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ORAÇÁO PARA UMA NEGRA / William Faulkner
ORAÇÁO PARA UMA NEGRA / William Faulkner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Um dos grandes sucessos do teatro dos últimos anos, Requiem pour une Nonne (ORAÇÃO PARA UMA NEGRA, na presente tradução de Guilherme Figueiredo), é a adaptação, feita por Camus, para o palco, do romance dialogado de Faulkner, Requiem for a Nun, cujo argumento e personagens, por sua vez, já se encontram em Sanctuary.
Um escândalo rebenta numa conceituada família burguesa do sul dos Estados Unidos. Nancy Mannigoe, a ama negra, assassina o último filho dos Stevens e é condenada à morte. Depois da execução tudo voltará à ordem. Mas é justamente esta fachada que Gavin, o advogado, quer forçar para atingir o âmago das consciências, fazendo cair as máscaras farisaicas, descendo às profundezas onde se esconde o mal que envenena e apodrece aquelas vidas, arrancando Temple "à surdez deiimtiva do pecado" e forçando-a a tomar o único caminho da libertação e da redenção possível através do restabelecimento da verdade, do soínmento e da aceitação da própria vida. À morte de Nancy, aceita como justa expiação, corresponderá para Temple a força de "continuar amanhã, e ainda amanhã, e sempre".
História excessiva e inverossímil? Uma leitura atenta dos jornais de hoje nos convencerá do contrário. Solução delirante, a de Nancy Mannigoe, cínica, a de Temple 'í Ou antes, penetração altamente dramática no mundo da consciência, na terrível condição humana onde tragicamente se defrontam e se mesclam o mal e o bem, cheganao a situações não previstas dentro da pobreza de um moralismo convencional.
Tem-se falado muito de tragédia grega a propósito de Requiem pour une Nonne. E Camus confirma, falando do livro de Faulkner: É verdade. Como em toda tragédia, há um segredo. E um conflito. Aquele que opoe os protagonistas ao seu destino e que se resolve na aceitação, por parte deles, desse destino. Faulkner serviu-se disso para abrir caminho para a tragédia moderna. Sua obra, de alta intensidade dramática, parece-me ser das que mais se aproximam de um certo ideal trágico. Os personagens são de hoje, medem-se, no entanto, com o mesmo destino que esmagava Electra ou O restes. Somente um grande artista poderia tentar assim introduzir nos nossos apartamentos a grande linguagem da dor e da humilhação "linguagem que deve ao mesmo tempo ser simples bastante para poder ser nossa, e bastante grande para atingir o trágico. Creio que Faulkner encontrou essa linguagem." O que Camus não podia acrescentar é que ele, como dramaturgo, soube dar à obra do grande romancista americano o relevo e a intensidade que ela exigia para apoderar-se fundamente de uma plateia, afrontando-a com os grandes temas da vida, da morte, do amor, do sofrimento e da expiação.
Temple Drake é a mais estranha, a mais completa, a mais vigorosa figura criada por William Faulkner. Ela começa a existir em Sanctuary; ali é a sua vida em busca do mal pelo prazer do mal que decorre entre "gangsters", prostitutas, traficantes, homens e mulheres de diversas condições sociais, aos quais ela submete seu corpo e sua consciência. Em seguida, num romance todo dialogado, à exceção da descrição inicial da cidade de Yokna-patawpha, vem o seu reencontro com o passado e a sua possibilidade de redenção. Requiem for a nun é ainda mais a história de Temple Drake do que do infortúnio da negra Nancy Manigoe. Mas as duas personagens são postas uma diante da outra: Nancy é o mal, porque as condições sociais a prenderam ao mal; Temple é o mal voluntário, deliberado, contra tôdas as perspectivas que lhe poderia oferecer a vida sem privações. A salvação de Nancy está no sacrifício da própria vida; a de Temple Drake na revelação do seu passado.
A novela de Faulkner pedia um adaptador como Albert Camus, que ali descobriu a linha narrativa das consequências morais do seu existencialismo. Salvar-se é gozar da liberdade de contar o mal deliberadamente praticado, é adquirir a certeza de ter de voltar sobre os próprios passos, "por não ter onde ir daí por diante". Como na confissão, encarada do ponto-de-vista puramente humano, como na cura psicanalítica, por uma autocatarse libertadora. O absurdo da vida que Camus encontra na novela de William Faulkner leva à destruição ou à recuperação da vida. Temple Drake escolhe o segundo caminho. Por isso, quando, ao fim da obra, Gowan Stevens ainda chama a esposa, e ela fala: "Coming", que Camus traduz como "Pourquoi pas?", não me parece ser este final uma evidência do "cinismo" de Faulkner, de que fala Van Wyck Brooks em The Opinions of Oliver Allston, mas a possibilidade de reconciliação com a vida, a possibilidade de que a vida aceite o pecador, e a consciência do pecador aceite a vida. Este sentido de vida nova, ou de sobrevivência, me parece bem marcado na "rubrica" final do romance, quando as personagens se retiram da sala do carcereiro, e, antes de descer a cortina, "os três pares de passos soam e começam a se apagar no corredor externo". É como uma continuação, uma indicação de que só depois do sacrifício de Nancy e da confissão de Temple, o marido, a mulher e o advogado (que é o próximo, o parente, o conselheiro, o julgador, o semelhante, enfim) podem caminhar com os mesmos passos.
Embora a "peça" esteja feita no romance de Faulkner, o trabalho de Camus não é apenas o de tradutor, já por si admirável obra de recriação de um ambiente e uma linguagem. Camus suprimiu os pormenores antiteatrais, as falas e palavras digres- sivas do núcleo da ação; em outras passagens, deu uma consistência de linguagem mais tersa para o fácil entendimento da plateia francesa (e das plateias fora dos Estados Unidos, em geral); redividiu os três atos em sete quadros, com hábil escolha dos momentos de "suspense" para cada um deles e, sobretudo, como homem de teatro, acrescentou felizes indicações de rubricas, em que se sente o seu cuidado de policiar os desmandos de atores e diretores, bastante perigosos em "Oração para uma Negra". O seu trabalho de adaptador foi, principalmente, o de possibilitar uma realização cénica do romance, sem que ele perdesse a violência de William Faulkner, mas equilibrando os desmandos que, evidentemente, teria no palco, se colocado ali no texto original, ou em simples tradução literária.
A tradução, para o português, do trabalho de Camus, exigiu algumas liberdades de linguagem que saltarão aos olhos do leitor. Foi necessário, num ou noutro ponto, criar um compromisso entre a possível linguagem duma negra nos Estados Unidos e da maneira como falaria uma negra de sua condição no Brasil, sem que a personagem se desenraizasse do seu ambiente, e sem que, psicologicamente, lembrasse ao leitor ou ao espectador que deveria observar o artifício, em vez de acompanhar a ação. Se isto foi logrado, só o julgamento da crítica e do público poderá dizer.

 

 

 

 

PERSONAGENS

GOWAN STEVENS
GAVIN STEVENS
O GOVERNADOR
SR. TUBBS (Carcereiro)
PETER
TEMPLE STEVENS
NANCY MANNIGOE

PRIMEIRO ATO
PRIMEIRO QUADRO
(O Tribunal: 17,30, dia 13 de novembro.
A cortina está baixada; enquanto Progressivamente a ribalta se ilumina, ouve-se:)
Voz DE HOMEM
(Atrás da cortina.) - Acusada, levante-se!
(A cortina sobe, ao mesmo tempo que a acusada, no banco dos réus. Vê-se aparecer uma parte do tribunal. - O Tribunal não ocupa toda a cena, mas unicamente a metade superior da esquerda, deixando na obscuridade a outra metade, assim como a parte inferior do quadro da cena. O cenário visível é, pois, não somente delimitado pelos raios dos projetores, como também ligeiramente mais elevado em relação ao nível do palco. - Vê-se só uma parte da sala de sessões: a barra do tribunal, o juiz, os oficiais de justiça, 11
os advogados das partes, o júri. O advogado da defesa é Gavin Stevens, homem de cerca de 40 anos. - A acusada está de pé. É uma negra de 30 anos - quer dizer, que pode ter qualquer idade entre vinte e quarenta - de rosto calmo, impenetrável, quase sonhador. Parece ser muito alta. - Domina a assistência. Todos se voltam para ela, que entretanto não olha ninguém. Com os olhos erguidos, contempla fixamente um ponto distante, na outra extremidade da sala das sessões, como se estivesse sozinha. - Um silêncio de morte reina na sala. Todos a observam.)
Juiz
Nancy Mannigoe, antes que o tribunal pronuncie a sentença, tem alguma coisa a acrescentar à sua defesa?
(Nancy não responde, nem se move. Parece mesmo não escutar.)
Juiz
Lembro à acusada que a lei a autoriza a falar somente antes do pronunciamento da sentença. Não tolerarei nenhum incidente. Portanto, se tem alguma coisa a dizer, fale agora.
(Nancy não se move.)
Juiz
Senhor advogado da defesa, quer ter a bondade de repetir à sua constituinte o que acabo de dizer? Peço que o faça com cuidado. A acusada já perturbou o início da sessão de julgamento, ao responder que se considerava culpada, enquanto o senhor anunciou que advogava a sua inocência. Parece que não conseguiu levá-la a compreender o que devia responder. Gostaria que o senhor se fizesse entender melhor, e a mantivesse numa atitude respeitosa após o pronunciamento da sentença.
STEVENS
Nancy, o tribunal previne a você que não deve dizer coisa alguma depois de dada a sentença. Você não deve falar, absolutamente. Se tem alguma coisa a dizer, diga agora.
(Nancy permanece imóvel.)
STEVENS
Lembre-se, Nancy. O tribunal tem suas leis. Eu sei por que você disse "culpada", quando muitas vezes repeti que era preciso dizer "inocente". Eu sei o que você quer dizer. Mas agora o processo está encerrado. Daqui a pouco, (na prisão, você pensará e dirá o que quiser, tudo o que tem no coração, 13
que eu conheço e compreendo. Mas aqui você deve ficar calada depois da sentença. Se quer falar, fale agora. Você compreendeu?
(Nancy olha-o e se cala.)
Juiz
(Impaciente.) - Ela compreendeu?
STEVENS
Tanto quanto uma alma sofredora e confiante possa compreender a tragédia que a abate, ela compreendeu, Excelência.
Juiz
Então passo a ler a sentença. Considerando que a acusada Nancy Mannigoe, aos treze dias do mês de setembro, assassinou, proposital e deliberadamente, uma criança, filha do casal Gowan Stevens, na cidade de Jefferson, este tribunal sentecia que a dita acusada deve ser conduzida à prisão da sede do distrito, e aí, aos treze dias do mês de março, deve ser enforcada pelo pescoço até sobrevir a morte. Deus tenha piedade de sua alma.
NANCY
(Muito calma, sem se mover, sem dirigir-se a qualquer pessoa, com uma voz que ressoa no silêncio.) - Sim, senhor! Obrigada, senhor!
(Ouve-se uma espécie de exclamação abafada, que traduz a estupefação dos espectadores invisíveis da sala de sessões do tribunal, escandalizados pela incrível violação das regras processuais: o começo de alguma coisa que poderia ser consternação ou mesmo tumulto, no meio do qual, ou melhor, acima do qual, Nancy permanece impassível. O juiz bate o martelo, o oficial de justiça se levanta precipitadamente, a cortina começa a baixar depressa e às sacudidelas, como se o juiz, os guardas, o tribunal a puxassem - de cima, freneticamente, a fim de dissimular aos olhos esse incidente escandaloso. De algum lado, do meio dos espectadores invisíveis, sobe uma voz de mulher - um gemido, um lamento, um soluço, talvez.)
Juiz
Silêncio! Silêncio! Façam evacuar a sala.
(Soa uma sirene estridente. A cortina baixa rapidamente, escondendo a cena.)

FIM DO PRIMEIRO QUADRO
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SEGUNDO QUADRO
(A 13 de novembro. São 18 horas. A cortina levanta-se suavemente, mostrando o "living-room" do jovem casal Stevens. Ao centro, mesa sobre a qual há uma lâmpada; cadeiras; ao fundo, à esquerda, um canapé, um castiçal, apliques; à esquerda, porta de acesso ao vestíbulo; ao fundo, porta de dois batentes abertos, mostrando a sala, de jantar; à direita, chaminé, guarnecida de tubos que funcionam a gás. Há na peça uma atmosfera de elegância, de modernismo; no entanto, a sala parece pertencer a uma outra época. A julgar pela altura do teto, as sancas, parte do mobiliário, parece fazer parte de uma casa antiga.
Ouve-se rumor de passos, depois as lâmpadas se acendem, como se alguém, ao entrar, tivesse apertado o comutador. A porta da esquerda abre-se. Temple aparece, seguida de Gowan, seu esposo, e do advogado Gavin Stevens. Temple é uma jovem de cerca de 25 anos, muito elegante, cuidada, vestida com 17 um "manteau" de pele que ela usa aberto, chapéu, luvas, bolsa. Parece nervosa, tensa, mas domina-se. Seu rosto é sem expressão, enquanto ela vem até a mesa e pára. Gowan é três ou quatro anos mais velho. Havia muitos homens como ele no sul dos Estados Unidos, entre as duas grandes guerras: filhos únicos de pais ricos, que habitavam apartamentos mobiliados nos hotéis das grandes cidades, frequentavam as melhores universidades, do Sul e do Este, sócios dos mais cotados Clubes esportivos. Hoje casados e chefes de família, desincumbem-se de suas obrigações em postos que não solicitaram; tratam, em geral, de questões financeiras: cotações de algodão, valores, obrigações. Mas o rosto do nosso personagem é ligeiramente diferente. Alguma coisa aconteceu, e isto se lê em seu semblante - uma tragédia - alguma coisa contra a qual Gowan não fora prevenido, que não estava preparado para defrontar, alguma coisa, entretanto, que ele aceitou e para que procura, realmente, sinceramente, e sem egoísmo (talvez pela primeira vez na vida), a melhor saída, de acordo com o seu código de moral. Gowan e Stevens vestem sobretudos, e trazem chapéus nas mãos. Stevens, logo que entra na sala, pára imediatamente. Gowan, de passagem, atira o chapéu sobre o canapé e se dirige a Temple que, junto à mesa, tira as luvas.)
TEMPLE
(Toma um cigarro numa caixa colocada sobre a mesa; imita a acusada; sua voz revela um estado de sobreexcitação que ela reprime e domina.) - "Sim, senhor", "Culpada, senhor", "Obrigada, senhor". Se isto é tudo que se tem a dizer quando se está a um passo da forca, como é que um júri cortês não haverá de atender a esses desejos?
GOWAN
Chega, Temple! Cale-se, agora. Vou acender o fogo e trazer alguma coisa para beber. (4 Stevens.) - A menos que Gavin decida, afinal, ser útil, e acenda o fogo enquanto faço de mordomo.
TEMPLE
(Tomando um isqueiro). - Vai buscar alguma coisa para beber. Eu me encarrego do fogo, para que o tio Gavin não se creia obrigado a ficar. Afinal, tudo que ele quer é nos oferecer o seu discursozinho de despedida. "Agora que defendi a assassina de sua filha, e que não pude obter a absolvição da estranguladora da filha de vocês, vou-me embora. Até a próxima vez!" Bravo! Não é,
Gowan? É como se já nos tivesse dito. Pode voltar para casa.
(Ela vai até a chaminé, ajoelha-se, abre a torneira do gás, com o isqueiro pronto na outra mão.)
GOWAN
(Inquieto.) - Temple!
TEMPLE
(Acendendo o fogo.) - Posso ou não posso beber?
GOWAN
Ainda bem. (4 Stevens.) - Tire o sobretudo e coloque-o onde puder.
(Ele se dirige para a sala de jantar. Stevens, que não saiu do lugar, olha Temple.)
TEMPLE
(Sempre ajoelhada, voltando-se de costas para Stevens.) - Se você fica, sente-se. Se você não se senta, vá embora. Prefiro a segunda solução. A justa dor de mãe, a satisfação de saber vingado o crime, é um género de prazer que a gente deve saborear sozinha. Não acha?
(Stevens observa-a. Depois, avança em direção a ela, tira um lenço do bolso, imobiliza-se diante de Temple, estendendo o lenço diante de seus olhos. Ela olha o lenço, depois levanta os olhos para Stevens. O rosto de Temple é absolutamente calmo.)
TEMPLE
Para quê?
STEVENS
É um bom lenço. Você precisará dele.
TEMPLE
Para quê? Para as fagulhas, no trem? Mas se nós viajamos de avião! Gowan não lhe disse? Saíremos do aeroporto de Memphis à meia-noite. Estaremos na Califórnia amanhã de manhã. Na Califórnia!
STEVENS
De qualquer modo, guarde-o.
TEMPLE
(Enfrentando-o.) - Se você veio me ver chorar, é melhor que eu diga logo: não arranjará nada. Nem isto nem qualquer outra coisa. Não sei bem o que você queria, ao vir até aqui. Aliás, pouco importa. Mas o que quer que seja você não o conseguirá. Ouviu?
STEVENS
Quer dizer que você não acredita em mim. (Rumor próximo.) - Aí vem ele. Também vai perguntar o que você quer, porque nos acompanhou até nossa casa.
STEVENS
Devo dizer-lhe a verdade?
TEMPLE
Escute, tio Gavin. Agora sou eu quem quer lhe fazer uma pergunta. Que é que você sabe, exatamente?
(Uma vez que Gowan aparece, ela muda de assunto, no meio da frase, com tanta naturalidade que ninguém ao entrar nesse instante poderia perceber.)
TEMPLE
Afinal, você é o advogado dela. Ela com certeza lhe falou. Mesmo uma cocainómana, quando assassina uma criança, deve ter, para si mesmo, a aparência duma explicação.
GOWAN
Já te disse que não fales mais nisto.
(Ele traz uma bandeja com uma garrafa d'água, um balde de gelo, três copos já cheios de uísque e três cálices de medir, vazios. A garrafa de uísque emerge do bolso de seu sobretudo. Ele se aproxima de Temple e lhe apresenta a bandeja.)
GOWAN
Sirva-se. Vou beber um copo, também. O primeiro. Depois de oito anos. Por que não?
TEMPLE
Por que não?
(Ela segura um dos copos cheios de uísque. Ele oferece a bandeja a Stevens, que retira o segundo copo. Depois, coloca a bandeja sobre a mesa, e serve-se do terceiro copo.)
GOWAN
Há oito anos que não bebo uma gota de álcool. Já faz bem oito anos, não? Agora é a hora de recomeçar - ou nunca mais. De qualquer modo, já não é sem tempo. (A Stevens.) - Esvazie logo o seu copo. Quer um pouco d'água?
(Ele recoloca o copo na mesa, sem tê-lo bebido, em cima da bandeja; derrama água da garrafa num dos copos de medir, oferece-o a Stevens no momento em que este esvazia seu copo e o põe sobre a mesa. Stevens toma o copo de medir; Temple também não bebeu.)
E agora, doutor Stevens, talvez o advogado da defesa nos queira dizer o que veio buscar aqui.
STEVENS
Sua mulher já o disse. Vim dizer-lhe adeus.
GOWAN
Pois adeus. Mas beba antes um outro uísque. Afinal de contas nós sabemos viver. Depois, pode ir-se embora.
(Ele toma o copo de medir de Stevens, volta à mesa.)
TEMPLE
(Colocando na bandeja o copo em que não bebeu.) - Decerto. Aliás ele não tem intenção de ficar, já que está bebendo de sobretudo.
GOWAN
(Toma a garrafa que tem no bolso, e prepara um uísque e soda para Stevens no copo de medir) - Por que não? Se teve força bastante no tribunal para levantar o braço e defender uma negra que matou sua própria sobrinha, pode erguê-lo, vestido com um simples. sobretudo de lã, para brindar com a mãe! (Movimento de Temple.) - Eu sei,
Temple: devia dominar-me. Mas talvez seja melhor falar e dizer tudo, até nos sentirmos libertados, pelo menos por algum tempo, embora por pouco tempo...
TEMPLE
(Observa atentamente, não Gowan, mas Stevens, que a observa também, grave, severo.) - Isto! Instalemo-nos. E espero que tio Stevens também faça um brinde com você, meu caro.
GOWAN
(Preparando o uísque.) - Claro que brindará. Nada o perturba. Aliás, por que haveria de ter piedade do pai? Aos olhos da lei, homem não sofre. A lei só tem piedade para com as mulheres e as crianças, principalmente para com as mulheres, e sobretudo para com as prostitutas negras, que assassinam os filhos dos brancos.
(Estende o copo a Stevens, que o segura.) - Logo, por que esperar que Stevens, advogado da defesa, tenha piedade dum homem e duma mulher que por acaso são seus sobrinhos, e pais da criança que mataram?
TEMPLE
GOWAN
Perdão. (Volta-se para ela, vê que ela está com as mãos vazias.) - Você não bebe?
TEMPLE
Não, obrigada. Gostaria de beber leite.
GOWAN
Leite? Muito bem. Quente, é claro.
TEMPLE
Sim, se te agrada.
GOWAN
Agrada. Botei uma panela para esquentar, quando fui buscar a bebida. Decididamente, eu penso em tudo. (Dirige-se para a porta da sala de jantar.) - A propósito: não deixe o tio sair antes que eu volte. Se for preciso, feche a porta a chave. (Sai.)
(Temple e Stevens não se movem, até o momento em que se escuta fechar a porta de dentro.)
TEMPLE
(Rápida, ríspida.) - Que é que você sabe? (Mais depressa.) - Não minta! Você bem vê que não há tempo a perder!
STEVENS
Tempo a perder? Por quê? Porque o avião sai esta noite? Mas Nancy, coitada, tem tempo. Quatro meses, de hoje a março... O enforcamento será a 13 de março.
TEMPLE
Você sabe muito bem o que eu quero dizer... O advogado dela pode vê-la todos os dias... Uma negra, e você, um branco... Você poderia tê-la feito falar. Metendo-lhe medo. Comprando-a com uma pitada de cocaína, ou um copo de álcool.
(Ela se cala bruscamente, fixando Stevens nos olhos, como surpreendida, ou desesperada; sua voz baixou até ser apenas perceptível.)
TEMPLE
Deus do Céu! Então ela não te disse nada? Não acredito. Então você não sabe nada, e sou eu, eu, que devo falar? Não, isto é que não acredito... É impossível...
STEVENS
Impossível? Você acha? Pois bem: não.
Ela não disse nada.
Não acredito. Mas isto não importa. Que é que você pensa que sabe? Pouco importa de quem o soube. Diga-me somente como é que imagina que as coisas se passaram.
STEVENS
Havia um homem em sua casa, naquela noite!
TEMPLE
(Aguça o ouvido para o lado da porta de dentro, e depois dá um passo em direção a Stevens.) - Pois bem! Não! Não havia homem algum em casa, naquela noite. Eu nego - até o fim. Compreende? Você não arrancará nada de mim. Naturalmente, você podia ter-me chamado como testemunha, ter-me feito prestar juramento. Embora os jurados não gostassem muito dessa prova imposta por prazer a uma mãe santamente aflita. Mas você seria bem capaz disso... (Mudando de tom.) - Perdão, tio Gavin. Lamento.. Você vê, isto é que é impossível: não posso falar! (A porta de dentro bate.) - Mas vou deixar você sozinho com Gowan. Sim, vou deixá-los sós, vou subir a escada, vou esperar no meu quarto. Vocês dois têm muito a dizer um ao outro, estou certa.
(Ela se cala. Gowan entra, trazendo uma pequena bandeja com um copo de leite. Aproxima-se da mesa.)
GOWAN
De que é que vocês falavam?
TEMPLE
De nada. Eu dizia ao tio Gavin que ele tinha o ar dum daqueles cavalheiros de antigamente, na Virgínia, alguma coisa que você tem também, e que vocês dois devem achar nos seus antepassados... (Ela os olha.) - Belos antepassados. Vou dar banho e jantar a Bucky.
(Toca o copo, para ver se está quente. Segura-o.) - Obrigada, querido.
GOWAN
(A Stevens.) - Vê? Exatamente a temperatura certa. Um serviço perfeito! Aí está como fui ensinado.
(Ele se cala subitamente, observando Temple, que, aparentemente, nada fez, não se mexeu, continua ali, de pé, com o copo na mão. - Ele se adianta. Beija-a. Ela recebe o beijo, rígida. Depois, levando o leite, Temple ganha a porta do vestíbulo. Fala a Stevens.)
TEMPLE
Adeus, Tio Gavin. Não voltaremos antes de junho.
STEVENS
A 13 de março, talvez?
TEMPLE
Não, em junho. Bucky mandará um cartão e você a Maggie. Mas se acontecer que você consiga saber alguma coisa de novo que possa ajudar Nancy, e que seja verdadeira, alguma coisa em que o meu testemunho possa ser útil - embora eu não veja o que possa ter com isto - escreva-me. (Um tempo.) - Se é que há ainda alguma coisa para você saber.
STEVENS
O que eu ainda não sei é você quem pode me dizer.
TEMPLE
(Depois de um silêncio.) - Não, eu não, tio Gavin. Por que haveria de falar quando os outros se calam? Se alguém quer ir para o céu, quem sou eu para impedir? Boa noite.
(Ela sai; fecha a porta muito grave, Stevens se volta, coloca seu uísque na bandeja.)
GOWAN
É verdadeiramente um prazer ouvir vocês dois falando, com tanta franqueza e afeição, como tio e sobrinha, que se amam, e que nada têm a esconder um do outro. (Bruscamente.) - Quer acabar de beber? Ainda tenho que jantar e fazer as malas.
STEVENS
Você também ainda não tocou no seu copo. Não quer beber comigo?
GOWAN
(Segura o copo cheio.) - Por que não? Mas seria melhor que você fosse embora e nos deixasse saborear a bela vingança que o tribunal nos ofereceu para substituir nossa filha.
STEVENS
Gostaria que essa vingança lhes servisse de consolo.
GOWAN
Peço a Deus que sim! Peço a Deus! A vingança! olho por olho, hem? Haverá palavras mais vazias? Mas é preciso ter perdido um olho para sabê-lo.
Você ainda não está vingado. É preciso que Nancy morra.
GOWAN
Por que não? Não é grande perda... Uma mulher da rua, uma vagabunda, uma negra cocainomana...
STEVENS
Uma vagabunda, uma decaída sem futuro, até o dia em que o casal Gowan Stevens, por pura humanidade, a apanhou da sarjeta, para lhe dar uma oportunidade na vida.
(Gowan fica imóvel, apertando progressivamente os dedos contra o copo. Stevens observa-o.)
STEVENS
E ela, como agradecimento...
GOWAN
Basta, Gavin! Vá para casa! Ou vá para o diabo. Vá não importa aonde, mas saia daqui!
STEVENS
Eu vou. Num instante. (Um tempo.) - Gowan, você quis mesmo que Nancy fosse enforcada?
Eu? Não! Não tenho nada com isto. Nem mesmo apresentei queixa, como se diz. A única coisa que me liga a este caso, compreende?, é que eu passo por ser o pai dessa criança que... Quem diabo pode chamar isto de uísque?
(Atira o uísque com o copo no balde de gelo, toma vivamente, com a mão vazia, um dos copos de medir, e ao mesmo tempo inclina sobre este a garrafa e derrama o líquido. Ele não faz nenhum ruído, mas é evidente que está rindo; um riso que começa normalmente, mas, pouco a pouco, escapa de seu controle, torna-se quase histérico, enquanto continua derramando uísque no copo que em breve transbordará. Mas Stevens estende a mão, toma a garrafa, pára o gesto de Gowan.)
STEVENS
Pare! Pare! Imediatamente!
(Ele se apodera da garrafa, coloca-a sobre a mesa, derrama num outro copo uma parte do uísque, estende-o a Gowan. Gowan toma o copo, cessa de rir, recobra-se.)
GOWAN
(Com o copo na. mão, sem beber.) - Oito anos! Oito anos sem uma gota de álcool! Aí está a recompensa! Minha filha assassinada por uma negra imunda, que nem mesmo quis fugir para que um polícia ou quem quer que seja lhe desse um tiro e a matasse como a uma cadela raivosa! Compreende? Oito anos sem beber, e agora recebo o preço da abstinência; aí está o que mereci por tão longa virtude. Agora posso beber de novo. Mas não quero mais beber. Logo, tenho ao menos o direito de rir, não? Vale a pena, não? Envolvido num caso de morte, sem querer. A preço reduzido, afinal de contas tinha dois filhos, e, como pagamento, exigiram-me apenas um. Uma filha morta e uma negra enforcada em público, aí está o que tive de pagar para ser preservado...
STEVENS
Preservado contra o quê?
GOWAN
Contra o passado. Contra a minha insensatez. E aquela bebedeira de há oito anos, você bem sabe. Contra a minha covardia, se quiserem... Oh, sim, há razão de riso. Mas não muito forte, não é? nem tão alto. Ssst! Sssst! É preciso não incomodar as damas de outros tempos... Incomodar Miss Drake, por exemplo, Miss Temple Drake, hoje Senhora Gowan Stevens. Não se deve acordar uma donzela, nem aquele que eu era então. Covardia, sim. Por que não? Covardia é a palavra justa. Mas desagradável ao ouvido. Digamos simplesmente: cansaço.
STEVENS
Quem se lembra desse passado?
GOWAN
De verdade? Vamos, meu caro tio, você não se lembra? Gowan Stevens, aqui presente, educado na Virgínia para portar-se como um "gentleman", mesmo quando bebe, e que um dia se embriaga como 10 "gentlemen", rapta uma moça dum colégio rural, virgem, sem dúvida, sim, por que não?, foge com ela para o campo, de automóvel, para ir ver uma partida de futebol, embriaga-se como 20 "gentlemen", perde-se no caminho, entope-se de álcool como um regimento de "gentlemen", arrebenta o carro, cai morto de bêbado num pomar. E, enquanto isto, a moça, sempre virgem, é claro, é levada por um desequilibrado e sequestrada num bordel de Mem- phis... (Ele murmura uma palavra incompreensível.)
STEVENS
Sim, sim, de qualquer modo é preciso chamar a isto covardia, mesmo se a palavra soa mal.
STEVENS
Mas casar com ela depois não era covardia.
GOWAN
Claro! Desposá-la à saída do bordel - isto é que é um gesto! Que classe, que bravura! Um verdadeiro grão-senhor da Virgínia! É pouco! Eu me sentia como um exército de "gentlemen".
STEVENS
Em todo o caso, a intenção era a de um "gentleman". Mas, Gowan, sequestrada numa casa de prostituição, e em seguida... Não entendi bem.
GOWAN
(Rápido, tomando o copo de Stevens.) - Jogue fora essa água de barrela.
STEVENS
(Empunhando o copo.) - Que é que você dizia duma prisioneira numa casa?
Nada mais. Você me ouviu.
STEVENS
Você não acrescentou: "E isto lhe agradava"? (Eles se olham fixamente.) - É isto que você não lhe pode nunca perdoar? Não ter sido a causa inocente desse instante de sua vida que você não pode esquecer nunca, nem explicar, nem recuperar, e no qual você não pode mesmo cessar de pensar. Mas somente e sobretudo, porque ela nem mesmo sofreu, e ainda por cima sentia prazer? É isto que você não lhe pode perdoar, o ter perdido não só a liberdade, mas a dignidade de homem, o respeito de sua mulher, e ainda por cima a sua filha, e pagar esse preço terrível por alguma coisa que sua mulher nem mesmo perdeu, nem lastimou, e que nem mesmo sentiu que lhe faltava? É por isto, diga-me, Gowan, é por isto que essa pobre negra perdida deve morrer?
GOWAN
Saia daqui!
STEVENS
GOWAN
Se é isto, meta uma bala na cabeça! Pare de mexer sempre no que você é incapaz de esquecer. Mate-se, ao menos para não precisar lembrar-se mais, para não precisar acordar de noite, banhado em suor, contorcendo-se de angústia, porque você não quer e não pode deixar de se lembrar! Ou então olhe as coisas de frente, de uma vez por todas. E diga-me o que aconteceu durante o mês em que esse louco a manteve presa, na tal casa de Memphis. Que é que aconteceu, que ninguém sabe a não ser você e ela - e talvez nem mesmo você?
(Sempre fixando os olhos em Stevens, Gowan, lentamente, deliberadamente, coloca o copo de uísque sobre a bandeja, toma a garrafa, levanta-a acima da cabeça. Da garrafa aberta o uísque começa a correr, ao longo de seu braço, da manga, até o soalho. Gowan não parece aperceber-se disto. Sua voz é rouca, apenas articulada.)
GOWAN
Oh, Cristo, ajudai-me! Cristo, ajudai-me!
(Um tempo. Depois, Stevens, sem se apressar, repousa o seu próprio copo na bandeja, volta-se, apanha o chapéu ao passar pelo divã, vai até a porta e sai. Gowan permanece, ainda um instante, mantendo a garrafa em equilíbrio, já agora vazia. Depois, em seguida a uma longa aspiração e um soluço mudo, parece voltar a si, despertar; coloca a garrafa sobre a bandeja, percebe o seu copo de uísque ainda intacto, toma-o, levanta-o por um instante, volta-se, atira o copo que vai rebentar na chaminé contra os bicos de gás incandescentes. A luz se apaga completamente.)
FIM DO SEGUNDO QUADRO

TERCEIRO QUADRO
(O salão dos Stevens, 10 horas da noite. Dia 11 de março. A sala está exatamente como era quatro meses antes. Somente, a lâmpada da mesa está iluminada, e o divã foi mudado de lugar. Agora está diante do público. As portas da sala de jantar estão fechadas. O telefone está colocado sôbre a pequena mesa, no ângulo direito. - A porta da sala de entrada se abre. Entra Temple, seguida de Stevens. Veste um longo "peignoir", e seus cabelos estão atados por uma fita, atrás da cabeça, como preparada para dormir. Stevens está de sobretudo, com chapéu à cabeça. Seu traje não é o mesmo que aparece na cena precedente. Ela entra, pára. Ele também pára.)
TEMPLE
Cuidado com a porta. Bucky dorme no quarto das crianças.
STEVENS Você o trouxe também?
TEMPLE
Sim.
STEVENS
E ele dorme no quarto...
TEMPLE
Sim.
STEVENS
Teria sido melhor não colocá-lo lá.
TEMPLE
Mas ele está lá.
STEVENS
(Olhando-a.) - Chantagem, não é, Temple? Você fez de propósito. Mas, de qualquer modo, vamos falar.
TEMPLE
Chantagem, sim; por que não? Por que as mulheres não haveriam de servir-se de seus filhos como barricada?
STEVENS
Por que então você voltou da Califórnia?
Para reencontrar a paz. (Ela se dirige para a mesa.) - E no entanto não a encontrei. Você crê em coincidências?
STEVENS
Posso crer.
TEMPLE
(Ela apanha um telegrama dobrado sobre a mesa e abre-o.) - Você me mandou este telegrama, a 6 de março: "Ainda uma semana até o dia 13. Mas depois onde irá você?" (Ela dobra novamente o telegrama.)
STEVENS
Muito bem. Hoje é dia onze. Será uma coincidência?
TEMPLE
Não. A coincidência é esta. (Ela senta-se, atira o papel na mesa, volta-se para Stevens.) - Foi dia 6 de tarde. Estávamos na praia, Bucky e eu. Eu lia, mais para esquecer o telegrama do que por qualquer outro motivo, e o menino brincava e tagarelava. De repente, ele me perguntou: "Mamãe, a Califórnia é longe de Jefferson?" Eu disse: "Sim, meu amor", sempre continuando a ler. Ele retrucou: "Quanto tempo vamos ficar aqui?" Eu disse: "Até que a gente se canse, meu querido." Então ele me olhou e me perguntou suavemente: "Nós vamos ficar aqui até Nancy ser enforcada?" Era tarde demais. Eu devia tê-lo esperado, mas era tarde demais. Respondi: "Sim, querido", sem poder achar outra coisa. E foi ele quem falou e me fez esta pergunta, que todas as crianças fazem: "E depois, mamãe, onde iremos depois?" Exatamente como você. "Mas depois onde irá você?" Então, voltamos no primeiro avião. Dei a Gowan um soporífero, para que ele ficasse dormindo, e telefonei a você. Que me diz disso?
STEVENS
Nada.
TEMPLE
Ainda bem. Por amor de Deus, falemos de outra coisa! (Ela se aproxima duma cadeira.) - Estou aqui, pouco importa de quem seja a culpa! Que é que você quer? Quer beber alguma coisa? (Ela não lhe oferece nada, e não espera que ele responda.) - É preciso salvar Nancy! Vocês me fizeram vir, você e Bucky, vocês me fizeram vir, e parece que há alguma coisa que eu ainda não lhe disse. Mas por que você pensa que há alguma coisa que eu ainda não disse?
STEVENS
Porque você voltou, assim, da Califórnia ...
TEMPLE
Não é razão bastante. Além disso, porquê?
STEVENS
Porque vocês estavam lá...
(Voltando a cabeça, Temple estende a mão para a mesa, tateia até encontrar a caixa de cigarros, tira um, e, com a mesma mão, percorre a mesa até encontrar o isqueiro, e coloca tudo sObre os joelhos.)
STEVENS
... na sala de sessões do tribunal, todos os dias. O dia inteiro, desde o primeiro dia...
TEMPLE
(Ainda evitando olhá-lo, com um ar perfeitamente indiferente, leva o cigarro aos lábios, e fala fazendo o cigarro dançar a cada sílaba.) - Eu não era uma mãe cheia de dor...
STEVENS
Certamente, uma mãe cheia de dor...
TEMPLE
... vinda para gozar a vingança, como um tigre, sedenta de sangue, agachada sObre o cadáver do filhote...
STEVENS
Mas uma mãe cheia de dor não tem coração bastante para a dor e a vingança ao mesmo tempo. E como poderia suportar a simples vista daquela que matou sua filha?
(Temple acende o isqueiro, o cigarro; recoloca o isqueiro na mesa.. Stevens se inclina, empurra o cinzeiro em direção a ela.)
TEMPLE
Obrigada. Escute, Gavin. Pouco importa, afinal de contas, o que eu sei ou o que você pensa que eu sei. Nem mesmo teremos necessidade de conhecer isto. Não precisamos senão duma coisa, um certificado, uma declaração sob juramento, afirmando que ela é louca... Que ela é louca, há muitos anos...
STEVENS
Pensei nisto. É tarde demais. Há cinco meses, talvez... Hoje o processo está encerrado. Ela foi considerada culpada, foi condenada. Perante a lei, está já morta. Perante a lei, Nancy Mannigoe nem mesmo existe mais.
TEMPLE
Mesmo que eu assine uma declaração?
STEVENS
Que é que você diria nessa declaração?
TEMPLE
Cabe a você dizer o que convém declarar. Afinal, você é que é o advogado, ainda que não tenha sido capaz de salvar sua cliente. Ou, se você não pode inventar nada, direi somente que há muitos anos sabia que ela era louca. Se eu, a mãe, o digo, quem ousará duvidar?
STEVENS
E o perjúrio diante da justiça?
TEMPLE
Que perjúrio?
STEVENS
Depois que a ré foi condenada, você pensa que a principal testemunha da acusação, da acusação - entende? - pode reaparecer para dizer que houve erro e que o processo deve ser anulado?
TEMPLE
(Impassível.) - Diga-lhes qualquer coisa, que eu tinha esquecido, que mudei de idEia, ou que o promotor tinha comprado o meu silêncio...
STEVENS
Temple!
TEMPLE
Diga-lhes que uma mulher cuja filha pequena foi sufocada no berço é capaz de tudo para se vingar. Mas que, quando consegue a vingança, pode compreender que é impossível ir até o fim, sacrificar uma vida humana, ainda que essa vida seja duma negra prostituta.
STEVENS
(Olha-a. Depois de um silêncio.) - Você não quer então que ela morra?
TEMPLE
Já disse a você. Mas, pelo amor de Deus, deixe-me fazer isto. É o menos que eu peço... Não é possível?
STEVENS
Então Temple Drake vai salvar Nancy?
TEMPLE
(Ela olha-o fixamente, sempre fumando. Lentamente, tira o cigarro da bôca, e, sempre observando Stevens, estende a mão e apaga-o no cinzeiro.)
STEVENS
Muito bem. Nós nos apresentaremos com uma declaração sob juramento, dizendo que a assassina estava louca quando cometeu o crime.
TEMPLE
Sim. Talvez então...
STEVENS
E a prova?
TEMPLE
A prova?
STEVENS
Que prova você apresentará?
TEMPLE
Como posso saber? Que é que se deve colocar numa tal declaração? Que é que se deve colocar, para que ela seja eficaz?
(Ela se cala, olha Stevens enquanto Ele continua a observá-la, sem dizer coisa alguma, limitando-se a olhá-la até que, para terminar, ela deixa escapar um grande suspiro, duro, quase um gemido.) :
TEMPLE
Ah... Que deseja você ainda? Que quer mais?
STEVENS
(Calmo.) - Quero a verdade! Só a verdade pode tornar eficaz a declaração.
TEMPLE
A verdade? Estamos procurando salvar uma assassina condenada, cujo advogado já admitiu que fracassou. Que é que a verdade tem a ver com isto? (Rápida, amargamente.) - Eu disse: nós estamos procurando salvar ...! Não, sou eu, a mãe da criança assassinada que procura salvá-la! Não você, o advogado Gavin Stevens, mas eu, a Sra. Gowan Stevens, a mãe! Será que você não imagina que sou capaz de fazer qualquer coisa? Qualquer coisa?
STEVENS
Você fará tudo, menos uma coisa que salvará tudo. Esqueçamos que ela vai morrer. Aliás, que importância tem isto? Não importa qualquer punhado de fatos duvidosos, não importa qualquer declaração falsa sob juramento - tudo isto pode enfrentar a morte. A morte não é nada. O que importa é a justiça. E só a verdade pode enfrentar a justiça. A verdade - ou então o amor.
TEMPLE
(Duramente.) - O amor! Oh! meu Deus! O amor!
STEVENS
Pode chamar a isto piedade, se você quiser. Ou coragem. Ou honra. Ou direito ao sono.
TEMPLE
Você me fala de sono, a mim, que há seis anos... Ah, eu lhe peço, deixe-me!
STEVENS
Temple, eu defendi Nancy contra minha própria família, contra todos vocês a quem amo, e eu a defendi por amor à justiça. E é só de você, daquela que você era, de Temple Drake, que espero essa justiça.
TEMPLE
E eu lhe digo que nem a verdade, nem a justiça têm qualquer coisa a ver com o caso, e que de nada posso servir a você. Quando você se apresentar diante da Corte Suprema, terá necessidade, não duma verdade em que ninguém acreditar, mas duma boa declaração sob juramento, duma declaração que tribunal algum possa contestar.
STEVENS
Nós não vamos nos dirigir à Corte Suprema. (Ela olha-o fixamente.) - Mesmo lá, é tarde demais. Se isto pudesse ter sido feito, eu o teria feito, há quatro meses. Temos de nos dirigir ao governador. Hoje, esta tarde!
TEMPLE
Ao governador?
STEVENS
Sim. Eu o conheço. Ele nos escutará. Mas não é certo que ele tenha poderes para salvá-la agora.
TEMPLE
Então, por que procurá-lo? Por quê?
STEVENS
Já disse. Pela verdade.
TEMPLE
Somente por este pobre motivo. Simplesmente para que a verdade seja dita, bem claramente, em voz alta, com o número de palavras necessárias? Simplesmente para ser dita, para ser escutada, para que qualquer pessoa, pouco importando quem seja, a escute, qualquer estranho a este caso, a quem ele não interesse, a quem terá o direito de ouvir essas palavras pela única razão de ser capaz de escutá-las? Vamos, recite, termine o seu belo sermão, e anuncie-me o que devo fazer para salvar minha alma!
STEVENS
Já o fiz. Já expliquei o que você deve dizer para reencontrar o direito de dormir.
TEMPLE
Eu lhe respondi que há seis anos deixei de distinguir a insónia do sono, e o dia da noite.
(Ela olha-o nos olhos. Ele não responde; apenas olha-a. Ela hesita. Depois, mostra o quarto das crianças. Baixa a voz.)
TEMPLE
Você bem sabe que eu não posso falar, se quiser que o menino que ali está continue a viver em paz. Eu o trouxe para que você pensasse nele, justamente: no seu sossego. Mas você quer acordá-lo também.
STEVENS
Ele dormirá se você reencontrar o sono.
TEMPLE
Não creio. Que pode haver de melhor para a paz dEste menino, e para o seu sono futuro, que enforcar-se a assassina de sua irmã e deixar vir o esquecimento?
STEVENS
Pouco importando o meio, e a mentira?
TEMPLE
A mentira morreu com o passado.
STEVENS
Você não crê no que diz.
(Temple volta até junto à mesa, acende um cigarro, gira resolutamente em direção a Stevens.)
TEMPLE
Pois bem: basta! Faça a sua pergunta.
STEVENS
Quem era o homem que foi aquela noite à sua casa?
TEMPLE
Era Gowan, meu marido.
Gowan não estava na cidade. ele e Bucky tinham seguido, às seis da manhã, para Nova Orleans.
(Êles se olham.)
STEVENS
Foi o próprio Gowan que traiu você, sem o querer. Eu compreendi que você tinha arquitetado essa viagem para que Ele e Bucky estivessem ausentes naquela noite. O que, na verdade, me espanta, é que você não tivesse também mandado Nancy passear. (ele pára, como se tivesse feito uma descoberta.) - Mas o fez, não é? Você tentou, e ela recusou. Sim tenho a certeza. Quem era o homem?
TEMPLE
Ao menos prove que havia um homem.
STEVENS
Não posso. Nancy recusou-se a me dizer qualquer coisa que se tenha passado naquela noite.
TEMPLE
Ela recusou? Então, escute-me bem, preste atenção. (Ela está de pé, tensa, rija, diante dele, olhando-o nos olhos.) - Temple Drake morreu. A virgenzinha que eu era morreu seis anos antes de Nancy Mannigoe! E se Nancy Mannigoe não tem ninguém mais para salvá-la da forca, que Deus valha a Nancy Mannigoe! E agora retire-se!
(Ela olha-o fixamente. Um tempo. Stevens se levanta, sem cessar de observar Temple; ela também o olha fixamente. Êle dá um passo em direção à porta.)
TEMPLE
Boa-noite.
STEVENS
(Um tempo.) - Se você mudar de ideia, telefone-me. Mas lembre-se: a execução será dentro de dois dias. Boa-noite!
(Ele volta à cadeira, apanha o sobretudo, o chapéu, dirige-se à porta do "hall", sai. - Quando Stevens desapareceu, Gowan surge tranqiilamente à porta, em mangas de camisa, sem gravata, o colarinho aberto. Olha Temple. Ela comprime fortemente as mãos contra as faces, fica um instante imóvel, depois deixa cair os braços e se dirige determinadamente para o telefone. Gowan continua observando-a. Ela levanta o receptor.)
TEMPLE
(Ao telefone.) - 329, faz favor.
(Ela ainda não viu Gowan. Ele se aproxima tendo qualquer coisa na mão fechada. Está exatamente detrás dela, quando respondem ao telefone.)
TEMPLE
Alô? Quero falar com o Sr. Gavin Stevens ... Sim, eu sei. Ele vai chegar. Quando chegar, tenha a bondade de dizer que chame a senhora...
(Gowan segura a mão em que ela tem o telefone e corta a comunicação; com a outra mão, atira um tubo de remédio sobre a mesa.)
GOWAN
Aí está o teu soporífero. Por que não me falas do homem que Gavin dizia estar lá naquela noite? Vamos! Não precisarás fazer muito esforço! Basta dizer que era um tio de Bucky do qual você tinha se esquecido de me falar.
TEMPLE
(Primeiro interdita, depois retomando aparente calma.) - Você me acreditará se eu disser que não havia ninguém?
GOWAN
Mas claro! Acredito em tudo que você diz! Sempre acreditei em você, não é verdade? E foi isto que nos levou até onde estamos! Fui mesmo levado a crer até hoje que tinha achado sozinho essa formidável idéia de fazer uma pescaria em Nova Orleans Ainda acreditaria nisto, se não tivesse tido a indiscrição de escutar a sua bela conversa, e se o tio Gavin, sem querer, não me tivesse informado o contrário. Todos o sabiam, é claro, menos eu, naturalmente. Mas está muito bem assim. Fica muito bem pensar que eu sou o único a ser tão bobo, o único a... Vamos! De qualquer modo, obrigado! Mas faça um esforço, uma vez ao menos, procure dizer a verdade esta noite! Talvez Gavin tenha razão, talvez eu não esteja tratando com minha mulher, mas com uma certa Temple que tu e eu conhecemos bem, e que volta de longe, não é verdade? Talvez o homem que estava lá, por exemplo, fosse o verdadeiro pai de Bucky, e que até hoje me deixou na ilusão de que eu é que o havia procriado... O pai de Bucky, que passava pela cidade naquela noite, assim, por acaso...
TEMPLE
(Volta-se em direção ao quarto.) - Gowan, cale-se!
GOWAN
Não, não tenha medo. Não farei muito barulho, fique tranqiila. Não vou te bater.
Nunca bati numa mulher em toda a minha vida, nem mesmo numa puta, entende?, nem mesmo numa puta de Memphis, ou uma ex-puta de Memphis. E no entanto, santo Deus, conheço pessoas que dizem que há duas espécies de mulheres em que um homem pode bater: sua mulher e sua puta. E veja que sorte incrível a minha: eu poderia bater nas duas duma só vez, e com uma só bofetada.
(Ele se cala e se domina visivelmente; volta-lhe as costas. Depois fala, com voz mudada.)
GOWAN
Quer que eu te prepare um "drink"?
TEMPLE
(Rija.) - Não.
GOWAN
(Estendendo-lhe o seu maço de cigarros.) - Um cigarro, ao menos, qualquer coisa, faça qualquer coisa, não fique plantada assim. (Ela toma um cigarro, que ficará em sua mão, o braço pendido ao longo do corpo sempre rijo.)
Lavrei um tento: pude parar. Agora, vamos recomeçar. Se somos capazes de nos compreender, naturalmente. É preciso confessar que não é nada cómodo. Esta noite chovem informações sensacionais! E com todo esse correio mundano, não será de espantar que tenhamos a cabeça perturbada e não possamos chegar a um acordo. Mesmo tratando-se da pergunta mais banal, por exemplo, saber como uma mãe e uma honrada esposa, procedendo de repente como uma cadela, pode provocar o assassínio de sua própria filha!
TEMPLE
Muito bem. Prossigamos, e acabemos com tudo que tínhamos calado até aqui.
GOWAN
De verdade? Acha que podemos acabar? Achas realmente que há um salário que poderás deixar de pagar um dia, uma última moeda de tua dívida neste mundo que não te viriam cobrar, que pudesses não ter de pagar para que tudo não passasse de um erro. Pois foi só um erro, não? Um simples erro! Em nome de Deus, vamos rir! Vamos rir! Ria!
TEMPLE
(De maneira violenta.) - Agora chega, Gowan!
GOWAN
Perfeito! Esbofeteie-me! Espanque-me! E talvez eu possa então espancar-te também, e tu poderás começar a me perdoar. Sabes bem: - perdoar-me de tudo isto, e sobretudo da minha bebedeira de há oito anos, quando me embriaguei, não porque tivesse desejo de álcool, mas porque tinha medo, porque eu, o mais orgulhoso do colégio, o estudante mais em evidência, presidente do clube universitário de Charloteville, que podia chamar pelo primeiro nome todas as glutonas dos salões de chá de Nova York, tinha medo de não saber o que fazer com os dezessete anos duma meninazinha provinciana do Mississipi, de não saber conversar com uma garotinha que nunca saíra de casa até o dia da formatura. Sim, tomar um pileque para encontrar coragem de te falar, para te persuadir de fugir daquele miserável trem de excursão.
TEMPLE
Você não me forçou!
GOWAN
Como?
TEMPLE
Você não me forçou. Você me fez a proposta, e eu aceitei livremente. Você não é responsável.
GOWAN
Quer calar-se? Diga, você vai calar-se? Eu sou responsável! Então, toca a aproveitar! Sim, deixe-me aproveitar, enquanto estou lá. Deixe-me gemer sozinho, e tanto quanto me agrade. E você trate de gemer também, e verá que nisto se encontra um prazer. E la- mente-se do que você imagina que eu tenha repetido para mim mesmo durante esses oito anos: que sem você eu poderia ter casado com uma menina sensata, boa e honesta, e que jamais se excitasse sem que o marido tivesse provocado a excitação. (Pára, junta as mãos sobre o rosto.) - Oh, nós devíamos nos ter amado, você e eu, devíamos nos ter amado! Será que você não se lembra?
TEMPLE
Sim.
GOWAN
"Sim" o quê?
TEMPLE
Nós devíamos nos ter amado.
GOWAN
(Estendendo-lhe a mão.) Venha! Não fique longe de mim.
TEMPLE
(Sem se mover.) - Não.
GOWAN
(Retomando-se.) - Muito bem. Então você vai ter o que quer. Havia um homem em nossa casa naquela noite.
TEMPLE
Não havia ninguém.
GOWAN
(Sem escutá-la.) - Uma vez que o tio Gavin não o ignora, suponho que todos em Jefferson o sabem, exceto eu, bem entendido. Ainda não vejo o que esse homem tem a ver com o assassínio. Mas talvez Nancy tenha surpreendido você com ele na cama, e tenha matado a criança por ódio, ou por excitação sexual, ou qualquer coisa desse género. Ou talvez não fosse Nancy quem estivesse excitada, mas você, que, na sua febre imunda, tenha esquecido de tirar a criança da cama, e no meio de toda essa porcaria... Vê? Vê do que é que eu sou capaz?
TEMPLE
(Sacudindo a cabeça mecanicamente, como no limiar duma crise.) - Não, não, não...
GOWAN
Não? De verdade? Devo acreditar? Então, fale! Diga que não havia homem algum com você naquela noite! (Ela se cala.) - Então? Você pode negar? (Ela continua calada.) - Muito bem. É melhor assim; fica mais claro. Ao menos você não disse a Gavin o que se passou naquela noite. Tampouco eu quero sabê-lo. E ninguém mais saberá. Nunca. Você está proibida de chamar o tio Gavin. E não concordará em revelar o que quer que seja ao governador ou a qualquer outra pessoa. Você mesma já o disse, e não há nada mais verdadeiro: se, para salvar-se, Nancy deve contar com você, então que Deus tenha piedade dela. Compreendido?
TEMPLE
Não.
GOWAN
Sim, você compreendeu. E vou mesmo lhe dar mais uma oportunidade. Você vê, eu sei sofrer como civilizado. Não somente aceito com resignação as provas a que a merda do céu me submete na sua infinita solicitude, mas sirvo-me delas, é, sim! para a elevação da minha alma, não é?, e para aprender a perdoar as faltas alheias. Um verdadeiro cordeirinho... Então? Pois bem, o cordeirinho espera ainda que haja uma gota de sangue que você não tenha que pagar por tudo o que fez. Assim, você não tocará neste telefone, e tudo será possível de novo. Se você o fizer, eu irei embora, para sempre. (Temple se volta lentamente para o telefone.) - Espera. Você poderia acertar suas contas com quem quer que seja durante esses seis anos. Você ainda pode fazê-lo: você é livre. Mas se você tomar o telefone e chamar o tio Gavin, será tarde demais, e serei eu quem partirá. Você quer que eu vá embora? (Ela não responde.) - Diga que não chamará Gavin, diga, eu suplico!
TEMPLE
Não posso.
GOWAN
Diga, Temple! Nós nos amamos em outros tempos...
TEMPLE
Nós devíamos nos ter amado.
GOWAN
Então, prove-o. Se Nancy deve ser enforcada, deixe-a morrer. Se alguma coisa aconteceu naquela noite, só ela o sabe, e você. E se ela própria não quer dizer o que aconteceu, se não quer salv^r-se, quem é você para...
TEMPLE
Não posso.
GOWAN
Temple!
(Ela se volta e caminha firmemente para o telefone. Gowan adianta-se e põe a mão sobre o receptor.)
GOWAN
Você sabe bem o que eu disse. Irei para sempre.
TEMPLE
(Com uma voz estranhamente tranquíla.) - Por favor, Gowan, tire a mão. (Eles se olham. Ele tira a mão. Temple toma o receptor, leva-o ao ouvido, espera com o olhar fixo ao longe, e depois:) - 329, faz favor...
CORTINA
FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

QUARTO QUADRO

(Um ângulo do gabinete do governador do Estado, tarde da noite de 11 para 12 de março, cerca de duas horas da manhã. Uma escrivaninha pesada, maciça, lisa e nua, apenas com um cinzeiro e um aparelho telefónico. Atrás dela uma poltrona, de encosto alto, pesada. Na parede, atrás da poltrona, o emblema oficial do Estado - uma águia, uma balança, talvez um lema em latim, sobre um fundo de bandeiras. Duas outras poltronas diante da escrivaninha, um tanto voltadas uma para a outra, separadas pelo comprimento do móvel. A escrivaninha ocupa a metade superior da cena, à direita, como o tribunal à esquerda no primeiro quadro.
O governador está de pé, diante de sua poltrona, entre ela e a escrivaninha, debaixo do emblema. Nem velho, nem jovem, tem alguma coisa de arcanjo Gabriel. É evidente que foi tirado da cama. Está de "robe-de-chambre", embora use colarinho e gravata e os cabelos estejam bem penteados.
Temple e Stevens acabam de entrar. Temple veste o mesmo "manteau" de peles, o mesmo chapéu, e traz a mesma bolsa usada no primeiro quadro. Stevens está vestido exatamente como no terceiro quadro. Tem o chapéu na mão. Adiantam-se para as poltronas a cada lado da escrivaninha.)
STEVENS
Obrigado por nos ter recebido, Henry.
GOVERNADOR
Sejam benvindos. Sentem-se. (Para Temple, que se senta.) - A Sr.a Stevens fuma?
TEMPLE
Sim, obrigada.
(O Governador dá a Temple um cigarro e acende-o. Depois, senta-se na sua poltrona, com as mãos sobre a escrivaninha, segurando sempre o isqueiro. Stevens senta-se na poltrona em face a Temple.)
GOVERNADOR
Meu amigo Gavin disse-me ao telefone, minha senhora, que a senhora tem alguma coisa de muito grave a me dizer.
TEMPLE
Sim.
GOVERNADOR
Estou às suas ordens.
TEMPLE
Gostaria de saber até onde posso ir.
GOVERNADOR
Não compreendo.
TEMPLE
Se o senhor me disser o que já sabe, eu saberei o que me falta dizer.
GOVERNADOR
A senhora veio de longe, minha senhora, às duas da manhã. Evidentemente há uma razão para isto. E a senhora há de saber melhor do que eu o que a levou a tanto.
TEMPLE
Sei. Mas o que tenho a dizer é penoso. Penoso, sim, é isto. E eu gostaria de que o senhor me ajudasse, para... para que seja menos penoso.
GOVERNADOR
(Olha-a.) - Muito bem: fale-me de Nancy Mannigoe. É este o nome, não? Ou como se soletra?
TEMPLE
Ela não o soletra, não poderia fazê-lo. Ela não sabe ler, nem escrever. O senhor vai enforcá-la sob o nome de Mannigoe, e talvez nem seja este o seu nome. Mas depois que ela for enforcada, esse pormenor perderá sua importância.
GOVERNADOR
De qualquer modo, comece por falar-me dela.
TEMPLE
Não há nada a dizer, a não ser que era uma mulher entregue à prostituição e aos entorpecentes, que meu marido e eu apanhamos na sarjeta para servir de empregada dos nossos filhos. Ela assassinou um deles. Amanhã deve ser enforcada. Nós, quero dizer, seu advogado e eu, viemos aqui para lhe pedir que a salve!
GOVERNADOR
Sim. Eu sei de tudo isto. Mas por que salvá-la?
TEMPLE
Porque eu lhe peço que a salve, eu, a mãe da criança que ela matou? Porque eu a perdoei!
(O Governador observa-a atentamente. Stevens também. Ambos esperam. Ela olha o governador fixamente, sem desafio, cautelosamente.)
TEMPLE
Porque ela estava louca!
(O governador observa-a; ela também o observa, soltando pequenas baforadas de fumo.)
TEMPLE
Compreendo. Não é isto o que lhe interessa. O que lhe interessa, sem dúvida, é saber por que contratei uma tal mulher para tomar conta de meus filhos. Pois bem, digamos que foi para lhe dar ainda uma oportunidade. Afinal de contas, era um ser humano.
STEVENS
Não, Temple, não era esta a verdadeira razão.
TEMPLE
(Com toda a simplicidade.) - Não, não era a verdadeira razão. Por que não posso parar de mentir? Devia ser fácil. Parar de mentir exatamente como a gente pára de correr, ou de beber, ou de comer doces, porque já o fizemos bastante. Mas dir-se-ia que a gente não se cansa nunca de mentir. Bem, de qualquer modo, eu vou lhe dizer a verdadeira razão pela qual contratei Nancy. A verdadeira razão é que eu tinha necessidade dela para encontrar alguém em casa com quem falar. (Um tempo.) - E agora é preciso que eu lhe diga o resto, para que o senhor saiba por que eu tinha necessidade dela, porque a distinta Sr.a Temple Drake Stevens não podia encontrar senão uma prostituta negra para lhe falar na mesma linguagem que ela.
GOVERNADOR
Sim. Diga-nos por quê.
TEMPLE
(Apaga o cigarro no cinzeiro e se retoma; fala com uma voz dura, um pouco aos sacolejões, mas sem emoção aparente.) - Uma prostituta completamente viciada, incorrigível, condenada por toda a eternidade, que certamente não vivia senão para morrer condenada como assassina, uma mulher perdida, que não chamou a atenção de seus concidadãos a não ser no dia em que, agachada numa sarjeta, insultava um branco que procurava rebentar-lhe os dentes a pontapés e meter-lhe os gritos pela garganta a dentro ... Você se lembra, Gavin? Como se chamava ele?
STEVENS
Esqueci. Era o caixa do banco, não era? (Ao governador.) - Gostava de fazer-se de virtuoso. (A Temple.) - Mas será preciso que você fale nisso?
TEMPLE
Sim, sim. Naquela segunda-feira, de manhã, Nancy, ainda bêbada, chega no momento em que ele abre a porta do banco diante de cinquenta pessoas que esperavam. Ela surge, avança para ele, metendo-se por entre a multidão e grita: "Então, meu branco, quedê os meus dois dólares?" E o caixa volta-se, começa a bater-lhe, atira-a fora da calçada, na sarjeta, desaba sobre ela a pontapés, para esmagar aquela voz que repetia: "Quedê os meus dois dólares?", até que a multidão compreende e o impede de bater mais naquela boca negra que perdia sangue e dentes, e que continuava balbuciando: "Você me deve dois dólares daquela vez, faz quinze dias, e depois você voltou..." (Pára de falar, aperta por um instante as duas mãos sobre o rosto, e logo as retira.) - Vamos, é preciso dizer tudo. Onde é que eu estava?
GOVERNADOR
Nancy dizia: "Você já me deve dois dólares. .."
TEMPLE
Dois dólares, sim. Mas por que falar tanto? É melhor que eu escarre toda a verdade de uma só vez. (Ela respira, como antes de se atirar à água. Depois fala.) - Dois dólares era a tabela de Nancy Mannigoe. Mas eu vivi numa pensão de mulheres onde a tabela era bem mais alta. (Silêncio. Ela permanece imóvel, rija, olhando-os. Depois, com um pequeno riso.) - Confissão de uma dama muito distinta, não? Aí está como somos, nós as herdeiras da boa sociedade. (Silêncio.) - De qualquer modo, consegui transpor essa barreira. Agora, acabou-se, não posso mais parar nem voltar para trás. Agora é preciso continuar. (Silêncio.) - Por que vocês se calam? Ajudem-me. Falem. Ou gritem aos quatro cantos do Estado o que eu acabo de dizer, para que o ouça quem tem ouvidos, para que ouçam o que eu nunca, nunca, poderia crer que alguma força, mesmo a morte de minha filha e a execução duma negra miserável, me forçariam um dia a dizer. (O governador olha-a em silêncio. Ela esboça um movimento de súplica em direção a ele.) - Até onde será preciso então que eu vá? Depois de oito anos de segurança, de vida agradável, de esquecimento? Até onde será preciso ir para que o senhor revogue a sentença, e que possamos voltar para casa e dormir, ou tentar fazê-lo? Sim, que devo dizer que seja bastante humilhante para que o senhor aceite atender à minha súplica?
GOVERNADOR
A morte também é humilhante.
TEMPLE
Agora não estamos falando da morte. Estamos falando da vergonha. Nancy Mannigoe não sofre a vergonha. Ela sofre somente porque deve morrer. E é para evitar esse fugitivo sofrimento, esse sofrimento sem importância que eu lhe trouxe, às duas horas da manhã, Temple Drake e sua vergonha.
STEVENS
Continue, Temple.
TEMPLE
Ele ainda não respondeu a minha pergunta. (Ao governador.) - Até onde é preciso que eu vá? Não diga que é preciso que eu diga tudo. Isto já me disseram!
GOVERNADOR
Vou tentar ajudá-la. Eu sei quem era Temple Drake. Uma jovem estudante que, certa manhã, há oito anos, deixou a escola - não é verdade? - num trem especial, com suas colegas, para assistir a uma partida de futebol, num outro colégio, e que desapareceu do trem, durante a viagem, para reaparecer, seis semanas depois, como testemunha dum processo de assassínio, em Jefferson, apresentada pelo advogado do homem que, soube-se então, a tinha raptado e aprisionado durante todo esse tempo.
TEMPLE
Numa casa de prostituição em Memphis, não esqueça!
STEVENS
Um instante. Deixe-me esclarecer ao governador o que se passou. Será mais fácil para você. Naquele dia, Temple deixou o trem de excursão com um jovem que a esperava numa estação intermediária. Deviam ir sós, os dois, à partida de futebol. Mas naquele momento o homem tinha bebido bastante, para estar à altura da situação, creio.
Bebeu um pouco mais, teve um desastre com o automóvel, e acabou entrando com Temple numa casa de contrabandistas de bebidas. O rapaz bebeu até cair; e, enquanto estava assim, ocorreu um crime. O criminoso raptou Temple, que tinha assistido ao crime, e levou-a para a casa a que ela se referiu, em Memphis. É tudo. É preciso, acrescentar que o rapaz do automóvel, o acompanhante de Temple, que deveria tê-la defendido, casou-se com ela depois, como competia a um cavalheiro. É meu sobrinho.
TEMPLE
Não o acuse. Fui eu quem desejou aquela fuga.
GOVERNADOR
Por quê?
TEMPLE
Por que alguém deseja o que é mau? Por que ama o mal, é claro, e o prefere a tudo o mais. De qualquer modo, é preciso admitir que eu amava o mal acima de qualquer outra coisa. E quis fugir sozinha com aquele rapaz que no entanto não me agradava tanto assim.
STEVENS
Talvez. Mas ele devia protegê-la.
TEMPLE
(Duramente.) - Para isto casou-se comigo. Deve pagar duas vêzes pela mesma coisa? Quando a coisa não valia nem mesmo que se pagasse uma só vez?
GOVERNADOR
Posso fazer-lhe uma pergunta?
(Temple olha-o e faz sinal que sim, com a cabeça.)
GOVERNADOR
Por que não o trouxe?
TEMPLE
A quem?
GOVERNADOR
Ao seu marido. A senhora se solidariza com ele. Não devia ele estar aqui ao seu lado, também solidário, para que tudo se torne claro entre os dois, de uma vez por todas, e para tentarem juntos salvar Nancy Mannigoe?
TEMPLE
Será que estamos mesmo aqui para salvar Nancy? Não sei, não sei mais. Antes parece-nos que nós viemos acordá-lo para que o senhor me desse uma boa e leal ocasião de sofrer. O senhor vê bem o que quero dizer: não é sofrer por alguma coisa de preciso, mas simplesmente sofrer, sofrer como se respira. Que viria meu marido fazer em tudo isto?
GOVERNADOR
Talvez desejasse compartilhar do seu sofrimento, se realmente é seu marido...
TEMPLE
Para isto seria preciso que ele tivesse compartilhado de tudo comigo. (Êles se olham.)
GOVERNADOR
Devo concluir daí que a senhora tem alguma coisa a me dizer, e que ele não sabe?
TEMPLE
Sim.
STEVENS
Teria sido melhor dizer-lhe, Temple. Não se vive oito anos sobre uma mentira.
GOVERNADOR A senhora seria capaz de dizer, se ele estivesse aqui?
(Temple olha fixamente o governador. Stevens faz um pequeno movimento que escapa à sua sobrinha. No silêncio que se fez, Gowan entra, por detrás de Temple, que não o vê. Ele se mantém imóvel no vão da porta. Depois, coloca-se meio escondido atrás duma cortina.)
GOVERNADOR
Imagine que ele esteja aqui, no meu lugar.
TEMPLE
Ele foi-se embora. Não o verei mais.
GOVERNADOR
Mas se ele estivesse aqui, a senhora falaria diante dele?
TEMPLE
Pois bem: sim! E agora deixe-me falar. (Um tempo.) - Por favor, dê-me um cigarro. (O governador lhe dá um cigarro, que ela coloca no cinzeiro, sem acendê-lo. Um tempo.)
- Eu estava... Sim, eu vi cometerem o crime, ou pelo menos vi a sombra do assassino, e o assassino se chamava Popeye, e me levou para Memphis num carro velho. Eu sei também - tanto quanto sei que tenho pernas e olhos - que eu teria podido alertar outras pessoas com meus gritos, na rua principal de qualquer das cidadezinhas que atravessávamos, - e eu não o fiz. Do mesmo modo que eu poderia não ter ido com Gowan, ou ter me afastado do automóvel depois que se espatifou contra uma árvore, sim, eu poderia ter feito parar um caminhão, um carro que me levasse à estação mais próxima, ou ao colégio, ou mesmo diretamente à minha casa, entre meu pai e meus irmãos que sabiam, eles sim, onde estava o mal, onde estava o bem. Mas eu não o fiz. Eu, não. Temple, não. Tive de escolher o mal, talvez sem o saber. Em resumo: fiquei com Popeye, sem dizer nada, enquanto ele guiava com os olhos fixos, o cigarro metido na boca.
STEVENS
(Ao governador.) - Sim, ele era repugnante como o próprio mal. Um homenzinho encardido, uma espécie de barata achatada e negra, perversa. Mas era também um desequilibrado. Um anormal, sexualmente impotente. Ela vai dizer isto também.
TEMPLE
(A Stevens.) - Meu caro tio Gavin! Sim, também isto, direi também isto! Um perfeito azar. Nem mesmo tive por desculpa a fraqueza da carne. Apesar de impotente, isto às vêzes fascina, sobretudo se... Mas não é a carne que é fascinada, a boa, a terna, a perdoável carne. Que importa? Escolhi ficar com o assassino como se não pudesse - não, eu não podia! - separar-me dele. Ele me levou para Memphis. Eu o acompanhei, docilmente. Ele me trancou nessa casa de tolerância da rua Manuel, como uma esposa de dez anos num convento espanhol, com uma patroa de olhos de águia, mais previdente que qualquer mamãe, e uma criada negra que guardava a porta quando a patroa saía, para ir onde vão as donas de pensão de tarde, dar uma gorjeta à polícia, ou pedir-lhe proteção, ou ao banco, ou às outras pensões, e isto não era nada desagradável porque então a criada abria a porta e entrava, e nós podíamos... (Ela cambaleia, um segundo, depois fala muito depressa.)... falar. Eu tinha perfumes à vontade, mas naturalmente era a dona da pensão que os escolhia, e eles não eram lá muito discretos; mas enfim eu os tinha. Popeye me comprou também uma capa de peles, mas onde usá-la, se não me deixavam sair? Pois bem, de qualquer maneira eu tinha o casaco, os "peignoirs" e a roupa de baixo escolhidos segundo o gosto de Popeye - que não era sempre igual ao meu. Porque ele queria que eu me sentisse contente. Não apenas contente: ele queria que eu me sentisse feliz. Enfim, aí está, lá chegamos, já que agora é preciso...
(Ela pára de falar, estende o braço, toma o cigarro intato de sobre o cinzeiro, nota que ele não está aceso. Stevens toma o isqueiro, começa a levantar-se. O governador, sempre com os olhos fixos em Temple, faz um gesto para reter Stevens. Stevens pára, empurra o cinzeiro sobre a mesa até que ela própria possa alcançá-lo, e volta a sentar-se. Temple toma o isqueiro, acende-o, acende o cigarro, fecha o isqueiro, coloca-o no mesmo lugar, mas, depois de uma única baforada, ela recoloca o cigarro sobre a borda do cinzeiro, volta a acomodar-se na poltrona, rijamente, e recomeça a falar.)
TEMPLE
Eu poderia ter descido, a qualquer instante, pela calha, do lado de fora da janela. Acontece apenas que não o fiz. Eu não saía do meu quarto a não ser tarde da noite, quando Popeye vinha me buscar, num carro fechado, do tamanho dum carro de entério. Ele e o chofer na frente, eu e a dona da pensão atrás. Rodávamos a sessenta ou oitenta quilómetros por hora nas ruas do bairro iluminado de lâmpadas vermelhas. Foi aliás tudo o que eu vi, dessas ruazinhas e desse bairro. Não me deixavam visitar as mulheres da casa onde eu estava, nem sentar-me com elas depois do trabalho, para ouvi-las falar de seus negócios, enquanto contavam o dinheiro, ou enquanto esperavam, sem fazer nada, deitadas em suas camas.
(Novamente ela se cala, depois recomeça, com um ar de surpresa e espanto.)
TEMPLE
Eu pensava então no nosso dormitório, no colégio. O mesmo cheiro de mulheres jovens, todas pensando, todas, não num ou noutro homem, mas no homem. Aquelas mulheres pensavam mais calmamente, apenas. Eram menos excitadas, em suma, sentadas nos seus leitos momentaneamente vazios, para discutir as dificuldades da profissão. Mas não era comigo que elas discutiam, porque eu estava fechada no meu quarto, vinte e quatro horas por dia, sem ter nada que fazer a não ser passear de um lado para outro vestida na capa de peles, nos chinelos coloridos, nos "peignoirs" vistosos, sem ter ninguém para me ver, a não ser um espelho de seis pés de altura, e uma criada negra que ria ao tocar a seda da minha roupa de baixo, enquanto eu ia e vinha no quarto, sempre fechada, isolada, ao abrigo de tudo, em segurança no seio do pecado e do prazer, como mergulhada dentro duma sineta de mergulhadores a vinte braças sob o mar. Oh, sim, Popeye queria que eu me sentisse contente, compreendam. Mas eu queria estar somente contente. Foi preciso a viva força que eu me apaixonasse, como diziam minhas irmãs, as prostitutas.
GOVERNADOR
Apaixonasse?
STEVENS
Sim. (O governador olha Temple, que nada diz.) - Ela se refere ao rapaz que Popeye.
TEMPLE
(A Stevens.) - Cale-se.
STEVENS
Não, você está exausta. Devo ajudá-la. Pois esse Popeye levava, ele próprio, um rapaz. E esse rapaz...
TEMPLE
Gavin!
STEVENS
Esse rapaz era conhecido no seu meio pelo nome de Red. Era o leão de chácara dum clube dos arredores da cidade, o senhor sabe, o homem encarregado de expulsar os clientes bêbedos ou Recalcitrantes. Esse clube pertencia a Popeye, era o seu quartel-general. E... - (Ele hesita, depois dirige-se a Temple.) - E Popeye lhe levava Red no seu quarto. (Ao governador.) - O senhor compreende, não?
GOVERNADOR
Sim. Mas eu não vejo por que esse Popeye...
STEVENS
Deviam esmagá-lo, por um meio qualquer, com um pé de gigante, como se esmaga uma aranha! Porque ele não a prostituía. Oh, não, ele não a vendia. Seria insultá-lo, se o acussassem desse crime grosseiro, vulgar. Era, ao contrário, um purista delicado, um degustador, se posso dizer assim. Não, não a vendia. Dava-a a seu criado.
GOVERNADOR
Gavin! Será indispensável ir mais longe diante da Sr.a Stevens?
STEVENS
Sim. Você ainda não sabe tudo. E...
TEMPLE
Não. Deixe-me falar. Encontrei esse homem, Red, e não importa como o encontrei. O que importa é que me apaixonei por ele. De que espécie de amor, não sei ainda. O facto é que lhe escrevi cartas.
GOVERNADOR
Cartas de amor?
TEMPLE
Obrigada. Quero dizer: obrigada pelo amor. A verdade é que eu lhe escrevia cada dia que ele devia vir, e mais tarde quando os dois tinham ido embora, e muitas vezes ainda quando passavam dias sem vir...
GOVERNADOR
Um momento. Que foi que a senhora disse? "Quando os dois tinham ido embora?"
(Eles se observam. Temple cala-se.)
GOVERNADOR
Devo entender que esse Popeye estava presente no quarto em que Red e a senhora...?
STEVENS
Sim. Era para isso que ele levava Red. Era o que eu queria dizer quando falei de degustador.
GOVERNADOR
(A Temple.) - Bem. Continue, Sr.a Stevens. Estávamos nas cartas.
TEMPLE
As cartas. Sim. Eram lindas cartas. Quero dizer: bem escritas. (Fixando sempre os olhos do governador.) - O que eu procuro dizer, o que não consigo dizer... enfim, era esse género de cartas que uma mulher, depois de as ter escrito a um homem, ainda que oito anos antes, não deseja que seu marido leia, qualquer que seja a opinião que ele já tenha sobre o passado da esposa. (Ela faz um visível esforço.) - Excelentes cartas, e decerto melhores do que se poderia esperar duma estreante. Se o senhor as tivesse lido, perguntaria como uma jovem de dezessete anos poderia conhecer assim as palavras, as palavras exatas... Mas eu não tive necessidade de muitas lições. Eu tinha o dom. (Um tempo, e depois, secamente.) - Não sei quantas cartas escrevi, mas uma só teria sido bastante. Tudo veio daí.
GOVERNADOR
O crime de Nancy veio daí? Realmente? Explique.
TEMPLE
Sim. Decerto o senhor há de ter ouvido falar de chantagem. As cartas reapareceram, há dois anos. Como poderia eu reavê-las? Quando a gente é Temple Drake, o primeiro meio em que se pensa é naturalmente fornecer a matéria para uma outra série de cartas...
STEVENS
(A Temple, suavemente.) - Sim, tudo veio daí, mas é preciso dizer ao governador como veio daí.
TEMPLE
Pensei que já tivesse dito. Eu escrevi essas cartas. Depois, o homem a quem eu as escrevi morreu, e eu me casei com outro, e descansei. Ao menos, pensei ter descansado. Tive dois filhos, e, para ter alguém com quem falar, aluguei uma outra prostituta, que também pensava ter descansado. Acreditei até que esquecera a história das cartas, até que elas reapareceram. Percebi, então, que não as tinha esquecido, mas que nem mesmo eu tinha descansado...
GOVERNADOR
Esse tal Red, de que morreu?
TEMPLE
De morte natural. Quero dizer: de acordo com sua natureza. Morreu de um tiro dado de um automóvel que entrou numa ruazinha, atrás da casa, e quando ia subir ao meu quarto pela calha. Sim, tínhamos um encontro clandestino, o prjmeiro que Popeye não
soube. Foi a primeira, a única vez, em que acreditamos tê-lo enganado. Queríamos estar juntos, sós, somente nós dois, depois de tantas vezes em que não tínhamos estado sós. Tínhamos, finalmente um encontro de amor. Porque, se o amor existe, se essa palavra pode ter um sentido, que coisa significa senão o conhecimento mútuo dentro do silêncio, da intimidade, da ausência de vergonha? As pessoas não se amam quando sabem que estão nuas. E a gente sabe que está nua quando alguém, no mesmo instante, olha. Por isso queríamos estar sós, ao menos uma vez, uma única vez, para esquecer tudo que não era o nosso amor...
GOVERNADOR
"Nosso amor"? Red amava-a também?
TEMPLE
Ele me amava. Talvez porque eu o amasse e ele não esperasse por isso, talvez porque nunca tivesse imaginado ele próprio semelhante aventura, talvez porque imaginasse que aquilo era o que chamaria uma oportunidade, uma grande oportunidade. Ele ficava diante de mim, e por detrás dele o seu patrão, e ele me olhava, um pouco trémulo, sem poder falar-me das cartas que eu lhe mandava escondido; silencioso, porque sabia que não podia dominar a própria voz, mas seu rosto falava, e Popeye não podia vê-lo. Sim, quisemos viver ao menos uma vez esse amor de que estávamos seguros, e conseguimos esse encontro clandestino, nossa lua de mel, se posso falar assim... Afinal mataram-no no momento em que ele vinha só e para mim só! Mataram-no no momento em que ele mais pensava em mim, e eu nele, quando, um minuto mais tarde, teria estado comigo, no mesmo quarto, com a porta fechada a chave, somente nós dois enfim... E acabou. Foi como se tudo isto, Red, a casa, as mulheres, Popeye nunca tivessem existido. (Ela fala mais depressa.) - Depois, voltei para minha casa, quando Popeye foi preso por causa desse crime, e condenado à morte. Daí por diante nada me importava: nem meu pai, nem meus irmãos, que lá estavam à minha espera. Depois, passei um ano na Europa, em Paris. Ainda lá, nada me importava.
STEVENS
Mas Gowan foi a Paris naquele inverno, e vocês se casaram.
TEMPLE
(Docilmente.) - Sim. Na embaixada, e depois uma recepção no Crillon. Sem falar dum novo carro e uma vila mourisca em Cap-Ferrat, enfim, tudo que era preciso para desinfetar um passado americano. Mas na verdade, contávamos com outra coisa para a desinfecção. Pensávamos que o simples casamento bastaria, a simples cerimónia. Nada mais que nos ajoelharmos e dizermos: "Pecamos. Perdoai-nos." E então, seria a paz, o esquecimento, o amor, tudo em que até então eu havia fracassado. (Ela cambaleia uma vez mais, depois retoma a narrativa, com volubilidade, rapidamente.) - Amor... Talvez não seja uma palavra justa, mas pensamos também que estávamos reunidos por alguma coisa mais que o amor. Por essa tragédia que nos havia encadeado um ao outro, e onde tínhamos sofrido, um e outro. E depois, eu contava também com alguma coisa mais eficaz do que a tragédia e o amor para manter dois seres reunidos: o perdão. Sim, eu esperava o perdão recíproco. Mas, aí está: talvez seja fácil perdoar, mas é difícil consentir em ser perdoado.
STEVENS
Sobretudo quando se trata de um homem que rebenta de orgulho.
TEMPLE
Gavin!
STEVENS
Você o sabe. E sabe que a vaidade de seu marido destruiu tudo. Quando um ilustre aristocrata da Virgínia esquece de fechar a porta, e alguém o surpreende sentado na latrina, que é que o faz sofrer, senão a vaidade? Não, o perdão não estava nos seus hábitos: não era coisa suficientemente boa para ele. E, em vez de aceitar ser perdoado, começou a se perguntar, ao fim de um ano, se na verdade ele era o pai de seu filho.
TEMPLE
Oh, meu Deus! Meu Deus!
GOVERNADOR
Deixe-a falar, Gavin.
TEMPLE
Falar, é isto que realmente se chama falar. Faz tanto mal, falar? Mas agora será mais fácil, porque se trata de Nancy. Voltamos para Jefferson, para a nossa casa. Afrontando o escândalo, a vergonha, olhando as coisas de frente, corajosamente, para que não viessem mais assustar-nos, experimentando mesmo nos olharmos sem baixar os olhos... Oh, não, não posso mais! Conte-lhe, tio Gavin. j
STEVENS
Sim. (Ao governador.) - Procure imaginar os Gowans Stevens, jovens, conhecidos de todos, com a casa nova no melhor bairro, frequentando o clube mais fechado, e com banco na igreja mais aristocrata. E nasce o filho, o grande herdeiro, e eles contratam Nancy, ama-seca, preceptora, irmã, personagem principal, chame-a como quiser. (A Temple.) - Não é isto? Vamos, Temple, coragem!
TEMPLE
(Já agora alquebrada.) - Sim, eu era a princesa, ela a confidente. Na casa sem homens, ela me escutava, eu sonhava alto. Imagine: as longas tardes, o menino dormindo, e as duas irmãs, as duas antigas pecadoras, falando de seus assuntos, remexendo lembranças ainda quentes e bebendo coca-colas na cozinha silenciosa. (Ao governador, finalmente chorando) - Alguém com quem falar, Sr. Governador, todos precisamos disto! Não alguém com quem conversar, ou que nos aprove, mas que fique lá, em silêncio, escutando. Os assassinos, os loucos, os incendiários, se tivessem tido alguém que os escutasse, talvez houvessem ficado quietos! Oh, agora, deixem-me quieta, deixem-me quieta! (Ela desaba sobre si mesma.)
STEVENS
Vou contar-lhe o fim. Muito antes de nascer o primeiro filho, ela descobrira que o marido nada lhe havia perdoado, e tampouco queria ser perdoado, que acreditava já ter feito bastante desposando-a, que exigia constantemente sua gratidão, e que ela sabia que tudo estava perdido, que seu passado não cessaria nunca de pesar sobre os dois. Entretanto, quando veio o primeiro filho, ela descobriu uma esperança na inocência do menino. Alguma coisa dela, ao menos, não fazia parte da sua culpa. Alguma coisa, enfim, a que ela pôde entregar-se, de todo o coração, esquecendo-se de si mesma. Era como um armistício com Deus, no qual ela consentia em sofrer tudo, renunciar a tudo, até mesmo às mais simples alegrias, para que uma criança inocente fosse preservada da desonra e do terror. Em troca de sua renúncia, esperava apenas que ao menos Deus agisse com decência.
GOVERNADOR
O filho era de Gowan Stevens? Desculpe-me, senhora.
STEVENS
Sim. Mas meu sobrinho duvidou, ou pensou que duvidava, e tudo acabou novamente. Aquele menino, também a separava do mundo, e do marido, e lhe recordava seus erros. Ela não podia esquecer-se nele. (A Temple.) Foi então que você quis fugir.
(Temple faz um sinal com a cabeça.)
STEVENS
Mas o segundo filho, uma menina, chegou, e durante algum tempo Temple não soube mais como fugir. Mas também não podia mais permanecer naquele mundo onde acreditara esquecer seu passado, não podia mais suportar aquela respeitabilidade, aqueles homens de sociedade que perdoam sem perdoar, que sorriem no instante exato em que estão embriagados de ressentimento. Logo, ela esperava. Esperava a catástrofe, mas não sabia que fisionomia teria essa catástrofe. (Um tempo.) - Pois bem: A catástrofe tomou a fisionomia do irmão de Red. Chamava-se Peter.
GOVERNADOR
Compreendo. Tinha as cartas, e ameaçou-a.
STEVENS
Sim. Ameaçou-a. Ela não se contentou em dar-lhe dinheiro. Deu-se também.
(O governador olha Stevens.)
STEVENS
Sim. Ele queria outra coisa. E pensou, talvez, que conseguiria melhor ameaçar Gowan, se possuísse a sua mulher. Ela... - (Ele hesita.) - Pois bem: eu suponho que ela quis acabar com tudo... De qualquer modo, atirou-se aos braços desse Peter e quis fugir com ele.
GOVERNADOR
(A Temple.) - Por que fez isso?
TEMPLE
(Levanta-se, e fala com crescente violência.) - Ah, ao menos isto é claro, e posso explicar-lhe! Com esse chantagista eu poderia ao menos repousar. Repousar, sim, repousar da honestidade, da respeitabilidade, dos bons sentimentos. Depois de seis anos de perdão e de distinção, tinha encontrado um homem que não se preocupava com uma ou outra coisa. Um homem tão decidido, tão duro, tão brutal, tão perfeitamente imoral que daí tirava uma espécie de pureza, de integridade. Um homem que não se preocupava, afinal, com a reparação ou o esquecimento, mas que, se eu me metesse a pedir perdão, somente me esbofetearia e me atiraria na sarjeta, de modo que com ele eu podia repousar, sim, repousar por fim na certeza de que, mesmo na sarjeta, e espancada até a morte, ele não saberia nunca que tinha alguma coisa que me perdoar. Oh, não foi com ele que eu quis fugir, mas nele!
GOVERNADOR
(Depois de um tempo.) - Agora só falta que a senhora nos fale do crime. Conte-me o que Nancy fez em 13 de setembro.
TEMPLE
(Sempre de pé, mas acabrunhada pela sua explosão, vacilante, com um ar um tanto sonâmbulo.) - 13 de setembro, sim. Nancy, sim. Ela gostava de mim, ela ainda gosta, estou certa. E, principalmente, ela gostava de meus filhos, da inocência de meus filhos. Ela acompanhou tudo, sem dizer nada: sabia de tudo, me espionava, de todo o coração, como fazem os que se amam. Por um momento, acreditou que eu ia somente dar dinheiro a Peter, obter as cartas, e reencontrar a paz. Mas eu queria uma outra paz, o repouso no mal, a surdez definitiva do pecado. Numa palavra: fugir, queria fugir com Peter, reencontrar os longos dias da vida malsã. Consegui afastar Gowan e Bucky, para encontrar-me com Peter em minha casa. Quando Nancy percebeu o que eu ia fazer e que ia fugir, levar uma criança comigo para fazê-la viver com um homem como Peter, abandonar a outra, quis impedir. Começou por tomar-me o dinheiro e as jóias que eu tinha separado para fugir. (A luz e a cortina atrás de Temple começam a baixar. Temple agora falará na obscuridade.) - Foi na noite de 13 de setembro. Peter já estava lá em casa, e eu me preparava, sem saber de nada. Nancy nos espiava ainda. Quando compreendeu que eu iria embora de qualquer modo, custasse o que custasse, procurou o que podia fazer para me deter, para preservar as crianças e o futuro. Procurou cegamente, de todo o coração ainda, e não encontrou nada, a não ser... Oh, sim, estou certa de que foi na escuridão onde estava, atrás da porta, escutando-nos, na noite em que ela me descobria ávida de mal e de esquecimento, correndo para a degradação com meus filhos em que nem mais eu pensava, foi naquela noite que ela imaginou aquêle ato louco, terrível, inocente! Na noite de 13 de setembro, sim, espiando-me a mim e a Peter, Nancy...
FIM DO QUARTO QUADRO

QUINTO QUADRO
(A cortina levanta-se lentamente, mostrando a sala-de-estar dos Gowan Stevens. Nove e meia da noite. No dia 13 de setembro precedente. À esquerda, um armário aberto. Vêem-se roupas atiradas no chão, compreende-se que o armário foi furiosamente remexido. Sobre a mesa, ao centro, o chapéu de Temple, suas luvas, a bolsa, e também uma dessas sacolas que se usam para guardar objetos de crianças pequenas; duas outras valises, evidentemente pertencentes a Temple, cheias e fechadas, estão no soalho, perto da mesa. Tudo indica que Temple está prestes a ir-se embora, e que alguma coisa foi procurada em vão, mas freneticamente.
Quando a luz se reacende, Peter está de pé, diante da porta do armário, segurando a última roupa, um "peignoir". É um homem de cerca de 25 anos. Não tem ar de criminoso, de "gangster". Tem quase a aparência de um vendedor de automóveis ou de aparelhos domésticos que houvesse prosperado. Suas roupas são comuns, sem escândalo, como as de qualquer pessoa. Mas possui um ar conquistador, seguro de si mesmo. Bem apessoado, o tipo que agrada às mulheres, o género de homem com quem não se tem surpresas, porque se sabe exatamente o que ele vai fazer, embora se espere que desta vez não o faça. Uma criatura dura, não imoral, mas amoral. Veste roupa de verão, de tecido leve, o chapéu batido para a nuca. Remexe o "peignoir" vaporoso, depressa e sem jeito, deixa-o cair no chão, volta-se, vê que seus pés se embaraçaram nos outros vestidos já caídos no soalho; sem hesitar, desembaraça-se a pontapés, e permanece parado, olhando a desarrumação com uma espécie de desencantado desgosto.
Temple também está em cena, no mesmo lugar onde estava no fim do quadro precedente. Mas usa um leve capote aberto.)
PETER
Então, Nancy?
TEMPLE
Telefonei aos inquilinos dela. Não a viram desde de manhã.
PETER
Isto eu poderia te dizer antes! (Vê as horas no relógio de pulso.) - Vamos esperá-la em casa dela.
TEMPLE
(Junto à mesa.) - Por quê?
PETER
De qualquer modo, trata-se de trezentos dólares. Não te parece nada? Pois a mim, sim. Sem falar das jóias! Se ela as roubou, terá de devolvê-las, mesmo se for preciso queimar-lhe os pés com um cigarro! Ou que é que você propõe? Que se chame a polícia?
TEMPLE
Não. Não se canse. E você vá-se embora.
PETER
Ir-me embora?
TEMPLE
Sim, deixe tudo, fuja. O dinheiro desapareceu, e não irei com você. Você não tem nada mais a fazer senão esperar a volta de meu marido e recomeçar junto dele a sua chantagenzinha.
PETER
Quero o dinheiro e as jóias. E você, além disso.
TEMPLE
Você tem sempre as cartas.
PETER
(Procura num dos bolsos internos, tira dele um maço de cartas, atira-o sobre a mesa.) - Se você quer, fique com elas.
TEMPLE
Já te disse, há dois dias, que não quero.
PETER
Bem, mas isto era há dois dias!
(Eles se encaram por um momento. Depois Temple toma o maço de cartas, e estende a outra mão a Peter.)
TEMPLE
Me dá o teu isqueiro!
(Peter tira o isqueiro do bolso e estende a mão, mas sem avançar, de modo que ela tem de dar dois passos em sua direção. Depois, ela vai até a lareira, acende o isqueiro, que falha duas ou três vezes. Peter não se mexe. Ela permanece um instante imóvel, com o maço de cartas numa das mãos e o isqueiro na outra. Depois, voltando a cabeça, olha Peter. Eles se observam durante um instante.)
PETER
Vamos, queime! Quando eu lhe dei as cartas, outro dia, você recusou, para poder mudar de ideia! Queime agora! Depois de queimadas você estará livre de mim!
(Eles continuam se observando. Por fim, ela volta a cabeça. Ele ri, seguro de si mesmo.)
PETER
Vem!
(Ela apaga o isqueiro, volta-se, aproxima-se da mesa, onde coloca as cartas e o isqueiro, e avança em direção a Peter, que não saiu do lugar. No mesmo instante, Nancy aparece à porta da esquerda. Eles não a vêem. Peter toma Temple nos braços.)
PETER
Pra que fazer tudo isto, quando estamos tão bem juntos? (Ele a aperta ainda mais contra si.) - Hem, minha boneca?
TEMPLE
Não me chames assim.
PETER
(Apertando-a cada vez mais, acariciando-a, mas com alguma dureza.) - Red chamava você assim. Não sou igual a ele?
(Beijam-se. Nancy cruzou sem ruído a soleira da porta. Ela pára, olhando Peter e Temple. Traz agora o uniforme de empregada que se encontra em todas as grandes lojas, o uniforme padrão, mas sem touca e sem avental, debaixo dum capote leve, entreaberto. Usa um chapéu de feltro, completamente amassado, quase informe, um chapéu que deve ter pertencido a um homem. Peter afrouxa o abraço.)
PETER
Vem! Vamos sair daqui!
(Por sobre o ombro de Temple, percebe Nancy e tem um sobressalto; Temple sobressalta-se também, volta-se rapidamente, vê Nancy. Nancy entra na sala.)
TEMPLE
(A Nancy) - Que é que você faz aqui?
NANCY
Trouxe meu pé. Para o cigarro. Pode queimar.
PETER
Negra duma figa, será que ela tem o dinheiro? (Eles olham para Nancy, que não responde.) - Talvez, não. Vamos ao cigarro, já que ela faz questão (A Nancy.) - Então, macaca?! É pra isso que você voltou?
TEMPLE
(A Peter.) - Cale-se! Apanhe as malas e vá para o carro.
PETER
(A Temple, mas sem tirar os olhos de Nancy.) - Não, não, vamos primeiro acertar contas com ela.
TEMPLE
Saia! Eu me arranjo com ela. Ela devolverá tudo.
(Peter observa Nancy ainda uma vez; Nancy encara-os, mas sem vê-los; imóvel, como enfeitiçada, sombria, fechada, impenetrável. Depois dá de ombros.)
PETER
Bom. Mas recupere o dinheiro. Se não, eu mesmo vou achá-lo.
(Peter vai até à mesa, apanha o isqueiro, parece querer passar, mas novamente pára; depois de uma hesitação quase imperceptível, olha o maço de cartas.)
PETER
Talvez seja melhor que você não as esqueça.
TEMPLE
Anda.
Ele apanha as duas maletas, adianta-se para a porta, passando perto de Nancy, que continua a olhar fixamente diante de si.)
PETER
(A Nancy.) - Às suas ordens, sua porca, para te queimar os cacos! Até por menos de cinquenta dólares! Só pelo prazer.
(Apanha as duas bolsas com a mesma mão, abre a porta, dispõe-se a sair, pára, volta-se para Temple.)
PETER
Se você mudar de ideia, não estou longe.
(Acaba de sair, fecha a porta. No momento em que ela se fecha, Nancy fala.)
NANCY
Espere!
(Peter pára, começa a reabrir a porta.)
TEMPLE
(Rápida, a Peter.) - Pelo amor de Deus,
saia!
(Peter sai, fecha a porta. Nancy e Temple se olham.)
Fiz mal em esconder o dinheiro e as jóias para impedir que você fugisse. Talvez tivesse sido melhor dar o dinheiro a ele, quando encontrei. Ele já estaria em Chicago, sem pedir mais nada. Basta olhar para ele que a gente vê.
TEMPLE
Foi então você quem roubou? Mas isto não mudou nada.
NANCY
Quem é a ladra, eu ou você? Para começar, não foi você quem pagou os diamantes. E quanto ao dinheiro, você não passa duma mentirosa. Havia dois mil dólares, e você me falou de duzentos, e a ele de cinquenta. Não admira que ele não se esforce. Aliás, mesmo que fossem dois mil, pra ele era o mesmo. Que é que interessa a ele, que você tenha dinheiro ou não, depois que você tomar o carro? Ele sabe que basta esperar, basta agarrar você, agarrar até um pouco apertado, como eu vi, e você receberá então todo o dinheiro que for preciso, de seu marido ou de seu pai.
(Temple avança bruscamente e esbofeteia Nancy. Nancy recua) e nesse movimento, o dinheiro e a caixa de jóias caem do bolso de seu capote no chão. Temple pára, olha o dinheiro, as jóias. Nancy continua:)
NANCY
Êsse dinheiro imundo, foi ele que apodreceu tudo. Quando uma mulher é uma mulher de diamantes, e que tem um marido com dois mil dólares no bolso para os cigarros e o táxi, não é nada demais que alguém venha passar suas cantadas, e que esses safados caiam em cima como moscas em carne podre. Aquele lá - é um safado! Pode me bater! É um safado! Não é a primeira vez que vejo gente dessa espécie - e você também! Eu sei reconhecer, mesmo que você, você, se finja de esquecida. Você sabe que não adianta ele ter uma bela fachada, ele fede a maldade, ele vem do inferno. Se ao menos eu pudesse dar a ele esse dinheiro nojento e ele caísse fora!
TEMPLE
Experimente! Você verá!
NANCY
Oh, eu sei! Agora não são mais as cartas! Você quer cair de novo na boa vida! Eu já não sou bastante. Você quer coisa melhor, você precisa de sujeira, sim, da sujeira que já estava dentro da sua casa, já que você foi capaz de escrever essas cartas, que ainda podem fazer toda essa desgraça, oito anos depois! Você poderia ter conseguido essas cartas a qualquer hora. Mas você não quis. Ele mesmo quis dar, duas vezes. Você pouco estava se incomodando.
TEMPLE
Desde quando você me espiona?
NANCY
Desde sempre! Você nem mesmo precisava de dinheiro e de jóias para recusar as cartas! Uma mulher não precisa disso! Basta ser uma mulher para obter dos homens tudo o que quiser. Nós bem que sabemos disto. Você mesmo podia ter feito isto, aqui, dentro de casa, sem precisar mandar seu marido pescar. O que você aprendeu em Memphis podia servir ao menos para isto. E você assim ficaria perto dos seus filhos.
TEMPLE
Bonito! Uma puta pregando moralidade! Mas, afinal de contas, você pode dizer o mesmo de mim, não é? A única diferença entre nós é que eu recuso ser prostituta na casa de meu marido!
NANCY
Não estou falando de seu marido. Nem mesmo de você. Falo dos dois meninos.
TEMPLE
Eu também. Por que é que você pensa que mandei Bucky para a casa da avó? Porque pensei nas crianças, e para tirar daqui justamente a criança que, tendo aprendido a chamá-lo de papai, possa um dia ouvir dêle que não é seu pai... Já que você me espiona, com certeza já o ouviu dizer isto.
NANCY
(Interrompendo-a.) - Claro que ouvi! E ouvi você também! E você protestou. Você, afinal, se defendeu. Você negou. E não era por você, era pelo menino! E agora você abandona tudo, você foge, sem mais nem menos!
TEMPLE
Abandono?
NANCY
Sim, abandona. Você não verá Bucky nunca mais, você sabe bem, e você o abandona. Diga se não é verdade! (Temple não responde.) - Aí está. Você abandona Bucky! E agora - com quem vai deixar a outra?
TEMPLE
Com quem? Ela tem seis meses. Levo comigo.
NANCY
Claro que você não pode abandoná-la. Com ninguém. Nem mesmo comigo! Mas você não pode também levar com você uma criancinha de seis meses! É isto que eu quero dizer. Vamos, deixe que ela fique lá, no seu berço! Ela vai chorar um pouco, mas não se assuste, é muito pequena pra chorar muito alto. Ninguém vai escutar, ninguém vai acudir, principalmente com a casa fechada a chave, até a semana que vem, até que o Sr. Gowan volte, e aí então, é claro, ela já terá parado de chorar, e você então vai poder se divertir afinal!
TEMPLE
Dê-me a minha capa!
NANCY
(Toma a capa que estava sobre uma cadeira e entrega-a) - Mas é mais cómodo, não é?, levar a criança com você, e depois escrever ao Sr. Gowan, ou ao papai, para arranjar dinheiro, e, se aquele canalha achar que o dinheiro não vem depressa, então mandará você passear - você e o bebé! Por que então não deixar a criança no portão duma casa? E aí acabaram-se as preocupações pra você! Você estará livre. Você vai poder então ir muito bem fazer as suas orações em Memphis!
(Temple estremece, mas domina-se).
NANCY
Vamos, bata-me, bate-me! Ou então chame o canalha, lá fora, e diga que ele use o cigarro. Eu disse, a vocês dois, que tinha trazido meu pé. Aqui está! (Ela levanta ligeiramente um pé.) - Já experimentei tudo; posso experimentar isto também!
TEMPLE
Pela última vez, cale-se!
NANCY
Eu me calo.
(Ela não se move, não olha Temple. Há uma ligeira mudança na sua voz, na sua atitude, embora não seja senão mais tarde que se perceberá que ela não se dirige mais a Temple neste momento.)
NANCY
Eu experimentei tudo que pude vão ver!
TEMPLE
Ninguém te desmentirá. Você me ameaçou com meus filhos, com meu marido. Você chegou mesmo a roubar o dinheiro da minha fuga! Sim, ninguém poderá dizer que você não tentou tudo. Se bem que, no fim, você tenha levado o dinheiro. Apanhe-o!
NANCY
Você disse que não precisava mais dele.
TEMPLE
Não, não preciso mais. Apanhe-o.
NANCY
Eu também não preciso mais.
TEMPLE
Não importa, apanhe-o! Quando você o entregar ao Sr. Gowan, pode retirar dele o seu salário da próxima semana.
(Nancy abaixa-se, apanha o dinheiro, as jóias, que ela recoloca na caixa, e deposita tudo sobre a mesa. Temple acalmou-se, chama:)
TEMPLE
Nancy! (Nancy levanta a cabeça, olha-a.) - Desculpe... quero dizer, desculpe de ter batido em você. Você sempre foi boa para meus filhos e para mim, você me ajudou a viver durante muito tempo. Você tentou nos unir, mesmo alguém sabendo, a cada minuto, que nós não podíamos ficar unidos, por simples decência.
NANCY
Oh, nisto eu ainda não acredito! E além disso, não falo de sua vida de casada, nem de decência, nem de você, nem de mim... Mas ainda assim eu lhe agradeço ter-me tomado como empregada e ter-me falado...
TEMPLE
Não fale assim. Eu era quase feliz junto de você...
NANCY
Estou falando a respeito de nossas crianças!
TEMPLE
Já lhe disse que não falasse nelas.
NANCY
Não posso. É preciso que eu peça ainda uma vez. Você vai fazer isso? Você vai fazer?
TEMPLE
Não posso fazer outra coisa.
NANCY
Você sabe que sou ignorante. É preciso que você diga, você, claramente, com palavras que eu possa compreender. Diga: "Vou fazer isso!"
TEMPLE
Você me ouviu! Sim, vou fazer isso!
NANCY
Com ou sem dinheiro?
TEMPLE
Com ou sem dinheiro.
NANCY
Fazendo mal a seus filhos? (Temple não responde.) - Seu marido já pensa que Bucky não é seu filho. Se você for embora, ainda acreditará mais nisto, e vai detestá-lo, vai maltratar o menino. E a outra? Você vai entregar a um crápula, que fará a família pagar até que não tenha mais nada, e então jogará a menina na rua. Você quer que eles sofram? Ou que eles morram? Você quer que eles sintam vergonha, como nós, como você e eu? No entanto, você sabe o que é isto, e você nem mesmo procura proteger seus filhos! Você é mais malvada que eu, e no entanto, Deus bem sabe que eu não achava que isto fosse possível. Não, você não sabe nem mesmo o que uma mulher suja como eu pode conhecer. Você não sabe que as crianças não devem envergonhar-se, nem ter mêdo. É contra isto, só contra isto, que devem ser protegidas. Todas. Ou todas que pudermos proteger. Uma só, se não pudermos fazer melhor. Mas fazer tudo por essa. E você vai renegar as duas, deixar que vivam na imundície que nós, você e eu, conhecemos bem. Todas as duas sem salvar uma só? (Elas se encaram.) - Se você tem coragem de fazer isto, também há de ter coragem para me dizer!
(Temple olha-a. Ouve-se uma buzina impaciente de automóvel, fora.)
TEMPLE
Sim, vou fazer. As crianças não importam. E agora, vá-se embora!
(Temple anda rapidamente até a mesa, toma duas ou três notas do monte que ali está, entrega-as a Nancy, que as segura. Apanha o resto do dinheiro, a bolsa, abre-a. Nancy atravessa a sala, tranquilamente, entra no quarto das crianças. Com a bolsa aberta numa das mãos e o dinheiro na outra. Temple olha Nancy.)
TEMPLE
Onde é que você vai?
NANCY
(Dando ainda um passo.) - Ver se ela não precisa mais de mim.
(Nancy pára, volta-se com um olhar tão estranho em direção a Temple, que esta interrompe o movimento que fazia para colocar o dinheiro na bolsa, e olha Nancy atentamente. Quando Nancy fala, é no mesmo tom que antes. Só depois é que se entenderá a significação de suas palavras.)
NANCY
Experimentei tudo. Fiz tudo que pude. Você vê?
TEMPLE
(Ordena.) - Basta! Acabou.
NANCY
(Tranquilamente./ - Acabou. Eu me
calo.
(Ela sai pela porta que dá para o quarto das crianças. Temple acaba de colocar o dinheiro na bolsa, que fecha e deixa sobre a mesa. Depois, volta-se para a bolsa da criança, que ela arruma, verificando rapidamente o conteúdo; toma a caixa de jóias, mete-a na bolsa, fecha a bolsa. Acabou de fechar a bolsa quando Nancy sai silenciosamente do quarto, atravessa a sala, alcança a porta oposta, pela qual entrou da primeira vez. Temple acom- panha-a com os olhos.)
TEMPLE
Nancy! (Nancy pára, sem se voltar.) - Não pense muito mal de mim! Você é minha irmã, como antes.
(Nancy espera, imóvel, olhando diante de si, como sem ver. Quando Temple interrompe a fala, ela recomeça a marcha em direção à porta.)
TEMPLE
Se algum dia se souber de tudo isto, eu direi a todo o mundo que você fez o que pôde. Que você experimentou tudo. Você tinha razão: não era por causa das cartas. Era eu mesma! Eu, e só eu sou a responsável! Eu sou a malvada! (Nancy continua a andar.) - Até à vista, minha querida. (Nancy atinge a porta.) - Você tem a chave da casa, vou deixar o seu dinheiro em cima da mesa. Você pode apanhá-lo... (Nancy sai.) - Nancy!
(Nenhuma resposta. Temple permanece um momento a olhar a porta vazia; apressa-se, toma o dinheiro que Nancy deixou, olha em torno de si, vai até a escrivaninha em desordem, apanha aí um peso de papeis, coloca-o sobre o dinheiro. Depois, anda rapidamente. Decidida, apanha a coberta da mesa, dirige-se para a porta do quarto-de-crianças, sai por ela. Um segundo ou dois, e logo dá um grito pungente, enquanto Nancy reaparece na outra porta, ^s luzes vacilam, começam a diminuir até que a obscuridade é completa, envolvendo aquele grito, que continua.)

FIM DO QUINTO QUADRO

SEXTO QUADRO

(O pano vai levantar-se mostrando o gabinete do governador. Três horas da manhã. O governador não está mais. Stevens está de pé, perto de Temple, ajoelhada, inclinada sobre si mesma. Stevens permanece em tal posição que esconde parcialmente Gowan, o qual se encontra agora de pé, no lugar onde se achava o governador. Temple ignora que o governador saiu.)
TEMPLE
(De joelhos, o rosto ainda escondido, começa a falar ainda na obscuridade.) - Foi tudo. A polícia veio. Sentada numa cadeira da cozinha, no escuro, Nancy repetia: "Oh, senhor, fui eu!" Nós estávamos uma diante da outra, eu em pé, ela sentada, todas as duas no escuro, gemendo silenciosamente de dor e de angústia, sozinhas mas juntas, perdidas para sempre mas juntas. E então eu obedeci a tudo que ela comandava. Telefonei, chamei a polícia. Ela veio. "Fui eu, senhor...", Nancy dizia. E eu me calei até hoje, fiquei calada até hoje. (A luz se acende totalmente. A cortina se ergue devagar.) - Eles a levaram, ela se foi sem me olhar. E, na cela da prisão, ela repetia: "Fui eu, fui eu..." Sim, foi ela. Mas quem era a verdadeira criminosa, a que tinha matado, senão eu, eu, por quem ela vai morrer?!
(Stevens inclina-se, toca o braço de Temple, como para ajudá-la a se levantar; ela resiste, mas sempre sem levantar a cabeça.)
STEVENS
Levante-se, Temple.
(De novo ele tenta levantá-la; mas, antes que o consiga, ela se ergue, com o rosto ainda voltado para o outro lado da escrivaninha, e como cega. Ela levanta a mão para o rosto, quase como uma criança que vai chorar; mas é apenas para abrigar os olhos da luz.)
TEMPLE
Agora não demora mais, não é tio Gavin? Tudo que o governador tem a dizer, afinal, é não. (Sempre sem voltar a cabeça, sem olhar, embora acredite estar falando ao governador.) - Porque eu estou certa de que o senhor não quer salvá-la! Oh, responda, responda! Basta uma palavra, desta vez!
(Volta-se e vê Gowan, que entrou enquanto ela falava, e que se encontra agora no lugar do governador. Ela pára, suspensa, imobiliza-se.)
GOWAN
Porca!
TEMPLE
(Indo em direção a Stevens.) - Por que você recorre sempre a essas mentiras? Que é que o leva a isto? A justiça, de que você fala tão bem? Por que não? Não fui eu a primeira a começar a mentir? (A Gowan.) - Você não precisava esconder-se. Eu teria falado também diante de você.
GOWAN
Nós devíamos ter-nos escondido um do outro muito antes. Devíamos tê-lo feito há oito anos; não em gabinetes como este, mas em dois poços de mina abandonados nas duas extremidades da terra. (A Stevens.) - Você está contente, não? Que nome já deu você a isto? Ah, a verdade. (Olha Temple.) - Como é bela a verdade!
STEVENS
Desta vez, vou pedir que você se cale.
GOWAN
Por falar em verdade, onde estão as cartas? Suponho que o canalha vai agora tentar vendê-las a mim, diretamente. Não se compra muito caro uma lata de lixo. (Dá a volta pela escrivaninha, dirigindo-se para a porta pela qual entrou.)
STEVENS
Estão comigo. (Temple olha-o, estupefaCta. Gowan pára. A Temple:) - Você não se lembra? Nancy estava no quarto, quando você voltou. As cartas estavam sObre a mesa. Ela apanhou-as, e, mais tarde, entregou-as a mim.
GOWAN
(Começa a rir, de modo duro, sem graça, e depois loucamente.) - Então, agora está tudo em ordem! A pecadora confessou o pecado, o chantagista falhou, a desinfeção é perfeita. Claro, uma criancinha foi entregue a uma louca que a matou pensando que isto consertava tudo. Mas, afinal de contas, essa idiota tinha também certa lógica. Criança por criança, é preciso pagar um pouco pela alegria de viver com uma mulher que não encontra repouso senão na cama dum chantagista. Obrigado, meu Deus, obrigado, santa Nancy, por terem matado minha filha para que eu possa continuar a gozar a virtude de minha mulher. (Ri, como acima. Temple senta-se, rija, olhando diante de si, ausente.) - Impecável, realmente. Tudo se arranjou em todos os pormenores.
STEVENS
Há ainda uma coisa que não está arranjada.
GOWAN
Bravo! Então ainda não paramos de nos divertir? Quem é que ainda vai morrer, para nos distrairmos?
STEVENS
Nancy.
GOWAN
Nancy? Ora, vamos! Será enforcada, é claro, pendurada pelo pescoço, e espero que estale bastante. Assim, pelo menos uma prostituta em cada duas pagará sua dívida. É uma proporção honesta. Não se pode pedir mais à misericórdia de Deus. (Olha Temple com ódio e angústia.) - Aliás, é preciso assentar outra coisa ainda. Eu gostaria de saber, por exemplo, o que havia nessas famosas cartas. Já que estamos na hora da confissão, devo confessar que Temple me encantou com o que disse. Vejam bem: deve ser diabólicamente excitante, nos detalhes, quero dizer. Sobretudo porque, no curso de nosso casamento, ela usou comigo uma outra linguagem, perfeitamente decente, imagine, uma linguagem que eu chamaria de presbiteriana, se é que se pode ser presbiteriano no momento de fazer filhos.
STEVENS
Cale-se, Gowan!
GOWAN
E eu, naturalmente, pensava que isto era efeito de sua educação, até mesmo de suas duas educações, a do colégio e a do bordel, e que o esforço que ela fazia para esquecer a segunda levava-a a se lembrar demais da primeira. Em suma, comigo ela passava nos exames, com o outro... (Diante de um movimento de Stevens.) - Bom, bom, caro mestre, acalme-se! Mas confesse que foi pena. Uma vez que eu fui o culpado de levá-la a Memphis, e que uma coisa dessas não se esquece, absolutamente, teria sido da mais pura justiça que eu recebesse compensações na intimidade, um pouco de lirismo, - entende o que quero dizer? - que eu colhesse ao menos os frutos dessa brilhante educação horizontal que contribuí a dar-lhe, por interpostas pessoas, é verdade. Mas não, eu era apenas o marido. Eu consertava um remorso, e por conseguinte só tinha direito a uma virtude arrependida. É inútil dizer, caro mestre: não é nada engraçado uma virtude arrependida diàriamente, enquanto uma puta de verdade é muito mais fogosa na cama.
STEVENS
Gowan eu o esmurro, se você continua.
GOWAN
VOU continuar, sim, porque a virtude diz respeito a mim, ela era para meu uso exclusivo! (Bruscamente, ele urra e chora ao mesmo tempo, gritando em direção a Temple.) - Com os outros, debaixo dos outros, ela se ativava, com a boca cheia de palavras sujas!
(Stevens atira-se sobre êle. Gowan pára-o e imobiliza seu braço).
GOWAN
Não se canse, Gavin! (Empurra-o para trás.) - Depois de oito anos, voltaram-me a coragem e a força. E vou usá-las para limpar minha vida a meu modo. (Olha-os, e fala de modo surdo.) - Eu odeio todos vocês. (Ri sarcasticamente. A Temple) - Adeus, boneca.
STEVENS
Comece por limpar a sua desagradável vaidade.
GOWAN
Também ela, pode estar certo. (Dirige-se para a porta.)
TEMPLE
(Levantando-se bruscamente.) - Onde vai você?
GOWAN
Embebedar-me. A menos que, depois de oito anos, tenha esquecido como fazê-lo. Ou será que você tem outra sugestão?
STEVENS
Que é que você fez de Bucky?
GOWAN
Ah, sim! O sobrevivente! Está em casa, com sua mulher. Não está seguro? Sua mulher também mata crianças? (Dirige-se, duro, para a porta.)
TEMPLE
Gowan! Não me abandone! (Ele não responde. Sai.) - Oh, meu Deus!
STEVENS
Venha.
TEMPLE
(Sempre sem se mover.) - Amanhã. Amanhã, e ainda amanhã.
STEVENS
Sim, amanhã, e será preciso recomeçar. Ele arrebentará de novo o carro, e será preciso perdoá-lo durante oito anos até que encontre outra coisa para arrebentar. (Toma-lhe o braço.) - Venha, Temple, é muito tarde.
TEMPLE
(Resistindo.) - Que disse o governador?
STEVENS
Disse não.
TEMPLE
Explicou por quê?
STEVENS
Ele não tem direito de agraciá-la.
TEMPLE
Não tem direito? Um governador de estado! A quem a lei dá plenos poderes para perdoar, ou para dar um "sursis"?
STEVENS
Se houvesse somente a lei, eu poderia alegar a loucura, em vez de trazer você até aqui.
TEMPLE
E trazer o pai também, embora eu ainda não compreenda como. (Olha-o.) - Ah, era isto a válvula que escapava, e a parada no pOsto de gasolina, para trocar a roda. Você lhe telefonou, e Ele teve tempo de vir. E tudo isto para nada, pela verdade, pela justiça, para nada, nada, já que de qualquer modo ela vai morrer.
STEVENS
O governador não falou de justiça. Falou de uma criança, e do futuro, e da hipótese de que você e Gowan fiquem perto do menino. Nancy não hesitou em sacrificar uma peça do jogo para salvar isto, a recorrer ao único meio de que dispunha, a sua própria vida degradada, e perdida.
TEMPLE
Eu abandonei tudo, tudo, inclusive as crianças. Nancy lhe disse.
STEVENS
Nancy fez o que pôde para que você não abandonasse nada mais. Vai prová-lo sexta-feira de manhã.
TEMPLE
Sexta-feira! Oh, dia negro! Gavin! É o dia da desgraça! Ninguém, ninguém viaja nesse dia! Ah, se ele a tivesse agraciado, tudo teria acabado, Gowan poderia escorraçar-me, e eu poderia ir-me embora. Mas é tarde demais, para sempre. E agora, é preciso continuar, amanhã, e amanhã, sempre...
STEVENS
Vamos, Temple. Vamos embora.
TEMPLE
(Resistindo.) - Diga-me exatamente o que ele respondeu. Não foi esta noite, eu o sei... Ou teria dito ao telefone, e não precisaríamos ...
STEVENS
Há oito dias ele me disse.
TEMPLE
Quando você me telegrafou? Que foi que ele disse?
STEVENS
Que o derrisório privilégio de sua função em nada pesava na balança, contra o incrível gesto de Nancy. Que ele não podia sozinho anular o que ela tinha buscado, pagar com a sua pobre vida perdida e sem valor.
TEMPLE
(Atordoada.) - Boa, também, boa e meiga. Assim, não foi nem mesmo na esperança de salvar-lhe a vida que eu vim aqui a essa hora da noite? Não foi nem mesmo para ouvi-lo dizer que ele já tinha decidido não salvá-la, mas somente para me confessar a meu marido, diante de dois estranhos, confessar uma coisa que eu tinha passado oito anos a sofrer para que meu marido não soubesse. É isto, então, o sofrimento?
STEVENS
É isto, e do fundo do coração eu lhe peço que me perdoe de tê-la trazido aqui. Mas era preciso, para que Nancy não ficasse só, para que seu gesto, mesmo louco, seja útil, e sirva ainda, além da sua morte, para proteger um menino e salvá-lo do abandono. Foi isto que você veio fazer aqui.
TEMPLE
Bem. Então eu o fiz. Podemos voltar para casa, agora?
STEVENS
Sim. E iremos ver Nancy.
TEMPLE
Iremos vê-la e dizer-lhe que ela será enforcada.
STEVENS
Ela não quer ser agraciada. Mas talvez não possa impedir-se de esperar.
TEMPLE
Nós iremos vê-la. Faremos também isto.
(Ela se dirige para a saída, cambaleia, parece tropeçar, avança ainda um pouco. Stevens quer dar-lhe apoio. Temple se desvencilha De seu braço e continua.)
TEMPLE
(Sem se dirigir a ninguém, ausente.) - Para salvar minha alma... se é que eu tenho alma... se é que há um Deus para salvá-la... e se é que ele deseja ao menos salvá-la...

FIM DO SEXTO QUADRO

SÉTIMO QUADRO

(Interior da prisão. Dia 12 de março. Dez horas e meia da manhã. - Parlatório das visitas da prisão, no primeiro andar. A porta da esquerda, de pesadas grades, dá acesso à secretaria. Uma só janela, fortemente gradeada, na parede do fundo, dando para a rua. Estamos no meio de uma manhã de um dia ensolarado. A porta da direita abre-se, com o choque duma fechadura de ferro, roda para trás. Stevens entra, seguido do guarda da prisão. O guarda está em mangas de camisa, sem gravata, e traz o porta-chaves preso a um anel de ferro, junto da perna, como um camponês traz a lanterna. Fecha a porta atrás de si. - Stevens pára à entrada. O carcereiro fecha a porta.)
SR. TUBBS
Aqui estamos. Vou buscar a prisioneira.
STEVENS
Não. Espere até que chegue o Sr. Gowan Stevens. O senhor deu as ordens?
SR. TUBBS
Sim. Minha mulher indicará o caminho. Além disso, posso esperá-lo no escritório.
STEVENS
Não. Diga-me antes como está a prisioneira.
SR. TUBBS
Uma imagem, senhor advogado! Quieta como uma imagem. "Sim, senhor." "Não, senhor." Quem havia de acreditar que essa negra imunda assassinou...
STEVENS
Ela lhe disse que nos esperava?
SR. TUBBS
Não. Para mim, ela se prepara.
STEVENS
Prepara-se?
SR. TUBBS
De acordo com o regulamento. Amanhã de manhã. Uma formalidadezinha como esta exige reflexão. A prova é que ela pediu um padre.
STEVENS
Não lhe falou da possibilidade de ser agraciada?
SR. TUBBS
Agraciada? Nenhum governador ousaria perdoar uma assassina de criança. Nossos concidadãos amam a justiça; poriam fogo à prisão. Aliás, a não ser ontem, o senhor a visitou todos os dias da semana. Se ela tivesse alguma coisa a dizer, diria ao advogado, não ao guarda. (Olha Stevens com curiosidade.) - É verdade, doutor, que o senhor, anteontem de noite, cantou com os negros presos?
STEVENS
É verdade.
SR. TUBBS
Então o senhor gosta de cantar?
STEVENS
Não. Mas isto me ajudava.
SR. TUBBS
Bem, doutor, afinal de contas a Constituição diz que somos todos livres. Mas então é preciso acreditar que todos têm necessidade de ser ajudados, porque não param de cantar, nem de noite. Isto não é uma prisão, mas uma aula de ópera. Aliás, todos barítonos. É monótono. Não sei se o senhor é como eu, doutor, mas eu gosto dos baixos. Acho que a gente deve pedir ao "sheriff" para prender
um baixo, para que a aula fique completa. O senhor também, doutor: o senhor é barítono.
STEVENS
Sou.
SR. TUBBS
Pior! Eles dizem do senhor: "É um bom branco: ele canta." Os brancos maus, ao que parece, não cantam nunca. Eles têm lá suas ideias, não é verdade, doutor? Sem contar que têm razão de ser gratos ao senhor. Afinal de contas, o senhor não somente defendeu uma negra, mas defendeu-a contra a sua própria família, e acontece que essa boa negra é a assassina de sua sobrinha. Raramente se vê isto, e eu...
STEVENS
O senhor só tem negros aqui?
SR. TUBBS
Mais ou menos. Aliás, de fora o senhor pode ver as mãos deles.
STEVENS
As mãos?
SR. TUBBS
Sim. Por entre as grades. Não é possível vê-los, mas vê-se as mãos negras, não batendo, nem se agitando, mas assim, apenas pousadas entre os intervalos das grades. Quando volto da cidade, de tarde, olho as janelas e conto as mãos. E aí fico tranquilo. Estão lá.
STEVENS
Eles ficam quietos?
SR. TUBBS
Sim. Até Jef. E no entanto ele lhe deu trabalho! O senhor se lembra?
STEVENS
Não.
SR. TUBBS
Como não? A mulher dele tinha acabado de morrer. Fazia 15 dias que se tinha casado. Ele a enterrou. E depois, procurou andar de noite pelo campo, para procurar o cansaço e o sono. Nada... Então, procurou embriagar-se para dormir, Também nada... Então procurou brigar. Depois cortou a garganta dum branco, com uma navalha, durante um jogo de dados. Aí, sim, pôde dormir! Durante pouco tempo. Foi assim que o "she- riff" o encontrou, dormindo na varanda da casa que tinha alugado para se casar, para viver, para a velhice. Infelizmente, o "sheriff" o acordou e o trouxe aqui; e de repente foi preciso o "sheriff", eu e mais cinco outros ne-
gros presos para derrubá-lo e segurá-lo enquanto o prendíamos com correntes e algemas! Ficou deitado no chão, e mais de meia dúzia de rapazes o seguravam, cansados, para impedir que ele se levantasse... E imagine o que ele dizia? Ele dizia: "Não posso parar de pensar, não posso parar de pensar."
STEVENS
E agora?
SR. TUEBS
Agora não pensa mais. Fica o dia inteiro com as mãos nas grades, sem olhar para fora. Fica olhando a parede. De vez em quando, muda as mãos de lugar entre as grades.
STEVENS
Ele canta?
SR. TUBBS
Não, esse não canta. Acabou. Tudo nele está quieto. Na prisão, é engraçado, gosto mais dos negros do que dos brancos. Os brancos não estão nunca contentes. Têm sempre alguma coisa a reclamar. Criticam. Os negros, ao contrário, no fim de um ou dois dias, se instalam. Estão em casa.
(Batidas à porta. Entra Gowan.)
SR. TUBBS
Vou esperar a Sr.a Stevens. Bom-dia, senhor. (Sai.)
GOWAN
Por que você pediu que eu viesse? STEVENS
Antes de tudo, queria dar-lhe isto. (Estende-lhe um pacote de cartas.)
GOWAN
(Olhando o pacote.) - Que é isto? STEVENS.
As cartas. Pediram-me que as entregasse a você.
GOWAN
Quem?
STEVENS
Que é que isto importa a você? Você sabe. Espero que você saiba o que fazer.
GOWAN
Você sabe?
STEVENS
Queimar sem ler.
GOWAN
Ler! (Ri um riso mau.) - É claro, um cavalheiro não pode ler esse género de cartas, mesmo que seja para se informar dos dons literários de sua esposa. Mas será que eu sou um cavalheiro?
STEVENS
Você pode fazer a prova agora. Esqueça-se do cavalheiro. Basta ser um homem.
GOWAN
Você tem mesmo um ar de quem sabe o que é um homem! Felicitações! Quanto a mim, tenho minhas dúvidas sobre o assunto. (Caminha em direção à porta.) - Vou-me embora. Não quero encontrar Temple.
STEVENS
Queria pedir que a esperasse e ficasse a seu lado enquanto ela fala com Nancy.
GOWAN
Absolutamente. Não quero ver nehuma das duas.
STEVENS
Talvez Nancy ajude vocês.
GOWAN
Não diga! A quê?
STEVENS
A perdoar e ser perdoado.
GOWAN
E ainda por cima você sabe o que é o perdão! Com franqueza, você é um campeão.
STEVENS
(Violentamente.) - Se depois de ter escutado e visto sua mulher durante a visita ao governador, você ao menos não sabe o que é sofrimento, é porque você é o último dos homens.
GOWAN
(Olha-o subitamente, seu ar é suplicante. Sacode a cabeça e fala surdamente, sem olhar Stevens.) - Se eu fosse o último dos homens, tudo estaria salvo. Mas não, eu sou um homem entre outros. (Volta-se violentamente.) - Ah, não sei de nada mais, não sei de nada mais!
(Stevens vai em direção a ele, e toma-lhe o braço.)
GOWAN
Vou-me embora, Gavin. Peço perdão a todos.
STEVENS
Vá ver Bucky. Queime as cartas. Depois, talvez você volte.
(Gowan hesita, vai sair, mas a porta está fechada. Ruído de chaves. Entra o Sr. Tubbs.)
SR. TUBBS
Desculpem, mas... (Gowan afasta-se e sai. O Sr. Tubbs dirige-se a Stevens.) - Vigoroso, o moço... Fechei por hábito. Não havia desconfiança, creia, doutor.
STEVENS
Acredito.
SR. TUBBS
Mas aquele moço é desconfiado. Vê-se. Veja, ele tem razões para desconfiar. Olhe, eu tenho um tio que perdeu a mulher num acidente de automóvel. Pois bem: depois disso, desconfiava de tudo. Por exemplo: quando recebia uma carta, ficava olhando, rodando na mão, sem abrir, sentava-se diante dela, com a testa franzida. "Que será isto, ainda por cima?", perguntava. Para encurtar: ficou desconfiado. Depois, adoeceu. Recusava os remédios, por desconfiança. E morreu. Acredite no que eu digo, doutor: um pouco de confiança ajuda a viver.
STEVENS
(Enfadado.) - Gostaria que o senhor fosse receber a Sr.a Stevens.
SR. TUBBS
Decerto... Pobre senhora...
(Batem à porta. Stevens tem um gesto de impaciência e vai abrir. Entra Temple.)
SR. TUBBS
Bom-dia, Sr.a Temple. Esteja em sua casa. É um modo de dizer. O que quero dizer é que estou contente de recebê-la. Quer que minha mulher lhe traga uma xícara de café?
TEMPLE
Obrigada, Sr. Tubbs. Podemos ver Nancy agora mesmo?
SR. TUBBS
Decerto. Ela ficará contente de vê-la. Acho que ela deseja lhe pedir perdão. É preciso que ela se sinta bem. Para amanhã. (Sai à esquerda.)
TEMPLE
(A Stevens.) - Pedir perdão? A mim? Como é que se pode djzer uma coisa dessas? Fale... Como?
(Nancy entra pela porta do fundo, seguida do Sr. Tubos. Nancy pára a dois passos da porta. Está vestida como no ato anterior.)
SR. TUBES
Pronto, doutor. Fiquem à vontade.
STEVENS
Não vamos demorar.
(O Sr. Tubbs sai; Nancy, impassível, olha os visitantes.)
TEMPLE
(Vai em direção a Nancy, toca-a, e depois pára.) - Nancy! Você está aqui, veja, e eu venho da cidade... Você ficará aqui, e eu andarei, livre, pelas ruas.
NANCY
Assim é que deve ser. (A Stevens.) - O senhor deu as cartas ao Sr. Gowan?
(Temple vai falar, mas Stevens corta a palavra.)
STEVENS
Sim, exatamente como você pediu.
TEMPLE
(Atordoada.) - Você lhe deu as cartas? Por que? Para que mais essa imundície?
Para que ele queime.
TEMPLE
Ele já as leu.
NANCY
Não leu. Já queimou.
TEMPLE
Ninguém, no seu lugar, deixaria de lê-las. Eu o sei. Vejo claro agora. Agora tenho os olhos abertos.
NANCY
Há talvez uma porção de coisas que êle é capaz de fazer. Mas mesmo se esforçando, ele não pode ler as cartas que sua mulher mandou a outro homem. Ele queimou.
TEMPLE
Você mente! Como é que você pode mentir, aqui, aqui?
STEVENS
Chega, Temple. Aqui, justamente, ela merece que você a escute.
NANCY
Se ele tivesse lido, teria ido embora, para toda a vida. Há palavras, assim, que a gente não pode esquecer. Mas ele queimou logo. Ele não deixará você mais, você nem Bucky. Só se você for embora.
TEMPLE
Não posso fazer mais nada, nada, nunca mais! A única coisa que decidi sozinha foi vir da Califórnia. Mas era tarde demais.
NANCY
Sim, mas, de qualquer modo, você veio, ontem... E eu sei onde vocês dois foram... (Aponta Stevens com o dedo.) - ... os dois. Foram ver o prefeito. Que é que ele disse?
TEMPLE
Oh, meu Deus! O prefeito! Não, o governador, em Jackson! Naturalmente, você percebeu, quando viu que o Sr. Gavin não estava aqui ontem, não é verdade? A única coisa que você não pode saber foi que o governador, o Sr. Gavin e eu mal falamos de você. O motivo pelo qual nós fomos vê-lo não era para suplicar, para convencer, mas porque esse era o meu direito, meu dever, meu privilégio... Não me olhe, Nancy.
NANCY
Não estou olhando. Aliás, está tudo bem. Eu sei o que o governador respondeu. Eu podia ter dito ontem de noite para poupar a viagem. Eu devia ter mandado um recado, assim que soube que você tinha voltado, desde que eu soube que você e ele...
(Novamente, ela mostra Stevens com o dedo, e com um movimento de cabeça, com a mão dobrada através do estômago, como se trouxesse ainda o avental:)
NANCY
Sim, eu devia ter evitado a viagem, essa dor. Não fiz. Mas tudo está muito bem...
TEMPLE
Era preciso fazer essa viagem. Se eu não fosse lá, se eu não tivesse falado... eles te enforcariam da mesma maneira. Por que é que você não falou?
NANCY
Não sei. Porque, de qualquer modo, eu esperava. Um milagre, talvez? Mas por que haveria de haver milagre para mim? Eu esperava, sim! Isto é que é o mais duro, a gente não pode deixar de esperar. É a última coisa que o pobre pecador pode abandonar, talvez porque é tudo que ele ainda possui. Ele se agarra, se agarra... Mas agora, não há mais milagre, não há mais esperança. É melhor. Está bem assim...
STEVENS
É melhor, mesmo, Nancy?
NANCY
Sim. A gente não precisa de mais nada. Só acreditar. (Eles a olham, como se a interrogassem.) - Só acreditar. Agora eu sei, eu sei o que o governador disse. E estou contente. Eu aceitei isto há muito tempo, no tribunal, diante do juiz. E mesmo antes, até naquela noite, no quarto das crianças, antes de levantar a mão...
TEMPLE
(Convulsivamente.) - Cale-se!
NANCY
Eu me calo. Eu me arrumo com o nosso irmão.
TEMPLE
Nosso irmão?
NANCY
O irmão das putas e dos ladrões, o amigo dos assassinos. Aquele que mataram ao mesmo tempo que o ladrão e o assassino. Eu não compreendo tudo o que ele disse. Mas gosto dele porque mataram ele.
TEMPLE
Ele te ajudará, talvez, a morrer. Mas como me ajudará a viver? Eu sei o que devo fazer, sei o que é preciso fazer. Descobri isso naquela noite, também, no quarto das crianças. Mas, como fazer? Não sei. Para mim, seria fácil morrer. Mas devo viver. Como?
NANCY
Tenha confiança.
TEMPLE
Confiança em quem? Veja o que nos fizeram, a você e a mim. Se você quer dizer que eu devo me humilhar diante de alguém, é diante de você, de você só, que quero fazê-lo. (Dobra os joelhos canhestramente.)
NANCY
Levante-se. A patroa não deve ajoelhar-se diante da empregada. Além disso, há um patrão de que você é a empregada.
TEMPLE
Não sou empregada dEle. Não quero servir a Esse patrão que obriga você a morrer porque eu decidi há oito anos fugir com Gowan.
1 NANCY
Você fugiu porque gostava do que é mau, como eu. Nós éramos assim. ele não pode impedir a gente de querer o mal. Mas, pra compensar um pouco, inventou o sofrimento, que é a verdadeira luz do pobre mundo. Tenho confiança nEle.
STEVENS
Você tem razão, Nancy. Você deve ter confiança.
NANCY
Obrigado, Sr. Stevens. O senhor diz isto porque pensa que assim as coisas vão ser mais fáceis para mim, amanhã. Mas eu não falo por causa de amanhã, porque se falasse ia ter mEdo do mesmo jeito. Eu digo isto porque sei que nosso irmão me salvará.
TEMPLE
(Levantando-se, atordoada.) - ele nunca salvou ninguém! Nem a Ele mesmo! eles vão te levar, vão te fazer mal, e você os esquece!
NANCY
Não esqueço. Mas até uma assassina pode ser perdoada. Há um lugar para isto, eu sei. Quero ir até lá.
TEMPLE
Você irá até lá! eles perdoarão quando você estiver morta! eles perdoarão você dentro da terra!
NANCY
Não é dentro da terra. Há um lugar, algum lugar, onde sua filhinha não se lembra de nada, nem mesmo das minhas mãos.
TEMPLE
Há um lugar, sim, há um lugar, e aí você encontrará também a sua filhinha. Aquela de quem você me falava, que você trazia dentro de você havia seis meses, quando você foi se divertir e o homem te deu pontapés no ventre, e você a perdeu. Haverá um lugar no mundo, diga, diga, onde os nossos filhos nos possam perdoar? Haverá um lugar no mundo onde se possa finalmente cessar de sofrer e de morrer?
NANCY
Sim.
STEVENS
Foi o pai que lhe deu pontapés no ventre quando você estava grávida?
NANCY
Não sei.
STEVENS
Não bateram em você?
NANCY
Sim. Mas eu não sei se era o pai. Não importa quem tenha sido o pai.
STEVENS
Não importa?
NANCY
Sim, Sr. Stevens. Mas eu serei perdoada por isto também.
(Todos se imobilizam ao ruído de passos que se aproximam. Ruído da fechadura. O Sr. Tubbs entra.)
SR. TUBBS
Tudo bem, doutor.
STEVENS
(Olha Nancy.) - Sim. Tudo bem. Adeus, Nancy. Fiz tudo que pude.
(Ela acompanha o Sr. Tubbs em direção à porta da esquerda.)
TEMPLE
(Atirando-se diante dela.) - Não me deixe sozinha!
NANCY
Você não está sozinha. (Espera, o olhar fixo diante de si. Depois, surdamente:)
"Ele é o rio e o rochedo.
Ele lavará e secará nossas chagas.
Ele nos libertará do tormento da morte."
(Nancy sai atrás do carcereiro. A porta de ferro bate, nas coxias, uma chave roda na fechadura. Depois o carcereiro reaparece, dá volta à chave, abre a porta, espera.)
SR. TUBBS
Pois é, doutor. Ela começa esta noite um longo caminho. E difícil! Ainda bem que não é o meu.
(Êle espera, segurando a porta; Temple está de pé; permanece imóvel até o momento em que Stevens lhe toca o braço. Aí então ela se mexe, cambaleia um instante, muito pouco, retoma-se, tão rapidamente que o carcereiro mal tem tempo de adiantar-se para ela, para ampará-la.)
SR. TUBBS
Vamos, vamos! Sente-se no banco! Vou buscar um copo d'água!
TEMPLE
(Já dominando-se.) - Estou melhor.
(Caminha para a porTa, com passos firmes. O carcereiro observa-a.)
SR. TUBBS
Tem certeza?
TEMPLE
(Andando agora com passos mais seguros, em direção a ele e à porta.) - Desculpe.
SR. TUBBS
Oh, por favor. É muito natural. Não sei como é que uma pessoa - até mesmo essa negra estranguladora - pode suportar o fedor que faz aqui.
TEMPLE
(Caminhando.) - Não importa quem seja, para me salvar e para me ajudar. Não importa quem, para não estar mais só, sobre a terra infeliz, com este coração vão, com este coração malvado, e para enfim fechar os olhos, enfim fechar os olhos...
(Ouve-se a voz de Gowan.)
GOWAN
(Temple e Stevens se imobilizam; entra Gowan. Vai em direção a Temple e interrompe a marcha. Hesita. Depois docemente:)
GOWAN
Vamos, Temple, é hora de voltar.
TEMPLE
Voltar? Para onde?
GOWAN
Para casa. Comigo. Bucky nos espera.
TEMPLE
Com você. Sim. Por que não? (Ela se dirige para a porta.)

 

 

                                                                  William Faulkner

 

 

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