E os presentes, cheios de fervor, clamaram aos céus:
- Vingança!
O pregador começou a chorar. E tentando conquistar o que já estava conquistado, entoou um nome. Então, se fez a luz em minha mente... As pessoas, entregues, o acompanharam em coro:
- Yehohanan!... YehohananL. Yehohanan!
O delírio se prolongou por longos e intermináveis minutos. Era como um trovão. As garças e as outras aves dos bosques e dos bambuzais levantaram vôo, fugindo para o horizonte das acácias.
Eu devia ter imaginado... Aquele gigante, saído não se sabia de onde, era João, o Batista. O Anunciador: "Yehohanan" ("querido por Deus") ou "lochanan" e "lokanán", em hebreu.
- Buscas a verdade?... Só ele pode satisfazer-te.
Agora entendia a resposta daquele que eu confundira com o Batista, ao pé da árvore na qual estavam penduradas as vasilhas quebradas... Pobre imbecil! Quando aprenderei?
- Chegou o fim de uma era... Deus retorna no fogo. Seus carros são como redemoinhos... Sua cólera é minha cólera... Com fogo e espada julgará toda carne... Nada escapará ao juízo... E tu, Roma, onde te esconderás?...
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A alusão ao invasor incendiou ainda mais os ânimos exaltados, e aquela gente, dando pulos na água, interrompeu novamente o ardoroso
Yehohanan. E só se ouviu uma palavra no "vau das Colunas":
- Motí... Motí... Motl "Morte!"
Morte a Roma. Morte aos kittim. Aquelas pessoas, com os rostos desfigurados pelo ódio e pelo desejo de vingança, teriam seguido o vidente até o fim do mundo. Jamais esqueceria o que presenciei...
O Anunciador esperou que se acalmassem. Depois, soltando a voz e prolongando-a, arrematou:
- O ano da minha desforra chegou!
E, tendo à frente o pregador, todos uivaram como lobos.
- ...Pisotearei os povos com minha ira... Pisarei com força e farei seu sangue correr por terra... Diante de tua face, as montanhas derreterão... Tu farás coisas terríveis e inesperadas... Para dar a conhecer teu nome aos teus adversários, tu farás tremer as nações diante de ti...
Notei uma certa agitação na "praia", entre os que haviam ficado atrás. Da minha posição forçada, não percebi com clareza o motivo daquele movimento inusitado. Os vendedores interpelavam-se entre si. Os responsáveis pelas macas eram os mais excitados. Levantavam-nas, discutiam uns com os outros e as colocavam de novo sobre os seixos. Eu não estava entendendo...
- Arrependei-vos!
O grito do homem das pupilas vermelhas teve um efeito fulminante. Fez-se o silêncio.
Yehohanan apontou para as pessoas com seu dedo indicador esquerdo e o deslocou lentamente, percorrendo a volúvel platéia. Alguns, assustados, recuaram.
- Arrependei-vos! - voltou à carga em um tom mais ameaçador. -Andai pelo bom caminho!... Preparai-vos para o fim dos tempos! A nova ordem está para chegar!... Lobo e cordeiro pastarão juntos!... O leão comerá palha como o boi, e a serpente se alimentará de pó!... Estais avisados!... O novo reino é hoje!...
O zumbido aumentou. E o que no início era um bando de abelhas transformou-se em um enxame negro, pulsante, e sobretudo ameaçador. Assustei-me. De onde tinha saído aquela nuvem de insetos?
Os mais próximos do Anunciador, ao perceberem a "coluna" de abelhas, deram o grito de alerta e tentaram fugir. Mas Yehohanan, atento, impediu que o fizessem com um único gesto. Levantou a mão direita para o enxame e milhares de abelhas, lenta e pausadamente, foram pousar na mão e no antebraço. E o membro transformou-se em uma massa escura e informe.
Mas o gigante sabia o que estava fazendo...
- O mal - exclamou, descendo a um tom suave e delicado - não causará mais dano nem prejuízo em todo meu monte santo!... Assim fala Yavé!
E todos, incluído este atónito explorador, ficamos de boca aberta, sem acreditar no que víamos.
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- O novo reino - repetiu sem levantar a voz - é hoje!
Ato contínuo, virando-se para o "barril" de madeira, começou a abrilo
pausadamente. E o rosto de Yehohanan ficou novamente à vista deste que escreve. Não me procurou entre as águas. Provavelmente se esquecera de mim. Várias trancas ocultavam parte do lúpus. E a borboleta no rosto transformouse em uma máscara. Toda a atenção de Yehohanan estava voltada às abelhas. Destapou o suposto "barril" com a mão esquerda e, bem devagar, aproximou o braço esquerdo da boca do cilindro. Tudo ocorreu, como eu estava dizendo, muito lentamente e sob um silêncio tenso. Fiquei sabendo depois que o "barril" era uma colmeia. Ao se abrir a parte superior, o enxame sentiu o cheiro do mel armazenado nos favos e, ao poucos, foi se introduzindo em seu interior.
Maravilhada, aquela gente lançou outro uivo de prazer:
-Yehohanan... Yehohanan!
Não sei como conseguiu. Naquele momento...
E, livre das abelhas, fechou de novo a colmeia. Ergueu os braços e, vitorioso, clamou com todas as suas forças:
- Ele me escolheu!... Preparai o caminho!... E vós, ímpios, povo que me renega na minha própria cara permanentemente, vós, povo rebelde que segue um caminho errado atrás de seus pensamentos, que sacrifica os jardins e queima incenso nos ladrilhos, que habita em tumbas e em antros escuros, que come carne de porco e sobras apodrecidas em suas vasilhas, vós, tremei... Ele vem medir a recompensa de sua obra!
A passagem me parecia conhecida, mas não tive certeza... E minha atenção desviou-se novamente para a orla. Os sujeitos das maças carregavam os enfermos e, entre bate-bocas e empurrões com outros vendedores, tentavam entrar no rio. O que estaria acontecendo?
-Arrependei-vos!... Buscai a paz com Deus!... Do contrário, esperai a espada!... Todos caireis degolados!... Eu venho preparar o caminho de
outro, mais forte do que eu!
As pessoas, inquietas, voltaram-se para os carregadores que avançavam pela água. O homenzinho e os sujeitos armados também detectaram a bronca. Vacilaram. Olharam para o Anunciador e aguardaram. Mas o homem da longa cabeleira ruiva não se abalou. E prosseguiu:
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J.). BENÍTEZ
- Ele reunirá todas as nações... Ele anunciará a glória do Justo e governará do trono de Davi.
Imaginei que Yehohanan estava se referindo ao Messias judeu. E o nome de seu primo distante - Jesus de Nazaré - voltou à minha cabeça. Estaria falando do Mestre? Era essa a mensagem do Filho do Homem? Sangue e espada?
- Arrependei-vos! - bramou o Anunciador, ao mesmo tempo em que as maças se aproximavam das centenas de inquietos e indeciso espectadores. - Se aceitais a nova ordem, se reconheceis vossos pecados!... "Baixai à água"!
E Yehohanan repetiu a última expressão, dirigindo a voz potente aos da sófora:
- Sakak!
Foi instantâneo. Quando ele pronunciou a palavra "sakak", os dezoito homens se mobilizaram. Parecia uma chave, uma senha. Eu náo estava errado... Rodearam parte da pilastra e formaram um cinturão, um semicírculo protetor, enquanto eu continuava escondido, às costas de todos eles. E o sujeito do sofar soprou o chifre. Foi um toque longo...
Então, aquela gente toda, que, sem dúvida, aguardava esse momento, correu em direção aos sujeitos armados, entoando mais uma vez o nome do Anunciador. Os da sófora resistiram e, ombro com ombro, formaram uma barreira para impedir o avanço dos mais exaltados. Os gritos aumentaram. E as mãos dos acampados resvalavam entre os defensores, numa tentativa inútil de chegar até o impassível e silencioso homem das pupilas vermelhas.
Yehohanan permanecia no alto das pedras. E ali ficou até que as pessoas, impedidas pela muralha humana, foram cedendo em suas exigência de tocar o vidente.
Um segundo bramido do sofar, mas curto, me colocou em alerta. Tudo parecia minuciosamente planejado.
Fez-se o silêncio, quebrado vez ou outra pelas maldições dos carregadores, que tentavam abrir passagem até os valentes homens da sófora. Mas os próprios acampados impediram, naquele momento... Todos que
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riam se aproximar do insólito personagem. Todos desejavam tocar suas tranças ou a pele elástica.
E a uma ordem do homenzinho, alguns dos sujeitos armados empunharam os glaáius. As pessoas, obviamente, recuaram. Mas ninguém protestou ou recriminou a atitude. E os quatro ou cinco indivíduos, com as espadas apontadas para as gargantas dos mais próximos, deram dois passos para trás, formando um segundo cinturão de segurança em torno da pilastra. Então, o Anunciador, saltando a correnteza e dirigindo-se àquela gente, proclamou com a voz rouca, destacando cada letra:
- S-a-k-a-k!
E as pessoas ali reunidas repetiram vibrantes:
- Baixai à água!
Foi assim que presenciei a cerimónia de imersão que tornou tão célebre Yehohanan, o Anunciador. Uma cerimónia que, ao longo dos séculos, foi pessimamente interpretada pelos seguidores das várias Igrejas, em particular a Católica.
O sofar soou novamente, curto e solene, anunciando que estava tudo pronto.
Então, um dos acampados se separou do grupo. Passou sem resistência pelo primeiro cinturão, e também pelo dos gladius. E ao chegar diante de Yehohanan, o homem - ainda moço - empalideceu. E os olhos se ergueram temerosos, buscando o rosto do gigante.
Foi tudo muito rápido.
- Te arrependes?
Não teve tempo de responder. Sem qualquer aviso, sem palavras, Yehohanan colocou as mãos nos ombros do jovem, e segurando-o com força, deu-lhe um violento empurrão pelas costas, submergindo-o no rio. Logo que ele desapareceu sob as águas, as pessoas todas, em uníssono, vociferaram outra palavra, sempre repetida nessas imersões:
- Neqel ("Limpo.")
Yehohanan esperou alguns segundos. Depois puxou o rapaz para a superfície e o colocou de pé como um boneco. Sufocado por um ataque de tosse, ele não conseguia ver nem ouvir.
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- Limpo! - exclamou Yehohanan, ao mesmo tempo que o afastava para o lado. - O seguinte!
E um segundo candidato à imersão - uma mulher - procedeu como o primeiro. Desta vez, o homem das pupilas vermelhas não perguntou nada. A moça, preparada, fechou os olhos e tapou o nariz com a mão esquerda. Foi jogada com a mesma violência. Quando saiu da correnteza, Yehohanan não reconheceu sua limpeza. Empurrou-a e gritou:
- O seguinte!
E assim ocorreu com todas as mulheres. Apenas os homens eram perguntados e recebiam o correspondente e obrigatório "neqe". No início, esse comportamento injusto me deixou desconcertado. Depois, com o passar do tempo, fui entendendo...
O sofar acompanhou cada imersão, exceto as das mulheres. Embora ainda pretenda voltar a esse assunto, resisto e continuarei resistindo a chamá-lo de "batismo"...
Contei dez ou doze imersões. Depois disso, a "cerimónia" praticamente se encerrou, e não por desejo de Yehohanan e de seu grupo... Suponho que era inevitável. Aquilo, no fim das contas, era apenas para alguns (como sempre).
Cansados de esperar, os carregadores pressionaram de novo, empurrando os que aguardavam para ser submergidos, e açulando-os com insultos e provocações. Estavam ali para levar os doentes e aleijados à presença do Anunciador e não desistiriam até conseguir. As pessoas protestaram de novo e deram-se os braços para impedir a passagem dos maqueiros. Os gritos e as pancadas recrudesceram, e as pessoas foram obrigadas a romper o primeiro cinturão de segurança. Os homens armados reataram a barreira e, com as espadas no alto, trataram de proteger o Yehohanan. Ali, como eu
estava dizendo, terminaram as imersões.
E os acampados, ao perceber que aquele era o fim, aliaram-se aos que pretendiam chegar até o vidente. Em pouco segundos, a situação mudou. Todos acorreram em direção ao gigante, estendendo os braços e implorando aos gritos que os tocasse e que os libertasse de suas doenças. Os sujeitos armados, sem saber o que fazer, recuaram, forçando Yehohanan a saltar sobre a base de pedra.
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Este que escreve, de uma das quinas da pilastra, sentiu-se tão acuado como o grupo do pregador. O que aconteceria se aquela turba descobrisse que eu estava nu? Não tive tempo de perguntar duas vezes. Percebi uma sombra à minha esquerda... Alguém se aproximava. Submergi inteiro e me agarrei às pedras.
Aquele indivíduo...
No mesmo instante, por debaixo da água, eu o vi mexendo em uma de suas pernas. Ou melhor, em uma perna-de-pau. Soltou as faixas que seguravam a armação de madeira e apareceu um pé... Era o maldito impostor que se fingia de coxo! Continuei grudado à pilastra. O que ele pretendia? E o vi afastar-se, contornado a base. Na verdade, só vi suas pernas, mas já foi suficiente. Reconheci de imediato a figura.
Voltei à superfície e, com a água pelo nariz, segui os passos do sujeito.
O tumulto aumentava... Os homens da sófora, transtornados, gritavam entre si, dando ordens, brandindo os gladius cada vez mais perto das pessoas e ordenando ao homem das sete tranças que rugisse.
O "coxo", então, apresentou-se diante dos enfurecidos acampados e
levantou a perna-de-pau acima da cabeça, ao mesmo tempo que gritava com todas as suas forças:
-At!
A aparição do pilantra foi tão súbita que a maioria dos presentes não teve tempo de meditar com um mínimo de bom senso. A gritaria se dissipou como que por encanto, e os rostos decompostos se fixaram na prótese escura e gotejante.
-At!- repetiu o trapaceiro com mais vivacidade, agitando o objeto. -At!...
E alguém, imagino que previamente conchavado, respondeu com outro sonoro e convincente "at!". Passados alguns instantes, contagiados e histéricos, e lembrando que aquele homem era um dos vendedores de Damiya, os acampados irromperam em um rotundo e repetido "at!".
- Milagre!... Milagre!... Milagre!
Eu não podia acreditar...
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J J BENÍTEZ
O entusiasmo transbordou, e aqueles infelizes, à espera de algo - se possível sobrenatural - que melhorasse suas vidas precárias, acreditaram piamente na realidade do "prodígio". Se um dos presentes questionou o "milagre", ninguém ouviu...
E, aos gritos de "at", lançaram-se contra os sujeitos armados com o objetivo de chegar ao vidente. Não sei o que teria acontecido se os fanáti
cos o pegassem...
Entretanto, Yehohanan, muito ágil, e aparentemente habituado a esse tipo de situação, adiantou-se aos propósitos da turba cega e desgovernada.
Pegou a colmeia colorida e se atirou no rio, fugindo aos saltos pelo vau, com a cabeleira ao vento, como uma hidra, deixando atrás de si um rastro de nervosismo e um grupo de vociferantes e malogrados seguidores. E desapareceu entre negros, verdes e vermelhos do espesso bosque de acácias que se avistava da margem oriental.
A lua cheia também correu a se esconder... Alguns se atreveram a cruzar as águas, mas, chegando à vegetação espinhosa por onde tinha desaparecido o Anunciador, desistiram e deram meia-volta.
Aproveitei a confusão para me retirar tão rapidamente como o pregador, mas em direção contrária. E depois de recuperar minhas coisas e me vestir, voltei apressado para nossa cabana. Como foi possível comprovar posteriormente, Yehohanan pôde ser visto até as 6 horas e 44 minutos...
No abrigo, tudo continuava do mesmo jeito. Kesil, que percebera o alvoroço, me fez perguntas. Relatei uma parte do ocorrido, silenciando sobre meu desafortunado deslize, e o felah, com um sorriso malicioso, confirmou o que era evidente. O "coxo" era um kedab (em aramaico, uma pessoa "falsa e mentirosa"). Todos o conheciam em Damiya e arredores. Não era a primeira vez que agia assim. E o estratagema sempre dava certo entre os incautos e os recém-chegados ao "vau das Colunas". O "coxo" esgotava todas as reservas de "água de Dekarin", e os outros vendedores também tiravam proveito. Ninguém se atrevia a denunciar a fraude. Por que o fariam, se isso ajudava a atrair novos possíveis "clientes"?
Pouco a pouco, com o progressivo aumento da temperatura, tudo foi voltando à normalidade. Os acampados se entregaram a intermináveis
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discussões e o homenzinho e seu grupo voltavam a se abrigar sob a copa da frondosa sófora. Eu os fiquei observando por um longo tempo. Também discutiam e polemizavam, mas não sobre o final brusco e violento da reunião. A fuga de Yehohanan e as contusões sofridas no ataque daquela gente não os preocupavam muito. O principal tema das conversas era a alusão feita pelo Anunciador a "outro mais forte que ele e ao caminho que estava preparando". Eles não entendiam. Se Yehohanan era o nebi, o profeta ou vidente, e se o espírito de Deus pairava sobre ele, quem era esse mais forte a quem estava preparando o caminho?
Enquanto velava Eliseu adormecido, tentei ordenar as idéias. Era desconcertante. Estava ali, às margens do rio onde Yehohanan, o Anunciador, agia em função do Filho do Homem. Uma soma de aparentes "casualidades" nos havia colocado frente a frente com o homem que também fazia parte da vida do Galileu. Pelo menos, era o que se supunha...
Como explicar racionalmente que o roubo de uma das bolsas de lona, uma incrível avaria na nave, a recuperação da tal bolsa, o inesperado desaparecimento de Jesus, a fuga precipitada no barco dos mortos etc. tenham contribuído para possibilitar aquele encontro com o homem da "mariposa" no rosto?
Destino curioso. Ou não era o Destino?
Quanto mais observava o grupo da sófora, mais eu me convencia de que não se tratava simplesmente de um punhado de seguidores ou entusiastas do Anunciador. Poderiam ser seus discípulos? Nos textos evangélicos, quase não se fala deles. Seria preciso ir mais a fundo na incipiente relação com o pequeno-grande homem para descobrir a verdade.
Os toques do sofar, as palavras malogradas dirigidas aos acampados por aquele que parecia ser o chefe dos homens armados, os movimentos em torno de Yehohanan e o
isolamento dos dezoito, separados dos demais pelo guilgal ou círculo de pedras - tudo isso era muito eloqüente. E mais: eu juraria que o vidente e aqueles homens também agiam em comum acordo. A intuição não me traiu. Algum tempo depois eu confirmaria isso.
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E subitamente me lembrei... As palavras proferidas por Yehohanan não eram suas; pertenciam ao profeta Isaías. Pelo menos a maior parte do discurso.
Eu já sei. Ainda tinha muito a aprender sobre aquela personagem misteriosa e singular...
E, sem me dar conta, lá estava eu de novo me fazendo a velha pergunta: qual era a relação entre o homem das pupilas vermelhas e Jesus de Nazaré? O que eu tinha ouvido lá de dentro do rio me deixou perplexo. O Mestre jamais ameaçou. Nunca falou da ira de Yavé ou da vingança do Pai. Jesus não assustou as pessoas com o fogo ou com a espada dos céus. Seu reino era diferente. Yehohanan previu o fim de uma era, e, sobretudo, de Roma. Durante todo o tempo que permaneci com o Galileu, jamais ouvi nada semelhante. Jamais pregou o catastrofismo como fazia o homem da longa cabeleira. Jamais se interessou pelo poder ou pela política. Jamais recorreu ao castigo como meio de purificar os corações.
Que estranho!
Eles não se pareciam nem fisicamente nem espiritualmente. Por que então o qualificaram de precursor do Filho do Homem? O que um tinha a ver com o outro, a não ser o possível parentesco? Por que falavam de Yehohanan como "o maior entre os homens"?
Eu precisaria de tempo para me aprofundar na vida do Anunciador e para mostrar que, também neste caso, a verdade está longe do que imaginam crentes e seguidores...
Mas não vamos nos antecipar aos acontecimentos. Ainda que me faltem forças, tenho de relatar fielmente o ocorrido, passo a passo. Só assim, com uma certa ordem, poderemos chegar mais perto da verdade. Apenas "chegar mais perto"...
Nessa época - setembro do ano 25 de nossa era -, Yehohanan já se referira ao Mestre, porém sem citar seu nome. O sentido da frase - "outro mais forte que eu" - era claro para nós, mas não para o grupo que se reunia debaixo da árvore das vasilhas quebradas e que o aguardava ali.
Jesus de Nazaré! Onde ele estava? Nós o perdêramos...
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O Pai dos céus, com certeza, tinha outros planos, tanto para Ele como para estes desolados exploradores...
Quanto às pessoas acampadas defronte as "Colunas", os fatos confirmaram as informações iniciais: a maioria procurava o vidente para resolver seus problemas. Isso eu vi com os meus próprios olhos e veria outras vezes. A fama de curandeiro e de bruxo do Anunciador acabou por prevalecer. E todos os dias, dezenas de doentes e aleijados eram trazidos até o local onde ele pregava e onde tentava cumprir a cerimónia muito particular de imersão. Todos vibravam com suas palavras e com a força torrencial de sua personalidade, e desejavam - sobretudo os mais pobres e necessitados - que a promessa do novo reino e de justiça se concretizasse. Entretanto, esse não era o objetivo fundamental daqueles que passavam diariamente pelo vau. Não sei como surgiram os rumores acerca do poder curativo e sobrenatural do gigante
da cabeleira até os joelhos, mas náo é muito difícil imaginar...
E os mal chamados "escritores sagrados" também se esqueceram desse aspecto importante na vida de pregação de João, o Batista (não sei por que, sempre me refiro a ele como "Yehohanan, o Anunciador". Talvez seja mais correto). Todos falam de sua palavra, de seu sentido de justiça e de sua audácia. Mas havia mais, muito mais...
Nessa tarde, quando os ânimos no vale esfriaram, nosso vizinho de cabelos sujos e desgrenhados apareceu de novo na cabana. Trazia um preparado de alhos crus e uma espécie de compota de maçã. Perguntou pela saúde de meu companheiro e, cerimonioso como de costume, pediu permissão para examinar o doente. Pôs as mãos sobre seu rosto e depois as desceu até o joelho esquerdo do engenheiro. A manobra era nova para mim. Em silêncio, muito concentrado, colocou os dedos indicador e polegar esquerdos de um lado e de outro da rótula, e com o dedo médio procurou um ponto na região externa da tíbia. Pressionou por vários segundos e soltou a perna. Depois repetiu o gesto três vezes.
- Tu o viste? - perguntou inesperadamente. - Satisfizeste tua curiosidade?
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Supus que se referia a Yehohanan. Balancei a cabeça em sinal negativo, e o homenzinho, sem saber a qual de suas perguntas eu estava respondendo, insistiu:
- Era ele. Tu o procuravas...
Pedi que se sentasse e que ficasse um pouco ali comigo. Ele fez um sinal para os homens que estavam debaixo da sófora e se sentou.
- Eu o vi - expliquei -, mas suas palavras me deixaram confuso...
Foi assim que iniciei um relacionamento profícuo com Abner - era esse seu nome -, o homem de confiança do Anunciador.
Durante duas semanas, e em visitas posteriores a Yehohanan, aquele pequeno-grande homem um ano mais velho que seu ídolo, fui levantando as informações de que precisava. Seu testemunho e sua ajuda seriam extremamente valiosos, particularmente durante o período em que o Anunciador permaneceu preso por ordem de Herodes Antipas. Um período apaixonante e do qual se conhece muito pouco. Um período essencial em que começou a germinar o ressentimento em um dos íntimos do Mestre.
Era judeu. Ou melhor, kuteo (samaritano). Vivia em Sebaste, ao norte da Samaria. Era o que chamavam de adam-halaq (ao pé da letra, "homemsorte"), uma espécie de talismã, alguém que procurava a boa sorte e que era contratado para os propósitos mais variados e estranhos. Podia permanecer numa casa até que a deusa fortuna favorecesse o proprietário e sua família, ou então acompanhar uma caravana ou um peregrino em particular. Ninguém ousava tocá-lo. Só ele estava autorizado a colocar as mãos em uma pessoa quando julgasse oportuno. Essa virtude (?) singular de "corrigir" a sorte decorria do fato (não menos singular) de ter "chorado no ventre da mãe". Era o que diziam...
Sua paixão era Yehohanan e os cavalos, nessa ordem. Estava justamente conduzindo e "protegendo" uma manada de cavalos árabes desde a região de Moab, a leste do mar Morto, até os territórios de Efraim, ao norte de Jerusalém, quando topou com o homem de longos cabelos ruivos e pupilas vermelhas. Ficou impressionado com ele, como quase todos os que cruzavam no seu caminho. Isso ocorreu no final do mês de adar (março) desse mesmo ano 25. Abner ouviu o pregador no rio Jordão, no
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"vau das Doze Pedras", bem próximo a Jerico, a cidade das palmeiras3, e decidiu segui-lo.
Tinha percorrido parte do vale em companhia de Yehohanan. Ali, nas "Colunas", já estavam há quase um mês. A intenção do Anunciador era seguir para o norte. Ninguém sabia a razão. Eu, instintivamente, imaginei qual era, mas não disse nada...
Pouco a pouco, a fama do pregador rude e esquisito - eu diria espetacular - foi se propagando. Começou a curar com as mãos e a exigir justiça e arrependimento, anunciando mais ou menos aquilo que eu tinha ouvido no vale do Yabok.
Depois de apenas alguns dias, segundo Abner, apareceu um grupo de homens que pediu para ficar a seu lado. Eram os primeiros discípulos. O adam-halaq, por ser o mais antigo e um dos mais sagazes, logo se tornou o segundo. Todos o respeitavam e o estimavam. O único problema é que seu aspecto, descuidado e frágil, criava mal-entendidos entre os que não o conheciam, o que inclusive acabava levando a alterações desagradáveis, como a que eu presenciara no vau já mencionado.
Ele também fez perguntas... O que faziam dois gregos tão longe de sua pátria? Compreendi que as desconfianças não haviam desaparecido. Indagou sobre a profissão de cada um e, sobretudo, sobre os propósitos daqueles "ricos comerciantes". Não conseguia entender por que nos sentíamos atraídos pelos problemas religiosos de um povo como o judeu. Buscar a verdade? Na província romana da Judéia? E por que em um vidente como Yehohanan?
Não foi fácil explicar-lhe que vínhamos de um mundo insatisfeito. Que estávamos cansados da mediocridade e da mentira. Que não acreditávamos nos deuses. Em nenhum. E muito menos no poder do dinheiro. Que, simplesmente, buscávamos.
O "vau das Doze Pedras" foi o lugar por onde passou Josué com o povo judeu, e no qual, segundo a Bíblia, a arca da aliança operou o milagre de separar as águas. Josué, o novo caudilho, mandou tirar doze pedras do leito seco do Jordão e erigiu um monumento. Cada pedra representava uma das doze tribos de Israel. (N. do M.)
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No início, tive muito cuidado em não mencionar o Mestre. Tudo devia seguir seu curso natural. Quanto ao Anunciador, a resposta foi tão explícita quanto possível... Era um nebi, um profeta, segundo diziam. Por que não buscar a verdade em suas palavras?
- Pois bem - resumiu Abner -, agora que já ouvistes, o que me dizes?
- Continuo confuso - afirmei -. Esse Deus da ira e da vingança não é o que necessito...
Ficou em silêncio. Não notei nenhum desagrado ou reprovação em seu olhar. Creio que gostou da minha sinceridade. Foi um bom começo, apesar de tudo...
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DE 27 DE SETEMBRO A 10 DE OUTUBRO
Eliseu melhorou. A febre foi desaparecendo, assim como os outros sintomas. Logo se recuperou e, com a minha ajuda e a do fiel Kesil, começou a dar passeios curtos e recuperou o estado de ânimo. Lentamente, seu organismo começou a aceitar sólidos (cereais moles e fervidos e ovos cozidos) e líquidos quentes. Durante alguns dias, por precaução, mantive uma dose de difenoxilato (entre dois ou três comprimidos por dia), reforçando o primeiro tratamento antibiótico.
Os remédios naturais de Abner - especialmente à base de beladona, pó de bismuto e caulino procedente das colinas do leste do Jordão - também contribuíram para o restabelecimento do engenheiro. Mas isso não me tranqüilizou. Eu precisava fazer o que tinha planejado. Era importante submetê-lo a um exame cuidadoso e esclarecer a situação de forma definitiva. Para isso, teríamos de retornar à nave...
E decidi esperar um tempo. A viagem até o alto do Ravid exigia um mínimo de recuperação. Eu aguardaria. O Destino nos conduzira ao "vau da Colunas". O Destino nos tiraria de lá...
No acampamento às margens do Yaboq, assim como no guilgal, o círculo de pedras que contornava a sófora, pouca coisa mudou, tirando, é claro, o movimento de curiosos doentes e aleijados que chegavam e partiam diariamente.
O Anunciador passou vários dias sem dar nenhum sinal de vida. Como era natural, os acampados se indagavam, interrogavam os discí
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pulos, protestavam pela ausência, discutiam, defendiam ou atacavam o Yehohanan, qualificando-o de vidente, louco ou farsante. Nada de novo. Os vendedores continuavam esfregando as mãos. Desde que estávamos no vau, contei mais de quinhentas pessoas. Um grande negócio...
Todos os dias, pouco antes do amanhecer, o responsável pelo chifre de carneiro subia no alto da sófora e vigiava a orla das acácias. Eram ordens do Abner. Ficava ali por cerca de duas horas. Quando o sol começava a esquentar, o homem descia e o grupo desistia da vigilância. Se Yehohanan não aparecesse antes da tercia (nove da manha), Abner, precedido do toque do sofar, tomava a iniciativa de ir
até a primeira pilastra existente no rio. Ali, como tive oportunidade de assistir, dirigia a palavra à plateia. Pelo menos tentava.
Depois eu soube que isso foi estabelecido pelo próprio Anunciador. Na sua ausência, a prédica e a cerimónia de imersão ficavam por conta do segundo. Porém, os acampados, que às vezes vinham de muito longe, não se contentavam com a voz suave e a imagem não muito convidativa do homenzinho. E, como eu estava dizendo, os protestos eram freqüentes. Todos queriam vê-lo. Todos desejavam tocá-lo. Todos esperavam que o Anunciador os curasse. E os espertos vendedores "negociavam" os lugares na água, assegurando aos crédulos e ingénuos que eles "seriam os primeiros a vê-lo e a ser curados". Presenciei o pagamento de até cinco denários de prata por um desses "primeiros lugares" no rio.
Obviamente, nada disto foi relatado pelos evangelistas. Nem esses nem outros fatos não menos significativos.
O bondoso Abner ia regularmente à nossa cabana e se mostrava contente com os progressos de meu irmão. E, numa daquelas conversas, cada vez mais descontraídas, o lugar-tenente de Yehohanan, que não esquecia, tocou de novo na velha questão:
- Então, se não acreditas na cólera e na justa indignação de Deus, tua vida não tem sentido...
Eliseu, que já estava a par de tudo o que tinha acontecido, trocou um olhar de cumplicidade com este que escreve. Prudentemente, ficou calado. E eu mantive uma certa distância, respondendo apenas com meia verdade.
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- Pois se é justamente ao descobrir que Deus não castiga que a vida começa a ter sentido...
Abner arregalou os olhos, desconcertado:
- Como poder pensar uma coisa dessas?
Sorri satisfeito. E a imagem de nosso amigo se fez presente nos corações de duas das pessoas ali reunidas. Não sei se foi o instinto ou se foi o Destino, mas o fato é que me aventurei a satisfazer a curiosidade de meu generoso vizinho.
- Conhecemos um Homem. Ele nos ensinou...
- Um profeta, como o Anunciador?
- Muito mais do que isso...
O homenzinho vasculhou na sua memória, procurando uma resposta a essa indicação nada fácil. Não encontrou. E, encolhendo os ombros, me pediu que eu esclarecesse o mistério.
- Yehohanan falou sobre ele - arrisquei. - Yehohanan anuncia que "outro mais forte que ele está para chegar"...
Abner assentiu com a cabeça. A curiosidade tomou conta dele.
- Conheceis o que está para chegar?... Qual é o nome dele? -YesuaÁ...
O homem empalideceu. Chegou bem perto do meu ouvido e, baixando a voz, sussurrou:
-Jesus nascido em Belém deJudá... Yehohanan nos falou sobre ele em segredo... Diz que ele confirma todas as profecias. Mas, como sabeis?
Olhei-o bem dentro dos seus olhos. Creio que captou a mensagem.
- Então... - titubeou -, vós o conhecestes?
Não esperou uma resposta. Nem sequer se despediu. Saiu e foi se refugiar entre os homens armados, à sombra da sófora. Eliseu e eu achamos que ele tinha se ofendido. Mas, com quê? Kesil levantou outra possibilidade: o "homem-sorte" estava assustado...
Não dei maior importância a isso. O halaq, como todo mundo, também tinha comportamentos erráticos. E já que toquei nisto, falando de atitude imprevisível, não posso deixar de me referir à explicação de Eliseu sobre a bebedeira de uns dias antes e o misterioso brinde. Simples
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mente não houve explicação. De duas uma: ou ele não lembrava ou não queria voltar ao assunto. Decidi esperar. Não seria eu que o obrigaria a revelar aquele "amor impossível"...
De vez em quando, o engenheiro se isolava, ia para a beira do rio, e ficava ali sentado durante horas. Nunca me atrevi a invadir seus pensamentos. Foi um erro. Hoje, sabendo o que sei, creio que ambos nos equivocamos...
No sábado, 29, com o pretexto de adquirir provisões, voltei ao povoado de Damya. Kesil, o criado, ficou com meu companheiro. Na realidade, minhas intenções eram outras. Já fazia tempo que eu queria visitar a casa de Nakebos, o nabateu. Eu sabia que o alcaide e Belsa estavam doentes, supostamente com os mesmos sintomas apresentados por Eliseu. Queria comparar as informações. Talvez isso ajudasse no completo restabelecimento de meu irmão.
Os vendedores estavam certos. O capitão e o persa, assim como parte dos serviçais, contraíram a mesma infecção intestinal que Eliseu. Por falta de medicação adequada,
estavam em um estado de prostração mais acentuado. Reconheceram-me; porém, não me deram muita atenção. Estavam fracos. O único tratamento que recebiam consistia de mel em abundância e infusões de arruda e hissopo. Deduzi que a doença acabaria se prolongando e, para aliviar seus sofrimentos, aconselhei que tomassem um de meus "preparados" (de 15 a 30 miligramas de codeína por dia e um extrato de raízes de cinoglossa). Aquilo não alteraria o ciclo normal da patologia, mas, pelo menos, amenizaria seus efeitos. Era o mínimo que podia fazer por eles...
E aconteceu pela segunda vez.
No dia seguinte, domingo, 30, daquele mês de tisri (setembro) do ano 25 de nossa era, o Anunciador apresentou-se novamente no vau.
Ouvimos um longo toque. O homem do sofar, ao vê-lo, deu o sinal do alto da árvore. Era bem cedinho. Abner e sua gente, como da vez anterior, correram para o rio. Todos corremos.
Yehohanan apareceu no mesmo lugar e praticamente na mesma hora. A aparência também era a mesma. A colmeia colorida balançava levemente em sua mão esquerda. Avançou a largas passadas e saltou sobre a mesma pilastra. Porém, desta vez, os discípulos não se mantiveram
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a distância. Desde o primeiro momento, circundaram a base de pedras para proteger o pregador.
Eliseu, Kesil e eu ficamos na "praia" dos seixos redondos, misturados a um grupo de ansiosos acampados.
Ele esperou alguns segundos. Passou o olhar agressivo entre os presentes e foi erguendo os braços devagar, com teatralidade. Não mudou nada. Os
dedos estenderam-se em direção ao céu violeta, ainda adormecido, e exclamou com aquela voz rouca e atormentada:
- Sabeis que o espírito do Santo está em mim?
Eliseu, que estava vendo o Anunciador pela primeira vez, ficou mudo.
- Sabeis que vós o encontrareis em um lugar sagrado?... E apontou para as águas do Yaboq.
- Sabeis que aqui, neste vau, nosso pai Jacó pelejou com o Santo? Meu irmão não compreendeu e quis que eu lhe explicasse. Pedi
silêncio. Eu achava que tinha entendido a referência do pregador, mas não desejava perder nem uma só palavra. O tom arrogante não me agradou...
- Nestas águas, Jacó viu o rosto de Deus... Lutou com ele e o venceu... Então, Deus mudou seu nome, passando a chamá-lo de "Yisrael", porque lutou com Deus...
As pessoas, tão desconcertadas quanto o engenheiro, olhavam para a corrente. Os mais incrédulos chegaram a tocar nas águas.
Yehohanan conhecia bem as Escrituras, e estava narrando - à sua maneira - o episódio de Jacó ao atravessar a pé esse mesmo afluente do Jordão1. Entretanto, esse lugar não era a paragem a que se referia o Gê
O Génese (capítulo 32) descreve essa luta "encarniçada" entre o neto de Abráo e um homem singular. Jacó o identifica com Yavé. A luta com o varão prolongou-se até o amanhecer: "E quando o estranho viu que não podia vencê-lo, pressionou a articulação do quadril, em sua luta com ele, e o desconjuntou. E lhe disse [a Jacó]: Solta-me porque já é alvorada. Porém, Jacó lhe respondeu: Não me despedirei de ti, a menos que me dê tua bênção". Jacó chamou esse lugar de rosto de Deus, e explicou: Olhei para Deus cara a cara e minha alma se salvou." É por isso que até
hoje os filhos de Israel não comem o tendão contraído que fica na articulação do quadril, porque um anjo de Yavé desconjuntou o de Jacó." (N. do A.)
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nese. Estávamos muito perto da desembocadura, e Jacó, pelo que se sabe, lutou com o estranho "homem" muito mais ao norte, rio acima, no local conhecido pelos arqueólogos como "Peni El" (Penuel) ou "rosto de Deus". Mas o pregador parecia não se importar com a falta de precisão.
- Somos um povo santo porque lutamos com Deus e o vencemos... Ele nos compensou chamando-nos de Israel... Nós vimos seu rosto... Agora, ele reclama o que é seu... Ele reclama a glória de Israel, arrebatada pela iniqüidade dos ímpios... Roma pagará...
Os acampados estavam pasmos e demoraram a reagir. Alguns, arrebatados diante da eloqüência de Yehohanan, responderam com gritos contra o invasor. Foi uma minoria. Desta vez, a platéia não se entregou. E, apesar da veemência de seus gestos e do apoio de vários presentes, a atmosfera manteve-se calma. Os vendedores perceberam isso, assim como os maqueiros. E todos se mantiveram em um cauteloso segundo plano.
- Eu também vi o rosto do Santo!... Eu vi sua face e continuo vivo!... Eu sou o ungido e o que prepara o caminho para a justiça!...
Eliseu não conseguiu se conter.
- Ele está louco!...
Estava louco? O que significava para o Anunciador ter visto o rosto de Yavé? Prometi a mim mesmo que averiguaria isso. Eu precisava falar com aquele homem estranho...
- Eu vi sua face! - repetiu sem muito êxito. - Seu espírito me deu sua bênção, assim como a Jacó!... E ele disse: "Arrependei-vos!"... Ê hoje
o novo reino!
Essa foi uma das raras variantes naquele segundo discurso. Particularmente, fiquei intrigado com a referência ao "rosto divino"...
O resto do "sermão" foi tão apocalíptico quanto aquele que eu tinha ouvido de dentro da água. Não houve mudanças. Apenas uma novidade no final (para este que escreve, é claro). Pelo que fiquei sabendo em outras oportunidades, as falas do Anunciador giravam sempre em torno de três ou quatro pontos básicos: ele era um eleito, o final dos tempos se aproximava, Deus exigia justiça e arrependimento e o messias libertador de Israel estava para chegar.
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Devo confessar que, quando o conheci melhor, sua mensagem perdeu credibilidade. Yehohanan, na verdade, não era digno sequer de amarrar as sandálias doFilho do Homem. Mas não vamos nos antecipar aos acontecimentos...
- Tive uma visão noturna - proclamou em seguida, avivando o interesse geral. - Diante de mim, apareceu uma grande estátua, enorme e muito brilhante... Era uma estátua terrível...
A voz foi ganhando força, o tom foi se elevando entre as pausas estudadas. Yehohanan tinha dom para a oratória. Avaliava bem o uso das palavras e sabia introduzir silêncios.
- ...Sua cabeça era de puro ouro... O peito e os braços de prata... O ventre e as costas de bronze... As pernas de ferro... Seus pés, parte de ferro e parte
de argila... e estava olhando quando, subitamente, caiu uma pedra...
Yehohanan se apoderou dos corações. E estendeu a pausa. Virei-me para Eliseu e sussurrei:
- Sem que qualquer mão interviesse, e veio parar junto à estátua, a seus pés...
Meu companheiro me olhou surpreso. Eu também tinha perdido o juízo?
Ato contínuo, ao ouvir o pregador ele compreendeu...
- ...sem que qualquer mão interviesse... E veio parar junto à estátua, a seus pés de ferro e argila...
O engenheiro tentou dizer alguma coisa. Não era preciso. Yehohanan estava recitando um texto que não era seu. O sonho, como tal, não era do Anunciador, mas sim de Nabucodonosor... Yehohanan estava mentindo.
-Apedra os pulverizou!... Então, tudo se pulverizou ao mesmo tempo: ouro, prata, bronze, argila e ferro... e o vento os levou sem deixar rastro.
Os corações se apertaram um pouco mais. E o pregador soube tirar proveito disso.
- Eu vos anuncio que Roma e todos os reinos sofrerão esse mesmo fim!... O Justo os derrubará, fazendo surgir um reino que jamais
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será destruído!... Permanecerá eternamente!... Ele, o Justo, me advertiu em sonhos!...
Yehohanan continuou recitando o profeta Daniel à sua maneira...
- ... E eis que o vi em minhas visões!... Vinha nas nuvens como um Filho do Homem!... E a ele foi dado um império, honra e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram!... Seu Império é eterno!...
Silêncio. Ninguém se atreveu a fazer coro com o impulsivo gigante das pupilas vermelhas.
- Olhai para o meu rosto!... Não é como o dos demais!... Eu sou o escolhido!... Eu preparo o caminho desse Filho do Homem!... E vos anuncio que está próximo!... Arrependei-vos!... Andai direito!
O resto era muito parecido com o que eu tinha ouvido anteriormente. Ameaças, advertências, admoestações: "O machado pronto para golpear", "A cólera divina disposta a queimar e a degolar..."
Como eu dizia, quem ouviu um de seus discursos ouviu todos. E a imagem do Filho do Homem - doce, compassivo, terno e feliz - tocou no meu ombro, recordando-me que "os planos do Pai são inescrutáveis!" Aceitei a sutil advertência. Nosso trabalho - como ele lembrou - consistia em observar. Apenas isso. E assim seria. O Destino quis que conhecêssemos Yehohanan, o Anunciador, e que soubéssemos por ele, sem intermediários. Depois, cada um saberá como interpretar este apressado diário.
O final daquela aparição em público transcorreu sem incidentes. Como já disse, dessa vez os acampados não se mobilizaram. Não houve gritos nem histerismos. Quando soou o sofar, os que desejavam submeterse à cerimónia da imersão (não eram todos), lentamente e com uma certa ordem, formaram uma fila.
A palavra-chave para o início dessas imersões foi sakak. Eu não tinha dúvida. Era um sinal previamente estabelecido entre Yehohanan e seu grupo. O pregador agiu exatamente igual, com a mesma violência e desconsideração. Mais do que limpar os corpos e purificar as almas, parecia querer afogar os
arrependidos...
E observamos outra coisa que também era nova para mim. De vez em quando, a uma indicação do pregador, o sujeito do chifre de carneiro
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interrompia os toques e Yehohanan autorizava a presença dos homens das macas. Então molhava as mãos no rio e as levava ao rosto, ao peito, ao ventre ou às pernas do doente, dependendo da enfermidade. A imposição era breve. E recordei o gesto de Abner com Eliseu. Quem imitaria quem? Eu não demoraria a averiguar isso...
Por mais que buscasse, por mais que explorasse o comportamento do Anunciador, não descobri um único sinal de ternura em suas palavras ou ações. Que personagem incrível e, sobretudo, que grande manipulação histórica!
Uma hora depois de amanhecer, quando o sol começava a clarear os bosques e bambuzais, notei uma inquietação no pregador. Seu olhar se voltava reiteradamente para aquele sol, cada vez mais intenso. Parecia preocupado. De súbito, em plena cerimónia de imersão, Yehohanan abriu o saco branco que trazia a tiracolo e puxou - não sei como definir - uma espécie de talith ou manto (talvez a referência mais próxima seja o xale). Desdobrou-o cuidadosamente e, indiferente à expectativa geral, cobriu-se com ele.
Meu companheiro e eu nos olhamos surpresos. O sol prometia incendiar, como todos os dias, mas não a essa hora. Por que estava se protegendo? E comecei a suspeitar qual era o motivo...
Era um xale igualmente singular. À distância, não consegui identificar sua verdadeira natureza. Brilhava como ouro, mas, evidentemente, não era
ouro. Parecia leve, vaporoso e era bem amplo. Demorei algumas horas para resolver esse novo mistério. E posso assegurar que fiquei confuso, mais uma vez...
Subitamente, depois de olhar para o sol pela enésima vez, Yehohanan dirigiu-se ao seu segundo e lhe disse algo. Depois, sem mais, deu meiavolta. Pegou a colmeia que tinha deixado sobre a pilastra e sumiu rio abaixo. As pessoas da platéia foram pegas de surpresa, e sem saber que atitude tomar, ainda permaneceram por algum tempo dentro da água, assobiando. Abner anunciou que a cerimónia estava suspensa. Que aguardassem o aviso do sofar.
- O vidente retirou-se para meditar - explicou...
Acho que acreditaram: os acampados voltaram para a orla e os homens armados seguiram os passos de seu chefe.
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O Anunciador desta vez não foi para o bosque das acácias, na margem direita do Yaboq. Para minha surpresa, vi o gigante se dirigindo para a sóíbra, com a cabeça e os ombros cobertos pelo xale
te l "
amarelo ...
Nós também retornamos ao abrigo improvisado de bambus. A situação era nova. O vidente decidira meditar (?)...
Sentamos perto da cabana e ficamos observando Yehohanan e os dezoito homens por um longo tempo.
O Anunciador, ainda coberto, depositou a colmeia do lado de fora do guilgal, muito perto do atalho de terra vermelha. Alguns acampados se
aproximaram do círculo de pedra, mas, ao reparar no cilindro colorido, decidiram não arriscar a sorte. As abelhas funcionaram como uma eficientíssima arma de dissuasão.
Então o pregador começou caminhar ao redor da árvore, seguido por Abner e pelos outros homens. Não pareciam conversar. Limitavam-se simplesmente a acompanhar os passos do vidente. Era uma imagem pouco gratificante, entre o cómico e o patético. E assim permaneceram por mais de uma hora...
Por pouco Eliseu não começou a rir. Devido à sua alta estatura e ao manto que estava vestindo, Yehohanan tinha de desviar toda hora dos pedaços de vasilhas pendurados nos ramos da sófora. Mais de uma vez topou com um "óstraco", o que sempre provocava risinhos e cochichos dos discípulos. O vidente parava e olhava para trás tentando descobrir quem ousava zombar dele. Os homens, pegos de surpresa, chocavam-se uns com os outros e acabavam abaixando a cabeça, atordoados e temerosos. Yehohanan não falava nada, mas - suponho - seu olhar dizia tudo. E voltava a caminhar...
A insólita "meditação", como eu dizia, prolongou-se por um bom tempo. Calculei umas cinqüenta voltas em redor do tronco. E, de quando em quando, o anunciador interrompia a marcha e se dirigia à margem do rio, onde urinava abundantemente. Aquilo não era normal e logo associei a poliúria (transtorno na micção) a outros "sintomas" que começavam a se manifestar. O instinto me advertiu...
- E esse é o precursor de Jesus?
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A pergunta do engenheiro era mais do que justificada. A imagem atual de João, o Batista, pouco ou nada tem a ver com o que me foi "revelado".
Mas é assim que se faz a história...
Yehohanan parece ter se cansado das impertinentes vasilhas e foi se sentar ao pé da sófora. O sol se firmava. Nesse momento (dez da manhã, aproximadamente), a temperatura no Yaboq superava os 20 graus Celsius. O dia prometia muito calor.
O vidente, coberto pelo talith, foi rodeado pelo grupo. Pelos gestos, interpretei como o turno das perguntas. De onde nós estávamos, era impossível ouvir. Deduzi que o anunciador dava uma aula a eles.
E lá pela sexta (meio-dia) percebemos vários movimentos estranhos. Primeiro, todos os discípulos viraram a cabeça e dirigiram os olhares para estes exploradores. Não sabíamos o que pensar. Depois, o lugar-tenente se levantou, aproximou-se do vidente e cochichou algo no seu ouvido. Abner também olhou para nós. Ato contínuo, o samaritano e cinco de seus homens saíram do guilgal e vieram ao nosso encontro.
Estava acontecendo alguma coisa... Ficamos de pé. Abner, muito simpático, nos desejou paz. Depois, apontando para a árvore pediu que eu o acompanhasse.
- Quer falar contigo - acrescentou, sem dissimular sua satisfação. - És um homem afortunado...
Não compreendi; porém, disposto a aproveitar a oportunidade, concordei, também sorrindo.
Abner deu meia-volta e fui atrás dele. Mas, no mesmo instante, os cinco homens armados se interpuseram no meu caminho. Um deles, quase sem palavras, obrigou-me a levantar os braços. E ali mesmo, diante dos olhares atentos dos outros, fui revistado.
Eliseu me deu um sorriso amargo e eu entendi seu pensamento.
Os armados, satisfeitos, me franquearam a passagem. Entretanto, ao chegar ao círculo de pedras, me detive e esperei. Não desejava novos incidentes, e muito menos um gladius na garganta...
Abner, que já estava no centro do guilgal, compreendeu minha hesitação e, agitando as mãos, encorajou-me a ultrapassar a barreira.
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O vidente, mudo, continuava sentado, com a cabeça e parte do corpo cobertas pelo xale dourado. Os homens, também em silêncio, me observavam com curiosidade.
Obedeci e fui andando até a sófora.
Quando me aproximei do Anunciador, reparei na verdadeira natureza do manto que o cobria. Tive uma sensação incómoda... Era cabelo humano! O talih era um trançado de cabelos ruivos, muito semelhantes aos do vidente. Imaginei que tinha sido confeccionado com a cabeleira do homem das sete tranças. Como era possível? As tais tranças iam até os joelhos. Quanto cabelo era necessário para confeccionar um xale com aquelas características? Tudo tinha uma explicação...
Outra lembrança daquele encontro inesperado com o Anunciador foi um odor acre, um cheiro inconfundível de suor humano. Era tão forte que fazia do entorno da sófora um lugar pouco recomendável, quase asfixiante. Logo imaginei que alguns dos homens reunidos ali não se lavavam há muito tempo. Errei de novo.
Yehohanan me observou da penumbra de seu rebuço. Será que me reconheceu? Sabia que era o mesmo indivíduo que estava escondido nas águas do rio quando ele se preparava para falar aos acampados? O silêncio e a observação desabusada se prolongaram por mais de um minuto. Fiquei preocupado. Não tinha jeito.
Aquele homem não parava de me examinar...
- É verdade que conheces YesúaÁ, da casa de Davi e filho do naggar de Nazaré?
O tom arrogante me pôs em alerta. Todos esperavam uma resposta afirmativa.
Evidentemente, ele se referia ao Mestre. O termo naggar em aramaico, como tekton em grego, significava "centralista de obras" (uma mistura de carpinteiro de exteriores, pedreiro e "arquiteto"). Segundo minhas informações, essa era a verdadeira profissão de José, o pai terreno de Jesus.
Ele não me permitiu responder. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, foi fazendo uma pergunta atrás da outra, manipulando meus silêncios...
" 262
J.). BENÍTEZ
- Sabia que o conhecias... Diz!... Onde ele está agora?... Quando inaugurará o reino?... Compreendo... Pediu-te que guardasses silêncio... Somos sagrados!... Há espiões por toda parte!... Pedirei que leves uma mensagem para ele!...
Levantei a mão esquerda interrompendo-o.
- Não gosto de falar com quem oculta o rosto...
Meu tom também foi firme. E o Anunciador entendeu. O silêncio foi um mau prelúdio.
Yehohanan se levantou e, com ele, o resto do grupo. Voltou a perscrutarme da obscuridade que lhe proporcionava o talith e, numa clara tentativa de me intimidar, deu um passo e se inclinou ligeiramente sobre este que escreve. Percebi a ameaça, e os dedos, de forma lenta e dissimulada, foram pousar na
extremidade da "vara de Moisés", e ficaram acariciando o cravo dos ultrassons. Não estava disposto a me deixar subjugar por nenhum daqueles fanáticos.
Não recuei. Nem sequer pestanejei. A altura descomunal do pregador era um "argumento" demolidor, mas eu resisti. Não cederia diante daquele energúmeno.
Confuso diante da minha obstinação, aproximou-se um pouco mais. O xale amarelo quase me roçou. E o mau cheiro do suor bateu no meu rosto. Permaneci imperturbável (aparentemente).
- Sabes quem sou? - explodiu. - Sabes com quem estás falando? Sabes que fui visitado pelo espírito de Deus?... Sabes que sou dEle?
Os gritos, envolvidos por uma soberba mais do que preocupante, fizeram com que os homens recuassem. Eliseu e Kesil, assustados, correram até o limite das pedras brancas. Meu irmão deve ter notado a posição da minha mão direita, na extremidade da vara, e ficou atento. Felizmente, não ultrapassou o guilgal.
- DEle! - repetiu imponente, ao mesmo tempo que levava a mão esquerda a um quarto do meu rosto. - Sou de Deus!
Faltou pouco para que eu ativasse o cravo. A mão enorme, com uns vinte e cinco centímetros de comprimento, poderia ter me derrubado com um simples empurrão... Mas não era essa a intenção do Anunciador. Na
263
palma, sobre a pele enrugada e calejada, distingui algumas letras. Parecia uma tatuagem... E li: "Seu". Em hebreu, literalmente: "Eu, do Eterno". Tinham sido gravadas a fogo, como o sol na testa de Belsa!
"Seu" ou "dEle" ("de Yavé") era um "sinal" que confirmava o "pertencimento", de corpo e alma, ao Deus do Sinai. Embora o Levítico proibisse formalmente as tatuagens (19, 18), os judeus mais religiosos ou fanáticos gostavam desse tipo de manifestação externa, que revelava sua piedade e seu apreço pelo Deus dos patriarcas. Muitos se apoiaram em Isaías (44, 5) para gravar a "marca" em questão, seja na palma da mão (sempre na esquerda, visto que a direita normalmente era utilizada para se limpar depois de defecar), seja na testa. Tudo dependia do rigor religioso do indivíduo. Para as mulheres era proibido...
E gritou de novo para mim, com a voz estrangulada pela raiva:
- Sou dEle!... Quem como eu?... Que se levante e fale!
O profeta Isaías voltava à sua boca, e ele utilizava o texto como bem entendia. Nesse momento pressenti algo. Yehohanan não era um homem normal. O engenheiro, com sua habitual intuição, tinha acertado em cheio. Mas precisei de algum tempo para me convencer e, sobretudo, para demonstrar isso...
- Ninguém me dá ordens! - clamou, com a mão enorme bem aberta e as letras expostas, acenando à esquerda e à direita com a clara intenção de que todos vissem a marca. - Sabes que posso mandar vir fogo do céu e te queimar?
Eu é que podia. Bastava ativar o laser de gás... mas me contive.
Dei meia-volta e me retirei. O pregador permaneceu ali com seu grupo, todos tão desconcertados quanto Eliseu e o criado...
O resto do dia transcorreu dentro de uma certa normalidade. Meu companheiro, em razão do que acabara de presenciar, sugeriu uma mudança de planos. Já tínhamos visto o suficiente. Sabíamos quem era o Anunciador. Era melhor regressar a Nahum. O mestre é que merecia toda nossa dedicação...
Deixei-o falar. Em parte, ele tinha razão. Porém, seu estado de saúde ainda
não era o mais recomendável. Não convinha precipitar as coisas.
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j.j. BENÍTEZ
E foi o que eu lhe disse. Permaneceríamos no vau até segunda ordem.
Estávamos nesse ponto quando Yehohanan e seus homens apareceram de surpresa diante destes exploradores, deixando-nos embasbacados. Era por volta da décima (quatro da tarde) e faltava uma hora e meia para o ocaso. Estávamos sentados à sombra da choça de bambus e não os vimos chegar. Kesil se assustou e saiu para o lado.
Emudecemos. A "vara de Moisés" estava à minha direita, apoiada na parede do abrigo, longe demais para que eu pudesse alcançá-la do ponto onde me encontrava.
Abner, que vinha à frente, adiantou-se. O Anunciador, coberto com o xale, permanecia imóvel, rodeado por todos os armados. Os rostos pareciam imperturbáveis, como sempre. Alguns tinham os dedos serrados sobre a empunhadura do gladius.
Não conseguia entender...
- Ele quer se desculpar...
O kuteo exibiu o sorriso catastrófico de sempre. Isso só serviu para confundir de vez tanto a mim como ao engenheiro. O vidente queria pedir desculpas?
Não tive tempo de me manifestar. Yehohanan foi empurrando sem cerimónias os dois ou três armados que o protegiam pela frente e veio em nossa direção. Abner se esquivou rapidamente. O pregador trazia entre as mãos enormes um recipiente de madeira, cuidadosamente coberto com um pano. Não sabíamos o que fazer. Será que levantávamos ou ficávamos sentados? Não tivemos opção. Yehohanan ajoelhou-se diante
destes exploradores e depositou a gamela no chão. O cheiro de suor foi como uma paulada. Seus homens não se moveram.
Em seguida, silenciosamente, ele segurou o talith e jogou-o para trás descobrindo a cabeça. Era a primeira vez que o observava tão de perto. Estremeci. Depois senti piedade dele. E tentei corresponder ao gesto de boa vontade com um sorriso amplo e sincero. Consegui em parte.
Ainda que estivéssemos à sombra, a tragédia daquele homem apareceu em toda sua crueza. A mancha em forma de borboleta talvez fosse o de menos. O que doía o coração era ver aqueles olhos de um azul celestial belíssimo e, ao
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mesmo tempo, endiabrados, com as pupilas cor de fogo. Olhá-lo nos olhos era um suplício. Além do albinismo ocular, ele apresentava um persistente e incómodo nistagmo vertical (uma oscilação do globo em sentido vertical provocada por espasmos involuntários dos músculos motores). Esse contínuo subir e descer dos olhos provocava estranhas reações em seus interlocutores, quase sempre de rejeição. O resto também não ajudava: orelhas longas com lóbulos carnosos e oscilantes, boca grande com os dentes amontoados, lábios grossos e sensuais, nariz achatado, glabela (intercílio) proeminente e abóbada craniana alongada, como as mãos e os pés. O tórax apresentava uma ligeira depressão em forma de funil (pectis excavatum). Seu rosto era duro e impressionante. Até os mais avisados experimentavam uma rejeição natural.
Nunca o vi sorrir. Nunca... Olhava como um falcão. Mais do que olhar: cravava os olhos. Como já disse antes, não era fácil perceber um traço de ternura. Era estranho, muito estranho...
- E agora, diz-me... Continuava montado na arrogância.
- Onde está?... Quando inaugurará o reino?
Yehohanan não tinha o menor desejo de consertar as coisas ou de se desculpar. Quem fez isso foi seu segundo. O Anunciador se aproximou por interesse. Pouco a pouco, ia desenhando seu perfil: era frio e calculista, só se interessava por suas idéias, por seus objetivos. E eu fiz a mesma coisa. Aceitei responder por interesse...
Contei-lhe do nosso encontro recente nas montanhas do Hermon, "aparentemente por casualidade". Não me aprofundei nem lhe passei qualquer informação que pudesse ratificar suas suspeitas sobre o Mestre. "Tudo se limitou a um conhecimento frutífero e recíproco." O Galileu, de fato, nos impressionara por sua inteligência e pela clareza de idéias.
- Onde ele se encontra?
A pergunta denunciou suas intenções. Como Abner já tinha insinuado, o pregador estava tentando encontrar seu primo distante. Fazia alguns meses que tinha iniciado o caminho de busca, ao mesmo tempo que pregava e batizava.
Respondi com a verdade...
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- Não sabemos...
Suponho que acreditou em mim. E, habilmente, levantou uma questão que não havíamos abordado até esse momento.
- Por que dizes que ele é o messias esperado?
Eu não tinha dito isso. Nem sequer tinha sugerido. E não caí na armadilha.
- O messias? Somos gregos... Por que iríamos acreditar em um libertador judeu?
E reafirmei:
- ...Esse Homem é um ser especial. Foi isso o que eu disse.
Seus olhos me devassaram. Não sei se procurava segundas intenções em minhas palavras. Imagino que o agradaram.
- Sei que te reunirás com ele em breve - acrescentou, deixando-nos surpresos. - Pedirei que leves uma mensagem. Mas, antes, deixa-me fazer...
Aproximou-se e colocou suas mãos enormes sobre minha cabeça. Não fez o menor movimento. Fechou os olhos e ergueu o rosto para o céu. Permaneceu assim por algum tempo, murmurando algo incompreensível. Às vezes suspirava profundamente e continuava sua "reza" (?). Eliseu, tão perplexo como eu, continuou mudo. Os mais surpresos, entretanto, eram os dezoito seguidores. Os olhos do bondoso Abner se encheram de lágrimas. Supus que aquilo era importante, pelo menos para Yehohanan e seu grupo. De minha parte, senti calor, um calor intenso que, sem dúvida, vinha de suas mãos grandes e toscas. Eu não tinha explicação. O sol já estava se retirando para o Jordão. Aquela "energia" (?) nada tinha ver com a temperatura ambiente.
A imposição de mãos foi providencial... Concluída a cerimónia, Yehohanan voltou a falar. A voz, rouca e abafada, chegou "cem por cento" a todos os que assistiam ao encontro:
-Agora, para nós, tu serás "Ésrin"...
"Esrin"? A palavra, em aramaico, significava "vinte"? O que ele quis dizer
com isso?
-... Teu nome é Ésrin - informou solenemente. - Olha... Perguntalhe: quando tempo mais devo esperar?... Compreendeste?
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Assenti com a cabeça, sem me atrever a pronunciar qualquer palavra. E isso foi tudo. O pregador se levantou, pegou a misteriosa gamela e foi depositá-la nas mãos do engenheiro. Fez apenas um comentário:
- Elas trabalham para mim... O encontro terminou ali.
Yehohanan retornou ao guilgal. Conversou um pouco com seus homens e, depois de pegar de volta a colmeia colorida, embrenhou-se no vau, afastou-se rapidamente e desapareceu no bosque vermelho e verde das acácias. De novo, aquele lugar misterioso... Meu companheiro, ao ver que ele tinha entrado na mata fechada, perguntou:
- Está pensando a mesma coisa que eu?
Respondi que sim. Afinal, o que se passava na outra margem? Porque ele abandonava seus discípulos? Por que no ocaso?
Foi assim que surgiu um novo desafio - averiguar o porquê daquelas estranhas escapadas - e também uma alcunha, "Esrin", o nome que recebi de Yehohanan. Segundo o Anunciador, eu era o "arauto" número vinte...
O "batismo" não me perturbou. Como eu disse, isso seria útil para os nossos propósitos.
Eliseu destampou o recipiente para ver o que tinha ganhado do pregador. Kesil sorriu satisfeito. Eu também. Parecia um bom presente. De fato, "elas trabalhavam bem".
O criado provou o conteúdo e sentenciou: "De primeira qualidade..."
Fiquei pensando. Por que Yehohanan tinha dito que "elas", as abelhas, trabalhavam para ele? Pois era esse o presente, uma generosa porção de mel (de alfazema, segundo Kesil), densa, alaranjada, dulcíssima e muito apropriada para combater as infecções gastrintestinais2. Esse foi um dos raros gestos de "humanidade" que observei no Anunciador durante todo o tempo em que estive próximo dele. Agora, sabendo o que sei, não o condeno...
2 O mel, entre outras propriedades, é antisséptico. Ele age sobre a flora intestinal combatendo infecções de todo tipo. É particularmente indicado, por exemplo, para a disenteria, e também previne as fermentações. Elementos como ácido fórmico, enzimas, essência e levulose agem sobre o intestino favorecendo o peristaltismo (movimento característico que provoca o avanço de seu conteúdo). (N. do M.)
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Se o mel foi benéfico, a deferência do pregador com este que escreve foi muito mais. Aquela designação maluca e a mensagem que eu devia levar a Jesus de Nazaré abriram-me todas as portas. Uma mensagem que, naturalmente, jamais transmiti ao Mestre...
A partir desse dia, como eu disse, passei a ser "Vinte". Até o meu companheiro adotou o cognome, embora de uma forma um pouco debochada. Isso não importava. Tive acesso ao guilgal (incrível Destino) e, particularmente, ao coração do grupo. Desde então, acolheram-me como mais um, me protegeram e, de certo modo, me invejaram. Seu ídolo confiava naquele estranho. E eu soube tirar partido das circunstâncias.
Para começar, durante o tempo em que permanecemos no "vau das Colunas", tratei de saber tudo sobre Yehohanan. Abner foi quem mais me ajudou. Era o mais bem informado. Um belo dia, complacente diante da curiosidade insaciável do Vinte, foi me mostrar um cesto onde guardava seu "tesouro", cuidadosamente envolvido em um lenço, e que era fruto de quase sete meses seguindo seu ídolo. Desfez o laço e depositou em minhas mãos pecadoras um maço de papiros.
- Aí está o que buscas...
As folhas vegetais continham textos escritos em aramaico, que eu li intrigado. Ao me inteirar do conteúdo, olhei para ele sem esconder
meu espanto.
- Quem escreveu?
- Eu, naturalmente. Tudo vem dele... Podes ler. Depois conversamos.
Abner tinha começado a redigir suas "memórias" sempre em torno do Anunciador. Ali encontrei dados sobre sua vida, os discursos, seu pensamento e seus principais objetivos, inclusive pormenores sobre os outros dezoito "arautos". Li avidamente, mesmo reconhecendo que procedia de uma mão interessada e, até certo ponto, pouco objetiva. Porém, como eu dizia, foi útil e interessante. Ficou mais fácil entender Yehohanan.
Tentarei sintetizar o que o Destino me revelou nessas jornadas. Yehohanan nasceu no dia 25 de nisán (março) do ano 7 a.C. Portanto, tinha cinco meses e quatro dias a mais que seu parente distante,
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J.j. BENÍTEZ
Jesus (as respectivas mães - Isabel e a Senhora - eram primas em segundo grau). O nascimento, na realidade, ocorreu na madrugada de 25 para 26 (talvez próximo da última vigília, a do alvorecer: nessa época, por volta de 6 horas).
Tudo aconteceu em uma aldeia situada a oeste de Jerusalém, a pouco mais de uma hora de caminhada (em torno de seis quilómetros). O lugar, naquele tempo, recebia o nome de "Manancial da Vinha" (possivelmente "Ain Kárim" ou "Ein Kárim")3. Era um punhado de casas (trinta ou quarenta), habitadas por pastores e camponeses. Segundo minhas informações, foi parto normal. Antes disso, no entanto, nos meses anteriores, ocorreram alguns fatos pouco comuns. Ou melhor, nada comuns...
A mãe se chamava Isabel (ocidentalização do nome hebraico "Elisheba" ou "Meu Deus sete vezes"). Era uma mulher instruída, de boa família, descendente das "filhas de Aaráo", irmão de Moisés4. Quando Yehohanan nasceu, devia ter uns 53 anos. Ou seja, era uma velha (a expectativa de vida para os varões não superava a média de 35 ou 40 anos. As mulheres viviam um pouco mais).
O pai (Zacarias ou "Zejaria" - "Recordado por Deus") era sacerdote. Pertencia ao clã dos Abiá (oitava classe sacerdotal5), uma das famílias mais respeitadas nas questões ligadas ao culto a Yavé. Ninguém conseguiu me esclarecer com exatidão a idade do pai de Yehohanan quando do nascimento do Anunciador. Talvez tivesse 60 anos, ou até mais. Esses dados, como espero mostrar no momento adequado, eram muito significativos...
Eu não estava enganado.
Zacarias dividia seu tempo entre uma granja de ovelhas, localizada no "Manancial da Vinha", e o Templo, na vizinha Cidade Santa (Jerusalém). Ali, ele desempenhava
seu trabalho como simples sacerdote, um entre dezoito mil que, supostamente, formavam a lista do chamado Segundo Templo. Recebia o salário correspondente, trabalhando à razão de uma semana a cada seis meses. A venda de ovelhas era seu principal sustento. Zacarias também era um excelente tosquiador.
Não tiveram filhos. Quando Yehohanan nasceu, Isabel e seu esposo acabavam de completar quarenta anos de matrimónio. Aquilo me chamou a atenção. Indaguei e sempre obtive a mesma resposta: Isabel era estéril, "amaldiçoada" (!). A sociedade judaica nem sequer considerava que a esterilidade pudesse ser de origem masculina...
3 Ain significa "fonte ou manancial" e Kárim ou Kárem é a vocalização do grupo radical sintético krm ("vinhedo"). Existe um segundo significado para krm: "nobre" ou generoso".
Segundo a tradição das Igrejas, o Batista nasceu em Jerusalém (Eutímio, Girolano e Agostinho, entre outros), na cidade de Hebron, ao sul (Cesare Baronio), em Maqueronte, Sebaste, em Beit Zekaria (sudoeste de Belém) e em Beit Sharar (suposta tumba do profeta Zacarias, também próxima a Belém). Nenhuma dessas versões tem fundamento sólido. (N. do M.)
4 Aarão, irmão mais velho de Moisés, também acompanhou o povo hebreu até a chamada Terra Prometida. Foi nomeado sumo sacerdote por Yavé. Faleceu antes de pôr os pés em Canaã. As mulheres descendentes de Aaráo eram consideradas da "família sacerdotal" (ver Êxodo e Números). Dada a possível gagueira de Moisés, Aaráo o substituía na hora da falar com o faraó, que deveria facilitar a saída do Egito do povo hebreu. (N. do M.)
A intricada burocracia sacerdotal na época de Jesus dividia-se em vinte e quatro classes. Cada uma desempenhava uma semana de serviço no Templo, de sábado a sábado. Vinham de todo o país, especialmente das cidades "levíticas". Assim foi
estabelecido desde os tempos de Davi (mil anos antes de Cristo). Os sacerdotes se reuniam no dia indicado e passavam a primeira noite no pátio do Templo. Ali procediam ao sorteio dos "treze ofícios": imolação, limpeza, queima de perfumes, toque de trombetas, bênção do povo etc. Durante essa semana, o turno correspondente era responsável por tudo o que dizia respeito ao Templo (da administração da justiça à administração do dinheiro). Embora eu não disponha dos dados exatos, cada seção semanal reunia cerca de setecentos sacerdotes e levitas distribuídos em 156 seções diárias. Isso dá um total de uns dezoito mil sacerdotes e levitas. Nem é preciso dizer que o turno que coincidia com uma festa era "particularmente beneficiado", visto que o número de animais sacrificados e o volume das doações aumentavam consideravelmente. (N. do M.)
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Abner não soube esclarecer a seguinte questão: por que Zacarias não repudiou sua mulher? As severas leis de Moisés previam essa possibilidade. E as famílias sacerdotais eram mais rigorosas6. A finalidade do matrimónio era a prole. Segundo Yavé, se a mulher não estivesse capacitada para dar filhos, o varão podia divorciar-se ou procurar novas esposas. O contrário não existia...
Imaginei que Jacarias amava Isabel e por isso não a abandonou. As leis judaicas também tinham limite... Ainda assim, teria de perguntar ao próprio Yehohanan. Mas, como colocar uma questão tão delicada? O Destino soube fazê-lo... e de que maneira!
Como eu dizia, começaram a ocorrer alguns fatos insólitos na vida do casal e daquela aldeia simples e esquecida. Durante o mês do tammuz
(junho) do ano 8 a.C, muitos vizinhos do "Manancial da Vinha" assistiram assombrados às evoluções sobre casas e campos de "esferas luminosas" pequenas e velozes, que afugentavam o gado e que chegavam a atravessar muitos e terraços. Apareciam ao entardecer e desapareciam com a alvorada. Foi um sinal. Falavam de uma catástrofe anunciada por esse raz ou "mistério" (mais do que mistério, poderia ser traduzido como "desígnio
6 Segundo Yavé (Levítico 21, 7-8), a dignidade e a pureza de origem nos sacerdotes impediam que estes contraíssem matrimónio com divorciadas, prostitutas ou mulheres que não fossem virgens. Só podiam tomar como esposas mulheres virgens ou viúvas, desde que fossem israelitas e com uma ascendência genealógica pura. Se o sacerdote não tivesse filhos, podia voltar a se casar, mas nunca com uma viúva estéril. Era proibido igualmente o matrimónio com uma prosélita ou com uma liberta, embora não com sua prole, desde que a mãe fosse judia. A essas leis, sujeitas à arbitrariedade e à injustiça, o Deus (?) do Sinai acrescentou a proibição de desposar a halúsah e a mulher estéril (Deuteronômio 25, 9). A halúsah era a viúva que tinha se recusado a casar com o irmão do esposo falecido (matrimónio levirático). Quanto à estéril, um sacerdote só era autorizado a toma-la como esposa se já tivesse mulher e filho. O rabi Yudá proibia sem exceções este último tipo de matrimónio. Se um sacerdote descumprisse a norma, a lei se abatia sobre ele e seus descendentes com extrema severidade. O matrimónio era declarado ilegítimo e os filhos, se houvesse, perdiam o direito de ser sacerdotes como o pai. Aconteceu algo parecido com Flavio Josefo quando, sendo prisioneiro dos romanos, foi obrigado por Vespasiano a se casar com uma judia prisioneira de guerra, ou seja, suspeita de ter sido violada. (N. do M.)
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J.). BENÍTEZ
misterioso"). Naturalmente, para aquela gente, o raz era obra de Yavé ou de seus "servos", os espíritos maléficos.
As notícias sobre os "fogos inteligentes" se espalharam rapidamente pelo pequeno país. E foram muitos os escribas que consultaram os textos sagrados, fazendo hippa (profetizando) sobre esses eventos. Os evangelistas também não falam disso.
Foi no final desse mês de junho que ocorreu o segundo fato extraordinário na aldeia de Yehohanan. Isabel, que também testemunhou o raz quando voltava com o gado das montanhas vizinhas, recebeu uma "visita" bastante inusitada. Nos escritos de Abner que, por sua vez, foram ditados pelo Anunciador, falavase de "um varão de estatura considerável, cabelos longos e amarelos e com uma vestimenta como a dos persas" (de calças). Emitia luz em todo seu redor. Era forte, musculoso, com o rosto áspero, "como que trabalhado a martelo e cinzel". No peito luzia um "desenho" (?): uma espécie de bordado vermelho que reproduzia três círculos concêntricos.
Círculos? A imagem lembrou-me alguma coisa...
Isabel estava sozinha. Nesses dias, seu marido estava em ofício no Templo de Jerusalém. Era o turno da seção semanal da qual fazia parte. O "homem de luz" - como o definiram - não moveu os lábios, mas Isabel ouviu palavras em sua cabeça. No início, a presença do ser no curral da casa assustou-a. Ficou imobilizada (talvez de medo). Queria gritar e pedir ajuda. Não foi capaz. E ouviu o seguinte: "Enquanto teu marido, Zacarias, oficia perante o altar, enquanto o povo reunido roga pela vinda de um salvador, eu, Gabriel, venho anunciar-te que em breve terás um filho que será o precursor do divino Mestre. Tu o chamarás pelo nome de Yehohanan (João). Crescerá consagrado ao Senhor, teu Deus, e, quando crescer, alegrará teu coração, pois trará almas a Deus. Anunciará a vinda daquele que cura a
alma de teu povo e o libertador espiritual de toda a humanidade. Maria será a mãe desse menino, e também aparecerei diante dela."
Eu conhecia a mensagem de Gabriel. A Senhora e seus filhos já tinham me informado em outro momento7. Os dois textos eram pratica
Ver informação em Masada. Cavalo de Tróia 2. (N. do A.)
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mente iguais. Cinco meses depois, em meados do marjesván (novembro), Maria, na época quase uma menina, recebia uma "visita" similar, protagonizada pelo mesmo "homem luminoso", Gabriel8. O anúncio à Senhora ocorreu dentro da casa de Nazaré.
Pelo que pude deduzir de encontros posteriores com o Anunciador, a presença do "homem de luz" diante de Isabel, e pouco depois diante de Maria, e, sobretudo, as mensagens, marcariam profundamente a vida de Yehohanan. Seu comportamento estava intimamente ligado a esses fatos sobrenaturais. À margem de outros "problemas" a que me referi antes, aquilo o influenciou por completo. Era o precursor do messias! O anunciador! Aquele que abre caminho e o que prepara!
Lamentavelmente, nem Isabel, nem Maria, nem tampouco Yehohanan entenderam o verdadeiro significado das palavras de Gabriel... E durante anos, a mãe do Anunciador se encarregaria de avivar a chama do grande erro: Yehohanan seria o segundo no poder. Yehohanan ocuparia um lugar de honra na divisão do reino. Yehohanan, como o Messias, como Jesus de Nazaré, seria um sallit, um homem com força (tanto física como mental). E Yehohanan se considerava um eleito, um ser especial, dotado da graça da profecia e da cura. Ele tinha razão, até certo ponto...
Era por isso que - segundo Abner - ele traçava círculos de pedra onde se encontrava. O guilgal era uma expressão material de sua capacidade como sallit, A vê-lo, todos sabiam que estavam diante de um homem
Nessa segunda aparição, o anjo Gabriel expressou-se assim: "Venho por ordem daquele que é meu Mestre, ao qual deverás amar e manter. A ti, Maria, trago boas notícias, já que te anuncio que tua concepção foi ordenada pelo céu... No devido tempo, serás mãe de um filho. Tu o chamarás YesúaÁ (Jesus ou "Yavé salva"), e inaugurará o reino dos céus sobre a Terra e entre os homens... Fala disto tão somente a José e a Isabel, tua parente, para quem também apareci e que logo dará à luz um menino cujo nome será Yehohanan. Isabel prepara o caminho para a mensagem de libertação que teu filho proclamará com força e profunda convicção aos homens. Não duvides de minha palavra, Maria, já que esta casa foi escolhida como morada terrestre deste filho do Destino. Tem minha bênção. O poder do Altíssimo te sustentará... O Senhor de toda a Terra estenderá sobre ti sua proteção..." (N. do A.)
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"santo", capaz de impor sua vontade sobre o mal e sobre a natureza. Era uma velha crença que remontava aos tempos do profeta Elias (oitocentos anos antes de Cristo9). Eu fui um dos poucos que não o levaram a sério, e quase paguei com a vida por isso...
Mas, voltemos a Isabel e à singular "visita" do "homem luminoso". A mulher, primeiro assustada e depois desconcertada, não disse nada a ninguém, nem mesmo a Zacarias. Passados alguns dias, como é natural, chegou a duvidar até de si mesma. Será que tinha sonhado? Era fruto de sua mente, já velha e cansada? A gravidez, no entanto, era real. E, pouco a pouco, ao longo desse verão do ano 8 a.C., quando os
sinais da gestação começaram a se tornar evidentes, Isabel caiu na mais profunda crise.
Como era possível? Tinha 53 anos, e há muito tempo entrara na menopausa. Não havia ovulação. Como explicar aquela gravidez? Além disso, segundo a sociedade em que vivia, ela era estéril...
Seria verdade? Fora visitada por um anjo? Deus é que tinha feito aquele milagre? Isabel foi se convencendo dia a dia. Era verdade... E, no quinto mês, em novembro, decidiu comunicar o fato ao marido.
Zacarias reagiu como era de se esperar. Primeiro achou que era brincadeira. Depois, diante da insistência de Isabel, passou ao assombro e, finalmente, ao ceticismo. Grávida? Na sua idade? Por obra do Justo?
A inquietação do velho sacerdote aumentou quando, de fato, ninguém mais podia duvidar que a mulher estava esperando um filho. Dezembro e janeiro foram terríveis. Zacarias achou que fosse enlouquecer. Não que duvidasse da honestidade de Isabel, velha e estéril. O que ele não
9 Entre os judeus, e também em outras culturas, existia a crença de que determinados homens podiam dominar as leis da natureza. Alguns os chamavam de asap (adivinho ou bruxo), outros de ittim ou sallit. Eram capazes de atrair a chuva, de acabar com uma praga ou de extinguir um incêndio usando apenas a sua palavra. Para isso, desenhavam um círculo, sentavam-se no centro dele, e rezavam até que Deus lhes concedesse o milagre em questão. Um desses magos - talvez o mais famoso - foi Honi, o "Desenhador de Círculos", que Flavio Josefo chama de Onias, o Justo (século I a.C.). Sempre aparecem em confronto com os sacerdotes, legítimos e únicos responsáveis pelo aparecimento das chuvas em toda Israel. (N. do M.)
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entendia era o porquê daquela escolha. Conhecia bem as profecias sobre o libertador (mais de quinhentas), mas aos 60 anos de idade já não era tão crédulo. Por que aceitar que aquele filho era o precursor do Messias? Quem eram eles? Ninguém. Quem era Maria, a parente de Isabel? Ninguém... Será que as mulheres estariam confabulando? Zacarias também afastou essa idéia. Por que iam inventar uma história dessas? E se for uma menina?
A confusão era tal que Zacarias acorreu ao Templo e rogou a Deus que lhe desse um sinal. O atormentado sacerdote não comentou sobre isso naquele momento. O pedido a Yavé ficou guardado em seu coração. Só algum tempo depois ele contaria a Isabel, diante do ocorrido...
Em fevereiro do ano 7 a.C., Maria, a Senhora, na época uma jovenzinha casada com José, foi ao "Manancial da Vinha" para visitar Isabel. Faltavam dois meses para o nascimento de Yehohanan. Esse foi o primeiro encontro das duas grávidas. Maria já estava na décima semana, aproximadamente.
Segundo a versão do Anunciador, transmitida ao seu segundo, as mulheres falaram sobre suas experiências, em particular sobre como foi a aparição de Gabriel para uma e para outra, o que reforçou crenças e deixou ainda mais confuso - se isso ainda era possível - o atordoado Zacarias.
Naquele encontro histórico, foram traçados os primeiros planos para Jesus de Nazaré e seu lugar-tenente Yehohanan. Isabel e Maria, muito animadas, faziam e desfaziam. O Mestre reuniria os exércitos, expulsaria o invasor e tomaria posse do trono de Davi. Elas seriam as mães do rei e do "arauto" do rei. O mundo estaria a seus pés. Jesus - como tinha anunciado o "homem de Luz" - era o filho da Promessa ou do Destino. Yehohanan prepararia esse reino de glória esplendor, aguardado há séculos.
Estava muito claro...
Como já disse outras vezes, nem a Senhora nem sua prima em segundo grau entenderam o significado das expressões "reino dos céus" e "libertador espiritual". E ali, na casa de Zacarias, nasceu um mal-entendido que obscureceu a vida do Galileu.
E então aconteceu o terceiro fato extraordinário. Foi no dia 11
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de fevereiro. Fazia pouco mais de uma semana que Maria havia chegado ao "Manancial da Vinha". Desta vez, o protagonista foi o desolado Zacarias...
Assim constava nas "memórias" de Abner: "Foi um sonho, um hélem [mais que um sonho, uma visão]. Zacarias sonhou que estava no Templo de Jerusalém. Era um dos turnos em que oficiava. No sorteio, coube-lhe o incenso [oferecer incenso e outros perfumes no Santo10]. Quando entrou no lugar com seus companheiros, dirigiu-se ao mencionado altar dos perfumes. De súbito viu um homem junto a esse altar. Não era sacerdote. Vestia calças, como os babilónicos. Zacarias e seus companheiros queriam avisar os vigias. Como tinha entrado no recinto sagrado? Mas Zacarias e os outros não conseguiram se mover. Estavam presos ao pavimento, como que costurados às pedras. Então o homem falou, mas sem mover os lábios. Zacarias, aterrorizado, urinou-se. E ouviu: Não temas, Zacarias...
10 O Hekalou Santo era uma das zonas sagradas do Templo judeu. Nele desembocavam todas as estâncias (38 câmaras distribuídas em três pisos ou andares que serviam de armazéns, alojamentos, oficinas etc.). Tinha a forma de uma ampla galeria, com os muros chapeados com madeiras nobres e indestrutíveis. O acesso ao Santo era
feito por uma grande porta. Atrás dela, várias cortinas entrecruzadas impediam a visão de fora para dentro. Era o primeiro véu do Templo. No Hekal encontravam-se o célebre candelabro de sete braços, a mesa dos pães da proposição e o altar dos perfumes ou do incenso, tudo coberto de ouro. A liturgia judaica exigia que o incenso fosse oferecido duas vezes ao dia (na realidade, tratava-se de uma mistura de incenso, gálbano, ônix e estoraque). Para a oferenda do incenso, eram necessários pelo menos três sacerdotes. Além do responsável pela oferenda, um segundo sacerdote, com uma pá de prata, subia ao altar dos holocaustos e recolhia carvões em brasa e os transportava até o altar dos perfumes. O segundo ajudante recebia a bandeja ou colher de grandes proporções (com capacidade para sete quilos) onde tinha sido depositada a mistura de perfumes e que o sacerdote principal oferecia a Yavé. Assim consta no escrito intitulado tamid (sacrifício cotidiano). No fundo do Santo, separado por um segundo véu ou cortina, encontrava-se o Debtrou "Santo dos Santos" (Qadosh haqedoshim). Era o lugar onde, supostamente, Yavé residira. Nos tempos de Jesus estava vazio. Em épocas anteriores tinha abrigado a arca da Aliança, hoje desaparecida. No "Santo dos Santos" só entrava o sumo sacerdote, e uma vez por ano, na festividade solene do Yom Kippur (Dia do Perdão) ou Yom haKippurim, como era chamado naquele tempo. (N. do M.)
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Não te causarei mal... Teu pedido foi ouvido... Eu sou o sinal que solicitaste ao Todo-Poderoso... Terás um filho que abrirá caminho àquele que é o mais santo e forte, o libertador espiritual dos homens... E Zacarias respondeu em seu sonho: Sou velho. Poderei vê-lo? O homem ordenou a um dos sacerdotes que saísse do Santo para ver se tinha chegado a hora da imolação do cordeiro. E o sacerdote conseguiu se mover e fugiu dali. Mas não retornou. E o homem
formulou a mesma pergunta ao segundo companheiro de Zacarias. Mas ele tampouco retornou. Então perguntou a Zacarias: A Luz brilha? Zacarias recuperou o movimento e saiu. Viu que ainda não chegara a aurora, retornou e respondeu: Nem sequer se vê o Hebron. O homem voltou a lhe perguntar: A Luz brilha? Zacarias repetiu a operação, e também a resposta. O homem perguntou dezoito vezes ao todo: A Luz brilha? Zacarias saiu outras dezoito vezes e voltou sempre as mesmas palavras: Nem sequer se vê o Hebron. O homem, então, levou Zacarias até a sala dos cordeiros. Ali pegou um dos animais e o fez beber em um recipiente de ouro. Voltou a falar a Zacarias e disse: Teu filho precederá o cordeiro e tu precederás teu filho, Yehohanan. Assim, terminou o sonho."
Segundo meu informante, ao despertar, Zacarias, muito impressionado, aceitou a versão de sua mulher. Nunca mais duvidou. Yehohanan seria o nome de seu filho, aquele que inauguraria o reino. E durante muito tempo, o "segredo" permaneceu em família.
Fiquei tão perplexo quanto o bondoso Zacarias. Aquela versão pouco ou nada tinha a ver com o que foi narrado por Lucas, o evangelista, em seu primeiro capítulo, quando relata a maneira como se deu a anunciação de Yehohanan, o Batista ou Precursor do Messias. Bastante surpreso, quando voltei ao Ravid examinei e reexaminei a passagem citada1 e che
No capítulo l (versículos l a 26), Lucas escreve textualmente: "Existiu nos tempos de Herodes, rei da Judéia, um sacerdote de nome Zacarias, do turno de Abías, cuja mulher, da descendência de Aaráo, se chamava Isabel. Eram ambos justos diante de Deus e, irrepreensíveis, conduziam-se nos preceitos e nas observâncias do Senhor. Não tinham filhos, pois Isabel era estéril e ambos já tinham idade avançada."
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guei à conclusão de sempre: Lucas manipulou os fatos pela enésima vez (não estou querendo fazer jogo de palavras). Eis a minha interpretação, sempre sujeita a erro, naturalmente:
1. Lucas, no texto evangélico, transforma em um acontecimento real o que, segundo minhas informações, foi um sonho. Um helém ou "visão" (?) importante, mas um sonho, em última análise...
2. Lucas, ou quem tenha escrito esse Evangelho, usurpou o protagonismo na citada anunciação do anjo. Não foi Zacarias, e sim a esposa, Isabel, quem recebeu a visita do "homem luminoso". Por que Lucas cometeu esse erro grosseiro? Ou não foi um erro? Só me ocorrem duas explicações possíveis. Lucas não se informou corretamente ou se deixou levar por algo mais reprovável: o desprezo pelas mulheres. Por
"Ocorreu, pois, que exercendo ele suas funções sacerdotais perante Deus segundo a ordem de seu turno, conforme o uso do serviço divino, coubelhe entrar no santuário do Senhor para oferecer-lhe o incenso, enquanto toda a multidão do povoado orava fora, no momento da oblação do incenso. Apareceu a ele um anjo do Senhor, de pé à direita do altar do incenso. Ao vê-lo, Zacarias perturbou-se, e o temor apoderou-se dele. Disse-lhe o anjo: Não temas, Zacarias, porque tua prece foi ouvida, e Isabel, tua mulher, te dará um filho, ao qual darás o nome de João."
Será para ti gozo e regozijo, e todos se alegrarão com seu nascimento, porque será grande na presença do Senhor. Não beberá vinho nem licores, e desde o seio da mãe será pleno do Espírito Santo; e muitos dos filhos de Israel converterá ao Senhor seu Deus, e caminhará diante do Senhor no espírito e no poder
de Elias para reduzir os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes aos sentimentos dos justos, a fim de preparar para o Senhor um povo bem disposto.
"Disse Zacarias ao anjo: E que sinal terei disto? Porque já sou velho, e minha mulher tem idade avançada. O anjo lhe respondeu dizendo: Eu sou Gabriel, que sirvo a Deus e fui enviado para falar-te e comunicar-te esta boa nova. E eis que tu ficarás mudo e não poderás falar até o dia em que isto se cumpra, porquanto não acreditaste em minhas palavras, que se cumprirão a seu tempo."
"O povo esperava Zacarias e estava surpreso por sua demora no templo. Quando saiu não podia falar, por onde souberam que tinha tido alguma visão no templo. Ele fazia-lhes sinais, porque tinha ficado mudo. Cumpridos os dias de seu serviço, voltou para casa. E depois de outros tantos dias, concebeu Isabel, sua mulher, que se ocultara durante cinco meses, dizendo: Eis o que o Senhor fez comigo, para me livrar do opróbrio entre os homens." (N. do A.)
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que divulgar que Isabel foi protagonista de um fato tão importante? Pessoalmente, inclino-me pela segunda possibilidade. Embora Lucas tenha entrevistado muitas testemunhas presenciais da vida do Mestre alguns anos depois, ninguém poderia ter distorcido os fatos de forma tão lamentável. O escritor "sagrado" (?) simplesmente redigiu o evento da anunciação a Isabel como bem entendeu (não era a primeira vez), ou alguém o "influenciou" nessa redação. Automaticamente, me veio à cabeça o nome de Paulo de Tarso, inspirador do Evangelho de Lucas. Médico, natural da Antioquia, na região de Pisidia (atual Turquia), Lucas foi convertido ao recém-surgido cristianismo por volta do ano 47. Foi Paulo quem o atraiu para a nova religião. Haviam transcorrido
dezessete anos da morte do Mestre. A partir dessa conversão, Lucas seguiu Paulo, tomando notas de tudo quanto dizia. Depois da morte de "Saulo" (nome hebraico de Paulo), Lucas acabou se retirando para a região grega de Acaya. Ali, no ano 82, começou a escrever uma trilogia sobre Jesus. Só redigiu o evangelho citado e os Atos dos Apóstolos (não concluídos). Morreu no ano 90. Embora dispusesse de parte dos escritos de Marcos e de Mateus, Lucas, como eu dizia, fundamentou a "vida de Jesus" nas lembranças e impressões de Paulo. E eu me pergunto: a que lembranças se referia Paulo se nunca encontrou o Mestre? Naturalmente, podia tratar-se das "lembranças" de Pedro e de outros discípulos que Saulo e o próprio Lucas conheceram. Mas tentarei não desviar da questão essencial: Paulo influenciou na "versão" de Lucas, distorcendo o ocorrido? Se assim foi, por quê?
Os especialistas nos escritos do chamado "apóstolo dos gentios" estão de acordo sobre um ponto: Paulo foi um misógino. Sua antipatia pela mulher aparece refletida nas epístolas que lhe são atribuídas. Sentia aversão e um enorme desprezo pelo sexo feminino. Eis aqui algumas dessas "maravilhas" que dificilmente se ouviria hoje nas igrejas: "Bom é o homem não tocar a mulher... A mulher não é dona de seu próprio corpo: o marido é... Que a mulher não se separe do marido e, caso se separe, que não volte a se casar ou se reconcilie com o marido... Pois se santifica o marido infiel pela mulher e se santifica a mulher infiel pelo irmão... O tempo é curto. Só resta
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que os que têm mulher vivam como se não tivessem... A mulher está ligada por todo tempo de vida de seu marido... A cabeça de todo varão é Cristo, e a cabeça da mulher, o varão... Toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta
desonra sua cabeça: é como se estivesse raspada. Se a mulher não se cobre, que se raspe... O varão não deve cobrir a cabeça, porque é imagem e glória de Deus: mas a mulher é glória do varão, pois não procede o varão da mulher, mas sim a mulher do varão; nem foi o varão criado para a mulher, mas sim a mulher para o varão. Deve, pois, a mulher levar o sinal de submissão em respeito aos anjos... Como em todas as igrejas dos santos, que as mulheres se calem nas assembléias, porque não lhes cabe falar, e sim viver submissas, como diz a Lei. Quando querem aprender algo, que em casa perguntem a seu maridos, porque não é decoroso para a mulher falar na igreja" (primeira Carta aos Coríntios).
E o "santo" disse mais, segundo a Igreja Católica: "As casadas estão submissas aos seus maridos como ao Senhor; porque o marido é cabeça da mulher... E como a Igreja está submissa a Cristo, assim as mulheres a seus maridos em tudo..." (Epístola aos Efésios).
Não é preciso ser muito esperto para deduzir que, se o Evangelho de Lucas foi alimentado e dirigido por Paulo, o protagonismo de Isabel corria perigo. Uma mulher - sempre inferior ao varão, segundo Paulo -, recebendo a mensagem de um anjo de Deus? Isso era intolerável naquele tempo... Então mudaram.
E voltei a me perguntar: por que Lucas, isto é, Paulo, "aceita" que esse mesmo anjo se apresente diante de Maria, a mãe de Jesus? Só encontro uma resposta: porque convinha aos planos da Igreja nascente. Da Senhora, não se podia prescindir. De Isabel, personagem de segunda ou terceira categoria, sim. Contudo, na anunciação de Gabriel a Maria, percebe-se a mão de Paulo. Estranhamente, Lucas é o único evangelista que qualifica a Senhora de "virgem" (fala disso em três oportunidades). Os demais "escritores sagrados" não mencionam isso. [Mateus, em seu capítulo l, versículo 18, afirma que Maria concebeu antes de conviver com seu esposo (!).] E digo "estranhamente" porque também ali paira a sombra machista de
Saulo. Por razoes que ninguém se atreveu a colocar na mesa, Paulo não suportava as
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relações sexuais com mulheres. Na primeira epístola aos Coríntios, diz isso de forma mais ou menos explícita: "...Quisera que todos os homens fossem como eu [isto é, celibatários]; mas cada um tem de Deus sua própria graça... Não obstante, aos não casados e às viúvas, lhes digo que é melhor permanecer como eu... Estás livre de mulher? Não busca mulher. Se te casares, não peca; e se a donzela se casar, não peca; mas tereis assim de estar submetidos à atribulação da carne, que quisera eu poupar-vos... O celibatário cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor".
Se ele era ou não homossexual, não é esse o problema. O que é grave é que sua mente, doentia ou desequilibrada, possa ter influenciado outros (caso de Lucas) que, por sua vez, mudaram os fatos...
Como dizia o Mestre, quem tem ouvidos que ouça...
3. Se o que foi dito acima está correto - e eu acredito nisso -, a credibilidade de Lucas fica comprometida. O que o anjo manifesta a Zacarias foi dito a Isabel. Lucas, confuso ou pessimamente informado, cai em novos erros. Exemplo: ao ler o texto de Lucas, o leitor deduz que Zacarias elevou suas preces a Deus para conseguir descendência. Em um homem de 60 anos ou mais, tal pedido é inverossímil. Ao contrário, é bem plausível que ele rogasse por um sinal que esclarecesse suas dúvidas sobre o porquê da gravidez a que ele assistia.
4. Nem a pergunta de Zacarias - "E que sinal terei disto? Porque já sou velho..." - nem a resposta do anjo, condenando o sacerdote ao mutismo, se
sustentam. Se a visita de Gabriel a Zacarias tivesse ocorrido de fato, a própria presença seria mais do que suficiente. Duvido que o sacerdote formulasse uma pergunta tão estúpida. Quanto à represália do anjo, privando da fala seu interlocutor, só uma mente mesquinha ou pouco informada pode crer que Deus responde ao suposto mal com o mal. Já a pergunta de Zacarias no sonho tem lógica: "Sou velho... Poderei vê-lo?" O sacerdote se referia ao anúncio do "ser luminoso": Isabel daria à luz um filho que abriria caminho para o libertador espiritual dos homens. Zacarias pergunta, simplesmente, se terá tempo de ver tal maravilha.
Os filhos dos sacerdotes seguiam o caminho do pai. Ao chegar à idade canónica estabelecida pela lei (20 anos), o Sinédrio se reunia na sala
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das pedras talhadas e procedia ao exame da legitimidade de sua origem e do aspecto físico do aspirante. Essa era a norma, segundo Yavé (Êxodo e Levítico). Se o filho fosse considerado apto, ele era ordenado.
Quando Zacarias tem o sonho ou visão (fevereiro do ano 7 a.C.), não sabe o que acontecerá com esse menino, Yehohanan. E pensa ou imagina que ele será consagrado ao Templo de Yavé, como mais um sacerdote. Por isso faz a pergunta: "Poderei vê-lo?". Se tudo transcorresse normalmente, quando Yehohanan fosse admitido como sacerdote, ele teria oitenta anos. Longe demais...
Entretanto, Lucas esqueceu esse "detalhe" importante - ou, simplesmente, ajustou-se às exigências do "inventor" do cristianismo, o nefasto Paulo de Tarso (faz tempo que me nego a reconhecer a santidade de qualquer ser humano. Só ele é santo ou perfeito).
5. Além disso, ao relatar a suposta aparição de Gabriel a Zacarias, Lucas demonstra um escasso conhecimento das rígidas normas judaicas em matéria de liturgia. Não é certo que "o povo esperava Zacarias e estava surpreso por sua demora no templo". No turno que oficiava, Zacarias era apenas mais um sacerdote entre as centenas que formavam as sessões semanais. Tampouco era um sumo sacerdote, como se chegou a sugerir. Desempenhava seu trabalho por sorteio, e sempre em companhia de outros12. Nesse caso, ofereceu incenso e a mistura de perfumes no interior
O tamid (tratado sobre o "sacrifício cotidiano") estabelece o seguinte: "O encarregado (dos sacerdotes) lhes dizia: Vinde e tirai a sorte, para ver a quem cabia realizar a imolação, a quem aspergir o sangue, a quem limpar das cinzas o altar interior, a quem as do candelabro, a quem subir à rampa as porções sacrificiais: a cabeça e a perna (direita), as duas patas dianteiras, os traseiros e a perna (esquerda), o peito e o pescoço, os dois laterais, as entranhas, a farinha fina, as tortas e o vinho. Tiravam a sorte e cabia a quem coubesse". Em outras palavras, cada sacrifício religioso exigia cerca de trinta sacerdotes. Outros falam de cinqüenta e seis, distribuídos em vinte e sete serviços matutinos e em outros tantos vespertinos. Admitindo-se que cada trabalho exigisse um ou dois sacerdotes ajudantes, a cifra de congregados seria ainda maior. Com respeito à missão específica de oferecer o incenso e os perfumes, o citado tamid especifica que "ao subir as grades do pórtico (os sacerdotes encarregados do perfume), aqueles a quem coubera na sorte limpar da cinza o altar interior e o candelabro os precediam". E, ao oferendar o incenso, os que o rodeavam advertiam: "Tem cuidado,
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do Santo. Se tivesse demorado, como afirma o evangelista, os sacerdotes
ajudantes e os que se encontravam no Hekalo teriam advertido. Todos, no turno, dependiam de todos. E aqui surge outra objeção no relato de Lucas. Se Zacarias tivesse perdido a fala, ele jamais teria prosseguido no serviço litúrgico, como escreve o seguidor de Paulo. O Levítico (21, 116-24) é categórico nesse sentido: "Nenhum homem que tenha defeito corporal há de se aproximar [de Yavé13]". Sobre essas injustas disposições do Deus (?) de Moisés, os judeus tinham elaborado uma "lei" completa, e não menos injusta, com um total de 142 defeitos que incapacitavam para o serviço sacerdotal14. Um mudo, ainda que o fosse apenas temporariamente, não
não começa pela frente, não vai te queimar" (o perfume devia ser espalhado por todo o altar. Se começasse pela parte dianteira, corria o risco de queimar-se ao espargi-lo pela zona posterior). Zacarias, portanto, estava necessariamente acompanhado de outros sacerdotes quando ofereceu o incenso no templo. (N. do M.)
O Levítico diz textualmente: "Yavé falou a Moisés e disse: Fala a Aarão e dize-lhe: Nenhum de teus descendentes em qualquer de suas gerações, se tem um defeito corporal, poderá aproximar-se para oferecer o alimento de seu Deus; pois nenhum homem que tenha defeito corporal pode se aproximar: nem cego, nem coxo, nem disforme, nem monstruoso, nem o que tenha quebrado a mão ou o pé; nem corcunda, nem raquítico, nem doente dos olhos, nem o que padeça de sarna ou micose, nem o eunuco. Nenhum descendente de Aaráo que tenha defeito corporal pode aproximarse para oferecer os manjares que se abrasam em louvor de Yavé. Tem defeito: não se aproximará para oferecer o alimento de seu Deus...". (N. do A.) 14 O tratado "Bejorot" ou "Primogénitos" (capítulo sete) reúne algumas dessas incríveis disposições que incapacitavam um varão para o desempenho do cargo de sacerdote, em qualquer de suas funções. Não importava que o defeito fosse passageiro. Eis aqui parte dessa "lei": ter a cabeça deformada (em forma de martelo ou nabo, afundada
ou achatada), ser corcunda (havia divergências de opiniões entre os sábios), ser calvo (aquele que não tivesse nem um fio de cabelo que lhe cruzasse a cabeça de lado a lado, mas se tivesse - diziam -, era apto), o que não tivesse sobrancelhas ou só tivesse uma sobrancelha (outros falavam de sobrancelhas "penduradas"), o chato (para os judeus era aquele do qual se poderiam pintar os olhos sem a interrupção do nariz), se alguém tivesse os olhos muito em cima ou muito embaixo, se tivesse um olho alto e outro baixo, se visse simultaneamente o quarto e o piso de cima, se não suportasse a luz (albinismo), se tivesse membros pares desiguais (um olho preto e outro azul), se os olhos lacrimejassem, então, não seria apto. Se alguém tivesse perdido as pestanas também estaria desqualificado (por causa de sua aparência). Tampouco era apto o
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JJ. BENÍTEZ
poderia aproximar-se do Santo. Se tivesse ocorrido o "percalço" durante a oferenda do incenso, Zacarias teria sido substituído de imediato.
A minuciosidade e a obsessão doentia da lei por essas questões chegava ao extremo de não considerar apto para o culto aquele que tivesse uma polução (emissão involuntária de sémen durante o sono15). Neste caso, o sacerdote abandonava o Templo, e só recuperava a pureza no entardecer do dia seguinte. Portanto, um sacerdote com defeito jamais poderia ter "cumprido os dias de seu serviço", como assegura Lucas. Quando mui
que apresentava olhos grandes, como os de um bezerro, ou pequenos, como os de um ganso. Se um corpo fosse grande e desproporcional ou demasiado pequeno (anões) tampouco seria aceito. Os narigudos e os desorelhados, ou com orelhas amassadas (como esponjas) também eram rechaçados. Se o lábio superior sobressaísse do inferior e este,
por sua vez, sobressaísse sobre o superior, o candidato não poderia ser sacerdote. O que carecia de dentes também era considerado não apto. Se alguém tivesse os peitos pendurados, como uma mulher, ou o ventre inchado, ou o umbigo volumoso, se sofresse de epilepsia (mesmo que fosse apenas uma vez por ano), se padecesse de asma ou se os testículos ou o pênis fossem demasiado grandes, não seria apto. Se não tivesse testículos, se tivesse apenas um ou se os tinha "esmagados", tampouco seria aceito por Yavé. Assim reza no Levítico (21, 20): "Se alguém ao caminhar bate os calcanhares ou os joelhos, ou se tem uma protuberância no pé, ou se é zambo, tampouco é admitido (zambo é aquele cujos calcanhares se tocam mas cujos joelhos não podem se juntar). Qualquer defeito nos pés invalida. Se alguém tem um dedo a mais e o corta, caso tenha osso é inepto; caso contrário é apto. Se alguém tem um dedo a mais em cada pé e em cada mão, seis em cada, isto é, no total vinte e quatro, os sábios divergem em suas opiniões. Se alguém tem a pele negra, ou vermelha, ou albina, se é excessivamente alto ou anão, surdo-mudo, idiota, bêbado, ou se tem sinais de lepra, esses defeitos tornam inepto o homem, ainda que nos animais [para os sacrifícios a Yavé] não são invalidadores". A lista é tão exaustiva quanto interminável... (N. do M.)
15 A Misná (tamid), em seu capítulo primeiro, assim o especifica: "Os jovens sacerdotes deixavam seus colchonetes no chão. Não dormiam vestidos com as roupas sagradas, mas as tiravam, as dobravam e as punham debaixo de suas cabeças. Se um deles (na noite anterior ao culto) sofresse uma polução noturna, retirava-se e ia através de um passadiço circular debaixo do edifício do templo até o local da piscina da imersão... Descia e se imergia, depois se secava, voltava e ficava junto de seus irmãos sacerdotes até se abrirem as portas, avançava e partia [do Templo] [a emissão do sémen quebrava a pureza ritual]". (N. do M.)
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to, eles eram autorizados a permanecer no chamado átrio dos sacerdotes, nunca no Santo, e apenas durante a procissão dos salgueiros, na festa dos Tabernáculos. Como conta Josefo, tinham direito a um salário, mas não podiam vestir a túnica sacerdotal ou partir dos referidos atos de culto a Yavé. Em Antigüidades (XIV) relata-se como Antígono mutilou o sumo sacerdote Hircano II (século I antes de Cristo), arrancando-lhe as orelhas com os dentes. Dessa forma, incapacitou-o para as funções sacerdotais. Lucas e Paulo sabiam - ou deveriam saber - do rigor dos judeus quanto a isso e, no entanto, manipularam os fatos.
6. Aquilo que se observou até aqui invalida as demais afirmações do evangelista. Para mim, pouco ou nada é verossímil. Seu Evangelho, como terei oportunidade de ir demonstrando, é um engodo...
"E depois de alguns dias concebeu Isabel, sua mulher, que se ocultou durante cinco meses dizendo: Eis o que o Senhor fez comigo, para me livrar do opróbrio entre os homens".
Lucas delira.
A esterilidade (sempre feminina, segundo a Lei) era causa de vergonha pública, certamente. Mas não a maternidade. Se Isabel engravidou, acabando com a desonra e, desse modo, com a maldição de Yavé, por que se esconder durante cinco meses? Seria mais lógico que tratasse de divulgar sem demora que estava esperando um filho. E o mesmo se pode dizer do pai, mais afetado socialmente pela esterilidade do que a própria Isabel. Zacarias teria sido o primeiro a comunicar a boa-nova. Lucas e Paulo ouviram o galo cantar mas não sabiam onde...
Esses cinco meses misteriosos que o evangelista enxerta na narração foram
o tempo de silêncio que a mulher manteve, como já mencionei. No final de novembro, Isabel decide falar, e fala primeiro ao seu marido. Se decidiu guardar segredo foi por outra razão: a insólita "visita" de um "homem misterioso". Quem acreditaria nisso?
7. Maria, a mãe de Jesus, não permaneceu no "Manancial da Vinha" durante três meses, como afirma Lucas. A estada junto a Isabel foi de três semanas. Se a informação do evangelista estivesse correta, a Senhora teria presenciado o nascimento de Yehohanan, coisa que não ocorreu.
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O resto da passagem evangélica - anunciação de Jesus pelo anjo, visita de Maria à sua parente Isabel e nascimento do Anunciador - é outro amontoado de despropósitos. Como já mencionei oportunamente, Maria jamais conversou com o ser de luz. Limitou-se a ouvir, o que não é pouco. A mensagem de Gabriel foi diferente (radicalmente distinta). As saudações de Isabel e Maria, e vice-versa, quando a Senhora chegou à casa de sua prima em segundo grau, são pura invenção de Lucas ou de seu "inspirador", Paulo de Tarso. O célebre magnificai de Maria nunca existiu. Lucas, ou Paulo, inventou isso, inspirando-se em alguns textos bíblicos16, em especial no "cântico de Ana", mãe do profeta Samuel17 ("estéril" como Isabel), e nos salmos que são atribuídos a Davi. Estes últimos eram muito populares entre os judeus, que os conheciam de memória e os cantavam sem cessar. Paulo, como antigo fariseu, foi educado desde menino na recitação desses salmos. Portanto, sabia o que estava fazendo...
Naturalmente, o que Lucas relata sobre a imposição do nome a Yehohanan também foi inventado. Ninguém tratou de impô-lo a Zacarias. Não houve tabuletas nem o pai do Anunciador fez qualquer profecia. Foi tudo manipulado.
E tudo tão desastroso que não temos outro remédio a não ser nos perguntar: os Evangelhos têm alguma credibilidade? A julgar pelo que já tinha visto, muito pouca...
Prossigamos.
16 Ver Juizes (5, 24), Judit (13, 18), Livro Primeiro de Samuel (2, 1-10), Isaías (29, 19 e 61, 10), Habacuc (3, 18), Génese (12, 3-13, 15-22, 18 e 30, 13), Jó (12, 19) e Salmos (89, 11-103, 17 e 107, 9), entre outros. (N. do M.)
17 Segundo relata o Livro Primeiro de Samuel, Elcaná tinha duas mulheres: Ana e Peninná. A primeira não tinha filhos. Ana pediu a Yavé que lhe concedesse descendência. Segundo os judeus, ela era estéril. E Ana deu à luz um menino que chamou de Samuel ("solicitado a Deus"). Ana, como aconteceria mil anos depois com Isabel e Zacarias, também consagrou seu filho a Deus. Ana - segundo esse livro - compôs uma oração de agradecimento a Yavé. Esse texto foi outra das fontes inspiradoras de Lucas, o evangelista, provavelmente com uma finalidade didática ou teológica. A coincidência na esterilidade de Ana e na consagração do filho - imagino eu - foram determinantes na hora de inventar a saudação de Maria. (N. do M.)
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OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA ?
No final daquele mês de fevereiro do ano 7 a.C., Maria se despediu do "Manancial da Vinha" e voltou a Nazaré. Provavelmente, saiu mais animada. Yehohanan, segundo meu informante, veio ao mundo no dia 25 de março. Não houve nenhuma complicação no parto. Aos oito dias, como ordenava a lei, foi levado ao Templo para a circuncisão. Zacarias, como sacerdote, foi isentado do imposto dos primogénitos, determinado por Yavé no Pentateuco (se uma mulher, em seu primeiro parto, desse à luz um varão,
o pai teria de resgatá-lo mediante o pagamento de cinco siclos de prata ao Templo: em torno de vinte denários de prata. Se o pai fosse levita ou sacerdote, ou se a mãe fosse filha de sacerdote ou de levita, a criança não teria de ser resgatada).
Maria recebeu um aviso pontual do feliz acontecimento. E o menino cresceu normalmente na pequena granja, entre as ovelhas e o campo. No início ninguém percebeu nada de estranho. Quando Yehohanan começou a compreender as coisas, os pais - principalmente Isabel - trataram de informá-lo sobre quem era ele de fato. A mãe foi decisiva na mentalizaçáo precoce e inoportuna do menino: ele era um ser especial, anunciado por Yavé, que teria um papel muito importante na esperada materialização do reino de Deus na Terra. E o menino ouvia, ouvia...
Isabel também lhe falou de seu parente, Jesus de Belém, residente em Nazaré. Narrou a "visita" de Gabriel a Maria e explicou-lhe que aquele primo distante era o messias anunciado pelos profetas, o libertador de Israel. Isabel, convicta e feliz, foi desenhando o que ela considerava o futuro de Yehohanan: "arauto" e homem de confiança de Jesus, futuro rei dos judeus. Yehohanan seria um grande mestre espiritual e, ao mesmo tempo, um poderoso herói nacional. O pai, mais prudente, não interveio com tanto empenho nessa preparação, embora tenha tratado de levá-lo ao Templo. Yehohanan ficou muito impressionado com a liturgia e com os
sacrifícios de animais.
Em junho do ano l a.C., quando ele acabara de completar seis anos, Isabel viajou para Nazaré. Foi o primeiro encontro de Jesus com Yehohanan. O Galileu tinha cinco anos. E as mães voltaram a se debruçar sobre o "esplêndido futuro" de seus filhos. Foi outra "conferência" histó
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rica na qual Isabel e Maria se reconfortaram mutuamente, prometendose dias de grande felicidade. As conversas foram secretas. Pelo que pude averiguar com a Senhora, José manteve distância. Aquele planejamento das vidas dos meninos ainda pequenos não o agradava. O pai terreno do Mestre, como já mencionei oportunamente, não tinha tanta certeza sobre o suposto destino de seu primogénito como "libertador político e religioso" de seu país. Foi o único que acertou, mas não viveu para ver...
Nem tudo foram satisfações na família de Isabel e Zacarias. Um dia os pais compreenderam que Yehohanan não podia ser consagrado a Yavé, tal como havia ordenado o "homem luminoso". Os defeitos que já haviam reparado no rosto se tornaram mais visíveis. Aquilo o invalidava como sacerdote. O normal seria que o menino seguisse os passos do pai. Aos vinte anos deveria ser ordenado18. Essa era a idade reconhecida oficialmente para o início de qualquer atividade pública. Mas, como proceder à preparação da chegada de Messias se não tinha acesso ao sacerdócio?
Restava outro caminho...
E Zacarias, resignado, dirigiu-se à margem ocidental do mar Morto. Ali, em uma aldeia chamada En Gedi, existia um grupo de homens e mulheres consagrados a Yavé. O sacerdote negociou e Yehohanan foi aceito como nazir19. O "nazireato" foi estabelecido pelo próprio Yavé (Números 6, 1-21). Consistia em uma consagração - permanente ou temporária - ao
18 Uma vez aceito pelo sinédrio, o aspirante a sacerdote de Yavé era consagrado mediante um rito especial, tal como aparece no Êxodo (29) e no Levítico (8). Ao banho obrigatório de purificação seguia-se a entrega das vestimentas sagradas e ainda uma série de sacrifícios rituais. O novo sacerdote era roçado com sangue e suas mãos
recebiam certas porções da vítima sacrificada (rito de "encher as mãos"), assinalando assim seus deveres e privilégios. A unção, ao que parece, era destinada unicamente ao sumo sacerdote. A cerimónia tinha uma duração aproximada de uma semana. (N. do M.)
Nazir (da raiz hebraica nzr) (não confundir com notzri; habitante de Nazaré ou nazareno) significava "guardados" ou "reservados". Era um estilo de vida. O nazir não podia provar nenhum produto da vinha (uvas secas ou frescas, polpa ou casca, nem nada que estivesse misturado ou empapado em vinho). Assim foi estabelecido por Yavé e resumido em Números: "...não beberás vinho nem bebidas embriagantes, nem
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OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA ?
Todo-Poderoso. O nazir se comprometia a três votos solenes: não beber vinho, não cortar os cabelos e não entrar em contato com os mortos. O menino e a menina poderiam ser "separados" para Deus antes de seu nascimento (caso de Samuel, o profeta, do não menos célebre Sansáo [ver Juizes, 13] e do próprio Yehohanan).
A informação ajudou a esclarecer o motivo da longa cabeleira do Anunciador. Era o sinal visível que distinguia os nazir perpétuos. E creio que entendi, inclusive, a razão das sete tranças. Yehohanan, provavelmente, tinha imitado o penteado de Sansão, o herói que, como ele, tinha nascido de uma mulher estéril que também foi visitada por um estranho
vinagre de vinho, nem qualquer sumo de uvas...". Tratava-se, provavelmente, de uma reação contra os costumes dos cananeus, muito aficionados ao vinho... Além disso, o nazir tinha de manter os cabelos longos. Esse era outro sinal de santidade, segundo a Bíblia. A navalha era proibida. Nem ele nem seus
amigos ou familiares estavam autorizados a mexer na sua cabeça. Podia alisar com as mãos, jogar os cabelos para o lado ou prendê-los em tranças, mas não penteá-lo. Se o nazir bebesse vinho ou tocasse em um morto (voluntária ou involuntariamente), romperia o voto e deveria raspar a cabeça, recomeçando do zero. No caso de um "nazireato" temporário, o tempo mínimo para o voto era de trinta dias.
Por último, o nazir se contaminaria se entrasse em contato com o cadáver de uma pessoa. Não importava que fosse seu pai, sua mãe, irmãos, amigos ou desconhecidos. Mesmo que o pedaço de cadáver tivesse o tamanho de uma azeitona, o nazir ficaria impuro. Só havia uma exceção: se o nazir encontrasse o corpo no meio do caminho. "Se o morto jazia de forma natural - reza a Misná -, pode removê-lo, assim como a terra sobre a qual ele jaz."
No caso de quebra do voto, o nazir era obrigado a se apresentar diante dos sacerdotes e sacrificar três animais. As mulheres podiam ser nazir, mas seus votos estavam sujeitos à vontade do marido ou do pai. Eles tinham o poder de anulá-los. O mais freqüente era o voto temporário ou promessa. As pessoas se tornavam nazir por qualquer motivo: para obter a cura de alguém, para conseguir que um filho voltasse são e salvo de uma guerra ou de uma viagem, para obter um bom negócio etc. Às vezes, virava uma espécie de "esporte": apostava-se por qualquer coisa. ("Eu me torno um nazir - diziam - se aquele que estou vendo ao longe não é fulano de tal." Outros apostavam pelo contrário: "Serei nazir se não és fulano de tal.") Se o nazir temporário invalidasse o voto, teria de recomeçar. Se fosse uma mulher, o vinho ou o contato com um cadáver significavam quarenta açoites. Os pagãos não estavam sujeitos ao "nazireato", mas os escravos sim. (N. do M.)
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}.}. BENÍTEZ
personagem20, identificado na Bíblia como um "anjo de Yavé". Mas a confirmação dessa suspeita e de outros dados que foram surgindo posteriormente exigiriam uma conversa direta com o gigante. Um interrogatório sem intermediários. Tinha de encontrar a fórmula para chegar ao seu coração. Eram muitas as dúvidas que me assaltavam. Para dizer a verdade, não sabia nada sobre aquele singular vidente...
E aos catorze anos, Yehohanan se mudou para o sudeste do mar Morto. Na aldeia recebeu as primeiras instruções. Foi assim que começou a germinar nele seu grande objetivo: pregar a mudança, preparar o mundo para a chegada de outro, mais forte do que ele.
A escolha de Zacarias - consagrando seu filho como nazir - foi acertada. Nesse tempo, Yehohanan atingiu uma estatura pouco freqüente. Aos defeitos do rosto veio se somar a desproporção do corpo (aos 15 anos já media 1,90 m). O Templo de Jerusalém jamais o teria admitido como sacerdote. Entretanto, como nazir perpétuo, Yehohanan tinha direito não só de entrar no templo, como também de pisar o "Santo dos Santos", o lugar mais sagrado, e no qual, supostamente, residia a divindade. Só o sumo sacerdote desfrutava desse direito, e penetrava no "Santíssimo" uma vez por ano, no Yom Kippur (e diz a tradição judaica que fazia isso com medo e rapidamente). Yehohanan, segundo minhas informações, nunca fez uso desse privilégio.
Sua figura espetacular chamava a atenção do todos que o conheciam. E durante vários anos dedicou-se inteiramente a cuidar das ovelhas na granja de seus pais no "Manancial da Vinha". Crescia saudável,
20
No livro dos Juizes (13, 1-25) fala-se de Manóaj, da tribo de Dan, que tinha uma esposa estéril. Um homem, com o aspecto de um anjo de Deus, muito terrível, apresentou-se
diante da mulher e lhe disse: "Vais conceber e dar à luz um filho. Daqui por diante, não bebas vinho nem bebida fermentada e não comas nada impuro, porque o menino será um nazir de Deus desde o seio de sua mãe até o dia de sua morte". Em uma segunda aparição, o anjo ordenou à mulher e ao esposo que o menino não deveria provar nada que procedesse da vinha. A mulher deu à luz e o chamou de Sansão. Foi o herói que lutou contra os filisteus e de quem Dalila arrebatou a força depois de cortar as sete tranças de sua cabeleira. (N. do M.).
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embora - segundo Abner - as pessoas não compreendessem certos costumes do rapaz. Um dia, depois de uma das visitas usuais e regulares a En Gedi, Yehohanan despojou-se de suas vestes, e para surpresa das pessoas próximas e dos estranhos, decidiu vestir-se com um simples saq ou encacho. No inverno - mas nem sempre - cobria-se com um aba ou manto de pastor, confeccionado com peles de animais (geralmente cabras ou camelos). O pai tentou chamá-lo à razão: "Aquela nudez não era honesta nem recomendável". A aldeia, nas montanhas situadas a oeste de Jerusalém, atinge temperaturas extremas no inverno (inferiores a cinco ou dez graus abaixo de zero). Permanecer seminu nas colinas é um risco. Ninguém, na época, conseguiu entender a razão de uma atitude tão estranha. Foi inútil. Yehohanan não cedeu. Desde então, desde os 15 ou 16 anos, sempre se vestiu como um "selvagem", na opinião da maioria. Algum tempo mais tarde, quando este explorador conseguiu conquistar definitivamente sua confiança, Yehohanan me confessou seu "segredo"...
Mas vamos por partes.
Zacarias acertou também na pergunta formulada no "sonho": "Sou velho... Poderei vê-lo?" Chegaria a ver seu filho atuando como "arauto" do
messias?
Não, nunca chegou a ver... Zacarias faleceu em julho do ano 12 de nossa era, quando Yehohanan tinha dezoito anos. O sonho-profecia começava a se realizar...
Porém, só fui me conscientizar plenamente desse assunto instigante muito tempo depois. Foi Eliseu quem descobriu. A "visão" do sacerdote era mais que um "sonho".
A morte do pai foi um trauma para Yehohanan. A condição de nazir o impedia de tocar os mortos. Com isso, não pôde dar o último abraço no velho Zacarias. E o jovem, abatido, teve de assistir ao enterro a distância.
O desaparecimento de Zacarias trouxe consigo uma seqüência de imprevistos que condicionariam a vida do Anunciador. Como Zacarias era sacerdote, a família tinha direito a continuar recebendo o pagamen
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to correspondente21, uma espécie de pensão por viuvez. Entretanto, por razões que não consegui esclarecer, Yehohanan recusou essa compensação económica, e a renda familiar, pouco a pouco, foi minguando.
Doze meses após a morte de Zacarias, a viúva e o filho decidiram viajar para o norte. Fazia muito tempo que não viam Maria e o suposto Messias. Quando Yehohanan e Jesus se viram pela primeira vez - treze anos antes - ainda eram meninos.
21 Na época de Jesus, os sacerdotes recebiam os emolumentos a cada seis meses, coincidindo com o turno em que deviam oficiar. Em síntese, o dinheiro e a compensação em espécie procediam dos seguintes itens:
Produtos da terra
O pagamento do Templo de Jerusalém era feito em género ou no equivalente em dinheiro. Abarcava quatro conceitos que deviam ser separados na ordem estabelecida pela lei:
1. Primícias ou bkwrym. Compreendia as sete principais colheitas fixadas no Deuteronômio (8, 8): trigo, cevada, uvas, figos, romãs, azeitonas e mel. Organizavam-se longas procissões que levavam essas primícias de todos as regiões de Israel. Se a colheita procedia de zonas remotas, os produtos eram secos. Cada judeu depositava seu cesto junto ao altar, ao mesmo tempo que recitava uma passagem do Deuteronômio (26, 510). E os sacerdotes esfregavam as mãos. Todos os anos entravam no Templo centenas de toneladas de produtos...
2. Terumah. Era o pagamento simbólico, sempre em espécie, dos produtos mais selecionados das colheitas. O imposto equivalia à qdinquagésima parte dos rendimentos do cidadão. Embora a lei determinasse que a terumah só podia ser consumida pela classe sacerdotal, a trapaça e a corrupção convertiam a oferenda em outro atrativo "negócio".
3. Dízimo. Era o imposto religioso mais importante. Proporcionava milhares de siclos (um siclo equivalia a quatro denários de prata, aproximadamente). "Tudo o que serve de alimento e é cultivado e nasce da terra está submetido ao dízimo", reza a Misná. Contudo, o dízimo não se destinava "oficialmente" aos sacerdotes, mas sim aos levitas (ministros de segunda ordem). Uma décima parte desse imposto era recolhida pelos sacerdotes. Assim estabelecia Yavé. O que o Deus (?) do Sinai não estabelecia eram as corruptelas e os trambiques que se produziam em torno do dízimo e que, mais uma vez, acabavam beneficiando os sacerdotes. (O chamado "segundo dízimo" - outra décima parte dos rendimentos do proprietário que só era utilizada em
banquetes oficiais - não constituía um rendimento propriamente dito e, portanto, especialistas como Schurer não o consideram emolumento).
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O encontro foi um fracasso. "Meu primo - relatou Yehohanan a Abner - tinha dúvidas. Ele ouviu, mas, na hora de decidir, recuou, dizendo que a prioridade no momento eram as nossas famílias."
Imaginei o semblante do jovem Jesus, ouvindo o inflamado discurso do Anunciador: "É o tempo do novo reino... A cólera de Deus não espera mais... Roma e os ímpios têm de pagar... O país inteiro espera... Vamos seguir nosso rumo... Tu és o Messias, o Rei,... Eu estarei contigo..."
4. Oferenda da massa ou hallah. Afetava o trigo, a cevada, a espelta, a aveia e o centeio. A oferenda era feita não em farinha, mas sim em forma de massa. O cidadão trazia uma vigésima-quarta parte do total. Aos padeiros correspondia uma quadragésima parte.
Gado
Os sacerdotes recebiam também quantidades consideráveis procedentes do sacrifício dos animais. O dinheiro entrava em moeda sonante ou em espécie. Os emolumentos tinham a seguinte ordem:
1. Primogénito macho. A lei dizia que o primogénito macho do gado devia ser sacrificado e consumido em um banquete sagrado. A Tora fixou também a obrigação de "resgatar" os filhos primogénitos mediante o pagamento de imposto: cinco siclos. Os dois impostos iam diretamente para os bolsos dos sacerdotes. Em troca do "não-sacrifício do animal", o proprietário pagava. Em troca do "resgate" do filho (do
domínio de Yavé), o pai pagava. Um dono podia entregar o animal para ser sacrificado (touros, carneiros e cabritos). Se esse animal fosse puro - sem defeito -, os sacerdotes o sacrificavam no Templo. A carne era património exclusivo da casta sacerdotal e de suas mulheres (só podiam ser comidas em Jerusalém, segundo Yavé). Se o primogénito do gado fosse um animal impuro (especialmente asnos, camelos e cavalos), o proprietário pagava novamente, segundo critério dos sacerdotes (acrescentando um quinto; ver Números e Levítico). Essa carne e a dos animais puros, mas defeituosos, eram vendidas aos cidadãos, e ali o negócio se multiplicava. Somava-se a isso a venda, por baixo do pano, da carne pura...
2. Porções do animal sacrificado. Segundo reza o Deuteronômio (18, 3), os sacerdotes tinham direito a três porções de cada sacrifício: paleta, estômago e as duas queixadas. Tudo isso voltava a ser vendido "extra-oficialmente".
3. Tosquia. O novo imposto chegava a cinco sela (cerca de dez siclos), dependendo do número de ovelhas. Segundo a escola de Sammay, o imposto afetava o proprietário que dispunha de duas ovelhas ou mais. Hillel dizia que era a partir de cinco.
Sacrifícios
Também davam dinheiro (e muito). Os chamados "santíssimos" eram os mais
interessantes do ponto de vista económico. Conhecemos quatro modalidades:
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Isabel apoiou seu filho e estimulou Jesus a empreender a missão de libertador de seu povo. Maria, ao que parece, não se mostrou tão combativa e iludida como na "conferência" anterior. Não havia nada de estranho nisso. Poucos meses antes, a família tinha entrado em profunda crise em conseqüência da recusa de Jesus de fazer parte dos grupos de zelotes ou revolucionários que lutavam clandestinamente contra os kittim (romanos). Como já informei oportunamente, aquele acontecimento dividiu os vizinhos de Nazaré, e colocou Jesus e seus familiares em uma situação difícil. A Senhora não entendia a atitude e as idéias de seu Filho. Nem Isabel e muito menos Yehohanan.
1. Sacrifícios expiatórios.
2. Sacrifícios penitenciais.
Em ambos, só queimavam a gordura dos animais. A carne era propriedade dos sacerdotes. A venda, à margem da Lei, era comum. Tudo dependia do grau de corrupção.
3. Oferendas de grão. Acontecia exatamente o mesmo.
4. Pães da proposição. Os doze pães eram renovados em cada turno semanal. Os que eram retirados pertenciam aos sacerdotes (a metade cabia aos que encerravam o turno e o resto aos que estavam entrando).
Nesse capítulo incluíam-se outras formas "não santíssimas":
1. Sacrifícios de açáo de graças ou de comunhão. Os sacerdotes recebiam o peito e a paleta do animal. Eles podiam ser comidos fora do Templo, sempre em lugar puro, seja pelos sacerdotes ou por suas famílias. E surgia de novo a corrupção: a carne era vendida, às escondidas, a quem pagasse mais. Criava-se o paradoxo de o dono do animal sacrificado em açáo de graças acabar comprando parte dele.
2. Holocaustos. Os animais eram queimados totalmente. Só as peles davam
dinheiro aos sacerdotes. Seguindo Filón, "muito dinheiro".
Oferendas extraordinárias
Além do rio de dinheiro que representava tudo o que foi mencionado anteriormente, os sacerdotes recebiam outras rendas a título de sacrifícios privados ou ocasionais. Essas oferendas eram de vários tipos. Por exemplo, uma pessoa preocupada com uma doença própria ou alheia acorria ao Templo e oferecia a si mesma em troca da cura. Esse gesto significava dinheiro. Aquele que se "consagrava" tinha de pagar. E depois, para "ser resgatado" (quer a cura se produzisse ou não), os sacerdotes fixavam a "libertação" em cinqüenta siclos (duzentos denários de prata) para o do varão e em trinta para a mulher. O cidadão podia "consagrar" ao Templo um de seus escravos ou posses. Tudo tinha um preço.
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A informação passada pelo Anunciador ao seu segundo era correta, com exceção de um único detalhe: Jesus nunca "recuou", simplesmente porque jamais adotou o papel de libertador político-social-religioso-militar, como pretendiam seus familiares. Essa afirmação por parte de Yehohanan foi gratuita. Ele deu como assentado aquilo que as mães projetavam, mas nunca perguntou ao Mestre.
Jesus acabou não tendo outra saída a não ser refugiar-se no silêncio. Era a melhor para todos...
No caso do anátema (oferenda votiva sem possibilidade de "resgate"), a situação era mais delicada. O que fazia anátema oferecia a Yavé, sem mais. Em agradecimento (em troca de um favor recebido ou por qualquer outra razão de caráter pessoal), o indivíduo doava pessoas ou coisas (terras, casas etc.) a seu deus. Isto é, aos
sacerdotes. Esses bens passavam a fazer parte do património de famílias sacerdotais. Um grande negócio. Também a restituição do que foi roubado, ou adquirido ilicitamente, quando não existisse a possibilidade de devolução ao seu legítimo dono, passava ao clã sacerdotal.
Pecados
Se alguém imaginasse ter cometido uma falta, o caminho indicado pela lei era apresentarse no Templo e "lavar" o erro com o sacrifício correspondente. Em outras palavras: mais dinheiro. Como já mencionei, "curar" e "perdoar" os pecados eram a mesma coisa. Por isso Jesus de Nazaré era odiado pelos sacerdotes desde o primeiro instante de sua vida de pregação. Jesus perdoava os pecados (curava) sem cobrar. Isso era intolerável!
Diáspom
O montante do dinheiro procedente dos judeus que viviam fora de Israel é difícil de calcular. Essa foi, provavelmente, uma das fontes de renda mais importante naquele tempo. O dinheiro entrava diretamente no templo.
Impostos religiosos
Destinados "oficialmente" à manutenção do culto. O mais famoso era o didracma ou "meio siclo". Devia ser pago anualmente por todo varão judeu maior de 20 anos. Cada comunidade era responsável por cobrá-lo, quase sempre no mês de adar (fevereiromarço) e de enviar a arrecadação ao Templo. Chegava a mais de quatrocentos mil denários. A esse imposto somavam-se outros de menor valor, como o que era destinado à compra de lenha para o altar dos holocaustos.
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Segundo Abner, se Jesus tivesse aceitado a proposta de Yehohanan, a "campanha" do Anunciador, como certeza, teria começado ali mesmo, em Nazaré. Isabel estava até disposta a deixar a granja e se mudar para a pequena aldeia de sua prima em segundo grau, para colaborar no planejamento do trabalho de seu filho e do Messias.
Como eu disse, o encontro das famílias, desse ponto de vista, foi um completo fracasso. Então Isabel e o decepcionado Yehohanan retornaram ao "Manancial da Vinha". Jesus e o homem das pupilas vermelhas não voltariam a se ver por mais treze anos. Cada um seguiu seu Destino, como estava previsto.
A situação económica do Anunciador piorou. As ovelhas não rendiam o suficiente. Ainda assim, Isabel continuou estimulando o filho e traçando planos para o momento da "libertação". Segundo Abner, Yehohanan e sua mãe chegaram a levantar a possibilidade de prescindir de Jesus. Mas a dura realidade se impôs, e eles tiveram de adiar os ambiciosos planos religiosos. A ruína ameaçava a família, e dois anos depois da visita a Nazaré, quando Yehohanan tinha vinte anos, largaram tudo e partiram com o rebanho até a cidade vizinha de Hebron, ao sul, em território idumeu. O "sonho" de Zacarias, mais uma vez...
Começava assim uma nova etapa na vida do Anunciador. Uma etapa que se prolongaria por um período de onze anos...
Doações voluntárias
No Templo, na época do Mestre, havia treze cofres ou coletores nos quais se depositava todo tipo de moeda. Tinham as bocas em forma de trombeta para evitar roubos. A essas doações era preciso acrescentar o ouro, a prata, as madeiras nobres etc. presenteados por judeus e gentios. Era norma oferecer cachos de ouro para guarnecer a vinha de ouro situada na porta do Templo. Alexandre de Alexandria, por exemplo, doou o ouro e a prata necessários para banhar as portas do átrio externo, segundo
Josefo. Em suma, as rendas dos sacerdotes - por todos os conceitos - deviam superar os dez mil talentos por ano (um talento correspondia a 14.400 denários, mais de cento e quarenta milhões de dólares). (Ndo M.)
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I
Yehohanan adentrou então no deserto de Judá. Era o seu primeiro encontro verdadeiro com o deserto. Ali passou muito tempo com suas ovelhas, meditando sobre seu trabalho e o de seu primo distante. E foi nesses anos que intensificou o contato com "sua gente", os nazir de En Gedi, no extremo sudeste do mar Morto. Eles o acolheram, substituindo, em parte, sua mãe. Isabel permaneceu em Hebron, cada vez mais sozinha e decepcionada. Seu filho não conseguia cumprir o anunciado pelo "ser luminoso". E as visitas de Yehohanan a Hebron foram se tornando menos freqüentes.
Na comunidade dos nazir, teve oportunidade de consultar as Escrituras, e de indagar sobre aquilo que tanto o preocupava: as profecias e os principais textos sobre a chegada do "reino de Deus". Os profetas lhe davam razão: "Aproximavase o fim de uma era... Yavé exigia o ajuste de contas... Roma, sem dúvida, era a cabeça do ímpio... era preciso decapitá-la..."
Quanto a Jesus, suposto libertador, o novo e ansiado Rei, que deveria ocupar o trono de Davi, as ilusões de Yehohanan foram diminuindo perigosamente. Seu primo não dava sinais de vida. Não respondeu a nenhuma das mensagens. Nem sequer sabia se ele estava vivo.
O Anunciador - segundo seu confidente - preparou um plano. Agiria sem Jesus. Primeiro em Israel. Depois no resto do mundo. Chamaria a atenção de judeus e pagãos.
Todos teriam a mesma oportunidade. "Arrependei-vos!", esse seria o grito de guerra...
A morte súbita de Isabel afundou o projeto. Ocorreu no mês de elul (agosto) do ano 22 de nossa era, quando o homem de sete tranças contava 28 anos de idade. A mulher foi sepultada em Hebron antes que Yehohanan recebesse a notícia. Essa era a norma entre os nazir perpétuos.
O Anunciador foi à casa da mãe e, em outra reação inexplicável (nunca chegou a tocar no cadáver de Isabel), cortou os longos cabelos ruivos. Fazia então catorze anos que a navalha não raspava seu crânio. E os guardou (a lei estabelecia que, em caso de quebra do voto, o cabelo devia ser jogado no fogo).
Abner confirmou minhas suspeitas: a longa cabeleira foi usada por Yehohanan para tecer o xale ou tallih com que costumava se cobrir. O samaritano também não compreendeu o comportamento anormal...
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O rude e desconcertante Yehohanan quase não abriu a boca nos três dias em que permaneceu na casa onde Isabel vivera. Os parentes, perplexos, não sabiam o que fazer. Não comia nem bebia. "Só dava voltas e mais voltas em redor de um poço! De vez em quando exclamava: É tudo mentira."
Sem aviso prévio, tal como chegou, desapareceu do Hebron. Nunca mais voltou. Levou o gado até En Gedi e o doou à comunidade nazir.
Mandou avisos a Nazaré. Ninguém respondeu. Jesus, naquela época, estava ausente. Já não residia em Nazaré. Segundo minhas informações, estava imerso em sua primeira grande viagem, fora de Israel. Quanto ao silêncio da Senhora, eu nunca soube o motivo. Eu ainda lhe perguntaria...
E, sozinho, sem dar explicações a ninguém, certo dia Yehohanan deixou a comunidade e se retirou para o interior do deserto de Judá, outro lugar extremo, com altas
temperaturas durante o dia e quedas consideráveis à noite25.
Ali viveu qual um asceta, seminu como sempre, rezando e refletindo. Alimentava-se de carne de ovelha, gafanhotos (havia até seis tipos comestíveis), leite e, sobretudo, mel. Foi nessa época, durante os dois anos e meio em que viveu no deserto, que adotou o não menos insólito costume de "conviver" com uma colmeia. As abelhas o acompanhavam a toda parte. Não dava um passo sem elas. E me propus a desvendar mais um mistério. Por que o Anunciador sentia aquela afinidade doentia com esses insetos?
De vez em quando aparecia na aldeia dos nazir. Abastecia-se de provisões e tentava convencê-los da "proximidade do fim". Os discursos apocalípticos não tiveram muito êxito. Segundo Abner, os nazir gostavam dele, mas o consideravam apenas um menino grande. Sua forma de viver e de se vestir eram motivo de discussão. Onde ele chegava surgia a polêmica...
Nos barrancos de Mampis, Arad e Ziph, as temperaturas noturnas entre novembro e março podem cair a menos de cinco graus negativos. (N, do M.)
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E foi nesse longo período de tempo, nas bacias e barrancas do deserto de Judá, que testemunhou outros acontecimentos extraordinários. Abner guardou silêncio. Náo sei se cumpria ordens de seu líder ou, simplesmente, não falou porque ignorava o que ocorrera. "Acontecimentos extraordinários"? O que aconteceu no deserto nesses trinta meses?
Eu teria de falar diretamente com o Anunciador. Só ele poderia esclarecer (com sorte).
E as dúvidas continuavam a sufocá-lo... Deveria começar sem Jesus, o cada vez mais duvidoso Messias? Por que ele não respondia às mensagens? A que se devia aquele silêncio? Tinha se arrependido de sua excelsa missão como Ungido de Deus e legítimo herdeiro do trono de Davi? E o que seria dele, seu arauto e precursor? Quem era realmente o Messias? Jesus ou ele próprio? As profecias também falavam de Elias. O profeta precederia o libertador. Ele era Elias?
O que Abner escreveu não respondia a nenhuma dessas delicadas questões. Resignei-me. Havia outros meios de esclarecer as perguntas. Eu tentaria oportunamente...
Inexplicavelmente (pelo menos para mim), o Filho de Deus não respondeu às mensagens e aos pedidos de seu parente. Agora, depois de comprovar o que inicialmente era apenas uma suspeita, acho que posso entender a postura de meu amigo, o Galileu.
O Destino, mais uma vez...
Yehohanan, finalmente, tomou uma decisão. Inauguraria o "reino" sozinho. Iniciaria o trabalho como "anunciador da nova era" no vale do Jordão. E esperaria. Talvez Jesus, ao saber dele e de sua proclama, acabasse "despertando e encabeçando os exércitos do Justo". Caminharia em direção ao norte, até o yam. Seu objetivo era Nahum. As últimas notícias que tinha sobre Jesus e sua família davam conta de que agora residiam na costa norte do mar de Tiberíades.
No dia 3 de março desse ano de 25, depois de contemplar um eclipse total da lua, o gigante se pôs em marcha. Subiu o mar Morto pela margem ocidental e alcançou o rio Jordão. No "vau das Doze Pedras", iniciou os inflamados discursos e as não menos extravagantes cerimónias de
imersão. Ali conheceu Abner. Depois, lentamente, foram seguindo pelo vale até chegar ao lugar onde nos encontrávamos.
Há um mês decidira construir o guilgal - símbolo de seu poder - no "vau das Colunas". Sobre a etapa seguinte, ninguém sabia de nada. Só Yehohanan.
Era essa, em síntese, a pequena grande história de João ou Yehohanan, o Batista ou Anunciador. Uma história em que faltavam peças, com certeza. Tudo a seu tempo...
E eis que também chegou o momento da recuperação de meu companheiro. Eliseu estava forte e disposto. Os cuidados do bondoso e insubstituível Kesil foram decisivos. O que teríamos feito sem ele?
E marcamos a partida para o Ravid para o dia 11 ou 12 do mês de outubro. Kesil foi encarregado de negociar um carro para nos levar até a localidade de Migdal, na margem oeste do yam. Não quis arriscar. Faríamos a viagem da forma mais cómoda possível. Meu irmão precisava disso. E ambos percebemos uma sombra de tristeza no olhar do fiel criado. Conversamos com ele. O que podíamos fazer? Levá-lo conosco? Impossível. Teríamos de abandoná-lo ao subir ao porta-aviões...
E o Destino, como sempre, é que decidiria...
Dedicamos aqueles últimos dias no Yaboq a conversar com Abner e seu grupo, e a um terceiro objetivo..., muito mais "eletrizante": o misterioso bosque das acácias onde Yehohanan se embrenhava a cada dois ou três dias.
As pessoas continuavam fluindo. Todos os dias apareciam dezenas e dezenas de judeus e gentios, procedentes da Judéia, Peréia, Galiléia, Samaria e, principalmente, de Jerusalém. Outros partiam, mais ou menos convencidos do que haviam presenciado. As disputas estavam na ordem do dia. A maioria, como acho que já comentei, se
aproximava do vau por mera curiosidade e pelo afã de receber algum benefício: cura, golpe de sorte etc. Fora aqueles que, certamente, só pretendiam ganhar dinheiro graças ao Anunciador.
Foi numa dessas manhãs, enquanto assistíamos da cabana a mais um dos sermões de Yehohanan sobre a "iminente cólera de Yavé", que
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Eliseu, com suas perguntas, deu margem a um frutífero debate sobre o "espetáculo" que presenciávamos.
- Não consigo entender - reclamou -. Esse homem náo está em seu juízo perfeito...
- Não te precipites. Faltam-nos informações. Parece um louco, mas... Eliseu não me deixou concluir.
- Como podem acreditar em um "deus-espada"? O Messias não é assim.
- O Messias. A quem te referes?
Meu irmão observou Kesil com o rabo do olho. O homem, sentado a pouca distância, permanecia mudo e atento à conversa.
- Já sabes a quem... Ele não é um deus de fogo e vingança.
- Temo que tuas idéias continuem confusas. Deus (Yavé) náo é o Messias que pregam esses judeus. E ele, teu amigo, o Mestre, não é nem um nem outro. Ele não é o Yavé e tampouco o Messias.
- O Mestre não é - corrigiu a tempo -, não será o Messias? Neguei firmemente. Kesil, intrigado, esperou uma resposta. O criado, obviamente,
não sabia quem era o Mestre.
- Esse é um conceito erróneo, alimentado pelas religiões... E acrescentei:
- Sabes qual é a tradução de msyh (messias em árabe) ou hmsyh (em hebreu)?
O engenheiro, versado como eu em hebreu e aramaico, sabia a resposta. Mas insisti, tentando mostrar-lhe seu erro:
- "Messias", para os judeus, significa "Ungido", sempre em maiúscula. O "Ungido de Deus", aquele sobre o qual Yavé derramará seu azeite e sua bênção. Alguém que está por chegar. Alguém sagrado...
- O Mestre, evidentemente!
- Náo - repliquei com a mesma firmeza -. Se estudares os escritos judaicos, observarás que esse msyh tem outras características e propósitos. O "messias" histórico e tradicional de Israel, cantado em mais de quinhentas profecias e textos bíblicos, nada tem a ver com teu amigo...
Eliseu me encorajou a prosseguir.
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- Ajuda-me a refrescar a memória...
- Nesse povo, existem tantas interpretações messiânicas quanto indivíduos. Cada judeu tem seu Messias ideal. E o mesmo ocorre com cada seita ou movimento social ou religioso26. Entretanto, existe um denominador comum: o Messias significará a restauração de Israel como nação líder e soberana do mundo. O Messias judeu é isso: o "caminho" para a hegemonia definitiva de Israel. A cólera de Yavé -
dizem os videntes - chegou ao limite. Deus enviará o Messias para restabelecer a ordem e o reino. Será um intermediário, um rei da casa de Davi que derrotará os ímpios, especialmente Roma, e devolverá ao "povo eleito" seus direitos e seus préstimos. O Messias judeu será um guerreiro, um rei sábio e justiceiro, um sacerdote, um super-humano, um destruidor e, inclusive, um filho de Deus, conforme os grupos...
26 Entre as hairéseis ou "opções" messiânicas na época de Jesus, cada uma com suas variantes, podemos destacar as seguintes:
1. Sacerdotes e levitas: acreditavam em um Messias eminentemente religioso que, após a eliminação dos pagãos, tornaria possível a observância integral da lei e da pureza do culto.
2. Escribas e doutores da lei: faziam mil cabalas e combinações com os textos bíblicos e as profecias ou supostas profecias buscando detalhes que esclarecessem a chegada do Messias.
3. Saduceus: eram os mais reacionários. Náo acreditavam nos profetas. O Messias podia significar um sério risco à sua vantajosa relação económica com Roma.
4. Zelotes: viam com bons olhos um Messias político e libertador do domínio estrangeiro, em qualquer de suas modalidades. Lançaram-se à guerra de guerrilhas, preparando assim o caminho do futuro rei.
5. Essênios: acreditavam em um Messias triplo: profeta, rei e sacerdote.
6. Fariseus: o Messias ocuparia o trono vacante de Davi. A tendência era parecida com a dos sacerdotes. Após a fracassada rebelião Macabéia (167 a.C.), os "piedosos ou separados" prescindiram da idéia de um Messias humano que restituísse a velha glória de Israel e voltaram os olhos para Yavé, o único capaz de mudar o rumo da
nação. Yavé acabaria com os ímpios e restabeleceria o rigor e a pureza no culto.
A essas "opções", como as denomina Flavio Josefo, seria preciso acrescentar as dos apocalípticos, dos legalistas, dos helenizantes, dos ascetas e dos gnósticos, entre outros. (N. do M.)
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- A glória de Israel! - resumiu o engenheiro com precisão. - Tudo consiste nisso: poder, domínio, dinheiro e superioridade racial...
- Exato! Esse é o conceito tradicional judeu sobre o Messias, pelo menos o mais difundido. No princípio, há muitos séculos, com os primeiros profetas, a hegemonia da mão do Messias limitava-se a Israel. Uma vez destruídos os ímpios, Yavé, graças ao Ungido, restabeleceria a lei e o culto. Seria um reino de paz e alegria. Agora, essa concepção transcendeu as fronteiras. O Messias será o libertador de Israel e o rei e o juiz que controlará o mundo inteiro. Israel será o centro do universo. Tudo passará pelas suas mãos. A criação será removida. Um grande desastre precederá a chegada desse rei-juiz. E surgirá uma nova terra, mais bonita e pacífica, sempre sob o controle de Israel. Esse é o "reino de Deus" de que tanto falam e que, posteriormente, com o passar do tempo, serão tão pessimamente interpretados como o próprio conceito de Messias.
- Então, o "reino de Deus" não será uma invenção do Mestre...
- O "reino de Deus" ou os "dias do Messias" são conceitos muito antigos. Os judeus dizem que Yavé entregou seu povo aos gentios, temporariamente, por causa de seus pecados. Mas chegará o dia, muito próximo, segundo Yehohanan, em que os ímpios serão derrotados por esse Messias, e o próprio Deus assumirá o
comando e voltará a governar o mundo. Daí o nome de "reino de Deus". Em outras palavras: "reino de Deus" é igual a reinado de Israel sobre toda a criação. E quanto mais penosa é a situação dos judeus como povo, maior é a esperança na chegada desse personagem. Teu "amigo", como sabes, falará de um "reino" muito diferente. Essa será outra de suas geniais inovações.
Kesil, com os olhos arregalados, não disfarçava seu interesse, em especial por aquele enigmático Mestre. Porém, muito discreto, não abriu a boca. - Estão loucos! - bradou Eliseu. - Uma nova criação?
- É isso mesmo. Nesse "reino" todos viverão mil anos. Ninguém trabalhará. Ou melhor, os "náo-judeus" trabalharão para os judeus. E assim será durante seis mil anos, período estimado pelos rabinos para esse tempo de "paz".
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- Mil anos? E sem trabalhar!...
- Os profetas garantem que esses mil anos serão, na realidade, como mil dias. Não haverá velhos, mas sim crianças. Todos desfrutarão de saúde. Segundo Filon, "o segador trabalhará sem esforço e os partos ocorrerão sem dor".
A incredulidade nos rostos de Eliseu e Kesil foi crescendo.
- Estão loucos...
- Não, Eliseu, eles acreditam nisso. Em sua opinião, o mundo atual (wlm hzl) é controlado pelo Mal e por seus anjos, com a permissão de Yavé. Isso terá de mudar necessariamente. O novo "reino", o mundo futuro (wlm hb) será o contrário: o Bem e a Justiça. Mas para que se chegue ao "reino de Deus", o
mundo terá de ser demolido. Lembra: "O machado está na base da árvore...". Yehohanan está gritando o que foi escrito e o que fez suspirar gerações inteiras. O que vês agora é o reverso do divino. Será Deus, dizem, que destruirá esta velha ordem e restabelecerá o "reino" lá de cima. O Messias será seu arauto e a mão de ferro que sacudirá a Terra.
- E quando vamos parar de trabalhar? - perguntou o engenheiro brincando. - Porque, afinal de contas, nós estamos com eles...
Supus que ele se referisse aos Estados Unidos e às suas relações com o Estado de Israel. Não fiz o menor caso.
- A chegada do "reino", segundo as Escrituras (Os. 13 e Dn. 12), será precedida pelo pranto e pela calamidade. Serão as célebres "dores do parto do Messias", anunciadas pelos profetas. Essa aflição mundial também será precedida por sinais de todo tipo: o sol e a lua escurecerão, surgirão ginetes entre as nuvens e espadas brilhantes nos céus, as árvores destilarão sangue, as pedras gritarão, o sol iluminará a noite, os celeiros ficarão vazios, as águas doces se transformarão em salgadas, o mar arrasará a terra, o homem se levantará contra o homem, o pai contra o filho e o irmão contra o irmão...
Kesil, atemorizado, tapou os ouvidos, recusando-se a ouvir.
-Tens muita imaginação...
- Não sou eu que digo. Quem diz são os escritos rabínicos, o segundo livro dos Macabeus, as narrativas essênias, Flavio Josefo e Tácito entre outros. As referências e alusões ao desastre são mais de trezentas,
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segundo os judeus. Mas antes, como outro importante sinal, deverá surgir o profeta Elias.
- Elias? - retrucou meu companheiro com razão. - Mas ele não desapareceu em um "carro de fogo"27?
- Sim, isso foi há oitocentos e sessenta anos, aproximadamente. Assim como Moisés, nunca se soube onde ele foi sepultado.
E reza a tradição que retornará para preparar o caminho do Messias, arrumando a desordem e restabelecendo a paz. Outros, acenando com uma afirmação de Moisés, dizem que Elias chegará "para excluir do reino os que foram introduzidos à força e para admitir os que serão excluídos, também pela força". Ele dirá quem é impuro e, portanto, indigno de entrar no "reino de Deus". Os doutores da Lei, no entanto, não conseguem chegar a um acordo. Alguns asseguram que ungirá o Messias. Outros negam, afirmando que aparecerá para mudar os corações (Mat. 4) e, inclusive, para ressuscitar os mortos.
Fez-se um silêncio.
Eliseu e eu nos olhamos. Creio que pensamos a mesma coisa...
Será que o Anunciador se identificava com o profeta Elias?
- Arrependei-vos! - continuava clamando Yehohanan no vau. Nada escapará à ira de Deus!
Meu companheiro negou com a cabeça. Entendi: aquelas palavras tinham muito a ver com o Messias judeu, mas nada com a futura mensagem do Mestre.
27 No livro segundo dos Reis (capítulo 2), conta-se que o profeta Elias foi arrebatado nos céus por um estranho "carro de fogo com cavalos de fogo". Isso aconteceu no rio Jordão: "...Cinqüenta homens da comunidade dos profetas (possivelmente de Jerico ou da comarca) vieram e ficaram à frente, a certa
distância; eles dois (Elias e seu discípulo Eliseu) pararam junto ao Jordão. Elias tomou seu manto, enrolou-o e golpeou as águas, que se dividiram de um lado e de outro, e ambos passaram a pé no enxuto. Depois que passaram, disse Elias a Eliseu: Pede-me o que queres que faça por ti antes de ser arrebatado do teu lado. Disse Eliseu: Que eu tenha duas partes em teu espírito. Disse-lhe: Pedes uma coisa difícil; se conseguir me ver quando eu for levado de teu lado, o terás; do contrário, não o terás. Iam caminhando enquanto falavam, até que um carro de fogo com cavalos de fogo interpôs-se entre eles, e Elias subiu ao céu no redemoinho... E não foi mais visto". (N. do M.)
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- Depois - prossegui, tentando evitar o assunto da volta de Elias -, após essas guerras e catástrofes, será o tempo do Messias e do "reino".
- Em suma - interveio meu companheiro -, o conceito de Messias é muito anterior ao cristianismo...
- Nos escritos de Baruc, Esdras, nos antigos Oráculos Sibilinos, nas parábolas de Enoc, nos Salmos de Salomão etc., menciona-se um Messias que vencerá os ímpios. Os essênios também escreveram sobre isso. Lembra seus "chefes de militares" e a derrota que sofreram os "filhos das trevas", segundo o manuscrito da Guerra. Serão os futuros cristãos que se apropriarão do conceito judeu, modificando-o a seu critério. Esse Messias pré-cristão, como te digo, deverá ser humano, totalmente humano, descendente da casa de Davi (rei), e também sacerdote e profeta ou vidente. Os judeus o proclamam como um enviado de Deus, dotado de poderes extraordinários, capaz de milagres e de sanções maciças, justo, sábio e livre de pecado. Para alguns, é um "preexistente". Estaria sentado à direita de Deus, preparado
para atuar desde toda a eternidade.
- Um filho de Deus?
- De certo modo, sim. Como diz Enoc, um "Filho de Homem", mas, ao mesmo tempo, um deus.
- Nisso não estão errados...
- Sim e não. Teu "amigo" - dissimulei mais uma vez - é um homem e um Deus. Os judeus, no entanto, não compreendem que as duas naturezas, humana e divina, podem viver simultaneamente...
- E nós também não...
Assenti em silêncio. Aquele foi outro dos grandes mistérios para o qual não encontramos uma explicação racional. Porém, essa é uma outra questão.
- O Messias judeu (segundo as Escrituras) será um desafio para o mundo. As nações formarão uma aliança e lutarão contra Israel. Deus sairá vitorioso e a destruição das potências hostis será sua grande vingança...
- Que Absurdo! "Deus vitorioso"... "Deus vingativo". Desde quando Deus necessita da vitória? O Pai é um Deus da vingança?
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Eliseu conhecia meu pensamento. Não precisei responder. O Pai, de fato, não é o que afirmam os judeus. Não seria isso o que o Mestre ensinaria. E acrescentei:
- ...Mais absurda é a crença em um Messias destruidor de dentes. E citei a sentença de Enoc (livro primeiro 46, 4-6): "O Filho do
Homem" que expulsa os reis e poderosos de seus acampamentos, quebra os dentes dos pecadores e derruba os reis de seus reinos e tronos".
Jesus de Nazaré quebrando os dentes dos pecadores ou acorrentando os ímpios?
- Esqueceste de algo - disse Kesil timidamente -. Nós, os pobres, também temos uma razão para esperar o Messias...
Encorajei-o a continuar.
- ...Esse "reino de Deus" será um lugar sem impostos. Ele tinha razão.
O Messias judeu, em suma, não se enquadra no perfil do Mestre. Não era suficiente fazer uma revelação do Pai (um Deus "humano", muito diferente do colérico Yavé). O Messias tinha de ser alguém que estabelecesse o "reino" (a superioridade de Israel). Por isso, os seus não o compreenderam. Por isso a Senhora e os íntimos, os apóstolos, viveram em uma permanente confusão. Jesus não foi um rei, tampouco um sacerdote ou um guerreiro. Por isso, seus compatriotas o rechaçaram, como fizeram com outros28. E continuam esperando esse suposto libertador. Até o século XX, entretanto, não tinha chegado, segundo os rabinos...
28 Entre os numerosos falsos messias destacaram-se três. Foram capazes de mobilizar milhares de pessoas. Um deles apareceu no ano 35 de nossa era (cinco anos depois da morte do Mestre). Ele já foi mencionado neste diário. Tratava-se de um samaritano, um kuteo, que disse saber onde estavam enterrados os vasos sagrados de Moisés. Convocou o povo ao monte Gerizím. Pôncio dissolveu a multidão, provocando uma carnificina. O incidente implicou em uma nova denúncia contra o célebre governante, que teve de viajar para Roma para prestar contas.
O segundo "messias" chamava-se Teudas (44 a 46 d.C). Ele também convenceu milhares de judeus (Antigüidades, XX, 5). Conduziu-os ao rio
Jordão e prometeu separar as águas, como fizera Josué com a arca da Aliança e, posteriormente, o profeta Elias. O fracasso foi estrondoso. Fado, procurador romano, enviou um destacamento
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E por essa razão que não gosto das palavras "Cristo", versão grega de "messias" ("Kkrístos" ou "Ungido") e "Jesus Cristo". Já as utilizei. Agora, não mais. Ele não foi Khrístos. Foi muito mais29.
E ao concluir-se a filípica, voltou a se repetir a cena que eu havia presenciado de dentro do rio no meu primeiro "encontro" com o homem das sete tranças. O povo, os maqueiros e os enfermos pressionaram, provocando o caos. Yehohanan se viu obrigado a fugir novamente, e entrou correndo pela orla das acácias.
O Destino me alertou. O bosque verde e vermelho... Eu tinha de descobrir o "segredo" das acácias. Ou não existia "segredo"?
Abner e os discípulos do Anunciador acabaram voltando para junto da sófora. Decidi visitá-los, numa tentativa inútil de animar o grupo. Estavam desolados. Conviviam há meses com Yehohanan, mas não entendiam sua maneira de agir. Por que aparecia e desaparecia? Por que não permitia que o acompanhassem? Por que não se separava daquela odiosa e temida colmeia? Por que era tão rude?
Lamentaram-se, discutiram e, naturalmente, não chegaram a nenhuma conclusão. Não compreendiam suas medidas de segurança, em
de cavalaria e matou muita gente. Teudas foi preso e decapitado. A cabeça foi levada a Jerusalém. Yehohanan, em outras circunstâncias, sofreu o mesmo castigo. Lucas, o evangelista, fala igualmente de um falso profeta -Teudas -, mas não se tem certeza se é o mesmo a que se refere Josefo (ver Atos dos Apóstolos 5,
36). O terceiro "messias" foi um egípcio. Assim narra Flavio Josefo em seus livros Antigüidades (XVIII e XX) e Guerras (II). O falso profeta reuniu mais de seis mil homens, mulheres e crianças no deserto. Dali levou-os para o monte das Oliveiras. Prometeu que faria cair as muralhas de Jerusalém. Foi entre os anos 52 e 60 depois de Cristo. Obviamente, as muralhas continuaram no mesmo lugar... A esses "messias" caberia acrescentar Judas da Galiléia, Simão da Peréia (escravo de Herodes), Atronges (pastor da Judéia), Menahemo (neto de Judas, o Galileu) e Bar Coqueba, entre outros (N. do M.)
A confusão das religiões, particularmente da Igreja Católica, chega ao extremo de celebrar a festa de "Cristo Rei". Essa festividade foi instituída pelo papa Pio XI em 1925 para celebrar "a realeza messiânica de Jesus". Como se disse, Jesus não foi "Cristo" (messias), nem rei. (N. do M.)
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bora admitissem a possibilidade de serem espionados pelos esbirros de Herodes Antipas, dos sacerdotes, da casta saducéia de Roma. Havia ali centenas de pessoas. Qualquer uma poderia ser informante.
E por que aquela obsessão com o mel? Por que era preciso consumilo a toda hora, como ordenava o gigante? Por que fazer a pregação quando ele não estava, se quase sempre acabava em fracasso...
O pior é que Yehohanan não admitia opiniões diferentes das suas. Sua verdade era inegociável. Ninguém podia criticá-la, nem criticá-lo. Interpretava tudo à sua maneira, excluindo o que não seguia sua linha apocalíptica. Era cabeça dura, autoritário, egocêntrico, dramático quando lhe convinha, arrogante, sem tato, frio e calculista,
sem o menor senso de humor, e incapaz de sorrir.
Seus homens se sentiam ridículos, às vezes. Por que escrever frases de seus sermões nas vasilhas que balouçavam sob a sófora? Na realidade, como fui descobrindo, eram expressões extraídas dos textos bíblicos (sobretudo de Isaías, Daniel, Samuel e Elias, seu favorito): "Ouve o rei, filho de Davi"... "Cinge-o de força para que destrua os ímpios"... "O espírito de Yavé fala por mim"... "Com vara de ferro os aniquilarei!"... "As nações ímpias serão destruídas com o sopro de sua boca"... "Quem como eu?"
Ao egocentrismo somava-se um profundo narcisismo, alimentado um dia por Isabel, sua mãe. E comecei a imaginar algo pior... A colmeia, os óstracos pendurados nos galhos, o xale sobre a cabeça, as "meditações" ao redor da árvore e todos os outros comportamentos singulares podiam ser manifestações de um transtorno mental. Mas não quis me precipitar.
Por que Yehohanan escolhia tão minuciosamente os lugares onde acampavam? Por que inspecionava nos mínimos detalhes os vaus onde procedia à cerimónia de imersão? Esse outro costume estranho também perturbava seus homens. Segundo Abner, ele "só pregava em águas golpeadas ou mananciais30". Antes de se assentar em uma paragem, ela a percor
30 A rigorosa lei de Moisés estabelecia uma ordem até mesmo entre as águas que serviam para a purificação ritual. O tratado miqwaot é esclarecedor nesse sentido (miqwaof. banhos pelos quais alguém obtém a purificação ou libertação de algum tipo de impureza). As águas, segundo esse tratado, eram qualificadas em seis ordens
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ria e tentava averiguar que eventos bíblicos tinham se registrado no trecho de rio em questão. Se não houvesse nenhum, ele simplesmente inventava, como foi o caso da luta de Jacó com o "anjo". Em encontros posteriores confirmei a versão do segundo...
Apesar de tudo, Abner e o grupo gostavam dele. Era seu ídolo. E mais: Yehohanan não era o precursor ou anunciador do futuro Messias. Para aqueles "arautos" ele era o autêntico libertador, embora ninguém se atrevesse a manifestar isso em sua presença. Outro mais forte que Yehohanan? Isso era impossível ou, na melhor das hipóteses, tratava-se apenas de um recurso oratório do Anunciador. E comecei a intuir que Alguém como o Mestre não seria bem recebido por aqueles homens simples (apenas varões, naturalmente).
Não me enganei... Eles o seguiriam até o fim do mundo. Seriam testemunhos da chegada do "reino de Deus" e ocupariam os postos de honra junto ao novo e indiscutível rei: Yehohanan. Ninguém podia detê-los. As multidões acorriam sem cessar. O êxito do gigante das pupilas vermelhas era inquestionável. Quem arrebataria sua glória?
(de menor a maior pureza): cisterna, charco, piscina de banhos rituais, fonte, águas golpeadas e mananciais. Para ser "pura", a piscina tinha de contar com um mínimo de quarenta seãs (em torno de 656 litros). Entendiam por águas "golpeadas" as salgadas ou termais, como menciona o "Pará", outro tratado da Misná. As "golpeadas" não eram potáveis. Também não serviam as chamadas "águas enganosas" ou intermitentes (as que "enganam ou deixam de fluir pelo menos uma vez a cada sete anos"; se desaparecessem por causa da guerra ou de uma seca, então eram "puras"). Os mananciais ou águas vivas eram as mais "puras". Nelas podiam submergir os homens que sofriam de blenorréia. Com esse tipo de águas realizava-se a aspersão dos leprosos. Tudo era previsto pelos meticulosos judeus: desde a condução da água
(para não torná-la impura) até as coisas ou objetos que podiam aderir à pele de quem se banhava, passando pelos líquidos que mudam a cor da água. Nem todos os rios serviam. O Jordão, por exemplo, ou o Yarmuck, no norte do vale, não eram "puros" (arrastavam lama: águas inservíveis para a purificação). Já os afluentes eram puros, desde que suas águas corressem. O mesmo ocorria com os arroios (era autorizada a imersão, independentemente do volume ou caudal das águas). Qualquer mar era considerado "piscina de imersão", pois está escrito: "À congregação das águas chamou de mares" (Génese l, 10). (N. do M.)
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Abner advertiu em várias oportunidades: "Ninguém pode substituir o enviado por Deus".
Eu tremi... O que aconteceria quando o Mestre se lançasse abertamente pelos caminhos? Seria possível que os dois grupos participassem do mesmo projeto? Dois líderes?
Verdadeiramente, o Destino "sabe"... Agora entendo porque fomos parar no "vau das Colunas". Era preciso que avançássemos também nisto. Nada é casual.
No dia 9 de outubro, terça-feira, decidi testar a sorte. Yehohanan não havia regressado. Falei com meu companheiro e ele concordou. Tínhamos de tirar as dúvidas. Que diabos fazia o Anunciador no bosque das acácias? Eliseu me esperaria.
E antes do alvorecer, de maneira discreta e silenciosa, procurando não ser visto, cruzei o vau e alcancei a margem direita do Yaboq. Minha intenção era simples: localizá-lo e averiguar por que desaparecia na mata fechada de acácias, rícinos e salvadoras. Sabia que era proibido segui-lo, mas mesmo assim
decidi me arriscar. Não queria voltar ao módulo com essa dúvida. Algo me dizia que a "visita" ao outro lado do afluente era de extrema importância...
Aguardei o dia clarear.
Tive sorte. Ninguém percebeu minha manobra. Explorei a mata com os olhos e, lentamente, com o auxílio da "vara de Moisés" fui ganhando terreno entre o emaranhado de ramos. Não descobri nenhum caminho. Aquela zona do Yaboq era selvagem e improdutiva. As acácias, armadas com milhares de espinhos de até dez centímetros de extensão, amarfinadas e impiedosas, eram uma barreira excelente. Só um louco se atreveria a penetrar naquele território. Os frutos, ligeiramente curvados, encontravam-se em plena estação. Centenas de pássaros disputavam as copas, agitando as flores vermelhas e amarelas em seus vôos. O amanhecer despertou as crias, e o trinar das passer (andorinha do Jordão), dos tordos, dos ferreiros e dos pedreiros solitários despediu o silêncio, condenando-o ao ocaso.
Quando já tinha caminhado cerca de quinhentos metros, parei. Para onde devia conduzir meus passos? A mata parecia não ter fim... Então eu o vi.
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J.). BENÍTEZ
Ou melhor, ouvi. Era sua voz. Eu tinha certeza. Soava muito próxima.
Instintivamente, tratei de me esconder atrás de um dos troncos. Dado o caráter rude e tosco do Anunciador, minha presença podia ser pouco agradável. Tinha de ser cauteloso.
Era como uma oração... Deduzi que estava sozinho, mas não tinha certeza. Com quem ele estava falando? Avancei devagar e descobri uma pequena clareira. Yehohanan, sentado em uma árvore caída, manipulava o interior de uma tigela de
barro. De fato, ele estava sozinho.
- ...Porque assim fala Yavé... Não acabará a farinha na cântara, nem o azeite na talha até que Deus...
Quando tentei me aproximar um pouco mais, um ramo se quebrou debaixo da minha sandália e alertou o homem das pupilas vermelhas. Abriguei-me atrás dos troncos e prendi a respiração. Se ele me descobrisse, o que eu iria lhe dizer?
O Anunciador interrompeu a prece e se levantou, olhando para o trecho do bosque onde eu tentava me esconder. Foram alguns segundos intermináveis. Finalmente, esquecendo o ruído, voltou ao que estava fazendo. Introduziu a mão esquerda na tigela e tirou um punhado de farinha.
- Não acabará a farinha na cântara...
Inspecionou o interior do recipiente e depositou a farinha que estava na palma de sua mão em uma segunda tigela. Depois repetiu a operação e a ladainha. E toda a farinha foi transferida.
Então interrompeu a oração monótona. Olhou de novo no interior da cântara onde antes havia farinha e de repente começou a gemer e a choramingar. Era um choro amargo que, sinceramente, me apertou o coração. O que estava acontecendo com ele?
E, tão subitamente como irromperam, as lágrimas secaram. O Anunciador ficou de pé e começou a andar ao redor do tronco caído. E o ouvi sussurrar:
- É tudo mentira...
Assim permaneceu um bom tempo, dando voltas em torno da árvore e repetindo sem cessar o enigmático "é tudo mentira".
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Depois voltou ao centro do tronco. Sentou-se novamente e começou a extração da farinha, depositando-a na cântara que fora esvaziada na primeira operação.
- ...Porque assim fala Yavé... Não acabará a farinha na tigela... Não se esgotará o azeite na talha até o dia em que Deus conceder a chuva sobre a Terra.
Aquela era uma passagem do livro primeiro dos Reis. Mas o da farinha... Não podia ser... e rechacei a idéia.
Yehohanan continuou o trabalho, esvaziando o recipiente e enchendo a segunda tigela. A cada punhado repetia a ladainha.
Sentei no chão, certamente derrotado. E aquela idéia levantada pelo engenheiro ganhou força.
Concluída a passagem da farinha, o Anunciador mais uma vez olhou para a cântara vazia e irrompeu em outro choro, mais escandaloso ainda.
Eu estava quase indo embora. Mas ainda não tinha visto tudo...
Encerrado o desconsolado pranto, o homem da longa cabeleira ruiva voltou a repetir os passos ao redor do tronco, ao mesmo tempo que lamentava sem cessar:
- É tudo mentira...
A cena se prolongou por várias horas, com uma única mudança. Ao notar que o sol se despregava das acácias, Yehohanan pegou o talith de cabelo e se cobriu. E as suspeitas iniciais foram se confirmando. Aquele homem era vítima de um desequilíbrio mental...
A clareira era um acampamento ou refúgio improvisado. Deduzi isso em vista dos poucos utensílios de que o Anunciador dispunha. Junto às
cântaras, vi o barril-colméia, sempre à mão. Ao redor do tronco caído, Yehohanan dispusera outro círculo ou guilgal, mas com ramos de acácia. A mochila branca descansava junto às tigelas de barro.
A que se devia esse isolamento? No início, confuso, não consegui encontrar uma explicação. Depois, pouco a pouco, a triste realidade se impôs...
Por volta da hora sexta (meio-dia), Yehohanan abandonou o cansativo processo de passar a farinha de uma cântara a outra e saiu do círculo de ramos. Permaneci atento e oculto.
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JJ. BENÍTEZ
Voltou a urinar pela quinta ou sexta vez e foi em direção às árvores mais altas. Embora o xale o cobrisse quase por completo, pareceu-me que inspecionava a ramagem. O que estava procurando?
Tentei encontrar alguma coisa diferente na copa da acácia. Só vi pássaros, uma alegre e incansável colónia de ferreiros, com plumagens tingidas de azul, preto, branco e amarelo. Entravam e saíam da árvore. Os machos retornavam com larvas e insetos para alimentar uma prole com o bico sempre aberto. Aspasser, mais numerosas, brigavam para conquistar a ramagem, aproximando-se velozes. As fêmeas dos ferreiros, no entanto, tão zelosas e combativas como as andorinhas, não permitiam. E aspasser, sufocadas, acabavam trançando os ninhos em forma de pêra nas acácias próximas.
Yehohanan, então, começou a trepar pelo troco. O que pretendia? Subia devagar, calculando cada movimento. Os pássaros, assustados, voaram em fuga. O homem, muito ágil, alcançou os ramos e logo se deteve. Ali continuou por um longo tempo, absolutamente imóvel.
Não consegui entender, não sabia o que o guiava. Pensei nas crias. Será que tentava capturá-las. Para quê? Estaria com fome?
Continuou ganhando cada palmo, lenta e silenciosamente, como um réptil. Como conseguiu desviar daquele emaranhado de espinhos? Não faço idéia, mas ele conseguiu. E foi se sentar muito perto de um dos ninhos de ferreiros.
Os pássaros, tão assombrados quanto este explorador, pousaram perto dali, trinando desesperados, agitando as asas e mostrando as cores vivas ao "invasor", em uma inútil tentativa de assustá-lo.
Mudei de árvore e me aproximei. O rosto, no entanto, continuava oculto. Mas foi por pouco tempo... Yehohanan, de súbito, retirou o talih e deixouo cair sobre os ombros. Fechou os olhos. A luz certamente o incomodava. Depois aproximou o rosto de um dos ramos e pôs a boca na altura do ninho onde piavam insistentes quatro ou cinco minúsculas crias peladas.
Os ferreiros continuavam protestando da ramagem. Obviamente, nenhum se atreveu a saltar sobre o ninho. E este que escreve assistiu a uma outra cena que nem sei como descrever...
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Yehohanan separou os lábios e por algum tempo ficou imitando as crias, piando. Acho que empalideci. E assim continuou agachado sobre a acácia, abrindo a boca de forma ritmada e reproduzindo, à sua maneira, o lamento angustiante dos passarinhos famintos.
Eu não sabia se ria ou se chorava...
Mas a representação não parou aí. O Anunciador, já cansado, parou a mímica e, sem separar o rosto do ramo, exclamou:
- Pão para a manhã!... Pão! Pão? A quem ele pedia pão?
Meus temores se intensificaram... E Yehohanan repetiu:
- Pão para a manhã!... Pão para a manhã!
Os ferreiros, ao ouvir o som, abandonaram os ramos e se afastaram para os karus (acácias) mais próximos.
- Pão!... - insistiu, ao mesmo tempo que levantava a mão esquerda mostrando a "tatuagem" -. Pão para a manha!... Sou do Eterno!
Não tinha dúvida. Yehohanan falava com os ferreiros... Pretendia que o alimentassem! Ensinava-lhes o "sinal" que tinha na palma da mão.
A cena patética me lembrou alguma coisa, mas nesses instantes críticos, confuso e entristecido, não atinei. Os pedidos de "pão para a manhã" se sucederam durante muito tempo. Calculei duas ou três horas. Finalmente, esgotado, Yehohanan adormeceu no alto da acácia.
Foi o suficiente. Ao voltar para junto de Eliseu e Kesil, meu coração estava apertado. De fato, o Anunciador padecia de um grave transtorno. Eu tinha de explorar mais a fundo essa estranha personagem. Mas como?
O Destino previra minuciosamente...
Só meu companheiro tomou conhecimento do que presenciei do outro lado do vau. Não disse nada. Ele tinha advertido. A história, no entanto, voltou a mentir. Yehohanan não era um santo, como garantem as religiões. Era um desequilibrado.
Mas eu preciso me conter. Cada coisa na sua hora...
O dia seguinte também foi difícil. Assim como acontecia com o Mestre, eu
também não gosto de despedidas. No adeus se morre um pouco. E foi isso que fizemos: nos despedimos de todos.
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j.j. BENÍTEZ
Os discípulos lamentaram e insistiram para que eu transmitisse a mensagem de seu ídolo a Jesus de Nazaré. Yehohanan não apareceu. Eu aproveitei as circunstâncias para dar um pequeno presente ao sempre bondoso Abner, o "homemsorte". Devia muito a ele.
Passei às suas mãos uma das pequenas ampolas de barro da "farmácia" de campanha. Era tintura de arnica, muito apropriada para aliviar os problemas dentais que o consumiam. Bastariam dois enxágues para diminuir a piorreia. Não acabaria com a inflamação e o sangramento das gengivas, mas, pelo menos, reduziria as dores por algum tempo.
A Belsa e Nakebos, ainda prostrados e debilitados, dei uma dose de antibiótico para cada um. A infecção intestinal parecia ceder. A medicação não alteraria o ciclo natural, mas era o mínimo que eu podia fazer.
Os dois se mostraram tristes com a nossa partida. Mal tínhamos conversado. Nem eles e nem este que escreve sabíamos, nesse momento, que ainda voltaríamos a nos encontrar.
Mas o pior foi Kesil, o amigo carinhoso e prestativo, mais que um serviçal. Tinha se afeiçoado a nós, principalmente ao engenheiro. Na véspera da partida, ele se esmerou. Preparou uma sopa deliciosa ao estilo de Damiya, espessa, de cor âmbar, com tenros e suculentos pedaços de carneiro e barbo frito, polvilhado com pimenta e cominho moído. Quase não falou.
Na manhã seguinte, com lágrimas nos olhos, perguntou só uma vez: "Eu poderia ir com vocês? Trabalho pela metade do preço".
Eliseu, emocionado, baixou os olhos. Recusei a oferta e repeti o que ele já sabia: éramos viajantes incansáveis. Agora estávamos em Damiya, amanhã em Migdal, depois, talvez, em Nahum. Seu lugar era no vale, junto com sua família.
Nós o abraçamos e entramos no carro que nos levaria para o norte, até a cidade de Migdal, na margem ocidental àoyam. Ele nos acenou com o braço. Nossa aventura no "vau das Colunas" havia terminado. O Ravid nos aguardava e, em seguida, o Mestre...
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DE 11 A 17 DE OUTUBRO
O Mestre?
Náo tínhamos a menor idéia de onde estava. Será que voltara a Nahum? Ou prosseguia aquela viagem misteriosa a Jerusalém? A verdade é que fazia vinte e três dias que não O víamos, e sentíamos a sua falta.
A idéia de alugar o carro e o sais, o condutor, foi muito boa. Eliseu viajou descansado e, além disso, nos poupamos de possíveis inconvenientes.
Passamos a noite na conhecida pousada de Yardena e no dia seguinte, sexta-feira, chegamos a Migdal. Dispensamos o carro e devagar, sem nenhuma pressa, subimos ao "porta-aviões".
Tudo transcorreu bem, "de primeira classe". Náo houve nenhum imprevisto. Reforçamos as provisões na plantação vizinha onde residia Gamar, o velho beduíno, e ingressamos na nave.
Papai Noel mantinha os sistemas de forma impecável. O trabalho de
inspeção foi mínimo e rotineiro. E nos dias que se seguiram me ocupei de Eliseu e da preparação das etapas imediatas e hipotéticas. Hipotéticas porque, para dizer a verdade, estávamos no vácuo. Não sabíamos de nada. Ignorávamos os planos de Jesus. O Destino era imprevisível. Melhor assim... Agora, ao ordenar estas memórias, me surpreendo mais uma vez. Nós, cientistas, acabamos por confiar no Destino. Poucos acreditarão. O que importa? Eu sei que tinha razão. E isto basta. Aprendi tarde, mas aprendi: na vida convém ouvir os sussurros da intuição. A lógica e a razão são mensageiras. E apenas isso.
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Como temia, o exame feito em meu irmão deu positivo. Eliseu foi vítima de uma salmonella typhimurium, uma variante da salmonelose, muito comum em homens e animais. A contagem de leucócitos estava praticamente normal, embora a eosinofilia (formação e acumulação de um número excessivo de células eosinófilas no sangue) recordava a grave infecção parasitária. As culturas de urina e fezes confirmaram isso.
Por sorte, o engenheiro se recuperou. Aqueles dias angustiantes no "vau das Colunas" foram uma má lembrança. E eu prometi a mim mesmo algo muito difícil de cumprir: seríamos mais rigorosos no consumo de líquidos e alimentos. A agitada dinâmica do dia-a-dia nos obrigaria a desistir...
Como eu dizia, não sabíamos de nada sobre o futuro imediato. No entanto, teimoso como uma mula, me empenhei em planejar (?) os passos seguintes. Eliseu riu, com razão.
A primeira coisa seria o alojamento. Procuraríamos um abrigo em Nahum, se possível, nas proximidades da "casa das flores". O mais provável é que o Galileu tivesse
voltado da Cidade Santa. Tínhamos de ficar perto dele e não voltar a perdê-lo.
- E se ele não voltou? O que faremos, major, se teu amigo não estiver em Nahum?
Preferi ignorar as dúvidas sensatas de Eliseu. Desta vez ele estava enganado. Eu tinha certeza... Ou era o meu desejo de reencontrar o Mestre? Depois de instalados em Nahum, nós decidiríamos.
E "ela" me voltou à mente. Fazia parte dos planos? Naturalmente que não. Esse sentimento não era viável. Estava proibido. Eu tinha de descartá-lo. E concentrei-me no objetivo seguinte, não menos vago: Yehohanan. Estudei e me documentei quanto pude, confirmando algumas suspeitas. Outras continuavam no ar, dependendo de uma informação mais exaustiva.
As "pupilas" vermelhas eram, de fato, conseqüência do albinismo ocular. Trata-se de uma condição hereditária que afeta os olhos, em particular, o pigmento chamado de melanina. O mais provável é que o "defeito" procedesse do cromossomo X, transmitido pela mãe (nettleschip-falis). Não conhecemos Isabel e, portanto, não posso saber se ela apresentava a mesma pigmentação colorida na região posterior dos olhos. Embora fosse portadora do cromosso
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mo falho, ela não sofreria necessariamente do mesmo albinismo ocular. Sua visão podia ser normal. No filho, porém, a julgar por minhas observações, a visão parecia afetada pelo nistagmo ou movimento involuntário dos olhos, pela fotofobia (sensibilidade à luz) e por uma bastante provável diminuição da acuidade visual. Isso explicaria o talih sobre a cabeça, a aparição do Anunciador nas primeiras horas do
dia, quando a luz solar ainda é fraca, e o fato de ele não ter me visto claramente quando eu estava atrás da pilastra de pedra no meio do rio Yaboq1. Por isso não me reconheceu nos encontros posteriores, no guilgal e na cabana? Era provável. Por isso, talvez, não percebeu minha presença no bosque das acácias. Quem sabe...
Pensei em um segundo encontro. Seria útil e esclarecedor.
Eliseu riu de mim mais uma vez. Já não bastara a experiência no "vau das Colunas"?
Fiquei quieto. Tinha um outro assunto mais delicado que o albinismo ocular e suas seqüelas. Ninguém, nos raros testemunhos escritos que se conservaram sobre o Batista, fala de um possível distúrbio psíquico2. Era compreensível. Como já disse, nenhum dos evangelistas se atreveria a
A fóvea (fossa no centro da retina) proporciona a acuidade visual. Quando ela é alterada - caso do albinismo ocular -, essa acuidade diminui, o olho é afetado pela luz e não pode processar as imagens agudas ou muito luminosas. No albinismo ocular, os nervos que se dirigem ao cérebro não seguem o "caminho natural". Entretanto, para confirmar essa anomalia, teríamos de submeter o Anunciador a um exame específico (visually evokedfotential), obviamente, algo muito pouco plausível. (N. do M.) 2 À parte os Evangelhos canónicos - de pouca credibilidade, como pude demonstrar ao longo deste diário -, o único testemunho mais ou menos confiável é do historiador judeu romanizado Flavio Josefo (ver seu livro Antiguidades dos judeus, XVIII). Nesse texto, menciona-se Yehohanan, embora as razoes de sua prisão não coincidam com as dos evangelistas. Para Josefo foi um problema político. A alusão ao Batista, no entanto, é de origem duvidosa. Para autores como Herrmann seria uma interpolação posterior, "fabricada" pelos cristãos. Outros cristãos, como Bilde e Méier, têm uma opinião contrária. Do meu modesto ponto de vista, tendo a
compartilhar a opinião de Herrmann. As 172 palavras gregas que integram o suposto testemunho de Josefo sobre o Anunciador poderiam corresponder a uma versão medieval dessa obra, como ocorreu na chamada "versão eslava" (russa, na realidade) de A guerra judaica, também de Flavio Josefo. (N. do M.)
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estragar a imagem de um homem que, supostamente "abriu caminho para o Mestre". Só João Zebedeu conheceu-o pessoalmente. Seu testemunho, no entanto, não esclarece esse pormenor. Além disso, como exporei oportunamente, as palavras de João, o evangelista, sobre Yehohanan tampouco se ajustam à verdade.
E comecei a amadurecer um plano. Os nemos dissipariam as dúvidas. Para isso, eu teria de me aproximar de novo do Anunciador. O problema era quando...
Não disse nada. Estudaria o projeto minuciosamente. Depois, se surgisse uma oportunidade, comentaria com meu companheiro e tomaríamos uma decisão. Entendi que Yehohanan também fazia parte dos objetivos em que estávamos envolvidos. Convinha esclarecer as dúvidas, incluindo o possível distúrbio mental do gigante.
E comecei a trabalhar, centrando-me na preparação dos nemos, cuja descrição (na medida do possível) deixarei para mais adiante, e nos capítulos que julguei úteis para este hipotético segundo encontro com o rude homem das "pupilas" vermelhas. Deixei-me levar pela intuição e dediquei um tempo especial ao mundo das abelhas. O instinto me advertiu. Podia ser importante...
Assim transcorreram aqueles dias de relativo descanso. Papai Noel, mais uma vez, foi vital. Encontrei tudo o que precisava no seu riquíssimo banco de dados.
Desta vez não houve sobressaltos. A avaria no sistema ECS não se repetiu. Nesse momento, insisto, não percebi um detalhe: só eu manejei o computador central. Eliseu ficou à margem...
Como não me dei conta?
E fixamos a descida a Nahum para o amanhecer de quinta-feira, 18 de outubro do ano 25.
Nos dois últimos dias em Ravid, notei um comportamento estranho no engenheiro. Falava pouco. Achei-o nervoso e insociável. Como já ocorrera no "vau das Colunas", preferia a solidão. Afastava-se do módulo e caminhava até os restos da muralha romana. Ali permanecia horas, cabisbaixo e com o semblante grave. Aproximei-me em duas ocasiões, tentando
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saber o que o preocupava. Foi inútil. Não consegui que se abrisse. Ele me contemplava com os olhos tristes e perdidos e acabava se esquivando Eu não sabia o que dizer nem o que fazer. Cheguei a pensar em um novo transtorno, em consequência do mal que nos afligia e que, por enquanto, parecia respeitarnos.
Nunca aprenderei...
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I
18 DE OUTUBRO, QUINTA-FEIRA
O sol apareceu às 5 horas, 38 minutos e 55 segundos.
A estação meteorológica do "berço" avisou. Os barómetros registradores e de mercúrio baixaram sensivelmente, apontando para os 995 milibares. O "ceilômetro" e os sferic confirmaram a possível alteração atmosférica. Uma frente nublada de cem quilômetros aproximava-se pelo noroeste. Velocidade: quinze nós. Base dos cúmulos-nimbos: 34 (3.400 metros). A partir do meio-dia, o costumeiro maarabit (vento do oeste) aceleraria a marcha dos "cb". A chuva poderia apresentar-se na zona, em questão de horas. Tínhamos de agir com rapidez. Convinha chegar a Nahum o quanto antes possível. Fizemos isso.
Mais ou menos por volta da hora tercia (nove da manhã), Eliseu e este que escreve nos aproximamos da "cidade de Jesus". Notei como meu coração acelerava. Novamente perto do Mestre...
O lago se revestia agora de outra cor. A superfície, azul e prateada, mudara para o branco e o vermelho púrpura, quase violeta. A explicação devia-se às milhares de aves aquáticas, recém-chegadas do norte, em especial dos pântanos do Hule. Descansavam e se alimentavam no mar de Tiberíades, retomando o vôo na direção das ensolaradas terras da África tropical, no final de outubro. A garça púrpura e o pelicano eram as famílias dominantes. Estes últimos, sobretudo, eram um problema para os esforçados pescadores do yam. Mesmo que a permanência não fosse muito longa, aquelas massas brancas, que formavam "ilhas" no
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centro do lago, tornavam-se um sério obstáculo para a navegação em geral e para os trabalhos de pesca em particular. Os galileus tentavam espantálos, utilizando todo tipo de recursos, incluindo o fogo e os venenos. Mas os pelicanos, enormes e barulhentos, limitavam-se a trocar de lugar. Essa situação incómoda era suportada
duas vezes por ano: entre março e abril, quando se dirigiam para o norte, e agora nos meses de setembro e outubro, em sua habitual emigração para o sul. A essas aves havia que se somar outras colónias de patos multicoloridos e também escandalosos, como várias espécies de mergulhões, todos excelentes pescadores. O mergulhão de crista, assim chamado pela franja extravagante que tem sobre a cabeça, era o mais abundante e ativo. Mergulhava sem cessar nas águas e pescava todo tipo de peixe. Sua gula era tal que, às vezes, acabava preso nas redes, com a conseqüente contrariedade dos proprietários dos artefatos. No final do verão, juntavamse também as inevitáveis carniceiras, gaivotas oriundas do que hoje conhecemos como Europa. Chegamos a estimar a população de inverno em mais de dez mil exemplares. Eliseu classificou-as em quatro espécies: prateada (a maior), negra, pequena e sobretudo, a dos lagos, que constituía oitenta por cento. As aves ajudavam os pescadores, assinalando a posição dos bandos de tilápias. Em abril desapareciam e voltavam ao Mediterrâneo.
Foi outro impulso... Ao passar diante da taberna de Nabú, o sírio, parei. Se desejássemos começar com pé direito aquela nova etapa em Nahum, por que não esclarecer a situação desde o primeiro momento? O engenheiro estava de acordo e entramos decididos. A minha intenção era simples: enfrentar o indivíduo violento e explicar-lhe que não éramos ladroes. A sacola de borracha que roubamos do Kuteo, o falso caolho de barba tingida de vermelho, era de nossa propriedade.
O local se encontrava vazio. Nabú, de costas, mexia em algo do outro lado do balcão. Aproximamo-nos em silêncio. Prudentemente, coloquei a mão direita na ponta da vara. Ao menor sinal de violência, ativaria os ultrassons. Não foi necessário. Ao virar e nos ver, o sírio empalideceu. Suponho que era a última coisa que esperava encontrar naquela manhã.
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}.}. BENÍTEZ
Secou as mãos no avental imundo e encarou-nos de cima a baixo. Não lhe dei escolha. Falei e, com voz firme, expus o que não tivemos oportunidade de esclarecer da outra vez, quando nos atacou com o facão. Escutou perplexo. O argumento principal - o ladrão era o samaritano - levou-o a refletir. O Kuteo, Nabú sabia isso bem, era um vigarista e um boa-vida. Além disso, que ladrão se apresenta no lugar do roubo para esclarecer as dúvidas sobre honra se é verdadeiramente o culpado?
O sírio, inteligente, deixou de lado as desavenças e concordou. Esqueceríamos o assunto, desde que continuássemos freqüentando o seu "honrado estabelecimento". Prometemos isso, embora, para dizer a verdade, não tivéssemos a menor intenção de voltar àquele antro. O olhar atravessado e o sorriso forçado não me agradaram. Era preciso permanecermos atentos...
Antes que ele tivesse tempo de colocar sobre a madeira negra do balcão um par de jarras com a "especialidade" da casa - a schechar ou cerveja de painço (e urina) -, demos meia-volta e desaparecemos na agitação do cardo maximus, a rua principal de Nahum.
O objetivo seguinte foi menos trabalhoso do que supúnhamos. Os comerciantes nos orientaram. Lá mesmo, um pouco mais abaixo, na direção do cais, alugavam-se quartos. O edifício, ainda em construção, erguia-se a pouca distância da "casa das flores", a casa de propriedade do Mestre. Para ser mais exato, cerca de cinqüenta metros, na mão contrária. A coincidência nos animou. A proximidade poderia ser importante.
Tratava-se de uma ínsula, um bloco de casas populares de três andares. A moda das insulae ou "ilhas", como já mencionei em outra ocasião, tinha chegado também da
velha Roma. A falta de espaço obrigara os construtores a construir "para o alto", descobrindo assim um bom negócio. No império todo foi surgindo esse tipo de "colmeias", habitadas, na sua maioria, pelas famílias de menos posses.
Neste caso, como dizia, o bloco de "apartamentos" dispunha de três andares. O último encontrava-se ainda sem terminar. As paredes eram uma armação de madeira que ia sendo preenchida com pedras e argamassa. Era outra das exceções da Nahum negra, onde as casas dispunham de um só andar, erguidas quase sempre com pedra basáltica. Andaimes precá
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rios, trançados com tábuas e varas, escondiam parte da fachada. Na parte de baixo havia pequenas lojas, similares às tabernas que vira na Cesaréia. Eram as instalações mais caras, chegando algumas a custar duzentos denários por ano. Ali se alojavam comerciantes, banqueiros, cambistas, vendedores de plantas medicinais, fabricantes de móveis, padeiros, exportadores e importadores em geral. Em algumas ocasiões, os engenhosos vendedores formavam "empresas ou cooperativas" e ofereciam ao público os mais variados produtos (algo similar ao que hoje conhecemos por "supermercados"). Na parte superior dessas tabernas, em estreitos e sufocantes sótãos de madeira, viviam os familiares do comerciante em questão.
Um judeu velho e encurvado disse ser o responsável pela ínsula. Convidou-nos a entrar e a inspecionar os quartos disponíveis. Uma escada interna levava aos andares superiores. O "porteiro" procurou entre as longas e pesadas chaves de ferro que pendiam do cinto e, queixando-se do peso do molho de chaves, abriu uma das portas do primeiro andar. O quarto, de acordo com o ancião, era um "luxo". Devia ter uns vinte metros quadrados. Uma cama rústica era toda a
mobília. Eliseu e eu nos olhamos. Se não havia outra solução...
O homem escancarou uma janela dupla de madeira e mostrou o exterior. A luz se encarregou de revelar o único "luxo" do lugar: umas paredes cobertas com estuque e decoradas com pinturas quase infantis. Em cada uma das paredes laterais tinham sido pintadas - com mais vontade do que engenho - duas janelas, com todo tipo de colunas e enfeites exagerados, que visavam "alargar" o quarto.
Cheguei perto e comprovei que não havia visão do Ravid. Não importava. Um dos motivos do aluguel era dispor de um lugar do qual pudéssemos vigiar o "porta-aviões" com um mínimo de conforto. Se ocorresse um novo defeito no "berço", o computador central avisaria, projetando um facho de luz para o alto ("olho de ciclope").
Continuamos olhando. Os operários que trabalhavam na parte superior cruzavam-se na escada estreita, carregando água, madeiras e ferramentas. Quase todas as portas do segundo andar estavam abertas. Algumas crianças, curiosas, surgiam ao longo do corredor. Na parte de trás se
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ouviam as vozes das senhoras, ocupadas com seus afazeres. De muitas moradias, além de gritos e músicas cantaroladas, escapavam alguns cheiros, típicos das insulae, que denunciavam o "cardápio" de cada família.
Também não nos interessou. A visibilidade não era boa e o "porteiro", resmungando, nos conduziu ao último andar. Dali sim via-se o Ravid. Era mais barato. Nas insulae, o preço dos quartos diminuía com a altura.
Escolhemos três. Dois davam para o oeste, para o "porta-aviões". O
terceiro era de quina e oferecia um ótimo panorama sobre o yam e, o que era mais importante, sobre os terraços e parte do pátio a céu aberto da casa do Galileu. Daquela terceira moradia seria possível vigiar os movimentos da família.
O lugar - ou melhor, a localização - me pareceu excelente. Havia outras insulae. Era questão de continuar procurando. No entanto, depois de pensar muito, nos decidimos pela "ilha" do Taqa. Desse modo chamavam o "porteiro", porque acertava tudo com um aperto de mãos. Além do mais, era o dono de boa parte do imóvel e de algumas lojas do térreo. Como teríamos oportunidade de comprovar nos dias seguintes, as outras insulae de Nahum eram muito parecidas. Ou seja: o conforto era mínimo. Não importava. Estávamos acostumados. O importante era Ele. Era vital permanecer o mais próximo possível e durante o máximo de tempo. Esse era nosso trabalho.
A intuição me ajudou. Podíamos ter-nos contentado com uma ou duas moradias. Escolhi três. Em princípio, como disse, por sua situação estratégica e depois, pouco depois, o Destino prepararia das suas. E haveria outra surpresa...
Taqa regateou, choramingou, maldisse sua sorte e, finalmente, fechou o trato. Doze denários ao mês. Consideramos que era um bom preço.
Os quartos escolhidos, contíguos, eram 39, 40 e 41. Como os quarenta e oito que formavam a comunidade, apresentavam o número correspondente pintado de forma rudimentar sobre as respectivas madeiras das portas. Não havia regras, contratos ou normas. As únicas leis respeitadas eram as do dinheiro e as do medo. Quanto mais baixo na ínsula, mais respeitado. Os inquilinos do primeiro andar pagavam cerca
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de vinte denários por um quarto simples. O aluguel de uma loja ou
"taberna", como falei, podia alcançar duzentos denários de prata, dependendo da área e dos artigos vendidos. Não era a mesma coisa uma loja de amuletos contra o mau olhado e uma padaria. Quanto mais exótica fosse a mercadoria, mais alto o aluguel.
O "porteiro" deu-nos as incómodas chaves e, depois que ficamos sozinhos, procedemos uma nova inspeção.
O 39, tão pequeno quanto os outros (apenas vinte metros quadrados), dispunha de um beliche triplo, colocado junto à parede da esquerda. Esse tipo de cama, "impuro"1 para os ortodoxos ou legalistas judeus, fazia furor também no império. Os inventores, ao que parece, foram os bárbaros do norte. A questão é que, por baixo do pano, muitos judeus, mais interessados na rentabilidade de seus negócios do que em Deus, colocavam essas estruturas de dois ou três lugares, tornando mais atraente o aluguel dos quartos. Não dispondo dessas "camas revolucionárias", as famílias viam-se na necessidade de descansar no chão. Os fundos ou estrados eram também de tábuas. Teríamos de comprar alguns edredons.
Isso era tudo. No centro do quarto havia sido feita uma cavidade de uns quarenta centímetros de diâmetro e pouco mais de quinze de profundidade que servia de "estufa" e lareira. O buraco se enchia com madeira ou carvão. No inverno, quando só ficavam as brasas, tapava-se com um reci
1 As leis judaicas em seus meandros declaravam impuro um homem que, voluntária ou involuntariamente, tivesse uma ejaculação, não considerando a quantidade de sémen vertido. No caso de um beliche, se o indivíduo dormisse em qualquer das camas superiores, poderia contaminar aquele que se encontrasse debaixo. Se quem dormisse nesse tipo de cama fosse uma mulher, a situação se complicava. A menstruação - segundo o tratado nidá - tornava impura uma mulher durante sete dias. Nesse período de tempo ficavam proibidas as relações conjugais. Qualquer
pessoa ou objeto que fossem manchados por uma mulher menstruada ficava contaminado também. "Se três mulheres tivessem dormido em uma mesma cama - diz a Misná -, e fosse encontrado sangue debaixo delas, todas seriam consideradas impuras". Os beliches, para os judeus muito religiosos, "eram uma invenção de Satanás". As mulheres, sobretudo, estavam terminantemente proibidas de dormir neles. O povo, no entanto, não dava muita atenção a tal regra. (N. do M.)
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piente ou com uma tábua, o que mantinha o recinto relativamente quente. O sistema era tão asfixiante quanto perigoso, e obrigava a manter as janelas abertas. Um par de nichos nas paredes, com os respectivos candeeiros ou lamparinas de óleo, completavam a "decoração". Se quiséssemos limpar-nos era preciso ir às tabernas e comprar o que fosse necessário. Esse foi o conselho de Taqa, que nos recomendou sua própria loja, como era de esperar...
O quarto 40 era praticamente igual. O beliche, de dois lugares, estragado pelas traças, encontrava-se em estado duvidoso.
Quanto ao terceiro, o 41, ligeiramente maior, estava totalmente vazio. Se pretendêssemos mobiliá-lo, seria preciso comprar ou alugar os objetos, passando, é claro, pelas garras do judeu ou as de seus capangas. Não tínhamos alternativa. Era assim o negócio das insulae. Lá, como já disse, tudo estava sujeito à lei do denário. Se precisássemos de água, os aquarii ou vendedores de água estavam às nossas ordens. Cada viagem (dois cântaros) supunha um as2. Caso o "contrato" fosse por uma jornada completa (três viagens), o preço seria mantido em dois ases. A mesma coisa acontecia com a lavagem da roupa ou o fornecimento de comida. Se estivesse disponível o dinheiro necessário, não havia problema. Cada grémio disputava os
clientes. No cardo, a rua principal, uns e outros iam e vinham, apregoando aos gritos seus serviços e excelências. Havia, inclusive, "especialistas" no transporte de excrementos. Pagando-se subiam às moradias, esvaziavam os recipientes destinados a tais necessidades e, munidos de uma argola de madeira ou de metal, transportavam as fezes em grandes baldes. A argola citada ajudava a manter longe das pernas os referidos baldes fedorentos. Para os pobres, esses luxos eram impensáveis. Cada família se organizava para carregar a água necessária, transportandoa dos poços ou fontes mais próximos. As insulae também não dispunham de banheiros e, muito menos, de água corrente. As necessidades fisiológicas eram satisfeitas indo ao campo ou com os "banheiros portáteis", como eram chamados em Nahum (baldes que podiam ser transportados
2 Naquele tempo, um denário de prata (padrão monetário) equivalia a 24 ases ou 128 leptas (seis sestércios). (N. do M.)
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até o "barranco" ou depósito de lixo do povoado). As outras águas eram jogadas pelas janelas, com os riscos decorrentes para os transeuntes. Havia uma terceira alternativa, à qual me referirei oportunamente: os banheiros públicos, insólitas "tertúlias" em que se reuniam até trinta indivíduos...
Um longo e escuro corredor cruzava o edifício de fora a fora em cada um dos andares. De um lado e de outro alinhavam-se as portas das moradias. No terceiro andar, quinze quartos, com um total de dez famílias. Parte do imóvel, como eu dizia, encontrava-se em obras. Dez famílias significavam outros tantos problemas.
Tentamos raciocinar. Não sabíamos por quanto tempo iríamos permanecer naquele edifício lúgubre. Tudo dependia do Mestre... e consideramos válido o investimento.
A visão do "porta-aviões" era perfeita. Todas as noites, de acordo com o previsto, antes de entrarmos para descansar, um dos dois ajustaria as lentes de visão noturna e inspecionaria o alto do monte.
Em princípio escolhemos o de número 40. Era o quarto mais limpo e ali fixamos o "quartel general".
O resto da manhã foi dedicado às compras prioritárias: "banheiros portáteis", bacias para limpeza diária, esponjas etc. O porteiro mostrou-se feliz e encantado, aconselhando-nos aonde ir e aonde não ir. Os comerciantes, por sua vez, alertados por Taqa, foram especialmente afáveis e servis e, como acontece também em nosso tempo, acabamos comprando o que precisávamos e o que não precisávamos. Os "travesseiros" de madeira, por exemplo, com uma pequena depressão no centro - "recém-chegados do Nilo" - foram um capricho de Eliseu. Quanto a mim, comprei dois edredons forrados de algodão (algo também desnecessário no clima agradável do yam). Cada um comprou também cintos de couro, com bolsos internos, muito práticos para guardar o dinheiro, e jogamos fora as tentadoras bolsas de borracha que havíamos usado até aquele momento.
Era a hora nona (três da tarde). Aproximei-me novamente de uma das janelas do quarto 41. Na "casa das flores" não havia nenhum movimento. Nossa visão, por certo, também não era completa. Isso me pareceu estranho e meus olhos percorreram os telhados e a parte do pátio que se via da insula. Procurava o Mestre ou ela?
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Afugentei aquele incrível sentimento. Somente ele contava. Havia chegado o momento de bater à porta do Filho do Homem. Estaria em Nahum? E se não estivesse?
Eliseu se aproximou também e, depois de uns instantes de observação, propôs algo que me pareceu correto: não deveríamos apresentar-nos de mãos vazias. Dito e feito. Taqa nos recomendou o mercado habitual, situado na parte de trás da ínsula, a duas ruas do decumano. Na realidade, em Nahum não havia distâncias. Lembrei que era quinta-feira, e, portanto, dia de mercado semanal. Nessas datas, mascates, agricultores, "dentistas" e comerciantes de todos os tipos e procedências reuniam-se na praça da fonte dos seis jorros de água e ofereciam suas variadas e mais económicas mercadorias3. O "porteiro" insistiu. O mercado semanal era mais barato, mas menos recomendável. Seguimos o seu conselho e nos encaminhamos para o próprio mercado do povoado.
Evidentemente, "alguém" dirigiu a recomendação de Taqa. Se tivesse seguido meu impulso visitando o mercado situado no extremo oeste do cais, não teria acontecido o que aconteceu...
O mercado ou praça habitual de Nahum era um espaço aberto, rodeado, por sua vez, por outras insulae e casas térreas. Ali se alinhavam cinco fileiras de pequenas lojas de madeira, providas de toldos coloridos. A primeira coisa que nos chamou a atenção foi o barulho. Todos falavam gritando. Não importava se estivessem próximos.
Iniciamos uma inspeção lenta do pitoresco lugar. Compramos um par de cestas e começamos a seleção de víveres. Meu irmão tinha razão: não era aconselhável abusar da hospitalidade da família.
Duas das fileiras de lojas eram destinadas à comida kasher ou pura (alimentos prescritos por Yavé). O resto das barracas oferecia comida pura ou impura, indistintamente. Nestes últimos, o porco era o mais abundante, bem como o peixe sem escamas.
Continuamos examinando a mercadoria. Havia de tudo: legumes de Guinosar, frutas da alta Galiléia, cordeiros da Judéia, da Síria e do leste
Ampla informação em Saidan. Cavalo de Tróia 3. (N. do A.)
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da Decápolis, especiarias e flores do vale do Jordão e um rico sortimento de peixe fresco do yam, recém-pescado.
Eliseu deteve-se em uma das barracas de flores e, depois de examinar tudo, ficou pensativo. Que pretendia? Por fim, pegou um ramo de anêmonas-dobosque azuis e brancas - os célebres lírios do campo cantados por Mateus, o evangelista - e pagou o valor. Nem sequer me olhou. Guardou as flores cuidadosamente e continuamos entre os escandalosos vendedores. Todos chamavam por nós, mostrando as tilápias úmidas, as cebolas enormes das hortas de Migdal e Gadara, ou as cabeças ensangüentadas dos porcos cevados nas colinas próximas da margem oriental do lago. Uns se sobrepunham à palavra dos outros, lutando para conseguir nossa atenção, puxando os cabelos e as barbas quando não nos detínhamos. Atrás ficavam os "preços mais irrisórios", os produtos "mais saborosos" e, de vez em quando, as maldições obrigatórias, que nos condenavam ao fogo do sheol ou às minas de sal do mar Morto. Tudo normal...
Perguntei a mim mesmo: quais eram as intenções do engenheiro? Ele sabia - ou deveria saber - que os homens não davam flores às mulheres, pelo menos entre os judeus e naquela época. Mas por que supunha que os lírios eram destinados a uma mulher? Talvez à Senhora? Eram para as filhas? Faltou pouco para que o interrogasse. No entanto, me contive. Também não deveria invadir a pouca intimidade que desfrutávamos e se ele não dava o primeiro passo, eu não perguntaria.
Creio que então começaram os nossos "problemas", ou melhor, nosso "problema". Mas deixemos que os acontecimentos sigam seu curso natural... Aconteceu ao deter-me em uma das barracas. Eliseu continuou e nos separamos uns metros. O dono do comércio oferecia um excelente conjunto de anatídeos. Examinei os patos, já depenados e prontos para cozinhar. Havia os de tipo rabudo, de pescoço fino e real, de considerável envergadura e de patas grandes. O galileu me observou, animando-me a comprar o pato real, mais saboroso e, logicamente, mais caro.
Por um momento pensei no mahaneh, o acampamento no monte Hermon, e no inesquecível jantar de 21 de agosto, preparado pelo Mestre e o "ajudante" de cozinha, Eliseu. O primeiro pato não ficou bom, mas o
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segundo ficou delicioso. Era uma boa idéia. Compraríamos um daqueles anatídeos. Jesus de Nazaré adorava pato assado...
Apalpei um dos exemplares e, quando me dispunha a regatear o preço, senti uma mão no meu ombro esquerdo. Supus que se tratava de meu irmão. No entanto, num primeiro momento, ao olhar de relance, comprovei que meu companheiro se encontrava a uns dez ou quinze passos, observando uma das barracas de fruta. Senti um calafrio. Aquela mão... E ao virarme, vi-o sorridente, com aquele luminoso olhar cor de mel. O Mestre!
Foi colocar as mãos sobre os meus ombros e, antes de beijar-me e abraçarme, disse:
- Patos não, por favor!
Mais uma vez, eu não soube o que dizer. Jesus me atraiu com força para si e, depois de beijar-me na bochecha direita e, depois, na esquerda,
sussurrou-me ao ouvido:
- Obrigado por confiar!
Eu não podia acreditar. Que fazia Jesus no mercado? A resposta à estúpida pergunta encontrava-se na cesta de compras, que estava a seus pés. Tinha esquecido que, entre os judeus, eram os homens que se ocupavam dessa tarefa. Eram os homens que iam regularmente à praça comprar os artigos de primeira necessidade.
Jesus vestia sua habitual túnica branca, até os tornozelos, com um cinto de cordas. Os cabelos, soltos, descansando sobre os ombros musculosos, estavam levemente cortados, assim como a barba. Notei um brilho especial nos olhos. Parecia mais alegre que no dia 18 de setembro, quando entramos em Nahum.
Cumprimentou Eliseu com o mesmo afeto e, durante um instante, interessou-se por nossas andanças. Somente nós falamos. Depois, lentamente, enquanto contávamos alguns pormenores da viagem ao vale do Jordão, fomos nos aproximando da "casa das flores".
O Mestre não fez nenhum comentário sobre Yehohanan. Limitouse a escutar com atenção. Outro calafrio me advertiu. Ela estava ali...
Enganei-me. A casa se encontrava vazia. A Senhora e suas filhas voltariam antes do crepúsculo. Segundo o Galileu, estavam na vizinha
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Migdal. Lá vivia e trabalhava Judá, o irmão mais novo, o que foi a ovelha negra da família. Agora, casado e com um filho pequeno, tinha perdido a antiga agressividade. Em junho completou vinte anos de idade.
Sentamos debaixo do pé de romã e, durante uns minutos, tivemos de suportar a reprimenda carinhosa do Mestre por termos alugado os quartos na ínsula. Tinha razão, e nós também.
Jesus guardou as provisões e quando se dispunha a pegar as flores que Eliseu segurava, o engenheiro, vermelho como uma papoula, negouse e escondeu o ramalhete nas costas. Continuava sem entender as intenções do teimoso e enigmático Eliseu.
O Mestre sorriu com malícia e foi sentar-se sobre as esteiras dos círculos concêntricos. Tentei amenizar a situação e desviei a conversa para um assunto que me havia intrigado. Viajou para Jerusalém? Jesus começou a contar o que acontecera naquelas quase três semanas de ausência da "casa das flores".
No domingo, 23 de setembro, realmente viajara de Nahum, como nos informaram as mulheres. Sua intenção era viajar à Cidade Santa e assistir à festa solene do Yom Kippur, o Dia do Perdão. Surpreendeu-me. Não imaginava o Filho do Homem em uma celebração tão contrária ao que era a essência do Ab-bã, o bom Pai. Mas fiquei quieto.
Ele caminhara pela margem norte do yam até chegar à aldeia de Saidan. Lá convenceu João Zebedeu a acompanhá-lo. No dia seguinte, desceram pela costa oriental do lago e empreenderam a caminhada pelo vale do rio Jordão.
Compreendi. Por isso não conseguimos alcançá-lo. Eliseu e eu sempre fomos na frente... Destino inacreditável! O Mestre parecia escutar meus pensamentos. Sorriu ligeiramente e, de repente, piscou um olho para mim. Como fazia isso? Era impossível...
- Lembras? Exclamou, afastando-se momentaneamente do tema principal. O Pai tem outros planos...
Concordei, reconhecendo que tinha razão. Aquele erro, adiantando-se a nós no caminho, foi providencial. E continuou, suponho que feliz e divertido, diante do meu desconcerto.
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Pararam na aldeia de Betânia, perto de Jerusalém, passando alguns dias com Lázaro e sua família.
Fiquei em silêncio ainda que, sinceramente, tivesse muita vontade de perguntar: ao atravessar o vale sabia das andanças do Anunciador. Por que não foi vê-lo?
Jesus me observou e notei uma sombra fugaz de tristeza em seu semblante. Foi o suficiente. Acho que entendi. Durante três semanas, como disse, o Mestre e o Zebedeu percorreram a Cidade Santa. Às vezes, Jesus se separava do amigo e se retirava para as colinas que rodeiam Jerusalém. Lá, como havia feito em Hermon, comunicava-se com o Pai dos céus. João, ao que parece, não entendia esses retiros e, muito menos, o estreito "contato" com Deus (algo incompreensível, quase proibido, na religião judaica).
No Dia do Perdão ou da Expiação, os dois foram juntos ao Templo e assistiram às cerimónias e aos sacrifícios de animais. O Mestre foi sincero, como sempre. Não escondeu o seu desagrado com aquele ritual4, tão cheio de sangue e, como dizia, tão contrário ao que ele entendia como Deus. Sentiu-se frustrado. Isso não era Deus. Isso não era o Pai-Amor de quem havíamos falado em tantas ocasiões e reconheceu que desejava inaugurar seu tempo de pregação. Queria abrir os olhos dos homens e revelar
4 Em l O do mês de tisri (setembro), o povo judeu comemorava uma festa antiquíssima, cujas origens remontavam aos tempos de Aaráo, irmão mais velho de Moisés e sumo sacerdote. Dois dos filhos de Aaráo, também sacerdotes, tinham entrado na
Tenda da Reunião (lugar no qual se apresentava Yavé) sem aviso prévio, e foram fulminados por Yavé (!). Esta "inadvertência" ou "pecado involuntário" originou um ritual, ordenado por Deus e que aparece em Levítico (16). Uma vez por ano, Aarão deveria sacrificar um novilho e oferecê-lo a Yavé por seus pecados. Depois tomava dois bodes. Um era dedicado a Yavé e o segundo ao povo. O sumo sacerdote degolava o que havia sido oferecido a Deus e misturava seu sangue com o do novilho. Em seguida, impunha as mãos sobre o segundo animal e transferia a ele os pecados do povo. O bode era conduzido então a uns vinte quilómetros de Jerusalém, ao deserto de Judá e ali, solenemente atirado do penhasco. A morte era comunicada ao Templo e a festa prosseguia: o povo havia sido purificado de suas culpas - voluntárias ou involuntárias - e retornava às suas casas com a alegria e a satisfação daquele que "começa do zero". Assim ordenava Yavé: "Esta será lei perpétua para todos; no sétimo mês, no dia dez do mês, vos mortificareis e não fareis trabalho algum, nem o indígena nem o estrangeiro
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a autêntica natureza desse Deus "que não castiga e a quem não é possível ofender". Falamos disso no kan dias antes, ao descer do Hermon. Foi, provavelmente, uma das conversas mais importantes que mantive com o Filho do Homem. Pelo menos, um bate-papo "libertador"...
Para Jesus, aqueles sacrifícios e o sangue derramado não tinham nada que ver com o Pai Azul. Era um ritual de outra época e a conseqüência de um equivocado conceito divino. O homem, ainda que se empenhe, não é capaz de compreender a Deus. Somos carne e, por isso, matéria finita.
que habita no meio de vós; porque nesse dia será feita a expiação por vós
para que vos purifiqueis e sejais purificados, diante de Yavé, de vossos pecados". Essa cerimónia, de grande transcendência para o povo judeu, somente podia ser realizada pelo sumo sacerdote. Na noite anterior, permanecia acordado, cuidando de maneira especial para não transgredir as leis da pureza. Vestia uma túnica branca que trocava várias vezes durante o longo e complexo cerimonial, tomava banho cinco vezes e lavava as mãos e os pés em outras dez ocasiões. Era o único dia em que tinha acesso ao Santo dos Santos ou Santíssimo, no qual se supunha que Yavé habitava. Entrava três vezes. Na primeira, oferecia incenso. Saía e o povo respirava aliviado. Na segunda, borrifava o aposento com o sangue do novilho (nos tempos de Jesus, o citado Santo dos Santos estava vazio; a arca da Aliança havia desaparecido). "Não devia demorar-se para não inquietar o povo." Na terceira entrada, borrifava de novo o lugar com o sangue do bode destinado a Deus. Em seguida, voltava para junto da multidão e impunha as mãos sobre o segundo bode. Uma vez declarados os pecados do povo (?), o animal - que recebia o nome de Azazel - era conduzido ao deserto. Depois da confissão de cada pecado, o sumo sacerdote pronunciava o nome de Yavé, o célebre tetragrama ("YHWH" ou "JHVH"). Essa era também a única ocasião na qual era possível pronunciar esse nome. Os judeus estavam autorizados a escrevê-lo, mas não a dizê-lo. Em seu lugar, utilizavam sinónimos ou toda sorte de circunlóquios. O Santo ou o Bendito eram os mais freqüentes.
No dia do Yom Kippur ou da Expiação, o jejum era absoluto. Ninguém trabalhava nem desenvolvia qualquer atividade. Era, com certeza, o dia mais severo do ano, no qual se perdoavam os pecados do homem para com Deus. Com o passar do tempo, o Dia do Perdão foi modificando a sua essência e os judeus começaram a perdoar também os pecados dos homens contra seus semelhantes. O dia era dedicado à oração nas sinagogas e no Templo. Somente os doentes estavam eximidos do jejum obrigatório e das visitas correspondentes aos lugares de culto. Era também o dia das
visitas aos túmulos dos rabinos e familiares. Diferentemente dos romanos, os judeus, naquele tempo, não depositavam flores sobre os túmulos. (N,do M.)
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- Então, se isso é assim - e evidentemente é -, como uma criatura limitada pode sequer imaginar que tem a capacidade de ferir um ser ilimitado?
Não éramos teólogos, mas reconhecemos a verdade nas palavras do Mestre.
- Somente vós, na vossa cegueira, pensais ofender a quem só vos ama.
Cinco dias depois, a 15 de setembro, Jesus e João Zebedeu participaram também da festa de Succot ou das "Tendas" ("Tabernáculos"). Era outra celebração típica, na qual os judeus davam por encerrada a coleta das colheitas em geral e a vindima, em particular. Festejava-se desde os tempos de Moisés. Assim o dizia o Êxodo (23, 16 e 34, 22). Durante sete dias, todo homem judeu era obrigado a viver em uma tenda ou cabana feita com folhas de palmeira. As mulheres, os escravos e os enfermos ficavam livres dessa obrigação. Inclusive as crianças que não dependessem dos cuidados das mães deveriam cumprir com o preceito de dormir e comer "debaixo da tenda". Saíam nos terraços, no campo ou em plena rua. Qualquer lugar era bom. Somente as chuvas ou uma calamidade poderiam suspender a sukka, um período de alegria e de descanso no qual o povo judeu refletia sobre sua própria sorte. Com o tempo, a festa das Tendas transformou-se na rememoração dos quarenta anos no deserto do Sinai, vivendo, justamente, em cabanas e tendas. Os judeus lembravam desse modo os prodígios de Yavé desde a partida do Egito e o longo tempo de exílio, antes de chegar à Terra Prometida. A permanência nas cabanas durante uma semana era outra forma de expiação dos pecados. "Colher o lulav" era um dos rituais
da sukka. Consistia em segurar com a mão direita um ramo formado por folhas ou ramos de palmeira, mirto e salgueiro, tal como ordena o Levítico (23,40). Com a esquerda seguravam o etrog, um cítrico parecido com o limão. Agitar o ramo ou lulav era um dos momentos culminantes da festa5.
Ao longo da semana das Tendas, consumado o sacrifício diário, quando os levitas entoavam os versículos 25 a 29 do Salmo 118, a multidão ficava de pé e agitava as palmas e o etrog, dizendo a palavra hosanna. Nessa celebração nasce a bênção das palmeiras que os cristãos comemoram. Todas as manhãs saíam do Templo duas procissões sacerdotais. Uma dirigia-se aos arredores de Jerusalém e tratava de recolher
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I
Jesus, como já disse anteriormente, tinha uma idéia diferente de Yavé, e no meio da semana despediu-se de Zebedeu e retirou-se de novo para as colinas. Joáo também náo compreendeu o porquê daquela atitude. Para aqueles homens e mulheres, o comportamento do Galileu, pretendendo falar diretamente com o Santo, era um sacrilégio ou um sinal de loucura. Como vimos, somente o sumo sacerdote estava autorizado a pronunciar o nome de Yavé, e uma vez por ano. Falar de igual para igual com Deus? Tratá-lo como a um amigo ou um Pai? Isso era inviável naquela religião. Semelhante desobediência supunha a pena capital.
Jesus voltou sozinho para Nahum e o fez na primeira hora da sextafeira, 12 de outubro, pouco antes que Eliseu e eu dispensássemos o carro em Migdal. Estivemos perto...
No dia seguinte, como todos os sábados, o Mestre dirigiu-se à aldeia
vizinha de Saidan, continuando o traçado de suas viagens "secretas" durante quase três meses. Ao alvorecer, embarcava em algum dos numerosos barcos que iam e vinham pelo yam, permanecendo no casarão até o pôr-do-sol. Somente o patriarca dos Zebedeu foi testemunha desse relato minucioso (minucioso e apaixonante, acrescento). Ninguém mais foi informado dessas duas longas estadas do Mestre fora de Israel.
Naquele sábado, 13, o Filho do Homem propôs ao chefe dos Zebedeu a necessidade de trabalhar e de "manter-se ocupado enquanto chegava a sua hora". O Zebedeu náo teve dúvida. Jesus participara do
os ramos para a confecção do lulav. A segunda dirigia-se ao tanque ou piscina de Siloé, ao sul da Cidade Santa. Recolhiam água e a transportavam até o altar. Dali a derramavam pelos degraus do Templo, simbolizando que a fé judaica daria satisfação ao mundo, da mesma forma que a água escorria para o exterior. O povo se aproximava e dava uma volta ao redor do altar durante os seis primeiros dias da festa. No sétimo e último faziam isso sete vezes, em memória do ritual feito por Josué antes da destruição de Jerico. Somente os varões podiam caminhar ao redor do altar. Jerusalém se iluminava inteira, em especial, o átrio das mulheres, onde colocavam quatro candelabros grandes com os pratos cheios de óleo. As pessoas dançavam e cantavam e os sábios tinham o costume de fazer malabarismos com tochas acesas, entre as risadas da gente simples. A luz dos fogos era a representação viva da revelação da verdade da religião judaica, manifestadas por Yavé no Sinai. (N. do M.)
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estaleiro familiar e conheciam sua forma excelente de trabalhar. Foi contratado, naturalmente.
No dia 14, domingo, primeiro dia da semana para os judeus, o Mestre
começou no varadouro que conheci "no futuro" (ano 30), localizado às margens do lago, no canto oriental do cais de Nahum. Estava, portanto, havia cinco dias naquele trabalho.
A informação deixou-me pensativo. Se o Mestre tinha começado a trabalhar em Nahum, isso significava que, durante um tempo, não empreenderia sua tarefa como pregador. Mas quanto tempo? Ninguém o sabia. Nossa última pista, como já disse, era o Zebedeu pai. Falou de janeiro do ano 26 como o mês em que Jesus seria batizado por Yehohanan. Fui levado a crer nessa possibilidade. O velho Zebedeu estava bem informado. Isto significava uma permanência de dois meses, longos, em Nahum. Caso se cumprissem os prognósticos, a idéia de alugar quartos na insula tinha sido acertada. Surgiu um segundo pormenor, náo menos problemático. Se o Galileu dedicava a quase totalidade de seu dia ao varadouro, como faríamos para segui-lo? Minha intenção era única e muito clara: transformar-nos em sua sombra. A partir daquele momento, deveríamos estar ao lado, ou o mais perto possível, daquele novo Jesus. O Filho do Homem em um estaleiro de barcos! Algo insólito, nunca mencionado.
Tive uma idéia, mas, quando tentava expô-la, fui interrompido. Faltava uma hora, mais ou menos, para o pôr-do-sol. Nunca esquecerei aquele entardecer...
De repente vimos entrar a Senhora e os seus. Tiago, o irmão de Jesus, segurava o pequeno Amos. A conversa ficou suspensa. Todos se alegraram ao ver-nos. Eliseu, nervoso, colocou-se de pé, esquecendo as normas. Ninguém se levantava para receber alguém.
Vi como o engenheiro passava as flores de uma mão à outra. Evidentemente, algo o deixava nervoso. Depois, ao comprovar que continuávamos sentados, desculpou-se baixinho. Tentou sentar-se novamente, mas os lírios, em um dos movimentos, escorregaram dos dedos do cada vez mais aturdido companheiro e caíram sobre o piso do pátio. Apressei-me
em ajudá-lo. Fui até as anémonas e comecei a recolhê-las. Eliseu, transtor
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nado, não se moveu. Foi então que ela, obedecendo ao mesmo impulso, ajoelhou-se para também recolher algumas flores.
A cena foi rápida mas inesquecível (para mim).
Os dois, de joelhos, quase tropeçamos. Os olhares se cruzaram. Nesta ocasião, mais próximos que nunca, pude respirar seu perfume, uma intensa fragrância de jasmim. Os olhos verdes permaneceram fixos nos meus. Foram segundos, mesmo que para mim tenham durado mais. Ruth falou sem dizer nada. Foi um olhar de mulher...
Então, um fogo perturbador e benéfico ao mesmo tempo me consumiu. Foi a única resposta. As entranhas, misteriosamente para mim, arderam como fagulhas. Pensei que estava me afogando...
Os dois ficamos ruborizados e nos apressamos em nos levantar, sobretudo eu, e colocamos os lírios nas mãos do meu companheiro.
A partir daí, as lembranças se misturaram. Somente ela permaneceu transparente na minha memória e no meu coração. O que se registrou naquela tarde-noite na "casa das flores" foi praticamente salvo por Eliseu. Ele sim conservou um mínimo de dignidade, apesar de tudo...
Somente tive olhos para Ruth. Olhava-a passar, ajudando nos preparativos do jantar e nossos olhares sempre se juntavam, sempre... Não havia dúvida: estava apaixonado por Ruth. Meu Deus! Era a primeira vez que experimentava um sentimento como aquele. A primeira vez e no lugar e com a pessoa errados...
"É absurdo! - disse -. Impossível! É terminantemente proibido! A operação
não admite isso! Você vai voltar ao seu "agora"! Por quê? Quero apagar tudo! Preciso esquecer! Mas, Deus!... não consigo! Ela está em mim! Ela instalou-se em mim e ocupa todo o meu "agora"! Ela?... Nem mesmo sei se sente o mesmo que eu..."
Estava perdido. No meio daquela luta comigo mesmo, cruzei um olhar com o silencioso Jesus. Foi a salvação. Seus olhos me acariciaram e, não sei como, voltaram à minha lembrança umas palavras pronunciadas pelo Mestre naquele mesmo lugar quando, dias antes, "descobri" o belo sentimento pela moça: "Lembras da esperança?... A tua acaba de acordar".
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Tinha razão. O amor significa esperança, mesmo que nasça aparentemente morto, como o meu. Ou não estava morto?
A Senhora também nos admoestou. "Tinham quartos de sobra." Naquelas circunstâncias - reconheço -, não teria sido fácil. Abençoei o momento em que decidimos alugar os quartos na ínsula.
Durante o jantar - segundo Eliseu -, a família interessou-se pela viagem ao Jordão e, sobretudo, por Yehohanan. Tiago e a Senhora foram os que mais perguntaram. Esta, como sempre, quase não abriu a boca. Quanto a Ruth, limitou-se a jantar, estranhamente silenciosa. Estranhamente? Coitado! Quando vou aprender?
Respondia quando me perguntavam, mas sempre com evasivas. Foi meu companheiro o mais claro, ainda que tenha sabido manter-se "a distância", evitando, de maneira inteligente, qualquer alusão ao possível problema psíquico do Anunciador.
As flores continuaram ao seu lado, inseparáveis...
Tiago aventurou-se na dúvida principal: o que achávamos? Era Yehohanan o precursor do Messias?
O engenheiro argumentou que não éramos os mais indicados para responder a essa questão:
- Jasão e eu somos estrangeiros.
Tiago insistiu, afirmando que, por sermos estrangeiros, estávamos muito bem informados. Que quis dizer? Convinha estarmos atentos. Os erros do passado - ou do "futuro", conforme se considere - não deveriam repetir-se...
O engenheiro saiu do aperto como pôde. Repetiu o que todo mundo sabia, mais ou menos. O messias judeu era um libertador que ocuparia o trono de Davi. Conduziria os exércitos israelitas à vitória e subjugaria os gentios e ímpios como nós. Somente haveria um poder, uma cultura e uma fé: Israel. Então, Deus desceria dos céus e inauguraria o "reino". Segundo os profetas e os textos bíblicos, esse Messias estava para chegar. Alguém o anunciaria e lhe abriria caminho.
A explanação, impecável do ponto de vista judeu, foi elogiada e ratificada pela Senhora e por Tiago. Jesus continuou calado e atento. Maria, a Senhora, interveio então e anunciou algo que nós, suposta
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mente, não sabíamos. Yehohanan era o precursor, o homem que abriria o caminho...
Eliseu fingiu surpresa e incredulidade. A Senhora compreendeu que se havia precipitado (fora da família, ninguém estava a par das respectivas aparições do "ser luminoso"), mas, depois de uma curta vacilação, conti
nuou com a mesma coragem.
- O tempo da mudança está próximo - disse -, ainda que alguns não queiram falar disso...
Deteve-se no rosto impassível de Jesus. O Mestre, porém, não reagiu. Eu me encontrava perdido na serena quietude dos olhos de Ruth. Docemente perdido...
- ...Ainda que alguns - repetiu sem contemporizar e com os olhos fixos nos de seu Filho - queiram fugir de seu destino...
O espesso silêncio que veio a seguir quase me tirou dos meus pensamentos. A mulher, sentida com a postura do Galileu, concluiu sem piedade:
- Ele foi mais valente. Yehohanan já está no caminho, preparando o reino. E tu, esperas o quê?
Desta vez sim houve resposta. O Mestre, corrigindo a mãe, exclamou, categórico:
- Esse reino - e insistiu no termo malkutadielaha ("reino de Deus") - nada tem a ver comigo...
Fim da conversa.
A Senhora replicou com um gesto de desagrado e materializou a oposição ao critério do Filho levantando-se e desaparecendo detrás da cortina de rede de sua moradia.
O distanciamento entre Jesus e parte da família parecia sem salvação... Mas aquilo foi somente o princípio de um longo calvário. Algo que os textos evangélicos também não mencionam.
Era o momento de abandonar a casa. Já no portão, quando nos dirigíamos à ínsula, Eliseu deu meia-volta e procurou o irmão de Jesus. Sussurrou-lhe
algo no ouvido e depositou o ramo de flores nas mãos do perplexo Tiago. Depois nos perdemos na escuridão...
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19 DE OUTUBRO, SEXTA-FEIRA
Tal corno acontece com as anémonas, que fecham suas pétalas com a escuridão, aconteceu comigo durante algum tempo. Também meus olhos permaneceram fechados, ignorando a luta em que se debatia o meu companheiro de venturas e desventuras. Na verdade, "nossa luta"...
Mas continuemos por partes.
Essa noite, na insula, não foi noite. Foi um suplício a mais. Tentamos conciliar o sono no 39, e teria sido igual em qualquer dos quartos. Aos meus inquietos pensamentos somou-se um lamento: ou melhor, vários e seguidos lamentos - quase cânticos - que pareciam provir de alguma das moradias contíguas. Creio lembrar que, ao entrar no quarto, já se ouviam no corredor, mas não prestamos muita atenção. Pensamos em alguma criança. Pois bem, as tristes lamentações - provavelmente de duas ou mais pessoas - duraram até o amanhecer. Não houve forma de dormir, a não ser por um momento, quando o choro e os gemidos diminuíam ou se interrompiam. De repente, voltavam, e com forças renovadas, tomando conta do silêncio e de meus nervos castigados. Estranhamente, ninguém protestou.
Por fim acabei deixando o beliche e, de cotovelos na janela, contemplei o passar das parelhas de asnos que partiam para o norte ou que se incorporavam ao cais de Nahum. Esperei com paciência o amanhecer. Com as primeiras luzes, aquele inferno emudeceu.
O murmúrio da moagem foi abrindo passagem no povoado. Nahum acordava.
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Fizemos nosso asseio e, quase sem palavras, descemos às tabernae, com o objetivo de repor as forças e estabelecer um plano para a nova jornada. Eliseu continuava triste e perdido em si mesmo. Quanto a mim, mais que perdido...
Ela continuava ali, próxima e impossível.
Eliseu chamou minha atenção sobre a massa de nuvens que se divisava a oeste. Eram os "cb", os cúmulos-nimbos que havíamos detectado do "berço". Aproximavam-se da região. Em questão de horas poderiam descarregar sobre o lago. Era conveniente não se descuidar...
Tive a idéia que não cheguei a expor no dia anterior na "casa das flores". Se pedíssemos trabalho no estaleiro dos Zebedeu, seria mais fácil seguir o Mestre. O lugar, segundo me lembrava, era suficientemente pequeno para não perdê-lo de vista. Se nos aceitassem, estaríamos juntos durante todo o dia de trabalho. O resto, veríamos depois.
Eliseu, com seu habitual senso prático, fez-se de advogado do diabo: por que haveriam de dar trabalho a dois estrangeiros que, além do mais, não tinham experiência na construção de barcos? Tinha razão, mas, que mais podíamos fazer? Esperar em Nahum de braços cruzados que ele voltasse para o seu lar?
Ambos recusamos essa possibilidade. Não teríamos resistido. Era necessário experimentar. Contávamos, além de tudo, com a recomendação, ou suposta recomendação, de Tiago e do próprio Jesus. Sobre a amizade com o chefe do estaleiro, o Zebedeu, era melhor esquecer. Ele me conheceu no ano 30. Agora estávamos no 25. Se nos encontrássemos, para ele seria a primeira vez.
Decidimos assim. Nossa missão era segui-lo e dar testemunho de sua vida e de suas palavras. Estaríamos onde ele estivesse. Não importava como...
Atravessamos o cais, e, por prudência, mesmo que lembrasse do lugar onde estava o estaleiro, perguntei aos am-ha-arez ("escória do povo", segundo os ortodoxos da lei) que carregavam e descarregavam as embarcações atracadas no porto. Apontaram para o leste, no final do cais.
Realmente, o varadouro achava-se junto ao rio Korazaín, mas, para minha surpresa, não se tratava do lugar que visitei na primeira oportuni
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J.). BENÍTEZ
dade, na companhia de Jonas, o afável felah que me acompanhou naquela ocasião. Aquele estaleiro era de dimensões regulares. O que agora tínhamos diante de nós era muito maior. Que tinha acontecido?
Descemos os degraus de pedra que conduziam do cais à beira do yam e caminhamos sobre o tapete de pedras brancas e negras que cobria aquela zona da costa. A princípio, como é natural, tudo parecia confuso. Sobre uma longa faixa de terreno, entre o povoado e o rio que desembocava no lago, erguia-se o próspero estaleiro dos Zebedeu. Como digo, para nós, a princípio uma confusa mistura de barcos construídos pela metade, pavilhões de madeira, altas pilhas de troncos, fossas, ferramentas, barulho de martelos e de homens por toda parte, seminus ou cobertos com aventais de couro negro e brilhante.
Procuramos com o olhar. Jesus ou Tiago, seu irmão, tinham de estar ali, em algum lugar.
Pouco depois, um dos trabalhadores nos indicou um fosso no qual estavam armando duas embarcações. Mesmo estando de costas, o reconhecemos
em seguida. Jesus, curvado sobre um barco de uns oito metros, concentrava-se no ajuste das quadernas. Vestia o saq ou sunga e um daqueles longos aventais, do peito até os joelhos. De sua cintura pendiam um martelo e um saco cheio de pregos. O corpo, bronzeado e suado, brilhava com os primeiros raios do sol.
Não pareceu muito surpreso. Eu diria até que nos esperava.
Pulou sorridente para fora do fosso e, depois de desejar-nos a paz, escutou nosso pedido. Não disse nada. Ajustou a tira de pano que segurava seus cabelos e, sem deixar de sorrir, pediu que esperássemos. Logo se perdeu em um dos pavilhões de madeira. Pouco depois voltava na companhia de um homem relativamente mais velho. Não teria mais de l ,60 metro. Era calvo e com os olhos rasgados. Parecia de origem asiática. Disse que se chamava "Yu" ou algo parecido...
Seus olhos, como um remanso em paz constante, me chamaram a atenção desde o primeiro momento. Era magro, mas forte. Os dedos, incrivelmente longos, apareciam cruzados sobre o peito.
Olhou-nos devagar e depois, em um aramaico impecável, interessou-se pelo que já havíamos exposto ao Galileu. Repetimos o desejo de
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trabalhar, ainda que reconhecêssemos que não tínhamos experiência. Insisti no fato de que não importava o posto.
O naggar ou mestre, algo similar ao que hoje conhecemos como "carpinteiro náutico", não fez mais perguntas. Aqueles olhos, limpos e questionadores ao mesmo tempo, devem ter notado que falávamos com o coração. Precisávamos daquele trabalho...
Antes de retirar-se esclareceu que a decisão não dependia dele. Era o "patrão" que decidia. Ainda não tinha chegado e teríamos que esperar. Deu meia-volta e afastou-se na direção do barracão.
Jesus piscou para mim e sugeriu que esperássemos ali mesmo. O "chefe", o Zebedeu pai, sempre era pontual. Em breve desembarcaria. Todas as manhãs partia de Saidan e voltava à sua aldeia ao anoitecer.
O Mestre voltou ao fosso, entregando-se ao trabalho do madeiramento das cavernas.
Não tivemos alternativa senão armar-nos de paciência e esperar o proprietário do estaleiro. Algo me dizia que a sorte estava do nosso lado. A piscada de Jesus foi um sinal...
Se bem me lembro, aquela foi a primeira vez que contemplamos um Jesus de Nazaré "trabalhador". Durante algum tempo fiquei absorto. O Galileu entregava-se inteiramente ao que fazia. Não importava se era grande ou aparentemente insignificante. Isolava-se. Acariciava a madeira. Quase falava com ela. Não negava esforços, fazendo-o com alegria, satisfeito e, como repetia sem cessar, "atento às surpresas com que era presenteado por seu Pai em cada dia de trabalho". No começo não entendi muito bem a que se referia. Depois, com o passar dos dias, compreendi e participei encantado...
Talvez não tenha me expressado corretamente. Hoje, no século XX, ao falar de um estaleiro, imaginamos quase sempre uma fábrica na qual constróemse barcos, geralmente, de grande tonelagem. Este não era o caso dos "estaleiros" que existiam nas margens doyam. Ali não eram feitos somente barcos. O conceito era diferente. Lá se explorava o tanino que se extraía da casca das árvores, eram lavradas âncoras de pedra, eram feitos consertos de qualquer objeto ou móvel de madeira e, também, eram fabricadas
embarcações, mesmo que dificilmente superassem os dez ou quinze metros de comprimento. O termo "estalei
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ro" (mézah, em hebraico) era algo difuso e, sobretudo, pouco relacionado com o mar. Os judeus nunca foram marinheiros, pelo menos por vocação, como no caso dos fenícios. Na Bíblia muitas vezes (cerca de duzentas) menciona-se o mar, mas quase sempre com reverência ou temor. Os navios eram, geralmente, naves estrangeiras, nunca próprias, e isso obedecia a uma circunstância eminentemente geográfica. Nos tempos de Jesus, a costa de Israel carecia de portos seguros e protegidos. Somente o de Cesaréia, feito por Herodes o Grande na antiga aldeia sírio-fenícia de Estratão1, oferecia garantias à navegação. O resto - Jope (atual Jaffa), Dor ou a enseada do Carmelo - eram somente modestos ancoradouros nos quais os pescadores se protegiam dos ventos da África. Os navios de maior calado tinham de ancorar longe da costa, dependendo dos recifes e de algumas praias traiçoeiras e sujeitas a mudanças em que a agitação do mar alterava constantemente o fundo. Quanto aTolemaida (São João do Acre), por ser uma povoação grega, não contava para os judeus. Os homens de negócio, especialmente os dedicados à exportação e importação, recorriam às companhias romanas, gregas, fenícias ou egípcias, alugando os serviços de seus barcos. O mesmo acontecia na hora das viagens particulares. O mar não era judeu, ainda que Jacó e Moisés falassem das vantagens de Zabulon, a tribo que se instalou na costa (Gênesis e Deuteronômio). Os judeus somente navegavam por necessidade e sempre com bandeira alheia.
Nesse sentido, oyam ou mar deTiberíades não era uma exceção. Os galileus pescavam e navegavam nele, mesmo que os conceitos e as técnicas não fossem propriamente "marítimas". Isso não significava que estivessem mais atrasados em
relação a seus "colegas", os pescadores ou marinheiros do "grande mar" (Mediterrâneo2). Simplesmente, eram diferentes.
1 Ampla informação em Cesaréia. Cavalo de Tróia 5. (N. do A.)
2 No yam, nos tempos do Mestre, havia irmandades ou associações de pescadores e marinheiros, exatamente como no Império Romano e nos vizinhos Grécia, Egito ou Fenícia. Uma delas, denominada "Ah Tiberias" ("Irmãos de Tiberíades") controlava minuciosamente os períodos de pesca, sancionando os que violavam as normas e as "paradas biológicas". Era uma espécie de "sindicato" que decidia quando pescar ou quando se dedicar ao transporte de mercadorias. Todos, no lago, respeitavam o que era estabelecido pelos Ah, como chamavam popularmente tal associação (Ah, em aramaico,
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Tal como nos asseguraram, o velho Zebedeu apresentou-se pontualmente na costa. Vinha sozinho. Passou por nós e, durante uns instantes, sem parar, ficou nos olhando. Tinha mudado pouco. Quiçá tivesse cinqüenta e cinco anos. Mostrava um porte atraente: alto, magro como seus filhos, rijo, com o cabelo branco, muito curto, o rosto enrugado pelo sol e pelos ventos e os olhos claros, sempre intuitivos e confiantes. Cumprimentou com a cabeça e entrou no barracão de Yu.
Jesus continuava com suas tábuas, martelando.
Eliseu me fez um sinal. A massa de nuvens aproximava-se. O Zebedeu voltou e, junto com ele, o asiático. Depois das apresentações, o "patrão" escutou nossos pedidos. Yu lhe ofereceu um dos aventais e continuou atento às minhas palavras enquanto colocava a peça de couro.
- ...Não é um problema de dinheiro - esclareci, na tentativa de ser o mais
honesto possível -. Somos viajantes e, agora, as circunstâncias nos obrigam a procurar uma ocupação.
- Por quanto tempo? - interveio o carpinteiro náutico.
- Quanto o Destino decidir - respondi sem rodeios -. Pode ser dias, meses...
Falava com absoluta sinceridade. Tudo dependia Dele e de seus movimentos.
O Zebedeu manteve os olhos fixos nos meus. Depois desviou o olhar para o engenheiro e o mediu sem pronunciar uma só palavra.
significa "irmão ou companheiro"). Junto aos Ah havia outros grupos ou "cooperativas", menos numerosos, que concorriam com os primeiros. Eram controlados por Antipas, o tetrarca, e por sociedades mistas, integradas por judeus (geralmente sacerdotes e saduceus ricos) e estrangeiros. Ainda que a lei proibisse esse tipo de associação com pagãos, dinheiro era dinheiro...
Durante as festas judaicas, nenhum estrangeiro podia pescar com embarcações. Somente eram autorizadas as varas de pesca e as armadilhas. Isso originava inúmeros litígios. Cada grupo ou associação obrigava seus "sócios" a pagar determinadas cotas semanais, tanto em dinheiro quanto em espécie, compensando com isso os acidentes ou perdas de barcos. A negligência ou o descuido não justificavam o pagamento de uma nova embarcação. Os "sindicatos", além do mais, eram os que fixavam os preços do pescado e do transporte. (N. do M.)
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Aceitou, enumerando as condições. Trabalharíamos como ajudantes. Disso se ocuparia Yu. Salário: vinte e quatro ases por dia (um denário de prata).
A comida era por nossa conta. O dia de trabalho começava ao amanhecer e terminava ao anoitecer. Roubar levava à demissão imediata. Poderíamos começar em seguida... Entendi tudo menos sobre o roubo. Para ser exato, utilizou a palavra bazaz ("saquear").
O Zebedeu retirou-se e Yu se encarregou do resto. Durante uns segundos permaneceu pensativo, com sua postura habitual: as mãos cruzadas sobre o peito e deduzi que não sabia o que fazer conosco.
Mostrou as túnicas e a "vara de Moisés", recomendando que, para o dia seguinte, esquecêssemos aquela forma de vestir "tão refinada".
Foi quando me dei conta: o que faríamos com a vara? Enquanto trabalhasse naquele lugar não deveria levá-la comigo. Não seria lógico. Onde a guardaria? Devia deixá-la na insula! A vara era um sistema de segurança eficaz. Não desejava prescindir de seus serviços. Com isso surgiu um novo problema...
Yu tomou a melhor das decisões possíveis. Mostrou-nos o mézah e deixou que nós mesmos escolhêssemos o trabalho no qual podíamos render mais e melhor. Agradeci sempre sua extrema delicadeza.
A construção e o reparo de barcos ocupavam a maior parte do terreno do mézah ou estaleiro dos Zebedeu. Naquela zona do yam, contei outras três "instalações" parecidas. Uma delas, propriedade dos Ah. O da família dos Zebedeu tinha forma retangular. Localizava-se paralelamente ao rio. Tudo nele encontrava-se disposto de forma inteligente, e a aparente confusão ou caos inicial deveu-se à minha própria ignorância.
Os Zebedeu só construíam barcos por encomenda. O estaleiro dispunha de uma coleção de modelos em miniatura, de uns trinta centímetros, feitos em madeira e que serviam para ajudar na escolha do comprador. As variações não eram muitas. O futuro dono dava as sugestões oportunas e o "patrão" e os carpinteiros (sócios do Zebedeu) reuniam-se
e estudavam a proposta. Geralmente construíam embarcações de carga, as mais rentáveis, e de tempos em tempos, barcos de pesca, sempre mais refinados e caros. Quando começamos a trabalhar no mézah, ocupavam-se
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de dois "pesqueiros" e do conserto de cinco "cargueiros". Nenhum deles tinha mais do que quinze metros de comprimento.
No extremo norte do "retângulo", do outro lado do lago, localizavase o depósito de madeira. Uma ou duas vezes por ano, os trabalhadores do estaleiro iam até os bosques vizinhos (quase sempre a Gaulanítis) e realizavam o necessário corte de carvalhos, salgueiros, amieiros e pinheiros, entre outros exemplares. O conhecimento da madeira, por parte daquelas pessoas, era muito grande3. Não era de se estranhar. Tratava-se da matériaprima, cuidavam dela e a mimavam sem cessar.
Uma vez no varadouro, os operários separavam as cascas dos troncos recém-cortados e as reuniam em grandes pilhas, com a parte interna virada para a terra. Dessa forma protegiam os taninos das chuvas e do vento. Este produto - o tanino - era outra das fontes de riqueza do mézah. Seus elementos químicos naturais evitavam o apodrecimento das cascas e as transformavam em excelentes odres, flexíveis e duráveis. O carvalho era a árvore escolhida neste caso.
A referência do profeta Ezequiel (27, 3) sobre as madeiras que serviam para a construção de barcos não parece muito correta. As quilhas não eram feitas de ciprestes, nem os mastros de cedro. Nem os remos eram fabricados com azinheira, nem os bancos com a madeira do boj. O comum era construir com carvalho e pinheiro (especialmente, o pinea ou pinhoneiro). O carvalho tem uma dureza considerável e uma excelente resistência à água (uma vez na água, a resistência se multiplica). Nos tempos de Jesus,
sabia-se que o carvalho era a madeira adequada para produzir "cavilhas". Uma vez no interior, era muito difícil a extração. O pinheiro, por sua vez, muito abundante, era tão útil quanto barato. Seu alto conteúdo de resina tornava ideal a madeira para lutar contra a intempérie. Nos estaleiros trabalhava-se também com salgueiro (muito estável e com grande docilidade na hora de ser curvado), amieiro (madeira muito recomendada para permanecer debaixo da água), teca (de grande estabilidade e aconselhada pelos carpinteiros de mar para todas as peças que exigissem resistência e estabilidade, em especial as cobertas), olmo (muito durável debaixo da água) e iroco, uma árvore importada da África, similar à teca, porém mais económica. Só quando o comprador exigia trabalhava-se com madeiras nobres, como o cedro. O corte e o transporte, geralmente do norte, encareciam sensivelmente o preço final do barco. O entabuamento de algumas embarcações de pesca era fabricado com esse tipo de madeira, procedente quase sempre dos maciços do Hermon. (N. do M.)
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Em seguida realizava-se a secagem da madeira, um processo delicado que exigia uma atenção permanente e, como digo, um profundo conhecimento de cada árvore. Algumas vezes era defumada, embelezando-a e favorecendo a secagem. O normal, no entanto, era extrair a casca, serrála e empilhá-la durante o tempo necessário, segundo a árvore e a finalidade. A maior parte da casca era vendida como combustível e aproveitada para as "estufas" e os fornos do estaleiro. Se a encomenda exigisse isso, seria possível secar a madeira de forma artificial, enterrando-a com esterco, cinzas ou barro, ou mergulhando-a em água corrente (se o cliente pedisse, recorria-se a banhos de sebo e à água com cal). A teca, por exemplo, permanecia dois ou três anos debaixo da terra. O resultado era surpreendente: a madeira parecia ferro e
ficava blindada contra os insetos destruidores que eram abundantes nas águas doyam". Esses procedimentos de secagem eram altamente benéficos e evitavam, sobretudo, as temidas pragas de fungos que devoravam um barco em questão de meses. Yu e seu pessoal eram tão escrupulosos na secagem que pesavam os troncos, controlando assim o grau de umidade que perdiam semanal ou mensalmente5. A totalidade do setor destinado à armazenagem e à secagem da madeira estava protegida por uma parede de taquaras. Desse modo, evitava-se a açáo dos ventos do sul, muito nociva pelo calor e secura. No recinto em questão, observamos
4 Um dos piores "inimigos" dos pescadores e marinheiros do mar de Tiberíades era o teredo, do género dos lamelibrânquios, que prolifera nas águas com pouca salinidade. Encontra-se espalhado por todos os mares. São os responsáveis pelo caruncho dos barcos. Os ovos transformam-se em larvas velígeras que se fixam na madeira e a devoram. A larva se introduz perpendicularmente ao veio da madeira, gira e perfura segundo o sentido de tal veio. A madeira acaba desaparecendo. Enterrar ou proteger com asfalto etc., era a única solução. (N. do M.)
No século XX foi possível comprovar que uma carga de postes libera, em questão de dois ou três dias, até vinte e três mil litros de água. Para isso passa-se a madeira por um tanque no qual se injeta uma corrente de óleo a 93 graus. Na época de Jesus, os construtores de barcos aceleravam a secagem mergulhando os troncos ou tábuas em depósitos ou piscinas de água que esquentavam a uma temperatura "suportável pelo corpo humano" (por volta de 30 ou 40 graus). Em duas semanas, a madeira perdia uma notável quantidade de água, ainda que diminuísse sua resistência. (N. do M.)
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vários cartazes, pregados em lugares estratégicos e nos quais se lia, em aramaico e grego: "Proibido roubar". A palavra "roubar" havia sido escrita em suas três acepções (bazaz: "saquear"; gazal: também "roubar", "saquear" ou "arrancar"; e ganab: "pegar às escondidas"). Em outros "departamentos" a mesma advertência repetia-se. Então comecei a compreender.
O depósito de madeira era de responsabilidade de um velho operário, especialista, sobretudo, em algo que me deixou perplexo: a "linguagem" das tábuas. Devo adiantar que a minha ignorância nesses assuntos era, e continua sendo, quase total. Peço desculpas, portanto, ao hipotético leitor destas memórias apressadas.
O sab ou ancião, que respondia pelo nome de "Sekal" (literalmente, "olhar com atenção"), além de controlar as já referidas operações de secagem, tinha a obrigação de autorizar quais tábuas seriam utilizadas na construção dos barcos propriamente ditos. Para isso, além do exame da cor, ausência de furos, cheiro etc., Sekal ocupava-se em "escutar" o som da madeira. Colocava cada tábua sobre dois suportes e golpeava sobre ela na altura exata da metade com a ajuda de uma marreta. Se a resposta fosse "surda", mau sinal. A madeira havia sido invadida por fungos e, naturalmente, recusada. Nem todos os estaleiros agiam com tanta honestidade. Se a "linguagem" era limpa, passava no teste. Em seguida achava-se o lugar de serrar, estratégica e inteligentemente localizado entre o depósito citado e o fosso em que se procedia à fabricação das embarcações.
Eliseu, ao descobrir os cortes, os bancos e as ferramentas, ficou fascinado. Acariciou os sarrafos, as serras em arco e as de contornar e, com o olhar brilhando, pediu a Yu que lhe conseguisse um posto de ajudante. Aquele trabalho de precisão era com ele. Uma das serras, movidas a pedal, chamou-me a atenção. Era assombroso. Pouco a pouco iria descobrindo a engenhosidade do asiático...
Por último, na parte inferior do estaleiro, quase na costa, Yu nos mostrou o "coração" do varadouro: o fosso em que se construíam os barcos. Ali estava Jesus.
Os Zebedeu escavaram uma galeria de um metro de profundidade por cinco de largura e outros sessenta de longitude que nascia, como digo,
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na margem do yam. As paredes tinham sido escoradas com madeiras duras e o leito do fosso, debaixo do nível do lago, foi coberto com as pedras da praia. Uma porta muito pesada, fabricada com postes de carvalho e olmo, funcionava como eclusa principal. No momento indicado, abria-se e a água do lago inundava o fosso, permitindo um fácil lançamento das embarcações. Em outros estaleiros, trabalhava-se com a ajuda de cabos e molinetes, facilitando o deslizamento dos barcos com o uso de sebo e gordura de animais. Também nisso os Zebedeu levavam vantagem. Uma vez lançado o barco, retirava-se a água usando duas canaletas laterais que desaguavam no rio Korazain, situado a pouco mais de trinta metros do mézah. Fechada a eclusa de carvalho e olmo, duas rodas hidráulicas encaixadas na parede direita do fosso (usarei sempre como referência principal a linha da água do yam), no início das tais canaletas, tratavam da extração, bombeando a água acumulada no fosso com a ajuda de uma longa peça de madeira, similar a um "parafuso de Arquimedes". A água era passada de um lugar a outro conforme girava o citado parafuso. O "invento" não era de Yu, mas soube adaptar o parafuso sem fim do sábio de Siracusa às suas necessidades.
Quando o projeto do barco era definitivamente aprovado, Yu, como chefe dos carpinteiros náuticos do varadouro, construía a maquete-guia. Tratavase de um modelo maciço, em madeira de pinheiro, de trinta ou quarenta centímetros de
comprimento. Serrava-o em lâminas finas e em cada uma das "fatias" escrevia ou marcava as medidas fundamentais. Depois, cada lâmina era perfurada com várias estaquinhas e o modelo ficava pendurado no avental de Yu até que se desse por terminada a construção do barco. Na etapa seguinte, com uma maestria admirável, Yu desenhava as peças básicas da embarcação na parede ou no chão de sua casa-barracão, localizada a pouca distância do fosso. Assim "nascia" o barco propriamente dito, sempre em escala (hoje seria correspondente a um padrão 1:48). O restante dos oficiais cuidava, então, da confecção dos moldes, que passavam, de imediato, à serraria. Ali tinha lugar outro processo não menos delicado e comprometido. Um erro significava desperdiçar uma tábua, algo caro e, sobretudo, mal visto pelos mestres. Eliseu, a princípio, passou por maus momentos.
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Finalmente, com as peças meticulosamente medidas, iniciava-se a construção do "pesqueiro" ou "cargueiro".
Yu havia introduzido várias "novidades". Em primeiro lugar, a presença da quilha, que não era muito habitual naquele tempo e que, ao que parece, ele copiou dos estaleiros de Tiro, lugar que visitava com certa regularidade. Foi outra "revolução" entre os marinheiros e pescadores do yam. No começo, os mais velhos, incluindo as pessoas do seu varadouro, duvidaram do "invento". Somente Zebedeu pai lhe deu apoio. Agora não davam conta. Os pedidos eram contínuos. Todos desejavam que seus barcos fossem reformados. A segunda inovação consistiu na forma de fabricar. Yu pensou que o mais cómodo e rentável era deixar o barco virado para baixo. E fez assim, diante do estranhamento lógico e do receio inicial de seus companheiros. Mas o asiático tinha razão. A preparação do entabuamento era mais fácil e rápida. Quanto à terceira
"novidade", deixarei para mais adiante...
Começavam pela quilha, geralmente construída em uma peça única, após escolher o carvalho adequado. Depois levantavam a roda (peça curva que servia de proa) e o cadaste (popa). Após fixar a roda, os homens, fossem ou não judeus, colocavam uma corda sobre a peça. Era o "nó de Isis", um amuleto de boa sorte, segundo diziam. Nenhum barco, no yam, iniciava uma viagem sem o referido "nó divino".
Depois trabalhavam com as cavernas mestras, procedendo à montagem de forros e cavername. Mais que carpinteiros náuticos, pareciam marceneiros, sempre atentos e cuidadosos. Utilizavam as mais variadas técnicas para calçar ou encaixar as tábuas. A mais freqüente era a chamada "mortalha e queixo" e "caixa e espiga". As espigas encaixavam-se milimetricamente nas caixas e os encaixes eram feitos com parafusos de madeira, furados, por sua vez, por pregos de bronze. As junções não podiam superar um span entre uma e outra6. O normal, para os bons carpinteiros náuticos, é que estivessem a um dedo de distância. O grande problema era a obtenção de uma madeira suficientemente curva para entalhar o cadaste,
6 Medida existente entre os dedos polegar e mínimo da mão de um homem (aproximadamente, dezoito centímetros). (N. do M.)
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a peça de popa que recebia a travaçáo, e em algumas ocasiões, os tirantes que sustentavam os lados. Nem todas as árvores apresentavam as linhas, ou melhor, as curvas exigidas por Yu e seu pessoal.
Ao nos aproximarmos da borda do fosso, Jesus nos viu. Continuou com o rítmico martelar sobre o casco externo do "pesqueiro". Aquele barco estava ainda em plena construção.
O "cargueiro", no entanto, mais próximo da eclusa principal, estava quase acabado. Os artesãos tinham começado a calafetá-lo.
Durante alguns segundos não percebi com clareza. O bater do martelo sobre os parafusos de salgueiro acabava por abafar o cantarolar do Mestre. Em uma das pausas, enquanto o Galileu extraía vários pregos de bronze de um dos bolsos do avental e os colocava entre os lábios, pensei ouvir parte da letra da canção: "Deus é ela... Ela, a primeira hé, a que segue à iod... Ela, a formosa e virgem..., o vaso do segredo... Pai e Mãe são nove mais seis... Deus é ela... Ela, a segunda hé, habitante dos sonhos... Deus é ela...".
Nos dias seguintes, tive a oportunidade de escutá-la várias vezes. Jesus trabalhava ao ritmo daquela estranha canção. "Deus é ela" era o verso ou estribilho principal. Isso entendi. Mas o que queria dizer? "Deus é ela..." Hé e iod são letras hebraicas. Meus conhecimentos terminavam aí. Jesus a entoava com emoção, acomodando o ritmo às marteladas. Sempre terminava com um vibrante: "Deus é ela!".
Em alguns momentos, enquanto eu o olhava, veio-me à mente uma idéia, mas a recusei. Não era possível: Deus era uma mulher? Pessoalmente, eu ficaria encantado... Tinha de perguntar isso a Ele.
Yu foi concluindo...
Quando a embarcação havia sido terminada, entrava em ação o grupo de calafetar e o da pintura. Era o último processo ou hamar (tapar frestas). Primeiro carbonizavam a madeira (interna e externamente) com a ajuda de tochas. Era uma queima rápida, na qual o fogo lambia e beijava. Só isso. Dessa forma neutralizavam as possíveis invasões de fungos. O carvalho agradecia mais do que qualquer outra árvore.
Ao "beijo do fogo", como diziam, seguia a calafetação, outra operação
para a qual era preciso maestria. Um oficial veterano era sempre
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o responsável. Os ajudantes preparavam a estopa (geralmente, fibras de cânhamo) e a mergulhavam em alcatrão, diferentes tipos de liga7, resinas, breu ou, simplesmente óleo. O especialista abria as frestas com o auxílio de chaves de ferro e, depois de enrolar a estopa sobre a coxa, introduzia-a nas junções da madeira com uma forma especial de martelar. Mais que um martelado, um bater ritmado, com um golpe duplo. E a estopa penetrava até o fundo. Dessa forma, a calafetação impedia que a água entrasse no barco, o que aliviava, além do mais, o esforço futuro das madeiras.
Depois, "maquiava-se" a nave: uma camada de massa, feita com cal em pó e óleo de peixe, e finalmente pintura e breu. Essas proteções, como já disse, eram vitais nas águas do yam, conquistadas permanentemente pelas "brocas" ou carunchos e por algumas algas que acabavam por grudar no casco, o que diminuía a velocidade da embarcação e ameaçava a sua integridade8. Yu havia proposto uma solução extra: revestir o casco com placas de chumbo, tal como faziam os cargueiros no "grande mar". O Zebedeu, no entanto, não aceitou. O custo encarecia sensivelmente o preço
7 Na hora de fazer a liga, Yu era partidário do visco, viburno e casca de azevinho. Depois de aferventar a mistura, passava-se a triturá-la. A polpa resultante era exposta ao relento durante algumas semanas, e assim conseguia-se um apodrecimento homogêneo. A boa liga, de acordo com o asiático, devia ser tão verde quanto ácida. O calafetador-chefe a experimentava sempre antes de utilizá-la. Outros preferiam triturar os materiais e, depois de diluir a pasta em um pouco de água, mastigá-la, acelerando o processo através da açáo dos fermentos da saliva. Depois,
deixava-se descansar, umedecendo-a antes de impregnar os fios de linho ou cânhamo que dava forma à estopa. (N. do M.) 8 Durante o período em que estivemos no mar de Tiberíades, detectamos numerosos tipos de algas. Aperidinium westii era a mais abundante. Tratase de um exemplar esférico protozoário, do grupo das "brilhantes" (pirofitd). Em janeiro multiplica-se com grande rapidez, e chega às 3.300 unidades por centímetro cúbico entre fevereiro e abril. Um par de flagelos lhe dá uma considerável velocidade e pode mover-se na vertical ou na horizontal. O diâmetro médio é entre quarenta e setenta microns, mas localizamos colónias de 125. Seu alimento principal é o nitrogênio e o fósforo. Com isso consegue uma notável massa orgânica que acaba dificultando a navegação e os trabalhos de pesca (em uma das primaveras calculamos uma biomassa superior às vinte mil toneladas). Com a madrugada sobe à superfície e ocupa uma lâmina de até quatro metros de espessura. À primeira hora da tarde, desce, e dorme entre cinco e sete metros de profundidade. Em junho, com o aumento da temperatura, Aperídinium morre. (N. do M.)
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final. Um barco de oito metros, por exemplo, podia custar entre oitocentos e mil e duzentos denários de prata, dependendo do material utilizado. Era concluído em cinco ou seis meses.
No lançamento do barco, o proprietário era obrigado a pagar uma refeição a todos os grupos que tinham participado na construção do barco. Ninguém faltava. Geralmente terminava em uma bebedeira coletiva.
Cada embarcação dispunha de um nome, dado sempre pelo dono ou, na sua ausência, por Yu. Aparecia pintado na proa e, às vezes,
na popa.
O resto do estaleiro, além de outras dependências de menor importância, era composto por três barracões de madeira. Um fazia as vezes de vestiário e refeitório. Lá era guardada a roupa e a comida que se consumia no meio da manhã. Às vezes era utilizado pelos trabalhadores que, por uma ou outra razão, não dispunham de um teto fixo. Em uma das paredes estava pendurado o referido aviso: "Proibido roubar".
Eliseu e eu nos olhamos e creio que tivemos o mesmo pensamento: o que faríamos com a "vara de Moisés"?
O segundo barracão, maior, ainda que tosco, era a casa e o lugar de trabalho de Yu, o chefe dos carpinteiros náuticos. Ali, em uma das paredes, como disse, desenhava as peças sobre as quais se fabricavam os moldes. Vivia sozinho e pouco a pouco fui conhecendo-o... E admirando-o.
Seu nome verdadeiro era "Yuxuè", mesmo que todos o chamassem Yu. Era chinês. Yuxuè, segundo me explicou, queria dizer "sangue tranqüilo ou de remanso". Em uma tradução pouco ortodoxa, podiase associar a "homem sereno". O que os judeus conheciam por neqe, uma pessoa calma e, além disso, pura e limpa de coração. Assim era Yu, transparente, honrado, brilhante e com os nervos de aço. Também acabou sendo um seguidor do Mestre, ainda que nunca viesse a constar dos textos evangélicos...
Quatro ou cinco gerações antes, um de seus antepassados emigrou do arquipélago de Chusan (China atual) com toda a família. Era irmão de um general chamado Xiang Yu, rival do imperador Liu Bang, que governou por volta de 202 a. C. A derrota de Xiang Yu obrigou ao desterro toda
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sua família. Alguns chegaram até o yam e ali se estabeleceram; seguindo a tradição familiar, eram construtores de barcos.
Yu considerava-se um digno descendente dos han, o verdadeiro povo chinês. Continuava praticando a filosofia dos seus antecessores. Acreditava em Kongfuzi, o mestre Kong, como chamavam Confúcio, ainda que suas idéias tivessem a influência das obras de Lao Tsé, outro dos grandes filósofos que influenciaram a religiosidade chinesa9. O Too Te King, livro escrito por Lao Tsé, era a sua principal referência moral (estudo do "não ser" e do "ser").
Era um homem bom, com uma intensa inquietude intelectual. Seu trabalho, no fundo, era somente um meio para sobreviver. O que realmente o apaixonava era a busca da verdade, "se é que existia", e as "invenções"... Mas destas últimas falarei oportunamente.
O terceiro barracão, muito perto da serraria, foi um mistério durante muito tempo. Permanecia sempre fechado. Na porta havia outro cartaz pendurado que dizia: "Só Yu".
Ninguém entrava, exceto o referido chinês. Fazia-o em sigilo. Carregava nas mãos um ou dois pacotes, cuidadosamente embrulhados em pano ou em sacos. Não houve maneira de averiguar o conteúdo. Olhava
Kongzi ou Kongfuzi (Confúcio para os ocidentais) viveu entre 522 e 479 a.C. Foi o fundador da doutrina conhecida como "confucionismo", uma corrente éticosocial que nada teve a ver, inicialmente, com a religião. O pouco que sabemos sobre Confúcio deve-se ao que foi escrito pela segunda geração de seus discípulos no texto que recebe o nome de Lunyu. Supõe-se que, no final de sua vida, trabalhou para o governo, mas acabou exilando-se. Viveu errante durante treze anos. Segundo os citados
discípulos, Confúcio defendia a honra, a ordem e a cultura como os valores máximos aos quais o ser humano pode aspirar. Ao estudar, refletir e cultivar a própria pessoa, o homem se transforma em sábio e expande à sua volta um princípio que beneficia todas as criaturas. Essa ordem, suprema e magnífica segundo o "confucionismo", provinha dos céus. Por isso, o imperador deveria ser uma fonte de inspiração para os seus súditos.
Lao Tsé, anterior a Confúcio, defendia a renúncia total do homem diante das riquezas ou do poder. O destino estava escrito. Tudo deveria seguir seu curso, sem alteração. O tão, entre outros princípios, ensina que a solidariedade do homem para com a natureza é prioritária. O tão transforma o universo no jogo eterno do yin (escuro e frio) e do yang (luminoso e quente). (N. do M.)
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para um lado e outro e, quando tinha certeza de que não havia ninguém por perto, abria a porta e entrava rapidamente. Lá permanecia muito tempo. Não se ouvia nem um ruído. O único sinal de atividade era a coluna de fumaça que se elevava de um dos cantos do barracão.
Eliseu e eu o batizamos de "o barracão secreto" e este que escreve foi destinado ao "departamento" que Yu chamou de hezeer...
Hezeer?
O asiático sorriu com malícia. O que significava aquela palavra? Eu não a conhecia. Talvez se tratasse de um dos muitos modismos que provinham do aramaico-galilaico e aos quais nunca me acostumei. "He-zeer", repetiu devagar, separando o primeiro som. Continuava sem entender. "Zeer" era pequeno, mas "hezeer"...
Yu mandou que o seguíssemos. Entramos no barracão-vestiário e nos deu dois aventais de couro, mais escuros pela sujeira que pela cor do material. Tirei a roupa e tentei ajeitar-me. Digo tentei porque, para dizer a verdade, a peça ficava escandalosamente curta em mim. Com meus 1,80 metro de estatura, era uma figura ridícula. Estava evidente que o avental pertencia a um menino. Não havia outro e eu tinha de me conformar. As túnicas ficaram penduradas em um prego, em uma das paredes, junto ao resto das roupas e ao almoço dos trabalhadores. Meu companheiro, um pouco mais baixo, teve mais sorte.
A verdadeira preocupação, porém, não foi minha figura, mais ou menos cómica, mas "a vara de Moisés". Deixei-a ali, junto à túnica. Não podia trabalhar com ela...
Começou então um novo tormento. O que aconteceria se a roubassem? Não quis nem pensar nisso. Se alguém roubasse a vara ou ativasse acidentalmente algum dos sistemas de defesa, o resultado seria catastrófico.
Os cartazes, advertindo os possíveis ladrões, me pareceram premonitórios e eu estremeci...
Eliseu dirigiu-se à serraria, e eu fui levado ao começo do fosso, nas proximidades do "pesqueiro" sobre o qual martelava e cantarolava o Galileu. O he-zeer não era outra coisa senão uma cobertura de tábuas e de varas, no centro do varadouro, em que se armazenavam os cântaros
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de água potável e o material com que se procedia à fabricação de tintas, pinturas e vernizes. Aquele seria o meu lugar de trabalho. Estaria às ordens do oficial encarregado dos referidos produtos protetores da madeira. Seria ajudante, e algo mais...
Não demorei a verificar em que consistia esse "algo mais".
De repente, no depósito de lenha, ouviu-se um "Eh, rapaz!". Alguém chamava por mim com a pele de cabra que servia para transportar água.
- Eh..., zee^.
Compreendi então. O he-zeer pronunciado por Yu era uma expressão, em aramaico, algo distorcida, que equivalia a um chamamento: "Eh, rapaz!", referindo-se ao rapaz ou aprendiz que era o "faztudo". Em decorrência disso, a cobertura em que se armazenava a água recebeu o citado nome. Todos, no estaleiro, pediam a presença do "faztudo" com o vocativo "Eh, zeer". Era o sinal. Quando se ouvia, minha obrigação era deixar o que estivesse fazendo e ir apressado, ou melhor, correndo, ao lugar em que eram solicitados meus serviços. Esse serviço incluía o fornecimento de pregos ou parafusos, afiar ferramentas, transporte de madeira, alimentar os fornos e estufas, varrer a serragem, recolher a sujeira e transportá-la à lixeira próxima ou gehenna, limpeza diária do vestiário e, por certo, a preparação dos mencionados vernizes e pinturas.
Nasceu desse modo "Eh, zeer*." ou "Eh, rapaz!". Durante a permanência no estaleiro, todos me conheceram por esse apelido. Quem poderia adivinhar! Eu, piloto da USAF, acabei varrendo um estaleiro e correndo como uma lebre de um lugar para outro...
Não importava. Tínhamos conseguido nosso objetivo. Ele estava perto. Nunca o perdemos de vista e conhecemos um Jesus desconhecido, um trabalhador caprichoso e responsável que esperava a sua hora...
Mas estou sendo injusto. Também gostei de ser um "faz-tudo". Aprendi muito, em especial sobre a mansidão e a humildade. Servir é tão árduo quanto saber mandar. Talvez
mais...
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J.). BENÍTEZ
Aproveitei, sobretudo, o meu trabalho como aprendiz, na elaboração de produtos protetores da madeira10. Meu professor, um fenício velho e desencantado, ensinou-me alguns segredos, demonstrando que também é possível viver no pequeno mundo de um recipiente cheio de pintura ou de cola de carpinteiro.
Aquele dia de trabalho, no entanto, foi um desastre. À minha inabilidade tive de acrescentar a preocupação (quase medo) com a sorte da "vara de Moisés". Toda minha atenção ficou dirigida à porta do vestiário. Cada vez que alguém entrava ou saía do barracão, eu interrompia o que estava fazendo, e com isso recebi as primeiras repreensões e reprimendas. Foi mais forte que eu. Não me acostumei. Tínhamos de achar uma solução...
Por volta da quinta (onze da manhã), Yu bateu a barra metálica que pendia do eh, zeer, anunciando a hora do almoço. Almoço? Nem Eliseu nem eu tínhamos previsto isso, e por pura prevenção nos sentamos no interior do barracão que funcionava como vestiário e refeitório. A vara continuava em seu lugar.
Os operários pegaram os seus respectivos cestos e farnéis e procuraram acomodação dentro e fora do barracão. Eram momentos de piadas e confidências.
Durante esse período, fiquei "especialista" em todo tipo de ligas, pinturas, protetores contra cupins, tinturas e vernizes em geral. A cola mais utilizada era um preparado que se fabricava com farinha de trigo estragada. Uma vez dissolvida em água, era esquentada até o ponto de fervura; acrescentavamse pequenas quantidades de essência de terebentina, uma resina que era obtida dos pinheiros e abetos. O resultado era espantoso. Também fabricávamos uma pasta
especial que se aplicava a frestas e juntas, o que evitava que a madeira fosse atacada por roedores e insetos. O fenício misturava vidro moído com breu e pêlo de vaca. Nem um único rato invadia as embarcações. As madeiras e os metais eram protegidos por um líquido que o mestre destilava do alcatrão natural, chegado do mar Morto. As superfícies ficavam lustrosas e brilhavam com a água e o sol. Ninguém conhecia a fórmula exata. As embarcações construídas no estaleiro dos Zebedeu se sobressaíam, entre outras coisas, pelo or ou "luz" que emitiam, o que era consequência, justamente, da habilidade do velho mestre. O único item no qual não permitia nenhuma ajuda era no das pinturas. Somente ele conhecia os ingredientes para a obtenção dos deslumbrantes brancos ou vermelhos-fogo. (N. do M.)
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Primeiro vimos entrar o Galileu. Sorriu para nós brevemente. Pegou a sua comida e dirigiu-se de novo para a porta. Compreendemos que desejava ficar sozinho. Esta era, como disse, outra norma sagrada. Nós éramos expectadores, sempre na sombra: ele decidia. Porém, ao chegar ao umbral, deteve-se. Ficou quieto por alguns minutos, deu meia-volta e veio até a parede em que estávamos encostados. Colocouse de cócoras. Destampou o cestinho de vime e foi tirando a comida: ovos cozidos, pão de trigo e fruta. Colocou a comida em nossas mãos e, sem dizer nada, sorriu mais intensamente. Levantou-se em seguida e afastou-se, desaparecendo na claridade do estaleiro.
Meu companheiro fez um gesto para levantar-se e sair atrás Dele. Eu o detive. Se quisesse sentar-se junto destes pesquisadores, teria feito isso, sem dúvida, como tinha acontecido em outras oportunidades. Agradeceríamos isso a ele no momento certo.
Em seguida, chegou Tiago, o irmão do Mestre. Trabalhava como oficial na serralheria, junto com Eliseu. Pegou seu almoço e juntou-se a nós, interessando-se por aquelas primeiras horas no estaleiro. O engenheiro empalideceu. Quase não falou nada e veio-me à lembrança a imagem do dia anterior, no portão da "casa das flores", quando nos retirávamos para a insula. Eliseu entregou o ramo de lírios para Tiago e disse-lhe algo no ouvido. Essa era a causa do seu silêncio? O que escondia? Por que tanto mistério?
O bom homem, querendo ser gentil, perguntou sobre nossos planos imediatos. Não havia tais planos. Permaneceu pensativo e, finalmente, animado, propôs que os visitássemos nesse fim de tarde para jantarmos juntos.
- Esta, minha mulher, fala pouco mas cozinha uma excelente bamia - disse.
Eu não sabia o que era uma bamia, mas confirmei que tinha razão. Fosse o que fosse seria a primeira vez...
Combinou o jantar para "depois da cerimónia" no kahal. Aquilo me interessou. Kahal em uma das denominações do que hoje conhecemos como sinagoga. Outros, especialmente os rabinos, a chamavam de vaad, Keneset, zibbur ou kenisah, entre outros nomes. Tudo dependia do lugar e do grau de ortodoxia.
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Disse que me interessava porque, até agora, não havia tido a ocasião de pisar em um desses lugares de "reunião" (o significado mais correto seria "reunião congregada" com propósitos religiosos). Será que Jesus iria?
Tiago acreditava que sim, ainda que não tivesse muita certeza. Não o consultou. Sua família comparecia ao kahal ao entardecer da sexta-feira ou
à primeira hora da manhã do shabbat ou sábado (os judeus, como se sabe, consideravam o início do novo dia no pôr-do-sol do dia anterior).
O Filho do Homem na sinagoga... Como reagiria? Observamos enquanto orava nas neves do Hermon. Seu estilo não tinha relação com o do resto dos judeus e, muito menos, com os ortodoxos e intransigentes defensores da Lei.
Custava-me trabalho imaginar o Mestre em uma dessas tradicionais reuniões, invocando o nome do raivoso Yavé, "ao que era preciso primeiro temer e depois amar". Não o via no meio de pessoas que nem sequer se atreviam a pronunciar o nome do Pai...
Eu não podia perder semelhante oportunidade e, discretamente, simulando interesse pela cerimónia em si, fiz algumas perguntas. Tiago, muito surpreendido pela curiosidade daquele forasteiro, respondeu com paciência e fez algo mais: ofereceu-se para acompanhar-nos à galeria da sinagoga destinada aos prosélitos (pagãos convertidos ao judaísmo) e estrangeiros, um recinto separado do resto da comunidade, mas integrado no edifício.
O encontro seria ao toque da trombeta, na porta do kahal. Esse era o procedimento habitual para anunciar o começo e o final do sábado, o dia de descanso fixado por Yavé, o dia santo por excelência entre os israelitas11.
Quando Yu chamou o grupo com o som do ferro, Jesus se encontrava sentado ao pé do "pesqueiro". Tinha a cabeça encostada no casco e os olhos fechados. Parecia adormecido. Acordou ao chamado e, esticando os braços, espreguiçou-se feliz durante vários segundos. Nisso caíram as pri
Como mencionei neste diário, as chamadas ao culto, incluído o anúncio do shabbat, eram feitas ao toque de sofar ou de trombeta. O chifre soava no primeiro dia do Ano-Novo, e as trombetas nos dias de jejum. (N. do M.)
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meiras gotas. E que gotas, gotas enormes! Pouco depois, a frente nublada, instalada sobre o lago, disse: "Aqui estou". Foi o dilúvio.
O trabalho ficou interrompido e, durante algum tempo, permanecemos protegidos, contemplando impotentes como o fosso e os drenos se enchiam de água. Ninguém pôde fazer nada, e Yu, como era a décima hora, (quatro da tarde), compreendendo que a chuva não iria parar, correu ao eh, zeer e fez soar a barra metálica por três vezes. Isso significava "fim do trabalho". O chinês refugiou-se no "barracão secreto".
Cada um pegou as suas coisas, e abandonamos o estaleiro da forma como pudemos. Perdemos Jesus e Tiago de vista. Supus que tivessem corrido como os outros.
As ruas se transformaram em rios. Somente o cardo, ligeiramente inclinado na direção do yam, permitia um trânsito um pouco mais aceitável.
Os trabalhadores, na insula, também interromperam os trabalhos de reparação do terceiro andar. Trocamos as túnicas molhadas, e seguindo a recomendação de Eliseu, escondi a "vara de Moisés" entre as pregas de um dos edredons, no beliche do quarto 39. Era o mais prático. Na sinagoga não teriam deixado que eu entrasse com uma vara.
Mesmo compreendendo, fiquei tão preocupado quanto no varadouro. A chave do 39, como dos outros aposentos, estava sempre conosco, mas... Procurei me acalmar. Agora, supunha-se, não precisaríamos dela. Nessa noite jantaríamos na casa do Mestre e no dia seguinte, dia de descanso, então veríamos...
Tivemos o tempo exato. Ao chegar à sinagoga, um dos funcionários, que ficava em um pórtico que se abria à direita da fachada, fez soar uma trombeta de prata, para convocar o povo. Foi um toque com duas notas, repetido três vezes. A busca do by(t)knYst, o edifício propriamente dito, foi fácil. Era o único imóvel de pedra caliça. Encontrava-se, além do mais, na parte alta de Nahum, tal como a tradição recomendava (dessa forma, ficava simbolizado que a atividade da sinagoga deveria ser mais importante do que qualquer outra, lembrando Isaías (2, 2): "Dias virão em que o monte da casa de Yavé será estabelecido no mais alto das montanhas e se alçará acima de todos os outeiros". Se isso não fosse possível, a sinagoga era erguida nas
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esquinas das ruas ou nas praças. Em alguns povoados ou cidades, nos que não existiam elevações do terreno, a comunidade judaica cravava um longo mastro sobre o telhado do kahal, de forma que se erguesse mais acima do sótão da casa mais alta. Para os judeus supersticiosos, uma sinagoga construída mais abaixo do que o resto das casas implicava um risco iminente de destruição. Em Nahum, a zona mais elevada encontrava-se no extremo noroeste, perto do cinturão dos hortos e cerca de trezentos metros da insula. Como comentei, na "cidade de Jesus" tudo estava a um passo.
Não havia como se perder porque, como dizia, era o único edifício de pedra branca e com um telhado de duas águas, construído em madeira. A fachada, com vinte e três metros, aparecia delicadamente trabalhada, com umas pedras lavradas de mais de quatro toneladas. As janelas me chamaram a atenção. Contei cinco, todas com as correspondentes proteções fixas... de vidro! Algo pouco comum em um povoado como Nahum. Três portas davam acesso ao interior. Portas pelas quais somente entravam os varões judeus.
As mulheres entravam pelo extremo oposto, no lado norte. Os outros, prosélitos ou pagãos simpatizantes, éramos obrigados a entrar por uma escada lateral geminada ao muro oeste. Na fachada se destacavam ainda três orifícios no centro geométrico. Foram colocados verticalmente. No pórtico da porta central (a maior), haviam sido lavradas duas guirlandas de flores que acompanhavam uma ânfora romana. Soube mais tarde que representava o "vaso do maná".
O povo, empurrado pela chuva, refugiava-se no pórtico que havia à direita. Lá, entre as colunas, sacudiam as roupas, lavavam obrigatoriamente as mãos em uma pequena fonte e abriam os mantos brancos ou talith, cobrindo com eles a cabeça e os ombros. Ninguém podia assistir à cerimónia sagrada da oração sem se cobrir. Algo assim significaria a expulsão imediata. Eliseu e eu dispúnhamos também de "xales", feitos de acordo com a lei, com lã crua de cordeiro.
Uma forte descarga elétrica provocou um murmúrio generalizado. A tempestade continuava implacável, iluminando com os relâmpagos o madeiramento azul do telhado e os rostos nervosos e assustados da comunidade. Onde estava Tiago?
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Não havia outro jeito senão aguardar diante da fachada, debaixo do dilúvio. Misturar-se com os do pórtico ou procurar a entrada que nos correspondia era arriscado. Assim, esperamos imperturbáveis sob o forte aguaceiro.
Os homens, cobertos com os mantos, saíam da galeria correndo e entravam por qualquer das três portas da fachada. No começo pensei que a pressa devia-se às adversas condições atmosféricas. Parecia óbvio, mas não era. Mais adiante, conforme fui conhecendo o mundo singular das sinagogas, soube que aquela suposta "pressa" era uma forma de acatar as Escrituras. De acordo com os escribas e outros
intérpretes da Lei, o judeu crente e respeitador tinha que correr ao encontro do conhecimento. Isso diz Oséias (6,3): "Conheçamos, corramos ao conhecimento de Yavé". Por isso, ao entrar na sinagoga, procuravam fazê-lo o mais rápido possível. A saída, no entanto, era lenta e pausada12.
Tiago apareceu. Acabava de deixar sua mãe e sua irmã no recinto do lado norte, o único lugar onde as mulheres podiam permanecer. Esta, grávida e com um bebé, estava dispensada.
O irmão nos guiou até o lado oeste, e subimos por uma escada de pedra geminada ao muro. Lá se abria uma porta estreita que permitia o acesso a uma galeria superior. Era o "mirante", o lugar destinado aos náojudeus. Éramos autorizados somente a olhar e a rezar. Nenhum prosélito intervinha nas discussões.
Quatro ou cinco homens encontravam-se de pé, com os cotovelos sobre um balcão de madeira; olhavam os que entravam pelas portas. Era só pisar o pavimento de pedra e os judeus esqueciam a "pressa", procurando lugar nos longos bancos que ficavam paralelos às paredes. Precisei de tempo para acostumar-me ao recinto. Encontrava-me a uns cinco metros, no alto do flanco
12 Os judeus muito religiosos mantinham essa atitude ao longo do sábado inteiro. Cada vez que saíam à rua o faziam correndo, tentando demonstrar seu zelo com Yavé. No sábado, como se sabe, a ordem era manter repouso absoluto. Quando pisava a rua era porque, supostamente, iam à sinagoga. Disso provinha o fato de correrem ou andarem mais devagar. Em muitas ocasiões, somente se tratava de uma postura falsa e hipócrita. (N. ao M.)
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J.). BENÍTEZ
esquerdo da sinagoga (tomarei sempre como referência a fachada do edifício). A primeira coisa que me chamou a atenção naquele retângulo foram as lamparinas de óleo. Pendiam do teto por cabos de dois e três metros. Somei quinze, distribuídas em cinco fileiras. Era uma luz amarela, bruxuleante, que perfumava o recinto com um suave cheiro de azeite. Ao fundo, diante das portas da fachada, separadas por uma grade, divisei as mulheres. Apertavam-se em dois compartimentos. Indaguei a Tiago e ele me explicou que a divisão devia-se à condição de judias ou escravas ou prosélitas. As primeiras ocupavam o lado da direita. Um tabique grosso impedia o contato entre as "puras" e as "impuras". A congregação chamava a tal divisória de zgenizã, uma espécie de "cemitério" de livros da Lei, usados e deteriorados. Lá eram guardados e encapados. Os judeus consideravam esses rolos como seres vivos. Não podiam ser jogados ao lixo ou aproveitados para outras finalidades.
Eu sabia do machismo dos judeus em geral, mas agora, ao contemplar as hebréias e prosélitas atrás da alta grade, voltou-me a velha indignação. Esse foi outro tema de luta do Filho do Homem13.
Ela, Ruth, também estava lá...
Os homens foram ocupando os lugares. Contei três fileiras de bancos em um dos lados, todos de madeira negra e lustrosa, com encostos de um metro de altura. Os das primeiras filas apresentavam inscrições respectivas, gravadas a fogo nos suportes de braço da esquerda. Eram os nomes dos "proprietários", os "principais" de Nahum, todos benfeitores da sinagoga, todos ricos e poderosos, segundo Tiago.
Na frente da genizá estava pendurado um pano quadrado de uns dois metros de largura, de veludo vermelho. Estava suspenso do
Os rabinos e especialistas na Lei procuravam sempre uma justificativa para qualquer de suas ações ou movimentos. A separação das mulheres nas sinagogas provinha
de um texto do profeta Zacarias (12, 11-14) no qual, falando das lamentações de Israel, explica que as mulheres devem lamentar-se à parte. O texto "sagrado" repete isso cinco vezes: "Cada família à parte e suas mulheres à parte." Os judeus interpretaram ao pé da letra essa passagem, não consentindo que as mulheres fizessem parte do ritual ou das assembléias que eram constituídos nas citadas sinagogas. Essa atitude foi herdada depois pelos cristãos. (N. do M.)
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madeiramento do teto, tal como as lamparinas. Ocultava o objeto mais sagrado da sinagoga: o aron, ou arca, na qual se guardavam os rolos ou livros das Escrituras, delicadamente embrulhados em linho e encerrados, por sua vez, em estojos de ouro, prata e madeiras nobres. O cofre ou arca da Lei de Nahum dispunha de rodas, de forma que era possível transportá-lo pelo interior da sinagoga e, inclusive, pelo exterior, na ocasião de certos jejuns e celebrações. Tanto o véu como a arca recordavam o "Santíssimo", ou Santo dos Santos do Templo de Jerusalém14. Na frente do véu, muito próxima, pendia também a ner alam, a lâmpada santa, sempre acesa.
14 Mesmo que os especialistas não concordem, a opinião mais comum é que seria preciso buscar a origem das sinagogas na época da Babilónia, durante o exílio dos judeus (ano 587 a.C.). Cerca de quatro mil famílias foram tiradas de Israel, e o Primeiro Templo de Salomão, em Jerusalém, totalmente destruído e saqueado por Nebuzardão, capitão dos exércitos de Nabucodonosor. Foi nesses anos de desterro, sem Templo, que os judeus sugeriram a necessidade de continuar reunindo-se, tanto para rezar e estudar a Lei quanto para manter o sentido de nação e combater o paganismo que os estava invadindo. Assim, provavelmente, nasceu o kahal (sinagoga é uma palavra grega). Os indícios nos livros de Esdras e Neemias são eloqüentes. Alguns
acreditam ter sido Moisés o primeiro a dar forma a uma sinagoga e ter estabelecido, inclusive, a súplica que deveria ser recitada (Êxodo 18,20). Filon e Flavio Josefo também têm essa opinião. O certo é que a sinagoga surgiu como uma clara defesa contra a ameaça babilónica, com o objetivo principal de manter a instrução da Tora ou Lei de Moisés. O restante - culto, assembléias, reuniões políticas etc. - era secundário, pelo menos nos primeiros tempos.
As sinagogas eram também lugares onde habitualmente se oferecia educação em geral. Eram as escolas, tal como as conhecemos na atualidade. Um dos empregados ou funcionários - o hazán - ocupava-se disso.
Todos os povoados ou cidades onde pudessem viver no mínimo dez homens (varões) "piedosos e interessados nos assuntos divinos" (os chamados batlanim) deveriam ter uma sinagoga. O número dez vinha, ao que parece, da Bíblia (Números 14, 27) em que são citados os espiões que trouxeram uma informação negativa (dez homens, uma vez descartados Josué e Caleb). Em muitos povoados eram contratados os serviços de dez homens sem trabalho para que se formasse o mnyn ou número mínimo necessário para constituir a assembléia religiosa. Cheguei a conhecer os freqüentadores mnyn que assistiam diariamente aos ofícios da sinagoga. Todos os dias havia uma cerimónia - mas que as ocasiões mais importantes eram as do shabbat e as das segundas e
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Observei atentamente, mas não consegui ver o Mestre. Os homens continuavam entrando, com as túnicas e os mantos empapados. Tiago não soube o que responder à minha pergunta. Jesus não os acompanhara ao sair da "casa das flores". Devia estar para chegar...
Continuei observando. No centro da nave erguia-se a berma, um estrado, também de madeira, com quase dois metros de lado, sobre o que tinham colocado uma poltrona e uma mesa pequena (mais exatamente, uma "torre" ou migdat).
Nosso informante explicou tratar-se da tribuna na qual eram lidos os livros da Lei e dos Profetas, e de onde eram pronunciados os "avisos", uma exortação ou sermão que geralmente encerrava a cerimónia. Muitas das lamparinas coincidiam exatamente sobre a mesinha de leitura. Entre o véu e a bema havia um exuberante candelabro com sete braços, a menorá, com outras tantas e generosas lamparinas. A luz alcançava as paredes com docilidade, mostrando um espetáculo incomum entre os rígidos judeus. O artista, provavelmente pagão, havia desenhado sobre o estuque um Hércules lutando com um grifo, outro ser mitológico, metade águia, metade leão. A pintura, na qual apareciam também um centauro e uma espécie de unicórnio (?), estendia-se ao longo de toda a parede da direita, interrompida somente por janelas pequenas em forma de estrela de Davi. Era a primeira vez que eu via representações "humanas" em um lugar eminentemente judeu. A Lei, como se sabe, proibia isso terminantemente. Entendi um pouco melhor o desprezo dos habitantes da Judéia por aquele "círculo de gentios", como chamavam a Galiléia.
quintas-feiras (dias de mercado semanal e de reunião dos tribunais locais de justiça). O fanatismo dos ortodoxos chegava ao extremo de contar os homens antes de começar uma sessão. Invocavam Isaías (50, 2) e Jeremias (12, 4), ameaçando com a cólera de Deus se não conseguissem reunir o mnym. "Se o Eterno vê menos de dez homens reunidos, acende-se a sua ira, corno está escrito: Por que vim e não havia ninguém?" Para os muito religiosos, a oração somente tinha valor se fosse feita na sinagoga. Se alguém deixava de frequentá-la, Yavé pedia contas. Se um judeu não ia ao kahal, os vizinhos podiam qualificá-lo de "malvado", originando assim o repúdio social
e, inclusive, o exílio. (N. do M.)
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Na parede da frente, no centro, descobri os já referidos três buracos, de uns dezoito centímetros de diâmetro cada um, alinhados verticalmente. Tiago esclareceu a dúvida. Tratava-se da referência obrigatória na hora de rezar. A parede estava voltada para o sul, na direção de Jerusalém, e os orifícios eram o ponto de foco que, supostamente, apontavam Deus. Fiquei perplexo. Na hora de rezar, realmente, a comunidade erguia os olhos, procurando os três círculos. De onde vinha esse costume? Tiago não sabia. Era muito antigo. Talvez de um príncipe, Melquisedec, do tempo de Abraão... Melquisedec?
O Génesis o menciona e também o Salmo 110. Dizem que foi um sacerdote, mas ninguém sabe de onde veio nem como viveu. Asseguram que foi rei de Salem, uma antiga povoação do vale do Jordão. Outros o citavam como rei de Jerusalém e fundador (?) de uma ordem singular: os "melquisedec". Propus-me a pesquisar essa questão. Se fosse correto o que disse Tiago, por que motivo o tal Melquisedec identificou Deus com "três círculos"? Outra vez os "círculos"... O que não imaginava nesse momento é que, em breve, receberia
uma interessante "pista" a respeito.
Com o entardecer - "quando fica impossível distinguir um fio branco de um negro" -, começou a cerimónia que, segundo Tiago, chamavam "Kabalat shabbat", as "boas vindas ao sábado"; uma cerimónia três vezes solene naquele 19 de outubro. Foi uma sorte. A formalidade especial e o esplendor deviam-se, em primeiro lugar, a uma coincidência. Nesse dia terminava a leitura da Tora ou "Shemini atzeret" (Oitavo dia da assembléia). O Pentateuco, os cinco livros possivelmente
escritos por Moisés (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), era lido pouco a pouco, geralmente em ciclo de três anos, dividido em 154 sessões. Em outros lugares, a leitura da Tora era mais longa, chegando a alcançar três anos e meio. Em segundo lugar, durante a festividade da Shemini, o povo tinha o costume de formular a oração das chuvas. Outubro era um mês chave. Se em 3 de marjesván (aproximadamente, 20 de outubro) não chegassem as primeiras chuvas, o Sinédrio, em Jerusalém, ordenava três dias de jejum nacional. Se na lua nova de kisléu (novembro) continuasse a seca,
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a comunidade judaica submetia-se a outros três dias de jejum. Se a água continuasse atrasando, no final de novembro era decretada uma semana de jejum. A tempestade, justamente na festa de Shemini, era um "sinal dos céus". Nem mesmo tinham tido tempo de entoar a prédica pelas chuvas e a água descia sobre a terra. "Agora," - acrescentou Tiago - "o importante é que o Santo, bendito seja seu nome, distribua a água com equilíbrio". O comentário era lógico naquele tempo e entre aquela gente. Yavé era o único responsável pelas chuvas. Assim está dito no Deuteronômio: "Eu darei ao teu país a chuva no seu tempo: a chuva da primeira estação (outubro) e a chuva da última (março-maio)...". Supor que Deus não tivesse nada que ver com as precipitações era inimaginável. O terceiro motivo de solenidade era a "acolhida do shabbat", o dia sagrado.
Quando os bancos estavam ocupados - calculei uns duzentos homens -, alguém se aproximou de um indivíduo sentado em um dos lugares dos "notáveis", na primeira fila da direita. Todos os "notáveis" eram anciãos ou relativamente velhos. Sentavam-se nos assentos preferenciais. Mais atrás vinham os mais novos.
Olhei novamente os rostos e os perfis, meio escondidos pelos mantos. Não conseguia descobrir o Mestre.
Talvez tivesse mudado de opinião. Talvez não desejasse participar da cerimónia religiosa...
Outra descarga seca da tempestade soou como um aviso. O instinto, como sempre, falou ao meu coração. Algo estava para acontecer.
- É a hora...
Tiago apontou o "notável" e acrescentou:
- Seu nome é Yehudã benjolí. Ele preside. Agora receberá o shabbat...
Esse tal Yehudá (filho de Jolí) era um indivíduo extremamente gordo, alto, com os olhos maquilados em um tom vermelho e escandaloso, o cabelo curto e tingido de louro "romano", como ditava a última moda importada de Roma.
Respondeu afirmativamente ao que lhe foi sussurrado pelo recémchegado e colocou-se de pé. A obesidade, no entanto, não lhe permitiu isso, e vários dos que estavam ao seu lado se apressaram a ajudá-lo. Imagi
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no que superava os 130 quilos de peso. Vestia uma longa túnica branca até os tornozelos, e usava filactérios negros na testa e no braço esquerdo.
Respirou alto como uma baleia e, finalmente, conseguiu encaminhar-se para a porta central da fachada. Atrás, o restante dos "notáveis"... Ben Jolí era o presidente da sinagoga, isto é, o funcionário mais importante. Recebia o nome de "arquissinagogo" (Ros-ha-keneset). Era o dono e senhor do imóvel e de muitas das vidas dos
que estavam ali presentes. Era prestamista, administrador dos bens da sinagoga, responsável pelo culto e membro ativo do partido do povo, os fariseus. A tudo isso somava-se a condição de sacerdote, descendente dos filhos de Aaráo. Era um dos homens mais temidos e odiados de Nahum. Eu não sabia disso naquele momento, mas aquele sujeito teria um papel importante na vida pública do Filho do Homem. Um triste papel... Estava perto dos 50 anos. Com os passos vacilantes, oscilando à direita e à esquerda, foi se aproximando da porta.
O que aconteceu a seguir deixou todos surpresos. Segundo meu informante, a tradição estabelecia que o sábado deveria ser recebido com o Lejã dodí, um hino típico e alegre, com o qual a comunidade "abraçava o shabbatcomo se fosse uma noiva". O costume, antiquíssimo, começou na cidade de Safed, na alta Galiléia. As pessoas saíam do povoado, recebiam o sábado e o conduziam às suas casas com todas as honras. Pois bem: ao chegar ao umbral, o sufocado Jolí ergueu os braços e começou o cântico. Todos, atrás dele, formaram o coro com os versos:
-Vem com paz, coroa de teu esposo!... Com alegria e regozijo! O sacerdote inclinou-se o quanto pôde, reverenciando a simbólica entrada do shabbat na sinagoga. Mas, ao deslocar a massa de gordura para a frente, o manto escorregou dos ombros e da cabeça e caiu sobre o pavimento de lajotas. Os "notáveis" correram até o "xale", mas uma mão adiantou-se. Pegou a peça de roupa e a ofereceu ao arquissinagogo, ao mesmo tempo que entoava parte do Lejá dodí:
- Sacode o pó, ergue-te! Coloca teus melhores trajes, oh meu
povo!...
Era o Mestre!
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j.j. BENÍTEZ
Tinha a cabeça coberta com um talith do qual pendiam cinco ou seis borlas azuis.
- Por meio do filho de Ishai de Belém... - continuou - se aproxima a tua redenção!
A comunidade, entusiasmada, repetiu as proféticas palavras de Jesus, broto ou filho de Belém.
Jolí recolheu o manto e concluiu o hino. Depois deu meia-volta e voltou ao seu banco.
Eu não podia acreditar na cena. Casualidade? Duvido...
Jesus manteve-se junto à porta principal, meio escondido entre outros fiéis. Jolí continuou com a cerimónia. Fez um gesto e outro "notável" se levantou.
- E Nitay - esclareceu Tiago - irmão de Yehudá, responsável pelas bênçãos.
Nitay ben Jolí também era sacerdote, ainda que totalmente oposto ao "saco de sebo", como chamavam pejorativamente Yehudá (sobretudo suas vítimas). Era magro como uma vara, dócil e de bons sentimentos. Era também funcionário, responsável pelas esmolas15 ougby-sbqh e diretor das "sessões menores" do culto. Dedicava-se totalmente à sinagoga e ao auxílio aos pobres e estrangeiros necessitados. Também desempenharia um certo papel principal no período de pregação do Filho do Homem.
Nitay subiu os degraus curtos que levavam ao alto da bema ou estrado localizado no centro da nave, e depois de inclinar levemente a cabeça, saudando os "notáveis", dirigiu o olhar na direção dos "círculos" da fachada, iniciando o serviço religioso propriamente dito. Fez isso com duas
O coletor de esmolas, segundo a tradição, deveria ser israelita de ascendência pura, sem mistura de raças. Era o responsável pelas diferentes arrecadações, tanto em dinheiro como em espécie, todas depositadas na sinagoga e controladas pelo arquissinagogo. Havia um pequeno cesto ou cupa para as esmolas semanais que, em teoria, era destinado aos pobres do lugar e a bandeja ou tmhwy, na qual os fiéis entregavam todo tipo de prod!íos, especialmente comida. A bandeja estava destinada, sobretudo, aos estrangeiros sem recursos económicos. Quem tivesse dinheiro para duas refeições por dia não podia valer-se da bandeja. (N. do M)
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bênçãos, às quais seguiu-se o Sema ("Ouve, Israel"), o credo judaico por excelência, baseado na Bíblia (Deuteronômio 6, 4-9 e 11, 13-21 e Números 15, 37-41), onde se proclama a autoridade de Yavé. Essa confissão de fé deveria ser pronunciada duas vezes ao dia, de manhã e de tarde, no lugar onde estivesse o varão judeu. Mulheres, crianças e escravos estavam liberados. Por certo, nem todo mundo cumpria com o citado preceito.
- Escuta ó Israel!... O Santo, nosso Deus, é o único Santo!
Nitay recitou o Sema com voz embargada e uma entonação nasal artificial. Os fiéis repetiram alguns dos conceitos, ao mesmo tempo que começavam a balançar-se para a frente e para trás, cada vez com mais
intensidade.
- Amarás ao Santo com todo teu coração, com toda tua alma e com
toda tua força!
Os olhares estavam fixos nos "círculos" e a maioria, atenta à recitação do
sacerdote, começou a amarrar no braço esquerdo e na testa os filactérios de couro negro. Essas caixinhas, nas quais se guardavam frases do Pentateuco, eram maiores e mais brilhantes nos "notáveis". Dessa forma demonstravam ser "mais justos e melhores cumpridores
da Lei".
- Que estas palavras que hoje eu te ordeno estejam em teu coração!... Tu as atarás em tua mão como um sinal e serão como um frontal
entre os teus olhos!
- E serão como um frontal entre os teus olhos - repetiu a congregação, cada vez mais excitada.
No exterior, a chuva continuava batendo no telhado.
Procurei o Mestre. Permanecia imóvel, perto da porta principal. Seu corpo oscilava. Também não repetia o Sema. Seus lábios estavam fechados e tinha no rosto uma expressão grave. Em nenhum momento dirigiu os
olhos para o sul.
Temi que seus compatriotas pudessem repreendê-lo. Jesus estava na
sinagoga, mas não estava...
- Amém! - foi a resposta coletiva às últimas palavras de Nitay. Concluído o "Escuta, ó Israel", o coletor das esmolas desceu da
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plataforma de madeira e caminhou devagar para a cortina de veludo vermelho. Era a segunda parte do ofício: a recitação das Semoneh esreh, as
dezenove preces, a oração por excelência do povo judeu. Chamavam-na assim, a "prece", a htplh. Todos eram obrigados a recitá-la três vezes por dia (pela manhã, na primeira hora da tarde e ao anoitecer16).
Nitay colocou-se diante do véu e com voz igualmente embargada, "dirigiu a prece", fazendo o que os judeus chamavam br Ipny htybh. Qualquer um poderia encarregar-se dessa recitação, com exceção das mulheres e dos menores de idade (o judeu alcançava a maioridade legal aos doze anos e meio). Não era necessário que fosse sacerdote ou funcionário da sinagoga.
- Bendito és, Senhor Deus nosso e Deus de nossos pais!... Grande Deus, poderoso e terrível!...
Os que estavam reunidos fizeram coro das últimas palavras.
- Grande! Poderoso! Terrível!
Alguns dos "notáveis", balançando-se sem cessar, levantaram os braços e começaram a golpear-se no peito e na testa. A congregação os imitou, aumentando a temperatura e o frenesi dos mais fanáticos.
Assustei-me. O Mestre não se abalou. Parecia uma estátua. Felizmente, a comunidade olhava para o norte, para o lugar em que Nitay continuava recitando. Faltou pouco para que eu perguntasse a Tiago sobre a conduta de seu Irmão: por que não agia como os outros? A dúvida, sei agora, foi uma estupidez...
- Senhor, tu és o todo-poderoso para sempre! Tu fazes viver os mortos!
- Os mortos! - repetiu a assembleia, fora de si -. Tu fazes viver os mortos!
As Semoneh compõem-se de dezenove berakot ou bênçãos. As primeiras louvam a onipotência e a graça de Yavé. Nas centrais aparecem as súplicas e as petições de conhecimento,
arrependimento, perdão, libertação do mal, saúde e boas colheitas. Finalmente, pede-se a restauração da soberania nacional judaica, a reunião dos dispersos, a destruição dos ímpios (naquele tempo de Roma), o prémio dos justos e o envio do Messias libertador. Anos depois, por volta de 70-100 d.C., ficaram reduzidas a dezoito. (N. do M.)
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Vários dos "notáveis", embriagados na atmosfera de fervor, começaram a bater nos braços dos bancos... O Galileu nem piscou. Meus olhos, sem querer (?), voaram na direção da grade que separava as mulheres. Ruth levantou os olhos e nos olhamos.
- Tu dás o conhecimento aos homens e os ensinas a entender! Ela, creio, compreendeu. Que mais eu podia deduzir daquele olhar? - Perdoa-nos, Pai, porque pecamos! Proclama nossa libertação com
a grande trombeta e eleva uma bandeira para reunir todos os dispersos... Os homens gritaram de prazer, fazendo eco às palavras de Nitay.
- Que não haja esperança para os delatores e que pereçam logo todos os que fazem maldade!
Os "notáveis" levantaram-se dos bancos e, com fúria, se estapeavam, clamando e invocando o nome do Santo. A voz de Nitay quase se extinguiu.
- Que não sejamos envergonhados!
Jesus baixou a cabeça e permaneceu com os olhos fixos no chão. Que loucura era aquela?
- Faze que brote logo o rebento de Davi e levanta o seu corno de
carneiro por tua salvação!
O final da "prece" foi inaudível. Os gritos, os golpes nos bancos e os pedidos de "Messias já" abafaram as últimas bênçãos. Tiago, com os braços erguidos, também se uniu à congregação, reclamando o libertador.
Era evidente como a luz. O Mestre estava ali, mas não estava...
Nitay inclinou a cabeça três vezes e voltou ao seu lugar, no primeiro banco da direita. Os ânimos se acalmaram de repente. Era assombroso. Aquela gente passava da mais absoluta frieza ao paroxismo em um abrir e fechar de olhos. Bastava que alguém os dirigisse. À minha memória vieram algumas cenas da paixão e morte do Filho do Homem...17
Sim, era evidente como a luz. Lá também partilhavam do conceito de um Messias libertador que os arrancasse do jugo dos invasores e que pusesse Israel no ponto mais alto, dominando e dominante. Baixei os olhos. Era evidente...
17 Ampla informação em Jerusalém. Cavalo de Tróia 1. (N. do A.)
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J.]. BENÍTEZ
Jolí aproveitou a pausa e, como "mestre de cerimónia", deu as ordens oportunas para continuar o serviço religioso. Com isso entramos na terceira parte, a leitura da Lei.
Um ancião de pequena estatura, com túnica e manto brancos, aproximouse do véu e o recolheu à esquerda. A congregação, então, colocou-se de pé.
Tiago continuou informando. Atrás da cortina apareceu a arca, com rodas. Era uma espécie de armário de quase dois metros de altura, todo em
madeira de oliveira e muito bem lavrado. No tybh, como o chamavam, eram guardados (cuidadosamente) os rolos da Lei e dos Profetas. Cada livro muito bem embrulhado em um pano duplo de linho fino (mtphwt) e fechado em um tyq ou estojo de metal precioso. Aquele homem chamava-se Tarfão e era funcionário da sinagoga - mais exatamente, ministro ou hazzan ha-keneset. Fazia de tudo. Preparava e transportava os livros da arca até a mesa da bema, dava atendimento aos leitores, corrigindo-os se se enganavam, devolvia os rolos sagrados ao tybh, tocava a trombeta anunciando o shabbat e outras celebrações, atendia à escola, era carrasco, ajudava nas coletas, cuidava da limpeza e manutenção do edifício e, sobretudo, era espião do arquissinagogo. Todos sabiam disso. "Tarfão era um indesejável a serviço de Jolí." Nunca soubemos sua idade. Estaria perto dos 60 anos e caminhava curvado, com os olhos no chão, "pela eventualidade de encontrar um as". Nunca olhava os olhos da pessoa com quem falava. Sofria um tique permanente nos olhos e tinha o apelido de "Repas" (literalmente, "pisotear") porque era capaz de pisar sua mãe, "se tivesse tido uma", por dinheiro. Esse foi outro acirrado inimigo de Jesus em Nahum...
Tarfão abriu o armário e retirou um dos estojos de madeira e nácar. No interior encontrava-se o rolo que deveria ser lido nesse dia. Naquele tempo, a Tora18 era copiada em tiras de pergaminhos curadas e tratadas previamente e, posteriormente, costuradas entre si e amarradas a duas varas ou "árvores da vida".
18 A palavra hebraica "tora", como já expliquei, significa "ensinamento, guia ou instrução". Naquela época, englobava três grandes capítulos: o Pentateuco, a lei oral ou misná e o resto da literatura religiosa judaica. (N. do M.)
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ele retirou a capa de linho que o protegia e desenrolou o "livro", mostrando parte do texto. A congregação, ao ver as colunas em tinta preta, com a letra quadrada e simétrica do hebraico sagrado, irrompeu em um suspiro generalizado. Era a Lei, a palavra de Deus.
O hazán levantou então o rolo acima de sua cabeça e começou um lento passeio pela sinagoga. Todos pudemos contemplar a escrita esmerada. Tratava-se disso. Os fiéis, emocionados, saudavam a passagem da Lei com gritos ensurdecedores que repetiam: "Tora! Tora! Tora!" e recomeçavam o balancear rítmico dos corpos.
Jesus, silencioso, acompanhou com a vista o movimento do "livro". Que pensaria de tudo aquilo? Precisava perguntar a Ele.
A chuva cessou. Tarfáo depositou o rolo sobre a mesa da bema e começou a procurar o parágrafo correspondente. Para isso, desenrolou a vara da direita e foi enrolando o suporte ou "árvore da vida" da esquerda. Uma vez localizado, permaneceu de pé, ao lado da mesa ou migdal, cuidando do "tesouro". Fez então um sinal ao presidente.
Jolí concordou com a cabeça e ergueu os braços, pedindo silêncio. Com a última exclamação - louvando a Tora - vi levantar-se outro "notável". Caminhou rapidamente e subiu os degraus da plataforma pelo lado direito. O hazán assinalou um ponto no couro da vitela e o homem, depois de certificar-se do texto marcado pelo dedo indicador esquerdo do ancião, começou a ler. Concluído o primeiro versículo, deteve-se e fez targum, isto é, traduziu o hebraico da língua do povo ao aramaico19. Continuou com o segundo versículo e a tradução obrigatória. Concluída a terceira leitura e o correspondente targum, o "notável" desceu os degraus
19 O meturgeman ou tradutor era outro personagem importante no mundo das sinagogas. Era impossível a leitura da Lei ou dos Profetas se este náo se encontrasse presente.
O hebraico sagrado deixou de ser utilizado pelo povo e foi substituído pelo aramaico. Somente era obrigatório nas recitações escolares e nas referidas leituras da Lei. Às escolas ia somente uma minoria, por isso o hebraico náo era compreendido pela maior parte do povo judeu. É possível que o costume de fazer targum tivesse nascido com a volta da Babilónia. Assim deduzem os especialistas ao ler o capítulo 8 de Neemias. Quando Esdras leu a Lei, e o povo respondeu com o "Amém", os levitas leram no livro da Lei de Deus "com clareza e precisando o sentido, de maneira que
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pelo lado oposto ao que havia subido e rodeou o estrado, voltando a subir à bema. Continuou a leitura e a tradução da Lei, e ao finalizar o sexto versículo repetiu a estranha cerimónia de descer e tornar a subir. Tiago se desculpou pelo que considerou "uma falta de respeito para com o Eterno": a leitura da Tora deveria ser efetuada por diferentes membros da comunidade. Segundo alguns doutores e rabinos, o mínimo de leitores era três. Outros permitiam até sete. Lamentavelmente, poucos liam hebraico em Nahum. Essa era a razão pela qual o "notável" subia e descia ao estrado a cada três versículos, "simulando" que a leitura era feita por indivíduos diferentes (!). Era assim aquele povo...
A simulação repetiu-se sete vezes. O serviço religioso entrou na sua última fase: a leitura de um texto dos Profetas ou "recitação de despedida", também conhecida como haftará. O hazán retirou o rolo da Lei e voltou à mesa com outro "livro". Abriu-o com idêntica reverência sobre a pequena mesa e avisou Jolí. Tudo estava preparado. A congregação, em silêncio, aguardou que o presidente obeso se levantasse. Empenho inútil. Jolí tentou algumas vezes e foi necessário que os "notáveis" o puxassem.
Depois, bamboleando e respirando com dificuldade, subiu os degraus da bema e colocou-se diante da mesa. Aquele que tinha sido leitor e tradutor
entenderam a leitura". Tudo estava previsto pelos escribas e doutores: a Lei somente poderia ser traduzida versículo a versículo (os Profetas de três em três versículos) e nunca lida (somente memorizada). Se o leitor cometesse um erro, o hazán o corrigia. O mesmo acontecia com o tradutor. Se a passagem em questão provocasse dúvida, escândalo ou o riso da congregação, o ministro detinha a leitura ou o targum. Segundo as prescrições dos rabinos, a Lei ou Tora somente podia ser lida, nunca recitada de memória (ao contrário das traduções). Isso obedecia ao seguinte princípio: a Bíblia é imutável e sagrada, é a palavra de Deus. Ninguém deve modificá-la, nem sequer de forma involuntária. Nenhuma tradução, nem a mais fiel e esmerada, é comparável com a categoria da palavra de Deus. Toda tradução - diziam - leva consigo o caráter da transitoriedade. O targum não é definitivo. A Tora, sim. Por isso traduzia-se de cor e sem olhar o livro. Por isso as traduções escritas eram repudiadas pelos mais religiosos e puristas. Nenhuma tradução era capaz de aproximar-se das "setenta faces da Bíblia", e muito menos da sutileza e da sabedoria de seus textos. Argumentavam assim os rabinos, com certa razão. (N. do M.)
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posicionou-se à sua esquerda e o arquissinagogo deu início à leitura, em hebraico, dos três versículos selecionados.
- Dirás: assim diz o Eterno: "Eis que vou encher de embriaguez todos os habitantes desta terra, os reis que estão sentados no trono de Davi, os sacerdotes, os profetas, e todos os habitantes de Jerusalém".
O "notável" traduziu ao aramaico com a vista fixa nos círculos da parede.
Sua memória era excelente.
- E lançarei uns contra os outros - prosseguiu Jolí -, mesmo os pais contra seus filhos, diz o Eterno... Não terei piedade nem compaixão para destruílos.
Os fiéis, mudos, encolheram-se diante das palavras do profeta Jeremias.
O Mestre tinha levantado o olhar para uma das lamparinas de azeite que pendiam do teto. Parecia definitivamente ausente...
Jolí concluiu o 15°. versículo daquele capítulo 13, soletrando uma das frases:
- Escutai, prestai ouvidos, não se-ja-is or-gu-lho-sos... Porque o Eterno falou.
Terminada a tradução, à qual o "notável" injetou a mesma ênfase e o tom ameaçador utilizado pelo presidente da sinagoga, Jolí deixou-se cair pesadamente sobre a cadeira. A congregação preparou-se para a "lição final", um discurso, geralmente curto, no qual o pregador ou darshan expunha suas idéias a respeito da passagem que acabava de ler20.
Um murmúrio suspeito desprendeu-se da assembléia. Tiago esclareceu o motivo.
20 Ao longo do período de pregação de Jesus de Nazaré - quase quatro anos -, este que escreve teve a oportunidade de assistir diferentes cerimónias religiosas nas sinagogas judaicas. A "lição final" privilegiava duas possibilidades: "fazer maftir" ou "fazer amora". A primeira versão consistia em um discurso direto, ao alcance do povo. Na segunda, o mestre ou rabi sussurrava sua lição ao ouvido de um amora e este, por sua vez, como um tradutor, com palavras simples, transmitia à congregação os complexos e labirínticos postulados do pregador. Era o único jeito que o povo entender as colocações doutrinais dos sábios. Jesus sempre utilizou a.
primeira técnica: "fazer maftir" ou ensinar com palavras "luminosas". (N. do M.)
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- Orgulhosos? Somente nós somos soberbos e altivos? Sorriu com ironia.
- Que podemos dizer dele? Hipócrita!
Foi um adiantamento sobre a personalidade daquele sujeito. Com o tempo seríamos testemunhas de algo muito pior...
- Não respeita sequer suas próprias normas - acrescentou em alusão à maquiagem. Somente as "burrinhas" se pintam para sair à rua.
Os sacerdotes, realmente, não podiam participar do culto com o rosto, as mãos ou os cabelos pintados. Alguns rabinos discutiam se essa proibição afetava unicamente o Templo de Jerusalém ou a totalidade dos lugares de reunião, como o era o caso das sinagogas. As "burrinhas" ou prostitutas tinham a obrigação de sair à rua com uma peruca amarela que as distinguia das mulheres "não-pecadoras". Em raras ocasiões cumpria-se esse preceito.
Jolí fez maftir. Suas palavras foram claras e diretas. Todos os presentes compreenderam, exceto estes exploradores. Amparando-se nas frases de Jeremias, acusou determinados membros da comunidade (sempre sem mencioná-los) de "maus, miseráveis e vadios". Para ser exato, usou o termo "prevaricadores", ameaçando-os com a destruição anunciada pelo profeta...
Tiago esclareceu nossas dúvidas.
O sacerdote e arquissinagogo atacava os que vinham com regularidade à entrada do shabbat. Isso, é óbvio, repercutia na coleta... Resumindo, outro problema interessante.
Durante um tempo continuou com as diatribes, uma mais injuriosa que outra, lembrando à congregação - "e aos ausentes" - "que se um homem deixa de ir só uma vez à sinagoga, o Santo, bendito seja o seu nome, lhe pedirá contas".
A comunidade, incomodada, começou a remexer-se nos bancos.
- E o Santo, bendito seja, quebrará seus dentes e não terá piedade! Lançará uns contra os outros!
Jolí manipulava o texto da Lei à sua vontade. A passagem de Jeremias não fazia alusão, nem de longe, ao que dizia aquele de cabelo pintado. O que o profeta anunciava referia-se ao desterro dos judeus para a Ba
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bilônia e ao desastre do reinado de Joaquim, assassinado, provavelmente no ano 598 antes de Cristo.
- Mas, se não sois orgulhosos - acrescentou gritando - se vos vejo todas as semanas neste santo lugar, então, Ele, bendito seja o seu nome, vos recompensará com uma vida longa...
- E a ele - murmurou Tiago sem piedade - encherá os bolsos.
Ao procurar por Jesus me sobressaltei: já não o via. Não estava junto da porta principal. Percorri as proximidades com os olhos, mas também foi inútil. O Mestre não estava na sinagoga.
O que estava acontecendo?
Não perguntei. Não quis inquietar seu irmão. O instinto me dizia que o Galileu não estava à vontade...
O presidente e arquissinagogo concluiu a "homilia" pouco caridosa e tentou levantar-se para dar a bênção final. O hazán apressou-se a recolher o rolo e se afastou na direção da arca.
Lutou curvado, uma vez mais, para soltar-se da poltrona. Impossível. A exagerada corpulência de Yehudá ben Jolí tinha se encravado no assento. Estava entalado. Suspirou impotente, e o tradutor e vários dos "notáveis" correram para ajudá-lo pela enésima vez.
A congregação, atónita, não sabia o que acontecia; os murmúrios recomeçaram. Tentaram liberar as nádegas, uns puxando a cadeira e outros os 130 quilos. Os murmúrios aumentaram e surgiram as primeiras risadinhas... Jolí conseguiu ficar de pé, mas a cadeira continuou grudada
no enorme traseiro.
Os fiéis, ao descobrir a situação comprometedora e ridícula, tapavam a boca com as mãos, tentando frear as gargalhadas. O indivíduo, vermelho de raiva, apressou-se a resmungar o que Números (6, 22) estabelecia, recitando as bênçãos a toda velocidade, sem respirar e
sem pausas:
- O Santo te abençoe e te guarde ilumine o Santo seu rosto sobre ti e te seja propício o Santo te mostre seu rosto e te conceda a paz.
Somente alguns responderam com o costumeiro "amém". A risada foi geral e, de certo modo, tão impiedosa quanto o sermão.
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j.j. BENÍTEZ
- Olho por olho - sentenciou Tiago, enquanto nos convidava para sair da
galeria.
Assim terminou o ofício religioso daquele sábado recém-estreado. Como disse, não seria a última vez que assistiríamos a uma cerimónia semelhante...
O Destino nos reservava várias surpresas, justamente naquele lugar e com aquelas personagens. Mas demos tempo ao tempo.
A noite, límpida e estrelada, com a lua nova em seu último estágio, recebeu-nos cálida e promissora. Procurei Jesus entre os fiéis que permaneciam nas portas da sinagoga, conversando e comentando o último "incidente". Não pude encontrá-lo e deduzi que tinha voltado para a "casa das flores".
Na entrada da porta principal, Nitay, o coletor de esmolas, agitava a cupa ou cestinho à passagem dos que se retiravam, animando-os a depositar o seu dinheiro. A cada um chamava pelo nome e, gritando, proclamava o valor da sua doação. As pessoas falavam e riam, mas na realidade, estavam mais atentas aos avisos do sacerdote do que às conversas e às fofocas. Todos, ao voltar para casa, sabiam o que cada um havia oferecido, e isso era motivo de comentários durante o resto da semana. Comentários, entregassem o que entregassem.
Ao seu lado, diante de um grande cesto, encontrava-se Turfão, curvado e silencioso, o hazán ou "sacristão". Era o responsável pelo tmhwy ou "bandeja" para os estrangeiros. Aqueles que não podiam ou não desejavam participar com moedas o faziam em espécie, entregando grão, fruta, peixe, comida já cozida, pães (alguns recheados), animais vivos (nunca mortos), roupa, calçados etc. Todos conheciam muito bem o "destino" da coleta: os respectivos bolsos do arquissinagogo e demais funcionários. As pessoas, no entanto, não tinham alternativa.
Tiago, depois de despedir-se de alguns vizinhos, encaminhou-se ao cardo, lembrando-nos do convite para o jantar. Várias crianças, com tochas
acesas, vieram encontrar-nos, oferecendo-se para iluminar-nos o caminho por um par de leptas. Não era preciso. Nós três conhecíamos o percurso. Insistiram. Para os "iluminadores", o final do ofício religioso era uma oportunidade de ganhar algumas moedas, mesmo que fossem só
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trocados. Caminhavam na frente, aproximando a luz ou a tocha dos pés da pessoa que pedia seus serviços. Por determinadas ruas e bairros eram
realmente úteis...
Foi então que Eliseu me avisou. Um dos supostos meninos que estavam ao nosso redor, disputando os pobres "clientes", era um velho "amigo"... Creio que nos reconheceu, ou melhor, tenho certeza. Ficou para trás, desconcertado, segurando a tocha entre as mãos. Apressamos o passo, despedindo a criançada. Não me atrevi a virar a cabeça. Não queria novos problemas e muito menos como os que vivemos com o Kuteo, o samaritano que roubou a bolsa de borracha do meu companheiro. Não havia dúvida: era ele. A estatura baixa o camuflava entre os meninos, mas a longa barba tingida de vermelho-sangue era inconfundível. Por certo, não o vimos usando nenhum tapa-olho...
Aquele encontro rápido com o "cambista" e falso caolho não me agradou. O sujeito não era confiável. Teríamos de ficar muito atentos...
Não me enganei.
Como já mencionei em outras oportunidades, a escuridão das casas judaicas sempre foi um problema para mim. Eliseu, por sua vez, sabia movimentar-se com habilidade. Tive contínuas dificuldades. Os judeus iluminavam seus lares com lamparinas, mantendo-as acesas, inclusive, durante a noite. Mas não era
suficiente...
Tiago atravessou o pátio da "casa das flores" e se deteve no fundo da moradia. Afastou a cortina de rede e entrou no aposento que servia de cozinha e refeitório na época de chuvas. Nós, na frente da porta, não soubemos o que fazer. Pouco depois, compreendendo, o irmão apareceu de novo no pátio descoberto e nos repreendeu carinhosamente: - Vamos! Esta é vossa casa...
Eu entrei em primeiro lugar, mas, sinceramente, quase não via nada. O lugar, mal iluminado por algumas luzes colocadas em nichos das paredes, foi como boca de lobo para este desajeitado explorador. No afã de dar passagem para o meu companheiro, coloquei-me de lado, e isso foi a pior coisa que poderia ter feito... Tropecei em algo e, sem poder fazer nada, perdi o equilíbrio e cai sobre o chão de lajotas. O que recordo a
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seguir foi o choro do bebê e as palavras de consolo da filha mais velha de Tiago e Esta. Palavras de consolo para Amos, naturalmente...
Tiago correu para me ajudar. Veio com uma das lamparinas e iluminou a cena e este inútil varapau. Eliseu me perguntou se tudo estava bem, mas o que não estava era o meu ânimo, que continuava no chão. Na minha inabilidade, como digo, não havia notado Raquel, a filha do casal, que tinha no colo o caçula da família. Dei graças a Deus. Por sorte, o tropeção foi na garota: não sei o que teria acontecido se tivesse pisado no bebé... A mãe, Esta, também acudiu, tomando o pequeno nos braços e saindo do quarto. Atrás dela, segurando sua túnica, saiu a menina. Levantei-me e lentamente fui me acostumando com a penumbra. Ela não estava presente e me senti
melhor...
Ao passar os olhos pelo quarto, descobri o Mestre. Estava de pé, no nível superior, olhando para mim. O lugar era muito parecido ao que havia visitado na casa de José e Maria, em Nazaré: dois níveis (o mais elevado, cerca de um metro do chão, era utilizado habitualmente para cozinhar e dormir). No inferior, coberto por esteiras, reunia-se a família na hora de comer, conversar ou receber os amigos e convidados.
Jesus levantou a mão esquerda e pediu que eu me aproximasse. Subi a escada de pedra e cheguei perto Dele. Segurava um pequeno fole circular de esparto21 com o qual costumavam avivar o fogo. Entregou-o a mim e, seu único comentário, sorrindo brincalhão, foi:
- Vem, aprende a manter vivo o ur...
Um estranho calor me subiu ao estômago. A palavra ur aceitava vários significados. Era "fogão" ou "fogo" e também "luz" ou "resplendor externo ou interno". Podia ser entendida como "estar enamorado". Preferi este último. Ele sabia...
Juntos, revezando-nos, agitamos o fole, avivando o ur do fogão sobre o qual as mulheres iam preparar o jantar do sábado, e o ur do meu coração. Não houve mais palavras. Não eram necessárias. Ele, como eu disse, sabia de tudo e, o que era mais importante, conhecia o final...
21 Esparto: espécie de junco que cresce nas regiões do Mediterrâneo. (N. do T.)
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Aquele gesto - avivar o fogo do lume - era outro sinal da "liberalidade" da família que nos acolhia. Para os muito religiosos, uma vez iniciado o
shabbat, o trabalho estava rigorosamente proibido. Yavé exigia isso no Êxodo22. Qualquer violação era castigada, inclusive com a morte. Somei dezenas de proibições, algumas absurdas e ridículas, às quais espero dedicar atenção mais adiante. Uma delas, justamente, era fazer ou atiçar o fogo. Os ortodoxos e judeus observadores da Lei eram obrigados à refeição fria, ainda que, na hora da verdade, quase ninguém cumprisse isso. Era tão simples como acender o fogo antes do pôr-do-sol e conseguir mante-lo aceso com a ajuda de alguém não judeu. Para isso existiam, por exemplo, os "iluminadores". Por umas moedas entravam nas casas e faziam o que os puristas não queriam fazer. O pecado - diziam - quem o cometia eram os pagãos...
A maior parte do povo, no entanto - como sucedia com a família do Mestre -, não chegava a esses extremos, e muito menos, na Galiléia. As pessoas respeitavam o sábado - não trabalhavam - mas se comportavam com o senso comum. Aguardavam os toques de trombeta (geralmente três) para deixar as suas ocupações. O primeiro avisava aosfelah ou camponeses para que interrompessem os afazeres do campo. O segundo era o aviso aos comerciantes judeus. Os proprietários das tabernae fechavam as portas dos
O livro do Êxodo (31, 12-17) diz textualmente: "Yavé disse a Moisés: Tala aos filhos de Israel e dize-lhes: Observareis de verdade os meus sábados, porque são um sinal entre mim e vós em vossas gerações, a fim de que saibais que eu sou Yavé, o que vos santifica. Observareis, pois, o sábado, porque é uma coisa santa para vós. Quem profanar será castigado com a morte. Todo aquele que realizar nele algum trabalho será retirado do meio do povo. Durante seis dias poder-se-á trabalhar; no sétimo dia, porém, se fará repouso absoluto, em honra de Yavé. Todo aquele que trabalhar no dia do sábado deverá ser morto. Os filhos de Israel observarão o sábado, celebrando-o de geração em geração, como uma aliança eterna. Será um sinal perpétuo entre mim e os filhos de Israel, porque em seis dias Yavé
fez os céus e a terra: no sétimo dia, porém, descansou e tomou alento". Também os escravos, estrangeiros a serviço dos judeus e toda classe de animais se encontram isentos da obrigação de trabalhar no sbabbat. Isso provocava situações complexas que davam em intermináveis discussões entre os doutores da Lei. Por exemplo: o que aconteceria se uma galinha pusesse ovos na festividade do sábado? Era culpada? Sem comentários... (N. do M.)
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estabelecimentos. O último toque alertava as mulheres: era o momento de acender a chama sagrada que deveria presidir a casa durante a jornada. O hazãn ou ministro, como já referi, era o responsável pela trombeta. Quando o sol se ocultava - mais exatamente, quando aparecia a primeira estrela no firmamento -, tinha a obrigação de abrir as portas da sinagoga e fazer soar a trombeta. Às vezes subiam aos sótãos e repetiam os toques até seis vezes. Esse era um dos sons mais esperados pelos trabalhadores. A partir daí, as pessoas se lavavam, vestiam roupas limpas e se preparavam para ir ao primeiro serviço religioso, a "acolhida ou boasvindas ao shabbat", a "noiva" de Israel.
A Senhora não demorou a chegar na sala. Carregava uma chama pequena, tímida e oscilante na mão esquerda. Era a luz do shabbat. Maria, levantando o candeeiro, disse:
- O sábado começa a brilhar... Bendito seja o Eterno, rei do mundo, que nos santificou com seus preceitos e nos ordenou acender a luz do sábado.
Notei que estava feliz, muito diferente dos dias anteriores... Havia um porquê. O sábado não era somente o dia de descanso. Era também o dia "oficial" da alegria. Assim ordenava Yavé. Ninguém deveria entristecer-se. Estar alegre era
uma obrigação assinalada na Tora. Nisso os invejei. Nunca soube ser feliz "por decreto"... O shabbat, além disso, era a ocasião na qual os puristas aconselhavam fazer o amor23. Como é fácil imaginar, somente os ortodoxos (não todos) se ajustavam a essa normativa, supostamente ditada por Deus do Sinai.
O shabbat, definitivamente, era a "festa das festas", na qual se comemorava uma série de "eventos", alguns improváveis, mas que enchiam de or
Naquele tempo, segundo a lei oral (ketubbot ou "documento matrimonial") o ato sexual ou "débito marital", como o chamavam, vinha estabelecido da seguinte forma: os trabalhadores deveriam cumprir uma vez por semana, no mínimo; os escribas e outros estudiosos da Lei podiam desobrigar-se durante um mês, no máximo; os ociosos eram obrigados a satisfazer as suas mulheres todos os dias; os trabalhadores manuais, duas vezes por semana; os arrieiros, uma vez por semana; os cuidadores de camelos e de burros, uma vez cada trinta dias, e os marinheiros, uma vez cada seis meses. Se a esposa se opusesse ao "débito marital", os anciãos diminuiriam o dote a cerca de sete denários por semana. Quando era o marido quem se opunha, tinha que somar três denários por semana ao dote mencionado. (N. do M.)
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gulho e satisfação os judeus. Por exemplo: "No sábado Adão foi perdoado". Também, no sábado, foi composta a primeira canção humana, obra do citado Adão quando soube que o Eterno o havia perdoado (!). Outros afirmavam que esse primeiro homem foi criado no sábado, justamente ao entardecer da sexta-feira. Assim, o shabbat foi o final da criação (a mulher era notavelmente inferior ao homem - diziam - porque, entre outras coisas, "foi criada no domingo"). Também celebravam o que chamavam
a "correlação de Moisés", o homem que materializou os desejos de Deus, segundo diziam24.
Em seguida entraram Esta, sem os filhos, e Ruth... Ela, com o cabelo preso, os olhos levemente sombreados e a túnica azul que tanto me agradava... Trazia pendurado no peito um amphoriskos, uma minúscula esfera de alabastro na qual as mulheres costumavam guardar perfume. O pescoço longo e fino permitia verter a essência gota a gota. Estava realmente bela...
Em questão de minutos, tudo ficou pronto para a celebração do jantar do shabbat. Nem Eliseu nem eu tivemos de fazer nada. Não o permitiram.
Depois de lavar as mãos obrigatoriamente, Tiago, como o cabeça da família, nos convidou para sentar sobre as esteiras, no nível inferior. Como já disse antes, havia anos que Jesus passara a função e as responsabilidades de chefe de família a seu irmão Tiago, o mais velho dos homens depois do Mestre.
Fomos seguindo as indicações do anfitrião: o Galileu foi o primeiro a sentar-se, "às doze", digamos, da minha posição25. Formamos um círculo. De acordo com o sentido das agulhas do relógio, Tiago sentou-se à esquerda de seu irmão. Eliseu ocupou o lugar seguinte e eu me sentei em seguida, diante de Jesus. As mulheres continuaram arrumando as coisas, subindo e descendo de um a outro nível. Esta depositou uma bandeja de madeira sobre as esteiras,
24 Para os sábios judeus, Moisés foi o artífice do shabbat. Ele o organizou, proporcionando à semana seu aspecto definitivo. Para isso usou a correlação existente entre as letras "sh", que significam "sete" (Sebà) e "sbt" que querem dizer "parar ou cessar" (shabbat). A semana (sb) era, portanto, um tempo entre dois sbt ou "sábados". Assim o ratifica o profeta Ezequiel no capítulo 20, versículo 12. (N. do M.)
25 "Às doze", na linguagem aeronáutica, equivale à posição "na frente" do
piloto. As "nove" seria à sua esquerda, e às "três", à direita. O resto das horas marca as correspondentes posições. (N. do M.)
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no centro do círculo ainda incompleto. Continha dois pães de trigo oujalot e oito canecas de barro, uma delas mais alta e larga. Em seguida, a mulher grávida se acomodou em silêncio entre seu esposo e o engenheiro.
Tiago chamou a mãe e Ruth. Ambas vieram em seguida. A Senhora carregava a lamparina com a qual havia entrado na sala e a deixou cuidadosamente entre as taças. Agradeci. Agora a visão era melhor...
Suponho que foi por casualidade. Ou não? Mas desde quando acredito na casualidade? Não, não foi casualidade... Ela sentouse à minha esquerda, ou melhor, ajoelhou-se. E aquele incontrolável "fogo" subiu pela minha barriga. Não me atrevi a olhá-la. O perfume de jasmim me fez voar... A Senhora completou o círculo, ajoelhandose também à esquerda de Ruth, o "pequeno esquilo". Tiago abençoou, primeiro os homens: "Deus te faça como a Efraim e Menashe...", e depois as mulheres.
Senti-me perturbado. Não sabia onde fixar o olhar. Meu coração se acelerou e imaginei que todos começavam a perguntar o motivo daquela inquietação. Um apaixonado supõe coisas estranhas, verdadeiramente. Depois, a família entoou o Shalom alejem... Jesus cantou com força. Parecia mais tranqüilo e alegre do que na sinagoga. Nem Eliseu nem eu abrimos a boca.
- A paz esteja convosco, mensageiros da paz, anjos da guarda... Arautos celestiais!
Ao pronunciar a palavra "arautos", o Mestre procurou-nos com o olhar e
sorriu durante alguns segundos. Ninguém se deu conta da rápida, mas importante, "piscadela". Mensagem recebida.
Tiago deu início ao Kidush, a prece que o chefe da família recitava enquanto impunha as mãos sobre o vinho e os pães, declarando-os sagrados26.
Na cerimônia de despedida do shabbat ou Havdalá também era realizada a consagração ou "declaração de sagrado" do vinho e dos gêneros, geralmente o pão de trigo. Os cristãos, mais tarde, copiaram parte dessa cerimônia, adaptando-a à fórmula mágico-matemática que conhecem como Eucaristia. A família invocava a Deus, pedindo uma semana de paz e com saúde, implorando a "volta rápida do Profeta Elias", anunciador do Messias, filho de Davi. (N. do M.)
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- E foi-se a tarde e foi-se a manhã... No sexto dia foi concluída a criação do céu, da terra e de tudo o que está neles. O Santo havia concluído sua obra no sétimo dia...
Terminada a recitação do KidusH11, Tiago, em meio de um silêncio solene, tomou a caneca maior e ofereceu-a a meu companheiro. Eliseu, agradecido, bebeu e, sem saber o que fazer, consultou o chefe da família. A lógica ignorância do engenheiro provocou algumas risadas. Tiago, fiel às regras da hospitalidade, apontou para mim, indicando-lhe que me passasse a vasilha.
Bebi. Era um vinho negro e doce, muito agradável. Então aconteceu algo que não soube explicar. Ou sim? Em lugar de entregar a caneca a Tiago, para que os homens continuassem bebendo, tal como estabelecia o costume, oferecia-a a Ruth. A mulher vacilou. Interrogou seu irmão com o olhar, e este, sorrindo,
aprovou a suposta incorreção com um ligeiro e afirmativo movimento de cabeça.
E aconteceu. Ao entregar-lhe a caneca, seus dedos roçaram os meus. Foi nada e tudo. Nesse instante nos olhamos de novo. Foi tudo e nada. Retirei as mãos e fiquei com aquele "tudo", para sempre...
Os olhos do Mestre, atentos, brilhavam com uma luz especial. A mulher, acesa como uma papoula, apressou-se a passar a vasilha a seu irmão. Não bebeu. As risadas estalaram, aliviando minha "distração"; melhor dizendo, minha suposta distração. Somente a Senhora permaneceu calada. Tinha o rosto grave, como se tivesse descoberto o meu "segredo". Agora sei: ela soube desde a primeira noite...
27 O texto, naquele tempo, continuava assim: "...e repousou no sétimo dia de toda a obra que havia feito. O Santo abençoou o sétimo dia e o santificou, porque nele repousou de toda a obra que havia feito. Bendito seja nosso Deus, o Rei do mundo que criou o fruto da videira. Bendito seja nosso Deus, Rei do mundo que nos santificou com seus preceitos, nos escolheu e nos instituiu o sábado com amor e graça em comemoração à criação do mundo. Este é o primeiro dia de santas invocações, em memória da saída do Egito. Foi-nos dado porque nos escolheste entre os povos, nos santificaste e nos fizeste observar o sábado com amor e graça. Bendito seja o Santo que santifica o sábado". (N. do M.)
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Tiago tinha razão: a bamia cozida por Esta era excelente. Nunca tinha experimentado aquela hortaliça da baixa Galiléia. A grávida temperou-a com sal e pimenta, arrumando-a no prato em forma de estrela. Serviu-a fria. Todos comemos o molho, untando o pão àepitah até que acabasse.
Jesus parecia de bom humor e parte do jantar transcorreu entre piadas, comentando as peripécias dos novatos no estaleiro, em especial as do "Eh, rapaz!".
O segundo prato trouxe consigo uma mudança que me fez pensar. As mulheres abandonaram o círculo e começaram a servir o siniye, uma carne de cordeiro moída, coberta de pinhões e queijo derretido. A receita era da Senhora: carne, cebolas, alhos, sal, azeite de oliva, um pouco de vinho, pimenta e o "segredo" da casa: duas pitadas de canela. Uma vez preparada, dividia-se a mistura e servia-se em quatro porções por prato. Nem um mais nem um menos. Esse era o costume. O "quatro" representava as quatro décadas no deserto. Quando o queijo começava a borbulhar, era o momento de levá-la à mesa. Neste caso, às esteiras. O siniye, também delicioso, foi colocado diante destes famintos exploradores. Mas a Senhora ocupou o lugar de Ruth, mandando a ruiva para perto do Mestre. Foi tudo tão rápido e aconteceu com tanta naturalidade que ninguém, ou quase ninguém, percebeu a troca. Eu sim, naturalmente, e deduzi que algo assim teve de ser falado previamente, enquanto cozinhavam a carne no nível superior. Senti-me magoado.
Tiago serviu o vinho e, ao despejar o licor seco na vasilha, perguntou sobre o que havia visto na sinagoga. Sinceramente não respondi. Estava compenetrado no que acabara de acontecer. Meus olhos buscaram os de Ruth, mas a mulher, totalmente consciente do que ocorrera, não ergueu a vista. Estava pálida. Minha dor multiplicou-se. Foi Eliseu quem veio em meu auxílio, dizendo com toda sua boa vontade e sua proverbial falta de tato:
- Não gosto do vosso Deus...
A referência à passagem de Jeremias, lida por Jolí, o arquissinagogo, não podia ser mais sincera... e inoportuna. Tiago, perplexo, permaneceu com a jarra suspensa,
sem saber o que dizer. Foi a Senhora, atenta, quem solicitou uma explicação. Eliseu, que nunca se atrapalhava, deu-a. Com certeza, deu-a.
393 "
- "E lançarei uns contra os outros" - repetiu as palavras do sacerdote - "e não terei piedade nem compaixão para destruí-los". Que tipo de Deus é este, que joga pais contra filhos?
- O Santo é a Chejina de nossos mais velhos. Grande, sim. Poderoso, sim. Terrível, sim, como diz a Semoneh...
A Senhora, ao falar de Chejina, referia-se a Deus, mas como todos os judeus, evitava o nome de Yavé. Chejina significava "Presença" ou algo parecido. Era um dos habituais circunlóquios. Referiam-se a ele também como a "Glória", a "Potência", o "Santo", o "Eterno", a "Majestade", o "Altíssimo, o "Lugar", o "Todo-Poderoso", o "Nome", o "Santo Único", ou a "Morada", entre outros nomes.
- Nem sequer pronunciais seu nome...
A Senhora, desconcertada diante do sutil (?) ataque daquele convidado, reagiu com firmeza.
- Que sabes de nossas leis e tradições? Dizer o Nome é morrer... Essa é a Lei. O nome de Yavé ("YHWH", posto que não utilizavam
vogais) somente era pronunciado pelo sumo sacerdote no Dia do Perdão, como já mencionei. Se alguém se atrevesse a dizê-lo em voz alta, diante de testemunhas, "era passível de morte", como reza o tratado Pesikta. Ninguém em seu juízo perfeito, teria feito algo semelhante.
- Terrível - reagiu o engenheiro com ironia -, nisso tinha razão... Que Deus faz lapidar um homem por recolher lenha no sábado?
A Semoneh ou "prece" recitada na sinagoga dizia, com efeito, que "Deus era grande, poderoso e terrível". Eliseu usou o último dos adjetivos, apoiando-se, para sua argumentação certeira, no livro de Números28. Yavé, segundo a Bíblia, ordenou o apedrejamento de um homem porque recolhia lenha no shabbat.
8 O capítulo 15 (versículos 32 a 37) diz textualmente: "Enquanto os filhos de Israel estavam no deserto, um homem foi surpreendido apanhando lenha no dia de sábado. Aqueles que o surpreenderam recolhendo lenha trouxeram-no a Moisés, a Aarão e a toda a comunidade. Puseram-no sob guarda, pois não estava ainda determinado o que se devia fazer com ele. Yavé disse a Moisés: Tal homem deve ser morto. Toda a comunidade o apedrejará fora do acampamento. Toda a comunidade o levou para fora do acampamento e o apedrejou até que morreu, como Yavé ordenara a Moisés". (N. do M.)
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-Terrível!...
Maria não soube o que responder. Aquela passagem, como outras igualmente injustas ou sangrentas do Antigo Testamento, era uma incógnita para os judeus. Sobretudo para as pessoas simples. Pessoalmente, creio que essas atitudes de Yavé foram as que desencadearam o terror. Daí, provavelmente, nasceu o terror de pronunciar o nome do deus sanguinário (escrevi com minúsculas intencionalmente. Talvez, algum dia, me atreva a esvaziar meu coração). O certo é que a nação judaica, mais que amar a Yavé, temia-o. Era o Deus do pânico e das proibições. Os rabinos e os sábios tratavam de justificar esse terror, argumentando que "temor era sinónimo de justiça". Assim, os pagãos que simpatizavam com a Tora eram chamados de "temerosos a Deus", e o Salmo 112 cantava: "Feliz o homem que teme a
Yavé". O profeta Isaías colocou mais lenha na fogueira, proclamando que "sua profunda alegria era o temor a Yavé".
- Que entendes de Deus? - completou Tiago com evidente curiosidade. Ambos, Eliseu e eu, olhamos para o Mestre. Jesus assistia à luta
dialética com absoluta tranqüilidade. Serviu-se de uma segunda porção de carne e esperou a resposta do meu irmão. Uma certa satisfação se ocultava naqueles olhos cor de mel. Mensagem recebida...
- Estamos aprendendo - acrescentei, com a intenção de acalmar a onda provocada por Eliseu. Ainda não sabemos o que é Deus...
- Eu sei sim - cortou meu companheiro, que não aceitava acordos -. Melhor dizendo, sei o que não é.
Todos aguardaram impacientes. Comecei a tremer. Que se propunha?
- Sei que o Pai não é um ser destruidor e terrível. O Pai não enviará nunca um "quebrador de dentes"...
A alusão ao Messias não agradou à Senhora e nem a Tiago.
- Está escrito - sentenciou Maria: "Eu os destino à espada e todos vós caireis degolados".
- Ele não é assim - lamentou Eliseu, ignorando a passagem de Isaías. Por um momento fiquei na dúvida. Referia-se ao Pai ou a Jesus?
- E, como é? - perguntou Ruth, que parecia recuperar o ânimo.
395
j] BENÍTEZ
O engenheiro olhou-a em silêncio. Sorriu compreensivo e, escolhendo as palavras, como se desejasse não magoá-la, comentou:
- Como o pai que nunca conheceste, mas que sabes que te ama... Ruth era filha tardia. Quando nasceu, José, seu pai, havia falecido
seis meses antes. Ela compreendeu perfeitamente. O engenheiro, sem deixar de olhá-la, prosseguiu:
- Assim é o Deus em que nós - retificou - em que eu creio...
Por que falava assim? Eu também acreditava nesse Deus-Pai. Nesses momentos não compreendi a dura e injusta atitude do meu companheiro. Agora entendo...
- E como sei que me ama se nunca o conheci?
Silêncio. Os olhares voltaram-se para a Senhora. Maria deu razão a Eliseu.
- Teu pai amava os seus filhos, todos - insistiu sem possibilidade ou sombra de dúvida - ainda que não tivessem nascido. Continua amando-te, lá onde estiver. Para saber isto não são necessárias provas, só um coração...
Sem haver se proposto isso, a Senhora ratificou e deu acabamento à idéia sobre Deus sugerida pelo engenheiro. Jesus, feliz, deixou a conversa seguir o seu curso.
- Falo - acrescentou Eliseu com renovados brios - de um Deus ao qual só é preciso sentir e nunca temer.
- Mas não compreendo - interrompeu a bela ruiva -. A tradição diz que o Santo, bendito seja o seu nome, é sangue, fogo, cólera, justiça e espada. Tu falas de amor...
Esperei que seus olhos verdes me procurassem. Não foi assim.
- Somos nós homens que fazemos Deus à nossa imagem de semelhança. Não o contrário...
Aquelas palavras de Eliseu foram pronunciadas pelo Mestre nas neves de Hermon. Jesus, ao escutá-las, sorriu ligeiramente, com doçura.
- Deus, querida Ruth - prosseguiu meu companheiro tomando uma das canecas entre as mãos -, não é como dizem ou como desejamos. Deus não é ira ou vingança. Também não é poder...
Eliseu colocou a vasilha no centro do círculo que os atentos ouvintes formavam:
- O que vês no interior?
Todos, instintivamente, nos inclinamos.
- Vinho - confirmou Ruth, intrigada -, que outra coisa devo ver?
- Exato. Mas enquanto observas o vinho, podes ver o que há nas tuas costas?
- Não, claro que não...
- Pois bem, Deus pode. Jesus concordou com a cabeça.
- Não entendo - interveio Tiago, sem dissimular sua confusão -. Que queres dizer?
- Que este é o problema: não podemos compreender a Deus... Nossa mente é como o vinho que esta caneca contém. Deus seria a cidade de Nahum. Acreditas que poderias introduzir o povo inteiro neste pequeno recipiente?
Os olhos de Ruth brilharam e durante um tempo pousaram nos do engenheiro.
- Muito mais que Nahum...
O Mestre, por fim, interveio na conversa e afirmou, categórico:
- O Pai é muito mais que Nahum...
- Deus não é poder? - Cortou a Senhora, que não tinha esquecido as afirmações de Eliseu -. Isto é blasfémia!
Foi meu irmão quem replicou com idêntica firmeza.
- Expliquei-me mal. O Pai sim é poder, mas não o utiliza. Não precisa disso. Ele é amor. E tu, como mulher, sabes muito bem que o amor não precisa da alavanca do poder ou da força...
Eliseu deixou que os pensamentos girassem. Depois, com entusiasmo, cravando os olhos em Jesus, matizou:
- Uma carícia tem mais eficácia que um exército. Pode mover a vontade...
O Mestre piscou para o meu irmão.
- Isso é Deus? Esse é o teu Deus? - perguntou a Senhora, claramente na defensiva -. Teu Deus é como uma mulher?
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Eliseu não respondeu de imediato. Compreendeu que Maria não podia assimilar suas palavras. Como explicar-lhe que sim, que Deus, provavelmente, tem mais de mulher que de homem? Fez a opção pela sensatez. Limitou-se a confirmar o que já havia dito.
- Meu Deus, nosso Deus, é um Pai, incapaz da cólera, da vingança ou da injusta morte de um homem que recolhia lenha no sábado...
- O eterno, bendito seja o seu nome, nos escolheu entre todas as nações da
Terra. Somos seus filhos. Ele é nosso Pai, mas nos conduz com vara firme...
Era inútil. A Senhora, como o resto da comunidade judaica daquele tempo, aceitava o conceito de Pai, mas num sentido puramente coletivo. Os profetas haviam insistido nisso. "Tua prole herdará nações", gritava Isaías. O Livro da Sabedoria também "orgulha-se de ter Deus como Pai". O problema é que esse "Abbã", o Pai que o Mestre defendia, nada tinha a ver com o "olho que vê, o ouvido que escuta e o livro em que são registradas todas as obras do homem", segundo dizia o rabi Yehudá, um dos compiladores da Misná. Para os israelitas, Ab-bá era juiz e fiscal. Esta seria uma das grandes e revolucionárias inovações de Jesus: um Deus, mais que Pai, "papai"...
-Tu te enganas, mamãe Maria...
Jesus tomou a palavra. O tom foi inflexível.
- ...O Pai jamais - e insistiu no termo - jamais, utilizou uma vara... O Pai não é o ser enfurecido do qual falas.
E soletrou "enfurecido" (zaep) para que não ficasse dúvida. A Senhora se irritou.
- Já começamos com as tuas loucuras! Queira o Santo que não te ouçam esses fanáticos de Jerusalém!
Quem pareceu não escutar foi o Mestre.
- ...Se o Pai conduzisse seus filhos com uma vara, seria um deus
menor... Seria Yavé.
- Então, segundo tua opinião, como nos guia?
O Galileu esticou o braço esquerdo, mostrou a palma da mão e pronunciou:
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- Pas (literalmente, "palma da mão").
- Estamos na palma da sua mão? - quis confirmar Ruth com um sorriso.
- A todo o momento. Na escuridão e na alegria. No erro e no acerto. No amor e no desamor. No princípio e no fim...
- Isso é impossível - interrompeu-o seu irmão -. Os malvados não têm lugar na mão do Santo, bendito seja o seu nome...
Jesus limitou-se a esboçar um sorriso enigmático. Ruth pressionou:
- O que acontece com os malvados e os ímpios?
Era a mesma questão que lhe havia sido colocada no kan de Assi. O Mestre respondeu em termos parecidos:
- Raz Mistério! Tudo no seu devido tempo!
Assim finalizaram a conversa e o jantar do shabbat na "casa das flores".
A realidade continuou impondo-se...
O distanciamento ideológico entre o Mestre e os seus, em especial com a Senhora, aumentava. Eles acreditavam firmemente em um Messias político e libertador social e religioso do povo de Israel. Um enviado, "quebrador de dentes", que inauguraria o "reino de Deus": a hegemonia da nação judaica sobre o resto do mundo. Todos ficariam rendidos diante da espada e da glória do filho de Davi. Ele, no entanto, falava de outro tipo de "enviado". Ele falaria, quando chegasse a sua hora, de um Deus "papai". Mas o pior estava por vir. Nunca imaginei que aquela diferença nas idéias poderia alcançar extremos tão dolorosos. Eu mesmo testemunhei.
Voltamos à insula com novas dúvidas. Por que Jesus comparou Yavé com um "deus menor"? Quem era realmente o Deus (?) do Sinai? Teria de falar a sós com o Mestre e perguntar-lhe sem rodeios. O assunto dos malvados e da maldade quimicamente pura também me intrigava. No kan do lago Hule não ficou claro, nem agora, quando Ruth propôs o assunto obscuro. Por que Jesus justificava o mal? Ou não era assim? Talvez eu não soubera interpretar suas palavras adequadamente.
Quanto à bela Ruth, que poderia pensar? O acertado discurso de Eliseu parecia tê-la deslumbrado. Somente tinha olhos para ele. Que de
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via fazer? A Senhora, além disso, não demonstrou excessiva satisfação ao observar que meus dedos roçavam os de sua filha...
Tudo se apresentava contra mim. Mas que estava pensando? Aquilo era absurdo. Era um sonho. Tarde ou cedo, despertaria. Creio que já despertei... Mas a realidade nos aguardava no longo corredor do terceiro andar.
Os lamentos aconteceram novamente, ou melhor, já estavam lá quando entramos no quarto 39. Eram idênticos, contínuos, não se interrompiam. Eliseu, furioso, se jogou no beliche. Recorri ao duvidoso remédio da janela. Uma hora depois, com os nervos tensos, optei por esclarecer o mistério. Segurei uma das lamparinas e informei ao meu companheiro. Tinha de verificar que diabos acontecia. O engenheiro concordou. Pegou outra lamparina de azeite e abandonamos o lugar.
O corredor, às escuras, estava logicamente deserto. Talvez fosse a segunda vigília, a do galo (cerca das duas da madrugada). Todos dormiam, com exceção dos responsáveis por aqueles sofríveis gemidos. Percorremos parte do corredor, atentos às
numerosas portas. A última era a 48.
Eliseu apontou um dos quartos. Encostei o ouvido na madeira e, com efeito, verifiquei que os lamentos - quase cânticos - vinham do interior. Ergui a lamparina e examinei a porta. Achava-se tão apodrecida e desconjuntada quanto as outras. Empurrei suavemente e verifiquei que estava fechada. Que devíamos fazer? Chamar? Meu companheiro procurou uma das frestas e tentou olhar.
- Parece fogo...
Empurrei-o, alarmado, e repeti a operação. Era isso. Dava para ver reflexos no interior. Podiam ser chamas... Não tive dúvida. Bati na porta com força. Duas vezes, três... Primeiro o silêncio. O choro cessou. Eliseu e eu nos olhamos. Repeti as batidas e, em seguida, os gemidos aumentaram. Eram duas, quiçá três pessoas... Voltei a olhar, mas somente via a luz avermelhada e algumas sombras que se deslocavam, rápidas. Se estivéssemos diante de um incêndio, tínhamos de agir com rapidez. Agir? Segundo a operação "Cavalo de Tróia", isto estava rigorosa e terminantemente proibido... As favas a operação! Bati na 44 pela terceira vez. Inútil. Os gemidos se transformaram em gritos. Eram gritos de horror. Dei um passo atrás e avisei Eliseu. Iria
400
j.). BENÍTEZ
derrubar a porta que, com um ponta-pé, saltaria pelos ares. Mas, quando me dispunha a bater na madeira, o engenheiro me deteve:
- A vara! Espera um pouco!
E correu até nosso quarto. Tínhamos esquecido a "vara de Moisés"... Tinha razão. Não sabíamos o que poderíamos encontrar do outro lado.
Os gritos, agora, rangidos, gelaram-me o coração. O que acontecia naquele lugar? Alguns vizinhos, alertados pela gritaria e pelas batidas na porta, apareceram no corredor. Perguntaram, mas não soube o que lhes dizer. Eliseu voltou veloz e me entregou o cajado. Não esperei nem um segundo. A porta voou com um só golpe. E os vizinhos, aterrorizados, fugiram para suas casas.
Estávamos em um único quarto, como os nossos. No centro do pavimento, no buraco utilizado como fogão, havia algumas chamas. Os gritos cessaram. Avançamos mais um pouco e tentei acostumar-me à penumbra. Ali, à primeira vista, não havia ninguém. Não era possível! Logo ouvimos um gemido. Eliseu indicou um dos cantos. Aproximei a luz e percebei um vulto. Meu Deus! Eram crianças! Relaxei. Chegamos mais perto e os iluminamos. Eram três, de uns cinco ou seis anos. Tremiam. Olhavam-nos com terror, abraçados. Vestiam túnicas negras até os tornozelos. Passei a lamparina diante dos rostos e tentei verificar o que acontecia. Não responderam às minhas perguntas. Não sei se compreenderam. Eram idênticos e estranhos. Tinham algo especial. Os cabelos, até os ombros, eram brancos, com brilhos avermelhados. Também a pele era muito branca, como leite. Quanto aos olhos, rasgados, apresentavam as íris amarelas. Pareciam trigêmeos, possivelmente, de origem asiática. Vestiam roupa limpa, com os rostos e as mãos igualmente limpos, e os cabelos macios e sedosos. Evidentemente não estavam abandonados. Mas, por que gritavam? Que faziam sozinhos, no meio da noite e tão perto do fogo? Onde estavam seus pais?
Não tivemos a oportunidade de esclarecer o enigma. Subitamente, um deles bateu na lamparina de azeite que eu segurava na mão esquerda e a luz rolou ao chão. Visto e não visto. Como se tivessem combinado, os três escaparam velozes, driblando o engenheiro e fugindo. Desapareceram
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na escuridão do corredor. E ficamos ali os dois, atónitos, com os olhos fixos nas chamas flexíveis. Não entendia absolutamente nada.
Os vizinhos, um pouco mais calmos, levantaram os restos da porta e nos observaram com curiosidade e receio. Não era para menos... Ao sair me atrevi a perguntar. Obtive uma só resposta:
- São os meninos da lua...
402
DE 20 A 26 DE OUTUBRO
Na manhã seguinte, sábado, 20 de outubro do ano 25 da nossa era, Taqa, o velho porteiro da insula, esclareceu parte do mistério. Para começar, não eram os "meninos da lua", como eu pensei ouvir, mas "meninos lua". Eram chamados assim porque só podiam ser vistos à noite. Jamais saíam da insula à luz do dia. Supus, com razão, que estava diante de um novo caso de albinismo. Trigêmeos com fotofobia ou intolerância à luz por razoes oculares ou neurológicas; algo não muito comum em um caso de trigêmeos.
A mãe era uma "burrinha". Havia emigrado da distante ilha de Melita e trabalhava especialmente no cais... Voltava ao amanhecer e ia de novo ao anoitecer. Os meninos ficavam sozinhos a noite inteira. Eu não podia saber nessa ocasião, mas aqueles meninos também teriam seu papel na aventura da vida pública do Mestre. Disse-o bem: "aventura"...
Tivemos de pagar uma porta nova; era o correto. O resto do sábado foi dedicado aos "afazeres domésticos": limpeza, compras etc.
Jesus, como todos os sábados, foi a Saidan, prosseguindo nas viagens com
Zebedeu pai. Como já comentei, ninguém esteve presente nessas reuniões particulares. Nem mesmo os filhos de Zebedeu.
No dia seguinte, domingo, 21, fomos ao estaleiro e voltei a ser "Eh, garoto!".
Jesus continuou com seu trabalho no "pesqueiro" e com sua canção costumeira, "Deus é ela"...
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Eliseu preocupava-se ainda. Estava triste e distante. Conversávamos somente o necessário. A serraria o animou um pouco e também os "meninos lua". Diariamente, com sua infinita paciência, foi ganhando o carinho dos trigêmeos e a confiança da mãe, a prostituta. A maior parte da noite ele passava no 44. Não me pareceu mal. Estávamos em um período de espera e, portanto, submetidos a uma dupla tensão. Qualquer distração era positiva. A idéia do meu companheiro, além de tudo, nos permitiu dormir. Os meninos, cuidados e distraídos pelas visitas do engenheiro, acabaram voltando ao ciclo natural. Todos, no terceiro andar, lhe agradecemos. Desde esses dias, Eliseu foi o homem mais popular da insula de Taqa. Aquele carinho, no entanto, lhe custaria caro...
Tudo, definitivamente, transcorreu com relativa normalidade até a terçafeira, 23 de outubro... De certo modo, foi um dia decisivo para nosso trabalho como pesquisadores...
Sim, o Destino, mais uma vez. Aconteceu perto do meio-dia, pouco antes que Yu, o chinês, batesse na barra de ferro, anunciando a hora do almoço. Encontrava-me - casualmente? - oferecendo água para o Mestre. Ouvimos, então, gritos e maldições. Jesus me devolveu a concha de madeira e dirigiu o olhar para o nordeste, do outro
lado do rio Korazain. Seu rosto escureceu. Outros operários, também alertados, interromperam seu trabalho e viraram as cabeças em direção ao lugar de onde se originava o barulho.
Jesus deu alguns passos e colocou-se na borda do fosso. A uns cem metros, mais ou menos, sobre o fumegante e queimado lixáo de Nahum, quinze ou vinte homens discutiam acaloradamente. Era uma das costumeiras discussões a que já estávamos acostumados. Aqueles infelizes eram os tofet ("escarros"), uma definição depreciativa dos que trabalhavam (?) no tafat (palavra aramaica que significa "queimar" e que era atribuída também aos lixeiros ou gehenna, "sempre ardendo"). Os rabinos e puristas da Lei associavam assim esses marginalizados com o que havia de "mais impuro e execrável". Eram os "donos" da gehenna. Todos os dias a percorriam com sacos e cestas, resgatando o que ninguém queria. Com isso se alimentavam e negociavam. Como explico, as brigas estavam na ordem do dia. Se dois tofet - homens, mulheres ou crianças - coincidiam na coleta
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J J BENÍTEZ
de um mesmo lixo, o resultado era sempre a agressão, até que um deles cedesse ou ficasse ferido. E pobre do "intruso" que invadisse seu "território"! O normal é que fosse espancado até a morte.
A disputa foi além. Os tofet empurravam alguém, ameaçando com os punhos e com paus. Vários trabalhadores se mobilizaram. Yu foi o primeiro, e correram até a gehenna.
O Mestre não teve dúvida. Deixou o martelo, saiu do fosso e dirigiu-se também ao lixáo. Saí atrás do Mestre, sem saber muito bem que desculpa dar. Não importava: o que contava era não perdê-lo de vista. Eliseu o viu da serraria, mas não
se moveu.
Yu e seus homens subiram pelo montículo que os detritos formavam e, gritando, tentaram impedir a luta. Num instante, misturaram-se com os "catarros" enfurecidos, empurrando-se, na tentativa vá de separá-los. Jesus chegou em seguida. Subi na gehenna, afundando-me na fruta podre, restos de pão duro, excrementos humanos, trapos e móveis velhos ou quebrados, cacos de cerâmica, vidro, ossos de animais e cães e gatos mortos. O cheiro quase me jogou para trás. Mas aconteceu o que ninguém podia imaginar...
Ao chegar ao grupo, o Mestre se deteve. Não fez nem disse nada. Este que escreve, atordoado e sem ar, contemplou uma cena à qual, num futuro não muito distante, deveria acostumar-me. Não tenho palavras. Não sei explicar isso.
Jesus, com o rosto grave, contemplou os que lutavam. Foi percorrendo cada um com o olhar. E fez-se o silêncio. Que aconteceu? Sinceramente, ignoro. Ou melhor, somente suspeito...
Os tofet, para desconcerto de Yu e dos seus, abaixaram os paus, retrocedendo. Os rostos, encardidos e crispados, apresentavam os olhos muito abertos e fixos no olhar de aço do Filho do Homem. Um "aço" pouco habitual naquele Humano...
Jesus abriu caminho entre eles e chegou à altura de um homem caído no meio do lixo. Gemia. Era, sem dúvida, a causa da briga e, obviamente, a vítima. Estava encolhido, em posição fetal, no intento de proteger a cabeça dos golpes. O Mestre inclinou-se, abraçou-o e o
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ergueu como uma pluma. O indivíduo, ao notar o contato das mãos, achou
que a gentalha atacava novamente e estremeceu, encolhendo-se o quanto pôde. Jesus o apertou contra o avental de couro e, doce e mansamente, beijou os seus cabelos.
Os olhos de Yu se umedeceram... e também os meus. Quem era aquele Homem? Até onde chegavam o seu poder e a sua ternura?
O Mestre caminhou decidido sobre a gehenna, afastando-se dos atónitos catadores de lixo.
Foi quando, ao cruzar diante deste explorador, eu o reconheci. Deus do céu! O homem que havia estado a ponto de morrer e que agora era transportado nos braços do Filho do Homem era... Não podia ser! Corri atrás do Mestre e tentei confirmar a primeira sensação. Sim, era ele... Mas, como era possível?
Jesus, com suas costumeiras grandes passadas, não demorou a alcançar o estaleiro. Dirigiu-se ao pavilhão que servia de vestiário e lá o recostou. Pediu água e lhe deu de beber. Eliseu, ao vê-lo, estremeceu e apontando o homem disse:
- Mas...
Dei de ombros. Eu sabia tanto quanto ele.
Jesus o deixou nas mãos de Yu e voltou ao seu posto. Eu o olhava e não acreditava... O chinês o examinou e verificou, acertadamente, que não tinha nenhum osso quebrado. Tivera sorte. Eram visíveis somente alguns ferimentos, um supercílio sangrando, uma túnica suja e fome, muita fome... Santo Deus!... Kesil!... Nosso fiel servidor e amigo no vale do Jordão. Mas como havia chegado até Nahum? Quando conseguiu recuperarse, abraçou-nos e Eliseu chorou com ele.
Havia dias que nos procurava. Eu mesmo, se não me engano, na hora da despedida em Damiya, lhe dera as pistas necessárias. Falei-lhe de Migdal e Nahum. Pois bem, movido pela necessidade e pelo carinho, Kesil decidiu procurar na primeira povoação. Depois, com certo desalento, chegou a Nahum.
Ninguém sabia nada dos gregos "que viajavam pelo mundo". As escassas moedas de que dispunha se esgotaram. Foi à sinagoga, mas o hazán o tomou por um vagabundo e lhe negou ajuda. Também não
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encontrou trabalho no cais. Foi assim que acabou na gehenna, mexendo no lixo, faminto... O Destino...
Que fazer? Eliseu não consentiu que o abandonássemos de novo. Pareceume justo. Aquele homem tinha algo especial. O beijo do Mestre foi um "sinal"... Foi contratado, é evidente. Tinha conseguido isso pela força... Tomaria conta de nós, dos quartos na insula e do que fosse necessário, segundo suas palavras; nos acompanharia nas viagens, sempre que fosse possível. Kesil chorou novamente. Quis beijarnos as mãos. Eliseu ficou sério e obrigou-o a prometer que visitaria a sua família regularmente. Assim foi feito.
A partir desse dia, tudo foi mais fácil para estes pesquisadores. Pudemos dedicar-nos inteiramente à tarefa que realmente nos interessava: o acompanhamento contínuo do Filho do Homem. Para isso estávamos naquele "agora"... A verdade é que a ajuda de Kesil, nosso querido "Orion", foi decisiva..., enquanto durou. Mas não adiantemos os acontecimentos. Antes aconteceram outras coisas...
As notícias sobre Yehohanan, o Anunciador, continuavam chegando às aldeias e às cidades do yam. Todos falavam do novo vidente. Como sempre, uns faziam troça; outros estavam zelosos pelo esperado messias, defendendo o fogoso João Batista. Jesus escutava com atenção e silenciosamente. No começo - que estúpido! -, eu não soube interpretar essa atitude...
Eliseu e eu colocamos a necessidade de voltar para perto do Anunciador. Tínhamos falado disso anteriormente, mas agora, diante do avanço que apresentavam as notícias procedentes do rio Jordão, achamos que a minha presença no vale era importante. Os nemos estavam colocados no "berço". Convinha fornecêlos e começar a esclarecer dúvidas. Se o batismo de Jesus seria em janeiro, e com isso, supostamente, a arrancada da vida pública do Mestre, não dispúnhamos de muito tempo. Tudo parecia tranqüilo. O Galileu desenvolvia o seu trabalho no estaleiro. Não era provável que abandonasse Nahum. Eliseu, além disso, estaria permanentemente ao seu lado. Kesil o ajudaria no que fosse necessário. Planejamos assim. Este que escreve procuraria Yehohanan e se juntaria novamente ao grupo dos discípulos. Além do mais, era Esrm ("Vinte"), um deles...
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OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA ?
A viagem foi programada para meados de novembro. O Destino, no entanto, fez um cálculo diferente e em outro momento. Nunca vou aprender... Enganei-me, nem tudo estava tranqüilo... Foi na manhã do dia 26, sexta-feira, no varadouro. Eliseu me chamou e acudi com a água. Não era água que precisava... Olhou-me sério. Deixou de um lado o tronco que manipulava e comentou com ar preocupado:
-Tenho de falar contigo...
Assenti e aguardei impaciente.
- Aqui não - acrescentou com severidade. - Esta noite, no Ravid...
- O que está acontecendo?
- Algo grave - murmurou, olhando-me nos olhos . - Muito grave... Não
consegui tirá-lo do seu mutismo. Continuou serrando. Olhei
para Jesus. Tinha algo a ver com a atitude enigmática do meu companheiro? O Mestre continuava com suas coisas, arrumando o travamento do forro do "pesqueiro". Era o martelado típico, alegre, ao ritmo de "Deus é ela...". Não me pareceu inquieto ou preocupado. Que diabos estava acontecendo? Tive de agüentar o dia todo. Foi um suplício. Passou de tudo pela minha mente. O que era tão grave? Por que tínhamos de falar na nave? Pensei em tudo, sim, e não acertei...
Kesil não fez perguntas. Viu-nos fazer a mala de viagem e concordou, resignado, diante das minhas observações: voltaríamos no dia seguinte, sábado; deveria ocupar-se das compras e, como sempre, vigiar e socorrer, se fosse preciso, os "meninos lua". Destino incrível! Não voltaria a vê-lo durante muito tempo...
Não importava que chegássemos ao "porta-avióes" em plena escuridão. Meu irmão me puxou em silêncio. Não consegui tirar dele uma única palavra. Continuava mudo e ausente. Não insisti. Ao chegar no alto, supus, me tiraria da dúvida angustiante. Uma vez no módulo, esperei.
Eliseu, nervoso, entrou e saiu várias vezes. Sentou-se na beira do penhasco e lá permaneceu um tempo, com o olhar perdido nas tochas distantes que se moviam nas águas prateadas do lago. A lua, quase cheia, foi sua companheira durante parte da noite. Era evidente que não estava sendo fácil para ele. Por fim, tentando resolver a tensa situação, me juntei
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a ele, simulando serenidade, e o questionei. Tinha a cabeça baixa. Olhoume e me assustei. Não podia acreditar... Era a primeira vez que o via com lágrimas nos olhos.
- Quero regressar - exclamou por fim, com uma voz vencida e desconhecida. - Voltemos, major!
- Não compreendo...
- Vamos acabar com isto! Suspendamos a missão!
- Terás de me dar uma boa razão...
- Eu a tenho - adiantou-se -, a tenho...
- E então?
- Estou apaixonado...
Observou-me angustiado, aguardando uma reprimenda que, por certo, nunca foi dada. Creio lembrar que sorri, tentando tirar importância de sua confissão.
- Estou apaixonado - acrescentou com veemência. - Sei que é proibido. Sei que não é possível. Sei que é uma loucura. Sei, major, mas não posso evitar. Não posso...
Olhei-o atónito e comecei a compreender a causa de sua estranha atitude desde aquela primeira noite, no terraço da "casa das flores", quando o vi mexer-se inquieto. Agora entendi seus silêncios e seus passeios, na solidão, no "vau das Colunas", seus anormais distanciamentos e, sobretudo, o brinde em Damiya... Meu Deus! Eliseu falava sério. Estava apaixonado e, ao mesmo tempo, angustiado. Ele sabia, com efeito, que esse tipo de sentimentos não era viável. Não para nós, que pertencíamos a "outro mundo", ao qual, necessariamente teríamos de retornar. Compreendia isso perfeitamente. Quanto a mim, afinal de contas, estava passando pelo mesmo problema...
Perguntei-me: como era possível que ambos tivéssemos nos apaixonado no lugar e no momento não recomendados? Deixei passar os minutos. As
lágrimas continuaram escorrendo pelo rosto do engenheiro. O instinto me preveniu. Sua confissão havia terminado... Finalmente, fazendo um esforço, conhecendo a resposta, perguntei:
- Quem é?
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Meu companheiro secou as lágrimas e esboçando um meio sorriso, com a voz embargada, sussurrou:
- Tu a conheces... É o que há de mais formoso que vi na minha vida. Sinto muito, major!
Eliseu pronunciou o seu nome e eu, então, senti que o mundo
veio abaixo...
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27 DE OUTUBRO, SÁBADO
- Ruth?
- Sim, Ruth, a ruiva, a irmã do Mestre - confirmou Eliseu.
Foi uma marretada. Não pude responder. Isolei-me... Sei que deveria ter lutado. Sei também que meu coração ficou encharcado. Não sei o que aconteceu. Sinceramente, permaneci em silêncio e durante algum tempo vi-o falar e gesticular. Creio que se referia a ela, à sua bondade e às suas qualidades. Eu não estava realmente ali. Somente desejava fugir, escapar de tudo e de todos. Por um momento estive a tempo de aceitar. Suspenderíamos a missão e voltaríamos a Masada e ao nosso "agora", em 1973. Depois, lentamente, recuperei o sanguefrio. Uma calma que
agora, ao lembrar daqueles momentos críticos, me aterra. Como pude resistir? Não sei. O certo é que me tornei um túmulo. Meu companheiro não deveria saber quais eram os meus sentimentos. Ninguém o saberia jamais. A missão era a única coisa que contava. Ele tinha prioridade. Esse foi nosso compromisso e eu era um homem honrado. Cumpriríamos até o final...
Nunca me arrependi daquela decisão, mas ela, misteriosamente, também não desapareceu do meu coração e da minha lembrança. Pedi um tempo. Tinha de refletir, menti. Eliseu compreendeu e aceitou. Ao amanhecer, sentindo-me acabado, lhe expus parte do plano que acabava de amadurecer. O engenheiro escutou em silêncio. Por enquanto, a missão seguia em frente. O Mestre era mais importante que nós mes
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mós. O assunto de Ruth - e creio que minha voz tremeu ao pronunciar o seu nome - passaria. O melhor era esperar... Sugeri um mês, com outra condição. A idéia de continuar, no fundo, elevou o seu ânimo. Era o que desejava. Seu coração - eu sabia - caminhava em uma direção e sua mente em outra... Concordou, inclusive, sem saber.
- ...Preciso de um mínimo de calma para pensar. Adiantarei a viagem para o Jordão. Essa é minha condição. Permanecerei longe durante um mês. Tu te ocuparás de acompanhar o Mestre. Nesse tempo, analisarás e analisarei a situação. Depois, veremos. O Destino e eu decidiremos.
Eliseu me olhou agradecido e exclamou:
- Confio em ti, major...
Senti-me como um verme. Não tive coragem suficiente para confessar-lhe
a verdade, e o que era o pior: também desprezei a mim mesmo. Não soube lutar por ela...
- Quando pensas encontrar-te com Yehohanan?
- Imediatamente...
Meu companheiro notou algo estranho. Aquela súbita reação não era habitual em mim, sempre ponderado e minucioso em todas, ou quase todas, minhas ações. Eliseu, como digo, intuiu algo mas, prudentemente, guardou silêncio, aceitando.
- Às tuas ordens...
Sim, tinha razão. Eu escondia algo. Somente pretendia fugir. A viagem ao vale, os nemos e Yehohanan eram o de menos... Não queria voltar a vê-la. Não teria resistido. Minto. Sim, desejava isso... e desejo... Fiz meus cálculos. Se tudo transcorresse sem incidentes, dentro de um ou dois dias, talvez três, poderia localizar o Anunciador e tomar parte do grupo de Abner. Preparei a bagagem. Não precisava de grande coisa. Farmácia de campanha e, sobretudo, antioxidantes. Calculei que trinta tabletes seriam suficientes. Talvez me acalmassem. Talvez voltasse antes do previsto. Pobre tolo! Qual era meu objetivo? Supostamente, continuar o estudo do precursor do Mestre. Sim, supostamente... Meu afã pouco tinha a ver com os desígnios do Destino.
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Eliseu me deixou à vontade. Retirou-se para perto do limite norte do Ravid e esperou. Foi ao vê-lo, sentado na beira do penhasco, que, de repente, me veio à memória. Soou como uma advertência. O caderno de bitácula, o diário em que anotava até a mais insignificante das experiências! Ali apareciam os meus sentimentos para com
Ruth. Obedeci à intuição. Entrei no computador, procedi a uma revisão minuciosa e anulei os textos comprometedores. Ninguém devia saber do meu segredo. O engenheiro, ainda que não fosse seu costume, estava capacitado para ter acesso a tal diário e registrar, obviamente, o que achasse conveniente. Não, esse era o meu segredo (mach)1. Somente meu...
Cometi um novo erro. Subestimei o general Curtiss e seus especialistas em informática... Mas esta é outra história. Tudo no seu devido tempo...
Consultei os relógios. Nesse dia 27, sábado, o sol se ocultaria às 16 horas, 53 minutos e 9 segundos (num provável "tempo universal"). Tinha de agir com rapidez. Senti uma certa tristeza. Eliseu não era culpado. Simplesmente acontecera. Ele estava apaixonado por algo impossível e eu também. Demos um abraço e nos desejamos sorte. Isso foi tudo.
Peguei a sacola de viagem e a inseparável vara e desapareci. Eram sete da manhã de um dia esplêndido e maravilhoso. Uma brincadeira com meu coração perdido no escuro. Por que não lutei? Por que não enfrentei
0 Destino? Ela merecia isso. Além disso, estava enamorada de quem? Meu olhar havia cruzado o seu. Os olhos nunca mentem. Sabia disso. Ela sentia alguma coisa por mini. Mas por que fugia? Por que havia decidido enterrar aquele amor, o único da minha vida? Pelas malditas normas da operação? Talvez por medo? Talvez por ser quem era? Por que não agia com coragem? Era tão simples ir ao seu encontro e falar-lhe claramente. "Estás louco! E
1 O major não acrescenta nenhuma informação complementar sobre tal palavra. Poderia tratar-se de hebraico ou aramaico? Os especialistas consultados pelo autor não concordam. A transcrição para letras latinas dos sons originais do hebraico ou do aramaico, por não ter vogais, não é fácil. Estamos diante de um erro ortográfico
do original em inglês: Match, em vez de mach. Algumas acepções correspondem a "semelhante", "igual" ou "par". (N do A.)
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que supões que lhe dirás? Que a amas, que desejas casar-te com ela e que te acompanhe ao teu mundo? Sim, estás louco..."
"É melhor assim. Esquece-a. Pertenço a outro agora. Não seria lógico. Temos de voltar. Ele é a única coisa que conta. Somos seus mensageiros. É preciso contar a verdade. Esquece-a, se puderes..."
Umas duas horas depois, imerso nesses pensamentos e nessas torturas, divisei os obeliscos, ao sul do yam... O caminho pela borda ocidental foi rápido e sem tropeços. O tráfego de homens e animais, no shabbat, diminuiu de forma notável.
Ali, no que denominávamos os "treze irmãos", comecei as consultas. Tive sorte. Zeladores de burros e sais sabiam do vidente. As notícias chegavam sem cessar. Era o "espetáculo" do momento. Todos obtinham algum benefício com aquele novo profeta. Pregava e mergulhava as pessoas na zona de Enavan, a pouco mais de doze quilómetros de Bet Shena, no sudeste, e relativamente perto do rio Jordão. Isso significava que Yehohanan e seus discípulos tinham avançado cerca de 32 ou 33 quilómetros desde que os deixáramos no "vau das Colunas", junto ao povoado de Damiya.
Contratei os serviços de um dos "táxis". Desta vez, economizaria esforço. "Ômega é o princípio." Não pude evitar. Antes de partir do centro de abastecimento, voltei a aproximar-me dos buracos dos obeliscos e verifiquei o que já vira anteriormente. "Ômega é o princípio". O que queria dizer a misteriosa inscrição? E o Destino sorriu, brincalhão... Tudo a seu devido tempo.
A carroça andou os poucos quarenta quilómetros em pouco mais de duas horas. O sol, no alto, indicava a hora sexta (meio-dia). O sais, de poucas palavras, esclareceu que aquela modesta aldeia na qual havíamos parado era Salem ou Salim. Yehohanan encontrava-se muito perto. Recebeu o combinado e deu a volta, retornando pelo caminho empoeirado que Eliseu e eu percorrêramos a pé.
Tentei localizar-me. Se me lembrava bem, aquele lugar fazia fronteira com Perea, o território de Herodes Antipas. A alfândega, de tristes lembranças, não estava longe. Talvez a cinco ou seis quilómetros,
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um pouco mais longe, ao sul, aparecia a também pequena povoação de Mehola ou Abel Mehola (na atualidade, identificada com o tal El-Jiló). Depois, como já expliquei, o caminho ia para El Makhruq, Jerico e, finalmente, Jerusalém.
Minha primeira impressão, naquele momento, foi de confusão. Lembrava do lugar, mas o tínhamos atravessado rapidamente, sem fixar nenhuma referência de importância. Vi somente palmeiras, bosques e bosques de palmeiras, e na frente, à esquerda do caminho, a linha verde e negra da floresta do Jordão. O rio podia estar a dois quilómetros da referida aldeia de Salem. Aldeia? Observei detidamente. Entre os palmeirais e os hortos apresentou-se diante de mim um conjunto de casas, umas vinte, em desordem, vermelhas pela argila e cobertas no teto pelo amarelo das folhas da palmeira, já murchas pelo sol implacável do vale. O mais adequado seria empregar o termo vilarejo...
Caminhei decidido para o simulacro de povoado. Não convinha arriscarme. Primeiro, reuniria toda a informação possível. Depois, procuraria Yehohanan. Agora era "Esrin", ou o "arauto" número vinte. Náo podia esquecer. Imaginei que Enavan era
um lugar próximo a Salem. Em aramaico significava "mananciais ou fontes". O Batista provavelmente se instalara em alguma corrente de água próxima. Por certo, conhecendo seus rígidos costumes, deveriam ser águas "puras".
Entrei na aldeia, espantando os únicos seres vivos que desafiavam o calor intenso: círculos de alvoroçadas galinhas pretas e nuvens de moscas. Jamais vira tantas. Logo se transformaram em uma segunda túnica...
O pavimento de Salem também era diferente de tudo o que já tinha visto. Era feito de conchas marinhas, centenas de milhares de conchas brancas, restos do primitivo mar de Lisan2! Era um bom sis
2 Como expliquei neste diário, na Antigüidade, o vale do rio Jordão foi um grande mar, ao que atualmente chamam de Lisan, ou da Língua. Foi no período do holoceno (há uns dez mil anos), quando adquiriu a forma que hoje conhecemos. Posteriormente, ao desaparecer, ficaram as jazidas de sal, cal e gesso, bem como notáveis acúmulos de conchas marinhas e todo tipo de fósseis. O mar deTiberíades ouyam é um dos restos, como também o Mar Morto, ao sul. (N. do M.)
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tema para manter as "ruas" (?) mais ou menos limpas e para advertir a proximidade de qualquer intruso. Os rangidos eram inevitáveis e acusadores. Salem era um lugar especial; não demoraria em comprovar isso. O Destino, mais uma vez, sabia o que fazia...
Os moradores do lugar, quase todos felah ou camponeses, ofereceram-se para dar-me todo tipo de explicações. O vidente acampava para o leste, a pouca distância do povoado. A chegada de Yehohanan e os seus transtornara, até certo ponto, a monótona e linear rotina da zona. Todos teciam comentários sobre a
figura, espetacular, do "profeta" e, sobretudo, seus métodos e palavras, nunca vistos naqueles lugares afastados. E, como sempre, as opiniões estavam divididas. A maioria não sabia o que pensar. Uns criticavam e outros defendiam. O certo é que optei por buscar alojamento em Salem. Segundo os vizinhos, Yehohanan há cinco dias não dava sinais de vida. Foi visto rodeando a espessa selva do Jordão e se perder na direção do Querit, um dos afluentes orientais. Lembrava muito bem daquela atitude esquiva. Também aqui ele procurava a solidão?
E, como dizia, escolhi Salem. Não queria precipitar-me. Tinha de agir com calma. Teria tempo para encontrar-me com o Anunciador.
Um dos amáveis felah conduziu-me até a casa de Aba Saul. Ele, certamente, poderia dar-me o que eu necessitava. Somente precisava de um local onde pudesse dormir e, talvez, alguém com quem falar. Acertei.
Aba, o "pai" Saul, era um ancião venerável. Tinha sido escriba e doutor da Lei em Jerusalém. Agora, cansado, esperava a morte naquele canto escondido, dedicado à sua mulher, aos seus "filhos" e ao cultivo de uma pequena horta. Todos o cumprimentavam com reverência e o chamavam de rby ("meu senhor"). Aquele rabi tinha conseguido a categoria de hakam, ou "doutor graduado", a máxima dignidade entre os especialistas na Lei. Era um profissional dos livros (chamavam-no um swpr). Dispunha de uma casinha tão humilde quanto o seu olhar. Vivia na companhia de Jaiá, sua esposa, também velha, e de seus "filhos", os livros. Toda a casa estava dominada por rolos e rolos. Pendiam das paredes, dormiam nas arcas ou apertavam-se nos cantos, atrapalhando a passagem do casal.
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Destino curioso... Se eu tivesse tentado localizar Yehohanan logo ao chegar a Salem, o mais provável é que não tivesse entrado em contato com aquele sábio singular.
Aba Saul escutou o felah que me havia conduzido até sua casa. Depois atendeu meu pedido. Somente procurava um lugar onde proteger-me durante a noite: não incomodaria. Deixou-me falar, observando atentamente minhas mãos e meus olhos. Não me senti incomodado. Inspirava paz. Tudo nele era luminoso. Vestia-se de branco, sempre de branco. Seus cabelos, até as costas, eram como a espuma marinha. Nunca os prendia. Sorriu e me fez entrar. Conversou brevemente com Jaia e me convidou para sentar sobre uma das esteiras de esparto. Foi assim que iniciamos aquela intensa amizade.
Jaia, cuja tradução poderia ser "vivente", serviu o tradicional rfis (semolina tostada e amassada com tâmaras trituradas) e um suco doce de seiva de palmeira. Assombrou-me o brinde de Saul:
- Lehaim...
- Pela vida! - repeti. A tristeza veio ao meu encontro, mas disfarcei, penso eu...
O ancião continuou formulando perguntas. Quem era? De onde vinha? Como era a minha vida? Em que deus acreditava?... Respondi até onde me foi possível. Logo, imersos naquele interrogatório, reparei em algo que me deixou desconcertado. Acariciei-os com as pontas dos dedos. "Casualidade?... não, impossível." Aba Saul se deu conta da minha "descoberta". A partir desse momento, seu tom mudou. Pareceu feliz. Na esteira sobre a qual me encontrava, apareciam, trançados, os misteriosos três círculos concêntricos que vira na "casa das flores", em Nahum. Eram idênticos aos que o Mestre acariciou...
Sua última pergunta - Qual era o meu deus - ficou em suspenso. Decidi
colocar a dúvida abertamente:
- Por que três círculos?
- Estás aqui por isso?
Não compreendi. Lento como sempre, em vez de aprofundar a pergunta do sábio, respondi com a verdade:
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- Procuro Yehohanan, o vidente. Dizem que anuncia um novo
reino...
Saul se lamentou.
- Por um instante pensei...
E continuou interessando-se pela minha vida. Por fim, sem poder conterse, fez uma reflexão que também eu não soube avaliar...
- Por um momento acreditei que procuravas o Altíssimo... Suspirou e chamou sua mulher. Sussurrou-lhe algo ao ouvido e Jaia,
olhando-me, concordou e sorriu. Fui aceito, com duas condições. Não deveria pagar pela permanência. Isso, sentenciou Saul, não era assunto seu, nem meu. Em segundo lugar, em troca de sua hospitalidade, teria de prometer alguma conversa, de vez em quando, "com aquele velho intrometido". Naquela aldeia não era fácil conversar... Não soube o que dizer.
- Não é preciso - esclareceu, satisfeito. O silêncio foi anterior à
palavra.
Acertei em todos os sentidos. Aprendi, cuidaram deste voluntarioso mas inepto explorador, e, quando chegou o momento, salvaram a minha vida...
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DE 28 DE OUTUBRO A 4 DE NOVEMBRO
Na manha seguinte, ao alvorecer, mais calmo, atravessei o vilarejo e me dirigi à zona que chamavam "Enavan" (hoje conhecida também como Enon ou Ainot Mechatzetsim). Aquela casa e seus habitantes exerceram sobre mim uma influência benéfica. Foi Saul, muito provavelmente, quem me proporcionou as forcas e a clareza mental necessárias para continuar...
As "fontes" ou "mananciais" eram um lugar paradisíaco. Encontravam-se mais perto do que supunha. Um pequeno caminho vermelho, barrento pelas últimas chuvas, saía de Salem e guiava o caminhante, sem erro, até uma imensa planície na qual dormiam, plácidos, cinco ou seis lagos de pouca profundidade e águas azuis, como os céus do Jordão. Contei duzentos metros, aproximadamente, até o primeiro dos lagos. Na realidade, um passeio a partir da casa de Aba Saul.
Os camponeses, madrugadores, se ocupavam nos hortos e nas plantações de palmeiras existentes entre as lagoas. Por trás, ao longe, entre os mastros negros dos bosques, aparecia, tímida, a linha verde e intrincada da floresta, um território no qual não havia entrado, por enquanto.
O grupo de Yehohanan não se encontrava longe. Segundo osfelah, junto à árvore de "ferro", no "terceiro lago". Somente devia rodear dois dos yam. Não havia como se perder.
E assim o fiz. Na realidade, ao aproximar-me, observei que não se tratava de lagos propriamente ditos. A água nascia em generosos mananciais - contei seis, espalhados pela planície -, ficava tranqüila e,
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finalmente, fugia em torrentes na direção da linha da selva. Eram os laboriosos felah que tinham sabido aproveitar os caudais, transformando a zona em uma excelente reserva de água. Para isso, haviam fechado as saídas naturais com poderosas barreiras de troncos, criando represas e uma rede de canais que regava as plantações e chegava até Mehola.
Uma espessura de taquaras, tamariscos, os chamados arbustos de Abraão e as voluntariosas espirradeiras brigavam nas laterais, disputando cada palmo daquela terra vermelha e fértil como poucas. Nas águas, atentas, observavam centenas de garças cinzas e brancas, esperando a comida e os inoportunos intrusos. Algumas, ao descobrir-me, se afastavam prudentes ou levantavam vôo, mudando de lago. O silêncio, com segurança, era o selo de Enavan. Somente as fontes e as aves se atreviam a elevar a voz, e sempre discretamente.
Foi simples. Reconheci o estilo do Anunciador à distância... Ao sul de uma dessas represas - a que chamavam "terceiro yam" -, na margem, elevava-se uma árvore solitária de proporções médias. Pendiam de seus ramos os familiares pedaços de louças que vi na sófora do "vau das Colunas". Muito perto brotavam duas fontes. Ambas impetuosas e com uma característica singular: de uma jorrava água fria; da outra, separada pouco mais de um metro, surgia um cano morno, de uns trinta graus Celsius. Os jatos pulavam de uma rocha, a uns cinco metros sobre o nível do lago, formando uma dupla e "divertida" cascata. Era chamada teomin (gémeos). A água potável era fria. A quente, por sua vez, apresentava-se ligeiramente salgada. Ofereciam um assombroso contraste.
Abner e os seus me reconheceram e se apressaram a dar-me as boas vindas, abraçando-me e beijando-me. - Esrin ("Vinte") voltou!...
Fiquei surpreso. O grupo crescera consideravelmente. Agora somava trinta homens. Continuavam mantendo o guilgal ou círculo de pedras. Nessa ocasião, o haviam traçado ao redor da mencionada e solitária árvore, muito próximo da água. Os camponeses a chamavam "árvore de ferro". Ao voltar ao Ravid, Papa i Noel informou-me tratar-se de uma espécie não muito freqüente na Palestina. Os gregos lhe deram
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J.J BENÍTEZ
o nome de metro, sideros ou "medula de ferro" em virtude da dureza de sua madeira. Florescia em um tom vermelho "marte", com flores de nervuras salientes que davam o aspecto de mechas ao vento. Para mim, a partir de então, foi a árvore "da cabeleira".
Nos arredores, entre as lagoas, perto das nascentes, curiosos e seguidores acampavam. No começo, menos numerosos que no "vau das Colunas". Quase não vi vendedores, nem inválidos, doentes, ou os inevitáveis vigaristas que contratavam seus serviços e os das padiolas. Deduzi que o lugar, mais afastado que Damiya, era a causa dessa calma aparente. Fiquei alegre. Eu também precisava de um pouco de paz.
Durante várias horas, sentado debaixo das "mechas vermelhas" da árvore de ferro, observando o oscilar dos pedaços de vasilhas que pendiam dos galhos, este pesquisador recebeu informação completa do ocorrido naqueles dias de ausência. Tudo, mais ou menos, transcorrera com "normalidade": os mesmos discursos, a mesma fúria nas palavras do vidente, as mesmas cerimónias de imersão e, de vez em quando, os mesmos finais catastróficos, com o Anunciador correndo na direção do bosque das acácias.
Yehohanan, como avisaram os felah de Salem, não estava. Abner não respondeu à minha pergunta sobre o motivo daquela ausência. Baixou os olhos, resignado. Compreendi.
O segundo no "corpo apostólico" do Batista encarregou-se de apresentarme aos "novos". Dez entusiastas do "reino" que acreditavam na missão de Yehohanan como precursor ou preparador do caminho do Messias libertador político, religioso e militar. Na verdade, recordo mal seus nomes e rostos, à exceção de um...
Todos, conforme eram mencionados, levantavam-se e me abraçavam. Abner se detinha então na enumeração das virtudes do recémchegado, bem como na pureza de sua origem genealógica. Supus que a maior parte do que assegurava era pura invenção, muito apropriada, isso sim, para os planos "salvadores" do grupo. Muni-me de paciência e resisti. Era o estabelecido na hora das apresentações naquele tempo e com aquelas pessoas.
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Subitamente, Abner mencionou seu nome e o povoado de origem. Vi-o levantar-se devagar, com má vontade. Estremeci. Parecia mais jovem, obviamente, e calculei estar entre 27 e 30 anos. Aproximou-se e, em vez de abraçar-me, beijou-me nas duas bochechas. Foram beijos frios... "Judas, de Queriot"... Judas, o Iscariotes! O homem de Queriot, uma das aldeias de Judá, ao sul de Jerusalém! Então era verdade! Judas foi primeiro discípulo do Anunciador. Minhas informações estavam corretas. Deve ter notado o meu interesse, mas, tímido e reservado, limitou-se a voltar ao seu lugar. É curioso, jamais o vi sorrir.
Abner o apresentou como filho de uma rica e nobre família de saduceus. Seu pai, Simáo da Judéia, era célebre por suas empresas de fabricação de barris. Judas decidira
deixar tudo e buscar a "libertação de sua alma e de seu povo, nessa ordem". Por isso estava ali, junto ao novo profeta de Israel... A partir daí, as palavras do segundo escorregaram em minha mente. Quase não lhe dei mais atenção. Estava fascinado pelo aparecimento do "traidor". Dei graças aos céus pela seqüência de acontecimentos que me havia levado, finalmente, a Salem diante da presença do Iscariotes.
Incrível Destino! Foi justamente por causa daquele 28 de outubro do ano 25, domingo, que comecei a conhecer o esquivo e labiríntico Judas, e a entender, em definitivo, o porquê de seu comportamento final com o Filho do Homem. Nada foi como contaram...
Quase não falava e, se o fazia, selecionava muito bem os seus interlocutores. Mantinha a mesma figura e os gestos discretos e educados. Era alto (1,70 metro), se levarmos em conta a média dos homens naquele tempo. Sempre me lembrou um pássaro, com o nariz aquilino e pontudo. Mostrava uma pele branca, quase transparente, com um rosto imberbe e uns olhos negros, profundos, inquisidores, mas inseguros. Seus cabelos eram mais longos que no ano 30. Caíam delicadamente sobre os ombros. Eram tão pretos e frágeis quanto o seu coração. Na época, vestia-se com um certo luxo, sempre com túnicas de linho bordado, geralmente na cor marfim. E, inseparável, na faixa ou hagorah que o cingia, uma espada ou uma sica (um punhal curto), conforme o momento e o lugar...
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Durante o tempo que permaneci em Enavan, praticamente não o perdi de vista. Estudei a fundo seus modos e penetrei discretamente no seu mundo. Foi assim que soube de alguns de seus mais delicados "segredos". Naquele momento, o complexo universo de Judas limitava-se a uma idéia central e outras de menor categoria. Seu objetivo
era colaborar, como fosse, na libertação de sua pátria. Os zelotes1 eram seus ídolos. Somente aspirava fazer parte daquele grupo de patriotas e expulsar os kittim (romanos), jogando-os no "grande mar" (Mediterrâneo).
Entendi que a associação com Yehohanan era uma via para demonstrar seu patriotismo, e mais adiante, quem sabe, fazer parte com todo direito dos "zeladores da lei", como também chamavam os zelotes. Como já mencionei em outras oportunidades - e não me cansarei de insistir nisso -, para a maioria dos judeus, os romanos eram déspotas, sacrílegos, parricidas, incestuosos, ladroes, assassinos e pederastas (entre outras "belezas"). Judas estava convencido do triunfo de Israel sobre Roma. Acreditava no Messias e na inevitável "depuração dos ímpios". Em alguns momentos, chegou a pensar que o grupo encabeçado pelo Anunciador era o ansiado movimento de libertação nacional do qual - segundo ele - falavam os profetas. Essa foi a razão inicial que o levou a solicitar o ingresso entre os discípulos do vidente do Jordão. De fato, durante aquele tempo, Judas se auto-proclamou o "guerrilheiro" ("iscariotes"); assim seria conhecido no futuro. Seu nome verdadeiro era Judas ben Simão. Os pais, ao tomarem conhecimento dessa decisão, o repudiaram e deserdaram. Como já disse, o grupo ou seita dos saduceus, a que pertencia a família do Iscariotes, pregava o bom relacionamento com os invasores. Isso favorecia seus interesses econômicos e mantinha suas posições de destaque entre as classes sacerdotais e a aristocracia judaica. Judas soube jogar com o desprezo de sua família, aproveitando-o como uma "condecoração". Os zelotes, pelo que pude deduzir naquela ocasião, já o haviam notado. Mas, extremamente desconfiados, o mantiveram "sob vigilância", observando suas palavras e
1 Ampla informação sobre os zelotes em Jerusalém, Cavalo de Tróia 1; Massada. Cavalo de Tróia 2; Nazaré. Cavalo de Tróia 4 e Cesaréia. Cavalo de Tróia 5. (N. do A.)
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atitudes. E digo antecipadamente: se Yehohanan não houvesse morrido, o maquisard, muito provavelmente, não teria se unido a Jesus de Nazaré. Mas Deus escreve certo por linhas tortas...
Falei muito com Judas. No começo, esteve receoso. Depois, ao comprovar minha amizade com Abner e, sobretudo, com o Anunciador, cedeu, permitindo um certo acesso (o mínimo) a seus pensamentos e intenções. Sua filosofia, como digo, era zelote. Judas praticava o "esporte" da liberdade. Acreditava nela sobre todas as coisas. Era um indomável defensor do povo. Seus ídolos eram Pinias (também chamado Finees), neto de Aaráo e mencionado em Números (25), o profeta Elias e os irmãos Macabeus. Todos demonstraram um zelo especial por Yavé. Pinias atravessou Zimri com sua lança, o israelita que se atreveu a introduzir uma mulher madianita em sua tenda. Diz a Bíblia que Yavé elogiou o "zelo" de Pinias e deteve uma praga que enviara sobre seu povo e que provocou a morte de vinte e quatro mil judeus. Elias, por sua vez, segundo Judas, era o protótipo do "zeloso por Yavé". No primeiro livro dos Reis (18, 40), conta-se como o profeta deu cabo da vida de mais de quatrocentos videntes do deus Baal, simplesmente "pelo zelo para com Deus". Ele próprio os degolou. Também os Macabeus eram o exemplo vivo da liberdade e da fidelidade ao Deus de Israel. A rebelião contra a dinastia helénica dos selêucidas, no ano 167 antes de Cristo, foi um momento de glória na história de seu povo, nas palavras do Iscariotes2. Era preciso levantar o povo e repetir o massacre do
2 Se há um rei nefasto para os judeus, foi Antíoco IV Epífanes. Foi um convencido defensor da cultura grega e tratou de impô-la, pela força, à nação israelita. No
ano 172 a.C., seguindo essa linha de helenização, mudou o sumo sacerdote, substituindo Jasáo (nome grego de Jesus) por Menelau, membro de uma família pró-selêucida. Menelau prometeu ao rei Epífanes que dobraria os impostos e modificaria os costumes religiosos dos judeus. Desde então, como conta o segundo livro dos Macabeus (4, 25), Menelau comportou-se com o furor de um tirano cruel e com a ira raivosa de uma fera. Os judeus não cumpriram as aspirações de Menelau e produziu-se um fato inconcebível: os partidários do sumo sacerdote saquearam o tesouro do Templo. Foi o começo de uma série de rebeliões contra os helenistas. Judeus contra judeus.
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mar Vermelho. Os romanos - segundo Judas - eram a encarnação do mal, como o foi o Egito nos tempos de Moisés. "Abaixo os selêucidas! Abaixo Roma! Deus é o único rei!" Esses eram os pensamentos daquele Judas do ano 25, quando ainda não tinha conhecido Jesus de Nazaré. Pena que os evangelistas também não mencionem este importante capítulo do Judas aspirante a zelote e discípulo do Anunciador!
Judas Iscariotes era simplesmente um terrorista, tal e como conhecemos hoje, possuía o fanatismo religioso levado aos seus extremos mais sangrentos. Mas devo ser rigoroso nas colocações. Judas, nessa ocasião, era um aspirante a terrorista. Somente contemplava a via armada como solução para o problema do invasor romano. Opunha-se à materialização de qualquer censo. Considerava-os um insulto e um atentado contra a propriedade. Pagar impostos a Roma era reconhecer um governo ímpio e permanecer escondidos na escravidão. E ia além, fazendo sua a filosofia zelote: o beneficiário dessa luta não era outro senão o povo. "Temos de libertá-lo - dizia - e saldar suas dívidas." Para isso, o melhor era saquear os registros de Jerusalém. Lá
constavam todas as dívidas. "E preciso queimá-los - repetia. O reino de Deus se
Epífanes conseguiu sufocar os levantes e foi mais longe em seus loucos projetos: tentou unificar as etnias de Israel e suprimir os costumes religiosos sagrados. Proibiu as práticas do shabbat e os sacrifícios, bem como a circuncisão e a leitura dos livros. O povo, escandalizado, estourou em novas revoltas. Mas Antíoco IV estava decidido a levar adiante a grande revolução, e, em 6 de dezembro de 176 a.C., ordenou que se levantasse um altar a Zeus no coração do Segundo Templo. Foi a "abominação da desolação". A intenção de Antíoco IV Epífanes de igualar Yavé com Zeus provocou o desastre final. A população, temerosa, resignou-se, mas não os "zelosos de Yavé". Entre estes se encontravam Matatias e seus cinco filhos. Fugiram para as montanhas de Judá e lá formaram guerrilhas. Eram os hasidim, homens zelosos e piedosos que se deixavam matar antes de infringir a Lei. Matatias, morto em 166 a.C., foi sucedido por Judas, seu filho, com um exército de seis mil homens. Judas recebeu o apelido de "Martelo" ou "Macabeu", por sua especial dureza como caudilho. Em dezembro de 164 a.C., Judas, o Macabeu, conseguiu a purificação do Templo. Assim surgiu a hanukah ou festa das Luzes. Antíoco IV Epífanes teve de ceder ante a pressão de Roma, que acabou aliando-se com os sublevados. (N. do M.)
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aproxima, como diz Yehohanan, e nós devemos colaborar nesse governo dos céus. Deus não dará o primeiro passo se antes nós não o dermos." Essa era a filosofia medular do Iscariotes. Acreditava, inclusive, que uma vez iniciado o combate, Yavé faria os seus costumeiros prodígios. Talvez derrubasse cidades, como havia sucedido com Jerico, ou abrisse de novo as águas e sepultasse os kittim. Aquela crença
férrea em um deus fazedor de milagres, tal como prognosticavam os profetas, os chamados Oráculos Sibilinos e o primeiro livro de Henoc, colocou-me na defesa. Que aconteceria com Judas quando fosse testemunha direta dos assombrosos prodígios de Jesus de Nazaré? Comecei a suspeitar de algumas razões pelas quais se havia unido ao Galileu...
- O resto - manifestou sem a menor sombra de dúvida - é lixo e deve ser tratado como tal. Todo o que colabore com os ímpios será destruído. Isso inclui os mornos...
Os "mornos", segundo ele, eram os que "não sabiam ou não queriam saber". Yavé era Deus, o único Deus, e não aceitava concorrência. Roma, os saduceus, seus próprios pais, seriam esmagados pelo rolo compressor zelote. Se Yehohanan era o precursor na luta, ele estaria na primeira fila.
Naturalmente, nem todos compartilhavam dessas ideias sobre a urgente libertação nacional. Conheci uma infinidade de judeus que, mesmo sendo patriotas, preferiam a ordem estabelecida pelos romanos. Os bandidos tinham sido reduzidos, os caminhos consertados, o comércio intensificado e neutralizadas as antigas invasões estrangeiras. Não era o ideal, mas era bom. Sendo honesto, creio que apax romana foi bem recebida por uma grande porcentagem da população. Nessa porcentagem não estariam Yehohanan, seus discípulos, os apóstolos do Mestre nem, naturalmente, a Senhora e parte dos seus filhos. Mas disso me ocuparei no seu devido tempo...
No dia 30, terça-feira, apareceu Yehohanan.
Seguindo meu costume, todos os dias, ao amanhecer, eu deixava
Salem e me reunia no guilgal com Abner e os seus. Nesse dia, antes
da súbita irrupção do Anunciador sob a árvore "da cabeleira", quem
escreve estas linhas encontrava-se fora do círculo de pedras, conversan
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do com uma das famílias dos acampados. Eram galileus e vizinhos de Nahum. Conheciam bem a "casa das flores" e seus moradores. Procuravam remédio para um dos seus filhos, semiparalítico desde a infância. Pensavam que Yehohanan poderia curá-lo.
De repente, ouvi vozes. Procediam do guilgal. Era o Anunciador! Ninguém o viu chegar! Discutia com Abner e sua gente. Fiquei quieto, desconcertado diante dos gritos. Yehohanan parecia muito irritado. Apontou o responsável pelo sofar ou corno de carneiro. Pensei ter entendido. Suas ordens eram terminantes. Ao vê-lo chegar, o encarregado do sofar tinha de alertar os acampados, como sempre. Desta vez, ignoro a razão, o discípulo não o fez e o Anunciador, nervoso, os repreendeu pela "falta de consideração para com o enviado de Yavé".
Meu Deus! Aquele energúmeno continuava tão intolerante e irritável quanto no "vau das Colunas"... Ele mesmo pegou o corno e o fez soar. Depois, com passos firmes, entrou na represa, caminhando com a água até os joelhos na direção das teomin ou fontes gémeas. Sua vestimenta e seu aspecto eram idênticos. A longa cabeleira, com as costumeiras sete tranças, dançava a cada movimento, tão ameaçadora quanto os olhos e a estatura formidável. Colocou-se diante da cascata dupla e, sem esperar por seus discípulos atrapalhados, começou a pregar. As pessoas, sem muito entusiasmo, colocaram-se de pé e foram se aproximando.
Não notei novidades na prédica. Yehohanan repetiu ameaças e avisos, advertindo sobre a iminente chegada do reino e de como aqueles que desobedeciam às suas ordens seriam jogados à gehenna eterna e consumidos como palha seca. O infeliz sofar julgou-se aludido e ruborizou de vergonha. Eu também me senti
incomodado. Como era possível que os cristãos chegassem a deformar a imagem daquele homem, até o extremo de transformá-lo em santo?
Depois dos costumeiros "Arrependei-vos!", o Anunciador pronunciou a palavra-chave sakak - "descei à água" - e o do sofar apressouse a romper o silêncio com um toque longo. Era o sinal para a cerimónia da imersão. Nessa ocasião sim produziu-se uma mudança notável. Abner e os armados tinham conseguido estabelecer um mínimo de
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ordem. Aqueles que desejavam "purificar" seus corpos aguardavam na fila, sem empurrões nem pressa. Os discípulos rodearam o vidente, e, com as armas colocadas na cintura, foram permitindo a passagem, um a um, sem os doentes, paralíticos ou padiolas.
- As curas em outra hora - gritou Abner -, quando o profeta
o desejar...
Em um respeitoso e, para mim, incomum silêncio, os duzentos ou trezentos acampados foram desfilando diante das fontes gémeas. A "liturgia" também foi modificada, adaptando-se às "necessidades" do lugar. O "candidato ao reino" chegava até onde estava Yehohanan, e, como era previsível, ficava atónito diante da figura imponente do Anunciador e, sobretudo, diante do aspecto feroz do vidente.
- Te arrependes?
Se o homem era rápido na resposta, Yehohanan o empurrava para debaixo do jorro de água morna e ali o mantinha durante dois ou três segundos. Do contrário, quando o aspirante duvidava ou balbuciava uma resposta pouco clara, o das sete
tranças ruivas o deslocava para um cano de água fria, "como castigo por sua indecisão" (!).
- Neqe ("Limpo!").
O indivíduo então se afastava dos tzomnin.
- Seguinte!
As mulheres, como pude apreciar no "vau das Colunas", não contavam para o profeta. Não perguntava nem lhes dava a menor atenção. Iam diretamente para a cascata de água fria. Todas - segundo ele - eram "mornas".
Estava claro. Dependendo do local e da proximidade dos núcleos humanos mais ativos, assim era o desenvolvimento da atividade de Yehohanan. Se os vigaristas e vendedores profissionais não o seguiam, os sermões e os "batizados" transcorriam sem novidades dignas de menção. Este foi o caso de Salem e seus mananciais.
Quando o sol ergueu-se sobre a linha da selva do Jordão, Yehohanan, atento, suspendeu as "imersões" na cascata dupla. Abner solicitou paciência aos que aguardavam na fila.
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- Para o dia seguinte...
Essa foi a informação transmitida pelos discípulos. Os acampados, decepcionados, retornaram às suas tendas e cabanas. Na margem, silenciosos e derrotados, percebi os membros da família de Nahum, com o menino no colo. Não se atreveram a mover-se. Senti uma profunda pena. O pequeno sofria de uma paralisia inferior ou crural3 que provocava nele a paralisia das pernas. Algum tempo depois, quando o
Destino achou conveniente, confirmei o diagnóstico. Aquele menino, de certo modo, faria parte da vida do Filho do Homem. Ou melhor, da sua glória...
Segui os discípulos e me juntei ao guilgal. Yehohanan, como era seu costume, tirou o talith do embornal branco e cobriu a cabeça. Junto às pedras que formavam o círculo, mantendo os curiosos à distância, achava-se a colmeia ambulante.
O gigante tomou assento ao pé da árvore de ferro e, sem demora, começou uma de suas "aulas" habituais, doutrinando os "arautos" sobre o "reino iminente". Nada novo. Tudo girou ao redor de suas idéias obsessivas: Yavé estava chegando. Yavé enviava os seus exércitos. O Messias apareceria na primeira fila, com as armas e o escudo preparados, pronto para quebrar os dentes dos ímpios, os romanos. Yavé apascentaria os rebanhos de Israel e os filhos dos estrangeiros se transformariam em seus escravos, lavradores e vinhateiros...
Judas vibrou. Aquele era seu homem... Ao concluir, Abner chamou a atenção de Yehohanan sobre mim. O Vinte voltara... Não teve dúvida. Chamou-me à sua presença e perguntou por Jesus, seu primo distante. Na expectativa, os discípulos e Yehohanan esperaram minha resposta.
3 Pelo que cheguei a apurar, o menino em questão sofria de paralisia como conseqüência de uma possível falta congénita de fusão das estruturas internas da coluna vertebral ("disrafia espinhal"). Uma das formas mais graves desse problema congénito ou de nascimento é o chamado "meningomielocele", que aparece quando a medula espinhal, as raízes nervosas (ou ambas) emergem pelas más formações ósseas e cutâneas da região posterior. Além disso, da paralisia dos membros inferiores, o pequeno apresentava um déficit neurológico, com perda do controle intestinal e da bexiga. Naquele tempo, o meningomielocele era incurável. (N. do M.)
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- Devo falar contigo a sós...
Por um momento pensei que ele estouraria, obrigando-me a responder de imediato. Não foi assim. Depois de uns segundos de silêncio e de tensão, acabou por levantar-se, e, passando o braço esquerdo sobre os meus ombros, convidou-me a caminhar. Atrás de nós ficou um murmúrio de admiração. Aquele gesto do vidente não era normal e o Vinte ganhou novos e interessantes "dividendos" entre os discípulos, especialmente, com o Iscariotes. O Destino, mais uma vez...
Foram provavelmente os trinta metros mais angustiantes de minha permanência em Salem. Yehohanan entrou na água e, naturalmente, eu com ele. Conduziu-me devagar para a rocha da qual brotavam as pequenas cascatas. O que eu devia lhe dizer? Tinha de inventar algo. Jamais me atrevi a levar sua mensagem ao Mestre: quanto mais devo esperar? Lembro-me que o odor corporal de Yehohanan me atordoou por uns momentos. O que eu devia responder?
Ao chegar ao jorro de água morna, o Anunciador perguntou pela segunda vez:
- Tens visto Jesus?
Não me deixou falar e continuou formulando todo tipo de questão. Algumas, realmente lamentáveis...
- Quanto tempo devemos esperar? Ele sabe que os exércitos de Yavé estão preparados? Tu lhe disseste que podemos reunir milhares de compatriotas? De que armas ele dispõe? Ele entende que temos de coordenar nossos esforços? Tu lhe falaste do meu poder para curar?
Curar? Eu não tinha assistido a nenhum dos milagres que corriam de boca em boca e que, supostamente, o vidente da "borboleta" no rosto realizava.
Finalmente, retirando parte do xale, atravessou-me com aquele olhar incómodo. Como era difícil acostumar-se com aquelas "pupilas" vermelhas! Respondi com a verdade:
- Não chegou a sua hora... Reagiu, furioso.
- E quanto mais o Santo deve esperar?..., bendito seja o seu nome. Ele espera que eu vá até o yam e que lhe implore?
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Deu meia volta e, sem esperar resposta - o que eu podia dizerlhe? -, dirigiu-se à cascata de água fria, deixando que o salto de água o cobrisse. E permaneceu assim, imóvel como um fantasma, sob o rumor da água espumante.
Não os vi chegar. Encontrava-me tão absorto no imprevisível Yehohanan que não percebi sua presença até que os tive a meu lado. Era a família de Nahum. O pai, ao ver-nos junto aos teomin, armou-se de coragem e, tomando o pequeno nos braços, aventurou-se na represa, disposto a pedir o socorro do vidente. A mãe, assustada, segurava o bebé. Não souberam o que fazer.
De repente, o gigante abandonou a cascata e, pingando, com o talith de cabelo humano grudado à cabeça e aos ombros, dirigiu-se a mim e gritando ameaçou:
- Eu o farei! Subirei até Nahum e me colocarei de joelhos se for necessário!
A família, mais aterrorizada ainda diante da súbita reação do profeta, voltou atrás.
- E vós, que quereis? - perguntou com idêntica agressividade. - Não sabeis que eu sou o Enviado? Não podeis deixar-me nem um momento?
- Mestre - respondeu por fim o homem -, coloca tuas mãos sobre nosso filho... só isso...
Por uns instantes, confuso, ele não soube o que fazer. Olhou para o menino. Depois, encurralado, observou-me.
Alertados pelos gritos, Abner e os seus se jogaram na água. Judas, à frente, empunhava a sica na mão esquerda. O punhal brilhava ameaçador.
Yehohanan os deteve com um simples gesto e os gladius voltaram aos seus lugares.
- Farei algo melhor...
Pediu o pequeno, e o pai, obediente, o colocou nos longos braços do Anunciador. A mãe, intuindo algum tipo de perigo, refugiou-se atrás do marido. Abner interrogou-me com o olhar. Não soube o que responder. Na realidade, sabia tanto quanto o pequeno-grande homem...
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- Agora observa até onde chega o poder do Santo, bendito seja o
seu nome...
A advertência foi lançada diretamente aos olhos deste explorador. O que pretendia fazer? E, medindo as palavras - e eu diria que divertindose -, sentenciou:
- Sou seu... Seu poder está em mim... Quando voltares a vê-lo,
lembra-lhe que somos filhos da promessa... Somos o poder...
Supus que se referia ao Mestre. Diante do desconcerto de todos, deu meiavolta e caminhou até os saltos de água. Ao chegar diante das cascatas, voltou a vacilar. A mãe foi atrás dele, mas os discípulos a impediram. Yehohanan escolheu
o da esquerda e colocou-se sob o jorro, mantendo a criatura entre os braços. A criança, ao contato com a água fria, reagiu e, assustada, começou a chorar. A mãe tentou livrar-se da barreira que os discípulos formavam e resgatar o filho. Não conseguiu. Abraçou o bebé, retrocedeu e amparou-se no marido. O gigante, impassível, alheio aos lamentos do pequeno, continuou sob a água pelo espaço de vários minutos. O que queria demonstrar? Pretendia curar a paralisia?
Reconheço que duvidei. Durante alguns segundos, vi-me surpreendido por uma idéia absurda: estaria o Anunciador em condições de fazer desaparecer um meningomielocele? Era certo o seu poder? Recusei a idéia com a mesma presteza com que a havia recebido. Isso era impossível, pelo menos naquele tempo. Nem sequer conheciam as causas da referida patologia. Aquilo só podia ser teatro, ou algo pior... ou seria eu o equivocado? Que tipo de indivíduo tinha diante de mim?
A história e a tradição, especialmente a cristã, o apresentaram como um homem valente, devoto e convencido da missão espiritual de Jesus de Nazaré. Quanto a mim, achava-me diante de um déspota, um iluminado e defensor de um Deus cruel e vingativo, e, provavelmente, um desequilibrado. Quem tinha razão?
Por fim, retirou-se da cascata e, lenta e teatralmente, mostrou a criança à sua família e aos seus discípulos. O menino continuava chorando. Tremia de frio. O pai acudiu-o com rapidez e cuidou dele.
- Agora - sentenciou Yehohanan com satisfação -, voltai para casa...
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A família, convencida da cura, quis beijar as mãos do homem das "pupilas" vermelhas. Yehohanan o permitiu. Em seguida, o casal afastouse para o acampamento. As pessoas,
suspeitando que algo estranho havia sucedido nos teomin, rodearam imediatamente os de Nahum.
Eu quis seguir os passos da família e verificar (!) se o menino continuava com as pernas paralisadas. Não pude. O olhar do vidente procuroume. Ergueu os braços e, gritando, proclamou:
- Sou Dele! Quem como eu?
A partir daí, o Anunciador agiu com tanta pressa quanto inteligência. A notícia â& suposta cura se propagou como pólvora entre os acampados e produziu-se algo similar ao que vi em .outrasocasiões. Seguidores e curiosos despertaram e lançaram-se no guilgal, cheios de fervor e desejosos de tocar o "sábio". Tarde demais. Quando reagiram, Yehohanan já havia tomado sua colmeia e desaparecido para a selva do Jordão. Abner e os discípulos somente conseguiram contê-los parcialmente. Arrancaram os cacos de louça que pendiam da árvore de ferro e os guardaram como lembrança.
Judas, apesar da confusão e do saque dos devotos, sentia-se feliz e exuberante. Yehohanan era o líder. Ele os conduziria à vitória sobre Roma. Os zelotes teriam informação pontual sobre o ocorrido naquela data memorável. Esses foram os pensamentos do Iscariotes e eu não estava enganado, pelo menos quanto ao que se refere aos zelotes...
Procurei a família de Nahum e encontrei-a empacotando seus pertences. Era a ordem do vidente... Trataram-me com gratidão, como se tivesse algo a ver com o gesto do Anunciador. Eu não disse nada. Limiteime a observar a criança, e, tal como eu supunha, as pernas continuavam sem mover-se. A única mudança que constatei foi a febre: era alta... Pouco depois se retiravam de Enavan, tomando o caminho do vale, rumo à sua casa, no mar de Tiberíades.
Iríamos encontrar-nos noyam. Isso eu prometi...
Quando a situação se apaziguou, Abner fez um aparte e interrogoume. O que eu achava daquilo que acontecera? E, sobretudo: o que diria a Jesus quando voltasse a vê-lo? Contaria sobre a extraordinária cura do menino paralítico?
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- A vitória é nossa, Esrin! O Santo enviou o seu Messias... Não duvides disso... Ele, Yehohanan, é o libertador!
Era evidente: a situação piorava. Que podia dizer-lhe? Dia a dia, como já disse, os discípulos do Batista aferravam-se à consoladora idéia de um Yehohanan Messias. Jesus não existia. Era um nome, ao que o Anunciador só fazia alusão. Era ele, Yehohanan, quem arrastava as multidões e colocava de pé os corações. O possível, mais possível, conflito entre os seguidores do Anunciador e os futuros discípulos do Mestre começava a desenhar-se a uma distância não muito distante...
Fugi como pude. Senti-me cansado e, o que era pior, decepcionado. O personagem da cabeleira até os joelhos não era fácil. Estava esgotado. As primeiras suspeitas sobre um possível desequilíbrio mental continuavam prosperando. Pensei nos nemos. Teria de procurar o momento e a forma para administrá-los. Mas como? Arriscava-me a segui-lo quando se retirasse na direção da linha da selva, no rio Jordão? A possibilidade não parecia tão simples como no "vau das Colunas". Caso me descobrisse, o mais provável era que me repudiasse. Também não poderia oferecê-los no guilgal. Não era simples. Suas permanências no círculo eram curtas e imprevisíveis. Além disso, Yehohanan quase não comia quando se encontrava na companhia dos discípulos. O mel da colmeia ambulante era o seu único sustento.
O instinto me preveniu. Deveria agir com rapidez pois "algo" se avizinhava... Cansado, busquei refúgio na pequena casa de Aba Saul, em Salem. Sim, estranha e intensamente, cansado...
Dediquei o resto do dia a pensar. Jaia e Saul, esperando, perceberam que algo me atormentava. Não intervieram, respeitosos, e me deixaram sozinho, com a batalha jamais ganha na qual podia brigar com meus próprios sentimentos.
Ela estava ali, entre as estrelas. Era a única conexão. Se erguesse os olhos, me veria, às vezes brilhante, às vezes apagado. Se eu erguesse os meus, também a veria, formosa, silenciosa e distante. Desde então, desde a minha permanência em Salem, quando me sentia afogado e perdido - isto é, sem ela -, procurava o firmamento e imaginava que
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a mulher dos meus sonhos fazia o mesmo. Cada lampejo era um "te amo"... nunca soube se era verdade.
Permaneci dois dias em Salem, praticamente sem sair da casa. As forças me abandonaram. Quase não me agüentava em pé. Tentei racionalizar o problema. A que se deveria tal abatimento? Teria origem na crise que batizei como mach^. Poderia a luta interna provocar um abatimento físico e moral como o que eu estava sofrendo? Também pensei no mal que nos atacava desde o primeiro "salto" no tempo. Os neurônios estavam falhando? Encontrava-me diante de um episódio de alteração espaço-temporal? Assustei-me. Se fosse assim, se estivesse atacado pelo que conhecíamos como "ressaca psíquica", estava perdido. Achava-me sozinho, a quarenta quilómetros doyam. Se perdesse o controle da situação, como avisar Eliseu? Seria capaz de voltar ao Ravid? Poderia morrer ou, o que era pior, vagar sem rumo fixo e
sem saber quem era realmente... Dobrei a dose de antioxidantes. Não conseguia entender. Mantinha a medicação, a comida era saudável. Imaginei que ela tinha mais força do que eu havia suposto. Sim e não.
Na sexta-feira, 2 de novembro, ao acordar, senti-me bem. O ânimo se elevou e os velhos fantasmas fugiram. Foi um alarme falso. Ou não? Voltei a Enavan. Tudo continuava mais ou menos igual. Yehohanan, o Batista, não havia regressado. Continuava em algum ponto desconhecido do Jordão. Abner, acostumado a suas ausências, tentava suavizar a situação com suas diárias e, a verdade seja dita, pouco afortunadas prédicas. O número de curiosos cresceu. Agora eram por volta de quinhentos. Judas também prosseguia com as suas, prosperando e cochichando entre os seguidores fiéis, convencido da secreta presença de seus ídolos, os zelotes, entre os acampados.
Optei por retirar-me. Preferia a solidão de Salem e a boa conversa de Aba Saul. Algo estranho, além de tudo, reclamava a minha presença na aldeia. Não soube definir do que se tratava naquele momento. Era uma inquietação permanente. Pousou sobre o meu coração desde que
Obviamente, a palavra mach não é um erro, como havia suposto. (N. do A.)
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divisei o vilarejo. "Algo" singular, sim, puxava-me na direção daquele punhado de casas de barro...
Deixei-me levar pela intuição. Caminhei sem rumo, saudando os pacíficos felah e brincando com a numerosa população infantil. Pouco a pouco, todos foram se familiarizando com aquele estrangeiro alto e magro, quase sempre silencioso e taciturno.
Já a tinha visto desde que chegara a Salem, no entanto, por uma razão ou por outra, não tivera ocasião de visitá-la. Tratava-se de uma pequena colina a oeste da aldeia, a uns quinhentos metros. Os hortos e palmeiras rodeavam-na quase completamente. Não creio que tivesse mais do que quinze metros de altura em relação à planície dos "mananciais". O povo a chamava de "o lugar do príncipe", em memória, ao que parece, a um nobre que construiu o seu palácio no alto dessa suave colina.
Foi assombroso. Agora, ao colocar em ordem minhas lembranças, quase não posso crer. Bisbilhotei entre as ruínas, pois isso era tudo o que restava do tal palácio. Pedras e mais pedras, a maior parte destruídas, lembrando quartos e corredores. Somente os répteis davam vida e movimento aos blocos de pedra, desgastados pela chuva e pelos ventos.
Apesar da desolação do lugar, senti-me bem. Era um lugar bendito pelo silêncio, esse pequeno grande deus que sempre termina fugindo de nós. Procurei uma sombra e sentei-me sem pressa. Deixei que minha mente voasse, transportando-se zo yam. Lá estavam eles...
De repente, um sonho benéfico afastou-me do Mestre e de Nahum. E sonhei... Foi um sonho curto mas nítido. Ainda o vejo... Estava adormecido. Era o lugar em que me encontrava nesse momento. Podia ver a mim mesmo, encostado em uma das paredes de pedra branca... Alguém se aproximou. Vi que chegava, mas fingi que estava dormindo (?). Inclinouse ligeiramente e observou-me com curiosidade. Era um homem tão alto quanto eu. Vestia uma túnica, de um branco amarelado, até os pés. Parecia de seda. Os olhos, de um azul intenso, não piscavam.
Pressionando a "vara de Moisés" entre os dedos, preparei-me para um possível ataque do desconhecido.
O homem sorriu e negou com a cabeça. O cajado não era necessário...
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Os cabelos, tão brancos quanto os de Aba Saul, eram mais longos e desciam até a cintura. No peito, bordado em azul, brilhava algo que me pareceu familiar: três círculos concêntricos! Era um emblema ou distintivo. Realçava-se com intensidade sobre o brilho da túnica.
Abriu então os lábios e "falou-me". Mas não foram palavras o que "pronunciou". De sua boca saiu luz. E este que escreve "compreendeu" o significado de tal "luz" (?): "Eu sou o verdadeiro precursor do Filho do Homem...".
E a "luz" repetiu: "BarNasa... BarNasa... BarNasa..."
Aquele "Filho do Homem" ou Bar Nasa propagou-se pelas ruínas do palácio. E o eco devolveu a "luz": "Bar Nasa..."
- Quando chegar o momento - prosseguiu o homem das "palavras luminosas" -, procura a teus pés. Então vais compreender que isto não é um sonho..."
Depois acordei. Ali, obviamente, não havia ninguém. Só lagartos verdes e amarelos, bebendo sol e, suponho, surpresos diante da presença daquele "louco". Que estranho! Outra vez os círculos!
Dei por fato certo que o sonho era conseqüência da pressão que eu vinha suportando. Não conhecia o personagem das "palavras luminosas". Não era parecido com ninguém que eu tivesse visto até o momento. Só se parecia um pouco com o ancião Saul... Estava ficando louco? Mas as imagens e as "palavras" (?) permaneceram na minha memória, dominantes e vivas. Agora, estremeço ao saber o que aconteceu pouco tempo depois, em uma das vezes em que acompanhei o Filho do Homem.
Nada é casual, e muito menos os sonhos...
Fiquei mais uns momentos no "lugar do príncipe". Revi o sonho e tentei achar algum sentido lógico. Pobre tolo! Desde quando a Divindade está sujeita ao raciocínio? Sou assim e não pude evitá-lo. Revisei as "palavras" e, concedendo uma hipotética verossimilhança ao que vivi, tentei compreender. Por que os três círculos concêntricos? Por que aqueles misteriosos círculos nas esteiras da "casa das flores" e na de Saul, o "doutor graduado" da Lei? Será que Jesus e Aba Saul tinham algo em comum? Tratava-se de uma simples coincidência? Por que o homem do sonho assegurou que era o verdadeiro precursor? Obedecia à minha rejeição para
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com Yehohanan? Estava eu sendo vítima de meus próprios sentimentos? Por que repetiu "Bar Nasa" quatro vezes? Ou melhor, cinco, se considerasse o eco. O que devia procurar a meus pés? Desisti. Não compreendia absolutamente nada. Definitivamente, aquilo era um hospício...
Aba Saul e Jaiá se alegraram quando voltei inesperadamente. Náo sei se o ancião notou algo. Olhou-me nos olhos e perguntou:
- Encontraste o que procuravas?
Sorriu malicioso e convidou-me a tomar assento sobre as esteiras
dos círculos.
Foi outro impulso. Deixei-me arrastar pela intuição, esse pequenogrande deus que não foge jamais e que não trai nunca. Abri meu coração, contando-lhe o sonho recente. Dizendo melhor: parte dele...
Saul, assombrado, obrigou-me a repetir o sonho pela segunda vez. Em nenhum momento lhe falei das "palavras de luz". Náo mencionei a "mensagem" do cavalheiro da túnica de seda. Não sei se fiz bem ou mal.
O velho meditou uns instantes. Atravessou-me com seus olhos e remexeu meu íntimo, como quem busca com afinco. Por fim, sereno, com uma autoridade que ainda me confunde, exclamou:
- Estás aqui por isso...
Lembrei-me de sua pergunta, quando o interroguei pela primeira vez sobre os enigmáticos círculos concêntricos das esteiras, mas, coitado de mim, não captei o sentido desta última resposta.
- Não te compreendo...
- Náo importa - disfarçou inicialmente -, agora sei o que deveria saber. E então rápido, arrependido, voltou sobre seus próprios passos.
- Agora sei que estava indo na direção certa: procuravas o Altíssimo... Tive a intuição de que Saul morria de vontade de dizer algo e incentivei-o.
- Não procurava o Altíssimo... Continuo procurando.
Foi dessa vez que o rabi de Salem decidiu contar-me uma história da qual ainda não me refiz... Mas, antes de iniciar o relato, chamou por Jaiá e pediu seu talith. Logo depois, Aba Saul cobria a cabeça e os ombros com um manto branco. Falou em voz baixa, como quem revela um segredo...
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- Aconteceu faz muito tempo, na época do nosso pai Abraão...5. Um dia, onde hoje é a cidade de Jerusalém, apareceu um homem. Era alto e com o
cabelo branco até a cintura...
Sorriu, adivinhando meus pensamentos.
- Vestia-se com uma túnica branca. Sobre o peito trazia uns estranhos círculos. Exatamente três. Três círculos na cor azul, como o céu. Ninguém soube de onde ele vinha. Jamais mencionou seus pais ou sua família. Disse ser um príncipe, a serviço do Altíssimo. Chamava-se Malki Sedeq.
- Melquisedec!
Saul aceitou minha pronúncia incorreta. Tiago, o irmão de Jesus, havia mencionado seu nome na sinagoga quando o perguntei sobre a origem dos três círculos verticais que apareciam na fachada do edifício. Eram a referência à hora de rezar. Para Tiago, os buracos na parede originavamse do referido príncipe ou rei, ainda que não tivesse muita certeza.
- O Altíssimo? A que te referes?
-Ao Único, ao Santo, bendito seja seu nome... O Altíssimo.
Saul utilizou a palavra "Elyon" (Altíssimo), uma das qualidades de Yavé. Fiquei confuso. Se os cálculos estivessem certos, aquele príncipe, segundo o hakam ou "doutor graduado" da Lei, foi anterior ou contemporâneo do patriarca Abraão. Como sabia da existência de Yavé? Mas, desejoso de chegar ao âmago da história, não me aprofundei6.
- Três círculos! Como o homem do sonho! O rabi negou com a cabeça.
Pelos dados que Aba Saul me forneceu, é muito possível que a aparição do homem "estranho" tivesse acontecido ao redor do ano 1980 a.C. (N. do M.)
No livro do Génesis (14, 17-20) aparece a primeira referência conhecida a
Melquisedec. Diz textualmente: "E o rei de Sodoma o recebeu (Abraão) quando voltou após haver castigado Quedorlaómer e seus aliados, ao vale de Shavé, que é o vale do rei. Melquisedec, rei de Salem, trouxe pão e vinho. Ele era sacerdote do Deus Altíssimo e o abençoou, dizendo: Bendito seja Abraão do Altíssimo, dono do céu e da terra, e bendito seja o Altíssimo, que entregou os teus adversários em tua mão. E deu- lhe o dízimo de tudo".
No Salmo 110 figura a segunda alusão. Referindo-se ao Messias, diz: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec". (N. do M.)
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- Compreendi mal? Não apresentava três círculos no peito?
- Compreendeste perfeitamente - adiantou-se Saul -, mas não foi
um sonho...
- Então...
- Deixa-me prosseguir...
O ancião, mantendo o tom confidencial, chegou ao ponto-chave
do seu relato.
- ...Aquele príncipe explicou aos homens como era Deus e, para
isso, desenhou três círculos concêntricos.
Acariciou com os dedos os círculos trançados na esteira sobre a qual estávamos sentados e continuou, baixando a voz até o extremo de obrigarme a quase tocar literalmente o seu rosto.
- Cada círculo representa um atributo de Elyon. O centro é o "presente para sempre". O príncipe chamou-o "amor".
O instinto voltou a bater no meu coração.
- Daí brota todo o resto. Esse centro roça na eternidade e na infinitude de Elyon. Esse centro é a "iod", a letra que inaugura o sagrado Nome e a criação toda...Guardou silêncio. Sim, tinha compreendido. Do amor nasce o visível e o invisível, o infinito e o eterno.
- Os três círculos, em suma, são a "bandeira" de Deus, bendito seja
o seu nome...
- Dessas características divinas, qual é a tua preferida?
- Não é um problema de escolha, querido amigo. O centro, o que proporciona sentido a todo o resto, é o amor. Se não fosse assim, não seriam "três" e não seria Deus. Por isso o príncipe o chamou também "Abbã" (papai). Aquela palavra era a favorita de Jesus de Nazaré. Foi o termo mais repetido ao longo de sua vida.
"Ab-bãT
O que estava acontecendo? Quem foi aquele príncipe? Por que apareceu no sonho?
Saul, adivinhando meus pensamentos, disse:
- Nós acreditamos que foi um enviado do Altíssimo. O primeiro. Depois, algum dia, chegará o segundo. O príncipe anunciou isso...
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J.) BENÍTEZ
- Anunciou o Messias judeu? Saul sorriu com má vontade.
- Não, Jasão, não foi isso. O príncipe anunciou um Bar Nasa, um Filho do Homem, alguém pacífico que nascerá de uma mulher e refrescará a memória do mundo...
Deve ter notado a minha palidez. "BarNasaf
- Compreendes agora? Entendes quando digo que não foi um sonho?
- Mas...
- Eu sei - disse o sábio -, tudo foi modificado. Foi Ezrah que começou a modificar a sagrada tradição...
Referia-se a Esdras, o sacerdote que, ao que parece, deu início à tarefa de recopilaçáo que, posteriormente, daria lugar ao que hoje conhecemos como Pentateuco. Esdras, judeu da Babilónia, voltou a Jerusalém por volta de abril do ano 428 antes de Cristo.
- ...Depois, meus próprios companheiros, os escribas, alteraram os termos e quase apagaram o príncipe. O messias de quem falam tanto, o libertador político, aquele que devolverá a hegemonia e a glória a Israel, é uma invenção daqueles bastardos. O Bar Nasa que anunciou o príncipe abrirá os olhos dos homens para uma realidade espiritual. Ele mostrará uma "face" do Altíssimo que nada tem a ver com a que esses ignorantes pretendem...
- Por que fizeram essas mudanças?
- O amor, querido jovem, não enche os bolsos. Os sacrifícios ao Deus do terror, isso sim, enchem as arcas do Templo e mantêm o povo submetido. Aos escribas, sacerdotes e companhia não interessa perder os privilégios. O príncipe modificou os sacrifícios aos deuses e o ritual do sangue pela oferenda de pão e vinho e pela promessa de um Deus "amor". E suficiente procurar a si mesmo, no "círculo central",
para encontrar o Altíssimo. Deus é um presente, não um contrato...
- O que aconteceu ao príncipe?
- Tinha quase cem anos quando desapareceu. Nós acreditamos que foi um malak (literalmente, "anjo" ou "mensageiro"). Elyon o enviou, e Elyon o arrebatou em um de seus farás...
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Aba Saul utilizou o hebraico, a língua sagrada, para referir-se à "carruagem" (paras), mais exatamente à "carruagem que voa e que é puxada por cavalos7". Disse o nome da carruagem divina fechando os olhos e inclinando a cabeça com respeito.
- Supões que não tenha morrido?
- Foi o primeiro. Depois ocorreu com Moisés e também com Elias8.
- Mas...
- Eu sei, a razão o nega. Não estou falando de razão, mas de Deus,
bendito seja o seu nome.
Aba Saul deu-me a segunda versão.
- Outros dizem que o príncipe está enterrado aqui em cima, nas ruínas que acabas de visitar...
- O "lugar do príncipe" - exclamei -. E por que escolheu esse lugar?
- Escuta com atenção...
O velho ergueu as mãos, apontando ao seu redor.
- Não ouço nada - disse-lhe, ao mesmo tempo que me esforçava para colocar de lado o denso silêncio -. Fazes referência a quê?
7 Para os doutores da Lei, a "carruagem" representava Deus. Havia três definições, sempre em hebraico, que faziam alusão a três modalidades de "carruagem que voa": o tebel (que era capaz de descer em terra firme), eléber (asas, porque se deslocava como um pássaro) e o Samáyim (céu, que permanecia sempre no alto). Outros sábios preferiam o nome de ofan (roda). (N. do M.)
8 Muitos acreditavam que Moisés e o profeta Elias não tinham morrido e que foram arrebatados por outros tantos paras ou "carruagens de fogo". Melquisedec, segundo Aba Saul, desapareceu da mesma forma. Na Epístola aos Hebreus, o autor ou autores informam algo parecido: "Com efeito, este Melquisedec, rei de Salem, sacerdote do Deus Altíssimo, que saiu ao encontro de Abraão quando voltava da derrota dos reis e o abençoou, ao qual Abraão deu o dízimo de tudo, e cujo nome significa, em primeiro lugar, rei de justiça e, além disso, rei de Salem , isto é, rei de paz, sem pai, nem mãe, nem genealogia, sem começo de dias, nem fim de dias, nem fim de vida, semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre". Essa versão, que coincide com a de Aba Saul, teve de proceder de uma fonte muito remota. Só alguns poucos, pertencentes à chamada "ordem do príncipe ou dos melquisedec", encontravam- se a par do "não nascimento" e da "não morte" do malak ou mensageiro de Elyon. (N. do M.)
442 "
O rabi levou o indicar esquerdo ao ouvido e sugeriu que prestasse mais atenção.
- Sinto muito - completei - somente ouço o silêncio...
- Exatamente. Por isso escolheu este lugar. A paz prefere aninharse no silêncio. Nós somos discípulos do silêncio. Vamos à escola todos os dias. O silêncio é uma janela que se abre diretamente sobre Deus, bendito seja o seu nome, mas o homem ainda não a abriu.
Segundo Aba Saul, Salem ou Salom (paz) foi o nome imposto pelos discípulos do "príncipe da paz" à "região que mais amava". Lá, no alto da colina, transcorreram seus últimos dias na Terra.
- Nós? Por que falas no plural?
Ele não quis responder. Limitou-se a sorrir, pedindo calma.
Não foi difícil imaginar que, ao falar "nós", fazia alusão a um grupo ou movimento que mantinha viva a lembrança de Melquisedec e de seus ensinamentos. Melquisedec, o primeiro que, ao que parece, referiu-se a um Deus Altíssimo e um Deus Pai, o "verdadeiro precursor ou anunciador do Filho do Homem". Tiago, o irmão do Galileu, estava certo quando apontava a existência de uma espécie de ordem, a dos melquisedec ou príncipes da paz. Um grupo hermético do qual eu não sabia nada e que, no entanto, encheu o meu coração, ratificando as palavras de Jesus de Nazaré.
Estava desconcertado e, ao mesmo tempo, deslumbrado. Aquele venerável ancião de cabelo branco e longo, como o príncipe, não sabia nada do Mestre e, não obstante, sabia mais que ninguém, muito mais do que a família de Jesus e muitíssimo mais que Yehohanan...
Evidentemente, não falei de minha amizade com o Homem-Deus. Se o Destino tivesse calculado assim, ambos se reuniriam no momento certo...
Para dizer a verdade, Aba Saul foi o primeiro judeu, dos que cheguei a conhecer, que não acreditava - nem um pouco - em um messias "quebrador
de dentes". Quando insisti na singularidade do "achado", Saul me admoestou. Suponho que tinha razão.
- A verdade não foi feita para ser apregoada. Quando alguém acredita possuí-la e a expõe ao ar livre, confunde a língua do seu amo...
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- Porém tu, vós - apressei-me a retificar - sabeis que o povo equivoca-se. O Messias não será libertador político...
- O povo? - sorriu com ironia -. Só importa o homem. O mundo mudará quando os governantes aprenderem este simples princípio: cada homem é um mundo diferente, da mesma maneira que não há dois círculos iguais. Não se deve falar às multidões. Convém falar a cada coração e isso é o que fazemos. Agora é a tua vez...
- Não compreendo. Por que dizes que a verdade não foi feita para ser proclamada? O príncipe da paz fez isso. Esse "Filho de Homem" que chegará algum dia também a proclamará...
- Não te confundas, Jasão. Nós não somos eles. A verdade é a linguagem dos deuses. Nós os humanos nem sequer sabemos falar. O príncipe ou o próximo Bar Nasa não se refere à verdade, mas sim a uma remota
aproximação à verdade.
Observou-me, tentando averiguar se o acompanhava. Neguei com a cabeça. Não eram palavras fáceis para mim.
- Não te assustes, querido e impaciente amigo. A verdade existe, mas não aqui. Se chegasses a possuí-la, ela te consumiria como o fogo. Uma coisa é manifestar que
a verdade está aí, no Altíssimo, e outra muito diferente é desnudá-la diante dos homens.
Aquelas palavras eram muito familiares para mim...
- E para ti, o que é a verdade?
- A qual te referes? Derrubou-me, mais uma vez.
- Existem várias?
O sorriso foi alargando-se e os olhos, finalmente, iluminaram-se.
- Perguntas pela verdade de minha juventude? Fugiu e deixoume isto...
Retirou o talith e mostrou a cabeleira nevada.
- Perguntas pela verdade que descobri ao ficar apaixonado? Creio que notou minha perturbação.
_ .. .Aquela foi uma das mais próximas. Pensei tocar o céu. Também
fugiu, na ponta dos pés.
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J.). BENÍTEZ
Perguntas pela verdade que se senta ao teu lado, junto à dor? Esta nós mesmos a espantamos, assim que podemos... Perguntas por minhas ilusões e esperanças? Cada uma viaja com uma verdade sobre os ombros, todas diferentes... Tu te referes, quiçá, à verdade que habita nesta casa, amassando o presente com Jaiá? Todos os dias, o Altíssimo ocupa-se de alterar o seu rosto. A qual dessas verdades te referes?
Mensagem recebida. Tentei esclarecer outra dúvida:
- Por que insistes em chamá-lo "príncipe da paz", quando, na realidade, seu título é "Malki Sedeq" ou "rei de justiça"9?
Satisfeito, muito satisfeito, respondeu:
- A justiça é para os homens. Os que transcendem o "círculo central" caminham pelo território do amor. É preferível passar por esta vida dando do que exigindo. A paz é mais saudável que a justiça. Compreendes por que trocamos o título do príncipe? A justiça é ácida, sempre com arestas. É humana. É vinagre. Não é má, mas somente ajuda a temperar. Preferimos o vinho, a paz.
- Sim, sei disso, acrescentei, lembrando das palavras do Mestre no kan de Assi -. O Pai não sabe da justiça...
- E tu, como sabes isso?
Não respondi. Não era o momento.
O que realmente estava claro para este que escreve é que Aba Saul era um homem especial, um escriba com altos conhecimentos que, com diferença de outros doutores da Lei, não guardava para si sua ciência e sua sabedoria. Durante o período de pregação do Filho do Homem iria ter a oportunidade de comprovar isso. Os hakam ou "doutores graduados" mostravam-se reticentes na hora de mostrar os seus segredos10. Só os par
Malki Sedeq significa "meu rei justo" (melek é "rei", e tzedeq ou tzedec, "justiça"). (N. do M.)
A instituição dos escribas ou doutores da Lei, também conhecidos como sábios (jajamim), era uma das mais importantes e influentes na vida social e religiosa de Israel. Está encarregada do estudo da Tora, das tradições paternas (halakd ou tradição oral) e a correspondente aplicação jurídica ao dia-a-dia. Segundo o Eclesiastes (38, 25- 39, 15), um bom escriba era aquele que dedicava a maior parte do
tempo ao
445 "
rilhavam entre si, e quase sempre acabavam como armas apontadas contra adversários ou inimigos potenciais.
Estava perturbado e deslumbrado, sim...
O que acontecera nas ruínas? Por que Saul qualificou o fato como halom, um "sonho-visão"?
Insisti timidamente.
- Que significado tinha aquele sonho ou visão?
O ancião não soube ou não quis esclarecer as minhas dúvidas.
- Os sonhos são como os desejos. Cumprem-se sempre, mesmo que os tenhas esquecido. No seu devido tempo, terás a resposta...
Fez uma pausa e concluiu com uma frase não menos enigmática:
- Os caminhos de Ab-b , o Altíssimo, são circulares...
Algo ficou claro na mente daquele explorador. Se a história sobre o "príncipe da paz" fosse verdadeira, o grande Melquisedec foi o autêntico precursor de BarNasa, o "Filho do Homem". Isso satisfazia minhas velhas incertezas. Como já referi, o trabalho ou papel de Yehohanan como iniciador do caminho do Mestre era algo que não conseguia entender. Jesus
estudo da Lei de Moisés, às sentenças ditadas pelos mais velhos, às sentenças obscuras e ao ensinamento. Não podiam cobrar. Este fato os obrigava a coordenar o estudo e a transmissão da Tora com todo tipo de ofício: carpinteiros, jornaleiros,
pescadores, pedreiros, felah, refinadores de linho etc. Havia numerosas escolas, especialmente em Jerusalém, onde os escribas desenvolviam a interpretação da Lei, à mercê de uma minuciosa e intrincada casuística. Esse "direito bíblico" somou tal quantidade de normas e contranormas que transformou- se em um "alto ramo do saber" para os escribas e num pesadelo para o povo. A relação mestrealuno era sagrada. O rabi tinha preferência sobre o pai e a mãe. No caso de perigo de morte - diziam - é preciso salvar primeiro o professor. O pai e a mãe te trazem ao mundo, mas o professor te proporciona a sabedoria e, sobretudo, te abre as portas do mundo futuro. O talmid ou aluno estudava durante vários anos, recebendo os ensinamentos oralmente, nunca por escrito. Quando dominava todas as matérias e o método da halaká, o talmid era designado "doutor não graduado". Achava-se então capacitado para tomar decisões pessoais em matéria religiosa ou de direito penal. Era um talmid bakam. O passo seguinte ocorria a partir dos 40 anos (idade canónica), e dependendo de sua sabedoria e "diplomacia". Se o rabi ou mestre se aliava com o partido dos fariseus, podia ter mais possibilidade de subir na categoria dos escribas. Não obstante, também o grupo. (N. do M.)
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J J. BENÍTEZ
não precisava de alguém como o Anunciador. Na minha opinião, a obra do príncipe, por sua vez, foi decisiva. O homem dos três círculos preparou a trilha do Galileu, anunciando um Deus Altíssimo (El-Elyon) que, sobretudo, era "Ab-b " (papai). Dele beberam todos os outros: Abraão, Moisés etc.
Quanto às últimas "palavras" do homem que "falava com luz", francamente, não compreendia.
O que sim posso dizer é que, a partir do "sonho", prestei mais atenção aos
meus pés...
O Destino - estou certo - sorriu, brincalhão.
"Quando chegar o momento procura os teus pés..."
Aconteceu, naturalmente.
Nessa noite, ao recolher-me, comecei a amadurecer uma idéia. Em questão de minutos dominou-me. Tinha que resolver a missão dos nemos e dedicar mais tempo ao ancião Saul. Estava certo: com ele poderia aprender muito mais do que com o fogoso e repetitivo Yehohanan. A intuição aplaudiu.
Não tive dúvida. Tomei a pequena ampola de barro que continha o "esquadrão" de nemos e a guardei na bolsinha de couro que trazia permanentemente pendurada no pescoço e onde conservava os "crótalos", ou óculos para a visão infravermelha. Não sabia como, nem quando, mas tentaria: lhe aplicaria as nemos na primeira oportunidade. Depois, cumprido o objetivo, apostaria pelo escriba. Era muita coisa que eu desejava perguntar...
O Destino - sei disso - voltou a sorrir, brincando com este ingénuo explorador. O homem não aprende com seus erros, porque o que conta não é aprender...
No dia seguinte, sábado, 3 de novembro, ansioso para colocar em prática o plano que acabava de conceber, dirigi-me aos mananciais. Yehohanan não havia voltado. Perguntei, mas minha busca foi em vão. Tal como supunha, nenhum dos discípulos sabia do paradeiro do Anunciador. Sabia disso muito bem: segui-lo era violar as regras do grupo. Abner falou algo que eu já suspeitava: o mais provável é que se encontrasse em algum dos rios afluentes do Jordão, que descem das proximidades de Ena
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ván. O problema era em qual deles. Em apenas cinco quilômetros, a partir da fronteira entre a Decápole e a Peréia, corriam dois grandes afluentes - o Querit e o Kufrinja -, além de outros de porte menor. Teria sido uma perda de tempo e energia procurar por ele, com uma probabilidade muito pequena de encontrá-lo. Ficava além da zona da selva do Jordão. Quando se ausentava do guilgal, todos o víamos desaparecer pela linha verde e impenetrável da floresta. Permaneceria isolado, nessa região que para mim era desconhecida e nada recomendável? Depois do que vi no bosque das acácias, o que poderia parecer-me estranho?
O mais sensato era aguardar. Optei por isso. A espera, no entanto, foi inútil. Yehohanan não voltou. E, ao anoitecer, convencido de que o gigante das sete tranças não daria sinal de vida, pelo menos naquele dia, despedi-me dos conhecidos e me retirei no meu refúgio, na casa de Aba Saul e Jaiá.
Nessa noite, durante o jantar, o velho falou sobre a sabedoria. Este que escreve, intrigado diante de seus muitos conhecimentos brilhantes, interessou-se pelas fontes nas quais o velho tinha bebido. O rabi deixou-me falar. Depois, parcimonioso e misterioso como sempre, desviou a questão para algo mais importante.
- O que entendes por sábio? Improvisei.
- A pessoa que tem uma extensa e profunda informação...
Negou com a cabeça.
- Esses são os "tannaítas11" ou "cara de livro"...
- Não entendo.
11 Os "tannaítas" ou "tanaítas" eram os "repetidores" da Lei (basicamente da tradição oral). Geralmente tratava-se de escribas ou doutores da Lei, especializados
na memorização de determinados tratados, tanto civis como religiosos. Conheciam de cor centenas de sentenças e tinham o gosto de repeti-las sempre sem variar uma letra sequer. Se um tannaíta cometesse um erro ao recitar, devia começar de novo. A falha afetava diretamente o seu prestígio como "professor" ou "mestre". Os tannaítas, como tais recitadores, desapareceram por volta do ano 220 d.C., quando a tradição oral (Misná) foi posta por escrito pelo Yehudá, o patriarca. (N. do M.)
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- O sábio verdadeiro, meu amigo, é aquele que dispõe de conhecimentos sim, mas sobre si mesmo. Por outro lado, armazenar informação não é sabedoria.
Acrescentou ainda, certo do que expunha:
- O que sabes de ti mesmo? Capturou-me.
- Sabes de onde vens, por que estás aqui e qual é o teu destino? Teoricamente sabia. Só na teoria...
- Poucos são os que conseguem descobrir isso. E pobre daquele que consegue!
- Pobre?
- Sim, o homem luta até que lhe chega esse momento. Se uma das verdades lhe vem ao encontro e o torna um sábio, adeus! Nada será igual...
Eu já havia ouvido esse conceito...
- O homem luta até que os céus lhe desvendam seu destino... Quem me havia dito algo similar? O Mestre?
- ...A verdadeira sabedoria, aquela que informa sobre ti mesmo, acaba te
isolando. Como te digo, nada é igual a partir desses momentos. Sabes mas não deves proclamar.
- Conheço homens que, mesmo sabendo quem são, continuaram na luta...
- Esses não são homens... São Deuses! São príncipes encarnados! Por fim lembrei. Foi nos "treze irmãos". Foi aquele nómade. Também falou do "olho do Destino"...
- Fica difícil de entender - acrescentei, recuperando um dos conceitos -. A verdadeira sabedoria separa?
Compreendi que ele tinha dificuldades para expressar-se. Essa é outra característica do sábio.
- Cada qual fará bem em ocupar-se da água do seu próprio poço. O Destino é o responsável de enchê-los ou esvaziá-los, de acordo... Só aquele que recebeu essa revelação entende o que te digo.
Sim, a sabedoria afasta... Vacilou, e em seguida retificou:
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- Ainda que o mais exato seja falar da verdade... É a posse de qualquer uma delas que separa.
- Sabedoria e verdade são a mesma coisa?
- Sim, por isso aquele que "sabe" não levanta a voz. Por isso as verdades não devem ser proclamadas...
- Isso não parece justo...
-Já te falei sobre isso: as verdades são incendiárias. Deixa o Destino fazer o seu trabalho. Não interfiras. Cada qual tem sua hora marcada. Insisto: não pretendas
tirar água de dois poços ao mesmo tempo.
- Mas quanto a mim, por exemplo, quero saber e tu estás proclamando a tua verdade...
- Não estou proclamando, querido Jasão... Eu sussurro...
- Isso é fazer ciladas...
Aba Saul, sorridente, tomou as minhas mãos e as acariciou com doçura.
- O primeiro que faz ciladas é Ab-b ... E apressou-se a explicar.
- Tudo sai Dele e para ele retorna. Os círculos são o seu jogo favorito. Iniciamos um caminho sem saber que retornaremos ao ponto inicial. Dizeme, quem faz trapaças?
Ab-b , o trapaceiro! Nunca teria imaginado. O Destino, mais uma vez, bateu à minha porta e me convocou. Na realidade, foram outros... Aconteceu de madrugada. Nessa mesma madrugada do sábado para o domingo. Assim começou um período amargo, de triste lembrança... Porém tentarei ir passo a passo.
Foi na última vigília - a do galo - quando bateram à porta de Aba Saul. Acordamos assustados. Qual seria o motivo daquele escândalo? Eram Abner e dois dos armados. Carregavam tochas. Entraram como um vendaval, chamando por mim. Nem sequer me deixaram perguntar.
- Ele te chama!
E começaram a me puxar. Só tive tempo de colocar a túnica... Jaiá e Saul, confusos, viram-me desaparecer na escuridão da aldeia.
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j.]. BENÍTEZ
Quando havia percorrido alguns passos, dei-me conta de algo grave: não
levava a "vara de Moisés"... Impossível regressar. Os discípulos quase me arrastavam. Tentei acalmar os ânimos e averiguei o que acontecia. Não prestaram atenção. Continuaram sua tarefa, repetindo várias vezes:
- Depressa! Ele chama por ti!
Só havia uma explicação para aquela súbita e intempestiva invasão. "Ele", somente poderia ser Yehohanan... Que estranho! Tinha voltado no meio da noite! Que diabos acontecia? Dizendo melhor, que acontecia com ele?
Ao entrar na zona das fontes e represas, não observei nada anormal. Tudo parecia calmo. Os acampados dormiam. Somente no guilgal um pequeno fogo dançava. A maioria dos discípulos encontrava-se reclinada em volta da árvore "da cabeleira".
Num primeiro momento não distingui o Anunciador. Ao acostumar-me com a escuridão, notei-o junto ao círculo de pedras. Dormia profundamente. Três dos seus homens, sentados a um metro e com os gladius a postos, montavam guarda. O quarto "vigilante", do outro lado do guilgal, era a colmeia de cores.
Não compreendi o motivo de tanta pressa. Abner, em voz baixa, sugeriu que eu me sentasse e tratasse de tirar uma soneca. "O dia poderia ser muito intenso para o Vinte."
O que é que estavam tramando? Minhas perguntas caíram no vazio. Abner era uma tumba. Limitou-se a responder:
- Ele quer falar contigo.
Tinha de reconhecer: a fidelidade daqueles trinta homens era admirável. Não questionavam as ordens do líder (segundo eles, o futuro messias). Simplesmente, as cumpriam. Teriam dado a vida por ele. A única incógnita, para mim, era Judas, o Iscariotes.
Inquieto por ter me esquecido da vara, procurei um lugar perto da árvore de ferro. Sim, tudo era muito estranho...
A "vara de Moisés"... Como pude? Sem ela sentia-me sem roupa. Tinha que recuperá-la...
Faltavam umas duas horas para o amanhecer. A casa de Aba Saul encontrava-se muito perto. Tinha de fazer essa tentativa...
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Repassei a situação. Os do guilgal continuavam adormecidos. No acampamento também não se percebiam movimentos...
Decidi. Fiquei de pé e, apressadamente, sem olhar para trás, me afastei de Enavan. Seria questão de minutos.
Ao que parece tive sorte. Ninguém notou minha ausência. Entrei na casa e, sem fôlego, recuperei a vara. Porém, quando me dispunha a retomar aos "mananciais", Jaiá, a "Vivente", colocou-se na minha frente. Tinha os olhos úmidos. Secou as lágrimas e aproximando a lamparina de óleo do meu rosto, implorou:
- És como um filho para nós... Não vá!
- O que pode acontecer? Não respondeu. Pressenti algo.
- Onde está Saul? O que está acontecendo?
- Ele está bem. És tu que corres perigo. Antes que te chamassem à porta tive um sonho.
Aba Saul entrou no quarto. Jaiá abaixou a cabeça e colocou-se de lado.
- Deixa que se cumpra o que está escrito -sussurrou o rabi -. Ele mesmo dispôs dessa forma...
Abriu a porta e, amavelmente, convidou-me a seguir o meu caminho. Jaiá continuava chorando. Atordoado, corri de novo para as "fontes". A que perigo se referia? Havia escrito eu o meu próprio destino?
Ninguém notou a minha breve ausência. Pude recuperar a "vara de Moisés", sim, mas acabava de somar outra inquietude ao meu ânimo já cansado. Resignei-me. Na realidade, fazia tempo que o havia totalmente perdido...
Despedi-me das últimas estrelas.
"T* "
lê amo...
Ao amanhecer, o mundo de novo pôs-se em movimento. Os acampados despertaram bem, como Yehohanan. Perguntou pelo Vinte. Abner conduziu-me até ele e esperei. Por que nunca sorria?
- Quero mostrar-te algo... - foi seu curto comentário. Em seguida, ignorando-me, dirigiu-se à colmeia colorida. Abriu a tampa superior do "tonel" e tirou um dos favos. Realizou isso sem cuidado, como o faria o pior dos apicultores. Pensei que as abelhas, irritadas, se lançariam sobre ele. Não
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J J. BENÍTEZ
foi assim. Para minha surpresa, as africanas não se alteraram. O favo aparecia repleto de operárias e pecoreadorasu. Com certeza, milhares. Pois bem, os insetos simplesmente se retiraram e voaram para o interior da colmeia. Como fazia isso? Depois foi perfurando os alvéolos e sorveu o mel.
Continuei de pé, aguardando um esclarecimento. Suponho que compreendeu, pois veio na minha direção e me interrogou com aquele
olhar de fogo,
- De que se trata? - perguntei com curiosidade.
Yehohanan continuou tomando seu desjejum. Virou a cabeça para os acampados e exclamou com desprezo:
- Depois, quando esses se forem...
Virou-me as costas e foi sentar-se ao pé da árvore. "Esses?" Abner, atento, esclareceu a dúvida. "Esses", aos que o gigante se referia tão depreciativamente, eram oito ou dez sacerdotes do Templo de Jerusalém. Estavam ali desde a noite anterior. Formavam uma representação do restante do clero. As notícias, inquietantes, não deixavam de fluir. Quem era o tal de Yehohanan? Talvez o Messias prometido? Era um doido varrido, como tantos?
- Desejam algo - completou o pequeno-grande homem - . O Mestre não confia neles. Veremos... A verdade é que não passavam despercebidos. Isolaram-se, ficando longe dos acampados. Eram inconfundíveis. Vestiam-se todos iguais. Sobre um kolbur ou roupa de baixo de linho com mangas curtas, apresentavam todos suas túnicas brancas, igualmente tecidas em linho imaculado, sem traço de algodão, às quais dava-se o nome de efod. Apesar do clima quente do Jordão, aqueles cumpridores da Lei tinham viajado usando meias, também brancas (empiljjot), que não podiam tirar enquanto estivessem longe do Templo. Cobriam-se com um turbante ou lenço de cabeça (maaphoret), também branco, cujas pontas pendiam sobre a nuca. Um
12 Um dos tipos de abelhas operárias (entre coletoras e exploradoras) que recolhem pólen, néctar, água etc., e que podem afastar-se cerca de cinco quilómetros da colmeia. (N. do M.)
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fundar ou bolsa branca aparecia pendurada de cada cinto. Foram estes os cintos de pano ou hazor, coloridos de azul e vermelho, que pouco depois, quando se aproximaram do Anunciador, chamaram a minha atenção. Cada um exibia uma frase, extraída dos Provérbios ou do livro dos Salmos. Todas estavam bordadas em ouro: "Maravilhosos são Teus testemunhos"... "Livra-me da opressão do homem e observarei Teus preceitos"... "O Eterno avalia os espíritos"... "Mais vale pouco com justiça"... "Quando julgarás aqueles que me perseguem?"..."Tu estás próximo, oh, Eterno"...
Junto ao grupo de "impecáveis" descobri outros velhos conhecidos, difíceis de esquecer... Eram os guardas do Templo. Neste caso, o que chamavam uma tabbah ou guarda pessoal. Somando todos, uma dezena de indivíduos, facilmente identificáveis por suas longas túnicas verdes, até o chão, e as "camisas" de escamas metálicas que os protegiam até a metade da coxa. Usavam elmos polidos, muito brilhantes e em forma de cúpula. Alguns carregavam arcos de dupla curvatura. A maioria apresentava os longos e temidos bastões com as pontas munidas de pregos. Eram os levitas13, a escolta da representação sacerdotal. Protegiam oficialmente os sacerdotes.
Os levitas constituíam uma espécie de "clero menor". Desde tempos remotos, ocupavam-se da vigilância do Templo, especialmente do exterior, bem como da segurança dos sacerdotes. Eram porteiros, mantinham o santuário limpo, ocupavamse do sacrifício de muitos dos animais e formavam os grupos de músicos e cantores. Tinham sua origem em Levi, um dos filhos do patriarca Jacó ou "Israel". Foram os célebres "filhos de Levi" que se uniram a Moisés quando este solicitou ajuda para descer do Sinai e encontrar o bezerro de ouro (Êxodo 32). Por atenderem ao chamado de Moisés, Yavé confiou-lhes um trabalho especial, a serviço do Tabernáculo. Foi sempre uma tribo "diferente". Eram intocáveis, ainda que o seu prestígio não tenha
alcançado nunca o da casta dos sumos sacerdotes. Por não possuir terras, Yavé ordenou que recebessem um dízimo de tudo quanto fosse produzido ou cultivado. Os três filhos de Levi deram origem a outros tantos clãs. O de Quehat ocupou-se do transporte do equipamento da Tenda da Reunião. Guersón e sua gente responsabilizaram-se pelas cortinas e, por último, Merar conduziu o Tabernáculo. Concluída a peregrinação de quarenta anos pelo deserto, as funções dos levitas foram mudando gradualmente. Ao ser construído o Primeiro Templo, ocuparam-se das portas e da vigilância do exterior
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Nem Abner sabia porque estavam ali. Simples curiosidade? Eram portadores de alguma mensagem para o Anunciador? Não demoraria a sabê-lo...
Os policiais estavam sob o comando de um ammar-kel n, uma espécie de guardião do Templo, ainda que meu confidente, Abner, tivesse assegurado que seu escalão era superior (quiçá se tratasse de um rym ou chefe de turno dos levitas). Era um sujeito muito corpulento, com quase 1,90 metro de altura. Era também chefe dos açougueiros e a sua habilidade com a faca era assombrosa. De acordo com Abner, degolava três cordeiros de uma só facada. Se alguém se colocava no seu caminho, estava morto...
Seu nome era Musí, mesmo que todos em Jerusalém o conhecessem pelo apelido: "Masroqi" ou "Flauta".
- "Flauta"?
- Sim - esclareceu meu amigo -, por tudo que sopra...
Precisei de uma segunda explicação. Musí era um beberrão inveterado.
- Quando se embriaga, dia sim, outro também, é ainda mais terrível. Sozinho pode incendiar uma cidade. Aconteça o que acontecer, não te aproximes - recomendou Abner -, não te aproximes do Flauta...
Instintivamente, acariciei a parte superior da "vara". Tinha feito bem em recuperá-la.
(era proibido, sob pena de morte, que se aproximassem do altar). Dessa forma, acabaram tornando-se guardas a serviço dos sacerdotes e, muito especialmente, do Sanedrim. Os levitas acompanharam uma patrulha romana ao horto de Getsêmani para proceder à prisão do Filho do Homem. Eles montaram guarda no exterior do sepulcro onde foi depositado o corpo de Jesus de Nazaré. Seus métodos eram brutais. O povo os detestava. Além de realizar prisões, torturar e executar as penas ditadas, os levitas tinham fama por sua habilidade como açougueiros. Eram os responsáveis por degolar a maior parte dos animais sacrificados no Templo. Entre as suas obrigações estavam também as de ajudar a vestir e desnudar os sacerdotes, preparar o livro da Lei, amontoar os lulab no Dia da Expiação e acompanhar com sua música o culto diário. As desavenças com o clero principal estavam na ordem do dia. Se uns roubavam, os outros não ficavam atrás. As brigas, dentro e fora do Templo, entre sacerdotes e levitas, eram um espetáculo. Nos tempos de Jesus, calcula-se que o número de levitas chegava a dez mil. A entrada no seu círculo era tão difícil quanto no do sacerdócio. Era requerido um testemunho de "pureza" racial de até oito gerações, no mínimo. Na realidade, havia uma transmissão hereditária. (N. do M.)
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Concluído o desjejum, Yehohanan deu a ordem e o homem do sofar entrou na água, tocando o corno de carneiro. O Anunciador dispunha-se a falar.
Comecei a tremer...
O gigante das sete tranças louras saiu do círculo e penetrou na represa. Fez isso devagar, de forma solene e teatral. Sabia perfeitamente que o estavam observando, sobretudo os sacerdotes. Andou até situar-se diante da cascata dupla. Levantou os braços e procurou o azul do céu. Depois fechou os olhos e permaneceu assim durante vários minutos. Os acampados chegaram até a margem. Os "impecáveis", com o Flauta na frente, fizeram o mesmo. Todos estavam na expectativa.
Abner e seus homens, com os gladius nos cintos, tomaram posições. Agruparam-se perto do seu ídolo, com a água pela virilha e a pouco mais de trinta passos dos acampados. Judas, certamente, era um dos mais nervosos. Ao que parece, estava acontecendo a primeira "visita" oficial do Templo ao que dizia ser o enviado de Yavé. Na realidade, todos
estávamos nervosos...
Coloquei-me perto da rocha da qual saltavam as fontes gémeas,
entre Yehohanan e os discípulos, e esperei.
O Anunciador baixou os braços e começou o "sermão":
- Eu sou o enviado!... Eu sou Dele!...
A voz rouca deixou estupefatos os sacerdotes e os levitas e, mostrando a palma da mão esquerda, onde se lia a "tatuagem", clamou:
- Seu!... Sou do Santo!... Oh, Eterno, tu que salvas aos que buscam!... Olhai a minha mão!... Quem sou eu?
Um dos sacerdotes cochichou ao ouvido do mais próximo. Ambos concordaram com a cabeça.
- ...Ele me guarda dos ímpios que me perseguem e dos inimigos
enfurecidos que me cercam...
E dirigiu o dedo indicador esquerdo na direção dos visitantes ilustres. Aquilo estava começando a esquentar.
- ...Eles são excessivamente gordos. Falam com a arrogância na boca... Avançam contra mim... Já me cercam, me cravam seus olhos para jogarme ao chão...
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O que é que ele estava fazendo? Estava recitando, à sua maneira, o Salmo 17! Usava-o contra os recém-chegados... Tive medo do pior. Yehohanan não tinha tato.
- Levanta-te, oh Santo!... Enfrenta-o!... Derruba-o! Liberta minha alma do ímpio com tua espada!
Os "impecáveis", sentindo essa alusão direta, se remexiam incomodados.
- ...Mas eu, na justiça, contemplarei o teu rosto!... Ao despertar me fartarei com tua imagem!
Os acampados, igualmente atónitos, não se atreviam nem a respirar. E o Anunciador prosseguiu com os ataques, gesticulando e concentrando a sua ira nos representantes do Templo. Erro grave...
- ...Se brotam como erva os ímpios, se florescem todos os agentes do mal, é para serem destruídos para sempre!
Agora citava o Salmo 92. Sua memória - eu tinha que reconhecer isso - era prodigiosa.
- ...Mas eu sou Dele!... e assistirei à derrota... Olha, como teus inimigos perecem!... Tu és o Deus da cólera e da vingança!...Tu levantarás minha
testa como a do búfalo!... Tu derramarás sobre mim azeite novo!
Judas, entusiasmado, ergueu a sica. e proclamou o nome do Anunciador. Alguns dos discípulos o imitaram. Foram poucos. Ninguém, entre os acampados, pronunciou um só Yehohanan.
O Flauta deu um passo à frente, disposto a entrar na água. O sacerdote que havia cochichado impediu-o, detendo-o. O da túnica verde, furioso, bateu na terra com o bastão de pregos. Abner, impotente, aparecia pálido.
O Anunciador não se alterou. Ao contrário. Endureceu... Deus Bendito! Yehohanan encontrava-se a anos luz da mensagem do Filho do Homem!
- ...Meus olhos vos desafiam!... Meus ouvidos escutam os malvados! Até quando os ímpios?... Até quando triunfarão? Subjugam o teu povo e humilham os teus domínios! Compreendei, estúpidos!... Insensatos!...
- Quando sereis cordatos?... Eu sou Dele!... Eu vos anuncio que a ira do Santo brota já como estes teominl... Onde vos escondereis?...
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As rajadas se prolongaram por um bom tempo, acusando por igual brancos e verdes. Yehohanan tinha e não tinha razão. Aqueles indivíduos eram corruptos, hipócritas e malvados. Isso era certo, porém, até aquele momento, não haviam manifestado suas intenções. As acusações do Anunciador não eram justas. Abner e os discípulos mais sensatos sabiam disso: Yehohanan precipitava-se, mais uma vez. Sua atitude beligerante somente poderia provocar problemas...
Lembrei-me do "sonho". Lembrei do homem dos três círculos e de suas enigmáticas "palavras luminosas": "Eu sou o verdadeiro precursor do
Filho do Homem".
Tinha razão. Yehohanan não merecia ser o "arauto" de Alguém tão pacífico e cálido como Jesus. Alguma coisa não encaixava...
De repente, cortou a prédica. Inspecionou a posição do sol e tirou o manto ou talitb de cabelo humano do embornal que estava pendurado como bandoleira. Cobriu-se e deu a seguinte ordem:
- Sakak!
Os discípulos, alertados, gritaram uns aos outros:
- Baixai à água!
O do sofar animou os acampados a participar da cerimónia de imersão (neste caso, sob os jorros das fontes gêmeas). O toque do corno deixou os sacerdotes indecisos.
Timidamente, alguns dos que contemplavam a cena da margem do lago foram entrando nas águas e se aproximaram do grupo dos armados. Os discípulos os conduziram em ordem até o gigante, formando uma fila. Desse modo deu início à "liturgia" de purificação dos corpos. -Te arrependes? ... Limpo!... Seguinte!
Yehohanan, com o rosto coberto, quase não olhava para o candidato. Pouco a pouco, ao verificar que a presença dos "impecáveis" não representava nenhum perigo, outros acampados seguiram o exemplo dos primeiros e se juntaram à longa fila.
Não perdi de vista os do Templo. Falaram entre si durante vários minutos. Discutiram. Não pareciam entrar num acordo. Por fim, o mais velho, talvez aquele que mandava, fez um sinal a um dos poli
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ciais. O levita entregou o seu bastão a um companheiro e pegou no colo o sacerdote que o havia chamado. Em seguida, entraram na represa. Na frente, o citado policial, com o velho nos braços. À esquerda, o Flauta. Atrás, o resto.
Avançaram nas águas, pela esquerda da fila dos fiéis que aguardavam o jato de água fria ou morna, segundo...
Abner e os seus não demoraram em detectá-los.
Ficaram indecisos. Desejavam como os outros "baixar às águas"? Queriam purificar-se e reconhecer desta forma o papel de Yehohanan? As dúvidas caíram por terra imediatamente.
Os sacerdotes e os levitas prosseguiram em silêncio. A água fez com que alguns segurassem as vestes, prendendo-as nos respectivos cintos. As meias acabaram arruinadas...
Os discípulos, prudentemente, juntaram-se na direção dos teomin, formando uma barreira protetora diante do seu ídolo. Yehohanan continuava absorto na cerimónia de imersão debaixo das fontes gémeas.
- Limpo!...
Os representantes do Templo detiveram-se na frente da cascata dupla. Judas deslizou a mão esquerda para a sica que escondia debaixo da faixa. Outros discípulos, também receosos, acariciaram os cabos dos gladius.
- Seguinte!
Não houve seguinte. O aspirante ao "reino" que deveria ser purificado não se moveu. Todos estavam aguardando as atitudes dos brancos (agora não tão brancos) e dos verdes, em especial dos bastões destes últimos.
- Seguinte! - clamou Yehohanan, ao mesmo tempo que percebia a presença do clero e de seus protetores.
Ninguém moveu um músculo. A reação do homem da borboleta no rosto era imprevisível. No meio do silêncio embaraçoso, aquele que continuava nos braços do policial perguntou:
- Quem és?
Yehohanan voltou-se para o sacerdote, observando-o da penumbra do talith. Não respondeu.
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- Es o Messias?
Só a água continuou com sua conversa, ignorando os homens. O sacerdote, impaciente, repetiu a pergunta. Yehohanan, no entanto,
permaneceu mudo.
- Com que autoridade fazes isto?
O Flauta, considerando o mutismo do Anunciador como uma falta de respeito, ergueu o bastão de pregos por cima da cabeça e ameaçou o das sete tranças. Os discípulos não consentiram isso e no mesmo instante desembainharam as espadas.
Yehohanan não se moveu. Os acampados, aterrorizados, deram
meia-volta e fugiram como puderam.
O sacerdote que presidia a delegação pediu calma e o Flauta, lentamente, baixou a arma. Abner fez um sinal e os gladius voltaram aos cintos. Só Judas, o Iscariotes,
permaneceu com o punhal na mão, atento.
- Perguntarei mais uma vez... És o Messias esperado? Com que autoridade pregas? És doutor da Lei?
Eu não conseguia entender o motivo do silêncio de Yehohanan.
- Não ouviste? - gritou o Flauta.
O Anunciador havia baixado a cabeça. Parecia contemplar o movimento preguiçoso da água, impulsionada pela queda dos teomin.
- Bastardo!... Responde!
O chefe dos levitas levantou de novo a temível marreta. Os pregos
brilhavam no ar.
Tudo foi rápido. Judas saltou sobre um dos policiais e colocou a sica
na garganta do surpreso levita.
- Ele é! - gritou o Iscariotes com os olhos acesos -. E o Messias
prometido!
O Flauta, confuso, apressou-se a baixar o bastão.
- E agora, fora daqui!
A ordem do Iscariotes não chegou a ser cumprida. Abner quis mediar a questão, mas de repente ouviu-se a voz rouca e severa de Yehohanan. Levantou a cabeça e, dirigindo-se a Judas, chamou-o de "ewiF (mais que estúpido). O Iscariotes, pálido, pensou que se tra
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tava de um erro. O Anunciador, porém, avançou alguns passos e encarou o discípulo atónito.
- Haraim! (Excremento humano.)
Não havia erro e, Judas, lívido, baixou o punhal. O levita retrocedeu, afastando-se do Iscariotes. Também, em outra reação impulsiva, Judas deu meia-volta e avançou com toda pressa para o guilgal. Ou eu me enganava muito ou ambos, Judas e Yehohanan, acabavam de come
ter um grave erro...
O Anunciador, então, procurou o Flauta. Colocou-se a um palmo de seu rosto e retirou o manto, mostrando as pupilas. O chefe dos açougueiros, assustado, deu um passo para trás.
- Ide e dizei a vossos amos que ouvistes uma voz que clama... Yehohanan fez uma pausa. Percorreu com os olhos a comissão e
continuou com a passagem de Isaías, sempre à sua maneira.
- Abri caminho ao Eterno!... Preparai no deserto um caminho para nosso Deus!... Cada vale será levantado e cada colina e montanha serão rebaixadas e o enrugado se alisará!
Voltou para junto do Flauta e, deslizando os dedos sobre a couraça metálica que cobria o peito do policial, repetiu a última frase:
- O enrugado se alisará!
Era assombroso. O Anunciador, evidentemente, não media o perigo...
- E será revelada a glória do Eterno!
O Flauta deu outro passo atrás. A tensão não diminuiu.
- És o Messias? - Insistiu aquele que continuava no colo, a salvo das águas.
-Já te disse... Sou uma voz que clama: Anunciai! O que anunciarei? Que toda a carne é erva... A erva seca e a flor se desvanece porque o alento do Eterno sopra nela... Isso é o que vos aguarda, a vós e a Roma...
- Pela última vez - ameaçou o sacerdote -. És o Messias?
- Ele escolhe uma árvore que não apodrece - replicou Yehohanan com uma segurança que me deixou perplexo -. Não compreendeste os fundamentos da terra? Ele, o Santo, é aquele que se senta sobre o círculo...
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Levantou os braços e clamou com toda a potência de que foi
capaz:
- E outro, mais forte, será enviado para restituir o que é seu!
Alguns sacerdotes e levitas, temerosos, retrocederam.
- É esse que buscais!... O senhor dos círculos!
A partir desse momento não tenho muita certeza de como os fatos
sucederam.
O senhor dos círculos? Que sabia Yehohanan sobre essa questão? A
comissão, decepcionada, retirou-se de Enaván.
- Está louco!
Foi esse o comentário unânime.
Eu não conseguia pensar. Na minha mente flutuava uma frase: "O senhor dos círculos!... O senhor dos círculos!... O senhor dos
círculos!"
Referia-se ao Mestre?
Eu me recordava bem dos três círculos concêntricos nas esteiras de sua casa, em Nahum. Vi como as acariciava enquanto conversávamos.
Era Jesus de Nazaré o senhor dos círculos? De onde provinha a
informação de Yehohanan?
Aba Saul, que eu soubesse, jamais havia falado com o Anunciador, Além disso: esse personagem exagerado não agradava ao rabi de Salem, e muito menos a sua mensagem sobre um messias político, instaurador de um reino puramente terreno. Então, como ele sabia?... Tinha que
esclarecer essas dúvidas.
Na hora sexta (meio-dia), o homem de dois metros de altura e da cabeleira até os joelhos chamou-me debaixo da árvore de ferro. Inclinouse para mim e, em voz baixa, disse:
-Vamos!... Vou mostrar-te o meu segredo.
E, hipnotizado, fui atrás dele.
Abner e os demais comentaram:
- O Vinte é afortunado. Vai onde ninguém foi.
Afastamo-nos para o leste. Depois tomou a direção da selva do Jordão, o território proibido... Com ele sempre na frente, com a colmeia
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oscilando na mão esquerda e coberto com o talith de cabelo humano. Não me atrevi a perguntar nada.
O sol logo se ocultou detrás de uma nuvem. Foi como um presságio...
Jaiá, a Vivente, me havia advertido: "Corres perigo..."
Suponho que a curiosidade ganhou.
"Não vá!... Tive um sonho!... Não vá!"
Jaiá acertou.
J. J. Benitez
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