerusalém num prazo máximo de dois anos, a contar deste seu décimo terceiro aniversário. A verdade, porém, é que Jesus nunca chegaria a ser rabi de Jerusalém... *1 – Tão destacada data é celebrada ainda hoje na  sociedade judaica, com um carácter profundamente religioso. O jovem é conduzido com grande solenidade do kibbutz até à fronteira, onde deverá fazer uma simbólica guarda armada, em defesa da sagrada terra de Iavé. Por vezes extrai-se-lhe sangue, destinado a transfusões. Actualmente, como há dois mil anos, ao chegar à sua maioridade, o rapaz judeu integra-se plenamente na comunidade. (N. Do M.)
Nos primeiros dias de Abril, depois de receber o diploma, José dar-Lhe-ia uma notícia ansiada: viajaria com eles e assistiria à sua primeira Páscoa. Naquele ano caía a 9 de Abril, sábado. Na segunda-feira, 4, um grupo de cento e trinta vizinhos empreendeu a caminhada até Jerusalém. José preferiria encurtar o caminho
atravessando a Samaria, mas a maioria dos peregrinos opôs-se. É que as relações com os Samaritanos eram tensas. Assim, a viagem desenrolou-se por Iesrael, até ao vale do Jordão. O temido Arquelau tinha sido desterrado para as Gálias um ano antes e, em princípio, nada fazia temer pela vida do filho da Promessa. A estada de Jesus na Cidade Santa – pensaram os pais – não envolvia qualquer motivo de alarme. Enganaram-se mais uma vez. No quarto e último dia de caminho, a estrada de Jericó a Jerusalém era um formigueiro de peregrinos. A meio caminho, Jesus, que acompanhava sua mãe no grupo das mulheres, avistou pela primeira vez uma colina que, com o passar dos anos, Lhe seria tristemente familiar: o monte das Oliveiras. - Quando lhe dissemos que a Cidade Santa se encontrava do outro lado – observou Maria -, o rosto de Jesus iluminou-se e começou a dar saltos de alegria. O meu entusiasmo esmoreceu quando lhe ouvi dizer que ali estava a casa de seu Pai. Naquela viagem, José e Maria conheceriam outra família singular: a de Simão de Betânia. O grupo acampou nas imediações da citada aldeia e quis a Providência que o tal Simão, um próspero agricultor, recebesse em sua casa o empreiteiro de Nazaré. Assim nasceria uma sincera amizade entre ambas as famílias e, muito especialmente, entre Jesus e o primogénito de Simão: Lázaro, um rapaz da mesma idade. Ao retomar a marcha, os peregrinos foram pelo caminho mais curto – o que atravessava o monte das Oliveiras -, parando, maravilhados, lá em cima. Era o entardecer de quinta-feira, 7 de Abril do ano 7. Jesus contemplava Jerusalém pela primeira vez. - Não disse nada – lembrou a mãe. - Mas eu sei que a magnífica vista dos palácios e do Templo o emocionou. Entrámos rapidamente na cidade e dirigimo-nos a casa de um dos meus parentes. Era o único em Jerusalém que através do meu primo Zacarias, tinha conhecido a história de João e de Jesus. Recordo que atravessámos diante do Templo e que tive de o repreender várias vezes para que nos acompanhasse. Estava louco de alegria. Nunca tinha visto tanta gente junta e, a cada momento
soltava a arreata do burro, misturando-se entre a multidão. No dia seguinte, o da preparação, José tomou o seu filho pela mão e apresentou-se numa das academias rabínicas, interessandose pelos respectivos planos de estudo. Estava decidido: ao completar os quinze anos Jesus ingressaria numa daquelas prestigiosas escolas superiores. Mas na véspera daquela Páscoa, sexta-feira, 8 de Abril, sucederia algo que fez hesitar o filho mais velho de José. Só Tiago veio a sabê-lo. E ele próprio mo contaria, tal como o ouviu dos lábios do seu irmão mais velho: - À vista do Templo e da multidão (contar-me-ia Jesus anos depois) senti como se um raio de luz me iluminasse. O meu coração experimentou uma grande piedade por aquelas gentes confusas e ignorantes. A minha missão começava a ficar clara. Creio, Jasão, que aquele foi um dia decisivo na vida do meu irmão e Mestre. Nessa mesma noite, segundo me contou, um anjo apresentou-se diante dele e disse-lhe: Chegou a hora. Já é altura de começares a ocupar-te das coisas de teu Pai. Como digo, este acontecimento passou despercebido a José e a Maria. Se assim foi – e como duvidar da palavra do Mestre -, aquela era a primeira vez que Jesus tinha um encontro com um ser sobrenatural. Desde então, o seu processo interior – não sei se a expressão será acertada – acelerar-se-ia. Era o princípio. Jesus iria tomando consciência da sua verdadeira origem, da dupla natureza que tinha (humana e divina) e da missão como Filho do Homem. Qualquer observador medianamente objectivo reconhecerá comigo que não poderia ser de outra maneira. Um Jesus Menino consciente da sua divindade teria sido antinatural, prejudicando a evolução intelectual da criança. Era lógico que semelhante descoberta fosse gradual. Apesar de todas as ilusões e entusiasmo, Jerusalém acabaria por desiludir Jesus. Para ser mais exacto: o Templo e as transacções que nele se faziam. Os dias que se seguiram à solene festa da Páscoa passou-os Jesus andando pelas ruas e observando o agitado vaivém dos
habitantes de Jerusalém e dos milhares de peregrinos chegados de todo o mundo conhecido. Foram – segundo Tiago – dias de absoluta liberdade, que tão cedo não se repetiriam. O respeito de Jesus pela Cidade Santa era profundo e sincero. Em especial, pela casa de seu Pai. Mas, ao penetrar no Átrio dos Gentios, a desilusão apoderou-se dele. Naquele sábado, Jesus, na companhia dos pais, atravessou o Templo, indo juntar-se com os outros rapazes que iam ser oficialmente consagrados como Filhos da Lei. A vozearia, os traficantes de moedas e a falta de compostura no lugar sagrado impressionaram Jesus muito negativamente. Mas a sua grande desilusão começaria ao ver como a mãe se separava deles, encaminhando-se para o átrio das Mulheres, o único recinto do Templo autorizado para as judias. - Não cabia na cabeça do meu irmão que, num dia tão emotivo como aquele, a nossa mãe não o acompanhasse na cerimónia da sua consagração. E ficou indignado. As desilusões não ficariam por aqui. Jesus tomou parte nos ritos de consagração como filho maior resgatado de Iavé, mas a frieza, rotina e superficialidade dos sacerdotes deixaram-no perplexo. Aquilo não tinha nada a ver com o calor e o sentimento dos ofícios que se celebravam em Nazaré. Quanto aos modos e maneiras dos peregrinos, traficantes e prostitutas que enchiam o Átrio dos Gentios, foi coisa que não conseguiu suportar. Como sublinhou Tiago, não havia diferença entre aquelas cortesãs, cambistas e comerciantes de gado, especiarias, etc. E os que tinha visto em Séforis ou Citópolis. Visitaram igualmente a Porta das Ovelhas e ali, à vista dos sacrifícios dos rebanhos de cordeiros, quase vomitou. Os balidos dos agonizantes animais, as facas e as mãos a escorrer sangue e o gélido olhar dos sacerdotes-magarefes baixaram os limites da resistência do adolescente que era Jesus, defensor acérrimo dos animais e da Natureza. O espectáculo causou-lhe um tal asco que, puxando pelo pai, fugiu do recinto. - José – acrescentou Tiago – compreendeu a desolação de Jesus e tentou suavizar o impacte do que acabavam de ver, conduzindo-o
até à Porta Dourada. As suas explicações diante da majestosa obra de bronze de Corinto não surtiram efeito. De modo que, depois de recolherem minha mãe, saíram do Templo, dedicando boa parte da tarde a passear pela cidade. O meu pai tudo fazia para que Jesus se acalmasse e fosse mais razoável, mas era difícil. O meu irmão e Mestre era de ideias fixas. Não aceitava o derramamento de sangue como meio para apaziguar a cólera do Todo-Poderoso. E mais: em plena discussão com os meus pais negou-se a crer num Deus (bendito seja o Seu nome) justiceiro e sedento de vingança. José, com toda a sua doçura, fê-lo ver que aqueles eram costumes muito antigos e que se ajustavam à mais pura ortodoxia. Mas Jesus replicou-lhe: Pai, isso não pode ser verdade. O Pai do Céu não pode olhar assim para os Seus filhos extraviados. Ele não pode amar-me menos do que tu próprio me amas. Por muito imprudentes que sejam os meus actos, tenho a certeza de que nunca te deixarás levar pela cólera. Então, se tu, meu pai terrestre és capaz de me perdoar, como será o Pai celestial, infinitamente mais bondoso e misericordioso que tu? José e Maria guardavam silêncio diante da suprema lógica do filho mais velho. E confundidos por tão estranha forma de conceber o Pai Universal regressaram a casa dos seus parentes. Simão de Betânia tinha-os convidado a celebrar com a sua família a tradicional ceia pascal. E na companhia de outros familiares de Nazaré reuniram-se na casa do pai de Lázaro, à volta do cordeiro, do pão ázimo e das não menos obrigatórias ervas amargas. - Sendo como era um novo Filho da Aliança – observou a Senhora -, pedimos-lhe que relatasse a origem da Páscoa. E Jesus fê-lo maravilhosamente. Mas, como sempre – sublinhou contrariada – teve de dar o toque. No meio das explicações aludiu ao que tinha visto e sentido no Templo, criticando os sacrifícios e a indigna presença no Átrio dos Gentios dos comerciantes e prostitutas. Eu ruborizei-me. Sinto muito, amigo Jasão: eram outros tempos e eu não podia compreender o comportamento de Jesus. Em mais de uma ocasião perguntei a mim próprio porque é que o Mestre se recusava a comer o tradicional cordeiro pascal. (Na última
ceia, por exemplo, não lhe tocou.) A origem de tal atitude encontrava-se nesta primeira visita ao Templo da Cidade Santa. Desde logo começou a imaginar uma Páscoa sem sangue e sem aqueles ritos, tão desagradáveis e contrários à verdadeira essência do Pai celestial. - Dormimos mal nessa noite. Jesus também se levantou inúmeras vezes. Parecia preocupado. Sentava-se no jardim, com a cabeça entre as mãos, e assim permanecia horas e horas. O pai e eu olhávamo-nos, impotentes. Não sabíamos o que é que se passava. E o pior é que não nos atrevíamos a fazer perguntas. Tiago, que anos mais tarde viajaria a Jerusalém em companhia do seu irmão mais velho, esse, sim, conhecia as razões daquela inquietação. Na mente de Jesus fervilhavam inúmeras perguntas sobre a absurda teologia do povo de Israel. Perguntas que, pouco a pouco, iriam encontrando respostas. O mal-estar da família de Nazaré perante o incómodo e imperscrutável silêncio do seu primogénito foi tal que, uma vez concluída a Páscoa, José adiantou a hipótese de adiantar o regresso à Galileia. Mas os amigos e parentes convenceram-no a esperar. No dia seguinte, Jesus e o novo amigo, Lázaro, dedicaram-se a explorar Jerusalém e seus arredores. Aquelas correrias e aventuras fizeram que esquecesse, em parte, as suas angústias e incertezas. E antes de terminar o dia descobririam uma coisa que, poucos dias depois, daria lugar a outro acontecimento histórico: o único, em toda a infância e juventude de Jesus, que aparece nos Evangelhos! O possível leitor deste diário terá adivinhado que estou a referir-me ao incidente de Jesus com os doutores da Lei. Parece incrível que os evangelistas considerassem este acontecimento como o único digno de menção em toda a vida oculta (?) do Mestre! Esse acontecimento foi, nem mais nem menos, a presença nas proximidades do santuário de grupos de judeus que conferenciavam e trocavam perguntas e respostas com os rabinos e doutores da Lei. A partir daquele domingo, 10 de Abril, Jesus não deixaria de ir um só dia àquelas agitadas e espontâneas reuniões no Templo. Esta
circunstância parece-me de especial importância para entender melhor o que sucederia dias mais tarde e que no texto de Lucas (2, 41-52) se apresenta incompleto. Apesar do ardente desejo que manifestava de intervir nas discussões, Jesus conteve-se, consciente da própria juventude e das restrições que a Lei impunha aos novos consagrados. (Uma vez passada a semana da Páscoa, os novos filhos de Iavé podiam ter acesso a essas reuniões no exterior do Templo.) Na quarta-feira, 13 de Abril, José e Maria autorizaram-no a pernoitar na casa de Lázaro, em Betânia. Foi uma noite inolvidável, na qual Jesus abriu o coração, manifestando as suas inquietações. A partir daquelas confidências, Lázaro passou a ser um amigo incondicional do jovem primogénito de Nazaré. Mas o momento da partida dos peregrinos aproximava-se e, antes de empreender a viagem de regresso à Galileia, Jesus, na companhia de José e de Maria e do velho professor da sinagoga de Nazaré, foi de novo à escola rabínica escolhida para os seus estudos superiores. E ali ficou definitivamente assente que ingressaria naquela escola no mês de Agosto do ano 9, ou seja, quando completasse os quinze anos. O resto da semana, segundo os meus informadores, decorreu normalmente. Jesus demonstrou um especial interesse pelas conferências-colóquios do Templo, assim como pelos muitos companheiros de consagração vindos dos mais remotos países. Dado a uma incorrigível curiosidade, a ninguém causou estranheza que passasse horas colado às grades que separavam estes grupos do resto dos gentios e da comunidade ou em intermináveis conversas com os jovens judeus provenientes do Egipto, da Mesopotâmia ou das vizinhas províncias do Extremo Oriente. Tudo o interessava: os seus costumes, os seus métodos educativos, as suas crenças... Estes contactos com a juventude de nações tão diversas e distantes – tenho a certeza disso – estimularam em Jesus os desejos adormecidos de viajar e conhecer outras formas de vida, outros povos, outros homens. Uma ânsia de que também não nos falam os livros sagrados e que, no entanto, como descobriríamos no nosso segundo salto, pôde e soube concretizar quando as obrigações
familiares permitiram. Como estão enganados aqueles que pensam e afirmam que o Mestre nunca ultrapassou os limites e as fronteiras do seu país! E, por fim, os peregrinos de Nazaré prepararam-se para a viagem até à Galileia. Foi numa segunda-feira 18 de Abril daquele ano 7, que o grupo se congregou nas proximidades do Templo, a fim de regressar a Nazaré, passando por Betânia. Nem Maria nem José, na lógica agitação dos preparativos da viagem, se deram conta da ausência do primogénito. Sinceramente, não pude entender semelhante descuido e assim o confessei à Senhora. - Sim, tens toda a razão – respondeu, sem o menor desejo de se desculpar. - Deveríamos ter sido mais cautelosos. Mas já sabes o que acontece nessas viagens em grupo... Quem podia imaginar! Jesus era já um membro de pleno direito da comunidade e, consequentemente, era obrigado a viajar com os homens. De modo que, ao não vê-lo comigo pensei que iria no grupo da frente, com José. O meu marido, por seu lado, pensou o contrário: que se teria juntado às mulheres e que, tal como na viagem de vinda para Jerusalém, estaria ao meu lado, pegando na arreata do nosso burro. Enfim, um desastre! - E que fez Jesus, afinal? Onde é que estava na altura da partida? - Viemos depois a sabê-lo. Naquela manhã, segundo o que costumava fazer, dirigiu-se até ao Templo, ficando absorto nas discussões entre os doutores da Lei. Tanto o pai como eu sabíamos dessa paixão. Mas, na verdade, só pensámos nisso muito depois. Pouca sorte, Jasão! Durante a minha estada em Betânia, graças às confidências de Tiago, irmão de Jesus, e da família de Lázaro, tive a oportunidade de reconstituir, o acontecido naqueles quatro dias: desde a segunda-feira, 18, até quinta-feira, 21, em que os pais o encontraram. Até Jericó, final da primeira etapa, correu tudo bem. Mas, ao juntarem-se, José e Maria ficaram estupefactos. Onde estava Jesus? Ninguém o tinha visto. Os seus esforços foram infrutíferos. Perguntaram inclusivamente aos últimos peregrinos que
iam chegando de Jerusalém. Nem vestígios. E, como é normal, nervosos e desolados, começaram a acusar-se mutuamente. - José aborreceu-se comigo e eu com ele. De tal modo que estivemos dois dias sem falar um com o outro!... Talvez convenha fazer um pequeno parêntese antes de prosseguir com os factos. A parcimónia do relato de Lucas, primeiro, e a tradição cristã, depois, contribuíram para forjar uma imagem distorcida daqueles dias. Os cristãos costumam julgar esta ausência, de Jesus como um extravio. Com efeito, a Igreja católica abrevia e intitula esta passagem com uma expressão tão categórica quanto errada: o Menino perdido e achado no Templo, Lucas, é claro, não fala de qualquer extravio 1. Foi a história que interpretou mal os factos. *1 No capítulo dois (versículos quarenta e um a cinquenta) do evangelho de Lucas lê-se textualmente: Seus pais iam todos os anos a Jerusalém, pela festa da Páscoa. Quando chegou aos doze anos, subiram até lá, segundo o costume dos dias da festa. Terminados esses dias, regressaram a casa e o Menino ficou em Jerusalém, sem que os pais o soubessem. Pensando que Ele se encontrava na caravana, fizeram um dia de viagem e começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos. Não O tendo encontrado, voltaram a Jerusalém à Sua procura. Passados três dias, encontraram-No no Templo, sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas. Todos quantos O ouviam estavam estupefactos com a sua inteligência e as Suas respostas. Ao vê-lo, ficaram assombrados e Sua mãe disse-lhe: “Filho, porque nos fizeste isto? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à Tua procura.” Ele respondeu-lhes: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de Meu Pai?” Mas eles não compreenderam as palavras que lhes disse. Como vemos, o evangelista, embora tenha recolhido este episódio através de terceiros, não fala de perdas ou extravio de Jesus. Simplesmente, ficou em Jerusalém. (N. Do M.). Como se verá, o filho da Promessa não esteve perdido durante esses três longos dias. Sabia onde estava. E mais: a partir do meiodia (a hora sexta) daquela segunda-feira, teve conhecimento da partida do grupo para Nazaré. Outra questão é saber por que é que não saiu com a caravana. Dito isto, continuemos com os acontecimentos, tal como me foram contados. Pelas doze horas, as discussões no Templo foram interrompidas, sendo retomadas pouco depois. Jesus, entusiasmado com os debates – mais calmos e com menos gente desde o êxodo dos peregrinos -, não deu importância ao que, sob todos os pontos de
vista, constituía uma indesculpável negligência. Permaneceu no Átrio dos Gentios até ao cair da tarde, sem se atrever, para já, a intervir nos debates. Ao anoitecer apresentou-se em Betânia, quando a família de Simão se preparava para cear. Ninguém fez perguntas. Todos deram por adquirido que José e Maria continuavam na cidade e que Jesus - como acontecera na última quarta-feira – tinha autorização paterna para os visitar. Hoje, consequência dessa desinformação histórica, a imagem de um Jesus dócil, submisso e todo espiritualidade choca necessariamente com a daqueloutro rapaz, capaz de se desentender com a sua família e de provocar angústia. Mas as coisas são como são e não como gostaríamos que tivessem sido... Após uma noite de vigília, em que o viram passear pelo jardim absorto em profundas meditações, Jesus partiu de novo para Jerusalém, parando no cimo do monte das Oliveiras. Desta vez foi Tiago quem me descobriu outro pequeno grande segredo do irmão, ignorado – como tantos outros – pela própria mãe. - À vista da Cidade Santa, o meu irmão e mestre chorou amargamente. Foi o seu primeiro pranto por Jerusalém. O segundo, como sabes, ocorreria muitos anos depois e por razões semelhantes: a cegueira e pobreza espirituais de um povo, escravizado pelas suas próprias tradições e pelas legiões romanas. À mesma hora em que o jovem entusiasta se apresentava no Templo – disposto a intervir nas discussões -, os pais empreendiam o regresso a Jerusalém. - A nossa ansiedade era tão grande – sublinhou a Senhora – que fomos direitos a casa dos meus parentes, na cidade, sem sequer pararmos em Betânia. Se o tivéssemos feito teríamos evitado muitos dissabores. José e Maria, por um lado, e os seus familiares, por outro, procuraram insistentemente Jesus, passando Jerusalém a pente fino. Entretanto, Jesus – entregue de corpo e alma aos debates – não tardaria a manifestar-se, formulando toda a espécie de perguntas. A ousadia e impertinência de muitas delas foram atenuadas, de início, pela candura e ingenuidade do seu tom. Mas os eruditos e intransigentes doutores não tardariam a impacientar-se. O primeiro
sinal de indignação geral registar-se-ia quando Jesus, com a sua habitual frontalidade e clareza, perguntou se era lícito condenar à morte um gentio que – ébrio ou inconscientemente – tivesse profanado as áreas sagradas do Templo. Um dos sacerdotes perdeu a paciência e, olhando-o fixamente, perguntou-lhe a idade. Faltamme quatro meses, respondeu, para completar os treze anos. E o doutor, fora de si, exclamou: Então, porque estás aqui se não tens idade para ser um filho da Lei? Jesus esclareceu-o de que acabava de ser consagrado e de que era um estudante de Nazaré. Ao ouvir a palavra Nazaré, a assistência estalou num riso de gozo. E um dos porta-vozes dos rabinos comentou em tom sarcástico: Já devíamos tê-lo imaginado: só podia ser de Nazaré! Os comentários e murmúrios aumentaram até que o doutor que presidia ao debate ordenou silêncio, não sem declarar que aquelas censuras eram despropositadas. Se os dirigentes da sinagoga de Nazaré o admitiram aos doze anos, em vez dos treze, lá teriam as suas razões... Nem todos aceitaram tal critério. E alguns dos doutores mais ortodoxos retiraram-se, escandalizados. A maioria, no entanto, decidiu que o inquieto adolescente participasse nos debates, na qualidade de aluno. Os seus primeiros choques com a casta sacerdotal tiveram, pois, lugar naquela terça-feira, 19 de Abril do ano 7 da nossa era: muito antes, portanto, do que todos nós pensávamos. Terminado este segundo dia, Jesus retirou-se de novo para Betânia. O seu terceiro dia no Templo viria a ser simplesmente triunfal. A notícia de um jovem galileu – ainda quase uma criança -, pondo a ridículo os presunçosos escribas e doutores da Lei espalhou-se entre os habitantes de Jerusalém, que acudiram, curiosos e divertidos, a presenciar o espectáculo. Uma dessas espantadas testemunhas foi o próprio Simão, pai de Lázaro. - José e eu procurámos também no Templo – adiantou a Senhora – e chegámos a estar muito perto daqueles grupos de discussão. Mas quem poderia imaginar que o centro de tais debates era exactamente o nosso filho? Só as pessoas que alguma vez tenham sofrido o doloroso desaparecimento de um ente querido –
especialmente de um filho – é que poderão imaginar o sofrimento do casal de Nazaré durante as setenta longas horas que durou aquele suplício. Setenta horas de insónias, de lágrimas, de angústia e – porque não dizê-lo? - de desespero! José e os seus familiares não deixaram de esquadrinhar um único recanto da Cidade Santa. Chegaram mesmo a perguntar na Fortaleza Antónia, no mercado de escravos e nas pousadas que albergavam habitualmente os condutores de caravanas. Foi tudo inútil. Entretanto, o ambiente no Templo continuava escaldante. As incessantes e pertinentes perguntas de Jesus levantavam murmúrios de admiração, obrigando os eruditos a ponderar bem as suas respostas. Várias das interrogações formuladas naquela quarta-feira, 20 de Abril, causaram especial surpresa e até inquietação no auditório. Entre elas, as seguintes: O que há, de facto, no Santo dos Santos? Por que é que as mães de Israel têm de separar-se dos homens no interior do Templo? Se Deus é um pai que ama os Seus filhos, porquê estes sacrifícios de animais para obter os favores divinos? Os ensinamentos de Moisés foram mal interpretados? Se o Templo é consagrado à adoração do Pai celestial, será normal consentir a presença de mercadores e cortesãs no seu átrio? O Messias esperado será um príncipe transitório que ocupará o trono de David ou tratar-se-á de uma Luz de Vida num Reino espiritual? Foram necessárias mais de quatro horas para que os doutores da Lei tentassem dar resposta a tais questões. Quem testemunhava aqueles debates ficava preso não só pela sagacidade do jovem, mas, muito especialmente, pela lealdade do tom que utilizava e das posições que assumia. Era evidente que Jesus não brincava às discussões para dar nas vistas. Só lhe interessava uma coisa: proclamar a sua Verdade. Uma Verdade que ia ganhando terreno no seu coração e que nunca mais o abandonaria; uma Verdade tão imensa como simples: proclamar a realidade de um Pai Universal que nada tinha que ver com as sangrentas e coléricas interpretações judaicas. Ao anoitecer, Simão acompanhou Jesus até Betânia. Quase não falaram. O pai de Lázaro e de Marta estava deslumbrado.
Depois da ceia, apesar dos elogios entusiásticos da família, o filho da Promessa retirou-se de novo para o jardim, aí permanecendo sozinho até altas horas da madrugada. Naqueles momentos críticos, dizia Tiago, Jesus tomava contacto com a Sua grande tragédia pessoal. Era todo um drama interior que se prolongaria durante anos e do qual nenhum evangelista se fez eco. Um dilema angustioso, vital para o conhecermos e conhecer a sua obra. O Filho do Homem desejava levar a Luz ao seu povo - revelarlhe a grandeza do Pai Universal -, mas, ao mesmo tempo, dada a extrema juventude e os naturais laços familiares, não sabia como nem quando tentá-lo. E naquela noite, como em tantas outras, tentou forjar um plano. Logicamente, só passados quase vinte anos o conseguiria. Quase duas décadas em que, apesar do silêncio injustificável dos escritores sagrados, Jesus de Nazaré quase não teve um minuto de sossego. Mas tudo isso – querendo Deus – será contado na devida altura... E chegou a aurora da quinta-feira, 21 de Abril. Nessa manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço em casa de Simão, uma pergunta fortuita da mãe de Lázaro trouxe Jesus à crua e prosaica realidade. Quando partiam para a Galileia? Só então Jesus deve ter-se dado conta da gravidade da situação. Os seus pais terrenos, supondo que tivessem seguido viagem, deveriam encontrar-se já em Nazaré. Mas a sua ânsia de aprender e a firme resolução de se ocupar das coisas de seu Pai foram mais fortes. E pela quarta vez se apresentou no Templo, envolvendo-se numa delicada discussão sobre a Lei e os profetas. Os doutores e rabinos estavam literalmente pasmados. Aquele jovenzinho conhecia a fundo não só as Escrituras hebraicas como também a sua tradução grega. O espanto do auditório chegou a tal extremo que, logo que se iniciou o debate da tarde, o presidente da assembleia chamou Jesus para o seu lado, distinguindo-o assim diante de todos os presentes. A minha pergunta seguinte foi elementar: - Como o encontraram?
Maria, visivelmente mortificada por aquelas recordações, explicou sem rodeios: - Na noite anterior, chegados mais uma vez a casa dos meus parentes, José e eu ouvimos uma estranha história: um adolescente da Galileia reunia-se no Templo com os doutores da Lei, fazendo grande furor com hábeis comentários. Mas ainda assim não nos demos conta... - Não posso compreender uma coisa dessas... - interrompi-a eu.Conheciam Jesus melhor do que ninguém! Como é possível que não tenham suspeitado? A Senhora negou com a cabeça e, resignada, acrescentou: - Não, Jasão, enganas-te. Nem o pai nem eu o conhecíamos de verdade. Muito poucos souberam ler no seu coração. Que queres que te diga? Não nos passava pela cabeça que o nosso filho pudesse fazer uma coisa daquelas. É tão certo o que eu te estou a dizer que, nessa mesma noite, tomámos a decisão de sair de Jerusalém e iniciar a busca noutra direcção: iríamos a casa de minha prima Isabel. E no dia seguinte, pensando que Zacarias poderia estar de serviço ao Templo, fomos até ao Átrio dos Gentios. Demos muitas voltas, tentando localizar o marido da minha prima. E assim passámos perto do numeroso grupo de curiosos que assistia aos debates. Até que, graças a Deus, numa daquelas angustiantes idas e vindas, José teve a impressão de ouvir uma voz familiar. Abrimos caminho entre a multidão e, Deus Todo-poderoso (bendito seja o Seu nome!), ali estava o meu filho! Era ele, de facto, sentado na escadaria, discutindo e perguntando como se fosse a coisa mais natural do mundo.... Os olhos da Senhora brilharam intensamente. - Nunca cheguei a entender! Estávamos nós meio mortos de medo e de aflição, pensando até no pior, e Ele ali... tão feliz! Juro-te, Jasão, que naquela altura tive vontade de esbofeteá-lo! E fui direita a ele como uma fera. Mas José, consciente de toda aquela gente que nos observava, segurou-me pelo braço, lançando-me um significativo olhar. Eu soube o que ele queria dizer-me, mas a minha ira (agora lamento-o de verdade) era mais do que justificada. - E como reagiu Jesus?
- Como sempre! - explodiu Maria. - De início, ficou mudo. Depois pôs-se de pé e, com toda a calma, esperou que nos aproximássemos. E no meio de um silêncio de morte, sem poder conter-me, recriminei a sua irresponsabilidade, dizendo-lhe: Meu filho, porque nos trataste desta maneira? Há mais de três dias que teu pai e eu te procuramos desesperadamente! Reconheço que nem sequer deixei que falasse. Por que razão nos abandonaste? - E José que fez? - Nada. Nos seus olhos lia-se o mesmo profundo desgosto, mas manteve-se em silêncio. Toda a gente se voltou para Jesus, esperando uma explicação. Foram momentos extremamente desagradáveis. E, por fim com uma segurança e uma frieza que ainda hoje me assustam, replicou: “Porque me procurastes durante tanto tempo? Não esperáveis encontrar-me na casa de meu Pai? Acaso não sabeis que chegou a hora de me ocupar das coisas de meu Pai?” A situação tornou-se realmente tensa. José e eu ficámos estupefactos. E as pessoas, em silêncio, levantaram-se e foram-se embora. Então, num tom conciliador, tomou-nos pelo braço e, levando-nos para o exterior, acrescentou, com doçura: “Vinde, meus pais! Cada um agiu segundo a sua melhor vontade. O nosso Pai celestial ordenou estas coisas... Regressemos a casa.” Nessa mesma tarde saímos para Nazaré. Eu estava aturdida e abalada. Não entendia nada. E ao passar junto do monte das Oliveiras e ouvir a Jesus aquelas palavras enigmáticas, a minha confusão foi total... - Que palavras? - De súbito levantou o bastão e, apontando-o para a Cidade Santa, exclamou com emoção: Oh, Jerusalém..., Jerusalém! Como sois escravos, submetidos ao jugo romano e vítimas das vossas próprias tradições! Mas voltarei para purificar este Templo e libertar o povo desta escravidão! Perplexos, nem sequer nos atrevíamos a respirar. Estávamos desorientados. Porque falava Ele assim? Jasão, era
ainda uma criança! Naquela altura – lamentou-se -, é claro que não compreendemos as suas proféticas palavras. Melhor dizendo, eu é que as interpretei ao contrário... Que angústia quando se ama um filho e não se consegue decifrar as suas inquietações! A viagem de regresso à Galileia deve ter sido terrível. Ninguém falava. Jesus, durante os três dias de caminho pelo vale do Jordão, mal abriu a boca. Quanto aos pais, por mais voltas que dessem não conseguiam entender as duras frases do Jesus no Templo. Esta atitude humana difere do que Lucas escreveu no final do segundo capítulo: Desceu com eles, diz- se nos versículos cinquenta e um e cinquenta e dois, e era-lhes submisso. Sua mãe conservava cuidadosamente todas estas coisas no seu coração. Jesus progredia em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens. Posso estar de acordo com o fiável Lucas em quase tudo, excepto numa coisa primordial. Quando se lê esta passagem, tem-se a sensação de que Maria entendia perfeitamente tudo o que o seu Filho fazia e dizia. E claro que sua mãe conservava cuidadosamente todas estas coisas no seu coração, mas a pergunta é inevitável: compreendê-las-ia? A omissão do evangelista do que acabo de relatar leva à falsa ideia de que a Senhora compartilhava os anseios e incertezas de Jesus. Nada de mais distante da realidade. Se Lucas tivesse interrogado Maria – coisa improvável -, a sua narração teria sido bem outra. Ou talvez não? O próprio escritor sagrado, possivelmente sem querer, deixa-se trair no versículo cinquenta: Mas eles não compreenderam a resposta que lhes deu. Aqui, subtilmente, aponta-se para a grande tragédia de uns pais que, nessa altura e ao longo de quase toda a vida do Mestre, não conseguiram ler no coração de seu Filho. Os seus pensamentos e esperanças, como já afirmei, iram por outros caminhos..., mais humanos. No fundo, é significativo que o evangelista reconheça – ainda que só de passagem – que os pais terrenos de Jesus não compreenderam que devia ocupar-se das coisas de Seu Pai celestial: Em boa lógica, por imperativo do senso comum, qualquer crente deveria suspeitar que essa incompreensão não foi passageira... Por
que é que os Evangelhos não referem a reticente posição de Maria? A razão ou as razões são fáceis de imaginar. Face às nascentes comunidades cristãs, não deve ter-lhes parecido muito edificante contar toda a verdade, isto é, a realidade de uma mãe incapaz de entender os altos desígnios de seu Filho e em clara e aberta oposição aos seus projectos, de cariz nitidamente espiritual. A Senhora, como veremos mais adiante, era uma convicta patriota. Ao chegarem a Nazaré, Jesus falou finalmente com seus pais. Depois de uma longa conversa deu-lhes a entender que nunca mais voltariam a sofrer por sua causa. A sua exposição concluir-se-ia com estas palavras: Mesmo quando tiver de obedecer a meu Pai celestial, também obedecerei a meu pai na Terra. Esperarei a minha hora. O que o filho da Promessa não sabia é que a submissão a José tinha os dias contados. Esta viragem na atitude de Jesus em relação a seus pais terrenos (na realidade, sempre lhes esteve submisso) e as ardentes frases de adolescente nas proximidades de Jerusalém reavivaram as esperanças messiânicas de Maria. E, esquecido o desgosto, Maria empregou todas as suas forças e inteligência na definitiva condução de Jesus para os seus ideais nacionalistas. Recorreu mesmo a seu irmão – o agricultor e tio preferido de Jesus -, com o fim de convencer o sobrinho da imperiosa necessidade de lutar contra a Roma. Ele era o “filho da Promessa”, o salvador de Israel, o Messias, o judeu chamado a ocupar o trono de David e a comandar todos quantos desejavam libertar-se da ignominiosa colonização romana. Tenho muita pena pelos ingénuos e conformados cristãos que mantiveram uma imagem místico-religiosa de Maria. Aquela corajosa mulher nada teve a ver com o retrato que dela pintou a tradição. Os seus esforços para transformar o seu Filho no grande dirigente da revolução judaica não tardariam a fracassar. Embora o jovem Jesus não tivesse voltado a contrariar os pais, a verdade é que o seu distanciamento se tornou cada vez mais acentuado. As consultas a José e a Maria rareavam. Mantinha-se em silêncio, aproveitando a mínima ocasião para se retirar para a colina do
Noroeste e cair em profundas meditações. - Ah, Jasão! Ele escapava-se-nos das mãos! Desde a visita a Jerusalem, nunca mais foi o mesmo. Obedecia, sem dúvida, mas tinha como única obsessão falar com o seu Pai celestial. Conversámos muito poucas vezes. E quando o fazíamos acabávamos sempre a discutir. Naquele tempo começou a sentir uma especial repulsa pelos sacerdotes corrompidos. Tinha-os visto e ouvido no Templo e não entendia como podiam ser nomeados por razões meramente políticas. Era um insulto, dizia. Eis aqui outra questão interessante. A repulsa – não propriamente ódio – do Mestre para com aquelas intransigentes, desleais e hipócritas castas de saduceus, escribas e fariseus nasceu justamente aos doze anos. Como é natural, a visita à Cidade Santa também trouxe consigo alguns aspectos positivos. A façanha de Jesus entre os doutores da Lei correu de boca em boca por Nazaré, enchendo de orgulho e satisfação os professores e vizinhos. E muitos começaram então a compartilhar as ilusões de Maria: De Nazaré surgiria um brilhante professor e, talvez, um chefe de Israel. Todos na aldeia aguardavam, impacientes, que Jesus completasse os quinze anos e tivesse acesso ao solene acto da leitura das Escrituras na sinagoga. Pressentiam que algo de grande poderia suceder em tão assinalado sabbat. E não se enganaram... Mas antes, o Destino mudaria o rumo da vida do Filho do Homem. No ano 8 da nossa era, o primogénito perfez os catorze anos de idade. Fisicamente, era um jovem corpulento e de grande beleza, que sobressaía pelo olhar penetrante e maneiras acolhedoras. Continuou a trabalhar na oficina de carpintaria, alargando a especialidade familiar – a fabricação de jugos – a outras especialidades como o couro e a tela. - Se continuar por este caminho – repetia José -, em breve será um hábil carpinteiro... Mas, sem dúvida, um dos factos mais notáveis daqueles primeiros meses passaria despercebido aos pais e amigos. Talvez tenha sido comedido de mais ao qualificá-lo de notável...
Tiago, o homem que mais sabia da infância e juventude de seu irmão mais velho, soube guardá-lo no mais íntimo do seu ser. - Embora entre os doze e os treze anos – confessou-me ele – já começasse a intuí-lo, foi por aquela altura, quando estava para completar os catorze, que a luz do céu o iluminou e soube quem era verdadeiramente. Eu não o entendia. Agora sim, compreendo-o. O seu espírito estava a abrir-se a outra realidade. Foi uma coisa gradual e lenta. Ele falava-me dessas coisas. Dizia-me que seu Pai celestial o tinha enviado e que ele não era na realidade quem eu cria que era... Cheguei a pensar que desvairava ou que algum demónio maligno o tinha possuído. Mas o seu comportamento, bondade e sentido da justiça não eram próprios de um louco. As peregrinações solitárias à colina do noroeste multiplicaram-se nos meses de Julho e Agosto. Muitos dos vizinhos viam Jesus passear com a cabeça baixa e as mãos atrás das costas, sempre absorto e alheio a tudo. Tão singular conduta afectou de novo as relações com José e com Maria, que não conseguiam compreender aqueles prolongados e enigmáticos passeios a sós. É verdade – não podemos negá-lo – que Jesus era um rapaz amável e brilhante, mas difícil de entender. Era lógico. E mais ainda em tais momentos e circunstâncias. - Talvez ela nunca to diga – assegurou Tiago numa das nossas longas entrevistas na casa de Lázaro -, mas foi assim. Por aquela altura, a minha mãe começou a duvidar do prometido destino de meu irmão e Mestre. - Porquê? - O meu pai e ela falaram disso entre si em muitas ocasiões: Jesus não fazia prodígios. E toda a gente em Israel sabe que um verdadeiro profeta é chamado a realizar grandes sinais... Isso era certo. As pessoas piedosas da Palestina no tempo de Cristo estavam convencidas de que não podia haver profetas ou Messias... sem milagres. E o filho da Promessa, pelo menos até aos catorze anos não se tinha distinguido precisamente por essa virtude. (Por ocasião da terceira aventura descobriríamos que o
Mestre sentia uma notável repulsa por esse tipo de manifestações, aparentemente sobrenaturais). Apesar da tensa situação familiar, José fez o possível por conseguir o dinheiro necessário para o ingresso do seu primogénito na escola rabínica de Jerusalém. Tudo se dispôs – e bem – para esse grande momento. As coisas, tirando as tais incompreensões de que falámos – corriam bem no lar de Nazaré. Os ganhos do empreiteiro eram substanciais e em casa não faltavam os alimentos, as roupas nem as brancas pedras polidas que serviam de ardósias e nas quais escreviam e praticavam os filhos do casal. Jesus foi autorizado a retomar as aulas de música. O futuro, positivamente, parecia risonho. Em 21 de Agosto, Maria ofereceria a seu Filho uma esplêndida túnica de linho confeccionada por ela própria. - Jesus abraçou-me, emocionado, dando-me dois sonoros beijos. Foi um dia muito feliz... Um mês e quatro dias mais tarde, aquela felicidade transformarse-ia em tragédia. - Não posso nem devo ocultar-to, Jasão. Tínhamos as nossas divergências. Discutíamos... Mas, no seu conjunto, a vida sorria-nos. Tudo corria bem... A Senhora baixou os olhos. Mas, após uns instantes de vacilação, retomou as suas explicações com a mesma coragem. - Naquela manhã de terça-feira, 25 de Setembro, veio tudo por água abaixo. Apareceu um mensageiro na oficina de Jesus e anunciou-lhe que José tinha sofrido um grave acidente. Ao que parece, segundo ele disse tinha caído do alto de uma obra, na residência do governador, em Séforis... A recente crucificaxão de seu Filho e a recordação daqueles tristes momentos em Nazaré tolheram a voz de Maria. E na minha própria garganta – não pude evitá-lo – formou-se também um nó. Jesus e o mensageiro vieram a casa e explicaram, o melhor que puderam, que José se encontrava ferido... Nenhum de nós podia imaginar a gravidade da situação. Quisemos crer que nada de grave lhe aconteceria. Laborávamos em erro. Jesus fez questão em ir a
Séforis, aconselhando-me a que ficasse em casa. É claro que não concordei. Não sei como nem donde, mas a verdade é que reuni todas as minhas energias e ordenei-lhe que ficasse. Eu é que devia correr para junto dele. José era o meu marido, o meu amor! Jesus obedeceu e permaneceu em Nazaré, cuidando das crianças. Eu, na companhia de Tiago e do mensageiro, saí , logo para a cidade. Quando chegámos a Séforis, José tinha morrido. Aí concluiria a minha longa conversa com a Senhora, em casa dos Zebedeus em Jerusalém. Dias mais tarde, em Betânia, completaria o relato do dramático e decisivo acontecimento: o empreiteiro, falecido aos trinta e seis anos – praticamente na mesma idade em que Jesus viria a morrer – seria conduzido no dia seguinte para Nazaré, para ser inumado junto dos seus antepassados. De um só golpe, a vida do filho da Promessa e de toda a família ficou em suspenso. A partir daquele 25 de Setembro do ano 8, tudo passou a ser diferente. Jesus acabava de se transformar no novo chefe de família. Isso significaria o definitivo adeus aos estudos em Jerusalém, aos sonhos de grandeza de Maria e, o que era mais importante, ao iminente desencadear dos ambicionados planos de Jesus para revelar aos homens a maravilhosa realidade de seu Pai celestial. Aos catorze anos acabados de fazer, o Filho do Homem preparava-se para experimentar outra dura etapa da sua Encarnação na Terra. Da noite para o dia saltava assim da infância e adolescência para uma prematura juventude (quase para a maturidade), crivada de dificuldades, dúvidas, decepções, medos, pobreza (um capítulo decisivo) e... sonhos. Todo um transcendente ciclo do qual nenhum evangelista se quis ocupar. Como creio ter escrito, este dilatado e apaixonante período da impropriamente chamada vida oculta do Mestre – mais de dezasseis anos – merece um tratamento à parte. Por isso, deixarei a sua narração para a nossa histórica entrada na aldeia de Nazaré, durante o segundo salto. E o Diário do Major – como ficou dito – prossegue assim: ... Bartolomeu e Zebedeu carregaram com vários sacos de viagem e eu, como mais um elemento do grupo, encarreguei-me do odre que continha a água. E, rapidamente, após um mútuo e
lacónico “que a paz esteja convosco”, Judas de Alfeu empurrou a barca para o yam, saltando lá para dentro. Minutos depois, os gémeos perdiam-se na superfície cinzenta das águas, rumo a Saidan. E Natanael, tomando a iniciativa, pôs-se à cabeça  do grupo, penetrando na planície que nos separava de Haman. Inspirei profundamente e, dirigindo um último olhar para o distante promontório onde se encontrava o meu irmão, coloquei-me imediatamente atrás de João, fechando a pequena comitiva. Uma nova e excitante aventura acabava de começar... Que surpresas me reservava o Destino em Nazaré? Teria ocasião de comprovar os mais destacados acontecimentos da infância e juventude do Filho do Homem? Viveriam ainda os velhos professores, amigos e vizinhos?...

 

 

                                                                                                    J. J. Benitez

 

 

 

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