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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA - 4
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA - 4

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Operação Cavalo de Tróia IV “É vital – eu diria mesmo, imprescindível – conhecer a infância e a juventude do Filho do Homem para nos aproximarmos da sua Verdade. É essencial o acesso aos anos que precederam a chamada “vida pública de Jesus” [...]. Só assim, com essa maravilhosa informação em nosso poder, poderemos valorar com alguma equidade a irrepetível passagem do Filho de Deus pela Terra. [...] A mais elementar prudência obriga-me a prevenír o leitor [...] A julgar pelas centenas de cartas e mensagens recebidas a partir da publicação dos volumes anteriores de Operação Cavalo de Tróia, sei que uma notável maioria não se sentiu magoada ou desconcertada com a leitura desta inédita “Vida de Cristo”. Pelo contrário. Tal como no meu caso, este “novo, mais humano” e infinitamente “mais próximo Jesus de Nazaré” fez o milagre de cativar os corações, apaziguando ansiedades, preenchendo lacunas e, principalmente, confirmando suspeitas e intuições. Este Jesus – mais nosso – fez-nos pensar, o que não é pouco”. J. J. BENÍTEZ J. J. BENÍTEZ é um dos mais populares escritores espanhóis da actualidade. Nascido em Setembro de 1946, em Navarra, foi jornalista antes de se dedicar à literatura. A sua primeira obra, Existió otra Humanidad, foi editada em 1975, seguindo-se mais de duas dezenas de best-sellers célebres. Com Operação Cavalo de Tróia – obra que, só em Espanha, conta já com mais de 700 mil exemplares vendidos -, J.J. Benítez aventura-se abertamente no sugestivo universo dos romances-testemunho centrados em factos que têm permanecido ocultos ou esquecidos.


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Devia ter pensado nisso. Depois de quase nove horas de uma viagem prolongada e cheia de incidentes, aquela paragem não era normal. Ao pisar a vereda poeirenta que subia, íngreme, para a branca e próxima Caná, o optimismo dos peregrinos desfez-se em fumo, perdendo-se no céu tempestuoso e ameaçador daquela segunda-feira, 24 de Abril de 30. De repente, surgiu a tragédia. E quem isto escreve teve de enfrentar outro amargo transe... Com toda a certeza, nada daquilo teria acontecido se o imprevidente Bartolomeu, em vez de interromper o passo desigual, tivesse continuado em direcção à sobranceira e desejada aldeia, ponto final da sua viagem. Mas terá alguém o poder de modificar os desígnios da Providência? Dias depois, ao regressar ao módulo e submeter o minúsculo disco magnético alojado na sandália electrónica ao processo de leitura e descodificação, o Pai Natal, nosso computador central, confirmou com minúcia escrupulosa o lugar exacto onde se verificou o lamentável incidente: a dezanove quilómetros e quinhentos metros do lago de Tiberíades. No referido local, à vista da cidade onde nascera, Bartolomeu (Natanael), numa muito humana e compreensível explosão de júbilo, interrompeu as passadas curtas e vacilantes. Levantou os braços e, deixando cair sobre os ombros as amplas mangas da túnica, mostrouos, tão curtos quanto peludos e musculosos. Rodando nos calcanhares, surpreendeu-nos com um dos seus sorrisos inconfundíveis: franco, interminável, mas desfeado por dentes negros e cariados. João Zebedeu, a Senhora e este explorador agradeceram a pausa inesperada. E Bartolomeu, olhando para o céu, clamou em alto brado: - Rodem as portas nos seus gonzos... tal como o preguiçoso na cama... e tu, Caná, na dourada abundância... amo-te. À medida que fui penetrando na vida daqueles homens – conhecidos por discípulos de Jesus – a minha surpresa aumentava desmedidamente. Natanael era o exemplo mais próximo. Culto, filósofo e com um singular sentido de humor, acabava de dar como seu um símile didáctico do Livro dos Provérbios, apossando-se dele sem pudor. Contudo, não quero afastar-me... Talvez fossem já quatro da tarde. O caso é que Maria, mãe de Jesus, aproveitando o breve descanso, pousou a reduzida bagagem. Sabendo que Caná estava próxima, num gesto tipicamente feminino, ajeitou e alisou os generosos, negros e discretamente nevados cabelos. Soltou um longo suspiro e, por casualidade, o verde-erva dos formosos olhos amendoados foi descobrir alguma coisa naquele manso e dourado mar dos trigais, à esquerda da vereda por onde seguíamos. Não hesitou. E também não fez perguntas. Era assim o seu carácter: decidido e, em certos momentos, perigosamente irreflectido. Esta maneira de ser da Senhora tinha constituído uma quase permanente fonte de conflitos. Seu Filho primogénito entre outros, como espero ir narrando, foi excepcional testemunha de quanto afirmo. Ao princípio, nem o satisfeito Zebedeu nem o eufórico Bartolomeu prestaram muita atenção ao súbito afastamento de Maria. Porém, este explorador, sempre atento, quase que em perpétua tensão, fascinado por cada palavra ou movimento daquelas personagens, acompanhou-a com o olhar, intrigado. Com o seu passo nervoso, a Senhora chegou ao limite da seara. Durante uns segundos permaneceu absorta num vibrante círculo de flores, nascido ao abrigo das altas e prometedoras espigas de trigo. Depois, segura da sua descoberta, deixou-se cair lenta e suavemente, até os joelhos tocarem na argila vermelha. Habilmente, a sua mão esquerda foi colhendo ramos de flores. Aproximou-as do rosto e, fechando os olhos, aspirou profundamente. Como estávamos alheios à iminência da tragédia! Num generoso desejo de compartilhar o seu achado mostrou-nos o ramalhete de flores brancas. - São lírios! - exclamou, em alvoroço. A sua alegria era justificada. Aquele tipo de flor silvestre - shoshan, segundo os textos bíblicos – que cresce na Galileia e no monte Carmelo, simbolizava a beleza. Naquele tempo, esta delicada e aromática flor estava associada à boa sorte e a qualidades espirituais muito particulares. O Livro dos Reis (I,7; 19-26), o Cântico dos Cânticos (2, 1-2) e Isaías (35,1-2) entre outros, mencionam-na e enaltecem-na. O próprio Jesus Cristo falou no seu especial significado (1). No entanto, nesta altura, a descoberta do lilium candidum não foi presságio de boa sorte. Muito pelo contrário. Um sorriso foi a amável resposta do Zebedeu ao terno comentário de Maria. Mas continuou a meu lado. Quanto a mim, estive tentado a percorrer os três ou quatro metros que nos separavam da Senhora e colaborar na recolha dos lírios. No entanto, Bartolomeu, como se tivesse adivinhado as minhas intenções, tomou a iniciativa, precipitando-se para a seara. Livrou-se do incómodo manto ou chaluk e, feliz como 1 Ainda que os linguistas do século xx nunca tenham chegado a acordo quanto à identificação desta flor tanto a havatzeleth ou “rosa” do Cântico dos Cânticos como o “açafrão do Livro de Isaías” não eram mais que o lilium candidum, ou lírio branco: um espécime de caule coberto de folhas, que termina num cacho de grandes flores brancas orientadas horizontalmente e que vive quatro ou cinco dias. Mantêm-se abertas noite e dia, embora o seu subtil aroma seja mais intenso no escuro. Os dons e qualidades espirituais do lírio branco seriam reconhecidos oficialmente num edicto papal do século xvII, vinculando a esta flor as representações pictóricas da Anunciação. Botticelli e Ticiano são dois excelentes exemplos. (N. Do M.) uma criança, foi debruçar-se sobre as flores, colhendo não só os lírios mas também as anémonas roxas e azuis bem como os abundantes ranúnculos escarlates, que cresciam aos pares. Tremo agora, ao imaginar o que poderia ter sucedido se me tivesse antecipado ao romântico Natanael... Preparava-me para interrogar o jovem Zebedeu quanto ao possível destino de tão abundantes ramos quando, de repente, Bartolomeu soltou um gemido abafado. Ergueu-se rápido, largando o ramalhete. E, ante o assombro geral desembainhou o seu gladius, lançando uma poderosa estocada contra o chão. Entre os caules cortados, levantou-se fugaz uma pequena nuvem de pó por cima das espigas, manchando a túnica branca do discípulo. Maria, a dois escassos metros, empalideceu. João e eu olhámo-nos, alarmados, sem compreender. De tão violento, o golpe, vibrado com ambas as mãos, cravou o ferro no barro. No entanto, em vez de recuperar a arma, Bartolomeu deu
meia volta e, vacilante, encaminhou-se para nós. Assustei-me. Os seus olhos estavam muito abertos, vidrados, e a face, como a da Senhora, tornara-se pálida. Aterrorizado, estendeu as mãos para Zebedeu, numa muda súplica de auxílio... Hoje, ao relembrar estas cenas e a sua carga de dramatismo faço a mim mesmo a grande pergunta: Estávamos preparados para uma “viagem” desta natureza? Mais ainda: é possível encontrar alguém com tanto sangue-frio que se limite a observar, sem ceder à natural inclinação de ajudar os seus semelhantes? O nosso treino, quanto a isso não há dúvida, era excelente. Quem isto escreve foi posto à prova durante as amargas horas da prisão, tortura e execução do Rabi da Galileia. Mas, mesmo assim, as tentações e as dúvidas surgiam a cada instante. Era este o problema. Pois bem, à vista do que tivemos de viver naqueles segundo e terceiro saltos no tempo, estou convencido de que, com a continuação, se estas viagens se repetem, os frutos podem ser nefastos. O que aconteceu a pouco mais de dois quilómetros de Caná e no resto da viagem foi um aviso. Para que conste. João ao compreender o problema, lançou-se para o assustado Natanael. Também Maria acudiu em seu socorro. Quanto a mim, perplexo e sem saber o que fazer, fiquei a meio caminho, agarrado à vara de Moisés e, suponho, com uma perfeita cara de estúpido... Mas, reparo agora, com desolação, que voltei a alterar a ordem cronológica desta nova aventura. É preciso que este pobre e apressado diário reflicta os factos tal como sucederam e, muito especialmente, pela ordem rigorosa com que se manifestaram. Assim tem de ser, para bem da verdade. Peço, pois, desculpa ao hipotético leitor por estas convulsas memórias. Foram tantos e tão sugestivos os acontecimentos que nos coube viver que, nesta ocasião, tenho a imperdoável tendência de os alterar. E ainda que a minha profissão não seja escrever, esforçar-me-ei por manter essa ordem natural e imprescindível. Como ia dizendo, esta utilíssima exploração foi feita muito pela manhã. O desembarque na margem ocidental do yam, ao sul da cidade de Migdal, efectuou-se com rapidez e extrema discrição. Os relógios do
berço deviam marcar as sete horas e quinze minutos... Tomando a iniciativa, Natanael pôs-se à frente da expedição, internando-se pela planície que nos separava de Hamâm. Inspirei com força e, dirigindo um último olhar ao distante promontório onde meu irmão esperava, coloquei-me logo atrás de João, fechando a pequena escolta. Uma nova e excitante aventura acabava de começar. Como narrei em devido tempo, entre as duas assombrosas aparições do Ressuscitado nas margens do mar de Tiberíades, os seus discípulos – divididos, por causa da fogosidade de Simão Pedro – acabaram por contemporizar. Aguardariam o sábado, 29 daquele mês de Abril. Se a terceira e discutida presença do Mestre não se registasse ao longo desse sabbat, o próprio Pedro encabeçaria a missão de proclamar a boa nova da Ressurreição e, segundo eles, da iminente chegada do Reino. Na jornada anterior – domingo, 23 de Abril -, aquele que bem depressa seria reconhecido como chefe de um sector do grupo apostólico original cometera a ousadia de convocar a multidão que se amontoava às portas da casa dos Zebedeus, em Saidan, para uma magna assembleia, naquela mesma praia e à hora nona (três da tarde) do referido sabbat! - Então – anunciou-lhes – vos falarei com mais calma. Pobre Simão. A sua surpresa, naquele dia e naquela multitudinária reunião, seria épica. A sorte estava lançada. E os discípulos, de comum acordo, optaram por aproveitar aqueles dias de teórica inactividade para visitar as suas esquecidas famílias ou, simplesmente, para se recomporem dos recentes e dolorosos acontecimentos vividos em Jerusalém. Esta circunstância, que Cavalo de Tróia não previra, viria enriquecer a nossa missão, permitindo a quem isto escreve um acesso mais fácil à aldeia de Nazaré. A magnífica oportunidade apesar dos seus perigos e naturais dificuldades, podia abrir-nos um campo de que não suspeitávamos no conhecimento dos anos ocultos – ou supostamente ocultos – de Jesus. E a Providência, uma vez mais, foi generosa para com estes esforçados exploradores... Como julgo ter referido, João de Zebedeu ofereceu-se para velar pela
segurança de Maria durante aquelas jornadas. E eu aceitei, encantado, o convite para os acompanhar. Quanto ao segundo discípulo, Bartolomeu, tal como referi oportunamente, caminharia a nosso lado, ficando na sua cidade de origem, Caná. No regresso, previsto para sexta-feira, 28, Natanael esperaria a nossa passagem obrigatória pela povoação dos seus antepassados, regressando ao lago na companhia de Zebedeu e deste pagão, meio adivinho meio negociante de vinhos e de madeiras, meio curandeiro... Quanto à missão, a minha incumbência em Nazaré não apresentava complicações especiais. Com extremo tacto, isso sim, teria de conseguir juntar o máximo de informações, verificando – até onde fosse viávelos dados e documentação obtidos até essa altura. Não vou insistir. Não discutirei se os chamados evangelistas acertaram ou não no seu trabalho. Quem leia este diário poderá julgar por si próprio. Do que tenho a certeza é que uma autêntica contribuição à vida e à mensagem do Filho do Homem exige, pelo menos, uma visão panorâmica de toda a sua existência. Mutilar a encarnação de Jesus, oferecendo apenas os três derradeiros anos da sua vida, é injusto e irresponsável. Quanto nos foi dado averiguar sobre os seus primeiros trinta e dois anos encontra-se tão cheio de interesse que, além de ser atractivo em si mesmo, autoriza fiéis e não fiéis a desenhar nas suas mentes e corações uma silhueta de Jesus de Nazaré infinitamente mais precisa, próxima e esperançosa. Se a filosofia de vida e a forma de ser de qualquer humano adulto dependem em grande medida da sua educação e ambiente familiar, por que motivo fazer excepção com um Deus que se fez igual ao homem? Que singular simpatia experimentámos ao ver que aquele jovem também conheceu a dor que se experimenta ante o falecimento de um ente querido! Que emoção, ao saber dos seus apertos e dificuldades económicas! Que serena suavidade ao identificarmo-nos com as suas humanas tentações, as suas crises e o seu despertar para a vida! Por que razão os escritores a que imerecidamente se chama sagrados negaram às gerações seguintes aqueles anos dramáticos em que Jesus, muito
lentamente, foi ganhando consciência da sua natureza divina? Porque esquecer ou ocultar o transparente e formoso amor de Rebeca, a jovem de Nazaré, por aquele rapaz? Isto e quanto o Pai Eterno e Misericordioso achou por bem revelar-nos sobre a vida oculta de Seu Filho não alterou a nossa visão do Mestre. Pelo contrário. Daí vem a minha compreensível indignação com os evangelistas. Porém, é altura de entrar no assunto. Bartolomeu e João estugaram o passo. Era evidente que desejavam afastar-se o mais cedo possível da margem ocidental do yam. O segundo, inquieto, especialmente pelos recentes acontecimentos de Saidan, procurava evitar qualquer tipo de encontro com as pessoas do lugar. Entenda-se que aquela atitude esquiva nada tinha que ver com medo. Nos momentos críticos, Zebedeu manifestara-se como um dos mais valentes, acompanhando o Mestre até ao final. O problema era outro. Desde o princípio que, em aberta e azeda oposição a Pedro, se inclinara para uma actuação mais cautelosa. Juntamente com André e Mateus Levi defendera a opção da espera. Os factos eram tão extraordinários, confusos e vertiginosos que, na verdade, requeriam uma reflexão serena e profunda antes de se pronunciarem num ou noutro sentido. E, embora ninguém pudesse duvidar da sua fé inquebrantável no regresso de Jesus à vida, esgrimindo uma louvável sensatez, Natanael quis harmonizar-se primeiro com as ordens ou indicações do Rabi. E estas, obviamente, não se tinham cumprido. O tempo lhe concederia razão. Em silêncio, depois de atravessarmos as gastas lajes de pedra da calçada romana que facilitava as comunicações naquela região, internámo-nos pela fértil planície que se alongava desde o desfiladeiro das Pombas. Natanael, nosso guia, velho conhecedor do terreno, arrastou-nos durante quatro ou cinco minutos através de um labirinto de veredazinhas, que delimitava e intercomunicava com uma não menos complexa rede de hortas e de campos de lavoura, prolongamento, em suma, do jardim de Guinosar, orgulho da Galileia.
Pouco depois, com admirável precisão, o discípulo de Caná desembocava num caminho de uns três metros de largura, poeirento e atapetado por pestilento regueiro de excrementos de cavalgaduras e gado menor. Parei um instante. Como nas andanças anteriores pelas costas de Cafarnaum e Saidan, a localização exacta de referências geográficas na minha memória vinha do interesse essencial por um mais seguro e eficaz desenvolvimento da missão. E aquele caminho, pelo que pude deduzir, seguia para sudeste. Provavelmente, a Via Máris, nas cercanias das ruínas de Raqat, ou da altiva cidade de Tiberíades. Uns dez minutos depois estávamos às portas do wâdi ou vale de Hamâm, também conhecido por desfiladeiro das Pombas. Ali, a vereda dividia-se em duas. Um carreiro, apertado e ao abandono, seguia para a nossa direita, perdendo-se na direcção nordeste. Na encruzilhada, para meu descanso e satisfação, erguiam-se dois marcos de basalto negro brilhante. O que presenciei naqueles momentos talvez não se revista de grande importância, mas não o quero esquecer. Há momentos em que um simples gesto, como aquele, tem mais força que todo um discurso... Curioso... Apesar da sua longa associação com Jesus e dos excelsos ensinamentos recebidos, a maior parte dos discípulos continuava a alimentar um desprezo quase genético pelos Romanos. E não era estranho que o manifestassem à menor oportunidade. A questão é que, ao chegar à encruzilhada, Bartolomeu, sempre à cabeça, abrandou o passo. O Zebedeu e a Senhora imitaram-no e, depois de uma rápida inspecção, convencidos de que ninguém espiava os seus movimentos, o primeiro dos discípulos voltou o rosto para os marcos, lançando uma súbita e certeira cuspidela contra a pedra. No primeiro momento, um tanto perplexo, associei aquele gesto pouco edificante com algum dos hábitos do guia. Mas, ao ser testemunha de uma segunda cuspidela, atirada desta vez por Zebedeu, o meu desagrado transformou-se em curiosidade. Porém, depois disto, recomeçaram a marcha. Não precisei de explicações complementares. Ao passar na frente dos marcos entendi a razão de tal comportamento. Cada uma daquelas
pedras vulcânicas, de um metro de altura, orientava o caminhante para uma direcção muito concreta. Num deles, na rocha dura, fora esculpido o nome de Tiberíades e os estádios que faltavam até à cidade: vinte e um (aproximadamente quatro quilómetros e meio). O segundo marco, indicando o ramal que serpenteava para nordeste, avisava da proximidade de Migdal, situada a cinco estádios (cerca de um quilómetro). Pois bem: embora os marcos e as sinalizações pudessem ter sido trabalhadas setenta anos antes – certamente na época em que o rei Herodes, o Grande, conquistara aquela região -, por baixo dos respectivos letreiros, uma mão hábil e, certamente, romana, gravara a efígie de César Tibério, dono e senhor da província levantina por onde caminhávamos. Sorri no meu íntimo e, ajeitando às costas o cada vez mais incómodo odre de água, apressei o passo, juntando-me ao grupo. Dias mais tarde, Pai Natal faria as medições correctas. No entanto, se não estava enganado nos meus cálculos, aquela primeira etapa (da praia às portas do wâdi) fora apurada em mais ou menos quinze minutos. Não estava mal, para uma milha. Aquele, naturalmente, não era o caminho habitual entre Nahum e Nazaré ou vice-versa. Ao utilizar a via marítima, e desembarcar ao sul de Migdal, tínhamos evitado os oito quilómetros que separavam Nahum (Cafarnaum) da cidade da Madalena. Pois bem, ao entrar no wâdi Hamâm o passo abrandou consequência lógica da elevação progressiva do terreno. Devemos considerar que o nível do lago de Tiberíades, naquele tempo, se encontrava na cota menos duzentos e oito metros e que, em breve, nos situaríamos no nível do mar Mediterrâneo, ultrapassando-o em mais de quarenta metros nas cercanias da aldeia de Arbel. E tudo isto em questão de dois quilómetros e meio. O cenário que então se abriu ante este emocionado explorador foi surpreendente. As referências obtidas do ar não prestavam justiça às quebradas. Numa centena de passos, a partir da encruzilhada, a paisagem sofreu uma metamorfose dramática. O pomar que nos recebera ao pisarmos terra firme desaparecera para dar lugar a penedos afiados e altivos, de paredes verticais e nuas, ora violetas ora
douradas, que emergiam como sentinelas. E a seus pés, até onde a Natureza fora capaz de trepar, bosques densos e verde-negros de terebintos e carvalhos do Tabor. Ao fundo do desfiladeiro, servindo-nos de milagroso guia, um caminho tortuoso, de pó e de terra, que se tornara crusta com o decorrer dos anos. Uma vereda que tinha de ser aberta e desbravada regularmente, ante o avanço emaranhado do mato, impossível de se deter, regado com generosidade por sussurrantes fios de água, vindos todos das alturas. De vez em quando, nas voltas do caminho, bandos de pombos levantavam voo, precipitada e ruidosamente, passando pelos canaviais e pelos maciços de venenosas adelfas. Preguiçosamente, com tédio, os açudes em que tinham sido surpreendidos iam recuperando a sua transparência. O ruflar dos pombos bravos alertava outras colónias de aves, que, por sua vez, em brancos voos, despertavam, num eco interminável. Por uma deliciosa loucura, os habitantes do desfiladeiro – pesados e negros corvos, fulminantes gaviões de caudas afiadas, azulados e assustadiços, gorriões barulhentos e escrivães-cinzentos migradores – planavam de penhasco em penhasco ou de gruta em gruta, erguendose sem esforço para o alto do pico que dominava a paisagem rochosa: o har ou monte Arbel, de 389 metros de altitude. 1. Depois de vinte minutos de marcha desta segunda etapa, numa das ladeiras mais acentuadas (com uma inclinação superior a quarenta graus), Maria, suada e ofegante, soltou um pequeno grito, chamando a atenção dos homens que vinham na frente. Precisava de descansar e ganhar alento. Entre protestos, Bartolomeu parou. Porém, o Zebedeu, compreensivo, desfez-se da mochila, acorrendo, solícito, em auxílio da Senhora. Esta, sentando-se numa das rochas que eram tão frequentes ao longo do caminho, agradeceu o grande lenço que João acabava de lhe oferecer, enxugando o suor do rosto e do pescoço. E eu, antecipando-me aos seus propósitos, arranquei a tampa de madeira do odre, impermeabilizado com sebo e alcatrão, e enchi a escudela que pendia da pele. Ao servir-lhe a água, Maria, com um olhar cheio de doçura, esboçou um dos seus calorosos sorrisos. Meu Deus! Logo o reconheci.
Aquele era o sorriso de seu Filho. Franco. Acolhedor. Irresistível... E um calafrio deixou-me sem fala. Os modos rudes de Natanael, exigindo a sua ração de água, fizeram esquecer tão comovedoras recordações, devolvendo-me à realidade. Apesar da sua falta de tacto, aquele discípulo possuía um coração nobre e confiante. Pouco a pouco o iria descobrindo. Nem Zebedeu nem eu bebemos água. Ele, suponho, porque não precisava. Quanto a mim, como já expliquei, por rigorosas razões de segurança. No fundo, embora ninguém o reconhecesse abertamente, todos agradecemos a paragem. E, durante alguns minutos, cada um mergulhou nas suas preocupações pessoais. Uma ligeira e fresca brisa, prelúdio do primaveril Maarabit, o vento que viaja diariamente do Mediterrâneo ao lago, fazia oscilar os hissopos síros e as espadanas, agitando os bosquezinhos de loureiros e perfumando o desfiladeiro com o óleo volátil das suas folhas verdes e flexíveis. Levantei os olhos. No céu, plúmbeo, as nuvens rumavam apressadamente para leste. Contra minha vontade, fui de novo assaltado por um sentimento familiar, mistura de saudade e subtil melancolia. Como explicar tão paradoxal situação? Éramos exploradores, observadores de outros tempos, com uma missão fria e calculista: reunir as peças da história de um homem chamado Jesus Cristo. No seu código, Cavalo de Tróia proibia a mais pequena fraqueza dos seus navegantes. Era-nos exigido coragem, astúcia, uma notável reserva de conhecimentos de todo o género e, em especial, coração de gelo! Quanto é vã por vezes a inteligência! Ou será que se pode encarcerar os sentimentos? Ali estava a prova. Por mais que lutasse, por muito grande que fosse a minha capacidade de esquecimento, o magnetismo daquele Homem estava a derrubar todos os códigos. Tal como aqueles galileus, também eu sentia a sua falta... E por um momento imaginei-o a avançar pelo wâdi, com a sua inconfundível passada larga. De repente qualquer coisa veio romper tão agradável descanso. Foi tão inesperado quanto grotesco. Mas ajudou-me a conhecer melhor o temperamento do praticamente desconhecido Bartolomeu.
Num voo súbito sobre as cabeças dos confiados andarilhos, uma ave das rochas, deixou cair os seus brancos excrementos em cima de Natanael, que dormia. O fulminante projéctil, que o atingiu em cheio no ombro esquerdo, sujou-lhe o impecável manto de lã. Em segundos, o grupo passou da estupefacção a um riso inocente e contagioso. João foi o primeiro a explodir, arrastando na gargalhada a Senhora e quem isto escreve. Bartolomeu, congestionado pela ira, afastou-se da rocha a que estava encostado e, levantando-se, percorreu com o olhar as paredes do desfiladeiro, em busca da atrevida ave. Por um momento, o riso geral e indisfarçável fez-me temer o pior. Mas o discípulo, aparentemente alheio à hilaridade dos companheiros, continuou a agitar o punho esquerdo, insultando toda a criatura que pudesse voar, com uma irreproduzível enfiada de pragas e maldições. Quando, finalmente, compreendeu a inutilidade de tal comportamento, a sua cara gorda e saliente voltou-se para o chaluk manchado. Os olhos negros e expressivos fecharam-se-lhe, ao mesmo tempo que apertava o queixo e franzia o cenho, numa careta de repulsa. As pestanas grossas e compridas oscilaram nervosamente. Por fim, a sua atenção caiu sobre nós. Atónito, observou primeiro o riso sufocado de João. Depois, percorreu com o olhar o pouco caritativo grego que, para dizer a verdade, fazia árduos esforços para dissimular. Por último, lançou uma mirada inquieta às lágrimas que molhavam o rosto da Senhora – consequência do forte ataque de riso -, e o bom Bartolomeu cedeu. Obedecendo aos seus mais íntimos impuLsos, uniu-se à alegria geral, soltando uma gargalhada que atroou pelo desfiladeiro, de novo fazendo levantar voo os seus hóspedes alados. Para falar com franqueza, senti-me aliviado. Assim era Natanael, um dos onze: franco, indeciso, falho de tacto, indulgente e, acima de tudo, amigo dos seus amigos. Nos modernos esquemas da tipologia de Ernest Kretschmer, certamente teria sido incluído no grupo designado por pícnicoH, com alta percentagem de temperamento ciclotímico (1). juntamente com Tomé, era o de mais baixa estatura: cerca de um metro e cinquenta e oito. Sofria de uma clara tendência para a acumulação de gordura. O ventre avançado, como o de Simão Pedro, era disso viva manifestação. Como bom pícnico, destacava-se pela
suavidade das linhas, esqueleto frágil, membros curtos e hirsutismo (corpo muito peludo), que lhe valera a alcunha de Urso. Com o andar do tempo, detectaria no seu organismo tensão arterial elevada e hiperfunção supra-renal. O rosto, mais largo que alto, parecia-se com um escudo. Dele pendia uma barba de palmo, grisalha, frisada e aberta em leque. Nos seus lábios carnudos e permanentemente humedecidos, movia-se uma sensualidade extrema. Os olhos chamaram-me a atenção desde o princípio. Imensamente negros e profundos, vinham equilibrar os seus mal conservados trinta anos. O nariz, porém, rematava os seus poucos encantos físicos. Malfeito e redondo como uma bola de golfe, apresentava ligeiras dilatações dos vasos capilares. As suspeitas iniciais ficariam confirmadas na terceira e apaixonante aventura: os inestéticos angiomas estavam estreitamente relacionados com o desmedido apreço de Bartolomeu pelo vinho... Em contraste com a abundante e extensa pilosidade, uma calvície prematura ganhava terreno no alto do crânio, desenhando enorme coroa. Habitualmente, o Urso de Caná cobria o corpo com uma túnica branca de lã, sempre imaculada, e um roupão castanho, de largas riscas verticais, igualmente brancas. Durante o tempo que permaneci a seu lado, a perna esquerda apareceu sempre ligada. Faixas de couro de vaca, seboso e desbotado pelo uso, procuravam aliviar um problema vascular antigo: veias varicosas (varizes), tão frequentes então como hoje. (Segundo os nossos cálculos, pelo menos uns dez ou uns quinze por cento da população adulta viam-se afectados por esta doença.) 1 Ainda que as classificações de Kretschmer tenham sido de grande utilidade para a psiquiatria e a medicina em geral, é francamente difícil encontrar tipos tão puros como os descritos na referida tipologia. Feita esta observação, vejamos o que diz Kretschmer em relação aos indivíduos de temperamento ciclotímico,: “São pessoas de bom humor, que encaram a vida tal como ela é, naturais, abertas, espontâneas, de amizades rápidas e fáceis, ternas. Têm acentuadas variações no plano da diátese (humor), oscilando com facilidade da alegria à tristeza. Pela sua boa capacidade de sintonização e de irradiação afectiva contagiam-se com facilidade com a alegria e a tristeza dos outros, e, por sua vez, transmitem os próprios sentimentos; porém, independentemente destas mudanças de humor, pela sua constituição, tendem a manter-se desmotivadas. Quanto ao tempo, são rápidos ou tranquilos, e sem grandes oscilações no plano da psico-estesia. O seu carácter, extrovertido, comunicativo, e a irradiação afectiva facilitam-lhes
imensamente as relações pessoais e a adequada captação dos estímulos do ambiente, pelo que são muito sociáveis e muito bem aceites pelos outros., (N. Do A.) Maria, prestável e conhecedora do proverbial asseio de Natanael, pôs ponto final aos risos e ao incidente do pássaro atrevido. Como a maioria das hebreias, estava familiarizada com as propriedades de muitas das plantas que cresciam naquelas terras. Pôs-se de pé e, após rápido exame à floresta, dirigiu-se a uma pequena moita de arbustos, de uns oitenta centímetros de altura, de caules com nós abundantes, verdes e carnudos. Arrancou uma mancheia e, pegando numa pedra, pôs-se na frente da rocha onde estivera sentada. A uma rápida ordem sua, Bartolomeu despiu o manto, estendendo-o em cima da rocha. Servindo-se de algumas folhas de adelfa, Maria procedeu primeiro a uma meticulosa limpeza. Partiu os talos aos pedacinhos, colocou-os sobre a nódoa e, pegando na pedra com a mão esquerda, esmagou-os, procurando não estragar o chaluk. Um suco leitoso brotou imediatamente, cobrindo as manchas dos excrementos. Concluída a operação de limpeza, o roupão foi devolvido ao proprietário e a expedição lançou-se ao último troço do desfiladeiro. Não pude evitá-lo. Movido pela curiosidade, examinei os restos da planta utilizada pela Senhora. Tratava-se da salgadeira-branca, uma espécie silvestre cujas cinzas, adequadamente tratadas com azeite, davam origem ao borit ou bor: um sucedâneo do sabão, mencionado em Jeremias (2, 22) com o nome de nitro (1). Aquele último avanço pelo wâdi seria do maior interesse para este explorador e, enfim, para os planos futuros da nossa missão. Como já disse, meu irmão e eu tínhamos decidido forçar a sorte, embarcando num terceiro salto no tempo, fora do programa estabelecido, a fim de acompanhar o Mestre ao longo dos seus anos de pregação. Pois bem, entre os preparativos para tão ambiciosa e arriscada odisseia figurava um de vital importância: a escolha do local de aterragem, onde esconderíamos o módulo. A escassez de combustível obrigava-nos a um voo curto, que, em princípio, de acordo com os estudos feitos nas imediações do yam, deveria ter como cenário a garganta por onde caminhávamos agora. Naturalmente, a nova base-mãe teria de ser previamente explorada.
No devido momento subiríamos ao cume escolhido, comprovando in situ as características do lugar. Uma das nossas obsessões era localizar um ponto de descida onde a passagem ou a presença de seres humanos e animais fossem praticamente nulos. Mercê das radiações infravermelhas, éramos invisíveis. No entanto, depois da embaraçosa experiência vivida no monte das Oliveiras, com o jovem João Marcos, todas as cautelas eram poucas. Por outro lado, o alcance da exploração forçava-nos a uma drástica economia no consumo energético da nave. Aquilo significava, entre outros condicionalismos, desligar os *1 A citada passagem de Jeremias reza textualmente: “Pois, mesmo que te laves com nitro, por muita barrela que empregues, continuará marcada a tua iniquidade perante mim”. A salgadeira-branca – salgadeira de Hammada ou Hammada salicornicaconstitui uma das espécies da família das Quenopodiáceas. Em Israel, cresce frequentemente junto das acácias. Nos mercados das actuais cidades do Oriente é possível encontrá-la junto da anabasis, outro excelente produto para o fabrico de potassa, que, por sua vez conduz à obtenção de sabão. A salgadeiranegra, sua parente próxima, é mais abundante no Negueve, a ocidente da África do Norte. (N. Do M.) diferentes escudos protectores, pelo menos durante as nossas longas ausências. Em síntese: a segurança do berço, dos seus delicados instrumentos e, em especial, dos seus pilotos exigia que a base-mãe fosse inexpugnável. Se falhássemos, se o módulo fosse atacado e destruído, o regresso ao “nosso tempo” teria sido inviável. Permaneceríamos tragicamente ancorados numa época que não era a nossa. Ao efectuarmos os primeiros estudos, o monte Arbel, com os seus 181 metros acima do nível do lago, destacou-se como um dos firmes candidatos para base do módulo. Teoricamente, nos mapas, parecia oferecer-nos muito boas perspectivas: paredes escarpadas na quase totalidade do seu perímetro apenas quilómetro e meio do cume às margens do yam; uma equidistância aceitável com as cidades de Tiberíades, e de Nahum e, aparentemente, um cume despovoado, pedregoso e inculto. Mas, à medida que fui avançando para o sopé da enorme mole algo que, obviamente, não figurava na nossa cartografia, me fez duvidar. Aquela parede, orientada a norte, além de uma vintena de cavernas,
apresentava outras tantas longas cordas, que caíam do cume, indo morrer de modo estranho e certeiro, na escuridão das grutas. Era evidente que alguém as utilizava, ou fizera uso delas, para entrar nas já citadas cavernas. Aquilo não me agradou. Disposto a não perder a oportunidade, pus-me ao lado de Bartolomeu, interrogando-o quanto àquele cordame surpreendente, agitado agora pela brisa de oeste. O discípulo, como se lhe tivessem falado nalgum dos espíritos maléficos que, segundo então se pensava, assaltavam os caminhantes nas ruínas ou à sombra de certas árvores, carregou o semblante, resmungando um “maldita seja tua mãe”. Retirando da bolsa que trazia suspensa do cinto um dos tefilin (um pequeno estojo de couro negro, em forma de dado, de apenas três centímetros de lado, ou amuleto, que se atava no braço esquerdo ou na testa durante a oração) (1), tratou de o atar à volta da cabeça. Fiquei perplexo, claramente magoado pela indelicadeza do galileu. Pouco a pouco me iria habituando a esta maneira de ser para com os pagãos. No fundo, a culpa era minha. O grau de superstição daquele povo era tal que uma pessoa se via obrigada a pesar o mais ligeiro dos comentários. E Natanael fiel à tradição religiosa do seu povo, entoou um dos versículos encerrados no tefilin (o quinto do Salmo XII): “Não terás temor de espanto nocturno de seta que voa de dia”. Uma tradição, diga-se de passagem, que perdura ainda entre os católicos, embora, logicamente, com uma intenção diferente. Se a minha fatigada memória não me atraiçoa, este mesmo salmo reza-se ainda hoje... João, intrigado pelo murmurar de Bartolomeu, pôs-se a meu lado. Contei-lhe o que acontecera e, sorrindo com benevolência, esclareceume o motivo de tão aborrecida circunstância. A simples referência àquelas grutas, infestadas de atalef ou morcegos (e, o que era pior, de bandidos) podia chamar estes seres imundos, trazendo aos caminhantes
*1 No interior destas cápsulas, utilizadas quase exclusivamente pelos varões judeus, estavam encerradas tiras de pergaminho com as passagens de Esdras, 13,1-16, Deuteronómio 6, 4-9 e 11, 13-21. A colocação dos dois amuletos
- na testa e no braço esquerdo, perto do coração – tinha um carácter simbólico: “Como memória e sinal”. (N. Do M.) todo o género de infortúnios (1). Compreendi a irritação de Natanael e, simulando total desapontamento, roguei-lhe que desculpasse tão ignorante e mau companheiro de viagem. O de Caná aceitou as minhas desculpas, mas, recalcitrante, continuou com as suas rezas, apressando a marcha. Bandidos? Aquilo, sim, era interessante. Zebedeu pôs-me ao corrente. Apesar das severas medidas adoptadas no seu tempo pelo rei Herodes, o Grande (2), e depois pelo governo de Roma, contra os salteadores de caminhos, o acidentado daquele wâdi e a proliferação de grutas nas nuas paredes rochosas do desfiladeiro tornavam extremamente difícil a expulsão dos bandidos. Algumas das quadrilhas de nómadas sanguinários ou seminómadas, formadas, na maioria dos casos, por escravos evadidos, deserdados da fortuna e sicários provenientes das guerrilhas que regularmente se levantavam contra o poder estabelecido, tinham feito o seu quartel-general nas profundezas daquelas cavernas, ocupando-as ou abandonando-as – conforme fosse conveniente – com o auxílio de cordas que eram lançadas do alto e que as ligavam entre si. Este perigo latente, como é de supor, iria obrigarnos a esquecer o cimo do har Arbel, bem como os restantes cumes que davam forma ao desfiladeiro. A futura base-mãe deveria ser estabelecida em local mais seguro. O problema era onde. A margem oriental do lago, ainda que menos povoada, afastava-nos demasiadamente dos núcleos humanos onde o Mestre actuara. De reserva, havia uma segunda alternativa: um har de 138 metros do nível do Kennereth – o Ravid -, uns três quilómetros a norte do wâdi Hamam e a pouco mais de oito, em linha recta, do promontório onde pousar o módulo. Mas deixarei este assunto para mais tarde... *1 O morcego mais pequeno, de cauda curta (Rhinopomia haidwic kei) é mencionado na Bíblia em várias ocasiões: no Levítico (11,19), no Deuteronómio (14,18) e no livro de Isaías (2,20). Para o povo judeu era um animal imundo, fundamentalmente por causa do seu cheiro pestilento. O facto de abundarem nas ruínas e cavernas, dormindo de cabeça para baixo e caçando durante a noite, acabou por associar os morcegos aos demónios e espíritos malignos, tão difundidos na crédula e supersticiosa sociedade hebraica. Para aquela gente era incompreensível que este animal
pudesse voar nas trevas sem chocar em obstáculos. Esta “habifidade” asseguravam – só podia ter origem demoníaca. Daí a ansestral repulSa pela referida espécie. Naquele tempo, como agora, existiam em Israel umas vinte espécies de morcegos, na sua maior parte de pequeno tamanho e insectívoros, incluindo o Pipistrellus kuhli ou de cauda curta”, que C. Tristam encontrara numas pedreiras por baixo do Templo de Jerusalém e nas grutas de Adullam. (N. Do M.) 2 O banco de dados do módulo iria proporcionar-nos uma valiosa documentação neste sentido. Segundo Flávio Josefo (Antiguidades, XIV 15, 3-6 e Guerras I, 16, 4), as grutas existentes no referido wâdi tinham desempenhado um papel relevante na história de Israel, praticamente desde os tempos de Oseas. Pelo ano 39 antes de Cristo, o então recém-nomeado rei da Judeia, Herodes, o Grande, empreenderia uma intensa campanha de limpeza, destas grutas, infestadas por bandidos e rebeldes. A meio de uma tormenta de neve, pouco habitual naquelas latitudes e que foi descrita como “enviada por Deus”, o enérgico edomita” abriu caminho para sul. Primeiro, conquistou a cidade galileia de Séforis, enviando um destacamento à povoação de Arbel. Mas, ante a coragem demonstrada pelos seus adversários, o próprio Herodes teve de se colocar à frente do seu exército, defrontando assim a gente de Arbel. Muitos, bons conhecedores do terreno, refugiaram-se nas grutas do desfiladeiro. E Herodes teve de se preparar para um longo e difícil assédio. Estas grutas, que se abriam para os precipícios, não tinham acesso directo e, para as alcançar, o rei teve de recorrer a um perigoso estratagema. Do bordo cimeiro foram descidas grandes caixas”, reforçadas com ferro, cheias de gente armada brandindo compridos ganchos com que agarravam os rebeldes e bandidos, atirando-os lá do alto. Nas grutas havia muito material inflamável. Incendiando-o, facilitaram o seu trabalho de destruição. Finalmente, o inimigo submeteu-se ao rei, mas outros lançaram-se lá do alto, preferindo a morte à submissão. Estes ladrões foram finalmente submetidos e, com isso, Herodes ganhou não só a boa vontade dos habitantes da Galileia como aumentou ainda a confiança no seu governo. (N. Do M.)
De acordo com a informação fornecida pela sandália electrónica, a saída do desfiladeiro das Pombas verificou-se pelas oito horas e dez minutos. Quer dizer, os dois quilómetros e meio desta segunda etapa foram percorridos em quarenta minutos. O ligeiro atraso foi devido ao declive abrupto e ao breve e acidentado” repouso. Ao deixar para trás as alturas de Arbel, Bartolomeu parou com as suas rezas monocórdicas. Guardou o amuleto que lhe apertava as fontes e aliviando o coração com um suspiro aparatoso, aproximou os
lábios de um sapinho de couro que permanentemente trazia pendurado ao pescoço. Beijou-o e, esconjurando o perigo dos bandoleiros e espíritos maléficos, encurtou o passo. Quando a confiança fosse mais estreita, aquele discípulo de Jesus mostrar-me-ia, satisfeito, o seu pequeno tesouro. O amuleto era feito de ovos de gafanhoto secos. Como era de obrigação, dei-lhe a conhecer o meu amuleto, aquele que João Marcos me oferecera em Jerusalém. Naquele dia, ao partilhar os temores supersticiosos do Urso, acabei por ganhar a sua amizade. Aos nossos pés abriu-se então uma singular planície, em forma de ponta de flecha, de uns quinhentos metros de comprimento. Toda ela, à esquerda e à direita do caminho rectilíneo que a cortava, aparecia coberta por mato rasteiro: uns arbustos de cinquenta centímetros de altura, muito ramificados e entrelaçados. Ao fundo, na base do triângulo verde e espinhoso, a aldeia de Arbel. Natanael trocou umas frases com Zebedeu. Porém, dada a minha posição, um pouco atrasada relativamente aos discípulos e à Senhora, não consegui captar-lhe o significado. A uns quatrocentos metros, quase no fim da vereda, avistava-se um grupo de indivíduos e de montadas. Deduzi que os comentários podiam estar relacionados com as personagens que tínhamos à vista. Mas, ai de mim!, voltaria a enganarme... Ao aproximarmo-nos descobri um grupo de felah, o típico camponês palestino, trabalhando na extracção e armazenamento dos arbustos anões, que dominavam na planície. Os meus companheiros apressaram o passo. Ao chegarem junto da meia-dúzia de homens responderam com murmúrios às saudações da praxe. Receosos e fugidios, sem voltarem as cabeças, deitaram pernas ao caminho, afastando-se para a aldeia. Eu, como disse, caí em novo erro. Curioso, parei na frente do grupo observando a sua faina. Com as túnicas enroladas na cintura – cingindo os quadris – e as cabeças cobertas por simples lenços acinzentados, vergados em triângulo e presos por cordas de lã e pêlo de cabra, os trabalhadores felah introduziam-se entre os arbustos com inacreditável habilidade, arrancando-os – incluindo as raízes – com duas ou três enxadadas certeiras. As plantas, da espécie Pimpinela Espinhosa, eram atiradas
para o caminho e metidas nuns enormes cestos de folha de palma, de quase metro e meio de diâmetro, firmemente presos aos lombos de três cinzentos asnos de Licaonia rebeldes e teimosos, os mais fortes treinados para grandes distâncias. Às minhas perguntas, o capataz desfez-se em explicações. Aquele espinheiro – o Sarcopoterium spinos -, que tivera oportunidade de ver nalgumas das casas e jardins dos arredores da Cidade Santa, era muito cobiçado entre os Hebreus. Era excelente para limitar uma propriedade ou como combustível. As folhas, divididas em vários pares de folíolos dentados, davam um requintado sabor à comida. Era, segundo entendi, uma das fontes de riqueza de Arbel. A pimpinela era exportada para toda a Galileia, para Decápolis e, naturalmente, para Jerusalém. Desejoso de agradar a estrangeiro tão interessado, o chefe dos felah pôs-me nas mãos um punhado de folhas verdes e aromáticas, replicando à minha gratidão com um “a paz te acompanhe no teu caminho”. Mas o meu contentamento ia durar pouco. Quando lancei os olhos para o caminho, o coração deu-me um baque. Até onde podia distinguir não via ninguém. Os meus companheiros de viagem tinham desaparecido. Como era possível?... Mal parara a conversar... A uns metros das primeiras casas interrompi a incómoda corrida em direcção à aldeia. O roupão e o odre de água não faziam mais do que dificultar a minha já penosa situação. Hesitei. Cortava por dentro da povoação? Caminhei uns dois minutos. Dali a pouco recuava, desmoralizado. O dédalo de casebres e vielas era tão arrevesado que, na previsão de piores males, me inclinei para o caminho mais seguro. Rodearia Arbel. Ainda que meu irmão e eu tivéssemos prestado especial atenção ao estudo da rota que devia levar-me a Nazaré, em momento algum suspeitámos que eu tivesse de a fazer sozinho. Naturalmente, apesar dos perigos que isso implicava, estava disposto a tentá-lo. O mais prudente, no entanto, era viajar na companhia dos discípulos. Tinha de os alcançar E supus que, dada a atitude refractária a qualquer tipo de contacto com os habitantes da região, o mais provável era que tivessem escolhido aquela mesma direcção, ou a oposta; quer dizer, a que ladeava Arbel pelo flanco ocidental, mantendo-me, assim à distância. Segundo os mapas e os dados obtidos
pelos especialistas do Cavalo de Tróia, o caminho habitual, do wâdi Hamâm, descia para sul até se confundir com a estrada principal: a que enlaçava Tiberíades com as regiões mais ocidentais do país. No total incluindo a planície de pimpinelas, cerca de três quilómetros e meio. Para começar – consolei-me – não era lógico que o Urso, nosso guia, tivesse escolhido outro itinerário. Apressei o passo, distanciando-me das choupanas miseráveis que limitavam a aldeia a leste. Ao contrário das sólidas construções de Nahum e de Saidan, o pouco que tinha visto de Arbel era deprimente. Só por milagre aquelas casas de adobe avermelhado, com terraços de palha e terra pisada, podiam fazer frente à estação das chuvas ou aos embates dos poderosos ventos estivais. As finas colunas de fumo negro que se elevavam em toda a parte eram afastadas pelo pontual Maarabit, precipitando-se por pátios e vielas, irritando as gordas matronas que faziam a sua lida à entrada das primitivas moradas. Nos arredores, pelo terreno que pisava – baldio, pedregoso e eriçado de cardos -, uma miudagem andrajosa, de cabeças rapadas e cheias de piolhos e de pústulas, perseguia e mortificava com paus e agulhões uma parelha de onagros: uns asnos de pescoço curvo, orelhas longas e espetadas e vistosas crinas castanhas que flutuavam e se prolongavam até à cauda. Com as patas dianteiras peadas por cordas, estes vigorosos quadrúpedes lutavam por se distanciarem dos pequenos e barulhentos diabretes, escoiceando de cada vez que um dos miúdos lhes martirizava os quartos traseiros com os cardos ou as irritantes urtigas. Ao alcançar o limite da aldeia, outro contratempo veio piorar a situação. A vereda que nos guiara através da plantação de pimpinela espinhosa surgiu clara, ziguezagueando, realmente, para sul. Mas, ali mesmo, correndo em igual direcção sul e também para o lago, começava uma densa colónia de centenárias oliveiras que impossibilitavam a observação. Esquadrinhei o poeirento caminho até onde foi possível, na esperança de localizar os meus desaparecidos companheiros. Tive de desistir. Junto de uma daquelas soberbas e ramalhudas oliveiras, de quase
cinco metros de altura, um ancião e várias mulheres trabalhavam sobre um espesso e fétido colchão de esterco. Aventurei-me a interrogá-los. O velho, de cócoras, com os pés enterrados na massa pestilenta, tratava de encher uma série de largas e pouco profundas escudelas de barro. Misturava previamente a matéria orgânica com palha, comprimindo-a depois nos recipientes. A seguir, as mulheres empilhavam os pratos, à espera que secassem por completo. Em questão de dias, se o tempo ajudava, o esterco transformava-se numa torta rígida e compacta, muito útil como combustível. O galileu fez um aceno negativo de cabeça. Nem ele nem as hebreias tinham sido testemunhas da passagem dos três caminhantes. A circunstância de se encontrarem junto da vereda, praticamente desde o amanhecer, mergulhou-me numa confusão total. Quer passassem por dentro de Arbel quer a contornassem, aquela gente teria de observar a sua presença. Confuso e desalentado, tentei pôr em ordem os meus pensamentos. Que podia eu fazer? “Analisemos a situação”, disse de mim para comigo. A Senhora e os discípulos evaporaram-se. Com um pouco de sorte, os trinta quilómetros que me separam de Nazaré podem ser percorridos em quatro ou cinco horas... Encostado a um rugoso ramo de uma das oliveiras, com Arbel nas minhas costas e a inquietante incógnita pela frente, vacilei perigosamente. Voltava ao lago, para junto de Eliseu? Ia perder aquela oportunidade? Meu irmão teria aprovado a prudente decisão. Curtiss não era favorável às longas marchas solitárias. Mas não... Resolvido a concluir a missão , toquei na extremidade superior da vara de Moisés, onde se encontrava o dispositivo que accionava os ultra-sons. Tinha de confiar. A minha protecção, pelo menos em teoria estava perfeitamente calculada. Inspeccionei os crótalos, pus-me de pé e, enchendo os pulmões com o perfume fresco das pequenas flores brancas que alegravam o azul-esverdeado do olival, lancei um olhar cauteloso à vereda que me esperava. Não tinha tempo a perder... Além disso..., dizia-me a intuição que,
mais tarde ou mais cedo, me reuniria com os meus amigos. Mais tarde ou mais cedo? Naquele preciso instante, prestes a partir para o desconhecido, a Providência teve piedade de mim. Uma mão caiu-me com força no ombro esquerdo. A reacção foi uma intensa descarga de adrenalina. Voltei a cabeça com lentidão, preparando os músculos para uma possível emergência. Mas o suposto agressor recebeu-me com um sorriso familiar. E os seus olhos negros iluminaram-se. Era João de Zebedeu... Olhei-o, perplexo. A uma centena de passos distingui a frágil silhueta de Maria e o passo bamboleante do Urso. Vinham de Arbel. - Que aconteceu?... - gaguejei, tão admirado quanto contente. O meu jovem amigo indicou-me a Senhora e, em tom displicente, replicou: - Coisas de mulheres... Nenhuma passa pela aldeia das redes sem comprar um tule... Estávamos preocupados. Onde te meteste? O incidente ficou resolvido quando Maria, radiante, obedecendo aos pedidos de Zebedeu, me mostrou um embrulho alongado, de uns trinta e cinco centímetros de comprimento. Dentro, descobri uma rede meticulosamente dobrada, confeccionada à base de linho. Os fios tinham uma suave tonalidade castanhoamarelada do linho velho. A rede estava presa com uma corda entrançada com filamentos de palmeira, de uns seis milímetros de espessura. O trabalho era excelente. Tanto as malhas, de cerca de quarenta milímetros, como o entrelaçado dos fios (três principais, muito enrolados) denotavam labor hábil e paciente. Este tule de mulheres, na linguagem popular, era muito apreciado pelas hebreias, que o destinavam, principalmente, a segurar o cabelo. Com efeito, Arbel com os seus escassos mil habitantes, ganhara uma popularidade notável, mercê da sua próspera indústria de cordoaria e da fabricação de todo o género de redes, incluindo os complementos necessários para as fainas de pesca – dos seus navios do yam: lastros de pedra e de barro, bóias de madeira e de casca de árvore e agulhas de osso, sicómoro e metal, para remendar as redes. Neste sentido, Nazaré reservava-me uma curiosa e imprevista surpresa.
Durante boa parte daquela, para mim, terceira etapa da viagem, Natanael não parou de resmungar. A meia hora que se perdera em Arbel, por motivo tão fútil, exasperara-o. Hoje, os cristãos têm uma imagem muito distorcida dos chamados apóstolos de Cristo. Para dizer a verdade, estas ideias – que elevam estes homens a absurdas cotas de santidade, compreensão e benevolência – estão cimentadas em tradições tão posteriores quanto falsas. A realidade quotidiana era outra. Naquele tempo, incluindo os irmãos Zebedeus, que conheciam e estimavam a família de Jesus havia muito, os outros valorizavam e ajuizavam as mulheres pela mesma bitola da generalidade da sociedade judaica. Julgo ter explicado: a mulher era uma criatura de segunda ordem, mentirosa por natureza e sempre submetida à autoridade do varão. E Maria, apesar da sua condição de mãe terrena do Mestre, não se via livre dessa lamentável servidão. Também é verdade que, dado o seu fortíssimo temperamento, os discípulos procuravam não a contrariar. No entanto, no caso de que falamos, o talante intransigente de Bartolomeu foi mais forte, originando uma azeda e estéril discussão. A Senhora, que poucas vezes aceitava uma recriminação – em especial se a achava injusta ou em tom injustificado – procurou argumentar. Mas o urso de Caná, com a sua habitual falta de tacto, continuou nos seus argumentos, considerando Maria frívola e desmiolada. Para o Zebedeu, como disse, estas discussões não tinham importância. E alheio à zanga, com um mais acentuado sentido prático do que o seu companheiro, apressou o passo, puxando pelo grupo e procurando recuperar o tempo perdido. Felizmente, a meio caminho, por entre as oliveiras, vimos aproximar-se uma estafada parelha de burros, carregada com enormes fardos, que a cada momento batiam nas ramagens. João parou, trocando algumas palavras com os três indivíduos que tocavam e guardavam os animais. O encontro foi providencial. Bartolomeu, esquecendo a aborrecida questão da rede, entrou na conversa e Maria, prudentemente, pôs-se de lado. Eram vizinhos de Séforis, a capital oficial e administrativa da Galileia. Como almocreves – uma das profissões mais vulgares naquela região montanhosa e acidentada -, cumpriam a tarefa de transportar
uma substancial carga de linho, recentemente colhido, à localidade de Arbel. Os caminhos estreitos e pedregosos da maior parte de Israel tinham convertido o burro no meio ideal de transporte. Muitos camponeses e pequenos ou médios artesãos, ante a impossibilidade de levar os seus respectivos géneros ao mercado, alugavam os serviços destes almocreves, que, frequentemente, se uniam entre si, constituindo florescentes empresas. O desenvolvimento deste comércio foi tal que, a fim de evitar lógicos abusos, os rabinos se viram na necessidade de legislar até os mais ínfimos pormenores. O custo do transporte variava consoante o tipo de terreno, as distâncias ou a natureza da carga. Naturalmente, os riscos da profissão obrigavam-nos a viajar armados. Era este o caso dos três galileus com que tínhamos deparado. Cada um deles trazia na faixa uma espada curta – um gladius – e punhais de uns trinta centímetros, com punhos de osso, lavrados ao estilo egípcio. Durante o breve diálogo, discípulos e almocreves interrogaram-se mutuamente. Ambas as partes desejavam saber se o caminho percorrido por uns e por outros até ali estava livre de perigos. Pelo que parecia, o caminho para Caná e Nazaré não oferecera problemas para os de Séforis. O único e desagradável tropeço – avisaram os almocreves – tinha sido uma patrulha romana a cavalo (uma turma). E os cinco galileus, segundo um velho ritual, escarraram simultaneamente. Tínhamos de estar prevenidos. Procurando não perder pormenor algum da conversa fui-me aproximando de uma das cavalgaduras, com o fim de examinar os grandes volumes de plantas. Efectivamente, tratava-se do linum usitatissimum, uma das duzentas espécies do género linum, muito espalhado na Baixa Galileia e, como teria ocasião de verificar na devida altura, fonte importante de riqueza para Séforis e sua região. A fibra – não tanto a semente, muito rica em óleo – era aproveitada para a confecção de tecidos e de cordas. A Senhora, hábil tecelã, iria surpreender-me com as suas habilidades na altura de manipular esta erva anual, de cinquenta centímetros e deliciosas flores azuis. Concluída a troca de informação, cada grupo prosseguiu o seu caminho. O nosso, com os animais mais tranquilos, dispôs-se a deixar
para trás a escassa milha que nos separava do caminho principal. O terreno, no qual prosperava o olival, foi subindo paulatinamente, até alcançar a cota duzentos. Foi ali que, pela primeira vez, tive a oportunidade de avistar ao longe – a uns dois quilómetros – os célebres Cornos de Hittim, umas mesetas, mais que picos, de 534 metros de altitude. Alguns autores e estudiosos modernos das Escrituras associaram estas crateras extintas com duas passagens da vida de Jesus. Aqui, dizem pode ter-se dado o famoso Sermão da Montanha, bem como o milagre dos pães e dos peixes. Nos dias de hoje, os guias mostram aos viajantes e turistas a chamada rocha do cristão, que se julga ter servido de mesa a tão memorável acontecimento. E ainda que o senso comum me ditasse que tais tradições não podiam gozar de muito fundamento, abordei Zebedeu, interessando-me pelo assunto. João escutou-me, atónito. E replicou com uma razão esmagadora: Essas paragens estão amaldiçoadas. A partir da Primavera, o ar fica insuportavelmente quente, as fontes secam e a terra greta. E concluiu: Só as serpentes fazem ninho... Era claro. Os referidos episódios da vida pública do Mestre tinham sido removidos dos locais geográficos autênticos onde haviam ocorrido: Estes exploradores foram testemunhas de excepção de ambos os acontecimentos e estamos em condições de afirmar que tudo se deu nas margens do yam. O segundo destes factos – a multiplicação dos pães e dos peixes – registado ao sul da cidade de Betsaida Julias, abalou-nos... Mas terei força e saber bastantes para narrar tão prodigioso sucesso? Minutos depois da hora terceira (as nove da manhã), chegámos ao fim da estrada principal: a que ligava Tiberíades com a região ocidental de Israel, pondo em comunicação o mar do Kennereth com Megiddó e a planície de Esdrelon (2). Apesar da sua largura (uns cinco metros), a referida via não era melhor do que as veredas precedentes. O intenso trânsito de homens e caravanas tinham-na descarnado. O piso, de terra batida, apresentava um interminável tom enegrecido, fruto das necessidades dos animais. Era uma pena que os hábeis construtores romanos tivessem desprezado aquela importante artéria. Uma estrada – procurei não o esquecer – por onde tinha caminhado o Mestre em
muitas e muitas ocasiões. Não me cansarei de salientar as excelências daquela região. *1 João de Zebedeu tinha razão. Basta lembrar o acontecido muitos séculos depois, em Julho de 1187. Nestas mesetas registar-se-ia um dos maiores desastres dos Cruzados. Os Cornos de Hittim foram conquistados depois de numerosas e ferozes batalhas e conservados pelos cristãos durante quase cem anos. Porém, no século xII, o lendário Saladino fez frente ao rei Guy de Lusignan, derrotando-o, no sopé de Hittim. Em parte, a derrota dos Cruzados foi devida às duras condições atmosféricas. A escassez de água e o calor tórrido minaram as forças dos cristãos, que tiveram de recuar para os lugares onde, finalmente, foram vencidos e feitos prisioneiros. Muitos dos cavaleiros templários e hospitalários seriam executados e Raynold de Châtillon, senhor de Kerak, morto à espada pelo próprio Saladino. (N. Do M.) 2 Nos tempos de Cristo, a Palestina era, em si mesma, uma autêntica encruzilhada de caminhos” internacional em especial entre os povos do Norte e do Leste (Mesopotâmia) e os do Sul (Egipto). Para atravessar o país existiam então cinco grandes rotas, muito ramificadas entre si. Isto explica – só em parte - a peregrinação de Jesus por todo o território. Em primeiro lugar, a estrada da costa que unia a Fenícia com o Egipto. Seguindo a linha do mar, atravessava Gaza, Áscalon, Ashdod, Jopé (Jaffa) e Cesareia. Rodeava o monte Carmelo, perdendo-se para norte (Líbano). Em Acre surgia um ramal que descia para os montes da Galileia, passando a escassos quilómetros ao norte de Nazaré. Dali continuava para a região da Decápolis, a leste, morrendo na cidade helenizada de Citópolis, nas margens do rio Jordão. A segunda artéria, uma das mais destacadas, era a chamada Via Máris” ou Hcaminho do mar, que ligava o Egipto à Mesopotâmia. Trata-se, provavelmente, de um dos caminhos mais antigos do Mundo. Partia de Jopé, atravessando a planície de Sharon por Antípatris, até Pirathon. Aqui dividia-se em três. O primeiro ramal subia para norte, a oriente do Carmelo, para se fundir com a artéria da costa, em Acre. O segundo, na direcção noroeste, procurava a cidade de Megiddó, internando-se pela fértil planície de Esdrelon, muito perto também de Nazaré, para morrer finalmente nas proximidades de Magdala e Tiberíades, nas margens do yam. Era esta a via pela qual avançávamos naquele momento. O terceiro ramal era um caminho alternativo, quase obrigatório na época das chuvas, quando a planície de Esdrelon se transformava num extenso lamaçal. A partir de Pirathon entrava pela planura de Dothan, até Engamnin, atravessando depois o vale de Jezreel, para se unir por último ao segundo ramal, muito perto do monte Tabor. Uma vez na margem ocidental do Kennereth, como já foi explicado, esta Via Máris rodeava o yam, passando às portas de Nahum. Dali rodava para Carazim,
perdendo-se ao norte, rumo a Damasco. Em terceiro lugar encontrava-se a estrada central: a que se aventurava pela cordilheira de Samaria. Nascia no Egipto, entrando em Bersabé, o Hébron e a Cidade Santa. Aqui se bifurcava. Uma vereda passava junto de Gibeon Beth-Hovon e Lydda, alcançando a costa em Jopé. Desta forma ligava o mar Mediterrâneo a Jerusalém. A segunda vereda enfiava pelo norte, por Beeroth, até se unir à “Via Máris”, em Antípatris. Em quarto lugar, dispúnhamos da estrada do Jordão. Partia de Jerusalém e deixando para trás Jericó, seguia muito perto da margem ocidental do grande rio, até chegar ao mar de Tiberíades, ao sul. Dali, pela margem ocidental do yam, uniase também à Via Máris. Por altura de Citópolis (a actual Beth-Shean) ramificava-se noutra vereda que atravessava a Baixa Galileia, até Acre. Este caminho era muito útil nas ligações entre a Decápole e a Fenícia. Por último, a quinta rota era conhecida como o “caminho do deserto”. Nascia em Jerusalém, atravessando parte do deserto de Judá a Jericó. Dali cruzava o rio Jordão e, pelo vale de Achor, chegava a Abel Shittim. Prosseguia para norte, relativamente próximo da margem esquerda do rio, atravessando um dos seus afluentes: o Jabbok, nas proximidades de Adam. Passava por Gibeah e mesmo na frente da cidade helenizada de Citópolis cruzava o Jordão pela segunda vez, unindo-se à estrada do vale. A estas cinco artérias principais havia que acrescentar uma complexa e muito danificada rede de veredas, pistas e caminhos secundários. (N. Do M.)
A Galileia de hoje é um pobre reflexo da que nos coube percorrer naquele tempo. Mesmo o cântico do exagerado Flávio Josefo sobre a referida terra é incompleto e pobre. Acontecia o mesmo com o caminho que escolhera. Os campos, vales e encostas encontravam-se cuidadosa e exaustivamente cultivados. Ao deixar para trás o imenso olival surgiram na minha frente, à direita e à esquerda da estrada, a perderem-se na distância, densas searas de trigo e cevada, amadurecida a primeira e preparada para a ceifa a segunda. E mais além dos ondulantes trigais, coroando colinas, novos olivais, perfeitamente alinhados, que esfumavam o vermelho barrento do terreno. No horizonte, acima do nível dos trezentos metros, as benfazejas copas verde-azuladas dos bosques de carvalhos, alfarrobeiras, terebintos e pinheiros de Alepo. Era esta uma das chaves da magnificência da Alta e da Baixa Galileia:
os inumeráveis e espessos bosques, nos quais sobressaíam três espécies de robles (dois pertencentes ao vulgar sempre-verde e o gigantesco, antigo e venerado roble do Tabor). O regime combinado de chuvas mais abundantes entre Outubro-Novembro e Março e a fiel e artesanal química das massas florestais propiciava todo o género de mananciais e correntes subterrâneas que os naturais souberam tornar seus. As neves acumuladas na cadeia montanhosa do Hérmon (Líbano de hoje) situada a cinquenta e três quilómetros da primeira foz – das duas – do Jordão, no lago de Tiberíades, constituíam um tesouro seguro e sem preço, de que beneficiava toda a região. Ao contrário da Judeia, cuja pele era o deserto, a Galileia dificilmente soube o que era seca e fome. Estas circunstâncias – como escreve Josefo – atraíam, até, os menos amantes do trabalho. Os números falam só por si. Em vida do Mestre, aquela região de cento e onze quilómetros (de norte a sul) por cinquenta e cinco (de leste a oeste) agrupava um total de quinze cidades fortificadas e duzentas e quatro aldeias, com uma população total que se aproximava dos oitocentos mil indivíduos. A qualidade da própria terra (pesada, de grão fino e com excelente capacidade de absorção de água) e o engenho dos camponeses fazia o resto. Enfim, foi este o cenário em que cresceu e agiu o Filho do Homem: uma Galileia dourada, com vales abrigados e planícies extensas em que o olival ia a par com o trigo, a cevada, a escândea e o sorgo. Uma Galileia verde, onde a cultura intensiva, as hortas e as árvores de fruto fizeram com que Jacob exclamasse: Aser, o seu pão é saboroso: fará as delícias dos reis. A doçura dos seus frutos era tal que chegaram a ser proibidos em Jerusalém durante as três grandes peregrinações anuais. E, por último, uma Galileia azul, nas margens do yam... A invejável riqueza da Galileia e a sua estratégica situação geográfica, nó górdio dos caminhos que iam ou vinham da Mesopotâmia ao Egipto e de Filadélfia ao Mediterrâneo, trariam consigo duas realidades indiscutíveis, que não posso nem devo passar por alto. Duas circunstâncias que, na minha modesta opinião, incidiram – e de que maneira – na personalidade humana e no carácter de Jesus de Nazaré. Refiro-me, em primeiro lugar, ao intenso intercâmbio de povos, culturas e costumes, do qual, em todos os aspectos, beneficiou a Galileia.
 Em segundo lugar, quase como um prolongamento do anterior a liberalidade que este rio de gente fez germinar nos corações dos Galileus. Insisto: estes factores marcaram profundamente o pensamento terreno de um Homem que conviveu durante quase vinte anos com caravanas provenientes dos quatro pontos cardeais. Este incessante trânsito, o correr do dinheiro e o carácter hospitaleiro e receptivo dos autóctones, que não hesitavam em se ligarem com os impuros pagãos, traria à Galileia a depreciativa designação de círculo dos gentios. Ali trabalhava, se divertia ou fazia um alto no caminho todo o género de raças – tírios, helenos, sidónios, egípcios, negros africanos, romanos, babilónicos, judeus e uma convulsa legião de nómadas de leste – com os seus respectivos deuses, superstições, línguas e hábitos. Ao reconstruir as sucessivas etapas – infância, juventude e maturidade – da existência do Rabi da Galileia fomos compreendendo a decisiva influência *1 Ainda que Josefo, ao falar da Galileia, garanta nos seus escritos que cada uma das povoações não tinha menos de quinze mil habitantes, a verdade é que tal afirmação é inaceitável. Se dermos como certos os cálculos do general judeu romanizado, a Galileia teria abrigado uma média de trinta mil almas por metro quadrado... Por outras palavras: uma população de três milhões e seiscentas mil pessoas. (N. Do M.)
deste ambiente cosmopolita e aberto na sua educação e, principalmente, na sua forma de ajuizar os pensamentos e o comportamento dos seres humanos. Que fraco contributo o dos evangelistas, ao não mostrarem ao mundo a realidade diária em que cresceu o Filho do Homem! Os cristãos caem na tentação de imaginar um Jesus menino ou adolescente, praticamente enclausurado e retirado do mundo, submerso nos estreitos e remotos limites de uma aldeia chamada Nazaré. Nada mais distante da realidade... Mas esta promiscuidade entre israelitas e estrangeiros provocaria também um raivoso e geral repúdio entre os judeus do Sul (a Judeia). Rabinos e homens de rigorosa observação da Lei de Moisés viviam num permanente escândalo em relação aos costumes e à tolerância dos Galileus. Aqueles vangloriavam-se do seu puritanismo, qualificando os seus vizinhos do Norte de impuros, incultos e provincianos, incapazes, até, de falar correctamente. A soberba dos judeus meridionais era tal
que, entre os membros do Grande Sinédrio, se repetia com frequência. Nunca da Galileia veio profeta. Estas relações tensas foram, enfim, o terreno adubado pelo ódio em que teve de mover-se o Nazareno e, naturalmente, o seu grupo. Aquele susto foi um providencial aviso. O que se dera na plantação de pimpinelas não devia repetir-se. E assim, pelo menos até à entrada em Nazaré, tomei a firme decisão de ser extremamente prudente. Durante a caminhada, limitar-me-ia a observar. Ao fim e ao cabo, era esse o meu trabalho. E tinha de o executar, evitando toda a intromissão naquele agora histórico que não era o nosso. Complexo objectivo, na verdade. Os incidentes nos quais me vi envolvido colocariam esta rígida norma da operação perante um espinhoso dilema. Mas prosseguirei com o relato do acidentado caminhar para a aldeia do Filho do Homem. Segundo os meus cálculos, Caná encontrava-se a pouco mais de quinze quilómetros. Como já disse, ali nos deixaria Bartolomeu. E sozinho, atrás, concentrei-me na memorização de quantas referências nos poderiam servir em futuras explorações. Se o projectado salto no tempo chegasse a consumar-se – como aconteceu – este caminho e as já referidas Caná e Nazaré converter-se-iam nos habituais cenários das idas e vindas de Jesus e seus discípulos. O conhecimento do terreno que pisava portanto, tinha de ser o mais exaustivo e preciso possível. Na sua quase totalidade, a quarta etapa, oferecia um caminho cómodo e apertado entre grandes searas. A campina corria livre e dourada, rodeando os quatro montes vigilantes nos sete quilómetros que formavam este novo troço. Estas consideráveis elevações – todas superiores a quinhentos metros – apresentavam uma curiosa simetria. Num capricho da Natureza constituiam um quadrado quase perfeito, de dois quilómetros de lado, com a estrada passando justamente pelo centro. No cume de um dos montes – o primeiro à nossa direita – distinguia-se a brancura de uma escondida aldeola (Lavi), único povoado visível nesta quarta etapa. E aqui e além, quebrando o relaxante ondular do trigo e das searas de cevada, choupanas de palha e adobe, destinadas a armazéns de alfaias e, certamente, ocasionais abrigos de homens e de animais. Grupos de felah distribuíam-se pelos
dois lados do caminho, curvados sobre os campos de cevada. Era tempo da ceifa do pão dos pobres. A recolha do trigo duro viria umas semanas depois. Armados com pequenas foices de ferro, ligeiramente curvas e, por vezes, de lâminas dentadas, os camponeses arrepanhavam a cevada com a mão direita, cortando-a com um golpe certeiro. Ainda que menos abundante que o trigo, aquela cevada era de excelente qualidade. Pertencia à espécie hexastichum (1) (de seis fileiras), cujas espigas, diferindo da sua irmã distichum (de dupla fileira) produzem um generoso grão. Os feixes, atados em paveias, passavam para as mãos das mulheres e dos rapazes, que os transportavam para as eiras: uns espaços abertos nos trigais – geralmente formados por um afloramento rochoso -, que facilitava a debulha e posterior recolha do trigo. Alguns grupos de camponeses, com melhores recursos, dispunham de asnos e carros para aliviar o transporte das ceifas. Quando a eira consistia num nu leito de terra argilosa, a zona em questão via-se cercada por dezenas de pedras de tamanho regular. As mulheres, então, espalhavam os feixes, procedendo ao trabalho da debulha. Para tal, estas esforçadas galileias batiam na cevada com paus e maças, quebrando os caules. Outras, mais abastadas – sempre em menor número – serviam-se dos burros. Punham-lhes uma esportela ou açaimo, a fim de que não devorassem o grão acicatando-os para que andassem ou trotassem pela eira, debulhando a colheita. Nalguns casos os quadrúpedes eram atrelados a uma dura tábua rectangular munida de dentes de pederneira. A camponesa colocava-se sobre a primeira grade e tocava o animal, libertando o grão. Cada qual, enfim, cumpria uma tarefa. Os meninos, por exemplo, tratavam da distribuição da água e da vigilância do trigo debulhado ou joeirado. Neste caso, o inimigo era constituído por grandes bandos de rolas vulgares que, desde o começo da Primavera, atravessavam os céus de Israel, rumo ao Velho Continente. Muitas delas sobrevoavam a Galileia, ameaçando as colheitas. Quando estas aves ou as carriças se aproximavam das eiras, os pequenos vigias agitavam os braços, batiam palmas e entoavam
barulhentas canções, espantando as intrusas. A campina ganhava assim um ruidoso palpitar. Os cânticos e a teatralidade da gente miúda suavizavam em parte a dureza daquele trabalho. Uma tarefa que não foi alheia ao Filho do Homem... Feita a debulha, os felah, munidos de forquilhas de madeira de cinco pontas, sacudiam as palhas no ar, joeirando o trigo. Uma vez em terra, as hábeis mulheres peneiravam-no com o auxilio de pedras pequenas e pontiagudas. O grão de cevada – dieta básica dos menos favorecidos da fortuna – ficava pronto para o transporte até às aldeias e definitivo armazenamento nos silos. *1 O género Hordeum consta de dezoito espécies, embora só sejam cultivadas a de dupla e de seis fileiras. Ambas, segundo parece, são uma variedade de cevada comum (hordeum vulgare) uma erva erecta e anual com abundantes folhas ao longo do talo central e dos secundários. Cada um destes talos termina numa espiga que dispõe, por sua vez, de numerosas espiguetas, com três flores cada uma. Na de dupla fiada, só uma flor de cada espigueta é fértil. Na de seis, em compensação, todas as espiguetas produzem grão. Naquele tempo não era ainda usada como forragem. Foi a partir do século xvI que começou a servir como fonte de alimentação para o gado. (N. Do M.)
Os primeiros vinte ou trinta minutos de marcha reconfortaram-me. Com simplicidade, gozei de tão magnânima Natureza. Imaginei o Mestre entre os felah. Segundo as minhas informações, durante algum tempo, também Ele o foi. Não podia perder de vista que esta era a sua gente, a sua terra e o mundo em que vivera durante anos. Uma ampla documentação em torno dos costumes, modo de pensar e problemas dos Galileus deveria esclarecer-nos a razão de muitas das atitudes e decisões de Jesus. Nem os homens nem as ideias e muito menos o ritmo social daquele tempo e daquele país se relacionam com a cultura e o ligamento primordial dos cristãos do século xx. Esta circunstância é esquecida com frequência pelos que praticam o cristianismo. E já que falo nisso, vou fazer um parênteses na narração. Dizia que aquele caminhar pela fértil região da Baixa Galileia me encheu de força. Bem sabe Deus que na nossa viagem não eram abundantes os momentos de paz. Era natural que, à menor oportunidade, a eles nos agarrássemos.
Quem, porventura, ler este diário não deve esquecer que tanto meu irmão como eu éramos também seres humanos. É certo que estávamos em condições de “manipular o tempo” e isso, em teoria, colocava-nos num plano de superioridade. No entanto, a verdade foi outra. Apesar do treino implacável, dos meios técnicos e científicos ao nosso alcance e das vantagens, de toda a índole, que implicava uma diferença histórica de quase vinte séculos, nós, exploradores, sentimo-nos perdidos numa infinidade de ocasiões. O leitor destas experiências tem de nos compreender e de compreender as nossas fraquezas. Sofremos o indizível. Caímos no erro e, o mais lamentável, não conseguimos adaptar-nos inteiramente à realidade quotidiana daquele outro agora. Foram muitos os dias em que, por causa de tão prolongada estada num quadro histórico estranho, padecemos um mal-estar ainda não catalogado pela medicina e que poderíamos definir como ressaca psíquica. Explicá-lo não é fácil. Ainda que o organismo acabasse por se adaptar às necessidades e exigências do nosso meio, não aconteceu o mesmo com as nossas mentes. Freud ter-se-ia sentido feliz a estudar esta dissociação entre o consciente e o subconsciente. Enquanto o primeiro reagia com normalidade, o segundo, talvez mais sábio, opunha resistência a sobreviver num habitat em todos os aspectos antinatural. E de vez em quando experimentávamos uma espécie de bloqueio mental que era acompanhado por reacções não menos injustificadas de repulsa por quanto nos rodeava. Nada de grave, suponho, mas suficientemente relevante para nos alertar de que qualquer coisa não ia bem. Como médico estou convencido de que tais alterações, ainda que passageiras, tinham uma íntima relação com o irreversível processo degenerativo das redes neuronais. Um mal que custou a vida ao meu querido irmão e que não tardará em destruir a minha. O cérebro humano tem a capacidade de se adaptar às condições mais adversas tanto físicas como psíquicas. No entanto, um salto desta natureza, para outro marco temporal, vem quebrar a própria química do cérebro. Curtiss e os especialistas do Cavalo de Tróia foram devidamente avisados. Queira Deus que a nossa experiência ponha um freio a outros projectos semelhantes. A ciência é obrigada a meditar e a prever estas
delicadas situações. Fomos os primeiros, sim, e ainda que a Providência nos assistisse a todo o momento, o preço a pagar foi o mais alto. Fechado o parêntese, como costumava dizer o Mestre, quem tenha ouvidos que ouça. O encontro com aquela caravana seria de mau agoiro. A partir dali até à consumação do terceiro salto no tempo, uma cadeia de acontecimentos inesperados iria cercar-me, até me afundar numa dolorosa marginalização. Como é estranho o destino! Eu, Jasão, o audaz e valente grego, que soube estar ao lado de Jesus nas mais duras provas, acabaria repudiado pela maioria dos discípulos. A Operação tinha considerado esta possibilidade. No entanto, as normas e directrizes – sempre teóricas – não serviram de grande coisa. Vejamos a razão. Estamos talvez com meia hora de caminho, desde a entrada na artéria principal. O caso é que, ao sairmos de uma das curvas e a uma distância de meio quilómetro, avistámos uma multidão de homens e de animais. O grupo, imóvel, ocupava a totalidade do caminho, impossibilitando a passagem. Bartolomeu e Zebedeu pararam. E o primeiro, depois de rápida inspecção, acertou no veredicto. Encontrávamo-nos perante uma caravana. Uma das muitas que atravessavam diariamente a Galileia. O que não souberam dizer-me foi o motivo de tal paragem que não parecia adequada para dar de beber aos animais. Também a hora, cerca das dez da manhã, não era a mais própria para levantar o necessário acampamento nocturno. Salvo algumas excepções, caravanas e caminhantes evitavam deslocar-se durante a noite. O facto de terem de abrir passagem por entre aquela gente desconhecida não agradou aos meus amigos. E com gesto grave, quase mal-humorado, recomeçaram o avanço, discutindo a alternativa de passar por eles de lado. Por certo, os felah que ceifavam nas proximidades não teriam aprovado a inconsciente opção de espezinhar os trigais. Foi pena... Se tivéssemos evitado a caravana, todos teríamos poupado alguns dissabores. A caravana ia na nossa direcção. Na altura de passar pelos
gigantescos dromedários que fechavam a coluna, a Senhora e os discípulos, num gesto quase mecânico, levaram as mãos aos mantos, tapando as cabeças e os rostos. Primeiro, interpretei aquilo como uma maneira de passarem despercebidos. Mas, à medida que começámos a passar pelos animais, compreendi a razão por que se embuçavam. Aquela variedade branca de dromedários, os asnos e os búfalos de cornos em forma de meia lua viajavam escoltados por nuvens zumbidoras de moscas, tão incómodas quanto perigosas. Apesar da protecção da pele de serpente, apressei-me a imitá-los. A picada de um daqueles tabanídeos, em especial do Loa Ioa, podia originar doenças – caso das filaríases – que devíamos evitar a todo o custo. Embora tenha tido a oportunidade de contemplar outras caravanas nos arredores de Jerusalém e no caminho de Betânia, era esta a primeira vez que me aventurava justamente no coração de um destes singulares grupos. Fiquei aturdido. O cheiro acre dos animais; o zurrar dos burros; a regra e pertinaz geometria dos dípteros, inútil e pacientemente acossados pelas caudas dos quadrúpedes; o balido dos rebanhos de cabras de grandes e descaídas orelhas; a vozearia dos caravaneiros e as ordens das “escoltas” - homens e jovens -, mantendo em linha a meia centena de dromedários, desenhavam um quadro pintalgado, fascinante e, para um como eu, aparentemente caótico. A maioria dos dromedários transportava volumosas canastras, que pendiam dos flancos. A água, elemento precioso, quase sagrado, era levada ao lombo de uma dezena de pequenos burros de negra e densa pelagem. Os odres, seguros por varas de madeira, estavam ao cuidado das mulheres. . Na corcova dos dromedários, conhecidos entre os Mesopotâmicos por “asnos do mar”, fora armado igualmente uma série de baldaquinos ou rústicos pavilhões, onde viajavam mulheres e crianças. Noutros ruminantes, perfeitamente enrolados, adivinhavam-se as tendas e o austero recheio doméstico das quase duzentas pessoas que formam a caravana. Sempre com mais pressa, os discípulos e a Senhora prosseguiram o ziguezagueante caminhar entre carros e animais desejando a paz à
direita e à esquerda. Foram poucos os homens e mulheres que responderam às saudações. Deduzi que, certamente, não entendiam o aramaico galalaico. A ajuizar pela indumentária, era provável que viessem da Mesopotâmia. Os homens vestiam túnicas de linho e lã, praticamente até aos pés, e mantos de deslumbrante brancura, que, em certas alturas, enrolavam nos crânios cabeludos, à maneira de turbantes. O vestuário, vaporoso e folgado, muito adequado ao deserto, era seguro por uma ampla faixa ou ta,. que ajudava a trazer uma arma. Neste caso, umas adagas curtas e curvas, com bainhas de madeira ou de pano e cabos de fino lavrado. O calçado, com excepção de algumas sandálias que me lembraram os borzeguins da Beócia, era extremamente simples. Consistia numa grossa sola de couro de vaca ou pele de camelo ou dromedário a que se prendera uma corda que, passando por entre o dedo grande e os outros dedos, se atava em volta do tornozelo. O vestuário das mulheres, semelhante ao dos varões, diferenciava-se pelo colorido luminoso. Se os homens, como acabei de dizer, vestiam um branco liso, elas gostavam de motivos florais e complexos bordados a vermelho, azul, rosa e negro. O rosto, descoberto, de pele tostada, apresentava enigmáticas tatuagens azuladas no queixo e na testa. Como teria ocasião de verificar poucos minutos depois, encontrávamonos, com efeito, no meio de uma tribo nómada, parcialmente oriunda da região setentrional do que hoje conhecemos por Península Arábica. A numerosa récua de animais, os grandes brincos, os anéis no nariz, os pesados braceletes e colares – tudo de prata – denunciavam uma confortável posição económica. Um dos aspectos que me chamou a atenção neste contacto inicial e apressado com a caravana foi a presença de cinco corpulentos cãespastores, muito parecidos com os mastins de Bordéus. De grandes cabeças, focinhos descaídos, uns cinquenta quilos de peso e cerca de oitenta centímetros de altura, constituíam uma excelente defesa para o grupo, em geral, e para o gado, em especial. Havia uns amarelos, havia outros mosqueados. Prudentemente, enquanto a caravana se manteve parada, um dos pastores aguentou-os, presos. Mesmo assim, ao chegar
junto da matilha, alguns dos cães, alertados pela presença de quatro estranhos, levantaram-se de imediato, a ladrar furiosa e ameaçadoramente. Maria, assustada, pôs-se a meu lado, procurando a protecção do Zebedeu. O nómada que segurava as cordas com ambas as mãos sorriu trocista, ao mesmo tempo que afastava a pontapé os cães mais bravios. Procurei distanciar-me. Numa escala de dez aquelas feras teriam a classificação nove, no que se referisse a defesa do território e agressividade. A espinha dorsal da caravana era formada por uns quinze carros, na sua maior parte de duas rodas e puxados por bois. Outros, mais pesados e munidos de quatro rodas com a forma de discos de madeira de uma só peça, eram puxados por parelhas de bos bubalus, os poderosos búfalos utilizados nas planícies dos rios Tigre e Eufrates, desde a remota dinastia de Akad. Tanto as carroças cobertas como as descobertas estavam cheias de cestos de vime, talhas e ânforas de diversos tamanhos e escuros e bem atados fardos. Os carros de quatro rodas, com um rebordo que cercava a plataforma, eram muito semelhantes aos plaustra maiora, que os Romanos tinham introduzido com as suas legiões e o seu comércio. Supus, acertadamente, que se tratava da mercadoria principal. Estas caravanas, principalmente as que partiam de norte e de leste, traficavam fundamentalmente com sedas, especiarias, tapetes, pedras preciosas, frutos, madeiras nobres e, até, animais exóticos. Em vários dos carros descobertos, sentadas ou de pé sobre a carga, mulheres e crianças dirigiam os seus olhares para a cabeça da caravana, discutindo umas com as outras. Ao contrário das que acabava de deixar para trás, estas tapavam o rosto com longos e negros véus. A que obedeceria tal discriminação? Na vanguarda da caravana esperavame a resposta a esta interrogação, ainda que, desde logo, não se apresentasse na forma que eu teria imaginado e desejado... A congénita e, acho eu, inevitável curiosidade feminina veio precipitar os acontecimentos. O urso de Caná suspirou, aliviado, ao ultrapassar a vanguarda da caravana. Tirou o roupão da cabeça e dispôs-se a atravessar pela frente de um grupo de nómadas que se amontoavam à
direita do caminho. Zebedeu, que seguia Natanael muito de perto, fez menção de se aproximar do grupo vociferante. Mas, ao reparar na pressa do companheiro, renunciou a tão compreensível gesto. A Senhora, pelo contrário, caiu na pueril tentação. E, embuçada ainda no seu manto castanho-claro, vi-a insinuar-se entre os caravaneiros, intrigada com o alvoroço. Num primeiro momento, nem João nem Bartolomeu notaram a manobra de Maria. E quem isto escreve aproximou-se igualmente dos dez ou doze indivíduos que discutiam acaloradamente. A Senhora, sempre intrépida, era uma permanente fonte de surpresas. Distraído na observação da caravana não me dera conta de que nos achávamos a escassa distância do monte em que se encontrava a aldeia de Lavi. Os nómadas discutiam justamente na confluência da via principal com o atalho estreito e pedregoso que descia da aldeola. Como era habitual nas rotas principais, os habitantes dos povoados próximos aproveitavam estas encruzilhadas de caminhos para virem ao encontro dos viajantes e oferecerem-lhes os produtos e especialidades do lugar. Nesta ocasião, uma vizinha de Lavi estabelecera o seu arraial numa redonda e pequena eira, aberta mesmo junto do caminho. Ali, na companhia de dois meninos de tenra idade, em cima de uma humilde esteira e folhas de palmeira, apresentava um conjunto de tigelas de barro Cheias de lentilhas recentemente colhidas, farinha de cevada, alhos e cebolas (crus e cozidos) e uma enfiada de cabaças de vinho, com a típica forma da garrafa. Depois de se extrair a polpa amarga e as sementes, esta espécie – única no género – é muito procurada como recipiente, para uso doméstico ou nas viagens, à maneira dos nossos modernos cantis. De começo, mais atento a Maria que à sarabanda protagonizada pelos viajantes, não compreendi muito bem os motivos da discussão. Alguns nómadas pareciam interrogar a vendedora. Faziam-no num aramaico fluente. Mais correcto que o ocidental ou galalaico (1). A palavra repetida muitas vezes por aqueles homens, visivelmente nervosos era médico. Efectivamente, tentavam encontrar um curandeiro. Algo de anormal acontecia na caravana. E o instinto pôsme em guarda. A Senhora e os discípulos sabiam da minha condição de galeno. Mas, salvo em casos de nula ou muito curta transcendência,
Cavalo de Tróia proibia aos seus exploradores qualquer tipo de intervenção, administração de medicamentos e, até, conselhos ou orientações médicas que pudessem modificar o ritmo normal das pessoas ou dos grupos. Precisamos de tempo para aceitar os nossos erros: embora em certos momentos nos tivesse beneficiado, nunca devia ter reconhecido entre aquela gente a minha especialidade como rofé ou médico. E então, no meio dos nómadas, estava prestes a experimentar as desagradáveis consequências de tão grande erro... O caso é que, tendo intuição do possível conflito, recuei uns passos, afastando-me dos caravaneiros. Que ia fazer? Fugia e escondia-me no labirinto dos carros? Se o problema fosse grave, teria de me manter à margem. Mas, como? Hoje, ao recordar o crítico lance, arrependo-me de não ter obedecido àquele impulso inicial. Mas, abafando a subtil advertência, desisti. Talvez fosse exagerado. O meu súbito desaparecimento - pensei – seria de muito difícil justificação. Por outro lado, carecia de elementos de apreciação para analisar o assunto com um mínimo de objectividade. E assim, avançando novamente para o grupo, deixei correr os acontecimentos. * O termo aramaico, vem das tribos que, entre os séculos x e xII antes de Cristo, penetraram nas regiões da Síria e da Palestina, oriundos de leste. Eles próprios se denominavam aramaicos”. E ainda que, com a passagem do tempo, alguns daqueles Estados (Israel, Edom, Amon e Moab, entre outros) terminassem por tornar seu o dialeto cananeu, outros povos – caso da Síria – mantiveram a primitiva linguagem. Segundo os arqueólogos e linguistas, o grande impulso do aramaico regista-se por volta de 500 a. C. Quando os Aqueménidas lhe deram o carácter de língua oficial dos embaixadores persas. O seu esplendor por todo o Médio Oriente foi tal que chegou até a ser usado no Egipto. [Os papiros descobertos em Elefantina (1906-1907), muito perto da primeira catarata do Nilo, confirmam esta extraordinária expansão do aramaico.] Por seu lado, o aramaico falado por Jesus de Nazaré, definido hoje como ocidental, ainda que nascido do primitivo dialecto mesopotâmico-babilónico, encontrava-se obviamente corrompido pelo passar dos séculos. (N. Do M.)
A galileia, sentada à turca, parecia alheia à gritaria, mais preocupada, segundo parecia, a espantar as moscas que disputavam os géneros que em colaborar com os exaltados viajantes. Por duas vezes se dignou
levantar os olhos e, com dificuldade e lentidão, articulou algumas palavras, ao mesmo tempo que apontava para ocidente. Francamente, não consegui percebê-la. Ao reparar na sua péssima pronúncia comecei a entender a razão de tais galimatias. A infeliz padecia de uma disartria (1) uma deficiência na articulação das palavras, motivada por alguma afecção nos músculos fonatórios. Aquilo impedia-a de manifestar as ideias com clareza, provocando, em suma, o exaspero e a confusão dos seus interlocutores. Estes, ao captarem a nebulosa indicação, voltaramse para um indivíduo que presenciava a cena em silêncio. Vestia também de branco, embora o seu porte, a franja de borlas que lhe rematava a túnica imaculada e o arco que trazia na mão direita me fizessem suspeitar de que podia tratar-se do xeque ou chefe da família de nómadas. O fenótipo era claramente mesopotâmico: nariz aquilino, testa estreita, abóboda craniana achatada e oblíqua, olhos pretos, occipício plano e uma barba larga e quadrada. A troca de impressões foi breve. O que parecia dirigir a caravana lançou o olhar para poente, perscrutando o caminho. Acariciou a pequena cabeça de pato de marfim que adornava uma das extremidades do arco e, com uma sombra de tristeza no rosto, falou aos seus homens, ordenando o avanço da caravana. Naquele instante, Maria, sempre prestável, destacou-se dos caravaneiros, oferecendo a sua ajuda ao xeque. Este, perplexo, olhou-a de alto a baixo, sem compreender muito bem as suas intenções nem de onde diabo tinha aparecido aquela galileia. Tudo ficou esclarecido quando Natanael e Zebedeu, alarmados com a nossa demora, voltaram atrás, juntando-se ao grupo. Eu, prudentemente, conservei-me a certa distância, meio escondido entre os nómadas. Pouco depois de iniciar a conversa com a Senhora e os discípulos, o xeque, persuadido da boa-fé da hebreia e dos que a acompanhavam, modificou a ordem anterior: a caravana continuaria parada. E quem isto escreve pressentiu o pior. De vez em quando, os olhares dos meus amigos e os inquisidores olhos do mesopotâmico procuravamme entre as brancas roupagens dos caravaneiros. Não havia dúvida. Falavam de mim. E um crescente nervosismo foi-me invadindo o coração.
Estava apanhado... O destino, implacável, caiu sobre mim, encurralando-me. João levantou a mão esquerda e, sorridente, exigiu a minha presença. Zebedeu, tal como suspeitava, apresentou-me ao xeque - um tal Murashu – como um sábio rofé, capaz de grandes prodígios. Aturdido, com a boca seca pelo medo procurei negar *1 Este grau moderado de anartria, ou impossibilidade de articular distintamente os sons, era bastante vulgar na época de Jesus. Ao longo das nossas explorações tivemos oportunidade para verificar diferentes graus de afasias e disartrias. A primeira, como se sabe, consiste na perda, total ou parcial, da capacidade de expressão, motivada por uma alteração no hemisfério esquerdo do cérebro. Consequentemente, o afásico, embora fale correctamente, encontra-se privado da chamada linguagem interior,, errando a escolha das palavras na altura de exprimir uma ideia. A disartria, pelo contrário, tem a sua origem em lesões localizadas nos músculos da laringe, linguais ou labiais. O disártrico sabe o que quer dizer, porém exprime-o deficientemente. Tanto uma deficiência como a outra podem ser sintomas de uma grave doença do sistema nervoso. (N. Do M.)
e retirar mérito aos entusiásticos elogios do discípulo. Mas nenhum dos presentes me tomou em consideração. Murashu, respeitoso, inclinou a cabeça, suplicando-me que aliviasse a carga dos seus muitos pecados. Pelo que parecia, uma das suas mulheres sofrera uma queda. O dromedário em que viajava atacado de “loucura”, tinha-a derrubado e espezinhado a escassa distância da encruzilhada em que nos encontrávamos. Em boa lógica, deduzi, o percalço devia ser suficientemente grave para ter imobilizado a caravana. E os meus temores aumentaram. Para os assírio-babilónicos, as doenças, acidentes e outras calamidades tinham a sua origem na ira dos deuses. Qualquer contratempo ou desgraça eram associados de imediato aos pecados, mesmo hipotéticos, da vítima ou da sua parentela (1). Daí vinham os lamentos do atormentado Murashu. Procurei serenar-me. Era inútil falar no curandeiro de Caná, o mais próximo, e a que aludira a vizinha de Lavi. A distância que nos separava da aldeia de Bartolomeu era superior a doze quilómetros. Não tinha outra escolha...
E o dono e senhor da tribo levou-nos até uma das carroças cobertas: uma espécie de carpentum de duas rodas. A poucos metros do carro, dois serventes da caravana (os chamados escoltas, responsáveis pelos dromedários) estavam junto de um inquieto animal. O ruminante encontrava-se deitado e imobilizado por uma corda que, descendo da cabeça, lhe fora atada à articulação ferida. Murashu, ao passar junto do branco e nervoso exemplar, amaldiçoou-o. Tratava-se, efectivamente, da dromedária causadora do percalço. Um dos nómadas munido de um odre, esforçava-se por lhe dar água. O outro, a seu lado, com um feixe de plantas entre as mãos, ia-lhe chegando pequenas raízes e umas cápsulas esféricas que arrancava dos caules. Ao falar de um “ataque de loucura”, o xeque não tinha exagerado. Tal como o ser humano, o camelo e o dromedário padecem também de podagra ou gota (2), que afecta os membros *1 No banco de dados do Pai Natal, o nosso computador central, fora introduzida ampla documentação sobre as crenças e práticas médico-religiosas dos povos da Assíria e da antiga Babilónia. Em geral, estas gentes consideravam a vida e a saúde como dons divinos. Se um indivíduo não cumpria os preceitos estabelecidos pelos deuses caía imediatamente em desgraça, sendo perseguido e castigado com todo o género de calamidades. Os textos cuneiformes definiam esta absurda situação com total clareza: “Ao que não tem deuses, quando anda pela rua, cobreo a dor de cabeça como uma roupagem.”, Entre os pecados e faltas mais importantes destacavam-se as seguintes: violar os preceitos religiosos, pisar uma libação, insultar, desprezar ou revoltar-se contra os pais, tocar em pessoas que tenham mãos sujas, mentir, roubar, destruir estremas ou deslocar marcos que delimitem uma propriedade, possuir um coração falso, usar balanças falsas, derramar o sangue do próximo, cometer adultério, cuspir nas imagens dos deuses, rir dos deuses próprios e alheios, desobedecer ao deus tutelar, esquecer as orações e tirar alimento dos templos. Quando alguém, em consequência de uma destas faltas, adoecia ou sofria uma desgraça, todo o seu interesse e da sua família se centravam, mais que na cura ou busca do remédio, na investigação do pecado que tinha originado o mal. Desta forma, esclarecida a falta, podia consagrar-se de novo com o deus protector, recuperando a saúde ou a fortuna. (N. Do M.) 2 Curiosamente, os camelos e dromedários são os únicos quadrúpedes que, à semelhança do homem, padecem de gota. Basicamente, a podagra, nestes ruminantes, tem os mesmos sintomas que no ser humano: uma artrite aguda recorrente das articulações e tendões e, em torno deles cristais de urato monossódico, por saturação hiperuricémica de líquidos
corporais. Como se sabe, estes animais estão preparados para converter rapidamente o escasso conteúdo proteico da flora desértica em gordura e água e conservá-las a fim de permanecer longo tempo sem beber nem comer. De facto, dromedários e camelos podem resistir entre três a sete dias sem beber água. (N. do M.)
inferiores provocando nos quadrúpedes uma dor intensíssima. Quando isto se verifica, o animal enlouquece, mostrando-se irascível e perigoso em extremo. Era isto, nem mais nem menos, o que acontecera na caravana. Se o incidente tivesse sido protagonizado por um macho, talvez Murashu houvesse ordenado o seu imediato sacrifício. Ao tratarse de uma fêmea, o comportamento dos nómadas era radicalmente diferente. O leite de dromedária, de elevado teor proteíco e excelente percentagem salina, constituía um alimento e uma bebida fundamentais na dieta daquela gente. E, com bom critério, procuravam aliviar a loucura do ruminante, proporcionando-lhe abundante líquido e as negras sementes contidas nas cápsulas esféricas. Estes grãos oleosos provinham da dormideira, uma planta muito conhecida nas regiões mesopotâmicas, que chega a conter vinte e cinco alcalóides opiáceos. Como analgésico e calmante da dor era de grande utilidade nestas circunstâncias. A este tratamento, os nómadas, antigos conhecedores das propriedades medicinais das plantas (os Assírios, para citar um exemplo, dispunham de mais de duzentos e cinquenta espécies na sua farmacopeia) juntavam as raíses secundárias do harpagófito, especialmente indicado para a dor das articulações. O nosso anfitrião e os meus acompanhantes começaram a impacientar-se. Não conseguiram entender o meu interesse pela dromedária. Para dizer a verdade, ainda que me tivessem interrogado, também não me teria sido fácil satisfazer a sua curiosidade. Curvado para os membros inflamados do animal, o meu exame não encerrava outro objectivo que não fosse o de tentar averiguar o grau de contaminação por fezes. Se o ruminante tinha pisado a mulher era conveniente certificar-me do estado dos cascos. Mesmo assim, pensei, se se verificar o aparecimento de um tétano, que se pode fazer? Foi Maria quem tomou a iniciativa. E pondo-se atrás de mim, pousou-me a
mão no ombro, repreendendo-me com doçura e qualificando a minha acção como “imperdoável distracção”. - Jasão – avisou-me, sorridente -, estás enganado. Não é o dromedário que precisa da tua ciência... Eu sabia, mas desculpei-me. E seguindo os passos do xeque saltei para dentro da carroça. Meu Deus... que era aquilo? Num asfixiante habitáculo de três metros por dois, em cima de um carregamento de fardos de lã, jazia uma mulher com o rosto coberto por um véu negro. Os seus gemidos eram sufocados pelas rezas de uma anciã que, de cócoras e aos pés da jovem doente, ao mesmo tempo que entoava salmos penitenciais lançava sobre o corpo da nómada uma substância ocre que, de início, não fui capaz de identificar. Sob a ampla roupagem distingui um ventre anormalmente inchado. Porém, o cheiro putrefacto que enchia o carro intrigou-me. A que era devido aquele infecto ambiente? Ao ajoelhar-me junto da mulher e quando procurava tomar-lhe o pulso compreendi. A substância líquida e pegajosa que quase enterrava a doente ficou-me pegada às mãos. Instintivamente, aproximei as polpas dos dedos do nariz, procurando a identificação da substância lançada pela velha. Revolveu-se-me o estômago. De acordo com os ancestrais e supersticiosos costumes daqueles povos ao considerar-se a doença como a vingança de um deus ou demónio maléfico, tudo quanto pudesse desagradar à vítima originava o mesmo efeito na divindade instalada no corpo. Pois bem, com a finalidade de obrigar o espírito causador do problema a sair do doente, a velha tinha salpicado a mulher com excrementos de animais. A minha raiva e repugnância foram tais que, sem proceder sequer a uma superficial inspecção, abandonei a fétida carroça, tentando pôr ordem nas ideias... e no estômago. A Senhora, alarmada, veio ao meu encontro, interrogando-me. E o mesmo se deu com Murashu e os discípulos. Uma vez recomposto, ante o olhar atónito do chefe da tribo, ordenei-lhe que, para começar, procedesse à imediata transferência da jovem para um carro sem carga. A seguir, em idêntico tom enérgico, solicitei de Maria que se ocupasse da limpeza da mulher.
Neste ponto, um segundo carro entrava em acção. E apesar do risco que podia trazer a mudança de um acidentado naquela situação, com possível politraumatismo, minutos depois repousava na espaçosa plataforma de um carro de quatro rodas. A Senhora auxiliada por duas nómadas de rostos igualmente cobertos, despiu a rapariga, cumprindo as minhas indicações. E eu, sem saber muito bem que fazer nem por onde começar, aproveitei a espera para ver o que tinha na farmácia de campanha, guardada na reduzida bagagem de viagem, e trocar algumas palavras com Murashu. Zebedeu, testemunha da conversa, mostrou-se agradado ao averiguar que os antepassados do xeque eram precisamente judeus. Aqueles orientais, contrariamente ao que acontece com os homens do século xx, gozavam de uma memória prodigiosa. Podiam recitar, passo a passo, a totalidade das suas árvores genealógicas. Soubemos assim que os primeiros Murashus tinham sido deportados para a Mesopotâmia depois da conquista de Jerusalém por Nabucodonosor (em 587 antes de Cristo). A família prosperou, atingindo o seu auge nos reinados de Artaxerxes e Dario II. Embora mantendo-se ligadas à cidade de Nippur, alguns ramos familiares acabaram por se cruzar com os autóctones da região, procurando novos horizontes. Murashu e os seus nómadas, antepassados dos actuais beduínos, residiam habitualmente a norte da Península Arábica (hoje reino da Arábia Saudita), num território perdido no deserto do Grande Nefud, para lá dos montes de Agia e de Selma. Dali partiam para as suas actividades, comerciando para leste, norte e oeste, pelas rotas de Susa, Jarash, Damasco e Egipto. Mas, o agradável colóquio ia ser bruscamente interrompido por um agudo grito da Senhora. Não hesitei. Deixando o manto e a vara de Moisés nas mãos de João enfiei-me por baixo da lona da carroça, disposto a tudo. Porém, a cena que me apareceu diante dos olhos ia pôr em causa o meu zelo e boa-fé. A disciplina e ética da Operação instalaram-se no meu cérebro e na minha vontade, impedindo-me a acção. A partir daquele instante, um violento conflito interior se apossaria de mim, destruindo-me. Maria, de joelhos, com os panos usados na limpeza entre as mãos,
parecia uma estátua. As duas outras mulheres, acocoradas e à cabeceira da jovem, continuavam a molhar os panos num alguidar de barro. A respiração da doente, mal perceptível na minha primeira observação, tornara-se agitada. Acho que não o quis ver. Passei por alto o ventre proeminente, concentrando-me no pulso. Estava aceleradíssimo. Pálida e desfigurada a Senhora, ao lado da rapariga, acompanhoume com o olhar, deixando-me actuar. Numa precipitada avaliação inicial descobri que, apesar das contusões e pequenos hematomas – consequência da queda e prováveis patadas do dromedário – o aparelho respiratório não se encontrava afectado. A palpação também não revelou rupturas, com excepção do que vi ser uma fractura transversal na falanginha do segundo dedo do pé direito. O traumatismo fizera com que se soltasse a unha. Oxalá o problema se limitasse a esta ferida... Uma vez recomposta da surpresa, Maria, ao notar a minha aparente indecisão, confundida e pressionada pelas circunstâncias, levantou a voz, exigindo-me que actuasse. Não pude replicar. Um grito dilacerante, seguido por outros breves mas intensos gemidos da jovem, paralizaramme. E a Senhora, com os seus belos olhos cheios de incredulidade levantou-se, ao mesmo tempo que gritava, zangada: - Será que estás cego? A minha resposta à sua humana e justificada indignação foi um suor frio, a perlar-me a testa. Não, não estava cego. E continuei de joelhos, mudo, aos pés da mulher, que, havia uns minutos, começara a parir um filho... - Jasão!... Não me lembro bem da dura censura de Maria. Os meus olhos estavam fixos na cabeça daquele bebé, que começara o lento mas inexorável processo da libertação! Maldito código! Cavalo de Tróia proibia terminantemente e em absoluto a nossa participação no nascimento de um ser humano. E quem isto escreve, sem o poder evitar, via-se perante o parto de uma jovem nómada. Um nascimento prematuro, provocado
- quase com toda a certeza – pelo acidente do dromedário. A Senhora, nunca o soube ao certo, deve ter interpretado o meu silêncio e paralisação como resultado de um terror insuperável. E com uma coragem espantosa, tomou a seu cargo a situação, ordenando às mulheres que a munissem de quanto era necessário: água quente em abundância, panos limpos, sal, azeite, essências, esponjas, etc. Pelo que pude apreciar, não era aquela a primeira vez que Maria assistia uma parturiente. Como primeira medida, envolveu a cabeça da jovem nas suas mãos e, com uma ternura que quase me fez esquecer as normas, foi-lhe sussurrando palavras de alento. Depois, acompanhada pelas mulheres no interior da carroça, beijou-a na testa, incentivando-a ao derradeiro esforço. E sem sequer me olhar, assistida por uma das nómadas, precipitou-se para a criança. Com uma precisão impecável colocou um pano humedecido nas mãos, ajudando assim a expulsão da cabeça e protegendo o bebé das inevitáveis secreções anais. Com o aumentar dos gritos, a nómada que se pusera à cabeceira da rapariga meteu-lhe um pedacinho de madeira entre os dentes, agarrando-a pelos pulsos, a fim de a ajudar na expulsão. Com a mão envolta por cima da região rectal, a improvisada e audaz parteira foi exercendo pressão conseguindo assim uma mais rápida e eficaz libertação da cabeça. Maria, cheia de força e de amor, animava constantemente a mulher, orientando-a nas suas respirações e esforços. Nunca esquecerei aquela imagem da Senhora, banhada em suor e em sangue, com toda a sua humanidade voltada para o nascimento do pequeno nómada. Quando a cabeça ficou livre, Maria passou os dedos em volta do pescoço do bebé, certificando-se de que vinha sem a presença perigosa do cordão umbilicall. Feliz pelo rápido desenlace, a mãe de Jesus ganhou alento, limpou o suor que lhe escorria pela cara e, inclinando-se para o rosto avermelhado do nascituro, aspirou o material estranho que lhe enchia o nariz e a boca cuspindo-o. Animada também pelo bom parto da cabeça, a mulher que colaborava com a Senhora começou a entoar um daqueles salmos pagãos: “... Foi destruído pelo mal da alma e do corpo...
.. noite e dia passou sem ter descanso. ... Estou mergulhada na escuridão e caminho...” Maria esperou uns segundos. Tinha os olhos postos na recém-liberta cabeça do bebé. Porém, a espera da volta, quase sempre espontânea, com que a criança costuma colocar-se com os ombros no plano sagital da mãe, tardava. E a Senhora, levantando a voz e a cabeça, insistiu com a nómada para que lutasse. A parturiente, esgotada, tentou obedecer. Mas aquele novo esforço só serviu para quebrar o pedacinho de madeira que apertava entre os maxilares. E a respiração tornou-se desordenada. “... Estou abatida pela dor e pelo lamento... O inoportuno da reza penitencial e a tensão do momento fizeram com que a parteira explodisse! - Silêncio! - decretou Maria. E fulminando-me com os olhos gritou: - Por amor de Deus, Jasão, ajuda-me! Senti como o coração me batia no peito. Fechando os punhos até cravar as unhas, baixei os olhos, rogando àquele mesmo Deus que se apiedasse deste pobre explorador. Um novo gemido arrancou Maria àquele violento interlúdio. Serenando os nervos com uma funda inspiração lançou-se para o bebé, procurando voltar os ombros. Aquela esplêndida mulher mais uma vez me maravilhou. Agarrou a cabeça do recém-nascido com ambas as mãos, aplicando-lhe uma pressão, suave mas firme. Esta manobra, na verdade, facilitou o movimento do ombro mais elevado, por baixo da sínfise do púbis. Pouco depois, os hábeis puxões libertavam o ombro. E a Senhora suspirou, batalhando para conter a hemorragia. A nómada que a acompanhava retomou os seus cânticos, enquanto a parturiente parecia estabilizar a sua frequência cardíaca e o ritmo respiratório. “... A minha infância não a recordo...” *1 Quando o cordão umbilical rodeia o pescoço do nascituro, pode ocorrer uma hipoxia fetal, quer pela compressão do referido cordão quer por uma extirpação da placenta ou por uma invaginação uterina. (N. Do M.)
“... Não sei o pecado que cometi: era menina e pequei...
... Transgredi o limite do meu Deus...” Com uma sabedoria invejável, a Senhora esperou uns segundos antes de proceder à última tracção. Esta breve pausa, depois da libertação do ombro anterior, permite que o ombro se contraia, travando assim a possibilidade de uma perigosa hemorragia após o parto. Decorrido um minuto, Maria puxou a cabeça na direcção da sínfise, conseguindo a libertação do segundo ombro. O parto estava praticamente consumado. E a audaz mãe do Mestre aspirou suave e delicadamente a orofaringe do recém-nascido, agasalhando-o de imediato. Assim o manteve durante alguns minutos, ternamente apertado contra o peito, proporcionando o calor necessário para que o bebé, de forma natural, começasse a respirar. Depois, a nómada que segurara os pulsos da mãe procedeu ao tratamento do cordão umbilical. Uma vez estrangulado em dois pontos (o mais próximo aí a dois centímetros e meio do abdómen infantil), inclinou-se para o cordão, cortando-o com os dentes. E o pequeno foi lavado entre o regozijo das mulheres e energicamente friccionado com sal. Por último, a Senhora, com uma quente luz no olhar, ergueu-o nas mãos, enchendo-o de beijos. E o bebé foi deitado sobre o ventre da mãe. Dez minutos depois, precedida por uma moderada hemorragia, a placenta era expulsa espontaneamente. Maria procedeu então a uma massagem da parede abdominal, aliviando assim o fluxo de sangue. Um emplastro de ervas – de capsella ou bursa-pastoris, de discutível efeito hemostático – fez o resto. A hemorragia, pelo menos de momento, ficara detida. E as nómadas, seguidas por Maria, abandonaram a carroça, anunciando com muita excitação a boa nova. Eu, impotente e triste, permaneci uns instantes junto da jovem, sem forças para ir ter com os meus amigos. Tinha cumprido, sim, o rigoroso código do Cavalo de Tróia. Mas a que preço? E em silêncio, à maneira de pequena compensação pelo que não tinha feito por aquela desconhecida, lavei-lhe o pé ferido, imobilizando o dedo fracturado com uma forte ligadura. E dispus-me a enfrentar a crua realidade... Ao ver-me descer do veículo, Murashu esqueceu os homens e mulheres que se aglomeravam nas proximidades. E levantando os braços acima da cabeça precipitou-se para este desolado médico.
Imaginei o pior. Talvez as nómadas, ou a Senhora, o tivessem posto ao corrente da minha infeliz actuação Era lógico que, arrebatado pela ira, quisesse castigar o embusteiro. Curioso: pela primeira vez na aventura palestina estava disposto a aceitar... E o xeque caiu sobre mim... abraçando-me exuberantemente. Coberto de lágrimas lançou-se numa entrecortada e interminável enfiada de agradecimentos. Eu não sabia que dizer. Aquele homem de nobres sentimentos conseguiu transmitir-me a sua emoção. Que se passava? Atónito, procurei Maria com o olhar. Segundo parecia, a jovem nómada que acabava de dar à luz era a sua esirtu, ou concubina favorita. Murashu viajava com a esposa legítima e uma corte de escravas-concubinas. Estas, justamente, diferenciavamse da primeira por trazerem o rosto coberto. A alegria de Murashu pelo nascimento deste varão era tal que não me atrevi a arrancá-lo do seu erro. Estreitando-me contra a ilharga arrastou-me até à sua gente, acentuando os louvores pelo meu bemfazer. João de Zebedeu felicitou-me com idêntico entusiasmo. Balbuciei uma tentativa de explicação, com pouco êxito. Por fim, os meus olhos cruzaram-se com os da Senhora. Encontrava-se sentada à beira do caminho. Aproximei-me, devagar. Trémulo. Como explicar-lhe?... Não se moveu. Aguentou o olhar e, com um gesto que não esquecerei, piscou-me um olho, sorrindo maliciosamente. Eu conhecia e recordava aquele sinal. Era um dos enternecedores hábitos de seu Filho. A generosa e leal atitude de Maria desorientou-me. Pouco a pouco a iria conhecendo. Tinha defeitos, sim, mas também esplêndidas qualidades. Que surda raiva me consome quando leio, escuto ou assisto a tanto desatino em torno da imagem e personalidade da mãe terrena de Jesus! Não foi como os homens a desenharam: foi melhor... mais humana... mais valente. Haverá tempo para o demonstrar.
Como poderia pagar-lhe? Ajoelhei-me e, pegando-lhe nas mãos, aproximei-as dos lábios, beijando-as com toda a ternura de que fui capaz E os olhos deste angustiado explorador encheram-se de lágrimas. É difícil explicar o que aconteceu naquele breve e silencioso diálogoH. Ao sondar o doce olhar da Senhora, a intuição pôs-me em guarda. Como hei-de explicar?... A mãe de Jesus sabia alguma coisa... Foi uma sensação inequívoca. Como se a Providência tivesse achado por bem revelar-lhe que aquele Jasão, comerciante de Tessalonica, tão profunda e estranhamente interessado na vida do seu primogénito, era alguém especial. O incidente com o jovem João Marcos, no monte das Oliveiras, não passara despercebido àquela mulher inteligente e intuitiva. Horas mais tarde, as circunstâncias me demonstrariam que não estava enganado... Mas o tempo era pouco. O encontro com a caravana fizera-nos perder cerca de duas horas. Bartolomeu, impaciente, solicitou a Murashu que nos deixasse continuar a marcha. O xeque compreendeu, e lamentando não nos poder oferecer uma mais digna hospitalidade, insistiu para que nos reuníssemos com ele e sua família na Cidade Santa durante a próxima festa de Pentecostes. Os discípulos aceitaram por pura cortesia. Nem eles nem Maria imaginavam naquela fresca manhã de segundafeira, 24 de Abril, que, efectivamente, uma semana depois, se veriam na agradável obrigação de partirem a caminho da Judeia. E a uma lacónica ordem do chefe, dois dos caravaneiros foram depositar nas minhas mãos pecadoras um cordeiro de umas oito semanas e um cântaro de quatro log (cerca de dois quilos), hermeticamente selado com abundante estopa de linho. Eu sabia que recusar aqueles presentes teria sido uma grave falta de cortesia. Assim, depois dos agradecimentos de rigor, entreguei o misterioso jarro de barro ao urso de Caná, mas na minha confusão, ao primeiro espernear, o branco anho caiu-me no chão fazendo soltar divertidas gargalhadas aos nómadas. Recuperado o cordeirinho, lenta e pesadamente a caravana pôs-se em marcha. E, durante um curto trajecto, Murashu e os seus homens escoltaramnos, orgulhosos e contentes. Naquele breve percurso, seguindo outra antiga tradição, o chefe dos
nómadas solicitou a minha permissão para dar ao novo rebento o nome do seu salvador, ou seja, Jasão. Aceitei o facto com uma cerimoniosa e teatral complacência, por saber que o orgulhoso pai me ocultava a verdade. Aquele, na realidade, não ia ser o autêntico nome do pequeno, mas sim o chamado segundo ou falso nome. Desde a mais remota Antiguidade, as civilizações egípcias e mesopotâmicas, entre outras, atribuíam ao verdadeiro nome um poder especial, quase mágico. Em suma, Babilónios e Egípcios partilhavam o mesmo princípio: o nome das coisas, dos animais e dos humanos faz parte da sua essência. Platão e a filosofia escolástica não se encontravam muito longe desta singular concepção (1). O autor de Cratilo, como ocorreria a Schopenhauer, foi terminante neste sentido: Os nomes são a consequência das coisas. Para Murashu, portanto, se o conhecimento do verdadeiro, primeiro e bom nome do seu filho podia exercer um maléfico poder sobre a referida criatura, o natural seria que tratasse de o camuflar com uma segunda designação. De facto, os Egípcios procediam assim desde a Antiguidade. Recordemos, por exemplo, uma estela da época ptolemaica em que se diz o seguinte: “Foi dado ao filho do sacerdote o nome de Imhotep, mas foi chamado Petubast”. Estive tentado a sugerir-lhe um nome mais formoso do que o meu – Jesus – mas, ao descobrir que ignoravam tudo sobre o Filho do Homem, desisti. Este facto – o absoluto desconhecimento da existência do Mestre – tem também a sua importância. O homem do século xx acha natural que a totalidade das nações saiba da vida e dos ensinamentos do Galileu. No ano 30, porém, as coisas eram muito diferentes. Com excepção de umas centenas de milhares de israelitas e pagãos, todos estabelecidos na Palestina e regiões vizinhas, o resto do mundo viveu alheio à presença do Rabi na Terra. Embora os dromedários de Murashu pudessem andar os seus quarenta quilómetros por jornada, o ritmo da caravana era lento para nós. Assim, perto da encruzilhada de Lavi, despedimo-nos com um a paz esteja convosco. Os caravaneiros, por sua vez, inclinando as cabeças, replicaram com um cortês que os deuses aumentem as vossas riquezas. *1 O bom nome”, como o designavam os Mesopotâmicos, era equivalente do bom destino”. Quer dizer, prolongava-se tanto quanto a própria vida. Lefébure, numa valiosa análise desta doutrina sobre o carácter mágico do nome entre os
Egípcios, afirma: “O nome da pessoa ou da coisa é uma imagem efectiva e, por isso, converte-se na própria coisa, menos material e mais manobrável. Por outras palavras: mais adaptada ao pensamento. É um substituto mental”. Actualmente, embora de uma forma menos mágica e romântica, a sociedade não faz mais que insistir no já inventado: um indivíduo adquire existência e personalidade legal ou jurídica mercê, justamente, dos seus papéis e documentação. Em suma, para aquelas velhas e sábias culturas, a doutrina do nome ficava resumida neste princípio fundamental: “uma coisa-animalhomem não existe se não tiver um nome,”. O poema da Criação começa com a afirmação de que, no princípio, era o Caos e que nada tinha nome. No Livro dos Mortos, e expressão “não sou levado”, alterna com “o meu nome não é levado”,. Também não podemos esquecer que nos tempos de Jesus, como uma herança selêucida (312 a. C. A 64 a. C.), a sociedade gostava de helenizar o nome, acrescentando um segundo, quase sempre grego. (N. Do M.)
Respirei fundo quando nos afastámos. A experiência com os nómadas tinha sido pouco gratificante. A partir dessa altura, como creio ter mencionado, a minha sorte mudou. Uma cadeia de desventuras ia empurrar-me na direcção do inevitável. Devo referir-me a isso? Entendo que é esse o meu dever. Quando alguém lê os Evangelhos encontra dezenas de frases como estas: “De novo seguiu Jesus para o outro lado do Jordão” (João,10, 40). “E sucedeu que, de caminho para Jerusalém, passasse pelo meio de Samaria e da Galileia” (Lucas, 17, 11). “E saindo dali foi Jesus para os confins da Judeia” (Marcos, 10,1). “Percorria Jesus toda a Galileia...” (Mateus, 4, 23). Pois bem, mais uma vez, os chamados escritores sagrados iludiram a História e os que se proclamam crentes, um universo de pequenos e grandes episódios, nascidos justamente nesses percursos e marchas. Se tivessem sido minuciosos na narração das muitas horas gastas por Jesus e pelo seu grupo pelos caminhos teríamos hoje uma visão mais certa da vida e personalidade de todos eles. Segundo os nossos cálculos, dos quase quatro anos que o Mestre dedicou à pregação, aproximadamente um terço do tempo útil foi gasto em deslocações. Os números falam por si da transcendência de quanto afirmo: dos 1395 dias destinados pelo Filho do Homem ao que foi classificado como vida
pública uns 465 dias, como disse, passaram-se nos caminhos de Israel e dos países e regiões em volta. Será que nesse tempo nada aconteceu de bastante curioso e importante para ser transmitido às gerações seguintes? Este pobre e apressado relato da nossa peregrinação do lago de Tiberíades a Nazaré constitui uma prova do que digo. O que me coube viver nessas horas de marcha foi algo quase habitual nas viagens daquele tempo. Se a isto juntarmos a mágica e insubstituível presença do Nazareno, criador de maravilhas, tudo quanto consiga exprimir ficará aquém... Durante a nossa prolongada estada, no terceiro salto, tivemos oportunidade de o confirmar. Foi nessas vívidas jornadas, viajando sem cessar, que mais e melhor pudemos desvendar a personalidade humana do Mestre e do seu heterogéneo grupo de discípulos. Os que amam a Natureza, os acampamentos, o montanhismo que têm no sangue o maravilhoso veneno da aventura e das viagens entenderão perfeitamente as minhas palavras. É precisamente nessas intensas e longas convivências que surge e se aprecia com maior transparência o autêntico carácter dos seres humanos. Feita esta observação, prosseguirei com o relato de um acontecimento que se deu a uns dois quilómetros, na importante encruzilhada de caminhos em direcção aos montes Tabor, no Sul, e Méron, no Norte. Aqueles vinte minutos – desde a despedida de Murashu até à referida encruzilhada – passaram-se em silêncio e, pelo que me toca, com o único incómodo de ter de carregar nos ombros o inquieto cordeirinho. As minhas intenções quanto ao pequeno animal eram claras: livrar-me dele na primeira oportunidade. Mas como? Não me enganei nas minhas reflexões: o destino decidiria. Em relação ao jarro que Natanael levava, sinceramente, esqueci-o. Pouco tempo depois, o seu misterioso conteúdo viria em auxílio deste explorador. Mas não percamos o fio... O acontecimento a que aludi começou a esboçar-se nos metros finais daquela quarta etapa. Com a encruzilhada à vista, Bartolomeu começou a coxear ligeiramente. De começo não dei muita importância àquilo. No entanto, pouco a pouco, a cadência das suas curtas passadas tornou-se desigual. A causa do transtorno – pensei – podia estar na sua perna esquerda, ligada desde o tornozelo ao joelho. Mas o discípulo,
habituado ao seu mal continuou o caminho sem descerrar os lábios. A reacção de João e de Maria – embora fosse mais próprio falar da falta de reacção de ambos – deu-me a entender que estavam familiarizados com o problema do Urso, que, muito possivelmente, não apresentava gravidade alguma. E assim continuámos até que, passada a hora sexta, chegámos ao cruzamento das importantes artérias. Naquele lugar segundo os meus cálculos situado a quatro quilómetros da vereda que descia da aldeia de Lavi, erguia-se uma típica pousada judaica, muito frequentada por uma infinidade de caminhantes e caravanas vindos dos quatro pontos cardeais. Tratava-se, como a maioria dos albergues daquele tempo, de um vetusto edifício quadrangular, de cerca de trinta metros de lado e com paredes altas e acinzentadas, feitas à base de tosca pedra calcária. Quis o destino que o vacilante Natanael fosse parar diante da fachada principal, à direita do caminho e a curta distância do túnel que fazia as vezes de portão. Sem dar razões ou fazer comentários deixouse cair no caminho poeirento, recostando-se à parede da estalagem. Logo a seguir, pôs-se a tirar as faixas de couro de vaca que lhe envolviam a perna dorida. Desejoso de verificar o mal que afligia Natanael, confiei o cordeirinho à Senhora e pus-me na frente do discípulo. Pela escura boca de acesso ecoavam as vozes e gargalhadas dos que estavam na pousada. Habituados, pelo que parecia, a estas rotineiras pausas do urso de Caná, Maria e Zebedeu deixaram-no à vontade, ao mesmo tempo que prestavam atenção a um grande grupo de cavalos, presos a uma enfiada de argolas que pendiam da extremidade oeste da parede principal. Baixando a voz com evidente temor, João veio confirmar os receios da Senhora. As montadas, efectivamente, podiam pertencer à turma romana a que os almocreves se tinham referido. A presença da patrulha não agradou aos que me acompanhavam. E embora aquela trintena de soldados que constituíam a unidade se encontrasse, com toda a certeza, na pousada, o Zebedeu insistiu com o amigo para que se apressasse. O de Caná nem o olhou. Ambas as atitudes eram justas e compreensíveis. Ao visceral desprezo
do povo judeu pelo invasor romano havia a acrescentar, neste caso, um facto particularmente doloroso e próximo no tempo: a humilhante execução de Jesus pelos legionários de Roma. Não podemos esquecer que apenas tinham decorrido dezassete dias desde a crucificação. Esta angustiante realidade – hoje apagada pelos séculos – pesava muito nos ânimos dos discípulos do Filho do Homem. Apesar do misterioso regresso à vida do Mestre, nem a Senhora nem os discípulos tinham esquecido os executores. Lamentavelmente, como irei narrando, as assombrosas aparições de Jesus não serviram de muito neste sentido. Enganam-se os que pensam que Maria perdoou de imediato aos verdugos do seu primogénito. Consequentemente, era humano que o Zebedeu e a Senhora tentassem evitar o contacto com a turma. Quanto ao Urso, também a razão estava com ele. Compartilhava, era evidente, aquele sentimento de visceral repúdio pelos romanos. Não obstante, naquele momento a sua perna tinha prioridade.> E não lhe faltavam motivos. Com docilidade, não isenta de certa desconfiança, Natanael deixoume observar aquele quadro de veias varicosas primárias que progredia em sentido descendente no sistema da safena interna (1). Estas varizes, embora não representassem um problema grave, desfeavam ainda um pouco mais o já pouco agradável físico do discípulo, provocando-lhe uma incómoda sensação de peso e frequentes cãibras musculares. Pelo que deduzi do parco interrogatório a que aceitou submeter-se, aquele mal era frequente na sua família. Lamentei não puder ajudá-lo. Embora o mal, em princípio, não brigasse com o rígido código moral de Cavalo de Tróia, a minha farmácia de campanha não continha naquela altura medicamento algum capaz de suavizar a doença. Felizmente não foi necessária a minha intervenção. Previdente, Bartolomeu viajava preparado para esta contingência. Assim, lançando mão ao seu bornal, dele tirou um pequeno jarro de alabastro verde e translúcido. Destapou-o e, fechando os olhos, engoliu parte do conteúdo. Tossiu, fez uma careta de repugnância e dispunha-se a tapar o recipiente quando lhe pedi que me deixasse examiná-lo. Entretanto, Maria tinha reparado no cântaro de barro, oferta de
Murashu, pousado no chão por Natanael. Sem poder dominar a curiosidade tirou a estopa de linho, olhando para dentro. João, inquieto com a possível saída dos soldados, continuou a vigiar o túnel de entrada para o albergue, sem reparar no que a Senhora fazia. Também Bartolomeu, esperando a minha opinião, não se deu conta do conteúdo do cântaro. E levantando-me, enquanto cheirava a minúscula vasilha de alabastro, dirigi o olhar para o cântaro que a Senhora observava. Tenho de o confessar: a minha curiosidade – ainda que por outras razões – não ficava atrás da de Maria... Felizmente para quem isto escreve, a mãe do Mestre não soube identificar o líquido gorduroso e cinzento-escuro que enchia o recipiente. As minhas suspeitas, considerando a origem da caravana mesopotâmica, seriam confirmadas minutos depois, no decorrer de outro singular e inesperado lance... Encolhendo os ombros, Maria selou novamente o cântaro. Com a ajuda de Natanael, que definiu a beberagem como uma essência de hipericão, pude verificar que o licor por ele ingerido era um óleo essencial, extraído de uma planta – a Hypericum perforatum – muito corrente na Galileia. Os seus elementos básicos – hiperina, tanino, hipericina, pectina e colina, entre outros – são recomendáveis como antiinflamatório, adstringente, antidepressivo e cicatrizador de feridas. O indivíduo que lhe receitou o medicamento sabia de medicina. *1 Mediante palpação deduzi que estas varicosidades venosas podiam ter origem no mau funcionamento das válwlas do sistema safeno. O resultado, bem conhecido dos especialistas, é o refluxo do sangue e a dilatação crónica da veia. Segundo as próprias palavras de Natanael, aquelas varizes eram hereditárias. Na minha opinião, mais que a uma insuficiência de válvulas, a etiologia das veias varicosas de Natanael podia corresponder a uma sua insuficiência funcional progressiva. Um mal lamentavelmente “alimentado”, pela obesidade e pelas grandes caminhadas. (N. Do M.)
E foi da vontade de Deus que, sem tardar, no decorrer daquela mesma jornada, este explorador acabasse por o conhecer, embora em circunstâncias especialmente dramáticas... Mas Bartolomeu, meticuloso e consciencioso, não se contentou em tomar o hipericão. A distância até Caná era ainda de uns oito
quilómetros, a partir da pousada. Um trajecto demasiado longo para a sua maltratada perna. Assim, com a franqueza que o caracterizava, dirigiu-se ao Zebedeu, ordenando-lhe que entrasse na estalagem para lhe trazer um alguidar e a água e o sal necessários para diminuir a inflamação. A cena que depois presenciei teria feito corar um carroceiro. Zebedeu, boquiaberto, olhou-o fixamente. Tão intolerante como o amigo, irritou-se e, levantando a voz, censurou-o pelo seu despotismo. No fundo – assim julguei adivinhar pelas iradas frases de João – todo o problema se resumia na palavra medo. O Zebedeu, como já disse, não desejava cruzar-se com a soldadesca romana. Bartolomeu, que não desarmava, avermelhou de cólera, acusando por sua vez o filho do Trovão de vaidoso e insuportável mimado. Os taciturnos e melancólicos olhos negros do Zebedeu escancararam-se, acusando o golpe. Avançando para o Urso inclinou-se até colocar o rosto muito perto do do companheiro, gritando-lhe que a única e verdadeira razão por que não entrava ele próprio era a presença do “zarolho”. Logicamente, não compreendi. Com as artérias do pescoço tensas como cordas, Natanael puxou João pelo manto exigindo-lhe que retirasse a acusação. Mas o Zebedeu, que ainda não tinha aprendido a vergar a sua vaidade, lançou-lhe um desafio, acrescentando ao fogo da discussão impropérios como tampa de odre,. bola de sebo e outras delicadezas que injectaram de sangue os olhos do seu companheiro. Se Maria não interviesse, não sei como acabaria aquela desagradável discussão. Pouco a pouco, ir-me-ia habituando a estes periódicos e, no fundo, muito humanos choques entre os discípulos do Senhor. Os crentes não deveriam escandalizar-se nem surpreender-se perante estas, aparentemente, estranhas situações. Como disse, tudo aquilo era lógico e normal numa forte e ampla associação de homens tão diferentes. No entanto, algo tão óbvio nunca foi escrito pelos evangelistas. Porquê? Tiveram medo de ofuscar a imagem dos embaixadores do Reino? Em minha opinião, o conhecimento destas disputas e das diferenças de carácter dos discípulos engrandece a dimensão humana dos homens e mulheres que rodearam Jesus. No nosso caso, ao conhecê-los e saber das suas limitações apreciámos melhor a sua inegável entrega ao Mestre.
Felizmente, como ia dizendo, quando o lance começava a ficar turvo, a Senhora entrou na peleja, indignada com o comportamento pueril dos discípulos. E agarrando João pela manga direita da túnica arrastou-o para o túnel, à procura do maldito alguidar. A coragem e bom senso daquela mulher voltavam a impor-se. Hesitei. Que direcção escolhia? Seguia os passos da intrépida Maria ou esperava junto do recalcitrante Bartolomeu? Este, teimoso como uma mula, continuava com o seu chorrilho de insultos e maldições. Com um familiar formigueiro no ventre – sinal inequívoco de uma nova e iminente perturbação – decidi-me pela primeira hipótese. Ao entrar na penumbra do túnel, um fedor inconfundível, desagradável mistura de urina, humidade, cavalariças e azeite queimado, pôs-me em guarda. Aquele tipo de estabelecimento dava abrigo a toda a espécie de gente. Desde bufarinheiros a pacíficos comerciantes, passando por evadidos da justiça, temíveis grupos de sicários, correios, famílias de peregrinos e uma infinidade de raparigas, ou prostitutas, ladrões e, principalmente a escória do povo: os am-haarez. Dadas, pois, as circunstâncias, tinha de ser extremamente prudente. Em geral, com o fim de facilitar o intenso trânsito de homens e de animais, estes acessos não tinham portas ou, simplesmente ficavam abertos de par em par, mesmo durante a noite. À direita e à esquerda do túnel abobadado, de uns seis metros de fundo por uns quatro de altura, e a meio do húmido corredor, abriam-se estreitas aberturas, à maneira de portas, que davam para os andares de cima. A luz amarelada e trémula que vinha da candeia de barro, metida num nicho, esboçava o perfil dos degraus de pedra, tornando mais tétrica, se é que era possível, a entrada nos quartos. No final do túnel abriu-se na minha frente um amplo pátio ou curral, igualmente quadrangular, de uns dezoito metros de lado, a céu aberto. Ali, em especial durante os meses secos, decorria boa parte da vida da pousada. No centro havia um amplo poço, de uns dois metros de diâmetro, com um tripé de madeira por cima da abertura. Uma elementar roldana, com o concurso de cordas e de sacos de couro, facilitava a extracção da água. Parei uns instantes, tentando localizar Maria e Zebedeu. A minuciosa
observação não deu resultado. À minha direita, sentados no lajedo branco, estavam os soldados. Formavam um círculo apertado, discutindo, vociferando e soltando gargalhadas sonoras. Pelo que parecia, participavam nalgum tipo de jogo. Os capacetes de madeira e metal, as lanças e os escudos curvos, também de madeira, estavam espalhados pelo pavimento, atrás deles. Traziam no tronco as típicas cotas de malha, entrançadas, à base de anéis de ferro. Curiosamente, nenhum daqueles cavaleiros, apesar do descanso que gozavam, se desembaraçara das espadas que pendiam das espáduas direitas. Diferindo das turmae que contemplara na Cidade Santa, esta exibia por baixo da armadura umas ccamisas, de manga comprida e de pálida cor violeta. As calças, em contrapartida, granates, muito cingidas e curtas, eram as habitualmente usadas pela cavalaria. Ao escutar a sua linguagem deduzi que estava na frente de uma patrulha de origem síria. Possivelmente, contratada e pertencente a uma das quatro legiões regulares acantonadas na Palestina naquele tempo (1). O seu aquartelamento podia encontrar-se na cidade de *1 Na época de que falamos – ano 30 da nossa era – a Palestina encontrava-se ocupada por quatro legiões romanas: a Décima, a Terceira, a Sexta e a Décima Segunda. No total, a província da Síria concentrava nove legiões, com sessenta ou setenta unidades auxiliares, o que representava um contingente aproximado de cinquenta e quatro mil soldados. Cada legião contava, por sua vez com um corpo de trezentos cavaleiros, divididos em unidades menores: as turmae, ,de trinta cavaleiros. A turma dispunha de três oficiais – os decuriões -, chefes de fileira. Um deles comandava toda a patrulha. A unidade dispunha ainda de três oficiais de posto inferior: os optiones. (N. Do M.)
Tiberíades ou nalgum outro núcleo próximo da costa ocidental do yam. Com idades entre os dezassete e vinte e sete anos, tinham um aspecto vigoroso e saudável. Alguns, e isto também eu não observara em Jerusalém, apresentavam umas tiras de couro em volta das têmporas, pulsos e cintura. Minutos mais tarde, entenderia a razão e o fundamento daqueles supostos adornos. Uma galeria com arcadas rodeando o pátio completava aquela parte da pousada. Nela, à maneira de improvisadas cavalariças, permaneciam os animais de carga e o gado, numa caótica misturada com a forragem,
perseguidos pelas moscas e moscardos que os escoltavam sem remédio. Na parede em frente do túnel de acesso abriam-se três portas. As duas das esquinas davam para o andar de cima: os quartos dos viajantes. Este segundo piso, com umas vinte pequenas portas, parecia estar protegido por rústico e enegrecido varandim de troncos de coníferas, do qual pendiam esteiras e edredões habitualmente usados quando se dormia. Pela porta central, mais ampla, saía a vozearia de outra gente, possíveis hóspedes da estalagem. Logicamente, os meus companheiros de viagem tinham de ter entrado naquela quadra. E para lá dirigi os meus passos cautelosos. Pouco faltou que, no meu cuidado em passar incógnito, voltasse a cair num novo e perigoso erro. Ao atravessar o pátio pensei em rodear o poço pelo lado esquerdo, evitando assim a proximidade da soldadesca. Quando estava prestes a efectuar a manobra, os meus olhos cruzaramse com as inquisidoras miradas de alguns dos cavaleiros. Rectifiquei a tempo. E aparentando serenidade escolhi o lado direito da cisterna, caminhando muito perto da patrulha. Efectivamente, divertiam-se a jogar com uns dados de barro, em forma de pirâmide, popularmente conhecidos como teetotum. Confundido, respondi aos olhares dos soldados com um meio-sorriso. E, sem me atrever a virar a cabeça, entrei de rompante numa ampla quadra rectangular, regularmente iluminada por meia-dúzia de archotes que nas paredes, a crepitarem, sufocavam o recinto com um fumo branco e resinoso. Precisei de uns segundos para me adaptar àquela penumbra. A minha presença não despertou excessiva curiosidade. A grande sala, que fazia as vezes de taberna, casa de jantar e lugar de reunião era presidida por uma comprida mesa, que ocupava a quase totalidade da casa. A cabeceira esquerda – observada da minha posição junto à porta de entrada – estava ocupada por um animado grupo de indivíduos que falavam e riam, bebendo por jarros de barro avermelhado. Sobre a mesa alinhavam-se três ou quatro candeias de azeite e diferentes escudelas e pratos de barro e madeira, cheios de um pão escuro, figos e azeitonas pretas. Muito perto das candeias vi um guttus (um recipiente, geralmente de cerâmica, em forma de chaleira e um
afiado bico, empregue para encher as já referidas candeias ou lamparinas de azeite). Anarquicamente distribuídas à volta da mesa principal, outras mesas mais pequenas e quadradas, acompanhadas por bancos de uma madeira enegrecida e lustrosa pelo constante uso. Estavam quase todas ocupadas por homens de amplas túnicas, bigode rapado e compridas barbas, que comiam ou bebiam sem medida o vinho negro, espesso e quente vindo de um nicho feito na parede que se erguia à minha direita. Algumas mulheres, com o rosto e os braços tatuados, iam e vinham num incessante lidar, voltando a colocar os caldos e estufados de vegetais que enchiam a travessa comum de cada mesa e onde os comensais introduziam um grande bocado de pão, à maneira de colher. O quadro era completado por um curioso balcão, parecido com os que observara nas tabernas de Nahum. Erguia-se junto de uma parede situada em frente da porta de entrada e estava armado por dez bojudas vasilhas de um metro de altura, alinhadas e solidamente enterradas no piso de ladrilho. Nas bocas das ânforas fora colocada uma tábua de madeira de sicómoro, de uns cinco metros de comprimento, com dez aberturas, de vinte e trinta centímetros de diâmetro, que permitiam encher os jarros e as conchas de longas asas. O vinho, salvo quando o cliente preferia tomá-lo à temperatura ambiente – algo pouco frequente naquele tempo – era vertido na marmita que pendia do lar e, uma vez quente, servido pelas raparigas. A Senhora, e Zebedeu, muito perto da extremidade direita deste balcão, pareciam esperar. A clientela, distraída, não lhes prestara grande atenção, tirando os que estavam sentados numa das mesas próximas das talhas. Ao ir ao seu encontro notei-lhes certo mau humor nos rostos. Atribuí-o à forçada passagem junto de soldadesca ou,..talvez, ao fedorento e pouco recomendável ar que se respirava na taberna. Enganava-me. Zebedeu, nervoso, tinha os olhos postos nos cinco galileus que compartilhavam a mesa e que, na companhia de um sexto indivíduo, que permanecia de pé e ligeiramente encostado aos ombros de um dos bebedores, murmuravam entre si, lançando olhares provocadores a
Maria e ao seu companheiro. Não fiz perguntas mas, a ajuizar pela sombra de tristeza que velava os olhos da Senhora e o fogo que saía dos de João, calculei, acertadamente, que os felah eram antigos conhecidos e, o que era pior ferrenhos inimigos do Mestre e dos seus discípulos. Ao examinar o rosto do que se encontrava de pé comecei a compreender a dura acusação feita pelo Zebedeu ao urso de Caná. O olho esquerdo do homem estava tapado por uma negra venda de metal. Aquele, sem dúvida, era o zarolho pelo qual Bartolomeu parecia não manifestar muita simpatia. Um avental de couro sujo e ensebado e um molho de chaves pendurado ao pescoço denunciavam-no como o taberneiro dono da pousada. A partir daquele momento, para o Cavalo de Tróia, aquela estalagem ficou baptizada como a do zarolho. Maria, numa tentativa para dissipar a tensão, aconselhou João a evitar os olhares dos camponeses. Suavemente, empurrou-o para as ânforas. Ali, a meia voz, explicou-me que esperava a vasilha com água e sal e que, ao reconhecê-los, o maldito estalajadeiro, como em momentos anteriores, começara a meter-se com os dois, mortificando-os com as suas grosseiras troças a Cristo e, em especial, do milagre de Caná. João, a pedido da Senhora, conteve-se, mas, se a demora se prolongasse, não teriam outra solução senão prescindir do remédio e abandonar o local. - Esta gente – disse Maria, reprimindo a raiva – é capaz de tudo... E durante uns minutos permaneceu absorta, brincando com a rosa trabalhada numa das asas das ânforas. (Assinatura ou marca características das vasilhas originárias, como aquelas, da ilha de Rodes.) Ao notar a aparente indiferença dos meus companheiros, o zarolho e os seus parceiros insistiram mais ainda nas chalaças e risotas com a água e o vinho até ao ponto de atraírem a atenção dos comensais das mesas próximas. Entre os que voltaram as cabeças para a tertúlia que o estalajadeiro comandava, e com evidentes sinais de desaprovação, encontravam-se seis soldados. Os penachos que sobressaíam dos seus capacetes dourados indicavam que se tratava dos comandantes da turma. Provavelmente, os três decuriões e os optiones. Um deles, mais impulsivo, esboçou o gesto de se levantar, talvez com a intenção de mandar calar os provocadores. Mas o mais veterano, segurando-o pelo
braço, obrigou-o a sentar-se novamente. João, no limite da paciência, fechou os olhos e, de costas para os azedos felah, começou a esmurrar com o punho esquerdo a tábua que tapava as ânforas. O bater cadenciado parecia o presságio de uma iminente e temível explosão da ira do discípulo ferido. E a Senhora, prudentemente, suplicou-lhe cordura. Mas algo de imprevisto estava prestes a modificar, pelo menos temporariamente, a azeda e comprometedora situação dentro da pousada... Num primeiro momento, a vozearia reinante impediu-nos de compreender o que estava a acontecer lá fora. Foi a presença de um dos soldados, a recortar-se na claridade da porta, que mobilizou os oficiais da turma, impondo o silêncio entre os comensais. Foi então que escutámos aqueles grandes gritos, a pedir socorro. Vinham do curral, ou talvez do túnel. João e a Senhora imediatamente os identificaram. Eu, honestamente, não soube de quem se tratava. E o Zebedeu precipitouse para o pátio, seguido por Maria e por quem isto escreve. Alguns dos hóspedes, movidos pela curiosidade, imitaram-nos. O curral encontrava-se deserto. A patrulha, evidentemente, acudira em auxilio do autor do alarido. No fim do corredor pareceu-me reconhecer alguns dos decuriões, confundidos entre os homens da sua unidade. Ao sair do túnel, quem primeiro me chamou a atenção foi Bartolomeu. Estava de pé, assistido por João e chorando desanimadamente. Ao ver-me, lançou-se nos meus braços, suplicando perdão. Atónito, tentei compreender. Mas a aflição do Urso era tal que não pôde responder às minhas perguntas. O Zebedeu, apontando-me o grupo de cavaleiros que corria pelo caminho poeirento, em direcção a Caná, resumiu-me o problema: - Roubaram-lhe o cordeiro... Com efeito, a uma ordem dos oficiais, alguns dos soldados tinham saído em busca do ladrão. A pronta gritaria de Natanael e a rápida mobilização da turma tornou possível que o indivíduo fosse localizado, em plena estrada, a pouco mais de uma centena de metros da estalagem. Um dos oficiais e mais três cavaleiros saltaram para as montadas, completando assim a perseguição. Mas a destreza do
pelotão que corria na frente dispensou a acção dos cavaleiros. Quando os mais velozes ganharam terreno e pararam de correr e, soltando as tiras de couro que traziam à volta das têmporas, fizeram-nas girar meiadúzia de vezes, lançando projécteis sobre o fugitivo. Ali acabou o problema. Os fundibulários, com uma pontaria implacável, tinham derrubado o ladrão. Esquecendo os meus companheiros corri para o lugar. Uns e outros, imagino, justificaram a ha atitude, pensando que procurava recuperar o cordeirinho. A minha intenção não era essa. Apenas me moveu o desejo de verificar o estado do ferido e, ao mesmo tempo, ser testemunha da captura. Ao abrir passagem entre os soldados e ao descobrir a vítima, compreendi a inutilidade do meu gesto. Um dos projécteis – uma espécie de bala de chumbo, em forma de ovo e de uns cinco centímetros de diâmetro superior – estava alojada na região occipital do crânio. O impacte originara fractura da base, com irreparáveis danos no osso e nas meninges. O ladrão, um jovem coberto de farrapos, devia ter tido morte instantânea. Um após outro, os três fundibulários que tinham participado no lançamento examinaram a cabeça do rapaz. O responsável pelo certeiro e mortífero tiro solicitou permissão ao optio para recuperar o seu projéctil. O suboficial, verificada a morte do infeliz, fez um gesto de cabeça, ;consentindo. E o indivíduo desembainhou a espada, introduzindo a afiada ponta na ferida. E a bala foi catapultada para fora. Depois de a limpar meticulosamente com o pano de lã que lhe cobria as nádegas beijou-a e preparou-se para a devolver ao surrão que lhe pendia do ombro esquerdo. Entretanto, o resto do pelotão colaborou no transporte do cadáver, colocando-o na garupa de um dos cavalos e iniciando o regresso. Ao ver a minha curiosidade, o atirador sorriu maliciosamente, falando num dialecto que não compreendi. Encolhi os ombros e, por gestos pedi-lhe que me mostrasse o projéctil. Estendeu a palma da mão, mostrando-mo com satisfação. Senti um calafrio. Aqueles soldados, como os modernos artilheiros, gostavam de gravar nas suas balas frases alusivas às suas mulheres ou aldeias natais. Neste caso, em latim, podiam ler-se: “Da parte dos Sírios”.
Deprimido e triste juntei-me ao grupo de curiosos que se amontoava em frente da pousada. A Senhora perguntou então pelo cordeirinho. Não soube dar-lhe resposta. Até àquele momento não dera conta do seu desaparecimento. O mais provável era ter escapado para as altas searas. E a voz do decurião que assumia o comando, exigindo a presença do dono da estalagem, fez-nos esquecer a sorte do cordeiro. Ao apresentar-se, o oficial interrogou-o quanto à identidade do morto. O zarolho, quase sem o olhar, negou conhecê-lo. Porém, o cavaleiro veterano, adivinhando a perversa intenção do galileu, ordenou-lhe que tomasse a seu cargo o cadáver, avisando os parentes, caso os tivesse. Os protestos do zarolho foram afastados sem contemplações. Sem mais palavras, o oficial encostou a ponta da espada à garganta do estalajadeiro. E este, pálido, pôs às costas o corpo do jovem, perdendose na penumbra do túnel. Concluído o lance, a turma soltou os cavalos. Dada a estreiteza do caminho formou a três fileiras (ao estilo grego), com os decuriões à cabeça e os optio à esquerda daqueles. E a passo se afastaram em direcção a Tiberíades. Calculei que tanto sobressalto e a desagradável experiência dentro da estalagem teriam feito com que os meus amigos mudassem de opinião. Calculei mal. Natanael, embora recomposto do susto, continuava a coxear. E perante a minha surpresa, desta vez foi Zebedeu quem se empenhou em o ajudar, obrigando-o a entrar na pousada para receber o necessário tratamento.
Maria agradada pela mudança de atitude de João, seguiu-os em silêncio, ajudando-me a carregar os sacos de viagem e o cântaro de Murashu. Sorri interiormente. Que acontecera à recente e envenenada discussão entre os discípulos? Também me acostumaria a estas bruscas mudanças nas relações dos íntimos do Mestre. Tal como podia ver naquela jornada assim eram os homens e as mulheres que permaneceram ao lado de Jesus: intolerantes por vezes, egoístas em certas alturas, mas, ao fim e ao cabo companheiros muito amigos. A prova estava na minha frente. Com muita ternura, esquecendo os insultos Zebedeu passara o braço direito do seu amigo pelos ombros, auxiliando-o no caminhar.
Ao entrar no pátio a céu aberto, os meus companheiros pararam. À direita do poço, justamente no lugar onde estivera a patrulha romana, jazia o corpo do ladrão. A totalidade dos hóspedes e comensais, reunida de novo na taberna, parecia ter-se desinteressado do cadáver. E Maria, compadecida, encaminhou-se para as escadas de pedra que conduziam ao andar de cima. Retirou uma das esteiras penduradas do varandim, com ela descendo até ao lugar onde repousava o corpo. E em gesto de piedade começou a tapá-lo. Quis a má sorte que naquele instante, uma das raparigas assomasse ao curral. Fitando a Senhora, censurou-lhe a acção. Maria, indignada, não se calou, acusando por sua vez a serva e prostituta de hipocrisia e falta de caridade. Embora hoje possa parecer estranho, a recém-chegada, do ponto de vista da rigorosa visão religiosa da lei mosaica, tinha razão em parte. O contacto com um cadáver era considerado como causa de grave impureza. (A Misná, na sua ordem sexta, dedica dezenas de capítulos a esta questão.) Se, por exemplo, um homem tocava num cadáver, contraía impureza durante sete dias. E se um segundo indivíduo tocava no primeiro, ficava impuro até ao pôr do Sol. Da mesma forma, um objecto que roçasse ou entrasse em contacto com um cadáver ficava igualmente impuro. A maldade dos judeus – contra a qual batalhou Jesus – chegava a extremos inconcebíveis: Se um homem tocava naquele objecto (que permanecera em contacto com um cadáver], os objectos seguintes que pudessem ser manipulados pelo homem caíam igualmente em impureza e pelo período de sete dias. A esteira utilizada por Maria era propriedade da rapariga. Daí a cólera da prostituta. João intercedeu, procurando serenar os ânimos. Mas os ecos da altercação tinham chegado ao interior da taberna e o zarolho e um grupo de hóspedes não tardaram a aparecer, pondo-se ao lado da serva. Embora estas absurdas normas religiosas não fossem tidas muito em conta pelos tolerantes e liberais galileus, uma das famílias de peregrinos que se hospedava na estalagem e assistia à discussão – possivelmente vizinhos de Judeia – acabou por fazer frente ao dono da estalagem, exigindo-lhe que se desfizesse do cadáver e procedesse à purificação do lugar. De contrário – ameaçaram – abandonariam a pousada sem pagar um único asse.
O zarolho, perante o prejuízo económico patente nessa advertência, tornou como responsável do problema o queixoso Bartolomeu, que nem sequer saíra de junto de mim. Era claro que aquela vingança tinha raízes muito antigas... João protestou, recordando-lhe as ordens do decurião. As razões do Zebedeu fizeram transbordar o copo da indignação geral. E os galileus adoptaram uma atitude ameaçadora, brandindo os seus bastões. A Senhora recuou, atemorizada, refugiando-se atrás do Urso. E o estalajadeiro, encorajado, acusou João e os seus acompanhantes de amigos dos romanos animando a clientela a lapidá-los. Instintivamente, os discípulos lançaram mão dos respectivos gladius. A situação piorava. A uma ordem de Natanael, a Senhora recolheu os haveres, abandonando o lugar. Aquele foi outro árduo dilema para mim. Nem podia intervir nem podia permanecer como mero observador. Ao encontrar-me integrado no grupo, as ameaças abrangiam-me tão directamente como aos outros. O Urso aguardou que o seu companheiro, caminhando para trás e sem perder de vista os excitados clientes, se pusesse a seu lado. E este explorador, mais assustado se é que é possível que os discípulos, não soube que atitude tomar. Imitei-os simplesmente, preparando-me para o que via como uma batalha campal ou uma fuga desesperada. A maioria esmagadora dos nossos adversários e o furor que demonstravam fizeram-me tremer. Uma vez lado a lado, João e Bartolomeu continuaram a recuar com as brilhantes espadas viradas para a chusma que o zarolho encabeçava. Durante breves minutos, o gume dos gladius, habilmente manejados pelos discípulos, fez vacilar a maioria. E a um sinal, dando meia volta, Natanael, primeiro, e o Zebedeu, depois, lançaram-se em corrida para fora. Quanto a mim, quis o cruel destino que, ao rodar nos calcanhares para me lançar em fuga, os meus desajeitados pés fossem esbarrar no esquecido cântaro de barro do xeque nómada, rolando a todo o meu comprimento no lajedo e perdendo a vara de Moisés. Ao quebrar-se o cântaro, parte dos dois litros que guardava derramou-se pelo centro do curral e o líquido pardacento, mais leve que a água, encheu o recinto com um cheiro forte e persistente. A minha queda aparatosa e o aparecimento súbito daquela substância
gordurosa, praticamente desconhecida dos galileus, conteve momentaneamente a fúria e a marcha dos perseguidores, intrigados e confusos. Foi o que de pior podia suceder. De gatas, tentei recuperar a vara. Mas, ao alcançá-la, uma sandália fedorenta caiu sobre o báculo, imobilizando-o no solo. Ao levantar os olhos vi-me cercado pelas caras contorcidas de uma dezena daqueles energúmenos. Entre insultos, pragas e cuspidelas atiraram-se às pauladas e pontapés contra quem isto escreve. Julgo recordar que a minha única obsessão, além de apanhar o cajado, foi proteger a cabeça; uma das poucas zonas não protegidas pela pele de serpente. De facto, algumas das violentas pancadas foram mal contidas pelas minhas mãos e braços. Se uma daquelas pauladas me acertasse no crânio, a minha sorte e a da operação podiam estar condenadas. Durante uns segundos, que me pareceram intermináveis, a chuva de pauladas foi tão cerrada quanto feroz. Era claro que, por não ter podido abater-se sobre os meus companheiros de viagem, todo o rancor e fúria do estalajadeiro e dos seus aliados abateu-se sobre mim, com a pura e simples intenção de me eliminar. Mas os Céus compadeceram-se deste aturdido explorador. E os efeitos da especial protecção que me cobria o corpo não se fizeram esperar. Ao baterem nas minhas pernas, rins braços e costas, muitos dos bastões quebraram-se, enchendo de consternação os seus proprietários. Além disso o que veio aumentar a sua confusão foram os sucessivos danos nas sandálias e dedos nus dos que optaram pelas patadas. Muitos, com prováveis fracturas, acabaram no lajedo, gemendo e contorcendo-se de dor. O insólito da cena fê-los recuar, lívidos de terror. E o ser, aparentemente invulnerável ergueu-se em silêncio, sem o menor sinal de dano. A chusma, sem poder dar crédito ao que presenciava, recuou uns passos, atirando para o chão os cajados. Decidido a dar-lhes uma lição que nunca mais esquecessem, adoptei uma das minhas costumeiras atitudes teatrais. Levantei os braços como um iluminado, mostrando-lhes o corpo. O zarolho caiu de joelhos, implorando misericórdia. Fechando os olhos, clamei com força para os céus, exigindo o castigo divino. Aquela foi uma excelente ocasião para experimentar outro dos sistemas de defesa, incorporado na vara de Moisés pelos especialistas do Cavalo de Tróia.
Segurando o báculo pela parte de cima, carreguei num dos pregos de cabeça de cobre, activando um laser de gás (1). O feixe invisível foi incidir no charco provocado pelo cântaro partido. Bastavam uns dois segundos para que o líquido – conhecido entre os Mesopotâmicos como óleo de pedra – se incendiasse, ardendo intensamente. O providencial cântaro, oferta de Murashu, continha o que hoje chamamos petróleo,. Os Orientais, embora desconhecessem o seu refinamento, utilizavamno de há muito como uma excelente fonte de iluminação, de melhor rendimento que o azeite e o óleo de sésamo. Muito provavelmente, o caro presente do nómada vinha de alguma das numerosas jazidas naturais de Bacu, no que hoje se chama Irão. A aparatosa mas inofensiva cortina de fogo e fumo de um escasso meio metro de altura, proporcionou-me o efeitto desejado. O taberneiro e a sua gente fugiram enlouquecidos ou caíram de bruços no chão, interpretando a minha acção como um sinal celeste. E quem isto escreve aproveitou a confusão para abandonar o curral. Mas as minhas penas não tinham terminado. No final do túnel esperava-me outro encontro, mais embaraçoso do que aquele que acabava de suportar. Ao descobrir a silhueta no centro do portão associei-a a um dos perseguidores. Por certo voltava à pousada. O dramático espancamento não me permitiu verificar, como era lógico, se parte dos hóspedes pudera sair em perseguição dos meus amigos. E se os tivessem capturado? Um reflexo metálico veio arrancar-me às minhas reflexões. O indivíduo empunhava uma arma. Abrandei o passo, preparando-me para um possível e novo ataque. Inexplicavelmente a figura continuou imóvel, com os braços caídos ao longo da túnica. Era evidente que estava a observar-me. E ao chegar a uns dois metros da boca do túnel tive um sobressalto. *1 Este tipo de laser fora concebido para ser utilizado, em caso de emergência, sobre animais ou coisas, nunca sobre seres humanos. Trabalhava numa gama que ia de umas dezenas de watts a algumas centenas. A sua colimação era quase total, podendo concentrar-se em pontos cujo tamanho oscilava entre poucos
micrómetros e uma fracção de milímetro, com um fluxo de energia electromagnética com base no dióxido de carbono, capaz de soldar uma lâmina de aço inoxidável de treze milímetros de espessura, à razão de sessenta e quatro centímetros por minuto. (N. Do M.)
Era Zebedeu. Estava ali havia quanto tempo? Teria sido testemunha do espancamento e da milagrosa recuperação? Teria presenciado a minha espectacular invocação aos céus? Tais pensamentos, como um turbilhão, provocaram em mim um sentimento mais angustioso que o experimentado ao enfrentar os galileus. Ao fitá-lo nos olhos soube que o discípulo vira tudo... ou quase tudo. As finas feições, que davam gravidade aos seus vinte e oito anos, não reflectiam temor. Nelas havia uma luz ténue como se a admiração que escapara do seu olhar tivesse impregnado todos os seus poros. Não abriu a boca. E eu, que aguardava, tenso, agradeci o seu silêncio prudente. Pestanejou nervosamente e, oferecendo-me o melhor dos seus sorrisos, pôs-se a caminho. Deixei-o avançar. Naqueles instantes, mais do que nunca, tinha necessidade de solidão e de reflexão. Sucedera o inevitável? Estava escrito que, mais tarde ou mais cedo, tinha de ser descoberta a minha verdadeira identidade? Chegado a este crítico extremo, qual era o meu dever? Ali mesmo, caminhando como um autómato atrás dos passos de Zebedeu rumo a Caná da Galileia, pus em discussão a eficácia da Operação. Para ser exacto, a minha própria eficácia. Sei hoje que exagerei no meu juízo. Ter conhecido Jesus, tê-lo seguido e tê-lo amado constituíram o nosso grande êxito. E agora, por sua graça e expresso desejo, está nas minhas mãos relatar quanto vi, ouvi e compreendi. No entanto, naquela manhã, as coisas não me pareciam tão nítidas. Fiz o balanço e o quadro dos meus turbulentos pensamentos enegreceu: perante a Senhora fracassara estrepitosamente. Depois, na pousada do zarolho, tinha-me visto na necessidade imperiosa de fazer uso dos meus poderes, sendo descoberto por Zebedeu. Se ele o comentasse com Maria e Natanael, o que era provável, as suspeitas da mãe do Mestre ficariam confirmadas. Nesse caso, previsto também por Curtiss e pelos chefes da Operação, o nosso regresso tinha de ser imediato. Mas a
delicada situação tomaria rumos inesperados... Durante quase um quilómetro, nem a senhora nem o Urso deram sinais de vida. Mergulhado em tão amargos pensamentos mal reparei naquilo. João caminhava na frente, com passo rápido e a espada na bainha. De vez em quando voltava a cabeça, confirmando a minha presença. E o senso comum impôs-se: tinha de encontrar uma saída airosa e suficientemente aceitável com que pudesse desvanecer as conjecturas do discípulo em relação à minha natureza e origem celestes. Porque, enfim, era aquela a sua ideia em relação a mim, alimentada desde que o jovem João Marcos espalhara o mágico desaparecimento de Jasão numa nuvem em pleno monte das Oliveiras. O problema era como o destino, em breve, me ofereceria a solução. Dolorosa, sim mas eficaz... De repente, o Zebedeu parou. Deviam ser, aproximadamente, as três da tarde (a hora nona). Instintivamente, fiz o mesmo. E, levantando os braços acima da cabeça, agitei-os uma e outra vez, como se fizesse um sinal. Assim era. À esquerda do caminho, entre os trigais, vi aparecer a nutrida figura do Urso e, a seu lado, a grácil silhueta de Maria. E ambos, em corrida, se encaminharam para João. Então compreendi. O valente Zebedeu, que nunca abandonava os amigos, ao verificar que eu não os seguia, voltara à pousada e, espada em punho, preparou-se para me dar a sua ajuda. O resto, ao chegar à boca do túnel, era fácil de imaginar. E no meu íntimo – bem o sabe Deus – agradeci o seu nobre gesto. Reagi, compreendendo que era vital que me unisse ao grupo. Se mantivesse a distância, caminhando solitário até à aldeia de Bartolomeu, só conseguiria multiplicar os receios da Senhora e dos discípulos, dando motivo, com a minha ausência, a todo o tipo de comentários e especulações. Tinha de arriscar. E com uma fingida naturalidade fui pôr-me ao lado do Zebedeu, ao mesmo tempo que Natanael e Maria saltavam para o caminho poeirento. O Urso, com a respiração agitada pelo susto e pela corrida, interrogou-nos nervosamente. Desta vez tomei a iniciativa e, antecipando-me a João, tentei explicar o que acontecera, numa vã tentativa de desmistificar aquilo que o discípulo presenciara. Retirei
importância aos golpes e, mostrando as nódoas negras e pequenos hematomas nas mãos, comentei que a fortuna e os deuses do Olimpo me tinham protegido. João, impassível, ficou em silêncio. - Infelizmente – acrescentei, dirigindo-me a Bartolomeu -, o cântaro de Murashu perdeu-se na desordem... Continha um estranho líquido, semelhante ao utilizado pelos meus concidadãos de Tessalonica para alimentar o fogo sagrado... O Urso, um dos mais instruídos do grupo, concordou com a cabeça, afirmando que podia tratar-se do célebre e exótico óleo de pedra, muito apreciado na Cidade Santa e, na verdade, carregamento habitual nas caravanas que vinham do Oriente. - Foi pena não ter pegado fogo à pousada – resmungou o franco Natanael – e, com ela, ao maldito zarolho... O azedo comentário inclinou a balança da sorte e da lógica a meu favor. Aproveitando a ideia reforcei os meus propósitos, expondo-lhes que, muito provavelmente, na confusão, alguém atirara uma lanterna para o líquido negro, provocando um fogo de pouca monta mas bastante para os distrair e facilitar a minha fuga. O Zebedeu caminhava em silêncio. O sorriso trocista que tinha nos lábios foi a mais eloquente das censuras. E a piedosa mentira agitou-se no meu íntimo como um réptil. A Senhora e Bartolomeu, em contrapartida, aceitaram a minha versão. Enredados nos pormenores da odisseia deixámos para trás um segundo desvio. Nesta altura, o caminho secundário partia igualmente da direita da via que nos levava a Caná, serpenteando durante quilómetro e meio até outra perdida aldeia – Tiran – situada a uns duzentos metros de altitude. Alguns vendedores de ocasião, postados na encruzilhada, ao longo dos trigais, mostraram-nos as canastras de fruta e os alguidares de farinha de cevada, animando-nos com os seus gritos a que aliviássemos a sua miséria. Mas, ensinados pelas duras provas passadas nos cruzamentos anteriores, nem um só dos meus companheiros afrouxou a marcha. Aqueles trinta minutos gastos nos três quilómetros que separavam a estalagem do zarolho do atalho para Tiran, foram o começo de outro
calvário para quem isto escreve. Apesar da blindagem que a pele de serpente me proporcionava, a brutalidade do espancamento fora tal que os meus ossos e músculos se ressentiram. Durante horas intermináveis suportei uma dor generalizada que começou a atenuar-se, com a ajuda dos analgésicos, camuflados na minha farmácia de campanha, passada boa parte da jornada seguinte. Também Bartolomeu não voltou a lamentar-se. Os dois quilómetros e meio que faltavam desde o cruzamento de Tiran ao que devia levar-nos à sua cidade natal percorreu-os a coxear mas sem protestos. Aquele último e breve trajecto (cerca de vinte e cinco minutos) da quinta etapa iria proporcionar-me duas interessantes revelações, de especial utilidade para os nossos planos futuros. Como já expliquei, um dos meus trabalhos devia consistir no armazenamento de um máximo de informação, o mais rigoroso e exacto possível, sobre os começos da vida pública de Jesus. A precisão nos referidos dados era vital na altura de manipular os swivels e proceder ao terceiro salto no tempo. Tudo aconteceu de forma natural. A uma das minhas perguntas sobre o ódio que o dono da pousada mostrara ter pelos que me acompanhavam, Natanael, tirando-me da minha ignorância, explicou que a recíproca antipatia vinha já de alguns anos atrás. O problema, segundo entendi, surgiu no mês de adar (Fevereiro-Março) (1) do ano 26. Justamente por aquela data teve lugar em Caná o milagre conhecido pelo do vinho. Pois bem, o prodígio, como era de supor, espalhou-se de boca em boca pela região, chegando aos ouvidos do zarolho. O assunto provocaria todo o género de comentários e opiniões. A maioria - segundo Bartolomeu – mais cheia de incredulidade e mau gosto que de sincera aceitação da verdade. Embora não seja minha intenção antecipar-me aos acontecimentos que nos coube viver no decorrer do referido terceiro salto, é meu dever, isso sim, esclarecer que tanto Maria como os discípulos que me acompanhavam na referida viagem a Nazaré foram testemunhas do milagre da transformação da água em vinho. A Senhora, como veremos na devida altura, teve boa parte de culpa na realização deste primeiro prodígio do Filho do Homem. Um prodígio – seja dito de passagem – não desejado por Jesus e que surpreendeu os que assistiam às bodas e o próprio Mestre. - Nos primeiros dias – continuou o Urso -, quando o Rabi e os seis
primeiros discípulos se dirigiam para o lago... Não tive outro remédio senão interrompê-lo. Seis discípulos? E os outros? O bom Natanael, cada vez mais cansado de tanto coxear, evitou a pergunta, dando a entender que, de facto, naquele tempo (últimos dias de Fevereiro) o grupo apostólico inicial era formado apenas por Jesus, André e Pedro, João e Tiago, que também eram irmãos, Filipe e ele. E, não desejando perder-se num tema que, obviamente, não vinha a propósito, continuou com a história do zarolho. - Nessa viagem para Saidam fizemos uma paragem na maldita estalagem que acabas de conhecer... *1 A equivalência dos meses judaicos de então era a seguinte: nisán correspondia aos nossos Março-Abril; iyyar a Abril-Maio; siván a Maio-Junho; tammuz a Junho-Julho; ab a Julho-Agosto; elul a Agosto-Setembro; tisri (o começo) a Setembro-Outubro; marsheván a Outubro-Novembro; kislev a NovembroDezembro; tebeth a Dezembro-Janeiro; sebat a Janeiro-Fevereiro e adar a Fevereiro-Março. (N. Do M.)
Natanael interrompeu a narrativa. Aquelas recordações eram para ele particularmente ingratas. Mas, condescendendo com o pagão que a eles se unira, aceitou continuar. ..levado por um excesso de confiança, cometi a fraqueza de anunciar ao dono da estalagem e a quantos ali estavam, na taberna, que o Messias libertador de Israel, autor do prodígio de Caná, minha cidade, se encontrava à porta da estalagem. A agitação foi muita. E o venenoso zarolho foi logo encher de água uma das talhas, ordenando-me, entre chalaças, que transmitisse ao meu Mestre o seu desejo de a ver transformada em vinho. Se possível, disse com ironia, do Hébron. Logo ali o amaldiçoei. Desde então tenho procurado evitar aquele covil de ladrões... Era claro para mim. Como pensava, o ressentimento do zarolho vinha de muito longe. Não insisti, procurando levar a conversa para outros rumos. À minha nova pergunta sobre a veracidade do prodígio, Maria, aborrecida com as minhas dúvidas, apressou-se a recordar-me que, além dos discípulos que nos acompanhavam, podia citar-me a identidade dos servos que tinham visto a maravilha,. - Eles, e eu própria estávamos ali, junto das seis talhas, quando o meu
Filho fez o que fez... Calei-me. Não tinha o direito de duvidar da palavra daquela esplêndida e honesta mulher. Mas, como cientista, resistia a aceitar a transformação de um elemento como a água noutro completamente diferente. Eu sabia do extraordinário poder do Galileu. No entanto, nunca o vi subverter as leis naturais. Como explicar, pois, a transformação de dois hidrogénios e um oxigénio em etanol, propanotriol, açúcares, álcoois superiores ou ácidos málico e tartárico, entre outros ingredientes básicos do vinho? Optei por me calar e esperar pelo terceiro salto. Se a fortuna nos acompanhasse em tão ambiciosa aventura, talvez desfrutássemos a possibilidade de assistir às célebres bodas, desvendando a incógnita com a ajuda da ciência. Néscio! Para dizer a verdade, quão longe se encontra a ciência das alturas do poder e dos mistérios divinos... Mas não tenhamos pressa. A hora desse acontecimento maravilhoso ainda não chegou. Um dos dados fornecidos por Maria ia ser a chave nos preparativos da viagem seguinte. Contrariamente a João e a Natanael, a mãe de Jesus lembrava-se da data exacta do milagre de Caná: deu-se pelo entardecer de quarta-feira, 28 de Fevereiro do ano 26 da nossa era. Disposto a tirar partido da loquacidade da Senhora arrisquei-me a interrogá-la sobre outro capítulo decisivo para nós, exploradores: Em que momento, com exactidão, deu Jesus começo ao seu ministério público?, Em relação a isto, os textos evangélicos não são muito precisos. Mateus, por exemplo, no terceiro capítulo, não oferece data alguma. Outro escritor sagrado, Marcos (1, 9-10) diz textualmente: “E sucedeu que naqueles dias veio Jesus de Nazaré a Galileia e foi baptizado no Jordão por João”. Que quis dizer o evangelista com a expressão naqueles dias? Algumas tradições cristãs, incluindo a versão dos Padres gregos, sugerem que o baptismo de Jesus pode ter-se realizado em Janeiro. No entanto, isto não oferece muitas garantias. Lucas, o mais rigoroso, também não fala do momento exacto. No seu capítulo terceiro (1-2) diz: “no ano décimo quinto do reinado de Tibério César, sendo governador
da Judeia Pôncio Pilatos, tetrarca de Galileia, Herodes Filipo, seu irmão, tetrarca de Itureia e da Traconitide Lisania, tetrarca de Abilena, no tempo dos sumos sacerdotes Anás e Caifás foi dirigida no deserto a João, filho de Zacarias, a palavra de Deus. Dado que Pilatos começou a governar em 26 da nossa era e que o milagre do vinho se registou nos primeiros meses desse mesmo ano, tudo parecia, apontar para a referida data. Mas, para nós, ainda não era suficiente. João, o quarto evangelista, também não proporciona luz alguma na sua narração. Depois de a referência superficial à pregação de João e à escolha dos cinco primeiros apóstolos (ele não se inclui), entra directamente nas bodas de Caná (segundo capítulo). Não sei se fiz bem ao fazer tal pergunta sobre os primórdios da vida pública do Mestre. Todos hesitaram discutindo entre si quanto ao momento exacto. Quebrando o seu mutismo, Zebedeu uniu-se à polémica, oferecendo o seu critério pessoal. Para ele, a hora do Mestre chegou depois da execução de João, no mês de tammuz” (Junho). Bartolomeu recusou a ideia do seu companheiro, alegando que Jesus deu-se a conhecer no baptismo do Jordão, no sebat (mês de Janeiro). Para Maria, influenciada por aquele dia de glória, a consagração de seu Filho como Messias dera-se em Fevereiro, nas bodas de Caná. Não houve maneira de unir vontades. No fundo, todos tinham uma certa razão. No entanto, o meu objectivo fora, em boa medida alcançado. Ainda que fosse imprescindível aprofundar as minhas investigações alguma coisa se esclareceu: o Rabi fora baptizado por João em Janeiro de 26. Um mês depois, em Fevereiro, era o milagre do vinho. E, pelo que parecia, embora ninguém o recordasse com precisão, a partir dos últimos dias de Junho desse mesmo ano de 26, consumada a morte de João, “o anunciador”, Jesus de Nazaré, e o seu grupo lançar-se-iam abertamente pelos caminhos do país, inaugurando um tempo de pregação e de milagres que concluiria com a morte do Senhor, em Abril de 30. Se não fosse a perna doente do Urso e as dores que o martirizavam, aquela quinta jornada, diferente das anteriores, teria podido classificarse como um autêntico e delicioso passeio. Mas, ao cabo dos cinco quilómetros e meio, os céus reservavam-nos outro sobressalto...
Devia ter calculado. Depois de quase nove horas de viagem intensa e acidentada, aquele momento de descanso não era normal. E, ao pisar o caminho poeirento que subia para Caná, branca e próxima, o optimismo dos peregrinos desfez-se em fumo perdendo-se no céu tempestuoso e ameaçador daquela segunda-feira, 24 de Abril do ano 30. E surgiu a tragédia. Quem isto escreve viu-se perante outro amargo transe... Certamente, nada daquilo teria acontecido se o confiante Bartolomeu, em vez de deter o seu passo desigual, tivesse continuado para Caná, ponto final da sua viagem. Mas, quem tem na mão modificar os desígnios da Providência? Dias mais tarde, ao regressar ao módulo e submeter o minúsculo disco magnético alojado na sandália electrónica ao processo de leitura e descodificação, Pai Natal confirmou, com minúcia escrupulosa, o local exacto onde se registara o lamentável incidente: a dezanove quilómetros e quinhentos metros do lago de Tiberíades. Tendo-se detido à vista da sua cidade natal, Bartolomeu, numa muito humana e compreensível explosão de júbilo, levantou os braços e, ao caírem-lhe sobre os ombros, as amplas mangas da sua túnica deixaram a descoberto os membros curtos, peludos e musculosos. Rodando nos calcanhares surpreendeu-nos com um dos seus inconfundíveis sorrisos: franco, interminável e desfeado por uma dentadura negra e cariada. Agradecemos a inesperada paragem. É possível que os relógios do módulo marcassem quase as quatro da tarde quando Maria, aproveitando o breve descanso, deixou cair o seu saco no chão. Num gesto muito feminino, sabendo que Caná se encontrava perto, procurou arranjar e alisar o cabelo. Soltou um grande sorriso e, penso que por casualidade, os seus formosos olhos amendoados foram descobrir alguma coisa na serena e dourada vaga de trigais, à esquerda da vereda por onde seguíamos. E com o seu característico estilo – por vezes perigosamente irreflectido – para lá se encaminhou. A princípio, nem Zebedeu nem Natanael prestaram muita atenção ao súbito afastamento da Senhora. Pelo espaço de alguns segundos permaneceu absorta num vibrante círculo de flores, nascido ao abrigo
das altas e prometedoras espigas de trigo. De imediato, certa do seu achado, se deixou cair de joelhos sobre o barro vermelho. E com a mão esquerda arrancou uns primeiros feixes de flores. Vi-a aproximá-las do rosto e, fechando os olhos aspirou a intensa fragrância. A tragédia estava prestes a consumar-se... Num desejo espontâneo e generoso de partilhar a sua descoberta, mostrou-nos o ramalhete de flores brancas, exclamando, alvoroçada: - São lírios! A alegria da Senhora era justificada. Aquelas flores silvestres, a que Jesus fizera referência, gozavam então de uma grande fama, sendo consideradas como presságio e símbolo da boa sorte. Mas naquele momento, contudo, a sabedoria popular não acertou. O Zebedeu replicou com um amável sorriso. Mas não se moveu. Quanto a mim, estive tentado a percorrer os três ou quatro metros que nos separavam da Senhora e a colaborar na apanha dos lilium candidum. Foi Bartolomeu quem tomou a iniciativa, precipitando-se para o trigal. Despiu o sebento chaluk e, feliz como uma criança, inclinou-se para as flores, apanhando não só os lírios mas também as anémonas azuis e violetas e os abundantes ranúnculos escarlates, que cresciam aos pares. Tremo agora, ao imaginar o que teria podido acontecer se me tivesse antecipado a Natanael... Pois bem, dispunha-me a interrogar o Zebedeu sobre o destino de tão copiosos ramos quando, de repente, Bartolomeu soltou um gemido abafado. Logo se pôs de pé largando o ramalhete. Perante a admiração geral, desembainhou o gladius, lançando uma forte espadeirada no chão. Uma nuvenzinha de poeira e de talos cortados se elevou, fugaz, entre as espigas sujando a túnica branca do discípulo. Maria, a uns dois metros, empalideceu. João e eu olhámo-nos, alarmados, sem entender. O golpe vibrado com ambas as mãos, foi tão violento que o ferro ficou cravado no barro. No entanto, em vez de o recuperar, Bartolomeu deu meia volta e dirigiu-se a nós, cambaleante. Assustei-me. Os olhos estavam desorbitados, vidrados e a face, como a da Senhora, tornarase leitosa.
Aterrorizado, estendeu as mãos para o Zebedeu, num mudo peddido de auxílio... João saltou para ele, agarrando-o e interrogando-o aos gritos. Maria correu também para os dois. ,; Bartolomeu, vítima de um forte choque em vão tentava explicar-se , limitando-se a mostrar a mão esquerda. Um suor abundante começou a correr-lhe das têmporas. Respirando com dificuldade sussurrou uma palavra que não compreendi. Pareceu-me hebreu... A Senhora, menos admirada que o Zebedeu e que este atónito explorador, tomou entre as suas a mão de Bartolomeu, examinando-a. Suponho que, ao reparar naquelas marcas, passámos os três pela mesma aguda sensação: um calafrio que nos percorreu e secou as gargantas. Incrédulo, desejando com toda a minha alma que aquilo não fosse o que imaginava, procedi também a um trémulo exame da mão do angustiado Natanael. Não havia dúvida. No peludo triângulo situado entre o músculo interósseo dorsal (entre os metacarpos dos dedos polegar e indicador) apareciam dois pequenos orifícios, separados por cerca de dez milímetros e dos quais brotava uma exudação de soro tingido de sangue. Logo por baixo destas marcas distinguiam-se uns círculos sanguinolentos, de uns quatro milímetros de diâmetro, aos quais se seguiam, também em paralelo, cinco ou seis incisões, quase imperceptíveis. Ou muito me enganava ou aquelas eram as marcas da dentada pelas presas superiores e inferiores de uma serpente... E o que era pior: de um réptil venenoso. Se se tratasse de uma serpente inofensiva, o ataque não teria deixado na pele os orifícios dos colmilhos nem as áreas circulares sanguinolentas, correspondentes às bolsas do veneno. O ponteado paralelo que se desenhava na continuação destas perfurações sangrentas , tal como teria oportunidade de verificar instantes depois, eram as marcas dos dentes inferiores, maxilares – não perfurados – e palatais, respectivamente. Zebedeu e eu trocámos um olhar. Inclinei afirmativamente a cabeça, confirmando os seus temores. E como um só homem, deixando Natanael nas mãos da Senhora, entrámos pelo trigal, onde continuava a espada. Quem dera que o destino me tivesse poupado aquela cena. Mas a sorte – em especial a minha – estava lançada... Entre os tufos de flores cortadas vimos agitar-se, nos últimos
estertores, as duas metades de uma impressionante víbora, de uns sessenta centímetros de comprimento, com a típica cabeça larga e triangular e duas pequenas protuberâncias, à maneira de cornos, na ponta do focinho. João, num ataque de histeria, começou a espezinhar a metade posterior. Cavalo de Tróia dedicara especial atenção ao nosso treino quanto a alguns dos muitos ofídios que infestavam a Palestina naquela época (1). *1 Naquele tempo, a população de viperídeos, em especial de víboras era consideravelmente superior à actual. Os tipos, no entanto, eram praticamente os mesmos. Os especialistas da operação classificaram-nos em oito grupos principais: Atractaspis engaddensis, Cerastes cerastes gaspereai, Cerastes vipera, Echis coloratus Pseudocerastes persicus fieldi, Vipera bornmullen, Vipera betina obtusa (também conhecida na Europa) e a referida Vipera palestinae. (N. Do M.)
Contudo, num primeiro momento aturdido pela tragédia, não soube discernir com clareza se se tratava de uma vipera xanthina (conhecida também como víbora palestina) ou da cerastes cerastes gasperetti. Para dizer a verdade, pouco importava a diferença. Ambos os viperídeos são qualificados como altamente perigosos. E embora a gravidade da mordedura dependa de múltiplos factores – quantidade de veneno inoculado, sua toxicidade, localização e natureza da dentada, idade, peso, saúde da vítima, etc. - o risco de morte para Bartolomeu, dadas as precárias condições médicas de que dispúnhamos, era grande. Os peritos sabem que os venenos das serpentes são talvez os mais complexos de todos os tóxicos animais (1). Quando penetram no sistema sanguíneo ou no linfático, os seus efeitos são devastadores. Neste sentido, os estudos de H. A. Reid são categóricos: Umas quinze gotas de veneno de víbora seriam fatais para um homem adulto; três gotas de veneno de cobra poderiam ser igualmente letais e uma só gota de veneno de serpentedo-mar acabaria com a vida de cinco homens (2). O problema era averiguar que dose de veneno podia ter recebido Natanael e como o neutralizar. Ajoelhei-me junto da cabeça da víbora, abrindo-lhe cuidadosamente as mandíbulas. Os colmilhos estavam intactos.
(Por vezes, por acidente, doença ou qualquer desarranjo no aparelho mordedor podem ficar inutilizados ou desaparecer total ou parcialmente, retirando eficácia aos ataques do ofídio.) As marcas da dentada fizeram-me pensar que a pardacenta víbora – uma cerastes cerastes, quase de certeza – tinha atacado numa característica acção de punhalada. Quando as mandíbulas se encontram completamente abertas, com um arco máximo de cento e oitenta graus, os colmilhos, que podem girar para trás e para a frente, colocam-se como um punhal, cravando-se na presa, o que comprometia ainda mais o estado do discípulo. Mas já pouco importava, o mais provável era que *1 Estes venenos contêm misturas de enzimas (proteases, colinesterases, ribonuleases e kialuronidases) bem como proteínas de tipo não enzimático, que penetram nos tecidos, sendo absorvidos pelos sistemas sanguíneo e linfático, provocando gravíssimos danos. Mas são as proteínas não enzimáticas – caso da crotamina, com um peso molecular entre dez mil e quinze mil – as que originam maior dano. No caso das cobras, o veneno, ao ter um peso molecular inferior ao das víboras, passa quase de imediato à circulação sanguínea, difundindo-se mais rapidamente que o dos viperídeos. Estes, regra geral, actuam mais sobre o sistema linfático. É comum a acção dos venenos agravar-se, em consequência da reacção da vítima, cujos tecidos se defendem soltando bradiquina e histamina, de natureza inflamatória. Ainda que cada família de serpentes venenosas possa oferecer um quadro diferente, os efeitos principais e mais generalizados dos seus venenos nos vertebrados são os seguintes: neurotóxicos (sobre o cérebro, medula espinal, terminais nervosos, etc.), sobre o coração e/ou o sistema respiratório, lesões no revestimento dos vasos sanguíneos que causam hemorragias, coagulação do sangue, inibição da coagulação do sangue (ambos os efeitos podem ser produzidos alternadamente por venenos de serpentes distintas ou, até, pelo mesmo veneno em circunstâncias diferentes), hemólise ou destruição dos glóbulos vermelhos do sangue e lesões gerais nas células e tecidos. (N. Do M.) 2 A maior parte dos estudiosos calcula que o DLSO (dose letal que mata cinquenta por cento de um determinado grupo de animais de laboratório num dado tempo) média do veneno de uma serpente é de 0,4 mg/kg. Consequentemente, uns vinte e seis miligramas de veneno teriam cinquenta por cento de probabilidades de matar um homem que pesasse sessenta e cinco quilos. (N. Do M.)
o impulsivo Bartolomeu, ao arrancar as flores, tivesse desalojado o viperídeo e este, surpreendido no seu habitat (geralmente passam despercebidos enterrando-se e deixando a cabeça de fora), houvesse replicado atacando. É frequente, uma vez vibrado o golpe, que a víbora
recue e se oculte. Mas Bartolomeu teve tempo de a cortar em duas. Tudo foi vertiginoso. A Senhora, com um grito, exigiu a presença do Zebedeu. E este, uma vez aliviada a sua fúria, de ânimo mais calmo, juntou-se aos companheiros. Natanael, de joelhos, a meio da vereda, continuava a suar abundantemente. Passados cinco minutos apresentava uns sintomas nada tranquilizadores. No lugar da dentada, o edema, de propagação rápida atingiu os quinze centímetros e a mão inchou muito. A dor, apesar da dificuldade de Bartolomeu para se exprimir, devia ser grande. E surgiram as náuseas. Verifiquei o pulso. Não enfraquecera excessivamente. Inspeccionei os olhos. Também não notei dilatação pupilar. A Senhora e o Zebedeu limitaram-se a enxugar o suor do amigo, observando os meus movimentos com inquietação. Foi numa destas explorações de rotina que, de repente, os meus olhos encontraram os de João. Em décimos de segundo fiquei consciente da minha situação. Arrastado pelo desejo natural de ajudar Bartolomeu não me tinha apercebido do erro em que estava a cair. Se a dentada era grave, como parecia, o discípulo podia morrer. Se algum dos vasos da mão tivesse sido atingido pelo ataque do réptil, o veneno podia afectar o mecanismo da coagulação do sangue, um efeito particularmente notório do envenenamento viperino. Estas lesões, por outro lado, dependendo da resistência da vítima e de outros factores, podiam originar uma falha cardíaca ou respiratória. Foi outra íntima batalha. Como médico, o meu dever era auxiliar. Como membro do Cavalo de Tróia, a minha obrigação estava perfeitamente traçada: observar, abstendo-me de intervir nos acontecimentos que pudessem modificar o natural devir da existência humana ou dos grupos sociais daquele outro agora. Ainda que fosse apenas a título de hipótese – os Evangelhos não são claros neste aspecto -, eu compreendia que Bartolomeu venceria a crise, encontrando-se presente nos futuros acontecimentos da chamada ascensão de Jesus, bem como na festa de Pentecostes. Ainda assim, uma vez mais, fui fiel ao estabelecido e, retirando as minhas mãos da extremidade superior do discípulo, cujo tecido subcutâneo, afectado pelo veneno, tinha começado
a descorar a pele, tomei a firme e penosa atitude de não actuar, pelo menos enquanto não notasse uma evolução favorável. Zebedeu, perplexo, interrogou-me com o olhar. Natanael continuava a gemer, cheio de dores, ou, o que era pior, cheio de medo. (Deram-se casos de pessoas atacadas por serpentes venenosas que faleceram devido a uma falha cardíaca, causada pelo terror.) Como única resposta, limitei-me a negar com a cabeça. E João, interpretando mal o gesto como um não há nada a fazer, explodiu, afastando-me com um empurrão. - Maldito pagão!... És um farsante! A Senhora baixou os olhos, partilhando – não sei muito bem – a justificada indignação de Zebedeu. E eu, ferido no íntimo, vi como se repetia a embaraçosa situação vivida na caravana mesopotâmica. Entre maldições, na sua maior parte dirigidas a este explorador, João pôs a mão do Urso sobre o joelho esquerdo. Pegando no gladius cuspiu-lhe na ponta, limpando-a com a orla da túnica. Ordenou à mulher que segurasse o pulso do companheiro e, sem perda de tempo, fez uma incisão linear nas marcas da dentada, ultrapassando-as ligeiramente e ferindo até uma profundidade de meio centímetro. Bartolomeu, ainda que amodorrado, reagiu e, com claros problemas de dicção, pediu ao seu companheiro que utilizasse a pedra. Zebedeu, apercebendo-se do seu erro, lançou nova praga, culpando-me pelo seu engano. E enquanto Maria rebuscava precipitadamente no saco de viagem de Natanael, o filho do trovão, cego de ira, foi cravar a espada entre as minhas sandálias fulminando-me com o olhar. O aparecimento de uma pedra negra de natureza vulcânica, com uns dez centímetros, nas mãos trémulas da Senhora cortou, momentaneamente, a perigosa violência do Zebedeu. Uma violência que, naturalmente, desculpei. O gladius a meus pés representaria a ruptura definitiva entre a maior parte dos discípulos e o grego de Tessalónica... Aqueles homens, que conheciam na perfeição os perigos dos caminhos de Israel, viajavam preparados para estas e outras contingências. A misteriosa pedra negra de tal era boa prova. João tomou-a nas mãos e, colocando-a sobre as marcas dos dentes
da víbora, friccionou com força a zona, escoriando a pele, a sangrar. Logo a seguir, inclinando-se para a ferida, sugou energicamente, cuspindo depois uma mistura de sangue e de líquido amarelento. Neste último reconheci o veneno da víbora. Instintivamente, pensei na boca de Zebedeu. Mas contive-me. Naquelas circunstâncias nem sequer teria escutado os meus conselhos. Se a língua ou as gengivas, por exemplo, apresentassem alguma lesão aberta, o veneno sugado poderia entrar-lhe no organismo. À primeira vista não parecia ser esse o caso. (Se o veneno era ingerido involuntariamente e entrava no estômago, era neutralizado.) Uma e outra vez, durante uns quinze ou vinte minutos, João de Zebedeu repetiu a frenética sucção. Ignoro se teve consciência de quanto foi decisiva a sua acção mas, a julgar pelos resultados, apesar dos riscos de infecção que sempre estavam ligados a este processo, uma importante dose de veneno foi retirada, reduzindo a toxicidade local e geral. Não posso ter a certeza mas na minha opinião, Natanael conservou a vida graças ao amigo. O problema, naqueles momentos cruciais, era averiguar a dose de veneno que se espalhara pelo antebraço e que vasos – sanguíneos e linfáticos – podiam ver-se afectados. As próximas seis horas seriam decisivas. Se Bartolomeu cuspisse sangue era sinal de que o veneno tinha circulado pelo corpo, atacando órgãos internos, tais como pulmões, intestino, etc. *1 Os interessantes estudos do cientista E. Kochva com a “víbora palestina” demonstraram que o veneno injectado em cada mordedura oscila notavelmente. Kochva levou as suas víboras a morder numa série de ratazanas mortas, calculando depois a quantidade de veneno presente em cada roedor, retirando o veneno da serpente no final da experiência. Os números foram eloquentes: no primeiro ataque, o ofídio apenas utilizou entre quatro a sete por cento do veneno total disponível. Nas mordeduras seguintes, paradoxalmente, o volume de peçonha foi superior. (N. Do M.)
Nessa fatídica suposição, dado não estar autorizado a ministrar-lhe um dos contravenenos que figuravam obrigatoriamente na minha farmácia de campanha, a evolução do envenenamento era imprevisível. Quando Zebedeu, depois de inspeccionar minuciosamente as últimas cuspidelas, achou que as sucções só traziam sangue, fez um torniquete
rústico com o lenço, uns dez centímetros acima da mordedura. O aspecto do Urso era preocupante. À palidez e às náuseas juntaram-se frequentes convulsões e algumas pequenas manchas na pele da mão, formadas pela efusão de sangue. O Zebedeu animou-o a levantar-se. Mas a sua fraqueza e o choque não lho permitiram. Ofereci-me para os ajudar. João, inflexível, baniu-me, ordenando que lhe entregasse o odre da água. Assim fiz. Maria, visivelmente preocupada, murmurou algumas palavras de alento ao ouvido de Natanael, retirando importância ao ocorrido. O seu tacto e prudência eram louváveis. Em tais circunstâncias a atitude mais sensata era justamente esta, a de tranquilizar a vítima e a de favorecer que se esquecesse da ferida. O Urso bebeu abundantemente e, quase aos empurrões, acabou por pôr-se de pé. O Zebedeu, passando o braço direito do vacilante e doente companheiro de Caná pela sua nuca, carregou com ele, pondose a caminho da aldeia. A Senhora e eu juntámos os sacos e, quando me dispunha a desencravar o gladius de João, este, voltando a cabeça, avisou Maria para que não esquecesse os restos da serpente. A Senhora empalideceu, olhando-me, suplicante. Precisando de me sentir útil, mesmo que fosse apenas como recolhedor de imundícies,, poupei-lhe o sofrimento. Ao empacotar as duas metades da víbora entre os lírios abandonados perguntei-me que utilidade podia ter aquilo. Depois de recuperar a espada preparei-me para os seguir, lançando-me naqueles dois quilómetros e meio que nos separavam de Caná. O meu ânimo – para quê escondê-lo – estava muito por baixo. Consciente da importância de cada minuto, o Zebedeu forçou a marcha. Mas o caminho, difícil em subida implacável e as dificuldades de Natanael constituíram um empecilho e um sofrimento adicional ao seu estado nervoso. Vi-o parar. Tropeçar. Recuperar o alento. Carregar uma e outra vez o amigo enfraquecido e, finalmente, quando quase tínhamos atingido a cota dos quatrocentos metros, cair. Maria, ofegante, *1 Entre os fármacos obrigatórios nas nossas deslocações figuravam dois poderosos contravenenos, preparados na Alemanha e testados pelo Paul-EhrlichInstitut, do Departamento Federal para Soros e Vacinas. Ambos convenientemente dessecados, tinham sido fabricados com base na proteína de cavalo (cento e
setenta miligramas) contendo anticorpos com efeito imunizante contra dezasseis tipos de serpentes venenosas, entre as quais se encontravam a cerastes cerastes, a cerastes vipera, a echis carinatus, a vipera xanthina, e a vipera levekna. A dosificação estabelecida por Cavalo de Tróia, em caso de mordedura, era de vinte a quarenta miligramas em caso de tratamento imediato e de quarenta a sessenta miligramas ou mais para tratamento posterior ou quando se apresentassem os sintomas de envenenamento. Estes soros extraídos de cavalos que foram imunizados com os venenos das serpentes agressoras, continham a imunoglobina, conseguida mediante o tratamento e a separação fraccionada das enzimas. (N. Do M.)
correu em auxílio de ambos. Mas o peso do Urso excedia as suas poucas forças. João, caído a meio do caminho, estreito e pedregoso, banhado em suor, respirava dificilmente, vencido por aquele quilómetro e meio de subida fatigante. Caná, alheia ao nosso suplício, avistava-se ao longe, assente sobre uma colina de uma altitude semelhante à que acabávamos de coroar. Segundo os meus cálculos, entre aquele ponto e o aglomerado de casas caiadas mediavam ainda cerca de oitocentos ou novecentos metros. Um percurso menos sinuoso mas cheio de pequenas e regulares canhadas que faziam saltar no caminho e sofrer o caminhante. Apesar de ser uma zona agreste, as terras apresentavam uma grande densidade de culturas. À direita, nos terraços em socalcos, cresciam o trigo e, em menor quantidade, a cevada. À esquerda da vereda, afastando-se para o cimo das suaves elevações, exércitos de oliveiras e de figueiras dominavam a paisagem, dando fé às palavras de Bartolomeu sobre a dourada abundância da sua terra natal. Mas a pausa forçada duraria pouco. De repente, Natanael começou a vomitar. Maria, assustada, suplicou ao Zebedeu um último esforço. Ela própria, dando o exemplo, agarrou o enfraquecido discípulo pelas axilas, lutando por o levantar. Quanto a João, física e psiquicamente esgotado, só conseguiu gemer, amaldiçoando a sua má estrela. Aquilo era demasiado para mim. Esquecendo o nosso código rigoroso, esquecendo tudo, afastei suave mas firmemente a mulher, carregando o Urso em cima do ombro direito, como se de um fardo se tratasse. Desta maneira, pouco ortodoxa, para dizer a verdade, lancei-me ao último troço, com mais decisão que fôlego.
A temperatura de Natanael apresentava-se oscilante. Não havia dúvida: a infecção continuava a propagar-se. Apressei o passo, respirando pela boca e, como disse, apoiado mais pela minha férrea vontade que pelo poder das minhas pernas. Assim, conforme pude, percorri os primeiros trezentos ou quatrocentos metros. A Senhora, apoiada ao infeliz Zebedeu, seguia-me à distância de uma pedrada. Embora não tivéssemos trocado palavra alguma supus que o lógico destino fosse a aldeia. Não foi exactamente assim. Ao sair de uma descida o caminho aplanou-se, apontando directamente para Caná. À direita e à esquerda, protegidos por muretes de pedra de um metro de altura, viam-se pomares de romãzeiras que, naquele tempo, honravam e tornavam célebre a cidade. Era esta, e não o vinho, como se pensa erradamente, uma das fontes de riqueza da região. Em Caná nunca prosperou a vinha. Centenas, talvez milhares de punicum granatum, referidas em Números (13, 23), de troncos densamente ramificados e folhas oblongas que não tardariam em povoar-se de vistosas flores encarnadas, verdejavam nas encostas, oferecendo abrigo a festivas calhandras e às tardias águasneves. Numa das minhas visitas a Caná, em pleno Verão, teria oportunidade de contemplar como muitos dos seus habitantes trabalhavam a casca deste delicioso fruto, preparando-a para posteriores labores de tinturaria. De repente, a uns trezentos metros das primeiras casas, Maria ultrapassou-nos, correndo e gritando um nome: Meir. Com o seu manto flutuando ao vento vi-a afastar-se pela viela que os parapeitos dos pomares formavam, gritando pelo tal Meir. Sem alento, sentindo como os joelhos começavam a vergar, lutei para ganhar aqueles derradeiros passos. Bem sabe Deus que tentei. Mas, tal como acontecera a João, as minhas forças eclipsaram-se e, antes que conseguisse pedir ajuda, tombei, arrastando o Urso, e o pesado corpo do discípulo imobilizou-me contra as pedras do caminho. Ferido no meu amor-próprio voltei-me, lutando para me libertar. Impossível. De bruços com os olhos e a boca cheios de terra e arquejando como um forçado das galés, as fracas tentativas para
afastar o Urso só conseguiram queimar as minhas últimas energias. Senti-me ridículo. Dali a pouco, o auxílio de João e do homem que vi correr ao nosso encontro salvariam tão grotesca situação. Quando consegui pôr-me de pé, o meu orgulho apresentava piores sintomas que a minha integridade física. Tinha falhado de novo... Cuspi o pó e a raiva que me secavam a língua. Desta vez fui eu quem renegou a sua péssima estrela. Providencialmente, a Senhora tinha alertado um indivíduo que agora, com o auxílio do Zebedeu, ajudava Natanael a andar. Com o corpo e a alma maltratados apressei-me a segui-los. Ao deixarem para trás os frondosos pomares, os três homens, precedidos por Maria, viraram bruscamente à esquerda, desaparecendo num casarão de altas paredes. Ao fundo da vereda, a uns duzentos metros, Caná estendia-se branca e silenciosa numa frente de quase um quilómetro. Tratava-se, sem dúvida, de uma localidade em desenvolvimento. Nesta altura, muito a meu pesar, quase não chegaria a pisá-la. Os próximos acontecimentos iam passar-se, fundamentalmente, naquela grande casa isolada onde vivia um dos galileus mais respeitados e queridos de toda a região e ao qual aludira a vendedora da encruzilhada de Lavi. Por volta das cinco e meia da tarde, a menos de uma hora do crepúsculo, sem saber muito bem o que fazia, atravessei a cancela de madeira, procurando não perder de vista os meus companheiros de viagem. Uma viagem que os imponderáveis tinham convertido num pesadelo. Talvez não devesse ter narrado tão acidentada travessia até Nazaré. Mas, obedecendo ao coração, achei por bem que quem venha a ler este relato partilhe também as penas deste explorador. Os lugares favoritos de Jesus? Houve muitos. E aquele foi um deles. Quem teria imaginado que do outro lado daqueles grossos muros de pedras quadradas e negras se encontrava um dos cantos preferidos e habitualmente frequentados pelo Rabi da Galileia na sua passagem por Caná? Desorientado, não soube para onde olhar.
Bastou-me pisar o belo ladrilhado de gesso, que imitava madeira, e o ar deixou de ser ar, fazendo-me esquecer dores e desconsolos. Na minha frente abriu-se um denso jardim, povoado exclusivamente por rosas. Elevados canteiros de jardim escarlates, brancos, amarelos e rosados desenhavam os limites de um pátio no qual a bíblica vereda cantada no Eclesiastes parecia ser a única flor permitida. Trepando por paredes e caniços, erguendo-se sobre uma terra negra e esponjosa, enterradas em ventrudas vasilhas, em humildes vasilhas de barro ou em cisternas de basalto de todos os tamanhos, floresciam esplêndidas rosas de Sidónia, do Sinai, do monte Hérmon, caninas, phoenicias e outros exemplares silvestres que não soube identificar. Fiquei embriagado, quase hipnotizado, pelo feminino tremor das cores e pela serenidade daquela fragrância, a tal ponto que quase me perdi no apertado corredor que, simulando em labirinto, parcelava o bem arranjado lugar. Na zona ocidental do grande terreno levantava-se, como disse, um velho casarão, todo ele de pedra, cujo segundo andar fazia as vezes de parapeito, protegendo a delicada plantação dos temíveis e abrasadores ventos de poente. Para ali encaminhei os meus passos, penetrando numa sala escura situada no andar térreo. Cego pela claridade exterior, não reparei no alto degrau que dava acesso à sala e, desajeitadamente, perdendo o equilíbrio, fui bater com os ossos no pavimento de terra batida. Pela terceira vez naquela ingrata jornada rolei a todo o comprimento com o consequente estrépito. A minha apresentação ante o venerável Meir não pôde ser mais cómica e deplorável... Atordoado e vermelho de vergonha erguime com a mesma velocidade com que caíra. Mas a meio caminho, a luz amarelada de uma candeia saiu-me ao caminho. E uma longa mão, estendida com generosidade, ajudou-me a levantar. Agradeci o gesto, perscrutando o semblante do ancião que tinha na frente. O seu cabelo e barba, quase albinos, emolduravam um rosto alto e estreito, ligeiramente bronzeado e no qual dominavam uns olhos claros e confiantes. Sobre a túnica de lã, igualmente branca, reconheci a haruta, o pequeno ramo de palmeira que distinguia os médicos – ou antes, os auxiliadores – judeus. O seu nome era Meir um velho conhecido e amigo de Natanael e da família do Mestre. Os seus mais de
sessenta anos tinha-os passado, quase na totalidade, em Caná de Galileia, entregue ao estudo da medicina em geral e das rosas em particular. A sua eficácia como rofé – embora sempre repelisse este título – e a sua nobreza de alma tinham granjeado estima e uma fama que ninguém ousava discutir. Mas isto iria eu descobrindo pouco a pouco. Primeiro, nesta apressada visita e, mais adiante, ao acompanhar Jesus na sua vida de pregação. Ao notar a minha perturbação sorriu, tranquilizador, juntando novas rugas às muitas pregas do seu nobre rosto. Sem pronunciar palavra alguma perdeu-se nas trevas da casa. Segundos depois, a luz que trazia acendia as torcidas de outras candeias, estrategicamente penduradas das paredes, e a escuridão foi recuando, permitindo-me explorar o que constituía o local de trabalho do auxiliador: uma singular miscelânea de laboratório-biblioteca-hospital, reunidos numa galeria sem janelas, de quase vinte metros por uns seis ou oito de fundo. As quatro altas paredes, com excepção da porta de entrada e de uma segunda abertura praticada num dos cantos, à direita do referido acesso principal, estavam *1 Diferindo, por exemplo, dos médicos” mesopotâmicos, os Judeus, poderosamente influenciados pelo ambiente de rigor monoteísta no qual eram educados, não se consideravam como tais. Para eles, o único médico ou rofé era Yahvhe. A saúde dependia sempre da vontade de Deus. Daí vinha a razão por que os que praticavam a medicina se autoproclamavam “curadores ou auxiliadores”, mas nunca médicos,. Pretender o mesmo título que o Uno, teria sido uma blasfémia. Por isso, em qualquer passagem bíblica onde se fale de uma cura, deve entenderse como a vis medicatrix naturae, emanada do poder divino. (N. Do M.)
conquistados por uma rede de estantes de madeira, cheias de panelas, jarros, vasilhas e recipientes, muitos de vidro com inscrições em aramaico, grego e hebreu, gravadas ou pintadas. Anarquicamente guardados entre toda aquela louça, dezenas de pergaminhos, de couro e de pele, bem como poeirentas tabuinhas de madeira cobertas de gesso ou de uma cera negra e dura. (Diferindo das chamadas tabula ou tabla rasa, nas quais era possível voltar a escrever raspando ou vertendo uma nova camada de cera sobre a superfície, estas tabuinhas destinavam-se a inscrições
permanentes.) À minha esquerda, próximo do umbral que transpusera tão impetuosamente distingui Natanael, recostado numa esteira de folhas de palma e reconfortado pelos seus amigos. Sem ideias muito definidas quanto ao que devia ou podia fazer, permaneci junto da porta, espiando os pausados movimentos do auxiliador. Quando a luz mortiça, roubada ao azeite, foi suficiente para não tropeçar, sem pressa como se o problema de Bartolomeu não fosse com ele, começou a trabalhar na mesa de mármore negro que presidia à biblioteca. Verteu uma certa quantidade de azeite (cerca de um decilitro: o bastante para umas seis horas e meia) numa candeia de gesso, iluminando o tampo e a desordem que sustentava: frascos, alguidares e pequenas ânforas de dupla asa com formosas decorações vermelhas e negras em fundos brancos, que adivinhei repletos de bálsamos, beberagens, emplastros e inalações. Entre os instrumentos do boticário chamou-me a atenção uma urna de vidro, do melhor estilo herodiano, e várias bandejas de barro. A primeira guardava duas caveiras e outros ossos humanos, pertencentes a membros inferiores. Um sacrilégio como aquele só era possível na Galileia... Nas bandejas, muito apreciadas pelos Judeus devido à sua fraca absorvência, que tornava desnecessária a purificação ritual repousava o Hinstrumental cirúrgico: facas de pedra, de ferro e de bronze, serras curtas e dentadas, afiados escalpelos (de metal e de concha de tartaruga), tesouras de cirurgião, fórceps lisos etc. Numa das extremidades da caótica mesa de trabalho, dois moldes circulares, transbordantes de uma tinta negra e espessa (2). Ao lado, atadas num molho, as penas habituais: carriças (os calamus) cortadas obliquamente e fendidas, antepassados das actuais penas de metal, e esponjas indispensáveis para apagar a tinta. Enchida a candeia e acesa a lanterna que governava a mesa, Meir, sem perder o sorriso que o caracterizava, ajoelhou-se junto do doente. Confiou à mulher a sua pequena e inseparável candeia e, sem mais preâmbulos, *1 Ainda que os Galileus não fossem tão rigorosos em questões religiosas, a lei judaica, no cúmulo da sofisticação, fixava que os utensílios de madeira, de pele, de osso, de vidro, de barro e de alúmen, se fossem lisos, não contraíam impureza. Em contrapartida – como informa o kelim, ordem sexta - se formavam uma
concavidade, eram susceptíveis de pecado. A tinta usada tinhha diferentes origens. Na sua maioria preparava-se à base de fuligem, proveniente de fornos de mármore nos quais se queimava pinho. Misturava-se este com cola e, uma vez seco ao sol, adoptava a forma de blocos fáceis de diluir. De um modo geral, a tinta escolhida pelos copistas e escribas não continha cola, mas sim goma, com uma infusão de absínho – de sabor amargo – que protegia os rolos dos ataques dos roedores. (N. Do M.)
com movimentos calculados, inspeccionou a mordedura e o edema. Lenta, silenciosa e prudentemente fui-me aproximando do grupo. Não desejava intervir. Apenas presenciar a actuação do curador. Ao verificar o pulso e a temperatura, a paz daqueles olhos azuis fraquejou fugazmente. Mas, logo, com uma sabedoria nata ou aprendida nos seus longos anos de combate à doença, de novo ela voltou, tranquilizando o olhar incisivo de Maria. A respiração de Bartolomeu, talvez por se saber nas mãos de Meir, recuperou um ritmo aceitável. Abrindo-lhe as pálpebras, explorou as pupilas. A Senhora, atenta, aproximou a candeia do pálido rosto do Urso. O seu pulso, trémulo, não passou despercebido ao ancião. A midríase ou dilatação de ambas as pupilas estava normal. Era um bom sintoma. E Meir, afastando com doçura a mão que segurava a luz, perguntou a Maria: - Filha, quem é o doente?... Ele ou tu?.. A Senhora baixou os olhos, desculpando-se. E o Zebedeu, devorado pela impaciência, apressou o auxiliador com uma insolência semelhante àquela que eu tinha suportado na altura do incidente. Meir não mudou de atitude. Como única resposta, sem perder a compostura, ordenou-lhe que aquecesse àgua. João obedeceu, dirigindo-se ao canto esquerdo da quadra, e quem isto escreve sentiu-se satisfeito perante a firmeza e tolerância daquele homem. O auxiliador dirigiu as mãos para os músculos intercostais e para o diafragma do discípulo. Apalpou e, satisfeito, gracejou, chamando-lhe glutão. Calculei que não tivesse encontrado sinais de curarização ou paralisação dos referidos músculos. A astúcia e conhecimentos do rofé entusiasmaram-me. As troças ao ventre avantajado de Bartolomeu, além de aliviar a tensão do
momento, continham outra escondida intenção: verificar os possíveis transtornos na dicção. E o de Caná, com algumas dificuldades na pronúncia, abusando da sua amizade com o ancião, mandou-o para o inferno. Meir deu-se por satisfeito. Regressando à mesa de mármore pegou num pequeno punção, que aproximou da chama da candeia. Depois de o ter desinfectado e arrefecido, ajoelhou-se novamente na frente do doente, praticando uma série de meticulosas picadas no edema que deformava a mão. Ao tocar na área da mordedura não obteve reacção de Bartolomeu. A acção neurotóxica do veneno tornara insensível aquela parte. Felizmente, não aconteceu o mesmo no resto do inchaço. Natanael acusou dor. Torceu a cara e amaldiçoou a raça do curador. Por último, Meir, depois de imobilizar a extremidade superior, provocou uma minúscula ferida na pele do antebraço. Umas gotas de sangue, provenientes dos capilares, apareceram de imediato entre a abundante pilosidade. A hemostasia (coagulação) não se fez esperar. E Meir, soltando um suspiro, deixou-se cair, sentando-se nos calcanhares. Observou Bartolomeu e, dirigindo-se à mulher, formulou uma pergunta que, naturalmente, ninguém soube esclarecer: - Diarreias? Maria vacilou. E o ancião, destapando as pernas de Natanael, explorou o estado do seu seq ou tanga. Negou com a cabeça e dando uma carinhosa palmada na cara do discípulo, comentou divertido: - Parece-me que tiveste sorte... tampa de tonel. Os olhos de Maria iluminaram-se e Meir, levantando-se, encaminhouse para o canto onde permanecia o Zebedeu. A Senhora, então, ajoelhando-se, pousou a cabeça do ferido no seu regaço, afagando-lhe o cabelo e convidando-o a descansar. Ainda que uma taquicardia parecesse afastada de momento, a tranquilidade era muito aconselhável, principalmente para evitar o aumento da absorção produzido pela vasodilatação. Devorado pela curiosidade procurei conhecer os movimentos seguintes do rofé. Ao canto destacava-se, avermelhado, um forno de tijolo de oito bocas. Numa delas, ao cuidado de João, fervia uma marmita de cobre. O ancião, contente ante a fervura da água, pediu ao Zebedeu que
continuasse atento, evitando que as chamas se apagassem. A seguir interrogou-o quanto aos restos da víbora. Apontando para Maria, João fez ver a Meir que era ela quem os recolhera. A Senhora, por sua vez, enviou o ancião para este desolado explorador. E digo bem: desolado, porque o molho de lírios que envolvia o ofídio desaparecera. O mais provável era que se tivesse soltado do meu cinto quando caí no pomar das romãzeiras. As minhas desculpas foram entendidas e aceites por Maria e pelo auxiliador. João, em contrapartida, profundamente magoado com este “farsante”, voltou à sua cólera, descarregando em mim uma cruel intolerância. A minha aparente mansidão acabou por exasperá-lo, exigindo a Meir que me expulsasse de sua casa. Foi a única vez que vi endurecer o rosto do ancião. Recriminando o discípulo por tanta violência, lamentou que tão rapidamente tivesse esquecido as palavras do seu defunto rabi. Maria e eu entreolhámo-nos. O velho e bondoso curador de Caná - que partilhava a filosofia do Filho do Homem – não parecia estar informado dos últimos e prodigiosos acontecimentos. Era lógico. As notícias sobre a Ressurreição do Galileu e das suas aparições ainda não tinham chegado à remota aldeia. Uma chispa de alegria clareou o verde-erva dos olhos da Senhora, mas, quando se dispunha a anunciarlhe a boa nova, Meir, voltando as costas ao confuso Zebedeu, pediu-me que desculpasse o seu jovem e fogoso amigo. Concordei sem reservas. E o rofé, recuperando a placidez, interrogou-me sobre as características da serpente. Fingi não as recordar com exactidão, insinuando, intencionalmente, o pormenor dos cornos... Foi suficiente. Identificou a víbora, lamentando a perda. Segundo disse, este tipo de ofídios, previamente cozinhados, dava um excelente resultado como antídoto contra a lepra. Dadas as suas notáveis virtudes como curador acreditei que o verdadeiro interesse pela cerastes cerastes não se fixava exclusivamente no discutível remédio contra as lepras, mas sim nas vantagens que, de um ponto de vista médico, podia trazer a identificação e exame do animal. Esquecendo o incidente, suponho que comovido com a minha docilidade perante o ataque de João, pegou na candeia que voltara a
encher, fazendo-me sinal para que o acompanhasse. Encaminhou-se para as estantes ao fundo da sala e, iluminando de baixo para cima, retirou um dos rolos. Consultou a inscrição existente numa das extremidades e, certo da escolha, regressou à mesa. O livro, confeccionado em papiro de Sais, mais estreito e económico que o real ou Augusta, estava armado à maneira egípcia: com as folhas cosidas umas às outras, formando uma longa tira que se enrolava em dois paus cilíndricos. E à luz da lâmpada o foi desenrolando com a mão esquerda, olhando a apertada grafia grega, ao mesmo tempo que, com a direita, ia enrolando o que lia e consultava. Ao fim de poucos minutos detinha-se numa série de colunas. A página em questão apresentava várias ilustrações, que descreviam as partes mais destacadas das rosas. Ao notar como me inclinava por cima do seu ombro, tentando ler, Meir, tão curioso como eu, perguntou se me interessava a ciência de Cratevas (1). Recuei prudentemente, com um aceno afirmativo de cabeça. E colocando-me o rolo nas mãos convidou-me a desenrolá-lo. Antes de poder agradecer-lhe a confiança, rodeou a mesa e saiu para o jardim. O livro, pelo que pude ler, era uma cópia dos fecundos trabalhos feitos sobre botânica do mencionado Cratevas e, muito especialmente, em relação às supostas propriedades curativas e medicinais das rosas (1). Nesta fonte se inspirariam outros grandes da Antiguidade, tais como Plínio, Dioscórides, Teofrasto e Galeno, entre outros, bem como os botânicos de Grete e Ascham, em 1526 e 1550, respectivamente. As descrições do botânico grego, muito cingidas à verdade, pareceram-me deliciosas. Chegava a classificar trinta tipos diferentes de drogas, todas elas derivadas das rosas. Como Plínio, qualificava-as de adstringentes e refrescantes. Descrevia os processos para obter o suco benéfico, garantindo que eram recomendáveis para dores de ouvidos, úlceras bucais, gargarejos, transtornos do recto, do útero e do estômago, enxaquecas febris, náuseas, insónias, irritações da parte interior das coxas, inflamação dos olhos, escarros sanguinolentos, menstruação dolorosa ou irregular, dor de dentes, diarreias, hemorragias e um etecétera tão grande que, praticamente, enchia os seis metros de que constava o livro.
Depois de dar prolixos conselhos sobre as virtudes destas plantas, horas do dia a que era conveniente colhê-las, destilar e macerar as suas pétalas, Cratevas gastava dezenas de colunas em mais dois singulares capítulos: a cosmética e a gastronomia. O método para obter a célebre água de rosas, um dos perfumes mais solicitados nos tempos de Jesus pareceu-me especialmente interessante. O ingrediente básico eram as pétalas da damasco, uma das rosas, de origem persa, de aroma mais penetrante. “Colocam-se em água límpida”, rezava o papiro, “num recipiente de madeira, que se deixa destapado aos raios do sol durante alguns dias. As gotas de óleo que vêm à superficie serão recolhidas em almofadinhas de lã, que depois serão espremidas para um frasco, selando o recipiente...” Por último, as possibilidades gastronómicas das rosas – hoje praticamente desconhecidas – eram enumeradas com minúcia, elogiando o requinte do mel, sobremesas e bebidas que com elas se podiam obter *1 Cratevas, conhecido por Rhizotomus (cortador de raízes,), foi um célebre botânico grego, médico do rei Mitrídates Eupator II da Pérsia (século I a. C.) ao qual dedicou dois géneros de plantas. (N. Do M.) 2 Um dos pratos mais wlgares era a compota, leve e nutritiva, confeccionada com as rosas mais fragrantes, colhidas – segundo a tradição – de manhã cedo. Lavavase e secava-se à sombra, em tiras de linho, juntando água e mel, em proporção ao peso das pétalas. Cozinhava-se depois numa vasilha, mexendo com uma colher de pau até engrossar. Por vezes juntavam-se umas gotas de limão, a fim de aumentar a sua adstringência. Esta compota era guardada em frascos de vidro ou de barro, selados com cera. Os doces à base de pétalas em pó era outra especialidade muito cotada. Preparava-se uma massa com água e umas gotas de limão, aquecendo-se até obter a cor desejada. A massa era estendida e cortada em pequenas pastilhas, que eram servidas numa bandeja de madeira. O mel de rosas – uma das fraquezas” de Jesus de Nazaré – elaborava-se colocando as pétalas e o mel em camadas sucessivas. Depois, aquecia-se a vasilha, fazendo com que o aroma das rosas fosse absorvido pelo mel. Passada uma semana eram retiradas as pétalas. Os Romanos – segundo conta Apicius no seu livro de cozinha De re coquinaria – gostavam de juntar às sopas, carnes e peixes um pó de pétalas que proporcionava um requintado sabor aos manjares. E o mesmo acontecia com as saladas, nas quais se incluíam pétalas trituradas ou frescas. Também as bebidas, principalmente nas mesas mais luxuosas e exigentes, contavam com o concurso da Hágua de rosas”. Servia para diluir o sumo de romã ou para perfumar os de amoras. O chá de rosas, por outro lado, era muito apreciado entre os Orientais. Confeccionavam-no com pétalas secas. Estes pratos, além do seu sabor
agradável, continham importantes quantidades de vitaminas, sais, fósforo, cálcio e ferro. A rosa silvestre (Canino), para citar um exemplo, encerra vinte vezes mais vitamina C que a laranja, sem mencionar as vitaminas A, B, E e K. Quanto ao vinagre de rosas, obtinham-no introduzindo rosas vermelhas ou brancas num recipiente com vinagre comum. (N. Do M.)
No futuro, este incomparável rolo seria de grande utilidade em momentos muito delicados da operação... O ancião voltou com um pequeno cesto a transbordar de rosas vermelhas, brancas e outras de uma belíssima cor ferrosa. - Cada uma – comentou enquanto as desfolhava – tem o seu valor. Estas – sentenciou, referindo-se às pétalas vermelhas – as mais fortes, ajudam a conter um ventre solto. Estas – apontou as de tonalidade branca – têm um efeito... A voz autoritária do Zebedeu, anunciando que a água estava pronta, veio interromper as cordiais explicações do botânico. E concluindo o corte dos pecíolos, onde se concentrava o maior volume de humidade, almofariz na mão, empenhou-se numa hábil e rápida trituração das folhas. O passo seguinte foi a filtragem do suco, voltando a escudela de madeira em cima de um grosso pano de linho. O perfumado licor ficou guardado num segundo recipiente de bronze, preparado para o novo processo. Retirou a água do fogão e, muito habilmente, começou a misturá-la com o sumo de rosas, até a beberagem adquirir a espessura do mel. Por último, lançou na poção bocadinhos de juncos aromáticos, uns punhados de sais e uma generosa porção de etrog (o limão da festa dos Tabernáculos), que contribuiu para arrefecer o remédio e, ajudando Natanael a levantar-se, obrigou-o a ingeri-lo até à última gota. Viu-lhe o pulso, recomendando a Maria que, caso fosse necessário, lhe enxugasse o suor. Esfregando as mãos com satisfação voltou ao papiro de Cratevas. Desta vez, preocupado com a evolução do discípulo, limiteime a observá-lo de longe. A chama que se agitava na mesa transformou em ouro o seu cabelo e o silêncio encheu de paz o lugar. Terminada a consulta dirigiu-se a um dos sombrios cantos da biblioteca, pegando num bojudo frasco de vidro.
Dele retirou uma porção de pétalas secas e, submetendo-as ao fogo, reduziu-as a cinzas. Uma segunda viagem à estante terminou a manipulação. De uma vasilha de barro retirou uma colherada de gordura animal, espalhandoa com delicadeza num pequeno prato de madeira, e as cinzas foram misturar-se com a película fina e gordurenta. Como era de esperar, a fragrância das pétalas apossou-se da manteiga. Com a candeia na mão esquerda e a escudela na direita Meir foi ao encontro de Bartolomeu. Talvez fosse cedo demais para um diagnóstico, mas no meu fraco entender, o mal parecia regredir. Ignoro que efeitos conseguiu produzir a beberagem no organismo do doente. Do que estou certo, como já mencionei, é que o verdadeiro salvador foi Zebedeu... E cantarolando uma série de citações bíblicas, com o auxílio dos dedos besuntou a ferida com o oleoso e fragrante produto. “Yavé curou Abimelech” (Gén 20, 17).:. “Eu sou a força eterna, Eu sou Yavé que te cura” (Êxodo 15 26)... “Rogo-te Deus, que o cures agora!” (Números 12, 13)... “Eu firo e Eu curo” (Deuteronómio) 32, 39)... Coberta a mordedura e o edema, o ancião, cujo afecto pelos homens e pela mulher era tão antigo quanto a neve dos seus cabelos, cruzou o olhar com o da Senhora e, convertendo em bolinhas os restos da perfumada gordura, ofereceu o prato à mãe do Mestre. Os seus olhos faiscaram. Resoluta e alegre alisou com elas os cabelos de Natanael e, a seguir, a sua grande barba negra. Este costume, muito em voga naquele tempo, era partilhado por homens e mulheres, indistintamente. O portador, graças à fragrância do cabelo, tornava mais agradável o espaço à sua volta. Ao reparar em Zebedeu e em mim, a Senhora desculpou-se, estendendo-nos a escudela. João, vítima de uma das suas frequentes alterações de carácter, recusou a gentil oferta. Quanto a mim não soube que fazer. Animado pelo sorriso de Maria peguei no prato, tacteando a gordura com a polpa dos dedos. Maria, divertida, adivinhou a minha falta de habilidade. Disse-me que me inclinasse e espalhou e desfez as bolinhas no meu cabelo, esfregando-o com ternura. E a minha profunda solidão viu-se notavelmente aliviada.
Pelas 18 horas e 22 minutos, o ocaso, pontual, afundou Caná numa súbita escuridão. E o céu, inquieto e ameaçador durante todo o dia, abriu-se finalmente, precipitando-se para a terra em mansa chuva. A marcha para Nazaré foi adiada. Bartolomeu, mais sereno, caiu num sono profundo e reparador. Meir ausentou-se e, durante meia hora, nenhum dos três esgotados peregrinos trocou palavra. O Zebedeu, extenuado, acabou por se acomodar perto do fogão, não tardando em adormecer. Maria e este explorador, sentados um de cada lado do doente, gozámos o sussurrante lamento da chuva nas flores. Em muitas alturas os nossos olhares se cruzaram e num diálogo sem palavras interrogámo-nos mutuamente. Ao contrário do Zebedeu, no olhar de Maria não havia rancor. Pelo contrário: gentil, respondeu-me com um sorriso quente. Porém, a valorosa mulher, tão fatigada quanto os outros, viu-se atacada pelo sono e pelo cansaço, não podendo evitar um cabecear de quando em quando. No entanto, preocupada com o ferido, acabava por acordar, vigiando os panos que humedeciam as têmporas de Natanael. Pouco faltou para que me decidisse a falar, confessando-lhe a minha verdadeira personalidade e os meus propósitos. Só me detive à ideia de que as minhas frustrantes actuações durante o parto da nómada e no ataque da víbora pudessem secar tão vital fonte de informação sobre a chamada vida oculta de Jesus. Era muito o que restava por conhecer e ela e a sua família eram os depositários do grande tesouro. Não podia perder a sua amizade e, muito menos, a sua confiança... O regresso de Meir tornou inviável esta cada vez mais firme decisão. Contudo jurei a mim próprio que, à primeira oportunidade, lhe abriria o coração, explicando-lhe – tarefa nada fácil – quem era e a razão do meu cobarde comportamento. Quase o tinha esquecido. Contudo, o hospitaleiro rofé estava atento. Era o sagrado momento da ceia. Verificou a temperatura de Bartolomeu e, depois de nos convidar às obrigatórias abluções, colocou no pavimento uma bandeja generosamente sortida. Imitei Maria, lavando os pés e a mão direita (utilizada habitualmente para comer). Aguardámos respeitosamente que o ancião concluísse a sua rápida bênção e, enfraquecidos, demos boa conta do refrigério: ervilhas
fervidas em azeite, tortas de trigo, acabadas de cozer, figos, tâmaras, nozes – um dos meus frutos favoritos – queijo rançoso que, prudentemente, não comi, peixe salgado e vinho quente devidamente aromatizado, como não podia deixar de ser, com essência de rosas. Seguindo a recomendação de Maria, João não foi acordado. Satisfeita a fome, a conversa encaminhou-se para o tema predilecto dos presentes: o Mestre. A meia voz, alegrando-se com uma aromática taça de vinho, Meir lamentou que um homem capaz de fazer um prodígio como o de Caná não tivesse evitado uma morte tão injusta e humilhante. A Senhora e eu olhámo-nos de novo. E a mãe do Nazareno, agarrando as mãos do curador, perguntou-lhe se estava ao corrente das últimas notícias. Meir assentiu gravemente, relacionando essas novas notícias com a crucificação. Maria negou com a cabeça, informando-o atabalhoadamente das aparições registadas em Jerusalém, Betânia e das mais recentes, nas margens do yam. Os olhos de Meir, cheios de experiência, não se comoveram perante as palavras entusiásticas da amiga. Ouviu com atenção. Formulou algumas, muito poucas, perguntas acerca daquele corpo ressuscitado que nenhuma das mulheres reconheceu e, bebendo o seu vinho, resumiu o seu sincero e leal entender: - Minha fílha, ando há cinquenta anos entregue ao estudo da medicina e de outros saberes. Sei que o corpo humano tem duzentos e quarenta e oito ossos e que as veias principais são tantas quantos os dias que tem o ano. Abri cadáveres e posso assegurar-te que os seus despojos – o rofé apontou a urna das caveiras – continuam ali, comigo, e ali continuarão... Maria, perplexa, compreendendo as conclusões de Meir, interrompeuo, protestando. O ancião sorriu com benevolência e, afagando o cabelo da galileia, replicou sem maldade, mas com uma firmeza que não admitia discussão: ...todos lhe sentimos a falta. E todos, Maria, desejaríamos voltar a vê-lo. Mas, que eu saiba, os mortos não regressam... Nem sequer os profetas. A atitude do auxiliador de Caná, homem culto, equilibrado e amigo da família, constituía o modelo de pensamento da maioria dos homens e
mulheres daquele tempo em relação à ressurreição de Jesus. Os crentes, baseados na leitura evangélica, podem pensar que o indubitável facto físico do regresso à vida do Galileu foi coisa aceite pela comunidade judaica. Grave erro. Só os muito íntimos, e com dificuldade, aceitaram essa árdua realidade. Os outros incluindo familiares, amigos e pessoas de toda a confiança, fervorosos adeptos, até, do Filho do Homem, não puderam ou não souberam aceitá-lo. Os problemas dos escassos defensores da ressurreição, longe de se dissiparem com as aparições, viram-se dolorosamente complicados. Esta conversa foi o exemplo da permanente luta que os discípulos e a Senhora teriam de travar. Uma luta que só o difícil exercício da fé podia transformar em vitória. E se aquele homem, como sucedia com Meir, era, além disso, um cientista, fazê-lo crer só com factos indesmentíveis; nunca com palavras ou testemunhos mais ou menos empenhados. Já alta noite, a Senhora rendeu-se ao cansaço. Abatida, adormeceu, descansando a cabeça no peito de Natanael. Meir sugeriu-me que dormisse umas horas. Mas, intrigado pela personalidade e pelo saber de tão singular personagem, declinei o paternal convite, incitando-o com as minhas perguntas a entrar nos assuntos que me interessavam. Naturalmente que ouvira falar das milagrosas curas de Jesus. Ali mesmo, do outro lado da povoação, na casa de Natham, alguns servos e Maria garantiram que a água de seis cubas se tinha convertido em vinho. - Eu, querido e curioso amigo – justificou-se o ancião -, também provei o sumo da videira. E posso assegurar-te que era excelente... Mas, embora reconheça o poder do Rabi da Galileia, não consigo entender o prodígio. Já o ouviste da minha boca: só acredito no que vejo... e o que vejo não vale a pena. É muito possível que, do ponto de vista de um homem que observa e estuda a Natureza, muitas daquelas curas tenham sido apenas produto da fé das pessoas. Os meus métodos e medicamentos são racionais. Ou será que me consideras tão néscio que vá tratar o mal de Bartolomeu tal como indica o livro sagrado? Isso foi posto de parte já em tempos de Ezequias... O curador fizera uma clara e corajosa alusão a Números (21, 9), onde
se diz: “Fez Moisés uma serpente de bronze e pô-la num mastro. E se uma serpente mordia num homem e este olhava para a serpente de bronze, ficava com vida. A prudência e objectividade de Meir que eu compartilhava, em boa medida, animaram-me a sondar os conhecimentos da medicina que praticava, a qual, em traços largos, representava a ciência mais séria e avançada dos curadores judeus contemporâneos de Jesus Cristo. Ainda que as influências mesopotâmicas, gregas e egípcias fossem, inegáveis, o velho rofé de Caná, botânico, cirurgião, curador e investigador, tinha as suas opiniões próprias e muito pessoais, desconfiando, por exemplo, da eficácia de muitas das regras sanitárias que eram impostas ao povo na forma de cerimónias religiosas e que vinham dos obscuros tempos de Moisés. (Dos 613 preceitos e proibições da Bíblia, 213 são de natureza higiénico-sanitária.) Aceitava, no entanto, que o sangue podia ser o veículo da alma humana, mostrando-se em absoluta concordância com as doutrinas suméricas. Com infinito tacto, fingindo ser um leigo, ansioso de conhecimentos, fui aflorando pequenas e grandes ideias, sempre úteis na nossa missão. No capítulo do sangue, por exemplo, mostrou-se de acordo com as rígidas prescrições do Levítico, proibindo o seu derramamento e a ingestão de qualquer alimento ou bebida que o pudesse conter. (De facto pelo menos na teoria da lei, toda a carne devia ser sangrada antes do seu consumo.) Já não se mostrou tão de acordo em relação aos ridículos princípios dos astrólogos de Alexandria e de Babilónia, que fixam os domingos, quartas-feiras e sextas-feiras como dias propícios para as transfusões de sangue. Animado pela minha fingida perplexidade continuou atacando, mordaz, os que assim pensavam: - Sabes como justificam semelhante tolice? Porque às segundas e quintas-feiras – dizem – os tribunais do Céu e da Terra se encontram ocupados e Satã, na sua condição de príncipe dos demónios, permanece activo como acusador. - E porque não às terças-feiras? - perguntei com um assombro que lhe agradou. - Nesse dia, segundo esses loucos, o planeta Marte manifesta-se
especialmente agressivo. E têm o descaramento de recomendar a sextafeira como o dia ideal porque as influências astrológicas, nesse dia, são mínimas, com excepção da hora sexta... Meir, tal como a generalidade dos médicos judeus, conhecia a hemofilia, descoberta, muito provavelmente, no acto de circuncidar os recém-nascidos. Quando a enfermidade era detectada, a lei (Yebamot, 64.a) proibia novas circuncisões nessas famílias. E sabiam, naturalmente, que era a mãe a transmissora hereditária do problema. Como me mostrasse interessado nos ossos humanos que guardava na urna de vidro, Meir sorrindo picaramente, afirmou ser um auxiliador que trabalhava, tanto na teoria como na prática. E confessou ter retalhado um esqueleto completo, a fim de o estudar. Os seus conhecimentos anatómicos, no entanto, deixavam muito a desejar. Chegou a citar-me algumas vísceras e ligamentos ósseos; porém, confundia e identificava os músculos com um todo carnudo. O esperma humano, ante a minha surpresa, entrava plenamente no capítulo ósseo, sendo qualificado como osso imorredouro ou de luz. E ainda que naquele tempo já houvesse um notável conhecimento do processo de gestação, as propriedades do sémen, como veículo de transmissão da vida, eram praticamente desconhecidas. Com grande orgulho, Meir chegou a enumerar-me mais de quarenta doenças, tanto somáticas como funcionais, incluindo mal-formações e aquilo a que se chamava doenças cirúrgicas (1). Contudo, onde deu mostras de maior loquacidade e entusiasmo foi no relato dos seus *1 No banco de dados do Pai Natal, com base nos qualificados estudos de Sussmann Muntner e outros especialistas, figuravam as seguintes e mais destacadas enfermidades bíblicas: epilepsia, yeracón (icterícia), sehin poreah avabuot (pênfigo), zav (gonorreia), requevazamot (osteomielite), sivrón monrnáyim (lumbago), sanverim (amaurose), doc (coloboma), shavar (hérnia), harus (lábio leporino), pesuadaká (ectopia testicular), acar (esterilidade), casita (cirrose hepática), raatán (filariase), daléquet (inflamação), sapáhat (psoríase), gabáhat e caráhat (alopecia), saráat (lepra), bahéret (leucoderme), yabélet (acne), asévet (neurose), sarévet (escoriação), sahéfet (tuberculose), savur (fractura conminuta), harus (cisão), maúj (esmagamento) natuc (cortado), as ús (ferida contusa), sarúa (infectado), pasúa (ferido) karut (castrado), etc. Entre as enfermidades funcionais contavam-se também o pesar (deavón), o estouvamento (hipazón), a sensação de aniquilamento (kilayón) a cegueira espiritual (ivarón), a dor lombar (sibarón), o estupor (simamón), a embriaguez (sikarón), a alucinação (sigayón), a alienação
(sigaon) e a mania (timahón). Quanto aos defeitos ou mal-formações eram conhecidos com nomes que seguem o modelo piel: tolhido (iter), mudo (ilem), calvo (guibéah), corcovado (guibén), enfezado (guidem), gago (guimem), cego (iver), surdo (herés) e coxo (piséah). A este quadro havia que acrescentar um não menos extenso rol de epidemias e doenças infecciosas. (N. Do M.)
ensaios e experiências. Aquela sala, como eu suspeitava, era o seu beta de sãisã ou sala de operações. Ali, segundo me revelou, levara a cabo todo o género de trepanações, amputações e extirpações, incluindo uma cesariana. Aturdido, não me atrevi a entrar em pormenores. Timidamente, isso sim, solicitei o seu critério quanto a prioridades, em caso de risco de morte. Em tal caso, quem devia ser salvo: a mãe ou o feto? Astuto, refugiou-se na norma, confirmando o que já sabíamos através do escrito em Yebamot: a vida da mãe tinha sempre preferência. Naturalmente, a sua farmácia encerrava abundantes e poderosos narcóticos, tais como as solanáceas beladona, meimendro e mandrágora, que, mercê do seu conteúdo de alcalóides tropânicos, lhe permitiam anestesiar os pacientes. O audaz rofé tinha suturado centenas de feridas, refrescando previamente os bordos. E tinha notícias, ainda que não tivesse chegado a semelhantes excessos, da recente abertura artificial do ânus de um recém-nascido. Atrevera-se, sim com a introdução de sondas de fibra vegetal pela garganta e com a castração de porcas para a ceva, deduzindo, a julgar pelos resultados nos animais, que a extirpação do útero da mulher – contrariamente ao pensamento judaico – não era causa de morte. Segundo comentou, estas experiências, como muitas outras, tinham sido realizadas previamente por médicos e cirurgiões na Alexandria. Contrariamente ao que hoje possamos imaginar, muitos destes auxiliadores, embora ignorassem quase tudo sobre a estrutura, e funções do cérebro, sabiam ou intuiam que o pensamento e a razão humana tinham a sua sede em tal órgão. No entanto, estavam convencidos de que as cefaleias e infecções de nariz e dos ouvidos tinham a sua origem nos maus ares. Acreditavam igualmente que muitas das doenças dos pulmões, do fígado e dos intestinos eram provocadas por vermes. Meir dedicou uma longa conversa à maldade do sal e aos transtornos digestivos, causados – segundo ele – pela falta de líquidos.
Também a retenção da bile, confirmou o ancião, era causa de icterícia e retenção da diurese, de hidropisia. Falámos do medo e das palpitações cardíacas e das alterações de pulso que podem ocasionar. E o meu assombro não teve limites quando ao falar-me das funções de bomba do coração, já muito conhecidas naquele tempo, o desconcertante galileu me disse que eminentes colegas seus tinham conseguido descobrir o volume de sangue contido no corpo humano. Não consegui que me revelasse o método em questão, mas as quantidades eram bastante exactas: à volta de dez log (uns cinco litros) para o homem adulto e um pouco mais de seis log (uns três litros) para uma mulher de estatura média. Infelizmente, tais dados eram pretendidos por outra crença, muito pouco científica. Para os médicos judeus do século I o peso do homem era constituído, fundamentalmente, pela água e pelo sangue. Se o indivíduo era justo, ambos os elementos apareciam em partes iguais. Se, pelo contrário, era um pecador, a água dominava sobre o sangue, convertendo-o num “hidrópico”. Em caso contrário, também por causa da sua iniquidade a pessoa era vítima da lepra. Nesta rede caótica de verdades e de superstições, um dos aspectos mais bem conhecido pelos auxiliadores de Israel era a fisiologia da menstruação. Havia muito que, devido às proibições bíblicas, este tema fora exaustivamente investigado, ainda que, com a passagem dos séculos, chegasse a converter-se num pesadelo pelo menos pelos ortodoxos da lei (1). Basta dizer que a menstruada judia era considerada impura pelo período de sete dias, durante os quais era proibido toda a relação carnal. Falámos sobre a perigosidade das epidemias, transmitidas em certas alturas pelas caravanas que atravessavam o país, por alimentos em mau estado, pelas moscas e pela péssima educação sanitária da população que não distingue entre água verde de um charco e a pura e cristalina de um poço. - A grande maioria – exagerou – morre por causa dos seus próprios erros e da sua desconfiança pelos auxiliadores. Talvez neste último aspecto tivesse razão. Durante muito tempo a
profissão de curador figurou entre os ofícios desprezíveis Pouco a pouco, a honradez e eficácia de homens como o rofé de Caná limaram receios e susceptibilidades, até ao ponto de, tal como assinala o Sanhedrin, 17 b, no tempo de Jesus Cristo ser proíbido viver numa cidade, povoação ou comunidade onde não houvesse um auxiliador. Como é natural, esta norma nunca chegou a cumprir-se à letra... Contudo a figura do médico foi adquirindo prestígio e, o que era mais importante, confiança. A lei atribuía-lhes honorários, estabelecendo que um médico que tratasse sem cobrar, nada valia. Havia auxiliares destinados aos lugares muito concretos com a exclusiva missão de avaliar as indemnizações correspondentes em casos de acidente. O exercício da profissão encontrava-se bastante bem regulamentado. E ainda que a política de fazer vista grossa já fosse inventada, cada rofé necessitava de uma autorização especial para trabalhar como tal. O caso dos médicos estrangeiros era outro. Os judeus mais rigorosos aclamavam pela sua perseguição e desterro. No escrito Baba cama (85. ), pode ler-se a este respeito: “Uma pessoa não deve permitir que a trate um médico que atravesse todo o país proveniente de terras estranhas, pois este não conhece suficientemente as características do meio ambiente e as influências climatéricas”. Razão não lhes faltava, mas, como em tudo, entre os curadores pagãos existiam os bons e os maus. E a gente simples não queria saber da lei sempre que o estrangeiro demonstrasse saber do ofício. As consultas destes médicos, judeus ou gentios, faziam-se nos locais mais inesperados: nas praças públicas, nos mercados, no templo, nas estalagens e no próprio domicílio do rofé. Acorriam até lá os pacientes, *1 O capítulo dedicado na Misná à menstruada (nidá) abrange um total de dez partes, repletas com as mais absurdas expressões, que hoje envergonhariam os mais liberais defensores dos direitos da mulher. No caso das filhas dos Samaritanos, o fanatismo religioso judeu chegava a considerá-las menstruadas e impuras desde o berço. (N. Do M.)
formando longas filas, e, tal como hoje acontece nas clínicas e nos hospitais, comentando entre si os respectivos males. Alguns auxiliadores, não todos tinham o costume de visitar ao domicílio, convertendo-se, com o andar do tempo, em amigos da família.
Se a povoação em que um médico se estabelecia era suficientemente importante, a lei exigia-lhe ainda um atestado dos vizinhos próximos da sua consulta autorizando-o ao exercício da profissão no referido lugar. A razão era óbvia; em muitas alturas, o agrupamento de doentes às portas da casa do rofé provocava discussões ruídos e incómodos que podiam alterar a paz da vizinhança. O índice de doenças era tão elevado que nada tem de especial que massas doentes, ao terem notícia de um rabi autor de maravilhas, como Josefo qualifica o Mestre, o perseguissem sem trégua. É conveniente ter presente este aspecto particular da situação médico-sanitária da população judaica para compreender, na sua justa medida, o que aconteceria na vida pública de Jesus. Pelo que já sabíamos e pelas interessantes manifestações do meu novo amigo, a medicina judaica, desde os tempos do Antigo Testamento, podia qualificar-se como eminentemente preventiva. E ainda que estas medidas se baseassem em normas e princípios ético-religiosos, não há dúvida de que, em muitas ocasiões, foram de grande eficácia. A higiene corporal rezava uma máxima do Avodé zoará (20 b), conduz à higiene espiritual. Efectivamente, embora os médicos sérios trabalhassem com tratamentos mais ou menos racionais e científicos (dietas, compressas frias e quentes, suadouros, curas de repouso, banhos de sol, mudanças de clima, ginástica, sangrias, massagens, hidroterapia, psicoterapia, etc.), a Lei vigiava muito estreitamente o cumprimento da pureza, tanto em relação ao homem como a animais e coisas. A higiene chegava a abranger a construção de cidades, estabelecendo redes de esgotos e locais muito específicos para o abastecimento de água ou a construção de cemitérios. Em caso de epidemias ou doenças contagiosas, as populações eram isoladas e as roupas e utensílios fumigados, lavados ou incinerados. Os Judeus sabiam que, se aparecesse a peste, desinteria, etc., tinham de evitar as aglomerações nas ruas estreitas, a utilização de pratos, talheres, roupas ou alimentos que pudessem ter permanecido em contacto com os infectados, procurando não sair de suas casas durante quarenta dias. Era proibido cavar poços nas imediações dos cemitérios (Tosefta, Baba batra, lb) e cisternas. A água tinha de ser
fervida quando se tinha a menor suspeita de contaminação. A carne, embora o seu consumo não fosse frequente entre as classes pobres, tinha de ser cozida até os parasitas ficarem destruídos (assim reza o escrito Sanhedrin, 9.a). Desde tempos imemoriais, a carne cozida que não tivesse sido consumida ao segundo dia tinha de ser queimada. Naturalmente, quem dispunha de tal luxo e não era um fanático da Lei não tinha muito presente a proibição bíblica... Outro preceito, muito espalhado entre os Judeus e que nos chamou a atenção ao longo de toda a nossa exploração na Palestina, aludia aos beijos na boca. A lei recomendava evitá-los, na previsão de contágios. Era porém bem visto que o homem beijasse o homem na cara, na testa ou nas costas da mão. O beijo nos lábios à mulher, pelo menos em público, era causa de escândalo e, em certas ocasiões, de repúdio. Neste interessante capítulo da higiene, Meir dignou-se ilustrar-me com uma interminável sequência de máximas, extraídas na sua maioria, do saber popular e que, com o tempo, seriam incluídas nos escritos rabínicos. Eis algumas das que mais me impressionaram: “A lavagem matutina de mãos e de pés é mais eficaz que todos os colírios do mundo” (Sabat, 108.a) “A alteração de um costume é o começo de uma enfermidade”. (Kebtubot, 100.a); “Bebe apenas água fervida” (Trumot, 8); “O que exagera o jejum, será considerado pecador” (Taanit, 11.a) “Pode profanar-se o sábado por causa das parturientes, queiram elas ou não. É de exigir e de recomendar uma limpeza escrupulosa do colo uterino dilatado” (Sabat, 29.a)1. As exaustivas considerações do meu anfitrião sobre as excelências médicas da comunidade hebraica não podiam concluir-se sem um grato cântico às virtudes medicinais das rosas, sua grande especialidade. A excelente palestra, no entanto, bem cedo acabou. E não porque fosse esse o seu desejo, mas sim por causa do cansaço que eu já manifestava. Mesmo assim, alguma coisa consegui reter no meu cérebro. O botânico confessou ter ganho bom dinheiro com a cosmética e perfumaria derivada da destilação das pétalas. Uma vez incineradas, a
cinza resultante era muito apreciada para embelezar as pestanas. - O próprio Herodes, o Grande – insinuou secretamente -, achou por bem experimentar a minha mercadoria... Ah!, Jasão que seria do mundo sem perfumistas? Tudo na Natureza tende para o equilíbrio. Nós – sentenciou -, os perfumistas, somos o regalo de Deus, bendito seja o Seu nome. Os curtidores, em contrapartida, ensombram a Terra. Além da água de rosas obtida fundamentalmente por destilação, Meir confeccionava e comercializava outro produto - a pomada de rosas – igualmente apreciada pelas mulheres e pelos homens. Suponho que, animado pelo vinho, acabou por confessar-me o segredo do seu fabrico: Quatro medidas de cera mole derretida numa libra de óleo de rosas. À mistura junta-se a correspondente medida de água e o resultado é aquecido a lume brando até ganhar uma natureza translúcida. Com ela, ajudado por meio log de água e vinagre de rosas, dá-se fim ao processo, resultando um unguento que rejuvenesce a cútis. A pomada em questão, à maneira de máscara, era consumida por homens e mulheres das classes média e endinheirada, preferentemente antes de dormir. Também, o sabão vegetal, de uso comum e a que se juntava cinza de madeira, apresentava uma dose rica de água de rosas, perfumando-o e tornando-o mais atraente. Ao referir-se ao método de destilação – um processo que se supõe inventado em Espanha por volta do século x (2) – roguei-lhe que me desse mais pormenores. *1 Muitas destas curiosas e saudáveis sentenças seriam recolhidas anos mais tarde pelo notável judeu emuel ben Aba Hakohén, que viveu em 165-257 da nossa era. Também conhecido como emuel Yarhinaa, desempenhou o cargo de médico pessoal do rei persa Shapur. (N. Do M.) 2 Segundo os especialistas, as primeiras destilações conhecidas foram levadas a cabo em Espanha por um médico judeu: Ibn Zohar, de Sevilha. Outros técnicos opinam que o inventor foi Rhazes, de origem árabe. Seja como for, o certo é que o processo se propagou rapidamente. Primeiro em França e depois em Marrocos. No século xvII, os Turcos semearam os Balcãs com extensos jardins de rosas, exportando a cobiçada “água de rosas,”. A Bulgária converter-se-ia no século xvI no principal produtor. A ela se seguiriam a Crimeia, a Turquia e o Cáucaso. A região de Grasse, em França, aproveitando-se do invento espanhol chegaria a ser uma grande produtora de água e óleo de rosas. A verdade, não obstante, é que a destilação, embora rudimentar, nasceu no Oriente. (N. Do M.)
Meir fez melhor do que isso. Com passo vacilante aproximou-se da mesa de mármore. Segui-o, intrigado. Ali, mostrou-me uma vasilha de bronze. Encheu-a de água até meio e, depois de nela esvaziar uma pequena ânfora cheia de pétalas, levou o recipiente ao fogão, aquecendo-o a lume brando. Tapou-o com uma tampa a que estava fixado um tubo em espiral também de bronze, de uns trinta centímetros. Algum tempo depois, um vapor oleoso começou a circular pelo rudimentar alambique, sendo recolhido, sob a forma de gotas, num frasco que fazia as vezes de condensador. Concluída a destilação, o ancião orgulhoso e agradecido por tão pacientemente o escutar, verteu a reduzida dose de água de rosas nas minhas mãos, exclamando: - É tua... As tuas mulheres dançarão amanhã de alegria. E, transbordante de felicidade – duvido que alguém alguma vez lhe tivesse prestado tanta atenção -, iniciou um lento e instrutivo passeio diante das estantes. A cada passo indicava um frasco ou uma cântara, anunciando o seu conteúdo com solenidade: “... Folhas secas de rosa para aliviar a inflamação dos olhos. “... Flores para adormecer e controlar a menstruação... Se se juntar vinagre e água, tanto melhor. “... Licor de rosas, com três de vinho, para a dor de estômago. “... Semente de cor açafrão. Ainda não tem um ano. Ideal para os molares. Não conheço melhor diurético. “... Inalação para o nariz. Liberta a cabeça e as más ideias. “... Coroas de rosas. Controla as diarreias. “... Rosas com pão. Santo remédio para os ardores estomacais. “... Pétalas em pó. Eliminam o suor. “... Hastes de rosa misturadas com banha de urso. Não conheço sarna que lhe resista. “... Seiva de rosas. Muito recomendado para o acne juvenil. “... Outra vez água de rosas. Para feridas e contusões. “... Essência de rosas. O melhor tratamento para a loucura.
“... Uma rosa branca, com todas as suas pétalas de um só lado. Proporciona um bálsamo que vence a apoplexia. “... Rosas vermelhas. Colocadas debaixo de almofada adormecem as crianças inquietas. “... óleo de rosas com pó de acácia. Esfregado no crânio acaba com as cefaleias. “... Óleo de rosas com sangue de crocodilo e mel. Ideal para a dor de ouvidos. “... Contra as doenças pulmonares, a tosse e a constipação. “... Para o controlo da sexualidade, das desordens do coração e das bebedeiras. “... Mel, clara de ovo e água de rosas. Há anos que o uso para curar a rouquidão e a falta de voz. “... Esta ajuda a conciliar o sono. “... Pétalas secas. Misturam-se com leite e pão para aliviar o mal de amores. “.. Perfume de rosas. Para os desmemoriados”. Mas Não sou capaz de recordar a totalidade das beberagens e poções enunciadas por Meir. Muitas, naturalmente de duvidosa utilidade. Pouco antes da vigília do canto do galo (pelas quatro horas), depois de verificar que a temperatura de Bartolomeu baixara, o meu incansável falador amigo retirou-se para os seus aposentos. E este explorador, sentado à cabeceira do ferido, precisou de algum tempo para adormecer. O cansaço, as emoções da viagem e a recordação do meu irmão entrecruzaram-se com tal poder que foi preciso recorrer a um profundo recolhimento mental e muscular para, por fim, recuperar parcialmente as forças. Que me reservava aquele dia que começava, de terça-feira, 25 de Abril?
25 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA O meu despertar nada teve de plácido. Estava prestes a amanhecer. Os cronómetros do berço deviam marcar as cinco ou cinco e meia da madrugada. Alguém me abanou pelos ombros e, mergulhado como estava, nos abismos do sono, não tive consciência de onde nem com quem estava. Adormecido, com a vara de Moisés entre as mãos e arrebatado ainda pelas cenas de um terrível pesadelo, em que o módulo lutava para atravessar uma tormenta infernal (reminiscência, sem dúvida, dos grandes momentos vividos no voo sobre o mar de Tiberíades) perguntei – em inglês! - se o Mestre se encontrava a bordo. Ao distinguir o rosto perplexo de Maria, que tentava acordar-me, tive consciência do novo e involuntário erro. - Jasão, que língua é essa?... Vamos, está na hora de partir. A pergunta, graças a Natanael, ficou momentaneamente sem resposta. De pé, com o semblante fresco como a brisa que entrava pela sala, apoiando-se levemente nos ombros da mulher ajoelhada, entrou em cena com uma das suas habituais piadas: - É a primeira vez que vejo um maldito grego a dormir na companhia de um bastão... Com os olhos fitos nos da Senhora, embora escutando o gracejo do Urso, desculpei-me com um esboço de sorriso, que não destoaria num idiota. Não havia dúvida. Catorze horas depois da mordedela da víbora, o discípulo encontrava-se francamente recuperado. Superada a crise, voltava a ser o que sempre era: tagarela brincalhão, sonhador e ingénuo como uma criança. Nunca ele o soube mas, ao vê-lo restabelecido , alegrei-me muito no meu íntimo. E esquivando-me deliberadamente da pertinaz e intrigada Maria refugiei-me em
Bartolomeu, examinando a sua mão esquerda e interrogando-o quanto ao seu estado. O edema inicial quase desaparecera embora reconhecesse que ainda sentia picadas e dores na área da mordedura. A temperatura e a pulsação estabilizadas eram outro saudável sinal do recuo da infecção. O mesmo se podia dizer da sua dicção e ritmo respiratório. Mas, quando me dispunha a examinar-lhe as pupilas, João de Zebedeu, do canto onde crepitava o fogão, gritou-me que não tocasse com as minhas mãos cobardes no seu companheiro. E a tensão do dia anterior adensou-se na penumbra da sala. Obedeci, apesar do olhar atónito de Bartolomeu, que, logicamente, não se lembrava do que acontecera ao pé do trigal. A entrada de Meir, a que se seguiu a de mais quatro homens, aliviou o transe. Eram irmãos de Natanael. Todos vizinhos de Caná. Prudentemente, com a sabedoria que a experiência proporciona, o ancião auxiliador combinara com a Senhora e o Zebedeu que, até ver qual a evolução do ferido, era mais sensato não avisar a família. Entre outras razões por que o pai de Natanael de cama havia meses, piorara de modo preocupante. Umas quatro semanas depois, recentes ainda os misteriosos acontecimentos de Pentecostes, o discípulo receberia a triste notícia do falecimento de seu pai. Feliz, Bartolomeu foi beijando e abraçando cada um dos seus irmãos, gracejando com o réptil que o atacara e que comparou a certos prebostes das castas sacerdotais, responsáveis pela morte do Senhor. Pondo a balançar o sebento saquinho com ovos de gafanhoto, que trazia suspenso ao pescoço, troçou carinhosamente de Meir, recordando-Lhe o poder dos amuletos. O ancião calou-se, aceitando bem as graças do seu amigo. Pouco importava que assim acreditasse. Ele e eu sabíamos quanto a morte andara perto... O reconfortante pequeno-almoço – à base de leite quente com mel e pãezinhos de trigo – melhorou o ambiente, proporcionando-me um novo dado sobre a fraca ou nula acção do tóxico inoculado pela cerastes cerastes. Natanael, faminto, devorou a sua ração sem o menor sinal de disfagia (deglutição defeituosa). E pelas 5 horas e 42 minutos os primeiros raios de sol romperam no horizonte, iluminando o jardim com um halo escarlate. As chuvas
recentes, respeitosas para com o tesouro de Meir, tinham animado os maciços, abrindo dezenas de botões, abençoando a terra e saturando o ar com uma sinfonia de aromas que, não tardaria, atrairiam zumbidores bandos de insectos. Silenciosamente, sentindo em mim o plácido olhar do rofé, prometi voltar. O beijo da paz pôs ponto final à nossa estada na casa de altas paredes. E às portas de Caná, rumorosa e alaranjada à saudação da alvorada, Bartolomeu e os seus despediram-se de Maria, do Zebedeu e de quem isto escreve com um optimista até sexta-feira. Nessa data, como se disse, abandonaríamos Nazaré e, passando pela aldeia do Urso, iríamos buscá-lo, seguindo depois rumo ao lago. O céu, com grandes abertas, prometia um dia quente. Foi pena não entrar na povoação. Aquela pequena cidade – não saberia explicar por que motivo – atraía-me intensa e especialmente. Penso agora que, em boa medida a causa se encontrava no meu espírito científico. Ardia no desejo de voltar atrás e ver o falado milagre do vinho. Algo tão aparentemente concreto e susceptível de análise não podia escapar ao nosso método. João e a Senhora, conhecedores do terreno, pouparam tempo, rodeando Caná pelo flanco oriental. E ágeis, com o espírito pletóricoespecialmente Maria -, gozando a fragrância do olival que nos acompanhava à esquerda, percorremos os quinhentos metros que nos separavam de uma das três veredas que uniam a aldeia ao resto do mundo. Este caminho nascia ao sul da povoação e, evitando uma acidentada e fértil área de pomares, trepava na direcção sudeste, bifurcando-se a uns dois quilómetros. Naquele ponto, o ramal da direita girava quarenta e cinco graus, perdendo-se na direcção sul. Bastou pisar a estreita vereda, roubada a um monte baixo e abrupto, e logo o terreno, acidentado e convulso nos arredores de Caná, se mostrou tormentoso, cheio de barrancos e em constante subida. O Zebedeu, com razão, forçou a marcha, aproveitando a frescura do amanhecer e das cúpulas verde-negras dos bosques de alfarrobeiras e robles do Tabor, que, com as suas majestosas copas, que chegavam a ter vinte metros de circunferência, desenhavam contínuos túneis, onde se
aninhavam assustadiças perdizes e barulhentas pegas. Em poucos minutos, com um João intratável à cabeça, carregando o odre de água de que não quisera separar-se, Maria ao centro, pensando no regresso a casa, e este explorador fechando o grupo, atento às possíveis referências geográficas, Caná ficou para trás, como um ninho branco entre verduras. À nossa direita, iludindo vales e desafiando as encostas arborizadas, acompanhou-nos durante vinte ou trinta minutos uma conduta de água a céu aberto, construída em pedra branca calcária, porosa, soldada com argamassa. A obra, que subia até uma cota de 532 metros, abastecia de água as quase dezoito mil almas que residiam na cidade de Nazaré e os pomares e plantações próximos; em especial, os situados no lado sul. Não é preciso dizer que o aqueduto era um ponto de referência indispensável para os viajantes. A cerca de dois quilómetros da povoação o caminho dividia-se em dois (1). E o Zebedeu, sem hesitar, sem olhar para trás, dando como certo que o seguíamos, meteu pelo da direita. A paisagem não variou muito. Os bosques de carvalhos do Tabor, que dominavam as colinas até uma altitude de quinhentos metros, foram rareando, em benefício das quatro espécies de terebinto, próprios da zona. Trinta minutos depois da nossa partida de Caná, quando já tínhamos percorrido mais de dois quilómetros e meio, a vereda desembocou numa planície estreita muralhada pelo verde luminoso de uma colónia de terebintos de cascas exsudadas, nas quais a prateada e aromática terebintina se espalhava ao sol nascente. A clareira era dominada por um penhasco, avermelhado pela aurora, do qual brotava caudaloso manancial. A água *1 Caná da Galileia – localizada uns novecentos metros a oeste da actual Karf Kanna – dispunha de três acessos ou caminhos importantes. Um situado a norte, que, tal como o vindo de leste, desembocava na via ou rota principal (a de Tiberíades), e um terceiro – o que ia para Nazaré – que começava ao sul da povoação. Os limites da cidade propriamente dita podem ser localizados actualmente num lugar denominado “Karm er-Kas” já existente no período do Bronze. Nas primeiras décadas do século xx, tomou forma uma versão que tentava associar a cidade do milagre do vinho a Kâna-o-Jelil, ao norte da planície de EI Buttauf. A pretensão era absurda. Kâna-o-Jelil encontra-se onze milhas a noroeste de Nazaré e quase a cinco da
cidade de Séforis, numa ladeira tão inclinada quanto rochosa, sem água e muito insalubre. (N. Do M.)
Naquele tempo, caía de cinco metros de altura, sendo recolhida num tanque semicircular, que funcionava como albufeira, de onde saía o já mencionado aqueduto. A cota referida – 532 metros – permitia o rápido e permanente escoamento de água até Caná e imediações, a uma distância de quatrocentos metros. Junto à penha, vencida pelos anos e pelos ventos, aguentava-se com muita dificuldade uma cabana de troncos, com telhado de palha e giestas, tão abertas que deixavam a descoberto uma base de terra batida. À porta do refúgio, um homem de meia-idade, sentado à turca, seguia os nossos passos com receio. Mas o Zebedeu avançou seguro detendo-se junto da albufeira. Saudou com um murmúrio o indivíduo que cortês, replicou com uma leve inclinação de cabeça. Enquanto o discípulo se empenhava a encher o odre, Maria, adiantando-se até à cabana, desejou a paz ao seu proprietário. Depois, como se de um velho costume se tratasse, deixou nas suas mãos uma lepta (um oitavo de asse: trocos de cobre), aguardando em silêncio. E o homem, que era o funcionário guardião do serviço de águas de Caná, desapareceu no interior da cabana, voltando imediatamente com um pucarinho de barro na mão esquerda e uma candeia acesa na direita. Entregou-os a Maria e, ao que parecia com pouca vontade de falar, voltou a sentar-se à porta do abrigo, atento aos três forasteiros. O Zebedeu, com o odre em bandoleira, aproximou-se da Senhora e ambos seguidos pelo olhar atento do funcionário, atravessaram a clareira na direcção oeste, detendo-se no limite do bosque. Ali, entre os troncos dos terebintos mais avançados, erguia-se um rústico altar de um metro de altura, construído com lajes de calcário sobrepostas. Maria alongou o braço esquerdo até à ara, abandonando o púcaro na sua superfície. O recipiente continha uma substância amarelada, em forma de lágrimas, que, num primeiro instante, me lembrou o incenso de África. Não estava enganado. E passando a candeia ao Zebedeu, este aproximou a chama das lágrimas, que arderam imediatamente com uma luz branca. Uma coluna de fumo espesso esbranquiçado, de aroma penetrante e muito agradável, ergueu-se para os terebintos sagrados.
Aquela, efectivamente, era uma das árvores míticas do povo hebreu e aquela uma cerimónia não menos ancestral, conservada com respeito e amor pelos Galileus. E João, elevando os braços, entoou uma passagem do Génese: - Assim deram a Jacob todos os deuses alheios que havia em poder deles, e as argolas que estavam nas suas orelhas... E Jacob escondeuos debaixo de um elah que estava junto de Siquem. Concluído o breve cântico, coube a vez à senhora. Contudo, em vez de recitar uma passagem bíblica, deixou-se arrastar pelo seu coração valente e sensível, *1 O nome bíblico do terebinto – Elah – tal como o do roble - Allon ou Elon – provém da palavra hebraica EI (Deus) e estava associado ao poder e à força. Ambos eram reverenciados e nos seus bosques iam a sepultar os seres mais queridos e respeitados. Em numerosas passagens bíblicas há referências ao terebinto: um anjo apareceu a Gedeão debaixo de um terebinto (Juízes, 6, 11); Jacob enterrou os ídolos de Labão debaixo do terebinto de Siquem (Génese, 35, 4); Saul e seus filhos foram enterrados junto da referida árvore (1 Reis, 10, 12); David deu morte a Golias no vale do Terebinto (1 Samuel, 17, 12); e Absalão, filho de David, morreu quando o cabelo se lhe enredou nos ramos de um terebinto (II Samuel, 18, 9). (N. Do M.) elevando, com o incenso, uma prece que, em parte, me era familiar: ... Pai nosso, que nos criaste, arrancando-nos como uma centelha eterna do teu coração... Que estás nos céus... Que estás nos céus limitados de cada dor e de cada doença... Que estás no sangue que se derrama... Que estás no céu sem distâncias do amor... Santificado seja o teu nome... Santificado e repetido com orgulho, com a satisfação do filho do poderoso... Venha a nós o Teu reino... Chegue aos homens a sombra da Tua sabedoria... Venha a nós a brisa que impele a vela... Venha depressa o sinal de Teu Filho, meu chorado Filho, venham a nós as outras verdades do Teu reino... Faça-se a Tua vontade na Terra e nos Céus... E que o homem saiba compreendê-lo... Que os espíritos conheçam que nada morre ou muda sem o Teu conhecimento... Que não percamos o sentido da Tua última palavra: Amai-vos... Faça-se a Tua vontade, ainda que não a entendamos... O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Dá-nos o pão da paciência e o do repouso... Dá-nos o pão da
alegria dos pequenos momentos... Dá-nos o pão das promessas... Dános o pão da coragem e da justiça... E o fogo e o sal da companhia... E também o pranto que limpa... Dá-nos, Pai, o rosto sem rosto da tua imagem... E perdoa as nossas dívidas... Desculpa os nossos erros como o pai esquece a maldade do filho... Perdoa as trevas do nosso egoísmo... Perdoa as feridas abertas... Perdoa os silêncios e o rumor das calúnias... Perdoa a nossa pesada carga de desconfiança... Perdoa a este mundo que, à força de solidão, está a ficar sozinho... E não nos deixes cair em tentação... Livra-nos da cegueira de coração... Não nos deixes cair na tentação da riqueza, nem na miséria e estreiteza de espírito... Livra-nos, Pai, de toda a certeza e segurança materiais... Livra-nos. Um profundo silêncio encerrou a oração de Maria. Que radical transformação a experimentada por aquela mulher, antanho oposta ao seu primogénito... Concluído o ritual, reatámos a marcha. A bela e pessoal adaptação do Pai-Nosso animou-me a tentar o diálogo com os que me acompanhavam, e durante um quilómetro tive um certo êxito. O Zebedeu voltou a distanciar-se, mas a Senhora, a meu lado, explicou-me que a primitiva oração – o Pai-Nosso – fora escrita por Jesus na sua distante juventude e quando ela, infelizmente, tinha os olhos do espírito fechados para a verdadeira missão de seu Filho. De repente, quando havia apenas quinze minutos que conversávamos, João parou. O abrupto terreno inclinava-se ligeiramente – talvez nos encontrássemos a uns quinhentos metros – e a vereda, a julgar pelo sol, começava a voltar-se para ocidente. Chegámos onde ele estava e, antes que pronunciássemos uma palavra, apontou para a esquerda da vereda, recomendando silêncio e precaução. Intrigado, inspeccionei o bosque e o alto mato que nos rodeava, seguindo a direcção apontada pelo discípulo. Mas nada vi de anormal. E continuámos a cammhada. Ao observar como o Zebedeu levava Maria pela mão, alarmei-me. Tinha avistado algum animal selvagem? Sabia da existência de ursos-pardos nos montes de Arbel, chegando alguns às quatrocentas e cinquenta libras de peso, mas não dispunha
de informação sobre a presença destas feras nas abruptas e solitárias colinas de Caná. Para dizer a verdade, os ricos e densos bosques, que se perdiam em todas as direcções, constituíam o refúgio ideal para ursos, hienas listradas, chacais, cães-selvagens, raposas, numerosos ofídios e, até, leopardos. Apurei o ouvido, mas só escutei o habitual ruído de fundo da floresta. Aquilo tranquilizou-me relativamente. A proximidade de uma ursa a que tivessem roubado a cria – acção muito espalhada entre os judeus e gentios de então, que faziam negócio com os ursinhos - teria alertado e posto em fuga a maior parte dos inquilinos da mata. Procurei não me afastar, afagando com a mão direita os dispositivos de defesa da vara de Moisés. Depois do percalço com a víbora não podia distrair-me... A vereda continuou a descer, até entrar numa garganta de altas paredes, que se prolongava por uns quinhentos metros. O discípulo apressou o passo, obrigando a Senhora a acompanhá-lo quase a correr. À direita e à esquerda, nos taludes, terebintos pendentes desafiavam a gravidade, auxiliados por cerrados matagais cinzentos de ezov, o conhecido arbusto bíblico, hoje conhecido como hissope sírio (1). A uns quantos metros, sobressaltou-me um eco. O Zebedeu, que devia tê-lo ouvido antes de mim, vacilou. Abrandou a marcha, mas, imediatamente, puxando pela mulher, lançou-se numa rápida fuga. Desorientado, rodei numa volta completa, em busca da origem daquele ruído cavernoso. Mas continuei sem nada ver. O instinto impeliu-me a imitar João. E, sem pensar duas vezes, com o medo a espicaçar-me as entranhas, lancei-me em perseguição do par. Não sabia o que se estava a passar, mas não tinha grande vontade de o descobrir. No entanto, as coisas não eram, não iam acontecer como imaginava... Mal tinha iniciado a frenética corrida, eis que uma sombra me surgiu pela esquerda, em pleno caminho. E o eco, ao chegar onde ele estava, tornou-se claro, profundo e, naqueles instantes, arrepiante. Só Deus sabe porque parei. Meio estrangulado por um terror absurdo e irracional, com a pulsação agitadíssima, recuei até ficar na frente da sombra. Os meus amigos estavam prestes a alcançar o final do pequeno desfiladeiro. O eco ressoava, nítido, no fundo da gruta que
tinha na minha frente. Naquele lugar, a garganta apresentava um vão de um metro de altura por dois de largura, meio fechado pela ramaria. E devagar, muito devagar, fui-me baixando, perscrutando a escuridão do buraco e tentando identificar os sons. Maria e o discípulo, a trezentos ou quatrocentos metros, faziam-me sinais, gritando qualquer coisa que não entendi. E quando me dispunha a afastar-me, convencido de que podia tratar-se da toca de algum animal, o eco, mais próximo, pôs-me os cabelos em pé. Qualquer coisa rastejava ou arrastava os passos pela terra, precipitando-se para a saída. Com a vontade e os nervos em desordem, tentei *1 No êxodo (12, 21-22), I Reis (4, 33) e nos Salmos (51, 7) entre outros textos bíblicos, há referências a esta planta, o origanum syriacum, que se atava formando uma espécie de escova, com ela se salpicando de sangue os dintéis e ombreiras das portas, quando uma casa judaica se via livre da lepra. Assim o ordenava no Levítico (14, 4). Também era utilizado pelos Samaritanos para espalhar o sangue do sacrifício pascal, na falsa crença de que a vilosidade dos caules evitava a coagulação. (N. Do M.)
recuar. Mas o bastão escapou-me dos dedos. Ao inclinar-me para o apanhar, no meio de grunhidos, cada vez mais próximos, julguei identificar um som humano: algo semelhante a um grito, meio lamento meio aviso... alguma coisa parecida com ame... Deus dos céus! Era, efectivamente, uma voz humana. Ao soar na boca da caverna, aquele ame, repetido insistentemente, fez-me compreender o que tinha na minha frente. Um novo ame (impuro) antecedeu a aparição de umas mãos e um rosto, parcialmente ligados com lenços purulentos e rasgados pela miséria, e os olhos de um velho, tão assustado quanto eu, que se cravavam em quem isto escreve. De gatas, da entrada, o infeliz voltou a gritar aquele impuro, em tom ameaçador. E uma imensa piedade veio substituir os meus terrores. O local, próximo do que hoje é conhecido como Ein Mahil, era o forçado reduto de um grupo de leprosos, vizinhos na sua maioria das aldeias e povoados limítrofes. A lei e os costumes obrigavam-nos a permanecer isolados e em caso de proximidade de caminhantes ou de núcleos habitados, a lançar aqueles gritos de advertência. Infelizmente, por causa da ignorância em matéria sanitária,
o termo lepra tornou-se extensivo a doenças e males que nada tinham que ver com o referido mal. “Como S. W. Baron demonstrou, nesta designação foram incluídas tuberculoses ósseas purulentas, elefantíases contagiosas, dermatoses, lepras de cabeça, (prováveis alopecias), queimaduras graves mal curadas e até inofensivas calvícies, em que apareciam manchas vermelhas ou lobinhos,”. No caso de que falamos, o ancião parecia apresentar uma verdadeira lepra. Por baixo dos farrapos manchas leitosas corroíam os tecidos das mãos e do rosto, desfigurando o pobre homem. Tratava-se, certamente, de uma das lepras mais generalizada na Palestina de Jesus: a mosaica ou branca, hoje conhecida como anestésica. Ainda que, obviamente, não tivesse oportunidade de a reconhecer, ao pôr-se de pé e ao observar as ulcerações e a paralisia que inutilizava alguns dedos, imaginei que a primeira lepra se encontrava associada à também infecciosa lepra tuberculóide. Nariz e faces – ou o que delas restava – apresentavam umas desiguais nodosidades em forma de bolsa, na sua maioria amolecidas, e outras em estado terminal, *1 Fazendo-me eco da qualificada opinião de Muntner, tendo em conta que a maioria dos termos médicos da Bíblia foi pessimamente traduzida, não é de estranhar que a palavra lepra” tenha sofrido idêntica sorte. Isto nota-se, em especial, na tradução de saraat, que não equivale a um diagnóstico determinado mas sim a um termo geral, aplicável a diferentes dermopatias contagiosas ou não contagiosas. A culpa tem de ser procurada na tradução da Septuaginta, onde se atribui à referida palavra o significado de lepra,. Em composição, a citada palavra possuía diferentes significados. Por exemplo: negá hâsará-at (infecção cutânea); saráat or habasar (cancro duro do pénis); saráat poráhat (leishmaniose); saráat nosenet (sifílis crónica); sarát bros (tricofitose) saráat maméret babégued (parasitose que se transmite pelas roupas); saráat habáyit (contaminação saprofitária das casas), etc. Isoladamente, no entanto, a palavra saráat teve também, a certa altura, o significado de lepra” (caso de saráat hamesah, ou lepra leonina). Nos capítulos xIII e xiv de Levítico são dadas minuciosas prescrições sobre as normas a seguir com os leprosos e as que eles próprios deviam acatar. (N. Do M.)
ou ulceradas. O seu aspecto famélico fez-me pensar também em graves lesões internas. Ou muito me enganava ou aquele infeliz estava
às portas da morte. Durante uns dois minutos o cadáver ambulante contemplou-me incrédulo. Porque não fugia? Para qualquer judeu, mesmo para o menos escrupuloso com a lei, a lepra, além de uma impureza, era a mais flagrante manifestação do pecado (1). Todo o leproso, pelo facto de o ser, era desprezado e repudiado, não só pelo risco de contágio mas também, especialmente, por ter caído em desgraça ante Deus. Auxiliadores, sacerdotes, ricos e pobres, judeus ou gentios todos procuravam afastar-se destes empestados, não lhes concedendo outro favor senão o de, lá muito de longe em longe, lhes lançarem aos pés uma ou outra fogaça de pão ou roupas usadas. Embora espere referirme a isso no devido momento, esta dramática situação tornou mais louváveis as audazes aproximações do Mestre aos leprosos. Comovido ante a insondável tristeza daqueles olhos negros – talvez tudo o que estava vivo no meio de tais despojos – sorri-lhe e, inclinando a cabeça, balbuciei uma saudação. O velho, ao notar a minha pronúncia, compreendeu. Agradecido pelo gesto de simples humanidade daquele grego, correspondeu com uma frase que não esqueci: - Não precisas de paz, amigo: ela vai dentro de ti. Não era a melhor altura para conversar sobre tão discutível afirmação. Com um gesto nervoso de despedida afastei-me. Mas, subitamente, levado por um dos meus perigosos impulsos, voltei atrás e deixei entre os cotos das suas mãos o frasco de vidro, presente de Meir. O leproso inspeccionou-o e, sem compreender, levantou os olhos para o enigmático caminhante. Encorajei-o a destapá-lo. Aproximando-o dos lábios descarnados arrancou com os dentes o pano de linho que o selava. A fragrância da água de rosas desconcertou-o. Suponho que tentou sorrir. Sem o conseguir, baixou o rosto e as lágrimas correram pelas ligaduras quase desfeitas. Jamais o voltaria a ver. Deixei para trás o desfiladeiro, impressionado pela triste sorte daquele homem e dos que certamente partilhavam gruta e doença. Um Zebedeu colérico aguardava-me no final da garganta. A sua companheira indo contra a opinião do discípulo, resolvera esperar por mim... Ao ver-me, João explodiu, chamando-me néscio, inconsciente, lastro inútil e pecador entre os pecadores. Deixei-o
desabafar. E enquanto subíamos uma nova ladeira, numa estéril tentativa de reconciliação admiti a minha fraqueza ao parar em frente da gruta, acrescentando que talvez as suas palavras não tivessem *1 Embora pense que nalgum ponto deste diário tenha de entrar a fundo no árduo capítulo das impurezas,, de grande importância para compreender o povo judeu, assinalarei agora, a título de síntese, as três categorias principais de impureza originante, que exerciam uma notável influência na vida diária daquela sociedade: impureza derivada de algo morto (cadáveres humanos, répteis mortos, carne podre de outros animais); impureza derivada do corpo humano vivo (menstruada, mulher com fluxo anormal de sangue, parturiente, homem com corrimento gonorreico, ejaculação de sémen e lepra); e impureza derivada de meios de purificação (vaca vermelha e outros sacrifícios expiatórios que devem ser queimados, água de purificação e macho caprino de Azazel). (N. Do M.) merecido a aprovação do Mestre. Fui feri-lo bem fundo, conseguindo, justamente, o efeito contrário. Julgo tê-lo dito. João de Zebedeu era um homem valente, rápido de reflexos, imaginativo, astuto, fiel, com frequentes variações de carácter e com um defeito que, com toda a certeza, o acompanhou até à morte: uma vaidade desmedida. Pois bem, ao escutar nos meus lábios pecadores a palavra rabi voltou-se contra mim como um gato, gaguejou e, crescendo para o meu metro e oitenta vociferou: - Quem és tu para falar no Santo?... Ele amava-me... Podes tu, grego cobarde e assustadiço, dizer o mesmo? Eu e os meus irmãos fomos ordenados na montanha de Nahum. Somos embaixadores. E quando Ele regressar arderás na geena... como aquele leproso impuro... O que peca contra o seu Criador recebe o castigo da doença... Maria tentou acalmá-lo. Mas João, transtornado, ordenou-lhe que se mantivesse longe daquilo. ...Olha-me bem, pagão ignorante, porque tens na tua frente um eleito do Reino. Podes encontrar em mim defeito ou doença que me faça pecador? Não sei onde fui buscar a paciência. Escutei em silêncio. Sem mover um músculo. E ao compreender que João tinha concluído o seu feroz discurso, a mim mesmo dei permissão, para, pela primeira vez na nossa aventura, confundir a sua soberba com algo que, havia algum tempo, lhe descobrira nos pés. Apontando para o chão, armado com o
mais cínico dos sorrisos perguntei-lhe: - Que me dizes dessas calosidades? Não são um flagrante sinal da intervenção de um espírito imundo? Entre as pessoas fanatizadas pelas normas religiosas, até um simples calo era motivo de vergonha. Yavé, proclamavam os ortodoxos da Lei, castiga com doenças o culpado, seja directamente, seja por meio dos anjos. Um corpo vicioso, em suma era o sinal de uma alma viciosa. Podia admitir-se que a origem do mal não fosse um pecado cometido pelo doente. Neste caso, o culpado, ou os culpados, tinham de ser procurados na família ou nos seus antepassados. Esta, nem mais nem menos, foi a filosofia que levou os discípulos a perguntar ao Rabi da Galileia quando, um determinado momento da sua vida pública, lhe apresentaram um cego: Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego? O meu sarcasmo abalou a veemência de Zebedeu. Mas, a partir daquele choque, Jasão, o grego filho de Tessalonica, foi riscado do seu coração. E os quatro escarpados, verdes e luminosos quilómetros que restavam até à aldeia de Jesus foram os mais tensos e intermináveis da nossa acidentada travessia desde as margens do lago... Pela minha parte, tudo ficou esquecido quando, aí pelas oito da manhã, ao chegar à altitude de 511 metros, o bosque se abriu e Maria, feliz, gritou o nome tanto tempo esperado: Nazaré, a branca flor entre colinas... Ofegantes e suados, obedecendo a um impulso comum, largámos os sacos de viagem, cativados por aquela interminável e montanhosa verdura. Hoje, Nazaré e os seus arredores não conservam a menor parecença com o vergel ondulado que então abraçava a pequena aldeia em que cresceu e viveu Jesus durante vinte e seis anos. Ao descobrir o cacho de casitas prateadas, à distância, juntas como pombas indefesas, ao pé de uma das elevações, protegidas por todo o género de plantações, pomares e bosques, o coração bateu-me com mais força. E uma íntima e grata emoção – prelúdio de novas e notáveis descobertas acerca da figura do Mestre – encheu a alma deste explorador ansioso. Num raio de um quilómetro, tomando como centro a povoação, cheguei a somar quinze suaves colinas, todas arborizadas ou salpicadas de oliveiras, vinhas, socalcos com florescentes e densos campos de trigo e de cevada, e dezenas de cabanas e de casas quadradas de um só piso, cuja brancura competia com a dos três
caminhos que abraçavam a base do Nebi Sain, o monte de 488 metros em cuja encosta oriental se refugiava Nazaré. Esta elevação, a mais airosa, um dos locais predilectos do Mestre, tal como os outros montes à volta, constituíam o fim da serra da Baixa Galileia, que acabava nas planuras próximas de Esdrelon, ao sul de Nazaré. Uma das três veredas mencionadas partia justamente da aldeia, rompendo pelos pomares na direcção sul, para Afula e as suas férteis planícies. A um quilómetro do núcleo urbano, este caminho bifurcava-se, desviando-se para ocidente, em busca de Jafa e das vias que conduziam à costa. A terceira via importante (não contando com a nossa, vinda de oriente) nascia, como a de Afula, às portas de Nazaré. Encerrada entre as colinas penetrava em direcção ao noroeste, rumo a Séforis, capital da região. À primeira vista, do sítio em que nos encontrávamos, a povoação apresentava-se perfeitamente ligada ao exterior. Certamente, Nazaré não se encontrava numa rota tão próspera e frequentada como a de Tiberíades. No entanto, a riqueza da sua agricultura, os caminhos cuidados que partiam do seu extremo oriental e a sua relativa proximidade de cidades mais célebres e populosas tinham-na convertido num lugar habitual e estimado pelos comerciantes, caravaneiros e grossistas de produtos do campo, que, com as récuas de burros, transportavam as colheitas, fazendo de intermediários com os mercados e retalhistas da região e, mesmo, com áreas tão afastadas como a Decápole a Pereia e a própria Cidade Santa. Neste aspecto, como fui comprovando reunia as vantagens de uma aldeia recôndita e aprazível, à margem dos tumultos de Nahum, para citar um exemplo mas, ao mesmo tempo, discretamente ligada ao que poderíamos considerar o progresso e a civilização exteriores. Como estão enganados aqueles que supõem ou imaginam Jesus desterrado durante anos numa povoação sem vida e sem relações. E falando de equívocos, quando iniciávamos a descida acudiram-me à memória aquelas dúvidas absurdas de alguns estudiosos das Escrituras e exegetas do século xx em relação à existência histórica de Nazaré. O facto de não aparecer mencionada nos livros bíblicos – afirmam estes sábios – leva a suspeitar de que se trata de uma invenção evangélica. O argumento, quando se conhecem os estudos e investigações de especialistas como Loffreda Manns Bagatti, Daoust, Testa, Viaud, Livio,
Jablon-Israel, Brunot, Carrez, Brosster e tantos outros, é, pelo menos, irritante...( 1) *1 Ainda que os directores de Cavalo de Tróia nunca concedessem excessivo crédito a esta moderna corrente – mais carregada de snobismo que de fundamento científico -, que defende a não existência histórica de Nazaré,, alguns dos especialistas da (nota interrompida.)
A quatrocentos ou quinhentos metros, o caminho rodou com docilidade a partir da referida cota 511 até se estabilizar na altitude mínima daquelas paragens: os quatrocentos metros. A partir desta altitude levou-nos, rectilíneo, na sua poeirenta brancura calcárea, à meta final. E devagar, com Maria alvoroçada, tentei reter cada pormenor, cada canto, (continua a nota.) Operação preocuparam-se em reunir um máximo de informação em torno, principalmente, dos principais achados arqueológicos que se deram no local. A título de guia para os cépticos, eis um dos relatórios, elaborado pelo prestigiado S. Loffreda, do Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém: A presença do homem em Nazaré e seus arredores vem de muitos séculos antes da era cristã. Já no Paleolítico Médio, entre 75.000 e 35.000 anos antes de Cristo, o homem de Galileia, muito próximo do homem de Neanderthal, se tinha agrupado nos arredores de Nazaré. Restos humanos daquele período longínquo e fascinante, bem como utensílios musterienses, foram encontrados na caverna de Djebel-Qafze. Aquele homem, que precede a aparição do homo sapiens, vivia ainda da caça e da colheita de frutos selvagens. Não conhecia a arte de construir casas e refugiava-se periodicamente em cavernas naturais, onde – facto novo e significativo no homem do Paleolítico Inferior – começou a sepultar os seus mortos. Sobre a pequena colina que corresponde a Nazaré, os vestígios mais antigos datam do final do terceiro milénio. A Palestina, que tinha entrado na civilização urbana no começo daquele período, sofreu, pelo final do terceiro milénio, um sensível recuo cultural: muitas cidades foram destruídas, de modo que os vestígios arqueológicos provêm, em grande parte, de muitos túmulos. É costume opinar, em geral, que tal recuo está ligado à penetração em Caná dos Amorreus. Na Nazaré, esta fase é representada por alguns vasos de barro provenientes de um cemitério. Trata-se de pequenas ânforas de cor cinzenta-clara, que apresentam uma base achatada muito larga, asas horizontais reduzidas a mera marca, colo virado e incisões rudimentares na base do gargalo. Na Nazaré, o material proveniente do período do segundo milénio, conhecido na Palestina com o nome de “bronze Médio II” (2000-1550) e Bronze Novo (1550
1200), é muito mais abundante. O período do Bronze Médio, que regista entre outros acontecimentos a entrada dos patriarcas na terra de Caná e constitui, portanto, a alvorada da história sagrada, é representada na Nazaré por vasos de cerâmica muito elegantes, que reflectem um gosto artístico mais requintado. Além disso, alguns alabastros e escaravelhos tinham chegado já do longínquo Egipto a este território. O período seguinte, o Bronze Novo, deixou igualmente numerosos vestígios. Tem de se acentuar que todo esse material do segundo milénio não provém da cidade propriamente dita mas sim de alguns túmulos. Um deles foi descoberto por baixo do pequeno convento da igreja bizantina da Anunciação. Outro a sudeste, imediatamente contíguo ao mesmo convento, e um terceiro mais a sul. Dado que o costume de enterrar os mortos fora da zona habitada estava já em vigor no segundo milénio, podemos pensar, com toda a certeza, que a cidade de Nazaré do Bronze Médio e Novo se encontra mais ao norte e ainda não foi alcançada pelas escavações. Com a Idade do Ferro (1200-587), entramos plenamente no período bíblico: depois do êxodo do Egipto, as tribos israelitas instalam-se na Terra Prometida, adquirem uma fisionomia própria e, a partir de Saul, organizam-se em monarquia. Nazaré pertencia à tribo de Zabulão que, com toda a probabilidade, nunca foi ao Egipto. Depois do cisma que se deu com a morte de Salomão (ano de 922 antes de Cristo), Nazaré fazia parte do Reino do Norte, que foi submetido pelo império assírio em 722. Nessa época, observamos em Nazaré um facto muito significativo. No sector meridional da colina foram encontrados alguns silos escavados na rocha, enquanto a zona de túmulos fica já deslocada fora da colina. Temos, portanto, provas arqueológicas de que, a partir da Idade do Ferro, o flanco meridional da colina, reservado antes às sepulturas, se tinha convertido já em zona de habitação. É importante sublinhar que essa transposição se manteve depois, mesmo no tempo em que Jesus vivia em Nazaré. É muito possível que esta mudança de tradições esteja ligada a uma mudança de população, tanto mais se se tiver em conta que coincide com a última vaga de penetração israelita em Caná. Até há pouco tempo, a cerâmica encontrada nas escavações pertencia antes à última fase do Ferro. Apenas o achado fortuito de um túmulo, com um rico sortido de vasos, objectos de metal e escaravelhos, prova que a fixação data do século xII, ou seja, do começo do período israelita. Nos limites da cidade, a cerâmica do Ferro foi encontrada em zonas muito díspares. Por exemplo, no lado oriental da Igreja da Anunciação do tempo dos Cruzados e a noroeste. É também importante recordar que diversos fragmentos de cerâmica do ferro foram encontrados nas falhas da rocha que forma o tecto da gruta venerada da Anunciação. Fique claro que as escavações são demasiado parciais para que se possam estabelecer os limites extremos da cidade israelita de
Nazaré. De qualquer modo, é verosímil que diversas estruturas de uso doméstico, escavadas na rocha, tenham sido utilizadas durante vários séculos a partir da Idade do Ferro. Seja como for, a antiga Nazaré nunca deixou de ser uma humilde aldeia, pelo que não é estranho que o Antigo Testamento nunca a mencione. Não é pouco, de qualquer modo, ter podido constatar a presença humana pelo menos 2000 anos antes da época evangélica. (N. Do M.)
daquela veiga de meio quilómetro de comprimento, não excessivamente larga, resguardada nos seus quatro lados por muitas das quinze elevações já mencionadas. De um e do outro lados da vereda, os engenhosos camponeses tinham feito prosperar um magnífico palmeiral, certamente importado da vizinha Fenícia. Aos múltiplos ganhos provenientes do cultivo do tamar (nome hebreu da palmeira) e que iam da colheita do seu fortificante fruto à preparação do mel, passando pela confecção de cestos, tapetes, cercas de madeira, telhados e balsas, os habitantes de Nazaré tinham somado, com a implantação daqueles soberbos exemplares que chegavam aos vinte metros de altura, de lânguidas e longas folhas, a nada desprezível realidade de um passeio que pouco tinha a invejar aos de Jerusalém. Por baixo das copas verde-amareladas das palmeiras tamareiras, a veiga, na forma de minifúndio, florescia, exuberante, sulcada por uma teia de aranha de espelhantes acéquias. Verdejavam ali bojudas figueiras de cinco metros de altura, de folhas espalmadas e rugosas. E à sombra da sua prometedora colheita, a luz (designação aramaica da amendoeira). Toda uma nuvem branca de luz eclipsando as diminutas e verdes flores das amoreiras negras. E entre paliçadas de caniços, disputando cada palmo de terra, um labirinto de verduras: talhões de favas de um metro de altura, com as folhas dispostas para uma iminente explosão de flores brancas e aladas: gravanços, de peludos e pegajosos caules: apertados canteiros de alhos-porros, alhos e cebolas; acinzentados maciços de hortelãpimenta, nascidos ao correr das valas e canalizações de pedra; videiras bravas de flores douradas e escuras sementes medicinais; preguiçosas e alaranjadas abóboras-mogangas e o primeiro dos legumes mencionados na Bíblia: a lens culinaris – a lentilha -, alimento básico da dieta de toda a família judaica.
Mais para além da veiga, escalando encostas, marciais legiões de oliveiras. Sobre elas, recortando as suas copas no azul-cristal da manhã, massas florestais de alfarrobeiras e de nogueiras. Por todo o lado, acamadas nos vales, assomando aos terraços em socalcos ou desafiando os esporões rochosos das vertentes, a verdadeira imagem da abundância e da bênção divina para os Judeus: a videira. Eram aos milhares, amparadas com estacas de madeira de um metro de altura, assim dispostas para suster e aliviar a futura e, certamente, grada colheita. Enquanto atravessávamos o pomar, fonte de vida e de prosperidade dos notzrim (nazarenos), alguns dos camponeses mais próximos, ao reconhecerem a Senhora, levantaram os braços em sinal de saudação e de boas-vindas. Outros, deixando os seus enxadões e alfaias, apressaram-se a correr ao seu encontro, e ao pisarem o caminho, de rosto grave, começaram a bater palmas. O gesto nada tinha que ver com o que hoje, no século xx, interpretamos como aplausos. Não se tratava de um reconhecimento ou de uma manifestação de louvor pelo facto de ser a mãe do grande Rabi da Galileia. Aqueles homens, jovens e velhos, batiam palmas em sinal de luto. Era esta uma forma de exprimir a sua condolência pelo recente falecimento de Jesus, a cuja execução, obviamente, não tinham assistido. E Maria, emocionada, com os olhos em lágrimas, foi abraçando a maioria. Em Nazaré, como sucedera na vizinha Caná, não se encontravam muito a par da ressurreição nem das aparições de Jesus. Teria tempo para o verificar e assistir às polémicas que as referidas notícias levantariam entre os humildes e cépticos vizinhos. E por volta das 8 horas e 30 minutos daquela terça-feira, 25 de Abril, encontrei-me, por fim, às “portas” de Nazaré. E ponho a palavra entre aspas porque, para dizer a verdade, trata-se apenas de uma figura literária. Carecendo de muralhas, a aldeia não dispunha pois de um acesso principal, propriamente dito. As portas formavam o final – ou o começo, consoante se olhe – do passeio das palmeiras (assim foi baptizado por quem isto escreve), o cruzamento e o começo dos caminhos ali situados, e uma ruidosa conduta de água, uns vinte passos à nossa direita. O vozeario que vinha do manancial chamou a atenção
de Maria e, sem hesitar, correu para a fonte. A água, canalizada de uma nascente situada no lado norte do cume do Nebi Sain, corria, impetuosa, desde os quase quatrocentos e oitenta metros do seu manancial, abastecendo a população e as caravanas e transeuntes que, obrigatoriamente, a cruzavam. Como iria verificar mais tarde, aquela era a única fonte importante em Nazaré. Ponto de encontro, local de tertúlias e de obrigatória e quotidiana reunião de matronas, camponeses, artesãos e viajantes. Prudentemente, quedei-me junto de Zebedeu, observando os risos, abraços e a algazarra geral que a inesperada chegada da Senhora provocara. O largo jorro de água brotava a metro e meio de altura, atravessando uma parede de pedras rectangulares, de natureza calcária sedimentar (extraídas das colinas) e permanentemente invadidas por um musgo verde-negro, onde se aninhava uma notável colónia de moscas. Uma viseira, igualmente de pedra, à maneira de arco de meia volta, fazia as vezes de toldo, cobrindo a fonte. O jorro caía directamente no terreno, formando um tanque natural, de uns cinco metros de largura máxima, no qual, com água até aos joelhos, chapinhava a criançada, enchiam os seus cântaros e odres as mulheres e felah, bebiam os asnos e lavavam as roupas as risonhas e tagarelas matronas. A curta distância, sobre os calhaus e o vermelho barro, alinhava-se uma malcheirosa colecção de sandálias, violentamente assaltadas pelos rijos tabanídeos. Não sei se deva usar a palavra decepção. No fundo, pelas informações que possuíamos, aquilo era de esperar. Hoje, gerações imaginam Nazaré como uma cidade populosa, de belos edifícios e ruas empedradas. Nada mais distante da realidade. Avidamente, enquanto a Senhora dava rédea solta à sua alegria, percorri com os olhos o punhado de casas, na sua maioria de um só piso, que se empurravam no acentuado desnível da encosta oriental do Nebi. Num minucioso estudo posterior, desmentindo os cálculos efectuados a partir da cota 511, ratificaria aquela primeira e apressada impressão: a aldeiazinha era formada por umas vinte a trinta casas. Não eram mais. E todas, como disse, estribadas umas nas outras e ocupando uma superfície que lembrava um triângulo isósceles, com uma altura aproximada de cento e cinquenta metros e cinquenta ou sessenta
de base. O vértice – continuando com a comparação – situava-se nas portas. Na realidade, o nó de onde partiam os caminhos fazia parte do dito vértice. Do lugar onde nos encontrávamos, as edificações, impecavelmente caiadas, assemelhavam-se a uma gigantesca escada ou, para utilizar uma imagem mais de acordo com os tempos actuais, aqueles apartamentos ou hotéis em socalcos, que podem contemplar-se nas praias em moda. A orientação não podia ser melhor: voltada para oriente, captava os raios solares do nascer ao pôr do Sol. Quanto aos ventos de poente, o próprio monte Nebi Sain fazia de parapeito, resguardando-a no seu regaço. A íngreme ladeira em que assentava, nalguns pontos chegava aos trinta e mesmo aos quarenta por cento de desnível, não fora obstáculo para os empreendedores galileus. As casas estavam niveladas, aproveitando bem o subsolo irregular e rochoso ou graças a muros e fundações, levantadas com pedras roubadas à colina. Mas a Nazaré daquele tempo não era apenas o que à primeira vista parecia. Uma importantíssima e invisível área encontrava-se justamente debaixo da terra. Durante esta e outras visitas teria a oportunidade de descer a um emaranhado labirinto de grutasalgumas naturais e outras escavadas na rocha -, que ocupava uma superfície maior que a da povoação. (Esta foi calculada nuns três mil e setecentos metros quadrados e a da cidade subterrânea em cinco mil metros quadrados.) Em tais cavidades – que serviam de silos, cisternas e armazéns – se passava boa parte da vida daquela simples e, em geral, amável gente. Algo que os evangelistas passaram por alto e que a arqueologia moderna se encarregou de ressuscitar. Ainda não é altura de falar destes corredores, grutas e passagens, aos quais, como é evidente, também desceu o jovem Jesus... (1) Algumas mulheres, ansiosas por conhecerem as novidades – em primeira mão – que a mãe do Mestre trazia, cercaram-na, assaltando-a com perguntas. Porém, o tumultuoso interrogatório seria breve. João, abrindo caminho entre as galileias, chamou por Maria e, fazendo orelhas moucas aos irados protestos, puxou-a, prometendo, isso sim, uma próxima, pública e pormenorizada narração dos acontecimentos. Teimoso e autoritário, deixou a complacente Senhora com a palavra nos lábios, internando-se
pela aldeia. *1 Os turistas e actuais visitantes não podem reconhecer na Nazaré de hoje a insignificante aldeia da época de Jesus. Nada resta, com excepção daquela Nazaré subterrânea e quase troglodítica,. A próspera cidade do século xx, com os seus mais de quarenta mil habitantes, continua a ser um enigma. Até o seu nome, que vem da raiz semítica nsr e que significa guardar e esconder, parece estreitamente ligado àquelas grutas e túneis rochosos. Talvez algum dia a arqueologia, ao explorá-los, revele ao mundo como era na verdade a vida naquela remota população. (N. Do M.).
É curioso. Embora o compreendesse, embora fosse lógico e natural que Maria se perdesse em Nazaré, ao encontrar os seus entes queridos, este explorador não pôde evitar uma amarga sensação de... como explicar? Talvez de desamparo. Às portas da aldeia, esquecido pelo Zebedeu e por Maria, vi-me assaltado por uma pungente tristeza. Se, ao menos, a mulher tivesse voltado a cara e... Foi questão de segundos. Tinha de actuar. Não podia ficar diante das casas e da fonte como uma estátua. Decidido a iniciar a fase seguinte da missão interroguei a pequenada quanto a algum lugar onde pudesse hospedar-me. Ao repararem naquele estrangeiro grandalhão, algumas das matronas uniram-se espontaneamente à roda dos rapazes, oferecendo-se, prestáveis e encantadas, para me acompanharem até à estalagem. E entre risos comentários pícaros e perguntas descaradas sobre a minha origem e profissão, as galileias e os rapazes deixaram-me à porta da estalagem. As minhas insistentes inclinações de cabeça e sinceros agradecimentos só contribuíram para multiplicar os risos. Vermelho de vergonha aventurei-me no túnel que, como no caso da estalagem do Zarolho, servia de acesso ao edifício. Um lugar, como era de esperar, em que seria testemunho de outro singular lance. Uma das vantagens de Nazaré, de acordo com a sua configuração e humildes dimensões, era precisamente a pequenez das distâncias. Da fonte à estalagem que me serviu de refúgio e quartel-general, durante os três dias de permanência no lugar, não seriam mais de quarenta metros. Até lá chegava-se pelo caminho que seguia em direcção ao sul. Uns dez metros antes de se chegar ao seu extremo oriental, a vereda,
disfarçada de pequena ponte de pedra, brincava sobre uma torrente de fraco caudal, proveniente do flanco ocidental do Nebi Sain e que, despreocupado e transparente, saltava, corria ou deslizava, fiel à falda sul do monte. A partir da pontezinha, o arroio penetrava decidido em plena veiga, alimentando a cuidada rede de acéquias. Mas, como ia dizendo, a estalagem – uma das escassas edificações de certo relevo existente na circunscrição da aldeia – mantinha uma extraordinária semelhança com a que tivera ocasião de visitar na recente caminhada. As suas dimensões eram notavelmente inferiores mas, quanto ao seu desenho geral, pátio a céu aberto, quartos no andar de cima, taberna-casa de jantar, etc., não vi diferenças merecedoras de referência. As paredes de pedra sobressaíam das restantes construções pelo seu revestimento, descuidado e cinzento em tempos caiado e agora roído pelas chuvas e ventos. À terceira hora (as nove da manhã), o pátio interior estava deserto. Ou melhor, quase deserto. Por baixo da galeria em pórtico que rodeava o referido pátio, no lado esquerdo (da minha posição ao final do túnel de acesso à estalagem), brincava uma criança entre os quatro troncos de árvores escavados que faziam as vezes de pesebres. Uma criança? A impressão foi corrigida de imediato. Embora a cabeça não sobressaísse do perfil dos negros lombos dos asnos ali amarrados, a personagem não era exactamente um rapaz. Ao descobrir a minha presença abandonou a forragem, e sacudindo as mãos contra um avental sujo que quase roçava pelo pavimento do tijolo vermelho, veio ao meu encontro com um sorriso confiante. A sua minguada estatura – apenas um metro – de testa proeminente, nariz em sela de montar, pernas tortas e uma acentuada curvatura lombar punham em evidência naquele indivíduo uma forma de anão de extremidades curtas (possivelmente uma acondroplasia: um dos tipos de deformações hereditárias em que anormalidades de crescimento de osso e cartilagem originam o desenvolvimento inadequado do esqueleto e, enfim, o nanismo). Caminhando em saltos pequenos e cómicos não isentos de balanceamento à esquerda e à direita, típico nas pessoas que sofrem desta malformação, foi reunir-se com este perplexo explorador, identificando-se como Heqet, estalajadeiro ao meu serviço. O seu aramaico com sotaque chamou-me a atenção.
Correspondi à apresentação, anunciando-me como aquilo que supostamente era: um comerciante grego de vinhos e madeiras, de passagem por Nazaré. E, imediatamente, informado da minha origem grega, Heqet esqueceu o rude idioma da Galileia, falando-me numa koiné mais inteligível. E a nossa primeira conversa, como era forçoso, centrou-se na questão doméstica. Naturalmente que dispunha de um quarto para tão ilustre viajante. Mas – acentou sem rodeios – o pagamento, como a boa educação, vem sempre à frente. Estendendo a mão direita, curta e rechonchuda, solicitou o meio denário (doze asses) daquela primeira noite. Satisfeitas as suas exigências, enquanto atravessávamos o pátio em direcção à escada do canto esquerdo recordo-me que, se desejasse, podia também alimentar as minhas montadas. - Os preços – mentiu – são os mais baixos de toda a região: pão e uma medida de vinho, um asse; carne, dois asses; forragem, mais dois asses, e uma importância a combinar para o uso da retrete. Ao subir a vintena de degraus recentemente baldeados estremeci. As condições sanitárias eram deploráveis. Era óbvio que evitaria o reservado ou lugar secreto... Apesar do natrão esfregado nas escadas e nas tábuas desunidas que formavam o soalho da galeria, o cheiro vindo do andar de baixo apoderara-se das paredes e dos móveis. Durante a minha passagem pela estalagem, aquele fedor a urina e excremento de cavalariças, a forragem e a lugar húmido e deficientemente ventilado, acabaria por aderir às minhas roupas e à minha pele, provocando um ou outro gesto de repulsa entre as pessoas com quem tive de contactar. Heqet, que era um emigrado egípcio cujo nome – Rã – lhe fora posto pelas mordazes pessoas da terra por causa do seu extravagante caminhar, apontou as esteiras de palha e as mantas que pendiam do varandim, perguntando se desejava alugar a cama. Imaginando o pior, inspeccionei-os com cuidado. A tinta escarlate e violácea encontrava-se devorada por uma porcaria de difícil identificação. Quanto ao que tinham dentro – uma palha espinhosa e putrefacta – melhor era não entrar em pormenores. Neles pululavam as mais variadas e pouco recomendáveis quadrilhas de hemípteros...
Desisti, naturalmente, alegando que o meu roupão bastava e sobrava para tão natural necessidade. O estalajadeiro não se rendeu. Disposto a obter o máximo proveito do novo inquilino enumerou outros serviços próprios da estalagem, igualmente à disposição dos respeitáveis clientes A saber: uma mocinha com que aquecer a cama (dois asses por noite), inspecção e tratamento dos animais de carga (preço a combinar), serviço de guia e protecção armada, se o meu trabalho requeresse viajar pela região (um denário por dia para o condutor e idêntica tarifa para cada homem da escolta), abastecimento (também a combinar) e, finalmente, até mapas dos caminhos e paragens da Baixa Galileia (à razão de seis sestércios o exemplar). Esta última oferta, por razões que o anão egípcio não podia suspeitar, sim, foi do meu interesse. E o Rã, agradado, combinou mostrar-me o valioso género quando voltássemos ao andar de baixo. Pareceu hesitar. Percorreu as sete estreitas e enegrecidas portas que se alinhavam num dos flancos mas, com a sua habitual teatralidade, fezme ver que aquelas não eram celas dignas de um homem ilustrado. Os meus receios aumentaram. Em que espécie de covil fora cair? Saltando por cima das rangentes e soltas tábuas foi parar diante de um quarto situado na extremidade ocidental do edifício. Procurou por baixo do avental sebento e com um risinho nervoso mostrou-me uma daquelas aparatosas chaves, em ângulo recto, com punho esférico de madeira e cinco longos dentes na de ferro. O cinismo e falsidade do estalajadeiro não conheciam limites se cada um dos vinte e oito quartos da estalagem se abria com a sua própria chave e se o egípcio só trazia no cinto a que agora me entregava, para quê tanta hesitação e circunspecção? Tinha de estar muito atento; em especial à bolsa dos dinheiros... A fechadura, enferrujada, gemeu a cada tentativa. Por fim, com a ajuda de um pontapé, a porta abriu-se, rangendo nuns gonzos ligeiramente decadentes. Inclinando-se numa vénia exagerada deu-me passagem. Frestas de vinte centímetros e pouco mais de um metro de altura deixavam passar faixas de claridade, suficientes para iluminar uma cela triste e fedorenta, de dois metros de lado. Julguei que ia morrer. Nas paredes, entre as junturas das pedras e num rebocado bolorento e descascado, moravam os autênticos e permanentes
hóspedes da estalagem: percevejos avermelhados de corpos achatados e elípticos, grandes como lentilhas. O mobiliário, de harmonia com a húmida quadra, consistia num alguidar de barro agora vazio e animado por uma inquietante família de baratas que, obviamente, via em perigo os seus domínios. Um jarrão de bronze – único luxo do cubículo – completava o recheio que assim pensava, devia servir para a minha higiene quotidiana. Junto da porta, numa cavidade esverdeada, uma candeia de argila com a asa em forma de serpente (a deusa egípcia Meret-Seger, protectora como a serpente de bronze de Moisés, contra todo o género de ofídios) que emprestava a sua superfície poeirenta à ancoragem de várias teias de aranha cruzadas. Achei mais prudente calar-me e não protestar pelo estado da cela. O meu trabalho, ao fim e ao cabo, pedia outros cenários. Dando como assente que o quarto era do meu agrado, o estalajadeiro fechou a porta, deixando-me só. Quem isto escreve, com a pesada chave de trinta centímetros na mão, só conseguiu assomar o nariz às asfixiantes seteiras, numa vacilante ânsia de respirar um ar menos viciado e, ao mesmo tempo, procurando situar a posição do quarto ao exterior e à própria estalagem. Na minha frente, apareceram as colunas que cercavam Nazaré a ocidente e, ao fundo, a cintura branca do caminho para Jafa. A aldeia, à direita da fresta aberta diante da porta, mal era visível. A dávida que me coubera em sorte ocupava a esquina ocidental do edifício. Em baixo, junto da parede, começava uma plantação de oliveiras. Oprimido pela sujidade e pelo aperto do quarto ordenei as ideias com mais pressa que eficácia. Aquela parte da missão, como o programa estabelecia, consistia em recolher, in situ, um máximo de dados com os quais preencher os anos ocultos de Jesus. A verdade é que ignorávamos quase tudo sobre este ponto. Quanto tempo permaneceu o Nazareno na aldeia? A que dedicou aqueles anos? Quais foram as suas relações com os habitantes da povoação? Em que momento soube da sua natureza divina? Chegou a estabelecer algum plano? Porque abandonou aquelas paragens? As interrogações
eram tantas e o tempo tão curto que invadido pela impaciência, decidi actuar imediatamente, embora com extrema prudência. A deterioração das relações com Zebedeu preocupava-me. Muito contra minha vontade, consciente de que a cela podia ser aberta com um pontapé, tive de desistir de andar com o saco de viagem. As sandálias de reserva e a dezena de fármacos camuflados em pequenos boiões de argila podiam ser engodo para qualquer ladrão. Encolhi os ombros e deixando o assunto nas mãos da Providência encaminhei-me para a porta. Ao abri-la reparei nuns sinais marcados a faca na madeira e que, com toda a certeza, eram obra de clientes descontentes. Em grego e aramaico podia ler-se: “Para o fogo com o anão; Hequet: andar de rã e coração de víbora...” Tê-lo-ia presente. Depois de três ou quatro tentativas, um estalido deu-me a saber que a porta tinha ficado fechada. Sem pressa, farejando cada canto desci ao pátio deserto. Só o patear de um dos asnos no pavimento quebrava o silêncio do local. O meu propósito era simples: antes de me lançar na investigação propriamente dita – que devia fundamentar-se nas conversas com Maria e outros parentes e conhecidos do Mestre – percorreria Nazaré, familiarizando-me com os seus perfis físicos. Mas, eis que quando atravessava o vermelho lajedo de tijolos, a voz do estalajadeiro me chamou do umbral de uma das portas. Não me deu tempo para declinar o convite. Quando quis desculpar-me, o Rã tinha regressado ao interior. Contrariado, passei novamente pela frente do poço central, parando diante da escuridão. Encontrava-me como na estalagem do zarolho, diante da sala principal do edifício uma taberna-casa de jantar e, segundo verificaria naquela mesma noite, se as circunstâncias assim o exigissem, centro de reunião de quantos precisassem de que lhes escrevesse uma carta, lhes receitassem um remédio para o gado ou lhes arrancassem um dente. Heqet, à direita da sala rectangular e encostado a um daqueles singulares balcões de bojudas ânforas de pedra, apontou um dos orifícios abertos no tampo de mármore que as cobria convidando-me a provar um néctar chegado justamente do delta do Nilo. Ante o meu assombro , o anão erguia meio corpo acima dos recipientes. Ao aproximar-me, descobri o truque: um banco o levantava permitindo-lhe o acesso às altas vasilhas.
Uma pobre iluminação, consequência da falta de clientes, perfilava as silhuetas brilhantes e sebosas de três grandes mesas. A parede nas costas do balcão apresentava uma dúzia de nichos, cheios de papiros enrolados, caixas de madeira de múltiplos tamanhos, espelhos e polidos cristais de bronze e um emaranhado de artigos, confundida na escuridão dos nichos que constituíam parte do negócio do egípcio. Molhei os lábios no vinho doce e espesso – cortesia da casa – e o incansável estalajadeiro trepou até uma das despensas, saltando para o chão com uma mancheia de rolos. Tirou uma candeia de azeite da parede e, abrindo-os, passeou-a, cobiçoso, a um palmo dos rústicos mapas. Aproximei-me, intrigado, comprovando que, efectivamente, tal como o dono tinha anunciado, se tratava de uma série de desenhos e anotações manuscritas, sem a menor concepção das proporções e das escalas, que lembrava – isso sim – a distribuição das principais cidades e aldeias da Galileia, bem como as trajectórias aproximadas dos caminhos, estalagens afamadas (incluindo a do Rã), poços ou fontes, gargantas e atalhos e, até, as paragens perigosas, tanto pelo risco de assalto como pela presença de feras ou pelo estabelecimento de colónias de leprosos (1). Ao cotejá-las observei que as diferenças eram mínimas. Na realidade, estes “guias” pareciam cópias de um original, trazendo – de acordo com a estalagem onde eram vendidos – o nome, a localização e as excelências (preços incluídos) da estalagem em questão. Num destes mapas Hturísticos, para viajantes com dinheiro, em traços infantis fora pintada a casa de Heqet (mais em destaque até do que Nazaré) com uma nota no rodapé do mapa que me pôs de sobreaviso. Rezava assim: “Swnw [médico laico em egípcio], ilustre filho de Athotis”. O embuste não podia ser mais flagrante. O tal Athotis, entre outras coisas, era um soberano da Primeira Dinastia. Aquilo representava uma antiguidade aproximada de três mil anos... De qualquer modo, como publicidade, o anúncio não podia ser melhor. Paguei os seis sestércios (2), adquirindo o rolo onde se falava da especialidade do Rã. Pura diplomacia... O estalajadeiro, depois de contar e verificar com os dentes a autenticidade das moedas, deu-se por satisfeito, e eu, emocionado, entreguei-me à aventura chamada Nazaré... *1 Estes mapas não eram uma novidade nos tempos de Cristo.
Muito possivelmente, obedeciam à moda imposta por um tal Pausânias, autor de uma curiosa e divertida série de guias (hoje poderíamos qualificá-los como turísticos) para viajar na Grécia. Os mapas de Pausânias eram o equivalente dos confeccionados por Baedeker ou Murray e que foram traduzidos por Sir James Frazer. Como disse, estes trabalhos eram muito frequentes no século i. Augusto encomendou um novo mapa do Império a um dos seus altos funcionários, bem como um pormenorizado dicionário geográfico. Também não podemos esquecer a expedição geodésica patrocinada por Nero ao Alto Nilo. 2 No complexo emaranhado de moedas que nos vimos obrigados a conhecer e manejar, o denário-prata ia representar o padrão monetário. Era o salário-dia de um operário não especializado e, a traços largos, mantinha as seguintes equivalências: seis sestércios ou vinte e quatro asses. A moédah podia ser trocada por um sexto de denário ou quatro asses; o pondion ou semimésh era igual a dois asses. Consequentemente, um asse era similar de um semipondio. O quadrante representava dois leptas (simples trocos) ou um quarto de asse. Por sua vez, a lepta ou lepton, também conhecida como proutah, tinha o valor insignificante de um oitavo de asse. Em relação aos dinheiros mais avultados, as medidas eram distintas. O aureus (denário de ouro) representava trinta denários de prata. O sekel (siclo, statere, sela ou tetradracma) equivalia a quatro denários-prata ou vinte e quatro sestércios. O zouz tírio – a que os Gregos chamavam “dracma” - era igual a um denário-prata. Uma mina, preço médio de um terreno, era equivalente a cem denários-prata. Por último, o talento era igual a três mil sekel ou siclos (doze mil denários-prata). Uma fortuna. (N. Do M.)
Foi simples e também agradável, mas em determinados momentos decepcionante. Acima de tudo, aquela primeira volta de inspecção foi emotiva. A frieza do nosso treino não contou com a imaginação. Percorrer a aldeia era ver, escutar e sentir um Jesus adolescente. Um Jesus artesão. Um Jesus adulto, conversando na fonte. Um Jesus vivo e tranquilo, à porta das casas... Uma hora foi suficiente. Pouco mais ou menos pelas dez da manhã atravessava novamente a pontezinha com parapeitos de pedra, indo ao encontro do vértice de triângulo isósceles que Nazaré formava. Por ali começou o meu passeio. A animação na fonte coberta tinha diminuído. Junto de dois ou três camponeses atrasados, mais atentos aos mexericos que ao enchimento dos odres, as crianças continuavam fazendo das suas, chapinhando e
brincando aos barcos com as sandálias de erva e palha prensada esquecidas por algum adulto. Nenhum teria mais de seis ou sete anos. Vestiam túnicas curtas, escurecidas pela água e coladas a corpos que não estavam muito bem alimentados. Como nas outras povoações que visitara, as famílias tinham muito cuidado em lhes rapar os crânios, aliviando assim as pragas de piolhos e mais parasitas que assolavam a sociedade judaica. Alguns pequenos – mais adiante ampliaria esta observação com numerosos adultos – diferenciavam-se dos outros pelos cabelos louros ou ruivos, olhos azuis celestes e uma pele branca que, apesar das mascarras, clareava os semblantes. Nem eles próprios conheciam a origem desta estampa quase céltica. Muito possivelmente teria de se ir até aos tempos dos amorritas (1), séculos atrás, para justificar este claro distanciamento do fenótipo hebreu, de cabelos, olhos e pele mais próximos da noite que do dia. Recordando a eficácia do jovem João Marcos na Cidade Santa, estive quase a solicitar o auxílio, como guia, de algum dos mocinhos. Mas, não desejando provocar contratempos precoces resolvi andar sozinho. Aquela ponta de Nazaré – no enclave mais próximo dos caminhosvinha a ser, forçando a imagem, o centro industrial do povoado. Abrindo-se em V e escalando a ladeira alinhavam-se entre oito e dez oficinas, abrigadas em casas de pedra de um só piso e caiadas com pior gosto que o resto da aldeia. De muito diferentes dimensões apareciam – segundo o costume, *1 Os Amorritas – povo semita – fixaram-se a partir do terceiro milénio antes de Cristo ao norte da Síria, oásis de Palmira e Babilónia. A Bíblia menciona-os como descendentes de Amorreu, filho de Caná (Génese, 10, 16). Julga-se que, entre os séculos xv e xvI, os Amorreus penetraram em direcção ao sul da Síria, Alto Caná e margem oriental do rio Jordão, até ao Arnão. Segundo parece, o povo hebreu entrou em contacto com eles durante ou depois do Êxodo. É possível que, nas incursões dos Amorritas para o Sul da Síria e Alto Caná, numerosas famílias e grupos se estabelecessem na Alta e na Baixa Galileia, dando assim origem a indivíduos de configuração semítica. Nazaré e seus arredores, neste aspecto, não teriam sido uma excepção no cruzamento com os Amorritas. Uma obra capital da arte amorrita, além dos cilindros, que representam Amurro, deus do Oeste e da tempestade, é a estela com o Código de Hammurabi. (N. Do M.)
- com as portas de par em par. Bem no umbral, sentados ao tépido
sol da manhã, ou ocultos na penumbra do interior, carpinteiros, tecelões, tanoeiros e tintureiros esforçavam-se nos seus misteres, cantarolando uns, em silêncio a maioria, ou em intermináveis conversas os outros. Sobre a terra nua, ao pé das paredes ou pendurados das fachadas, exibiam-se ao público as peças já terminadas: mesas, bancos, camas e arcas de todos os tamanhos, formas e preços; jugos primorosamente curvados e equilibrados; lanças de tiro e rodas para as carroças; aguilhões e cabos de arados; portas e caixilhos para janelas; huchas e masseiras para as donas de casa; arquivadores para os escribas; sólidas vigas destinadas à sustentação dos terraços que coroavam as casas e as próprias oficinas e armazéns; túnicas e mantos de vivas cores, de lã e de linho escorrendo ainda o azul, o escarlate ou o verde das tintas; camisas de menino delicadamente tecidas; bolsas de couro; cestos de vime, tapetes e esteiras entrançadas em espiral; tonéis de diferentes bocas e cubas calafetadas para o transporte e armazenamento de vinho ou de frutos e, por fim, uma interminável sequência de pratos, escudelas, colheres e recipientes de madeira. A excepção entre os artesãos, sempre varões, constituíam-na os operários dos teares. Eram todos mulheres. As jovens, sentadas no solo, esticavam a lã, extraindo-a de grandes cestos circulares de vime. Outras, igualmente jovens, fiavam de pé, valendo-se de rocas e de fusos. Só as anciãs tinham a seu cargo o difícil labor de tecer nos primitivos teares verticais. Embora ardesse em desejo de meter conversa com aquela gente, compreendi que não devia alterar o programado por Cavalo de Tróia. Assim, metendo-me por entre as casas, escolhi o que parecia ser uma rua que, a partir deste percurso inicial, seria baptizada por este explorador como a rua sul. Nazaré não tinha calçadas propriamente ditas. As vinte ou trinta casas que davam corpo à aldeia, como creio ter sugerido, formavam um caótico labirinto de vielas e de espaços mais ou menos abertos que, na maioria dos casos, não conduziam a lado algum. Pois bem, num alarde de generosidade, poderíamos dizer que o humilde núcleo humano, por puro acaso, se encontrava atravessado por duas vias ou ruas. Uma, a que eu tinha tomado, corria paralela ao lado sul do já referido triângulo isósceles. A outra, partindo do vértice, escalonava
se para norte. A meio, o coração da aldeia: um amontoado de casitas brancas, de estruturas quadrangulares ou cúbicas, com toscas paredes de pedra calcária de três a cinco palmos de espessura e telhados planos de madeira cobertos de terra batida. Às referidas açoteias chegava-se mercê de simples escadas exteriores, construídas a partir de grossos troncos ou vigas encravadas nas paredes. Muitas eram protegidas por um varandim rudimentar, também de madeira. Das portas ao limite do povoado, cada palmo era uma pequena conquista à colina. Em pouco mais de cento e cinquenta metros – comprimento máximo de Nazaré – o perfil da ladeira passava dos quatrocentos metros no lugar da fonte aos quatrocentos e cinquenta. Aquilo forçara os vizinhos ao levantamento de sucessivos parapeitos e muros de contenção, que tornavam inútil qualquer tentativa de traçado urbano. Para cúmulo, a pavimentação brilhava pela ausência. As ruas, pátios e vielas encontravam-se atapetadas com uma incómoda mistura de terra, cascalhos, restos de vasilhas partidas e tijolos de barro desfeitos. Em época de chuvas, semelhante desastre tinha de constituir sério problema para a integridade das casas e dos próprios habitantes. De facto, a quase totalidade das casas apresentava nas portas um alto degrau de pedra, preparado para evitar que as enxurradas que podiam surgir do alto do Nebi inundassem os lares. Apenas nas duas vias que qualifiquei como importantes tinham sido dispostas canalizações, formadas por uma regueira central de quinze centímetros de profundidade por trinta ou quarenta de largura, segundo os lugares. De começo, na minha proverbial falta de habilidade, perdido uma e outra vez entre os estreitos pátios e passagens estreitas, vi-me na necessidade de voltar atrás, evitando os caixotes de madeira que faziam as vezes de fogões improvisados e as mulheres e velhos que vigiavam os cozinhados. Ninguém protestou pela irreverente invasão dos seus domínios. Na realidade, ainda que cada propriedade estivesse perfeitamente delimitada, a aldeia, como já referi, era um todo sem muros nem barreiras. A proximidade das casas era tal que numa infinidade de lugares dois homens tinham dificuldade em passar lado a lado. Algumas mulheres, aproveitando a frescura da manhã baldeavam às portas das
casas, lançando fora com as mãos, a água, de grandes alguidares depositados por terra. Noutros recantos, no entanto, as imundícies e o lodo formavam montões fedorentos, cobertos de moscas e de assustadiços gatos pretos e tigrados. Com a permanente visão do Nebi como referência, fui subindo pelas rampas e degraus de tijolo cozido, espiado pelos olhares curiosos das matronas e das crianças. Numerosas vielas encontravam-se cobertas por telheiros de caniços que voavam de terraço em terraço e, em certas alturas, pelos braços sarmentosos de densas parreiras que davam vida às paredes negras, na sua maioria sem janelas. Um dos aspectos que mais gratamente me impressionou em tão humilde aldeia foram as flores. Não havia casa que não as tivesse. Alinhadas de um e outro lado das portas, enchendo pátios ou trepando pelas fachadas, floresciam a hortelã-pimenta, o jasmim, as trepadeiras, as vermelhas túlipas de montanha, os narcisos de mar e uma palpitante paleta branca, escarlate, amarela e violeta de anémonas, ranúnculos e rosas. A fragrância e o colorido daqueles minúsculos jardins quase faziam esquecer a sujidade e o abandono de muitos dos becos do povoado. Só assim, experimentando in situ a pequenez e a modesta condição do lugar, comecei a compreender a razão da frase de Bartolomeu: “Será que de Nazaré poderá sair alguma coisa de bom?” Naquele tempo, não o podemos esquecer, Caná, muito próxima da aldeia de Jesus, ostentava o título e a condição de cidade notável, consideravelmente mais populosa, rica e civilizada que aquele punhado perdido de casas, acachapadas numa não menos remota colina. Se os habitantes de Caná podiam contar-se por milhares, os de Nazaré, em troca, somavam uma escassa meia centena de famílias, com um contingente aproximado de trezentas ou trezentas e cinquenta almas. Só isso. Neste meio – com as suas vantagens e inconvenientescresceu e despertou para a vida o Filho do Homem. No termo da sua impropriamente chamada vida oculta, os inconvenientes eclipsaram as vantagens e, como foi afirmado, Jesus viu-se na necessidade de se afastar daquele afectuoso e difícil grupo humano.
Na parte alta da aldeia, ainda que mínima, foram apreciadas certas diferenças em relação à zona baixa. As casas, igualmente cúbicas e esbranquiçadas pela cal, eram, na sua maioria, de construção recente. Dispunham de pátios mais desafogados, cercados por muros baixos de pedra de um metro de altura nos quais se distinguiam enormes ânforas, pilhas de lenha e fornos de tijolo cupuliformes, alisados por dentro por uma camada de argila. Alguns, em plena cozedura do pão, chamejavam pelas suas bocas estreitas, lançando para o céu azul baforadas intermitentes de fumo branco. Até a pavimentação parecia mais cuidada. Nos pátios e vielas a terra fora coberta com pequenos calhaus rolados, ligados por uma argamassa de qualidade duvidosa. Talvez pela sua proximidade do campo e do arroio que se precipitava da encosta ocidental do Nebi, em direcção à pontezinha próxima da pousada, aquela ponta de Nazaré era uma das paragens favoritas da gente mais nova. Quando uma mãe ou o chefe da família precisavam dos serviços de algum dos seus filhos era habitual irem procurá-los na fonte ou arrabaldes da aldeia, na referida zona norte. O chamado arrabalde, conquistado também por um mosaico de hortos, reunia ainda um aliciante especial, que descobriria ao longo da minha estada na aldeia e que, durante anos, alimentou a fecunda imaginação de Jesus menino: uma pequena oficina de olaria, nas margens da referida corrente de água. O antigo proprietário, um tal Nathan, já falecido, fizera as delícias de toda uma geração de adolescentes. Agora, os filhos, tão pacientes e bondosos como o velho oleiro, continuavam a facultar pedaços de barro com que moldar sonhos e brincar a conquistar cidades. Ao abrigo da colina ou dos muros, sob a distante e sonolenta vigilância de gordos gatos, as meninas faziam grupos à parte, brincando barulhentas com umas enormes bonecas de barro ou de trapo (1). Alguns destes brinquedos apresentavam braços e pernas articulados. Outros, os mais luxuosos e cobiçados, dispunham de buracos na cabeça, pelos quais saíam cordéis presos às extremidades, de forma que podiam imitar o caminhar dos seres humanos. Embora tivesse visto brincar os meninos de Jerusalém, Betânia, Nahum e Saidan, a alegria especial e intensa da grande prole de Nazaré, não tinha paralelo. Não havia mau momento para exercitar a sua fantasia transbordante. Vi-os
correr, saltar e trepar todo o género de muros, apedrejando a abundante população de gatos – não sei se mais numerosa que a dos próprios habitantes – e balançando entre as velhas oliveiras. Dispunham de aros de madeira, rústicos piões com um prego na extremidade, cavalos de barro munidos com rodas e bolas de trapo que atiravam exclusivamente com as mãos, ao estilo dos actuais jogos. Um pequeno carreiro atravessava a cintura de hortos, afastando-se encosta acima, ao encontro do cume. O monte, a partir desta pequena fronteira verde mostrava-se áspero, rochoso e pouco propício a escaladas. Pensei em trepar até ao cume. Mas desisti, limitando-me a activar os quatro canais *1 Este género de brinquedos era habitual entre a criançada da Palestina. Na Grécia, no século Iv antes de Cristo, havia notícia de bonecas semelhantes. Xenofonte refere, até, um actor que trabalhava com fantoches (N. Do M.)
de filmagem simultânea alojados na vara de Moisés (1) e que, como nas visitas aos anteriores núcleos humanos, tinham a missão de registar paisagens, cenas e personagens previamente seleccionadas por Cavalo de Tróia. Por volta da hora quinta (as onze da manhã), sempre com a referência do Nebi nas minhas costas, cheguei ao extremo norte da aldeia iniciando a descida pelo lado setentrional do triângulo. Uma segunda ruaque receberia o nome de norte – ziguezagueava entre as casas interrompida a cada passo pelos taludes e paredões de rocha. A curta distância das casas situadas nesta zona, ladeando a encosta, corria uma larga canalização de pedra, fechada com tijolo, que partia do alto do flanco norte do monte, transportando a água potável até à fonte situada às portas do povoado. No total, segundo os meus cálculos, à volta de setecentos metros de aqueduto. Todo um milagre de engenharia para lugar tão insignificante (Na Nazaré de hoje existe a possibilidade de adivinhar o primitivo percurso do caudal e da canalização, seguindo o traçado das ruas que desembocam no lugar chamado Mensa Christi e nos alicerces, respectivamente.) Outro pormenor que não esqueço – de que teria consciência ao descer
à cidade subterrânea – foi a ausência de entradas para as grutas nas ruas e vielas. As bocas das dezenas de silos e cisternas ficavam escondidas nas casas. A única forma de Lhes ter acesso era por intermédio dos quartos e pátios das casas. Como mais adiante veremos, não é verdade que a população de Nazaré vivesse exclusivamente em grutas, como pretendem alguns arqueólogos e antropólogos. As construções à superfície, ainda que elementares, eram a forma básica de habitação. O subsolo desempenhava um papel importante mas complementar, destinado a adegas e despensas. A localização da casa de Maria foi simples. Num estreitamento da rua norte fui esbarrar com um burro que carregava uma pesada cuba de água. O quadrúpede, de poucas delicadezas, esteve quase a pisar-me. Atrás, a ofegar por causa da íngreme encosta e do enorme cesto de verduras que trazia às costas, apareceu um velho tão curvado que as suas barbas quase lhe roçavam os joelhos. Uma correia de lona nas têmporas tornava mais fácil o transporte da carga. Ao interrogá-lo sobre o paradeiro da Senhora parou uns instantes. Sem levantar os olhos, com o rosto voltado para o chão e malhumorado pela inoportuna paragem, perguntou por sua vez: - Maria?... Qual delas? A observação, justíssima, deixou-me perplexo. Na Nazaré, como em todo Israel, o nome de Maria era vulgar. Ao referir-me a Jesus, seu filho, o camponês como se dialogasse com as pedras do caminho, insistiu com maior impaciência: - Jesus?... Qual deles? Perfeitamente atónito, precisei de uns segundos para encontrar a palavra adequada: *1 Ampla informação sobre os complexos dispositivos de filmagem da vara de Moisés, nas páginas 171 a 174 do primeiro volume de Operação Cavalo de Tróia. (Nota de J. J. Benitez.) “...O Mestre... o Ressuscitado”. - Aqui, meu filho – troçou o galileu, olhando-me para as sandálias -, o único que ressuscita é o Sol... Mas suponho que te referes àquele louco... o de Maria, a das pombas. Não tem remédio. Outros loucos
como ele atrapalham o caminho ali mais abaixo... a vinte passos. Devia ter pensado nisso. Na Nazaré nem todos tinham entendido o Rabi. Para muitos, a revolucionária filosofia de irmandade entre os homens – filhos de um Deus-Pai – e, principalmente, a crucificação, destino inexorável dos assassinos, blasfemos e malfeitores, tinham manchado o bom nome da aldeia. Tal estado de coisas – ignorado também pelos textos evangélicos – não me escandalizou. Bastava ver os discípulos, os familiares e a própria mãe terrena do Rabi. Qual deles tinha ideias claras em relação à especialíssima mensagem de Jesus? Consequentemente, por que motivo estranhar a reacção negativa de alguns vizinhos que o tinham visto crescer? Ou será que alguma vez houve profeta na sua terra? Um dos dados insinuado na conversa com o velho era novo para mim. Na Nazaré, Maria era conhecida por a das pombas. Depressa averiguaria o motivo. Ao sair do estreitamento, a rua alargou até aos quatro metros. Ali, efectivamente, se concentravam uns trinta indivíduos, sentados na rampa de terra, de pé ou encostados preguiçosamente aos muros que limitavam a calçada. Na sua maioria, mulheres levadas pela novidade, anciãos desocupados e meninos choramingas e distraídos. Todos estavam atentos numa das esquinas da casa à minha esquerda. Ao aproximar-me descobri o Zebedeu, sentado nos primeiros degraus da escada exterior que dava acesso ao terraço. Numa inflamada alocução narrava aos vizinhos boquiabertos as recentes aparições do Mestre em Jerusalém. A julgar pela incredulidade nos rostos dos mais velhos, o discurso não parecia seguir por bom caminho... Ao alto, a uns quatro metros, no parapeito que rodeava a açoteia, esvoaçavam, picavam a pedra e moviam-se inquietas seis ou sete pombas mansas e silvestres, de plumagem azulada e pescoço verdebronze. O meu coração agitou-se. Aquela casa da esquerda tinha de ser o lar da Senhora... Como no resto da aldeia, as paredes de pedra, meticulosamente caiadas, não tinham janelas. Só uma porta, mas baixa, se abria nos sessenta centímetros de espessura da fachada. Numa primeira avaliação deduzi que o local onde evidentemente vivera o Filho do Homem se erguia a uns oitocentos metros das portas de Nazaré. Quer dizer, no bairro baixo: o mais antigo e degradado. E preparei-me,
então, para o grande momento. Confuso, sem saber que partido tomar, observei os que escutavam o Zebedeu. Maria não se encontrava entre eles. As mulheres que a tinham acompanhado desde a fonte permaneciam sentadas muito próximo da porta. Que devia fazer? Entrava? Esperava que João terminasse? A situação era melindrosa. Dadas as nossas tensas relações não podia esperar muitas facilidades do filho do trovão. Assim, mesmo com o risco de cometer nova tolice, optei por entrar na casa. Silenciosa e cautelosamente, colado à parede e procurando não desviar a atenção dos ali reunidos, fui ganhando os poucos metros que me separavam da ombreira direita. É possível que o Zebedeu, da esquina e entusiasmado com a sua proclamação, não chegasse a ver-me. Descalcei-me e, curvando-me, avancei a cabeça, entoando um assustado “a paz seja com os desta casa”. Sinceramente, não distingui grande coisa. Uma voz familiar chamou-me da penumbra. Voltei a hesitar. Mas a Senhora, que sabia da minha timidez, insistiu com firmeza. Os meus pés passaram o alto degrau de pedra da porta, pousando numa quente e seca esteira. No centro da sala, fracamente iluminada pela luz de fora, agrupavam-se várias pessoas, sentadas nos tapetes de palha que cobriam o soalho. Precisei de alguns minutos para reconhecer as figuras. Aquele jugo das casas hebraicas – a sua perpétua escuridãofoi algo a que não consegui habituar-me. Maria, notando a minha cegueira, acudiu rápida a um dos cantos. Pegou numa brasa da lareira que, soltando fagulhas no canto esquerdo (tomarei sempre como ponto de referência a porta de entrada), acendeu duas candeias. A nova luz veio em meu auxílio. Este aturdido e nervoso explorador pode contemplar, pela primeira vez, o que fora casa de jantar, quarto e sala principal do lar do Mestre desde a sua mais recuada infância. Maria passou, sorrindo, na minha frente. Depois de pendurar uma das candeias na parede da direita, juntou-se aos dois homens e às três mulheres que a acompanhavam, deixando a segunda candeia em cima de uma mesa de pedra de um metro de diâmetro e vinte centímetros de altura que, à primeira vista, me lembrou uma mó de moinho. Dos presentes, só reconheci Tiago, o segundo filho de Maria. Os outros,
também jovens, pareciam ser parentes. Prudentemente, continuei de pé, em silêncio, respeitoso com a conversa que travavam. Segundo parecia – afirmou o homem que se sentava ao lado de Tiago – o ambiente em Nazaré piorara. Não era lugar seguro para os simpatizantes e parentes do Mestre e, muito menos, para a mãe do Ressuscitado. Pobre de mim! Excitado ante a oportunidade que talvez não voltasse a repetir-se de contemplar o lar do Galileu, quase não prestei atenção à premonitória informação do desconhecido: um judeu, íntimo de Jesus, que iria proporcionar-me interessantes e muito secretas páginas sobre aqueles distantes anos de adolescência e da juventude. Durante uns minutos, alheio ao tema da conversa, mergulhei numa minuciosa inspecção de quanto me rodeava. Se não fosse aquilo que representava, a sala em questão ter-me-ia passado despercebida. A sua distribuição, escassos móveis, iluminação, tudo era semelhante ao que já vira noutras humildes casas da Palestina. De acordo com o costume nas povoações agrícolas, a sala – de uns quatro metros de lado – surgia distribuída em duas zonas bem diferenciadas. Na metade esquerda, o nível do solo encontrava-se elevado um pouco mais de oitenta centímetros, formando uma plataforma de construção. Esta elevação, como disse, ocupava metade da habitação e era destinada à cozinha e quarto de dormir. No canto esquerdo, o pedreiro – muito provavelmente o falecido José – esmerara-se na construção de um fogão de tijolo refractário de uns quarenta centímetros de altura, que fechava o referido canto. Os fogos consistiam numa prancha de ferro triangular, solidamente ligada às paredes. A lenha era introduzida e ateada por uma abertura estreita e rectangular praticada em baixo, na parede de tijolo. No Inverno, a chapa de metal ao rubro aliviava os rigores do frio. Os fumos eram expulsos por uma chaminé, triangular como o fogão, que subia pela confluência das paredes, perfurando o tecto. Tendo em conta que na maioria dos modestos lares judeus os gases e os fumos resultantes da combustão se escapavam por onde podiam, a tiragem da casa de Maria podia considerar-se como um luxo. No extremo oposto descansava uma arca de madeira, na qual, também segundo o costume, se guardava a roupa e, até, as provisões.
Naquela mesma parede, a meia altura, alinhavam-se quatro nichos de fundos arredondados pela cal, cheios de vasilhas, ânforas, pratos de argila e madeira e outros utensílios de cozinha. Na parede lateral – entre o fogão e a arca – estavam pendurados os frouxéis que serviam de cama. Em geral, na altura de dormir, os ocupantes destas casas deitavam-se com os pés na direcção do fogo. O que explica a citação do evangelista Lucas. Levantar-se em plena noite, incomodando e pisando a família, não era agradável. Quanto à razão da plataforma, era basicamente sanitária. O nível inferior costumava ser destinado aos animais: cabras, galinhas, burros, vacas, etc. Era lógico, portanto, que a maioria dos camponeses preferisse dormir, cozinhar e alimentar-se a certa distância do sempre sujo e malcheiroso gado. Ao habituar-me à penumbra, as observações apuraram-se. As paredes, todas, encontravam-se rebocadas com gesso e belamente branqueadas. Quatro degraus, no centro da plataforma, facilitavam o acesso numa e noutra direcção. No tabique que encerrava a quadra à minha direita, muito próximo da porta principal, abria-se outra cavidade, sem batente, que levava ao que parecia uma segunda sala. Mas as trevas no referido lugar eram tão cerradas que não pude apreciar um só pormenor. Ao fundo desta parede, no canto direito, destacavam-se três ânforas de pedra. Uma delas, bojuda, solidamente fixada ao pavimento e coberta com uma tampa de madeira, protagonizara uma célebre história... O telhado não podia ser mais rudimentar. Grossas vigas de sicómoro (resistente aos vermes) calafetadas iam da parede da fachada à oposta, entrecruzando-se em ângulo recto com um madeiramento mais leve. Em cima desta base tinham sido dispostas camadas alternadas de folhedo, terra e barro batido. Numa das minhas visitas ao terraço pude examinar o rolo de pedra de sessenta centímetros que servia para acamar a superfície depois das chuvas. Durante os Invernos, a fragilidade dos telhados, castigava os moradores a um ingrato e malsão gotejar de água e de terra. O lar de Jesus, apesar das hábeis mãos do seu pai terreno, empreiteiro de
obras, não se viu livre de tal condenação. - Jasão, amigo, acomoda-te. E, por favor, calça-te. Estes tapetes não são um luxo. O acolhedor convite da Senhora veio arrancar-me a tão prosaicos cálculos e pensamentos. Fui juntar-me aos que estavam em volta da mesa de pedra. Uma mó, efectivamente, mudo testemunho de outro acontecimento histórico: a famosa anunciação do anjo a Maria. Digamos que, à sua maneira, Tiago – com quem já tivera longas conversas – me apresentou ao homem e às três mulheres que compartilhavam a animada conversa. Os rostos de duas delas foram-me familiares. No entanto, atordoado por uma infinidade de pessoas que, directa ou indirectamente, tivera ocasião de conhecer durante o primeiro e segundo saltos, só consegui identificá-las quando o filho mais velho de Maria se lhes referiu como suas irmãs. Duas, efectivamente, eram-no: Miriam e Ruth. A terceira – Esta – que conheci naqueles momentos, era a esposa de Tiago. Miriam, que apresentava os mesmos traços angulosos e os olhos verdes de sua mãe, nascera na noite de 11 de Julho do ano menos dois. Estava casada com o enigmático homem que me observava em silêncio: um tal Jacob, vestido com o tradicional tsitsit de amplas riscas verticais vermelhas e negras. O seu aspecto celta, em especial os límpidos olhos azuis, atraíram-me a atenção desde o primeiro instante. Não parava de me olhar. De início, com um fundo de receio. Depois, ao escutar dos lábios do cunhado o meu digno comportamento nas horas amargas da crucificação, com reconhecimento. Aquela personagem, como tantas outras, tinha muito que dizer em relação aos anos ocultos do Mestre. Filho de um pedreiro associado com José, nascera na casa contígua à de Maria. Crescera e tinha sido educado ao mesmo tempo que Jesus, compartilhando as suas brincadeiras, estudos, problemas e, o que era mais atraente para este explorador, os seus mais íntimos pensamentos e inquietações. Jacob, ligeiramente mais velho que Jesus, fora seu amigo íntimo, pelo menos durante boa parte dos vinte e seis anos que residiu em Nazaré. As suas revelações, como é fácil imaginar, seriam decisivas para quem isto escreve. Ruth, que, juntamente com Miriam e a Senhora, fizera parte do grupo
de mulheres que se deslocara a Jerusalém nas jornadas da paixão e morte, era a mais nova da família. Filha póstuma, viera ao mundo na noite de quarta-feira, 17 de Abril do ano nove da nossa era. Tinha, portanto, vinte e um anos já feitos. Poderia dizer-se que, tanto pelo seu carácter como pela cor ruiva dos seus cabelos, constituía uma atraente excepção entre os oito irmãos. Tímida, de uma extrema sensibilidade e doçura, fora a mimada da casa. Não podemos esquecer que apareceu no lar de Nazaré logo após o falecimento de José e quando o primogénito contava quinze anos de idade. De seu pai herdara um olhar profundo e reflectido. De Maria, a sua espontânea humanidade. O irmão mais velho, com o passar dos anos, soubera suavizar o seu natural nervosismo. Atrever-me-ia a dizer que aquela ruiva de nariz aquilino e cútis transparente, toda salpicada de sardas, foi uma das pessoas que mais intensamente amou Jesus e mais padeceu com a sua morte. Incomodado com os louvores de Tiago – homem pouco inclinado para o elogio gratuito – e sustentando o olhar de Jacob, fiz recuar a conversa para o ponto quente: os temores da família ante a divisão suscitada na aldeia por causa da execução de Jesus. Supunha que a tradicional liberalidade dos Galileus não se veria diminuída pelos protagonizados por Jesus e pelo seu grupo. Supunha mal. O problema de fundo não residia em compartilhar ou recusar os ensinamentos de Jesus. Muitos dos vizinhos respeitavam o estilo do Mestre e, até, se tinham sentido orgulhosos dos seus prodígios e da sua fama. Mas, entre aquela gente também havia quem fosse invejoso e estivesse saturado pelo veneno do rancor. Desde muito tempo atrás, como narrarei em breve, estes grupos minoritários se tinham manifestado abertamente contra o rebelde e orgulhoso filho de José. Com o decorrer dos anos, por causa de acontecimentos muito determinados, estes indivíduos acabariam por toldar o ambiente da povoação, forçando o Galileu a precipitar a sua partida. A insultuosa execução parecia ter dado razão aos intriguistas. Encorajados, além de aviltarem o nome de Jesus, tinham-se apressado a repudiar quantos pudessem defender a nefasta imagem do carpinteiro louco. A nobreza do espírito de gente como Jacob, pedindo paz e tolerância, serviu de pouco. O sacerdote que presidia ao reduzido conselho de governo da
aldeia e Às funções religiosas, erigido em porta-voz e cabeça visível dos inimigos do Rabi, soube alimentar a discórdia até limites insuspeitados. Bem depressa teria oportunidade de o comprovar. Curiosamente, o tal Ismael, da casta dos Saduceus, fora um dos mestres do jovem Jesus. A sua animosidade para com o Filho do Homem – coisa que poucos recordavam – nascia dos tempos da escola, quando o inconformista primogénito cometeu o sacrilégio de o desenhar no pavimento da sinagoga. Isto fora há mais de vinte anos... O incidente talvez se tivesse apagado do mesquinho coração do sacerdote, senão se tivessem dado outros acontecimentos igualmente protagonizados por Jesus e que feriram o patriotismo de Ismael. Porém, o que soltou os cães da sua fúria foram as contínuas notícias que descreviam o antigo discípulo como inimigo irreconciliável de seus irmãos na religião, na cobiça e na corrupção: fariseus, escribas e saduceus. O descaramento de Jesus, que se atrevera a qualificá-los de víboras e sepulcros caiados, unida à sua absurda teologia sobre a ressurreição depois da morte, arrastaram o caduco saduceu para um lamaçal de ódio em que cairiam outros ressentidos e medíocres. *1 No banco de dados do Pai Natal dispúnhamos de ampla documentação sobre esta casta sacerdotal – os Saduceus – de tão nefasta influência na conjura contra o Rabi da Galileia. É decisivo entender a sua filosofia e estilo de vida para, por sua vez, compreender o porquê dos seus ódios pelo Mestre. Neste sentido, os estudos de especialistas como J. Jeremias, Rolland e Saulnier são esclarecedores. O nome dos Saduceus vinha ou estava relacionado com o de Sadoq, que reivindicava o sacerdócio legítimo (Ez, 40, 46). E ainda que os últimos asmoneus e as famílias da aristocracia pontifícia ilegítima – caso de Hircano (130104 antes de Cristo), sumo sacerdote – tenham adoptado as ideias saduceias, a verdade é que não se podia considerar a referida casta como um partido clerical de elites. Embora na sua origem fossem os caudilhos da resistência contra os ímpios, as suas alianças posteriores com Roma e a sua abertura ao progresso e ao dinheiro gregos acabariam por convertê-los na viva imagem do luxo, do bem-viver e da intolerância por qualquer ideia que defendesse a ígualdade entre os homens. Os Saduceus formavam um grupo organizado, não excessivamente numeroso como assegurava Josefo (Ant. XVIII 1,4) e no qual não era fácil entrar. Possuíam uma halaká, ou tradição, muito especial, baseada no Pentateuco e só nele. Uma forma de vida que, logicamente, os diferenciava da restante comunidade. Não aceitavam facilmente os profetas, culpando os Fariseus de muitas das heresias recentes. Insistiam em manifestar uma fidelidade quase doentia ao Deus da Aliança e dos
seus antepassados. Fidelidade que, naturalmente, Lhes permitia continuar a usufruir dos seus privilégios. A sua teologia é igualmente importante para entender a atitude de conservadorismo intransigente desta casta: a sua rigorosa observância da Tora, em especial em tudo o que diz respeito ao culto e ao sacerdócio, tinha-os levado a profundas disputas com os Fariseus, que defendiam a tradição oral e um rigoroso cumprimento da pureza sacerdotal. Negavam violenta e sistematicamente a ressurreição, apoiando-se no conceito tradicional de uma retribuição imeditada e material. Desta forma, justificavam o seu poder e riquezas: Deus abençoa os justos. A frase de Jesus – os últimos serão os primeiros – era algo que não podiam admitir nem suportar. Aceitar um juízo e um prémio ou castigo depois da morte teria colocado em sérias dificuldades os seus luxos e excessos. Para os Saduceus, a santidade e as leis da pureza só eram exigíveis no templo. Consequentemente, fora do seu recinto, podiam comportar-se como melhor conviesse aos seus interesses, escravizando mesmo o povo. A expressão de Jesus – sepulcros caiados – retratouos perfeitamente. (N. Do M.)
Foi este, em traços largos, o quadro que Maria encontrou no seu regresso a Nazaré. Um panorama – não me cansarei de o repetir – do qual não se fala nos Evangelhos e que, no entanto, foi o detonador que obrigou a mãe de Jesus a autodesterrar-se para as margens do lago, em Saidan. Tem de se dizer tudo. Nos primeiros rodeios da conversa, tanto a Senhora como Tiago discutiram o parecer de Jacob, acusando-o de alarmista. Maria, pelo menos naquela radiante manhã de terça-feira, 25 de Abril, não contemplava a ideia de abandonar a sua casa. Ali tinham sido sepultados José, seu esposo, e Amos, seu único filho falecido. Ali tinha sido feliz. Ali estavam as suas raízes, a sua gente, as suas pombas... Via-a negar e minimizar as prudentes advertências do seu genro e de Miriam. Teimosamente levantou-se muitas vezes, mostrando-nos a humilde casa e recordando aos presentes que aquele lugar fora abençoado pelo anjo de Deus. E estávamos nisto quando, de repente, no grupo de Zebedeu, distante e praticamente esquecido, se iniciou uma gritaria confusa e entrecortada. Tiago e Jacob olharam-se, alarmados. Ruth e Esta empalideceram, agarrando-se ao mesmo tempo aos
braços de Maria. A Senhora, fria e resoluta, fez um gesto a sua filha Miriam, indicando-lhe que fosse ver o que era. E a jovem, valente como sua mãe, apressou-se a obedecer. Jacob deixou-a chegar à porta mas, ao escutar algumas secas e dolorosas imprecações contra o seu falecido amigo, saltou como um leopardo, arrastando na sua cólera Tiago. Obrigando a esposa a entrar em casa, recortou-se a um palmo da entrada, ombro a ombro com o cunhado. Devagar e cautelosamente fui atrás deles e vim para a rua. O que vi e ouvi foi um coro de impropérios e ameaças entre dois grupos. À nossa esquerda, envolvendo um João Zebedeu de pé na escada e fora de si, gritava uma dezena de vizinhos, mulheres, na sua maioria, insultando a vintena restante. Estes últimos, que não ficavam atrás quanto a maldições, brandiam os seus bastões no ar, cuspindo para a pequena faixa de terra que os separava. Uma e outros, num vão empenho de abafar as vozes dos contrários elevando o tom e a violência dos insultos, acusavam-se de velhacos, escravos de um bêbedo saduceu, amigos de um carpinteiro ao serviço de Roma, traidores à lei e visionários, entre outras delicadezas... Talvez o mais triste de toda aquela – de momento – batalha dialéctica fosse assistir à total decomposição da imagem do Zebedeu. Não podia acreditar naquilo que via. João, histérico, com os olhos quase fora das órbitas, levantoú os braços ao céu e berrando como um possesso exigiu da justiça divina que arrasasse aquele ímpio povo com o enxofre e o fogo que destruiu Sodoma. O que não tinham conseguido os sensatos e insistentes pedidos de paz de Jacob e Tiago alcançou-o aquela louca invocação. As gargantas, todas, apagaram-se, como que fulminadas. Tiago e o seu companheiro, conscientes dos gravíssimos efeitos que podia trazer tão insensata provocação, abriram passagem entre os silenciosos e perplexos vizinhos. E sem o menor respeito lançaram mão à túnica do enlouquecido Zebedeu, arrastando-o para a porta da casa. Uma vez ali, Tiago com o semblante desfigurado, limitou-se a empurrá-lo, enfiando-o na penumbra da sala. Ao mesmo tempo, desembainhando a espada, foi cravar-lha aos pés, gritando as seguintes palavras: - Rogo-vos que desculpeis a ira do nosso amigo... Não foi este o espírito de meu Irmão e Mestre... Mas também vos aviso: esta é a nossa terra... - E apontando o gladius que vibrava, cravado, acrescentou
com firmeza - ... E se é mister, defender-nos-emos dos répteis que se aninham em Nazaré. O profundo silêncio foi quebrado pelo súbito choramingar das crianças. As mães, assustadas ante o feio desenlace daquele encontro apressaram-se em erguê-las nos braços. Mas a infeliz linguagem do filho do trovão que, na sua arrogância, falava na hora de castigar os seus inimigos, despertaria fundos rancores. Quando os ânimos pareciam mais serenos, alguém, aos empurrões, abriu caminho entre o compacto grupo de vizinhos, encarando altivo e desafiador os dois homens que representavam e simbolizavam a família de Jesus. Longe de reagirem ante o seu andar dominador e arrogante, os que ali estavam reunidos, ao verem-no, recuaram com temor. A maioria inclinou a cabeça em sinal de respeito e obediência. Só Tiago e Jacob se mantiveram firmes e em guarda. Os olhos acastanhados do primeiro percorreram a figura enrugada do velho sem poder reprimir uma careta de repugnância. O notável que julguei identificar pelas vestes sacerdotais – túnica branca de linho apertada na cintura por três voltas de faixa e um gorro cómico, de tecido e de cor idêntico – e pelo avançado da idade, replicou com mudo desdém ao significativo olhar do irmão do Rabi. E foi mais longe que Tiago. Inclinando a cabeça, cuspiu para a espada que os separava, proclamando com voz de bebedor de aguardente: - E disse Isaías: A víbora e a serpente... se as juntarem originarão víboras. Fiquei tão confuso como os meus dois acompanhantes. A citação do Livro Profético (59, 5) parecia sugerir que a espada – semienterrada na areia – acabaria por se transformar numa víbora. Por outras palavras: que o ódio e a maldade, devidamente fecundados, só engendram ódio e maldade... Mas Tiago, bom conhecedor das Escrituras, que aprofundou graças a seu Irmão, logo replicou com os versículos imediatamente seguintes aos referidos pelo perverso Ismael, O saduceu: - E tu, corrupto entre os corruptos, atreves-te a falar assim? Escuta agora o que disse Isaías: ... Caminho de paz não conhecem, e direito não há nos seus passos. Torcem os seus caminhos para proveito
próprio... Por isso se afastou de nós o direito. Alguns risos de cumplicidade e aprovação, nas costas do sacerdote só contribuíram para piorar as coisas. O velho chefe do conselho mordeu os lábios, acusando golpes certeiros. Ao pensar que me encontrava na frente do velho professor de Jesus, uma curiosidade excitante se apoderou de mim. Sintomas inconfundíveis revelavam que Ismael padecia de cirrose: ginecomastia, ou volume anormal dos peitorais, que oscilavam por baixo da túnica, a cada movimento ou respiração agitada; acentuado enfraquecimento e diminuição do tónus muscular; ruborização; calvície quase total e uma ascite, ou acumulação de líquido na cavidade abdominal. Porém, acima de tudo, o selo da sua mais que provável doença hepática crónica aparecia nos vasos em aranha, desenhados nas mãos e nas faces (vasos dilatados quase dispõem de forma radial, como as patas dos aracnídeos). Lançando uma baforada pestilenta ao rosto de Tiago, vociferou, enquanto fazia recuar o braço esquerdo, apontando para as pessoas ali reunidas: “... Nazaré nunca foi berço de répteis. Tu e os teus, com esse Jesus à cabeça, sim, haveis trazido a inquietação e a divisão... Um foi já castigado. Toca agora a vós, ímpios, que não sabeis pôr a nu os vossos ombros (1) e que, vencidos e humilhados, haveis sido capazes de propalar a mentira da ressurreição desse carpinteiro que acreditou ser o filho do Divino, bendito seja o seu nome... Jacob, menos sereno que seu cunhado, esboçou o gesto de se inclinar para desenterrar o gladius e castigar as duras palavras do saduceu. Mas Tiago, irradiando parte da serenidade que tanto admirei no Mestre, sustentou o olhar de Ismael e interpôs o braço direito entre a espada e o cunhado, numa renúncia a toda a violência. Instintivamente, alguns dos vizinhos recuaram. Antes que Tiago pudesse replicar ao sacerdote, este, soberbo, desafiou-o com uma pergunta que só podia conduzir à catástrofe: - Ou será que te atreves a negá-lo? ... Diz-nos: reconheces em Jesus o Filho do Deus vivo? Por um instante, acreditei que Tiago renunciava. Os seus compridos e
louros cabelos cintilavam levemente. Mas aquele majestoso girar de cabeça para a direita e para a esquerda não significava rendição. Com voz grave, alta e forte para que todos o pudessem ouvir, sentenciou: - Tu o disseste. Reconheço-o como tal. Estupefacto, assisti a uma cena familiar e não muito distante. Ismael recuou uns dois passos e convulso, a babar-se, com uma teatralidade muito própria daquele sacerdócio hipócrita, voltou-se para os vizinhos. Levantou os braços. Cerrou os punhos e em tom fatigado, falsamente esgotado pelo peso do que acabava de escutar gemeu: - Todos sois testemunhas... Blasfemou... Réu é de morte!... *1 Entre os rituais praticados pelos Judeus em caso de nojo, figuravam rasgar as vestes e pôr o ombro a nu. Igualmente, o costume da época obrigava à celebração de um banquete fúnebre - o pão de nojo de que falam Oseas e Ezequiel (Os. IX, 4) e (Ez. XXIV, 17) – em que o vinho corria com generosidade, terminando a maior parte das vezes em pândegas. O luto durava trinta dias. Nos três primeiros estava proíbido todo o tipo de trabalho, não se podendo sequer saudar os concidadãos. Os muito piedosos e observadores da lei não se barbeavam nem tomavam banho, cobrindo-se com as roupas mais sujas e velhas da casa. Na Galileia, livre e liberal, muitas destas normas eram olimpicamente ignoradas. (N. Do M.)
Um pressentimento – tudo parecia repetir-se absurdamente – me fez reagir a grande velocidade. Tirei os crótalos e, colado à parede, ajusteios aos olhos, preparando-me assim para me defender, caso fosse necessário... E os meus dedos deslizaram para o dispositivo que activava os ultra-sons (1). Desta vez a sorte esteve do meu lado... As cores – que não os sentimentos – interpretados pelo meu cérebro mudaram drasticamente. Os brancos, em especial a túnica do saduceu, explodiram numa prata fulgurante, enquanto as riscas vermelhas dos mantos se transformavam num negro espectral, e os verdes das flores e trepadeiras próximas uniram-se ao dramatismo de momento, sangrando em vermelho e laranja. Alta gritaria vincou a sentença de Ismael. Tiago, precavido, recuperou a espada e o cunhado, tremendo em suores frios de medo, recuou até ao umbral da porta. *1 Ainda que a descrição deste complexo mecanismo tenha sido já incluída nos
volumes anteriores, entendo que, aqui e agora, a sua repetição pode ser de interesse para o leitor. Esta foi a explicação do Major: Um dos dispositivos situado no interior do cajado – o das ondas ultra-sónicas, de natureza mecânica e cuja frequência se encontra acima dos limites da audição humana (superior aos 18.000 Hertz) – fora modificado tendo em vista esta nova missão. Cavalo de Tróia proibia terminantemente que os seus exploradores ferissem ou matassem os indivíduos... Porém, na previsão de possíveis ataques de animais ou de homens, como meio dissuador, inofensivo, Curtiss aceitara que os ciclos das referidas ondas fossem intensificadas até aos 21000 Hertz. Em caso de necessidade, o uso dos ultra-sons podia resolver situações comprometedoras, sem que ninguém chegasse a aperceber-se do sistema utilizado. Como também expliquei, tanto os mecanismos de teletermografia como os de ultra-sons eram alimentados por um microcomputador nuclear, estrategicamente alojado na base do bastão. A cabeça emissora disposta a um metro e setenta centímetros da base da vara, era accionada por um prego de larga cabeça de cobre, trabalhado – como o restante – de acordo com as antiquíssimas técnicas metalúrgicas descobertas por Glueck no vale da Arabá, ao sul do mar Morto, e em Esyón-Guéber, o lendário porto de Salomão no mar Vermelho. Os ultra-sons, pelas suas características e natureza inócua, estavam indicados para a exploração do interior do corpo humano. Cavalo de Tróia dispôs na cabeça emissora, camuflada por baixo de uma risca preta, uma placa de cristal piezeléctrico formada por titanato de bário. Um gerador de alta frequência alimentava a referida placa, produzindo assim as ondas ultra-sónicas. Com intensidades que oscilam entre os 2,5 e os 2,8 miliwatts por centímetro quadrado e com frequências próximas dos 2,25 megaciclos, o dispositivo de ultra-sons transforma as ondas iniciais noutras audíveis, medíante uma complexa rede de amplificadores, controlos de sensibilidade, moduladores e filtros de bandas. Com o fim de evitar o complexo problema do ar – inimigo dos ultra-sons -, os especialistas imaginaram um sistema capaz de encarcerar, e guiar os ultra-sons através de um finíssimo cilindro ou “tubagem” de luz laser de baixa energia, cujo fluxo de electrões livres ficava congelado no instante da sua emissão. Ao conservar um comprimento de onda superior aos oito mil angstrom (0.8 micras), o tubo laser continuava a dispor da propriedade essencial do infravermelho, que só podia ser visto mediante o uso das lentes especiais de contacto (crótalos). Desta forma, as ondas ultra-sónicas podiam deslizar pelo interior do cilindro ou túnel, formado pela luz sólida ou coerente, podendo ser lançadas a distâncias que oscilavam entre os cinco e os vinte e cinco metros. O nome de crótalos deve-se à semelhança com o sistema utilizado por este tipo de serpente, que Lhes permite caçar através das emissões de radiação infravermelha dos corpos das suas presas. Qualquer corpo cuja temperatura seja superior ao zero absoluto (menos 273 graus Celsius), emite energia do tipo IR, ou infravermelha. Estas emissões de raios vermelhos, invisíveis ao olho humano, são provocadas pelas oscilações atómicas no interior das moléculas e, em consequência, encontram-se estreitamente ligadas à
temperatura corporal. (N. De J. J. Benitez.)
Fiz bem em preparar-me. Girando nos calcanhares, o sacerdote voltou-se novamente para nós. Congestionado pela ira, as manchas em forma de aranha do rosto tremeram num negro diabólico. A sorte parecia lançada e como imaginava, de acordo com o costume, as suas mãos crispadas agarraram o linho da túnica, rasgando-a com um puxão seco e forte. A horrorosa caverna esverdeada da boca abriu-se, guinchando como uma comadre: - Morte! Alguns dos velhos e mulheres, aterrorizados, fugiram rua abaixo. Mas a vintena de fanáticos vizinhos, uivando como lobos, inclinaram-se ao mesmo tempo para o chão à procura de pedras. Continuando a entoar a sua lengalenga, Ismael, misturou-se com o grupo, chocando com uns e outros na atabalhoada recolha de pedras. E de súbito, num dos mais violentos ataques que alguma vez eu poderia imaginar, uma chuva de pedras, atiradas de quatro, oito a dez metros, começou a ferir Jacob e Tiago, bem como a parede da casa e, naturalmente, quem isto escreve. A palavra morte, bradada em coro por aqueles energúmenos arquejantes, misturou-se com o ruído das pancadas na fachada e nos gemidos de dor dos dois homens. A crítica situação apenas se prolongaria trinta segundos. Protegendo a cabeça com os braços, o irmão de Jesus ordenou ao cunhado que entrasse em casa. Logo, com um salto, também ele desapareceu de cena. Ante a minha desolação, a porta cinzenta foi fechada e trancada. Durante breves instantes, as pedras continuaram a bater na madeira, acumulando-se, negras, na soleira. Quis Deus que este assustado explorador soubesse e pudesse reagir a tempo, e o ódio daquele grupo voltou-se para mim. Sem saber, sem perguntar, uns rostos e mãos verde-azuis exigiram a minha vida. Na verdade, era um deles. Assim o interpretaram e, consequentemente, a falhada lapidação – mais violenta ainda, se tal era possível – tomou-me como vítima. Mas antes que se inclinassem novamente para a calçada, uma primeira descarga de 21.000 Herz entrava na calva cor de bronze do
saduceu, provocando-lhe alterações no aparelho vestibular, (1). Em centésimos de segundo, o seu ouvido interno sofreu a invasão dos ultrasons, bloqueando o canal semicircular membranoso, com a fulminante perda de orientação da cabeça e do corpo no espaço. Com os olhos fora das órbitas e a língua pendente tombou redondamente. A imobilização estava garantida durante alguns minutos. A queda inesperada do sacerdote provocou um silêncio sepulcral. Aproveitando a vantagem da confusão, premi novamente o prego e outro fio infravermelho penetrou, implacável, na testa de um ancião que se apressara a ajudar Ismael. O segundo desmaio foi decisivo. O grupo, aterrorizado, largou as pedras e, movido por um pânico supersticioso, elevou os rostos para o azul-marinho *1 O efeito dos ultra-sons, puramente defensivo, como já indiquei, centrava-se no referido aparelho vestibular, vital na percepção de sensações e que facilita uma informação permanente sobre a orientação no espaço do corpo e da cabeça. Junto às impressões visuais e tácteis dá a conhecer ao indivíduo as variações de situação que o corpo experimenta, desencadeando as reacções correspondentes e automáticas, que tendem a conservar o equilíbrio, em colaboração com a contracção sinérgica dos músculos (N. Do M.)
do céu. Recordei a maldição de Zebedeu. Numa debandada vergonhosa, atropelando-se mutuamente, desapareceram pelos pátios e vielas circundantes. Felizmente, nenhum dos esbirros me associou à queda do saduceu e do companheiro. Entre os falatórios que pude ouvir nas intensas horas e jornadas seguintes, alguns, a meia voz, atribuíam o “mal” que os deixara sem palpitação a uma manifestação da cólera divina. Pelo contrário, havia outros que troçavam das atemorizadas testemunhas, recordando que aquela não fora a primeira vez que Ismael perdia os sentidos... por causa do vinho de palma. Os restantes encoLhiam os ombros, convencidos da inépcia e falta de coragem dos atacantes. O certo é que o incidente marcaria o destino da família de Jesus. Em especial, o da Senhora. Nem uns nem outros estavam dispostos a perdoar... Na rua deserta caiu um silêncio atroz, de desconfiança, aos poucos interrompido pelo regresso à açoteia das assustadiças pombas e pela
rápida passagem dos gatos. De costas para os corpos caídos, pus-me em frente da porta. Antes de bater, perguntei-me o que devia fazer ou responder ante as prováveis e lógicas interrogações dos moradores. Talvez tivesse chegado o momento de abrir o meu atormentado espírito – ainda que apenas minimamente – e sufocar assim os receios de Maria. O céu tinha a palavra. Cheio de vaidade – não o pude evitar – senti-me orgulhoso com o trabalho dos ultra-sons. Não tive de bater à porta. O repentino e anormal silêncio não passara despercebido na casa. Um sussurro veio do terraço. Ao levantar os olhos avistei a cabeça de Jacob, escondida entre as pombas. Pediu-me que esperasse. A incerteza, como um corvo, foi pousar no meu coração. Há quanto tempo estaria o amigo de Jesus na açoteia? Teria presenciado o desmaio dos velhos? Com a angústia a dominar-me os pensamentos ouvi o nervoso destrancar da porta, que se abriu quatro dedos. Uns olhos chorosos – os de Ruth – pestanejaram, feridos pela claridade. Entrei imediatamente, ao mesmo tempo que as filhas da Senhora se precipitavam para a porta escorando-a com uma tranca. Junto à mesa de pedra, de joelhos, arrasada em pranto, descobri uma Maria nova para mim. E antes que conseguisse mover um músculo, aquela mulher, derrotada pela angústia e pelo medo lançou-se nos meus braços, estreitando-me entre soluços e tremores. Comovido, mal soube corresponder ao seu infortúnio, afagando-Lhe os fragrantes e sedosos cabelos negros. O cintilar de uma espada na penumbra da sala pôs-me em guarda. Respirei aliviado ao verificar a identidade do seu portador. Tiago, com as feições endurecidas, avançou para nós. Ao reconhecer-me meteu o gladius na faixa. Atrás, vindo também da misteriosa sala, apresentou-se o Zebedeu. Observei-o sem dissimulação. A espada tremia-lhe na mão esquerda. Suava abundantemente e, com o olhar perdido, parecia falar consigo mesmo. Experimentei a necessidade de o ajudar. Com toda a probabilidade, era vítima de um choque. Afastei carinhosamente Maria mas, quando me dispunha a chegar junto do impulsivo e maltratado fiLho do trovão, o agora chefe de família interpôs-se e pondo-me as mãos nos ombros
suplicou-me perdão. Estremeci ao recordar aquele gesto... Era um dos comoventes hábitos do Mestre. Mas Tiago não pôde notar o calafrio que me percorreu as entranhas.E negando com a cabeça retirei importância ao que acontecera. Logo a seguir fez-me uma pergunta que, em boa medida, me tranquilizou: - Que aconteceu lá fora? Aquilo significava que Jacob, vigilante no terraço, não fora testemunha dos últimos sucessos. Improvisei uma resposta, respeitando – em parte – a verdade. - Sem causa aparente – respondi – dois dos indivíduos tombaram como que mortos... - Mas... As dúvidas de Tiago morreram na penumbra. O Zebedeu não lhe permitiu terminar. Avançando, sem deixar de brandir a espada, começou a rir nervosamente, balbuciando um monocórdico “Deus é justo”. Tiago, sem se impressionar ante o ataque de histeria de João, fez um sinal a sua mãe. E Maria, secando as lágrimas, encaminhou-se para o canto das ânforas. - Deus é justo... O sinal de cumplicidade fez-me pensar que aquela psiconeurose, com perda de controlo sobre os actos e emoções, não era novidade para o grupo. Num momento de desatenção do Zebedeu, o irmão do Mestre agarrou-lhe a mão que empunhava a espada. E delicada mas resolutamente arrebatou-lhe a lâmina. O discípulo, alheio ao que o rodeava, não opôs resistência. Com os olhos vidrados transformou o riso em pranto. E caindo de joelhos nas esteiras prosseguiu a sua obsessiva ladainha: - Deus é justo e humilhou o impuro... Deus é justo. Auxiliado por Ruth, a Senhora abriu a boca do Zebedeu, obrigando-o a engolir um vinho negro e espesso. A entrada de Jacob, anunciando que a rua continuava deserta,
acelerou os planos de Tiago. Confiando ao cunhado a custódia dos seus, obrigou João a levantar-se. Puxando-o por um braço, levou-o consigo, desaparecendo na escuridão da sala contígua. Com sobriedade admirável, esta sua mulher, beijou Maria, sussurrando-Lhe que regressariam imediatamente. Pouco depois, averiguaria que, para evitar males maiores, a família optara por esconder o Zebedeu na casa de Tiago, a oeste da aldeia, muito próxima do falecido oleiro. E Jacob, depositando em mim a sua confiança, anunciou que voltava ao terraço, avisando que sob pretexto algum transpuséssemos a porta. As mulheres concordaram, juntando-se a sua mãe. Num gesto de hospitalidade – não sei se tentando compensar-me pelo involuntário descuido de seus filhos ao deixarem-me à mercê dos vizinhos – Maria, enxutas as faces e dominadas as emoções, rogou-me que achasse por bem dispor da sua humilde casa. Sorri-lhe, honrado pelo que aquele convite significava para mim e feliz pela sua rápida recuperação. De bom grado aceitei a malga de vinho que a trémula Ruth achou por bem oferecer-me. Não sei porque o fiz. Mas, deixando-me arrastar por um íntimo e cristalino sentimento, afaguei as longas e finas mãos da rapariga, dizendo-lhe com ternura imprópria: - Não temas. Eu vos protegerei... até ao regresso do teu irmão. Talvez me tenha arrependido um segundo depois. Talvez não. Pouco importa. Tudo o que recordo com clareza é que, esquecendo as normas, quem isto escreve teria dado a sua vida para salvar aquelas mulheres indefesas e atemorizadas. E a Senhora, ao sentir a sinceridade das minhas palavras, lançou-me um olhar penetrante, igual ao que tínhamos cruzado na caravana de Murashu. E soube que chegara o momento. E ela, talvez antes de mim, também o soube. Com os seus amendoados olhos verdes fitos em mim ordenou às filhas que vigiassem a porta das traseiras. - Jasão amigo – disse, logo que desapareceram Miriam e Ruth -, és um homem estranho. Na verdade, nenhum de nós consegue entender a tua singular actuação... Deixei-a falar. A sua voz grave, interrompida de quando em quando
por breves suspiros – lógicos soluços do recente choro - fez que eu começasse a revelar os meus sentimentos. E assim, mercê da sua intuição, tudo foi mais fácil. “... Eu sei que nenhum comerciante se porta como tu. Sorriu maliciosamente, mostrando à feminina chama que nos separava aquele marfim alinhado e invejável. Eu, porém, com todos os sentidos alerta, continuei hierático: gelado por fora, a arder por dentro. “... Nenhum pagão faz o que tu fazes. Nenhum gentio teria arriscado a sua vida aos pés da cruz. Só João, o meu querido e por vezes infantil João, soube ser homem...” A linguagem rude de Maria não me escandalizou. Aquela valente muLher, vítima de tudo e de todos, em especial de si mesma, dizia o que pensava. E admirei-a por isso. “... Julgas que não soube do profundo amor de meu filho por ti?” Desta vez, sim, repliquei: - O Mestre – corrigi-a – ama tudo aquilo que foi criado e não foi criado. As finas sobrancelhas de Maria arquearam-se levemente, acusando a carinhosa emenda. “.. Ama, dizes? És dos que acreditam que não morreu? - Sim, morreu – acrescentei, arriscanto tudo por tudo -, mas também é certo que ressuscitou... para vós e para nós. A Senhora, nos seus quarenta e nove anos, conservava reflexos mentais que gostaria fossem os meus. “... Não é já tempo, Jasão, de abrires a tua alma? Porquê vós e nós? Quem és? De onde vens?” Suplicando-lhe que aquela conversa fosse mantida em segredo, tentei fazer-me compreender. - O Mestre, minha querida e admirável Senhora – era a primeira vez que a tratava assim -, anunciou-o uma vez... Cerrou levemente os olhos, como se procurasse recordar. - Lamento... - desistiu, com uma sombra de tristeza. - Naquele tempo, mal sabia das andanças de meu Filho... Vivia por outra ideia.
“.. Jesus exprimiu-o com clareza – prossegui: - “No reino de meu Pai há outras moradas”. Olhou-me sem compreender. - Eu e milhões de homens e mulheres como eu pertencemos a uma dessas moradas... A realidade que observas e tocas não é a única... - Compreendo – interrompeu-me. E os seus lábios entreabriram-se, deixando escapar um medo recém-nascido. Há trinta e seis anos, nesta mesma mesa de pedra, justamente onde te sentas agora, alguém que não era daqui me falou e anunciou que o Filho da Promessa estava para chegar... A comparação era incorrecta. Mas aceitei-a. E os meus olhos sorriram, aprovando as suas palavras. - Mas, então... E aquele escondido medo cresceu como uma coluna de fumo, que acentuou as fundas olheiras de Maria. “... Tu, Jasão, és um anjo...” Apressei-me a negar, embora não saiba se fui muito convincente: “... Se anjo significa mensageiro... aceito. Gabriel aquele de quem falas, sim, é um verdadeiro anjo. Eu não sou digno nem de projectar a minha sombra sobre ele. Estou aqui para dar testemunho de teu Filho. Um testemunho que deverão conhecer outros povos... Gentes de um mundo, de uma morada muito distante... E o Pai, na Sua infinita bondade, concedeu-me alguns poderes (muito poucos) de que tu, talvez, tenhas a intuição. Tal como o Mestre foi, também eu devo ser respeitoso convosco. A minha missão é tentar aproximar-me da Verdade que rodeou Jesus...” - Porquê? - perguntou, com uma ingenuidade comovedora, fruto da sua lógica falha de perspectiva histórica. Tenho de insistir nisto. Hoje, os crentes deformaram a imagem da Senhora. Naqueles instantes, nem ela nem nenhum dos que seguiam o Nazareno podiam ter sequer a intuição das consequências da encarnação do Mestre. - Tu viste: meu Filho acabou como um delinquente... A quem pode interessar a sua vida e as suas palavras? Amanhã será apenas
recordado pelos seus amigos. Por momentos, fiquei num silêncio estudado. Saltava aos olhos que a Senhora, por muito que se esforçasse não estava em condições de conceber a grandiosa e divina transcendência do Ser que trouxera no ventre. E quem era eu para violar as limitadas fronteiras da sua inteligência... - Sim – repliquei, com uma convicção que a desorientou -, tens razão... em parte. Será recordado pelos seus amigos. Porém, esses amigos multiplicar-se-ão como as flores na Primavera... Aquele verde-erva dos seus olhos, geralmente sereno, agitou-se como um trigal por onde passa o vento. E a cor voltou de novo à sua tez bronzeada. Comovida, pediu que me explicasse. “. Não te é fácil compreender, contudo, eu sou a prova de quanto digo. Venho de um mundo para ti longínquo. Ali, as pessoas também receberam a notícia de um Jesus de Nazaré. E muitas lhe abriram os seus corações. Outras, em contrapartida, ignoram-no e repelem-no. Eu venho saber para depois transmitir. E faço-o para todos. Teu Filho sabia...” - Oh, Jasão! Então a sua morte não será em vão... Sorri de novo, não sei se contente ou comovido. - Permite-me... A sua vida não será em vão. A morte, a de todos, nunca é em vão. - E erguendo entre os meus dedos a malga de vinho acrescentei: - Observa este licor. Foi antes o fruto da videira. Assim, como Ele profetizou, o seu corpo e existência terrenos foram esmagados para obter a essência: o seu espírito, a sua palavra, a sua mensagem, -o seu amor... E a fragrância desse vinho chegou até ao meu mundo longínquo. Mas a nossa sede é tão grande, querida Senhora, que os meus concidadãos me enviaram para transportar o vinho da vida de Jesus e poderem saboreá-lo. Por isso, tu e os teus deveis ajudar este comerciante de vinhos... Um choro sereno faiscou à luz da candeia, e Maria, agradecida, aceitou-me desde a distante proximidade da sua nobre alma, revelada agora nos olhos molhados por lágrimas de felicidade. E Deus sabe:
aquele abraço invisível para sempre me compensou. - Que devo fazer, meu querido comerciante de vinhos? - gracejou, enxugando as lágrimas. - Deixa isso nas mãos do Pai... E guarda o meu segredo. Impulsiva como sempre, a Senhora levantou-se e, rodeando a mesa, tomou-me a cabeça entre as mãos, dando-me um sonoro e prolongado beijo na testa. - Deus te abençoe, Jasão. Aproximadamente às treze horas, (Entre a hora sexta e a hora nona.) A nossa conversa, que, de acordo com o combinado, girava em torno dos supostos anos secretos de Jesus em Nazaré, foi interrompida por um vaivém de passos, confuso e espaçado. Pareciam vir da açoteia. Maria, alarmada, pegou na candeia de azeite e, decidida, aproximou-se da porta de entrada. Encostou o ouvido à madeira, mas, pelo que parecia, lá fora continuava a reinar o silêncio. Levantou os olhos para o tecto e, ao notar que o nervoso matraquear na argila passara para a frente da casa, precipitou-se na escura cavidade onde eu ainda não entrara. Receosa, parou no umbral. Voltou a cabeça e, ao saber que me encontrava nas suas costas, aventurou-se no escuro, cautelosamente. Tentei não me distanciar, entre outras razões para não perder a pouca luz que nos abria caminho. Aquela segunda sala, completamente às escuras foi uma surpresa. Nos seus três metros de lado dormia empoeirado e em desordem quanto era necessário para exercer a profissão de carpinteiro... Na parede oposta à porta sem batente que atravessámos estava um banco de cerca de oitenta centímetros de altura, escorado por dois pés em v invertido. E sobre o grosso madeiro esquadriado que lhe dava forma, uma plaina de dupla asa e um pranchão meio trabalhado. Sem fazer ruído, a Senhora chegou à desengonçada porta, na parede que se erguia em frente da fachada. Aproximou a face esquerda do sujo batente. Deste tabique, como dos restantes, pendiam dezenas de ferramentas, presas por ripas de madeira: serras, cinzéis, compassos de bronze e de madeira, tesouras, pinças, pregos de trinta e de quarenta centímetros, punções, :lâminas de machado, cabeças de martelos (com ou sem cabo), goivas, facas e vários trados de arco. O chão ressequido,
atapetado de serradura e de aparas encaracoladas, rangeu sob as sandálias. Era estranho. Os cabos para enxadas, as almajarras para animais e para a trilha e alguns simples arados de pouco peso - tudo meio acabado e espalhado pelos cantos – sugeriam um trabalho bruscamente interrompido. Mas, a julgar pelas teias de aranha que formavam névoa aos cantos, isso devia ter acontecido há muito tempo. Por outro lado, aquele cubículo fechado, sem acesso directo à rua, não ligava com a fórmula tradicional judaica. A maioria das oficinas de carpintaria concentrava-se num lugar ou bairro certo da aldeia ou da cidade, formando um grémio artesanal e, insisto, sempre aberto para o exterior, para o cliente. Por último, se a sala contígua apresentava um aspecto limpo e arrumado, a que obedecia aquele lamentável desleixo? A Senhora, única responsável pelo imaginado pecado, tinha as suas razões... O murmurar do outro lado da parede aproximou-se. Num movimento reflexo, firmei-me com força no movimento brando pronto a intervir. De repente, alguém empurrou a porta e pouco faltou para que o empurrão derrubasse Maria. A claridade cegou-nos a ambos, e a silhueta de um homem atlético, de estatura próxima da de Jesus, com cintilações de ouro nos compridos cabelos recortou-se, majestosa, à luz da manhã. Não quero ocultá-lo. Por um momento sobressaltei-me. Estava a sonhar? Tinha na minha frente o Ressuscitado? Perplexo, vi como a muLher se lançava para o desconhecido, abraçando-o. Respirei, aliviado. Era Tiago. Atrás, com os semblantes igualmente graves, apareceram Jacob e as mulheres. A porta da oficina foi escorada e a irmã do Rabi foi, apressada, sentar-se à beira da plataforma da sala-dormitório. À excepção do Zebedeu, toda a família se sentou nas esteiras, disposta a escutá-lo. O estado de espírito de João tornara aconselhável que permanecesse recolhido em casa de Tiago e de Esta. Na verdade, fora ele quem provocara aquela situação. Ao reparar no sempre impassível rosto do agora filho mais velho da Senhora e ao descobrir a macilenta palidez do medo compreendi que as coisas se tinham agravado. Já tinha visto aquele terror mal contido.
Tinha-o visto no recolhimento prolongado dos discípulos no cenáculo de Jerusalém. Tiago, dissimulando o sofrimento no mais profundo de si mesmo, procurou disfarçar. Não o conseguiu por completo. Para sua mãe, aquele distraído afagar da barba com a mão esquerda não era bom presságio. Sem rodeios, foi direito ao assunto. As coisas eram como eram e não convinha fechar os olhos à dura realidade. Tinham de abandonar a aldeia. A tentativa de lapidação daquela manhã era uma carga difícil de suportar. Quem poderia adivinhar o que iria acontecer naquela mesma noite ou no dia seguinte? “.. Temos de actuar com prudência – continuou, dirigindo-se a Maria. Com o nosso Irmão e Mestre vivo, o respeito desta gente estava garantido. Agora, com a sua morte, encontramo-nos à mercê dos que o odiavam. Muito acertadamente, recordou aos familiares silenciosos a reunião secreta celebrada por Caifás e as suas ratazanas na noite de domingo, 9 de Abril. José, o de Arimateia, membro do Conselho do Sinédrio, ao informá-los dessa assembleia, tinha sido muito claro: em vista da constelação de notícias e rumores que começava a circular pela Cidade Santa acerca do túmulo vazio e das aparições do Ressuscitado, o sumo sacerdote, seu sogro, os saduceus, escribas e mais fanáticos que tinham provocado a morte de Jesus, decidiram actuar sem contemplações. E adoptaram duas medidas, especialmente pensadas para a destruição do esfarrapado grupo de galileus que ainda acreditava no Nazareno. Não fosse algum dos presentes tê-las esquecido, recitou-as textualmente, sublinhando algumas das frases: - Primeira: Todo aquele que fale ou comente (em público ou em privado) os assuntos do sepulcro ou da ressurreição do Mestre será expulso das sinagogas. Segunda: o que proclame que viu ou falou com o Ressuscitado... será condenado... à morte. As respirações suspensas serviram-lhe para dar mais força às duas últimas palavras: - À morte!
Os soluços incontroláveis de Ruth foram de mais para sua irmã Miriam. Irada, recordou a Tiago e aos seus que a segunda disposição das “ratazanas” de Jerusalém não tinha ido avante e que, segundo o de Arimateia, não chegara a ser votada. E acusou seu irmão de cobarde. Este, impassível, compreendendo a raiva e a desolação de Miriam, não abriu a boca, limitando-se a cofiar a barba com os dedos. Porém, esta, indignada ante as injustas acusações de sua cunhada e a irritante passividade do marido, pôs-se de pé, acusando Miriam de irresponsável e egoísta. Jacob, por sua vez, procurou serenar as mulheres. Mas no fogo cruzado dos gritos e impropérios que Miriam tinha começado a lançar, só obteve um violento empurrão da irada esposa. O choro de Ruth, redobrado ante a confusa e lamentável zanga familiar, acicatou o carácter vigoroso da Senhora. Era a primeira vez, se estou bem lembrado, que a via erguer a voz. Colocou-se entre Miriam e a nora, de mãos na cintura, ordenando silêncio. Entristecido, Jacob retirou-se para junto de Tiago. E Esta, conhecedora do temperamento da sogra, calou-se, acorrendo em auxílio de Ruth. Mas Miriam, forte como sua mãe, lançou-se contra a Senhora, gritando mais alto do que ela. Foi uma cena triste e compreensível. A filha mais velha, fora de si, lembrou a Maria que aquele era o seu lar e que nenhum patife a arrancaria dele. A Senhora, pela enésima vez, mandou-a calar. Mas a fúria e o desespero da jovem estavam fora de controlo. Assim, esgotada a paciência e entendo que como um mal necessário, Maria, de repente, deu-lhe uma sonora bofetada. Santo remédio. Miriam acusou o golpe e o histerismo latente esfumouse, dando passagem às lágrimas. Em segundos, sem rancores nem censuras, mãe e filha abraçaram-se, num comovido e mútuo pedido de perdão. Tiago, comovido como os outros, lançou-se para elas, unindo-se em silêncio ao abraço. Ruth e Esta, parando com as queixas – agora traídas por gargalhadas esporádicas – precipitaram-se igualmente para o trio, permanecendo junto no mesmo abraço. Com um nó na garganta desviei o olhar para Jacob. Uma lágrima solitária deslizava pela sua barba céltica. Ao ver-se descoberto, baixou a cabeça, mas não se moveu da beira
da plataforma. Quem isto escreve, contagiado pelo turbilhão de beijos, carícias e doces e tranquilizadoras palavras dos cinco, não pôde evitar que os seus olhos pestanejassem freneticamente numa luta perdida com lágrimas quase desconhecidas para este ser solitário entre os solitários. Cerrando os maxilares descarreguei a tensão na vara de Moisés. Com tão pouca sorte que, ao crispar os dedos no cajado, este se projectou a dois palmos das sandálias de Jacob. A nuvenzinha de fumo branco deume noção do impacte. Amaldiçoando a minha falta de habilidade, corri para o distraído esposo de Miriam, pisando e escondendo o pequeno círculo de um escasso milímetro de diâmetro que aparecera na esteira. Jacob, ao verse tão inexplicável e violentamente encarado pelo grego altarrão, voltou a si e, ao olhar-me, atónito, procurou uma razão. A estúpida careta que me leu no rosto confundiu-o por completo. Acho que reagi sorrindo, com uma expressão de perfeita idiotia: - Aleluia! - gritei, lançando o que primeiro me veio à cabeça. A exclamação de júbilo – um tanto despropositada – provocou o espanto do cada vez mais perplexo judeu. E quando, suponho, se preparava para me responder, um fio de fumo e um cheiro desagradável a espadana queimada subiram, reveladores, por baixo do calçado. Sem deixar de me olhar, Jacob cheirou, confundido. Pensei que ia desfalecer. A potência do laser de gás – que podia cortar uma prancha de aço de treze milímetros de espessura em quatro segundos – destruíra aquele bocado do tapete. Lívido, recuei. Que podia fazer? E o bom Jacob, ao descobrir a seus pés o fumo e o círculo negro, encostou-se à parede. Levantando os olhos, procurou a origem do fogo nas vigas escuras do tecto. Não o encontrando, girou a cabeça para um lado e para o outro com idêntico êxito. Entreabrindo os lábios, foi colocar os olhos muito abertos nos meus, gritando: - Fogo! E aqui acabou o abraço familiar. Maria e os outros precipitaram-se para a parte da esteira que este inútil, em nova e desesperada tentativa, procurava apagar. Quis o céu que, por fim, o chamuscado
cedesse. Mas não o fedor. Tiago e as mulheres, inclinados em volta do queimado, não conseguiam entender o sucedido. Mas Maria, depois de um exame minucioso do orifício, procurou-me com o olhar. Empalideci. Do susto e da perplexidade a minha cúmplice passou para uma radiante paz. Piscando-me um olho sorriu, feliz, certa de que o meu poder e presença eram a melhor das protecções para ela e para os seus. Também não repliquei nem me aventurei em desculpas ou comentários. Era melhor assim. Batendo palmas, Maria exigiu a atenção geral. Retomando o fio da narrativa iniciada por seu filho exprimiu-se nos seguintes termos: - Dir-vos-ei algo... Pus-me a tremer. Teria esquecido o nosso acordo? “... É possível que nos tenhamos precipitado. Jesus esforçou-se por nos ensinar algo que, agora, levados pelo medo e pela raiva, estivemos a ponto de esquecer: deixemos que se cumpra a vontade do Pai dos Céus – E agarrando o braço de Tiago, acrescentou, condescendente: - É certo que devemos permanecer alerta mas, acima de tudo, confiemos.:. O espírito de meu Filho, vosso Irmão, está connosco. Ele e os seus anjos - e o olhar sereno de Maria confundiu-se com o meu – acompanhamnos e protegem-nos. A uma só voz, todos aprovaram as suas justas palavras. De mútuo acordo, com o beneplácito do irmão do Mestre, traçaram um plano simples: esperariam. Fá-lo-iam em silêncio, sem novas manifestações, nem públicas nem privadas, acerca da ressurreição ou das visões. Velhos conhecedores da volúvel idiossincrasia da aldeia, confiavam que, sem tardar, as águas voltariam ao seu leito e cada um poderia reatar a sua vida e o seu trabalho. Uns e outros com excepção de Tiago, tentaram convencer-se mutuamente da bondade e boa-fé dos vizinhos. Tinham apenas de ceder e de se mostrarem prudentes. De modo algum deviam incorrer nas medidas adoptadas pelo sumo sacerdote e seus sequazes... Esta atitude era lógica e compreensível... naqueles momentos. Entre outras razões, porque ignoravam o que ia suceder umas horas depois e, em especial, na manhã de sábado, vinte e nove. Exceptuando a aparição a Tiago, em Betânia, em que o Ressuscitado comunicou algo
muito específico e que o irmão não desejava desvendar, nas restantes visões conhecidas, Jesus limitara-se a desejar a paz, a dar a conhecer o seu novo e prodigioso estado e a distribuir uma série de conselhos, mais ou menos abstractos e vagos. Para dizer a verdade, quase ninguém no grupo sabia que fazer. Apenas o fogoso Pedro indicara uma tentativa falhada de se lançar pelos caminhos a proclamar a boa nova da ressurreição. Quem, dos que ali estavam reunidos, podia suspeitar que num prazo de vinte e três dias, durante a tradicional festa de Pentecostes, o Mestre voltaria a falar-lhes e que, a partir de então, nada seria igual? Mas essa informação, de momento, era da minha exclusiva propriedade. Para Maria e para os seus tais acontecimentos não existiam. Só o presente contava. Para muitos crentes de hoje, semelhante atitude da impropriamente chamada sagrada família é pouco crível ou irreverente. Neste caso, esquecem que aqueles homens e mulheres eram, acima de tudo, seres humanos submetidos às pressões de uma vida que continuava, apesar de tudo. A história – nem sempre – desfruta da vantagem que o tempo proporciona. O mau é quando essa história não contempla e contabiliza todo o tempo. E aqueles dias dos finais de Abril do ano trinta também não aparecem na medíocre história dos Evangelhos... Voltando àquele meio-dia, recordo que, enquanto a Senhora e seus filhos traçavam, iludidos, os seus planos de paz, o silencioso Tiago, inexplicavelmente, negou-se a participar na última parte das conversações. Retirou-se para a beira da plataforma e ali ficou, cabisbaixo e atento aos desejos bem-intencionados mas utópicos de sua família. Não consigo explicá-lo mas algo – talvez a intuição? - me gritou que Tiago sabia o que estava prestes a acontecer. Ter-lhe-ia antecipado Jesus a iminente sorte de sua mãe? Era este o conteúdo da misteriosa revelação recebida na aparição de Betânia? Aquele era outro assunto que espicaçava a minha curiosidade. Tinha de arranjar maneira de saber... Pouco antes das três da tarde (hora nona), delineado o plano a seguir nos dias imediatos, Tiago e a mulher abandonaram a casa pela porta principal. Ismael e o ancião tinham desaparecido. O lugar, deserto, continuava anormalmente privado das pessoas que, como era
natural, o deviam frequentar. Tiago desembainhou a espada e, depois de observar ambos os acessos da rampa, passou o braço direito pelos ombros de Esta, seguindo em direcção ao bairro alto. A sua missão era falar com João Zebedeu e participar-Lhe as resoluções adoptadas no conselho familiar. Cumprida a tarefa, voltariam a casa de Maria, se possível com o discípulo. Mas as coisas não iam passar-se de forma tão simples. Jacob, cumprindo as severas ordens da sua cunhada, voltou ao terraço. Ao menor sinal de ameaça, toda a família deveria fugir pelas traseiras e, se possível, refugiar-se na de Santiago. Maria e suas filhas, a princípio inquietas, foram recuperando uma certa calma quando, ao me sentar junto delas e colocar a vara sobre as pernas, lhes sorri, satisfeito, animando a Senhora a que prosseguisse com o nosso relato interrompido dos anos jovens do seu Filho. Ruth e Miriam, que já tinham presenciado algumas das minhas longas tertúlias na herdade de Marta, acolheram aquele recordar a distante história de seu Irmão como um bendito e relaxante bálsamo que lhes faria esquecer, embora apenas temporariamente, amarguras recentes. Quando a Senhora, depois de se acomodar à minha esquerda, se dispunha a falar, a curiosa e imprevisível Ruth pousou as mãos na rocha circular que servia de mesa, perguntando à queima-roupa: - E tu, Jasão, por que razão nunca trazes espada? Não soube que dizer. A subtil observação – raro era o comerciante ou homem de negócios que não trouxesse algum tipo de arma – exigia uma resposta não menos estudada. Maria e eu entreolhámo-nos. E foi ela quem falou: - Filha, este homem... - vacilou um segundo. Observou-me de soslaio e feliz com o seu segredo prosseguiu – também anda armado. A benjamim, incrédula, inclinou o corpo, examinando com descaramento o meu cinturão e o cajado. Negando com a cabeça emendou a mãe: - Só vejo um bastão... A Senhora sorriu, benévola. - As armas de Jasão, querida, são as mais poderosas, eficazes e seguras...
Ruth esbugalhou os seus olhos verdes. Nunca sua mãe mentia. Quem isto escreve, desorientado ante a magnífica definição da natureza dos sistemas defensivos da vara de Moisés, aguardou o final da frase com idêntica expectativa. .. porque não matam, ferem ou causam danos. Só proporcionam confiança... Nem Ruth nem eu a entendemos inteiramente. ... Jasão, minha querida, como teu Irmão, leva no cinto a arma da confiança no Pai. - Então – respondeu a rapariga -, tu também és um homem de paz... Nisso, sim, estava de acordo. Tornando minha uma frase de Byron no Dom João, dei forma à minha ideia das guerras e da violência: - O sangue, minha filha, serve apenas para lavar as mãos da ambição. Aproveitando a coincidência, parti do exemplo dos discípulos do Mestre – quase todos armados – e perguntei à Senhora se Jesus, alguma vez, empunhara uma arma. Hoje, ou em qualquer momento da história dos últimos dois mil anos, a pergunta seria causa de escândalo. Maria, em contrapartida, habituada aos gladius – mesmo nas faixas dos seus filhos – não replicou com repugnância ou espanto. - Houve um tempo – recordou com tristeza – em que lhe foi oferecida a espada. E eu encorajei-o a empunhá-la... Alguma coisa sabia eu daquela interessante passagem da juventude de Jesus mas, em benefício da ordem cronológica, e da minha, dei por encerrado o assunto, pedindo à minha informadora que abrisse as portas da memória e nos mudássemos para uma das datas fundamentais na vida do Filho do Homem: 25 de Setembro do ano 8, um mês e quatro dias depois do seu décimo quarto aniversário... (1) *1 Penso que, em especial para quantos tenham podido ler os volúmes segundo e terceiro de Operação Cavalo de Tróia, trazer aqui e agora uma síntese – quase telegráfica – dos principais acontecimentos registados ao longo dos primeiros catorze anos da vida de Jesus de Nazaré pode ser útil. Além de refrescar as recordações permitir-nos-á, a todos, uma melhor compreensão de quanto narra o
Major a partir destes momentos. Continuemos, pois, com esse resumo: ANO -8 Em Março celebram-se as bodas de José e de Miriam (verdadeiro nome de Maria). Ela tinha treze anos de idade; ele, vinte e um. Por meados do oitavo mês (marjesvan), em Novembro, pelo entardecer a jovem esposa recebe a misteriosa visita do anjo Gabriel, que lhe diz: Venho a mando daquele que é meu Mestre, aquele que deverás amar e defender. A ti, Maria, trago-te boas notícias, pois que te anuncio que a tua concepção foi ordenada pelo céu. A seu devido tempo serás mãe de um filho. Chamar-lhe-ás Yohosua (Jesus ou “Iavé salva”) e inaugurará o reino dos céus sobre a Terra e entre os homens. Disto fala apenas a José e a Isabel, tua parente, a quem também apareci e que bem cedo dará à luz um menino cujo nome será João. Isabel prepara o caminho para a mensagem de libertação que teu filho proclamará com força e profunda convicção aos homens. Não duvides da minha palavra, Maria, já que esta casa foi escolhida como morada terrestre desta criança do destino... Recebe a minha bênção. O poder do Mais-Alto te apoiará. O Senhor de toda a Terra alongará até ti a sua protecção. A todo o momento, Maria defendeu a concepção não humana do seu primogénito. Durante algum tempo José não consegue entender como um menino nascido de uma família humana podia ter um destino divino. Num sonho, um brilhante mensageiro tranquilizou-o com as seguintes palavras: “José, apareço-te por ordem dAquele que reina agora nos céus. Recebi o mandado de te dar instruções sobre o filho que Maria vai ter e que será uma grande luz neste mundo. Nele estará a vida e a sua vida será luz da humanidade. De momento irá para o seu próprio povo. Porém este aceitá-lo-á com dificuldade. A todos aqueles que o acolham lhes revelará que são filhos de Deus”. O papel que deveria desempenhar aquele filho do destino, provocaria uma grave perturbação entre os mais chegados de José e de Maria. A maior parte dos seus familiares acolheu a notícia com cepticismo. Erradamente, a Senhora – como o Major lhe chama – identificou seu filho com o Messias ou Libertador político. Ano -7 Em Fevereiro, Maria visita sua prima afastada, Isabel. Em Junho do ano anterior, o anjo Gabriel tinha aparecido igualmente a Isabel, comunicando-lhe o seguinte: “Enquanto teu marido, Zacarias, oficia diante do altar, enquanto o povo reunido pede a vinda de um salvador, eu, Gabriel, venho anunciar-te que depressa terás um filho que será o precursor do divino Mestre. Dar-lhe-ás o nome de João. Crescerá consagrado (nota interrompida.)
Como ficou inscrito neste diário, a partir daquela terça-feira, a nau da jovem e prometedora vida de Jesus viu-se açoitada por novos e furiosos ventos. Sepultado seu pai, com catorze anos recentemente feitos, não teve opção. Todos os projectos – os seus, os de sua mãe e os da esperançada aldeia - foram inumados com o cadáver de José. *(continua a nota.) ao Senhor, teu Deus e, quando for adulto, alegrará o teu coração, pois trará almas a Deus. Anunciará a vinda do que cura a alma do teu povo e o libertador espiritual de toda a humanidade. Maria será a mãe desta criança e também a ela aparecerei.” Três semanas depois, a futura mãe de Jesus regressava a Nazaré, definitivamente convencida do papel político e libertador, que desempenharia seu filho e João, seu lugar-tenente. A 25 de Março nasce João. Ao receber-se em Nazaré a ordem de recenseamento, José prepara a viagem a Belém, mas sozinho. Maria consegue convencê-lo, apesar de estar prestes a dar à luz. Pelo amanhecer de 18 de Agosto metem-se a caminho, pelo Jordão, em direcção à cidade de David. Pelo entardecer de 20 de Agosto entram em Belém, alojando-se nos estábulos da pousada. Nessa mesma noite, a mulher de José experimentaria as primeiras dores de parto. Pelo meio-dia de 21 de Agosto deu-se o nascimento de Jesus: o bekor, o primogénito de Maria. Quando o bebé tinha a penas algumas semanas, recebe a visita de uns sacerdotes astrólogos provenientes de Ur da Caldeia. Zacarias informa-os do lugar onde se encontra o rei dos Judeus e, depois de contemplarem o menino, regressam a Jerusalém, sendo interrogados por Herodes, o Grande. O edomita, tenta enganar os magos,, e estes desaparecem, rumo ao seu país. Os espiões de Herodes procuram insistentemente o menino. José, avisado por Zacarias, esconde Jesus na casa de seus parentes. Angustiosa situação da família. José hesita entre procurar trabalho e instalar-se em Belém ou fugir. ANO -6 Desesperado perante a infrutífera busca do “outro rei”, Herodes ordena o censo da aldeia e a execução de todos os varões menores de dois anos que pudessem ser encontrados. O aviso de um funcionário” próximo da corte do edomita permite que José, Maria e o menino escapem a tempo. No morticínio –
acontecido em Outubro – perdem a vida dezasseis meninos. Jesus tinha catorze meses de idade. A família instala-se na cidade egípcia de Alexandria, sob a protecção de parentes abastados. Ali permanecem durante dois anos. José aprende o ofício de empreiteiro de obras. A comunidade judaica acaba por conhecer o segredo de Maria e de José e tenta convencer os pais do filho da Promessa para que Jesus cresça e seja educado em Alexandria. Oferecem-Lhe um exemplar da tradição grega dos textos da Lei, de grande importância na posterior educação do jovem Jesus. Maria tem a obsessão da integridade física do filho. ANO – 4. Em Agosto, terceiro aniversário de Jesus, a família embarca com destino ao porto de Jafa, a cerca de trezentas milhas de Alexandria. Primeira viagem por mar de Jesus. Pelos finais daquele mês de Agosto, via Lydda e Emmaus, chegam a Belém. Permanecem na aldeia durante todo o mês de Setembro. Maria é partidária de educar seu filho em Belém, mas José, pelo contrário, opõe-se, sugerindo o regresso a Nazaré. O carácter violento do novo tetrarca – Arquelau -, sucessor de seu pai, Herodes, o Grande, decide José a partir para a Baixa Galileia. Maria tem de ceder. Por fim, nos primeiros dias de Outubro empreendem a viagem para Nazaré. Ao chegarem à aldeia encontram a casa ocupada por um dos irmãos de José. ANO -3. Na madrugada de 2 de Abril nasce Tiago. Por meados daquele Verão, José realiza um dos seus sonhos: montar uma oficina perto da fonte pública. Associa-se com dois dos seus irmãos. Os negócios prosperam. (nota interrompida.)
A Providência, sempre sábia, forçou-o a ultrapassar-se a si mesmo. As suas ideias, de dia para dia mais lúcidas, para revelar aos homens a maravilhosa realidade de um Pai celestial, ficaram encerradas – mas não mortas – no mais íntimo do seu ser. Jesus viu-se perante uma família numerosa que tinha de alimentar, educar e empurrar para a frente. *(continua a nota) Reúnem um grupo de operários e percorrem as aldeias e cidades próximas, trabalhando, principalmente, na construção de edifícios. Pouco a pouco José abandona os trabaLhos de carpintaria.
Jesus começa a escutar os relatos dos viajantes e guias de caravanas que vêm à oficina de seu pai terreno. Em Julho, uma epidemia intestinal obriga Maria a sair da povoação com os filhos, refugiando-se durante dois meses na herdade de um dos seus irmãos, perto de Sarid. Jesus estabelece especial amizade” com um ganso. ANO -2. Na noite de 11 de Julho nasce Miriam. Prestes a completar cinco anos, Jesus faz a sua primeira pergunta sobre o mistério da vida e do nascimento dos seres vivos. A sua curiosidade insaciável levanta problemas a quantos o rodeiam. A 21 de Agosto, no seu quinto aniversário, Jesus, de acordo com a lei, passa a depender de José no que diz respeito à educação moral e religiosa, e começa a aprender o ofício de seu pai. Maria inicia-o no cuidado pelas flores. Jesus garatuja as primeiras letras. Primeira grande desilusão da criança. Naquele Verão, um tremor de terra sacode Nazaré. Seus pais não sabem explicar-lhe o que é um sismo. O seu constante fluxo de interrogações obriga José a esconder-se, fugindo assim às embaraçosas perguntas que lhe faz o seu infatigável filho. ANO -1 Maria recebe a visita de Isabel. Primeiro encontro de João e de Jesus. Durante uma semana, as famílias fazem planos” para o Libertador e o seu imediato”. João fala a seu primo de Jerusalém e da sua grandeza. Desde essa altura Jesus não cessa de perguntar: Quando viajaremos para Jerusalém?, Jesus manifesta o desejo blasfemo” de falar directamente com Deus. E chama-Lhe Pai,. José e Maria, aterrorizados, tentam dissuadi-lo de tal ideia. Em Junho, José toma a decisão de ceder a oficina a seus irmãos, lançando-se na empreitada de obras. Maria opõe-se. Mas os ganhos da família melhoram consideravelmente. Jesus acompanha José em muitas das suas viagens de negócios pela região. ANO 1. O gosto pelos jogos e os constantes passeios pela colina do Nebi Sain valem-lhe uma dura reprimenda. José faz-Lhe ver que tem de se submeter à disciplina da casa. No shebat (Janeiro-Fevereiro), Jesus tem uma das mais agradáveis surpresas da sua breve vida: neva em Nazaré. Em Julho, o primogénito rola pelos degraus da escada encostada a uma das paredes da casa, cego por uma tempestade de areia. O acidente ressuscitou em Maria os velhos temores. A 16 de Março, quarta-feira, nasce o quarto filho do casal: José. Em Agosto, ao completar os sete anos e seguindo o costume, Jesus vai à escola. Os estudos elementares” prolongavam-se até aos dez anos. Jesus continua a escutar os peregrinos e caravaneiros. Isso permite-lhe
aperfeiçoar o grego. Sua mãe ensina-o a ordenhar, a fazer queijo e a tecer. Por essa altura, Jesus e o seu amigo Jacob descobrem a oficina do oleiro Nataham. ANO 2 O bom aproveitamento de Jesus na escola proporciona-lhe uma licença”: de três em três semanas tem uma semana livre. E o rapaz dedica aquelas férias,, à pesca, na margem do yam, e à agricultura, na herdade de seu tio. A sua primeira experiência com uma rede teria lugar em Maio. (nota interrompida.)
Trocando impressões com Maria e os seus sobre esta mudança significativa, fui dando conta de alguma coisa que emocionou e que, ao ser ignorada pelos evangelistas, não pôde ser conhecida durante dois anos. A maioria dos crentes e não crentes pensa ou imagina um Jesus protegido, durante a infância e a juventude, por uns pais que, à sua maneira, *(continua a nota.) Naquele ano aparece em Nazaré um misterioso professor de matemática, oriundo de Damasco. O enigmático sábio inicia Jesus no mundo dos números e, principalmente, da Kabala. Jesus ensina a seu irmão Tiago os rudimentos do abecedário. Os mestres perdem a paciência com as inquietantes e, por vezes sacrílegas perguntas de Jesus. Tudo o interessa. Tudo lhe desperta interrogações. ,À sua volta gera-se um ambiente de repúdio e antipatia de determinados círculos de aldeia. O falador Zacarias revela a Nahor, professor de uma das escolas rabínicas de Jerusalém, a existência em Nazaré do Messias. Nahor examina primeiro João e, posteriormente, desloca-se à Galileia. Embora o descaramento de Jesus em temas religiosos não seja do seu agrado, decide propor a sua partida para a Cidade Santa, para que possa estudar: José não vê com bons olhos aquele projecto. Pelo contrário, Maria pressente que pode ser o ponto alto da carreira política” de seu Filho. Perante o desacordo dos pais do menino Nahor consulta o interessado. Jesus decide permanecer em Nazaré. Na noite de sexta-feira, 14 de Abril, chega ao mundo Simão, o terceiro dos seus irmãos varões. : Jesus vende o queijo e a manteiga que ele próprio preparava. Com o dinheiro paga as suas primeiras lições de música. ANO 3 Jesus conhece as habituais doenças da infância. O seu desenvolvimento físico é espectacular, destacando-se entre a população infantil da aldeia. No Inverno regista-se um grave incidente. Jesus, excelente desenhador, comete o
sacrilégio de pintar o rosto do seu mestre no pavimento da escola. O conselho de Nazaré reúne e José é admoestado. A leijudaica proibia todo o tipo de representações humanas. Jesus é ameaçado com a expulsão da escola e não voltará a pintar nem a modelar barro. Na companhia de seu pai escala pela primeira vez o monte Tabor. A 15 de Setembro nasce Marta, a segunda das irmãs, o que leva José a aumentar a casa. Jesus trabalha na ceifa, na herdade de seu tio. Maria indigna-se ao saber que seu filho manejou uma foice. ANO 4 Prestes a completar os dez anos, a corpulência física e o desenvolvimento intelectual de Jesus convertem-no no chefe de um bando de sete amigos. Jacob, seu vizinho e íntimo amigo, é um deles. Jesus sente uma repugnância natural ante toda a violência. Isso traz-lhe sérios conflitos com os companheiros de brincadeiras. A 5 de Julho dá-se um acontecimento que confunde seus pais. Naquele sábado, num dos habituais passeios pelo campo, Jesus confessa a José que sentia que o seu Pai dos céus chamava por ele e que ele não era quem todos acreditavam que fosse. A partir daquela data tornar-se-ia taciturno e solitário, partilhando a companhia dos adultos. Em Agosto entra na escola superior. As suas impertinentes perguntas passaram das marcas, provocando que o conselho chamasse à ordem seus pais. Os inimigos de Jesus acusaram-no de soberbo, descarado e vaidoso. O seu gosto pela pesca aumenta, até ao ponto de comunicar a seu pai que, de futuro, deseja ser pescador. ANO 5 Por meados de Maio, Jesus acompanha o pai à cidade helenizada de Citópolis, na Decápole. A grandiosidade dos edifícios e a beleza dos jogos que presencia entusiasmam-no. José ofende-se e envolve-se com o filho numa discussão (nota interrompida.)
suavizaram a existência do Filho do Homem. “É chegada a Sua hora” continuam a pensar os homens e mulheres que não o conheceram – despediu-se de Nazaré, lançando-se na pregação, que, melhor ou pior, nos foi transmitida. Erro crasso. Jesus de Nazaré quase não teve adolescência. Se um dos objectivos da sua encarnação foi experimentar por si mesmo *)continua a nota.) acalorada. Na quarta-feira, 24 de Junho, Maria dá à luz Judas.
Por causa deste parto, a Senhora adoece. Jesus vê-se obrigado a suspender as aulas na escola e a cuidar da mãe e irmãos mais novos. As suas brincadeiras e distracções rareiam. As dúvidas sobre a verdadeira identidade continuam a atormentá-lo. ANO 6 Jesus volta aos estudos. A sua maneira de ser muda: das constantes perguntas passa ao silêncio. Os pais não entendem aquela estranha transformação. Maria desespera. Não compreende por que razão o seu primogénito, Filho da Promessa, não atende nem compartilha as suas directrizes para levantar a nação judaica contra Roma”. As discussões conjugais, neste sentido, são constantes. Jesus mantém-se silencioso e refugia-se na música e na educação dos irmãos. No final do ano, por causa de uma submissão esmagadora às rígidas e absurdas normas religiosas da comunidade, Jesus cai num profundo abatimento. ANO 7 Jesus entra na adolescência. A sua voz e o seu corpo modificam-se. : Na noite de domingo, 9 de Janeiro, nasce Amos. : Em Fevereiro, o esplêndido jovem supera o seu abatimento. Conjugaria, de momento, as férreas crenças dos seus antepassados com o secreto projecto que continuava a germinar no seu coração: Iluminar a humanidade, falando-lhe de seu Pai celestial. A 20 de Março, depois de uma repousada e bela leitura na sinagoga, o povo sente-se orgulhoso daquele filho de Nazaré. E ressuscitam os velhos planos para que estude em Jerusalém. Seguiria para a Cidade Santa ao completar quinze anos. Nos primeiros dias de Abril recebe o diploma pelos seus estudos. José anuncialhe que, como adulto perante a lei, assistirá à sua primeira Páscoa em Jerusalém. Na segunda-feira, 4, desse mês de Abril, um grupo de cento e trinta vizinhos empreende a marcha para a Cidade Santa. Nesta viagem, a família de Nazaré estabelece amizade com a de Lázaro, na Betânia. Pelo entardecer de quinta-feira, dia 7, Jesus contempla Jerusalém do monte das Oliveiras. No dia seguinte, José levou Jesus a uma das prestigiadas academias rabínicas. 8 de Abril: nessa noite, aparece um anjo diante de Jesus e diz-lhe: “Chegou a hora. É já altura de começares a tratar dos assuntos de teu Pai”. E o Filho do Homem, muito lentamente, vai ganhando consciência da sua origem e natureza divinas. No sábado, 9 de Abril, é consagrado no templo como filho da Lei. Jesus sofre uma profunda decepção perante a teatralidade e o derramamento de sangue que acompanham os ritos religiosos. Os desacordos com seus pais continuam a aumentar. No domingo, Jesus descobre as discussões entre os rabinos e os doutores da lei. Antes da partida para a Galileia fica marcada a sua entrada na escola rabínica
para Agosto do ano 9. Jesus continua a assistir às conferências do Templo, mas não intervém. A 18 de Abril, segunda-feira, os peregrinos concentram-se nas proximidades do Templo e partem rumo a Nazaré. Maria e José dão pelo desaparecimento do filho ao chegarem a Jericó. Pelo meio-dia daquela segunda-feira Jesus tem plena consciência da marcha da caravana. Mas decide ficar e continuar a assistir às discussões do Templo. Na manhã seguinte, ao passar pelo Olivete, Jesus chora amargamente, à vista de Jerusalém. José e Maria regressam à Cidade Santa e procuram-no desesperadamente. Naquela jornada, o adolescente fala pela primeira vez perante os rabinos, provocando com as suas perguntas e comentários as mais díspares reacções. A terceira jornada de Jesus no Templo constitui um grande triunfo para o jovem de Nazaré. A notícia de uma criança galileia lançando no ridículo os vaidosos escribas e doutores da Lei espalha-se pela cidade. (nota interrompida.)
a vida das suas criaturas, por minha fé que, a partir do referido 25 de Setembro, o alcançou sobejamente. A misteriosa Providência frustra os sonhos de um Deus que não sabia que o era, em benefício do enriquecimento moral de um homem e, como milhões de seres humanos, teve de vergar-se à disciplina da miséria, da solidão e do medo. Bem pode falar-se de um Jesus anterior à morte de seu pai e de outro, forçosamente distinto que despertaria sobre os restos mortais de José. Como sempre sucede com os valentes, Jesus, recomposto da surpresa, longe de se humilhar, assumiu o seu novo papel, pegando nas rédeas do lar entristecido e desolado. Em Nazaré já ninguém acalentava a ideia de o ver convertido em rabino de Jerusalém. Estava escrito: Jesus não seria discípulo de ninguém. - O golpe foi tão inesperado – prosseguiu a Senhora com a serenidade que o tempo traz – que precisámos de meses para ganhar novo ânimo. José fora-se sem nos falar. Sem nos dar a bênção. As feridas, mortais, arrebataram-lhe a vida antes de eu entrar em Séforis e, apesar do consolo das pessoas desta aldeia, a casa já não foi a mesma.
Quando quis saber em que lugar descansavam os restos mortais do marido, respondeu com um movimento de cabeça mecânico e impreciso. Deduzi que se referia à colina. Na minha agenda figurava também uma volta de inspecção pelas faldas e pelo cume do Nebi. E decidi-me a localizar o seu túmulo. “... Compreendes, Jasão amigo, a razão pela qual a minha família continua a confiar nos vizinhos de Nazaré? Não soube muito bem ao que se referia. *(continua a nota.) Na quinta-feira, 21 de Abril, José e Maria decidem procurar Jesus fora de Jerusalém. Acorrem ao Templo para interrogar Zacarias e José reconhece a voz de seu filho entre os que assistem a um dos debates. Nessa mesma tarde, numa grande tensão, ini ciam o regresso à Galileia. O abismo entre as ideias de Maria e as do seu primogénito torna-se quase intransponível. Ao entrar em Nazaré, Jesus prometeu a seus pais que nunca voltariam a sofrer por sua causa. Esperarei a minha hora, respondeu. E a Senhora reavivou os seus sonhos nacionalistas. Mas Jesus encerrou-se num muro de silêncio, indo, cada vez mais, ao cume do Nebi. O êxito, de Jesus em Jerusalém foi celebrado pelos seus professores e vizinhos. E muitos compartilharam as ilusões políticas de sua mãe: De Nazaré sairia um brilhante mestre e, quem sabe, um chefe de Israel. ANO 8 O jovem Jesus torna-se um homem de grande beleza. Continuou a trabalhar como carpinteiro. E o seu espírito vai-se abrindo à realidade divina. Mas os seus passeios solitários e o acentuado distanciamento das ideias de sua mãe fizeram com que Maria duvidasse do prometido destino de seu filho. Além disso, o sempre pensativo carpinteiro não fazia milagres. Apesar da tensa situação familiar, José preparou tudo para a admissão próxima do primogénito na escola rabínica de Jerusalém. O futuro parecia prometedor. A 21 de Agosto, ao completar catorze anos, sua mãe oferece-lhe uma esplêndida túnica de linho, confeccionada por ela própria. Mas na manhã de terça-feira, 25 de Setembro, a vida de Jesus e de toda a família sofreu uma dolorosa alteração: José ficará ferido, ao cair de uma obra na residência do governador, na vizinha cidade de Séforis. O empreiteiro de obras e pai terreno do Filho do Homem faleceu pouco depois, quando contava trinta e seis anos. Curiosamente, quase a mesma idade em que foi crucificado Jesus. No dia seguinte foi sepultado, em Nazaré. (Nota de J. J. Benitez)
“... Em tão dramáticos momentos, muitos deles abriram-nos as portas do pouco que tinham, oferecendo-nos consolo e amizade. Isso não se esquece. - Mas – insisti, apontando na direcção da rua -, esta manhã... Embora reconhecendo que eu tinha razão a nobre Maria insistiu: - Aqueles, uns quantos, alegraram-se então com a morte de José e agora com a de Jesus... - E dirigindo-se às filhas acrescentou, categórica: - conhecemos os seus nomes e as razões do seu mesquinho comportamento. Mas nem todos são assim. Miriam e Ruth assentiram. Quem isto escreve ficou com vontade de as interrogar quanto a ambos os assuntos: a identidade dos agressores e as razões da sua cólera. Mas, não desejando interromper o fio principal da narração, resolvi esperar e chegar às minhas próprias conclusões. - Os laços entre a povoação e a nossa família estreitaram-se de tal forma, que, durante aquele Inverno, rara era a noite que a casa não se via invadida por gente que vinha fazer-nos companhia, escutar Jesus nas suas habituais leituras das Escrituras ou, simplesmente, desfrutar da sua música. Foi assim. Naqueles difíceis dias, o jovem Jesus combatia a sua natural amargura refugiando-se entre os seus e na sua harpa. Eu tinha conhecimento da existência deste pequeno instrumento musical – provavelmente um kinnor -, pelas minhas conversas em Betânia, e, para dizer a verdade, não sei explicar o motivo pelo qual desde o primeiro momento me senti atraído por ele. Tinha de averiguar onde se encontrava, que destino tivera tão afectuoso companheiro do Mestre... Esta obsessiva busca da harpa levar-me-ia, bem depressa, a uma das situações mais penosas em que me vi envolvido em toda a aventura palestina... Mas vamos por partes. Ao escutar a palavra música interrompi a minha confidente, interessando-me pelo paradeiro do velho instrumento. Maria, compartilhando a minha curiosidade, encolheu os ombros. Nem ela nem suas filhas o tinham voltado a ver. Quando a falta de recursos económicos as colocara em dificuldades o próprio Jesus se desfez do kinnor, vendendo-o pela mísera quantia de uns dois denários de prata. - Isso, querido e curioso amigo – sentenciou a Senhora, dando por
concluído o assunto -, há já muitos anos. A fugaz alusão ao dinheiro deu-me pretexto para indagar sobre novo capítulo, ainda que prosaico, mas não menos importante:.em que situação os deixara José? - Bem Jasão... Meu marido tinha poupado uma avultada quantia. E dela fomos vivendo. Meu Filho mostrou ser um prudente administrador. Era generoso, mas poupado. Além disso, tal como estabelece a lei, imaginámos que o governador de Séforis nos concederia uma importante quantia como indemnização... A Senhora esboçou um sorriso irónico. Tal indemnização, exigida algum tempo depois por Jesus ao tetrarca da Galileia, o tristemente célebre Herodes (a velha raposa) nunca chegou. Este novo golpe precipitaria outros acontecimentos. .. Por não podermos contar com esses dinheiros, que por justiça nos eram devidos, tudo se desmoronou. Não tinha ainda passado um ano e os fundos acumulados por José esgotaram-se. E não tivemos outra escolha senão a de vender uma das casas, propriedade de José e do pai de Jacob, o que nos tirou de dificuldades. Mas o nosso destino estava escrito com a tinta da pobreza... Palavras certas de Maria. Se a existência de Jesus e de todos os seus podia qualificar-se, até àquela data, de medianamente abastada, ao entrar no seu décimo quinto aniversário afundar-se-ia no poço da miséria. Os crentes que vestem Jesus de Nazaré de pobreza não sabem até que ponto acertam. Desse modo, o Mestre experimentou também a gélida sensação da escassez e até pior: a impotência ante a escassez dos que dependiam dele. Passei muito tempo a meditar sobre aqueles meses angustiosos do Filho do Homem. Ignorantes evangelistas! Pode haver imagem mais próxima, humana e aliciadora na vida do jovem Jesus? Será que aquela etapa da sua vida terrena não merecia umas linhas? Qual foi o panorama em que teve de se mover o Galileu nos começos daquele ano nove? Só de o imaginar estremeço: uma mãe abatida e grávida, sete irmãos para alimentar e, como única bagagem, catorze anos! Na noite de 17 de Abril chegaria ao mundo a filha póstuma de José, a esquilazinha. Ao recordar o acontecimento, Maria abraçou-se a Ruth
numa quente melancolia. Durante uns segundos falou o silêncio. E acreditei decifrá-lo. Aquela temerosa criatura, que não conhecera o pai, teve a fortuna e a desgraça de aparecer no lar de Nazaré no meio da mais alterosa vaga. Desgraça, pelo que já contei. Fortuna porque, na ausência de José, encontraria em seu Irmão o mais doce, paciente e amoroso dos pais. Ao interrogar a ruiva irmã de Jesus sobre as suas recordações, as mãos da mãe e da filha foram encontrar-se no centro da mesa de pedru e entrelaçaram-se, mudas e eloquentes. Mas Ruth, ignorando os meus pedidos, negou-se a responder. Compreendi. Era o seu tesouro. E Maria, fazendo-me um sinal, pediume paciência. A certeira intuição materna não se enganava. E, sem dar importância à minha tentativa falhada, desviou a conversa para um tema que provocaria a hilaridade das filhas. - Foi o brinquedo da casa, Jasão. Deus, bendito seja o seu nome, quis suavizar a nossa tristeza e enviou Ruth. Desarrumava tudo e mordia em tudo. O seu canto favorito era a oficina de Jesus. Sempre que eu virava costas escapava gatinhando e ia meter-se na serradura... Ao falar das diabruras da esquilazinha voltou a cabeça para o desarrumado cubículo que estava nas minhas costas. Comecei, então a compreender. - Então – interrompi-a com a voz mal segura pela comoção -, aquele suj o lugar... A Senhora aceitou mal a palavra. - Sujo?... Tarde, como sempre, quis emendar. Mas Maria, magoada no seu orgulho de dona de casa, não mo permitiu. - Dir-te-ei alguma coisa que também não sabes, Jasão. O tom, duro e implacável, fez-me adivinhar uma secreta revelação. ... Quando meu Filho abandonou definitivamente Nazaré, a suja oficina de carpinteiro (essa que viste) ficou tal qual... por expresso desejo de Maria, a das pombas. E assim continuará. Tu
não podes saber com que coragem, com que tenacidade, com que suor trabalhou Jesus nesse sujo quartinho... Corei de vergonha. “... para cuidar de seus irmãos. Enquanto os outros jovens da aldeia gozavam o seu tempo livre, ele ficava exausto sobre a bancada. Benditas teias de aranha! Não quero esquecer o passado, Jasão...” Abri a boca, procurando desculpar-me. Não me foi concedido. A Senhora prosseguiu acaloradamente. E eu, no fundo, agradeci a involuntária indiscrição. “... Ainda sem os quinze anos completos madrugava como eu. E fechava-se na sua suja oficina – o seu tom era tremendamente mordaz – até para lá do pôr do Sol. A princípio, entrava e repreendia-o. Tive de me render. A partir de então, sempre que o interrompia, era para lhe levar uma malga de leite ou animá-lo com um beijo. E tanto esforço para quê?... Sabes qual foi o seu salário até completar os dezasseis anos? Por vezes não chegava a vinte e quatro asses por dia...” Fiz cálculos mentais. Tendo em conta que uma libra de carne andava à volta dos dois asses e que o número de bocas a satisfazer era de dez, a margem não era muito tranquilizadora. “... Que angústia, Jasão! Antes que o ano acabasse tivemos de recorrer à dolorosa venda das pombas de que Tiago tratava. Minhas queridas pombas... Mas Jesus era empreendedor. No meio da nossa miséria, empenhou-se em comprar uma vaca. Era audaz e obstinado como o pai...” - E como a mãe... - completou Miriam com muito acerto. Maria sorriu, aceitando a justa observação da filha mais velha. - Nunca soube como se arranjou para a ir pagando. O caso é que, passado pouco tempo, tive de lhe dar razão. E Miriam, todas as manhãs, com frio, calor, água ou gelo, encarregava-se da venda do leite. Mesmo assim, as coisas não melhoraram. O pagamento dos impostos, no ano seguinte, enterrou-nos de vez. Meio siclo para a escola-sinagoga, mais meio para o Templo... Enfim, o desastre. E para cúmulo, aquela víbora...
A minha perplexidade não passou despercebida à Senhora. - Ouviste bem: víbora. O que é verdade, é verdade... Esse saduceu hipócrita que rasgou as suas vestes, em tempos mestre de Jesus, ameaçou-nos com a penhora se não pagássemos as taxas. E, rancoroso, só com a preocupação de ferir meu filho, falou na harpa... O quebra-cabeças com as palavras ódio e Ismael começava lentamente a resolver-se. - Sabes como Jesus replicou aos desmandos daquela serpente? Como podia eu saber? “... No dia em que fez quinze anos apresentou-se na sinagoga e fez doação do seu querido exemplar de tradução grega das Escrituras. Quando, indignada, Lhe perguntei a razão por que o fizera, respondeu, piscando-me o olho: “Mãe, ceder a tempo é vencer”. Embora as necessidades da casa fossem drasticamente reduzidas durante meses, o esforço colectivo – as vendas de leite de Miriam; os esporádicos trabalhos de Tiago no armazém de abastecimento de caravanas, agora propriedade de um irmão de José; a roupa fiada e feita por Maria e o salário do jovem carpinteiro – acabou por dar os seus frutos. E a família, mais mal que bem, lá iniciou uma lenta recuperação. Por intermédio dos seus familiares, Jesus conseguiu que lhe cedessem um lote de terreno na vertente norte do Nebi. Cheio de esperança dividiu-a em pequenos hortos, entregando o seu cultivo aos outros irmãos. A nova sociedade, se não lhes trouxe dinheiro, proporcionou-lhes pelo menos um complemento à dieta diária. - A fantasia juvenil do meu Filho – esclareceu a Senhora -, adormecida em parte pelas dificuldades voltou a brilhar fugazmente. Ao ver seus irmãos a trabalhar entre legumes e hortaliças confessou-me que lhe agradaria ter um dia uma herdade sua. Como vês, o destino reservavalhe outros planos... - Ah, Jesus, consolo dos idealistas desiludidos! “.. E talvez o tivesse conseguido, Jasão.” - Jesus, lavrador? Maria acenou afirmativamente com a cabeça, e deu-me nova prova da teia emaranhada e enigmática da Providência.
- Adivinha quem lançou por terra as sensatas esperanças de meu Filho? Não era fácil. Pensei no saduceu. Ou teria sido a própria Maria? - A raposa. Aquele maldito... - Quem? - perguntei surpreendido... - Herodes Antipas... E a mulher, que não se calava quando tinha razão, relatou-me o interessante e decisivo encontro entre o filho de Herodes, o Grande, na altura dono e senhor daquelas terras, e o jovem de Nazaré. Segundo parece, quando da morte do empreiteiro de obras, o tesoureiro de Séforiscapital da Baixa Galileia – devia a José uma série de salários. Estes dinheiros, somados à indemnização por falecimento em acidente de trabalho teriam permitido à família a compra da referida herdade. Mas o tesoureiro oferecia uma quantia tão ridícula que, naturalmente, recusaram. Os irmãos de José apelaram para o próprio tetrarca. Quando, por fim, Herodes recebeu Jesus e os seus familiares no palácio de Séforis, a sentença arruinou os sonhos do carpinteiro. “Que venha o morto”, riu o corrupto Antipas, “que apresente a queixa”. Jesus regressou à aldeia com a ansiedade que a injustiça traz. A partir de então retirou a sua confiança em Herodes. E a Providência, como disse, obrigou-o a sonhar noutra direcção. - Poucos dias depois – acrescentou Maria, com orgulho -, Jesus tinha esquecido Antipas. E devagar, medindo cada lepta, conseguiu o que eu não teria conseguido em anos. Os seus trabalhos de carpinteiro agradavam; em especial os jugos. E os camponeses e os caravaneiros disputavam-nos. Desta forma, ao completar os dezasseis anos tinha reunido três vacas, quatro carneiros, um burro, um bom número de galinhas e um cão. - Um cão? A notícia, tão inesperada como insólita, levou-nos para um assunto que não agradou a Ruth. - Gostava de animais? - Sempre – respondeu Maria. E depois de me recordar a paixão de Jesus Menino por uma das gansas da herdade do irmão, animou a
esquilazinha a que me falasse de Zal. Ao ouvir aquele nome, a rapariga em sobressalto baixou os olhos, começando a chorar. Fiquei sem saber que atitude tomar. Quem era Zal? E antes que a Senhora conseguisse consolá-la deixou a mesa, refugiando-se na escura oficina. Miriam tentou levantar-se para ir em seu auxílio. Mas Maria, conhecendo a extrema sensibilidade de Ruth, recomendou-lhe que a deixasse sozinha. - Zal – esclareceu Miriam – foi um dos melhores amigos de Ruth... e de Jesus. Interessei-me vivamente por esta nova personagem. E ao pedir mais pormenores, a Senhora, intuitivamente, apressou-se a desviar-me do que sem dúvida ia a caminho de se converter num lamentável equívoco. - Jasão: não te precipites... Zal não era um ser humano, embora, em certas alturas, demonstrasse maior nobreza, lealdade e inteligência que muitos dos que se dizem homens. Jesus não te falou dele? - Lembrar-me-ia... - Zal foi um bonito cão, inseparável companheiro do meu Filho nos seus últimos anos. Pestanejei, atónito. Nunca eu teria imaginado o Mestre acompanhado por um cão... Mais ainda; pelo que lera e pela informação acumulada no nosso banco de dados, os cães não eram bem vistos pela sociedade judaica. Eram considerados como comedores de cadáveres, desprezíveis e perigosos (1). E ainda que a maior parte das vezes não se tratasse do canis familiaris, mais sim de chacais lobos, cães selvagens ou um cruzamento de uns e de outros, a verdade é que, segundo a Lei, só os cachorros eram admitidos nas casas dos hebreus. Uma norma, claro está, que os muito ortodoxos respeitavam... O povo, em especial os que viviam no campo, sabia aproveitar as muitas qualidades destes animais. Mais uma vez Jesus pregara com o exemplo, colocando-se do lado da Natureza. Mas o instinto levou-me a cortar cerce a história de Zal. Alegro-me agora. Esta personagem ignorada pelos textos sagrados, chegou a comover-nos. Se tivesse entrado em pormenores naquela altura, certamente teria destinado
menos tempo ao fundamental da missão em Nazaré. E antes de avançar naquele crucial ano 9, coloquei duas questões pouco claras no meu coração ansioso. Em primeiro lugar se as arcas domésticas se encontravam tão minguadas, assim o garantia a Senhora, como entender que a família pudesse comprar três vacas, quatro carneiros e um burro? Maria, que gostava da sinceridade, aceitou de bom grado a minha objecção. *1 Desde os templos bíblicos que o cão foi desprezado, sendo unicamente apreciado no seu papel de guarda do gado e como carniceiro, tendo por sua conta a limpeza das cidades. Vadiava à noite pelas muralhas (Salmos, 59, 6), devorando mesmo corpos humanos (Reis I, 14, 12) e comendo a carne que o homem rejeita (Êxodo, 22 31). Nos Salmos (22, 16-20) são comparados aos violentos,. Era, em suma o maior,dos ultrajes (Samuel I, 22, 14), (Samuel II, 3, 8), (Reis II, 8,13) e (Isaías 66 3). Na linguagem popular a palavra cão, servia para designar um inimigo. (N. Do M.)
- Talvez me tenha explicado mal. De começo não foram comprados, mas alugados. O burro, à razão de três denários-prata por mês. As vacas, um pouco menos... A segunda dúvida, menos embaraçosa, foi resolvida com idêntica simplicidade. - Não, Jasão, meu Filho não perdeu o seu interesse pelas novidades que os viajantes e os caravaneiros sempre trazem. Mas, como compreenderás, o seu trabalho na oficina não lhe permitia ir ao armazém de abastecimento ou à pousada. E arranjou maneira de aproveitar as constantes viagens de Tiago a ambos os lados e as numerosas visitas aos seus clientes, informando-se, assim, de quanto acontecia lá por fora. - Não lhe daria mais comodidade e rendimento manter a carpintaria no bairro dos artesãos? A Senhora parecia estar à espera da pergunta. - A família de José insinuou-lho em diferentes alturas. Sempre se recusou. Daquela forma (dizia) podia velar a todo o momento pela segurança dos irmãos e pelas minhas próprias
necessidades. Curioso. Quem teria suspeitado que o simples carpinteiro se sentisse tão interessado pelas notícias e acontecimentos do mundo? O Filho do Homem foi, é e continuará a ser uma inesgotável e fascinante fonte de surpresas para quem isto escreve... E uma vez que menciono o título de Filho do Homem, bom será que não esqueça que, justamente naquele ano, se daria a descoberta de tão acertada denominação. Mais de uma vez me perguntara: de onde vinha? Como e por que razão surgiu a designação de Filho do Homem ou dos Homens? Foi oùtro juízo pessoal do Mestre? Ter-se-ia devido talvez a uma luminosa revelação de algum dos seus discípulos? Em Betânia, Tiago encarregou-se de me tirar as dúvidas. E agora, Miriam e sua mãe confirmavam-no. Foi no decorrer do referido ano nove quando, numa das suas periódicas visitas à biblioteca da sinagoga, tropeçou num texto que o impressionou vivamente. Porém, com a finalidade de nos aproximarmos o máximo do íntimo valor de tal descoberta, é conveniente reflectirmos um pouco sobre o complexo edifício que se erguia então na mente humana do adolescente de Nazaré. Por um lado – não o podemos esquecer – sua mãe encarregara-se de lhe recordar que era o filho da Promessa. Por outras palavras, o futuro Messias ou Libertador de Israel. Ao mesmo tempo, ainda que muito gradualmente, a inteligência do rapaz ia despertando, ou ganhando consciência de outra realidade, que nada tinha a ver com as muito humanas pretensões de Maria. Para cúmulo, Jesus cresceu numa Palestina agitada como nunca pela crença de uma iminente chegada do Messias (1). No entanto *1 Basta lançar uma vista de olhos à extensíssima bibliografia existente em torno do Messias judeu para se reparar na delicadeza do momento escolhido pelo Mestre para a sua encarnação. Seleccionei os estudos de Rops, pela sua clareza e concisão, como o exemplo que confirma as felizes palavras do Major. Vejamos alguns dos conceitos e crenças que, em relação ao ansiado Messias, floresciam na sociedade em que teve de se desenvolver o Filho do Homem: “Aquela esperança,”, diz D. Rops, “”de uma era mais feliz do que o tempo presente, estava cristalizada em redor de uma imagem grandiosa de um ser providencial investido do poder capaz de a promover. Nas proximidades da era cristã designava-se esse ser com o título que a Escritura santa aplicava a homens providenciais que Deus tinha utilizado (nota interrompida.)
quase naturalmente, o jovem carpinteiro forjara um plano que não tinha parentesco com os sonhos nacionalistas e patrióticos da Senhora, como também não tinha com o denominador comum das crenças populares. Durante alguns anos, fruto deste ambiente, Jesus, confuso, hesitou. Seu irmão Tiago e o próprio Jacob, que viveram de perto as duas vidas que assolavam o coração *(continua a nota.) especialmente para servir os seus desígnios – reis de Israel, sumos sacerdotes e até soberanos estrangeiros que tinham feito bem ao Povo eleito, como Ciro rei dos Persas: “ungido do Senhor”. meshiah em aramaico, e christos em grego. Uma poderosa corrente de fervor desembocava naquela misteriosa figura, uma imensa esperança que, desde gerações e gerações, enchia o peito dos crentes”. Aquela esperança nunca foi tão viva, tão premente a espera, como naquele período de tristeza e de surda angústia. [Rops refere-se à submissão de Israel ao jugo de Roma.] Que o Todo-Poderoso tivesse de garantir o triunfo da Sua causa, vingar-se da maldade dos Seus inimigos e, ao mesmo tempo, devolver a Israel os seus direitos e a sua glória, como não havia de acreditar em tal com todas as suas forças, aquele povo que havia séculos vivia da Promessa divina? Precisamente porque estava humilhado, submetido ao jugo romano, a salvação estava perto. Mil sinais provam quanto estava viva, no momento em que Jesus nascia, aquela expectativa messiânica. “A redenção de Israel”, como escreveu Lucas (I, 68; II, 38 e XXIV, 21), “era para amanhã?” O Evangelho, em numerosas passagens, testemunha o fervor daquela esperança. Nota-se na pergunta feita a João Baptista: “Tu quem és?” (”És tu o Messias?”) (João, I 19). Na simples afirmação da samaritana: “Eu sei que o Messias está para chegar” (João, IV, 25). Na mensagem que o Baptista manda transmitir a Jesus: “És tu o que vem ou esperamos por outro?” (Lucas VII, 19). Na impaciente pergunta feita a Jesus por peregrinos no templo: “Até quando nos vais ter em suspenso? Se és o Messias diz-nos claramente”. (João, X, 24). Ou nas aclamações da multidão na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. (Marcos, XI, 10). Aquele sentimento era tão imperioso que Jesus se vê obrigado a moderar o excessivo entusiasmo da multidão, disposta a proclamá-lo rei e Messias de Israel. (João VI 15). “A leitura de Apócrifos, que constituíam a literatura judaica além da Escritura, não é menos reveladora. O Livro de Enoc, o Testamento dos Doze Patriarcas, os Salmos de Salomão, etc., falam dele, matizando quase sempre a sua história com muitas maravilhas, para melhor assinalarem as suas características sobre-humanas. Nos Apocalipses, esses tratados misteriosos que revelavam o que seria o fim do mundo
intervinha o Messias; aliás, não se distinguia muito bem a diferença entre o seu reinado e “o século a vir”, que veria o triunfo de Deus, pois alguns pensavam que o reinado messiânico teria uma duração de tempo limitada – de sessenta a mil anos consoante estes ou aqueles -, enquanto outros admitiam que se confundiria com a eternidade ou com o Paraíso. Um vasto conjunto de noções complexas, até contraditórias, se tinha, pois, acumulado em volta da figura do Messias, de onde surgiam algumas certezas: a era messiânica inauguraria uma felicidade perfeita. Israel voltaria a encontrar a plenitude da sua glória e a justiça de Deus regeria o mundo. “No entanto, havia cépticos. Alguns troçavam das fábulas populares segundo as quais, no reino messiânico, nem sequer haveria necessidade de colher, de vindimar, para se ter sempre trigo e vinho em quantidade, pois que os grãos atingiriam o tamanho de rins de boi. Uma expressão usual dizia “à chegada do Messias” ou “ao regresso de Elias” para exprimir a ideia que traduz a nossa irónica fórmula “para a semana dos nove dias”. Um fariseu sem ilusões garantia: “Se estás a preparar uma estaca e nessa altura te anunciam o Messias, termina a tua estaca: pois que terás muito tempo para ir ao seu encontro”. De um modo geral segundo parecia, a expectativa pelo Messias era mais viva no povo simples que entre os ricos e poderosos. Para a gente simples chegaria a converter-se numa febre. Havia séculos que Deus parecia calar-se. “O tempo alonga-se”, dissera Ezequiel “e toda a visão fica sem efeito”. Quinhentos anos tinham passado desde que, morto Zacarias, não se ouvira uma grande voz inspirada anunciar a palavra divína. Repetiam-se as palavras do Salmista: “Já não há nenhum profeta, nem alguém entre nós que saiba até quando”.(Salmos, LXXIV,9). Em que data viria pois o Salvador (nota interrompida.)
do jovem, foram os encarregados de me mostrarem as chaves. Diga-se em abono da verdade que Maria não sabia muito de tal assunto. As suas discussões com o Filho acabariam por selar os lábios de Jesus. O futuro Rabi da Galileia estudou a fundo as Escrituras e todas as profecias relacionadas com o Messias. Concluída a investigação o rapaz estava praticamente convencido de que aquele não era o seu destino. O apelo íntimo que o alimentava e amparava não falava em comandar exércitos ou resgatar o trono do rei David. Ele era um libertador, sim, mas de outra natureza. Estava destinado a educar, mas longe do silvo das flechas. Ele era, talvez, o antimessias...
Seja como for, as coisas não se passaram como, hoje, privados destas subtis informações, julgamos. Este processo, insisto, não foi espontâneo. Levou o seu tempo. E, principalmente, não deve ser confundido com outro passo, infinitamente maior: a aquisição por Jesus, homem, da plena consciência da sua divindade. Isto teria lugar anos depois... Não podemos nem devemos enganar-nos: a influência de sua mãe no capítulo messiânico foi importante, interrompendo durante algum tempo, as visões interiores do adolescente. Ele repetiu-o muitas vezes: “Tenho de me ocupar dos assuntos de meu Pai”. No entanto, a Senhora – que conservava na sua alma a promessa de Gabriel – confundiu os termos de seu Filho. Nem Tiago nem Jacob se atreveram a confessá-lo, mas estou certo, certo de que, durante os primeiros anos, Jesus, influenciado pelo entusiasmo de Maria, pôde chegar a crer que, com efeito, era o Ungido. Os argumentos da Senhora, apoiada no que fora revelado junto daquela mesa de pedra e nas minuciosas precisões que as Escrituras faziam acerca *(continua a nota.)) de Israel? Examinavam ansiosamente os textos para obter uma resposta. Aplicavam-Lhes cálculos complicados, jogando com o significado numérico das palavras. Josefo fala em várias alturas dos aventureiros que encontraram crédito entre o povo judeu, fazendo-se passar por Messias. E na Guerra dos Judeus (VI, 5) anota que “uma profecia ambígua, encontrada nas Sagradas Escrituras, anunciava aos Judeus que nesse tempo um homem da sua nação seria o senhor do Universo”. Tanto como sobre as condições da vinda do Messias, interrogavam-se sobre o que o caracterizaria. Alcançava-se a unanimidade quando se falava do palco do seu regresso em glória: não podia ser senão Jerusalém, a Cidade Santa entre todas, e uma terra prometida, maravilhosamente renovada, onde, como se dizia no apócrifo de Baruc, um maná inesgotável alimentaria os homens até ao fim dos tempos. Mas quando se tratava de representar os episódios sobrenaturais da chegada do Ungido, o que era quase o mesmo, a sua personalidade, estavam longe de ver claro... Mas como estabeleceria o seu reino? Nesse ponto, há que reconhecê-lo, a grande maioria dos documentos desenhava uma imagem singularmente distinta daquela na qual os cristãos têm o costume de reconhecer o Messias. Algumas passagens dos apócrifos eram terríveis. Insistiam no carácter guerreiro do rei Messias, sobre o esmagamento das nações pagãs, sobre as cabeças cortadas, os cadáveres amontoados, as aguçadas flechas cravadas no coração dos inimigos. O quarto livro de Esdras comparava-o com um leão devorador. O apócrifo de Baruc
comparava a sua vinda com um terramoto, seguido de incêndio e logo de grande fome, para todas as nações excepto o Povo eleito. Reacções que não deixam de ser muito compreensíveis: Israel humilhado esperava um vingador ou, em todo o caso, um libertador que lhe devolveria o seu lugar na terra. Era natural. A tal ponto que os próprios discípulos permaneciam fiéis a esta imagem e em várias alturas lhe perguntarão se não virá, por fim, estabelecer o seu reino na Terra, se não os associará ao seu reinado glorioso... (Nota de J. J. Benitez.)
do Messias, eram correctos. O Libertador – rezavam aqueles textos proféticos – nasceria da estirpe de David. À qual ela pertencia. Isaías disse-o no seu capítulo xI, ao falar do futuro rei (1). Outros anunciavam que seria filho de José. Jesus era-o. E será chamado “Emmanuel” ou “Yavé” sidqenu (Yesua ou Deus connosco), segundo Isaías ou Jeremias, respectivamente. Era Jesus... Perante tanta coincidência, que podia pensar Maria, a das pombas? E o coração daquela valente e patriótica galileia identificou-se plenamente com um dos salmos apócrifos de Salomão (o xvII), em que é retratado o Messias: Esse rei, filho de David, suscitado por Deus para purificar Jerusalém de pagãos, puro de todo o pecado, rico de toda a sabedoria, depositário da Omnipotência, quebraria o orgulho dos pecadores como púcaros de olaria, enquanto reuniria o povo santo e o conduziria com justiça, paz e igualdade... Recordo que naquela tarde, ao falar com a Senhora sobre esta parte delicada da juventude de Jesus, ela baixou os olhos, magoada consigo mesma, declarando a sua estupidez. - Compreendo agora – murmurou, abalada pelo peso de uma culpa que suportaria até à morte -, a razão dos seus passeios solitários pelo monte e a sua recusa em conversar comigo sobre estes assuntos... Suspirou, lamentando-se - .. A minha teimosia e ares importantes (imagina, Jasão, eu a mãe do Libertador!) obrigaram-no a um mutismo quase total. Durante muito tempo não consegui arrancar-lhe uma única opinião sobre o mundo, sobre o meu povo ou sobre a cantada vinda do Messias. Olhava-me em silêncio, com alguma tristeza nos olhos, e perdia-se naquela suja oficina... Eu sabia das suas inquietações, dos seus blasfemos desejos de falar cara a cara com seu Pai e penso que, para
não me causar dano, escolheu o mais difícil, carregar sozinho com a sua pesada luta interior. Na aldeia, esta pouco habitual forma de ser de Jesus não passou despercebida, e muitos dos seus amigos e conhecidos o acusaram de vulgar. - Mas – atrevi-me a insistir -, não havia ninguém a quem pudesse confiar os seus pensamentos e atribulações? Miriam e sua mãe entreolharam-se, com tristeza. - Supomos que não... Era um adolescente, Jasão! E de novo me precipitei. - Que me dizes de Jacob ou de Tiago? Os olhos de Maria incendiaram-se. E recebi o que merecia: - Não perguntes o que já sabes... Neste, e noutros assuntos, tu, anjo dos demónios, sabes mais do que nós. Miriam recolheu o carinhoso e certeiro dardo. E depois de me olhar, outra vez, como só as mulheres sabem fazer pediu explicações a sua mãe. Esta, porém, sem se perturbar, evitou a perigosa curiosidade da rapariga, desvendando-lhe algo que era rigorosamente certo: Aquele grego anónimo *1 No referido capítulo, Isaías diz: “Sairá um rebento do tronco de José [pai de David], e uma vergôntea das suas raízes brotará. Sobre ele repousará o espírito de Javé [...]”. Naquele mesmo livro profético, Isaías (cap. VII) volta a profetizar: “[...] o próprio Senhor vos vai dar um sinal: eis que uma donzela está grávida e vai dar à luz um filho e lhe concederá por nome Emmanuel. (N. Do M.)
soubera conquistar o coração de Jesus, tendo com Ele longas conversas. Por consequência, sabia coisas que elas ignoravam. - Então – surpreendeu-me Miriam -, é verdade que desejas escrever a história de meu Irmão... Nunca soube de onde retirara tão peregrina ideia. Mas, ao regressar ao meu mundo, a misteriosa e providencial afirmação da jovem foi decisiva no momento de iniciar quanto trago entre mãos. Assenti, em boa medida guiado pelo interesse. E trazendo a água de
tão favoráveis circunstâncias ao meu moinho, recordei-lhes que para levar a bom porto a minha missão precisava de todos os seus segredos e recordações. Desta forma regressei ao ponto da grande descoberta do título de Filho do Homem. E foi isto o que soube... Naquele ano nono, a Providência levou o ainda confuso carpinteiro até um dos rolos guardados na sinagoga, e ainda que fosse público e notório, o mencionado manuscrito podia ter um carácter apócrifo. Jesus leu-o e releu-o, impressionado por uma das passagens. Nele aparecia a expressão Filho do Homem. O autor falava com precisão, retratando um homem que, antes de descer ao mundo para o iluminar com a sua palavra, tinha atravessado os umbrais da glória celestial, na companhia do Pai Universal, seu Pai. E dizia também que o Filho do Homem renunciara à sua majestade e grandeza, em benefício dos infelizes e perdidos mortais, aos quais ofereceria a notícia da filiação divina. O coração do adolescente vibrou como poucas vezes vibrara. De entre as profecias e referências messiânicas, aquela era a que mais se aproximava das suas íntimas inquietações. Por volta dos catorze anos, Jesus de Nazaré fez a si próprio a solene promessa de adoptar como seu tão formoso título. Certamente, e eu fui testemunha de excepção, o Mestre tinha a faculdade infalível e invejável de reconhecer a verdade, estivesse onde estivesse e vestisse a roupagem que vestisse... E chegou o 21 de Agosto... Como disse, o quebra-cabeças do ódio e da inveja continuava a encaminhar-se para a solução. Ao completar quinze anos, o então chefe da sinagoga de Nazaré – Ismael, o Saduceu – apressou-se a colocar uma nova pedra no tabuleiro do seu coração de hiena. Vejamos como aconteceu. Na referida data, Jesus foi autorizado a dirigir o ofício de sábado. (A partir dos doze-treze anos a lei permitia aos varões livres de Israel a leitura da sagrada Tora – o Pentateuco – nas sinagogas). E ainda que o adolescente já tivesse lido as Escrituras noutras ocasiões, naquele momento, o sabbat seguinte ao seu aniversário, ao ser requerido oficialmente pelo conselho, o acto encerrava um solene significado. Toda a aldeia se encontrava reunida na bethhakeneseth. E o jovem, vestindo a sua branca túnica de linho, presente de Maria, dirigiu-se à assistência, lendo uma passagem, especialmente escolhida pela sua simbologia:
- O espírito do Senhor Deus está em mim, já que ele me ungiu e enviou para levar aos bondosos a boa nova, para curar aqueles que sofrem, para anunciar a liberdade aos cativos e abrir os cárceres aos prisioneiros. Para proclamar o ano a favor do Eterno e um dia de vingança para o nosso Deus. Para consolar os aflitos e dar-lhes o óleo da alegria em vez do luto e um canto de louvor em vez de um espírito abatido, com o fim de que sejam chamados árvores de rectidão, plantadas pelo Senhor e destinadas a glorificá-lo... Buscai o bem e não o mal para que vivais e o Senhor, o Eterno dos Exércitos, esteja convosco. Odiai o mal, amai o bem. Estabelecei o juízo justo nas assembleias da porta. Talvez o Senhor Deus use a sua graça com os despojos de José. Lavai-vos e purificai-vos. Tirai a maldade nas vossas acções ante os meus olhos. Cessai de fazer o mal e aprendei a fazer o bem. Buscai a justiça, aliviai o oprimido. Defendei o que já não tem pai e protegei a causa da viúva. Como me apresentarei ante o Senhor? Como me inclinarei perante Deus de toda a Terra? Terei de ir ante Ele com holocaustos, com bois de um ano? O Senhor gozará com milhares de carneiros de cobrição, com dezenas de milhares de borregos ou com rios de azeite? Daria o meu primogénito pela minha transgressão ou o fruto do meu corpo pelo pecado da minha alma? Não, porque o Senhor nos ensinou o que é bom. Que vos pede o Senhor? Unicamente que sejais justos, ameis a misericórdia e caminheis humildemente para Ele. Com quem comparais o Deus que domina toda a órbita da Terra? Levantai os olhos e vede quem criou estes mundos que produzem legiões e as chama pelo seu nome. Faz todas estas coisas graças à grandeza do seu poder. E dada a força do seu poder, ninguém se equivoca. Dá vigor aos débeis e aumenta a força dos que estão cansados. Não temais, pois estou convosco já que sou vosso Deus. Vos darei a minha mão, dizendo: Não temais, pois que vos ajudarei. Tu és minha testemunha, “disse o Senhor”, e o servidor que escolhi com a formalidade de que todos me conheçam e me creiam, ao mesmo tempo que saibam que sou o Eterno. Eu, sim, eu sou o Senhor... e além de mim não há salvador.
Miriam, que idolatrava seu Irmão, fez um exacto relato da reacção do povo: - Regressaram a suas casas impressionados. A leitura de Jesus, solene, suave, varonil, firme, encheu-os de paz e de esperança... - E de ódio – interrompeu a Senhora, revelando algo que já me aflora ao espírito. - Ódio entre os de sempre... Ódio nos corações dos que associaram aquela leitura com os meus sonhos messiânicos. O saduceu, principalmente, que sempre desprezou as nossas crenças no Messias, interpretou as últimas frases de meu Filho com uma blasfémia dissimulada. Ele sabia que Jesus era considerado o filho da Promessa. A notícia, inevitavelmente, acabou por correr de boca em boca. E o atrevimento de Jesus pareceu-lhe intolerável. Quem se julga este presumido carpinteiro? (Chegou ele a murmurar). Imaginando que o Ungido apareça, não saberia ele que primeiro será designado sumo sacerdote? Querido Jasão: entendes agora quão velhas e profundas são as raízes do ódio naquela víbora? Eu entendia. E uma nova inquietação me assaltou. A circunstância de ter sido mestre do Jesus Menino forçava-me a interrogá-lo. Porém, dada a minha condição de amigo da família, aceitaria receber-me? De momento, optei por adiar a questão. Devia dar tempo ao tempo... - Imagino que Jesus soubesse desses ódios... - Muito bem – precisou sua mãe. - Porém, havia algo nele que desconcertava. Desde muito menino que lhe repugnava a violência. E não era um problema de falta de coragem ou de vigor físico. Todos o vimos carregar troncos de dois e três etah. - Considerando que um etah equivalia a uns quarenta e cinco quilos, a expressão da mãe pareceume um tanto exagerada. Porém, tudo era possível naquele soberbo exemplar humano – ninguém o viu recuar perante uma ameaça ou encolher-se como uma mulher no escuro. Era bravo e corajoso... mas demonstrava-o com simplicidade, sem alardes. E quando lhe chegavam aos ouvidos as maledicências ou calúnias dos de sempre, sorria ou recorria à sua frase favorita: “Nada se move se não for essa a vontade de meu Pai. Mesmo a língua da áspide”. - É tão verdade o que diz minha mãe – sublinhou Miriam – que, nessa
mesma tarde, fazendo orelhas moucas ao venenoso falatório do saduceu, Jesus, eufórico, como havia muito não o víamos, foi buscar Tiago e ambos foram passear pela colina. À volta surpreendeu-nos a todos. Antes e depois da ceia não parou de cantar, ao mesmo tempo que escrevia os dez mandamentos nas tábuas de madeira polida... - Sim! - exclamou a Senhora, que parecia ter esquecido o pequeno episódio. - É verdade, que foi feito das madeiras? A filha refrescou de novo a memória da mãe, dando-me, de passagem, uma informação que, naquela altura, não cheguei a entender. - Mãe Maria... então não te lembras? Marta deu-lhes cor e tu própria os penduraste na oficina... Em silêncio, Maria foi corroborando as explicações da rapariga. - E que foi feito dos mandamentos? - intervim, felicitando-me ante a fascinante possibilidade de acolher nas mãos uma obra escrita pelo Mestre. Miriam encolheu os ombros e, resignada, fulminou-me: - Meu irmão, anos mais tarde, se encarregaria de o destruir... Pensei não ter ouvido bem a última palavra. E insisti: - Destruiu os mandamentos? - Não, Jasão: destruiu... tudo Que era tudo? Confuso e contrariado solicitei uma explicação. - Tudo o que tinha escrito, desenhado ou pintado. Tudo! Incluída a tábua de cedro, com a sua primeira oração... - Porquê? - murmurei, sem poder crer no que me anunciavam. Não souberam responder-me. Era simplesmente, um enigma. Apesar da obstinada oposição de Maria e de seus irmãos, Jesus, da noite para o dia, queimou quanto escrevera ou criara. As minhas indagações posteriores junto de Tiago e de Jacob não obtiveram melhores resultados. Recordavam o incidente mas não conheciam a razão ou razões. Este explorador teve de esperar pelo terceiro salto para descobrir as motivações do Mestre. Motivações plenamente justificadas – como não podia deixar de ser do seu ponto de vista... não do meu. Mas não antecipemos nem um
instante da fascinante aventura que julgo ter acompanhado durante a sua vida de pregação. ...Até a tábua de cedro, com a sua primeira oração. A inadvertida confissão de Miriam, proporcionou-me nova e comovente descoberta. Naquele mês de Outubro, pelos seus belos quinze anos, aquele jovem singular, movido por circunstâncias muito concretas, teve a genial lembrança de pôr por escrito o que seria uma das orações mais recitadas do mundo cristão: o célebre Pai Nosso. Nunca, até àquele instante, me detivera a reflectir sobre a referida prece. Mais – dado o seu conteúdo – imaginei tratar-se de uma obra da maturidade. De facto, se a memória não me trai, os evangelistas mencionam-na em plena vida pública. Pois não é assim. O Mestre continuava a desconcertar-me... - Supomos – esclareceu Maria – que a ideia do Pai Nosso nasceu por causa da nossa escassa imaginação... - Não entendo... - É fácil – elucidou, impacientando-se comigo. - Desde sempre, o meu povo e a minha família se tinham limitado a recitar de cor as orações que a lei e a tradição indicam. Mas Jesus, empenhado em que compartilhássemos as suas loucas pretensões de falar directamente com Deus, bendito seja o Seu nome, insistia em que era bom improvisar e comunicar ao Pai todas as nossas inquietudes e problemas. Estás a ver, Jasão? Como podia ser aquilo? Por muito menos tinham sido outros lapidados. Falar, cara a cara, com o Divino?... As admoestações de José, quando vivia, e as minhas, em todos aqueles anos, foram como zumbido de moscas aos seus ouvidos. Meus filhos, que o adoravam, tentaram. Mas, temerosos perante o que dirão ou amarrados à força do hábito, acabavam na recitação de memória. E um belo dia... - Uma noite, mãe Maria... - corrigiu Miriam. - Uma noite, tens razão, cansado de solicitar espontaneidade, veio sentar-se aqui mesmo e, pegando numa das madeiras da suja oficina... - desta vez acompanhou a alfinetada com um sorriso brincalhão ... pôsse a pintar... - A escrever, mãe Maria... - rectificou a filha.
- O céu me valha, Jasão... Já não há respeito neste mundo... Agradeci a precisão. Como era lógico e natural, a Senhora não podia compreender quanto era importante para mim a exactidão, a milimétrica exactidão, em quanto dizia respeito a seu Filho. E embora o facto de trocar a palavra escrever por pintar possa ser considerado como banal, não o quero passar por alto. A razão não é tão banal... Encontrávamonos em Abril de 30. Tinham decorrido vinte e um anos desde a criação do Pai Nosso. Se uma das protagonistas do importante acontecimento não fixava com nitidez os referidos pormenores, que havia a esperar dos chamados evangelistas, que se aventuraram a redigir as suas recordações e as de terceiros muitos anos depois? “...Muito bem, pôs-se a escrever... Esta descarada e eu lidávamos junto da lareira, preparando a ceia. E os mais pequenos, se bem me lembro, brincavam lá fora ou talvez no terraço, com as caixas de areia... Maria, reservada, franziu as sobrancelhas e, abrindo as mãos interrogou a filha com o olhar. Mas Miriam, maliciosamente, fez-lhe ver que a sua memória não chegava tão longe. - De súbito, Ruth, que apenas contava seis meses, começou a chorar. Levantei os olhos e vi como Jesus encostava o berço à mesa. Sorriu-me e, cantarolando, prosseguiu na sua escrita, ao mesmo tempo que embalava a esquilazinha. Era matemático. Quando alguém a embalava, a espertalhona parava logo com o choro... E assim, inclinado para esta mó, embalando o berço com a mão direita, entre a gritaria da gente miúda e o lidar de pratos e de vasilhas, deu forma àquela maravilha..: Um momento de silêncio antecedeu a qualificação certa. E os três meditámos naquela cena. Como é simples, por vezes, a gestação das grandes obras! - Acabada a ceia pediu a atenção geral e, carinhoso, leu-nos a oração. Os mais pequenos – Judas, Amos e Ruth – adormeceram nos braços dos irmãos. E em paz, à trémula luz de uma candeia como esta, meu Filho foi lendo, comentando e respondendo às dúvidas de todos nós... A Senhora vacilou. E os lábios tremeram-lhe, vencidos por uma melancólica tristeza. - Foi formoso, Jasão – enalteceu Miriam, enquanto escondia entre as
suas as longas e crepusculares mãos da mãe. - Formoso, embora não compreendêssemos... - Porquê? - intervim, sem reflectir. - Ele falava e dizia coisas estranhas, quase proibidas pela Lei. - Por Deus – animei-a -, faz com que eu participe dos seus pecados... A rapariga sorriu, divertida com alguém que também não cedia com facilidade. - Foi recitando o que escrevera e... mas melhor será que escutes. Fechou os olhos e foi recordando. - Pai Nosso... E fixando os nossos olhos assombrados esclareceu: Porque Ele nos criou em verdade, como a vaga que, sem se soltar, se solta do mar... Que estás nos céus... E piscando-nos um olho apontou para o peito de Tiago. E disse: “Nos céus do coração.” Santificado seja Teu nome... E todos assentimos. E ele, porém, sem deixar de sorrir, negou com a cabeça. E elucidou: “Santificado, não só porque a Lei o ordene. Santificado porque nunca dorme. Santificado porque nunca fere. Santificado porque, agora, certamente se sorri ante os problemas de mãe Maria e deste pobre carpinteiro... A Senhora lançou-me um olhar penetrante. Aquele verde-erva teria sido bastante para iluminar a sala. - Venha a nós o Teu reino... E Tiago interrompeu-o: “Será que Deus é rei?” E meu Irmão, apontando para o pátio, levantou a voz. E disse: “O único, ouçam-me bem, capaz de criar o vermelho de uma rosa. Poderias ser tu Tiago, ou tu, Miriam, ou tu, José, a conceber a geometria das estrelas?” Ninguém replicou. E com uma convicção que causava medo, sentenciou: “Pois esse é o reino de Nosso Pai: o da beleza visível e invisível.” “Beleza invisível”, interrompeu Simão, que com os seus sete anos era tão irritantemente curioso como Jesus. ASsim, pequeno: a que se adivinha por baixo da justiça; a que um beijo de amor contém; a dos homens que nunca exigem; a que oferta ao
mundo as suas colheitas; a que concede antes que os lábios se abram para rogar. Esse é o nosso reino... “E faça-se a Tua vontade na terra e nos céus...” Esperou um momento. E em plena expectativa anunciou o que menos imaginávamos: “Já sei que, por vezes o Pai dos Céus parece portar-se como se tivesse partido em viagem... Não temais: é o único que nunca viaja...” “Nunca?”, perguntou Marta, de olhos escancarados. “Isso não é verdade... E que me dizes de Moisés? Não viajou com ele pelo deserto?” “Surpreendido, Jesus rendeu-se à candura de minha irmã. “O que quero dizer, menina perguntadora, é que a nossa vontade nem sempre coincide com a Sua. Ele, porém, como a mãe Maria, sabe bem o que é bom para ti. Fazer a vontade do Pai – sempre, a cada instante, ainda que não a compreendamos – é o pequeno-grande segredo para viver em paz. “E meu Irmão continuou: “O pão nosso de cada dia, nos dai hoje... “Mas, quem é que o dá: mãe Maria, tu ou Deus?” Tiago, sensato e racional nunca teve papas na língua. - Mamã Maria e eu, naturalmente... porque Ele deu-nos primeiro. O argumento não satisfaz os seus onze anos, e meu Irmão acrescentou, solícito: “O pai é sábio. Conhece cada um dos seus filhos pelo nome. E prepara quanto é necessário para que, na forma de trabalho, de sorte ou de casualidade, nem uma só das suas criaturas fique desamparada. A cobiça, a ambição e a usura, meus queridos, não são só pecados contra os homens. São tolices, muito próprias dos que esqueceram ou nunca souberam que têm um Pai... imensamente rico. “E perdoa as nossas dívidas? Jesus disse: “Principalmente, as que ninguém conhece.” “E tu” atrevime a perguntar-lhe esclareceu Miriam, “também tens dívidas para com o pai?” Pôs-se muito sério. E assustei-me. “Tantas quantas as aparas da minha oficina... Mas ninguém acreditou, porque aquelas aparas estavam molhadas
com o suor do seu rosto. E é difícil encontrar maldade em alguém que tudo antepõe ao seu interesse. “E não nos deixes cair em tentação.” Baixando o tom de voz fez-nos participar noutro segredo: “...Não na tentação de violar o sábado ou as quase sempre interesseiras leis dos homens. Dizei melhor: “Não nos deixes cair na tentação de te esquecer, Pai dos céus. Se o pior dos pecados é subestimar ou ignorar os que nos deram a vida terrena, que espécie de afronta será renunciar ao Pai dos pais?” Depois de conhecer esta esquecida passagem da sua vida, mais me convenci de que Jesus, desde muito jovem e contrariamente à imagem oferecida pela história, se manifestou como um rebelde. Algo assim como um anarquista dos conceitos. As suas doutrinas revolucionárias do período de pregação chegaram aos tectos das leis e instituições judaicas. Mas, como as trepadeiras das paredes da sua casa de Nazaré, tinham crescido e lançado raízes muito tempo antes. Eis aqui uma justificação mais que bastante para ter exigido aos evangelistas o relato completo da sua vida. E desconfiado, como se não tivesse ouvido Miriam, perguntei de novo pelo paradeiro da famosa tábua de cedro, com o Pai Nosso original. A intuição pôs-me de sobreaviso. Os olhares que as duas mulheres trocavam deu-me que pensar. Teria sido, realmente, queimado pelo Mestre? - Não sabemos... Foi tudo destruído – teimou a filha mais velha em tom menos convincente. - Pelo menos, ninguém a voltou a ver. Interessante. Muito interessante. O final daquele ano e o seguinte poderiam ser considerados como definitivo e sempre conflituoso salto da adolescência para a juventude. Mercê das explicações minuciosas dos que compartilham o seu tempo e o seu coração pude alinhavar este retalho da vida de Jesus de acordo com o seguinte esquema: Conforme foi vivendo os quinze anos, o paciente carpinteiro entende e aceitou que, apesar do seu apelo íntimo, devia suportar primeiro o duro encargo da sobrevivência dos seus. Essa, sem dúvida, era a vontade de seu Pai dos Céus.
Ao mesmo tempo, no natural despertar da virilidade, o jovem viu-se sacudido por novos ventos. Estava a afastar-se da margem da puberdade para desembarcar no pedregoso escarpado dos adultos. Exactamente como os jovens de hoje, e de sempre, sentiu-se só, desamparado, incom preendido, sonhador, inseguro e especialmente sensível. E como eles, durante meses, fez do silêncio e da solidão, no Nebi, o seu verdadeiro refúgio. Como tantos outros “homens em projecto”, esquivou-se às insistências bem-intencionadas de sua mãe, que não o entendia. - Nunca soube a razão daqueles longos passeios pela colina – confessou Maria, com desolação idêntica à das mães que hoje podem recorrer a um psicólogo. - Para mim, era apenas um menino... Desejava protegê-lo, mimá-lo... Ele, porém, arisco, evitava-me. E o que era pior, raramente me abria o coração. Muitas vezes me perguntei se a necessidade de trazer dinheiro para casa arruinando assim os seus projectos de estudo em Jerusalém não foi a causa do seu mutismo... Enganava-se, obviamente. Como na actualidade, o coração daquele jovem era mais cristalino e generoso do que nós adultos, transformados pela experiência, costumamos imaginar. Simplesmente, aquele era o processo a seguir: a descoberta da vida, como o ferro na forja, é geralmente penoso. E raro é o ferro que, em plena incandescência, manifesta a sua dor vociferando contra o ferreiro. Jesus, por puro instinto humano, foi aprendendo que só os êxitos parciais e o contentar-se constituem as chaves de horizontes mais prometedores. Como disse, Maria enganava-se. Seu Filho amava-a profundamente. Talvez com mais intensidade do que nunca. Nos jovens de nobres sentimentos, embora não cheguem a exteriorizá-los, uma tragédia ou um revés familiar purifica os seus afectos. Mas também seria justo compreender a sua luta e inquietação íntimas. Como todo o homem de quinze ou dezasseis anos, Jesus tinha projectos. Um deles, especialmente, o preocupava. E tal como veria a sociedade do século xx, teve de aprender a lição da paciência. Tanto que, contrariamente ao que hoje se repete com demasiada frequência, aquele rapaz não viu diminuído o seu direito a assumir as próprias responsabilidades. Maria, ainda que forçada pelas
circunstâncias, viu-se livre daquele erro em que costumam incorrer os pais de hoje: afastar os filhos de todo o género de responsabilidades. Jesus, -felizmente para Ele, recebeu e aceitou a responsabilidade de uma família. A obrigação se me é lícito dizer, excessiva para os seus parcos meios. A sua força moral – nem maior nem menor que a de qualquer jovem – fez o resto. Quanto estamos perdidos em relação ao poder espiritual dos novos homens! E como se desperdiça aquele tesouro, vivo em todos os jovens, pelo medo dos velhos homens, que não se lembram das suas etapas de juventude! Assim entrou o Filho do Homem no ano 10, o do aniversário dos seus dezasseis anos: inquieto, responsável e confiante. Compreendo que a fase selvagem e escondida da vida só pode ser evitada com um suave e tranquilo caminhar. Replicando sem replicar. Deixando fazer, sem deixar de fazer. Sorrindo quando ninguém sorri. Hoje diríamos: Caminhando com as mãos nas algibeiras. Só assim se pode esperar a graça do pensamento criador. Se os Evangelhos, embora deformados e pouco esclarecedores, reflectem a imagem de um Homem submetido a duras provas, a sua juventude não lhe ficou atrás. E embora o repetisse até se cansar – o Filho do omem não deve ser tomado como exemplo, - quem isto escreve, desobedecendo ao seu conselho, atreve-se a recordar aos jovens insatisfeitos ou magoados que houve uma vez outro jovem que não se revoltou contra a sábia, ainda que incompreensível, “violência” do destino. E carregou uma responsabilidade de que hoje faria empalidecer muitos. Quando me interessei pelo seu aspecto físico, o que poderia parecer frívolo, a sua irmã Miriam tomou a iniciativa, ante o olhar agradado de sua mãe: - Belo, Jasão!... Belíssimo!... Compreendi o seu fervor exagerado embora seja justo reconhecer que o Galileu, de um prisma claramente estético, era um jovem muito próximo da perfeição. “... Nesse ano fez-se homem... em todos os sentidos. Compreendes-me? Maria, afogueada, negou com a cabeça. Gesto tão subtil que quase
não o notava. Interrompendo Miriam, interroguei Maria com um levíssimo movimento dos dedos. Só consegui ruborizá-la até às sobrancelhas. - Foi antes... - replicou, quase para consigo. Ficou claro. E a filha prosseguiu com o seu particular retrato de Jesus. Um esboço que não se afastou excessivamente da verdade: “.. Era viril. Musculoso. Muito alto para a idade. A barba e os pêlos dos braços eram dourados. E os olhos, Jasão... sempre doces mas trespassando como espadas. À luz do dia ficavam claros como o mel. Um sorriso seu era como o calor no Inverno. Mas o que punha as jovenzinhas loucas eram as pestanas... - E não esqueças a voz – reforçou Maria. - Sim, mas por aquela altura mudou. Em casa tomavam-no por... - Por quem? Miriam sorriu, convencida de que, no fundo, todos os homens são deliciosamente ingénuos. - Ao princípio parecia sair de uma cripta. Depois, estabilizou, grave e musical. Passava pela aldeia como a brisa fresca, despertando carinho, admiração... - E inveja – rematou a Senhora, com uma sinceridade muito de agradecer. - Foi um jovem saudável? A pergunta ofendeu as mulheres. - Duro como o granito – lançou-me a mãe à cara -... apesar dos pesares. - Não entendo. - Filho, às vezes pareces tolo! E recuperando o sorriso fez-me ver que a escassez de dinheiro não lhes permitia grandes luxos na dieta diária. - Carne, uma vez por semana e nem sempre. Leite em abundância. Pão de trigo ou de cevada, conforme... Legumes, hortaliças e fruta de acordo com as épocas, e as minhas sobremesas: o fraco de Jesus.
- E peixe? - Menos do que o aconselhável. O transporte desde o yam tornava-o quase proibitivo. Só quando Ele começou a ir ao lago na companhia dos meus irmãos o começámos a comer com mais regularidade. Devo esclarecer que o meu esforço para esmiuçar a dieta do jovem Jesus não era orientado unicamente por um interesse documental. Uma informação pormenorizada dos alimentos que ingeria regular e habitualmente podia proporcionar a Cavalo de Tróia um quadro esclarecedor das possíveis deficiências nutricionais e metabólicas do Filho do Homem, se é que as teve. Nas análises efectuadas por altura da paixão emorte, as notícias neste sentido tinham sido muito tranquilizadoras. Mas; mesmo assim, era conveniente ter-se a certeza... na medida do possível. Pois bem, com base nos dados obtidos, considerando a sua idade (quinze anos), pelo aproximado (sessenta e seis quilos), estatura (à volta de 1 metro e 76) e actividade exercida por aquela data (intensa), os resultados não poderiam ser melhores: nem sombra de desnutrição e um mais que aceitável funcionamento metabólico. Tanto em vitaminas lipossolúveis como hidrossolúveis e minerais, a dieta era correcta (1). Não o vou ocultar. *1 A ajuizar pelos alimentos recebidos na sua infância e juventude, o quadro – sempre estimativo – dos principais micronutrientes (vitaminas e minerais) de Jesus de Nazaré foi classificado como satisfatório. Eis uma síntese dos resultados obtidos pelos especialistas: Vitamina A: proveniente, provavelmente da manteiga, ovos e vegetais de folhas verdes ou amarelas que ingeria com regularidade. Uma deficiência, teria provocado cegueira nocturna, hiperqueratose perifolicular, xeroftalmia e queratomalacia: hipertrofia da pele, opacidade e amolecimento da córnea, respectivamente. Vitamina D: recebida através do leite e manteiga, ovos e radiação ultravioleta. Regulou a absorção do cálcio e fósforo, além da mineralização e maturação do colagénio ósseo. A sua deficiência teria provocado raquitismo (por vezes com tetania). Grupo da vitamima E: assimilados por Jesus da Nazaré através do trigo, óleos vegetais, ovos, leguminosas e verduras foliáceas. Poderia originar hemólise de glóbulos vermelhos, (nota interrompida.)
Para os especialistas e para quem isto escreve, a excelente saúde do Mestre – sempre de um ponto de vista dietético – foi algo de incompreensível. Explico: entre as classes sociais judaicas não abastadas, ou seja, a imensa maioria, a dieta diária pecava por insuficiente e desequilibrada. O raquitismo, deficiências digestivas, circulatórias, problemas nervosos, renais, atrasos no crescimento, etc., tinham a sua origem, em grande medida, na ausência de vitaminas e de minerais. A carne e o peixe, por exemplo, salvo em determinadas regiões, eram comidos lá muito de longe em longe. E a família de Nazaré, *(continua a nota.) depósito de ceróide em músculos e creatinúria (presença de creatina na urina). Ácidos gordos essenciais (linoleico, libolénico e araqmdónico); extraídos de óleos de sementes de vegetais. A sua ausência teria interrompido o crescimento, provocando também dermatoses. Ácido fólico: contido em vegetais frescos de folhas verdes e frutos. Uma sua deficiência é causa de pancitopenia ou escassez de todos os elementos celulares do sangue. Niacina: obtém-se do peixe, carne, leguminosas e cereais de grão integral. Entre outros problemas, uma sua deficiência teria sido motivo de pelagra: síndroma caracterizado por transtornos digestivos, dores raquidianas, fraqueza e, posteriormente, eritema e alterações nervosas. Riboflavina (vitamina B2): provém do queijo, leite, carne, ovos e fígado. A ausência teria originado em Jesus a afecção dos lábios, a vascularização corneal e dermatose sebácea, entre outros problemas. Tiamina (vitamina B1): o jovem Jesus obteve-a dos cereais, carnes e nozes. Uma deficiência teria provocado insuficiência cardíaca. Síndroma de Wernicke-Korsakoff ou estado de debilidade mental, neuropatia periférica, etc. Vitamina B6 (piridoxina): este grupo encontra-se nos cereais, leguminosas e peixe que Jesus recebeu. A sua ausência poderia ter-lhe causado, entre outros transtornos, convulsões durante a lactação, anemias, neuropatia e lesões cutâneas de tipo seborreico bem como um estado de dependência. Vitamina B2 (cobalamina): as fontes principais, onde o organismo do Mestre as foi buscar, foram as carnes, leite, ovos e produtos lácteos. A sua deficiente presença poderia ser causa de anemia perniciosa, sindromas psiquiátricos e ambliopia nutricional. Cálcio: obtido por Jesus através do leite, qucijo, manteiga carne, ovos, peixe, verduras e cereais. Favoreceu-lhe a formação dos ossos e dos dentes, a coagulação do sangue, a irritabilidade neuromuscular, a função miocárdica e a
contractibilidade muscular. Fósforo: extraído do leite queijo, carnes, aves, peixe, nozes, leguminosas e cereais. A sua falta ou escassez teriam originado irritabilidade, transtornos de cólulas do sangue fraqueza e disfunção renal e do tubo digestivo. Tanto a formação dos seus ossos e dentes como o equilbrio de ácidos e bases e o componente de ácidos nucleicos fez-nos suspeitar que entre os onze e os dezoito anos recebeu uma dicta diária saudável (à volta de 1200 mg). Iodo: muito possivelmente o seu organismo alimentou-sc à base dos produtos derivados do leite, peixe, sal iodado e água. Se tivesse tido carência de iodo o seu organismo poderia ter padecido de bócio simples, cretinismo ou, até, de surdimutismo. Ferro: partmdo do facto de que apenas se absorvem uns vinte por cento, pôde obtê-lo de algumas carnes (rins e fígado) e de determinados frutos e leguminosas. A sua falta teria afectado a formação de hemoglobina, mioglobina e enzimas. Magnésio: extrai-se em especial das nozes, cereais e folhas verdes. É. Duvidoso que Jesus comesse marisco. Este elemento, consumido à razão de uns 400 mg/dia, permitiria a adequada formação de ossos e dentes, bem como a função nervosa, contracção muscular e activação enzimática. Zinco: à razão de uns 15 mg/dia, pode ser obtido, em especial dos vegetais, favorecendo as funções de desenvolvimento de enzinas e de insulina, cicatrização de feridas e crescimento em geral. (N. Do M.). recursos económicos passaram por grandes altos e baixos, não foi uma excepção. Em boa lógica, reflectindo de um ângulo estritamente humano e científico, o satisfatório desenvolvimento físico de Jesus (que chegaria a 1 metro e 81 de estatura) foi anormal e ilógico. Enquanto que o leite, produtos derivados do mesmo (queijo, manteiga, etc.) verduras e frutas, cereais e ovos lhe foram fornecidos ao longo da sua infância e juventude numa proporção e frequência aceitáveis, não pode dizer-se o mesmo das carnes e do peixe. Em ambos os casos, um plano dietético diário básico assinala o consumo, para um adolescente, de uma ou duas rações, com uma média de noventa gramas por ração. Jesus de Nazaré, segundo todos os indícios, tal como a restante comunidade em que lhe coube criar-se, só pôde ingerir uma ou duas rações por semana (por vezes nem isso). Pois bem, essa alarmante carência de carne e de peixe – os especialistas bem o sabem – teria de lhe provocar, por sua vez, uma assimilação deficiente das vitaminas A, D, tiamina, riboflavina, niacina, vitaminas B6, B 2, biotina, sódio, cálcio, fósforo, ferro, iodo e cobre. Por outras palavras: uma carência tão
gigantesca quanto perigosa, que, de acordo com as leis da Medicina, poderia ter formado um Jesus diferente daquele que todos imaginámos e daquele que na verdade foi. Ante semelhante caso de excepção são lícitas duas possíveis explicações. Uma: que a sua restante dieta e a própria Natureza equilibrassem o desajuste evidente. Outra: que o seu organismo se encontrasse salvaguardado de forma extraordinária... Seria lícito mesmo uma terceira explicação: a sábia simbiose das duas primeiras. A primeira é racional e científica. Em contrapartida, a segunda e a última não o são. Porém, será que nesta altura me poderia surpreender? Em que lugar tinha ficado o meu espírito científico perante a realidade do túmulo vazio ou das frequentes aparições? Que podia dizer a ciência ante o seu corpo glorioso? Pois bem, as nossas surpresas ainda mal tinham começado... Dois anos depois da morte do pai, o carpinteiro de Nazaré começou a impor-se no seu ofício. Em toda aquela zona poucos jugos, arados, alfaias de lavoura e utensílios de madeira tinham a perfeição que lhes sabia imprimir aquele Jesus de dezasseis anos. Além de cumprir as suas obrigações, sustentando tão numerosa prole, o jovem artesão gostava do seu trabalho. Tiago, seu irmão, que passaria muitas horas a seu lado, ajudando-o, era um dos que mais e melhor o conheceu neste interessante capítulo da chamada vida oculta. Um capítulo em que, por pouco que se aprofunde, surge já o Jesus do futuro. A nula informação dos Evangelhos neste sentido privou a humanidade crente de alguns episódios dignos de menção. A história imaginou o Jesus carpinteiro como um operário mais ou menos rotineiro, obrigado pelo morgadio a dedicar-se a um ofício obscuro e aborrecido. Lamentável erro. Embora seja verdade que desde os cinco anos começou a lidar à sombra de seu pai com vigas, ferramentas, aparas e madeira de muito diversa natureza, Jesus tinha a capacidade nata de se identificar e de se fazer uno com o que tinha entre mãos. Neste sentido, a madeira – suponho que não foi por casualidade - constituiu durante anos um íntimo e gratificante modo de se exprimir e de exprimir o que pulsava no seu sensível coração. Jesus encontrou a cada passo deste belo ofício – desde a simples tala
aos mais belos acabamentos – um desafio a si mesmo. Foi e não foi um artesão que trabalhava por encomenda. Fazia o que lhe pediam, mas o que muitos poucos souberam é que em cada banco, em cada arca, em cada jugo, em cada porta ou cabo de enxada que rematava ficava um momento da sua alma. O Jesus ebanista e o Jesus fabricante de pesadas vigas para terraços acariciava a madeira, respirava ao ritmo da serra e da garlopa, inspirava ao mesmo tempo que cortava e escutava o ruído das goivas. Sabia que a madeira tem coração e, consequentemente, falava-lhe. Talvez possa parecer uma figura de retórica. Eu não creio. Aquele carpinteiro, pouco a pouco, chegou a descobrir no duro e impermeável roble a natureza de muitos seres humanos: granítico por fora e de fibras longas, rectas e flexíveis, fáceis de manejar. E da nogueira aprendeu também que, apesar da sua resistência ao machado, o seu coração era uma malha de ouro. Como sucede com outros homens viu na avelaneira uma madeira flexível, tenaz... mas de escassa duração. Aquele coração não dava fogo nem cinza... Talvez imaginasse a oliveira como aquelas pessoas que, torcidas pela dor e pelas misérias, precisam de uma secagem especialmente delicada... Pena que os evangelistas não nos tenham alegrado com aquele carpinteiro que fez da verticalidade da madeira um esperançoso e horizontal caminho! Não, Jesus não foi um aborrecido artesão. Como sucederia com os ofícios que iria desempenhando, foi humilde na aprendizagem e alegre na maturidade. Equilibrou a sua dureza com uma permanente descoberta. Cada nova encomenda era um mistério, um enigma, um desafio... Mercê da magia do seu pensamento, o luto férreo da família de Nazaré foi sublimar-se numa quente recordação. Apesar das dificuldades e do seu aparentemente frustrado grande plano, a serenidade acabou por regressar à casa da Senhora. E foi naquele ano 10 que – segundo confissão de Tiago – tomou uma das suas primeiras e mais importantes decisões. Uma determinação que tocava o seu futuro e o dos seus. Uma resolução que não compartilhou
com sua mãe por que, entre outras razões, dificilmente o teria compreendido. Jesus, consciente da sua grave responsabilidade para com a família de que era pai e principal suporte, decidiu esperar... - Meditara longamente – explicou o irmão. - Aguardaria que todos estivéssemos em condições de nos bastarmos a nós próprios. Então, só então, empreenderia o seu ministério como divulgador da verdade. - Que verdade? - perguntei, simulando total cepticismo. - A sua – replicou, acertadamente. - Pelos dezasseis anos, embora o seu pensamento se encontrasse ainda confuso, tinha uma ideia muito clara do Pai Celestial. Mas não me perguntes como é que tal ideia lançara profundas raízes na sua inteligência. E ninguém foi capaz de o dissuadir: nem mestres, nem sacerdotes, nem amigos, nem sequer Maria... Pobre mãe Maria! Quanto padeceu com os seus silêncios... E esse, Jasão, foi o sonho e o ideal que o susteve durante anos: libertarse dos compromissos familiares para anunciar ao Mundo que existe um Pai que nada tem que ver com o Javé dos nossos antepassados. Dito assim, contemplado à distância de dois mil anos, falta o rigor, e corremos o risco de minimizar o que se passara no coração daquele Homem. Jesus controlou, deteve, guardou o seu mais belo projecto durante mais de doze anos. Se alguém se detém a pensar no que são e no que podem significar doze longos anos de trabalhos, e numa aldeia como Nazaré, não pode deixar de reconhecer que a sua vontade, paciência e saúde mental eram dignas de um colosso. Para dizer a verdade, acabo de cometer uma imprecisão. Não foram doze os anos de espera, mas catorze. Terminados aqueles 4380 dias (doze anos), uma vez que seus irmãos contraíram matrimónio e orientaram as respectivas existências, o Mestre abandonou a Galileia... para viajar. E fê-lo durante dois anos. No total, portanto, o aperfeiçoamento da sua missão exigiu mais de cinco mil dias. Evidentemente, o aparecimento em público do Filho do Homem não foi algo de repentino, nem fruto de uma iluminação súbita, como alguns podem crer. No desenvolvimento do nosso terceiro salto iríamos descobrindo o apaixonante prolegómeno que constituiu o fundamento da sua vida de pregação. Que demolidora lição para os impacientes! Durante aquele longo
período, à excepção de Tiago e do seu amigo íntimo, Jacob, ninguém soube do sonho de Jesus. Mais, ligada à rotina da casa, a Senhora chegou a duvidar do carácter messiânico de seu Filho. Se explorarmos a situação com frieza e detidamente, a atitude da mãe de Jesus é perfeitamente racional. Doze anos é muito tempo, mesmo para a Senhora e as suas convicções patrióticas. Doze anos em que Jesus se negou, sistematicamente, a partilhar os ideais nacionalistas de Maria. Doze anos em que nunca falou como profeta. Doze anos sem efectuar um só prodígio. Doze anos de silêncio, de aparente monotonia na sua oficina... Que podia pensar a desolada mulher? E no entanto, durante aquele tempo, como irei revelando, Jesus passaria pela sua grande metamorfose. O Jesus homem, a meio de uma terrível luta interior, descobriria que, além de irmão, era parte e todo daquela divindade. Algo que o atingiria no seu âmago. Algo que, naturalmente, a Senhora só veio a saber com a Ressurreição... e sem muita clareza. Não era de estranhar, portanto, que o Filho do Homem se refugiasse no silêncio. Nem sequer os seus mais íntimos podiam compreendê-lo e compreender aquilo a que estava destinado. Se alguma vez houve um homem soLItário, esse homem foi Jesus de Nazaré... É conveniente observar que, embora sabendo que não era o Messias, a partir daqueles anos de juventude, Jesus escolheu a atitude de não enfrentar sua mãe. Deixou-a sonhar. Respeitou a sua errada crença e esperou. De que tinham servido os seus desmentidos anteriores? Apenas para avivar a discórdia e, em suma, para atormentar Maria e os poucos familiares que acreditam na complexa história do anjo, incluindo os seus seis irmãos adultos. Porque, se os choques mais azedos foram com sua mãe, com os irmãos também se viu forçado a discorrer e a discutir. Era lógico. Desde meninos que a Senhora os tinha feito participar no grande segredo de família: o irmão mais velho era o Filho da Promessa. E cresceram naquele ambiente, convencidos de que Jesus trazia o sinal do trono de David e lançaria ao mar os invasores. A sua confusão não teve limites, ao verem que o primogénito recusava as armas e a violência. Como era possível que não se sentisse orgulhoso ante o prometido messianismo? Tinha de estar louco para negar que fosse o Messias. Por
isso, feitos os dezasseis anos e depois de adoptar a grande decisão de aguardar a sua hora, o carpinteiro selou os lábios. Só Jacob e Tiago conheceram os seus pensamentos e inquietações. Mas também não o compreenderam. O ano 10 foi também o da entrada de Simão na escola. E no lar levantou-se um novo problema: a educação das irmãs. Que iam fazer com Miriam e Marta? A primeira tinha feito onze anos. A segunda teria sete em Setembro. A Senhora e Jesus discutiram o caso... - Desde o começo concordámos – afirmou Maria sem dissimular o seu agrado. - Também as meninas tinham direito a estudar e a conhecer a Lei. O problema era como o fazer. Não teve de explicar-me o motivo. Naquela sociedade, como creio ter informado, as mulheres eram cidadãos de segunda ordem. Eram educadas para o casamento, o trabalho e a submissão. Deviam fidelidade absoluta ao marido, embora não pudessem exigir o mesmo do esposo. Um dos mandamentos de Javé foi manipulado pelos doutores e exegetas, de forma a que pudesse satisfazer o gosto dos varões. Dizia assim: “Não desejarás a casa do teu próximo, nem a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu asno, nem o seu boi, nem nada quanto lhe pertença”. (Êxodo xx, 17 e Deuteronómio v, 21.) Pois bem, os astutos judeus, dada esta prescrição do Javé bíblico, acharam que a mulher lhes pertencia, tal como um asno, uma vinha ou umas sandálias. Tão certo era que, quando se efectuava a venda de um escravo, a mulher deste era incluída na operação, tal como se assinala no Êxodo (xxI, 3). Num dos escritos rabínicos – Menakhoth, XLIII, proclamava-se com o maior descaramento que todo o homem devia agradecer diariamente a Deus que não o tivesse feito mulher, pagão ou proletário. De um ponto de vista legal, a mulher recebia a consideração de menor de idade, quer dizer, irresponsável. Consequentemente, qualquer acordo, convénio ou negócio que pudesse efectuar ou estabelecer podia ser reprovado pelo marido. Nesse caso, a parte aceitante não tinha direito a reclamar. Eram qualificadas como mentirosas por natureza, não tendo direito a herdar por parte do pai e também pela do esposo. Em boa medida, esta situação degradante encontrava-se justificada pelos sagrados textos
bíblicos: lamentável antologia da misoginia. Raro era o profeta que não tivesse arremessado os seus dardos contra as mulheres... Isaías chamalhes voluptuosas, perversas e ridiculamente vaidosas. Amós qualifica-as de cruéis. Quanto a Jeremias e Ezequiel, para não alongar tão lamentável lista, consideram-nas cheias de duplicidade. Alguns rabis asseguravam que entre os homens que não veriam a Gehena (o inferno) se encontravam os que tivessem tido na terra uma mulher má: teriam cumprido o seu castigo antecipadamente... Este desprezo pela mulher repercutia-se, logicamente, no capítulo religioso e do ensino, para dizer a verdade, se confundiam num todo único. Em relação aos preceitos da Tora, a regra seguinte esclarece a situação: Os homens são obrigados a todas as leis vinculadas a um determinado tempo; as mulheres, pelo contrário, delas estão libertas (uidr, 17 e Sota, 11. 8). Por outras palavras: não estavam sujeitas a recitar o Schema, como também não eram obrigadas a ir em peregrinação a Jerusalém, durante as festas da Páscoa, do Pentecostes ou dos Tabernáculos. Estavam livres de assistir à leitura da lei, habitar nas tendas e agitar o lúlab durante a festa dos Tabernáculos, fazer soar o sopar no dia de Ano Novo, ler a me gillah (o livro de Ester) na festa dos Purim, levar as filactérias ou apresentar riscas verticais nos vestidos. O seu estatuto na legislação religiosa surge perfeitamente configurado numa fórmula que os sacerdotes se encarregavam de repetir sem cessar: Mulheres, escravos [pagãos] e meninos [menores]; a mulher, tal como o escravo não judeu e o menino pequeno, tem sobre ela um homem como dono. É por isso que, do ponto de vista religioso se encontra em inferioridade perante o homem (Ber., IiI, 3 e Sukka, II, 8). Os seus direitos religiosos, efectivamente, tinham sido violenta e injustamente reduzidos. Podiam entrar no grande templo de Jerusalém, sim, mas só no Átrio dos Gentios, entre os pagãos, cambistas, traficantes de todo o género e prostitutas e, no Átrio chamado das Mulheres. Durante a purificação mensal era-lhes terminantemente proibido o acesso ao Templo: por espaço de quarenta dias depois do nascimento de um varão ou oitenta se se tratasse de uma menina. Também o ritual da imolação não era costume entre as mulheres de Israel, e se alguma vez recebiam autorização para sacudir as porções nos sacrifícios ou impor as mãos sobre as cabeças das vítimas, era única
e exclusivamente para as acalmar (Hag., 16 b). E já não era mau que o Deuteronómio (31, 12) exprimisse com clareza que as mulheres e os meninos deviam congregar-se, tal como os homens, perante Javé, para escutarem a sua palavra. Isto pressupunha a possibilidade de entrarem nas sinagogas ainda que, isso sim, separadas por uma grade ou barreira... Chegou até a construir-se uma tribuna especial, “com uma entrada particular” (1). Nem é preciso dizer que fazer uso da palavra nas sinagogas era inconcebível. Uma mulher a ler a palavra de Deus? Teria sido como imaginar um cão a fazer profecias... Em contrapartida, era nos seus ombros que recaía todo o peso do trabalho no lar, tecer ou atender a uma multidão de fainas agrícolas. Eram elas as responsáveis pelo fabrico diário do pão. Deviam triturar o grão nos moinhos caseiros, transportar a masseira com a massa fermentada e proceder à cocção. Um trabalho duro, que exigia considerável força e resistência físicas. E eram as mulheres que, habitualmente, tinham a seu cargo o transporte quotidiano da água, carregando com toda a espécie de vasilhas. Enfim, eram elas que lavavam, cozinhavam, amamentavam, vestiam e limpavam os filhos, costuravam, tratavam da limpeza geral da casa, vigiavam pela sagrada chama, que tinha de arder todo o sábado, serviam à mesa o vinho ao marido e eram, até, obrigadas a lavar-lhe os pés. A sorte das meninas judias, em geral, estava *1 Pai Natal proporcionou-nos a seguinte informação: A sinagoga mesopotâmica de Dura-Europos, descoberta em 1932, não tem tribuna., Segundo Kraeling, nela temos um tipo de sinagoga mais antigo que o da Galileia, construída entre os séculos III e vII,. Watzinger, por seu lado, data da era helenística a sinagoga com tribuna, apoiando-se na descrição do Talmude da sinagoga de Alexandria, chamada diplostoon. Contudo, não chegámos a descobrir uma só sinagoga com tribuna. (N. Do M.)
traçada desde o seu nascimento: eram educadas para servir o macho. Numa primeira etapa, o pai e os irmãos. Depois, a partir dos doze anos e meio, o marido. E como cantavam as mordazes galileias, nunca se sabia o que era pior. Falando das galileias, ainda que estas severas e insultantes leis e tradições rezassem igual para a totalidade do país, na pátria pequena de Jesus nem tudo era assim tão tenebroso para as mulheres. Na prática – de portas para dentro – tanto o homem como a mulher se deixavam guiar pelo senso comum e, naturalmente, pelo
amor. Só os muito ortodoxos mantinham aquelas diferenças, com o consequente repúdio e as justificadas troças do resto da população. À hora da quotidiana e implacável realidade, a mulher – como sempre – pela sua intuição, experiência ou bondade, era a que aconselhava e dispunha. Nalgumas das casas que cheguei a visitar observei nas paredes, à maneira dos nossos quadros, tábuas policromadas com inscrições como estas: Ditoso o marido de uma boa mulher: o número dos seus dias será duplo. A mulher de valor é uma fortuna. Os que temem o Senhor tê-laão. E, seja rico seja pobre, o seu coração será feliz. A graça da mulher é o gozo do marido. O seu saber dá-lhe vigor aos ossos. Um dom de Deus é a mulher calada e não tem preço a discreta. E não tem preço a mulher casta. Sol que sobe às alturas do Senhor é a beleza de uma boa mulher numa casa em ordem. Boa mulher é boa herança. Não dês saída à água, nem à mulher má liberdade de falar. A Senhora, pela educação recebida na sua infância e juventude, pelo seu arraigado respeito à liberdade de ideias e crenças e pelas circunstâncias relativamente cómodas da sua vida numa Galileia tolerante e liberal, era um belo exemplo do que hoje se conhece como feminista. Nunca a vi sair à rua com o rosto coberto, tal como estabelecia a Lei, ou ruborizar-se por um vizinho ou um estranho poder dirigir-lhe a palavra. Cumpria o estabelecido na hora de acorrer aos serviços da sinagoga mas, naturalmente, não estava de acordo com o sistema,. E sentiu-se feliz e recompensada quando seu Filho, contra toda a tradição, admitiu a seu lado um grupo de mulheres que, como os discípulos, o acompanharam em toda a sua vida de pregação. Por isso, ao levantarse o difícil problema da educação de suas filhas Miriam e Marta, não hesitou um instante: Seriam instruídas na Tora... pública ou secretamente. Nem sequer à liberal Galileia tinha chegado ainda o perverso costume grego e romano, de admitir nas escolas as mulheres. Intrigado, mostrei interesse pelo sentido da palavra pública. Que quisera dizer a impulsiva Maria com instruir suas filhas de forma pública.
- Exactamente o que estás a pensar... - respondeu a Senhora. - Tentar que fossem admitidas na sinagoga... Miriam acompanhou as suas palavras com indulgência. - Falei com Jesus e, apesar dos seus sensatos argumentos, caí numa daquelas crises de teimosia. Porque não dar o passo? Os argumentos do jovem cabeça-de-casal não podiam ser outros senão os da triste realidade: Não era o habitual. Mas a mulher, compreendendo que a justiça lhe assistia, foi animando o Filho. E um belo dia apresentaram-se perante o hazan, o chefe da escola-sinagoga. Não quis interrompê-la. Tratava-se, sem dúvida, do saduceu. - Conversámos, discutimos, e, como é evidente, brigámos. Aquela víbora... Tinha acertado. E Maria moveu-se, inquieta, na esteira. “...Aquela cobra torceu-se de riso ao saber das nossas pretensões. Antes morto, sentenciou, que violar a lei de Moisés. Violar a lei! Desavergonhado! Se esta aldeia falasse... Era o momento esperado. Ao mencionar a Lei, eu mesma lha recordei. E disse-lhe o que reza a Tora. Escuta e diz-me se não tinha razão... Maria era imprevisível. E, assim, fui todo ouvidos. “...Moisés pôs a lei por escrito e deu-a aos sacerdotes... E deu-lhes esta ordem: “De sete em sete anos, tempo fixado pelo ano da Remissão, na festa das Tendas, quando todo Israel acorre, para ver o rosto de Javé, teu Deus, ao lugar escolhido por Ele, lerás esta lei aos ouvidos de todo Israel. Congrega o povo, homens, mulheres e crianças, e ao forasteiro que vive nas tuas cidades, para que ouçam, aprendam a temer Javé, vosso Deus, e cuidem de pôr em prática todas as palavras desta lei. E seus filhos, que ainda não a conheçam, a ouvirão e aprenderão a temer. Javé, nosso Deus, todos os dias que vivais no solo de que vais tomar posse ao passar o Jordão”. Mais que o conteúdo daquela passagem do Deuteronómio o que me impressionou foi o facto de conhecer a Tora. Talvez, como outras mulheres, tivesse sido secretamente instruída em sua casa.
- E, agora, diz-me: encerravam justiça as minhas palavras? Concordei, como era evidente. - Pois bem, à medida que recitava a letra santa, o grande velhaco, que Deus confunda, foi mudando de cor. E do branco passou ao vermelho e depois ao verde. Alguma coisa tramava. Meu Filho, conhecendo as suas maquinações, fez-me um sinal para que acabasse o discurso. Mas Maria, a das pombas, não é mulher a quem possam impor um injusto silêncio. Aquele saduceu iria ouvir-me até ao fim. E ao concluir, dirigindo-se a Jesus, com a língua entaramelada pela ira, balbuciou: “Tu e as tuas ideias irreverentes!... Mais valera que procurasses marido para esta viúva sem tento na língua!” A partir desse momento, aquele ser venenoso nem sequer olhou para mim. As minhas possíveis culpas caíram nas costas de Jesus. E, invocando a palavra do Divino, acometeu de novo: “Muitos tombaram ao fio da espada, mas não tantos quantos os que caíram pela língua. Jugo mal preso é a mulher má...” E Jesus, uma vez que ele vazara a sua peçonha, replicou-lhe com a sabedoria do Eclesiastes: “Três espécies de gente odeia minha alma e a sua vida de indignação me enche: pobre altaneiro, rico mentiroso e velho adúltero, falho de inteligência.” Deus bendito, o saduceu (altaneiro, mentiroso e adúltero) ficou lívido. E lançando fel e fogo pelos olhos arremeteu contra meu Filho: “Quem lhe ensinou a Lei? Quem cometeu o sacrilégio de abrir a santidade da Tora a esta pecadora? Foste tu, messias da madeira? Sabes que poderia expulsar-te da sinagoga?” Mas Jesus, sorrindo com valentia, disse-lhe algo que então, com o chamariz do Messias Libertador no meu coração, interpretei de forma errada: “Mede bem as tuas palavras, Ismael. Também eu, o último, me desvelei, como quem rebusca atrás dos vindimadores. Pela bênção do Senhor me apressei e como vindimador enchi o lagar. Olha que não é só para mim que me canso, mas sim para todos os que procuram a instrução. Deixa esta viúva com a pena da sua viuvez e não esqueças o que reza a lei que tanto defendes: o coração obstinado fica carregado de fadigas. E há quem se esgote e se apresse em benefício da santidade de um livro, chegando tarde à sua própria santidade. Se para procurar a entrada da justiça na sinagoga pretendes a minha expulsão da assembleia, não estarás a condenar o justo?”
“Justo? Atreves-te a proclamar-te Justo?” O saduceu, fora de si, tê-loia fulminado com o olhar. E quando Jesus se preparava para responder explodiu em lamentos hipócritas: “Adula o teu filho e dar-te-á surpresas! Folga com ele e causar-te-á pesares! Porque tive eu de te instruir? Esqueceste quem te ensinou? És tu mais justo que o que distribui a justiça?” Desta vez, meu Filho não permitiu que lhe selasse os lábios. “Não esqueci. Mas não teria vindo da tua mão, se não fosse por expresso desejo de meu Pai...” - Ismael – esclareceu Maria, sem necessidade – confundiu as palavras. José, teu pai, era um homem sem duplicidade, mas brando. Deu-te liberdade em excesso e é este o resultado: um filho libertino. Está escrito: “o que instrui seu filho, atacou Jesus, fará ciumento o seu inimigo. E ante os seus amigos sentir-se-á contente”. Quanto aos meus pecados, não esqueças que os rebentos dos ímpios não têm muitos ramos... E diz-me, acaso as vês neste messias de madeira? “Como te atreves a chamar-me ímpio?”, vomitou o sacerdote. “Eu sou a custódia da lei... “O que guarda a lei”, desarmou-o Jesus, “controla as suas ideias.” “As minhas ideias, jovenzinho ingrato e presunçoso”, clamou o hazan atabalhoadamente, “nascem da Lei. As tuas, para tua perdição, morrem na Lei. Sempre te exprimiste como um tolo e só os tolos consolarás. Mas não te enganes: eu não sou assim.” “Ismael”, disse Jesus com uma paciência e doçura que me espantaram, “tu, agora, tens o coração na boca. E eu, um dia, ensinarei o contrário, que o coração seja a boca dos sábios.” “Algum dia?... Primeiro, terás de aprender a humildade. E, mesmo assim, quem escutará um esfarrapado carpinteiro?” Jasão, tive de me conter. Ter-lhe-ia arrancado os olhos... Mas o Filho do Homem começava a brilhar com luz própria. E teve a resposta merecida: “Quem é estimado na pobreza, quanto mais o não será na riqueza!” “Ah, mas tu serás rico!?”, troçou o saduceu. Meu Filho voltou a sorrir-lhe. E apontando com o dedo os céus, tentou esclarecer a sua ideia de “riqueza”. Mas a víbora era cega.
“A minha riqueza, Ismael, é fazer a vontade do Pai. Quanto maior é a minha fé nEle, maior será o meu crédito na Terra... E quanto a aprender a humildade, essa, amigo meu, não se aprende: nasce-se ou não se nasce com ela.” “Diz a Escritura: exalta-te com moderação.” A censura do sacerdote não fez mossa em Jesus. “E diz também!”, replicou-lhe, de imediato, “avalia-te pelo que vales. Porque, ao que peca contra si mesmo, quem o justificará? Quem apreciará o que despreza a sua vida?” “E tu, infeliz, em que podes avaliar-te?” Indignada, não pude conterme. E fui eu quem lhe deu a devida réplica: “É avaliado pelo amor que guarda e concede. Podes tu dizer o mesmo, que só ganhaste a amizade dos sem-amor?” Jesus procurou acalmar-me. Mas, furiosa, atirei-lhe à cara o que todos pensavam e muito poucos se atreviam a declarar: “A tua boca amarga, longe de multiplicar amigos, só sabe diminuí-los. O teu poder é o do medo. Sentas-te às mesas das pessoas desta aldeia, mas nunca abriste a tua bolsa perante a adversidade dos outros. Só tu te avalias, confundindo o brilho do luxo com o beneplácito divino. Será que não sabes que o coração modela o rosto do homem? Pois bem, olha-te e julga...” As minhas palavras, reconheço-o, foram desapiedadas. E Jesus, puxando por mim, obrigou-me a regressar a casa. A partir daquela disputa, Ismael, o Saduceu, não parou de intrigar para nos perder. E minhas filhas tiveram de ser instruídas secretamente. Tiago e Jesus, por vezes, quando o trabalho lho permitia, foram os mestres. Jesus de Nazaré mestre. Como é natural, não resisti à tentação e quis conhecer as características e o estilo de tão singular professor. Houve unanimidade. O velho e difundido lema dos hazens judeus – odeia o seu filho o que dá paz à vara - foi fulminantemente reprovado pelo primogénito. - A vara de avelaneira – repetia aos que não partilhavam o seu método pedagógico – pode empunhá-la quem quer que seja. A da paciência só os autênticos professores. Os seus ensinamentos a Miriam e Marta, e por extensão a todos os
irmãos, tiveram base comum, as Escrituras. Assim estava fixado pela tradição e Jesus, sempre respeitoso, não quis afastar-se delas. E embora a sabedoria fosse a própria Tora, o jovem mestre procurava alternar as repetitivas recitações dos livros sagrados com incursões às ciências, como a Geografia, a Matemática, a Astronomia, a História, para citar alguns modelos. Disciplinas que, naquele tempo, não tinham nada a ver com a investigação. Pelo menos para os ortodoxos da Lei. O Talmude regista com precisão: Não faças objecto das tuas investigações o que é demasiado difícil. Não sondes o que está oculto. Jesus, como se disse, não era desta opinião. As suas constantes e inquietas perguntas revelaram-no como um curioso ou, se se prefere, como um investigador nato. Chegado a este extremo, é bom que se revele uma coisa que, em minha opinião, tem um grande interesse. Os ensinamentos do futuro Filho do Homem a suas irmãs e irmãos põem a claro que pelos seus dezasseis anos não tinha consciência da sua natureza divina. De contrário, porque consideraria a Bíblia como fonte de toda a sabedoria? Para quê ensinar-lhes que seria preciso viver quinhentos anos para percorrer a distância da Terra ao céu que está imediatamente por cima de nós? Para quê dizer-lhes que aquele mesmo intervalo separa aquele céu do seguinte e que aquela é a distância entre as extremidades de todo o céu, atravessado na sua espessura? Se Jesus dispusesse da sua memória divina – as palavras continuam a ser uma limitação – para que iria ensinar-Lhes que o número de céus é de sete? A razão é óbvia. O seu combate interior não tinha terminado. Ele pensava como homem. E como tal aprendera que existem sete céus: o Pentateuco – diziam os rabis -, serve-se de sete palavras diferentes para se referir ao céu. Consequentemente – ensinavam os hazans -, o número de céus é de sete. (Paulo de Tarso alude àquele sétimo céu.) Se aquele mestre chamado Jesus tivesse consciência da sua origem divina, para que iria afirmar que a Terra, pela mesma razão, era formada por sete camadas sobrepostas? (Hoje sabemos que os antigos eruditos de Israel não se encontravam assim tão desencaminhados nas suas apreciações. Alguns cabalistas dividem até os três elementos em SI-AL-SI-MA-NI-FE. ) - Ele ensinou-nos o que reza a tradição em redor da criação do mundo. Mas
tinha as suas dúvidas... Miriam foi sincera. Aquela tradição, recolhida no escrito rabínico Yoma, LIV, 6, diz que no Templo de Jerusalém se via a pedra que Javé lançou ao mar primitivo, com a finalidade de que a terra se fosse formando à sua volta. ... Disse-nos que aquela era a crença mais espalhada e que devíamos considerá-la e conhecê-la, embora suspeitasse de que pudesse haver outra explicação mais lógica. - E chegou a exprimi-la? - interroguei-a, com grande curiosidade. - Não. Meu irmão não era como os outros mestres. Quando não sabia uma coisa confessava-o abertamente. E aquilo não tinha resposta para Ele. Também lhes falou da misteriosa linha que rodeia o Universo. - Efectivamente – prosseguiu a irmã mais velha -, a que separa a luz das trevas. Dela fala o profeta Isaías, quando diz: “Lançará sobre ela Javé as cordas da confusão e o nível do vazio”. (Isaías XXXIV, 11) No capítulo da Geografia, Jesus chegou onde pôde. Os conhecimentos da sociedade judaica eram mais românticos e nacionalistas que científicos. Os especialistas acreditavam que o mundo era um plano circular. (Crença baseada também na Bíblia: Isaías, XI, 22.) E que todo ele se encontrava cercado de água. (Eroub, XXII, b.) E Deus como testemunha o Livro dos Provérbios (VIII, 26), senta-se neste círculo, traçado por ele próprio. Logicamente, Israel ocupava o centro. E muitos rabis designavam o resto do mundo conhecido como os países do mar. - Ele transmitiu-nos então o que todos acreditavam: que a nossa nação era banhada por sete mares: o Grande [Mediterrâneo], o yam [actual mar de Tiberíades], a Samoconita [o lago Hule], o Salado ou mar de Sodoma, o mar de Aco [golfo de Aquaba], o Schelyath e o Apameu (muito provavelmente, referia-se a dois pequenos lagos, já desaparecidos, situados em terras de Idumeia e aos quais alude Diodoro de Sicília.] Tomando como referência os textos bíblicos e o que aprendera das caravanas e viajantes, Jesus atreveu-se a vaticinar que a Terra era muito maior do que aquilo que oficialmente se acreditava. E que o número de montes, rios, lagos e animais ia mais além do que a Escritura enumera. Mas também os aconselhou a serem prudentes ao
falarem do assunto aos seus amigos e companheiros de Nazaré. A credibilidade do carpinteiro entre as forças vivas da aldeia não era das maiores... - Ao estudar o mundo dos animais – disse Miriam com nostalgia -, o nosso querido Irmão falou muito, elogiando a sabedoria de seu Pai dos Céus. E quase em segredo comunicou-nos que Ele não acreditava muito na divisão sagrada de animais puros e impuros,. E disse que, por exemplo, a lagosta e outras criaturas com patas que habitam no mar e que o livro chama impuras não podiam sê-lo. Em todo o caso, declarou, dependerá do tempo que mediar entre a captura e o seu consumo. (Acertadíssimo veredicto do jovem mestre de Nazaré. Num lugar como o deserto do Sinai, com temperaturas que podiam ultrapassar os quarenta graus centígrados, a conservação do marisco era extremamente duvidosa, podendo prejudicar a saúde do povo eleito. Daí que, com astuta visão sanitária, Javé os incluísse entre os animais que não deviam ser destinados ao consumo.) “... E contava-nos histórias. Ao rogar-lhe que se recordasse, Miriam fitou sua mãe. E a Senhora, sem hesitar, recordou-lhe a do burro. - Sempre que a incluía nas suas lições – acrescentou Maria com regozijo -, os mais pequenos acabavam por fugir para a rua à procura de um burro. A fábula em questão era a seguinte: “Um dia, o asno acorreu à presença de Deus e apresentou as suas queixas. “Não trabalharei para o homem, dissera, se não receber uma justa compensação”. E ameaçou propagar a sua espécie se o Divino não recompensasse o seu duro labor com um salário justo. E Deus disse-lhe que satisfaria os seus desejos quando a sua urina formasse uma corrente capaz de mover um moinho e os seus excrementos tivessem a fragrância das flores. Daí vem que, desde então, o burro tenha o costume de cheirar as fezes e urinar muito tempo.” - E regressavam – sublinhou a mãe – com os olhos brilhantes, admirados da precisão de Jesus. E meu Filho divertia-se muito mais que os seus irmãos. - Quando se referia aos cães – recordou Miriam – meu Irmão
incomodava-se... Ele tinha um na horta e gostava dele. Por isso não aceitava que se fizessem amuletos com os seus olhos, dentes e língua. Punha-o fora de si... O aborrecimento daquele grande amigo dos animais era justificado. Entre os supersticiosos judeus havia a crença generalizada que garantia que colocando-se a língua de um cão debaixo do dedo grande do pé, no interior do calçado, pode evitar-se que os cães ladrem,. Outros, com aquele mesmo fim, confeccionavam amuletos com os olhos de um cão preto. E se alguém obtinha os dentes de um cão raivoso que tivesse mordido um homem ou uma mulher e, uma vez atados com couro, os suspendesse do ombro, podia passear com toda a paz entre uma matilha de cães raivosos. Naturalmente, nem todos eram tão incautos... Como professor de matemáticas, Jesus não foi além do estritamente necessário. Também não eram precisos grandes conhecimentos para a vida quotidiana numa aldeia como Nazaré: números, operações rotineiras e elementares, pesos e medidas e um pouco de geometria, basicamente dirigida para a agrimensura ou medição das terras. - Era curioso – disse Miriam, quase como se falasse para consigo. Recordo muito bem os olhos de Jesus quando tocávamos no mundo dos números. Iluminavam-se. Neles flutuava o amarelo da chama... Todos sabíamos que o entusiasmavam. Porém, nunca quis aprofundá-los. Chamava-lhes a correspondência secreta de seu Pai dos Céus. ,Que quereria dizer? Calei-me, simulando que o ignorava. Mas quem isto escreve compreendia já naquele momento que o Mestre dominava também o prodigioso universo da Cabala. Possivelmente, naqueles anos de juventude, foram-lhe desvendados os primeiros mistérios. E com o decorrer do tempo, aquela secreta inclinação do Filho do Homem chegaria a converter-se numa paixão e fonte de sublimes conhecimentos esotéricos,. Foi uma pena – sempre o lamentei – não ter conhecido e interrogado o enigmático professor de matemática vindo de Damasco, que um belo dia chegou à aldeia... Porém, ao fim e ao cabo, o que importava eram os resultados. E esses” - sugestivos – seriam descobertos no “terceiro salto”, (1). Jesus preocupar-se-ia igualmente com outro capítulo, vital para o
futuro bom desenvolvimento dos seus: os idiomas. O convívio com os caravaneiros influiu nesta louvável e universal visão do Galileu. Como em dezenas de costumes do fechado círculo social judeu, o jovem Jesus não compartilhava a obsessão dos sábios de Israel em levantarem obstáculos ao progresso. Neste caso, tal modernidade tinha um nome concreto: o grego. O que ensina seu filho, diz-se em Sota, IX,14, e em Antiguidades Judaicas (xx, 11), de Josefo, “é maldito, tal como o que come porco,. O hebreu ou leshon ha kodesh, a língua dos sábios e da santidade desde que as Escrituras foram redigidas nessa língua, acabou por ser utilizada fundamentalmente nos ofícios religiosos, nas preces, nos ensinamentos dos doutores da lei e nas citações de natureza bíblica que podiam vir a propósito na linguagem diária e coloquial. Qualquer coisa como o latim escolástico e litúrgico na Idade Média e na actualidade, respectivamente, e que, para dizer a verdade, só os eruditos usam. A imensa maioria do povo judeu falava o aramaico. De facto, nas sinagogas existia quase sempre um targoman ou tradutor, encarregue de dar a compreender o hebreu das Escrituras às pessoas que não o entendiam ou o dominavam com dificuldade. O galalaico ocidental – aramaico falado por Jesus e pelos seus – era mais cerrado que o habitualmente falado no Sul de Israel. Embora a comparação não seja exacta seria um pouco como o inglês de Oxford (Judeia) e o do Texas (Galileia). *1 Uma das especialidades”, singularmente reconhecida, respeitada e admirada na sociedade do tempo de Jesus era a do cálculo matemático aplicado à Bíblia. Estes peritos eram chamados soferim ou contadores. Nos seus estudos alcançaram resultados que hoje só seriam viáveis com os computadores. Por exemplo: chegaram a contabilizar as letras de todos os textos sagrados, em rigorosa ordem canónica descobrindo que o vocábulo que ocupava justa e misteriosamente o centro exacto do Antigo Testamento era o verbo buscar. E os numerólogos e cabalistas” da época interpretaram-no, com razão, de mil maneiras. Estas matemáticas esotéricas – convertendo as letras em números e vice-versa – fariam de Moisés, suposto autor do Pentateuco, um “iniciado” capaz da obra mais faraónica: escrever a lei em duas leituras,. Daquele interessante ângulo, a palavra de Javé nos escritos bíblicos encerrava um significado oculto, só acessível aos rabis privilegiados. Segundo parece, visto assim, o Pentateuco viria a ser um documento cifrado,, cheio de segredos cosmológicos, metafísicos e proféticos. Muitos dos escribas da época do Filho do Homem eram depositários deste conhecimento esotérico ao qual,
como disse, Jesus não foi alheio. (N. Do M.)
Para o carpinteiro de Nazaré era óbvio que um homem que não dominasse a língua internacional do seu tempo, o grego, era um ser limitado: lamentável e absurdamente limitado. E deu especial ênfase a que seus irmãos o conhecessem. Este, sem dúvida, foi outro dos grandes triunfos daquele mestre de dezasseis anos. Tinha-o visto em José, seu pai na terra: os seus negócios e viagens exigiram-lhe que o aprendesse. Percebeu-o desde o primeiro instante nos viajantes que chegavam à Cidade Santa e à própria Nazaré. Tinha-o presente em Maria, sua mãe. E apesar da oposição dos cegos rabis, preclaros doutores da lei tinhamse visto obrigados a procurar a língua de Alexandre Magno. Raro era o comerciante que não a falava. As importações e exportações, as viagens e o permanente intercâmbio cultural dela tinham feito uma ajuda imprescindível num mundo dominado por Roma e pela Grécia. Era, isso sim, um grego simplificado (1), por vezes portuário, com altos índices de degenerescência linguística, proveniente dos quatro pontos cardeais. Com umas centenas de vocábulos, a eliminação de termos difíceis e deixando de lado as particularidades das declinações e conjugações era possível o entendimento com um funcionário egípcio, um notário de Chipre, um curador da Mesopotâmia, um comerciante de vinhos e de madeiras de Tessalonica, um poeta de Roma, um vendedor de papiros mágicos de Éfeso ou um guia de caravanas da meseta da Anatólia. Jesus não falava o grego de Platão ou dos imortais trágicos. Também não precisava. O que manejava era bastante para que a sua palavra chegasse clara e sem erros aos ouvidos do procurador romano, do centurião de Nahum que solicitou a cura de um dos seus servos ou dos muitos gregos e pagãos que tiveram a fortuna de se cruzarem no seu caminho. É hoje paradoxal que determinados exegetas e estudiosos das Escrituras neguem o bilinguismo do Mestre e, no entanto, lhes pareça natural que o seu suposto representante na Terra se dirija às massas em diferentes idiomas. Como estão enganados em relação à figura e à inteligência daquele Homem! *1 Os estudos de Carrez neste aspecto são muito elucidativos. Antes de
Deissmann, no século xIx, o grego bíblico surgia como uma língua à parte. A descoberta de documentos pertencentes à língua comum, em especial papiros gregos, demonstrou que os autores da tradução grega do Antigo Testamento, os famosos Setenta”, e os do Novo Testamento não fizeram mais do que aproveitar a língua comum na redacção dos seus escritos. Esta língua comum” derivou, por sua vez, da ática, convertendo-se, desde as conquistas de Alexandre Magno (356-325) no idioma internacional. Mercê de Alexandre, o grego falou-se de Atenas ao Éfeso, passando pelo Egipto, Antioquia, Pérgamo e o deserto de Palmira. Ao formar-se esta língua comum deu-se uma fusão dos dialectos, proporcionando-Lhe um carácter autenticamente helenístico. Era a língua de todas as classes sociais, tornando-se difícil a distinção entre a culta e a vulgar. Naquele tempo, apresentava duas características, derivadas da sua própria situação: era um compromisso” entre a língua que foi na sua origem a mais poderosa – a ática – e os restantes dialectos. Em segundo lugar, numa consequência lógica, viu-se forçada a admitir numerosos rodeios e modificações no estilo, sintaxe e vocabulário. As culturas submetidas à influência grega reagiram com esta natural vingança”. E assim foram aparecendo no grego comum ou internacional – o que Jesus falou – todo o género de semitismos e latinismos. Entre os primeiros têm de se destacar os hebraísmos”, arameismos” e septuagintismos” (conceito que designa o estilo dos Setenta,). (N. Do M.)
Mas, em animada e instrutiva conversa com as mulheres, alguma coisa tinha ficado no ar. Alguma coisa que no nosso tempo poderia parecer absurdo e, mesmo, irreverente. No entanto, naquelas circunstâncias, numa sociedade que abençoava e louvava a família como um bem nascido do céu e, principalmente, tendo em conta que a realidade de Jesus de hoje não era entendida nem sequer por sua mãe, teria sido normal e, como exprimira o saduceu, até desejável. Refiro-me, claro está, à possibilidade de a Senhora poder contrair segundas núpcias. Insisto com todo o respeito de que sou capaz: hoje, sabendo o que sabemos, e com uma imagem tão completa de Maria, a hipótese pode soar blasfema. No entanto, ao expor-lhe a ideia, a das pombas, com a sua habitual sinceridade, disse-me, muito sensatamente: - Voltar a casar-me? - E riu com gosto – Não te mentirei, Jasão. Houve um tempo, quando eles eram pequenos, que pensei nisso. Nunca me assustou o trabalho. Mas os homens (e soube que mais de um me mirava com bons olhos), pobrezinhos, são assustadiços como pombas. O peso de uma família tão numerosa foi decisivo. Quem teria a coragem de trazer o seu dote a uma casa assim? Não, amigo, essa possibilidade
estava nas mãos de Deus, bendito seja o seu nome, e bem vês... O raciocínio era correcto. Maria enviuvou quando contava vinte e oito anos de idade. À parte o problema económico – fundamental naquela e em todas as épocas -, ainda que a sua beleza não se tivesse apagado, era já uma mulher velha. Não esqueçamos que a esperança média de vida há dois mil anos, na Palestina, oscilava à volta dos quarenta anos para o varão e pouco mais para a mulher. E embora ela não o dissesse, havia outro obstáculo. Um impedimento que, em geral, os homens costumam valorizar em extremo. A Senhora, viva por natureza, de uma inteligência que se adivinhava a cada olhar. Educada muito acima do habitual entre as hebreias, necessitaria a seu lado de um homem de características idênticas ou semelhantes. E a verdade é que em Nazaré não abundavam. José fora uma excepção. Eu diria que uma providencial excepção. Aquela beleza de alma, a sua liberal concepção da vida e o fortíssimo temperamento singularizavam-na de tal forma que a maioria dos possíveis pretendentes teria ficado eclipsada. Por último, e não menos importante: casara-se por amor. E aquele amor não era fácil de sepultar... Teria sido muito diferente se a Providência não lhes tivesse concedido descendência – situação que, obviamente, não entrava nos planos divinos. A chamada lei do matrimónio vibbum (1) ou do levirato (da palavra levir: *1 Este tipo de matrimónio encontrava-se perfeitamente legislado desde os tempos bíblicos. No extenso tratado sobre as cunhadas (yebamot), a Misná contempla uma infinidade de possibilidades legais, derivadas de uma situação de viuvez sem filhos. “Quando dois irmãos”, dizia a Lei, “moram um junto do outro e um deles morre sem descendência, a mulher do falecido não se casará com um estranho. O seu cunhado irá até ela e a tomará por mulher, e o primogénito que dela tiver terá o nome do irmão morto, para que o seu nome não desapareça de Israel. No caso de o irmão se negar a tomar por mulher sua cunhada, virá esta à porta, aos anciãos, e lhes dirá: “Meu cunhado nega-se a suscitar em Israel o nome de seu irmão, não quer cumprir a sua obrigação de cunhado, tomando-me por mulher.” Os anciãos o mandarão vir e lhe falarão. Se persiste na negativa, sua cunhada se aproximará dele na presença dos anciãos, lhe tirará do pé um sapato e lhe cuspirá na cara, dizendo: “Isto se faz a um homem que não sustenta a casa de seu irmão. E a sua casa será chamada em Israel “a do descalço”. A partir daquele momento, a viúva ficava livre para contrair matrimónio com
qualquer um. Sem ter contraído o matrimónio do levirato ou ter efectuado a cerimónia jalutsá (tirar), a viúva não podia voltar a casar-se. (N. Do M.)
cunhado), estabelecia que, nesta hipótese, a viúva devia casar-se com o irmão do morto. Em primeira instância com o mais velho e, em segundo lugar, com o seguinte em idade. O irmão em quem recaísse esta sagrada obrigação tinha de ter sido gerado pelo mesmo pai e ter vivido, pelo menos um período, contemporaneamente ao falecido. Se a viúva, tinha sucessão, caso de Maria, este género de matrimónio estava proíbido por lei. À medida que fui conhecendo o Homem – se é que existe alguém capaz de chegar ao santuário de uma alma – e aqueles que o rodearam, mais próxima me pareceu a mão da Providência. Tudo naquela família se encontrava traçado e escrito com os fios subtis mas diamantinos de uma Inteligência que o meu juízo de cientista não pode pôr em dúvida. Jesus nasce em primeiro lugar. Como primogénito herda o ofício do pai. E como tal deve sustentar a família. Se o seu nascimento tivesse sido depois, a responsabilidade como novo pai teria ficado invalidada. Mesmo se o Mestre – como pretendem muitos – tivesse sido filho único, a possibilidade de um novo matrimónio de sua mãe poderia ter ganho espacial força. E que dizer da esmagadora experiência colhida naqueles doze anos, desde a morte de José? Aquela Inteligência foi colocá-lo no centro do furacão das dificuldades e apertos económicos. E teve de saber do trabalho e do angustiante viver o dia-a-dia, e da educação, dos sonhos e das misérias alheias. E tudo isto, quero crer, com uma finalidade justa e escrupulosamente medida: ser homem, até às suas últimas consequências. E naquele estudado labirinto que foi a sua vida na Terra, tudo o foi conduzindo – por vezes sem piedade, por vezes gratificantemente – para o seu destino. Como Filho de um Deus imaginou e pensou como um menino, sofreu e revelou-se como um adolescente, trabalhou e angustiou-se como um operário sem fortuna e, finalmente, aceitou, corajoso, o papel de revelador de seu Pai. Quem pode duvidar da experiência humana do Filho do Homem? Porém, estas coisas não foram desvendadas pelos evangelistas. E a humanidade, assim, perdeu quatro dos cinco períodos
que formaram os seus trinta e seis anos de vida... Períodos, como continuarei a narrar, sempre mais apaixonantes. Quando me dispunha a falar do turbulento ano 11, o inesperado aparecimento de Tiago deixou-nos perplexos. Seguiam-no Ruth e Jacob. Maria e Miriam levantaram-se imediatamente. E eu, prudentemente, mantive-me a um dos cantos, junto das ânforas. Os olhos acastanhados de Tiago brilhavam, inquietos, na penumbra. Antes de falar, como se precisasse de tempo para reflectir, subiu à plataforma, pegou numa malga de madeira e, descendo ao piso em que nos encontrávamos, encaminhou-se para o canto onde, casualmente, me pusera. Destapou a grande vasilha e serviu-se de vinho. Ao levá-lo à boca o seu olhar cruzou-se com o meu. Suponho que não fui o único a aperceber-me da gravidade do seu semblante. Ao reparar na minha presença, tossiu nervosamente. Alguma coisa tinha acontecido. Alguma coisa que eu não devia ouvir. Assim, pelo menos, o interpretei. Em silêncio, dirigi-me para a porta principal, trancada. A Senhora, porém, ágil e atenta, saiu-me ao caminho e retendo-me pelo braço, quebrou a embaraçosa situação: - Que aconteceu? - A pergunta, dirigida a Tiago, não obteve resposta, e Maria, apertando-me o antebraço com os dedos, exigiu a minha atenção. - Jasão, que se passa? Porque te vais embora? Não teria sabido que responder-lhe. Mas também não me deu essa oportunidade. Aproximando-se do filho exigiu-lhe uma explicação. Vi-o vacilar. Estranhei aquilo em Tiago. A sua confiança em mim estava fora de causa. Baixou os olhos e logo os levantou, para fixar em mim o seu olhar penetrante. Depois o compreenderia. Aquele nobre coração tentava evitar-me um desgosto. Mas, instado por sua mãe, meteu a mão esquerda na faixa que cingia a túnica dela retirando um pedacito de cerâmica: uma ostraka, e em silêncio foi entregá-lo a Maria. Esta aproximou-o da lanterna que presidia à mesa de pedra e depois de examinar a breve inscrição rabiscada na argila olhou-me, incrédula. Negando com a cabeça, devolveu-o ao filho. - Não acredito... - foi o seu comentário. Intrigado e perplexo assisti então a um lacónico e indecifrável diálogo entre ambos:
- Quem poderia escrever uma coisa assim? - clamou, furiosa. - É a sua letra... - replicou o galileu. - Isso não basta. Será que não sabes que o aborrece? E Maria, acabando com a tensa situação, tirou-lhe a ostraka, entregando-ma. Durante alguns segundos, todos os olhares pousaram neste confundido explorador. Graças a Deus, o meu pulso não tremeu. Lida a mensagem, sem perder a calma, devolvi-a a Maria e julgo que os meus olhos falaram com maior precisão que a minha garganta. Os olhos da Senhora iluminaram-se, radiantes ante a muda confirmação. Porém, ao escutar as minhas palavras, o seu júbilo esmoreceu. - É verdade – declarei, sem rodeios. - Sou amigo de Pilatos... E antes que os outros se manifestassem lancei o que entendi dever declarar: a verdade. As frases mal alinhavadas do caco de cerâmica diziam textualmente: Jasão é um traidor. Traz um salvo-conduto do assassino. - Nunca minto – declarei, aguentando o olhar perplexo de Tiago – Visitei-o em Jerusalém. Bem o sabeis, porque numa das entrevistas fui gentilmente acompanhado por José, o de Arimateia. Ele pode dar um relato completo do que ali se falou... Quanto ao salvo-conduto...E comecei a tirá-lo da bolsa de encerado suspensa da faixa. - Também é verdade. Um murmúrio de desaprovação saiu dos lábios de Miriam e de Ruth. Mas a minha intervenção imediata acalmou-as... relativamente. - Foi solicitado – disse-lhes sem hesitações – com o fim de cumprir a minha missão sem impedimentos. Segundo os meus planos devo en contrar-me com o centurião que solicitou de Jesus a cura do seu servo... - A firmeza das minhas palavras não dava lugar a dúvidas. E acrescentei: - Pelo amor de Deus vos rogo que não me pergunteis qual é a minha missão. - Apoiando-me na confiança da Senhora, acentuei: - Só vossa mãe a conhece. Confiai em mim, como fez Jesus. A clara e intencional alusão ao Mestre foi decisiva. E Maria, com os olhos em lágrimas, abraçou-me, feliz, murmurando-me ao ouvido:
- Obrigado, amigo!... E perdoa a nossa tolice. Jacob, com o seu proverbial sentido da oportunidade, fez a perguntachave: - Quererás dizer de uma vez que diabo aconteceu? Tiago, satisfeito com as minhas explicações, entregou-lhe a misteriosa ostraka, esclarecendo os factos. - João Zebedeu desapareceu. A notícia causou maior impressão que o escrito injurioso. ... Quando Esta e eu voltámos a casa não havia rasto dele. Ou antes – rectificou com desagrado -, sim, deixou um rasto: aquela inscrição. Naqueles instantes, ultrapassado pelos acontecimentos, não fui capaz de descobrir o mistério. Como sabia o discípulo que eu tinha o salvoconduto? Teria sabido por José, o de Arimateia? Fosse como fosse, o certo é que o ódio do Zebedeu por mim fora além de todas as previsões... E o triste facto mergulhou-me em amargas reflexões. - Não compreendo... - disse Maria, traduzindo os nossos pensamentos. - Nem tu, mãe Maria, nem ninguém – confirmou Tiago. - E onde pode ele estar? A pergunta de Miriam ficou sem resposta. O filho mais velho - segundo disse – percorrera a aldeia, mas ninguém soubera informálo. - E que me dizes da víbora? A Senhora, com a sua aguda intuição, acertara. Mas nenhum dos presentes deu crédito à aparentemente absurda sugestão. Por que razão iria visitar Ismael, o Saduceu? Durante alguns momentos, discutiram os vários caminhos que poderia ter seguido o impulsivo João. - Talvez tenha voltado ao yam. Maria recusou a hipótese de Jacob. Que motivo tinha para o fazer e sem sequer os informar previamente?
- E se tivesse sofrido um acidente ou um ataque daqueles malvados? Tiago opôs-se à tese de sua mãe. Se tivesse acontecido uma coisa assim, alguém na aldeia teria dado conta. Além disso, as suas ordens tinham sido claras: Esperar em casa. - Podia ter-se mudado para Séforis. A ideia de Ruth também não foi considerada. Não tinha sentido. Mas, em vista da excitação de que padecia o filho do trovão o que era sensato? Podia ter seguido um qualquer rumo ou a mais louca das decisões. Ter desobedecido a Tiago era uma indicação. Mergulhados naquele enigma, as primeiras pancadas passaram despercebidas. Foi Ruth quem pediu silêncio. Efectivamente, nas traseiras da casa soaram uns toques, como se alguém batesse à porta com um bastão. À pergunta do filho, a Senhora encolheu os ombros, e as pancadas repetiram-se, distantes mas nítidas, segundo uma sequência de três pancadas e silêncio. Aquilo parecia uma contra-senha. Tiago, mais tranquilo, pediu calma. Com passo cauteloso, dirigiu-se à oficina. Fui atrás dele. Aliviou o batente do madeiro que o trancava e entrou na claridade. Até àquele momento não tivera oportunidade de pisar a terceira e última dependência da casa de Nazaré. O galileu, com extremas precauções, parou a meio do pátio rectangular que encerrava a morada pelo flanco norte. De espada em punho esperou nova série de batidas. Quase em frente da porta que acabávamos de deixar para trás abria-se uma modesta cancela de tábuas, fechada com um cordel meio podre. “Era um tanto absurdo” - pensei - “trancar os acessos principal e da oficina quando, com um pontapé, teria sido viável a entrada pelo pátio”. Como na maioria das casas rurais, aquela dependência constituía uma espécie de pátio: numa superfície de sete por cinco metros, a céu aberto, amontoava-se toda a espécie de objectos e trastes velhos que, por conveniência, tinham sido tirados da casa. Um muro de pedra sem estar caiado, com a rocha escorada por argamassa antiga e gasta, fechava a totalidade do curral, elevando-se a um pouco mais de dois metros. Na parede à minha direita (sempre em relação à porta exterior da oficina de carpintaria) alinhavam-se um tear vertical de um metro e
oitenta de altura (agora em evidente desuso), um almofariz de basalto negro e, fazendo corpo com o canto, um forno de tijolo vermelho de um metro de altura. O almofariz ou moinho caseiro, adquirido certamente na alta e vulcânica Galileia, era simples em extremo. A verdade é que já os vira mais luxuosos. A lousa rectangular, de uns sessenta por quarenta centímetros, que fazia de base, estava gasta pelo uso prolongado. Sobre ela repousava a segunda peça, complementar: um pesado cubo de trinta centímetros de lado, que servia para moer o grão. A face superior do referido prisma apresentava um orifício em forma de funil, pelo qual se introduzia o cereal. Para o deslocar, labor nada cómodo, a julgar pelo peso da mole basáltica, fora disposto um delgado mas sólido pau cilíndrico de roble de meio metro de comprimento, perfeitamente ajustado em duas fendas praticadas nos extremos da face superior do cubo. Para a obtenção da farinha era mister arrastar o prisma para cima e para baixo, esfregando ambas as peças. Quantas vezes teria contemplado Jesus a aborrecida mas necessária operação? Talvez ele próprio a tivesse feito em muitas madrugadas... Não pude evitar a emoção... O forno, com claros sinais de não ter sido aceso durante dias ou semanas, parecia uma colmeia de pedra, em tempos primorosamente caiado e agora devorado por estreitas línguas de fuligem, que escapavam como uma estrela negra pela boca em baixo. À minha esquerda, encostada à parede mais curta, descobri uma curiosa construção de madeira. A área, cinco por dois metros, tinha sido aproveitada para construir um pombal. O albergue estava disposto em três andares, meticulosamente fechados com tábuas e com um entrançado de junquilhos, e divididos, por sua vez, em quatro compartimentos ou celas por piso, com as correspondentes portinhas ou gateiras. Maria, a das pombas,... Ali estava a explicação para o apodo que distinguia a Senhora. No alto do pombal e lá dentro dormitavam ou arrulhavam algumas das suas queridas aves. Não muitas, para dizer a verdade. O resto do pátio, pavimentado à base de uma terra suja e batida, apresentava o mesmo ar de abandono. Junto da parede em que se abria a cancela distingui um bebedouro de pedra e um casebre de
madeira, com pés em forma de tesoura. E em frente, separado por um corredor estreito que ia dar ao pombal, um pedaço de terra com três escassos metros de lado que, tempos atrás, podia ter sido uma horta e agora, semeado de talhas, cestos e algumas alfaias agrícolas cheias de ferrugem, quase se convertera numa esterqueira, castigada pelo negro ziguezaguear das moscas. A recente tragédia, como uma muda represália do inanimado, podia adivinhar-se até na triste desordem do local, aquele, naturalmente, não era o estilo da Senhora... A esperada sequência de batidas – três, exactamente – repetiu-se do outro lado da desengonçada portinha, carcomida nos seus nós pela velhice. - Quem é? O imperioso grito de Tiago não obteve resposta. Decidido, deu os três passos que o separavam da cancela, espiando por um dos nós descarnados. Um toque cansado fez tremer novamente o madeiramento. Mas, ao segundo toque, a porta entreabriu-se, chiando. O irmão do Mestre, certo da identidade e das honradas intenções do visitante, disse-lhe que entrasse. Era um ancião de barbas soltas, que pendiam como um salgueiro, quase até à cintura. Ao ver-me, aproximou os lábios do ouvido de Tiago, murmurando-lhe qualquer coisa que, naturalmente, não consegui escutar. O filho da Senhora foi concordando com a cabeça e, terminado o cochichar, formulou uma única pergunta: - Quando? Mas o velho, surdo como o muro que o contemplava, precisou de uma segunda e de uma terceira tentativas. - Mas quando... - vociferou Tiago, em desespero, pondo a boca entre as gaforinas do tal Jairo. E o amigo da família, porque a sua arriscada acção bem merecia a palavra, rogou-lhe de novo que se inclinasse, segredando-lhe uma frase que desta vez apanhei: - Vencida a nona. [Passadas as três da tarde.] Tiago beijou-o em ambas as faces e, imediatamente, o vi desaparecer. Um minuto depois dava a conhecer a notícia que lhe viera trazer o ancião vizinho:
- Segundo parece, aquela víbora tenta ir até ao fim. Um membro do conselho partiu para Séforis, passada a nona, com o fim de solicitar instruções ao tribunal... As duras palavras de Tiago caíram como chumbo derretido. Só a esquilazinha, com a sua candura, se atreveu a perguntar: - Instruções? Acerca de quê? Maria acariciou-lhe o cabelo, aconselhando-a a ficar em silêncio. ...Ao que parece, a lapidação falhada desta manhã humilhou-o, e exige que sejamos castigados. Não houve perguntas. Todos pensavam que o castigo podia ser colectivo. - Quem foi o emissário? A questão suscitada por Jacob encerrava mais importância do que podia parecer. Dependendo de quem e de como se expusesse o pleito, assim a decisão do tribunal podia variar sensivelmente. Naquele caso, Séforis, capital da Baixa Galileia, desfrutava de um dos quatro tribunais de vinte e três juízes em que fora dividido o país desde os tempos do legado Gabino (1). Quase todas as povoações menores – caso de Nazarédispunham também de um pequeno sinédrio, constituído por sete, três ou mesmo, um só juiz. Porém, estes conselhos ou tribunais locais limitavam-se a despachar causas de escassa importância. Quando, como no caso da blasfémia cometida por Tiago, o assunto tinha em si uma mediana gravidade, era transferido para o tribunal imediatamente superior, chegando em muitos casos ao Grande Sinédrio da Cidade Santa. - Jairo falou em Judá. O esclarecimento de Tiago foi acolhido com um espontâneo “maldito!”, que escapou dos lábios de Miriam. O tal Judá, membro do conselho local, era uma espécie de aguazil e verdugo, encarregue das flagelações e braço-direito do saduceu. Um personagem, enfim, mal encarado e tão rasteiro como o seu chefe. (A denominação destes funcionários dos tribunais de justiça – hazzam – tinha o seu equivalente nos hiperetas ou remadores de segunda como lhes chamavam os Gregos, com justa ironia.) - Mas de que nos acusa?
perguntou Maria, que, no fundo, sabia ou podia intuir a resposta. Ninguém se atreveu a pronunciar-se. Blasfémia? Desobediência ao Grande Sinédrio ao violar as normas especiais concedidas na noite de domingo, 9 de Abril? Em qualquer caso, o castigo pelos referidos delitos encontrava-se perfeitamente estabelecido. Com muita sorte, se o tribunal se mostrasse indulgente, Tiago, chefe visível da família e responsável directo pela injúria ao Todo-Poderoso, podia ser expulso da sinagoga com carácter temporário ou perpétuo – excomunhão que encerrava um aspecto vergonhoso -, açoitado, acorrentado ou desterrado, com a consequente perda dos seus bens e propriedades. Se, pelo contrário, os juízes aplicassem a lei com rigor, a sentença era a morte (2). *1 Como Flávio Josefo estabelece em Antiguidades Judaicas (XIV,5), Israel, como província romana, fora descentralizada do poder judicial de Jerusalém em tempos do legado romano Gabino. O Grande Sinédrio da Cidade Santa era o eixo da legalidade judaica. Qualquer coisa como o Supremo Tribunal com competências que abrangiam, principalmente, a religião. Para assuntos de menor gravidade bastava a reunião de vinte e três dos setenta membros que formavam o referido Sinédrio. O resto do país encontrara-se dividido em mais quatro tribunais: Jericó, Séforis, Amat e Gadara. O direito, como nos países regidos pelo Alcorão era eminentemente religioso, fundamentado em três códigos principais: o contido no Livro de Aliança (capítulo xx a asxu), no Deuteronómio (capítulos xxI a xxvi) e uma parte essencial do Levítico, actualizada durante o exílio da Babilónia. Sobre este Corpus juris divini e seus 613 preceitos se teceram centenas de novas normas e de leis que, com o passar dos séculos, seriam recolhidos no Talmude. Sobre esta intrincada rede de textos de jurisprudência, um mandamento-lei, que inspirava todo o Direito judaico: “Sede santos, porque santo sou eu”. (N. Do M.) 2 Dado o carácter sagrado de quase todas as instituições judaicas, o pior dos delitos não podia ser outro senão o de se rebelar contra Deus. E mais prejudicial que esta era o de se declarar igual a Deus (caso de Jesus). Para a sociedade de então, era o equivalente aos actuais crimes contra a segurança do Estado. A condenação era a morte. Neste capítulo se considerava como supremo delito” a idolatria, a blasfémia (mesma – o facto de invocar em vão o nome do Altíssimo), a violação do sábado, a magia e a adivinhação, abster-se de celebrar a Páscoa e não apresentar o filho varão na cerimónia da circuncisão. Vinham depois outras categorias de crimes que, em síntese, se agrupavam da seguinte maneira: atentados contra a vida humana, com uma perfeita e minuciosa distinção entre homicídio voluntário e por imprudência; golpes e feridos, com uma exaustiva subdivisão, de acordo com a gravidade; atentados à família e à moral, com uma interminável casuística (desde a bestialidade à violação de uma filha pelo pai,
passando pelos matrimónios consanguíneos ou a maldição privada ou pública de um filho contra o seu progenitor); danos à propriedade, considerados como crimes quando se tratava de roubo à mão-armada ou com a agravante de ser praticado de noite, e falsificação no peso e trocas nos marcos que delimitavam os campos. Muitos destes delitos podiam trazer a pena capital ou pôr em funcionamento a célebre lei de talião: “olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, contusão por contusão, ferida por ferida e vida por vida,, como rezam o xoda (XXI, 23), o Levítico (XXIV, 19) e o Deuteronómio (XIX, 21). (N. Do M.)
O exemplo do Irmão mais velho, tão recente, não dava lugar a dúvidas... Daí que a família, inquieta, se lançasse num oceano de especulações. E o pessimismo foi-os invadindo até que, vencidos, caíram nu obscuro mutismo. Todos confiavam em Tiago e para ele voltaram os olhos e os corações. O tribunal de Séforis não se reuniria em sessão oficial antes de quinta-feira. Tinham pois uma margem para deliberar e adoptar a resolução que considerassem correcta. A presença do odioso Judá ante o Conselho dos Vinte e Três não era bom augúrio. Mas, mesmo assim, sempre havia a esperança de uma defesa e de uns juízes imparciais. Perante a louca proposta de Jacob de fugir da aldeia, a Senhora e Tiago negaram-se redondamente. Nada tinham que ocultar. Pelo menos, aos olhos dos justos... E o irmão mais velho, depois de afagar a barba, pronunciou-se no sentido de aumentar a vigilância. Como primeira medida – informou os seus – deviam conhecer as acusações de que eram objecto. Para tal, de momento, impunha-se a necessidade de irem até Ismael. Miriam e seu marido protestaram. Mas a Senhora, animosa, deu razão a seu filho. Consumado aquele forçoso e desagradável passo, tempo haveria para seguirem voluntariamente até Séforis e enfrentarem o problema. Jacob e Maria ofereceram-se para acompanhar Tiago. Mas com bom critério, não desejando atiçar os ânimos já exaltados e receando o tempestuoso carácter da mãe, declinou as ofertas. Iria sozinho E todos – reforçou – esperarão o meu regresso em casa. Na ordem ficou a flutuar um nome: “João de Zebedeu”. E A opinião generalizada que a inexplicável fuga do discípulo só causaria novas complicações. Não se enganavam...
Quando faltava meia hora para o ocaso, o voluntarioso Tiago abandonou-nos pela segunda vez. Quem isto escreve viu-se de novo envolvido., num ambiente toldado pelas circunstâncias. Jacob, desanimado, nem sequer fez menção de voltar ao seu posto de vigia no terraço. Permaneceu sentado à beira da plataforma, a observar as mulheres, mergulhado num mar de profundas reflexões. Mas aquelas nuvens negras iam desaparecer dali a pouco mercê – tinha de ser – da forte vontade da Senhora, que não estava disposta a deixar-se dominar pela tristeza e, muito menos a permanecer impassível ante a desolação dos seus. Primeiro, vi-a subir à parte mais alta da casa e lidar com os utensílios de cozinha. Mas, ao reparar na triste cena, largou os pratos e escudelas de madeira com estrépito. Todos voltaram as cabeças, assustados. Secando as mãos com as abas da túnica subiu os degraus, acomodando-se junto da mesa de pedra. Fazendo-me um sinal, exclamou: - Jasão, continuemos!... Olhei-a, atónito. Dali a pouco compreendi. A conversa com aquele curioso, infatigável e por vezes tolo e divertido grego era o melhor remédio para distrair a tristeza. E secundei-a, encantado. No começo desta nova etapa de conversa, nem as filhas nem Jacob demonstraram especial interesse pela narração da Senhora. Ao longo daquele ano 11, tal como no anterior, Jesus, o carpinteiro, continuou com o seu esgotante trabalho na oficina. Cuidava dos irmãos, da sua educação e velava pela segurança da mãe Maria. No fundo, os desacordos com a mãe viam-se equilibrados pelo intenso amor que tinham um pelo outro. - Uma coisa eram as suas ideias e as minhas em relação a Miriam – esclareceu a mulher – e outra, muito diferente, o nosso mútuo afecto. No entanto, esse afecto ia atravessar um novo deserto neste período: o do seu décimo sétimo aniversário. A Senhora, que já me tinha falado do incidente com os zelotas, não lhe concedeu a importância que realmente tinha. A sua atitude era muito humana e desculpável. Para quê aprofundar um episódio tão aborrecido? - Melhor será que o esqueçamos. Vi-me apanhado. O trato com ela e os outros tinha de ser subtilmente
discreto. Não era aconselhável repisar a história da mal conhecida vida oculta do Mestre. E à beira de me resignar, veio Miriam em meu auxílio. - Se este homem tenta averiguar a verdade sobre nosso irmão - declarou com frieza -, é conveniente que também lhe contemos os nossos erros. - O meu erro – rectificou Maria, assumindo a totalidade da culpa. - Não. Teu e também de Tiago e dos varões que fizeram causa comum com as tuas manias... - Manias? A Senhora olhou-a fixamente, irritada. - Desculpa. Não é essa a palavra adequada... - e numa acusação frontal, acrescentou. - Delírios de grandeza! Absurdos alardes de glória! A Senhora, que sabia ouvir as verdades, não teve outro remédio senão reconhecê-lo com humildade. - Comecemos pelo princípio – propus, tentando continuar o nosso diálogo. Jacob, envolvido no tema desde o princípio, tomou a palavra. - Sim, contemos os factos tal como ocorreram e não como gostaríamos que fossem... Assim, soube o que já constava no banco de dados do Pai Natal. A história proporciona interessantes e prolixos dados quanto ao florescente movimento de insurreição contra o invasor romano. Jerusalém e a Judeia foram os primeiros cenários daquela corrente político-religiosa que começava a soprar com força por todo o Israel. Tempo atrás, da seita dos fariseus, que não hesitavam em se proclamarem como os santos e separados, os verdadeiros nacionalistas e depositários do esmagado patriotismo, se separaria o que hoje poderíamos chamar um partido de extrema-esquerda – os zelotas (1) -, fanáticos radicais e violentos. Uma espécie de braço armado do farisaísmo. Algo que hoje, embora com outras motivações, é ampla e tristemente conhecido pela sociedade da Europa, que padece de um terrorismo essencialmente gémeo do dos zelotas. Pois bem, não admitindo senão Deus como único dono e senhor, pretendiam a expulsão e o esmagamento dos pagãos pela força. A diplomacia, o diálogo, a negociação e a paciência não figuravam no seu
vocabulário. E quando digo pagãos incluo todos os gentios, embora, como é evidente, Roma e os seus representantes ocupassem uma especial preferência nos seus objectivos. A 6 da nossa era, quando Jesus tinha doze anos, dera-se já uma grave tentativa de sublevação. Um galileu chamado Judas de Gamala e um fariseu de nome Saduc conseguiram o que parecia impossível: arrastar milhares de judeus contra as legiões romanas. Como era de esperar, fracassaram. Porém, a semente fora lançada. E desde então, os zelotas – cuja tradução era equivalente a zelosos pela lei -, com o apoio de boa parte da população, que os ocultava, alimentava e pagava um imposto revolucionário secreto para a aquisição de equipamentos e de armas, actuaram em guerrilhas, acossando os exércitos e funcionários romanos e cometendo toda a sorte de crimes e de vilezas, em nome da causa. Eram conhecidos também por sicários por causa do sica, um punhal curto e temível que escondiam na roupa e com que matavam os que consideravam traidores, infiéis ou colaboracionistas. O mal, como sempre, é que, justificando-se com supostas traições ao povo e ao Deus de Israel, estes zelotas satisfaziam as suas vinganças pessoais ou as daqueles que diziam simpatizar com eles. E o homem de bem, enfim, viu-se envolto numa atmosfera de medo e de permanente desconfiança. Pois bem esta ameaçadora vaga de levantamento nacional contra o usurpador da Terra Prometida foi aumentando com os anos. E não tardaria, em 70, a desembocar na grande rebelião que mobilizou Roma, com as consequências por todos conhecidas. A Galileia, pelas suas especiais características geográfico-estratégicas e pela sua reconhecida liberalidade social e religiosa foi sempre um reduto muito apreciado pelos zelotas ou bandoleiros como também eram chamados. E ainda que em vida de Jesus não chegassem a alcançar a virulência dos anos imediatamente anteriores ao cerco de Jerusalém por Tito, era inegável que a sua força e presença constituíssem uma realidade para os cidadãos. Inquietante para muitos, esperançosa para outros e perigosa para todos. Entre os seus íntimos – um dia terei de *1 O qualificativo de bandido” e bandoleiro”, com que eram igualmente designados os zelotas, vinha de anos atrás.
Concretamente de 47 antes de Cristo, quando Herodes, o Grande, então governador da Galileia, levou a cabo uma limpeza, dos bandos de salteadores de caminhos que infestavam as montanhas. Muitos destes assaltantes acabariam por se juntar ao movimento guerrilheiro. Daí que Barrabás e os indevidamente chamados ladrões, crucificados com Jesus, fossem designados como bandidos, quando, na realidade, eram zelotas. (N. Do M.)
me referir a isso – o Mestre acolheu Simão, alcunhado o Zelota. Não o esqueçamos. Além disso na Galileia registava-se outro factor que só os historiadores conhecem. Algo que contribuiu extraordinariamente para o irreversível fenómeno do crescimento zelota. Refiro-me à febre de compra de terrenos e propriedades por estrangeiros. Meia Galileia, incluindo as cidades helenizadas, encontrava-se nas mãos de comerciantes gregos, fenícios, romanos e egípcios. Esta vergonha nacional estimulou mais ainda a ferocidade dos guerrilheiros. E aconteceu que no referido ano 11, de acordo com as tácticas nascidas em Jerusalém e na Judeia, alguns dos representantes do braço armado na Galileia começaram a passar a região a pente fino em busca de novos simpatizantes e filiados com os quais pudessem formar e construir novos comandos. E, naturalmente, Nazaré não foi excepção. É curioso, e acho que não o devo ignorar. Através das informações que me proporcionou a família de Jesus, e quase por senso comum, soube que antes de os zelotas chegarem à aldeia, já sabiam quem era o jovem carpinteiro e até onde chegava a sua influência entre a juventude da povoação. Algo de muito normal, por outro lado, se considerarmos que os serviços de informações do referido movimento patriótico se ramificavam até aos cantos mais distantes. Segundo parece, a campanha dos zelosos na Galileia fora um êxito completo. A juventude, em massa, pusera-se a seu lado. Mas ao entrar em Nazaré... - Toda a sua presunção se desmoronou. Jacob, ante o respeitoso e significativo silêncio de Maria, continuou sem rodeios nem meias tintas. Nunca poderei agradecer devidamente o seu amor à verdade. - Encontraram-se com Jesus. Expuseram-lhe os seus ideais, os seus planos, o seu fervor patriótico. E o jovem carpinteiro, meu amigo, soube
escutá-los até ao fim. A verdade é que aquela conversa não era necessária. Todos sabíamos quem eram e o que pretendiam. - E porque escolheram Jesus? - perguntei, simulando não conhecer a razão. - Acho que não era o único inteligente e atento... - Falas com verdade. O Mestre não era o único. Mas sim alguém que, á força de trabalhar, de reflectir, de estudar e de escutar os outros soubera ganhar as simpatias de boa parte dos jovens. A sua palavra e conselho eram apreciados por todos... - Além disso – reforçou Ruth, que não perdia um pormenor -, era o mais forte e o mais bonito... - Bom – recriminou-a Jacob -, falemos com seriedade. Aquela gentalha... A Senhora desviou o olhar para o genro, censurando-lhe o epíteto: - Gentalha?... Por desejarem a liberdade para o nosso povo? Jacob, não muito convencido mas querendo paz, rectificou, contrariado: - Aquela gente sabia desde o primeiro instante que se Jesus e os outros chefes entrassem no partido, muitos os imitariam. E a operação ter-se-ia consumado com uma evidente economia de tempo e de esforço. Enganaram-se, porém. Jesus fez-lhes muitas perguntas e, finalmente, negou-se, por completo, a entrar nas suas fileiras. Observei Maria. As suas feições, marcadas pela lembrança, tinham endurecido. Mas, de momento, continuou calada. - Porquê? Qual foi a sua razão? - Agora, amigo Jasão, é fácil entender e aceitar. Pelo menos, para nós que acreditamos na sua palavra. Então, há dezanove anos, como poderás imaginar, a face da moeda era outra. E Jacob, chegado a este ponto, convidou a sogra a tomar o leme da conversa. Não aceitou. - Não é uma situação fácil para mim – confessou o homem num gesto que o honrava e que tive em consideração. - Devo contar-te tal como aconteceu, com a pesada laje do conhecimento de hoje. Ele, como te dizia, declinou a honra – foram estas as suas palavras -, refugiando-se
na verdade: as suas obrigações familiares estavam acima de qualquer outro compromisso. Não fui capaz de me conter. - Uma honra servir entre os zelotas? A Senhora censurou-me, em silêncio. Jacob sorriu, irónico. E sua mulher, Miriam, recolheu o expressivo gesto, fazendo-o seu com as seguintes palavras: - Meu Irmão não era ignorante... Sabia do poder, das vinganças e da crueldade de tais grupos. Uma negativa seca poderia ter sido fatal para toda a família. Compreendes? Perfeitamente. E no meu foro íntimo louvei a hábil diplomacia do carpinteiro. - A aldeia compreendeu as suas razões. A família, bem sabes, é sagrada. Miriam interrompeu-o. - Tens a certeza? Jacob, como eu, não captou a intenção da esposa. - Tens a certeza – insistiu – de que toda a aldeia o entendeu e respeitou?Um olhar fugaz à Senhora traiu Jacob. - Enfim... - gaguejou – Digamos que a maioria... - A maioria? - atacou de novo a reticente Miriam. E o galileu, encurralado, acabou por reconhecer que metade da juventude foi colocar-se ao lado de Jesus; e outra junto dos zelotas. Aquele deslize relativamente importante do amigo íntimo do Mestre – que acabava de exprimir a sua vontade de narrar toda a verdade – merece um leve reparo: quantos dos escritores sagrados não se deixariam levar nos seus evangelhos por aquela mesma compreensível inércia de suavizar o que não lhes era grato? Para dizer a verdade, Jesus não mentira. Sua mãe e irmãos justificavam a sua atitude, dentro de todos os pontos de vista. Mas imagino – isto não o souberam esclarecer os meus interlocutores – que, além disso, o tímido e incipiente Deus que continuava a germinar no seu íntimo lhe apagou da vontade a hipótese de empunhar as armas para defender o seu povo. No entanto, como disse, a desculpa da família era
perfeita. O que o honrado carpinteiro não podia suspeitar era que a sua decisão pudesse levantar tal reboliço em Nazaré. - Já podes calcular – prosseguiu Jacob – quem se atirou com mais encarniçamento contra o Mestre... - A víbora? Todos riram com a minha espontânea e certeira resposta-pergunta. Ou antes, todos menos Maria. - Durante alguns dias – acrescentou o galileu, com os olhos cheios de surpresa – foi a loucura. Discutiam uns com os outros. Entravam e saíam desta casa e da oficina, vociferando, bradando aos céus e negando e afirmando sem tom nem som. E o saduceu, claro está, juntou-se ao bando dos zelotas, conspirando contra Jesus. Ouvimos tudo, Jasão. O mais benévolo foi cobarde e renegado. E o meu Amigo, que se negava a discutir em público, sofreu o que ninguém pode crer... Naquele relato, fiel à verdade, faltava alguma coisa. Eu sabia. Todos os presentes sabiam. A palavra-chave era Maria. E antes de prosseguir, obedecerei ao impulso que me domina. Farei um parêntese. E fá-lo-ei porque, se for a vontade de Deus que este diário algum dia seja revelado ao mundo, devo avisar os pusilânimes de que a imagem da Senhora, que me preparo para reflectir, vai contra aquela que a tradição tem fomentado, na base de um ideal digno de elogio, mas irreal. Tranquilizado o meu coração continuarei. Efectivamente, Maria tinha muito para dizer nesta turbulenta passagem da vida de seu Filho. Mas, como conseguir que interviesse? Aproveitando uma breve pausa, em que Ruth serviu água ao seu cunhado, lancei-lhe à queima-roupa: - No meu mundo temos sede de Jesus. Não te envergonhes por, nos seus dias, teres sido fiel a ti mesma... Ou será que acreditas que teu Filho não o soube compreender? A esquilazinha, que não captou as minhas palavras na sua totalidade, apressou-se a oferecer-me a vasilha com a água, exclamando, voluntariosa: - No teu mundo têm sede? Toma... bebe. Minha mãe nunca negou uma tigela a um sedento.
O delicioso erro de Ruth teve mais força que mil discursos. E a Senhora, enternecida ante a transparência de sua filha, falou assim: - Acho que, morto meu Filho, pouco importa o que fiz ou não fiz... Tive extremo cuidado em deixar que pensasse o que quisesse. Teria sido árduo e trabalhoso arrancá-la do seu tremendo equívoco. .. Tu sabes, Jasão, porque já uma vez o comentámos. Naquele tempo, as minhas ideias sobre o Messias Libertador eram claras e concisas. Tinha de vir e tirar o meu povo da escravidão. “O Ungido do Senhor”, diz a Escritura, “surgirá no dia de misericórdia e de bênção e usará o seu ceptro para infundir o temor do Senhor aos homens e encaminhá-los para obras de Justiça...” Excelente investigadora dos textos bíblicos que cantavam a esperança messiânica, recordou-nos o capítulo onze de Isaías. ... Devido à presença do Anjo – prosseguiu com certa tristeza – aqueles sentimentos cristalizaram no meu coração. Jesus era o Filho da Promessa. Interrompi-a. Não podia deixar passar a interessante alusão a Gabriel: - Em que momento se referiu o anjo a um Messias Libertador? Olhoume, confundida. Recordando a Anunciação – gravada na sua memória -, enumerou as expressões que, segundo ela, tinham alimentado as suas esperanças: ... “A tua concepção foi ordenada pelo céu... Chamar-lhe-ás Javé salva... E inaugurará o reino dos céus sobre a Terra e entre os homens... Isabel prepara o caminho para a mensagem de libertação que teu Filho proclamará com força e profunda convicção aos homens... Esta casa foi escolhida como morada terrestre desta criança do destino”. E os seus olhos, agora violetas pela amargura, esperaram algum esclarecimento. Quem isto escreve atreveu-se a proporcioná-lo. Para tal, entoei primeiro outra não menos célebre súplica da natureza messiânica, contida nas Escrituras: - Escuta, ó Senhor, põe sobre eles, o filho de David...
E cinge-o de força, que possa destruir os chefes injustos... Que com vara de ferro os aniquile... Que destrua as nações ímpias com o alento da sua boca... E que reúna um povo santo... E ponha as nações pagãs sob o seu jugo... Será rei justo, instruído por Deus... E em seus dias não haverá iniquidade no seu reino... Pois tudo será santo e seu rei o Ungido do Senhor. E logo a seguir perguntei: - Será que Jesus foi um destruidor de chefes injustos? Aniquilou com vara de ferro? Destruiu nações? Será que não houve iniquidade durante a sua vida? Foi tudo santo? Que relação tem isto com a boa nova do anjo? Miriam, surpreendida pelos meus conhecimentos bíblicos, fez de defensora de sua mãe: - Gabriel falou de uma mensagem de libertação para os homens. Concordei, contente pela oportunidade do seu comentário. E uma vez que o Mestre se cansara de insistir naquilo, recordei-lhes algo que não interferia como o seu tempo: - Essa mensagem, filha, que muito poucos compreenderam, nada tem a ver com um Messias Libertador. Não é-fogo nem armas nem guerra nem esplendor humano ou político o que trouxe teu Irmão à Terra. É algo como um correio especial, directamente dos céus... A Senhora agarrou-me as mãos e beijando-as, exclamou, radiante: - Deus te abençoe! Retirei-as logo. Confuso, terminei como pude: - Um correio que, mais ou menos, recorda à humanidade que há um Pai nos céus... O gesto de Maria desorientou-me. E não soube terminar. - Mas então – prosseguiu, com renovado entusiasmo -, como disse Jacob, as coisas não eram assim. Ao conhecer a negativa de meu Filho, passei da surpresa à vergonha e à indignação.
Jesus um traidor? Nada disso. Falei-lhe, expus-lhe as excelências daquele movimento patriótico, desfiz-me em argumentos para que compreendesse... Inútil. De acordo com a sua natural docilidade escutoume até ao fim. Mas, teimoso, negou-se. E chorei amargamente. Cheguei, até, a lembrar-lhe a promessa feita a seu pai e a mim mesma, à vinda de Jerusalém, quando tinha doze anos. Tinha-nos jurado acatamento total e, consequentemente, esta atitude (repelindo a causa nacionalista) era uma grave insubordinação. E assim lho dei a saber. - Que respondeu? - Os seus olhos, tu sabes, falavam por Ele. Olhou-me sem pestanejar. E um calor muito estranho me sufocou. Então, limitou-se a dizer: “Mãe, como podes pensar isso?” Ali mesmo me retratei e lhe pedi perdão. Mas a Senhora não era mulher fácil de convencer. Naqueles dias agitados, um inesperado acontecimento a fez conceber novas esperanças. A desordem na tranquila povoação e as manobras dos zelotas levaram um rico judeu de Caná a intervir no problema. A instância dos guerrilheiros, o tal Isaac, que amontoara uma fortuna concedendo empréstimos aos gentios (1), apresentou-se em Nazaré, propondo uma solução difícil de recusar: ele arcaria com todas as despesas de manutenção da família do carpinteiro se este, em troca, aceitasse pôr-se à frente dos patriotas da povoação. A posição de Jesus perante os seus vizinhos viu-se dramaticamente comprometida. E o cerco apertou-se quando, ao conhecer as intenções de Isaac, sua mãe, seu irmão Tiago e um dos tios – Simão, irmão de Maria, que simpatizava com os zelotas e que algum tempo depois faria parte activa do grupo – voltaram a pressioná-lo para que inaugurasse o seu destino. - A oportunidade – recordou a Senhora – era magnífica. E de comum acordo lhe fizemos ver que ficava agradavelmente liberto das suas obrigações como chefe de família. Jesus, segundo o seu costume, retirou-se para a colina. “Tinha de meditar”, disse, “e conhecer a vontade do Pai”. E eu, Jasão, voltei a viver. Desta vez não podia negarse. Tudo estava do seu lado. A oferta não se repetiria. Meu Filho, por fim, abraçaria a causa nacionalista e pôr-se-ia à frente dos exércitos, libertando o meu povo da opressão dos ímpios. A hora do Filho da Promessa tinha chegado.
Aquela foi outra decisão dolorosa. Jesus teve de recorrer a toda a sua habilidade. O panorama criado devido ao aparecimento dos zelotas não era muito reconfortante: boa parte da aldeia – os jovens em especial – esperava a sua determinação final. A própria família, com a Senhora à cabeça, insistia para que se alistasse num movimento de índole política e reconhecidamente sanguinário. E ele, filho do Homem, teve de manobrar com astúcia, sem perder a bússola da verdade. Tomasse a atitude que tomasse seria igualmente criticado. Soube-o e, pela primeira vez na sua breve existência, actuou como um político. Não tinha sentido falar-lhes do seu futuro, do seu sonho dourado. Assim, depois de informar primeiro os seus, reuniu novamente com o prestamista e os guerrilheiros. E manteve-se nos princípios iniciais: - Não era uma questão de dinheiro, declarou com uma serenidade e cordura que comoveu os interlocutores. A responsabilidade de um bom pai vai além do estritamente económico. *1 Este tipo de prestamista, meio banqueiro meio usurário, era muito frequente nos tempos de Jesus. Eram conhecidos por foeneratores e daneistai e, apesar das proibições bíblicas de emprestar dinheiro a juros, faziam das suas secretamente, em especial com os gentios. A estes, segundo o Deuteronómio (xv, 3 - sim, era lícito emprestar dinheiro a juros. No caso de o prosélito se circuncidar e passar a fazer parte do povo eleito, o credor devia liquidar os juros. A realidade, no entanto, era outra. (N. Do M.) E a Senhora prosseguiu com a satisfação estampada no rosto: - Agora sinto-me orgulhosa de um filho assim. “Nenhuma causa”, disse-lhes abertamente, “pode justificar a minha ausência. Minha mãe viúva e meus oito irmãos precisam do consolo, do carinho e do conselho de um guia do seu mesmo sangue. E o dinheiro, meus amigos, não ajeitará a roupa aos mais pequenos nas noites de Inverno nem consolará a solidão de Maria. Lamento. A solene promessa a meu defunto pai não será quebrada,”. E depois de lhes agradecer as suas atenções retirou-se para a oficina. Desconsolada, assisti, impotente, à sua irrevogável renúncia e, o que foi pior, às críticas e maledicências dos de sempre, com a víbora à cabeça... - Nem todos o criticaram – protestou Miriam. - Sim, querida – reconheceu Maria, resignada -, mas os de sempre traziam veneno. De que serviu que muitos dos vizinhos elogiassem o seu
honesto comportamento? A família é santa, de acordo, mas também o era Israel. E os zelotas, derrotados, abandonaram Nazaré. Para dizer a verdade, este incidente não morreria com a saída dos guerrilheiros. Restava ainda uma não menos delicada segunda parte. O regresso de Tiago – antes do previsto – interrompeu a palpitante confissão da família. Em meu entender, uma revelação muito mais importante que a de Jesus entre os doutores da lei, única referência dos evangelistas à infância e à juventude do Mestre. E é lícito fazer outra pergunta. Se os responsáveis da narrativa evangélica souberam do incidente com os zelotas, porque o ocultaram? É possível que a explicação seja extremamente simples. Boa parte daquelas memórias – chamadas depois “evangelics” - foram escritas por judeus e para judeus. Interessava trazer à luz a imagem de um Nazareno que se atrevera a repelir a causa nacionalista? A entrada do irmão de Jesus em casa permitiu-me verificar que o ocaso, que devia dar-se às 18 horas e 22 minutos, havia muito que se verificara. A escuridão lá fora era total. A família aguardou impaciente que se acomodasse junto da rocha circular que fazia de mesa. Olhávamos para ele, impacientes. Trazia o olhar opaco do frustrado. Ao vê-lo cofiar a barba, Maria, sentada à sua esquerda, pousou-lhe a mão direita no ombro. Ele observou-a fugazmente. Num esforço para aliviar a ansiedade dos seus ajeitou também a voz, retirando importância ao acontecido em casa do saduceu. - Recebeu-me, sim, e confirmou o envio de um mensageiro ao tribunal de Séforis. - E então... A impaciência de Jacob esbarrou na calma do galileu. Encolheu simplesmente os ombros. - É tudo? - perguntou incrédula a Senhora. É e não é. Quando o interroguei acerca das acusações, cuspiu-me para os pés, furioso, e limitou-se a responder que tal como o outro também eu era pasto da Gehena. E deu-me com a porta na cara. - Maldito! Aquela víbora...
As imprecações de Jacob foram interrompidas pelo autoritário gesto de Maria. Levantou a mão esquerda ordenando calma e, ignorando o desplante de Ismael, abordou directamente o assunto que atraíra a sua atenção: - Tal como o outro? Que outro? O eloquente silêncio do filho e a sua aguda intuição chegaram e sobraram para que ela própria respondesse: - João! Tiago concordou, sem nada dizer. - Como sabes? - interveio o cunhado, sem compreender. - Deus misericordioso – explicou o irmão de Jesus – guiou os meus passos... - Os teus passos? Para onde? Irritada com as constantes interrupções de seu marido, Miriam ordenou-lhe que se calasse. A Senhora pediu tréguas. - Antes de voltar aqui senti um impulso de ir a minha casa. Esta, muito enervada, comunicou-me que um dos servos do saduceu, tal como o velho Jairo, tinha chegado secretamente, referindo-lhe o de Judá... e mais. A boa vontade de Tiago, que procurava não preocupar inutilmente a sua família, quase se desvaneceu. A voz fraquejou-lhe e a mãe, atenta como um falcão, percebeu. Mas, arrepanhando a barba loura com os dedos, dominou-se. - O criado – declarou secamente – disse ter visto o Zebedeu. Entrou em casa do saduceu e supõe que falou com ele. - Supõe? Que quer dizer supõe? Tiago não pôde esclarecer as dúvidas de Miriam. - Imagino que possa ter sido essa a intenção de Zebedeu. Porque não havia de ir a casa de Ismael? Assim terminaram as notícias do enviado da família. Nada mais sabia. Apesar de ter percorrido a aldeia pela segunda vez, o paradeiro do discípulo continuava a ser um enigma. Se, como era de supor, tinha deixado a
mansão do saduceu depois da entrevista, porque não dava sinais de vida? Que estava a acontecer? E a família, esquecendo de momento a grave questão de Séforis, discorreu até ao esgotamento acerca da sorte do seu amigo. A lógica impôs-se e os ali reunidos, com excepção da Senhora, pareceram dispostos a acreditar que o Zebedeu, num dos seus conhecidos arrebatamentos, seguira a caminho da capital, resolvido a entrar no pleito. No entanto, mesmo admitindo a crise emocional que João atravessava, havia dois pormenores que não batiam certo. E Maria, de modo frio e calculista, expôs-lhos num tom nada tranquilizador: - Primeiro: se é certo que chegou a falar com o saduceu e conhece as intenções daquela víbora, porque não se apressou em nos dar conta disso? E segundo: da casa de Ismael até ao caminho que vai para Séforis teria de atravessar a aldeia de uma ponta à outra. Por que razão ninguém o viu? Não continuará ele aqui? As pertinentes interrogações obtiveram escasso eco. Só Miriam, intuitiva como a mãe, se atreveu a ir mais além: - Que estás a insinuar, mãe Maria? Mas a mulher, assustada com os seus próprios pensamentos, fez um gesto de renúncia, dando a entender que esquecêssemos quanto sugerira. Quem isto escreve, no entanto, não o pôde esquecer. Uma vez mais, o fino instinto feminino se revelou como o melhor dos detectives. Naqueles instantes, o mais negro dos pesadelos caía sobre o discípulo. E seriam necessários dois dias para o descobrir... Em relação ao delicado tema do tribunal de Séforis pouco ou nada pôde falar-se. Alguém levantou a possibilidade de viajar até à cidade e de se interessar pela questão. Tiago, sempre prudente, voltou a insistir na sua ideia de aceitar os acontecimentos. Na suposição de que a causa fosse aceite, os juízes teriam de mobilizar as testemunhas das duas facções. Aquilo requeria tempo. Seria mais inteligente esperar e não actuar com precipitação. - Apesar de tudo – recordou o chefe de família com uma ingenuidade comovedora -, não cometi blasfémia alguma.
Limitei-me simplesmente a repetir as palavras do meu Irmão e Mestre... Jacob não perdoou a subtileza: - Repetir não. Deves querer dizer, ratificar. Mas a Senhora da casa não estava disposta a suportar outra batalha dialéctica. E afastando a borrasca com um imperativo “é altura de cear”, abandonou a mesa e a conversa, seguida pelas filhas. Este explorador, como que movido por uma mola, pôs-se igualmente de pé, disposto a regressar à estalagem. E quando já ia despedir-me dos homens, Maria suspendeu o acender do fogão e, apontando a mesa de pedra com o indicador esquerdo, suplicou-me que aceitasse a hospitalidade daquela humilde casa. Antes que eu pudesse reagir, exclamou, maliciosa: - Pensei fazer-te uma surpresa... Senta-te, Jasão. Aqui és bem-vindo. E tu, Tiago, alegra essa cara. E faz-me um favor: este grego intrometido (que Deus o abençoe) está empenhado em saber isso dos zelotas. Continua tu... O galileu abriu uns olhos espantados. - Os zelotas? Estão aqui? Sorrindo com benevolência, Jacob explicou-lhe do que se tratava e em que ponto tínhamos ficado da conversa. Sem muito entusiasmo, talvez acabrunhado com a sorte incerta do Zebedeu, começou a contar a segunda parte da história dos guerrilheiros. Tomada a decisão de não participar no movimento de libertação, Jesus viu-se envolvido no que poderíamos definir como o rescaldo de um temporal. Os seus inimigos – os de sempre – nunca lhe perdoaram o atrevimento. E longe de se apaziguarem, os ânimos continuaram a extremar-se. A partir daquele ano, o ambiente na recôndita Nazaré foi piorando lenta mas inexoravelmente. - Alguns, até – explicou Tiago -, deixaram de o saudar. Outros, movidos pelo ódio de Ismael, pretenderam expulsá-lo da sinagoga. E durante um tempo, até as encomendas faltaram na oficina. Que podíamos fazer? Meu irmão negava-se a falar do assunto. E assim, um dia, cansado de tanta injustiça e falatório, reuni os jovens e, na presença do saduceu e do restante conselho, aventurei-me a prometer
algo que, como bem sabes, nunca chegaria a cumprir. Cheio de fervor patriótico, garanti que não devia preocupar-se. No momento em que a minha idade me permitisse assumir as responsabilidades próprias do chefe de família, disse-lhes sem rodeios, Jesus colocar-se-á à frente dos exércitos de Israel. Então Nazaré contará com um chefe nacional e com mais cinco valentes soldados. - Cinco? Mostrando-me o punho esquerdo, foi estendendo cada um dos dedos, citando os cinco esforçados patriotas: - Tiago, José, Simão, Judas e Amós. Por outras palavras, pediu tempo e paciência. E, de algum modo, o discurso do jovem Tiago, que tinha apenas treze anos de idade, sortiu efeito. A tempestade amainou, pelo menos durante uma temporada. Mas, como dizia, a ferida estava aberta e nunca chegaria a cicatrizar... E tudo voltou à normalidade. Tiago concluiu os seus estudos elementares e, pouco a pouco, foi ocupando o lugar do primogénito na oficina. Jesus, então, deu novo passo, ampliando o negócio familiar. A sua paixão pela marcenaria levou-o a trabalhar em interiores e, segundo os seus familiares, com notáveis resultados. À minha pergunta sobre os pensamentos e íntimas inquietações daquele jovem, ao longo dos seus dezassete anos, nem Jacob nem o seu cunhado souberam responder com precisão. Pecando talvez por uma extrema crueza, coloquei a questão de outra maneira: - Houve algum comentário, um sinal, qualquer indício que o fizesse pensar que não era quem todos acreditavam que fosse? Tiago demorou o seu tempo. A pergunta – difícil – foi respondida com o eloquente silêncio. Negando com a cabeça, veio esclarecer uma coisa que hoje poderia ser considerado como inconcebível. Como tenho dito, o ano 30 da nossa era encontrava-se demasiado próximo para que as inteligências daquelas gentes pudessem avaliar na sua justa medida as palavras e a obra de Jesus. Hoje, tudo ou quase tudo joga a nosso favor. - Jasão, amigo, se te referes à sua divindade, tenta não confundir. É possível que tu e muitos outros possam crer que um homem é na verdade o Deus dos Céus. Eu e os que te acompanhamos, ainda que
tarde, acreditámos na sua palavra. Mas dá-nos tempo. As raízes dos nossos antepassados encontram-se ainda enterradas nos pobres corações destes homens e mulheres. Se Ele disse, eu creio. Mas a minha inteligência, como um asno teimoso, revolta-se e escoceia. Jesus, o Deus vivo? Só num acto de fé posso responder-te que sim. E isto, mercê dos seus prodígios e testemunho. Meu Irmão nunca foi um louco nem um mentiroso. Mas, compreende-me, quando éramos jovens, nunca essa ideia me passou pela cabeça... - Não perguntei se te passou pela mente – tentei rectificar - mas sim pela dele. Voltou a negar com a cabeça. E acrescentou, sincero: - Ignoro, Jasão. - Naqueles anos – interveio Jacob, numa cordial tentativa para satisfazer a minha sede -, se é que isso dá luz às tuas dúvidas, o tema favorito da conversa connosco, seus íntimos, era seu Pai Celestial. Aquela era uma boa pista. Supliquei-lhe que a aprofundasse. - Falava dEle a toda a hora. Ao menor ou mais banal dos pretextos. Era uma obsessão. Seu Pai estava em tudo. E tentava convencer-nos de que éramos seus filhos. Não importava a raça, a condição social ou o grau de bondade. Para nós não era fácil. O único Deus que tínhamos conhecido era o de Moisés: justiceiro, abrasador por vezes, conquistador e tão remoto que só o sumo sacerdote tinha acesso ao santo dos santos e uma vez por ano. Como podíamos falar cara a cara com aquele Deus? A blasfémia era flagrante. Ele, porém, vivia aquilo e explicava-o com uma lógica e naturalidade que metiam medo. Tiago e eu comentávamos aquilo muitas vezes: se as ideias de Jesus chegassem aos ouvidos do conselho podia ser fulminado. Dizia, até, que o nosso Pai amava o feio, o impuro e o disforme. Mostrava-nos uma flor, um pedaço de madeira da sua oficina ou o seu cão e exclamava, entusiasmado: “Sabeis de algum homem que tenha conseguido semelhante perfeição?” Algumas vezes lhe perguntámos pelo rosto desse Deus. Mirava-nos com doçura e dizia: “Podeis descrever o da música? Que
feições tem o amor? Quem será capaz de desenhar o rosto da sabedoria? Tem olhos a ternura ou a tolerância ou a fidelidade? Pois bem, meus irmãos, assim é o Pai dos céus; sem rosto e com os mil rostos da beleza, do perdão, do riso, da paz e, principalmente, da misericórdia.” Para quem isto escreve, a descoberta na alma humana de Jesus de um Deus-Pai tão oposto à concepção judaica era já um aviso. Tinha para si como muito claro que uma das suas grandes missões era tentar desfazer o erro. A humanidade arrastava naquele tempo a negra cadeia de mil deuses ou, no melhor dos casos, de um único Deus (Javé), que nada tinham a ver com aquele conceito de filiação divina. Daí à plena tomada de consciência da sua natureza celeste era só um passo. De repente, o familiar e caseiro aroma do azeite ao fogo foi-se apossando do recinto. As mulheres, no cimo da plataforma, agitavam-se de um lado para o outro, abrindo a grande arca, preparando verduras e vigiando a lenha que alimentava o fogão. De vez em quando passavam ao nosso lado, dirigindo-se ao recanto das ânforas ou ao quintal. E voltavam à cozinha com pequenos cântaros de água ou molhos de cebolas e de alhos, mergulhando-nos numa paz tranquila e relaxante. Ruth, a pedido de seu irmão, deixou sobre a rocha um jarro de barro. E o vinho foi acompanhado por uma escudela repleta de azeitonas em vinagre e um prato de insectos, secos em sal, que, por não terem as suas asas membranosas me custaram a reconhecer. Tratava-se de um dos aperitivos mais comuns entre as gentes de humilde condição: gafanhotos de pernas duras que, muito contra vontade, tive de saborear. A hospitalidade dos orientais tinha destas servidões. Recusar a única coisa que possuíam e que ofereciam com todo o coração teria sido grave afronta. Ao verificar como eu me demorava na inspecção aos pequenos e acinzentados ortópteros, Tiago, escusando-se pela modesta entrada, pôs-se a culpar os impostos. - Desde a chegada do invasor – acrescentou, em clara referência aos romanos – não há família honrada que consiga levantar cabeça (1). Já naqueles anos, quando meu Irmão tomou a seu cargo a oficina, os pesados encargos civis e religiosos obrigaram-nos a uma infinidade de apertos e, o que foi pior, à liquidação dos bens que meu pai reunira com o suor e o trabalho de toda a sua vida.
- A última destas propriedades – informou o Galileu – foi uma parcela da vizinha Nahum. Um terreno sobre o qual pesara uma hipoteca. Com o produto da venda foi possível o pagamento dos impostos, a compra de novas ferramentas e empreender outro dos projectos de Jesus: a compra do velho armazém de abastecimento de caravanas que, em tempos, pertencera a José e a seus irmãos. *1 Desde tempos imemoriais que a sociedade judaica se via submetida a dois tipos fundamentais de impostos: os civis e os religiosos. Os primeiros datavam do tempo de Salomão, que, astuto, dividiu o reino em doze cantões. Cada um era obrigado a satisfazer as suas necessidades, quer em dinheiro quer em espécie. Depois do exílio da Babilónia, estes impostos mudaram de mãos e os Judeus viramse forçados a entregar parte dos seus ganhos aos odiados invasores: persas, egípcios, gregos e romanos. Mais tarde, com o cruel e despótico rei Herodes, o Grande, os encargos tributários tornaram-se insuportáveis. E o edomita viu-se obrigado a suspender mais de uma cobrança de impostos, ante a ameaça de uma sublevação popular. Para que façamos uma ideia, alguns dos seus filhos – caso de Arquelau e de Antipas – chegaram a receber, só de impostos directos, as cifras de 600 e 200 talentos, provenientes de Judeia e Samaria e Galileia, respectivamente. (Um talento era equivalente a doze mil denários.) Com a chegada de Roma, estes impostos civis multiplicaram-se. Eram cobrados por múltiplos motivos: portagens em pontes e estradas, direitos de alfândegas, de entrada nos portos, pelo consumo de água, pelo uso de terras de titularidade pública, pela propriedade de casas, indústrias, oficinas ou escravos, etc. Mas os mais duros eram os chamados de capitação. Eram fundamentados nos censos e, desde um começo, foram tomados como o símbolo da vergonhosa dominação estrangeira. Tanto as terras como as propriedades eram avaliadas regularmente, atribuindo a cada titular o tributo correspondente. E era-lhe exigida a décima parte das colheitas de cereal, bem como um quinto das de vinho. Além disso, tinham de garantir um tanto proporcional do valor dos direitos pessoais ou profissionais. Se o industrial, camponês, pescador ou comerciante tinha assalariados, era obrigado a reter uma parte da jorna, à conta de impostos de capitação. A este funesto quadro haveria que juntar as obrigatórias taxas religiosas, estabelecidas já no Génese (XIV, 20) que fixavam, que “o dízimo de tudo pertencia ao Altíssimo”. Os referidos impostos permitiam a manutenção do Templo de Jerusalém e, naturalmente, dos milhares de sacerdotes ao seu serviço. Cada judeu maior de doze anos era obrigado a contribuir com meio siclo (dois denários), além da contribuição exigida pelas sinagogas das respectivas cidades e aldeias. Porém, este tributo era insignificante ao lado daquele que se denominava dízimo. A lei estabelecia que a décima parte de toda a colheita, rebanho, pesca e, em geral, de qualquer produto do solo, devia ser entregue ao culto de Jerusalém. A ambição dos sacerdotes chegava a extremos inacreditáveis. Retiravam dízimo de quanto podiam imaginar: desde os ovos de uma capoeira às modestas ervas
usadas para cozinhar, ou à lenha destinada ao Inverno. E pobre daquele que ocultasse as suas propriedades aos levitas que faziam a cobrança! Um produto que não pagava dízimo era qualificado de impuroH e, consequentemente, o seu proprietário caía na ignomínia do pecado. A partir de 15 de adar (mês que antecedia a Páscoa), longas caravanas de carros com os dízimos afluíam à Cidade Santa de todos os cantos de Israel, transportando as “primícias e o melhor das colheitas. Os responsáveis do Templo, claro está, esfregavam as mãos de contentes. O sustento anual de todos eles – e mais ainda – estava garantido, em nome de Deus. (N. Do M.)
- Pagámos uma primeira prestação – continuou a recordar com saudade – e, aproveitando o alívio económico, meu Irmão deu-se ao luxo de uns dias de descanso. É bom notar que na sociedade judaica, menos favorecida pela fortuna, o actual conceito de férias não existia. Uma viagem de negócios ou uma peregrinação, por exemplo, encerravam um significado semelhante. ...E poucos dias antes da Páscoa participou-me a grande notícia: levar-me-ia a Jerusalém. Era a minha primeira visita à Cidade Santa. Já podes imaginar a alegria... Na Primavera daquele ano 12, prescindindo da grande caravana que devia partir de Nazaré, seguiram sozinhos pela rota que atravessava a Samaria. E tal como fizera José com o primogénito, Jesus sentiu-se feliz por explicar ao irmão a história dos lugares por onde passavam. Não há dúvida de que boa parte da formação daquele galileu era devida ao solícito carpinteiro de Nazaré. Tiago era um homem religioso, à sua maneira. Respeitava as tradições mas, lentamente, influenciado por seu Irmão, foi pondo em questão muitas das rígidas e absurdas normas religiosas que estrangulavam a vida diária. Apesar disso, durante anos, encorajou a velha ideia de sua mãe de ver Jesus convertido num líder. Mais: quando da morte do Filho do Homem, foi um dos grandes desiludidos. - Naquela viagem – confessou, entusiasmado com a sua própria narração -, aprendi a estimá-lo de verdade... - Não entendo.
- Verás. Foram muitas horas de convivência. E longe e afastados das obrigações habituais. Na Nazaré não era tão simples. Além disso, ao sair da aldeia, meu Irmão transformava-se. Como poderei explicar-te?... Era como se recuperasse a liberdade. Como se entrasse no mundo que, na verdade, Lhe pertencia e pelo qual esperava. O cabelo ao vento, o olhar alegre e determinado, o passo firme e confiante, tudo o convertia num triunfador. Conto-te um pequeno segredo? Quase me engasguei com um dos gafanhotos. ...Eu só tinha catorze anos, acabados de fazer, mas, por causa daquela peregrinação, vi-o como um chefe. Soube que meu Irmão estava destinado a grandes empresas. Nota-se nalguns gestos das pessoas. São concretos. Inconfundíveis. - E qual dos gestos de Jesus te levou a acreditar em tal? - Dois – respondeu de imediato: - a palavra e os olhos. Ambos tinham o selo da predestinação. Antes de chegar à Cidade Santa, Jesus confirmaria a seu irmão a solene decisão adoptada dois anos antes: esperar pela maioridade e independência dos seus para revelar ao mundo a única verdade que deveria ficar em letras de ouro: a existência do Pai. A tradicional ceia da Páscoa teria lugar em Betânia, na herdade de Lázaro. Simão, o chefe da família, fora enterrado recentemente e, de acordo com o costume, Jesus presidiu à mesa. - Foi uma jornada intensa e inolvidável. Terminado o cordeiro, meu Irmão falou muito e animadamente. Porém, tal como acontecia em Nazaré, as suas ideias sobre o Pai Celestial não foram muito bem compreendidas por Lázaro e suas irmãs. Amavam-no, porém. Na manhã seguinte, consumada a cerimónia da aceitação de Tiago como membro de pleno direito da comunidade de Israel, os irmãos, de regresso a Betânia, fizeram alto na falda ocidental do monte das Oliveiras. Durante algum tempo, o novo cidadão desfez-se em elogios e louvores à esplendorosa Jerusalém. - Jesus, pelo contrário, não abriu a boca. Olhava a cidade e calava-se. Não foi possível abrir-lhe o coração. E a partir daquela manhã tornou-se
silencioso e taciturno. Mais ainda: mal entrámos em casa de Lázaro comunicou-me que tínhamos de voltar à Galileia. E eu, quase de joelhos, supliquei-lhe que esperássemos mais um dia. Queria voltar ao Templo e assistir às discussões dos doutores da Lei. Jesus, afagando-me os cabelos, sorriu com certa tristeza, aceitando. Sabes uma coisa? Não lhe disse toda a verdade. - Mentiste-Lhe? Tiago corou. - Mais ou menos... Era verdade que desejava contemplar os sábios. O que falei foi que morria de desejo de o ver discutir com eles... - Repugnante fabricante de jugos! - censurou carinhosamente Jacob. Só tu podias lembrar-te de coisa assim. No entanto, as secretas intenções de Tiago ver-se-iam frustradas. Efectivamente Jesus, acompanhou-o ao Templo e permaneceu muito tempo escutando as discussões. Porém, apesar dos incitamentos do irmão, o Filho do Homem manteve-se à margem. - Eu olhava-o e não conseguia entender. O que ali ouvimos não devia agradar-lhe. Não era aquilo que me tinha contado minha mãe. E por fim, morto de curiosidade, perguntei-lhe porque não se decidira a intervir. A sua resposta, tantas vezes escutada nas discussões com a mãe Maria, deixou-me como antes: “Não chegou a minha hora”. E passando-me o braço pelos ombros dirigimo-nos para Betânia. No dia seguinte, de madrugada, deixavam a aldeia, encaminhando-se para Nazaré pelo caminho do Jordão. - Foi nessa viagem de regresso a casa que Jesus, ao contar-me o que acontecera na sua primeira peregrinação à Cidade Santa, quando contava apenas doze anos, se pôs particularmente sério e me fez prometer que, se Ele faltasse um dia, eu velaria pelos mais pequenos. Esta revelação de Tiago veio confirmar-me o que sempre suspeitei: a famosa fuga de Jesus Menino, apesar de tudo, teve de lhe doer no mais íntimo. Depois, friamente, quando teve consciência da angústia que provocara em seus pais durante quatro dias, não teve outro remédio senão sentir-se culpado. Perto de completar os dezoito anos, a vida do modesto carpinteiro
passou por uma pequena e agradável mudança. Com seu irmão à frente da oficina, Jesus dedicou-se plenamente ao armazém de abastecimento de caravanas, localizado no pequeno bairro dos artesãos, muito perto da fonte. Esta nova actividade proporcionar-lhe-ia alguma coisa de que se vira privado desde o falecimento de José: as conversas e a troca de informações com os viajantes e comerciantes chegados de todo o país e de mais além das fronteiras de Israel. - Vou dizer-te uma coisa, Jasão. Aquela boa gente, pagãos na sua maioria, agradeciam estas relações. Meu Irmão fazia-lhes uma infinidade de perguntas e a espera era infinitamente mais agradável. Nem todas as estalagens e armazéns recebiam os prosélitos com o mesmo carinho e simpatia. E o saduceu, informado do que considerava uma fraqueza imprópria de um judeu, criticou-o repetidas vezes. Mas Jesus sempre lhe respondia o mesmo: Grandes trabalhos foram criados para todo o homem. Um sorriso e uma palavra amável tornam mais leve o jugo. - E que vendia nesse armazém? - O costume: cordoaria, forragem, odres para água e para vinho, canastras, todo o género de roupa de abafo, cajados trabalhados por ele próprio, víveres (às vezes cozinhados por mãe Maria) as ânforas de Nathan, os meus próprios jugos e trabalhos em couro... Enfim, de tudo. E o armazém, como outrora com a oficina de carpintaria, foi-se convertendo em algo mais que um simples negócio. Por ali passavam todos os anos dezenas de bufarinheiros, negociantes de cereais, vinho e especiarias, e um pintalgado mosaico de caravaneiros e comerciantes – retalhistas e grossistas – de todas as raças e credos. - E muitos, velhos amigos, terminavam a noite nesta casa, compartilhando, como tu, o pouco que tínhamos ou o muito que traziam. Desta forma, Jesus e todos nós soubemos de outros costumes, povos e crenças. E graças a Ele aprendemos a difícil lição da tolerância. Antes de acabar o ano – era o mês de Setembro – a família de Nazaré receberia uma gratíssima surpresa. A duas semanas de festejar os seus dezoito anos, Jesus viu chegar Isabel e seu filho João. Foi o melhor presente. Havia muito tempo que não se viam e, sem que nada o fizesse adivinhar, seria uma reunião
histórica. Seu primo afastado, que mais adiante seria conhecido pelo Anunciador mostrava-se confuso. Desde a morte de Zacarias não tinha muito claro o seu futuro. Isabel, como acontecia com a Senhora e Jesus, continuava a traçar-lhe grandiosos planos. Ocuparia o segundo escalão, em glória e dignidade, ao lado do futuro Messias Libertador. No entanto, a oposição de Jesus a estas ideias messiânicas conduziram João a um mar de dúvidas. E Isabel informou Maria dos loucos projectos de seu filho: queria retirar-se para as montanhas de Judá e dedicar-se inteiramente à agricultura e à criação de carneiros. A Senhora, desolada, refugiou-se em sua prima e esta, por sua vez, em Maria. Que podiam fazer com aqueles varões, que recusavam a máxima honra a que podia aspirar um judeu? E ao vê-los novamente reunidos ambas conceberam a mesma ideia: talvez, ao trabalharem juntos, ao permanecerem lado a lado em Nazaré, os seus sentimentos mudassem. Mais uma vez, no entanto, os projectos das mulheres naufragariam ante a categórica negativa dos fiLhos. João e Jesus tiveram longas conversas, analisando as suas respectivas concepções do Messias, do Pai dos Céus, bem como dos seus planos pessoais. Mas, segundo as minhas informações, as divergências naqueles momentos eram tais que, de mútuo acordo, decidiram separar-se até que chegasse a hora. João, mais impulsivo que seu primo, não teria encontrado inconveniente em se meter pelos caminhos naquele mesmo instante. Mas entendeu a posição de Jesus. As suas responsabilidades, com a mãe a seu cargo e uma herdade a dirigir, não eram as mesmas que as do gerente de um armazém de abastecimento, com nove pessoas ao seu cuidado e recursos económicos limitados. Teria sido interessante presenciar estes encontros entre o futuro Filho do Homem e o Anunciador. O certo é que se Jesus chegasse a ceder, recebendo os seus parentes de Nazaré, o destino, do chamado João Baptista talvez tivesse sido outro... E aquele gigante de dois metros de altura e sua mãe regressaram à Judeia. Já só voltariam a ver-se no célebre baptismo no rio Jordão. Aquela Inteligência que tudo dirige foi inflexível, mais uma vez. Inexplicavelmente para mim, Tiago interrompeu a narração. Bebeu o vinho e durante um longo minuto permaneceu de olhos baixos, como se um pesado fardo acabasse de o esmagar contra a mesa de pedra. Interroguei Jacob com o olhar. O cunhado fez-me um quase imperceptível gesto, recomendando-me calma. Com pulso firme e
calmo encheu a tigela do abatido galileu. Afastado dos seus pensamentos pelo gorgolejar do vinho, levantou os olhos, agradecendo o nosso silêncio. Por fim, baixando o tom de voz, Jacob interrogou-o nos seguintes termos: - Desejas falar de Amós? Negou com a cabeça. - Está bem. Se me autorizas, posso continuar. Tiago vacilou. Mas, ao reparar na minha sincera expectativa, fechou os olhos, consentindo. Pôs uma condição. Que sua mãe não escutasse o relato. Desviei os olhos para a plataforma. Maria e suas filhas, tagarelando e atarefadas nos preparativos da ceia, estavam alheias aos nossos assuntos. Não conseguia entender o mistério. Jacob imediatamente o esclareceria. - Naquele ano, quando as questões materiais e económicas começavam a compor-se lentamente, uma nova desgraça caiu sobre esta casa... Dado o baixo tom de voz do meu confidente tive de me inclinar para a rocha circular. Tiago continuava com o rosto e a alma tristes. ...Aconteceu ao anoitecer de um sábado de Dezembro. Jacob deteve-se, tentando recordar a data exacta. Não conseguiu. E o seu cunhado, que apesar das aparências se mantinha atento, murmurou o dado que faltava: - Três. - É isso – confirmou o narrador. - A três de Dezembro do ano doze a cólera de Deus saciou-se na família que muito em breve seria a minha. Santiago protestou. - Porque asseguras o que não sabes? Meu Irmão ensinou-nos que o Deus dos Céus nunca é vingativo nem colérico. - Então – replicou Jacob com assombro -, como explicas o que aconteceu? Não obteve resposta. E este explorador, confuso e impaciente, teve de se calar.
- Como interpretas tu, Jasão, a súbita morte de uma criança de cinco anos? Desta vez fui eu quem se refugiou na tigela de vinho. - Uma morte? De quem? - perguntei, como um estúpido. - De Amós. E antes de tentar responder à difícil interrogação de Jacob, roguei-lhe que se alongasse nos pormenores. - A doença, fulminante, levou-o numa semana. Nem sequer o auxiliador das rosas pôde fazer nada por ele... Ao saber que o velho Meir tinha visitado o mais pequeno dos varões da família supus que o mal, ao não ser atalhado pelo excelente rofé, devia ter sido de difícil controlo. A primeira descrição da doença – febres malignas – não me ajudou grande coisa. Naquele nome cabia uma infinidade de problemas. E apesar da amargura do momento arrisqueime a solicitar sobre a sintomatologia. Pouco a pouco, creio, fui-me aproximando da verdadeira natureza do mal, que terminou com a curta existência de Amós. Da noite para o dia, aquele menino saudável feliz e travesso viu-se atacado por uma forte dor de garganta febre alta e rouquidão. Em questão de horas apareceu uma disfagia (dificuldade na deglutição) e uma alarmante insuficiência respiratória, com sinais que apontavam para o que hoje é conhecido em medicina como epiglotite aguda (1): baba, silvo respiratório (som agudo, parecido com um assobio), dispneia ou dificuldade na respiração e uma angustiante taquipneia, ou ritmo respiratório superficial e acelerado. A expressão de Jacob estava certa – a criança parecia um moribundo, - e a angústia estrangulou o lar de Nazaré. Nem os remédios, nem as fricções de azeite, nem as sangrias de Meir sortiram efeito. Para salvar a vida do menino teria sido necessário, além dos antibióticos específicos, a rápida abertura de uma via aérea, preferentemente de natureza naso-traqueal (intubação pelo nariz) ou, em alternativa, uma traqueotomia (operação que pressupõe a abertura da traqueia). Nada disto, como é lógico, chegou a acontecer. E o indefeso Amós continuou a apresentar um quadro veloz e alarmante que o levaria a uma horrível morte: retracções inspiratórias profundas supra-esternais (por cima do esterno), supraclaviculares, intercostais e subcostais (entre
e por baixo das costelas). A faringe, com toda a certeza, ver-se-ia inflamada e a epiglote, rígida e tumefacta, assemelhar-se-ia a uma cereja vermelha. Se o bom Meir dispusesse de algum antibiótico a aplicar por via distinta da digestiva ou intestinal, caso do cloranfenicol e da ampicilina, os resultados talvez tivessem sido diferentes. Isso, obviamente, era como um sonho. E o destino foi implacável. Amós, nascido a 9 de Janeiro do ano 7, morreria quando lhe faltavam cinco semanas para completar os seis anos. Era a segunda morte em pouco mais de quatro anos. - Maria quase o seguiu na tumba... - sussurrou Jacob. - Se o desaparecimento de José foi uma machadada, o do filho destroçou-a física e moralmente. *1 Infecção grave, rigidamente progressiva, da epiglote (lâmina fibrocartilaginosa, delgada e flexível, situada por cima do orifício superior da laringe, que fecha no momento da deglutição) e tecidos vizinhos, que pode ser mortal a breve prazo. A epiglote inflamada ocasiona uma súbita obstrução respiratória. O agente patogénico costuma ser com frequência o Haemophilus influenzae do tipo B. A epiglotite é vulgar em crianças dos dois aos cinco anos, podendo apresentar-se em qualquer idade. A infecção, facilmente assumível pelas vias respiratórias pode causar de início uma nasofaringite, propagando-se depois para baixo e inflamando a epiglote e até, a árvore traqueo-bronquial. Esta inflamação da epiglote obstrui mecanicamente as vias respiratórias, ocasionando retenção de CO2 e hipoxia. Do mesmo modo, dificulta a eliminação das secreções inflamatórias. A consequência última é uma asfixia mortal. Uma morte, pondo de lado as lógicas distâncias, relativamente próxima da que Jesus padeceu. (N. Do M.)
E todos clamámos a Javé. Porquê? Que pecado tínhamos cometido? O único que se mostrou firme (bendito seja o seu nome!) foi Jesus. Ninguém o viu chorar. Mas também não consentiu que os seus familiares levassem o cadáver de seu irmão para a colina. Ele próprio, com uma serenidade e majestade invejável, o ergueu nos braços, presidindo ao cortejo fúnebre. E ao depositá-lo junto aos restos mortais de José, beijou-o e clamou em alta voz: “Pai meu, esta é a tua vontade. Amós é teu e a ti volta. E agora liberta-nos da tristeza: a verdadeira morte”. E durante semanas esta casa foi um desfiladeiro deserto. A aldeia desfilou por ela nas pontas dos pés. Ninguém falava.
Apesar dos esforços e da presença permanente de Jesus, Maria negava-se a comer. Chegou um momento em que tememos pela sua saúde. Até que, carinhoso mas firme, o Filho lhe pousou as mãos nos ombros e lhe disse: “Mãe, o desgosto não pode ajudar-nos. Fazemos o que podemos, mas não é bastante. O Pai, agora, pede-nos o tributo de um sorriso. Concede-nos o teu. Assim, tudo sairá melhor. E não percas a esperança. Ele sabe o que nos convém. Também na dor está a sua mão.” Conseguiu o que parecia um milagre. O seu optimismo, paciência e sensatez foram como que um bálsamo. E Maria, muito devagar, recuperou a cor e o gosto de viver. A partir daquele luto, Jesus foi unanimemente reconhecido como um chefe valoroso. Não quis penetrar na análise de uma das leituras deste acontecimento dramático. Mas, ao reflectir sobre ela, mais me firmei na crença de que, por essa altura, quando Jesus tinha dezoito anos, ainda não tinha consciência do seu poder e natureza divinos. Se tivesse sido assim, teria deixado morrer o seu querido irmão? Sabendo o que sei sobre a sua vida de pregação aposto que não. Foi a ternura o que o moveu a efectuar muitas daquelas curas. Algumas, por minha fé, bem mais difíceis que a de uma epiglotite aguda. Mas tenho de me conter. Não é o momento para referir até onde chegava a compaixão daquele homem. Não o posso ignorar. Contemplando a vida do Mestre desta privilegiada atalaia – quase como num filme – até o mais céptico teria de reconhecer comigo que aquela Inteligência Superior, qualquer que seja o nome que lhe dermos, foi colocando o Filho do Homem perante as mais díspares e corrosivas provas que um ser humano pode enfrentar. Só aqueles que tenham padecido o infortúnio poderão aproximar-se do que procuro sugerir. Pois bem, até nisso me vi ultrapassado pela têmpera daquele gigante de dezoito anos. Como é certo que o machado do destino abre os corações e que só então se descobre o interior da árvore! O verdadeiro herói não se manifesta unicamente na trincheira ou no arriscado jogo da salvação de uma vítima. A coragem e a firmeza de ânimo, no caso daquele Jesus com o cadáver do irmão nos braços, demonstram-se, principalmente, na obscura espiral de um lar enlutado ou na tormenta anónima de cada
dia. Jesus – herói sem medalhas durante vinte e oito anos – pode também ser o consolo dos constantemente desfavorecidos da fortuna. Para o conseguir – partindo deste meu fraco conhecimento -, o Mestre pôs em movimento um motor principal e dois auxiliares: a sua fé na vontade do Pai Celeste, a sua paciência para com os outros e a força da sua inteligência, concentrada como um laser na resolução dos problemas, um por um. Esta inteligente harmonia de fé, tolerância e sentido prático permitir-lhe-ia voar – sempre como homem – mais alto, mais longe e mais veloz do que todos, sem atropelar e sem se atropelar. Pregando com o exemplo, não só se pôs de novo à frente do negócio como ainda, ante a surpresa dos seus e de estranhos, aceitou com gosto participar num ciclo de discussões filosóficas para jovens, organizado pelo conselho da sinagoga. O luto, respondia aos que criticavam a sua aberta actividade social, pesa mais na recordação que nos modos. E estas reuniões periódicas com a juventude de Nazaré lhe devolveram algum do prestígio perdido por causa dos zelotas. - Ah! - exclamou de repente Jacob, em voz tão alta que todos ali puderam ouvi-lo. - Então não conheces a história de Rebeca... - Que estás a dizer? Que significava aquela tão evidente mudança de assunto? Estávamos a falar da morte de Amós... Fazendo-me um sinal com os olhos, ajudou-me a entender. Ruth acabava de depositar sobre as esteiras uma ampla vasilha de bronze. - Rebeca – improvisei -, sim, claro... Ou por outra, não... Quem diabo era Rebeca? Foi preciso dar tempo ao tempo. A esquilazinha deu-nos os panos necessários e, por indicação de Santiago, só tive de lavar a mão direita. (A que naturalmente usava, tal como os Judeus, para me limpar depois de defecar.) A Senhora, triunfante, anunciou do fundo da plataforma: - Estamos prontas. Abram caminho... Miriam, sorridente, carregando um pesado alguidar, foi descendo os degraus com especial lentidão, tentando não derramar o conteúdo. E de novo este explorador ia cometendo outro erro. Ao reparar no peso que Maria transportava fiz menção de me levantar para a ajudar. Já meio
de pé recordei que não era esse o costume. E quando me dispunha a sentar-me, Jacob, atento a tudo, sugeriu-me que o acompanhasse. Também ele precisava do lugar secreto... A errada interpretação não veio fora de propósito. Para dizer a verdade, havia algum tempo que sentia essa necessidade. E o galileu, pegando numa das candeias, fez-me sinal para que o seguisse. Saímos até ao quintal e, aproximando-nos do pombal, o meu gentil guia tratou de abrir uma pequena porta meio camuflada na fachada do abrigo, no canto esquerdo. Entregando-me a candeia convidou-me a passar. Talvez me tenha excedido no termo passar. O cubículo, de metro e meio de altura por apenas um metro de lado, não me permitia ficar de pé. Um cheiro característico recordou-me a natureza do lugar. Inspeccionei-o à fraca luz do azeite, descobrindo a sua mais que rústica configuração: um poço negro meticulosamente coberto por uma tábua de madeira, com uma abertura no centro. Era tudo. Aquela latrina nada tinha a ver com o luxuoso asseio que tinha visto na casa de Elias Marcos, em Jerusalém. Depois de eu e de Jacob nos termos servido da improvisada casa de banho, o galileu voltou a dar-me passagem para casa. Quando estávamos quase a atravessar o estreito corredor, um desordenado afastar de passos fez-me voltar a cabeça para a cancela. Foi vertiginoso. Umas quantas pombas, assustadas, lançaram-se num curto voo, esvoaçando por cima do pátio. O meu companheiro parou também. E lançando mão ao gladius abriu a porta de repente, assomando impetuosamente. A escuridão era absoluta. Convencido de que podia tratar-se de um falso alarme regressou ao pátio, convidando-me a voltar para junto da família. Eu, pelo menos, tinha ouvido aquele ruído de passos com total nitidez. A tranquila atitude de Jacob não me serviu de consolo. Alguma coisa de estranho se passava em volta da casa. Depois de uma segunda e obrigatória ablução tomei lugar na frente de um alguidar fumegante. E Jacob fez o mesmo, esfregando as mãos de satisfação. Não divisando a menor sombra de preocupação no seu rosto pelo que acabava de acontecer lá fora, preparei-me para prestar honras ao guisado de verduras que Miriam colocara no centro da rocha... Tiago abençoou a ceia e, contra o que é costume segundo os ortodoxos da lei, as mulheres acomodaram-se a nosso lado,
compartilhando o excelente guisado, onde descobri alho, cebola, lentilhas, alhos porros, alcaparras e algumas aromáticas e apetitosas folhas de hortelã-pimenta e de jeezer (uma das variedades de alecrim silvestre). Ruth, foi distribuindo os talheres, umas enormes colheres de madeira de pinho. Ao receber a minha, a Senhora, atenta aos meus movimentos, antecipando-se à minha curiosidade, adivinhou o que eu estava a pensar: - Isso mesmo, Jasão... obra de meu Filho. Uma tremura denunciou-me e quase deixei cair a escura colher. Maria sorriu, divertida. Dirigindo-se a Jacob, falou outra vez na já esquecida história de Rebeca. - Disso quem mais sabe é Miriam... Confundido, tentei meter a colher no alguidar. De acordo com as normas da urbanidade daquelas gentes, tive de esperar a minha vez. Quando se tratava de um recipiente comum, assim o exigiam as boas maneiras, meter a colher ao mesmo tempo que outro comensal era uma grosseria e até sinal de mau augúrio. A família, testemunha da minha inicial falta de habilidade, começou a rir, contagiando-me com a sua alegria. As gargalhadas soltaram-se em cascata quando, de repente, ao atravessar-se na garganta de Jacob, o guisado foi catapultado como chuva de perdigotos sobre os comensais. O inocente e pueril alvoroço acabou por desanuviar o ambiente pesado. Miriam, ansiosa por falar do misterioso tema de Rebeca, não se fez rogada. - Por onde começo? - perguntou à mãe. - Pela sua beleza – interveio Ruth com os olhos a brilhar. A Senhora, movendo a cabeça em sinal de desaprovação, rogou-me que desculpasse a impulsiva ruiva. ... Tem razão, mãe Maria – aprovou Miriam. - Pelos seus dezoito anos era um magnífico exemplar... A Senhora, irritada com o que considerou uma vulgaridade, recriminou a filha. Não serviu de grande coisa.
- Era alto, forte, bonito... - Muito! - lançou de novo a esquilazinha. ...A sua prudência, bondade e brilho – prosseguiu Miriam num tom mais sério – não passaram despercebidos aos olhos dos homens e das mulheres. E uma dessas jovens de Nazaré... - Comecei a suspeitar... enamorou-se de Jesus. Desta vez fui eu quem se engasgou, e os risos eclipsaram as últimas palavras de Miriam. Tossindo, aflito, desculpei-me. Hoje não compreendo a minha estranheza. Aquilo era o que havia de mais natural e formoso. ...Fui a primeira a sabê-lo – declarou Miriam com orgulho.Rebeca tinha menos dois anos que Jesus. Era de Nazaré. Todos a conhecíamos. A sua família, embora mais abastada do que a nossa, era nobre e carinhosa. - Mais abastada? - exclamou Jacob com ironia. ... O velho Ezra guardava muitos talentos (1) na banca de Jerusalém... Jasão, o pai de Rebeca era dono de meia aldeia. “Um bom partido”, pensei para comigo. ...E um dia confessou-me os seus sentimentos por meu Irmão. Para mim, que tinha então catorze anos, a notícia (ou antes a confidência) encheu-me de surpresa. Entre os rapazes e raparigas da aldeia havia sempre rumores. Todas sabíamos quem gostava de quem. Mas de Rebeca, nem por sonhos... Não soube que dizer-lhe. - Acerca de quê? A minha pergunta, com segundas intenções, foi compreendida pelas mulheres. Os homens, em contrapartida, nada entenderam. - Oh, Jasão! - censurou-me Miriam. - De que havia de ser? Eu ignorava os sentimentos de Jesus por Rebeca. Ela, tímida e prudentemente, quis certificar-se primeiro. Por isso me interrogou. Vocês, os homens, por vezes parecem tolos... Procurei os olhos de Maria. A sua placidez indicou-me que tudo estava correcto. E atrevi-me a lançar uma pergunta que começava a queimarme o coração:
- Alguém, alguma vez, soube se Jesus se sentiu atraído por uma rapariga? Miriam fitou sua mãe. E esta, por sua vez, trocou outro olhar significativo com Ruth. As três, quase em uníssono, reconheceram que não sabiam. Tiago e Jacob igualmente negaram com a cabeça. Se o jovem Jesus soube na sua adolescência ou juventude o que era esse formoso sentimento, tão próprio da idade, nunca o exteriorizou. - Meu Filho – interveio então a Senhora – teve a desgraça de quase saltar da meninice para a responsabilidade de um pai. Como é que ia pensar nessas coisas? Embora não compartilhasse o seu critério, preferi escutar. - E fiz tudo o que podia fazer – sublinhou a mulher de Jacob.Falar com mãe Maria. Contei-lhe o encontro com Rebeca e a sua secreta confissão. Por um momento, não soube para quem olhar. E a Senhora, tomando a palavra, tornou mais fácil a questão. - Ao princípio, fiquei desconcertada. Depois, fiquei contra. Aquilo não entrava nos meus planos. Jesus casado? Nem pensar! Era o Filho da Promessa: o futuro Messias. Como hipotecar o meu sonho com uma boda? Tiago moveu a cabeça num quase imperceptível gesto de desacordo. Mas a mãe apanhou-o, replicando sem contemplações: *1 Um talento – uma fortuna – equivalia a uns três mil siclos (doze mil denários). (N. Do M.) - Agora é fácil criticar-me! Então, tu pensavas o mesmo. O silêncio do filho encerrou o assunto. E Maria, cingindo-se aos factos, continuou o relato, olhares esquivos a Tiago. ...Além disso, que ia ser de nós? Jesus era o chefe e o principal sustento da família. Naquilo também não lhe faltava razão. Se Jesus tivesse consentido no casamento com Rebeca, a sua própria casa teria sofrido uma grave quebra económica. Sua mãe, ante a séria ameaça que rondava o lar, tomou a atitude que considerou justa: falaria com a rapariga, numa tentativa para deter o perigoso processo. E de acordo com Miriam fá-lo
ia em segredo, procurando por todos os meios que não chegasse aos ouvidos de seu Filho. Assim foi: - Tivemos uma grande conversa. Rebeca, na verdade, foi sincera. Amava Jesus. E eu, Jasão, pus-me a tremer. Sabes do que é capaz uma mulher apaixonada? Não pude responder. Nunca soube. ... Talvez que o pior não fosse estar profunda e sinceramente enamorada de meu Filho. O terrível é que, de certo modo, se parecia comigo. Era leal e obstinada. - Coisas do amor – apoiou Miriam com sabedoria. - Naturalmente – aprovou a Senhora -, Rebeca não era uma criança. Sabia o que queria. E estava disposta a defendê-lo com unhas e dentes. E digo-te mais uma coisa. Se não fossem os muitos problemas que ela trazia consigo, tê-la-ia animado. Agradam-me as mulheres e os homens que lutam pelo que desejam. Mas tendo em vista a dificuldade da situação, não tive outro remédio senão confessar-lhe a verdade. E anunciei-lhe o que era um segredo conhecido em toda a aldeia: que Jesus, o seu amado, era o Filho da Promessa, certamente o Messias esperado por toda a nação. O seu casamento podia pôr em perigo a gloriosa carreira do Libertador... Miriam interrompeu de novo o relato. - Confessaste-lhe a verdade ou apenas parte? A Senhora acusou o golpe. Mas foi sincera. - Naquele momento, o problema económico tinha o seu peso. Mas o destino de Jesus era prioritário. Fiz o que devia fazer. Impaciente, quis saber a reacção de Rebeca. Mas um alguidar vazio e o apetite voraz dos homens foram mais fortes que a minha curiosidade. E as mulheres voltaram ao alto da plataforma, regressando com duas escudelas de madeira e seis pratos de barro. Uma das vasilhas, nas mãos de Maria, vinha coberta com uma tampa de madeira. Distribuídos os pratos, a escudela destapada foi posta no centro da mesa. Continha uma estranha pasta leitosa, quebrada por dourados fios de mel líquido. Foi tudo o que identifiquei. À sua volta, uma série de típicas
e estaladiças tortas de trigo. A Senhora com um sorriso malicioso, permaneceu de pé, com a escudela entre as mãos. E eu, infeliz distraído não reparei no gesto feminino da cozinheira. Intrigado, fiz perguntas sobre a pasta que tinha à vista. A explicação de Ruth deixou-me sem apetite: encontrava-me ante uma nutrida colecção de gafanhotos peregrinos – uma das quatro espécies habitualmente consumidas pelos Israelitas -, previamente descabeçados e desmembrados, secos ao sol e triturados até ficarem em pó. A massa era misturada com flor de farinha e, finalmente, conservada em mel. Por vezes era costume macerar-se em vinagre. Acho que empalideci. Maria, que continuava em expectativa, interessou-se pela minha saúde. Foi então que reparei na sua atitude. Por que razão continuava como uma estátua? Ao perceber como a olhava de alto a baixo, o seu sorriso matreiro alargou-se, rindo-se da minha desorientação. Risinhos mal contidos, que se ouviam entre as filhas, fizeram-me suspeitar que combinavam alguma coisa. Procurei auxílio nos homens. Mas, tão ignorantes como eu, limitaram-se a encolher os ombros. O segredo, adivinhei, devia estar na escudela que tinha nas mãos. Por fim, com a audiência em suspenso, Maria decidiu-se a falar: - Surpresa, “Jasão!” É verdade. Tinha esquecido. Aquela cozinheira chamada Maria, a das pombas, tinha-o anunciado, ao iniciar os preparativos da ceia. Inclinando-se por cima da mesa de pedra estendeu para este explorador a vasilha tão ciosamente fechada. Ruth, divertida, destapoua. E nós, três homens, devorados pela curiosidade, levantámo-nos ao mesmo tempo e com tão pouca sorte que as nossas cabeças foram bater umas nas outras. A solene e colectiva cabeçada provocou a hilaridade das mulheres e, logo a seguir, a dos desajeitados varões. Ao olhar o conteúdo da escudela fiquei perplexo. Era a primeira vez que o via na nossa aventura palestina. Ao interrogar Maria, ela limitouse a recordar-me que Nazaré não era o fim do Mundo. Depois foi distribuindo as correspondentes rações. Ao receber a minha, incrédulo, toquei-a com a colher. E Jacob, soltando uma gargalhada, lembrou-me que aquilo não se
comia como eu julgava. Passando-me uma das tortas, convidou-me a saboreá-la com o auxílio do pão. O manjar não passava de uma humilde fritada de ovos batidos: uma tortilha. Hoje não seria surpresa para ninguém. Naquele tempo causava furor entre os gastrónomos e as classes populares. O invento, segundo parece de origem romana (embora as más-línguas garantissem que Apicius (1) o tinha copiado dos Iberos), tornou-se tão popular, saboroso e nutritivo que se espalhou como o vento por todo o Império. Maria, tão atenta como qualquer outra pessoa às modas, quis surpreender-me com o último grito em cozinha. Por minha fé que o conseguiu. Desta forma, o amargo sabor dos primos do gafanhoto foi discretamente conjurado. - E, então – perguntei de novo à Senhora, que assistia, agradada, ao seu êxito culinário -, que disse Rebeca? Maria serviu-se de vinho e, molhando os lábios, aclarou a voz: - Ai, Jasão!... Deixa-me respirar. Mas o seu desejo de recordar aqueles anos era tão forte quanto o meu. *1 Segundo os nossos dados, o tal Apicius, afamado gastrónomo de Roma, popularizou a receita da tortilha no ano 25. Algum tempo depois escreveria um livro – De re coquinaria - de grande êxito entre os adeptos da cozinha elaborada, em que evoca os festins do imperador Cláudio. Séneca criticou-o acerbamente, queixando-se de que as suas artes culinárias corrompiam os jovens, afastando-os dos estudos de filosofia. Plínio, em contrapartida, elogiou as suas receitas, garantindo que as de fígado de porco e língua de flamingo eram autênticas obras de arte. Previamente, claro, tinha de engordar os animais com figos e vinho adoçado com mel. (N. Do M.)
... Sabia escutar. Nisso parecia-se com Jesus. E quando acabei olhoume fixamente. Depois, pôs-se a chorar... - E minha mãe – continuou Miriam com um meio-sorriso -, pensou ter ganho a batalha. A Senhora, que tinha sempre resposta para tudo e para todos, não se aborreceu. - Menina linguareira! É possível que perdesse aquela batalha mas não
a guerra... - Que insinua? - Rebeca era sincera – esclareceu Maria – e dura de roer... Comoveu-se com as minhas explicações. Mas, terminado o choro, deixou-nos gelados... Sabes quais eram os seus pensamentos? Desgraça de mulher... - Esperei, sem poder imaginar a conclusão -. . “Agora mais do que nunca” comunicou-nos do fundo do seu amor estou decidida a ter a mesma sorte. Se ele me aceitar serei a esposa de um chefe nacional. E partilharei a sua carga. Nada mais há a dizer.” Regressámos a casa com o coração apertado. O remédio, Jasão, tinha sido pior que a doença. Naquela noite, enquanto ceávamos, Jesus percebeu que alguma coisa tinha acontecido. Miriam ficou vermelha e eu, estonteada, deixei queimar as filhós... - Vais fazê-las de sobremesa? Jacob distraiu-nos. Mas a mulher, ignorando a apetitosa sugestão do genro, entrou pelo segundo e inesperado capítulo daquela história. - Dali a uns dias, a pedido de Rebeca, tivemos uma nova entrevista. Era viva como azougue... - Não, mãe Maria – rectificou Miriam. - Rebeca amava-o. - Era viva – continuou na sua teima, como se não a tivesse ouvido. Embora tivéssemos especial cuidado em não falar na nossa difícil situação económica, ela deve ter adivinhado. Que más nós somos, as mulheres, Jasão! Ri do gracejo, fingindo estar de acordo. - E veio à reunião com todas as suas armas desembainhadas. - Mãezinha! A exclamação de Miriam não serviu de muito. ... Rebeca consultara antes seu pai e deu-nos a saber que estava autorizada a dizer-nos que o dinheiro e o dote não eram problemas. Que a sua família estava disposta a compensar-nos generosamente. É conveniente esclarecer que, contrariamente ao que costuma acontecer nos tempos modernos, a sociedade judaica estabelecia que o mohar (o dote) devia ser satisfeito pelo pai ou pela família do noivo e
não o inverso. Assim o referem o Génese (XXXV,12), (XVIII, 25) e o Êxodo (XXII, 16) (1). Segundo o Deuteronómio (XXII, 27) cinquenta siclos de prata – uns duzentos denários – era o habitual. A cerimónia do estabelecimento do mohar entre as respectivas partes era tão festejada como a própria boda. Constituía um compromisso formal de matrimónio – com um contrato perfeitamente legalizado – que, no caso de uma donzela, *1 Segundo o Êxodo (XXII, 15), o chamado mohar das virgens, era exigível por lei. Esta norma recaía sobre a família de qualquer sedutor. Este, obrigado a casarse com a seduzida, não podia negar-se ao pagamento do referido mohar. (N. Do M.)
devia cumprir-se à quarta-feira. Além do dote, o noivo era obrigado a oferecer à futura mulher o que denominavam o matan: uma espécie de bens vitalícios que deviam ser reservados para o momento da viuvez. Pois bem, a proposta de Rebeca alterava todas as normas e tradições, deixando a Senhora numa situação comprometida. - Agradecemos o gesto – acrescentou Maria – mas não aceitámos. Certamente, aquele dinheiro ia livrar-nos de dificuldades. Mas, como te digo, não era o mais importante. Naquela noite, sim, senti-me feliz e livre de tão angustiante fardo... Ruth e Miriam trocaram um olhar malicioso. Aquilo fez-me suspeitar de que a Senhora não tinha ganho a guerra... ainda. - Ai, meu amigo! Sabes o que é pior que uma mulher tola? Prudentemente, reservei para mim a resposta. Abrindo muito os olhos, Maria sentenciou: - Uma mulher apaixonada. As filhas protestaram. A Senhora, tendo em conta a reacção de Rebeca, insistiu na sua sentença: - A rapariga voltou à carga. Falámos e falámos. Impossível, Jasão. Rebeca, perdidamente enamorada, estava disposta a tudo. Tive medo. E o coração não me enganou... Assustei-me. Sabe-se lá do que é capaz uma mulher enamorada?... - Muito simples – interveio Miriam, aprovando a audaz iniciativa de
Rebeca. - Eu, por este ganso teria feito o mesmo. Jacob inchou como um pavão. ... Desesperada – continuou a mãe -, convenceu o bondoso Ezra a visitar Jesus. E ali se apresentou. Tenho de reconhecer que foi valente. Meu Filho, que ignorava as nossas combinações, ficou como a mulher de Lot. Primeiro, ouviu o pai. Depois, teve uma longa entrevista com a rapariga. E Rebeca, de acordo com o pouco que sabemos, confessou-lhe o seu amor. O último esclarecimento não me deixou tranquilo. Não conheciam o combinado entre os dois jovens? - Muito pouco – confirmou Tiago, respondendo à minha interrogação. Jesus reservou-o para si muito no seu íntimo. A única coisa que podemos contar-te foi o que declarou a Ezra: nenhuma quantia de dinheiro o afastaria de sua família e do sagrado compromisso que assumira. E o rico proprietário de Nazaré pôs ponto final na entrevista e nas aspirações de sua filha. Antes de regressar a sua casa visitou Maria, informando-a do acontecido no armazém de abastecimento. Com o coração nas mãos, afirmou-lhe: “Não o podemos ter como filho. É demasiado nobre para nós”. A esquilazinha, que não conhecia a história na sua totalidade, começou a soluçar, comovida. E a mãe, levantando-se, abraçou-a, enchendo-a de beijos. Na garganta de quem isto escreve fez-se um nó. Senti-me em parte culpado pelas lágrimas da sensível Ruth. Durante alguns segundos amaldiçoei o meu frio e desapiedado trabalho. Mas o gelo do nosso treino esfriou as fugazes reflexões. Algo ficara na névoa das recordações: a conversa entre Jesus e Rebeca. Tinha de saber mais. Mas como? Quem podia preencher aquele vazio? Por que razão se calara o Mestre? Que fora feito de Rebeca? O certo é que o tempo modifica o granito dos corações e de quanto se estabelece! Quem diria a Maria que, com o correr dos anos, a Rebeca que tantas dores de cabeça lhe trouxera, quando Jesus tinha dezanove anos, acabaria por converter-se numa das suas mais íntimas e leais amigas? As coisas, como sempre, aconteceram na devida altura. Decapitadas as esperanças – nunca o seu amor -, a jovem de Nazaré
fez a única coisa inteligente que havia a fazer em tais circunstâncias: abandonar a aldeia. Pouco depois, vendo-a consumida pela tristeza, o pai sentiu-se na necessidade de a mandar para a vizinha Séforis. - Chegou a casar-se? - Nunca! - replicou Miriam. - Durante anos recebeu numerosos pedidos de casamento. Recusou-os a todos. Sabes porquê? Não era difícil imaginá-lo. - Pois enganas-te – antecipou-se ela às minhas suposições. - O seu amor por meu Irmão aumentou e sublimou-se. Mas não foi essa a razão. Ela era jovem e rica. Podia ter fundado um lar... A verdade é que não entendia. A alma das mulheres foi sempre para mim um incompreensível painel de comandos. Prefiro enfrentar um urso... - Pode parecer-te estranho, mas Rebeca, ao contrário de muitos de nós, entendeu em profundidade a missão de Jesus. - Como Messias? - Não, Jasão. Sabes bem a que me refiro... E Miriam, juntamente com os seus, explicou-me como, no início da carreira de pregador de Jesus, Rebeca abandonou tudo, seguindo-o na sombra. Foi uma das primeiras crentes – muito antes dos seus discípulos – do divino papel do Mestre. E viveu com orgulho os seus momentos de triunfo. Embora se pense que Jesus não tenha chegado a sabê-lo, também ela esteve muito perto da cruz. - Eu, sim, soube – declarou a Senhora com piedade. - E senti-Lhe os dedos em garrote quando expirou. Entre as mulheres que conheceram e amaram meu Filho, Rebeca é a que mais o amou. - Logo, vive... E antes que confirmassem a minha suposição, antecipei que desejava conhecê-la. Durante breves segundos deu-se um secreto cruzamento de olhares. Mas ninguém abriu a boca. Quem isto escreve, sem elementos de juízo, interpretou mal o breve silêncio. Por alguma razão que desconhecia, aquele pedido era inviável. Contudo, também eu não era homem que me rendesse com facilidade... Embora tencione referi-lo quando se apresentar o mais belo dos
capítulos da nossa aventura na Palestina – a vida pública de Jesus -, entendo que não devo deixar passar o triste e comovente acontecimento protagonizado por Rebeca, sem fazer uma rápida alusão ao subtil e involuntário favor que Lhe fez com o seu amor. Eu explico. Na moderna literatura sobre o Mestre, consequência de uma total ignorância acerca dos costumes da época ou do desvario de alguns destes escritores, é frequente encontrar hipóteses que vinculam sentimental ou carnalmente Jesus com algumas das mulheres que o rodeavam. A Madalena é um dos exemplos mais típicos e repetidos por todos esses ignorantes. Pois bem: para além de não conhecerem o pensamento e o estilo do Filho do Homem nesse sentido, demonstram, como digo, uma insultante ignorância em relação a uma das tradições fielmente respeitada por aquele povo. Quando uma mulher – como foi o caso de Rebeca – exprimia o seu amor por um homem e essa devoção era do domínio público, as restantes hebreias, ainda que as bodas não chegassem a consumar-se, não ousavam invadir os sentimentos da outra, a não ser, claro está, que a enamorada contraísse matrimónio. Naturalmente, o amor da rapariga de Nazaré por Jesus não tardou em ser conhecido. E isto, em suma, viria a ser providencial. A partir de então, nem uma só das mulheres que seguiram os passos do Galileu se atreveu sequer a confessar-lhe o seu amor, embora, de facto, pudesse estar dele enamorada. E o Mestre não voltou a encontrar-se na sempre amarga situação de ter de repelir alguém. Pelo menos, por este motivo. A partir dos seus dezanove anos, na aldeia, o nome de Jesus esteve ligado ao de Rebeca. A Grande Inteligência, uma vez mais, soubera agir como tal... A história daquele amor impossível teve, ainda, outra consequência positiva. O relacionamento de Maria e de seu Filho melhorou sensivelmente. A Senhora, como Miriam, surpreendida pela decisão de Jesus, multiplicou a sua admiração e carinho por Ele. A partir de então, Maria mostrou-se mais reservada e prudente em quanto se relacionava com o Messias. E Jesus, sem dúvida, lho agradeceu. No entanto, afastado o problema de Rebeca, não tardaria a aparecer outra complicação. Jacob, de ideias fixas, atacou pela segunda vez:
- Há filhós? - A sobremesa favorita de Judas. Coitado! A Senhora, depois do lacónico comentário, mobilizou de novo as filhas, servindo as sobremesas. Nesta altura não houve filhós – outra das especialidades da excelente cozinheira – mas sim um saboroso pastel, em forma de cilindro, cortado às rodelas e alfósticos (pistácias) ligeiramente tostadas. O doce, preferido por Jesus, era uma pequena obra-prima: o miolo era formado por figos, tâmaras e passas de Corinto prensadas, metidas numa massa de farinha de trigo, leite, ovos, canela e o obrigatório substituto do açúcar: o mel. Fez-nos suspirar a todos. O lamento de Maria em relação a seu filho Judas, a sua ausência e a dos outros três irmãos (José, Simão e Marta) animaram-me a perguntar por eles. Encontravam-se ausentes. A vida os levara para outros caminhos. Jude ou Judas assentara definitivamente a cabeça, instalando-se em Magdala, nas margens do lago. Aquele filho, que em 13 contava oito anos de idade, parecia chegar à alma da Senhora com especial intensidade. E não pelas boas recordações que dele pudesse conservar. Pelo contrário. Justamente desde aquele tempo, o nervoso e volúvel Judas se manifestou como a ovelha negra da família. Aquele era outro capítulo desconhecido para mim. E Tiago e Jacob, que suportaram, tal como Jesus, as acções irreflectidas do rebelde, concordaram em me desvendar alguns dos pormenores da triste nódoa que caiu no lar de Nazaré. - Foi como que uma maldição dos céus... - Tiago – recriminou-o a mãe -, teu irmão não é uma maldição! - Agora, não, mãe Maria. Mas na altura... - E na altura também não! - defendeu-o ela. Tiago franziu as sobrancelhas. E exclamou, ao mesmo tempo que procurava os olhos do cunhado: - Tu não sabes!... A Senhora, ciosa de todos os seus filhos, protestou de novo: - Como é que não sei? O que acontece é que nunca gostaste dele... O filho, com razão, tentou intervir. A discussão, por culpa minha, começava a azedar. Mesmo assim, aquela natural e espontânea zanga
acabaria por me favorecer. Maria não deixou que Tiago prosseguisse. ...Julgas que não sei que te opuseste à venda da harpa? - Naturalmente – replicou Tiago. - Porque não era justo. Havia outros processos para pagar os estudos de Judas... Bem vês de que serviu. Tenho ou não tenho razão, Jacob? O cunhado, entre dois fogos, nem se atrevia a pestanejar. - Muito bem – a Senhora desviou a sua indignação para o genro -, atreve-te a dar-lhe razão! - Mas eu... A voz de Jacob embargou-se-Lhe! Dando-se conta do que Tiago insinuara um pouco antes, Maria fez tréguas na peleja, interrogando-o: - Não sei? Que é que eu não sei? O galileu respirou fundo, e se fechou num silêncio eloquente. Saltava aos olhos que não queria falar. A mãe, movendo a cabeça afirmativamente, deu-se por informada. Acho que foi uma das poucas vezes em que fiz de mediador. Peguei num pedaço de pastel e, partindo-o ao meio, ofereci-o sorridente a cada uma das partes em litígio, declarando, conciliador: - Vejamos. Talvez ambos tenham razão... - Claro! - foi a autoritária exclamação de Maria. - Claro – murmurou o filho, com a convicção do que julga saber. - Bem, nesse caso – propus, matreiramente -, deixemos que seja Jacob a expor os factos. A solução foi aprovada por unanimidade. E soube assim que, casualmente, antes do final daquele ano 13, Jesus se viu forçado a vender a sua harpa. Jacob, temendo provocar o tempestuoso temperamento da sogra, foi avançando com cautela. Felizmente, limitou-se aos factos. Maria, que sabia respeitar a objectividade, conservou-se em silêncio. Numa das minhas conversas anteriores – creio que com as três mulheres – fora mencionada a venda do instrumento musical que tanto agradava a Jesus. Falaram-me, até, dos dois miseráveis denários que lhe deram pelo kinnor. Não se lembravam era da identidade do comprador. Jacob, sim, nomeou-o:
Ismael, o Saduceu. Não fui capaz de reprimir a minha estranheza. Desde quando o velho mestre fazia favores a Jesus? - Não foi favor nenhum – prosseguiu Jacob, incluindo a resposta à minha surpresa no relato. - Era muito complicado. A admissão de Judas na escola da sinagoga custava dinheiro. E Jesus, nesse ano, tinha de pagar os impostos civis e religiosos. Havia ainda a renda mensal do armazém. Aquela víbora sabia e voltou a ameaçá-lo com a penhora. Toda a aldeia estava a par do gosto do Mestre pela música e pela sua harpa. Nos momentos de cansaço, descontraía-o. Muito astutamente, antecipou-se às turvas intenções do sacerdote. Em público, de modo a haver testemunhas, apareceu um belo dia na sinagoga, oferecendo o seu kinnor. E Ismael, que perseguia havia algum tempo a única distracção de Jesus, aceitou, cobiçoso. Qualquer das magníficas peças trabalhadas da oficina de carpintaria teria resolvido o problema. Porém, a harpa encerrava um significado especial. E o gesto de Jesus impediu o chefe do conselho da penhora da casa e dos negócios. Nunca dois denários renderam tanto... - Triste rendimento – acentuei, quase só para mim. - E não procurou recuperá-la? Jacob sorriu maliciosamente. - Todos os anos, enquanto permaneceu em Nazaré. E sempre, quase como um ritual, pouco antes do pagamento dos impostos. Compreendi o malicioso sorriso do galileu. ...Jesus, conhecendo o saduceu, sabia de antemão a resposta ao seu pedido. Deste modo, inteligentemente o manteve na linha enquanto pôde. Como vês, uma simples harpa salvou-nos da penhora durante anos... - E continua a conservá-la? A minha pergunta ficou em suspenso. Desde a partida do Mestre que ninguém se tinha preocupado com o instrumento. E uma ideia começou a tomar forma no meu coração. Mas tive extremo cuidado em não a revelar. As comedidas explicações de Jacob sobre a venda da harpa e os
verdadeiros objectivos de Jesus deram razão à mãe e ao filho. Como é frequente em quase todas as discussões, tanto ela como ele não se tinham explicado com clareza. E Judas, efectivamente, pôde frequentar os seus estudos básicos. Com toda a prudência de que fui capaz, procurando evitar a discussão, solicitei de Jacob alguns dados sobre a personalidade do rebelde. Inteligentemente percebendo o meu esforço apaziguador, não foi ao âmago da questão. Primeiro, alongou-se pelos princípios que governavam a filosofia educativa de Jesus. A estratégia resultou. Ninguém elevou a voz nem se sentiu ofendido. Em traços largos era esta a situação da sociedade hebraica quando empreendeu a sua revolucionária política pedagógica: arraigada nos textos bíblicos, a doutrina do comum dos Judeus na altura de educar os filhos baseava-se no princípio da negatividade. Cumprir a vontade de Deus significava não matar, não roubar, não levantar falsos testemunhos, etc. O temor a Javé, enfim, era a corrente imperante no povo eleito. Assim tinha sido desde tempos imemoriais.
O profeta Isaías deixara-o perfeitamente claro: A sua profunda alegria era o temor do Santo (XI 2). E os salmos e provérbios encarregavam-se de o recordar a todas as horas. O amor a Deus embora defendido por algumas escolas e rabis, caso de Ben Cheta ou Zakkai, nada pudera contra o temor a esse Deus. Mesmo os pagãos que abraçavam o judaísmo eram chamados temerosos de Deus. E eis que naquele turbulento e humilhado crer de um Israel que nem se atrevia a pronunciar o nome da Javé (1) surge um humilde chefe de um não menos *1 Embora Deus tivesse revelado o seu nome a Moisés no Sinai, uns trezentos anos antes de Cristo, os ortodoxos da Lei começaram a recomendar a sua “não pronúncia”. E o célebre e cabalístico tetragrama – J H W H, (não existem vogais no hebreu), traduzido” como Javé, sofreu uma curiosa peregrinação”. Chamou-se então a Deus Adonai,, traduzido em grego pelos Setenta como Kirios, ou “Senhor”. E aquele temor, que foi aumentando com o tempo, levou os Judeus a prescindirem de outros vocábulos tradicionais com que Javé era designado: “Elohim” “ELE”. “Todo aquele que pronuncie o Nome,”, reza o Pesikia (CXLVIII. a), “pode ser condenado à morte,”. Neste ambiente de receio e temor por esse Deus colérico e vingativo, o povo de Israel acabou por designar Javé com termos como os seguintes: “o Nome”, “Céu”, “o Lugar,”. “A Mansão”, “a Morada”“, “a Presença”
“ou Elo,”, “a Glória,”, “a Majestade,”, “a Potência,”, “o Altíssimo”, “o Santo Único”, “o Misericordioso” e “o Eterno,”. (N. Do M.)
humilde armazém de abastecimento de caravanas, de uma humilíssima aldeia, que começa a pregar justamente o contrário. Primeiro, na sua casa, com os irmãos. Depois, de rosto descoberto. Eis outro traço da mensagem de Jesus que, obviamente, me atraiu a atenção desde o princípio. Quem era aquele atrevido que rompia a tradição e clamava em benefício do amor divino? Como podia erguer-se acima das leis, chamando a Deus Abba (Pai)? Porém esta teologia do Mestre – e volto à ineficácia dos evangelistas – era algo estabelecido no seu espírito desde a distante juventude. Os irmãos foram o seu primeiro testemunho. Aquele chefe de família de dezanove anos, quebrando hábitos ancestrais, ensina a usar a fórmula do positivismo. (Dos 613 preceitos do judaísmo, recomendados pelo Senhor ao seu povo, 365 tinham um carácter negativo.) O não farás é substituído pelo farás. E, inteligentemente, afastando as proibições, foi retirando importância ao mal, em benefício do bem. Este foi o ambiente que procurou criar em casa. - Tinha uma frase cuj a repetição o encantava – declarou Jacob com prazer: - “Não sejais como aqueles lacaios que sempre esperam uma recompensa; servi o Pai gratuitamente”. A fórmula foi genialmente encadeada com a do Pai Celeste. - Pensa no bom – Jacob enumerava alguns dos ensinamentos e conselhos daquele Jesus do ano 13 -, porque o Pai só tem memória para o bom. Ignora a maldade do soberbo e do presumido porque o Pai Lhe mostrará o caminho, a seu devido tempo. Caminha na confiança de que tudo foi criado para o equilíbrio. Prefere pensar bem dos outros. O Pai sempre concede o benefício da dúvida. - Nunca experimentou a humana necessidade de se revoltar? A espontânea questão foi compreendida e compartilhada. E Jacob,
seguindo o exemplo de Judas, exprimiu-se assim: - Nunca. Esse foi outro poço, todos entenderam o princípio da não agressão e de não violência. Ele deixava à vida a cobrança das injustiças. Para quê perder tempo e saúde em vinganças, pregava com grande sensatez; se de tal se encarrega a Natureza. Mas Judas era diferente. Aceitava, sim, a linha de seu irmão e pai, portas adentro. Lá fora, era uma tempestade de areia. As suas brigas estavam na ordem do dia. Tinha um grande coração, como sua mãe, mas era impulsivo e falho de tacto. A Senhora assentiu, muito a seu pesar. ...Jesus era inimigo natural dos castigos. No entanto, pelo menos em três alturas, viu-se na necessidade de sancionar o desobediente, provocador e irreflectido Judas. - Tinha só oito anos! - clamei em sua defesa. - Estamos de acordo. Mas as suas infracções passaram das marcas. E continuou assim durante anos. E algumas, como Tiago sabe, verdadeiramente graves... Esperei em vão que alguém me falasse daquelas irregularidades. - E em que consistiram os castigos? - perguntei finalmente, reservando o tema anterior para melhor oportunidade. - Antes de castigar, Jesus exigia que o culpado reconhecesse publicamente o seu erro. Depois, se o caso o merecia, eram os irmãos mais velhos e ele próprio que adoptavam a sanção pertinente. Judas. Neste caso, devia aceitá-la. Que eu me lembre, um dos castigos foi a limpeza da casa durante uma semana... Ante as lógicas falhas de Jacob, Tiago acudiu em seu auxílio: - Noutra altura teve de acartar água... Era suficiente. Ao interessar-me pelas reacções dos outros irmãos, Maria antecipou-se a Jacob: - Todos (e eu em primeiro lugar) compreendíamos que numa casa tão numerosa tinha de existir um mínimo de disciplina e solidariedade. Numas quantas pinceladas desenhou o carácter e o sentir de cada um dos seus filhos em relação à filosofia de Jesus:
- Tiago, mais equilibrado, foi o seu braço-direito. Miriam, nobre, venerava-o. José, trabalhador incansável mas pouco inteligente, fez-nos padecer. Simão, sempre nas nuvens, não entendia nada de nada. Marta, a mais estudiosa e séria da família, acusava seu Irmão de brando. Judas, pobrezinho, instável e agressivo, tinha grandes projectos. Foram precisos anos para compreender que tínhamos razão. E Ruth, um raio de sol. O mal é nunca saber por onde vai sair. Talvez seja bom fazer uma paragem nestas memórias. Pelo que sabíamos e graças à preciosa informação que fui acumulando em Nazaré, aquele Jesus, prestes a completar os vinte anos, podia ser considerado como homem adulto, ainda ignorante da sua dupla natureza. Era um trabalhador infatigável. Paciente. Analista e metódico. Capaz de tomar grandes decisões. Com ideias religiosas, teológicas e filosóficas diametralmente opostas ao comum dos Judeus. Consciente da sua responsabilidade para com os seus e, ao mesmo tempo, com um ideal de futuro lenta mas solidamente ancorado na sua alma: falar de seu Pai Celeste à confusa humanidade. Um projecto que, de acordo com a vontade do Pai, se materializaria no devido momento. A condição humana era de uma singular sensibilidade: amava a Natureza, todas as manifestações artísticas e quanto podia rodeá-la. Como bom leão era audaz, generoso, alegre e com um notável sentido de humor (1). Era justo, tenaz e excessivamente respeitoso para com *1 Hesitei na altura de incluir esta documentação sobre Jesus. Não é em vão que sou Virgem... Mas, finalmente, em honra da memória de Eliseu – autor do trabalho – achei oportuno completar quanto venho a dizer com, pelo menos, uma síntese de um curioso horóscopo (o termo não era do agrado de meu irmão, mais versado do que eu nestas questões (nota interrompida.)
as ideias dos outros. Procurava viver, fazendo maior uso do sim que do não. Naturalmente, como iremos vendo, tinha um fraco pelas viagens. Como referira seu irmão Tiago, sair para o mundo, abandonar
Nazaré, ainda que fosse durante umas horas, transformava-o. Qualquer coisa dentro de si o exigia. Fazia-o cidadão do horizonte. E bem o demonstraria... *(continua a nota.) esotéricas. Elaborado com a ajuda do computador central do “berço,”. Nunca lhe perguntei como o tinha conseguido. Só me lembro que um belo dia, durante o “terceiro salto” mergulhou na sua realização, fornecendo ao “Pai Natal” quantos dados tínhamos recolhido. O fruto do seu trabalho entusiasta deixou-me atónito. Quem sabe se o presente resumo pode ser útil para algum outro “louco maravilhoso”. A documentação – que nunca foi entregue a Cavalo de Tróia – dizia o seguinte: Horóscopo Natal de Jesus de Nazaré, Autor: Pai Natal. (O meu irmão preferiu camuflar-se com o nome de guerra do computador.) Belém (Judeia). Vinte e um de Agosto do ano “menos sete,”. Hora local (refere-se ao nascimento): 11 horas, 43 minutos e 9 segundos. (Outra indicação: quando do nosso “regresso” creio que fomos os únicos seres deste planeta que celebraram o Natal naquela data e naquela hora.) Dados gerais: longitude (30 graus Este E 12 minutos), latitude (30 graus Norte e 43 minutos). Hora universal (Greenwich): 9 horas, 22 minutos e 21 segundos, Hora sideral: 9 horas, 33 minutos e 7 segundos. Casas [Na devida altura, Eliseu foi-me explicando o significado de cada um destes vocábulos. A verdade é que, por não lhe prestar muito interesse, o fui esquecendo]: Casa I (Ascendente: 15 graus 25 minutos, Escorpião). Casa II (14 graus 49 minutos, Sagitário). Casa III (17 graus 06 minutos, Capricórnio). Casa IV (Baixo Céu: 21 graus 06 minutos, Aquário). Casa V (23 graus 32 minutos, Peixes). Casa VI (21 graus 40 minutos, Carneiro). Casa VII (Descendente:15 graus 25 minutos, Touro). Casa VIII (14 graus 49 minutos, Gémeos). Casa IX (17 graus 06 minutos, Caranguejo). Casa X (Céu Médio. 21 graus 06 minutos, Leão.) Casa XI (23o 32 Virgem) e Casa XII (21graus 40 minutos, Balança).
Esquema
PLANETAS – Longitude – Signos – Declinação – Velocidade Sol – 25 – 03 – 14 – Leão – 13n 16 – 0 58 42 Lua – 1 19 00 – Caranguejo – 28N 09 – 13 00 58 Mercúrio – 6 45 – Virgem – 9N 45 – 1 39 Vénus – 11 33 – Balança – 6S 45 – 1 01 Marte – 3 32 – Escorpião – 13S 59 – 0 41 Júpiter – 22 36 – Peixes – 4S 33 – 0 06R Saturno – 20 33 – Peixes – 6S 15 – 0 04R Urano – 4 15 – Peixes – 10S 49 – 0 02R Neptuno – 2 55 – Escorpião – 10S 52 – 0 02 Plutão – 9 18 – Virgem – 23N 08 – 0 03 Quiron – 10 38 – Carneiro - Nodo – 00 53 – Touro – 15N 54
ASPECTOS: Conjunção – 0; semisextil – 30; semiquadratura – 45; sextil – 60; quadratura – 90; trígono – 120; sesquiquadratura – 135; quinquôncio – 150; oposição – 180; paralelo – 0. (Seguem-se os símbolos que, como é óbvio, não se transcrevem.)
De momento, naquele ano 14, obedecendo àquele impulso magnético de viajar, Jesus ofereceu a si mesmo um pequeno luxo. E, começada a Primavera, dirigiu-se sozinho à Cidade Santa. - Pareceu-me o mais aconselhável – disse a Senhora. - Depois de tão intensa experiência, uma mudança de ares vinha a propósito. *(continua a nota.) SOL – Céu Médio, Nodo, Vénus, Urano; LUA – Mercúrio, Marte, Nodo, Urano, Neptuno, Asc; Vénus – Plutão, Sol, Saturno; Marte – Neptuno, Mercúrio, Lua, Urano, Nodo; Júpiter – Saturno, ascendente Sol, Céu Médio; Saturno – Júpiter, Ascendente Neptuno, Marte, Céu Médio, Vénus; Urano – Lua, Marte, Neptuno, Nodo, Sol, Mercúrio, Plutão; Neptuno – Marte, Urano, Mercúrio, Lua, Saturno; Plutão – Mercúrio, Nodo, Vénus, Urano. Jesus de Nazaré. Este relatório, mais que uma carta astral para a pessoa de Jesus, deve considerar-se como uma representação simbólica da sua relação com o mundo. Através do signo Escorpião – que guarda o mistério da ressurreição – falanos da sua missão na Terra, deixou uma mensagem escritaH em simbologia astrológica. Mesmo assim pode ser estudado também como um ser humano. Análise da carta astral do seu nascimento. Surpreende a posição de todos os planetas – com excepção de Saturno e dos exteriores – nos seus espaços. Excepcional. Indica que Jesus representava todas as forças cósmicas em equilíbrio: o homem perfeito, o Homem-Deus.
Saturno e Úrano não aparecem nos seus espaços. Encontram-se em Peixes: facto altamente significativo. (Trata-se do signo místico por excelência. O peixe”, seu símbolo seria usado posteriormente pelos cristãos.) Nesta carta domina o elemento água,. O homem “de água”, vive a nível psíquico. Sente-se como um estrangeiro no mundo da realidade. Termina sempre afastando-se do material. A influência deste elemento proporciona um alto grau de sensibilidade. O nativo sente a necessidade de viver intensamente. Escorpião, signo do ascendente (grau da Elíptica que figura no horizonte do lugar natal do momento do nascimento), domina a sua carta. Além de representar o povo hebreu, é o símbolo da morte; de uma morte voluntariamente assumida, que permitirá renascer de um Amor Superior que transcende os sentidos físicos. A energia mais forte do homem escorpião” é a do seu desejo. No altamente evoluído”, a sua força sexual não actua no plano erótico: convertese em força condutora. É uma fonte rejuvenescedora para a humanidade; um médico”, no mais amplo sentido da palavra. O homem de que emanam forças curativas. Estas forças possuem, por sua vez, o dom do fascínio. Raro é o homem HescorpiãoH que não reúna à sua volta um grupo de pessoas, magnetizadas pela sua irresistível atracção pessoal. Plutão, regente do signo fixo de água Escorpião, assume a regência desta carta. Encontra-se mais bem situado e mais forte que Marte, o outro regente do signo. Plutão representa a transformação. É comparado a uma força ou poder invisíveis. (nota interrompida.)
Deduzi que se referia a Rebeca. - Além disso, havia algum tempo que o via inquieto. Eu sabia do seu amor pelos caminhos. E, assim, juntámos algum dinheiro e partiu. - Quanto? Olharam-me, sem compreender. Só Tiago entendeu a minha *(continua a nota.) A sua influência facilita a revelação dos poderes do subconsciente. Põe à disposição do nativo meios para promover e despertar nas massas o tipo de sensibilidade que desejar. Influi sobre a consciência colectiva. Quando Plutão se vincula a um signo de fogo (o signo de posição do Sol) acentua poderosos e urgentes estímulos de ordem emotiva e concede uma extraordinária capacidade dramática. Plutão em Virgem, como se apresenta nesta carta, conduz a fanatismo de ordem social e intensifica ao máximo o poder
envolvente das massas. Acentua também a força do subconsciente e proporciona uma personalidade sugestiva e fascinante. Quando Plutão se une a Mercúrio confere capacidade de persuasão e um agudo sentido de observação. A sua força espiritual é irreversível. Sob esta influência, o nativo desenvolve uma intensa persuasão, bem como uma excelente habilidade diplomática. O signo de posição do Sol é o Fixo de Fogo (Leão), que representa o princípio da vontade (a manifestação de vida do Eu). Do homem leão” altamente evoluído emana tal aura de positivismo que, à sua volta, se esquecem os sofrimentos. É optimista e acredita firmemente no bem. O triunfo do bem sobre o mal – pensa o Leão – é uma lei imutável. É frequente aparecer dotado de tal serenidade que a sua supremacia é inquestionável. Não é fácil à crítica vergá-lo. Tudo o conduz a um notável grau de majestade e grandeza. Um dos seus mandamentos íntimos é apoiar moralmente os outros, sempre com o exemplo e sem ordens nem proibições. O Sol aparece como o planeta na sua carta. É o vivo símbolo do infinito, do divino, do criador, da luz, do espírito organizador do Universo, do sublime e da liberdade, em contraste com o destino que personifica Saturno. É a individualidade. O Eu imortal em contraposição à personalidade que simboliza a Lua. O Sol representa o génio criador. E proporciona sentimentos profundos e estáveis, critérios firmes, persuasão e grande vontade. É magnânimo e generoso. Inspira admiração e simboliza o mais elevado estado de consciência. O seu princípio é o do poder. No mundo instintivo é a inclinação para tudo o que contribui para a elevação vital. No afectivo reina,, sobre os seus satélites e desfruta da veneração que lhe professam. Os seus pontos de vista são amplos, objectivos e sistemáticos, com uma excelsa filosofia. Aqui, o Sol manifesta-se através das vibrações aquáticas, de Escorpião. E ganha em fortaleza, intuição, nobreza, tenacidade e honradez. Neutraliza as Hinfluências ígneas, próprias de Leão, aparecendo menos optimista, veemente e autoritário. A Água sensibiliza-o e proporciona a emotividade de que carece Leão. Mantém o impulso de dirigir os outros, mas através do sentimento e não tanto por meio da autoridade, características do nativo de Leão. O signo de Peixes também se fortalece ao albergar três planetas lentos: Urano, Saturno e Júpiter. É o símbolo que se envolve profundamente no psíquico. Extremamente sensível a qualquer oscilação do espírito. Sente as dores da vida própria e da alheia. Júpiter é o planeta transmissor das forças correspondentes à radiação de Peixes. Nesta carta encontra-se localizado no referido signo, exercendo todo o seu poder. Júpiter fornece o impulso para se libertar de toda a influência que o amarre ao
material, concedendo asas que o elevem aos planos espirituais. Liberta-o do seu destino – representado por Saturno – o que mostra simbolicamente a cúspide da Casa V entre ambos os planetas. A referida Casa representa o cumprimento de uma meta através da morte. O Nodo Norte Lunar em Touro assinala o objectivo da sua encarnação: experimentar, viver a vida humana na matéria para o signo de terra”, representa: Touro. Neste signo chega ao final do seu percurso pelo Zodíaco, no seu movimento simbólico de retrogradação. No último signo de terra” que deverá percorrer para se desligar do seu vínculo com a matéria e, conhecendo-a, regressar à sua” órbita de Fogo, onde iniciou o caminho. (nota interrompida.)
prosaica interrogação. Fazendo com os dedos indicador e polegar o internacional gesto do dinheiro, transmitiu a ideia a sua mãe. - Ai, Jasão!... Como vou eu lembrar-me? A incrível memória de seu filho resolveu o dilema. - Cerca de vinte denários... *(continua a nota.) Plano físico. Indivíduo de enorme fortaleza física, pois que Plutão, seu regente, dota de desmedido poder para resistir à dor. O signo do Sol (Leão) aclara o negro do cabelo que Plutão proporciona, bem como o dos olhos. Acastanhado. Olhos cor de mel. Rosto de testa ampla e pele clara. Expressão profunda, que irradiava grande certeza. Corpo bem proporcionado. Elevada estatura e ampla capacidade torácica. De atitude decidida e manifestações claramente masculinas. Aquário estabeleceu uma origem cósmica e um nascimento original,. (Ignoro a que possa referir-se o Pai Natal com a palavra ,original.) A sua vida – reza a carta – ver-se-ia repentinamente truncada. Mercúrio une-se em conjunção ao regente natal Plutão, causando uma morte violenta e provocada, em certa medida, por Ele próprio. A Lua (indicador dos nascimentos) na Casa da morte, assinala um nascimentoH através da morte: a ressurreição. Indica igualmente uma morte pública às mãos de militares,. (Os romanos eram-no.) Plano mental. Mercúrio, o planeta da razão, encontra-se muito elevado na sua carta, exercendo uma forte influência na sua pessoa. Faz suspeitar que a razão desempenhou um importante papel na sua missão (situado naquela Casa).
Grande facilidade de palavra e filosofia profunda. Expressão em termos enérgicos. Atacava verbalmente com dureza os seus inimigos, embora utilizando todas as suas artes. Cada planeta proporcionava-lhe as qualidades necessárias para a obtenção do resultado apetecido. A sua filosofia. Nesta carta, a filosofia de Jesus aparece reflectida através da simbologia astrológica na seguinte mensagem: “A luz, a união com o Pai: objectivo final da sua vida”. Os meios com que o homem conta para o conseguir – graças à Natureza – aparecem nas doze Casas. A ordem natural do Zodíaco, que arranca no grau zero de Carneiro, oferece um quadro puramente material, com Capricórneo no Céu Médio, limitando-se a um destino. Aqui, a roda gira e situa Escorpião como princípio: a encarnação. Porém, a encarnação de um Ser que tem a sua verdadeira origem, não no seio materno, como assinala Caranguejo no Zodíaco natural, mas sim no Cosmos, e cuja máxima aspiração é a ele regressar. Eis, Casa por Casa, a mensagem astrológica” que o Filho do Homem deixou: Casa 1 (Escorpião): “Como é o homem”. O homem faz a sua incursão no mundo sob as vibrações aquáticas do signo do Escorpião. Na sua constituição física o elemento predominante é a água. É um ser intuitivo por natureza, cuja vida se manifesta através do plano psíquico, representado pelos signos de água. Nesta existência deverá aperfeiçoar-se e alcançar o equilíbrio entre as suas naturezas: a material e a espiritual. O ser humano perfeito é a consequência de um conjunto astrológico harmonioso, no qual cada planeta está no seu próprio espaço. Através dos seus signos vibram positivamente, dotando-o com as características necessárias à sua evolução. Casa II (Sagitário): “que possui”. Esta Casa representa o que logra com o seu esforço. Aqui, em vez de se manifestar em Touro, como no Zodíaco natural, significando os bens materiais, situa-se em Sagitário: o símbolo da sabedoria. À sabedoria divina não se chega pela experiência física ou pela prova material, mas mercê, sim, dos conhecimentos abstractos representados pelo Sagitário. Ele introduz o elemento Fogo (acção) em forma de sabedoria, que, através da actividade simbolizada pelo segundo signo Fogo-Carneiro (trabalho) conduz à meta: terceiro signo de Fogo (Leão). Casa III (Capricórnio): “A mente concreta”. Capricórnio é o primeiro signo de Terra que aparece nesta carta e coloca o homem em contacto com a realidade, graças à mente. Dá-lhe consciência do alheio segundo o signo de Terra (Touro) em VII. Ao aperceber-se daquele mundo real que o circunda ganha consciência de que a sua actuação requer a participação dos outros e isso leva-o à cooperação, simbolizada no terceiro signo de Terra na Casa da amizade. (nota interrompida.)
A verdade é que não era muito. E seguindo a rota de Meguido e Lida, imagino que de coração radiante, fez rumo a Jerusalém. - A sua intenção – prosseguiu Maria – era permanecer em casa de Lázaro. Não sabes o afecto que a família ganhara por ele. A seguinte pergunta – inútil, na aparência – não foi assim tanto para a família. *(continua a nota.) Casa IV (Aquário): “A origem do homem”. O homem provém do Cosmos, representado pelo signo de Aquário. A sua origem material é estabelecida por Caranguejo – signo da maternidade, e no Zodíaco natural é a Casa IV. Aqui, em contrapartida, situa-o no oceano cósmico. A mãe está representada pelo Cosmos. O pai é o criador: o Sol. O final da vida e o retorno ao ponto de origem. O homem entra no plano mental pelo signo de Aquário. Aí espiritualiza a experiência, pela mão da razão, representado pelo segundo signo de Ar: Gémeos. Casa V (Peixes): “A sua obra”. Depois de se tornar consciente da realidade e de ter entrado no plano mental começa a criar, graças ao plano emocional e à sensibilidade que Peixes lhe proporciona. Os filhos, reflectidos na quinta Casa astrológica, são a obra do homem. Eles perpetuam a espécie. A mente, em contrapartida, perpetua a sua obra intelectual. E isso consegue-se pelo plano intuitivo, representado neste sector. Não existe criador sem intuição nem sentimentos. Casa VI (Carneiro): “O trabalho”. Por este signo de Fogo, o homem recebe a energia que o impele à acção. Começa a actuar por iniciativa própria e torna-se consciente da realidade do plano de Fogo: a luta pela vida. E tem de contribuir com o seu trabalho físico e mental para a vida. É a energia vital ao serviço da humanidade. Casa VII (Touro): “O inimigo do homem.” Esta Casa simboliza o alheio, bem como as forças que actuam contra a iniciativa humana. O signo de Terra (Touro) encarna o amor pelos bens materiais, o enraizamento no material. E assinala aqui o mais perigoso e subtil inimigo do homem: a ânsia pelas riquezas, o luxo e o prazer material. O homem tem de superar a lei dos contrários e vencer a tentação do prazer. Casa VIII (Gémeos): “A morte.”
A Lua – que simboliza os nascimentos – coloca-se nesta Casa assinalando que a morte não é mais que o nascimento para uma nova vida. A palavra (o verbo), a vibração sonora, desempenha um papel primordial na criação e no processo evolutivo vinculado ao renascimento para essa vida nova. O objectivo final da morte, simbolizado pela cúspide de Peixes, marca a separação do corpo físico do espírito. O primeiro volta à matéria (Saturno). O segundo, como uma viajante (Júpiter), empreende outras viagens, para planos ou níveis de existência. O Grande Trígono (Lua, Marte e Úrano) fala de realização mediante um ciclo que se origina no Cosmos, seguido pelo nascimento, da morte e da ressurreição. Casa IX (Caranguejo): “A mente abstracta.” Depois de assimilar os conhecimentos pela mente concreta, que o quadro da realidade confere ao homem, terá de os canalizar através do sector intuitivo. Esta Casa representa a mente superior, a filosofia e a religião. Caranguejo introduz o elemento imaginação no processo mental superior. A intuição de Escorpião, a sensibilidade de Peixes e a imaginação de Caranguejo constituem os três elementos básicos para desenvolver a vida psíquica do homem. E daí emana a sabedoria divina. Esta Casa simboliza também os sonhos, esse processo, ainda enigmático, que aqui aparece como uma ferramenta para aprender e adquirir conhecimentos superiores. Casa X (Leão): “A meta.” O objectivo da existência, simbolizado aqui pelo Sol: a luz. Chegar a Deus – alcançar a sabedoria completa – é essa a meta do homem. O terceiro signo de Fogo (Leão) representa a vontade. Adquirida a sabedoria teórica, é pela vontade que podem pôr-se em prática os conhecimentos e alcançar a superação; quer dizer, o controlo absoluto do Eu inferior e do Eu superior. Casa XI (Virgem): “Os aliados do homem.” Eis os amigos, os protectores, tudo aquilo que ajuda o homem a cumprir a sua missão. Vénus indica onde pode encontrar-se a força para chegar à meta: no amor espiritual, baseado no equilíbrio matéria-espírito, como assinala Vénus em Balança. Esta Casa representa as associações voluntárias, (nota interrompida.)
- Claro que viajou sozinho. Não foi pequena a zanga que tivemos por causa desse assunto!.. - Não exageres, mãezinha! - murmurou Jacob. A Senhora ignorou-o. - Disse-lho mil vezes. Não era conveniente que se aventurasse por esses caminhos sem a companhia de alguém. Ele, porém, limitava-se a sorrir. Recomendei-lhe que esperasse por uma caravana. E replicou, com
razão, que podiam passar-se dias. Sugeri-lhe então que viajasse armado. Ai, Jasão! Ficou muito sério e replicou: “Mãe, que melhor escudo que o céu azul de meu Pai?” Como sempre, lá impôs a sua... Só o Todo-Poderoso sabe como eu fiquei. Miriam fez um sinal. A mãe exagerava. No entanto, tendo em conta aquilo que eu vira e em que participara, na marcha do yam a Nazaré, não tive outro remédio senão pôr-me do seu lado. Naturalmente que tinha razões para se inquietar e discutir com o confiante Jesus. Mas a sorte seria a sua sombra naqueles quatro dias de caminho. Ou não devo falar de sorte? Tiago, o único que soube dos pormenores desta sua primeira viagem solitária, passou a assumir o comando do relato. - Não sei se comentámos noutras alturas o profundo desagrado que Jesus experimentava sempre que visitava o Templo... De facto. O tema fora referido nas conversas travadas em Betânia. ... Pois bem, nesta terceira entrada em Jerusalém (segundo me confessou no regresso) o repulsivo espectáculo dos sacrifícios e o descarado comércio no Átrio dos Gentios evidenciaram os seus antigos sentimentos. “Aquilo é uma vergonha”, disse. “Pagãos, sacerdotes e judeus converteram a festa da Páscoa num latrocínio. Só o dinheiro Lhes interessa. E têm o atrevimento de justificar a sua repugnante actuação “em nome de Javé”. Que espécie de Deus acreditam que servem? Será que o derramamento de sangue serve para mais alguma coisa que não seja truncar a vida de um animal e revoltar o estômago dos sensíveis? Meu Pai não é um Deus de sangue.” E entristecia-se, Jasão. Esta concepção de Javé que era preciso aplacar era para ele pueril e própria de um povo incivilizado. Essa, como sabes, foi uma das suas permanentes batalhas. Movido por aquela natural repugnância propôs a Lázaro e a suas irmãs o que, a partir daquele ano 14, se converteria num verdadeiro símbolo: festejar a Páscoa prescindindo do cordeiro. *(continua a nota.) e ensina ao homem a sua terceira realidade (terceiro signo Terra-Virgem): “na união reside a força”. O homem, solitário, não pode lograr a sua meta final. É
preciso participar na evolução colectiva da humanidade. Casa XII (Balança): “A doença.” Este sector representa a doença incurável, o erro, os impedimentos, as penas, o mistério e o inimigo oculto do homem. O terceiro signo de Ar, Balança, na Casa XII adverte do perigo que representa o inimigo oculto: a cultura,. Quando o homem, no seu processo educativo, deprecia a intuição e a sensibilidade que conduzem a planos elevados de consciência cai numa “intelectualidade enfermiça”, incapaz de reconhecer a capacidade emotiva. A sua cultura é falsa e incapacita-o para intuir sequer a verdade. O homem, então, acaba por se converter num escravo das suas próprias paixões; quer dizer, num desequilibrado. (N. Do M.)
- A família de Betânia – continuou Tiago -, que não esperava a visita de meu Irmão, ficou estupefacta. Celebrar a solene festa rompendo com a tradição? E Jesus explicou-lhes que aquele género de rituais não era importante. Que nada tinham que ver com o Pai dos Céus. E, pela primeira vez, ainda que em segredo, um grupo judeu quebrou a sagrada lei de Moisés. Na mesa de Lázaro houve apenas pão ázimo e vinho com água. Num apaixonado discurso, Jesus chamou aqueles manjares o pão da vida e a água viva. Era, efectivamente, o nascimento de dois conceitos que, com o passar do tempo, sofreriam a mesma deformação que o célebre cordeiro pascal dos Hebreus. ... Não sabemos como o conseguiu mas, a partir daquele ano, sempre que Jesus assistia a uma Páscoa em Betânia, os amigos respeitavam os seus sentimentos e prescindiam do ritual. - E aqui – perguntei, cheio de curiosidade – estabeleceu o mesmo costume? Tiago transferiu o problema para sua mãe. - Aqui houve de tudo... O tom de Maria deu-me a entender que a ideia revolucionária de seu Filho não tinha sido tão bem acolhida como na herdade de Lázaro. . . Falámos muito sobre aquilo. Mas Nazaré não é Betânia. Ali, naquele tempo, Jesus era um desconhecido. Além disso, quebrar um costume de toda a vida não era tão simples. Ao princípio, opus-me. Depois, fui compreendendo. Tinha razão.
Mas, mesmo assim, por prudência, continuámos a celebrar a Páscoa segundo a lei de Moisés. O seu vigésimo aniversário decorreria sem grandes sobressaltos. Segundo os dados recolhidos junto da família, aqueles meses distinguiram-se por uma normal placidez, quebrada apenas por três factos de certa relevância. Um deles, de especial preocupação para Maria: a incógnita do celibato de Jesus. E a Senhora teve com Ele uma longa e transcendente conversa. Que planos tinha quanto a isso? Como pensava encarar a sua vida, uma vez liberto das obrigações familiares? Estas questões – que hoje, com a perspectiva de vinte séculos, podem parecer insensatas – não o eram tanto em 14 da nossa era. Maria, tenho de insistir, não podia imaginar sequer o rumo que o seu primogénito ia seguir. No seu coração aninhava-se ainda a crença de que Jesus chegaria a ser o Messias prometido. Isso, porém, não implicava, nem nada que se parecesse, o celibato. E na sociedade que coube em sorte ao Mestre, ficar solteiro não era precisamente o estado perfeito. O Génese (I, 28), com a ordem de Javé – crescei e multiplicai-vos – fizera do celibato algo de anormal e sempre discutido. Um solteiro, clamavam os rigoristas da lei, não é verdadeiramente um homem. Apenas as seitas dos Essénios e dos Nazarenos (a que pertencia João Baptista) praticavam o voto de castidade e, em muitas ocasiões, de modo temporário. O matrimónio – é conveniente não esquecer – era a máxima bênção. E mais ainda, a prole. Uma família numerosa, se possível com muitos varões, era o aconselhado por aquele Javé bíblico e autoritário. “Dom do Único são os filhos e é mercê sua o fruto do ventre”, rezava o Salmo (CXXVII e CXXVIII). Um dos habituais jogos de palavras entre os Hebreus – banim (crianças): bonim (construtores) – punha em evidência este arraigado costume. Os filhos eram como as oliveiras novas.
As sucessivas dispersões do povo eleito tornavam aconselhável - quase necessário – o nascimento demográfico. De facto, ainda que na época de Jesus se tenha reduzido notavelmente, a poligamia era uma situação legalmente aceite. Em caso de esterilidade (curiosamente,
só se reconhecia a feminina), um dos máximos opróbrios, o marido podia ter concubinas ou procriar com as escravas e servas. (Assim aconteceu com Abraão e com Jacob.) E com o tempo, o que tinha nascido por estritas razões de esterilidade acabaria por se converter num hábito, pelo menos para os poderosos. Os pobres, como é lógico, não podiam aspirar a manter duas ou mais mulheres. Reis como David e Salomão (este último com umas cavalariças que albergavam mais de quarenta mil montadas) tinham haréns com centenas de mulheres. Porém, sem chegar a estes extremos, o ideal aconselhava que o homem tivesse mulher uma vez completados os dezoito anos. Era lógico, portanto, que a Senhora, apesar da negativa de seu Filho em contrair matrimónio com Rebeca, se sentisse preocupada com o seu futuro. Jesus, com vinte anos, podia ser alvo das críticas dos vizinhos. O texto rabínico Kiddouchim (XXIX, 6) exprime-o com clareza: “O Santo Único (bendito seja) amaldiçoa o homem que não se casou aos vinte”. Alguns rabis alongavam esta idade limite até aos vinte e quatro. Mas a mãe, como era de esperar, saíra da conversa tal como entrara: sem uma ideia clara do que o destino lhe reservava. O chefe da família foi categórico: o seu dever estava ali, na casa de Nazaré. Consequentemente, pouco havia que falar. Um Jesus de vinte anos – alheio ainda à sua divindade – a falar sobre o matrimónio pareceu-me especialmente interessante. E procurei mergulhar no tema mais a fundo. - Não sei, Jasão. Para dizer a verdade, vi-o hesitar. Tive a clara impressão de que não tinha parado para reflectir naquele assunto. Celibato ou casamento? Ambas as situações eram irrelevantes para ele naqueles momentos. Estas coisas, declarou com a sua habitual calma, chegarão... pela mão do Pai. Os assuntos importantes dependiam sempre do seu Pai dos Céus. Não chegou a minha hora. Era esta a sua frase preferida. E a mim, mais uma vez, me fazia sair dos eixos. Só pude fazer uma coisa: resignar-me. Os irmãos confirmaram as palavras da Senhora. Durante anos, ninguém conheceu os seus pensamentos. - O trabalho que seu Pai lhe tinha destinado – acrescentou Tiago –
marcaria o seu destino. Dali não havia maneira de o fazer sair. E dir-teei mais: se o Deus dos Céus lhe tivesse revelado que devia casar-se, meu Irmão tê-lo-ia feito com toda a felicidade. Nenhum dos dois estados lhe repugnava. Era solteiro mas conhecia o peso e a responsabilidade de uma família. Nisso, mais uma vez, se comportou com tanta paciência como sensatez. Para quê angustiar-se com o que vinha ainda longe? - E o que era longe para Jesus? Maria e suas filhas sorriram. E deram a resposta certa: - Para aquele Homem maravilhoso só existia o presente. O futuro, o amanhã, eram a vontade do Pai. O segundo acontecimento digno de menção nos últimos meses daquele ano de 14 teve nome próprio: Zebedeu. Da leitura dos Evangelhos parece deduzir-se que o Mestre conheceu o clã dos Zebedeus durante o relativamente curto período de pregação. Os evangelistas, mais uma vez, prestariam um fraco serviço aos crentes e à história. Foi pelos vinte anos que Jesus travou conhecimento com a próspera família de Saidan. A Grande Inteligência agia de novo... Naquela época, o chefe de armazém de abastecimento de Nazaré receberia uma agradável surpresa: uma modesta quantia em dinheiro, proveniente da venda da casa de Nahun, última propriedade de José. O imóvel em questão fora adquirido por um tal Zebedeu, dono de um dos estaleiros situados nas margens do yam. A partir de então, as relações entre Jesus, Zebedeu, pai e seus filhos iriam mais além. E o que num primeiro momento foi uma transacção comercial desembocaria num mútuo e enraizado afecto. A amizade do Filho do Homem pelos Zebedeus datava portanto do referido ano 14. Quando Jesus decide iniciar a sua vida de mestre havia mais de doze anos que sabia da existência de João e de Tiago, os filhos do trovão. O facto, como mais adiante se verá, teve a sua importância. O terceiro acontecimento, de indubitável relevância para a modesta economia familiar, foi constituído pela entrada de José – o terceiro dos varões – na oficina de carpintaria. Concluídos os seus estudos na sinagoga, de mútuo acordo, foi ocupar o lugar de aprendiz ao lado de Tiago. Eram já três os homens que ganhavam um salário no lar de Nazaré. Quanto ao papel dos sonhos as
perspectivas melhoraram. - Jesus, optimista por natureza, punha-me as mãos nos ombros e às minhas insinuações sobre a possibilidade de sair da pobreza replicava: “Mãe, nunca fomos pobres...” - A Senhora, ao recordar estas palavras, pronunciadas dezasseis anos antes, comoveu-se... - Que pena não o ter compreendido! E o destino, compassivo também com Jesus e os seus, veio conceder-Lhes um período de paz e de cordura. Ao longo do ano seguinte (15 da nossa era), tudo em Nazaré decorreu com normalidade. Com uma suspeita tranquilidade... Jesus, com a sua proverbial discrição, continuou à frente do armazém, velando pela educação e pela segurança dos seus irmãos mais novos. O único luxo daquele período, o do aniversário dos seus vinte e um anos, foi constituído pela habitual viagem à Cidade Santa; desta vez na companhia de José, que completaria catorze anos na manhã de quartafeira, 16 de Março. Com o precedente de Tiago, que tinha levado a Jerusalém na Páscoa correspondente à sua maioridade ante a lei, o chefe de família compreendia que não podia fazer excepções. E na companhia do jovem aprendiz seguiu pelo vale do rio Jordão até à buliçosa capital de Israel. E ali, como nas vezes anteriores, foi celebrar a festa na companhia dos seus leais amigos de Betânia. José, menos inteligente e intuitivo que os seus irmãos, limitou-se a escutar as suas histórias, quase sempre relacionadas com os locais que atravessavam. No seu regresso à aldeia, o futuro Filho do Homem, procurando novos incentivos em cada viagem, escolheu um novo caminho, a margem esquerda do Jordão, pela rota que passava pela cidade principal de Pereia (Amato), a uns oito quilómetros do referido rio. Aquela, como disse, seria a primeira incursão de Jesus pelas terras de leste. Quão difícil é aquilo que pretendo! Não tenho palavras, inteligência ou forças. Não obstante, aquela misteriosa luz que parece conduzir-me na redacção destas recordações brilha há dias como um farol. É como que um aviso. Tenho de o tentar. Nela confiarei. Por razões óbvias, que creio ter referido, a família e os íntimos de Jesus tiveram acesso aos seus pensamentos... até certo ponto. Pois bem, a partir dos anos em que nos encontramos (20-21, aproximadamente), a vida interior do futuro Rabi da Galileia foi
passando por uma decisiva mutação. Os seus perceberam-no, embora não com total clareza. Sempre que tentei sondá-los, as respostas foram as mesmas: Era um poço escuro e inacessível. Só nos falava do seu Pai dos céus. Jesus, o Filho do Deus vivo? Nunca o ouvimos falar de tal. Os seus poderes? Não os mencionou nem fez uso deles. Naturalmente que era diferente dos outros. Havia alguma coisa nele, sim, mas não o soubemos ver. Em minha opinião, aqueles dez a doze anos que mediaram até ao seu baptismo no Jordão poderiam ser qualificados de vida oculta. O único período – sempre a nível interior – de comprometida reconstrução. E embora seja apenas com toscas pinceladas, quem isto escreve quer lançar-se à árdua e penosa empresa. Para tal, só existe uma via: ir até ao próprio testemunho do Mestre, o único que, logicamente, estava com condições de lançar luz sobre o complexo e obscuro processo. Fazê-lo agora pode trazer um considerável benefício, permitindo uma mais completa e profunda compreensão da sua forma de viver e de agir durante os últimos tempos em Nazaré. A informação que me preparo para intercalar não procede, como é lógico, da minha aventura na aldeia. Foi obtida muito depois, nalgumas das numerosas e fascinantes conversas travadas no período de pregação de Jesus. Para começar – partindo sempre do testemunho do Mestre – é essencial que estabeleçamos o seguinte: Jesus encarnou-se na Terra com uma grande finalidade dupla. Ele, como Filho desse grande Deus ou Pai Celeste, já tinha conhecido a glória da divindade. (As palavras, disse-o são o meu inimigo. Farei o que puder). Quis porém descer até um dos mais primitivos níveis das criaturas dotadas de vontade. Nunca o compreendi; foram, porém, essas as suas palavras. Ele, como Soberano e Criador daquelas mesmas criaturas (chamadas seres humanos), deseja partilhar a sua existência. Para isso, o melhor sistema era fazer-se homem e viver como tal. E, logicamente, para o conseguir em plenitude, este Filho do Pai teve de renunciar – durante muitos anos – à sua, digamos, memória celeste, poder e natureza divinos. Por outras palavras: por expressa vontade,
Jesus nasceu, cresceu, aprendeu, sofreu e viveu como qualquer indivíduo da raça humana, absolutamente alheio à sua verdadeira identidade. Ponto este de difícil compreensão, mas decisivo, para entender aqueles anos da suposta vida oculta. “Só assim”, disse, “era possível que meu Pai reconhecesse a absoluta soberania do Filho sobre o criado.” (Palavras enigmáticas que o meu limitado entendimento não pôde resolver, embora as aceite). Concluída esta experiência na Terra – algo que, surpreendentemente para nós, teve lugar em vésperas da sua etapa de pregação – Jesus podia ter voltado ao Pai. A sua missão, ao que parece, estava cumprida. Tinha conhecido os homens e teria obtido – de pleno direito – a misteriosa entronização como Soberano. Mas, e eis outro aspecto mágico da encarnação do Filho do Homem, desde muito jovem, sem saber muito bem o que dEle se pretendia, aquela Superinteligência encarregara-se de manter o fogo sagrado de um ideal: revelar a existência daquele Pai-Deus à humanidade. Eis a segunda grande finalidade da sua visita à Terra. Durante muitos anos, curiosa ou paradoxalmente, Jesus esteve consciente deste segundo ideal, embora ignorasse quem era na verdade e por que razão nascera. Hoje poderíamos definir a situação como começar a casa pelo telhado. Mas não tenho a menor dúvida de que Deus é inteligente... E planear as coisas assim, no fundo, foi o mais sensato e natural. Imagino que um Jesus plenamente consciente da sua divindade, no tempo da infância ou da juventude, teria sido um erro. A vida, a sua experiência humana, deviam decorrer normalmente. A prova é que, até meados do ano 25 da nossa era Jesus teve uma única manifestação de índole celeste ou sobrenatural: quase pelos treze anos, na sua primeira visita a Jerusalém. Na referida ocasião – se me é permitida a liberdade – a Grande Inteligência despertou nEle a realidade de um Pai dos Céus. Aquele fogo naturalmente, nunca mais se apagaria. Mas, em que momento se abriu a sua inteligência humana à descoberta das descobertas? Teve de haver uma data, um período, em que o Mestre tomasse plena e definitiva consciência da sua origem e natureza divina. Para dizer a verdade, nunca aconteceu com a simplicidade com que o estou a colocar. Desde a juventude até ao histórico retiro da montanha do Hérmon, no
Verão de 25 (passagem ignorada e confundida pelos evangelistas com o segundo retiro no deserto da actual Jordânia) o processo de abertura à divindade foi irritantemente lento e gradual. Julguei entender que, a partir da experiência nos cumes do Hérmon (actual Sul do Líbano), ELE soubesse quem era. Mas, até àqueles dias o seu coração e inteligência debateram-se num oceano de dúvidas. Sabia que era um homem, nascido de mulher. E tinha perfeitamente clara a ideia de um Pai Celestial que, na devida altura, o chamaria para uma tarefa fundamental. A partir dos vinte ou vinte e um anos, o espírito daquele Homem entrou numa crise demolidora. Uma angústia cuidadosamente escondida de que ninguém soube nada. “Era como uma incontrolável torrente íntima que, pouco a pouco, me ia arrastando para a mais absurda das ideias: que eu tinha muito que ver com aquela Divindade, que era parte dEla...” A tragédia do Filho do Homem durante aqueles dez, doze anos teria pulverizado um colosso. Mas Jesus inteligentemente, não se precipitou. A sua quase suicida confiança no Pai salvou-o da loucura ou de algo pior. E limitou-se a seguir o curso dos acontecimentos e da vida quotidiana. A frase tantas vezes repetida – Não chegou a minha hora – foi providencial. Outra prova de quanto afirmo encontra-se justamente no facto de que só depois do baptismo no Jordão, plenamente certo do seu poder e identidade divinos começava a aceitar dos seus amigos e discípulos o título de Senhor e Filho de Deus. Antes daquele ano de 26, ninguém, nunca, pôde favorecê-lo com semelhante denominação. Ainda que em muitos momentos, em especial nos anos próximos do decisivo retiro no Hérmon, chegasse a ter a intuição ou a suspeitar da sua dupla natureza, defendeu-se muito bem de a manifestar ou de fazer uso dos seus poderes, que, sem dúvida, germinavam já em si. Até sua mãe, como julgo ter referido chegou a duvidar do seu papel messiânico: entre outras razões, por causa da ausência de prodígios. Em resumo: a autoconsciência da sua divindade foi um lento, gradual e, sem dúvida, doloroso parto de trinta e um anos de gestação. Fechado o parêntese, prossigamos com a sua vida humana... Chegada a vigília da meia-noite a fadiga fez estragos entre os meus anfitriões. Ruth caiu adormecida no regaço da mãe e Jacob, apesar dos
seus esforços, cabeceava lamentavelmente. E assim, de modo tácito, demos por encerrada a tertúlia. Tiago, levantando-se, convidou os seus a entoar a oração da noite: o Schema. E os cinco, voltados para sul – direcção de Jerusalém -, neste caso em frente da porta principal, levantaram os braços e recitaram em uníssono a oração extraída do Deuteronómio (VI, 4-7, e XI, 13-21) (1): - Escuta, Israel: Javé, nosso Deus, é o único Javé. Amarás Javé teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Fiquem no teu coração estas palavras que te dito hoje. E se obedeceis exactamente aos mandamentos que hoje vos prescrevo, amando Javé vosso Deus e servindo-o com todo o vosso coração e com toda a vossa alma, eu darei ao vosso país a chuva no seu devido tempo, chuva de Outono e chuva de Primavera, e tu poderás colher o teu trigo, o teu mosto e o teu azeite; eu darei ao teu campo erva para o teu gado, e comerás até te fartares. Cuidai bem que não se perverta o vosso coração e vos desencaminheis a prestar culto a outros deuses e a prostrar-vos ante eles; pois a ira de Javé se incendiaria contra vós e cerraria os céus, não haveria mais chuva, o solo não daria o seu fruto e pereceríeis bem depressa nessa terra boa que Javé vos dá. Colocai estas palavras no vosso coração e na vossa alma, atai-as à vossa mão como um sinal, e sejam como uma insígnia entre os vossos olhos. Ensinai-as aos vossos filhos, falando delas tanto em casa como em viagem, tanto deitado como levantado. Escrevê-las-ás nas empenas de tua casa e nas tuas portas, para que os vossos dias e os dias dos vossos filhos na terra que Javé jurou dar a vossos pais sejam tão numerosos quantos os dias do céu sobre a terra. Quem isto escreve manteve-se de lado. Foi para mim estranho ver e ouvir estas pessoas, tão próximas de Jesus, recitando uma reza bíblica que, enfim, implorava os favores de um Deus justiceiro, tão afastado das ideias do Mestre. É certo que nenhum dos varões fez uso das filactérias. Como também não cobriram as cabeças com o taled. Mas, muito contra a sua vontade, a tradição judaica pesava neles como uma âncora. E Tiago, desejando a paz aos que ficavam, pegou numa candeia, destrancando a porta. A noite, com o seu hieróglifo de estrelas, recebeu-nos tépida e
acolhedora. E a aldeia, sem um só archote nas paredes, apresentou-se na minha frente como um pequeno-grande conflito. A distância que me separava da estalagem *1 A partir dos treze anos, todo o judeu livre era obrigado a rezar, pelo menos duas vezes por dia: de manhã e à noite. As mulheres, escravos e crianças estavam isentos. Os mais ortodoxos envolviam-se no taled, uma espécie de xaile que, cobrindo a cabeça, caía até à cintura. Deviam ir munidos dos tefilin ou filactérias – tal como se diz no Deuteronómio – atados na testa e na palma da mão. Era estranho que se ajoelhassem, salvo em casos extremos. O habitual era permanecer de pé, com as palmas das mãos voltadas para o céu. As actuais representações de Jesus ou de Maria com as mãos unidas, em oração, provêm do século v da nossa era. Talvez fosse um costume de Bizâncio ou das tribos germânicas. Era corrente também que se rezasse em voz alta e batendo no peito. (N. do M.)
não era excessiva. Mesmo assim, aquele labirinpo negro e sem referências ficou-me atravessado na alma como um espinho. Fechada e trancada a porta, quando me preparava para me despedir, Tiago interrogou-me sobre a minha hospedagem. Ao falar-lhe da estalagem do Rã torceu o nariz, manifestando o seu desagrado. E durante uns dois minutos acho que com razão, me acusou de mau amigo e de falta de confiança nele e na sua família. Agradeci a hospitalidade e boas intenções mas, procurando incomodar o menos possível, argumentei que o meu alojamento fora pago adiantadamente. Hesitou e, respeitando a minha decisão não insistiu. Em compensação isso sim, ofereceu-se para me escoltar, recomendando-me que, dali em diante, procurasse andar de noite munido de um archote ou de uma candeia. E em silêncio fomos descendo a rua norte, ao encontro das portas da povoação. Nazaré, adormecida e sem Lua, era campo de batalha dos imundos e fantasmais morcegos de cauda curta, que caíam sobre o local como uma pontual quadrilha de lixeiros, animando tristemente as vielas e abrindo as eléctricas pupilas de dezenas de gatos. Pelos postigos apertados adivinhava-se o amarelo oscilante das obrigatórias candeias nocturnas. (Nenhuma família judaica dormia às escuras.) De repente, ao passar
uma das rampas de terra um miado enraivecido atravessou-se por entre as nossas pernas. O susto imobilizou-nos. De um tenebroso corredor, por onde surgira o atrevido gato, distinguimos um murmurar distante. Ao apurarmos os ouvidos julgámos reconhecer vozes humanas, abafadas na distância e num suspeito e intencional desejo de passarem despercebidas. A viela, muito apertada, mal permitia a passagem de um só homem. E Tiago, entregando-me a candeia, desembainhou o gladius. Instintivamente, relacionei aqueles sussurros com os passos precipitados que ouvira no pátio da casa de Maria. Mas não tive tempo de avisar o meu companheiro. Resoluto, avançou pelo corredor, disposto a desvendar a incógnita. E este confuso explorador, depois de uns segundos de hesitação, foi atrás dele. O local, cheio de imundícies e tão fedorento como outros recantos da aldeia, não parecia ir dar a parte alguma. Tratava-se simplesmente, da distância natural entre duas moradas. A três ou quatro passos Tiago parou. Pedindo a candeia, alongou-a para as trevas. O entrecruzar de vozes mais nervoso e agitado. E ao fundo precariamente desvendada pela chama da candeia, distinguimos afuga precipitada de dois indivíduos. Pelo que parecia, tentavam saltar o muro que fechava o beco. - Malditos! Devolvendo-me a candeia, Tiago, que começava a compreender as razões da intempestiva presença daquelas personagens, investiu contra as sombras. Uma conseguiu saltar o muro. A segunda, essa, foi apanhada por um pé, justamente no momento em que se preparava para desaparecer. Se a situação estava comprometida para o que procurava fugir, a minha não o estava menos. Que devia eu fazer. O destino – graças a Deus! - foi misericordioso. Ao ver-se apanhado, o indivíduo, longe de ficar abatido, reagiu com violência. Atirando um furioso pontapé ao peito do meu companheiro conseguiu derrubá-lo, escapando como um felino. Tiago levantou-se logo e, lançando uma espadeirada ao muro gritou de forma que pudessem ouvi-lo do outro lado: - Reconheci-te, maldito esbirro! Mais magoado no seu orgulho que na sua integridade física, pegou novamente na candeia, deixando o beco. Ao chegar às proximidades da
fonte, rompeu o seu mutismo, confessando-me algo de que já suspeitava: - Aquela víbora, Jasão, está sedenta de vingança... Tens de ter extrema prudência. E em justa correspondência pu-lo a par da estranha presença notada por seu cunhado e por mim nas proximidades da casa. A notícia não o alarmou. Tudo aquilo parecia fazer parte do estilo do perigoso saduceu. O que não conseguia compreender era o motivo da perseguição, mas não perguntei. Bem cedo o averiguaria e experimentaria na própria carne... A proximidade da estalagem tranquilizou-nos relativamente. A noite, no entanto, não findara. E quando passávamos pela ponte de pedra, com as luzes da estalagem à vista, Tiago, agarrando-me o antebraço esquerdo, obrigou-me a deter a marcha. Apontando o caminho que se abria na nossa frente, chamou-me a atenção. Na escuridão, distingui duas sombras que, na estrada, se dirigiam ao nosso encontro ou, pelo menos, manifestavam a clara intenção de atravessar a pontezinha. Rápido de reflexos, Tiago empunhou novamente a espada, ocultandoa atrás das costas. As duas estranhas personagens – uma delas de baixa e forte compleição – continuaram no seu precipitado afastamento da estalagem.Não havia dúvida de que tinham saído dos domínios de Heqet. Mas para quê tanta pressa? O meu amigo, prudentemente, pôsse de um lado do caminho. E logo descobriu a candeia que protegia por baixo do roupão, de modo a poder ser vista pelos dois indivíduos já próximos. A aparição da débil luz sortiu o efeito imaginado por ambos. A parelha travou a corrida, surpreendida pela súbita presença dos dois altos aparecidos. Avançaram uns dois passos e, detendo-se de novo, trocaram algumas palavras. A sua atitude era, de imediato, suspeita. Ignoro se nos reconheceram. O certo é que, seguindo o combinado naquele breve diálogo, separaram-se a grande velocidade. O mais alto meteu-se pela plantação de oliveiras que rodeava a estalagem. O outro seguiu em direcção oposta, saltando pelos hortos que se estendiam à nossa esquerda. Tiago, prevendo a má intenção dos dois desconhecidos, pôs a candeia no chão, indo em perseguição do primeiro.
Na precipitada separação da parelha julguei ver que largavam ou perdiam alguma coisa. Pegando na candeia, apressei-me a inspeccionar aquela parte do caminho. Com efeito, no pó ficara abandonado um embrulho. Ao descobri-lo fiquei estupefacto. Tiago, convencido da inutilidade da sua perseguição, não tardou em vir ao meu encontro. E ao ver-me de cócoras, diante do embrulho, revistando o conteúdo, pôs-se a meu lado, examinando-o com idêntica curiosidade. Ao verificar a sua natureza, olhou-me sem compreender. E antes de lhe proporcionar uma explicação, formulei uma única pergunta: - Esbirros do saduceu? Perplexo, acabou por reconhecer que era mais que provável. - Como adivinhaste? Mostrando-lhe as sandálias que se escondiam no embrulho disse-lhe que o calçado em questão era meu e que, com toda a certeza, o tinham roubado do meu quarto na pousada. Indignado, fez menção de entrar na estalagem e denunciar o Rã. Prudentemente, aconselhei-o a conter os seus impulsos. Embora fosse verdade que alguém – provavelmente os dois indivíduos em fuga – chegara até ao meu saco de viagem, levando as delicadas sandálias electrónicas, naquele momento ignorávamos a identidade dos ladrões e, o que era mais importante, se o anão era ou não cúmplice do furto. Tiago aceitou, contra vontade, as minhas sensatas recomendações e acabou por formular a pergunta-chave. - Porquê a ti? Que tens tu a ver com as ameaças que pairam sobre a minha família? Não soube responder-lhe. De qualquer modo, meditando com lógica, o problema não era assim tão complicado. Ismael, o sacerdote, sabia da minha existência. Tinha-me visto junto de Jacob e de Tiago. Dada a sua venenosa actuação, nada tinha de especial que desejasse averiguar quem era aquele estrangeiro e por que motivo se apresentara na aldeia, ao lado da odiada família do Galileu. Mas guardei estas reflexões para mim. E agradecendo muito sinceramente o favor prestado pelo galileu, incitei-o a que regressasse a casa. - Uma vez na estalagem – afirmei sem demasiada convicção – a minha segurança não corre perigo.
Com a firme promessa de voltar a casa de sua mãe às primeiras horas do dia seguinte, reatando assim as nossas conversas, vi-o afastar-se em direcção à encruzilhada de caminhos às portas da aldeia. E uma desagradável inquietação me acompanhou até à pousada. Regressaria sem novidade ao seu domicílio? Nesse sentido, pouco podia fazer. Quanto ao roubo, embora não tivesse tido oportunidade de inspeccionar o meu quarto, dei graças ao céu pela providencial recuperação das sandálias e do conjunto de instrumentos que continham. Se acabassem em poder do saduceu, quem poderia imaginar a sua reacção? E, inquieto, meti-me pelo túnel de entrada. O pátio a céu descoberto permanecia solitário. Quatro archotes, suspensos a metro e meio do solo, em cada um dos cantos, crepitavam, esquecidos, fumegando para o varandim de cima e empestando de breu e resina o lugar. Novas montadas denunciavam um aumento de clientela. Hóspedes que, a julgar pelas gargalhadas que saíam da taberna, não se tinham retirado para repousar. Como primeira medida, dirigi-me ao andar de cima. Antes de apresentar qualquer reclamação tinha de me certificar. E, cautelosamente, procurando em vão evitar que as tábuas da galeria rangessem, fui pôr-me em frente da porta do meu quarto. Foi absurdo pegar na chave que trazia pendurada no cinto: a porta estava aberta de par em par. Apossei-me de uma das candeias que se esforçavam por alumiar o corredor e, com todas as precauções, valendo-me do cajado, empurrei a gordurenta e desengonçada porta. Antes que batesse na parede, um chiar agudo e uma sombra – não sei qual foi primeiro – deslizaram por entre as minhas sandálias. O contacto com aquela pelagem áspera eriçou-me os cabelos. Irritado ante a repugnante presença da ratazana, atirei-lhe a candeia de barro que, naturalmente, rolou pelo soalho e foi cair com estrépito no pavimento do pátio central. Recomposto do susto, permaneci uns segundos junto do varandim, observando como se consumia a parca quantidade de azeite da malograda candeia. Uma vez que o ruído passara despercebido aos animados clientes de Heqet, peguei numa segunda candeia, penetrando no cubículo. Não me tinha enganado. O saco de viagem, aberto e vazio, veio confirmar o que já calculava. Um rápido olhar pelo quarto tornou claro que o ladrão, ou ladrões, se
tinham apoderado igualmente dos doze fármacos de campanha, meticulosamente camuflados noutras tantas pequenas ampolas de barro. Por mais que inspeccionasse o chão, além de baratas não conseguia ver rasto algum dos medicamentos. O facto de se encontrarem perfeitamente selados tornava muito difícil o seu derramamento. Todos eles tinham sido reduzidos a pó, em processos de dissecação ou de liofilização. A perda da botica num meio tão agressivo deixou-me preocupado. Se pudesse regressar ao módulo, o incidente quase não teria importância. Mas, na situação em que me encontrava e obrigado a regressar ao yam, o problema assumia gravidade. Por outro lado, o possível uso dos remédios era mais uma preocupação. Ainda que, na sua maioria, tivessem um carácter praticamente inócuo, outros, em contrapartida, podiam intoxicar e trazer complicações a quem os utilizasse (1). Mas o senso comum levou-me a afastar esta última possibilidade. Quem podia ser tão insensato que fosse tomar as estranhas substâncias? Mesmo assim, a semente da inquietação dominou-me. Tinha de recuperar as pequenas ampolas. O mais provável era que estivessem já nas mãos do saduceu, supondo que não tivessem tido a mesma sorte das sandálias. Tentei consolar-me. A perda do calçado tinha sido um acidente, consequência da brusca fuga. Estava decidido. Na manhã seguinte, com a desculpa dos remédios, apresentar-me-ia na casa da víbora... Quanto a denunciar o roubo, que sentido tinha isso? Em princípio, salvo complicações, limitar-me-ei a observar. A minha passagem por Nazaré, de acordo com o programado por Cavalo de Tróia, devia ser o mais discreta possível. Com estas intenções encaminhei-me para a taberna. O meu desejo, como disse, era elementar e simples em extremo: tratar de saber se o Rã ou algum dos hóspedes sabiam alguma coisa. *1 Alguns dos analgésicos de grante potência (à base de codeína), vários antibióticos de amplo espectro (tetraciclina, cotrimoxazol e amoxicilina, entre outros) e, em especial, os soros antivenenos podiam representar um perigo potencial para o consumidor. Para citar um exemplo direi que, no caso da tetraciclina, os nossos laboratórios tinham confirmado a existência de efeitos secundários: infecções do aparelho digestivo, transtornos gastro-intestinais (para doses diárias de dois ou mais gramas), coloração dos dentes, lesões renais e hepáticas, hipertensão intracraniana benigna (no caso de recém-nascidos: protrusão da fontanela
anterior), vertigem e provocação de lupus sistémico. Tudo isto, naturalmente, dependendo das doses ingeridas, da idade, constituição física, etc., do possível consumidor. Felizmente, dado o estado de liofilização de alguns dos fármacos, era pouco provável que chegassem a prejudicar os possuidores. Estas substâncias, na forma de pó extremamente poroso e muito higroscópico, recuperam as suas propriedades ao ser-lhes acrescentado um determinado volume de água: justamente a que lhes foi tirada no terceiro dos processos: a dissecação secundária. (N. Do M.)
A sala parecia estar mais animada do que eu suspeitara. Duas das três compridas mesas que presidiam à taberna-casa de jantar encontravam-se apinhadas de indivíduos que, a julgar pelos seus vestuários, pareciam gregos e fenícios. Discutiam, bebiam sem limites, riam com estrépito e, a cada jarro que esvaziavam, protestavam a Heqet. O Rã, sentado na terceira mesa, parecia absorto e sumamente ocupado. A seu lado, distingui um jovem com uma túnica curta e calçado tipicamente romano: o solea (uma espécie de sandália com sola, presa por correias de couro, que enlaçavam o dedo grande ao peito do pé). Numa ponta do tampo da mesa estava uma grande peça de roupa – parecida com um capote de lã grossa e que, num primeiro instante, identifiquei com uma toga romana (uma das vestes que, precisamente, distinguia todo o cidadão romano e cujo uso era proibido aos estrangeiros.) Do outro lado da mesa, em frente do estalajadeiro e formando uma fileira, aguardavam uns seis homens, idosos na sua maioria e habitantes da aldeia. Um deles, casualmente, fora vítima dos meus ultra-sons. Atrás das vasilhas que faziam de balcão palravam duas mulheres que, dada a sua indumentária, ou antes da falta de indumentária, identifiquei como raparigas ou prostitutas de serviço. Uma delas cobria a parte superior do corpo com uma espécie de xaile. A outra, em contrapartida, estava com o peito nu e colorido de amarelo. Ambas se exibiam com o mais completo descaramento, cobrindo-se, da cintura para baixo, com uma túnica ou gaze transparente. E a cada pedido de vinho, as meretrizes acorriam às mesas, enchendo os jarros. Entre a clientela distingui vários bufarinheiros ou vendedores ambulantes, com umas grossas e enormes varas de madeira repletas de roupa e amontoadas em desordem no chão da sala. Os restantes pareciam pertencer à próspera profissão dos rokel (comerciantes que
caminham em todas as direcções) e dos sitônes (compradores de grão por atacado e, muito frequentemente, de colheitas em verde). Estes indivíduos, tal como os chamados monopôles, que monopolizavam todo o género de produtos – agrícolas ou manufacturados – revendendo-os depois aos retalhistas, eram muito vulgares na Galileia e em especial nas aldeias ou cidades que, como Nazaré, desfrutavam de uma rica variedade agrícola. Adquiriam as colheitas a preços abusivos, retendo-as nos seus armazéns até os preços dispararem. Eram odiados pelos explorados camponeses ou artesãos, que, lamentavelmente, tinham de escoar os seus produtos. Ao ver-me junto à porta, uma das raparigas segredou ao ouvido da sua companheira. E separando-se das ânforas aproximou-se com um provocador gingar de ancas. Exibia nas têmporas uma estreita faixa de seda branca, que realçava o negrume do cabelo. De ambos os lados do rosto estreito e pintalgado caíam cordões com um total de vinte leptas, grosseiramente perfuradas. (Perder alguma destas moedas era sinal de má sorte. Segundo parece, a moeda extraviada na célebre parábola de Jesus podia tratar-se de uma destas leptas.) Sobrancelhas (meticulosamente depiladas), pestanas e pálpebras apresentavam-se sombreadas num tom verde-azulado, provavelmente com uma mistura de sulfurato de chumbo ou carbonato de cobre. E os lábios e unhas das mãos e dos pés, vermelhos-vivos, mercê do licor extraído das folhas trituradas de alfena. Ao chegar junto de mim, um perfume intenso – talvez de coentro ou de cássis – quase me fez espirrar. Aproximando os seus bem completos trinta anos dos meus ombros, tratou de me abraçar, ao mesmo tempo que murmurava um “bem-vindo à casa de Heqet.” Detive-a a tempo, e, pouco acostumado a tal atitude, inspeccionou-me de alto a baixo. Mudando de táctica, sorriu, acabando por estragar o seu indubitável atractivo físico: a infeliz padecia de uma piorreia alveolar, com a consequente inflamação purulenta do periósteo dos alvéolos dentários, uma feia necrose e um quase completo desprendimento dos dentes. Correspondi ao sorriso e antes que prosseguisse com as suas lisonjas evitei o incómodo encontro, interessando-me pelo estalajadeiro. A mulher, rendendo-se, indicou com tédio a mesa onde, naturalmente, eu já sabia que se encontrava o atarefado Rã.
Ao descobri-lo entregue ao seu gosto preferido – contar moedas – pouco faltou para que desse meia volta e desistisse dos meus intentos. Mas a curiosidade prendeu-me à mesa. A cena era nova para mim. Por uma rigorosa ordem, cada um dos vizinhos da aldeia ia ditando ao jovem sentado junto de Heqet o que parecia ser uma carta. O indivíduo em questão, munido de pena, tinta e folhas de papiro de umas oito ou dez polegadas, e de um grão e cor muito mais grosseiros que os habitualmente usados entre os escribas (provavelmente, tratavase do papiro siciliano), sem pressa e sem se impressionar com as comovidas frases dos humildes e analfabetos vizinhos, ia redigindo, em aramaico, os pequenos segredos, os pedidos ou os saborosos comentários dos seus clientes. Em plena função, o escriba levantou os olhos e, confundindo-me com um novo solicitante dos seus serviços, disse-me que esperasse a minha vez. O Rã, ao identificar-me, empalideceu. Simulando grande contentamento pôs o sócio ao corrente do meu elevado berço e melhores riquezas. De cal parecia o seu semblante, e o anormal gaguejar foi suficiente para eu saber que Heqet estava a par do roubo. Dado o volume de clientes que enchiam a estalagem, só uma informação precisa podia ter conduzido os esbirros de Ismael ao quarto certo. Longe de me enfurecer, optei por aceitar-lhe a versão, como se ignorasse o sucedido com o saco de viagem. Aceitando o convite do anão fui sentar-me na ponta da mesa, assistindo à redacção das últimas cartas. A maioria era destinada a parentes que residiam ao norte, nas margens do lago e na Alta Galileia. Um dos anciãos dirigia-se ao filho, alistado nos barcos de guerra de Roma e em resposta a uma missiva do jovem dava-lhe a conhecer o seu contentamento por ter terminado em bem a sua primeira missão, bem como pelas três moedas de ouro recebidas do imperador como paga. O bom homem rogava-lhe em segredo que fosse até aos pintores do porto e lhes fizesse chegar um retrato. O estalajadeiro, ao ouvir o pedido, deteve a mão do escriba e deu a saber ao submisso chefe de família que aquilo era proibido por lei e que, se persistisse, lhe custaria mais duas leptas. O ancião, sabendo que a lei mosaica repudiava todo o tipo de representações pictóricas, não teve outro remédio senão abrir a bolsa, depositando nas miseráveis mãos de Heqet a quantia exigida,
o que elevou a tarifa a um denário e duas leptas. Um outro vizinho tentava convencer um irmão, residente em Nahum, a que não tivesse contemplações com o seu sobrinho (seu filho) e se os puxões de orelhas não o fizessem entrar na razão, que recorresse à vara: Concluída a carta, o escriba procedia a uma rápida leitura em voz alta e, se o cliente se mostrava de acordo, era enrolada e depositada num amplo saco de couro. O calçado e o vestuário fizeram-me suspeitar de que me encontrava na frente de um correio. Possivelmente, um funcionário ao serviço de Roma. O que já não era tão ortodoxo era o jovem dedicar parte do seu tempo à redacção de documentos ou missivas privadas que, presumivelmente, deveria entregar aos correspondentes destinatários. E digo presumivelmente porque a corrupta sombra do estalajadeiro fazia cálculos até com a tinta usada pelo romano. Aquele duplo tinteiro chamou-me a atenção desde o princípio. Um dos recipientes de barro continha leite. O segundo, uma mistura de sumo de limão e cebola. A escrita, se bem que fraca, era perfeitamente legível. O que não sabiam os incautos vizinhos é que, dali a pouco, se tornava invisível. O truque da chamada tinta simpática – em que o papiro precisaria da proximidade do calor para tornar visível a escrita – fazia da operação um negócio chorudo. Era evidente que, uma vez abandonada a aldeia, o correio se desinteressava das missivas, aproveitando o papel para novas manobras fraudulentas. Quando o último dos clientes se retirou, o egípcio contou os ganhos pela enésima vez. Satisfeito, dividiu-os ao meio. O correio recebeu o combinado e o negócio foi celebrado com um generoso jarro de vinho. A rapariga que me tinha recebido cumpriu com rapidez a ordem do seu chefe. E servido o vinho, deslumbrada pelos denários que rolavam nas mãos do escriba, deixou-se cair sobre os seus ombros e, apertando-se contra as costas dele, perguntou-lhe se desejava mais alguma coisa. Heqet, que não parecia disposto a contentar-se com metade daquele dinheiro, antecipou-se aos desejos do correio e ordenou à mulher que – para começar – servisse ao seu amigo a ceia especial da casa. Sorridente, a meretriz piscou-me um olho, desaparecendo da taberna. Sem que tivesse essa intenção, com a inestimável colaboração dos
vapores do álcool, o romano foi sentindo simpatia por mim, respondendo às minhas perguntas com o calor de quem se sente satisfeito com o seu trabalho. Desta forma averiguei que, efectivamente, pertencia ao cursos publicus (1) do Império e que lhe fora atribuída a rota de Tiberíades, com prolongamento até Cesareia. *1 Organizado por Augusto, este importante departamento oficial, que fazia parte de uma espécie de Ministério dos Transportes”, abarcava uma complexa rede de funcionários, responsáveis pela circulação dos documentos e missivas oficiais. Estes funcionários podiam fazer uso de veículos, transportes e estalagens, de modo gratuito. Recebia um salário do Governo Central, não podendo fazer comércio por sua conta. Em geral, estes correios oficiais utilizavam as rotas marítimas, sempre e quando os portos se encontrassem abertos. De Roma à Síria, por exemplo, um enviado podia demorar uns cem dias. Quando os temporais tornavam inviáveis as viagens pelo Mediterrâneo, os funcionários viam-se obrigados a seguir as rotas terrestres, mais seguras mas, em geral, mais penosas. Neste caso, os mensageiros imperiais às províncias do Oriente viajavam pela Macedónia e pela Trácia, atravessando, em certas alturas, de Brindisi a Durazzo e, posteriormente, pelo Helesponto ou o Bósforo. Entre Roma, Síria e Egipto faziam dois caminhos; um em Brindisi e outro em Neapolis no porto de Filipos. Eis alguns tempos e distâncias percorridas por estes correios: ,de Roma e Brindisi 360 milhas; de Brindisi e Durazzo (hoje Durres), dois dias; de Durazzo a Neapolis, 381 milhas; de Neapolis a Troades, cerca de três dias e de Troades a Alexandria – via Antioquia e Cesareia – umas 1670 milhas. Os mensageiros levavam sessenta e três dias pela rota do norte, de Roma a Alexandria, e cinquenta e quatro de Roma a Cesareia. A velocidade média de um correio a cavalo oscilava entre cinco e dez milhas por hora. Quer dizer, uma jornada podia ser calculada em cerca de cinquenta milhas romanas. (Cada milha romana era equivalente a mil passos ou 1481 metros.) As viagens por mar encontravam-se sujeitas, como disse a outras exigências. Pelo Mediterrâneo a época mais segura e frequentada era de 26 de Maio a 14 de Setembro. Entre 10 de Novembro e 10 de Março, o tráfico paralisava quase totalmente e os mensageiros imperiais tinham de seguir as rotas terrestres. Nos períodos duvidosos (de 10 de Março a 26 de Maio e de 15 de Setembro a 10 de Novembro), a marinha só se arriscava a cobrir trajectos curtos: pelo Norte de África ou com a ilha de Sardenha. (N. Do M.) Em determinadas cidades (Magdala e Nahum entre outras) eram controlados pelos inspectores ou supervisores. Mas, segundo as suas
próprias palavras, estes eram tão corruptos como os próprios mensageiros. Só assim se podia entender o trabalho extraordinário do meu interlocutor. Passado algum tempo, vazios o segundo e o terceiro jarros, entrou em cena a rapariga. Com todo o género de reverências foi colocar na frente dos olhos enevoados do correio uma bandeja de madeira, com a especialidade da casa: uma suculenta carne de cordeiro, intencionalmente temperada com muita pimenta, sementes de urtiga, cebolas, couve silvestre e ovos. O copo de vinho recebeu, além disso, o complemento de uma prudente dose de resina de romãzeira. A ceia, com tal mortífera carga de afrodisíacos, encontrava-se meticulosamente estudada para estes casos. O mais provável era, uma vez devorada pelo hóspede e com a decisiva ajuda dos vapores etílicos, a prostituta e o Rã não terem excessivas dificuldades em depenar o ingénuo cliente. A amizade eterna que, na sua embriaguez, chegou a jurar-me o correio foi mudando para uma sonolência triste, muito própria dos embriagados. Felizmente um dos viajantes que gritavam na mesa ao lado – alertado sem dúvida por Heqet sobre as minhas supostas riquezas – veio resgatar-me temporariamente dos abraços efusivos do escriba. O fenício, de cabelo pintado num louro quase albino e modos efeminados, apresentou-se como o maior inventor de Tiro. Por um instante não soube qual daqueles companheiros de taberna e estalagem era mais de temer. Armando-me de paciência escutei o seu discurso, encaminhado para a venda de uma curiosa engenhoca que, com grandes mistérios, se dignou colocar na minha frente. Não posso negar que o invento, admitindo que fosse criação sua, me desconcertou. A pequena caixa de madeira de pinho continha no seu interior um total de cinco pequenas rodas metálicas dentadas, sabiamente engatadas entre si por sete eixos igualmente de ferro. Segundo explicou, uma vez acoplada aos raios da roda de um carro, permitia medir as distâncias percorridas pelo transporte. Uns simples cálculos matemáticos bastavam para que, a cada milha, da caixa principal se soltasse uma pedrinha que ia parar a um segundo recipiente. Desta forma, concluída a viagem, o condutor só tinha de contar as pedras armazenadas na segunda caixa, estabelecendo o custo do
serviço. Um primitivo mas engenhoso taxímetro. Prometi reflectir sobre a tentadora oferta. Que outra coisa podia dizer-lhe? Quando me dispunha a retirar-me, tão esgotado como farto de esperar a oportunidade para interrogar o estalajadeiro acerca do roubo, um inesperado e triste mcidente veio precipitar os acontecimentos. Numa das múltiplas idas e vindas da solícita rapariga que não deixava vazio o jarro do correio, este, quase à beira da inconsciência, acabou por tombar pesadamente sobre Heqet que, desprevenido, perdeu por sua vez o equilíbrio. Estalajadeiro e escriba, cómica e confusamente enlaçados, puseram-se a rolar pelo chão, arrastando o banco de madeira onde assentavam as nádegas vacilantes. Com tão pouca sorte que, na queda, surpreenderam os passos de Débora, a meretriz que foi estatelar-se e, o que foi pior, despejar os dois litros de vinho do jarro que trazia em cima do seu chefe. A clientela gargalhou, divertida, troçando do anão. E o egípcio, vermelho de ira e negro de vinho, rastejou como um réptil por entre as pernas do sócio inconsciente, atirando-se aos pontapés ao corpo caído da moabita. Os hóspedes, qual deles mais embriagado, começaram a bater palmas, fazendo coro a cada patada. Não o pude evitar. Num impulso, afastando com o pé a mochila de couro que continha os papiros, deitei mão às correias que prendiam às costas o avental do odioso Rã e levantando-o no ar arremessei-o contra o pavimento. A minha atitude foi igualmente vitoriada pela freguesia que, para dizer a verdade, não distinguia muito bem quem era quem. A mulher, com os lábios feridos e ensanguentados, apressou-se a desaparecer da sala e na sua corrida, milagrosamente, espezinhou e acabou por espalhar pelo chão as cartas enroladas. Um dos papiros, meio aberto, veio em meu auxílio... Estava visto e provado que este impulsivo explorador tinha muito que aprender...Heqet, atordoado, precisou de alguns minutos para se recompor. A margem foi suficiente para que a Providência me fizesse reparar no conteúdo invisível do papiro. Ao pegar-lhe, confirmei as minhas suspeitas. E uma ideia sibilina acudiu em meu auxílio. Os hóspedes, concluído o espectáculo, optaram por se retirarem. Quem isto escreve esperou que o egípcio recuperasse. Uma vez de pé, incapaz de precisar quem o atacara pelas costas, passeou o olhar vidrado pela
taberna, numa tentativa de localizar o agressor. De punhal na mão, a babar-se de raiva, acabou por fixar a sua atenção no único cliente que permanecia de pé na sala. O correio, a ressonar como um bem-aventurado, jazia no chão, entre nós dois. Adivinhando as más intenções de Heqet deslizei os dedos para os mecanismos de defesa. Aos saltos, balanceando de um lado para o outro, apontou-me a adaga. Com a língua prisioneira do vinho e da raiva, exigiu-me a identidade do maldito que o atacara. Como única resposta limitei-me a mostrar-lhe o papiro. Não foi preciso um único esclarecimento. Arrebatando-mo, observou-o vagarosamente. Depois, desviando os olhinhos brilhantes para o saco de couro, transformou-se num cordeiro. Guardou a arma e, procurando pensar a grande velocidade, convidoume a negociar. Aceitei de bom grado. Ele sabia que a minha descoberta, se chegasse aos ouvidos da povoação, podia acarretar-lhe uma série de gravíssimas dificuldades, além de se ver obrigado a devolver muitas tarifas pagas pelos confiantes vizinhos. A cada proposta fui negando com a cabeça. - Então – clamou, fora de si -, que pedes em troca? Não queres dinheiro, nem mulheres, nem alojamento gratuito!.. Lacónico e conciso, exclamei: - Uma informação! Recuperando o papiro exigi-lhe que escrevesse o nome do indivíduo que tinha maquinado o roubo. A sua careta de consternação foi-se apagando ante a dureza do meu olhar. Mas, numa última tentativa, arremessou a caneta para cima da mesa, negando-se. Não resisti nem alterei a gravidade do meu semblante. De modo natural retirei da bolsa o salvo-conduto assinado por Pilatos e li o seu breve conteúdo. Ante a ameaça velada de dar conhecimento do assunto ao sanguinário procurador, Heqet apressou-se a retomar o calamus. Trémulo, mergulhou-o na cavidade do tinteiro que continha leite, rabiscando a seguinte legenda: Ismael, chefe do conselho, ordenou a verificação do quarto e dos bens do grego de Tessalonica. Dei-me por satisfeito, apesar da subtileza da palavra verificação.
Depois da assinatura do documento dei por terminado o aborrecido episódio. Mas o egípcio, inquieto ante uma confissão que não o favorecia de ponto de vista algum, arriscou-se a perguntar-me quais eram as minhas imediatas intenções. Garanti-lhe que se tratava de um assunto pessoal e que, para sua tranquilidade, ninguém saberia daquele escrito. Mais uma vez, o ingénuo fui eu. Argumentar com um indesejável é como parlamentar com uma serpente venenosa. O ideal é mantê-lo à distância. Num gesto de boa vontade, mostrando-lhe a quase imperceptível grafia, acrescentei que, em breve, quando o leite secasse, a letra desapareceria. O que não lhe disse, embora pense que não era tolo que não o soubesse, era que, em caso de necessidade, bastava um pouco de cinza ou de pó de carvão para que a tinta invisível fosse legível. A julgar pelo sorriso cínico que me ofereceu, as minhas explicações tranquilizaram-no... metade, apenas. Tinha de me manter alerta. O estalajadeiro era capaz de tudo. Mais ainda: à vista do cruel desenlace da jornada, prudente teria sido abandonar a pousada naquele mesmo instante. Uma noite naquele tétrico cubículo, com um estalajadeiro sem escrúpulos e ressumando ódio, não parecia ser a melhor das ideias. Mas o esgotamento e um excesso de confiança pueril sufocaram a sempre sábia intuição. Com a calma acabrunhada pela incerteza, afastei-me da taberna solitária. Precisava de dormir e de recompor as forças. Trancando a porta com a vara de Moisés fui sentar-me entre as frestas, na companhia de uma modesta candeia e de uma magnífica solidão. E o céu abençoou-me com um sono profundo. Porém, o repouso seria breve. 26 DE ABRIL, QUARTA-FEIRA Fui um inconsciente. Agora, ao recordar aquele amanhecer, compreendo quanto estive perto do fim. Próximo do despertar do canto do galo, faltando cerca de duas horas para a alvorada, um breve e temeroso estremecer da porta pôs-me de pé. Precisei de uns segundos para me aperceber da situação. Os sentidos não me tinham enganado. Os tímidos golpes, como se alguém evitasse chamar a atenção dos outros hóspedes, novamente se repetiram. Quase sem tocar no chão, aproximei-me da madeira,
tentando averiguar quem se encontrava do outro lado. E uma voz de mulher substituiu desta vez o sinal abafado. Só apanhei duas palavras: “grego” e “desperta”. Sem fazer ruído peguei no cajado, afagando o prego do laser de gás. Se era uma armadilha, teria de agir com rapidez. O instinto – suponho que com razão – desenhou o rosto e a adaga de Heqet na penumbra da galeria. Estúpido que eu fora! Devia tê-lo imaginado. Ou imaginei? Para o caso, era o mesmo. As circunstâncias eram aquelas e não outras. Devagar, medindo cada passo, coloquei a vara entre a porta e o corpo. Com nervosa lentidão, entreabri o batente. A personagem que assomou pela abertura não soube quanto esteve perto de receber uma descarga. - Grego dos infernos!... O vinho estragou-te os ouvidos. Não repliquei. Débora, a moabita, com os lábios inchados e o rosto cheio de hematomas, intimou-me a que saísse do quarto. Desconfiado, limitei-me a transpor a porta, inspeccionando o corredor. A rapariga, à primeira vista, não parecia vir acompanhada. A galeria respirava silêncio. No entanto, dada a iluminação escassa, não era difícil que alguém se tivesse emboscado atrás das esteiras e das mantas que pendiam do varandim. Com pressa evidente sussurrou-me que pegasse nas minhas coisas e a seguisse. O tom – sincero – animou-me a obedecer às suas ordens. Perante a minha surpresa vi-a apanhar do soalho um volumoso fardo e umas mantas. Carregando o volume, foi deixá-lo num dos cantos do quarto. Segui-a, intrigado, verificando que o enorme saco não era mais que um odre inchado e bem cheio de vinho. Cobriu-o com as mantas e, apagando a candeia que me iluminara durante o repouso, puxou por mim, fechando a porta com especial cuidado. Era evidente. Por razões que começava a entender, a audaz prostituta tinha substituído o grego adormecido por um odre adormecido. Um calafrio acordou-me de vez. Percorremos o corredor como duas sombras, parando na outra ponta, diante do quarto que se abria a norte. Alguém esperava com a porta entreaberta, e em silêncio deu passagem. Débora precedeu-me. Durante uns instantes, temeroso, não soube que partido tomar. E se era
uma armadilha? A rapariga, essa, não pensou duas vezes. Puxando-me pelo manto, arrastou-me para dentro, ao mesmo tempo que amaldiçoava a sua sorte. O cubículo, pouco mais ou menos como o meu, só se diferenciava por uma janela nua e bastante mais desafogada que as frestas. Junto da abertura distinguia-se um enxergão e, à cabeceira, junto de uma vasilha e de um jarro de bronze, a lança amarela e afiada de uma chama, agitada pela brisa da noite. A mulher que nos tinha dado passagem – a segunda meretriz, que acompanhava a moabita na taberna – foi sentar-se na cama. Débora, entretanto, voltou à porta, espiando a galeria deserta por um dos nós de madeira esburacados. Aturdido, tentei assomar-me à janela. A companheira da moabita impediu-me. Que diabo acontecia? E Débora, confiando no silêncio momentâneo da estalagem, explicou-me num fio de voz que Heqet e os esbirros do saduceu tramavam o pior. Que significava tudo aquilo? Impaciente com a minha estupidez, fez-me ver que o seu chefe, por qualquer razão que ignorava, tinha saído precipitadamente da estalagem, regressando com quatro dos incondicionais e viciosos servos de Ismael. Reunidos na taberna, ela e a sua amiga tiveram de os servir, descobrindo assim os repugnantes planos do egípcio. As ordens do estalajadeiro eram radicais: Apunhalar o grego e fazer desaparecer o cadáver. Não havia tempo a perder. Apontando-me a janela, convidou-me a fugir. Comovido perante a generosidade e valentia das raparigas, não soube que responder. E Débora, apressando-me, resumiu e justificou a sua atitude com uma frase: - Poucos homens teriam feito por mim o que tu fizeste na taberna. - Mas que será de vocês? Não houve resposta. O ranger do chão da galeria deixou-a em suspenso. E a mulher, levando o indicador esquerdo aos lábios feridos, aconselhou silêncio. Alguém andava no corredor. Débora avançou para a porta, tentando ver no escuro. Logo, girando nos calcanhares, nos informou da presença dos cinco indivíduos na extremidade oposta do corredor. Agitando as mãos, insistiu para que eu saltasse. Mas, inexplicavelmente, movido talvez pelo desejo de
identificar os agressores, afastei a moabita e abri a porta o bastante para ver como arrombavam a porta do meu quarto, entrando em tropel. Se não fossem as súplicas da prostituta é quase certo que, levado pela indignação e pela inconsciência, me teria aventurado a fazer-lhes frente. A mulher tinha toda a razão. Se o anão e a sua gente me localizassem no quarto das meretrizes ou dele saindo, a vida das minhas salvadoras podia correr grave perigo. Fechando a porta, encaminhei-me para a janela. A distância ao solo, de uns cinco metros, não me preocupava tanto como a sorte daquelas valentes e infelizes rameiras. Prestes a saltar, lancei a mão à bolsa e, tirando um dos saquinhos com pepitas de ouro, lancei-o para as mãos da nervosa Débora. Um sorriso e um “Melqart te abençoe” foi o que por último vi e ouvi. Atirando a vara na escuridão tentei adivinhar o tipo de terra que me esperava. Uma pancada seca e amortecida anunciou-me que estava no campo, possivelmente em zona de lavra. Décimos de segundo depois precipitava-me no vazio, caindo, na verdade, na argilosa base do olival que circundava boa parte do edifício. Para dizer a verdade, salvo algumas contusões de pouca transcendência, tive sorte. Se tivesse caído três ou quatro metros mais à esquerda, os ramos e os braços retorcidos de uma daquelas oliveiras podiam ter-me magoado. Minutos depois, a correr, passada a pontezinha de pedra, dirigia-me para a fonte. A aldeia, já próximo o amanhecer, não tardaria a despertar. Depois de verificar que não era seguido, parei junto da barulhenta conduta de água. Para onde dirigir os meus passos? Ia refugiar-me na casa da Senhora? Escondia-me nalgum canto do povoado? Esperava mesmo ali pela luz da alvorada? Que podia eu fazer com o saduceu? Acabrunhado pela situação, ao reparar de repente no cristalino jacto de água, decidime pela mais sensata das alternativas. Como dizia o Mestre, os problemas, um por um. Logicamente a asa do pássaro, como popularmente se chamava às fontes, encontrava-se deserta. Prestando justiça a esta plástica descrição (nos poços e mananciais de uso público juntava-se diariamente a população, trocando novidades e mexeriquices), o local não tardaria em se encher de madrugadoras matronas e de camponeses preguiçosos que aproveitariam a passagem pelo tanque
para darem de beber aos seus jumentos e encherem as cabaças e odres. Agi com rapidez. Despi-me e, pondo-me na frente do frio veio de água, desfrutei do improvisado duche. O banho – outra das servidões difíceis de mitigar nas nossas circunstâncias – foi uma bênção. Descontraído e fresco como uma rosa, depois de me secar com o roupão, preparei-me para atacar aquela segunda jornada em Nazaré. O contacto com a água devia também pôr mais claras as minhas confusas ideias. Esperaria a claridade para me pôr em marcha. A minha primeira visita, naturalmente, seria ao saduceu. Entendi que tinha motivos de sobra para trocar algumas palavras com o perigoso sacerdote. Se fosse possível, embora não visse com clareza como, tentaria recuperar os fármacos. Por outro lado, em honra da objectividade e dada a sua condição de velho professor de Jesus, não vinha fora de propósito colocar-Lhe algumas questões a esse respeito. Faminto, rebusquei pelo saco de viagem, quase vazio. Os ladrões tinham desprezado os frutos secos, sábia e providencialmente incluídos por meu irmão no modesto farnel. A ração de figos prensados, passas e nozes – de elevado poder calórico – aliviou-me a alma. Estranhamente tranquilo, assisti, satisfeito, ao meu primeiro amanhecer na aldeia do Mestre. Em uníssono, como se se tratasse de um mesmo fenómeno, o círculo laranja do sol e o ronco da moenda do grão foram empurrando escuridões e silêncios, devolvendo a luz e a vida ao povoado. Pontual e matematicamente, fizeram acto de presença as mulheres, carregando vasilhas à cabeça ou apoiando-as nas ancas. Com elas, os primeiros felah, descarregando a má disposição do madrugador nos pacientes asnos. Não tive dificuldade em obter a informação de que precisava. A casa de Ismael, ao lado da sinagoga, erguia-se ao norte da aldeia, na margem esquerda do riacho, na encosta sul do Nebi. Não tinha que enganar. De acordo com a tradição, surgia isolada das restantes construções. Com a amável simplicidade que caracteriza a gente humilde, duas das matronas, que seguiam pouco mais ou menos o mesmo caminho, ofereceram-se para me guiarem até lá. O bairro dos artesãos e a rua sul – itinerário seguido para a ponta noroeste da aldeia - foram-se iluminando com a promessa de um dia tão radiante e quente como o anterior. Às portas das casas, nos pátios e vielas,
mulheres e rapariguinhas preparavam as fornadas, cantarolando ao ritmo da moenda, varrendo e baldeando o empedrado e alimentando as brancas colunas de fumo dos fogões e fornos de pão, que iam traçando no azul-celeste uma Nazaré vertical, ondulada e optimista. Uma Nazaré alheia às misérias de homens como Heqet e seus sequazes. Era incrível. A julgar pelas alegres e sinceras saudações dos vizinhos, ninguém parecia estar a par dos acontecimentos da noite que acabava de passar. Na cintura de hortos que fazia de fronteira entre a colina e as últimas casas, as risonhas mulheres, com as ânforas à cabeça deixaram-me praticamente encaminhado na direcção da sinagoga. O edifício de pedra tinha à frente um terreiro, a uma meia centena de passos da aldeia. Em princípio, com excepção dos blocos de rocha – cinzentos e desgastados pela erosão – a construção não sobressaía das restantes casas. Um carreiro quase invisível rodeava a casa pelo flanco oriental, conduzindo directamente às duas portas que se abriam do lado norte. Ambas se encontravam fechadas. Imaginei que deviam ser as entradas para a sinagoga propriamente dita. Naquela mesma fachada norte, de uns quinze metros de comprimento, ocupando a esquina ocidental, aparecia uma construção de menor envergadura e claramente diferenciada pelo caiado das paredes. Apresentava também uma porta de serviço, semiencoberta por uma cortina de lã escarlate. Diante do que supus ser a casa do saduceu a quatro metros da entrada, um poço munido de tripé, do qual pendia um balde de madeira, húmido e oscilante. Amarrado ao parapeito do poço uma parelha de asnos, de pêlo negro e encrespado. Não soube que fazer. Rodeava a casa à procura dos criados? Assustado, lembrei-me que os esbirros contratados pelo estalajadeiro para me eliminarem eram justamente criados e lacaios do velho sacerdote. Talvez a situação, em plena luz do dia e nos domínios da víbora, não fosse tão dramática. A reflexão não era das melhores. Assim, com mil precauções, caminhei na direcção ocidental da fachada. Na referida esquina a passagem era cortada por um desnível abrupto – quase um precipício -, que morria no leito da torrente, a uns vinte metros abaixo do ponto em que me encontrava. A parede ocidental da casa
ficava assim convertida em local de difícil acesso. De facto, como se o saduceu tivesse desejado converter aquele flanco num bastião, a parede não tinha portas. Quanto à meia-dúzia de janelas abertas no estuque branco, a mais próxima da terra estava separada por uns três longos metros. Um pouco mais ao norte, seguindo o curso de água, erguiam-se duas casitas, encostadas uma à outra. Às portas de uma delas distinguiam-se vários homens, atarefados no que me pareceu um trabalho de olaria. Sem o saber, estava a descobrir a oficina dos descendentes de Nathan. Subitamente, o roçar de umas sandálias na terra pisada veio arrancarme às minhas observações. A entroncada e forte compleição do indivíduo que se aproximava foi-me familiar. Se a memória não me enganava, era o mesmo, ou muito parecido, que tinha saído da estalagem e que acabou por fugir pelos hortos próximos da ponte de pedra. Aquele elemento, na companhia do segundo – o que Tiago perseguira – podia ser um dos autores do roubo. A mão direita deste cada vez mais desconfiado explorador foi ao encontro do mecanismo activador dos ultra-sons. Não foram necessários. Ao reconhecer-me, soltou a forquilha de três dentes que trazia na mão esquerda e, aterrorizado, berrando como um bezerro, deu meia volta, precipitando-se para o cortinado vermelho. Atónito ante a incompreensível e excessiva reacção do esbirro não consegui entender. A não ser... Sorri sem gosto. E o estômago deume uma volta. A não ser que aquele maldito tivesse participado no apunhalamento do “grego adormecido...” Alarmados pela gritaria não tardaram a aparecer mais dois homens. E atrás, saltitando, apressado, o saduceu, visivelmente irritado com o alvoroço. Quis Deus que eu ficasse imóvel. Deste modo, sem mover um músculo, tentando iluminar a minha inteligência com alguma brilhante e oportuna ideia, esperei o desenlace da cena. O sacerdote, metido numa túnica cuja brancura incomodava os olhos, entrou como um carro de guerra no meio do confuso trio. Escutou a versão queixosa e abafada dos acólitos e, sem tirar de mim os olhos, ordenou-Lhes que se retirassem. Aquilo surpreendeu-me. Mas, sem perder a serenidade, continuei – no meu papel de estátua. Só podiam acontecer duas coisas. Ou o velho cirrótico aproveitava a
solidão do local e me lançava aos seus esbirros ou então dava meia volta e deixava-me ali de pé. Pois bem, sucedeu o que menos podia imaginar: Ismael, astuto como uma raposa, pensava com o fulgor e a rapidez de um relâmpago. Em segundos, talvez desconcertado perante a minha imaginada audácia, alterou o semblante colérico compondo nas faces um sorriso artificial. Abrindo os braços em sinal de paz caminhou para quem isto escreve. Como é de supor, aquela mudança emanava um inconfundível cheiro a traição. Mas, disposto a conquistar os objectivos que planeara, decidi pôr-me à sua altura. - O Único, bendito seja, favorece os valentes. A saudação, lançando-me o seu hálito podre, confirmou as minhas impressões. - Sê bem-vindo à casa de Ismael. Calculo que procuras... - E com uma desfaçatez difícil de igualar agarrou-me o braço, convidando-me a entrar a seu lado - ... Pressinto – acrescentou, olhando-me de soslaio – que o nosso encontro estava escrito nos céus. “Não podes imaginar até que ponto”, pensei para comigo. ... É muito possível que ambos tenhamos cometido erros. No entanto, nada há que a palavra e uma boa medida de vinho não possam resolver. Rogo-te que aceites a hospitalidade deste ancião. Julguei conhecer o seu erro. Mas... qual era o meu? Instantaneamente, veio-me à memória a crítica cena da blasfémia de Tiago. Eu estava lá. Ao transpor o umbral, o aspecto rústico da casa desapareceu. Atravessámos um pequeno vestíbulo todo ele revestido de pedra travertina e, falsamente reverente, o miserável chefe do conselho deume passagem para uma segunda sala, sem janelas, onde se respirava um penetrante perfume a incenso. Atento aos meus movimentos, mostrou-se satisfeito perante o assombro que o meu rosto manifestava. A decoração dava inteira expressão ao seu desmedido amor pelo luxo. Era quase inconcebível que numa aldeia de tão modesta gente se pudesse erguer uma casa que, sem dúvida, teria sido a inveja do próprio procurador. As paredes, do soalho ao tecto, estavam forradas de bronze. No centro geométrico de cada uma delas, incrustados nas pranchas, brilhavam candelabros sagrados de meio metro de altura,
trabalhados numa pedra especial da Capadócia (um tanto semelhante ao cristal de quartzo). A transparência dos sete braços de cada menorah era tal que, mesmo sem janelas, cintilavam como diamantes. Duas enormes lanternas em forma de meia-lua, num delicado cinzelamento de ferro, pendiam das vigas do tecto, cobrindo a quadra com uma luz dourada. Suspensas aproximadamente à altura da minha cabeça (um pouco menos de um metro e oitenta), as candeias queimavam as mechas por cornos, deixando escapar os fios de incenso pelo centro. O piso, deliciosamente fresco por baixo dos meus pés descalços, encontrava-se armado com lousas de breccia egípcia – o cobiçado alabastro cor de mel – transportada do Dshébel Urakan. E a meio da sala de estar, outra jóia, cujo exorbitante preço só podia estar ao alcance daquele corrupto representante da lei: uma mesa de quase metro e meio de diâmetro e pouco mais de quarenta centímetros de altura, feita com lâminas circulares de limoeiro (1). (Entre os Romanos, estes móveis atingiam preços milionários. Conta-se, por exemplo, que Cícero possuía uma destas mesas, avaliada em quinhentos mil sestércios.) As pernas de marfim tinham sido guarnecidas com aplicações de concha e pequenas lágrimas de ouro e de prata. Dando resposta aos meus pensamentos, Ismael comentou, devorado pela soberba: - Deus, bendito seja, concede poder e glória a quem o procura. Indicando os fofos almofadões de seda persa que rodeavam a mesa suplicou-me que me sentasse. E o saduceu dirigiu-se ao vestíbulo, trocando algumas frases com um dos servos. Mas, ignorando os meus gostos, voltou-se, e da porta perguntou-me se desejava vinho. Declinei o convite. No entanto, perante a enjoativa insistência, não tive outro remédio senão sugerir um pouco de leite quente. Sorriu depreciativamente e, transmitida a necessária ordem, foi sentar-se, entre ofegos e uma apunhalante e justiceira artrite, nas voluptuosas almofadas. - Bem... O maldoso Ismael repousou as sanguinolentas mãos no volumoso abdómen, esperando as minhas razões. Sem saber que dizer-lhe nem
por onde começar, limitei-me a percorrer com o olhar a milionária sala. - Não deve assombrar-te – lançou, corrosivo. - Estas ninharias são inspiradas na glória da Grécia. Porque tenho para mim que és de Tessalonica... Concordei, verificando que Heqet tivera uma excessiva pressa em informá-lo. - E que faz um rico comerciante tão longe da sua pátria? Rastejante, de acordo com a sua condição, foi-me levando para onde desejava. O que não sabia é que também eu o arrastava para um dos meus objectivos. - Soube de um profeta chamado Jesus – deixei cair com maldade – e procuro informações. Ao escutar o nome do seu antigo discípulo mordeu os lábios. Azedo, sem se poder conter, balbuciou: - Um profeta?... Esse louco presumido? Acabava de engolir o isco. Já só era questão de ir puxando a linha. ...Eu fui seu mestre. - Ouvi dizer isso... - interrompi-o, fingindo uma ardente curiosidade. - E sei que os teus lábios falaram com verdade. Diz-me: é verdade que foi um aluno distinto? A víbora abriu as fauces. E a peçonha feriu-me no mais íntimo. Mas, fazendo das tripas coração, suportei a investida. - Um efeminado distinto!... - Presa da ansiedade do alcoólico, deu um estalo com a língua. *1 As tábuas circulares e com vistosos veios desta madeira – uma espécie de árvore-do-paraíso que crescia nas proximidades do Atlas – eram muito procuradas pelos patrícios e milionários da época. Seria difícil que os troncos destas árvores atingissem a espessura necessária para a fabricação das referidas mesas. Mesmo assim, alguns afortunados conseguiram comprar exemplares que tinham quatro pés de diâmetro. Com o correr dos anos, algumas mesas de limoeiro chegaram a atingir preços de um milhão e trezentos mil sestércios. (N. Do M.)
E acrescentou, roído pelo ressentimento: - Melhor teria sido que casasse com Rebeca e esquecesse os seus sonhos de grandeza. E,
depois, quem foi o pai? Quem era ele? Carpinteiros ignorantes que não tinham onde cair mortos!... - Efeminado? - disse, descendo ao seu nível. - Tu também não te casaste... O seu olhar enegrecido toldou-se de vermelho. Medindo as forças do seu opositor meditou a resposta. Porém, o ódio por Jesus era como um oceano. Nem mil vidas o teriam secado. Em cada palavra, gesto ou silêncio batia, surdo e destruidor. - Eu consagrei a minha vida ao Todo-Poderoso, bendito seja. E não vou consentir que me insultes. E menos na minha casa... - Nem eu que insultes os meus amigos... A tensão foi abafada pela entrada de um dos servos. Não fui capaz de o reconhecer. Eu sabia que, pelo menos um de entre os servidores do saduceu tinha demonstrado a sua lealdade à família de Tiago, avisando-os em segredo da ida de um mensageiro ao tribunal de Séforis. O indivíduo, jovem e magro, fitou-me com descarada curiosidade. Seria aquele o contacto com os familiares do Mestre? O velho recebeu o vinho inquieto. E agarrando o copo precioso antes de a bandeja chegar à mesa bebeu-o, convulso, com a sede sem fundo dos alcoólicos. Observei com desconfiança o leite, igualmente servido numa daquelas esplêndidas taças – uma espécie de ágata – postas de parte entre as classes endinheiradas por causa da sua introdução em Roma por Pompeu depois do triunfo sobre Mitridates. Um cavernoso arroto relaxou a ansiedade de Ismael – mas não a sede – que, esvaziada a taça, estendeu a mão trémula, exigindo que imediatamente lhe enchessem o copo. O servo, com a jarra de bronze coríntio preparada, parecia esperar pela ordem. Deitou o espumoso e leve néctar e, como um autómato, pousou o recipiente no soalho, ao alcance da mão. O saduceu percebeu os meus receios. Soltou um riso de hiena e, incapaz de soltar palavra, fez sinal ao jovem para que provasse o leite. A fria e dócil submissão do indivíduo – que cumpriu a ordem de imediato – deixou-me perplexo. Aquele parecia outro triste hábito da infernal morada. - Grego insolente! - clamou, quando o criado se foi. - Julgas-me capaz de envenenar um amigo do procurador? Dir-te-ei uma coisa: admiro a
tua coragem... A mão do egípcio continuava a pairar naquele desagradável encontro. ...Sabes defender os teus amigos. E isso não é moeda comum nestes tempos. Mas, diz-me, porque te interessas por um profeta morto? Riu da própria graça. - Talvez – improvisei – porque soubesse enfrentar os corruptos. - Nisso reconheço uma certa verdade – replicou com cinismo.O carpinteiro tinha a audácia dos ignorantes. Desde criança demonstrou uma doentia inclinação para o desafio e a polémica. O conselho, e eu próprio, tivemos de admoestar a sua família em numerosas ocasiões. Introvertido, ególatra e blasfemo empenhava-se em falar com o Único (bendito seja) como se fosse seu pai. Estava possesso. Violava o sábado e a sua palavra era fonte de constantes querelas entre a juventude. Sendo ainda uma desprezível criança chegou a meter-me a ridículo. Atreveu-se a desenhar o respeitável rosto do seu mestre nas lajes da escola... Com toda a frieza de que fui capaz continuei a manobrá-lo. - Dizem que fez prodígios. Em Caná... A gargalhada daquele maldito quebrou a branca linha do incenso. - Caná... Água em vinho! - E, mostrando-me a taça, cuspiu-lhe para dentro. - Se nesta região há alguém que entenda de vinhos, esse alguém sou eu... - Não o pus em dúvida - ... Quem presenciou o prodígio? - Pelo que ouvi, sua mãe e... - Tu mesmo o disseste! - vociferou, arremessando os restos de vinho para o chão. - Sua mãe!... E mais ninguém! Jesus só fazia maravilhas na frente dos seus. - Não compreendo. - Estimado grego – desceu para um tom paternal -, outros, menos inteligentes, se deixaram enganar por supostas ressurreições, falsas curas e multiplicações de pães e de peixes. Alegra-me que tu, muito
mais sensato, perguntes também aos seus inimigos. Escuta isto: a certa altura, esse ingrato veio cair neste seu povoado. Eu próprio o interpelei, desafiando-o a que fizesse brotar vinho velho do meu poço. - Moveu a cabeça, desqualificando o Mestre - ...Acobardado, fugiu para Nahun. Para outros é possível: aos que o vimos crescer não podia enganar. - Nunca houve profeta em sua terra. - Os profetas – replicou, autoritário – nunca se proclamaram filhos de Deus. - E enchendo o torturado espírito com uma terceira taça deixou o assunto, como se tivesse proferido uma sentença. - Enfim, viste como acabou. Se tivesse seguido os meus conselhos talvez tivesse sido um homem útil e respeitável. Amanhã, ninguém o recordará... Quanto à sua família, eu me encarregarei de a liquidar e de limpar a aldeia de tanta imundície. Pouco mais podia esperar daquele lamaçal. Aproveitando a insinuação arrisquei-me a interrogá-lo quanto às suas intenções imediatas. O réptil não caiu na armadilha. Num inequívoco tom de advertência recomendou-me que, para minha segurança, mudasse de ares. - Ou melhor ainda – rectificou, numa sibilina tentativa de me utilizar. Estaria disposto a esquecer o teu erro, sempre e quando me mantivesses ao corrente dos projectos daqueles indesejáveis... Procurando raciocinar à mesma velocidade e conhecer as suas turvas manobras simulei não o ter compreendido. - O meu erro? - A tua ingenuidade comove-me. Precisamente a tua condição de prosélito vem colocar-te numa situação melindrosa... - Nesta altura, certamente, não atingi o significado das suas ameaças. - Penso que estás informado de uma das acusações que o levaram à execução. Aquele renegado declarou-se rei dos Judeus... Pois bem, os seus partidários são igualmente imimigos de César. É conveniente para ti converteres-te em suspeito de conspiração contra Roma? Desfeita a dúvida sobre o meu erro, comecei a avaliar a oferta. Talvez fosse altamente benéfico que me rendesse aos seus propósitos..: Deixou-me reflectir. - A minha proposta – afirmou com astúcia – pode salvar-te da
ignomínia e de algo pior... Enquanto permanecesse na aldeia – e o meu regresso ao yam estava marcado para a manhã de sexta-feira, 28 -, o único risco calculado que na verdade corria este explorador fora já marcado pelo saduceu e tentado pelo egípcio. Neste sentido, tinha de actuar com cautelas. Era preciso ganhar tempo e aplacar as iras do chefe do conselho, na medida do possível. A operação não podia ver-se comprometida por causa das intrigas daquele indesejável. Se obtivesse uma trégua – se possível até à mencionada sexta-feira – o meu trabalho em Nazaré seria beneficiado. Naturalmente, não se tratava de atraiçoar os meus amigos. Nem o rigoroso código do Cavalo de Tróia o permitia nem eu o teria consentido. Se o velho procurava informações acerca dos planos da família de Jesus, eu dar-lhas-ia... à minha maneira. Estabelecer uma relação secreta e estar a par dos seus movimentos podia ser positivo para os meus propósitos. - E que obterei em troca? - repliquei, fingindo não ter percebido as suas ameaças. O álcool concedeu-lhe lucidez momentânea. E convencido de que tinha pela frente um néscio, aventurou-se a desvendar: - O Sinédrio de Séforis decidirá amanhã a sorte de Tiago, de sua família e de quantos proclamam a ressurreição do carpinteiro. Aqui, tudo passa pelas minhas mãos. Se aceitares, não haverá acusações contra ti e poderás voar em liberdade... Ao dizer a palavra voar foi arrastado por um riso nervoso e prenhe de funestos augúrios. E eu não fui capaz de interpretar a última e enigmática frase do saduceu: - A partir de hoje, muito poucas pombas desfrutarão dessa liberdade. - Está bem – concordei, desejando terminar a odiosa entrevista.Mas exijo alguma coisa mais... - Os seus olhos abriram-se como os de um mocho à espreita - ...Oferecer-te-ei a mais exaustiva informação, sempre e quando quiseres, mas além da minha segurança, garantes-me a devolução do que me roubaram na estalagem e... Não me permitiu concluir. - Combinado! A tua prudência é própria dos homens sábios.
Falámos do teu erro e creio que também deveríamos falar do meu. O tom, condescendente e impróprio de um réptil, pôs-me em guarda. - ...Tens de compreender este velho e zeloso guardião da lei. Vivi por e para Javé, bendito seja, e para estas simples e infelizes criaturas a meu cargo... “Hipócrita repugnante!”, gritei, no meu íntimo. ... Por isso, e rogo-te que me desculpes, dei as ordens necessárias para que fizessem uma busca ao teu quarto. Outro, no meu lugar, teria feito o mesmo. A pureza da doutrina está em primeiro lugar. E tu não o podes negar, entraste na aldeia como amigo e partidário desse perigoso revolucionário, felizmente morto. Se tivesse sabido que és um homem sensato e, para mais, amigo de Pilatos, esta conversa ter-se-ia dado muito antes. Quando te encontrares com o procurador (porque sei que o farás), fala-lhe de Ismael e do seu zelo... - Comecei a desvendar as segundas intenções daquele mais que evidente reconhecimento da sua culpa. - Amanhã, se me fizeres essa honra, poderás apreciar o requinte da minha cozinha. E ficarei encantado por restituir-te o que é teu, sempre e quando – acentuou, espaçando as palavras – o respeitável grego cumpre o combinado... - Há mais alguma coisa. Consumado actor, o impenitente embusteiro fingiu surpresa. E, procurando tirar partido da ideia que acabava de insinuar, mostreilhe alguma coisa que já conhecia: o salvo-conduto de Pilatos. ... A agudeza da tua inteligência – afirmei, com idêntica teatralidade – poderia perder-se num lugar tão remoto como este. É certo que o procurador me aguarda em Cesareia. E não é menos certo que poderia falar do teu zelo e bom trabalho, não só a Pilatos como aos grandes rabinos do Sinédrio de Jerusalém e, em breve, ao próprio Tibério... A cobiça e ambição assomaram, traidoras, ao rosto congestionado de Ismael. E bebendo a última gota do jarro, babando-se de prazer, rogou que me explicasse. Tal como supunha, o malévolo plano deste explorador caiu em terreno adubado... - Poderia fazer chegar o teu relatório à máxima autoridade do Império. Em troca, apenas desejo da tua provada magnanimidade uns dois pormenores...
- Pormenores? Relatório? A que te referes? Com estudada frieza, fuilhe explicando as minhas pretensões. Quem melhor do que ele podia redigir um relatório sobre a figura de Jesus e as actividades blasfemas e revolucionárias que começavam a detectar-se em Nazaré? A minha exposição, adornada com um canto incessante à sua honorabilidade, acabou por vencê-lo. Transpirando vaidade, aceitou, embora insinuasse com desconfiança: - Conceder-te-ei o que pedes, salvo uma coisa: o perdão para esses miseráveis. Fazendo-me cúmplice do seu ódio, assegurei-lhe que não era essa a minha intenção. - A tua palavra abriu-me os olhos. Não desejo modificar o rumo do destino. Como te dizia, só pretendo uns dois pormenores... - Fala, então... Medindo cada sílaba, fiz-lhe ver que por razões estritamente pessoais, desejava vingar-me de um dos discípulos do profeta. Mas, incompreensível e estranhamente, tinha desaparecido. Sem descer do cinismo a que trepara, exprimi-Lhe o meu fingido temor. - Há a possibilidade – declarei, baixando a voz – de que esse orgulhoso e peçonhento João de Zebedeu tenha fugido para Séforis e tente prejudicar-me, denunciando-me aos funcionários de Antipas. No caminho para Caná neguei-me a curar um dos seus companheiros e jurou perder-me. A notícia não podia ter chegado aos ouvidos do saduceu. Admitindo que pudesse verificá-lo, o traço de honestidade sem dúvida jogaria a meu favor. Desconfiado e astuto deixou-me acabar. ...É minha intenção acabar com ele, antes que consiga enredar-me numa sempre aborrecida demanda. - E o segundo pormenor? - Ouvi dizer (corrige-me, se estou enganado) que, há anos, o próprio Jesus te vendeu uma harpa de sua propriedade... Sem adivinhar para onde eu me encaminhava, franziu a testa, lutando
por se recordar... ...Pois bem, se foi assim e se ainda a conservas, gostaria de a examinar e de a entregar a Procla, a mulher de Pilatos. O chorrilho de improvisadas mentiras deixou-o fora de combate. - A harpa!... Sim, claro que me lembro. Mas não entendo... Mais assombrado que o saduceu perante a minha capacidade para a invenção prossegui, nos seguintes termos: - Trata-se de um sonho. Na véspera da crucificação, a mulher do procurador teve uma visão. Nela apareciam o profeta e a harpa... Lastimo, nada mais posso dizer-te. Permaneceu em silêncio e confuso. Parecia obcecado, procurando intenções ocultas nas minhas propostas. A segunda, aparentemente de menor importância, ficou em suspenso. - A harpa! Dá-me tempo. Terei de procurar... Aceitei, compreensivo. - Amanhã terás uma resposta. Quanto a esse Zebedeu... - Observoume ladinamente. E do alto da sua maldade sentenciou, com calma irritante: - Talvez o teu pormenor já tenha sido satisfeito... Um pressentimento cruel apertou-me a garganta. E pouco faltou para que as suas negras garras me denunciassem. Que quisera ele dizer? Qual era a relação entre aquele miserável e a inexplicável ausência do discípulo? Por o meu falso desejo de vingança se achar cumprido? Com ar distraído, insisti: - Agora sou eu quem não te entende. Não mordeu o anzol. Com um gesto tentou pôr-se de pé. A entrevista estava a chegar ao fim. - Amanhã, grego astuto, darei alívio à tua curiosidade. Terás preparado o relatório e, além da harpa e de uma ceia suculenta, partilharás comigo outras surpresas... A prudência obrigou-me a desistir. Aquele indivíduo era mais escorregadio e perigoso do que imaginara. Teria de dominar os meus movimentos. Ao abandonar o seu covil – não sei como explicá-lo – o instinto agitou-se, avisando-me de algo de aterrorizador. Talvez me
tenha precipitado ao ir a casa do saduceu. A intuição, fazendo eco na alma, avisou-me: não devia voltar... Alheios aos meus pensamentos, os pés acabaram por me conduzir ao lar da Senhora. Porque experimentara aquele desassossego ao despedir-me do velho hipócrita? Era por mim ou pelo Zebedeu? A porta aberta devolveu-me à realidade. Estranho. A que obedecia a alteração nas rigorosas precauções da família? Espreitando, verifiquei que a sala estava deserta. Levantando a voz, tentei avisá-los da minha presença. Ninguém respondeu. Repeti a saudação com idêntico fruto. Temeroso de abusar da hospitalidade dos meus amigos afastei o impulso inicial de entrar na casa. Recuei uns passos, inspeccionando a rua deserta. A ausência de vizinhos nas imediações pareceu-me igualmente anormal. Que acontecera? Preocupado ainda pelas enigmáticas e nada tranquilizadoras palavras da Senhora, senti-me assaltado por um turbilhão de dúvidas. Mas quando me dispunha a bater à porta ao lado, domicílio de Jacob, uma voz me chamou do terraço. Respirei, aliviado. Era Tiago. Fazendo-me um sinal, indicou-me que esperasse. Dali a pouco, aparecia pela abertura da oficina. Convidou-me a passar e, fechando a porta, pôs-se a dar breves passos pela casa. Num primeiro momento atribuí-o à lógica falta de sono. As olheiras e os olhos avermelhados não podiam ter outra explicação. Era correcto, em parte. - Que foi? E o galileu, apercebendo-se da minha ansiedade, foi directamente ao problema que lhe atormentava a alma. - João... - Apareceu... - atrevi-me a insinuar, demonstrando a minha alegria. - É esse o caso – replicou, quase sem voz. - Continua a não dar sinal de vida. Esta manhã, um dos burriqueiros que transporta o linho de Séforis comunicou-me que ninguém o viu na cidade. - Então... - Ontem à noite, ao regressar para junto de minha família – completou a explicação – um dos criados do saduceu, fiel aos ensinamentos de
meu Irmão, apresentou-se de novo em minha casa, confirmando a sua primeira impressão: o Zebedeu tinha solicitado uma entrevista com aquela víbora. Ismael trocou algumas palavras com ele. Aí desaparece o seu rasto, Jasão: aquele inconsciente do João tem de estar ainda na casa... - Não creio. Ou antes – apressei-me a rectificar ante o olhar atónito do meu interlocutor -, creio que não é possível... - Porquê? - Acabo de sair da toca daquele réptil e, segundo me pareceu, o Zebedeu não está na mansão. Ao ler na sua face a lógica surpresa, antecipei-me aos seus pensamentos, referindo-lhe parte do meu encontro com o chefe do conselho, bem como a combinada segunda reunião, prevista para o entardecer do dia seguinte. Acho que entendeu e admitiu os meus argumentos. Naturalmente, tive especial cuidado em silenciar as tenebrosas intenções do saduceu em relação à sua família. Embora, para dizer a verdade, também não constituíssem novidade alguma. Durante breves instantes, distraiu-se a afagar a barba com os dedos. Por último movendo a cabeça negativamente, não escondeu o seu desgosto. - Não me agrada... - Voltando a uma das partes importantes da minha exposição, comentou, pouco seguro: - Minha mãe tem razão. É possível que a tua suposta vingança já tenha sido satisfeita. - Que estás a insinuar? Olhou-me compadecido. - Amigo Jasão; não conheces aquele homem... Se João cometeu o erro de o desafiar... Optou pelo silêncio. Para ele, o dramático epílogo daquele pensamento era algo de vivo e possível. Para mim, que conhecia o futuro, um fim trágico para o Zebedeu no ano 30 não tinha fundamento. No entanto, embora ardesse em desejos de o tranquilizar, calei-me. - Quais são os teus planos? Sorriu tristemente.
- Procurar um cadáver... - Mas... Não aceitou o protesto. - Aqui, Jasão, as notícias voam. Achas que não estamos informados do que aconteceu esta manhã na estalagem? Toma bem nota: é esse o estilo de Ismael e dos seus lacaios. Imaginas que João possa ter tido melhor sorte? - Nem me deixou intervir. - ... Não, Jasão. Prefiro enfrentar os factos. A visita ao chefe do conselho e o seu desaparecimento são uma e mesma coisa. O silêncio de prudência, pediu-me que aquela conversa não passasse dali. - Em especial – acrescentou, com raiva mal contida -, depois do que aconteceu esta noite... Supus que aludia ao assassínio tramado por Heqet. O seguinte e espontâneo comentário de Tiago veio tirar-me do erro. ... Filho de má mãe! Não respeita nem os animais... - De que estás a falar? - Vem, que já vês. Levando-me à frente, subiu até ao terraço, servindo-se de uma escada de mão. Uma vez em cima, notando a minha atitude vacilante, insistiu para que o seguisse. Ao pôr os pés no terraço fiquei estupefacto. Miriam, ao fundo da açoteia – justamente na zona situada por cima da cozinha – parecia consolar sua mãe. A Senhora, sentada no chão, tinha a cabeça entre os joelhos. À esquerda das mulheres, Jacob, de cócoras, examinava qualquer coisa, com grande atenção. Tiago juntou-se ao grupo. Quem isto escreve, intrigado, foi atrás dele. Ao descobrir no solo o motivo da minuciosa observação de Jacob compreendi a razão da desconsolada atitude de Maria... e mais... No céu da minha memória surgiu a figura do saduceu, com aquele risinho nervoso e a frase que – tolo que fui – interpretara erradamente: A partir de hoje, muito poucas pombas desfrutarão dessa liberdade. - Porquê?... Porquê? A Senhora, alagada em lágrimas, formulava a pergunta uma e outra vez. Nenhum dos seus filhos soube responder-lhe. E os meus olhos
foram encontrar-se com os de Tiago. - Amigo Jasão – declarou, com justa amargura -, não conheces aquele homem... No terraço jaziam quinze pombas, mortas. Maria, ao descobrir naquela manhã o macabro espólio, apressara-se a avisar os seus. Curiosa e estranhamente, o autor ou autores da mortandade não actuaram no pombal existente no pátio posterior. Era menos comprometedor subir pelas escadas exteriores e eliminar os inofensivos animais, que se acolhiam num anexo do pombal, colocado ao fundo da açoteia e armado em pequenas gaiolas, junto do parapeito. Felizmente, a vintena de aves que se aninhava habitualmente no pátio continuava a arrulhar e a alegrar a casa com os seus voos brancos, negros e verdeazulados. Ao examinar os animais mortos observei restos de vómitos no barro pisado. Jacob mostrou ao cunhado uma das malgas de madeira que servia de comedoiro. Junto do grão que constituía o alimento habitual viam-se restos de uma raiz, minuciosamente esfarelada. Tiago pegou nalguns daqueles minúsculos e escuros pedacinhos, cheirando-os. - Não há dúvida... - comentou em voz baixa – Envenenadas. Pedi-lhe que me mostrasse o estranho elemento. Mas fui incapaz de o identificar. Ao pedir-lhe que me esclarecesse o mistério, fê-lo com uma única palavra: - Acónito. Estremeci. Efectivamente, eu tinha observado esta planta entre o mato que crescia nas colinas. As suas raízes contêm uma alta concentração de alcalóides, e entre os seus elementos activos a aconitina, um dos venenos mais rápidos que se conhecem. Nem sequer, actualmente, se descobriu o antídoto (1). A raiz, o mata-lobos, confunde-se por vezes com os rábanos picantes. Eram suficientes quatro ou cinco miligramas para provocar o desenlace fatal num ser humano. No caso das pombas, a dose letal podia ser consideravelmente inferior. - Filho de mil rameiras! Jacob mordeu os punhos. Todos sem necessidade de maiores
explicações, nos mostrámos de acordo sobre a identidade do miserável que maquinara tão repugnante acto. Mas ninguém pronunciou o seu nome. Também não era preciso ser muito esperto para entender que aquele cruel envenenamento era um aviso. Pela segunda vez na luminosa manhã de quarta-feira, 26 de Abril, quem isto escreve se arrependeu de ter negociado com o saduceu. As pombas foram metidas num saco, juntamente com a totalidade da comida existente nos comedoiros. Segundo parecia, o pombal do pátio fora já examinado por Miriam e seu marido, sem que encontrassem nada de anormal. Maria secando as lágrimas, foi convidada a deixar o terraço. Na companhia de Tiago fui o último a descer para o pátio. Ao aproximar-me do pequeno muro de pedra de meio metro de altura que cercava e protegia o terraço reparei nas caixas de madeira de pinho. Sem querer demorei-me uns segundos. Não havia dúvida. E, debruçando-me examinei-as com tanta curiosidade como emoção. O chefe de família, com um pé na escada, observou a manobra e, em silêncio, esperou a minha reacção. Estava certo. Aquelas caixas rectangulares, de sessenta por quarenta centímetros, enegrecidas pela humidade e cheias de uma areia suja e salpicada de excrementos de pomba, tinham de ser *1 O Aconitum napellum é frequente nas regiões montanhosas. As suas flores, azuis-escuras, com forma de capacete medieval tornam-na inconfundível. No século XX, a única forma comum do veneno (extracto P.D.) aparece num linimento comercial cujo nome – dada a sua perigosidade – prefiro passar por alto. A dose letal provoca no ser humano os seguintes sintomas e sinais: formigueiro e inchaço da boca, sensação de constrição na garganta, dor de estômago,vómitos e irregularidades no pulso, que se vai tornando lento. A vítima vai perdendo força em todos os músculos voluntários, braços e pernas e a fonação e respiração ficam dificultadas, apresentando-se uma insuficiência respiratória e por último o colapso. O tratamento exige uma rápida lavagem ao estômago, à base de leite ou de antídoto universal”. A atropina tem uma acção de antídoto directo, devendo ministrar-se entre um e dois miligramas, com repetição aos vinte ou trinta minutos. (N. Do M.)
as utilizadas por Jesus nas suas brincadeiras. A Senhora, apaixonada como sempre, conservara-as. Peguei num punhado de areia e mostrei-a a Santiago. A luz que deve ter notado no meu semblante fê-lo esquecer
por um momento o desgosto do envenenamento. Sorrindo, agradecido, confirmou a minha intuição. Naquele terraço, com aquelas caixas, a fantasia e a imaginação de Jesus Menino tinham transbordado em longos e felizes dias. Dois minutos depois, o risonho rosto do meu amigo, sepultado na areia das recordações da infância distante, adquiriu a inevitável aridez do momento. A família, com a ausência de Ruth, tentou em vão serenar e analisar a situação com a pouca calma que lhes restava. Miriam, justamente indignada, propôs convocar o conselho do povo e dar conta aos vizinhos da maldade do saduceu. Tiago repeliu a ideia, argumentando com muita razão que não era preciso demonstrar aquilo que todos conheciam há muito. Por outro lado, a notícia do envenenamento - além de se ter difundido já por Nazaré – não era motivo suficiente para reunir Ismael e os restantes anciães. Quem denunciavam? Como demonstrar que se tratava de uma acção premeditada? Não havia provas nem testemunhos. As raízes do acónito podiam ter chegado aos comedoiros de mil formas. Miriam protestou. Até as crianças sabiam da mortífera acção daquela planta. Quem podia confundi-la e misturá-la com o cereal? Apesar da sensata exposição de sua irmã, Tiago fez-lhe ver que a crueldade do chefe do conselho acabaria por confundir tais argumentos, piorando a já delicada situação da família. Era mister que os passos seguintes fossem minuciosa e cuidadosamente estudados. Depois de várias e infrutíferas discussões – posta de parte mais uma vez a sugestão de Jacob de abandonar a aldeia – o grupo teve de se resignar ao estabelecido no dia anterior: esperar o desenlace da sessão do tribunal de Séforis, prevista para a manhã do dia seguinte. - Neste momento – acrescentou Tiago, a concluir a reunião – é conveniente manter a calma e esforçarmo-nos por encontrar... - Hesitou uns instantes e, olhando-me de lado, modificou o seu pensamento. Se tivesse falado do cadáver de João só teria lançado lenha seca no já voraz fogo que consumia os presentes - ...o nosso amigo. O Zebedeu – mentiu sem poder apagar de todo a
sua preocupação – tem de estar nalgum lado. A Senhora, ao escutar o nome do discípulo, teve um sorriso amargo. Mas também nada disse. Quem isto escreve julgou ler os seus pensamentos. Que podia esperar-se de um indivíduo sem entranhas, capaz de acabar com a vida de pombas inocentes? Levando o saco, Jacob dispôs-se a seguir o seu cunhado. Este explorador, embora não tivesse sido convidado, resolveu acompanhar os dois homens. Ao observar a minha intenção, Tiago olhou-me fixamente, fazendo-me uma única pergunta: - Tens a certeza de que te queres unir a nós? Os olhos do saduceu estão em todo o lado... Aproximando-me, segredei-lhe ao ouvido: - Não esqueças de que sou seu cúmplice. Sorriu sem vontade. Naquele instante devíamos rondar pela hora terça (as nove horas). Ordenando a sua mãe e sua irmã que fossem ter com Esta, deu meia volta, disposto a iniciar a busca. Mas com os dedos no ferrolho, uma voz vinda da mesa de pedra o reteve. A Senhora, libertando-se por fim da sua melancolia, atravessando a sala como um meteoro, arrebatou o saco de serapilheira das mãos do genro. - Isto é comigo! - exclamou, sem olhar para ninguém. Jacob encolheu os ombros. E Tiago, conhecendo a teimosia da mulher, deu por boa a iniciativa. - Apesar de tudo – declarou, resignado -, são as suas pombas... Miriam concordou em ficar. Recolheria os filhos e, sem tardar, pôr-seia a caminho da casa de sua cunhada. Já na rua, o filho avisou Maria quanto a duas questões essenciais. Primeira: nada de ditos nem provocações. Segunda: as aves seriam enterradas na colina, no devido momento. E num tom que não admitia réplicas, aconselhou-lhe que cumprisse as suas ordens. A Senhora não respondeu. Com as pombas a seu cargo e a sua tristeza pôs-se a caminho, atrás dos filhos. Este explorador, para não perder o hábito, fechou o insólito séquito. Para dizer a verdade, a busca do cadáver do Zebedeu afigurou-se-me um trabalho estéril. Porém, calei-me. Que podia eu fazer? Seja como for,
consolei-me, talvez a “excursão” seja instrutiva. Sábia reflexão a minha... Os galileus, com boa passada, sabendo sem dúvida para onde se dirigiam, tomaram a direcção oeste. Pois bem, apesar das claras recomendações de Tiago, a Senhora, fazendo ouvidos moucos aos chamamentos e ao enfado do filho, não teve a menor dúvida em se deter uma meia-dúzia de vezes, mostrando o conteúdo do saco a quantas vizinhas – curiosas e palradoras – Lhe viessem ao encontro, interrogando-a quanto à matança. E a todas elas, com uma bravura que chegava a ser inconsciência, lhes gritou o nome do assassino: Ismael, o Saduceu. O suplício prolongou-se até ao limite do povoado. E não por falta de vontade na impetuosa Senhora, mas dos vizinhos. Ao verificar que se dirigiam ao terreiro da sinagoga comecei a tremer. Se Maria passasse em frente da casa do chefe do conselho, aquilo podia degenerar em tragédia. Enganei-me. Os guias, ao imaginarem o mesmo que eu, evitaram o lugar e, metendo-se pela cintura de hortos, afastaram-se do local e da tentação. Repetidas vezes, pararam para conversar com alguns dos felah. As perguntas, sempre as mesmas, giravam em torno da sorte de João. Mas nenhum – ignoro se com verdade – soube informá-los. Entrando por um daqueles atalhos que parcelavam os pequenos talhões de terra, foram descendo pela falda ocidental do Nebi, numa clara tentativa de se unirem ao leito da torrente. A Senhora, aturdida e extenuada como poucas vezes a tinha visto, tropeçou duas vezes. Da última vez, ao cair de joelhos, queixou-se. O saco rolou pela encosta. Apressei-me a auxiliá-la, apanhando a leve carga. Neguei-me a entregar-lhe as pombas e, oferecendo-lhe o meu braço recomendei-lhe que se apoiasse nele, facilitando-lhe assim a difícil caminhada. Quedou-se muda, porém, a forte pressão dos seus dedos na pele de serpente foi o mais claro sinal da sua angústia. À beira do riacho, Tiago e o seu companheiro dedicaram uns minutos à inspecção dos juncos e canaviais que ladeavam o estreito caudal. Desalentados, prosseguiram corrente acima até chegarem a uma rústica e nada segura pontezinha de troncos, unidos por um cordame tão esfiapado que, de o olhar, se podia partir. Resolutos, atravessaram os três impossíveis metros de ponte – quase milagrosos, diria eu -,
encaminhando-se para as duas casas que tinha observado do terreiro da sinagoga. A Senhora, a coxear e com o rosto crispado pela dor, parou na frente dos troncos. Estava como se as forças lhe faltassem. Compadecido, sem palavras, ergui-a nos braços, sorrindo-Lhe. Não se opôs. Recomendando-me aos céus, fui tacteando a base da húmida e apodrecida construção. Aquilo podia ir desabar a qualquer momento. Ao quarto, demolido pelo peso, um dos troncos cedeu e a perna esquerda deste explorador precipitou-se com estrépito pelo buraco. Resisti, segurando a mulher contra o peito. Infelizmente, o saco de viagem, que trazia suspenso do ombro, foi cair na corrente, desaparecendo em segundos. E com ele, as sandálias electrónicas... Nunca mais voltaria a vê-las. Se algum dos habitantes de Nazaré chegou a tropeçar nelas e conseguiu descobrir o complexo mecanismo da sola, as suas perguntas – sem resposta – foram infindáveis. Maria, pálida, sugeriu-me que a sentasse nos troncos. Só assim me poderia livrar de tão ridícula e comprometedora situação. Não tive de reflectir muito. Os habitantes das casas alertaram com os seus gritos Tiago e Jacob, que me acudiram imediatamente na ponte. A Senhora a salvo, eu ajudando-me com a vara de Moisés, consegui libertar a perna, saltando como um gamo para terra firme. Jacob, ao ver a minha palidez, sorriu, divertido. O que não sabia é que a minha falta de cor tinha uma origem diferente daquela que supunha. Na agitação do mau passo não me tinha apercebido de uma coisa que teria sido realmente grave. Quis Deus que o precioso cajado não me escapasse da mão direita e fosse, sim, o saco de viagem. A perda da vara teria representado uma desgraça irreparável... Tiago guiou sua mãe até à porta de uma das casas. Ali, sentando-se num banco de pedra, recebeu as atenções dos três oleiros, filhos do falecido Nathan e velhos amigos da família. Jacob, carinhoso, devolveu-lhe o saco das pombas, enquanto um dos jovens lhe trazia uma tigela de água. Depois de uma breve conversa, em que os artesãos afirmaram não ter notícia alguma sobre o Zebedeu, os filhos dispuseram-se a reatar as suas buscas. No entanto, a boa vontade da mulher não foi suficiente. O joelho direito, inflamado por
causa da queda no terreno, não aconselhava demasiados movimentos. Tiago, contrariado, deixou-se cair a seu lado. Durante um breve espaço de tempo limitaram-se a observar-se mutuamente. Maria, acabrunhada, foi-se deixando abater pela tristeza, consciente de que a sua obstinação, uma vez mais, era fonte de contratempos e de preocupações. E acabou baixando o rosto. O nobre galileu não lho permitiu. Esconjurando o mau humor, pegou nas mãos de sua mãe e beijou-Lhas. - Não te aflijas, mãe Maria! - exclamou, entre a súplica e o sorriso. - Já sei o que vamos fazer. A mulher olhou-o, agradecida. O verde-erva dos seus olhos voltara a embaciar-se. - Enterraremos as suas queridas pombas aqui mesmo, junto ao rio. Dito e feito. E Tiago, acompanhado por um dos oleiros perdeu-se na primeira das construções, adaptada a oficina, armazém e forno. Os outros irmãos voltaram às suas ocupações. Diante da referida porta, entre uma bojuda vaga de vasilhas de barro de mil formas e tamanhos, achavam-se colocados dois tornos. Ambos, nas margens da corrente, eram alimentados por uma conduta de madeira – em forma de Y – em que partia de uma não menos primitiva nora de metro e meio de diâmetro, mergulhada num remanso do rio. O impulso da corrente, pelo menos naquela época, bastava para mover e encher a dúzia de alcatruzes pregados à estrutura da roda. Mansamente, dominado, o líquido derramava-se nas massas de barro depositadas nas rodas superiores dos referidos tornos. Aquele ofício, abençoado havia muito por Javé, tinha algo de mágico e subjugante. Não era de estranhar que Jesus e o seu amigo Jacob passassem as horas mortas diante do velho Nathan, vendo girar as gotejantes massas de barro. Fascinado, imaginando os olhos vivos daquele Jesus Menino, aguardei o regresso do galileu, desfrutando o espectáculo daquelas mãos hábeis que acariciavam, golpeavam, imobilizavam e moldavam a massa numa invisível e perfeita coordenação com o impulso proporcionado ao disco inferior. Os pés descalços, geralmente o esquerdo, eram o motor da roda. Ao empurrar a roda, mãos, olhos, corpo e alma eram um todo, originando o milagre
da beleza. Como estão enganados os que crêem e proclamam que os Israelitas não se distinguiram na arte da cerâmica! A técnica foi herdada dos Sírios mas, a partir do século x a. C., a sensibilidade das suas formas destacou-se e propagou-se como uma fresca brisa. Para evitar que o barro ficasse excessivamente pegajoso, em vez de se servirem da areia, quartzo ou sílica, aqueles artesãos recorriam ao calcário pulverizado, cozendo depois as peças com extremo cuidado e a temperaturas inferiores às habitualmente exigidas para os preparados com sílica. A sua destreza parecia apoiar-se num minucioso conhecimento das técnicas. Enquanto um fabricava todo o género de vasilhas, pratos, ânforas ou alguidares – peça a peça -, o segundo trabalhava em série. Colocava uma carga de barro na roda superior e, accionando a inferior, convertia-a numa peça cónica. Seccionava então o bico do cone com um fino cordel que pendia do pulso direito, obtendo assim o corpo de um pequeno jarro. Sem deixar de dar impulso à roda, preparava um segundo exemplar. Estes pequenos jarros e vasos de especial finura e acabamento – empregues, geralmente, em cosmética – tinham o selo particular da olaria judaica: o “engobo” (1), ou seja, uma delicada capa de barro da melhor qualidade, que se aplicava com pincel ou com um banho, nas partes da vasilha que se queria decorar. *1 Este tipo de Hengobos era constituído por barro muito rico em ferro, dissolvido em água até lhe dar uma consistência cremosa. Se se desejava obter um tom vermelho-vivo juntava-se-lhe ocre, a fim de elevar o teor de ferro. Por razões religiosas, os Judeus quase não decoravam a sua cerâmica, com excepção de algumas faixas vermelhas ou brancas na parte superior da curvatura das vasilhas ou a meio dos alguidares e jarros. A decoração era reduzida ao uso do engobo” ou do polido. Esta última técnica – como descreve G. E. Wright – consistia num minucioso fechar dos poros da superfície, por ela passando um polidor de pedra, osso ou madeira, logo que o barro estivesse seco. A partir do século IX,. C., esta operação era levada a cabo enquanto a vasilha girava na roda. Se não se aplicasse calor excessivo, o polimento conservava-se brilhante, proporcionando ao recipiente um bonito efeito. As típicas malgas israelitas daquele tempo recebiam um engoboN vermelho no interior e no rebordo. São os chamados de polimento circular, (N. Do M.)
Ao reparar no meu sincero interesse, o artesão que fabricava os jarros sorriu, compreensivo. Sem deter a manipulação do barro gotejante, perguntou-me se era amigo da família. A minha resposta tranquilizou-o. A julgar pelo seu aspecto, a rondar os quarenta e cinco anos, aquele homem deveria ter sido companheiro do Jesus menino ou adolescente. Recordando as explicações da Senhora sobre os gostos infantis de seu filho pela arte de oleiro e por aquela oficina, arrisquei-me a interrogá-lo sobre estes pormenores. Foi concordando em silêncio. Conhecia a história. - Meu pai – comentou, referindo-se ao velho Nathan – sentia uma especial predilecção por Jesus. Rara era a tarde que não aparecia por aqui... - Apontando com a cabeça para Jacob, que esperava junto de Maria, acrescentou, sem esconder a sua saudade: - Que tempos! A este pobre sempre lhe cabia o pior: amassar o barro. Meu pai trabalhava aqui mesmo, nesta roda. E Jesus e Jacob sentavam-se onde tu te encontras agora... e ali ficavam horas e horas, vendo girar as rodas. Às vezes, quando ia à oficina, ambos disputavam o lugar e, nas suas costas, faziam girar as massas de barro. A aventura terminava sempre com uma repreensão... Tiago e o terceiro dos irmãos, munidos de enxadões, trocaram algumas palavras às portas do armazém. Seguidos por Jacob, aflito, e pelo vacilante caminhar de Maria, que procurava em vão afastar a amargura, rodearam o segundo casarão, parando em frente de uma velha amiga de Nathan: uma frondosa figueira, com quase cinco metros de altura, de ramadas frescas e suavizadas pela recente Primavera. Escolhido o lugar, revezando-se no trabalho, lançaram-se ao argiloso e dócil terreno, abrindo duas covas de quase meio metro de fundo. Durante o tempo gasto na dolorosa obrigação, o silêncio, brotando do coração, só foi quebrado pelas pancadas das ferramentas e pelo ofegar dos coveiros. As vespas responsáveis pela polinização da figueira (a Blastophaga psenes), tão desconcertantes como este explorador ante o insólito do enterro, optaram por se retirarem para as cabeleiras emplumadas das altas canas da ribeira. Jacob, cerimonioso, numa tentativa de abreviar a tarefa foi alinhando as pombas diante das sepulturas. Tiago e o oleiro, apoiados nos compridos cabos das enxadas, aguardavam a decisão de Maria que
ajoelhando-se com dificuldade em frente das suas queridas aves, não demorou a operação. Pegou na primeira com ambas as mãos e, levando-a aos lábios, beijou-a no bico. Logo a seguir, com o silêncio como quinta testemunha, foi deixá-la com uma estranha suavidade no fundo da cova. - Pinta... minha pequena Pinta... Ao escutar a sussurrante despedida, Jacob cerrou os dentes e, assaltado pela raiva, separou-se do grupo soltando o desgosto junto do rio. - Enamorada... minha querida Enamorada. Com a terceira pomba, as lágrimas, irreprimíveis, misturaram-se com os beijos. Tiago inclinou a cabeça. ..Preguiçosa... descansa em paz... Quando a última das aves ficou a descansar no buraco, o filho, ajudando a mãe a levantar-se, encomendou-a à minha tutela. Sem mais rodeios, descarregando a tensão a cada pazada, sepultou as pombas. Não sei se os meus afagos serviram de alguma coisa. A Senhora amava intensamente as suas pombas. E tal como tinham combinado – possivelmente na conversa travada na oficina – o oleiro amigo responsabilizou-se por Maria, prometendo auxiliá-la até casa de Esta. Elogiei a prudente decisão. O joelho não teria resistido à cansativa jornada que, certamente, nos esperava. Dócil, esmagada por pensamentos que nada tinham a ver com os de seu filho, aceitou sem replicar. Minutos depois, distanciávamo-nos da trabalhadora família, subindo a margem direita da corrente. A base ocidental da colina, como praticamente a totalidade do Nebi, era campo inculto, salpicado de rochas, entrelaçado de giestas, armoles surpreendidos pela humidade do riacho, cortinas negras e impenetráveis de barrilheiras e dezenas de matagais de cardos de folhas violáceas e escarlates, abertas ao sol, e os velozes e infatigáveis enxames de abelhas. Com um incansável Tiago à cabeça, fomos procurando para oeste. Pelas duas horas, com as pernas feridas, o rosto envergonhado e as orlas dos mantos perdidas entre os espinheiros, o paciente Jacob deixou-se cair num dos esporões de calcário, qualificando a busca como
ridícula e negou-se a continuar. Cheio de razão, interpelou Tiago, exigindo-lhe um esclarecimento. Se procuravam um vivo, por que razão fazê-lo entre rochedos e silvados? - A não ser – continuou, argumentando ante o grave semblante do seu cunhado -, que saibas alguma coisa que nós ignoramos. - Sem mais circunlóquios, intimou-o a que falasse sem rebuços: - Procuramos um cadáver? Tiago, obrigando-o a jurar que guardaria segredo, confessou-lhe os seus temores. E perante a hipótese de o Zebedeu ter sido assassinado e lançado para os caminhos e barrancos da zona, o fiel e voluntarioso Jacob não teve outro remédio senão reconhecer quanto era sensata e discreta a atitude do seu amigo e irmão. Resignado à sua sorte, cingindo o roupão e a túnica aos rins, foi atrás dele, em direcção ao cume. Eu era o menos indicado para lho fazer ver, porém, na suposição de o saduceu ter ceifado a vida de João, por que razão se arriscaria a deixar o corpo nas ladeiras do Nebi ou à beira dos caminhos que partiam e vinham dar a Nazaré? Um réptil como Ismael tinha outros meios para resolver o problema. Obviamente, como era minha obrigação, continuei no meu papel de convidado mudo. Dez ou quinze minutos depois, quando nos encontrávamos a curta distância do cume, a ziguezagueante e infrutífera exploração viu-se interrompida por um estranho cântico. Os meus companheiros, agachados no mato, fizeram-me sinais para que me escondesse. Obedeci, alarmado. Gatinhando, fui colar-me às suas costas. Jacob, a tremer dos pés à cabeça, indicou-me a boca quase triangular de uma gruta que se abria a uns trinta metros. E sussurrou um nome: - Koy. Se o meu treino não falhava, o vocábulo queria significar animal de espécie não identificada. Não conseguia compreender. De que tinham medo? Quem habitava na caverna? Desde quando uma fera entoava versículos do capítulo vinte e dois do Eclesiastes? Prestei atenção. Do interior da cavidade, efectivamente, saía uma singular recitação. O seu autor repetia algumas palavras, assim como as últimas sílabas:
- O luto por um morto... to... dura sete dias... dias... pelo néscio e pelo ímpio... pio... todos os dias da sua vida... da... E a cantilena voltava, monótona e importuna. Jacob sugeriu passar por detrás da gruta, evitando assim o Koy. Tiago negou-se. - Que melhor sítio para esconder um cadáver? Em relação à identidade do tal Koy e quanto aos manejos dos galileus não tive outra alternativa que não fosse a de me armar de paciência e esperar. E Tiago, censurando ao seu companheiro a evidente falta de coragem, pôs-se de pé, gritando pelo estranho inquilino. Jacob acompanhou a gritaria, pelo menos com outras tantas maldições. Dali a pouco, o cântico apresentou-se à meridiana luz do dia. Com ele, um animal perfeita e tristemente identificado: um velho esquelético, nu da cintura para cima, com uma cabeleira e barba pastosas como cimento, e tão grandes que poderia atá-las na cintura. Sem parar com a monocórdica oração, observou o intruso. De repente, prescindindo dos versículos bíblicos, enredou-se numa sistemática e aparentemente brincalhona repetição da última palavra pronunciada pelo seu interlocutor. - Koy – perguntou Tiago pela segunda vez -, sabes alguma coisa de um morto? - Morto – exclamou o infeliz. - Sim, um morto. - Morto... - Maldito seja!... Koy!... Koy repetiu o nome, divertido com o jogo. Sentando-se, iniciou uma rítmica contracção do tronco – para a frente e para trás – que pôs em evidência o possível mal do indivíduo. A catatonia e os sintomas manifestados nas repetições das palavras (ecolalia) e das últimas sílabas ou vocábulos levaram-me a suspeitar que o pobre Koy padecia de esquizofrenia ou de demência precoce (talvez o que hoje se conhece como doença de Alzheimer) (1). Infelizmente, naquele tempo, os transtornos mentais, incluindo atrasos de grau menor e simples problemas de dicção, vinham a par com o
desterro do doente. A maioria destes homens, mulheres, velhos e crianças ficava etiquetada com o rótulo de loucura e, consequentemente, eram qualificados como impuros, possessos, *1 Este tipo de demência senil era bastante comum na época de Jesus. Em princípios do século xx foi descrita por Alois Alzheimer, ao estudar uma paciente de cinquenta e um anos que apresentava os sinais típicos: transtornos de memória, tendência para a desorientação, ideias delirantes e ciúmes (zelotipia), emprego de palavras impróprias (parafasias) e, em geral, dificuldades de comportamento e de compreensão. De evolução contínua e irreversível, foi dividida em três fases ou estádios. Koy muito provavelmente, encontrava-se na última fase da doença, com incontinência esfincteriana e prosopagnosia ou dificuldade em reconhecer as caras. (N. Do M.)
perigosos e indignos de viver ao amparo da Lei. Este era o caso do tal Koy, o louco ou tonto oficial da aldeia: um indivíduo sem família, possivelmente bastardo, de idade impossível de precisar, que nunca tinha abandonado aquela gruta ou as suas imediações, de pele seca como uma casca e que sobrevivia à base de raízes, mel silvestre e da caridade de alguma boa gente de Nazaré. Por outras palavras: um milagre da Natureza. ... Viste um cadáver? - Cadáver. Jacob, impacientando-se, levou o dedo indicador às têmporas, esclarecendo o que era evidente: que não se encontrava em seu juízo. Puxando pelo manto do amigo, pediu-lhe que esquecesse a grotesca conversa. Mas Tiago, obstinado, insistiu. - Koy, podemos ver a gruta? - Gruta... - Deixa-me entrar! - Entrar. - Este louco... - Louco. Farto do que para ele só representava uma brincadeira, Tiago avançou para o velho, resolvido a inspeccionar a gruta.
- Louco! - gritou Koy, levantando-se sem muita facilidade e entre rangidos de ossos. Caindo sobre as nádegas uivou de novo a palavra louco, ao mesmo tempo que deitava mão a umas quantas pedras. Saltando dos gritos para um riso sardónico recuou até à entrada da gruta, levantando os braços ameaçadoramente. O irmão de Jesus parou. E quando estava a ponto de desistir, o cunhado, perdendo a calma, saiu de entre as giestas, derrubando com os seus impropérios o escasso juízo do demente. A visão do segundo intruso desencadeou o medo de Koy e apanhámos com uma, acho que justificada, chuva de pedras. Assustados como coelhos lançámo-nos numa veloz corrida de obstáculos. A uma centena de metros, suado e desfeito, com uma ou outra pedrada nas costelas e nas pernas, o receoso trio pôs fim aos pulos e quedas mas não ao medo, tratando de recuperar o fôlego e a vergonha. Ninguém comentou o infeliz lance. Koy, desenfreado, continuava a atirar pedras e a gritar queixosamente. Às pressas, olhando para trás de dez em dez ou de quinze em quinze passos, Tiago foi ganhando distância. E deste modo, num silêncio embaraçoso, maltratados os corpos, as roupas e, o que era pior, as almas, acabámos por rodear o flanco ocidental do monte, chegando ao cume com o sol no zénite. O cimo do Nebi, estreito, aceitavelmente plano e alongado, qual porta-aviões, de sudoeste para noroeste, recebeu-nos em solidão. O terreno era uma massa de lajes calcárias, arredondadas e desintegradas pela erosão, entre as quais abria passagem o mesmo espinhoso monte das encostas que acabávamos de vencer. O único alívio naquele pedregal era um bosque de alfena (Viburnum tissus), expulso pelo banco rochoso no extremo norte do porta-aviões. As pequenas árvores de flores prateadas e de bagas negras e azuladas agitavam a sua beleza ao compasso de uma ligeira brisa de norte, prestando honra à descrição judaica desta planta ornamental, conhecida então como glória do carmelo. A busca pelas alturas do Nebi Sain foi breve. Enquanto os galileus erravam pela plataforma, quem isto escreve, simulando colaborar no exame do terreno, trepou a uma das moles pétreas que eriçavam o centro do cume, alegrando-se com o esplêndido panorama.
Se as nossas informações eram correctas – e partiam das melhores fontes – aquela era uma das paragens favoritas de Jesus. Ali acorria desde menino. Ali, pela mão de José, despertou para a Natureza. Ali, ao norte, à vista da faixa azul do Mediterrâneo, pôde sonhar com um dos seus mais queridos desejos: viajar. Ali, ante o verde-negro mar de colinas sem horizontes teve de encurtar distâncias com seu Pai Celeste. Ali, quem sabe, ao imaginar outros povos, testemunhos como Ele do incêndio circular do sol no poente, pensou e traçou o seu futuro em grande plano. Ali, como o invisível e mágico florescer dos narcisos entre a árida face das rochas, pôde pressentir o seu outro rosto: o da divindade. Ali, apostaria o que me resta de vida, lutou e revoltou-se contra o negro voo da dúvida. Ali falaria, sem protocolos nem servidões, com o Pai Azul. E fá-lo-ia devorando estrelas. Devorando os perfumes dos bosques, trespassados sem querer nas esporas dos ventos. Ali, na sua procurada e multitudinária solidão interior, descobriria a outra solidão: a de uma humanidade perdida em multidão. Hoje, na quase irreconhecível Palestina que Jesus percorreu, o Nebi continua a ser um local tão importante quanto desconhecido. Dois caminhos estreitos e descuidados recordavam a proximidade da presença humana. Um, partia da crista oriental do cume, descendo em serra até à cintura de hortos da vertente oriental. O outro, oculto entre as alfenas, precipitava-se pelo flanco norte, desembocando na rota que unia Séforis a Nazaré. Deste último só tive consciência quando nos internámos no bosque. E sob a permanente influência da fixação de referências, este explorador acabou por ir dar à primeira das veredas, estudando o seu percurso e desfrutando de uma inigualável vista aérea da aldeia. Com uma satisfação quase infantil, fui reconhecendo as casas, os caminhos e a fonte. A fortuna, nesta altura, mostrou-se propícia. O percurso dos limítrofes do povoado – à margem dos contratempos já assinalados – enriqueceu as nossas informações, proporcionando-nos uma visão mais completa e correcta daquela Nazaré do ano 30. Se o tivesse procurado não teria sido melhor. Não tive assim outro remédio senão agradecer o misterioso desaparecimento do Zebedeu. Uma ausência, a verdade seja dita, que começava a inquietar-me... Jacob, do extremo norte do porta-aviões, chamou-me. A busca
prosseguia. É quase certo que, se não me tivesse aproximado do cume, aquilo teria passado despercebido para quem isto escreve. Ao encaminhar-me para os meus amigos e evitar uma das rochas, os meus olhos depararam com uma laje plana e ligeiramente inclinada, cheia de inscrições. Eram nomes próprios cinzelados grosseiramente com algum material ou instrumento pontiagudo. Não havia dúvida, parcas frases que pareciam ser obra de adolescentes ou jovens do lugar. Todas associavam – amorosamente – homens e mulheres: Jonas Miriam... O oleiro ama a tecedeira... Judas será de Ester... José e a moabita... Goliat e Salomé... Fascinado, procurei encontrar algum nome familiar. Num canto mais apagado que as trinta inscrições restantes descobri o que interpretei como uma brincadeira do apaixonado Jacob: Miriam, a mais bela e o seu pedreiro. Não houve tempo para mais. O enamorado voltou a gritar-me do bosquezinho. Era incrível. As formas do amor em vinte séculos pouco tinham mudado... Quase estive para comentar o meu achado. Mas, ao detectar um crescente mau humor nos semblantes, inclinei-me para o silêncio. Talvez se apresentasse um momento melhor. Assim que penetrámos no claro-escuro do solitário exército de alfenas, um ruidoso bando de gralhas levantou voo das copas. E Jacob, que me precedia, cruzou os dedos, murmurando com receio: - Esta tolice vai acabar mal... Tiago, um pouco distanciado, não escutou o supersticioso cunhado. Tinha pressa. O carreiro passava entre as árvores, acusando os quase trinta graus de desnível daquele extremo do Nebi. A descida fez-se socorrendo-nos dos troncos resinosos e acerados, que faziam de travão e parapeito. A oitenta ou cem metros o bosque terminou. E o resto da encosta apareceu primorosamente arroteado e colonizado com oliveiras. A vereda recuperou uma aceitável horizontalidade, abrindo sulcos entre a argila vermelha. Em baixo, lambendo a vertente, corria a poeirenta estrada para Séforis.
Mais ou menos a meio da ladeira, Tiago, sempre à cabeça, virou à direita, ignorando o caminho. Minutos depois, respeitoso, o olival cedeu parte dos seus domínios ao cemitério do Nebi. E ante os atónitos olhos deste explorador abriu-se um quadrilátero de uns cinquenta metros de lado, vedado na sua totalidade pelos muros, ora verdes ora prateados, das oliveiras. Em suave declive, intencionalmente orientadas para o sol nascente, erguiam-se cerca de oitenta estelas de pedra de uma brancura radiosa. Casualmente, fora parar ao cemitério de Nazaré. Um recinto deliciosamente aberto e, ao mesmo tempo, cuidadosamente retirado. Os assaltos às sepulturas estavam na ordem do dia. Encerrado no meio do olival, o cemitério ficava a salvo dos possíveis olhares cobiçosos dos caminhantes. O forte caiado das lápides obedecia a uma razão eminentemente preventiva e religiosa. A explosão de luz constituía um subtil aviso. Para os Judeus, pelo menos para os ortodoxos, o contacto com cadáveres era causa de grave impureza ritual. Porém, os meus companheiros, galileus, afinal, prescindiram de tais rigorismos, metendo-se por entre as sepulturas e na direcção de uma cabana de palha e de adobe, que se erguia no extremo oposto, fora do quadrilátero. Tentei segui-los mas, entusiasmado com aquela oportunidade, que talvez não se repetisse, caí na tentação e, nervoso, fui vendo os monumentos funerários. Ali deviam repousar os despojos de José. As estelas, de quarenta a sessenta centímetros de altura, estavam escrupulosamente gravadas. Adivinhava-se a mão de um experiente canteiro. Na parte superior apresentavam o desenho de uma, duas ou três rosetas, encerradas num círculo ou num quadrado. Por baixo, em caracteres hebraicos – o grego era menos frequente -, o nome ou nomes dos sepultados, a origem da família e, nalguns casos, breves dados da vida do defunto. A julgar pelas coincidências, muitos dos mortos pareciam ser parentes. Um dos nomes mais repetidos era Yejoeser. Outros – caso de Miriam; Simão, Judá ou Nathan – eram igualmente comuns. As inscrições, simples na sua maioria, reproduziam frases como estas: Yejoeser filho de Yeoeser. “Teodoto, liberto. Yejoeser filho de Eleazar. Miriam esposa de Judá. Menajem filho de Simão. Miriam filha de Nathan. Salomé esposa de Yejoeser. José e seu filho
Ismael e seu filho Yejoeser... Um dos epitáfios surpreendeu-me. Fazia referência a um tal Samuel, imagino que de pequena estatura, e dizia textualmente: “Deve-se chorar por ele. Deve uma pessoa sentir pena por ele. Quando os reis morrem deixam a coroa a seus filhos. Quando os ricos morrem deixam as riquezas a seus filhos. Samuel, o Pequeno, tomou os tesouros do mundo e seguiu o seu caminho.” No centro do cemitério abria-se o kokhim, uma fossa de quatro metros de lado, meio cheia com os ossos e caveiras dos que tinham sido exumados. Passado o tempo devido, os despojos depositados na terra eram removidos e lançados para o lóculo ou ossário comum (1). O solo da Galileia, unido às intensas chuvas e ao alto grau de humidade não tornavam recomendáveis os enterramentos em sarcófagos de madeira. Quando se tratava de pessoas humildes, sem recursos para adquirirem uma cripta, os cadáveres eram depositados directamente em fossas pouco fundas e rodeados por pedras. Depois se cobriam de terra, cravando a correspondente estela à cabeceira da sepultura. O céu teve piedade deste ansioso explorador. Ali estava o meu objectivo. E as mãos, não sei se pelo banho de sol se pela emoção, começaram a suar. Na fila número onze, perto do final do cemitério, aproximadamente no centro da fila de covais, repousavam os restos mortais do malogrado empreiteiro de obras e do seu filho. “José e seu filho Amós.” Assim rezava a legenda. E por baixo, um expressivo epitáfio: “Não desaparece o que morre. Só o que é esquecido.” Dado o tempo decorrido desde o falecimento do pai terreno de Jesus, quase vinte e dois anos, pensei que os seus restos, bem como os de Amós, tivessem ido parar ao fundo do kokhim. A proverbial discrição daquele homem bom tornou-se extensível mesmo para além da sua morte. Hoje, imaginando que um grupo de arqueólogos escavasse a ladeira norte do Nebi e conseguisse descobrir o ossário, os ossos de José – possivelmente desintegrados – continuariam no anonimato e naquele segundo plano que sempre foi o seu. Bendito seja o seu nome. *1 Esta prática, conhecida como ossilegium obedecia não a razões de espaço nos
cemitérios mas a crenças religiosas. A Misná, no seu texto Semahot” (12, 9), em palavras do rabino Eleazar bar Zadok, reflecte este costume: “Assim falou meu pai quando chegou a hora da sua morte: “Filho, primeiro me enterrarás numa cova. Quando decorra o devido tempo, recolhe os meus ossos e coloca-os num ossário, mas não Lhes toques com as tuas próprias mãos.”, Quando se levava a cabo o ossilegium não havia lamentações fúnebres e o luto durava apenas um dia. (N. do M.)
Levado por um impulso inexplicável, quem isto escreve – apesar da sua manifesta e declarada falta de religiosidade – baixou a cabeça, recitando sem palavras a oração que o Filho da Promessa tinha criado. Possivelmente pela primeira e última vez, um Pai-Nosso se elevou para o azul do céu, em memória, honra e gratidão pelo desaparecido, mas não esquecido, José. Uma mão no ombro veio arrancar-me às minhas reflexões. Tiago, ao notar a minha respeitosa atitude ante a lápide do pai e do irmão, envolveu-me na sua gratidão. E exclamou, baixando a voz: - Já não está aqui! Vamos... Jacob esperava junto da cabana. O coveiro de Nazaré, que guardava as ferramentas de trabalho na choupana, não estava. Uma mulher envelhecida e desastradamente pintada sentava-se à porta, a conversar com o nosso amigo. Pelo que pude deduzir, a galileia do véu azul nos olhos vivia no telheiro. Trabalhava como carpideira nos funerais e, também, como prostituta de cemitério; algo de semelhante às célebres bastuariae romanas, que exerciam o duplo e singular trabaLho de chorar os mortos e alegrar os vivos... Um costume que ressuscitaria em França catorze séculos depois, em pleno apogeu do culto à morte. A rapariga como era de esperar, nada sabia do Zebedeu. Mesmo assim, o infatigável Tiago deu volta à cabana, inspeccionando uma oculta parede rochosa que se erguia ao sul do cemitério. Cinco grandes pedras circulares encerravam outras tantas criptas. Eram os panteões dos ricos da aldeia. A impossibilidade física de mover as mós – para tal era necessário o concurso de, pelo menos, quatro homens – fê-lo desistir. Numa coisa tinha razão: qualquer daquelas
criptas teria sido o lugar ideal para esconder um cadáver. “Mas, mais tarde ou mais cedo” - disse para comigo, recusando a hipótese do galileu – podia ser destapada e descoberto o corpo do delito. Não, aquilo não era verosímil. Ao deixar para trás o cemitério, Jacob perguntou ao cunhado quais eram os seus planos imediatos. E apontando-lhe a nascente que abastecia a aldeia e que brotava um pouco mais acima, a curta distância da crista oriental do cume, sugeriu-lhe que o inspeccionasse e percorresse o aqueduto. Ele, por seu lado, desceria até ao caminho de Séforis, indo reunir-se com ele na asa de pássaro. Contrariado, considerando que lhe coubera a tarefa mais incómoda, iniciou a ascensão, perdendo-se no olival. Quem isto escreve, sem saber bem a razão, uniu-se a Tiago, descendo através do campo. A meia centena de metros do caminho que unia Nazaré à capital da Baixa Galileia, o olival ficou definitivamente cortado, incapaz de se unir ao branco rochedo que dominava a base norte do monte. O meu companheiro, que poderia caminhar por aquelas paragens de olhos vendados, seguiu por uma ínfima passagem, desviando-se para a esquerda. A manobra desconcertou-me. Os montes de pedras não eram excessivamente difíceis nem elevados. Bastava trepar por eles para chegar ao caminho principal numa questão de minutos. Ao aproximar-se de um dos penhascos mais salientes, superior aos dois metros de altura, voltou-se, indicando-me com a mão esquerda estendida que parasse. Depois, levando o indicador aos lábios, ordenou-me silêncio. Não me movi nem respirei. Cautelosamente, procurando fazer com que as sandálias apenas roçassem o chão, foi rodeando o penedo até desaparecer da minha vista. E embora apurasse o ouvido, com excepção dos distantes grasnidos dos corvos do bosque de alfenas não registei qualquer indício do que existisse do outro lado do paredão. O nobre exercício da espera nunca foi o meu forte. Assim, desobedecendo ao meu companheiro, segui os seus passos com idêntica ou maior cautela. A dez metros, o terreno formava um pequeno anfiteatro. Ao descobrilos a meio da clareira, o susto fez-me vergar os joelhos. Instintivamente,
lancei-me para trás, encostando-me à parede. Estava a sonhar? Fechei os olhos e ao abri-los compreendi que não. Nada tinha mudado. A vara continuava na minha mão direita. O sol corria sem vontade para ocidente. Sentia a dureza da rocha por baixo da pele de serpente. Então, aquela visão... Engolindo a pouca saliva que me restava o medo e eu deslizámos pela segunda vez, paralelos à penha, numa vã tentativa de nos certificarmos de que tudo aquilo não era devido a uma alucinação. Desta vez foi o coração que protestou. Um dos fantasmas trazia um curto archote: Evidentemente não estava a sonhar. Na minha frente, no centro daquela paisagem lunar, erguiam-se duas altas figuras cobertas até aos pés com lençóis brancos. E uma delas, como disse, apresentava na mão esquerda uma espécie de facho, que fumegava aparatosamente, embora sem vestígio algum de fogo. Em segundos, a fumarada foi dominando o lugar, embriagando-me com um cheiro irritantemente enjoativo. Que tolo fui! Como é possível que não me apercebesse? Os fantasmas pareciam falar. Mas faziam-no num tom extremamente baixo. Meu Deus! E Tiago? Por mais que explorasse o círculo rochoso não pude dar com ele. Devo confessá-lo. Por um momento, pensei que o meu cérebro seguia os infelizes passos de Koy. E embora de certo modo assim fosse, nunca imaginei que o fatal desenlace fosse tão fulminante... A inesperada e inquietante cena veio demonstrar que, apesar do nosso treino férreo, deixávamos muito a desejar. E o tremor dos joelhos, contra minha vontade e para minha vergonha, dominou-me. Presa da agitação, o cajado ia-me fugindo dos dedos, batendo na rocha e alertando as aparições. Ambos se voltaram ao mesmo tempo e quem isto escreve julgou que ia desmaiar. Paralisado pelo terror assisti à lenta e pausada aproximação de um deles. Recuei, espantado, não tardando em tropeçar nos esporões calcários. Pensei na vara de Moisés. Impossível. O fantasma acabava de chegar junto dela. A mortalha que o cobria, de uma textura semelhante à gaze, deixava transparecer alguns traços do rosto. No entanto, cego pelo pânico, não pude descobrir-lhe a identidade.
Ridiculamente derrubado pela pedra e pelo medo presenciei o apanhar do cajado por aquele ser de além-túmulo. Levantando-se, estendeu-o para mim. Suponho que, ao reparar na humilhante situação, se compadeceu. E levantando a parte de baixo do vaporoso tecido foi-o erguendo-o com estudada e mais que premeditada lentidão. O rosto desvendado, longe de me acalmar, rematou a minha humilhação. Ao avançar, procurou conter o riso, que fervia em cachão. Ao estender-me a mão e ajudar-me a recuperar a vertical não pôde mais e o sempre equilibrado e grave Tiago deixou escapar o riso, sentando-se e dobrando-se em gargalhadas como uma criança. Um minuto depois, a enxugar as lágrimas, teve de ir para um canto e urinar. Mais calmo, livrando-se do pano, contemplou-me, comovido, e apontando, o segundo “fantasma”, esclareceu o mistério com uma única palavra. - Abelhas. Desta vez fui eu quem se riu, definitivamente esclarecido. Num dos bastiões rochosos, com efeito, dissimuladas nas cavidades, alinhavam-se seis ou sete colmeias de um metro de altura, feitas de verga e de cascas de árvores, que conservavam uma certa forma de sino. O apicultor seu proprietário fora surpreendido pelo meu prudente e teatral amigo em pleno trabalho de colheita. A belicosa natureza das abelhas – hoje classificadas como Apis dorsata – explicava os panos protectores e o fumegante archote resinoso. Bem vistas as coisas, susto à parte, devia mostrar-me agradecido. Um ataque daquela espécie asiática teria sido difícil de avaliar. Enormes como abelhões dispunham de um aguilhão, que mais parecia um punhal. E a minha cabeça, mãos e pés – não o devia esquecer – não se encontravam protegidas com a pele de serpente. Se as abelhas tivessem atacado este explorador só a rápida administração de antihistamínicos e corticosteróides teria detido o quadro tóxico. Nem vale a pena dizer que o dono das dorsatas não prestou grande ajuda a Tiago. Do Zebedeu não havia nem rasto. E depois de rodear a perigosa clareira, desalentado, Tiago abordou finalmente a estrada de Séforis. Percorremos pouco mais de meio quilómetro na direcção da cidade do linho, interrogando os camponeses que limpavam as altas
vinhas, firmavam as estacas que as escoravam ou dormitavam ao pé das torres de vigilância dos vinhedos. Estes curiosos e imprescindíveis edifícios circulares ou quadrangulares, que chegavam a ter dez metros de altura, mantinham-se habitados dia e noite durante os períodos de vindima, impedindo assim os roubos das colheitas. Ninguém sabia de nada. Ninguém o tinha visto. Ou, para sermos exactos, ninguém queria comprometer-se... A cara de Jacob era um poema. Sentado na borda do tanque da asa de pássaro, com os pés na água, entretinha-se a atirar pedrinhas aos bojudos traseiros das matronas que enchiam as ânforas. E as alegres galileias replicavam à maliciosa brincadeira com mordazes expressões, algumas referentes à soberana sova que o esperava quando Miriam soubesse do desporto praticado pelo marido. Ao ver-nos chegar, corado como uma papoula, mudou de táctica e de semblante, simulando refrescar as pernas arranhadas. Segundo parecia, aborrecido, havia tempo que abandonara a busca. - Como se a terra o tivesse tragado... - resumiu, impotente e definitivamente farto. Sem o saber, Jacob acabava de pronunciar as palavras exactas. Dramaticamente exactas... Mas continuemos, segundo a ordem dos acontecimentos. Convencido de que a busca – pelo menos de momento – chegara ao fim, Tiago imitou o cunhado. Descalçou-se e solicitou alívio das frescas águas. Durante algum tempo, passeando os pés doridos pela piscina, ficou ensimesmado, reflectindo talvez sobre a nada tranquilizadora sorte do discípulo. Embora no caminho de regresso à aldeia tenha manifestado o seu propósito de prolongar a busca pela estrada que ia para Caná, o infecundo trabalho daquela manhã e o compreensível desânimo de seu cunhado acabaram por fazer que desistisse... momentaneamente. Estávamos nisto quando, muito perto da nona (às quinze horas), a gritaria e a algazarra das mulheres se extinguiram nas revoltas águas. E à pressa, resmungando e arrenegando, carregaram as vasilhas, deixando o local de conversa. Sentado junto de Jacob, de costas para o caminho que ia até à pontezinha de pedra, passei a minha interrogação
a Tiago, que continuava a chapinhar. Um gesto de cabeça, a apontar o caminho, explicou o repentino e unânine abandono da fonte. Ao voltarme, compreendi. Uma mulher aproximava-se. Uma mulher maldita. Vinha da pousada e trazia à cabeça uma ânfora de medianas dimensões. Contrariamente às galileias, os meus acompanhantes não se mexeram. E a providencial Débora, toucada com uma peruca de um amarelo-vivo – prenda obrigatória de toda a meretriz que abandonasse o lupanar e que servia para as diferenciar das donzelas, viúvas e casadas supostamente respeitáveis – continuou a andar na nossa direcção. Ao distinguir os três homens, hesitou por uns instantes. Pus-me de pé e, ao reconhecer-me, pareceu animar-se. Sem pronunciar palavra, de olhos baixos, entrou no tanque, depositando o cântaro junto do rumoroso jorro. Tiago saiu da água e começou a calçar as sandálias. Quem isto escreve, ao ver as dificuldades da mulher para levantar a ânfora até ao pano enrolado no alto da cabeça e que devia amortecer a pesada carga, apressou-se a simplificar-Lhe o trabalho. Uma vez assente a ânfora na cabeça a rapariga, lançando um olhar esquivo e receoso aos galileus, agradeceu-me o gesto com um sorriso. Confundida, preparouse para se retirar. Mas, retendo-a, deixando-me levar pela intuição, atrevi-me a suplicar-lhe um novo favor. Débora observou-me, atónita. Em voz baixa arrisquei-me a avisá-la da entrevista que tinha marcada com o saduceu, do risco que isso representava para a minha pessoa e, por último, como disse, roguei-lhe que conservasse os ouvidos atentos fazendo-me chegar qualquer informação sobre o desaparecido Zebedeu. Escutou as minhas palavras com nervosismo, como se temesse que alguém pudesse surpreendê-la com aquele estrangeiro e, como única resposta, replicou com um “farei o que puder”. E com uma habilidade de circo, sem tocar na vasilha com as mãos, afastou-se, rápida, em direcção à estalagem. Discretos, nenhum dos meus amigos se interessou ou fez perguntas sobre aquela quase clandestina conversa. Nem eles nem eu podíamos suspeitar da extrema transcendência daquele fugaz encontro. A Providência, o destino, aquela Superinteligência que tudo controla – pouco importa o nome – actua sem actuar. É tão subtil que o grosseiro
coração humano raramente escuta os seus verdadeiros murmúrios. E quando sobrevêm os acontecimentos, a maioria dos homens atribui, por vezes, complicados desenlaces à casualidade. Creio recordar que foi o meu admirado Júlio Verne quem escrevia que essa palavra constituía a mais azeda calúnia contra Deus... Em todo o caso, parafraseando o genial criador do capitão Nemo, é Deus quem, brincalhão, gosta de se disfarçar de “azar,”. A minha própria vida e a continuidade da Operação iam depender daquela prostituta. A Providência sabia-o e casualmente guiou os nossos passos para a asa de pássaro... Não podia ser de outra forma. A aventura chamada Cavalo de Tróia foi um frenético galope, no dorso do imprevisto, da tensão, da prudência, da dor e, principalmente, do mágico e reconfortante coração do Mestre. A minha capacidade de assombro – indicador-chave do estado de juventude de todo o espírito humano – viu-se preenchida para o resto dos meus dias. Pois bem, a surpresa seguinte daquela quarta-feira estava para acontecer. O dia, se o Pai Azul não mudasse de opinião (curiosamente, começava a contagiar-me com a linguagem de Jesus), estava acabado. O estéril périplo deixou em seco os galileus. E em silêncio, impotentes, entraram pelo bairro dos artesãos, dispostos a abrigarem-se na casa de Esta. O martelar dos carpinteiros e tanoeiros e o respirar ofegante dos tintureiros trouxe-me à memória uma coisa que não queria deixar passar por alto. Chamando a atenção de Tiago, pedi-lhe que me mostrasse o velho armazém de abastecimento de caravanas. Sentia uma viva curiosidade por visitar o lugar onde o Filho do Homem forjara tão interessantes e cosmopolitas amizades. E o irmão de Jesus, condescendente, deu meia volta, voltando atrás. Mesmo às portas da aldeia, a dois passos da fonte, erguia-se um discreto casarão, de paredes escuras, atacadas por um bolor verde-pardacento (a lepra das pedras do Levítico). Pusemo-nos em frente do portão e, expectante, aguardei que tomassem a iniciativa e entrassem na escura sala. Não foi assim. Tiago, com fracos desejos de recordar o passado, deume a saber que não merecia a pena. O armazém andara de mão em mão e proporcionava agora trabalho aos fabricantes e remendões de redes. A descoberta de um artesanato desta índole em Nazaré deixou
me perplexo. Sempre acreditei que estas indústrias, como a cordoaria e a confecção de aparelhos para a pesca, se radicavam nas margens do yam. Jacob, apercebendo-se da minha desilusão, animou o cunhado a que me mostrasse o lugar. E acrescentou alguma coisa que venceu a sua resistência: - Talvez tenham notícias de Séforis. A partir daquele momento fui de sobressalto em sobressalto. A empresa de burriqueiros que tinha comprado o armazém à família do Mestre voltou a vendê-lo. E por um daqueles caprichos do destino, o novo proprietário veio a ser o pai de Rebeca, a jovem enamorada de Jesus. Havia dois anos, como disse, fora reabilitado como armazém, oficina e tinturaria de artes de pesca. Não pude conter-me e, ante a possibilidade de conhecer Rebeca, puxei pela manga de Jacob, interrogando-o sobre o seu paradeiro. Não soube responder. Mas prometeu informar-se. Algumas das remendadoras e alguns dos caravaneiros que transportavam o linho desde Séforis estavam a par dos movimentos da família proprietária. Atravessámos a escura sala, onde ondulavam as redes cobertas de alcatrão e, seguindo os passos de Tiago, desembocámos num espaçoso pátio descoberto, pavimentado com brancas lousas rectangulares sobre as quais se estendiam longas e estreitas faixas de redes. Fiquei impressionado. A cadeia de produção surgia minuciosa e inteligentemente desenhada. Num dos cantos do recinto, no solo e sobre várias esteiras, empilhavam-se os fardos de linho, livres de folhas e de sementes. Ao cabo de alguns dias, uma vez secas ao sol, as plantas são mergulhadas em grandes cubas de metal e submetidas ao imprescindível processo de curtimento ou maceração (1). As cisternas, escoradas a meio metro do piso, eram aquecidas com lenha, até a água ultrapassar o ponto de ebulição (aproximadamente 120 ou 125 graus centígrados). Esta técnica, mais eficaz que o curtimento no orvalho ou na água corrente, levava o complemento de uma dissolução à base de soda e urinas, humanas ou de cavalgaduras, ricas em ureia. O industrioso pessoal golpeava depois o linho com maços e espadelas,
separando os feixes fibrosos da casca e mais partes lenhosas. Terminada a operação, as fibras entravam no definitivo processo de fiação. A existência de matérias pécticas nos filamentos permitia às tecedeiras utilizar o sistema do fiado húmido, com a consequente economia de tempo. À excepção do curtimento, o resto das operações estava a cargo de mulheres. Quando os finos fios se encontravam entrançados e colocados entravam em acção as habilidosas redeiras. Sentadas de um e de outro lado do pátio, em animada conversa ou ao ritmo de canções inspiradas nos Salmos, cosiam as malhas com a ajuda de cordas de fibra de palmeira e agulhas de dupla ponta, muito parecidas com as usadas hoje nos portos do Mediterrâneo. Mais que tecer e entrelaçar, aqueles instrumentos de osso e de madeira, de dez a trinta centímetros, tingidos de vermelho ou de amarelo, dançavam e voavam nas mãos das galileias. Como pássaros cativos, revoluteavam por cima do linho branco, acabando em quatro ou cinco jornadas as sólidas redes que uma vez tingidas, partiriam para a costa, para as frotas pesqueiras do yam. Quem o poderia imaginar? A Nazaré agrícola e carpinteira também se orgulhava da sua prestigiada indústria redeira... Tiago foi ter com o capataz. O homem, com o torso pintado pelos vapores que fluíam do tanque, escutou-o com atenção sem deixar de remover o linho. E Jacob, espicaçado pela curiosidade, não tardou em se juntar à conversa. Quanto a mim, escolhi o centro do pátio, absorto na precisa linguagem das mãos daquelas redeiras de terra interior. O indivíduo que trabalhava no curtimento assentiu com a cabeça em duas ou três ocasiões. E, de repente, o cunhado de Tiago afastou-se da cisterna, saltando, buliçoso, por cima das redes. Antes que conseguisse abrir a boca, passou – ou deveria dizer voou – a meu lado, desaparecendo no armazém. *1 Esta fórmula, baseada em reacções químico-biológicas, permitia dissolver a pectina (substância intercelular) mediante a acção de diástases segregadas por bactérias aeróbias e anaeróbias. Como é do conhecimento dos especialistas, as fibras têxteis encontram-se na zona liberiana do caule do linho, unidas por matérias pécticas (do grego pekátos: que pode ser fixado). Daí a necessidade de submeter
os caules ao processo de curtimento, libertando as fibras. Do ponto de vista químico o linho é formado quase exclusivamente por celulose. O seu branqueamento – total ou parcial – é, consequentemente bastante cómodo. (N. Do M.)
A sua alegria e meteórica corrida foram tais que, num dos pulos, perdeu o manto. Possivelmente, não deu por isso. Desconcertado, apanhei-o, indo atrás dele. Vã tentativa. Quando me preparava para tornar a entrar, a figura de Tiago entre os corpos adormecidos e negros das redes deteve-me. Esperei esclarecimento. O galileu, no entanto, com o semblante crispado, esqueceu-se de mim. Não podia entender atitudes tão opostas. Um, radiante. O outro, abatido. Instintivamente, esforçando-me por seguir a marcha apressada do meu amigo, associei a sua angústia às possíveis novas chegadas de Séforis. Tinham localizado por fim João de Zebedeu? Era esta a causa da explosiva alegria de Jacob? O sobressalto foi lógico. Depois de atravessar Nazaré de sul a norte, Tiago meteu pelo caminho da sinagoga. O meu cérebro negou-se a conjecturar. Mas não. Quem isto escreve estava em erro. O indignado irmão do Mestre não tinha sequer a intenção de tocar na casa do saduceu. A escolha daquele rumo obedecia a uma razão simples: a sua casa ficava justamente no vértice ocidental do triângulo formado pela aldeia. Paradoxalmente, era vizinho de Ismael. Ambas as construções se encontravam separadas por uma escassa centena de metros. Sem olhar para trás – na verdade, não o fizera uma só vez em todo o percurso -, entrou em casa como um fugitivo. A residência, distanciada do bairro alto, era notavelmente mais moderna que a de sua mãe. Construída em pedra e embelezada com uma cal refulgente, apresentava idêntica configuração ao resto do povoado: um só piso, uma escada de troncos encostada a uma das paredes laterais e a obrigatória açoteia. Demasiado intrigado para reparar em ninharias imitei o dono, entrando sem me descalçar. Ao contrário do lar paterno, o de Tiago e de Esta somava duas únicas dependências. A primeira, em que acabava de entrar, podia qualificar-se de residência habitual, um rectângulo de
oito metros por seis, dividido – como na morada da Senhora – nos tradicionais níveis. O mais alto (a plataforma), à esquerda da porta principal, servia, como se disse, de cozinha e de quarto. O inferior, de uns cinco metros de comprimento, pavimentado com uma suja e fedorenta terra batida, não tinha móveis nem esteiras. À minha direita, amarradas a uma ferrugenta argola, olhavam desconcertadas três cabras de poderosos úberes e pêlo de fuligem. Junto da parede fora colocada uma manjedoura de pedra, muito pobre de forragem. Uma das ruminantes, arisca e violenta de grandes cornos nodosos virados para trás, deu-me as boas-vindas investindo com um salto. A corda, ao esticar, defendeu-me. O local, esquecendo as mal-educadas hircus, encontrava-se deserto. Pela porta que se abria no tabique frontal chegavam vozes, risos infantis e o que, de começo, me pareceu um rouco miado, impróprio de um gato doméstico. Resolvido a satisfazer a minha curiosidade avancei para a luz. Aquela era a segunda divisão da morada: um pátio-curral descoberto, mais bem preparado que o aposento situado nas minhas costas. Um muro alto e caiado cercava-o na totalidade. Quanto ao piso, com largas lajes branco-azuladas, matemática e atraentemente acamadas em argamassa, naquela mesma noite receberia a explicação do seu belo fabrico. Num primeiro momento, tudo foi confusão. Imóvel junto da porta, segundo o costume, inspeccionei o recinto observando as suas principais características. A família, completa, estava agrupada à minha direita, conversando atabalhoadamente à sombra de uma nova mas alta amoreira negra (um Norus nigra), que, com as suas folhas dentadas e as suas florezinhas verdes e pendentes, velava em boa parte do canto norte do pátio. Este flanco, tão espartanamente mobilado e decorado como o resto da casa, apresentava uma mesa rectangular de quase três metros de comprimento, toda ela num cintilante granito cinzento. Em seu redor, como satélites da rocha, quatro bancos de sessenta centímetros de altura, feitos no mesmo material. A presença desta pedra dura e compacta chamou-me a atenção. Tiago era a chave. À esquerda, cobrindo os sete metros da parede do fundo, distinguiase um telheiro de tábuas em que se apertavam alguidares, uma dezena de lousas de idêntica natureza das que pavimentavam o pátio,
ferramentas próprias de canteiro, algumas redes penduradas da parede e das jaulas de medianas dimensões, fechadas com grossos varões de madeira de pinho. Em volta destas armações palrava, ria e gritava um excitado grupo de meninos e meninas, entusiasmados com os inquilinos das referidas jaulas. Deduzi, e não me enganei, que se tratava dos filhos de Miriam e de Esta. Apesar de não pararem quietos cheguei a contar dez. Os mais velhos deviam rondar os oito ou nove anos. Dois, aos cuidados das meninas mais crescidas, limitavam-se a gatinhar, choramingando e mordendo com raiva nas suas irmãs, num esforço inútil de se agarrarem aos varões. Vestiam túnicas curtas e, tanto umas como outros, tinham o cabelo rapado sem misericórdia. Dado o calor da discussão dos adultos optei por me aproximar da gente miúda. Ao descobrir o conteúdo de uma das jaulas estremeci. Felizmente, os paus que as fechavam pareciam sólidos. No interior, cheio de razão ante os gritos da meninada, agitava-se inquieto um soberbo exemplar de Felis chaus, o selvagem gato-dos-pântanos; um felino de setenta e cinco centímetros de comprimento, primo direito do Felis lybica, o gato-africano, de cauda curta, pelagem cinzenta parda e tufos de pêlos nas orelhas pontiagudas. O pequeno tigre, pouco amigo de brincadeiras, replicava a cada cuspidela dos mais audazes com o cintilar das suas temíveis presas e os ferozes miados (quase rugidos) que eu tinha escutado minutos antes. Na segunda jaula, menos concorrida, dormitava aborrecido um velho furão de espesso e branco sobretudo, que, lá de quando em quando, compreendendo as talvez justificadas queixas do seu companheiro de cativeiro, se dignava abrir uns olhinhos escarlates, lançando desdenhosos olhares ao incómodo público. As redes dispostas por baixo do ressalto da parede e a presença do mustelídeo – um caçador de acreditada fama, domesticado havia séculos pelos Gregos e Mesopotâmios – foram suficientes para compreender que um dos prazeres preferidos do dono da casa era a caça. Uma ávida hera, decorando a verde-negro cada palmo de muro, completava o quadro que à minha vista se oferecia.
Ao repararem naquele enorme desconhecido que as observava em silêncio, as crianças interromperam as suas brincadeiras. Cochicharam e interrogaram-se mutuamente e, não encontrando resposta, foram-se retirando do alpendre. As meninas, levando os bebés nos braços, escolheram a frescura da amoreira. Os rapazes, esquecendo por momentos o terrível gato-bravo e o seu distraído compadre, passaram a página daquele divertimento, enfiando-se entre gritos de guerra por um buraco de um metro de diâmetro feito junto da parede norte, muito perto do telheiro. Aquilo era novo para mim. Que significava aquela abertura no lajedo? Curioso, assomei-me ao negro poço. A verdade é que não consegui descobrir grande coisa. Apenas uns degraus, trabalhados na rocha do subsolo. O túnel, se as nossas informações estavam correctas, devia levar às cavernas tradicionalmente utilizadas pelos vizinhos como cisternas, silos e armazéns de cereal, forragem, etc. Descer e aventurar-me naquele momento nos subterrâneos da casa de Tiago não me pareceu oportuno nem prudente. E, ao fim e ao cabo, que podia encontrar? Aliás, o meu verdadeiro trabalho estava à superfície, ao lado da agitada família. Esperaria melhor ocasião para explorar aquele mundo oculto que se abria debaixo dos meus pés... ... Digo-vos que não. Temos de lhe ganhar como deve ser... A voz grave e a moderação de Tiago coroaram a tempestuosa vozearia. Miriam, como sempre, foi a última a concordar. E quando a barreira de vozes ficou livre do voo de critérios e vontades inúteis e desencontradas, o senhor da casa prosseguiu nos seguintes termos: ... Compreendam. As notícias de Séforis são animadoras. É bom que o tribunal pareça dividido... Miriam e o marido, obstinados, negaram com a cabeça sem se atreverem a interromper o irmão mais velho. Atrás deles, velados pelas sombras da amoreira, escutavam Maria, a esquilazinha, Esta e uma quinta mulher, cujo rosto pensei já ter visto nalgum lado. ...Temos de ser tão astutos como o saduceu e vencê-lo no seu terreno. Amanhã, à vista das acusações, não terão outro remédio senão solicitar a presença de testemunhas e das partes em litígio... Jacob rebateu as razões do cunhado, recordando-lhe qualquer coisa
que, ao que parecia, fora já submetida a debate e que este tolo explorador não chegou a ouvir. - E que nos dizes de João? Porque corre o rumor em Séforis de que foi já executado? Tiago, acusando o impacte, perdeu momentaneamente o domínio, desorientando-se. Aquele gelo na face era o mesmo que tinha observado à saída da oficina de redes. Quem isto escreve compreendeu o motivo da súbita crispação, que o arrastou em bolandas até sua casa. O capataz, fazendo-se eco das notícias recentemente chegadas da capital, pô-lo ao corrente da possível sorte do Zebedeu. - Executado? Por quem? Quando?... As interrogações do meu cérebro foram expulsas – só parcialmente – pela lógica e pela moderação do chefe do clã. ...Dizes bem, Jacob, são só rumores. A maldade daquela víbora é sobejamente conhecida. Poderia tratar-se de uma manha para nos amedrontar e nos obrigar a fugir. Se Ismael se atrevesse a acabar com a vida de João, o tribunal não lhe concederia tréguas. E nós também não... - Mas tu, esta manhã... A insinuação de Jacob sobre a busca do cadáver foi interrompida sem contemplações. O cunhado, adivinhando o sentido das palavras, ceifoulhe a erva debaixo dos pés, evitando assim males maiores. - Esta manhã, velho linguareiro – censurou-o Tiago, com um olhar fulminante – cumprimos a nossa obrigação... inquirindo dentro e fora da aldeia. E bem sabes: ninguém o viu... Jacob, avisado e consciente do seu juramento, emudeceu. - Em resumo – concluiu o irmão do Mestre, desanuviando o azedo ambiente familiar – ninguém se apresentará em Séforis enquanto não for convocado pela justiça. A verdade, queridos irmãos, nunca tem pressa para demonstrar a sua inocência. Ao malvado, em contrapartida, falta-lhe tempo e sobram-lhe argumentos. Ele ensinou-nos a confiar no Pai dos Céus. A sua verdade, como sabem, goza de tão boa saúde que não precisa de bastões. Confiemos, pois, que se faça a sua vontade. E alegrem essas caras!
A Senhora foi a primeira a pôr em prática o sensato discurso do filho e, sentando-se num dos blocos de granito, agarrou a mão da quinta mulher, a desconhecida, chamando-me à sua presença num tom carinhosamente brincalhão: - Jasão, meu desajeitado e voluntarioso anjo salvador, aproxima-te... Miriam e Esta, avisadas pelas meninas da fuga em massa dos filhos para os subterrâneos, soltaram gritos para o céu. Precipitando-se para a boca do túnel chamaram-nos, numa furiosa mistura de nomes, impropérios e ameaças. Impropérios que choveram igualmente na atónita cara de Jacob, acusado por Miriam de pai inútil e descuidado, incapaz de vigiar os filhos. Maria, acusando a dor, soltou a mão das da bela desconhecida, carregando no joelho direito. Não me atrevi a perguntar, mas deduzi que a inflamação continuava presente. - Mãe Maria, por favor, deixa-me aliviar-te... A voz de veludo da anónima galileia, não isenta de certa tristeza, fezme desviar o olhar. Onde tinha eu visto aqueles atraentes e rasgados olhos azuis-celestes? Não podia forçar a memória... E a Senhora, dominando-se, foi ao que a interessava. - Não é nada, filha... Filha? Ruth e Miriam estavam ali. Quanto a Marta, eu recordava-a. ... Escuta – prosseguiu Maria, estreitando de novo as longas mãos da belíssima filha. - Este grego de bom coração, intrometido, bisbilhoteiro como uma mulher, misterioso como a noite e valente como Zal, conheceu Jesus e fez algo que a todos nós maravilhou... Os olhos da filha – um azul roubado ao céu – pousaram nos meus e, apesar das minhas constantes negativas aos elogios da Senhora, pestanejaram, curiosos. ... Pôs-se debaixo da cruz e não se moveu sem que fosse sepultado. Diz agora que quer levar a palavra de meu Filho ao seu mundo... A cruz! Fez-se de repente claridade nas minhas recordações. Entre as mulheres, aí estava onde tinha visto a graciosa, obscura e humilhada figura da desconhecida. Mas, qual era o nome? Por que
razão Maria lhe chamava filha? Tratava-se de um simples e carinhoso título? Encontrava-me na frente de algum dos seus parentes? A sua idade, muito próxima da de Tiago - por volta dos trinta e três ou trinta e cinco anosconfundiu-me. Durante uns minutos, preso à sua beleza, fui incapaz de raciocinar. O cabelo sedoso, azeviche, flutuando em liberdade e até meio das costas, emoldurava um rosto quase perfeito. Só as profundas olheiras, resultantes, sem dúvida da amargura – um abismo feminino a que o homem jamais poderia descer – desequilibravam o nácar da pele. ... Também lhe falámos de ti – acrescentou a Senhora, sem notar a minha escandalosa falta de atenção. - Talvez possas esclarecer algumas das suas dúvidas... - Dúvidas?... A minha pergunta foi como uma agulha num balão. E Maria, vendo a minha desorientação, perguntou, contrariada. - Jasão!... Não sabes de quem estou a falar? - Sei... Ou melhor, não sei. A resposta balbuciante não encobriu a minha tolice. E a Senhora, levando as mãos da desconhecida aos lábios, beijou-as com meiguice. Depois, olhando-me como se eu fosse uma criança, sorriu no verde-erva dos seus olhos. E exclamou um nome, com ele enchendo o coração e os lábios: - É Rebeca! Não sei se empalideci se corei. A questão é que permaneci mudo e, a julgar pelo espontâneo fogo cruzado dos seus risos, a minha cara devia ter-se aberto como um espelho. - Jasão, é Rebeca – acentuou Maria, afastando de si o riso. - Chegou esta manhã de Séforis... Aquilo explicava igualmente a buliçosa corrida de Jacob, saindo do velho armazém. A fiel enamorada de Jesus soubera ganhar o afecto da família. O seu anónimo e generoso serviço à causa do Mestre foi mais além do que podiam exigir e imaginar. No desenvolvimento do nosso terceiro salto no tempo teríamos
oportunidade de o comprovar e de nos maravilharmos ante a admirável renúncia daquela galileia... - Jasão, estás a ouvir-me? - Não... ou antes, estou. Deus dos céus! Que providencial e oportuníssima casualidade! Efectivamente, Rebeca podia tirar-me algumas delicadas dúvidas. A conversa privada, travada no ano 13 entre ela e Jesus, permanecia inédita. Nem a mãe nem os irmãos do Mestre conseguiram desvendá-la. E agora, como uma oferta da Providência, aparecia ante este perturbado explorador e pela mão do melhor e mais indicado dos meus protectores: Maria, a das pombas. Mas, como abordar capítulo tão íntimo e reservado? Aceitaria confessar-me os seus segredos? Péssimo intérprete da intrincada psicologia feminina decidi não me precipitar. E o destino, misericordioso, acudiu em meu socorro. Os meus calamitosos monossílabos foram felizmente interrompidos por um novo e queixoso gemido da Senhora. - Mãe Maria, tens de tratar desse joelho. A mulher não prestou atenção ao justo conselho. Mas este explorador, fazendo um sinal à solícita e terna Rebeca, solicitou a sua cumplicidade, pondo em prática um inocente truque. Uma astúcia que, ao fim e ao cabo, beneficiaria a Senhora e este chantagista de meia tigela. Em tom enérgico e procurando o apoio de Rebeca fiz ver a Maria que, se não se submetesse e nos autorizasse a examinar o joelho, não haveria conversa alguma e tanto a filha como o grego intrometido sairiam da casa imediatamente. A de Séforis compreendeu-me logo, apoiando-me no que eu dissera. E a das pombas, viva e rápida como o gato-dospântanos, cedeu entre surdos protestos, simulando não ter percebido o ingénuo jogo. Com a ajuda de Ruth foi levada para o interior da casa. Ali, uma vez acomodada no alto da plataforma, a esquilazinha pegou em duas lanternas e, como primeira medida, dispus-me a examinar e a avaliar a lesão. A minha acção, naturalmente, não era isenta do risco já conhecido: se o problema fosse complicado – coisa pouco provável – eu ver-me-ia forçado a nova retirada. A apalpação e os reconhecimentos iniciais – felizmente para todos –
não reflectiram sinal de fractura, nem sequer a presença de um corpo estranho intra-articular (por exemplo, a extirpação de um fragmento cartilaginoso). A pancada nas pedras do terreno, embora forte, fora amortecida pela túnica. O joelho, enfim, apresentava o que considerei como uma contusão de segundo grau, com dor intensa, hematoma provocado pela ruptura de vasos de pequeno calibre e a consequente equimose ou derramamento de sangue por baixo da pele. Valente como era, Maria apenas fechou os olhos, suportando a dor aumentada pela apalpação. Os movimentos do joelho, normais em toda a amplitude do seu jogo habitual, não pareciam indicar derrames internos (muito comuns em pacientes com entorses) nem luxações traumáticas. Estas lesões teriam afectado o movimento para trás da tíbia sobre o fémur (luxação posterior), o da tíbia para a frente (luxação anterior) ou o movimento lateral. Em minha opinião, à vista do explorado, não existiam indícios de ruptura dos ligamentos laterais e cruzados, nem rompimento da cápsula articular. Quanto a possíveis luxações posteriores, as lesões do nervo ciático poplíteo externo e da artéria do mesmo nome, tê-las-íamos visto com considerável rapidez. Com toda a probabilidade, se a rebelde e inquieta Senhora aceitasse manter-se nalgum repouso – pelo menos durante vinte e quatro a quarenta e oito horas – o inchaço, a inflamação e a dor regrediriam sem tardança. Completo um primeiro e elementar tratamento de urgência – à base de suaves compressões com um pequeno pano – solicitei a Ruth algo mais complexo: gelo ou, na sua falta, água fria e mefiloto ou calêndula. Qualquer destas plantas – muito abundantes na região – podia substituir, com êxito, os nossos actuais anti-inflamatórios. A ruiva hesitou. As plantas medicinais – seguindo as indicações da própria Senhora – não eram difíceis de localizar. O problema era o gelo. E, muito a meu pesar, a família, reunida à nossa volta e atenta a cada um dos meus movimentos, entrou numa nova e azeda discussão. Arrependi-me de ter falado no gelo. Um luxo daqueles – geralmente transportado dos cumes do Hérmon – só podia encontrar-se, com sorte, na abastecida despensa do saduceu ou na menos perigosa pousada de Heqet, o estalajadeiro. Tentei ser medianeiro na questão,
argumentando que os panos podiam ser molhados em água fresca ou à temperatura ambiente. Foi inútil. Miriam, desejando o melhor para a mãe, juntou-se à vontade geral, planeando a busca. Ruth desceria à aldeia e regressaria com as plantas. Quanto à neve, o litígio, para surpresa dos homens, passou à órbita feminina. Esta e Miriam dariam os passos necessários. A resoluta decisão da filha mais velha, retrato quase perfeito da Senhora, deixou sem armas os galileus. Todos conheciam o feitio e a audácia da mulher. E achando que o pedido de um punhado de neve não dava motivo para uma batalha campal, cederam inteligentemente. As três saíram de casa. Por seu lado, Jacob e Tiago, obedecendo a Rebeca, reuniram a revoltada prole, pondo-a a desfilar em direcção ao pátio. O ocaso não tardaria em apregoar sombras e Maria, previdente, calculando uma noite longa e cheia, recomendou aos filhos que fossem tratando das ceias dos mais pequenos. Quem isto escreve lamentou não dispor da farmácia de campanha. Uma dose de qualquer dos analgésicos teria aliviado as suas dores e, principalmente, teria evitado aquele êxodo inquietante. Oxalá o meu erro involuntário não fosse causa de males maiores. E a Senhora, estranhamente submissa, acatou – de momento – a ordem do grego intrometido: repouso absoluto. Em contrapartida, não se manteve calada. E a sua pergunta – recta como o seu coração – voltou a enredar-me. Encostada à arca das provisões e prendendo entre as suas as mãos de Rebeca lançou-me, de repente: - Porque fizeste isto? Pensei que falasse do modesto tratamento. A segunda parte da pergunta – como uma carga de profundidade – encerrava a chave do astuto pensamento. ... Porquê comigo e não com Bartolomeu? Aquele verde-erva que tanto me agradava ergueu-se para o azul-celeste dos olhos da sua amiga e companheira. A resultante foi um violeta tempestuoso. - Jasão de Tessalonica, que assim diz chamar-se este anjo do maisalém aliviou o pai dos Zebedeus das suas horríveis dores e, no entanto, deslustrou o saq à vista de um simples parto. Rebeca olhou-me, sem compreender o malicioso alcance do inexacto
comentário. (Inexacto no saq. ) - É muito simples – defendi-me. - Este anjo sabe um pouco de madeiras e de vinho, alguma coisa de medicina e nada de mulheres. A pancada no teu joelho e cera nos ouvidos do velho Zebedeu foram questões de pouca monta. A víbora e o parto, em contrapartida... A psicologia feminina – supersónica em relação ao desajeitado voo da inteligência masculina – praticou um impecável picado, colimando este piloto. E a geometria de armamento da Senhora teve-me à sua mercê. ... Logo, nada sabes de mulheres – repetiu Maria com malícia, renunciando ao resto da minha exposição. - E como explicas, astuto grego, que Débora te tenha salvado a vida? E ambas, sorrindo maliciosamente, deixaram que eu me estatelasse. Certamente, a minha defesa só teria piorado as coisas. Devo ter corado. E a Senhora, lançando uma ponte, possivelmente sem querer, permitiu-me ter acesso à alma de Rebeca. A psicologia masculina, desta vez, tomou o comando, planando sobre a feminina. Ou, pelo menos, assim me fizeram crer... - Tu, como meu Filho, também antepões outros assuntos ao amor e ao matrimónio? Concordei, não sem certa tristeza, acrescentando: - Os meus assuntos nunca poderão igualar-se aos do teu filho. Rebeca – arrisquei – compreendeu-o. Ou não foi assim? E a enamorada, baixando os olhos, respondeu afirmativamente. Mas conservou-se em silêncio. Como num voo de reconhecimento vime obrigado a manter o alto nível de cruzeiro avançando sem luzes e quase sem motores. O mais pequeno deslize podia arruinar a operação. - A obrigação do Mestre para com a sua família – prossegui, tentando nova aproximação – era sagrada. A renúncia ao seu eu humano não demonstrou a qualidade do seu amor? Rebeca acendeu as luzes da pista, marcando-me o rumo. - Não te enganes, Jasão: Jesus nunca me amou... As minhas palavras não foram interpretadas correctamente. E a balizagem azul do seu olhar apagou-se. Mas não me esforcei por desfazer o equívoco. Não me interessava. ... Pelo menos – acrescentou, quase que para si -, não me amou como
eu ou qualquer mulher teria desejado. - Sei que demonstraste grande coragem. Os seus olhos, como um mar encapelado, pestanejaram a negro. E as densas pestanas negaram-se a levantar-se. - Foi honesta – acudiu a Senhora, tentando endireitar o frágil veleiro – e lutou pelo seu amor... - Por vezes, o amor que chama o amor – sentenciei, apropriando-me da sabedoria de Amiel-Lapeyre – só escuta o próprio eco. E Rebeca, na tormenta das recordações, resolveu tomar o comando da nau, evitando assim os perigosos escolhos dos mal-entendidos. - Enganas-te de novo, Jasão. O meu amor, sim, era um clamor. O seu, em contrapartida, um silêncio... E o seu coração iluminou-se definitivamente. Quem isto escreve nele desceu sem dificuldades. ...Quando por fim aceitou falar comigo soube escutar-me. E desde o primeiro momento, desde que os meus lábios lhe confessaram o meu amor, soube que tudo era inútil. Ele tinha dezanove anos. Eu, dezassete. E com uma convicção que só contribuiu para multiplicar os meus sentimentos por Ele, agradeceu a minha coragem e sinceridade, explicando-me que primeiro estavam os seus. Defendi-me e, estupidamente, exigi-lhe o nome da minha rival... Maria sorriu com benevolência. ... Jesus (eu sabia) não sentia predilecção por nenhuma de nós. O seu trato sempre foi correcto. As suas deferências a umas e a outras eram escassas. Porém, uma mulher ferida é imprevisível. E eu, confesso-o, cometi a estupidez de perguntar pela sua secreta enamorada. - E que respondeu? - Não imaginas? Pôs-se sério e falou-me de alguma coisa que, então, me crispou os nervos: do seu Pai dos Céus. “Acima do amor que professo por minha mãe e meus irmãos”, declarou, “está o meu inexpugnável desejo de cumprir a vontade de “Abba”.
Rebeca cuja bravura fizera empalidecer a Senhora, contou: - O seu Abba! Aquele tonto preferia seu Pai! Anos mais tarde, ao segui-lo, compreendi que a tonta era eu... Mas, Jasão, que queres? Aos dezassete anos, e perdidamente enamorada, era difícil entender. No entanto, com paciência infinita, esperou que eu serenasse. E continuou a falar-me de seu Pai Azul e do possível destino que o esperava. Não te mentirei. Ao princípio, custou-me a acreditar. Enraivecida, propus-lhe uma coisa da qual mãe Maria e eu estávamos a par: aceitava ser a esposa do Messias. Um homem poderoso, intrépido e predestinado precisa de ter a seu lado uma mulher leal e valente. Porém, ele, negando com a cabeça, desarmou-me: “Mais tarde compreenderás. Agora, Rebeca, aceita a verdade. Sinto-me lisonjeado. E isto (podes ter a certeza) dá-me coragem e me ajudará em todos os dias da minha vida”. - Astuta, prestes a perder a batalha, lancei mão da minha última arma: as lágrimas. Jesus nada disse. Manteve-se firme. E eu, derrotada, soube que tudo tinha terminado... sem sequer ter começado... - E o azul do olhar de Rebeca suavizou-se. - E a verdade falou por ele....Eu, Rebeca, filha de Ezra, amei o Homem maior da Terra. Observando tão esplêndida mulher recordei-me de uma frase feliz de Schiller: “Só conhece o amor quem ama sem esperança”. - Em que momento deixaste de o amar? A minha nova pergunta, só compreensível no míope espectro da psicologia do varão, foi recebida como um néscio e indesejável visitante. Olharam-se e, finalmente, com a piedade do vencedor, Maria antecipou-se a Rebeca: - Filho, tu nunca conheceste o amor... Pouco faltou para que lhes abrisse o meu deserto coração. Felizmente, a apaixonada secundou a manifestação da Senhora. - O amor, amigo Jasão, o autêntico, como o aloés, só floresce uma vez. Vocês, homens, têm dificuldade em compreender-nos. Vocês, ao longo das vossas vidas, amam pouco e muitas vezes. Uma mulher ama só uma vez e para sempre. Isto responde à tua ingénua pergunta? - Então, ainda o amas? Acreditei que depois daquela entrevista...
A transparência da minha intenção – sem indício de duplicidade – deve tê-las comovido. - Por vezes pareces uma criança... - recriminou-me Maria com afecto – Rebeca explicou-te. O amor (o que eu dediquei a José) não é túnica que se tire e se vista. Nem o próprio Jesus podia aniquilar os sentimentos desta criatura. Será que não sabes que o amor se nutre de esperança? - Que difícil palavra! Esperança: o melhor médico que conheço. O comentário, tirado de Dumas, pai, não passou despercebido à enamorada. - Dizes bem, Jasão. Foi a esperança que me amparou. Ela alimentou os meus sonhos. Dava-me vida. Falava-me de milagres. Pouco importava que não fosse correspondida. O amor é uma graça sublime que, consegue, até, viver na solidão. Três anos depois daquela conversa no armazém de abastecimento, as minhas esperanças, intactas, receberam um quente raio de luz... - Não compreendo. A Senhora censurou a minha impaciência. - Deixa-a explicar. Refere-se à passagem de meu Filho por Séforis... Obedeci como um colegial. Mas, apanhada na armadilha das recordações, Rebeca delegou em Maria. Foi assim que pude reconstruir aquele novo ano da vida oculta de Jesus: o do seu vigésimo segundo aniversário (16 da nossa era). Antes de descrever a página da mudança para a capital da Baixa Galileia, a mãe – com bom tino – colocou-me os antecedentes da mudança temporária de residência de seu Filho. - Não foi um capricho. Os tempos eram propícios. Simão, que recentemente terminara os seus estudos, uniu-se a seu irmão Tiago na canteira... Tiago canteiro? As ferramentas do alpendre e o excelente acabamento das lousas e da mesa do pátio começavam a fazer sentido. ...Jesus, sempre previdente, afirmara em repetidas ocasiões a necessidade de diversificar os ofícios. Desta forma, de comum acordo, José responsabilizou-se pela oficina de carpintaria e Tiago foi-se
especializando na pedra. Como te dizia, os tempos não eram bons. Nazaré, e em especial os carpinteiros, atravessavam momentos de sol e sombra. A falta de trabalho, como um lobo, assomou várias vezes à aldeia e meu Filho concordou que era mais prático e inteligente quebrar a tradição familiar. Um marceneiro na casa era bastante. - E Jesus? - Continuou no armazém de abastecimento de caravanas. Mas alguma coisa trazia na mente. Eu, como sempre, fui a última a saber. Ao longo do ano fez de maneira que Tiago alternasse a canteira com o armazém. Simão era bom trabalhador e não teve problemas na hora de substituir o irmão. E por finais daquele ano, ante a minha surpresa, Jesus convocou uma reunião familiar. O ladino planeara tudo na perfeição... Ele e Tiago, que contava então dezoito anos, entendiam-se só pelo olhar. Naturalmente que tinham falado nas minhas costas... - Maria suspirou, resignada. - ...E Jesus, tomando como desculpa as novas e prementes circunstâncias económicas, manifestou a sua irrevogável vontade de se mudar temporariamente para a vizinha Séforis. Creio que fui a única a protestar... - Porquê? Se não entendi mal, o trabalho escasseava na aldeia... - Sim... - replicou a Senhora, procurando apoio noutra desculpa. - Mas já sabes como são as mães. Eu pressentia que atrás daquele primeiro afastamento sério do lar se escondiam outras razões, e não precisamente de ordem económica. Já te falámos muitas e repetidas vezes da sua frustrada vocação de viajante... O argumento não me satisfez. - Maria, não exageres... Séforis está a pouco mais de uma hora. Também não era o fim do mundo... - Bom – concedeu -, não sei que dizer-te. Nos seis meses que esteve ausente só o vimos umas duas dúzias de vezes. Uma visita por semana, filho. Mas não era disso que queria falar-te. Naquela histórica assembleia de família houve alguma coisa mais. Algo, precipitado e impaciente amigo, que apontava para longe, mas claro como a luz da madrugada. Algo que não tinha relação com as penúrias monetárias e que uma mãe, por pouco esperta que se considere, sabe
distinguir de longe... Este explorador era todo ouvidos. Maria, em compensação, para meu desespero, interrompeu-se... ... Viajar, disse-te, fascinava-o. Mesmo que fosse só até lá acima, ao cume do Nebi. Que prazer podia experimentar em mudar de ares? Pois bem, foi como um pressentimento. A ida para Séforis era um sinal. E naquela noite, enquanto falava, o céu iluminou-me e soube que os dias de meu Filho como pai e chefe da casa do falecido José estavam medidos e bem medidos. Com excepção daquele outro tunante – a Senhora apontou para o pátio – todos ficámos boquiabertos. Jesus, adoptando um tom solene, declarou que, na sua ausência, Tiago ocuparia o seu lugar. A partir daquele momento, desempenharia as funções de chefe imediato. Que bom diplomata! A verdade é que Tiago nunca foi um chefe imediato. Desde o dia em que meu Filho foi para Séforis foi chefe primeiro. Tudo caiu sob a sua exclusiva responsabilidade. E Jesus fez com que seus irmãos (um por um) lhe prometessem que obedeceriam e respeitariam a todo o instante e circunstância. A qualificação foi feliz. As informações colhidas posteriormente deram razão a Maria: aquela cimeira familiar foi histórica, na verdade. O mês de kisleu (Novembro-Dezembro) do ano 16 deveria ser lembrado como o da largada das primeiras amarras de um veleiro que balouçava inquieto diante do porto. Ela não quis ou não soube admiti-lo mas, por pouco que se conhecesse a linha daquele barco, saltava aos olhos que as espaçadas visitas a Nazaré do Mestre obedeceram a um plano meticulosamente estudado. Desta forma, ainda que o lar não se visse privado do salário semanal de Jesus, seu irmão Tiago teve a possibilidade real de exercer o papel de autêntico chefe de família. E o Filho do Homem – cada vez mais perto do seu destino – viu-se lenta e progressivamente liberto dos laços e obrigações domésticas. ... Conhecendo-o como o conhecia – acrescentou a Senhora, em minha opinião sem exactidão: nem sequer depois da morte e ressurreição foram claras as ideias de Maria acerca de seu Filho -, não tentei dissuadi-lo. Só lhe fiz uma pergunta: a que pensava dedicar-se em Séforis?
O esclarecimento deixou-me atónito. ... A fundição de metais... - Trabalhou durante seis meses numa forja? - Foi o que disse – confirmou a Senhora. - E agora que nisso falas, dou-me conta de que nunca cheguei a vê-lo com o avental de ferreiro. O relativamente longo período que Jesus viveu entre fornos e bigornas esclarecia outro enigma, detectado na análise do cabelo. Ao submetê-lo ao microscópio Ultropack, entre os elementos inorgânicos, além dos habituais – silício, fosfatos, chumbo, etc. - meu irmão e eu descobrimos altos índices de ferro e de iodo (1). Ali estava a explicação. O ferro que lhe contaminava o cabelo só podia vir daquele intenso contacto com a forja de Séforis. O iodo, naturalmente, obedecia a outras circunstâncias, das quais, penso, me ocuparei a seu devido tempo. ... Meu Filho tinha muitos e bons contactos e não estranhei que uma daquelas oficinas o admitisse ao seu serviço. Duro trabalho, na verdade. Se a memória não me falhava, até àquele ano 16 Jesus tinha trabalhado como carpinteiro, marceneiro de exteriores, chefe de armazém de abastecimento de caravanas, ferreiro e, ocasionalmente, como lavrador, pescador no yam e explicador ou professor particular de seus irmãos. Um recorde que, naturalmente, não ficaria por ali. E continuo na minha teima: fraco favor o dos evangelistas ao mostrarem-nos um Filho de Deus basicamente carpinteiro. No seu esforço por conhecer e compartilhar a existência humana, o Mestre foi desempenhando – por vezes sem querer – um bom número de ofícios, qual deles mais fatigante e representativo. - E por que razão o deixou? - Ele falava sempre de ganhar a vida por etapas. Segundo declarou aos que o rodeavam, a experiência em Séforis, cidade de gentios, estava feita. Herodes Antipas, além disso, não lhe inspirava confiança... Rebeca, que assistia à narrativa da atalaia flutuante das recordações, interveio de pronto: - Sim e não. Maria agitou-se. O seu próprio relato fizera-a perder de vista a base e a razão que o justificava. Essa base não era mais que a recente e não
concluída revelação da enamorada: Três anos depois daquela conversa no armazém de abastecimento, as minhas esperanças, intactas, receberam um quente raio de luz... - A que te referes? A imperiosa e contrariada pergunta da Senhora ficou a gravitar na penumbra da plataforma. A esquilazinha, suada e ofegante, apareceu, voando ao nosso encontro. Atrás, deixando no umbral a proximidade laranja do ocaso, apareceram as suas irmãs. Ruth, sem fôlego, confiou nas minhas mãos um pequeno boião de argila. Continha uma abundante reserva de florezinhas liguladas de calêndula secas e palhiças. Os pigmentos florais desta asterácea contêm interessantes princípios medicinais. Felicitando-a pela sua eficácia e rapidez, dei-lhe as instruções oportunas: verter entre um e dois log (entre meio litro e um litro) de água num recipiente, se possível de metal. Macerar a calêndula e, quando o líquido começasse a ferver, deitá-la na vasilha. - E depois? A dificuldade para lhe dar a entender um conceito que hoje não encerra grande complicação – quinze minutos – forçou-me a adiar a segunda parte do preparado. Afagando-lhe os cabelos ruivos, salvei a situação, indicando que me avisasse quando o sol se ocultasse no horizonte. Naquele instante, devíamos estar muito perto das seis da tarde. *1 Ampla informação sobre as referidas análises no segundo volume de Operação Cavalo de Tróia (páginas 316 e seguintes). (N. do M.)
Miriam e Esta – para surpresa de todos – mostraram, orgulhosas, uma pá de neve, cuidadosamente revestida de folhas de feto. Às perguntas dos que ali estavam, esclareceram que vinha da casa do chefe do conselho. Jacob e Tiago, alarmados com a insólita generosidade de Ismael, exigiram pormenores. Mas ocupadas a cumprir as minhas indicações, voltaram as costas aos
maridos, adiando a resposta. Quando os panos ressumaram uma aceitável frialdade apliquei-os no joelho da Senhora, que não tardou a experimentar o esperado alívio. O frio, além de acalmar a dor, provocou uma vaso-constricção, diminuindo assim o extravasamento sanguíneo e o edema. A operação simples em extremo, ir-se-ia repetindo regularmente até ao desaparecimento da neve. E o optimismo adormecido de Maria despertou bruscamente. Com um delicioso ímpeto... Em distracção, enquanto assistia, satisfeito à rápida aprendizagem da mudança de compressas por Miriam, a Senhora deume um sonoro e espontâneo beijo na cara. O carinhoso gesto acabaria por dar lugar a risos e a aplausos. Pelas 18 horas e 22 minutos, com o pôr do Sol, Ruth levou-me até ao tacho que fervia na lareira. Retirei-o e, após uns minutos em repouso, mostrei-lhe como encharcar os panos no cozimento, alternando-os com as compressas de gelo. A infusão de calêndula, muito apropriada para golpes e contusões, completou a minha modestíssima contribuição, remediando em parte o que – certamente – não teria demorado em sarar por si mesmo. Os homens, impacientes, continuaram a insistir. E Miriam começou a contar a história do gelo. O responsável pela entrega fora o criado que já os informara por duas vezes e secretamente. Mas Jacob e Tiago ainda não entendiam claramente. E o saduceu? Tudo tinha a sua explicação. Pelo que parecia – foram aquelas as palavras do “espião da família” - Ismael encontrava-se ausente desde as primeiras horas da manhã. Por alguma razão desconhecida, partira para Séforis e com notória pressa. Como era de prever, a novidade provocou uma vaga de opiniões. Esta, de acordo com a sua natural condição, não abriu os lábios. Jacob falou de negócios suspeitos. Como explicar a repentina viagem da víbora? Tiago ficou pensativo, sem saber que dizer. E resumiu as suas considerações com tanto acerto quanto o pouco brilho: - Tanto pode ser bom como mau. Miriam e Rebeca, mais intuitivas, mostraram-se pessimistas. As intrigas do sacerdote junto do tribunal podiam ser nefastas. Ruth e a Senhora, perplexas, limitaram-se a escutar e a pedir cordura e paz.
Tinham de permanecer unidos. Curiosamente, nenhuma das interpretações acertou no alvo... Não havia razão para transformar a viagem do saduceu numa tragédia. - Os problemas como as dúvidas – sentenciou Maria, fazendo seu um pensamento do Filho – um de cada vez. Imperativa como uma rainha, solicitou aos homens que ajudassem a levá-la até ao pátio. Tiago consultou-me com o olhar. Penso que uma negativa não teria vergado a vontade de Maria. Ignorando a severidade, encolhi os ombros. De certo modo, Maria tentava não desequilibrar o já perturbado ambiente do lar. O nível superior da sala devia ser utilizado, não tardaria muito, como quarto da numerosa prole. A noite, benigna, pôs-se ao lado da Senhora. E o pátio, milagrosamente livre de crianças, respirou aliviado, atraindo as últimas e fragrantes exalações de anémonas, macelas e túlipas do monte, que se preparavam para fechar as suas flores. A Senhora, entre os inevitáveis risos e brincadeiras das crianças, foi levada em bolandas até à cabeceira da mesa de granito. Ali, submetida à fraca guarda deste explorador, foi beijando, cada neto um a um. Concluída a cerimónia, o fatigante bando, mal ou bem, lá foi recolhido na casa, sob a implacável tutela de Miriam e de Esta. A esquilazinha, ajoelhada junto ao bloco de pedra que servia de assento a sua mãe, manteve-se vigilante, substituindo as compressas. Rebeca tentou auxiliar no árduo trabalho de despir e alimentar a gente miúda. Na sua qualidade de hóspede, foi gentilmente despedida da cozinha. E para descanso e alegria deste pecador foi sentar-se junto de Maria. Quanto a Tiago, saltando de repente para a lousa de granito, tratou de pendurar na amoreira uma candeia de azeite que, com o esforçado brilho de mais duas candeias, postas na mesa por Jacob, pretendiam iludir a negra e estrelada noite. Uma noite – tinha essa intuição – cheia de bons e de maus presságios. Bons para quem isto escreve. Não tão saudáveis, em contrapartida, para a família que se dignava acolher-me com tanto afecto. Mas procurarei ir por partes. Para dizer a verdade, entre estas e outras coisas, Rebeca e eu quase tínhamos esquecido o brusco final da nossa conversa com Maria. Aquele
sim e não da enamorada, colocando em juízo as explicações da Senhora sobre o abandono de Séforis por Jesus, continuava a perturbar Maria. E antes que o dono da casa acabasse de atar a candeia à ramada da árvore, abordou-o, sem medo nem concessões. - Explica-te. Tu estavas lá. Não foi por causa do odioso Antipas. Não houve rodeios. Se Maria era rectilínea em pensamentos e obras, Rebeca tinha pouco a invejar-lhe. - Mãe Maria vejo que nunca soubeste... - Nunca soube o quê? - reforçou Jacob, sem compreender. Mas a Senhora, agitando com impaciência a mão direita, ordenou-lhe que se sentasse e não interrompesse. ... Jesus, de facto – prosseguiu sem se apressar -, falou, e falou-te com verdade. A sua experiência em Séforis, os seus contactos com os gentios e o conhecimento dos seus costumes foram satisfeitos. E não é menos certo que as suas discrepâncias com Herodes Antipas aceleraram o seu regresso a Nazaré. Como sabes, o grupo para o qual trabalhava aceitou participar na construção de vários edifícios oficiais. Tanto os de Séforis como os de Tiberíades eram escolhidos pelo governador. Depois da injustiça cometida após a morte de José, Jesus negou-se. Não trabalharia para a velha raposa... Rebeca fez uma pausa. Cheguei a crer que se arrependia de ter falado. O meu desconhecimento acerca das mulheres (toda uma raça à parte) poderia encher a biblioteca do Capitólio... - Isso sabemos nós – confirmou a mãe sem pestanejar e procurando a razão oculta que já se adivinhava nos olhos da sua interlocutora. - Passou muito tempo e não tem sentido ocultá-lo... A pálida linha dos lábios da Senhora oscilou, temerosa. - Eu provoquei a sua ida. - E Rebeca, antecipando-se ao ataque da Senhora, acrescentou, tranquilizadora: - Não te alarmes. Sabes que sou incapaz de fazer mal a alguém. Muito menos a Ele. Mas, ao saber que trabalhava na forja, arranjei maneira de o observar sem que me visse. E vivi assim a minha grande ilusão, semana após semana, escondida na penumbra de uma janela... - Rebeca!
Aceitou a censura. Mas, combatendo de igual para igual, não tardou em desarmar Maria. - Não terias feito o mesmo por José? Com astúcia, a senhora não lhe respondeu. - Que mais? Rebeca parecia esperar a subtil repreensão. Mas não se perturbou. - Mais nada... Nem sequer me foi possível falar com Ele. Maria, desconfiada, lendo mais para além das palavras, acossou-a. - Tens a certeza? Em tua opinião, o que foi que originou a sua partida? Rebeca vacilou, tremendo. - Houve mais alguma coisa. E Maria, desviando o seu ataque para quem isto escreve, preveniume: - Não esqueças meu infantil Jasão... Mulher apaixonada, hera trepadora. - Sim – repliquei em defesa de Rebeca -, uma hera que perfuma o que toca. Jacob, divertido com a minha insolência, deu uma cotovelada no cunhado, e Maria fulminou-o com o olhar. ... Quando soube que Jesus se dispunha a cancelar o seu contrato com a forja – prosseguiu Rebeca, tentando adivinhar novos conflitos familiares – quis vê-lo... A Senhora, alheia a estas pequenas histórias, ficou suspensa. - Meu pai cedeu e foi à oficina, convidando-o a ir a nossa casa... O susto cobriu de neve o rosto de Maria. - Jesus declinou o convite. E o raio de luz que aquecia as minhas esperanças eclipsou-se. No dia seguinte, antes do previsto, abandonou a cidade. Eu provoquei a sua partida. Ninguém suspirou. E os primeiros luzeiros, no alto, foram fixando posições, à espera da sempre atrasada frota de estrelas. Teria desejado consolá-la. Explicar-lhe que, com certeza, como aqueles
primeiros planetas a chegar, os seus temores não reflectiam a verdade. Esta, como a noite, é sempre uma construção intrincada. O ser humano, da Terra, tem de se limitar a contemplá-la. Possuir a verdade – como as estrelas – é ainda um sonho. Se o Mestre decidiu sair de Séforis não foi por sua causa. E a Senhora, ao ler no meu firmamento interior, restabeleceu a ordem. - Enganas-te, criatura. Afasta essa ideia absurda. Meu Filho (tu aprendeste-o nos anos de pregação) actuava movido pela vontade de seu Pai; nunca por temores humanos. Tive vontade de lhe devolver o beijo. Dificilmente se podia simplificar com maior gentileza. O meu sorriso, onde poderiam instalar-se todas as constelações, agradeceu-lhe com juros. E embarcado como um clandestino no excelente humor da Senhora, dele me aproveitei arrastando-a para águas que me convinham. A intuição – esse infalível semáforo da alma – não cessava de dar sinal. Havia algum tempo que me gritava a importância daquela serena e concorrida noite. Com a madrugada, com a quinta-feira e com a assembleia do Pequeno Sinédrio de Séforis, a minha sorte podia levantar voo. Erguendo o rosto para a silhueta violácea do Nebi, a minha providencial protectora inspirou e embebeu-se na fragrância que vinha das encostas. Com os olhos fechados, sem desviar a proa dos seus pensamentos da montanha, foi-me falando devagar. Alegrando-se. Agradecendo. Chamando as recordações. Deixando que pousassem, como as suas pombas, nas ramadas do coração. E assim, serenamente, recebi as chaves que me permitiram escrever as últimas páginas do tempo que o Filho do Homem passou na recôndita Nazaré. Terminada a sua experiência na forja reatou o trabalho na direcção do armazém de abastecimento. E cumpriu o estipulado: Tiago continuou a ser o chefe do lar. O amanhecer do ano seguinte -17 da actual era cristã – foi um dos mais luminosos e esperançosos para a família. A ameaça da falta de trabalho afastou-se da aldeia e os salários dos quatro filhos mais velhos alteraram o rumo da economia doméstica. Miriam e Marta, por sua vez, a primeira com a venda do leite e da manteiga a segunda ajudando a
mãe no tear, contribuíram para o aumento da renda familiar. Mais de um terço do custo do armazém de abastecimento encontrava-se satisfeito e pela primeira vez em anos, dispunham de poupanças. Esta merecida abundância aliviou tensões e autorizou Jesus a cumprir uma das tradições familiares: acompanhar seu irmão Simão, o canteiro, à festa da Páscoa. Desde o falecimento de seu pai na Terra, o Filho do Homem não dispusera de tanto tempo livre. E soube aproveitá-lo. Como era habitual, escolheu uma viagem inédita: à Decápole, a Péla, a Gérasa do Sul, Filadélfia (actual Amã), Jesbón, Jericó e Jerusalém. Neste trajecto, ao atravessarem as terras situadas a leste do rio Jordão, os irmãos travaram amizade com um homem que, poucos meses depois, se converteria na quarta grande tentação de Jesus. Quando leio os evangelistas e me detenho nas famosas tentações do retiro no deserto não posso deixar de me maravilhar ante a solene ingenuidade dos péssimos relatores da vida do Mestre. Pedras que estão prestes a transformar-se em pão, voos até ao pináculo do Templo... Enfim, belas e preocupantes fantasias orientais, muito próprias de gentes que tinham ouvido sinos e que, lamentavelmente, não souberam dar uma informação rigorosa. O Filho do Deus, enquanto homem naturalmente que foi tentado. Mas, segundo o meu curto entendimento, com manobras e propostas mais sibilinas e – aceite-se a redundância – tentadoras. Ao longo da sua vida terrena teve de escolher. Existe uma fórmula mais diabólica de tentação? Foi-lhe oferecida uma carreira: uma educação apurada nas escolas rabínicas da Cidade Santa. Pôde cobrir-se da duvidosa glória humana participando no movimento zelota. Foi-Lhe dada a atraente possibilidade de sair da pobreza contraindo matrimónio com Rebeca. O canto da sereia seguinte – mais perigoso que os anteriores – foi cantado pela cultura. Para sermos exactos, pelo chamariz do ensino. Na sua passagem por Filadélfia, o Mestre e Simão conheceram um próspero e nobre mercador de Damasco, dono de quatro mil camelos e hábil negociante, com interesses e muitos dinheiros distribuídos por todo o Império. Dirigia-se a Roma e, ao entrar em Jerusalém, achou por bem
convidar Jesus para sua casa. A notável instrução e os vastos conhecimentos do impenitente viajante cativaram o Filho do Homem. Por sua vez, o oriental ficou muito impressionado. Aquele galileu de vinte e dois anos era especial... E quando Jesus se despedia, rumo a Betânia, o banqueiro ofereceu-lhe um cargo nos seus negócios de importância. Teria de o acompanhar a Damasco e, posteriormente, pelo resto do mundo conhecido. O Nazareno recusou a oferta, escudando-se na família. Mas o mercador também não era homem que se rendesse com facilidade. Algum tempo depois voltaria à carga, com outra tentação. Simão entrou na legalidade judaica e, pelo espaço de uma semana, ele e seu Irmão desfrutaram da liberdade. Jerusalém, em plena festa, era um turbilhão de línguas, cores e costumes. E o curioso Jesus deixou-se arrastar naquela vaga, participando em dezenas de conclaves. Num desses encontros com gentios e peregrinos foi tropeçar num grego que fazia a sua primeira viagem à Cidade Santa. Era terça-feira de Páscoa. Local: o esplêndido Palácio dos Asmoneus. Pois bem, o grego em questão – que tinha o nome de Estêvão – ficou comovido perante o estilo e as ideias de Jesus. Durante quatro horas falaram sobre o humano e o divino. A revolucionária filosofia do Galileu acerca do Pai Azul deixou o grego fora de combate. Nunca mais voltariam a ver-se nem a saber um do outro. No entanto, embora não o possa demonstrar, tenho fundamentadas suspeitas de que o jovem e fogoso grego passaria à história como aquele Estêvão que seria lapidado às portas de Jerusalém por volta de 36 da nossa era. Ou seja, cerca de vinte e um anos depois desta conversa providencial. Uma morte da qual, como se sabe, nasceria para a fé o não menos célebre Saulo ou Paulo de Tarso, verdadeiro fundador do Cristianismo (1). O regresso a Nazaré, no domingo seguinte à semana da Páscoa, deuse por cenários igualmente novos: Lida, a rota da costa, Jopé e Cesareia e, rodeando o monte Carmelo, Akkó (Ptolomaida) até à aldeia. Desta forma, o incansável Jesus completou o seu conhecimento da Palestina, situada ao norte de Jerusalém. A entrada no lar, como em cada viagem, foi uma maravilhosa
confusão. Simão esteve horas a relatar à família os pormenores da aventura. E, mais uma vez, a Senhora – ao saber dos contactos de seu Filho com aquelas gentes distantes e estranhas – ressuscitou os seus antigos medos. Qual a razão daquela ânsia em viajar e, principalmente, em se relacionar com gentios tão alheios à religião e às formas judaicas? *1 Para mais ampla informação sobre a suposta fundação da Igreja por Jesus o leitor pode consultar a obra El Testamento de San Juan. (N. Do A.)
Embora julgue tê-lo referido, à força da rotina, de anos, e dos silêncios cada vez mais herméticos de Jesus em relação ao seu papel como Messias, a mãe foi perdendo, de certo modo, a noção de um primogénito libertador e chefe nacional. Para cúmulo, aquela febre pelas viagens acabaria por desconcertá-la. Só de quando em quando, a inapagável imagem do anjo na Anunciação lhe agitava a alma sepultando-a num oceano de dúvidas. Mas, como todas as mães, foi-se habituando à ideia: mais tarde ou mais cedo, Jesus voaria para o seu lado... O tímido salto para a vizinha Séforis depressa encontraria o seu segundo elo: Damasco. Jesus chefe de uma escola de filosofia religiosa. Esta foi a quarta grande tentação. Mas seguirei o fio dos acontecimentos, tal como os recebi da família. Umas oito semanas depois de celebrar o seu vigésimo terceiro aniversário, entrado já no mês de kisleu (Novembro-Dezembro) aquele Jesus adulto e recto receberia uma grande embaixada. Um mensageiro do rico comerciante de Damasco apresentou-se em Nazaré com a missão de convidar o chefe do armazém de abastecimento a partir para a próspera cidade oriental. A senhora foi a única que se opôs ao projecto. Mas o destino estava traçado e o Mestre partiu. A separação prolongar-se-ia durante os últimos quatro meses do ano 17. Por que razão Jesus aceitou? Mudara de critério em relação ao mundo dos negócios? A razão foi outra: o mercador desejava criar em Damasco uma escola filosófica capaz de fazer sombra aos prestigiosos centros de
Alexandria. Para levar a cabo tão ambicioso projecto pensou naquele jovem singular, culto e profundo, que conhecera em Filadélfia e Jerusalém. Num primeiro instante, a ideia entusiasmou o Galileu. E a sua perplexidade não teve limite quando, ao chegar a Damasco, o banqueiro pôs à sua disposição uma grande quantia com que fazer frente aos primeiros gastos. Para começar o reitor da futura universidade tinha de visitar os mais afamados foros culturais e pedagógicos da orbe mediterrânica, bebendo na essência das suas doutrinas e ensinamentos. A seriedade do magno projecto foi aprovada por mais doze banqueiros, que se comprometeram a financiar a operação, sempre e quando Jesus se dignasse dirigi-la. Aqueles quatro meses decorreram perigosamente para o Filho do Homem. A tentação de ensinar e difundir a cultura tornou-se quase insuportável. Finalmente, desistiu. O grande sonho – revelar ao Mundo a existência de seu Pai – surgia já como uma ofuscante manhã. Trabalhou na planificação do Centro, ajudando o seu amigo e benfeitor. Traduziu numerosos documentos e devorou quantos livros e manuscritos lhe caíram nas mãos. Quase a terminar o ano, ante a tristeza do mercador e dos seus amigos, empreendeu o regresso a Nazaré. A tentação fora vencida. As duas primeiras e importantes ausências de Jesus – Séforis e Damasco -, ainda que dolorosas, foram habituando a família. A Providência, sem pressa, continuava a levantar o palco em que iria ser representado o último acto da vida do Filho da Promessa. Os irmãos e a mãe, à sua maneira, começaram a compreender que Nazaré era um ninho extremamente pequeno para a envergadura de tão esplêndida águia dourada. Os seus voos cada vez mais altos e prolongados, anunciavam um êxodo definitivo não muito distante. De acordo com a sabedoria da Natureza, a separação forjou-se sem traumas e ao compasso do relógio das necessidades humanas. Naqueles anos prévios da chamada vida pública, apesar da inteligência e do magnetismo que o adornavam, ninguém na terra teria podido suspeitar que aquele gigante de um metro e oitenta e um, compleição atlética, trabalhador e viajante infatigável, estava destinado a modificar a bússola da História. Como sempre, os mais optimistas
auguravam-lhe um futuro discretamente brilhante e centrado no ensino. De facto, a sua fama como professor corria já de boca em boca. Na Primavera do ano 18 ficaria demonstrada a solidez desta realidade. Uma semana depois da Páscoa, um jovem judeu residente em Alexandria visitou a casa de Nazaré, propondo algo que o Mestre aceitou com prazer: uma troca de impressões com uma selecta representação dos sábios e rabinos que trabalhavam na metrópole egípcia. E em Junho, a dois meses do seu vigésimo quarto aniversário, sentou-se em Cesareia na frente de cinco eminentes professores. As conversações giraram em torno de duas ideias e uma proposta. Para aqueles judeus, Alexandria estava destinada a ocupar o centro cultural do Mundo. As correntes helénicas imperavam na civilização mediterrânica, tendo ultrapassado o pensamento e a filosofia babilónicos. Quanto à proposta, não há dúvida de que constituiu uma quinta e atraente tentação: Alexandria oferecia-lhe um lugar de professor e ajudante do decano da sinagoga principal. Para tal, obviamente, teria de residir no Egipto. Ao longo desta cimeira com a fina-flor da sabedoria judaica no exílio, o Filho do Homem teve oportunidade para escutar um alvitre que, anos depois, com plena consciência da sua divindade, converteria em profecia: a destruição de Jerusalém e do Templo. Os rabinos, tentando ganhá-lo para a sua causa, não hesitaram em fazê-lo participar dos preocupantes rumores que circulavam dentro e fora da Palestina. A rebelião – disseram – estava iminente. A nação seria esmagada por Roma num prazo máximo de três meses. Os homens prudentes deviam abandonar Israel. Que melhor momento para Ele e a sua família? Alexandria abria-lhe os braços. Era suposição de Tiago e de Jacob – principais informadores desta sequência – que Jesus voltou a sofrer, ante a nova e tentadora proposta. Meditou demoradamente e depois de se retirar para consultar seu Pai dos Céus, respondeu aos embaixadores da cultura judaica em Alexandria com uma frase que não esperavam: “A minha hora ainda não chegou”. Confundidos momentos antes de partir, tentaram compensar o tempo perdido pelo Galileu com uma bolsa bem recheada. O Mestre recusou-a
igualmente, acrescentando: “A casa de José nunca aceitou esmolas. Não podemos comer o pão alheio enquanto eu tiver bons braços e meus irmãos possam trabalhar”. Bem depressa, a quinta grande tentação ficou no olvido. Maria e seus filhos, não compreendiam o motivo da renúncia. E durante algum tempo a polémica voltou a instalar-se no lar de Nazaré. Que pretendia aquele estranho primogénito de vinte e quatro anos, que se atrevia a recusar o que a maioria teria considerado como o auge de uma vida? A Senhora recordava com saudade a sua estada na bela cidade egípcia, e foi a mais ardente defensora da mudança. Empenho estéril. Jesus mantinha silêncio e continuava os seus labores, aparentemente apagados, como modesto chefe de um quase perdido armazém de abastecimentos. E os últimos seis meses daquele ano 18 decorreram em paz, com o único sobressalto da notícia dada em segredo por Tiago. - Eu tinha feito os vinte anos – contou o dono da casa, ante o nostálgico olhar de sua mãe -, e achei que chegava o momento oportuno para lhe falar dos meus projectos. Sabendo das inquietações de meu irmão e das suas repentinas e longas viagens não quis arriscarme a esperar. Tivemos então uma conversa e manifestei-lhe o desejo de me casar... Apesar dos doze anos decorridos desde aquela secreta entrevista com Jesus, conservava na pedra da sua memória o mais insignificante pormenor. E como bom canteiro cinzelou a cena com os golpes certos: - Meu Irmão empalideceu. A sua luminosa percepção em assuntos grandiosos claudicava e surgia como que distraída nas questões caseiras. Nem por um momento imaginou que eu pudesse estar apaixonado. - Sim, era distraído. Jacob antecipou-se ao cunhado, satisfazendo a minha curiosidade: - Quanto mais sábio mais destraído. Nunca se lembrava de onde deixava as coisas... - O sábio – reforçou Rebeca, desnecessária defesa de Jesus – é superior ao rei.
- Sim, já sei – reconheceu Jacob, concluindo a sentença que os rabinos apregoavam e que a de Séforis acabava de traçar – um sábio que morre é insubstituível. Para o trono de um rei, em troca, há sempre candidatos. - E que respondeu? - perguntei a Tiago. - Quando desceu das nuvens mostrou-se satisfeito. E ao saber o nome (Esta) abraçou-me, feliz. Veio então o pior... - O cunhado, fazendo causa comum, assentiu com a cabeça. - Como é natural queríamos casar-nos quanto antes. Meu Irmão disse que não. Para obter a sua bênção definitiva colocou duas condições. Primeira: que esperássemos dois anos. Segunda: tendo em conta que faltavam três anos a José para completar os dezoito e, por consequência, poder substituir-me na direcção dos assuntos familiares, exigiu-me que o fosse preparando para tal mister. Serviram de pouco os meus protestos. Este impaciente enamorado não conseguia ver mais longe que o seu nariz... - Que estás a insinuar? A pergunta, confesso, também não foi um alarde de perspicácia. - Estamos a falar do que se passou há doze anos. Não o esqueças, Jasão. Ele sabia o que queria. Precisarei de muito tempo para o compreender. Foi aos dezasseis que adoptou aquela grande decisão. Recordas? Esperar que todos nós nos encarreirássemos na vida para se lançar no seu grande sonho. Meticuloso e responsável não lhe agradavam as coisas no ar... E aceitei claro. Que outra coisa podia fazer? O beneplácito do chefe moral da casa às bodas de seu irmão com a discreta filha de Nazaré desencadearia um segundo e inesperado acontecimento. Animada pela reacção positiva de Jesus, a irmã mais velha – Miriam – apressou-se a comunicar-lhe que também ela estava enamorada. Os olhos de Jacob trouxeram luz à recordação. Arqueando as sobrancelhas, resumiu com um lamento o embaraçoso lance que lhe coube em sorte: - Teria preferido uma semana a pão e água. A Senhora admoestou-o, chamando-lhe exagerado. Ele teimou na sua:
- Conheci Jesus desde que nasceu. Tinha vivido a seu lado noite e dia. Paredes meias. Sabia dos seus risos e choros. Participei nos seus jogos. Defendi-o e protegi-o. Sentei-me a seus pés e aprendi. Gostava dele como se gosta de um irmão. Mas, quando Miriam me comunicou a decisão de Jesus, tremeram-me os joelhos. Tinha de ir falar com Ele e pedi-la oficialmente em casamento. Acreditas? Eu, Jacob, seu amigo e confidente, vestido cerimoniosamente, a pedir Miriam... Como era de esperar, à segunda palavra deu-me vontade de rir. Contagiado, abraçou-me e chamou-me cunhado. Vergados pelas gargalhadas tivemos de fugir de casa, perseguidos à vassourada pela minha futura mulher e por minha futura sogra... - Sim – disse Maria, troçando -, uma tragédia! Que dois brincaLhões! Fingiu não a ter ouvido. - Por outras palavras – lamentou-se Jacob -, anunciou-nos o que já sabíamos por Tiago: teríamos de esperar. E Miriam, pela sua parte, comprometeu-se a preparar Marta no que se refere a tarefas domésticas que desempenhava como filha mais velha. - Então, aquilo de Miriam, a mais bela, e o seu pedreiro foi coisa tua... O súbito comentário deste explorador, recordando a inscrição na rocha do alto do Nebi, abalou Jacob. O negro da noite tornou cinzento o rubor do louro. Gaguejou e, ante os risinhos de Ruth e de Rebeca, sem perder de vista a sogra perplexa, desculpou-se com um débil “não sei...” A Senhora exigiu pormenores sobre o caso. Mas Tiago, defendendo o amigo, retirou importância ao facto, qualificando-o de criancice própria de apaixonados. E a mãe, resignada, refugiou-se numa das suas frases favoritas: - Sou sempre a última a saber... Maria estava certa. E se aquilo não transcendia a fronteira do meramente episódico não podia dizer-se o mesmo do grave incidente protagonizado por Judas no ano seguinte e que, com toda a razão, lhe foi escondido... Conta-se depressa. A família precisou de onze anos para liquidar as suas dívidas. O reequilíbrio da economia iniciado no ano 18, terminaria
em 19 da nossa era. O remate do pagamento do armazém de abastecimento constituiu um alívio que só os que alguma vez enfrentaram a liquidação de um crédito, de uma hipoteca ou de uma compra a prestações poderão entender na sua justa medida. A casa foi uma festa. A esquiva fortuna fizera um alto em Nazaré. Os irmãos mais novos estavam prestes a concluir os seus estudos. Todos gozavam de uma excelente saúde, nas arcas viam-se algumas poupanças, o trabalho continuava a alimentar sonhos e dois pares faziam oscilar a ferrugenta rosa-dos-ventos das ilusões da Senhora. As bodas ficaram definitivamente marcadas para finais de 20. O destino do Filho do Homem, numa inexorável espiral ascendente, arrastava-o nas últimas ondas. Mas, como reza o velho e sábio adágio, “em casa do pobre, nunca a felicidade é completa”. Três meses depois do feliz e duplo compromisso matrimonial, Jesus deu a conhecer ao irmão mais novo o seu desejo de lhe mostrar a Cidade Santa. Judas, que a 24 de Junho do ano 19 chegaria ao seu décimo quarto aniversário, recebeu feliz o convite. Poucos dias antes do 14 de nisán (Março-Abril), fiéis ao costume, puseram-se a caminho de Jerusalém. Tiago, que conduzia o relato, interrompeu a narrativa. Inclinou-se para Jacob e, grave e misterioso, murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Até Ruth, com um dos panos na mão, ficou em suspenso. Os homens observaram Maria. E depois de uns segundos de vacilação, o pedreiro imitou o cunhado, segredando-Lhe um comentário ou uma resposta que também não conseguimos decifrar. - Que estão a tramar? - explodiu a esquilazinha, dando voz ao sentimento geral. Jacob deu mostras de estar de acordo com a ideia de seu cunhado. E este, com ares misteriosos, dirigiu-se à mãe nos seguintes termos: - Mãe Maria, prometes não te aborrecer? O seu olhar verde-erva viajou, veloz, de Jacob para Tiago e deste novamente para o seu genro. E a curiosidade – tinha de ser – venceu-a. - Pois bem – anunciou o filho, não muito convencido da docilidade da Senhora -, nessa viagem aconteceu uma coisa que, no nosso desejo de não te causar tristeza, resolvemos passar por alto...
Maria pôs-se a tamborilar com os dedos no granito da mesa. E Jacob, observando a borrasca, disse, conciliador: - Passaram onze anos! Mas a tormenta assobiava já debaixo da amoreira. - Continua, Tiago. O filho recolheu as velas. ... Logo que chegou a Jerusalém, meu Irmão levou Judas ao Templo. Num desses acasos da vida, encontraram Lázaro de Betânia. Distraíramse a conversar e a preparar a ceia pascal, sem prestarem muita atenção ao eufórico e deslumbrado rebelde... O qualificativo não agradou à Senhora. - Não comecemos de novo... Tiago contemporizou, contrariado. - Está bem. O caso é que nas imediações do Átrio dos Gentios estava postado um dos legionários de guarda. E, pelo que parece, segundo a versão de Judas, teria usado palavras de mau gosto à passagem de uma rapariga judia. A reacção de nosso irmão não se fez esperar. Com a insolência que o distinguia, increpou o romano, chamando-lhe tudo... Ruth deixou cair a compressa das mãos. E Maria, atónita, começou a vislumbrar o desenlace de tão delicado assunto. ... Lázaro e Jesus intervieram imediatamente, tentando acalmar o veemente Judas e estancar a cólera do soldado. O mal estava feito e o jovenzito, como era de prever, foi imediatamente detido. As razões de meu Irmão (que possivelmente teriam frutificado) afundaram-se a pique quando, de repente, em vez de se manter em silêncio, Judas enfrentou novamente a sentinela, manifestando com raiva os seus sentimentos patrióticos e chamando rameira a Roma. Ali terminou a disputa. Ambos foram presos e metidos nas masmorras da Fortaleza Antónia... - Javé nos acuda! Apesar do tempo decorrido, Maria viveu o secreto incidente como se acabasse de acontecer. Quanto a mim, mais que a sorte de Judas, o que me acendeu o interesse foi a insólita presença do Mestre num
cárcere romano. ... Deixa-me terminar – pediu o canteiro, detendo com dificuldade o tropel de perguntas que assomavam ao olhar da mãe. - Jesus, como compreenderão, não quis separar-se do irmão. E tentou acelerar o interrogatório de Judas. As suas boas palavras não serviram de muito. Viram-se obrigados a celebrar a ceia da Páscoa a pão e água, nos imundos e húmidos calabouços da Antónia... - Deus Todo-Poderoso! Meus filhos encarcerados por aqueles miseráveis... O furor da Senhora rolava já como uma vaga. ... O pior não foi isso – Tiago, comprometido até à medula, não parou -... Judas não pôde assistir à cerimónia da sua maioridade legal. - Então – clamou Maria -, enganaram-me a dobrar... - Entendemos que era o menos mau. Mas não te alarmes: Judas passou o seu Bar Mizva uns anos depois, quando se filiou no movimento zelota. Desta fui eu quem interrompeu. - Foi um zelota? Assentiu em silêncio. - E Jesus soube? Os homens, em uníssono, satisfizeram a minha lógica curiosidade com afirmativos movimentos de cabeça. - Queres que continue, mãe Maria? A Senhora, que passara do susto e da indignação à tristeza permaneceu fechada no seu mutismo. E Tiago, bom intérprete de silêncios, concluiu a exposição: - No segundo dia, meu Irmão, representando Judas, foi levado à presença do magistrado e submetido a interrogatório. Apresentou todo o género de desculpas, invocando em sua defesa a extrema juventude do rapaz e o inegável carácter provocatório do incidente. O juiz romano aceitou as sensatas razões. E ao pô-los em liberdade avisou Jesus quanto a alguma coisa que, infelizmente, era verdade: “Tens de vigiar o teu irmão. O seu cego comportamento pode
originar novos e muito graves transtornos.” - Cego comportamento? - a voz da mãe, ferida no seu patriotismo, ecoou como um trovão. - Por ter sido um leal filho de Israel? Ninguém quis arriscar-se nas areias movediças do nacionalismo. E a Senhora, sempre disposta a bater-se pela sua pátria e pelos seus filhos, esbarrou na prudente moderação de todos os presentes: - Escutem-me bem! Eu, Maria, a das pombas, teria agido do mesmo modo... Recuperou o fôlego e captando alguns pensamentos abordou-os - como sempre -, de frente com a sua terrível verdade. ... Leio a censura nos vossos corações. Acham que não estive de acordo com meu Filho quanto à não-violência? Vou dizer-vos uma coisa: não gosto da guerra. Na paz são os filhos que sepultam os pais. Nas revoltas, bem sei, acontece o contrário. Mas também não gosto da vergonha e da desonra. É esta a minha terra. E enquanto viver defenderei a sua liberdade. Não sei se para bem se para mal – quem sou eu para julgar – aquelas ideias acompanhariam a Senhora até ao túmulo. E o ingrato capítulo da ovelha negra da família foi encerrado. O magistrado romano da Fortaleza Antónia sentenciou com acerto: Judas, irreflectido, ególatra e violento, continuaria a sua carreira de desmandos, fazendo tremer os alicerces da casa. Mas haverá tempo para se voltar a isso. A visita do Mestre a Jerusalém, na Primavera de 19, em companhia do irmão díscolo, seria a última desta natureza, marcando o começo da definitiva ruptura do Filho do Homem com os laços da carne e do sangue. O destino acampava já atrás das colinas de Nazaré, disposto a reclamar o que era seu. Bendita criatura! Num minuto desmantelou a couraça de pensamentos negros que, como um segundo firmamento, ensombrara o pátio. Nenhum dos presentes – desgostosos com a revelação de Tiago – o viu insinuar-se até ao lugar que a absorta Rebeca ocupava. O caso é que, no meio de um silêncio de chumbo – lógica ressaca depois da vaga provocada pela Senhora – a de Séforis soltou um grito. E, esbracejando como um fantoche e saltando do banco de granito, fez
empalidecer quantos ali estavam. Jacob à sua direita, foi o primeiro a descobrir o atrevido impostor. Ruth e Tiago, alarmados, precipitaram-se em auxílio da mulher aflita. E o celta, desconfiando do pequeno Judá, seu primogénito, agarrou-o por uma orelha, exigindo uma rápida explicação. Os gritos e o espernear da criança, as exigências e pragas do pai, os gritos de Rebeca, as manobras de Ruth, tentando em vão enfiar o braço pela gola da túnica da de Séforis, as perguntas confusas de Tiago e as atabalhoadas recomendações de calma e serenidade da Senhora converteram o local num pátio de loucos no qual, excepcionalmente, o furão, o gato-dos-pântanos e quem isto escreve ostentaram a máxima cordura. A louca cena abrandou quando a esquilazinha, quase aos empurrões, venceu a vontade de Rebeca, empurrando-a para dentro de casa. À porta, Miriam e Esta, alarmadas perante o alarido, só tiveram tempo de se porem de lado. A meteórica saída das mulheres distraiu Jacob e o diabrete arriscando tudo por tudo, conseguiu fugir à cólera paterna, refugiando-se entre soluços, nos braços da avó. O pedreiro avançou para o suspeito, disposto a resolver as dúvidas. Mas, Maria, maternal, deteve-o: - Deixa-o comigo... E envolvendo nas mãos a cara molhada de Judá secou-lhe as lágrimas, recomendando-lhe que fosse sincero. - Era só um grilo... - confessou por fim o causador de toda aquela confusão. Maria levantou os olhos para os filhos e, esforçando-se por reprimir o riso, acabou por abraçar o pequeno contra o peito, fazendo sinal a Jacob para que voltasse a sentar-se e não perdesse as estribeiras. Tiago, retirando-se para o telheiro deu rédea solta às gargalhadas, descarregando a tensão provocada pela história do seu irmão Judas. - Porque fizeste aquilo? O tom fingidamente severo da avó não obteve outra resposta senão uma indecifrável careta e um mecânico encolher de ombros. Maria insistiu. Finalmente, o filho mais velho de Jacob e de Miriam confessou uma coisa que apagou o olhar tolerante da avó:
- O tio Jesus dizia... - O tio Jesus ensinou-te a meter grilos nas roupas das pessoas? - Judá! - repreendeu-o o pai – porque estás a mentir? Não mentia. Simplesmente, não o tinham deixado acabar. E protestou, amparado pela Senhora. - O tio Jesus dizia: “se um grilo se afasta de sua casa, nunca mais volta a cantar...” - Mas... A avó intercedeu novamente, rogando a Jacob que não interrompesse. A história era simples em extremo. O tio Jesus, como Judá lhe chamava, contara que os grilos amam tanto a sua terra natal que se, por qualquer circunstância, se vêem longe do seu lar, decidem não cantar. E, segundo explicou, aquele grilo era oriundo de Séforis. A sua prima Raquel, filha mais velha de Tiago, tinha-lho trazido no princípio da Primavera. - Que melhor oportunidade tinha para o devolver a sua casa – argumentou Judá – que confiá-lo ao cuidado de Rebeca? A Senhora, Jacob e este explorador acompanhámos a narração, espantados. - E não te ocorreu combinares isso com a pobre Rebeca? O argumento de Maria não foi considerado pelo salvador de grilos. - Impossível. Levando as mãos à cabeça rapada coçou-se com fúria. Ao aproximarme para colocar uma das compressas notei no pequeno um cheiro acre, mistura de vinagre e aloés púrpura. Provavelmente, um dos remédios caseiros contra os piolhos. Aquela sociedade, como a quase totalidade dos povos do Mundo, padecia de uma horrível invasão de Pediculus capitis, Pediculus ventimenti e Pediculus pubis (insectos especializados nas cabeças e nos corpos, respectivamente). ... A Rebeca não gosta de grilos. - Muito bem – replicou a Senhora, encerrando o conflito. - De castigo, fica sem ceia. Jacob pareceu ficar contente com a sanção imposta ao revoltoso. E a
avó, com gesto grave, disse-lhe que fosse à procura da vítima e que lhe pedisse perdão. Judá obedeceu, submisso e cabisbaixo. Mas a meio caminho, voltando-se e com um sorriso malicioso, gritou a Maria: - Não faz mal... Já ceei. O regozijo do travesso infante malogrou-se ali mesmo. Sua tia Esta, à frente das mulheres, surpreendeu-o in fraganti. E a orelha que estava ilesa entrou em acção, sendo levado deste modo à plataforma onde os seus irmãos e primos – passando por cima de tudo – começavam a saltar entre risos e festas. Rebeca voltou à mesa, vermelha como uma papoula. E discreta ocupou o lugar de Ruth, ajoelhando-se aos pés de Maria. Miriam auxiliada pela esquilazinha, entrou em cena, trazendo uma caçarola de barro larga e fumegante. Jacob esfregou as mãos, aproximando-se do borbulhante guisado. A esposa, de mãos na cintura, deixou-o à vontade. E aconteceu o que imaginávamos. O pedreiro, rendido pela fome, introduziu os dedos na ceia a ferver, largando a comida entre gemidos. - Além de tolo, é cego... Jacob, a aliviar os dedos escaldados na boca, aguentou o céptico e malicioso comentário de Miriam. Vinho, pão de trigo, queijo e mel de tâmaras foram dispostos no prato principal. E quando Ruth se preparava para nos servir, da porta a cunhada, Esta, reclamou a sua presença. - Querem que Lhes contes uma história... A ruiva, deixando os utensílios a Miriam, acorreu, encantada. O pedido da gente miúda e a notícia dada por Judá animaram-me a colocar uma incógnita que havia muito se atava na minha cabeça. “Como era o tio Jesus, com as crianças? Em que consistiam aqueles contos que, segundo parecia, faziam as delícias da pequenada?” Eu vira-o brincar com eles e tinha uma ideia do seu fraco pelos pequeninos. Mas quis certificar-me. - Sabes como chamavam ao armazém de abastecimento? - abriu fogo Jacob. - A casa encantada. Jesus converteu o recinto num lugar mágico,
aberto às fantasias infantis. Sentia tal afeição por elas que, durante anos, mal abria a loja, atirava para a rua um labirinto de madeiras, cestos e cordas fora de uso. E como se de um rito se tratasse, as crianças acudiam às portas, brincando e fantasiando com os trastes veLhos. Quando se cansavam, os mais audazes entravam pelo armazém e espiavam o chefe. Se adivinhavam que não estava muito atarefado, puxavam-no pela túnica e entoavam a frase-chave: “Tio Jesus, sai e conta-nos uma história.” E aí o tinhas, sentado junto da parede, com os mais anões entre os joelhos e cercado por um enxame de ávidos e nervosos sonhadores... - E tu, maroto, como sabes essas coisas? A oportuna pergunta de Maria denunciou-o. Implorando compaixão, confessou o seu delito: - Escondia-me para o ouvir. - Já calculava – observou Miriam. - Em vez de trabalhar... - Não era o único!... - Defendeu-se o pedreiro. - Tunante! És pior que os teus filhos... A esposa, sem deixar de resmungar, foi distribuindo aquilo que era um excelente guisado de coxas de rã, banhado num caldo espesso e temperado com esmero com molhos de hortelã-pimenta, mostarda, alho e cebola. Jacob, avisado e respeitoso, aguardou o regresso de Ruth, lambendose e metendo o nariz no prato de madeira para cheirar o aroma que de lá subia. Adormecida a gente miúda, a esquilazinha juntou-se ao festim que – com total premeditação - fui dirigindo com a ajuda de Jacob, para o descontraído e curioso capítulo dos contos e histórias que o Mestre gostava de dizer e que ocupou muitos momentos do seu ócio. - O da rã – declarou o pedreiro, aproveitando a coincidência -, serviu para que aqueles diabretes aprendessem a respeitá-las. Pelo menos durante umas horas. Jesus contava-lhes que Deus as criou sem dentes para que não devorassem outros animais aquáticos. E os muito tontos acreditaram... - E tu também... - replicou a Senhora, pondo a nu a cristalina
ingenuidade do seu genro. - Só ao princípio. E dizia que a rã tinha poderes mágicos e uma grande sabedoria. E que foi um desses animaizinhos que ensinou a Tora ao rabino Hanina e também as setenta línguas do Mundo e os idiomas das aves e dos mamíferos. Para tal escrevia as palavras num pedaço de papiro e o discípulo engolia-o. - Conta a do leviatão... Ruth, testemunha excepcional das fantásticas narrativas de seu Irmão à pequenada da aldeia, veio em meu auxílio. E Jacob, em clara referência aos hipopótamos, que naquele tempo desfrutavam da selva do Jordão, falou assim: - Era uma das histórias preferidas dos anões... - E por outros que não eram tão anões... - interrompeu Miriam. ... Jesus explicava que o behemot era a criatura maior da terra. E recordando-lhes o livro de Job assegurava que nem mil montanhas eram suficientes para o alimentar. E os pequenos, entusiasmados, ouviam-no dizer que toda a água que o Jordão arrastava num ano, era para ele um golo apenas. Para saciar a sua sede, o Todo-Poderoso fizera brotar o Yubal, uma corrente que nascia directamente no Paraíso. Ao reparar nas caras dos comensais descobri com satisfação que os que repousavam na plataforma não eram as únicas crianças da casa... ... O patrão chamava aos galos a trombeta matinal... Ao referir-se ao novo apólogo de Jesus, atribuiu ao patrão do armazém uma definição de Horácio. Obviamente, o Mestre tinha lido o poeta latino. ... E em tom misterioso contava-lhes que o galo, ao cantar na última vigília avisa os demónios e os espíritos errantes da noite para que se retirem. É curioso... - meditou o devorador de coxas de rã. - Não sei como se arranjava, mas em quase todas as suas histórias aparecia o Pai Azul. Rebeca, indulgente, explicou-lho, como se a dúvida tivesse nascido no pequeno Judá: - Se o Sol pudesse falar, qual seria o seu tema preferido de conversa?
Não sei o que o deslumbrou mais; se o exemplo se o azul-celeste dos olhos da mulher. E retomando o fio à meada, concluiu: ... E acrescentava que o galo é o cantor de Deus, porque repete os seus louvores sete vezes. - Agora a da águia... A esquilazinha conhecia-as todas. E o faminto Jacob, entregue a um segundo e merecido prato, cedeu-lhe o testemunho. - Prepara-te! - avisou-me a Senhora. - A ruiva pode vencer-nos a todos. Sabes que não dormia se Jesus não lhe contava um daqueles contos? Nunca soube onde ia buscar tanta paciência e imaginação... - E então? - Vais ver. Ele falava-nos de muitos tipos de águias (a de patas curtas, a caçadora de serpentes, a imperial), mas a sua preferida era a dourada... Pensei que o Filho do Homem, excelente observador da Natureza, se referia à Aquila Chrysaetos, enorme, escura, majestosa, capaz de prolongar os seus voos durante horas e que constrói os seus ninhos nos cumes. ... Um dia, o rei Salomão encontrou uma bela fortaleza. Mas, oh, céus, não tinha portas! E a procurar, a procurar... Maria fez-me sinal para que me aproximasse. E, comovida, sussurroume ao ouvido: - Conta como Ele... ... foi esbarrar com uma águia dourada. O rei perguntou-lhe onde era a porta e ela, que só tinha setecentos anos, disse-Lhe: que fosse mais para cima, até ao ninho de sua mãe, que contava novecentos anos. Mas também ela não soube dizer-lhe, e pediu-lhe que fosse a um terceiro ninho (mais alto que o seu) habitado por sua avó, que fizera mil e trezentos anos. A águia avó disse-lhe que, efectivamente, seu pai lhe contara como, em tempos antigos, existia uma porta a oeste. E o rei, caminhando, caminhando, encontrou uma entrada de ferro, sepultada no pó dos séculos. E na porta dizia: “Nós, os moradores deste palácio, vivemos durante anos com luxo e riquezas. Mas sobreveio a fome e vimo-nos obrigados a fabricar o pão com farinha de pérolas. Mas não
serviu de nada. E quando estávamos quase a morrer, legámos este lugar às águias. Percebeste?” A Senhora repetiu o gesto, revelando-me outro pequeno segredo: - Era isso o que o meu Filho perguntava ao concluir a história... E a sardenta irmã do Mestre prosseguiu, empurrada por um sorriso sem fim. - É fácil – declarou, fazendo suas as palavras do seu ídolo. - Só as águias são imortais. Quando envelhecem voam até à casa do Pai Azul e este, uma a uma, lhes muda as penas... - E não te contou como ensinam as suas crias a olhar para o Sol? Tiago, bom caçador, sorriu à minha pergunta. E valendo-me de uma citação de Plínio esclareci que, segundo alguns sábios, estas aves obrigam os filhotes a olhar fixamente para o disco solar. - Só assim lhes crescem as asas. E se algum lacrimeja, a águia mãe mata-o. - Meu Irmão nunca destruía os protagonistas dos seus contos... Encaixei a censura de Ruth. E pedi-lhe que continuasse. - Também gostava da da raposa... Naquele tempo, a chamada Vulpes vulpes niloticus ou raposa vermelha constituía uma autêntica praga. ... Meu Irmão contava que, depois de Adão, o anjo exterminador começou a atirar ao mar um casal de cada espécie animal. E, quando chegou à raposa, ela pôs-se a chorar amargamente. E o anjo, curioso, perguntou-lhe a que vinha aquele pranto. Então, a astuta raposa replicou que era pelo seu amigo. Apontando a superfície da água mostrou ao anjo o próprio reflexo. E o exterminador deixou-a ir. A esquilazinha – inesgotável – começou a contar nova história. - Uma noite, Jesus perguntou-me se sabia a razão por que os corvos caminham aos saltos e desajeitadamente. Ao responder-lhe que nunca tinha reparado nisso, pôs-se a imitá-los. E fez-me rir. Depois, sentandose a meu lado, esclareceu o mistério. A certa altura, os corvos, invejosos
dos pombos, procuram copiar a sua maneira de andar. E quase partiram os ossos. E todas as aves troçaram deles. Quando finalmente quiseram caminhar como faziam ao princípio, viram com horror que se tinham esquecido. Por isso, desde aí, o fazem aos saltos e sempre a tropeçar. E meu irmão acrescentou: “Aprende com os corvos. O que tenta arrebatar o que não lhe pertence pode até perder o pouco que tem.” O recapitular das fantásticas lendas que narrava o tio Jesus aos mais pequenos de Nazaré prolongou-se pela noite dentro. E nós, os convidados – eu, em primeiro lugar -, gostámos daquela terna imagem. A capacidade multifacetada daquele Homem deixava vislumbrar o ouro do seu coração. Sabia discutir complexos dilemas filosóficos e, ao mesmo tempo, apossar-se das brandas vontades dos mais inocentes... imitando os cómicos passos de um corvo. Por que razão os evangelistas não prestaram atenção a estes pequenos-grandes episódios? Nos textos chamados sagrados, o seu amor pelas crianças não surge suficientemente esboçado. Mas vale a pena lamentarmo-nos? Por esta altura da investigação, o duro corte na vida do Mestre não era uma novidade. E a conversa, como as estrelas, foi descrevendo uma curva inexorável, precipitando-se para o horizonte interior. Jacob, esgotado, foi o primeiro a amparar a cabeça com as mãos num esforço para repelir o sono! Para quem isto escreve, o final desta fase da missão encontrava-se perto. Na realidade, o ano seguinte (20 da nossa era) marcaria o fim na vida humana do Filho do Homem: o seu vigésimo sexto aniversário seria o último a celebrar em Nazaré. Depois de vinte e três anos de permanência praticamente ininterrupta na aldeia – recordemos que os três primeiros decorreram entre Belém e Alexandria – o Gigante dispunha-se a mudar de local de residência, de trabalho, de amigos e de projectos. A paciência, a submissão às suas obrigações familiares e, enfim, à vontade de seu Pai Celeste, tinham dado os frutos apetecidos: os irmãos governavam já as suas próprias vidas e o rumo do lar paterno. Por consequência, a sua presença não era imprescindível. E o destino bateu à porta do Galileu.
Consciente da sua partida próxima dedicou boa parte daquele ano a longas e intensas conversas com cada um dos membros do clã. Pouco a pouco, foi-os preparando para algo que era um segredo bem conhecido. Sua mãe, que continuava sem entender o estranho blasfemo ideal de revelar ao mundo a realidade de um Pai-Deus, foi a que mais padeceu com este último voo em círculo sobre a carne e o sangue. E o destino, com lógica pressa, estendeu uma passadeira vermelha às portas da aldeia: as finanças da família, há pouco recuperadas, viramse subitamente abençoadas pela oferta do pai de Esta. Tiago e a sua prometida receberam, como dote, uma confortável casa nos arrabaldes da povoação. Jacob e Miriam, pela sua parte, resolveram a questão sem quebra alguma para as arcas familiares: falecido o progenitor do pedreiro, antigo sócio de José, o casal decidiu instalar-se na morada contígua à de Maria. O único espinho na alma de Jesus tinha nome próprio: Judas. Apesar das suas múltiplas entrevistas com o rebelde, o comportamento daquele rapaz de quinze anos parecia não ter solução. Negava-se a trabalhar. As suas brigas e discussões estavam na ordem do dia. Era egoísta, ladrão, mentiroso e descarado. Por meados do ano, o ambiente em casa piorou de tal forma que Tiago, chefe de família, chegou a propor a sua expulsão definitiva. Jesus não o consentiu. “É preciso que sejam pacientes”, aconselhou o Mestre, “e consequentes nas vossas próprias vidas para que desta forma, ele possa reconhecer o caminho da honradez.” A prudente atitude do Galileu evitou uma perigosa ruptura no seio familiar. Mesmo assim, Judas necessitaria de ver as orelhas ao lobo da vida para rectificar o seu errado proceder. Pouco antes da ceifa, num esforço para corrigir o irmão, Jesus levou-o ao Sul de Nazaré, à herdade de seu tio. A submissão foi breve. Concluída a colheita fugiu à custódia do irmão de Maria. E a família sofreu um novo desgosto. Semanas depois, Simão conseguia localizá-lo nas margens do yam, abrigado numa barca de pesca. Ao voltar a casa, longe de recriminar o seu comportamento, o Irmão mais velho levou-o consigo e, astutamente, foi com ele até ao cume do Nebi. Ali, sem pretensões nem excitação, Judas confessou-lhe a sua
secreta paixão: queria ser pescador. Dois dias depois, na companhia do Mestre, o rebelde entrava na cidade costeira de Magdala, ao serviço de outro dos seus tios, dono de uma pequena frota pesqueira. A decisão foi providencial. A partir daquele momento, o estilo do jovem mudaria radicalmente. Em Novembro daquele ano 20, depois do feliz e duplo acontecimento das bodas de seus irmãos, Judas teve uma sincera conversa com José, o brilhante novo chefe de família, e prometeu-lhe cumprir o seu dever. Assim foi. A felicidade entrou aos jorros na numerosa prole de José, o empreiteiro de obras. E o destino tocou no ombro do Mestre. A sua hora estava próxima. - Foi doloroso – prosseguiu Tiago. - No dia seguinte ao das bodas, meu Irmão chamou-me ao armazém de abastecimento. E fez-me uma desnecessária confidência: preparava-se para nos deixar. O seu coração era uma vasilha cheia de água. A euforia cantava contra as paredes. Mas, ao mesmo tempo, um azeite espesso flutuava à superfície. A tristeza alterou-lhe a voz. E com a sua habitual generosidade pôs em meu nome o estabelecimento, designando-me chefe protector da casa de seu pai. À maneira de compensação rogou-me que a partir da sua ida, assumisse a total responsabilidade das finanças da família, libertando-o assim do referido compromisso. “Tanto quanto seja possível”, acrescentou, “continuarei a enviar-te uma ajuda mensal... até que chegue a minha hora. Emprega esses fundos como julgares conveniente.” É óbvio que, apesar dos conflitos e das inimizades Jesus amava aquela aldeia. Ali se tinham aberto os seus olhos de adolescente. Nazaré foi o primeiro encontro sério com outras línguas e outros povos. Nos seus campos e colinas, pela mão de José, aprendeu a escutar a música verde e ouro dos trigais e no Nebi, os brancos acordes das velas no horizonte marinho. Nas noites serenas, deitado no cume interrogou seu Pai Azul por baixo do arminho das estrelas. Ao ritmo da plaina de carpinteiro foi trabalhando a madeira do seu único sonho. E na penumbra da oficina despiu a sua juventude para vestir uma prematura maturidade. Na falda daquela montanha sofreu os seus dois
primeiros desgostos. Ambos tão amargos quanto prematuros: as mortes de José e de Amós. Ali, entre pessoas erguidas pela nobreza e corcovadas pela inveja e pela maldade, tomou a sua primeira grande decisão. Ali, em suma, rira, chorara, amara e renunciara... Ali se fez homem. A decisão de cortar a última amarra foi como morrer um pouco. A Senhora, por seu lado, chorou em segredo. Mas nada disse. Não opôs resistência. Não perguntou. Pela primeira vez se mostrou estranhamente dócil. E seu Filho, que sempre evitava as despedidas, guardou aquele olhar generoso até ao final dos seus dias. E numa chuvosa manhã de Janeiro de 21 da nossa era, pelos seus vinte e seis anos, depois de beijar sua mãe, perdeu-se no caminho de Caná. A Grande Inteligência – seu Pai Azul – acabava de abrir as portas da sua penúltima etapa na terra: quatro intensos, radiantes e viajados anos, lamentavelmente ignorados pelos evangelistas e dos quais darei completa conta... no devido momento.
27 DE ABRIL, QUINTA-FEIRA
O sono reparador debaixo da amoreira foi brusca e desapiedadamente interrompido por enormes gotas de chuva. A meu lado, envolto no roupão, Jacob roncava e assobiava, alheio ao que lhe caía em cima. Não tive possibilidade de o despertar. A esteira de trovões e um raio caído no Nebi arrancaram-no do manto e, com um olho aberto e outro fechado, enganou-se na direcção, indo esbarrar no tronco da árvore. Foi um mau acordar, na verdade. A leste, clareava já a quinta-feira, triste e vestida de tormenta. Uma inoportuna frente fria, proveniente do Mediterrâneo, assaltara a região durante a noite. A massa frontal deslizava, prenhe de escuridões, com os cumulonimbos altos como torres, com isolados boquetes e uma base média de pouco mais de seiscentos metros. O ar quente, potencialmente instável, fora empurrado e golpeado pelo frio e o resultado da refrega atmosférica não se fez esperar: foi o dilúvio. A aldeia, pessimamente preparada para uma contingência desta ordem, deixou de ser um lugar aceitavelmente aprazível para se converter numa furiosa enxurrada de cem braços e outras tantas quedas dágua, que fluíam e corriam por rampas e vielas, minando terraplenos e inundando muitas das primitivas casas. As mulheres, a pé havia algum tempo, ultimavam a moenda do grão, assomando-se de vez em quando ao curral e mostrando-se preocupadas com a sorte de Tiago. Segundo parecia, o impertinente caçador, acompanhado pelo seu ajudante – o furão - tinha partido na véspera. Maria, recostada na plataforma, tão habituada como Esta às frequentes saídas do filho, não deu importância à carga de água. Nas colinas não era difícil resguardar-se alguém da chuva. Concluída a ordenha das cabras por Judá e sua prima Raquel, foi servido o pequeno-almoço. Examinei o joelho da Senhora e, satisfeito com a sua evolução, preparei-me para seguir Jacob e a dona da casa. A água começava a fazer charco no pátio e segundo comentaram, era aconselhável ir verificar a cisterna e as ânforas armazenadas no subterrâneo. Esta pediu-me que os acompanhasse. Em caso de necessidade, o transporte das vasilhas exigia o concurso de uns dois homens. Protegendo uma das candeias por baixo do roupão, o pedreiro correu para a boca do túnel. Esta fez o mesmo e, por último, fechando a expedição, quem isto escreve deslizou igualmente pelos degraus
escavados na rocha. A minha primeira visita à segunda e oculta Nazaré deixou-me perplexo. Uma dezena de toscos degraus levou-nos a uma câmara de quase quatro metros de comprimento por dois de largura a pouco mais de dois metros e sessenta de altura, escavada à força de picareta e vontade num dos veios calcários em que se apoiava o povoado. Duas novas candeias, sabiamente dispostas nas cavidades feitas à direita e esquerda do cubículo, vieram animar o fraco amarelado da chama que Jacob trazia. As sombras entrecruzaram-se na caverna pondo em fuga uma brigada de ratazanas. Nos armários, a um metro do solo, repousavam numerosas vasilhas e cântaros de barro, meticulosamente selados com tampões de linho e estopa. Calculei que se tratasse de uma reserva alimentar. Precedido por um par de sonoras maldições – estreitamente vinculadas aos progenitores das ratazanas -, o pedreiro curvou-se para se introduzir numa segunda cavidade. O acesso era-lhe proporcionado por um buraco estreito de um metro de altura, aberto no extremo oposto dos degraus. Fui ali descobrir uma espécie de silo em forma de pêra, de uns três metros de altura por dois no diâmetro maior. A sinistra cripta, de paredes grosseiramente trabalhadas reunia ao longo do perímetro nove envelhecidas e alongadas ânforas de pedra, firmemente enterradas no solo rochoso. Era o armazém de cereal, vinho e frutos secos. Logo que entrou no estreito recinto, as chamas oscilaram perigosamente. Foi necessário protegê-las com as mãos. O tremeluzir era produzido por uma débil corrente de ar, provocada por alguma passagem que não consegui descobrir. A mulher examinou as vasilhas. Tudo estava em ordem. A um sinal de Esta, Jacob inclinou-se para uma das bojudas ânforas. Tentou deslocá-la mas, não o conseguindo, pediu-me que lhe desse uma ajuda. Ao arrancá-la da fossa circular em que repousava apareceu na nossa frente a negra boca de um corredor. No seu término – fui incapaz de precisar a que distância – escutava-se o inconfundível som da água, precipitando-se com violência numa espécie de poço. Jacob explicou-me que devia esperar na companhia de sua cunhada. As reduzidas dimensões do túnel – cerca de sessenta centímetros – forçava
a que se entrasse de gatas. A minha presença, além de desnecessária, teria sido um estorvo. E arregaçando a túnica enfiou-se com decisão pelo asfixiante cano. Os esclarecimentos da mulher deram-me uma ideia aproximada do lugar a que se dirigia Jacob e do motivo da referida inspecção. A abertura que tinha na minha frente, aberta na rocha, conduzia a um depósito natural, onde se armazenava a água da chuva. O bocal encontrava-se à superfície, a curta distância da parede norte da casa. Se as precipitações eram copiosas e contínuas, o nível podia subir, fazendo perigar as provisões do silo. Para o evitar bastava encerrar a extremidade do corredor com um alçapão, deixando que a água corresse livre por qualquer dos canais que igualmente perfuravam o subsolo, partindo deste canal principal. Como demonstraram as modernas escavações arqueológicas, a secreta Nazaré era um fantástico labirinto de túneis e contratúneis. Segundo Esta, os escoadouros conduziam a outros silos e cavernas – a maioria abandonados e cheios de ratos – e estes a outros. Desta forma, se alguém tivesse a coragem bastante para se aventurar naquele emaranhado de grutas, podia entrar por uma ponta da aldeia e sair pela oposta. Supondo, claro está, que não perecesse no louco intento... Ao assomar-me à boca do túnel, alguns esporádicos e distantes reflexos amarelados nas paredes húmidas deram-me a entender que o audaz pedreiro devia encontrar-se já perto do seu objectivo. Mas a escuridão do corredor era tal que não conseguia distinguir a silhueta de Jacob. Vendo as minhas dúvidas, a mulher de Tiago esclareceu que – embora nunca ela tivesse passado do silo -, segundo os homens, o cano tinha um cotovelo, dobrando para a direita. Nesse segundo corredor abriam mais duas ou três condutas. Pois bem, uma delas ia dar directamente à cisterna. E esperámos. Com meio corpo dentro do corredor esforcei-me por distinguir algum som familiar. A escassa ventilação trouxe-me um cheiro pútrido, mistura de humidade e excrementos de ratazana. Como única referência, o já mencionado martelar dos rios de chuva a caírem no poço. De repente, o entrechocar das águas foi-se esbatendo numa rápida sequência de golpes. Parecia o ajustar de uma madeira ou de algo semelhante contra o
túnel. Interpretei-o como o fechar do alçapão. E respirei aliviado. Devo ser sincero. Aquele lugar não me inspirava confiança. Não tinha motivos, eu sei, mas o instinto raramente se engana... Retirei-me do pestilento corredor convencido que o nosso amigo não tardaria em aparecer. Mas enganei-me. Esta começou a impacientar-se. É difícil contar os minutos naquelas circunstâncias. Deviam ter passado dez ou quinze. Não mais. Era tempo mais que suficiente para que o pedreiro tivesse aparecido. Para dizer a verdade, ignorava se no corredor existia espaço suficiente para dar a volta. E a mulher, inquieta, ajoelhou-se junto do buraco, chamando pelo cunhado. Silêncio. Insistiu e com força. Novo e arrepiante silêncio. Olhámo-nos sem compreender. O terceiro chamamento – impregnado de angústia – rolou até ao fundo da caverna. O grito “Jacob!” foi destorcido pelo eco. - Deus santíssimo! Não pensei numa segunda hipótese. Afastando a aflita mulher, metime pelo túnel, disposto a tudo. Com o cajado na direita e a fraca luz de azeite na esquerda fui rastejando a grande velocidade imaginando o pior. Teria caído no tanque de água? Estaria inconsciente por causa de alguma pancada? Quando tinha percorrido uns seis ou oito metros a lanterna avisou-me do cotovelo iminente. A galeria, efectivamente, virava à direita. Tentei acalmar-me, e durante uns segundos mantive-me num silêncio expectante. A cascata chegava com um som distante. Aquilo significava que Jacob tinha conseguido fechar a cisterna. Mas onde estava. Um musgo escorregadio e encharcado, atapetando o chão e as paredes do corredor, anunciou-me a relativa proximidade da água. Decidido a esclarecer o enigma, retomei o penoso gatinhar. À esquerda, abria-se outro buraco tenebroso. Levantei a candeia e o clarão desenhou a fuga de uma numerosa colónia de ratazanas, enormes como coelhos. A proximidade dos roedores levou-me a crer que o pedreiro não tomara aquela direcção. Bastava ter-se aventurado por aquele túnel para que, logicamente, os repugnantes inquilinos do subterrâneo tivessem escapado para o fundo. Mas o que era lógico em semelhante inferno? A solução, graças a
Deus, não tardaria em se apresentar. Meia dúzia de passos mais adiante apareceu perante este atemorizado explorador um espectáculo difícil de esquecer. O que primeiro me fez parar foi um clarão. Era mais forte que o fornecido pelas insignificantes chamas das candeias. Parecia originado por um fogo. Assustei-me. Na minha precipitação imaginei que, por alguma razão desconhecida, a candeia de Jacob lhe tivesse pegado fogo às roupas. Enquanto avançava, observei que a oscilante luz avermelhada tinha a sua origem noutro túnel, furado à direita. A dois metros da confluência de ambos os corredores parei, aterrado, e o cabelo eriçou-se-me. Na minha frente, na boca do referido buraco, agitava-se, estremecia e pulsava como um monstro informe uma bola de ratazanas, histéricas, rastejando como serpentes, deixando brilhar os olhinhos na semiobscuridade, chiando e mordendo com fúria qualquer coisa que num primeiro momento não pude distinguir. A minha primeira reacção, confesso-o humildemente, foi recuar e fugir daquele monte de vorazes ratazanas negras, muitas delas com mais de vinte centímetros de comprimento. Mas quando a trémula chama da candeia se aproximou das guinchantes ratazanas – ainda não sei onde fui buscar tanta coragem – a descoberta de uma sandália desfeita entre os Rattus rattus fez-me reagir. - Jacob! Prestes a aplicar o laser de gás na sombra redonda e peluda, uma mão deslizou do interior do túnel, lançando um pano a arder às ratazanas. O fogo, persuasivo, esvaziou a boca do corredor num abrir e fechar de olhos. E os roedores – alguns a arder – fugiram em todas as direcções. Enlouquecidas algumas das ratazanas tropeçaram em quem isto escreve, lançando chispas à esquerda e à direita. Mais uma vez, a pele de serpente cumpriu o seu papel. - Jacob! O segundo chamamento animou o pedreiro. Depois de mostrar um rosto cadavérico no buraco,fugiu do refúgio improvisado passando até por cima deste explorador. Ao pôr os pés no silo, o assustado galileu, com metade da túnica rasgada e sem sangue nas veias, com olhos muito abertos, fitava Esta sem conseguir explicar-se. Ao ver-me, a mulher, sem poder conter o choro, exigiu uma explicação. Preferi
poupar-lhe pormenores. Seguindo o meu conselho, deu a beber a Jacob uma generosa tigela de vinho. Eu, naturalmente, não fiquei atrás e emborquei sôfrego outro tanto. Mas, mal tínhamos acabado de beber, vozes nos chamaram da entrada da endemoninhada caverna. Reconheci a voz de Miriam. Chamava pelo marido, ansiosa. Esta assomou à abertura que punha as duas salas em comunicação e, prudente, calando o que acontecera, gritou-lhe um lacónico “já vamos”. Não foi tão simples. Jacob, sacudido por tremuras ininterruptas, a suar copiosamente, não ouvia nem via. Os esforços da mulher para o levantar foram baldados. O pobre homem encontrava-se ainda sob os efeitos do choque emocional. Mas a galileia era valente. E recuando meio metro lançou-lhe tal bofetada que lhe rasgou a comissura dos lábios. Remédio santo. O pedreiro, com um fio de sangue a tingir-lhe a barba, recuperou parte da coragem, levantando-se como se tivesse na frente a bola de ratazanas. E voou do subterrâneo uivando como um possesso. Ao regressar ao pátio, sob uma chuva furiosa, Miriam, Ruth e Rebeca tentavam sobrepor-se aos berros do pedreiro. Nem elas escutavam Jacob nem ele estava em condições de entender a tripla, confusa e não menos rápida gritaria das mulheres. O aparecimento de Esta desviou a atenção das suas cunhadas, as quais, largando o galileu, a abordaram com idêntico frenesim. No meio da confusão entendi as palavras “João e execução”. Sem perder os nervos, a mulher convidou-as a continuar a destrambelhada conversa dentro de casa. Durante uns minutos intermináveis, a sala tremeu, como que sacudida por um sismo. Jacob, num canto, rodeado pelas crianças, mudas e estupefactas, saltou dos gritos para soluçar convulso que, como era de prever, contagiou os mais pequenos. Miriam e Ruth continuavam aos gritos, cada vez mais enfurecidas pela lógica incompreensão de Esta. As cabras, tão histéricas quanto os racionais humanos, completaram o coro de despropósitos, balindo e marrando no visível e no invisível. Quanto a Rebeca, num mar de lágrimas, correra a refugiar-se junto da Senhora. E foi Maria quem acabou de vez com aquele manicómio. Levantando-se com dificuldade, agarrou uma cântara de barro,
lançando-a com estrépito contra o chão da plataforma. As únicas que não compreenderam a clara linguagem foram as cabras. Por fim, num razoável silêncio apenas invadido pela lamúria do pedreiro, Esta e eu pudemos averiguar a razão de semelhante alvoroço. Enquanto inspeccionávamos os subterrâneos, o servo do saduceu e amigo da família apresentara-se na casa, anunciando-lhes a chegada de João. Vinha de Séforis e, segundo revelou o espião, traziam ordem para o executarem naquela mesma manhã. Concluída a exposição, o falatório das mulheres voltou a enredar-se. Que havemos de fazer?, perguntavam umas. Temos de encontrar Tiago, replicavam outras... A Senhora e eu olhámo-nos. Compartilhámos o mesmo pensamento: aquilo era muito estranho. Reclamando a atenção geral, deu a saber o seguinte: “Em primeiro lugar, era impossível que um tribunal de justiça – que tinha por costume reunir às segundas e quintas-feiras – tivesse podido convocar assembleia. E com uma frieza invejável, lembrou-lhes que o Zebedeu tinha chegado à aldeia na terça-feira. Boa conhecedora das leis, passou ao segundo ponto: - Admitindo mesmo que o Sinédrio de Séforis tenha violado as suas próprias normas, do que duvido, sabem de sobra que para condenar à morte um acusado são precisas várias votações e um período de reflexão por parte dos juízes.” Maria falava com verdade, embora no caso de seu Filho não se tivesse tido em conta a rígida jurisprudência dos tribunais (1). ... Por consequência – concluiu, severa -, aconselho-os a agir com prudência. Vão e procurem averiguar o que se passa. Miriam, informada do que acontecera nos túneis, correu para o marido. Foram Ruth e Rebeca as encarregadas de indagar aquela turva questão. Havia, ainda, outro ponto de difícil compreensão. Se o réu era João, por que razão o transferiam para Nazaré? Lógico seria executá-lo em Séforis. A não ser que a peçonhenta garra do sacerdote estivesse a puxar os cordelinhos daquela nova tragédia. Cobrindo-se com os roupões as mulheres saíram, desafiando o torrencial aguaceiro. Suponho que Maria, ao ver-me desaparecer atrás
delas, respirou, aliviada. A verdade é que este observador pouco ou nada podia fazer a favor de ninguém... Alheias à minha proximidade seguiram na direcção leste, atravessando a aldeia pela rua sul. Pareciam conhecer muito bem o lugar onde devia ser levada a cabo a execução. A descida pelas rampas e vielas enlameadas foi um suplício mais. Mulheres velhos e crianças formavam cadeias, aliviando com vasilhas e alguidares as casas inundadas. Mal ou bem, depois de dois ou três passos em falso, com as correspondentes quedas, desemboquei numa encruzilhada, junto da ponte. Os relógios do módulo deviam andar pelas proximidades da terceira (as nove da manhã). A frente fria, apesar de tudo, evitou uma maior aglomeração. Mesmo assim, entre cem e cento e cinquenta almas – crianças incluídas – avisadas do acontecimento, aguentavam estóicas, à chuva pertinaz, amontoando-se às portas da aldeia e defendendo-se da tormenta com mantas, canastras de verga, tábuas de madeira e folhas de palma. Aguardavam em respeitoso silêncio, suspensas dos recémchegados. A uns seis passos, no centro do caminho que vinha de Caná, encontravam-se seis homens. Todos, menos um, permaneciam de pé. Este, de joelhos e com as mãos atadas atrás das costas, apresentava o rosto *1 Na sua Ordem Quarta, referente ao Sinédrio, a Misná estabelece com clareza como devem comportar-se os juízes ante um presumível réu à pena capital: “Se é considerado culpado, adiam a sentença para o dia seguinte. Entretanto os juízes reúnem-se dois a dois, comem muito frugalmente, não bebem vinho durante todo o dia, passam a discutir e a deliberar toda a noite e pela manhã levantam-se cedo e vão ao tribunal. O que se incline para a sentença absolutória, diz: “Eu declarei-o inocente [ontem] e mantenho a minha opinião,”. O que se inclina para a sentença condenatória diz, por sua vez: “Eu declarei-o culpado e mantenho a minha opinião”. O que afirma razões a favor da condenação pode colocá-las a favor da absolvição, mas o que apresenta razões a favor da absolvição não pode retractar-se e colocar razões a favor da condenação. Se erravam na investigação, os escribas do julgamento recordavam-no. Se achavam o réu inocente mandavam-no embora. Caso contrário, era decidido por voto. Se doze o declaravam inocente e doze o consideravam culpado, era declarado inocente. Se doze o declaravam culpado e
onze inocente ou, mesmo, onze o declaravam inocente e outros onze culpado e um dizia “não sei”, ou até se vinte e dois o declaravam inocente ou culpado e um diz “não sei” têm de se juntar mais juízes. Até quantos se hão-de juntár? Sempre de dois em dois até chegar aos setenta e um [...]” (N. Do M.)
inclinado para a lama e os charcos do caminho. Três dos indivíduos pareciam rodeá-lo. Por cima de umas túnicas compridas e amarelas usavam rudimentares cotas de malha, que lhes protegiam o tronco e o baixo-ventre. Não observei armas brancas. Apenas uns bastões eriçados de pregos. Percebi que tinham uma certa semelhança com os levitas ou guardas do Templo. Provavelmente, tratava-se de alguazis ao serviço do tribunal de Séforis, encarregues da guarda do réu. Dos outros dois homens reconheci um: Ismael, o saduceu. Cobria a túnica de linho às riscas com um folgado capote de couro impermeável, munido de um capuz aparatoso. À beira do caminho, a quatro metros do hierático grupo mais dois guardas se afadigavam a escavar uma cova. Ao lado um velho felah segurava pelo cabresto um asno nervoso e incomodado pelo dilúvio. O animal carregava dois enormes cestos cheios de esterco. Ao compreender o motivo daquela operação estremeci. Procurei localizar Rebeca e a esquilazinha. Impossível. Absorto na cena, tinha-as perdido de vista. Lenta e cautelosamente, fui rodeando os curiosos até me situar nas proximidades da asa do pássaro. Também dali não me foi possível identificar o condenado. A cabeça, muito perto do solo, tornava difícil o reconhecimento das feições. Com a túnica em farrapos e encharcada pela chuva e os cabelos revoltos e a escorrer era arriscado emitir um juízo. Tratava-se do Zebedeu? Apurei o ouvido, numa vã tentativa de captar algum comentário. Os únicos sons que reinavam no local vinham do tamborilar da chuva nos improvisados guarda-chuvas, dos tenazes trovões e dos rápidos golpes de enxada no barro do campo. Quando a cova chegou à profundidade certa, os alguazis atiraram para o lado as ferramentas, fazendo sinal aos que cercavam o mudo e derrotado indivíduo. Levantando-o pelas axilas arrastaram-no para a
fossa. O povo, pressentindo o final, aliviou a tensão entoando um surdo e doentio cochichar. O infeliz, com uma docilidade espantosa, empurrado violentamente por um dos guardas, saltou para o fundo do poço. Mas não ergueu o rosto. Logo, os alguazis que tinham cavado a trincheira, ajudados pelo camponês, desataram os cestos, esvaziandoos na cova. Em pouco mais de três minutos, o metro de profundidade ficou repleto de excrementos, imobilizando o réu até às virilhas. As enxadas, habilmente manobradas, calcaram a imundíce, reforçando a prisão do condenado. O chefe do conselho inclinou a cabeça e o indivíduo que permanecia a seu lado desenrolou um pergaminho. Voltando-se para os habitantes, com voz aflautada, leu o nome do condenado à morte. O coração saltou-me à boca. ... João... filho de Eliezer... - Por pouco não gritei. Maldito erro! A Senhora tinha razão. E o pregoeiro continuou - ... é condenado a morrer por ter tido união sexual com sua filha... - Outro murmúrio (desta vez de desaprovação) se levantou entre os testemunhos - ... e com a filha de sua filha. Judá, Yejoeser e Menajem são testemunhas. Quem quer que o considere inocente, que venha e apresente as razões a seu favor. A leitura em questão – pura burocracia – foi acentuada por um violento trovão que fez tremer as penhas do Nebi. E as pessoas, ao interpretarem o raio como um sinal do céu, recuaram até às primeiras casas tropeçando e perdendo metade dos cestos e madeiras. Então, na primeira fila, apareceram Ruth, Rebeca, Débora – a rapariga – e o seu patrão o egípcio. Estive quase para me juntar às mulheres. Mas a voz do saduceu deteve-me. Alheio à supersticiosa corrida do povo dirigiu-se ao réu e, em tom solene, gritou-lhe: - Faz a confissão! O segundo ritual (1) não obteve resposta do tal João. Nem sequer se dignou levantar os olhos. E a víbora, irritada, prescindiu de todo o formalismo, dando lugar à execução propriamente dita.
Dois dos guardas foram colocar-se um de cada lado do réu. O primeiro atou um lenço em volta do pescoço do infeliz. O segundo repetiu a operação com outro pano. E ambos, firmando-se com segurança no terreno escorregadio, pegaram nas pontas dos respectivos lenços. E esperaram. Na frente do condenado, mais dois alguazis manipulavam a chama de uma candeia, precariamente protegidos debaixo do roupão do pregoeiro. Quando por fim avançaram para o réu um calafrio tirou-me a respiração. Entre as mãos, mal coberta com o manto, o da voz aflautada trazia uma mecha de um metro, a arder das pontas. Pararam a um palmo do manietado violador e, a um sinal do pregoeiro, os que seguravam as pontas dos lenços começaram a puxar com todas as suas forças – cada um em sentido contrário provocando um princípio de estrangulamento. O condenado, em movimento reflexo, abriu a boca, lutando para sobreviver! Era o momento esperado por Judá, acólito do sacerdote e verdugo do conselho. Introduzindo a mecha ardente na garganta do homem, fez com que descesse até às entranhas. Desta vez, a vítima agitou-se como um titã a berrar de dor, e a multidão explodiu num grito histérico de vingança, abafando os uivos do desgraçado. Foi necessária a colaboração imediata dos outros guardas. Apesar do esterco que o imobilizava e do feroz estrangulamento o prisioneiro retorceu-se de tal forma que, numa das cabeçadas, foi derrubar o verdugo e pregoeiro. Um dos alguazis agarrou-o pelo cabelo e pelas costas, puxou para trás, contrariando as convulsões. Os gritos dilacerantes ergueram-se para a tormenta, numa terrível competição com os relâmpagos e o estrondear dos trovões. A Providência foi misericordiosa. E o incêndio nas entranhas, depois de dez eternos minutos, acabou por inibir a sábia natureza. Inconsciente, deixou de clamar. O abrasamento (2) – um dos quatro tipos *1 Confessar os seus crimes ou “fazer a confissão” era uma fórmula obrigatória antes de uma execução. Desta forma, o réu tinha a possibilidade de “se pôr de bem com Javé”, participando no mundo futuro. Se não sabia fazer a confissão, diziam-lhe: “repete connosco: seja a minha morte expiação pelos meus pecados.” E o rabino Yehudá acrescentava: “Se sabia ser objecto de falso testemunho devia dizer: “Seja a minha morte expiação pelos meus pecados, com excepção deste delito.” (N. Do M.)
2 Naquele tempo, os tribunais judeus podiam castigar com a lapidação, o abrasamento, a decapitação e o estrangulamento. Cada fórmula obedecia a um delito concreto. O abrasamento, por exemplo, era imposto aos violadores e a todo aquele que mantivesse relações sexuais com os seus filhos, com os filhos dos seus filhos, com os filhos da segunda mulher ou com os filhos dos filhos daquela. (N. Do M.)
de penas de morte em vigor na legislação judaica – estava consumado. O grande Ésquilo escreveu com sabedoria: “Ninguém consegue abater a força do destino”. Uma das muitas diferenças entre o imortal autor do Prometeu Agrilhoado e este piloto da USAF é que eu, agora, escrevo a palavra Destino com maiúscula... Mas por onde ele andava... Aquele Destino – autêntico quinto cavaleiro do Apocalipse – terminou com o réu e, do poço de esterco, foi fixar o olhar invisível em quem isto escreve. Consumada a execução, o povo – satisfeito com o castigo infligido ao odiado vizinho de Nazaré – apressou-se a afastar-se do local. A tormenta foi a desculpa ideal para despovoar o patíbulo improvisado. E este explorador, magoado pelo cruel espectáculo, nem teve forças para se mover. Alheio à chuva, permaneci fora de mim, com a alma junto do corpo vergado do moribundo. Via sem ver. Recordo vagamente os guardas, voltando ao caminho de Séforis. E o felah a receber algumas moedas. E de repente, aquele Destino, ao materializar-se, fez-me uma pergunta: - Impressionou-te? Voltei a mim e descobri à minha direita um capuz gotejante. Lá dentro, uns olhos cínicos e avermelhados pela falta de sono ou – quem sabe – pelo prazer com o recente tormento. E o Destino, na voz do chefe do conselho, falou-me assim: - Estás com mau aspecto... - O comentário seguinte foi-me familiar - ... Anda. Isso resolve-se com uma medida de bom vinho... Agarrando-me pelo braço, levou-me em direcção à sinagoga. Porque não reagi? Podia fazê-lo. O nosso encontro era ao
entardecer... Teria sido tão simples... Mas como afirmava Novalis, “também o azar é governado por uma ordem”. E aquele Azar – primeiro apelido de Deus – arrastou-me para uma das mais amargas experiências de toda a nossa aventura palestina. ... Além disso – tentou-me -, tenho boas notícias. Pensei que se referia ao relatório sobre Jesus e sua família. Escudouse com o muito trabalho surgido nas últimas horas, prometendo ultimálo depois da ceia. - Terás a tua harpa – esclareceu, arrancando-me do erro. - Se desejares, podes até ficar com ela agora mesmo... Quanto é subtil o Destino! Os seus dedos acabam por se enredar nas rodas dos nossos carros... A inesperada e grata notícia veio suavizar o fel da execução. Poder contemplar e ter nas minhas mãos o instrumento musical que alegrara o jovem Jesus compensava-me, com juros, de tanta tragédia. E próxima já a quinta (as onze da manhã), este explorador, precedido pelo saduceu, refugiou-se no átrio de pedra travertina. Por conselho de Ismael, descalcei-me e entreguei o manto a um dos criados. Ao observar a minha túnica, encharcada pelo dilúvio, aconselhou-me que a despisse. Hesitei. Mas, ante a sua insistência e o lamentável estado da roupa, optei por obedecer. - Antes de bebermos o primeiro jarro – insistiu, lambendo-se - estará seca. Não temas. Estás numa casa honrada... E um segundo servo, tão silencioso quanto o primeiro levou a túnica, entregando-me uma espécie de lençol de linho. Apesar da pele de serpente o contacto com o quente tecido reconfortou-me. Amarrando a bolsa de encerado à vara de Moisés, fui atrás dos passos do sacerdote. Tanta amabilidade, confesso, deixou-me confundido. Cerimonioso, convidou-me a sentar-me nos almofadões da luxuosa sala de paredes de bronze. Quando me preparava para lhe fazer a vontade ele, com um sinal ao criado que levava a minha túnica a escorrer, apontou-lhe o cajado, que continuava em meu poder. Rápido, desculpando-se pelo descuido, aproximou-se do bastão. Instintivamente, resisti. Mas, em décimos de segundo, compreendo que uma negativa
teria sido estranha para o astuto saduceu, afrouxei a pressão dos dedos, entregando-lha. Lutei por me tranquilizar. Como acontecera na Fortaleza Antónia, ao abandonar a mansão a recuperaria. No entanto depois da lamentável perda das sandálias electrónicas sobresselentes, aquela separação deixou-me inquieto. - E agora! - exclamou, indicando as orlas com riscas da sua túnica branca. - Com tua licença, serei eu quem vai melhorar o meu aspecto. Desapareceu saindo pelo vestíbulo. Foi naqueles primeiros minutos de espera que reparei em qualquer coisa em que até aquele instante não tinha pensado. Intrigado, fui observando as paredes. A sala, efectivamente, com excepção da que comunicava com o vestíbulo, não tinha portas. Que estranho!.. Os meus pensamentos foram interrompidos pela silenciosa aparição do criado que me levara o manto. Trazia uma bandeja, com o habitual jarro de vinho, dois copos de cristal e uma travessa de finíssimo mármore amarelo – quase translúcido – fornecida de passas, tâmaras e nozes cobertas por marmelada de amoras. Um tanto perturbado, dissimulei como pude. E depois de tactear a pedra translúcida de Capadócia que dava corpo a um dos candelabros de sete braços fui-me aproximando da mesa de limoeiro. O criado, um velho de cabelos nevados e feições lunares – resíduo de uma não menos antiga varíola – depositou o licor e as provisões em cima da polida e luxuosa madeira. Ao recuperar a verticalidade olhou-me fixamente. Compreendi imediatamente. Aquele era o confidente da família de Jesus. E antes que lhe exprimisse os meus sentimentos antecipou-se com uma eloquente saudação: - O Pai Azul te abençoe. - Deve ter notado a minha alegria. E mantendo o tom de secretismo avisou-me: - Cuidado... Não confies nele... - Mas... - Escuta o que tenho para te dizer – interrompeu-me, com natural pressa. Concordei, conscientemente de quanto era comprometedora a nossa situação. Especialmente a dele.
... O tribunal de Séforis, de certeza, repudiará as acusações contra Tiago e os outros. Ismael foi informado durante a sua estada na capital... - A notícia não podia ser mais satisfatória - ...Mas aquela víbora não permitirá que a família saia indemne. Maquinou um plano diabólico. Tal como envenenou as pombas, prepara-se agora para... As palavras de David – pois era este o seu nome – ficaram em suspenso. E o gelo de um mau pressentimento crispou-lhe as feições. Os seus olhos baixaram para a mesa que nos separava. Não foi precisa explicação alguma. Eu também o percebi. E ao voltarme descobri com espanto a face desfigurada do sacerdote. Como era possível? Encontrava-se no extremo oposto à única porta. Por onde tinha entrado? O pior, contudo, não foi isso. O dramático era ignorarmos há quanto tempo se encontrava nas nossas costas. A julgar pela cólera que lhe alongava a mandíbula saltava aos olhos que escutara o suficiente. David, nervoso, foi servindo o vinho. E este desorientado explorador não soube que fazer nem onde se esconder. No meio de um silêncio tão espesso quanto o néctar que enchia as taças, as aranhas sanguinolentas que deformavam o rosto de Ismael foram-se dilatando com o pior dos augúrios. E aquela ratazana, em minutos, maquinou a nossa destruição. - Bem! - trovejou, por fim. - Vejamos o que importa. Primeiro, a harpa. Rodando nos calcanhares levou a mão esquerda ao centro geométrico da memorah que presidia naquela parede. Não tive tempo para distinguir o dispositivo. Logo, uma das estreitas lâminas de bronze oscilou, silenciosa, deixando a descoberto, uma porta secreta. David e eu olhámo-nos. E o saduceu, encaminhando-se para a mesa, bebeu um golo de um dos copos. A ira disfarçou-se em cínico sorriso. Não sei o que foi pior... - Vamos, então. Com um pé no outro lado da sala voltou-se para o criado, ordenandolhe que nos acompanhasse. A partir daquele momento, tudo decorreria a grande velocidade. Ao penetrar na fria e escura sala vi-me num espaço de reduzidas
dimensões, sem móveis e pobremente iluminada por uma candeia que descansava no solo rochoso. O servo pegou na lamparina e, conhecendo o caminho, seguiu na frente. A pouco mais de três metros do alçapão secreto levantava-se uma parede de tijolo. Nela, no centro, uma abertura – à maneira de porta - com um metro de altura. À direita da cavidade desenhou-se imprecisa, a silhueta de uma enorme mó, encaixada numa calha que corria em inclinação ao longo do tabique. Tal como as pedras que fechavam os sepulcros, aquela mole podia ser deslocada, selando assim a boca que tinha na minha frente. Para tal bastava dar um pontapé no taco de madeira que a retinha. David enfiou-se pela tenebrosa abertura. Ao descer o último degrau que facilitava o acesso à gruta levantou a chama, iluminando-nos o caminho. Ismael precedeu-me. E como sucedera nos subterrâneos da casa de Tiago, estabeleci contacto com uma primeira gruta, com numerosas despensas à direita e à esquerda. Ao fundo distinguia-se a entrada para outra caverna. E o saduceu, tomando a iniciativa, dirigiu-se para um dos cantos. O criado apressou-se a iluminar-lhe os passos. Inclinando-se para uma enorme arca, começou a abri-la. A víbora esboçou um sorriso e, apontando para dentro, exclamou, eufórico: - Aqui a tens! Comovido, esquecendo o recente e amargo transe da execução, percorri os quatro ou cinco metros que me separavam do recanto da caverna, aproximando-me da arca. A luz que David trazia desvendou o mistério. Nervoso, lancei-me para uma poeirenta e destroçada harpa, com cordas partidas, meio podres e emaranhadas. - Meu Deus!... E agarrando-a com toda a delicadeza de que fui capaz resgatei-a do fundo, erguendo-a à altura da candeia. Não saberia precisar quanto tempo permaneci absorto na sua contemplação. Talvez dois ou três minutos. Não mais. Como um trágico aviso, a chama oscilou violentamente. E um rude, infernal e ameaçador rugido golpeou as paredes da cripta.
- Não!... Deixando cair a candeia, David precipitou-se para os degraus. Na mais terrível das trevas, ouvi-o gritar alguma coisa que me gelou o sangue nas veias: - Enterrados... Enterrados vivos! Como um louco, a tropeçar nos degraus, tentei alcançar a saída. As minhas mãos, como as do servo aterrorizado, só encontraram uma áspera e fria pedra. O saduceu fizera rolar a pesada mó. E uma gargalhada sinistra ressoou do outro lado da rocha... Em Larrabasterra, a 18 de Setembro de 1989, pelas 21 horas.

 

 

                                                                                                    J. J. Benitez

 

 

 

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