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OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 8
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 8

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

SÍNTESE DO PUBLICADO
Janeiro de 1973 Em um projeto secreto, dois pilotos da USAF (Força Aérea Norteamericana) viajam no tempo ao ano 30 de nossa era. Concretamente, à província romana da Judea (atual o Israel). Objetivo aparente: seguir os passos do Jesus do Nazaret e comprovar, com o máximo rigor, como foram seus últimos dias. por que foi condenado a morte? Quem era aquele Homem? tratava-se de um Deus, como asseguram seus seguidores? Jasão e Eliseo, responsáveis pela exploração, vivem passo a passo as terriveis horas da chamada Paixão e Morte do Galileo. Jasão, em seu diário, é claro e terminante: "Os evangelistas não contaram toda a verdade." Os fatos, ao parecer, foram tergiversados, censurados e mutilados, obedecendo a determinados interesses. O que hoje se conta sobre os últimos momentos do Mestre é uma sombra do que aconteceu em realidade. Mas algo falhou no experimento, e a Operação Cavalo da Troia foi repetida. Março de 1973 Os pilotos norte-americanos "viajam" de novo no tempo, retornando a Jerusalém do ano 30. Ali comprovam a realidade do sepulcro vazio e as sucessivas "presenças" de um Jesus ressuscitado. Os cientistas ficam desconcertados: a Ressurreição do Galileo foi indisputável. A nave de exploração se translada ao norte, junto ao mar do Tiberíades, e Jasão, o major da USAF, assiste a novas aparições do Ressuscitado. A ciência não sabe, não compreende, o porquê do "corpo glorioso". Jasão se aventura no Nazaret e reconstrói a infância e juventude do Jesus. Nada é como se contou. Jesus jamais permaneceu oculto. Durante anos, as dúvidas consomem ao jovem carpinteiro. Ainda não sabe quem é realmente. Aos vinte e seis anos, Jesus abandona Nazaret e empreende uma série de viagens "secretas" dos que não falam os evangelistas. O major vai conhecendo e entendendo a personalidade de muitos dos personagens que rodearam ao Mestre. É assim como Cavalo da Troia desmitifica e coloca em seu justo lugar a protagonistas como María, a mãe do Galileo, ao Poncio e aos discípulos. Nenhum dos íntimos entendeu ao Mestre e, muito menos, sua família. Fascinados pela figura e o pensamento do Jesus do Nazaret, os pilotos tomam uma decisão: acompanharão ao Mestre durante sua vida pública ou de predicación, deixando perseverança de quanto vejam e ouçam. Para isso devem atuar à margem do estabelecido oficialmente por Cavalo da Troia. E embora suas vidas se acham hipotecadas por um mal irreversível -conseqüência do próprio experimento-, Jasão e Eliseo se arriscam em um terceiro "salto" no tempo, retrocedendo ao mês de agosto do ano 25 de nossa era. Procuram o Jesus e o encontram no monte Hermón, ao norte da Galilea. Permanecem com Ele durante várias semanas e assistem a um acontecimento transcendental na vida do Filho do Homem: no alto da montanha sagrada, Jesus "recupera" sua divindade. Agora é um Homem-Deus. Jesus do Nazaret acaba de fazer trinta e um anos. Nada disto foi narrado pelos evangelistas... Em setembro do ano 25 de nossa era, Jesus descende do Hermón e se reincorpora à vida cotidiana, na borda norte do yam ou mar do Tiberíades. Não chegou sua hora. Parte de sua família vive no Nahum (Cafarnaum), na casa propriedade do Mestre. Os pilotos descobrem uma tensa relação familiar. María, a mãe, e parte dos irmãos não entendem o pensamento do Filho primogênito. A Senhora, especialmente, acredita em um Mesías político, libertador do Israel, que expulsará aos romanos e conduzirá ao povo eleito ao total domínio do mundo. trata-se de uma grave crise -jamais mencionada pelos evangelistas- que desembocará em uma não menos lamentável situação... Movidos pelo Destino, Jasão e Eliseo, depois de uma série de aparentes casualidades, viajam ao vale do rio Jordão e conhecem o Yehohanan, também chamado o Anunciador (hoje o recordam como Juan, o Batista). Nada é como conta a história e a tradição. O diário do major resulta esclarecedor. De retorno ao Nahum, os exploradores descobrem a um Jesus operário, que espera o momento de inaugurar sua vida pública. Tudo está disposto para a grande aventura...


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O diário (OITAVA PARTE)

4 DE NOVEMBRO, DOMINGO (ANO 25)
Afastamo-nos do Enaván, e de seus mananciais e lacunas, sem olhar atrás e com pressa. Para ser sincero, o da pressa era ele, Yehohanan, o Anunciador, o enigmático judeu de dois metros de altura e as sete tranças loiras até os joelhos. Era ele quem avançava a grandes pernadas por um daqueles senderillos que
parecia nos levar, irremediavelmente, a verde e pouco recomendável selva do rio Jordão. Tudo era novo para quem isto escreve; tanto a paisagem como as intenções do pregador. Nem sequer sabia por que estava ali, depois de seus passos. O me reclamou sob a árvore da cabeleira" ("Vamos! -ordenou-. Te mostrarei meu segredo"), e eu, hipnotizado, fui atrás dele. Que secreto? Do que falava? por que Jaiá, a anciã esposa do Abá Saúl, tinha tratado de me reter na aldeia de Salem? por que falou de "perigo"? Disse ter tido um sonho, e implorou para que não retornasse junto ao Anunciador. Era meu Destino. Agora sei. Meu "Tikkún"... Nem sequer se voltou. Suponho que deu por feito que o seguia. Era evidente que conhecia o caminho. Observei novamente o céu. O sol, no cenit, começou a desaparecer a intervalos, apagado sem o menor respeito por um denso e interminável frente nuboso. Foi como um presságio... " Não vá!... Tive um sonho!... Filho, não vá!" E agora me pergunto: tivesse acontecido o que aconteceu de ter permanecido em Salem ou nos lagos do Enaván? Suspeito que sim. cedo ou tarde tinha que chegar... Os "cb" (amontoado nimbos) apresentaram-se virtualmente de improviso. Era lógico. Achávamo-nos no início da temporada de chuvas. Quase o tinha esquecido. E ao examinar os altos e negros nubarrones procedentes do Mediterrâneo, a veloz massa nubosa terminou me situando de novo na realidade. Não demoraria para chover. Foi então quando comecei a me precaver do precário de minha situação. Caminhava para a selva jordánica, sem saber por que nem por quanto tempo. Achava às portas de uma das acostumadas ausências do Yehohanan? O que pretendia? Com as pressas, embora consegui retornar à aldeia e recuperar a "vara do Moisés", não tive a precaução de me fazer com o saco de viagem. Quem podia imaginar que, horas depois, terminaria me afastando do grupo e em um nada agradável companhia daquele perturbado...? Pensei nos antioxidantes. Os tabletes de dimetilglicina eram essenciais para combater o excesso de óxido nitroso no cérebro. Qualquer descuido, neste sentido, era perigoso.
Possivelmente exagerava. Possivelmente tinha começado a deixar voar a imaginação, como sempre. Possivelmente Yehohanan só pretendia me mostrar algo. Depois retornaria a Salem, à casa do sábio Saúl. Possivelmente... A distância do Enaván ao fio da selva era, pouco mais ou menos, de dois quilômetros. Ao chegar ao enredado boscaje, sem duvidá-lo, o Anunciador evitou a parede de espinheiros e árvores e prosseguiu para o sul, em paralelo à abóbada vegetal que prosperava a gastos do rio Jordão. Respirei com certo alívio. Aquela selva, sempre em penumbra, aparentemente fechada e impraticável, da que procediam toda sorte de sons, não era de meu agrado. Yehohanan continuou a marcha pelo tímido senderillo, agora entre terra de pastos. Instintivamente tome referências. Por nossa direita, na distância, corria o caminho principal, que tínhamos percorrido em nossa peregrinação para a Damiya. Parecia claro que o pregador tratava de evitar qualquer contato com seus semelhantes. Semelhantes? Yehohanan, para falar a verdade, era um exemplar único. Os dois metros de altura, a larga cabeleira loira, agora oscilante, e a estrambótica vestimenta -um largo cinto de couro negro e um saq ou taparrabo de pele de gazela- faziam dele um indivíduo muito pouco comum. E me perguntei por enésima vez: que fazia eu depois dos passos daquele homem? de repente se deteve. Depositou a colméia sobre o terreno e, girando o corpo para quem isto escreve, levou o dedo indicador esquerdo aos lábios, solicitando silêncio. Olhei a meu redor, intrigado. Não acertei a distinguir pessoa ou animal. Achávamo-nos sozinhos, em um terreno aberto. Uma súbita rajada de vento golpeou o talith de cabelo humano que o cobria e pouco faltou para que o "xale" se precipitasse sobre o pasto. E a chuva fez ato de presença, em um primeiro momento moderada. O céu, negro, estava avisando... Permaneci quieto e pendente dos movimentos do gigante. Ao cabo de um minuto comprido se fez de novo com o barril de cores e arrancou, à carreira, ao tempo que sujeitava o manto com a mão direita. Não entendia nada. Tentado estive de esquecê
lo e dar meia volta. Não soube emprestar atenção ao instinto... E sob a chuva, suponho que movido pela curiosidade, fui atrás dele e tentei não perder o de vista. Ao pouco, por nossa direita, perto do caminho que atravessava o vale, rumo a Jerusalém, apareceu o descuidado edifício de barro e folhas de palma que servia de alfândega e no que vimos morrer aos três jovens zelotas. O aguaceiro o mantinha solitário. Não acertei a distinguir aos nos publique e tampouco ao grupo de soldados que custodiava o lugar. Um cão, em alguma parte, ladrava sem trégua. Detive a carreira. O lógico é que os funcionários e a patrulha se achassem no interior. Embora o posto fronteiriço, que delimitava os territórios da Decápolis e a Perea, levantava-se mais de um centenar de metros do senderillo pelo que corríamos, entendi que não devia arriscar. O cruzamento a toda velocidade, por diante dos suspicazes gabbai ou coletores de impostos, e dos não menos desconfiados kittim, peritos no manejo das afiadas fêmeas de javali, era, quando menos, uma atitude arriscada. Não tentaria ao destino... Yehohanan não pensou o mesmo e se afastou veloz, entre uma cortina de água, cada vez mais obstinada. Pensei em seu recente gesto, solicitando silêncio. Pôde ter relação com a proximidade dos odiados funcionários ao serviço de Roma e da não menos desprezada linha de cavalaria romana? O Anunciador -assim o demonstrava em cada uma de seus prédicas- não sentia a menor devoção por aqueles representantes da "nova Sodoma", segundo suas próprias palavras. Duvidei. Quando Yehohanan levou o dedo aos lábios, a alfândega nem sequer era visível. Mas, então, a que obedecia a ordem de silêncio? Não demoraria para averiguá-lo... Felizmente, deixei atrás o edifício e reemprendí a carreira, inquieto ante a possibilidade de que o Anunciador desaparecesse. O aguaceiro amainou. E de repente o vi. deteve-se. Parecia me esperar (?). Em realidade, nunca soube. achava-se em metade de uma ponte de pedra que saltava sobre o Jordão. Observava as terrosas e rápidas águas, com as enormes mãos apoiadas sobre o parapeito. A colméia. ambulante permanecia a seu lado, junto aos intermináveis e enlameados pés
nus. Tratei de pensar, ao tempo que recuperava o fôlego. por que olhava o rio com tanta atenção? O "manto" de cabelo humano tinha sido retirado e guardado no zurrón branco que pendurava em bandoleira. Aproximei-me devagar e em guarda. As reações daquele homem eram imprevisíveis. Não se moveu, embora esteja seguro de que sentiu minha proximidade. E durante vários minutos permaneceu na mesma postura, imutável, com a chuva escorregando pela correosa e queimada pele. No leito do Jordão não havia nada que pudesse requerer sua atenção. Eu, ao menos, não alcancei a distingui-lo. As águas, com as primeiras chuvas, arrastavam maleza e sedimentos, que chocavam e se entupiam entre as pilastras. Tudo era silêncio, um silêncio discretamente interrompido pelo rumor da corrente, pelo suave choque da chuva contra o barril do Yehohanan e as roupas e pelos longínquos trovões, amortecidos pela distância. Então, ante meu desconcerto, repetiu o gesto. Girou para quem isto escreve e voltou a levar o dedo indicador esquerdo aos grossos lábios. -Escuta!-sussurrou com aquela voz rota-. Escuta atentamente, "Esrin"! E, como um idiota, emprestei atenção a quanto me rodeava. Eu não tinha ouvido nada estranho e, é obvio, fui incapaz de distinguir o que sugeria o homem da "mariposa" no rosto. Seus olhos, endiabrados, atravessaram-me, esperando uma resposta. Terminei desviando o olhar, incômodo ante as "pupilas" vermelhas e o persistente nistagmo ou movimento vertical do olho. Hei-o dito em outras oportunidades: aquele rosto e, sobre tudo, aquele olhar não eram fáceis. Não era de sentir saudades que a gente se sentisse atemorizada. Suponho que esperou uma confirmação. Mas "Esrin" ou "Vinte", como me chamava, não acertou a separar os lábios. Não lhe importou. Não insistiu. Acredito que, inclusive, ignorou-me. Tomou de novo a colméia de cores e caminhou para o final da ponte, agora sem pressa. Era a segunda vez que me desconcertava naquele enigmático caminhar para não sabia onde. E ao princípio -como um perfeito estúpido- não
compreendi... O Destino, entretanto, sabia o que fazia. Ali arrancava um enorme bosque de nogueiras, logo que perturbado por algumas famílias de tamariscos que cresciam ao casaco dos altos e estriados troncos, a maioria de vinte e trinta metros de altura. Era um bosque centenário que se derramava para o este, alimentado pela umidade de outro dos afluentes do pai Jordão. As taças, quase esféricas, tinham tecido um "teto" denso e bem organizado, que aliviou nosso caminhar sob a chuva. Nada mais pisar no egoz, como chamavam o lugar, fomos recebidos por um intenso perfume e por um rangido que, em um primeiro momento, surpreenderam-me. A fragrância caía literalmente das grandes folhas verdes e brancas dos egoz ou nogueiras, mercê a um princípio látil, agora precipitado pelo aguaceiro. A partir de momento, aquele foi o bosque do "perfume" para quem isto escreve. Quanto aos estalos sob os pés a explicação procedia também das majestosas nogueiras persas, uma das quarenta espécies disseminadas aquele tempo pelo vale do Jordão. Do final do verão, as drupas, a milhares, tinham ido maturando e precipitandose sobre o terreno. Pouco a pouco, favorecida pela umidade, a casca verde das referidas drupas foi secando e liberando as apreciadas e nutritivas nozes. Caminhávamos sobre um tapete de escorregadia nozes! O bosque do "perfume" se achava igualmente solitário. Yehohanan prosseguiu decidido. E o terreno começou a inclinar-se com suavidade. Se meus cálculos não estavam equivocados, nesses momentos tínhamos percorrido pouco mais de seis quilômetros, tomando os lagos do Enaván como ponto de partida. Foi então quando estive seguro: o Anunciador não retornaria junto a seus discípulos, ao menos nessa jornada. E a lembrança dos antioxidantes tocou em meu ombro, me inquietando. Tinha que retornar o antes possível... Estava decidido. Assim o pensei enquanto ouvia o rítmico ranger e entrechocar das "bolotas do Júpiter", como chamavam também às nozes. Efetivamente, retornaria, mas não como imaginava... Então o vi deter-se. E ao chegar a sua altura fiquei maravilhado.
Yehohanan sabia escolher as paragens aos que se retirava. A coisa de mil e duzentos metros da ponte de pedra que acabávamos de cruzar, o bosque de nogueiras ficava abruptamente interrompido por uma garganta profunda e estreita. Pelo fundo, nervoso, desfilava um aprendiz de rio, de pouco mais de oito ou dez metros de largura. Era outro dos tributários do Jordão, neste caso, como digo, com um leito tão minguado como transparente. A nossos pés, o terreno se precipitava quase verticalmente, formando uma parede de 20 ou 30 metros. Os desmoronamentos tinham deixado ao descoberto os estratos brancos e amarelos da marga, a calcária, a argila e os cantos rodados. Muitos deles terminaram rodando até o afluente, entorpecendo o fluir das águas. A corrente, entretanto, soube escavar estas enormes pedras, acrescentando espuma e sussurros ao belo lugar. Frente por frente se apresentava outro escarpado, virtualmente gêmeo e igualmente colonizado por audazes e ramificados tamariscos de flores rosas e cinzentas que penduravam livres no vazio, reclamando a milhares de insetos polinizadores. O resto das escarpadas paredes -mercê às benignas temperaturas da concha- aparecia talher por anárquicos rodas de pessoas de vermelhos e amarelos, resultado da floração de outros tantos arbustos, geralmente terebintos de ramos resinosos e narcisistas compridos e estilizados, respectivamente. Estes últimos, sempre solitários, proporcionavam ao canhão uma fragrância muito delicado, que ia e vinha, segundo a brisa ou a chuva. Ao pé deste escarpado, entre desmoronamentos, distinguiam-se duas covas. Uma, quase ao nível da água, apresentava uma boca alargada e não muito alta. A outra, com uma entrada mais reduzida, aparecia ao rio a quatro ou cinco metros por cima da primeira. Nesses momentos não soube onde me encontrava. Suspeitava que muito perto do limite com a Perea, o território do Herodes Antipas, mas isso era tudo. O Anunciador, então, sem me olhar, exclamou: te descalce!... Estamos em um lugar sagrado! Não houve mais explicações. Lugar sagrado?
Yehohanan não permitiu que perguntasse. antes de que este surpreso explorador pudesse abrir a boca, o das sete tranças se lançou por uma muito estreito, quase invisível, vereda que fazia assombrosos equilíbrios entre os esporões do escarpado. Aquilo era um suicídio. A chuva, algo mais contida, tinha convertido a parede em um perigoso lamaçal. A cada passo, a argila, os calhaus e a areia avermelhada se moviam, desestabilizando ao que tentasse o descida pelo precipício. O Anunciador, entretanto, continuou baixando, alheio ao risco. O que podia fazer? Tampouco o pensei muito. Desatei as cordas que sujeitavam as sandálias "eletrônicas" e me descalcei. Depois, depois das pendurar do pescoço, cravei a vara no caminho de cabras e medi. O terreno resistiu. E amaldiçoando minha aparentemente escassa fortuna, tratei de seguir os passos daquele louco. E digo bem: tratei... As quedas, como supunha, chegaram imediatamente. E pior que mau, acertei a descender uns metros. Os arbustos foram minha salvação, momentaneamente. O Batista -nunca o entendi-, saltando como uma cabra montês, achava-se já a meia pendente. E em um dos lances, enlameado até os olhos, aconteceu o inevitável. Calculei mal a distância até o seguinte corro de salvadores terebintos e os pés escorregaram no lodo. Lutei por me aferrar à terra molhada e às pedras. Empenho inútil. E me vi miserável ao vazio... O cajado escapou de minha mão. Não lancei um só grito. O medo atou minha garganta e deteve o coração. Recebi um, dois ou três impactos. E parte das pedras me acompanhou naquele viaje para a morte. Isso acreditei. E um único pensamento cruzou veloz: ela... Depois, em outro das topadas com a ladeira, chegou a escuridão. Depois, frio e nada. Perdi o conhecimento. Precipitei-me contra as águas. Isso, certamente, salvou-me. Isso e Yehohanan, que me resgatou do leito. Curioso Destino. Era isto o que insinuou Jaiá? Quando abri os olhos me achava no interior de uma cova. Estava sozinho.
Tratei de me incorporar. Minha cabeça parecia a ponto de estalar. Senti calafrios. E permaneci imóvel durante um tempo. Quis recompor esses últimos momentos, no escarpado, e o obtive pela metade. Podia me considerar afortunado, apesar de tudo. Os sucessivos golpes no pendente e a reunião final com a água puderam ser mortais, apesar do amparo da "pele de serpente". Sim, o bom Deus teve piedade de quem isto escreve, uma vez mais. Finalmente, quase a rastros, apareci em rio. Obscurecia. A chuva tinha cessado. Quanto tempo permaneci inconsciente? Seguíamos naquele nefasto domingo, 4 de novembro? Supus que sim, à vista do que tinha em frente. Ao outro lado do leito, entre os arbustos que cresciam na ribeira pela que me tinha precipitado, distingui ao Anunciador. Tratava de recuperar a "vara do Moisés". O cajado aparecia retido entre uma massa de providenciais tamariscos. fez-se com ele e o examinou com curiosidade. Tive um mau pressentimento. Não podia deixá-lo em mãos daquele transtornado... Elevei-me e entrei na água, ao encontro do Yehohanan. Não pude dar nem três passos. Algo me fulminou e perdi as forças, me precipitando de novo no arroio. Esta vez não perdi o sentido. Fui consciente de tudo, mas não conseguia me mover. A mente e a vontade foram amordaçadas, e meus quatrocentos músculos, simplesmente, "desconectados". Me dava conta do comprometido da situação. Flutuava de barriga para baixo. Não demoraria para morrer... E ouvi a voz do Jaiá: "Não vá!... tive um sonho!" Mas o Destino aliviou minha angústia. Yehohanan me resgatou pela segunda vez. Carregou com aquele maltratado explorador e me transladou à gruta em que tinha despertado. Segundos depois, tudo voltou para a normalidade. O aparelho locomotor obedeceu e a mente, perplexa, brigou por esclarecer o ocorrido. A intuição chegou em primeiro lugar. Algo tinha falhado no sistema nervoso central. Mas, assustado, rechacei-o. Não quis admitir o que parecia claro. Estava sozinho e longe da nave... Depois interveio a razão e me refugiei em um duvidoso diagnóstico: "transtorno
passageiro, conseqüência do forte golpe na cabeça durante a queda". Eu conhecia a verdade, a triste realidade, mas me neguei a aceitá-la; não ali, sem quase possibilidade de escapamento... Yehohanan permaneceu um tempo na boca da cova. Seguiu acariciando o cajado. de vez em quando me observava. Depois caminhou para quem isto escreve e, depois de depositar a vara junto a meus pés descalços, comentou sem dissimular sua satisfação: -Não me equivoquei ao te escolher... O Santo, bendito seja seu nome, também está contigo... O te salvou, como ao Elías... Entendi pela metade. E o Anunciador concluiu: -chegou o momento... Mostrarei-te o que ninguém viu... Farei-te partícipe de meu segredo... Quis lhe manifestar meu agradecimento pela dobro ajuda no rio, mas as palavras ficaram sufocadas por uma repentina e incontenible sonolência. Tampouco consegui explicá-lo. Estranha vez tinha experiente um desejo tão premente por dormir. E entre sombras, brigando por não fechar as pálpebras, vi-o afastar-se para a claridade. Só recordo que não carregava a habitual colméia... E fiquei profundamente dormido. Possivelmente foi o melhor.
DO 5 AOS 9 DE NOVEMBRO
Despertei depravado. Da recente angustia só ficava a lembrança, esquecido agora no mais remoto da mente. Neguei-me a pensar no ocorrido. Sentia algumas moléstias, mas me pus em pé e procedi a explorar o lugar no que tinha amanhecido. Era segunda-feira, embora isso, para falar a verdade, pouco importava. O Batista, uma vez mais, tinha desaparecido. Achava-me, como já comentei, em uma cova não muito grande e nua. O sol, muito mais madrugador que este explorador, penetrava com cautela no nascimento da gruta. Não distingui rastro algum do Yehohanan, à exceção de uns restos
calcinados de madeira. Apareciam frios. Não acredito que fossem utilizados no dia anterior. Possivelmente levavam ali um tempo. Possivelmente não tinham relação com o pregador. Foi então, com um joelho sobre o pó que cobria o chão da "cova um" (assim denominei o vazio se localizada ao fio da corrente), quando reparei em meu pé esquerdo. Como não o tinha visto antes? Medi o pescoço como um parvo. Ali, lógicamente, não estavam. Tinha perdido as sandálias "eletrônicas"! Não tive mais remedeio que rememorar os desagradáveis sucessos da jornada anterior. Ante a ordem do Yehohanan me tinha descalçado, atando as sandálias e as pendurando do pescoço. perderam-se na queda? Era o mais verossímil... E, instintivamente, inspecionei a pequena bolsa de oleado que pendurava do pescoço. As "crótalos" e a ampollita de barro, com os "nemos", não sofreram dano aparente. Mas aquilo não me tranqüilizou. O extravio das preciosas "eletrônicas" era imperdoável. Como pinjente, sempre foram de grande ajuda em nossa missão. Não podia permitir que desaparecessem. Era o último par. O primeiro se afundou nas agitadas águas da corrente que descia do monte Nebi, no Nazaret, quando tentava cruzar uma arruinado ponte de troncos. Minha perna esquerda se precipitou por um oco e perdi o saco de viagem, com o referido primeiro par de sandálias. Voltei a registrar a cova. Negativo. Nem rastro. Revolvi o pó. Foi igualmente inútil. E pensei no Anunciador. O resgatou a vara. Possivelmente recolheu também o calçado. Desde não ser assim, onde procurar? Puderam ficar enganchadas na maleza ou, o que era pior, possivelmente flutuaram nas águas do tributário. Neste último suposto -eu diria que mais que suposto-, as "eletrônicas" podiam achar-se a muita distância, quem sabe se no próprio rio Jordão, ou retidas nas bordas, sem esquecer a possibilidade de que alguém as detectasse e se fizesse com elas. O fronte nuboso tinha desaparecido. O céu, azul, recebeu-me sereno. Uma tímida brisa, quase nas pontas dos pés, brincava na garganta, obrigando a cabecear às centenas de narcisistas amarelos das paredes. E o perfume, intenso, fez-me esquecer, momentaneamente, o pensamento principal.
Yehohanan, o Anunciador, achava-se a curta distância, águas abaixo, em metade do aprendiz de rio. Entrei devagar no leito e permaneci atento. Não conseguia entendê-lo, uma vez mais. O que era o que fazia? O gigante de dois metros de altura, com a corrente a meia perna, golpeava as transparentes águas com o talith que o cobria habitualmente. Tinha dobrado o manto e sacudia a superfície com violência e sem descanso. E a cada golpe, repetia: -Sou Dele!... te abra! Viu-me chegar, mas continuou com o seu. O que pretendia? E de repente se deteve. O talith de cabelo humano jorrava e seu peito oscilava acima e abaixo. Suava e ofegava. Percebi o desagradável aroma de suor, mas me contive. Então olhou a seu redor e, finalmente, repetiu aquele gesto, solicitando silêncio. Silêncio? Isso era o que sobrava naquele compartimento paragem. Mas a que ou a quem se referia? Ali só estávamos ele e eu... Imitei-o, explorando os arredores com a vista. Só as aves e a brisa nos emprestavam atenção, e não muita. -Ouve-os? -sussurrou-. Não te deixe surpreender. Têm delatores em todas partes... A quem tinha que ouvir? Delatores? Eu não ouvia som algum, salvo o de sua voz fica e rouca. meu deus! E as suspeitas se multiplicaram... -Estamos no Querit, um lugar sagrado... Eles sabem e vigiam... Acreditei entender. Yehohanan se referia à corrente do Querit ou Kérit, mencionado no primeiro livro de Reis (17, 3) e no que, supostamente, refugiou-se o profeta Elías por ordem do Yavé. Não estava seguro, mas me pareceu que o Anunciador cometia um engano. O Querit era outro afluente da margem esquerda do Jordão, possivelmente mais caudaloso e localizado algo mais ao norte, nas proximidades da cidade helenizada de Bolota. Então, ao recordar o texto da chamado passagem do primeiro livro de Reis, caí na conta de outro assunto, não menos delicado. Agora estava muito mais claro. Agora compreendia também o porquê daquela atitude tão estranha, golpeando
as águas com o talith... Procurei me serenar. Tinha que pensar. Era mister atuar com prudência e abandonar aquele lugar o antes possível... Um lugar sagrado? Por isso o Anunciador ordenou que me descalçasse. Para ele, aquela garganta e o arroio tinham sido testemunhas da presença do Santo. E antes de que prosseguisse com a vitamina do suposto Querit me aventurei a interrogá-lo, me interessando pelas sandálias. A resposta me deixou perplexo: -Aqui não são necessárias... Pode me pedir outra coisa, o que queira..., antes de que seja afastado de ti... lhe pedir? Só queria minhas sandálias. E assim o fiz ver. Afastado de mim? Em um primeiro instante, não caí na conta. Yehohanan, de novo, fazia seu um texto bíblico que não lhe pertencia. E o que era pior: usurpava o posto do autêntico protagonista, Elías... -Só procuro minhas sandálias -balbuciei sem dar crédito ao que estava passando. -Difícil coisa pediste... Se quando eu seja arrebatado de ti me vir, assim será... Se não, não será. Não esperou resposta. Elevou o manto por cima de sua cabeça e golpeou de novo a superfície das águas, ao tempo que gritava: -Sou Dele!... te abra!... te abra! Afastei-me confuso e desalentado. O homem que me resgatou de uma possível morte manifestava um preocupam-se desequilíbrio. As últimas palavras, aparentemente absurdas e incongruentes, eram um sinal. Sua mente, ao parecer, experimentava outra grave crise. A alusão ao arrebatamento, entendido como um rapto ou seqüestro por parte de Deus (?) ou de seus "carros de fogo" (?), não era uma expressão dela. Foi extraída dos antigos textos bíblicos. Concretamente do segundo livro de Reis. Yehohanan, como também era habitual nele, manipulou-a. E o mesmo pode dizer do furioso ataque à superfície do arroio. Yehohanan imitava ao profeta Elías, tal e como se deduz do mencionado segundo livro de Reis (capítulo 2). Foi então quando se fez a luz em minha cansada mente. E associei o observado no bosque das acácias, nas proximidades do vau das "Colunas", com o que tinha à vista. Segundo a Bíblia, Yavé
tirou o Elías do povo onde vivia, Tisbé nas alturas do Galaad, não muito longe de onde nos achávamos, e lhe ordenou que se escondesse na corrente que chamavam Querit, ao leste do Jordão. Ali lhe disse: "Beberá do rio e encarregarei aos corvos que lhe alimentem." E diz a tradição que os pássaros lhe levavam pão pela manhã e carne pela tarde. "Pão pela manhã!"... Agora entendia o singular comportamento do pregador junto aos ninhos dos herrerillos. Quanto ao misterioso trasvase de farinha de uma cántara a outra, igualmente contemplado por este explorador entre as acácias ou karus do rio Yaboq, a possível explicação terei que procurá-la de novo nos relatos que falam do Elías e, obviamente, como digo, em um desfalecimento da saúde mental do Anunciador, por utilizar uma expressão pouco dolorosa. Segundo o primeiro livro de Reis, capítulo 17, quando o Querit se secou, conseqüência de uma das muitas secas que padecia o Israel, Yavé se dirigiu novamente a seu profeta e lhe ordenou que se dirigisse à cidade da Sarepta, na costa fenícia. Elías conheceu ali a uma mulher que lhe proporcionou comida. E se registrou outro prodígio, segundo os textos bíblicos: a farinha contida em uma das tinajas não se esgotou, e tampouco o azeite da talha, até que terminou a seca. "Porque assim fala Yavé... Não se acabará a farinha na tinaja... Não se esgotará o azeite na talha até o dia em que Deus conceda a chuva sobre a Terra. " E recordei o desespero e contrariedade do Yehohanan quando contemplava as cántaras vazias, lógicamente esgotadas depois de cada trasvase. "Tudo é mentira. .." E o instinto me acautelou. Não devia confiar nele. Os signos de perturbação eram cada vez mais alarmantes. Senti medo. Tinha que lhe proporcionar os "nemos" e me afastar. Já tinha visto o suficiente... Continuei rastreando o rio, consciente do estéril daquela busca. As sandálias podiam estar em qualquer parte. E minha mente retornou de noite anterior. Tinha-o esquecido!
Fui surpreso por aquele sonho de chumbo quando Yehohanan se dispunha a me revelar seu segredo. Não o fez e tampouco voltou a mencioná-lo. tratava-se de outro de seus desvarios? E a dúvida freou meus iniciais desejos de abandonar a garganta. Esperaria um pouco mais, não muito. Aquela, possivelmente, era uma excelente ocasião para aprofundar em sua complexa mente. Achávamo-nos sozinhos. Ele, além disso, considerava-me um dos seus, bento Por Deus. E uma mescla de sentimentos me desconcertou. A intuição estava avisando. A razão, por outra parte, ditava-me calma. Eram muitas as perguntas que desejava lhe formular e, sobre tudo, precisava limpar uma incômoda interrogante: por que a obsessão com o Elías? O rude e aventureiro profeta tinha aparecido em cena fazia quase novecentos anos. Sua história, embora sujeita a infinidade de lendas e elucubraciones, era bem conhecida pelos judeus. Todos o consideravam o "braço armado de Deus" e o que retornaria, a não demorar, para anunciar a era do Mesías Libertador. De fato, na festa da Páscoa, os hebreus colocavam uma taça de vinho sobre a mesa, em lembrança do Elías, e abriam a porta, simbolizando assim a iminente chegada de que degolou pessoalmente a mais de quatrocentos profetas e sacerdotes dos deuses Baal e Asera. Elías, para muitos, era o responsável por separar aos puros dos impuros, na hora de entrar no reino de deus. Na época do Jesus, Elías seguia sendo um herói, embora só soube de um homem que o imitasse até o extremo de vestir, de falar e de pensar como ele. Esse homem foi Yehohanan... O minguado afluente escapou da garganta e correu mais largo e remansado para o Jordão. Eu seguia vadeando e examinando as ribeiras, empenhado, como pinjente, em uma busca com escassas possibilidades. Mas não tudo foi negativo naquela jornada... Mais ou menos para a quinta hora (onze da manhã), a Providência me reuniu com eles. Agora, na distância, ao conhecer o final de nosso grande aventura, só posso me assombrar. A vida de cada ser humano está perfeita e milimétricamente desenhada, do nascimento à morte, embora, naturalmente, não saibamos. Ouvi-os na lonjura. Alguém dava vozes no bosque. Aproximei-me com
precaução. Sabia da existência de bandidos ao leste do rio Jordão, mas tinha entendido que as partidas se moviam além do que chamavam as "colinas de gesso", no coração da Decápolis. Permaneci um bom momento na borda direita, médio escondido entre a ramagem. Distingui cinco ou seis homens e dois jovencitos. Um dos adultos se achava entre os ramos de um corpulento egoz, a quase vinte metros do chão. balançava-se, agitando parte da taça. Criei entender. Era uma equipe de felah ou camponeses, disposta a compilar um máximo de nozes. Dois asnos, com grandes cestos sobre as garupas, aguardavam na penumbra da arvoredo, mais que indiferentes, aborrecidos. Como medida preventiva, as bocas apareciam cobertas com sendos sacos de robusta estopa, habilmente sujeitos por detrás das orelhas, sobre a crinera. Desta forma não era possível que os animais devorassem as drupas que se acumulavam em terra. Ajudando-se com as mãos, e com outros cestillos menores, os agricultores recolhiam o fruto e o amontoavam nas proximidades dos onagros. Ali, se a havia, os moços procediam à separação da casca. A noz era depositada em uma das cestas e a casca, verde e negra, em outra. Reconheci a dois dos homens. Tinha-os visto na aldeia de Salem. Eram amigos do Abá Saúl e do Jaiá, sua esposa. A um o chamavam Seja'ah ("tempo curto", em aramaico), pelo rápido que trabalhava. Nunca caminhava. Sempre se movia à carreira ou a passo ligeiro. Do outro não recordo o nome... Observei-os devagar. Pareciam boa gente, singela e trabalhadora. Depois, ao longo daqueles dias, soube que iam ao bosque do "perfume" com regularidade. As drupas da nogueira eram muita apreciadas. Das cascas e das folhas obtinham tinturas e um verniz especialmente atrativo na hora de pintar móveis e madeiras (nogalina). A noz era transportada ao villorrio e arejada durante um tempo. O sol e o vento terminavam das sanear e eram exportadas em largas caravanas aos quatro pontos cardeais. O alto índice de conteúdo gorduroso da amêndoa (ao redor de 60 por cento) era bem conhecido naquele tempo. Os cozinheiros a buscavam sem cessar e também as amas
de casa. Se um menino padecia vermes intestinais, o melhor era lhe subministrar nozes, ricas em azeites com propriedades vermífugas. Jaiá preparava uma infusão com as folhas do egoz que "fazia remontar ao espírito abatido". O provei e posso dar fé de que era certo. Ela não sabia mas sorte infusão era hipoglucemiante; quer dizer, reduzia os níveis de açúcar no sangue, combatendo o esgotamento. Também a madeira era muito estimada. Uma vez ao ano destruíam parte do bosque. Era o egoz sagrado que ardia no fogo do altar, no Templo de Jerusalém. Os próprios sacerdotes e levita-se personaban no lugar, fiscalizando o corte e o transporte. E já que citei a palavra esgotamento, bom será que faça referência a meu estômago. Levava horas sem provar bocado e, por isso acertei a contemplar na cova um, não parecia ter muitas possibilidades de encontrar comida, ao menos enquanto permanecesse na suposta corrente do Quent. Ignorava se Yehohanan dispunha de mantimentos. O mais provável é que recorresse ao mel da colméia ambulante, como era habitual. Tinha que me arriscar... Precisava entrar em contato com aqueles felah e repor forças. Eles, certamente, poderiam me auxiliar. Mas, a ponto de abandonar a corrente e de saltar à borda, algo me deteve entre os largos cachos de flores dos tamariscos. Não dispunha de dinheiro. Tudo tinha ficado em Salem... O que podia oferecer em troca? É mais: o que pensariam ao yerme sair do rio, em um lugar tão remoto? Como receberiam a aquele estrangeiro? A solução ao dilema foi tão simples como imprevista... Ao retificar o intento de salto sobre a ribeira, um dos ramos enganchou a túnica. Tratei de escapar mas, mais pendente de não ser visto pelos felah que de me liberar do inoportuno ramo, terminei rasgando a malha. O ruído e a agitação do tamarisco não passaram desapercebidos para os perspicazes camponeses. que se achava no alto da nogueira, alertado por seus companheiros, confirmou a presença de alguém entre os matagais. E ao ponto, armados com paus, rodearam-me. Não tive que dar muitas explicações. O tal SAH me reconheceu, e também
o segundo felah. Isso fez baixar os fortificações. Disse-lhes a verdade. Achava-me no Querit junto ao Yehohanan. Era "Vinte", um de seus discípulos. "Tempo curto" intercambiou algumas palavras com o resto, confirmando o que dizia. Todos sabiam da presença do Anunciador e de seu grupo nos lagos do Enaván. Os jovencitos e os outros quatro adultos viviam na aldeia da Mehola, algo mais ao sul. Então, um dos felah me interrogou sobre o esquivo e suspeito de minha atitude, me ocultando entre a maleza do Firán. "Não era próprio de gente de Deus..." E acudi igualmente à verdade. Tinha fome mas, ao vê-los no bosque, não soube o que pensar. "Tempo curto" correu para os asnos e retornou com uma fogaça de pão negro e uma generosa ração de queijo. Não houve mais questione durante alguns minutos. Eles retornaram a suas tarefas e quem isto escreve, agradecido e faminto, deu boa conta do almoço. de vez em quando, o camponês que sempre corria retornava até mim e se interessava por meu apetite. Não me equivoquei. Era gente de bom coração. Sempre lhes estarei agradecido... E foi em uma dessas breves conversações quando For'ah me tirou de meu engano. Tinha ouvido perfeitamente. Um dos recolectores, ao me interrogar, mencionou a palavra Firán, refiriéndose ao arroio. "Tempo curto", insistiu. Aquele não era o Querit, como supunha. Encontrava-me no arroio dos "ratos" (isso significava firán em badu ou beduíno). Em aramaico o conheciam como 'attun, um riacho quente, como um forno, em referência, suponho, às altas temperaturas que se alcançavam na estreita garganta durante os meses estivais. O Querit, como pinjente, era mais rio e discorria a certa distância, para o nordeste. Era um engano do Yehohanan? Estava inventando, como aconteceu no vau das "Colunas", no rio Yaboq? Algum tempo depois, quando "todo se endireitou", quem isto escreve consultou no "berço". "Tempo curto" e os camponeses tinham razão. Aquela agreste paragem era O-Firán, famoso pelas colinas de ratos que escavavam suas galerias na dura rocha calcária dos escarpados. Yehohanan, segundo sua conveniência,
modificava o nome do cenário. Ali jamais esteve Elías... Perguntei por minhas sandálias. Ninguém sabia nada. E próxima a nona, a coisa de duas horas do ocaso, fiz provisão de nozes e retornei à cova um. Prometi retornar junto aos felah, sempre que minhas "obrigações com o vidente me permitissem". Entenderam isso. Fui eu o que não compreendeu minha própria justificação. A que obrigações me referia? Não tinha nenhuma. Se estava ali era por curiosidade. O Anunciador prometeu me mostrar seu segredo. De momento, entretanto, nada disso tinha ocorrido. Yehohanan parecia me esperar. Divisei-o sentado na borda do Firán, frente à cova um, e com os pés na água. cobria-se com o xale ou talith amarelo. Aproximei-me com cautela, sustentando as nozes nos baixos da túnica. Era tudo o que tinha, junto a meia fogaça de pão de trigo, obséquio também da gente de Salem e Mehola. Vadeei o leito e fui deter me frente a ele, a curta distância. Não levantou a cabeça. A colméia de cores se achava a um passo, sobre a ribeira. Ouvi o zumbido das abelhas. Parte do enxame se lançou sobre as flores amarelas dos narcisistas e os cachos brancos e oscilantes dos tamariscos. E recordei a cena, quando se achava sobre a pilastra da ponte, no vau das "Colunas". Como o fez? Como obteve que a massa de abelhas se deslocasse a sua mão e braço direitos? por que não foi atacado pelos insetos? Como insinuei, necessitaria um tempo para resolver o mistério. Os inquilinos daquele "barril", pintado em sucessivos anéis vermelhos, azuis, amarelos e brancos, eram especialmente agressivos. tratava-se da APIs mellifica adansonii, uma abelha africana, provavelmente transportada dos oásis do Egito e a atual Etiópia, famosa entre os apicultores por sua notável capacidade para a produção de mel e também por seus freqüentes ataques e pilhagens a outras colméias. Aguardei em metade das águas. Yehohanan não reagiu. Eu sabia que me tinha visto, mas continuou acariciando aquele vulto. Era a primeira vez que o via. Que eu soubesse, não formava parte de seu impedimenta. O que fora, achava-se guardado em uma espécie de saco embreado, negro e de um aroma fétido. O
envoltório em questão não superava o metro de longitude. Era estreita. Os extremos foram amarrados com caminhos cordas de esparto, igualmente tintas naquela substância escura e oleosa. Yehohanan, como digo, mantinha-o sobre os joelhos e o acariciava com os largos dedos da mão esquerda. Por mais que me esforcei, não cheguei a imaginar o conteúdo do saco. Não nesses momentos... Uma idéia me veio à mente. Era o segredo que me convidou a compartilhar? O que guardava com tanto zelo? por que não tive notícias daquele vulto? Abner, o pequeno-grande homem e segundo do Yehohanan, não me falou disso. Ninguém, entre os discípulos, comentou algo a respeito. E desde esses instantes, reconheço-o, o saco negro e pestífero se converteu em um desafio. Outro mais... de repente elevou levemente a cabeça e, da penumbra do embuço, clamou com aquela voz rouca e quebrada: -Hei aqui que envio a meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim! Por um momento acreditei que se dirigia a outra pessoa. Pensei, inclusive, nos felah, que compilavam águas abaixo. Fui tão néscio que voltei a cabeça, pensando na proximidade de alguém. Ali, claro está, não havia ninguém. Só quem isto escreve, cada vez mais desconcertado. -Meu mensageiro! -repetiu sem deixar de acariciar o saco-. E o Eterno, bendito seja seu nome, a quem procuram, virá em seguida a seu Templo, mediante o mensageiro do segredo... referia-se para mim? Era eu o mensageiro do segredo? Mas que secreto? Tinha que preparar seu caminho? O que se propunha? ...Hei aqui que vem, diz o Eterno dos exércitos! Mas quem poderá suportar o dia de seu advento, e quem poderá estar de pé quando aparecer? Então, tomando o saco, o blandió como uma maça por cima de sua cabeça. Continha algo rígido e de pouco peso. ...O Santo dos exércitos! Dava um passo atrás, certamente atemorizado. Pretendia me golpear? Porque é como o fogo do refinador e purificador da prata! ficou em pé e manteve o vulto em atitude ameaçadora. Minha mão direita se deslizou para o alto do cajado. Não permitiria que aquela mente doente
me agredisse... -E desencardirá aos filhos do Leví e os purgará como o ouro e a prata!... E ali estarão os que ofereçam ao Eterno, bendito seja seu nome, holocaustos de justiça! Não, não se referia para mim. Isso entendi. Yehohanan, em outro de seus acostumados arranques, voltava por seus foros, exibindo as apocalípticas mensagens e a escassa estabilidade emocional que já tinha percebido em outras oportunidades. O texto era do profeta Malaquías ou Malají, como o chamavam naquele tempo. Yehohanan utilizava estes textos como Deus lhe dava a entender e nos momentos mais insólitos. Agora, sabendo o que sei, não lhe culpo... Baixou a "arma" e deu um par de passos no arroio, aproximando-se deste explorador. Meus dedos acariciaram o prego dos ultra-sons. Pouco faltou para que soltasse a túnica e, com isso, as escassas viandas. Se atacava, necessitaria as duas mãos... inclinou-se para meu rosto e, baixando o tom de voz, prosseguiu com o terceiro capítulo do referido Malají: -E me aproximarei de vós em julgamento... Adivinhei o lupus branco de sua cara, entre as sombras do talith. Esta vez não retrocedi. ...E serei uma testemunha veloz contra os adivinhos, e contra os adulteros, e contra os que juram em falso, e contra os que oprimem ao jornaleiro em seus salários, à viúva e ao órfão..., e não me temem, diz o Eterno dos exércitos! O aroma de suor foi quase pior que a ameaça do saco. Não conseguia me acostumar. Repetiu a última frase, como uma advertência: -Eterno dos exércitos!... Sabe a que me refiro? Neguei timidamente. A verdade é que tampouco desejava um enfrentamento, nem sequer dialético, com aquele personagem. Supus que falava do Yavé e de sua cólera... Então agitou o saco negro no ar e acrescentou: -Logo te será revelado!... Seus exércitos! E de acordo também a seu costume, fez-se a um lado e avançou entre a corrente, águas abaixo. deteve-se e urinou por enésima vez. Era inútil. Custava-me compreender suas escuras palavras. Exércitos? Logo me seria revelado?
Como digo, não sabia do que falava. Não posso dizer o mesmo do Destino. Ele sim sabia... Saiu da água. Vi-o. subir pelo escarpado e desaparecer na escuridão do que chamava "cova dois", a escassos metros por cima do primeiro vazio. Subiu pelos esporões com agilidade e certa pressa. É obvio, nem me olhou. As dúvidas retornaram. Estava perdendo o tempo? Que fazia naquela garganta? Nem sequer tinha tido a oportunidade de interrogá-lo. Devia voltar com o Abá Saúl? O ancião doutor da Lei sim merecia a pena... Equivoquei-me, também por enésima vez. E durante uns segundos me distraí com a visão da boca da cova dois. Não tinha tido ocasião de visitá-la. Parecia o refúgio habitual do Anunciador. O que guardava em seu interior? E a tentação começou a me rondar... Contive-me e fui sentar me na ribeira esquerda, junto à entrada da cova um, a que, definitivamente, seria meu lar durante aqueles dias. E me entretive em abrir e limpar as sementes do egoz, deixando que o Destino fizesse seu papel. As nozes, muito saborosas, fizeram-me esquecer, momentaneamente, ao Yehohanan. de vez em quando levantava a vista e escrutinava a misteriosa gruta dois. Silêncio. Só se ouvia o remoto trilar dos pássaros no bosque do "perfume" e o quase mecânico zumbir das abelhas entre as próximas flores do talud rochoso. E reparei na colméia de cores. Seguia a escassos metros, de pé sobre a terra da ribeira e, aparentemente, esquecida. Tinha-a contemplado muitas vezes. Depois do tempo dedicado ao estudo destes assombrosos himenópteros, durante uma de minhas estadias na nave, acreditava conhecer a singela estrutura interna do "barril" que escoltava permanentemente ao homem do taparrabo de gazela. O que não podia suspeitar é que dita colméia ambulante chegasse a jogar um papel tão decisivo em minha relação com o das "pupilas" vermelhas... Nunca soube por que interrompi a abertura das nozes e me aproximei da colméia. Passeei lentamente a seu redor, me movendo como recomendam os bons apicultores: muito devagar, sem bracejar e evitando qualquer som. A túnica branca me
favorecia. A cor negra, ao parecer, irrita-as. Eu levava a "pele de serpente", nesta ocasião até as clavículas, e isso me tranqüilizou, relativamente. Se o enxame se enfurecia e caía sobre minha cabeça ou mãos, podia ter problemas, embora sabia igualmente que o veneno, para que tivesse efeitos graves, deveria ser injetado por um mínimo de quinhentas africanas. Isso não aconteceria, pensei. A corrente estava ali mesmo. Se tivesse a má fortuna de lombriga atacado, lançaria-me imediatamente às águas. Quem isto escreve, além disso, não sofria de desórdenes cardiovasculares ou renais. Estas doenças sim podem complicar um ataque maciço por parte das abelhas. E o Destino me deixou fazer... tratava-se de um elementar barril de madeira, trancado com aduelas muito finas, de algarrobo, que davam forma ao que chamavam "yaciente", uma colméia rústica, muito comum naquele tempo. Ao longo de minhas correrias pelo Israel observei milhares delas, tanto fabricadas em madeira, como em palha, argila ou aproveitando, inclusive, os troncos ocos. a do Yehohanan dispunha de favos mutáveis. ao redor de onze, dispostos verticalmente e em paralelo. Tal e como tinha visto, bastava abrir a coberta superior do tonel para extrair os favos e compilar o mel. Por debaixo, supus, achava-se a câmara de cria, com o "frango" ou conjunto de ovos e larvas. Segundo meus cálculos, naqueles momentos, a princípios do mês de kisléu (novembro), a colméia podia reunir um mínimo de 28.000 ou 30.000 exemplares. O vale do Jordão, com suas altas temperaturas e a constante floração, era um paraíso para estas laboriosas criaturas. Era muito estranho que os enxameie descendessem por debaixo dos 20.000 indivíduos. Observei atentamente a piquera ou entrada à colméia, praticada na parte inferior do barril, a coisa de vinte centímetros da base e em metade do anel branco. Era um buraco pelo que entravam e saíam dezenas de operárias. Ali permaneciam também as guardianas ou "policiais", atentas ao reconhecimento de quantos pretendiam entrar ou sair. Interceptavam às pecoreadoras e as apalpavam com as antenas,
tratando das identificar pelo aroma. Se resultava ser um estranho, ali mesmo era fulminado. Devia, pois, não perder de vista o pequeno e, para mim, perigoso orifício. apresentou-se aos poucos minutos. À lombriga tão perto da colméia pareceu surpreso. A verdade é que todos fugiam, ou punham terra de por meio, quando a divisavam, incluído o grupo de seus íntimos ou discípulos. Era lógico. As adan, facilmente distinguibles pelo amarelo avermelhado dos três primeiros segmentos do abdômen, são temíveis. Seus aguilhões são estiletes dentados que, uma vez no interior, devem ser extraídos pela força. Seguia com a cabeça coberta. Na mão esquerda sustentava o misterioso saco negro e rígido. Da direita pendurava uma tigela de madeira. Então caí na conta: Yehohanan ia armado. Era a primeira vez que o via com uma adaga ao cinto. Era uma seca não muito larga, curvada, devorada pela ferrugem e sem vagem. por que essa mudança? Temia por sua vida? Quem isto escreve, supostamente, era seu arauto número vinte. O que podia temer de mim? E a partir desses momentos procurei me manter muito mais alerta. Sem querer, uma imagem se apresentou ante mim. Era a do Jesus do Nazaret. Jamais vi o Filho do Homem empunhando uma espada ou com uma adaga na cintura. Nada coincidia naqueles dois homens. por que recebeu o título de precursor? O Filho do Homem! Achava-me tão longe Dele que, nesses instantes, pensei que não voltaria a vê-lo. Foi um pressentimento? por que me alcançou aquela absurda idéia? -Tem fome? Foi o primeiro medianamente sensato que lhe escutava desde que descendemos à garganta dos "ratos" (embora o de "descender", em meu caso, era muito dizer). Encolhi-me de ombros, sem me atrever a reconhecer que sim. -Abre-a -ordenou, assinalando o barril com o extremo do saco embreado-. Pode comer... Eu o tinha visto. Quando sentia fome, o Anunciador desentupia a colméia e extraía um dos favos, desoperculando os alvéolos e sorvendo literalmente o mel. Em ocasiões mastigava inclusive a cera... Era tudo o que comia.
Pensei na colônia das africanas. Como já mencionei, ali aninhavam ao redor de 30.000 exemplares, a qual mais receoso e violento. Yehohanan tinha um estranho poder sobre elas. Elevava os braços, e parte do enxame, dócil e obediente, cobria-o. Não tinha nem idéia de como o fazia e tampouco pretendia me parecer com ele. Neguei com a cabeça e me retirei junto às nozes e o cajado. -Não tema -exclamou, convencido-. Elas trabalham para mim... Não lhe farão mal. Você, além disso, é "Esrin"..., um de meus. O Santo, bendito seja seu nome, pô-te aqui por um pouco muito especial... Não tema... Nisso tinha razão, embora não soubesse quem era eu e por que estava ali. Entretanto, resisti. Agradeci o convite e lhe mostrei as drupas. Era suficiente para mim. Não me permitiu terminar. -Abre-a! A ordem foi seca e terminante. Estava claro. Não tinha alternativa. Se não abria o barril, quem sabe do que podia ser capaz. E optei por obedecer. Tomei a vara e tentei pensar o mais rapidamente possível. O que fazer? Em caso de abertura, como evitar a lógica reação das abelhas africanas? O rio? Era uma solução. Entretanto... Não, esse não era o caminho. Ele esperava que fora valente. Ele, em sua loucura, não aceitava outra realidade que não fora a sua. Obviamente, Deus não tinha nada que ver naquele lance. Ou sim? E esse Deus, suponho, iluminou-me. As abelhas são "surdas". Quando voam não captam os sons. orientam-se com outro sistema. No interior da colméia são os cabelos ou sedas os que fazem de "ouvidos". É através dos objetos, apalpando-os, como recebem as vibrações e, em conseqüência, a informação. Sim, aquilo podia funcionar... Não me perdeu de vista. Nesses críticos instantes não fui consciente da importância do que estava a ponto de ocorrer. Importante para o Yehohanan e, conseqüentemente, para mim... Rodeei o barril e me posicionei no lado oposto a piquera. Não devia dar facilidades ao enxame.
O contínuo zumbir das adan, rondando em torno da colméia ou retornando, incansáveis, com o néctar das flores, fez-me duvidar novamente. A idéia era só uma idéia. Podia me equivocar. Podia falhar. Nesse caso, se os milhares de insetos reagiam contra o intruso, minha credibilidade, e o que era pior, minha integridade física, ficariam maltratadas. Tratei de me serenar. Se perdia os nervos, se não era capaz de calcular cada movimento, se começava a suar, simplesmente, as africanas o perceberiam e transmitiriam a "ordem" de ataque. Minha cabeça e mãos se achavam ao descoberto, não devia esquecê-lo. As 20.000 ou 30.000 abelhas, uma vez recebido a "mensagem", cairiam sobre mim de forma maciça, selecionando, em primeiro lugar, as áreas com movimento; quer dizer, olhos, braços, mãos, etc. E implacáveis, cada vez mais excitadas, tratariam de injetar os aguilhões. Esse era outro momento decisivo. Embora me achava virtualmente blindado, o pânico podia passar fatura... Nem sequer dispunha de um ahumador. A fumaça, espesso e frio, introduzido na câmara de cria, tivesse provocado o desalojamento do barril. As abelhas, desconcertadas, reagem sempre ante estes imprevistos com um movimento reflito: lançamse sobre as reservas de mel e se abarrotam, fugindo a seguir. Observei fugazmente ao Anunciador. Podia improvisar um ahumador com parte de minha túnica. Bastava umedecendo a malha, lhe prender fogo e aproximá-lo do orifício de entrada à colméia. Desisti. Nem tinha como prender a suposta lha, nem Yehohanan o tivesse permitido. Suas abelhas, como veremos, eram sagradas... Seguia imutável, a dois ou três passos deste decomposto explorador. Inspirei profundamente e levei a mão esquerda sobre a rústica coberta de madeira que fechava o barril. E se me negava de novo? Ficavam umas duas horas de luz. Dispunha do tempo suficiente para me refugiar no bosque do "perfume" e, inclusive, chegar a Salem. Que classe de jogo se trazia entre mãos? Que fazia eu naquele lugar? Meu coração estava muito longe... Não entendia, mas, como digo, algo singular e alheio me mantinha detento daquele homem. Tudo tinha seu porquê. Agora é fácil de compreender.
A idéia era singela. Tentaria-o com a "vara do Moisés". Yehohanan, como supunha, emprestou atenção a minha mão esquerda, imaginando que me dispunha a descobrir a colméia. Sim e não. Aproveitei esses segundos de distração para graduar a escala de um dos pregos de cabeça de cobre, que ativava o dispositivo dos ultra-sons. Meus olhos seguiram fixos na tampa do tonel. A manobra passou desapercebida para o gigante, cada vez mais interessado naquela mão, aparentemente firme e serena. Prolonguei a espera uns segundos mais. Era importante. Se tudo saía bem, o fator surpresa jogaria a meu favor... E os ultra-sons foram fixados na escala de 18.000 Herz, com uma velocidade de propagação de 1.000 a 1.600 metros por segundo. Estimei-o suficiente para meu objetivo. Não se tratava de danificar ao enxame. Como mencionei, os cabelos ou sedas das antenas destes prodigiosos insetos fazem de "ouvidos". É através de ditos órgãos como captam as vibrações. Para isso, a abelha tem que estar em contato direto com um sólido que, a sua vez, transmita essas vibrações. Pois bem, essa era minha intenção: as assustar com os ultra-sons. Ao captar este tipo de ondas mecânicas, lançadas diretamente sobre os favos, as africanas -supus- registrariam os ultra-sons e entrariam em alerta, descendendo para a câmara de cria. Enquanto devoravam o mel compulsivo memore, quem isto escreve teria tempo de extrair um favo e enclausurar de novo a colméia. Aparentemente, tudo singelo... Yehohanan arrojou a tigela e o saco a seus pés e, sem deixar de me olhar, acariciou o punho da seca. Senti um calafrio. Aquela atitude eu não gostei. Era o momento. Os dedos se fecharam sobre o laço de esparto que coroava a coberta do barril e atirei dela muito lentamente. A mão direita estava preparada. Ambas as ações deviam ser quase simultâneas. Ao descobrir a colméia pulsei o prego e entrou em funcionamento o "cilindro" dos ultra-sons, conservando uma longitude de onda superior a 8.000 armstrong. Isso, como já indiquei, fazia invisível o chamado "tubo" ou "cilindro" que
encarcerava o fluxo ultra-sônico. Não necessitei as "crótalos". Os favos estavam à vista. A operação, além disso, era breve. Tinha que sê-lo, necessariamente... Um intenso aroma de geraniol me fez suspeitar que a colméia se achava quase ao completo. Provavelmente, mais de 30.000 abelhas. Examinei os favos. Eram de "exposição quente"; quer dizer, distribuídos em paralelo em relação a piquera. Assim se obtinha uma dobro vantagem. O interior ficava protegido do ar e dos intrusos, e o mel, ao ser mais quente a zona superior, armazenava-se com mais abundância nas celas hexagonais de dito extremo. Não me equivoquei. As africanas perceberam as vibrações e se precipitaram para a câmara de cria, abarrotando-se de mel. Isso as calmaria, momentaneamente. O Anunciador, lógicamente alheio à manipulação, viu-me extrair um dos favos. A velhice os havia em enegrecido. Apareciam repletos de mel. A colméia podia dispor nesses momentos de dois ou três quilogramas, mais que suficiente para o resto do "inverno", aceitando que a floração pudesse decair em dita estação. Apesar da precisão dos ultra-sons, algumas abelhas, surpreendidas sobre as casas de abelha da rústica lâmina de cera virgem, seguiram obstinadas ao favo. Os aguilhões não demorariam para aparecer. Tinha que atuar com precisão e rapidez. Olhei ao Yehohanan. Os dedos já não acariciavam a adaga. Agora se aferravam ao punho. Não vi seu rosto. Continuava na sombra. Meu suposto valor não tinha passado desapercebido para o das sete tranças... E me concentrei na última fase, possivelmente a mais delicada. Tinha que limpar o favo dos cachos de adansonii que não tinham descendido ao fundo do barril. Não eram muitas. Possivelmente meio centenar. E fiz o único que me ocorreu. Desviei a "vara do Moisés" para as adan e projetei os ultra-sons sobre as nervosas abelhas. Imediatamente, perturbadas, empreenderam o vôo, liberando o favo. Apressei-me a deixá-lo em terra e fechei o barril. Missão cumprida... Missão cumprida? As feromonas de alerta se dispararam e as agressivas africanas zumbiram a meu redor, com toda a razão do mundo.
Foi visto e não visto. As abelhas, excitadas, caíram sobre quem isto escreve, enredando-se no cabelo e na desordenada barba. Faltaram-me mãos para aplaudir e tentar desprender às atacantes. Mas quem foi o instigador? E recebi o justo castigo a minha insolência. Percebi os primeiros estiletes no couro cabeludo, no pescoço e no rosto. E uma dor aguda apareceu ao momento. Como já referi, ao cravar os aguilhões, as abelhas abrem as glândulas de defesa e as feromonas se transmitem de umas a outras. Se a colméia ou o enxame está perto, o resultado pode ser catastrófico. Milhares de abelhas caem sobre o intruso. Milhares de aguilhões... E me comportei ao reverso do que se deve fazer em é tosse casos. Gritei assustado. Bracejei, golpeei a destro e sinistro e pisoteei a vários dos insetos. Reconheço-o. Perdi o controle. O cajado rodou pelo chão e, presa da ardente dor, incapaz de sair daquele atoleiro, deixei-me levar pelo instinto. Saltei ao arroio e me inundei nas águas. E ali permaneci comprido momento, até que conjurei o perigo e recuperei um mínimo de sangue-frio. A dor ficou mitigado, mas não assim a reação cutânea, com os correspondentes inchaços. Foi difícil extrair os aguilhões e o líquido urticante do veneno se difundiu pelas malhas em um reflexo automático. Nesses instantes não dispunha de nenhum remédio. A farmácia de campanha, com os antihistamínicos, tinha ficado na casa do Abá Saúl, na aldeia de Salem. E tive que jogar mão da água, do barro, das cebolas que me proporcionaram os felah do bosque do "perfume" e de minha própria urina. Durante algum tempo, meu aspecto foi lamentável... Mas não tudo foi negativo. Yehohanan ficou satisfeito. Nenhum de seus discípulos se atreveu jamais a descobrir a colméia ambulante e, muito menos, a extrair os favos. Simplesmente, estava maravilhado. O enxame, nisso tinha razão, tinha-me respeitado. Segundo suas palavras, "só alguém muito especial, meio doido pelo Santo, podia tentar uma coisa assim". Do comportamento final, e do punhado de africanas que se lançou sobre mim, não disse nada. Para o que não lhe
interessava era especialmente esquecido... Quando retornei à borda, mais dolorido pelo aparente fracasso que pelos aguilhões, o Anunciador se achava em pleno vazamento do favo. Seca-a lhe servia para a perfuração das casas de abelha. Possivelmente me equivoquei. Possivelmente me precipitei ao interpretar mal a adaga em seu cinto. Possivelmente não... Observou meu maltratado rosto mas não fez o menor comentário. Foi enchendo a tigela com a densa e alaranjada mel e, uma vez concluída a operação, retornou junto à colméia e depositou a alta em seu lugar. Depois voltou a sentar-se. Introduziu os dedos da mão direita na terrina e se levou o mel aos grossos e sensuais lábios. Vi-o lamber-se, absorto e feliz. A hora da comida era um dos escassos momentos nos que se sentia alegre e agradado. Entretanto, jamais ria. Não me ofereceu. Sentei-me frente a ele e dava boa conta das nozes. Foi então, ao ver como devorava o mel, quando tive a idéia. Não quis me precipitar. Tinha que maturá-la. Supostamente, havia tempo... Quem isto escreve sim lhe tendeu algumas das tenras drupas. Quase me arrebatou isso das mãos e, em silêncio, deixou cair o talith sobre os ombros. O sol se escondia entre as taças das nogueiras. Só então descobria o rosto. E o olhar de falcão, agressiva, sempre acusadora, interrogou-me sem palavras. Esgotada-a luz do entardecer iluminou as cicatrizes em forma de mariposa e machucou as "pupilas" vermelhas. Piscou inseguro e voltou a cobrir-se com o "xale" de cabelo humano. Senti lástima. Aquele homem não era normal, nem o seria nunca... -Como é que não lhe dão medo? Pergunta-a me surpreendeu. E me pôs em guarda. -Elas -matizou, ao tempo que assinalava a colméia-. Sabe que trabalham para mim? Recordava-o. Yehohanan o anunciou no vau das "Colunas", ao nos dar de presente uma terrina de mel de lavanda. Foi nessas circunstâncias quando me "batizou" com o apelido do Esrin" ou "Vinte", seu arauto ou discípulo número vinte. Naqueles momentos não compreendi, e agora tampouco... E improvisei, inventando algumas aventuras no país do Rub ao Jali, ao norte do atual Yemen. Ali, no wadi Hadramawt, célebre por seus
apicultores nômades, aprendi quanto conhecia sobre abelhas. Isso lhe disse e, embora não sabia de que parte do mundo lhe falava, suponho que me acreditou. É mais: ao começar a relatar alguns detalhes sobre as características e a vida "social" destes insetos, Yehohanan deixou de comer. Retirou de novo o manto amarelo e escutou cativado, com uma curiosidade quase infantil. E o nistagmo dos olhos (oscilação do globo ocular em sentido vertical, provocada por espasmos involuntários dos músculos motores) fez-se mais acusado. Tinha-o apanhado. Ao princípio não reparei no que estava acontecendo. Depois, conforme avancei nas singelas, quase pueris, explicações sobre as abelhas, comecei a intuir que o Destino acabava de abrir uma interessante "porta"... Posso assegurar que não deixei passar a oportunidade. E durante quatro dias lhe falei de abelhas, com uma condição que aceitou imediatamente e, acredito, sem dobra. Alternaríamos a informação. Quem isto escreve lhe brindaria seus conhecimentos sobre os referidos insetos e ele, a sua vez, responderia a minhas perguntas. Foi assim, inesperadamente, como tive acesso a seu coração ou, ao menos, a uma parte do mesmo. E consegui limpar algumas das incógnitas que não soube resolver o bom do Abner, seu segundo no grupo de seguidores. Eu o tinha ouvido em público. Tinha uma certa segurança sobre seus ideais. Sabia o que opinava do Mesías judeu, mas eram esses seus pensamentos mais íntimos? Esta, como digo, era uma ocasião única. Não a desperdiçaria. A questão era como formular as dúvidas... E o deixei nas soube mãos do Destino. Algo me ocorreria e ocorreria... Agora entendo por que segui seus passos até a garganta do "Firán". Tinha que conhecê-lo melhor, muito melhor, sobre tudo pelo que aconteceria algum tempo depois. Mas não adiantemos os acontecimentos. Necessariamente, esta história deve ser contada passo a passo, até que, em ocasiões, esquilo em desejos de suprimir determinados sucessos e avançar; avançar para Ele. O hipotético leitor destas memórias saberá me desculpar...
Ao amanhecer, Yehohanan abandonava sua cova, a que eu denominava "cova dois", e se introduzia no arroio. Não saudava. Jamais o fazia. Quem isto escreve espiava seus movimentos da penumbra da "um", em que eu pernoitava. Elevava os braços e recitava a "prece", as dezenove Semoneh esreh, a oração obrigada a todo judeu varão e major de idade. -Deus grande!... Poderoso!... Terrível! A voz, rota, fazia avivar às colônias de aves, que fugiam atordoadas para as taças do bosque do "perfume". O tom, sempre idêntico, era de submissão e de temor. ... Você faz viver aos mortos!...  nos perdoe por que pecamos!...  Proclama nossa liberação com a grande trompetista e alta uma bandeira para reunir a todos nossos dispersos! ...  Que não haja esperança para os delatores...! Às vezes, terminadas as Semoneh, continuava com outros textos bíblicos, recitados como uma súplica ao justiceiro Yavé. Um de seus preferidos pertencia ao profeta Samuel: -O Santo dá morte e vida!... Faz baixar ao seol. (inferno) e retornar!... O enriquece e despoja!... O abate e elogia! Assim permanecia horas, imóvel e trovejando aos céus. E os maus perecerão nas trevas! Só uma vez lhe ouvi proclamar um texto que não acertei a identificar. Dizia, mais ou menos: -OH Deus, nos limpe do pecado!... Vai a mostrar sua glória!... Insígnia nos seu amor!... Deixa que seu Sekinah (Presença Divina) santifique meu coração!... E me faça teu, uma vez mais! Foi, como digo, uma das poucas vezes que ouvi a palavra "amor" em seus lábios. Não seria a única surpresa nesses dias... Assim rezava Yehohanan. Sua atitude e disposição para o Yavé, sempre cruel e vingativo, não guardavam relação alguma com as que nos tinha ensinado o Mestre. Jesus nunca rezava daquelas maneiras, nem tampouco nesse tom. No tempo que o Destino me permitiu viver a seu lado, jamais lhe ouvi uma só invocação dos textos bíblicos. Quando rezava, o fazia quase sempre em privado e improvisava, estabelecendo um diálogo com "o Ab-BA seu Pai. "A oração -dizia Jesus- deve ser uma manifestação íntima.
É uma piscada do espírito que só Deus entende... " Cada vez estava mais claro para quem isto escreve. O Anunciador se achava no pólo oposto a meu querido e admirado Jesus do Nazaret. De momento, nada do visto e ouvido me satisfazia. E insisto: não conseguia entender por que a tradição cristã trocou sua imagem. Ou sim o compreendia? Depois se afastava, rio acima, e permanecia escondo entre as árvores. Duas ou três vezes o divisei em metade da corrente. Golpeava as águas com o talith, e tão furiosamente como a primeira vez que o vi. A cada golpe, gritava com desespero: -te abra! Deus santo! Estava convivendo com um iluminado... Quando me cansava, interrompia as observações e me afastava, arroio abaixo, ao encontro dos felah de Salem e Mehola. Ajudava-os e me compensavam com algumas viandas e, sobre tudo, com uma companhia mais regular e agradecida. Nunca imaginei a trascendencia destas esporádicas visitas ao bosque do "perfume". Assim são as coisas... Só uma vez me atrevi a subir à "cova dois". Yehohanan tinha desaparecida águas acima. Tinha tempo para indagar. Revisei o zurrón branco, mas não encontrei nada especial, salvo os colares de conchas marinhas que estava acostumado a pendurar do pescoço. E me detive no verdadeiro objetivo daquela intromissão: o saco negro e pestilento que acariciava com tanta delicadeza. O que escondia? Só tinha que desenredar as cordas. Com um dos extremos era suficiente... Farejei intrigado. A peste era nauseabunda, mas não consegui localizar a origem da mesma. Quase não tinha peso. Apalpei-o. Continha algo rígido. Pensei em algum tipo de pele de animal. Também podia tratar-se de uma vestimenta. Possivelmente algum saq ou taparrabo como o que utilizava habitualmente? Segui com o reconhecimento, cada vez mais intrigado. Em um dos tanteos acreditei identificar uma vara. Era tão larga como o saco; ao redor de um metro. Não o duvidei. Lancei-me sobre as negras cordas e tentei as soltar. Os nervos me traíram... O vulto, apoiado nos joelhos, escapou de entre os dedos e rodou para o pó
que cobria a caverna. Pareceu-me ouvir um ruído... Fiquei paralisado. Se era ele, se tinha retornado de improviso, o que lhe dizia? Como justificava minha presença em sua cova? E nesses momentos de tensão me veio à mente a seca curva e oxidada que levava no cinto de couro. O imprevisível Yehohanan podia utilizá-la contra qualquer. Ou não? Estava exagerando, como conseqüência do súbito medo? Então senti aquele olhar, fixa na nuca. Voltei a me estremecer. Estava alucinando? Reconheci que não atuava corretamente. Tinha aproveitado sua ausência, ou suposta ausência, para invadir sua intimidade e, o que era pior, para registrar seus pertences. O que fora a acontecer o tinha merecido... Esqueci o saco e me voltei para a boca da gruta. Ninguém. Ali só flutuava a luz. Mas eu juraria ter ouvido um rangido... Quanto à sensação, sim, não me equivocava. Alguém me tinha estado olhando. Nessas circunstâncias, o instinto não está acostumado a confundir-se... E perplexo, com os pensamentos em desordem, apareci em exterior. O coração quase se deteve. Ali abaixo, na ribeira, achava-se o Anunciador. Como era possível? Eu o vi caminhar pela corrente, águas acima... Era óbvio que tinha retornado. Pouco importava a razão. A questão era outra. Subiu até a cova e me descobriu no interior? Se foi assim, por que não reagiu? Não era próprio dele. A não ser... E me agarrei à nova possibilidade. A não ser que tivesse permanecido na borda, sem mover-se. Duvidei. Aquele pensamento não me tranqüilizou. Com o Yehohanan nunca se sabia... Instintivamente me escondi. achava-se de costas às covas. cobria-se com o talith, como era habitual a essas horas da manhã. Como digo, permanecia imóvel. de vez em quando girava a cabeça a esquerda e direita, como se procurasse. E voltaram as dúvidas. "Pode que me esteja procurando -pensei, em um mais que duvidoso intento por sossegar minha consciência-. Possivelmente não me tenha visto..." Ao pouco se afastou de novo, remontando o "Firán". Esta vez me
assegurei. E quando o vi perder-se em uma das curvas do arroio, escapei de meu esconderijo e, como um gamo, afastei-me em sentido contrário, para a zona em que faenaban os felah. Ali esperei até a nona hora (as três da tarde). Depois, com o ânimo mais repousado, optei por retornar ao improvisado acampamento. Fazia tempo que me esperava. Isso manifestou à lombriga. Não adivinhei segundas intenções em suas palavras. Não houve alusão ao ocorrido na "cova dois", aceitando que me tivesse visto. Sinceramente, fiquei mais preocupado que antes. Yehohanan tinha extraído a diária ração de mel e, virtualmente, estava concluindo. Sentei-me frente a ele e guardei silêncio, pendente de cada gesto. Durante um comprido momento permaneceu com a cabeça baixa. Os dedos foram e vinham sobre a arpillera do enigmático saco negro. Acariciava-o com mímico. As cordas seguiam atadas e igualmente fétidas. Mas o que guardava naquele envoltório? por que era tão preciosa para o gigante das "pupilas" vermelhas? A partir dessa manhã da terça-feira, 6 de novembro, o saco sempre foi com ele. Nunca o perdia de vista. mais de uma vez estive a ponto de interrogálo sobre o misterioso conteúdo, mas fui prudente e esperei. Não desejava cair em novos enganos. Averiguaria-o ao seu devido tempo. E assim foi... A obsessão do Yehohanan pelo referido saco, justa e sospechosamente desde dia em que tratei de abri-lo, levou-me a deduzir que sim foi testemunha de minha irrupção em seus domínios. Por isso não voltou a abandoná-lo. Sua reação, entretanto, foi fria e calculada. Não podia confiar... -me fale! A ordem chegou "5 x 5" (forte e clara). Era a palavra chave. Era o momento no que me aventurava no mundo das abelhas. Eu falava e ele escutava. Às vezes perguntava. de vez em quando, quem isto escreve também o interrogava e ele replicava, a sua maneira e segundo suas luzes. Como pinjente, foram horas intensas, nas que ambos aprendemos; sobre tudo, eu. Por minha parte, limitei-me a esboçar uma série de "detalhes" que o fascinaram e que, em minha opinião, não alteraram excessivamente seus conhecimentos; um saber não tão limitado, para falar a verdade.
Com a chegada da noite, ambos nos retirávamos à solidão de nossas respectivas covas. Assim foi até aquela trágica sexta-feira, 9 de novembro do ano 25 de nossa era. Trágico? Possivelmente foi pior que isso... Comecei pelo primeiro que me veio ao pensamento. Falei-lhe dos olhos de deborah, a abelha. Eles conheciam sobradamente a distinção entre a rainha, as milhares de operárias e as centenas de péred, como chamavam os parasitas, os únicos machos do enxame. O que não intuíam sequer era a forma dos olhos destas criaturas. E me centrei nos da rainha, lhe explicando que, em realidade, não eram dois, a não ser oito mil; quatro mil, mais ou menos, por cada olho. O nistagmo do Yehohanan se acelerou. Era bom sinal. Estava interessado. Deixou-me falar. Quando estimei que era suficiente, e me dispunha a trocar de assunto, o Anunciador interveio, e proclamou suas muito particulares conclusões: -Assim é o Santo, bendito seja... Não compreendi. Não podia tratar-se de uma brincadeira. Jamais ria ou sorria. Sua mente parecia mutilada para o frívolo e para a difícil arte de "fazer girar as coisas de barriga para baixo", como definia o Mestre o senso de humor. Nisso, Yehohanan também era oposto a sua primo longínquo... -O branco dos olhos do Santo, bendito seja seu nome -esclareceu, solene-, forma quatrocentos mil mundos... Muito mais que o olho de deborah. Torpe de mim, não reagi. E me reafirmei em sua loucura. Treze mil vezes dez mil mundos nascem na cabeça do Santo... E dessa cabeça brota o rocio, como está escrito: "Pois minha cabeça se encheu de rocio"... E esse rocio é luz, a que provém do branco do olho do Santo. Invocava o Cantar dos Cantar. Seu humor era nulo, mas não sua memória. O que lia uma só vez ficava registrado na memória para sempre. Prodigioso. E, sem me propor isso vi-me envolto em outro assunto não menos interessante: o conceito de Deus, segundo Juan ou Yehohanan, conhecido hoje como o Batista e, então, como o Anunciador. Esta vez fui eu o que escutou, perplexo. Para o Yehohanan, o Santo (Yavé) tinha diferentes rostos. Era varão, naturalmente. Segundo o momento, assim era sua cara. Quando partia à
frente dos exércitos era "Seba'ot". Ninguém podia olhá-lo. Seus olhos arrojavam fogo. A ira era sua barba, flutuando ao vento. "Segundo meus feitos me chamo -se refugiou no Êxodo (34, 6)-. Às vezes me chamo "O Sadday", às vezes "Seba'ot", às vezes "Elohim" e às vezes "YHWH". Quando julgo às criaturas chamo "Elohim" [plural majestático Dele" ou Deus]; quando esquecimento os pecados dos homens, "O Sadday", e quando tenho piedade de mim mundo, meu nome é "YHWH", pois "YHWH" é misericordioso, tal como está escrito: "YHWH"... "YHWH"..., Deus clemente." Naquelas definições flutuava o medo. Tudo era castigo, justiça, vingança, e, em definitiva, total e absoluta lonjura. "Ehye aser ehye" (Sou o que sou) tinha terminado por converter-se em sinônimo de "não pergunte". Deus, para aquele homem, como para outros muitos judeus da época do Mestre, era um ser autoritário, ao que não convinha incomodar. Pecar era natural. Indagar e aproximar-se do Santo era pior que pecar. Deus estava onde estava. Convinha não movê-lo. Para o Anunciador, o Santo era um ancião (possivelmente deveria escrevê-lo com maiúscula) que se doía permanentemente pelas misérias humanas. Os pecados do homem eram tantos, e de tal magnitude, que o Ancião esqueceu rir. E continuava sentado em seu trono de fogo, esperando o dia da vingança. Em definitiva, essa era a esperança do Yehohanan: o dia do Eterno, o dia do ajuste de contas. Não perguntei. Não merecia a pena. Estava muito claro. Era a visão apocalíptica que expressava em seus sermões. Seu pensamento -digamos íntimo- era o mesmo. Possivelmente por isso não ria. Se o Ancião não ria, ninguém devia fazê-lo. Assim se expressou, terminante, desprezando aos que manifestavam algum tipo de alegria. "Não sabem -disse-. São ignorantes. Eu sou Dele... " Mostrou a palma da mão esquerda e me ensinou a cicatriz, o "sinal" que o creditava como "consagrado a Deus": "Dele" (em hebreu, literalmente, "Eu, do Eterno"). Acreditei entender, mas não. Yehohanan prosseguiu e anunciou algo que me pôs em alerta.
-Eles me falaram..., no deserto. Não houve mais. Transpassou-me com o olhar e se precipitou em outro de seus acostumados mutismos. "Eles"? A quem se referia? Falava dos trinta meses que passou no deserto do Judá, depois de abandonar a seus amigos, os nazir de No Gedi, na costa ocidental do mar Morto? Esses dois anos e meio eram outro enigma para quem isto escreve. Abner, o homem de confiança do Yehohanan, não quis falar disso. Lembrança que mencionou o deserto existente ao sul da Judea, como "um lugar no que se registraram sucessos extraordinários". Não o tirei daí. Como digo, o pequeno-grande homem foi fiel a seu ídolo ou, simplesmente, não soube esclarecer minhas dúvidas. Aquele era um bom momento para tratar de lhe surrupiar. Tentei-o. Interroguei-o. Acredito que foi contraproducente. Olhou-me com desconfiança e, em silêncio, ficou em pé. Tomou o saco negro e se afastou, subindo pelo talud. Instantes depois se perdia na escuridão da cova dois. Não fui hábil. Resignei-me. Voltaria a tentá-lo. Desejava reconstruir a vida daquele homem, na medida de minhas possibilidades. Intuía que era importante por si mesmo e, especialmente, para compreender melhor o pensamento e as futuras atuações do Filho do Homem. Acertei... Que enorme distancia na hora de conceber a Deus! Para o Mestre, o Santo era "Ab-BA mais que um Pai. Jesus o chamava "papai". Era o amor incondicional, por cima de qualquer outro atributo. Era um amigo... Para o Anunciador era um executor, pendente da grande vingança. O dito: conceitos opostos... E me perguntei por enésima vez: era Yehohanan o precursor do Filho do Homem? Algo não quadrava... Em outra das conversações à beira do "Firán" -não sei se na ordem que estou estabelecendo no presente jornal- surgiu o tema da mulher; todo um "problema" para o Yehohanan, tal e como teria oportunidade de verificar... O assunto arrancou por acaso (?) quando, ao prosseguir com meus ensinos sobre as abelhas, mencionei aos parasitas, os únicos machos da colméia, e
seu trabalho como reprodutores. Os apicultores daquele tempo sabiam também da função sexual de ditos parasitas, embora, como é lógico, desconheciam muitos dos detalhes. E com supremo tato, medindo as palavras e os conceitos, falei-lhe da união, uma vez em sua vida, entre a abelha reina e o macho ou machos que obtinham aparearse com ela no vôo nupcial. Yehohanan o tinha visto na primavera e verão. Sabia do que lhe falava e conhecia também o triste destino dos machos. No inverno, os duzentos ou trezentos parasitas que conseguiam sobreviver eram expulsos ou aniquilados pelas operárias. E Yehohanan fez uma careta de desagrado. Em um primeiro momento a interpretei como um lógico rechaço à desafortunada e injusta morte dos machos. Não foi essa a razão do gesto de repulsa. E, incapaz de conter a raiva, manifestou: -Embora sejam abelhas, é injusto... Aceitei o nobre sentimento. Melhor dizendo, o suposto nobre sentimento. E esclareceu: -É injusto porque o feminino está à esquerda. Deveu perceber minha surpresa e se esvaziou. Em um tom áspero e carregado de ressentimento, Yehohanan expressou o que sentia pelas mulheres. Algo tinha visto nas cerimônias de imersão, quando o aspirante a ingressar no "reino" era uma fêmea. O Anunciador jamais lhes dirigia a palavra. Olhava-as com indiferença ou, o que era mais habitual, nem sequer as olhava... Ao escutá-lo, experimentei de novo aquela profunda tristeza. Yehohanan não era normal. A que se devia sua aversão para o sexo feminino? Para o Anunciador, a mulher era algo negativo porque foi criada a partir de uma das costelas do flanco esquerdo do Adão (!). Tratava-se, em efeito, tal e como suspeitava, de uma muito pessoal interpretação dos textos bíblicos. Os doutores da Lei do Moisés asseguravam que Deus criou os céus com a mão direita e a Terra com a esquerda. Assim aparece na Gênese e assim foi escrito pelo profeta Isaías (48, 13): "Minha mão (seu punham que a esquerda) cimentou a terra e minha mão direita desdobrou os céus; chamei-os e apareceram juntos." Desde aí às mais variopintas elucubraciones só houve um passo. A maioria estimou que céu e Terra
eram uma só coisa e que, lógicamente, havia um lado direito e outro esquerdo. O bom -a terra do Israel, os céus e o Mesías, por exemplo- se achava à direita do Santo. O mau estava à esquerda ou tinha sua origem nela. Um princípio, por certo, que ainda perdura em nosso "agora"... Estas absurdas idéias foram alimentadas pelos sábios, que interpretaram o princípio feminino -o do rigor- sempre à esquerda. E o Anunciador, como digo, elaborou sua própria versão, dando por feito que a Gênese situava à mulher em um plano inferior (à esquerda), no território próprio do negativo, no que se achavam "os ímpios, o inferno e os mornos", segundo suas próprias palavras. A realidade era outra. A Gênese não especifica se a costela foi extraída do lado esquerdo ou direito. É mais: para alguns peritos nas Sagradas Escrituras, essa torcida teoria do Yehohanan tivesse sido motivo de risada e de condenação. "Adão -diziam- foi homem e mulher ao mesmo tempo. Macho e fêmea os criou. Adão teve dois rostos, até que o Eterno, bendito seja seu nome, separou-os." Outra das escolas rabínicas, mais sensata, em minha humilde opinião, defendia que, "embora o varão é mais parecido a Deus", só na união de homem e mulher se conseguia a perfeição. Só então podia falar-se de uma "criatura celestial". Só então -asseguravam-, a Sekinah (Divina Presença) se fazia presente. Só então, na união carnal e benta, fomos dignos do Eterno . Mas o delírio do Anunciador não terminava aí. Um de seus sonhos, por isso deduzi naquelas conversações íntimas, consistia em criar um grupo de trinta e seis "justos", seus discípulos, que formariam o "estado major" do novo "reino" e preparariam a chegada do Mesías, "destruidor de dentes" . Hei fez insistência nos trinta e seis "justos", todos varões... Quase o tinha obtido, a julgar pelo grupo que o escoltava permanentemente. Todos varões... Aquele era outro conceito do Yehohanan, diametralmente oposto ao do Mestre, a quem, supostamente, devia abrir caminho.
Jesus do Nazaret sim elevou à mulher à altura do varão, ganhando com isso a crítica geral. Embora não todos eram tão agressivos e radicais com o sexo feminino, a sociedade judia, como já referi ao longo destas páginas, avaliava às mulheres "como um bem menor, ao que convinha acostumar-se". Era uma sociedade machista, permitida e respirada pelo próprio Deus do Sinaí, caso que Yavé fora Deus... A mulher, em definitiva, na época do Mestre e para os mais rigoristas ou exaltados, era uma criatura inferior e "intrinsecamente perversa". Terei que fugir dela. Este era o pensamento do Yehohanan. Não convém esquecê-lo... Notou meu desagrado e se apressou a justificar-se: -Isto só é revelado aos Santos, aos que fomos autorizados a caminhar pelos atalhos do Eterno, bendito seja... E concluiu, prepotente: Só os Santos caminham sem desviar-se a direita ou esquerda, como está escrito: "Os caminhos do Senhor são do todo retos... Por eles vão os justos, mas os ímpios escorregarão neles." A entrevista era do profeta Oseas, mas o Anunciador, suponho que conscientemente, modificou uma das palavras alterando parte do sentido, de acordo com seu critério. No autêntico versículo 10 do capítulo 14 não se menciona aos ímpios, a não ser aos malvados, que é muito diferente. Ímpios, para o Yehohanan, eram os não judeus. E insistiu, total e absolutamente convencido: -Eu sou santo, Esrin!... Eles sabem. Eles me tratam como a tal... Outra vez "eles". De quem falava? Estava cada vez mais nítido: Yehohanan padecia algum tipo de patologia que desequilibrava sua mente. Era preciso que lhe subministrasse os "nemos", e quanto antes... Não sei por que não me contive. Senti uma raiva surda e subterrânea. Possivelmente foi a lembrança da Ruth. Ela não era inferior, e muito menos perversa. Era quem enchia minha vida, embora fora um amor impossível... Meu querida "MA'ch"! E o ataquei sem piedade: -Se o feminino estiver à esquerda, e é mau, como diz, como explica que em sua colméia só haja um par de centenas de machos e milhares de
abelhas fêmeas? Obviamente, derrubei-o. O não conhecia o porquê dessa lhe esmaguem maioria "feminina" no enxame do que se alimentava, mas compreendeu a mensagem. Meditou um tempo, sem achar uma resposta satisfatória. Era certo. As fêmeas controlavam seu barril ambulante. Então, irritado, torceu o gesto e me amaldiçoou com aqueles olhos perturbadores. Havia tornado a me equivocar. Não convinha desafiá-lo. levantou-se e fez algo que resultaria providencial na hora de afinar o diagnóstico. Tinha que havê-lo suposto... Não demoraria para obscurecer. Acredito recordar que foi o segundo dia de nossa estadia na garganta do Firán. desfez-se do saq e do largo cinto de couro e saltou sobre as águas. Era a primeira vez que o via nu. Não sabia nadar. Observei suas evoluções com curiosidade, sem me atrever a dar um só passo. A meus pés se achava a roupa, suja e fedorento. Quando se cansou de pular e mergulhar-se, retornou à borda e procedeu a uma lenta e meticulosa secagem das tranças. Foi espremendo uma a uma, ao tempo que cantarolava algo sobre sua suposta condição de santo e eleito: "Eu, Dele... Eu, dele..." Foi instintivo e natural. Fixei-me nos órgãos genitais. Ao princípio me surpreendeu... Depois, ao verificá-lo, uma luz me iluminou. E acreditei entender parte de seu misoginia. A repulsa pelas mulheres não obedecia, unicamente, a razões "bíblicas", mais ou menos discutíveis... Ao terminar de espremer as sete tranças loiras, o Anunciador, sem mediar palavra, tomou o taparrabo e o cinto e se colocou em cuclillas, no arroio, iniciando um mais que duvidosa lavagem dos mesmos. Depois os tendeu sobre os tamariscos e retornou junto à colméia. Abriu-a e se serve a habitual ração de mel. Não havia dúvida. Pude contemplá-lo durante comprido momento e desde diferentes ângulos. Yehohanan padecia uma crip torquidia bilateral; quer dizer, a ausência de ambos os testículo. O mais provável é que tivessem ficado detidos no ventre, ou no conduto inguinal, durante o período fetal, ou na infância, na obrigada emigração
para o escroto ou as bolsas nas que mantêm uma temperatura ligeiramente inferior a do corpo, favorecendo assim a maturação. Esta ectopia testicular, ou situação anômala, podia provocar uma degeneração de ditos órgãos e convertê-lo em um homem estéril. Se a atrofia, como suspeitava, era permanente, além da referida esterilidade, Yehohanan se achava sujeito igualmente a algum tipo de impotência. Esta situação sim explicava o rechaço para o sexo feminino, sua frustração pessoal, e o receio, quase odeio, que experimentava para os sacerdotes do Templo de Jerusalém. Como se recordará, o normativo feijão era muito estrito, no que à seleção de sacerdotes se refere. Os candidatos eram investigados minuciosamente. Qualquer anomalia física ou psíquica invalidava ao aspirante. Yehohanan, como filho de sacerdote, tinha direito a herdar sorte profissão. Sua grande altura, entretanto, assim como as restantes características do rosto e, com segurança, a criptorquidia bilateral, eliminaram-no imediatamente. Zacarías, seu pai, como já referi em seu momento, não pôde consagrá-lo a Deus, como ele tivesse desejado, e se consolou com a condição de nazir outra forma de consagração ao Eterno. É possível que o hipotético leitor deste apressado diário não capte, em sua justa medida, a importância que lhe dava naquele tempo a uma constituição física sã, em especial aos testículo. Hoje sabemos que, na reprodução, o homem e a mulher desempenham o mesmo papel. Faz dois mil anos não era assim. Conheciam bem os órgãos genitais externos e também o útero. Sabiam que função desempenhavam o pênis e os testículo, mas o ignoravam virtualmente tudo sobre os ovários. Influenciados pela medicina persa e, muito especialmente, pela que se praticava na cidade egípcia da Alejandría, os judeus representavam o útero segundo o modelo bicorne das vacas. Não tinham consciência da trascendencia do óvulo, nem imaginavam que o ovário, além disso, era o responsável pela fabricação de hormônios, vitais para a mulher . Este desconhecimento mantinha ao sexo feminino em uma nebulosa situação, em que só o papel do varão estava claro. O sêmen, para aquela
gente, era o único responsável pela aparição da vida. O importante é que entrasse no corpo feminino, não importava por que orifício... A deformação do povo em geral, e dos sábios (?) em particular, chegava ao extremo de considerar a menstruação como um "sinal de inferioridade, posta aí, cada vinte e oito dias, pelo próprio Yavé, bendito seja seu nome". Em definitiva, outro capítulo que a degradava e obrigava a desencardir-se. Era compreensível, portanto, que um homem se sentisse frustrado se carecia de um ou dos dois testículo. Para a sociedade, se chegava ou seja o, essa pessoa deixava de ser homem e perdia muitos de seus direitos. Yehohanan sabia e, por isso apreciei, jamais se despia em público. Eu tive sorte. Ou foi o Destino? E, como digo, comecei a intuir o porquê do rechaço do Anunciador para as mulheres. Mas não sabia tudo a respeito deste homem. Em realidade, agora o estava descobrindo... E se intensa e difícil de remediar era sua repulsa pelo sexo feminino, pior, muito pior, era sua atitude para o que estimava "vergonhosa homenagem" com o invasor, com os kittim ou romanos. A submissão do povo e de algumas das castas dos principais à vontade de Roma, a "grande rameira", era o habitante principal de seus pensamentos. Expressava-o sem cessar, em todos seus sermões e conversações privadas, e sem medir o alcance de seus sermões. Nada, nem ninguém, ficava em pé. Todos eram pecadores. Os judeus, por não levantar-se contra Roma, e os invasores como ímpios. Nesta dinâmica, entretanto, havia algo que Yehohanan nunca tirava a luz, simplesmente, porque não lhe interessava. Falamo-lo naquele providencial retiro. Depois, jamais o manifestou em público, nem tampouco a seus íntimos, que eu saiba. Abner o tivesse comentado... Para o Anunciador, como para outros grupos extremistas judeus, a submissão da sagrada terra do Israel aos povos estranhos que encarnava Roma nascia dos pecados. Eram tantos, tão iníquos e tão antigos que provocou um fato singular, nunca visto na história do Israel. A maldade dos próprios judeus pôs em fuga -segundo suas palavras- a Sekinah, a Presença Divina, que residia no "Muito santo" do Templo.
Escutei-o sem intervir, atônito. Essa "presença" -a cara feminina do Santo, segundo Yehohanan-, a que chamou "Matrona", suponho que por considerá-la "esposa de Deus", foi então a mesclar-se entre os pagãos. E ali seguia, "fazendo capitalistas aos ímpios". Esta, segundo ele, era a razão pela que o Israel se achava dominado e pela que desapareceram os profetas. Ao desequilíbrio terei que somar a contradição. Se odiava às mulheres, por que concedia uma parte de feminilidade ao Santo? além de "Matrona" a chamou "Kalah" (Noiva) e "Malkah" (Reina). A não ser que... A idéia me desejou muito tão absurda que a rechacei. Foi por isso, em opinião do Anunciador, "por amarrar aos falsos deuses com incenso, por isso foi expulsa a Sekinah, e agora rodava sem rumo, na escuridão do paganismo" . -Eles -sussurrou, como se temesse que alguém pudesse lhe ouvir- me encomendaram a preparação... Duvidou. Mas, convencido de minha fidelidade, proclamou com orgulho: -Logo te será insone... Você será um dos justos, os que abrirão o caminho ao Mesías..., na recuperação da Sekinah... Os olhos lhe brilharam e, é obvio, incendiaram-me. Começava a entender. A recuperação da Sekinah... meu deus! Achava-me ante um perturbado. Era este o segredo que queria me mostrar? Sim e não. "Eles, outra vez... Tinha que achar o momento e o valor para esclarecer o assunto. Insisti no tema da Sekinah e Yehohanan confirmou o exposto. Não tinha ouvido mau. Acreditava que a Essência do Santo tinha forma de círculo (mais exatamente de "coroa"). Era a que amamentava a Terra, segundo suas palavras. Sempre habitou no Tabernáculo e, depois, quando Salomón construiu o Primeiro Templo, refugiou-se no Santo dos Santos. De ali fazia forte à nação judia. Agora, com a invasão romana, a Sekinah habitava em meio dos ímpios e lhes dava força. Percebi-o em outras oportunidades. O Anunciador desfrutava de uma excelente memória, mas sua cultura era muito limitada. A Sekinah, caso
que existisse, não tinha forma. Em nenhuma tradição oral ou escrita se fala de seu aspecto físico. diz-se, simplesmente, que enchia o "Muito santo". Todos coincidiam: o "Acampamento da Sekinah" permanecia "vazio". Sempre o esteve, à exceção da época em que deu alojamento à arca da Aliança. Pouco a pouco iria me acostumando a estes supostos enganos do gigante das "pupilas" vermelhas. E a absurda idéia que acabava de me visitar se apresentou de novo, viva e com uma desconcertante segurança. Cometia Yehohanan um engano ao dar corpo à Presença Divina? De onde obtinha aquelas informações? Eram conseqüência de sua loucura ou havia algo mais? Melhor dizendo, alguém mais? E a intuição (?) transladou-me à colônia dos nazir, na aldeia de No Gedi, no mar Morto, onde o Anunciador passou parte de sua vida. Foram "eles" quem o iniciou nestes mistérios? por que Yehohanan não falava abertamente? "Eles"?... Sim e não. Devo confessá-lo. Com aquela idéia amanheceu também em minha mente uma enigmática e querida frase. Então não soube as relacionar... "Deus é ela", o estribilho cantado pelo Jesus no estaleiro. Mas a chispada se desvaneceu ante a seguinte "revelação" do Yehohanan. Lástima. Durante um tempo, esqueci o interessante "sussurro" da intuição. Nunca aprenderei... -Eu conheço o Mesías... Levou de novo o dedo indicador esquerdo aos grossos lábios e solicitou silêncio. Encolhi-me de ombros e aguardei. Olhou a esquerda e direita e, baixando o tom da voz, confessou, ao tempo que reforçava as palavras com um movimento afirmativo de cabeça: -Eu o vi... Ao princípio não lhe dava muita importância. Supus que se referia a seu parente longínquo, Jesus do Nazaret. Abner sabia. Yehohanan lhe contou parte da verdade: Jesus era o homem forte, que chegaria depois e encabeçaria os exércitos de liberação. Equivocava-me... "Eles" me mostraram isso... É loiro... O Mesías é loiro, de belos olhos e de agradável presencia... Confundiu-me. Jesus não era loiro. Seus olhos eram espetaculares, sim, e
também sua presença, mas os cabelos eram de cor caramelo, acastañados. Deveu notar minha perplexidade. De quem falava? Outra vez "eles". Se referia aos nazir? Sua cabeça está engalanada com sete coroas de ouro, e seus cabelos, recolhidos em sete tranças... Da surpresa passei à suspeita. Estava falando de si mesmo? Loiro e com sete tranças... Possivelmente seu desequilíbrio era major do que imaginava. O sempre tinha aceito as versões da Isabel e da María, a segunda prima de sua mãe. Ele acreditava nas visitas do "homem luminoso", e nos respectivos anúncios, embora, certamente, em nenhum dessas mensagens do anjo se mencionava ao Mesías ou filho do David. tratava-se de outra conseqüência de sua instabilidade mental? -. . . E seu aroma -prosseguiu, enigmático-, o aroma de meu filho, é como a fragrância de um campo bento pelo Santo, bendito seja... A confusão se multiplicou. Aquelas frases não eram delas. A última era da Gênese (27, 27) e as primeiras, sobre o Mesías loiro, foram proclamadas pelo profeta Samuel. Para ser preciso, Samuel não descrevia ao futuro Mesías, a não ser ao que chegaria a ser o rei David. E tampouco escreveu que fora loiro, a não ser corado (loiro avermelhado), como reza o primeiro livro do Samuel (16, 12). E o interroguei, procurando uma elucidação. De onde tinha tirado que o Mesías recolheria o cabelo em sete tranças loiras? Quem o mostrou e onde? Precipitei-me, uma vez mais. Yehohanan não admitia de terminadas perguntas. Só as que lhe convinham. Não respondeu. Permaneceu ausente, com a vista fixa na corrente do Firán. Depois, ante minha desolação, ex clamou: -me fale...! Senti raiva. Se desejava continuar mergulhando em seu coração, em seu estranho e escuro coração, tinha que me amarrar a seus caprichos. Não tive alternativa e prossegui com as explicações sobre as abelhas. Mas me propus chegar ao fundo daquele novo mistério. Abordaria-o a menor ocasião... Tive dificuldades para esclarecer que seus amigas, as abelhas, não chegavam à colméia com o mel no bucho. Como pude, utilizando símbolos e aproximações, tratei de
lhe fazer ver que o trabalho das laboriosas operárias era mais interessante e digno de admiração do que supunha. Logo esqueceu sua confissão sobre o Mesías. Deborah, a abelha, fascinava-o. E existia toda uma razão, que expor em seu momento. Nunca tinha seguido o rastro de suas abelhas. Por isso ficou desconcertado quando lhe ofereci alguns dados: para encher o bucho de néctar, cada abelha se vê na necessidade de visitar ao redor de mil flores. Em outras palavras, para que o Anunciador pudesse desfrutar de um quilograma de mel, o enxame a seu serviço tinha que efetuar uns cinqüenta mil vôos. E elogiei sua sabedoria por saber estabelecer o assentamento do barril de cores, sempre nas proximidades da água. Não entendeu, naturalmente. E sua vontade ficou definitivamente rendida quando me estendi no capítulo das "comunicações" entre elas. Abriu os olhos, atônito, e perguntou sem cessar... "Falam com as antenas?... Dançam?... Dançam em círculo para indicar a suas companheiras que encontraram flores?..." Em realidade era mais complexo, mas desenhei as danças com a maior simplicidade possível, como se se tratasse de um menino. Em realidade, era-o... E ficou aceso e fascinado, uma vez mais. "Em círculo -murmurou para si-, como a Sekinah..." Não captei a intencionalidade daquele pensamento em voz alta, mas aproveitei o giro na conversação e o fiz retornar ao "Mesías loiro, com os cabelos em sete tranças e o aroma de campo bento". Reagiu bem. Essas eram suas idéias sobre o aspecto físico de que tinha que chegar: loiro, poderoso, valente, de olhar de fogo, de comprimentos cabelos como látegos e uma fragrância que poderia perceber-se a cem estádios (algo mais de 18 quilômetros) (!). Fiquei novamente atônito. Era ele, salvo no detalhe da "fragrância" corporal... Quem isto escreve tinha ouvido seus parlamentos em público, nos que recordava, sem cessar, a iminente chegada do Mesías libertador e "destruidor de dentes". Mas jamais se definiu sobre o perfil do ansiado rei, sacerdote, profeta e guerreiro. Era a primeira vez que se pronunciava a respeito. E intuí, como digo, uma notável
confusão em sua já frágil mente. Sabia que o provável Mesías era Jesus, mas tampouco era sacerdote, nem loiro, nem parecia ter interesse na inauguração do "reino". Por outro lado, Yehohanan, segundo ele, sim desfrutava de muitas destas características, embora nunca poderia ser sacerdote. Conhecia a opinião do Abner e os seus. Não gostavam que falasse desse outro "que estava por chegar". O era o Mesías. Assim acreditavam e, sobre tudo, assim o sentiam. Esta atitude, obviamente, contribuiu a obscurecer suas já borrascosas idéias sobre o Mesías. Para falar a verdade, naquelas datas, novembro do ano 25, o Anunciador se debatia em muito dúvidas. Era ele o libertador do Israel? Tinha que esperar ao Jesus? por que os rasgos de sua primo não se ajustavam aos textos proféticos? Então, entusiasmado, mencionou algo que tampouco incluía em seus sermões ou, ao menos, não tive a oportunidade de ouvir. Quando chegasse a hora, todos, me incluindo a mim, empreenderíamos a busca da Presença Divina. Iniciaríamos a "caça e captura" -assim o expressou- da Sekinah. Era singelo. A Sekinah é circular e se distingue por sua luz e pelas letras Lambam e Bet ("LB") (coração). Não compreendi, mas o deixei falar. Só tínhamos que estar arrependidos e atentos. A busca da Presença Divina arrancaria com uma série de sinais, inconfundíveis, segundo ele. Os mortos ressuscitariam fora da terra do Israel e "rodariam" (?) até a Cidade Santa. Ali recuperariam suas almas, como diz o profeta Ezequiel. Depois, as palavras "emergiriam da escuridão" e os homens, os justos, converteriam-se em sábios. Isto só seria o princípio. Nesses momentos, entretanto, o Mesías não tomaria o mando. O Libertador continuaria escondido no que chamou o "Ninho do Pássaro" e que, francamente, não identifiquei. Yehohanan esclareceu que se tratava de um dos mil palácios, propriedade do Santo... Não fiz comentário. Sua situação mental parecia degradar-se por momentos. Ele estava à corrente do lugar onde residia Jesus, no Nahum. De onde tinha tirado o do "Ninho do Pássaro"? Então, os exércitos de liberação, conduzidos por ele mesmo e seus trinta e
seis "justos", e também pelo Abraham, Isaac e Jacob, empreenderão a luta e a referida busca da Sekinah. E uma coluna de fogo se fará visível a todos os habitantes da Terra. Será outra dos sinais. Ao quarto dia se extinguirá e as nações formarão um pacto contra Israel. E o mundo ficará sumido nas trevas por espaço de outros quinze dias... Não podia acreditá-lo. Yehohanan falava a sério. O que dizia era tão real para ele como para mim o lento circular das águas do arroio. "Será a hora -proclamou, com o olhar perdido no iminente crepúsculo-. O Mesías receberá as dez túnicas da vingança e o Santo, bendito seja, reclamará-o do Trono Supremo... Então, ao vê-lo vestido com a vingança, beijará-o na frente e retumbarão as três centenas noventa céus... E o Santo, bendito seja seu nome, coroará ao Mesías com a diadema que luzia quando derrotou ao faraó no passado do mar Vermelho... É a diadema com os nomes sagrados... " Era suficiente. Preferia falar de abelhas... "...E o Mesías se revelará na Galilea... E nós, os justos, estaremos a sua direita... Compreende, Esrin?" Perfeitamente. E guardei silêncio; um significativo silêncio, que só eu soube interpretar. Aquele era Yehohanan, o Anunciador... Cólera. Vingança. Morte. Colunas de fogo e firmamentos que retumbam... Nada que ver com o pacífico e íntimo Jesus do Nazaret. Não me cansarei de insistir nisso. A história e a tradição não foram fiéis à realidade. Alguém foi extorquido... Resignei-me. Yehohanan se aproximou de outro de seus temas favoritos. Era imparable. E falou e falou, sem lhe importar a escuridão da noite. Não havia lua, nem tampouco uma mísera fogueira. A única luz procedia das estrelas. Ela estava ali, na mais brilhante... "Quero-te, MA'ch." Olhei a meu redor, mas, lógicamente, só percebi sons: o murmúrio plácido da água, entretida, não sei por que, entre pedras e matagais, e o eco das pontuais rapazes noturnas, só adivinhadas nas paredes do Firán. Senti medo. Foi questão de segundos. Virtualmente nada, mas intenso como um relâmpago. Pressenti algo e revisei de novo meu entorno, sem
alcançar a divisar além de três ou quatro metros. de repente, a palavra Eliyá (Elías) devolveu-me ao quase esquecido discurso do Anunciador. Falava de seu ídolo, Elías, o profeta que tinha vivido novecentos anos atrás. Esta, como digo, era outra de suas inclinações prediletas. Qualquer motivo era bom para tirar reluzir a fidelidade e o zelo do solitário e não menos singular tesbita das montanhas do Galaad, algo mais ao norte. E emprestei atenção a ambos, ao Yehohanan e ao medo que, sem explicação aparente, acabava de sentar-se a meu lado. Disse havê-lo "descoberto" ao estudar as Escrituras que guardava a colônia nazir de No Gedi. Em uma de suas acostumadas visitas à comuna do mar Morto, quando contava quatorze ou quinze anos, encontrou as passagens que relatavam a história do Eliyá e ficou hipnotizado por sua lâmina, por sua lealdade ao Yavé e por seus prodígios. Foi a época em que começou uma ávida leitura dos textos bíblicos. Impressionou-lhe igualmente Daniel e seu anúncio do "tempo Aquilo fim encaixava, segundo ele, com a mensagem do "homem luminoso" a sua mãe, Isabel, e também a María, a Senhora. Ali estava. Era o final de Roma, e dos ímpios, e a ressurreição do Israel ao mais alto. Também a misteriosa concepção do Samuel, similar à sua , deixou-o perplexo e reafirmou sua crença: ele era um eleito. Recordava de cor muitos das passagens destes profetas da antigüidade e, muito especialmente, os cinco últimos capítulos do Isaías e o terceiro (versículo 23) do Malaquías: "Hei aqui que lhes mandarei ao Elías antes de que venha aquele dia grande e terrível do Eterno." Este último versículo foi decisivo na hora de alimentar sua loucura. Mas não adiantarei os acontecimentos... Por isso acertei a deduzir daquele monólogo, no que logo que intervim, o impacto do Elías foi tal que, como resultado de uma dessas visitas a seus "irmãos", os nazir, despojou-se das vestimentas habituais e decidiu vestir como seu ídolo, com um simples saq ou taparrabo e um manto de cabelo, como refere o atual segundo livro de Reis (1, 8). Ninguém soube a razão que o moveu a despir-se, nem sequer
sua família. Era a primeira vez que o confessava. Queria ser como Elías... Ardia em zelo pelo Yavé. Era dele, Dele. Era um santo e um vidente. Era o arauto que abriria o atalho antes desse dia grande e terrível. E compreendi a angústia da Isabel e do Zacarías, seus pais, ao vê-lo perambular pelas colinas próximas ao "Manancial da Vinha", quase nu e como um "selvagem". Sua patologia, efetivamente, remontava-se a muito tempo atrás. Só alguém desequilibrado se mostrava com uma vestimenta própria das cavernas... "Queria ser como Elías... " Como fui tão néscio? de repente o vi com claridade. Como não o adivinhei? Era por isso -porque imitava ao profeta do Tisbé pelo que se dirigia aos pássaros, e lhes falava, e pelo que se passava as horas trasvasando farinha de uma cántara a outra? Era a demência a que o impulsionava a golpear as águas dos rios, como fizesse Elías com seu manto? As suspeitas se fortaleceram. Achava-me ante um louco... E recordei as cenas no bosque das acácias, no vau das "Colunas" , e ali mesmo, no Firán, em metade da corrente, quando golpeava as águas com fúria e gritava com desespero: "te abra!" Queria ser como Elías, ou algo mais? O velho profeta, desaparecido (?), como já mencionei, depois de ser arrebatado por um "carro de fogo" (?) nas proximidades do rio Jordão, era uma parte importante no conjunto da expectativa messiânica feijão. Embora existiam diferentes opiniões, segundo as escolas rabínicas , o papel mais destacado, e no que coincidiam os peritos na Lei, era o de "anunciador" do "reino"; "anunciador" da nova ordem política-social- religioso, com o Israel à cabeça da glória e do mundo. Elías, o Anunciador! Nesses momentos, ao cair na conta do que se agitava na turbulenta mente do Yehohanan, fui eu o que roçou a loucura. Meu ânimo se desabou. Senti como as forças, uma vez mais, como acontecesse o passado 1 de novembro, em Salem, fugiam de mim. Mas o abatimento, supostamente provocado pelo achado daquela
triste realidade, esfumou-se aos poucos minutos, e recuperei o fôlego... O Destino estava avisando. Permaneci comprido momento observando-o e meditando. Tinha que lhe subministrar os "nemos". Era preciso sair da angustiosa duvida. Até onde chegava seu desequilíbrio mental? Que classe de transtorno o dominava? Tratava de imitar ao Elías, unicamente? Também imitava ao Sansón. O penteado, em sete tranças, era uma cópia do mítico personagem, desenhado no livro dos Juizes. Além disso, seus discípulos o assinalavam como o autêntico Mesías. E Yehohanan duvidava do Jesus... Era sufocante. A confusão do Anunciador me alcançou de pleno. E minha mente desvairou também... Era Yehohanan o novo Elías, redivivo? Tinha ressuscitado e tomado o aspecto do gigante de dois metros de altura? Não era possível. Ninguém retorna da morte. Mas que estupidez estava pensando? Lázaro, o amigo do Jesus, foi devolvido à vida; disso estava seguro. E o que dizer das aparições do Mestre, depois de sua morte? Eu fui testemunha de exceção de algumas... Estava-me voltando louco? Procurei refúgio nas estrelas... Capella, Aur, Markab... Todas me devolveram uma piscada. Ela estava ali, seguro... OH, MA'ch! Então recordo que fiquei em branco. Ouvia a voz rouca do Yehohanan, mas não entendia... Assustei-me. Não soube que fazia ali, na ribeira de um rio. Quem era a pessoa que me falava? por que o fazia em uma língua tão estranha? Foi muito rápido. Ao ponto, recuperei o controle. Suava copiosamente... E tentei me serenar. O que tinha ocorrido? Supus que o cansaço... "Sim -me disse-, isso foi. Fiquei-me dormido." Segundo aviso. E retomei o fio de meus recentes pensamentos, enquanto suportava a ardorosa conversa do Yehohanan, em que repetia, uma e outra vez, "a gloriosa missão do Elías como preparador do dia grande e terrível".
Elías redivivo ou assombração? Não devia expô-lo. Não era lógico, desde nenhum ponto de vista. Os judeus não acreditavam na reencarnação, tal e como interpretamos hoje o velho conceito nascido na Índia. Segundo cada grupo ou seita, assim acreditavam, ou não, em um julgamento final e na ressurreição da carne. Os saduceos, por exemplo, negavam essa ressurreição última. Quanto ao povo singelo, a maior parte se achava resignada ao que parecia evidente: depois do beijo do anjo da morte não há nada. A ruach, ou sopro da vida, retornava com o Eterno e o corpo, ou hachar, convertia-se em pó. Quanto à inteligência humana, alguns asseguravam que entrava no seol, uma "região de trevas e de silêncio", segundo Job e os Salmos; um lugar tão remoto "que nem sequer a cólera do Yavé podia alcançá-lo ". Era o mundo das refaim, ou sombras. Quer dizer, o mundo de um nada", contrário à existência. As sombras não faziam nem diziam nada. O seol era tão inexplicável que nem sequer benzia a Deus. Não era uma condenação, mas tampouco uma recompensa. Outros defendiam o seol como um "devorador de ímpios", uma espécie de inferno, segundo Henoc, no que os anjos jogavam nos malvados -em corpo e alma- e no que se consumiam em um fogo que não necessitava lenha. Se, pelo contrário, o defunto era honrado, o anjo proclamava: "Preparem um lugar para este justo." Esse lugar era o Paraíso, também chamado "seio do Abraham"; um lugar igualmente remoto, perdido entre os sete céus, ao que só tinham acesso os judeus puros e, em conseqüência, justos (!). Em soma: a opinião da sociedade judia daquele tempo se achava dividida. Atreveriame a dizer que, além de dividida, confusa. Suspeitavam que tinha que existir um seol no que se fizesse justiça. Necessitavam também algum tipo de Paraíso. A esperança era o único que ficava. E, depois do exílio em Babilônia, a crença na ressurreição dos mortos foi crescendo, mercê a discursos como os do Isaías e Daniel . Foi o Mestre, ao longo de sua vida de predicación, quem contribuiu com luz a este confuso panorama: "Há vida depois da morte, mas não como imaginamos; existe a esperança, mas é muito mais
do que supomos. . . " Nós o ouvimos de seus próprios lábios, durante a inesquecível estadia nas neves do Hermón , e voltaríamos a ouvi-lo. Por mais voltas que lhe dava, não conseguia entender as insinuações do Yehohanan. Elías desapareceu, quase novecentos anos antes. Se o Anunciador, como o resto de seus patrícios, não acreditava na reencarnação, a que se referia quando falava de um Elías redivivo? Além disso, eles mesmos, os judeus, defendiam que o profeta foi arrebatado aos céus, e que ali continuava. O dito: uma loucura... de repente, percebi um silêncio. Os ruídos noturnos da garganta do Firán se extinguiram, como se alguém tivesse dado uma ordem... Que ridicularia! E por que as rapazes e os insetos tinham que obedecer ao mesmo tempo? Obedecer? A quem? Ali não havia ninguém... Também Yehohanan interrompeu seu perorata. Aquilo sim me alarmou. E emprestei maior atenção a quanto me rodeava. Só adivinhei matagais nas paredes e na ribeira. A escuridão, compacta, agitava-se em minha imaginação, criando figuras irreais que foram e vinham, fugidias. Ou não era minha mente? Precisava dormir. Aquele homem e aquele lugar me estavam transtornando... -Silêncio!-murmurou o Anunciador-. ouviste...? O que tinha que ouvir? Agucei os sentidos e repassei a maldita negrume. Foi então quando "ouvi" algo impossível: o murmúrio da corrente, sempre de guarda, sempre discreto e em segundo plano, tinha cessado. Não podia acreditá-lo! O rio estava ali! por que não ouvia o acostumado e lógico rumor de suas águas? OH, Deus, estava-me voltando louco! Levantei o rosto para o firmamento, não sei se implorando clemência. As estrelas nem me olharam... -São eles! -proclamou entre dentes-. ouviste?...  São eles!...  tornaram! Expressou-o com tal segurança que, instintivamente, girei a cabeça a um e outro lado e tentei localizar aos intrusos. Eles?
As "sombras" (?) correram velozes entre os tamariscos. Mas que sombras? Ali só havia silêncio e trevas. Minto: silêncio, trevas e medo. Foi então quando comecei a senti-lo... Alarguei o braço e me aferrei à "vara do Moisés". Pensei nos felah do bosque do "perfume". Não, os recolhedores de nozes retornavam cada dia a Salem e Mehola. Bandidos? Tampouco tinha sentido. Tivessem atacado de dia. Só fomos dois "loucos" indefesos... Os bandidos, além disso, segundo minha notícias, achavam-se mais ao este. E que malfeitor era capaz de silenciar um arroio e às milhares de aves e insetos que colonizavam a garganta? Não soube reagir com frieza. E o medo, como digo, sentou-se a meu lado. Ao. princípio, timidamente. Depois, conforme rodaram os minutos, mediume e me golpeou... A partir desses instantes, tudo foi singular e difícil de ordenar, ao menos em meus pensamentos, a ponto de naufragar. Comecei a experimentar um doce e inexorável sonho, parecido ao que me abordou a primeira noite, na cova um. Fiz esforços para me manter acordado. Interroguei ao Yehohanan e o animei a que me proporcionasse alguma pista sobre os indivíduos (?) que, supostamente, " tinham retornado". "Eles" -perguntei----, onde estão? Quais são? A resposta foi fulminante. ficou em pé e, sem mediar palavra, saltou em direção ao talud. Suponho que subiu pelos esporões de terra, desaparecendo em seu refúgio. E digo que suponho porque nem sequer ouvi os passos... achava-se na cova dois quando aconteceu o que aconteceu? Melhor dizendo, quando imagino que aconteceu o que aconteceu? Ignoro-o, sinceramente, embora tudo foi possível naquele manicômio... E ali permaneci, sentado, com a vara entre as mãos, e em companhia do novo "visitante", o medo. Não sei quanto pôde prolongar o silêncio. Para mim resultou eterno. Olhava a meu redor, mas era inútil. A escuridão se retorcia e me fazia ver o que, sem dúvida, só habitava em meu cérebro; em meu esgotado cérebro. Comecei a dar cabeçadas. O medo, de vez em vez, tocava em meu ombro,
e me sobressaltava. Depois, outra vez o sonho demolidor... Possivelmente fossem as onze ou as doze da noite. O que importava a hora? Tampouco estou em condições de assegurar, aos cento por cento, que aquilo fora um sonho. Não foi? Quem sabe... A lembrança, isso sim, é nítido. Ainda me estremeço... Entre cabeçada e cabeçada, sempre sobressaltado, pareceu-me ver algo no negro e repleto firmamento. Eram "luzes"!... Umas "luzes" se deslocavam lentamente, sem pressas! Luzes?, no ano 25? Sim, possivelmente foi um sonho... Contei sete. Todas idênticas, em um branco lua e com uma magnitude que oscilava entre 1,7 e 2,2. Não sei o que aconteceu, mas permaneci atento. As cabeçadas não voltaram. O medo, entretanto, seguiu ali, junto ao rio, burlando-se deste confuso explorador. Pude vê-lo, juro-o. Era outro Jasão, com um sorriso cínico. Não deixava de me observar. Quis esquecê-lo e levantei os olhos para as estrelas. Titilavam rápidas, como assustadas ante a súbita irrupção daquelas estranhas. Mas as estrelas, como eu, eram parte do "sonho" (?) e não estávamos autorizados a fugir. As "luzes" navegavam pela constelação dos Gêmeos. Mantinham uma impecável formação, em "cruz latina". Era fascinante e, ao mesmo tempo, absurdo! Quem voava no primeiro século? E me vieram à memória outros sucessos, relativa mente similares, observados por meu irmão e por quem isto escreve durante o primeiro e segundo "saltos". Na inesquecível noite da Quinta-feira Santa, enquanto o Mestre permanecia no horta do Getsemaní, um objeto se aproximou do monte dos Olivos. Eliseo o captou no radar da nave e eu o vi do olivar no que me ocultava. Aquele objeto era controlado inteligentemente. Fazia estacionário, como um helicóptero. movia-se a grande velocidade e se detinha súbitamente, submetendo a seus pilotos a uma fortísima pressão gravitacional. Inconcebíble para nós! Inconcebível para o ano 30! Em um momento determinado, quando o objeto se deteve coisa de cem metros sobre a clareira no que se
encontrava Jesus do Nazaret, um ser alto e de cabelos brancos apareceu em cena, aproximando-se do Filho do Homem. Horas depois, na sexta-feira, 7 de abril, por volta das 14.05, outro objeto foi registrado igualmente no instrumental do "berço" e observado também por este perplexo explorador, do Gólgota. Aquele disco era enorme e foi interpor se entre o Sol e a Terra, provocando as célebres "trevas". Às 14 horas, 57 minutos e 30 segundos -coincidindo com a morte do Galileo-, a enorme "lua" começou a mover-se e retornou a claridade sobre Jerusalém. Jamais vi uma coisa igual... Em 21 de abril desse mesmo ano 30, de madrugada, quando me achava na borda do yam ou mar do Tiberíades, outra "luz", incompreensível, começou a mover-se na constelação da Hydra. Era um ponto branco, e de uma magnitude 2,2, aproximadamente. Ao cabo de um tempo se deteve na constelação de Câncer e ficou camuflada entre as estrelas. Era o quarto encontro, se não recordava mau, com aqueles misteriosos e "impossíveis" objetos volantes. E não seria o último... As "luzes" seguiram seu vôo e, ao chegar à altura do Wasat, uma das estrelas dos Gêmeos, detiveram-se. Abri a boca, como um perfeito estúpido. Assombroso! E ouvi uma gargalhada. Era o medo. Era o outro... Então, no "sonho" (?), aconteceu algo igualmente "impossível" (?): a primeira "luz", o líder, separou-se do resto e cruzou o negro e branco do firmamento, até situar-se na posição do Betelgeuse, a gigante vermelha do Orión. E ali permaneceu, ocultando-a. Ato seguido, as três "luzes" que formavam o braço curto da cruz, ou patibulum, deslizaram-se sem perder a formação e foram cair" sobre o Alnitak, Alnilam e Mintaka, o cinturão da referida constelação do Orión. A superposição foi simultânea e magnificamente calculada. Percebi umas gotas de suor pelas têmporas. Estava tremendo... Então ressonou de novo a risada daquele diabólico. As três "luzes" restantes se incorporaram também ao belo conjunto do Orión e ocuparam posições, ocultando ao Bellatrix, Saiph e, finalmente, ao Rigel (por esta ordem).
E as vi cintilar. Incrível! Eu também era piloto. A manobra foi de primeira classe... Mas outra vez o rio... Durante alguns segundos, caso que fora capaz de cronometrar o tempo, retornou a meus ouvidos o habitual rumor das águas. E também as confidências das corujas e os cárabos, ocultos na ramagem do bosque. O medo se distanciou, mas só foi uma retirada aparente. Ao pouco, as três "luzes" que tinham ocupado o cinturão do Orión cintilaram em vermelho e começaram a mover-se. separaram-se das estrelas e iniciaram um vertiginoso descida para a garganta em que me achava. O medo retornou... A meio caminho (?) (isso me pareceu), as "luzes" se fundiram em uma e prosseguiram a queda, diretamente para o Firán, e como uma bola branca, cada vez mais enorme. O pânico me abraçou. Acreditei chegada minha hora. A "luz", imensa, aproximou-se e eu fechei os olhos. O cataclismo era iminente. Tudo saltaria pelos ares... Esperei. No "sonho" (?) foi uma eternidade. Não aconteceu nada. Nada? Quando abri os olhos, imediatamente, fechei-os de novo. OH, Deus! E o medo se burlou deste aterrorizado explorador, embora, nesta oportunidade, foi uma risada sem som. Tudo, a meu redor, achava-se novamente "mudo". Só meu coração trovejava... Quis fugir. Impossível. O medo, o outro, retinha-me, e movia a cabeça, recomendando que não o fizesse. Os músculos ficaram imprestáveis. Estava duro. Decidi-me a contemplar de novo aquela "coisa". Era gigantesca. Flutuava imóvel sobre o lugar. Era uma enorme esfera, de um branco radiante. Corrente, arbustos, o bosque do "perfume", tudo a meu redor aparecia iluminado como se fora de dia, com uma luz muito mais intensa e que, para meu desconcerto, não dava sombras. Nada projetava sombra... Deus bendito! O que era aquilo?
A esfera podia achar-se a quinhentos metros sobre a vertical do afluente. Era, simplesmente, majestosa. E no "sonho" (?), quem isto escreve soube (?) que aquele artefato media, exatamente, um quilômetro e oito centenas metros (1.757,9096 metros). Não sei como soube, mas chegou a minha cabeça nítido e terminante. E algo mais: eu tinha visto aquele objeto, mas onde? Nesses momentos não recordei. Quanto ao diâmetro (insisto: 1.757,9096 metros), o que significava? por que a cifra permaneceu, e permanece, em minha memória? Tudo era absurdo e louco. Ou não? O medo, então, soltou-me, mas continuei sentado e, suponho, com a boca aberta. Como descrevê-lo? Foi muito mais que paz. "Algo" me alagou e me tranqüilizou. Agora sei o que foi... E, súbitamente, a luz que não dava sombras, e que o enchia tudo na garganta, extinguiu-se. Ouvi uma espécie de "clang", um som metálico que se prolongou durante segundos. Não soube em que direção olhar... A esfera, ou o que fora, continuou em meu vertical, sem oscilação nem sacudida de cabeça. Estava deslumbrado, e não só pela intensa radiação emitida pela gigantesca "lua". Se era evidente que a formidável massa se sustentava no ar, e impecavelmente, quase como uma pluma, como o conseguia? Onde se achavam os motores? Qual era o sistema de propulsão e navegação daquele monstro? Além disso da quietude, também recuperei o controle de meus movimentos. Os ouvidos, entretanto, continuaram bloqueados (?). de repente, observei uma chama. Procedia da cova dois em que, supostamente, acabava de refugiar o Anunciador. Não saberia descrevê-lo. Recordou-me um flash. Depois se produziu um segundo e um terceiro brilhos, sempre no interior da gruta. Pu-me em pé. Um flash no ano 25? "Estou enlouquecendo", disse-me no "sonho". Olhei para a esfera branca. Ninguém tinha saído dela. Eu, ao menos, não fui consciente. Mas por que dava por feito que o objeto estava tripulado? O que outra coisa podia pensar? Então, pela boca da cova dois, apareceu "aquilo"...
Não tenho palavras para me aproximar. Em um primeiro momento o identifiquei com uma "névoa". Era tão alta como a entrada do vazio; possivelmente dois metros ou um pouco mais. agitava-se sem cessar, pulsava como um coração, e brilhava! Parecia um ser vivo! " Louco! -insisti-. Definitivamente, louco! " Era amarela, mas, no interior, os "batimentos do coração", centenas de "batimentos do coração" simultâneos, cintilavam em vermelho. Sei, não é fácil descrever um pesadelo. Ou não era tal? "Aquilo" permaneceu brevemente na entrada da cova. Temi pelo Yehohanan... Depois se deixou cair pela parede rochosa, lambendo os esporões e os rodas de pessoas de tamariscos. Senti como os cabelos se arrepiavam... A "névoa", lentamente, sem deixar de pulsar, alcançou a ribeira do Firán e se dirigiu para quem isto escreve. Dava um passo atrás... Foi estranho. O medo se fez presente de novo, mas "algo" o manteve a raia. E a paz me deu a mão. Então, no "sonho" (?), ouvi uma voz. Soou no interior de minha cabeça, e disse: "Mau'AK, não tema!"        Mau'AK significava "arauto" ou "mensageiro" em aramaico. Não o fiz. Não retrocedi. A "névoa" continuou para mim. Eu sabia que "ela" sabia de minha presença. Mas me mantive firme, agarrado à vara. Nem sequer pensei em me defender. Não tivesse podido... Elevei a vista para a cova dois. achava-se às escuras. O extremo da "névoa", como o final de uma larga e grosa serpente, tinha abandonado a gruta e se agitava pela parede da garganta. E a "cabeça" da criatura (?) situou-se frente a quem isto escreve. deteve-se. Eu sei que me observou. meu deus!... O que era aquilo? Um ser vivo? Vi-o pulsar entre chamas vermelhas, breves e silenciosos. Era mais alta que eu. De havê-lo querido, tivesse-me engolido... "não tema!" A voz, esta vez, procedia da esfera luminosa que permanecia estática e majestosa sobre o rio. E o eco se propagou no silêncio...
" Mau'AK!.. . " Ou foi em minha cabeça? Deus bendito! Estava sonhando? Ainda não sei... A "névoa" se aproximou um pouco mais. Quase me roçou. De ter estendido o braço, houvesse-a meio doido a prazer. Não me atrevi. Era como uma nuvem densa. Em realidade, a cor amarela o proporcionava uma infinidade de pontos (?) luminosos, similares às gotas em suspensão que caracterizam a uma névoa normal. Fantástico! Pontos luminosos vivos? por que soube que aqueles milhões de minúsculos corpos brilhantes formavam uma "inteligência"? Simplesmente, soube. Depois de nos explorar mutuamente, a "névoa" seguiu para o arroio e se introduziu nas águas. E ao ponto, junto à borda, brotou uma coluna de "vapor" (?), como se algo incandescente tivesse entrado em contato com a corrente. Estremecime. Eu estive a ponto de introduzir um braço no interior daquele "ser"... A coluna se elevou e permaneceu branca e ativa, fervendo, até que a "criatura" terminou de inundar-se no Firán. Voltei a olhar para a cova do Yehohanan. Silêncio. Nem rastro do Anunciador... A "névoa" desapareceu e também a coluna de "vapor". Então ouvi novamente aquele som metálico e elevei a vista. O branco da esfera trocou a uma vermelha cereja e começou a elevar-se. Em um abrir e fechar de olhos, voou para o Orión. E eu permaneci absorto, e desconcertado, procurando entre os cachos de estrelas. Tudo recuperou o ritmo habitual. Tudo soou "5 x 5". Mas o "sonho" não tinha concluído... Enquanto tentava não perder o vertiginoso vôo da "luz" vermelha, agora do tamanho de uma estrela, algo começou a mover-se na escuridão do céu, justamente no setor que tinha ocupado a esfera. Também brilhava. Pareciam fios, mas não... Descendiam ritmicamente, balançando-se com uma certa cadência, como as folhas mortas. Corri e entrei no arroio. A curiosidade me pôde. Eu sabia -não sei como- que "aquilo" procedia do objeto que acabava de "separar". E sabia também que era importante, tanto para mim como para o
hipotético leitor deste jornal... Havia-os a centenas. Eram frágeis. Nada mais tocar as águas, desfaziam-se como pompas de sabão. Maravilhoso! Alguns caíram sobre meus ombros e braços. Outros se enredaram na cabeça e roçaram o peito e as pernas. Não havia dúvida. Eram letras e números, em hebreu e aramaico! Apareciam engastados, como os elos de uma cadeia! Eram como o cristal, mas não era cristal! Maravilhoso! Abri as Palmas das mãos e deixei que se posassem nelas. Os que acertaram às tocar não se volatilizaram, como os outros. Ali permaneceram, brilhantes, até que médio consegui retê-los na memória. Depois desapareciam, misteriosamente. Os grupos de letras que foram depositar se em minhas mãos compunham palavras. Isso o recordo muito bem. E com elas, vários números. Estes, infelizmente, não ficaram ancorados tão solidamente em meu cérebro. Isto é o que "vi" no "sonho" (por esta ordem): "OMEGA 141"... "PRODÍGIO 226"... "BELSA'SSAR 126"... "DESTINO 101"... "ELISA E 682)>... "MORTE NO NAZARET 329"... "HERMÓN 829"... "ADEUS, ORIÓN 279" e "ESRIN 133". Então só identifiquei três ou quatro nomes: Belga (o persa do "sol" na frente), Eli (Eliseo), Orión (não sei se se referia ao Kesil, nosso fiel servo) e Esrin, eu mesmo. Em relação aos números, nem idéia... Esrin... Vinte! Vinte? Ouvi uma voz rouca e quebrada, muito familiar. -Vinte!... Acordada! Era Yehohanan. Tinha uma terrina de madeira entre as mãos. Custou-me me situar. O que tinha ocorrido? Olhei a meu redor. Continuava junto ao Firán. Estava amanhecendo. Mas... -Isto te aliviará... O Anunciador deixou a tigela sobre o terreno e deu meia volta, afastandose para a corrente. Carregava o saco negro e pestilento, como sempre. Mas e a esfera resplandecente? Eu vi a "névoa" e as letras e números que caíram do céu...
Tinha-o sonhado? Tratei de me incorporar e o obtive com dificuldade. Sentia-me esgotado, sem forças, como já aconteceu na aldeia de Salem. Supus que o pesadelo (?) não me permitiu descansar. Nesses momentos não imaginei o perto que estava do desastre... Yehohanan se voltou e, assinalando para cima com o dedo indicador esquerdo, gritou: -Eles tornaram! Depois, de acordo com seu costume, procedeu à recitação da prece. E ali permaneceu, em metade do arroio, de costas. por que falava deles"? Se referia aos que pilotavam os objetos? Nesse caso não podia tratar-se de um sonho... Não quis aprofundar no assunto. Minha cabeça estava a ponto de estalar. Foi então quando senti aquela dor intensa e tenaz no pescoço, ombros, peito e coxas. E foi também nesses primeiros momentos da quinta-feira, 8 de novembro, quando reparei em uma espécie de assobio longínquo e ininterrupto que nascia (?) em minha cabeça. Ouvia-o perfeitamente. Mas, alertado pela dor, esqueci, momentaneamente, o som em questão. Examinei a túnica. Nos ombros, peito e na zona das pernas descobri vários e pequenos orifícios. O linho, aparentemente, tinha sido queimado (!). Segui inspecionando e comprovei, perplexo, que a dor se devia a outras tantas queimaduras, muito reduzidas e, em princípio, de primeiro grau. Não consegui entender... Aquelas manchas vermelhas na pele... Como tinha sofrido sortes queimaduras? Não tinha lembrança. A não ser que... Não, isso era impossível. Isso foi um sonho... E o "pesadelo" retornou à memória, no momento em que vi cair os brilhantes números e letras... OH, Deus! Somei oito ou dez marcas, todas muito superficiais, sem ampolas, e nos lugares nos que toparam os referidos e enigmáticos símbolos hebreus e aramaicos. Fui queimado em um "sonho"? Aquilo, tivesse a origem que tivesse, significava, além disso, que o amparo permanente -a "pele de serpente"- tinha falhado. Como era possível? A segunda epiderme,
como mencionei em outras oportunidades, era um sistema de segurança de provada eficácia. Só uma vez resultou inoperante, e também em circunstâncias extraordinárias: durante a novena aparição do Mestre, depois de sua morte, em 9 de abril do ano 30, na planta superior da casa do Elías Marcos, em Jerusalém. Naquela ocasião, em uma estadia fechada, quem isto escreve experimentou uma sensação "impossível": uma brisa geada, como um milhão de agulhas... . A "pele de serpente" não serve. Nunca soubemos o que foi o que fracassou. Os judeus tinham um nome para este tipo de ensoñación, mais próximo à realidade que aos sonhos. Chamavam-no hélem ou "visão", como já referi ao falar do Zacarías, o pai do Yehohanan. Não era real, mas tampouco irreal... Agora, já não estou seguro de nada. Sonhei ou acreditei que sonhava? A dor me avivou e me devolveu à crua realidade. Algo ou alguém me tinha produzido um rosário de queimaduras. Não era grave. A dor, justamente, me fazia ver que as terminações nervosas não sofreram dano. Um segundo ou terceiro grau sim tivesse sido preocupe-se. O Anunciador concluiu suas recitações e caminhou águas acima, como era habitual nele. E fiz quão único estava em minha mão. Procurei a frescura do arroio e evitei assim a propagação das lesões. Era desconcertante... As queimaduras eram autênticas! Mas então... O frio me acalmou. Depois, mais sereno, com o ânimo certamente recuperado, retornei junto à tigela, obséquio do Yehohanan. E caí na conta das palavras pronunciadas pelo gigante das sete tranças: "Isto te aliviará." Como soube? Como sabia das queimaduras? Yehohanan, verdadeiramente, era um personagem fora do comum. Melei as queimaduras com o mel e, depois de tomar o café da manhã o que ficava na terrina, dediquei uns minutos a pensar em minha situação. Sentime bem. O abatimento experiente aquele amanhecer se dissipou. Atribuí-o à deliciosa e nutritiva ração de mel. Cem gramas, por exemplo, equivalem a um filete de boi ou a cinco ovos... E o Destino, suponho, sorriu zombador.
Se a memória não falhava, encontrava-me em na quinta-feira, 8 de novembro. Prometi ao Eliseo que retornaria em um mês. Faltavam três semanas. Tinha averiguado o essencial sobre o Anunciador. Só me subtraía lhe subministrar os "nemos". Depois, já veríamos... Sentia falta da meu amigo, Jesus do Nazaret. Não o postergaria. Essa mesma noite ativaria os "nemos". Ao dia seguinte, se Yehohanan não me tinha mostrado seu segredo (?), despediria-me e voltaria para Salem, junto ao ancião Saúl. Em algo acertei: Yehohanan me fez partícipe de seu "segredo", e eu retornei à aldeia, mas não como imaginava... E, reconfortado, decidi visitar meus amigos, os felah do bosque do "perfume". Foi uma providencial decisão... " Seja'ah" ("Tempo curto") obsequiou-me com algumas amadurecidas e maçãs, amém das habituais nozes. Ao me despedir, o generoso e afável camponês perguntou "se tudo ia bem". Algo deveu notar. Algo viu em meu semblante. E eu, mais torpe que nunca, não emprestei atenção às premonitorias palavras do homem que sempre corria. Ao retornar à garganta, recebi outra surpresa. O Anunciador, imprevisível, estava-me esperando. achava-se sentado ao pé da cova um, talher com o talith ou manto de cabelo humano, como sempre, e com o saco negro no regaço. Acariciava-o com ambas as mãos. Não saudou. Não fez alusão às queimaduras. Simplesmente, começou a falar. Imaginei que se dirigia a quem isto escreve. O rosto se achava na sombra. Não pude ver os olhos. Aquela era outra das atitudes habituais no Anunciador: falava com a vista fixa em qualquer parte, menos em seu interlocutor. Sentei-me ao lado, sem conceder maior importância a seus desplantes. Estava acostumado. E me limitei para ouvir. Ao princípio, o tom de voz foi tão baixo que tive problemas para averiguar de que diabos falava. O discurso soava a cantilena, monótona e repetitiva. Pensei que rezava, embora jamais o vi recitar as preces naquela posição. Sempre orava de pé e, a ser possível, em metade de um lago ou de um rio. equivocou-se em uma pronúncia. Jogou marcha atrás, e iniciou de novo o
discurso. Assim foi cada vez que se equivocava, ou que ele estimava que uma palavra não era entoada na forma conveniente. Honestamente, interpretei-o como outra manifestação de seu desequilíbrio. Ao pouco, depois de um par de repetições, acreditei saber a que se referia. Yehohanan contava a história de um raz ou mistério que ele mesmo, ao parecer, tinha protagonizado. Segui-o com interesse durante um momento. Depois, convencido de sua demência, não fiz muito caso. tratava-se de outro de seus delírios? Agora, depois de ter sido testemunha do que fui, arrependo-me. Tinha que lhe haver emprestado mais atenção... Mas as coisas são como são e não como quiséssemos. Isto é o que lembrança do monólogo, ordenado cronologicamente: Aconteceu -segundo Yehohanan- no inverno do ano 22, no mês de kisléu (novembro-dezembro), quando se encontrava no leito que chamou Ze'elim (provável mente entre a meseta de Casa de campo e o oásis de No Gedi, na costa ocidental do mar Morto). Segundo meus cálculos, e de acordo ao lido nas "memórias" do Abtier, foi em agosto desse mesmo ano quando o Anunciador, depois da morte de sua mãe, Isabel, decidiu retirar-se ao mais profundo do deserto do Judá. Doou as ovelhas à comunidade nazir da citada aldeia de No Gedi e começou a maturar um plano de "conquista do reino". Tinha vinte e oito anos. Foi no referido wadi ou leito seco do Ze'elim, a coisa de três quilômetros ao norte de Casa de campo, e a uns dezoito da comuna nazir, no mais abrupto e calcinado do deserto, onde o futuro Anunciador foi testemunha do primeiro raz: uma série de "fogos inteligentes" que, segundo a cantilena, foram e vinham durante as noites. Recordou-me as histórias que circularam entre os vizinhos do "Manancial da Vinha", o povo natal do Yehohanan, pouco antes de seu nascimento. Naquele tempo, umas esferas luminosas (?), pequenas e velozes, aterrorizaram a homens e animais. Entravam e saíam das casas, atravessando, inclusive, os muros. Em opinião de muitos, foi um sinal. Algo estava a ponto de ocorrer; algo "divino", possivelmente uma catástrofe. E os sábios e doutores da Lei fizeram hitpa (profetizaram),
proporcionando toda sorte de vaticínios; uma dessas profecias foi o iminente nascimento do Mesías... Yehohanan chamou as luzes "almas mortas" (nefes metah). Não tentei perguntar. Não o teria mimado. É mais: não me tivesse ouvido. tratava-se de outra superstição, ao estilo das "sombras" que habitavam o seol . Para outros, as "luzes ou fogos viventes" eram a encarnação do Lilit, um dos piores demônios; é obvio, de natureza feminina. Escutei versões para todos os gostos. A mais estendida assegurava que Lilit se vingava dos humanos sugando o sangue dos animais e fazendo desaparecer aos meninos. Aquelas "luzes", se não entendi mau, permaneceram nas proximidades do Yehohanan durante o tempo que viveu em solidão, no chamado deserto do Judá; um lugar inóspito, logo que visitado por pastores e bandidos, e que teria ocasião de percorrer em seu momento. E recordei a alusão do Abner, o lugar-tenente do Anunciador, a determinados sucessos, que qualificou de "extraordinários", e que, ao parecer, registraram-se nos dois anos e meio de permanência nos pedregales e barrancos do Judá. Comecei a duvidar. Observou "fogos inteligentes" durante trinta meses? Aquilo não tinha nem pés nem cabeça... Depois, baixando de novo o tom de voz, exclamou: -Eles me visitaram! E o interesse se reavivou em quem isto escreve. Outra vez "eles". A que se referia? por que o repetia com tanta freqüência? Tinha-o mencionado essa mesma manhã, antes de entrar no arroio: " Eles tornaram!" Como pude ser tão torpe? Como é possível que, depois do vivido, não alcançasse a compreender? Yehohanan continuou com a recitação, virtualmente sussurrando. Começou a narrar outro sucesso, tão inverossímil como os anteriores, que exigia o máximo respeito, ao menos aos muito religiosos. O Anunciador estava falando dos pára ou merkavah ("carros volantes", como o que se levou ao Elías aos céus, segundo o chamado segundo
livro dos Reis, 2, 11). Tanto esta visão, a do profeta Elías, como as do Ezequiel, nas que também se descrevem diferentes encontros com pára eram estimadas pelos doutores da Lei como a máxima expressão da Divindade. Os merkavah eram os "carros" ao serviço do Yavé. Neles se transladavam os anjos e, inclusive, o muito mesmo Santo (!). Com os "carros de fogo" se deslocavam pelos sete céus e tinham acesso ao Trono de Glória, a sede de Deus. Por isso, ao falar do tema, faziam-no em voz baixa, com a cabeça coberta e só frente a uma ou duas pessoas, não mais. Assim o fez o ancião Abá Saúl, quando me deu sua versão sobre o desaparecimento do Maiki Sedeq ou Melquisedec. "Carros volantes"! Eu os tinha visto, mas não aceitei o relato do Anunciador. Desvairava...? Os merkavah (os judeus muito ortodoxos o escreviam com maiúscula) apresentaram-se também no wadi do Ze'elim e nos leitos do Mishmar e Hever, algo mais ao norte, entre No Gedi e Casa de campo. Eram pequenos e grandes, capazes de posar-se em terra (tebel) ou de permanecer, imóveis, no alto (o que chamou samáyin ou "céu"). Chegaram a plena luz, e na noite. Eram rápidos, como o raio. Quando se afastavam -seguiu proclamando Yehohanan-, "ia com eles a areia do deserto". Muitas ovelhas foram achadas mortas e seus companheiros, os pastores que migravam Judá, à busca de pastos de inverno, fugiram horrorizados. Alguns levantaram postes, com cintas vermelhas, em um intento de espantar às "almas mortas", as "luzes" que voavam com os "carros". -Eles me chamaram, mas não me aproximei... Yehohanan se referiu a "vozes celestiales" (utilizou a expressão bath kol) que soavam em sua cabeça e que, segundo ele, procediam dos merkavah. Observei-o com cepticismo. Naquelas jornadas, no Firán, fazia alusão a vozes estranhas; que só ele ouvia, em repetidas ocasiões. por que lhe acreditar? As "vozes" -insistiu- o chamavam por seu nome: "Yehohanan". E acrescentavam: "Grande e terrível." Era a voz do Santo ou de seus mensageiros. O Anunciador estava absolutamente convencido. Era um "sinal". Da morte
dos últimos profetas, fazia séculos, ninguém tinha recebido um bath kol. O era o novo profeta, ao igual a Elías, Haggai, Zacarías e Malaquías. E proclamou: -"Eu sou Elías!" Então -prosseguiu-, as "vozes" se fizeram visíveis e se transformaram em setenta luzes resplandecentes que voaram em silencio sobre sua cabeça. Foi a consagração como profeta do Santo. E cada "luz" lhe perguntou: "Aceita a Lei e ao Santo, bendito seja?" Yehohanan disse que sim e as "luzes" o beijaram nos lábios, uma atrás de outra, "como está escrito: que me beije com os beijos de sua boca!". O que tinha que ver aquele versículo do Cantar dos Cantar (1, 2) com tudo aquilo? Fiz um esforço e guardei silêncio. Pouco faltou para que me levantasse e o deixasse com sua louca recitação. Mas ele me salvou duas vezes. Era o mínimo que podia fazer... -E eles me reclamaram... Foi estranho. Possivelmente uma coincidência... Ou não? Ao pronunciar a palavra "eles", o zumbido, longínquo e ininterrupto, que se tinha instalado em minha cabeça como resultado da aproximação da gigantesca esfera, fez-se mais próximo. Eu diria que mais claro e acusado. Deixou-me atônito. Pôde prolongar uns segundos, não muitos. Depois voltou a suavizar-se, afastou-se", e permaneceu em um segundo plano. Enquanto Yehohanan se referia às hayyot, este perplexo explorador tentou racionalizar o porquê do assobio. A simples vista parecia um acúfeno, um ruído típico que padece muita gente, e que, em geral, está ocasionado por algum transtorno no próprio corpo humano. E digo que me deixou desconcertado porque, em princípio, quem isto escreve não sofria de anemia, obstruções ou lesões nos ouvidos, problemas cardíacos ou de hipertensão ou arteriosclerose. A não ser que tivesse algo que ver mal que nos afligia e que, segundo todos os indícios, tinha sua origem nos investimentos de massa. Foi outra advertência do Destino? Deus santo, achava a um passado do desastre! E o Anunciador, em sua loucura (?), continuou com o assunto das hayyot...
Hayyot? Como era possível? Aquele homem tinha perdido o julgamento... Hayyot era um término utilizado para referir-se a quão viventes são descritos pelo Ezequiel e que, ao parecer, lhe apresentaram no rio Kebar por volta do ano 593 ou 592 antes de Cristo. Tinham aspecto humano, mas com quatro caras e quatro asas cada um. Para os sábios do tempo do Jesus, as hayyot eram outra representação do Eterno; uma das mais santas, e em que os iniciados no saber esotérico "liam", inclusive, medida-las antropomórficas do Yavé. Yehohanan errou na pronúncia do término hebreu hayyot e iniciou a seqüência. Não tinha ouvido mau. -Eles me visitaram!... Reclamaram-me! O Anunciador repetiu a descrição dos seres que viu Ezequiel nas cercanias do Kebar, o rio ou canal que existia na cidade babilônica do Nippur. Supus que conhecia o texto e que, em sua loucura, limitava-se a fazê-lo seu. Seres não humanos no deserto do Judá? Criaturas de quatro caras? Rodas que voam? Vozes celestiales que o chamavam por seu nome? Almas mortas que foram e vinham sobre os areais? Carros volantes que matavam ovelhas e aterrorizavam aos pastores? Yavé, em pessoa, entre fogo e nuvens de pó? Senti lástima... E o homem das "pupilas" vermelhas falou e falou. Mencionou outros "anjos". Todos o visitaram. Sabia seus nomes: setenta e dois, disse. Tahariel, Qadomiel, o malvado Samael, Padael, Uriel e outros que, francamente, não retive. Aquilo era uma loucura... Descreveu os "palácios" do Santo, além dos sete céus e das sete moradas dos anjos. Disse ter sido arrebatado, como Henoc, e transportado em um "carro de fogo" até a muito mesmo presencia do Eleito (o Mesías). Foi então quando soube que era loiro, de belos olhos e de agradável presencia. -Eles me mostraram -repetiu isso-. Eu conheço o Mesías!... Sua morada está sob as plumas do Senhor dos espíritos... É um Barnasa! (Filho de homem)... E todos os justos e escolhidos brilhavam ante ele como luzes ardentes! Yehohanan seguia apropriando-se de entrevistas e textos que não eram deles. As últimas palavras eram do primeiro livro do Henoc (36, 6-7). A
recitação começava a me aborrecer... E recordei outras afirmações do Anunciador, lançadas no domingo, 30 de setembro, quando se achava no vau das "Colunas": -Eu também vi o rosto do Santo!... Eu vi sua cara e sigo vivo! referia-se, sem dúvida, a estes sucessos "extraordinários", registrados, segundo ele, no deserto do Judá. Confundia o rosto das hayyot com o do Yavé? Mas o que estava pensando? Não devia emprestar excessiva atenção. Yehohanan estava alucinando... Ou não? -. . . E me mostraram mesmo -continuou-, em um dos palácios radiantes... Era eu, antes de nascer! Flutuava na água sagrada e me vi sete vezes... Disse-o com tanta segurança que, por um momento, fiquei desconcertado. viu-se si mesmo, no interior de um dos "carros", e em sete momentos distintos de sua gestação? Eu também me estava voltando louco... Depois falou do "sinal" que mostrava na palma da mão esquerda: "Eu, do Eterno", uma sorte de "tatuagem", gravado a fogo, e que creditava o zelo do Anunciador pelo Yavé. Surpreendeu-me de novo. Disse que foi obra das hayyot. E citou ao Isaías: "O tira ordem a seu exército de merkavah (carros volantes) e chama a todos por seu nome. . . " Deus bendito! E foi uma dessas hayyot ou "viventes" -prosseguiu sem alterá-la que lhe proporcionou o barril de cores. Abner falou do interesse do Yehohanan pelas abelhas, nascido, justamente, durante sua estadia no deserto, mas jamais mencionou que a colméia ambulante lhe tivesse sido entregue pelo Santo ou por seus "anjos" (!). Aquilo era igualmente absurdo. A colméia, em minha opinião, não tinha nada de particular. -E o homem-abelha -acrescentou- pôs em minhas mãos o grande secreto do Santo, bendito seja seu nome... Aí cessou a recitação. E acariciou de novo o saco negro que sustentava no regaço. Homem-abelha? Do que falava? A suposta e enésima fantasia do Anunciador ficou relegada a um segundo
término quando repetiu a expressão "grande secreto do Santo", e com especial ênfase. Quase soletrou as palavras. O sol se precipitava já sobre o bosque do "perfume". Faltava algo menos de uma hora para o crepúsculo. O Segredo! A intuição nunca se equivoca. Naquele tiro embetunado e pestilento guardava "algo" de especial valor para ele. " Vamos! ordenou-me junto à árvore da cabeleira, nos lagos do Enaván, poucos dias antes-. Te mostrarei meu segredo." E eu, hipnotizado, fui atrás dele... Yehohanan retirou o talith e me buscou com o olhar. As "pupilas" de fogo me brocaram. Não soube o que fazer, nem o que dizer. É obvio que desejava averiguar a que secreto se referia. Naquele personagem, tudo era possível. E esperei. Não devia me impacientar. Se me equivocava, Yehohanan podia trocar de critério e desaparecer na cova dois. Aquela era a última noite na garganta do Firán. Assim o tinha planejado. Na hora do jantar, se tudo partia a meu favor, subministraria-lhe os "nemos". Seguiu acariciando o saco com ambas as mãos... Tentei adivinhar seus pensamentos. Impossível. Yehohanan, insisto, não era um homem como outros. -O que agora vais ver -proclamou, ao fim- é a vontade do Santo, bendito seja... Guardou silêncio e esperou, suponho, uma resposta. Assenti com a cabeça. Foi o único que me ocorreu. Então começou a desatar um dos extremos da arpillera. Fez-o devagar, recreando-se. de repente se deteve, e clamou, como se o tivesse esquecido: -Você é Esrin...! Você é Vinte!... Ele te pôs em meu caminho para que lhe advirta! Recorda-o! A quem tinha que advertir? Sobre o que? Uma vez aberto, introduziu a mão esquerda no saco e fez presa no conteúdo. Aguardei espectador. E o assobio no interior de minha cabeça se fez mais intenso. Supus que o nível de audição se elevou, como conseqüência do silêncio lhe reinem... Mas, ante minha surpresa, retirou a mão do saco, e voltou a cobrir-se com o "xale" de cabelo humano.
Temi que se arrependeu. Que engano cometi esta vez? -Lhe mostrarei -explicou isso-, mas antes, cumpre com o ritual. te desencarda! E assinalou as águas do arroio. A que ritual se referia? por que devia me desencardir? Repetiu o gesto e endureceu o semblante. Não perguntei. Estava claro que, se desejava contemplar o "segredo" do Anunciador, tinha que me submeter a sua vontade. Os judeus acostumavam a desencardir-se antes do jantar do shabbat, depois das curas e do ato sexual e ao longo de determinadas festas. Conforme as retorcidas leis mosaicas, havia centenas de ocasiões nas que homem e mulher contraíam impureza (pecado). Isso significava, além de satisfazer um dinheiro ao Templo, um obrigado banho, a ser possível na miqvé ou piscina ritual mais próxima (um banho pelo que também abonavam uma quantidade). Não era meu caso. Nem sequer era judeu. Yehohanan sabia. Sinceramente, não compreendi, mas obedeci. Introduzi-me na corrente e deixei que as águas me "desencardissem". O que era o que queria me mostrar? por que 1e outorgava um caráter sagrado? O me tinha posto em seu caminho? Imaginei que falava do Yavé... Para advertir ao Jesus do Nazaret? Yehohanan suspeitava, ou sabia, que este explorador voltaria a vê-lo, mas o que tinha que ver a advertência com o conteúdo do maldito saco? por que devia recordá-lo? A água me aliviou e, impaciente, reuni-me de novo com ele. Não retirou o talith. A atitude de reverência, para o que se dispunha a desvelar, aumentou a curiosidade de quem isto escreve e fortaleceu minhas suspeitas: o Anunciador padecia algum tipo de transtorno mental. Acredito que fiquei curto... Extraiu-o lentamente. Depois o levou aos lábios e o beijou. Não fiz um só movimento... Fiquei desconcertado. Era a primeira vez que o via chorar. Foi um pranto silencioso. Algumas lágrimas escorregaram sobre a "mariposa" que cobria as bochechas e se perderam no pó. Contive a respiração e aguardei, certamente sobressaltado. Aquele homem
também tinha sentimentos, embora dificilmente os manifestava. Eu, ao menos, nunca tinha sido testemunha... Desenrolou o megillah e o fez centímetro a centímetro, sem deixar de chorar. Disso se tratava, de um megillah ou cilindro, minuciosamente guardado na arpillera. Parecia um pergaminho, velho e rangente a cada movimento. Um pergaminho? Esse era seu grande secreto? Não posso negá-lo. Senti-me decepcionado. A pele se achava pulcramente atada a uma vara de quase um metro de longitude, sobre a que se enrolava. Aparentemente, a julgar pelo aspecto exterior, não tinha nada de extraordinário e, muito menos, de sagrado. Noen tendia o porquê do xale sobre a cabeça e os ombros e, menos ainda, o porquê das lágrimas. Era uma pele de animal, provavelmente de asno selvagem, preparada à velho uso. Equivocava-me, naturalmente... de repente, tão súbitamente como surgiu, assim cessou o pranto. Voltou a beijar o pergaminho e me mostrou isso. Cometi outro engano. Acreditei que desejava que o tivesse nas mãos e fiz gesto de recebê-lo. O Anunciador o retirou bruscamente e gritou, sem dissimular a cólera: -É santo!... Não pode tocá-lo!... Só eu!... Eu sou Dele!... Eles o puseram em minhas mãos!... Recorda o que viu! Só isso! Recorda o segredo do Eterno e, quando chegar o momento, comunícaselo ao Jesus!... O entenderá! Compreendi, pela metade. O pergaminho em questão, segundo Yehohanan, era de origem divina. Só ele estava autorizado a tocá-lo. E era santo porque foi entregue por uma das hayyot, no interior de um para. ou "carro de fogo" (!). -O homem-abelha -proclamou- o desenhou para mim... Homem-abelha? Um pergaminho sagrado? Fiz-lhe ver que tinha razão e me desculpei por semelhante "estupidez". Não me aproximaria. E me limitei a observar o pergaminho de pele de asno. Então, ante minha perplexidade, o suposto acúfeno se deixou ouvir com mais força. Foram cinco ou dez segundos. O assobio soou "5 x 5" (forte e claro) em meu cérebro.
O que acontecia? Yehohanan deixou que o contemplasse a prazer. Suas mãos tremiam ligeiramente. Era também a primeira vez que o via nervoso. Breve, saberia por que... Pela cara da flor, a melhor cuidada, a pele apresentava o que, a primeira vista, pareceu-me um desenho, mescla de números e letras, em hebreu, a escritura sagrada. Aproximei-me quanto pude, possivelmente ao meio metro, sempre sob a atenta vigilância do Anunciador. Era uma enigmática pintura, a duas cores: vermelho e negro. As letras e os números ressaltavam grandemente na superfície translúcida do pergaminho. Tratarei de descrever o que vi, embora, sinceramente, não alcancei a compreender seu significado. Os símbolos formavam três círculos concêntricos. Outra vez os três círculos! O primeiro, e central, achava-se integrado por uma estrela de seis pontas e uma série de números, em hebreu, que rodeavam sorte estrela. No coração do hexagrama, em uma das variantes do hebreu, lia-se: "Do Eterno" ou "Do Yavé" (também poderia traduzir-se como "Deles" ou "Deles"). Memorizei o que tinha ante mim. O instinto me advertiu. Podia ser importante... "Do Eterno" eram as únicas letras bordadas. Não pude as tocar -não nesses momentos-, mas me pareceu que tinham sido elaboradas com fios de ouro. Eram perfeitas. Brilhavam com os últimos raios do sol. Tomei o número situado a meus "doze" (segundo a linguagem habitual aeronáutica) como referência principal. A partir de dito número, seguindo o movimento das agulhas do relógio, lia-se a seguinte seqüencia: 1 0 4 0 2 0 3 0 2 0 2 0. Os "ceros" foram pintados em vermelho, à exceção do último, que se achava se localizado "a meus onze", que apresentava uma cor negra azeviche, ao igual aos referidos "1 4 2 3 2 2". Salvo a já citada tradução -"Do Eterno"-, o resto, como digo, não significou nada para quem isto escreve. Necessitaria um tempo para compreender que "aquilo" era mais complexo do que parecia...
O segundo "círculo" (?) formava-o uma frase (?), em hebreu, também em negro. Dizia: "Hei aqui que lhes mandarei ao Eliyá antes de que venha aquele dia grande e terrível." Lembrança que tive dificuldades para lê-la porque não estava claro onde arrancava o texto e onde terminava. Era como um "tudo", como uma "roda", sem princípio nem final aparentes. "Eliyá" (Elías) foi uma pista decisiva. O texto pertencia ao versículo 23 do capítulo 3 do Malaquías. Malaquías 3, 23... Uma terceira "circunferência" completava o enigma. Formava-a um grupo de estrelas (ao redor de quarenta ou cinqüenta -nesses momentos não as contei-), em vermelho, como os cinco círculos que rodeavam a estrela central. Eram mais pequenas que a que ocupava o primeiro círculo. Finalmente, do símbolo central (?) partiam cinco largas linhas, em negro, que se projetavam mais à frente do último círculo. Estas linhas eram rematadas por outras estrelas. Essas sim as contei. Somavam oito, idênticas em tamanho e forma às quarenta ou cinqüenta. Foram desenhadas em cor negra. E a intuição me acautelou. "Aquilo", o que fora, não era obra do Yehohanan. Não soube por que, mas soube... "Aquilo", aparentemente, superava a frágil e, em certo modo, infantil mente do Anunciador. Mas teria que esperar um tempo, como dizia, para descobri-lo. Yehohanan, então, deu-me sua versão. O pergaminho, segundo suas luzes, continha o "plano de ataque" do Eterno, o dia grande e terrível, o momento da vingança divina... E procedeu a explicar os "detalhes" do desenho: "Do Yavé" partiriam cinco exércitos (as cinco linhas negras que nasciam nas proximidades da estrela de seis pontas). Esses cinco exércitos se reuniriam em Jerusalém, sob as ordens do próprio Yehohanan, do Abraham, do Isaac, do Jacob e, possivelmente, do Moisés. O Anunciador mostrou certas dúvidas. Não sabia se esse quinto exército deveria ser dirigido pelo "Pastor Fiel", como chamou o Moisés, ou por algum de seus discípulos. E me assinalou com o dedo. "Nesse caso -prosseguiu-, se uma das trinta e seis justas manda o quinto exército, Moisés dançará à cabeça dos
142.322 homens (todos judeus, naturalmente) que formarão esse exército de liberação." Fiquei estupefato, uma vez mais. Aquele era seu segredo! E quem isto escreve, ao parecer, formaria parte da "glória do Justo". Por isso me arrastou até seu esconderijo, no Firán. A situação começou a me superar... Mas Yehohanan, entusiasmado, continuou com o "plano": Era preciso reunir aos já citados 142.322 combatentes. O tempo estava próximo. Não podiam descuidar-se. "Elías já estava na Terra." O Mesías também, mas escondido, aguardando sua hora. Era importante coordenar os movimentos. Era vital que Jesus, sua primo longínquo, estivesse à corrente deste plano divino, esboçado pelo Santo. Mas Jesus não respondia aos avisos do Anunciador. Este silêncio o deixava certamente confuso, e duvidava do papel do Galileo como Mesías libertador Eu deveria lhe transladar os desejos do Yehohanan. O Mestre tinha que reunir-se com o Anunciador a maior brevidade. Lhe mostraria o pergaminho da vitória, entregue -insistiu- por uma das hayyot. E por que 142.322? Yehohanan assinalou os números e afirmou, terminante, que isso era o requerido pelo Santo. "Isso era o que se lia ao redor da estrela. " Sim e não. Essa era uma leitura, mas havia outras, dependendo do dígito pelo que se arrancasse... Nesses momentos me veio à memória o Apocalipse. Também ali se fala de uma cifra: 144.000 marcados com o selo de Deus. Desprezei a idéia. O número pontudo pelo Yehohanan era diferente e, além disso, naquelas datas, ano 25, o suposto texto do Juan, o Evangelista, não tinha sido escrito. Os peritos admitem que pôde ser composto ao redor do ano 95, no reinado do Domiciano, ou possivelmente antes, sob o império do Nerón. Yehohanan morreu sem conhecer dito texto. A coincidência (?), entretanto, deixou-me pensativo. É obvio, não me atrevi a lhe contradizer. Depois, segundo a instável mente do Anunciador, os cinco exércitos avançariam vitoriosos, conquistando a terra Santa do Israel. As batalhas
contra os kittim (romanos) e seus aliados, os ímpios, levariam aos justos, primeiro à fronteira de sua nação (o círculo formado pelo versículo do Malaquías), e depois aos limites da Terra (o círculo das estrelas em vermelho). E os justos, com o Yehohanan e os patriarcas à cabeça, jogariam no mar escuro aos malvados e recuperariam a Sekinah ou Divina Presença. Então se apresentaria o Libertador. Faria-o na Galilea. Ali teria lugar seu primeiro milagre... Yehohanan interrompeu o ardoroso discurso e perguntou: -encontra-se tão deprimido como diz Isaías? E sem esperar resposta, recitou os versículos 4 e 5 do capítulo 53 do mencionado Isaías, mas, como sempre, a seu ar: -Porque está escrito: ele está transtornado pelos pecados de seu povo, por nossos crímenes, deprimido por nossos pecados... O carregará também com todas nossas enfermidades... Aguardou, impaciente. Imaginei que se referia ao Jesus do Nazaret. -Não sei -improvisei como pude-, faz tempo que não o vejo... É obvio, Jesus não tinha nada que ver com o Mesías desenhado pelo Isaías. O Mestre, que eu soubesse, não estava transtornado pelos pecados de ninguém, e muito menos deprimido. Isso eram imaginações do Anunciador. Yehohanan não sabia virtualmente nada sobre o Filho do Homem. É mais: como já referi em outras páginas deste apressado jornal, seu conceito de Deus e da missão do Mestre na Terra eram opostos aos do Galileo. Aquele homem tampouco entendeu, embora foi menos responsável que outros... E retornou a sua interpretação do pergaminho. Chamou minha atenção sobre a estrela central e assegurou que, quarenta dias depois da aparição do Mesías, o mundo inteiro ficaria sobressaltado ante a presença nos céus de uma estrela esplendorosa e de múltiplos cores. "Amanhecerá pelo oriente e será atacada por outras estrelas mais pequenas, sempre de sete em sete." Deslizou o dedo para o círculo exterior e acariciou as estrelas em vermelho. Cada dia -disse-, a estrela grande combaterá com sete pequenas. Serão três batalhas ao dia. Da estrela do Santo partirão projéteis de fogo que
aniquilarão aos sete ímpios. Ao anoitecer, cada estrela retornará a sua posição. A grande batalha da Sekinah contra os inimigos do Israel se prolongará durante setenta dias. Depois, o Mesías empreenderá sua campanha "rompendo dentes" e colocando a cada qual em seu lugar... Para tentar entender mínimamente a loucura do gigante das sete tranças é preciso saber que, parte do exposto, obedecia ao conceito judeu sobre o mundo e às múltiplos tradições messiânicas que corriam de seita em seita. Faz dois mil anos, a nação judia acreditava que o Israel era o centro da Terra (Araq ou altar, em aramaico). Não podia ser de outra forma. Assim o tinha disposto Yavé, ao escolher aos hebreus como seu povo. Araq era uma das sete terras existentes no firmamento. O Justo, ao levar a cabo a criação, fez aparecer sete céus, e também sete mundos como o nosso, sete mares, sete rios, sete dias e, enfim, os sete mil anos que -diziam- duraria o mundo. O sete era sagrado e também a setena. A crença geral estimava que Yavé "se sentia cômodo" em tudo o que tivesse relação com o sete. Desde aí à superstição, só havia um passo. Para os judeus, por exemplo, o par trazia má sorte, incluindo os dias da semana (começavam a contar a partir de pôr-do-sol no "shabbat"). Nunca deviam beber-se dois copos de vinho. Sempre menos, ou mais. E o mesmo acontecia na hora de levar a colher ao prato único. Era preciso ter o máximo cuidado, para não coincidir com outro comensal. Soube de gente que suspendeu uma viagem ou um negócio ante uma destas coincidências. Para o Yehohanan, como para a maioria dos judeus, os sete firmamentos se achavam distribuídos como as capas de uma cebola. E cada céu -diziam- se movia "por temor ao Yavé". Todo, nesses firmamentos, como rezam os Pirké Aboth ou "Máximas dos Pais", estava destinado a proclamar a glória do Santo. Tudo se achava nas Escrituras. Daí que a astronomia não funcionasse como uma ciência independente. Nos sete céus -afirmavam- só havia hayyot e pára (anjos e carros de fogo), e se moviam de acordo com a vontade de Deus. Uns eram hayyot de ar, outros de fogo e outros de
água, como está escrito no Salmo 104: "Quem faz a seus anjos de ar, a seus servos de fogo ardente..." Eram céus imensos. Como já mencionei, os sábios não ficavam de acordo sobre as distâncias. Muitos fixavam a longitude de cada firmamento em mais de mil e quinhentos anos de marcha (caminhando, claro está). Para chegar da Terra ao céu mais próximo -diziam- se necessitavam, como mínimo, outros quinhentos anos de caminhada, sem descansos. O que não acertavam a descrever era como caminhar pelo ar... E se refugiavam, obviamente, na potestad dos justos para fazer o prodígio de chegar a cada um dos sete céus (sete céus porque as Sagradas Escrituras utilizam sete términos distintos para a mesma designação). Os ímpios não desfrutavam dessa "virtude de voar". Por isso nunca eram vistos em nenhum dos céus. Assim pensava o Anunciador... Em relação à geografia, nascida também dos livros ou cilindros sagrados, os conhecimentos dos judeus eram igualmente precários e errôneos. A Terra (Araq) era um plano circular, como pretendia Isaías (EXTRA GRANDE, 22), totalmente rodeado de água (assim o refere o Eroub, XXII, b). Yavé presidia esse "disco", como reza o livro dos Provérbios (8, 27): "Quando assentou os céus, ali estava eu, quando riscou um círculo sobre a face do abismo... " Pois bem, esse disco ou plano circular, segundo os eruditos, achava-se dividido em três grandes círculos concêntricos. No central, lógicamente, figurava o Templo e a cidade de Jerusalém. A terra Santa (Israel propriamente dito) era o segundo círculo. EJ subtraio pertencia aos ímpios. E rodeando o disco, água, muita água, um oceano incógnito e tenebroso, habitado por toda sorte de demônios. Esta era a interpretação que Yehohanan tinha dado ao pergaminho de pele de asno: Jerusalém, no centro da estrela de seis pontas; a terra Santa até o segundo círculo, formado pela frase, em hebreu, e, a partir daí, os países dos bárbaros. O versículo 23 do capítulo 3 do Malaquías constituía, para o Anunciador, uma espécie de fronteira com o que chamou abar-naharah ou regiões mais à frente do rio Eufrates,
em Babilônia. Yehohanan se equivocava de novo. Seus conceitos geográficos eram um caos, como sua mente. Para ele, a terra sagrada do Israel era imensa -mais de duas milhões de milhas romanas quadradas- e, algum dia, a não demorar, estenderia-se ao resto do mundo. Essas terras dos ímpios e Israel estavam governadas pela "grande rameira", Roma. Por isso pude deduzir, o Anunciador não sabia muito bem o que era a cultura romana, nem o que pretendia. Ignorava-o virtualmente tudo sobre as dimensões reais do império, e tivesse sido absurdo lhe falar das regiões que integravam o mundo romano naquele tempo. Não sabia, nem lhe importava, o que era a Macedônia, o Ponto, a Mauritania ou a Cyrenaica, entre outros territórios. Roma era a maldade, o invasor e o causador, em definitiva, da ruína do povo eleito. Yehohanan, como outros muitos, não media a paz e a prosperidade que vivia aquele "agora". Roma era a proprietária da Sekinah ou Divina Presença e terei que arrebatar-lhe Era o momento. "A tocha estava na base da árvore." O Santo não podia esperar. O Deus implacável e vingativo do Sinaí reclamava justiça. O e sua gente abririam o atalho. Os cinco exércitos, com os 142.322 guerreiros, empurrariam a Roma ao mar. Era curioso e triste, ao mesmo tempo. O homem das "pupilas" vermelhas e a "mariposa" no rosto jamais viu o mar. Quão único contemplou, relativamente parecido, foi o mar do Sal ou mar Morto. Yehohanan só se moveu em Jerusalém e seus arredores, o deserto do Judá e o vale do Jordão. Não passou daí. Sua cultura era tão limitada como fanática. Estava convencido de que Roma tinha chegado ao final de seus dias. A sorte -dizia- estava arremesso. Obviamente, não era consciente da realidade. Yehohanan vivia um sonho... Mesmo assim, como digo, o pergaminho me deixou intrigado. Os símbolos encerravam muito mais do que apontava o gigante das sete tranças loiras. Foi puro instinto... E aproveitei a anormal loquacidade do Yehohanan, entusiasmado com seu "plano de ataque", para deslizar na conversação outros assuntos que me interessavam. Sutilmente,
interroguei-o a respeito de seus pais, de sua educação, de por que Zacarías não repudiou a sua esposa, estéril, segundo a concepção machista dos judeus, e, enfim, sobre o porquê de sua renúncia à "pensão" estipulada pela Lei, e a que tinha direito como filho de sacerdote. Não esclareceu nenhuma das dúvidas, à exceção da última, sobre os honorários que deixou de perceber. -Eu sou do!... Não necessito desses bastardos do Templo! Mensagem recebida. Então foi ele quem perguntou: -Quando retornará junto ao Jesus?... despojou-se do talith e me observou com severidade. Não soube o que dizer. Era a verdade. -O que viu -prosseguiu, autoritário- é um segredo... Acariciou o punho da seca e continuou, ameaçador: Só ele deve sabê-lo. Ele é o senhor dos círculos... Aquilo despertou minha curiosidade, uma vez mais. Evidentemente, falava do Mestre, mas quis me assegurar. -Quem é o senhor dos círculos? Como sabe isso? Enrolou lentamente o pergaminho e o guardou na capa negra e fedorento. Depois replicou, ao tempo que atava as cordas: -Não o viu?... Isso foi tudo. E imaginei que se referia ao desenho do pergaminho. Memorizei-o. Repassei os números e as letras. Não achei uma resposta satisfatória. Que relação existia entre o Jesus e os três círculos do pergaminho da "vitória"? Deixou-me com a dúvida. ficou em pé e subiu entre os matagais. Depois desapareceu na cova dois. Obscurecia. "Má sorte -me disse-, outra vez será... " Má sorte por partida dobro. Não entendi a alusão ao "senhor dos círculos" e, provavelmente, tinha perdido a oportunidade de lhe subministrar Aquela nemos era a última noite no Firán... Acariciei a pequena bolsa que pendurava do pescoço. Se não descendia da cova, e tomava sua habitual ração de mel junto a quem isto escreve, como o fez nas noites precedentes, não poderia levar a cabo a seguinte operação. Os "nemos" deveriam esperar...
E o deixei nas mãos do Destino. Sabe. Além disso -tentei me tranqüilizar-, possivelmente não era necessário. Podia prescindir dos "nemos". O que convinha saber sobre o Yehohanan já sabia. E o Destino atuou, naturalmente... Centrei-me na frugal janta: nozes, maçãs, amadurecidas e pão negro. Senti falta da cozinha da "casa das flores" e também a boa mão do Jaiá. Não sempre se desfrutava naquela aventura... Estava decidido. Ao dia seguinte, com o alvorada, apresentaria-me em Salem. Depois, Nahum. Os sentia falta de, a todos... Abri as amadurecidas e saboreei o fruto. "Tempo curto" me deu de presente o que chamavam granada "branca", de grãos quase transparentes, muito doces, e granada "zafarí", de grãos quadrados, de um vermelho apagado, e igualmente saborosos. Então se apresentou aquela dor de cabeça, ao princípio distante, como um lobo. Não emprestei muita atenção. As queimaduras eram mais molestas... meu deus! Achava-me ao fio do precipício. Como não o intuí? E o Destino, como digo, foi implacável... O gigante retornou. Vi-o chegar sem o saco negro, com a adaga oxidada ao cinto e a tigela de mel entre as mãos. Era imprevisível. Nunca soube a que atenerme quando se achava perto... Observou as amadurecidas e perguntou: -contaste os grãos? Permaneci em silêncio, perplexo, tratando de resolver o porquê da absurda questão. -Não -repliquei, sem saber quais eram suas intenções-, nunca o faço. Limito-me a comê-los... O sol se despediu, mas cheguei a captar uma careta de arrogância em seu rosto. Seguia sendo o de sempre... -por que teria que contá-los? -insisti, curioso. -Não aprendeste que o Santo, bendito seja, fala com sinais? cobriu-se com o talith de cabelo humano e se introduziu no arroyó. Ali, com as mãos em alto, iniciou a terceira e obrigada recitação das Semoneh esreh, as dezenove preces. Era o final do dia para ele. Depois, supus, tomaria o mel e se retiraria à cova. Era o momento para lhe proporcionar os "nemos". Dispunha do tempo justo para esvaziar a ampollita de barro na terrina de madeira. E assim o fiz.
O Anunciador seguia em metade da corrente, clamando na penumbra como um fantasma, com a vista fixa nos céus. Estou seguro de que não reparou na manobra. Sinais? O que quis dizer? Falava Deus através dos grãos de uma granada? Definitivamente, Yehohanan não estava em seus cabais... E, como um perfeito estúpido, examinei o fruto de uma das granadas. Como podia ser? Deus se comunica mediante assinale? Não entendi, mas fiquei intrigado. Possivelmente os contasse... Não me equivoquei. Yehohanan concluiu a oração e retornou junto a este explorador. sentou-se e, em silêncio, como tinha por costume, introduziu os intermináveis dedos na tigela, capturando uma porção de mel. E a levou a boca, saboreando-a, entre leves gemidos. Era um dos escassos momentos de prazer para o homem das "pupilas" vermelhas. Não sei se o único. Repetiu a operação até quase esgotar o conteúdo da terrina. E se lambeu os dedos, como um menino. Observei-o, nervoso e espectador. Os "nemos" não demorariam para atuar. Devia me preparar... Ao concluir o jantar, o Anunciador repetiu a pergunta: -Contaste-os? Neguei com a cabeça. -Deveria... A fala assim... Ele respira números... Foi o último que disse. Como esperava, o anestésico que acompanhava aos "nemos", uma mescla de suco de nueza (Bryonia dioica) e beladona, atuou rápido. Yehohanan começou a acusar o torpor. Vi-o cabecear. Tratou de combater o sonho, mas foi inútil. Dispus a "vara do Moisés" e aguardei. Aos poucos minutos, o gigante dormia plácida e profundamente, sentado à turca e com a cabeça inclinada sobre o peito. Reclinei-o brandamente na terra e ativei a zona superior do cajado. Os "nemos", aos que já me referi em outro momento desta aventura , foram de grande ajuda nas indagações destes exploradores. tratava-se de uma magnífica obra de engenharia biológica, posta ao serviço da operação, e fundamentada nos descobrimentos do Leland Clark e Guilbaut, da Fundação de Investigação Infantil do Cincinnati e da Universidade de Louisiana, respectivamente. O
primeiro, com seus trabalhos sobre biosensores, e o segundo, ao construir um sistema que podia medir a uréia nos fluidos corporais, mercê a um microelectrodo que era capaz de registrar as mudanças na concentração de íon amônio, permitiram aos laboratórios militares a obtenção dos "nemos", assim batizados em lembrança do legendário capitão Nemo e de suas viagens submarinas. Cada "nemo", por utilizar términos singelos, consiste em uma espécie de "microsensor" (quase um minisubmarino), de trinta nanómetros de tamanho (um nanómetro equivale a milmillonésima parte do metro). Dependendo das necessidades de cada "missão", os "nemos" variavam de tamanho. O habitual eram os já referidos trinta nanómetros (tamanho de um vírus), mas Cavalo da Troia dispunha também de "batalhões" de "nemos", com espessuras de cem nanómetros. Atuavam como "sondas", e também como "corretores", proporcionando toda classe de informação. Eram uma "bênção", no que se refere ao diagnóstico médico, mas também uma arma de dobro fio, muito perigoso. Desde meios da década dos anos cinqüenta, quando Clark inventou o eletrodo que media o oxigênio disolvido no sangue, os laboratórios militares não cessaram que trabalhar para a obtenção de "nemos" que possam destruir a um suposto inimigo. Imagino que o hipotético leitor deste diário adivinhará a que tipo de horrores me estou refiriendo. É por isso pelo que não farei uma descrição detalhada destes assombrosos "robôs orgânicos", capazes de chegar ao último rincão do corpo humano de "fotografá-lo", de transmitir os dados e de destruir ou corrigir todo tipo de células, se assim fora necessário. É mais: dada a periculosidade de sortes máquinas submicroscópicas, em alguns momentos desta narração trocarei intencionadamente conceitos e informações, que não afetam ao propósito essencial. Cada série de "nemos" era programada com antecipação (disso se responsabilizava "Santa Claus"), de acordo com os objetivos. Os "nemos" entravam no organismo através de dois condutos primitivos: pela corrente sangüínea ou por via oral. Sabíamos de uma terceira geração, que penetrava no corpo de homens e animais mercê a dois tipos de radiações. Estes últimos
não foram incluídos no "arsenal" de Cavalo da Troia. Como digo, é fácil imaginar as fascinantes vantagens destas cápsulas moleculares, que podiam ser introduzidas, a milhares, inclusive nos fetos. De acordo com sua natureza, os "nemos" atuavam como exploradores e informadores e também como hábeis "cirurgiões". No jargão, os primeiros foram conhecidos como "nemos frios". Os que se achavam programados para a ação recebiam a qualificação de "quentes". Se se desejava, limpavam artérias ou coágulos; reconheciam as regiões mais inacessíveis, nas que a cirurgia resulta ainda comprometida ou altamente invasora; pulverizavam tumores; corrigiam as alterações imunológicas e, sobre tudo, estavam dotados da técnica necessária para "mergulhar" nas células, transmitindo até cinqüenta mil imagens por segundo. Neste último capítulo, os "nemos", tanto os "frios" como os "quentes", desempenhavam um trabalho admirável, podendo checar o DNA e corrigir os gens defeituosos, inclusive, como dizia, no período fetal. A correção -quase milagrosa- evita o nascimento de meninos com deficiências físicas ou psíquicas (na atualidade se conhecem quatro mil enfermidades de origem hereditária). Infelizmente, esta maravilha da medicina segue em poder dos serviços de Inteligência Militar, empenhados, insisto, em aproveitar sortes técnicas para outros fins menos louváveis... Os "nemos" trabalhavam geralmente mediante "cartografia" do corpo humano. Em ocasiões eram os próprios "nemos frios" os que desdobravam sorte tarefa prévia. Um sistema agasalhado na parte superior da "vara do Moisés" era o responsável por ativar os "batalhões" de "minisubmarinos orgânicos", atuando também como receptor e amplificador das ondas de rádio emitidas pelos "nemos". Em uma primeira fase, a cabeça receptora multiplicava por dez mil a tensão dos impulsos primários, permitindo que os sinais pudessem ser convertidas em formato digital e "trabalhadas" definitivamente pela Santa Claus", o ordenador central. O portador do cajado, e responsável pela posta em marcha dos "nemos", assim como da finalización da manobra, não podia achar-se a mais de dez metros do sujeito a explorar. Este era um dos
inconvenientes, naqueles momentos. Mas soubemos nos ajustar a dita servidão. Dadas as características do Yehohanan, e as dificuldades para "cartografálo" previamente, quem isto escreve, de acordo com o Eliseo, optou pela utilização do que chamávamos squid, um tipo de "nemo frio", muito sensível, programado para localizar determinadas áreas do corpo humano, de acordo com os campos magnéticos gerados por ditos setores. Como é sabido, tanto o cérebro, como o coração, músculos, etc., dispõem de sua própria "força motriz" que, a sua vez, provoca muito pequenos campos magnéticos, cada um com seus rasgos e intensidade próprios. Os squids, com seus dispositivos de interferência quântica, eram capazes de "voar" até ditos campos magnéticos específicos e ancorar-se nas zonas assinaladas, transmitindo ininterrumpidamente durante horas. No caso do Anunciador, os milhares de "nemos" tinham um destino único: o cérebro. Concretamente, o tegmento ventral, no interior do mesencéfalo; o soluço acampo; o tálamo; a ponte do caule cerebral e o prosencéfalo basal, entre outras regiões. Pretendíamos dois grandes objetivos: verificar se existia alguma patologia ou irregularidade, a nível cromosómico, que pudesse justificar um desequilíbrio mental e, por último, e não menos interessante, localizar os centros "arquivos" da memória declarativa, que reúne, entre outros elementos, a autêntica "biografias" da pessoa (tudas suas lembranças, dia a dia). Sobre o primeiro assunto, como já referi abundantemente, tínhamos sérias suspeitas. O segundo, a nível pessoal, resultava mais atrativo. Os militares o praticaram em muitas oportunidades, embora siga sendo alto secreto. Para nós, em troca, era a primeira vez que o tentávamos. Faz anos que os laboratórios foram decifrando o porquê dos sonhos. O chamado "REM", ou "paradoxal", no que aparecem as ensoñaciones, é muito mais do que se acreditava. Durante a noite, a totalidade dos mamíferos sonha no REM, à exceção do golfinho e do urso formigueiro. Aos noventa minutos de ficar dormida, a pessoa entra na fase REM e sonha. Essas ensoñaciones podem prolongar-se entre cinco e vinte
minutos. Em total, ao longo da noite, a fase REM se prolonga durante cem minutos, mais ou menos. Pois bem, os cientistas comprovaram que, graças a sortes ensoñaciones, o cérebro atua como um excelente "bibliotecário", selecionando as vivencias do dia que merece a pena guardar e "as arquivando" em áreas específicas da massa cerebral. Tudo era questão de explorar os sonhos e fazer um seguimento dos REM. Ao terminar cada fase de ensoñación, as "vivencias indultadas" são depositadas (arquivadas) em redes neuronales concretas e ali permanecem. Às vezes se esquecem e, em ocasiões, saem a flutuação e som recordadas. trata-se do grande "tesouro" humano, o mais valioso, a autêntica verdade de cada pessoa. O que o cérebro decide conservar não tem dobra nem engano. Não teria sentido. É a "biografia" de cada homem e de cada mulher, em seu estado mas puro Ter a capacidade de abrir esse "arquivo" é contemplar a vida completa de um ser humano, incluído seu período fetal Os "nemos" estavam desenhados de forma que, uma vez descobertos os "arquivos", estes eram "lidos" e transmitidos a velocidades que oscilavam entre cinco e dez megabits por segundo. "Santa Claus", como pinjente, convertia os impulsos elétricos e os dígitos em imagens. além de dispor dos sonhos de uma pessoa, ou animal, virtualmente em cinema, do feto até o momento da transmissão, os squids copiavam a biografia completa, incluídas conversações e pensamentos. Foi o grande êxito dos serviços de Inteligência. Nada escapava já aos tentáculos dos que ambicionavam o poder. Nada, nem ninguém, encontra-se a salvo... Uma vez no cajado, a vida do Yehohanan ficaria gravada em um diminuto disquete, outro prodígio da nanotecnia, a ciência da miniaturización. Entendemos que era o melhor procedimento para examinar sua vida e, em definitiva, seu comportamento. O Destino nos reservava algumas surpresas... Seria suficiente com umas horas. Os "batalhões" de "nemos" atuavam com enorme celeridade. Só terei que estar atento e, como digo, o mais próximo possível à pessoa que se pretendia explorar. Depois, ao retornar ao "berço", no Ravid, o ordenador central se encarregaria de "mostrar" o resultado. Eu o analisaria
pessoalmente. E os "nemos", como estava previsto, sortearam a barreira hematoencefálica, dirigindo-se às cadeias de neurônios. Yehohanan seguia dormido. E o céu começou a cobrir-se. Outro frente frio chegava procedente do Mediterrâneo. Um pequeno brilho no alto do cajado me advertiu. Os squids tinham tomado posições e iniciado a transmissão. Esperei. Era o único que podia fazer. As nuvens, espessas, foram apropriando-se da garganta. E as estrelas, uma atrás de outra, fugiram. Foi como um pressentimento. Como não me dava conta? "Não vá!... Tive um sonho!... Não vá! " O lamento do Jaiá, ao abandonar a aldeia de Salem, retornou a minha cabeça. O que quis dizer? O que outros perigos me ameaçavam? Concluída a operação, retirei-me à cova um. Ali ficou Yehohanan, junto ao arroio, dormido... Pensei em despertá-lo, mas, sinceramente, não me senti com ânimos. A intensa dor de cabeça deixou de ser intermitente e se instalou neste esgotado explorador. Supus que era uma conseqüência da tensão. Senti-me débil e confuso. Precisava descansar. Precisava dormir... Mas a noite foi pior do que suspeitava. A mente, incapaz de ordenar as idéias, empenhava-se em atirar dos citadas lembranças do Jaiá, a esposa do ancião Abá Saúl. Só a via ela, à porta da casa, com lágrimas nos olhos, e tentando me reter. "Não vá!" O Destino, implacável, seguiu advertindo, mas eu não quis, ou não soube vê-lo. O instinto gritava: "Foge!... Retorna a Salem!...  Foge! " Mas do que ou de quem tinha que fugir? Também o assobio se fez mais próximo. E outra idéia cavalgou entre os temores: "Eles"... Devia fugir deles"? Podiam retornar ao Firán? OH, Deus!, estava-me voltando louco... Consegui conciliar o sonho duas ou três vezes, sempre brevemente, sempre agitado... E tive pesadelos. Em uma delas vi cinco exércitos. O Anunciador comandava um dos grupos. Brigavam contra 142.322 "nemos". Eu era um dos squids! A meu lado se achava
o fiel Kesil e também Belga, o misterioso personagem que nos acompanhou no caminho pelo vale do Jordão. Todos eram "nemos"! Todos brigávamos contra os justos! de repente, em metade da batalha, as maças e espadas dos judeus caíram sobre o Kesil, o servo, e o destroçaram. Eliseo, do lado do Yehohanan, ria e ria... Quis matá-lo, mas Aru, o negro tatuado do kan do Assi, e Yu, o carpinteiro e chefe do estaleiro do Nahum, impediram-me isso. E gritavam: "É seu Destino!" Então a vi. achava-se em metade dos cinco exércitos. Brilhava. Era muito formosa. Era MA'ch! E os justos, ao vê-la, proclamavam: "É a Sekinah!... É a Divina Presença!... Abram passo a Sekinah!" Ela chegou até o Eliseo e lhe sorriu. Depois me olhou e soube que me amava. Quis dizer-lhe Quis me aproximar e lhe anunciar que eu também a amava, do primeiro dia que a vi. Tratei de gritar. Estava no bando equivocado. Nós fomos os justos... Não pude. E ela continuou me olhando. Sua luz me cegou. Então despertei, sobressaltado. A tormenta acabava de estalar. E as faíscas elétricas se aconteceram, iluminando a garganta e encolhendo, um pouco mais, meu desolado coração. Comecei a suar. Foi um suor frio... Apareci na boca da cova e, entre descargas, comprovei que o gigante das sete tranças não se achava no lugar no que o tinha deixado. Fui incapaz de calcular a hora. Possivelmente os trovões, muito próximos, ou possivelmente a chuva, despertaram. Deduzi que subiu pelos esporões de terra e que se achava na gruta dois, a escassa distância de quem isto escreve. Veria-o a manhã seguinte. Isso pensei. Voltei a me equivocar...
DE 9 DE NOVEMBRO AOS 16 DE DEZEMBRO
À alvorada, vomitei. Chovia com força.
E ao suor frio, e à tortura da dor de cabeça, uniram-se a vertigem e a ansiedade. A cova começou a girar e eu, pálido, permaneci imóvel, obstinado à "vara do Moisés". Quis pensar. O que me acontecia? E, sem querer, veio-me à mente a imagem do Eliseo, meu companheiro, ao adoecer na Damiya. Tinha-me intoxicado? Intuí o perigo. Fora o que fora, não era bom que permanecesse sozinho. Elevei-me e, como pude, cheguei até a boca da gruta. Outra quebra de onda de vômitos me deteve. Ao perceber sangue entre os restos do jantar, o suor se fez mais abundante. E tremi de medo. Arrastei-me até a cova do Anunciador. Tinha desaparecido. Possivelmente tomou o caminho habitual, águas acima. Tinha que achá-lo. Possivelmente ele pudesse me socorrer. Já o fez em duas ocasiões. Devia-lhe a vida... E descalço, com a cabeça a ponto de estalar, empapado pela cortina de água e com a paisagem girando em meu cérebro, consegui entrar no Firán. Só tinha que avançar pelo centro da corrente. Possivelmente Yehohanan aparecesse em uma das curvas. Rogaria-lhe, suplicaria-lhe... Devia me ajudar a retornar a Salem. Com isso seria suficiente. Mas as forças falharam e me derrubei... Só foram segundos, os suficientes, entretanto, para que o cajado escapasse dos dedos. O instinto me pôs em pé. Não podia perdê-lo. Vi-o flutuar, em metade do dilúvio. OH, Deus, de novo o Destino! Ele, provavelmente, situou-me na direção correta. Troquei de rumo e esqueci ao Yehohanan. Tinha que me fazer de novo com a "vara do Moisés". Era vital... Persegui-a. Arrastei-me. Caí e me levantei, uma e outra vez. Tudo me dava voltas. E o cajado se afastou, miserável pela corrente... Acreditei ver umas figuras que saltavam ao arroio. "Eles"? Mas minha mente ficou às escuras. O zumbido no interior da cabeça chegou ao limite e me precipitei nas águas. Quão último recordo foram uns muito finos círculos
de luz, concêntricos, que brilhavam na negrume de minha consciência (?). E em metade dos círculos, a imagem do Jaiá, chorando e implorando: "Não vá!... tive um sonho!... Não vá!" É possível que fossem as sete da manhã daquela sexta-feira, 9 de novembro do ano 25. A partir desses momentos, e por espaço de cinco semanas, não soube quem era, nem onde me achava, nem por que. O que reconstruí que esse tempo negro e terrível se deve às informações que solicitei a partir do domingo, 16 de dezembro, quando o Destino me permitiu recuperar minha identidade. As sombras que vi saltar ao Firán eram meus amigos, os felah de Salem e Mehola. Eles me descobriram quando avançava, entre quedas, pela corrente. Eles apanharam o cajado e carregaram o corpo desacordado deste explorador em um dos onagros, me transladando imediatamente à casa do Abá Saúl, na referida aldeia de Salem. Foi o solícito e providencial Seja'ah, "Tempo curto", quem me salvou a vida... E foram também os anciões Saúl e Jaiá, sua esposa, quem se fez cargo deste maltratado e, sobre tudo, desamparado explorador. Todos contribuíram -e de que forma!- para que pudesse me manter vivo. Ao compreender o acontecido, ao deduzir que tinha perdido a memória declarativa (a que conserva as lembranças a curto e comprido agrado), o terror foi ainda maior. O que teria sido por mim se a amnésia se apresentou em plena busca do Anunciador? Onde teria ido parar? Necessitei três dias para recuperar o conhecimento. A gente de Salem não soube o que fazer. Ao despertar, meus queridos anfitriões me encheram de carinho. Eu, entretanto, reagi assustado. Não sabia quem eram Saúl e Jaiá. Por mais que falaram e explicaram, não soube que lugar era aquele, nem por que me encontrava ali. Mas o mais dramático é que, nesses trinta e seis dias, não alcancei a descobrir uma só pista sobre minha personalidade, minha família e meu trabalho. Não soube quem era Jesus do Nazaret, nem tampouco Eliseo, nem Jasão da Tesalónica... Achava-me total e absolutamente desorientado, tanto no tempo como no espaço. Segundo Jaiá, quem isto escreve acontecia boa parte do dia em silêncio, pendente do céu. Toda minha vida se reduziu a ver acontecer o sol e as
nuvens, através de uma das janelas da casa do Abá Saúl. Em ocasiões, não muitas, ria e ria, sem sentido. Falava em uma língua estranha (provavelmente em inglês) e confundia ao ancião Saúl com um tal Curtiss, "militar de longínquas terras"... O pobre Saúl escutava pacientemente, mas não compreendia. Depois, em metade daquelas desigualdades, empreendi uma tarefa que terminou de desanimar ao matrimônio. de repente me dediquei a contar os grãos das granadas. Sentava-me na cozinha e debulhava os frutos, um após o outro. Ato seguido, proclamava: "Deus respira números"... Jaiá reteve cinco dessas cifras, correspondentes a outras tantas amadurecidas: 493 grãos, 386, 397, 378 e 462. A gente do povo tomou por um possesso. Era o que chamavam yad (uma posse). E discutiram sobre o possível demônio que se instalou em minha "segunda alma". Abá Saúl foi o único que não se pronunciou. Não acreditava em tais posses. limitava-se a observar e a chorar... Jaiá seguiu o conselho dos bem-intencionados, mas supersticiosos, vizinhos, e consultou a quantos kasday ou astrólogos ficaram a seu alcance. Todos coincidiram: uma de minhas almas foi invadida pelo Lilit, o demônio-mulher que fora expulso do Paraíso, e ao que já me referi em outras oportunidades. Para certificar-se, os caldeos lhe recomendaram que atapetasse a porta de entrada à casa com cinza bem peneirada. À manhã seguinte, os rastros do Lilit ficariam impressas no pó. Eram inconfundíveis -diziam-, e similares às das patas dos galos. Segundo a boa mulher, esses rastros nunca apareceram... É obvio, jamais pensei em uma "posse diabólica". O que padeci foi uma patologia, a que já me tinha enfrentado em outras ocasiões, mas nunca tão de perto... no domingo, 16 de dezembro, foi um dia especialmente luminoso, e não só pela transparência do vale. Essa manhã, ao despertar, soube quem era. A memória retornou e, com ela, toda minha vida. Saúl e Jaiá o advertiram e me abraçaram, entre lágrimas. Foi a partir desse dia, como digo, quando tive a possibilidade de refazer a lacuna mental, justo do momento
em que fui recolhido por "Tempo curto" e o resto dos camponeses. Tudo encaixava. Os sintomas prévios -desfalecimentos fulminantes, muito breves períodos em "branco", sonolência, dores de cabeça e abatimento em geral- foram um aviso, mas, infelizmente, não soube vê-lo. Todos meus bons propósitos para demorar o mal que nos afligia ficaram reduzidos a fumaça, ante a fascinação exercida pelo Yehohanan. Foi minha culpa. Antepor as indagações sobre aquele personagem à tomada obrigada dos antioxidantes. O que chamávamos "ressaca psíquica" se apresentou implacável, me afundando em uma amnésia retrógrada, em que o passado foi apagado de um colchão. Minto. Passado e presente. Tudo foi desintegrado. Ao eclipse total do vivido se uniu o verdugo que me impossibilitava para conseguir novas lembranças. Durante cinco semanas vivi em um permanente presente, sujeito, tão somente, à claridade do dia e à bondade de meus cuidadores. Foi então quando experimentei o medo mais severo. Foi esse 16 de dezembro, ao me recuperar, quando compreendi o perto que tinha estado do final. Perto? Eu diria que entrei no túnel e, milagrosamente, consegui sair... Mas quanto duraria o novo período de calma? Se a destruição neuronal continuava, se o óxido nitroso seguia devorando nossos cérebros, a catástrofe podia apresentar-se em qualquer instante. Em qualquer momento e para ambos, para o Eliseo e para quem isto escreve! Tinha que pensar. Tinha que avaliar a situação e decidir. Aquilo não era um jogo. Possivelmente tínhamos ido muito longe. Era mister falar com meu companheiro e adotar uma decisão. Mas como lhe explicar a tragédia vivida? O não estava ali, não podia compreender, ou sim? Achava-me ainda débil e Jaiá não permitiu que passeasse sozinho. brindou-se a me acompanhar e o agradeci, uma vez mais. Tinha que pôr em ordem as idéias. E caminhamos para a suave colina que chamavam o "lugar do príncipe", a colina no que tive o misterioso sonho e que Abá Saúl interpretou como um "encontro" com o Melquisedec.
Dediquei comprido momento a meditar. E o medo seguiu a meu redor, rondando. Não devíamos arriscá-lo tudo. Se fomos assaltados de novo pela "ressaca psíquica", ali, em Salem, no Nahum, ou em qualquer outro lugar, a missão -o segundo e terceiro "saltos"- teria sido um fracasso; um fracasso, sobre tudo, para o resto do mundo. Eu me considerava sobradamente pago, pelo simples feito de ter formado parte de Cavalo da Troia e, especialmente, por havê-lo conhecido... Tínhamos que suspender a operação. meu deus! E o que acontecia com nossos projetos? Ambos, acredito, estávamos entusiasmados. A aventura logo que tinha arrancado. O Mestre nos esperava. Havia tanto por ver, tanto por aprender! Não sabíamos nada de sua vida pública... Então se produziu a briga. A intuição, em voz baixa, recomendou ânimo. O era prioritário. O aguardava. Ele nos protegeria... A razão interveio a seguir e tentou demolir os sábios conselhos. Era extremamente perigoso. Podíamos ficar inválidos, isolados ou mortos e em um "agora" alheio ao que nos correspondia. Se isto chegava a acontecer, adeus a tudo. Ninguém receberia a informação acumulada até esse instante; uma informação incompleta, mas muito valiosa... Jaiá me viu brigar comigo mesmo. Mas, prudente e amorosa, limitou-se a sorrir. Uma nova "catástrofe" estava a ponto de ocorrer. Era evidente que não tinha aprendido nada. Ele solicitou confiança no Hermón, e também depois. "Confia", reclamava quando me via perdido. Confiar? Que difícil palavra! Que longe me achava daquele maravilhoso Homem! Era preciso pensar. Tinha que achar uma solução... Mas, para isso, para determinar o que fazer, primeiro tinha que viajar ao yam e conversar com meu companheiro. Sim, faria-o a maior brevidade... E o Destino seguiu tecendo e destejiendo. Foi Jaiá quem me resgatou do novo tortura. E o fez com uma pergunta muito oportuna; algo que tinha estado presente na memória deste explorador durante os cinco dias
de permanência na garganta do Firán... -Quer saber o que foi o que sonhei? E as misteriosas palavras da anciã descenderam de novo sobre mim: "Não vá!... Tive um sonho!... Não vá!" Escutei-a com atenção. -Vi homens. No sonho chegaram à casa e lhe obrigaram a sair com eles... A gente era Abner, o discípulo desse homem que prega no Enaván... Reconheci o acontecido na madrugada do 3 aos 4 de novembro, quando fui despertado bruscamente pela gente do Yehohanan. O gigante me buscava. Mas isso não foi um sonho. Ocorreu realmente... E a deixei prosseguir. ...Chorei amargamente... Eu sabia que esse homem, Yehohanan, causariate dano... E esperamos cento um dias... Depois bateram na porta. Eram "Tempo curto" e os outros. Abriram passo e vi um ancião... Carregava a um jovem entre os braços... Entrou na casa e o deixou no chão... Meu marido aproximou o ouvido a seu peito e negou com a cabeça. Estava morto... Foi você, Jasão! O jovem morto foi você!... Então, o ancião falou... O ancião também foi você, Jasão, mas mais velho!... Como podia ser? E disse: "O amava a "K" e eu também"... Se dirigiu a sua habitação, tomou o cajado, o teu, e se afastou... Jaiá, a "Vivente", suspirou e concluiu a ensoñación: -Tentei deter o ancião. A vara era tua. Não tinha direito a levar-lhe Então, Abá Saúl se interpôs. Abriu a porta e, amavelmente, convidou-o a seguir seu caminho, ao tempo que sussurrava: "Deixa que cumpra o que está escrito... O mesmo o dispôs assim... Deixa que o Destino faça seu trabalho." Fim do sonho (?). Ao pouco, ante a surpresa e desespero da mulher, quem isto escreve retornou, tomou a "vara do Moisés" e se perdeu na noite de Salem. E lembrança as lágrimas do Jaiá e as palavras do rabino, aconselhando a sua esposa que deixasse fazer ao destino. Assombroso! Parte do sonho parecia haver-se completo. Mas quem era "K"? Trasteé na memória e não obtive resposta. "K" não tinha significado para mim. Em hebreu e aramaico, "ke" e "k" formam uma partícula inseparável, com diferentes significados:
"como, igual a, segundo e perto de", entre outros. Algum tempo depois compreendi. Foi o Mestre quem limpou a dúvida... "K" existia, naturalmente. Interroguei ao Jaiá sobre os detalhes do "sonho", em especial sobre os dois homens que identificou como "Jasão", o velho e o jovem. A coincidência me desconcertou. Em outros momentos desta aventura, alguns dos personagens com os que cheguei a coincidir asseguraram ter conhecido a um Jasão ancião. Como era possível? Estava a ponto de descobri-lo... de repente, ao solicitar mais informação sobre o "ancião do sonho", Jaiá empalideceu. Observou-me com incredulidade e abriu os olhos, espantada. O instinto tocou em meu ombro... Depois ocultou o rosto com as mãos e permaneceu assim uns instantes. Assustei-me. O que lhe acontecia? Retirou os dedos lentamente e seus olhos me percorreram. Piscou nervosa e, finalmente, lançando um grito, incorporou-se e fugiu à carreira. A intuição, como digo, saiu-me ao passo... Eu também corri para a casa do Abá Saúl. Ali estava a resposta. Jaiá, tremente, ofereceu-me um espelho de bronze. Não me equivoquei, esta vez não. Ao princípio não me reconheci. Necessitei um segundo repasse. Aquele "Jasão" era outro... Como era possível? Só tinha trinta e seis anos... Não houve palavras. A crise, a "ressaca psíquica", tinha-me miserável também a um "encanecimiento súbito", já anunciado nos relatórios iniciais de Cavalo da Troia. Mas uma coisa era sabê-lo, ou intui-lo, e outra muito distinta, comprová-lo. Os cabelos e a revolta barba ficaram brancos, como as neves do Hermón. Tinha "envelhecido" anos em pouco mais de uns minutos. Isso foi o que assustou à boa mulher. Essa manhã, ao me levantar, apresentava o aspecto de sempre. Foi na colina do Melquisedec (!) onde caí em picado... E compreendi as alusões ao "ancião Jasão", formuladas por alguns dos que rodearam ao Mestre, e ao longo de nosso primeiro "salto" no tempo, no ano 30 de nossa era. Paradoxos do Destino. Fui jovem depois de ser "velho". Não perguntaram, nem eu expliquei. Não tinha sentido. Ambos o atribuíram "a minhas penalidades". Não era a primeira vez que alguém
"envelhecia" de um dia para outro. Abá Saúl conhecia casos, especialmente entre os condenados a morte. Por fortuna, o pomposo "envelhecimento" não se viu acompanhado por uma diminuição das forças ou por uma queda da memória. Justamente o contrário. Pouco a pouco recuperei a têmpera, e o abatimento daquelas semanas se adoçou. E aconteceu algo que tampouco estava previsto, lógicamente... Nem Eliseo nem quem isto escreve acertamos a desvelar o ocorrido. Foi outro mistério, relacionado, possivelmente, com os efeitos dos sucessivos investimentos de massa. Minha memória sempre foi excelente. No jargão médico, essa notável capacidade para reter textos, imagens, números ou conversações recebe o nome de hipermnesia. Essa foi outra das razões pela que fui selecionado para este projeto. Pois bem, como resultado desse 16 de dezembro do ano 25, meu hipermnesia se incrementou, convertendo-se em um fenômeno que poderia aproximar-se do que os especialistas chamam "memória panorâmica", uma supermemoria, em que o caudal mnésico experimentou uma brusca atualização. Se o desejava, vivido-o até esses momentos aparecia no cérebro, e com todo luxo de detalhes. Não importava a antigüidade da lembrança. Toda uma sorte, ou uma desgraça, conforme se olhe... Mas soube aproveitar esta nova condição da memória. De retorno ao Ravid, repassei quanto tinha escrito e arredondei as vivencias. Jesus do Nazaret e o presente diário foram os grandes beneficiados. O resto da jornada o dediquei a conversar com meus salvadores, e a me pôr ao dia. Não devia me lamentar. Apesar de ter perdido o último par de sandálias "eletrônicas", e quase a vida, o Destino foi benevolente, uma vez mais. Queria retornar ao Nahum. Precisava vê-los... Reconheceriam-me?
DO 17 AOS 30 DE DEZEMBRO
Também foi um "milagre". Quando o recordo, encho-me de assombro... A "vara do Moisés" flutuava no arroio do Firán, e eu fui incapaz de apanhá-la. "Tempo curto" o fez. Ele conhecia o estranho "afeto" que
professava a aquela vara e, ao vê-la na corrente, apressou-se a resgatá-la. Desde não ter sido pelo perspicaz felah, quem isto escreve teria perdido também o valioso instrumental, que tantos serviços emprestou à operação e, é obvio, a mim mesmo. Acariciei-a e repassei, e me propus ter mais cuidado. Não podia prescindir dela; não nesses momentos... E o Destino, estou seguro, escutou meus pensamentos. Depois, como sempre, atuou segundo seu critério. Mas não adiantemos os acontecimentos. É preciso ir passo a passo. Aquela segunda-feira, 17 de dezembro, foi outro dia de surpresas... As forças e o ânimo continuaram restabelecendo-se, mas Jaiá não permitiu que caminhasse em solitário. Manifestei a intenção de visitar a aldeia, e também os lagos do Enaván. E assim foi. A bondosa anciã me levou a casa de "Tempo curto" e depois nos afastamos para a dobro cascata. O providencial camponês se encontrava no bosque do " Possivelmente o visse o anoitecer. Sua família não me reconheceu. Foi Jaiá quem esclareceu minha identidade. Como era possível?, perguntavam-se. Fazia umas horas, eu era Esrin, um jovem, embora doente. Agora parecia o pai do Esrin... O incidente me deixou pensativo. Como reagiria Jesus do Nazaret? Como o faria Eliseo? Quanto ao MA'ch... O mundo voltou a cambalear-se. E ressuscitou a temida dúvida: era o momento de retornar a nosso "agora"? A vista da árvore da "cabeleira" afastou, momentaneamente, os fantasmas. No Enaván, tudo, ou quase tudo, seguia igual. Yehohanan se achava ausente. Tinha desaparecido dias antes. Viram-no afastar-se para a selva jordánica, com a colméia ambulante na mão esquerda e o talith sobre a cabeça. Supus que se encontrava em seu "refúgio", na agreste garganta do Firán. Abner tampouco me reconheceu. Estava à corrente do que lhe tinha acontecido ao Esrin e, inclusive, visitouo com regularidade ao longo das cinco semanas nas que viveu "ausente". Apresentei-me e o pequeno-grande homem me observou com incredulidade. Jaiá interveio de novo e se repetiu a cena que acabava de
viver na casa de "Tempo curto". Finalmente, o segundo no grupo terminou por me abraçar e exclamou: -Esrin!...O que aconteceu?... Guardei silêncio. Tampouco podia lhe explicar. Mas ele tinha sua própria interpretação... ...O que te mostrou o Mestre para que seus cabelos se tornaram brancos? Qual é seu segredo? Abner recordava muito bem as últimas palavras do Anunciador na manhã do domingo, 4 de novembro, quando me ordenou que o seguisse: -Vamos!... Mostrarei-te meu segredo. E Abner e o resto dos discípulos comentaram: -Vinte é afortunado. Vai aonde ninguém foi... -Sinto-o -repliquei, sem saber o que dizer-. Não posso... Acreditou entender. O também era fiel a seu ídolo, até a morte. Fomos irmãos. Fomos os escolhidos. Compreendia meu silêncio. Estava claro que Yehohanan não tinha contado nada do ocorrido no Firán. Em parte, alegrei-me. Como dizia, no círculo de pedras, sob a árvore da "cabeleira", quase tudo continuava igual. O número dos acampados era menor. Somei um centenar comprido. Quando Yehohanan fazia ato de presença, retornavam as velhas e conhecidas cenas: toques de sofar, prédicas apocalípticas, imersões nos lhe'omin ou cascatas as gema e as pretendidas sanaciones. Só houve uma mudança... Abner me pôs à corrente. O grupo de discípulos tinha alcançado o número sonhado pelo Anunciador: já eram (fomos) trinta e seis! Os trinta e seis justos! E o hombrecito da dentadura calamitosa reuniu a sua gente e se dispôs a apresentar aos "novos". Necessitou um tempo para entender o porquê dos murmúrios. Eu não era o de sempre. Agora era um desconhecido. E Abner, inteligentemente, economizou explicações que, além disso, não tinha. limitou-se a me apresentar como Jasão, um dos "arautos e homem de confiança do vidente". O cabelo branco os impressionou. Então, para ouvir o primeiro nome, caí na conta. Era um dos "novos". E me perguntei: como as engenhou para ingressar no círculo dos íntimos do Anunciador?
Também ele me observou e percebi certa confusão em seu rosto. Era lógico. Conhecia-me, mas com outro aspecto... Fui para ele e abri os braços, sonriéndole. -Não me recorda? -perguntei, ao tempo que procurava nos profundos olhos negros-. Sou Jasão, o grego. Compartilhamos o caminho pelo vale, até a Damiya... Percorreu-me de cima abaixo e, estupefato, exclamou: -Jasão, da Tesalónica! -Belsa! -Mas não entendo... Abraçamo-nos. tratava-se, efetivamente, do enigmático e corpulento persa do "sol" na frente. A última vez que o vi se achava convalescente, junto a seu amigo, o nabateo chamado Nakebos, ao-qa'vão ou alcaide do cárcere do cobre, e homem de confiança, ao parecer, do Herodes Antipas, o tetrarca da Galilea e da Perea. recuperou-se da intoxicação provocada pelo niloticus, a cria de crocodilo que lhe deram de presente nas "onze lacunas", quando descendíamos pelo caminho do Jordão, e que também pôs em grave perigo a vida de meu companheiro, Eliseo. -Não compreendo -insistiu-, o que te aconteceu? Faz uns dias... Fiz-lhe ver que não era o momento. Já falaríamos. Eu tampouco perguntei. O certo é que obteve seus propósitos: conheceu anunciador e, supus, averiguou se o gigante das sete tranças era seguidor do deus Mitra. Recordava bem sua paixão pelo mitracismo. Ele era um milhares ou "guerreiro", um dos estádios de iniciação desta religião oriental. E fiquei confuso. Algo não encaixa BA. Yehohanan não tinha nada que ver com a Mitra. Então, por que Belga tinha solicitado o ingresso no grupo? A não ser que tivesse outras intenções... A seguinte surpresa se produziu quando Abner pronunciou os nomes de dois irmãos. Eram, virtualmente, uns recém chegados. incorporaram-se nesse mês de kisléu (dezembro), quando este explorador tratava de sobreviver na casa do Abá Saúl. Contemplei-os, maravilhado. Era difícil acostumar-se... Eles acabavam de conhecer  "velho Jasão". A amizade com o "jovem
Jasão" não se iniciaria até o ano 30. Obviamente, não sabiam quem era aquele grego, tão familiarmente acolhido pelo Abner. Então, se estavam ali, se formavam parte dos "trinta e seis justos", isso significava que, em primeiro lugar, foram discípulos do Yehohanan. Os evangelistas e a tradição tampouco o mencionam... Eram Andrés e Pedro, os pescadores do yam ou mar do Tiberíades, que posteriormente se converteriam em apóstolos do Mestre. Custou-me aceitá-lo, mas assim era... Embora nascidos no Nahum, ambos residiam na vizinha aldeia do Saidan. Trabalhavam no lago, no que fora mister. Às vezes na pesca, em ocasiões como carregadores, e também nos estaleiros. Conheciam sobradamente aos Zebedeo. O pai do Andrés e do Pedro (nesses momentos, seu nome era Simón) tinha sido sócio do velho Zebedeo, ao igual a José, o pai terrestre do Galileo. Andrés permanecia solteiro. Vivia com suas irmãs. Simón estava casado. Tinha três filhos. Não percebi muitas mudanças em seus respectivos aspectos físicos. Andrés somava trinta e dois ou trinta e três anos. Era relativamente maior, para aquele tempo, no que a expectativa média de vida, nos varões, dificilmente superava os quarenta e cinco anos. Jesus era mais jovem. Em agosto, como se recordará, fazia trinta e um. Sua estatura era similar a de seu irmão (ao redor de 1,60 metros). E, ao igual a no ano 30, apresentava-se tímido e reservado. Sempre o conheci como um homem sério e distante. Parecia permanentemente preocupado. A diferença do Simón, sua lâmina era impecável, tanto no barbeado como nos cabelos, limpos e brilhantes, e na túnica ou no manto. Quase sempre aparecia armado, com um gladius na bandagem, ou pendurado do cinto. Seu irmão, mais grosso que no ano 30, era algo mais jovem. A primeira vez que o vi me equivoquei, e estimei que Simón era um dos discípulos de mais idade. Então considerei que podia rondar os quarenta. Não era assim. Nesse ano 25, que chegaria a ser líder dos seguidores do Jesus do Nazaret, rondava os trinta anos. A calvície, mais que notável, e o rosto, acribillado pelas rugas, não lhe favoreciam. A
barba, cã e descuidada, contribuía também à confusão. Olhou-me e captei uma chispada de simpatia. Caí-lhe bem, desde o começo. Possivelmente foi a apresentação do Abner, mais que elogiosa, ou possivelmente o fato de que soube sustentar seu olhar. Os olhos claros do então discípulo do Anunciador eram os mesmos, espontâneos e amigos para o amigo. Também ia armado, com uma daquelas temíveis espadas de dobro fio, o gladius hispanicus, habitualmente utilizado pelo exército romano. Escondia-a entre as roupas, em uma capa de madeira. Conversamos animadamente durante boa parte da manhã. Todos desejavam saber como e onde me tinha ganho a confiança do vidente. Desviei-me, como pude, e falei das "excelências do pregador", elogiando sua religiosidade e seu zelo pelo Yavé. Não menti e, além disso, ganhei a aprovação geral. Belga foi o primeiro em assentir, e o fez com entusiasmo. Muito ardor, desde meu modesto ponto de vista... Judas, o Iscariote, sentado junto a Be1 quase não se pronunciou. limitou-se a me observar. Por isso pude apreciar naqueles dias, ambos combinaram. Os via juntos. Conversavam e se mesclavam com os acampados. O instinto avisou... Andrés e Simón foram e vinham. Trabalhavam durante um tempo no yam e retornavam junto ao Anunciador. Isso fazia a maior parte do grupo. Os irmãos pescadores do Saidan, ao menos naquelas datas, eram uns honestos buscadores da verdade. Melhor dizendo, honestos buscadores de "sua" verdade. Jamais mentiram ou dissimularam, nesse sentido. Eles, como tantos, desejavam a chegada do "reino" ou os "dias do Mesías", como chamavam a iminente hegemonia do Israel sobre o resto do mundo. Andrés e Simón, especialmente este último, eram uns convencidos do próximo da nova era. Breve, Yavé se compadeceria do povo eleito e enviaria ao Ungido, o Mesías libertador, do que já falei em outras páginas destas memórias. Esta era a realidade nua. Andrés e seu irmão defendiam um "reino" físico e material, sem invasores, sem cadeias nem impostos, com um rei descendente da casa do David, que levaria a nação judia ao lugar que lhe correspondia: ao mais alto.
Isto foi o que os deslumbrou para ouvir o Yehohanan. "A tocha estava já na base da árvore." Tudo se precipita BA. Convinha ser valentes e pronunciar-se. E isso foi o que fizeram. Ingressaram no grupo dos "justos", seguros de que o "reino de Deus" estava à volta da é quina. Não me cansarei de insistir: esse "reino", durante muito tempo, não foi o que imaginam os cristãos do século XX. Andrés e Simón, como a maioria dos apóstolos, equivocaram os conceitos do Filho do Homem. Mas convém ir passo a passo na narração desta história. Só assim estaremos em condição de compreender quão feitos aconteceram meses mais tarde. Andrés, possivelmente por seu caráter reflexivo, era mais cético que Simón. Acreditava no Libertador político, religioso e social, mas menos... A última surpresa daquela jornada chegou com a queda do sol. O Destino, uma vez mais... Abá Saúl e quem isto escreve nos achávamos à porta da casa. Conversávamos e aguardávamos o retorno de "Tempo curto" e do resto dos felah do bosque do "perfume". Primeiro ouvimos a agitação de uns cavalos. Não era muito habitual na pequena aldeia. Os seguidores do Anunciador não entravam em Salem, geralmente. O caminho que discorria paralela ao rio Jordão cruzava parte dos lagos do Enaván. A localização do vidente, ou de seu grupo, era singela. Esta circunstância, como pinjente, permitiu que o villorrio continuasse desfrutando de do silêncio e de uma benéfica paz. Então se deixou sentir uma voz. Depois percebemos o estalo de um látego e o inconfundível arranque de um carro sobre o "pavimento" de conchas marinhas que atapetava as ruas e ruelas de Salem. E os gritos do sais, apressando às cavalarias, foram-se distanciando. Saúl e eu nos olhamos. E notei uma sombra de tristeza no ancião. Isso soube muito antes que eu... Alguém tinha descendido desse carro. E rememorei minha entrada na aldeia. Eu também aluguei os serviços de um daqueles sais, ou condutores de carros, e assim viajei da base de aprovisionamento dos "treze irmãos", ao sul do yam. Isso foi 27 de outubro. meu deus! Tinham transcorrido cinqüenta dias...
E ao fundo da aldeia surgiram duas silhuetas. Uma delas carregava um saco de viagem. detiveram-se frente a uma das casas e trocaram umas palavras com os moradores. Estes assinalaram para nós. O coração se agitou... Abá Saúl, compreendendo, ficou em pé. Eram dois homens. Seguiram aproximando-se. Então, ao reconhecê-los, sobressaltei-me. Como chegaram até Salem? por que? As perguntas, em efeito, eram uma estupidez... Permaneci sentado e mais que confuso. Experimentei uma muito estranha sensação. Alegria? menos do que imaginava. Foi uma singular mescla de melancolia e indiferença. Nunca pensei que algo assim pudesse acontecer... Ao chegar a nossa altura, detiveram-se. E antes de perguntar, repassaramnos atentamente. Não me reconheceram! Eliseo se dirigiu ao ancião Saúl e perguntou por mi. Kesil, a seu lado, deixou o esteira sobre as conchas. Eram meu companheiro e o fiel servidor! Abá Saúl corroborou as notícias do engenheiro. Ali, efetivamente, vivia Jasão, o grego. E o velho Saúl, delicado e intuitivo, entendendo que Eliseo e o servo não me tinham identificado, tratou de ganhar tempo. inclinou-se e, hospitalar, convidou-os a entrar. E assim o fizeram. Eu não tive valor para segui-los. Saúl, ao passar, olhou-me intensamente. E recebi um sopro de esperança. Elevou a mão esquerda e solicitou calma. Deus o benza! Falaram. Escutei-os da porta. Eliseo se apresentou como meu amigo e companheiro de viagem. Abá Saúl e Jaiá fizeram algumas pergunta. Eliseo explicou que estava preocupado. Fazia quase vinte dias que Jasão deveria ter voltado para o Nahum. Isso foi combinado no Ravid, naquele tenso sábado, 27 de outubro, quando meu companheiro confessou que estava apaixonado pela Ruth, a ruiva, irmã menor do Mestre. -Ele está interessado na mensagem do Yehohanan -improvisou Eliseo-, e sabemos que chegou até aqui... A gente do Anunciador o confirmou e assinalaram sua casa como
o lugar de residência do Jasão... Eliseo, alarmado pelo passo dos dias e a falta de notícias deste explorador, optou por seguir meu rastro, inquieto por minha integridade fisica. Jamais tínhamos permanecido tanto tempo sem saber um do outro. O lógico é que tivesse agradecido o gesto, mas não o fiz. Nunca o fiz... A localização do Yehohanan foi singela. Eliseo e Kesil alugaram um carro nos "treze irmãos" e não demoraram para se localizar a árvore da "cabeleira", no Enaván. De ali, como foi dito, o sais os transladou a Salem. E o engenheiro expôs a pergunta chave: -Onde se encontra? Só ouvi o silêncio. Nem Jaiá nem Saúl responderam. E imaginei a surpresa e a inquietação nos rostos de meus amigos. O engenheiro, desconcertado pelo silêncio dos anfitriões, insistiu, nervoso: -O que acontece? Não está aqui? Abá Saúl replicou com um sussurro: -Sim, mas... Segundo silêncio. Ouvi o pranto do Jaiá. Estive a ponto de me pôr em pé e terminar com a angustiosa situação. Não tive opção. Imediatamente, o velho Saúl saiu da casa. Eliseo e Kesil o seguiram. E Abá Saúl foi situar se frente a quem isto escreve. Então, me assinalando, exclamou: -Está, mas não sei se for o que você procura... O engenheiro me percorreu com o olhar. Vi-o empalidecer. Deu um passo atrás e tratou de dizer algo. Não o conseguiu. Kesil, o fiel "Orión", ajoelhou-se frente a este explorador e me observou, incrédulo. Sorri-lhe e nos abraçamos. Kesil repetia uma e outra vez: -por que?... O sábio Saúl acertou. Era eu, mas não era o Jasão que tinha conhecido Eliseo. Além disso do cabelo branco, aquele "velho Jasão" apresentava outros sentimentos... Seis dias depois, no domingo, 23 de dezembro, despedia-me do matrimônio e partíamos para o norte, rumo ao Nahum. Esta vez, as palavras do Jaiá foram diferentes: -Voltará!... Sei! Falamos pouco naqueles dias, em Salem. Eliseo se limitava a me observar. Sabia muito bem que o "encanecimiento súbito" era uma das
conseqüências do mal que nos tinha invadido. Com segurança, não a mais grave... E sabia igualmente que esse mal desconhecido, que devorava literalmente as redes neuronales, alojava-se também em sua cabeça. Amanhã podia ser ele... É curioso. Eliseo foi a única pessoa em que pude me refugiar, e, em certo modo, aliviar meu suplício, e, entretanto, escolhi o distanciamento. Foi estranho. Algo se tinha quebrado no Ravid, com a confissão do engenheiro. Ela tinha mais força do que imaginava. Tal e como tinha previsto, expus a situação com toda crueldade. Fizemos um à parte. Caminhamos em solitário para o "lugar do príncipe" e ali, na colina, narrei-lhe o justo e necessário, passando por cima minhas tribulações no Firán. Tampouco me estendi nos desequilíbrios do Anunciador. Não era o momento, nem a questão. O problema fomos nós. Devíamos continuar com a operação ou abortá-la ao chegar ao Ravid? Expus meu critério, frio, quase desumano, militar e cientificamente impecável. A situação era muito grave. A "ressaca psíquica" podia apresentar-se em qualquer instante, tanto nele como em mim e, inclusive, simultaneamente. O seguimento do Jesus do Nazaret, nessas circunstâncias, era um suicídio. A operação fracassaria, cedo ou tarde. Se retornávamos agora, uma parte da verdade ficaria a salvo. Se prosseguíamos, quem sabe... Evitei o assunto da Ruth. Estava claro que, à vista dos acontecimentos, tinha ficado em segundo plano. Até caso que decidíssemos seguir, que jovencita poderia apaixonar-se por um "velho"? Eliseo não replicou. Sabia que falava com razão. Era o sentido comum quem se sentava conosco, junto às ruínas do palácio do Melquisedec. E o silêncio foi o quarto visitante. Não falamos durante comprido momento. Para que? Tudo estava dito. Eliseo permanecia jovem, de momento. Seus pensamentos, com segurança, achavam-se na "casa das flores", com ela. meus procuraram primeiro ao Filho do Homem. Como o tinha saudades! Sim, essa era a expressão exata: tristeza. Tinha que alcançá-lo! Queria vê-lo, embora só fora por última vez! Isso faria...
Depois pensei nela, no MA'ch. E por que não olhá-lo pelo lado positivo? Foi, e é, o mais belo que me aconteceu. Também lhe diria adeus... E ocorreu. Negamo-nos a aceitar a realidade. Voltamos a nos enganar a nós mesmos. O engenheiro o resumiu, tão impecável como eu: -Sim, estou de acordo, mas deixemo-lo nas mãos do Destino. Primeiro, se te parecer, "voltemos para casa", e chequemos a situação. Convém estar seguros... "Voltar para casa" era uma frase chave, adotada entre o Eliseo e eu, e com a que insinuávamos a necessidade de subir ao penhasco no que descansava o módulo, o Ravid. Foi um costume, sobre tudo da chegada do Kesil, o amigo e servidor. O Destino? Tinha razão. O Mestre se cansou de repeti-lo: fazer a vontade do Pai, esse é o segredo da vida. por que não? Aceitei. "Voltaríamos para casa", analisaríamos o por que do "encanecimiento súbito", e a situação cerebral de ambos, e o Destino diria sim ou não. E o Destino "falou", mas não como supúnhamos... A viagem de volta foi rápido e em paz. Em meu coração permaneciam duas ou três lembranças, por cima do resto. Eram as caras do Abá Saúl, do Jaiá e de "Tempo curto". Os outros, incluído Yehohanan, apareciam longe, no horizonte da memória " Sei!" Jaiá dificilmente se equivocava. E retornei, é obvio... Agradeci os rostos conhecidos da ilha, na "cidade do Jesus". Nahum seguia sendo o de sempre, um hervidero de boas e más intenções, e de gente de toda condição. A notícia de meu "envelhecimento" correu de boca em boca. Houve interpretações para todos os gostos. A maioria, como já referi, atribuiu-o a meus pecados. Lilit se achava em minha "segunda alma" e isso significava medo ou respeito por parte dos que me tinham conhecido jovem. Não me incomodei em esclarecer o engano. Era certo que tinha muitos pecados... E à manhã seguinte, segunda-feira, 24 de dezembro daquele ano 25, com um tempo radiante, Eliseo e quem isto escreve nos dirigimos ao estaleiro.
Kesil, como sempre, dedicou-se a suas tarefas, na ilha. Tínhamo-lo planejado a noite anterior. Despediríamo-nos do Yu, o chinês, e de sua gente. Quanto ao Mestre, não nos ocorreu nada. Tremia ante o pensamento de chegar até Ele e lhe anunciar..., não sabia o que. Eliseo, mais pragmático, pensou em outra viagem, "um imprevisto retorno a Tesalónica", por exemplo. Neguei uma e outra vez. Não eram desculpas acreditáveis. O que pensaria? Como reagiria? Como lhe dizer que estávamos ameaçados de morte e que o mais prudente era retornar a nosso verdadeiro mundo? O era um Homem-Deus. Eu sabia. Eliseo sabia. Possivelmente não fora necessário nada daquilo. E dormimos com a dúvida... E o Destino, de novo, sorriu zombador. Jesus do Nazaret não se achava no estaleiro. Tampouco Yu. O ancião Sekal, que "escutava" a madeira, informou-nos. O Mestre, o carpinteiro chefe e parte dos trabalhadores tinham partido três dias antes. Era o tempo do corte e, como era habitual, permaneciam uma ou duas semanas nos bosques, dispondo a madeira que se utilizaria o resto do ano. O Destino... Sekal falou da Jaraba, uma das aldeias ao norte do yam, na alta Galilea; mais exatamente na Gaulanitis, na tetrarquía do Filipo, outro dos filhos do Herodes o Grande. Conhecíamos o caminho. Era o caminho pela que transitamos ao ir, e ao retornar, ao maciço do Hermón. Citada-a aldeia se achava escondida entre os bosques, a coisa de três horas e meia ou quatro do Ravid, e a pouco mais de duas horas do Nahum. Algo mais ao norte, a uns cinco quilômetros, encontrava-se o cruzamento com o Qaznn. Ali se elevava a estalagem de Sítio, o homossexual. Não teve despedidas. Eliseo e quem isto escreve, desconcertados, reemprendimos a volta à ilha. Jesus tinha abandonado Nahum em sextafeira passada, 21, quando ainda permanecíamos em Salem. Duvidamos. Discutimos. Convinha partir para a Jaraba? "Voltávamos para casa" e procedíamos às análise? O engenheiro aceitou minha sugestão. Primeiro era o primeiro: o Ravid.
Depois, tudo dependeria dessa verificação. Ou não? Entendi que não era bom correr novos riscos. Nesta ocasião, sabíamos com segurança o lugar exato no que se encontrava o Mestre, mas quem nos garantia que não ocorreria o que já aconteceu na recente busca, quando o perseguimos, inutilmente, pelo vale do Jordão? Não quis repetir a experiência. de repente, sem me propor isso vi-me frente à "casa das flores", o lar do Mestre. Eliseo soube dirigir os passos, habilmente. Neguei-me a entrar. Não havia razão. Jesus estava ausente e, além disso, não desejava que ela me visse. Agora, não... Suponho que o engenheiro compreendeu meus sentimentos, mas fez caso omisso. E argumentou, ao tempo que atirava de mim: -Verifiquemos a informação do Sekal. Elas têm que sabê-lo... Queria e não queria. Morria por vê-la de novo, mas não assim, não com aquele aspecto. O que pensaria? E me deixei arrastar... Eliseo reclamou a gritos às mulheres. Primeiro apareceu Esta, um tanto alarmada. Estava a ponto de dar a luz. Detrás como sempre, a filha, Raquel, arranca-rabo à túnica e observando com curiosidade aos recém chegados. Esta confirmou as palavras do ancião do estaleiro. Todos tinham saído para os bosques. Podíamos encontrá-los nas colinas do Attiq, muito perto da Jaraba. Não tinha perda. Todo mundo sabia dessas colinas. Não me reconheceu. Observou-me atentamente, com a mesma curiosidade que a filha, mas não se manifestou. Senti que me afogava. Queria fugir. Queria sair daquele pátio e, ao mesmo tempo, precisava vê-la. E o Destino me escutou... María não demorou para apresentar-se na segunda porta. Permaneceu imóvel, contemplando a cena. Eliseo seguia conversando com Esta, a mulher do Santiago, irmão do Galileo. Depois, a Senhora desviou o olhar para quem isto escreve. Empalideci, suponho. Então, intrigada, deixou a cortina de rede e avançou um passo. Seguiu me examinando e, súbitamente, levou-se as mãos à boca. Acabava de precaver-se. A Senhora sim soube quem era. E minha palidez se intensificou. Tudo foi muito rápido.
Nesses instantes, por detrás do amadurecido, surgiu Ruth, com sua túnica azul e o cabelo solto. Levava uma jarra de barro entre as mãos. Meu coração se moveu com dificuldade. Notei que ficava atrás, como se não existisse. Depois se desbocou, e me arrastou. OH, MA'ch! A mulher chegou à altura da mãe e ali se deteve. Sorriu a meu companheiro e me dirigiu um olhar. Não era o olhar que eu esperava. Foram uns segundos, para mim, muito intensos. Eu a amava. Ruth tampouco soube... Acreditei que o mundo se desmoronava. Tudo, a meu redor, deixou de ter sentido. Os muros, as flores, as pessoas, tudo ficou suspenso no tempo. Ela não me reconheceu. Isso era quão único importava. Eliseo se aproximou da Ruth. Cobriu os ombros da moça com seu braço e a animou a caminhar para o portalón. Como não me tinha dado conta? O engenheiro se inclinou para o belo rosto e lhe sussurrou algo ao ouvido. Ela, então, voltou a me olhar. Foi um olhar de incredulidade. Depois, Eliseo insistiu e seus lábios, depois de pronunciar as últimas palavras, depositaram um beijo nos cabelos da jovem. E a jarra se escorreu de entre os dedos, precipitando-se sobre o lajeamento. Ali ficou, tão rota como meu coração... Ruth, pálida, seguiu com os formosos olhos verdes fixos em meus. Aquele sim era o olhar que eu procurava... Ela me amava! Ou foi meu coração o que viu o que alguma vez existiu? Descobri uma lágrima, aparecendo, sem querer, aos doces olhos da moça. Ruth baixou o rosto e, depois de liberar-se bruscamente do braço do Eliseo, correu para a casa e desapareceu na escuridão da estadia da Senhora. A mãe, desconcertada, foi depois do "pequeno esquilo". E um fogo devorador me consumiu ali mesmo. Dava meia volta e escapei do lugar. Durante horas, não sei quanto tempo, vaguei pelas ruas do Nahum, sem rumo fixo. Tentava pensar. Tratava de me serenar e de conciliar as idéias. Consegui-o pela metade. Em minha mente governava uma imagem: Eliseo, beijando os cabelos da Ruth... O que tinha acontecido durante minha ausência? Falou o engenheiro com a
mulher? Estava ela apaixonada pelo Eliseo? Se fosse assim, por que havia amor em seu olhar? Ou não era amor o que expressava? Senti-me perdido... Aquele era um amor impossível, repetia-me até o aborrecimento, uma loucura. Tinha que liquidar aquela nova angústia, ao preço que fora. Já era suficiente com a ameaça de morte... Mas os passos, uma e outra vez, levavam-me sempre ao cardo macimus, a rua principal do povo. Passava por diante da ilha e prosseguia para o sul. Ao chegar à "casa das flores" reduzia a marcha e me detinha ante o portalón. Então, buscavaa. Eram dois ou três segundos, não mais, mas suficientes para repassar o pátio e tentar achá-la. Só desejava isso: contemplá-la. Descendia até o mole e retornava pelo mesmo caminho. Na segunda oportunidade, ao cruzar frente ao pátio, Esta me viu. Acelerei e me afastei, envergonhado. Deus santo! Parecia um adolescente... Mas retornei pela terceira vez. Só queria vê-la. Só vê-la. Só me reunir de novo com seus olhos... Foi lógico. Esta, a grávida, deveu advertir à Senhora sobre meu estranho proceder. E ao aparecer novamente, o que achei foi o rosto grave da María. Quis me desculpar, mas não acertei. Acredito que pronunciei algumas palavras, sem muito sentido. A mulher foi direta. Esse era seu estilo. -Você não é partido para minha filha! Avermelhei de vergonha. Pinjente algo, acredito, e me retirei. E ali ficou a Senhora, no portalón, observando como me perdia entre a gente. O que quis dizer? Eu sabia que sabia, mas... Foi um aviso. Jamais o esqueci. E me refugiei na "ilha" da Taqa, nossa ilha. Kesil preparava o jantar na habitação "41", como tinha por costume. Eliseo, segundo o servo, achavase com os meninos "lua", os trigêmeos, na "44". E deixei atuar ao destino. Que mais podia fazer? Me acurruqué em um rincão e fui vencido pela tristeza. Ao pouco caí em um profundo sonho e assim permaneci até que fui despertado. Eliseo, sorridente, convidou-me a compartilhar o suculento jantar. Tinha-o
esquecido. Esse 24 de dezembro, ao pôr-do-sol, os judeus festejavam a "Hanukah" ou "Janucá", a festa das luzes, também chamada da Dedicação ou Consagração, em lembrança da purificação do Templo pelo Judas, o Macabeo, no mês de dezembro do ano 164 antes de nossa era. Como já referi, no chamado século II antes de Cristo, a nação judia teve que padecer ao nefasto rei Antíoco IV Epífanes. Este monarca, defensor da cultura grega, perseguiu à religião judia, até o extremo de proibir na sábado, os sacrifícios rituais e o culto ao Yavé, incluída a circuncisão. E o Templo, ante a consternação geral, foi substituído por um ginásio. E estalaram as revoltas. A família dos Matatías organizou guerrilhas e se enfrentou ao Antíoco. Foi a guerra dos Macabeos. Um dos filhos do Matatías, Judas, o "Martelo", conseguiu entrar no Templo e desencardi-lo. E conta a lenda que, nesse lugar, e nesses momentos, produziu-se um milagre. Quando Judas penetrou no Templo, só encontrou azeite sagrado para um só dia. Dito azeite se utilizava para prender a menorá ou candelabro de sete braços. Pois bem, o azeite contido no pequeno recipiente serve para iluminar durante oito jornadas. Assim nasceu a Janucá, o milagre das luzes, embora outros judeus se inclinavam por uma origem menos ortodoxa. Em realidade, pouco importava o porquê da festa. Para o povo singelo era uma pausa, em metade do severo inverno. Em Jerusalém, a Janucá alcançava sua máxima expressão. Ali, depois de tudo, segundo a lenda, produziu-se o grande milagre. O Templo era iluminado como em nenhuma outra ocasião. prendia-se uma menorá de nove braços, a que chamavam janukía. Ao pôr-do-sol de 24 de dezembro, os sacerdotes tomavam a vela central de dita menorá, que recebia o nome do Sham mash ou "Servidor", e acendiam o resto das luminárias, começando sempre pela direita. Depois, a cidade era igualmente iluminada. Cale, agrade, casas, palácios, posadas, botequins, e até os estábulos luziam durante oito jornadas. O costume era prender uma vela por cada membro da família, incrementando o número da Candelas, noite a noite. Desta forma, aos oito
dias, o lar era um "milagre". Quem isto escreve, dada sua estupidez na hora de mover-se nas sempre escuras casas do Israel, recorda a Janucá com especial gratidão... E aquela febre pela luz se estendia por toda a Judea. Nahum não era uma exceção. As ruas, o mole e, inclusive, as embarcações que faenaban no yam, apareciam iluminados durante a noite. Era o grande negócio dos iluminadores, que não davam provisão. Os via correr, de um lado a outro, procurando abastecer de azeite, ou de mechas, aos clientes descuidados. Mas, sobre tudo, a festa das luzes era uma explosão de alegria. Todo mundo cantava. A sinagoga contratava músicos, que não cessavam de circular pela população, golpeiam dou toda aula de címbalos. Era o festival dos pires metálicos. Cada bairro tinha sua própria orquestra e competiam entre elas. Impossível dormir durante oito dias... A Janucá era também a festa dos meninos. Eles eram os protagonistas, em certo modo. As famílias cruzavam presentes no jantar de 24 de dezembro, e um dos pressente habituais era a perinola, uma peonza, geralmente de madeira, com a que jogavam meninos e não tão meninos. Chamavam-no zevivon. Tinha-os que todos os tamanhos, e em todos os materiais. Constava de quatro caras, com um prego de bronze, ou de ferro, que o perfurava em sua totalidade. Na parte superior, dito prego era rematado por um laço ou asa, que permitia o giro do trompo. Em cada uma das caras se lia uma letra hebréia. Eram as iniciais de uma frase que fazia alusão ao suposto milagre registrado no Templo, no chamado ano 164 antes de nossa era: "Um grande milagre ocorreu aqui" Os meninos jogavam e os majores apostavam... O zevivon representava o pequeno recipiente que, segundo a lenda, continha o azeite santo que serve para acender a menorá por parte do Judas, o Macabeo ou Martelo. A tradição ensinava que este tipo de peonza foi de grande utilidade aos judeus na época da sublevação contra Antfoco IV Epífanes, e também contra Roma. Ao proibir o estudo da Torá, os judeus se reuniam em grupos e simulavam jogar a perinola quando, em realidade, achavam-se em plena reza ou consultando
os textos bíblicos. Se eram alertados, ante a proximidade de um inimigo, ocultavam os "livros" e, como digo, tiravam um zevivon, apostando por uma das quatro caras. A perinola, em soma, era a síntese do milagre. Durante os oito dias, os meninos as faziam dançar a todas as horas e competiam entre eles. Kesil se esmerou. Como bom judeu se ajustou ao que assinalava a tradição. Cozinhou bolos doces e salgados, as levivot e as sufganiot, respectivamente, tudo em azeite, e o enfeitou com uma tajina ou molho de sua invenção, consistente em semente de sésamo, pimenta moída, alho macerado, sal, suco de limão e seu segredo (jamais conseguimos averiguar o truque). Delicioso. E como sobremesa, bolas de mel, geladas, cheias de nozes. Eliseo convidou à família da "44", a prostituta e seus filhos, os trigêmeos de cabelos brancos até os ombros, e olhos rasgados, com as íris amarelas. Os meninos "lua", como os chamavam na ilha. Meninos que jamais viam a luz do sol e que fizeram bons miolos com o engenheiro. A mãe, a "burrita", chamavase "Gozo". Nunca soubemos se era um apodo ou sua verdadeira graça. Era uma jovem de caráter nobre, mas escravizada por sua profissão e por algum tipo de patologia que a fazia engordar Naqueles momentos rondava os cem quilogramas de peso. Gozo contava vinte anos de idade. Observei a meu companheiro. A verdade é que se esforçava por me atender. Todos o faziam. E optei por esquecer minhas inquietações, ao menos por essa noite. Não desejava turvar a alegria do Kesil, e tampouco a dos trigêmeos. Não era o momento de interrogar ao Eliseo sobre a Ruth. Mas o faria. Assim me prometi isso enquanto Kesil entoava as bênções prévias ao aceso das velas. A última destas recitações me deixou atônito: Bendito seja o Senhor, nosso Deus, Rei do Universo, que nos conservou a vida, preservou-nos e nos permitiu chegar a este dia! Eliseo captou a mensagem, e intercambiamos um olhar. Era certo. O importante é que nos tinha permitido chegar. Foi assombroso. Foi como se o bom Deus, como se o Mestre, sabedores de minha angústia, fizessem-nos uma piscada.
Casualidade? Não para mim ... E à memória acudiu uma familiar palavra: "Confia!" Agora, mais que nunca, precisava vê-lo. Agora, mais que nunca, necessitava de seu consolo e de seu otimismo. E por que não trocar os planos? por que não pospor as análise no Ravid e nos reunir com O nos bosques da Gaulanitis? Estávamos a um passo, a duas horas. Se me propunha isso, ao dia seguinte, por volta da sexta (meio-dia), podíamos estar a seu lado... Contemplei ao Eliseo. A idéia, é obvio, tivesse sido de seu agrado. Que fazia? Deixava-me guiar pela intuição? Partíamos em sua busca ou ajustava ao ditado pela razão? Kesil interrompeu os pensamentos. Pôs um pequeno vulto em minhas mãos e, sorridente, convidou-me a abri-lo. Era um presente. Compreendi. Eliseo e o servo (eu não gosto desta palavra) puseram-se de acordo. olharam-se felizes e insistiram: -Abre o de uma vez! Olhei-os, atônito. E retornou a luminosa idéia: por que não deixá-lo tudo e alcançá-lo, ali onde pudesse estar? Saberia nos iluminar... Gozo, os trigêmeos e meus amigos esperaram, impaciente. Mas, ao mesmo tempo, cruel, deixou-se ouvir a voz da razão: "A operação fracassará... O Ravid é prioritário. .." -E bem? Eliseo protestou. Todos o fizeram, cordialmente. "O é prioritário -gritou a intuição, por cima da razão-. O está esperando..." -Perdão -me desculpei-, agora mesmo... E procedi a desembrulhar o obséquio. fez-se o silêncio... Eliseo o merecia. Eu o merecia. Também Kesil. Devia obedecer ao instinto e correr para o Mestre. "Não, primeira as análise... Terá que estar seguros... " Resulta difícil de explicar. O primeiro que chamou minha atenção, ao descobrir o presente, foi o brilho da letra nun, inicial da palavra hebréia nes (milagre). Não pude remediá-lo. Fiquei hipn6tizado, contemplando-a. Depois lhe dava voltas entre os dedos, e sempre "avisou" com aquela
piscada luminosa. Agora sei. Foi um sinal... Kesil e meu companheiro me obsequiaram uma formosa perinola ou peonza, de uns nove centímetros, primorosamente trabalhada em uma pálida e tenaz madeira de salgueiro. Dispunha de quatro caras, como era habitual, com as já referidas iniciais (nun, guimel, hé e shin) em cada um dos lados. Sortes letras, como foi dito, anunciavam a frase chave da Janucá: "Milagre grande foi aqui" ("Um milagre grande ocorreu aqui"). As iniciais foram gravadas a fogo. Só nun aparecia colorida, com um dourado muito fino que a fazia destacar à luz das Candelas. Fiquei desconcertado. E a inicial de "milagre" cintilou cada vez que fiz girar o zevivon entre os dedos. Casualidade? Mas desde quando acredito no azar? Cada letra desfrutava de um valor numérico. Neste caso, nun equivalia a 50, guimel supunha 3, hé era igual a 5 e shin ostentava o maior valor, 300. Ao jogar, o ganhador era sempre o que obtinha maior pontuação. Agradeci, sinceramente, o detalhe... E a intuição, alarmada, tocou em meu ombro: é que não tinha compreendido? Aquilo era um sinal... "Não -replicou a razão-, isso não é nada... Puro subjetivismo." E em silêncio, ante a espera geral, decidi-me a provar a perinola. Esse era o costume. que recebia o obséquio tinha direito a fazê-la girar pela primeira vez. Situei-a sobre o pavimento, e Kesil e os meninos aproximaram várias luzes. Todos apostaram e cantaram um número; melhor dizendo, uma letra. Procurei o Eliseo com o olhar. Tivemos o mesmo pensamento. Ambos coincidimos ao escolher uma inicial: -Nun! Sorrimos ante a aparente casualidade, e impulsionei o brinquedo. Se o Destino (?) assim o queria, se a letra ganhadora era a pensada por meu companheiro, e por quem isto escreve, se aparecia a inicial de "milagre", então não haveria lugar para a dúvida. Isso pensei, enquanto o zevivon se bamboleava. E acreditei perceber o sorriso da intuição. A razão, em troca, deu-me as
costas. Quem podia imaginar que aquela humilde, quase insignificante, peonza formaria parte de nosso Destino? Do que me assombro? Tudo, nesta aventura, foi mágico... "Será um sinal dos céus -me disse-. Se aparecer nun, então partiremos a seu encontro, e imediatamente..." E se fez o "milagre". Foi a letra hebréia nun a que deu a cara. Sim, "um milagre aconteceu naquele lugar", mas não quis vê-lo... Eliseo nunca soube. À manhã seguinte, terça-feira, 25, joguei-me atrás. A razão se impôs. O jogo da perinola só foi isso, um jogo. Não podia descuidar as análise. Nossas vidas corriam perigo. A operação corria perigo. Eu era um cientista. Ao menos, isso pretendia. Não devia edificar meu trabalho me apoiando em desejos e especulações. Solicitar "sinais" aos céus não era próprio de alguém rigoroso e responsável... Isso pensei. Pobre estúpido! Quando aprenderei? E dito e feito. À alvorada, o engenheiro e quem isto escreve subimos ao Ravid. Kesil, acostumado a nossas ausências, não fez comentário algum. E se ocupou de seu trabalho, na ilha. Tudo, no alto do "porta-aviões", continuava sem novidade. Meu companheiro acudiu com regularidade ao grande esporão rochoso durante minha estadia no Enaván e na garganta do Firán. A vigilância foi contínua, especialmente por parte do eficaz ordenador central, "Santa Claus". Não havia tempo que perder. O plano era simples. Seguindo uma velha "idéia" da Santa Claus", a que não emprestei atenção em seu momento, procederíamos à injeção de sendos esquadrões de "nemos", destinados a examinar as malhas neuronales do Eliseo e de quem isto escreve, respectivamente. O ordenador, como digo, sugeriu-o depois do incidente registrado em 15 de agosto desse ano 25 de nossa era, uma vez consumado o terceiro "salto" no tempo. Como se recordará como resultado de dito investimento de massa, nossos cérebros foram atacados pelo que o ordenador interpretou como um desmedido crescimento da enzima
responsável pela síntese da óxido nítrico sintasa. Este radical livre estava conquistando os grandes neurônios, as destruindo. O "plano" da Santa Claus" era direto: sair ao passado do tóxico e eliminá-lo. Uma vez disolvido o óxido nitroso, os "nemos" tentariam a regeneração das áreas cerebrais afetadas. Mas, no último minuto, senti medo. "Algo" me deteve. "Algo" me dizia que nosso mal era muito mais do que suspeitávamos... Procurei uma desculpa e demorei o procedimento. Eliseo protestou, com razão. Estávamos ali para isso. Tudo dependia da análise dos "nemos". Não cedi e, dissimulando o pânico, troquei a ordem de trabalho. Arrancaríamos pelo Yehohanan. Também estava previsto, embora não nessa ordem. Meu companheiro me contemplou, assombrado. -E o que importa agora o estudo dos "nemos" que lhe subministrou ao Anunciador? Não respondi. Não tive forças para confessar a verdade. E transferi a informação codificada na "vara do Moisés" ao ordenador. Meu companheiro resmungou, mal-humorado, mas terminou cedendo e colaborou na complexa "leitura" que foi subministrando "Santa Claus". Em realidade, foi o ordenador quem o fez virtualmente tudo. Nós, simplesmente, interpretamos o já interpretado... Consegui dilatar as análise dos "nemos" que proporcionei ao gigante da sete tranças durante dois dias. E reconheço que os resultados nos deixaram perplexos. Nem Eliseo nem eu pudemos imaginar nada semelhante. Naturalmente, os "nemos" não eram infalíveis. Possivelmente se equivocavam, embora o duvido... O primeiro que nos chamou a atenção foi a "leitura" de uma aberração cromosómica, no sentido do cromossomo "E" supernumerário, como conseqüência, possivelmente, de uma alteração na espermatogénesis. tratava-se, em soma, de uma enfermidade, a nível cromosómico, em que o sujeito apresentava um cromossomo de mais (47) sobre os 46 habituais nos seres humanos. "Santa Claus" o identificou como uma trisomía "47. XYY", de origem paterna, possivelmente como resultado de uma segregação anormal na meiose II. Isto significava que o pai do Yehohanan, Zacarías, também
foi portador de dita anomalia celular. Dita alteração era a responsável, sem lugar a dúvidas, da grande estatura do primo longínquo do Mestre. A trisomía, além disso, podia provocar os seguintes problemas: forte agressividade, psiquismo lábil ou instável, tendência a patologias na pele, intolerância e defeitos nos genitálias. Tudo encaixava com o observado ao longo de meus encontros com o Anunciador. Mas havia mais... Alguns dos microsensores alertaram sobre outra não menos singular característica do Anunciador. As redes de capilares que alimentavam os folículos pilosos, nos que nasciam os cabelos do couro cabeludo, eram mais extensas do normal, provocando uma anomalia em que ratina (principal componente dos caules que dão forma ao cabelo e ao cabelo). Os "nemos" indicaram igualmente um desvio cromosómico a nível de medula e casca do cabelo, que provocava um crescimento desmedido do cabelo (ao redor de cinco a seis centímetros por mês). O desconcertante é que o resto das papilas dérmicas aparecia virtualmente atrofiado. Em outras palavras: Yehohanan era imberbe, e carecia de corto na quase totalidade do corpo, exceção feita do mencionado couro cabeludo, cujo crescimento era cinco vezes superior ao habitual em um varão. E recordei as sete tranças loiras, até os joelhos. Aquele personagem era estranho, muito estranho... E assombroso foi também o achado do "9-ácido cetodecenoico" como o componente básico, e primitivo, das substâncias excretadas pelas glândulas sudoríparas apocrinas, as responsáveis pelo aroma corporal. Ao contrário do que acontece com o resto dos mortais, nos que sortes glândulas se acham em processo de involução, no Yehohanan apresentavam o lóbulo secretor e o conduto excretor dérmico extraordinariamente desenvolvidos, com umas vesículas que não soubemos identificar e que, presumivelmente, "fabricavam" (?) o mencionado "9". Foi "Santa Claus", uma vez mais, quem proporcionou uma pista sobre o novo mistério. O "9" era uma feromona, uma substância química que, emitida ao exterior, condiciona
o comportamento de outros seres, geralmente congêneres. Os componentes, analisados primeiro pelos "nemos frios" e, posteriormente, pelo ordenador, não ofereciam dúvida alguma. Estávamos na presença de uma substância que não obedecia a nenhum tipo de degradação metabólica conhecida no ser humano. Ao princípio, neguei-me a aceitá-lo. Possivelmente os "minisubmarinos" tinham errado. Mas não. "Santa Claus" reiterou os resultados: o "9-ácido cetodecenoico", o "9", era uma das feromonas fabricadas pelas abelhas... Como era possível? Yehohanan desprendia, com o suor, a chamada feromona real, o "9"! Eliseo e quem isto escreve não tivemos explicação. Em teoria, a presença do "9" no organismo humano não era racional. Dita feromona procede das glândulas mandibulares da abelha reina, e é utilizada para controlar ao enxame. Desta forma, mediante o alimento e os quimiorreceptores das antenas, as milhares de operárias se mantêm unidas, proporcionam comida à rainha, transmitem mensagens e se evita a construção de outras celas reais, que poriam em perigo a supremacia da referida reina. trata-se de um inteligente sistema da natureza para manter a unidade de um grupo social. E me perguntei: era este o segredo do Yehohanan para conseguir que as abelhas africanas se posassem em seus braços e mãos, tal e como tinha visto no vau das "Colunas" e no arroio do Firán? Evidentemente, se ele fabricava o "9", as abelhas obedeciam... E, de repente, veio-me à mente uma das afirmações do Anunciador, quando falou das hayyot e dos não menos singulares sucessos vividos, segundo Yehohanan, nos trinta meses que permaneceu isolado no deserto do Judá: -E o homem-abelha pôs em minhas mãos o grande secreto do Santo, bendito seja seu nome... Neguei-me a seguir. Aquilo era de loucos. O assunto foi arquivado, e aí ficou, sem explicação lógica aparente. Outro mais... E se produziu o grande fracasso. O segundo dos objetivos dos robôs orgânicos, como já mencionei, era uma lhe apaixonem novidade para nós: localizar os centros "arquivos" da
memória declarativa do Yehohanan e tirar a luz sua "biografia" completa, incluído o período fetal. Para isso, os squids ( frios") deviam "infiltrar-se" nos sonhos (períodos REM) e descobrir as áreas cerebrais nas que são definitivamente guardados (presumivelmente, o tronco cerebral, o hipotálamo, o tálamo, os núcleos do septum, o do Meynert, o da cintilla diagonal de Broca e a substância innominada, entre outras). Pois bem, os "nemos" só obtiveram parte de um dos sonhos REM (Rapid Eye Movement), dos quatro ou cinco ciclos de em soñaciones que deveriam haver-se registrado naquela noite. Tampouco houve explicação. Ao iniciar o correspondente sonho paradoxal, os "nemos" deixavam de transmitir. As interferências e o "ruído" de fundo há recuam inviável a decodificação dos sinais. Instantes depois, os squids se autodisolvían, tal e como estava programado (em caso de interrupção do sinal, os "nemos" permaneciam ativos durante quinze segundos). Evidentemente, Yehohanan sonhava. Os componentes neurofisiológicos do REM eram inegáveis, mas, por alguma razão que não soubemos precisar, ditos sonhos e o caminho para a memória foram bloqueados. Agora, honestamente, me alegro. Não tínhamos direito a tanto... "Santa Claus" identificou o pequeno segmento de ensoñación como o quinto REM do primeiro ciclo, aparecido trinta minutos depois de que o Anunciador caiu dormido. A pronta presencia do REM, ou sonho paradoxal, foi uma pista. Em uma pessoa sã, o sonho REM se materializa, pela primeira vez, aos noventa minutos, mais ou menos, de ter conciliado o sonho. Foi, além disso, um sonho agitado, com períodos preços de "não REM" (sonho profundo) sensivelmente mais reduzidos. O ordenador foi implacável: os sintomas eram próprios de alguém que padecia algum tipo de transtorno psíquico... Mas vamos com a breve ensoñación, resgatada pelos squids entre as descargas rítmicas de ondas agudas e de escassa voltagem cerebral (entre um e três segundos). Os "nemos" conseguiram reconstruir, e copiar, um total de um minuto, nove segundos e cinqüenta e dois décimos de sonho REM (1.9.52). Depois, tudo
ficou em branco. Apesar das interferências, as imagens me deixaram sem fala. "Aquilo" era uma dobro confirmação. Por um lado, ratificava o que já sabíamos: as imagens vividas durante o dia são processadas no sonho REM. Depois, o cérebro as traslada de lugar, "as arquivando" na memória declarativa. Desta última parte, lamentável mente, não tivemos informação. Os "nemos" não registraram som. Foi outra falha das micromáquinas? depois de ver o que vimos, já não estou seguro... Primeiro foi negrume. Yehohanan se achava em metade da noite. E os olhos do gigante se dirigiram para o firmamento. Vimos as estrelas e umas "luzes" que se deslocavam lentamente, em formação, pela constelação dos Gêmeos. Eu tinha visto essas "luzes"! Suponho que o hipotético leitor deste diário terá dificuldade para compreender. Nós víamos na pão esculpe do ordenador o que, previamente, tinha visto a pessoa que se achava submetida a investigação. Essas vivencias, insisto, são processadas nos ciclos de ensoñación, ao longo de cada noite. Algumas dessas vivencias, as que merecem a pena, são classificadas e, em certo modo, "indultadas", passando a formar parte de nossa história; a autêntica história do homem. Eliseo me interrogou e confirmei o já manifestado: quem isto escreve viu essas "luzes", em uma das noites junto às águas do Firán. E me perguntei: não foi um sonho? Eram sete, como no suposto "sonho". Voavam em uma formação impecável, em "cruz latina". E se repetiu a seqüência que tinha acreditado sonhar... A primeira "luz", a que partia em cabeça, separou-se do resto e se dirigiu para a estrela Betelgeuse, na constelação do Orión. Depois a ocultou. E o mesmo fizeram as três que integravam o braço curto da cruz. Caíram sobre o cinturão e o ocultaram. As restantes "luz", tal e como recordava, tomaram igualmente posições, camuflando-se sobre o Bellatrix, Saiph e Rigel, respectivamente. Isto significava que o Anunciador sonhou quão mesmo eu, algo muito pouco provável, ou que ambos, naquela noite, fomos testemunhas do mesmo sucesso (!). Quem isto
escreve, sentado junto à corrente, e Yehohanan, em outra posição, possivelmente desde seu refúgio habitual, na cova dois. No "sonho" (?), ele se levantou pouco antes da aparição das sete "luzes" e se perdeu na escuridão da noite. Lembrança que me tinha alertado sobre a volta deles"... Deus santo! O que era todo aquilo? E durante uns segundos, muito poucos, os "nemos" conseguiram capturar o som. ouviu-se o ruído de fundo do bosque, mas foi breve. Ato seguido, as três "luzes" que ocultavam as estrelas do cinturão cintilaram em vermelho e se lançaram sobre o Firán... meu deus! Isso não era um sonho! Isso foi vivido por este explorador! Vivido ou sonhado? Os olhos do Yehohanan não perdiam detalhe. E as três "luzes" vermelhas, em plena queda, fundiram-se em uma. Era a mesma "luz" branca que terminou por situar-se na vertical do arroio! O som se extinguiu de novo. Meu companheiro não dava crédito ao que via. -por que não me contou isso? A recriminação estava justificada. Não quis comentar o que, sinceramente, tomei por um sonho... E a enorme esfera, radiante, estabilizou-se sobre a garganta do Fírán. Então, tudo se iluminou, como se fora a sexta hora (meio-dia). Yehohanan, muito alterado no sonho, percorreu com a vista a corrente e a vegetação que nos rodeava. Então me vi, sentado muito perto das águas e com a "vara do Moisés" entre as mãos. O Anunciador não se achava na cova dois. Minha dedução é que não chegou a escalar o talud rochoso. encontrava-se ao pé da gruta e de ali observou o incrível sucesso. A luz (?) era muito intenso. Enchia-o tudo e, tal e como recordava, não produzia sombras! Evidentemente, era uma radiação que transpassava os corpos. Mas quem emitia algo assim em pleno século i? Nem sequer hoje, no XX, obtivemo-lo... Yehohanan se centrou em minha pessoa. Eu parecia absorto, com o olhar fixo na gigantesca esfera que flutuava a pouco mais de quinhentos metros sobre a corrente. Estava claro. Quem isto escreve não dormia. Aquilo não era um sonho. E ocorreu algo do que não tive perseverança. Ao menos, não fui capaz de
vê-lo, ou de senti-lo. Melhor dizendo, algo sim percebi... de repente, por minhas costas, em metade da claridade, Yehohanan viu algo... -O que é isso? Não soube responder ao Eliseo. Como digo, era a primeira vez que o via. -Mas... Detivemos a imagem. Não havia dúvida. Ali, a dois passos deste explorador, movia-se alguém... A imagem se fez algo mais nítida e ficamos desconcertados. -Deus dos céus! -O que é isto? -estalou o engenheiro-. Possivelmente tua brincadeira? Não tive forças nem para negar. É obvio, eu não tinha nada que ver com a "aparição". Não era responsável pelo "sonho" do Yehohanan. Aquilo era real. As brincadeiras, além disso, eram especialidade do engenheiro... A pouco mais de dois metros, como dizia, a minhas costas, surgiu uma figura. Era uma criatura de aspecto humano, mas muito alta, tanto como o Anunciador, com um corpo estreito e delicado, e embutida em uma espécie de bonito ou mergulhador ajustado, de um branco espetacular. Apresentava um escafandro (!) redonda, de um negro intenso. Não havia forma de distinguir a cabeça. movia-se lentamente, mas com grande segurança. Nesse instante, não sei por que, veio-me à mente a palavra hayyot, o término hebreu que servia para designar às estranhas criaturas que viu o profeta Ezequiel. Das hayyot também me falou o gigante das sete tranças, embora, sinceramente, não lhe concedi muita credibilidade. Deus santo! A criatura se aproximou de quem isto escreve. Então se inclinou e fez gesto de tocar meu ombro direito. Nesses momentos, os "nemos" deixaram de transmitir e a tela da Santa Claus" se converteu em um labirinto de sinais indecifráveis. A seqüência, como pinjente, prolongou-se algo mais de um minuto. Também aqueles dígitos permaneceram extrañamente em minha memória. Não soube por que: "1.9.52." E digo que algo percebi porque, se não recordar mau, nesses instantes senti uma espécie de força (?) benéfica que me tranqüilizou. Foi a hayyot quem transmitiu dava
cha sensação? Chegou a tocar meu ombro? E, sobre tudo, quem era essa criatura? Que relação tinha com a enorme esfera que flutuava sobre nós? Como era possível, no ano 25? por que não a vi? Não tive mais remedeio que confessar o resto do "sonho", incluída a presença da "névoa" que parecia pensar (!), e também o mistério das letras e os números de "cristal" que caíram sobre meu corpo e que provocaram as não menos enigmáticas queimaduras. Eliseo pensou que havia me tornado louco. Não o culpo. Eu também acreditei durante um tempo. Mas ali estavam as imagens... E o engenheiro, em silêncio, repassou as combinações que formavam os referidos números e letras, hebreus e aramaicos, ao depositar-se sobre minhas mãos: "OMEGA 141... PRODÍGIO 226... BELSA'SSAR 126... DESTINO 101... ELISA E 682... MORTE NO NAZARET 329... HER MÓN 829... ADEUS ORIÓN 279... E ÉSRIN 133." Não teve tempo de aprofundar. "Santa Claus" nos alertou. As últimas leituras foram as mais preocupantes. Os "nemos" puseram de manifesto o que já suspeitávamos desde fazia tempo: Yehohanan padecia um sério transtorno mental. Não sou especialista, mas os parâmetros bioquímicos, e o que mostraram os squids, resultavam eloqüentes. Sempre é arriscado pronunciar-se no escuro e mau delimitado território da mente, mas eu diria que o Anunciador apresentava uma clara personalidade neurótica, com tendência a esquizofrenia, ou possivelmente fora ao reverso: uma desintegração ou fragmentação da mente que, entre outras conseqüências, dava lugar a um comportamento neurótico. Naquele tempo, como na atualidade, o número de esquizofrênicos era notável. Hoje se calcula, segundo especialistas como Bleuler, Laing e Kraepelin, entre outros, que existem ao redor de quarenta milhões de esquizofrênicos, em suas diferentes modalidades. Ao estudar as anomalias detectadas pelos "nemos", mais de uma dúzia, tanto o ordenador central como eu coincidimos no diagnóstico: Yehohanan reunia muitas das características do que Kraepelin denominou esquizofrenia do tipo hebefrénico, uma complexa fragmentação do eu que machuca a
personalidade e que converte ao paciente em um ser fantasioso, quase isolado do resto da sociedade e incapaz de planejar seu futuro. As idéias delirantes e místico-religiosas terminam por conduzi-lo a uma espécie de autismo, de que é difícil escapar. São doentes acossados pelas alucinações auditivas. Ouvem vozes que os interpelam, que os ameaçam, que os adulam e que os impulsionam a executar toda classe de ordens. E chega o momento em que o alucinado não acerta a distinguir as experiências internas das externas. É a destruição, como digo, da personalidade. Geralmente, quase todos os hebefrénicos necessitam ajuda. Suas vidas terminam desembocando em um "sem sentido", e os vê erráticos, sem objetivo algum, sujeitos às enfermidades, e conversando com ninguém. A origem desta dissociação psíquica (o esquizofrênico não é um de mente) era muito difícil de concretizar. Possivelmente se apresentou na infância, ou juventude, do Yehohanan, e de forma insidiosa. Ninguém se precaveu do problema e, silo fizeram, pouco puderam fazer em seu favor. À margem da predisposição genética, outros fatores, com toda probabilidade, influíram no desenvolvimento do progressivo desmantelamento do eu. Possivelmente algum tipo de complicação durante o embaraço, possivelmente a já mencionada trisomía, possivelmente a extrema solidão ou a falta de amigos ou, quem sabe, possivelmente a influência do pai ou da mãe. Seja como for, o certo é que os "nemos" detectaram uma subversão importante em determinadas regiões cerebrais que estava conduzindo ao Anunciador a um delicado desequilíbrio. Só esta precária situação explicava os anômalos comportamentos, as crises de agressividade e a tendência a permanecer isolado. E me perguntei: qual era seu futuro? Conhecíamos, ou acreditávamos conhecer, o desenlace final: Yehohanan, supúnhamos, seria detido pelo Herodes Antipas e, finalmente, executado. Mas não referia a esse final. Meu pensamento foi em outra direção. Como reagiria quando o Mestre ficasse em marcha? Como interpretaria a mensagem do Filho do Homem, totalmente oposto ao de um Yavé vingativo e castigador? Se a desintegração da personalidade do Yehohanan
continuava seu processo, a que classe de precursor nos enfrentávamos? Ou não foi tal? E por minha mente desfilaram cenas que agora sim compreendia ou, ao menos, acreditei entender: Yehohanan, com a inseparável colméia ambulante... Yehohanan, ameaçando com o fogo e a espada do Yavé... Yehohanan, sob a árvore da sófora, meditando enquanto caminhava em círculo... Yehohanan, no bosque das acácias, trasvasando farinha de uma cántara a outra, e subido nos ramos das árvores, solicitando pão aos pássaros... Yehohanan, na solidão do Firán, golpeando as águas com o talith de cabelo humano... Yehohanan e seus exércitos... E senti tristeza, uma vez mais. Yehohanan era um doente. Dois dos evangelistas souberam, mas tampouco o mencionam. Andrés e seu irmão Simón conviveram com ele durante um tempo. Também os Zebedeo estiveram a seu lado... por que não referem o singular comportamento do Anunciador? A explicação é óbvia: não interessava. Eliseo me apressou. Concluída a investigação sobre o Yehohanan, o objetivo era eu. Por isso estávamos ali. E o medo entrou de novo no "berço". Não pude evitá-lo. "Algo" me advertiu. A intuição... Guardei silêncio e me injetei a correspondente dose de "nemos". Era o entardecer da quinta-feira, 27 de dezembro. Nesta ocasião prescindimos do cajado. Os "minisubmarinos orgânicos" transmitiram diretamente a Santa Claus ". E essa mesma noite ordenamos as leituras. Foi um raio de esperança. Em uma primeira revisão, o estado deste explorador se apresentou relativamente aceitável. Meu companheiro participou da alegria. O avanço do óxido nitroso (NÃO), responsável pela destruição dos grandes neurônios, tinha sido freado. A ação do antioxidante, a dimetilglicina, foi decisiva. Aí concluíram as boas notícias... Uma segunda quebra de onda de squids começou a desenhar um panorama menos alentador. Ao interromper a medicação na garganta do Firán, a "ressaca psíquica" prosseguiu
seu avanço destruidor em outras direções. O NÃO se manteve temporalmente "dormido", esquecido em sua antiga fronteira. Mas as mutações do DNA mitocondrial afetaram a outros sistemas, propiciando alterações que, a sua vez, traduziram-se em abatimento generalizado, fugazes perdas de cor, confusão, e fulminações, por possíveis seqüestros do fluxo sangüíneo a nível de artérias vertebrais ("roubo de subclavia"). Isto explicava por que caí fulminado em duas oportunidades, com grave risco de perder a vida. Mas havia mais... A dissociação entre o consciente e o subconsciente, uma das mais graves conseqüências dos sucessivos investimentos axiais dos eixos dos swivels, despertou a outro pouco recomendável inimigo: o estresse, afiado como uma cuchilla de barbear. O subconsciente, sempre mais sábio, deu a voz de alerta. Algo não ia bem. E apareceu um medo pouco comum, sem explicação aparente. Um medo que me perseguiu, especialmente no Firán. Imediatamente, ante a alerta interior, ativavam-se os centros de raciocínio da casca, desencadeando o processo para combater o estresse. As vias neuroquímicas ficavam em marcha. A amídala cerebral recebia a mensagem e liberava o hormônio de corticotropina, estimulando o caule cerebral que, a sua vez, despertava ao sistema nervo sou simpático. Finalmente, as glândulas suprarrenales produziam a adrenalina, que deveria atuar sobre coração, músculos e pulmões, me preparando para uma possível "fuga" ou, possivelmente, para o "combate". O problema é que essa alerta interior não podia ser reduzida com o hormônio do estresse. Não era uma ameaça "visível" para o organismo. E as descargas de adrenalina só criavam confusão em meu já confuso cérebro... A situação se fez virtualmente crônica e o estresse, alimentado pelo subconsciente, terminou por afetar a outras áreas sagradas do cérebro: a casca prefrontal, o hipocampo e o lóbulo temporário, todas elas de vital importância na hora de armazenar memórias. Segundo os "nemos", esta foi a razão que provocou o estado amnésico.
A alteração no lóbulo temporário arrastou a uma amnésia retrógrada, com a perda do "passado". Por sua parte, a "intoxicação" do hipocampo, saturado pelos glucocorticoides, manteve-me em um contínuo presente, sem possibilidade de formar novas memórias. Por fortuna, nenhuma destas regiões cerebrais resultou lesada, de momento. Mas a ameaça seguia ali. O estresse não tinha desaparecido... E foi possivelmente uma das brutais descarrega de cortisol, um dos hormônios segregados pela casca suprarrenal, o que freou a produção de melanocitos, as células existentes na epiderme e na derme e que são as responsáveis pela sintetización da melanina. Dita alteração pôde branquear os cabelos quase instantaneamente. Outras leituras apontaram em direções diferentes, embora todas relacionadas com o fortísimo estresse. E se produziu o golpe de graça... A partir deste "descobrimento", todo o anterior passou a um segundo plano. O engenheiro não foi informado, de momento. Fiquei tão confuso que, durante um tempo, permaneci ausente. Eliseo se retirou a descansar e eu continuei frente ao computador, tentando descobrir o engano dos "nemos". Infelizmente, a busca e a transmissão dos squids foram corretas. E aquela noite foi interminável... meu deus! Solicitei novas verificações, mas as leituras da Santa Claus" não variaram. O veredicto era implacável. É mais: o ordenador assumiu a parte da culpa que lhe correspondia. Meses antes, em 15 de agosto, ao efetuar o terceiro "salto" no tempo, "Santa Claus" e quem isto escreve nos equivocamos. Ao examinar as microfotografias obtidas pela RMN (ressonância magnética nuclear), que foi disposta nos escafandros, descobrimos uns microscópicos depósitos esféricos que flutuavam no hipocampo. Equivocadamente, como digo, associamo-los a um polipéptido (agregado da proteína amiloide beta). Deus santo, que engano! E comecei a suar. Foi o medo. Agora, os "nemos" tinham esclarecido a verdadeira natureza de tais depósitos esféricos.
Eram "tumores"! Nesses instantes, dezenove, em "distribuição miliar", e repartidos no pé do hipocampo, no mais profundo do cérebro. Não soube se era uma conseqüência da oxidação. Pouco importava. E pouco importava, igualmente, que nos tivéssemos equivocado. Estávamos onde estávamos. Essa era a realidade. A verificação do resto do cérebro foi negativo. As regiões próximas -especialmente a fimbria, o uncus e o trígono colateral- apareciam podas. Na língua foi localizado outro foco de amiloide, um "tumor" similar aos do hipocampo. O pânico me paralisou. E ali permaneci, até o amanhecer, contemplando a pequena constelação de "tumores", e indagando sobre o que já sabia: "morte a curto prazo". Morte? a curto prazo? por que a mim? A amiloidosis é um transtorno originado pela proteína fibrilar amiloide, que se acumula ao redor e no interior dos nervos, alterando a função normal dos sistemas. Eu estava à corrente de dita patologia, mas nunca pude imaginar que os investimentos de massa a fizessem aparecer em meu organismo. Além disso, por que no cérebro? Quão habitual afete a outros órgãos, como o coração, os rins, o baço, os pulmões, o fígado, a pele, os copos sangüíneos... E o que importava? Tinha surto. Estava ali. meu deus! Contei-os. Voltei-os a analisar. Estudei sua disposição e possíveis conseqüências. Juízo do ordenador, ratificado por quem isto escreve: se a amiloidosis prosperava e colonizava o resto do cérebro, a morte chegaria em seis meses. Prazo máximo: seis meses! Se o mal aparecia em outros órgãos vitais, no coração ou rins, por exemplo, se a amiloide se acumulava neles, e entorpecia o funcionamento, podiam apresentar uma afecção cardíaca (bem uma cardiomegalia, uma insuficiência rebelde ou qualquer das arritmias habituais) ou um síndrome nefrótico. Ambos os supostos eram igualmente perigosos. Com sorte (?), minha vida se prolongaria um pouco mais. Possivelmente um ano...
Tanto "Santa Claus" como eu ignorávamos as causas exatas que conduziam à produção de amiloide e, portanto, resultava arriscado qualquer tipo de tratamento. Achávamo-nos com as mãos atadas. Sobre tudo este explorador... Aquilo foi um mazazo. Seis meses, ou um ano, não tinham nada que ver com a expectativa de vida que tínhamos suposto tempo atrás, quando Eliseo, sem autorização, abriu a caixa secreta de aço que continha as Drosophilas do Oregón. Como já mencionei, aquele experimento com as moscas do vinagre marcou um prazo, não superior a dez anos. E o aceitamos. Não importava viver nove ou dez anos; a operação o merecia. Agora, entretanto, tudo se desmantelava. Tudo se veio abaixo em questão de horas... Não devíamos continuar; não em semelhantes condicione. A operação tinha que ser cancelada. Os "tumores" não perdoavam. Não podíamos sacrificar o já obtido. Era preciso retornar. E da surpresa e a consternação fui passando a uma gradual e incontenible tristeza. Deus! Tudo perdido! E as lágrimas se explicaram melhor que eu. Foi um pranto sereno, até o alvorada. Ele, o Mestre, ocupou todo meu coração. Também ela... Adeus, MA'ch! Aquela sexta-feira, 28, foi igualmente complexo. Aconteceram coisas difíceis de explicar. Ou fui eu quem não compreendeu? À angústia vi obrigado a acrescentar outro incômodo sentimento. Melhor dizendo, uma dobro e pouco reconfortante tarefa, que removeu, ainda mais, meu turvo e agitado ânimo. Não mencionei minha sorte e, sem mais, solicitei do Eliseo que se submetesse à prova dos "nemos". Era o momento de conhecer sua situação. Também ele se achava detento do mal que nos afligia, desde o primeiro investimento axial dos eixos dos swivels. Percebeu algo. Estou seguro. O engenheiro era intuitivo, quase como uma mulher. Mas guardou silêncio. E, docilmente, deixou-se injetar. Negativo.
Alegrei-me por ele. A destruição neuronal avançava, mas não ao ritmo experiente por este explorador. A dimetilglicina fez seu efeito. O óxido nitroso caminhava, mas passo a passo. Se voltávamos, ainda estaria a tempo. Possivelmente a vida o sonriera um pouco mais que a mim... Pobre tolo! Nunca aprenderei que tudo está escrito. E procedi a anunciar minha decisão. -Voltamos! Não pareceu surpreso. Finalmente, desde detrás de um sorriso, exclamou satisfeito: -Sabia, maior! Sabia que voltaríamos com Ele! Não tinha entendido... -Retornamos a Casa de campo! Não lhe dava opção. Não lhe permiti falar. E mostrei as leituras da Santa Claus"... -Máximo: seis meses... Esta vez não ocultei nada. Olhou-me chateado. Não era médico, mas sabia que o computador dificilmente errava. -Tumores!... Assim era. De momento, vinte. Prazo de vida aproximado, seis meses. -Tem que haver um engano! -bramou-. Não podemos abandonar! Agora não!... Seguro que é um engano! Não o era. O engenheiro verificou as conclusões do ordenador até três vezes. Condena a morte... E, de repente, seu rosto se iluminou. Assinalou uma das "recomendações" da Santa Claus" e me obrigou a lê-la. Já o tinha feito. Li-a dezenas de vezes durante essa noite. Neguei com a cabeça. E acrescentei: -Não..., muito arriscado. -Mas... O ordenador central propôs a intervenção dos "nemos quentes", como o único sistema "para limpar, provisoriamente, o caminho". Como já citei, os "quentes" eram "robôs orgânicos", desenhados para "combater" todo tipo de problemas. Eram hábeis "cirurgiões", capazes de abrir-se passo até as regiões mais íntimas do organismo. Mas
existia um risco. As neoplasias ou malhas tumorales (refiro-me sempre aos malignos) não oferecem um campo magnético definido e isso dificulta sua destruição. O perigo se achava na possibilidade de que os "caçadores" equivocassem o objetivo e danificassem tecidos sãs. "Santa Claus" estabeleceu a margem de engano em 20 por cento. -Está decidido -sentenciei-. Retornaremos a nosso "agora". A intervenção dos "nemos" é perigosa... Não disse toda a verdade. Senti medo. Se os "caçadores" erravam, quem sabe o que poderia me acontecer. O hipocampo e as regiões próximas são muito delicados. A destruição de um segmento vital podia significar uma paralisia, a perda de visão, da fala e, é obvio, a morte. Senti medo... Eliseo não dava crédito a minhas palavras. Tinha razão. Não era a primeira vez que ordenava o retorno. Agora, entretanto, era diferente. Não tinha alternativa. Deixamos passar os minutos. Nenhum dos dois soubemos o que dizer. Ambos recebemos um duro golpe, embora as motivações -agora sei- não eram as mesmas... Eu o lamentei pelo Mestre. Tinha-me acostumado a sua presença. O engenheiro, entretanto, tinha outras "razões", e não a que supus nesses tensos momentos. Quanto ao MA'ch... -Quando? O tom do Eliseo eu não gostei. -Imediatamente -abreviei-. E não terá despedidas. É melhor assim. -Imediatamente? Isso quer dizer... -Hoje mesmo. O olhar do engenheiro se endureceu. Acreditei ver acontecer o ódio, mas não cedi. Então deu meia volta e saltou ao exterior. Vi-o afastar-se para a macieira da Sodoma e desaparecer. Maldita seja! Como se atrevia a desobedecer? Fomos militares! Durante alguns minutos fiquei perplexo. Depois, eu também descendi da nave e me aproximei do precipício, pela cara norte. Supus que sua intenção era alcançar Nahum e, quem sabe, possivelmente despedir-se da Ruth... Até esses instantes, não tinha motivos para desconfiar do engenheiro.
Passamos por bons e maus momentos, mas sua fidelidade era irrepreensível. Tinha que confiar. O mais provável é que tivesse sido vítima de um arrebatamento, mais que justificado, por certo. Voltaria. Estava seguro. Mas, ao aparecer em escarpado, não acertei a vê-lo. Que estranho! Ingressei no "berço" e verifiquei os controles. Os cintos de segurança tinham sido desconectados pelo Eliseo. Isso significava que desejava abandonar o "porta-aviões". Retornei de novo ao fio do penhasco e inspecionei a pista de terra vulcânica que rodava ao pé do Ravid e que comunicava as populações do Maghar e Migdal. Nem rastro. Possivelmente não tinha saído da zona de segurança. E me tranqüilizei. Possivelmente precisava pensar. Os dois o necessitávamos... Mas, ao pouco, "Santa Claus" deu a alerta. Os sistemas de segurança foram restabelecidos. Eliseo se afastava da cúpula do Ravid. E o vi caminhar, com pressas, rumo à população costeira do Migdal. Não tive dúvida. dirigia-se ao Nahum. E a raiva pôde comigo. Encerrei-me no módulo e tentei achar uma solução. Só encontrei uma... Eram as onze da manhã da sexta-feira 28. Daria-lhe um prazo, até o amanhecer do dia seguinte. Se não havia tornado para então, separaria em solitário e voaria a Casa de campo. Essa foi a decisão... E juro Por Deus que foi uma determinação fria e calculada. Se não dava sinais de vida, deixaria-o naquele "agora". No fundo, agradeceria-o... Segundo os relógios do "berço", o orto solar de 29 de dezembro se registraria às 6 horas, 36 minutos e 47 segundos. A sorte estava arremesso. Nesses instantes não senti remorsos. O primeiro era salvar o conseguido. Quanto ao Curtiss e demais responsáveis pela operação, improvisaria. Algo me ocorreria. Além disso -me consolei (?)-, ficava a possibilidade de retornar e obrigá-lo a voltar. Mas esse não era meu trabalho. Equivoquei-me. Duas horas mais tarde, os cinturões protetores foram súbitamente
anulados. Era o engenheiro! Esperei-o ao pé da nave. Imaginei que se arrependeu a metade de caminho. Pobre ingênuo! Nunca aprenderei! Chegou carregado. Levava provisões e uma cántara de médio porte, com uns dez log (ao redor de seis litros) de "vinho de zimbro", um licor robusto, extraído do Juniperus communis, e com um certo parecido a nossa genebra. Como não fui capaz de descobrir suas verdadeiras intenções? desculpou-se, lamentando sua primeira reação. Permaneceu um tempo à sombra da macieira da Sodoma, refletindo. Isso disse. Depois se apresentou na plantação do Camar, o beduíno solicitou o referido "vinho". Não o conseguiu e teve que deslocar-se até a vizinha localidade do Migdal, na borda ocidental do yam, a coisa de dois quilômetros do Ravíd. Ali comprou a cántara e a abundante ração de "zimbro". Depois se fez com a comida e subiu até o "porta-aviões". -Sinto muito, maior. Equivoquei-me. Tem toda a razão. Devemos partir, e sem despedidas... O instinto avisou. A atitude do Eliseo não era normal. por que renunciou às despedidas? por que o "vinho de zimbro"? Mas, como um perfeito estúpido, não soube vê-lo, não fui rápido... -Quando separamos? Pergunta-a, tão inesperada como sua presença, desconcertou-me. -Não sei... -Sim -me abordou, sem permitir que concluíra-, primeiro terá que dispô-lo tudo. Deixa o de minha conta... Sorriu com picardia e acrescentou: -Você te ocupará do jantar. O zimbro é de primeira classe... Não entendi, mas aceitei. O engenheiro se introduziu no "berço", e supus que empreendeu os trabalhos prévios e rotineiros à decolagem. Assim foi, em certo modo... E como tínhamos por costume, acomodamo-nos perto da nave, sobre uma das lajes de pedra que atapetavam o vértice do Ravid. Foi um jantar - como defini-la?- áspera, carregada de silêncios e de olhares, a qual mais desconfiada. Algo me fazia recear, mas, insisto, não soube vê-lo.
E começamos a beber. E por que não? Tudo estava liquidado. Ao terceiro copo, os vapores do licor fizeram efeito e as suspeitas se afastaram. As línguas se soltaram e apareceram os brinde... Faltava uma hora, mais ou menos, para o ocaso. -Por Ele!... Pela vida!... Por ela!... Por nós! Foi em um desses brinde, ao mencionar a palavra lehaim ("pela vida"), quando Eliseo exclamou: -Proponho-te algo... E solicitou a peonza que foi dada de presente dias antes, na festa da Janucá. fui procurar a e a pus em suas mãos. -E agora, disposta atenção... Enchemos os copos por enésima vez. Tudo começou a dar voltas. O zimbro era mais traidor do que supunha... -Deixemos a volta nas mãos do Destino..., com maiúscula, como você diz... -Que volta? O engenheiro sorriu, agradado. Quem isto escreve estava mais bêbado do que ele necessitava. -A Casa de campo -esclareceu Eliseo, sem perder aquele inquietante sorriso-. Nossa volta a casa... -Compreendo -menti-, e o que sugere? Mostrou a peonza de salgueiro e proclamou: -Farei-a girar... Se a letra ganhadora, de novo, é a nun (inicial da palavra hebréia nes ou "milagre"), então permitirá que baixe ao Nahum e que me despeça... -Isso seria um milagre... -Em efeito... Está de acordo? Encolhi-me de ombros. Era justo. O engenheiro deu impulso ao zevivon, e o brinquedo girou e girou sobre a pedra azulada... O que estava passando? Tudo era muito estranho. A peonza começou a bambolear-se. Não demoraria para deter-se. Aproximei-me. Queria estar seguro. Mas, de repente, Eliseo apanhou a perinola e levantou a mão, ao tempo que exclamava: -Melhor ainda!... Entre as brumas do álcool acreditei distinguir o cinismo, pendurado do sorriso do engenheiro. -Melhor ainda! Se a letra ganhadora for nun, então iremos juntos e nos
despediremos do Mestre... A proposta me recordou algo. Eu também joguei aos "sinais" na ilha, mas não cumpri. -Aceita? E por que não? Eliseo acrescentou, convencido, ou melhor dizendo, supostamente convencido: -Sabe: O faz milagres. Possivelmente possa te sanar... Palavras premonitorias, que nenhum dos dois tomamos a sério. -Isso sim que seria um milagre -acrescentei, sem medir o alcance do que insinuava. Sempre fui um estúpido! -Aceita? Pinjente que sim. Despediríamo-nos do, e dela... Evidentemente, estava mais bêbado do que acreditava. Lançou a peonza pela segunda vez e a vi dançar. A nun, dourada, refletiu os últimos raios do entardecer. Nun!... Um milagre?... Impossível! E a ponto de cair sobre uma das quatro caras, Eliseo repetiu a manobra. Capturou o zevivon e o elevou novamente. E com a peonza no interior do punho, declarou, triunfante: -Melhor ainda, maior!... Apurei o zimbro e enchi os copos. -Outro milagre? -balbuciei com dificuldade-. O que propõe agora? -Se sair nun... Pareceu-me que duvidava, mas prosseguiu: -Se a ganhadora for nun, você volta para casa e eu fico. -Vejamos se o entendi -expressei como pude-. Se sair "milagre", eu vôo a Casa de campo, e você fica aqui, para sempre... -Isso... Aceita? -Teria que pensá-lo... As ordens... Eliseo depositou a peonza sobre a pedra e se dispôs a mobilizá-la. -A mierda as ordens!... Aceita? Não sou consciente de haver dito nada. Possivelmente disse que sim, ou possivelmente me neguei. Não consigo recordá-lo. Pouco importa. A questão é que o pequeno trompo girou pela terceira vez... E ambos tratamos de manipular a peonza com o pensamento. Eu, ao menos, sim desejei que aparecesse a inicial de "milagre". Quanto ao
Eliseo, com mais razão... Nun! Fez-o de novo. O Destino o fez (!). A ganhadora foi a letra nun. tive dias melhores, mas jamais esquecerei a cara do zevivon, com a inicial dourada, nos olhando. É obvio que foi outro "sinal" dos céus, a segunda, mas este explorador não estava em condições de compreender. Nem isso, nem nada... Não tenho muito nítido o que aconteceu depois. Bebemos e bebemos. Cantamos. Abraçamo-nos. Despedimo-nos, uma e outra vez. Riscamos toda sorte de planos. Eliseo se casaria com a Ruth. Teria filhos. Alguém se chamaria Jasão. O engenheiro escreveria a verdadeira história do Mestre. Depois, ocultaria-a à beira do mar Morto. Eu retornaria a meu "agora". Sanaria dos "tumores". Resgataria o escrito por meu companheiro e o mundo saberia a verdade. Falamos, inclusive, da cova em que Eliseo esconderia os manuscritos... Depois caí dormido. Jamais tinha bebido tanto. À manhã seguinte, sábado, 29 de dezembro do ano 25, meu despertar foi espantoso. O "vinho de zimbro", efetivamente, era um traidor. Quem isto escreve continuava sobre a pedra. Tudo girava a meu redor. E de repente, vi-a. Era a perinola de madeira, na mesma posição em que ficou depois dos últimos bamboleios, com a letra nun para o céu, me recordando o acontecido. Achava-me sozinho. E, como pude, incorporei-me à nave. O engenheiro se encontrava frente ao ordenador central. Saudou eufórico. Não conseguia entendê-lo. O bebeu tanto como eu. Como era que mostrava aquele semblante luminoso e semelhante frescura mental? Acredito que quis dizer algo, mas não emprestei atenção. Fui diretamente a meu beliche, e ali permaneci durante horas, profundamente dormido. Foi o melhor que pôde acontecer... Mas vamos passo a passo. Ao despertar, com e1 ânimo mais cometido, atendi a meu companheiro. Desejava me ensinar um curioso descobrimento. "Santa Claus" tinha tomado parte ativa nos cálculos.
tratava-se das letras hebréias gravadas na peonza. Como já mencionei, nas quatro caras figuravam as iniciais nun, guimel, hé e shin, primeiras letras das palavras nes, gadol, haid e sham, respectivamente ("milagre", "grande", "foi", "ali"). -Pois bem, sabe qual é o valor numérico das quatro iniciais? Eliseo, conhecedor da Cabala , tinha reduzido cada letra a um dígito (o valor correspondente, em hebreu, segundo a técnica conhecida como gematría). Assim, a inicial nun equivalia a 50; guimel era o 3; hé era igual a 5, e shin, segundo os hebreus, era 300. Teclou e ofereceu a soma de ditos valores: 358. -E bem? -Observa... Solicitou a ajuda da Santa Claus" e vi aparecer na tela a palavra "Mesías". -Assombroso! -exclamou-. A soma das letras do Mesías" também arroja o mesmo resultado: 358. Comprovei o exposto pelo ordenador. As letras hebréias mem, shin, iod e jato, que formam a citada palavra, equivaliam a 40, 300, 10 e 8, respectivamente. Em total: 358, como tinha declarado Eliseo. Desconcertado ante minha falta de entusiasmo, o engenheiro estalou: -É que não o vê? É um sinal... -Um sinal? De quem? -Um sinal dos céus!... A soma das letras da peonza é idêntica a da palavra "Mesías"! Sim, tinha compreendido, mas... -Maldita seja! Isto é um milagre, maior! E Eliseo o interpretou a sua maneira: -Um grande milagre ocorreu ali, e o fez o Mesías... Ou: o Mesías fará um grande milagre ali... Ou: Mesías = milagre... Mesías (358) milagre grande foi ali (358)... Mais ainda: como sabe melhor que eu, a peonza representa o recipiente no que se guarda o azeite sagrado com o que se unge aos homens Santos. "Ungido" é, justamente, "Mesías"... Todo está encadeado. A perinola assinalou "milagre". A perinola é equivalente ao Mesías"... O fará o milagre! Vamos a sua presença! -Só é uma casualidade...
O primeiro surpreso, ante semelhante estupidez, foi quem isto escreve... E acrescentei: -Além disso, está em um engano... Eliseo repassou os cálculos e se ratificou no dito. Onde estava o engano? -Sabe muito bem: o Mestre não é o Mesías. É muito mais que isso... -Sei -se defendeu o engenheiro-, mas isto é simbologia. Não te dá conta? Alguém está transmitindo algo... Neguei com a cabeça. Ainda não entendo o porquê de minha atitude, tão fechada e inconseqüente com o que tinha vivido. Mas assim aconteceu e assim devo contá-lo. Eliseo não se rendeu. Teclou novamente e "Santa Claus" obedeceu. -Joga uma olhada... O ordenador ofereceu outra interpretação cabalística. A inicial nun se achava incluída, e por partida dobro, nas chamadas "emanações divinas" ou Sephiroth. Uma delas era Nethzah, que representa o "criado" ou "visível". A outra é denominada Binah, e simboliza o "superior" ou "invisível". -Compreende? O perito era ele. -O invisível, ou superior, está sobre nós, o visível! Nethzah sobre o Binah! -Sigo sem entender... Eliseo me olhou desconcertado, com razão. O que me acontecia? Até um cego o tivesse visto... -Nun, da palavra "milagre", foi a letra que prevaleceu sobre as iniciais do zevivon. Nun ganhou cada vez que temos feito girar a peonza. Não te diz nada? O superior (O), sobre o visível, criado-o (nós). Isso é o milagre... E ocorrerá duas vezes! Deixou-me respirar e sublinhou: -O Mestre sobre nós! O fará o milagre! Não o duvide! O te sanará! Mas duvidei. E Eliseo, aparentemente derrotado, queimou o último cartucho, em seu afã por me convencer. Foi a temurá, outra das técnicas cabalísticas, e solicitou que comprovasse o resultado. Ao permutar as letras da palavra "Mesías" surgiu o término Yisamejá, de idêntico valor numérico. Fiquei atônito. -O que diz a isso? Outra casualidade? Yisamejá queria dizer "Se alegrará".
-O (o Mesías) alegrará-se..., ao nos ver. Sabemos onde está. Vamos, maior! São sinais! Algo grande está por acontecer! Um milagre aconteceu ali! O invisível, o conhecimento, guiará-nos! Não lhe permiti continuar: -Negativo. Isso são teorias, especulações... Os "tumores" sim são reais. Não devemos correr mais riscos. Ele está nos bosques... O entusiasmo do engenheiro se desinchou. A partir daí começaram as recriminações: -Ontem à noite chegamos a um acordo... -Estávamos bêbados. Melhor dizendo, eu o estava... -O que quer dizer? Tratei de evitar o enfrentamento. Não o consegui. E a situação piorou. Eliseo me tachou de covarde, e indigno do. Possivelmente tinha razão, mas não o consenti. Chamei-o o ordem, invocando minha graduação superior. Foi inútil. Eliseo, fora de si, tomou suas coisas e saltou do módulo. Segui-o, ameaçando-o separando e deixá-lo ali para sempre. -Retorna! gritei, não menos alterado. Não se dignou me olhar, e seguiu avançando para a muralha romana. -É uma ordem!... Retorna, ou separarei sem ti! Então se voltou, e recuperou aquele cínico e insofrível sorriso. Fui para ele disposto a tudo. Se era preciso, arrastaria-o e o amarraria ao "berço". Mas, ao chegar a sua altura, exclamou com uma segurança que me freou, e que, é obvio, não soube interpretar: -Duvido-o! -Como há dito? -Duvido-o, maior! E se manteve firme no cinismo. Não separará! Achava a escassos centímetros. Minha respiração era agitada. A sua, não. Foi essa estranha segurança o que me desconcertou. Sustentou o olhar e, impassível, acrescentou: -A missão não terminou! -Do que está falando? limitou-se a forçar o sorriso, e assim permaneceu durante uns segundos, desafiante.
Fiquei parecido ao terreno, incapaz de reagir. -Sabe onde me encontrar... Deu meia volta e se afastou para a base do Ravid. por que não reagi? O que quis dizer? A missão sim tinha concluído, ao menos para mim... Não demoraria para descobri-lo. Durante um tempo não soube o que fazer. Dava voltas em torno da nave, com os pensamentos perdidos. Sabia muito bem que Eliseo não retornaria. Esta vez não... Mas estava disposto a cumprir o que estimei conveniente. Separaria, e o faria sem ele. A situação foi desesperador. Repassei os "achados" cabalísticos e reconheci que eram assombrosos. Ali, efetivamente, escondia-se "algo" enigmático, mas não cederia. Um novo engano, um percalço como o que tinha padecido em Salem, tivesse sido trágico. Podia O me curar? Podia Jesus do Nazaret eliminar os "tumores" de meu cérebro? Provavelmente, mas... Não, esse não era o caminho. Jamais solicitaria uma coisa assim, não para mim... Agora, sabendo o que sei, estremeço-me. Eliseo acertou, mas não como supunha... O fez um milagre! Foi outra noite em vela. Era capaz de deixar em terra a meu companheiro? Faria-o. "Não pode -me recriminava uma e outra vez-. Seria como assassiná-lo... Não é certo. Seria o melhor que poderia lhe ocorrer. O está apaixonado... " E a luta, corpo a corpo comigo mesmo, prolongou-se até o amanhecer. Tinha que decidir, e o fiz. Lancei um último olhar ao exterior e, convencido de que Eliseo não retornaria, procedi a me embainhar o traje espacial, desenhado para o processo de investimento axial dos eixos dos swivels. E me dispus para o lançamento. "Santa Claus" o faria virtualmente tudo. Só era questão de vontade. 6 horas y50 minutos. A cinco do aceso do motor principal... O ordenador seguiu checando. Sistemas em automático... 6 horas e 53 minutos... Combustível: 7.124,68 quilogramas, mais a reserva. Suficiente para chegar
à meseta de Casa de campo. Um minuto para a ignição... Não sei o que me ocorreu, mas detive a conta atrás. Minto, sim, sei... Desfiz-me do traje e fugi do "berço". Me sentei no fio do escarpado e tentei controlar os nervos. Não podia separar! Não o faria sem meu companheiro! E assim permaneci durante horas, com a vista perdida nas longínquas velas que sulcavam o yam. Finalmente, como um pesadelo, a razão se sentou a meu lado... "É preciso que o faça. Desapega. Se não o fizer, o mundo nunca saberá..." E obedeci. Retornei ao módulo e o dispus tudo, novamente. Eram as 16 horas e 42 minutos do domingo, 30 de dezembro do ano 25 de nossa era. O sol se ocultou, aterrorizado. Separaria! A um minuto para o aceso do J 85... "Santa Claus" "obedeceu" com doçura. Revisei os sistemas. Todo OK, de primeira classe... 30 segundos... Dispu-me mentalmente. A vibração da turbina a jorro CF-200-2V se produziria imediatamente, assim que "Santa Claus" desse por boa a contrasenha que ativava a pilha atômica, o "coração" do "berço". Ignição! E durante décimas de segundo, esperei... Negativo. O motor principal não respondeu. O que acontecia? O ordenador replicou a meus requerimentos: "Abertura da SNAP 27 não autorizada." A SNAP (Systems for Nuclear Auxiliary Powers), como já informei em seu momento, era a bateria que transformava a energia calorífica do plutônio radiativo em corrente elétrica (50 W). Sem ela, a nave não funcionava. Não podia acreditá-lo. Repassei os sistemas, uma vez mais, mas sempre desembocava no anúncio do computador: a pilha atômica se achava desconectada. Era absurdo! A SNAP entrava em ação mediante uma chave que nós mesmos proporcionávamos a Santa Claus". Pura rotina, inclusive ridícula, dado o "agora" no que nos
achávamos. Até esses momentos tínhamos utilizado duas contra-senhas. A primeira, no primeiro "salto": "1-60-8. Quais são estes que voam como uma nuvem?" A segunda, adotada pelos diretores do projeto em 10 de março de 1973, consistia também em um número e em uma frase: "9 TET. A fonte do conhecimento." Se o ordenador não dispunha da chave, a SNAP, como digo, ficava automaticamente bloqueada. Absurdo! E teclei: "9 TET. A fonte do conhecimento." Negativo. Deus santo! E um pensamento cruzou fugaz... Não era possível! Todos os intentos resultaram estéreis. A chave foi apagada, e supus que, em seu lugar, "Santa Claus" recebeu outra contra-senha. Mas o sistema estava desenhado de tal forma que, se alguém solicitava dito santo e gesto, o ordenador central não se achava capacitado para revelá-lo. Simples questão de segurança. Fomos nós quem o conhecia. "Santa Claus" se limitava a checar. Pensei nos espelhos metálicos auxiliares. Também geravam eletricidade, mas não podia me arriscar. Esta fonte energética era muito limitada. O mais provável é que não alcançasse meu objetivo. E aquele pensamento me desarmou... Eliseo! O era o único capacitado. O anulou a chave e, provavelmente, substituiu-a por outra que eu ignorava. Maldito! O que pretendia? E compreendi suas últimas palavras: "Não separará!... A missão não terminou! Por mais voltas que lhe dava, não fui capaz de assimilá-lo. A que se referia? A missão, infelizmente, sim tinha concluído. Foi inútil. Não consegui adivinhar os propósitos do engenheiro, caso que os houvesse. Tudo era confusão. Deduzi que Eliseo alterou a contra-senha na tarde da sexta-feira, quando se emprestou -espontaneamente- a iniciar os trabalhos rotineiros prévios à decolagem. Ou foi durante a bebedeira? Pouco importava. A questão é que o calculou fríamente.
Sim, tudo foi confuso... Recordava suas palavras, enquanto bebíamos, apostando por meu retorno a Casa de campo. O ficaria -isso disse- e eu retornaria a 1973. Mas, se pensava assim, por que impediu a decolagem da nave? Algo não encaixava... Sabia onde encontrá-lo, é obvio. E o faria. Exigiria-lhe uma explicação. Mais ainda: esmagaria-o como a um verme! 31 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA
Sou assim. Reajo com lentidão, mas como uma onda, incontenible. E essa noite do domingo, 30, fui me elevando conforme passavam os minutos. Uma cólera, rampante, conquistou-me. Sei, não era o que ensinava o Mestre. Sou humano. E toda classe de maus presságios se deram entrevista em meu coração. Odiei ao engenheiro. Acabaria com ele se era preciso. Era um miserável... E cego de ira, fui elaborando planos. Chegaria a ele e lhe arrancaria a contra-senha. Se era necessário, arrebataria-lhe os antioxidantes. Não demoraria para sofrer o mesmo mal que eu padecia, ou possivelmente pior. Então o obrigaria a suplicar. E se não me proporcionava a nova chave? Torturaria-o. Empregaria a "vara do Moisés"... Agora me assombro. É possível que o ódio alimente pensamentos tão irracionais? E com os primeiros raios do sol da segunda-feira, 31 de dezembro, quem isto escreve abandonou o Ravid, disposto a terminar com aquela situação e, de passagem, com o traidor. Nunca aprenderei... Kesil, o amigo e servente, não se surpreendeu à lombriga aparecer na ilha. Eliseo lhe advertiu de minha chegada. Tinha-o tudo disposto. Sabia que eu iria depois dos passados do engenheiro, embora não podia suspeitar os autênticos motivos. Eliseo partiu do Nahum na manhã do dia anterior e com um destino sabido pelo Kesil: a aldeia da Jaraba, ao norte, nos bosques da Gaulanitis, na tetrarquía do Filipo. Kesil não perguntou o porquê do estranho comportamento de um e de outro. Estava acostumado a nossas "raridades". Tão logo achávamos em
um lugar como desaparecíamos. Eu sim me perguntei sobre as pressas do Eliseo. por que não esperou no Nahum? Sabia muito bem que o buscaria. Teve medo? Não o considerei sequer. O engenheiro era um miserável, mas não um covarde. Algo tramava. Ambos tínhamos conhecimento do novo paradeiro do Mestre, nas colinas do Attiq, relativamente perto da referida aldeia da Jaraba. E nesses instantes, a enigmática frase do engenheiro voltou para mim: "A missão não terminou..." O que procurava junto ao Mestre? O Mestre! Sinceramente, nessas circunstâncias, não o tive em conta. Minhas intenções, como digo, eram outras. A missão, insisto, tinha finalizado. Os "tumores" cerebrais não eram uma brincadeira. Não importava. Procuraria o Eliseo, ali onde estivesse. Amém de esmagálo, se realmente desejava voltar para meu "agora", precisava da contrasenha para despertar a SNAP. Curioso Destino! Achava-me apanhado. Se pretendia retornar a Casa de campo, primeiro tinha que voltar a ver o Jesus do Nazaret. Eliseo estava com O... Incrível Destino! Eu não quis me despedir do Galileo! Kesil se negou a permanecer no Nahum. Eram as ordens do engenheiro. Por nada do mundo deveria permitir que partisse sozinho a Jaraba. A ordem do Eliseo me intrigou. Em um primeiro momento o associei a meu "delicado estado de saúde". Foi uma deferência para o "velho Jasão"? Não acreditei... Não tive mais remedeio que aceitar. Kesil me acompanharia. Para a terça (nove da manhã), deixamos atrás Nahum. Kesil, previdente, informou-se em relação com a viagem. Necessitaríamos roupa de casaco. As colinas do Attiq, no norte, não tinham nada que ver com a suavidade do yam. Nessa época do ano, e em condições normais, as precipitações eram abundantes. Às vezes, inclusive, nevava. Segundo os registros do "berço", a zona da Jaraba, no limite com a alta Galilea, jogava naquele tempo um índice meio de chuva superior aos setecentos milímetros
anuais. O caminho era conhecido para este explorador. Fizemo-lo em duas ocasiões, ao procurar o Mestre nas cúpulas do maciço do Hermón, e ao retornar, poucos meses antes. Era a transitado caminho que discorria quase paralela à margem esquerda do pai Jordão. Em total, segundo meus cálculos, ao redor de duas horas de marcha, até o cruzamento da Jaraba, de tão triste lembrança, no que tivemos um incidente com a gente do lugar. Ali conhecemos  "bom homem", o árabe que governava a caravana formada por arrieros negros, com túnicas vermelhas até os tornozelos, e os chamativos jumentos nubios, de pelagem rosada. Azzam ou "Bom homem" transportava uma carga de "vinho de zimbro". Ao pouco de iniciar a ascensão, na clareira que chamávamos do "ruivo", começou a chover. Kesil se apressou a resgatar os associação Americana de Advogados, ou capote de água, e prosseguimos a bom ritmo. Aquela nova aventura me pôs a prova. A pesar do "envelhecimento súbito", as forças, como já informei em outro momento deste apressado jornal, não se quebrantaram. Kesil falou pouco. Seu instinto lhe advertiu. Minha atitude, pouco comunicativa, não era normal. Algo me acontecia. Algo ocorria igualmente ao Eliseo. Mas o homem, sempre prudente, não perguntou. No fundo, agradeci-o. E durante boa parte do caminho fui repassando a situação. E cheguei a um ponto que quase não tinha exposto: se o engenheiro era vítima de um percalço, se perdia a memória, por exemplo, ou, no pior dos casos, se falecia, nenhum dos dois poderíamos retornar a nosso "agora". Era vital que tivesse acesso à contra-senha, aceitando que a houvesse... Eliseo morto ou amnésico? Jamais imaginei. Senti pânico. Nada daquilo estava previsto. Tinha que chegar a ele e lhe arrancar o santo e gesto da SNAP 27. Mas como obtê-lo? O engenheiro era muito inteligente, muito mais que este estúpido e ingênuo explorador. lhe suplicar? Não era meu estilo. Nunca o faria. Obrigá-lo? Eu sabia: chegado esse instante, apesar de meus anteriores pensamentos, não teria valor. Jamais o torturaria. Nem a ele, nem a ninguém. Então...
Não achei a solução. Possivelmente, o primeiro era localizá-lo e esperar a que se explicasse. Mas estes bons desejos se esfumavam à mesma velocidade a que apareciam. Destroçaria-o!, pensava a artigo seguido. Esmagaria-o! Torturaria-o! E assim me debati, entre o desejável e o irracional, até que nos desviamos do caminho principal e tomamos o caminillo que subia para a Jaraba. Achávamo-nos no tempo previsto. Possivelmente fora a quinta hora (por volta das onze). Só a chuva -e minhas tortuosas reflexões- tinha dificultado o caminho. Jaraba era um povoado de quinze ou vinte casas, a 498 metros de altitude, e aparecido em um nahal (rio) inquieto e jovem, que nascia nas alturas do este, e que recebia o nome do Meshushim. A corrente, encorajado pelas chuvas, saltava entre a maleza e as grandes rochas de basalto negro, rumo à costa norte do yam, perto do Saidan, onde morria. Os últimos lances foram os mais penosos. O barro se mesclou com a cinza vulcânica do senderillo e necessitamos mais tempo do previsto para entrar no villorrio. Finalmente, sob um forte aguaceiro, fizemo-nos com a aldeia, o centro "estratégico" e de aprovisionamento dos hoteb ou lenhadores da região. Jaraba vivia a maior parte do ano do que consumiam e precisavam quantos se aproximavam de suas terras durante o inverno, em especial, no corte de janeiro, na lua minguante. Seus bosques eram os melhores, e a eles acudiam dezenas de profissionais, tanto do yam, ou mar do Tiberíades, como de outras aldeias próximas: Dardara, Batra, Zamimra, Sogane, Gamala, Farj e, inclusive, Qaz rin. Ali se reuniam todos os que tinham relação com a madeira, bem artesãos de interior, bem construtores, bem proprietários de estaleiros, todos desejosos e necessitados de um bom lote de árvores. Incrível Destino! Como imaginar que estas latitudes seriam um dos "refúgios" do Filho do Homem durante o período de predicación? Os "escritores sagrados" (?) tampouco mencionam aqueles penosos dias, nos que o Mestre se viu obrigado a fugir. Mas volto a cair no engano de sempre: adiantar os acontecimentos...
Jaraba, como digo, era um punhado de casas, levantadas em pedra de basalto e com os telhados de madeira, sabiamente inclinados. Recordoume Bet Jenn, o casario da família Tiglat, quão montanheses assistiram ao Jesus durante sua permanência no Hermón. Algumas colunas de fumaça branca escapavam como podiam, surpreendidas pelo aguaceiro. Começamos a sentir o frio. Por certo, e não o mencionei até agora, ao abandonar o Ravid, devido, provavelmente, a meu estado de ânimo, esqueci a obrigado amparo da "pele de serpente". Era a primeira vez que saía sem ela. Oxalá não tivesse problemas... O resto do povoado era barro e mais gradeio. Alguns dos habitantes nos indicaram a casa de um tal Abun, apelidado Kol ("Tudo"). Ele sabia "todo". Ele o tinha "toda". A era a alma de "tudo", na Jaraba e arredores. O conseguia "tudo". Naturalmente, "Tudo" dispunha da casa maior do lugar. Vivia em uma espécie de repleto, no que quase era impossível dar um só passo. Ali, em duas habitações, amontoavam-se comestíveis, ferramentas, cordas de diferentes calibres, resina e até burros e cabras. No muro divisório -o que chamavam "parede janela"- se abria uma brecha quadrada, de algo mais de um metro de lado, pelo que saltava constantemente o dono do estabelecimento. Era uma casa típica, sem portas interiores. O acesso de uma habitação a outra se fazia pela referida "janela". Supus que era um procedimento para evitar os roubos, na medida do possível. Kol aproximou um dos candelabros de azeite e inspecionou ao Kesil. Depois, sem o menor pudor, fez o mesmo com quem isto escreve. Era um judeu de média idade, avaro e desconfiado, ao que lhe faltavam os dedos da mão esquerda. As más línguas asseguravam que foi ele quem os cortou, "para evitar que a esquerda roubasse à direita". Conosco sempre foi correto, e também com o Galileo, quando chegou o momento. Sabia, é obvio, em que paragem se achava a gente do estaleiro dos Zebedeo. Sorriu malicioso e sentenciou: -Ninguém quer destruir no Attiq. Os do Zebedeo são uns valentes... Conforme averigüei algum tempo depois, sortes colinas recebiam o nome do Attiq", ou "Ancião", como conseqüência de uma antiga lenda em que se
contava que, em tais bosques, vivia um ancião imortal, ao que o via perambular e atravessar os troncos das árvores. Ali, no Attiq, diziam, escondia-se um tesouro. O mau é que a visão do "ancião" deixava cego ao que acertava a vê-lo... Eram poucos os que se atreviam a destruir madeira em dita zona. As indicações do Kol foram suficientes para achar o mahaneh, ou acampamento, no que se concentravam Yu, o chinês, e sua gente. Devíamos caminhar sempre para o este e cruzar o nahal Zawitan, afluente do Mês hushim. Sem nos distrair, e sem abandonar a pista recomendada pelo judeu, divisaríamos aos do Nahum em uma hora, mais ou menos. Fizemos cálculos. Dispúnhamos de luz e de tempo mais que sobrados. Obscureceria em umas quatro horas. Kesil alugou uma loja de peles de cabra e comprou algumas provisões. Kol se esfregou as mãos e, feliz, nos deu de presente um conselho: "a tormenta se faria velha no At tiq.. . " Isso significava que as condições meteorológicas podiam piorar. E acrescentou: "O zeeb, o lobo, começou a rondar pela Jaraba..." Mau negócio. E tentou nos vender o melhor talismã contra os lobos: manteiga de leão. Ao nos melar com ela, nenhum zeeb se atreveria a aproximar-se. A suposta graxa de leão era, em realidade, manteiga de porco, um produto proibido entre os hebreus. Mas o dinheiro era o dinheiro... Carregamos os sacos e a loja e entramos nos bosques. A chuva continuava obstinada. A temperatura foi descendendo conforme ganhamos em altura. E ao sair de uma grande mancha de alisos e olmos, o caminho, uma tímida pista, agora de puro barro, precipitou-se para o rio Zawitan, de águas espumosas e velozes. Ao outro lado, segundo Kol, nasciam as colinas do Attiq. Só divisei o verde e o negro dos bosques, agitados pela chuva e por um incipiente e inoportuno vento. Kesil abria o caminho. Cada pouco se detinha e me observava. Tudo ia bem, exceção feita de meu coração. Achava a um passo do Eliseo..., e do. E a agitação foi dominando. Como reagiria? Ao Mestre não desejava vêlo; não nessas circunstâncias. Quanto ao traidor... Esmagaria-o! Como pôde fazê-lo? Como se atreveu a anular a contra-senha? Uma ponte
de pedra, quase inimaginável naquelas remotas paragens, burlava ao pressuroso Zawitan. Não era de sentir saudades. Encontrávamo-nos nos domínios do Filipo, um dos numerosos filhos do Herodes o Grande, mas, provavelmente, um dos Herodes mais sábios e mais amados por seu povo. Filipo ou Felipe era um tetrarca entusiasmado com a natureza. Cuidava-a e a explorava. O foi o primeiro em estudar as fontes do Jordão. O se preocupava dos bosques e de seus habitantes. O, por exemplo, contribuía à manutenção do kan do Assi, o esenio, à beira do lago Oleado. Com o tempo, ele chegaria a conhecer o Jesus do Nazaret e, ao contrário de seu pai, e do Antipas, seu meio-irmão, ofereceria-lhe sua ajuda. Mas essa é outra história, que tentarei contar em seu momento... Ao outro lado da ponte nos recebeu uma massa de mer a árvore de madeira vermelha. E ao caminhar sob suas taças, a chuva se adoçou. Subimos com dificuldade. A pista terminou por converter-se em um lodaçal. Depois entramos nos imensos robledales, célebres e cobiçados por suas madeiras brancas, duras e resistentes à umidade. Eram o objetivo dos construtores de navios. Havia-os a milhares, inteligentemente espaçados, e com troncos retos, decididos, de até 30 e 35 metros de altura, e diâmetros de um e dois metros. Calculei que muitos superavam os trezentos anos. Filipo os mimava. O Attiq constituía uma notável fonte de ganhos. Cada particular, ou grupo, que aspirava a cortar madeira devia pagar um canon, tanto pelo corte como pela permanência nos bosques. Um exército de "inspetores", facilmente distinguible por seus casacos, ou associação Americana de Advogados de lã vermelha, ia e vinha sem prévio aviso. Se alguém incumplía o estabelecido, era levado a presença do Filipo, ali onde se achasse o tetrarca. De fato, viajava sempre com três ou quatro juizes, que repartiam justiça sem demora. As multas eram superiores aos quinhentos por cento do roubado ou machucado. Em caso de incêndio provocado, o pirómano era condenado a tantos anos como árvores arrasadas. Isso representava uma condenação virtualmente perpétua, não
remisible, ao igual a não o era a vida da árvore que tinha sido queimado. A lei funcionava como arma dissuasiva. antes de prender fogo a um bosque, o judeu ou gentil o pensava duas vezes. Os inspetores de bosques do Filipo, além de excelentes conhecedores do terreno e da natureza, estavam obrigados a uma honradez que superava os limites habituais. Chamavam-nos, popularmente, we. Em uma tradução livre poderia ser interpretado como "SIM, mas...". Sempre havia um "mas" em seus lábios e em suas fiscalizações. O suborno, entre os we, era o pior dos insultos. Se um destes funcionários admitia um favor, e chegava para ouvidos de seus superiores, o we era destituído e banido fora dos limites da tetrarquía do Filipo. Toda a família ficava salpicada pela desonra, e isso significava o rechaço da comunidade. Os filhos terminavam mendigando. No tempo que permaneci junto ao Galileo, jamais soube de um caso de corrupção entre os we. Kesil se deteve. E assinalou para o profundo do bosque. O mahaneh! Ali estava... O acampamento dos homens do estaleiro! O ódio se avivou. Em alguma parte, entre as árvores, achava-se Eliseo... O que faria? Não lhe daria a menor oportunidade. Ele tampouco o fez. Primeiro o derrubaria, depois exigiria uma explicação... Essas eram minhas intenções ao divisar o mahaneh. Mas o Destino é o Destino... A pista prosseguiu a ascensão entre os ordenados carvalhos, agora murmuradores e molestos pela chuva. E as colinas e vaguadas fizeram um alto a coisa de 761 metros de altitude. O bosque se remansó em uma planície, igualmente conquistada pelos muito altos carvalhos, com as verdes folhas chorreantes e ameaçadas, e os pinheiros do Alepo, com as cascas cheirosas, prenhes pelo tanino. Vi gente, e umas lojas negras, de peles de cabra ou de carneiro. Não distingui ao engenheiro... E seguimos avançando, eu com o coração agitado. Em metade da pequena meseta se abria um claro. Ali tinham levantado as
lojas e disposto a base de aprovisionamento. Entrando pelo caminho que procedia da Jaraba, o primeiro que distingui foram três grandes tenda, com as paredes emendadas por peles negras e brancas. Eram os refúgios habituais, destinados ao descanso. Duas foram plantadas à direita da clareira, e uma terceira, à esquerda. No centro, virtualmente, três indivíduos trasteaban ao redor de um poderoso fogo. de longe, não entendi. Como mantinham as chamas sob o aguaceiro? E fomos aproximando. Não os reconheci. Os indivíduos não eram do estaleiro. Por um momento acreditei que tínhamos equivocado o caminho. Viram-nos chegar, mas seguiram ao seu, interessados na marmita em que barboteaba um te guise de carne e verduras. Eram cozinheiros, mas vestiam de uma forma peculiar, ao menos para quem isto escreve. Um deles se cobria com um associação Americana de Advogados, o capote típico dos pastores e montanheses, muito útil frente ao frio e a chuva. Os dois restantes luziam um objeto insólito para mim: era uma espécie de "mergulhador" ou "macaco" de trabalho, de lã, fechado pelo peito com um comprido cordão, e provido de um amplo capuz. Chamavam-no sarbal. tratava-se de um objeto de casaco, utilísima para trabalhar nos Montes, e ideada pelos fenícios de Tiro. É obvio, os hábeis comerciantes judeus souberam melhorá-la, confeccionando-a em couro, pele de urso e, inclusive, linho, segundo os climas e as exigências do comprador. Ao penetrar no mahaneh compreendi. O fogo se achava protegido por um sombrajo -um tecido embreado- que fazia de abrigo. Cinco ou seis cordas, amarradas às árvores mais próximas, mantinham-no a um par de metros sobre o terreno. Apresentamo-nos e perguntamos pela gente do Zebedeo. Quase nem nos olharam. Eram vizinhos da Jaraba, contratados temporalmente. Não conheciam os Zebedeo. Kesil, inteligente, pronunciou o nome do Yu, o chinês, carpinteiro chefe do estaleiro. Então sim. E assinalaram um dos senderillos que partiam do claro, rumo ao sudeste. Estavam no corte. Isso disseram.
Faltavam umas três horas para o pôr-do-sol. Segundo o costume, uma meia hora antes do ocaso, Yu faria soar seu triângulo de metal, anunciando o fim do trabalho. Todos retornariam ao acampamento. Tentei me controlar. Se aguardava, se esperava no mahaneh, seria mais fácil. Eliseo chegaria com o resto. E também o Mestre... Mas como fazê-lo?, como pedir explicações em público? O que aconteceria com o Jesus? E a raiva, fervendo em meu interior, não me permitiu raciocinar. Não ficaria ali plantado. Iria a seu encontro. quanto antes esclarecesse o assunto, melhor para todos... Indiquei ao Kesil que dispusera nossa loja e que organizasse o jantar. Suas palavras, sem a menor maldade, incomodaram-me: -Janta para três ou para quatro?... Repliquei com severidade: -Para dois!... Você e eu! Kesil me olhou, atônito, e confirmou o que suspeitava. Algo não ia muito bem entre aqueles gregos... Permaneceu na dúvida, me observando com tristeza sob a chuva. O não tinha nenhuma culpa. E me senti mais desassossego, se couber... Maldito traidor! Eliseo o pagaria! E me afastei sem dar mais explicações. Cruzei junto à fogueira e me encaminhei para a pista assinalada pelos cozinheiros. Apertei com força a "vara do Moisés". Se não falava -e rápido!-, se não me proporcionava uma explicação, o suficientemente satisfatória, e a nova chave, não teria piedade... Morderia o pó! Faria-o suplicar! Obrigaria-o a comer as bolotas que atapetavam o bosque! Faria-o...! de repente, reparei nas lojas. Não as tinha registrado. E se estivesse oculto em uma delas? E por que ia fazer o? Dava meia volta e retornei ao arranque da clareira. Kesil, surpreso, viu-me entrar e sair dos refúgios. Compreendeu e empalideceu. O pleito entre o Eliseo e eu era mais grave do que ele supunha. Nisso não se equivocou. Mas não disse, nem fez nada. Nas lojas não havia ninguém. Só os esteiras e as mantas que serviam para dormir. Não me atrevi a olhar ao Kesil, nem tampouco aos da Jaraba. Estava cego de ira e de vergonha, a partes iguais.
Ao final do claro, junto ao nascimento do caminillo que devia me levar ao que chamavam "zona de corte", elevavam-se outras duas lojas, mais espaçosas que as três anteriores. Inspecionei-as, igualmente. Negativo. Eram os armazéns das ferramentas próprias do corte da madeira: tochas, serras, tronzadoras, maços, cunhas, pedras de piçarra verde e basalto para afiar, ganchos de ferro, tenazes, cordas, cántaras de azeite e um bom cacho de polias de ferro e madeira, entre outro equipamento. Nem rastro do engenheiro... Isso significava que se encontrava no lugar de trabalho. E para ali me dirigi, decidido e, ao mesmo tempo, com um crescente nervosismo. Não soube explicá-lo. Não era medo. Agora acredito sabê-lo. O Mestre também se achava no lugar, mas minha estupidez o mantinha esquecido no coração... A pista se deixava cair para um vale. Nos ocos das árvores se adivinhava a presença dos supersticiosos montanheses. Em muitos deles, cravadas na madeira, e com a ponta para o exterior, viam-se pequenas tochas de pederneira. Chamavamnas "pedras raio" e, conforme diziam, tinham a faculdade de conjurar a "visita" das faíscas elétricas, o grande inimigo dos bosques naquele tempo. Se se declarava um incêndio, só a chuva era capaz de dominá-lo. É obvio, tratava-se de uma crença errônea. O carvalho, como a sabina, o salgueiro, o carvalho, o tilo ou o abeto, são árvores que se caracterizam, justamente, por sua capacidade para atrair o raio. E comecei para ouvir gritos, e os golpes das tochas contra os troncos. Ao pouco, quando tinha percorridos uns quinhentos metros do mahaneh, apareceu ante mim a "zona de corte", uma suave ladeira limpa de árvores pelos laboriosos homens do estaleiro do Nahum. Permaneci escondido entre os carvalhos, tentando descobrir ao Eliseo. Tinha chegado o momento... Não foi singelo. A equipe do Yu se achava no robledal e entre os pinheiros do Alepo, médio oculta pelos troncos. Outros tinham subido às árvores, e os adivinhei com as tochas, desramando e preparando o mastro para a queda.
Todos vestiam o sarbal, e se protegiam da chuva com os capuzes. Esforcei-me, mas não consegui localizá-lo. encontravam-se longe, a pouco mais de duzentos metros. Tinha que me aproximar. Tampouco divisei ao Mestre... Que fazia? Meu objetivo era Eliseo, só ele. E iniciei outra revisão, mais detalhada. A minha esquerda, no alto de uma segunda e também cortada colina, apresentou-se um único tronco, sólido e minuciosamente desramado. Depois soube. Era outro "invento" do Yu. Chamavam-no a árvore-mastro. Um complexo jogo de cordas e polias atuava do extremo superior, a uns trinta e cinco metros do chão, içando as árvores que resultavam destruídos no bosque. Desta forma, os troncos voavam literalmente até a base do mastro, economizando esforço e evitando que se sujassem ou danificassem. O engenhoso sistema não demoraria para ser copiado pelos restantes lenhadores. Uma mordaça múltiplo, de couro ou de ferro, conseguia reunir até quatro árvores. Uma larga corda de içada fazia o resto e os troncos terminavam empilhados ao pé da árvoremastro. Ali eram selecionados e dispostos para o transporte. Disto último se ocupavam os burreros da Jaraba e comarca. Previamente, a equipe do Yu dispunha os carvalhos e pinheiros. Uma vez selecionados, e marcados pelos we, entravam em ação os "escaladores". Eram lenhadores hábeis e audazes, que subiam até as taças, providos de tochas, serras e cordas. Se o tronco estava muito ramificado, o escalador ascendia diretamente. No caso dos pinheiros, por exemplo, menos ramificados, dispunham de dois ou três procedimentos, todos eficazes. O mais comum era subir com a ajuda de uma corda que rodeava o tronco e a cintura do lenhador. Subiam e baixavam com celeridade, e sem o menor tropeço. Ao chegar ao enramado procediam ao corte, até que a árvore ficava totalmente descopado. A última operação do escalador era amarrar uma larga corda no alto do tronco. os de abaixo a esticavam e se preparavam para dirigir a queda, de forma que não destroçasse outras árvores. Uma vez em terra, os escaladores se dirigiam a outras árvores e reemprendían as operações de
limpeza. Era o momento dos hoteb, ou lenhadores, tal e como os entendemos hoje em dia, os especialistas nas tochas. Se o tronco era grosso, cravavam uns estribos de ferro a um e outro lado da zona de corte, colocando-se assim ligeiramente por cima da base da árvore. E antes de iniciar o corte, um dos hoteb solicitava perdão à árvore. Depois beijavam as tochas e iniciavam o lançamento das afiadas ferramentas. Trabalhavam perfeitamente sincronizados, sempre em um lateral do corte. Nunca em frente ou detrás. Sabiam muito bem que, ao cair, a base se deslocava para trás, e para cima, por efeito da gravidade. contemplá-los era um espetáculo. animavam-se, animavam-se mutuamente, compassando gritos, golpes e respirações. O jogo de boneca, a mais próxima ao olho da tocha, era a chave. Assim se obtinha o máximo rendimento. Também se utilizavam as serras de destruir ou tronzadoras, de diferentes longitudes, dirigidas entre dois, e com movimentos alternativos, por volta de um e outro hoteb. Era outra arte. Não todo mundo estava capacitado. Cada movimento exigia uma especial concentração. Só um dos tronzadores atirava da serra. O fio devia permanecer em linha com o corte. A menor distração significava um maior esforço e, em conseqüência, um trabalho "menos limpo", como acostumavam a dizer. Quando a árvore caía, procedia-se ao rematado da desrama, no sentido da base para a taça. Depois se troceaba, segundo as necessidades do estaleiro e os requerimentos dos burreros, e se içava com o concurso dos arranjos da árvore-mastro. Era um trabalho extenuante, muito duro, que não todo mundo resistia. Na base da árvore-mastro acreditei reconhecer ao Yu, o chinês. Dirigia as manobras de traslado dos troncos, sempre delicadas e perigosas. Quatro ou cinco homens o assistiam. Os nervos me puseram em pé, e saí a campo aberto, em direção ao Yu. A maldita chuva não cessava... Viram-me me aproximar. Inspecionaram-me, e eu a eles. Conhecia-os. Trabalhavam no estaleiro. Suponho que os despistei. Não era um inspetor, não luzia o típico abarojo.
Além disso, meu passo era enérgico. Não estava ali por capricho ou por engano... E a equipe, a uma ordem do Yu, deteve o trajín de cordas e polias. Não me reconheceram. Fui diretamente para o naggar, ou Mestre, e o interroguei sobre o paradeiro do Eliseo. Yu, desconcertado, atravessou-me com seus olhos rasgados. -Não te conheço -replicou---. Como sabe que sou o naggar? Esperou uma resposta, e o fez com seu habitual gesto, com os largos dedos cruzados sobre o peito. O que podia dizer? E improvisei. No mahaneh me tinham falado do "chefe", um chinês. Saberia me informar sobre meu amigo. Era preciso que lhe fizesse chegar uma mensagem. Yu continuou me explorando. Pressentiu algo. Assim acredito. Mas, como digo, confuso, não soube o que fazer, e se limitou a assinalar a ladeira de em frente. Ali encontraria ao homem que procurava. Agradeci a boa vontade e, sem mais, encaminhei-me para o lugar indicado pelo asiático. Um grupo de homens, em efeito, movia-se entre as árvores. E subi pela cortada pendente, disposto a tudo. Não cederia. Agora, não... E ao me reunir com o robledal, detive-me. A pesar do "mergulhador" e do capuz, distingui-o ao momento. Maldito! Não fiz nada por conter a raiva. Ao contrário. Deixei-a solta, como um cão de caça. Daria-lhe seu castigo... Avancei devagar, e me introduzi entre as árvores. Alguns hoteb trabalhavam nos ramos; outros cortavam com as tochas ou com as tronzadoras. Um desses casais a formavam Eliseo e o chefe da serraria do estaleiro do Nahum. Para falar a verdade, só tive olhos para o traidor. Não soube se Jesus se ocultava baixo um daqueles sarbal... É assombroso! Não pensei no! Voltei a me deter. Eliseo, absorto no corte da árvore, continuava pendente do rítmico ir e vir da serra de ferro. Não se precaveu de minha presença. Alguns dos lenhadores próximos me observaram com curiosidade mas, ao não me reconhecer, seguiram ao seu.
Achava a uma distância aceitável. Possivelmente a cinco ou seis metros. Deslizei os dedos para a parte superior do cajado e desfrutei de do momento... Ativaria os ultra-sons e o derrubaria. Seria minha vingança. Depois, já veríamos... Elevaria-o como um boneco e exigiria uma explicação. " por que anulou a decolagem? Com que direito?" Confesso-o: a cólera me dominou. E esperei. Sabia que, cedo ou tarde, o engenheiro desviaria o olhar para quem isto escreve. Achava-me quase frente a ele. Queria ver sua cara quando me descobrisse. E assim foi. Eliseo reparou em mim e, apesar da cortina de água, vi-o empalidecer. Tudo aconteceu muito rápido. Repassou-me com a vista, e os olhos se mantiveram uns instantes na curvatura da "vara do Moisés". Compreendeu. Ele conhecia o significado daquela posição dos dedos. Mas, ante meu assombro, não reagiu. Melhor dizendo, não o fez como supunha. Em lugar de fugir, ou de enfrentar-se a quem isto escreve, continuou com a tronzadora. E, sem deixar de me olhar, desenhou uma meia sorriso; aquele cínico sorriso... A cólera, então, bramou em meu interior. Filho de...! Destroçaria-o! Não dispararia os ultra-sons!... Ativaria algo pior: o laser de gás! Esta vez aprenderia a lição! E quando estava a ponto de pressionar a cabeça de cobre, uma voz soou a minhas costas, clara e impetuosa, por cima das machadadas e do martilleo da chuva sobre o vermelho e o verde dos carvalhos. Essa voz!... Eu a conhecia! E repetiu: -Né, pequeno! Alguém me reclamava. Eu sabia quem... Voltei-me, mas não vi ninguém. -Eh,ze...'er! Então elevei a vista. Era Ele! O Mestre! Fiquei paralisado, não sei se pela surpresa ou pela vergonha. Os dedos se retiraram da zona superior do cajado e, mudo, presenciei sua descida da árvore. Vestia outro sarbal branco e se protegia da água com o
capuz. deixou-se cair, rápido e ágil, com a ajuda da corda que rodeava a cintura. À costas carregava uma tocha de dobro cuchilla e uma larga corda embreada, enrolada em bandoleira. Mas não foi o insólito traje o que me hipnotizou. Foram seus olhos, uma vez mais. Deus, tinha-os esquecido! Como pude ser tão estúpido! Jesus do Nazaret se desembaraçou da tocha e das cordas e me lançou um primeiro abraço com o olhar. Aqueles olhos, como o mel líquido...! O sim soube quem era. Então, o ruído do bosque, e dos lenhadores, desapareceu ou, ao menos, eu fui incapaz de ouvi-lo. O estava ali, de repente! E sorriu, iluminando minha escuridão. Foi algo difícil de explicar. Hoje, ainda não acerto a compreendê-lo. Abriu os poderosos braços e caminhou para este perplexo explorador, ao tempo que proclamava: -Né, pequeno! Disse-o tudo nessas duas palavras. Era-o. Reconheço-o. Só era um pobre e pequeno ser humano, perdido... Não posso explicá-lo, sinto muito... Não tive forças, nem valor, para me mover e ir a seu encontro. O fez por mim. Abraçou-me como ninguém o tinha feito. E recebi -não tenho palavras- todo seu amor, toda sua ternura e toda sua compreensão. Os braços me rodearam e senti como uma força (?), chegada de não sei onde, percorria-me de um extremo a outro. Não disse nada, mas o disse tudo. E, sem poder evitá-lo, umas lágrimas apareceram a meu rosto. E chorei, agradecido. Eu sim fui derrubado. Foi nesse gesto do Homem-Deus onde se dissolveram os medos e vinganças. Foi nesses instantes, nas colinas do Attiq, onde menos podia imaginar, quando se produziu o verdadeiro "milagre", o anunciado pela peonza de salgueiro. Agora sei... Foi como resultado desse encontro quando recuperei a têmpera e saneei meu coração. O fez. -Vamos, pequeno! Entregou o maço de cordas e empreendeu a marcha para o acampamento. Não recordo outra coisa que suas largas e típicas pernadas, pendente
acima. Eliseo deveu ficar ali, com as mãos sobre a serra, e, suponho, boquiaberto. Ao chegar ao mahaneh, meu espírito se achava limpo, como jamais o tinha percebido. Kesisl o captou e se alegrou, sem palavras. Ninguém soube jamais. Ninguém soube, até agora, o perto que estive da destruição... A equipe retornou ao pouco e se dispôs para a comida principal, o jantar. Eu não provei virtualmente bocado. Sentei-me perto do fogo e me dediquei a contemplá-lo. Era Ele, o de sempre! Como pude esquecê-lo? Eliseo, certamente temeroso, evitou-me. Não falamos uma só palavra. Tomou posição ao outro lado do fogo e permaneceu alerta. Senti-o por ele, e também por mim mesmo. Aquela situação tinha que terminar. Assim que fora possível, aproximariame e lhe rogaria perdão. O devia ao Mestre. Quanto a meu "problema", fiz o firme propósito de não pensar nisso, de momento. Tinha os antioxidantes. O Destino decidiria. E é claro que sim que decidiu... Jesus desfrutou do jantar e das conversações. Estava alegre. Eu diria que pletórico. Recordou-me as intensas e felizes noites nas cúpulas do Hermón. E Yu, como tinha por costume, iniciou o relato de seus incríveis historia... Pouco a pouco, esgotado-los hoteb foram retirando-se. Eliseo se refugiou na loja do Mestre e, finalmente, fiquei sozinho. A chuva cessou e, cúmplice, alguém limpou o firmamento, me dando de presente milhares de estrelas. E ela brilhou desde o Alitair, e desde Sírio, e da formosa Aldebarán... Ela! Kesil roncava quando incorporei a nossa loja. E essa noite tive um sonho, como diria, quase "familiar"... Achava-me ali mesmo, nos bosques do "Ancião", e retornaram as enigmáticas "luzes" que tinha visto (?), supostamente, na garganta do Firán. E, enquanto as contemplava, ouvi uma voz em minha cabeça, exatamente igual a naquele "sonho": "Mau'AK, não tema!" "Mau'AK", como pinjente, significava "mensageiro", em aramaico. "Mau'AK, não julgue!... Julgar é tão arriscado como dormir de pé!" E as "luzes" se afastaram para o Orión.
DO 1 AOS 5 DE JANEIRO (ANO 26)
Foi "Orión" (Kesil) quem despertou. Casualidade? Faltava pouco para o alvorada. Segundo os relógios do módulo, em 1 de janeiro, terça-feira, do ano 26 de nossa era, o sol se apresentou nessa região do Israel às 6 horas e 37 minutos. Uma hora antes, os cozinheiros da Jaraba já transportavam e cantarolavam no acampamento, dispondo o necessário para a nova jornada. Tinha dormido profundamente. Senti-me tranqüilo e com forças. Não cabe a menor duvida: O teve muito que ver naquele Jasão, agora, quase em paz... -Yu está aí fora -anunciou Kesil-. Parece preocupado... Quer falar contigo. O fronte nuboso se afastou. Inspirei e me bebi as estrelas. Estava disposto a replantearlo todo. O primeiro era Eliseo... Yu esperava junto ao fogo. Tinha nas mãos uma terrina de leite. À lombriga, percorreu-me de pés a cabeça. E os olhos, habitualmente remansados e limpos, alteraram-se. Quis dizer algo, mas não o obteve. Compreendi. Alguém, no mahaneh, possivelmente o engenheiro, pô-lo em antecedentes sobre minha identidade. E lhe facilitei as coisas. -Sou eu, "né, pequeno!"... Não houve perguntas, nem explicações. O chinês baixou os olhos e resumiu seus sentimentos: -deixaste escapar aos deuses interiores... Não entendi; não nesses momentos. Mas Yu deixou a um lado o assunto e perguntou se desejava continuar no trabalho. necessitavam-se braços. Aceitei, naturalmente. A partir do reencontro com o Mestre, tudo ficou em pé, como recém estreado. Seguiria-o, tal e como tínhamos planejado. Seguiria-o sem descanso. Daria fé de quanto visse e de quanto me fora agradável pelo Destino. Em relação aos "tumores", uma idéia começou a prosperar em minha mente... A notícia sobre o misterioso encanecimiento do "menino para tudo" circulou veloz entre os homens do mahaneh. E se repetiu o vivido na ilha e no Nahum. Aquela gente,
boa, mas supersticiosa, começou a me olhar com um especial respeito, mescla de temor e de admiração. Ninguém "envelhecia" tão de repente, se não era por rápido desejo da divindade. Isso acreditavam, e, em parte, com razão. A questão é que meus brancos cabelos serviram de muito, como espero ter a oportunidade de seguir contando. Isso sim, após, já não fui "né, ze'er!". Ninguém teve o valor de me reclamar por esse nome, exceção feita do Galileo. A verdade é que meus dias no estaleiro estavam contados, mas vamos passo a passo... Sentei-me junto ao Mestre. esquentava-se e apurava o café da manhã: fruta recém desembarcada na Jaraba, mel, pão negro, ainda quente, leite e outra de suas "debilidades": as pequenas barras de "chocolate", fabricado com a keratia, a muito doce vagem do haruv ou algarrobo, tão abundante naqueles bosques. Vestia o sarbal branco, com os cabelos, cor caramelo, compridos e recolhidos em seu habitual penetra. Estremeci-me. Não podia acreditá-lo. Fazia quase dois meses que não o via. E ali estava, sentado frente ao vermelho das chamas, como um mais... Olhou-me, e me recolheu de novo em seus olhos. Não tinha sonhado. Era O, o Homem-Deus... E ambos, em silêncio, esperamos o amanhecer. O por uns motivos. Eu, por outros... A luz laranja penetrou entre as árvores e se foi diretamente a seu rosto. Recebeu-a e fechou os olhos, consciente da delicadeza de seu Pai. Assim rezava aquele Homem... O dia chegou azul, limpo e frio; muito frio, em especial para quem isto escreve... Jesus abriu os olhos e, satisfeito, guardou-se duas barras da Keratia em um dos amplos bolsos do mergulhador. Sorriu, pícaro, mostrando aquela dentadura branca e perfeitamente alinhada. Depois, me piscou os olhos o olho e ficou em marcha, com o resto da equipe. Yu me proporcionou um dos "trajes de tarefa" e me deu a escolher. Podia me ocupar do recolhimento de resma, ou do afiado das ferramentas. Deveria me responsabilizar também do contínuo transporte do eus uma infusão negra e aromatizada, extraída das sementes do pinheiro do Alepo e que os aldeãos consumiam sem cessar. Quente, muito
quente, recordava, em certa maneira, ao "café". Os lenhadores o bebiam quase sem descanso. Ajudava-os a manter-se acordados. O problema é que tinha que ser transportado das cozinhas, no acampamento. Na zona de corte estava categoricamente proibido fazer fogo. Se os we descobriam, ou suspeitavam, que os lenhadores incumplían a normativa, a concessão era automaticamente suspensa. Nesse sentido, Yu era muito estrito. Isso significava um constante ir e vir, com a carga nas costas. Depositei o cajado na loja, aos cuidados do Kesil, e optei pelo afiado das tochas e serras. Era um trabalho relativamente simples, que me permitiria estar perto do Mestre. Em realidade, o afiador era um dos homens do Yu, muito experiente, que dirigia admiravelmente as limas de ferro ou as demola de basalto e piçarra verde. As primeiras eram utilizadas na zona de corte. As amoladoras, mais pesadas, e montadas sobre mollejones e outras estruturas de madeira, permaneciam nas lojas das ferramentas. Cada pouco, sem necessidade de que o lenhador o solicitasse, o afiador detinha o corte e inspecionava as tochas ou as tronzadoras. Era estranho que se equivocasse. Sabia muito bem quantos golpes resistia uma tocha antes de perder o fio. Embora os hoteb fossem dez ou doze, repartidos na zona de corte, aquele homem "sabia" (!) levar a conta dos golpes, identificando cada tocha por seu som. Mais ainda: "sabia", inclusive, quando a ferramenta trocava de mãos. Chamavam-no "Iddan", que significava "tempo", em aramaico, porque media o tempo de vida de cada tocha, e sem engano. Quase não falava. Eu devia acompanhá-lo e carregar os jogos de limas e as pequenas pedras para refinar os fios, assim como as capas de corno, madeira ou couro que protegiam as tochas. Cada uma dispunha da sua própria, fazendo mais duradoura a ferramenta e, sobre tudo, protegendo aos que as dirigiam. Uma vez concluída a jornada, Iddan e quem isto escreve se responsabilizavam do material, transportando-o sempre ao acampamento. O esquecimento de uma tocha era o pior dos presságios. Os lenhadores punham-se a tremer... Também carregava com o pele de cabra que continha a água, necessária
para molhar as pedras de afiar. Iddan preferia a ferrugem. Se era humano, melhor. Segundo ele, "alegrava à tocha, e prolongava o tempo de corte". Tive "dificuldades técnicas" neste sentido. Terminada a água, era eu quem subministrava a urina. Jamais me tivesse atrevido a encher o odre com a ferrugem do resto dos hoteb... Meu trabalho, portanto, naqueles inesquecíveis dias nas colinas do "Ancião", dividiu-se entre a partilha do já o constante subir e descer do mahaneh, a posta a ponto das amoladoras, o "fornecimento" da urina e, sobre tudo, a atenta observação do Filho do Homem. Um Jesus do Nazaret lenhador, jamais mencionado pelos evangelistas ou pela tradição. Mas do que me assombrava? O futuro me reservava outras, e não menos desconcertantes, surpresas... Eliseo seguiu me esquivando. Não o permiti. E caminho da zona de corte me arrumei isso para me situar a sua altura. Fui direto. Roguei-lhe que perdoasse minha estupidez. O que tentei fazer não foi o correto. Evitou o olhar. E eu, pobre ingênuo, não entendi. Estava-lhe pedindo perdão... Finalmente, ao lhe explicar que a situação não era a mais adequada, o engenheiro deteve a marcha e acariciou a larga serra que sustentava sobre o ombro. Então sim procurou meus olhos. Experimentei uma incômoda sensação. Aquele não era o jovem que acreditei conhecer... Não sei se foi ódio ou desprezo o que apareceu no rosto. O certo é que não o reconheci. Não era Eliseo, o amigo e irmão de antigamente. -Está no certo -clamou-. Esta situação é insustentável... O tom foi grave, quase solene. Duvido que sua saúde mental seja a correta. Não me permitiu intervir. -O investimento diminuiu também seu equilíbrio... portanto, maior, decidi te relevar como responsável pela missão... Pensei que brincava, uma vez mais. Mas não... -trataste que separar, me abandonando. tentaste me matar... Neguei com a cabeça. Não era certo. Só quis lhe dar uma lição... -Agora, eu tomo o mando. Obedecerá minhas ordens. Estava tão desconcertado que não respondi. E recorda o que te disse: a missão não terminou. Eu direi quando. -Mas...
-Sinto muito, major -concluiu, autoritário-, não confio em ti. E se afastou, fazendo oscilar a brilhante tronzadora que carregava sobre o ombro. Não reagi. Estava impressionado, mas, ao mesmo tempo, sereno. Tinha tentado separar, era certo, mas jamais lhe teria feito mal. Por certo, como sabia que tratei de separar? Rechacei a pergunta. Eu mesmo o disse. Não era tão difícil de supor. Mas por que esse ódio? Pensei na Ruth... Não era possível. Eu não havia dito nada. Só a Senhora o intuía. O disse ao Eliseo? Era esta a razão de seu comportamento? Eu a amava, e a sigo amando, mas jurei mantê-lo no silêncio de meu coração... Existia outra justificação para semelhante postura? Estava-me voltando louco? Detectou Eliseo algo que não soube ver e que punha em perigo a operação? Quis recordar, mas não achei nada irregular, salvo a amnésia e o "encanecimiento súbito". Ou se referia à constelação de "tumores" em meu cérebro? Aquilo era absurdo. Se lhe preocupava meu estado mental e, em definitiva, minha saúde, por que continuar? "A missão não terminou... " Não fui capaz de decifrar o mistério da frase. A que diabos se referia? Infelizmente, não demoraria para descobri-lo... Mas, como digo, foi estranho. Possivelmente deveria ter reagido com ira, e lhe pagar com a mesma moeda. Não foi assim. Inexplicavelmente, não me senti inquieto. E cheguei a desculpá-lo. Possivelmente se devia ao cansaço. Levávamos muito tempo, e sujeitos a uma intensa pressão. O estranho é que os enfrentamentos não tivessem surto antes... Pobre estúpido! Nunca aprenderei! E, de repente, vi-o chegar. Era o Mestre, caminho da zona de corte. Passou a meu lado, cantarolando. A luz da formosa manhã o perseguia, enganchada nos cabelos e no bronzeado e risonho rosto. Sorriu-me, e continuou com as rápidas e largas pernadas. Mas, ao ponto, deteve-se. Girou, e me envolveu naquela viva, furiosamente viva, olhar. E exclamou:
-Confia...! Depois, afastou-se. Detrás partia um jovem ajudante... E em minha cabeça trovejaram as últimas palavras do Eliseo: "Sinto muito, maior, não confio em ti." Como o fazia? Como soube? Ele se achava em outro ponto da vereda que unia o acampamento com o lugar de trabalho... Nunca me acostumei. É obvio que confiava! E fui depois do ajudante, um moço judeu, de uns quinze anos, que respondia no nome do Minjá. Conhecia-o da ilha. Ali vivia, com seus pais e irmãos. Em ocasiões era contratado pelo estaleiro. Era gago. Tomavam a brincadeira, e o mortificavam com crueldade. Minjá não replicava. ruborizava-se e punha terra de por meio. Caía-nos bem. Era serviçal, educado e muito observador. No Attiq desempenhava a missão de ajudante de escalador. O sua era Jesus. Seu trabalho, basicamente, consistia em assistir ao hoteb que subia pelos troncos, ou pelo enramado, subministrando cordas, quando faltavam, fazendo chegar as tochas ao afiador, ou o "café" e a água ao que descopaba, e, sobre tudo, devia velar pela segurança do lenhador. Um mau passo, a ruptura de uma corda ou a quebra de um ramo estavam à ordem do dia. Não eram estranhos os acidentes entre os que subiam e desciam das árvores, alguns, como digo, de trinta metros de altura, e mais. Quem podia suspeitar que aquele moço desencadearia, sem querer, a grande catástrofe? Iddan, o afiador, iniciou sua habitual peregrinação entre os carvalhos e pinheiros. E quem isto escreve, depois dele, pendente de seus gestos, mais que de suas palavras. Jesus e Minjá prosseguiram na ordem estabelecida pelo Yu, e iniciaram a ascensão ao carvalho de volta. Eliseo, atribuído a tronzadora, pareceu esquecer-se de mim. Era preferível. E, na medida de minhas possibilidades, centrei a atenção no Filho do Homem. Nunca o tivesse imaginado com uma corda pela cintura, e subindo como um felino por um daqueles altivos troncos. O fazia com precisão e soltura, sem temor algum. A corda era deslocada para o alto, momento no que o Galileo assentava as
sandálias sobre a casca, ganhando metro a metro. Assim chegava aos primeiros ramos. Minjá preferia a corda entre os tornozelos, uma técnica menos embaraçosa, mas mais insegura. O rítmico jogo dos pés elevava a corda e o jovem subia, sempre abraçado à árvore. Ao alcançar ao Mestre lhe entregava a ferramenta e permanecia muito perto, pendente de cada movimento. A verdade é que não se concebia a um escalador sem seu ajudante. Dependia da árvore, e de sua frondosidade, mas o descope era sempre um trabalho lento e fatigante, que reclamava atenção e destreza. Se a tocha lançada sobre o nascimento de um ramo não golpeava no ponto adequado, o fio, disposto como uma folha de barbear, podia ferir o tronco e malográ-lo. Terei que procurar a posição mais cômoda e econômica, e, como digo, saber dirigir as afiladísimas tochas. Cada pouco, o hoteb se via obrigado a descansar e repor forças. Aí entrava eu, atando os recipientes, com a já ou a água, à corda que lançavam os ajudantes. De vez em vez, com uma sabedoria magistral, o velho afiador se plantava ao pé da árvore e fazia gestos ao ajudante, para que fizesse descender a tocha. Minjá tocava suave e delicadamente no ombro do Jesus e este se detinha. A ferramenta chegava às mãos do Iddan e, em efeito, não se equivocava. O fio defeituoso deixava ver uma linha muito fina, quase imperceptível, que refletia a luz. Iddan movia a cabeça com desgosto e repetia a mesma frase, ao tempo que reclamava a lima tal ou a pedra qual: -O bom fio, Jasão, como a inteligência, não deve ser visível... Yu permanecia boa parte do tempo junto à árvore mastro, dirigindo o transporte da madeira. Quando era possível, reclamava a um ou dois trabalhadores e se perdia nos robledales, à busca de ramos mágicas, como ele as chamava. tratava-se de ramos com uma curvatura especial, em forma de "Ou" ou de "e", necessárias para a fabricação dos codastes, as peças se localizadas a popa, nas embarcações, e que sujeitavam o piso de madeira de dita zona. Se alguém descobria um desses ramos, o estaleiro o premiava com um dia de diárioe Yu, por sua parte, considerava-o um
homem kui. Trabalhávamos de sol a sol. Concluída a limpeza da ramagem, o escalador atava uma das cordas ao alto do carvalho ou do alepo, e outros hoteb a esticavam, preparando assim a queda da árvore, como acredito ter mencionado com antecedência. Ao descender a terra os escaladores e ajudantes, entravam em ação os hoteb propriamente ditos, com as tochas de dobro cuchilla, ou as serras de um e dois metros de longitude. Alguns cantavam ao ritmo das tronzadoras, ou lançavam gritos e nomes de seus inimigos, ou pessoas não queridas, que faziam coincidir com o impacto da tocha no tronco. Ao final de cada corte, todos sabiam de que pé coxeava fulano ou beltrano... E assim discorreram aqueles dias, até que chegou na sexta-feira, 4 de janeiro... Mas estou esquecendo algo, e entendo que importante. antes de proceder à narração do acontecido aquele entardecer, e do que significou em nossa aventura, possivelmente deva fazer alusão aos kui, uma denominação muito particular, nascida da imaginação (?) do naggar ou chefe do estaleiro do Nahum. Quando concluía a jornada, a equipe, como pinjente, retornava ao acampamento e se dispunha para o jantar e, sobre tudo, para o que Yu chamava as "noites kui". Era o momento esperado por todos, incluídos os cozinheiros da Jaraba. "Noites kui"? Ao chegar ao Attiq pude ouvi-lo. Os lenhadores falavam e falavam sobre isso. Era um dos temas obrigados na zona de corte. Riam, gastavam brincadeiras e entravam a sérias polêmicas. Em definitiva, os kui terminaram formando parte da vida daqueles rústicos homens. Era como uma liturgia, só imaginável no corte de inverno, junto ao fogo e entre os bosques. A sua maneira, no mais íntimo, cada qual desejava ser um kui. Era uma inquietação inata, própria do ser humano, e que o Filho do Homem soube remover admiravelmente. Mas tratarei de não me desviar... Chegado o momento, acomodávamo-nos ao redor da fogueira. Os
cozinheiros serviam o jantar com pressa e em silêncio. comentavam-se as incidências do dia, mas as olhadas, virtualmente todas, estavam pendentes do Yu. O chinês, entretanto, simulava não dar-se conta. E prosseguia a conversação com o hoteb mais próximo, aparentemente alheio ao que realmente interessava. Era como um jogo prévio. Se Yu se atrasava mais do aconselhado, a paróquia ficava de acordo e fazia coro: -Kui!... Kui!... Yu sorria. Era o primeiro sinal. E seguia falando. Então, a concorrência assobiava. A primeira noite, pelas circunstâncias já referidas, não emprestei atenção aos detalhes. Depois me integrei, e desfrutei como um menino. Jesus, em primeira fila, com as estilizadas e peludas mãos abertas para o calor do fogo, era o primeiro em assobiar, impaciente e feliz. Os olhos lhe brilhavam. Os assobios eram o segundo sinal. Yu se levantava, deixava a um lado a tigela de madeira, e, cerimonioso, procurava um dos talhos da cozinha, ardilosa e deliberadamente aproximado à fogueira pelos lenhadores. Previamente, os cozinheiros tinham asseado o nodoso tronco de olmo sobre o que partiam a carne e o pescado. Dada a escassa talha do naggar, os do estaleiro favoreceram ao toco com três patas de madeira, permitindo assim Yu fora visível desde qualquer ângulo do mahaneh. Então, cada noite, repetia-se a mesma cena. Era incrível! Yu tomava assento e se produziam os protestos. Ao sentar-se em círculo, em torno das chamas, uma parte dos trabalhadores ficava olhando as costas do chinês. Não o consentiam. Afetado-los -sempre os mesmos!- levantavam-se irados e corriam ao extremo oposto, atropelando e pisoteando aos colegas. Yu permanecia em silêncio, com as mãos cruzadas sobre o sarbal. Restabelecido a ordem, abria a "noite kui" com a mesma frase: -Não são homens kui! E a gente, também cada noite, lamentava-se com um murmúrio surdo, convencida da veracidade das palavras do asiático. Era incrível, e maravilhosamente louco! Tudo se detinha no Attiq para escutar ao Yu. A lua, afiada, se fazia a lenta. As estrelas se aproximavam, até quase poder as tocar, e o frio ouvia das árvores. longe
da clareira. As caras dos homens me fascinaram mais que as histórias do Yu. Assentiam com as cabeças. Abriam os olhos, assombrados. Respiravam aos heróis. Condenavam aos malvados. Interpelavam ao Yu. Reclamavam a clemência dos céus, ou choravam, se era mister. Durante uma ou duas horas, até que o fogo se esgotava -esse era o costume-, os hoteb do estaleiro dos Zebedeo se transformavam, voavam com a imaginação, fugiam do lento e azedo dia a dia, e em soma, entravam pela porta grande dos sonhos, o grande tesouro do ser humano. Entendo que o Mestre sabia muito bem; por isso participava intensamente. Para mim, como digo, o espetáculo era O... Naturalmente, dependendo do cansaço, e do atrativo das narrações, os ouvintes faziam armadilhas, ou não. Quer dizer, distraíam ao orador, e penetravam algum tronco que outro, prolongando assim o quente e agradável chispar do fogo. Yu sabia, mas não dizia nada. E arrancava as histórias kui com uma frase, já sabida e não menos esperada: "Em minhas viagens pelas terras interiores e exteriores..." Só algum uivo, mais ou menos longínquo, atrevia-se a incomodar aquele sagrado momento no Attiq. Jesus se acariciava a barba, agora algo mais descuidada, e se montava no silêncio geral, tão espectador como o resto. Viagens? Yu quase não tinha saído da região do yam. O mais longe que chegou foi à costa fenícia, mas isso o que importava? Era um fabricante de sonhos. Abria e fechava a imaginação, quão único conta, em definitiva. O único que nos diferencia do resto do criado, ao menos do conhecido... Nunca soube a que terras "exteriores" se referia. Quanto às "interiores", com o tempo, e detrás consultar os arquivos da Santa Claus", deduzi que falava do que hoje conhecemos como a China, e que vivia em sua mente, mercê às lendas e tradições transmitidas de geração em geração. Quanto aos kui, pouco foi o que averigüei. Não era um término aramaico ou hebreu. Era realmente chinês e aparecia em textos muito remotos, como o Shanhai jing. Descreviam-no como um ser fantástico, similar a uma vaca, com uma só pata, luminoso como o sol e a lua juntos, e capaz de façanhas inimagináveis. Em realidade, Yu terminou adotando
o nome da criatura mitológica e o fez próprio, estendendo-o à totalidade dos seres maravilhosos e, o que era mais importante, às qualidades humanas; ao que definia como rena "qualidade humana". Como já manifestei, Yu era um fiel seguidor do Confucio, embora também se achava muito influenciado pelas velhas correntes filosóficas do taoísmo. O bom, para o naggar do Nahum, era kui. A esperança, a beleza, a imaginação, o território dos sonhos, os desejos ou a natureza, em geral, eram kui. Todos, dizia, temos o direito, e a obrigação, de ser kui. Por isso, pouco depois, fez-se seguidor do Filho do Homem, o "Grande Kui", se me permite a expressão. -Em minhas viagens pelas terras interiores e exteriores -prosseguiu com prazer-, cheguei um dia aos Montes Tailandês xing e Wangceng... São montanhas cem vezes mais altas que o Attiq... Ali vive um parente longínquo de meu pai, o conde Yu... E a paróquia, totalmente crédula, sussurrava com admiração. -. . . Yu tinha noventa anos e aqueles Montes, simplesmente, estorvavamlhe quando decidia caminhar para o rio Hão... Assim convocou uma reunião familiar e propôs o traslado dos mesmos, pedra a pedra. Todos aceitaram e iniciaram a irritante tarefa: pais, filhos e netos... Todos carregavam terra e rochas e as transladavam em sacos. E assim, um dia e outro... Os hoteb emudeceram, imaginando o inútil e pesada trabalho. Jesus tampouco respirava. -. . . E passou o tempo, e um dos sábios da comarca, um tal Hequ, chegou à casa do conde e riu dele. "É impossível que o consiga -manifestou-, nem em todos os anos que fiquem de vida. Não te dá conta, insensato, de que esses Montes têm mais de dezesseis mil cotovelos de altura?" Alguns dos pressente estiveram de acordo com o sábio. Outros se opuseram. E Yu continuou: -Mas o conde replicou: "E você, não te dá conta de que, embora eu mora, outros prosseguirão a tarefa? A meus netos seguirão os bisnetos e, a estes, acontecerão-lhes outros netos, que engendrarão mais bisnetos. Os Montes, entretanto, não crescerão."
Hequ, confundido, guardou silêncio... E os deuses, assombrados, enviaram a um kui chamado Kuae, com seus dois filhos. Este patriarca movia as rochas com o pensamento... Assim pôde rebaixar as montanhas em pouco mais de um suspiro... A paróquia animou a façanha do kui. E Yu rematou a primeira das histórias: -Quem criem que foi o autêntico kui? As opiniões se dividiram. Uns defendiam ao patriarca. Outros se inclinaram pelo conde. O Mestre, tão agradado como Yu, olhava aos acesos participantes e aguardou a resposta do chinês. Então, o fiel Kesil, que se achava a meu lado, comentou: -O kui é você, Yu... fez-se o silêncio. Aquilo era novo. E Yu exigiu uma explicação. -Mover montanhas com o pensamento o faz qualquer. nos convencer de que isso é possível, e necessário, é o difícil... O Mestre e Yu sorriram com evidente satisfação. Kesil tinha algo especial. Sempre acreditei. O beijo do Jesus, no lixeiro do Nahum, foi um sinal. O mundo, agora sei, funciona com sinais. Deus, o Pai, proporciona-as, embora não as solicitemos. E Kesil foi um sinal no caminho... Mas sigamos com os kui. Segundo Yu, todos devíamos vigiar as montanhas. Um bom cidadão, um bom kui, sabe ler nelas. Se o monte "se for", ou "desaparece às escondidas", algo não vai bem nesse reino, algo está a ponto de trocar para mau. As palavras do naggar tinham um efeito fulminante. À manhã seguinte, os lenhadores observavam as colinas com atenção, e suspiravam aliviados. Não se tinham movido. E fiéis aos conselhos do Yu, mimavam a natureza, "para que não trocasse deste lugar era o poder da imaginação... Depois falou da Nüwa, uma espécie de mulher-peixe, a kui que salvou ao mundo, e ao céu, da grande inundação. -Em minhas viagens pelas terras interiores e exteriores... Tudo se acalmou, e até as chamas se inclinaram, dóceis e pendentes do Yu. Nessa viagem fictícia, mas maravilhoso, o bom chinês disse conhecer também o Shizhou ji ou Crônicas dos dez moderados, um texto da dinastia Hão (possivelmente da Hão anterior) que se remontava ao século II antes de Cristo, e que foi
atribuído ao Dong Fangshuo. Yu bebeu deste texto prodigioso, ou recebeu a informação de seus ancestros, quem sabe... A questão é que voltou a encantar ao pessoal. Nüwa foi a mãe por excelência. Pariu setenta vezes ao dia e moldou aos humanos com barro e fios de soga. Os ricos e nobres -isso disse- foram feitos de argila. Por isso se derrubam mais facilmente que os pobres, confeccionados com os fios da referida corda. Todos se mostraram de acordo. Os pobres são de melhor "fibra". E riram como meninos. Jesus, o primeiro... Mas, além de mãe e mulher formosa, Nüwa foi a salvadora do mundo. Ocorreu quando a Terra era iluminada por dez sóis. Nessa época vivia Gonggong, o contrário a um kui. Era malvado, porque só utilizava a razão. Não sabia nada da intuição. E lutou contra o Dragão de Luz. Mas ao ver que não era capaz de derrotar ao instinto, investiu contra uma montanha e a partiu em dois. Agora a chamam Monte Partido... Os lenhadores emudeceram. Como era possível? Onde estavam os kui? Terei que salvar ao mundo! E o ataque do Gonggong provocou o desastre: os Montes se cambalearam e o céu se inclinou. O firmamento perdeu a horizontalidade! Por isso as estrelas se movem para o oeste! Os hoteb, desconcertados, levantaram as cabeças, procurando os luzeiros fora das peles que faziam de tejadillo. Alguns cintilaram e, suponho, deram-lhe a razão ao contador de histórias. Bendita ingenuidade! Mas a má ação do Gonggong afetou também à Terra, que se deslocou, ao lhe faltar uma das esquinas, e se inclinou para o sudeste. Por isso os rios e os desertos -proclamou Yu com solenidade- correm para o sudeste! Para o Yu, a Terra seguia sendo quadrada. E os lenhadores, alarmados, fizeram coro de novo o nome de kui. Yu reclamou paz. Isso era bom sinal... Foi então, em metade da grande inundação que provocou a falta de horizontalidade do céu, quando apareceu Nüwa e, mercê a quatro patas de
uma tartaruga gigante, conseguiu calçar as colunas que sustentam a esfera celeste. E deteve o perigo... A concorrência não pôde conter a alegria e estalou em vivas. A moral chegou imediatamente, assim que o chinês conseguiu conter aos homens. -Não o esqueçam: também há mulheres kui..., embora não o pareça. E da mão dos sonhos e da fantasia, Yu fazia o milagre: boa parte daqueles rudes trabalhadores da madeira recordaria para sempre que foi uma mulher a que salvou ao mundo. Devíamos beijar por onde elas pisassem. Mas os troncos, finalmente, esgotavam-se, e nos retirávamos, pensando na seguinte "noite kui". E assim foi, dia detrás dia... Lembrança, por exemplo, a história do Kuafu, deslumbrado pela beleza do sol. Este kui cometeu um grave engano. Quis capturar ao sol e o perseguiu sem descanso. Ao chegar a suas proximidades, experimentou tanta sede que teve que deter a perseguição e se bebeu o rio Amam lb. Mas a sede não desapareceu e se bebeu também o rio Wei. Quando se dirigia ao Grande Lago para beber-lhe caiu morto. Os deuses o perdoaram e o transformaram em um bosque de melocotoneros, no que nunca entra o sol... Yu, então, alertava a seus homens: "Persigam o pequeno; melhor dizendo, o aparentemente pequeno. Um bom kui é pequeno, sabe-se pequeno e se contente com o pequeno. Por isso, um kui é mais feliz que um "não kui". Se alguma vez tiverem a má fortuna de possuir a verdade -afirmava-, fujam dela, porque lhes deixará sedentos..." Os homens, lógicamente, não compreendiam. O Mestre, entretanto, sorria e seu rosto se iluminava. Às vezes intercambiávamos um olhar de cumplicidade. Eu sabia: O estava desejoso de inaugurar sua hora, mas devia conter-se. Não era o momento. E, sem querer, este explorador voava para o Jordão, e imaginava ao Yehohanan, tão longe daquelas soube palavras. por que os evangelistas não emprestaram atenção a estes homens, digamos, de "segunda ordem" na vida do Jesus do Nazaret? Aprendi mais com o Yu, o chinês, que com os doze, os íntimos do Galileo... E Kesil pôs os pontos sobre as íes, uma vez mais: -Um bom kui -sussurrou- é pequeno, justamente, porque é grande...
Em outra oportunidade, Yu falou do "Ave Negra" e contou a história da fundação da dinastia Shang, uma das mais antigas e inquietantes da China milenaria (conjetura-se que foi fundada por volta do século XVII antes de nossa era). Falou de "dragões circulares" que desceram do céu, e dos deuses de olhos rasgados que os montavam, e que se cruzaram com os humanos. Mas tinham que fundar uma dinastia real, um autêntico descendente do céu, e os deuses que governavam os "dragões como rodas" foram escolher a uma virgem chamada Jiandi. Então, o "Ave Negra" voou sobre ela e deixou cair um ovo. Jiandi o tragou sem mastigar e ficou grávida. Assim nasceu Xie, o primeiro dos imperadores da casa dos Shang. Os "dragões circulares", segundo Yu, luziam uma estranha letra na pança. E Yu a desenhou: uma espécie de "H", com um risco no centro. Essa letra, disse, representava a "lei do céu". Era o símbolo da divindade e da realeza. De ser certa a história, os fatos puderam ocorrer fazia quase 1800 anos (3800 desde nosso "agora"). Dragões em forma de rodas? Deuses que deixavam grávidas a donzelas? Onde tinha ouvido um pouco parecido? E nas deliciosas e inesgotáveis viagens pelas "terras exteriores e interiores", Yu desenhava toda sorte de criaturas. Assim soubemos dos animais yu, e dos "flechadores", e até de quarenta e cinco tipos diferentes de homens. A transbordante fantasia (?) do naggar nos deixava cativos... Os animais yu, por exemplo, eram raposas diminutas, que cabiam em uma mão, e que cuspiam areia. Se um, em suas viagens, tinha a má fortuna de tropeçar com uma raposa yu, adeus à vida... Os "flechadores", por sua parte, eram insetos que disparavam flechas, mas sempre sobre a sombra do homem ou da mulher. Se o "flechador" acertava, a parte do corpo correspondente à sombra "ferida" sanava ou adoecia automaticamente. Ao dia seguinte, como é natural, a equipe do Yu caminhava pelos bosques com pés de chumbo, pendente das supostas raposas e dos não menos traidores "flechadores". E a mais de um lhe ouvia gritar em sonhos, solicitando clemência... E Yu se estendeu nas descrições dos homens das terras exteriores. Recordo
aos que careciam de eco, também chamados os homens "Sem Fim", porque suas palavras nunca retornavam. E ao país dos "Cães com Mercê", com crinas de seda branca e olhos de ouro. Quem conseguia cavalgar um deles vivia mil anos. E aos homens "Xiaoyang", canibais, que jamais chegam a comer-se a ninguém porque, nada mais abrir a enorme boca, riem, e a risada os mata. E aos homens "Cansados", ao norte, que só vivem um minuto. E aos homens "Hormigo", que nascem com os talões investidos, fazendo acreditar em seus inimigos que vão em uma direção quando, em realidade, caminham na contrária. E aos homens "Sim", os mais cavalheirescos, porque suas línguas não sabem dizer "não". É o único país no que ninguém discute. E aos "Comilões de Ar" e aos que "Caminham em Fila" e aos homens que habitam o país dos "Mastreie com Buracos" e aos homens das "Cabeças Transparentes", que não podem ocultar os pensamentos, e, como não, lembrança as ilhas dos "Imortais", onde tudo é necessariamente branco... E assim, como digo, até quarenta e cinco classes de seres humanos. Tudo era válido para o Yu na hora de exercitar a imaginação. Acreditava nos sonhos, como o melhor antídoto contra a escuridão e a desesperança. "O homem que sonha -dizia- já venceu. " Foram dias felizes, apesar de tudo. Em ocasiões, segundo a temática a desdobrar, o chinês requeria o concurso das serras de destruir, e improvisava uma assombrosa "orquestra". Três ou quatro dos hoteb -Iddan, o afiador, era um deles- apoiavam um dos extremos das tronzadoras no chão e as mantinham em vertical. Bastava um ramo, ou melhor ainda, uma lima, para golpear uma das caras e, dobrando as folhas em um determinado ângulo, obter um som comprido e melodioso, que enfeitiçava ao bosque e a quantos participávamos da "noite kui". A magia do Yu se montava então na música e nos visitava com especial força. O final sempre era o mesmo: com lágrimas nos olhos, os lenhadores entoavam um velho cântico: "Olhem quão bela e deliciosa é a convivência de irmãos... Como o rocio do Hermón que cai sobre as montanhas... "
O Mestre se unia ao coro e elevava sua voz grave, terminante e acariciadora, proporcionando asas ao referido salmo 133. Yu, respeitoso, mantinha-se em silêncio, com os dedos entrelaçados sobre o coração. Yu não praticava a religião judia. Sim, foram dias felizes. Eu a amava e a via cada vez que aparecia nas estrelas. Mas começou a nevar... Foi na quinta-feira, dia 3, pouco antes do pôr-do-sol. Yu e sua gente olhavam ao céu com preocupação. Para cúmulo, a manga de uma das tochas de dobro cuchilla se partiu em plena tarefa, e pouco faltou para que o hoteb resultasse machucado. Mau presságio, segundo os supersticiosos trabalhadores. Iddan, meu chefe, era um dos mais nervosos. "A neve não é boa para o corte -murmurava entre dentes-. A neve está avisando..." E os trabalhos, efetivamente, começaram a complicar-se. na sexta-feira, 4, seguiu nevando, e com maior intensidade. O caminho que unia a zona de corte com o mahaneh se apagou, e a isso do meio-dia, coincidindo com o habitual alto para repor forças, Yu se reuniu com a equipe e analisou a situação. Os flocos, grandes e densos, caíam com tal intensidade que não era fácil ver além de dois ou três metros. Era difícil subir pelos troncos e, mais árdua ainda, o trabalho de descopado, e o posterior destruído da árvore. Todos se mostraram de acordo. Tinham madeira suficiente para prosseguir no estaleiro durante seis meses. Não convinha tentar à sorte. Deviam levantar o acampamento e transladar os troncos ao Nahum. Se o mau tempo se fazia crônico, os passos para a Jaraba podiam fechar-se. Nesse caso, o negócio seria ruinoso para todos... Yu tomou a decisão final: partiríamos para a manhã seguinte. E o resto da jornada, embora com dificuldade, foi dedicado ao arremate das três ou quatro árvores que se achavam meio desramados. Um desses carvalhos -o Destino quis que não fosse excessivamente alto- estava sendo trabalhado pelo Jesus e o jovem Minjá... O Mestre já tinha amarrado a soga ao alto do madeiro e se trabalhava em excesso no corte da ramagem, auxiliado pela corda que rodeava sua cintura
e com os pés firmemente ancorados na rugosa casca da árvore. Observei-o de reojo em várias oportunidades. Vi-o lutar com a tocha contra a cortina de neve. Não sei por que, mas eu não gostei... Algo mais acima, encarapitado em um dos ramos, médio divisei ao moço que ajudava ao Galileo. Os flocos o mantinham imóvel, como hipnotizado. Pressenti algo... Então, por volta da "nona" (por volta das três da tarde), ouvimos um grito. Mais que um grito, um lamento dilacerador... Ao princípio, com a neve nos fechando o passo, não soube onde olhar. Depois, silêncio. E, ao momento, ouvi a voz do Mestre. Todos corremos para o carvalho. Solicitava ajuda. Quando levantei os olhos, fiquei apavorado. Minjá pendurava no vazio. Sua mão esquerda aparecia obstinada aos cabelos do Jesus, forçando e inclinando a cabeça do Mestre. O Galileo sujeitava ao ajudante por uma das mangas do sarbal. A tocha tinha cansado sobre a neve. E ao ver as intensas convulsões do Minjá, acreditei entender. As extremidades, o tronco e a cabeça se agitavam violentamente, fazendo muito difícil a sujeição do corpo por parte do Jesus. Minjá estava sofrendo as contrações dos músculos no que, aparentemente, parecia um ataque de epilepsia. Era a primeira notícia sobre dito "grande mal". Alguns dos hoteb dispuseram cordas ao redor de suas cinturas e se apressaram a escalar o carvalho. Foi inútil. Quando se achavam a meio caminho, o descontrol muscular do Minjá foi máximo e o "mergulhador" se escorreu de entre os dedos da mão direita do Filho do Homem. Ouvimos um lamento, e o ajudante se precipitou desde oito ou dez metros de altura, impactando no manto de neve. Jesus ficou no alto, com um gesto de dor. Não pôde conter ao jovencito. Iddan, o afiador, que estava a par da doença, abriu-se passo entre os desolados hoteb e exigiu calma. Minjá se retorcia na neve, com os olhos em branco e uma abundante salivação. Eliseo tratou de sujeitá-lo, mas Vão dão o fez desistir. Procurou um pequeno ramo e a situou entre os dentes, evitando que o epilético se mordesse a língua. Foram dois ou três minutos eternos. O afiador, sabiamente, afrouxou o
cordão que fechava o sarbal e se limitou a retirar das proximidades qualquer objeto que pudesse havê-lo machucado. Pouco pude fazer. Iddan o fez tudo. A crise amainou e o afiador, inquieto, limpou o rosto do jovem e tentou situá-lo em uma posição lateral, mais segura. A neve caía, implacável. Todos fizemos a um lado, permitindo que Iddan fizesse seu trabalho o mais comodamente possível. Todos menos Eliseo, que seguiu junto ao Minjá. Como não me dava conta? Ao tratar de mover o corpo, o ajudante do Jesus gemeu. Iddan tinha razão ao mostrar-se inquieto. Superadas as convulsões, o epilético deveria ter entrado em um período "poscrítico", dominado geralmente pelo sonho. Estúpido! Fui um perfeito estúpido! O afiador retirou parte do "mergulhador". Eliseo o ajudou. Minjá seguiu lamentando-se... Então vi o Mestre. Tinha descendido do carvalho e se manteve a nosso lado, em silêncio. A neve e a tristeza o cobriam... O afiador não demorou para averiguar o porquê dos gemidos do moço. O antebraço esquerdo se fraturou, muito possivelmente na queda. Apalpou a zona e verificou que se tratava de uma ruptura fechada, sem ferida. Um dos hoteb, seguindo as orientações do velho, preparou ramos e Iddan entalou o braço e o imobilizou. Depois fabricaram umas cangalhas com ramos e cordas, e Minjá foi transladado ao acampamento. Eliseo foi um dos que carregaram com o rudimentar armação. Quando Yu, avisado, fez ato de presença no lugar do acidente, o epilético já tinha sido evacuado ao mahaneh. Yu não o duvidou. A neve fazia impossível o corte. E ordenou o afastamento do trabalho. Todos retornaram ao acampamento, exceção feita do Filho do Homem, e de quem isto escreve... Jesus, sentado ao pé de uma das árvores, parecia ausente. A neve, detida nos cabelos, na barba, e no sarbal, começava a cobri-lo. Alarmei-me. O que lhe acontecia? Permaneci uns minutos em silêncio, sem saber o que fazer, nem o que dizer. Jesus não piscava. Como digo, tinha o olhar perdido. Fazia muito
que não o via assim, conquistado pela tristeza. E imaginei que pensava em seu jovem ajudante, oscilando no vazio, agarrado a seus cabelos, e sustenido com dificuldade pela mão do Mestre. Era óbvio que não pôde evitar a queda do Minjá. As convulsões foram muito severas... Agora, ao saber o que sei, ao descobrir o que descobri, já não estou seguro. Agora não sei no que pensava realmente o Filho do Homem enquanto permaneceu sob a neve. Era muito fácil esquecer sua condição de Homem-Deus... Suponho que foi minha presença, frente Ao, o que o fez reagir. Elevou a vista e, ao me reconhecer, sorriu com certa amargura. Depois, enquanto descendia à realidade, o sorriso se fez mais poda. E voltou a ser O. sacudiu-se a neve e exclamou: -Vamos mau'AK! ... Ab-BA sabe! E me animou a segui-lo para o acampamento. As súbitas palavras do Galileo me deixaram pensativo. O que quis expressar? "Vamos, mensageiro!... O Pai sabe!" Então, como digo, não soube ler entre linhas... Minjá foi acomodado em uma das lojas e Yu lhe subministrou uma beberagem que chamavam "salsinha lobuno". Pelos ingredientes deduzi que se tratava de um sedativo, com a Conium maculatum como base fundamental. O chinês não estava equivocado na hora de subministrar a cicuta. Esta planta, entre outros princípios, contém um alcalóide chamado coniína, que atua como sedativo frente aos espasmos nervosos. E o moço, efetivamente, entrou em um sonho profundo. Kesil e alguns dos lenhadores discutiram sobre a "posse" que padecia Minjá. Todos estiveram de acordo: um espírito imundo entrava em seu corpo e "o espancava". O Mestre, mais tranqüilo, escutava em silêncio, sem intervir. E da suposta "posse demoníaca" passaram aos "remédios" que devia receber todo suspeito de epilepsia. O mais recomendável -disseram- eram as crias de corvos, sem plumas e calcinadas. A cinza, orvalhada na comida, espantava aos maus espíritos. Outros defendiam as cinzas de placenta de cerda, igualmente subministradas com o alimento.
Jesus e eu cruzamos mais de um olhar. Entendi que não tinha chegado sua hora, e prosseguiu com o jantar. Curioso Destino... Algum tempo depois, quando o Filho do Homem se achava em plena vida pública, ou de predicación, o jovem Minjá voltaria a ser o centro de atração, e por razões parecidas com as daquela sexta-feira, 4 de janeiro. Mas tratarei de me ajustar aos fatos, tal e como me tocou vivê-los... Eliseo desapareceu. Quando ingressamos no mahaneh, retirou-se a sua loja. Não jantou. Nossa relação seguia piorando. Quase não falávamos. Assim enviei ao Kesil a que lhe perguntasse. O fiel criado, consciente do distanciamento entre os dois amigos, fez-o tão pontual como entristecido. E retornou sem resposta alguma. O engenheiro dormia, ou fingia que dormia... Como não me dava conta? Algo tramava, em efeito... A nevada cessou, mas a "noite kui", nesta oportunidade, foi mais breve. Todos estávamos preocupados com o jovem ajudante... Ao dia seguinte, sábado, com as primeiras luzes, levantamos o acampamento e empreendemos o caminho de volta ao Nahum. Minjá se achava reposto e, com o braço em tipóia, colaborou no que pôde. Na Jaraba, Kol, o dono de "tudo", recebeu a importância dos aluguéis das lojas e demais utensílios, e a equipe se desfez dos "mergulhadores". E o Mestre voltou a vestir sua habitual túnica branca de lã, sem costuras, de amplas mangas, e sujeita, na cintura, por uma dobro corda de fibra de linho. Foi nesse obrigado mudo de um lugar a outro de roupa, enquanto os lenhadores devolviam cada sarbal ao proprietário do loja de comestíveis, quando se produziu um fato que, em um primeiro momento, sentiu saudades, mas ao que tampouco concedi muita importância. Sem mediar uma só palavra, Eliseo se fez com a "vara do Moisés". Não perguntei. Como digo, tampouco era estranho que ele se responsabilizasse do cajado. Tinha-o utilizado em algumas oportunidades. Além disso, não nos falávamos. E descendemos para o caminho que conduzia ao yam. A temperatura se fez mais agradável, e os corações se alegraram conforme nos aproximamos
do Nahum. Jesus partia no grupo de cabeça, com o Yu. E quem isto escreve, pendente do Mestre, fez o caminho virtualmente pego à sombra do Filho do Homem. Kesil ficou atrasado, acompanhando ao Eliseo. Suponho que foi um engano deste explorador, mas quem podia supô-lo? A questão é que, para a sexta hora" (meio-dia), cruzamos sob a triplo porta do Nahum e cada qual se retirou a seu lar. Não tive a precaução de olhar atrás e prossegui pela rua principal, o cardo maximus, até a ilha. O Mestre se afastou por volta da "casa das flores". Nos veríamos o dia seguinte, no estaleiro. Ao pouco vi chegar ao Kesil. Caminhava em companhia do Minjá. Ao perguntar pelo Eliseo, a resposta me deixou confuso: -Há-me dito que te diga que voltou para casa... Era a forma de expressar que, um dos dois, ou ambos, devíamos ingressar no módulo. Pensei na rotineira inspeção semanal. Mas algo eu não gostei. por que subiu com o cajado? Kesil, que tinha ouvido a expressão "vamos casa" em mais de uma oportunidade, não resistiu a tentação e perguntou: -A que casa se refere? Têm outra? Em que lugar? Saí do apuro como pude, e cometi um engano. Falei de uma casita de recreio, e a localizei no caminho ao Maghar. Esse foi o engano. Kesil era muito inteligente... Na ilha, tudo seguia seu ritmo habitual. Acompanhamos ao jovem Minjá a sua moradia, na habitação "46", e o encomendamos aos cuidados de sua família. Esta vez, o céu me iluminou... Não sei por que razão, mas me interessei pelos antecedentes -digam "demoníacos"- do moço. A família não contribuiu muita informação, mas confirmou as suspeitas: as convulsões apareceram quando tinha dois anos, e cada vez eram mais freqüentes. "A ira do Yavé -disseram- é justa: nossos pecados são muitos..." Subministrei-lhe um analgésico (ibuprofeno) e uma dose mínima de difenilhidantoína (300 miligramas), com o fim de apaziguá-lo. Nesses momentos estimei que a fenitoína não alterava, para nada, a normal evolução da patologia. Não me equivoquei. Como pinjente, ao explorar o cérebro com os "nemos",
descobri uma microlesión, incurável, que provocava as referidas descargas nos neurônios encefálicos. E roguei ao pai e à mãe que me mantiveram informado sobre as novas "posses" e, igualmente, sobre o comportamento do Minjá durem-lhe o sonho. Este seguimento do jovem epilético resultaria de especial interesse, de cara a um dos sucessos mais espetaculares que nos tocou viver nesta aventura. Melhor dizendo, que lhe tocou viver ao Eliseo... E foi assim, neste contato com a família do Minjá, quando recebi as primeiras notícias sobre a recente reunião, essa mesma manhã do sábado, do conselho local ou zqny h'yr do Nahum. O pai do moço era um assalariado do Nitay Ben Jolí, o sacerdote e caritativo da sinagoga. Sabia de minhas viagens e interesse pelo Yehohanan, o suposto profeta do Jordão. Em realidade, depois do incidente do "encanecimiento súbito", toda a ilha esteve à corrente de minha "devoção" pelo Anunciador, e de meus deslocamentos aos lugares nos que pregava e nos que efetuava as cerimônias de imersão na água. O assunto, ao parecer, era importante. O tal Yehohanan -segundo a versão do pai do Minjá- seguia avançando rio acima, em direção ao yam e, presumivelmente, para o Nahum. As notícias sobre o gigante das sete tranças chegavam regularmente ao lago, mas, nesta ocasião, segundo meu confidente, as coisas eram distintas. Yehohanan arrastava consigo uma multidão de curiosos, devotos e fanáticos que demandavam "ordem, liberdade e arrependimento". Não sentiu saudades. Yehohanan o manifestou em mais de uma ocasião: se era preciso, caminharia até o Nahum, a cidade do Jesus, e lhe imploraria... Pus-se a tremer. O que aconteceria se o Anunciador cumpria suas advertências? Mas como sabia o pai do epilético que as intenções do Yehohanan eram as de apresentar-se no Nahum? Agradecido, suponho, pelas cuidados para seu filho, O homem nos revelou o que considerou um segredo, ouvido, por ele na sede da sinagoga, durante o conselho local. Em dita sessão, em que participaram, entre outros,
Yehudá Ben Jolí, o archisinagogo e irmão do Nitay, o "saco de sebo", segundo seus inimigos, o já chamado caritativo e Tarfón, o hazán ou "sacristão", e homem de confiança do Yehudá, saiu a reluzir o nome do Jesus... Fiquei perplexo. Segundo o pai do Minjá, alguém, entre os discípulos do Anunciador, tinha deslizado o nome do Mestre "como o futuro Mesías". O conselho estava ao tanto, inclusive, de algumas das manifestações feitas pelo Yehohanan a seus íntimos: "Logo aparecerá outro maior que eu, do que não sou digno de desatar as correias de suas sandálias. Eu convido ao arrependimento e lhes inundo em água, mas O é o enviado do Espírito. O traz a forca e varará o grão... E a palha será consumida no fogo e na ira do Yavé." Não cabia a menor duvida. Era o estilo do Yehohanan. E supus que era inevitável. cedo ou tarde, o nome do Mestre tivesse saído à luz. A situação me desejou muito delicada. Aquilo tampouco estava previsto. Yehohanan, ao parecer, cansou-se de esperar e se dirigia, decidido, para a população em que residia seu parente longínquo e, segundo ele, futuro "destruidor de dentes" e líder soberano da nação. O conselho local do Nahum se achava tão desconcertado que mandou chamar o Jesus. Ao não encontrá-lo, foi a Senhora e Santiago, o irmão do Galileo, quem se apresentou na sinagoga. Tudo isto acabava de acontecer. Naturalmente, a família do Mestre não estava a par das palavras do Yehohanan, e, muito menos, de suas intenções de reunir-se com o Filho do Homem. E María e seu filho, prudentes, disseram não saber nada. O Mestre seguia nas colinas do Attiq, segundo a mulher... Incrível Destino. Nesses momentos, enquanto María e Santiago declaravam ante o conselho local, Jesus e o resto dos trabalhadores descendiam dos bosques da Gaulanitis, empurrados, em certo modo, por toda uma cadeia de "coincidências" (!). Mas havia mais... O conselho recebeu também a notícia sobre a "milagrosa sanación" de um menino do Nahum. A prodigiosa cura, segundo os discípulos e seguidores
do Yehohanan, teve lugar nos lagos do Enaván, perto de Salem. E o conselho iniciou a busca desse menino... Imaginei que os rumores se referiam ao pequeno que padecia a paraplejia inferior ou crural, que lhe provocava a paralisia das pernas, e que este explorador teve a oportunidade de contemplar durante uma das estadias nos lhe'omin ou cascatas as gema. Se não recordava mau, Yehohanan não curou ao menino. Justamente o contrário. Ao tomá-lo em braços e introduzi-lo baixo um dos jorros de água, a fria, a criatura piorou. Quando me despedi daquela família, as pernas do pequeno continuavam deprimidas, e era presa da febre... Não fiz menção do vivido por quem isto escreve. Se o conselho localizava à referida família, compreenderia, imediatamente, que a sanación era uma fraude. Interroguei ao pai do Minjá sobre as intenções do conselho respeito ao Jesus. A resposta me tranqüilizou, relativamente. A maioria dos "notáveis" se mostrou precavida. Não era bom inquietar ao povo, e desestabilizar a uma família -a do Jesus-, se não se dispunha de provas firmes. O que dirigiam eram rumores. Convinha assegurar-se. E nessa mesma sessão extraordinária, os irmãos Ben Jolí submeteram o tema a votação. O resultado foi unânime: nomeariam uma comissão que viajaria ao rio Jordão e indagaria sobre os objetivos do Yehohanan. A reunião concluiu com o segundo e último ponto da ordem do dia: a aceitação da "lua nova", de acordo com as notícias chegadas, colina a colina, da Cidade Santa. Era a forma de dar reconhecimento oficial ao novo mês. Dois ou três dias antes do início da citada fase lunar, os sacerdotes do Templo convocavam às possíveis testemunhas de dita "lua nova". A maioria vivia disto. Se o Sanedrín os reputava como homens honoráveis, além da comida e o alojamento grátis em Jerusalém, os observadores da lua nova recebiam uns denarios, a conta do tesouro público. Os sacerdotes os interrogavam minuciosamente, interessando-se por toda classe de detalhes: largo do crescente lunar, lugar do que o tinham observado, altura sobre o horizonte, etc. Se o
tribunal aprovava os testemunhos, utilizava a fórmula "É sagrada!", já lua nova era oficial. Ato seguido se acendiam fogueiras no monte dos Olivos e se transmitia a "aceitação do novo mês". Em questão de horas, os sinais luminosos percorriam o Israel, e chegavam mais à frente do Jordão. Era o Rosh Jodesh ou primeiro dia do mês. Destes cálculos dependia a localização das festas mais solenes, em especial a Páscoa, no mês de nisán; Pentecostés ou Shavuot; as Lojas ou Succot; o Dia do Perdão e o Ano Novo, no mês do Tisri; a Dedicação ou Janucá e Purim, no mês do Adar. Por elementares medidas de segurança, para não ser objeto de brincadeira por parte de seus inimigos, nessas sete ocasiões, os judeus, além de acender as fogueiras, enviavam mensageiros às cidades e anunciavam a "lua nova". Nós, durante a operação, fizemos caso omisso destes cálculos e, por razões práticas, contabilizamos os dias tal e como aparecem no presente jornal. Disso se ocupou "Santa Claus". Solicitei do Kesil que indagasse sobre o ouvido na habitação "46". Todo aquilo, insisto, deixou-me intranqüilo. Os acontecimentos tinham começado a precipitar-se antes de imaginado. Nada disto aparece nos textos evangélicos... O que aconteceria se a comissão designada pelo conselho local averiguava que Jesus, em efeito, achava-se no centro dos pensamentos do Anunciador? Fui incapaz de intuir sequer o que nos proporcionava o Destino e, instintivamente, fui aparecer me na janela que dava ao sul, sobre o cardo e a "casa das flores". Kesil abandonou a habitação "41" e prometeu retornar com notícias. E ali ficou quem isto escreve, sumido em um labirinto de dúvidas: preparavame para acompanhar à comissão ao vale do Jordão? Como reagiria o imprevisível Yehohanan quando fora interrogado pelos representantes do Nahum? O instinto me dizia que tinha que estar ali... Mas não devia fazê-lo enquanto Eliseo seguisse no Ravid. Além disso, carecia do cajado. Uma viagem assim exigia um mínimo de segurança. Segundo os rumores, o Anunciador
e seu grupo, nesses momentos, achavam-se nas cercanias da cidade de Bolota, na Decápolis. Isso representava ao redor de 30 ou 35 quilômetros, a contar da costa sul do yam. Em outras palavras: uma jornada a pé, ou uma manhã se optava por contratar um dos carros na base de aprovisionamento dos "treze irmãos", nas cercanias do Bet Yeraj. Em princípio, uma marcha singela... E o mais importante: como responderia o Mestre quando tivesse conhecimento do parlamentado na sinagoga? Aceitaria o filtrado pelos íntimos de sua primo longínquo? manifestaria-se de acordo com o título do Mesías? E sua família? Como reagiria a Senhora? Foi desconcertante, uma vez mais. O Destino me proporcionou as respostas adequadas, de forma imediata, e com seu peculiar "estilo"... E nisso estava, avaliando a viagem ao Jordão, quando a vi aparecer no pátio da "casa das flores". O coração me abandonou... MA'ch! Detrás, chegou o Mestre. situou-se perto do amadurecido e procedeu a lavar-se em uma das grandes terrinas de barro. Ruth o atendia. meu deus, como a amava! E, súbitamente, uniu-se a eles María, a Senhora. Vi-a dirigir-se ao Jesus, mas, dada a distância, não alcancei a distinguir as palavras. Ruth olhou a sua mãe, mas não disse nada. Quanto ao Galileo, seguiu com a água, asseando o poderoso tórax. Tampouco lhe vi abrir a boca. E a Senhora, gesticulando com força, levantou os braços para o céu, e assinalando o portalón de entrada, continuou interpelando a seu Filho. Isso foi o que deduzi, e não me equivoquei. Mas Jesus não replicou. Ruth fez gesto de acalmar à mãe, mas a Senhora, visivelmente alterada, ignorou-a e prosseguiu com as demandas. O tom de voz se elevou e algo ouvi: -Deveria te dar vergonha!... Ele está ao chegar...! referia-se ao Yehohanan? Isso parecia. Era evidente que a temperamental María estava solicitando uma explicação a seu primogênito. O comparecimento ante o conselho
local a tinha inquietado. O Mestre, entretanto, não abriu os lábios. Tomou o tecido que sustentava a irmã e se secou devagar, com os olhos baixos. A Senhora, cada vez mais irritada, plantou-se muito perto do Jesus, e o ameaçou a que desse a cara. Ruth rompeu a chorar e escapou à carreira para a estadia mais próxima. O Mestre a seguiu, e a Senhora, furiosa, murmurou algo... Nesses instantes, como se alguém lhe tivesse advertido, elevou a vista para a ilha e me descobriu. Acreditei morrer de vergonha... Retirei a um rincão, e ali permaneci, acovardado, como se o mundo acabasse de desabar-se. Pouco a pouco recuperei a serenidade. Do que me ocultava? por que me envergonhava? Retornei à janela e me fiz um firme propósito: meu objetivo era O. Estava ali para dar fé da verdade. Nada, nem ninguém, interporia-se nesse trabalho. Nem sequer a Senhora... Quanto ao MA'ch, não tinha mais remedeio que me sobrepor. Esqueceriaa. Ao menos, tentaria-o. Pobre idiota! E, discretamente, continuei atento à "casa das flores. Não voltei a ver seus moradores, à exceção desta, a grávida, e de sua filha maior, sempre arranca-rabo à túnica da mãe. Foi ao longo dessa última hora de luz quando observei outro feito incomum. Vizinhos, e gente que não conhecia, entraram no pátio e conversaram com Esta. Outros formaram carriolas frente ao portalón de entrada. Deduzi que se interessavam pelo assunto que tinha reunido ao conselho. Era lógico. As notícias voavam em uma população como Nahum. Finalmente, cansados de tanto fofoca, Esta reclamou a seu marido, e Santiago fechou a grande porta de madeira. Assunto resolvido, de momento. Kesil retornou bem entrada a noite. E confirmou o revelado pelo pai do Minjá. Meio povo sabia já que Yehohanan, o vidente, partia pelo Jordão, para o yam. E, como era igualmente natural, os rumores se desencaixaram e se converteram em toda classe de fábulas:
"Yehohanan caminhava à frente de um exército de patriotas... Dispunham de cavalaria e de máquinas de guerra... Yehohanan fulminava a quem ousava interpor-se... O vidente tinha três metros de altura e seus olhos arrojavam fogo... Trinta e seis justos lhe aconselhavam... O Anunciador era o enviado, tanto tempo esperado... Chegava ao Nahum para render obediência ao Mesías, Jesus, o construtor de navios!... Yehohanan sanava aos paralíticos... Yehohanan era um homem de Deus, protegido, dia e noite, por uma colméia... "Arrepentíos! " era seu grito de guerra... A tocha está na base da árvore... Roma, onde te esconderá?" Eu sabia que a maior parte desses boatos era pura invenção, ou verdades pela metade, mas o preocupam-se era a velocidade de propagação, e a intensidade, dos infundios. de repente, o que tinha sido uma curiosidade, mais ou menos polêmica, transformou-se em um "exército nacionalista", comandado por um gigante de sete tranças, que abria um período longamente esperado. Fazia mais de quinhentos anos que o Israel não sabia de profetas... E Jesus do Nazaret aparecia em meio de semelhante torvelinho. " Jesus, o filho da María, a das pombas? Jesus, o viajante? " Vizinhos, amigos e desconhecidos formulavam as mesmas Perguntas. Não davam crédito ao filtrado do conselho local. Quase todos o conheciam, e sabiam de sua família. Como era possível? Entendi as exigências da Senhora, no pátio, enquanto o Mestre se asseava, e também a curiosidade da gente que penetrou na "casa das flores". Todos perguntavam o mesmo: " Vive aqui o Mesías?" E a família, cansada e temerosa, fechou as portas... Sem me dar conta, o "grande plano" tinha posto-se a andar. Mas nada disto foi contado. A última informação obtida pelo fiel amigo Kesil procedia de uma fonte muito segura, Taqa, o porteiro da ilha, e dono de alguns dos negócios existentes na planta baixa. O que assegurava o velho e curvado judeu era certo, aos noventa por cento. Não sei como o obtinha... A questão é que Taqa lhe anunciou "certo nervosismo" na guarnição romana acantonada no extremo norte do cardo, que eu tinha visitado tempo atrás (melhor dizendo,
no futuro). Naquele momento, Nahum, como lugar estratégico e cruzamento de caminhos no norte do mar do Tiberíades, dispunha de uma coorte, tipo "quingenaria", com um total de quinhentos a seiscentos homens, mandados por uma dezena de centuriões. A notícia do avanço do Yehohanan chegou também para ouvidos dos romanos, assim como a reunião de urgência na sinagoga. E Yehudá Ben Jolí, o archisinagogo, foi interrogado pelos responsáveis pela guarnição. Pouco pôde lhes dizer. Em realidade, o presidente da sinagoga, e responsável pelo culto, sabia bastante menos que os centuriões. Roma, ao igual ao tetrarca Antipas, e o Grande Sanedrín de Jerusalém, alimentava a um exército de espiões, que a mantinha pontual e minuciosamente informada. Ninguém os conhecia, salvo seus mandos naturais. Entre os romanos recebiam o apodo de scorpio (escorpião), nome de uma das máquinas de guerra, que lançava setas com enorme força e precisão. Os "escorpiões" eram hábeis, rápidos e certeiros. Estavam em todas partes, inclusive em território inimigo. Ouviam e transmitiam. Formavam cadeias de três. Desta forma garantiam, em certa medida, a integridade da rede. Se um dos scorpio era descoberto, e interrogado, só podia delatar a dois de seus companheiros. Aos confidentes ao serviço do Herodes Antipas, e dos sacerdotes do Templo, chamavam-nos "bois" ou tor, em aramaico, por sua periculosidade. Havia-os a dúzias, lá onde, supostamente, existia alguma ameaça, ou onde se movia a gente. Durante a vida de predicación do Mestre, uns e outros, sobre tudo os "bois", jogaram um papel decisivo no desenvolvimento dos acontecimentos. Acontecido-o agora, no Nahum, foi um aviso...
DO 6 AOS 13 DE JANEIRO
Pressenti algo. Foi o instinto? Oxalá soubesse "ler" como o fazem as mulheres... Essa manhã do domingo, 6 de janeiro do ano 26 de nossa era, apresenteime no estaleiro com as primeiras luzes do alvorada. Achava-me intranqüilo, mas não sabia exatamente
por que. Eliseo seguia ausente, e os ânimos, no Nahum, notavelmente alterados. Cruzei pressuroso frente ao portalón da "casa das flores", ainda fechado. Alguns curiosos aguardavam já frente ao muro, dispostos a interrogar, suponho, à família. isso situação pensei- começava a escapar de todo controle. E o vi chegar... Ao princípio, ao comprovar que carregava seu habitual saco de viagem, o utilizado nos bosques do Attiq e, anteriormente nas cúpulas do Hermón, fiquei perplexo. Pretendia viajar a alguma parte? Não me atrevi a me aproximar, mas segui seus movimentos atentamente. Pensei no incidente do dia anterior, com a Senhora. Depois, esses pensamentos se mesclaram com outros, nos que mandava a filtração sobre o Mesías. Não sei... O certo é que o rosto do Mestre aparecia em sombra, com umas olheiras pouco habituais. Percebi certa tristeza, inclusive, nos movimentos. Que difícil permanecer à margem nestes momentos! Mas me contive. E, como digo, só fui um observador. Aparentemente, tudo discorreu com normalidade. Jesus vestiu o habitual peitilho, pendurou o martelo e o saco de pregos da cintura, e saltou ao fosso, reatando o ajuste das cuadernas, agora sobre outra embarcação, um "pesqueiro". Não me reclamou nenhuma só vez. Tampouco lhe ouvi cantar. O instinto não falhou. Algo rondava em seu coração... E me preparei mentalmente. O que fazer se abandonava Nahum? Só achei uma resposta: segui-lo, fora onde fora... Maldito Eliseo! por que não retornava? Necessitava o cajado... Não importava. Iria depois Do com as mãos vazias. Mas o Destino é previdente. Quando aprenderei? Durante o almoço, o Mestre não se moveu do fosso. Ali comeu, em solitário. Eu me arrumei isso para interrogar discretamente ao Santiago, seu irmão. Não me equivoquei. -São como da família -se justificou, desejoso de compartilhar o mau momento-, sobre tudo Eliseo... A alusão ao engenheiro me inquietou, mas não o interrompi. depois do ocorrido ontem, meu Irmão optou por mudar-se... Santiago não se estendeu em excessivos detalhes, mas foi fácil de
compreender. Tal e como supunha, as perguntas do conselho local, sobre o caráter messiânico do Jesus, foram tão inesperadas que a família não acertou a reagir. A Senhora, como tive ocasião de contemplar da ilha, foi primeira em solicitar uma explicação, quando seu Filho retornou do Attiq. Mamãe María -prosseguiu o confuso Santiago- lhe perguntou por seus planos. O conselho falou com claridade: Yehohanan se dirige para aqui. Disseram que está disposto a ajoelhar-se ante o Jesus, o Mesías... Nós sabemos que O é, e que Yehohanan será seu homem de confiança, mas meu Irmão não respondeu. Não abriu a boca! E minha mãe, contrariada, o jogou em cara... "Essa noite o vimos fazer o saco de viagem. Depois me comunicou sua decisão de transladar-se, temporalmente, ao Saidan, à casa dos Zebedeo... Santiago, sincero, manifestou o parecer da família: -Só Ruth chorou... O resto nos alegramos. E tentou justificar-se. A verdade é que não o necessitava; não com quem isto escreve. -É melhor assim... Nós não lhe compreendemos, e O, a julgar por seu silêncio, tampouco nos entende. O irmão estava no certo, mas se confundia. Jesus era consciente da situação. Sabia muito bem qual era o pensamento dos seus, em especial o da Senhora, em relação com o ansiado Mesías judeu e o "reino" que deveria inaugurar. O Mestre o tinha falado com eles centenas de vezes, desde fazia anos: O não era o Mesías prometido, tal e como anunciavam os profetas, e como desejava a nação. O não era um libertador político-social-religioso. O era (seria-o no futuro) algo muito mais importante. Mas a Senhora, sua segunda prima, Isabel, Yehohanan e outros não o entendiam assim e, o que era pior, não conseguiam assimilar o "louco pensamento" do Jesus sobre um Deus "papai". Como já expliquei em outras oportunidades, essas manifestações do Galileo, considerando a Deus como um Pai, e lhe falando de você a você, eram puras blasfêmias, que faziam tremer o coração de quantos o queriam. E chegou o momento em que Jesus optou pelo silêncio. Eram eles quem não entendia...
Mas sua hora estava próxima. Senti uma profunda desolação. E acredito que me aproximei, um pouco, aos sentimentos do Mestre. Compreendi melhor sua tristeza, e intuí o que se morava. Estava assistindo a uma espécie de "ensaio general" do que seria sua vida pública, mas, nesses instantes, não fui consciente disso. Que eu saiba, nem os evangelistas, nem a tradição, falaram jamais desse abismo que separou ao Filho do Homem dos seus, de sua família, respeito ao conceito messiânico. Hoje, em nosso "agora", chamar o Jesus do Nazaret o Mesías é algo lógico e natural. Grave engano. Como digo, e como espero ter a ocasião de relatar, o Mestre foi muito mais que um Mesías. mudava-se ao Saidan! Santiago não soube esclarecer se a "temporalidad" de dito traslado ao velho casarão dos Zebedeo, na aldeia próxima, era breve ou, como me temia, para sempre. O assunto não contribuiu a me tranqüilizar. A não demorar, teria que tomar uma decisão. Deveríamos trocar de residência, e nos localizar no Saidan? Melhor dizendo, deveria, em singular? Tal e como estavam as coisas, possivelmente Eliseo não acessasse. Por certo, por que Santiago, o irmão da Ruth, considerou-o "como da família"? Fui um ingênuo, sei... E ao entardecer, como imaginava, o Mestre carregou seu saco e embarcou com o proprietário do estaleiro, o Zebedeo pai, na lancha que o transladava diariamente desde o Saidan. Vi-o remar e afastar-se para a próxima costa oriental do yam. A tristeza ia com Ele... E ali permaneci, confundido, sem saber o que partido tomar. Retornaria ao estaleiro? Possivelmente deveria ter embarcado com O. Prometi não abandoná-lo. Mas por que não ia retornar? Santiago não soube esclarecer esta questão. Em realidade, ninguém conhecia seus planos. E me reprovei a falta de reflexos. Tinha que me arriscar e segui-lo. Mas o fazia nesses instantes ou esperava ao dia seguinte? Só tinha que contratar uma embarcação e me dirigir ao pequeno povoado de pescadores. E Kesil? Não o faria. Possivelmente O desejava estar sozinho... E nisso estava, sumido na confusão, como digo, quando interveio o Destino...
Curioso: tinha-o esquecido. Nesta oportunidade, o Destino se chamou Yu. O chinês me reclamou. Carregava um daqueles enigmáticos vultos, cuidadosamente envolto em tecido, e que jamais, até esses momentos, tínhamos conseguido identificar. Yu se achava às portas do terceiro barracão, muito próximo à serraria, ao que Eliseo e eu batizamos como o "barracão secreto", um pavilhão ao que ninguém tinha acesso, salvo o naggar ou Mestre. Na porta, como pinjente, pendurava um pôster que advertia: "Só Yu." O chinês estava acostumado a dirigir-se a ele com grande sigilo. Nunca soubemos que fazia no interior. Permanecia comprido momento em dito barracão, sempre em silêncio. O único sinal de atividade era uma coluna de fumaça, que escapava por uma das esquinas do barraco de madeira. Esperou a que o estaleiro se achasse deserto. Jesus e o Zebedeo pai eram já um ponto escuro nas avermelhadas águas do lago. Os relógios do módulo podiam assinalar as 16 horas e 45 minutos. Não faltava muito para o ocaso. Compreendeu minha intriga e sorriu, malicioso. Mas o naggar não adiantou uma só palavra. Ao pouco, quando a totalidade dos operários desapareceu do lugar, exclamou: -Sei que os deuses lhe abandonaram... Recordava a sentença pronunciada pelo Yu nos bosques do Attiq. Naquela ocasião não compreendi. Agora estava a ponto de decifrar a intencionalidade do homem kui, muito impressionado, como pinjente, pelo "encanecimiento súbito" de quem isto escreve. -E sei igualmente que logo, muito em breve, deixará o estaleiro... Olhei-o, intrigado. Como podia conhecer minhas intenções? Esqueci-o: era um kui. Todos os kui são especiais... Então sorriu, e tentou me tranqüilizar. -Não tema. Quero te dar algo. Ajudará-te a recuperar aos deuses... introduziu-se na escuridão do pavilhão e aguardei, prudente. Que eu soubesse, era o primeiro operário do estaleiro que o acompanhava ao "barracão secreto". Mas por que eu? Yu prendeu dois candelabros e me convidou a passar. Fez-o com pressa.
antes de fechar, apareceu ao exterior e inspecionou o entorno. Quando esteve seguro de que ninguém observava, trancou a porta e se dirigiu à mesa que presidia a estadia. por que tantas precauções? O que pensava me entregar? Chamou-me a atenção o aroma. Era similar ao que dominava o "departamento" de vernizes, no que trabalhava como ajudante. Mas aquilo não parecia um armazém de tinturas e pinturas... O naggar prendeu uma mecha de incenso e se ajoelhou frente à mesa. Juntou as mãos sobre o peito e inclinou a cabeça, iniciando uma série de frases, em chinês, que interpretei como uma prece. de repente, interrompia a "oração", e fazia chiar os dentes. Depois, prosseguia com a cantinela. O lugar era um tótum revolútum, que não acertei a identificar. Embora o barracão foi levantado com madeira, como o resto das dependências do estaleiro, as paredes interiores apareciam pulcramente caiadas, com um caiado compacto e brilhante. Na parede da esquerda (tomando a porta como referência) tinha sido embutida uma larga estantería, repleta de recipientes de barro e de vidro, assim como de ferramentas, pergaminhos, regras, cordas, compases e outros cacarecos que não alcancei a controlar. Ao fundo, na esquina da direita, descobri uma "estufa" de ferro, alta e poderosa, sobre a que descansava um cilindro metálico. Continha água, nesse momento, em ebulição. Um comprido tubo fazia de emissário, lançando a fumaça ao exterior. A estadia carecia de janelas. Tudo se achava esfumado pela luz amarela e discreta dos abajures de azeite. O resto do mobiliário o integrava um arca de madeira negra e lustrosa, situado no muro da direita. Com o tempo, conforme o Yu foi me informando, soube que dita arca, a que chamava jinggui, era o sanctasanctórum do pavilhão. Ali guardava os livros escritos por seus antepassados, e suas próprias experiências e memórias, às que espero me referir em seu momento. Yu, como também anunciei, terminaria convertendo-se em um seguidor do Mestre. E acredito oportuno adiantá-lo: foi este oriental, totalmente ignorado nos textos evangélicos, o primeiro que se decidiu a pôr por escrito as palavras e os sucessos mais destacados da vida de
predicación do Filho do Homem. Depois, imitaria-o Mateo Leví. Mas tentarei não me desviar dos fatos, tal e como se produziram. O chão do "barracão secreto" era de escória vulcânica, minuciosamente imprensada e peneirada com esmero. Mas o que me chamou a atenção nesses instantes foram os desenhos das paredes que ficavam livres. Eram obra do Yu. Eram seus "inventos". Em uma primeira olhada reconheci os esquemas de uma serra a pedal, que tinha visto na serraria, e que era acionada por um engenhoso sistema de cordas e cadeias, movido, a sua vez, por um pedal na parte inferior, auxiliado, no alto, por uma mola de suspensão mola. Terminada a oração, Yu recuperou o vulto que guardava tão celosamente, e o descobriu. Era uma peça de madeira, utilizada habitualmente no costillar dos navios. E o naggar se dirigiu à parede da direita. Aproximou um dos candelabros a uma série de números e letras, desenhados em chinês sobre o muro, e que formavam uma espécie de tabela. E Yu, recordando que me achava presente, desculpou-se e procedeu a explicar o que se trazia entre mãos. Por isso entendi, a tabela em questão era um estudo de contrações de até dezessete tipos de madeiras. Yu, a sua maneira, conseguiu perfilar o que hoje poderíamos qualificar como "contrações tangenciais, transversal- radial e longitudinal", atribuindo um valor segundo o tipo de árvore. Neste caso, a madeira que acabava de descobrir (carvalho) figurava com um índice de contração longitudinal compreendido entre 0,02 e 0,43. Isto, conforme disse, servia para saber o tempo que devia permanecer sorte madeira na água fervendo. Este era outro dos segredos do estaleiro dos Zebedeo: a obtenção da curvatura da madeira, mercê a um processo de cozimento. Uma vez forçada, a peça era submetida a um molde, ou cercada diretamente, resolvendo assim alguns dos comprometidos problemas técnicos da construção do navio. E Yu foi honesto, uma vez mais. Sorriu feliz, e reconheceu que dito invento não era dele. O autor era um velho meu amigo -manifestou-, Jesus, o da "casa de Suas flores era a inovação. Os restantes
estaleiros brigavam por averiguar o segredo, mas Yu o mantinha a salvo. Ninguém estava autorizado a presenciar o que acabava de ver e de ouvir. Então examinou o conteúdo do cilindro de metal que borbulhava sobre a estufa e, depois de embainhar-se caminhos manoplas de ferro, invento igualmente do chinês, inundou a madeira no tanque, e iniciou o mencionado processo de cocção. Tudo era questão de saber esperar, como quase tudo na vida. -E agora -comentou, ao tempo que se desembaraçava das "luvas" de ferro-, prometido-o é o prometido... Trasteó entre os recipientes da estantería e, ao achar o que procurava, exclamou: -Hei aqui o remédio para que os deuses voltem para seu corpo... Desentupiu o frasco e esvaziou parte do conteúdo sobre a palma de sua mão esquerda. Era um pó verde, granulado, que não soube identificar. E Yu me convidou a tomar a "necessária dose para reclamar aos deuses". Deveu notar minha desconfiança, e acrescentou: -Não tema. É o jade da imortalidade. Eu mesmo o preparei. O muito mesmo Huangdi, o imperador Amarelo, comia-o diariamente, enquanto habitou o monte sagrado, o Kunlun... -por que eu? por que me permitiste acessar a este lugar, e por que me obsequia agora com o jade da imortalidade? Conhecia aquela expressão, poda e, ao mesmo tempo, cúmplice. Yu voltou a sorrir e respondeu com outra pergunta: -Você gostaria de ser meu discípulo? -Não compreendo... -Faz tempo que, desde que chegou, observei-te. Sei que é um kui. Só a um homem kui lhe branqueia o cabelo da noite para o dia. Por isso está aqui, e por isso te ofereço o jade moído. Eu vivo ao sul da razão, como tudo bom kui. Por isso sei o que sei, e por isso faço o que faço... Também sei que buscas a verdade. Eu poderia te ajudar. Do que serve um Mestre, se suas palavras só flutuarem no interior? Respondi com um olhar de gratidão e, acredito, captou-o. E continuou com a palma aberta, oferecendo o pó de jade. Não soube o que fazer. E Yu, rápido, tratou de me auxiliar:
-Se o desejar, posso te subministrar sementes de linho. Limparão os intestinos, o coração e o fígado, e os deuses se sentirão cômodos. Então retornarão... Escolhi o jade moído. E o traguei como Deus me deu a entender. Era como mastigar mármore pulverizado, mas não tive alternativa. Yu o fazia de coração. E assim foi como entrei em comunicação com a cara oculta do naggar, um fiel seguidor da religião taoísta, uma das doutrinas mais antigas da China milenaria, praticada também no tempo do Filho do Homem. Uma religião que foi impulsionada, vários séculos antes de Cristo, pelos filósofos Lao-Tsé e Zhuang Zi. E durante o tempo que permaneci a seu lado, Yu me instruiu sobre o que considerava a única religião "com futuro". Aprendi muito, e posso manifestar, sem temor a me equivocar, que, de não ter conhecido ao Mestre, possivelmente me tivesse convertido em um daoshi, um buscador da verdade, em expressão taoísta. Cada vez que nos encerrávamos no "pavilhão secreto", algo me alertava. O que contava Yu, irradiado, a sua vez, de geração em geração, resultava-me familiar. Yu remontou a história do taoísmo a muitos séculos antes da aparição do Lao-Tsé (Yu o chamava Lao Zi), nascido, ao parecer, uns seiscentos anos antes de nossa era. Segundo a tradição, os orígenes do taoísmo terei que buscá-los na longínqua dinastia Xia, entre os séculos XXII e XXVII A. J.C. Naquela época, tudo era confusão e medo. Assim o expressou meu bom amigo Yu. A terra (referia-se ao que hoje conhecemos como a China) estava dividida em centenas de senhorios, e cada qual servia a seus próprios deuses. O homem não contava. O homem não tinha futuro. O homem era uma simples propriedade, primeiro dos espíritos, depois do reyezuelo de volta. Mas chegaram aqueles homens... Eram brancos. Vestiam largas túnicas, também brancas, com um singular distintivo no peito: três círculos bordados em azul. Foi como uma chicotada. A partir desse momento, meu interesse pelas explicações do kui cresceu notavelmente. Os três círculos concêntricos! O emblema que luzia o homem das
"palavras luminosas"! Malki Sedeq! Segundo Yu, eram missionários. Procediam do sul. Primeiro se estabeleceram no See Fuch, e de ali foram alcançando a totalidade das terras. Eram emissários de um príncipe chamado "Rei de Justiça" (Malki Sedeq ou Melquisedec), e também "Príncipe da Paz". Como era possível? Yu não conhecia ancião Abá Saúl, de Salem. Ambos, entretanto, falavam do mesmo... E os enviados do "príncipe" falaram com coração dos homens. Era a primeira vez que alguém os olhava aos olhos. E lhes ensinaram a desenhar a Deus... Yu se dirigiu à parede e riscou um círculo. -Isto é o DAO, o caminho. Aqui está tudo. Este círculo é o amor, a via. Desde aí nasce o criado e aí retorna. Depois desenhou outros dois círculos, concêntricos com o primeiro. Observou-me e seu rosto se iluminou. Yu soube que seu aluno tinha entendido. Em realidade, estava recordando as palavras do ancião hakam ou "doutor ordenado" de Salem. Ambos, efetivamente, tinham bebido na mesma fonte. "O homem, embora não sabe, procede do amor -o círculo central- e, faça o que faça, a ele retorna. Não há caminhos retos: só circulares. " Yu aprovou minha interpretação do DAO e, como digo, sentiu-se satisfeito. E aqueles missionários ajudaram aos homens a compreender a essência da vida: viviam para a imortalidade. E o temor só foi uma má lembrança. O medo desapareceu dos corações e os seres humanos fizeram o grande achado: Deus, o Grande DAO, era, em realidade, um Pai ao que lhe podia falar diretamente, sem intermediários, nem sacerdotes, nem feiticeiros. E o taoísmo se converteu em uma religião pessoal, de íntima relação com um Deus amigo, que só entrega. Esse era o único destino: retornar ao primeiro círculo. E os homens do Maiki Sedeq falaram também da alma imortal e do Espírito "que chega do círculo central", e que "pilotará" cada vida. Revelaram-lhes que todo homem é imortal e que o Paraíso, justamente, tem forma de círculo ou de disco. Então o representaram com jade, com um orifício no centro., E souberam que o número "9" era chave em todo o relacionado com o divino. Foram tempos
memoráveis, nos que o ser humano comprovou que a bondade gera bondade e que a prática da generosidade e da misericórdia é recomendável, inclusive, de um ponto de vista estritamente econômico. Era a salvação, simplesmente pela fé no DAO. Mas, como acontece quase sempre, a doutrina do autêntico precursor do Filho do Homem foi alterada e, com o passo dos anos, o taoísmo se converteu em uma confusa meada de superstições, meias verdades e lembranças imprecisas. A aparição de filósofos tão preclaros como Lao Zi e Zhuang Zi devolveu, momentaneamente, a frescura aos corações. E o homem recordou que morrer é, unicamente, retornar a casa. Mas a esperança durou pouco. A condição humana é assim. As péssimas interpretações, os enganos e as vontades torcidas modificaram a essência do revelado pela gente de Salem. E da realidade da imortalidade da alma, pregada pelos homens dos três círculos, o taoísmo se precipitou em uma desesperada, e inútil, busca da imortalidade do corpo, a grande obsessão do Yu, e dos milhões de seres humanos que compartilhavam as idéias do kui do Nahum. Também a mensagem do Jesus do Nazaret foi vital para estas gente. Eu diria que especialmente vital, como terei oportunidade de relatar... E da realidade de um único Deus, o taoísmo passou a uma enlouquecida dinâmica de deuses interiores e exteriores: mais de 36.000 no corpo humano. Deuses que escravizavam, aos que convinha ter contentes, e que eram visualizados (?) com as mais peregrina técnicas de relaxação corporal, concentração mental, êxtase e toda sorte de drogas e alucinógenos. Primeiro -diziam- eram visíveis os deuses menores. Depois, depois de muito tempo de prática e sacrifício, o daoshi conseguia "ver" a Grande Tríada, os deuses que habitam no cérebro. Era o sinal que augurava a imortalidade... E a confiança no bom Deus, no Pai, foi substituída pelas boas e más ações, minuciosamente codificadas, com os correspondentes prêmios e castigos. Eram os deuses interiores -segundo Yu- os que subiam ao céu e informavam desses atos. Foram estas crenças as que alertaram a fina sensibilidade do Yu quando descobriu meu súbito e aparente "envelhecimento". Tinha razão. Eu
também era um kui, um sonhador. E deixei que falasse. O primeiro que devia fazer era me reconciliar com os deuses interiores. Certamente tinha cometido graves falta, e isso espantou aos "inquilinos" do Palácio do Nihuan, localizado-se no cérebro. Esses deuses -segundo Yu- são os responsáveis pelos pensamentos, da memória, dos belos sonhos e da cor dos cabelos. A sua maneira, acertou. O mal que nos afligia afetava, fundamentalmente, a nossos cérebros (sobre tudo, ao meu). Tinha pecado? Provavelmente, em especial ao invadir um "agora" que não me correspondia... E os neurônios -os "deuses"- nos deram as costas. A razão, como digo, assistia-o, em certo modo. Depois, uma vez reconhecida a falta, tinha que atuar. Segundo o taoísmo, a fuga dos deuses interiores provocava, automaticamente, outro não menos muito grave conflito: os espíritos malignos, vizinhos dos deuses, ocupavam seu lugar. Três destes demônios recebiam o nome de "Vermes". Eram os responsáveis diretos da decrepitude e, em soma, da morte. Yu lhes tinha terror. Segundo o chinês, cada um destes Vermes ou Cadáveres habitava um Campo do Cinabrio ou "posto de mando". O que estava me devorando se chamava Velho Azul e habitava, como digo, no cérebro. Aceitei a imagem. O óxido nitroso, em efeito, instalou-se nas redes neuronales e me empurrava ao envelhecimento prematuro. Assim que o Velho Azul desse a voz de alerta, os outros Vermes -a Senhorita Branca, no coração, e o Cadáver lhe Sangrem, no "posto de mando" do ventre- atacariam. A correspondência com a realidade resultava assombrosa e, até certo ponto, inquietante. A amiloidosis descoberta no cérebro (os "tumores") podia estender-se e danificar também o coração, o fígado, os rins, o baço e o intestino... Não quis pensar nisso. tratava-se de uma curiosa coincidência. Ou não? E Yu recomendou que suspendesse a ingesta de cereais. Esse era o alimento dos três Vermes. Eliminando ditos cereais, os responsáveis pelo envelhecimento desapareceriam e, o que era mais importante, os céus deixariam de "subtrair tempo". Segundo Yu, os Vermes subiam diariamente à sede do Grande Um e lhe advertiam sobre os pecados
do homem. O Grande Um, então, subtraía dias ao oficialmente previsto no momento do nascimento. Com a morte, os três Vermes ficavam definitivamente liberados e os via passear pelos campos. Chamavam-nos as "Assombrações". além da abstinência de cereais, o kui recomendou que esquecesse a carne, o vinho e os sabores fortes em geral, para não incomodar aos deuses. A isto, naturalmente, tinha que somar a obrigada dose de jade em pó e, pouco a pouco, me alimentar do que chamou "respiração embrionária". E foi me ensinando a respirar e, muito especialmente, a reter o ar, ou seja dirigi-lo para os diferentes órgãos, e a me nutrir dele. Isto era Ita "respiração embrionária", porque, de acordo com o taoísmo, tratava de recuperar o sistema de alimentação do feto, fundamentado, equivocadamente, na respiração do mesmo. quanto mais tempo fora capaz de reter o sopro, mais possibilidades de melhorar a saúde e, em soma, de prolongar a vida. Os "comilões de ire" -caso do imortal Liu Gen, que chegava a retê-lo durante três dias- era um dos graus de máxima iniciação entre os taoístas. Acreditavam firmemente que a dieta, a base de ar, transformava a matéria, fazendo-a mais ligeira. E foram muitos os que, lógicamente, morreram. O corpo humano, contra o que afirmava Yu, não está preparado para sustentar-se, unicamente, com ar... A estas práticas e pensamentos, Yu, como bom taoísta e homem kui, acrescentava outras atividades não menos surpreendentes, ao menos para este prosaico explorador. Falou-me de suas "viagens" pelas "terras interiores e exteriores", sempre ajudado por uma determinada técnica de relaxação, e que interpretei como "viaja astrais". Praticava igualmente uma singular "conexão" com os deuses interiores, e escrevia o que lhe ditavam, segundo ele. Muitas dessas "experiências" eram narradas pelo Yu nas já mencionadas "noites kuí". Mas, por cima destas afeições (não sei se a expressão é correta), Yu amava a alquimia e os inventos. Estas eram outras das razões de peso pelas que o naggar se encerrava no "pavilhão secreto". Ali dava rédea solta a seus experimentos e estudos.
Foi uma das grandes surpresas que me reservou o homem kui. Como alquimista, sua obsessão era achar um produto que lhe proporcionasse a ansiada imortalidade do corpo. Seu ídolo e Mestre era Li Shaojun, que viveu nos tempos do imperador Wu, por volta do ano 150 antes de nossa era. Conhecia seus escritos e lutava, com todos os meios a seu alcance, para transmutar o cinabrio, a "pedra filosofal" que conduzia à referida imortalidade. Segundo Yu, ao absorver esta mena do mercúrio, produzia-se o milagre: os ossos se voltavam de ouro, a carne de jade e se alcançava a imortalidade corporal. Todo se fazia ligeiro, como a fumaça. Muitos, antes que ele, tentaram-no, mas fracassaram. O cinabrio não era fácil de obter e, além disso, segundo o ritual taoísta, exigia numerosas e complexas manipulações, sempre custosas. Durante o tempo que permaneci perto dele o vi brigar com o dão (assim chamava o cinabrio), procurando caminhos que o levassem a yangdan ou cinabrio macho, a máxima expressão alquímica, e com o que poderia alcançar o grau de feixian, ou "imortal voador", a mais alta categoria entre os Imortais. Sua ilusão e tenacidade eram admiráveis, mas, obviamente, o empenho resultava muito difícil. O dão, ou sulfureto de mercúrio, convertia-se em mercúrio ao esquentá-lo a seiscentos graus Celsius. Depois, no segundo passo, ao esquentar o mercúrio, o cinabrio "não retornava", tal e como asseguravam os textos sagrados do taoísmo. Yu nem sequer completava o zhuan, que poderia traduzir-se como a transmutação do cinabrio em mercúrio e viceversa. Algo falhava, felizmente para o Yu. E digo "felizmente" porque, de ter ingerido o mercúrio resultante, ou seus possíveis derivados, o bom e voluntarioso chinês poderia ter resultado gravemente intoxicado. Quando se aborrecia de tanto ensaio, passava-se ao não menos utópico campo da busca da invisibilidade. Denominava-o chu: a receita mágica que o faria invisível. É obvio, que eu saiba, jamais o conseguiu. Mas isso, em realidade, pouco importava. O era um kui... Possivelmente agora, ao conhecer mais de perto ao Yu, o hipotético leitor destas memórias entenda por que o naggar do estaleiro dos Zebedeo
terminou sendo um fiel seguidor do Jesus do Nazaret. Quando o Mestre inaugurou sua carreira como educador, todos os homens kui compreenderam suas palavras. Melhor dizendo, foram os primeiros em abrir os olhos... Mas demos tempo ao tempo. Yu, além disso, como pinjente, era inventor. Era outra de suas paixões. As paredes do "barracão secreto" se achavam repletas de desenhos, de esquemas, às vezes crípticos, e de cálculos matemáticos. Nos meses que seguiram a esta reunião tive oportunidade de examiná-los e, sinceramente, fiquei maravilhado. Yu era um "renascentista", no mais puro sentido do término. Preocupava-lhe tudo, queria saber de tudo, refletia sem cessar e, o mais interessante, cada manhã se apresentava no trabalho com uma nova inquietação. Atreveria-me a dizer que padecia a enfermidade da curiosidade. Bendita enfermidade... Lembrança alguns daqueles inventos: depois de muitas análise, Yu tinha chegado à conclusão de que a madeira estava acabada. O futuro da navegação naval -isso dizia- era o ferro. Os bosques podiam desaparecer; o ferro não. E apoiava suas teorias nos estudos do Arquímedes, o sábio da Siracusa. Conhecia algumas de suas obras, em especial o Tratado dos corpos flutuantes. E ao igual a Arquímedes, fazia suas comprovações sobre peso e impulso, introduzindo-se nas águas do yam, e verificando que os membros perdiam peso ao ficar inundados. Então, ante o assombro de todos, saía do lago, gritando: -Eureca Eureca! ("Encontrei-o"). E estes trabalhos o levaram a outros. Nas paredes se mesclavam os cálculos de supostas tensões e do que, na atualidade, poderíamos denominar "momento flector", "esforços cortantes" e estudos de ondas, sempre sobre navios de ferro. Mas as loucas idéias do Yu não prosperaram. Ninguém, no yam, estava seguro. Desde quando o ferro podia flutuar? Menos êxito, se couber, mereceu outro de seus inventos: a melhora do hyperesion, uma espécie de almofada de voga, ideado, segundo Yu, pelo Temístocles, outro gênio
do mar. tratava-se de uma versão modificada, e aperfeiçoada, do fundilho que utilizavam os remadores gregos, e que permitia uma estrepada, ou esforço, mais larga e eficaz. O "invento" do chinês consistia em um assento mutável, fabricado com uma magra prancha de madeira, a ser possível de cerejeira, minuciosamente polida e engordurada, que facilitava o deslizamento. O problema é que o naggar pretendia que dita almofada fora propriedade do remador e que, em conseqüência, responsabilizasse-se dele, como o tinham feito os espartanos em seu ataque contra Atenas no ano 429 A. J.C. A gente do estaleiro protestou. Ninguém desejava ir pelo Nahum com uma madeira no traseiro... O que sim conseguiu foi modificar a estrutura dos assentos das embarcações, de forma que a voga se efetuasse ao reverso de como era habitual: com os remadores orientados para a popa. Desta maneira, com os remos nos escálamos, o navio avançava melhor e mais limpamente. Ideou, igualmente, uma "jaula", que colocou a popa, e que era arrastada conforme navegava a lancha ou o navio de carga. Uma esfera oca, no interior, fazia de "conta- voltas", girando cada milha. O patrão fiscalizava assim os movimentos do navio. Tampouco foi aceito pelo Ah, o sindicato majoritário do yam, que roubava quanto estava em sua mão, e mais. Mas a grande obsessão do kui era o sistema de propulsão dos peixes. Passava horas no lago. Arrojava carne crua, esmiuçada, e as tilapias a disputavam. Depois se encerrava no pavilhão e tentava reconstruir os harmoniosos movimentos e, sobre tudo, os golpes de cauda. Desenhava os torvelinhos, ou vórtices, que ocasionavam os referidos batidos de cauda, e tentava decifrá-los e tirar partido. Perguntava pela velocidade dos peixes mais rápidos, indagava sobre seus perfis, e chegou a dispor de uma lista dos mais velozes. Segundo os marinheiros fenícios, era o atum de aleta amarela o que desdobrava uma maior velocidade, com quase vinte nós (algo mais de trinta e seis quilômetros por hora). E riscou o que chamava a "esteira do Isis", calculando a freqüência de aletazos para conseguir uma natação
eficiente. Foi assim como inventou os "pés" do Isis, a deusa protetora do mar. Quando o vi na parede não dava crédito. Eram duas peças de madeira, similares a nossas aletas! Os antepassados do Yu, fugidos do arquipélago do Chusan, eram construtores de navios. O levava no sangue, e sonhava superando a seus Mestrees. E contava que, na longínqua antigüidade, na China, já se tinham construído navios, como jamais tivesse imaginado o mundo. E ria da grande galera do Tolomeo IV construída na costa de Fenícia dois séculos antes, cujos remos eram acionados por quarenta bogadores. Yu relatava as façanhas dos naggar dos imperadores da Primavera e do Outono (entre o 700 e o 400 antes de Cristo), que foram capazes de construir navios de guerra, e de transporte, de mais de quatrocentos chis (uns cento e cinqüenta metros de comprimento do navio). Dispunham de três cascos e nove mastros. Eram, virtualmente, insumergibles. Dispunham, inclusive, de tanques especiais nos que viviam lontras amestradas, que colaboravam nas tarefas de pesca. Nunca soube se foram histórias kui, fruto de sua imaginação, ou realidade. Mas isso, como digo, o que importava. Yu era um sonhador, e, como tal, um homem no que se podia confiar. Yu era um gênio, um homem diferente, bom, um pensador ou, como ele dizia, "um perigoso revolucionário". Possivelmente tinha razão: não há nada tão esquinado para o poder estabelecido como alguém que pensa. Tratava de ser um com a natureza. Sentia piedade para os que, segundo ele, não estavam em condições de defender-se. Por isso, quando passeava pelo campo, ou pelas bordas do yam, trocava as pedras de posição. "Agora, dizia, poderão ver o mundo desde outra perspectiva." Confesso-o. Após, sempre que posso, mudança as pedras de posição, em memória do Yu, e no caso de. Na noite contava as estrelas. Disse saber de umas oito mil. Defendia um princípio inconcebível naquele tempo, e ainda agora: cultura -assegurava- é tolerância. Por isso ninguém era menos, nem tampouco mais, ao menos em seu segundo "campo de cinabrio", o coração. Era um kui deslumbrado pelo curvo. Não
acreditava na linha reta. Assegurava que o Grande Um, de existir, tinha que ser um círculo: o círculo central de cada pensamento. Dizia que somos tão pequenos que só poderíamos caber na imaginação de alguém muito grande. E nas paredes do "pavilhão secreto" escrevia muitos destes pensamentos: "cada agora é uma verdade", "os deuses compreendem em todas as direções", "subir exige esforço, mas saber baixar, além disso, requer uma dose especial de inteligência", "eu habito ao sul da razão", "não planeje além de sua sombra", "se descobrir que vais morrer, continua com o que tem entre mãos", "o tímido briga duplamente", "razão e injustiça se perseguem inutilmente"; "se lhe derem de presente a ancianidad, pensa como um ancião"... E na parede do fundo, presidindo, sua frase favorita. Melhor dizendo, sua equação favorita, obtida, conforme dizia, depois de estudar As aritméticas e Os números poligonais, do matemático grego Diophantos, da escola da Alejandría. Era uma de suas referências na vida. Aparecia em hebreu, e rezava: "Amor = Dou porque Tenho" (A = D x T), uma equação "diofántica" que O se encarregou de modificar quando chegou sua hora... Este era Yu, o primeiro homem que escreveu sobre o Mestre, um kui. À manhã seguinte, segunda-feira, 7 de janeiro, o Mestre chegou pontual, e na companhia do proprietário do estaleiro, o velho Zebedeo. Parecia mais depravado. Do Eliseo, nem rastro. Era seu segundo dia de ausência. E a intuição avisou. Algo acontecia... Mas, centrado no Galileo, esqueci, temporalmente, o toque de atenção do instinto. Ao princípio, tudo foi normal. Jesus se fez com as ferramentas e descendeu ao fosso. Santiago, seu irmão, estava no certo: o Mestre trocou de residência, mas seguiu indo ao trabalho, como entablador. Ao pouco de ouvir o triângulo metálico do Yu, anunciando o arranque da jornada trabalhista, percebi algo incomum. Todos se deram conta. Também o Filho do Homem. Vi-o deter o martilleo e olhar para o mole. Yu, previdente, foi para essa zona do estaleiro.
O que acontecia? No chamado extremo oriental do mole se reuniu certo número de pessoas. Em um primeiro momento, quinze ou vinte. Reconheci-os. Eram carregadores do porto. Tinha-os visto em ocasiões. Olhavam para o estaleiro, e gesticulavam. De momento se achavam detidos nos degraus que permitiam o acesso ao mézah, ou estaleiro, propriamente dito. Que estranho. Quase todos eram am-há-arez, "o povo da terra", o último do último, puro lixo, em opinião dos sábios e sacerdotes. Sempre permaneciam sob a atenta vigilância dos capatazes, e de seus látegos de couro. Como é que tinham abandonado o trabalho? Não entendi. O que pretendiam? Logo me daria conta... Yu se aproximou do grupo, e intercambiou umas palavras com os mais próximos. Discutiram. E as vozes dos am há-arez cresceram, e começaram os gritos. Reclamavam ao Jesus, o Mesías, o homem que, segundo eles, tiraria-os da miséria... Comecei a compreender. Aquela gente, como já expliquei em seu momento, ocupava um dos últimos postos na sociedade judia. Segundo os ortodoxos, os am (am há-arez), além de gentinha que desprezava a Lei do Moisés, eram usurpadores e ladrões "do berço", como as samaritanas eram impuras e menstruantes do nascimento. A dizer dos doutores da Lei, os am se apropriaram das terras do Israel, aproveitando o exílio a Babilônia, no 486 A. J.C. O ódio para estes infelizes, portanto, era muito antigo. Alguns rabinos, como Hillel e Jonatán, punham em dúvida sua qualidade de homens, comparando-os com os objetos e animais. Virtualmente não tinham direitos, só obrigações. Os am se achavam por debaixo dos ebed ou escravos, e ao mesmo nível dos mamzerfm, ou bastardos, aos que também tenho feito alusão. Ambos os -am e mamzer- eram "pecadores sem possibilidade de redenção", não admitidos na assembléia do Yavé, "nem sequer na décima Isto geração significava que não podiam contrair matrimônio com judeus puros, nem tampouco aspirar a um trabalho "digno", a herdar ou a declarar em um julgamento. Yavé, no Deuteronomio (23, 2-3), rebaixava-os sem piedade. Do resto,
considerando-os "puro lixo", ocupou-se o corpo de sábios e doutores da Lei... Os sensatos raciocínios do Yu, explicando que ali não havia nenhum mesías, não serviram de nada. Os semidesnudos carregadores, irritados, não emprestaram atenção, e alguns, mais audazes, burlaram ao naggar e se introduziram nas dependências do estaleiro, reclamando ao Jesus. E o resto, das escadas, começou a vozear o nome do Mestre. Os trabalhadores do estaleiro reagiram e se uniram ao Yu, formando uma barreira. Outros, a uma ordem do Zebedeo pai, ocuparamse de deter e expulsar aos que invadiram o lugar. Jesus, sereno, permanecia atento aos am que faziam coro seu nome. Não podia acreditá-lo... A notícia do avanço do Yehohanan para o Nahum, e a filtração do nome do Galileo, como o Mesías prometido, não demoraram para desembocar no mole, e em chegar para ouvidos destes deserdados da fortuna. Os rumores foram tão intensos, e tão verossímeis, que os am se mobilizaram, procurando ao que devia resgatar os da miséria e da injustiça. Esta era a crua, e equivocada, realidade. Ao Mesías libertador político não só o esperavam os religiosos e os nacionalistas. Também o "lixo social" ansiava sua chegada, e não por razões espirituais... Sem me dar conta, estava assistindo a um sucesso de especial relevância. Eram essas gente, os am-há-arez, e também os mamzerfm, quem integraria, em um futuro não muito longínquo, as massas que não perderiam de vista ao Jesus, virtualmente durante todo o tempo de predicación. Estes foram os assíduos seguidores do Filho do Homem, mas não pelas razões esgrimidas no século XX. E se produziu o desastre... Expulso-los se revolveram, e a empreenderam a patadas, e a pedradas, com a gente do Yu. E uma chuva de calhaus brancos e negros nos cobriu em um abrir e fechar de olhos. Protegemo-nos como pudemos. Mas, em metade da gritaria, e do ataque, apareceram os capatazes. Foi visto e não visto. Os látegos foram mais eloqüentes que Yu e, pouco a pouco, os am retrocederam
para o mole, ou escaparam como lebres entre os barracões, desaparecendo ao outro lado do rio Korazaín. O Mestre, como digo, não se moveu. Ninguém se aproximou do. Seu semblante se tornou sombrio. Deus bendito! Tudo se precipitava! Minutos depois, recuperada a calma, o Zebedeo pai e Yu fizeram recontagem dos machucados. Só machucados e um par de feridas de escassa importância. O Mestre resultou ileso. E os trabalhadores, desconcertados, retornaram ao seu. Como é de supor, o comentário unânime, durante o resto da jornada, girou em torno de Jesus. Como era possível que aquele companheiro, escalador nos bosques do "Attiq", e agora entablador, fora o Mesías? Discutiram e, como era igualmente previsível, as opiniões se dividiram. Mas o velho patrão, o Zebedeo, hábil, soube adiantar-se aos acontecimentos. Vi-o conversar com o Yu. Depois se reuniram com o Mestre e parlamentaram durante um momento, não muito. Jesus quase não abriu a boca. Ao pouco, terminada a reunião, o Galileo deixou o peitilho de couro e as ferramentas, e se dirigiu à borda do yam. Embarcou em uma das pequenas lanchas e, em solitário, começou a remar. Entendi, pela metade. E o vi afastar-se para a aldeia do Saidan, onde residia. Tampouco fui consciente, mas estava assistindo a outra cena que, infelizmente, repetiria-se com freqüência durante a referida vida pública: o Mestre, fugindo... Porque, em soma, disso se tratava. Com bom critério, com o fim de evitar males maiores, Jesus aceitou a sugestão do naggar e do Zebedeo. Convinha que se ausentasse do estaleiro, ao menos durante uns dias. E como supôs o Zebedeo pai, por volta da "terça" (nove da manhã), fez ato de presença no estaleiro uma patrulha de mercenários romanos. Traziam ordem de averiguar o acontecido e, sobre tudo, de conduzir ao tal Jesus, o suposto Mesías judeu que andava de boca em boca, ante os responsáveis pela guarnição. Bendito Zebedeo! Yu, como chefe dos trabalhadores, responsabilizou-se do assunto, e
respondeu com a verdade: não sabia nada de um mesías. Além disso, a que "Ye se referiam? Ali, no estaleiro, havia vários homens que respondiam a dita graça. Ye ou Jesus, era um nome comum naquele tempo. E a patrulha teve que reconhecer que o chinês tinha razão. Era a primeira vez que Roma se interessava pelo Jesus do Nazaret. Foi o 7 do mês de sebat do ano 26, muito antes do que se há dito... Mas não tinha chegado sua hora. Sebat! Quase o esqueci! Achávamo-nos em janeiro! Devia permanecer muito atento! Se meus informantes não estavam em um engano, seria nesse mês quando se produziria o batismo do Mestre. Isso foi pontudo pelo Bartolomé, um dos íntimos do Jesus, quando me dirigia para o Nazaret, em abril do ano 30. Naquela acidentado viagem, Juan Zebedeo, outro dos apóstolos, opôs-se à opinião do "Urso do Caná", e defendeu que a vida pública do Galileo arrancou com o encarceramento do Yehohanan, em tammuz (junho) do chamado ano 26 de nossa era. Pouco depois, quando o Zebedeo pai me fez partícipe de seu "tesouro" (a narração das viagens secretas do Jesus), confirmou o indicado pelo Bartolomé: a imersão nas águas do Jordão se produziu em janeiro. Sempre confiei em velho Zebedeo... Pois bem, achava-me no referido mês de janeiro, e o instinto advertiu de novo. Possivelmente todas aquilo -as súbitas mudanças de planos (?) do Anunciador, a mudança do Mestre à aldeia do Saidan, o incidente no estaleiro, etc.- formava parte do vigamento do Destino... Era preciso que mantivera os olhos bem abertos. "Algo" se morava. Não me equivoquei... O resto daquela segunda-feira discorreu com normalidade, exceção feita dos já quase habituais carriolas de curiosos frente ao portalón -agora sempre fechado- da "casa das flores", e de um curioso "achado"... A chuva se apresentou de novo, e interrompeu os trabalhos no estaleiro. E quem isto escreve se reuniu com o Mestre Yu antes do previsto. Lembrança que me tinha sentado sobre a fina escória vulcânica, perto do arca dos livros, e emprestava atenção a suas palavras. Como já mencionei, ninguém entrava no "pavilhão secreto". Como chegou
até ali? Nunca soube. Melhor dizendo, tenho uma suspeita, mas não é acreditável... Yu esqueceu o incidente com os am. Agora passeava, acima e abaixo, com as mãos cruzadas sobre o peito, e tentava me transmitir sua idéia do homem jing, a máxima expressão do que o taoísmo denomina os "Oito Resplendores do Interior". Jing, em tradução do chinês, equivale a "radiante". Essa, como digo, é a categoria última a que pode aspirar um ser humano, segundo o Tao. "Radiante" em seus pensamentos, em suas boas obras, em seu olhar, em seus silêncios, e até em seu caminhar. Todo kui era um jing, por definição, ou deveria sê-lo. Por debaixo, segundo Yu, estavam os homens e mulheres "resplandecentes, brilhantes, simplesmente luminosos, os homens mate, os cinzas, os opacos e os sem luz". E nisso andava, imaginando as diferenças, quando percebi um brilho... Em realidade, não sei o que foi primeiro. Possivelmente, ao vê-lo, já havia sentido aquele acúfeno, no interior da cabeça. Quase tinha esquecido o zumbido nos ouvidos... Yu continuou falando, e eu tomei um dos candelabros. Aproximei-a e verifiquei que não era um engano. Ali, meio coveiro na cinza que peneirava o barracão, justamente entre meus pés, achava-se um pequeno disco, de um negro brilhante. Fiz-me com ele, e o examinei com curiosidade. Não estive seguro, mas parecia jadefta, uma bela peça, delicadamente trabalhada e polida. Não acredito que transbordasse os três centímetros de diâmetro. O centro tinha sido perfurado e, em seu lugar, o ourives dispôs um diminuto círculo, com uma série de símbolos chineses, tudo em ouro. A gema aparecia engastada em uma muito fino lâmina, igualmente dourada, com um pequeno gancho. tratava-se, evidentemente, de um pendente. E supus que era propriedade do Yu. Possivelmente o tinha extraviado. Não podia ser de outra forma, dado que os símbolos eram chineses, e que ninguém tinha acesso a seu sanctasanctórum. E ao fazê-la girar entre os dedos, voltou a cintilar. Foi como um "sinal", mas, lógicamente, não me precavi... O entreguei, e lhe expliquei que estava no chão, entre minhas sandálias. Yu interrompeu a explicação sobre os jing e examinou a peça.
-Não é meu -declarou, ao tempo que me devolvia-. É isso jade negro... O homem kui captou minha estranheza e se apressou a matizar: -Eu utilizo o jade para conseguir a imortalidade. Como sabe, consumo-o, mas é verde, ou branco, ou malva, ou vermelho, ou amarelo, mas jamais negro... Solicitou de novo o pendente e procedeu a uma análise mais detalhada. Olhou-me, e os olhos rasgados se iluminaram. Sorriu levemente e assentiu com a cabeça. No que pensava? por que o jade negro não era pulverizado e consumido? E o assobio, como outro "sinal", fez-se mais agudo. Mas tampouco entendi... Então, com certa emoção, Yu explicou que, para os daoshi, os buscadores da verdade, o jade negro era o símbolo do conhecimento do céu e a pedra que guardava os grandes secretos da alquimia. Tudo estava nela, se fomos capazes de saber olhar. Por isso era uma gema sagrada, e um kui nunca se atreveria a consumi-la. É mais, o jade negro tinha a propriedade de "dirigir nossos passos" e de aproveitar as energias da mãe terra, as transmutando, e ajudando ao homem a alcançar o grau jing ou "radiante". Achar um jade negro entre os pés era uma bênção especialísima disso deuses disse-, e, em conseqüência, eu só podia ser um kui tal e como suspeitava de um princípio. E Yu, entusiasmado, continuou falando das excelências daquele tipo de jadeíta. Entre os chineses, especialmente entre os taoístas, era muito mais que um talismã. Diziam que o proprietário de um jade negro era o mais afortunado dos homens, porque a pedra tinha a capacidade de fazer realidade qualquer sonho. Era o presente mais prezado. Quando um homem entregava um jade negro a uma mulher, isso se denominava "beijo interior", a mais limpa e profunda mensagem de amor. Não fazia falta palavra alguma. Receber um jade negro significava "ser amado". Esse amor não podia ser expresso em palavras. Mas havia mais. O "beijo interior" encerrava, ao mesmo tempo, uma segunda mensagem: esse amor era impossível... E, sem querer, entre as palavras do Yu, foi aparecendo o rosto do MA'ch... Finalmente, perguntei: Qual era o significado dos símbolos dourados? Yu voltou a lê-los e, uma vez seguro, proclamou:
-Para os que lêem em uma só direção: "Felicidade." Para um kui tem outras traduções. Por exemplo: "Para o K." Estremeci-me. E concluiu a leitura: -..."De parte do K." Sim, isso é -confirmou-. "Para K, de parte do K. " Foi imediato. Ao pronunciar a letra, ou o símbolo, "K", foi a minha memória o sonho do Jaiá, a esposa do Abá Saúl: "... O amava a "K" e eu também." Não entendi nada de nada. Que estranha coincidência! Ou não era tal? De onde tinha saído aquele jade negro? Se não era do Yu, como chegou até o interior do "pavilhão secreto"? E recebi uma segunda lembrança... Não era possível! "Quando chegar o momento, procura a seus pés." Eu o sonhei no "lugar do príncipe", em Salem. Eu sonhei como um homem de "palavras luminosas" se dirigia para mim e me fazia essa advertência: "Quando chegar o momento, procura a seus pés. Então compreenderá que isto não é um sonho." Permaneci ausente durante um tempo. Yu falava do jade, mas não emprestei atenção. Era assombroso! por que "K" aparecia misturado com o misterioso homem dos três círculos concêntricos no peito? Que diabos era "K"? por que o "jovem Jasão" estava apaixonado por "K"? E por que o estava igualmente o "velho Jasão"? Não soube o que pensar. Possivelmente exagerava. Possivelmente só era uma coincidência. E o Destino, suponho, sorriu, malicioso. Eu sabia que os sonhos do Jaiá se cumpriam... Por último retornei à realidade, e interroguei ao naggar sobre algo que tinha ficado pendente: qual era sua interpretação sobre os caracteres chineses que adornavam o disco de jade negro? -É o presente de um kui -respondeu com segurança-, para outro kui... -"K" é um kui? Yu entendeu. Sorriu com benevolência e esclareceu algo que me deixou mais confuso, se couber. A letra "k", tal e como a entendemos no Ocidente, não existe em chinês,
e tampouco no dialeto falado pelo Yu, originário do norte da China, e com uma riqueza de mais de cinco mil pictogramas. Ao traduzir ao aramaico, ou ao hebreu, o símbolo kui (assim soava em chinês) equivalia à letra "k", embora seria mais correto falar de "som k". Em soma: "k" e kui, no dialeto do Yu, eram o mesmo. Os símbolos do jade, segundo o chinês, tinham sido trabalhados em uma antiquísima língua escrita, a que chamou "Wenyan", originária da concha medeia do rio Amarelo. Era uma forma de expressão de enorme riqueza conceptual, de excelente ritmo, e de grande musicalidade, utilizada por filósofos, sábios e, é obvio, por homens kui. Reunia quase dez mil caracteres, com as correspondentes pronúncias. "Foi ensinada pelos deuses", manifestou Yu. "Para "K" [Kui] de parte de "K" [Kui] " Necessitaria um tempo para limpar a nova incógnita. por que Yu assegurava que este explorador era um kui? Eu, um sonhador? Quis lhe obsequiar o jade. negou-se em redondo. Eu o tinha encontrado, e eu devia conservá-lo. Se alguma vez decidia o dar de presente, não podia esquecer o "beijo interior". A pessoa que o recebesse tinha que ser muito especial, outro ser kui, o grande amor de minha vida, o único, e, além disso, impossível... MA'ch! E nesses instantes soube quem o receberia. Mas esta é outra história. -Se isso ocorrer, se decide praticar o "beijo interior" -acrescentou-, não esqueça que deverá permanecer no anonimato. A mulher afortunada poderá suspeitar quem é seu amor secreto, mas nunca terá a certeza. Se lhe confessar seu nome, o feitiço do jade negro desaparecerá. Ela, então, converteria-se em uma mulher angustiada. Compreende? Pinjente que sim, embora, nesses momentos, considerei suas palavras como outra "historia kui". Nunca aprenderei... -Enquanto isso chega, até que o jade seja agradável -me olhou intensamente, como se soubesse que isso ia ocorrer-, não te dele separe. Como te hei dito, é um obséquio dos céus. Você saberá por que. Curioso. O assobio nos ouvidos se fez mais intenso... E prosseguiu:
O jade negro porá música a seus pensamentos. Recordará-te que amar é mais importante que ser amado. O fará chover em sua memória quando o necessitar. Manterá-te frio no calor da disputa, e agitará seu segundo campo de cinabrio quando ficar atrás na vida. A contemplação do jade te dirá que não está sozinho. Alguém brilha em seu nome, não sabemos onde. Alguém te tem em seu coração desde o começo. O jade é seu mensageiro. Ele te está gritando que há dois céus: um fora, negro, e outro dentro, dourado. Recorda: "K" = kui... Assim o prometi. E a singular pedra preciosa seguiu com quem isto escreve, até que o Destino o estimou oportuno... Ao dia seguinte, terça-feira, 8 de janeiro, produziu-se o cataclismo. Como imaginar algo semelhante? A jornada se iniciou com o já previsto. O Mestre não foi ao estaleiro. Zebedeo pai e Yu estavam no certo. Os am irromperam no lugar, e reclamaram de novo ao Mesías. E se repetiu a cena: os capatazes a empreenderam a golpes com os infelizes carregadores do mole, e o trabalho teve que ser interrompido. Segundo o velho Zebedeo, Jesus se achava bem, embora intranqüilo. Não soube explicar o que lhe acontecia. Eu o intuí, e não me equivoquei... Sua hora se aproximava. E ao estaleiro chegou também a notícia sobre a comissão designada pelo conselho local do Nahum, que empreenderia viagem ao vale do Jordão nessa mesma manhã. Presidia-a Nitay, o sacerdote da sinagoga, e diretor das seções menores do culto, irmão do Yehudá Ben Jolí, o archisinagogo. Sua missão era verificar os rumores sobre o avanço do Yehohanan e, é obvio, interrogá-lo em relação à identidade do gasto e levado Mesías. Embora igualmente previsto, o fato de saber que a referida comissão estava a ponto de iniciar a marcha para o Jordão, sinceramente, inquietoume. E o instinto me acautelou, uma vez mais. Quando aprenderei a ser fiel a suas recomendações? Devia me mobilizar e viajar com a comissão. Tinha que estar presente quando Nitay, e o resto, chegassem ante o Anunciador... Mas o Destino, naturalmente, tinha outros planos.
O que não contemplei foi a súbita aparição do Eliseo. Fazia mais de dois dias que não sabia nada dele. apresentou-se diretamente onde me achava e, eufórico, exclamou (melhor dizendo, ordenou): -Meditei-o. Tinha razão. Sua situação é muito grave. Não devemos comprometer o experimento. vamos retornar... Achava-me tão perplexo que não perguntei. te despeça Dele e de quem considera!... Retornamos! Olhei-o de cima abaixo. Efetivamente, parecia feliz. Não consegui compreender a mudança de atitude. Primeiro tratou de me convencer para que permanecêssemos naquele "agora". Depois anulou a contra-senha, e não pude separar. Agora ordenava o contrário. Ali havia algo estranho... E permaneceu atento a minha resposta. Esta vez sim reagi. Dava meia volta e me afastei. E ali ficou, sem saber a que atenerse. Estava decidido. Recuperaria o saco de viagem, e o cajado, e uniria ao Nitay e a sua gente. Dito e feito. Fui para o Yu e me despedi. O homem kui olhou aos olhos, e soube que não obrava com ligeireza. O sabia. Havia-me isso dito: logo abandonaria o estaleiro. E assim foi. -Por certo -sussurrou, a maneira de despedida-, o jade encerra outra interpretação: "A gente produz dois"... -O que significa? -É um kui -sorriu, malicioso-. Utiliza a imaginação... "A gente produz dois"? Nem idéia. Mas tampouco lhe dava muitas voltas. Não era isso o que me preocupava naqueles instantes. Yu me obrigou a aceitar alguns gramas de jade moído, e me fez prometer que o consumiria diariamente. Abraçamo-nos, e lhe assegurei que voltaria. Tinha muito que aprender daquele sábio... -Sei que retornará. Para um verdadeiro kui, isso é o mais importante: retornar, não importa quando, nem tampouco aonde... E me afastei do estaleiro dos Zebedeo. Suponho que Eliseo me viu partir. Kesil não me esperava, como é lógico. Utilizei como desculpa a notícia da comissão que se dispunha a viajar ao Jordão. Uniria a ela. O fiel amigo entendeu. Sabia
muito bem de meu interesse pelo Yehohanan. E me ajudou a preparar o saco de viagem. Foi então quando reparei em duas circunstâncias não previstas. E o Destino me saiu ao encontro... A "vara do Moisés" não se achava na ilha. Registrei discretamente as habitações, mas foi inútil. O cajado tinha desaparecido. Se não recordava mau, Eliseo não o levava quando ingressou no estaleiro. Não era o acostumado. Finalmente, procurando não levantar excessivas suspeitas, interroguei ao Kesil. -Eliseo há dito que, se o perguntava, dissesse-te que já não a necessita... -Mencionou onde a guardou? Kesil me observou, intrigado. -por que tanto interesse por uma vara? Pressenti o perigo, e retrocedi. -Certo. Que mais dá! Mas o servente era mais preparado do que este pobre tolo pudesse suspeitar. Sem querer, acabava de cometer um engano... Era evidente que o cajado se encontrava no Ravid. Então soube que o engenheiro falava a sério. Estava disposto a retornar a Casa de campo... O segundo fato, que terminaria modificando os planos iniciais -viajar diretamente ao vale do Jordão-, foi a escassez de antioxidantes. Só ficavam quatro tabletes de dimetilglicina. Ignorava quanto tempo permaneceria perto do Anunciador. Devia ser previdente, e evitar, na medida do possível, que se repetisse o acontecido no Firán. A viagem até as proximidades de Bolota, onde supostamente se achava Yehohanan, exigia, como mínimo, uma jornada de marcha. Se tudo discorria com normalidade (?), a ausência se prolongaria durante quatro ou seis dias. Nunca aprenderei... Necessitava antioxidantes e, é obvio, sentia-me mais cômodo com a "vara do Moisés". Não tive alternativa. Era preciso subir ao "porta-aviões" e recuperar o cajado e a medicação. Se me dava pressa, antes do ocaso podia estar no alto do Ravid. Incrível Destino! Achava a um passado do cataclismo, e fui incapaz de intui-lo... Os céus foram benevolentes com este explorador, e ingressei no módulo pouco antes do entardecer. Tudo se apresentou em ordem. Melhor dizendo,
em uma aparente ordem. Como tinha suposto, a vara foi desarmada e embalada, lista para a volta à meseta de Casa de campo, e a nosso "agora". O que se propunha o engenheiro? Fora o que fora, não estava disposto a me submeter; não dessas maneiras. Armei de novo o cajado e o revisei. Tudo de primeira classe... Pobre idiota! E às 16 horas, 49 minutos e 1 segundo, os relógios do "berço" indicaram o ocaso solar daquela terça-feira, 8 de janeiro do ano 26 de nossa era. Um dia que não poderei esquecer jamais... Foi nesses instantes, com os últimos raios do sol iluminando o penhasco, quando acessei à popa da nave, disposto a retirar a dimetilglicina. À manhã seguinte, com o alvorada, empreenderia a marcha para o vale do Jordão... E o Destino se apresentou, implacável. Fiz-me com uma boa reserva de antioxidantes -muito mais do necessário- e, como tinha por costume, joguei uma olhada à "farmácia". Não pude evitá-lo, Sou assim, sempre previdente, excessivamente previdente. O contrário a um autêntico kui... Então reparei em algo incomum. A férrea ordem que tinha estabelecido naquele departamento, vital para nossa sobrevivência, aparecia ligeiramente alterado. Alguns dos recipientes se achavam deslocados. Sentiu saudades. Eliseo não era o responsável pela farmácia. Entretanto... Restaurei a ordem inicial e, nesses momentos, caí na conta: faltavam alguns específicos. Não era possível... Voltei a revisar, e o fiz pela terceira vez. Não havia dúvida. Não consegui achar o fenolcloroformo, nem tampouco as enzimas de restrição. Estas substâncias, como já assinalei, foram utilizadas no processo de extração química do DNA, e na segmentação do "novelo" do referido DNA (restrictasas). Também senti falta parte de um reagente de cristalização, integrado por piridina e um redutor. Eliseo manipulou ditos elementos na hora de replicar o ácido desoxirribonucleico procedente das amostras de sangue da María, a mãe do Mestre, e dos dentes do José, seu marido, e do Amós, o filho de ambos.
Não podia ser. Recordava que tinha controlado, minuciosamente, sortes substâncias. Era minha obrigação. Examinei de novo o "caderno de consumo", no que anotava cada miligrama utilizado. Negativo. A última manipulação teve lugar em junho do ano 30, pouco antes do terceiro "salto" no tempo. Não se tratava de um engano de quem isto escreve. Alguém tinha empregado aquelas substâncias, e recentemente. Mas só conhecia uma pessoa capacitada para isso... Tive um mau pressentimento. E embora sabia que os informe sobre DNA, elaborados com as amostras que tínhamos obtido do tecido funerário do Mestre, assim como do sangue e cabelos do Jesus e de seus familiares, foram classificados pela Santa Claus", fazendo impossível o acesso aos mesmos, sentei-me frente ao ordenador central e solicitei informação. "O usuário não tem prioridade para executar esta ordem." Era o esperado. "Santa Claus" negou o acesso ao material genético. E a intuição seguiu avisando... por que Eliseo tinha utilizado aqueles elementos químicos? Encontrava-me ante outra análise de DNA? Mas, sobre o que mostra? As que conhecia, as que foram manipuladas com antecedência (em realidade, no "futuro"), achavam-se guardadas em um contêiner especial, hermeticamente fechado e lacrado. As ordens do general Curtiss foram claras e determinantes. Ninguém manipularia a vasilha com o DNA do Jesus do Nazaret. O cilindro passaria, direta e imediatamente, a suas mãos, nada mais tomar terra em Casa de campo. Tinha que acessar ao banco de dados do computador. Tinha que consultar os informe sobre DNA. Algo não quadrava. Algo eu não gostava. O que tinha feito o engenheiro durante os dias que permaneceu ausente? Se trabalhou sobre outra determinação de DNA, tinha que constar nos arquivos do ordenador. Mas como burlar o complexo sistema? Não me dava conta, essa é a verdade. Nesses instantes, absorto no que acabava de descobrir, continuei brigando com "a Santa Cilaus". Transferi a chave, reclamando o diretório correspondente: "CD-GMA" ("acesso a material genético"). Fiz-o quatro vezes. Ao quinto intento saltaram tudo os alarmes acústicas e
luminosas da nave. Esqueci-o... Como tinha acontecido semanas antes, acreditei me voltar louco. Que demônios era aquilo? O que tinha falhado? E ao minuto, como ocorreu em 21 de setembro, o painel panic se tranqüilizou súbitamente. Tampouco soube por que. Só permaneceu ativa uma solitária e "familiar" alarma: o Sistema de Controle Ambiental (ECS). Muitas coincidências... Os pilotos sabem muito bem que duas avarias (duas bombas) não caem na mesma cratera... Em ambas as ocasiões, tudo seguiu um processo idêntico. Consultei os indicadores internos de temperatura e, como supunha, as leituras foram as adequadas. Em realidade, não falhava nada. Melhor dizendo, era eu o que estava falhando. Era eu o estúpido de solenidade... Como não o vi muito antes? Fiz uma nova prova, ignorando a lhe pisquem e obstinada luz do ECS. Efetivamente. Ao solicitar o acesso aos arquivos "DNA" pela quinta vez, "Santa Claus" disparou os alarmes. Estúpido, sim! Como supunha, só se tratava de um "circo". Jamais houve avaria alguma. Entre os técnicos da Operação Cavalo da Troia o chamavam o "quinto cacho de cabelo", uma das medidas de segurança do sistema. No caso de um intruso -mais que suposto naquele "agora"-, se o acesso a determinado código era denegado por cinco vezes, e de maneira consecutiva, o ordenador estava programado para "desviar" a atenção com algo escandaloso que o fizesse desistir de seus propósitos. Isto era o maldito "quinto cacho de cabelo". Nem Eliseo nem eu o tínhamos tido em conta. Retifico: eu o esqueci. Quanto ao engenheiro, como era possível que não o recordasse? O era perito em informática... Durante uns segundos não soube o que pensar. Recordei o acontecido em 16 de agosto, quando se registrou a pequena falha ao teclar no ordenador, e "Santa Claus" denegou, pela primeira vez, o acesso ao material genético. Eliseo, responsável pelo engano, indignou-se e jurou que encontraria a "porta traseira" para abrir de novo o diretório
dos DNA. Aquilo o incomodou, e muito... Que estranho? Sabia do "quinto cacho de cabelo". O estava ao tanto. Mas então... E o pensamento inicial quase se fez certeza. Tinha que sair de dúvidas! A passeio as normas! Foi o princípio do fim... Resgatei o cilindro de aço que continha as amostras do Mestre e dos seus, fechado e lacrado em minha presença pelo engenheiro, e o examinei atentamente. Senti um calafrio. A intuição me alertou. Se o abria, quem sabe... Possivelmente podia provocar uma catástrofe. A intuição jamais se equivoca. É a razão a que nos perde. O pequeno e brilhante contêiner, de 18 centímetros de longitude por 9 de diâmetro, fabricado em aço Mara ging, quase indestrutível, era um dos "tesouros" da operação. Curtiss, como pinjente, estaria ao pé do módulo, esperando-o. Se rompia os selos, converteria-me em um renegado. Só Eliseo foi autorizado a fechar e lacrar. Ele era o responsável pelo lacre especial que, por certo, nunca soube onde guardava. Minto: em alguma oportunidade o vi entre suas coisas, no saco de viagem. Mas, de repente, senti remorsos. Era um soldado. Abrir o cilindro era desobedecer as ordens... Acariciei-o, e briguei contra a razão. Algo não funcionava corretamente naquela história. Tinha que me decidir. Tinha que ser valente, e esclarecer dúvidas. Mas e se estava em um engano? "É um soldado -ditava a razão-. te Limite a obedecer. . . " " Abre-o!... Sabe que está no certo -sussurrava a intuição-. Alguém minta... " E se produziu o cataclismo. Obedeci à intuição e destruí os precintos. Ao abrir o contêiner foi como um terremoto... Neguei-me a aceitá-lo. Fechei o cilindro e escapei do "berço", horrorizado. Perambulei pela plataforma rochosa, sem saber o que fazer, nem o que pensar. Bastardo!
Era o único que repetia. Bastardo! Como pôde?... Finalmente, rendi-me à evidência e retornei à nave. Repassei de novo o conteúdo do cilindro de aço, e tentei me serenar. Ali estavam, como já sabia, as amostras de sangue, cabelos, suor, etc., do Mestre, extraídas dos tecidos funerários, assim como as já mencionadas da Senhora, do José e do pequeno Amós. Mas havia algo mais. Algo do que não tinha conhecimento... Meticulosamente envolto em uma cápsula de segurança, e preparado para seu "transporte" ao século XX, descobri uma mecha de cabelo. Ao princípio o confundi com os cabelos que eu mesmo resgatei do Pequeno Sanedrín, em Jerusalém, quando o Mestre recebeu aquela selvagem surra... . Depois compreendi que isso não era possível. Aquela mecha, e outra amostra de sangue do Galileo, foram transladados a nosso "agora" ao concluir o primeiro "salto" no tempo. Achava-me ante "outra" mecha... Não tive que me esforçar para averiguar a origem do mesmo. No protocolo que acompanhava à amostra se lia textualmente: "Cabelo humano arrancado ao Beth. Data: 4 de janeiro, sexta-feira, ano 26. Hora: 15.00 p.m. Lugar: bosques chamados do Attiq (atual Galilea). Recolhido por "um dos cinqüenta e dois". Confirmado DNA." Bastardo! E rememorei a cena: Jesus, em metade da tormenta de neve, no alto da árvore, sujeitando com dificuldade a seu ajudante, o jovem Minjá, o epilético. O moço, em plena crise convulsiva, pendurava virtualmente no vazio. E recordei sua mão esquerda, obstinada aos cabelos do Mestre... Maldito...! Em uma das violentas convulsões, Jesus não pôde reter o Minjá e este se precipitou sobre a neve... Obviamente, o epilético se levou consigo uma mecha de cabelo do Filho do Homem... Como não me dava conta? Ao cair sobre a neve, Eliseo foi um dos primeiros que foi em auxílio do ajudante. Tentou sujeitá-lo, e Iddan, o afiador, o impediu. Depois continuou ao lado do moço
e colaborou, inclusive, no transporte do mesmo até o acampamento. Pôde fazer-se com a mecha em qualquer desses momentos... Simplesmente, não me precavi da manobra do engenheiro. E comecei a atar cabos... Por isso me arrebatou a vara na Jaraba. Por isso ficou atrás quando descendíamos para o Nahum, e "desapareceu" para o Ravid. Por isso esteve ausente durante dois dias. Por isso a missão não tinha terminado. Por isso, agora, encontrei-o eufórico e disposto para a volta a Casa de campo. Por isso faltavam o fenoicloroformo e as demais substâncias... Miserável! Tinha tomado ao Mestre como um objetivo militar! Desde não ser assim, por que empregava uma chave? por que o chamava Beth? Ou era Bel? A letra do engenheiro, péssima, confundiu-me. Beth ou bet é uma letra hebréia. Equivale ao número dois. É a que inicia a Criação. Isso era Jesus para eles: o "Dois". Se o que quis escrever no protocolo foi bel, em aramaico (o correto tivesse sido b'o), então se referia a "senhor", possivelmente "comandante". Pouco importava. O grave é que tinha atuado a minhas costas. Melhor dizendo, tinham atuado... Em relação à "assinatura" do Eliseo em dito protocolo -"um dos cinqüenta e dois"-, tampouco soube explicá-la. Imaginei que eram cinqüenta e dois os indivíduos que formavam parte do complô. Dado que o cilindro, com o valioso material genético, passaria à mãos estranhas, possivelmente Eliseo não quis comprometer sua identidade. Ou cumpria ordens? Quais eram os outros? E me veio à memória um velho sonho, registrado na aldeia do Bet Jenn, quando partíamos para as cúpulas do Hermón. Em dita ensoñación "vi" uns homens vestidos com uniformize de campanha e ameaçadoras. Eram norte-americanos, como eu. Todos tinham o mesmo rosto: o do Curtiss. E o general me reclamou os informe de DNA... Deus santo! O que estava passando? No contêiner foi depositada também uma larguísima seqüencia numérica, com o seguinte cabeçalho: "Aviso aos deuses." Continha 464 dígitos. Deduzi que se tratava de
uma mensagem encriptado. O 168, iniciando a conta pela parte superior, achava-se marcado por uma pequena flecha vermelha. Era um "7". Mas não me senti com vontades de enfrascarme na resolução do criptograma. Eliseo comunicava algo a alguém; supostamente, ao chefe da operação: Curtiss. Isso sim, por prudência, acrescentei-a ao caderno de bitácora. Algum tempo depois, copiei a citada seqüência, e quando o Destino o quis, o enigma saiu à superfície, e com que força! Mau nascido! O sim era kedab, um maldito mentiroso... Mas e se me equivocava? Possivelmente a mecha de cabelo não guardava relação com o Mestre. Podia estar em um engano? Estava julgando ao Eliseo equivocadamente? As dúvidas -absurdas- me obrigaram a examinar os cabelos. Utilizei o microscópio, o Ultropack, e a luz polarizada. Somei sessenta e sete cabelos, correspondentes à região temporária do couro cabeludo. Era uma mecha arrancada, com a maior parte dos bulbos desaparecida, ou abertos (em evolução), úmidos e pegajosos. Alguns, não muitos, conservavam-se intactos. Suponho que o engenheiro os aproveitou para extrair o DNA. Por isso recordava, era um cabelo idêntico ao que foi analisado depois do primeiro "salto". Os estimáveis índices de ferro e iodo achados em ambas as amostras foram definitivos. Ambas as mechas de cabelo procediam da mesma pessoa, o Mestre. Deus!... Como pôde simular até esse extremo? Tudo era mentira! Simulou que não recordava o "quinto cacho de cabelo". Me animou a programar o terceiro "salto". Disse acreditar nas palavras do Galileo. entusiasmou-se" (!) no Hermón, e prometeu "consagrar-se à vontade do Pai". Amaldiçoou ao Curtiss, e aos seus, em minha presença. Confessou estar apaixonado... Todo falso! Tudo? E seu amor pela Ruth? Mas ele não era o pior... E a Operação Cavalo da Troia se desmoronou como um castelo de areia. Não era isto o que tinha suposto. Malditos militares! E retifiquei. Maldito Curtiss!... Tosser! Não era o conhecimento o que lhe interessava. Não era a verdade. Não era
Jesus do Nazaret. Era o poder, de novo... Meses mais tarde, quando aconteceu o que aconteceu, o próprio Eliseo confessou que era um dark-darn, um "escuro do inferno". Assim chamam os agentes especiais do DRS (Serviço de Investigação da Defesa), os mais temidos, tanto por sua preparação como por sua audácia. São os "escuros" os que empreendem as missões pioneiras, quase sempre com objetivos pouco confessáveis. Cavalo da Troia reunia todas as características de um projeto de investigação avançada e, como manifestei, algumas das agências de segurança norte-americanas lutaram a braço partido para ingressar no grupo. Disso, Curtiss, o doutor Kissinger, e Richard Helms, ex-diretor da CIA, sabem muito... Mas não adiantarei os acontecimentos. antes da "confissão" do engenheiro aconteceram outras coisas... É obvio, não fui capaz de conciliar o sonho. O que devia fazer? Retornava ao estaleiro e pulverizava ao Eliseo, tal e como me tinha proposto dias atrás? Não me pareceu o mais inteligente... E dediquei essa noite, e parte do dia seguinte, quarta-feira, a planejar o que, em princípio, seriam os passos imediatos. Fiz um frio balanço da situação (para ser exato, de minha situação). Isto é o que tinha ante os olhos: meu companheiro não era o que supunha. Nada do que fizesse, ou dissesse, era confiável. Se desejava continuar a missão, se pretendia seguir ao Filho do Homem, teria que fazê-lo por minha conta, e esquecer ao Eliseo. Sentia-me com forças? Como resolvia o muito grave problema dos "tumores" cerebrais? Estava maço de pés e mãos. Ou não? No "berço" aparecia uma mecha de cabelo, quase com segurança do Mestre, introduzido clandestinamente. por que? Que necessidade tinha de atuar a minhas costas? Para que esta nova amostra? No primeiro "salto" obtivemos as necessárias. Com as "tesouras químicas", por exemplo, o DNA do Jesus foi segmentado e, em questão de horas, o ciclador térmico proporcionou mais de um milhão de "cópias". Todo isso se achava em poder do Curtiss e dos seus. Não conseguia entender. A não ser que...
Rechacei a idéia. As amostras transportadas ao século XX -sangre e cabelo- se achavam em perfeito estado. Como já indiquei, de sortes amostras, em especial do sangue, extraiu-se muita informação. Segundo os especialistas, os linfócitos estavam completos. Em outras palavras: puderam trabalhar com o DNA do Filho do Homem. Falhou algo? Ignorava-o nesses momentos. O que estava claro é que Eliseo se arriscou, e introduziu uma nova amostra do Galileo no módulo. Cumpria ordens, supus, e o fez por alguma razão de especial trascendencia. Nunca fui informado respeito ao uso que deu a dito material genético, mas não faz falta ser muito acordado para intui-lo... Meses mais tarde, como digo, quando o engenheiro confessou, compreendi que me tinha ficado curto em minhas apreciações. Era pior do que supunha... Algo impróprio de um ser humano. Algo que me envergonhou e que fortaleceu a velha idéia. Não se sairiam com a sua ... E possivelmente seja o momento de reconhecer minhas próprias culpas. A ignorância não me exime. Direta, ou indiretamente, quem isto escreve colaborou com os militares em seus tétricos projetos. Eu ajudei a transladar as amostras a nosso "agora". O sinto. Se tivesse que me desculpar, só acertaria a dizer que minha intenção foi outra, muito diferente. Curtiss me falou de investigar a verdade sobre os últimos dias do Mestre. Isso foi combinado, ao menos comigo. Mas do que servia me justificar? O Destino me tinha miserável, e ali estava, no alto do Ravid, mais solo que nunca, condenado a morte, e desmoronado ante o que acabava de descobrir. Passei horas inteiras desconcertado. Pensei em retornar ao Nahum e, simplesmente, me entregar à vontade do Eliseo. cedo ou tarde, teria que fazê-lo. O era o único que dispunha da chave para separar e voltar para nossa realidade. Se decidia permanecer naquele "agora", o que seria de mim e, sobre tudo, o que aconteceria com nossos achados sobre o Homem- Deus? Não acreditei que os militares os dessem a conhecer. E possivelmente tivesse ganho a razão, possivelmente me teria inclinado pela submissão ao Eliseo, de não ter sido por um súbito, quase fugaz,
pensamento que despertou e me fez reagir. Nun! Foi a intuição, estou seguro. Foi ela a que tocou de novo em meu ombro... Nun! Milagre! Foi a inicial da letra hebréia a que me resgatou daquele perigoso momento. Foi a peonza de salgueiro, na ilha e ali mesmo, na plataforma do Ravid, a que inclinou a balança de minha vontade. Foram as lembranças de dita letra -nun- os que fizeram possível o "milagre". O hei dito alguma vez: tudo, nesta aventura, foi mágico... Seguiria adiante. Agora, mais que nunca, tinha que pôr a prova minha confiança naquele Homem. Lutaria. Eliseo tinha o poder. Eu, agora, obedeceria à intuição... Então, na imaginação, surgiu Yu. Sorria e sussurrava: "É um kui." Assim o faria. Prosseguiria o trabalho de seguimento do Mestre. Mas antes tomei uma série de decisões. Primeira: não permitiria que o cilindro de aço, com as amostras do Jesus e de sua família, caísse em mãos do Curtiss. Tinha que fazê-lo desaparecer. Eliseo jamais o encontraria. Não cometeria um segundo engano. Sem o contêiner, o engenheiro não separaria. Ou sim? A missão, efetivamente, não tinha terminado..., para nenhum dos dois. Segunda: guardaria silêncio sobre o achado. Precisava averiguar até onde era capaz de chegar o maldito "escuro". Sabia que, cedo ou tarde, Eliseo se daria conta do desaparecimento do cilindro, mas isso não me preocupou. Não lhe tinha medo. E desfrutei, imaginando sua cara ao comprovar que as amostras tinham sido tiradas do "berço". Acertei, pela metade. O engenheiro o averiguou, naturalmente, mas reagiu pior do que supus... Terceira: procederia ao imediata "blindagem" do diárioda bordo. Ninguém teria acesso ao escrito. E a velha idéia, como digo, propagou-se, segura, por meu coração. Curtiss e o resto não o mereciam. O mundo tinha direito a conhecer a verdade. Aquela preciosa informação não seria classificada, como tantos
outros assuntos... Eu a poria a salvo, aceitando que conseguisse retornar a meu tempo. O Destino ouvia estas reflexões -sei- e sorriu, malévolo. Foi como planejei, mas por um caminho não suspeitado nesses instantes... Assim é o Destino. Quarta: iria ao rio Jordão, tal e como programei inicialmente. Isso me concederia tempo. Se tudo discorria como era o habitual, a seguinte revisão do módulo, e possivelmente o descobrimento da falta do cilindro, registraria-se no prazo de uma semana e meia, aproximadamente. Então, já veríamos... Se me dava pressa, ainda podia alcançar à comissão do Nahum que devia interrogar ao Yehohanan. Quinta: dada a situação, e o progressivo envenenamento das relações entre o Eliseo e quem isto escreve, ao retornar ao Nahum procuraria outro lugar no que viver. Compartilhar a ilha tivesse sido uma loucura. Senti-o pelo fiel Kesil. Se o Mestre seguia habitando no casarão dos Zebedeo, no Saidan, ali me transladaria. E me preparei. Dispus uma carga de "nemos", a metade dos diamantes, e a dimetilglicina, e dediquei o resto da manhã da quarta-feira a procurar um lugar onde enterrar o cilindro de aço. Não foi tão simples. Percorri a plataforma, mas sempre tropecei com algum inconveniente. O áspero terreno não era fácil de remover. Além disso, Eliseo o tivesse detectado. Na nave dispúnhamos de procedimentos para localizar uma peça metálica. E o assunto, aparentemente singelo, complicou-se. Nem a muralha romana, nem os ninhos dos "ratos-topo", nem tampouco a macieira da Sodoma eram lugares adequados. Tivessem sido os primeiros objetivos do engenheiro. Despenhava-o pelo escarpado? Negativo. Era uma peça estranha naquele "agora". Não devia permitir que fora manipulada. Mas, sobre tudo, continha umas amostras que exigiam um mínimo de respeito. Não o deixaria no Ravid. E assim se esgotou na quarta-feira, 9, com o contêiner entre as mãos, sem
saber o que fazer com ele. Só me ocorreu uma solução. Levaria-o comigo, oculto no saco de viagem, até que pudesse me desembaraçar dele ou, ao menos, dos dentes do José e de seu filho Amós, do sangue da Senhora e do Mestre, assim como de seus cabelos. Algo me ocorreria, caminho do Jordão... E todo se atrasou. Aquele problema -como supor o nesses momentos- resultaria decisivo, a não demorar. Quando aprenderei a não fazer planos além de minha própria sombra? Também a "blindagem" do caderno de bitácora foi mais laborioso do que pensei. Eliseo era um gênio com o computador. Não podia competir com ele. E necessitei horas para desenhar uma chave que invalidasse qualquer intento de abordagem. Parte da contra-senha de acesso foi a palavra "feliz", uma das interpretações dos símbolos chineses que adornavam o misterioso disco de jade negro, achado a meus pés no "pavilhão secreto" do Yu. Feliz? Tinha que me situar na mentalidade do ardiloso engenheiro. O avaliaria todas as possibilidades imagináveis, sem perder de vista minha psicologia e estado de ânimo. Não podia dizer-se que estava vivendo meu melhor momento. Não era feliz. Por isso me decidi por sorte uma palavra, e um segundo "elemento"... Em princípio, a segurança do diárioparecia garantida. Só eu estava capacitado para abri-lo. E o Destino seguiu me observando... Não, não todo se achava sob meu controle. Eliseo não era um inimigo pequeno. Era um "escuro"... Por fim, resolvidos (?) os obstáculos, carreguei o saco de viagem e descendi do Ravid. Era o amanhecer da sexta-feira, 11 de janeiro. Os relógios do módulo assinalavam as 6 horas, 38 minutos e 53 segundos. Começou a chover mansamente. E me senti mais acalmado. De novo no caminho, como sempre! De novo frente ao misterioso Destino! O que me reservava nesta oportunidade? Logo o averiguaria. É curioso. Eu sim confiava no Pai, a minha maneira. E essa confiança -não sei como explicá-lo-se fazia visível em ocasiões como aquela, quando
tudo, aparentemente, apresentava-se perdido. Mais que confiança, possivelmente deveria falar de segurança. Uma formidável e benéfica segurança no poder dos céus. Assim me apresentei na base de aprovisionamento dos "treze irmãos", ao sul da populosa cidade do Bet Yeraj, crédulo e seguro. Esse bom Deus -Ab-b do que tanto falava o Mestre, protegeria-me... Os sais, os condutores de carros, sabiam tudo. O vidente e seu grupo se encontravam perto do yam. Falaram de um lugar próximo à aldeia do Ruppin, pela que este explorador já tinha cruzado anteriormente. As notícias chegadas ao Nahum eram corretas, pela metade. Um exército? Os sais riram com vontades, e com razão. "Um exército de trinta e seis loucos, como o profeta." Isso era tudo. Yehohanan avançava para o lago, certo, mas o acompanhavam os de sempre. O não me reconheceu em um princípio, mas o selecionei de entre os muitos voluntários que se ofereceram para me transladar à paragem no que pregava o Anunciador. Conhecia-o de viagens anteriores. Foi o guia que conduziu o carro desde a Damiya ao Migdal, quando Eliseo adoeceu. Eu gostei daquele tipo. Era honrado, olhava aos olhos, falava o justo, e conhecia o vale. Chamavam-no "Tarpe lay", por ser oriundo do Taipei (atual Líbia). Era negro como o carvão, com o crânio rapado, e sempre vestido de amarelo. Na bandagem se sobressaíam três adagas, com os punhos de prata, reluzentes e ameaçadoras. Para falar a verdade, jamais o vi fazer uso delas. Pactuamos o preço e partimos pelo velho e familiar caminho que descendia paralela ao rio Jordão. Agora, na distância, ao ordenar o caderno de bitácora, sigo me assombrando. Tudo, na vida, em qualquer vida, acha-se minuciosa e milimétricamente ordenado, embora não somos conscientes. Esse era meu caso. Aquela cadeia de "coincidências" -a falta de antioxidantes, o "descobrimento" na farmácia do "berço", etc.- tinha um porquê. Tudo foi travado magistralmente, para que me achasse no lugar adequado, e no momento preciso. Se não acreditar na casualidade, como explicar o que ocorreu essa mesma noite da sexta-feira?
A coisa de trinta quilômetros dos "treze irmãos", Tarpelay se assegurou. Perguntou na intercessão do caminho com o meio-fio que unia Bet She'an e Bolota, e confirmou sua notícias. Yehohanan tinha montado o novo guilgal para o este, a 27 estádios de onde nos encontrávamos, aproximadamente (quase cinco quilômetros). O caminho mais curto era o meio-fio romana, já mencionada, que se dirigia à cidade de Bolota. Os vendedores do cruzamento se referiram a uma ponte, o primeiro que encontraríamos, em um lugar que chamaram "Ahari". Outros se mostraram desconformes com esta designação e falaram da Omega", o meandro "Omega". "Ahari" era uma palavra aramaica; significava "final". Quanto a Omega", é grego; representa a última letra de dito alfabeto. Omega? E senti um calafrio... Eu tinha ouvido esse nome. Omega... E para a sexta hora (meio-dia), Tarpelay se despediu, e me desejou sorte. Sorriu com os olhos, e acredito que me reconheceu, mas não poderia assegurá-lo... Achava-me sobre uma pequena ponte de pedra, em efeito. O meio-fio se perdia para o sudeste, em linha reta. por ali se alcançava Bolota e outras populações da Decápolis. Apareci pelo parapeito e distingui umas águas pressurosas e o apertado verde de um bosque. Era um riacho despretensioso, limpo e rumoroso, que procurava o Jordão, como todos. Não muito longe, segundo nossos informantes, tropeçaria com o vidente e os seus. Segundo meus cálculos, a aldeia do Ruppin estava a seis ou sete quilômetros. Também me achava muito perto das "onze lacunas", e do criadero de crocodilos que visitamos na companhia de Belga, o enigmático persa do sol na frente. Isso queria dizer que Salem se encontrava igualmente próximo. Yehohanan se tinha movido, mas não à velocidade que indicavam os rumores... Afastei-me da ponte e continuei pela borda esquerda, águas abaixo. A temperatura era moderadamente alta. Tinha deixado de chover e o céu recuperou seu azul natural, quase infinito. Logo alcançaríamos os 30 ou 35 graus Celsius. E apesar da amarga experiência vivida com o gigante das sete tranças
loiras, experimentei uma certa emoção. Os encontros com aquele homem sempre estiveram carregados de dúvidas e de tensão. Mas o estima BA. O salvou minha vida... Como reagiu ante a comissão designada pelo conselho do Nahum? Quem sabe... O Anunciador era imprevisível. O afluente, como disseram os vendedores, formava naquele lugar um gigantesco meandro, em forma de ferradura, de uns setecentos ou oitocentos metros de diâmetro. Era o nahal Artal, outra das correntes secundárias que regavam o leste do Jordão, morrendo frente às referidas "onze lacunas", ao sul do Ruppin. Como já indiquei, o lance norte do Jordão, entre o mar do Tiberíades e o rio Kufrmnja, que desemboca na localidade da Juneidiyya, era rico neste tipo de grandes curva, ocasionadas pelas características do terreno, semeado de materiais muito duros, especialmente basalto, que obrigavam às águas a dobrar-se e a procurar caminhos mais fáceis. Depois soube. Embora os judeus designavam o enorme meandro com o chamado nome do Ahari", os habitantes da zona, pagãos em sua maioria, preferiam a designação em grego: "Omega", pela semelhança da curva com a letra grega em questão. Então não caí na conta. Foi depois, ao acontecer o que aconteceu, quando compreendi que ambos os términos -"Ahari" e "Omega"- tinham uma íntima relação... Mas não devo me precipitar. Ao pouco, efetivamente, descobri gente. Apareciam na borda oposta, entre as árvores. Tinha-me equivocado ao escolher a margem esquerda do arroio. Era o acampamento dos inevitáveis seguidores. Somei vinte ou trinta lojas, repartidas pelo bosque. Isso representava ao redor de trezentas pessoas. Os entusiastas e curiosos tinham aumentado, dos dias do Enaván, nas cercanias de Salem. Tudo parecia tranqüilo. Não cheguei a distinguir ao Yehohanan, e tampouco ao grupo dos discípulos. Isso me inquietou. E durante um momento me sentei na borda, examinei o lugar e aos acampados, e tomei referências, segundo meu costume. Omega era um apertado bosque, com alguns pequenos claros, muito poucos. Dominavam os tamariscos e um matagal baixo, parecido a sempre
viva, que tingia os pés da arvoredo de um violeta formoso e relaxante. Mas o que chamava a atenção na grande "ferradura" eram umas árvores de uns vinte metros de altura, muito irmanados, ocupando virtualmente a totalidade do meandro, com enormes floresça brancas, pendentes como lenços ao ar. A menor brisa as fazia oscilar. Na distância, a gente tinha a sensação de que era saudado por milhares de amigos. Para mim foi o bosque dos "lenços". Nessa borda do Artal, entre canos, aparecidas nas águas, apresentavam-se quatro ou cinco grandes lajes de pedra negra, quase plainas, e muito erodidas. Algumas mulheres lavavam a roupa sobre elas, espancando mantos e túnicas entre canções e risadas. E de repente, entre os davidia, acreditei distinguir ao pequeno-grande homem. Era Abner, o segundo do Yehohanan. Caminhou até o extremo de uma das pedras e dirigiu o olhar para o norte, como se procurasse a alguém. Deduzi que o vidente havia tornado a desaparecer. Não o pensei mais. Retornei ao puentecillo e me reuni com a margem direita do rio. Fui direto para o Abner. Ao yerme, surpreendeu-se e se lançou a meus braços. Tinha razão quando me chamou caixa de surpresas. Tão logo estava com eles como me perdia nos bosques, na companhia do profeta, como retornava, convertido em um velho... Mas me apreciava. Abner queria ao Esrin, e eu a ele. Sorriu com dificuldade, e mostrou a dentadura em ruínas, assolada pela grave periodontitis (piorréia) que padecia. Algo lhe preocupava. Perguntei e se justificou. Uma comissão, nomeada pela sinagoga do Nahum, acabava de partir da Omega. Permaneceu dois dias no meandro, e tentou interrogar ao Yehohanan. E digo "tentou" porque, ao parecer, o das "pupilas" vermelhas não se dignou responder. Nitay, o porta-voz e chefe de dita comissão, queria saber se Yehohanan era o Mesías libertador do Israel, e quais eram seus planos. Interrogou-o a respeito dos rumores que corriam pelo yam e, muito especialmente, sobre os exércitos que -diziam- se uniram ao vidente. Também perguntou por um tal Jesus, ao
que faziam alusão ditos rumores, objetivo do Anunciador no Nahum. E como tinha acontecido no Enaván, com a representação do Templo, Yehohanan os desprezou; fez-se com a colméia e se afastou rio acima. Não voltaram a vê-lo. Essa mesma manhã da sexta-feira, como digo, aborrecidos e decepcionados, Nitay e o resto empreenderam a viagem de volta ao yam. Este explorador se cruzou com eles, muito provavelmente. Abner não entendia o comportamento de seu ídolo. A presença da comissão do Nahum, ao igual à dos sacerdotes e levita nos lagos do Enaván, era um importante sinal. Todo mundo sabia já da existência do Yehohanan. Todos desejavam conhecê-lo e, lógicamente, averiguar se era o Libertador e "destruidor de dentes". por que se comportava assim? por que não aproveitava aquelas oportunidades e se situava, definitivamente, à cabeça da nação judia? Todos o seguiriam. O era o Mesías... Guardei silêncio, naturalmente. O bom e crédulo do Abner acreditava o que dizia. Para ele, como para os discípulos e quão fanáticos os secundavam, Yehohanan não era, unicamente, o arauto ou anunciador da "salvação do Israel". Era o próprio Libertador político-social-religioso, como já referi em outras oportunidades. Esta realidade, ignorada pelos evangelistas, provocaria, a não demorar, um permanente rio de conflitos... As perguntas do Nitay, o sacerdote e caritativo chefe do Nahum, relacionadas com a possível liderança do Jesus, foram as que realmente desarmaram ao Abner. Yehohanan tinha falado sobre seu parente longínquo. Algo sabia, e o compartilhou com alguns dos íntimos. Mas, que ele soubesse, ninguém tinha filtrado o nome do Jesus, "como o que tinha que vir...". O e os trinta e quatro "justos" (incluiu-me, é obvio) acreditavam no Yehohanan, só nele. Jesus era um desconhecido e, inclusive, um possível rival. por que difundir esse nome? Suponho que ambos pensamos o mesmo: alguém se foi da língua, alguém não era trigo limpo entre os "justos"... Tal e como supus, os rumores que chegavam ao yam estavam distorcidos.
As intenções do Anunciador eram alcançar Nahum e prostrar-se ante o Jesus, tal e como disse, mas ninguém podia estar seguro. O gigante era imprevisível. Seu desequilíbrio o conduzia a um torvelinho de dúvidas. Nada era seguro com ele. E devagar, sem deixar de conversar, Abner me conduziu ao guilgal, o círculo protetor que riscavam em todos os acampamentos, e sempre ao redor de uma árvore. Era outra das exigências do vidente. Neste caso foi eleito um dos davidia, quase no centro da "ferradura", a uns trezentos metros do basalto sobre o que lavavam as mulheres. Dos ramos penduravam novos ostracones (partes de argila), com lendas como as seguintes: "E os estrelarei, a cada qual contra seu irmão", "E me disse Yavé: não estará minha alma por este povo", "Pisei-os com ira", "As nações tremerão ante ti", "Pois hei aqui que vem o Dia, abrasador como um forno"... Eram frases do Isaías, Jeremías, Malaquías e outros profetas, a qual mais ameaçadora ou destrutiva. Aquele era o conceito do Yehohanan sobre Deus. - O resto dos homens se alegrou também à lombriga. Esrin ("Vinte") tinha retornado. Nem Be1 nem Andrés, nem Simón se encontravam no acampamento. Do primeiro, ninguém soube dar razão. Em relação aos irmãos pescadores, Abner indicou que tinham retornado ao yam, com suas famílias. Não demorariam para voltar. Isso era o acostumado: foram e vinham... Judas, o Iscariote, sim permanecia com o grupo, até que quase sempre afastado e esquivo, misturado com a gente. Vi-o conversar com os acampados, em voz baixa e receoso, como se temesse que alguém pudesse ouvi-lo, e delatá-lo. Imaginei que continuava com sua grande obsessão: formar parte dos zelotas, ou patriotas, os que pretendiam a independência do Israel a qualquer preço. Não me equivoquei. Entre curiosos, fanáticos, gente que procurava a cura de seus maus, ociosos, e vendedores, na Omega se congregaram algo mais de trezentas pessoas. Pouco tinha trocado em relação ao visto no vau das "Colunas". Os mesmos interesses, a mesma curiosidade e a mesma polêmica. Era ou não era o
ansiado Mesías? Chegaram a Omega com a festa da Janucá, no fim de dezembro. Yehohanan, como era habitual, afastava-se do guilgal e permanecia ausente vários dias. Um dos homens, ao amanhecer, apostava-se nas pedras negras da borda e vigiava. Se o vidente fazia ato de presença, tocava o sofar, o corno de carneiro, e o acampamento se mobilizava. Primeiro era a prédica, ameaçadora, naturalmente, e depois a cerimônia de "baixar à água" ou . em que os aspirantes ao "reino" se inundavam no arroio e desencardiam assim o corpo. A imersão era simbólica. De nada servia, segundo Yehohanan, se antes não existia um arrependimento dos pecados, e uma vontade firme e sincera de formar parte dos escolhidos, ao serviço do "destruidor de dentes". Dita cerimônia não era um batismo, tal e como entendem hoje os crentes. Insisto: "baixar à água" não significava o perdão dos pecados. Isso era prévio. Para o Anunciador, a imersão era um "sim" ao Yavé justiceiro e à necessidade de vingar as iniqüidades dos ímpios (especialmente de Roma). A verdade é que me senti decepcionado. Fazia a viagem para nada. Não acertei a presenciar o interrogatório (?) da comissão do Nahum, e, virtualmente, nada do rumoreado era certo. Tivesse sido mais interessante ter contínuo no estaleiro, na companhia do Yu... E o Destino, do alto, deveu sorrir. Nunca aprenderei. O caso é que decidi acampar com os íntimos do Yehohanan. Ao dia seguinte, se não aparecia o Anunciador, retornaria ao lago. O Mestre era mais importante. Foi então, por volta da nona (três da tarde), quando recordei que o assunto do cilindro de aço seguia pendente. Aquela era uma paragem apropriada para ocultá-lo. E decidi jogar uma olhada entre as árvores... Se o enterrava no bosque dos "lenços", quem podia achá-lo? Eliseo, dificilmente... E ao levantar a vista reparei em algo que já tinha observado, mas ao que não emprestei suficiente atenção. Incrível Destino! Sabe... Nas taças dos davidia habitava outro mundo, formado por dez ou doze
espécies de aves, todas residentes no Jordão, a qual mais escandalosa e ativa. Distingui reyezuelos muito verdes, mirlos de picos acesos, chorlitos, francolinos nervosos, andorinhas rápidas como suspiros, tímidos rouxinóis e, sobre tudo, a espécie dominante na Omega, o guardarrío de peito branco (Halcyon smyrnensis) e sua "primo", o Ceryle rudis, outro guardarrío vestido de arco íris. Estes últimos, mais sociáveis, estavam em todas partes. Havia-os a milhares. Seus cantos, fortes e estridentes, obrigavam aos acampados a levantar o tom da voz. Alguns, inclusive, zangados com os incansáveis ceryles, empreendiam-na a pedradas, provocando o efeito contrário: o escarcéu se fazia insofrível. Para falar a verdade, nunca, até esses momentos, tinha visto tantos guardarríos juntos. Pois bem, em pouco mais de uma hora, com o sol ocultando-se ao outro lado do Jordão, estes pássaros me proporcionariam um primeiro "aviso"... Algo estava a ponto de ocorrer. Omega era o sítio. Ali esconderia o contêiner. Pensei em jogá-lo nas águas do Artal. Com um pouco de sorte flutuaria para o Jordão, e dali poderia derivar ao mar do Sal (mar Morto). Muito arriscado. O brilho do cilindro chamaria a atenção, com segurança. Era melhor selecionar uma das árvores, e cavar ao pé do davidia. Esperaria de noite, quando todos dormissem... Não tive oportunidade. Os relógios do módulo deviam assinalar as 16 horas, 51 minutos y24 segundos. Era o momento do orto solar. de repente, o natural escarcéu dos pássaros aumentou. Todos, no guilgal, olhamos para o alto. As aves, enlouquecidas, saltavam entre a ramagem, ou se precipitavam de uma taça a outra, chiando e escapando para o vermelho do crepúsculo. Muitas delas, inexplicavelmente, topavam com os troncos e caíam mortas ou agonizantes. O acampamento, atônito, recolheu alguns dos belos guardarríos, e se perguntou o que acontecia. por que as aves fugiam? Em questão de segundos, o bosque dos "lenços" ficou em silêncio. No céu se distinguia uma mancha negra, e oscilante, que voava para o sul. Era a pajarería. Enquanto
permaneci no meandro não os vi retornar. Os comentários foram inevitáveis. Algo assustou às aves. E os supersticiosos acampados coincidiram: tinha que ser Adam-adom, o "homem-vermelho", a criatura da que tinha falado Bel no caminho para a Damiya, e, justamente, muito perto de onde me encontrava. O persa assinalou as "onze lacunas" como um dos territórios deste sinistro "diabo" dos mangues, que assaltava aos caminhantes, e os deixava sem sangue. Adam-adom, como já mencionei, tinha a capacidade de voar. Segundo a crença popular, os pés eram como os de um cão, e, em ocasiões, como os de um galo. Os olhos projetavam uma luz avermelhada que lhe permitia orientar-se na escuridão. Era desumano e insaciável. O medo foi igualmente inevitável. Alguns, muito poucos, trataram de raciocinar, e explicaram que Adam-adom era só uma fantasia. Foi inútil. Com a chegada da escuridão, e o aceso das fogueiras, cada sombra, cada rangido, e cada ir e vir, convertiam-se em um sobressalto. O pânico foi tal que os homens optaram por reunir-se, e designar a cinqüenta vigilantes, localizando-o-se no perímetro da "ferradura". Os vigias foram providos de caminhos tochas. Ao menor movimento, ou suspeita, deviam agitar as lhas. Esse seria o sinal que indicaria a presença do "homem-vermelho". Nem que dizer tem que essa noite todos dormiram com as espadas ao alcance da mão e, virtualmente, com um olho aberto. Mas o mais desconcertante estava por chegar... Foi por volta da primeira vigília da noite, encarcerados naquele desacostumado silêncio do bosque, quando alguém deu a voz de alerta. Em realidade, ninguém dormia. E a totalidade dos acampados se incorporou. Algumas das tochas, em efeito, agitavam-se a direita e esquerda. Os uns interrogavam aos outros, mas, na verdade, ninguém ouvia ninguém. No guilgal, Abner e os seus jogaram mão dos gladius, as espadas de dobro fio, e se emprestaram à defesa. Fizeram um círculo e se animaram uns aos outros. Eu permaneci no centro, com o Abner, e sem saber a que atenerme. As tochas continuavam agitando-se ao fundo dos davidia. Agora eram
todas, as cinqüenta, as que oscilavam sem cessar. Que demônios acontecia? O que tinham visto? Ouvimos gritos. Entendi que falavam do céu. E nisso, em metade da incerteza, três dos sentinelas abandonaram seus postos e correram entre as árvores. Em realidade vi o fogo das tochas, aproximando-se do guilgal. Abner alertou aos "justos" e todos, ao uníssono, avançaram um par de passos. As tochas seguiram aproximando-se. Então ouvi com mais claridade. Os gritos mesclavam as palavras svemáyin (céu), raz (mistério) e at (milagre). Algo acontecia no céu... Foi instantâneo. Os acúfenos me assaltaram de novo. O assobio, agudo, atravessou a cabeça como um sabre. Nesses instantes não me precavi. Deixei o círculo de pedras e corri por volta de um dos claros da arvoredo. Foi ali, na clareira, ao contemplar o negro e estrelado firmamento, quando comecei a compreender... Deus bendito! O que era aquilo? Como explicá-lo? Não sei se acertarei... No céu se moviam centenas de "luzes"; o que eles, em aramaico, chamavam raz ou "mistério". Centenas de "luzes"? Possivelmente me fiquei curto. Como era possível? Em janeiro do ano 26? Quem voava nessa época? Só os pássaros, obviamente. Pois não! Eram idênticas às que tinha visto em outras oportunidades, e às que já me referi. "Luzes" brancas, similares a estrelas, mas em movimento. Cobriam a totalidade do arco do firmamento visível, com um deslocamento lento, como se os "pilotos" (!) que as controlavam não tivessem pressa. Estava-me voltando louco? Pensei em uma chuva de estrelas. Rechacei-o ao ponto. As "luzes" navegavam -essa era a expressão exata muito devagar, em vôos horizontais, e, em alguns casos, em perfeitas formações, tanto em linha, como em cruz, ou em v. Apareciam pelos quatro pontos cardeais, cruzavam-se, e ao chegar a vertical da Omega, pulsavam mais intensamente e, inclusive, faziam estacionário. Depois prosseguiam e se perdiam no branco e negro dos céus. Indescritível!  Fascinante! Impossível!
Não, não o era; não era impossível. Não fui o único que o viu. Os sentinelas o detectaram antes que este aturdido explorador. Por isso agitaram as lhas. Por isso gritavam. Era um raz, segundo eles, e também um at, um prodígio. Todos o viram no bosque dos "lenços" e, conforme pude averiguar algum tempo depois, também em outras paragens, aldeias e cidades da Decápolis e da Perea. O sucesso esteve em boca de muitos, e foi considerado um "mau presságio". Assim o proclamaram na Omega. Ao chegar ao guilgal, os sentinelas alertaram aos "justos", e correram, como eu, para os claros do bosque. Era um espetáculo tão assustador que necessitaram tempo para repor-se. O medo e o assombro os deixaram mudos durante minutos. Judas, o Iscariote, foi um dos mais afetados. Segundo ele, aquele era o sinal que tanto tinham esperado; as luzes das que falou Yeho hanan, e que marcariam o princípio do fim: a iminente chegada do Mesías. Não estava muito desencaminhado... A maioria dos acampados, entretanto, não o viu assim. As centenas de "estrelas", porque disso se tratava para eles, "tinham perdido a ordem estabelecido Por Deus". Mau assunto. Outra desgraça se morava... E a concentração de "luzes" se prolongou toda a noite. Ninguém se retirou às lojas. Os vigias se apostaram novamente no fio da "ferradura", e se mantiveram alertas. Centenas de "luzes"! Algo estava a ponto de ocorrer... Ao amanhecer, desapareceram. E o silêncio foi o proprietário do bosque. As aves não retornaram, e quem isto escreve soube que aquele "movimento" nos céus obedecia a uma razão. Foi a intuição quem advertiu. Já tinha ocorrido em outras ocasiões... Acertei. É obvio, não me movi da Omega. Os planos trocaram. Esqueci, inclusive, o cilindro de aço. Mantive-me atento, e todo o acordado de que fui capaz. Também Abner e os seus se achavam inquietos. Nunca viram algo semelhante. Ardiam em desejos de trocar impressões com o Anunciador, mas Yehohanan seguia sem dar sinais
de vida. Interroguei-o várias vezes sobre o paradeiro do gigante das "pupilas" vermelhas. Abner se encolheu de ombros e se limitou a indicar para o norte, águas acima da Omega. Não iria a seu encontro. Esta vez não... No acampamento só houve um tema de conversação: as "estrelas que corriam", e sua possível relação com a criatura sanguinária dos pântanos. Alguns asseguravam que as "luzes" eram outros tantos diabos, convocados pelo Adam-adom, ante a presença, em seus domínios, do vidente e futuro Libertador. Eram as forças do mal, convocadas para a luta. Outros reafirmaram esta proposta, e acrescentaram que as "luzes" eram a Sekinah, que voltava para seu legítimo trono, o "Muito santo", no Templo de Jerusalém. E os mais audazes, baixando o tom de voz, expressaram seu temor: se o chefe dos "carros", ou Merkavah, que tinham contemplado era o malvado Samael, o anjo das trevas, a luta seria feroz. Não chegaram a nenhuma conclusão, salvo a já citada: a visão não augurava nada bom... Por minha parte, só consegui encaixar uma das peças do irritante quebracabeças: foram as "luzes" as que provocaram a fuga maciça das aves. Os pássaros detectaram os "carros volantes", ou Merkavah, muito antes de que os víssemos... Centenas do Merkavah ou Pára Centenas de "carros ou rodas" capazes de voar! Nada disto se conta nos textos evangélicos. por que? E a noite do sábado 12 se repetiu a cena, e com as "luzes", retornou o medo... Também na primeira vigília, entre as dez e as onze da noite, apareceram centenas de "estrelas", que se deslocaram lenta e majestuosamente sobre a Omega. O sucesso foi idêntico, com uma exceção. Melhor dizendo, com uma suposta exceção... Em minha cabeça ouvi de novo os acúfenos, os mesmos assobios. Depois, enquanto contemplava, absorto e maravilhado, o vôo daquilo" (o que fora), uma voz familiar se dirigiu a quem isto escreve e exclamou: "Mau'AK!" Lembrança que me voltei, em uma reação instintiva e automática. Ali, no claro, não havia ninguém. A gente, advertida, escolheu as pedras negras da
borda. A visão, do basalto, era mais cômoda. E a voz repetiu: "Mensageiro!" minhas imaginações? É possível, mas aí ficou a dúvida. A "voz" (?) era a mesma que ouvi no Firán, durante um dos estranhos "sonhos", quando "vi" (?) a não menos singular "névoa"... "Mau'AK"... Ele me chamava assim. Ele o fez no Hermón. Ele nos chamou "anjos" ou "mensageiros"... Mas possivelmente eram hipóteses. Possivelmente sim, ou possivelmente não... no domingo 13 tudo trocou. Para a hora atravessa (nove da manhã), um novo frente, negro e poderoso, precipitou-se sobre o vale. A chuva não se fez esperar, e na Omega caiu o dilúvio. As lojas foram insuficientes. Algumas famílias levantaram o equipamento e se despediram do Abner, e dos "justos". Os cumulonimbos, altos e escuros, chegaram com vontades, e descarregaram a prazer. A vida no bosque se fez difícil. O barro começou a entorpecê-lo tudo e a gente, desanimada, perguntava, uma e outra vez, pelo retorno do Yehohanan. Abner não sabia o que fazer, nem o que dizer. E eu me replanteé a situação...
14 DE JANEIRO, SEGUNDA-FEIRA
Não voltamos a ver as "luzes". Choveu toda a noite. Não havia forma de proteger-se. O ímpeto da chuva era tal que as lojas terminaram no barro, e os seguidores, fartos, seguiram desfilando para a ponte e o meio-fio que conduzia a Bolota e Bet She'an. Por volta das onze (quinta hora), o número dos acampados descendeu a uma terceira parte. E, como digo, modifiquei os planos. As condições atmosféricas não sofreriam mudança algum, ao menos em uns dias. Não vi com claridade minha situação. Estava-me equivocando, uma vez mais? Meu lugar se achava junto ao Mestre. Convinha retornar ao yam. No Ruppin, com toda probabilidade, encontraria um meio de transporte. Essa mesma noite
podia dormir no Nahum. Ao dia seguinte procuraria o Galileo na próxima aldeia do Saidan. Depois, já veríamos... Quanto ao cilindro, de momento, seguiria no saco, com o resto das pertences. E assim foi. Carreguei o esteira e entrei no guildal, disposto a me despedir. Abner o compreendeu. "Tinha que me ocupar de meus negócios." Mas prometi voltar, como sempre. E em pleno abraço ouvi o sofar. Foi um toque comprido, de melodia contínua, que chamavam teqi'ah. Era o sinal convindo entre o Anunciador e os íntimos: Yehohanan retornava... Apesar da cortina de água, o rosto do pequeno grande homem se iluminou. Seu ídolo havia tornado. Deixei o saco de viagem ao pé da árvore e corri, como todos, para as lajes de basalto da borda. Agora sei. Abandonar o esteira foi uma imprudência... Yehohanan se aproximava pela margem esquerda do Anal, da que eu tinha observado o acampamento e o bosque dos "lenços" pela primeira vez. Caminhava rápido, sem lhe importar o dilúvio. Casualidade? Ao distingui-lo entre as árvores, os "cb", as massas de cumulonimbos, desataram-se e se iniciou uma violenta trovejada. Uma nuvem negra, pançuda e enorme, ficou ancorada sobre a Omega. dela escapavam as culebrinas e os estampidos. Todos nos sobressaltamos. As faíscas elétricas se enfureceram com o bosque, e alguns davidia foram derrubados. Acampado-los, ao redor de um centenar, formaram redemoinhos se sobre as pedras negras, e na borda, protegendo da água com mantos, cestos, madeiras, tigelas, e quanto podia ser útil para esquivar o dilúvio. Vão intento. A água nos impregnou até os ossos... O sofar, afogado pelos trovões, continuou o anúncio, como pôde. E Yehohanan, decidido, com seu acostumado ar de domínio, saltou ao leito, caminhando para nós a grandes pernadas, até que a corrente chegou às coxas. Levava a colméia de cores e os habituais cinto negro de couro, e o saq, ou taparrabo de pele de gazela, com o zurrón branco pendurado em bandoleira. Um detalhe me chamou a atenção.
Na mão direita sustentava o saco negro e pestilento que continha seu grande secreto, o pergaminho que batizei como o "323", com a localização dos supostos exércitos ao serviço do Mesías e do Yavé, segundo o Anunciador. Que eu soubesse, era a primeira vez que mostrava em público o referido saco. Conheciam Ab ner e os "justos" o singular megillah, ou cilindro de pele de asno selvagem? Esta vez, uma das faíscas elétricas desenhou um arco sobre o Anunciador e foi cair entre as árvores da borda esquerda do Artal. O estampido quase nos jogou no chão. E um pequeno incêndio marcou o lugar do impacto. Yehohanan não se deteve. Acampado-los, cegados pelo resplendor, e espantados pela descarga, retrocederam entre gritos. Só Abner e alguns dos discípulos resistiram com firmeza. Em segundos, as pedras negras de basalto ficaram médio vazias. O Anunciador se aproximava das lajes... A chuva terminou sufocando o fogo, e uma coluna de fumaça negra se retorceu com dificuldade. Mas, antes de que acertássemos a nos recuperar, uma nova descarga partiu daquela nuvem sinistra -cada vez mais baixa e espessa-, e pulverizou duas das taças dos davidia que se elevavam a nossas costas. O assobio no tubo de vazio provocado pelo raio, a luz branca, insuportável, e o estampido, quase simultâneos, fizeram rodar os já diminuídos ânimos, e todos fugiram. Eu, o primeiro. Quando me detive, só Abner continuava em pé sobre uma das pedras plainas da borda. Efetivamente, era um ari, um leão, segundo os judeus. O trovão me deixou temporalmente surdo. Mas dava graças ao céu. Pôde ter sido muito pior... Yehohanan saltou sobre o basalto. Depositou a colméia de cores na pedra e dedicou um tempo a observar o bosque, e aos fugidos. Abner não respirava. Depois, lentamente, com seu habitual teatralidad, foi levantando os braços para a grande nuvem negra. Aproximei-me, devagar. Outros discípulos, mais ou menos recuperados, fizeram o próprio. Yehohanan seguiu na mesma postura, com o rosto encarado à tormenta, e os olhos fechados. A chuva, e os relâmpagos, não pareciam lhe afetar. As
culebrinas se aconteceram, iluminando as largas tranças loiras, quase brancas, agora chorreantes, ao igual à correosa pele e o saco que empunhava na mão direita. Assim transcorreu um minuto. Possivelmente mais... Os íntimos se olharam entre si, sem saber o que pensar. E a chuva começou a ceder. As faíscas se espaçaram, e se fizeram mais longínquas. O Anunciador não se moveu. E assim discorreu outro minuto. Abner, interpretando a atitude de seu ídolo como o preâmbulo de algo importante, solicitou calma com as mãos. Os "justos" assentiram e aguardaram, sempre atentos ao gigante de dois metros de altura. Abner estava no certo. Algo ia acontecer, mas não o que imaginávamos... E os acampados, ao verificar que as descargas se afastavam, e que a chuva se amansava, associaram o debilita minto dos "cb" com a presença do vidente. Então, entusiasmados, correram para as plataformas de basalto, fazendo coro o nome do Yehohanan, como "dominador das tormentas". O Anunciador não se alterou. E ali prosseguiu, com os braços em alto e os colares de conchas marinhas oscilam dou e tilintando timidamente, a cada golpe de chuva e de vento. Verdadeiramente, era um homem estranho... de repente, ouvimos sua voz rouca e quebrada. O silêncio foi imediato. -Sabem que o espírito de Deus está sobre mim? Todos olhamos ao alto, impressionados. A enorme nuvem continuava sobre a Omega. Nesses instantes, sinceramente, não caí na conta. Como fazê-lo? Como imaginar algo tão inexplicável e fora do comum? Deixou correr os segundos e permitiu que o temor descendesse sobre aqueles infelizes. Depois baixou os braços com lentidão, hipnotizando aos seguidores. Abner e o resto ressuscitaram. achavam-se novamente ante o Yeho hanan, o triunfador. -Ele me ungiu!... Sou dele!... Sou do!... E o vidente iniciou um de seus habituais sermões, semeada de censuras e severas admoestações. Nada novo para quem isto escreve... O me enviou para anunciar a boa nova aos pobres... Estou aqui para apregoar a liberação dos cativos...
Fez uma estudada pausa, e clamou: -Estou aqui para anunciar a ira do Santo! Como era previsível, parte do centenar de homens e mulheres que se reuniram na borda replicou com entusiasmo. -É o dia da vingança! Roma sabe! E os acampados estalaram: -Vingança!... Vingança! Abner, eufórico, animou à concorrência. -Vingança!... Vingança contra os kittim! Quase tinha esquecido as idéias e pretensões do Anunciador. Yavé conduziria os exércitos contra os ímpios, contra Roma, e contra os kittim, seus soldados. Deus retorna no fogo! -prosseguiu, ante o de lírio geral-. Sua cólera é minha cólera! Nada escapará a seu julgamento! Nada nem ninguém! Onde te esconderá, maldita Roma? E aconteceu algo estranho... Uma coincidência? Não sei o que pensar... Com as últimas palavras -"maldita Roma"- retornou a tormenta. E as faíscas se precipitaram de novo sobre o bosque. Em um primeiro momento, desconcertados, os seguidores emudeceram. Depois reagiram e tomaram as descargas e os raios como uma ratificação dos céus. "O Santo benzia a seu profeta." E ao igual a ocorreu no vau das "Colunas", a gente, fora de si, exigiu a morte do invasor: -Mot!... Mot! (Morte.) Yehohanan soube aproveitar a onda de entusiasmo, e arrebitou: -Na hora de minha desforra!... Assim fala o Santo! Pisotearei aos povos em minha ira! Pisarei-os com força e farei correr o sangue pela terra!... Deus é grande! Eu sou seu profeta! Então, hasteando o saco negro como uma lança, gritou: -A hora da Sekinah chegou! O provocou tudo isto, e o tem feito com verdade e justiça! Tem-no feito por nossos pecados!... Sim, pecamos, e obrado inicuamente, nos afastando de ti! Sim, muito pecamos! Não demos ouvido seus mandamentos! Por isso já está a tocha na base da árvore! Os exércitos partirão breve!... Arrepentíos! Suponho que nenhum dos pressente soube, com certeza, a que se referia. Ninguém tinha contemplado o pergaminho da "vitória"...
E continuou citando ao Daniel, a sua maneira, como sempre... Depois tocou o turno ao Isaías: A riqueza das nações comerão!...  Tudo será seu, porque o Santo dirige os exércitos!... Arrepentíos! Procurem a paz!... Do contrário, esperem a espada! Todos serão degolados!... E disse o Santo: Quem é esse que vem do Edom, do Bosrá, com a túnica tinta de vermelho?... Sou eu, que falo com justiça!... E por que está vermelho seu vestido?, perguntou ao Santo. E respondeu: Porque pisei com ira aos que não seguem minha lei, e seu sangue salpicou minha vestimenta... É o dia da vingança! Os seguidores rugiram. Já não importava o dilúvio, nem aquele céu negro e ameaçador. Yehohanan o tinha obtido novamente. O Mesías era o libertador do Israel, que esmagaria a cabeça do invasor. Não devia esquecer as palavras do Anunciador, nem tampouco o ardor de seus seguidores. Algumas destas palavras foram premonitorias: cumpririam-se antes do que ninguém podia suspeitar... Premonitorias? Sim, mas não... O "sermão" continuou na mesma linha. Yavé, o Santo (?), cortaria o pescoço de quantos não admitissem a supremacia da nação judia. Roma estava perdida, segundo Yehohanan. Em soma: nada novo. Aquele era o precursor do Jesus do Nazaret? que abriria o caminho a predicación do amor? Disse-o, e o sustento: não podia compreender, a não ser que a história e os crentes tenham confundido os términos... Mas deixemos que os fatos falem. -Sakak! O Anunciador sabia medir. Sabia em que momento devia lançar a expressão chave, a que mobilizava a seus homens, e os preparava para a imersão nas águas. Os seguidores, avivados, estavam na palma da mão do gigante das "pupilas" vermelhas. -Baixem à água! -repetiu Abner, ao tempo que fazia um sinal aos íntimos-. -Sakak! Era a contra-senha. Os discípulos formaram um "corredor" sobre uma das lajes de basalto e animaram aos acampados a que se aproximassem. que o desejasse, que tivesse aceito a Deus em
seu coração, que estivesse de acordo com a prédica do Anunciador, podia entrar no rio e desencardir seu corpo. Era a cerimônia de imersão nas águas. -Sakak! -gritou Yehohanan de novo-. Quem como eu? E saltou ao leito, preparando-se para a purificação dos fiéis seguidores. O saco negro ficou ao pé da colméia de cores. O do sofar cumpriu com sua parte, e iniciou uma série de toques curtos -uma sevarim-, com notas rasgadas, que devia coincidir com cada imersão (só com os varões). Acampado-los se precipitaram para a pedra, e os íntimos, como era habitual, tiveram problemas para apaziguá-los e ordená-los. Mas muito tinham aprendido naqueles meses de convivência e, finalmente, obtiveram que mulheres e homens guardassem turno em uma larga fila. Todos caminhavam pelo "corredor" formado pelos "justos". Era obrigado. Se alguém tratava de saltar a ordem estabelecida, dois dos armados, ao pé do basalto, detinham-no e o devolviam à cauda. Observei uma novidade. Homens, mulheres ou meninos eram revistados ao cruzar entre as duas filas de discípulos. Se alguém levava uma adaga, ou um gladius, era-lhe retida até depois da imersão. O conselho tinha sido sugerido pela Belsa -Arrepende-te? Era a pergunta igualmente estabelecida. O candidato ao "reino" dizia que sim embora, na maior parte das ocasiões, não dispunha de tempo para abrir a boca. Em todo caso, para fechá-la, e a toda pressa, com o fim de não tragar água. Yehohanan, seguindo o costume, não esperava. As enormes mãos caíam sobre os ombros e empurravam violentamente, inundando ao aspirante. O resto, então, entoava a palavra neqe (limpo), e o Anunciador atirava do confuso e assustado seguidor, extraindo-o do rio, e apartando-o. -Seguinte! Como já disse, se a pessoa que desejava desencardir-se era uma mulher, Yehohanan nem sequer perguntava... A chuva continuou, implacável. A verdade é que não era o melhor momento para uma cerimônia como aquela. antes de entrar no Artal, a gente já estava empapada, e mais que "desencardida"... A manhã era tão rude que nem os vendedores
fizeram ato de presença. Cansei-me. Já tinha visto o necessário. Retornaria ao lago, com o Mestre. Esta vez, sim... Dava meia volta e me dirigi ao guilgal, com o fim de recolher o saco de viagem. Podiam ser quase as doze da manhã. Com um pouco de sorte dormiria na estalagem do Ruppim, ou possivelmente na da Yardena... E foi à luz de uma das faíscas elétricas quando os vi. Ao princípio os confundi com dois dos discípulos, mas não... Todos se achavam a minhas costas, no rio. Procuravam entre o equipamento. Foi instantâneo. Compreendi: eram ladrões. Acreditei reconhecer a um deles. Formava parte da tropa de vendedores que perambulava pelo acampamento quando cheguei a Omega. Pensei no esteira, nos fármacos e no cilindro de aço. Foi uma imprudência, sei... Gritei. Corri entre as árvores, e tentei chamar a atenção dos reunidos sobre as pedras de basalto. Foi inútil. Entre os toques de sofar, trovejada-las e os gritos dos seguidores, minhas reclamações se perderam em um nada. Os indivíduos, entretanto, sim se precaveram de minha presença. Soltaram algo, e fugiram como lebres. Ativei o laser de gás e disparei sem muito convencimento. O impacto deixou um rastro em um dos troncos. Achava-me longe, e sem as "crótalos". Optei por não repetir o disparo. Os sujeitos se separaram. Alguém se perdeu na arvoredo, em direção à ponte, e o segundo escolheu o grupo que participava da imersão. Ao pouco ficou camuflado entre os que esperavam turno para entrar nas águas. Ao ingressar no círculo de pedras, respirei com alívio. O esteira estava intacto. Não faltava nada. Nesta oportunidade tive sorte. Outros sacos apareciam revoltos... Corri para a borda, à busca do ladrão. O empenho foi contraproducente. A gente, coberta com os mantos, cestos, etc., reagiu como era lógico e natural. Ao descobri-los, protestaram, e só recebi insultos e maus modos. Alguns, inclusive, apartaram-me com violência, pensando que tratava de penetrar. E nisso, enquanto me trabalhava em excesso na localização do trapaceiro, ao chegar às proximidades do "corredor" formado pelos íntimos do
Yehohanan, repeti a manobra de retirar o manto de um dos seguidores. Ambos nos olhamos, e ficamos perplexos... Não o tinha visto com antecedência. Que fazia naquele lugar? Sorriu-me, e respondi da mesma maneira, acredito... A chuva empapou rápido os cabelos e a barba. Não falamos. E consciente de que o dilúvio o incomodava, cobri-o novamente com o pesado roupão de franjas verticais, típico nele. Era Santiago, o irmão do Mestre! Como digo, fiquei tão confuso que não perguntei. Era o último que esperava na Omega... Era ele, não cabia dúvida, com sua grisalha e povoada barba, e a cinta negra de tecido na frente, sujeitando o cabelo. Vestia a habitual túnica branca, com a bandagem vermelha, e o inseparável gladius. Fez-me um sinal, e indicou para os que lhe precediam na fila. Não entendi. Tampouco esclareceu nada. Continuou caminhando para os discípulos do Anunciador, e quem isto escreve permaneceu sob a chuva, como um perfeito estúpido. Nesses momentos não fui consciente do que acontecia, e muito menos, pelo que estava a ponto de ocorrer... Esqueci ao ladrão, é obvio. Finalmente, o Destino soube dirigir meus torpes passos. Não sei como o fiz, mas me separei da fila e fui situar me junto à corrente, muito perto do Anunciador. Desejava contemplar a cerimônia de imersão do irmão do Jesus. Não conseguia entender por que tinha acudido ante o Yehohanan. Em algumas ocasione, na "casa das flores", ouvi suas palavras sobre o Mesías, e também sobre o gigante das sete tranças. Sabia de sua admiração por ele. Tinha escutado atentamente à Senhora, e suas recriminações por não secundar a ação do Yehohanan, seu parente longínquo, mas aquilo só eram palavras... Santiago estava ali, disposto a ser batizado. Santiago conhecia o pensamento de seu Irmão. Tinha-lhe ouvido falar muitas vezes de um Deus totalmente oposto ao que pregava o Anunciador. Como era possível que tivesse baixado ao vale do Jordão? Significava isto um definitivo enfrentamento com o Jesus?
Uma vez mais, equivocava-me... Yehohanan seguiu com o trabalho. A cada toque de sofar, o candidato ao "iminente reino do destruidor de dentes" saltava ao leito e, com a água pela cintura, situava-se frente ao gigante das sete tranças. E lhe chegou o turno a um indivíduo, também alto e corpulento, que se cobria com um manto cor veio. por detrás observei ao Santiago. Estava a ponto de "baixar à água". Só o separavam do Artal o mencionado homem e outro varão, algo mais baixo, igualmente embuçado com o roupão. Outra forte descarrega elétrica desviou minha atenção. A faísca partiu da grande nuvem negra que presidia o meandro e se propagou, vertiginosa, para a zona do guilgal. A seu passo, a chuva se iluminou, e foi varrida literalmente, golpeando com fúria a superfície do rio e a primeira linha de árvores. O estampido me encolheu o coração. Todos, instintivamente, levamos as mãos à cabeça, como se aquele gesto fora a nos proteger da mortífera energia (provavelmente, mais de um milhão de volts). Foi então quando emprestei maior atenção ao chamado indivíduo. Era o único, junto ao Yehohanan, que não tentou proteger-se. Tinha entrado no leito do rio, e esperava, imóvel, a que concluíra a imersão do que lhe precedia. Vestia uma túnica vermelha e, como digo, protegia-se do dilúvio com um manto. Não pude ver a cara, mas os movimentos me resultaram familiares. -Neqe! (Limpo.) O sofar se abriu passo entre o pertinaz tamborilar da chuva contra seguidores, árvores, e contra o não menos sofrido afluente, e anunciou a seguinte cerimônia de imersão. O homem avançou para o Anunciador... Acreditei reconhecê-lo. Belsa! Disseram-me que estava ausente... Mas por que descendeu ao rio? Que eu soubesse, fazia tempo que tinha sido desencardido pelo Anunciador... Que estranho! Be1sa era um dos trinta e seis "justos". Já estava consagrado. por que se submetia à purificação pela segunda vez?
de repente, o homem do roupão de cor veio se deteve. E, lentamente, levantou as mãos para o embuço. Essas mãos! Não eram as do persa! Deixei cair o saco de viagem sobre a pedra negra e lhe jorrem e assisti, atônito, ao que, sem dúvida, ia ser o momento mais importante daquela segunda-feira, 14 de janeiro, do ano 26 de nossa era. Calculo que o sol se achava no mais alto, como não podia ser menos... Essas mãos! Eu as conhecia bem! E o Homem retirou o manto... Deus bendito! Era Ele! Era o Mestre! achava-se no Artal, a ponto de ser desencardido (?) (que estranha resulta a palavra) pelo Yehohanan... Lembrança que tive um primeiro pensamento: "Não compreendo... " Assim era. Não compreendia o porquê da presença do Jesus naquele cerimonial. Não importava. 14 de janeiro! Esqueci-o! O velho Zebedeo estava no certo, e também Bartolomé, o Urso do Caná. Acertaram... Encontrava-me ante o que denominam o "batismo" do Mestre no Jordão. Não era o Jordão, mas isso, agora, carecia de importância. Os céus, suponho, também contiveram a respiração. Só se ouvia a chuva. As faíscas elétricas se limitaram a iluminar o interior dos cumulonimbos, retumbando na lonjura. O Anunciador aguardou. Jesus, entretanto, não se moveu. Seguia com a corrente pela cintura, a pouco mais de dois metros do Yehohanan. Quem isto escreve, movido pelo Destino, situou-se no fio do basalto, muito perto, com o Mestre a minha direita e o Anunciador à esquerda. Nem mesmo propondo me tivesse obtido isso uma posição tão vantajosa... Incrível Destino! Definitivamente, Ele sabe... E sorri para meus adentros. Era a segunda vez que confundia ao Galileo com a Belsa... Jesus luzia a habitual cinta de lã sobre a frente, típica nele quando empreendia as viagens. Os cabelos e a barba jorravam água. Tinha o olhar fixo em seu parente (suas respectivas mães eram segundas primas).
Observei ao Anunciador e compreendi que não o tinha reconhecido. Como digo, limitou-se a esperar. É obvio, não era normal que o aspirante ao "reino" se atrasasse. Nada mais "baixar à água", o candidato se aproximava do gigante e este o afundava sem misericórdia. Se a memória não falhava, fazia treze anos que não se viam. A última reunião, no Nazaret, foi um fracasso. Como já expliquei em seu momento, Jesus rechaçou as propostas do impetuoso Yehohanan. Tinham dezoito anos. Até certo ponto, era lógico que não o reconhecesse. A chuva não ajudava, e treze anos era muito tempo... Então, o Mestre, sem deixar de olhar ao Yehohanan, aproximou-se um passo. Como explicá-lo? Eu tinha visto esse olhar anteriormente... Sim, foi no kan do Assi, quando o Mestre limpou o rosto do Aru, o negro tatuado. Foi um olhar de infinita ternura. Como transmiti-lo? Não é fácil... Jesus envolveu ao gigante em sua misericórdia, e o acariciou com aqueles indescritíveis olhos cor mel. Não sei como, mas Ele sabia quem tinha diante, e o que lhe reservava o Destino. Acredito que o Mestre conhecia muito bem a situação de seu parente e, sobre tudo, seu triste futuro... Minto. Quem isto escreve sim sabia como o fazia. Era um Homem-Deus. Era um Deus feito homem, consciente de nossa pequenez e comovido ante nossa ignorância. Agora sei. Esses instantes, frente ao Filho do Homem, foram os mais gloriosos do Yehohanan. Mas ele não soube... Finalmente, o Anunciador o reconheceu. Mas, longe de abraçá-lo, ou de recebê-lo com alegria, retrocedeu. Assombroso! Yehohanan, o indômito, sentiu medo! Não teve ocasião de fugir, se é que esse foi seu pensamento. O Mestre iniciou um gradual e acolhedor sorriso, impossível de resistir. E foi aproximando-se do desconcertado pregador da "mariposa" no rosto. O medo, acredito, escorregou com a chuva. O sorriso do Jesus não era negociável... E obteve o que parecia impossível. Sujeitou ao Yehohanan com um abraço invisível.
Muito poucos se precaveram do gesto do vidente. Provavelmente, ninguém soube de suas intenções de fugir. -Você?...por que baixas você à água? Yehohanan cedeu, e perguntou com sua voz áspera. O Mestre intensificou o sorriso, e replicou com segurança: -Para ser batizado... Abner, e alguns dos íntimos, intrigados, emprestaram atenção. Não era normal que um candidato ao "reino" dialogasse com o vidente. A resposta do Jesus surpreendeu, ainda mais, ao das "pupilas" vermelhas. -Mas sou eu quem deve ser desencardido por ti... Não saía de meu assombro. O tom do Anunciador, sempre imperativo e altivo, caiu ao nível da súplica. O que lhe acontecia? O Filho do Homem, então, deu-lhe asas: -Tenha paciência, e atua como te peço, porque convém que demos exemplo a meus irmãos... Seus irmãos? Estavam ali, na Omega? Só tinha visto o Santiago... E Jesus concluiu com algo que me desarmou: Todo mundo deve saber que chegou a hora do Filho do Homem... Levantou os olhos para o cumulonimbo e a chuva acariciou seu rosto com especial doçura. Isso me pareceu... Sua hora? Segundos depois, sem deixar de olhar o escuro "cb", proclamou: -Agora é o princípio!... Agora, o final é o princípio! E da nuvem, como se alguém estivesse presenciando a cena, partiu outra descarga, que se ramificou sobre a Omega. Mas ocorreu algo muito estranho. O relâmpago foi azul, e não se produziu a lógica detonação. Foi uma faísca elétrica (?) impossível... O final é o princípio? Eu sabia dessa frase... E recordei. "Omega é o princípio"! A lenda gravada nos obeliscos dos "treze irmãos", nas proximidades do Yeraj! Achava-me no meandro Omega! Ali arrancava tudo! Omega, a última letra do alfabeto grego, o final, simbolicamente falando, era o princípio! Possivelmente não tão simbólico... Se aquela era sua hora, então, tudo estava por começar. Mas não tive tempo de aprofundar na transcendental frase. Só reconheci que "alguém", muito tempo atrás, gravou umas palavras proféticas na base
de aprovisionamento. Investigaria-o, quando chegasse o momento. Yehohanan elevou o braço esquerdo e reclamou a atenção do discípulo que carregava o sofar. E ordenou que voltasse a entoar uma sevarim, a nota quebrada e melancólica que anunciava cada imersão nas águas. Todos, com o Abner à cabeça, ficaram perplexos. O que acontecia? por que o vidente solicitava um segundo toque para o mesmo aspirante? E se fez o silêncio. A chuva, inclusive, moderou sua queda. Isso percebi. E Omega só teve olhos para aquele Homem... Yehohanan depositou as pontas dos dedos sobre os ombros do Mestre e, sem mediar palavra, foi empurrando-os brandamente. Eu diria que quase não tocou ao Jesus. O Mestre fechou os olhos e se deixou cair, muito devagar, afundando-se na corrente do Artal. Imediatamente, os cabelos do Galileo flutuaram nas águas. E umas tímidas ondas marcaram a presença do Homem-Deus sob a superfície. E foram afastando-se, apagando os breves impactos das gotas de chuva. Depois, vi flutuar parte do manto. Somei cinco segundos. O Anunciador, com os olhos muito abertos, aguardava ansioso o reaparecimento do Jesus. E o Mestre retornou, e o fez com idêntica lentidão. Mas seu rosto era outro. Era o mesmo, mas não era o mesmo. Havia uma luz que o cobria... Como explicá-lo? Impossível. Possivelmente só foram minhas imaginações. E durante outros cinco ou dez segundos, não sei com segurança, o Filho do Homem continuou imóvel, com os olhos fechados e o rosto dirigido aos céus. A chuva, como digo, caía com respeito, como se não desejasse cair. Então, ao seguir a direção apontada pelo rosto do Mestre, voltei a ver "aquilo". Na base do cumulonimbo, na nuvem negra e apertada que parecia governar sobre a "ferradura", distingui outro relampejo, mas igualmente azul. Eram culebrinas. Isso era evidente, mas por que azuis? E meus olhos não souberam onde olhar. Exploravam o interior da singular massa nubosa e retornavam depois ao Galileo. Não acredito me equivocar se afirmar que a "luz" (?) que banhava seu rosto era da mesma cor que os relâmpagos (?) do "cb":
um azul "mutável>'. E me explico (?): um azul que se movia, que separava da pele (por dizê-lo de algum jeito), e que o fazia "palpitando". E a cada "palpitação", ou impulso, o azul variava de tonalidade. Tão logo era claro como a água marinha, como turquesa ou azul submarino e, inclusive, com irisações violetas. Eu não podia sabê-lo. Esses foram uns instantes especialmente sagrados para o Homem-Deus. E digo bem: especialmente sagrados... O me confirmou isso depois, caminho do Beit Ids. Mas não adiantemos os acontecimentos... de repente, tudo voltou para a "normalidade", Ou, para ser exato, a "minha normalidade". Para falar a verdade, ninguém parecia ter visto a "luz" que "emitia" (?) o Mestre, e tampouco os relâmpagos azuis no interior do "cb". E o do sofar, alheio a quanto acontecia, ao comprovar que o "aspirante" já tinha sido desencardido, emitiu um novo toque, autorizando a entrada no Artal do seguinte candidato. Era o homem que precedia ao Santiago. Avançou até o Anunciador e, antes de ser submerso, dirigiu um olhar ao Jesus. Este lhe correspondeu com um sorriso. Quem era aquele jovem? Yehohanan, aturdido, afundou-o nas águas. Tampouco perguntou. E ao reaparecer, acampado-los, como tinha acontecido com o Jesus, tampouco fizeram coro o habitual neqe ("limpo"). O Anunciador aparecia pálido. Nunca o tinha visto tão desarbolado... E o jovem foi reunir se com o Mestre, e aguardaram em metade das águas. Era o turno do Santiago. Algum tempo depois, a minha volta ao Nahum, resolvi o enigma da identidade do homem que foi desencardido junto ao Jesus. tratava-se de alguém muito querido pelo Filho do Homem, e do que já me tinham falado. Seu nome era Judas, outro dos irmãos carnais do Jesus. Judas tinha vinte anos. Nasceu em 24 de junho do ano 5 de nossa era. Com a Ruth, minha querida Ruth, era o mais jovem da família. Era conhecido pelo apelido do Hazaq", por seu caráter violento. Durante anos foi um pesadelo para a Senhora, e para seus irmãos. Era agressivo, ególatra e instável. alistou-se nas filas dos zelotas,
disposto a dar sua vida pela independência do Israel. Em uma ocasião foi encarcerado, como conseqüência de uma agressão verbal a um legionário romano. Foi Jesus quem intercedeu por ele. Judas tinha então treze anos de idade. Tinha sido a "ovelha negra", mas, desde fazia um tempo, trabalhava no Migdal, e parecia ter serenado o espírito. Ninguém diria que tinha sido uma tormenta no coração da Senhora, e, especialmente, no do Mestre. Era magro, mais baixo que Jesus, e sempre vestido de negro. Chamava a atenção por seus olhos, de um verde esmeralda luminoso, e pelo nariz, deformada como conseqüência de uma de seus múltiplos briga de antigamente. Os cabelos eram de um negro azeviche, encrespados, e com compridos cachos de cabelo. A barba, desordenada, recordava seus tempos entre os zelotas, ou "patriotas", como chamavam também ao grupo dos violentos ou "ciumentos" pelo Yavé. Foi essa paixão por seu povo a que o levou a vale do Jordão, em companhia do Santiago. Quando retornei ao yam, fui cumplidamente informado. Santiago e Judas desejavam formar parte do movimento que estava nascendo em torno de Yehohanan. Acreditavam no Mesías libertador político, e consideraram que o batismo era obrigado. Mas, antes de dar o passo, Judas quis consultá-lo com o Jesus. Isso ocorreu na sábado, 12 de janeiro, quando me encontrava na Omega. O Mestre solicitou um prazo. Tinha que refletir. E ao dia seguinte, ao incorporar-se ao estaleiro, o Galileo falou com eles. Judas havia posposto o retomo ao Migdal. Queria conhecer a opinião de seu Irmão. Foi então quando Yu, e o resto dos trabalhadores, souberam de sua decisão: "Tinha chegado sua hora." E Jesus, pouco antes da nona (três da tarde), desfez-se do avental de couro, e das ferramentas, e partiu com o Judas e Santiago ao encontro do Yehohanan... Fizeram noite na Yardena, a metade de caminho. O resto, já o conhecia... Pouco faltou para que este torpe explorador não coincidisse com eles naquela chuvosa manhã da segunda-feira. Desde não ter aparecido o Anunciador, o mais provável é que não tivesse sido testemunha do que fui e, o mais grave, teria perdido
a grande oportunidade do Beit Ids. O Destino, claro... Santiago foi desencardido, e à mesma velocidade que Judas. Yehohanan não fez perguntas. Quando Santiago emergiu, o gigante das sete tranças loiras interrompeu a cerimônia de "baixar à água". Abner acudiu pressuroso. O que ocorria? Yehohanan sussurrou algo ao ouvido do pequeno-grande homem e este, veloz, saltou de novo sobre as pedras negras e comunicou a quão seguidores as purificações se reatariam ao dia seguinte. No fundo, a maioria o agradeceu. A chuva, embora mais prudente, seguia sendo um tortura. Yehohanan se removia nervoso na água. Seu comportamento, como digo, era mais estranho do habitual. Olhava ao Mestre, e golpeava a superfície do rio com a palma da mão. Depois avançou para o fio do basalto sobre o que me encontrava e me observou intensamente. Senti medo. Mas não disse nada. Foi uma situação tensa que, por fortuna, cedeu em questão de segundos. Sempre ficou a dúvida: quais foram os pensamentos do vidente nesses instantes? E ocorreu... Não sei em que ordem aconteceu. Trato de rememorá-lo, mas a mente humana não está lista para assumir sucessos dessa natureza. Os sentidos se extraviam, saturam-se e, finalmente, rendem-se. Possivelmente foi tudo simultâneo. Quem sabe... Tentarei ordená-lo, embora, insisto, não acredito que fora, exatamente, como me disponho a contá-lo. O hipotético leitor destas memórias saberá compreender minhas limitações. Só sou um piloto... Não tinha transcorrido nem um minuto, desde que Abner suspendesse a cerimônia de "baixar à água". Quem isto escreve continuava no bordo da laje de pedra, frente a um Anunciador nervoso, quase desenquadrado, me contemplando com aquelas embaraçosas "pupilas" vermelhas. Algo mais à frente, na água, Jesus e seus irmãos conversavam. Não posso dizer do que falavam. As vozes eram menos que um murmúrio. A chuva começava a encorajar-se de novo. Na borda, Abner e os íntimos se esforçavam por transmitir a notícia do adiamento, acalmando aos escassos, mas ruidosos,
inconformes. Supus que o nervosismo do Anunciador podia dever-se, em parte, ao misterioso fenômeno da "luz" azul no rosto do Mestre. Yehohanan estava ali, mais perto que ninguém. Teve que vê-lo. Além disso, em certo modo, o sonho de reunir-se com o suposto Mesías se cumpriu. Jesus tinha baixado até ele, ao fim. Ou existiam outras razões para tão anormal comportamento? Era seu desequilíbrio o que causava aquele desassossego? Pressentia algo? Acredito que sim. Yehohanan o pressentiu... Ouvimos um som. Algo assim como um "clang", idêntico ao que pude ouvir no arroio do Firán. Os quatro homens que se encontravam no rio elevaram as cabeças. Todos de uma vez, e na mesma direção: para o cumulonimbo no que tinha visto os relâmpagos azuis. Eu fiz outro tanto, mas não distingui nada estranho. Então (?) chegou a ausência de sons, também similar ao já vivido na referida garganta do Firán. Foi, possivelmente, o que mais me assustou. Via os acampados. Distinguia perfeitamente seus gestos, e o movimento dos lábios, mas não ouvia as vozes, nem tampouco o ruído da chuva ao precipitar-se sobre o bosque, ou sobre o ArtaL Me pus em pé, e inspecionei os rostos do Jesus e de seus irmãos. O Mestre tinha os olhos novamente entreabridos, e a cabeça ligeiramente levantada para o "cb". Santiago e Judas apareciam tão desconcertados como este explorador. Quanto ao Anunciador, a verdade é que não me fixei. Não conseguia explicá-lo. Era como se os sons naturais da Omega tivessem sido absorvidos (?) e, em seu lugar, ficou o vazio (?). Mas não... Essa tampouco era a explicação. A escassos metros, Abner falava e gesticulava, e os acampados que não estavam de acordo com a suspensão replicavam e, a julgar pelas maneiras, faziam-no a gritos. Eles, obviamente, ouviam-se entre si. por que nós não? Então (?), a base da grande nuvem negra se voltou azul. Não tenho palavras. Melhor dizendo, as palavras não me ajudam... E desse intenso azul celeste, vibrante, melhor dizendo, lhe pulsem, desprendeu-se (?) uma "chuva", igualmente azul, perfeitamente distinguible da chuva normal. E nos empapou. Então, tudo se voltou azul: as roupas, o rio, as pedras negras
de basalto, os cabelos, a pele... Pensei em uma recaída. Possivelmente estava sendo vítima do mal que nos afligia... Mas não. Judas e Santiago contemplaram suas mãos, e também as vestimentas, e moveram os lábios, mas suas vozes não saíram das gargantas. Eu, ao menos, não as ouvi. Eles viam quão mesmo eu. Era uma "chuva" azul! Jesus não se moveu. Seguiu com os olhos fechados e o rosto dirigido aos céus. A "chuva" azul o tinha banhado, como a seus irmãos, ao Yehohanan e a quem isto escreve. Olhei aos discípulos, mas seguiam ao seu. A "chuva" não os alcançou. Só "chovia (?) em azul" em torno dos cinco que nos encontrávamos nas proximidades do basalto. Sei que parece de loucos... E entre a "chuva" -não posso dizer se partiu do "cb"- vi (vimos) uma pequena "esfera" (?) luminosa, também azul, mas em uma tonalidade safira, com um diâmetro não superior a uma mão fechada. Descendia rápido, e foi estacionar se sobre a frente do Mestre. Jesus não abriu os olhos. Ato seguido (?), a "safira" procurou o peito do Galileo, e ali se manteve durante décimas de segundo (?). Depois, não sei como, perdeu-se, ou desapareceu, no interior do tórax do Jesus do Nazaret. O Anunciador, apavorado, subiu pelo fio das lajes e foi refugiar se depois da colméia de cores, agora totalmente azul. Tinha o rosto decomposto, e gemia. Isso me pareceu. E imediatamente (?), nada mais desaparecer (?) a esfera de cor safira, ouvi uma voz (?). Melhor dizendo, ouvimo-la... Foi o único que acertei para ouvir nesse lapso de tempo que, é obvio, sou incapaz de calcular. Não sei se transcorreram segundos, ou minutos, embora isso pouco importa... Era uma "voz" que me atreveria a definir como claramente feminina. Sim, a voz de uma mulher, possivelmente jovem (?). Olhei ao alto, à base azul do cumulonimbo, mas não vi nada. De onde procedia? Sinceramente, ignoro-o. Só posso dizer que parecia brotar de todas partes, e de nenhuma. Era como se cada átomo falasse. E para ouvi-la reconheci a "mensagem"...
meu deus!, o que estava passando? "Omega é o princípio!" E a "voz" se apagou. Só o disse uma vez: "Omega é o princípio!" A lenda dos obeliscos... O que era todo aquilo? por que nesses instantes? De quem era a voz? A quem se dirigia? Evidentemente, só havia um protagonista... Jesus abriu os braços e prosseguiu com a cabeça levantada para a misteriosa nuvem (?). Então moveu os lábios. Parecia falar, ou rezar, mas não pude ouvir o que dizia. A chuva azul se foi dissipando e, pouco a pouco, extinguiu-se. Por último (?), o azul da base do "cb" se foi fazendo mais claro, até transformar-se em um branco intenso, difícil de olhar. Era como um sol, oculto na grande nuvem. E vi como o "cb" se agitava, como se um vento impetuoso aninhasse em seu seio. Nesses incríveis momentos, ignoro por que, veio-me à mente uma frase do Êxodo (20, 18) em que se narra como o povo do Israel ouvia os trovões e via uma grande "luz" no interior da nuvem, quando se achava ao pé do monte Sinaí. Era Yavé, segundo os judeus. Yavé, dentro de uma nuvem. Yavé, entre luzes, relâmpagos e trovões. Que coincidência! E dessa "nuvem", rezava outra tradição oral feijão, partiam as palavras de Deus, "como chuva luminosa", e se faziam visíveis ao povo. Eram "palavras" que brilhavam e que podiam ser ouvidas. "Palavras luminosas", como as do homem de meu sonho, em Salem. Assim foi escrito pelo Isaías (52, 8): "Com seus próprios olhos verão o YHWH "que volta para o Sión." Muitas coincidências... E digo que ouvimos a "voz" porque também os irmãos do Jesus e o aterrorizado Anunciador ouviram algo. Não aconteceu o mesmo com o Abner e o resto. Nada ouviram, e nada viram. E, súbitamente, como arrancou, assim voltamos para a normalidade. O Mestre continuou com os braços elevados, agora mudo, e com os olhos fechados. Sua face apresentava uma expressão serena, e me atreveria a dizer que radiante. Poucas vezes o vi tão... feliz?, consciente de seu poder, de sua origem, e de sua natureza divina? Todas estas interrogantes poderiam estar acertadas. Era o
mais próximo ao rosto de um Deus, se é que Deus tem exterior... Achava-me tão afligido pelo visto e o ouvido, que permaneci sobre a pedra, entre a incerteza e o medo, sem saber o que partido tomar. Santiago e Judas reagiram antes que eu. Vi-os gritar e gesticular, indicando para o céu, para suas vestimentas, e para seu Irmão. Compreendi que não era o único louco... Falavam de uma voz, mas não ficavam de acordo. Discutiram. pisavam-se nas palavras. Estavam fora de si... A minha volta ao yam, depois da inesquecível aventura nas colinas do Beit Ids, Santiago e Judas, mais acalmados, relataram-me o vivido naquela não menos indelével manhã de 14 de janeiro na Omega. Reconheceram que a "voz" podia ser a de uma mulher, mas, como digo, não estiveram de acordo no manifestado por sorte "voz". Falou em hebreu e, segundo Santiago, disse o seguinte: "Este é meu filho, muito querido, em quem me agrado. " Para o Hazaq (Judas), ouvido-o no Artal foi distinto. A "voz" expressou: "Do Nome nasceu o fogo do final." Duvidou. Não recordava se a "voz" havia dito "fogo" (labá) ou possivelmente "branco" (labán). Insisti, mas, como acontece com freqüência entre as testemunhas de um mesmo sucesso, as versões não coincidiam. Também eu ouvi "algo" diferente... E só tinham transcorrido dois meses desde aquele 14 de janeiro... O que posso pensar dos textos evangélicos, escritos muitos anos depois da morte do Galileo? Ao Yehohanan não consegui lhe tirar uma só palavra. Ninguém o conseguiu. O ouviu igualmente a "voz", mas o fato de que pudesse proceder de uma mulher o desarmou. Deus era varão. Assim o estimava cento por cento dos judeus. Era inaudito que uma voz feminina fora "porta-voz" dos céus. Yehohanan só reconheceu que o som era um bath kol, uma "voz celestial", como as que soaram no interior de sua cabeça durante sua permanência no deserto do Judá. Um bath kol procedente dos merkavah ou "carros disso fogo foi tudo. Não acredito me equivocar se afirmar que o Anunciador, a partir desse meiodia da segunda-feira, 14 de janeiro, foi outra pessoa..., mais desgraçada, se couber. A partir dessa data, como irei relatando, tudo se torceu para o gigante das sete
tranças... Por isso deduzi de minhas conversações, e pelo que aconteceu depois, visto-o e ouvido na Omega afetou profundamente ao sempre equilibrado e sensato Santiago, o irmão do Jesus. Acreditava em um Mesías libertador político de seu povo, e quando viu o que viu e ouviu o que ouviu no Artal, convenceu-se: seu Irmão era esse Mesías, tal e como assegurava a Senhora, sua mãe, desde o começo. Respeito à "mensagem" e à "voz", não ficaram claros no coração do judeu. Mas isso era o de menos. O importante é que tinha chegado a hora da sublevação. O Mesías estava ali, com grande poder e majestade. E ele era o irmão do Libertador! Como mínimo, ocuparia um cargo de ministro no novo "reino"... Judas, por sua parte, comungava da mesma opinião, e ia mais à frente: o que tinham visto na Omega era o retorno da Sekinah, a Presença Divina que tinha fugido do "Muito santo", em Jerusalém, quando o Primeiro Templo foi destruído pelos persas do Nabucodonosor (por volta do ano 587 A. J.C.). Como já referi, para os judeus, especialmente para os ortodoxos, a Sekinah era a parte visível do Yavé, a que habitava junto à arca da Aliança. Quando a nação judia foi vencida, essa "luz" foi capturada pelos inimigos do Israel, e só retornaria com a chegada do Mesías prometido pelos profetas. Judas se apoiava no Isaías (56, 7), e também no Jeremías (31, 9), para acreditar que o final dos ímpios estava ao chegar. "Levarei-os a minha montanha Santa -dizia Isaías- e os alegrarei em minha casa de oração." "Virão chorando e os conduzirei consolando-os", rezava Jeremías. Hazaq, o "Violento", interpretava o ouvido na Omega como um claro sinal do retorno do "destruidor de dentes": "Do Nome [Yavé) nasceu o fogo [a destruição] do final [dos tempos do invasor]." Naturalmente, a interpretação do Judas, o "Violento", não era a única. Aquela frase, como teria ocasião de descobrir algum tempo depois, tinha outros possíveis significados, muito mais atrativos... Mas Judas só via o mundo através do cristal da filosofia zelota... Omega representou uma súbita e extraordinária esperança em seus afãs
independentistas. Jesus, como afirmava sua mãe, era o líder, o "fogo do final" que brota, ou nasce, do Muito alto. Assim o tinha manifestado o "ser de luz" a María, antes da concepção do Filho do Homem. Todos, fariseus, saduceos, sábios, pobres e ricos, zelotas e a gente singela deveriam deixar o que seu vissem entre mãos e unir-se aos exércitos que formaria e encabeçaria Jesus. Este era o pensamento do Judas ou "Hazaq". Mas retornemos a Omega... Abner, o pequeno-grande homem, precaveu-se imediatamente da singular atitude de seu ídolo, acurrucado detrás da colméia de cores. Foi em seu auxílio, e comprovou que gemia, assustado. Outros discípulos se aproximaram e se perguntavam, entre si, o que tinha ocorrido. Abner, então, reparou no Santiago e no Judas, que continuavam discutindo e gesticulando em metade das águas. foi para eles e os interpelou. Acredito que nem o viram. Os irmãos seguiram enredados na discussão, e Abner reclamou a presença dos íntimos. Ao pouco, aquilo era um manicômio. Abner e os discípulos não entendiam: A que chuva azul se referiam? Do que falavam? O que era isso de uma luz de cor safira? Tinha entrado no peito do Mesías? Quem era o Mesías? por que Yehohanan tremia de medo? O que lhe tinham feito? Era inútil. Ninguém escutava a ninguém. Todos gritavam. A confusão foi tal que alguns dos acampados, inquietos, retornaram ao rio e se uniram aos "justos", multiplicando a gritaria. Jesus, então, começou a mover-se. E o vi avançar entre as águas, em direção à pedra sobre a que me encontrava, e da que presenciava a cena. Foi igualmente nesses instantes quando me dava conta de outro "detalhe", de difícil compreensão para quem isto escreve... As roupas apareciam secas. Totalmente seca. Era impossível! O recente dilúvio as tinha empapado... Mas houve mais... Como não me precavi? Ignoro-o... O céu, de repente (?), apresentou-se azul e sereno. Não havia rastro dos cumulonimbos. O que foi da nuvem negra e pançuda que permaneceu
tanto tempo sobre a "ferradura"? A tormenta, inexplicavelmente, desapareceu. Nunca alcancei a entendê-lo, a não ser que os "cb" não fossem o que pareciam ser. Mas esta especulação me levaria muito longe, e me tiraria do verdadeiro objetivo deste jornal. Como dizia o Mestre, quem tem ouvidos, que ouça... Jesus não olhou aos que discutiam na água. Simplesmente, evitou-os. Deu um pequeno rodeio e, como digo, aproximou-se do fio da laje da que este explorador assistia a quanto tenho relatado. Percebi em seu rosto essa serenidade a que já fiz menção. Era um Jesus novo e majestoso, como se tivesse sido testemunha de algo inenarrável e feliz. Não me equivocava... Tinha o cabelo seco, exatamente igual ao resto dos que ali estávamos. Mas como era possível? Um minuto antes se achava empapado... E ao chegar a meus pés observou fixamente. Os olhos, cor mel líquido, brilharam um instante. Transpassou-me. Nesses momentos não soube o que pretendia deste torpe explorador, mas me rendi. Era o olhar de um Deus. Abraçou-me da água. Fez-me compreender que eu era sua criatura, e O, meu Criador. Naquele segundo entendi o universo contido em uma de suas palavras favoritas: "Confia." E o fiz. Sem palavras, mediante o fio dos olhares, pu-me em suas mãos. Sabia. O governava. O decidia. O era meu Deus. Então me tendeu a mão esquerda, em um claro gesto para que o ajudasse a sair do leito. Deus! E acreditei compreender... Sua criatura, o mais desço da criação, era necessária para elevá-lo. O rogava que assim fora. E uma profunda emoção me deixou sem fala. Estendi o braço e se aferrou com força. Depois, sem deixar de lhe olhar, atirei com o corpo, e com a alma, e saltou limpamente sobre a pedra negra, agora totalmente seca. Mensagem recebida. Sua mão continuou arranca-rabo a meu braço durante um instante. Sorriume, e acreditei descobrir o passo rápido da cumplicidade. Ato seguido, com uma firmeza doce e acerada ao mesmo tempo, exclamou:
-Vamos, mau'AK!... chegou a hora! E me piscou os olhos o olho. E aquele aturdido "mensageiro" se foi atrás Dele. Esta vez sim fui afortunado. Fui aonde ninguém foi, e fui com O... Recuperou o saco de viagem e se afastou para o puentecillo de pedra. Quem isto escreve se pegou a suas sandálias. Esta vez não o perderia. Assombroso! A túnica vermelha e o manto apareciam secos. Como era possível? Eu mesmo o ajudei a sair do arroio... E ao alcançar a ponte se deteve. Revolveu um instante no interior do esteira e se fez com a cinta "das viagens". A amarrou ao redor do crânio e, sem duvidá-lo, pôs-se a andar. Isso significava uma larga caminhada... Não olhou atrás. Não se preocupou de seus irmãos, ou de seu parente, o Anunciador. Eu sim o fiz. ao longe, entre a arvoredo, distinguia-se aos acampados, encetados na polêmica, com os braços em alto, e caminhando, sem rumo, pela borda do Artal. Abner era o que mais discutia. Judas, o Iscariote, seguia-o a todas partes. achava-se tão confuso como outros. Então caí na conta: era a primeira vez que o Mestre e o Iscariote coincidiam. Entretanto, Judas não reparou no Jesus. Em realidade, só uns poucos o fizemos. Não sei se o Galileo se fixou no futuro apóstolo... Quanto ao Yehohanan, não fui capaz de localizá-lo. Possivelmente seguia sobre o basalto, rodeado por seus homens. Tampouco me preocupei. Meu trabalho na Omega tinha concluído. "Omega é o princípio... " Como já mencionei em seu momento, quem isto escreve não foi consciente da trascendencia de dita frase até que Ele o insinuou, caminho do Beit Ids... Mas demos tempo ao tempo. O Mestre entrou no meio-fio que unia as cidades do Bet She'an com Bolota e torceu à direita, na direção desta última população, uma das mais importantes da Decápolis. Aonde se dirigia? Qual era seu plano? Para falar a verdade, achava-me em branco. Não tinha o menor indício respeito a suas intenções. Se tinha que fazer caso aos textos evangélicos, depois do "batismo", o Mestre se dirigiu ao deserto. E
ali -diz o inefável Lucas- foi tentado pelo diabo durante quarenta dias... O deserto? Que deserto? Caminhávamos em direção oposta ao do Judá, o mais próximo. Dito deserto, além disso, encontra-se a muitos quilômetros da Omega, e no sul. O diabo? Uma vez mais, os supostos textos sagrados me fizeram desconfiar. De que diabos falavam os evangelistas? Quízá eu estava em um engano, e me dispunha a ver o diabo (!). Quem sabe... Naquela aventura todo era possível. referiam-se à estranha criatura dos pântanos? E o que pintava Adam-adom no deserto? Mas, súbitamente, alguém me tirou de tão absurdas elucubraciones. Era Yehohanan! Não acredito que tivéssemos caminhado mais de cinqüenta passos, do puentecillo de pedra sobre o Anal, quando nos alcançou. achava-se sozinho. Carregava em sua mão esquerda o saco embetunado e fedorento, com o pergaminho "secreto". Parecia entusiasmado, e mais excitado que nunca. Retrocedi um passo, prudentemente. Eu não podia sabê-lo, mas estava a ponto de ser testemunha de uma das cenas mais desconcertantes na vida do Mestre. Yehohanan, é obvio, ignorou-me. E permaneceu à direita do Jesus, caminhando ao ritmo rápido do Mestre. Então, sem mais, começou a lhe falar das "luzes" que tinha visto no deserto. Mencionou os raz, ou "fogos inteligentes" que o visitaram durante sua permanência no Judá, e assegurou que eram iguais que a esfera de cor safira que vimos frente ao Filho do Homem, e que se introduziu (?) em seu peito. O Mestre o olhou, mas continuou com suas grandes pernadas. Não houve resposta. Não pude ver a cara do Jesus, posto que encontrava a suas costas, mas não foi difícil de imaginar... Depois lhe tocou o turno às hayyot, e aos supostos encontros do Anunciador com sortes criaturas celestes. Jesus tampouco replicou. Yehohanan, um pouco desalentado, extraiu o talith de cabelo humano do zurrón e se cobriu. Então se referiu aos "carros que voam", os merkavah, e lhe falou de como os viu descender no deserto, e de como os "anjos de quatro caras", as
hayyot, chamavam-no por seu nome... O Mestre seguiu mudo. -Eu sei... -insistiu o Anunciador-. Você é o eleito. Agora sei. Você é o libertador de meu povo... Silêncio. -O que vamos fazer?... Qual é o plano?... Silêncio. O gigante das sete tranças não se rendeu. E iniciou outro relato sobre os "palácios" que disse ter visitado quando foi arrebatado, como Henoc, em um dos merkavah. -Eles me mostraram isso! -gritou-. Eu vi o Mesías libertador...! Foi você! O Mestre apertou o passo. Aquilo eu não gostei. Yehohanan mentia, ou não recordava o que me confessou no Firán. Nessa ocasião, conforme disse, o Mesías que lhe mostraram, "além dos sete céus", era loiro... -Os exércitos do Santo, bendito seja, esperam nosso sinal! O que fazemos? me diga! Quais são suas ordens? Você é o rei da casa do David! Eles... Silêncio. Até um cego tivesse visto que Jesus não desejava responder às questões expostas pelo Yehohanan... Era óbvio. O Anunciador caminhava a seu lado, mas se achava no extremo oposto dos pensamentos do Mestre. Entendo que Jesus fez quão único podia fazer: guardar silêncio. Ou não? E Yehohanan foi mostrar lhe a palma da mão esquerda. Nela, como se recordará, foi "tatuada", a fogo, a expressão "Eu, do Eterno", em hebreu, a língua sagrada para os judeus. -Sou Dele!... Sou seu segundo!... me dê uma ordem e levantarei os exércitos! A tocha está na base da árvore! O Santo, bendito seja, pede vingança! Devemos recuperar a Sekinah! Silêncio. -Não o recorda?... Um anjo do Santo, bendito seja seu nome, visitou minha mãe, e também à tua... O anjo o disse: você será o Ungido, que levantará a casa do David e jogará ao mar aos ímpios... Yehohanan mentia, ou inventava, uma vez mais. O anjo, ou ser de luz,
jamais mencionou a casa do David e, muito menos, a expulsão dos pagãos ao mar. O Mestre se manteve em silêncio. Não o olhou nenhuma só vez. Eu quase corria atrás deles. E me pergunto: por que esta cena não foi recolhimento pelos evangelistas? Yehohanan, confundido, deteve-se. Quase tropecei com ele. O Mestre prosseguiu ao mesmo ritmo. Mas não. Yehohanan não se rendeu. E ao pouco se situou novamente à altura do Jesus. Então lhe mostrou o saco negro e pestilento, e clamou: -Aqui está tudo! Este é o plano do Santo, bendito seja! Examina-o! Eles me deram isso! E recordei o revelado pelo Anunciador junto à corrente do Firán. Segundo ele, o homem-abelha o desenhou, e o entregou no interior de um dos pára ou merkavah (carro que voa). Silêncio. -É um megillah sagrado! Está feito pela mão das hayyot! É que não compreende?... O Galileo prosseguiu, imutável. -É que não compreende? -insistiu, furioso-. É a mão do Santo, bendito seja seu nome! É a hora da vingança! Roma deve pagar! É nossa hora! O anjo o disse: Você conduzirá ao povo...! Você é o rei! Você é o Ungido! Você é o sacerdote real, como diz Isaías! Esperávamo-lhe! Eu tenho aberto o caminho! Tudo está disposto! Hoje o vimos! cumpriram-se as profecias! A luz descenderá sobre o cordeiro! Yehohanan seguia inventando. Eu não conhecia tais profecias... Silêncio. E disposto a tudo, o gigante da "mariposa" no rosto tratou de abrir o saco, com o fim de mostrar o megillah, ou pergaminho da "vitória", também conhecido por mim como o "323". Não teve opção. Foi o único gesto do Jesus, ao menos, que eu possa recordar. Sem deter a marcha, e sem lhe olhar, o Mestre elevou levemente a mão direita e indicou que se detivera. Não era preciso que ensinasse nada. Isso deduzi do referido gesto. Foi instantâneo.
Yehohanan emudeceu, e se deteve. E ali ficou, em metade do meio-fio, com o talith sobre a cabeça, e o saco embreado, ao meio abrir, entre as enormes mãos. Não vi nenhum de seus discípulos. Pouco depois se perdeu entre as gente que foram e vinham. Supus que retornou a Omega, com o Abner e os seus... Jesus continuou com suas típicas pernadas, rumo ao este, para a cidade de Bolota; uma população que este explorador não conhecia. Prudentemente, como em outras ocasiões, mantive uma certa distância. Estava claro que desejava caminhar em solitário. Mas para onde? Que novas surpresas me reservava o Destino? O Destino... Consultei a posição do sol. Faltavam umas quatro horas para o ocaso. A bom ritmo, como o que mantinha Jesus, isso representava ao redor de vinte quilômetros. Bolota estava muito mais perto. Segundo meus cálculos, a não mais de dois quilômetros do meandro Omega. Desejava chegar à cidade dos mananciais? E por que Bolota? Ou não eram essas suas intenções? Nesses momentos, ninguém as conhecia... Fiz algumas conjetura. Se o Mestre caminhava até o anoitecer -dificilmente o fazia na escuridão- e mantinha este direção (em realidade, sudeste), podíamos alcançar as proximidades da Gerasa, outra das cidades da Decápolis. Tampouco a conhecia. E não me ocorreu razão alguma para chegar a dita população. Se girava para o sul, uma vez tomado o "caminho dos reis", nessas horas, antes das cinco da tarde, era possível que nos situássemos na fronteira com a Perea. Ali, muito perto, achava-se a garganta do Firán, de triste lembrança para quem isto escreve. Pretendia o Galileo visitar o chamado afluente do Jordão? E por que ia fazer o? Nos arredores, algo mais ao oeste, levantava-se a pequena aldeia de Salem, onde residiam o sábio Abá Saúl e sua esposa, Jaiá, tão queridos por este explorador. Não vi sentido. Não considerei que o Filho do Homem tentasse aproximar-se de sortes zonas. E por que me preocupar? Sabia... O dia, agora, era magnífico. Eu me sentia bem, e com forças. O caminhava por diante, a coisa de um centenar de metros, e com passo decidido.
Deixaria-o tudo em mãos do Destino, como sempre. O Destino... Sorri de novo para meus adentros. Tudo foi minuciosa e delicadamente desenhado para que este explorador se detivera na Omega. Nada foi casual. E dediquei uns minutos a ordenar e analisar (?) visto-o e ouvido no grande meandró em forma de ferradura. Assisti ao que os cristãos, em nosso "agora", denominam o "batismo" do Mestre? Sim e não. Em realidade, a cerimônia nada teve que ver com as atuais ideia. Para começar, a imersão do Jesus nas águas (o término "imersão" me parece mais ajustado) não se produziu no rio Jordão, como estimam os crentes. Como já indiquei, o Jordão era uma corrente "impura". As águas arrastavam lodo, lixo, excrementos, animais mortos e toda sorte de árvores e desperdícios. A Lei judia era muito estrita no que se refere à purificação. Introduzir-se no "pai Jordão" para limpar o corpo (isso significava "baixar à água") tivesse sido uma brincadeira. Os judeus tinham esboçado uma complexa normativa -chamada miqwaot- que regulava onde e como desencardir a homens e mulheres. As águas, segundo este tratado oral, achavam-se divididas em seis ordens, de acordo com seu grau de pureza. As mais puras eram as que chamavam "golpeadas ou manaderas"; quer dizer, salgada-las, ou termais, e as vivas, correspondentes a mananciais e afluentes, respectivamente. Também o mar era "puro". Yehohanan sabia, e atuava em conseqüência. Se tivesse pretendido praticar o sakak (cerimônia de "baixar à água") em qualquer dos lances do Jordão, os judeus não o teriam mimado. Pior ainda: o mais provável é que suas palavras não tivessem tido a menor ressonância e, possivelmente, teria sido apedrejado... Em segundo lugar, o atual conceito de "batismo", pelo que, supostamente, perdoa-se o "pecado original" do aspirante, nada tem que ver com a referida cerimônia de "baixar à água", a que se submeteu o Mestre. Como já expliquei com antecedência, a imersão nas águas era um reconhecimento do
arrependimento prévio, imprescindível para a pureza última, a do corpo. Para os judeus, a imersão não significava o perdão dos pecados. tratava-se de um ritual, embora necessário. Significou isto que o Mestre se arrependeu, previamente, de suas faltas? Nego-me a acreditar que Jesus do Nazaret cometesse um solo pecado contra os homens, ou contra si mesmo. Muito menos contra o Pai. Como me explicou no kan do Assi, no lago Oleado, "ninguém está capacitado para ofender a Deus", por muito que se empenhem seus "representantes" (?).Jesus foi o Homem mais limpo, nobre e generoso que jamais pisou na Terra. No Hermón, ao recuperar o que sempre foi seu -a divindade -, converteu-se em um Homem-Deus. Como imaginar a um Deus transgredindo as leis de Deus? Quanto ao chamado "pecado original", provocado -dizem as religiões- pela falta do Adão e Eva, prefiro não fazer comentário algum. A idéia me resulta, simplesmente, ridícula... Então, qual foi o sentido de dita cerimônia? por que o Filho do Homem solicitou do Anunciador que o inundasse? por que se introduziu nas águas do Artal, e com tanta devoção? Sinceramente, não conseguia entendê-lo... Foi Ele quem esclareceu mente deste confuso explorador. É obvio que tinha sentido; um importante e belo sentido... Também a data do "batismo" (?) ficou esclarecida. Zebedeo pai, e Bartolomé, um dos doze, estavam bem informados. Foi para a sexta hora" (meio-dia) da segunda-feira, 14 de janeiro do ano 26 de nossa era, e não no 29, como insinúa Lucas, o evangelista. Como já comentei, Lucas não sabia, ou não teve em conta, que o imperador Tiberio governou, conjuntamente com Augusto, durante mais de dois anos, antes da morte deste último, ocorrida em 19 de agosto do ano 14 de nossa era. Foi em outubro do ano 11 quando Tiberio foi designado collega imperii. É obvio, em janeiro, Poncio Pilato não tinha tomado ainda posse como governador da província romana da Judea. Isso ocorreria meses depois, ao final da primavera do chamado ano 26. Lucas não acertou uma. Em seu evangelho, a prisão do Yehohanan aparece
antes que o "batismo" do Mestre, e tampouco foi vista "pomba" alguma. O "descida do Espírito Santo em forma corporal, como uma pomba, sobre o Filho do Homem" foi pura invenção. Em realidade, os sucessos na Omega foram mais espetaculares, e fantásticos, pelo que transmitiu o bom do evangelista, que nem sequer conheceu o Jesus. Se Lucas tivesse tido a oportunidade de interrogar ao Abner, ou aos discípulos do Anunciador, possivelmente o texto evangélico teria sido outro. Mas, como espero ter a oportunidade de relatar, os íntimos do Yehohanan terminaram por ser marginados pelos seguidores do Mestre. Mas essa é outra história... Lucas, finalmente, ecoa se da versão do Santiago, no que à "voz" se refere, e ignora o segundo testemunho, o do Judas, também irmano carnal do Jesus. Possivelmente porque o manifestado pelo antigo zelota não se ajustava aos pensamentos e interesses do Pedro e Pablo? por que Lucas não escreve que a "voz" que se deixou ouvir no Artal era a de uma mulher? Deus, mulher? Imagino a cara do Pablo do Tarso, um dos principais in formantes do Lucas, misógino a ultranza, para ouvir semelhante despropósito... E foi apagado, naturalmente, como tantos outros sucessos. Quando tínhamos percorrido uns três quilômetros, distingui a cidade de Bolota, à esquerda do meio-fio, e no alto de uma suave colina, quase à altura do nível do mar (ao redor de "menos trinta metros"). Conservava uma medíocre muralha de pedra e tijolo cru, que a rodeava por completo. O mudo de um lugar a outro de homens e cavalarias se intensificou. E optei por me aproximar quanto pude ao Filho do Homem. Embora destacava por sua altura, e pela túnica vermelha, até os tornozelos, preferi não correr riscos. Jesus não se deteve. Cruzou entre os inevitáveis vendedores, pícaros e mendigos, que lotavam o caminho de acesso às portas da cidade grega, e continuou para o este. Entre os vendedores me chamou a atenção um grupo que se movia sem cessar pelo meio-fio, e que apregoava a célebre água do Fahil, "que fazia imortal ao que a consumia"...
Cometi o engano de me deter inspecionar um dos peles e, em segundos, caiu sobre este incauto explorador toda uma tropa de aguadores, caldeos ou adivinhos, "burritas" negras, marreteiros, "guias" da cidade, condutores de carros e até encantados de serpentes. Umas atiravam da túnica, me gritando não sei o que sobre seus respectivos bordéis, outros tentavam abrir o esteira, e os mais, a voz em grito, colocavam-me os artigos pelos olhos, ensaiando em aramaico, koiné e em outras línguas que não compreendi. Foi então quando perdi de vista ao Galileo... Desfiz-me, como Deus me deu a entender, da enlouquecida paróquia e corri para nenhuma parte. A aglomeração de gente, animais e mercadorias não me permitia distinguir. E amaldiçoei minha má estrela... Se o perdia, não tivesse sabido onde encontrá-lo. Correr para nenhuma parte? Não exatamente. Corri pelo meio-fio, pelo "caminho dos reis", mas em direção equivocada. Saltei, uma e outra vez, tentando descobri-lo entre a multidão. mais de um pensou que se achava ante um diabólico. E, desalentado, deixei-me cair no fio da rota. O que tinha acontecido? Onde estava o Mestre? Como podia ser tão torpe? esfumou-se ante meus narizes. Pensei, inclusive, que possivelmente esse era seu desejo. Possivelmente me precipitava na hora de segui-lo... E o Destino, como sempre, sorriu, zombador. Nisso estava, me debatendo sobre o assunto, quando se deteve ante este desolado explorador um dos habituais carros de aluguel, que transladavam aos viajantes de um ponto a outro. O sais reclamou minha atenção e perguntou se me dirigia ao sul. Por cinco denarios de prata se comprometia a me deixar, são e salvo, na muito mesmo Jericó... O sul? Então compreendi. Tinha tomado o meio-fio que descendia pela borda esquerda do Jordão, o mencionado "caminho dos reis", que cruzava as planícies do Moab, e o reino da Nabatea, até desembocar no mar Vermelho. Era um estúpido! Eu o vi dirigir-se para o este! Resgatei um denario da bandagem e o lancei para o surpreso condutor, ao
tempo que voava, desfazendo o andado. O sais deveu pensar que tinha ido perguntar a um velho louco. Um denario por nada? Acredito que foi o dinheiro mais rentável naquela aventura... Minutos depois, como supus, descobri-o na lonjura. Efetivamente, o Mestre rodeou a cidade do Fahil (Bolota) e entrou em um caminho secundário, para o oriente. Respirei aliviado, e procurei cortar a distância. Como pinjente, não sabia nada daquela zona. Era a primeira vez que entrava nela. Recordava vagamente os perfis, observados no périplo aéreo, quando nos dirigíamos ao norte do yam. Mas isso não servia. Ignorava para onde conduzia aquele atalho, muito pouco freqüentado, e que começava a ascender timidamente, entre dezenas de yébels, ou colinas de caulim, tão apreciadas pelos oleiros e pelos cultivadores de olivos. Jesus partia de novo a bom ritmo. Parecia conhecer paragem... Tratei de tomar referências, sempre úteis nas viagens. Desde o Fahil, ou pouco antes, apertado-los bosques do vale do Jordão foram substituídos por milhares de zayít, o olivo israelense, célebre por sua generosidade, e pela qualidade dos azeites, densos e dourados. Abundava o gênero Faz ondas, com mais de trinta espécies, muitos deles centenários, arqueados pelo passado do tempo, grossos e misteriosamente ocos. Como tinha observado na viagem ao Hermón, também aqui, na Decápolis, o zayit era mimada como uma noiva. Plantavam-no a uma distância mínima de onze metros, colonizando milhares de quilômetros quadrados. Em realidade, isso era quão único tinha à vista: fileiras intermináveis de olivos, de até dez metros de altura, que compensavam o branco farinhento das colinas. Cada árvore dava de presente da ordem de trinta a sessenta quilogramas de azeitonas, com uma produção média de azeite de uns cinco litros por olivo. Isso convertia estas alturas do Galaad em um rio de ouro, com uma exportação ininterrupta, e disputada, que obrigava a comprar as colheitas "na árvore". Naturalmente, a maior parte dos proprietários destes yébels era judia. Herodes Antipas, o tetrarca da Perea e da Galilea, também
era "acionista" destacado no negócio dos zayit. Astutamente, quão judeus exploravam estas terras se aproveitavam do caráter pagão das mesmas, e interpretavam a Lei mosaica a sua maneira, e em seu benefício. Dita Lei (Deuteronomio 24, 20) estabelecia que os olivos não deviam ser descarregados em sua totalidade, mas sim, em cada ramo, era bom que permanecesse um mínimo de fruto, com o fim de alimentar aos desposeídos: "Quando varar seus olivos -dizia Yavé-, não fará rebusco. O que fique será para o forasteiro, o órfão e a viúva." Na lonjura, nas ladeiras, distingui equipes de felah (camponeses), com cestos nos que armazenavam as últimas azeitonas, negras e prometedoras. Os homens agitavam os ramos com largas varas. No chão, mulheres, meninos e anciões selecionavam o fruto, e enchiam os capazos. Se o terreno o permitia, as mulas, onagros ou camelos se aproximavam do grupo e se procedia à carga. Se as cavalarias esperavam no caminho pela que transitávamos, as cestas tinham que ser transladadas sobre as costas dos portadores. E pobre do ancião, do moço ou da mulher que tropeçasse e derramasse o fruto... Este foi a paisagem, e a paisagem, que nos acompanhou durante os dois primeiros quilômetros. Pouco a pouco fui aproximando do Mestre. Agora me encontrava como ao princípio, a coisa de um centenar de passos. E seguimos ascendendo. Segundo meus cálculos, ratificados posteriormente no Ravid, em questão de cinco ou seis quilômetros tínhamos passado de "menos" 200 metros, no vale do Jordão, a "menos" 30, no Fahil ou Bolota, e o caminillo prosseguia, valente, subindo agora pela cota "300". As colinas de caulim eram intermináveis. Por mais que observava os horizontes, não conseguia ver outra coisa que o verde-negro dos olivares e, a momentos, como se queriam escapar, o branco e o ocre do terreno. Por mais voltas que lhe dava, não conseguia me fazer uma idéia sobre os propósitos do Filho do Homem. O que procurava naqueles olivares? Os textos evangélicos -os quatro- asseguram que, depois do "batismo" no Jordão (?), Jesus foi levado pelo Espírito para o deserto, e ali foi tentado (?). E insisto:
que deserto? Achávamo-nos muito longe do Judá, o mais próximo. O sol partia em direção contrária, e diria que com as mesmas pressas que o Mestre. Mais ou menos, subtraíam umas três horas de luz. por que me preocupar? O mistério não demoraria para esclarecer-se. Possivelmente ao pôr do sol... E me propus não perder o tempo com semelhantes labirintos. O estava ali. Isso era o que contava. Só tinha que ter os olhos bem abertos. Essa era minha missão. O definiu perfeitamente: "Mau'AK" ("Mensageiro"). E entre as fileiras de zayit, pela direita do atalho, apareceu uma aldeia. Jesus a viu antes que eu, mas continuou com suas largas pernadas. Não me pareceu importante. As casas, de tijolo cru, ajudavam-se as umas às outras, parede com parede, temerosas e humildes. Uma pista, enegrecida pelos excrementos das cavalarias, unia o poblacho com o caminho "principal". Logo soube que se chamava Tantur, acurrucada, como digo, entre milhares de olivos, e a coisa de 307 metros sobre o nível do mar. Estimei que podia achar-se a um quilômetro do caminho pelo que partíamos. E, de repente, Jesus reduziu o ritmo. Pu-me em alerta. A escassa distância, no cruzamento com a pista que fugia para o Tantur, divisei uns rodas de pessoas de esforçados louros, alegrando a seriedade do olivar. Havia gente. Eu também diminuí a marcha, e mantive a distância. Não sabia o que se propunha. Devia me mover com prudência. Era um poço. Três mulheres se achavam ao redor do brocal de pedra, e brigavam com o pele de carneiro no que subiam a água. Caminhei devagar. As mulheres, jovens, não pareciam feijões. Vestiam amplos vestidos azuis, com largas bandagens na cintura, tipo thob, como o dos beduínos, com sendos tocados nas cabeças. Riam e tagarelavam sem descanso, divertidas ante suas próprias dificuldades. Não falavam aramaico. Ao pé do parapeito do poço descansavam três cántaras de médio porte. por detrás, a meia dúzia de metros, levantava-se um reduzido abrigo, trancado com palitroques e ramos de palmeira. Em uma primeira dedução, para ouvir a linguagem e observar a
vestimenta, supus que eram nômades, ou seminómadas. Compreendi: estávamos entrando em território badawi (beduíno), mais conhecido naquele tempo pelo término a'rab. Eram árabes. As mulheres não demoraram para detectar a presença do primeiro caminhante. Em realidade, quem as alertou foram dois cães que irromperam junto ao poço. Não estou seguro, mas acredito que dormitavam no abrigo. O Mestre não se alterou, e seguiu para elas. Quem isto escreve, em um intento de não interferir, escondeu-se entre os olivos, e esperou. Achava-me relativamente perto. Os cães eram duas formosos exemplares da raça sloughi, tipo galgo, de cor leonado, preparados e rápidos como o vento. Eram excelentes guardiães e caçadores, capazes de perceber a presença de um estranho muito antes que seus donos. Mantiveram orientados os bicudos focinhos para o caminho, mas não arrancaram, como tivesse sido o habitual nestes galgos. Uma das beduínas soltou a corda da que atiravam, e se fez com um fortificação. Depois se situou depois dos sloughi, e tentou descobrir o que ou quem se aproximava. O pele, com a água, ficou em suspense, a metade de caminho. As três mulheres tinham as olhadas fixas nos olivos, entre os que discorria o caminho. Guardavam silêncio. E para surpresa de todos, os galgos se tranqüilizaram e iniciaram um rápido e amigável movimento das largas e frágeis penetra. As beduínas comentaram algo, e se relaxaram. A atitude dos cães foi decisiva. Jesus chegou ao poço, e o vi elevar a mão esquerda, em sinal de saudação. Conversaram, embora não pude ouvir, dada a distância. Eu sabia, mas agora me encontrava ante a confirmação: o Mestre entendia, e falava, algo de árabe. As mulheres prosseguiram com o seu e Jesus, pendente do trípode de madeira pelo que subia o negro e lhe jorrem couro de carneiro, que fazia as vezes de cubo, esperou a que as jovens concluíram o içado do pele. Os cães se aproximaram e olisquearon ao Mestre. Penetra-as não deixavam de agitar-se. Jesus, então, colocou-se em cuclillas, e acariciou aos sloughi. Suas mãos se repartiram sobre os crânios de ambos os animais, que responderam entusiasmados, lambendo as barbas e o rosto do Galileo. E foram tais os lametones, e o impulso dos
galgos, que terminaram por desequilibrar ao recém-chegado. O Filho do Homem caiu de costas, e os cães seguiram com seu cordial recebimento. O tropeço do forasteiro terminou por provocar a risada nas esforçadas beduínas, que soltaram a corda, propiciando a queda do couro ao fundo do poço. E as risadas se multiplicaram. Por último, foi o próprio Jesus quem solicitou que lhe permitissem atirar do esparto, elevando de novo a água. As jovens cochichavam e sujeitavam as risadas com dificuldade. Em quatro ou cinco puxões, a potente musculatura do Filho do Homem resgatou o couro, e as mulheres puderam encher seus cántaras. Depois, O mesmo bebeu diretamente do odre, e o fez com prazer, e durante quase meio minuto. Estava sedento. Continuando, enquanto o pele se balançava no ar, retido agora por um dos nômades, o Filho do Homem se voltou e dirigiu o olhar para o lugar do que este explorador contemplava a cena. Não sei por que me ocultei detrás um dos zayit. Nunca consegui explicar tão ridícula e infantil reação. Imaginei que desejava perguntar se queria um pouco de água. Mas Jesus não disse nada... Assim transcorreram uns segundos, não muitos. Quando apareci a cabeça, algo tinha trocado... É difícil de explicar, embora agora sei que aquele personagem não era normal. Mas o que foi "normal" nesta incrível e mágica aventura? O Mestre seguia conversando com as moças, mas os cães trocaram de atitude. Pareciam receosos. Tinham a atenção posta no vazio abrigo de paus e folhas de palma. E começaram a grunhir, arqueando as caudas em sinal de alerta. Algo tinham visto, ou percebido... Foi tudo muito rápido. Inexplicavelmente, os sempre valentes sloughi deram a volta e arrancaram como meteoros, afastando-se entre os olivos, em direção à aldeia. Como digo, visto e não visto... As mulheres voltaram as cabeças e seguiram a impressionante carreira dos galgos, até que os perdemos. E continuaram dialogando com o Mestre. Suponho que não deram maior importância à correria dos galgos. Possivelmente descobriram alguma lebre. Quem isto escreve, entretanto, sim caiu na conta de um detalhe que não quadrava
com o comportamento desta raça concreta de caçadores: os sloughi saíram em direção oposta a do abrigo; quer dizer, a que marcaram com seus corpos. Se captaram algo estranho na zona do referido sombrajo, por que fugiram (essa seria a expressão exata) em outra direção? Desde quando fugia um sloughi? Estes animais dificilmente abandonam a seus amos. São fiéis até a morte... E, por um momento, imaginei que estava em um engano. Possivelmente a lebre escapou na direção seguida pelos galgos. O fato de que as beduínas e Jesus não se alarmassem me tranqüilizou, relativamente. Foi então, nada mais desaparecer os sloughi, quando o vi. Melhor dizendo, quando o vimos surgir por detrás do abrigo. Também elas, e o Galileo, viram-no aproximar-se... Viram-no? Quero acreditar que sim... Do primeiro instante me chamou a atenção. Nunca, em toda a aventura na Palestina do Jesus do Nazaret, vi um pouco parecido. Nem sequer Yehohanan era tão... Não sei como defini-lo. Caminhou com segurança para o poço, e foi situar se entre as beduínas e o Mestre. Falaram. Suponho que se saudaram, e o fizeram com total naturalidade. Conheciam-no? Foi por isso pelo que não mostraram nenhum signo de estranheza? Não encontrei outra explicação. Mas e os cães? Era um varão, tão alto como o Anunciador. ao redor de dois metros de altura. De onde tinha saído? Vestia uma larga túnica, sem mangas, que deixava ao descoberto uns braços intermináveis e magros como canos. As mãos chegavam aos joelhos (!). Não distingui a cabeça com precisão, mas me desejou muito igualmente disforme. O queixo era quase inexistente. A cabeça era um tudo com o pescoço. Luzia um corte de cabelo, à "escova", não muito habitual naquele tempo, e muito menos entre os judeus. Mas o mais chamativo era a túnica. Brilhava com intensidade, depende... E tentarei me explicar, embora não resulta fácil. A "luminosidade" da malha -possivelmente algum tipo de seda- variava de acordo com a luz. Se o homem recebia os raios do sol diretamente, a túnica (?) voltava-se mate, e luzia em um
branco sem brilho. Pelo contrário, quando se deslocava entre os ar (louros), ou pelo olivar, as sombras pareciam "reativar" a malha. Assombroso! Ao caminhar na penumbra, o vestido se "iluminava" (?) e variava de cor, mas nunca de maneira uniforme. Tão logo o via vermelho, como azul, ou verde, ou negro, ou uma mescla de todos eles, depende... Pensei que estava dormido. Outra ensoñación? Esfreguei-me os olhos e, ao abri-los, o homem continuava junto ao brocal, conversando com o Galileo. Não era um sonho... As mulheres carregaram as cántaras sobre as cabeças e se despediram. Vias afastar-se pelo senderillo que procurava o povoado do Tantur. Dos sloughi, nem rastro... Tive a tentação de me aproximar. E iniciei uma lenta e silenciosa aproximação. Ao pouco, entretanto, detive-me. Não me pareceu correto. Jesus, sentado agora sobre o parapeito de pedra, conversava animadamente com o homem. Era o Mestre o que dirigia a conversação. O outro escutava e, de vez em quando, assentia com a cabeça. Por minha mente desfilou todo tipo de interrogantes. Do que o conhecia Jesus? Possivelmente das viagens? por que jamais tropecei com ele? por que agora? Como chegou até o poço do Tantur? por que os galgos fugiram tão precipitadamente? Não soube resolver o mistério. O que sim estava claro é que a relação era cordial, e lamentei, uma vez mais, não estar ao lado do Mestre. Ao cabo de um momento se despediram. beijaram-se nas bochechas, como velhos amigos. Não cabia dúvida: conheciam-se... E o homem da túnica "luminosa" (?) saiu ao caminho principal, e se dirigiu para o lugar no que se ocultava este explorador. Caminhava sereno, e sem pressa. Então reparei em outro detalhe, pouco habitual: não carregava bagagem; nem sequer um modesto zurrón. Era estranho em um caminhante. Ao parecer, dirigia-se para o Fahil... E ao chegar a minha altura, diminuiu o passo. Quase se deteve. Dirigiu o olhar para onde me achava, e senti um estremecimento. Apareci timidamente por detrás do
olivo, e tentei corresponder a seu sorriso. Devo reconhecê-lo. Poucas vezes vi um sorriso tão encantador... Agora, em metade do caminho, a plena luz do sol, a túnica era branca, como a espuma marinha, como os cabelos do Abá Saúl e os do "homem" do sonho, em Salem... Os olhos eram muito pequenos, mas vivos, e de um azul claro, sem fundo. Carecia de sobrancelhas. Era chato, e com uma pele bronze, muito torrada. O cabelo, talhado ao estilo militar, era negro, grosso e rígido, como as cerdas de um javali ou as puas de um ouriço. Apesar de seu aspecto, pouco atrativo, referida-a sorriso, parecida com a do Mestre, eclipsava-o tudo, e a gente ficava rendido ante ela. Observou-me com curiosidade, e prosseguiu. O "encontro" (?) não se prolongou além de um par de segundos. O sorriso ficou gravada em minha memória, até o dia de hoje... Quem era o singular personagem? No cinto que marcava a estreita cintura cheguei a ver uma espécie de adorno: uma estrela de seis pontas, similar a do rei David. Ao redor do "emblema", ou o que fora, apareciam outros símbolos, que não tive tempo material de visualizar. E o homem do "sorriso encantador" se afastou... E ali ficou este perplexo explorador, fazendo-se mil perguntas. Como soube que me ocultava no olivar? Viu-me quando dialogava com o Galileo? Foi o Mestre quem lhe advertiu de minha presença? E por que ia fazer o? por que me sorriu? De onde tinha tirado aquela túnica? O que representava a estrela, no cinto? por que as beduínas não mostraram estranheza ante a presença do homem disforme? Ou não era tal? -Mau'AK! A voz do Mestre, me reclamando, fez-me esquecer, de momento, ao insólito homem. Jesus insistiu do poço, e me animou com o braço para que me reunisse com O. -Mau'AK! - Vamos, mau'AK! Começava a me gostar da palavra -"mensageiro"-, e corri para o Filho do Homem. Jesus carregou sua esteira e se incorporou ao caminho principal, a que
continuava subindo entre colinas e olivares, sempre para o este. Conversamos. O Mestre parecia feliz e seguro. Não me atrevi a perguntar por nosso destino, e tampouco sobre o encontro com o homem do sorriso encantador. Preferi descobri-lo por mim mesmo, quando chegasse o momento. Além disso, o que importava o final do caminho. O importante, ao menos para mim, era o caminho... E me prometi, solenemente, que jamais voltaria a me ocultar. A missão, o seguimento do Filho do Homem, estava por cima de meu acanhamento. Não voltaria a repetir uma cena como a do poço do Tantur. Era preciso que me achasse sempre presente, a não ser que O, direta ou indiretamente, determinasse o contrário. Não queria perder nenhuma só de suas palavras... É obvio, não sempre o consegui. E foi assim, naquele atalho de terceira ordem, virtualmente solitário, sem saber para onde nos dirigíamos, como cheguei ao meio esclarecer o que tinha acontecido essa mesma manhã da segunda-feira, 14 de janeiro, nas águas do meandro Omega. Foi o primeiro que perguntei. Não entendia o acontecido, e Ele, afável e disposto, fez o possível para que visse a luz. Quão certo é que as maiores revelações ocorrem quando menos imaginamos, e nos lugares mais insuspeitados... Fui ao grão. Eu sabia que Jesus era um Homem irrepreensível. Nunca ofendeu, voluntariamente, a um semelhante. E lhe tinha ouvido expressarse sobre a impossibilidade física de injuriar, ou de ofender, ao Pai dos céus. Lembrança como insistiu nisso, durante a inesquecível noite no kan do Assi, em 17 de setembro último. Pois bem, se a natureza humana não tiver capacidade de ofensa para Deus, por que admitiu a cerimônia de "baixar à água"? Do que tinha que desencardir-se? Que sentido teve o "batismo"? O Mestre me observou com ternura. E durante uns segundos guardou silêncio. Havia tornado a me equivocar? Possivelmente não deveria ter exposto um assunto tão íntimo... Mas, em realidade, a razão do fugaz silêncio era outra. O Mestre, medindo as palavras, fez uma elucidação, que não devia perder de vista em nenhum
momento: -Querido mensageiro, quando me ouvir falar, recorda sempre que o dito é só uma aproximação à verdade... Sim, O disse em certa ocasião. Tinha-o esquecido. A verdade não é humano. Vós, agora, não têm possibilidade de assumi-la... Nem sequer de intui-la. O que estimam como verdade é uma mescla de desejos e de imposições exteriores. Melhor assim... E sorriu, pícaro. Se o Pai te mostrasse a verdade, o que ficaria para a eternidade? Mensagem recebida. Então, concluída a precisão, resolveu minhas dúvidas com a seguinte frase: -Foi meu presente ao Pai... Ao precaver-se de que minha mente se ficou atrás, e de que não terminava de entender, passou o braço esquerdo sobre meus ombros e me acolheu com doçura. Então, lentamente, recreando-se em cada palavra, e em cada conceito, foi debulhando o significado da frase. Isto foi o que entendi: ao inundar-se nas águas, o Filho do Homem levou a cabo um ritual pessoal -e insistiu no de "pessoal"-, e se consagrou à vontade do Ab-BA, o Pai Azul. Foi um "presente", muito mais simbólico do que possamos imaginar. O quis inaugurar o princípio de seu ministério com o mais sagrado de que era capaz: "dar de presente" sua vontade ao que o tinha enviado... O "batismo", portanto, foi um gesto mais santo, e delicado, pelo que sempre se acreditou. E os céus se abriram, como não podia ser menos, ante o "presente" de um Deus para outro Deus... Além disso, serve de exemplo a seus irmãos. Mas isto foi o menos importante. Permaneci pensativo. Não era fácil para quem isto escreve. Eu jamais dei de presente nada a Deus. Tampouco pedi muito, mas, em honra à verdade, meus lábios sempre se aberto para reclamar, ou suplicar. Dar de presente a Deus? Tinha graça... E voltei a esmiuçar as palavras do Homem-Deus. Jesus, atento, deixou-me fazer. Sabia esperar. Era outra de suas qualidades. A cerimônia de "baixar à água" foi um "presente" do Jesus para o Pai.
Desde que o conhecia, o Mestre tinha falado em numerosas oportunidades desse "exercício", quase ignorado pela maior parte da humanidade: fazer a vontade do Ab-BA. Recordei suas explicações durante a primeira semana de estadia nas cúpulas do Hermón, no verão do ano 25: "... Eu conheço pai -nos disse-. Vós, ainda não. Falo-lhes, pois, com a verdade. Sabem qual é o melhor presente que podem lhe fazer?... O mais delicioso, o mais singular e acertado obséquio que a criatura humana pode apresentar ao Chefe é fazer sua vontade. Nada lhe comove mais. Nada resulta mais rentável... " Pois bem, chega um momento no que a criatura humana, perita já nessa "ginástica" de entregar-se à vontade do Pai, toma a decisão de consagrar-se "para sempre". E o faz tranqüila e serenamente, e escolhe para isso o instante que estima oportuno. trata-se de um momento de autêntica elevação espiritual, no que o homem, ou a mulher, simplesmente, entregam-se ao Pai. É um rito íntimo, o melhor "presente" que possamos imaginar... Jesus escolheu Omega. Foi a culminação do que sabia e praticava. Tinha chegado sua hora... O Mestre assentiu em silêncio. Voltou a fazê-lo! penetrou de novo em meus pensamentos! E prosseguiu com suas explicações... Essa manhã -me atreveria a qualificar a de histórica- se registrou outro sucesso (?) que só alcancei a entender em parte. Em realidade, em uma mínima parte... Lembrança que o rosto do Mestre se iluminou, e de cada poro nascia uma incrível e muito belo radiação azul. Chamei-o azul "mutável"... Segundo o Mestre, esse foi o major de quão prodígios teve lugar na carne. Segui sem saber do que falava. E se aproximou um pouco à realidade (o que pôde). Sua mente humana, ou possivelmente sua natureza humana (não soube distinguir com exatidão a que se referia), fez-se uma com a mente divina (?), ou com a natureza divina. Minha mente naufragou, e também se fez uma, mas com um nada... E Ele, consciente, deteve-se. Deixou cair o saco de viagem sobre a terra escura do caminho e se agachou. Tomou um punhado de dita terra, suja e poluída pelo mudo
de um lugar a outro de homens e animais, e me mostrou isso. Os olhos se iluminaram, e soube que se movia em meu interior. Sorriu e, em silêncio, caminhou para a colina de caulim mais próxima. Segui-o, intrigado. Ali, sob os olivos, voltou a agachar-se e tomou um segundo punhado de terra, esta vez branco-amarelada, pura e brilhante, como conseqüência do silicato hidratado de alumínio. E, sem deixar de me olhar, procedeu a mesclar ambos os punhados. Ao pouco, não soube distinguir qual era a terra de inferior qualidade, a do atalho, e qual a brilhante, a da colina... Mensagem recebida. E ao "unificar-se" (?) ambas as naturezas -a do homem e a do Deus-, produziu-se o milagre, o maior prodígio de todos os tempos; um milagre superior, acredito, ao da ressurreição dos mortos... Foi nesses instantes (?), caso que essa "fusão" possa ser medida, quando Jesus do Nazaret se converteu, VERDADEIRAMENTE, em um Homem-Deus. No monte Hermón recuperou o que era seu -a divindade-, mas foi na Omega onde o Pai fez "oficial" (digamo-lo assim) a divindade de seu Filho, muito amado... Foi então quando se transformou em um Deus. "Dou de presente" por "presente"... Assim o vi, e assim o faço constatar. Agora, ao rememorar aquelas cenas no afluente do Jordão, estremeço-me. Fui o primeiro que tendeu seu braço a um recém estreado Deus. Ele me escolheu, e não por acaso. Sabia que eu era seu mau'AK, seu "mensageiro". Os que presenciaram a cena jamais souberam o acontecido realmente. Eu tive acesso a isso, mercê à bondade do Filho do Homem... Não culpo aos escritores sagrados (?) do silêncio sobre esta muito importante passagem da vida do Mestre. Nem Yehohanan compreendeu, nem tampouco seus irmãos. Ninguém soube, até hoje... Algum tempo mais tarde, quando o Galileo revelou sua divindade aos mais íntimos, tampouco entenderam. Era lógico. Como já expliquei em diferentes ocasione, a expectativa messiânica entre os judeus o contemplava tudo, menos o que ocorreu.
Muitos acreditavam que o Mesías seria um ser sobrenatural, dotado de toda classe de poderes. Outros o faziam rei da casa do David. E também profeta, ou vidente, e condutor de exércitos, e "destruidor de dentes" e, inclusive, filho de Deus. O que não imaginaram é que alguém pudesse ser homem e Deus, ao mesmo tempo. Essa possibilidade não figurava no estabelecido pela ortodoxia judia. Daí que Jesus, ao declarar-se filho de Deus vivo (homem e Deus), colocasse-se à margem de tudo e de todos. Hei-o dito muitas vezes, e o repetirei, suponho: o Filho do Homem não podia ser o Mesías que esperava a nação judia, e tampouco desejou sê-lo. O foi muito mais... Foi, portanto, na "sexta" (por volta das 12 horas) da segunda-feira, 14 de janeiro do ano 26 de nossa era, quando Jesus inaugurou "oficialmente" sua divindade. Se tivesse que escolher o ponto de arranque de sua vida pública, provavelmente selecionaria este. Um Homem-Deus! Minha pobre mente fez quanto pôde, mas fiquei muito longe. Estou seguro de que o hipotético leitor destas memórias saberá me perdoar... E disse mais. Coincidiu com um cruzamento de caminhos. Estimou que tínhamos percorridos uns nove quilômetros, desde o Fahil, e acabávamos de deixar atrás outro minúsculo povoado, ao que chamavam Abil. Mantínhamo-nos entre colinas e olivares, em contínua ascensão. E foi na cota "423" onde se apresentou sorte encruzilhada. Dois pôsteres, em um tosco poste de madeira, marcavam outras tantas direções. Uma, para o norte, indicava o povo do Rakib. A segunda, na mesma direção que mantínhamos, para o este, apontava para o que imaginei como outra aldeia: Hawi, ou um pouco parecido... A nossa direita, em direção sul, separava-se um último caminillo, sem sinalização alguma, que saltava entre as colinas. Fiquei quieto, e pendente do Jesus. E prosseguiu para o este, para o lugar que denominavam O Hawi. Não o vi duvidar. Então, divertido, comentou: -Foi um cruzamento de caminhos, para mim...
Entendi que se referia à encruzilhada que tinha ficado atrás, e repliquei, como um perfeito idiota: -Claro, Senhor. E também para mim... Olhou-me atônito, e terminou sonriendo. referia-se a Omega. E explicou algo que tampouco transcendeu. Se não compreendi mau, essa manhã, terminada a cerimônia de consagração à vontade do Pai, o Filho do Homem se encontrou em metade de um "cruzamento de caminhos"... Adiantamento que o expresso pelo Jesus foi outro enigma para quem isto escreve. Limitarei-me a narrá-lo, tal e corno o fez. O não se encarnou para nos salvar, como asseguram as religiões. Já o estamos, segundo suas próprias palavras. O Pai nos deu de presente a imortalidade. Sua presença em nosso mundo obedeceu a outras "razões", digamos, de índole "pessoal", e que poderiam ser sintetizadas (pior que bem) na "necessidade de experimentar a natureza do tempo e do espaço" (conhecer suas próprias criaturas). De novo, aproximou-se da realidade, só isso, muito a seu pesar... Pois bem, sua experiência na carne ficou ultimada com o referido e íntimo "presente" devotado ao Ab BA na Omega. Pôde abandonar, acrescentou, mas, uma vez mais, deixou-o nas mãos do Pai. "E se dirigiu para o leste do coração humano, à busca do amanhecer. . . " Essa foi a vontade do Ab-BA. Esse foi o "cruzamento de caminhos" do recém estreado Homem-Deus, o primeiro de uma larga série. Se isto foi assim, e o Galileo jamais mentia, O escolheu continuar na Terra, de acordo com a vontade do Pai. Fiquei desconcertado. Pôde partir! -Mas aqui estamos -manifestou, feliz, fazendo suas minhas reflexões-, caminho do este... E acrescentou, ao tempo que me piscava os olhos um olho: -Conhece um caminho melhor? O que podia dizer? E intuí que não estava pensando no caminho que pisávamos. Esse "este" era outro... E assim o confirmou. Jesus entendeu que, além de sua experiência (?) com os humanos, Ele devia nos proporcionar outro "presente": a esperança. Ele compreendeu que, além de "enriquecer-se", podia "nos enriquecer". O mundo estava,
e está, na escuridão. São muito poucos os que souberam, e sabem, que a vida segue depois da morte, e que existe um Deus "que não leva as contas". Essa manhã, na Omega, o Homem-Deus tomou a firme decisão de revelar ao mundo a existência de outro "mundo": o do Amor, com maiúscula, como Lhe gostava... Se de mim dependesse, em 14 de janeiro seria designado Dia do Planeta Terra. Esse dia, O decidiu permanecer com o homem, um pouco mais... Então acreditei entender outra de suas frases, quando se achava nas águas, no Artal: -Agora é o princípio -disse-. Agora, o final é o princípio... Foi Yehohanan quem não alcançou a compreender o extraordinário sentido do que aconteceu na Omega. Omega é o princípio! Deus santo! O final da escuridão! O final é o princípio! Permaneci tão ensimismado nestes "achados", tão absorto, que esqueci o resto do visto e ouvido no meandro em forma de ferradura. Não perguntei sobre a natureza e o porquê da pequena esfera de cor safira que se introduziu (?) no peito do Mestre, e tampouco expus a dúvida sobre a "voz" feminina e as três versões ouvidas na Omega. Quem isto escreve o esqueceu, mas O não... Em seu momento, tirou-o a luz. "Omega é o princípio." A frase, "lida" na base de aprovisionamento, ao sul do Yeraj, nos obeliscos, iluminou meu cérebro como um amanhecer. Agora o entendia. Alguém profetizou, e o deixou em pedra. referia-se ao Mestre, sem dúvida. referia-se a Omega. Ali foi a luz. Ali começou o novo homem e o Homem-Deus. Omega é o final da escuridão, e de um período sem horizonte. O é Omega, o princípio... E rememorei também as palavras daquele velho nômade, que nos observou enquanto Eliseo e quem isto escreve examinávamos a lenda gravada nos "treze irmãos": -É o olho do Destino. Só uns poucos acertam ou seja que está aí. Mas, atenção: o homem que o descobre necessita de todas suas forças para seguir na luta. Sim e não.
Se os céus descobrem seu Destino -sucesso bem estranho, por certo-, isso significa que é um fiel praticante do que eu chamo o "princípio omega": fazer a vontade do Pai dos céus. Nesse caso, a revelação de seu Destino só será a conseqüência -uma mais de sua própria elevação espiritual. O que pode importar o grande, se for um kui? Desde aquele instante, do "descobrimento" da outra cara da Omega, desde que soube que "alguém produz dois", mudei-me ao território da intuição. Agora procuro viver ao sul da razão. Quem tem ouvidos, que ouça... Tinha chegado sua hora..., e a minha. Possivelmente fora a décima (quatro da tarde), quando o divisei pela primeira vez. Obscureceria breve. Encontrávamo-nos no alto de uma nova colina, outra mais. O Mestre procurou uma das formações rochosas que floresciam entre o olivar, e se sentou. Eu também me sentia fatigado. Segundo meus cálculos, até esses momentos, tínhamos caminhado ao redor de quinze quilômetros, do acampamento do Yehohanan, no meandro Omega. Como descrever o lugar? O fim do mundo? Algo assim... O caminho, cada vez mais estreita e descuidada, conduziu-nos, como digo, ao alto de uma das numerosas elevações. Depois, ao retornar ao Ravid, perfilei os de talhes. Aquela paragem se achava a 575 metros de altura. Os yébels, as colinas de caulim, fazia tempo que se ficaram atrás. Agora, o terreno era mais pedregoso, com multidão de agulhas calcárias, brancas e azuis, que competiam com os zayit. E ao fundo da colina, prisioneiro dos olivos, distingui uma massa de tijolo cru. Eram casas de cor ocre, maquiadas em vermelho pelo entardecer. E Jesus, a meia voz, pronunciou o nome do povoado: -Beit Ids... Povoado? Nem sequer isso... Na distância, entre as fileiras de olivos, mais me pareceu um casarão, com suas múltiplos dependências, que uma aldeia ou villorrio. E supus que era o lugar indicado pelo Mestre para passar a noite. Agradeci-o.
Alguns latidos, rápidos, deram aviso. Tratei de ver algo. Saltei sobre uma das rochas e observei as taças do olivar. Só apreciei um par de colunas de fumaça branca, e imaginei aos cães, alterados, frente aos muros de barro. Oxalá se achassem atados... À direita do caminho, ao pé da colina, ouvi o rumor de uma corrente. Não soube que rio era. Em realidade, como pinjente, não sabia nada daquele território, salvo que era domínio dos badu, os beduínos. O caminho aparecia deserta. Algo mais adiante, a uns duzentos metros do rochedo sobre o que me encontrava, um aprendiz de caminho se separava do principal, e se afastava pela esquerda, rumo ao povoado. Isso era tudo. Olivos e olivos. Milhares de zayit, minuciosamente alinhados, subindo e baixando colinas, em metade de nenhum sítio... Se aquele era um alto no caminho, forçado pela queda do sol, qual era nosso destino? O perguntava? Voltei a duvidar. E o que importava? O Filho do Homem sabia improvisar... Melhor assim. O Galileo ficou em pé, deixou o saco de viagem sobre o caminho e me fez um gesto, solicitando que aguardasse. Assenti com a cabeça e caminhei para o esteira. Então, conforme se afastava, voltou-se, e gritou: -Recorda mau'AK... Deus não improvisa! Riu com vontades, e prosseguiu pelo caminho principal. Avermelhei, suponho. Não havia forma de acostumar-se. O estava em meu interior, felizmente. Sim, felizmente... Tomou o senderillo secundário, e continuou com suas pernadas típicas. dirigia-se ao Beit Ids. Mas por que decidiu que este explorador permanecesse no caminho? Aguardei, sumido em novas reflexões, e também ao fio de uma súbita tentação. O Mestre deixou a meu cargo seu pessoal saco de viagem. Conhecia, mais ou menos, o conteúdo. Algo tinha visto nas anteriores viagens. Agora podia lhe jogar uma olhada. Pura curiosidade. Possivelmente algum do equipamento me desse uma pista sobre o lugar ao que pretendia chegar... Acariciei a malha do saco, e, inclusive, levantei-o. Pesava pouco. Mas, ao momento, deixei-o sobre a terra. Senti vergonha. O era meu amigo. Isso
não estava bem... E agarrei às elucubraciones. Era preferível. por que me corrigiu? Se Deus não improvisa, se Ele não improvisava, isso queria dizer... Não, não o considerei sequer. Beit Ids não podia ser nosso destino último. Ou sim? Tinha-o planejado? Resisti, como digo. Aquela paragem remota, longe de tudo, só era um lugar de passagem. Amanhã, à alvorada, veria-o caminhar de novo. Ou não? Nunca aprenderei... Voltei a me encarapitar sobre a calcária, e espantei a tentação de registrar o esteira do Mestre, cada vez mais ousada. Beit Ids... Ele pronunciou o nome do povoado com uma especial entonação, como se ali o aguardasse alguém destacado, ou como se fora um marco, ou uma referência, em sua nova etapa. Beit Ids... E a maldita "voz" interior continuou pressionando: "Só tem que abri-lo, e olhar... " Não, não o faria. Ou sim? Ele não se daria conta. Ou sim? E das especulações, necessitado de manter a mente longe da tentação, passei a tira de referências, minha especialidade. Explorei com a vista quanto me rodeava e o fixei na memória. Depois, na nave, verifiquei cotas, acidente geográficos, populações, etc. Me deixei conduzir pela intuição e o examinei tudo com detalhe. Nunca se estava seguro naquela fascinante aventura... Achava-me, como pinjente, no alto de uma colina, com uma cúpula esmagada e larga, parecida com o "porta-aviões" no que descansava o "berço". Ao sul, ao outro lado do rio que se deixava ouvir sob os olivos, apresentavam-se três colinas, todas impecavelmente vestidas de verde, de 481, 640 e 754 metros, respectivamente. Entre o chamado verdinegro dos zayit não pude descobrir nenhum núcleo humano; só o olivar, como digo, dono e senhor do horizonte. Algumas águias retornavam a seus ninhos. Ao norte, por detrás do Beit Ids, aconteciam-se os Montes, como ondas verdes e imóveis. Não era possível delimitar o final. O azul do céu caía
sobre as colinas, e o sol, em retirada, tingia-o tudo de vermelho, ou de laranja, segundo sua vontade. Relativamente próximas, quase nos tocando com a mão, distinguiam-se outras três elevações, caprichosamente alinhadas deste ao oeste. A primeira tinha crescido até os 551 metros. A segunda, também destinada a olivar, apresentava 661 metros de altitude sobre o nível do Mediterrâneo. A última, a mais graciosa, era, a irmã maior da zona, com 800 metros. Não sei por que, meu coração ficou prendado daquele monte. A cúpula, arredondada pelos olivos, olhou-me de uma maneira diferente. E a recordei... Querida MA'ch! Algo mais à frente, também ao norte, destacavam outras duas cúpulas. Em uma delas, a 556 metros, distingui o branco e o negro de uma população mais notável que Beit Ids. Eram casas de pedra e de cal, médio afogadas também pelos zayit. tratava-se da aldeia do Rakib, a que vimos anunciada no cruzamento de caminhos. Para o este, na lonjura, visualizei uma oitava colina, de 778 metros, completamente cortada. Era a única, naquele entorno, em que não se plantou o olivo. Sentiu saudades. Onde estávamos? Os latidos cessaram. Jesus, sem dúvida, entrou no lugar. E meus olhos, sem poder remediá-lo, procuraram o saco de viagem do Galileo... Maldita seja! O que me ocorria? Jamais havia sentido uma inclinação tão ruim... Segui as explorações. O caminho, digamos principal, pela que subimos até o Beit Ids, continuava para o este, suponho que indiferente ante aquelas quatro casas. A não muita distância, o olivar a ocultava, e lhe permitia aparecer, de vez em vez, entre as ladeiras. Seu destino era O Hawi, outra população importante entre os badu. Olivos e olivos e olivos... Saltei da penha e me aproximei da esteira do Mestre. Voltei a acariciar a malha negra e densa, e me disse: "Só tem que abri-lo..., só olhar." E os dedos, a pesar do "não", voaram para a corda que o fechava.
Desfiz o nó. As mãos me tremiam. Não podia dar crédito ao que fazia... Então ouvi risadas e vozes. Pu-me em pé, como impulsionado por uma mola. Pela vereda que levava às casas de tijolo cru vi avançar um grupo de gente. Eram meninos... por detrás se distinguia a figura alta e corpulenta do Mestre. Alguém mais partia a seu lado. Tratei de me serenar. Não tinha passado nada. Não cheguei a olhar no interior do saco... Os meninos, descalços, vestidos com túnicas de cores, especialmente verdes e amarelas, caminhavam a bom passo, na direção deste aturdido explorador Dois deles carregavam caminhos bale de palha sobre as cabeças. Não passou nada? Como podia pensar algo assim? Tinha-o tentado. Estive a ponto de violar sua intimidade... Suponho que empalideci. Nunca soube dissimular... Os pequenos, entre seis e dez anos, mais ou menos, todos com os crânios rapados, pareciam divertidos. Riam sem cessar, e falavam com gritos, em um dialeto dos a'rab. Algo entendi. A chamada Operação Salomón e a larga permanência em território árabe tiveram suas vantagens. Embora cada tribo, ou clã, dispunha de seu próprio dialeto (havia-os a centenas na península arábica e nos territórios do que hoje são o Israel, Síria, Líbano, Iraque, Sinaí, Jordânia e Egito), "o povo que fala claramente" -esse era o autêntico sentido do término a'rab- sabia entender-se com outros árabes, embora procedessem de zonas remotas. Todos eles, nascidos de um tronco comum, conservavam o espírito da primitiva voz dialectal. Os meninos faziam brincadeiras sobre o berrani, o estrangeiro, e aludiam a sua notável estatura. referiam-se ao Jesus, sem dúvida. Então, já a um passo, reparei em algo que me deixou gelado. Mas não pude fazer nada. Como digo, estavam virtualmente em cima. Não tinha pacote a corda que servia para fechar o saco de viagem do Galileo. Desfiz o nó, mas não houve tempo para mais. O que podia fazer? Nada. Não devia me mover. Se o Mestre se precavia do assunto, iria a Ele, e confessaria minha estupidez...
Os pequenos beduínos me rodearam imediatamente, e as brincadeiras e graças se desviaram para o branco de meus cabelos, um pouco pouco habitual entre os badu jovens. Merecia-o, é obvio... Junto ao Galileo caminhava uma anciã, fraca como um junco, ossuda, com o rosto renegrido, e coberta com khol, ou maquiagem, de um verde erva que a convertia em uma máscara. A mulher tinha pintado o sobrecenho com a referida pintura, endurecendo, ainda mais, o olhar. Havia khol nas pálpebras, na frente e no queixo. Observou-me, curiosa, mas não disse nada. A diferença das beduínas que tiravam água no poço próximo à aldeia do Tantur, a anciã se cobria com uma variante do thob; o que chamavam thob'ob, uma peça de lã, linho ou algodão, segundo as possibilidades econômicas, que enrolavam ao redor do corpo e que as protegia dos ombros aos tornozelos. Em ocasiões era larguísimo, de até cinco metros. Uma dobra, chamado ob, caía para o chão mercê a um cinto. Era um sinal de elegância entre os a'rab. As mangas, igualmente largas e largas, tinham sido delicadamente bordadas em ouro. Uma delas, volta para trás, fazia as vezes de meio doido. A outra permanecia amarrada ao ombro. Nunca entendi o porquê do uso do thob'ob, sempre complicado e, aparentemente, molesto. As mulheres não opinavam assim. Ao parecer -conforme diziam-, dissimulava a figura, e as fazia mais misteriosas e desejáveis. Quase sempre era negro ou azul. Sob o thob'ob se adivinhavam umas calças, também azuis, estreitos nos tornozelos, e rematados por outros tantos bordados. A indumentária era própria de alguém rico, ou podendo. O custoso colar, em prata, que pendurava do pescoço, ratificou minhas suspeitas. Tinha sido confeccionado com esferas de três ou quatro centímetros de diâmetro, das que partiam belos lances de coral amarelo. Chamavam-no tagah, e só podia luzi-lo-a mãe, ou a esposa principal, do chefe do clã. Um grande nezem, ou aro de prata, perfurava o nariz e ocultava parte dos lábios. E em cada orelha, quatro pendentes, também em prata, que transpassavam as cartilagens. O impressionante enxoval o rematavam oito anéis, quatro
em cada mão, à exceção dos polegares. Eram redondos, ou quadrados, com estranhos símbolos mágicos. Jesus, evidentemente, tinha parlamentado com alguém destacado no Beit Ids. A mulher gritou algo sobre o caminho, e indicou a direção com uma vara que levava na mão direita. Era uma espécie de fortificação, forrado em prata, com um punho muito singular, em forma de flor. Não o utilizava para apoiar-se. Quando gritava, agitava-o no ar, como se de uma batuta se tratasse. Terei que estar muito pendente, ou se corria o perigo de receber mais de um e mais de dois golpes. Mas por que gritava? Os meninos obedeceram, e caminharam pelo caminho para o este. Jesus e a anciã continuaram "conversando", e quem isto escreve, em um momento de lucidez, adiantou-se ao Mestre e carregou os sacos de viagem. Depois, esperei. E ambos, finalmente, ficaram em marcha, depois dos passos dos moços. O Mestre, então, voltou-se e comprovou que me tinha feito cargo de sua esteira. Sorriu e me animou a que o acompanhasse. Respirei com alívio. E assim o fiz. Fui atrás deles, mas mantendo uma certa distância. Foi nesses instantes quando, sem que o Mestre se precavesse, procedi a atar os cordões que rematavam a parte superior do saco. E cometi um novo engano... Mas deste "tropeço" não seria consciente até algum tempo depois... Pelo ouvido, e pelas balas de palha, deduzi que o Galileo se dispunha a passar a noite em algum lugar próximo ao povoado. Beit Ids tinha ficado a nossa esquerda, um pouco retirado. A verdade é que, depois do amargo gole provocado por minha própria estupidez, o do alojamento me trazia sem cuidado. E me prometi, solenemente, que não voltaria a acontecer. Aos poucos minutos, o olivar ficou bruscamente interrompido, e me vi rodeado por algo que não observei da agulha de pedra. Detive-me e desfrutei de do momento. Entre os zayit, como um milagre, apareceram centenas de amendoeiras em flor. Eram de casca negra e tortuosa, de cinco e dez metros de altura,
recém florescidos, com os ramos acesos, formando uma nuvem branca e rosa. Chamavam-no o bosque da "luz", com razão... Examinei-os, e fiquei perplexo. Era um Prunus amyg dalus, mas com uma característica não conhecida por este explorador. As flores somavam seis sépalas, e outros tantas pétalas, quando o habitual som cinco. Eram flores brancas, com a base rosa, ou ligeiramente avermelhada. Incrível! Os a'rab o conheciam pelo apelido de sítta: "seis vezes bento"... A amêndoa era muito doce, e muito cotizada. Com ela confeccionavam toda classe de sobremesas, azeite para a noite de bodas, refrescos a base de leite de sítta e um "doce de amêndoa" que os judeus consumiam em 24 de dezembro, durante a festa da Janucá, e que chamavam meshukadim. Era outro das sobremesas favoritas do Filho do Homem. Mas o sítta era destinado também a outros misteres..., menos saudáveis. Com o passado do tempo soube. Aquela amendoeira, em uma variedade que mantinham oculta (possivelmente do tipo amasse), era o responsável por um dos venenos mais mortíferos da época. Extraíam-no da amêndoa amarga, e era pago a preço de ouro pelo Antipas, o tetrarca, e também por Roma. Eram suficientes uns miligramas para terminar com a vida de uma pessoa. Segundo os beduínos, o bosque da "luz" floresceu essa manhã da segundafeira 14. Tudo ocorreu muito rapidamente, nada mais concluir as últimas chuvas. Estavam maravilhados, e deduziam que "um pouco" muito importante acabava de acontecer. Uma floração tão prematura não era normal. Os deuses -diziam- baixaram a terra... Ao igual a para os judeus, a amendoeira era um símbolo para os badu. Shaked (amendoeira, em hebreu) significa "vigia". E isso era também para os beduínos: o "vigia" que alerta e que anuncia a aceleração dos acontecimentos. Tudo, a meu redor, falava do Homem-Deus, mas eu não me dava conta... Ou foi casualidade que os passos do Jesus se dirigissem para a "luz"? Naturalmente que não... Caminhamos um trecho, não muito, sempre entre as amendoeiras.
de repente, a anciã se deteve. Todos o fizemos. Os meninos arrojaram as balas de palha sobre o caminho, e a badawi levantou a vara e indicou o fundo do caminho. Não vi nada de particular, salvo o próprio caminho e a "luz" do bosquecillo, agora mais vermelha pelo próximo ocaso. O Mestre compreendeu. Deu as graças à mulher e se encaminhou na direção assinalada. -E não incomode a welieh da fonte! A advertência da beduína me alertou. Welieh era o feminino de wely, no dialeto da mulher. Wely, para os árabes em geral, era um ser protetor, sempre benéfico, que habitava nos lugares mais insuspeitados. Segundo a região, ou a tribo, o wely tinha uma origem diferente. Podia ser a alma de um antepassado. Podia ser um mensageiro dos deuses, ou também uma espécie de anjo guardião e, inclusive, o espírito de um herói. Sempre se comportava nobremente, e ajudava aos humanos. Em nossa aventura no deserto ouvi muitas histórias sobre o particular; todas elas, supus, fruto da fantasia. Ato seguido, a anciã e os pequenos deram a volta e se afastaram à carreira, em direção ao povoado. Pareciam fugir. E gritavam algo como "banat oain!" ou "as filhas da fonte". Não compreendi. Se a beduína falou de uma welieh, em singular, por que invocavam agora o plural? O que estava claro é que, apesar da bondade da welieh, os badu tinham medo, e optaram por retirar-se. Para onde nos dirigíamos? Que lugar tinha eleito o Mestre para pernoitar? Ou não foi selecionado por Ele? E ao pouco, à esquerda do caminho, entre as amendoeiras, distingui um tosco brocal de rocha calcária, muito branca. Recolhia a água de uma fonte. Jesus se deteve frente à água; contemplou-a brevemente e continuou pelo caminho. O lugar se achava deserto. Tentei localizar o sol, mas se tinha posto. Não demoraria para cair a noite. Nesse lugar, à direita do caminho pela que partíamos, o terreno sofria um acusado desnível. As amendoeiras se precipitavam para o rio que tinha ouvido, e adivinhado, pouco antes. Agora era perfeitamente distinguible, a duzentos passos. O Mestre voltou a deter-se. Quem isto escreve se encontrava atrasado, a
escassos metros, junto à fonte. Parecia contemplar algo com especial atenção... E deixou que me aproximasse... Ao chegar a sua altura, à esquerda do caminho, ao pé mesmo do caminho, descobri a boca de uma gruta. Acreditei entender. Ali passaríamos a noite... O Mestre caminhou para a entrada. Vi-o encurvar-se, e desaparecer na escuridão... Aguardei, inquieto. Eu não gostava das covas. A última experiência, na garganta do Firán, com o Yehohanan, não foi muito satisfatória, em minha opinião... E reparei em um detalhe. Não dispúnhamos de candelabros. Segundos mais tarde, como se tivesse adivinhado meus pensamentos, o Galileo retornou ao exterior, e rogou que esperasse. -Que Deus mais torpe! -murmurou entre dentes-. esqueci as luzes! E correu pelo caminho, para o Beit Ids. Este era o Filho do Homem... Examinei a boca da cova. Não levantava mais de 1,50 metros, com uma largura de 1,40, aproximadamente. Apresentava um sólido arco de pedra, que, em realidade, prolongava-se como um túnel. Joguei uma olhada, mas não foi muito o que acertei a ver. As trevas, no interior, eram absolutas. Logo aconteceria o mesmo com o exterior. Havia sangre no arco de pedra. Cobria a quase totalidade dos doze sillares que integravam dito arco. Deduzi que se tratava de uma dabiheh, uma das cerimônias de imolação que praticavam os badu e que consistia no sacrifício de um animal, sempre fêmea, com o que acalmavam ao wely de volta. Com o sangue melavam paredes, tumbas, ou qualquer lugar, supostamente relacionado com o gênio. Achávamo-nos, efetivamente, ante um mazar, uma zona Santa para os beduínos; uma cova, e uma fonte, neste caso, que tinham sido testemunhas de algum acontecimento sobrenatural ou que, simplesmente, desfrutavam de uma tradição popular vinculada a um espírito feminino, uma welieh, segundo a anciã. E recordei as palavras da beduína: "... não incomode a welieh da fonte". Em realidade me encontrava ante um mazar mais sagrado do que supunha. A dedução não foi gratuita. Muito perto da cova, como um estranho no
bosque da "luz", elevava-se um carvalho verde, de tronco grosso e pouco elevado, mas o suficiente para deixar atrás a seus protegidos, as amendoeiras. Dos ramos penduravam largas cintas de tecido de cor vermelha e verde, assim como tranças de cabelo humano, cordas conosco, partes de cerâmica e fortificações. Estava diante de outra árvore sagrada, como o que tinha visto com o jovem Tiglat, caminho do Hermón. Aquele, a sabina em que se balançavam ossos de animais, e que vi em sonhos, resumia o sentir popular dos fenícios. Este, em território beduíno, expressava o mesmo: medo. Os badu, ao igual aos habitantes da costa, acreditavam que o carvalho era uma árvore eleita pelos deuses. Daí que os raios caíssem sempre sobre elas. Por isso se encomendavam a seu amparo, e sujeitavam aos ramos qualquer objeto que pudesse representar ao crente. Os nós, nas cordas, significavam enfermidades. Ao abandoná-los sob o carvalho, o badawi considerava que as doenças, próprias ou estranhas, passavam à jurisdição dos deuses, ou do wely, que moravam em seus troncos e taças. O carvalho, além disso, como acontecia com os gregos na Dodona, constituía um instrumento de conexão com os céus. Os badu se situavam sob os ramos e solicitavam aos deuses toda sorte de favores, incluídas a morte e a ruína de seus inimigos. Alguns feiticeiros e bruxas se arriscavam a arrancar as folhas das árvores sagradas, e as vendiam secretamente. O beduíno acreditava que o simples roce de uma destas folhas, ou ramos verdes, enchia-o de vigor sexual, e lhe transmitia conhecimento. O mau era chegar até o carvalho e fazer-se com as folhas. Se o wely que habitava a árvore se dava conta, o "ladrão" podia ser devorado pelos lobos, ou feito prisioneiro por uma tribo inimizade. Em uns poucos metros quadrados, portanto, fomos encontrar a "essência" da espiritualidade beduína: deuses, gênios benéficos e a árvore santa, por excelência: a carrasca, com a cara superior das folhas em um branco algodão, agora saturadas de vapor de água, que proporcionavam à árvore um halo mágico, em especial ao entardecer.
Fiquei gratamente surpreso. Primeiro foi a "luz" branca e rosa das amendoeiras. Agora, a "coroa" luminosa da árvore... Mas, quem isto escreve, nesses momentos, não tinha aprendido ainda a "ler" os sinais dos céus... Foi Ele quem me ensinou. Aproximei as balas de palha à boca da cova e me sentei a esperar. A noite, serena, começou a liberar estrelas. Ela foi uma das primeiras. E meu coração voou longe, com o MA'ch. O Mestre retornou, por fim. Carregava cinco candelabros de barro (duas acesas) e várias mantas de lã. Beit Ids, como pinjente, estava situada a 575 metros de altitude. Isto não era o vale do Jordão. A noite podia ser fria, com temperaturas por debaixo dos oito e seis graus Celsius. Se soprava o temido vento do norte -o gemad-, a situação se complicaria. O grande aguaceiro cansado essa mesma manhã, e nos dias anteriores, ao que os badu chamavam o-gawzah, suavizou o ambiente. O Mestre, entretanto, previdente, fez-se com os cobertores. E este torpe explorador não compreendeu. Dispúnhamos dos mantos ou roupões. por que solicitar as telhas? Como digo, não caí na conta... A gruta era uma ampla caverna natural, com forma, casualmente, de "amêndoa". Do arco da entrada, o terreno descendia com suavidade. Alguém se tomou a moléstia de abovedar o breve túnel de ingresso, recubriendo também as paredes com os pesados sillares de calcária branca da zona. Em total, três metros de túnel. Jesus caminhou por diante, com os abajures de azeite, e sem medo. Conhecia o lugar? Isso me pareceu... Foi diretamente ao centro, e pendurou três dos candelabros de uma larga viga embutida na rocha, que seguia o eixo maior do túnel. Prendeu as outras e as distribuiu pelo chão da caverna. Eu continuei para o final do túnel, com os sacos ao ombro, e sem saber o que fazer. Pouco a pouco fui me acostumando à escuridão, agora me deu vencida pelas chamas amarelas, e o agradável aroma do azeite e as mechas de cânhamo, queimados. Calculei uns quinze metros de diâmetro maior, por outros seis de diâmetro menor (mais ou menos, a longitude da viga de madeira), e uns
três de altura máxima. A abóbada da cova era natural, embora parecia trabalhada. A curvatura era perfeita, como o interior de uma amêndoa, ou de uma ostra. O Mestre me animou a me mover. "Havia muito por fazer..." Muito por fazer? Não entendi. A gruta se achava vazia, com um chão aparentemente limpo, formado por uma terra seca e esponjosa. Obedeci, naturalmente. Situei a sua altura, no centro da caverna, e esperei ordens. O Galileo sorriu e assinalou a entrada, ao tempo que exclamava, malicioso: -Ela não virá sozinha... Ela? Não sei se empalideci ou avermelhei. O se precaveu de minhas curtas luzes, e esclareceu: -A palha, mau'AK!... Convém pulverizá-la pelo chão... -Claro -arredondei, me dirigindo ao exterior-, a palha... No que estaria eu pensando? Assim era o Filho do Homem... E durante um momento, esse foi nosso afã: pulverizar a palha sobre a terra. E pensei: para que tanta moléstia? Com os roupões e as mantas estavam mais que servidos. Em realidade, só se tratava de uma noite... E o Destino me deixou fazer e pensar. Seus planos eram outros, como quase sempre. O Mestre selecionou o flanco direito da gruta (tomarei sempre como referência o túnel de entrada), e ali preparamos, ao alimón, o lugar onde dormir. Então ouvimos aquele ruído... Lembrança que nos encontrávamos de joelhos, absortos no esmiuçado da palha e na inspeção da mesma, depositando-a depois sobre a terra. Quem isto escreve tinha resgatado uma pequena parte de cerâmica vidrada, sepultado no espesso manto que formava o chão, e o examinava com curiosidade. E voltamos a ouvi-lo... Acreditei reconhecê-lo, mas segui ao meu. E esta vez, mais que soar, trovejou. Jesus e eu nos olhamos. Voltei a avermelhar, acredito. O continuou com o exame do punhado de palha que tinha entre as mãos, e soou de novo, interminável. Apalpei o ventre, e comprovei que não era o responsável. E o borborigmo se
deixou ouvir pela quinta vez. O Mestre me observou novamente. Seu rosto aparecia sério. Foi só um instante. Ao ponto, a risada o desmantelou, e me contagiou. E entre gargalhadas se ouviu -"5 x 5" (forte e claro)- o embaraçoso ruído das tripas, reclamando o que era mais que justo: um pouco de comida. Eu não fui, disso dou fé. Foi o ventre do Galileo o que protestou, e deixou ouvir os continuados borborigmos. Finalmente ficou em pé. Golpeou a frente com a palma da mão esquerda e se lamentou: -Também esqueci o jantar!... E o vi sair da cova, morto de risada. Assim era Ele... Não tive tempo de reagir. Para quando alcancei o exterior, já tinha desaparecido na escuridão. Optei por permanecer na gruta. E dediquei os seguintes minutos a uma inspeção, mais a fundo, do singular refúgio ao que nos conduziu o Destino. Tomei um dos candelabros e comecei pela viga que cruzava o largo do vazio, ancorada, como pinjente, na rocha, e a coisa de dois metros do chão. Intrigou-me do primeiro momento. Para que servia? Era um carvalho duro e nervoso, bem lavrado pelas quatro caras. Levava ali muito tempo. O oco superior, entre a madeira e a rocha, era território das aranhas. Uma das redes me chamou a atenção. Era a mais extensa, com fios dobre, de maior calibre que o resto dos tecidos, e em uma tonalidade prata. A "proprietária" tinha tecido uma rede em forma de cruz. Não sabia muito destes aracnídeos, mas me pareceu estranho. A armadilha se movia levemente. A "proprietária", supus, acabava de abandoná-la. Teríamos que permanecer atentos. Alguns destes artrópodes são venenosos, e em minha "farmácia" de campanha não figurava nenhum antídoto. Os laterais do madeiro apareciam perfurados por um total de doze largos pregos de ferro; seis a cada lado. Obviamente, foram utilizados como sujeição. As cabeças se achavam martilleadas e dobradas em ângulo reto. Os badu os chamavam o cayata. Mas por que tantos? O que era o que penduravam da poderosa viga? Tinha que ser pesado, e importante. Os pregos, ou tirafondos, que se introduzem no carvalho, especialmente se a madeira está fresca, são quase impossíveis de extrair. No estaleiro do
Nahum, Yu tinha um dito: "O carvalho lhe disse ao prego: tirará a cabeça, mas deixará o rabo." Examinei o manto de terra que fazia de "pavimento", mas não achei ossos ou outros restos de animais. A caverna, como pinjente, estava poda. Tampouco encontrei excrementos, nem humanos nem de ovelhas ou cabras, ou de cães. Uma gruta tão cuidada não era freqüente... Mistério? Agora, na distância, imagino ao destino, a minhas costas, me observando e sonriendo... Dirigi-me para a direita. Na parede do fundo, quase frente ao túnel de entrada, encontrei uma confusão de cordas e duas vasilhas vazias. No interior se percebia um característico aroma de azeite de oliva. Em uma das bocas, outra aranha tinha tecido a correspondente rede de seda. Fazia tempo que não era utilizada. Muito perto, a dois passos, descobri o único sinal de vida, relativamente recente: cinco pedras, em círculo, formando um tosco e defumado lar. Examinei os restos calcinados. Eram ramos procedentes de uma poda; possivelmente do carvalho sagrado, de alto poder calorífico. O responsável pelo fogo sabia o que fazia. Os tições, ao meio consumir, tinham sido apagados bruscamente. Tomei um deles e o analisei à luz do candelabro. Como imaginei, o extremo carbonizado estava falho. Este tipo de madeira ardia até que se consumia por completo. De fato, as varas secas destas árvores eram as melhores tochas. Alguém os apagou, possivelmente com água. Era estranho. Quem podia ter tanta pressa naquela remota e cometido paragem? Tampouco soube resolver o mistério, e continuei com as indagações. Nesse extremo da cova, empilhada em desordem junto à parede da gruta, achei uma família de pranchas, aborrecidas e poeirentas. Tinha-as que todos os tamanhos: de um par de quartas a um metro. Examinei-as cuidadosamente, e tentei averiguar se escondiam algum ofídio, ou possivelmente um escorpião, tão abundantes naquelas colinas e pedregales. Aquele, é obvio, era um lugar ideal para as serpentes, caso que fizesse tempo que não era freqüentado pelo homem. Mas tudo eram hipóteses.
Negativo. Sob as pranchas não havia nada. Então, ao revolver, percebi outro aroma. Recordava-o da estadia no estaleiro, e, concretamente, de meu trabalho com os tinturas e vernizes. Era um perfume resinoso, limpo e intenso, parecido ao da tangerina, e próprio de uma madeira muito concreta, utilizada no revestimento e nas estruturas laminadas dos navios. Que casualidade! As pranchas, efetivamente, eram de tola branca. O Zebedeo pai se preocupava de importar a do que hoje conhecemos como a Nigéria e Angola. Era uma madeira delicada, de escasso peso, muito resistente aos cogumelos, e de uma notável durabilidade. Chamavam-na agba. O Mestre a mimava, possivelmente por seu nome, tão próximo a sua palavra favorita: Ab-BA (Pai). Sim, que coincidência... Algumas das madeiras apareciam protegidas contra a caruncho. Quanto ao serrado... Não era possível. Quem tivesse tentado fabricar uma embarcação no Beit Ids? Ali só havia olivos e colinas... Tive que me render à evidência. As pranchas foram empregadas na construção de um pequeno navio. O ensamblado, os cortes, etc., eram impecáveis, e próprios de um bom naggar ou carpinteiro de ribeira. Quem podia imaginar nesses instantes que as humildes e rosadas pranchas que tinha à vista jogariam um papel tão destacado, e breve? E o Destino, esse "personagem" inevitável e enigmático, atirou deste explorador para o extremo oposto da gruta... Ali não havia nada... Só distingui a terra liviana do chão e a parede da gruta, seca e monótona. Por não haver, não havia nem morcegos. Também sentiu saudades... E permaneci uns segundos refletindo. Onde me encontrava? O mais intrigante, para mim, era a viga. E ao retornar ao Ravid escrevi: ". . . uma viga de madeira, embutida na rocha, servia-lhes de armazém..." Mas não devo adiantar os acontecimentos. Sigamos, passo a passo, tal e como os vivi. Pensei, inicialmente, em um lugar para guardar grão, e também azeite, ou veio. Mas por que aparecia em desuso? Obedecia à presença do gênio da
fonte? Como era esse wely ou, melhor dizendo, essa welieh? por que a caverna estava tão poda? Quem a abandonou precipitadamente? Então os descobri. achavam-se quase ao mesmo nível terra e, como digo, à esquerda do túnel de acesso à cova. Eram dois e, obviamente, escavados na calcária. Iluminei-os como pude, mas não vi o final. tratava-se de duas "chaminés", ou condutos tubulares, perfuradas na rocha, e de uns cinqüenta centímetros de diâmetro cada uma. Eram virtualmente as gema, embora uma corria para o norte (mais exatamente, para o noroeste) e a segunda se perdia para o oeste. Passeei a chama pelas bocas das galerias e confirmei a suspeita inicial: era obra humana. abriam-se aconteço horizontalmente, mas não fui capaz das medir. Introduzi-me em uma delas e, engatinhando, avancei um par de metros. Ali me detive. Senti medo. Era impossível distinguir o final do orifício. A dramática experiência vivida no subsolo do Nazaret retornou implacável à memória, e retrocedi. Na escuridão da "chaminé" podia aninhar qualquer animália. Era melhor não correr riscos... E ao retornar à gruta perguntei, uma vez mais: onde diabos estava? O que era aquilo? Evidentemente não pareciam condutos de ventilação. por que foram perfurados ao mesmo nível terra? Aonde conduziam? de repente, a flama oscilou, agitada por uma corrente de ar. Alarmei-me. Depositei o candelabro na entrada de uma das galerias, e esperei. Não estava em um engano. Chama-a amarela se moveu de novo, incomodada por uma leve brisa. Pensei na "vara do Moisés". A tinha deixado junto aos sacos... Fiz-me com o abajur de barro, e a troquei de "chaminé". Na segunda também houve oscilação. Equivoquei-me ao pensar que não eram condutos de ventilação? O ar só podia proceder do exterior. As duas galerias tinham que desembocar em outras paragens, possivelmente não muito longe de ali. E me retirei, confuso. Não conseguia entender o por que das "chaminés". Alguém, é obvio, tomou-se muito trabalho... Teria que sujeitar a curiosidade. O Mestre era prioritário... Por certo, por que demorava tanto? O povoado estava um pouco mais acima, ao norte, a quinhentos metros como muito.
Situei-me sobre a palha e dava por terminado o expurgue da mesma. Ali dormiríamos. Mas os pensamentos, de novo, voaram ao alto, e se posaram na viga... E nisso estava, distraído com tanto por que, quando me fixei no saco de viagem do Mestre. Não, outra vez não. Tinha-o prometido... E o céu me iluminou. Esse nó... Que engano! Como pude?... Lancei-me sobre o esteira e voltei a desatar os cordões que o mantinham fechado. O se tivesse dado conta, seguro! Pouco antes, como já relatei, quando partíamos pelo caminho com a anciã beduína e os meninos, quem isto escreve ficou atrás e tentou corrigir o primeiro engano. Atei o esteira, mas, inconscientemente, fiz-o com um nó que não existia naquele "agora". Foi algo mecânico, no que não reparei. Com a precipitação do momento, fiz um nó "inventado" depois do século I: chamam-no clove hitch up, e o aprendi dos velhos marinheiros do cabo de São Blas. Que engano! Emprestei atenção e executei um novo nó: o do Isis, praticado habitualmente pelo Filho do Homem quando fechava sua esteira. E voltei a me sentar, pálido. Ultimamente, só sabia tropeçar... Mas O, uma vez mais, acudiu oportunamente e me resgatou do naufrágio. Não sei como o fez, mas o jantar foi "inesquecível"... Primeiro, uma generosa tigela de kseksu, um dos pratos típicos dos badu, a base de sêmola de trigo, cozida ao vapor, e verduras. Sobre tudo, cebolas, com um toque mínimo de ovos duros. Depois, a surpresa. O prato "forte"... uma espécie de "torta" ou "massa" (?), composta por tâmaras e gafanhoto. Ao retornar ao "berço" soube que tinha devorado, mais que comido, o chamado cónico ou "pyrgomorpha cónica", pequeno, de apenas três centímetros de longitude, de cabeça cónica, e de vivas cores verdes ou violetas. Os beduínos os capturavam a milhares depois das chuvas. Arrancavam-lhes as asas e os cozinhavam com diferentes tipos de tâmaras. Nesses momentos, no Beit Ids, dispunham do cariot, de suco leitoso, denso, e aromatizado
previamente em cubas que continham vinho ou mel. Curioso. Cariot era o povo natal do Judas, o Iscariote... Judas, sem proporlhe foi protagonista do primeiro jantar do Jesus do Nazaret, como HomemDeus, e da última. Alguém teria que investigar essa simbologia. por que o mais doce, e o supostamente malvado, fundiram-se em um, e nas mãos do Filho do Homem? Tâmaras e lagostas. O bem e o mal, no Beit Ids... Quem tem ouvidos, que ouça... O jantar foi acompanhada de azeitonas negras, em vinagre, e do qors, o pão habitual dos beduínos. Era o de batalha, o das viagens, e o de todos os dias. Fabricavam-no com sal, e sem levedura. Faziam-no sempre pouco antes das comidas. O requisito fundamental é que se comesse quente; do contrário, convertia-se em uma pedra. Os badu, geralmente os homens, confeccionavam a massa e a enterravam. Previamente, o oco era acondicionado com brasas. Ali a depositavam e, ao momento, descobriam-na. Davam a volta à torta, e obtinham um pão rangente, nutritivo e delicioso. Três "voltas" à massa era melhor que uma, ou que dois, mas não era um trabalho tão simples. Era preciso calcular o tempo justo. Para isso, os beduínos contavam estrelas. O bom qors era noturno. Se o céu se apresentava nublado, o badawi cantava, e recitava as cores que acreditava ver na fogueira em que cozinhava. De sobremesa, algo que não esquecerei, e que sinto falta de cada anoitecer: o halwa, um doce delicioso, elaborado com amêndoas, mel, manteiga, ovos batidos e, segundo o clã, umas gotas de suco de frutas (nunca consegui averiguar o "segredo" dos sucos). O resultado era uma "pastilha" de cor amarela, parecida com o "turrón". Mas não estou sendo sincero. Em realidade, a quem sinto falta de é a Ele..., e a ela. Um jantar difícil de esquecer... O Mestre o dispôs tudo e, sentados sobre a palha, no silêncio da gruta, observamos a comida, famintos. Olhamo-nos com cumplicidade. Os olhos do Jesus faiscaram à luz dos candelabros. O que tramava? Pensei nos gafanhoto. Aquele Homem adorava as brincadeiras...
Mas não. O pensava em outro assunto. E não demorou para expô-lo: -Hoje, querido mensageiro, foi um dia muito especial... Eu gostaria que fosse você o encarregado da bênção... A petição me deixou confuso. Estranha vez o vi benzendo a mesa ao estilo judeu. Não era muito dado a tais costumes; algo que lhe custou também mais de um enfrentamento com os ortodoxos. "Comer sem benzer -proclamavam os doutores da Lei- era profanar uma coisa Santa." Mas acredito que não me estou expressando corretamente. Jesus sim benzia os mantimentos, mas não o fazia segundo as fórmulas rituais, e obrigadas, que repetiam os judeus. Suas "bênções", para a mãe, a Senhora, e para os rigoristas da Lei mosaica, roçavam a blasfêmia. E as críticas, como digo, foram constantes. -Mas, Senhor... Eu só sou um mau'AK... A defesa foi inútil. O Mestre me olhou como só Ele sabia fazê-lo, e me jazeu. Um sorriso apareceu primeiro nos olhos. Um sorriso pícaro e anunciadora... Soube. Estava perdido. E o sorriso se derramou pelo rosto, e pela cova inteira. Moveu as largas e estilizadas mãos, me animando. Fiz o que pude. -Damo-lhe obrigado, OH, Pai... Duvidei. Olhei-o, procurando sua aprovação, e Ele moveu a cabeça, manifestando certas dúvidas, suponho. -... por estes mantimentos... Então caí na conta. E perguntei: -Os gafanhoto são um alimento ou um castigo? Adeus à bênção. A risada arruinou as boas intenções. -Está bem -atravessou o Mestre, definitivamente vencido-. Eu me ocuparei... Entreabriu os olhos e elevou o rosto para a escuridão da abóbada. As luzes dos abajures o seguiram, curiosas, e o iluminaram para a ocasião, doce e discretamente. E a voz, grave e profunda, nascida do coração, disse: -Ab-BA [ referido a Deus]... Damo-lhe obrigado porque está aí!... No grande e no pequeno! ... No trigo do coração humano, ainda por germinar!... Na doçura do simples, e na paz interior, a filha menor da verdade!... Guardou um breve silêncio, e concluiu:
-E obrigado também pelos gafanhoto, embora tivéssemos preferido cordeiro!... Abriu os olhos e, recuperando o habitual bom humor, me piscou os olhos um olho. -Deve me desculpar -acrescentou, incorrigível-. Sou um Homem-Deus com pouca experiência... E sem mais demora, lançou-se sobre a comida. Os dedos da mão direita caíram no kseksu, mas, súbitamente, soltou o trigo cozido e as verduras. Imaginei que se queimou, mas não. O prato se servia frio... ficou rapidamente em pé. Solicitou perdão e saiu da cova... Esta vez reagi. Tomei um dos abajures e fui depois Do. O que acontecia? Era a terceira vez que o via partir como um meteoro... Acreditei ver sua silhueta à esquerda da gruta. Como mencionei, a sete ou dez metros, muito perto da ampla caverna natural, brotava uma fonte. Mas... Eu me achava sob o arco de pedra. A fonte, neste caso, ficava a minha direita... Além disso, essa sombra... Estava no certo. Ouvi o ruído da água. O Mestre parecia lavar-se na pequena piscina que formava o brocal de calcária. Então, essa sombra... Quando a busquei de novo na escuridão, tinha desaparecido. Fiquei confuso. Era um vulto sensivelmente menor que o do Galileo. Avancei um par de passos e estendi a luz, mas foi insuficiente. A lua, em sua metade crescente, não proporcionava a claridade necessária. Encolhi-me de ombros e retornei à boca da cova. Podia tratar-se de algum dos meninos beduínos que nos acompanharam ao entardecer. Rechacei a idéia. Aquele era um lugar santo, e temido pelos badu. Dificilmente se tivessem aproximado, e menos de noite. E fiquei intrigado... Possivelmente imaginei. O Mestre não demorou para retornar. A dedução foi correta. Tinha esquecido lavar as mãos, em especial, a direita, habitualmente empregada para comer. Entre os judeus, como já referi em seu momento, a mão direita era a mão obrigada para assear-se depois de levar a cabo as necessidades maiores. Não lavá-la, antes de comer, era uma ofensa. Não era este meu caso - Como poderia me ofender Jesus do
Nazaret?-, mas o Mestre, respeitoso, ajustava-se sempre às normas com um mínimo de sentido comum. Passou ante mim, secando-se com os baixos da túnica. Então o ouvi. Melhor dizendo, ouvimo-lo. Jesus se deteve, e olhou para a esquerda. Estou seguro de que o ouviu com a mesma nitidez. Mas, depois de um par de segundos, ingressou no túnel de entrada da caverna. Permaneci atento, com os olhos fixos na noite. E se repetiu pela segunda vez. Procedia do alto. Calculei que podia achar-se nos ramos do carvalho sagrado. Soou como um grunhido, comprido e, em certo modo, humano. Que classe de pássaro emitia um canto semelhante? Não soube reconhecê-lo, e posso presumir de saber identificar dezenas de aves, só por seus gorjeios. Nesses momentos não me ocorreu associar o pequeno vulto com os grunhidos. Não tinha sentido... Esqueci o assunto e decidi imitar ao Galileo. Quem isto escreve tampouco se asseou. Eu também devia ser cortês. Caminhei para a fonte e depositei o candelabro sobre a parede de rocha que remansaba a água. Retirei a túnica e me refresquei. E nisso estava quando, súbitamente, ouvi os grunhidos. Esta vez soaram a minhas costas. Voltei-me, mas não vi nada. Só negrume, e a "luz" das amendoeiras, agora difusa, quase dormida, com a meia lua tentando ressuscitá-la. repetiram-se mais perto. Soaram "5 x 5". Pensei em um javali. Na zona eram freqüentes, especialmente os arochos, de grandes cabeças e presas curvas e afiadas como navalhas de barbear. Maldita seja! O cajado se achava na gruta... Dispunha da "pele de serpente", mas, com um destes animais nunca se sabe. São extremamente perigosos se se sentem encurralados, ou se estão feridos. fez-se o silêncio. Pensei em correr para a cova. Tivesse sido uma temeridade. E cometi uma imprudência. Entrei na escuridão e tentei descobrir ao intruso. Silêncio.
Caminhei dez ou doze passos, até que compreendi o absurdo e arriscado da manobra. Se topava com o javali (?), o que podia fazer? O único sensato tivesse sido subir a uma das amendoeiras, caso que dispusera de tempo... Não voltei a ouvir os grunhidos. E retornei à fonte. Foi nesses instantes, ao sair do bosquecillo de amendoeiras, quando comprovei que faltava a luz que acabava de depositar sobre a rocha. Senti-me novamente confuso. Eu a tinha deixado ali fazia uns minutos... Rodeei a fonte e medi a terra. Possivelmente se tinha cansado. Mas como? A noite estava em calma. necessitou-se um vento muito forte para derrubar a pesado abajur de azeite; chamavam-nas nattif, por sua considerável capacidade (podiam iluminar toda uma noite). Tive um pressentimento. E explorei de novo meu entorno. Nada. Nenhuma sombra, nem um grunhido. Mas como era possível? Os abajures de barro não voam, que eu saiba... A welieh da fonte? Era isso? Reprovei-me minha ingenuidade. Esses gênios só existem na imaginação e no medo das pessoas supersticiosas. Sim e não... E o Destino, divertido, viu como me afastava, em direção à gruta. Tinha muito que aprender para ser um kui... antes de entrar, dediquei outro olhar ao negro vigamento do carvalho. Nada. Só silencio e escuridão. "...e não incomode a welieh da fonte." As palavras da anciã soaram novamente em meu interior, forte e claro. Mas não soube a que atenerme. E incorporei ao jantar. O Mestre aguardava. Como pinjente, devoramo-lo tudo. Os "cólicas", como chamavam os badu aos gafanhoto, não estavam tão mal, mas tivesse preferido cordeiro. O Mestre sabia do que falava, inclusive nos assuntos mais intrascendentes, ou supostamente intrascendentes. Falou feliz, e se centrou "em quão bem fazia as coisas seu Pai, e a "gente" ao serviço de seu Pai". Se referia às tâmaras e ao halwa, a muito doce e cremosa sobremesa. Saboreou-o. Vi-o fechar os olhos e suspirar, ao tempo que se lambia os dedos. Aquele Homem sabia desfrutar de cada momento...
E torpe, como sempre, não acertei a perguntar. A que "gente" se referia? Quem "trabalhava" com Deus, ou para o Ab-BA? Para ser sincero, meus pensamentos foram e vinham. Não era capaz de esquecer o ocorrido na fonte da welieh. O candelabro não pôde evaporarse. Ali, na cova, efetivamente, ficavam quatro. E me propus limpar o mistério. Ao dia seguinte, se dispunha de tempo, pentearia o bosque da "luz"... Tempo? Sim, tive-o... Concluída o jantar, o Mestre estendeu uma das mantas sobre a palha e, alegre, tomou sua esteira e se dispôs a abri-lo. Continuei sentado e espectador. daria-se conta da manipulação das cordas? Supus que se dispunha a descansar. O dia foi exaustivo, tanto física como mentalmente, ao menos para este explorador. Em um judeu normal, obrigado-o, antes de tentar conciliar o sonho, era entregar-se à sagrada cerimônia da "prece": a Semoneh esreh, em que elogiavam o poder do Yavé, solicitavam conhecimento, saúde, boas colheitas, perdão e toda classe de negócios e, por último, exigiam de Deus a destruição dos ímpios e o logo envio do Mesías libertador. Em total, como já manifestei, o judeu piedoso tinha a obrigação de recitar as dezenove preces três vezes ao dia (na manhã, a primeira hora da tarde, e ao ocaso, ou antes de dormir). No tempo que me tocou viver com o Filho do Homem, nunca o ouvi rezar as citadas Semoneh. Podia fazer-se em silêncio, mas a maioria o fazia em voz alta, declarando assim seu zelo pelo Yavé. Não sei se Jesus chegou às pronunciar alguma vez em voz baixa, ou para si, mas conhecendo sua forma de pensar, duvido, sinceramente, que se submetesse a dita obrigação religiosa. Por isso não sentiu saudades que o dispusera tudo para o necessário e reparador sonho. Equivoquei-me, de novo... O Mestre não pretendia dormir, de momento. E fui testemunha de outro ritual, novo para quem isto escreve. Depois, ao longo da vida pública, voltaria a presenciá-lo muitas vezes. Era simples. Encerrava um dobro significado: a revisão de suas coisas, propriamente dita, e o sinal, inequívoca, de que pretendia permanecer nesse lugar, ao menos durante um tempo. Nesses instantes, lógicamente, eu não
sabia... Olhou-me, e agradeceu meu silêncio. Isso pensei. Depois duvidei. Possivelmente o olhar continha outro significado. Sabia o ocorrido? Soube que tinha aberto o saco? Nunca o declarou abertamente, mas... Primeiro soprou sobre o nó do Isis. E ao desenredá-lo, exclamou: Soltemos as ataduras...!É a hora! E lenta e ceremoniosamente, com a atenção de um menino, foi extraindo o conteúdo do esteira. Senti-me incômodo. Era como se tivesse lido minhas intenções. Estava claro. Com o Homem-Deus, nenhum pensamento ficava oculto.Como o fazia? Foi outro dos grandes mistérios que jamais resolvi. Não disse nada. Não insinuou. Simplesmente, utilizou o silêncio para falar, e para me satisfazer... Extraiu o grande roupão, o manto cor veio. Dobrou-o cuidadosamente, e o depositou sobre a palha, no lugar que lhe serviria de cabeceira. Depois se ocupou da túnica de reposto. Nas viagens medianamente largas, sempre procurava fazer-se com dois: a vermelha, a que luzia nesses momentos, e a de cor jasmim, presente da Senhora, sem costuras, e trancada em lã pura da Judea. Cheirou a malha e foi pendurar a de um dos pregos da viga central. E ali ficou, branca e oscilante, como um anúncio; um prometedor anúncio... Contei um par de saq e um tecido de algodão, destinado ao asseio... por que pendurava a túnica? A idéia era pernoitar na gruta. Ao dia seguinte partiríamos. Esses eram meus pensamentos... Uma esponja e uma pastilha de borit, o "sabão" habitual, fabricado com cinzas de novelo aromáticas (romeiro e orégano, entre outras) e potássio mineral. Em ocasiões, o borit continha também azeite essenciais, com cal, ou azeite cozido, dikali e argila. Era um "sabão" sem misericórdia: terminava com a sujeira, mas irritava a pele. Era preciso mesclá-lo com uma abundante dose de água. Depois lhe tocou o turno a uma pequena lima para as unhas, e ao "dentifrício", consistente em um pó de anis, misturado com pimenta cheirosa. dissolvia-se em água, e se mantinha na boca durante um par de minutos. Tinha que dois tipos. Um, perigoso, pouco recomendável por seu alto conteúdo de anetol, que podia afetar ao sistema
nervoso. Outro, mais popular e barato, com um anis de "segunda" (cominho doce), que deixava um fôlego fresco, embora menos duradouro. O Galileo utilizava este último, embora jamais percebi que tivesse problemas dessa índole. A dentadura era impecável, sempre branca, e perfeitamente alinhada. Extraiu uma tigela de madeira e a depositou também sobre a manta. O "prato" me trouxe para a memória uma desagradável cena, nas cúpulas do Hermón, quando Eliseo tratou de esconder uma tigela similar, em que Jesus tinha escrito uma mensagem. Ato seguido o vi trabalhar em excesso-se na busca de algo. Introduziu o braço no saco e rebuscou, ao parecer, sem êxito. Abriu o esteira quanto pôde e se situou de joelhos, pendente do interior. E assim permaneceu uns segundos. Finalmente, tomou um dos candelabros e iluminou o fundo do esteira. Sorriu, feliz. Introduziu a mão e foi tirar uma esferita branca, ou quase branca, de uns três centímetros de diâmetro. Era a primeira vez que a via. Chamou-me a atenção desde esse instante. O Mestre a acariciou com os dedos de sua mão esquerda e brincou com ela. Pareceu-me um quartzo branco, algo turvo pela inclusão de líquidos. Mas não. Ao movê-la entre os dedos, a esfera difractó a luz dos abajures de azeite, e provocou uma surpreendente refração, similar a uma "nuvem" azul. É o que chamam "adularescencia". Fiquei cativado. A cada giro, a esferita replicava com um brilho azul. Jesus parecia hipnotizado com a pedra. Evidentemente, divertia-lhe. Ou não era isso? Deduzi que podia tratar-se de algum tipo de feldespato, mas, francamente, não soube identificá-lo. E acreditei ver algo no interior. Algo negro... Pensei em uma inclusão natural (partículas que alteram as propriedades do metal ou do meio cristalino). Não estive seguro. Teria que havê-la examinado, mas se achava entre os dedos do Filho do Homem. Algo como um número... Algo escuro. E me perguntei: de onde tinha saído?, o que significava?, por que acompanhava ao Galileo?, por que o interesse do Jesus pela pequena
esfera? Ninguém me contou nada a respeito. Nada li sobre o particular. Não dispunha da mais mínima pista. Como digo, essa foi a primeira vez que a vi... E o Destino, suponho, observou-me, divertido. Jesus a depositou na tigela, ligeiramente inclinada sobre a palha, e a esfera rodou até um dos extremos, o mais próximo a quem isto escreve. Foi como um "sinal". O Mestre o advertiu, e me sorriu. Naturalmente, leu meu pensamento. Mas não disse nada... O Galileo continuou com o ritual. Um pente de madeira, de dobro uso, com puas abertas para desenredar, e outras, fechadas, para pentear, propriamente dito. "Fósforos" de enxofre, e o correspondente pederneira para as incendiar; sem dúvida, um dos "inventos" mais práticos da época, que economizava esforços na hora de conseguir fogo. Uma bolsa de oleado, ou punda, não muito grande, em que se ouvia o tilintar de algumas moedas. Jesus quase não lhe emprestou atenção. Deixou-a na tigela, junto à esfera das irisações azuis. Também lhe vi tirar a navalha, com manga de osso, utilizada habitualmente pelo Mestre para repassar a barba e cortar o cabelo. Entre os judeus, a barba era um símbolo, cantada, inclusive, nas Sagradas Escrituras. Jeremías aborrecia aos que a barbeavam. Os muito religiosos ou extremistas, caso dos zelotas, consideravam-na um signo na resistência contra Roma. Só em caso de luto estava bem visto que se raspasse. Para o Jesus, entretanto, a barba não era uma manifestação de religiosidade, como pretendia o Salmo 133, ou de rechaço do invasor. Simplesmente, sua barba, partida em dois, era um assunto de simples comodidade. Quanto ao cabelo, sempre sobre os ombros, o razoável é que o cortasse cada mês. Em geral, procurava que coincidisse com a lua nova. Alguma vez chegou ao ter pelas costas (lembrança, por exemplo, as dramáticas horas de sua paixão e morte). Uma vez por semana o lavava e protegia com qualquer dos múltiplos azeites essenciais daquele tempo. Jamais utilizava espelho. Nunca, que eu recorde, vi-o olhar-se em uma daquelas polidas
superfícies de latão, bronze ou prata. Quando arrumava os cabelos, se era possível, o fazia sobre a superfície da água. A Lei mosaica era tão exigente, e minuciosa, que ditava o momento, inclusive, no que os varões deviam cortar seus cabelos (as mulheres não figuravam nesse capítulo da Misná ou tradição oral): o rei devia fazêlo diariamente. O supremo sacerdote, a véspera de cada sábado. Os sacerdotes, cada trinta dias. Os meninos, assim que apontasse (evitavam assim as pragas de parasitas). O resto do povo, quando se apresentassem os piolhos na cabeça... Jesus, a meu entender, sentia-se cômodo com o cabelo comprido, e só o cortava quando começava a ser uma moléstia. Por certo, se Pablo do Tarso tivesse conhecido ao Jesus, possivelmente não se teria atrevido a escrever o que aponta na Primeira chamada Epístola aos Corintios (11, 14): "Não vos insígnia a mesma natureza que é uma afronta para o homem a cabeleira?... " No que pôde pensar o nefasto Pablo? Era uma ofensa para a natureza que o Mestre luzisse aqueles formosos cabelos de cor caramelo? A mulher, é obvio, tampouco escapa a estas doentias advertências do grande misógino (e além "santo") (!). Essa mesma epístola, e a primeira carta ao Timoteo, falam por si mesmos. Duas cintas de lã, para recolher o cabelo nas viagens, completavam as pertences do Filho do Homem. Em realidade, isso era tudo o que tinha na vida, e a "casa das flores" no Nahum, embora já quase não lhe pertencia... Observou seus "tesouros" e permaneceu pensativo. Depois retornou ao saco de viagem e voltou a rebuscar no fundo. Parecia ter esquecido algo... Assim era. Ao ponto, entre os dedos, vi surgir um pequeno frasco de vidro, de cor azul escura, perfeitamente selado com os "plugues" da época: um tecido de fibra de cânhamo. Tinha forma de granada. Supus que continha algum perfume. Era um frasco típico, chamado foliatum, inventado pelos fenícios, peritos na obtenção de cristais de cores. Tinha-os visto nas tabernae de algumas cidades. Tive-os, inclusive, nas mãos e reconheci a viveza dos fenícios. Eles não conheciam a base científica que aconselhava conservar os perfumes em recipientes opacos
(preferentemente de cor marrom ou azul), mas, mercê à observação, entenderam que ditos contêineres preservavam melhor os azeites essenciais. Tinham razão. A luz ultravioleta deteriora ditos azeites. Era necessário, pois, que a luz do sol não incidisse diretamente sobre os frascos. A forma de consegui-lo era o foliatum. Abriu-o e o aproximou do nariz. Sempre me chamou a atenção seu nariz proeminente, tipicamente judia, destacando naquele rosto alto e bem proporcionado. Hei-o dito alguma vez. O nariz foi o único rasgo em discórdia, em um corpo perfeito. Entreabriu os olhos e inspirou profundamente. E imagino que o perfume o invadiu. Depois, pletórico, passou-me o frasco e me convidou a que o compartilhasse. E assim o fiz. Foi então quando soube do kimah. Foi a primeira vez que tive contato com esta desconcertante essência. Depois me informei. O Mestre o tinha reservado para um momento especial (muito especial). E que melhor que aquele 14 de janeiro? A partir desse dia, usou-o com regularidade. Depois do asseio matinal, umas gotas de kimah se enredavam na barba, sempre na barba. Quando voltei a ver o Yu, perguntei-lhe. O o tinha agradável ao Mestre. E o chinês contou uma história estranha, típica de um kui. O ki mah procedia de um lugar chamado Timná, no reino arábico do Qataban, muito próximo ao mítico Saiba, na chamada rota do incenso. Fabricava-o outro homem kui, um alquimista badawi com o que Yu mantinha relação, mercê às caravanas que se detinham no Nahum. O kimah, que poderia ser traduzido pelo Pléyades", era elaborado com seis azeites principais, em honra, justamente, às seis estrelas de dito amontoado estelar, e que podem ser contempladas a simples vista. Era muito cobiçado entre os perfumistas, mas só o kui do Timná conhecia seu segredo. pagava-se mais que pelo kifi, um perfume egípcio empregado pelos sacerdotes, mescla de dezesseis essências diferentes, e que provocava a acuidade sensorial de quem o utilizava, abrindo a mente, e fazendo mais agudos os sentidos. E se pagava mais porque o kimah abria os sentidos de outros. O kimah -este era seu segredo- tinha a capacidade de provocar determinados sentimentos nos que chegavam a
cheirá-lo. Segundo Yu, os componentes básicos eram sândalo branco, jara cerval, canela, um produto que chamou tin tal (terra molhada pela chuva), nardo ou narada (sempre índico ou jata mansis) e tangerina. Segundo fora o estado de ânimo, assim preponderava um ou outro azeite essencial. Essa foi a confissão do Yu. Se o receptor se achava em paz, o aroma dominante era o do sândalo branco. Um pouco parecido ao que os perfumistas modernos designam como a "nota superior" em qualquer perfume; quer dizer, a que primeiro se percebe quando se capta um aroma, e que nada tem que ver com a "nota apóie", que é o elemento de maior duração. Se a pessoa que levava o kimah experimentava ternura, ou amor, o aroma dominante trocava, e aparecia a essência de tangerina. Tudo isto -segundo Yu- tinha um efeito secundário nos que rodeavam ao portador do kimah. Cada aroma, como pinjente, tinha a faculdade de provocar um determinado sentimento nas pessoas que estavam perto. É obvio, não acreditei uma só palavra. Eram as histórias do Yu... Entretanto, ficou uma dúvida. Houve momentos, efetivamente, nos que o perfume do Mestre trocava. Agora, ao me oferecer o frasco e cheirar o conteúdo, percebi a característica fragrância do sândalo branco, um dos azeites essenciais do kimah. Era um aroma intenso, mas discreto, próprio dos componentes (ácidos santálico e terasantálico, fusanol e santalol, entre outros), e muito tenaz. Algum tempo depois, quando aconteceu o que aconteceu, sim notei uma mudança no kimah do Galileo. E se repetiu, e se repetiu... Mas meu espírito científico não o aceitou. Aquilo carecia de fundamento, a não ser que as variações em dito perfume tivessem alguma relação com as mudanças no pH do líquido extracelular do Filho do Homem. Dito líquido "ECF", como é sabido, serve para o muito importante intercâmbio de nutrientes, procedentes da digestão celular, assim como para o necessário contribua de oxigênio, etc. Se fazia dominante um tipo concreto de azeite essencial como conseqüência das muito ligeiros variações do
pH? Se a mudança no estado de ânimo da pessoa era conseqüência das oscilações do pH -algo que está por demonstrar-, afetava sorte modificação ao kirnah, ou era ao reverso? Tive muito tempo para pensá-lo, mas essa é outra história... Devolvi-lhe o frasco azul marinho e assenti: -Delicioso... Verdadeiramente, encontrava-me ante um perfume "seis estrelas", digno Dele. É curioso. Jamais os escritores "sagrados" se preocuparam de informar sobre as pequenas grandes costure que rodearam ao Filho do Homem e que, é obvio, tiveram sua importância. Eu sim o tenho feito. Entendo que a vida de qualquer ser humano consta de grandes momentos, às vezes sublimes, mas, sobre tudo, de milhões e insignificantes (?) "esta Ahoras é uma de minhas intenções na hora de construir o presente jornal: me recrear nos detalhes que também formaram parte da vida do Galileo e que perfilam, melhor que nada, sua verdadeira personalidade e seus pensamentos. Possivelmente, em ocasiões, o hipotético leitor destas memórias se desespere ante a aparente lentidão na narração dos fatos. Tudo foi minuciosamente concebido, e não precisamente por mim... -O Pai -replicou o Mestre, ao tempo que voltava a sentar-se sobre a palha, frente a este explorador- e sua "gente"... Já vê como trabalham... Outra aquilo vez. A que se referia? Quem era a "gente" que trabalhava para o Ab-BA? E aproveitei sua excelente disposição, e o expus. Jesus, acredito, esperava a pergunta. -Recorda sempre, querido mau'AK, que minhas palavras são uma aproximação à verdade... Pinjente que sim com a cabeça. Não o esqueceria. -Pois bem, para chegar a ser um Deus, primeiro tem que aprender a delegar. Sorriu, e continuou descendendo em minha torpe inteligência. -Ele, Ab-bá, é a luz. O chega e o perfuma tudo, mas, previamente, outros, sua "gente", colaboraram no prodígio. São incontáveis as criaturas que participam da beleza, no amor, ou no simples avanço das leis fisicas e espirituais. O visível está
cheio, mas o invisível está repleto. Compreendi, mas não compreendi. O notou, e tomou o frasco azul entre os dedos. Mostrou-me isso, e perguntou: -O que é? -Um perfume, Senhor... -Mas como se obtém? -Graças às novelo, à luz, e a quanto rodeia ao sândalo, e a jara, e à tangerina... -Todos fazem o milagre. Todos participam... Assim era. As essências, que posteriormente se convertem em azeites essenciais ou perfume, mediante pressão ou destilação ao vapor, aparecem nas novelo como um autêntico "jogo de mãos" da natureza. As células secretoras, altamente especializadas, "jogam" com a luz e se transformam em estruturas químicas complexas. E a planta combina essa energia com elementos químicos da água, do terreno, do ar e, inclusive, dos excrementos que podem abonar o chão. É assim como nascem os ácidos, os fenoles, os aldeídos, as cetonas, os álcoóis, os ésteres, os terpenos e os sesquiterpenos. E todos eles, como se de uma orquestra se tratasse, se reúnen e compõem a "música" dos perfumes. O Mestre falava com razão. Todos colaboram, embora nada tivesse sido possível sem a luz. Sim, o Pai perfuma com a luz... Mensagem recebida. -O Pai e sua "gente" -repetiu Jesus, sem dissimular sua satisfação-. Trabalham ou não trabalham bem? -Muito bem, Senhor... E me atrevi a ir um pouco mais à frente em nossa primeira conversação no Beit Ids. O aceitou, encantado. -E O está aí, no grande e no pequeno. Sabe de algum lugar onde não está o Pai? Sem querer, começava a me parecer com o Eliseo, na hora de expor determinadas questões. O percebeu, e sorriu, pícaro. -Tudo o que é, ou existe, é-o porque Ele o imaginou previamente... Deixou que soltasse a imaginação, e que me aproximasse de seu pensamento. Não sei se o consegui. Mais ainda -continuou-: O que não é... também é dele. -Quer dizer, Senhor, que o que vemos, ou sentimos, foi imaginado
previamente? Assentiu em silêncio, e divertido. Sabia muito bem aonde queria ir parar. -Então, quando nós imaginamos... -Não, mau'AK, não confunda minhas palavras. Eu não hei dito isso. O Pai imagina e é. O ser humano imagina porque já é. Essa é uma das grandes diferencia entre o homem e Deus. -Um momento -lhe interrompi, certamente surpreso-, quer dizer que não podemos imaginar se imaginado não existiu com antecedência? -Assim é... -Tudo? -Tudo -replicou, terminante-. Absolutamente tudo... -Não consigo entendê-lo... -É lógico. Está ao princípio do caminho. O Pai é mais preparado que você... Esta vez fui eu quem assentiu em silêncio. É claro que sim que o é. Jamais tivesse imaginado que meus sonhos, meus desejos, inclusive minhas iniqüidades, pudessem ter existido com antecipação a minha própria realidade. -Não te atormente agora com isso -atravessou, oportuno-. Nem sequer Deus é o final... -Assombra-me sua familiaridade para com Ele. É difícil acostumar-se. por que lhe fala assim com Pai? -Crie que é o Deus do medo? -Você ensina o contrário, mas... -Sei, minha mãe, meus irmãos, estes, meus pequeñuelos de agora, foram educados em um Deus ao que terá que temer. Sabe bem: eu vim a trocar isso. Como pode sentir medo da luz, que te ajuda e te vivifica? Como devo falar com o amor? E desenhou no ar a palavra áhab (amor). Entendi: com maiúscula... -Com o Amor, querido mensageiro, nem sequer é preciso falar Mas, se o fizer, faz-o com a confiança, com o respeito, com a admiração, com a alegria e, sobre tudo, com a simplicidade que proporciona um amigo... Duvidou. -O Pai é mais que um amigo, e mais que uma noiva ou um noivo. lhe fale, silo desejas, como te fala com ti mesmo. Em realidade, embora não saiba, estará-lhe falando com Ele.
-Sem medo... -Concebe a luz como um juiz? Crie que o Amor leva as contas? Para que está o perfume? Sente medo quando me fala? Neguei imediatamente. Podia sentir outros sentimentos, muitos, mas jamais o medo. Aqueles olhos, como o mel líquido, não tinham nascido para assustar ou dominar. Isso sei, e sempre o defendi. O olhar do Filho do Homem era um refúgio... -Falar com o Pai..., como se fora um amigo, e a qualquer hora, como você... -Assim é. Não importa quando, nem por que. Para falar com Ele não necessita um motivo. Necessita uma razão para sonhar, ou para amar? -Mas, se dirigir a Ele, tem que ser por algo... -Sim, esse é outro equívoco que eu gostaria de corrigir. Ao Amor não convém lhe pedir nada. É um engano e, além disso, uma perda de tempo. Você está apaixonado... Estremeci-me. Sabia que sabia, mas, assim, de repente... ... e jamais lhe pediste nada. Ao contrário... A penumbra da cova chegou em meu auxílio. Suponho que estava vermelho, como uma papoula. Mas Ele passou sobre minha inquietação nas pontas dos pés, como se não tivesse importância. Querida MA'ch... Ele sabia. -Se falas com o Pai -prosseguiu com um sorriso de cumplicidade-, não perca o tempo. Não solicite o que já tem, ou terá. E esclareceu: ...Se Ele imaginar, e é óbvio que assim é, posto que está aí, frente a mim, Ele o faz com o necessário para sua sobrevivência. Você não depende de ti mesmo, embora crie o contrário, mas sim Dele. Pois bem, se existir, porque te imaginou, por que se preocupa do material? No Amor, como no perfume, tudo se ordena mágica e beneficamente. -Então -o interroguei com um fio de voz-, o que devo pedir? -O que me pede , quando estamos juntos? Boa pergunta. E me fez pensar. Jamais lhe pedi um favor, nada físico. Bastava-me com sua companhia e, sobre tudo, com sua palavra. Leu meus pensamentos e moveu a cabeça afirmativamente. Depois, recreando-se, manifestou: -lhe ouvir é um prazer. Parece-te pouco? Além disso, dada sua condição de Pai, sempre dá de presente algo...
-Ouvir por ouvir? -Esse é o segredo que abre o coração do Amor. quanto mais queira, mais deve ouvir... Melhor dizendo, mais deve ouvir... o. -E o que dá de presente? -E por que não o averigua por ti mesmo? Só tem que aparecer em interior... -Mas como começo? Sorriu, divertido. -Possivelmente pelo assunto dos gafanhoto... Assim concluiu a primeira conversação no Beit Ids. O sonho nos rendeu. E quem isto escreve entendeu, um pouco melhor, por que o Mestre não se sujeitava às preces tradicionais. O preferia a luz... Nunca esquecerei aquele histórico 14 de janeiro, segunda-feira, o verdadeiro dia do Senhor.
PRIMEIRA SEMANA NO BEIT IDS
Possivelmente foi minha culpa... Essa noite dormi profundamente, como poucas vezes o tenho feito. Quando despertei, o sol levava tempo faenando. O não estava na cova. Suas coisas tinham sido recolhidas, à exceção da tigela de madeira e a pequena esfera de pedra, que continuava no fundo do "prato". A tigela se achava sobre o leito de palha no que tinha dormido o Mestre. O saco de viagem, e a manta, foram pendurados da viga. Sim, possivelmente foi minha culpa. Fiquei dormido... A mim lado, em uma terrina de barro, descobri o café da manhã, sem dúvida proporcionado pelo: meia dúzia de bolinhas brancas elaboradas pelos badu, e que chamavam gebgeb. tratava-se de um queijo salgado, que devoravam a todas as horas. Um punhado de tâmaras arredondava a colação. Agradeci o detalhe. Assim era o Filho do Homem... Terminei o queijo e me dispus a me reunir com Ele. Algo me inquietou. por que não recolheu a totalidade de seu equipamento? Se nos dispúnhamos a partir essa mesma manhã da terça-feira, 15, por que pendurar a manta da viga de carvalho? A não ser que fora emprestada pelos badu... por que não guardou a tigela e a esfera? Possivelmente
pretendia almoçar no Beit Ids, e partir a seguir... A manhã era radiante. Excelente temperatura, muito suave, e um céu limpo e pacífico. Não se movia uma folha. Procurei com o olhar, mas não o achei. A zona da fonte, o carvalho sagrado, e o bosque da "luz" apareciam desertos. Nos arredores tampouco detectei nenhuma presença humana. Sentiu saudades. O Galileo não fez menção de seus planos durante o jantar, ou ao longo da conversação da noite anterior. Tinha que estar em alguma parte... E iniciei a busca pelo sul. Frente à gruta, como pinjente, ao outro lado do caminho que conduzia à aldeia do Hawi, o terreno descendia bruscamente. As amendoeiras se precipitavam para uma vaguada pela que corria um rio de inverno, um wadi temperamental, mas de escasso leito. Ali não havia ninguém. Me tomei com calma. Não devia me pôr nervoso. Sabia o que fazia. Era eu quem tropeçava habitualmente... Asseei-me, e desfrutei da fria corrente. Aquilo me serenou, acredito. Retornei à boca da cova e repassei de novo o bosque da "luz". As flores brancas e avermelhadas fazia momento que tinham despertado. Nem rastro. Caminhei para a fonte da welieh. Calculei a distância à cova: sete metros e cinqüenta e cinco centímetros. Rodeei o brocal, se por acaso descobria a perdido candelabro de azeite. Tampouco tive sorte. E me estremeci ao rememorar os estranhos grunhidos. Podia o Mestre correr algum perigo físico? É obvio, era um Homem-Deus, mas o fazia isso invulnerável? por que me ocorriam coisas tão aparentemente absurdas? Ou não eram tão ilógicas? O que podia acontecer se era atacado pelo javali? Melhor dizendo, pelo suposto javali... E me entretive em examinar o terreno. junto à fonte não havia um sozinho rastro que delatasse o passo de um arocho. Estes porcos selvagens são especialmente corpulentos; deveria ter ficado algum rastro na terra. Mas por que me empenhava em associar o desaparecimento do abajur com o ditoso javali? Era ridículo, sei. Depois lhe tocou o turno a carrasca sagrada. As cintas, os cabelos e as
cordas que penduravam dos ramos se burlaram de mim e de minha inspeção. Que eu saiba, nenhum javali sobe à taça de um carvalho... Entretanto, tanto Ele como eu ouvimos os grunhidos. Procediam da ramagem daquela árvore. Era estranho. Não havia ninhos... E me pareceu estranho porque era a árvore que destacava sobre o resto. Na hora de aninhar, o carvalho oferecia mais garantia que o olivar ou que as amendoeiras. Mas o "detalhe" foi esquecido... Passou o tempo, e não soube o que fazer. Caminhei pelo caminho principal, para o este, mas tampouco fui capaz de localizá-lo. Entre os olivos só vi silêncio. Não quis me afastar. Podia retornar em qualquer momento, e desde qualquer direção. A cova se encontrava no centro, virtualmente, de um total de seis colinas. Para onde me dirigir? Era mais prudente esperar. Não me tivesse gostado de voltar a perdê-lo, como já aconteceu em outras ocasiões. Pensei em me aproximar do povoado. O café da manhã procedia do Beit Ids, com segurança. Ou não? E comecei a duvidar. Foi Jesus quem depositou o gebgeb junto a este explorador? E terminei desterrando a dúvida. Eu não acreditava em gênios, nem nas welieh... Esse, além disso, era seu estilo. E me refugiei na gruta, à espera. Repassei-a, uma vez mais, e somei referências. Entretive-me em medi-la ao detalhe: 6,3 metros de largura, por 14,57 de longitude, com uma altura máxima de 3,2 metros. E apesar dos esforços, comecei a notar um certo nervosismo. A situação não era normal. Isso me pareceu. Mas, decidido a não cometer novos enganos, entretive-me com o primeiro que me ocorreu. Repassei meu saco de viagem. Dava-lhe voltas ao cilindro de aço, sem saber o que fazer com ele, e dispus três tochas, estrategicamente repartidas sobre a viga central. As pranchas de tola foram o material perfeito. Arderiam até o final, e com uma luz limpa e cheirosa. Foi então, ao manipular uma das lhas, quando a esferita de pedra que repousava na tigela me fez uma piscada azul. Tomei entre os dedos e senti algo especial. Não sei defini-lo. Foi como se
falasse. Aquele azul me resultava familiar... E movido pela curiosidade, saí ao exterior, com o fim de examiná-la com maior precisão. Caminhei para a fonte, e ali me sentei, sobre o brocal de pedra. Não perdi de vista, em nenhum momento, a entrada da caverna, e tampouco o caminho. Disso estou seguro. E brinquei com a esfera do Mestre. A cada giro, efetivamente, produzia-se o chamado fenômeno de "adularescencia": uma "nuvem" azul, às vezes chapeada, escapava do interior e saudava. Não era um quartzo branco, a não ser um feldespato, como já mencionei. Concretamente, uma ortoclasa, ou feldespato potásico, de grande beleza mas de escasso valor como pedra preciosa. A refração da luz era contínua e lhe sugiram. Eu também fiquei prisioneiro da "nuvem" azul... E ao explorá-la com detalhe, comprovei que não estava equivocado. O que identifiquei como uma inclusão natural, no centro da esfera, era, em efeito, uma possível ara (tipo fita de seda), paralela a um dos eixos da esfera. De dita fissura partiam outras inclusões laterais, de menor calibre. Pois bem, em dito centro, em metade da fratura principal, formou-se uma borbulha natural, conseqüência, provavelmente, da tensão sofrida pelo material. Fiquei maravilhado. No interior da borbulha, de uns oito milímetros de diâmetro, "flutuava" um corpo estranho -outra inclusão, sem dúvida-, com uma forma bem definida. Não importava a posição. A inclusão, em metade de uma carga de mercúrio líquido, terminava sempre por situar-se verticalmente, obedecendo a lei da gravidade. E fiquei maravilhado porque esse corpo estranho era similar a um número, em aramaico. Um pouco parecido a "755". Fiz girar a esfera uma e outra vez e, além da muito belo "nuvem" azul, sempre surgia o "número", ou o que fora. "755" Encerrava alguma simbologia? tratava-se de um capricho da natureza? E junto a estas perguntas apareceram as que me formulei na cova, quando descobri a esfera pela primeira vez: como chegou à mãos do Jesus?, por que o Mestre a levava em suas viagens?, guardava algum significado especial para Ele?
"557 ou 755", conforme se lesse de direita a esquerda, ou ao reverso. "755", em cor negra, e em metade do azul. Não soube o que pensar. Uma simples coincidência? Sei que o Destino não aprovou esta idéia. por que não soube vê-lo? O "negro" e o "azul", no interior de uma esfera... E apartei o novo enigma. Minhas preocupações eram outras... Finalmente, por volta da sexta hora (meio-dia), voltei para a cova. Ficavam umas cinco horas de luz... Caminhei pelo breve túnel de entrada e, ao chegar ao final da suave rampa, quando me dispunha a depositar a esfera em seu lugar, na tigela, "algo" me deixou parecido ao terreno. Pensei nele. Havia tornado? Mas não o vi entrar na gruta. Disso estava seguro. Da fonte da welieh se dominava o caminho e o arco de entrada da caverna. Além disso, de ter sido assim, Ele se tivesse feito notar. Me teria saudado... Aproximei-me. O fogo das tochas iluminava a gruta com aceitável claridade. Examinei o entorno, mas não distingui ao Mestre. Entretanto... Foi uma sensação inconfundível. Alguém me observava! De novo o javali? Na cova? Fiz-me com a "vara do Moisés" e, devagar, alerta, situei-me sob a viga de carvalho. Não estava sonhando. O saco de viagem do Galileo se balançava... Ali havia alguém. E tentei racionalizar o assunto. Possivelmente exagerava. Mas não... Aquele movimento no esteira, pendurado de um dos pregos, não era conseqüência do vento. No exterior não se movia uma folha... Alguém o empurrou, ou tinha tratado de desprendê-lo. A curta distância, como pinjente, achava-se a manta utilizada pelo Jesus, pendurada igualmente de outro dos ganchos. Mas permanecia imóvel. Então experimentei um calafrio. Voltei-me, rápido, para o túnel de ingresso, mas não vi nada. Entretanto, juraria... Sim, alguém me observava, ou o tinha feito. Registrei a totalidade da cova, mas não achei nada estranho ou suspeito.
Nenhuma rastro. E durante um momento permaneci no interior, pensativo. O saco de viagem se encontrava a um metro e meio da terra seca e esponjosa que atapetava a cova. Nenhum javali tinha acesso a ele. Além disso, como digo, onde estavam os rastros das pezuñas? Mas, se o responsável pelo movimento do esteira foi um ser humano, onde estavam os rastros dos pés? Voltei a examinar o chão com atenção. Negativo. Nem rastro de sandálias ou pés nus. Não era possível. Alguém o tinha movido. Alguém me tinha estado observando... Foi então, ao verificar que não existia rastro alguma, quando senti medo. E as palavras da beduína retornaram de novo: "... e não incomode a welieh da fonte. " A welieh? O que era a welieh exatamente? Nenhum gênio, ou espírito, tem a capacidade de fazer oscilar um saco no ar... Ou sim? Não esperei a resolver a dúvida. Fugi da caverna como um coelho assustado... Quando me dava conta me encontrava frente a Beit Ids, o povoado dos badu. Povoado? Nem isso. Beit Ids, ao norte da cova, era uma grande casa de pedra branca, com numerosas dependências menores, encostadas, como Deus lhes dava a entender, a nuqrah, ou lar principal. Era uma espécie de fazenda, levantada com barro e caulim, que girava em torno da referida nuqrah, a única construção que aparentava seriedade e solidez. Não sei por que dirigi meus passos para o "povoado", mas ali estava. E tentei me tranqüilizar. Prossegui entre os olivos que rodeavam a fazenda e tentei pensar com rapidez. Procurava o Mestre. Essa era a verdade. Isso expor aos habitantes do Beit Ids. Como pinjente, eram beduínos. Eles me viram muito antes de que eu acertasse a distingui-los. Eram seminómadas, mas conservavam a acuidade visual, e o afiado instinto, dos legendários homens do deserto. Vi correr às mulheres. Gritavam algo. Entendi barráni ("estrangeiro"). Detrás, como uma abacaxi, meninos, muitos meninos, com a túnica de
cores e os braços em alto, não sei se tão assustados como as mães... detiveram-se em uma das portas de lanuqrah. A julgar pelo arco, em rocha lavrada, podia ser a entrada principal. Diminuí a marcha, mas continuei decidido. Não pude fazer outra coisa. Eles já sabiam dos barráni, quão estrangeiros tinham acontecido a noite na gruta da welieh. Assinalaram-me uma e outra vez, e prosseguiram com os gritos. Pareciam falar com alguém... Achava-me ainda a uns duzentos metros, e não acertei a precisar. Acreditei ver a figura de um homem, sentado na terra, entre os olivos, e com uma vestimenta branca. O Mestre? Para falar a verdade, não sabia se se tinha trocado de túnica. Não cheguei a vê-lo. E, de repente, entre a gritaria, apareceram eles... Detive-me. E os dedos da mão direita se deslizaram para a parte superior do cajado. Se atacavam, não teria mais remedeio que utilizar os ultrasons... distanciaram-se do grupo e voltaram a deter-se. Observavam-me com atenção. E decidi continuar. Fiz-o com calma; melhor dizendo, com aparente calma, e com os dedos dispostos... Algo sabia daqueles animais. Em parte, eram parentes dos sloughi, os galgos que vi no poço, perto da aldeia do Tantur. tratava-se de dois galgos persas, chamados saluki pelos beduínos. Eram animais muito rápidos, adestrados para a caça, e capazes de derrubar uma gazela ou um oryx em plena carreira. Levantaram os focinhos e farejaram. Eram de estatura medeia (ao redor de 60 centímetros), com as extremidades altas, musculosas, e as caudas largas, agora ligeiramente elevadas, e cobertas de mechas sedosas. A gente apresentava uma cor isabelino, brilhante como uma pérola. O outro era tricolor: branco, negro e fogo. Avançaram de novo, e me preparei... Se atacavam, fariam-no imediatamente. Tentado estive de deter a marcha e jogar mão das "crótalos", mas não quis arriscar. A singela operação de extrair as lentes de contato, que facilitavam a visão dos
ultra-sons, tivesse-me distraído durante alguns segundos. Os saluki são cães muito inteligentes. Não devia me descuidar. E continuei, atento à posição das caudas. As mulheres e os meninos, pendentes dos galgos, guardaram silêncio. Traguei saliva e fixei o olhar nos olhos dos saluki. Eram ovalados e de uma ligeira cor avelã. Não me perdiam de vista. E as largas orelhas, cobertas de cabelo sedoso, retrocederam súbitamente. Compreendi: era um dos sinais de submissão. E as caudas descenderam igualmente. Então iniciaram uma carreira e me rodearam. Ao princípio jogaram com quem isto escreve. Depois, um deles, o de cor pérola, mais afável e disposto, saltou sobre mim, colocando as patas em meu peito. E me recebeu com tudas as honras: a lambeduras. Acariciei-o, aliviado. Os saluki não souberam o perto que estiveram de ser derrubados... O gesto dos cães, aceitando ao barráni, foi decisivo. As beduínas e os meninos se retiraram e, ao pouco, vi-me frente ao homem das vestimentas brancas. Não era o Galileo, é obvio. Olhamo-nos brevemente. Acredito que entendeu que não procurava problemas. Sabia que era um dos estrangeiros recém chegados a seus domínios, mas não disse nada. Como bom beduíno, limitou-se a observar, ao menos durante os primeiros instantes. Depois seguiu com o que levava entre mãos... Saudei em árabe. -É salam'ali kum! ("Que a paz seja sobre vós.") Nem sequer levantou a vista. -Wa'ali kum... -replicou entre dentes, e sem deixar de manipular uma corda-. Wa'ali... Não entendi bem. Não pronunciou a saudação completa. Em lugar do obrigado "e que sobre vós seja a salvação", ou "bom dia", deixou-o na metade. Não parecia muito comunicativo. Decidi esperar. Não convinha precipitar os acontecimentos. Era um badawi, e eu me encontrava em seu nuqrah, em seu lar. Era ele quem devia iniciar a conversação, e as possíveis pergunta. Assim eram os costumes entre os badu. Os cães, dóceis, tombaram-se a seu lado e se deixaram acariciar pelo morno sol de janeiro.
O homem continuou com a corda. Era uma soga de esparto, de mais de cinqüenta metros, enrolada a seus pés. Fazia nós, mas, antes de rematá-los, desbaratava-os, e voltava a começar. Emprestei atenção, intrigado. Não havia dúvida: eram nós marinheiros. Mas por que marinheiros? por que no Beit Ids? Vi-o fazer o "ahorcaperros", em sua versão mais corrediça, assim como a anula de cabo, o "apagapenol", similar ao cote do meio seio, a gaza corrediça e o nó de "meia chave", entre outros. Era muito hábil. Trancava-os em questão de segundos, mas, como digo, nunca os terminava. E assim, uma e outra vez... Ao cabo de uns minutos elevou a mão direita e, sem dizer uma só palavra, indicou que me sentasse frente a ele. Assim o fiz. E prosseguiu com os nós... por detrás, na escuridão da grande porta, ouvi as risadas das mulheres. Era bom sinal... No arco -o que chamavam qanater-, tinha sido gravada uma frase, na'rab: " zmal dar mra". Sorri para meus adentros. A lenda sintetizava a filosofia do povo árabe: "camelo casa mulher" (por esta ordem). Essas eram as aspirações dos badu na época do Filho do Homem. Um povo virtualmente ignorado pelos textos sagrados (?) ao que Jesus, entretanto, emprestou atenção, tal e como espero narrar... O arco, e as ombreiras, de acordo também com o costume, apareciam tintos de sangue, ao igual à boca do mabat ou medafeh no que nos tínhamos instalado. Isso significava que a casa era propriedade de um wely, e que o construtor, na hora de levantá-la, solicitou permissão, sacrificando os animais necessários; quantos mais, melhor... Continuamos em silêncio. Estes rituais eram normais entre os beduínos. E tinham razão: o silêncio expressa mais, e melhor, que as palavras... Achava-me ante um homem rico. As vestimentas, os gestos, os cães e o lugar o anunciavam. Vestia uma dishasha (uma espécie de túnica) de seda, do pescoço aos tornozelos, em uma cor marfim imaculado. Os pés, nus, achavam-se tintos com pó do kenna, uma planta que proporcionava uma cinza amarela, muito apreciada pelos homens e mulheres para maquiar-se. Sobre a dishasha, envolvendo-o quase em sua totalidade, o homem dos nós apresentava um manto branco, vaporoso, em um linho
muito fino. Era um jerd que, como digo, cobria-o por completo, incluída a cabeça. Possivelmente mantinha luto por alguém. O branco era sinal de duelo para aquelas gente. Uma bandagem, de pele de camelo, também branca, completava o traje. Sobre o estômago, sujeita pelo cinto, brilhava uma séria, muito séria, adaga curva, com um punho em ouro muito trabalhada. Era a khanja, o símbolo de virilidade entre os badu. quanto mais larga, e mais chamativa, mais homem... Não saíam da casa, ou da loja, sem ela. Eram as armas próprias para sacrificar animais aos deuses, ou aos wely, e, é obvio, as das vinganças. Um autêntico badawi não matava a um homem com uma espada, ou com uma maça. Faziam-no com a khanja. Curiosamente, todas apresentavam a folha com a curvatura para a direita. Se alguém dava de presente uma adaga com o ferro dirigido para a esquerda, isso significava um insulto, e uma mais que provável declaração de guerra. Então, satisfeito ante o prudente comportamento daquele estrangeiro, o homem soltou a corda e foi tirar o chapéu. Observou-me e procurou o olhar deste surpreso explorador. Sustentei-a, naturalmente. Isso lhe agradou. Não havia pior coisa que não olhar aos olhos a um badawi. E fiquei surpreso ante a nobreza de seus rasgos. Os cabelos, negros, caíam em compridos cachos de cabelo sobre os ombros. O rosto, torrado, não apresentava quase rugas, embora eu diria que rondava os cinqüenta anos. Aparecia perfeitamente raspado, como correspondia a sua condição de beduíno livre, e com as pestanas maquiadas em um azul metálico. Entre as sobrancelhas destacava uma velha queimadura, em forma de rombo, que os beduínos conheciam pelo nome de wasm, uma espécie de "porta" ou "janela" pela que podiam entrar os gênios benéficos, e curá-lo, se era necessário. A marca, em questão, era feita com carvões acesos, e durante a infância. Um homem com uma wasm entre os olhos era um badawi protegido, ao que ninguém tentava agredir ou roubar. Mas o que mais chamava a atenção eram os olhos. Eram verdes, rasgados, perfilados em negro pelo khol, e com uma característica que os fazia muito
atrativos: segundo a luz, trocavam a um cinza prata, desconcertando à pessoa que tivesse diante. Às vezes tive a impressão de estar frente a dois homens diferentes... Estava claro que se tratava de um sheikh, um xeque ou chefe, embora nesses momentos não soube se era importante. Com o passado do tempo se converteu em uma referência para quem isto escreve. Foi um homem chave durante a estadia no Beit Ids. Sorriu e bateu Palmas. Ao momento, sob o arco da porta principal, surgiu um negro. Era um abed, um escravo. Melhor dizendo, pior que um escravo. Os beduínos desprezavam aos negros, fossem ou não livres, fossem ricos ou pobres, sábios ou néscios, homens ou mulheres... Os abid não podiam mesclar-se com os badu. Comiam e dormiam à parte. Pertenciam ao beduíno de por vida, e o mesmo acontecia com a esposa e filhos do abed. Ao igual aos nun ou yenún (espíritos malignos, opostos aos wely, e aos que me referirei breve), os negros careciam de categoria social. Mais ainda: os badu negavam que fossem seres humanos. Não dispunham de inteligência -diziam-, e menos de alma. Eram coisas que se moviam, e que falavam. Um engano da natureza, asseguravam... O abed preparou um fogo. Não se atreveu a levantar o olhar. Não falou uma palavra. limitou-se a sopro, e a fortalecer as chamas. O homem das vestimentas brancas prosseguiu me observando com curiosidade, mas permaneceu mudo. Ato seguido, pela mesma porta, apareceu um segundo servente. Carregava uma bule de bronze, enegrecida pela fuligem. Era outra manifestação da hospitalidade do sheikh do Beit Ids: quanto mais sujada, mais evidente resultava sua generosidade... Compreendi. Deveria formular minhas perguntas quando tivesse concluído a sagrada cerimônia do chá. Assim era o ritual. Depois chegariam as perguntas -iniciadas pelo anfitrião- e as notícias. Só as boas... Durante a Operação Salomón, nos desertos do sul, Eliseo e eu tivemos a oportunidade de provar o chá negro, fermentado, muito adequado para frear o processo oxidativo
que padecíamos. Os beduínos tomavam a todas as horas. Era uma forma de iniciar o contato com os estranhos, e com os próprios nômades. Esta vez, entretanto, não seria o acostumado chá o que serviria o sheikh dos olhos verdes... O criado depositou o recipiente sobre o tímido fogo, e deu um passo atrás. Inclinou levemente a cabeça e fixou os olhos na tampa da bule. A orelha direita apresentava uma enorme perfuração, à altura do lóbulo. Deduzi que era judeu. Dias depois, quando ganhei a confiança do xeque, confirmei-o. Era o único escravo judeu do Beit Ids. Melhor dizendo, o único judeu de toda a zona. Levava muitos anos ao serviço do sheikh. Tinha família no Beit Ids. Suas duas algemas eram badu, e também a numerosa prole. Tempo atrás, antes de que se cumprisse o prazo legal de seis anos, o judeu renunciou a sua liberdade, e o xeque, de acordo com a tradição, perfurou o lóbulo da orelha direita. Assim o estabelecia a religião judia. E o escravo se converteu, voluntariamente, em um servo a perpetuidade. O gesto dizia muito a favor do amo, sobre tudo se se tratava de um beduíno... Convém ser sincero. A maior parte dos badu era mentirosa, benjamima, déspota e desconfiada. O sheikh que tinha diante era uma exceção... E o suposto chá começou a esquentar-se. Então se propagou um aroma..., como diria, "familiar". Olhei a bule, sem dar crédito ao que estava caso. Supus bem... E a uma ordem do xeque, o escravo judeu se fez com o recipiente. Tomou na mão esquerda e se girou para a misteriosa porta do arco. Imediatamente se destacou um segundo negro, um menino, com uma bandeja de prata em que perigavam duas formosas taças de uma porcelana vermelha como o sangue. Era outro abed, outro escravo, de olhos enormes, curiosos e profundos. moveu-se à carreira entre o grupo, e foi depositar a bandeja aos pés do sheikh. Então, sem poder remediá-lo, menino a fim de contas, elevou a vista e contemplou meus cabelos brancos, ao tempo que abria a boca, assombrado. O abed adulto o repreendeu, e o menino fugiu para a porta. O escravo judeu aguardou. O homem das vestimentas brancas assentiu
com a cabeça, e o "chá" foi servido. Não me equivoquei... Primeiro encheu a taça do xeque; depois a minha. Tomou a bandeja e me apresentou isso, me convidando a que me fizesse com o reduzido recipiente, quase um dedal, sem asas. O aroma me deixou tão confuso como feliz. De onde o tinha tirado? E tomei a delicada taça, desfrutando de do intenso e inconfundível perfume. O sheikh percebeu minha satisfação e sorriu, agradado. Então reparei na pequena taça. Era uma porcelana dura, de massa densa, vitrificada, e translúcida, de um caulim magnífico. Quando tive oportunidade, perguntei-lhe sobre a origem da mesma. Efetivamente, procedia do que hoje conhecemos como a China. Concretamente, da cidade do Jiangxi. Era muito antiga, da época dos Hão (uns duzentos anos antes de Cristo). Meu anfitrião a herdou de seus pais, e estes, a sua vez, dos seus. Formava parte de uma das dotes contribuídas a seus dez matrimônios. E confirmei as suspeitas: o homem dos nós era rico... E ao saboreá-lo, entreabri os olhos, desconcertado; gratamente desconcertado... Parecia café. Como era possível? Em nosso "agora", ninguém conhece com certeza a origem desta planta. Alguns afirmam que apareceu na cidade da Moka, na atual a Arábia, para o século XVI. De ali, dizem, estendeu-se pelo Oriente. A Europa chegou no XV. Dias mais tarde, o sheikh esclareceu o mistério. Chamavam-no kafia. Era conhecido pelos badu desde fazia tempo. Ao parecer, crescia nos Montes do Sidamo, Gamud e Dulla (atual Etiópia), por cima dos 2.400 metros de altitude. Foi descoberto por acaso, quando um pastor de São'a (atual Yemen) comprovou os efeitos do fruto em seu rebanho de cabras. Os animais experimentaram uma estranha reação, comportando-se com grande vitalidade e nervosismo. Foi assim -segundo o badawi- como tirou o chapéu o kafia. E dos Montes da Abisinia passou ao território da península Arábica. Moíam-no muito fino e o mesclavam com água fervendo. O sabor, como digo, era delicioso. EJ sheikh tomava amargo por razão de luto. Eu o adoçava com
umas gotas de mel. À terceira taça, como recomendava a boa educação beduína, fiz oscilar ligeiramente a porcelana vazia que sustentava entre os dedos, e dava a entender a meu anfitrião que era suficiente para quem isto escreve. E começou o turno de perguntas. Como pinjente, as boas maneiras obrigavam aos nômades a perguntar em primeiro lugar. Quais fomos? De onde vínhamos? O que pretendíamos ao nos acolher à hospitalidade do Beit Ids? Fomos prófugos de alguma justiça? Possivelmente a romana? Felizmente, o sheikh falou em aramaico. O agradeci, embora não foi fácil satisfazer sua curiosidade. Em parte porque quase nunca concluía uma frase, me obrigando a supor e adivinhar, e, sobre tudo, porque ignorava as intenções do Mestre. Mesmo assim, tranqüilizei-o. E minha notícias foram excelentes (eu diria que excelentemente inventadas). Fomos mensageiros de um reino longínquo. Ele, meu amigo, era Filho de um Rei especialmente bom e generoso, um sheikh supremo, que governava, inclusive, sobre as estrelas. O homem dos nós inacabados escutou com incredulidade. Depois, ao mencionar o assunto das centenas de "luzes" que "anunciaram" a chegada do Príncipe à região, mostrou-se interessado. O também tinha visto o estranho fenômeno, ocorrido dias antes, como já referi. Em realidade, viu-o todo Beit Ids, e toda a comarca. Para os badu foi um sinal. Algo grande estava a ponto de acontecer. Não se equivocaram. E durante uns minutos me estendi sobre o incrível espetáculo contemplado do meandro Omega. O sheikh assentiu com a cabeça, uma e outra vez. E me corrigiu. Não foram centenas de "luzes", a não ser milhares. Eles sabiam muito bem porque, na hora de fazer pão, contavam-nas... E referiu algo novo para este explorador. Apurou a enésima taça de café e comentou: -É a segunda vez que as vejo em mi... Supus que fazia alusão às misteriosas "luzes". -A primeira foi faz já muito tempo, quando vivia em... Então, uma noite...
Foi no verão... "Verão" o disse em árabe (é sif) e também a seguinte matização, agosto (ghust ou gust não estou seguro). -Apareceram milhares de "estrelas"... Os judeus disseram que tinha nascido um rei perto de Presépio, mas eu... Um rei? Em Presépio? Milhares de "luzes"? Tentei ajustar a data, mas não foi fácil. Felizmente, "verão" e "agosto" foram pronunciadas na'rab. De havê-lo feito em aramaico, provavelmente não tivesse emprestado atenção. Os judeus, como já indiquei em seu momento, utilizavam uma só palavra para mencionar dois meses, provocando numerosas confusões. Janeiro, por exemplo, dizia-se tébet ou sebat. Os badu aborreciam a falta de precisão, e por isso utilizou o árabe na hora de marcar a época e o mês. E digo que não foi singelo porque, como bom beduíno, o sheikh do Beit Ids não sabia quando tinha nascido. Desconhecia sua idade, embora recordava o que lhe contou sua mãe respeito ao nascimento. produziu-se, ao parecer, em metade de um grande terremoto, no tempo em que Herodes o Grande combatia aos nabateos. Foi assim, passo a passo, com uma paciência infinita, como cheguei à conclusão, sempre provisório, de que as "luzes" vistas pelo xeque puderam aparecer na noite do dia 20 (repetiu serrín: dia 20) do mês de agosto do sétimo ano antes de nossa era. O sheikh se achava nas proximidades do Hebrón, ao sul de Presépio, quando contemplou os milhares de "estrelas", movendo-se do sul ao norte. Essa foi a véspera do nascimento do Filho do Homem! -Eu acabava de celebrar meu primeiro matrimônio com... Mas por que não terminava as frases? Tinha que averiguá-lo. Possivelmente mais adiante, quando me tivesse ganho sua amizade... E por que falo de notícias "excelentemente inventadas"? Para falar a verdade, inventei pouco... O sheikh, entusiasmado, obrigou-me a voltar sobre o tema principal, e prossegui a história do Príncipe. Contei que era um Homem sábio, discreto, e com uma hash ("sorte") milagrosa. Era generoso e compassivo, como correspondia a tudo bom chefe.
-E que busca um homem assim em minhas terras e nas de...? Foi a parte comprometida. Não queria mentir. Ignorava se o Mestre desejava permanecer naquele lugar, ou se só estava de passagem. E me deixei guiar pela intuição. -Ele espera um sinal... -Aqui neste lugar esquecido Y...? -Isso acredito -retrocedi prudentemente-. Um sinal dos céus, de seu Pai... -E para que necessita um sinal se...? Tratei de adivinhar seu pensamento. -Não sei. Só sou alguém que caminha a seu lado, e que dá fé do que faz, e do que diz... -Tão importante é como para...? -Como para ser acompanhado por um escriba? Não gostou que fechasse a frase. E iniciou outra, imediatamente. Pouco a pouco fui aprendendo... Finalmente, pude formular a pergunta chave, a que me tinha levado a sua presença. -Viu-o? O sheikh me contemplou com incredulidade. -perdeste ao Príncipe que, além disso, é...? riu, zombador. E os escravos, o negro e o judeu, riram a graça do amo. Ao fundo, na escuridão da porta, as beduínas também riram. Suportei a recriminação em silêncio. Eles não sabiam, mas era merecido. Eu o tinha perdido, em efeito, uma vez mais... -Não importa -se apressou a suavizar o xeque-, se permanecerem no Beit Ids, eu lhes ensinarei a começar, e a começar, e a começar, Y... Nesses momentos não entendi. E insisti: -Mas o viram? Está aqui? E a sua maneira, pendurando as frases no ar, sem as rematar, explicou o que já sabia, mais ou menos... O Mestre se apresentou na casa principal e saudou. Isso foi suficiente para obter o que denominavam o "vínculo do sal": o amparo do solicitante, tanto a efeitos de comida como de refúgio e de segurança. Era a hospitalidade beduína. Se alguém, nômade ou estrangeiro, pronunciava o célebre "é salam'ali kum" ("a paz seja com vós"), automaticamente recebia a dorah, o total amparo da tribo. Não havia condições, ao menos durante três dias e um terço. Essa era a norma dos badu. Eles imaginavam
que, durante três dias e um terço, a comida do anfitrião permanecia no corpo do convidado. Depois, a dorah desaparecia. Nesses momentos, a hospitalidade podia ser renovada, ou não. E o chamavam "vínculo do sal" porque, embora o dono da loja, ou da casa, só pudesse oferecer um punhado de sal, o visitante ficava sob seu amparo, e a salvo de qualquer perigo, embora fora um delinqüente. O sheikh lhe garantiu "um lugar onde passar a noite", um mabat, a cova, e também comida. A anciã beduína que nos acompanhou era sua primeira esposa, a principal. Depois, como já relatei, o Galileo voltou para o Beit Ids. A partir dessa noite, no povoado o chamaram "Yuy". Supus que por ter retornado duas vezes. "Yuy" significa "dois" em árabe. Os badu eram assim. Todos recebiam um apelido, fossem ou não do clã. Eu também fui "batizado"... E detrás não poucos rodeios, o sheikh me proporcionou uma pista. Em seus domínios, naturalmente, não se movia uma folha sem que ele soubesse. Sua gente, essa manhã, viu o Yuy nas cercanias do monte disso escuridão acreditei entender. O que era o monte da "escuridão"? Assinalou para o nordeste, e mencionou um par de palavras decisivas: zvnun, ou possivelmente yenún, e "olivos". Era o único lugar no que não tinham sido plantados. E recordei uma colina, a coisa de dois quilômetros da cova, que, efetivamente, chamou-me a atenção em uma das tira de referências. Era a oitava, segundo meu particular cômputo, e aparecia totalmente cortada. Naqueles momentos me pareceu estranho. por que carecia de olivos? Eu a designaria posteriormente como a "778", de acordo com sua altitude. Quando tratei de aprofundar na informação, o xeque evitou o tema, e passou a outros assuntos. Depois compreendi... Znun ou yenún são o plural de zann e de yinn, respectivamente: os demônios, por excelência, do mundo a'rab. O yinn não é facilmente definível. Segundo os beduínos do Beit Ids, eram espíritos maléficos, sempre à caça e captura do homem. Eram invisíveis, embora podiam adotar múltiplos forma: cão, cabra, gazela, mulher ou serpente. A diferença do wely, sempre benéfico, o yinn só ocasionava desgraças.
Quando alguém tropeçava, e caía, era obra de um yinn. Quando entrava a enfermidade, ou a ruína, em uma tribo, era a vingança dos nun. "Habitam o mundo antes que o homem -diziam-, e por isso se sentem ciumentos; por isso atacam sem descanso, e sem piedade. São vistos nos precipícios, nas rochas, sob as pontes, nos cemitérios, ou em qualquer lugar solitário." Assaltavam aos viajantes e os deixavam sem sangue, ao igual a ao gado. Eram facilmente reconhecíveis pelos uivos e, sobre tudo, pelo azf, um assobio surdo e característico que os precedia. Outros falavam de cânticos melodiosos, de vozes doces, acompanhadas de música, e inclusive do furioso galope de uma cavalaria. O habitual é que se manifestassem durante a noite. Realmente os temiam. Pois bem, a colina "778", conhecida no Beit Ids como cflam ("escuridão"), era o território dos zvnun naquela comarca. Ninguém se aproximava dela. Por isso aparecia sem cultivar. Na cúpula viviam os diabos de patas de cabra. Os deuses ficaram dormidos na hora de formá-los, e por isso apresentavam pés de burro, de cabra ou de galo. Eram sempre um mais que a metade do povoado sobre o que exerciam o domínio. Tinham eleito a "778" desde tempos remotos, mas ninguém sabia por que. Com o passo dos anos, a colina foi chamada "escuridão" porque, se alguém se arriscava a entrar nela, "ficava às escuras de por vida", caso que retornasse. "Ficar às escuras" não significava cegueira, a não ser loucura. No Beit Ids tinham um exemplo eloqüente... Os beduínos evitavam, por todos os meios, a pronúncia de nun. Era uma atitude similar a dos judeus respeito ao Yavé. Praticavam os circunlóquios necessários para não pronunciar o nome maldito. Quando falavam de "bonitos", "dos que habitam a penha da escuridão", ou "de que atiça o fogo", todos sabiam que se estavam refiriendo aos demônios vermelhos, sem fumaça, capazes de atravessar paredes, ou de caminhar clandestinamente, e de praticar o canibalismo. Como é fácil de supor, as lendas em torno dos nun cresciam e se multiplicavam, de geração em geração. Eram os guardiães de fabulosos tesouros, roubados aos caminhantes e às
caravanas. mais de um tentou chegar à cúpula do penhasco da "escuridão" com o fim de apropriar do ouro dos nun, mas o resultado foi catastrófico. Contavam a história de um tal Hamú, que pretendeu subir ao monte proibido. Pois bem, desapareceu. Dias depois, alguém o encontrou no Ezion Geber, no mar Vermelho, a 180 quilômetros, e pacote com cadeias a uma coluna. Ninguém sabia como chegou até essa praia, nem quem o encadeou. Viveu mais de cem anos, para que servisse de exemplo, comentavam os badu, convencidos da autenticidade do relato. -Se ao Príncipe lhe ocorre entrar na "escuridão" -resumiu o sheikh-, pode dar-se por perdido e por... Não me inquietou a advertência do xeque. Não acreditava em zvnun, como tampouco na welieh da fonte. O que sim me preocupava era o isolamento do Mestre. O mais provável é que não tivesse comido em todo o dia. O que lhe ocorria? A que se devia aquela atitude? Não era muito o que ficava de luz. O sol, segundo os relógios do "berço", ocultaria-se essa terça-feira, 15, às 16 horas e 54 minutos. Tratei de pensar. Não me pareceu sensato me aventurar, a essas horas, na colina da "escuridão". Além disso, nem sequer era seguro que tivesse subido ao alto do penhasco. Era mais prudente retornar à cova e esperar. O teria que voltar... Foi então, ao tentar me despedir de meu anfitrião, quando caí na conta de que não dispunha de comida. E aconteceu algo que jamais me tinha ocorrido: experimentei tal vergonha, que não disse nada. Levava dinheiro, mas fiquei mudo. Estávamos sob a hospitalidade dos três dias, e isso incluía as viandas, mas não tive o valor necessário para expor meu problema. É obvio, subestimei ao sheikh. O sim se precaveu da delicada situação, e atuou. Fez-me um sinal, para que continuasse sentado, e reclamou a atenção do escravo judeu. Sussurrou-lhe algo ao ouvido, e o da orelha perfurada se apressou a cumprir a ordem do amo. E o homem das vestimentas brancas rogou que seguisse lhe informando sobre meu amigo, o Príncipe "Yuy". Assim o chamou, e assim o chamaria no futuro... O Príncipe "Dois". Não foi mau qualificativo...
E o céu, suponho, iluminou-me. Fomos mensageiros, em efeito, especialmente Ele. Meu amigo Yuy tinha o encargo de "despertar" ao mundo... O xeque abriu os olhos, surpreso, e o entardecer remansó o verde e o transformou em cinza. -Isso é novo e, além disso, você sabe que... Segui com o meu. "despertar ",tomar da mão, e nos afastar desse escuridão era seu trabalho, e a mensagem do Sheikh supremo, seu Pai, o "Xeque das estrelas"... Algo disse sobre os znun. Eram muitos e muito poderosos. Como nos liberar da "escuridão"? Impossível... Mas continuei, da mão da intuição. -Por isso está aqui. Por isso se arriscou a entrar na "escuridão" -segui improvisando (?)-, e logo contemplará o resultado. A luz é o único Deus que merece a pena... -E por que este lugar, tão remoto, tão débil, e tão...? Fui a sua própria filosofia. Para os badu, a qualidade mais honorável, a que resume a bondade e a beleza, é o ás sime, impossível de traduzir. Poderia entender-se como o amparo do fraco, por cima de tudo. Um beduíno ás sime é capaz de sacrificar sua fazenda, família, amigos e sua própria vida, em favor de alguém inferior, ou mais débil. -Assim é o Príncipe Yuy. veio porque é um ás sime... E sublinhei: -Ele não conta estrelas, como vós. As estrelas o contam a Ele... -E qual é esse sinal da que falava e pela que devo supor...? -Acabo-lhe isso de dizer: as estrelas são delas... Não fui eu quem falou. Isso sei agora... -O se dispõe a anunciar um novo tempo, sem medos. Você e sua gente são afortunados, só por havê-lo visto... Não é necessário lhe ouvir. Basta vendo-o. Seu poder é tal que levanta os corações, embora estejam mortos. Eu o estava, e já vê... O escravo judeu interrompeu a estranha conversação. O xeque não terminava nenhuma das frases, e eu falava por boca de outro... Deixou a meus pés um canasto, delicadamente talher por um pano de tecido, e sorriu. Compreendi. O sheikh do Beit Ids fazia honra ao vínculo do sal. Quis lhe
dar as obrigado, mas não o consentiu. E exclamou: -Permite que o fraco mostre também sua fortaleza. Um ás sime nunca... Saudou, pela metade, e voltou para a tarefa de confeccionar nós. Trancou o chamado de cruz, mas o desfez... Puro simbolismo, diria eu, e especialmente oportuno. Retornei à cova - como defini-lo?- extrañamente satisfeito. Mas fui eu quem falou? Sempre ficou a dúvida. Nova decepção. O Mestre não tinha retornado. Revisei a gruta, a fonte da welieh e os arredores. Negativo. Nem rastro. Comecei a suspeitar que a notícia apontada pelo xeque era certa. Possivelmente decidiu entrar no penhasco da "escuridão". E as dúvidas me assaltaram de novo. Que diabos fazíamos naquele compartimento paragem? (Nunca melhor dizendo.) Era o deserto de que falam os textos evangélicos? Evidentemente, Beit Ids não era um deserto, embora, segundo os badu, dispunha de uma notável colônia de demônios. O que tinham que ver os znun da colina "778" com o supostamente ocorrido depois do "batismo"? Me estava voltando louco de novo? Tinha que me distrair, e desterrar aquela má tropa de estupidezes. Começou a obscurecer. Fiz um bom fogo. Ao princípio, no interior da caverna. Mas, ao pouco, ao recordar o incidente com o saco de viagem do Mestre, senti certa inquietação, e optei por transladar as chamas ao exterior, em metade do caminho. Hoje posso confessá-lo: não foi inquietação, a não ser puro medo... E me consolei: desta forma, com um fogo no caminho, Ele poderia orientar-se, no caso de que decidisse empreender a volta à gruta. Outra desculpa para sufocar essa nascente "inquietação" da que falo... Não sei explicá-lo, mas soube que essa noite seria especial... E uns singulares fantasmas começaram a me rondar. Não sei se foi real ou fruto de minha imaginação, mas tudo, a meu redor, transformou-se em "alguém" que me observava. Então começaram os uivos. Em um primeiro momento, longínquos, para o norte, nas perdidas massas do olivar. Eram quase gemidos, agudos e intermináveis. E a "inquietação"
cresceu... Recuperei o cajado e, quando me dispunha a sair da gruta, a pequena esfera de pedra me chamou com sua "nuvem" azul. Apanhei-a e voltei a me sentar junto à fogueira. E ali permaneci um tempo, pendente dos brilhos da ortoclasa, e de seu segredo: o desconcertante "755" que flutuava em seu "coração". O disse. O só contato com a esferita me tranqüilizava. Era como se falasse... E os uivos prosseguiram, agora mais rápidos e próximos. respondiam-se os uns aos outros. Eu sabia da existência de lobos na região, os célebres lobos de pelagem vermelha e colar branco, velozes e gregários. Os beduínos não tinham piedade com eles. Quando capturavam um, vivo ou morto, as mulheres do povoado permaneciam horas frente ao animal, insultando-o e lhe arrojando pedras. Era a vitória do homem sobre os znun. E apesar da segurança que me proporcionava a "vara do Moisés", os uivos, cada vez mais próximos, puseram-me em tensão, e os pêlos se arrepiaram. Pensei no Mestre. Se se achava na colina da "escuridão", a manada estava muito perto. Tinha que ouvi-los. por que não retornava? Possivelmente o fizesse durante a noite. Ou não? A colina da "escuridão"... por que escolheu semelhante lugar? E, de repente, coincidindo com o ocaso lunar, quase à uma da madrugada, os uivos cessaram. Não sei o que me alarmou mais: os lobos vermelhos do Beit Ids, ou o súbito silêncio. Não conseguia entender. por que cessaram os uivos? E tive um pressentimento. Algo estava a ponto de ocorrer. Algo "familiar", que eu já tinha vivido, e não muito longe de ali... Apertei a esfera entre os dedos, com força, e me preparei. Não sei como soube, mas soube... E o silêncio se fez espesso, como o medo. Quase não respirava. Olhei a meu redor e, de repente, compreendi. Encontrava-me na pior das posições, claramente visível, junto às chamas. Se alguém espreitava, era um branco fácil. Se os lobos tinham chegado até o caminho e atacavam, estava perdido.
Tinha que procurar um refúgio adequado. Pensei na cova. Sim, isso faria... Fiz-me com algumas ramos de amendoeira, prendi fogo e as situei, estrategicamente, na breve rampa do túnel de entrada. Se os lobos tentavam penetrar na gruta, primeiro teriam que sortear as tochas. Não o fariam... Depois iluminei a cova até onde foi possível e procurei me tranqüilizar. fui sentar me no túnel, entre as lhas que cravei no terreno, e esperei. No caminho dançava a fogueira que tinha preparado inicialmente. Se alguém se aproximava, veria-o imediatamente... E passou o tempo, mas nada ocorreu. Compreendi. Tinha-me precipitado, uma vez mais. Tudo eram hipóteses e, provavelmente, conseqüência de uma imaginação calenturienta, alterada pela solidão e pelas histórias dos znun. Mas e os uivos? Isso não era minha mente... Decidi permanecer ocupado. Era o melhor. E o estômago reclamou o que lhe pertencia. Examinei a cesta e comprovei que o sheikh se mostrou generoso: além das habituais azeitonas, em salmoura, e das tâmaras, o xeque nos obsequiou com um mensaf, duas patas de cordeiro, cozidas em leite fermentado e aromatizadas com especiarias. Ao lado, uma ração de malleh, outro pão típico dos badu, grande e fino como um lençol, obtido sobre o sag, um instrumento de ferro abombado, de um metro de diâmetro, que situavam sobre o fogo e no que depositavam a massa, às vezes empapada em manteiga e mel. O malleh era um pão obrigado com a carne. Dobravam-no delicadamente e o consumiam a beliscões. Um bom malleh alimentava a uma família durante uma ou duas jornadas. E de sobremesa, várias "pastilhas" de halwa, outra de nossas debilidades... Que fazia? Seguia esperando-o? Era tarde. Ele não se apresentaria... Ou sim? E optei pelo mais sensato: devorei minha parte, e guardei o resto na caverna, pendurado da viga central.
Depois voltei para minha posição. Sentei-me no túnel, entre as nervosas tochas, coloquei o cajado sobre as pernas, e permaneci com a vista fixa na fogueira que ardia no caminho. Tudo era silêncio. E ocorreu o que tinha que ocorrer. Ao pouco, vencido pelas emoções e pelo cansaço, comecei a cabecear. Despertei, sobressaltado, em uma ou em duas oportunidades. Tudo continuava sem novidade, exceção feita do silêncio. Eu não gostei, não era normal... Mas, sem possibilidade de governo, voltei a inclinar a cabeça e caí em outro sonho. Então sonhei. Ou não foi um sonho? Na escuridão, frente ao arco de entrada da cova, surgiu uma sombra. Vi-a perfeitamente, recortada contra a iluminação exterior. Inexplicavelmente, não me alterei. Era uma sombra pequena. Podia medir um metro e vinte centímetros, como muito. Permaneceu uns segundos observando o interior do túnel. Deu um passo, e acreditei distinguir uma figura humana, mas não estou seguro. E seguiu avançando para quem isto escreve... Depois, nada. O "sonho" (?) extinguiu-se. Ao despertar (?), notei um suor frio. "Outro pesadelo", pensei. Mas... Como era possível? Estava às escuras. As lhas apagaram isso, incluídas as do interior da gruta. Quanto durou o "sonho"? Tinha dormido mais de duas horas, tempo previsto para consumir as estacas e palitroques? Não soube o que pensar. Era possível, mas... E saí ao exterior. A fogueira estava morrendo. Só ficavam as brasas. Sim, tinha-me ficado dormido... Mas, não sei... O instinto me advertiu. Tudo indicava que as tochas se consumiram por si mesmos. Entretanto, a figura foi tão real... Alimentei de novo o fogo e me sentei frente às chamas, desconcertado. Ao pouco, obedecendo um impulso, tomei um dos ardentes ramos e retornei à caverna. por que não o tinha feito? por que não inspecionei a gruta ao despertar? Simplesmente, supus que não havia ninguém no interior...
Entrei devagar, com a lha na mão esquerda, e o cajado na direita, preparado para ser utilizado. Detive-me o final da suave rampa e estendi a tocha, tratando de controlar a escuridão. Não apreciei nada estranho, ao menos no primeiro repasse. E caminhei, atento. Negativo. Ali não havia ninguém. Os sacos, a cesta e a manta do Mestre seguiam pendurados do carvalho, imóveis. E me dispus a retornar ao caminho. Foi então quando me dava conta. Agachei-me sobre a terra e aproximei a improvisada ta. Assombrou-me. Essa foi a primeira reação. Depois, ao verificar que não era a única, senti um calafrio. Elevei o olhar para a viga, e fiz memória. Estava seguro. Eu as atei, uma por uma, aos pregos. Como era que tinham cansado? E tentei racionalizar o assunto. Ao consumir-se, as estacas que eu amarrei aos ganchos, lógicamente, caíram ao chão da cova. Este explorador acendeu quatro e, agora, todas se achavam em terra, apagadas. Mas... Examinei-as atentamente. Não era possível. As lhas, confeccionadas com as madeiras de tola que achei na cova, apareciam ao meio queimar. Além disso, as cordas continuavam no alto, amarradas aos respectivos pregos de ferro... E voltou o calafrio. Alguém arrancou as madeiras, literalmente, e as deixou cair. Mas não... Alguém apagou primeiro as lhas e depois as extraiu, as deixando cair. As cordas não apresentavam queimaduras, e os nós continuavam intactos. Alguém, como digo, tomou a moléstia de resgatar as pranchas, limpamente, e as jogar sobre o chão seco e esponjoso da caverna. Não vi sinais de fuligem, e tampouco pisadas. As tochas, necessariamente, foram apagadas quando ainda estavam na viga... E reparei em outro detalhe, que me desconcertou, e que explicou, pela metade, a falta de rastros. Como pinjente, entre a madeira e a abóbada da gruta, as aranhas tinham trancado algumas tecidos. Pois bem, dois ou três apareciam destruídas. Não cabia dúvida: alguém se moveu sobre a viga... Não conseguia compreender. Como entrou na cova? por que se movia
sobre a madeira? por que apagou as tochas? Não fiquei resolvendo o enigma. Saí dali a toda velocidade... E ao cruzar pelo túnel me levei os ramos que tinha parecido na rampa. Também se achavam ao meio consumir. Como não me dava conta? Alguém penetrou na gruta, provavelmente quando este explorador se achava dormido, e procedeu ao apagado das tochas. Não dispunha de outra explicação. Então, a figura que vi na boca do túnel... Neguei-me a aceitar a welieh da fonte. Eu era um piloto, embora muito assustado, também é certo... E prometi que não entraria na caverna por nada do mundo. Ao menos, em solitário... O que fazer? E fiz o único sensato: me sentar frente à fogueira e permanecer vigilante, com a "vara" entre as mãos. E assim discorreu outra hora. Possivelmente dois. Tudo pareceu voltar para a normalidade, incluído este torpe explorador. A madrugada se apresentou fria. A temperatura descendeu, e tive que me consolar com o fogo. A manta seguia na cova, mas, como digo, não tinha intenção de tentar à sorte. E o olhar, sem querer, voou para o alto. O firmamento, esplêndido, achava-se quase ao alcance da mão. Desfrutei-o. Ela estava ali, possivelmente na constelação de Leão, na Algieba, um sistema dobro, como meu pensamento: ela e eu. Uma estrela amarela, e outra alaranjada, como meu coração. Amarelo pelo impossível, e laranja pela esperança. MA'ch e eu. Dois e nenhum... E para a última vigília da noite -ao redor das quatro da madrugada-, tudo trocou novamente. Os uivos retornaram, e quem isto escreve descendeu à realidade, inquieto. ouviam-se longínquos, como a primeira vez, também na direção da colina da "escuridão". Supus que o fogo os fez desistir de seus iniciais propósitos. Por isso se afastaram? E a imagem do Jesus voltou para minha mente. Teria pernoitado no penhasco dos znun? Em realidade, isso pouco importava. O que me preocupava é que os lobos vermelhos pareciam amiudar pela zona. E me perguntei de novo: corria algum perigo
o Homem-Deus? achava-se sujeito, como o resto dos humanos, às contingências naturais? Expu-me isso alguma vez, mas agora, ao perceber o perigo, a dúvida foi mais intensa. Prometi averiguá-lo, caso que a noite terminasse bem... E concluiu, naturalmente, mas não como imaginava. Ao pouco, aos lamentos dos lobos se uniu o furioso protesto dos cães do Beit Ids e dos arredores. Os latidos, atropelados, delatavam a cercania de alguém estranho. Pu-me em pé e procurei na escuridão do bosque das amendoeiras. Negativo. A confusão de lobos e cães se incrementou, e imaginei aos badu entre os olivos, tão desconcertados como este explorador. O que acontecia? A que obedecia aquele escândalo? Ajustei as "crótalos" e deslizei os dedos para a parte superior do cajado. E meu cérebro "traduziu" as novas cores. O vermelho da fogueira se voltou azul, quase negro, e o branco das amendoeiras se fez prata, mesclada com um vermelho sangue das folhas. Não distingui uma só criatura nos arredores. As "crótalos" tivessem detectado a menor mudança de temperatura. Entretanto, ali havia alguém. Ali, ou muito perto... Os uivos e latidos não eram conseqüência de alucinações... Possivelmente foi tudo simultâneo. de repente, como um velho conhecido, apareceu o acúfeno. Os assobios na cabeça se fizeram intensos. Recordei a garganta do Firán... E ao levantar a vista as vi. Deus! Outra vez, não! Eram sete "luzes", como no afluente do Jordão. Navegavam (?) em uma formação impecável, em "cruz a tina". Fiquei embevecido... "Luzes" de novo? Que mistério era aquele? Brilhavam com uma magnitude próxima aos 2, e se deslizavam lenta e ordenadamente, como se desfrutassem de inteligência. Mas que tolices estou dizendo? É obvio que alguém tripulava aquelas naves! Porque disso se tratava, sem dúvida... Quem tem ouvidos, que ouça... Vi-as surgir à altura da brilhante estrela Spica. De ali voaram para a constelação de Leão. Foi um vôo limpo, horizontal, que não deixou dúvida
na mente de quem isto escreve. Nenhum meteorito se comporta assim. E ao alcançar a posição do Regulus, a "esquadrilha" se deteve. Os cães e lobos, então, aumentaram em seus latidos e uivos. Inspecionei o bosque, pendente de qualquer movimento. Negativo. Quando elevei de novo a vista, as "luzes" tinham começado a mover-se. Fizeram-no por turno. O líder se dirigiu para a ardente Sírio e ali "desapareceu" (?). Possivelmente se ocultou com a estrela. O resto fez o mesmo: a segunda voou para o Orión, a terceira procurou a não menos brilhante Aldebarán, a quarta se "ocultou" (?) no Pegaso, a quinta foi para a Capella, a sexta descendeu em outro vôo lento para a Andrómeda e a sétima, e última "luz", projetou-se em direção à estrela Polar, e ali se "esfumou" (?). E durante vários minutos, intermináveis, o firmamento recuperou uma aparente normalidade. Fui incapaz de distinguir as sete "luzes", camufladas, como digo, entre o fulgor das referidas estrelas e galáxias. Mas estavam ali. Eu sabia... Os lobos, e os cães do Beit Ids, também sabiam. Alguém vigiava... Algo estava a ponto de acontecer. E aconteceu. A terceira "luz", a que se reuniu com o Aldebarán, a gigante alaranjada, deu sinais de vida. Primeiro lançou um brilho. Foi como um aviso (?). Mas a quem? Depois se moveu, e iniciou um descida para o lugar no que me achava. Fez-o rápido, sem hesitações. E reagi. Fui para a fogueira, e chutei as chamas, em um intento de apagar o fogo. Supus que o resplendor me delatava. Pobre idiota! Quando aprenderei? Ao levantar os olhos, a "luz" tinha modificado o rumo e se dirigia para o nordeste. movia-se mais devagar, e com o mesmo brilho branco e radiante. Os uivos cessaram. O que aconteceu? Só os latidos prosseguiram, embora não tão encadeados. Também os cães perceberam algo. Fui eu quem não compreendeu... A "luz" continuou o descida, e a vi precipitar-se sobre outra velha "conhecida", a colina "778", o penhasco dos znun. Não houve impacto. Não ouvi o menor ruído. Como podia ser? Ao alcançar a cúpula, a "luz" provocou uma gigantesca chama, e tudo, a
meu redor, iluminou-se em uma cor violeta: olivos, Montes, firmamento, roupas, os restos do fogo... Todo violeta! Segundos depois, o incrível violeta foi absorvido (?) pela escuridão, e retornou a normalidade (?). Era a primeira vez que via uma noite violeta, mas não seria a última... Os cães ficaram mudos, como meu ânimo. Tentei visualizar o penhasco dos znun mas me achava longe. Do caminho só se distinguia uma massa relatório, rodeada do negro dos olivos e da madrugada. O que aconteceu no alto daquele monte? Faltavam umas duas horas e meia para o amanhecer. E tive que sujeitar a curiosidade, e os nervos. Se o Mestre se achava na colina da escuridão, era mais que provável que tivesse sido testemunha da "luz" ou, ao menos, do resplendor violeta... E o Destino, sentado frente a mim, sorriu com benevolência. É impossível ser tão torpe! Alimentei o aborrecido fogo, e esperei o alvorada. Até esse instante, tudo foi silêncio. Às 6 horas e 38 minutos, os relógios da nave indicaram o orto solar. E se apresentou um novo dia, não menos intenso... Armei-me de valor. Entrei na cova e tomei o necessário: a cesta, com os restos do jantar, as mantas e a tigela de madeira do Galileo. E antes de partir, passeei-me brevemente pela caverna, à busca de algum outro indício suspeito. Não detectei nada estranho. Os sacos de viagem continuavam pendurados da viga de carvalho. Pensei em carregar com eles, mas, finalmente, desisti. Meu propósito era alcançar a cúpula da "778", e tentar se localizar ao Mestre. Se tinha sorte e dava com Ele, trataria de convencê-lo para que retornasse à caverna. Do contrário, essa mesma tarde estaria de volta. Não considerei oportuno transladar ditos esteiras. Grave engano... Então, ao recolher a tigela que repousava sobre a palha, a esfera da "nuvem" azul brilhou entre os dedos. Que fazia com ela? Decidi levá-la comigo. A entregaria a seu dono e, de passagem, perguntaria sobre a origem da mesma. Tinha começado a tomar carinho. A esfera cintilou em azul, e compreendi. Era a forma de me dar as obrigado. Guardei-a no cinto, com os dinheiros, e me afastei para o este.
Pouco depois, sem perder de vista a "778", abandonei o caminho principal, que se dirigia à população do Hawi, e entrei nos olivares, em direção ao grande penhasco descascado sobre o que vi cair (?) a "luz". Cruzei entre as colinas "661" e "800", e fui topar com um par de rebanhos de ovelhas, peludas e de largas orelhas, que me olharam sem pudor. Ambos eram guiados por sendos burros. Os asnos foram ao seu, e não se detiveram. Esse era o costume no Beit Ids e arredores: ao gado o dirigia um onagro, previamente adestrado. Salvei um riacho, de águas cristalinas, procedente, ao parecer, da colina "800", e avistei meu objetivo: o penhasco dos diabos... Tal e como tinha apreciado nas primeiras observações, a colina dos znun era um tudo de pedra branca, azul, amarela ou vermelha, segundo a luz do dia. Uma vez mais, os badu exageravam. Ali não se cultivava, não pela suposta presença dos demônios, mas sim pelo inviável das rochas, que faziam quase impossível o avanço da mais heróica das matas. Detive-me o pie do maciço e tentei averiguar como chegar ao alto. Não distingui atalho algum. Teria que me deixar guiar pelo instinto. E comecei a subir. O Mestre tinha que estar na cúpula. Ou não? Então o vi. Saiu por detrás de uma enorme rocha. Era alto e de uma fraqueza de pesadelo. Em um primeiro instante me alarmei. Era um ancião, totalmente nu, e com a cabeça médio oculta por uma panela de ferro, mais escura que a pele do infeliz. Ria sem cessar, e saltava, ao tempo que golpeava o metal com uma pedra. Não entendo como podia ver. Chamavam-no ámar ("lua"), porque "crescia e decrescia", depende. Era um madjnoun, um poseído dos znun; um indivíduo -diziam-- que desafiou aos demônios da colina da "escuridão", à busca dos pretendidos tesouros. Ouvi toda classe de lendas sobre ámar. Todas falsas, muito possivelmente, mas no Beit Ids as acreditavam, e permitiam que se movesse com liberdade. Não era do clã. Ninguém conhecia sua origem. Habitava nos arredores do povoado e se alimentava do que lhe ofereciam, assim como do
leite que ordenhava. Para isso levava o pequeno caldeirão, sempre sobre a cabeça. Assinalou para o céu azul e gritou, entre risadas: -Znun! O homem tinha perdido a prudência... E acrescentou: -tornaram!... Znun Não quis pensar. Os gritos do louco me recordaram as palavras de outro desequilibrado, na garganta do Firán. Isso não era possível. Os znun não existem... Continuei meu caminho, acompanhado pelo ancião. No povoado tinham razão: seu desvario era como a lua. Chegava a um máximo, e minguava. Depois desaparecia durante um tempo, até que o voltavam a ver. Agora, ámar parecia em plena crise. -Znun!... Chegaram ontem à noite!... Mas me achava tão absorto na busca do topo, e na localização do Mestre, que não lhe emprestei a menor consideração. E a meia colina, suponho que aborrecido, ficou atrás, campaneando a panela sem interrupção. Vi-o descender, a saltos, como um suicida, entre risadas e gritos... -Znun!...tornaram! Senti-me aliviado. E coroei, ao fim, o penhasco da "escuridão". Foi uma surpresa. O topo era pura rocha, moldada caprichosamente pelos ventos e a fúria da chuva. A "778" era similar a uma fortaleza lunar, perfurada como um gruyére, e em que a brisa assobiava ameaçador, por muito tímida que fora. Não era de sentir saudades que os naturais do Beit Ids evitassem semelhante roquedal. Passeei-me, atento, mas, em uma primeira olhada, não achei ao Mestre. A erosão tinha deixado ao descoberto boa parte do cimento das areniscas matizadas que formavam o "castelo lunar". Me entretive, bisbilhotando nas nervuras vermelhas, verdes e amarelas das rochas. Em algumas se distinguiam fósseis marinhos, restos inequívocos do antigo mar do Lisán, que cobriu a região dezessete mil anos antes. Havia tornado a me equivocar? Ali não estava o Filho do Homem... E me dirigi ao norte. Possivelmente deveria ter perguntado ao ancião. Rechacei a idéia. O
demente só falava dos diabos... Em sua cara norte, a "778" aparecia atalho bruscamente. A rocha aparecia a um precipício mais que respeitável, de uns oitenta ou cem metros de profundidade. Recordou-me o escarpado que rodeava o Ravid. ao longe, entre as fileiras de olivos, distingui a já mencionada aldeia do Rakib. O que fazer? Retornava à cova? Era muito em breve. Fazia uma hora escassa que tinha amanhecido. E optei por me sentar no fio do precipício. Não conseguia entender. Foi a intuição a que conduziu a "778". Tivesse jurado que o Galileo se achava em metade daquela desolação... Está bem. Retornaria ao Beit Ids, e esperaria pacientemente. Ele sabia o que fazia. Eu só era um mau'AK, um pobre e mais que torpe mensageiro... Então ocorreu. É difícil explicá-lo. Foi uma sensação similar à experimentada na gruta. Era como se alguém me observasse. Senti, inclusive, como os pêlos da nuca se arrepiavam. Alguém estava a minhas costas. E, instintivamente, aferreime ao cajado. Em um segundo o pensei tudo. Um animal? Possivelmente um dos lobos vermelhos que tinha ouvido a noite anterior? O louco da panela? Algum pastor da zona? Não, ninguém, em seu são julgamento, subia à penha da "escuridão". Um znun Possivelmente um dos tripulantes da estranha "luz" que se precipitou sobre a "778"? Todo isso era ridículo... Voltei-me, rápido e disposto a descarregar o laser de gás, se era necessário. Nada. Silêncio. Só vi o silêncio, uma vez mais, entre as rochas. Mas eu juraria... Ali havia alguém... Possivelmente fugiu e se escondeu entre as cavidades do topo... Tinha que sair de dúvidas. E dirigi aos penhascos mais próximos. Aos poucos passos, ao rodear uma das moles de arenisca, fiquei parecido ao chão. Ali estava! Como não o tinha visto? Tinha-o a cinco metros escassos... Observei-o com atenção, e desfrutei da imagem. achava-se convexo no interior de um dos alvéolos que formavam a pedra. Era incrível. Podia dormir em qualquer parte. Pouco importava que fora uma rocha... Estendi a mão, com a intenção de despertá-lo, mas me detive. Retornei ao precipício, fiz-me com a cesta da comida e voltei frente ao vazio. E ali me
sentei, e o contemplei a prazer, como poucas vezes o fiz. O Mestre dormia profundamente. Quanto levava ali? Nem idéia... Vestia a túnica vermelha, e se cobria com o manto cor veio. O roupão tampava parte da cabeça. Dormia sobre o flanco direito, sua postura habitual, com a perna do mesmo lado estendida totalmente, e a esquerda, ligeiramente flexionada. O braço direito ocultava parte do rosto, enquanto a mão descansava sobre a região do ombro e do omoplata esquerdos. A respiração era dócil e pausada. Os olhos se moviam sob as pálpebras. achava-se em plena ensoñación. E me perguntei: como são os sonhos de um Homem-Deus? Reveste-as das sandálias apareciam quase brancas. Era a concreção própria da arenisca sobre a que nos encontrávamos: fundamentalmente, calcita e aragonito. Isso significava que levava tempo na colina. Mas por que? O que tinha de particular o monte da "escuridão"? por que nos tínhamos detido no Beit Ids? E assim permaneci comprido momento, velando o sonho de um Deus. Nunca estarei o suficientemente agradecido... E por volta das oito da manhã percebi uma suave brisa. O céu continuava azul, sem indício de nuvens. Cobri os pés do Mestre com as mantas e decidi jogar uma olhada aos arredores. Meu amigo seguia dormido, e entendi que não devia interromper o sonho. Eu só era um observador. Em realidade, "oficialmente", nem sequer estava ali... Deixei a cesta frente ao aprazível Galileo e comecei a riscar círculos, tomando como centro o oco no que descansava Jesus. Sentia curiosidade. Durante boa parte da noite pude ouvir os uivos dos lobos vermelhos, mas rondaram por aquele penhasco? E o mais importante: se a "luz" se precipitou sobre o topo da "778", possivelmente tinha ficado algum resto... No que estava pensando? Restos do que? A intuição nunca trai. Ao pouco, em uma das elevações do terreno, descobri excrementos de animais. Pertenciam a dois tipos de mamíferos. Uns, muito negros, com uma das pontas retorcidas em espiral, pareciam de raposa. Provavelmente tinha
comido bagos de empetro, ou erva-doce marinha, uma das escassas novelo que prosperava entre as rochas. Os outros, similares aos dos grandes cães, de cor cinza, eram de lobo, sem dúvida. A arenisca tinha sido arranhada com as patas anteriores, outra dos costumes destes carnívoros. Por mais que indaguei, não achei rastros. O terreno era inapropriado. Não importava. Os lobos estiveram ali, tal e como supunha. Mas o que procuravam em uma paragem tão inóspita? Ali não havia caça, nem tampouco ninhos de rapazes. Tive um pressentimento... Então, quando me dispunha a retornar junto ao Mestre, reparei em outro detalhe que não era normal. Os sedimentos apareciam sem aroma, e totalmente desidratadas, como se tivessem sido expostas a uma intensa radiação. Não soube explicá-lo, a não ser que... Procurei entre as pedras e, efetivamente, a suspeita se confirmou. As ervadoces, habitualmente cheirosos, achavam-se amarelos e mortos. Algo os tinha secado até a raiz. E na memória surgiu o resplendor violeta... Foram os lobos atraídos pela "luz" que se precipitou sobre a colina? Foi essa "luz" a que secou as novelo e os sedimentos dos animais? Que classe de radiação se apropriou das rochas da "778"? E o mais importante: existia alguma relação entre as "luzes" e Jesus do Nazaret? Pensei em recolher algumas mostra e as transladar ao "berço". As análise podiam ser reveladores. Assim o faria, caso que fora compatível com os planos do Galileo. E quais eram esses planos? Tinha que limpar a dúvida. Não esperaria mais tempo. O perguntaria agora. E com essa intenção retornei ao casaco no que deixei ao Mestre. Surpresa. Jesus tinha despertado, e examinava, curioso, o interior da cesta. À lombriga, sorriu e exclamou, aparentemente desiludido: -Por um momento, eu também acreditei nos milagres... Assinalou o mensaf, e arredondou: -Parece que o Pai ouviu seu desejo: cordeiro, melhor que gafanhoto... Assim era o Filho do Homem, de um humor inalterável. sentou-se frente às viandas e não esperou. A ração de malleh, as tâmaras e
o mensaf desapareceram em um suspiro. Estava faminto. E calculei: era muito possível que não tivesse comido em tudo no dia anterior. Em total, mais ou menos, umas trinta e três horas de jejum. Observei-o, agradado. Acertei ao carregar a comida. Quanto ao delicioso cordeiro, a idéia foi do xeque do Beit Ids, não do Pai... Ou estava equivocado? O que era certo é que a sugestão de "cordeiro em lugar de gafanhoto" foi dela, durante a bênção, na cova. Mas guardei silêncio. Eu também preferia o mensaf... Achei um Jesus radiante e feliz. E soube que desejava falar. Necessitava-o. Então perguntei sobre seus planos. O que pretendia? por que se deteve naquela paragem? O que procurava na colina da "escuridão"? Desdobrou com mímico o pano que envolvia uma das "pastilhas" de halwa, o apetitoso doce beduíno, e levou o "turrón" aos lábios, saboreando-o. Depois se elevou e me indicou que o seguisse. Caminhamos até o fio do precipício. sentou-se no bordo e me convidou a que o acompanhasse. Assim o fiz, um tanto preocupado pela cercania do Mestre ao vazio. E a velha idéia rondou de novo: podia sofrer um acidente? É obvio, guardei silêncio. Não me pareceu oportuno interrompêlo com semelhante pensamento. E ali permaneceu, com o halwa entre os dedos, e as pernas oscilando e brincando no ar. Abaixo, a uma distância mortal, o fundo do escarpado... Esperou a terminar a sobremesa. Jesus era assim: cada coisa recebia o afã necessário, e sempre de uma em uma. Dificilmente empreendia dois assuntos a um tempo. Espiei-o com a extremidade do olho. A brisa limpou o bronzeado rosto, lançando para trás os cabelos. Suponho que meditou bem suas palavras. O que me dispunha para ouvir era uma espécie de "declaração de princípios": a essência do que ia ser sua próxima vida pública. E falou. E o fez com paixão, e convencido. Quem isto escreve se limitou para ouvir e a perguntar. Oxalá fora capaz de transcrever o que pôs ante mim. Não tudo foi simples. Parte do que disse segue sendo um mistério para este torpe explorador. Confesso-o. Alguns temas me transbordaram e, simplesmente, escorregaram por minha escassa inteligência. Possivelmente o hipotético leitor deste
diáriotenha mais fortuna que eu... Jesus me recordou algo que já tinha intuído. Aquela segunda-feira, 14 de janeiro, data da imersão nas águas do Artal, foi a "estréia" -as palavras não me ajudam- do Galileo como Homem-Deus. Como pinjente, o dia do Senhor, sua "inauguração oficial" como Deus feito homem, ou como homem que recebe a natureza divina. A partir desse meio-dia, nada foi igual. O velho sonho do Jesus -fazer sempre a vontade do Ab-BA se converteu em algo inerente (inseparável) a dobro recém estreada natureza do Filho do Homem. Fazer a vontade do Pai Azul formou parte de seu sangue e de sua inteligência. Gostou de minha definição: o "princípio Omega". Pois bem, essa era (e é) outra das incontáveis vantagens do "princípio Omega": O guia. Assim chegou ao Beit Ids. Foi seu Pai quem o levou virtualmente da mão. E a eleição, como irei relatando, foi um acerto, com uma subterrânea leitura simbólica. Nisso, os evangelistas acertaram: "...e foi empurrado pelo Espírito... " Só nisso... Mas vamos passo a passo. Beit Ids foi o lugar eleito para frear os naturais ímpetos de Alguém que sim estava em posse da verdade, e que desejava dar de presente parte dessa luz. Beit Ids, com suas colinas, seus badu e seus silêncios, foi a paragem idônea para que o Mestre meditasse, sobre si mesmo, e sobre o que pretendia. E qual era seu objetivo? Repetiu-o por enésima vez: despertar ao ser humano, sacudi-lo, se era preciso, e lhe anunciar a boa nova. Não tudo era escuridão. Não tudo era medo e desespero. O estava ali para gritar que Deus, o Pai, não é o que dizem. O decidiu ficar na Terra para desentupir a esperança. Nosso mundo, por razões que nos levariam muito longe, permanece nas trevas. Ninguém sabe realmente por que nasce, por que vive, e, sobre tudo, o que lhe espera depois, caso que exista algo depois da morte. Essa era a chave. A isso veio o Filho do Homem: a mostrar a cara de um DeusPai que não leva as contas, que não castiga, ao que não é possível ofender, embora o pretendamos, e que, ao imaginar, ao nos criar, nos dá de presente a imortalidade.
Imortais desde que somos imaginados! Tinha chegado a hora de dissipar as trevas e abrir-se passo para a luz: o Pai não era o invento de uma mente doentia, ou de um sonhador. O Pai é real, como a rocha sobre a que estávamos sentados, ou como os olivos que nos observavam na lonjura, desconcertados ante as formosas palavras do Príncipe Yuy. Olhei-o, sobressaltado. Os olhos, cor mel, beberam-se o azul do céu. Tudo era dele, porque sua era a verdade. E ardia em desejos de baixar ao mundo e de proclamar esse "reino" tão distinto, e distante, de que pretendiam os seguidores do Yehohanan e do Mesías libertador. Um "reino" do espírito, que só podíamos intuir enquanto permanecêssemos na matéria. O "reino" do Pai, que nos aguardava depois da morte: o grande objetivo, o único, o verdadeiro... Esse era nosso destino: um caminho circular. Havíamos partido do Ab-BA e a Ele voltaríamos, inexoravelmente, uma vez cobertas as prodigiosas aventuras da vida e da ascensão pelos mundos do "não tempo" e do "não espaço". Não compreendi bem, mas o aceitei. O jamais mentia. Se assegurava que o verdadeiro destino, e nossa autêntica forma, é espiritual (entendida como energia ou luz), eu acreditava. além de esperanzador, era lógico: o esbanjamento da vida só é compreensível em uma "mente" (?) que vive porque imagina... Mas tudo isto -a revelação do Pai Azul aos seres humanos- devia produzirse passo a passo. Hei-o dito alguma vez: a revelação é como a chuva. O excesso ou a seca são prejudiciais. O Mestre sabia muito bem. Era necessário esperar, meditar e, em soma, sujeitar-se à vontade do Pai. E acreditei entender o significado das misteriosas palavras: por que o Filho do Homem demorava tão esplêndido trabalho? A minha mente chegou um nome: Yehohanan... Tinha toda a razão. Se Jesus tivesse iniciado seu período de predicación essa mesma segunda-feira, 14 de janeiro, o que teria acontecido? Como tivessem reagido Abner e o resto dos discípulos? Se o Mestre selecionava a seus próprios íntimos, e arrancava como pregador, que classe de reação teria provocado no grupo do Yehohanan?
Os conceitos eram opostos. O vidente acreditava em um Mesías "destruidor de dentes", em um Yavé vingativo, e em um "reino" sob a hegemonia do Israel. O Mestre pretendia algo mais transcendental e revolucionário: despertar a esperança... para sempre. Não me equivoquei... O Mestre, inteligentemente, optou pela espera. Sim, passo a passo... O Destino sabia o que fazia. Francamente, não invejei seu trabalho. Os propósitos do Filho do Homem, ao menos naquele "agora", estavam condenados ao fracasso. O sabia e, mesmo assim, submeteu-se ao "princípio Omega". Recordo que lhe perguntei sobre o particular, e sorriu, com certa amargura. "É preciso", foi sua única resposta. E minha admiração cresceu. O estava à corrente: os homens tinham feito um negócio dos deuses, incluído o do Sinaí, e não resultaria fácil. Elevar a voz e apregoar que existe um Pai, mas que nada tem que ver com os trinta mil deuses do panteão romano ou com o Yavé que defendia a pureza racial? Como convencer a fenícios, egípcios, mesopotámicos, asiáticos ou árabes, entre outros povos, da inutilidade de suas crenças e do estéril das divindades às que temiam? E, entretanto, O prendeu a chama... Acreditava conhecer o porquê, mas o perguntei. E Ele, dócil, explicou-o como se fora a primeira vez. Possivelmente foi (para meu "agora"). Tudo tinha uma origem única. Sua encarnação na Terra era conseqüência do Amor. -Amor? Observou-me, e me despiu. Acredito que avermelhei. Óbvia mente, referíamos a "amores" muito distintos... Eu pensei nela, mas me equivocava. O se referia a outra classe de Amor (com maiúscula). Mencionou a palavra áhab (mais que amor). E torpe, como sempre, interrompi-o. Melhor dizendo, pior que torpe... Não desejava que perguntasse pelo MA'ch, e me engenhei isso para desviar a conversação. Joguei mão da primeira idéia que cruzou ante mim. E ocorreu que esse pensamento foi a pequena esfera de pedra que guardava no cinto. Extraí-a e a entreguei, ao tempo que me interessava por sua origem. O Mestre não pareceu surpreso ao recuperar a galgal, como chamou à
atrativa ortoclasa da "nuvem" azul. Examinou-a e começou a brincar com ela entre os dedos. Arrependi-me imediatamente. Se a esferita escapava de entre as mãos, o mais provável é que se precipitasse no abismo... Contemplei o fundo do escarpado, nervoso. Como pinjente, o precipício era respeitável: mais de oitenta metros... Jesus, divertido, seguiu enjoando a galgal. Vá!... Depois, cansado do exame, inaugurou outro jogo: começou a lançar a de uma mão a outra... Notei como o suor apontava em minhas têmporas. Pensei em lhe rogar que detivera o inocente jogo, ou que me entregasse a pedra. Não fui capaz. Finalmente, atento aos saltos da ortoclasa, procedeu a satisfazer minha curiosidade. A esfera foi dada de presente em uma de suas viagens secretas pelo Oriente. Acredito recordar que falou da Tuspa, em Armênia, nas proximidades do lago Vão (atual a Turquia oriental). Mas me achava tão desenquadrado com a possibilidade de que a esfera se escorresse, e fora a estelar se com as rochas do fundo, que quase não emprestei atenção. -Isto -disse- é um presente... Deteve o jogo e situou a esferita na palma da mão esquerda. E ali a sustentou, balançando-a. A galgal pediu socorro, a sua maneira. Estou seguro. E pouco faltou para que me lançasse e a resgatasse. As "nuvens" azuis eram gritos. Mas a galgal, como MA'ch, era outro amor impossível... Ao menos se acalmou. E continuou: -Isto, querido mensageiro, é uma amostra do amor humano, mas é o áhab, o Amor do Pai, que o tem feito possível, e o sustenta. Então retornou a suas primeiras palavras. Tudo tem uma origem única, mas os humanos, limitados na compreensão de Deus, não sabemos distinguir. Uma coisa é o amor humano e outra, muito distinta, o ahab. Fechou os dedos e ocultou a esfera. Então, pícaro, perguntou: -me diga, mau'AK, crie que seu "amiga" está aí? Olhei-o, desconcertado. Meu "amiga"? Assenti com a cabeça, e tentei adivinhar seus pensamentos. Não o consegui. Esqueci que era um Homem-Deus.
-Mas se não a vê, como pode estar seguro? -Vi-a... O Mestre sorriu, satisfeito. E voltou a abrir a mão, me mostrando a galgal. Então, auxiliado pelo dedo polegar, seguiu agitando-a sobre a palma. E voltou o nervosismo. Quase não recordo seu comentário. Só sei que a esfera perigava, e que me transmitia isso em cada brilho azul. O abismo a reclamava. O que podia fazer? -Assim funciona o Amor do Pai -acredito que disse-. Está aí, mas não o vêem... E continuou jogando e sacudindo-a. Ia de uma mão a outra, ou corria entre os dedos, eu diria que tão aterrorizada como quem isto escreve. Falou do áhab, e disse coisas memoráveis, mas só retive idéias. A vontade, o coração e minha fraca inteligência estavam em outro lugar. Curioso: interessava-me mais o presente, o amor humano, que o criador, e sustentador, do mesmo. Assim somos... Disse que o Amor do Pai era um "fogo branco", a expressão que confundiu a seu irmão Judas ("Hazaq") durante a cerimônia da imersão nas águas do Artal. "Do Nome -ouviu- nasceu o fogo do final." Fogo, ou possivelmente branco? E falou do áhab como uma "chama" (labá) que não queima, que não é possível ver com os olhos materiais, mas que "incendeia" um nada e proporciona a vida. Disse que esse Amor é o "sangue" do criado. Nasce do Pai e circula de forma natural, mais à frente do tempo e do não tempo, mais à frente do espaço e do não espaço. Não é Deus, mas procede Dele, e só Ele é capaz de gerá-lo. Suas palavras me recordaram o que, em nosso "agora", conhecemos como combustível. Isso poderia ser o áhab divino: uma gasolina que move e dá vida, e que é muito mais que amor. Não se trataria de um sentimento, tal e como a mente humana o interpreta, mas sim de muito mais: pura ação, puro combustível, puro "fogo branco" que corre pelas "tuberías" do criado, e do increado, pura força (desconhecida), sujeita às leis do universo do espírito (mais desconhecido ainda), pura "gravidade" que mantém e equilibra (totalmente ignorada). Agora, na distância, arrependo-me de não ter emprestado maior atenção a suas palavras. E dou voltas e voltas
ao que manifestou, enquanto praticava o suposto jogo com a esfera de pedra, meu "amiga". Entendi que o Amor, como a gasolina, cheira, mas esse aroma não é a gasolina. Hoje, os seres humanos associam determinados sentimentos com o Amor do Pai. Estamos convencidos de que seu Amor é isso: sentimentos quimicamente puros. Sim e não. O que acreditei entender é que os sentimentos que identificamos como Amor divino não são outra coisa que uma conseqüência dessa misteriosa e imparable "força" que brota da essência do Pai: o aroma em relação à gasolina, como pinjente. E tudo, absolutamente tudo, depende dessa "energia" (?) uma "força" (?), insisto, que está fora do alcance da compreensão do homem, como o arco íris o está para um cego de nascimento. Não é possível aproximar-se sequer à realidade do áhab, aqui e agora. Em conseqüência, como pretender injuriar ou incomodar, a esse Amor? É que um inseto está capacitado para entender a natureza de um oleoduto e o sentido do mesmo? Ele o insinuou: pecar contra o Pai, contra o Amor, é tão pretensioso como ridículo. O homem está capacitado para ofender a seus semelhantes, e a si mesmo, mas não ao que está além das fronteiras de sua inteligência. De ser assim, esse Deus só seria um deus. E disse que o Amor, essa segunda "gravidade" que o cohesiona todo, seja visível ou invisível, derrama-se sobre nossa inteligência, e surge a poesia, a solidariedade, o sacrifício, a bondade, a genialidade, a tolerância, o humor e, é obvio, o amor. É um "descida" lógico, e natural, previsto nas leis fisicas do invisível. Utilizou a palavra najat ("descender"). É literalmente correto que somos uma conseqüência do Amor, do áhab do Ab-BA. Somos porque Ele descende. Somos porque o Amor nos "incendeia", como não poderia ser de outra forma. Por isso a justiça é humano. Nas "tuberías" dos céus -isso entendi- só circula o Amor. A justiça implica falta de Amor, e isso é inviável no Pai. Jesus do Nazaret o expressou com nitidez: "Quando despertarem, quando forem ressuscitados, ninguém lhes julgará. No reino de meu Pai não existe a justiça: só o áhab."
O Amor, portanto, só tem uma leitura: derrama-se. É a lei de leis, a autêntica Torá. que a descobre, ou a intui, entra no reino da sabedoria. E disse: "O princípio do saber não é o temor do Yavé, como rezam as escrituras. Eu vim a trocar isso. O sábio o é, precisamente, porque não teme." Essa foi outra das chaves a incluir em sua "declaração de princípios": o medo não é compatível com o Amor. Ele o repetiu até o esgotamento, e inclusive o gritou sem palavras ao ressuscitar. Mas eu, pendente do amor, quase não emprestei atenção ao Amor. A esperança estava a meu lado, sentada no bordo do precipício, mas não soube vê-lo... Guardou silêncio um momento e me deixou perambular entre os pensamentos, quase todos maltratados pelos nervos. Depois voltou o suplício. Sem dizer uma só palavra, lançou a esfera ao ar, a coisa de um metro, e esperou a queda. Recolheu-a com ambas as mãos, e com grande segurança. Meu coração sim caiu ao vazio, como um chumbo. E repetiu o jogo. Achava-me ao fio do abismo, e de um enfarte... Mas o Mestre, hábil, soube apanhá-la pela segunda vez. Obviamente, não me precavi da secreta leitura do "jogo"... Sorriu, estendeu a palma da mão esquerda e me mostrou a galgal. Os brilhos azuis eram angustiantes, sei. Então, em um tom grave, perguntou: -por que te inquieta esta pequena luz azul, se desfrutar de uma imensamente mais intensa e benéfica? -Uma luz? -balbuciei-. Onde? Assinalou meu peito e, mais sério, se couber, proclamou: -No coração... Não usou a palavra aramaica leb, a não ser lebab, com a que indicavam "coração e mente", como um tudo. Para os judeus, a mente residia no coração. Nesses instantes, confuso pelas peripécias de meu "amiga", não detectei a sutileza do Filho do Homem. Mas aí permaneceu, imutável, na memória. Esse não foi a única desorientação. Tomei o comentário pelas folhas e interpretei mal suas palavras. Sabia que Ele sabia o de meu amor, e me rendi. Imaginei que a referência à "luz", no coração, era uma clara alusão ao MA'ch.
Uma luz mais intensa e benéfica? Nem sequer me tinha atrevido a falar com ela... Era o momento. Soube. Tinha que me esvaziar. Nunca mais voltaria a lhe falar daquele amor impossível. E o fiz. Ele me deixou fazer. Escutou atentamente. O agradeci... Não sabia como tinha ocorrido. Vi-a no terceiro "salto" e me apaixonei. Seus olhos me acompanham após. Sabia que estava condenado ao silêncio. Nem sequer ela saberia jamais, embora sabia. Olhada-las também pesam, também caminham, também falam. Sobre tudo as dela... O que fazer? É obvio, não mencionei ao Eliseo. Sabia que retornaria a meu mundo, e que morreria sem que ela soubesse de meus sentimentos. Ou sim soube? Era, e é, toda minha vida, embora não a veja... Inspirei profundamente. Senti-me notavelmente aliviado. Ele, então, abraçou-me com o olhar, e, aprazível, falou assim: -Querido mau'AK, contarei-te algo... Foi assim como soube de "K", alguém de quem já tinha ouvido falar pelo Jaiá, a esposa do ancião Abá Saúl, e pelo Yu, o chinês. Este último a chamava "Kui". Escutei com especial atenção e, estou seguro, também o fizeram os céus, e os olivos, e as colinas do Beit Ids. Todos emprestaram ouvido uma história que, provavelmente, é certa. "K", ou "Kui", era uma criatura perfeita, imaginada pelo Pai Azul. Hoje a identificaríamos com um anjo, mas, a julgar pelas palavras do Mestre, era muito mais. Não importa. Eu imaginei a minha maneira, e Ele assentiu. Por muito que pudesse acertar, sempre ficaria atrás. "K" não era varão, nem tampouco fêmea. Era, simplesmente. Reunia em sua natureza -não material- tudo o que possamos estimar como complementar: luz e ausência de luz, som e silêncio, realidade e promessas, eu e você, um que produz dois, a fonte que emana para o exterior e, sobre tudo, para o interior, o haver e o não haver, o áhab que se basta a si mesmo, mas que não pode deter-se, fechado-o, que só pode ser concebido se estiver aberto, a quietude e a aspiração, o que atua sem atuar, amarrado-o e o instintivo, a metade de
cada sonho, a liberdade e o Destino, quão iminente nunca é o que vemos que, a sua vez, vê-nos, pensar e ser, o vermelho do "adeus" e o azul do "vamos"... O insistiu no término qéren, que poderíamos traduzir por dual ou dualidade. "K", em definitiva, seria o que hoje entendemos como um ser (?) com a propriedade de apresentar, ou possuir, dois estados diferenciados e, inclusive, opostos, e muito mais... Mas um dia (?), "K" descobriu que existem o tempo e o espaço, aos que jamais teve acesso. Sentiu curiosidade e quis experimentar. E apareceu ao tempo. Então ocorreu algo novo: "K" se dividiu em dois. Uma parte se fez mulher; a outra apareceu como um varão. Eram as regras do jogo. Se desejava viver no tempo -quer dizer, na imperfeição-, tinha que aceitar a nova dualidade ( sempre vive no "Dois"). E muito a seu pesar, "K" mulher, e "K" homem, seguiram rumos distintos. Às vezes coincidiram e vibraram, mas os encontros foram breves, e a vida terminou distanciando-os. Ela o tem saudades, e ele, a sua vez, mantém-na viva em seu coração, mas nenhum dos dois conhece o segredo de "K". O jogo prohíbe a reunião definitiva, ao menos nos mundos materiais. Ele vive, e ela vive igualmente, e experimenta. Ela cresce, e ele cresce. Ela o ama, e ele a ama, mas não sabem por que. Ignoram que foram, e serão, "K". E chegará o momento no que mulher e homem retornarão a sua primitivo estado -a forma espiritual- e serão "K". Então, a seu áhab natural, terá sido acrescentada a vivencia humana, o amor, com minúscula. Mensagem recebida. E me atrevi a perguntar: - "K" existe? A resposta foi terminante: -Itay! (Existe!) -E que lugar é esse? -Não é um lugar, meu querido mau'AK: "K" não vive no tempo e no espaço. De novo devo me aproximar da realidade, mas não é a realidade. "K" vive na eternidade... E empregou o término 'alam, que em aramaico quer dizer "tempo remoto", em uma aproximação, efetivamente, ao conceito de eternidade.
Jesus advertiu minha surpresa, e matizou: -Todos serão "K" algum dia. A isso vim: para lhes anunciar a esperança. Em realidade, a vida é um sonho..., passageiro. Quando chegar o momento, você, ela, todos, recuperarão o que, legitimamente, é seu... E pôs especial ênfase na palavra "legitimamente". -Compreende? Neguei com a cabeça. Estava aturdido. Quão único flutuava em meu coração é que, se a história de "K" era certa, e Ele, insisto, nunca mentia, meu amor pelo MA'ch sim tinha sentido. Era impossível, mas só no tempo. Se ela e eu fomos "K", ela, ou eu, esperaríamos no 'alam, na eternidade. -Compreende por que, ao descobrir a esperança, descobre que o tem tudo? E recordei a prancha de madeira, obséquio de Sítio, a posadera do cruzamento do Qazrin: "Acreditei não ter nada -tinha gravado a fogo-, mas, ao descobrir a esperança, compreendi que o tinha tudo." E acreditei entender, igualmente, o significado do estranho sonho do Jaiá, a mulher do Abá Saúl, no que se apresentou um dobro Jasão: o velho, vivo, e o jovem, morto. "Então -explicou Jaiá-, o ancião Jasão falou..., e disse: "O amava a 'K' e eu também." Os dois a amávamos, lógicamente..." Mas como pôde sonhar algo assim? Como soube...? O Mestre leu meus pensamentos, e sorriu, malicioso. E se adiantou a minha pergunta: -Eu não sei nada... Não sou um tzadikim. Só sou... Duvidou. Lançou a esferita da "nuvem" azul para o alto, mas, nesta terceira oportunidade, fui eu quem adiantou as mãos, e a apanhei. -Sim, sei -intervim, feliz pela captura-, só é um Deus sem experiência. Um perigo...! Jesus manteve o sorriso e, cúmplice, acrescentou: -Só recém-chegado... Um Deus recém-chegado, como sabe melhor que ninguém... E tem toda a razão: breve, serei um perigo... Devolvi-lhe a ortoclasa e continuamos falando. Foi uma jornada muito instrutiva. Ali, na rocha dos znun, confirmei o que tinha intuído: Beit Ids não era um lugar de passagem. Beit Ids foi selecionado, minuciosamente, para "esquentar motores", se me permite a expressão aeronáutica. Naquela esquecido paragem, longe de tudo,
e de todos, na única companhia da natureza, dos badu e de um louco ( ou fomos dois?), o Filho do Homem atacou a preparação de seu grande sonho: descobrir a cara amável do Ab-BA, a única possível. Foram trinta e nove dias de reflexão, de constante comunicação com o Pai dos céus, e do que O chamou o Atattah-ani. Não consegui traduzi-lo, e duvido que exista uma aproximação medianamente certeira, salvo para os grandes iniciados. Decompondo a expressão aparecem at (pronome feminino que significa "você"), attah (pronome masculino, que também quer dizer "você") e ani ("eu"), todo isso em hebreu. At, em aramaico, é uma palavra de especial significação no concernente à expectativa messiânica. Simboliza o "milagre", o "prodígio", ou o "sinal" que acompanharia a dito Libertador do Israel. Pois bem, por isso alcancei a compreender -e não foi muito-, o At-attah-ani consistiu em um "processo" (?) pelo que o At (o Feminino, com maiúscula) aprendeu (?) a conviver (?) com o attah (o masculino), com um resultado "milagroso": um ani (eu), integrado pela dobro natureza anterior: a divina e a humana. Fiquei tão perplexo como confuso. Foi outro dos mistérios que não me atrevi a desentupir. Ele o disse, e eu acredito. Durante essas quase seis semanas no Beit Ids, as naturezas humana e divina do Homem-Deus aprenderam (?) a conviver e a ser "um em dois". Esse foi o "milagre": o "você" (feminino) e o "você" (masculino) reuniram-se em uma só criatura, e apareceu o Homem-Deus. Como pinjente, escapa a minha ridícula compreensão, e aí ficou, como um ato de confiança na palavra de um amigo. "A gente produz dois", disse Yu. "Dois é Um", acrescenta quem isto escreve. De novo, a dualidade. De novo, "K"... Como dizia Ele, quem tem ouvidos, que ouça... De todas formas, perguntei-o. Fiquei mais tranqüilo: -Desejas que te acompanhe, Mareh ("Senhor")? Não incomodarei. Só te servirei, silo permite. Enquanto você medita, enquanto faz At-attah-ani, enquanto fala com o Pai, enquanto prepara a boa nova, eu cuidarei do pequeno. Farei fogo. Conseguirei mantimentos. Lavarei a roupa. Estarei atento para que ninguém te incomode. Velarei
por sua segurança... Deixou que me espraiasse. -... Com uma condição... Olhou-me, divertido. -Não mais jejuns... involuntários. Sorriu com doçura e assentiu em silêncio. -Eu serei o anjo que te sirva... -Não só me parece bem, mas também, inclusive, necessário. Faz como desejas, posto que o deseja com o coração. -E outra coisa -o interrompi-, não mais aparições e desaparecimentos. Sempre deverei saber onde está... -Tem razão -comentou com um ponto de ironia-, as aparições e desaparecimentos são outro capítulo... Quanto a minha segurança, não tema, mau'AK... Assinalou ao céu e me fez uma piscada, ao tempo que proclamava: -Minha gente está aí, pendente... Sua gente? E associei as palavras às misteriosas "luzes" que tinha contemplado. Mas não indaguei. Foi o mais perto que estive da verdade. Nem Ele se estendeu jamais sobre o particular, nem este torpe explorador insistiu no enigmático assunto. Acredito que tampouco faz falta. O hipotético leitor destas memórias saberá interpretar esses "signos" nos céus, sempre tão oportunos... Em soma, a estadia nas colinas do Beit Ids foi um período de especial importância para o Filho do Homem, no que, entre outras coisas, fez Atattah-ani, algo jamais mencionado e que, desde meu humilde ponto de vista, esclarece o porquê de seu retiro, depois da inauguração "oficial" como Homem-Deus. Para quem isto escreve resultou uma das épocas mais doces e didáticas de nossa aventura naquele "agora", apesar da welieh da fonte... Retornamos à cova e, tal e como combinamos, este explorador se ocupou da intendência e do menor. À manhã seguinte, quinta-feira, 17 de janeiro, fui o último em despertar, como sempre. Para falar a verdade, estava esgotado, e com um considerável déficit de sonho. Foi normal que dormisse dez horas. O Mestre, sempre considerado, tomou o café da manhã e desapareceu sem ruído. Era o combinado. O se dirigiria às colinas, e retornaria antes do pôr-do-sol.
Inspecionei a meu redor e me chamou a atenção uma das pranchas de agba, a tola branca que se acumulava em um dos extremos da caverna. O Galileo tinha pintado algo sobre ela, e a depositou na cabeceira da manta sobre a que dormia este explorador. Utilizou um dos carvões do lar. Em aramaico e hebreu se lia: "Deixo-te com a nitzutz. Estarei com minha gente." Nitzutz, a única palavra em hebreu, podia ser traduzida como "faísca", mas não no sentido de faísca elétrica, partícula incandescente que nasce de uma fricção, ou de algo que se está queimando, ou brilho luminoso, mas sim como uma "vibração" (?) produzida pela letra yod, a primeira do Nome santo. Essa yod tinha "vida", e, segundo os iniciados, a "oscilação" a convertia em uma das letras mais agudas e mais próximas à divindade. De fato, como digo, forma parte do Nome ou Tetragrama: YHWH (Yavé) ou çêç, em hebreu. Deixava-me, com a nitzutz. O que quis dizer? Teria que esperar ao entardecer para esclarecer o novo enigma, um dos mais sagrados que teve a bem me revelar... Tratei de pensar, e me organizar. A que emprestava prioridade? Começava pela comida? E sorri para meus adentros. Aquele Homem fazia milagres, inclusive quando não estava presente... Ali me achava, sentado sobre a manta, em metade da gruta, e sem o menor temor. E recordei os medos da noite anterior, os uivos, e as estacas ao meio consumir. Agora aparecia sereno, e capaz de me enfrentar a todos os fantasmas do Beit Ids... Imagino que o Destino, atento, sorriu zombador. Na verdade estava preparado? Não demoraria para descobri-lo... Decidi me ocupar das viandas. Conseguiria-as no povoado, como na jornada anterior. Mas antes baixaria ao wadi e me daria um bom banho... Desprendi o saco de viagem. Depositei-o sobre a manta e procedi a seu exame. Tinha que revisar a farmácia de campanha e, muito especialmente, as dose de dimetilglicina, o antioxidante que lutava contra o mal que nos afligia. Por certo -pensei-, tinha que tomar uma decisão sobre os "tumores". Se desejava continuar a seu lado, minha situação...
Os pensamentos fugiram. Descobri-o nesses instantes. Não era possível... Rebusquei entre as escassas pertences, mas não o achei. Estava ali. Tinhao visto horas antes... Ou não? E recordei que não quis transladar os esteiras. Isso foi ao amanhecer da quarta-feira, 16. Ao retornar, não me preocupei do saco. Continuava pendurado da viga. Acudi ao Beit Ids. Proporcionaram-me algo para comer, e fiquei dormido. Então... Maldita seja! Em minha ausência, enquanto permaneci na penha dos znun, alguém abriu o saco e o levou... Mas... Neguei-me a aceitá-lo. Entretanto... Possivelmente o guardei em outra parte -tentei me tranqüilizar-. Possivelmente o depositei na caverna... Negativo. Eu sabia que não era assim, mas pus a gruta patas acima. Negativo, negativo... Tinha que encontrá-lo! Primeiro foi o candelabro, junto à fonte. Desapareceu. Ouvi grunhidos. Depois, se não recordava mau, foi o esteira, oscilando. Ninguém o moveu. Continuando, a sombra, as tochas apagadas no chão da gruta, e ao meio consumir. Depois, o medo, e este explorador fugindo da zona... A welieh da fonte? Pensei também no Mestre. Pôde fazer-se com ele, e levar-lhe E por que fazê-lo? Não tinha sentido, embora Ele fora o principal interessado em que desaparecesse... Não, não foi Ele. Além disso, haveria-me isso dito. Ele foi sempre exquisitamente respeitoso conosco. Jamais interveio, ou se pronunciou, em assuntos puramente técnicos. Sabia muito bem os quais fomos, e por que estávamos naquele "agora", mas foi como se não estivéssemos. Negativo. Jesus do Nazaret não era assim... Bem. Me tomaria com calma... Primeiro iria ao rio, tal e como planejei. Isso me ajudaria a recordar. O mais provável é que o tivesse guardado em qualquer parte. Depois, começaria pelo princípio. Tiraria meus pertences e atuaria com
frieza. Mas e se não o achava? Muito simples. Nesse caso interrogaria ao sheikh do Beit Ids e o reclamaria. Ninguém roubava a um convidado. Era outra das normas da hospitalidade beduína. Recuperaria-o. O cilindro de aço, com as amostras do Galileo e dos seus, não podia cair em mãos estranhas... Não foi assim. Não o encontrei. Os esforços resultaram baldios. O valioso contêiner se havia disolvido no ar. Isso não era possível. A não ser que estivesse sofrendo um novo ataque de amnésia... Não, nada disso. Minhas reações eram coerentes, e a memória, igualmente fiel, ou mais. Tinha que aceitá-lo. Alguém entrou na caverna e se apoderou do cilindro. Examinei o chão, e o esteira, e cheguei a uma conclusão: o ladrão não chegou a desprendê-lo. A manobra foi executada do alto da viga central. A malha que formava o saco não apresentava restos da terra seca e esponjosa que atapetava a gruta. Foi içado e aberto. Depois, com o cilindro em poder do ladrão, o esteira foi pendurado de novo do mesmo prego de que pendia. O intruso não deixou rastros. Só se moveu sobre a madeira de carvalho. Mas como entrou e desapareceu? E os pensamentos correram para um mesmo lugar: as "chaminés" que havia medeio inspecionado, e que se abriam no extremo esquerdo da caverna. por ali fluía o ar. Tinham que desembocar no exterior. Possivelmente o ladrão escapou por um dos misteriosos condutos. Aproximei-me das bocas dos "tubos", mas tampouco vi rastros ou rastros. A distância ao ponto mais próximo da viga somava quase sete metros, em linha reta. Como salvou esse espaço? tratava-se de um morcego gigante? Rechacei a idéia. Não tinha conhecimento desta classe de mamíferos quirópteros no Israel. Naquele tempo se contabilizavam mais de cem espécies, todas insetívoras, mas nenhuma superava os vinte ou vinte e três centímetros de envergadura. Além disso, não conheço nenhum morcego com semelhantes habilidades... E a lembrança da welieh me intranqüilizou. O que era esse gênio, exatamente?
Cabia outra possibilidade. O "ladrão" possivelmente alcançou a viga central com a ajuda do teto. Pus-se a tremer. Isso era pior que a idéia do vampiro... Só uma serpente tivesse sido capaz de reptar pela abóbada e deslizar-se pela madeira. Mas que classe de ofídio seria capaz de içar um saco, abri-lo e levar um cilindro de aço de 18 por 9 centímetros? Isso era igualmente ridículo... Introduzi uma das tochas nas "chaminés", mas não acertei a distinguir nada anormal. Não acertei ou não quis ver? A verdade é que o nervosismo começou a ganhar a partida e, prudentemente, retirei-me da caverna. Seguiria com o plano previsto. Iria ao povoado e interrogaria ao sheikh. Pu-me em caminho, mas, ao pouco, diminuí a marcha, e as intenções começaram a fraquejar. O que podia lhe dizer? Que me tinham roubado umas amostras de sangue, cabelos e dentes? Que eram as amostras de um Homem-Deus e de sua família? Que alguém, a sua vez, pretendia as roubar e as transladar a outro "agora"? Nem sequer estava em condições de explicar o que era um aço especial maraging... "Justo castigo -pensaria o beduíno-. roubaram a um ladrão.. . " Além disso, se os badu eram rigorosos, e jogavam mão ao ladrão, seu destino era a morte. A lei do sal, da hospitalidade, era implacável. Se alguém do clã violava a referida dorah, sua sorte dependeria da benevolência do xeque. Quão mínimo podia ocorrer é que o tirassem do povoado e lhe cortassem as mãos. Esqueci o assunto. Faria-o a minha maneira. Eu procuraria o ladrão... Muito tarde para dar a volta. Os saluki me saíram ao encontro, e o de cor pérola quase me arrastou até a casa principal. O homem das vestimentas brancas me recebeu, como sempre, com a fórmula habitual da saudação beduíno, mas talhado pela metade. Continuava no mesmo lugar, sob os olivos, frente ao arco da porta, e com a larga corda entre os dedos. Fazia e desfazia nós. Os galgos se tombaram a seu lado, e se repetiu o acostumado: cerimônia do kafia, silêncio e, depois, as boas notícias, se as havia. Comecei a suspeitar algo estranho. por que sempre permanecia no mesmo
sítio? Não aparentava sofrer nenhuma doença que o impossibilitasse... Falei-lhe do Príncipe Yuy, agradeci seu dorah e, finalmente, atrevi-me a fazer uma pergunta, relacionada com a cova. Alguém mais tinha acesso a nosso refúgio? O sheikh parecia esperar o sutil interrogante. Retirou o vaporoso jerd que o cobria e apurou outra taça de kafia. Olhou-me diretamente e, sem rodeios, perguntou a sua vez: -Roubaram-lhe, ou é que...? A surpresa me deixou mudo. E o xeque compreendeu. Baixou a cabeça, e a luz da manhã iluminou as largas pestanas azuis. Como soube? Mas sua atitude não foi de vergonha, ou repúdio. Levantou o rosto, e, a sua maneira, sem concluir as frases, foi explicar que devia me considerar um homem afortunado. Tinha sido roubado pela welieh da fonte. Acontecia em ocasiões, quando o convidado era notável... -Mas... Não me permitiu continuar. Não era um roubo vulgar e corrente -assegurou-. Devia me sentir feliz... Em certo modo tinha razão. O sustraído não era comum, embora eu não me sentia muito feliz. E seguiu me surpreendendo. Sabia que o roubado brilhava como um espelho (o cilindro era de um aço muito gentil). Sempre acontecia o mesmo. A welieh só interessava o luminoso. Em outra oportunidade foi uma formosa adaga, e também o espelho de bronze de uma dama. E recordei o roubo do candelabro. Não saía de meu assombro. Desde quando a uma welieh atraíam os objetos capazes de refletir a luz? Mais ainda: desde quando acreditava eu em gênios benéficos? Benéficos? -Já não te incomodará mais, porque tem o que quer, e porque... -Porque você conseguirá que me devolva isso... Negou com a cabeça e sorriu com certa amargura. -Não compreendo... E o xeque explicou que isso era impossível. Ninguém devia aproximar-se da welieh. Ela, além disso, não o permitia. E insistiu: eu era um homem com sorte, um fal, alguém capaz de atrair a felicidade e a fortuna. Definiu-o como sou dahu
tayieb ("que tem a melhor sorte"), e ao que interessa tocar com a mão. Se o roubo tivesse sido obra dos znun, os espíritos maléficos, minha sorte tivesse sido outra. Nesse caso -disse-, quem isto escreve seria um dá (mais exatamente, dá ab medawwer): um "pé torcido", ao que todo lhe sai mau e de que convém fugir. Só olhando, o dá trazia problemas... Segundo o sheikh, jamais se tinha recuperado um só objeto roubado pela welieh do Beit Ids. Mas isso -insistiu- não devia me angustiar. O me compensaria, com a condição de que não a incomodasse... -Incomodar a welieh? É que posso vê-la? -Às vezes ocorre, se ela o quiser, e se você estiver... Que difícil resultava acostumar-se à conversação com o xeque do Beit Ids! Mas não tive mais remedeio que aprender a interpretar suas inconclusas frases. Dias mais tarde, quando ganhei sua confiança, soube o porquê desta, aparentemente, absurda mania. Em certo modo, assistia-lhe a razão... Entendi que podia ver o gênio, se me achava no lugar indicado. E me prometi que o tentaria. Tinha que recuperar o cilindro. E o Destino se burlou de meus secretos pensamentos. No que pensava? Ver um fantasma? O escravo negro serve outro kafia, espesso, hirviente e escuro como o futuro do cilindro de aço. Tive uma idéia. Resultava suspeito que os roubos tivessem começado, justamente, a noite de nossa chegada à cova. Estava o sheikh compinchado com o ladrão? Tentavam nos atemorizar e provocar a marcha do Beit Ids? Em outras circunstâncias, árabe, judeu ou gentil, ante a notícia de uma welieh rondando pelos arredores, não o teria pensado duas vezes. O normal é que tivesse "talhado o sal", afastando-se da zona. Era isto o que procurava o homem que alguma vez terminava as frases? O instinto disse que não. Aquele olhar verde e cinza não era a de um chiquilicuatro. Mas me arrisquei... Apurei a taça, e a situação. -Poderia negociar? E esclareci, naturalmente: -Poderia chegar a um acordo... com a welieh?
O xeque simulou que não compreendia. -Possivelmente por sua mediação -me aventurei- possa obter que devolva o roubado. Eu, em troca, estou disposto A... Que não concluíra a frase lhe entusiasmou. A verdade é que nem eu mesmo sabia o que podia oferecer como contrapartida. -Não sei se ela quiser, mas podemos... -Falar? Seria boa idéia, se você... -A welieh não fala. Ela não é... -Sei, mas... Não soube por onde respirar. Ao xeque, entretanto, aquele diálogo de loucos lhe fascinou. Ao fim tinha encontrado alguém que o compreendia! -A welieh só grunhe -acrescentou o sheikh-, e às vezes... Então não o sonhei. Melhor dizendo, não o sonhamos. Jesus e eu o ouvimos da boca da caverna. Os grunhidos procediam da ramagem do carvalho sagrado... -Confia em minha boa sorte. Só quero fazer um trato com ela e, de passagem... -Um trato com um demônio? Sem dúvida é um fal. Outro, em seu lugar, estaria com... -Isso é -repus, sem saber muito bem a que me arriscava-, um trato. Quando? Hoje mesmo? Possivelmente ao anoitecer? Ou devo esperar a que...? -Vejo que, além de fal, é inteligente. Consultaremos, e depois... O sheikh fez um sinal ao abed, o escravo negro, e este, a sua vez, reclamou a gritos a uma tal Nasrah. O nome, na'rab, significava "gritalhã", ou "mulher insuportável pelo timbre de sua voz". -A faqireh -anunciou o xeque- dirá se sim, ou se... A faqireh era uma mescla de adivinha, feiticeira, governadora na sombra, controladora de deuses e espíritos, médico de urgências, conselheira, e, em definitiva, um dos membros mais chicoteados do clã. Estava claro que as surpresas, naquela luminosa manhã, não tinham feito mais que começar. Pela porta do nuqrah vi surgir a uma antiga amiga, a anciã badawi da vara de prata, que nos indicou o lugar onde se achava a cova e que, justamente, advertiu ao Mestre para que não incomodasse a welieh da fonte. além da primeira esposa do sheikh, era a bruxa do Beit Ids. Algo me advertiu no interior. Deveria
extremar a prudência com a faqireh. A notícia de alguém mais capitalista que ela -caso do Príncipe Yuy- não acredito que a fizesse feliz. Apresentava a mesma lâmina: rosto maquiado como uma máscara, tudo em verde, o grande anel, ou nezem, que atravessava o nariz, e o enorme colar, ou tagah, de prata e coral amarelo sobre um negro e incômodo thob'ob. Examinou-me enquanto se aproximava do xeque, seu marido. inclinou-se sobre o homem dos nós, e este sussurrou algo a seu ouvido. Falaram em voz baixa. Não alcancei a decifrar o breve diálogo. Ela gesticulava, e parecia negar-se. Finalmente, entre maldições, foi sentar se frente ao fogo, a meu lado. O escravo depositou um prato a seu alcance, sobre a terra, e Nasrah me arrebatou a taça que sustentava entre os dedos. Fez-o sem contemplações, e, evidentemente, desgostada. A proposta, ou a ordem, do sheikh não gostou. Olhei ao xeque, mas o homem do linho branco se limitou a levantar levemente as mãos, me indicando que mantivera a calma. Assim o fiz. A faqireh, então, derrubou a porcelana sobre o prato. O escasso kafía que ficava na tacita se escorreu, denso e preguiçoso. O que se propunha? E esperou. Todos esperamos. O xeque, atento, esqueceu os nós. Seus olhos, agora quase azuis, estavam pendentes da taça derrubada sobre o prato. O abed, não menos atento, aproximou um pano de tecido à beduína. E a faqireh, sem pressas, foi empapando os restos do kafia, até que o prato ficou limpo. A seguir levantou o rosto para o enramado do olivar e fechou os olhos. Aguardou um par de minutos e, súbitamente, iniciou um cântico, a voz em grito, invocando ao Dusares; a I]; à deusa Ra'at; aos BA'ao ou protetores do lar; ao Halim, o deus da clemência; a Lha Lab, outra deusa com forma de cabra montês; ao Awm; ao Hilal, a deusa lunar; ao Sahar e ao Sami, os "únicos deuses que escutam", e a outras quarenta e cinco divindades árabes, cada uma com sua pelagem e suas atribuições. Eram as regras badu. Tinha que ser paciente, como tinha sugerido o sheikh. Estava assistindo a um dos atos sagrados da tribo: a liturgia prévia ao contato com os espíritos...
Concluída a recitação, a faqireh tomou a pequena taça de porcelana e, delicadamente, muito devagar, foi separando do prato. Compreendi. Ali ficaram os sedimentos do kafia, em forma de lua negra. A beduína se dispunha a "ler" em ditos sedimentos. Era outra das "técnicas" de adivinhação praticada pelos badu. Situou a vara no ar, a curta distância do prato, e a fez descender, até que o extremo entrou em contato com os sedimentos. Depois os removeu, uma e outra vez, sempre no sentido das agulhas do relógio, até que formou uma espiral. Retirou a vara e se aproximou dos sedimentos, examinando-os minuciosamente. E me perguntei: que demônios estará vendo? E começaram as caretas. Primeiro com a boca, e com os olhos. Depois, às contorções do rosto se somou o baile dos dedos. Caíam sobre o prato, e se elevavam, em uma nervosa dança. O sheikh, com o coração encolhido, apressou à mulher. -O que dizem os deuses sobre esse acordo com a welieh e com os...? Não soube se rir ou chorar, mas me contive. E a primeira esposa, fazendo honra a seu nome, gritou um terminante "não". Depois, mais alto, repetiu a negação. E assim até doze vezes, se não contei mau. "Doze vezes não." elevou-se, e se dirigiu ao xeque, lhe falando de novo ao ouvido. Depois correu para a porta do arco de pedra e desapareceu. O que quis dizer com tão "não"? Interroguei ao xeque. Significava que não havia trato? -A welieh -replicou o sheikh- não há dito não a não ser seis vezes... Tinha que adivinhá-lo. Era o jogo do badawi. Além disso, supunha-se que este explorador era um fal, um homem com sorte e, portanto, segundo os beduínos, duplamente inteligente. Foi inútil. Achava-me em branco. Assim optei por uma saída de emergência, à altura das circunstâncias... -Entendo -manifestei, como se tivesse compreendido, e indiquei a direção da colina "778", a dos znun, mas isso exigirá que ámar saiba e que... A alusão ao louco da panela na cabeça o confundiu de tudo. -E por que teria que intervir esse descerebrado em um trato que só...?
Não respondi. Deixei-o com a dúvida e passei a outra questão. O xeque sorriu, agradado. Esse era o estilo dos a'rab: confundir ao que se interessa por algo. E reconheceu que aprendia com rapidez. Isso gostou. Definitivamente, era um fal. Assim me batizaram. A gente do povoado e dos arredores terminou aproximando-se de quem isto escreve, e solicitava algo que pudesse ter estado em contato comigo. Podia ser uma pedra, ou uma parte de pão. Em ocasiões se limitavam a chegar até mim, saudar, tocar a túnica, ou o cajado e sair correndo. Se alguém desejava empreender uma viagem, primeiro acudia ao Fal". Assim ficava conjurado qualquer perigo. Se sonhavam com pessoas perigosas, ou com um dá ("pé torcido" ou azarado), buscavam-me imediatamente e solicitavam o fal. Eu devia responder: tafawwal ("toma-o"), e o perigo -diziam- se esfumava como a fumaça do nuqrah ("lar"). Também me chamavam "Mura" (mais exatamente, "Muça - bab"), porque sempre caminhava detrás de mim mesmo. Nisso tinham razão... E, como digo, arrumei-me isso para desviar a conversação (?) sobre o roubo. cedo ou tarde, recuperaria o cilindro de aço. Isso pensei... Quis agradecer, igualmente, sua hospitalidade, e lhe fiz ver que conhecia o mundo dos nós, e do mar. Se queria, podia lhe ensinar alguns... Deteve a elaboração de que tinha entre mãos -um ás de guia dobro sobre o seio-, e me olhou, incrédulo. -Se soubesse de que falas -sentenciou com gravidade-, não referiria a ela como um homem, porque deveria saber que... -Claro -reconheci meu engano-, é o mar... Ela é uma mulher que... Assentiu em silêncio, e me convidou a que rematasse o nó que estava trancando. Fiz-o encantado, e acrescentei uma variante que o sheikh desconhecia: passei o cabo de união pelo seio, e lhe mostrei um improvisado andarivel, com o que podia transportar uma carga, ou uma pessoa. Consegui o efeito desejado. O homem que nunca terminava as frases esqueceu a welieh, e indagou, gratamente surpreso, sobre minha relação com o mar. O sheikh estava apaixonado, perdidamente apaixonado, do mar. Vivia no Beit Ids, mas seus pensamentos habitavam muito longe. Viu o Mediterrâneo quando era um menino, e jamais pôde esquecê-lo. Ao fazerse adulto foi ante o deus
Dusares, e jurou amor eterno ao mar. Cada primavera sacrificava a melhor de suas ovelhas, recolhia o sangue e carregava com ela até que chegava à beira do mar. Ali, em solitário, introduzia-se nas águas e vertia o pele no que transportava o sangue do animal sacrificado. Era sua "noite de bodas" com o mar. Uma noite cada ano... Sua obsessão pela magia das ondas, pelo contínuo movimento das águas, e pelo desdém daquela "mulher" para o mundo eram tais que quis lhe construir um templo, em forma de navio, no alto de uma das colinas do Beit Ids. O projeto não prosperou, e a madeira terminou no fogo. Parte do "costillar" adoecia na cova que nos tinha proporcionado. Eram as pranchas de tola branca que examinei em seu momento. O frustrado navio tinha um nome: FAQ ("Despertar"). Sim, entendi. Todos temos um amor impossível... Quando perguntei por que o navio não pôde ser rematado, o sheikh se lamentou: -Nenhum naggar ("carpinteiro de ribeira") acreditou em meus sonhos, porque dizem que... -Possivelmente não achaste ao naggar adequado para um... -Você crie que...? -Estou seguro, e te direi mais... -Não é possível... Isso seria magnífico Y... -Posso consultá-lo, sempre e quando você... -Farei o que esteja em minha mão e, além disso... -Não é necessário... A "conversação" se prolongou muito tempo. Quem isto escreve não saía de seu assombro. Ao final, entendíamo-nos à perfeição. O queria materializar seu sonho -construir um templo ao mar no Beit Ids-, e eu lhe sugeri algo... E quase com o dia vencido consegui me separar do sheikh e retornar à gruta. O Mestre não tinha retornado. E o dispus tudo para o jantar. Acendi um bom fogo, de novo em metade do caminho, e preparei as viandas, obséquio do xeque. A noite se apresentava tão fria como as anteriores, mas dispus a fogueira frente ao arco de ingresso à caverna, por "prudência". Não acreditava na welieh, mas não estava de mais que estabelecesse certa distância...
Jesus apareceu pontual, pouco antes do entardecer, tal e como combinamos. Essa quinta-feira, 17, o ocaso do sol se registrou às 16 horas e 56 minutos, de um suposto "tempo universal". O vi feliz. Procedia do nordeste, provavelmente da colina "778". Trazia uma velha canção nos lábios. Recordava-a do mézah, o estaleiro dos Zebedeo no yam: "Deus é ela... Ela, a primeira hé.. . " Olhou-me, sorridente, e entrou na caverna. E segui ouvindo a canção: "... a que segue a iod... Ela. . . " O que significava a misteriosa letra? Deus é ela? Tinha-o pensado no estaleiro: Deus é uma mulher? Tinha que lhe perguntar. Cruzou ante mim e, a julgar pelo que carregava, deduzi que desejava tomar um banho. "... Ela, a formosa e virgem..., o copo do segredo... Pai e Mãe são nove mais seis... " E o vi afastar-se pelo bosque das amendoeiras, em direção ao wadi que corria algo mais abaixo. Era incrível. Parecia adivinhar meus pensamentos. Conforme se distanciou, o Mestre elevou a voz, como se desejasse que não perdesse detalhe do cântico... "Deus é ela! .-retumbou a voz profunda do Galileo entre as perplexas árvores da "luz"-. Ela, a segunda hé, habitante dos sonhos... " Finalmente, perdeu-se pelo desnível e, entre as flores brancas e rosas, ficou aceso aquele estranho "Deus é ela"... O sol, tão atônito como este explorador, optou por desaparecer, e eu lhe dava os últimos toques às verduras, ao hummus, o saboroso purê de grãosde-bico, especiarias e azeite, e ao felafel, outro prato típico dos badu, consistente em suculentos filetes de caça. Só senti falta do vinho, mas todo se andaria... Quando retornou, o Mestre se trocou de túnica. Agora luzia a branca, sem costuras, sua vestimenta habitual, e eu diria que favorita; a túnica presente de sua mãe, a Senhora, testemunha de seus melhores e de seus piores momentos. inclinou-se sobre o guisado lhe de verduras e, depois de cheirá-lo, fez-me uma piscada de cumplicidade. E exclamou: -Isto sim que é glória... Perdi-o na escuridão do túnel da caverna. E fiquei pensativo. Eu juraria... Ao retornar, confirmei-o. O Mestre se perfumou com o kimah. A
fragrância dominante era a do sândalo branco. E tudo, a seu redor, ficou conquistado por uma paz que não percebi até esses instantes. Eu fui o primeiro afetado, sem dúvida. Ao longo dessa noite, enquanto permaneci a seu lado, o pesadelo do roubo do cilindro desapareceu. Fui outra pessoa. Senti-me sereno, depravado, e com a felicidade sentada em meus joelhos, como poucas vezes tinha acontecido. A partir desse dia, o aroma de sândalo no Filho do Homem foi sinônimo de paz interior, ou viceversa: sua intensa serenidade estimulava o azeite essencial de sândalo? Trazia uma das madeiras de agba nas mãos. Nela, como pinjente, tinha escrito: "Deixo-te com a nitzutz.. . " Jantamos. Ao princípio, em silêncio. A paz tem essa vantagem: se expressa melhor sem palavras. Depois, sem lhe perguntar, encheu minha natural curiosidade, detalhando o fato na rocha dos znun: fundamentalmente, falar com seu Pai, e fazer Atattah-ani. sentia-se cheio, e disposto a dar de presente. Eu fui o afortunado, nesses momentos, e assim o hei trasvasado a este jornal. Oxalá disponha da inteligência suficiente para saber transmitir tanta esperança... Nitzutz, como tentei explicar, é uma palavra hebréia, não muito clara, nem sequer para os tzadikim, ou iniciados na sabedoria secreta dos textos Santos. por que a escreveu nos restos do navio do sheikh? O que quis dizer? por que me deixou com a "faísca"? O que era essa "faísca ou vibração" para o Homem-Deus? Perguntei, é obvio, e Jesus rememorou os longínquos tempos do Nazaret, quando quase era um adolescente. Agora, minha discreta reprimenda na penha da "escuridão" lhe trouxe lembranças. Reprimenda? Só recordei uma carinhosa admoestação: "Não mais jejuns... involuntários, e não mais aparições e desaparecimentos." José, seu pai terrestre, também o repreendeu em alguma oportunidade, como conseqüência de suas escapadas à colina do Nebi. Foi assim como nasceu um jogo, ideado pelo José, para saber que fazia seu imprevisível primogênito. Cada manhã, se Jesus se ausentava da casa, tinha que escrever uma palavra, ou uma frase, que identificasse o lugar ao que pretendia dirigir-se, ou os propósitos dessa jornada. E o jogo
terminou por converter-se em uma espécie de adivinhação. Jesus escrevia uma palavra, e o resto da família tinha que interpretá-la. Na hora do jantar, dialogavam e discutiam sobre a questão exposta. A maioria não sabia o que dizer, e ficava como uma estátua. Desde aí o nome final do jogo: . ("estátua"). O jovem Jesus era o que mais se divertia... E desta forma, sem querer, entrei em formar parte do selem muitos anos depois. O agradeceu, e eu, imensamente... Cada manhã, ao partir, o Mestre desenhava em uma das madeiras de tola branca e me propunha uma adivinhação. Uma adivinhação? Eu diria que muito mais que isso... Foi uma experiência única, do lado do segredo ou tzad. "Deixo-te com a nitzutz.. . " Agitou as chamas com a tabela que lhe tinha servido para o selem e questionou, ao tempo que elevava os olhos para o firmamento: -Crie que o que distingue ao ser humano é sua inteligência? Seguiu com a vista fixa nas estrelas. Parecia esperar algo... -Eu diria que sim... A afirmação não resultou muito convincente, reconheço-o. Tampouco sabia o que se propunha. Quem isto escreve só perguntou pelo significado da "faísca". O percebeu o receio, e foi direto: -chegou o momento de abrir seus olhos. É um mau'AK, e deverá transmitilo... Assenti em silêncio, mas com a atenção posta nas constelações. apresentariam-se as "luzes" de novo? Era isso o que aguardava? Acredito que o ser humano, em efeito, não tem acerto... -A nitzutz, disse-lhe isso, está no interior... A escuridão dissimulou minha estupidez. Uma vez mais, não emprestava atenção a suas palavras... -por que lhe inquietam as luzes, se desfrutar de uma imensamente mais intensa e benéfica? Ele, então, a jornada anterior, ao fio do precipício, fez alusão à "nuvem" azul, à luz da galgal. Tinha razão. Nesses instantes, este explorador se achava pendente de outras luzes... E repeti o já exposto na rocha dos znun:
-A que te refere, Senhor? Uma luz em meu interior? Não compreendo... E Ele, efetivamente, fez-me o melhor presente que possa receber um ser humano: a "faísca" -também utilizou a expressão nishmat hayim ou "Espírito de origem divina"- é o Pai, em miniatura. A "faísca", ou "vibração", é o que realmente nos distingue do resto do criado. Chamou-a também "dou de presente celeste" e "dom do fogo branco" (!). -Está falando da "luz" da Torá -o interrompi como um perfeito estúpido-. O livro dos Provérbios diz que "ela é luz" (6, 23). -Não, querido mensageiro. A "luz" da que te falo não pode ser gerada pelo homem. Em realidade, não é "luz". Lhe hei isso dito, mas segue pendente de outras luzes. A "faísca" é Ele, que descende. Outro grande mistério: o maior, no mais pequeno. Cada ser humano a recebe. Cada ser humano é depositário do Número Um. Recorda? O Amor (Áhab), o que sustenta o criado, concentrado no interior: o Pai (Ab) e o Espírito (atei) no coração e na mente (lebab). -Está insinuando que o Pai está em mim? -Não insinúo, querido mau'AK: afirmo. Essa "faísca" é e não é Deus... Sabia que não entenderia, e acudiu, pressuroso, a um exemplo: -O que recebe, esse presente azul, é o Pai, mas não o é, da mesma forma que uma gota de água pertence ao oceano, mas não é o oceano. O falou disto nas cúpulas do Hermón, mas não com tanta minuciosidad. -Uma gota de Deus? E por que em um pouco tão torpe e primitivo como eu? Sorriu, malicioso, e replicou: -Os filetes de felafel estavam em seu ponto... Desisti. Já o havia dito: a presença da "faísca", ou da "vibração divina", ou da gota azul, era o mistério dos mistérios. Sabia por que, mas não era o momento de revelá-lo. Tampouco era a chave. Desde meu humilde parecer, o importante era a revelação em si mesmo: o ser humano é portador do Pai! Para ser fiel a suas palavras: portador de uma fração, de uma "faísca", do Amor! E continuou falando, cheio de ternura... Essa "faísca", como disse, distingue-nos. É a inveja das criaturas que vivem na perfeição. Só "descende" nos seres do tempo e do espaço. Alguns "K" -insinuou- aparecem
à imperfeição do material para chegar a sentir ao Pai em seu interior... Então, ao formular as seguintes pergunta, notei que o perfume trocou. A essência de sândalo branco se extinguiu, e percebi um claro e muito intenso, perfume a tangerina. Estava Yu no certo? E o refrescante aroma foi associado em minha memória a outro sentimento: o da ternura. -Nunca pude imaginá-lo... Não é a inteligência o que nos distingue do resto do criado, a não ser Ele... E como se instala? Quando chega? Como posso saber...? Não terminar as frases começou a me preocupar. Solicitou calma. Passo a passo. Voltou a elevar o rosto para o céu, e meditou uns segundos. Supus que não era fácil... Olhou-me de novo e, em silêncio, entregou a madeira de tola. Recebi-a, sem saber o que se propunha. -Recorda sua infância? -É obvio, Senhor... -Bem, imagina que tem quatro ou cinco anos, e imagina que tem um pau nas mãos... Comecei a tremer. Algo intuí... E prosseguiu, com um brilho especial no olhar: -Agora supón que sou um cão... -Mas... O Mestre desenhou um sorriso e tentou me tranqüilizar. -Só é um supor... -Está bem. Já o vejo: é um cão... -Vá, que rápido! Pois bem, qual crie que seria a reação normal nesse menino? Esta vez, o sorriso apareceu em meu rosto. Levantei a parte de madeira e simulei que o golpeava. Jesus reforçou o sorriso, e exclamou: -me pegue! -Como diz? -Que me pegue! -Disso nada...! Manteve o malicioso sorriso, e insistiu: -me pegue! Empalideci. Estava falando a sério? E observei como seu sorriso se desfazia... Neguei-me, novamente.
-Recorda que é um menino, com um pau, e eu, um cão... -Nem pensar! Não o farei! E arrojei a madeira às chamas. O, então, esclareceu: -Esse menino tomou uma decisão, não te parece? Assenti, ainda com o susto no corpo. -Pois bem, meu querido mau'AK, essa é a resposta a uma de suas perguntas: quando chega a "faísca divina" ao ser humano? Quando o menino toma sua primeira decisão moral: "Não pegarei ao cão, porque não é correto... " Um suave movimento, no alto, na negrume do firmamento, desviou minha atenção das palavras do Mestre. Sabia! As "luzes" apareceram! Nesta ocasião foram dois, também brancas, e de uma magnitude próxima aos 2,1. Vi-as "navegar" por minha direita, com aquele característico, e harmônico, movimento de vaivém. Alguém surgiu à altura da estrela Antares. A outra, mais ao sul, amanheceu na região do Júpiter. Baixei os olhos e contemplei ao Mestre. achava-se sentado de costas às "luzes". Em princípio, não podia as ver, mas... Durante uns segundos permaneceu com os olhos fixos na madeira que acabava de jogar na fogueira. "Lástima -pensei-, essa frase não merece o fogo..." E com um crescente nervosismo, seguindo a evolução das "luzes" com dissimulação, procurei não me desenganchar da conversação. -Interessante, Senhor... Jesus o notou. Deixou de contemplar a tola, devorada já pelas línguas vermelhas, e me olhou, aparentemente surpreso. -Conhece o tema? Falei-te que a "faísca"?... -Sim -repliquei mecanicamente-, uma vez, ou possivelmente dois... As "luzes" se reuniram na estrela Spica, e ali se mantiveram, imóveis e camufladas. -Isto é preocupe-se-se lamentou o Mestre-. Agora resulta que não recordo o que digo... -Não, Senhor, é que uma das alusões foi... Melhor dizendo, será... Detive-me, perplexo. "Será no futuro", estive a ponto de dizer. E optei por guardar silêncio. Minha mente não dava mais de si... A tola branca se consumiu, e quem isto escreve formulou um pensamento em voz alta: -Agora compreendo: "Deixo-te com a nitzutz... Estarei com minha gente. " Jesus assentiu, feliz.
Nenhum dos dois o expressamos, mas sei que tivemos o mesmo pensamento: sua "gente" eram os das "luzes"... -Dizia? -Pensava em seus anjos... -Pensava em ti mesmo? -Não exatamente, mas... -Retorna à "luz" principal, e esquece as outras... Mensagem recebida. Sim, ainda flutuavam muitas dúvidas em meu coração. E, de repente, movida por essa "força" (!) que sempre me acompanha, apareceu na mente a imagem de Amar, o ancião desequilibrado que me acompanhou na ascensão à colina "778". Era uma boa pergunta, e a formulei com crueldade: o que acontece com os seres humanos que não desfrutam da capacidade de tomar decisões morais? Há-os a milhões. O que devia supor 'em relação aos meninos com deficiências psíquicas? Habita-os a "faísca"? O Mestre me reprovou a dúvida. Não o disse assim, mas sei. -Crie que o Pai esquece aos melhores? Para ocupar esses postos é preciso muito valor... Quase todos são "K". E acrescentou, terminante: -Nesses casos, o Amor descende muito antes... Senti-me envergonhado, e troquei de assunto. -E onde reside esse fragmento do Pai? O Mestre ia de surpresa em surpresa. Moveu a cabeça, negativamente, e perguntou a sua vez: -por que esbanja seu tempo com essas questões? O que importa qual seja o cenário no que habita a nitzutz? Disse-lhe isso ali acima... E assinalou para a penha da "escuridão". Certo. Ele mencionou o interior (lebab). Mais exatamente, o coração e a mente, a um tempo. E, obstinado, insisti: -Mas onde? Jesus, que não desejava retroceder, decidiu me avivar: -Se você me disser onde reside a inteligência, eu te direi em que lugar permanece a "faísca"... Utilizou o término aramaico sokletanu, e muito habilmente. Sokletanu era sinônimo de "inteligência", mas no mais amplo sentido da expressão: capacidade para sobreviver, sentido da intuição, possibilidade de expressão em territórios como o da
beleza, a justiça ou a generosidade, e faculdade de compreensão. Era impossível. Nem sequer hoje, em nosso "agora", sabe-se com segurança o que é a inteligência e, muito menos, onde descansa. Rendi-me. Estava claro que eram outras as questões que merecia a pena expor... -E para que serve? O que ganho no recebê-la em minha mente? Jesus riu de boa vontade. Suponho que me considerou incorrigível. A verdade é que não foi uma armadilha. o da "mente" me escapou, sem mais. Ou foi o subconsciente? -Está bem... você ganha: na mente... -Na mente? Mas isso é como não dizer nada... Guardou silêncio, divertido. Em realidade, sempre era eu quem resultava desconcertado naqueles jogos dialéticos. Melhor dizendo, naqueles supostos jogos dialéticos. O Mestre recuperou o rumo da questão, e replicou: -Assombra-me, querido mensageiro! Poderia me dizer para que serve que vós tenham "descendido" até aqui? Não tive palavras. Assistia-lhe a razão. Mesmo assim, fazendo-se carrego de minha profunda ignorância, maravilhosamente compassivo, proporcionou-me algumas pistas: -Ele é o Amor!... O te tem escrito na eternidade!... Foi sublinhando as expressões, e deixando que me empapassem lentamente. Acredito que não esqueci nenhuma... É dele!... Pertence-lhe, porque O te imaginou, e é!... Sua assombrosa segurança penetrou até os ossos. me dê uma razão: por que teria que esquecer o que é dele? Silêncio. Se era assim, o lógico é que essa fração divina me habitasse. Mas havia mais. -Que vontades ao recebê-la... -iniciou um pícaro sorriso e terminou a frase- em sua mente? -Nem idéia. -De novo me vejo obrigado a me aproximar, só me aproximar, à realidade, não o esqueça... Aguardei, impaciente, ao igual às "luzes" que se escondiam entre os brilhos azuis da Spica. Elas, como eu, não estavam ali por acaso... -O descida do Pai no ser humano provoca o nascimento de outra criatura, da que falamos no Hermón: a alma imortal. Recordava-o. O se referiu a nis'mah ("alma", em aramaico) em uma das inesquecíveis conversações na montanha sagrada, ao longo da última
semana no acampamento, em agosto do ano 25. -A alma -comentei-, uma criatura interessante... -Uma "filha" da "faísca", embora ela não saiba, de momento... -O que quer dizer? Teve que fazer um novo esforço, sei. As realidades que estava enumerando não pertencem ao mundo do visível e, em conseqüência, não há conceitos que possam as vestir. ajustou-se ao mundo dos símbolos, o mais adequado, embora longínquo... -A alma, como um bebê, nasce ignorante, embora amorosamente abraçada pelo Amor. Necessitará tempo para dar seus primeiros passos, ser consciente de quem é, e para onde dirigir-se. Como te digo, ao aparecer, a alma não sabe que é imortal. Descobrirá-o, mas antes deve ocupar-se de crescer. Ela será o recipiente que acolherá a personalidade do novo ser humano. Ela é a materialização do novo homem, ou da nova mulher... Algo sabia a respeito, mas quis ouvir o de seus lábios. O jamais mentia... -Alma imortal... O Mestre, consciente da trascendencia do momento, deixou correr os segundos. Começou a notar o frio da noite. Levantei-me, entrei na cova e me fiz com uma das mantas. Retornei frente ao fogo, e cobri os poderosos ombros do Filho do Homem. Depois, repeti o comentário... -Alma imortal. Isso quer dizer que, uma vez imaginados, vivemos para sempre... O Galileo aproximou as Palmas das mãos à fogueira e deixou que o calor o percorresse. Olhou-me com doçura e percebi o perfume do kimah, como uma onda... -Sim, falamo-lo... A imortalidade é um dos presentes do Pai. Não depende de nada. É um presente do Amor. Como te mencionei, o Amor atua, sem mais. Não precisa condições. Não pede nada em troca. Não pergunta, nem tampouco espera resposta. O Amor sabe. O Amor te cobre, e te agasalha, porque sim... Inspirei profundamente e me deixei embriagar por aquela essência. O jamais mentia... E, sem palavras, abracei-o com o olhar, tal e como O tinha por costume. Aquele Homem me devolveu a esperança. Agora sim o tenho tudo...
Imortal! E arredondou: -Imortal, embora ela não saiba, ou não o aceite. A alma está destinada a Ele. Terminará onde começou, embora não o entenda. Ela foi dotada do necessário para elevar ao homem por cima do material e, muito especialmente, para procurar a Origem. Com ela nasce o pensamento. Ela é o naggar do navio interior. Ela é a responsável pela arquitetura da personalidade. Ela está preparada para procurar, embora não saiba o que. A "faísca" lhe concedeu o magnífico dom da inquietação, e não descansará até que descubra quem é realmente, e de onde procede. Ela está sujeita à razão, mas só até que dita pôr em funcionamento o que você chama "princípio Omega": fazer a vontade do que a criou... Então, a alma será também intuitiva, e iniciará a magnífica aventura do sábio que, além disso, sabe quem é. Ali mesmo, essa noite da quinta-feira, 17 de janeiro do ano 26, soube que o Filho do Homem seria destruído. Jesus do Nazaret era um revolucionário do pensamento. A nova cara de Deus não seria bem acolhida. Os homens necessitam um Deus que castigue e que premie. Nunca receberiam com agrado a um Pai que dá de presente, sem mais. Nenhum de seus compatriotas aceitaria que o Eterno se convertesse em uma "faísca", capaz de acomodar-se no ser humano. Isso seria a pior das blasfêmias. Yavé estava onde tinha que estar. Qualquer outra "aventura divina" era contrária à razão e à tradição judias. A própria interpretação do conceito "alma" era um caos para os ortodoxos. Contei, ao menos, uma dúzia de escolas rabínicas que o situavam a diferentes níveis, e com significados distintos. Só uma minoria, virtualmente invisível, guardava uma remota lembrança do que é, e do que representa, a "faísca" ou a "vibração" do Pai Azul. Esses ensinos eram conservados pelo grupo de iniciados ao que já me referi: os melquisedec, ou "príncipes da paz". Soube pelo Abá Saúl, um deles. O enigmático Malki Sedeq (Melquisedec), como já informei em seu momento, apareceu na Terra por volta do ano 1980 A. J.C. Ninguém soube quem era sua família. Foi o autêntico precursor do Filho do Homem. O falou, pela
primeira vez, da realidade do Pai, e da "faísca" que habita cada ser humano. O se referiu à alma, que nasce com a chegada da "faísca", e ensinou que se tratava de uma entidade imortal. Abraham e Moisés herdaram este tesouro, mas, com o passado do tempo, a estupidez e a mesquinharia dos homens deformaram a luminosa informação do Malki Sedeq. Ruah, o espírito, e nesamah ou nismah, a alma, para os judeus, são dois dos vestígios daquela revelação. Infelizmente, quase todo se perdeu. E, como acontece sempre, o prejudicado foi o povo plano. Ninguém sabia a que atenerse. E o medo foi o grande beneficiado. A morte é indisputável. Mas e depois? Seguimos vivos? Do que depende? É uma questão de dinheiro, de posição social, de educação, de religião, de raça...? O explicou, como ninguém. E o demonstrou. Eu fui testemunha de exceção. Mas não adiantemos os acontecimentos... E o Mestre continuou saciando a curiosidade de quem isto escreve. O grande presente do Amor -a "faísca"-, como terá intuído o hipotético leitor deste jornal, era um de seus temas favoritos. Quando falava Dele, não existia tempo, nem medida. Agora o compreendo. É a "chave Mestrea" que abre tudas suas mensagens. O Pai imagina -Sabe por que-, descende sobre nós, habita-nos, nos dá de presente uma alma imortal, e lança a mais prodigiosa das aventuras: buscá-lo. " O que ganho no receber essa "faísca" em minha mente?" E seguiu enumerando as vantagens... Isto é o que lembrança: A "faísca" ou nitzutz -assim o entendi-, é uma criatura (?) que contagia, por natureza. E o que transmite o Ahab ou Amor? Tudo, menos medo. Por isso, o medo só é viável naqueles que ainda não têm descoberto a "faísca". Para o que sabe que está aí, no interior, ou, simplesmente, intui-a, a bondade é lógica, a ação é contínua, a serenidade é irremediável, a misericórdia é a paisagem, e a inteligência é o "princípio Omega". A "faísca" -insistiu- o contagia tudo. É sua característica. O é assim. E não há antídoto. A imortalidade não tem retrocesso, nem funciona com condições. É ou não é. A nitzutz, ou "vibração" do Pai Azul, é uma jogada Mestrea. O descende, e
controla. O vive porque você vive. O recebe e emite, do Pai, e para o Pai. Hoje a chamaríamos "baliza divina". O conhece cada milímetro de seu percurso, porque assim o (lhe) imaginou, e porque o faz contigo. Sabe do número total de suas piscadas, porque os conta. O sim tem informação de primeira mão. Sabe como te chama, embora nunca te reclamará. É você quem deve descobri-lo. Será o achado dos achados. Então compreenderá todos os "por que". O só leva as contas de suas dúvidas, e cada uma o considera um êxito. Se Ele desejasse a certeza em seu coração, não teria permitido que aparecesse em tempo e ao espaço. Ele é o mistério, debulhado. A "faísca" é o "piloto" da alma imortal. Ela governa no silêncio, e na profundidade das emoções. Ela é a fonte dos sentimentos. Ela é a que sussurra a piedade, e a que inspira a confiança. Ela é a intuição, o olhar do Pai. Ela é o cristal que te permite distinguir a beleza. Ela é o Espírito que te move para os territórios da generosidade. Ela é a voz que confundimos com a consciência. Desde quando a mente tem voz? Ela mantém o rumo de seu destino, embora não o compreenda, nem o aceite. Ela, finalmente, deixará-te o leme quando a descobrir (quando compreender). A nitzutz é seu mar interior. Em todos os seres humanos é diferente. Em alguns, serena. Em outros, bravia. Pode navegá-la, mergulhá-la e, sobre tudo, desfrutá-la. Se a deixa falar, será um sábio. Por isso, ao descobri-la, os homens emudecem. E o silêncio é a melhor das respostas. Ela é outro mundo (o verdadeiro), sem sair do teu. Ela é o "reino dos céus", do que tanto falou o Galileo, e que muito poucos compreenderam. Ela não é Yavé, nem remotamente... A "faísca" não é definível, como não o é o imaterial. O "sem fim" não pode ser amarrado com as cordas do entendimento humano, que sempre tem fim. Tudo que me revelou é tão aproximado da realidade como Omaha ao sol. Mas meu dever é transmiti-lo... E disse também que a "faísca" -o grande presente do Pai- é o que fica quando lhe abandonaram, ou quando estima que o fim te alcançou. Com a "faísca", a solidão nunca
é negra, nem raivosa. Ela sempre pisca em algum momento, e faz o milagre: a esperança está a seu lado, pendente, e converte a suposta negrume em penumbra. Somos tão limitados, e poderosos, a um tempo, que criamos a escuridão e, no cúmulo do absurdo, acreditam-nos isso. "Faísca" e escuridão são incompatíveis. "A isso vim -repetiu uma e outra Essa vez é a boa nova: o Pai está no interior, faça o que faça, e seja o que seja... " A nitzutz não depende de sua vontade. Ela descende, sem mais. Isso é um Deus de luxo. Não há troca. As condições as põe o homem e, obviamente, equivoca-se. O Pai não requer, nem necessita, não exige, nem tampouco espera. A "faísca" é dela, e a Ele retornará quando concluir a grande aventura do tempo e do espaço. E insistiu: -Confia! É a "faísca" a que te faz forte, inexplicavelmente. É do azul do Ahab de onde bebe, e de que consegue a força de vontade, inclusive quando caminha detrás de ti mesmo... É Ela o tronco de que floresce a intuição. quanto antes a descubra, mais e melhor desfrutará da característica humana por excelência. quanto mais próximo à "faísca", mais intuitivo. quanto mais intuitivo, mais certeiro. quanto mais certeiro, menos necessitado da razão. quanto mais longe da razão, mais ao sul da mediocridade. Quanto menos medíocre, mais você... A nitzutz, além disso, contagia a imaginação. Nenhuma outra criatura mortal está capacitada para sonhar acordada. É outra das distâncias siderais que nos separam do mundo animal. Eles, os brutos, jamais poderão criar, ou prosperar, porque não dispõem da "gota azul" no interior. Eles, os animais, carecem, portanto, da alma que elabora o "Eu". Eles não sabem quem som, nem saberão jamais. Eles não se fazem perguntas, nem procuram deus. Não é seu encargo. Sua única imortalidade está em nossa memória. Ao praticar a imaginação, a "faísca" entreabre a porta do futuro, e mostra como seremos: como Deuses (com maiúscula). Deuses criadores de universos que só nós imaginaremos. Em realidade, isso é o Pai: a imaginação por cima do poder. Agora não sabemos, mas nunca somos tão iguais a Ele
como quando desdobramos a imaginação. É a "faísca" a que nua a beleza, e faz conceber a poesia. É Ela a que ordena os sons e os silêncios, e desenha a música. É a nitzutz a que golpeia a pedra e deixa escapar a arte. É Ela a criadora de unicórnios azuis. É Ela a que provoca os sonhos, e os arquiva. É Ela, com a imaginação da mão, a que anuncia o "reino" de que procede -sua "pátria"-, e ao que, necessariamente, voltará. Um "reino" do espírito, no que imaginar é ser. A nitzutz é a pérola que sim achará na ametista, se sabe procurar. Ela é o gênio que não descansa, e que bombeia idéias. Não importa sexo, raça ou condição. É Ela a que nos faz espiritualmente iguais. A "faísca" é a chave. Nenhuma "gota azul" é melhor ou pior. O Pai, simplesmente, é. Todas as "faíscas" são Ele, e todas descendem Dele, embora Ele é muito mais... Esta foi a "pedra angular" que sustentou o magnífico "edifício" levantado pelo Filho do Homem. Pretender a superioridade, tentar monopolizar a razão, ou acreditar-se em posse da verdade é não saber (ainda) que nos habita um Deus. E o que é pior: é não saber que essa "faísca" se reparte com o mesmo Amor, e na mesma "quantidade". Então, enquanto falava, a noite trocou de perfume, e percebi a essência do tintal, um pouco parecido ao aroma de terra molhada. E associei sorte essência com a esperança... Não me equivoquei. Jesus comparou a "faísca" com o melhor dos "mensageiros". E ao chamá-la mau'AK me olhou intensamente. Mensagem recebida. É a misteriosa fração (?) do Pai Azul, que um dia toma posse de nós, quem se ocupa de semear esperanças. O as aviva, e as reparte. E cada dia se apresentam ante nós. Outra questão é que alcancemos às ver. Podem ser imensas, ou esperanças que cabem na palma da mão. Isso pouco importa. O fascinante é que, enquanto há "faísca", há esperança. E é justamente a esperança -a confiança em algo- o oxigênio da jovencísima alma que chegou ao passo da "faísca". A mais esperança, mais oxigênio. quanto mais oxigênio, mais felicidade. Mas o carregamento de esperança não depende de nós. Cada ser humano nasce com uma quota. Isso entendi.
Depois, depois da morte, a esperança deixa de ser intermitente, e nos abraça. Já não será o duplo artigo do livro da vida. A esperança será o "DNA" da alma. Por isso não há palavras. Por isso insistiu, uma e outra vez: "Confia." A esperança é a sombra da "faísca". A primeira não é possível sem a segunda. "Confia." Só os seres humanos desfrutam de um sentimento tão lhe gratifiquem. Viu a um cão esperançado? A felicidade dos animais é a sombra da esperança humana. "mau'AK! Quando experimenta a esperança -acrescentou, feliz-, tem-no tudo... " A esperança é outra demonstração da existência do Pai no interior do homem. É uma piscada do Amor. Só você saberá compreendêlo. Só o ser humano reúne as condições necessárias para acolher a esperança, e abraçá-la. Se te aproximar desta realidade, terá-te aproximado da muito mesmo essência divina. "Confia, mau'AK." A "faísca", agora, prepara ao homem para um estado de felicidade quase completo, tão incompreensível para a curta inteligência humana como a estrutura interna da imortalidade. "Confia..." É Ela, em definitiva, a que nos faz humanos. É a nitzutz a que nos diferencia do resto da criação. Ela é o milagre, e o grande enigma, não resolvido nem pelos anjos. Ninguém sabe por que, mas o Pai escolheu o mais pequeno, e o mais primitivo, para acomodar-se no tempo e no espaço. Somos uns recém chegados com sorte. Por isso dizia que nos invejam. Por isso, em parte, os "K" o deixam tudo, e descendem à imperfeição... É a "gota azul", que nos distingue, a que tira da alma para Deus. É lógico que Ela se incline para si mesmo. Só sua presença justifica a transbordante inquietação do ser humano pelo transcendente. Nenhum animal se atormenta com as grandes pergunta: quem sou?, por que estou aqui?, o que será de mim? É a alma imortal quem deve achar as respostas, sempre sussurradas pela "faísca". E chega o dia, ao intuir, imaginar, ou descobrir que o homem está habitado pelo Número Um, quando a vida adquire sentido. Então, "Omega é o princípio". Então, ao compreender, a alma se vazia por si mesmo, e deixa que a "faísca" a encha. Então, segundo o
Mestre, ao ajoelhar-se, e reconhecer ao Bom Deus que nos habita, é inevitável que nos sentemos em seus joelhos, e que deixemos fazer ao Amor. É o que este explorador definiu como o "princípio Omega" (fazer a vontade do Pai). E nesse instante, Ahab faz o prodígio: a imensa maquinaria do universo visível, e do invisível, coloca-se ao serviço do mais humilde. É o segredo dos segredos, ao alcance de todos, embora muito poucos chegam a desentupi-lo. "Confia, mau'AK. Existe uma ordem... " E a voz da nitzutz se ouça "5 x 5" (forte e claro): "Será o que Eu sou." A partir desse prodigioso momento, quando o ser humano se entrega à vontade do Número Um, a voz da "faísca" deixa de ser um sussurro. E a esperança, ao fim, converte-se em hóspede permanente da alma. É uma antecipação da "grande aventura"... Depois a comparou com um "amigo fiel", algo difícil de achar, quase único. Utilizou as palavras dod neemán, com um evidente, e ao mesmo tempo, oculto significado. Segundo a Cabala, as letras de dita expressão somam 155; quer dizer, Deus, como Senhor, e como Amigo. Agora, na distância, ao analisar suas palavras com atenção, sigo perplexo. "155" é também "2", reduzindo a soma dos dígitos a um só número. "Dois" era justamente Ele: o Príncipe Yuy, o "amigo fiel", o melhor que tive, o "rosto" do Pai na Terra, o Dois que procede do Um, como a "faísca"... Olhei ao alto. As "luzes", suponho, continuavam camufladas entre os azuis da estrela Spica, tão desconcertadas como quem isto escreve. Tampouco se moveram. Como fazê-lo quando alguém te obsequia uma revelação de semelhante natureza? Algo sabia, não muito. Algo apontou meses atrás, nas inesquecíveis noites do Hermón. Mas minha alma -agora sim devo falar como Ele me ensinou- solicitou mais. -Que mais? O Mestre avivou as chamas, e deixou que meu coração se sentasse junto à fogueira. Sorriu, e solicitou calma. Não era sua voz a que estava ouvindo, a não ser a do Pai, a de minha própria "faísca". -E assim será -sentenciou-, de agora em diante. Ouvirá minha voz, sim, mas não serei eu quem te fale.
Assinalou meu peito, e repetiu: -Recorda? Assenti. -Sim, Mestre... Uma luz em meu interior. Agora compreendo. -Não, mau'AK, não pode compreender, mas não importa. É suficiente com a confiança. Depois, quando chegar sua hora, transmite o que o Pai te mostrou. Agora não é consciente: seu nitzutz se pôs em pé, em seu interior... Duvidou, mas, finalmente, expressou o que se agitava em seu pensamento: -Tem medo? Em um primeiro momento não soube a que se referia com exatidão. Medo a morrer? Medo a não saber expressar o que tinha vivido, e o que, sem dúvida, ficava por conhecer? Medo a fracassar? -Medo ou seja -se adiantou, compreendendo minha confusão-. Te assusta ser o depositário de uma revelação? -Assusta-me não saber... Sorriu, agradecido, e atirou com força das palavras, sabedor de minha absoluta transparência. -Disposta atenção. Jamais minto... E fez um breve prólogo, no que falou de novo da nitzutz. Se não compreendi mau, o Mestre responsabilizou ao fragmento divino que nos habita de todas e cada uma das revelações às que temos acesso ao longo da vida. Ela, a "faísca", dosa-as. Dela procedem. E se vale dos meios mais insuspeitados. Não é a mente -criatura mortal e ao serviço da alma- a que proporciona essas informações decisivas, que variam o rumo de critérios e atuações. É Ele, o Pai, quem informa, e o faz oportunamente. Não são os homens, nem tampouco os livros, quem ilumina. É Ele, embora, em ocasiões, possa servir-se deles. E acrescentou: "Essa revelação chega por dois caminhos. Através da comunicação direta com o Pai, com a "faísca", ou porque assim está estabelecido." Entendi que a primeira via é o que chamamos oração, embora ao Galileo não gostava do sentido ortodoxo da palavra. Preferia comunicação, ou conversação, com a nitzutz. Desse diálogo, em definitiva, nascem as revelações. Desde aí a importância de pedir informação, ou respostas; nunca benefícios materiais. Disto
último se ocupa o Ahab, o "combustível" que todo o sustenta na criação, o Amor do Pai. E não há pergunta que fique sem resposta, como tampouco há sonho que não se materialize..., ambos, em seu momento. E insistiu: "Agora, nesta vida, ou depois... " Quanto ao segundo caminho, preferiu não me esgotar. Ele sabia que não estava a meu alcance. Se não ter conseguido encaixar as peças que formam minha própria personalidade, como organizar o "quebra-cabeças" divino? Com sua palavra foi suficiente. A revelação -sublime ou doméstica- passa sempre pela "faísca". Ela a autoriza, e a deposita na alma, como uma flor destinada a falar em silêncio. É a alma imortal quem deverá analisá-la, e desfrutá-la. A diferença das flores, as revelações não se murcham jamais. E amanhã proporcionarão filhos... A revelação, entretanto, termina isolando a quem a recebe. O ancião Abá Saúl, de Salem, tinha razão: a verdade não está feita para ser proclamada; não neste mundo. Quando a revelação chega, se for de grande calibre, abre uma enorme cratera no ânimo do receptor, e fica mudo. Se se atrever a falar, ninguém lhe crie. Desde esse momento, o ser humano só crescerá para o interior. Então brilhará com luz própria, mas ninguém saberá. Jesus o chamou o "abraço 3", o único que "abraça sem possuir". Apesar de tudo, apesar da solidão de que recebe, a revelação é um passado da alma. O bebê está caminhando... -Disposta atenção, querido mensageiro... Era todo ouvidos. Poucas vezes o vi tão solene. O que tratava de me comunicar? O que pretendia a "faísca"? Dirigiu o rosto para o firmamento. Pensei nas "luzes". Se moveriam? Não o fizeram. -Assim está estabelecido... -Não compreendo, Senhor... -Agora é o momento. Agora deve saber... Escuta minhas palavras, para que o que veja, e ouça, seja compreensível para ti e, sobre tudo, para os que chegarão depois... Obedeci. Algo especial, e destacado, tentava me transmitir, embora não era fácil. De novo o vi brigar com as idéias. Tudo ficava pequeno; especialmente, as palavras...
-Sabe o que é o tikkún? Assenti com a cabeça. Para os judeus, o tikkún era uma espécie de missão sagrada. Traziam-na cada homem e mulher ao nascer. Segundo os muito religiosos, o tikkún tinha um objetivo básico: recuperar e reconstruir a Sekinah ou Divina Presença, fuga do Templo por culpa dos pecados do Israel, e nesses momentos em poder do invasor, Roma. Cumprir o tikkún era contribuir à chegada do Mesías libertador, fazendo a vontade do Santo. O tikkún, além disso, era o único caminho para alcançar a salvação. O homem que cumpria seu tikkún era bento Por Deus. que o rechaçava, ou descuidava, ficava maldito, e sujeito ao estado diabólico. Chamavam-no "homem Estas qlifoth, digamos, eram as linhas gerais do tikkún. É obvio, cada escola rabínica acrescentava novas interpretações e matizações. Esta, como já mencionei, era uma das idéias que motorizava a vida do Yehohanan: derrotar aos ímpios e recuperar a Sekinah. Mais exatamente, arrebatar a "Luz Divina" a Roma, e depositá-la em mãos dos sacerdotes e doutores da Lei. Eles saberiam lhe devolver a primitiva unidade. -Também vim para trocar isso... -Você crie nessa missão sagrada? -É certo que existe um tikkún para cada ser humano, mas não como o interpretam os rabinos... Aquilo, em efeito, era novo para este explorador. E Jesus avançou um pouco mais, cautelosamente... -O homem não precisa ser salvado. A imortalidade não depende de seu tikkún. Recorda que é um presente do Pai. É imortal desde que é imaginado pelo Amor. É imortal sem condições. E matizou: -O homem e a mulher nascem com um tikkún: viver, simplesmente... -Viver? Algo tinha pontudo no Hermón... -O que quer dizer? -Aparecer aos mundos do tempo significa experimentar a imperfeição. Viver o oposto a sua natureza original, a do espírito. É lógico que nasça para viver... Algo nos disse, efetivamente, nas neves do Hermón. É importante viver
porque esta é nossa única oportunidade. Depois, depois da morte, será distinto. Será outra situação, outro corpo... -Sigo sem compreender... -Hei-lhe isso dito. Também vim a trocar isso. vim a proclamar que cada vida, cada tikkún, tem sentido. Cada tikkún é uma cadeia de experiências, enriquecedora. Nada é fruto do azar. Tudo, no reino de meu Pai, está sujeito à ordem, e ao Áhab... -Tem sentido a dor, a enfermidade, a escuridão...? -Perguntou-me isso no kan do Assi, e te repito o mesmo. Há lugares, como este mundo, nos que tudo é possível, incluída a maldade. É parte de um jogo que não está em condições de intuir. Crie em minha palavra? -É obvio, Senhor... -Bem, então, aceita-a. Cada tikkún é minuciosamente planejado... antes de nascer. E todo tikkún obedece a um porquê. Ninguém é rico, ou negro, ou escravo, ou cego, ou paralítico, ou ignorante, ou pobre, ou rei, por acaso. Ninguém vive as experiências que lhe toca viver simplesmente porque sim, ou por um capricho da natureza. -E quem decide que alguém viva na sabedoria? Quem estabelece que alguém seja mais e outro menos? Jesus sorriu, malicioso. Comecei a aprender que aquele sorriso, em particular, significava "terreno perigoso". Mas respondeu: -Possivelmente você mesmo... -Eu seleciono a pobreza ou o sofrimento? Não acredito... O sorriso permaneceu, firme e imutável. Não houve palavras. Foi a melhor resposta. Depois, depois do eloqüente silêncio, proclamou: -A isso vim, querido mau'AK: a trazer a esperança, a presença do Ab-BA aos que a perderam. A isso vim: a proclamar que cada vida, cada tikkún, obedece a uma ordem, embora não possam compreender... -E ao nascer, tudo fica esquecido... O Mestre referendou o comentário com um leve e afirmativo movimento de cabeça. Ele não foi alheio a essa circunstância. Necessitou muito tempo -quase trinta e um anos- para saber quem era em realidade... -Tudo tem sentido -prossegui, desvelando meus pensamentos-. Só é
questão de viver... -Viver na segurança de que todos são iguais, e importantes, para o Pai. Todos cumprem uma missão. Todos caminham na mesma direção, embora não o pareça... -A isso vieste... -Sim, a refrescar uma memória dormida. E sei, igualmente, que minhas palavras serão esquecidas, e tergiversadas... -E não te importa? -O primeiro que deve aprender esta noite é que nenhum tikkún é reprovável. Cada pessoa, uma missão. Cada ser humano, um destino. Essa foi a revelação que recebi naquela jornada, no Beit Ids, e que me apresso a transmitir tal e como Ele o quis. Yehohanan, seu tikkún. Judas, o Iscariote, o seu. Poncio, também. Cada homem e mulher, que tenham eleito -e o remarcou-... "antes de nascer". Pouco importa o porquê de cada tikkún. Estamos aqui, e essa é a única realidade. Desde essa fria noite, frente à cova, não tornei a levantar o punho contra Deus, nem contra os homens. Não tem sentido. Agora acredito entender muitas das injustiças, ou supostas injustiças, que vejo na vida. Antes sentia piedade pelos mendigos, e pelos deserdados. Agora também me comovem, mas menos. Agora sei que eles o quiseram assim, e devo respeitá-lo. É uma ordem que escapa a meu curto entendimento, mas que aceito, porque a informação nasceu Dele. E embora o Galileo foi tudo quão claro pôde ser, quem isto escreve, com sua habitual estupidez, seguiu confundindo-o tudo... -Se disser que o tikkún é desenhado (?), e aceito, antes de nascer, isso quer dizer que admite a reencarnação... Um súbito brilho, no alto, distraiu-me. Mas as "luzes" continuaram ocultas. Eu juraria que presenciei aquela chama. Branco. Muito intenso. O teve que vê-lo, necessariamente. Mas seguiu ao seu. Melhor dizendo, ao meu. -me diga, mau'AK, meu Pai é santo? -Você ensina que Ab-BA é perfeito, embora não sei muito bem no que consiste a perfeição... sentiu-se satisfeito, e concluiu: -Uma das características da santidade, ou da perfeição, como você diz, é
que não repete jamais. Convidou-me a contemplar o céu estrelado e perguntou, de novo: -Pode me indicar duas criaturas iguais na natureza? E pensei: "Agora se repetirá..." Mas não. A chama não retornou. O firmamento permaneceu sereno e lhe rodem. Lástima! E insistiu: -Há duas gotas as gema? Nem sequer as palavras que saem de sua boca são fruto dos mesmos pensamentos. Nenhuma é como a anterior... E sorriu, benevolente. -Não faça a Deus a sua imagem e semelhança... Falamo-lo: só morre uma vez... E foi assim como entramos no território da morte. Falamos um tempo. Depois, vencido pelo cansaço, O se retirou à gruta, e quem isto escreve se inundou no interior, tentando pôr ordem nos ensinos recebidos. Não havia dúvida. O Mestre utilizou o término guilúi ("revelação"). Para mim foi um dia grande. Minha alma cresceu, quase até a estrela Spica. A morte! A grande temida! A pior conhecida! O deixava absolutamente nítido: no mundo material não há outra forma mais sábia de terminar. Alguém toca no ombro, e a alma "abre Isso olhos é morrer. Em outros momentos deste diárioutilizei a palavra "ressurreição". Certamente me equivocava. O matizou, embora era consciente da anemia das idéias humanas. E digo que me equivocava porque a alma, ao ser imortal, não pode ser ressuscitada. Digamos que experimenta (?) um processo de "transportação" (?), e que amanhece nos mundos "MAT", com um suporte fisico novo. Ninguém a (julga. Não há prêmio nem castigo, no sentido tradicional. Em todo caso, uma imensa surpresa. "MAT-1" não é o céu, mas é imensamente melhor que o que ficou atrás. E a alma compreende, ao fim: só cumpriu seu tikkún. Agora, no MAT", deve prosseguir, sempre para a perfeição. O corpo é só uma lembrança, cada vez mais difuso. Nisso, as escrituras judias falam com razão: "... Volte o pó à terra, ao que era, o espírito volte para Deus, que é quem o deu" (Eclesiastés 12, 7). A matéria orgânica (O falou de "vestimentas" ou begadim)
é substituída por outro corpo físico, igualmente imaginado pelo Pai; quer dizer, assombroso: sem aparelho digestivo, circulatório, nem respiratório. O falou de uma maravilha que se move, que sente, e que também finaliza, mas sem o processo da morte. Em seu lugar, o passo de um "MAT" a outro se registra por meios "diferentes". Não pude lhe tirar muito mais. Nesses novos "lances", a alma continuará como "recipiente" da personalidade. Simplesmente, cresceremos. E ao final dos mundos "MAT", embora agora está fora de toda compreensão, a alma poderá "valer-se por si mesmo". Isso significará que é "luz", e que terá retornado a sua "pátria", o mundo do espírito. Será então quando veremos o Pai. Melhor dizendo, será então, só então, quando seremos como Ele. "Omega é o princípio." E aquele longínquo, e primitivo, ser humano iniciará sua carreira como Deus Criador... E nisso estava, tratando de ordenar as idéias, quando as "luzes" deram sinais de vida. Esta vez foi para o oeste. Primeiro observei um brilho, na posição que ocupava Sírio. E imediatamente, do cinturão do Orión, acendeu-se uma espécie de gigantesco farol, que percorreu o céu, desenhando enormes círculos. Contei três. Três círculos de novo! Depois, tudo voltou para a normalidade. Lástima! De ter acontecido pouco antes, o Mestre o teria presenciado... E, durante um tempo, tentei em vão resolver o enigma. Ali, no alto, havia alguém. Isso era óbvio. Mas quem? por que sobre o lugar no que habitava Jesus? Os "intrusos" (?) não se fizeram visíveis, ao menos essa noite. Mas a imagem do formidável feixe de luz, varrendo a escuridão, ficou gravada na memória para sempre, como ocorreu com outros sucessos similares. Tinha graça. Minutos antes, o Mestre e quem isto escreve tínhamos conversado sobre o valor das lembranças... Uma vez mais, deixou-me perplexo. Se seus ensinos eram certos -e não o duvido-, aquelas imagens das "luzes" que voavam em solitário, ou em formação, ou a incrível esfera que descendeu sobre a garganta do Firán, formariam parte de minha "bagagem" ao mais à frente. Isso manifestou no Hermón, e repetiu agora,
no Beit Ids: só a dikron (a memória) sobrevive à morte. Esse será o único "saco de viagem" autorizada. O resto, todo o resto, grande ou pequeno, valioso ou insignificante, ficará neste mundo. Só a alma imortal e a memória (o mais exato seria falar de memórias, em plural) entrarão nos mundos "MAT". Necessitei tempo para me acostumar à idéia. "Só as lembranças são salvas... " E imaginei à alma, com uma mala na mão. Uma mala cheia de vivencias. Ele, então, acrescentou: -Compreende por que é tão importante viver? Será o que seja sua memória; o que opine seu tikkún. E, pior que bem, pretendi recompor o processo revelado pelo Filho do Homem. Viver. Isso é o que conta. A alma, sob a "pilotagem" da "faísca", ocupa-se de armazenar ditas lembranças, e de preservá-los. Parte dessa misteriosa, e delicada, trabalho de seleção e arquivo se registra durante a noite, enquanto dormimos. Não importa que as lembranças se dissipem e desapareçam. Que esqueçamos não significa que as memórias se desintegraram. Depois, ao morrer, o "carregamento" será custodiado pela nitzutz, e entregue à alma no MAT-1 ", quando "despertar". E perguntei: por que a memória é tão importante? Eu conhecia parte da resposta: "O que outra coisa pode substituir ao vivido?" Inclusive o presente é memória, um segundo depois. Em definitiva, vivemos para recordar, e recordamos porque vivemos. As brasas foram esgotando-se, mas resisti a me retirar. Estava, simplesmente, transbordado. Nada do que me tinham ensinado em nosso "agora" coincidia com o revelado pelo Mestre. Em realidade, muito poucos entenderam seu pensamento e, muito menos, sua mensagem. Era tão simples e tão sublime ao mesmo tempo...! Algo sabia sobre o funcionamento do cérebro, mas, precisamente por isso, meu assombro não teve limite. Podia entender, com dificuldade, que as lembranças sejam armazenadas. Isso representa que uma imagem, seja visual, tateante, acústica, olfativa, ou gustativa, termina convertendo-se em química. Um jorro de elétrones (em realidade de swivels), porque isso é uma imagem, modifica parte de sua estrutura, e fica
"arquivado" no cérebro. Sim, compreendia-o, com enormes dificuldades... Mas onde me perdi definitivamente foi na segunda parte da história: o "resgate" das memórias depois da morte. Como explicá-lo? Como assumir que essa "química", distribuída e "dormida" nas regiões de armazenamento -hipocampo, cerebelo, etc.-, possa ser "liberada" do corpo e transformada em "algo" suscetível de ser transladado... a não se sabe onde? O que fazer com os neurotransmisores, as proteínas e o DNA neuronal que, em definitiva, contribuem à fixação da memória? Tudo desaparece com a morte, sim, mas como conservar a imagem do Mestre que eu acabava de ver, junto à fogueira? Como manter "vivo" a lembrança do Filho do Homem, no alto de uma árvore, talher pela neve, e tentando sujeitar, desesperadamente, a um jovem epilético? Que classe de gênio é capaz de manter o som de suas palavras, ou a "imagem" de seu perfume, uma vez desaparecidas meus neurônios? Mais ainda: quem estabelece os critérios na hora da seleção dessas milhares de imagens? Quem desfruta da suficiente perspectiva? Sim, transbordado... É obvio, só há uma resposta: esse gênio é Ab-bu, o Bom Deus... E Ele o disse uma e outra vez: "por que se preocupa o como? Não é mais importante o porquê?" Tinha razão, mas só sou um ser humano... O resto daquela primeira semana no Beit Ids discorreu sem maiores sobressaltos. Ele prosseguiu as visitas à colina da "escuridão", e quem isto escreve se limitou a observar e a cumprir o combinado. Falamos, e me fez novas revelações, mas disso me ocuparei ao seu devido tempo, se assim estiver escrito... Continuei a busca do cilindro de aço, embora, a verdade seja sorte, sem êxito. Ninguém soube me dar razão. Ninguém parecia saber nada. Todos assinalaram a welieh da fonte. Mas do que falavam? Do suposto gênio benéfico (?) não soube nada mais, de momento. E tampouco das "luzes"... Mas as surpresas não tinham concluído, não senhor...
SEGUNDA SEMANA NO BEIT IDS
O bom tempo ficou, definitivamente, de nosso lado. As temperaturas melhoraram, e o céu permaneceu azul, e eu diria que atento a cada movimento do Jesus do Nazaret. O Mestre não tinha pressa. E prosseguiu com seus passeios até a colina "778". Ali meditava, "ouvia a voz de seu Pai", e continuava com a "posta a ponto" (?) do misterioso At-attah-ani. Era sempre o primeiro em despertar. Escrevia nas madeiras de agba, e desaparecia. Ao entardecer, como pinjente, praticávamos o selem, o jogo da "estátua". Seu humor era cada dia mais fino e contagioso. Conforme passavam as horas, o Mestre obteve algo que jamais consegui entender: ajustar a pequenez, e as limitações da natureza humana, à grandiosidade de sua divindade. Mistério, sem mais... E foi crescendo, dia a dia, como Homem-Deus, caso que um Deus possa crescer... Quem isto escreve, afligido por tais reflexões, terminou ocupando-se de assuntos menores. Isso, além disso, foi combinado. E me dediquei a percorrer os arredores do Beit Ids, explorando, tomando referências, e, em definitiva, colocando os narizes em tudo. Por mais que indaguei, por mais que revolvi entre olivos e penhascos, por mais que consultei a próprios e estranhos, não obtive uma só pista sobre o cilindro. E me resignei, de momento. Cada manhã, quase como uma regra de cortesia, apresentava-me ante o sheikh, e mantínhamos largas conversações; largas porque nunca terminavam, claro está... Foi assim como soube da história do xeque, e também do lugar. Beit Ids nunca foi mencionado pelos escritores sagrados (?), como tantos outros lugares. Naquela paragem, entretanto, aconteceram coisas extraordinárias, como espero poder relatar. Ao homem das vestimentas brancas e os impactantes olhos verdes o conheciam pelo Yafé". Nunca soube seu verdadeiro nome. "Yafé" era um apodo. Significava "bonito" ou "formoso". Para ser exato, o apelido completo, na'rab, era "yafé she jutz meu ze o joshev", que em uma tradução aproximada equivale ao "bonito que, além disso, pensa". "Yafé", naturalmente, era um qualificativo inventado pelas
mulheres. Beit Ids, ou a "casa do Ids" (outros o chamavam Idis ou Idish), era o lar baseado por um remoto ancestro, procedente do este (Yafé assegurava que do sul, no Egito), e de que partia toda sua linhagem. Segundo o "bonito", dito príncipe pertencia à tribo dos Adwan, naquele tempo assentada na região do rio Najaniel ou Zarqa, na costa oriental do mar do Sal (mar Morto). Tinha chegado ao Beit Ids fazia séculos, e ali prosperou. Yafé era o sheikh número vinte e seis, desde que o tal Ids deu nome ao nuqrah, ou lar, no que viviam. Tal e como supus, Yafé era um homem rico. Era dono de oito colinas (as que rodeavam a grande casona e a cova), incluída a dos znun, e de quanto continham: mais de cinco mil olivos, o bosque de amendoeiras, centenas de animais, escravos, seis algemas, dezessete filhos vivos (tinha tido um total de vinte e cinco varões), inumeráveis filhos ilegítimos, e incontáveis filhas, assim como cento e quatro netos (o número de netas era igualmente difícil de precisar). Era seu ahel, sua família, no que o mais importante era ele, os filhos varões, e o gado (por essa ordem). Depois figuravam o mar, os amigos e as mulheres (também nessa ordem). Beit Ids era o ahel do Yafé porque, embora muitos de seus filhos varões estavam casados, nenhum tinha tomado a decisão de montar sua própria jaima, ou loja, ou de levantar seu nuqrah ("lar"). Todos continuavam vivendo sob o amparo e o amparo econômico do pai. Era o acostumado, e o mais honorável. Quantos mais filhos sob sua tutela, "mais brancura de cara", diziam: mais honra. Se o ahel transbordava os cem membros -este era o caso do Beit Ids-, os badu consideravam que se feito fia, uma expressão que poderia traduzir-se por "estratagema", e que eles, em voz baixa, consideravam como "dar a volta aos deuses". Em outras palavras: enganá-los. Isso, segundo eles, beneficiava-os. Ao dispor de mais de cem varões (o cômputo, como pinjente, só tinha sentido com os homens), as desgraças seriam mínimas. E a iluminação do varão 101 era festejado com sacrifícios, e com grande alegria. O recém-nascido recebia o apelido de mau'AK, ou "mensageiro".
Herdado-o pelo Yafé foi muito, mas ele soube multiplicá-lo. Durante sua isso juventude contou, a sua maneira- foi um aqid, ou "confederado", uma espécie de chefe de bandoleiros, que organizava razzias, ou saques, contra estrangeiros e, sobre tudo, contra outras tribos badu. Jamais fracassou em suas incursões, e nunca derramou uma gota de sangue. Isso disse. Também soube dirigir os "impostos". Cobrava virtualmente por tudo: pela utilização dos poços, pelo passo dos rios, pelos caminhos e, muito especialmente, pelo amparo de homens e animais. Os beduínos do Beit Ids não eram agricultores. Esse trabalho -diziam- não era próprio de homens livres que, cada primavera, tomavam suas lojas de pele de cabra e voavam com seus rebanhos para o este e para o sul. Nessa época, Beit Ids ficava quase deserto. Só os escravos e os felah permaneciam no povoado, atentos às tarefas do campo. E junto aos camponeses habituais, os que residiam na zona, apareciam os murabba'e, também chamados "o quarto", porque eram contratados por um quarto do colhido. O sheikh os autorizava a entrar em suas terras, proporcionava-lhes as ferramentas necessárias, e a comida. No inverno desapareciam. Quando interroguei ao sheikh sobre a origem do "camelo do sonho", sorriu, malicioso e, acredito, remeteu aos "odiados judeus". Assim o tinha estabelecido seu Deus -manifestou com ironia-, enquanto perambulavam pelo deserto... E recordou a passagem do Exodo (21, 23) no que, efetivamente, Yavé defende a vingança: "Mas se resultar dano -ordena ao Moisés-, dará vida por vida, olho por olho, dente por dente, emano por mão, pie por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, cardeal por cardeal. " Não era certo. Que eu soubesse, Yavé jamais estabeleceu dito imposto, embora em algo sim tinha razão: aquele deus do Sinaí, com minúscula, eu não gostava... Foi então, ao comprovar meu interesse pelo judeu, quando Yafé, encantado ante a possibilidade de manifestar seu desprezo pelos hebreus, contou-me outra singular historia. Nunca soube se era certa ou, como intuo, outra manipulação dos
árabes, ancestrais inimigos dos "invasores", como chamou os judeus. Segundo Yafé, quão judeus saíram do Egito não eram hebreus, a não ser badu. Todos eram beduínos, como ele. Todos procediam dos diferentes ramos nascidos do Abraham, outro badawi. Nunca foram escravos. "Isso -assegurou, convencido- foi outra mentira. . . " Tampouco formavam doze tribos, a não ser muitas mais, e em nome do Yavé arrasaram uns territórios nos que viviam outras etnias. E mencionou aos medianitas, edomitas, amalecitas, moabitas (da que procediam os Adwan, sua tribo), jebusitas, amonitas, amontas, filisteus, cananeos, fenícios, e outras nações que ocupavam as terras do Gilead e o Bashan. Nisso sim tinha razão. Mil e trezentos anos antes, o que hoje conhecemos como o Israel não era propriedade dos judeus. Em total, mais de um milhão de mortos. A conquista da Terra Prometida, amém de uma empresa injusta, foi um açougue, respirada pelo Yavé. O dito: esse deus do Sinaí nada tinha que ver com o Pai... Um dia daqueles, ganha sua confiança, atrevi-me a formular a pergunta chave: por que alguma vez terminava as frases? E o "bonito que, além disso, pensava" remeteu a um sucesso, ocorrido em sua infância, quando logo que contava sete anos de idade. achava-se jogando na cova da "chave", em que pernoitávamos, quando, súbitamente, apresentou-se ante ele um wely, um gênio benéfico. Descreveu-o como um homem alto, de cabelos amarelos, muito chamativos, que descansavam sobre os ombros. Vestia como os persas, com calças ajustadas à altura dos tornozelos, e brilhantes como o damasco. No peito luzia um triplo círculo vermelho, bordado em ouro. Não era beduíno. Seu rosto era áspero, e o olhar doce e penetrante a um tempo. Não se assustou. A descrição do wely me resultou familiar. Eu a tinha ouvido anteriormente... O gênio (?), então, falou com pequeno Yafé e lhe comunicou que, em seu momento, quando ele fora sheikh, receberia a visita em suas terras de outro xeque principal, "ao que obedecem as estrelas". Yafé não sabia de nenhum sheikh com essas características, e perguntou como poderia reconhecê-lo. O wely
levantou a mão direita, assinalo o teto da caverna, e exclamou: -Será seu despertar... Não compreendi. Yafé me tranqüilizou. O tampouco conseguiu entender o significado das palavras do gênio. Mas que relação guardava a suposta aparição do wely com minha pergunta? por que o costume de não concluir o que iniciava? O homem das vestimentas brancas solicitou paciência. E prosseguiu. O pequeno Yafé contou o ocorrido, mas não foi tomado em consideração. Ninguém sabia de um sheikh com tanto poder. Além disso -se burlou a tribo- o que podia procurar um xeque principal em um lugar como Beit Ids? Como resultado daquele encontro (?), o menino beduíno começou a padecer um mal que o faqir dos Adwan, seu clã, associou com a posse dos znun, os demônios, ou gênios maléficos da zona, irritados pela "profecia". E a versão do Yafé foi cobrando importância, embora ninguém terminava de esclarecer o porquê de semelhante visita. Após, a caverna da "chave" foi evitada pelos moradores do Beit Ids, na medida do possível. Segundo Yafé, desde aquele dia não voltou a dormir. Ao princípio o considerei um exagero, típica dos badu. Ninguém pode viver sem dormir. Além disso, caso que padecesse algum tipo de "agripnia", ou insônia, entendi que podia ser de tipo transitivo. Yafé não respondia aos rasgos típicos de um insone crônico. Seu caráter era doce, acolhedor e brilhante. Justamente o contrário dos insones, nos que termina vencendo a miséria mental, a angústia e o cansaço. De ser como assegurava, nada do empreendido em sua vida tivesse prosperado. A lógica fatiga, provocada pela insônia, o teria esquecido, afundando-o na depressão, e diminuindo sua capacidade funcional (em todos os sentidos). E, como digo, pensei que pretendia chamar a atenção. Equivoquei-me. Com o passo dos dias, ao observá-lo atentamente, e interrogar aos habitantes do clã, descobri com assombro que era certo. Yafé, o sheikh do Beit Ids, logo que descansava quinze ou vinte minutos ao dia. Jamais soube de algo igual, tendo em conta que o número de horas que dorme 65 por cento da população oscila entre 4,5 e 10,5 por dia. Era incrível. por que
não mostrava signos de sonolência durante o dia? Como podia repor forças com um sonho tão breve? Interroguei-o e, aparentemente, o parto foi normal. Yafé nasceu aos nove meses e, salvo o sucesso da cova, sua infância se desenvolveu discretamente, sem rasgos, ou sintomas, que denotassem um desenvolvimento cerebral defeituoso. Supus que a patologia, muito estranha, tinha sua origem em alguma lesão cerebral (concretamente, no hipotálamo anterior). Possivelmente me encontrava ante um caso de insônia idiopático, de começo infantil, embora não contemplado na literatura médica que eu conhecia. Segundo o sheikh, depois da experiência com o wely, sua vida trocou. Nunca mais voltou a sonhar ou, ao menos, não era capaz de recordar as ensoñaciones. Passou pelas mãos de muitos bruxos, que lhe deram toda aula de conselhos e "remédios". Tinha bebido a orcaneta, uma infusão a base de raízes, a que se acrescentava vinho branco e suco de rosas do Tharsis. Aquilo o converteu quase em um menino alcoólico. Depois foi o período do azeite de amêndoas, que devia ingerir pelo nariz. Pouco faltou para que o matassem... E agora, por conselho de sua primeira esposa, a faqireh, via-se obrigado a consumir, diariamente, uma dose de neroli, um azeite difícil de obter, muito caro, que lhe enviavam, diretamente, de Roma. Consistia em um azeite essencial, obtido das flores das laranjas amargas, que tampouco fez possível seu mais fervente desejo: sonhar. O neroli, entretanto, excitou seu apetite sexual (nunca dormido), com a conseguinte alegria por parte de suas algemas... Nenhum dos "remédios" fez efeito. Yafé não conseguia dormir. Durante o inverno passava os dias frente à grande casa, sob o olivar, empenhado em fazer e desfazer nós, sempre marinheiros. Foi nessa peregrinação, de faqir em faqir, quando adotou o costume de não rematar as frases, e de tentar não concluir o que iniciava. A idéia surgiu depois da visita ao "santuário" da deusa nabatea Allat, de volta de uma de suas habituais "noites de bodas" com o mar. Ali teve acesso a uma jovem e bela feiticeira badawi, desconhecida até esses momentos, que escutou sua
"visão" e lhe ofereceu conselho para "romper o encantamento". A faqireh, que respondia no nome Dela canta" (K-tganni), explicou ao sheikh do Beit Ids que, na linguagem dos gênios, a palavra "despertar" significa muito mais que deixar de dormir. "Despertar -disse- é compreender. Mas "compreender" não é o que você crie... Compreender não quer dizer terminar, a não ser justamente o contrário: saber começar, continuamente... " Yafé interpretou que a "profecia" se cumpriria quando fora capaz de "despertar"; quer dizer, quando fora capaz de saber começar, uma e outra vez, constantemente... Por isso nunca terminava o que empreendia... Infelizmente, eu tampouco soube compreender. Foi mais tarde, dias depois, quando ambos "despertamos"... A presença do Príncipe Yuy, entretanto, alertou-o. Depois foram minhas palavras, ao lhe falar do Pai do Yuy, o "Xeque das estrelas", e da missão de Dois: "despertar" ao mundo. Todo aquilo encaixava com o wely que se apresentou na gruta da "chave". Também o grande resplendor sobre a colina da "escuridão", observado igualmente pelos habitantes do Beit Ids, e arredores, deixou-o perplexo. Algo ia acontecer, embora não sabia o que... Então recordei. A descrição do gênio da cova era parecida com a do "ser luminoso" que se apresentou ante a Isabel, a mãe do Yehohanan, e também ante a María, a Senhora. tratava-se do mesmo anjo ou mau'AK? Era Gabriel? por que se apareceu pela terceira vez? por que a um moço árabe? por que naquela remota paragem? por que ninguém se preocupou de averiguar o acontecido durante as semanas que o Mestre viveu na cova do Beit Ids? E se o fizeram, por que não foi escrito? Possivelmente porque eram badu e, portanto, "oficialmente", gente impura e inferior? Foi por isso pelo que situaram no "deserto" (supostamente Beit Ids) a presença do diabo tentador? Que diabo? Os znun, possivelmente? Devo me conter, e seguir sendo fiel aos acontecimentos, tal e como se registraram... Com a queda do sol, como pinjente, Jesus retornava à caverna.
Conversávamos. O me punha à corrente de alguns de seus pensamentos e, sobre tudo, instruía-me, me adiantando a essência do que, a não demorar, constituiria seu período de predicación. Agora sei. Tudo estava, e segue estando, pacote, e muito bem pacote... Era meu tikkún, segundo suas palavras. E depois do jantar chegava o melhor dos momentos, o do "jogo" (!) do selem, ou da "estátua". Era assombroso. Sua palavra o enchia tudo. Meu coração, e a natureza, detinham-se, e bebiam desconcertados. Era um rio de imagens, gratificantes e soube. A maior parte das vezes, como era lógico, quem isto escreve permanecia mudo, como uma estátua, tentando absorver até a última iod que brotava de seus lábios. Suponho que me levei uma mínima parte do que me deu de presente... Em total, vinte e três conversações, nascidas de outras tantas frases; as que Ele escrevia ao amanhecer sobre as madeiras de tola branca com as que Yafé, o sheikh, tinha tentado construir seu FAQ, seu "Despertar"... Quando retornei ao Ravid, apressei-me às incluir no diáriode bitácora. Foram vinte e três "visões" do Pai, e do mundo, que me fizeram pensar e trocar o rumo de minha alma. Foi a "faísca", naturalmente, a que me falou... Hei aqui sortes frases, na ordem em que foram escritas sobre as velhas pranchas de agba: "Deus não está para ajudar." E o Mestre insistiu na inutilidade de solicitar favores materiais, e lamentou que os seres humanos se lembrem do Pai, única e exclusivamente, quando "troveja"... A "faísca", disse-o, tem cometidos muito mais importantes... "Morrer é questão de tempo. Viver é o contrário." Os escravos isso tempo acreditei entender- vivem para morrer. "O medo, desde este momento, é coisa do passado." Se o Pai der de presente, por que temer? Os que odeiam só têm medo. E o que é o ódio?: amnésia. que odeia não "recorda" que foi imaginado pelo Áhab, pelo Amor. Medo e ódio -disse- não têm possibilidade em seu "reino". Terá que fazer-se à idéia... "Vive mais o que sonha."
E me convidou a que aprendesse da alma das mulheres. Elas praticam, melhor que os homens, a arte da intuição. Sonhar só é isso: caminhar um passo por diante da razão. E disse mais: no mais recôndito, e escondido, de Deus "vive" o feminino, o Grande Espírito. Não compreendi muito bem nesses momentos... "Não procure a verdade, porque poderia achá-la." Deixa a "luz" para quando for "luz". Deixa o alto para o "não tempo". O Pai -insistiu- quer que sejamos Santos, ou perfeitos, mas amanhã. Hoje é suficiente renascendo"... "Desde quando a morte forma parte da vida?" O Pai dá de presente imortalidade (vida). por que nos empenhamos em confundir a ponte com o rio? Quem termina desembocando no mar, no Amor: a ponte, ou as águas da vida? "A verdade não grita. Sussurra. . . " A verdade é tão incompreensível para nossa limitada natureza humana que, agora, só convém sussurrá-la. E matizou: "Sussurro interior, claro... " "É melhor falar com os olhos." depois de tudo, é o "te quero" mais veloz. "Não julgue, embora tenha razão." Na tabela de tola desenhou também a letra hebréia vav, que simboliza ao homem. E reiterou: cada qual se limita a dar cumprida conta de seu tikkún, sua missão na vida. Nem sequer quando for espírito deverá julgar. Nem sequer os Deuses o fazem... "Se descobrir que vais morrer, continua com o que tem entre mãos." Não estamos na vida para nos arrepender, e muito menos para pedir perdão a Deus. Os filhos devem caminhar com segurança e confiança, não com temor. Ninguém tem capacidade para ofender ao Áhab. Nem sequer os próprios Deuses (e voltou a utilizar a maiúscula). "O mais formoso está sempre por acontecer." Conforme entendi, esse é o grande secreto do Pai: perito em surpresas, perito em cozinhar o dia a dia (com amor). E acrescentou: "o melhor que te ocorreu na vida só é uma abreviatura do que Ele te reserva." E pensei: "MA'ch já o é..." "A lucidez obnubila." Quanta mais claridade mental (referiu-se a claridade da alma), mais longe da razão e mais perto do Áhab. E o esmiuçou como se fora o alimento de
um bebê (em realidade, era-o): quanto mais próximo a nitzutz, quanto mais consciente da presença divina em seu interior, mais fugidia e breve te resultará a realidade... "Deus não duvida, isso é nossa coisa." A lei básica da imperfeição é a dúvida. Só o Pai acerta. Por isso não podemos compreendê-lo (agora). É a dúvida a que impulsiona a caminhar, não a certeza. Por isso Deus não se move. Nós, algum dia, tampouco duvidaremos. Jesus do Nazaret foi um "atalho", mas muito poucos chegam a descobri-lo. "Quando compreender, terá que dizer adeus." E o representou com a iod, a letra hebréia que simboliza a Deus como "Ab-BA (Papai), e como origem do Áhab. Esse "despertar" nunca poderá ser em vida. "Compreenderemos" quando só formos "interior"... Será a grande "despedida" de nós mesmos. "Deus não luta, mas vontade." É o Grande Bruxo, que dispõe o final, antes que o princípio. Se conhecêssemos o segredo do Pai, estaríamos por cima Dele. E afirmou, terminante: "Alguém o está... Por isso vontade, sem necessidade de brigar." A revelação, como outras, superou-me. Não aceitei o que, evidentemente, estava manifestando. Não estou preparado. "Se seu deus perguntar, mau assunto." Escreveu deus com minúscula (ab BA). E explicou: as perguntas são próprias das criaturas do tempo e do espaço. Na perfeição, no "reino" do Ab-BA todo "é". Só a imperfeição está capacitada para interrogar. Não devemos confundir deuses com Deuses. "A sabedoria é uma atitude." A autêntica, a que nasce da nitzutz, ou fração divina, é uma forma de comportar-se. quanto mais sábio, mais tolerante. quanto mais sábio, mais abraço. quanto mais sábio, mais fluido. Quanta mais sabedoria, mais amante. quanto mais sábio, mais intuitivo. quanto mais sábio, mais inimigos... "Deus não pede nada em troca. Não o necessita." Não façam caso dos homens -proclamou-. Ele, o Pai, está em cada um de vós. Ele concede antes de que possa abrir os lábios, e sussurra de por vida. Ele não perdoa, porque não há nada que perdoar. Ele sabe, embora você não saiba. Ele tem, porque dá. O que pode solicitar o Amor do amor? Fez-me uma
piscada, e esclareceu: "Só que desperte." E insistiu, e insistiu, e insistiu: somos imortais por natureza. Ele já o deu tudo. Algum dia, quando finalizar nosso tikkún, a felicidade nos afogará... "A isso vim, querido mau'AK: para lhes recordar que não há condições..." "A dúvida não é mau começo." Exercitá-la é alimentar à alma. Duvidar é o estado natural do homem. Assim foi disposto pelos que não duvidam. que aprende a duvidar respeita. que dúvida desempoeira seu coração. que pratica a dúvida multiplica. que dúvida admite seus enganos e, sobre tudo, os de outros. A dúvida, então, fará-nos valiosos. A dúvida é um truque da divindade: quantas mais duvida, mais percorrido. Duvidar é o pacto obrigado com a "faísca". Se a alma não duvidasse, como poderia crescer? A dúvida embeleza porque nos faz mais humanos. Duvidamos porque vivemos. Duvidamos porque procuramos. A dúvida é o melhor amparo contra fanáticos, salvadores e ladrões de vontades. "que adora aparece a Deus." Ou o que é o mesmo: que adora aparece a nitzutz. Adorar é descobrir que "viajamos" juntos. trata-se da máxima expressão da inteligência humana. Só adoram os sábios; quer dizer, os que despertaram", os que não duvidam em começar de novo, constantemente. Só adoram os que começam ou seja algo de si mesmos... E compreendi: eu jamais tinha adorado a Deus. Confundi ao Pai com a religião. Adorar, em realidade, é um simples e muito belo gesto de gratidão. É o menos que se deve oferecer ao que nos imaginou. Então, ao ajoelhar a alma, Ele te levanta a altura de seus olhos. Jamais, como criatura humana, poderá estar tão próxima ao poder e à força. É o instante sagrado que batizei, acertadamente, como "princípio Omega". Ao adorar, ao abandonar-se à vontade do Pai, a alma entra na idade de ouro. E repetiu: a criação se acende a nosso favor. Já nada é o mesmo. A primitiva criatura humana se declarou amiga do Número Um. A que mais pode aspirar um Deus? "que escuta, fala duplamente." Disso dou fé. Nada de quanto tenho escrito teria sido possível se não
tivesse emprestado atenção a sua palavra. Sua presença foi insubstituível, e sua mensagem, eterno. Eu, agora, falo duplamente, por sua infinita misericórdia. Falo para mim, e para os que têm que chegar. Nada do que contém este apressado diárioé o que parece. É muito mais. É o "dobro". Como repetia o Mestre: quem tem ouvidos, que ouça. "Apaixonar-se é perder a razão, ao fim... " E deixou. a questão, intencionadamente, para o final. Falou do amor humano, como uma interessante aproximação ao Áhab. E precisou: "Só uma aproximação..." Não deveria nos surpreender, e muito menos nos atormentar, a fugacidade do amor humano. Apaixonar-se é prender uma vela que, cedo ou tarde, extinguiráse. Mas, enquanto dura, ilumina e nos afasta da razão, a grande inimizade da dúvida. Apaixonar-se é intrínseco à natureza humana, ao igual a dormir, ou alimentar-se. Não devemos nos envergonhar jamais por experimentar o que é inerente à condição da mulher e do homem. Outra questão é que o ser humano, em sua ignorância, queira-lhe outorgar um caráter sagrado, que jamais teve, como não o têm as funções de imaginar, refletir, rir ou chorar. E me animou a "confiar", embora meu amor pelo MA'ch fora impossível... "O impossível -sentenciou- é, justamente, o verdadeiro." E cada noite, ao concluir a conversação, o Mestre, indefectiblemente, jogava no fogo a madeira em que tinha escrito a frase. por que o fazia? por que destruía o escrito pela manhã? E me veio à mente uma cena, não muito longínqua, em que Jesus repreendeu ao engenheiro por haver-se apropriado de uma tigela de madeira, em que o Galileo escreveu uma mensagem, nos comunicando que retornaria ao acampamento do Hermón ao entardecer. Só achei uma explicação, a que Ele nos proporcionou naquela oportunidade: não convinha que o Filho do Homem deixasse escritos, nem tampouco descendência... Entendi. Pura "normativa interna". Jesus também devia ajustar-se ao "manual de instruções"... Mensagem recebida.
TERCEIRA SEMANA NO BEIT IDS
Embora, em geral, a estadia no Beit Ids foi extremamente benéfica, também houve maus momentos. Alguns, inclusive, muito maus. Mas todo isso, como se tivesse sido disposto por um Mago, terminou desembocando no sublime. Vejamos... na quarta-feira, 30 de janeiro, foi, com muito, o mais dramático dos trinta e nove dias que vivi junto ao Mestre, em terras dos badu. Foi essa manhã quando o pobre Ajasdarpan... Mas não... Não foi assim. Tudo começou um pouco antes, nada mais despontar no domingo 27... Seria absurdo lhe jogar a culpa ao anticiclone que se instalou sobre a zona oriental do vale do Jordão. Ao retornar ao Ravid e consultar a meteorologia, soube que esse dia, ao pouco de amanhecer (6 horas e 34 minutos de um suposto Tempo Universal), Beit Ids aparecia com uma pressão de 1.010 milibares, e um vento notável e abrasador, anunciador do que os beduínos chamavam es-seja ra, uma chuva mansa e muito adequada para o campo. O inverno, para eles, depois das passadas e torrenciais o gawzah ("chuvas em cascata"), tinha concluído. A questão é que a temperatura subiu grandemente. antes da hora atravessa (nove da manhã), possivelmente rondasse os 30 graus Celsius. E o Mestre postergou seu retiro a "778". Essa manhã a dedicaríamos à lavagem de roupa. Isso disse, e quem isto escreve obedeceu. Muito perto, como já apontei, fugia veloz, para o este, um riacho invernal, de pouco mais do meio metro de profundidade. achava-se ao sul da boca da gruta, entre a "luz" e o bosque de amendoeiras, em uma prudente e tímida vaguada, quase sempre solitária. Pensei que era a paragem idônea para um mister tão impróprio de homens. Naquele tempo, estranho era o varão que se preocupava com semelhante tarefa, e muito menos entre os a 'rab. E o dispus tudo: túnicas, mantos, saq, e as pastilhas de "natrón" que eu mesmo tinha conseguido no povoado e que me proporcionou Nasrah, a "gritalhã", a esposa principal do Yafé, o sheikh. Voltei a examinar o "sabão", um tanto sentido saudades,
mas não suspeitei. A faqireh o usava. Chamavam-no hamar. Era uma mescla de insípida e novelo aromáticas, que produzia muita espuma. Mas, como digo, chamoume a atenção a singular cor azul. Nunca vi um "natrón" tão chamativo. Pelo general, utilizado-los eram de uma cor verde limão, ou terrosos. Mas quem podia imaginar nesses momentos...? E por volta das oito da manhã, pouco mais ou menos, tomamos posições na borda esquerda. Cada um se ocupou do seu. Procuramos um par de pedras nas que bater a roupa, e nos entretivemos na localização de algumas ramos com as que espancar os objetos. E nisso estávamos quando, tentados pelo sufocante vento do sul, de mútuo acordo, decidimos tomar um banho. O que nos sobrava era tempo... Como digo, o lugar, a essa temprana hora, aparecia solitário. Assim, sem mais, com toda naturalidade, despojamo-nos das roupas e, nus, lançamonos ao leito. O banho foi relaxante, e se prolongou durante um bom momento, até que, de repente, ouvimos vozes. Alguém se aproximava da borda... Apressei-me a sair da água, mas só tive tempo de me cobrir com o saq. Jesus se achava águas abaixo, nadando. É obvio que se precaveu da proximidade das mulheres, mas continuou feliz, a seu ar, sem conceder importância ao feito de que se achasse nu. Fui eu quem se alarmou. E, em efeito, imediatamente se apresentou na borda, a coisa de cinco metros das pedras selecionadas para fazer a penetrada, um grupo de beduínas. Eram dez, ou quinze, com três asnos. Eram as wadirat. Assim chamavam as que iam ao rio para encher os odres, ou rawieh. Deviam retornar ao povoado quanto antes. Era a água destinada ao sheikh, aos cães, e ao gado doente (por essa ordem). Depois, se sobrava, repartia-se entre os varões, mulheres e escravos (também por essa ordem). As wadirat eram as responsáveis pela rhina, a lavagem da roupa. Algumas eram profissionais. Cobravam a tanto a peça. Ao retornar ao Beit Ids recebiam outro nome: eram as sadirat. quanto mais tarde retornasse um grupo de sadirat, mais suspeitas de infidelidade... Dependendo das necessidades, da época do ano ou do número de convidados do sheikh,
as wadirat podiam fazer até dez viagens por jornada. Não o tive em conta. Melhor dizendo, não o recordei... E ao pouco, como era de esperar, começaram as risadas. Quem isto escreve, sobressaltado, agarrou uma das túnicas e tentou não emprestar ouvidos as brincadeiras e aos dardos envenenados que começavam a escapar das bocas das maliciosas badu. Como pinjente, era lógico. Entre os beduínos, nenhum varão se emprestava a lavar a roupa... Jesus seguia no rio, aparentemente alheio à situação. Inundei o objeto na água, e a estendi sobre a pedra, disposto a batê-la e a eliminar a sujeira. E as risadas e os comentários mordazes aumentaram. Procurei não me alterar. Nem sequer levantei a vista... E se produziu o desastre. Ao esfregar o suposto "natrón" contra a túnica, tudo se voltou azul... Não compreendi. quanto mais esfregava, quanto mais empapava a lã, mais azul se voltava tudo: o rio, a pedra, a túnica, eu mesmo... Tudo era azul! E, depois de uns segundos de lógica surpresa, as mulheres, que entenderam o problema muito antes que este desolado explorador, esqueceram o transporte de água, e aos asnos, e só tiveram olhos para aquele outro "asno"... As risadas, gritos e dramalhões foram tais que o Mestre interrompeu o banho, e me contemplou, igualmente atônito. Ao pouco rompeu a rir, como o resto... A explicação era muito simples. A faqireh, a quem não lhe resultava excessivamente simpático, e assim o demonstrou em nosso segundo encontro, tinha-me tirado o sarro. Em lugar de sabão me proporcionou um corante. Concretamente, um zraq, uma espécie de índigo que fabricavam com indigofera, urina humana, e uma erva chamada bolo. O zraq, naturalmente, reservava-se para o tintura de malhas, nunca para a lavagem. Mas as más idéias daquela bruxa não terminavam na "avaria" propriamente dita. Dias depois, o próprio sheikh, à corrente do acontecido no rio, explicoume isso, sem poder dissimular a risada. Entre os beduínos, especialmente entre os Adwan, e outras tribos da região do Moab, o índigo, ou anil, era a cor dos covardes
e dos efeminados. A covardia era um dos piores pecados que podia cometer um varão. Fugir em uma razzia, ou abandonar a um membro do clã em uma guerra, era uma baixeza. O covarde se convertia em um munayyil, e toda a família ficava manchada. Quando isto acontecia, uma das mulheres arrojava um nileh (corante azul) à cara do covarde. Depois o vestiam de mulher e lhe negavam o kafia, até que demonstrasse a "brancura de sua cara". Assim nasceu a lenda dos masboub, os misteriosos cavaleiros, com compridos vestidos flutuando ao vento e olhos de fogo, que se apresentavam nas batalhas, e aos que os badu temiam tanto ou mais que aos znun. Aí terminou a "penetrada", naturalmente... E me disse: "Não está mal para começar... Dois enganos nada mais arrancar a manhã." Mas o dia não tinha concluído... O Mestre saiu da água, tampou-se com o saq, ou taparrabo, e começou a secar-se com a túnica vermelha. Não fez comentário algum, mas vi como se esforçava por sujeitar a risada. Por minha parte, entrei de novo no leito e fiz o impossível por esclarecer minha roupa e, muito especialmente, por me esclarecer. Foi como uma praga. O anil se introduziu com vontades na malha, e nos poros, e foi necessário brigar sem deprimo para obter alguns resultados; não muitos. Mas meu afã acendeu de novo o bom humor das mulheres, e as risadas e brincadeiras ressuscitaram, eu diria que com mais força. Então apareceram eles... Tinha-os visto junto à feiticeira, a tarde que chegamos à cova do Beit Ids. Lembrança que se burlaram de meus cabelos brancos. Então não emprestei excessiva atenção. É mais: "dadas as circunstâncias", aceitei-o como um castigo castigo. Agora, sabendo o que sabia, pus-se a tremer. Aqueles pequenos trapaceiros eram capazes de tudo... Eram seis. Como pinjente, nenhum transbordava os nove ou dez anos de idade. Vestiam as típicas túnicas de cores vivas e gritões, com as cabeças rapadas e os pés dê nós. uniram-se às badu, e não necessitaram muito tempo para ficar à corrente...
Eram os dur-dar. Assim os chamavam no povoado, e nos arredores. Beit Ids, como o resto da Decápolis e da Perea, sofria um mal cada vez mais preocupem-se. Refiro às bandas de jovenzinhos, quase meninos, que traziam de cabeça às famílias, aos caminhantes e às autoridades. A maioria não era perigosa, mas resultava molesta. Lançavam pedras contra homens e animais, furtavam se se emprestava a ocasião, insultavam, e submetiam a próprios e estranhos a quantas vexames eram capazes de idear. Em cada aldeia aninhavam vários destes grupos, capitaneados por sendos jefecillos. Faziam razzias contra bandas rivais e, quase sempre, terminavam maltratados. Os dur-dar não eram os piores, embora faziam honra ao apelido. No dialeto do Beit Ids, dur-dar era um trocadilho que, pouco mais ou menos, queria dizer "dar a volta e mostrar o traseiro", embora dar segundo a entonação (darr), podia traduzir-se também como "causar dor". E isso era aquela "equipe" para o sheikh e sua família: uma dor de cabeça. Só a faqireh conseguia controlá-los e submetê-los, e não sempre. Também conhecia os lha'um ("emprestados"); aos harra ("muito"), para os que nunca era "muito", aos sjün ("quente"), os mais pequenos, porque não havia noite que não fossem "esquentados" por seus pais e, sobre tudo, aos dawa-zrad ("maldição da lagosta"), os mais conflitivos, que obedeciam a um adolescente de triste lembrança... Não demoraram para introduzir-se no leito e, pouco a pouco, foram aproximando-se de quem isto escreve. As risadas e os gritos das mulheres os encorajaram, e começaram a fazer coro a palavra munayyil ("covarde"). Ao princípio tomei como um jogo. Riam. Chapinhavam. Olhavam às beduínas, e estas, a sua vez, animavam-nos com seus gestos e vozes. Eu continuei esfregando, não muito alarmado. Só eram meninos... O Mestre seguia na borda, a poucos passos, secando-se. E o folguedo foi em aumento, conforme se aproximavam. Suponho que minha passividade os desconcertou. Depois, raivosos, aumentaram nos insultos. E a palavra munayyil terminou apagando as risadas das badu. Não soube o que fazer.
Um deles, que parecia levar a voz cantante, começou a palear a água com as mãos, lançando-a sobre este explorador. Detive a limpeza, e pensei em me retirar. Tampouco desejava criar um conflito por culpa daqueles diabos. Não tive oportunidade. O resto imitou, rápido, ao que parecia o chefe, e tive que suportar uma cortina de água e de insultos. Mas o molesto incidente não termínó aí... O jefecillo se deteve. Alertou aos outros cinco e, a uma ordem dela, voltaram-se para uníssono e levantaram as túnicas, me mostrando os respectivos traseiros. Estes eram os dur-dar... E as risadas de uns e de outras se multiplicaram. Mas nesse instante, antes de que acertasse a me retirar -essa foi minha intenção-, vi cruzar ante mim ao Galileo. Melhor dizendo, mais que cruzar, vi-o voar. precipitou-se sobre os pillastres e, com o zraq na mão esquerda, procedeu a tingir os de azul. Começou com o chefe. Introduziu o que ficava do corante nas águas, eu esfregou sobre o crânio do perplexo fantasia de diabo. Depois lhe tocou o turno ao segundo, e ao terceiro... O resto conseguiu fugir. As beduínas, tão surpreendidas como este explorador, terminaram concedendo a razão ao Príncipe Yuy, animando-o para que tingira aos fugidos. Jesus, então, situou-se a quatro patas sobre o leito do riacho e, dirigindo-se para os que tinham conseguido escapar, começou a ladrar, imitando aos saluki do sheikh. E as risadas retornaram novamente. Tinha contemplado ao Filho do Homem em muitas circunstâncias, mas esta era a primeira vez que o via sobre as mãos e os joelhos, em meio de um rio, e ladrando... Assim era o Homem-Deus. Os dur não necessitaram muito tempo para compreender que se tratava de um jogo e, entusiasmados, deram a volta, rodeando ao "cão". Ao pouco momento, os seis meninos beduínos se achavam encetados em um simulacro de briga com o Galileo. Todos tentavam lhe arrebatar o zraq, e todos terminavam no fundo do wadi. Jesus saltava. Retrocedia. Esfregava-os com o corante. Caía sobre as águas. Soprava. Ria... Desfrutei com o espetáculo. Todos o fizemos, até que, súbitamente, algo
eu não gostei... Os dur, ante a impossibilidade de fazer-se com a pastilha de corante, trocaram de tática. E o jogo se turvou. Comecei a contemplar patadas, puxões de cabelo, insultos, golpes... O Mestre não disse nada, e seguiu brigando com os dur. As beduínas se deram conta, e cessaram em suas risadas. Foram segundos, só segundos, mas trouxeram lembranças muita pouco gratas. E quando estava a ponto de entrar na água e espantar aos dur, dois das badu se adiantaram. Conhecia-as de vista. Sabia que eram netas do sheikh. Ajudavam com o gado. Vi-as pelos arredores do povoado, e no nuqrah, no lar, cuidando dos mais pequenos da família. Era normal fixar-se nelas. além de muito belos, eram corrosivas como o ácido. Todos fugiam. Eram as gemam. Possivelmente tivessem quatorze ou quinze anos de idade. Alguém se chamava "Endaiá", ou "Cheia de rocio". A outra respondia à graça do Masi-n'ases", que poderia traduzir-se pela porta dos felizes sonhos", aproximadamente. Nunca cheguei às distinguir. Vestiam igual, com amplos thob, ou túnicas até os pés, de cor negra e sem mangas. Não usavam khol, nem nenhum outro tipo de maquiagem. Não o precisavam. Seus olhos, negros, eram profundos e inesgotáveis. Falavam sem falar, como os dela. Sempre estavam a penteando-se uma à outra. Passavam horas domesticando os compridos e muito escuros cabelos. E, enquanto o faziam, cantavam. Entoavam uma triste melodia em que narravam um primeiro amor, igualmente impossível. "Ela ainda espera", rezava a canção... Uma das gêmeas, a que ia em cabeça, lançou um grito e invocou ao Karineh, outro dos znun do mundo árabe, encarregado de capturar e de levar-se em seu camelo com asas aos meninos que não obedeciam. E repetiu o ameaçador nome. Os diabos ficaram paralisados, e as moças, decididas, prosseguiram para o grupo. Levavam caminhos varas de aveleira, largas, correosas e silbantes, com as que estavam acostumados a endireitar aos animais (tanto de quatro como de duas extremidades).
Jesus, tendido na água, parecia exausto. E os dur, que sabiam do ingovernável caráter das gêmeas, não esperaram. Ao as ver avançar com as cimbreantes ramos nas mãos, saltaram por cima do corpo do Galileo e escaparam entre as amendoeiras. Um deles -suponho que o chefe-, antes de afastar-se, revolveu-se e cuspiu sobre o Mestre, ao tempo que levantava o punho, convocando-o "para mais adiante". Uma das badawi o perseguiu, mas conseguiu escapulir-se. Esta era uma das razões que as mantinha solteiras. Apesar de sua beleza, e dos dinheiros do ahel do Yafé, ao que pertenciam, nenhum homem, em seu são julgamento, tivesse-as solicitado em matrimônio. "Um homem não pode brigar com sua égua e com sua mulher ao mesmo tempo." Isso diziam. Contemplei-as, agradecido, e entenderam. Uma delas -não sei se Endaiá- terminou sonriéndome, mas quem isto escreve, torpe, como sempre, não acertou com o significado do intenso olhar... E o Destino, sei, deveu me observar, zombador, da borda do wadi... Quem podia imaginar então...? Acudi junto ao Jesus e lhe tendi a mão. Percebi certa tristeza em seus olhos, mas não fez menção do incidente. aferrou-se ao braço e atirei Dele, como no Artal. Era a segunda vez que o ajudava a sair da água... Então, quase para si, comentou: -Querido mau'AK: renuncio a meu poder! -Claro, Senhor... Com esses fantasias de diabo, eu também o faria. Sorriu-me brevemente. vestiu-se e se afastou para a gruta. Eu recolhi os restos do "naufrágio" e fui atrás Dele. As badu retornaram ao Beit Ids. Fizeram-no devagar, sem deixar de falar e de rir. Não todos os dias se via um estrangeiro, um barráni, tingido de azul, e por sua própria vontade... As gêmeas fecharam a comitiva das sadirat. Uma delas se voltava cada pouco e me buscava com o olhar. Tampouco compreendi. O resto da jornada transcorreu sem incidências. O Mestre, mais sério do habitual, retirou-se a sua colina, a da "escuridão", e não retornou até o ocaso (na nave, os relógios assinalaram o pôr-do-sol às 17 horas e 5 minutos). Jantamos e, enquanto alimentava a fogueira, contemplei-o, intrigado. O
que tinha ocorrido? Algo passava. Soube imediatamente. Aquele silêncio e a gravidade de seu rosto não eram normais. Mas, prudentemente, esperei. Eu só era alguém que observava. Em realidade, como já mencionei, "oficialmente", nada disto existiu... Sentei-me frente a Ele, e emprestei atenção à linguagem das chamas. de vez em quando levantava a vista para o firmamento, mas tampouco compreendi os cochichos das estrelas. As "luzes", se estavam ali, eram indetectables. Só MA'ch cintilava, azul e poderosa, desde o Rigel... E deixou que se derramassem os minutos. Foi um dos silêncios mais difíceis de minha permanência no Beit Ids. Mas estava justificado. O que pretendia me comunicar era tão vital como delicado. Expressá-lo não era singelo, nem sequer para um Homem-Deus. Mas o tentou. Quem isto escreve não tinha compreendido o alcance do expresso no rio, quando lhe tendi a mão. Aquele comentário do Filho do Homem -"renuncio a meu poder"- não era a prolongação do jogo com os dur, como supus. O Mestre falava a sério. E procedeu a explicá-lo, em outra arriscada "aproximação" à realidade. Mais ou menos, isto é o que cheguei a entender: Ao parecer, decidiu-o muito antes, em um de seus retiros na "778". Em uma daquelas meditações, naquele, para mim, indecifrável mistério do Atattah-ani, ou "engrenagem" do divino com o humano, Jesus do Nazaret, um Deus Criador, optou por prescindir de seu poder. Deus santo! Não sei se serei capaz de transmiti-lo... O Mestre era um Deus, como já mencionei muitas vezes. Exatamente, um homem que foi capaz de "identificar-se" com a "faísca", ou fração divina. Agora, em vida, Ele era homem e nitzutz, reunidos em um tudo, um Homem-Deus. Pois bem, embora escape a minha compreensão, essa parte divina, essa natureza "não humana", continuava desfrutando de do poder, entendendo como tal a capacidade de criar e sustentar. Ele, conforme explicou, era o Criador de um universo; um de quão muitos configuram a "parte visível" da Grande Criação do Pai. E como tal, como Deus Criador, o Mestre dispunha de uma imensa "força", capaz de ressuscitar-se e de devolver à
vida aos mortos. Isso sabia, porque fui testemunha. Melhor dizendo, seria-o... Nessa colina, insistiu, tomou a firme decisão de não fazer uso desse imenso poder. Dita opção, se não compreendi mau, afetava a três grandes capítulos (?).Ou seja: renunciava a sua "gente", aos prodígios, propriamente ditos, e a sua defesa pessoal. Perguntei, obviamente, mas, apesar de sua boa vontade, e de sua generosidade, a "realidade" da que falava se escorria como a água entre os dedos. Mesmo assim, como digo, arriscarei-me a escrever o que deu de si meu curto entendimento. Quem era sua "gente"? Me perguntei isso em várias ocasiões. Eram anjos? Possivelmente os seres que pilotavam (?) as "luzes" que apareciam nos céus? Eram criaturas, sem mais, às que não posso compreender (não enquanto permaneça no tempo e no espaço), e que foram criadas por Ele. Melhor dizendo, "imaginadas"... Eram incontáveis. Não eram guerreiros, como a pobre mente humana chegou a supor. Eram seres "nascidos" (?) na perfeição, não materiais, que se achavam a seu serviço. Desenvolviam as mais assombrosas tarefas: das "comunicações", ao "transporte" da vida, passando pela "vigilância" das criaturas mortais, seu "despertar" depois da morte, e outras funções que, como digo, escaparam a minhas escassas luzes: Entre essa fantástica "gente" terei que contabilizar aos "K"... Essa "gente" sabia, perfeitamente, da encarnação de seu Deus Criador e Senhor. Jamais o mencionou, mas eu soube que sempre estiveram com Ele: da concepção, até depois de sua morte. E soube que tinham participado de meus sonhos... Uma só palavra dela, uma ordem, e essas "legiões de anjos" teriam atuado. Algo disse ao Pedro no horta do Getsemaní, mas este explorador não soube a que se referia com exatidão. Na noite daquela indelével sexta-feira, 7 de abril do ano 30, quando Pedro atacou ao Malco, um dos servos do supremo sacerdote Caifás, o Mestre, severo, obrigou ao discípulo a guardar a espada, e lhe disse: -Pedro, embainha sua espada!... Não compreendem que é a vontade de meu Pai que bebê esta taça?... Não sabem que agora mesmo poderia mandar a dúzias de legiões de
anjos..., que me liberariam das mãos dos homens? Eles, os apóstolos, e eu, ficamos aturdidos. Do que falava? Algo insinuou no Hermón, e agora o ampliou, na medida de suas possibilidades. Sua "gente", salvo que fora a vontade do Número Um, permaneceria à margem. Jesus desenvolveria seu trabalho na Terra sem a ajuda dos que, habitualmente, servem-lhe no "reino". Ele renunciou a sua "gente", mas renunciou sua "gente" a Ele? Essa era a questão. Uma questão que me reservava interessantes surpresas... Curiosamente, as "luzes" não voltaram a ser vistas sobre o Beit Ids. Eu, ao menos, não as detectei... Mas "eles" permaneceram ali, muito perto, como teria a oportunidade de verificar poucas horas depois. A segunda notícia me deixou mais confuso, se couber. -Querido mensageiro -esclareceu--, não recorrerei aos prodígios, salvo que seja a vontade de meu Pai... Era igualmente simples. Se acertei a compreender, o que o Mestre tratou de me transmitir era sua renúncia, total e sem condições, à possibilidade de fazer milagres. Seu poder era tal que poderia haver-se apresentado sobre uma nuvem, e rodeado de raios e trovões. Não era isso o que desejava. Ele queria "despertar" ao homem, mas pela magia da palavra. Aborrecia a idéia de ganhar adeptos pelo solo feito de que pudesse converter as pedras em pão, ou de que pudesse fulminar às legiões romanas. Não era o caminho que lhe agradava, embora tivesse sido legítimo. De fato, essa era a idéia do Mesías libertador que dominava entre os judeus. Jesus sabia muito bem. Esse ansiado Mesías, cantado desde antigo por mais de quinhentos textos religiosos, seria um rei, filho da casa do David, enviado Por Deus e dotado dos mais assombrosos poderes, que utilizaria, sem reparo, para situar à nação judia no mais alto da categoria social humana. Hei-o dito, e não me cansarei de insistir nisso: o Mesías dos hebreus, ao que seguem esperando, era um homem e um super-homem ao mesmo tempo; era um rei e um libertador político; era um sacerdote e um juiz; era um curador e um fazedor de maravilhas que dobraria aos ímpios (Roma) pela força da espada, e que submeteria ao mundo depois de um banho de
sangue. Os que o conhecemos, embora fora mínimamente, soubemos que o Filho do Homem se achava muito longe dessa concepção messiânica. Ele não era o Mesías. Era muito mais... E decidiu demonstrá-lo, como digo, sem alardes, e pelo poder de sua palavra. Queria dar de presente esperança, e elevar os ânimos dos deprimidos e deserdados, pela força e a originalidade de seu pensamento. Para isso, o primeiro passo era renunciar a seu poder pessoal. -Nada de milagres, salvo que o Pai estime o contrário. Olhei-o, desconcertado. Entrou em minha mente e leu... -Os milagres (acredito) produzirão-se... Assentiu com a cabeça, em silêncio, e sorriu com certo ar de cumplicidade. -Então -intervim, sem alcançar a compreender a profundidade do que estava expondo-, você não estará de acordo com esses prodígios... -Eu sempre estou de acordo com a vontade do Ab-BA, embora agora, na carne, possa sofrer por isso... E acrescentou, misterioso: -E não esqueça, querido mau'AK, que, a seu lado, sou um Deus menor... Deixei escapar a oportunidade. Não fui capaz. Não tive valor. Não acertei a limpar o enigma daquela frase: "Sou um Deus menor... ". Vi-o decidido. Desejava renunciar às maravilhas. Mas, então, o que devia pensar sobre os milagres que, supostamente, atribuíam-lhe? É que não tiveram lugar? Isso não era possível. Eu tinha visto (eu veria) a um Lázaro vivo que, segundo seus familiares e amigos, faleceu três dias antes de ser ressuscitado. Foi obra do Pai, ou Dele? Para falar a verdade, eu não fui testemunha da morte do vizinho da Betania... E o que dizer do Caná? Se o Mestre tomou a decisão de não obrar prodígios, o que foi o que aconteceu com a água? converteu-se em vinho, como asseguram os escritos "sagrados"? Caminhou sobre as águas do yam? Deu de presente a vista aos cegos de nascimento? Sei que Ele conheceu minhas dúvidas, mas guardou um fechado silêncio. Fez bem. Ocorrido-o no Caná convinha que o descobrisse por mim mesmo, e estava ao cair... Por último, o Galileo se negou a utilizar seu poder em benefício de sua integridade física.
Em um primeiro momento, tampouco caí na conta do que estava anunciando. Falou da violência. Eu sabia que a rechaçava, mas não imaginei até que extremo. Jamais se defenderia, nem sequer quando lhe assistisse a razão. Cuidaria de seu corpo, obviamente, e trataria de não correr perigos desnecessários, mas -insistiu- não iria a seu poder para livrar da dor, ou para satisfazer suas necessidades básicas. Não empregaria sua capacidade criadora para favorecer-se. E o cumpriu: auxiliou a muitos, mas Ele se esqueceu de si mesmo. Também me perguntei isso: estava sujeito aos acidentes? E recordei minha preocupação nas proximidades da cova, para ouvir os grunhidos do suposto javali e os uivos dos lobos, quando se achava no alto da colina da "escuridão". Pus-se a tremer. Segundo esta declaração, o Mestre podia sofrer qualquer tipo de contingência... Sorriu, e tentou me tranqüilizar. E falou de algo que me resultou familiar: -Não te alarme. Nada se move sem o consentimento do Pai... Foi depois, algum tempo mais tarde, quando compreendi. Esse domingo, 27 de janeiro do ano 26 de nossa era, o Filho do Homem já sabia qual era seu destino. Soube durante um dos retiros na "778". Soube quatro anos e sessenta e seis dias antes de sua crucificação. Soube desde o começo, mas o guardou no mais profundo de seu coração... "Renuncio a meu poder... " E ocorreu algo que nunca imaginei. Poderia silenciá-lo, mas não devo; não seria justo com Ele, e tampouco comigo mesmo. Não sei por que aconteceu. Possivelmente o vi tão próximo, tão humano... A questão é que duvidei. Agora me envergonho, mas assim foi: duvidei de seu poder. Ele falou, e falou, de suas imensas possibilidades como Deus Criador. Fez-o com entusiasmo. Abriu-me sua alma, e eu, pobre diabo, duvidei. Veria-o morto, e o veria ressuscitado e, ainda assim, duvidei. Sim, isso foi: vi-o tão normal, tão humano... Como era possível que Alguém assim fora o Criador de um universo? De outra maneira, mas eu também o neguei. Não foi em público, como Pedro, mas o rechacei em meu coração. Agora não sei o que é pior...
O Destino, entretanto, tinha-o tudo previsto. Breve, quem isto escreve receberia uma lição... E que lição! Retiramo-nos a descansar quando apareceu a lua. No módulo, os relógios assinalavam as 21 horas e 40 minutos desse suposto Tempo Universal. Primeira surpresa. na segunda-feira, 28, o Mestre me comunicou uma mudança de planos. Durante uns dias suspenderia as visitas a "778", e trabalharia com os felah, os camponeses ao serviço do xeque do Beit Ids. Era uma fórmula para agradecer a hospitalidade do Yafé..., e algo mais. Recolheria azeitonas. Era o final da campanha. Em questão de dias, a totalidade do fruto se acharia nas almazaras, e os felah iniciariam um novo ciclo agrícola, com a plantação dos jovens zayit. Recolher azeitonas? Podia ser interessante. Nunca tinha visto o Mestre em semelhante mister... E é claro que sim que foi! Mas vamos passo a passo, tal e como se registraram os fatos, posto que disso se trata, de dar fé de quanto vi, e de quanto alcancei para ouvir. Dito e feito. À alvorada, quando o olivar se vestiu de verde e branco, Jesus se apresentou ante o homem dos nós, e solicitou trabalho. O Galileo era assim. Meditava o necessário e, ato seguido, uma vez tomada a decisão, atuava sem vacilar. É curioso... Agora que o penso, não consigo recordar um só momento de sua vida pública no que o visse indeciso, sem saber que caminho tomar. Minto: aconteceu uma vez, pouco antes do prendimiento, no referido horta do Getsemaní, muito perto da Cidade Santa. Jesus suou sangue, e solicitou do Pai que, se era possível, separasse-me Dele aquele cálice... E ao pouco, ante o assombro do sheikh, que não terminava de assimilar por que um príncipe desejava participar de um trabalho tão plebeu, o Filho do Homem se encaminhou para o nordeste, à busca dos felah. Naturalmente, fui atrás Dele. O áspero vento do sul amainou e, como vaticinaram os badu, pelo oeste, no horizonte, apareceram as primeiras nuvens. Era o anúncio da es-seja ra, a chuva "dócil",
como a chamavam os a'rab, tão benéfica e pontual. O mais provável é que chovesse em questão de um ou dois dias. Segunda surpresa. O talho era a colina que este explorador tinha batizado como a "800", a meio caminho entre o Beit Ids e o penhasco dos znun. Como pinjente, era a elevação mais graciosa da zona, dedicada exclusivamente ao cultivo do olivar, com um terreno amável e esponjoso, delicadamente asseado pelos felah. A "800" me cativou do primeiro momento. Era harmoniosa, recolhimento e cheia de luz, como ela. Parecia sorrir. Sentia como me "chamava", embora não sabia por que. Agora o entendo..., e me estremeço. Não era de sentir saudades que os olivos prosperassem a essa altitude. Na região do Beit Ids, próxima ao Jordão, o clima, as chuvas e os cuidados dos camponeses faziam possíveis generosas colheitas, com doze variedades de azeitonas. Como já mencionei, os olivares do sheikh eram uma mina de ouro. Yafé soube lhes dedicar o tempo e os meios necessários. Não em vão o apelidavam "o bonito que, além disso, pensa"... O grande secreto, entretanto, a chave daquele rio de ouro, era um homem, o capataz principal, ao que denominavam hsab-gandak, que em uma tradução benévola significaria "o que leva as contas e o faz com cuidado". Era médio árabe, entrado em anos, e com uma característica difícil de esquecer: sorria sempre, passasse o que acontecesse. E era um sorriso sincero. Seu pai procedia do deserto líbico. Era badawi. A mãe era oriunda da "ilha da alegria", no Mediterrâneo. Poderia ser o que hoje conhecemos como Malte, ou alguns de suas ilhotas. Contava que, em dita ilha, as leis proibiam as lágrimas. Quando alguém desejava chorar, via-se obrigado a embarcar-se e dirigir-se a outra ilha próxima, a meio caminho entre o Mgar e Marf (possivelmente a ilha do Cominho) (?). Ao princípio, ao saber de sua história, pensei que se tratava de uma invenção, tão própria dos árabes, sempre fabuladores e amantes da fantasia. Depois, já não soube o que acreditar... Aquele homem, como digo, era a alma dos olivares. O os vigiava dia e noite. O atendia a muito delicado poda. O examinava o chão e dirigia os
trabalhos de subsolado. Ele decidia quando plantar. O se queimava os olhos na exploração dos céus, e se ocupava do abastecimento de água, em caso de seca. Ele tomava as varas e as examinava cuidadosamente, antes de proceder ao varo dos ramos. Ele era o responsável pela coleta e do transporte aos moinhos. Os olivos eram seus filhos. Falava com eles, e lhes atribuía um nome. Lembrança alguns: "couro de gazela", "presente da vida", "bagunceiro", "livro de meus dias", "prisioneiro da terra", "pérola incomprendida", "fértil sem palavras" e "o que respira verde", entre outros. Dormia no olivar; cada noite, ao pé de um zayit diferente. Estava a par de seus defeitos e virtudes, e os acariciava e cuidava quando padeciam uma praga, ou uma ferida. E aquela ternura e compreensão sabia as exercitar igualmente com seus semelhantes. Era o "poeta dos olivos" e, sobre tudo, um homem bom. Nunca soube seu verdadeiro nome. Chamavam-no "Dgul", um diminutivo da expressão dgul qriti ás frasi, que na'rab equivalia a "parece que as meus pensamentos" ou "o gigante que se alimenta de pensamentos". Ao igual a outras palavras beduínas, dgul trocava de significado, segundo a entonação. Também queria dizer "gigante fantástico que devora". A verdade é que não vi a relação. Dgul, o capataz principal, ou hsab-gandak, não era muito alto, e tampouco devorava a ninguém. Justamente o contrário. Atendeu-nos com doçura e, sem deixar de sorrir, perguntou se sabíamos algo da asepa (assim denominavam ao recolhimento da azeitona). O Mestre explicou que tinha sido vareador na Galilea. Disso tampouco sabia nada. Quanto a mim, a única experiência com a azeitona foi na mesa. eu adorava. Dgul tomou então uma daquelas largas varas que serviam para agitar a ramagem do olivo, e a pôs em mãos do Galileo. Jesus a examinou, curioso, e, suponho, esperou uma explicação. Era uma vara de quase dois metros de longitude, impecavelmente reta, sólida, e tinta em vermelho escuro. Cortavam-nas dos castanhos, aveleiras e das cerejeiras. Estas últimas eram as preferidas pelos vareadores. Eram mágicas -diziam-, porque nas árvores nos que se desenvolviam aninhavam
todos os pássaros do céu. Para as fazer mais resistentes, temperavam-nas em água com cal, ou as enterravam em excrementos. Desde aí procedia o brilho vermelho, tão chamativo. É obvio, os ramos em questão não desfrutavam de nenhum tipo de poder. O fato de que as aves acudissem massivamente às taças das cerejeiras se devia à doçura do fruto. E Dgul esclareceu algo que, para ele, era vital, naturalmente. Os olivos eram melhores que os seres humanos. Davam tudo, em troca de quase nada. Em seu território, as varas, ou "tembladeras", eram utilizadas com cuidado. Em sua equipe -anunciou- não se premiava ao que antes terminava a asepa, a não ser ao que menos danifico causava ao olivo. Por isso a "tembladera" devia ser manipulada por gente com coração... E concluiu: -Espero que você o tenha. Eu gosto mais da ternura que do força... Jesus não respondeu, mas notei uma "luz" especial em seu olhar. Eu tinha visto essa "luz" anteriormente. Era uma "luz" que avisava. Algo estava a ponto de acontecer. Algo incrível... O capataz indicou a linha de olivos que se elevava no nascimento da saia oeste da "800" e sugeriu ao recém-chegado que se unisse aos felah que trabalhavam em um dos formosos zayit. Quanto a este explorador, dada minha absoluta inexperiência, Dgul me incluiu no grupo que transportava as cestas até os mulos e onagros. Eu devia carregar as azeitonas, ao pé dos olivos, e as transladar até o pequeno acampamento no que aguardavam os burreros e seus animais. Fui um carregador mais, junto a meninos e anciões, pela comida, e um denario ao dia. Não me lamentei. A experiência foi inesquecível... Logo comecei a suar. O terreno, com uma inclinação superior aos 3 por cento, não ajudava. A asepa, nas colinas do Beit Ids, era um trabalho muito antigo, desenvolvido muito antes de que irrompesse naquelas latitudes o chamado "povo judeu". Era uma tarefa singela, mas dura e delicada. Dependendo da colheita, e de outras circunstâncias, o recolhimento começava por volta do mês de dezembro.
Homens e mulheres, sempre às ordens de um capataz, repartiam-se pelos olivares, e iniciavam a campanha com uma "poda" prévia do terreno. Disso se ocupavam as mulheres. Quando o estou acostumado a aparecia espaçoso, sem o fruto que tinha cansado de forma natural, os homens estendiam redes de esparto ao pé do tronco e formavam um grande círculo. Era o desse. Sobre ele se varava, ordenhava-se" e se fazia uma segunda "poda". Os homens, com as varas vermelhas, ou xasba, subiam aos ramos ou atacavam o agitado da ramagem do chão. Tudo dependia da agilidade do vareador e, naturalmente, da decisão do capataz. Em ocasiões, dependendo da altura do yazit, e da fortaleza dos ramos, os felah se viam na necessidade de utilizar escadas de mão. Não estava bem visto entre os "profissionais" da asepa. O varonil era mover-se na taça da árvore, sem mais ajuda que mãos e pés. Para o Dgul, o varo era um tortura. Embora o felah fora um perito, os contínuos movimentos das varas terminavam machucando o fruto e, o que era pior, quebravam a ramagem. Dgul, então, chorava. Para evitar tais "sinistros", involuntários a maioria das vezes, o "poeta" inventou um sistema, o yahlab, que poderia traduzir-se por "ordenha". Consistia em um "pente" de madeira que se fazia passar pelos ramos e que arrastava as azeitonas, sem prejudicar ao olivo. Empregavam-no nas árvores jovens, com possibilidade de acesso desde terra. O varo, com segurança, era o encargo mais exaustivo. O manejo das varas requeria uma estimável força e, sobre tudo, habilidade. Aos poucos minutos de iniciada a tarefa, tanto se se varava da ramagem como desde terra, o felah tinha que fazer um alto e descansar. Ao pé do zayit trabalhavam as mulheres e os meninos. Levavam a cabo a segunda "poda". Conforme caíam as azeitonas, resgatavam-nas, separavam as folhas e as jogavam em cestos, que deviam ser transladados, o mais rápido possível, até as cavalarias e, finalmente, como dizia, às almazaras. Dgul sabia que a fermentação era uma ameaça para as azeitonas, e tentava, por todos os meios, que o armazenamento do fruto fora mínimo. Desde aí a importância do transporte, e dos sacos de
rede, com uma ventilação máxima. Esse era meu trabalho. As mulheres e os meninos, geralmente algema e filhos dos vareadores, recolhiam com um joelho em terra, a direita, e com ambas as mãos. Se o capataz os surpreendia recolhendo as azeitonas com uma só mão (isso era o cômodo), arriscavamse a ser expulsos da asepa. Por último, uma vez "esvaziado" o olivo, procediam ao nsar, que consistia no resgate do fruto que tinha sido despedido fora do círculo de rede, como conseqüência dos golpes das "tembladeras". Se o capataz o estimava conveniente, os felah retiravam o desse e iniciavam as mesmas operações com a seguinte árvore. Era o turno do Dgul. O "poeta" inspecionava o zayit e "pontuava", segundo o dano ocasionado a seu "filho"... A colina em que nos encontrávamos foi destinada, quase em sua totalidade, ao cultivo de uma azeitona de verdeo chamada garsan ("amantes"), porque cresciam por casais. Eram árvores de regular altura, com as taças esféricas, quase perfeitas, e uma madeira escura e quebradiça. A tradição, entre os olivareros, exigia que este tipo de azeitona de mesa fora transportado em cestos e redes com uma capacidade máxima de vinte ou vinte e cinco quilogramas, mas os proprietários não o consentiam. Tanto os canastos como os sacos destinados ao transporte das azeitonas para azeite e verdeo alcançavam os quarenta e cinqüenta quilogramas de peso cada um. Os anciões eram os mais prejudicados. Dgul batalhava diariamente com o sheikh, mas sem resultado. Na base da "800", junto a um caminillo que morria no Beit Ids, a equipe tinha levantado um acampamento. Ali, como pinjente, congregavam-se os burreros, com suas cavalarias. Ali descarregávamos o fruto, e ali, enfim, preparavam a comida. Um rústico abrigo de ramos protegia as provisões. Muito perto, os felah mantinham um fogo quase permanente. As mulheres foram e vinham. Preparavam os guisotes, e velavam pelo necessário abastecimento de água. Elas eram as responsáveis por que os vareadores estivessem pontualmente atendidos. dava-se o caso de
camponeses que chegavam desde Bolota, e outras zonas mais afastadas, que pernoitavam no chamado acampamento durante o tempo da asepa. E assim transcorreu aquela segunda-feira, em paz, e absortos na exaustiva tarefa do recolhimento e do transporte das "amantes". O capataz não permitiu que Jesus varasse dos ramos. Muito alto e corpulento, disse. E o Galileo, obediente, trabalhou em terra. A cada pouco, quem isto escreve retornava à árvore e, enquanto carregava, contemplava ao Mestre. O Filho do Homem agitava a ramagem com uma daquelas varas vermelhas, e o fazia com entusiasmo e sem pausa. As "amantes", negras e lustrosas, precipitavam-se a dezenas, e ficavam enganchadas nos cabelos do Mestre, agora recolhidos em sua típica "rabo-de-cavalo". Parecia ter esquecido o incidente do dia anterior, no wadi. E, lentamente, foi integrando no grupo, e tomando parte nas elementares conversações que sustentavam os felah. Vi-o novamente feliz. Desfrutava de cada instante, disso estou seguro... Cruzamos algumas olhares. Agora, ao ordenar estas memórias, duvidei. Possivelmente tentou me anunciar o que estava a ponto de acontecer... Não sei... A questão é que este torpe explorador não soube traduzir aqueles intensos olhares. Sim, algo se preparava... E essa noite, embora nos achávamos perto da cova da "chave", Jesus decidiu permanecer no acampamento da "800". Ali jantamos, com os camponeses, e ali caímos rendidos. Dgul dormia no olivar, com os "seus"... Foi ao dia seguinte, terça-feira, 29 de janeiro, quando me fixei naquele menino... Tinha nove anos, pouco mais ou menos. Era um rebuscador. Rebusca-a -conforme me explicaram- não formava parte do recolhimento da azeitona propriamente dita, mas ninguém concebia a asepa sem a muraya. Rebusca-a (os felah lhe davam o nome de muraya ou "detrás de") consistia no último rastreamento do campo, à caça e captura das azeitonas esquecidas, ou esturreadas, entre os torrões e as moitas, se os havia. Só podia praticar-se quando os vareadores concluíam o "vazamento" dos zayit. Por isso a definiam como algo que
tinha lugar "detrás de". E assim era. Os rebuscadores apareciam por detrás da equipe. Desde antigo, tinham um procedimento estabelecido para fixar a distância mínima a que deviam manter-se. Chamavam-no jamsín. Era um pau ou uma estaca pintados em vermelho, que o capataz cravava no chão, e que só ele estava autorizado a deslocar. O jamsín era sagrado. Por isso pude observar, e pelas informações que fui reunindo, na rebusca só participavam os mais necessitados. Geralmente, mendigos e meninos. O habitual é que ditos indigentes fossem mulheres. Não era correto que os rebuscadores fossem camponeses, ou gente "digna". Eles já tinham seu trabalho. E o pouco que obtinham ia parar, quase sempre, aos capatazes, que ficavam com as azeitonas, ou com o fruto que tocasse nesse momento, por uma parte de pão, e, com sorte, por um pouco de carne, ou de verduras. Tudo dependia do bom coração dos proprietários e, é obvio, do capataz. Com o Dgul tinham sorte. A única condição que impunha é que não tocassem a seus "filhos". Proibia subir aos olivos e fazer-se com as azeitonas que tinham ficado despistadas. Embora não era judeu, o "poeta" considerava os rebuscadores como "pajarillos do céu, à busca de migalhas". Como pinjente, era um homem nobre... Junto ao menino, por detrás do jamsín, a coisa de cinqüenta ou sessenta metros do olivo no que varavam Jesus e seu grupo, inclinados sobre os torrões, rebuscavam também uma anciã e outros três pequenos, possivelmente da mesma idade de que chamou a atenção de quem isto escreve. A mulher vestia farrapos. Tinha o cabelo branco e comprido, sempre descuidado e sujo. Sua única companhia era uma cabaça oca, de médio porte, repleta de zimbro, um aguardente que tombava ao terceiro sorvo. Bebia sem cessar. Quando o licor fazia efeito, a mendiga se deixava cair ali onde estivesse, e dormia profundamente. Ninguém se ocupava dela. Ao menino o chamavam "Ajasdarpan" Era uma palavra de difícil tradução. Procedia do norte; possivelmente da Persia (atual o Irã). Significava "governador", ou algo similar, e era equivalente a "examinado", término empregado pelos judeus para os meninos abandonados ao nascer. Como já relatei em seu momento,
Denario, o ruivo que vivia com o Assi, era também um "examinado", ou mamzer. Em outras palavras: um bastardo; o pior do pior. Por isso acertei a descobrir, o nome foi imposto em clara alusão a seu progenitor, um notável ao serviço do Antipas, o tetrarca da Perea e da Galilea. Ajasdarpan era mestiço. Isso confirmava a versão que corria pelo Beit Ids. O menino, ao nascer, foi arrojado a um dos lixeiros, ou gehenna, de Bolota. Esse era o costume, tanto entre os judeus como entre os pagãos. Quando o menino era ilegítimo, ou não desejado, os pais se desfaziam dele, bem vendendo-o, bem ocultando-o nos estercoleros. Algumas destas criaturas conseguiam salvar a vida, mercê aos tofet, os cuspes ou buscadores de ditos lixeiros. Estes emprestados, como já indiquei, revolviam as montanhas de desperdícios e, se achavam a um recémnascido, apressavam-se a resgatar o de entre os ratos e cães selvagens, com o fim de obter algumas moedas. Se o bebê não era vendido no prazo de uma ou duas semanas, era sacrificado, afogando-o no rio ou em uma tinaja. Estraga teve sorte. Ao pouco de ser recolhido pelos tofet, uma família negra, escravos do sheikh do Beit Ids, teve piedade do pequeno, e o comprou por seis ovos e um seah (ao redor de dezesseis quilogramas de farinha). Seus pais adotivos, portanto, eram abid e, em conseqüência, "gente sem alma". Não era de sentir saudades que Estraga aparecesse em qualquer das rebusca. Todo mendrugo era bem recebido na casa de um escravo... Sorte? Teve sorte Estraga quando foi comprado pelos abid do Beit Ids? Eu diria que foi muito mais que isso. depois do que contemplei essa manhã da quarta-feira, 30, entendo que o destino do menino foi especialmente desenhado pelos céus. Algo único. Seu tikkún, como dizia o Mestre... Mas sigamos, passo a passo. Era lógico fixar-se no Ajasdarpan. Seus gestos não eram normais. moviase muito devagar, com grande lentidão, como se todo seu corpo estivesse submetido a um hipotético estado de ingravidez. Cada vez que dava um passo, assegurava-se de que podia fazê-lo. Era muito estranho. Apresentava a perna esquerda entalada,
do joelho ao tornozelo, e também o antebraço direito. Nos primeiros momentos o vi de longe. trabalhava em excesso se na rebusca, com o resto de seus companheiros. inclinava-se com dificuldade sobre o terreno, mas era hábil. Quando encontrava um casal ou um cacho de azeitonas, levantava-as lentamente e as fazia girar à altura dos olhos. Aproximava o fruto, como se não visse bem, e limpava as "amantes" com a língua. Depois, igualmente tranqüilo, fazia descender a mão esquerda e depositava o achado em uma cesta negra, confeccionada com magras aduelas de cornejo, muito resistentes à podridão. E volta a começar... Para falar a verdade, ninguém, entre os vareadores, fez comentário algum. Conheciam-no de antigo, e não lhe emprestavam maior atenção. Chamavam-no por seu nome, e também o apelidavam o do "olhar azul". Quando perguntei o porquê, só obtive uma resposta: "Porque seu olhar é azul". Naturalmente, não acreditei. Provavelmente se burlavam daquele forasteiro... O equivocado fui eu, uma vez mais. Sem poder remediar a curiosidade, ao longo dessa manhã me engenhei isso para caminhar perto do jamsín, a estaca vermelha que delimitava o território dos rebuscadores. E agora que o penso, pergunto-me: foi a curiosidade o que me empurrou a observar ao muchachito mestiço? Como dizia o Mestre, quem tem ouvidos, que ouça... Cruzei várias vezes frente a Estraga e as suspeitas iniciais tomaram força. Era de estatura baixa. Apenas um metro, com uma pomposa separação da coluna, uma cifoescoliosis progressiva que o atormentava, sem dúvida, com uma dor mais que notável. Deus bendito! Seu "olhar", em efeito, era azul. Os felah, a sua maneira, definiam assim um defeito das escleróticas (o branco dos olhos), que provocava um "olhar" gris-azulado. A cabeça era triangular, em forma de "boina escocesa", com um nariz bicudo e um acusado hiperterolismo (olhos mais separados do habitual) que lhe proporcionavam um aspecto monstruoso. Deus bendito! Senti uma profunda piedade por aquela criatura...
E para a quinta hora (onze da manhã), a equipe fez o acostumado alto no trabalho e se dispôs a repor forças. As mulheres tinham cozinhado um tagine, uma encurvada com carne picada e ovos, muito espessa e generosa em cebola e dentes de alhos amassados. Era um prato único, mas definitivo. Com isso resistíamos até o pôr-do-sol. Comi algo, mas, não sei muito bem por que, possivelmente impulsionado por essa "força" que nos habita, enchi de novo a tigela de madeira e me dirigi ao jamsín. Sentei-me frente a Estraga e lhe ofereci o tagine. O menino me olhou, incrédulo. Insisti, mas não se atreveu a receber a comida. A velha da cabaça, mais que ébria, quis apoderar-se da tigela, mas não o permiti. E permaneceu atenta, a poucos passos, em companhia dos outros três rapazes. Possivelmente não fiz bem em lhe dar de presente as almôndegas de carne, mas me serve de pretexto para me aproximar, e examiná-lo com atenção. Era o que me temia... Sorriu abertamente, e mostrou uns dentes desordenados, com um brilho céreo azul cinzento, típico do mal que padecia. Perguntei se entendia o aramaico, mas tampouco replicou. Tratei de me fazer entender por gestos, e o menino, compreendendo, levou a mão esquerda à orelha. Fez-o, como em todos seus movimentos, desesperantemente devagar. Tocou a orelha duas vezes e, por último, deixou cair os dedos para os lábios. E negou com a cabeça. Era surdo. E voltou a sorrir, satisfeito. Apesar de seu problema, era um moço alegre e preparado. Finalmente, depois de insistir um par de vezes, o do "olhar azul" sujeitou a terrina e acessou a comer. Cada colherada foi interminável, mas me senti feliz. Ajasdarpan estava faminto. E me soube agradecer isso com um quase permanente sorriso. Observei-o a consciência, e deduzi que o primeiro diagnóstico podia ser correto. Ajasdarpan padecia uma enfermidade estranha, conhecida em nosso "agora" como osteogénesis imperfeita. Como conseqüência de um defeito genético, os ossos apresentavam uma extrema fragilidade, assim como deformações esqueléticas, articulações sem força,
e sem tensão nas fibras, musculatura débil e uma pele frágil, com cicatrizes hiperpiásicas, e sempre cheia de moratones. O incrível é que não tivesse morrido durante o período fetal... Agora compreendia o porquê dos movimentos lentos, quase teatrais, e o entalado. À força de sofrimento, e de incontáveis fratura, Ajasdarpan aprendeu a autoprotegerse. A maneira mais elementar era limitar, e medir, seus próprios movimentos. Mesmo assim, as rupturas eram inevitáveis. Achava-me ante uma criatura com os ossos de "cristal". Podiam quebrar-se, quase com o ar... Esta má formação era a causa do singular desenvolvimento do crânio, em forma triangular, ou de pêra investida, como conseqüência do impulso do encéfalo. Isso provocava, a sua vez, uma micrognatia, ou pequenez anormal do maxilar inferior (mandíbula), que vê impedido seu crescimento. Ajasdarpan era um condenado a morte. cedo ou tarde, as complicações respiratórias que acompanham a "IO", ou as próprias fraturas, terminariam com sua vida. E, de repente, enquanto o contemplava, veio-me à mente a palavra "nemo". Naturalmente, uma análise em profundidade me tivesse proporcionado um diagnóstico mais rigoroso. Devia subministrar-lhe Do que serviria? E desprezei a idéia. Tinha outras prioridades... Quando aprenderei que a intuição jamais se equivoca? Acariciei o crânio descascado e disforme do mestiço e me retirei para o olivo ao que tinham retornado Jesus e os vareadores. Visto e não visto. Ao me afastar, a mendiga lhe arrebatou os restos do almoço. Ajasdarpan pouco pôde fazer. Não podia correr, nem tampouco brigar, ou lutar. A mulher fugiu e se perdeu no alto da colina. Ali passaria a jornada, ébria, como sempre. Os meninos reemprendieron a rebusca, e quem isto escreve se manteve atento à atividade do Mestre. de vez em quando me ocupava também de meu novo amigo, o do "olhar azul". Aquele infeliz me impressionou mais do que tivesse podido imaginar. Se o Filho do Homem falava com razão -e sempre o fazia-, o tikkún do Ajasdarpan era verdadeiramente heróico.
Lembrança que, em uma das viagens ao olivo que se estava varando nesses momentos, enquanto me debatia nestas reflexões, o Galileo fez um alto no trabalho e me olhou. Foi um olhar intenso, doce e prolongada. Quis me transmitir algo, sei, mas não compreendi... E, depois de me fazer uma piscada, seguiu com o seu, agitando a ramagem. Foi uma casualidade que coincidisse com meus pensamentos sobre o tikkún do menino de "cristal"? Logo o averiguaria... Também essa terça-feira pernoitamos no acampamento da "800". Foi uma noite tranqüila para todos, e agitada para este explorador. A imagem do Ajasdarpan continuou na memória. Tive pesadelos. Os "nemos" falavam, e reprovavam minha falta de interesse. Foi premonitorio... E chegou na quarta-feira, 30 de janeiro daquele ano 26 de nossa era. Uma jornada especialmente dura... Despertou es-seja ra, a chuva "dócil". "Os deuses nos olham", assegurou Dgul, mais sorridente, se couber. E a alegria se contagiou entre os felah. O "poeta" tinha razão. Os deuses nos observavam. E que deuses! Jesus tomou o café da manhã com vontades. Vi-o pletórico. Nada fazia suspeitar o que nos reservava o Destino... Pouco antes da terça (nove da manhã), descampou. O grupo se encaminhou ao talho, relativamente próximo ao topo da referida "800", com a vista posta nas nuvens. Não demoraria para voltar a chover. Os meninos da rebusca esperavam a que o capataz cravasse o jamsín. Ajasdarpan sorriu à lombriga. O Mestre também o olhou, mas não fez comentário algum. Minutos depois nos achávamos baixo um dos corpulentos zayit, a pouco mais de um centenar de metros da estaca vermelha, e dos quatro rebuscadores habituais. A mendiga dormia a Mona ao pé do jamsín. Aparentemente, tudo normal... Mas, não. O Mestre tomou seu "tembladera", e a examinou, enquanto as mulheres procediam à primeira "poda" do terreno. Depois estenderam as redes e iniciaram o varo. Jesus atacou do chão, como sempre, e o fez com entusiasmo, contagiando ao
resto. Faltava pouco para concluir a asepa daquela ladeira oeste. Então, por cima do rangido da ramagem, ouvimos zurros. Depois, vozes, e mais zurros. Eu me encontrava ao pé da árvore, muito perto do Galileo, empenhado na carga da primeira das cestas do dia. Todos olhamos para o acampamento, localizado-se, como digo, algo além da zona dos rebuscadores. Possivelmente a 150 ou 200 metros. Algo acontecia... Os burreros corriam em todas direções, e tentavam sujeitar aos onagros. O pequeno acampamento era um caos. Os asnos trotavam sem rumo, escoiceavam, e zurravam. Algumas das mulheres, responsáveis pelo abastecimento da água, e da comida, fugiam pelo caminho que conduzia ao Beit Ids. Em um primeiro instante, não soube... O Mestre não se alterou, e continuou com o varo dos ramos. As "amantes" caíam sobre sua cabeça e ombros... Sim percebi uma mudança no rosto. O excelente humor que tinha esbanjado até esses momentos se esfumou. E, junto aos onagros, vi fogo. Eram tochas. Cinco ou seis, possivelmente mais. Alguém as agitava, e tentava machucar, ou afugentar, às cavalarias. Corriam depois dos altos burros, e introduziam as chamas entre os remos dos aterrorizados animais. O resultado, o já mencionado: burreros e bestas fugiam e topavam, gritavam e caíam... Os que levavam as lhas eram oito ou dez jovenzinhos, todos nus de cintura para cima, e borrados a franjas amarelas e negras com a aokenna, uma cinza vegetal utilizada pelos beduínos para pintar unhas, rostos e pés. O sheikh era muito aficionado a ela. Os felah interromperam o trabalho, e se lamentaram. Eram os dawa zrad ("a maldição da lagosta"), uma das bandas que assolava a região e que fazia honra a seu nome. Tinha ouvido falar deles, mas não supus que fossem tão destrutivos. Ninguém se atreveu a dar um passo... Capitaneava-os um árabe, de uns quinze ou dezesseis anos de idade, ao que apelidavam "Qatal" ("Matador"), em alusão a um escorpião, altamente venenoso, muito comum nas colinas do Beit Ids. O apelido era o mais indicado, por duas razões: por sua crueldade, e pela forma do dedo indicador esquerdo, deformado, e em
garra, com uma larga e afiada unha negra, similar à cauda do chamado escorpião. Se te assinalava, ou se invocava seu nome de guerra, estava perdido, segundo os camponeses. Era a vergonha dos Adwan, segundo Yafé. Todos fugiam dele, e com razão. Olhei de esguelha ao Mestre. Seguia inalterável, ao seu, como se nada ocorresse. Não entendi... E os dawa, todos badu, esqueceram logo os onagros e se cevaram com o acampamento. Derrubaram o abrigo a patadas e, entre gargalhadas, derramaram a farinha e arruinaram as provisões e a água, urinando sobre elas. Depois chutaram o que ficava do fogo e se apoderaram dos palitroques que ainda ardiam. Dois deles derrubaram as panelas e as blandieron como maças, uivando de prazer. A partir desses instantes, tudo foi rápido, muito rápido e confuso. Quem isto escreve não sabia onde olhar, nem o que partido tomar. Jesus era o primeiro, mas... E se produziu o inevitável (?). Os energúmenos, com o tal "Matador" à cabeça, correram para os rebuscadores, quão únicos continuavam a seu alcance. Três dos meninos fugiram a tempo. Os que varavam gritaram, e tentaram alertar ao do "olhar azul". Foi inútil. As vozes se perderam no olivar. Ajasdarpan não ouvia e, além disso, achava-se de costas aos malditos dawa. Não se precaveu da fuga de seus companheiros e, embora assim tivesse sido, tampouco teria tido possibilidade de escapar. Aquelas bestas estavam em cima... Dgul, pálido, não se moveu. Ninguém o fez. Tinham medo. O Mestre, incomprensiblemente para mim, era o único que permanecia junto ao tronco do olivo, com a "tembladera" nas mãos e o rosto dirigido à ramagem. Estive a ponto de lhe advertir, mas me contive. Ele sabia... E as "amantes" seguiram caindo sobre a rede. Era impossível que não ouvisse os felah. O que pretendia? por que não reagia? Sempre fui um pobre tolo... Quando aprenderei? Qatal, e os seus, chegaram junto ao jamsín e, ao descobrir à mendiga, empreenderam-na a golpes com ela. Mas, ao comprovar
que não reagia e que se achava sumida em uma de suas bebedeiras, deramlhe as costas e se jogaram sobre o Ajasdarpan. Acreditei morrer. "Matador" tomou a iniciativa, e o chutou no rosto, nos flancos, nas costas e nas pernas. Arrancou-lhe os ramos que serviam de entalado e introduziu uma delas pelo ânus. E as gargalhadas afogaram os lamentos do menino. Depois, a uma ordem daquele tido um mau parto, caíram como uma nuvem de lagostas sobre a criatura e o destroçaram. os das panelas de ferro, sobre tudo, foram os mais cruéis. Golpearam-no com os recipientes, uma e outra vez, até que ficou tendido sobre os torrões. Pensei que estava morto. Depois continuaram com as bases das tochas e lhe pulverizaram os ossos de "cristal". Sentia-me mau, muito mal. Os gritos, e as ameaças, dos felah sortiram o efeito contrário ao desejado. "Matador" se burlou dos camponeses. levou-se a mão esquerda aos testículo e desafiou aos do olivar. O que devia fazer? Nem sequer dispunha da "vara do Moisés". Tinha ficado na cova da "chave". Além disso, segundo as regras, não estava autorizado a intervir. Era um assunto grave... Mas aquelas feras não se deram por satisfeitas. Levantaram o menino e, entre gritos, sacudindo-o como um farrapo, jogaram-no no interior da cesta de cornejo, em que reuniam a rebusca. Como digo, Ajasdarpan não dava sinais de vida. Era como um boneco. O mais provável é que a chuva de golpes tivesse afetado zonas vitais, provocando hemorragias internas e interessando pulmões, crânio, e quem sabe se o coração. Se não tinha morrido, não demoraria muito... A besta, então, fez-se com a cabaça da mendiga, e jazeu o que ficava de zimbro sobre as roupas de Estraga E a banda uivou, ao tempo que imaginava... No olivar, emudecemos... Foi nesses instantes quando o Mestre arrojou a vara ao chão e, em silêncio, com o semblante grave, abriu-se passo entre os atemorizados camponeses. E o vi descender
pela ladeira, para "Matador" e as "lagostas". Caminhava com suas típicas pernadas. Dgul também reagiu. Tomou uma das "tembladeras" e se foi depois do Galileo. O resto não moveu um músculo. Melhor dizendo, não movemos... O que se propunha? O menino, provavelmente, tinha morrido. Tratava de dar um castigo? Ele aborrecia a violência, embora aqueles sujeitos mereciam um castigo. E "Matador", ao advertir a presença dos que caminhavam para o jamsín, tomou uma das tochas e a levantou por cima de sua cabeça. Estava claro. Se Jesus e o capataz seguiam avançando, jogaria-a sobre o menino. O arguardiente, as roupas e as aduelas de madeira da cesta fariam o resto. Ajasdarpan podia abrasarse... Calculei a distância. O Mestre se dirigia, rápido, para e! badawi, mas, se aquele miserável deixava cair o fogo..., adeus! Não havia tempo material para salvar ao menino... E nisso, um brilho reclamou minha atenção do fundo do olivar. Quando descobri a origem, fiquei perplexo. Alguém se aproximava. Procedia da cúpula da "800". Isso me pareceu. Partia sem pressa, tranqüilo, e direto para o zayit no que nos achávamos reunidos. Eu tinha visto esse homem... Deus santo! Era o do poço do Tantur, que conversou com o Mestre, e também com as beduínas. Era ele: muito alto, de uns dois metros, com o cabelo à "escova" e a singular roupa que trocava de cor, conforme se movesse na penumbra, ou à luz do sol. O estranho personagem do sorriso encantador... A túnica brilhava, e lançava brilhos, entre as sombras do olivar, ora em vermelho, ora em azul, ora em verde... Quem era? Que fazia ali? De onde tinha saído? por que nesses dramáticos momentos? Olhei a meu redor. Ninguém parecia haver-se dado conta de sua presença... ainda. Todos estavam hipnotizados pelo diabólico árabe. Jesus se achava muito perto. Quase a um passo. Detrás, o capataz... "Matador", então, agitou a tocha, e bramou: -Smiyt... I... qatal! Vi a mendiga, que lutava por incorporar-se. Em uma das mãos escondia uma grande pedra.
E o selvagem repetiu, ameaçador: -Meu nome.., é "Matador"!

 

 

                                                                                                    J. J. Benitez

 

 

 

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