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ORGULHO E PRECONCEITO / Jane Austen
ORGULHO E PRECONCEITO / Jane Austen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ORGULHO E PRECONCEITO

 

É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.

Por pouco que os sentimentos ou as opiniões de tal ho­mem sejam conhecidos ao se fixar numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressa nos espíritos das fa­mílias vizinhas que o rapaz é desde logo considerado a proprie­dade legítima de uma das suas filhas.

— Caro Mr. Bennet — disse-lhe um dia a sua esposa —, já ouviu dizer que Netherfield Park foi alugado afinal?

Mr. Bennet respondeu que não sabia.

— Pois foi — assegurou ela. — Mrs. Long acabou de sair daqui e me contou tudo.

Mr. Bennet não respondeu.

— Afinal não deseja saber quem é o locatário? — gritou a mulher, impacientemente.

— Você é quem está querendo me dizer e eu não faço nenhuma objeção a isto.

Este convite foi suficiente.

— Pois, meu caro, você deve saber que Mrs. Long disse que Netherfield foi alugado por um rapaz de grande fortuna, oriundo da Inglaterra. E que além disso ele chegou segunda-feira numa elegante caleça a fim de visitar a propriedade. Ficou tão encantado que entrou imediatamente em negócio com Mr. Morris; Mrs. Long falou também que ele entrará na posse do prédio antes do dia de São Miguel. Alguns dos seus criados de­vem chegar já na próxima semana.

— Como se chama ele?

— Bingley.

— É casado ou solteiro?

— Oh, solteiro, naturalmente, meu caro. Solteiro e mui­to rico! Quatro ou cinco mil libras por ano. Que boa coisa para as nossas meninas, hem?

— Como assim? De que modo pode isso afetá-las?

— Meu caro Mr. Bennet — replicou a esposa —, como você, às vezes, é enfadonho! Deve saber que ando pensando em casar uma delas...

— Será este o projeto do homem ao se instalar aqui?

— Projeto? Tolice... Como é que você pode dizer uma coisa destas? É até muito provável que ele se apaixone por uma delas. Portanto, assim que chegue, você deve ir visitá-lo.

— Não vejo motivo para isto. Você pode ir com as me­ninas, ou pode até mandá-las sozinhas, o que talvez ainda seja melhor, pois como você é tão bela quanto qualquer uma delas Mr. Bingley pode preferi-la.

— Você está me lisonjeando. Decerto já tive o meu qui­nhão de beleza, mas não ambiciono ser nada de extraordinário agora. Quando uma mulher tem cinco filhas crescidas, deve deixar de pensar em vaidades.

— Em casos como esses, em geral, uma mulher não tem muito que pensar em beleza.

— Mas meu caro, você deve realmente ir ver Mr. Bingley, quando ele chegar.

— Não quero assumir esse compromisso.

— Mas lembre-se das suas filhas. Pense que partido se­ria para uma delas! Sir William e Lady Lucas estão decididos a ir. É exclusivamente por motivo idêntico, pois você sabe que em geral eles não visitam recém-chegados. Deve ir, pois a nós, mulheres, será impossível fazê-lo, se antes você não o fizer.

— Creio que isto é excesso de escrúpulos da sua parte. Tenho certeza de que Mr. Bingley terá muito prazer em vê-la. Além disso eu lhe enviarei algumas linhas por seu intermédio, assegurando-lhe que darei o meu consentimento para que ele se case com qualquer das meninas que escolher, embora de­vesse acrescentar um elogio para a minha pequena Lizzy.

— Desejo que não faça tal coisa. Lizzy não é melhor do que as outras. Estou convencida de que não tem metade da be­leza de Jane. E nem sequer metade do bom humor de Lydia. Mas você não cessa de manifestar a sua preferência por ela.

— Nenhuma delas tem muito o que se lhes recomende — respondeu Mr. Bennet. — São tolas e ignorantes como as ou­tras moças. Mas Lizzy é realmente um pouco mais viva do que as irmãs.

— Como é que pode falar mal assim dos próprios filhos,

Mr. Bennet? Você se compraz em aborrecer-me; não tem ne­nhuma pena dos meus pobres nervos.

— Está enganada, minha cara. Tenho muito respeito pe­los seus nervos. São meus velhos amigos. Venho escutando você falar a respeito deles com grande consideração, pelo menos du­rante esses últimos vinte anos.

— Ah, você não sabe o que eu sofro!

— Espero que você se restabeleça e viva bastante tempo para ver muitos rapazes com quatro mil libras anuais de rendi­mentos se instalarem na vizinhança.

— Pouco nos adiantará que venham vinte deles se você se recusar a visitá-los.

— Pode ficar certa, minha querida, de que quando che­garem os vinte eu os visitarei a todos.

Mr. Bennet era um misto tão curioso de vivacidade, hu­mor sarcástico, reserva e capricho, que a experiência de vinte e três anos juntos tinha sido insuficiente para que a sua esposa lhe conhecesse o caráter. O espírito de sua mulher era menos difícil de compreender; tratava-se de uma senhora dotada de inteligência medíocre, pouca cultura e gênio instável. Quando se aborrecia imaginava que estava nervosa. A única preocupação da sua vida era casar as filhas. Seu consolo, fazer visitas e sa­ber novidades.

 

Mr. Bennet foi uma das primeiras pessoas que visitaram Mr. Bingley. Sempre fora esta a sua intenção, embora continuas­se a assegurar até o fim à sua esposa que não iria de forma alguma; nada lhe disse até a noite do dia em que fez a visita. Só aí ele o revelou, da seguinte maneira: vendo a sua segunda filha ocupada em reformar um chapéu, dirigiu-lhe de súbito estas palavras:

— Espero que Mr. Bingley goste do chapéu, Lizzy.

— Não temos nenhum modo de saber as preferências de Mr. Bingley, já que não podemos visitá-lo — interveio a mãe, ressentida.

— Mas você se esquece, mamãe — disse Elizabeth —, de que nós o encontraremos em reuniões e que Mrs. Long prome­teu nos apresentar a ele.

— Não creio que Mrs. Long faça tal coisa. Ela tem duas sobrinhas e é uma mulher egoísta e hipócrita. A minha opinião sobre ela não é boa.

— Nem a minha tampouco — disse Mr. Bennet. — Ale­gra-me saber que você não depende dos serviços dela.

Mrs. Bennet não se dignou responder. Incapaz de domi­nar-se por mais tempo, entretanto, pôs-se a ralhar com uma das filhas:

— Não tussa desse modo, pelo amor de Deus, Kitty. Te­nha um pouco de piedade dos meus nervos... Você os está dilacerando!

— Kitty não sabe tossir discretamente — disse o pai. — Não tem noção do momento oportuno.

— Não tusso para distrair-me — respondeu Kitty, irrita­da. — Quando será o nosso próximo baile, Lizzy?

— De amanhã a quinze dias.

— É verdade — gritou a mãe. — E Mrs. Long só voltará na véspera desse dia. Logo, ser-lhe-á impossível fazer a apre­sentação do estranho, pois ela tampouco o terá conhecido.

— Portanto, minha cara, você poderá adiantar-se à sua amiga e apresentar Mr. Bingley a ela.

— Impossível, Mr. Bennet, impossível! Se eu não tenho relações com ele! Como pode ser tão provocador?

— Respeito a sua discrição. Quinze dias de conhecimen­to decerto não é suficiente. Não se pode conhecer realmente um homem em tão curto espaço de tempo. Mas, se não arris­carmos, outra pessoa o fará. E afinal de contas Mrs. Long e as sobrinhas devem ter também a sua oportunidade. E, como lhe será fácil pensar que é um ato de caridade da sua parte recusar tal incumbência, eu assumirei a responsabilidade.

As meninas olharam fixamente para o pai. Mrs. Bennet disse apenas:

— Tolice, tolice.

— Qual é o significado dessa exclamação enfática? — perguntou o pai. — Considera tolice as formas de apresentação e a importância que lhes emprestamos? Neste ponto não posso concordar com você. Que é que acha, Mary? Sei que é uma mo­ça de juízo; lê grandes livros e faz resumos de tudo o que lê.

Mary quis fazer uma observação sensata mas não pôde.

— Enquanto Mary ajusta as suas idéias — continuou Mr. Bennet —, voltemos a Mr. Bingley.

— Estou enjoada de Mr. Bingley — exclamou Mrs. Bennet.

— Causa-me pena saber isto. Por que não me disse an­tes? Teria evitado que eu me desse ao trabalho de visitá-lo. Foi pouca sorte. Mas como tudo está feito, não podemos agora evitar relações.

O ar estupefato das senhoras era exatamente o que ele desejava causar. O de Mrs. Bennet talvez sobrepujasse os ou­tros. Entretanto, ao desvanecer-se o primeiro tumulto de ale­gria, ela começou declarando que era aquilo mesmo o que es­perava.

— Que bondade da sua parte, caro Mr. Bennet! Tinha certeza de que acabaria por convencê-lo, pois estava certa do seu amor pelas suas filhas. Sabia portanto que não iria despre­zar assim uma tão grande oportunidade. Nem sabe a alegria que sinto... E com que espírito você nos enganou até o úl­timo momento!

— Agora, Kitty, pode tossir à vontade — disse Mr. Ben­net, ao deixar o quarto, enfastiado pelas demonstrações exa­geradas da esposa.

— Que excelente pai vocês têm, meninas — continuou ela, logo que a porta se fechou. — Não sei como poderão ja­mais compensar tamanha bondade. Nem eu tampouco, aliás. Posso assegurar-lhes que na nossa idade não é tão agradável as­sim travar novas relações todos os dias... Entretanto, por vocês, faríamos todos os sacrifícios. Lydia, meu bem, embora seja você a mais moça, ouso profetizar que Mr. Bingley dança­rá com você no próximo baile.

— Oh — exclamou Lydia, orgulhosa —, não tenho medo. Embora seja a mais moça, sou também a mais alta.

Passaram o resto da noite conjeturando sobre qual seria o dia provável em que o estranho viria retribuir a visita de Mr. Bennet e procurando determinar aquele em que o convidariam para jantar.

 

Entretanto, todas as perguntas que Mrs. Bennet, com auxí­lio das suas cinco filhas, fez sobre o assunto foram insuficien­tes para extrair do marido uma descrição satisfatória de Mr. Bingley. Atacaram-no de vários modos, com perguntas diretas, engenhosas suposições e hipóteses distantes. Ele desafiou a ha­bilidade de todas elas. Afinal foram obrigadas a aceitar as in­formações de segunda mão da sua vizinha Lady Lucas. O re­latório desta última foi altamente favorável. Sir William tinha ficado encantado com ele. Era jovem, elegantíssimo, extrema­mente agradável. E, para coroar tudo, tencionava ir ao próxi­mo baile em companhia de grande número de conhecidos. Nada poderia ser mais delicioso. Gostar de dança era o primeiro pas­so para se apaixonar. E vivas esperanças de conquistar o cora­ção de Mr. Bingley foram bafejadas.

— Se eu pudesse ver uma das minhas filhas instalada em Netherfield, alegre e feliz — disse Mrs. Bennet ao marido —, e todas as demais igualmente bem-casadas, nada mais teria a desejar.

Daí a poucos dias Mr. Bingley veio retribuir a visita de Mr. Bennet. Conversaram na biblioteca durante dez minutos. Mr. Bingley tinha alimentado a esperança de ver uma das mo­ças, sobre cuja beleza tanto ouvira falar. Mas viu apenas o pai. As senhoras tiveram mais sorte: olhando por detrás de uma ja­nela do sobrado, conseguiram saber que ele usava casaco azul e montava um cavalo preto.

Pouco depois, um convite para jantar foi-lhe enviado. Mrs. Bennet já tinha planejado os pratos à altura da fama da sua co­zinha, quando chegou uma resposta adiando tudo. Mr. Bingley se via obrigado a partir para a cidade no dia seguinte e portan­to não podia aceitar a honra daquele convite, etc. Mrs. Bennet ficou desolada. Não sabia que negócio poderia tê-lo atraído à cidade, tão pouco tempo depois da sua chegada ao Hertfordshire. Começou a temer que Mr. Bingley estivesse sempre em trânsito de um lugar para outro, e que nunca se demorasse em Netherfield, como devia. Lady Lucas acalmou um pouco os seus receios, sugerindo a idéia de que Mr. Bingley tivesse partido para Londres apenas para buscar conhecidos que o acompanhas­sem ao baile. As meninas lamentaram a vinda de tão grande nú­mero de senhoras. Mas, na véspera do baile, consolaram-se ao saber que, em vez de doze, Mr. Bingley tinha trazido apenas seis senhoras de Londres, cinco irmãs e uma prima. E, quando o grupo entrou no salão, consistia apenas em cinco pessoas: Mr. Bingley, suas duas irmãs, o marido da mais velha e outro rapaz.

Mr. Bingley era simpático e fino de maneiras. A sua apa­rência era agradável, os gestos sem afetação. Quanto às irmãs, era visível que se tratava de pessoas distintas. Vestiam-se se­gundo a última moda. O cunhado, Mr. Hurst, era o que se pode chamar de um gentleman, sem outras características. Mas o amigo, Mr. Darcy, atraiu desde logo a atenção da sala, pela sua estatura, elegância, traços regulares e atitude nobre, e tam­bém pela notícia que circulou, cinco minutos depois da sua en­trada, de que possuía um rendimento de dez mil libras por ano. Os cavalheiros declararam que ele era uma bela figura de ho­mem, as senhoras foram de opinião que era muito mais elegante do que Mr. Bingley. Todos o olharam com grande admiração durante metade do baile, até que finalmente a sua atitude pro­vocou um certo desapontamento que alterou a sua maré de po­pularidade pois descobriram que era orgulhoso, permanecia afastado do seu grupo e parecia impossível de contentar. E nem mesmo toda a sua grande propriedade, no Derbyshire, pôde sal­vá-lo da opinião que começava a se formar a seu respeito, de que ele tinha modos antipáticos e desagradáveis e de que era indig­no de ser comparado ao amigo. E Mr. Bingley em pouco tempo travou relações com as principais pessoas da sala. Era animado e franco, dançava todas as vezes e mostrou-se aborrecido por ter o baile terminado tão cedo. Chegou mesmo a falar em dar outro em Netherfield. Qualidades tão amáveis falam por si mesmas. Que contraste entre ele e o amigo! Mr. Darcy dançou apenas uma vez com Mrs. Hurst e outra com Miss Bingley. Re­cusou-se a ser apresentado a qualquer outra moça e passou o resto da noite andando pelo salão, conversando ocasionalmente com uma ou outra pessoa do seu próprio grupo. Seu caráter estava fixado. Era o homem mais orgulhoso, mais desagradável do mundo. E todos pediram a Deus que ele nunca mais voltasse.

Entre as pessoas que estavam contra ele, a mais violenta era Mrs. Bennet, a cuja antipatia pela sua conduta se somava o des­peito de ver uma das suas filhas desprezada por ele.

Devido à falta de pares, Elizabeth Bennet fora obrigada a ficar sentada durante duas danças; e parte desse tempo ela o passou suficientemente próxima a Mr. Darcy para ouvir uma conversa entre ele e Mr. Bingley. Este último, que acabara de dançar, vinha animar o amigo a imitá-lo.

— Venha, Darcy — disse ele —, você precisa dançar. Incomoda-me vê-lo aí sozinho, de um modo tão estúpido. Seria muito melhor que você dançasse.

— Por coisa alguma deste mundo; bem sabe como eu de­testo dançar, a não ser conhecendo intimamente o meu par. Numa festa como esta seria insuportável. Suas irmãs estão ocupadas e não existe outra mulher na sala com quem eu dan­çaria sem sacrifício.

— Jamais eu seria tão exigente — exclamou Bingley; — palavra de honra, eu nunca encontrei tantas moças interessan­tes na minha vida... E você está vendo que algumas são excep­cionalmente belas!

— Você está dançando com a única moça realmente bo­nita que existe nesta sala — disse Mr. Darcy, olhando para a mais velha das irmãs Bennet.

— Oh, ela é a mais bela moça que já vi na minha vida, mas bem atrás de você está uma das suas irmãs, que é muito bonita e agradável. Deixe-me pedir ao meu par que o apresen­te a ela?

— Qual? -— perguntou ele, voltando-se e detendo um momento a vista em Elizabeth até que, encontrando-lhe os olhos, desviou os seus e disse, friamente:

— É tolerável, mas não tem beleza suficiente para tentar-me. Não estou disposto agora a dar atenção a moças que são desprezadas pelos outros homens. É melhor você voltar ao seu par e se deliciar com os sorrisos dela, pois está perdendo tempo comigo.

Mr. Bingley seguiu o conselho. Mr. Darcy se afastou e os sentimentos de Elizabeth para com ele não permaneceram mui­to cordiais. No entanto, ela contou a história com muita graça às suas amigas, pois era de espírito alegre e brincalhão e se de­leitava com tudo o que era ridículo.

De um modo geral a noite decorreu agradavelmente para toda a família. Mrs. Bennet vira a filha mais velha ser muito admirada pelo grupo de Netherfield. Mr. Bingley tinha dançado duas vezes com ela. E as irmãs dele a tinham tratado com muita amabilidade. Jane ficou tão contente quanto a mãe, embora manifestasse os seus sentimentos de maneira mais discreta. Elizabeth se alegrou com o prazer de Jane. Mary ouvira o seu nome mencionado por Miss Bingley como sendo o da moça mais dotada da reunião. Katherine e Lydia tinham tido a sorte de nunca ficar sem par, a única coisa que elas consideravam impor­tante num baile. Todas voltaram pois de bom humor para Longbourn, aldeia onde residiam e da qual eram os principais habi­tantes. Encontraram Mr. Bennet ainda acordado. Com um livro na mão ele perdia a noção do tempo. Naquele momento mani­festou grande curiosidade em saber a causa de tanta alegria. Antes de sua mulher sair para o baile, julgara que as suas espe­ranças seriam destruídas, mas verificou logo que a história era muito diferente.

— Meu caro Mr. Bennet — disse ela, entrando na sala —, tivemos uma noite deliciosa, um baile excelente! Pena que você não estivesse lá. Jane foi tão admirada! Nada podia ter acon­tecido melhor... Todos disseram que ela estava muito bonita. Mr. Bingley achou-a linda e dançou duas vezes com ela. Ima­gine, meu caro! Dançou com ela duas vezes! Foi a única moça na sala com quem ele repetiu uma dança. Primeiro dançou com Miss Lucas. Fiquei desapontada, mas ele não pareceu muito en­tusiasmado com ela. Aliás ninguém pode mesmo... Mr. Bin­gley parecia muito impressionado com Jane, ao vê-la dançar com outro rapaz. Foi aí que perguntou quem era ela, pediu para ser apresentado e solicitou as duas próximas danças. Depois dançou com Miss King as duas terceiras, com Maria Lucas as duas quartas, as duas quintas com Jane novamente, as duas sextas afinal com Lizzy e a Boulanger.

— Se ele tivesse tido qualquer espécie de compaixão por mim — exclamou o marido, impaciente —, não teria dançado nem sequer a metade! Pelo amor de Deus, não continue a lista dos pares de Mr. Bingley. Antes ele tivesse torcido o pé na pri­meira dança.

— Oh, meu caro — continuou Mrs. Bennet —, fiquei encantada com ele. É um lindo rapaz e as suas irmãs são encan­tadoras. Nunca na minha vida vi nada tão elegante quanto os vestidos que elas usavam. A renda do vestido de Mrs. Hurst...

Aí ela foi novamente interrompida. Mr. Bennet protestou contra qualquer descrição de toaletes. Mrs. Bennet foi então obrigada a procurar outro aspecto do assunto e relatou com muita acrimônia e algum exagero as chocantes má-criações de Mr. Darcy.

— Mas eu lhe asseguro — acrescentou ela — que Lizzy não perde muito por não corresponder às preferências deste homem, pois ele é desagradável, horrível; pouco adianta cati­vá-lo. Tão orgulhoso e tão convencido que é impossível aturá-lo. Andava de um lado para outro, pensando na sua própria importância. Não é suficientemente simpático para que se tenha prazer em dançar com ele. Queria que você estivesse lá e lhe desse uma das suas respostas. Detesto aquele homem.

 

Quando Jane e Elizabeth ficaram sozinhas, a primeira, que anteriormente fora mais discreta nos elogios a Mr. Bingley, con­fessou à irmã quanto o admirava.

— Ele é exatamente o que um rapaz deve ser — acres­centou. — Ajuizado, alegre, animado. Nunca vi maneiras tão distintas, tanta espontaneidade e tão boa educação.

— Também é bonito — replicou Elizabeth —, qualidade que um rapaz deve possuir, se possível. Assim a sua persona­lidade se torna completa.

— Fiquei muito lisonjeada por ele me ter tirado para dan­çar uma segunda vez. Não esperava tal galanteio.

— Não? Pois eu o esperava por você. Mas esta é uma das grandes diferenças entre nós. Os galanteios sempre a sur­preendem. A mim, nunca. Nada mais natural do que ele solici­tá-la para outra dança. Não podia deixar de reconhecer que você era cinco vezes mais bonita do que qualquer outra moça na sala. Não lhe fique grata por isso. Na verdade, ele é muito agradável, e eu lhe dou licença de gostar dele. Você já gostou de muitas pessoas mais estúpidas.

— Minha cara Lizzy!

— Você bem sabe que tem uma inclinação para gostar das pessoas em geral. Nunca encontra defeito em ninguém. A seus olhos todos são bons e agradáveis. Nunca a ouvi falar mal de quem quer que seja em toda a minha vida.

— Não desejaria censurar ninguém irrefletidamente. Mas sempre digo o que penso.

— Eu sei, e é isso o que me espanta. Sensata como você é, deixar-se enganar tão simploriamente pela loucura e pelo ab­surdo dos outros! A candura afetada é bastante comum; en­contra-se por toda a parte, mas, ser cândida sem ostentação ou artifício, ver o lado bom do caráter de todo o mundo, torná-lo ainda melhor, ignorar o lado mau, são coisas que lhe pertencem exclusivamente. E você gostou também das irmãs daquele ho­mem, não é? As maneiras delas não são tão agradáveis quanto as de Mr. Bingley...

— Decerto que não. A princípio... Mas são moças mui­to agradáveis quando se conversa com elas. Miss Bingley vai morar com o irmão e dirigir a casa; se não me engano, encontra­remos nela uma excelente vizinha.

Elizabeth nada respondeu, mas não ficou convencida. O comportamento daquelas moças durante o baile não fora cal­culado para agradar a todo o mundo. Dotada de maior rapidez de observação do que a irmã e de menos docilidade de gênio e possuindo, além disso, uma faculdade de julgamento que ne­nhuma complacência consigo mesma obscurecia, Elizabeth se sentia pouco disposta a aceitar aquelas pessoas. Eram de fato moças distintas; não lhes faltava bom humor quando estavam contentes, nem o poder de agradar quando o desejavam; po­rém eram orgulhosas e convencidas. Além disso eram bastante bonitas e tinham sido educadas num dos principais colégios particulares de Londres. Possuíam uma fortuna de vinte mil libras, costumavam gastar mais do que deviam e associar-se com pessoas de classe; tinham portanto as aptidões necessárias para pensar bem de si mesmas e mediocremente dos outros. Provi­nham de uma família respeitável do norte da Inglaterra, coisa que guardavam mais profundamente impressa em sua memória do que o fato de sua fortuna, bem como a do irmão, ter sido adquirida no comércio.

Mr. Bingley herdara do pai uma fortuna calculada em cem mil libras. Este tencionara comprar uma propriedade, mas mor­rera antes de realizar o projeto. Mr. Bingley alimentava a mes­ma idéia e às vezes escolhia o seu condado; mas, como dispu­nha agora de uma boa propriedade e da liberdade de uma casa senhorial, muitos daqueles que lhe conheciam o gênio acomodatício desconfiavam de que acabasse o resto dos seus dias em Netherfield, incumbindo da compra a próxima geração.

Suas irmãs estavam ansiosas para que ele possuísse um domínio particular; no entanto, embora Mr. Bingley estivesse agora estabelecido apenas como locatário, Miss Bingley de modo algum se recusava a presidir a sua mesa; e Mrs. Hurst, que se tinha casado mais pela importância social do que pela fortuna do marido, não se encontrava menos disposta a considerar a casa do irmão como a sua própria, desde que a mesma lhe conviesse. Fazia apenas dois anos que Mr. Bingley havia atingido a maioridade, quando, devido a uma recomendação ocasional. se sentira tentado a visitar Netherfield House. E de fato a vi­sitou durante meia hora, ficando satisfeito com a situação e os quartos principais; ouviu os elogios da proprietária e alugou-a imediatamente. Entre ele e Darcy havia uma amizade muito fir­me, apesar de os seus caracteres serem opostos. Bingley era caro a Darcy pela doçura, franqueza e maleabilidade do seu gê­nio, embora essas qualidades contrastassem de modo absoluto com as suas e Darcy não parecesse nada descontente com as que lhe tinham cabido por sorte. Bingley confiava cegamente na força dos sentimentos de Darcy, e tinha a mais alta opinião acerca de suas idéias. Em inteligência Darcy era superior. Bin­gley não era de modo nenhum deficiente em força mental, mas Darcy era mais vivo. Era ao mesmo tempo altivo, reservado, desdenhoso, e suas maneiras, apesar de bem-educado, eram pou­co convidativas. A esse respeito, o amigo levava grande vanta­gem: Bingley tinha a certeza de agradar, onde quer que apa­recesse. Darcy estava sempre ofendendo os outros.

A maneira pela qual se referiram ao baile de Meryton era bastante característica. Bingley dizia que nunca encontrara gente mais agradável, nem moças mais bonitas em toda a sua vida. Todos tinham sido amáveis e atenciosos com ele; não tinha ha­vido formalidade nem friezas e ele se sentira logo à vontade com todos na sala; quanto a Miss Bennet, não podia conceber que um anjo fosse mais belo. Darcy, ao contrário, afirmava que havia assistido a uma reunião em que não havia beleza nem ele­gância; não sentira o menor interesse por nenhuma pessoa e tampouco recebera a atenção de alguém. Reconhecia que Miss Bennet era bonita, embora sorrisse demais. Mrs. Hurst e a irmã concordaram com isto. Mas ainda assim admiravam Miss Bennet e declararam que ela era uma moça encantadora e que não se oporiam a entrar em relações mais estreitas com ela. Ficou estabelecido portanto que Miss Bennet era uma moça encanta­dora e Bingley se sentiu autorizado, com esses elogios, a pensar nela da forma que desejasse.

 

A pouca distância de Longbourn, vivia uma família com que os Bennet mantinham relações particularmente íntimas. Sir William Lucas fora outrora comerciante em Meryton, onde acumulara uma fortuna regular e onde, também, fora agraciado pelo rei com um título de cavaleiro, enquanto exercia as fun­ções de prefeito. A honra fora talvez demasiadamente apreciada. Inspirara-lhe uma repulsa pelo seu negócio e pela pequena cida­de comercial em que habitava. Abandonando as duas coisas, mudou-se com a família para uma casa situada a mais ou menos uma milha de Meryton, lugar que depois ficou sendo chamado de Lucas Lodge, onde podia pensar com prazer na sua própria importância e, livre dos negócios, dedicar-se inteiramente à so­ciedade. Embora orgulhoso da sua posição, esta não o tornou desdenhoso; ao contrário, Sir William era todo atenção para com os outros. Por natureza inofensivo, amável e prestativo, a sua apresentação em St. James o tornara polido e cortês.

Lady Lucas era uma mulher de bons sentimentos, cuja inteligência não era demasiadamente brilhante para impedir que fosse uma vizinha preciosa para Mrs. Bennet. Tinha vários fi­lhos. A mais velha, uma moça ajuizada e inteligente, de vinte e sete anos aproximadamente, era a amiga mais íntima de Eli­zabeth.

Era absolutamente necessário que Mrs. Lucas e Mrs. Ben­net se encontrassem para discutir um baile a que tivessem assis­tido. E, na manhã seguinte, Mrs. Lucas e a filha se dirigiram para Longbourn, a fim de trocar impressões.

— Você começou bem a noite, Charlotte — disse Mrs. Bennet para Miss Lucas. — Foi a primeira que Mr. Bingley escolheu para dançar.

— Sim, mas ele pareceu gostar mais do segundo par.

— Oh, você se refere a Jane, suponho eu, porque Mr. Bingley dançou com ela duas vezes? Isto decerto leva a crer que ele a achou interessante. Aliás estou certa de que este foi o caso. Ouvi falar a respeito disso, mas não me lembro exata­mente do que foi — qualquer coisa sobre Mr. Robinson.

— Talvez a senhora se refira ao que eu ouvi numa conver­sa entre ele e Mr. Robinson: já não lhe contei isto? Mr. Robin­son perguntou o que ele achava do baile de Meryton, se não achava que havia grande número de mulheres bonitas na sala. E perguntou também qual era a que ele achava mais bonita. Mr. Bingley respondeu imediatamente: "Oh, a mais velha das senhoritas Bennet, sem dúvida. Não deve haver duas opiniões a este respeito".

— Palavra de honra — bem, a resposta foi de fato muito pronta —-, parece até que... No entanto tudo pode dar em na­da, você sabe.

— Você é que não ouviu conversas tão agradáveis, Eliza — disse Charlotte. — As palavras de Mr. Darcy não foram tão amáveis quanto as de seu amigo, não é? Pobre Eliza! Ser jul­gada apenas "tolerável"...

—- Peço-lhe que não incite Liza a ficar ressentida com a grosseria de Mr. Darcy, pois é um homem tão desagradável que seria uma infelicidade ser cortejada por ele. Mrs. Long me disse ontem que ele ficou sentado ao seu lado durante meia hora sem abrir a boca uma só vez.

— A senhora tem certeza? Não haverá aí um pequeno engano? — indagou Jane. — Estou certa de que vi Mr. Darcy falando com ela.

— Sim, porque ela perguntou afinal se ele gostava de Netherfield e ele não teve outro remédio senão responder.

— Mas, segundo Mrs. Long, ele pareceu ficar muito aborrecido por obrigarem-no a falar.

— Miss Bingley me disse — falou Jane — que ele é mui­to calado, a não ser com as pessoas mais íntimas. Com estas se mostra notavelmente agradável.

— Não acredito numa só palavra. Se fosse assim tão agra­dável, teria conversado com Mrs. Long. Mas eu compreendo tudo; todo mundo diz que ele é terrivelmente orgulhoso, e com certeza ouviu dizer que Mrs. Long não tem carruagem e que teve de ir ao baile num carro alugado.

— Pouco me importa que ele não tenha conversado com Mrs. Long — disse Miss Lucas —, mas eu queria que ele tives­se dançado com Eliza.

— Se eu fosse você, Lizzy — disse a mãe —, na próxima vez me recusaria a dançar com ele.

— Creio que posso lhe prometer com segurança que nun­ca mais dançarei com ele.

— O orgulho dele não me ofende tanto — disse Miss Lucas — como o orgulho em geral, porque existe um motivo. Não é de admirar que um rapaz tão distinto, com família, for­tuna, tudo a seu favor, tenha de si mesmo uma alta opinião. Se posso exprimir-me assim, ele tem o direito de ser orgulhoso.

— Isto é bem verdade — replicou Elizabeth —, e eu perdoaria facilmente o seu orgulho se ele não tivesse mortificado o meu.

— O orgulho — observou Mary, que se gabava da solidez das suas reflexões — é um defeito muito comum, creio eu. Por tudo o que tenho lido, estou mesmo convencida de que é muito comum, que a natureza humana manifesta uma tendência mui­to acentuada para o orgulho, que são pouquíssimos os que não alimentam esse sentimento, fundados em alguma qualidade real ou imaginária! A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, em­bora as palavras sejam freqüentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho se relaciona mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vai­dade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós.

— Se eu fosse tão rico quanto Mr. Darcy — gritou um jovem Lucas, que tinha vindo com as irmãs —, não me impor­taria de ser orgulhoso, teria uma matilha de perdigueiros e beberia uma garrafa de vinho todos os dias.

— Nesse caso você beberia muito mais do que deveria — disse Mrs. Bennet. — E se eu o visse ocupado desse modo, arrebatar-lhe-ia a garrafa imediatamente.

O menino contestou que ela fizesse tal coisa. Ela conti­nuou a declarar que o faria e a discussão só terminou com a visita.

 

As senhoras de Longbourn em breve foram visitar as de Netherfield. A visita foi paga segundo a etiqueta. As maneiras agradáveis de Miss Bennet incrementaram a boa vontade de Mrs. Hurst e de Miss Bingley; e embora a mãe fosse julgada intolerável e as irmãs mais moças indignas de atenção, as irmãs de Mr. Bingley manifestaram desejo de estreitar relações com as duas filhas mais velhas dos Bennet. Jane recebeu esta aten­ção com o maior prazer, porém Elizabeth continuou a achar desdenhosa a maneira pela qual elas tratavam todo mundo, sem excetuar mesmo a sua irmã, e não conseguiu simpatizar com essas pessoas. A amabilidade com que tratavam Jane se origi­nava provavelmente da influência que a admiração de Mr. Bin­gley exercia sobre as duas irmãs. Era evidente, sempre que se encontravam, que ele de fato admirava Miss Bennet, e para Eli­zabeth era igualmente evidente que Jane cedia à preferência que Mr. Bingley começara a manifestar por ela desde o início, e que devia estar de certo modo muito apaixonada. Elizabeth refletia, com prazer, que não era provável que alguém o des­cobrisse, pois Jane unia uma grande força de sentimentos a uma discrição de gênio e a uma disposição uniformemente alegre que a preservariam da suspeita de pessoas impertinentes. Fez essas reflexões à sua amiga Miss Lucas.

— Talvez seja agradável — replicou Charlotte — poder enganar o público em tais casos, mas às vezes é desvantajoso ser tão reservada. Se uma mulher esconde a sua afeição com igual habilidade daquele que constitui o objeto dessa afeição, pode perder a oportunidade de conquistá-lo. E neste caso é um parco consolo refletir que os outros permanecem na mesma ignorân­cia. Existe tanta gratidão e vaidade em quase todas as afeições que é perigoso abandoná-las à sua sorte — todos podemos co­meçar livremente, uma ligeira preferência é bastante natural, mas são poucos os que têm o coração bastante firme para amar sem receber alguma coisa em troca. Em noventa por cento dos casos, uma mulher deve mostrar mais afeição do que a que real­mente sente. É evidente que Bingley gosta da sua irmã, mas ele poderá nunca passar disto se ela não o auxiliar.

— Mas Jane o auxilia tanto quanto a sua natureza o permite. Se eu posso perceber a preferência que ela tem por ele, ele seria um homem bem simplório se não o descobrisse também.

— Lembre-se, Liza, de que ele não conhece o tempera­mento de Jane como você.

— Mas se uma mulher manifesta preferência por um homem e não se esforça por encobrir os seus sentimentos ele acabará sabendo.

— Talvez acabe se a vir freqüentemente. Mas, embora Bingley e Jane se encontrem bastante freqüentemente, nunca estão muitas horas juntos. E, como sempre se vêem no meio de muitas outras pessoas, é impossível que estejam a cada momen­to conversando um com o outro. Jane, portanto, devia tirar o maior partido de cada meia hora em que pode dispor da atenção de Bingley. Quando tiver certeza do amor dele, haverá tempo bastante para se apaixonar tanto quanto ela o deseja.

— Seu plano é bom — replicou Elizabeth — quando está em jogo apenas o desejo de se casar bem; e, se eu estivesse decidida a arranjar um marido rico, ou um marido qualquer, seria este o plano que adotaria. Mas estes não são os sentimen­tos de Jane; ela não está agindo por plano. Por enquanto não tem certeza nem mesmo do grau da sua afeição e nem está segura de que seja uma coisa razoável. Há quinze dias apenas que ela o conhece. Dançou quatro vezes com ele em Meryton e o viu uma vez na sua própria casa. Além disso, jantou com ele em companhia de outras pessoas quatro vezes. Não é bas­tante para formar juízo acerca do seu caráter.

— Não da maneira como você conta as coisas. Se ela ti­vesse apenas jantado com ele, poderia somente ter descoberto se ele tem bom apetite; mas você deve se lembrar de que durante quatro noites seguidas eles estiveram juntos — e quatro noites podem levar muito longe.

— Sim, essas quatro noites lhes permitiram verificar que ambos preferem o vingt et un ao jogo do comércio, mas não creio que tenham conseguido descobrir muita coisa a respeito de suas outras características importantes.

— Bem — disse Charlotte —, desejo a Jane, de todo o coração, o mais completo êxito; e creio que se ela se casasse com ele amanhã, teria tanta probabilidade de ser feliz como se pas­sasse um ano a estudar-lhe o caráter. A felicidade no casamento é apenas uma questão de sorte. Mesmo que os noivos conheçam mutuamente as suas tendências, mesmo que essas tendências sejam semelhantes, isto em nada contribui para a sua felicidade posterior. As diferenças, que se acentuam com o tempo, são sempre suficientes para que se venha a sofrer o seu quinhão de amargura; é melhor conhecer o menos possível os defeitos da pessoa com a qual temos de passar a vida.

— Você me faz rir, Charlotte; mas a sua teoria não é sensata. Você sabe que não é e que pessoalmente você nunca adotaria esses princípios!

Ocupada em observar as atenções de Mr. Bingley para com a sua irmã, Elizabeth estava longe de suspeitar que estava se tornando o objeto de algum interesse aos olhos do amigo de Mr. Bingley. A princípio, Mr. Darcy nem sequer tinha concor­dado com os que achavam que ela era bonita. Olhara-a no baile sem admiração. E da outra vez em que se encontraram, fitara a moça apenas para criticá-la. Mas logo que declarara a si mesmo e aos amigos que Elizabeth não possuía um só traço agradável no rosto, começou a achar que a bela expressão dos seus olhos negros dava àquele rosto um ar excepcionalmente inteligente. A esta descoberta sucederam outras igualmente humilhantes. Embora o seu olhar crítico houvesse descoberto mais de um defeito na simetria das suas formas, foi forçado a reconhecer que as linhas do seu corpo eram de grande pureza; e, apesar da sua afirmação de que as maneiras dela não eram as do mundo elegante, sentiu-se fascinado pela sua encantadora naturalidade. Elizabeth ignorava tudo isto; a seus olhos Mr. Darcy era apenas o homem que não sabia ser agradável em parte alguma e que não a achara suficientemente elegante para dançar com ele. Ele começou a querer conhecê-la mais intimamente e, para conseguir conversar pessoalmente com Elizabeth, começou a interessar-se pela conversa dela com os outros. Essa sua atitude atraiu a atenção de Elizabeth. O fato se passou em casa de Sir William Lucas, onde grande número de pessoas estavam reunidas.

— Que motivo levou Mr. Darcy — perguntou Elizabeth a Charlotte — a vir escutar a minha conversa com o Coronel Forster?

— Esta é uma pergunta que somente Mr. Darcy poderá responder.

— Mas se ele continua com este jogo eu lhe farei certa­mente saber que estou percebendo o que ele quer com isto. Ele é muito sarcástico, e se eu não começar a ser impertinente tam­bém, dentro em pouco terei medo dele.

Quando Mr. Darcy se aproximou delas pouco depois, em­bora sem a intenção aparente de falar, Miss Lucas desafiou a amiga a mencionar diante dele o assunto que estavam discutin­do. Aceitando a provocação, Elizabeth se virou para ele e disse:

— O senhor não acha, Mr. Darcy, que ainda agora eu me exprimi com grande felicidade? Quando eu brinquei com o Coronel Forster sobre a possibilidade de ele nos oferecer um baile em Meryton?

— Com grande energia. Mas este é um assunto que sem­pre infunde energia a uma senhora.

— O senhor nos trata com severidade.

— Breve vai chegar a sua vez de ser provocada — disse Miss Lucas. — Eu vou abrir o piano, Eliza, e você sabe o que a espera.

— Você é uma amiga estranha; sempre querendo que eu toque e cante diante de todo mundo. Se a minha vaidade tivesse tendência musical, você seria preciosa, mas como este não é o caso eu preferia não me exibir diante de pessoas que estão ha­bituadas a ouvir os melhores concertistas.

E como Miss Lucas insistisse, ela acrescentou:

— Muito bem. Se não há outro jeito...

E, olhando gravemente para Mr. Darcy, continuou:

— Há um velho provérbio que todos aqui naturalmente conhecem: "Guarde o seu sopro para esfriar o seu caldo". Eu conservarei o meu para cantar.

A sua atuação como cantora foi agradável, embora de ne­nhum modo excepcional. Depois de uma ou duas canções, e antes que pudesse responder aos pedidos de várias pessoas que queriam ouvi-la novamente, Elizabeth teve de ceder o lugar à sua irmã Mary, que esperava com impaciência, pois, faltando-lhe todos os atrativos, estudara com grande aplicação e estava por­tanto sempre pronta a exibir-se.

Mary não tinha talento, nem gosto. Embora a vaidade lhe tivesse dado perseverança, dera-lhe igualmente um ar pedante de maneiras convencidas, coisa suficiente para obscurecer triunfos maiores do que aqueles que era capaz de alcançar.

Embora não tocasse tão bem, Elizabeth agradou muito mais, graças à sua naturalidade; e Mary, depois de um longo concerto, pôde considerar-se feliz por alcançar alguns elogios graças a algumas canções escocesas e irlandesas que executou a pedido das irmãs mais moças, que na outra extremidade do salão tinham entrado evidentemente na dança, com alguns dos Lucas e dois ou três oficiais.

Mr. Darcy ficou próximo a eles, cheio de silenciosa indig­nação, diante de uma maneira tão grosseira de passar a noite, impossibilitando qualquer conversa. Estava tão absorto nos seus pensamentos que só reparou que Sir William se tinha apro­ximado dele no momento em que este começou a falar:

— Que divertimento encantador para os jovens, Mr. Dar­cy! Não há nada como a dança. Eu a considero uma das formas mais requintadas de divertimento das sociedades cultas.

— Decerto, Sir William; e a dança tem também a vanta­gem de estar em moda entre as sociedades menos requintadas do mundo. Todos os selvagens sabem dançar.

Sir William apenas sorriu.

— Seu amigo dança muito bem — continuou, depois de uma ligeira pausa, ao ver Bingley reunir-se ao grupo dos que dançavam; — e eu não duvido de que o senhor seja um adepto dessa arte, Mr. Darcy.

— O senhor deve ter-me visto dançar em Meryton.

— É verdade. E tive grande prazer. O senhor dança fre­qüentemente em St. James?

— Nunca, Sir William.

— Não acha que seria uma homenagem digna daquele lugar?

— É uma homenagem que eu não concedo a nenhum lu­gar, se puder evitar.

— O senhor tem uma casa em Londres, não é assim? Mr. Darcy se inclinou.

— Já tive projetos de me fixar também na cidade — prosseguiu Sir William —, pois aprecio muito a sociedade. Mas tive receio de que o ar de Londres não conviesse a Lady Lucas.

Deteve-se com a esperança de que o outro lhe respondesse. Mas o seu companheiro não estava disposto a isto. E, como Elizabeth se aproximasse naquele instante, Sir William pensou praticar um ato muito galante chamando-a.

— Minha cara Eliza, por que não está dançando? Mr. Darcy, permita-me apresentar-lhe esta jovem como um par bas­tante desejável. O senhor, estou certo, não poderá se recusar a dançar, quando se encontra ante tão grande beleza...

E, tomando a mão de Elizabeth, Sir William a teria dado a Mr. Darcy, que embora extremamente surpreso não se teria recusado a aceitá-la, quando a moça recuou subitamente e disse, um pouco bruscamente, para Sir William:

— Sir William, não tenho a menor intenção de dançar. Suplico-lhe que não suponha que me dirigi para este lado a fim de arranjar um par.

Mr. Darcy, com grande amabilidade, pediu-lhe que lhe concedesse a honra da sua mão; pediu em vão. Elizabeth estava decidida; Sir William tampouco conseguiu abalar a sua decisão com a tentativa de persuadi-la:

— A senhorita dança tão bem, Miss Eliza, que seria cruel negar-me a felicidade de apreciá-la; e embora esse gentleman de modo geral não aprecie esse divertimento, não fará nenhuma objeção, estou certo.

— Mr. Darcy é muito amável — disse Elizabeth, sorrindo.

— De fato; mas considerando a tentação, minha cara Miss Eliza, não podemos surpreender-nos de que ele se mostre dis­posto, pois quem faria objeção a um par como a senhorita?

Elizabeth lhe lançou um olhar malicioso e virou-se. A sua resistência não ofendera Mr. Darcy; pelo contrário, ele estava pensando na moça com certa complacência, quando foi abordado por Miss Bingley.

— Creio que conheço o objeto do seu devaneio.

— Penso que não.

— O senhor está pensando como seria insuportável passar muitas noites deste modo, numa sociedade como esta. Aliás, estou de acordo com o senhor. Nunca me aborreci tanto! A insipidez, apesar deste barulho, a futilidade, apesar do ar de importância de toda esta gente. O que eu não daria para ouvi-lo falar com severidade...

— Asseguro-lhe que a sua conjetura é inteiramente falsa. Estava pensando em coisas muito mais agradáveis. Estive medi­tando no prazer que nos pode dar um par de belos olhos no rosto bonito de uma mulher.

Miss Bingley imediatamente fixou o seu olhar no rosto de Mr. Darcy, e exprimiu o desejo de que ele dissesse o nome da senhora que lhe inspirara tais reflexões. Mr. Darcy respondeu intrepidamente:

— Miss Elizabeth Bennet.

— Miss Elizabeth Bennet! — repetiu Miss Bingley. — Estou assombrada. Desde quando Miss Elizabeth se tornou a sua favorita? Quando lhe poderei desejar felicidades?

— Esta é exatamente a pergunta que esperava da sua parte. A imaginação das mulheres é muito veloz. Salta da admi­ração para o amor. Do amor para o casamento, num instante. Sabia que ia me desejar felicidades.

— Se fala tão seriamente, considerarei o assunto absolu­tamente decidido. Terá uma encantadora sogra e naturalmente ela há de estar sempre em Pemberley com o senhor.

E enquanto ela se divertia desse modo, ele a ouvia com perfeita indiferença; e como a sua tranqüilidade a convencesse de que nada estava perdido, Miss Bingley deu livre curso à sua ironia.

 

A fortuna de Mr. Bennet consistia quase que exclusiva­mente de uma propriedade que lhe rendia duas mil libras por ano. Infelizmente para as suas filhas, esta propriedade estava legada a um parente distante, pois não havia herdeiros mascu­linos diretos; e a fortuna da mãe, embora suficiente para a sua situação na vida, mal bastava para suprir as deficiências da fortuna do pai. O pai de Mrs. Bennet tinha sido um advogado em Meryton e lhe deixara quatro mil libras. Ela tinha uma irmã casada com um certo Mr. Philips, que fora empregado do sogro e o sucedera no negócio. Tinha igualmente um irmão estabelecido em Londres com um respeitável ramo de comércio.

A aldeia de Longbourn distava apenas uma milha de Me­ryton. Essa distância convinha perfeitamente às moças, que gostavam muito de passear nesta última localidade, três ou qua­tro vezes por semana, para visitar a tia e a loja de uma modista, que ficava situada no caminho. As mais jovens da família, Katherine e Lydia, eram as que mais freqüentemente faziam aque­le trajeto; tinham menos coisas que as preocupassem e, quando nada mais interessante se oferecia, necessitavam de uma cami­nhada até Meryton, a fim de preencher as horas da manhã e fornecer assunto para as conversações da noite. Por mais sufi­cientes que fossem as novidades que encontrassem pelo cami­nho, sempre conseguiam extrair algumas da tia. Presentemente, aliás, elas se encontravam bem supridas, quer de notícias, quer de felicidade, graças à chegada recente de um regimento da milícia. O regimento deveria permanecer em Meryton durante todo o inverno, e lá ficava a sede do comando. As visitas das meninas a Mrs. Philips eram agora bem divertidas. Cada dia acrescentava novas informações ao que já sabiam acerca dos nomes dos oficiais e das suas relações. O lugar onde esses ofi­ciais residiam não permaneceu muito tempo em segredo. E, finalmente, elas começaram a travar conhecimento com os pró­prios oficiais. Mrs. Philips os visitou a todos e isto abriu para as suas sobrinhas as portas de uma felicidade até então desco­nhecida. Não falavam de outro assunto; e a grande fortuna de Mr. Bingley, tema que invariavelmente despertava uma grande animação no meio das moças, era indiferente aos olhos de Katherine e de Lydia, perto dos assuntos que se referissem ao regimento.

Depois de ouvir, certa manhã, as suas efusivas discussões sobre isso, Mr. Bennet observou friamente:

— Pelo que deduzo das suas conversas, vocês devem ser duas das moças mais tolas do país. Já o suspeitava, mas agora estou convencido.

Katherine ficou embaraçada e não deu resposta; mas Lydia, com perfeita indiferença, continuou a exprimir a admiração que sentia pelo Capitão Carter e a esperança que tinha de vê-lo ainda naquele dia, pois ele devia partir para Londres na manhã se­guinte...

— Espanta-me, meu caro — disse Mrs. Bennet —, a facilidade com que você diz que as suas próprias filhas são tolas. Se eu quisesse menoscabar os filhos de alguma pessoa, decerto não escolheria os meus.

— Se minhas filhas são tolas, espero nunca me iludir a este respeito.

— Sim, mas acontece que todas são muito inteligentes.

— Este é o único ponto — e disto eu me gabo — sobre o qual não estamos de acordo. Eu tinha tido esperança de que os nossos sentimentos coincidissem em tudo; porém, sou obri­gado a diferir de você neste ponto. Acho que as nossas duas filhas mais moças são excepcionalmente tolas.

— Meu caro Mr. Bennet, você não deve esperar que as meninas tenham o mesmo juízo que o pai e a mãe. Quando atingirem a nossa idade, asseguro-lhe que não pensarão mais em oficiais. Lembro-me do tempo em que eu gostava também de uma túnica vermelha, e, aliás, no fundo do coração, ainda gosto. E se algum jovem coronel com cinco ou seis mil libras por ano pedir uma das minhas filhas, eu não lha recusarei; achei o Coronel Forster muito distinto no seu uniforme, no dia em que estive na casa de Sir William.

— Não é? — gritou Lydia. — Minha tia contou que o Coronel Forster e o Capitão Carter não estão mais indo tão freqüentemente à casa de Miss Watson, como o faziam logo depois que chegaram. Minha tia os vê agora freqüentemente na livraria do Clarke.

A entrada de um criado que trazia um bilhete para Miss Bennet impediu que Mrs. Bennet respondesse. O bilhete vinha de Netherfield, e o criado esperava uma resposta. Os olhos de Mrs. Bennet brilhavam de prazer e ela perguntou repetidamen­te, enquanto sua filha lia:

— Bem, Jane, de quem é o bilhete? De que se trata? Que é que diz o bilhete? Vamos, Jane, leia depressa e nos conte. Depressa, meu bem.

— É de Miss Bingley — respondeu Jane. Em seguida leu a missiva, em voz alta:

 

"Minha cara amiga: se você não tiver pena de nós e não vier jantar comigo e com Louise hoje à noite, correremos o risco de nos odiarmos pelo resto da vida, pois duas mulheres não podem passar um dia inteiro em tête-à-tête sem brigar. Venha assim que tiver recebido o presente bilhete. Meu irmão e os outros senhores vão jantar com os oficiais. Sua amiga de sempre.

Caroline Bingley."

 

— Com os oficiais! — gritou Lydia. — Por que será que a minha tia não nos disse isto?

— Vão jantar fora — disse Mrs. Bennet; — isto é real­mente uma pena.

— Posso usar a carruagem? — perguntou Jane.

— Não, meu bem, é melhor você ir a cavalo, pois parece que vai chover; e neste caso você terá que pernoitar lá.

— Seria um bom plano — disse Elizabeth — se a senhora tivesse a certeza de que eles não se ofereceriam para acompanhá-la de volta.

— Oh, mas os cavalheiros terão que usar a carruagem de Mr. Bingley para ir até Meryton; e os Hurst não possuem cavalo para a sua.

— Eu preferia ir de carro.

— Mas, meu bem, seu pai não pode dispensar os cavalos. Eles são necessários para o serviço da fazenda, não são, Mr. Bennet?

— Eles são precisos para a fazenda muito mais vezes do que consigo obtê-los.

— Mas se precisar deles hoje — disse Elizabeth —, o projeto da minha mãe estará realizado.

E conseguiu afinal extorquir do pai um atestado de que os cavalos estavam ocupados. Assim Jane foi obrigada a ir a cavalo e sua mãe a acompanhou até a porta, com muitos prognósticos alegres de mau tempo. Suas esperanças foram correspondidas. Não havia muito que Jane tinha partido, quando começou a chover fortemente. Suas irmãs ficaram inquietas por Jane, mas a mãe ficou radiante. A chuva continuou durante toda a noite sem parar. Jane decerto não podia voltar.

— Foi uma feliz idéia que tive — disse Mrs. Bennet mais de uma vez, como se lhe coubesse também a glória de ter feito chover. Entretanto, foi só na manhã seguinte que ela compreen­deu até que ponto o seu plano tinha sido feliz. Mal terminara a primeira refeição, quando o criado de Netherfield trouxe o seguinte bilhete para Elizabeth:

 

"Minha querida Liza: sinto-me muito indisposta esta ma­nhã, e creio que isto é devido ao fato de ter me molhado muito ontem à noite. Meus amigos se recusam a deixar-me partir enquanto não esteja melhor. Insistem também para que eu chame Mr. Jones. Portanto, não se alarmem se ouvirem contar que ele veio ver-me. E a não ser dor de garganta e dor de cabeça, não tenho nada de mais. Sua, etc."

 

— Bem, minha cara mulher — disse Mr. Bennet, depois que Elizabeth acabou de ler o bilhete em voz alta —, se a sua filha caísse gravemente doente, se ela morresse, seria um con­forto saber que foi tudo para conquistar Mr. Bingley e por ordem sua.

— Oh, não tenho medo de que ela morra. Ninguém morre de um pequeno resfriado. Ela será bem tratada. Enquanto esti­ver lá, tudo vai muito bem. Eu iria vê-la se pudesse usar a carruagem.

Elizabeth, sentindo-se realmente ansiosa, tinha decidido ir ver a irmã, embora a carruagem não pudesse ser usada. Mas, como não sabia montar, a única alternativa era ir a pé.

— Que tolice — gritou a mãe — ir a pé com toda esta lama! Você chegará lá num estado lamentável.

— Chegarei lá em estado de ver Jane e isto é tudo o que desejo.

— Isto é uma indireta para mim — falou o pai —, para que eu mande buscar os cavalos?

— Não, de modo algum. Não me importo de ir a pé. A distância é curta quando se tem um bom motivo: apenas três milhas. Estarei de volta para o jantar.

— Admiro a atividade da sua benevolência — observou Mary. — Mas cada impulso ou sentimento devia ser guiado pela razão. E, no seu modo de ver as coisas, o esforço devia ser sempre relativo ao fim que a gente se propõe alcançar.

— Iremos juntas com você até Meryton — disseram Ka­therine e Lydia.

Elizabeth aceitou a companhia e as três moças partiram juntas.

— Se andarmos mais depressa — disse Lydia enquanto caminhava — talvez ainda cheguemos a tempo de ver o Capitão Carter antes da partida.

Em Meryton as moças se separaram. As duas mais jovens se dirigiram para a residência da esposa de um dos oficiais e Elizabeth continuou sozinha, atravessando campo após campo, pulando cercas e saltando por sobre poças d'água, com impa­ciência, e afinal encontrou-se a pouca distância da casa, com os tornozelos doídos, as meias sujas e o rosto corado pelo exercício.

Foi introduzida numa sala de almoço onde todos estavam reunidos, com exceção de Jane. O seu aparecimento causou bastante surpresa. Mrs. Hurst e Miss Bingley acharam incrível que ela tivesse caminhado três milhas tão cedo, com tanta umi­dade e sozinha; e Elizabeth ficou convencida de que elas a desprezaram por isto. Receberam-na, entretanto, muito amavelmente; quanto ao irmão dessas senhoras, havia nas suas manei­ras mais do que simples polidez; havia bom humor e bondade. Mr. Darcy falou pouco e Mr. Hurst não disse nada. O primeiro estava em dúvida sobre se devia admirar as belas cores que o exercício emprestara ao rosto da moça ou refletir que o mo­tivo talvez não justificasse a sua vinda sozinha, de tão longe. O segundo pensava apenas no seu almoço.

As perguntas que Elizabeth fez a respeito da irmã não foram favoravelmente respondidas. Miss Bennet tinha dormido mal, e, embora estivesse de pé, sentia-se muito febril e não podia sair do quarto. Elizabeth disse que gostaria de vê-la ime­diatamente; e Jane, a quem apenas o medo de causar incômodo e de produzir inquietude impedira de exprimir no seu bilhete o quanto ela ansiava por uma visita, ficou encantada ao ver a irmã entrar. Não estava entretanto em estado de conversar muito, e quando Miss Bingley as deixou juntas Jane pouco mais pôde exprimir além da gratidão que sentia pela extraordinária bondade com que era tratada. Elizabeth a ouviu em silêncio.

Depois que a primeira refeição terminou, as irmãs de Mr. Bingley entraram no quarto; e Elizabeth começou a simpatizar com elas quando viu com quanta afeição e solicitude tratavam Jane. O farmacêutico veio e, tendo examinado a paciente, disse, como era de supor, que ela apanhara um violento resfriado e que necessitava de tratamento. Aconselhou-a a voltar para a cama e prometeu que lhe enviaria remédios. O conselho foi seguido, pois os sintomas da febre se agravaram, bem como a dor de cabeça. Elizabeth não saiu nem uma só vez do quarto; nem as outras senhoras tampouco ficaram muito tempo ausen­tes: como os cavalheiros estivessem fora, não tinham de fato outra coisa a fazer. Quando o relógio bateu três horas, Elizabeth sentiu que devia partir. E muito contra a vontade, falou o que sentia. Miss Bingley lhe ofereceu a carruagem, e ela estava quase aceitando quando Jane se mostrou tão pouco disposta a separar-se da irmã que Miss Bingley foi obrigada a converter o ofere­cimento da carruagem num convite para pernoitar em Nether­field. Elizabeth consentiu com gratidão e um criado foi mandado a Longbourn a fim de prevenir a família e trazer de volta um sortimento de roupas.

 

Às cinco horas, as duas senhoras se retiraram para vestir-se, e às seis e meia Elizabeth foi chamada para jantar. Às amáveis perguntas com que a cumularam, entre as quais ela teve o pra­zer de distinguir a solicitude muito superior de Mr. Bingley, ela não pôde dar uma resposta muito favorável. Jane não estava nada melhor. As irmãs, ouvindo isto, repetiram três ou quatro vezes que sentiam muito, que era bastante desagradável resfriar-se, e que detestavam ficar doentes. E depois não pensaram mais no assunto. A indiferença que manifestaram para com Jane, longe da sua presença imediata, restituiu a Elizabeth o prazer de detestá-las como antigamente.

Mr. Bingley era aliás o único do grupo que ela podia olhar com alguma complacência. O seu cuidado com Jane era evi­dente. As atenções com que cumulava Elizabeth eram bastante agradáveis. E essas atenções a impediam de sentir-se como a intrusa que a seu ver as outras pessoas a consideravam. E a não ser de Mr. Bingley não recebeu atenções de mais ninguém. Miss Bingley estava fascinada por Mr. Darcy, sua irmã pouco menos do que ela, e, quanto a Mr. Hurst, que Elizabeth tinha a seu lado, era um homem indolente, que vivia apenas para comer, beber e jogar cartas; quando ele verificou que Elizabeth pre­feria um prato mais simples a um ragout, perdeu toda a vontade de conversar com ela.

Depois do jantar Elizabeth voltou imediatamente para perto de Jane, e assim que saiu da sala Miss Bingley começou a falar mal dela. Não achava boas as suas maneiras. Revelavam, a seu ver, um misto de orgulho e impertinência. Ela não sabia conversar, não tinha estilo, gosto, nem beleza. Mrs. Hurst pen­sava a mesma coisa e acrescentou:

— Nada tem, em suma, que a recomende, senão ser uma excelente andarilha. Nunca esquecerei de como nos apareceu hoje de manhã. Parecia quase uma selvagem.

— É verdade, Louise, quase não pude impedir-me de rir.

Que absurdo ela ter vindo. Que sentido tem vir correndo pelo campo só porque a irmã apanhou um resfriado? O cabelo dela estava tão desarrumado, tão despenteado!

— Sim, e a saia dela? Espero que você tenha visto. A barra estava toda suja de lama.

— Sua descrição pode ser muito exata, Louise — disse Bingley —, mas não reparei em nada disso. Achei que Miss Elizabeth Bennet estava muito bonita quando entrou na sala hoje de manhã. As saias sujas de lama escaparam à minha atenção.

— O senhor viu, com certeza, Mr. Darcy — disse Miss Bingley. — E eu estou inclinada a pensar que o senhor não gostaria que uma das suas irmãs se exibisse deste modo.

— Decerto que não.

— Andar três ou quatro milhas, ou cinco milhas, ou lá o que seja, com os tornozelos metidos na lama, e sozinha, intei­ramente sozinha! Que significa isto? Parece-me mostrar um conceito abominável de independência, uma indiferença toda campestre à mais elementar decência.

— Mostra a afeição que ela tem pela irmã — disse Bingley.

— Creio, Mr. Darcy — observou Miss Bingley, quase num sussurro —, que esta aventura deve ter afetado a admiração que o senhor tinha pelos seus belos olhos.

— De modo algum — replicou ele. — Achei que o exer­cício os tornou ainda mais brilhantes.

Depois de uma curta pausa, Mrs. Hurst recomeçou a falar:

— Eu gosto imensamente de Jane Bennet, é realmente uma ótima menina. Desejaria de todo o coração que ela se casasse. Mas, com um pai daqueles, com uma mãe daquelas e com relações tão baixas, creio que ela não tem nenhuma proba­bilidade de se casar.

— Creio que ouvi dizer que o tio dela é advogado em Meryton.

— Sim, e outro tio dela mora perto de Cheapside.

— Isto é definitivo — acrescentou a irmã. E ambas riram cordialmente.

— Mesmo que elas tivessem tantos tios que bastassem para encher todo o Cheapside — exclamou Bingley —, isto não as tornaria nem um pingo menos agradáveis.

— Mas é lógico que deve diminuir muito as probabili­dades de elas se casarem com homens de importância social — replicou Darcy.

A esta declaração, Bingley nada respondeu. Mas suas irmãs concordaram com entusiasmo e durante algum tempo caçoaram das relações vulgares da sua cara amiga.

Com uma ternura renovada, entretanto, elas voltaram para o quarto assim que saíram da sala de jantar, e fizeram compa­nhia a Jane até serem chamadas para o café. Jane ainda estava muito fraca e Elizabeth não podia sair nem um momento do seu lado. Finalmente, tarde, ao anoitecer, quando viu que a irmã dormia, Elizabeth achou que devia descer para se distrair um pouco. Ao entrar no salão, encontrou o grupo todo jogando 100 e foi imediatamente convidada a tomar parte no jogo; mas, desconfiando de que eles estavam jogando muito alto, recusou e, dando como desculpa o estado da irmã, disse que se distrairia com um livro durante os poucos instantes que passasse ali em­baixo. Mr. Hurst olhou para ela com grande espanto.

— Prefere ler a jogar cartas? — disse ele. — É estranho.

— Miss Elizabeth Bennet — disse Mr. Bingley — des­preza os jogos de cartas. Lê muito e não encontra prazer noutra coisa.

— Não mereço nem o elogio nem a censura — exclamou Elizabeth. — Não sou uma grande leitora e encontro prazer em muitas outras coisas.

— Estou certo de que tem prazer em tratar da sua irmã — disse Bingley. — Espero que breve seja recompensada com o seu completo restabelecimento.

Elizabeth agradeceu de coração e em seguida dirigiu-se para a mesa sobre a qual havia alguns livros. Bingley imediata­mente se ofereceu para ir buscar mais alguns, todos os de que dispunha na biblioteca.

— Desejaria para seu benefício e meu próprio crédito que a coleção fosse maior; mas sou um sujeito preguiçoso e, embora não possua muitos livros, ainda não os li todos.

Elizabeth lhe assegurou que aqueles que estavam na sala eram mais do que suficientes.

— Causa-me espanto — disse Miss Bingley — meu pai ter nos deixado uma coleção de livros tão pequena. Que mag­nífica biblioteca o senhor tem em Pemberley, Mr. Darcy.

— Não é de estranhar — replicou ele —, é o trabalho de muitas gerações.

— E depois o senhor aumentou muito a biblioteca; está sempre comprando livros!

— Não compreendo o pouco caso com que se tratam as bibliotecas de família, hoje em dia. Estou certa de que o senhor não se esquece de nada do que possa aumentar as belezas da­quele nobre lugar. Charles, quando você construir a sua casa, desejaria que fosse tão aprazível quanto Pemberley.

— Eu também desejo.

— Eu o aconselho a comprar uma propriedade naquelas redondezas e tomar Pemberley como uma espécie de modelo. Não há condado mais aprazível na Inglaterra do que o Derbyshire.

— De todo o coração. Comprarei o próprio Pemberley se Darcy quiser vendê-lo.

— Estou falando de possibilidades, Charles.

— Palavra de honra, Caroline, acho que é mais possível comprar Pemberley do que imitá-lo.

Elizabeth estava tão interessada no que estavam dizendo que não podia prestar muita atenção ao livro; e daí a pouco, largando-o, aproximou-se da mesa de jogo, colocando-se entre Mr. Bingley e sua irmã mais velha, a fim de observar o jogo.

— Miss Darcy cresceu muito desde a primavera? — per­guntou Miss Bingley. — Ela vai ficar da minha altura?

— Penso que sim. Está agora da altura de Miss Elizabeth Bennet ou talvez um pouco mais alta.

— Queria muito tornar a vê-la. Nunca encontrei uma pessoa tão encantadora. Que modos, que delicadeza... E como é prendada para a idade! Toca piano divinamente.

— Espanta-me a capacidade que têm as moças de se tor­narem tão prendadas — disse Bingley.

— Todas as moças são prendadas! Meu caro Charles, que quer dizer com isto?

— Sim, todas desenham mesas, forram biombos e fazem bolsas de tricô. Não conheço uma só moça que não saiba fazer todas estas coisas. E nunca ouvi mencionar o nome de uma moça pela primeira vez sem que me informassem que era muito prendada.

— A sua lista dos talentos comuns — disse Darcy — é verdadeira demais. A palavra "prendada" é aplicada a muitas moças somente porque sabem tricotar uma bolsa ou forrar um biombo. Mas estou longe de concordar com você no seu julga­mento sobre as moças em geral. Apesar do grande número das minhas relações, não posso gabar-me de conhecer mais de meia dúzia de moças realmente prendadas.

— Nem eu — disse Miss Bingley.

— Nesse caso — observou Elizabeth — deve exigir mui­tas qualidades para o seu ideal de mulher perfeita.

— De fato, exijo muitas qualidades.

— Oh, certamente — exclamou a sua fiel aliada. — Ne­nhuma mulher pode ser realmente considerada completa se não se elevar muito acima da média. Uma mulher deve conhecer bem a música, deve saber cantar, desenhar, dançar e falar as línguas modernas, a fim de merecer esse qualificativo, e além disso, para não o merecer senão pela metade, é preciso que possua um certo quê na maneira de andar, no tom da voz e no modo de exprimir-se.

— Sim, deve possuir tudo isso — acrescentou Darcy. — E acrescentar ainda alguma coisa mais substancial: o desenvol­vimento do espírito pela leitura intensa.

— Já não me espanto de que conheça apenas seis mu­lheres completas, espanto-me é de que conheça alguma.

— Julga com tanta severidade o seu sexo, que duvida da possibilidade de tudo isto?

— Eu nunca vi uma mulher assim. Nunca vi tanta capa­cidade de aplicação, gosto e elegância reunidas numa só pessoa.

Mrs. Hurst e Miss Bingley protestaram juntas contra a in­justiça contida naquela dúvida. E ambas declararam que conhe­ciam muitas mulheres que correspondiam àquelas exigências. Nesse momento Mr. Hurst chamou-as à ordem, queixando-se amargamente da pouca atenção com que jogavam. A conversa cessou de súbito e Elizabeth logo depois voltou para o quarto.

— Eliza Bennet — disse Miss Bingley, assim que a porta se fechou — é uma dessas moças que procuram se fazer valer aos olhos das pessoas do outro sexo falando mal do seu próprio; e muitos homens se deixam enganar por isto. Mas, na minha opinião, é um estratagema muito baixo.

— Sem dúvida — replicou Darcy, a quem se dirigia a ob­servação principalmente —, existe baixeza em todos os estra­tagemas que as senhoras às vezes condescendem em empregar para cativar. Tudo o que tem afinidade com a astúcia é des­prezível.

Miss Bingley não se sentiu inteiramente satisfeita com esta resposta, que não a encorajava a prosseguir no assunto.

Elizabeth tornou a entrar para avisar que a irmã estava pior e que não podia deixá-la. Bingley insistiu para que Mr. Jones fosse chamado imediatamente; suas irmãs, convencidas de que os recursos médicos da aldeia não eram suficientes para o caso, recomendaram que se enviasse um expresso para a ci­dade, chamando um dos médicos mais eminentes de Londres. Elizabeth recusou, mostrando-se no entanto disposta a aceitar a sugestão de Bingley. Ficou decidido que Mr. Jones seria cha­mado no dia seguinte de manhã cedo, caso Miss Bennet não amanhecesse francamente melhor. Bingley mostrou-se muito in­quieto; suas irmãs declararam que estavam inconsoláveis. Con­solaram entretanto a sua tristeza cantando duetos depois da ceia, enquanto Bingley tranqüilizava as suas inquietudes dando ordens à caseira para que todas as atenções possíveis fossem dispensadas à moça doente e à sua irmã.

 

Elizabeth passou a maior parte da noite no quarto da irmã e de manhã teve o prazer de poder enfim mandar respostas mais tranqüilizadoras aos recados que recebera muito cedo de Mr. Bingley por intermédio de uma criada e, algum tempo de­pois, pelas elegantes damas de companhia das irmãs do dono da casa. Apesar dessas melhoras, Elizabeth pediu que enviassem um bilhete a Longbourn pedindo que sua mãe viesse visitar Jane e tomasse pessoalmente as providências que a situação exi­gia. O bilhete foi despachado imediatamente e a resposta não tardou. Mrs. Bennet, acompanhada pelas duas filhas mais mo­ças, chegou a Netherfield pouco depois do almoço.

Se tivesse encontrado Jane aparentemente em perigo, Mrs. Bennet teria ficado extremamente desolada; mas, vendo que a doença não era grave, não desejou que ela se restabelecesse imediatamente, pois isto significaria provavelmente o seu re­gresso de Netherfield. Repeliu portanto a proposta que lhe fez Jane, que desejava ser transportada para casa. O farmacêutico tampouco achou a idéia razoável. E, depois de se ter demorado algum tempo com Jane, Mrs. Bennet e suas três filhas aceita­ram o convite que lhes foi fazer Miss Bingley para que fossem almoçar.

Bingley veio ao encontro de Mrs. Bennet, exprimindo-lhe a sua esperança de que não tivesse encontrado Miss Bennet pior do que esperava.

— Realmente, encontrei-a pior do que esperava — res­pondeu Mrs. Bennet. — O seu estado não permite que ela seja transportada. Mr. Jones disse que nem devemos pensar nisto. Seremos obrigadas a abusar mais algum tempo da sua hospitalidade.

— Transportá-la? — exclamou Bingley. — Nem deve­mos pensar nisto. Minha irmã, estou certo, não o permitirá.

— Pode ficar certa, madame — disse Miss Bingley com fria amabilidade —, de que Miss Bennet receberá todas as aten­ções enquanto estiver em nossa casa.

Mrs. Bennet agradeceu efusivamente.

— Estou certa — acrescentou ela — de que, se não fos­sem os bons amigos que ela tem, a sua situação seria muito grave, pois está realmente muito doente; ela sofre muito, em­bora com uma paciência admirável; aliás, é sempre assim, pois ela tem, sem nenhuma dúvida, o gênio mais dócil do mundo. Eu sempre digo às minhas outras filhas que elas nada são perto de Jane. O quarto em que ela está, Mr. Bingley, é muito agra­dável e tem uma encantadora vista sobre a aléía principal. Não conheço outro lugar no país que seja tão agradável quanto Ne­therfield. Espero que o senhor não se apresse a abandoná-lo, embora o tenha alugado por pouco tempo.

— Tudo o que faço — replicou ele — é às pressas, e por­tanto, se resolvesse deixar Netherfield, eu o faria provavelmen­te em cinco minutos.

— Isto é exatamente o que eu supunha da sua parte — disse Elizabeth.

— Está começando a compreender-me? — exclamou ele, virando-se para Elizabeth.

— Compreendo-o perfeitamente.

— Desejaria poder aceitar a sua declaração como um elo­gio, mas acho que ser tão transparente é lamentável.

— Em geral é assim, mas não se segue necessariamente que um caráter profundo e complicado seja mais estimável do que o seu.

— Lizzy — gritou a mãe —, lembre-se de onde está e não se precipite como se estivesse em casa.

— Não sabia — continuou Bingley imediatamente — que a senhorita era tão grande estudiosa dos caracteres. Deve ser um estudo absorvente.

— Sim, mas os caracteres complexos são os mais interes­santes. Pelo menos têm a vantagem de ser complicados.

— O campo — disse Darcy — oferece em geral poucos exemplares para um tal estudo. A sociedade em que nos move­mos no campo é em geral muito limitada e monótona.

— Mas as pessoas em si mudam tanto que sempre existe nelas alguma coisa de novo a observar.

— Realmente — exclamou Mrs. Bennet, ofendida pela maneira como ele se referia aos moradores do campo. — Asseguro-lhes que existe tanta monotonia na cidade como no campo.

Todos ficaram surpresos e Darcy, depois de fitá-la um instante, virou-se para o outro lado em silêncio.

Mrs. Bennet, que imaginou ter ganhado uma vitória com­pleta sobre o outro, continuou, triunfante:

— Não vejo em que Londres tenha tão grande vantagem sobre o campo, exceto quanto às lojas e lugares públicos. O campo é muito mais agradável, não é, Mr. Bingley?

— Quando estou no campo — respondeu este — nunca desejo ir embora. E quando estou na cidade acontece a mesma coisa. Cada lugar tem as suas vantagens. Sinto-me igualmente bem em ambos.

— Sim, isto é porque o senhor tem boa vontade. Mas aquele gentleman — disse ela, olhando para Darcy — parece que detesta o campo.

— Está enganada, mamãe — disse Elizabeth, envergonha­da com a simplicidade da mãe. — Você não compreendeu Mr. Darcy. Ele quis apenas dizer que não há tão grande variedade de tipos no campo quanto na cidade. E você tem de reconhecer que isto é verdade.

— Certamente, meu bem, ninguém disse o contrário. Mas quanto ao pequeno número de pessoas que moram nesta re­dondeza, creio que existem poucas regiões mais habitadas. Sei que nos damos com vinte e quatro famílias.

Se não fosse a sua vontade de agradar Elizabeth, Bingley teria estourado de rir. Sua irmã foi menos delicada e lançou para Mr. Darcy um olhar acompanhado de um sorriso muito expressivo. Elizabeth, a fim de desviar as idéias da mãe, per­guntou-lhe se Charlotte Lucas estivera em Longbourn desde que ela, Elizabeth, saíra de lá.

— Sim, Charlotte veio ontem com o pai. Que homem agradável este Sir Williams, não acha, Mr. Bingley? É um ho­mem tão moderno, tão educado, tão gentil ... Para todo mundo ele sempre tem alguma coisa que dizer. É assim que eu entendo a boa educação. E essas pessoas que se imaginam muito impor­tantes e nunca abrem a boca estão inteiramente enganadas.

— Charlotte jantou lá em casa?

— Não, preferiu ir embora. Creio que estavam precisan­do dela por causa dos croquetes. Quanto a mim, Mr. Bingley, sempre tomo criados que sabem fazer os seus serviços. Minhas filhas são educadas de modo diferente. Mas cada um sabe o que faz ... E as meninas Lucas são realmente muito boas me­ninas, posso lhe assegurar. É pena que não sejam bonitas. Não que eu ache Charlotte assim tão feia; mas também ela é nossa amiga particular.

— Ela parece uma moça muito agradável — disse Bingley.

— Oh, decerto, mas o senhor precisa reconhecer que ela é muito pouco graciosa. A própria Lady Lucas já o tem dito muitas vezes. Disse também que muito me inveja a beleza de Jane. Não gosto de me gabar das minhas filhas, mas, para dizer a verdade, Jane ... Não é muito freqüente a gente ver uma moça mais bonita. É o que todos dizem. Não confio inteira­mente nessa parcialidade. Quando ela tinha apenas quinze anos, havia um cavalheiro que freqüentava a casa de meu irmão Gardiner, em Londres. Ficou tão apaixonado por ela que minha cunhada teve certeza de que ia fazer uma proposta antes de nos mudarmos para cá. No entanto, não fez. Talvez a julgasse mui­to jovem. Apesar de tudo, escreveu-lhe uns versos, que aliás eram muito bonitos.

— E assim acabou a afeição daquele senhor — disse Eli­zabeth, impaciente. — Suponho que tenha havido muitos no mesmo caso. Eu queria saber quem descobriu a eficácia que tem a poesia de afugentar o amor.

— A mim sempre me disseram que a poesia é o alimento do amor.

— De um amor sincero, sólido, sadio, pode ser. Tudo serve de alimento ao que já tem força. Mas, quando se trata de uma ligeira e fraca inclinação, estou convencida de que um bom soneto é suficiente para fazê-la morrer de inanição.

Darcy contentou-se em sorrir. E a pausa geral que se se­guiu fez Elizabeth tremer de medo à idéia de que sua mãe se tornasse novamente ridícula. Queria dizer alguma coisa mas não conseguiu encontrar nenhum assunto. E, depois de um curto silêncio. Mrs. Bennet começou a repetir os agradecimen­tos que fizera a Mr. Bingley, pela sua bondade com Jane, desculpando-se igualmente do incômodo que lhe dava com Lizzy. Mr. Bingley respondeu com toda a amabilidade e obrigou a sua irmã mais moça a ser igualmente cortês e a responder de acordo com a situação. Esta desempenhou o seu papel, aliás de má vontade, mas Mrs. Bennet ficou satisfeita. Pouco depois man­dou chamar a sua carruagem. Neste momento, a mais moça das suas filhas se adiantou. Kitty e Lydia, as duas filhas me­nores, tinham conversado em voz baixa uma com a outra du­rante toda a visita. E tinha ficado resolvido entre elas que a mais moça devia lembrar a Mr. Bingley que, logo depois da sua chegada, ele prometera que daria um baile em Netherfield.

Lydia tinha quinze anos e era uma moça forte e desen­volvida. Tinha o rosto agradável e uma expressão jovial; era a favorita da mãe, que, devido a essa afeição, a tinha introduzido na sociedade muito cedo ainda para a sua idade. Era dotada de muita vitalidade e de uma espontaneidade que se transformara em segurança graças à atenção que os oficiais lhe dispensavam. Estes eram atraídos, aliás, não só pela sua naturalidade como pelos bons jantares de seu tio. Ela se sentiu, pois, autorizada a dirigir-se a Mr. Bingley sobre o assunto do baile e a lembrar-lhe abruptamente a sua promessa, acrescentando que ele come­teria o ato mais vergonhoso do mundo, se não a cumprisse. A resposta de Bingley a este súbito ataque foi deliciosa para os ouvidos de Mrs. Bennet.

— Asseguro-lhe que estou pronto a cumprir a minha promessa. E assim que a sua irmã esteja restabelecida, a senho­rita me fará o favor de marcar pessoalmente o dia do baile. Penso que não gostaria de dançar enquanto sua irmã estiver doente.

Lydia se declarou satisfeita.

— Oh, sim, seria muito melhor esperar até que Jane esti­vesse restabelecida, e nesse dia, provavelmente, o Capitão Car­ter já estará em Meryton novamente. E depois que o senhor tiver dado o seu baile — acrescentou ela —, eu insistirei para que os oficiais lhe ofereçam um também. Direi ao Coronel Forster que será uma vergonha se eles não o fizerem.

Mrs. Bennet e suas filhas partiram e Elizabeth voltou ime­diatamente para perto de Jane, deixando a sua própria conduta e a da sua família à mercê das críticas das duas senhoras da casa e de Mr. Darcy; este último, porém, não pôde ser persua­dido a juntar as suas censuras às que faziam a Elizabeth na sala, apesar de todas as ironias com que Miss Bingley se referia aos seus belos olhos.

 

O dia decorreu quase exatamente como o anterior. Mrs. Hurst e Miss Bingley passaram algumas horas da manhã com a enferma, que, embora lentamente, continuava a melhorar. E à noite Elizabeth veio reunir-se ao grupo na sala de estar. Nesse dia, porém, não houve mesa de 100. Mr. Darcy estava escre­vendo, e Miss Bingley, sentada a seu lado, observava os pro­gressos da carta que ele escrevia, desviando continuamente a sua atenção com as observações que transmitia para a irmã. Mr. Hurst e Mr. Bingley estavam jogando piquet, e Mrs. Hurst observava o jogo.

Elizabeth fazia um trabalho de agulha; divertia-se com o que se estava passando entre Darcy e a sua companheira. Os contínuos elogios da moça a respeito da letra, da igualdade das linhas, ou do comprimento da carta, em contraste com a per­feita indiferença com que o outro os recebia, formavam um curioso diálogo, confirmando exatamente a opinião que Eliza­beth tinha a respeito de ambos.

— Miss Darcy vai ficar encantada com a carta! Ele não respondeu.

— O senhor escreve muito depressa!

— Está enganada, escrevo até devagar.

— Quantas cartas o senhor não escreverá por ano! Cartas de negócios também. Penso que deve ser odioso escrevê-las!

— Felizmente para você, é a mim que incumbe escrevê-las.

— Não se esqueça de dizer à sua irmã que eu tenho mui­tas saudades dela.

— Já o disse uma vez, a seu pedido.

— Acho que o senhor não está gostando da sua pena. Deixe-me apará-la. Eu sei aparar penas muito bem.

— Obrigado. Mas eu sempre aparo as minhas próprias penas.

— Como consegue escrever tão regularmente? Darcy ficou em silêncio.

— Diga à sua irmã que estou radiante de saber que ela tem feito progressos na harpa. Escreva-lhe também que fiquei encantada com o lindíssimo desenho que fez para uma mesa e que o acho infinitamente superior ao de Miss Grantley.

— A senhora me dará licença de deixar os seus entusias­mos para a próxima carta? No momento não tenho espaço para exprimi-los condignamente.

— Oh, não tem importância, eu a verei em janeiro. Mas o senhor sempre escreve cartas assim tão longas e encantadoras para a sua irmã, Mr. Darcy?

— Em geral as minhas cartas são longas, mas não me cabe julgar se são encantadoras.

— Considero como regra que uma pessoa que escreve uma carta longa com facilidade não pode escrever mal.

— Isto não serve como elogio para Darcy, Caroline — exclamou Mr. Bingley, o irmão desta —, pois ele não escreve com facilidade. Esforça-se demais para encontrar quatro sílabas, não é verdade, Darcy?

— O meu estilo é diferente do seu.

— Oh — gritou Miss Bingley —, Charles escreve da ma­neira mais descuidada, escreve as coisas pela metade e depois risca o resto.

— As idéias me ocorrem tão rapidamente que não tenho tempo de exprimi-las. É por isso que às vezes as minhas cartas não transmitem nenhuma idéia aos meus correspondentes...

— Sua humildade, Mr. Bingley — disse Elizabeth —, de­ve desarmar toda censura.

— Nada é mais enganoso do que a aparência da humil­dade — disse Darcy. — Às vezes é apenas pouco-caso e, outras vezes, uma maneira indireta de se gabar.

— E qual dessas duas explicações você acha que cabe à minha modéstia, neste caso?

— A maneira indireta de se gabar. Na realidade você se orgulha realmente das suas deficiências no escrever, porque con­sidera que esses defeitos procedem de uma rapidez de pensa­mento e descuido na execução, coisas que você acha, se não estimáveis, pelo menos altamente interessantes. A capacidade de fazer as coisas rapidamente é sempre muito apreciada pelo pos­suidor, que freqüentemente não repara nas imperfeições da execução. Quando você disse a Mrs. Bennet esta manhã que se algum dia resolvesse deixar Netherfield partiria em cinco mi­nutos, estava fazendo uma espécie de panegírico ou de elogio a si mesmo. E no entanto não há nada muito louvável numa precipitação que acarretaria, forçosamente, a necessidade de dei­xar coisas importantes inacabadas, e não pode trazer nenhuma vantagem real, nem para você próprio nem para ninguém mais.

— Isto é demais — respondeu Bingley; — lembrar-se, de noite, de todas as tolices que eu disse de manhã! No entanto dou-lhe a minha palavra de que falei sinceramente e de que ainda neste momento acredito no que disse. Pelo menos, por­tanto, eu não me atribuí esse traço de precipitação inútil apenas para me gabar diante das senhoras.

— Acredito na sua sinceridade; mas não estou absoluta­mente convencido de que se resolveria a partir com tanta rapi­dez. Sua conduta estaria tão à mercê do acaso como a de qual­quer outro homem; e se no momento, no instante de montar a cavalo, um amigo lhe dissesse: "Bingley, é melhor você ficar até a próxima semana", você aceitaria imediatamente o conse­lho. E se lhe fizessem outra sugestão, ficaria provavelmente um mês.

— Com isto apenas prova que Mr. Bingley não fez justiça ao seu próprio caráter. O senhor o pintou com muito mais exatidão do que ele próprio.

— Sinto-me extremamente grato — disse Bingley — pela sua maneira de converter o que o meu amigo disse num elogio à doçura do meu gênio, mas creio que está atribuindo àquele senhor uma intenção que ele não tinha, pois ele decerto pensa­ria que, em tais circunstâncias, eu deveria recusar certamente a sugestão e partir imediatamente, como tinha resolvido.

— Consideraria Mr. Darcy a precipitação da sua decisão original compensada pela sua obstinação em aderir a ela?

— Dou-lhe a minha palavra de que não posso explicar exatamente o que ele quis dizer. Darcy deve falar por si mesmo.

— A senhora está querendo que eu justifique uma opinião que resolveu me atribuir, e a qual não subscrevo. Aceitando, porém, o caso tal como a senhora o coloca, é preciso não se esquecer, Miss Bennet, de que o suposto amigo que desejou que Bingley ficasse em casa e adiasse os seus planos contentou-se em exprimir o seu desejo sem oferecer nenhum argumento que justificasse o pedido.

— Ceder facilmente, prontamente, à persuasão de um amigo não é, então, um mérito aos seus olhos?

— Ceder sem convicção não depõe a favor do bom senso de nenhuma dessas pessoas.

— Mr. Darcy, o senhor não me parece conceder nenhuma importância à influência da amizade e da afeição. A considera­ção por um amigo faz com que a gente ceda prontamente a um pedido, mesmo que esse amigo não ofereça argumentos em apoio do que pede. Não estou considerando particularmente o caso em discussão. Devemos esperar, talvez, até que ele ocorra, para discutir o acerto do seu procedimento. Mas em geral, nos casos comuns entre amigos, quando um deles é solicitado pelo outro a alterar uma decisão de pouca monta, pensa o senhor que a pessoa que cedeu, sem exigir outros argumentos, procedeu realmente mal?

— Não será preferível, antes de continuar no assunto, que determinemos com mais precisão o grau de importância real do pedido? Bem como o grau de intimidade existente entre as partes?

— Sem dúvida — exclamou Bingley; — vamos particularizar, e não esqueçamos a estatura comparativa dos amigos, pois isto tem mais importância do que Miss Bennet supõe. Assegu­ro-lhe que, se Darcy não fosse tão alto em relação à minha pessoa, eu não o trataria com tanta deferência. Declaro que não conheço nada mais temível do que Darcy em certas ocasiões e em determinados lugares; especialmente na sua própria casa e numa noite de domingo, quando ele não tem nada a fazer.

Mr. Darcy sorriu, mas Elizabeth acreditou perceber que ele tinha ficado ofendido e por isto conteve a risada. Miss Bin­gley, ressentida com o ridículo que o outro sofrerá, censurou violentamente o irmão pelas tolices que dissera.

— Eu compreendo a sua intenção, Bingley — disse o ami­go —, você detesta discussões e quer acabar com esta.

— Talvez. As discussões se assemelham às disputas. Se você e Miss Bennet quiserem adiar a sua até que eu saia da sala, ficarei muito agradecido. Depois poderão falar o que quiserem a meu respeito.

— O que o senhor pede — disse Elizabeth — não é um sacrifício da minha parte, e, quanto a Mr. Darcy, acho que ele precisa acabar a sua carta.

Mr. Darcy aceitou o conselho e terminou a carta.

Finda esta ocupação pediu a Miss Bingley e a Elizabeth que executassem um pouco de música. Miss Bingley se dirigiu ale­gremente para o piano e, depois de um amável oferecimento a Elizabeth para que ela começasse, oferecimento que a outra rejeitou, com a mesma amabilidade e maior ênfase, sentou-se e começou. Mrs. Hurst cantou com a irmã e, enquanto isto, Eli­zabeth, que folheava cadernos de música que estavam sobre o piano, não pôde deixar de observar que os olhos de Mr. Darcy se voltavam freqüentemente na sua direção. Não podia supor que fosse um objeto de admiração para um homem tão impor­tante. No entanto, achava ainda mais estranho que ele a esti­vesse olhando por antipatia. Acabou imaginando, entretanto, que o que lhe atraía a atenção era algo errado e repreensível que existia na sua pessoa, e que contrastasse, aos olhos de Mr. Dar­cy, com as qualidades dos outros presentes. A suposição não a penalizou. Darcy lhe era indiferente demais para que desejasse a sua aprovação.

Depois de tocar algumas canções italianas, Miss Bingley atacou uma alegre canção escocesa e pouco depois Mr. Darcy, aproximando-se de Elizabeth, disse-lhe:

— A senhora não se sente inclinada a aproveitar esta oportunidade para dançar? — perguntou ele.

Ela sorriu, porém não disse nada. Ele repetiu a pergunta, um pouco espantado com o silêncio dela.

— Oh — disse Elizabeth —, ouvi o que perguntou antes, mas não pude determinar imediatamente o que deveria respon­der. O senhor queria que eu o fizesse afirmativamente para ter o prazer de desprezar as minhas preferências; mas eu sempre gosto de perturbar esses estratagemas e roubar às pessoas o lance que premeditam. Resolvi portanto responder-lhe que não desejo absolutamente dançar; e agora despreze-me, se ousar.

— Asseguro-lhe que não ouso.

Elizabeth, que tencionava ofendê-lo, ficou espantada com a amabilidade. Mas havia no tom dela um misto de doçura e de malícia que dificilmente ofenderia alguém. E Darcy nunca se sentira tão fascinado por uma mulher como estava por aque­la. Acreditava realmente que, não fosse a inferioridade das relações de Elizabeth, ele se encontraria realmente em perigo.

Miss Bingley viu, ou suspeitou o bastante para se enciu­mar, e a sua grande ansiedade pelo restabelecimento da querida amiga Jane crescia com o desejo de se ver livre de Elizabeth. Tentava freqüentemente provocar a antipatia de Darcy pela hóspede, falando no seu suposto casamento e planejando a feli­cidade que Darcy encontraria numa tal aliança.

— Espero — disse ela, enquanto passeavam juntos no dia seguinte pelo pequeno bosque —, espero que dê a entender à sua sogra, quando tiver lugar este desejável acontecimento, a vantagem de ser menos tagarela; e se o puder, também, cure as meninas mais moças da mania de perseguir os oficiais. E, se me permite abordar um assunto tão delicado, procure reprimir aquele pequeno toque de pretensão e impertinência que a sua dama possui.

— Tem alguma outra proposta a fazer em prol da minha felicidade doméstica?

— Oh, sim, faça pendurar os retratos do seu tio e da sua tia Philips na sua galeria de Pemberley. Ponha-os ao lado do seu tio-avô, o juiz. São da mesma profissão, se bem que traba­lhem em ramos diferentes. Quanto ao retrato da sua Elizabeth, nem deve tentar mandar pintá-lo: pois que pintor poderia fazer justiça àqueles belos olhos?

— Não seria realmente fácil reproduzir a expressão, mas a cor, o desenho, os cílios, tão delicados, podem ser copiados.

Nesse momento encontraram-se com Mrs. Hurst e Eliza­beth, que vinham por outro caminho.

— Não sabia que estava passeando — disse Miss Bingley, confusa, temerosa de que as suas palavras pudessem ter sido ouvidas.

— Você nos tratou abominavelmente — disse Mrs. Hurst — saindo assim sem nos avisar.

E, tomando o braço de Mr. Darcy, deixou Elizabeth sozi­nha. O caminho dava apenas para três pessoas. Mr. Darcy per­cebeu a grosseria e disse imediatamente:

— Este caminho não é suficientemente largo para nós todos. Seria melhor passearmos na avenida.

Mas Elizabeth, que não tinha a menor vontade de ficar com eles, respondeu com um sorriso:

— Não, não, fiquem onde estão. Formam um grupo en­cantador assim. Uma quarta pessoa estragaria o pitoresco. Adeus...

Em seguida afastou-se correndo, satisfeita com a idéia de que daí a um ou dois dias estaria novamente em casa. Jane estava tão melhor que tencionava sair do quarto, naquela noite, durante algumas horas.

 

Quando as senhoras se retiraram depois do jantar, Eliza­beth correu para perto da irmã e, agasalhando-a contra o frio, conduziu-a até a sala, onde a convalescente foi saudada pelas duas amigas com grandes demonstrações de alegria. Elizabeth nunca vira aquelas senhoras se portarem tão amavelmente como durante a hora que decorreu antes de os cavalheiros aparece­rem. Sabiam conversar admiravelmente, sabiam descrever um baile com todos os detalhes, contar um episódio com graça e caçoar espirituosamente dos conhecidos. Mas, quando os cava­lheiros entraram, Jane deixou de ser o centro das suas atenções. Os olhos de Miss Bingley se voltaram imediatamente para Dar­cy; e ela encontrou logo o que dizer. Ele se dirigiu logo para Miss Bennet, dando-lhe amavelmente os parabéns; Mr. Hurst também se inclinou ligeiramente e afirmou que estava muito contente. Mas Bingley foi o único que mostrou realmente entu­siasmo e efusão. Cercou Miss Bennet de todas as atenções pos­síveis. Passou a primeira meia hora aumentando o fogo na la­reira, para que ela não sofresse a diferença de temperatura; fê-la mudar para o outro lado da lareira, para que ficasse o mais distante possível da porta. Em seguida sentou-se a seu lado e conversou quase que exclusivamente com ela. Elizabeth, que fazia o seu trabalho no canto oposto da sala, via tudo isto com grande prazer. Depois do chá, Mr. Hurst sugeriu em vão à cunhada que fizessem uma mesa de jogo. Ela sabia que Mr. Darcy não desejava jogar. E a proposta pública de Mr. Hurst também foi rejeitada. Miss Bingley lhe assegurou que ninguém queria jogar. E o silêncio geral que acompanhou estas palavras pareceu justificá-las. Mr. Hurst não teve portanto outra coisa a fazer senão se estender num dos sofás da sala e dormir. Darcy escolheu um livro para ler. Miss Bingley o imitou. E Mrs. Hurst, ocupada principalmente em brincar com os seus braceletes e anéis, tomava de vez em quando parte na conversa entre Miss Bennet e o seu irmão.

Miss Bingley estava tão ocupada em observar os progres­sos da leitura de Mr. Darcy quanto em ler o seu próprio livro; a todo momento fazia uma pergunta ou olhava a página do livro de Mr. Darcy, sem conseguir, entretanto, travar conver­sação. Ele se limitava a responder às suas perguntas e conti­nuava a ler. Afinal, exausta da tentativa de se distrair com o seu próprio livro, que escolhera apenas porque era o segundo vo­lume da obra que Darcy lia, deu um grande bocejo e disse:

— Como é agradável passar a noite desse modo... De­claro que não há divertimento melhor do que a leitura. A gente se cansa menos facilmente de um livro do que de qualquer outra coisa. Quando eu tiver uma casa própria, sentir-me-ei infe­liz enquanto não possuir uma grande biblioteca.

Ninguém respondeu. Ela tornou a bocejar, pôs o livro de lado e relanceou o olhar pela sala, procurando outro diverti­mento. Ouvindo o seu irmão falar com Miss Bennet acerca de um baile, virou-se subitamente para ele e disse:

— Por falar nisto, Charles, você está realmente resolvido a dar um baile em Netherfield? Aconselho-o, antes de tomar qualquer decisão, a consultar os desejos dos presentes. Ficaria muito surpreendida se não existisse uma pessoa aqui presente para quem um baile fosse antes um castigo do que um prazer.

— Se você se refere a Darcy — exclamou Bingley —, ele pode ir para a cama, se quiser, antes de o baile começar. Mas, quanto ao baile, é uma coisa decidida; e assim que Nicholls tiver feito os seus preparativos culinários enviarei os meus convites.

— A meu ver, os bailes seriam infinitamente mais diver­tidos se fossem organizados de uma maneira diferente; mas como são feitos, em geral, há sempre neles algo de insuporta­velmente enfadonho. Seria muito mais racional que, em vez de dança, a conversação estivesse na ordem do dia.

— Muito mais racional, talvez, minha cara Caroline, mas nem de longe tão divertido.

Miss Bingley não respondeu e pouco depois se levantou e saiu da sala. Sua figura era elegante, ela sabia andar bem; mas Darcy, a quem se dirigiam essas exibições, continuava inflexivelmente absorto no livro. Desesperada, ela resolveu tentar um último esforço e, virando-se para Elizabeth, disse:

— Miss Eliza Bennet, deixe-me persuadi-la a seguir o meu exemplo. Venha dar uma volta pela sala. Asseguro-lhe que é muito agradável depois de ter ficado tanto tempo na mesma posição.

Elizabeth ficou surpreendida, mas concordou imediata­mente. Miss Bingley alcançou o que realmente tencionava com aquela amabilidade: Mr. Darcy levantou os olhos, não menos surpreso do que Elizabeth com a inesperada cortesia da sua inimiga, e inconscientemente fechou o livro. Imediatamente foi convidado a reunir-se ao grupo, mas recusou, observando que só podia imaginar dois motivos que justificassem aquela cami­nhada pela sala, e que, com qualquer um deles, a sua presença só poderia interferir. Que quereria Darcy dizer com isso?, per­guntou Miss Bingley a si mesma. Em seguida perguntou a Eli­zabeth se ela compreendia aquilo.

— Absolutamente — respondeu a outra. — Mas pode ficar certa de que ele nos quis criticar e a melhor maneira de desapontá-lo será não lhe pedir nenhuma explicação.

Miss Bingley, entretanto, sentia-se incapaz de desapontar Mr. Darcy, e portanto insistiu para que ele explicasse os dois motivos que invocara.

— Não faço a menor objeção — respondeu Darcy. — Se escolheram este método de passar a noite, é porque têm com certeza alguma confidencia a fazer, algum assunto secreto a discutir, ou então porque acham que andando exibem de melhor maneira as suas graciosas figuras; no primeiro caso, eu me tor­naria indiscreto se aceitasse o seu convite, e no segundo, posso admirá-las muito melhor na posição em que estou.

— Oh — exclamou Miss Bingley —, nunca ouvi nada tão abominável. Como poderemos castigá-lo?

— Nada mais fácil, se esta é a sua intenção — respondeu Elizabeth. — Provoque-o, caçoe dele. Íntimos como são, deve saber um meio de fazê-lo.

— Juro-lhe que não sei. Asseguro-lhe que a minha inti­midade nunca me ensinou tal coisa. Provocar pessoas imper­turbáveis, dotadas de uma tal presença de espírito! Não, não! Acho que ele pode nos desafiar neste terreno. È quanto a caçoar dele, não vamos nos expor ao ridículo de rir sem motivo.

— É impossível rir de Mr. Darcy! — exclamou Elizabeth. — Ele possui uma virtude muito rara, que é ser impermeável ao ridículo. Espero que continue a ser rara, pois eu consideraria uma grande infelicidade possuir muitas relações desse gênero. Gosto muito de rir.

— Miss Bingley me descreveu melhor do que sou — res­pondeu Darcy. — O melhor e o mais sábio dos homens, e mesmo a mais sábia e a melhor das ações pode ser ridicularizada por quem faz da ironia o seu único fim na vida.

— Existem certamente pessoas assim — replicou Eliza­beth. — Mas espero que eu não seja uma delas. Espero nunca ridicularizar o que é sábio e bom. Loucuras e absurdos, manias e inconsistências, de fato me divertem. E rio delas quando pos­so. Mas isto, penso eu, são precisamente coisas de que o senhor carece.

— Talvez seja impossível para qualquer um mas sempre me esforcei por evitar estas fraquezas, capazes de expor ao ridículo uma grande inteligência.

— Tais como a vaidade e o orgulho.

— Sim, a vaidade é de fato uma fraqueza, mas o orgulho pode ser bem controlado, quando existe uma verdadeira supe­rioridade de inteligência.

Elizabeth se virou para esconder um sorriso.

— Presumo que o exame a que submeteu Mr. Darcy este­ja terminado — disse Miss Bingley. — E qual é o resultado?

— Fiquei perfeitamente convencida de que Mr. Darcy não tem defeitos. Ele, aliás, não esconde a opinião que tem de si próprio.

— Não — disse Darcy —, não tenho tal pretensão. Pos­suo bastantes defeitos, mas não de compreensão, assim o espe­ro. Quanto ao meu gênio, não garanto que seja muito bom, creio que é um pouco ríspido demais. Sim, certamente ríspido demais para as conveniências do mundo. Não consigo esquecer as loucuras e os vícios dos outros tão rapidamente como devia. Nem as ofensas que me fazem. Meus sentimentos não se infla­mam ao menor esforço ou tentativa. Meu temperamento pode ser chamado rancoroso. Uma vez perdida a boa opinião que te­nho de uma pessoa, está perdida para sempre.

— Isto é realmente um defeito — exclamou Elizabeth. — O ressentimento implacável é um traço que marca um cará­ter. O senhor soube escolher bem o seu defeito. Realmente, não posso me rir dele. Não precisa ter medo de mim.

— Acho que existe em todos os temperamentos uma ten­dência para determinada forma do mal, um vício natural que nem mesmo a melhor educação pode extinguir.

— E o seu defeito é uma propensão a odiar todo o mundo.

— E o seu — replicou ele, sorrindo — é o de se recusar a compreender os outros.

— Vamos tocar um pouco de música — exclamou Miss Bingley, cansada de uma conversa em que ela não tomava parte. — Louise, você não se importa que eu acorde Mr. Hurst, não é?

A irmã não fez a menor objeção e o piano foi aberto. Dar­cy, depois de refletir um instante, conformou-se com isto. Começava a sentir o perigo que havia em prestar demasiada atenção a Elizabeth.

 

Depois de combinar com a irmã, Elizabeth escreveu na manhã seguinte para a mãe, pedindo-lhe que enviasse a carrua­gem naquele dia. Mas Mrs. Bennet, que tinha calculado que as filhas permanecessem em Netherfield até a terça-feira seguinte, dia em que terminaria exatamente a semana de Jane, resolveu que se sentiria aborrecida se as meninas chegassem antes. Sua resposta portanto não foi propícia, pelo menos aos desejos de Elizabeth, que estava impaciente por regressar. Mrs. Bennet mandou dizer que não poderia dispor da carruagem antes de terça-feira; e num post-scriptum acrescentava que se Mr. Bin­gley e sua irmã insistissem para que Jane permanecesse, ela daria licença, com todo o prazer. Mas Elizabeth estava resol­vida a não ficar mais tempo. Nem tampouco esperava um con­vite neste sentido. Temerosa, ao contrário, de ser considerada intrusa, insistiu para que Jane pedisse emprestada a carruagem de Mr. Bingley imediatamente. E finalmente ficou decidido que manifestariam a sua intenção de deixar Netherfield naquela manhã mesmo e que fariam logo o pedido da carruagem.

A notícia arrancou muitos protestos de pura formalidade. E tanto insistiram para que as moças ficassem ao menos até o dia seguinte, que Jane cedeu. E a partida foi adiada para a ma­nhã seguinte. Miss Bingley se arrependeu de ter feito seme­lhante proposta, pois o ciúme e a antipatia que tinha por uma das irmãs excedia muitíssimo a afeição que tinha pela outra.

O dono da casa sentiu sinceramente que elas tivessem de partir tão cedo e procurou repetidamente persuadir Miss Ben­net de que a partida não era prudente, que ela não estava ainda restabelecida. Mas Jane era firme quando sabia qual era o seu dever. Mr. Darcy ficou satisfeito. Elizabeth já se demorara bastante em Netherfield. Ela o atraía mais do que ele desejava. E Miss Bingley mostrava-se pouco gentil para com ela, e mais provocante para com ele do que de costume. Resolveu ajuiza­damente mostrar-se mais cuidadoso e esconder os seus senti­mentos. Não queria dar nenhuma esperança a Elizabeth e sabia que a sua atitude durante o último dia teria uma importância decisiva neste sentido. Firme neste propósito, quase não lhe dirigiu a palavra durante todo o sábado. E, embora ficassem sozinhos durante meia hora, não despregou os olhos do livro e nem uma só vez olhou para Elizabeth.

Domingo, depois do serviço da manhã, teve lugar a sepa­ração, muito agradável para quase todos. A amabilidade de Miss Bingley para com Elizabeth cresceu de súbito rapidamente, bem como a sua afeição por Jane. E na hora da despedida, depois de assegurar a esta última o prazer que sempre teria em tomar a vê-la em Longbourn ou em Netherfield, beijando-a em seguida afetuosamente, dignou-se até a apertar a mão da primeira. Eliza­beth se despediu alegremente de todos.

Em casa, não foram recebidas muito cordialmente pela mãe. Mrs. Bennet ficou surpresa com o regresso, achou que elas faziam muito mal em lhe dar tanto trabalho e afirmou que Jane se tinha resfriado novamente. Mas o pai, embora muito lacônico nas suas expressões, ficou realmente contente ao vê-las. Sentira a importância que elas tinham no círculo da família. As palestras da noite, quando todos estavam reunidos, tinham perdido grande parte da animação e quase todo o sentido, com a ausência de Jane e de Elizabeth. Encontraram Mary, como sempre, profundamente absorta no estudo do contraponto e da natureza humana; tiveram que admirar novas citações e ouvir novas observações de moralidade convencional. Muito tinha sido feito e dito no regimento desde a quarta-feira precedente. Vários oficiais tinham jantado com seu tio, um soldado tinha sido fustigado e correra o boato de que o Coronel Forster ia se casar.

 

— Espero, minha cara — disse Mr. Bennet para a esposa, ao se sentarem à mesa para a primeira refeição da manhã —, espero que você tenha encomendado um bom jantar para hoje à noite, porque estou esperando uma visita.

— A quem se refere você, meu caro? Não sei de ninguém que pudesse aparecer a não ser Charlotte Lucas, que pode che­gar casualmente. E espero que os meus jantares sejam dignos dela. Não creio que em casa ela veja muito freqüentemente jantares iguais aos meus.

— A pessoa a que me refiro é um cavalheiro e um estra­nho.

Os olhos de Mrs. Bennet brilharam.

— Um cavalheiro e um estranho! Então é Mr. Bingley ... Jane, e você nada disse! Pequena astuciosa! Bem, eu estou certa de que terei muito prazer em ver Mr. Bingley. Mas que pouca sorte! É impossível arranjar peixe para hoje. Lydia, meu bem, toque a campainha. Preciso falar com Hill imediatamente.

— Não é Mr. Bingley — disse Mr. Bennet. — É uma pessoa que nunca vi em toda a minha vida.

Todos ficaram espantadíssimos e Mr. Bennet teve o prazer de ser avidamente interrogado pela mulher e pelas cinco filhas ao mesmo tempo.

Depois de se divertir algum tempo com a curiosidade de­las, deu a seguinte explicação:

— Há um mês atrás recebi esta carta. E há quinze dias respondi. Julguei que era um caso delicado, que exigia atenção imediata. É do meu primo Mr. Collins, que, quando eu morrer, poderá expulsá-las todas desta casa, assim que o desejar.

— Oh, meu caro — exclamou Mrs. Bennet —, não su­porto ouvir falar nisto. Por favor, não me fale neste homem odioso! Acho que é a coisa mais injusta deste mundo a sua pro­priedade ser arrebatada dos seus filhos; estou certa de que se eu fosse você já teria tomado uma providência há muito tempo.

Jane e Elizabeth procuraram explicar à sua mãe o aspecto jurídico do caso. Já o tinham tentado, muitas vezes antes, mas este era um assunto incompreensível para Mrs. Bennet. E ela continuava a queixar-se amargamente da crueldade de arreba­tar o patrimônio de uma família com cinco moças em favor de um homem indiferente a todos.

— É certamente uma coisa iníqua — disse Mr. Bennet —, e nada pode atenuar a culpa de Mr. Collins de herdar Long­bourn. Mas se quiser ouvir esta carta, talvez se sinta um pouco abrandada pela maneira com que ele se exprime.

— Não, estou certa de que não me sentirei assim. Acho que é um desaforo e uma hipocrisia da parte dele lhe escrever. Odeio os falsos amigos. Por que é que ele não continua brigado com você, como o pai?

— Por quê, não sei. Como você verá, parece que ele tem alguns escrúpulos filiais a esse respeito.

 

"Hansford, perto de Westerham, Kent. 15 de outubro. Caro senhor:

A desavença que existia entre o senhor e meu falecido pai sempre me causou muito mal-estar. E desde que tive a infeli­cidade de perdê-lo, desejei muitas vezes remediar este conflito. Mas durante algum tempo as minhas dúvidas me retiveram. Temia que fosse desrespeitoso para com a memória do meu pai estar de bem com uma pessoa de quem ele sempre se manteve afastado. (Está vendo, Mrs. Bennet?) Cheguei agora comigo mesmo a uma decisão sobre o assunto, pois, tendo recebido ordens durante a Páscoa, tive a felicidade de ser distinguido com a proteção de Lady Catherine de Bourgh, viúva de Sir Louis de Bourgh, cuja largueza e generosidade me escolheram para preencher a importante reitoria daquela paróquia, onde me esforçarei por me conduzir sempre com o maior respeito para com Sua Excelência Lady Catherine, e onde estarei sem­pre preparado para cumprir os ritos e cerimônias da Igreja da Inglaterra. Além disso, como clérigo, sinto que me incumbe o dever de promover e lançar as bênçãos da paz sobre todas as famílias sobre as quais possa se estender a minha influência. E por este motivo espero que a minha presente oferta de boa vontade seja altamente louvável. E que as circunstâncias que me tornam o herdeiro mais próximo das terras de Longbourn não o conduzam a rejeitar o ramo de oliveira que lhe ofereço.

Não posso deixar de me afligir com uma situação que me obriga a prejudicar as suas estimáveis filhas. Peço que aceitem as mi­nhas desculpas e asseguro-lhe que estou pronto a conceder-lhe todas as possíveis reparações; mas deste assunto tratarei depois. Se o senhor não fizer objeção a receber-me em sua casa, propo­nho-me a satisfação de lhe fazer uma visita, na segunda-feira, 18 de novembro, às quatro horas. E tomarei provavelmente a liberdade de abusar da sua hospitalidade até o sábado próximo, coisa que posso fazer sem inconveniência, pois Lady Catherine não faz nenhuma objeção à minha ausência ocasional num do­mingo, contanto que outro possa me substituir nos deveres daquele dia. Com os meus respeitosos cumprimentos à sua esposa e filhas, subscrevo-me, seu atencioso amigo,

William Collins."

 

— Às quatro horas, portanto, poderemos esperar a visita desse cavalheiro pacífico — disse Mr. Bennet, dobrando a carta. — Ele parece ser um rapaz consciencioso e polido. E não duvi­dem de que ele se torne uma relação valiosa, especialmente se Lady Catherine tiver a indulgência de permitir que ele nos ve­nha ver pessoalmente.

— O que diz a respeito das meninas parece sensato, e se ele está disposto a oferecer-lhes reparação não lhe servirei de empecilho.

— Embora seja difícil adivinhar de que maneira ele tenciona fazer o que diz — falou Jane —, o seu desejo é certa­mente louvável.

O que mais surpreendeu Elizabeth foi a extraordinária deferência que ele manifestava por Lady Catherine e a sua louvável intenção de casar, crismar e sepultar os seus paroquianos, em qualquer ocasião em que isto fosse necessário.

— Ele deve ser uma raridade — disse Elizabeth. — Não consigo formar uma idéia a seu respeito. O estilo dele é muito pomposo e acho estranho que se desculpe por ser o herdeiro mais próximo. Que culpa lhe cabe nisto? Acha que pode ser um sujeito sensato, papai?

— Não, meu bem, acho que não. Tenho grandes esperan­ças de que ele seja exatamente o contrário. Há um misto de servilidade e de prosápia na carta, que promete muita coisa. Estou impaciente para conhecê-lo.

— Quanto à composição — disse Mary —, a carta não me parece muito deficiente. A idéia do ramo de oliveira talvez não seja muito nova, mas acho que ele a exprimiu bem.

Quanto a Katherine e a Lydia, nem a carta nem o autor lhes pareceram ter o menor interesse. Era praticamente impos­sível que o primo aparecesse num uniforme vermelho. E havia já algumas semanas que não encontravam nenhum prazer senão na companhia de homens que se vestissem daquela cor. Quanto a Mrs. Bennet, a carta de Mr. Collins tinha abrandado em parte a sua má vontade. E ela se preparou para recebê-lo com uma distinção que assombrou o marido e as filhas.

Mr. Collins chegou pontualmente e foi recebido muito amavelmente por toda a família. Mr. Bennet, aliás, pouco falou, mas as senhoras foram mais comunicativas e Mr. Collins mos­trou que não tinha necessidade de encorajamentos e não estava absolutamente disposto a ficar calado. Era um rapaz alto e en­corpado, de vinte e cinco anos de idade. Tinha um ar grave e imponente e maneiras cerimoniosas. Pouco depois de se sentar começou a cumprimentar Mrs. Bennet por ter tantas filhas encantadoras; disse que muito ouvira falar na beleza das me­ninas, mas que naquele caso a fama ficara aquém da verdade; e acrescentou que não duvidava de que Mrs. Bennet as visse dentro em pouco todas casadas. Esse galanteio não agradou muito a algumas das ouvintes, mas Mrs. Bennet, sempre dis­posta a receber elogios, respondeu prontamente:

— É muita bondade sua; espero de todo o coração que as suas previsões se realizem, pois de outra maneira elas se encontrariam numa situação muito difícil. As coisas se arran­jam de um modo tão estranho ...

— A senhora alude talvez à sucessão desta propriedade?

— Ah, meu caro senhor, é isto mesmo. O senhor deve admitir que é uma triste situação para as minhas pobres filhas; não que eu o culpe disto, pois sei que estas coisas são uma questão de sorte neste mundo ...

— Sou muito sensível às dificuldades das minhas primas, minha cara senhora, e muito poderia dizer sobre o assunto, se não temesse ser precipitado. Mas posso assegurar às jovens que vim disposto a admirá-las. No momento, não direi mais nada; talvez quando nos conhecermos melhor ...

Foi interrompido pela chamada para o jantar. E as meninas sorriram umas para as outras. Elas não constituíram o único objeto da admiração de Mr. Collins. O hall, a sala de jantar e todos os móveis foram examinados e louvados; e estes elogios teriam tocado o coração de Mrs. Bennet, não fosse a mortificante suposição de que ele olhava para tudo aquilo como para as suas futuras propriedades. O jantar também foi altamente apreciado; e Mr. Collins desejou saber a qual das belas primas deveria atribuir a excelência daqueles manjares. Mrs. Bennet respondeu um tanto asperamente que a família podia perfeita­mente pagar uma cozinheira e que suas filhas nada tinham a fazer na cozinha. Ele pediu perdão por ter sido desagradável a Mrs. Bennet. Ela respondeu, num tom mais brando, que não estava ofendida, mas ele continuou a se desculpar durante um quarto de hora.

 

Durante o jantar, Mr. Bennet quase não abriu a boca. Mas, depois que os criados tiraram a mesa, achou que era tem­po de palestrar com o hóspede. E iniciou um assunto em que esperava ver o outro brilhar, observando que ele tivera muita sorte com a sua protetora, pois Lady Catherine parecia dis­posta a atender aos seus desejos e ter grande consideração pelo seu conforto. Ele, Mr. Bennet, não poderia ter escolhido me­lhor. Mr. Collins elogiou a protetora com eloqüência. O assunto o tornava ainda mais pomposo e ele declarou com ar muito importante que nunca na vida encontrara tamanha virtude, tanta afabilidade e condescendência numa pessoa da nobreza como em Lady Catherine. Ela lhe fizera a graça de elogiar am­bos os sermões que ele tivera a honra de pronunciar na sua presença. Convidara-o também duas vezes para jantar e man­dara-o chamar no sábado anterior para organizar uma partida de cartas. Muita gente considerava Lady Catherine orgulhosa; ele no entanto nunca encontrara nela senão afabilidade. Sempre lhe dirigira a palavra como a qualquer outro gentleman; nunca lhe fizera a menor objeção sobre as pessoas das vizinhanças que freqüentava, e nunca se opusera às suas ausências ocasionais, durante uma ou duas semanas, a fim de visitar as suas relações. Tivera mesmo a bondade de aconselhar que ele se casasse o mais cedo possível, contanto que escolhesse com prudência; e se dignara fazer-lhe uma visita no seu humilde presbitério. Apro­vara plenamente todas as alterações que ele tinha introduzido na casa, tendo até sugerido que pusesse umas estantes nos quar­tos do sobrado.

— Tudo isto é muito amável — disse Mrs. Bennet —, e ela deve ser uma senhora muito agradável; é pena que as mulheres da nobreza não se pareçam todas com ela. E ela mora perto do senhor?

— O jardim em que fica situada a minha humilde man­são se acha separado, apenas por uma alameda, de Rosings Park, a residência de Sua Excelência.

— O senhor disse que ela era viúva. Tem família?

— Possui apenas uma filha, a herdeira de Rosings e de uma grande fortuna.

— Ah — exclamou Mrs. Bennet, sacudindo a cabeça —, então ela está em melhor situação do que muitas moças. E que espécie de moça é ela? Bonita?

— É realmente encantadora. Lady Catherine diz até que Miss de Bourgh, em matéria de pura beleza, é muito superior às mais belas do seu sexo; pois existe em seus traços a marca da jovem de alto nascimento. Infelizmente ela é de constituição doentia e isso a impediu de realizar progressos em certas ma­térias, nas quais de outro modo não seria deficiente. Isso foi o que me informou a senhora que está encarregada da sua educação e que reside com elas. Miss de Bourgh é muito amá­vel, muitas vezes me concede a honra de uma visita e vem até a minha humilde habitação, no seu pequeno faéton, puxado por pôneis.

— Ela já foi apresentada em St. James? Não me lembro de ter visto o nome dela entre as damas da corte.

— O estado medíocre da sua saúde, infelizmente, não permite que ela resida na cidade; e, como eu disse a Lady Catherine certa vez, essas circunstâncias privaram a corte ingle­sa do seu mais brilhante ornamento. Sua Senhoria pareceu ter ficado muito contente com a idéia. E o senhor pode imaginar como me sinto feliz em oferecer de vez em quando esses pe­quenos cumprimentos delicados que as senhoras tanto apreciam. Mais de uma vez observei a Lady Catherine que a sua graciosa filha parecia ter nascido para ser uma duquesa, e que esta hon­ra, a mais alta que pode ser conferida, em vez de lhe dar impor­tância, seria, ao contrário, adornada por ela. Esses são os pe­queninos tributos que agradam a Sua Senhoria, e que eu me considero obrigado a prestar.

— O senhor tem toda a razão — disse Mr. Bennet. — E, felizmente para o senhor, possui o talento de lisonjear com delicadeza. Terei licença de perguntar se essas agradáveis aten­ções procedem de um impulso momentâneo ou são o resultado de um cálculo prévio?

— Originam-se principalmente do que ocorre no momento. E, embora eu às vezes me divirta arranjando e polindo esses pequenos galanteios a serem empregados em certas ocasiões, procuro sempre lhes dar um ar tão espontâneo quanto possível.

As esperanças de Mr. Bennet se realizaram integralmente. O primo era tão absurdo quanto ele esperara. Ouvia-o falar com o maior prazer, mantendo ao mesmo tempo a mais re­soluta seriedade. Deliciava-se sozinho com o espetáculo, e às vezes atirava um olhar furtivo e malicioso para Elizabeth.

À hora do chá, porém, Mr. Bennet achou que a dose fora suficiente. E de bom grado acompanhou o hóspede até a sala; terminado o chá, convidou-o a ler em voz alta para as senhoras. Mr. Collins consentiu prontamente. Entregaram-lhe um livro, mas ao lançar um olhar sobre o volume (tudo indicava que era de uma biblioteca circulante) ele se recusou e, desculpando-se, declarou que nunca lia romances. Kitty olhou-o fixamente, e Lydia teve uma exclamação de espanto. Foram buscar outros livros. E depois de examiná-los, escolheu os Sermões, de Fordyce. Lydia olhou atônita para o volume aberto e antes que ele tivesse lido três páginas com monótona solenidade, inter­rompeu-o, dizendo:

— Você sabe, mamãe, que meu tio Philips está com von­tade de despedir Richard? E que se o fizer o Coronel Forster ficará com ele? Foi minha tia quem me disse no sábado. Irei a Meryton amanhã, a fim de me informar melhor. E saber quan­do Mr. Denny deve voltar da cidade.

As duas irmãs mais velhas disseram a Lydia que calasse a boca. Mas Mr. Collins, muito ofendido, pôs o livro de lado e disse:

— Já observei como as meninas se interessam pouco por livros sérios, escritos aliás para o seu benefício. Confesso que isto me espanta, pois certamente nada pode haver de mais vantajoso para elas do que a instrução. Mas não importunarei mais a minha jovem prima.

Em seguida, virando-se para Mr. Bennet, ofereceu-se para parceiro de gamão. Mr. Bennet aceitou o desafio, observando que ele fazia bem em deixar as meninas se ocuparem com as suas futilidades. Mrs. Bennet e as filhas se desculparam com toda a civilidade pela interrupção de Lydia e prometeram que isto não aconteceria novamente, caso ele quisesse recomeçar a leitura. Mas Mr. Collins, depois de lhes assegurar que não guar­dava rancor contra a jovem prima, e jamais consideraria a sua conduta como um insulto, sentou diante de outra mesa com Mr. Bennet e se preparou para a partida.

 

Mr. Collins não era um homem sensato e as deficiências da sua natureza não tinham sido compensadas pela educação ou pelo meio; a maior parte da sua vida tinha decorrido sob a direção de um pai ignorante e avarento. Embora tivesse cursa­do uma das universidades, tinha apenas feito os cursos necessá­rios, sem travar nenhuma relação vantajosa. A sujeição em que o pai o mantivera o dotara, a princípio, de grande humildade de gênio, mas isto tinha sido em parte compensado pela tola presunção do seu espírito fútil, pelo isolamento e pela sua súbita e prematura prosperidade. Um acaso feliz fizera com que ele fosse recomendado a Lady Catherine de Bourgh no mo­mento em que a reitoria de Hunsford estava vaga, e o respeito que ele sentia pela posição social daquela senhora, a veneração que sentia pela sua protetora, de mistura com a sua vaidade, a sua autoridade como clérigo e os seus direitos como reitor tinham-no tornado um misto de orgulho e servilidade, presun­ção e humildade.

Dispondo agora de uma boa casa e de um rendimento mais que suficiente, Mr. Collins tencionava casar-se; e a sua intenção, ao se reconciliar com a família de Longbourn, era justamente escolher uma das filhas de seu parente, caso elas fossem tão bonitas e amáveis como se dizia. Estas eram as reparações que ele tencionava oferecer em troca da sua futura apropriação de Longbourn. Achava o plano excelente, conveniente, excessiva­mente generoso e desinteressado da sua parte.

O contato com as meninas não o fez alterar o plano. O lindo rosto de Miss Jane até o confirmou nas intenções; as suas preferências quadravam, aliás, com as severas noções que tinha do direito de primogenitura. E desde o primeiro momen­to a sua escolha recaiu sobre Jane. A manhã seguinte, entre­tanto, trouxe uma alteração. Durante uma conversa tête-à-tête com Mrs. Bennet pelo espaço de um quarto de hora da primeira refeição, a palestra que se iniciou acerca do seu presbitério conduziu-o naturalmente a confessar as suas esperanças de en­contrar uma dona-de-casa em Longbourn. Mrs. Bennet, entre sorrisos amáveis e outros encorajamentos, procurou dissuadi-lo da escolha que parecia recair sobre Jane. Quanto às filhas mais moças, ela não podia responder positivamente, mas não sabia ao certo de nenhum impedimento da parte delas. Em relação à filha mais velha, porém, ela se sentia na obrigação de avisar que provavelmente ela ficaria noiva dentro de pouco tempo.

Mr. Collins, com a maior naturalidade, transferiu o seu projeto de Jane para Elizabeth. E isto foi logo feito, enquanto Mrs. Bennet falava sobre o assunto. Elizabeth, que vinha logo em seguida a Jane, em idade e beleza, era a sucessora natural.

Mrs. Bennet registrou a alusão, e nutriu esperanças de em breve ter duas filhas casadas. E o homem cujo nome ainda na véspera a enfurecera conquistou um alto lugar nas suas boas graças.

O projeto do passeio até Meryton não foi esquecido. Todas as irmãs concordaram, com exceção de Mary. E Mr. Collins, a pedido de Mr. Bennet, que estava ansioso para se ver livre dele e dispor à vontade da sua biblioteca, prontificou-se a acompanhar as meninas. Depois da primeira refeição, Mr. Collins acompanhou o dono da casa à biblioteca e lá continuaria, indefinidamente, teoricamente ocupado em examinar um dos grandes in-fólios da coleção, mas na verdade falando sem cessar sobre a sua casa e o seu jardim de Hunsford, se Mr. Bennet não tivesse sugerido aquele passeio com as meninas. Estas invasões dos seus domínios irritavam Mr. Bennet extraordinariamente. Na sua biblioteca ele se sentia sempre seguro da sua tranqüili­dade e uma vez declarara a Elizabeth que, embora estivesse sempre certo de encontrar a loucura e a vaidade em todos os demais quartos da sua casa, ali podia se considerar livre do espetáculo dessas fraquezas. A sua amabilidade, portanto, le­vou-o facilmente a convidar Mr. Collins a acompanhar suas filhas no passeio que elas haviam planejado. E Mr. Collins, que tinha muito maior vocação para andar do que para ler, ficou extremamente satisfeito, fechou o grosso volume e partiu.

Entre pequenas frases pomposas da sua parte e amáveis assentimentos da parte de suas primas, o tempo passou até que chegaram a Meryton. Aí Mr. Collins foi obrigado a desistir dos seus esforços para atrair a atenção das duas primas mais moças. Imediatamente os olhares destas começaram a percorrer as ruas à procura de oficiais e, a não ser um chapéu muito elegante ou um novo corte de musselina numa vitrina, nada mais seria capaz de atrair-lhes novamente a atenção.

Aliás, todos os olhares foram atraídos imediatamente por um rapaz que nunca tinham visto antes e que parecia extrema­mente distinto e elegante. Vinha com um oficial do outro lado da rua. O oficial era aquele Mr. Denny, cujo regresso de Lon­dres Lydia viera investigar. Ao passar, ele cumprimentou-as. Todas ficaram impressionadas com o aspecto do desconhecido. A curiosidade era enorme. Kitty e Lydia, resolvidas a investigar o caso, fizeram o grupo passar para o outro lado da rua, sob pretexto de uma compra a fazer numa loja fronteira. Por sorte, apenas tinham pisado a calçada do outro lado, os dois rapazes, voltando sobre seus passos, chegaram ao mesmo lugar. Mr. Denny se dirigiu imediatamente para as moças e pediu permis­são para apresentar o amigo, Mr. Wickham, que viera com ele de Londres no dia anterior e que aceitara uma comissão no seu regimento. Isto era realmente a coisa desejável, pois só lhe fal­tava um uniforme para ser o mais encantador dos rapazes. Logo depois de apresentado, ele se pôs a conversar, pois era desem­baraçado e ao mesmo tempo perfeitamente correto e respeitoso. Todo o grupo se encontrava ainda na mesma posição, conversando muito agradavelmente, quando se ouviu um rumor, e Darcy e Bingley apareceram a cavalo. Ao avistar as senhoras, imediatamente se adiantaram para o grupo e as cumprimenta­ram com as cortesias de costume. Bingley se dirigiu logo a Miss Bennet. Estava, explicou ele, a caminho de Longbourn, a fim de saber notícias dela. Mr. Darcy confirmou com uma reverên­cia e estava a ponto de tomar a resolução de não olhar para Elizabeth, quando a presença do estranho lhe chamou a atenção. Elizabeth, que olhava para o rosto de ambos, viu com espanto que quando os seus olhos se encontraram um corou e o outro empalideceu. Mr. Wickham, depois de alguns instantes, tocou o chapéu: uma saudação que Mr. Darcy apenas se dignou res­ponder. Que poderia significar aquilo? Era impossível saber, mas era impossível também não sentir grande curiosidade.

Poucos minutos depois, Mr. Bingley, embora sem parecer notar o que tinha se passado, despediu-se e partiu com o amigo.

Mr. Denny e Mr. Wickham acompanharam as moças até a porta da casa de Mr. Philips e aí fizeram as suas reverências, apesar das insistências de Miss Lydia para que entrassem, e mesmo das instâncias de Mr. Philips em pessoa, que abriu de súbito uma das janelas e confirmou enfaticamente o convite.

Mrs. Philips via sempre com prazer as sobrinhas, espe­cialmente as duas mais velhas, cuja ausência se fizera sentir recentemente. Ela exprimiu avidamente a surpresa que lhe causara a notícia do seu súbito regresso de Netherfield e disse que de nada teria sabido se não tivesse encontrado por acaso o menino da farmácia que lhe dissera que não estavam mais enviando remédios para Netherfield porque as senhoritas Bennet tinham ido embora. Nesse momento Jane chamou a sua atenção para Mr. Collins, que ela desejava lhe apresentar. Mrs. Philips recebeu-o com a maior amabilidade e esta lhe foi retribuída em dose ainda maior. Mr. Collins se desculpou por ter vindo visitá-la sem apresentação prévia, coisa que no entanto se justificava plenamente pelo seu parentesco com as jovens senhoras que o tinham apresentado. Mrs. Philips ficou espanta­da com tal excesso de boa educação, mas o seu embevecimento diante do recém-chegado foi em breve interrompido pelas excla­mações e perguntas a respeito do outro estranho. Quanto a este último, entretanto, ela só podia dizer às sobrinhas o que já sabiam: que ele tinha chegado de Londres com Mr. Denny e que ia receber o posto de tenente comissionado no condado de ... Ela o observara, explicou, durante a última hora, enquanto ele passeava de cima para baixo na rua. Se Mr. Wickham tives­se reaparecido, Kitty e Lydia a teriam substituído nessa ocupa­ção, mas infelizmente ninguém passou pela janela, a não ser alguns oficiais que, em comparação com o estranho, se tinham tornado sujeitos "estúpidos e desagradáveis". Alguns deles de­viam vir jantar com os Philips no dia seguinte, e a tia prometeu que faria o seu marido visitar Mr. Wickham e convidá-lo igual­mente, caso a família de Longbourn pudesse vir depois do jan­tar. Assim ficou combinado, e Mrs. Philips declarou que faria um jogo de loteria e que ofereceria uma ceia mais tarde.

A perspectiva de tais prazeres era muito agradável, e todos se separaram extremamente felizes. Mr. Collins repetiu as des­culpas e tornou a ser tranqüilizado com incansável amabilidade por Mrs. Philips.

A caminho de casa, Elizabeth contou a Jane a cena que pre­senciara entre os dois cavalheiros, mas Jane declarou que aque­le procedimento lhe parecia incompreensível. Mr. Collins, ao regressar, alegrou Mrs. Bennet, dizendo que tinha apreciado imensamente as maneiras e a polidez de Mrs. Philips. Declarou que, a não ser Lady Catherine e sua filha, nunca vira uma mu­lher tão elegante; pois Mrs. Philips não só o recebera com a maior amabilidade, como o tinha incluído especialmente no seu convite para a próxima noite, embora o estivesse vendo pela primeira vez. Em parte isso devia ser atribuído ao seu paren­tesco com a família de Longbourn, mas mesmo assim ele nunca fora tratado com tanta atenção durante toda a sua vida.

 

Nenhuma objeção foi feita quanto ao compromisso que as meninas tinham tomado para a noite seguinte, e todos os escrú­pulos que Mr. Collins manifestou de deixar Mr. e Mrs. Bennet por uma noite, durante a sua visita, foram vencidos com fir­meza. Em hora oportuna a carruagem saiu de Longbourn con­duzindo Mr. Collins e suas cinco primas a Meryton. Ao entra­rem na sala, as meninas tiveram o prazer de saber que Mr. Wickham tinha aceito o convite de Mr. Philips e já se encon­trava em sua casa.

Depois que todos tinham se sentado, Mr. Collins teve a oportunidade de olhar em torno e admirar a casa. Ficou tão impressionado com o tamanho e a mobília da sala que declarou quase ter a impressão de estar numa pequena sala de almoço de verão em Rosings, comparação que a princípio não foi muito apreciada. Mas quando Mrs. Philips soube o que era Rosings e a quem pertencia, e depois que ouviu a descrição de um dos salões de Lady Catherine e soube que uma das lareiras por si só custara oitocentas libras, sentiu toda a força do elogio; não teria ficado ressentida se comparassem a sua sala com o quarto da caseira de Rosings. Mr. Collins se alongou na descrição das riquezas de Lady Catherine e da sua propriedade, com digres­sões ocasionais em louvor da sua própria e humilde residência e dos melhoramentos que estavam sendo feitos nela; finalmente outros cavalheiros se acercaram. Mr. Collins encontrou em Mrs. Philips uma ouvinte muito atenciosa. Ela estava cada vez mais convencida da importância do seu convidado e resolvida a pas­sar adiante para todas as suas vizinhas, assim que pudesse, tudo o que estava ouvindo. Mas para as meninas, que não queriam prestar atenção ao primo, que nada tinham a fazer senão exa­minar as imitações de porcelana sobre a lareira, o intervalo pareceu muito longo. E afinal os cavalheiros se aproximaram, e quando Mr. Wickham entrou na sala Elizabeth sentiu que a admiração que desde o primeiro momento sentira por ele não era de modo algum exagerada. Os oficiais do condado de... eram todos pessoas muito distintas e os melhores dentre eles estavam presentes; mas Mr. Wickham ultrapassava a todos em aspecto, maneiras, modo de andar, do mesmo modo que eles, os oficiais, eram superiores ao gorducho tio Philips, com o seu rosto redondo e o seu hálito cheirando a vinho do Porto.

Mr. Wickham era um felizardo para quem se dirigiam qua­se todos os olhares femininos, e Elizabeth foi a feliz eleita perto da qual ele se sentou. E o rapaz se pôs imediatamente a con­versar da maneira mais agradável, embora o assunto se limitasse apenas à noite chuvosa que fazia, e à probabilidade de uma esta­ção chuvosa. Elizabeth sentiu que o assunto mais banal podia tornar-se interessante graças à arte do narrador.

Diante de rivais tão temíveis como Mr. Wickham e os oficiais, Mr. Collins pareceu mergulhar na insignificância. Para as moças ele não tinha interesse algum. Às vezes, entretanto, Mr. Collins encontrava em Mrs. Philips uma ouvinte benévola. Graças à atenção desta senhora, recebeu uma abundante provi­são de café e de biscoitos. Quando as mesas de jogo foram colocadas, ele teve ocasião de retribuir aquelas amabilidades, oferecendo-se para seu parceiro de uíste.

— Sou um pouco fraco no jogo atualmente — disse ele —, mas aproveitarei de boa vontade a presente ocasião para me aperfeiçoar, pois na minha atual situação...

Mrs. Philips ficou muito grata com o convite, mas não quis esperar os motivos.

Mr. Wickham não jogava uíste, porém a sua presença como espectador na mesa em que jogavam Elizabeth e Lydia foi re­cebida com grande prazer. A princípio pareceu haver um certo perigo de que Lydia o absorvesse inteiramente, pois conversava muito; mas Lydia tinha também grande entusiasmo pelo uíste e dentro em pouco estava tão absorta com as apostas e os prê­mios, que não prestava mais atenção a ninguém. Mr. Wickham ficou portanto à vontade para falar com Elizabeth, que estava pronta a ouvi-lo com a maior boa vontade, embora não tivesse a esperança de que ele contasse o que ela mais desejava: a história das suas relações com Mr. Darcy. Elizabeth não ousou sequer mencionar o nome daquele cavalheiro. O próprio Mr. Wickham introduziu o assunto e perguntou qual a distância que separava Netherfield de Meryton, e depois de ouvir a resposta pergun­tou, hesitante, há quanto tempo Mr. Darcy estava morando lá.

— Há um mês, mais ou menos — respondeu Elizabeth.

E em seguida, para não deixar morrer o assunto, acres­centou:

— Ouvi dizer que ele tem uma grande propriedade no Derbyshire.

— Sim — replicou Wickham —, ele tem uma bela pro­priedade. Dez mil libras líquidas por ano. Aliás, a senhora não poderia encontrar melhor informante do que eu sobre este assunto, pois desde a minha infância conheço a família bastante intimamente.

Elizabeth não pôde evitar manifestar espanto.

— A sua surpresa, Miss Bennet, é muito natural, pois viu com que frieza nos cumprimentamos ontem. Conhece intima­mente Mr. Darcy?

— Não queria conhecê-lo mais do que conheço. Passei quatro dias na mesma casa que ele e o acho muito desagradá­vel.

— Não tenho direito de manifestar a minha opinião — disse Wickham; — não estou qualificado para formar um juí­zo, pois o conheço há tanto tempo e tão bem que me é impos­sível falar com imparcialidade, mas acho que a sua opinião surpreenderia a todos e talvez nunca a exprimisse tão catego­ricamente em outro lugar qualquer. Aqui a senhora está no meio da sua própria família.

— Dou-lhe a minha palavra de que não falo aqui de ma­neira diferente da que falaria em qualquer outra casa das redondezas, exceto em Netherfield. Mr. Darcy não é nada benquisto aqui no Hertfordshire. Todos o acham insuportavelmen­te orgulhoso. Não encontraria uma opinião diferente a seu respeito.

— Não posso dizer que me entristece o fato de um homem não ser apreciado além do que ele merece — disse Wickham, depois de uma curta pausa. — Mas no caso de Mr. Darcy acho que isto não acontece freqüentemente. A sociedade se deixa ce­gar pela sua fortuna e pela sua importância, e se deixa atemo­rizar pelas suas maneiras altivas e despóticas e o vê apenas como ele deseja ser visto.

— Mesmo conhecendo-o muito pouco como o conheço, acho que ele deve ser um homem de mau gênio.

Mr. Wickham se limitou a sacudir a cabeça.

— Não me surpreenderia — disse Wickham — se não se demorasse aqui muito tempo mais.

— Isto eu não sei, mas nada ouvi falar a respeito da sua partida. Espero que os seus planos, Mr. Wickham, não sejam afetados pela presença de Mr. Darcy nestas redondezas.

— Oh, não. Não há de ser ele quem há de me enxotar da­qui. Se quiser evitar encontrar-se comigo, ele é quem deve partir. Não estamos em termos muito amigáveis; é-me desagra­dável encontrá-lo, mas não tenho outros motivos para evitá-lo, senão aqueles que não me pejo de proclamar diante de todo o mundo: a consciência de ter sido tratado injustamente por ele e a pena que me causa o seu feitio desagradável. O pai dele, Miss Bennet, o falecido Mr. Darcy, foi um dos melhores homens que já pisaram sobre a terra, e o melhor amigo que jamais tive; e nunca me encontro com o atual Mr. Darcy sem me sentir ferido por mil lembranças tristes. A sua conduta para comigo foi sem­pre escandalosa, mas creio realmente que lhe perdoaria tudo, contanto que ele não desmerecesse a memória do pai.

Elizabeth sentiu crescer o interesse e o ouvia com toda a atenção, mas a delicadeza do assunto impedia maiores investiga­ções. Mr. Wickham abordou outros temas de natureza menos especial: Meryton, as pessoas da redondeza, a sociedade, e pa­receu muito satisfeito com tudo o que tinha visto, referindo-se especialmente a esta última com muita amabilidade.

— O que mais me induziu a aceitar o posto no regimento — disse ele — foi a perspectiva da agradável sociedade que encontraria aqui. Sabia que era um dos regimentos mais res­peitáveis, e meu amigo Denny me convenceu ainda mais, com a descrição que fez da sociedade de Meryton, das grandes aten­ções que tinha recebido e das excelentes relações que fizera. Confesso que a sociedade me é necessária. Sofri certos desenga­nos e não suporto a solidão. Preciso de uma ocupação e de uma companhia. A vida militar não é aquela para a qual me sinto feito. Mas as circunstâncias a tornaram desejável no momento. Minha carreira devia ter sido o clero. Fui educado para entrar na Igreja e neste momento eu estaria de posse de uma posição importante, se aquele cavalheiro de que falávamos o tivesse desejado.

— Sim?

— Sim. O falecido Mr. Darcy tinha me prometido a me­lhor paróquia que primeiro vagasse nos seus domínios. Era meu padrinho e me dedicava grande afeição. Nunca poderia pagar o que lhe devo. Ele tencionava velar sobre o meu futuro e pensou que o tivesse feito. Mas quando o lugar vagou, foi dado a outra pessoa.

— Que horror! — exclamou Elizabeth. — Como pôde ele desrespeitar a vontade do pai? Por que é que o senhor não procurou uma reparação legal?

— Os termos da doação eram apenas verbais. Não havia fundamento para uma ação legal. Um homem de honra não hesitaria em cumprir as disposições paternas, mas Mr. Darcy preferiu duvidar de que estas disposições existissem ou tratá-las como simples recomendações e afirmou que eu tinha perdido todo o direito ao lugar que pleiteava pela minha extravagância e pela minha imprudência. O certo é que o lugar ficou vago há dois anos, no momento exato em que eu atingia a idade exigida para ocupá-lo. E creio que foi dado a outra pessoa; e não é me­nos certo que eu nada tenha feito para desmerecê-lo. Tenho um gênio franco e impulsivo e talvez manifestasse com demasiada liberdade aos outros e ao próprio Mr. Darcy a opinião que tenho dele. Não me lembro de ter feito nada mais grave. Mas o fato é que somos homens de feitio muito diferente e que ele me odeia.

— Isto é revoltante. Ele merece ser publicamente con­denado.

— Mais cedo ou mais tarde o será, mas não por meu inter­médio. Enquanto a memória do pai dele viver em mim, não o denunciarei, nem mesmo o provocarei.

— Mas qual pode ser o motivo que o levou a proceder tão cruelmente? — disse Elizabeth, depois de uma pausa.

— A furiosa antipatia que tem por mim, uma antipatia que não posso deixar de atribuir em parte à inveja. Se o faleci­do Mr. Darcy tivesse gostado menos de mim, o filho talvez me suportasse melhor. Mas a extraordinária afeição que o pai manifestava por mim irritava-o quando ainda era muito criança. Com o feitio que tem, não podia tolerar a competição em que nos defrontávamos e a preferência que freqüentemente me era dada.

— Eu não supunha que Mr. Darcy fosse tão ruim assim, embora nunca me tenha sentido atraída por ele. Pensava que ele desprezasse os seus semelhantes em geral, mas não suspeitava que fosse capaz de tomar uma vingança tão baixa e se mostrar tão injusto e tão desumano.

Depois de refletir alguns minutos, continuou:

— Recordo-me de que ele se gabou certa vez em Nether­field de ser implacável nos seus ressentimentos. E de ser dotado de um temperamento rancoroso. Deve ter um gênio terrível.

— Quanto a isto nada posso dizer — replicou Wickham —, não me sinto com forças para julgá-lo com justiça.

Elizabeth tornou a mergulhar nos seus pensamentos e, de­pois de algum tempo, exclamou:

— Tratar desta maneira o afilhado, o amigo, o favorito de seu pai...

E poderia ter acrescentado: "Um rapaz como o senhor, cuja aparência depõe tanto a seu favor". Mas limitou-se a dizer:

— E além disso um companheiro de infância, um íntimo, como o senhor mesmo disse...

— Nascemos na mesma paróquia, dentro dos limites do mesmo parque, passamos juntos a maior parte da infância, vi­vemos na mesma casa, compartilhamos os mesmos divertimen­tos e fomos objetos da mesma afeição paternal. Meu pai come­çou a vida na mesma profissão em que o seu tio parece ter se distinguido, mas abandonou tudo para servir Mr. Darcy, dedi­cando todo o seu tempo à administração da propriedade de Pemberley. Era altamente estimado por Mr. Darcy, que fez dele o seu amigo íntimo e confidente. Mr. Darcy, mais de uma vez, reconheceu publicamente que devia as maiores obrigações a meu pai, pelos serviços que este lhe prestara na administração dos seus bens. E quando, um pouco antes da morte de meu pai, Mr. Darcy lhe prometeu espontaneamente encarregar-se do meu futuro, estou convencido de que sentia que essa promessa era uma dívida de gratidão para com meu pai, além de ser uma prova de afeição para comigo.

— Como é estranho! — exclamou Elizabeth. — Que coisa abominável! Espanta-me que o próprio orgulho de Mr. Darcy não o tenha levado a ser justo para com o senhor. E se não houvesse outro motivo, bastava este. Ele devia ser orgu­lhoso demais para ser desonesto.

— Espantoso — replicou Wickham —, pois quase todos os seus atos podem ser relacionados com o orgulho. E o orgulho tem sido o seu melhor amigo. O orgulho o conduziu até mais próximo da virtude do que qualquer outro sentimento. Mas nenhum de nós é coerente, e na sua conduta para comigo agiram ainda impulsos mais fortes do que o orgulho.

— Mas pode um orgulho tão abominável lhe ter dado alguma vantagem?

— Sim. Levou-o freqüentemente a ser liberal e generoso, a despender grandes quantias, a ser hospitaleiro, a ajudar os seus colonos e a mitigar os sofrimentos dos pobres. O orgulho da família e o orgulho filial, pois ele tem grande orgulho do pai, o conduziam a isto. Não desmerecer a família, não parecer ter degenerado quanto a certas qualidades que a tornaram famo­sa, não deitar a perder a influência da casa de Pemberley são motivos poderosos. Ele possui também orgulho fraternal, o qual, somado a uma certa afeição, o faz zelar com carinho e cuidado pela irmã; a senhora deve ter ouvido dizer que ele é o melhor e o mais atencioso dos irmãos.

— Que espécie de moça é Miss Darcy? Ele sacudiu a cabeça.

— Eu desejava responder que ela é amável. Causa-me mágoa falar mal de um Darcy. Mas é extremamente parecida com o irmão, muito, muito orgulhosa. Em criança era extrema­mente afetiva e agradável, e gostava muito de mim. A fim de distraí-la, perdi muitas horas da minha vida. Mas agora ela já não representa nada para mim. É uma bonita menina de quinze ou dezesseis anos e dizem que muito prendada. Desde a morte do pai vive em Londres, em companhia de uma se­nhora que orienta a sua educação.

Depois de muitas pausas, em que tentou falar outros assuntos, Elizabeth não pôde deixar de voltar ao primeiro, e disse:

— Espanta-me a intimidade dele com Mr. Bingley. Não sei como este, que parece ser todo bom humor e é realmente extremamente simpático, pode ter amizade por aquele homem. Não entendo como os gênios combinam. Conhece Mr. Bingley?

— Não.

— É um homem amável, bem-educado, encantador. Não deve conhecer a verdadeira natureza de Mr. Darcy.

— Provavelmente não. Mas Mr. Darcy sabe agradar quan­do quer. Não lhe faltam qualidades. Sabe ser um companheiro agradável, quando acha que vale a pena. Entre os seus iguais mostra-se muito diferente do que com os menos afortunados. Seu orgulho nunca o abandona; mas com os ricos ele é liberal, justo, sincero, razoável, honrado, e talvez agradável. Mesmo levando em conta a sua fortuna e a sua figura.

Pouco depois terminou a partida de uíste. Os jogadores se reuniram em torno da outra mesa e Mr. Collins se sentou entre a prima Elizabeth e Mrs. Philips. Esta lhe fez as perguntas de costume sobre o seu êxito no jogo. A sorte não lhe tinha sido muito favorável. Ele tinha perdido todos os pontos. Mas quan­do Mrs. Philips começou a exprimir o seu pesar, Mr. Collins lhe assegurou, muito grave, que isto não tinha a menor impor­tância, que ele considerava o dinheiro uma coisa secundária, e pediu que ela não se preocupasse com o fato.

— Sei perfeitamente, minha senhora — disse ele —, que quando uma pessoa se senta numa mesa de jogo deve correr o seu risco. Felizmente a minha situação permite perder cinco xelins sem nenhuma preocupação. Muitos não podem dizer o mesmo, mas graças a Lady Catherine de Bourgh estou livre dessas pequeninas misérias.

Mr. Wickham prestou atenção a estas palavras e, depois de observar Mr. Collins durante alguns momentos, perguntou a Elizabeth se o seu parente era intimamente relacionado com a família De Bourgh.

— Lady Catherine de Bourgh — respondeu Elizabeth — concedeu-lhe recentemente um lugar de reitor. Não sei quando Mr. Collins lhe foi apresentado pela primeira vez. Mas estou certa de que ele não a conhece há muito tempo.

— A senhora deve saber naturalmente que Lady Catheri­ne de Bourgh e Lady Anne Darcy eram irmãs. E por conse­guinte esta senhora é tia do atual Mr. Darcy.

— Não, não sabia. Não sabia mesmo da existência de Lady Catherine até o dia de ontem.

— Sua filha, Miss de Bourgh, herdará uma grande for­tuna. Acredita-se que ela e o primo reunirão as duas pro­priedades.

Esta informação fez Elizabeth sorrir, pois ela se lembrou da pobre Miss Bingley. Todas as suas atenções, a sua afeição por Miss Darcy e os elogios a Mr. Darcy seriam inúteis se ele já estivesse destinado a outra mulher.

— Mr. Collins — disse Elizabeth — fala muito bem tanto de Lady Catherine como da filha, mas certos detalhes que ele relatou acerca daquela senhora me fazem suspeitar que a gra­tidão o torna cego e que, apesar de ser a sua protetora, ela é uma mulher arrogante e convencida.

— Creio que ela é ambas estas coisas no mais alto grau — replicou Wickham. — Há muitos anos que não a vejo, mas lembro-me perfeitamente de que nunca simpatizei com ela e que as suas maneiras eram autoritárias e insolentes. Tem fama de ser extraordinariamente sensata e esperta. Mas eu creio que essas habilidades são em parte devidas à sua situação social e à sua fortuna, às suas maneiras autoritárias e em parte também ao orgulho do sobrinho, que julga só poder se dar com pessoas importantes.

Elizabeth concordou em que tinha explicado tudo muito razoavelmente e eles continuaram a conversar com mútua satis­fação, até que o jantar pôs fim às partidas de cartas, cabendo às demais senhoras a sua cota nas atenções de Mr. Wickham. Durante o jantar, o barulho foi tão grande que não se podia conversar; mas as maneiras de Mr. Wickham agradaram a todo mundo. Tudo o que ele dizia era bem dito e fazia tudo com graça. Elizabeth partiu muito entusiasmada com ele. Durante todo o caminho para casa não conseguiu pensar noutra coisa a não ser em Mr. Wickham e nas palavras que ele lhe dissera; mas não encontrou nenhuma ocasião de mencionar o seu nome, pois nem Lydia nem Mr. Collins calaram a boca um só instante. Lydia falou ininterruptamente sobre as fichas de jogo que tinha perdido e sobre as que tinha ganho. E Mr. Collins não cessou um só instante de descrever a amabilidade de Mr. e Mrs. Philips, declarando que não se importava absolutamente com suas per­das no jogo, enumerando todos os pratos do jantar, desculpando-se continuamente por estar incomodando as primas no assen­to estreito da carruagem. Estava longe de esgotar todos os seus assuntos, quando a carruagem parou diante da casa de Longbourn.

 

Elizabeth relatou a Jane no dia seguinte tudo o que se ti­nha passado entre ela e Mr. Wickham. Jane ouviu a irmã com espanto e atenção. Não podia acreditar que Mr. Darcy fosse tão indigno da amizade de Mr. Bingley. E no entanto não estava na sua natureza duvidar da sinceridade de um rapaz tão bem-apessoado como Wickham. A idéia de que ele tivera de suportar realmente tanta ingratidão era suficiente para despertar-lhe to­dos os sentimentos ternos; e portanto nada lhe restava fazer senão pensar bem de ambos, defender a conduta dos dois e le­var à conta do acaso e do erro tudo aquilo que não podia ser explicado de outra maneira.

— Ambos foram enganados — disse ela —, de um modo ou de outro, em circunstâncias das quais não podemos ter ne­nhuma idéia. Pessoas interessadas se interpuseram talvez entre eles com as suas intrigas. Enfim é impossível conjecturarmos as causas ou circunstâncias que possam tê-los afastado um do outro, sem que a culpa recaia sobre nenhuma das partes.

— Muito bem, e agora, minha querida Jane, que é que você tem a dizer a favor dessas pessoas interessadas que prova­velmente se envolveram no assunto? Acha também que são ino­centes? Ou devemos atribuir a culpa a alguém?

— Pode rir quanto quiser, mas não me fará desistir das minhas opiniões. Minha querida Lizzy, pense só na horrível si­tuação em que ficaria Mr. Darcy se ele tivesse tratado de uma tal maneira o favorito do pai, um rapaz a quem o pai promete­ra a sua proteção. É impossível. Nenhum homem com os sen­timentos mais indiferentes, ninguém que tivesse estima pelo seu caráter seria capaz disto. Poderiam os seus amigos mais íntimos se enganar a este ponto a seu respeito? Oh, não.

— É mais fácil eu acreditar que Mr. Bingley está sendo iludido do que supor que Mr. Wickham tenha inventado a his­tória que me contou ontem à noite. Nomes, fatos, tudo men­cionado sem cerimônia. Se não for verdade, Mr. Darcy que o contradiga. Além disso, ele parecia sincero.

— É de fato difícil, a gente não sabe o que pensar.

— Desculpe, a gente sabe exatamente o que pensar. Mas Jane via com clareza apenas um único ponto: que,

caso Mr. Bingley tivesse sido iludido, teria muito que sofrer, quando aqueles fatos se tornassem públicos. Nesse momento as duas moças, que passeavam no pequeno bosque, foram chama­das devido à chegada de um daqueles a respeito de quem esta­vam falando. Mr. Bingley e suas irmãs vieram convidar pessoal­mente as meninas para o tão esperado baile em Netherfield, cuja data fora fixada para a terça-feira seguinte. As irmãs de Mr. Bingley declararam que estavam muito satisfeitas em falar com a querida amiga, pois não tinham ocasião de vê-la há mui­to tempo. Perguntaram várias vezes o que é que ela fizera des­de o regresso de Netherfield. Ao resto da família, mal presta­ram atenção. Evitaram Mrs. Bennet o mais que puderam, fala­ram um pouco com Elizabeth e ignoraram a presença das outras pessoas. Partiram logo, levantando-se das cadeiras com uma energia que surpreendeu o irmão e apressando-se como se de­sejassem se ver livres das amabilidades de Mrs. Bennet. A pers­pectiva do baile em Netherfield era extremamente agradável para todas as moças da família. Mrs. Bennet achou que devia considerar o baile como uma homenagem à sua filha mais ve­lha e ficou extremamente lisonjeada pelo convite que recebera pessoalmente de Mr. Bingley, em vez de um simples e cerimonioso cartão. Jane imaginou a noite agradável que passaria em companhia de suas duas amigas e as atenções que receberia de Mr. Bingley. Elizabeth encarava com prazer a perspectiva de dançar muitas vezes com Mr. Wickham e de ler a confirmação de tudo o que sabia no rosto e nas maneiras de Mr. Darcy. A felicidade que Katherine e Lydia antecipavam não dependia de determinada pessoa ou acontecimento, pois embora, como Eli­zabeth, tencionassem dançar metade da noite com Mr. Wick­ham, este não era de nenhum modo o único par que as poderia satisfazer e para elas um baile era de qualquer maneira um gran­de acontecimento. E até Mary assegurou à família que não se desinteressava da festa.

— Contanto que eu possa ter as manhãs livres — disse ela —, é o que me basta. Não acho que seja um sacrifício dedi­car ocasionalmente uma noite às diversões sociais. A sociedade tem certos direitos sobre nós. Sou da opinião daqueles que con­sideram certos intervalos de recreação e de divertimento dese­jáveis para todo o mundo.

Elizabeth se sentia de tão bom humor que, embora não dirigisse muitas vezes a palavra a Mr. Collins, exceto quando a isto era obrigada, não pôde deixar de perguntar se ele tencio­nava aceitar o convite de Mr. Bingley e se julgava apropriado tomar parte naquele divertimento mundano; com grande sur­presa ficou sabendo que Mr. Collins não tinha o menor escrú­pulo a esse respeito e que nem de longe temia uma repreensão do arcebispo ou de Lady Catherine de Bourgh por tomar parte num baile.

— Sou de opinião — disse ele — que um baile desta es­pécie, oferecido por um rapaz de caráter a pessoas respeitáveis, não pode ter nenhuma conseqüência má. Estou tão longe de fazer qualquer objeção à dança, que me sentirei honrado em dançar com todas as minhas belas primas durante aquela noite. E aproveito a oportunidade para solicitar a sua mão, Miss Eli­zabeth, para as duas primeiras danças, preferência que, espero, a minha prima Jane atribuirá à sua verdadeira causa e não a qualquer desrespeito para com a sua pessoa.

Elizabeth ficou desolada. Tencionava comprometer-se com Mr. Wickham para estas danças e agora tinha que trocá-lo por Mr. Collins. O seu contentamento não poderia ter sido mais inoportuno. Mas não havia mais remédio. A felicidade de Mr. Wickham e, portanto, a sua própria teriam de ser adiadas. E a proposta de Mr. Collins foi aceita com a maior dose de amabi­lidade de que ela pôde dispor. E outra idéia que aquela galanteria lhe sugeriu não foi de natureza a aumentar o seu conten­tamento. Elizabeth compreendeu pela primeira vez que havia sido escolhida entre as suas irmãs para ser a esposa do reitor de Hunsford e para ajudar a completar uma mesa de jogo de quadrille em Rosings, na falta de visitas mais importantes. A idéia logo se transformou em certeza, quando observou as cres­centes amabilidades com que Mr. Collins a cercava e as freqüen­tes tentativas de elogiar o seu espírito de vivacidade. E, embo­ra ficasse mais surpresa do que contente com esses inesperados efeitos dos seus encantos, sua mãe não tardou a dar a entender que a probabilidade daquele casamento lhe era extremamente agradável. Elizabeth no entanto resolveu ignorar a indireta, compreendendo que qualquer recusa seria a causa de uma vio­lenta disputa. Talvez Mr. Collins nunca fizesse a proposta. E, até que o fizesse, era inútil brigar por sua causa.

Se não fossem os preparativos para o baile de Netherfield, as duas irmãs mais moças se encontrariam num estado lamen­tável naquele dia, pois, desde a manhã do convite até o dia do baile, houve uma tal sucessão de dias chuvosos que nem uma só vez elas puderam ir a Meryton. Nem tia, nem oficiais, nem novidades...

Até Elizabeth se sentiu aborrecida. O mau tempo impe­dia inteiramente o progresso das suas relações com Mr. Wick­ham e, a não ser a perspectiva da festa na terça-feira, nada po­deria ter tornado suportável para Kitty e Lydia a monotonia de uma sexta, de um sábado, de um domingo e de uma segun­da-feira de chuva.

 

Até o momento em que Elizabeth entrou na sala, em Ne­therfield, e procurou em vão Mr. Wickham entre os grupos de túnica vermelha ali reunidos, nem uma só vez a dúvida de que ele pudesse não estar presente atravessara o seu espírito. Ne­nhuma das lembranças que razoavelmente a poderiam ter alar­mado tinha destruído a certeza de encontrá-lo ali. Vestira-se com cuidado especial e se preparara com o melhor dos espíri­tos para a conquista de tudo aquilo que ainda não fora subme­tido no coração de Mr. Wickham, certa de que naquela noite encontraria ocasião de vencer todos os obstáculos. Mas naquele instante levantou-se nela a horrível suspeita de que o seu nome fora propositadamente omitido nos convites enviados por Bin­gley aos oficiais, para fazer a vontade de Mr. Darcy. E, embora o caso não fosse exatamente aquele, o fato irreparável da sua ausência foi anunciado por seu amigo Mr. Denny, a quem Lydia se dirigiu avidamente e que lhe disse ter sido Wickham obriga­do a partir para Londres, no dia anterior, em viagem de negó­cios, e que ainda não voltara; acrescentando, com um sorriso significativo:

— Não acredito que tais negócios o tivessem afastado da­qui exatamente neste momento, se ele não desejasse evitar um certo cavalheiro aqui presente.

Estas palavras, que Lydia não ouviu, foram percebidas por Elizabeth, e, como lhe demonstravam que Darcy não era menos responsável pela ausência de Wickham do que no caso de ser justa a sua primeira hipótese, todos os seus sentimentos de des­contentamento para com Mr. Darcy foram de tal modo exacer­bados pelo súbito desapontamento que apenas conseguiu res­ponder com fria civilidade às amáveis perguntas que aquele ca­valheiro pouco depois lhe dirigiu. Toda a atenção, tolerância e paciência que demonstrasse para com Darcy significavam uma injúria para com Wickham. Ela resolveu não entrar em conver­sação de nenhuma espécie com ele e não conseguiu esconder de todo o seu mau humor, nem mesmo ao falar com Mr. Bingley, cuja cega parcialidade a irritava.

Mas Elizabeth não era feita para ficar muito tempo de mau humor e, embora todas as suas esperanças para aquela noi­te tivessem sido destruídas, em breve aquela nuvem se dissipou do seu espírito. Tendo desabafado todas as suas mágoas com Charlotte Lucas, com a qual não estivera durante uma semana, mudou espontaneamente de assunto e chamou a atenção da ami­ga para as esquisitices do primo. As duas primeiras danças, no entanto, renovaram o seu desânimo. Mr. Collins, desajeitado e solene, pedindo desculpas em vez de prestar atenção e dando freqüentes passos errados sem perceber, lhe trouxe toda a ver­gonha e infelicidade que pode causar um par desagradável du­rante duas danças seguidas. No momento em que conseguiu ver­se livre dele, o seu alívio não teve limites. Dançou em seguida com um oficial e teve o consolo de falar em Wickham e de ouvir dizer que ele era apreciado por todos. Terminadas aque­las danças, voltou para perto de Charlotte Lucas, e conversava com esta quando foi abordada subitamente por Mr. Darcy, que a convidou para dançar. Tomada de surpresa, sem saber bem o que fazia, Elizabeth aceitou. Logo depois, Mr. Darcy se afas­tou, dando tempo assim a Elizabeth para lamentar a sua falta de presença de espírito. Charlotte procurou consolá-la.

— Você o achará muito agradável.

— Deus não permita tal coisa. Seria a maior infelicidade de todas! Achar agradável uma pessoa que decidimos odiar! Não me deseje esse mal.

Entretanto, quando a música recomeçou e Darcy se apro­ximou, Charlotte não pôde evitar de prevenir a amiga, em voz baixa, de que não tivesse a simplicidade de permitir que o seu entusiasmo por Wickham a tornasse desagradável aos olhos de um homem dez vezes mais importante. Elizabeth não respon­deu e tomou o seu lugar na fila, espantada com a honra de ter sido a escolhida para ficar defronte de Mr. Darcy, lendo igual surpresa nos olhos das suas vizinhas. Durante algum tempo não se falaram e ela começou a pensar que aquele silêncio ia pro­longar-se durante as duas danças. A princípio resolveu ficar calada. Mas de súbito, imaginando que seria ainda maior cas­tigo obrigar o seu companheiro a conversar, fez algumas ligei­ras observações sobre a dança. Ele respondeu e calou-se. Dois minutos depois ela se dirigiu novamente a ele e disse:

— Agora é a sua vez de dizer alguma coisa, Mr. Darcy.

Falei a respeito da dança e o senhor devia fazer algumas obser­vações sobre o tamanho da sala e sobre o número dos pares. Ele sorriu e afirmou que diria tudo o que ela desejasse.

— Muito bem, a resposta basta para o momento. Talvez a propósito eu possa observar que os bailes particulares são muito mais agradáveis do que os bailes públicos. Agora pode­mos ficar calados.

— Então a senhora fala por princípio, quando está dan­çando?

— Às vezes, é preciso falar um pouco, não acha? Parece­ria estranho ficar em silêncio durante meia hora. No entanto, para servir às preferências de certas pessoas, a conversação de­veria ser entabulada com o menor número possível de palavras.

— Está falando a respeito de seus sentimentos no caso presente? Ou imagina que está justificando os meus?

— As duas coisas — replicou Elizabeth, maliciosamente. — Já notei que temos grandes semelhanças de espírito. Ambos somos de feitio anti-social, taciturno, e não gostamos de falar senão para dizer alguma coisa capaz de causar assombro a toda a sala e ser transmitida à posteridade com o brilho de um pro­vérbio.

— Estou certo de que isto é uma imagem muito fiel do seu próprio caráter — disse ele. — Mas não posso dizer até que ponto seja do meu. Sem dúvida a senhora acha que é uma descrição fiel?

— Não devo julgar a minha própria argúcia.

Ele não respondeu e ficaram novamente em silêncio até que, terminada a dança, Mr. Darcy perguntou se as suas irmãs não costumavam ir freqüentemente até Meryton. Ela respon­deu afirmativamente e, sem poder resistir à tentação, acres­centou:

— Quando nos encontrou lá outro dia, acabávamos de fazer uma nova relação.

O efeito foi imediato. A expressão de altivez se acentuou no rosto de Darcy, mas ele nada respondeu. E Elizabeth, mal­dizendo a sua própria fraqueza, não teve forças para continuar. Afinal Darcy falou, constrangido:

— Mr. Wickham é dotado de maneiras tão agradáveis que lhe é fácil fazer amigos. Mas não é tão certo que seja capaz de retê-los.

— Ele teve a infelicidade de perder a sua amizade — re­plicou Elizabeth, com ênfase. — E em circunstâncias que o fa­rão provavelmente sofrer durante toda a vida.

Darcy não respondeu e mostrou desejo de mudar de as­sunto. Naquele momento Sir William Lucas se aproximou, com a intenção de atravessar a sala. Vendo porém Mr. Darcy, parou e, inclinando-se, cumprimentou-o pelo fato de estar dançando e pelo seu par.

— Acredite que fiquei muito satisfeito. Não é comum ver-se dançar tão bem. O senhor é um perito. Permita dizer-lhe, porém, que o seu belo par não lhe fica atrás. Espero que esse prazer se repita, especialmente quando um certo aconteci­mento muito desejável tiver lugar, minha cara Miss Eliza.

E, dizendo isto, olhou para Jane e Bingley.

— Como afluirão os parabéns! — continuou ele. — Ape­lo para Mr. Darcy. Mas não quero interrompê-los. E além disso, Mr. Darcy, não desejo privá-lo da conversa agradável desta moça, cujos belos olhos estão também me censurando.

A última parte da tirada foi mal ouvida por Darcy, mas a alusão de Sir William a seu amigo Bingley pareceu impressio­ná-lo. Seus olhos se voltaram para Bingley e Jane, que dançavam juntos. Mas, recompondo-se rapidamente, voltou se para Eli­zabeth e disse:

— A interrupção de Sir William me fez esquecer o as­sunto sobre o qual falávamos.

— Acho que não estávamos falando. Sir William não po­deria ter interrompido duas pessoas que tivessem menos o que dizer, nesta sala. Já tentamos dois ou três assuntos sem êxito; não sei sobre o que podemos falar agora.

— Que pensa dos livros? — disse ele, sorrindo.

— Livros? Estou certa de que não lemos os mesmos li­vros. E nunca os encaramos com os mesmos sentimentos.

— Sinto que diga isto, mas se este é o caso pelo menos não haverá falta de assunto. Podemos comparar as nossas opi­niões.

— Não, não quero falar em livros num salão de baile. Minha cabeça está cheia de outras coisas.

— Sempre a preocupa o que está acontecendo em torno de si, não é? — disse ele, com uma expressão de dúvida.

— Sim, sempre — replicou ela, sem saber o que dizia, pois o seu pensamento tinha voado para longe.

E, pouco depois, exclamou subitamente:

— Lembro-me de que já ouvi o senhor dizer, Mr. Darcy, que dificilmente perdoava. E que o seu ressentimento, uma vez despertado, jamais se aplacaria. Portanto, deve tomar precau­ções para que ele não seja despertado.

— É verdade — disse ele com voz firme.

— E nunca se deixa influenciar por juízos antecipados?

— Espero que não.

— É particularmente importante para aqueles que nunca mudam de opinião ter a certeza de julgar com justiça desde o início.

— Posso indagar qual é a finalidade dessas perguntas?

— Apenas informar-me sobre o seu caráter — disse ela, procurando dissipar o seu ar de gravidade. — Estou tentando compreendê-lo.

— E tem conseguido? Ela sacudiu a cabeça.

— Não consigo formar uma imagem que me satisfaça. Ouço tantas coisas contraditórias a seu respeito que isto me interessa extraordinariamente.

— Acredito que as informações a meu respeito sejam grandemente contraditórias — respondeu ele, com gravidade. — Eu desejaria, Miss Bennet, que não tentasse desenhar o meu caráter neste momento, pois tenho razões para acreditar que o resultado não seria muito lisonjeiro.

— Mas se não o tomar como um modelo agora, pode ser que nunca mais encontre outra oportunidade.

— De modo algum desejaria perturbar o seu prazer — disse ele, friamente.

Elizabeth se calou e a segunda dança decorreu sem que trocassem outras palavras. Ao se separarem, estavam ambos des­contentes, embora em graus diferentes, pois havia em Darcy um sentimento muito forte em relação a Elizabeth que o le­vou imediatamente a perdoá-la e a dirigir o seu mau humor con­tra outra pessoa.

Não havia muito que se tinham separado, quando Miss Bingley se aproximou de Elizabeth e, com uma expressão amá­vel de desdém, abordou-a da seguinte maneira:

— Então, Miss Eliza, ouvi dizer que tinha ficado encan­tada com George Wickham. Sua irmã me falou a respeito dele e me fez mil perguntas. E eu soube que o rapaz se esqueceu de dizer, entre outras coisas, que ele era o filho do velho Wick­ham, o intendente do falecido Mr. Darcy. Deixe que lhe reco­mende, no entanto, como amiga, que não dê inteira fé a todas as suas afirmações, pois é perfeitamente falso que Mr. Darcy o tenha tratado mal. Ao contrário, ele sempre foi muito bondo­so para com Mr. George Wickham, embora este tenha corres­pondido da maneira mais infame. Não conheço os detalhes, mas sei muito bem que Mr. Darcy não tem culpa nenhuma, que ele não pode suportar Mr. George Wickham, nem ouvir falar nes­sa pessoa, e, embora o meu irmão achasse que não podia omitir o seu nome na lista dos oficiais convidados, ficou satisfeito por ele se encontrar ausente. Acho uma insolência sem nome da parte de Mr. Wickham ter-se mudado para cá e não sei como ele teve tamanha ousadia. Sinto muito ter de falar mal do seu favorito, Miss Eliza, mas considerando a família de que ele descende acho que as suas incorreções não são de estranhar.

— Sua culpa e sua origem modesta parecem significar a mesma coisa aos seus olhos — respondeu Elizabeth, enfurecida —, pois a única acusação que lhe fez foi de ser o filho do in­tendente de Mr. Darcy, e quanto a isto posso lhe assegurar que ele foi o primeiro a me informar.

— Desculpe —- replicou Miss Bingley, com expressão de despeito. — Perdoe a minha interferência. Foi bem-intencio­nada.

"Que insolente", disse Elizabeth para si mesma. "Está muito enganada se espera me influenciar com ataques tão mes­quinhos. Nada encontro neles a não ser a sua ignorância volun­tária e a malícia de Mr. Darcy."

Em seguida Elizabeth procurou a irmã mais velha, que tinha pedido a Bingley informações sobre o mesmo assunto. Jane lhe dirigiu a palavra com um sorriso agradável e uma ex­pressão feliz, que mostrava o quanto estava satisfeita com as ocorrências daquela noite.

— Eu queria saber — disse Elizabeth, com uma expressão não menos sorridente que a da irmã — o que você soube a res­peito de Mr. Wickham. Mas talvez você achasse a companhia tão agradável que não se tenha lembrado de uma terceira pessoa. Neste caso pode estar certa do meu perdão.

— Não — replicou Jane —, não me esqueci dele. Mas nada tenho de satisfatório a lhe comunicar. Mr. Bingley não sabe a história toda, nem conhece as circunstâncias que Mr. Darcy achou ofensivas; mas ele garante a boa conduta, a pro­bidade e a honra do seu amigo Mr. Darcy. Ele está inteiramen­te convencido de que Mr. Wickham não é de modo algum um rapaz respeitável. Creio que ele foi muito imprudente e mere­ceu perder a estima de Mr. Darcy.

— Mr. Bingley conhece Mr. Wickham pessoalmente?

— Não. Nunca o tinha visto antes daquele nosso encon­tro em Meryton.

— Então essas informações são as que ele recebeu de Mr. Darcy. Estou satisfeita. Mas o que é que ele diz a respeito do posto?

— Ele não se lembra exatamente das circunstâncias, embora Mr. Darcy lhe tenha falado nisto mais de uma vez. Mas acredita que o posto tenha sido deixado apenas condicional­mente.

— Não duvido da sinceridade de Mr. Bingley — disse Elizabeth com ênfase. — Mas você me desculpará de não poder me contentar apenas com esta simples afirmação. Não duvido de que Mr. Bingley tenha defendido o seu amigo brilhantemen­te, mas, já que ele desconhece muitos lados da história e ouviu o resto do próprio Mr. Darcy, continuo a pensar exatamente como antes a respeito de ambos os cavalheiros.

Em seguida Elizabeth mudou para outro assunto mais agradável, no qual não havia lugar para divergências. Ouviu com prazer o relato que Jane lhe fez das felizes, embora mo­destas, esperanças que ela alimentava a respeito de Mr. Bin­gley e respondeu, procurando animá-la nessas esperanças. Logo que Mr. Bingley se juntou a elas, Elizabeth se dirigiu para sua amiga Miss Lucas, que lhe perguntou como tinha achado o seu par. E, antes que Elizabeth pudesse terminar a sua resposta, Mr. Collins se aproximou e disse, muito entusiasmado, que ti­nha feito uma notável descoberta.

— Descobri por um singular acaso — disse ele — que existe nesta sala um parente muito próximo da minha proteto­ra: ouvi este cavalheiro mencionar para a jovem senhora que faz as honras desta casa os nomes da sua prima, Miss de Bourgh, e de Lady Catherine. É estranho como estas coisas ocorrem: quem pensaria encontrar aqui um sobrinho de Lady Catherine? Estou contente por ter descoberto isto a tempo de apresentar meus respeitos a este cavalheiro, pedindo-lhe que me desculpe por não o ter feito antes. Espero que a minha total ignorância desse parentesco seja o suficiente para me fazer perdoar.

— O senhor não vai se apresentar pessoalmente a Mr. Darcy!

— Decerto. Pedirei desculpas por não o ter feito antes. Acredito que ele seja o sobrinho de Lady Catherine. Estarei realmente em situação de lhe afirmar que Sua Senhoria ia mui­to bem quando a deixei.

Elizabeth tentou dissuadi-lo da sua resolução, dizendo que Mr. Darcy consideraria o fato de alguém se dirigir a ele sem apresentação como uma impertinência. Que não era absoluta­mente necessário para ambos que eles travassem conhecimento e que cabia a Mr. Darcy, em virtude da sua situação superior, qualquer iniciativa a este respeito.

Mr. Collins ouviu o que ela dizia, com ar de quem estava decidido a seguir as suas próprias inclinações, e quando ela ces­sou de falar respondeu da seguinte forma:

— Minha cara Miss Elizabeth, tenho o maior respeito pela sua opinião em tudo o que se refere a assuntos da sua compe­tência, mas permita-me dizer-lhe que existe uma larga diferen­ça entre as fórmulas de cerimônia usadas pelos leigos e aquelas que regulam as relações com as pessoas do clero. Dê-me licença de observar que eu considero o mister sacerdotal equivalente em dignidade aos mais altos titulares do reino, desde que ao mesmo tempo se mantenha a devida humildade de conduta. Permita-me pois seguir os ditames da minha consciência e rea­lizar o que considero um dever. Perdoe-me menosprezar os seus conselhos, que em todas as demais circunstâncias eu conside­raria como um precioso guia. Mas no caso presente eu me acho mais capaz, pela educação e pelo estudo, de julgar o que é di­reito e o que é errado, do que uma jovem como a senhora.

E, fazendo uma profunda reverência, deixou-a para ir abor­dar Mr. Darcy. Elizabeth observou com atenção a acolhida que este prodigalizava a Mr. Collins. A surpresa de ver-se assim interpelado era visível em Mr. Darcy.

O primo iniciou a sua tirada com uma solene reverência. Embora ela não pudesse ouvir nenhuma palavra, sentiu o que se passava como se estivesse escutando. E distinguiu, pelo mo­vimento dos lábios, as palavras ''desculpas", "Hunsford" c "Lady Catherine de Bourgh". Sentiu-se desapontada de ver o primo ridicularizar-se assim diante daquele homem. Mr. Darcy o observava com um espanto pouco contido, e quando, afinal, Mr. Collins lhe concedeu uma ocasião de falar, respondeu com ar distante de amabilidade. Mr. Collins entretanto não desani­mou e voltou à carga, enquanto o desprezo de Mr. Darcy pa­recia crescer rapidamente com a extensão da segunda tirada.

No fim fez apenas um ligeiro cumprimento e se afastou. Mr. Collins voltou então para perto de Elizabeth.

— Asseguro-lhe que não tenho nenhum motivo para ficar descontente com a acolhida que recebi. Mr. Darcy pareceu ficar muito satisfeito com a atenção. Respondeu-me com a maior amabilidade e me fez até a honra de observar que estava tão convencido do discernimento de Lady Catherine que tinha a certeza de que ela nunca concederia os seus favores a quem não os merecesse. Foi realmente um belo pensamento. Estou muito satisfeito com ele.

Como Elizabeth não tinha mais nenhum interesse espe­cial naquela festa, voltou a atenção inteiramente para a irmã e Mr. Bingley. As agradáveis reflexões a que conduziram as suas observações tornaram-na quase tão feliz quanto Jane. Na sua imaginação, viu-a instalada naquela casa, gozando toda a ven­tura que um casamento realmente feliz pode dispensar. E sen­tiu-se até capaz, em tais circunstâncias, de procurar gostar das duas irmãs de Bingley. Viu que os pensamentos da sua mãe se dirigiam para o mesmo lado e resolveu não se aproximar dela para não ouvi-la falar demais. Quando se sentaram para a ceia, Elizabeth considerou uma grande falta de sorte, quase uma perversidade, ter sido colocada perto de sua mãe. Lady Lucas é que estava sentada entre Mrs. Bennet e Elizabeth, e esta fi­cou profundamente desapontada ao ver que sua mãe falava a Lady Lucas abertamente da sua esperança de ver em breve Jane casada com Mr. Bingley. Era um assunto interessante do qual Mrs. Bennet jamais se cansaria. E não se fatigava de enu­merar as vantagens daquela aliança. Ele era um rapaz encan­tador, era rico e vivia apenas a três milhas de distância. Estes eram os três primeiros pontos pelos quais se felicitava. E depois, era um grande conforto ver como as duas irmãs de Mr. Bingley gostavam de Jane e ter a certeza de que estas pessoas deseja­vam o casamento tanto quanto ela. Além disso era uma coisa muito importante para as suas filhas mais moças, pois o casa­mento de Jane com um homem de tão elevada posição as con­duziria a conhecer partidos ricos. E finalmente era um grande conforto, na sua idade, poder confiar as filhas solteiras aos cui­dados da irmã casada. Isto a dispensaria da obrigação de fre­qüentar a sociedade, na escala em que era agora obrigada a fazer.

Naquelas circunstâncias era necessário, por uma questão de. etiqueta, fazer esta última observação. Mas ninguém menos do que Mrs. Bennet encontrava prazer em ficar em casa. Con­cluiu desejando que Lady Lucas tivesse a mesma felicidade, em­bora fosse evidente que acreditasse não haver nenhuma possi­bilidade de acontecer tal coisa.

Elizabeth procurou em vão reprimir o fluxo das palavras da mãe e persuadi-la a descrever a sua felicidade num tom mais discreto, pois viu com inexprimível desapontamento que Mr. Darcy, sentado defronte delas, ouvia quase todas as suas pala­vras. Sua mãe até ralhou com ela por ser tão absurda.

— Que me importa Mr. Darcy? Que motivo tenho para ter medo dele? Estou certa de que não lhe devemos um res­peito tal, que nos obrigue a nada dizer que possa descontentá-lo.

— Pelo amor de Deus, mamãe, fale mais baixo. Qual a vantagem de ofender Mr. Darcy? Não é desta maneira que se fará estimar pelo seu amigo.

Nada do que disse, entretanto, teve a menor influência. Sua mãe continuou a expressar as suas opiniões no mesmo tom. Elizabeth enrubescia repetidamente de vergonha e desaponta­mento. Não podia deixar de lançar de vez em quando um olhar a Mr. Darcy, embora cada vez se convencesse mais de que es­tava se realizando o que ela mais temia, pois embora Mr. Dar­cy não olhasse continuamente para a sua mãe, a sua atenção estava invariavelmente presa ao que ela estava falando. A ex­pressão do seu rosto mudou gradualmente, do desprezo para a indignação e desta para uma severa gravidade.

No entanto, chegou um momento em que Mrs. Bennet nada mais teve a dizer. E Lady Lucas, que já bocejava há algum tempo, com a repetição dos prazeres que ela não tinha proba­bilidade de compartilhar, procurava se consolar com presunto frio e galinha. Elizabeth se sentiu reviver. Mas não durou muito tempo a sua tranqüilidade, pois acabado o jantar falaram em música. E ela teve a mortificação de ver Mary, depois de ligeira insistência, se preparar para responder ao apelo dos convidados. Tentou, por olhares significativos e mudos apelos, impedir que a irmã desse essa prova de boa vontade. Mas em vão. Mary não compreendia os seus sinais. Uma tal oportunidade de exibir-se era-lhe deliciosa e ela começou a cantar. Os olhos de Elizabeth se fixaram nela com os mais dolorosos sentimentos. Ouviu as várias estrofes com uma impaciência muito mal contida, pois Mary, ao perceber entre os agradecimentos a sugestão de que ela pudesse ser instada a renovar o prazer que estava dando aos seus ouvintes, recomeçou a cantar, depois de uma pausa de meio minuto. As forças de Mary não estavam absolutamente à altura de um tal feito; sua voz tornou-se fraca, seus gestos afe­tados. Elizabeth sofria torturas. Olhou para Jane a fim de ver como é que ela suportava aquilo, mas Jane conversava discre­tamente com Bingley. Olhou para as duas irmãs e viu que elas faziam sinais uma para a outra, caçoando de Mary. Darcy con­tinuava, porém, impenetravelmente grave. Elizabeth olhou para o pai, a fim de suplicar a sua interferência, caso Mary se pro­pusesse cantar a noite inteira. Ele compreendeu o gesto e quan­do Mary acabou de cantar pela segunda vez, disse, em voz alta:

— Isto basta, minha filha. Você cantou muito bem e nos deleitou a todos. Agora deixe as outras moças brilharem.

Mary, embora fingisse não ouvir, ficou um tanto pertur­bada. Elizabeth, penalizada por ela e descontente com a sem-cerimônia do pai, teve medo de que a sua ansiedade tivesse sido inútil. Outras moças foram convidadas.

— Se eu tivesse a sorte de saber cantar — disse Mr. Col­lins —, estou certo de que teria o maior gosto de dar aos ilus­tres presentes o prazer de uma ária, pois considero a música um passatempo muito inocente e perfeitamente compatível com a profissão de um sacerdote. Não quero afirmar entretanto que seja justo dedicar todo o nosso tempo à música, pois existem, é claro, outros deveres. O reitor de uma paróquia tem muito o que fazer. Em primeiro lugar ele deve fazer um acordo sobre as contribuições, sem ser muito pesado ao seu protetor. Ele deve escrever os seus próprios sermões e o tempo que lhe so­bra não será muito para os deveres da paróquia e para o cui­dado e conservação da sua casa, que ele deve tornar tão con­fortável quanto possível. E não creio que sejam de pouca im­portância os cuidados que toma para mostrar-se atencioso e benévolo para com todo o mundo, especialmente para aqueles a quem deve a sua situação. Não me posso eximir desta obri­gação, nem posso estar de acordo com um homem que faltas­se à ocasião de apresentar os seus respeitos a qualquer mem­bro da família dos seus protetores.

E com uma reverência a Mr. Darcy, ele concluiu assim a sua tirada, pronunciando-a tão alto que metade da sala o ouviu: muitos o olharam surpresos e muitos sorriram, mas ninguém pareceu se divertir mais do que o próprio Mr. Bennet, enquan­to a sua mulher, muito séria, dava parabéns a Mr. Collins por ter falado tão sensatamente e observava, num meio sussurro a Lady Lucas, que ele era um rapaz notavelmente inteligente e distinto. Elizabeth pensou que se toda a sua família houvesse entrado em acordo para se expor ao ridículo naquela noite não poderia ter desempenhado o papel com mais espírito nem com maior êxito. E achou que Bingley e sua irmã tinham sido bas­tante afortunados, pois parte daquela exibição escapara à aten­ção do primeiro. Felizmente os sentimentos de Bingley não eram de natureza a serem facilmente alterados pelas loucuras que devia ter presenciado. Bastava que as duas irmãs dele e Mr. Darcy tivessem tido uma oportunidade de ridicularizar os seus parentes. E ela não sabia dizer qual das duas atitudes era mais intolerável: se o desprezo silencioso do cavalheiro ou o sorriso insolente das damas.

O resto da noite trouxe-lhe poucas distrações. Mr. Collins, que perseverava a seu lado, embora não a obrigasse a dançar novamente, impediu que outros a tirassem. Em vão Elizabeth lhe suplicou que convidasse outra moça. Chegou mesmo a se oferecer para apresentá-lo a qualquer das moças que estavam na sala. Ele lhe assegurou que a dança propriamente lhe era inteiramente indiferente e que o seu fim era conquistar as boas graças de Elizabeth por meio de pequenas atenções e que, por­tanto, considerava um dever ficar ao lado dela durante toda a noite. Não houve argumentos que o demovessem de um tal intento. Se ela teve algum alívio foi graças a Miss Lucas, que, para socorrer a amiga, procurou conversar com Mr. Collins.

Elizabeth se viu livre afinal da afronta que as atenções de Mr. Darcy lhe causariam. Embora ele chegasse várias vezes a pouca distância da moça, não se aproximou para conversar. Elizabeth sentiu que isto era devido provavelmente às referên­cias que fizera à pessoa de Mr. Wickham e sentiu um certo prazer.

A família de Longbourn foi a última, a partir. Graças a uma hábil manobra, Mrs. Bennet conseguiu retardar a sua car­ruagem durante quinze minutos depois que todos os outros ti­nham partido. Isto deu ensejo a que Elizabeth constatasse que várias pessoas da família ansiavam cordialmente pela partida dos últimos convidados. Mrs. Hurst e a irmã só abriram a boca para se queixar do cansaço. Estavam impacientes para ter a casa vazia. Repeliram todas as tentativas de Mrs. Bennet, que desejava conversar, e isto lançou um torpor em toda a sala, que nem mesmo as longas tiradas de Mr. Collins conseguiram dis­sipar. Mr. Collins deu parabéns a Mr. Bingley e às suas irmãs pela elegância da festa, pela hospitalidade e polidez com que tinham tratado os seus convidados. Darcy ficou calado. Mr. Bennet, igualmente silencioso, contemplava a cena com prazer. Mr. Bingley e Jane estavam juntos um pouco separados dos outros e conversavam um com o outro. Elizabeth ficou tão ca­lada quanto Mrs. Hurst e Miss Bingley, e Lydia se limitava a exclamar ocasionalmente: "Arre, como estou cansada...", acompanhando estas palavras com um bocejo violento. Quando afinal se levantaram para partir, Mrs. Bennet se desmanchou em amabilidades, na esperança de ver a família toda brevemente em Longbourn. Dirigiu-se particularmente a Mr. Bingley, para assegurar-lhe que teria o maior prazer em recebê-lo a qualquer dia, para um jantar em família, sem as formalidades de um con­vite. Bingley agradeceu com grande prazer e de boa vontade se comprometeu a aparecer na primeira oportunidade, depois de sua volta de Londres, para onde deveria partir no dia se­guinte, demorando-se lá pouco tempo.

Mrs. Bennet ficou inteiramente satisfeita e deixou a casa na deliciosa convicção de que, contando com o prazo necessá­rio para preparar os contratos, as novas carruagens e o enxoval, ela sem dúvida veria a filha instalada em Netherfield dentro de três ou quatro meses no máximo. Pensava com igual certeza no casamento da outra filha com Mr. Collins e isto lhe dava um prazer apreciável, embora não tão grande. De todas as suas fi­lhas, Elizabeth era a de quem menos gostava. Embora o mari­do e o casamento fossem perfeitamente dignos dela, o valor de ambas as coisas era eclipsado por Mr. Bingley e Netherfield.

 

No dia seguinte abriu-se uma nova cena em Longbourn. Mr. Collins fez a sua declaração em regra, tendo resolvido agir sem mais perda de tempo, pois a sua licença expirava no sába­do seguinte, e como não o embaraçassem certas delicadezas de sentimento, fez o pedido com todas as formalidades que supu­nha indispensáveis à transação.

Pouco depois da primeira refeição, encontrando juntas Elizabeth, Mrs. Bennet e uma das irmãs mais moças, ele se di­rigiu à mãe com as seguintes palavras:

— Posso esperar, minha senhora, que se entenda com sua filha Elizabeth para solicitar-lhe em meu nome a honra de uma audiência privada esta manhã?

Antes que Elizabeth, corando de surpresa, tivesse tempo de responder alguma coisa, Mrs. Bennet respondeu espontanea­mente:

— Oh, sim, pois não, certamente. Tenho certeza de que Lizzy terá grande prazer. Acredito que ela não fará nenhuma objeção. Venha, Kitty, vamos lá para cima.

E apanhando os seus trabalhos ela se afastava apressada­mente, quando Elizabeth exclamou:

— Não vá já, mamãe, peço-lhe que não vá embora. Mr. Collins terá que me desculpar, ele nada tem a me dizer que os outros não possam ouvir. Eu vou também.

— Não, não, que tolice, Lizzy! Desejo que você fique onde está.

E como Elizabeth, com olhares embaraçados, parecesse realmente disposta a fugir, ela acrescentou:

— Lizzy, eu insisto que fique e ouça o que Mr. Collins tem a dizer.

Elizabeth não podia se opor a uma tal injunção. Depois de refletir um instante, achou que seria realmente melhor aca­bar com aquilo o mais depressa possível; tornou a sentar e, aplicando-se ao trabalho, procurou disfarçar a agitação e a curio­sidade. Assim que Mrs. Bennet e Kitty se afastaram, Mr. Collins começou:

— Acredite, minha cara Miss Elizabeth, que a sua mo­déstia, longe de prejudicá-la, acrescenta mais uma às suas outras perfeições. A senhora teria sido menos adorável aos meus olhos se não tivesse havido essa pequena resistência. No entanto, per­mita que lhe assegure que tenho a permissão da sua respeitável mãe para este empreendimento. A senhora dificilmente poderá ignorar o verdadeiro sentido das minhas palavras. No entanto, a sua natural delicadeza pode levá-la a dissimular. As minhas atenções foram marcadas demais para serem mal compreendi­das. Quase desde o primeiro momento em que entrei nesta casa escolhi-a para companheira da minha vida futura. Antes de me deixar levar pelos meus sentimentos a este respeito, talvez convenha dizer-lhe as razões que tenho para me casar e além disso os motivos que me trouxeram ao Hertfordshire com o propó­sito de escolher uma esposa.

A idéia de que Mr. Collins, com toda a sua solenidade, pudesse ser levado pelos sentimentos provocou no espírito de Elizabeth tamanha hilariedade, que ela não pôde utilizar a curta pausa que se seguiu a fim de procurar detê-lo. Ele prosseguiu:

— Minhas razões para casar são: primeiro, penso que é uma obrigação de todos os pastores que se encontrem em boa situação, como eu, dar bom exemplo à sua paróquia. Em segun­do lugar estou convencido de que isto contribuirá grandemente para a minha felicidade. E o terceiro motivo, que eu devia tal­vez ter mencionado primeiro, é o conselho e a expressa reco­mendação da muito nobre senhora que eu tenho a honra de chamar a minha protetora. Duas vezes ela condescendeu em dar-me a sua opinião sobre este assunto, sem que eu lhe pedis­se. E na noite que precedeu a minha partida de Hunsford, du­rante um jogo de cartas e enquanto Miss Jenkinson punha um tamborete sob os pés de Miss de Bourgh, Lady Catherine disse: "Mr. Collins, o senhor precisa se casar. Um pastor como o se­nhor tem a obrigação de se casar. Escolha uma mulher educa­da, é o que lhe peço; e, para seu interesse, escolha uma pessoa ativa, útil, que não tenha sido mimada pelos pais, mas que saiba administrar uma casa com economia. Encontre uma pessoa nes­sas condições o mais depressa possível, traga-a para Hunsford e eu irei visitá-la". Permita-me a propósito observar, minha en­cantadora prima, que não considero a atenção e a amabilidade de Lady Catherine uma das menores vantagens que estão em meu poder oferecer-lhe; penso que o seu espírito e a sua viva-cidade a tornarão aceitável aos olhos de Lady Catherine, espe­cialmente se combinar estas qualidades com a veneração e o respeito que a posição de Lady Catherine hão de provocar inevitavelmente em seu espírito. Isto quanto à minha opinião geral a favor do matrimônio. Resta-me explicar por que lancei as minhas vistas sobre Longbourn de preferência ao lugar onde resido, em que, posso lhe assegurar, encontraria muitas moças encantadoras. Mas o fato é que, sendo eu o herdeiro do seu honrado pai, que no entanto pode ainda viver longos anos, achei que era do meu dever escolher uma esposa entre as suas filhas, para que o prejuízo destas pessoas possa ser o menor possível, quando aquele triste acontecimento tiver lugar; o qual entretanto, como eu já disse, pode demorar ainda muitos anos. Este foi o meu motivo principal, minha estimada prima, e estou certo de que ele não me diminuirá aos seus olhos. E agora nada me resta senão lhe exprimir, na linguagem mais apaixonada, a violência da minha afeição. Sou perfeitamente indiferente à for­tuna e não farei nenhuma exigência dessa natureza a seu pai, pois sei perfeitamente que ela não poderia ser atendida. Sei também que as mil libras a quatro por cento, que só serão suas depois da morte de sua mãe, são tudo a que a minha prima tem direito. Sobre esse assunto, portanto, eu me conservarei silen­cioso. Pode ficar certa de que nenhuma observação pouco ge­nerosa atravessará os meus lábios depois que nos casarmos. Tornava-se agora absolutamente necessário interrompê-lo.

— O senhor está se precipitando — exclamou Elizabeth. — Esquece que ainda não lhe dei uma resposta. É o que vou fazer, sem mais perda de tempo: aceite os meus agradecimen­tos pela honra que está me dando. Creia que o aprecio devida­mente, mas é-me impossível fazer outra coisa senão recusar.

— Não é preciso que me ensine — replicou Mr. Collins, com um largo gesto da mão — que as moças costumam rejei­tar as propostas do homem que secretamente tencionam aceitar, da primeira vez em que são feitas; e que às vezes até esta re­cusa se repete duas ou três vezes. Portanto, não estou absolu­tamente desencorajado pelo que acabou de dizer e espero den­tro em breve conduzi-la ao altar.

— Digo-lhe sinceramente — exclamou Elizabeth — que a sua esperança me parece extraordinária depois da minha de­claração. Asseguro-lhe que não sou dessas moças, se é que exis­tem, que cometem a ousadia de arriscar a sua felicidade con­fiando nas possibilidades de um segundo pedido. Minha recusa é perfeitamente séria. O senhor não me poderia tornar feliz. E estou convencida de que sou a última mulher do mundo ca­paz de fazê-lo feliz. Creio até que se a sua amiga Lady Cathe­rine me conhecesse me acharia sob todos esses aspectos mal qua­lificada para essa situação.

— Se eu tivesse certeza de que Lady Catherine pensaria assim... — disse Mr. Collins muito gravemente. — Mas não posso crer que Sua Senhoria desaprovasse a minha escolha. E pode ficar certa de que, quando tiver a honra de tornar a vê-la, falarei com todo o entusiasmo na sua modéstia, economia e outras estimáveis qualidades.

— Asseguro-lhe, Mr. Collins, que todos esses elogios se­rão desnecessários. É preciso que me conceda a licença de jul­gar por mim mesma e me faça o favor de acreditar no que digo. Desejo que se torne muito rico e muito feliz e, recusando-lhe a minha mão, faço tudo que está em meu poder para auxiliá-lo a atingir os seus fins. Fazendo-me este oferecimento, já teve ocasião de mostrar a delicadeza dos seus sentimentos e pode portanto tomar posse da propriedade de Longbourn quando o meu pai morrer, sem nenhum escrúpulo. O assunto pode ser considerado encerrado.

E dizendo estas palavras Elizabeth se levantou e teria saí­do da sala se Mr. Collins não tivesse se dirigido a ela:

— Quando eu tiver a honra de lhe falar pela segunda vez neste assunto, espero receber uma resposta mais favorável. Longe de mim, no entanto, acusá-la de crueldade neste momen­to, pois sei que é um costume do seu sexo rejeitar as primeiras propostas de um homem. E penso que me deu agora todos os encorajamentos compatíveis com a verdadeira delicadeza do ca­ráter feminino.

— Realmente, Mr. Collins — gritou Elizabeth, com vivacidade —, o senhor me surpreende. Se o que eu lhe disse até agora pode lhe parecer um encorajamento não sei de que ma­neira lhe exprimir a minha recusa de maneira a torná-la con­vincente.

— Peço licença, minha encantadora prima, para aceitar a sua recusa apenas como uma questão de palavras. Minhas ra­zões para acreditar nisto são em suma as seguintes: não me pa­rece que a minha mão seja indigna da sua pessoa, nem tampou­co a situação que posso oferecer-lhe. Minha posição na vida, minhas relações com a família De Bourgh e meu parentesco com a sua são circunstâncias que falam altamente em meu favor. E além disso a minha prima devia tomar em consideração tam­bém que, apesar dos seus muitos atrativos, não é certo que outra proposta de casamento lhe seja feita. O seu dote é infe­lizmente tão pequeno que provavelmente contrabalançaria os efeitos da sua beleza e das suas qualidades. Devo portanto con­cluir que ao me rejeitar não está falando seriamente e prefiro atribuir a sua recusa ao desejo de aumentar o meu amor, dei­xando-me na incerteza, de acordo com os costumes habituais das mulheres elegantes.

— Asseguro-lhe que não tenho quaisquer pretensões a esta espécie de elegância, que consiste em torturar e atormentar um homem respeitável. Prefiro que me dê a honra de acreditar na minha sinceridade. Repito os meus agradecimentos pela gran­de honra que me deu, mas é-me inteiramente impossível acei­tá-lo. Todos os meus sentimentos o impedem. Posso falar mais claramente: não me considere uma mulher elegante que tem a intenção de atormentá-lo, mas uma criatura racional, falando a verdade do coração.

— A minha prima é um encanto! — exclamou ele, com um ar de desajeitada galanteria. — Estou persuadido de que, depois de sancionadas pela autoridade expressa de seus exce­lentes pais, minhas propostas não poderão deixar de se tornar aceitáveis.

Contra tal perseverança na vontade de se iludir, Elizabeth nada poderia fazer. Imediatamente se levantou e saiu, determi­nada, caso ele persistisse em considerar as suas repetidas recu­sas como suaves encorajamentos, a apelar para o pai, cuja re­cusa podia ser decisiva e cuja atitude Mr. Collins não poderia tomar como afetação e artifício de mulher elegante.

 

Mr. Collins não permaneceu muito tempo entregue à con­templação silenciosa do seu amor triunfante, pois Mrs. Bennet, que tinha ficado atenta no vestíbulo para surpreender o fim da conferência, assim que viu Elizabeth abrir a porta e se dirigir apressadamente para a escada, entrou na sala de almoço e cum­primentou Mr. Collins efusivamente, felicitando-se igualmente a si mesma. Mr. Collins recebeu e retribuiu essas felicitações com igual prazer. Em seguida passou a relatar os detalhes da entrevista, cujos resultados encarava com satisfação, já que as recusas que sua prima insistentemente lhe opusera decorriam naturalmente do seu pudor e da genuína delicadeza dos seus sentimentos. Essa informação, entretanto, surpreendeu Mrs. Bennet. Ela desejava poder pensar igualmente que a filha tencionara encorajá-lo, opondo-se às suas propostas. Não pôde se impedir, no entanto, de desconfiar, nem de exprimir as suas desconfianças.

— Mas pode ficar certo, Mr. Collins — acrescentou ela —, de que Lizzy será levada a adotar uma atitude mais sensata. Falarei com ela pessoalmente. É unia menina teimosa e não sa­be quais são os seus próprios interesses. Mas eu farei com que ela os reconheça.

— Perdoe a minha interrupção, minha senhora — excla­mou Mr. Collins —, mas se ela é realmente teimosa e tola não sei se neste caso será realmente uma esposa desejável para um homem na minha situação, que naturalmente procura a felicida­de no casamento. Se portanto ela persistir na sua recusa, talvez fosse melhor não forçá-la a aceitar-me, pois se ela é sujeita a essas variações de gênio não poderia contribuir muito para a minha felicidade.

— O senhor não está me entendendo — disse Mrs. Ben­net, alarmada. — Lizzy é teimosa apenas em assuntos como este. Em tudo mais ela é a mais dócil das criaturas. Vou falar ime­diatamente com Mr. Bennet e estou certa de que dentro em pouco arranjaremos tudo com Lizzy.

E sem dar a Mr. Collins tempo para responder, correu para o marido, exclamando, ao entrar na biblioteca:

— Oh, Mr. Bennet, precisamos do senhor imediatamente. Estamos todos aflitos. Venha convencer Lizzy a se casar com Mr. Collins, pois ela declarou que não o quer. E, a não ser que intervenha imediatamente, ele mudará de idéia e não a quere­rá mais.

Mr. Bennet levantou os olhos do livro e fixou-os no rosto da sua esposa, com uma tranqüilidade que as suas palavras afli­tas não alteraram.

— Não tenho o prazer de compreendê-la — disse ele, depois que ela acabou de falar. — Não sei de que está falando.

— De Mr. Collins e Lizzy. Lizzy declara que não quer Mr. Collins e este começa a achar que não quer Lizzy.

— Que é que eu poderei fazer? A situação parece irre­mediável.

— Fale com Lizzy pessoalmente. Diga que quer que ela se case com ele.

— Chame-a aqui. Eu darei a minha opinião.

Mrs. Bennet tocou a campainha e mandou dizer a Miss Elizabeth que viesse à biblioteca.

— Venha cá, minha filha — disse o pai, ao ver Elizabeth entrar. — Mandei chamá-la para tratar de um assunto impor­tante. Disseram-me que Mr. Collins lhe fez uma proposta de casamento. É verdade?

Elizabeth respondeu que era.

— Muito bem. E você recusou essa proposta?

— Recusei.

— Muito bem, chegamos agora ao assunto. Sua mãe in­siste em que você aceite. Não é assim, Mrs. Bennet?

— Sim, ou eu nunca mais tornarei a vê-la.

— Você está diante de uma alternativa difícil, Elizabeth. De hoje em diante você terá que se tornar uma estranha para um dos seus pais. Sua mãe nunca mais olhará para você se não se casar com Mr. Collins. E eu nunca mais a verei se você se casar.

Elizabeth não pôde deixar de sorrir diante da conclusão; mas Mrs. Bennet, que estava convencida de que o marido con­siderava o assunto de um ponto de vista idêntico ao seu, ficou excessivamente desapontada.

— Que é que você quer dizer com isto, Mr. Bennet? Você prometeu que insistiria com Elizabeth para que ela se casasse.

— Minha cara Mrs. Bennet — replicou o marido —, te­nho dois pequenos favores a lhe pedir. Primeiro que me per­mita usar o meu próprio entendimento no caso presente; e em segundo lugar a minha biblioteca. Desejo tê-la a meu inteiro dispor o mais depressa possível.

Apesar de profundamente desapontada com o marido, Mrs. Bennet não cedeu ainda. Continuou a falar com Elizabeth, alternadamente persuadindo e ameaçando. Tentou encaudilhar Jane. Mas esta, com toda a doçura possível, recusou interferir e Elizabeth resistiu aos seus ataques, às vezes com seriedade, outras vezes com bom humor. No entanto, a sua determinação permaneceu inalterável.

Enquanto isto, Mr. Collins meditava, na solidão, sobre o que tinha acontecido. Ele possuía uma opinião demasiado alta de si mesmo para compreender o motivo por que a prima o recusava.

  1. embora sofresse no orgulho, intimamente continuava tranqüilo. Seu interesse pela prima era imaginário. E a possibi­lidade de ela merecer as repreensões da mãe aplacava-lhe o rancor.

Enquanto a família estava naquela confusão, Charlotte Lu­cas apareceu para passar o dia. Lydia a encontrou no vestíbulo e, correndo para ela, disse-lhe, em voz baixa:

— Que bom você ter vindo! Aqui está muito divertido. Sabe o que aconteceu hoje de manhã? Mr. Collins fez uma pro­posta de casamento a Lizzy e ela recusou.

Antes que Charlotte tivesse tempo para responder, apare­ceu Kitty, que vinha contar-lhe a mesma coisa. E mal tinham todas entrado na sala de almoço, onde Mrs. Bennet se encon­trava sozinha, esta abordou imediatamente o assunto, apelan­do para a compaixão de Miss Lucas e suplicando-lhe que per­suadisse a sua amiga Lizzy a ceder aos desejos da família.

— Faça isto por mim, minha cara Miss Lucas — acres­centou ela, num tom melancólico —, pois ninguém está do meu lado, todos estão contra mim. Ninguém tem pena dos meus pobres nervos.

Charlotte não pôde responder, pois Jane e Elizabeth en­traram na sala.

— Aí vem ela — continuou Mrs. Bennet. — Tão des­preocupada como se estivéssemos em York! Tudo lhe é indife­rente, contanto que ela faça a sua vontade. Mas eu vou lhe dizer uma coisa, Miss Lizzy: se você continuar a recusar todas as propostas de casamento deste modo, nunca encontrará um ma­rido. E eu não sei quem vai sustentá-la depois que o seu pai morrer. Eu não posso, estou lhe avisando. Não tenho mais nada a ver com você a partir de hoje. Já disse na biblioteca que nun­ca mais lhe falaria. Pode ficar certa de que cumprirei a minha palavra. Não tenho nenhum prazer em falar com filhos rebeldes. Aliás, não tenho prazer em falar com ninguém. Pessoas que so­frem dos nervos como eu não têm grande inclinação a falar. Ninguém pode saber o que eu sofro! Mas é sempre assim, quem não se queixa não encontra compaixão.

Suas filhas ouviram em silêncio, compreendendo que qual­quer tentativa para trazê-la à razão só serviria para irritá-la ainda mais. Mrs. Bennet continuou pois a falar sem interrupção, até a chegada de Mr. Collins, que entrou na sala com ar mais grave do que de costume.

Ao vê-lo, Mrs. Bennet se virou para as meninas:

— Agora insisto que todos calem a boca. Deixem Mr. Collins conversar um pouco comigo.

Elizabeth saiu silenciosamente da sala. Jane e Kitty a acom­panharam. Mas Lydia ficou onde estava, resolvida a ouvir tudo o que pudesse. E Charlotte, detida a princípio pelas poucas perguntas amáveis que lhe dirigiu Mr. Collins, a respeito da sua família, e em seguida, movida por um pouco de curiosidade, contentou-se em ir até a janela e fingir que não estava ouvin­do. Numa voz chorosa, Mrs. Bennet deu início à palestra com as seguintes palavras:

— Oh, Mr. Collins!

— Minha cara senhora — replicou ele —, guardemos si­lêncio para sempre sobre este assunto. Longe de mim ficar res­sentido com o comportamento da sua filha — continuou ele, numa voz em que transparecia o seu aborrecimento. — Resig­nar-se aos males inevitáveis é um dever que nos cabe a todos. É um dever que incumbe particularmente a um rapaz como eu, tão afortunado no começo da minha carreira. E acredite que estou resignado. E talvez um dos menores motivos que me le­vam a isso não seja a dúvida que me assalta sobre a minha pró­pria felicidade, caso a minha prima tivesse me honrado com o seu consentimento; pois observei muitas vezes que a resignação nunca é tão perfeita como nos casos em que a felicidade que nos é recusada começa a perder uma parte do seu valor a nossos olhos. Espero, minha cara senhora, que não considere a retirada do meu pedido como um desrespeito para com a sua família, já que não pedi a sua intervenção perante Miss Bennet. Minha conduta pode ser reprovável, somente porque aceitei a minha demissão dos lábios da sua filha e não dos seus próprios. Mas todos estamos sujeitos a erro. A minha intenção sempre foi boa. Meu objetivo foi encontrar uma companheira estimável, sem perder de vista as vantagens que isto representava pa­ra a sua família, e, se a minha atitude foi de algum modo repreensível, apresento-lhe aqui as minhas desculpas.

 

A discussão do oferecimento de Mr. Collins estava agora quase encerrada. Elizabeth sofria apenas do inevitável mal-es­tar que tudo aquilo lhe causava e ocasionalmente das indiretas amargas da mãe. Quanto a Mr. Collins, os seus sentimentos se exprimiam principalmente não por embaraço, ou depressão, nem pelo desejo de evitar a companhia de Elizabeth, mas pela secura das maneiras e por um silêncio rancoroso. Quase não di­rigiu a palavra a Elizabeth, e as assíduas atenções de que ele tinha tanta consciência foram transferidas durante o resto do dia para Miss Lucas, cuja paciência e amabilidade foram um grande alívio para todos, especialmente para Elizabeth.

No dia seguinte Mrs. Bennet continuou indisposta e mal-humorada. Mr. Collins estava igualmente no mesmo estado de orgulho ferido. Elizabeth tivera esperança de que o seu rancor pudesse abreviar a visita; mas esse sentimento não pareceu al­terar-lhe os planos. Ele tencionara partir no sábado e continua­va decidido a ficar até aquele dia.

Depois da primeira refeição as meninas foram a Meryton indagar se Mr. Wickham já tinha voltado e lamentar a sua au­sência no baile de Netherfield. Encontraram-no ao entrar na ci­dade, e ele as acompanhou até a casa da tia delas, onde exprimiu a decepção que sentira por não ter podido comparecer ao baile. Suas palavras foram discutidas e comentadas por todos. Para Elizabeth, entretanto, ele admitiu que a ausência tinha sido voluntária.

— À medida que a hora do baile se aproximava — disse ele —, achei que era melhor não me encontrar com Mr. Darcy. Que necessidade tinha eu de ficar num salão com ele, na mes­ma festa, durante tantas horas? Isto representava um esforço superior às minhas forças e poderia dar lugar a cenas desagra­dáveis para mim e para todo mundo.

Elizabeth aprovou calorosamente a sua prudência; tiveram tempo para discuti-la plenamente, bem como para trocar mutuamente todos os elogios, pois Wickham e outro oficial acompa­nharam as meninas de volta para Longbourn. O fato de Mr. Wickham acompanhá-las oferecia uma dupla vantagem: não só isto revelava a Elizabeth a importância que ela adquirira aos olhos de Mr. Wickham, como lhe dava uma ocasião muito fa­vorável de apresentá-lo ao pai e à mãe.

Pouco depois do regresso, chegou uma carta para Miss Bennet. Vinha de Netherfield e foi aberta imediatamente. O en­velope continha uma pequena folha de papel elegante, escrita em caracteres ornados, por mão feminina. Elizabeth viu que a expressão do rosto de sua irmã se alterara, enquanto ela lia. E que fixava com atenção certos trechos. Jane dominou logo os seus sentimentos e, pondo a carta de lado, procurou tomar par­te na conversa com a sua costumeira alegria, mas Elizabeth sentiu nela uma ansiedade que desviava a sua atenção até mes­mo de Wickham. E, assim que este e o seu companheiro parti­ram, Jane, com um olhar, convidou a irmã a acompanhá-la ao quarto. Aí, mostrou a carta, dizendo:

— É de Caroline Bingley. O conteúdo me surpreendeu muito. O grupo todo já deve ter partido de Netherfield a esta hora, a caminho de Londres. E eles não têm intenção de voltar. Ouça o que ela diz.

Jane leu então a primeira frase: continha a informação de que Caroline havia resolvido acompanhar o irmão e tencio­nava jantar naquele mesmo dia em Grosvenor Street, onde morava Mr. Hurst. A frase seguinte continha estas palavras: "Não lhe vou mentir, dizendo que sentirei falta daquilo que deixo no Hertfordshire, a não ser da sua companhia, minha cara amiga. Espero que ainda nos encontremos algum dia para gozar a repetição das muitas conversas interessantes que tive­mos e até lá procuremos atenuar a dor da separação com uma correspondência freqüente e cordial. Conto com você para isto". Elizabeth ouviu estas pretensiosas expressões com a frieza que lhe inspirava a sua desconfiança; e, embora o caráter súbito daquela partida a surpreendesse, nada encontrava nela que la­mentar. Não era a ausência das irmãs que impediria Mr. Bin­gley de morar em Netherfield. E, quanto à perda daquela com­panhia, estava convencida de que Jane se consolaria facilmente, gozando a do próprio Mr. Bingley.

— É de fato triste que você não tenha podido ver as suas amigas antes de partirem — disse Elizabeth, depois de uma curta pausa. — Mas espero que o período de felicidade futura a que Miss Bingley se refere chegue mais cedo do que ela pensa. Espero também que os agradáveis momentos que conheceram como amigas sejam repetidos com maior satisfação ainda do que antes. Mr. Bingley não ficará retido em Londres por causa delas.

— Caroline diz claramente que nenhum deles voltará para o Hertfordshire este inverno. Vou ler para você: "Quando o meu irmão nos deixou ontem, imaginava que o negócio que o chamava a Londres pudesse ser concluído em três ou quatro dias, mas como estamos certas de que isto não pode ser assim e ao mesmo tempo estamos convencidas de que quando Charles che­gar à cidade não terá pressa em tornar a deixá-la, resolvemos acompanhá-lo, para que ele não seja obrigado a passar as suas horas de folga num hotel sem conforto. Muitos dos nossos co­nhecidos já estão lá para o inverno. Desejaria que você, minha cara amiga, tivesse a intenção de fazer parte deste grupo, mas quanto a isto não tenho muita esperança e desejo sinceramente que o seu Natal no Hertfordshire seja repleto das alegrias que esta festa em geral nos traz, e que seus admiradores sejam tão numerosos que não sentirá falta dos três que lhe arrebatamos". É evidente, portanto — acrescentou Jane —, que ele não vol­tará mais este inverno.

— O que é evidente, apenas, é que Miss Bingley não quer que ele volte.

— Você pensa assim? A iniciativa deve ter partido dele. Ele é dono de si mesmo. Mas você não sabe de tudo. Vou ler a mensagem que me magoou particularmente. Não esconderei nada de você: "Mr. Darcy está impaciente para ver a irmã e, para falar a verdade, nós não estamos menos impacientes do que ele. Acho realmente que Georgiana Darcy não tem igual em elegância, beleza e cultura. E à afeição que ela inspira a Louise e a mim mesma acresce alguma coisa mais importante: a esperança que ousamos alimentar de que ela se torne mais tar­de a nossa irmã; não sei se antes já lhe manifestei os meus sentimentos a este respeito. Mas não quero deixar este lugar sem confiar a você os meus desejos. E espero que não os consi­dere insensatos. Meu irmão já a admira muito — ele terá agora freqüentes oportunidades de travar relações íntimas com ela. Todos os seus parentes desejam a aliança do mesmo modo que nós, e penso que não me deixo iludir pela afeição que dedico à irmã, dizendo que acho Charles capaz de conquistar o coração de qualquer mulher. Com todas estas circunstâncias a favor desse casamento e nenhuma que seja contrária, acho, minha cara Jane, que não erro ao alimentar a esperança de um acontecimento que fará a felicidade de tantas pessoas". O que é que você acha desta última frase? — indagou Jane, ao terminar a leitura. — Não é bastante transparente? Não declara ela expressamente que Caroline não espera nem deseja que eu me. torne sua irmã? E que ela está tão perfeitamente convencida da indiferença do irmão que, suspeitando a natureza dos meus sentimentos por ele, tenciona bondosamente avisar-me? Pode haver outra opi­nião a este respeito?

— Sim, pode. A minha é totalmente diferente. Quer ouvi-la?

— De boa vontade.

— Eu a direi em poucas palavras: Miss Bingley viu que o irmão está apaixonado por você e quer que ele se case com Miss Darcy. Ela o acompanhou a Londres com a esperança de detê-lo lá e procurará persuadi-lo de que ele não gosta de você.

Jane sacudiu a cabeça.

— É verdade, Jane, você deve me acreditar. Nenhuma pessoa que os tenha visto juntos pode duvidar da afeição de Mr. Bingley por você. Estou certa de que Miss Bingley não pode ter nenhuma dúvida a este respeito. Ela não é tão sim­plória assim. Se ela tivesse recebido metade dar demonstrações de amor que Mr. Bingley lhe dirigiu, teria encomendado o enxoval. Mas o caso é o seguinte: não somos suficientemente ricos e importantes para eles. E ela está tanto mais ansiosa de casar Miss Darcy com o irmão porque espera que esta aliança entre as duas famílias favoreça uma segunda no mesmo sentido; acho que há nisto uma certa ingenuidade. Ela teria alguma pro­babilidade de êxito se não houvesse Miss de Bourgh. Mas, mi­nha cara Jane, você não pode imaginar seriamente que só por­que Miss Bingley disse que o irmão dela admira Miss Darcy ele seja agora menos sensível aos seus méritos do que quando se despediu de você na terça-feira. Ou que está nas mãos de Miss Bingley fazer com que em vez de ter amor por você ele se apaixone pela amiga dela.

— Se pensássemos a mesma coisa de Miss Bingley — replicou Jane —, a idéia que você fez de tudo isto me tranqüi­lizaria. Mas eu sei que a base do seu raciocínio é injusto. Caro­line é incapaz de enganar alguém propositadamente. Tudo o que posso esperar no caso é que ela se tenha enganado a si mesma.

— Está certo. Você não podia encontrar uma idéia mais feliz, já que não quer se consolar com a minha. Acredite que ela se tenha enganado. Você já fez o seu dever quanto a ela e não precisa mais se preocupar com isto.

— Mas, minha cara irmã, você acredita que mesmo no melhor dos casos eu possa ser feliz aceitando um homem cujas irmãs e amigos desejem todos que ele se case com outra pessoa?

— Você deve decidir por si mesma — disse Elizabeth; — e, se depois de madura deliberação achar que a infelicidade de descontentar as suas duas irmãs vale mais do que a felicidade de ser a esposa de Mr. Bingley, aconselho-a a recusá-lo sem hesitação.

— Como você pode falar assim? — disse Jane sorrindo levemente. — Você sabe que, embora me doesse excessivamente a desaprovação delas, eu não hesitaria.

— Nunca acreditei que você hesitasse. É por isto mesmo que não posso considerar a sua situação com muita piedade.

— Mas se ele não voltar mais este inverno, minha escolha nunca será solicitada. Mil coisas podem acontecer em seis meses.

Elizabeth considerou com o maior desprezo essa idéia de que ele não voltasse mais. Pareceu-lhe ser apenas uma sugestão do interesse de Caroline. E nem por um momento pôde supor que esses desejos, por mais astutamente que fossem manifes­tados, pudessem influenciar um rapaz tão totalmente diverso de todos.

Exprimiu à irmã o que sentia com toda a convicção de que era capaz e teve o gosto de constatar dentro em pouco o efeito das suas palavras. Jane não tinha tendência a se deprimir e aos poucos recuperou a esperança, embora a sua desconfiança, às vezes, sobrepujasse o anseio de que Bingley voltasse a Nether­field e correspondesse aos desejos do seu coração.

Elizabeth e Jane resolveram comunicar à mãe apenas a partida da família, sem alarmá-la quanto à conduta de Mr. Bin­gley. Mas mesmo esta notícia incompleta causou graves preo­cupações a Mrs. Bennet. Lamentou a infelicidade de a família ter partido justamente quando todos estavam se tornando tão íntimos. Depois de se lamentar durante algum tempo, conso­lou-se com a idéia de que Mr. Bingley voltaria brevemente para jantar em Longbourn e a conclusão de tudo aquilo foi a consoladora declaração de que, embora ele tivesse sido convidado apenas para um jantar de família, ela, Mrs. Bennet, tivera o cuidado de preparar um jantar de vários pratos.

 

Os Bennet foram convidados a jantar com os Lucas e novamente, durante a maior parte do dia, Miss Lucas teve a bondade de dar atenção a Mr. Collins. Elizabeth achou uma oportunidade para agradecer à amiga.

— Conserve-o de bom humor — disse ela. — Fico-lhe mais agradecida do que você imagina.

Charlotte assegurou à amiga que tinha muita satisfação em lhe ser útil, e que isto lhe pagava plenamente o pequeno sacri­fício do seu tempo. Apesar de estas palavras serem muito amá­veis, a bondade de Charlotte ia além do que Elizabeth supunha. O seu objetivo era nada menos do que preservar Elizabeth de qualquer possível recrudescimento das atenções de Mr. Collins, atraindo-as para si mesma. Tal foi o plano de Miss Lucas. E aparentemente foi tão bem sucedida que, quando se separaram à noite, ela se teria sentido quase segura do seu êxito se Mr. Collins não tivesse de partir do Hertfordshire dentro de prazo tão curto. Mas neste ponto ela fazia injustiça ao ímpeto e à independência do caráter de Mr. Collins, pois essas qualidades o levaram a escapar sorrateiramente de Longbourn House na manhã seguinte e a correr até Lucas Lodge para se atirar aos seus pés. Mr. Collins evitou cuidadosamente atrair a atenção das primas, pois estava certo de que se o vissem partir não poderiam deixar de adivinhar a sua intenção. E ele não queria que a tentativa fosse conhecida até que o seu êxito o pudesse ser igualmente, pois, embora estando quase seguro da vitória, e com razão, visto Charlotte o ter encorajado bastante, sentia-se relativamente tímido desde a aventura de quarta-feira. Sua recepção, no entanto, foi das mais amáveis. Miss Lucas o avis­tou de uma janela de cima e imediatamente saiu para encontrá-lo casualmente na aléia. Ela só não ousara esperar que tanto amor e tanta eloqüência aguardassem ali o seu aparecimento.

Num espaço de tempo tão curto quanto o permitiram os longos discursos de Mr. Collins, tudo foi combinado satisfa­toriamente para ambos. E ao entrar em casa, ele pediu grave­mente que ela marcasse o dia em que o faria o mais feliz dos homens. Ainda que uma tal solicitação devesse ser afastada no momento, a moça não se sentiu inclinada a arriscar a sua felici­dade. A impermeabilidade com que o dotara a natureza devia privar a sua corte de qualquer encanto que pudesse fazer uma mulher desejar prolongá-la. Miss Lucas, que o aceitara por puro e desinteressado desejo de firmar a sua situação na vida, se preocupava pouco com a data em que isto acontecesse.

O consentimento de Sir William e de Lady Lucas foi rapidamente solicitado, e concedido com a maior boa vontade. A situação atual de Mr. Collins o tornava um partido muito desejável para a filha, a quem só podiam deixar uma pequena fortuna, e as probabilidades que tinha Mr. Collins de herdar fortuna eram bastante evidentes. Lady Lucas começou a cal­cular diretamente, com um interesse que jamais tivera pelo assunto, quantos anos provavelmente viveria ainda Mr. Bennet, e Sir William manifestou a opinião de que, quando Mr. Collins entrasse na propriedade de Longbourn, seria altamente conve­niente que ambos, ele e a esposa, se apresentassem em St. James. Em suma, toda a família se sentiu profundamente feliz. As filhas mais moças começaram a ter esperança de entrar na vida social um ano ou dois mais cedo do que de outro modo pode­riam fazê-lo e os rapazes se sentiram aliviados da sua apreensão de que Charlotte morresse solteirona. Charlotte, pessoalmente, se mostrou bastante discreta. Conseguira o que almejava e tinha tempo para refletir no assunto. Suas reflexões foram em geral satisfatórias. Mr. Collins não era a bem dizer nem sensato nem agradável. A sua companhia era cansativa. E a sua afeição por ela devia ser imaginária. Mas mesmo assim seria seu ma­rido. Sem ter grandes ilusões a respeito dos homens ou do matrimônio, o casamento sempre fora o seu maior desejo; era a única posição tolerável para uma moça bem-educada e de pouca fortuna. E por mais incertas que fossem as perspectivas de felicidade, era ainda a forma mais agradável de ficar ao abrigo da necessidade. Esta proteção, ela agora a obtivera. Tinha vinte e sete anos e jamais fora bela. Sabia portanto que tivera sorte. A circunstância menos agradável era a surpresa que aqui­lo devia causar a Elizabeth Bennet, de cuja amizade ela preci­sava mais do que a de qualquer outra pessoa. Elizabeth ficaria espantada e provavelmente a censuraria. Embora isto não afe­tasse a sua resolução, ela se sentiria ferida com semelhante desaprovação. Resolveu comunicar-lhe pessoalmente a decisão e, assim, recomendou a Mr. Collins, quando ele voltasse a Longbourn para jantar, que tivesse a maior discrição. Mr. Collins prometeu guardar segredo. Mas tal promessa só poderia ser cumprida com muita dificuldade; pois a curiosidade produzida pela sua longa ausência explodiu em perguntas tão diretas que foi necessário uma grande habilidade a fim de iludi-las e ao mesmo tempo exigiram dele um grande sacrifício, pois ardia de desejo de revelar o seu êxito.

Como ele fosse partir na manhã seguinte muito cedo, a cerimônia de despedida foi realizada na hora em que as senhoras se retiravam para dormir; e Mrs. Bennet, com grande cortesia e cordialidade, exprimiu a felicidade que todos sentiriam em tornar a vê-lo em Longbourn, quando os seus deveres permi­tissem uma nova visita.

— Minha cara senhora — replicou ele —, o convite é particularmente agradável, porque é o que eu esperava receber, e pode estar certa de que eu o aceitarei tão depressa quanto me for possível.

Todos ficaram surpresos. Mr. Bennet, que não desejava de modo algum uma volta tão rápida, disse imediatamente:

— Mas não haverá perigo da desaprovação de Lady Cathe­rine? Seria melhor desdenhar os seus parentes do que correr o risco de ofender a sua protetora.

— Meu caro senhor — replicou Mr. Collins —, agra­deço-lhe a amável previdência; pode ficar certo de que não tomarei tal decisão sem o consentimento de Sua Senhoria.

— Todo o cuidado é pouco. Arrisque tudo, menos incor­rer no descontentamento daquela senhora. E, se o senhor achar provável que o fato de nos tornarmos a ver possa acarretar algum aborrecimento, coisa que acho extremamente provável, fique sossegado em sua casa e esteja certo de que não nos ofenderemos.

— Acredite, meu caro amigo, que lhe fico muito grato pela sua atenção tão cordial. E pode ficar certo de que o senhor receberá em breve uma carta minha, agradecendo esta e todas as demais provas de afeição que recebi durante a minha visita ao Hertfordshire. Quanto às minhas encantadoras primas, em­bora a minha ausência seja curta, tomo a liberdade de lhes desejar saúde e felicidade, sem excetuar a minha prima Eli­zabeth.

As senhoras então se retiraram, com as cortesias habituais, muito surpreendidas com a intenção que ele manifestara de vol­tar em breve. Mr. Bennet interpretou-a como o desejo de fazer a corte a uma das suas filhas mais moças. E Mary poderia ter sido levada a aceitá-lo. Ela prezava os talentos de Mr. Collins, muito mais do que qualquer uma das outras. Havia uma solidez nas reflexões de Mr. Collins que freqüentemente a impressio­nava. E embora não o achasse nem de longe tão inteligente quanto a si própria, pensava que, se o encorajasse a ler e a se ilustrar como o fizera, ele poderia tornar-se um companheiro muito agradável. Mas na manhã seguinte todas as esperanças dessa natureza foram dissipadas. Miss Lucas veio em visita pouco depois da primeira refeição, e a sós com Elizabeth relatou os acontecimentos do dia anterior.

A possibilidade de imaginar Mr. Collins apaixonado pela amiga já tinha ocorrido a Elizabeth nesses últimos dias, mas não podia crer que Charlotte o encorajasse. Isto" lhe parecia quase tão impossível para a amiga quanto para ela própria. Sua surpresa foi assim tão grande que ultrapassou a princípio os limites da discrição e ela não pôde deixar de exclamar:

— Noiva de Mr. Collins? Minha cara Charlotte, não é possível!

A expressão grave com que Miss Lucas contava a sua história se alterou momentaneamente com a confusão que sentia por receber uma censura tão direta. Mas como Charlotte já contava com aquilo, recuperou logo a calma e respondeu:

— Por que é que você está espantada, minha cara Eliza? Acha incrível que Mr. Collins agrade a uma mulher? E isto só porque ele não teve a felicidade de lhe agradar?

Mas Elizabeth já tinha recuperado o domínio sobre si mesma. E, fazendo um grande esforço, conseguiu assegurar a Charlotte com certa firmeza que a perspectiva de se tornarem parentes lhe era muito agradável e que ela lhe desejava todas as felicidades imagináveis.

— Eu sei o que você está sentindo — replicou Charlotte. — Você está admirada porque Mr. Collins há tão pouco tempo ainda desejava se casar com você. Mas quando você tiver tempo de pensar sobre o assunto, espero que aprove a minha decisão. Bem sabe que não sou romântica. Nunca fui. Desejo apenas um lar confortável. E, considerando o caráter de Mr. Collins, as suas relações e a sua situação na vida, estou convencida de que tenho as mesmas possibilidades de ser feliz no casamento que a maioria das outras mulheres.

Elizabeth respondeu calmamente: — Sem dúvida.

Depois de uma pausa embaraçosa, as duas amigas se reu­niram ao resto da família. Charlotte não se demorou mais por muito tempo. E Elizabeth teve o ensejo de refletir sobre o que acabara de ouvir. Mas só muito tempo depois é que se recon­ciliou com a idéia de um casamento tão disparatado. A extra­vagância de Mr. Collins, fazendo duas propostas de casamento em três dias, não era nada em comparação com o consentimento de Charlotte. Elizabeth sempre desconfiara de que a opinião de Charlotte sobre o casamento não se parecia muito com a sua. Mas nunca poderia ter suposto que no instante de confrontar as suas idéias com a realidade ela fosse capaz de sacrificar todos os seus melhores sentimentos às vantagens mundanas. Char­lotte mulher de Mr. Collins era um quadro humilhante. E à dor de ver uma amiga se rebaixar assim na sua estima acrescia a triste convicção de que era impossível que aquela mesma amiga fosse feliz no caminho que escolhera.

 

Elizabeth estava sentada com a mãe e as irmãs, pensando no que ouvira e em dúvida sobre se devia mencioná-lo, quando Sir William Lucas em pessoa apareceu, enviado pela filha, para anunciar o noivado. Depois de muitos cumprimentos e congra­tulações pelas perspectivas da união entre as duas famílias, ele abordou o assunto, para uma audiência não somente atônita, mas também incrédula. Pois Mrs. Bennet, com mais perseve­rança do que polidez, retrucou que ele devia estar completa­mente enganado. E Lydia, que era às vezes muito atirada e qua­se sempre malcriada, exclamou:

— Puxa, Sir William, como é que o senhor pode contar uma história destas? Então não sabe que Mr. Collins quer se casar com Lizzy?

Só um cavalheiro, munido de toda a sua tolerância, pode­ria suportar uma tal desconsideração sem se zangar. Mas a boa educação de Sir William conseguiu fazer com que ele transpu­sesse tudo aquilo. E, embora insistisse para que a família acre­ditasse na verdade da sua informação, suportou todas aquelas impertinências com a mais perfeita cortesia.

Elizabeth, sentindo que lhe cabia o dever de salvá-lo da­quela situação incômoda, adiantou-se e confirmou as suas pala­vras, mencionando o conhecimento prévio que tivera de Char­lotte pessoalmente. E procurou pôr um termo às exclamações da mãe e das irmãs, dando os mais sinceros parabéns a Sir William, atitude que Jane imediatamente secundou, fazendo diversas observações sobre a felicidade que poderia trazer aque­la aliança, o caráter excelente de Mr. Collins e a distância con­veniente que separava Hunsford de Londres.

Mrs. Bennet ficou tão ofuscada que nada pôde dizer en­quanto Sir William esteve presente. Mas, apenas ele saiu, os seus sentimentos transbordaram. Em primeiro lugar ela persis­tiu em duvidar da verdade daquelas afirmações. Em segundo lugar tinha certeza de que Mr. Collins fora iludido. Em terceiro lugar tinha certeza de que eles nunca seriam felizes. E em quar­to, que o compromisso poderia ser rompido. Duas coisas no entanto se podiam claramente deduzir do assunto: primeiro, que era Elizabeth a causa de todo aquele mal, e segundo, que ela, Mrs. Bennet, tinha sido tratada infamemente por todos. E foi sobre estes dois pontos, principalmente, que ela se expandiu durante o resto do dia. Nada a pôde consolar ou aplacar, e aquele dia passou sem que o seu ressentimento diminuísse. Du­rante uma semana não pôde ver Elizabeth sem ralhar com ela. Só depois de decorrido um mês pôde conversar novamente com Sir William e Lady Lucas sem ser grosseira, só perdoando a Charlotte muitos meses depois.

Os sentimentos de Mr. Bennet foram muito mais tranqüi­los. Ele achou a situação muito agradável, pois se sentia satis­feito, dizia, por descobrir que Charlotte Lucas, pessoa que ele julgara toleravelmente sensata, era, na realidade, tão tola quanto a sua mulher e mais tola ainda do que a sua filha.

Jane se confessou um tanto surpresa. Mas falou menos em seu espanto do que no desejo sincero de que eles fossem felizes. Elizabeth não conseguiu persuadi-la de que aquela felicidade era pouco provável. Kitty e Lydia estavam longe de invejar Miss Lucas. Para elas Mr. Collins era apenas um pastor, e a notícia afetou-as apenas como uma novidade que podiam espalhar em Meryton.

Lady Lucas não poderia ter resistido ao triunfo de falar a Mrs. Bennet sobre o conforto que representava para ela o fato de ter uma filha bem casada. Ia a Longbourn com mais freqüência do que de costume, para dizer o quanto se sentia feliz, embora os olhares irados de Mrs. Bennet e as observações rancorosas ameaçassem, por vezes, estragar a sua felicidade.

Entre Elizabeth e Charlotte havia um certo constrangimen­to, que as impedia mutuamente de abordar aquele assunto; e Elizabeth se sentiu persuadida de que nenhuma confiança real poderia subsistir daí por diante entre elas. O desapontamento que sofrera fez Elizabeth aproximar-se mais da irmã, em cuja retidão e delicadeza de sentimentos tinha absoluta confiança e cuja felicidade cada dia mais a preocupava, pois fazia uma se­mana que Bingley partira e ainda ninguém falara na sua volta.

Jane enviara a Caroline uma resposta imediata à sua carta e contava os dias que tinha de esperar até que outra lhe che­gasse. A prometida carta de agradecimento de Mr. Collins che­gou na terça-feira. Era dirigida a Mr. Bennet e escrita com tanta solenidade e gratidão como se ele tivesse residido um ano com a família. Depois de tranqüilizar a sua consciência quanto a este tópico, servindo-se das mais calorosas expressões, Mr. Collins passava a informá-lo da sua felicidade por ter conquis­tado o coração daquela vizinha tão amável, Miss Lucas, e expli­cava que era apenas com a intenção de gozar a companhia de sua prometida que ele manifestara com tanta insistência o de­sejo de tornar a voltar a Longbourn, onde esperava chegar da­quela segunda-feira a quinze dias. Lady Catherine, acrescentava ele, aprovava tanto o seu casamento que desejava que o aconte­cimento tivesse lugar o mais cedo possível. Com esse argumen­to, que ele julgava decisivo, esperava convencer Charlotte a marcar uma data próxima para o dia que havia de torná-lo o mais feliz dos homens.

A volta de Mr. Collins para o Hertfordshire já não parecia mais tão agradável a Mrs. Bennet. Ao contrário, ela estava mui­to disposta a se queixar ao marido. Achava muito curioso que ele viesse a Longbourn em vez de ir morar em Lucas Lodge. A visita era também muito inconveniente e principalmente in­cômoda. Não gostava de ter hóspedes em casa quando a sua saúde não era muito boa. E os noivos eram as pessoas mais desagradáveis do mundo. Esses murmúrios de Mrs. Bennet con­tinuaram, até que surgiu a preocupação muito maior a respeito da ausência prolongada de Mr. Bingley. Nem Jane nem Elizabeth se sentiam tranqüilas quanto a isto. Os dias passavam sem tra­zer nenhuma notícia dele, a não ser o boato que circulou em Meryton de que Mr. Bingley não voltaria para Netherfield du­rante todo o inverno. Boato esse que enfureceu Mrs. Bennet e que ela nunca deixava de contradizer como se se tratasse da mais escandalosa das mentiras.

Elizabeth, por sua vez, começou a temer, não que Bingley fosse indiferente a Jane, mas que as irmãs dele conseguissem impedir-lhe o regresso. Apesar da relutância em admitir uma hipótese tão desfavorável para a felicidade de Jane e tão pouco honrosa para o namorado, não podia impedir que tal idéia lhe ocorresse freqüentemente. Os esforços reunidos daquelas criatu­ras maldosas que eram as duas irmãs e do amigo autoritário, somados aos atrativos de Miss Darcy e aos divertimentos de Londres, seriam talvez superiores ao seu interesse por Jane. Quanto a esta última, a sua ansiedade durante aquele período de incerteza era naturalmente mais dolorosa do que a de Eliza­beth. Mas queria esconder tudo o que sentia, e entre as duas irmãs, portanto, nunca se fazia qualquer alusão àquele assunto. Mas, como nenhuma delicadeza daquela espécie refreava Mrs. Bennet, não se passava uma hora sem que falasse em Bingley, sem que exprimisse a sua impaciência pela chegada dele ou mesmo sem que exigisse que Jane declarasse de uma vez por todas que se Bingley não voltasse ela se consideraria ofendida. Foi necessária toda a doçura e firmeza de Jane para suportar esses ataques com relativa tranqüilidade.

Mr. Collins voltou pontualmente no dia marcado, mas a sua acolhida em Longbourn não foi tão amável quanto da pri­meira vez. Mas ele se sentia tão feliz que não precisava de muita atenção e felizmente para os outros as suas atribuições de noivo os aliviaram grandemente da sua companhia. Passava a maior parte do tempo em Lucas Lodge e muitas vezes voltava a Long­bourn apenas a tempo de desculpar-se pela ausência antes de a família se retirar para os seus aposentos.

Mrs. Bennet estava realmente num estado lamentável. A simples alusão a qualquer detalhe relativo ao casamento a pre­cipitava num acesso de mau humor. Em qualquer lugar onde se encontrasse tinha certeza de ouvir falar naquele assunto. A presença de Miss Lucas era-lhe insuportável. Olhava-a com ciúme, despeito e horror, como à sua sucessora naquela casa. Cada vez que Charlotte vinha visitá-los, ela concluía que a sua intenção era antecipar a hora da posse, e, cada vez que Charlotte falava em voz baixa a Mr. Collins, tinha certeza de que falavam da propriedade de Longbourn, planejando expulsá-la e às suas filhas da casa, assim que Mr. Bennet morresse. Queixava-se amargamente de tudo aquilo ao marido.

— Realmente, Mr. Bennet — dizia ela —, é muito duro pensar que Charlotte Lucas será um dia dona desta casa e que eu serei forçada a lhe ceder o meu lugar!

— Não pense nestas coisas tristes, meu bem. Tenhamos confiança no futuro. Encaremos a possibilidade de que eu so­breviva a você.

Isto não era muito consolador para Mrs. Bennet. E portan­to, em vez de responder, ela continuou como antes.

— Não posso suportar a idéia de que eles possuirão toda esta propriedade. Se não fosse esta questão de sucessão, eu não me importaria.

— Com que é que você não se importaria?

— Com nada.

— Então vamos agradecer a Deus, porque você está pre­servada de cair num tal estado de insensibilidade.

— Não posso ser grata a nada que se refira a esta suces­são, Mr. Bennet. Como é que alguém pode ficar tranqüilo ao saber que suas filhas vão ficar privadas da propriedade que possuem? E em favor de quem? De Mr. Collins! Por que ele e não uma outra qualquer pessoa?

— Confio-lhe a resolução deste problema — disse Mr. Bennet.

 

A carta de Miss Bingley chegou e pôs fim a todas as dú­vidas. Logo a primeira frase evidenciava que eles tinham se instalado em Londres para todo o inverno e concluía transmi­tindo os sentimentos do irmão por não ter tido tempo de apre­sentar os seus respeitos aos amigos do Hertfordshire antes da sua partida.

Todas as esperanças estavam perdidas, completamente per­didas. E quando Jane pôde continuar a leitura, nada encontrou para consolá-la a não ser as expressões de afeto da missivista. O elogio de Miss Darcy era o assunto principal da carta. Seus muitos atrativos eram novamente descritos. Caroline se gabava alegremente da crescente intimidade entre elas; arriscava-se a predizer a realização dos desejos que exprimira na carta ante­rior. Comunicava também, com grande alegria, que seu irmão era hóspede de Mr. Darcy, e mencionava com entusiasmo os planos deste último, relativos a uma nova mobília que enco­mendara.

Elizabeth, a quem Jane comunicou tudo isso sem demora, ouviu-a cheia de silenciosa indignação. Seus sentimentos esta­vam divididos entre a preocupação pela irmã e o ressentimento contra todos os outros. Não deu crédito à afirmação de Caroli­ne, de que o irmão se interessava por Miss Darcy. Continuava a acreditar, mais do que nunca, na sinceridade da afeição que Bingley tinha por Jane. Apesar da simpatia com que sempre o considerara, não podia pensar, sem cólera e quase com desprezo, naquela maleabilidade de gênio, na falta de iniciativa pessoal que o tornava um joguete entre as mãos do seus intrigantes amigos e o levava a sacrificar a própria felicidade ao capricho das inclinações alheias. Se a única coisa em jogo fosse a sua própria felicidade, ele poderia arriscá-la como bem entendesse, mas a irmã dela estava envolvida naquilo, e ele devia ter cons­ciência disso. Enfim, era um assunto ao qual seria necessário dedicar uma longa reflexão antes que se pudesse chegar real­mente a algum resultado. Não encontrava outra hipótese. E no entanto, quer a afeição de Bingley tivesse realmente declinado, sufocada ou não pela interferência dos amigos, quer ele tivesse consciência da afeição de Jane, ou ao contrário, a ignorasse, em qualquer um dos casos, e embora a sua opinião acerca de Bin­gley variasse forçosamente segundo essas hipóteses, a situação da sua irmã permanecia a mesma, a sua paz de espírito igual­mente perturbada. Passaram-se um ou dois dias antes que Jane adquirisse coragem para falar a Elizabeth acerca dos seus sen­timentos; mas afinal, um dia em que Mrs. Bennet, depois de se queixar com mais irritação do que de costume de Netherfield e seu proprietário, as deixara sozinhas, Jane não pôde se impedir de dizer para a irmã:

— Oh, eu queria que mamãe tivesse mais domínio sobre si mesma. Ela não tem idéia da dor que me causa, falando con­tinuamente nisto. Mas não me queixarei; não pode durar muito tempo. Ele será esquecido e todos seremos felizes como antes.

Elizabeth olhou para a irmã com solicitude e incredulidade, mas não disse nada.

— Você duvida de mim? — exclamou Jane, corando li­geiramente. — Você não tem razão. Talvez ele continue a viver na minha memória como o homem mais atraente das minhas relações. Mas é tudo. Não tenho que esperar ou que temer. E não tenho nenhum motivo para censurá-lo. Graças a Deus não tenho esta dor. Dê-me um pouco de tempo e certamente eu ten­tarei esquecê-lo.

Numa voz mais forte acrescentou, pouco depois:

— Eu tenho desde já este consolo. É que tudo não foi mais do que um erro da minha imaginação, e que esse erro não fez mal a ninguém a não ser a mim mesma.

— Minha querida Jane — exclamou Elizabeth —, você é boa demais. Sua doçura e seu desinteresse são realmente angéli­cos. Sinto que nunca lhe fiz a devida justiça e que nunca a amei como você merece.

Miss Bennet protestou com veemência contra os méritos extraordinários que lhe atribuíam e atribuiu o elogio à cordial afeição da irmã.

— Não — disse Elizabeth —, não está direito. Você quer pensar que todas as pessoas são respeitáveis e se sente ferida se eu falo mal de alguém. Quero apenas pensar que você é per­feita e você se volta contra mim. Não tenha medo de que eu caía em algum excesso, nem lance mão do seu privilégio de boa vontade universal. Seria inútil. São poucas as pessoas a quem eu realmente quero, e menos ainda aquelas das quais tenho uma boa opinião. Quanto melhor conheço o mundo, menos ele me satisfaz; e cada dia vejo confirmada a minha crença na inconsis­tência de todos os caracteres humanos e na pouca confiança que se pode depositar nas aparências do mérito ou do bom senso. Ultimamente encontrei dois exemplos; um deles não menciona­rei. O outro é o casamento de Charlotte. É inexplicável! Sob todos os pontos de vista, é inexplicável.

— Minha cara Lizzy, não se entregue a sentimentos desta espécie. Eles arruinarão a sua felicidade. Você não deixa ne­nhuma margem para diferenças de situação e de temperamento. Pense na respeitabilidade de Mr. Collins, no caráter prudente e firme de Charlotte. Lembre-se que a família dela é muito grande; que quanto à fortuna é uma união muito desejável. E mostre-se pronta a acreditar, para bem de todo o mundo, que Charlotte possa sentir realmente respeito e estima pelo nosso primo.

— Para lhe fazer a vontade, eu tentarei acreditar em quase tudo. Mas ninguém se beneficiará com isto. Pois, se eu estivesse persuadida de que Charlotte o respeita, realmente ela desceria no conceito que eu tenho da sua inteligência, o mesmo que perdeu antes no valor que eu atribuía ao seu coração. Minha querida Jane, Mr. Collins é um homem tolo, pomposo, preten­sioso e de idéias estreitas. Você sabe que ele é tudo isto tão bem quanto eu. E você deve sentir como eu que uma mulher que se casar com ele não pode ter uma visão muito justa das coisas. Você não há de querer defendê-la só porque ela é Char­lotte Lucas. Você não pode, por causa de um caso individual, mudar o sentido das palavras "bom senso" e "integridade", nem procurar persuadir a si mesma ou a mim que o egoísmo é a prudência e a insensibilidade diante do perigo, certeza de fe­licidade.

— Acho que as suas expressões são muito fortes, e espe­ro que você se convença disso, vendo-os casados e felizes. Quanto a isto, basta. Mas você aludiu a outra coisa. Você mencionou dois exemplos. Sei o que está pensando. Mas lhe peço, querida Lizzy, que não me cause mágoa julgando que aquela pessoa é culpada. Nem dizendo que ela perdeu no seu conceito. Não devemos ser precipitadas e julgar que fomos intencionalmente feridas. Não podemos exigir que um rapaz despreocupado seja sempre prudente e circunspecto. Muitas vezes é apenas a nossa vaidade que nos engana. As mulheres superestimam facilmente a admiração dos homens.

— E os homens fazem tudo para mantê-las nessa ilusão.

— Se o fazem propositadamente, não pode haver justi­ficativa. Mas creio que não há tanta má vontade no mundo quanto as pessoas acreditam.

— Estou longe de atribuir qualquer aspecto da conduta de Mr. Bingley a uma intenção perversa — disse Elizabeth; — mas, mesmo sem o propósito deliberado de errar, ou de tornar os outros infelizes, pode haver enganos e tristezas. Pouco-caso, falta de atenção para com os sentimentos de outras pessoas ou falta de firmeza produzem os mesmos efeitos.

— E você atribui qualquer desses defeitos a ele?

— Sim, todos. Mas se continuar incorrerei no seu desa­grado, dizendo o que penso acerca das pessoas que você estima. Detenha-me enquanto é tempo.

— Você persiste então em supor que as irmãs dele o influenciaram?

— Sim, de combinação com o amigo dele.

— Não posso acreditar nisto. Por que tentariam influen­ciá-lo? Só podem desejar a sua felicidade, e se ele me ama ne­nhuma outra mulher pode lhe trazer esta felicidade.

— A sua primeira suposição é falsa. Eles podem desejar muitas coisas além da felicidade dele. Podem desejar o aumento da sua fortuna e da sua importância. Podem desejar que ele se case com uma moça que tem importância social, dinheiro, rela­ções de alta classe e orgulho.

— Sem dúvida. Desejam que ele escolha Miss Darcy. Mas isto pode se originar de sentimentos melhores do que você supõe. Eles a conhecem há muito mais tempo do que a mim. Não é de espantar que a prefiram. Mas quaisquer que sejam os seus desejos, é muito pouco provável que elas pudessem se opor à vontade do irmão. Que irmã se sentiria justificada em fazer uma coisa destas, a não ser que existisse um motivo muito mais forte? Se elas acreditassem que ele gosta realmente de mim, não tentariam nos separar, pois, se tal fosse o caso, não o conseguiriam. Mas, supondo tal afeição, você faz todo mundo agir maldosa e erradamente e a mim torna muito infeliz. Não discuta esta minha idéia. Não estou envergonhada por me ter enganado, ou pelo menos a vergonha é pouca. Não é nada em comparação com o que eu sentiria se pensasse mal dele ou das suas irmãs. Deixe-me ver as coisas sob o melhor aspecto, um aspecto capaz de esclarecê-las.

Elizabeth não podia se opor a tal desejo. E a partir desse dia o nome de Mr. Bingley quase nunca mais foi mencionado entre elas. Mrs. Bennet continuou ainda a estranhar e a queixar-se de que ele não voltava mais. E, embora não se passasse um dia sem que Jane desse uma explicação razoável, parecia haver pouca probabilidade de que Mrs. Bennet jamais considerasse aquele fato com menos perplexidade. Sua filha procurava con­vencê-la de uma coisa em que ela mesma não acreditava: de que as atenções de Bingley tinham sido o efeito de uma simpatia transitória, cessando depois que a perdera de vista. Mas, embora a probabilidade dessa afirmação fosse admitida no momento, Jane era obrigada a repeti-la no dia seguinte. O melhor con­solo de Mrs. Bennet era lembrar-se de que Bingley tornaria a voltar para o verão.

Mr. Bennet pensava de maneira diferente.

— Então, Lizzy — disse ele um dia —, sua irmã teve um desgosto amoroso, creio eu. Ela merece os meus parabéns. Depois do casamento, o que uma moça mais aprecia é um desgosto amoroso de vez em quando. É uma coisa que dá o que pensar e lhe confere uma espécie de distinção entre as companheiras. Quando chegará a sua vez? Você não há de querer ser suplantada por Jane. Chegou a sua hora. Há bastan­tes oficiais em Meryton, para desapontar todas as moças da região. Escolha Wickham. É um sujeito simpático e lhe daria o fora agradavelmente.

— Obrigada, meu pai, mas um homem menos agradável seria suficiente para mim. Não devemos todas esperar a boa sorte de Jane.

— É verdade — disse Mr. Bennet —, mas é um conforto pensar que o que quer que lhe suceda nesse gênero, você tem uma mãe afetuosa que saberia tirar o melhor partido disto.

A companhia de Mr. Wickham ajudava eficientemente a dissipar a tristeza que as últimas ocorrências tinham trazido para muitos dos habitantes de Longbourn. Viam-no freqüente­mente agora, e às suas outras qualidades acrescia a de uma franqueza absoluta. O que Elizabeth já sabia, as suas queixas de Mr. Darcy e o que sofrera por sua causa, tudo era agora publicamente discutido. E todos se sentiam contentes de pensar que sempre tinham antipatizado com Mr. Darcy, mesmo antes de saber qualquer coisa contra ele.

Jane era a única criatura que supunha que pudessem exis­tir circunstâncias atenuantes no caso, desconhecidas para a so­ciedade do Hertfordshire. Com doce e firme candura invocava sempre a tolerância e a possibilidade de enganos. Mas todos os outros condenavam Mr. Darcy como ao pior dos homens.

 

Depois de uma semana passada em declarações de amor e projetos de felicidade, a chegada do sábado veio privar Mr. Collins da companhia da sua amada Charlotte. A dor da sepa­ração, no entanto, poderia ser aliviada quando chegasse em Hunsford, pelos preparativos para a recepção da sua noiva. E logo em seguida ao seu próximo regresso ao Hertfordshire, seria fixado o dia que havia de torná-lo o mais feliz dos homens. Despediu-se dos parentes em Longbourn com tanta solenidade quanto da primeira vez; tornou a desejar às encantadoras pri­mas saúde e felicidades e prometeu a Mr. Bennet nova carta de agradecimentos.

Na segunda-feira seguinte, Mrs. Bennet teve o prazer de receber o irmão e a cunhada, que vieram como de costume pas­sar o Natal em Longbourn. Mr. Gardiner era um homem fino e sensato, muito superior à irmã, tanto em natureza como em educação. As senhoras de Netherfield dificilmente acreditariam que um homem que vivia do comércio e morava próximo aos seus armazéns pudesse ser tão bem-educado e agradável. Mrs. Gardiner, muitos anos mais moça do que Mrs. Bennet ou Mrs. Philips, era uma mulher elegante, agradável e inteligente e mui­to querida pelas sobrinhas de Longbourn. Entre ela e as duas mais velhas, especialmente, existia uma forte amizade. As me­ninas tinham estado muitas vezes em casa dela na cidade.

A primeira parte da atividade de Mrs. Gardiner ao chegar consistiu na distribuição dos presentes que trazia e na descrição das modas mais recentes. Feito isto, o seu papel se tornou me­nos ativo. Chegou a sua vez de ouvir. Mrs. Bennet tinha muitas queixas a relatar. Tinha sofrido grandes decepções desde a últi­ma vez em que vira a irmã. Duas das suas filhas tinham estado a ponto de se casar e afinal tudo tinha dado em nada.

— Eu não culpo Jane — continuou ela —, pois Jane teria aceito Mr. Bingley. Mas Lizzy! Oh, é muito duro pensar que ela podia ser agora a esposa de Mr. Collins se não fosse tão insensata. Ele fez uma proposta aqui mesmo nesta sala. E ela o recusou. A conseqüência disto é que Lady Lucas casará uma das filhas antes de mim. E a propriedade de Longbourn está mais do que nunca destinada a passar para mãos estranhas. Os Lucas são gente muito esperta, minha irmã, eles só pensam nas vantagens que podem obter. Sinto muito dizer isto deles, mas é verdade. Causa-me um grande nervosismo ser assim contra­riada na minha própria família e ter vizinhos que pensem mais em si mesmos do que nos outros. No entanto, a sua visita neste momento é o maior consolo que eu poderia receber, e muito me alegro de saber o que você acaba de nos contar a respeito das mangas compridas.

Mrs. Gardiner, a quem a maior parte dessas notícias já fora transmitida por Jane e por Elizabeth na correspondência que mantinham com ela, deu à irmã uma resposta evasiva. E com pena das sobrinhas, mudou o assunto da palestra.

Mais tarde, sozinha com Elizabeth, tornou a abordar o assunto:

— É provável que ele tenha sido um partido desejável para Jane — disse ela. — Sinto que o projeto tenha fracassado. Mas estas coisas acontecem tanto! Um rapaz como Mr. Bingley, a julgar pela descrição que me fizeram, se apaixona facilmente por uma moça bonita durante algumas semanas, e quando um acaso os separa esquece-a facilmente. Inconstâncias dessa espé­cie são muito freqüentes.

— De certo modo isso é um excelente consolo — disse Elizabeth. — Mas não serve para nós. Não sofremos por acaso. Não acontece assim tão freqüentemente que um rapaz indepen­dente se deixe persuadir pelos amigos a esquecer uma moça que ele amava apaixonadamente poucos dias antes.

— Mas esta expressão "amar apaixonadamente" é tão gasta, tão duvidosa, tão indefinida... Ela não me faz nenhuma imagem clara. Muitas vezes é aplicada a sentimentos que sur­gem depois de meia hora apenas de contato, como igualmente a afeições reais e fortes. Diga-me, qual era o grau de violência do amor de Mr. Bingley?

— Nunca vi uma inclinação mais promissora. Ele estava se tornando esquecido das outras pessoas e inteiramente absor­to por ela. Cada vez que se encontravam, isto se tornava mais claro. No baile que ele próprio ofereceu, ofendeu duas ou três moças, esquecendo-se de tirá-las para dançar! E eu mesma falei com ele duas vezes sem ter resposta. Podem existir melhores sintomas? Não é a desatenção geral a própria essência do amor?

_ Oh, sim, dessa espécie de amor que suponho tenha

sido o dele. Pobre Jane! Tenho pena dela, porque com o seu feitio talvez não o esqueça imediatamente. Seria melhor que isto tivesse acontecido a você, Lizzy, pois graças ao seu bom humor você teria esquecido mais depressa. Mas você acha que podemos convencê-la a voltar conosco? As mudanças de lugar podem ser úteis. E talvez a ausência de casa, por algum tempo, faça um grande bem a Jane.

Elizabeth ficou extremamente contente com esta propos­ta e plenamente convencida da pronta aquiescência da irmã.

— Espero — acrescentou Mrs. Gardiner — que nenhu­ma consideração por esse rapaz a influencie. Moramos em pontos tão afastados da cidade, todas as nossas relações são tão diferentes e, como você sabe, saímos tão raramente, que é muito pouco provável que eles se encontrem. A não ser que ele venha realmente visitá-la.

— E isto é inteiramente impossível, pois ele está sob a vigilância do amigo, e Mr. Darcy não toleraria que ele fosse visitá-la num quarteirão de Londres tão pouco elegante. Mi­nha cara tia, como pode a senhora supor tal coisa? Mr. Darcy talvez tenha ouvido falar em Gracechurch Street, mas, se ele alguma vez entrasse lá, creio que levaria bem um mês purificando-se das impurezas recebidas.

— Tanto melhor. Espero que eles não se encontrem. Mas Jane não se corresponde com a irmã de Mr. Bingley? Essa pessoa não poderá deixar de visitá-la.

— Ela cortará relações completamente.

Mas apesar da certeza com que Elizabeth fingia acreditar no que diziam, bem como na possibilidade de Bingley ser im­pedido de visitar Jane, esse assunto a preocupava de tal ma­neira que, depois de refletir, convenceu-se de que não consi­derava o caso inteiramente perdido. Parecia-lhe possível e algumas vezes até mesmo provável que a afeição de Mr. Bing­ley recrudescesse e que a influência dos amigos pudesse ser contrabalançada com êxito pelas influências mais naturais dos atrativos de Jane.

Miss Bennet aceitou o convite da tia com prazer. E, se ao mesmo tempo se lembrava dos Bingley, era apenas para desejar que lhe fosse possível ocasionalmente passar uma ou outra manhã com a amiga. E podia fazê-lo sem correr o perigo de ver Bingley, já que Caroline não morava com o irmão.

Os Gardiner ficaram uma semana em Longbourn. E não se passou um dia sem compromissos sociais, sem visitarem ou receberem visitas dos Philips, dos Lucas e dos oficiais. Mrs. Bennet tinha planejado tão cuidadosamente esses divertimen­tos para os parentes que nem uma só vez eles se sentaram juntos para um jantar de família. Quando havia convidados em casa, entre eles se encontravam sempre alguns oficiais, e um deles era sempre Mr. Wickham. E nessas ocasiões Mrs. Gar­diner, em cujo espírito os calorosos elogios de Elizabeth ti­nham despertado suspeitas, observava os dois com grande atenção. Sem supor, pelo que estava vendo, que estivessem seriamente apaixonados, a preferência que manifestavam um pelo outro era suficiente para inquietá-la; resolveu falar a Elizabeth sobre o assunto antes de partir do Hertfordshire e fazer-lhe ver a imprudência que eia cometia, encorajando aquela inclinação. Wickham possuía um meio de interessar a Mrs. Gardiner, independente dos seus múltiplos encantos. Há uns dez ou doze anos atrás, antes do seu casamento, Mrs. Gardiner residira muitos anos na mesma região do Derbyshire em que nascera Mr. Wickham. Tinham portanto muitos co­nhecidos em comum. E, embora Mr. Wickham só tivesse ido lá poucas vezes depois da morte do pai de Mr. Darcy, há cinco anos passados, ele podia dar notícias mais recentes dos anti­gos amigos de Mrs. Gardiner do que as que ela poderia obter de outro modo. Mrs. Gardiner tinha estado em Pemberley e conhecia de nome o falecido Mr. Darcy; aí estava portanto um assunto inesgotável. Comparando as suas lembranças de Pemberley com as descrições minuciosas que Wickham lhe fazia, e prestando ao caráter do seu antigo possuidor o seu tributo de admiração, Mrs. Gardiner deliciava a si mesma e a seu interlocutor. Ao ser informada do tratamento que o atual Mr. Darcy lhe dispensara, ela procurou se lembrar da reputação que ele tinha em criança. É acreditou afinal recor­dar-se de ter ouvido dizer que Mr. Fitzwilliam Darcy tinha sido um menino orgulhoso e de mau caráter.

 

As recomendações de Mrs. Gardiner para Elizabeth fo­ram transmitidas cordialmente na primeira oportunidade fa­vorável que encontrou de falar a sós com a sobrinha; depois de dizer francamente o que pensava, continuou da seguinte maneira:

— Você é uma moça sensata demais, Lizzy, para se apaixonar por um rapaz apenas porque alguém lhe previne que não o faça. E portanto não tenho medo de falar aberta­mente. Seriamente, queria que você estivesse prevenida. Não se comprometa nem procure comprometê-lo numa afeição que a ausência de fortuna tornaria muito imprudente. Nada tenho contra o rapaz. É dos mais interessantes. E se tivesse a situa­ção que deveria ter, acho que você não poderia encontrar melhor. Mas, não sendo este o caso, você não deve se deixar levar pela sua imaginação. Você tem bom senso e todos nós esperamos que o utilize. Seu pai confia na sua resolução e na boa conduta. Não pode desapontá-lo.

— Minha cara tia, a senhora está tomando as coisas mui­to a sério.

— Sim, e espero que você as considere com a mesma seriedade.

— Bem, neste caso não precisa se alarmar. Eu tomarei conta de mim mesma e de Mr. Wickham também. Se depen­der de mim, ele não se apaixonará.

— Elizabeth, você não está falando sério.

— Desculpe, vou tentar novamente. No momento, não estou apaixonada por Mr. Wickham; não, certamente não estou. Mas, sem comparação, ele é o homem mais agradável que jamais conheci. E se ele realmente se interessar por mim acredito que é melhor que não se apaixone. Vejo perfeita­mente a imprudência que há nisto. Oh, aquele abominável Mr. Darcy! A opinião que meu pai tem de mim me orgulha muito. E eu seria uma criatura indigna se a traísse. No entanto, meu pai simpatiza muito com Mr. Wickham. Em suma, minha cara tia, eu ficaria mesmo muito triste se causasse algum aborrecimento a algum de vocês. Mas como estamos vendo todos os dias que, quando existe uma afeição real, os jovens dificilmente se deixam separar pelas condições imediatas de fortuna, como poderei lhe prometer que serei mais prudente do que tantas das minhas semelhantes, se eu for tentada? Como posso mesmo saber que a prudência consiste em resis­tir? Tudo o que posso lhe prometer, portanto, é que não agirei precipitadamente. Não terei pressa em me considerar o mais alto objeto da afeição de Mr. Wickham. Em suma, farei o possível.

— Talvez fosse melhor que você não o encorajasse a vir aqui tantas vezes. Pelo menos você não devia lembrar a sua mãe de convidá-lo.

— Como fiz no outro dia — disse Elizabeth, com um sorriso intencional. — É verdade, será mais prudente não o fazer. Mas não imagine que ele vem aqui tão freqüentemente assim. Foi só por sua causa que ele foi convidado tantas vezes esta semana. A senhora sabe que mamãe gosta de ter muita gente em casa a fim de distrair os convidados. Mas eu lhe dou a minha palavra de que seguirei o caminho que achar mais prudente. E agora espero que esteja satisfeita.

A tia lhe assegurou que estava, e Elizabeth agradeceu o carinho das suas sugestões. Em seguida se separaram. Belo exemplo de conselhos referentes a um tal assunto serem acei­tos sem ressentimento.

Mr. Collins voltou para o Hertfordshire pouco depois da partida de Jane e dos Gardiner. E desta vez a sua chegada não causou grandes transtornos a Mrs. Bennet, pois ele se instalou na casa dos Lucas. O dia do casamento estava próximo. Mrs. Bennet se resignara enfim ao inevitável. Costumava até dizer com insistência, num tom amargo, que desejava que eles fos­sem felizes. O casamento seria realizado na quinta-feira se­guinte. E na quarta, Miss Lucas veio fazer a sua visita de despedida. Quando ela se levantou para sair, Elizabeth, enver­gonhada com os parabéns forçados da mãe, e sinceramente comovida, acompanhou a antiga amiga até a porta. Quando desciam as escadas juntas, Charlotte disse:

— Espero que me escreva freqüentemente, Eliza.

— Pode contar com isto.

— E tenho outro favor a lhe pedir. Você virá me visitar?

— Espero que nos encontremos muitas vezes, aqui no

Hertfordshire.

— Não é provável que eu possa sair do Kent durante algum tempo. Prometa-me portanto que você virá a Hunsford.

Elizabeth não pôde recusar, embora não encarasse aquela visita com prazer.

— Meu pai e Maria virão me visitar em março — acres­centou Charlotte. — E espero que você consinta em vir na companhia deles. Realmente, Eliza, você será tão bem-vinda quanto qualquer deles.

Enfim teve lugar o casamento. O noivo e a noiva partiram para o Kent diretamente da igreja. E todos tiveram muita coisa que dizer e que ouvir, como de costume nessas ocasiões. Eli­zabeth recebeu logo uma carta da amiga, e a correspondência entre elas continuou tão regular e freqüente como sempre. Mas era-lhe impossível manter o mesmo tom de franqueza de anti­gamente. Elizabeth nunca se dirigia à amiga sem sentir que todo o prazer e intimidade que havia nas suas relações tinham ces­sado. E, embora decidida a não desleixar da correspondência, quando escrevia pensava no passado mais do que no presente.

As primeiras cartas de Charlotte foram recebidas com mui­ta ansiedade. Elizabeth estava curiosa para saber como a amiga falaria da nova casa, o que tinha achado de Lady Catherine e até que ponto ela ousaria se declarar feliz. Quando as cartas chegaram, porém, Elizabeth sentiu que Charlotte se externava sobre todos esses pontos, exatamente como tinha previsto. Escrevia alegremente, parecia rodeada de conforto e só mencio­nava o que podia louvar. A casa, a mobília, a vizinhança, as estradas, tudo achava a seu gosto. E Lady Catherine se mos­trara benevolente e amável. Era o mesmo quadro de Hunsford e de Rosings que Mr. Collins pintara. Apenas mais esbatido. Elizabeth compreendeu que teria de esperar até o dia da sua visita para saber o resto.

Jane já tinha escrito algumas linhas à irmã, anunciando a chegada em Londres, sem novidades. Elizabeth tinha esperança de que quando ela tornasse a escrever pudesse transmitir algu­ma notícia dos Bingley.

A impaciência pela segunda carta foi recompensada como costuma sê-lo. Jane tinha estado uma semana em Londres sem ver Caroline e sem ter notícias dela. Explicava o fato, no entan­to, supondo que a sua última carta de Longbourn para a ami­ga se extraviara. "Minha tia", continuou ela, "vai amanhã para aqueles lados da cidade. E eu terei a oportunidade de visitar Grosvenor Street." Depois da visita ela tornou a escre­ver dizendo que tinha visto Miss Bingley. "Não creio que Caroline estivesse de bom humor", dizia ela. "Mas pareceu muito contente de me ver e censurou-me por não ter avisado da minha chegada a Londres. Portanto eu tinha razão. Ela não recebeu a minha última carta. Perguntei como estava o irmão dela, é claro. Estava bem, mas tão ocupado com Mr. Darcy que quase nunca suas irmãs tinham ocasião de vê-lo. Soube que Miss Darcy estava sendo esperada para o jantar. Eu desejava conhecê-la. Minha visita não foi longa, pois Caroline e Mrs. Hurst estavam para sair. Espero que elas venham em breve visitar-me aqui."

Elizabeth sacudiu a cabeça. A carta lhe provava que só por um acaso Mr. Bingley descobriria que sua irmã estava em Londres.

Passaram-se quatro semanas e Jane nem uma só vez o viu. Tentou persuadir a si mesma de que não o lamentava. Mas não podia continuar cega às intenções de Miss Bingley. E de­pois de esperar em casa todas as manhãs durante quinze dias, recebendo todas as noites novas desculpas, finalmente a visi­tante apareceu. Mas a brevidade da visita e sobretudo a mu­dança das suas maneiras não deixaram a Jane nenhuma ilusão. A carta que escreveu à irmã naquela ocasião mostrava bem o que sentia:

 

"Minha cara Lizzy:

Estou certa de que você é incapaz de regozijar-se à minha custa se eu lhe confessar que me enganei inteiramente quanto à afeição de Miss Bingley por mim. Mas, minha cara irmã, em­bora o que se passou tenha provado que você tinha razão, não me acuse de obstinação se eu continuo a sustentar que, consi­derando a conduta antiga de Caroline, a minha confiança era tão natural quanto as suas suspeitas. Não compreendo absoluta­mente as razões que ela tinha para desejar ter relações íntimas comigo, mas, se essas mesmas circunstâncias se repetissem, estou certa de que eu tornaria a ser iludida. Caroline não retribuiu a visita senão ontem; não recebi no intervalo nem uma nota, nem um bilhete, nem uma linha. E quando ela veio tornou-se evi­dente que não tinha nenhum prazer em me ver. Deu ligeiras desculpas, inteiramente formais, e não disse uma só vez que desejava tornar a ver-me; achei-a sob todos os aspectos tão indiferente que, quando partiu, eu estava perfeitamente resol­vida a cortar relações. Tenho pena dela mas não posso deixar de culpá-la. Fez muito distinguindo-me a princípio, como acon­teceu. Posso dizer com certeza que ela tomou todas as iniciati­vas, mas tenho pena dela porque deve sentir que procedeu erradamente e porque tenho plena certeza de que a causa de tudo isto foi a preocupação que tem com o irmão. Não preciso me explicar melhor. E, embora eu e você saibamos que esta preocupação é inteiramente inútil, se ela a sente realmente ficará facilmente explicada a sua conduta para comigo. E se tem tanta afeição pelo irmão, afeição que ele aliás merece, qualquer preocupação que sinta por ele será natural e louvável. No entanto espanta-me que ela continue ainda a ter estes re­ceios, pois se ele gostasse realmente de mim já nos teríamos encontrado há muito tempo. Ele sabe que estou em Londres, pois ouvi-a referir-se a isto. E no entanto a maneira com que fala dá a entender que deseja persuadir a si mesma de que o irmão se interessa realmente por Miss Darcy. Não posso com­preendê-la. Se eu não tivesse receio de fazer um julgamento precipitado, estaria quase tentada a dizer que em tudo isto há uma forte aparência de duplicidade. Mas procurarei banir todos os pensamentos dolorosos e pensar somente no que me pode tornar feliz: a sua afeição e a inalterável bondade dos meus caros tios. Escreva-me breve. Miss Bingley disse alguma coisa a respeito de nunca mais voltar a Netherfield, de desistir da casa, mas não deu toda a certeza. É melhor não falar nisto. Estou extremamente satisfeita por você ter recebido notícias tão agradáveis dos nossos amigos de Hunsford. Peço-lhe que vá visitá-los com Sir William e Maria. Estou certa de que você se sentirá muito bem lá. Sua, etc."

 

Esta carta causou uma certa tristeza a Elizabeth; mas a coragem lhe voltou ao considerar que, pelo menos, Jane não seria mais enganada pela irmã de Bingley. Quanto a este, todas as esperanças estavam agora perdidas. Jane nem sequer dese­jaria tornar a receber as suas atenções. Sob todos os pontos de vista seu conceito caíra na opinião de todos. E, como castigo para ele, bem como para uma possível compensação para Jane, Elizabeth desejava sinceramente que na verdade ele se casasse com a irmã de Mr. Darcy, pois segundo a descrição que da mes­ma lhe fizera Wickham ela o faria se arrepender amargamente de ter rejeitado Jane.

Nessa ocasião Mrs. Gardiner relembrou por carta a Eliza­beth a promessa que esta lhe fizera a respeito de Wickham. E as notícias que Elizabeth lhe mandou em resposta eram mais satisfatórias para a tia do que para ela mesma. O interesse de Mr. Wickham parecia ter-se desvanecido. Suas atenções ele as dedicava a outra pessoa. Elizabeth observara tudo, mas podia escrever a respeito disto com certo desprendimento. O seu co­ração fora apenas ligeiramente afetado. E seu amor-próprio se aplacava com a reflexão de que se a fortuna o tivesse permi­tido, ela, Elizabeth, teria sido a escolhida. A súbita aquisição de dez mil libras era o encanto mais notável da jovem que ele agora cortejava.

Mas Elizabeth, menos arguta neste caso do que no de Charlotte, não censurou a Wickham o desejo de independência. Nada, ao contrário, poderia ser mais natural. E, embora tivesse razões para supor que Mr. Wickham não renunciara a ela sem algumas lutas, estava pronta a admitir que aquela renúncia era uma medida sensata e desejável para ambos. E queria sincera­mente a felicidade do antigo admirador.

Tudo isto foi comunicado a Mrs. Gardiner; e depois de relatar estas circunstâncias ela continuou da seguinte maneira:

 

"Estou convencida agora, minha cara tia, de que nunca me apaixonei realmente. Pois, se eu tivesse experimentado essa paixão pura e elevada, detestaria agora a simples menção de seu nome. E desejaria a Mr. Wickham todos os males. Mas não só os meus sentimentos continuam cordiais para com ele, mas são até mesmo imparciais para com Miss King. Não consigo encontrar em mim nenhum ódio para com ela e continuo a pensar que ela é uma moça muito decente. Em tudo isto não pode haver amor. Minha intenção foi coroada de êxito. Embora eu me tornasse um objeto de maior interesse para todos os meus conhecidos, caso estivesse perdidamente apaixonada, não posso dizer que lamento a minha comparativa insignificância. A importância custa às vezes um preço demasiado elevado. Kitty e Lydia tomam essa traição muito mais a sério do que eu. São ainda muito ignorantes acerca dos caminhos do mundo e não chegaram ainda à mortificante convicção de que os belos rapazes precisam tanto de dinheiro para viver quanto os menos favorecidos pela beleza".

 

E sem maiores acontecimentos na família de Longbourn, janeiro e fevereiro, algumas vezes frios e não raro lamacentos, passaram sem outras diversões senão passeios ocasionais a Me­ryton. Março deveria levar Elizabeth para Hunsford. Ela não tinha encarado a princípio com muita seriedade a possibilidade de ir, mas Charlotte contava com ela e aos poucos Elizabeth se habituou a pensar na visita com mais interesse, bem como com mais certeza. A ausência aumentara o desejo de rever Charlotte e enfraquecia a sua repugnância por Mr. Collins. Havia também o sabor da novidade. E além disso, com a mãe que tinha, e irmãs tão pouco camaradas, a sua casa não seria um lugar muito divertido. Além do que a viagem lhe daria a oportunidade de se avistar com Jane. Em suma, à medida que o dia se aproxi­mava, menos ela desejava adiar a partida. Tudo pois ficou com­binado de acordo com os planos de Charlotte. E Elizabeth iria em companhia de Sir William e da segunda filha deste. Ao plano primitivo acrescentou-se um novo detalhe: passariam a noite em Londres.

Elizabeth sentia apenas ter de deixar o pai, que certamente sentiria a sua falta; e que, chegado o dia, se mostrou tão pouco satisfeito com a sua partida que recomendou à filha que lhe escrevesse e quase prometeu responder a sua carta. A despedida entre Elizabeth e Mr. Wickham foi perfeitamente cordial. E, da parte dele, ainda mais do que isto. Os seus planos atuais não o faziam esquecer que Elizabeth fora a primeira a despertar e a merecer-lhe a admiração. A primeira que o ouvira e se com­padecera dele; e quando disse adeus a Elizabeth desejou-lhe todos os prazeres, lembrou-lhe a descrição que fizera de Lady Catherine de Bourgh e disse esperar que a opinião de ambos a respeito daquela senhora, bem como sobre todas as outras pes­soas, coincidisse. Em todas as suas palavras transpareciam, en­fim, solicitude e interesse. Elizabeth sentiu que esses sentimen­tos sempre a uniriam a ele, numa sincera afeição. E se separou de Mr. Wickham convencida de que, casado ou solteiro, ele sempre representaria a seus olhos o ideal de uma pessoa agra­dável e sedutora.

Os seus companheiros de viagem não eram capazes de fazer empalidecer a lembrança de Mr. Wickham. Sir William Lucas e sua filha Maria, moça bem-humorada mas de cabeça tão oca quanto o pai, nada tinham a dizer que fosse digno de atenção, e o que eles falavam produzia em Elizabeth o mesmo prazer que o arrastar de uma cadeira. Elizabeth gostava de observar os ridículos, mas conhecia Sir William demasiado bem. Nenhuma das maravilhas que ele contava a respeito do seu título e de sua apresentação na corte eram novidades para ela. E as suas amabilidades eram tão gastas quanto as suas infor­mações.

Era uma viagem de vinte e quatro milhas apenas. E eles partiram tão cedo que chegaram a Gracechurch Street ao meio-dia. Ao se aproximarem da casa de Mr. Gardiner, avistaram Jane na janela da sala. Quando chegaram na entrada, ela estava lá para saudá-los. Elizabeth, perscrutando ansiosamente a fisio­nomia da irmã, teve o prazer de constatar que o seu rosto con­tinuava saudável e lindo como sempre. Sobre os degraus da escada estavam vários meninos e meninas, que não tinham po­dido resistir à tentação de ver a prima chegar e não tinham tido a paciência de esperar na sala. Mas, tímidos, pois há um ano não a viam, não ousavam descer. Tudo foi alegria e doçura. O dia passou da forma mais agradável. De manhã fizeram com­pras e à noite foram ao teatro.

Afinal Elizabeth conseguiu conversar com a tia. O primei­ro assunto foi Jane. E sentiu mais tristeza do que espanto ao ouvir, em resposta às suas minuciosas perguntas, que, embora Jane sempre lutasse para conservar a coragem, atravessava períodos de depressão. Era razoável no entanto acreditar que não durariam muito tempo. Mrs. Gardiner deu também os de­talhes da visita de Miss Bingley. E repetiu conversas que ela, Mrs. Gardiner, tinha tido com Jane, e que provavam que esta última tinha renunciado de coração àquelas relações. Mrs. Gar­diner, então, gracejou com a sobrinha a respeito da deserção de Wickham e deu-lhe os parabéns por suportá-la tão bem.

— Mas, minha cara Elizabeth — acrescentou ela —, que espécie de moça é Miss King? Ficaria triste de pensar que o nosso amigo é interesseiro.

— Por favor, minha tia, diga-me qual é a diferença para os negócios matrimoniais entre os motivos interesseiros e os motivos da prudência. Até onde vai a discrição e onde começa a cobiça? No Natal passado, a senhora tinha medo de que Wi­ckham se casasse comigo porque seria uma imprudência. E agora quer achá-lo interesseiro porque está tentando conquistar uma moça que tem dez mil libras de fortuna.

— Se você me disser que espécie de moça é Miss King, eu saberei o que pensar.

— É uma moça muito boa, creio eu; nada sei de mal a seu respeito.

— Mas Wickham não lhe deu a menor atenção, até que a morte do avô a tornou herdeira da fortuna.

— Não, nada mais natural. Se não lhe era permitido con­quistar a minha afeição porque eu não tinha dinheiro, por que iria ele fazer a corte a uma moça de quem ele não gostava e que era igualmente pobre?

— Mas parece pouco delicado da parte dele ter se lançado a isto tão pouco tempo depois de lhe ter feito a corte.

— Um homem em situação desesperada não tem tempo para todas essas delicadezas elegantes que outros podem manter. Se ela não se importa, por que nos importaremos nós?

— O fato de ela não se importar não o justifica. Mostra apenas que lhe falta também alguma coisa. Bom senso ou deli­cadeza de sentimentos.

— Bem — exclamou Elizabeth —, faça a sua escolha. Ele é interesseiro e ela doida.

— Não, Lizzy, isto é o que eu não escolho. Muito me entristeceria, você sabe, pensar mal de um rapaz que viveu tanto tempo no Derbyshire.

— Oh, se isto é tudo, tenho uma fraca opinião a respeito dos rapazes que moram no Derbyshire. E seus íntimos amigos que moram no Hertfordshire não são muito melhores. Estou farta deles todos. Graças a Deus irei amanhã para um lugar onde não encontrarei nenhum homem amável e de belas ma­neiras. Os homens estúpidos são os únicos que vale a pena conhecer.

— Cuidado, Lizzy, essas suas palavras cheiram fortemente a despeito.

Antes que o fim da peça a que assistiam os separasse, Elizabeth teve o prazer inesperado de receber um convite para acompanhar os tios numa excursão de recreio que se propunham fazer no verão.

— Ainda não decidimos onde terminará o nosso passeio — disse Mrs. Gardiner. — Mas iremos talvez até os lagos.

Nenhum plano poderia ter sido mais agradável a Eliza­beth, e o aceite ao convite foi pronto e entusiasta.

— Minha querida tia! — exclamou ela, deliciada. — Que encanto, que felicidade! A senhora me inspira nova vida e vigor. Adeus desapontamentos e tristezas. Que importam os homens aos rochedos e às montanhas? Oh, quantas horas agradáveis vamos passar! E quando voltarmos, não faremos como os outros viajantes que nada podem descrever com precisão. Nós nos lem­braremos dos lugares que visitamos e das coisas que vimos. Lagos, montanhas e rios não se confundirão nas nossas lem­branças. Nem quando tentarmos descrever uma cena, discuti­remos a respeito da sua localização. E que as nossas primeiras efusões sejam menos insuportáveis do que as da maioria dos viajantes!

 

No dia seguinte, durante a viagem, tudo pareceu a Eliza­beth novo e interessante. Sua disposição era excelente. Encon­trara a irmã tão bem que todas as preocupações sobre a sua saúde se tinham dissipado. E as perspectivas da viagem para o norte eram uma fonte permanente de prazer.

Quando deixaram a estrada principal para entrar no ca­minho que levava a Hunsford, todos os olhos estavam atentos para divisar a reitoria, e a cada volta esperavam vê-la surgir. A cerca de Rosings Park limitava a estrada de um lado. Elizabeth sorria ao lembrar-se de tudo o que lhe tinham dito a respeito de seus habitantes.

Afinal a reitoria apareceu. O jardim, descendo em rampa suave pela estrada, a casa que o encimava, a cerca verde, as sebes de loureiro, tudo declarava que estavam chegando. Mr. Collins e Charlotte apareceram à porta, e a carruagem parou junto ao pequeno portão; uma aléia ensaibrada conduzia até a casa. Num instante saltaram todos do carro, contentes de se re­ver. Mrs. Collins acolheu a amiga com muita alegria e Eliza­beth, ao ver-se tão afetuosamente recebida, ficou cada vez mais satisfeita de ter vindo. Viu imediatamente que os modos do primo não se tinham alterado com o casamento. A sua amabi­lidade convencional permanecia exatamente a mesma. E ele a deteve alguns instantes no portão, para fazer perguntas a res­peito de cada uma das pessoas da família. Foram então condu­zidos ao interior da casa. Mr. Collins fez ressaltar a beleza da entrada, e assim que chegaram à sala tornou a dar as boas-vin­das com pomposa formalidade, e repetiu meticulosamente todas as recomendações da esposa para que os visitantes se pusessem à vontade.

Elizabeth estava preparada para vê-lo em toda a sua glória. E não pôde deixar de imaginar, ao ouvi-lo elogiar o tamanho da sala, seu aspecto e sua mobília, que ele se dirigia a ela par­ticularmente, como se desejasse fazer-lhe sentir tudo o que tinha perdido ao recusar a sua mão. Mas, embora tudo tivesse bom aspecto, Elizabeth não podia contentá-lo mostrando qualquer sinal de arrependimento, antes se espantava de que a amiga pudesse se mostrar tão alegre vivendo com um tal companheiro. Quando Mr. Collins dizia alguma coisa de que sua mulher po­dia, com razão, se envergonhar, o que aliás era bastante fre­qüente, Elizabeth voltava os olhos involuntariamente para Char­lotte. Uma ou duas vezes pôde perceber um leve rubor. Mas em geral Charlotte, sensatamente, fingia que não tinha ouvido. Depois de ficarem sentados na sala o tempo suficiente para admirar cada peça da mobília, desde o guarda-louças até a grade da lareira, e contarem a viagem e tudo o que tinha acontecido em Londres, Mr. Collins convidou-os para um passeio no jar­dim, que era grande e bem traçado, e de cujo trato ele se encar­regava pessoalmente. Trabalhar no jardim era um dos seus pra­zeres mais respeitáveis. E Elizabeth se admirou da seriedade com que Charlotte se referiu àquele exercício saudável e admi­tiu que ela o encorajava nisto o mais que podia. Aí, conduzindo-os através de todos os caminhos e atalhos, sem lhes deixar tempo de exprimir os elogios que ele próprio desejava, fazia ressaltar cada detalhe do jardim com uma minúcia que destruía toda a beleza. Sabia enumerar os campos em todas as direções e sabia quantas árvores havia nos maciços mais distantes. Mas de todas as vistas de que o seu jardim, o condado ou o reino inteiro se podiam gabar, nenhuma se podia comparar com a vista de Rosings descortinada através das árvores que bordejavam o parque, quase defronte da sua casa. Era um belo edifício moderno, bem situado numa elevação. Do jardim, Mr. Collins queria conduzi-los para uma volta em torno dos seus dois pra­dos. Mas as senhoras, que não tinham os sapatos adequados para andar no campo, ainda recobertos por um resto de geada, preferiram voltar. E enquanto Sir William acompanhava Mr. Collins, Charlotte conduziu a irmã e a amiga para lhes mostrar a casa, contente por ter uma oportunidade de fazê-lo sem o auxílio do marido. A casa era pequena, porém bem construída e cômoda. E tudo estava arrumado com uma simplicidade e uma lógica que Elizabeth atribuiu inteiramente a Charlotte. Abstraindo a presença de Mr. Collins, reinava realmente em tudo um ar de conforto. E a julgar pelo prazer com que Char­lotte mostrava tudo aquilo, Elizabeth supôs que a presença de Mr. Collins era freqüentemente esquecida.

Já lhe tinham informado que Lady Catherine continuava ainda no campo. Tornaram a falar nisto ao jantar e Mr. Collins observou:

— Sim, Miss Elizabeth terá a honra de ver Lady Cathe­rine de Bourgh domingo que vem na igreja. E não precisa dizer que ficará encantada com Lady Catherine. Ela é toda afabili­dade e condescendência. E não duvido de que Miss Elizabeth seja honrada com a sua atenção, depois que terminar o serviço. Não hesito em afirmar que ela a incluirá, bem como a minha irmã Maria, em todos os convites com que nos honrar durante a sua visita aqui. A atitude dela para com a minha cara Char­lotte é encantadora. Costumamos jantar em Rosings duas vezes por semana e Lady Catherine nunca permite que voltemos a pé para casa. Sempre nos oferece a sua carruagem, ou melhor, uma das suas carruagens, pois ela tem várias.

— Lady Catherine é uma senhora muito respeitável e de muita sensibilidade — acrescentou Charlotte. — É uma vizi­nha muito atenciosa.

— É verdade, meu bem, é exatamente o que eu digo. Ela é dessas senhoras que a gente não pode deixar de tratar com a maior deferência.

Passaram a maior parte da noite falando sobre as novida­des do Hertfordshire, e repetindo verbalmente o que já tinha sido comunicado por carta. E mais tarde, na solidão do seu quarto, Elizabeth teve que meditar sobre o extraordinário con­tentamento de Charlotte, a fim de compreender a serenidade e a habilidade com que ela conduzia o marido; pensou também nos dias que passaria ali, nos calmos divertimentos que os en­cheriam, nas irritantes interrupções de Mr. Collins e nas ale­grias das visitas a Rosings. A sua imaginação traçou uma ima­gem viva de tudo isto.

No dia seguinte, depois do almoço, enquanto Elizabeth se aprontava no quarto para o passeio, um ruído súbito lá em­baixo pareceu lançar a casa em confusão. Depois de ficar atenta um minuto, Elizabeth ouviu alguém subir as escadas correndo, gritando o seu nome. Abriu a porta e no patamar encontrou Maria, que, sem fôlego, de tanta agitação, exclamou:

— Oh, Eliza, apronte-se depressa e desça para a sala de jantar. Você não sabe quem está aí. Não vou lhe dizer quem é. Venha depressa, desça imediatamente.

Elizabeth fez várias perguntas em vão. Maria se recusou a lhe dar resposta. Correram para baixo e entraram na sala de jantar que ficava defronte da alameda. No portão do jardim estava estacionado um faéton baixo com duas senhoras.

— É só isto? — exclamou Elizabeth. — Eu supus no mí­nimo que os porcos tinham entrado no jardim. F. nada vejo a não ser Lady Catherine e sua filha.

— Oh — exclamou Maria, escandalizada com o engano. — Não é Lady Catherine; aquela senhora é Mrs. Jenkinson, que mora com eles. A outra é Miss de Bourgh. Olhe para ela, como é pequena, quem imaginaria que ela pudesse ser assim tão miúda e tão magra?

— Eu acho uma grande falta de cortesia da sua parte obrigar Charlotte a ficar lá fora com esse vento. Por que é que ela não entra?

— Charlotte disse que ela quase nunca entra. É o maior favor que ela pode conceder.

— A sua aparência me agrada — disse Elizabeth, a quem outros pensamentos tinham ocorrido. — Ela parece doentia e triste. Sim, ela serve para ele muito bem. Convém-lhe perfeita­mente como esposa.

Mr. Collins e Charlotte estavam ambos em conversa com as senhoras. E, para alegria de Elizabeth, Sir William estava postado na porta de entrada, absorto pela grandeza que tinha diante de si, e inclinando-se constantemente, cada vez que Miss de Bourgh olhava para aquele lado.

Finalmente a conversação se esgotou; o carro partiu e os outros voltaram para casa. Assim que Mr. Collins avistou as duas moças, pôs-se a cumprimentá-las pela sorte que tinham; Charlotte explicou que todos tinham sido convidados para jan­tar em Rosings no dia seguinte.

 

O triunfo de Mr. Collins com aquele convite foi completo. A possibilidade de mostrar a grandeza da sua protetora e a amabilidade com que Lady Catherine. o tratava, bem como à esposa, era exatamente o que ele tinha desejado. O que mais lhe agradava, lançando-o numa admiração sem limites, era a condescendência que Lady Catherine mostrara, convidando-os tão cedo.

— Confesso — disse ele — que eu não teria ficado sur­preso se Lady Catherine nos convidasse para tomar chá e pas­sar a tarde em Rosings no sábado. A experiência que tenho da sua afabilidade me autorizava a fazer essa suposição. Mas quem poderia ter previsto tamanha atenção? Quem poderia ter ima­ginado que iríamos receber um convite para jantar, um convite aliás que abrange todo o grupo, tão imediatamente depois da chegada de vocês?

— A mim não me surpreende tanto — replicou Sir Wil­liam —, pois conheço os hábitos dos grandes, graças à minha situação na vida. Na corte, por exemplo, essas coisas não são raras.

Durante o resto do dia, e na manhã seguinte, não se falou quase em outro assunto. Mr. Collins teve a precaução de lhes descrever as maravilhas que os esperavam para que o espetáculo dos salões, dos inúmeros criados e do opulento jantar não os ofuscasse inteiramente.

Antes de as senhoras se retirarem para os seus quartos a fim de se preparar, ele disse a Elizabeth:

— Não fique inquieta, minha cara prima, a respeito da sua toalete. Lady Catherine está longe de exigir de nós a ele­gância que ela e a filha ostentam. Aconselho-a apenas a pôr o seu vestido mais elegante. Não é necessário mais do que isto. Lady Catherine não ficará aborrecida de vê-la vestida com sim­plicidade. Ela gosta de manter as distinções de classe.

Enquanto as moças se vestiam, Mr. Collins veio bater duas ou três vezes em cada porta, para recomendar que se apressas­sem, pois Lady Catherine não gostava que a fizessem esperar para o jantar. Maria Lucas, que tinha pouca prática da socie­dade, estava assustada com as formidáveis descrições da suntuosidade de Lady Catherine e do seu estilo de vida. E a sua apreensão não era menor do que a que o seu pai sentira antes da sua apresentação em St. James.

Como o tempo estava bom, o passeio através do parque foi muito agradável. Todos os parques têm as suas belezas e as suas perspectivas. Elizabeth o achou bonito, embora não visse motivo para os êxtases de Mr. Collins. A enumeração que este fez das janelas da fachada da frente e a sua revelação da soma que tudo aquilo custara a Sir Lewis de Bourgh a impressiona­ram pouco.

Enquanto subiam as escadas para o hall, a emoção de Ma­ria crescia a olhos vistos. E mesmo Sir William não parecia perfeitamente calmo. A coragem de Elizabeth não lhe faltou. Pelo que ouvira falar a respeito de Lady Catherine, não acre­ditava que ela se impusesse graças a talentos extraordinários ou virtudes miraculosas. E ela acreditava poder contemplar sem desfalecer a simples pompa do dinheiro e da ostentação social.

Do hall de entrada, cujas belas proporções e ricos orna­mentos Mr. Collins fez ressaltar com ar extático, as visitas acom­panharam os criados através de uma antecâmara até uma sala onde estavam Lady Catherine, a filha e Mrs. Jenkinson. Ao vê-los, Lady Catherine, com grande condescendência, levantou-se para recebê-los. E como Mrs. Collins tinha combinado com o marido que a formalidade das apresentações deveria ficar a cargo da esposa, a cerimônia decorreu corretamente, sem todas aquelas desculpas e agradecimentos que Mr. Collins teria jul­gado necessários.

Apesar de já ter sido recebido em St. James, Sir William estava tão impressionado que se limitou a fazer profundas reve­rências e a sentar na sua cadeira sem dizer uma palavra. E sua filha, quase fora de si de medo, sentou na beirada da sua ca­deira, sem saber para que lado olhar. Elizabeth não se sentiu absolutamente perturbada e pôde observar serenamente as três damas à sua frente.

Lady Catherine era uma senhora alta, bastante gorda, com traços fortemente marcados, que outrora deveriam ter sido boni­tos. O seu ar não era conciliador, nem a sua maneira de receber as visitas era tal que lhes fizesse esquecer a sua inferioridade social. Os seus silêncios não a tornavam formidável, mas tudo o que ela dizia era pronunciado num tom tão autoritário que revelava a sua pretensão; Elizabeth se lembrou imediatamente da descrição de Mr. Wickham. E achou que Lady Catherine deveria ser exatamente como ele a tinha descrito.

Quando, depois de examinar a mãe, em cujo rosto e gestos ela percebeu logo uma forte parecença com Mr. Darcy, voltou os olhos para a filha, achou-a tão mirrada que quase lhe escapou dos lábios a mesma exclamação de espanto que Maria tivera. Não havia a menor semelhança entre a mãe e a filha, nem no tipo nem no rosto. Os traços de Miss de Bourgh, embora não fossem desagradáveis, eram insignificantes. Falava muito pouco e só em voz baixa para Mrs. Jenkinson, cuja aparência nada ti­nha de excepcional e que se ocupava exclusivamente em ouvir o que ela dizia e em colocar um biombo em situação convenien­te diante dos olhos da moça.

Depois de ficarem sentados durante alguns minutos, eles se dirigiram até a janela para admirar a vista; Mr. Collins se encarregava de lhes detalhar as belezas enquanto Lady Cathe­rine tinha a bondade de informar aos convidados que a vista era muito mais bela no verão.

O jantar foi dos melhores. Mr. Collins não tinha exagerado o número de pratos e de criados. Como previra igualmente, ele se sentou na extremidade da mesa, por desejo expresso de Lady Catherine, mas a sua atitude era a de um homem a quem nada de melhor na vida pudesse suceder. Serviu-se, comeu e elogiou tudo com deliciada alegria; e todos os pratos foram louvados, primeiro por ele, em seguida por Sir William, que, agora mais tranqüilo, repetia tudo o que o genro dizia, como um eco, de tal modo que Elizabeth perguntou a si mesma se Lady Cathe­rine não o acharia cacete. Mas Lady Catherine parecia satisfeita com a admiração excessiva dos hóspedes e sorria da maneira mais graciosa, especialmente quando era servido algum prato que eles não conheciam. Os outros conversavam pouco. Eliza­beth estava sempre pronta para falar quando encontrava uma ocasião. Estava sentada entre Charlotte e Miss de Bourgh. A primeira seguia com atenção as palavras de Lady Catherine, e a segunda não deu uma palavra durante todo o jantar. Mrs. Jenkinson fiscalizava o apetite de Miss de Bourgh, e se mos­trava preocupada porque ela comia tão pouco, insistindo para que ela provasse dos vários pratos e temerosa de que Miss de Bourgh estivesse indisposta. Maria nunca se atreveria a falar. E os cavalheiros nada mais faziam senão comer e admirar.

Em seguida as senhoras voltaram para a sala. E até a hora do café tiveram que ficar ouvindo Lady Catherine falar. Falava sem interrupção, dando a sua opinião sobre cada assunto, com uma segurança que mostrava que não estava habituada a que lhe contestassem as palavras. Fez perguntas a Charlotte a res­peito de assuntos domésticos, com familiaridade e minúcia. E deu-lhe muitos conselhos; disse-lhe como tudo deveria ser regu­lado numa família pequena como a sua e ensinou-lhe a cuidar das vacas e das aves domésticas. Elizabeth verificou que ne­nhum assunto, por mais humilde que fosse, escapava à atenção de Lady Catherine, contanto que encontrasse neles uma opor­tunidade para doutrinar. Nos intervalos das recomendações a Mrs. Collins, fazia uma série de perguntas a Maria e Elizabeth, especialmente a esta última, que conhecia menos e que, obser­vou ela para Mrs. Collins, era uma mocinha muito gentil e bo­nita. Perguntou-lhe várias vezes quantas irmãs ela tinha, se eram mais moças ou mais velhas do que ela, se era provável que alguma delas se casasse, se eram bonitas, onde tinham sido educadas, qual era a situação do seu pai e qual o nome de sol­teira de sua mãe. Elizabeth sentiu toda a impertinência contida nessas perguntas, mas respondeu com grande simplicidade. La­dy Catherine então observou:

— A propriedade do seu pai está destinada, pela suces­são, a cair nas mãos de Mr. Collins. Alegro-me por sua causa — continuou ela, virando-se para Charlotte. — Mas não vejo a necessidade de privar a descendência feminina do direito de herdar propriedades. Na família de Sir Lewis de Bourgh, isto não foi julgado necessário. Sabe tocar piano e cantar, Miss Bennet?

— Um pouco.

— Então, um dia destes precisa nos dar este prazer. O nosso instrumento é dos melhores. Provavelmente superior ao... Precisa experimentá-lo qualquer dia. As suas irmãs tam­bém sabem tocar e cantar?

— Uma delas sabe.

— Por que as outras também não aprenderam? Deviam todas saber música. As senhoritas Webbs todas sabem tocar. E o pai delas não tinha tanto rendimento quanto o seu. Sabe desenhar?

— Não, senhora.

— O quê? Nenhuma de vocês?

— Nenhuma.

— Isto é muito curioso. Mas com certeza não tiveram oportunidade. Sua mãe devia ter levado vocês todas as prima­veras para a cidade, para tomar lições.

— Minha mãe não faria objeção a isto, mas meu pai de­testa Londres.

— A sua governanta foi despedida?

— Nós nunca tivemos governanta.

— Nunca tiveram governantas? Como é possível! Educar cinco filhas sem uma governanta! Nunca ouvi tal coisa! Sua mãe deve ter ficado escravizada à educação de vocês!

Elizabeth não pôde deixar de sorrir ao responder que este não fora o caso.

— Então quem ensinou a vocês? Quem se encarregou da sua educação? Sem uma governanta, ela deve ter sido relaxada.

— Em comparação com a de certas famílias, acredito que sim. Mas lá em casa, às meninas que quiseram aprender nunca lhes faltou meios para isto. Sempre nos encorajaram a ler e tivemos todos os professores necessários. Mas às que preferiram não estudar foi-lhes feita a vontade.

— Sem dúvida, mas isto é justamente o que uma gover­nanta teria evitado. Se eu tivesse conhecido a sua mãe, eu a teria aconselhado com muita insistência a que tomasse uma go­vernanta. Sempre digo que não é possível fazer nada em educa­ção sem uma instrução constante e regular, e só uma governanta pode fazer isto. É espantoso o número de famílias para a qual eu arranjei governantas. É sempre com prazer que vejo uma mo­ça bem empregada. Graças aos meus cuidados, quatro sobrinhas de Mrs. Jenkinson foram magnificamente colocadas. E outro dia mesmo recomendei outra jovem cujo nome ouvi apenas acidentalmente e a família ficou muito satisfeita com ela. Mrs. Collins, já lhe contei que Lady Metcalf veio me visitar ontem para me agradecer? Ela acha Miss Pope um tesouro. "Lady Catherine", disse ela, "a senhora me deu um tesouro." Alguma das suas irmãs mais moças já foi apresentada à sociedade, Miss Bennet?

— Sim, minha senhora, todas.

— O quê? As cinco de uma vez? É muito estranho. E você é apenas a segunda! As mais moças já frequentam a socie­dade antes de as mais velhas se casarem! Suas outras irmãs são muito moças?

— A mais moça ainda não fez dezesseis anos. Talvez seja um pouco cedo demais para fazer vida social. Mas realmente, minha senhora, acho que seria uma crueldade recusar-lhes a sua parte de distrações e sociedade só porque a mais velha não teve os meios ou a inclinação para se casar mais cedo. As mais moças têm os mesmos direitos aos prazeres da mocidade que as mais velhas. E trancá-las em casa creio que não seria um bom meio de promover a afeição fraternal ou a delicadeza de sentimentos.

— Sob minha palavra — disse Lady Catherine —, você dá a sua opinião muito decididamente para uma pessoa de tão pouca idade. Diga-me, quantos anos tem?

— Com três irmãs mais moças já crescidas — replicou Elizabeth —, Vossa Senhoria não pode esperar que eu lhe dê uma resposta.

Lady Catherine pareceu ficar atônita com a resposta e Elizabeth suspeitou que ela tinha sido a primeira pessoa que já ousara fazer pouco de uma tão pomposa impertinência.

— Você não pode ter mais de vinte anos, portanto não precisa esconder a idade.

— Ainda não fiz vinte e um anos.

Depois do chá, quando os cavalheiros se reuniram a elas, as mesas de jogo foram colocadas. Lady Catherine, Sir William, Mr. e Mrs. Collins se sentaram para jogar quadrille. E como Miss de Bourgh preferisse jogar cassino, as duas moças e Mrs. Jenkinson tiveram a honra de formar uma segunda mesa com ela. Esta mesa foi extremamente cacete. Não se ouviu uma síla­ba que não se referisse ao jogo, exceto quando Mrs. Jenkinson exprimia os seus receios de que Miss de Bourgh estivesse agasalhada de mais ou de menos ou que a luz estivesse deficiente ou em excesso. A outra mesa era muito mais animada. Lady Catherine em geral estava sempre falando, apontando os erros dos três outros, ou contando algum caso a respeito de si mesma. Mr. Collins estava ocupado em concordar com tudo o que Lady Catherine dizia, agradecendo-lhe cada ponto que ganhava e pe­dindo desculpas se achava que estava ganhando demais. Sir William pouco dizia. Estava sondando na memória anedotas e nomes nobres que conhecia.

Quando Lady Catherine e a filha se fartaram de jogar, as mesas foram carregadas, a carruagem foi oferecida a Mrs. Col­lins, aceita com gratidão e imediatamente chamada. Todos se reuniram em torno da lareira para ouvir Lady Catherine lançar suas previsões sobre o tempo que faria no dia seguinte. A chegada da carruagem a interrompeu. E, depois de muitas tira­das de agradecimentos da parte de Mr. Collins e outras tantas reverências de Sir William, eles partiram. Mal tinham passado a porta. Mr. Collins pediu à prima que desse a sua opinião sobre tudo o que tinham visto em Rosings. Para o bem de Charlotte, Elizabeth deu uma resposta mais favorável do que realmente tinha vontade de dar. Os seus louvores, embora lhe custassem algum trabalho, de nenhum modo foram julgados suficientes por Mr. Collins e imediatamente ele se sentiu obri­gado a tomar a seu cuidado o elogio de Lady Catherine.

 

Sir William ficou apenas uma semana em Hunsford; mas a visita foi suficiente para convencê-lo de que a filha estava instalada da maneira mais confortável e que possuía um marido e uma vizinha difíceis de encontrar iguais. Enquanto Sir Wil­liam ficou em Hunsford, Mr. Collins lhe consagrou as manhãs. Passeava com ele no seu cabriolet para lhe mostrar a região; mas, depois que ele partiu, a família voltou para as suas ocupa­ções habituais e Elizabeth ficou satisfeita porque não tinha que ficar tão constantemente com o primo, pois a maior parte das horas, entre o café da manhã e o almoço, ele passava agora trabalhando no jardim, lendo ou escrevendo e olhando pela janela da biblioteca, que confrontava a estrada. A sala das se­nhoras ficava nos fundos. Elizabeth a princípio se espantou de que Charlotte não preferisse a sala de almoço para uso comum; era maior e mais agradável de aspecto. Mas logo compreendeu que a amiga tinha um excelente motivo para o que fazia, pois sem dúvida Mr. Collins passaria muito menos tempo na sua biblioteca se elas ficassem numa sala igualmente agradável.

Da sala de visitas nada se podia ver da estrada. E depen­diam de Mr. Collins para saber quais as carruagens que surgiam e quantas vezes Miss de Bourgh passava no seu faéton, coisa que ele jamais deixava de anunciar. E, embora isto acontecesse quase todos os dias, muitas vezes Miss de Bourgh parava na reitoria e conversava alguns minutos com Charlotte. Mas quase nunca apeava. Poucos dias decorriam sem que Mr. Collins fosse a Rosings. E freqüentemente a esposa achava que devia acom­panhá-lo. E Elizabeth só compreendeu o sacrifício de tantas horas quando se lembrou de que possivelmente existiam outros cargos eclesiásticos que dependiam da família. De vez em quan­do Lady Catherine os honrava com uma visita. E nessas oca­siões nada do que se passava na sala escapava à sua atenção. Ela observava as ocupações das moças, olhava para os seus tra­balhos e aconselhava que os fizessem de maneira diferente.

Achava errada a disposição dos móveis ou descobria uma negli­gência da criada. E, se ficava às vezes para as refeições, era só para observar que os assados de Mrs. Collins eram grandes de­mais para a família.

Elizabeth logo descobriu que a grande senhora, embora não fosse comissionada com o título de juiz de paz para o con­dado, era um magistrado muito ativo para a sua própria paró­quia e levava as menores coisas ao conhecimento de Mr. Col­lins; e quando qualquer dos aldeões se mostrava descontente ou caía na miséria, ou quando surgia uma contenda, ela corria para a aldeia, a fim de dirimir as questões, silenciar as queixas e harmonizar as disputas e as desgraças com reprimendas e dinheiro. Os jantares em Rosings foram repetidos duas vezes por semana e, se não fosse a ausência de Sir William e o fato de só haver uma mesa de jogo, seriam uma repetição exata do primeiro. Os outros compromissos sociais eram mínimos, pois o gênero de vida das famílias da vizinhança estava em geral além dos meios da família Collins. Isto entretanto não desa­gradava a Elizabeth, que, em suma, passava o tempo bastante agradavelmente. Havia horas de conversação interessante com Charlotte e, como fizesse um tempo excepcionalmente belo pa­ra aquela época do ano, podia passear freqüentemente ao ar livre. O seu passeio favorito, que fazia em geral enquanto os outros visitavam Lady Catherine, era no bosque aberto que limitava aquele lado do parque, onde havia uma bela alameda coberta que ninguém mais parecia apreciar e onde ela se sentia protegida da curiosidade de Lady Catherine.

Dessa maneira tranqüila se passaram os primeiros quinze dias da visita. A Páscoa estava se aproximando, e durante a se­mana que a precedia devia chegar uma pessoa a Rosings; e como a família era tão pequena, esse acréscimo devia ser importante. Pouco depois da sua chegada, Elizabeth ouviu dizer que Mr. Darcy estava sendo esperado em Rosings daí a poucas semanas. E, embora preferisse qualquer outra pessoa do seu conhecimen­to, a chegada de Mr. Darcy viria contribuir para o apareci­mento de um rosto comparativamente novo nos jantares em Rosings. Além disso ela teria ocasião de observar, pela sua ati­tude para com a prima, a quem ele estava evidentemente desti­nado por Lady Catherine, até que ponto os desígnios de Miss Bingley eram infundados. Lady Catherine falava na chegada dele com a maior satisfação, referia-se a ele nos termos mais elogiosos e quase ficou zangada ao saber que Miss Lucas e Eli­zabeth já o conheciam. A notícia de sua chegada foi logo sabida na reitoria, pois Mr. Collins passou a manhã inteira passeando perto dos portões do parque, a fim de ser o primeiro a vê-lo. Ao surgir a carruagem, fez uma reverência e depois correu para casa.

Na manhã seguinte, apressou-se a visitar Rosings para apresentar os seus respeitos. E teve que apresentá-los duas ve­zes, pois havia dois sobrinhos de Lady Catherine. Mr. Darcy tinha trazido consigo o Coronel Fitzwilliam, o filho mais moço do seu tio, o Lorde ...; para grande surpresa de todos, quando Mr. Collins voltou para casa, viu-os atravessarem a estrada. E, imediatamente, correndo para o outro quarto, avisou as meni­nas da honra que as esperava, acrescentando:

— É a você, Eliza, que agradeço esta amabilidade. Mr. Darcy não viria aqui tão cedo por minha causa.

Elizabeth ainda não acabara de protestar contra esta ho­menagem quando a chegada dos dois cavalheiros foi anunciada pela campainha da porta e pouco depois eles entraram na sala. O Coronel Fitzwilliam, que vinha na frente, parecia ter aproxima­damente trinta anos de idade; não era bem-apessoado mas tinha as atitudes e os modos de um verdadeiro gentleman. Mr. Darcy não tinha mudado. Apresentou os seus cumprimentos a Mrs. Collins com a reserva habitual e, quaisquer que fossem os seus sentimentos para com a amiga da dona da casa, cumprimentou-a discretamente. Elizabeth fez uma curta reverência, sem dizer uma só palavra. O Coronel Fitzwilliam começou a palestrar imediatamente, com a simplicidade de um homem bem-educado. A sua conversa era muito agradável; mas seu primo, depois de dirigir uma ligeira observação sobre a casa e o jardim, perma­neceu sentado durante algum tempo em silêncio. E afinal julgou que devia indagar da saúde dos parentes de Elizabeth. Ela lhe respondeu com a simplicidade de sempre e depois de uma curta pausa acrescentou:

— Minha irmã mais velha tem estado em Londres nestes últimos três meses. Nunca lhe aconteceu encontrá-la?

Ela sabia perfeitamente que ele nunca a tinha encontrado. Mas queria ver se ele deixaria transparecer que estava infor­mado do que se tinha passado entre os Bingley e Jane. Pare­ceu-lhe que Mr. Darcy se mostrava um pouco confuso ao res­ponder que nunca tivera a boa sorte de encontrar Miss Bennet. O assunto não foi mais mencionado e pouco depois os dois cavalheiros partiram.

 

As maneiras do Coronel Fitzwilliam foram muito aprecia­das na reitoria. Todas as senhoras acharam que ele contribuiria consideravelmente para alegrar os jantares em Rosings. Passa­ram-se alguns dias, no entanto, antes que recebessem novo convite, pois havendo visitas em casa eles não eram mais ne­cessários. E foi só no domingo de Páscoa, quase uma semana depois da chegada dos cavalheiros, que o tal convite foi feito, ao saírem da igreja; assim mesmo foram apenas convidados pa­ra ir a Rosings depois do jantar. Durante a última semana não tinham tido quase ocasião de ver Lady Catherine ou a filha. O Coronel Fitzwilliam tinha estado de visita à reitoria mais de uma vez neste intervalo. Mas Mr. Darcy fora visto apenas na igreja. O convite naturalmente foi aceito, e à hora designada eles se reuniram ao grupo que já se encontrava na sala de Lady Catherine. Esta os recebeu amavelmente, mas era evidente que a companhia daquela gente não era nem de longe tão aceitável agora como nos dias em que não havia mais ninguém lá. Lady Catherine era toda atenção com os sobrinhos e falava com eles, especialmente com Darcy, muito mais do que com qualquer outra pessoa na sala.

O Coronel Fitzwilliam pareceu realmente contente de vê-los. Em Rosings, tudo o que aparecesse de fora era para ele um alívio bem-vindo e a bela amiga de Mrs. Collins o interessava muito. Sentou-se ao lado dela e falou muito agradavelmente acerca do Kent, do Hertfordshire, de viagens, livros e música; Elizabeth sentiu que jamais se divertira tanto naquela sala; a conversa era tão animada que atraiu a atenção de Lady Cathe­rine, bem como a de Mr. Darcy. Os olhos deste último se volta­ram repetidamente para eles com uma expressão de curiosidade; e dentro em pouco tornou-se evidente que Lady Catherine com­partilhava dos sentimentos do sobrinho, pois exclamou, sem nenhuma reserva:

— Que é que você estava dizendo, Fitzwilliam? De que é que vocês conversavam? Que é que você estava contando para Miss Bennet? Quero saber o que é.

— Estávamos falando de música — disse ele, impossibi­litado de se esquivar a uma resposta.

— De música? Então fale em voz alta. É de todos os assuntos o meu favorito. Se estão falando de música, quero tomar parte na conversa. Creio que existem poucas pessoas na Inglaterra que apreciam mais a música do que eu. Ou que tenha um gosto mais fino. Se eu tivesse aprendido música, seria uma grande intérprete. E Anne também, aliás, se a saúde dela o tivesse permitido. Estou certa de que ela tocaria admiravelmente. Georgiana tem feito muitos progressos, Darcy?

Mr. Darcy louvou afetuosamente o talento da irmã.

— Estou muito satisfeita com isto — disse Lady Cathe­rine; — diga a ela que nunca poderá brilhar se não estudar muito.

— Eu lhe asseguro, minha tia — replicou ele —, que ela não precisa de tal conselho. Estuda com muita constância.

— Tanto melhor. Nunca é demais. E na próxima vez que escrever para ela recomendarei que não se descuide do seu piano. Eu sempre digo às moças que nenhuma distinção pode ser alcançada sem um estudo constante. Já disse a Miss Bennet várias vezes que nunca tocará realmente bem se não estudar mais. E como não há piano em casa de Mrs. Collins, ela está convidada, com já disse muitas vezes, a vir a Rosings todos os dias estudar piano no quarto de Mrs. Jenkinson. Naquela parte da casa ela não incomodaria a ninguém.

Mr. Darcy pareceu um pouco envergonhado da grosseria da tia e nada respondeu. Depois do café o Coronel Fitzwilliam lembrou a Elizabeth a sua promessa de tocar para eles; e a moça se sentou imediatamente ao piano. Ele aproximou a sua cadeira. Lady Catherine ouviu metade de uma canção e em seguida con­tinuou a conversar como antes com o outro sobrinho, até que este se afastou dela e, dirigindo-se resolutamente ao piano, colo­cou-se de modo a poder observar o rosto da bela executante. Elizabeth percebeu o que ele estava fazendo e, na primeira pau­sa, virou-se para ele e disse, com um sorriso malicioso:

— É para me assustar, Mr. Darcy, que se aproximou com toda esta imponência? Mas não ficarei alarmada, embora a sua irmã toque tão bem. Tenho uma persistência que a vontade dos outros é incapaz de intimidar. Nesses momentos a minha cora­gem sempre me socorre.

— Eu não direi que a senhora está enganada — replicou ele —, porque é impossível que acredite realmente que eu tives­se a intenção de alarmá-la. Eu tenho o prazer de conhecê-la já há bastante tempo para saber que gosta muito de exprimir de vez em quando opiniões que de fato não são as suas.

Elizabeth riu cordialmente com essa descrição da sua pes­soa e disse para o Coronel Fitzwilliam:

— Seu primo vai lhe dar uma bela idéia a meu respeito, ensinando-lhe a não acreditar numa só palavra do que eu falo. É uma falta de sorte ter encontrado uma pessoa capaz de expor aos outros o meu caráter real num lugar onde eu tinha tido a esperança de deixar uma boa impressão. Realmente, Mr. Darcy, é uma falta de generosidade da sua parte mencionar aqui tudo o que descobriu sobre as minhas fraquezas, do Hertfordshire. E além disso acho a sua atitude muito pouco política, pois me incita a represálias. Neste caso podem sair coisas que escanda­lizarão os seus parentes.

— Eu não tenho medo de você — disse ele, sorrindo.

— Não deixe de dizer as coisas de que o acusa — excla­mou o Coronel Fitzwilliam. — Queria saber como é que ele se comporta entre os estranhos.

— O senhor o saberá. Mas prepare-se para ouvir coisas horríveis. Na primeira vez em que eu o vi no Hertfordshire foi num baile. E nesse baile o que é que o senhor acha que ele fez? Dançou apenas quatro danças. Sinto muito causar-lhe essa de­silusão, mas é verdade. Ele dançou apenas quatro danças, em­bora faltassem cavalheiros. E sei que mais de uma moça ficou sentada por falta de um par. Mr. Darcy, o senhor não pode negar o fato.

— Naquela ocasião eu não tinha a honra de conhecer outras moças no salão a não ser as do meu próprio grupo.

— É verdade, e ninguém pode ser apresentado a uma pessoa estranha num salão de baile. Bem, Coronel Fitzwilliam, que devo tocar agora? Meus dedos esperam a sua ordem.

— Talvez — disse Darcy — eu tivesse feito melhor se houvesse solicitado uma apresentação. Mas me considero mal qualificado para me recomendar pessoalmente aos estranhos.

— Devemos perguntar a seu primo a razão para isto — disse Elizabeth, continuando a se dirigir ao Coronel Fitzwilliam. — Devemos perguntar-lhe por que um homem bem-educado e sensato, que tem a experiência do mundo, está mal qualificado para se recomendar às pessoas estranhas?

— Posso responder a sua pergunta sem consultá-lo — respondeu Fitzwilliam. — É porque ele não quer se dar ao trabalho.

— É certo que eu não tenho um talento que muita gente possui — disse Darcy: — o de conversar facilmente com pes­soas que não conheço. Não consigo encontrar o tom apropriado nem me fingir interessado pelos assuntos dos outros, como vejo acontecer freqüentemente.

— Meus dedos não se movem sobre este instrumento de uma maneira tão magistral quanto os de muitas outras mulhe­res. Eles não têm a mesma força e a mesma rapidez, nem pos­suem a mesma força de expressão. Mas disso eu sempre me acusei como de um defeito. Porque nunca me dei ao trabalho de estudar; não é que eu acredite que os meus dedos sejam inferiores aos de outra mulher qualquer.

Darcy sorriu e disse:

— Tem toda a razão. Empregou o seu tempo muito me­lhor. Ninguém que tenha tido o privilégio de ouvi-la pode pen­sar que lhe falta alguma coisa. Nenhum de nós dois executa para os estranhos.

Nesse momento foram interrompidos por Lady Catherine, que perguntou qual era o assunto da conversa. Elizabeth ime­diatamente recomeçou a tocar. Lady Catherine se aproximou e, depois de ouvir durante alguns minutos, disse para Darcy:

— Miss Bennet não estaria tão fora de forma se estudasse mais e tivesse a vantagem de ter um professor de Londres. Ela articula bem, mas não tem tanta expressão quanto Anne. Anne seria uma pianista notável se a sua saúde o tivesse permitido.

Elizabeth olhou para Darcy, para ver como ele acolhia aquele elogio à sua prima; mas nem naquele momento, nem em outra qualquer ocasião pôde discernir qualquer sintoma de amor. E, a julgar pela atitude geral de Mr. Darcy, Elizabeth pôde fazer a seguinte reflexão consoladora para Miss Bingley: que se Miss Bingley fosse também sua prima teria a mesma possibilidade de se casar com ele.

Lady Catherine continuou com as suas observações sobre a execução de Elizabeth, alternando-as com conselhos sobre técnica e expressão. Elizabeth os recebeu com toda a paciência e amabilidade; e, a pedido dos cavalheiros, continuou tocando, até que a carruagem de Lady Catherine foi chamada a fim de conduzir as visitas para casa.

 

No dia seguinte, de manhã, Elizabeth estava sentada sozi­nha escrevendo para Jane, quando a campainha da porta a fez sobressaltar-se. Mrs. Collins e Maria tinham ido fazer compras na aldeia. Como Elizabeth não tinha escutado nenhuma carrua­gem se aproximar, pensou que provavelmente a visita seria Lady Catherine e, apreensiva, estava escondendo a carta que escrevia, a fim de escapar a perguntas indiscretas, quando a porta se abriu e Mr. Darcy, sozinho, entrou na sala.

Ele também pareceu surpreso ao encontrá-la só. Descul­pou-se pela intrusão, dizendo que pensava estarem todas as senhoras em casa.

Em seguida se sentaram e, depois das perguntas de estilo, estavam a ponto de cair num silêncio total. Era absolutamente necessário, pois, encontrar assunto. E nessa emergência Eliza­beth, lembrando-se da última vez em que o vira no Hertford­shire, e curiosa de saber o que ele diria para justificar a sua súbita partida, observou:

— Com que rapidez todos partiram de Netherfield em novembro passado, Mr. Darcy! Deve ter sido uma surpresa muito agradável para Mr. Bingley revê-los todos tão cedo depois da sua partida. Se não me engano, ele saiu no dia anterior, não? Espero que o tenha deixado bem, a ele e às irmãs, agora quando deixou Londres.

— Perfeitamente, obrigado.

Elizabeth compreendeu que não receberia outra resposta. E depois de uma curta pausa acrescentou:

— Se não me engano, ouvi dizer que Mr. Bingley não tenciona voltar mais a Netherfield.

— Nunca ouvi dizer tal coisa; mas é provável que ele passe lá muito pouco tempo de cada vez, daqui para o futuro. Ele tem muitos amigos e está numa idade em que os amigos e os compromissos aumentam continuamente.

— Se tenciona ficar tão pouco em Netherfield seria me­lhor para a vizinhança que desistisse inteiramente do lugar. Pois neste caso outra família poderia se instalar lá. Mas talvez Mr. Bingley a tenha tomado pensando menos na conveniência dos vizinhos do que na sua própria. E naturalmente não deve­mos esperar que ele se guie agora por outros princípios.

— Eu não ficaria surpreso se ele passasse a propriedade a outros assim que se oferecesse uma oportunidade vantajosa — respondeu Darcy.

Elizabeth não respondeu. Tinha medo de falar mais lon­gamente sobre Mr. Bingley. E nada mais tendo a dizer resolveu deixar a cargo de Mr. Darcy o trabalho de encontrar um novo assunto.

Ele percebeu aquela intenção e logo começou:

— Esta casa parece muito confortável. Creio que Lady Catherine a reformou bastante depois da vinda de Mr. Collins.

— Acredito que sim. E estou certa de que ela não poderia ter dispensado a sua bondade a uma pessoa mais reconhecida.

— Mr. Collins parece ter tido muita sorte na escolha da esposa.

— Realmente. Seus amigos têm motivos para satisfação, pois ele encontrou uma das poucas mulheres sensatas que o teriam aceito. E, tendo-o aceito, capaz de torná-lo feliz. A mi­nha amiga é muito compreensiva, e, embora eu não considere o seu casamento com Mr. Collins o seu ato mais ajuizado, reco­nheço no entanto que ela parece perfeitamente feliz. E, consi­derando as coisas com prudência, parece de fato que ela fez um bom casamento.

— Deve ser certamente muito agradável para ela ter a casa a uma distância relativamente tão curta da família e dos amigos.

— O senhor chama isto uma distância curta? São quase cinqüenta milhas.

— E o que são cinqüenta milhas numa boa estrada? Pou­co mais do que meio dia de viagem. Considero uma distância fácil.

— Nunca consideraria a distância como uma das vanta­gens do casamento — exclamou Elizabeth. — Eu jamais teria dito que Mrs. Collins está instalada perto da família.

— É uma prova da sua afeição pelo Hertfordshire. Qual­quer lugar que não se encontre nas proximidades de Longbourn deve lhe parecer longínquo.

Enquanto falava, havia nele uma espécie de sorriso que Elizabeth julgou compreender. Ele devia supor que ela estava pensando em Jane e enrubesceu, ao responder.

— Não quero dizer com isto que uma mulher não deva morar um pouco longe da família. O longe e o perto são rela­tivos e dependem de várias circunstâncias. Quando existe for­tuna e as despesas de viagem são pouco importantes, as dis­tâncias não têm inconveniência. Mas este não é o caso aqui. Mr. e Mrs. Collins têm um rendimento que lhes permite uma vida confortável, porém não é suficiente para viagens freqüen­tes. Estou persuadida de que minha amiga só se consideraria perto da família se morasse na metade da atual distância.

Mr. Darcy aproximou um pouco a sua cadeira e disse:

— Mas a senhora não tem direito de ser tão bairrista. A senhora não pode ter morado sempre em Longbourn.

Elizabeth olhou para ele, surpresa.

Mr. Darcy pareceu mudar de idéia. Recuou a cadeira, to­mou um jornal em cima da mesa e percorrendo-o disse, num tom mais frio:

— Agrada-lhe o Kent?

Seguiu-se um curto diálogo sobre o condado, calmo e con­ciso de ambas as partes, que a chegada de Charlotte e da irmã, um pouco depois, veio interromper. O tête-à-tête pareceu sur­preendê-las. Mr. Darcy relatou o engano que ocasionara a sua intrusão, e depois de ficar sentado mais alguns minutos sem dizer quase nada foi-se embora.

— Qual pode ser a significação dessa visita? — disse Charlotte, depois que ele partiu. — Minha cara Eliza, ele deve estar apaixonado por você. Sem o que nunca nos teria visitado dessa forma pouco cerimoniosa.

Mas quando Elizabeth contou que ele ficara em silêncio, a hipótese não pareceu muito plausível, mesmo para Charlotte, que a desejava. E depois de várias conjeturas supuseram afinal que a visita era devido apenas à dificuldade de encontrar ocupa­ção, coisa que naquela época do ano não era nada de estranhar. Todos os jogos em campo aberto estavam fora de questão. Dentro de casa havia Lady Catherine, livros e uma mesa de bilhar. Mas os cavalheiros não podem ficar sempre trancados dentro de casa; e fosse porque a reitoria era tão próxima, ou porque a caminhada fosse agradável, ou os seus moradores interessantes, o fato é que os dois primos se acharam tentados a caminhar até lá quase todas as manhãs. Chegavam em horas diferentes, ora juntos, outras vezes separados, e de vez em quando acompanhados pela tia. Era evidente para todos que o Coronel Fitzwilliam vinha porque achava agradável a compa­nhia dos habitantes de Hunsford, coisa que naturalmente o recomendava ainda mais. E a satisfação que Elizabeth experi­mentava ao vê-lo, bem como aquela com a qual recebia a sua evidente admiração, lembrava-lhe o antigo favorito, George Wickham. E embora, ao compará-los, visse que havia menos doçura cativante nas maneiras do Coronel Fitzwilliam, acredi­tava que ele fosse dos dois o mais culto.

Era mais difícil compreender por que Mr. Darcy vinha tão freqüentemente à reitoria. Não podia ser pela companhia, pois ele ficava a maior parte do tempo calado, às vezes durante dez minutos seguidos. E quando falava parecia fazê-lo mais pela dura obrigação de ser polido do que por prazer. Raramente parecia ficar de fato animado. Mrs. Collins não sabia o que fa­zer com ele. E o fato de o Coronel Fitzwilliam caçoar ocasio­nalmente da casmurrice do primo provava que ele havia muda­do; o pouco que Charlotte sabia a respeito de Mr. Darcy não era suficiente para que compreendesse, por si, este fato. Teria ficado satisfeita se descobrisse que esta mudança era o efeito do amor, e o objeto daquele amor a sua amiga Eliza. Portanto se dispôs seriamente a encontrar a causa daquela mudança. Observava-o todas as vezes que o encontrava em Rosings, ou quando ele vinha a Hunsford, mas sem grande sucesso. Ele decerto olhava bastante para a sua amiga, mas a expressão da­quele olhar era duvidosa. Era um olhar sério, fixo, e Charlotte perguntava-se muitas vezes se havia realmente nele alguma admiração. Outras vezes, parecia-lhe apenas um olhar distraído. Uma ou duas vezes sugerira a Elizabeth a possibilidade de Mr. Darcy se achar interessado por ela, mas esta sempre ria de se­melhante idéia. E Mrs. Collins achou que era melhor não des­pertar esperanças que pudessem acabar em desapontamento; pois, na sua opinião, toda a relutância da amiga se desvaneceria no momento em que o supusesse em seu poder.

Nos planos afetuosos que às vezes fazia para Elizabeth, pensava em casá-la com o Coronel Fitzwilliam; ele era, sem comparação, o mais agradável dos dois. Era evidente que sentia admiração por Elizabeth, e a sua situação na vida era das me­lhores; mas, para contrabalançar as suas vantagens, Mr. Darcy tinha uma influência considerável na igreja, e seu primo não podia ter nenhuma.

 

Mais de uma vez, durante os seus passeios pelo parque, Elizabeth teve a surpresa de se encontrar com Mr. Darcy. Ela percebeu a perversidade do acaso, que o trazia onde ninguém mais costumava aparecer. E para impedir que isto tornasse a suceder, deu-se ao trabalho de preveni-lo de que aqueles passeios constituíam um dos seus hábitos favoritos. Achou muito estra­nho portanto que o acaso se repetisse uma segunda vez, e mes­mo uma terceira. Parecia o efeito de uma vontade maléfica, ou então de uma voluntária mortificação, pois nessas ocasiões Mr. Darcy não se limitava a fazer simples perguntas de cortesia, e depois de uma pausa esquerda ir embora; voltava sobre os seus passos e a acompanhava. Ele pouco falava e Elizabeth não se dava ao trabalho de ouvi-lo com muita atenção. Mas da ter­ceira vez Mr. Darcy lhe fez umas perguntas estranhas e des­conexas sobre o prazer de estar em Hunsford, o gosto que ela parecia encontrar naqueles passeios solitários e a opinião de Elizabeth sobre a felicidade do casal Collins; e disse também que por falar em Rosings, e já que parecia que ela compreendia bem aquela casa, esperava que quando ela voltasse novamente para o Kent fosse residir lá também. Era isto que as suas pala­vras pareciam subentender. Estaria ele pensando no Coronel Fitzwilliam? Elizabeth pensou que se aquilo fosse uma indireta seria esse o sentido mais provável. Ficou um pouco perturbada e deu graças a Deus porque naquele instante estavam se apro­ximando do portão da reitoria.

Certo dia em que Elizabeth estava caminhando, relendo a última carta de Jane, especialmente um determinado trecho que parecia provar que Jane estava deprimida, viu, ao levantar os olhos, que se encontrava diante do Coronel Fitzwilliam, e não de Mr. Darcy, como tinha suposto. Guardando a carta imedia­tamente e forçando um sorriso, disse:

— Eu não sabia que o senhor costumava passear por esses lados.

— Estive fazendo a volta do parque — respondeu ele —, como o faço todos os anos, e tencionava encerrá-la com uma visita à reitoria. Tenciona ir mais adiante?

— Não, eu ia voltar logo.

E dizendo isto ela se virou. Juntos voltaram até a casa.

— Está mesmo decidido a deixar o Kent sábado? — per­guntou Elizabeth.

— Sim, a menos que Darcy torne a adiar a partida. Estou a seu dispor. Ele que decida como lhe aprouver.

— Ele parece ter grande prazer em exercer a faculdade de escolha. Não conheço ninguém que pareça ter tanto prazer em fazer as suas vontades como Mr. Darcy.

— É verdade, ele gosta mesmo de fazer o que quer — respondeu o Coronel Fitzwilliam. — Mas todos nós gostamos. Somente que ele tem em geral mais meios de realizar os seus desejos do que o comum dos homens. Falo com sinceridade. Como filho caçula, tenho que estar preparado para o sacrifício e a obediência.

— Na minha opinião o filho mais moço de um nobre pou­co sabe a respeito dessas virtudes. Agora fale seriamente, que é que o senhor sabe a respeito do sacrifício e da obediência? Quando foi impedido, por falta de dinheiro, de se locomover livremente ou de obter as coisas que desejava?

— Isto são perguntas particulares. E talvez eu não possa dizer que tenha experimentado muitas dificuldades desta natu­reza, mas em outras questões de importância é possível que eu sofra falta de dinheiro. Os filhos mais moços não podem se casar como desejam.

— A não ser que se apaixonem por mulheres ricas, e creio que muitas vezes isto acontece.

— O hábito que temos de gastar dinheiro nos torna de­pendentes demais. E não há muitos na minha situação que se podem casar sem considerar a questão monetária.

"Será uma indireta para mim?", pensou Elizabeth. E a idéia fê-la enrubescer; mas, dominando-se, disse, num tom alegre:

— E diga-me, qual é o preço usual para o filho mais moço de um nobre? A não ser que o irmão mais velho seja muito doente, não creio que possam exigir além de cinqüenta mil libras.

Ele respondeu no mesmo tom e o assunto morreu. Para interromper um silêncio que poderia fazer crer ao coronel que ela se sentira afetada pelo que acabavam de dizer, Elizabeth disse, pouco depois:

— Imagino que o seu primo deve tê-lo trazido consigo com o intuito principal de ter alguém à disposição. Não sei por que ele não se casa. Teria desse modo uma pessoa sempre à disposição. Mas talvez a irmã dele preencha esses requisitos no momento. E, como ela se encontra sob os seus cuidados exclu­sivos, ele pode fazer com ela o que quiser.

— Não — disse o Coronel Fitzwilliam —, esta é uma van­tagem que ele tem que compartilhar comigo. Exerço juntamente com ele a tutela de Miss Darcy.

— Ah, sim? Diga-me, que espécie de tutores são os se­nhores? A sua tutelada lhes dá muito trabalho? As moças nessa idade são às vezes difíceis de governar. E, se ela possui o ver­dadeiro espírito dos Darcy, deve ser voluntariosa.

Enquanto falava, Elizabeth via que o coronel a olhava sé­rio e, pela maneira com que lhe perguntou pouco depois por que é que ela supunha que Miss Darcy lhe pudesse causar preocupações, ficou convencida de que tinha chegado próximo à verdade.

Elizabeth respondeu diretamente:

— Não precisa se assustar. Nunca ouvi nada de mal a respeito dela. E ouvi dizer até que ela é uma das pessoas mais tratáveis do mundo. Duas senhoras minhas conhecidas gostam muito dela: Mrs. Hurst e Miss Bingley. Penso que já ouvi o senhor dizer que também as conhece.

— Conheço-as um pouco. O irmão delas é um cavalheiro muito agradável e bem-educado. É um grande amigo de Darcy.

— Oh, sim — disse Elizabeth, secamente. — Mr. Darcy é muito atencioso para com Mr. Bingley. Tem um cuidado real­mente prodigioso com ele.

— Sim, acredito realmente que Darcy cuide de certas coisas dele, que na verdade precisam de cuidados. Por um fato que ele citou durante a nossa viagem para cá, tenho razões para pensar que Bingley deve muita coisa a Darcy. Mas tenho de desculpar-me com ele, pois não tenho o direito de pensar que Bingley seja a pessoa a que se refere a história. É uma simples conjetura.

— Qual é essa história?

— É um caso que Darcy naturalmente não pode desejar que se espalhe, pois se chegasse aos ouvidos da família da moça poderia ser uma coisa desagradável.

— Pode ficar certo de que nunca falarei a este respeito.

— E lembre-se de que não tenho muitas razões para su­por que esta pessoa seja Bingley. O que me contou foi apenas o seguinte: que ele se felicitava a si mesmo por ter salvo um amigo dos inconvenientes de um casamento dos mais impruden­tes, mas sem mencionar nomes ou quaisquer outros detalhes. E suspeitei que fosse Bingley apenas porque acredito que ele é desses rapazes que se metem em aventuras dessa espécie e porque sei que eles estiveram juntos durante todo o verão passado.

— E Mr. Darcy apresentou os motivos dessa interfe­rência?

— Compreendi que havia objeções muito fortes contra a moça.

— E de que artifícios usou ele para separá-los?

— Ele não me falou a respeito dos artifícios que tenha usado — disse Fitzwilliam sorrindo. — Disse-me apenas o que acabo de lhe contar.

Elizabeth não respondeu e continuou a andar, com o co­ração repleto de indignação. Depois de observá-la durante alguns instantes, Fitzwilliam perguntou-lhe por que estava tão pensativa.

— Estive pensando no que acaba de me contar — disse ela. — A conduta do seu primo não se coaduna com os meus sentimentos. Por que é que ele se arrogou o direito de julgar?

— Parece que a senhora está disposta a considerar a inter­ferência dele inoportuna.

— Não sei com que direito Mr. Darcy pode decidir a respeito da legitimidade das inclinações do amigo, ou baseado apenas no seu julgamento determinar de que maneira aquele amigo poderia ser feliz. Mas — continuou ela, voltando a si — como não conhecemos as circunstâncias, não é justo condená-lo. Não suponho que existisse grande afeição nesse caso.

— A suposição não é improvável — disse Fitzwilliam —, porém diminui bastante o triunfo do meu primo.

Estas palavras foram ditas em tom de gracejo; mas pare­ceu a Elizabeth que traçavam um retrato tão justo de Mr. Darcy que ela resolveu refrear a resposta. E portanto, mudando abrup­tamente de assunto, falou de coisas banais até que chegaram à reitoria. Aí, logo depois que o visitante partiu, ela se trancou no quarto para pensar sem interrupção em tudo o que tinha ouvido. Não era de supor que fossem outras as pessoas envolvi­das. Não poderiam existir no mundo dois homens sobre os quais Mr. Darcy exercesse um domínio tão absoluto. Ela nunca duvi­dara de que ele tivesse tido a sua parte nas medidas que tinham sido adotadas para separar Mr. Bingley de Jane. Mas sempre atribuíra a Miss Bingley a iniciativa do plano e a parte mais importante da execução. Se ele não tivesse sido portanto iludido pela própria vaidade, Mr. Darcy, com o seu orgulho e seu capri­cho, era a causa de tudo o que Jane tinha sofrido. Tinha arrui­nado por algum tempo todas as esperanças de felicidade para o coração mais afetuoso e mais generoso do mundo. E ninguém poderia dizer quão duradouro era o mal que ele tinha causado.

Havia objeções muito fortes contra a moça, tais tinham sido as palavras do Coronel Fitzwilliam. E estas fortes objeções eram provavelmente as seguintes: o fato de ela ter um tio que era advogado no campo e outro que era comerciante em Lon­dres. Contra Jane em pessoa, pensou ela, não poderia haver possibilidade de objeção. "Ela é toda doçura e bondade. É inte­ligente, educada e suas maneiras são cativantes. Nada pode ser objetado tampouco contra meu pai, que, embora um pouco excêntrico, tem qualidades que nem Mr. Darcy pode desdenhar. E uma respeitabilidade que ele provavelmente nunca alcançará." Quando pensava na mãe, com efeito a sua confiança declinava um pouco. Mas não era crível que quaisquer objeções desse gênero pesassem aos olhos de Mr. Darcy, cujo orgulho, pensou Elizabeth, seria mais facilmente ferido pela falta de importância das relações do amigo do que pela falta de senso dessas mesmas pessoas. E finalmente Elizabeth chegou à conclusão de que Mr. Darcy se deixara levar em parte pelo seu desmedido orgulho e em parte pelo desejo de reter Mr. Bingley para sua irmã. As agitações e as lágrimas que o assunto causara trouxeram a Eli­zabeth uma dor de cabeça que à noite se agravou. Esta circuns­tância e a sua repugnância em ver Mr. Darcy determinaram-na a não acompanhar as primas a Rosings, onde deviam tomar chá. Mrs. Collins, vendo que ela realmente não estava bem, não insistiu, impedindo o mais que pôde o seu marido de insistir. Mr. Collins não pôde esconder a apreensão de que Lady Cathe­rine se mostrasse aborrecida por Elizabeth ter ficado em casa.

 

Depois que os amigos partiram, Elizabeth, como se tencionasse exasperar-se o mais que podia contra Mr. Darcy, esco­lheu como ocupação a leitura de todas as cartas que Jane lhe enviara, desde que ela, Elizabeth, estava no Kent. Essas cartas não continham nenhuma queixa expressa. Não relembravam acontecimentos passados nem comunicavam sofrimentos pre­sentes. Mas em todas elas, em quase cada linha, sentia-se a falta daquela animação que sempre caracterizara o estilo de Jane, e que procedia da serenidade de um espírito tranqüilo e bem disposto consigo mesmo e com todos. Elizabeth observou, com uma atenção que não tivera durante a primeira leitura, cada frase que traía alguma inquietude. A vergonhosa jactância de Mr. Darcy a respeito dos sofrimentos que ele pudera causar fazia com que ela sentisse mais agudamente os sofrimentos da irmã. Era um consolo pensar que a sua visita a Rosings termina­ria daí a dois dias. É outro ainda maior a idéia de que em menos de quinze dias estaria novamente junto de Jane, prepa­rada para contribuir, com toda a afeição de que era capaz, para o restabelecimento da sua tranqüilidade.

Não podia pensar na partida de Darcy sem se lembrar de que o primo também iria com ele. Mas o Coronel Fitzwilliam dera a entender claramente que não tinha nenhuma intenção e, embora fosse um homem agradável, Elizabeth não estava dis­posta a ficar triste por sua causa.

Decidira ela este ponto, quando teve a sua atenção des­pertada pelo som da campainha da porta. A princípio ficou um pouco emocionada com a idéia de que pudesse ser o Coronel Fitzwilliam, que já uma vez aparecera tarde da noite, e que viesse agora para se informar da sua saúde. Mas esta idéia foi logo banida e a sua emoção foi inteiramente diversa quando viu com imensa surpresa Mr. Darcy entrar na sala. Começou apres­sadamente a fazer perguntas sobre a saúde dela, atribuindo a visita ao desejo de se tranqüilizar. Ela respondeu com fria amabilidade. Darcy ficou sentado durante alguns instantes e depois, levantando-se, pôs-se a caminhar pela sala. Elizabeth ficou espantada, mas não disse nada. Depois de um silêncio de alguns minutos, aproximou-se agitado e disse:

— Em vão tenho lutado comigo mesmo; nada consegui. Meus sentimentos não podem ser reprimidos e preciso que me permita dizer-lhe que eu a admiro e amo ardentemente.

O espanto de Elizabeth não teve limites. Olhou fixamente para ele, enrubesceu, duvidou e ficou calada. Mr. Darcy consi­derou a atitude como um encorajamento e imediatamente fez-lhe a confissão de tudo o que sentia e já desde há muito vinha sentindo. Falou bem, mas através das suas palavras outros sen­timentos, além dos do coração, podiam ser percebidos. E ele não falava com mais eloqüência da sua ternura do que do seu orgulho. O sentimento da inferioridade de Elizabeth, do rebai­xamento que aquele amor constituía, os obstáculos de família que a razão sempre opusera à inclinação, foram descritos com um ardor que parecia devido ao seu amor-próprio ferido, mas que recomendava muito pouco as suas pretensões.

Apesar da sua profunda antipatia, Elizabeth não podia deixar de ficar desvanecida pela afeição de tal homem. E embo­ra as suas intenções nem por um só instante mudassem, a prin­cípio ela teve pena de ser obrigada a lhe infligir uma tal decep­ção. Mas as palavras seguintes de Mr. Darcy tornaram a provar o seu ressentimento. Encolerizada, perdeu toda a compaixão. Procurou no entanto dominar-se, para responder cora paciência, assim que ele acabasse de falar. Ele concluiu descrevendo-lhe a força daquela afeição que, apesar dos seus esforços, não con­seguira dominar. E exprimiu a esperança de que essa afeição fosse agora recompensada pela aceitação de Elizabeth. Enquan­to Mr. Darcy falava, era evidente para Elizabeth que ele não duvidava de que a resposta fosse favorável. Falava em apreen­são e ansiedade, mas o seu rosto exprimia realmente a certeza. Isto ainda a exasperou mais e, quando ele terminou, o sangue subiu ao rosto de Elizabeth, que disse:

— Em casos como este creio que é costume estabelecido exprimir a nossa gratidão pelos sentimentos que nos são con­fessados, embora esses sentimentos não possam ser retribuídos. É natural que essa gratidão seja sentida. E se a experimentasse agora eu lhe agradeceria. Mas não posso desejar e nunca desejei a sua boa opinião, e aliás o senhor a confere a mim contra a vontade. Sinto muito ter de causar decepção a qualquer pessoa, não o faço de propósito, entretanto espero que ela seja de curta duração. Os sentimentos que, segundo o senhor me disse, o impediram durante muito tempo de reconhecer a sua afeição hão de socorrê-lo facilmente depois da presente explicação.

Mr. Darcy, que estava apoiado contra a lareira, com os olhos fixos no rosto de Elizabeth, pareceu receber as suas pa­lavras com tanta surpresa quanto ressentimento. O rosto se tornou pálido de cólera e a perturbação era visível em cada um dos seus traços. Lutava para dar aos seus gestos uma aparência de calma e não queria falar antes de ter conseguido o que dese­java. A pausa era insuportável para Elizabeth. Afinal, numa voz em que transparecia o esforço para torná-la calma, res­pondeu:

— E esta é a única resposta a que eu tinha direito e com a qual tenho de me contentar! Desejaria talvez que me infor­masse por que sou assim rejeitado, sem a menor tentativa de cortesia da sua parte. Mas isto tem pouca importância.

— Por minha vez, eu poderia perguntar — replicou ela — por que, com o intuito tão evidente de me ofender e de insultar, o senhor resolveu dizer que gostava de mim contra a sua vontade, contra a sua razão e mesmo contra o seu caráter. Não é escusa suficiente para a minha falta de cortesia? Se é que realmente cometi essa falta... Mas tenho outros motivos para me sentir ferida. E o senhor bem o sabe. Mesmo que os meus sentimentos não lhe fossem contrários, se lhe fossem indiferen­tes ou mesmo favoráveis, o senhor acha que qualquer conside­ração me inclinaria a aceitar um homem que arruinou talvez para sempre a felicidade de uma irmã querida?

Enquanto ela pronunciava estas palavras, Mr. Darcy mu­dou de cor. Mas a emoção foi curta e ele continuou a ouvir sem tentar interromper.

— Tenho todas as razões do mundo para pensar mal do senhor — prosseguiu Elizabeth. — Nenhum motivo poderá escusar o ato injusto e mesquinho que praticou. O senhor não ousará negar que foi o meio principal, se não o único, de separar aquelas duas pessoas e de expô-las à censura e ao ridículo do mundo, uma delas por capricho e instabilidade, outra pela de­cepção das suas esperanças, causando-lhes um grande mal.

Fez uma pausa e viu, com grande indignação, que ele a ouvia com ar de quem não sentia o menor remorso. Olhou-a mesmo com um sorriso de incredulidade afetada.

— O senhor pode negar o que fez? — repetiu ela.

Ele então respondeu com fingida tranqüilidade:

— Não desejo negar que fiz tudo o que pude para separar meu amigo da sua irmã. Tampouco negarei que me alegro desse êxito. Fui mais previdente para com ele do que para comigo próprio.

Elizabeth não quis mostrar que compreendeu a observação, mas o sentido não lhe escapou. Como tampouco foi de natu­reza a aplacá-la.

— Mas não é apenas nessa história que se funda a minha antipatia — continuou ela. — Muito antes de ela acontecer eu já tinha opinião formada a seu respeito. A narrativa que já há muitos meses me fez Mr. Wickham me revelou o seu caráter. Que tem o senhor a dizer sobre este assunto? Que ato imagi­nário de amizade poderá o senhor alegar para se justificar? Que falsos motivos poderá inventar para iludir os outros?

— A senhora parece se interessar extraordinariamente pe­las mágoas daquele cavalheiro.

— Nenhuma pessoa que conheça o seu infortúnio pode deixar de se interessar por ele.

— Seu infortúnio! — repetiu Darcy, num tom de des­prezo. — Sim, o seu infortúnio foi realmente grande.

— E foi o senhor quem o infligiu — exclamou Elizabeth, com energia. — Foi o senhor quem o reduziu ao seu estado atual de pobreza, de comparativa pobreza. O senhor lhe recusou os direitos que lhe cabiam, as vantagens que lhe tinham sido destinadas. Privou-o, durante os melhores anos da sua vida, da independência a que ele tinha direito e que aliás merecia. Tudo isso o senhor fez! E agora ouve o relato do seu infortúnio com desprezo e ironia.

— Então é esta a opinião que tem de mim! — exclamou Darcy, caminhando apressado pela sala. — É este o valor que me dá! Agradeço-lhe por se ter explicado tão claramente. Mi­nhas faltas, tais como as descreve, são realmente pesadas. Mas talvez — acrescentou ele, detendo-se e voltando-se para Eliza­beth —, talvez essas ofensas pudessem ter sido relevadas, se eu não tivesse ferido o seu orgulho, confessando-lhe com toda a franqueza os escrúpulos que me impediram durante tanto tempo de tomar uma resolução. Eu poderia ter evitado as suas amargas acusações, se me tivesse mostrado mais hábil, escondendo-lhe as minhas lutas e fazendo crer que era movido por uma inclinação a que nada se opunha, nem a razão, nem a re­flexão, nem qualquer outro motivo. Mas odeio toda espécie de fingimento. Tampouco me envergonham os sentimentos que lhe exprimi. São naturais e justos. Pode exigir de mim que me feli­cite pela inferioridade social dos seus parentes? Ou que me alegre com a esperança de me relacionar com pessoas de condi­ção inferior à minha?

Elizabeth sentia a sua cólera crescer de momento a momen­to; apesar disso procurou falar com toda a calma:

O senhor está enganado, Mr. Darcy. A sua atitude pou­co cavalheiresca apenas me poupou o desgosto de recusar o seu pedido, se ele tivesse sido feito de outra forma.

Elizabeth percebeu que ele se sobressaltava ao ouvir estas palavras. Mas Mr. Darcy nada disse e ela prosseguiu:

Eu o teria recusado de qualquer forma. Nada me po­deria ter persuadido a aceitar a sua mão.

Novamente seu espanto foi evidente. Mr. Darcy olhou para Elizabeth com incredulidade e mortificação. Ela continuou:

Posso dizer que desde o princípio, desde o primeiro instante quase em que o conheci, as suas maneiras me conven­ceram de que era um homem arrogante, pretensioso, e de que tinha a maior indiferença pelos sentimentos dos outros. Esta impressão foi tão profunda que constituiu, por assim dizer, o alicerce sobre o qual os acontecimentos subseqüentes elevaram uma indestrutível antipatia; e talvez menos de um mês depois de conhecê-lo estava convencida de que o senhor seria o último homem no mundo com o qual eu me casaria.

Não precisa acrescentar mais nada — disse Darcy. — Compreendo perfeitamente os seus sentimentos, e nada me resta senão me envergonhar dos meus. Perdoe-me ter tomado o seu precioso tempo, e aceite os meus mais sinceros votos de felicidade.

E dizendo estas palavras saiu apressadamente da sala e, depois de alguns instantes, Elizabeth o ouviu abrir a porta da frente e sair. O tumulto das idéias lhe era tão doloroso, que, incapaz de recuperar o equilíbrio, ela se deixou cair sobre uma cadeira e chorou durante meia hora sem cessar. A sua surpresa aumentava cada vez que recordava o que se tinha passado. Re­cebera uma proposta de casamento de Mr. Darcy! Há vários meses ele estava apaixonado por ela! Amava-a tanto que deseja­va desposá-la, apesar de todas as objeções que tinham feito com que ele impedisse o casamento do amigo. Era agradável saber que ela tinha inspirado uma afeição tão forte. Mas a pieda­de que por um momento a idéia de tal paixão tinha inspirado a Elizabeth foi logo sufocada pela do orgulho de Mr. Darcy, o seu abominável orgulho, pela cínica confissão de sua atitude para com Jane, a sua imperdoável tranqüilidade ao reconhecer o que tinha feito, embora não o pudesse justificar, e pela ma­neira desapiedada com que se referira a Mr. Wickham, sem que tentasse negar a crueldade com que o tinha tratado.

Essas reflexões agitadas prosseguiram até que Elizabeth ouviu o ruído da carruagem de Lady Catherine. Sentindo que não estava em condições de enfrentar a perspicaz atenção de Charlotte, correu para o quarto.

 

Na manhã seguinte, ao despertar, Elizabeth encontrou no espírito os mesmos problemas que debatera na véspera até ador­mecer. Ainda não voltara a si da surpresa. Era impossível pen­sar em outro assunto; incapaz de encontrar uma ocupação que a distraísse, resolveu, logo depois da primeira refeição, fazer um pouco de exercício ao ar livre. Estava se encaminhando para o seu lugar favorito, quando a lembrança de que Mr. Darcy costumava aparecer lá a deteve. E, em vez de entrar no parque, tomou a vereda que a bordejava. A cerca do parque limitava a estrada de um lado e pouco depois ela passou por um dos portões. Depois de andar duas ou três vezes naquela parte do caminho, sentiu-se tentada pela beleza da manhã a parar nos portões e contemplar o parque. Durante as cinco semanas que tinha passado no Kent, uma grande transformação se operara, e cada dia as árvores ficavam mais verdes. Elizabeth estava a ponto de continuar o passeio, quando avistou de relance, no pe­queno bosque que bordejava o parque, um homem que vinha na sua direção. Temerosa de que fosse Mr. Darcy, recuou. Mas a pessoa se encontrava agora tão próxima que podia vê-la. Apres­sando o passo, esta pessoa se aproximou e pronunciou o nome de Elizabeth. Ela estava de costas, mas ao ouvir o seu nome, embora reconhecesse a voz de Mr. Darcy, voltou a se acercar do portão. Mr. Darcy, do outro lado, fizera o mesmo. Estendeu-lhe uma carta, que ela aceitou instintivamente. Em seguida disse, com um olhar altivo:

— Estive passeando no bosque na esperança de encontrá-la. Quer me dar a honra de ler esta carta?

Em seguida, depois de inclinar-se levemente, voltou-se e partiu.

Sem esperança de prazer mas com a maior curiosidade, Elizabeth abriu a carta; com espanto sempre crescente viu que o envelope continha duas folhas de papel, inteiramente reco­bertas por uma letra apertada. Continuando o caminho pela alameda, Elizabeth começou a ler. A carta estava datada de Rosings, das oito horas da manhã, e dizia o seguinte:

 

"Não fique alarmada, Miss Eliza, ao receber esta carta, pela apreensão de que ela contenha a repetição daqueles senti­mentos ou a renovação daquelas propostas que ontem à noite tanto lhe repugnaram. Escrevo-lhe sem nenhuma intenção de aborrecê-la ou de me humilhar insistindo em exprimir esperan­ças que para a felicidade de ambos não podem ser esquecidas cedo demais. E o esforço da minha parte ao escrever esta carta e o seu em percorrê-la teria sido poupado se o meu caráter não exigisse que ela fosse escrita e lida. É preciso pois que me perdoe a liberdade com que exijo a sua atenção; sei que os seus sentimentos a concederão com relutância. Mas eu o exijo da sua justiça. Duas foram as acusações que me fez ontem à noite, de natureza muito diferente e de importância igualmente desi­gual. A primeira foi: que eu tinha separado Mr. Bingley da sua irmã, indiferente aos sentimentos de ambos. E a outra de ter arruinado a possibilidade imediata e as probabilidades futu­ras de Mr. Wickham, ferindo vários direitos, desafiando a honra e a humanidade. Ter repudiado voluntária e gratuitamente o companheiro da minha infância, o favorito declarado de meu pai, um rapaz que dependia exclusivamente da nossa proteção e a quem esta fora prometida seria uma perversidade incompa­ravelmente mais grave do que a separação de duas pessoas cuja afeição, embora real, não poderia ter crescido excessivamente no espaço das poucas semanas que estiveram juntas. Espero estar a salvo, para o futuro, da severidade das censuras que me foram feitas com tanta veemência a respeito destes dois casos, depois de ter lido a seguinte explicação dos meus atos e dos seus motivos. Se durante esta explanação eu me encontrar na necessidade de exprimir sentimentos que possam ser ofensivos aos seus, posso dizer apenas que isto me entristece sinceramente. A necessidade de expô-los deve ser obedecida. E quaisquer outras desculpas serão supérfluas. Pouco depois da minha chega­da ao Hertfordshire, percebi, juntamente com outras pessoas, que Bingley preferia a sua irmã mais velha a qualquer outra moça da região. Mas foi só por ocasião do baile de Netherfield que fiquei pela primeira vez apreensivo de que ele se apaixonas­se seriamente. Muitas vezes antes eu já o tinha visto apaixona­do. Naquele baile, enquanto eu tinha a honra de dançar com a senhora, soube através da informação acidental de Sir William que as atenções de Bingley para com a sua irmã tinham dado lugar a um rumor geral acerca do seu casamento. Sir William falou naquilo como num acontecimento positivo, acerca do qual só a data era incerta. A partir desse momento observei a atitude do meu amigo com muita atenção. E vi que a inclinação por Miss Bennet era mais forte do que qualquer uma das que lhe tinha visto antes. Observei também a sua irmã; seu olhar, suas maneiras, eram francas, alegres e atraentes como sempre, mas sem qualquer sintoma especial de afeição. E a partir desta noite fiquei convencido de que, embora ela aceitasse as aten­ções de Bingley com prazer, não as provocava porque participas­se do mesmo sentimento. Quanto a este ponto, se a senhora não se enganou, enganei-me eu. Como conhece melhor a sua irmã, a última hipótese parece ser mais provável. Se este é o caso, se este erro me levou a infligir um desgosto à sua irmã, o seu ressentimento é compreensível. Mas não tenho receio de afirmar que a serenidade do rosto da sua irmã e a tran­qüilidade da sua expressão são tais, que o observador mais agudo concluiria que, por mais amável que seja o seu gênio, seu coração não é dos mais fáceis de atingir; é certo que eu desejava acreditar na indiferença dela, mas arrisco-me a afirmar que as minhas investigações e as minhas decisões não são geral­mente influenciadas pelas minhas esperanças ou pelos meus re­ceios. Não foi porque o desejasse que acreditei na indiferença da sua irmã, foi porque cheguei a esta convicção imparcial e ela é tão sincera quanto o meu desejo. Minhas objeções contra aquele casamento não foram apenas as que lhe descrevi ontem à noite e que no meu próprio caso exigiram toda a força da paixão para serem vencidas; a desigualdade social não seria um mal tão grande para o meu amigo quanto para mim. Mas existiam outras causas para a minha resistência; causas que, embora ainda existentes, e existentes do mesmo modo, eu tentara esquecer porque não as via de maneira imediata diante de mim. Essas causas precisam ser ditas, embora sumariamente. A situação da família da sua mãe, embora pouco recomendável, não era nada em comparação com aquela falta total de delicadeza tão fre­qüente e quase permanentemente demonstrada por sua mãe, por suas três irmãs mais moças e às vezes até por seu pai. Perdoe-me, dói-me ter de ofendê-la. Mas no meio dos aborreci­mentos que os defeitos dos seus parentes mais próximos lhe causam e o desprazer que a presente descrição não pode deixar de lhe dar, a seguinte reflexão lhe sirva de consolo: saiba que o fato universalmente reconhecido de que tanto a senhora como a sua irmã mais velha sempre se comportaram de modo a evitar uma censura semelhante é o melhor elogio que se poderia fazer à sensatez e ao caráter de ambas. Acrescentarei apenas que os fatos que se passaram naquela noite confirmaram a minha opi­nião sobre todas as pessoas em questão e fortaleceram a minha resolução de proteger o meu amigo de uma aliança que eu con­siderava a mais desastrada. Ele deixou Netherfield no dia se­guinte, como decerto está lembrada, com a intenção de regressar breve. Agora devo explicar a parte que tomei no caso. A inquie­tude da irmã de Bingley fora igualmente despertada e logo descobrimos que os nossos sentimentos, coincidiam a esse res­peito; convencidos ambos de que devíamos agir rapidamente, resolvemos acompanhá-lo a Londres. Foi o que fizemos. E lá tomei a meu cargo a incumbência de revelar ao meu amigo as conseqüências desastrosas da escolha que fizera. No entanto, por mais que esta advertência possa ter-lhe abalado a resolução, não creio que teria sido suficiente para impedir o casamento, se não tivesse sido apoiada pela afirmação, que não hesitei em fazer, de que a sua irmã lhe era indiferente. Ele acreditava até aquele momento que Miss Jane correspondia à sua afeição sinceramente, se não com igual intensidade. Mas Bingley é por natureza muito modesto, e além disso tem mais confiança no meu julgamento do que no seu próprio. Convencê-lo, portanto, de que se tinha enganado não foi muito difícil. Persuadi-lo, em seguida, de que não devia voltar para o Hertfordshire, depois de firmado o primeiro ponto, foi coisa de um instante. Não me arrependo de tê-lo feito. Existe apenas uma parte da minha conduta que não me satisfaz. É que condescendi em usar de certos artifícios para esconder de Bingley o fato de sua irmã se encontrar em Londres. Sabia dessa presença, bem como Miss Bingley, mas o seu irmão até agora ainda não sabe. É possível que eles pudessem ter-se encontrado sem outras conseqüências; mas o seu afeto não me pareceu suficientemente extinto para que ele pudesse ver a sua irmã sem correr algum perigo. Talvez esse artifício seja indigno de mim. Mas o que está feito, está feito. E a minha intenção foi a melhor possível. Sobre este assunto nada mais tenho a dizer, nem outra explicação a dar. Se feri os sentimentos da sua irmã, foi sem a intenção de fazê-lo, e, embora os motivos que inspiraram a minha conduta lhe pa­reçam naturalmente insuficientes, não vejo ainda razões para condená-los. Com relação à outra acusação, a mais grave, a que diz respeito a Mr. Wickham, só poderei refutá-la, expondo-lhe toda a história das suas relações com a minha família. Ignoro se ele formulou alguma acusação particular à minha pessoa; mas acerca da verdade do que vou relatar posso dar mais de uma testemunha insuspeita. Mr. Wickham é o filho de um homem muito respeitável, que durante muitos anos geriu todos os bens da propriedade de Pemberley; a fidelidade com que sempre se desincumbiu das suas funções mereceu naturalmente a gratidão do meu pai. E para com George Wickham, que era o seu afilhado, meu pai se mostrou sempre generoso, dedicando-lhe uma grande afeição. Pagou os seus estudos num colégio e mais tarde em Cambridge. Auxílio importante, pois o pai de Mr. Wickham, que as extravagâncias da esposa privavam quase sempre do necessário, não estava em condições de dar ao filho uma educação liberal. Meu pai não só gostava muito da com­panhia de George Wickham, cujas maneiras, aliás, eram sempre muito atraentes, mas tinha por ele a maior admiração e, alimen­tando a esperança de que o rapaz abraçasse a carreira eclesiás­tica, tencionava reservar-lhe um lugar na mesma. Quanto a mim, há já muitos anos que comecei a pensar de maneira dife­rente a respeito dele. As suas inclinações viciosas, a falta de escrúpulos, que ele tinha o cuidado de esconder do seu melhor amigo, não poderiam passar despercebidas a um rapaz da sua idade, que o observava e tinha a oportunidade de vê-lo em momentos de descuido, coisa que Mr. Darcy não tinha. Aqui novamente, terei de magoá-la. Até que ponto não sei. Só a senhora mesma poderá dizê-lo. Mas, quaisquer que sejam os sentimentos que Mr. Wickham lhe tenha inspirado, a suspeita que alimento acerca da natureza desses sentimentos não me impedirá de lhe revelar o verdadeiro caráter daquela pessoa. Acrescento mesmo um outro motivo. Meu excelente pai morreu há cerca de cinco anos e a sua afeição por Mr. Wickham foi até o fim tão firme que me recomendou particularmente no tes­tamento que me encarregasse de promover o seu adiantamento na carreira que tinha escolhido, e manifestou o desejo de que um posto importante, à disposição da família, lhe fosse dado, assim que vagasse, caso Mr. Wickham se ordenasse. Deixou-lhe também um legado de mil libras. O pai dele não sobreviveu muito tempo ao meu, e meio ano depois desses acontecimentos Mr. Wickham me escreveu, informando-me que resolvera não tomar ordens. Dizia-me também que esperava que eu não achas­se despropositado o desejo de uma compensação pecuniária mais imediata, em lugar do posto do qual não poderia agora se beneficiar. Acrescentou que tinha intenção de estudar direito, e que eu devia compreender que os juros de mil libras não eram suficientes para o seu sustento e os seus estudos. Apesar do meu desejo de acreditar na sinceridade dele, não o conseguia. Mas de qualquer modo mostrei-me perfeitamente disposto a aceder à sua proposta. Eu sabia que Mr. Wickham não devia ser pastor. O negócio foi portanto logo arranjado. Ele desistiu de toda proteção relativa à sua entrada na Igreja, mesmo se estivesse algum dia em situação de recebê-la, e aceitou em troca a quantia de três mil libras. Todas as nossas relações a partir dessa época ficaram interrompidas. O que eu sabia a respeito dele era suficiente para não o desejar como amigo. E portanto eu não o convidava para vir a Pemberley, nem andava em com­panhia dele na cidade. Creio que durante esse tempo ele ficou em Londres, mas o seu estudo de direito foi um mero pretexto. Livre agora de toda obrigação, ele levava uma vida de dissipação. Durante três anos pouco ouvi falar nele. Mas, ao falecer a pessoa que ocupava o posto que outrora lhe fora destinado, ele tornou a escrever, solicitando a sua apresentação para o dito lugar. Sua atual situação, dizia ele, e eu não tive dificuldade em acreditá-lo, era extremamente precária. Descobrira que o estudo de direito era pouco proveitoso e estava agora absoluta­mente resolvido a tomar ordens, se eu o apresentasse para o posto em questão, coisa de que ele não duvidava, pois estava informado de que não havia outro pretendente e eu não poderia ter esquecido as intenções do meu venerando pai; creio que não há de me censurar por lhe ter recusado aquela pretensão e re­jeitado todas as novas tentativas no mesmo sentido. O ressenti­mento que ele manifestou foi muito violento, dada a situação precária em que se encontrava. E, sem dúvida, os insultos de que me cobriu ao falar a meu respeito com outras pessoas foram tão violentos quanto as recriminações que me dirigiu. Depois desse período, todas as relações de mera formalidade foram cortadas. Como ele viveu, não sei. Mas no último verão tornou a aparecer no meu caminho da forma mais desagradável possí­vel. Devo agora mencionar certas circunstâncias que eu mesmo desejaria esquecer e que só uma obrigação tão forte quanto a atual me poderia induzir a relatar para qualquer outra pessoa. Depois de ter dito isto, confio inteiramente na sua discrição. Minha irmã, que é dez anos mais moça do que eu, foi deixada em tutela ao sobrinho de minha mãe, Coronel Fitzwilliam, e a mim próprio. Há um ano atrás saiu do colégio e foi morar em Londres em companhia de uma senhora encarregada de superintender a sua educação; e no verão passado foi com aque­la senhora para Ramsgate. Mr. Wickham, sem dúvida proposi­tadamente, partiu para o mesmo lugar; depois se descobriu que havia um entendimento prévio entre ele e Mrs. Younge, pessoa a respeito de cujo caráter infelizmente nos enganamos. Graças ao auxílio e conivência desta pessoa, ele se aproximou de Georgiana, em cujo coração por natureza afetivo ainda era muito vivida a impressão da bondade com que ele a tratara em criança. Ela se deixou persuadir de que estava apaixonada e consentiu em ser raptada. Como a moça tinha apenas quinze anos, essa loucura é até certo ponto escusável. Tenho o consolo de poder acrescentar que soube disto por ela própria. Cheguei a Rams­gate, inesperadamente, um ou dois dias antes da projetada fuga. E Georgiana, incapaz de suportar a idéia de desgostar e ofender um irmão que ela considerava quase como um pai, confessou-me tudo. A senhora pode bem imaginar como me senti e como agi. Para não prejudicar a reputação da minha irmã e não ofender os seus sentimentos, eu me abstive de qualquer ato de represália em público. Mas escrevi para Mr. Wickham, que partiu imedia­tamente. Mrs. Younge foi naturalmente despedida. Sem dúvida, o fito principal de Mr. Wickham era de se apoderar da fortuna da minha irmã, que é de trinta mil libras. Mas não posso deixar de pensar que o desejo de se vingar de mim tenha também influído fortemente nele.

Esta é uma narrativa fiel dos acontecimentos que nos con­cernem a ambos; e se não a rejeitar como absolutamente falsa, espero que me absolva daqui por diante da falta de ter agido com crueldade para com Mr. Wickham. Não sei de que maneira ele se impôs à sua atenção, nem as falsidades que usou para isto. Mas o êxito que alcançou não é de espantar, dada a sua ignorância de tudo o que acontecera antes. Não estava em seu poder desmascarar estas falsidades e o seu temperamento não é inclinado à desconfiança. Talvez a senhora se surpreenda de eu não lhe ter dito isto ontem, mas naquele momento não tinha suficiente domínio sobre mim mesmo para decidir o que devia e o que não devia revelar. Quanto à verdade de tudo o que ficou aqui relatado, posso apelar particularmente para o testemu­nho do Coronel Fitzwilliam, que, dado o nosso parentesco e constante intimidade e sobretudo a sua qualidade de exe­cutor testamentário de meu pai, conhece necessariamente todos os detalhes desses acontecimentos. Se a antipatia que tem por mim privar de valor as minhas asserções, a mesma causa não a poderia impedir de confiar no meu primo, e para que haja a possibilidade de consultá-lo procurarei entregar-lhe a presente carta de manhã. Acrescentarei apenas: Deus a abençoe!

Fitzwilliam Darcy"

 

Ao receber a carta de Mr. Darcy, Elizabeth não esperava que ela contivesse uma repetição das suas propostas; por outro lado, não tinha a menor idéia a respeito do conteúdo da carta. É fácil imaginar com quanta avidez ela se inteirou dos termos e quantas emoções contraditórias eles lhe produziram no espírito. Durante a leitura os seus sentimentos não podiam ser defini­dos. Primeiro constatou com assombro que ele acreditava poder se desculpar; estava persuadida de que um justo pudor o impe­diria de dar qualquer explicação; fortemente prevenida contra tudo o que ele pudesse dizer, começou a ler o seu relato do que tinha acontecido em Netherfield. Leu com uma ansiedade que quase a impedia de compreender; a impaciência de saber o que a próxima frase deveria trazer a incapacitava de aprofun­dar o sentido daquela que tinha diante dos olhos. Elizabeth imediatamente resolveu que era falsa a alegação de Mr. Darcy de que ele acreditara na insensibilidade da sua irmã. As outras objeções contra o casamento, as piores, a enfureciam de tal forma que aboliam todo o seu desejo de ser justa. As palavras de Darcy não exprimiam nenhum arrependimento; seu estilo não era de quem se quisesse desculpar. Era arrogante, orgulhoso e insolente.

Mas, quando passou para o outro assunto, depois de ter lido, com mais atenção, o relato de acontecimentos que, se ver­dadeiros, jogariam por terra toda a sua boa opinião sobre Mr. Wickham, e que aliás tinham uma semelhança alarmante com a história que Mr. Wickham contara a seu próprio respeito, os seus sentimentos cresceram em intensidade e se tornaram ainda mais difíceis de definir. O assombro, a apreensão e até o horror a oprimiam. Ela se recusava a acreditar naquilo, exclamando repetidamente: "Deve ser falso, não pode ser! É a maior das mentiras!" E, depois de ter percorrido toda a carta, embora não se lembrasse de quase nada que tinha lido nas duas últimas páginas, Elizabeth colocou-a de lado, dizendo a si mesma que nunca mais a leria. Nesse confuso estado de espírito, cheio de pensamentos que não repousavam em coisa alguma, continuou a andar, até que meio minuto depois, incapaz de resistir a um impulso que se formara nela, tornou a desdobrar a carta e, con­centrando o mais que podia a atenção, exigiu de si mesma o esforço mortificante de reler toda a parte que se referia a Wickham, pesando o sentido de cada frase. A história das suas relações com a família de Pemberley era exatamente a que Wickham lhe tinha contado, e a bondade do falecido Mr. Darcy, embora até então não lhe conhecesse toda a extensão, concor­dava igualmente com as suas palavras. Até este ponto as duas narrativas coincidiam; mas quando ela chegou ao testamento, a diferença era grande. Ainda tinha frescas na memória as palavras de Wickham; era impossível, portanto, não sentir que havia uma grosseira duplicidade de um dos lados. E durante algum tempo teve a esperança de que a verdade coincidisse com os seus desejos. Mas depois de ler e reler com a maior atenção os detalhes que se seguiam imediatamente à desistência que Wickham fizera de todos os direitos ao posto, recebendo em troca a soma considerável de três mil libras, novamente foi forçada a hesitar. Pesou cada circunstância com a maior impar­cialidade de que era capaz, calculou a probabilidade de cada afirmação, tudo sem chegar a um resultado. De ambos os lados havia apenas afirmações. Tornou a ler. Mas cada linha provava mais claramente que a história, que a princípio achara impossí­vel interpretar de maneira a tornar a conduta de Mr. Darcy menos infame, podia ser vista sob um aspecto que o inocentava inteiramente. A extravagância e a dissolução que Mr. Darcy não hesitava em atribuir ao caráter de Mr. Wickham a feriam extre­mamente. E tanto mais que ela não podia apresentar uma prova de que essas acusações eram injustas. Elizabeth nunca ouvira falar em Wickham antes da sua entrada na milícia do condado de..., na qual ele se engajara, obedecendo à sugestão de um rapaz que encontrara acidentalmente em Londres. Nada se sabia no Hertfordshire a respeito da sua vida anterior, a não ser o que ele próprio tinha contado. Quanto ao seu caráter real, mesmo que tivesse meios para isto, Elizabeth nunca sentira o desejo de fazer investigações a respeito. A sua figura, a sua voz, os seus modos haviam sido suficientes para que ela lhe atribuísse todas as virtudes. Procurou se lembrar de algum exemplo de bondade, de algum traço marcante de integridade ou de benevolência que o pudesse salvar dos ataques de Mr. Darcy. Ou pelo menos de uma virtude que prevalecesse sobre aquilo que o seu desafeto tinha descrito como sendo ociosidade e vício e em que ela procurava ver apenas uma série de erros casuais. Mas não lhe foi possível encontrar nenhuma lembrança dessa natureza. Podia vê-lo instantaneamente diante de si, com todo o encanto das suas boas maneiras, mas não podia se lembrar de nenhum ato concreto de virtude, que merecesse a aprovação geral da sociedade e a consideração que ele desfruta­va entre os oficiais. Depois de refletir consideravelmente sobre este ponto, mais uma vez recomeçou a ler. Mas infelizmente a história que se seguia, relativa aos seus desígnios de raptar Miss Darcy, era confirmada pela conversa havida entre ela própria e o Coronel Fitzwilliam, na manhã anterior; e finalmente Mr. Darcy havia apresentado o testemunho do Coronel Fitzwilliam, a fim de que ela pudesse obter a confirmação de cada detalhe da sua versão. Sabia por informação prévia do coronel que ele estava intimamente ligado a todas as circunstâncias da vida do primo, e não tinha nenhum motivo para duvidar do seu caráter. Por um momento esteve quase resolvida a apelar para o coronel, mas esta idéia foi afastada, porque exigiria uma explicação embaraçosa, e porque sabia que Mr. Darcy jamais a teria suge­rido se não se tivesse previamente assegurado da colaboração do primo.

Ela se lembrava perfeitamente de toda a conversa que tivera com Mr. Wickham, na primeira noite, em casa de Mr. Philips. Muitas das expressões que ele usara ainda estavam frescas na sua memória. Compreendia agora, de súbito, toda a impropriedade que havia naquelas confidencias a uma pessoa estranha, e espantou-se de nunca haver pensado nisto antes. Viu a indelicadeza daquela exibição e a incompatibilidade entre as suas afirmações e a sua conduta. Lembrava-se de que ele se gabara de não temer um encontro com Mr. Darcy — que Mr. Darcy poderia se mudar, caso se sentisse mal, mas ele não o faria. No entanto tinha se furtado de comparecer ao baile de Netherfield, na semana seguinte. Recordou-se também de que até o momento da partida da família de Netherfield ele se abstivera de contar a sua história para outra pessoa, mas em seguida ela fora discutida em todos os lugares; que ele não tivera então nenhum escrúpulo em denegrir o caráter de Mr. Darcy, apesar de lhe ter declarado que o respeito pela memória do pai sempre o impediria de acusar o filho.

Como tudo lhe parecia agora diferente! Suas atenções para com Miss King eram a conseqüência de odiosas intenções pura­mente mercenárias. Mas o fato de essa moça possuir apenas uma pequena fortuna não provava a moderação dos desejos do pretendente, mas a avidez de se lançar sobre a primeira oportunidade que lhe aparecesse. Quanto à sua atitude para com ela, Elizabeth, ou ele se enganara a respeito da sua fortuna ou agira por pura vaidade, encorajando uma preferência que ela tivera a imprudência de revelar. Todos os esforços de Elizabeth para justificá-lo se tornavam cada vez mais fracos. E como uma justificação adicional ao que dissera Mr. Darcy, ela não podia se esquecer do que dissera Mr. Bingley, que, quando questio­nado por Jane, afirmara a inocência do amigo na questão. As maneiras de Mr. Darcy eram orgulhosas e desagradáveis, mas durante todo o curso das suas relações com ele e do contato freqüente que ultimamente haviam tido, concedendo-lhe uma espécie de intimidade, nunca presenciara nenhum fato que pro­vasse que ele era inescrupuloso e injusto ou que possuía hábitos irreligiosos ou imorais. Todos os seus amigos o prezavam, e até Wickham lhe havia reconhecido qualidades como irmão. Ouvira-o vários vezes falar afetuosamente da sua irmã, o que provava que ele era capaz de sentimentos ternos. Se os seus atos fossem tais como Wickham os havia descrito, se houvesse violado tão brutalmente todos os direitos, dificilmente ele os poderia ter ocultado do mundo. E se ele fosse capaz de tamanha injustiça, não se explicaria a sua amizade com um homem tão estimável quanto Mr. Bingley. Elizabeth sentiu uma grande vergonha de si mesma. Não podia pensar em Darcy nem em Wickham sem sentir que tinha sido cega, parcial, injusta e absurda. "Como foi mesquinha a minha conduta!", exclamou ela, "eu que me orgulhava tanto do meu discernimento, da minha habilidade! Eu, que tantas vezes desdenhei a generosa candura da minha irmã, e gratifiquei a minha vaidade com inú­teis e censuráveis desconfianças. Como é humilhante esta des­coberta! Mas como é justa esta humilhação! Eu não poderia ter agido mais cegamente se estivesse apaixonada! Mas a vaidade, não o amor, foi a minha loucura! Lisonjeada com a preferência de uma pessoa e ofendida com a negligência da outra, logo no início das nossas relações cortejei a parcialidade e a ignorância e expulsei a razão. Até este momento eu não conhecia a minha verdadeira natureza."

Enquanto o seu pensamento ia de si mesma para Jane e de Jane para Bingley, logo lhe ocorreu a idéia de que a explicação de Mr. Darcy quanto àquele ponto lhe parecera muito insufi­ciente. E leu novamente. Muito diferente foi o efeito desta segunda leitura. Como dar valor às afirmações de Mr. Darcy em um ponto e lhe negar no outro? Ele declarava que nem de longe suspeitava da afeição de sua irmã. E Elizabeth não podia deixar de se lembrar da opinião constante de Charlotte. Nem tampouco podia negar que fosse justa a sua descrição de Jane. Ela sabia que Jane, embora capaz de fervor nos seus sentimen­tos, pouco os exteriorizava. E que havia sempre nas suas ma­neiras uma placidez que raramente se encontra unida a uma grande sensibilidade.

Quando chegou ao trecho da carta em que a sua família era mencionada, em termos mortificantes porém merecidos, ficou profundamente envergonhada. No entanto, a justiça daquela afirmação era inegável e as circunstâncias que ele mencionava, particularmente as que se referiam ao baile de Netherfield, con­firmando as suas primeiras impressões desfavoráveis, não ha­viam causado uma impressão mais forte na mente dele do que na sua. Elizabeth não ficou insensível ao elogio com que Darcy a gratificara, bem como à sua irmã. E esse elogio suavizava a sua mortificação, mas não compensava o desprezo que o resto da família atraíra pela sua conduta. E, ao refletir que o desa­pontamento de Jane tinha sido de fato causado pelos parentes mais próximos, cuja extravagância prejudicava a reputação de ambas, sentiu-se deprimida como nunca anteriormente se sentira.

Depois de passear pela alameda durante duas horas, entre­gando-se a toda espécie de pensamentos, relembrando aconte­cimentos, determinando probabilidades e reconciliando-se da melhor forma que podia a uma mudança tão súbita e tão impor­tante, o cansaço e a lembrança de que ficara muito tempo ausente fizeram com que voltasse para casa; e ao entrar fez um esforço a fim de parecer alegre como de costume, reprimindo todas as reflexões que a poderiam tornar inapta para a con­versação.

Disseram-lhe imediatamente que os dois cavalheiros de Rosings tinham aparecido durante a sua ausência, Mr. Darcy apenas durante alguns minutos para se despedir, mas o Coronel Fitzwilliam ficara pelo menos uma hora, esperando pelo seu regresso, e quase resolvera sair a pé para ir procurá-la. Elizabeth fingiu que isto lhe produzia uma grande decepção; mas na verdade se alegrou. O Coronel Fitzwilliam tinha perdido todo o interesse; ela só podia pensar na carta.

 

Os dois primos partiram de Rosings na manhã seguinte, e Mr. Collins, que tinha ido esperá-los perto da casa do vigia para apresentar as suas despedidas, voltou pouco depois, tra­zendo a boa notícia de que eles pareciam estar de muito boa saúde e relativamente de bom humor, apesar da cena melancó­lica que se tinha passado em Rosings.

Mr. Collins então se dirigiu apressadamente para Rosings, a fim de consolar Lady Catherine e a filha e, de volta, trouxe, com grande satisfação, um recado de Lady Catherine dizendo que ela se sentia tão entediada que desejava vê-los todos em sua casa para jantar.

Elizabeth não pôde deixar de se lembrar, ao ver Lady Catherine, de que, se o tivesse desejado, poderia agora ser-lhe apresentada como a sua futura sobrinha, e sorriu ao imaginar a indignação com que Sua Senhoria receberia a notícia.

O primeiro assunto abordado foi a diminuição que sofrera o grupo de Rosings.

— Asseguro-lhes que sinto muito — disse Lady Catherine —, creio mesmo que ninguém sente tanto a ausência dos amigos quanto eu. Sou muito ligada àqueles rapazes e sei que eles também gostam muito de mim. Ficaram tristíssimos de partir, e todos os anos acontece o mesmo. O coronel conseguiu domi­nar os sentimentos até o fim, mas Darcy parecia estar conster­nado. Mais do que no ano passado. Vê-se que ele gosta cada vez mais de Rosings.

Mr. Collins aproveitou a ocasião para fazer um elogio, que foi recebido com um sorriso pela mãe e pela filha.

Lady Catherine observou depois do jantar que Miss Bennet parecia melancólica. E, atribuindo imediatamente esta tristeza à proximidade da sua partida, acrescentou:

— Mas se este é o caso, escreva à sua mãe pedindo-lhe que a deixe ficar mais um pouco. Estou certa de que Mrs. Collins terá grande prazer em ter por mais tempo a sua companhia.

— Eu lhe fico muito agradecida pelo amável convite — replicou Elizabeth —, mas infelizmente não posso aceitar. Pre­ciso estar em Londres no sábado vindouro.

— Mas neste caso só terá ficado aqui seis semanas. Con­tava que permanecesse pelo menos dois meses. Foi o que eu dis­se a Mrs. Collins antes da sua vinda. Não pode haver motivo para uma partida tão prematura. Mrs. Bennet lhe concederia outros quinze dias.

— Mas meu pai não o faria. Ele me escreveu na semana passada, dizendo que apressasse a minha volta.

— Oh, se sua mãe deixa, seu pai também deixará. Uma filha nunca é muito necessária para um pai. E, se quiser ficar mais um mês, eu poderei levá-la comigo até Londres. Preciso ir lá em começo de junho. Demorar-me-ei uma semana e na minha carruagem haverá espaço para uma de vocês. E até, se o tempo estiver frio, poderiam ir as duas, pois ambas são magrinhas.

— Muito me desvanece a sua bondade, Lady Catherine, mas creio que serei obrigada a seguir o meu plano anterior.

Lady Catherine pareceu resignar-se.

— Mr. Collins — disse ela —, é preciso que mande uma criada com elas. Sabe que eu sempre falo o que penso. Não posso tolerar a idéia de duas moças viajarem sozinhas na diligên­cia. É muito impróprio. É preciso que mande uma pessoa. São coisas que não suporto. As moças devem sempre ser acompa­nhadas e protegidas, de acordo com a sua situação na vida. Quando minha sobrinha Georgiana foi para Ramsgate no verão passado, fiz questão de que dois criados homens a acompanhas­sem. Miss Darcy, a filha de Mr. Darcy de Pemberley e de Lady Anne, não poderia viajar de maneira diferente. Dou muita aten­ção a estas coisas. Mr. Collins, mande John acompanhar as moças. Estou satisfeita de me ter lembrado disto, pois seria pouco recomendável para o senhor mandá-las sozinhas.

— Meu tio vai mandar um criado para nos acompanhar.

— Oh, o seu tio... Ele tem um criado? Ainda bem que tem alguém na sua família que pense nestas coisas. Onde tro­carão os cavalos? Oh, Bromley, naturalmente. Se falarem lá no meu nome, serão muito bem servidas.

Lady Catherine fez muitas outras perguntas a respeito da viagem. E, como ela própria não respondia a todas, era necessá­rio prestar atenção, coisa que Elizabeth apreciou, pois de outra maneira, com as preocupações que a absorviam, ela poderia até se esquecer do lugar onde estava. Era necessário deixar suas re­flexões para as horas solitárias. Sempre que se encontrava so­zinha, entregava-se a elas com alívio. E todos os dias saía a passeio sozinha, para poder se dar ao consolo de recordar as coisas desagradáveis.

Dentro de pouco tempo já sabia a carta de Mr. Darcy quase de cor. Estudava cada frase, e os seus sentimentos para com o missivista variavam freqüentemente. Quando se lem­brava do seu estilo, ficava cheia de indignação, mas quando considerava a injustiça com que o tinha condenado e tratado, a sua cólera se voltava contra si mesma. Enquanto o desaponta­mento que ele tinha sofrido o tornava objeto de compaixão, o afeto de Mr. Darcy despertava-lhe a gratidão, e o caráter dele, respeito. Mas Elizabeth não podia concordar com o que ele tinha feito. Nem podia arrepender-se da sua recusa. Tampouco sentia a menor vontade de vê-lo. A sua conduta passada era uma fonte constante de amarguras e de ressentimentos. E os infeli­zes defeitos da sua própria família eram um motivo ainda mais forte de aborrecimento. Eram falhas irremediáveis. Seu pai se limitava a rir e nunca faria nenhum esforço para corrigir as le­viandades das filhas mais moças, e sua mãe, cujas maneiras não eram muito melhores, continuava naturalmente insensível a esse mal. Elizabeth freqüentemente reunia os seus esforços ao de Jane, numa tentativa de reprimir as imprudências de Katherine e de Lydia. Mas, fortalecidas pela indulgência da mãe, elas resis­tiam e não havia esperança de melhorarem. Katherine, espírito impressionável e fraco, completamente sob o domínio de Lydia, sempre levava a mal os conselhos das irmãs mais velhas, e Ly­dia, voluntariosa e descuidada, nem sequer lhes dava ouvidos. Ambas eram ignorantes, indolentes e vaidosas. Enquanto exis­tisse um oficial em Meryton, continuariam a namorar. E en­quanto Meryton ficasse a uma milha de distância de Longbourn, viveriam em caminhadas para lá. Outra das suas maiores preocupações era o futuro de Jane. A explicação de Mr. Darcy, inocentando Bingley, realçava o valor daquilo que Jane tinha perdido e demonstrava a sinceridade da sua afeição. E sua conduta ficava livre de toda censura, a não ser, talvez, a de uma demasiada confiança em seu amigo. Como era triste, pois, pen­sar que Jane fora privada de uma situação tão desejável, tão cheia de vantagens e de promessas de felicidade, pela extrava­gância e loucura da sua própria família! Quando a essas recor­dações se acrescentava a decepção que sofrera com Wickham, era fácil acreditar que a coragem e o bom humor de Elizabeth, tão difícil de reprimir, estavam agora tão afetados que lhe era quase impossível manter com as outras pessoas o mesmo tom de antigamente.

Os convites para Rosings foram tão freqüentes durante a última semana como durante a primeira. A última noite foi passada lá. E Lady Catherine tornou a se informar minuciosa­mente de todos os detalhes da viagem. Deu conselhos sobre a melhor maneira de fazer as malas e insistiu tanto na necessida­de de empacotar direito os vestidos que de volta Maria se sentiu obrigada a desfazer todo o trabalho da manhã e fazer novamente a mala.

Quando se despediram, Lady Catherine, com grande ama­bilidade, desejou uma boa viagem. Convidou-as a voltarem a Hunsford no ano seguinte. E Miss de Bourgh levou a sua benevolência ao ponto de fazer uma reverência e estender a mão a ambas.

 

Sábado de manhã, Elizabeth e Mr. Collins se encontraram para a primeira refeição, alguns minutos antes de os outros apa­recerem. E ele aproveitou a oportunidade para apresentar as suas despedidas com todas as formalidades que julgava indis­pensáveis.

— Não sei, Miss Elizabeth — disse ele —, se Mrs. Collins já lhe exprimiu os seus sentimentos de gratidão pela visita que nos fez. Mas estou certo de que não deixará esta casa sem re­ceber todos os seus agradecimentos. Asseguro-lhe que o privi­légio da sua companhia foi muito apreciado. Sei que a nossa humilde casa possui poucos atrativos; a nossa maneira simples de viver, a exigüidade dos nossos cômodos, o pequeno número dos nossos criados e o pouco que vemos do mundo devem tornar Hunsford uma residência extremamente aborrecida para uma moça. Mas espero que acredite que fizemos tudo em nosso poder para que não passasse o seu tempo de uma maneira pouco agradável e que a nossa gratidão é sincera.

Elizabeth respondeu, exprimindo-lhe calorosos agradeci­mentos e assegurando-lhe que tinha sido muito feliz. Tinha pas­sado seis semanas agradáveis. O prazer de estar com Charlotte e as grandes atenções que tinha recebido faziam com que fosse ela que estivesse na obrigação de apresentar agradecimentos. Mr. Collins ficou satisfeito e replicou com solenidade, sorri­dente.

— Dá-me a maior alegria saber que não passou o seu tempo de uma maneira desagradável. Fizemos tudo o que esta­va ao nosso alcance. E tivemos a felicidade de ter podido apre­sentá-la à mais alta sociedade. E, graças às nossas relações com Rosings, tivemos meios de variar freqüentemente a humilde cena doméstica. Penso portanto que podemos nos gabar de que a sua visita a Hunsford não lhe foi cansativa. Nossa situação relativamente à família de Lady Catherine é realmente uma dessas extraordinárias vantagens de que poucos se podem gabar.

Viu a intimidade que temos e os convites freqüentes que rece­bemos. Na verdade é preciso reconhecer que, apesar de todos os inconvenientes desta humilde reitoria, não penso que os seus hóspedes possam ser um objeto de compaixão, enquanto com­partilham da nossa intimidade com Rosings.

As palavras eram insuficientes para traduzir a elevação dos seus sentimentos. E na sua agitação ele se pôs a caminhar de um lado para outro na sala, enquanto Elizabeth procurava umas frases curtas que pudessem servir ao mesmo tempo à verdade e à cortesia.

— Creio que poderá levar um relato muito favorável a nosso respeito para o Hertfordshire, minha cara prima — con­tinuou ele. — Presenciou as grandes atenções com que Lady Catherine cumula Mrs. Collins quase todos os dias; e espero que se tenha tornado evidente que a sua amiga não fez ma... Mas sobre este ponto é melhor silenciar. Deixe apenas que eu lhe assegure, minha cara Miss Elizabeth, que eu lhe desejo do fundo do coração uma felicidade igual no casamento. Minha cara Charlotte e eu só temos um espírito e um pensamento. Existe sob todos os aspectos, entre nós, uma notável seme­lhança de caráter e de idéias. Parece que nascemos um para o outro.

Elizabeth afirmou, aliás com razão, que isto era uma gran­de felicidade e com igual sinceridade acrescentou que acredita­va firmemente na sua felicidade doméstica, coisa que muito a alegrava. Não se aborreceu contudo por ter de interromper a frase devido à entrada da pessoa cuja felicidade comentavam. Pobre Charlotte! Era triste deixá-la em tal companhia. No en­tanto, não se podia deixar de reconhecer que ela escolhera de olhos abertos. E, embora triste porque os hóspedes iam embora, ela não parecia agora querer solicitar a sua compaixão. A casa, os trabalhos domésticos, a paróquia, a criação de aves domésti­cas e todos os demais trabalhos ainda não tinham perdido o encanto. Finalmente a carruagem chegou, as malas foram amar­radas, os embrulhos levados para o interior e foi-lhes anunciado que tudo estava pronto. Depois de uma despedida afetuosa, Elizabeth foi levada até a carruagem por Mr. Collins e, enquan­to caminhavam pelo jardim, ele a encarregava de levar os seus mais respeitosos cumprimentos para a família, sem se esquecer dos agradecimentos pelas atenções que recebera em Longbourn quando lá estivera e das saudações para Mr. e Mrs. Gardiner, embora não os conhecesse. Depois a ajudou a subir para a car­ruagem. Maria acompanhou-a e a porta estava a ponto de ser fechada quando de súbito ele lembrou que elas se tinham esque­cido de deixar qualquer mensagem para as senhoras de Rosings. "Naturalmente", acrescentou ele, "desejarão que eu transmita os seus humildes respeitos com os seus mais cordiais agradecimen­tos pelas bondades de que foram objeto enquanto aqui mora­ram." Elizabeth não fez objeção a isto. A porta pôde ser fechada e finalmente a carruagem se afastou.

— Arre! — exclamou Maria, depois de alguns minutos de silêncio. — Parece que chegamos ontem. E no entanto quanta coisa aconteceu!

— Muita coisa de fato — concordou Elizabeth, com um suspiro.

— Jantamos nove vezes em Rosings e tomamos chá duas vezes lá. Quanta coisa terei para contar!

Elizabeth acrescentou consigo: e quanta coisa eu terei que esconder! A viagem decorreu sem muita conversação e sem nenhum incidente. Quatro horas depois de terem saído de Hunsford, chegaram à casa de Mr. Gardiner, onde deviam pas­sar alguns dias.

Jane tinha boa aparência e, entre os vários divertimentos que a tia tivera a bondade de organizar para as meninas, Eliza­beth teve pouca oportunidade de observar as disposições da irmã. Mas Jane devia regressar com ela, e em Longbourn teria oportunidade de observá-la detidamente. Não foi sem esforço, entretanto, que esperou até Longbourn para contar à irmã as propostas de Mr. Darcy. Sabia que estava em seu poder fazer uma revelação que assombraria Jane e viria agradar ao mesmo tempo o que lhe restava de vaidade. Era uma tentação a que nada se poderia opor senão o estado de indecisão em que se encontrava sob a quantidade exata de fatos que deveria revelar e o medo de ter que repetir certas coisas a respeito de Bingley que poderiam ferir Jane ainda mais.

 

Foi na segunda semana de maio que as três moças parti­ram juntas de Gracechurch Street para a cidade de... , no Hert­fordshire. E, ao se aproximarem do lugar em que a carruagem de Mr. Bennet as devia encontrar, avistaram, como garantia da pontualidade do cocheiro, Kitty e Lydia numa das janelas de cima de uma hospedaria. Havia uma hora as duas meninas espe­ravam naquele lugar, fazendo visitas freqüentes a uma modista em frente, para passar o tempo, observando a sentinela de plan­tão e preparando um molho para a salada.

Depois de dar as boas-vindas às irmãs, exibiram uma mesa posta com as várias espécies de carnes frias que tinham conse­guido encontrar no guarda-comida da hospedaria.

— Então, que tal, não está bem, não é uma surpresa agradável?

— E nós convidamos vocês todas — acrescentou Lydia. — Mas é preciso que nos emprestem dinheiro, pois gastamos tudo naquela loja ali defronte.

Em seguida, mostrando as compras que tinha feito, disse:

— Olhe, comprei este chapéu. Não acho que seja muito bonito, mas achei que era melhor comprar do que não comprar. Vou desmanchá-lo assim que chegar em casa e ver se posso fazer uma coisa melhor.

E quando as irmãs disseram que era muito feio, acrescen­tou, com perfeita indiferença:

— Oh, mas havia dois ou três ainda mais feios na loja. E depois que eu comprar um bonito cetim para enfeitá-lo, vai ficar tolerável. Além disso, não tem muita importância a roupa que a gente usar este verão, pois o regimento vai sair de Mery­ton daqui a quinze dias.

— Ah, vai? — exclamou Elizabeth, com a maior des­preocupação.

— Eles vão acampar perto de Brighton. Eu queria tanto que papai nos levasse até lá para passar o verão... Seria um ótimo plano. Creio que não custaria nada e mamãe, principal­mente, ficaria encantada de ir. Pense só que verão miserável nós teríamos se ficássemos aqui.

"Sim", pensou Elizabeth, "isto seria realmente um projeto estupendo. Imagine estas meninas lá em Brighton, com o acam­pamento cheio de soldados. Elas que já ficaram de cabeça virada com um pobre regimento de milícia e um baile mensal em Meryton."

— Agora tenho outras novidades para você — disse Lydia ao se sentar à mesa. Imagine só: é uma notícia excelente. E é sobre uma pessoa de que todos gostamos muito.

Jane e Elizabeth olharam uma para a outra. O garçom foi informado de que podia ir embora. Lydia pôs-se a rir e disse:

— É engraçada esta sua formalidade e discrição. Você achou que o garçom não devia ouvir, como se ele se importasse com isto. Ele deve ter ouvido coisas muito piores do que o que eu vou dizer; mas é um sujeito tão feio, foi bom mesmo ter ido embora. Nunca vi um queixo tão comprido na minha vida. Bem, agora passemos às novidades. São acerca do nosso caro Wickham. Bom demais para o garçom, não é? Não há perigo de Wickham se casar com Mary King. Ela foi morar com um tio em Liverpool, definitivamente. Wickham está salvo.

— Mary King está salva — acrescentou Elizabeth. — Salva de um casamento imprudente pelo lado pecuniário.

— Ela é uma grande tola de partir, se gosta dele.

— Mas espero que não haja uma paixão muito forte de ambos os lados — disse Jane.

— Estou certa de que não há do lado dele. Garanto que ele nunca se importou com ela. Quem pode se interessar por uma bobinha daquelas? Além disso tem o rosto cheio de sardas.

Elizabeth pensou, com uma certa amargura, que embora fosse incapaz de se exprimir com tanta brutalidade, aqueles sentimentos não eram menos grosseiros do que os que ela mes­ma tinha abrigado anteriormente no coração e que ainda por cima pensara fossem generosos.

Depois que todas tinham comido, as mais velhas pagaram a despesa e as meninas mandaram chamar a carruagem; insta­ladas todas as malas, caixas e embrulhos, além dos objetos que Kitty e Lydia tinham comprado, todas tomaram os respectivos assentos.

— Como vamos apertadas! — gritou Lydia. — Estou contente de ter comprado o meu chapéu. Só pelo prazer de ter ainda mais uma caixa. Bem, agora vamos ficar à vontade, con­versar e rir até chegar em casa. Em primeiro lugar, contem tudo o que aconteceu a vocês desde que saíram de casa. Conhe­ceram rapazes agradáveis? Arranjaram algum namorado? Eu tinha esperanças de que uma de vocês arranjasse um marido. Jane daqui a pouco vai ficar solteirona. Ela tem quase vinte e três anos! Eu ficaria envergonhadíssima se não me casasse antes disto! Minha tia Philips quer que você arranje um marido, você nem imagina! Ela disse que Lizzy devia ter aceito Mr. Collins. Mas acho que isto não teria graça nenhuma. Bem que eu gosta­ria de me casar antes de vocês. Eu serviria de pau de cabeleira para vocês em todos os bailes. Nós nos divertimos tanto, no outro dia, em casa do Coronel Forster... Kitty e eu fomos passar o dia lá. Entre parênteses, Mrs. Forster e eu somos amicíssimas. Então ela convidou as duas Harrington, mas Harriet estava doente, e portanto Pen foi obrigada a vir sozinha. Sabem o que nós fizemos? Vestimos o Chamberlayne com roupas de mulher. Foi engraçadíssimo. Ninguém sabia, só o coronel, Mrs. Forster, eu e também minha tia, pois fomos obrigadas a pedir emprestado um vestido dela. E você não imagina como ele ficou bem! Quando Denny, Wickham, Prett e dois ou três mais chegaram, nenhum deles o reconheceu. Eu morria de tanto rir. Mr. Forster também. Rimos tanto que eles ficaram des­confiados e descobriram então do que é que se tratava.

Com histórias deste gênero e diversas anedotas, Lydia pro­curou, auxiliada pelas sugestões de Kitty, distrair as companhei­ras durante todo o caminho até Longbourn. Elizabeth ouviu o menos que pôde. Mas a sua atenção era despertada pelas fre­qüentes alusões ao nome de Wickham.

A recepção em casa foi das mais afetuosas. Mrs. Bennet fi­cou satisfeita de ver Jane bonita como sempre. E mais de uma vez durante o jantar, Mr. Bennet disse espontaneamente para Elizabeth:

— Estou contente com que você tenha voltado, Lizzy.

O grupo que se sentou para jantar era grande, pois quase todos os Lucas tinham vindo para rever Maria e ouvir as novi­dades. Vários foram os assuntos que os ocuparam. Lady Lucas atirava perguntas a Maria, que estava do outro lado da mesa, acerca da prosperidade e das aves domésticas da filha mais velha. Mrs. Bennet estava duplamente ocupada. De um lado indagava quais eram as novidades da moda e de outro repetia essas informações para as filhas mais moças dos Lucas; e Lydia, numa voz mais alta do que a de qualquer outra pessoa, enumerava os vários acontecimentos da manhã para todos os que os dese­jassem ouvir.

— Oh, Mary — disse ela —, eu queria que você tivesse vindo conosco, pois nos divertimos imensamente. Durante o caminho Kitty e eu fechamos todas as cortinas do carro e fingi­mos que não ia ninguém lá dentro. Teríamos continuado assim até chegar, mas Kitty ficou enjoada. E quando chegamos à hospedaria, acho que nos comportamos muito bem, pois regala­mos as outras três com o melhor almoço frio do mundo, e se você tivesse ido também teríamos convidado você. E depois, na volta, também foi muito divertido. Eu pensei que nunca iríamos caber naquele carro. Quase morri de tanto rir. Falamos e rimos tão alto que qualquer pessoa nos ouviria a dez milhas de distância.

Mary replicou, gravemente:

— Longe de mim depreciar tais prazeres, minha cara irmã; são os que melhor se enquadram geralmente aos tempe­ramentos femininos. Mas confesso que não têm encantos para mim. Prefiro infinitamente um bom livro.

Lydia não ouviu nem uma só palavra desta resposta. Não dava atenção a ninguém durante mais de meio minuto. E nunca ouvia o que Mary dizia.

De tarde Lydia insistiu com o resto das meninas que fos­sem todas a Meryton saber das novidades; mas Elizabeth se opôs firmemente a esse plano. Não se deveria dizer que as senhoritas Bennet não podiam ficar um dia em casa sem ir correndo atrás dos oficiais. Havia também outro motivo para esta oposição. Ser-lhe-ia extremamente penoso encontrar-se com Wickham, e estava resolvida a evitá-lo o mais que pudesse. A próxima partida do regimento era um imenso consolo para ela. Daí a quinze dias partiriam os oficiais e ela esperava ficar livre deles para sempre.

Poucas horas depois de chegar em casa, Elizabeth desco­briu que o plano de Brighton a que Lydia aludira na hospedaria estava freqüentemente em discussão entre os seus pais. Viu imediatamente que o pai não tinha a menor intenção de ceder. Mas as suas respostas eram ao mesmo tempo tão vagas e equí­vocas que a mãe, embora muitas vezes desanimada, ainda não tinha desesperado de triunfar afinal.

 

Elizabeth não conseguiu refrear por mais tempo a impa­ciência em que estava para contar a Jane o que tinha acontecido. E afinal, resolvendo omitir todos os detalhes que dissessem respeito à irmã, e prevenindo-a de que ia ficar surpresa, contou-lhe na manhã seguinte a maior parte da cena que se tinha pas­sado entre Mr. Darcy e ela.

A surpresa de Miss Bennet a princípio foi grande, mas aos poucos começou a achar natural o que tinha acontecido, pois julgava que todos deviam compartilhar a admiração que sentia por Elizabeth. Era realmente lamentável que Mr. Darcy tivesse manifestado os seus sentimentos de uma forma que os recomen­dava tão pouco. Mas o que mais a entristeceu foi o desgosto que a recusa de sua irmã devia lhe ter causado.

— A certeza que ele tinha do êxito era falsa — disse Jane. — E sobretudo não devia ter transparecido. Mas não se esqueça de que isto torna ainda mais cruel o seu desapon­tamento.

— Realmente — disse Elizabeth —, eu sinto muito por ele. Mas Mr. Darcy tem outros sentimentos que provavelmente expulsarão dentro de muito pouco tempo a admiração que tem por mim. Mas você não me censura por tê-lo recusado?

— Censurar você? Oh, não...

— Mas me censura por ter tomado tão a peito o partido de Wickham?

— Não, não sei o que haveria de errado no que você disse.

— Mas você saberá, depois que lhe contar o que aconteceu no dia seguinte.

Elizabeth falou então na carta, repetindo tudo o que ela continha, na parte que se referia a George Wickham. Foi um grande choque para a pobre Jane, que de bom grado passaria pelo mundo sem saber que existia nele todo tanta maldade como a que se concentrava aqui num só indivíduo. Nem mesmo a justificação de Darcy, grata aos seus sentimentos, era suficien­te para a consolar de uma tal descoberta. Com a maior serie­dade, Jane procurou provar que havia uma possibilidade de erro, tentando inocentar um deles sem acusar o outro.

— Isto não pode ser, cara Jane; você nunca conseguirá fazer com que ambos tenham razão. Faça a sua escolha, mas é preciso que se contente com um deles. As qualidades dos dois reunidas chegam apenas para fazer um homem bom. Ultima­mente as situações se têm invertido várias vezes. Quanto a mim estou inclinada a acreditar em Mr. Darcy, mas você pode esco­lher o que quiser.

Passou-se algum tempo, entretanto, antes que um sorriso aparecesse no rosto de Jane.

— Não me lembro jamais de ter sofrido um desaponta­mento tão grande — disse ela. — Wickham é tão ruim assim! É quase inacreditável! E coitado de Mr. Darcy... Pense, Lizzy, em tudo o que ele deve ter sofrido. Que decepção! E ele ficou sabendo o que você pensa dele... E ter de contar uma coisa daquelas da própria irmã! É realmente muito triste. Creio que você deve sentir a mesma coisa.

— Oh, não, minha compaixão e meu arrependimento se dissipam quando vejo você toda cheia dos mesmos sentimentos! Tenho tanta certeza de que você lhe fará toda a justiça, que cada vez me sinto mais despreocupada e indiferente. A sua ge­nerosidade dispensa a minha. E se você continuar a lamentá-lo muito mais tempo, meu coração ficará tão leve como uma pena.

— Pobre Wickham! O rosto dele exprime tanta bon­dade... Suas maneiras são tão francas e amáveis...

—- Houve certamente um grande erro na educação desses dois rapazes. Um tem todas as qualidades e outro todas as boas aparências.

— Eu nunca achei que as aparências de Mr. Darcy eram tão más assim.

— E no entanto, ao tomar partido tão violentamente con­tra ele, sem nenhuma razão, eu me vangloriava da minha agudeza. Uma antipatia tão forte como a que eu tinha por ele é um grande incentivo para a inteligência e para a ironia. A gente pode falar mal de um homem continuamente, sem nada expri­mir de justo, mas não se pode rir a vida inteira de alguém, sem de vez em quando se esbarrar numa coisa espirituosa.

— Lizzy, estou certa de que quando leu a carta pela pri­meira vez não encarava as coisas do mesmo modo.

— Realmente, eu não podia. Estava muito perturbada. Posso dizer até infeliz. E depois eu não tinha ninguém com quem falar, não tinha Jane para me consolar, assegurando-me que eu não tinha sido tão fraca e leviana quanto eu sabia que realmente fora. Oh, como eu desejava que você estivesse junto de mim.

— Foi pena que você tenha usado de expressões tão fortes falando de Wickham para Mr. Darcy. Pois agora vê-se clara­mente que foram imerecidas.

— Certamente. Mas a infelicidade de falar amarguradamente é uma conseqüência natural da parcialidade de que me tinha tornado culpada. Há um ponto sobre o qual eu quero o seu conselho. Quero saber se devo ou não revelar aos nossos conhecidos qual é o caráter real de Wickham.

Miss Bennet fez uma pequena pausa e depois respondeu:

— Acho que não há motivo para uma tão terrível denún­cia. Que pensa você?

— Acho que isto não deve ser feito. Mr. Darcy não me autorizou a tornar públicas as suas declarações; pelo contrário, recomendou-me que guardasse exclusivamente para mim todos os detalhes relativos à sua irmã. E se eu não mencionar este fato central, quem me acreditará? A má vontade geral contra Mr. Darcy é tão violenta que metade dos habitantes de Mery­ton morreria se eu tentasse colocá-lo sob uma luz mais favorá­vel. Não tenho forças para isto. Wickham dentro em pouco partirá. E, portanto, pouco importa que ninguém aqui saiba o que ele é realmente. Algum dia será descoberto, e então pode­remos rir da estupidez dos outros por não terem adivinhado há mais tempo. No momento não direi nada.

— Tem toda a razão. Se denunciarmos publicamente os seus erros, podemos arruinar a sua vida para sempre. Talvez ele esteja arrependido do que fez e ansioso por refazer a repu­tação. Não devemos fazê-lo desesperar.

Esta conversação ajudou Elizabeth a pôr em ordem os seus tumultuosos pensamentos. Ela se tinha libertado de dois segre­dos que lhe haviam pesado durante quinze dias. Tinha a certeza de que Jane tornaria a ouvi-la com a mesma boa vontade, quan­do desejasse falar novamente. Mas ainda havia outra coisa que se escondia na sombra e que a prudência de Elizabeth impedia de desvendar. Não ousava relatar a Jane a outra metade da carta de Mr. Darcy, nem lhe revelar que Bingley correspondera sinceramente ao seu afeto. Aí estava um segredo que ninguém podia compartilhar. E ela compreendia que só o restabelecimen­to da mais perfeita compreensão entre eles poderia desobrigá-la desse silêncio. E refletiu que, se este acontecimento tão pouco provável tivesse lugar, tudo o que poderia fazer era repetir o que o próprio Bingley diria de uma forma muito mais agradável. "Só ficarei livre desse segredo", pensou Elizabeth, "quando ele tiver perdido todo o valor."

Agora, instalada em casa, tinha toda a oportunidade de observar o estado real dos sentimentos de sua irmã. Jane não estava feliz. Conservava muito viva a afeição por Bingley. Como nunca anteriormente ela se imaginara apaixonada, esses senti­mentos tinham todo o calor e toda a frescura do primeiro amor, e, devido ao seu caráter e idade, maior firmeza do que essas primeiras paixões em geral possuem. Cultuava com tanto fervor a lembrança de Bingley e de tal modo o preferia a qualquer outro homem, que precisava lançar mão de todo o seu bom senso e de toda a sua consideração pelos sentimentos alheios para dominar aquelas tristezas que poderiam se tornar preju­diciais para a sua própria saúde e para a tranqüilidade dos seus amigos.

— Bem — disse Mrs. Bennet um dia para Elizabeth —, que é que você pensa agora desse insucesso de Jane? Quanto a mim, estou decidida a não falar mais nisto com ninguém. Foi o que disse à minha irmã Philips no outro dia. Mas não consigo saber se Jane se avistou com ele em Londres. Bem, ele é um rapaz muito pouco merecedor. E não creio que haja a menor probabilidade para Jane de reavê-lo. Nada se fala a respeito da sua volta a Netherfield no verão. Eu já indaguei de todas as pessoas que poderiam saber.

— Eu creio mesmo que ele nunca mais virá a Netherfield.

— Ah, bem, ele fará o que quiser. Ninguém deseja que ele volte. Mas eu continuaria a dizer que ele foi muito desleal para com a minha filha. E se eu fosse ela não teria suportado isto; mas o meu consolo é que Jane morrerá de desgosto. E ele então se arrependerá do que fez.

Mas, como Elizabeth não via nenhum consolo neste prog­nóstico, nada respondeu.

— Bem, Lizzy — continuou a mãe, pouco depois. — Os Collins vivem lá muito confortavelmente, não é? Bem, bem, só desejo que isto dure. E como é a mesa deles? Charlotte é uma excelente dona-de-casa. Se é tão econômica quanto a mãe, deve estar pondo dinheiro de lado. Não há extravagância nenhuma na casa dos pais dela.

— Não, nenhuma.

— A boa administração de uma casa depende principal­mente disto. Sim, sim, aqueles não correm o risco de gastar mais do que têm. Nunca terão atrapalhações de dinheiro. Bem, que sejam felizes. E naturalmente eles fazem muitos planos a respeito de Longbourn depois que o seu pai morrer, não? Já consideram isto naturalmente como uma propriedade sua.

— Foi um assunto que nunca mencionaram na minha frente.

— Mas também era só o que faltava. Mas não tenho a menor dúvida de que falam nisto constantemente entre si. Bem, se a consciência não lhes rói, tanto melhor para eles. Eu teria vergonha de herdar uma propriedade que não fosse minha, le­galmente.

 

Tinha passado a primeira semana depois do regresso das meninas. A segunda começou. Chegara o dia da partida do re­gimento de Meryton. E todas as moças da redondeza definha­vam de desgosto. A tristeza era geral. Apenas as duas mais ve­lhas da família Bennet conseguiam ainda comer, beber, dormir e passar o tempo como de costume. Freqüentemente recebiam admoestações de Kitty e Lydia por causa daquela insensibili­dade. O desgosto daquelas duas era extremo. Elas não podiam compreender tamanha dureza de coração.

— Que é que nós vamos fazer? — exclamavam elas fre­qüentemente, impelidas pela sua amargura. — Como é que você pode se mostrar tão sorridente, Lizzy?

Mrs. Bennet, que era uma mãe afetuosa, compartilhava a tristeza das filhas. Recordava-se do que tinha sofrido há vinte e cinco anos passados.

— Eu me lembro — disse ela; — chorei durante dois dias seguidos quando o regimento do Coronel Miller foi embo­ra. Pensei que ia morrer de desgosto.

— Estou certa de que isto acontecerá comigo — disse Lydia.

— Se a gente pudesse ir a Brighton! — observou Mrs. Bennet.

— Oh, sim, se a gente pudesse ir a Brighton... Mas pa­pai é tão desagradável!

— Alguns banhos de mar me restabeleceriam para sempre.

— E minha tia Philips disse que isto haveria de me fazer muito bem — acrescentou Kitty.

Tais eram as lamentações que se ouviam perpetuamente em Longbourn. Elizabeth procurava se distrair com aquilo. Mas a sua vergonha lhe roubava todo o prazer. Tornava a sentir o bem fundado das objeções de Mr. Darcy. E nunca antes estivera tão disposta a perdoar-lhe a interferência, no caso do amigo.

Mas as sombrias perspectivas de Lydia foram logo dissi­padas, pois Mrs. Forster, a mulher do coronel do regimento, a convidou para ir a Brighton em sua companhia. Essa inestimá­vel amiga era muito moça e estava casada há muito pouco tem­po. Era alegre e animada como Lydia. E essa semelhança as tor­nara muito íntimas depois de três meses de relações.

O êxtase de Lydia, a sua adoração por Mrs. Forster, a alegria de Mrs. Bennet e a mortificação de Kitty, são impossí­veis de descrever. Inteiramente indiferente aos sentimentos da irmã, Lydia corria pela casa, numa felicidade inextinguível, exi­gindo que todos lhe dessem parabéns, rindo e falando com mais violência do que nunca; enquanto isto, a infeliz Kitty perma­necia na sala, lamentando o seu destino em termos despropo­sitados, numa voz ressentida:

— Não compreendo por que Mrs. Forster não me convi­dou também — disse ela. — Embora eu não seja a sua amiga particular, tenho tanto direito a ser convidada quanto Lydia. Mais até, pois sou dois anos mais velha.

Elizabeth procurou em vão lhe incutir sentimentos mais sensatos e Jane maior resignação. Quanto a Elizabeth, esse con­vite estava longe de lhe produzir os mesmos sentimentos que em sua mãe e em Lydia, pois ela o considerava como uma es­pécie de sentença de morte para todas as possibilidades de sua irmã vir um dia a ter bom senso. E não pôde deixar de acon­selhar secretamente ao pai que não deixasse Lydia ir, apesar da repugnância que lhe inspirava tal empreendimento. Descreveu-lhe todas as impropriedades da conduta de Lydia e as poucas vantagens que lhe poderiam advir da intimidade com uma mu­lher como Mrs. Forster, e a probabilidade de que Lydia se tor­nasse ainda mais imprudente em companhia de tal pessoa e num lugar onde as tentações seriam maiores do que em casa. Ele a ouviu atentamente, e respondeu:

— Lydia nunca ficará tranqüila enquanto não lhe aconte­cer alguma. E nunca encontrará melhor ocasião de fazer uma tolice do que a atual, sem dar despesas e trabalho à família.

— Se o senhor soubesse — disse Elizabeth — dos gran­des inconvenientes que esta conduta leviana de Lydia, em pú­blico, pode nos trazer, ou melhor, as que já nos trouxe, encara­ria esta questão de maneira diferente.

— Já trouxe? — repetiu Mr. Bennet. — Será que ela já afugentou um dos seus namorados? Minha pobre Lizzy... Mas não fique desanimada. Estes rapazes difíceis que não su­portam o contato de pequenos ridículos não são dignos de saudade. Vamos, de-me a lista dos pobres coitados que foram pos­tos em fuga pelas loucuras de Lydia.

— Realmente, o senhor está enganado. Não tenho des­gostos destes a lamentar. Não é de dissabores particulares mas de inconvenientes que eu me queixo. A nossa reputação deve sofrer necessariamente com a leviandade de Lydia, a impru­dência e o desdém de toda restrição que marcam o seu caráter. Desculpe, mas preciso falar claramente. Se o senhor não se der ao trabalho de reprimir essas loucuras e não lhe ensinar que as suas atuais ocupações não são a finalidade da sua vida, em bre­ve não haverá mais possibilidade de corrigi-la. Seu caráter es­tará fixado e com dezesseis anos ela será uma terrível namoradeira, cobrindo a si mesma e a sua família de ridículo. E uma namoradeira no pior sentido, sem outros atrativos a não ser a mocidade e a boa aparência. A sua ignorância e futilidade a tor­narão incapaz de vencer o desprezo geral que o seu apetite imoderado de admiração há de provocar. E Kitty também corre o mesmo perigo. Ela acompanhará de olhos fechados os passos de Lydia. Vaidosa, ignorante, ociosa, e absolutamente descontro­lada! Oh, meu caro pai, acha possível que elas não sejam cen­suradas e desprezadas em qualquer lugar em que se tornem co­nhecidas? E que as suas irmãs não sejam freqüentemente en­volvidas nesse mesmo desprezo?

Mr. Bennet viu que todo o coração da filha estava compro­metido no assunto. E, tomando-lhe afetuosamente a mão, res­pondeu:

— Não se preocupe, meu bem. Onde quer que você e Ja­ne sejam conhecidas, serão respeitadas e apreciadas. E vocês não serão menos admiradas porque têm duas, ou melhor, três irmãs bastante tolas. Não teremos um instante de sossego em Longbourn se Lydia não for a Brighton. Portanto, deixe-a ir. O Coronel Forster é um homem sensato e tomará precauções para que nada de mal lhe aconteça. E felizmente ela é pobre demais para ser objeto de grandes cobiças. Em Brighton ela terá menos importância, mesmo como namoradeira vulgar, do que aqui. Os oficiais encontrarão moças mais dignas de aten­ção. Esperemos portanto que a sua estada lá lhe mostre a sua insignificância. E de qualquer forma ela não pode piorar muito de conduta, sem nos autorizar a trancá-la em casa para o resto da vida.

Elizabeth foi obrigada a se contentar com esta resposta. Mas a sua opinião continuou inalterada, e ela deixou o pai de­sapontada e triste. Não estava na sua natureza, no entanto, remoer os desgostos, tornando-os assim ainda maiores. Bastava-lhe o consolo de ter feito o seu dever. E inquietar-se com males inevitáveis, ou aumentá-los pela ansiedade, eram coisas que não combinavam com o seu feitio.

Se Lydia e a mãe tivessem sabido o assunto da conversa que Elizabeth tivera com Mr. Bennet, toda a sua volubilidade somada não teria sido suficiente para exprimir a indignação que as possuiria. Na imaginação de Lydia, uma visita a Brighton compreendia todas as possibilidades de felicidade terrena. Ela via, com o olhar criador da ficção, as ruas daquela alegre cida­de balneária, repletas de oficiais. Imaginava-se o centro de aten­ção de dezenas e centenas deles. Via todos os esplendores do campo militar, as barracas estendendo-se em belas filas regulares, povoadas de jovens alegres, resplandecentes nas suas túni­cas vermelhas; para completar a cena via-se a si mesma sentada sob uma dessas barracas, namorando pelo menos seis oficiais ao mesmo tempo.

Se ela tivesse sabido que a irmã procurava arrancá-la de tais possibilidades e de tais realidades, qual não teria sido a sua indignação? Ela só poderia ter sido compreendida pela mãe, cujos sentimentos seriam aproximadamente os mesmos. A ida de Lydia para Brighton era a única coisa que a consolava da cer­teza melancólica de que seu marido não tencionava também ir.

Mas elas ignoravam tudo o que se tinha passado. E seus êxtases continuaram com pequenos intervalos, até o dia da par­tida de Lydia.

Elizabeth veria então Mr. Wickham pela última vez. Ten­do-o encontrado freqüentemente em sociedade desde a sua volta, a sua agitação já se tinha acalmado. As emoções da sua antiga preferência, estas se tinham desvanecido de todo. Ela conseguira mesmo distinguir uma certa afetação e monotonia nas próprias gentilezas que a princípio a tinham deliciado. Além disso, na conduta atual de Wickham para com ela, Elizabeth encontrava uma nova fonte de desprazer, pois a inclinação que ele manifestou para renovar aquelas atenções, que tinham ca­racterizado os primeiros tempos das suas relações, agora ser­viam apenas para irritá-la ainda mais. Perdeu todo o respeito por ele, vendo-se assim escolhida como objeto de tão fúteis galanteios. E, enquanto os repelia com firmeza, não podia deixar de sentir a censura implícita na convicção de Wickham de que quaisquer que tivessem sido as causas que tinham feito cessar as suas atenções, e por maior que tivesse sido o período de tempo em que o fizera, a vaidade de Elizabeth seria gratificada e a sua preferência reconquistada no momento em que quisesse renovar as suas gentilezas.

No último dia em que o regimento passou em Meryton. Wickham veio jantar em Longbourn com outros oficiais. Eliza­beth estava tão pouco disposta a se despedir dele de bom hu­mor que, quando Wickham lhe fez algumas perguntas sobre a maneira como passara o tempo em Hunsford, ela respondeu que o Coronel Fitzwilliam e Mr. Darcy tinham passado três sema­nas em Rosings e perguntou-lhe se ele conhecia o primeiro.

Ele pareceu surpreendido, aborrecido, alarmado. Mas, de­pois de se concentrar um instante, respondeu sorrindo que outrora estivera freqüentemente com ele. E depois de observar que ele era um cavalheiro muito fino, perguntou se Elizabeth tinha gostado dele. A resposta de Elizabeth foi calorosamente afirmativa. Com ar de indiferença, pouco depois ele acrescentou:

— Quanto tempo disse que eles tinham passado em Ro­sings?

— Quase três semanas.

— Esteve com ele freqüentemente?

— Sim, quase todos os dias!

— As maneiras dele são bem diferentes das do primo.

— Sim, muito diferentes. Mas acho que Mr. Darcy ganha muito quando o conhecemos melhor.

— Realmente — exclamou Wickham, com um olhar que não escapou a Elizabeth. — E posso perguntar...

Porém, mudando de idéia, acrescentou, num tom mais alegre:

— Será na sua maneira de falar que ele melhora? Ter-se-ia dignado a acrescentar um pouco de cortesia ao seu estilo habi­tual? Pois não ouso esperar que ele tenha realmente melhorado nas coisas essenciais — continuou Wickham, num tom mais grave.

— Oh, não — disse Elizabeth —, quanto às coisas essen­ciais, creio que ele continua exatamente o que era.

Enquanto ela falava, a expressão de Wickham indicava que ele não sabia se se devia alegrar com as suas palavras ou desconfiar do sentido das mesmas. Havia qualquer coisa no rosto de Elizabeth que o obrigava a seguir com atenção ansiosa as suas palavras. Ela acrescentou:

— Quando eu disse que ele melhorava, à medida que se conhecia melhor o seu temperamento, não queria dizer que seu espírito, nem tampouco as suas maneiras, estavam em vias de aperfeiçoamento, mas que conhecendo-o melhor o seu caráter se tornava mais compreensível.

A inquietude de Wickham transparecia agora no rubor que lhe subira ao rosto e no olhar desassossegado. Durante alguns minutos ficou em silêncio e finalmente, vencendo o embaraço, tornou a se virar para Elizabeth e disse, num tom muito grave:

— A senhora, que conhece tão bem os meus sentimentos para com Mr. Darcy, há de compreender quanto me alegro sin­ceramente de que ele assuma, pelo menos, a aparência de jus­tiça. Nisso o orgulho dele pode ser útil, se não para ele próprio, pelo menos para os outros, pois o impedirá de cometer injusti­ças tão flagrantes como as que tive de sofrer. Temo apenas que essas precauções, às quais, imagino, a senhora acaba de aludir, sejam apenas adotadas durante as visitas em casa da tia, cuja opinião e julgamento ele respeita muito. O medo que a tia lhe causa sempre atuou sobre ele, quando estão juntos; e uma grande parte disto deve ser atribuída ao desejo que tem de favorecer o seu projetado casamento com Miss de Bourgh, pois sei com certeza que ele leva isto muito a sério.

Elizabeth não pôde deixar de sorrir, mas respondeu ape­nas com um ligeiro aceno de cabeça. Compreendeu que ele de­sejava arrastá-la para o assunto das suas mágoas e não estava disposta a tolerá-lo. Durante o resto da noite, Wickham pro­curou se mostrar alegre e despreocupado como sempre, porém cessou as suas atenções para com Elizabeth. Separaram-se com mútua cortesia e possivelmente um desejo igual de nunca mais se encontrarem.

Quando chegou a hora de as visitas se retirarem, Lydia regressou com Mrs. Forster para Meryton, de onde deveriam partir no dia seguinte de manhã cedo. A separação entre ela e o resto da família foi mais ruidosa do que patética. Kitty foi a única que chorou, mas as lágrimas eram de humilhação e inveja. Mrs. Bennet foi eloqüente nos desejos de felicidade para a filha, e nas injunções para que ela não perdesse nenhuma oportunidade de se divertir, conselho que tudo levava a crer seria seguido à risca. E, no meio dos clamores com que Lydia exprimia a sua felicidade, os adeuses menos ruidosos das irmãs quase não foram ouvidos.

 

Se as opiniões de Elizabeth se originassem do exemplo da­do pela sua própria família, a sua idéia de felicidade conjugai e de conforto doméstico não poderia ser das mais lisonjeiras. Seu pai, cativado pela mocidade, beleza e aparência de bom humor que a juventude em geral confere às mulheres, tinha se casado com uma pessoa de débil compreensão e de idéias estreitas; muito pouco tempo depois do casamento, esses defeitos haviam extinto toda a afeição sincera que tinha por ela. O respeito, a estima, a confiança se tinham desvanecido para sempre. E to­dos os seus anseios de felicidade doméstica foram destruídos. Mas Mr. Bennet não era desses homens que procuram se conso­lar das desilusões causadas pelas próprias imprevidências entre­gando-se a esses prazeres em que os infelizes procuram uma compensação para as suas loucuras e os seus vícios. Gostava do campo e dos livros; disso tirava as suas principais distrações; e, quanto à sua mulher, ele pouco mais lhe devia do que os divertimentos que o espetáculo da sua ignorância e a sua falta de senso lhe tinham proporcionado. Essa não é a espécie de felicidade que os homens em geral desejam encontrar no casa­mento. Mas, na falta de outros dons, o verdadeiro filósofo se contentará com os poucos que lhe são dados.

Elizabeth, no entanto, nunca fora cega aos defeitos do pai como marido. Aquilo sempre lhe doera, mas, admirando-lhe as qualidades e grata pela maneira afetuosa com que ele a tratava, ela se esforçava por esquecer o que não podia deixar de perceber e bania dos seus pensamentos essas contínuas irregu­laridades de conduta conjugai que, expondo a mãe ao desprezo das próprias filhas, era portanto altamente repreensível. Mas nunca sentira tão fortemente como agora as desvantagens que devem sofrer os filhos de um casal tão pouco unido, nem com­preendera antes tão claramente os males provenientes de uma defeituosa aplicação de talentos; talentos que, bem empregados, poderiam proteger a respeitabilidade das filhas, mesmo se não conseguissem alargar a mentalidade da esposa.

Após o alívio que lhe causara a partida de Wickham, Eli­zabeth encontrou menos prazer do que esperava na partida do regimento. As reuniões em que tomava parte eram menos va­riadas do que antes. E em casa tinha uma mãe e uma irmã cujas contínuas lamentações sobre o tédio da vida que levavam pro­jetavam uma tristeza real sobre o círculo da família. E, embora Kitty se mostrasse às vezes mais sensata, pois as causas que perturbavam o seu cérebro tinham sido removidas, em compen­sação, Lydia, cujas tendências eram mais perigosas, morando agora num lugar tão impróprio, a um tempo caserna e balneá­rio, acentuaria provavelmente os seus defeitos e a sua inconsciência. Em suma, portanto, ela descobriu, como anteriormente já muitas vezes acontecera, que os acontecimentos esperados com impaciência não produziam, ao se realizarem, toda a satis­fação que deles se esperava. Era portanto necessário marcar um outro período para o começo da sua verdadeira felicidade, ter outros pontos de apoio para os seus desejos e esperanças. E consolava-se atualmente com o prazer de antecipar futuras felicidades. A sua viagem para os lagos constituía agora o ob­jeto dos seus pensamentos mais felizes. Era o seu melhor con­solo para as horas desagradáveis que o descontentamento de Kitty e da mãe tornava inevitáveis. E para tornar o seu plano perfeito, só faltava incluir nele Jane.

"Felizmente eu tenho alguma coisa a desejar", pensou Eli­zabeth. "Se tudo no meu plano fosse perfeito, a minha decep­ção seria certa. Mas assim, levando comigo uma fonte contínua de tristeza, a saudade de minha irmã, posso razoavelmente es­perar que todas as minhas expectativas de prazer se realizem. Um plano perfeito nunca pode ser realizado."

Lydia, ao partir, prometeu que escreveria freqüente e mi­nuciosamente para a mãe e para Kitty. Mas as cartas, longa­mente esperadas, eram sempre muito curtas. As que eram diri­gidas a Mrs. Bennet continham pouco mais do que fatos como estes: tinham acabado de regressar da biblioteca, onde tais ou quais oficiais as haviam acompanhado e onde tinham visto toaletes de enlouquecer; tinham visto um vestido novo ou uma nova sombrinha que ela desejaria descrever com mais detalhes, mas não podia, devido à grande pressa que tinha, pois Mrs. Forster a estava chamando; deviam passear para os lados do acampamento. As cartas para Kitty não eram mais informativas, embora mais longas; a maior parte do sentido estava contido nas entrelinhas.

Depois das três primeiras semanas de ausência de Lydia, a saúde, o bom humor e a alegria recomeçaram a aparecer em Longbourn. Tudo tomou um aspecto mais agradável. As famí­lias que tinham ido passar o inverno em Londres começaram a regressar. Reiniciaram-se os divertimentos de verão. Mrs. Ben­net voltou à sua volubilidade habitual e, no meio de junho, Kitty havia melhorado tanto que já lhe era possível entrar em Meryton sem chorar, acontecimento tão promissor que deu a Elizabeth a esperança de que no próximo Natal ela tivesse juízo suficiente para não mencionar o nome de um oficial mais de uma vez por dia, a não ser que, por uma ordem maliciosa e cruel do Departamento de Guerra, outro regimento viesse acam­par em Meryton.

A data fixada para a sua viagem pelo norte estava se apro­ximando rapidamente. Faltavam apenas quinze dias quando che­gou uma carta de Mrs. Gardiner, que ao mesmo tempo adiava a partida e abreviava a duração do passeio. Os negócios impe­diam Mr. Gardiner de sair de Londres até quinze dias depois da data marcada. E ele era obrigado a regressar dentro de um mês. Esse período era curto demais para que fossem muito lon­ge e vissem tudo o que tinham planejado. Pelo menos impedia que visitassem tudo com o vagar e o conforto que haviam idea­do. Portanto eram obrigados a desistir de vez dos lagos. Era preciso fazer um circuito mais reduzido. De acordo com o novo plano, não iriam além do Derbyshire. Naquele condado havia muita coisa a ver e isto dava para encher as três semanas que tinham. E para Mrs. Gardiner esse plano possuía um encanto particular. Julgava a cidade onde passara alguns anos da sua vida tão digno de atenção quanto a célebre região dos lagos.

Elizabeth ficou extremamente desapontada. Tinha um grande desejo de ver os lagos e continuava a pensar que havia tempo suficiente. Mas era resignada e certamente tinha bom gênio. Em breve essa decepção tinha passado.

Muitas idéias estavam associadas a esse condado do Derby­shire. Era impossível ler a palavra sem pensar em Pemberley e no seu proprietário. "Mas certamente'', pensou ela, "eu pode­rei penetrar naquela região sem que ele me veja."

O período de expectativa fora agora duplicado. Ela teria de esperar quatro semanas até a chegada dos tios. Mas estas semanas passaram, e Mr. e Mrs. Gardiner apareceram finalmen­te em Longbourn, acompanhados dos quatro filhos. As crianças, duas meninas de seis e oito anos de idade e dois meninos me­nores, seriam entregues aos cuidados da prima Jane, que era a grande favorita. O seu bom senso, a doçura de seu gênio, pa­reciam destiná-la à missão de cuidar das crianças.

Os Gardiner ficaram apenas uma noite em Longbourn, e partiram na manhã seguinte com Elizabeth, em busca de aven­turas. Um prazer pelo menos era certo: o de ter bons compa­nheiros de viagem, com saúde, bom gênio para suportar peque­nos contratempos, bom humor para realçar todos os prazeres, afeição e inteligência capazes de sugerir novas distrações, caso lhes adviessem decepções no caminho.

Não temos a intenção de fazer a descrição do Derbyshire, nem dos vários lugares notáveis por que passaram no caminho. Oxford, Blenheim, Warwich, Kenilworth, Birmingham, etc. são suficientemente conhecidos. Uma pequena parte do Derbyshire é o que nos interessa. Eles se dirigiram para a pequena cidade de Lambton, onde Mrs. Gardiner residira. Recentemente desco­brira que ainda se encontravam lá alguns dos seus velhos conhe­cidos. E aí Elizabeth soube pela tia que Pemberley ficava situa­da a cinco milhas de Lambton. Pemberley não ficava na estrada direta que deviam tomar, mas a uma ou duas milhas dessa estra­da. Na véspera, ao conversarem sobre o itinerário, Mrs. Gardi­ner tornou a manifestar o desejo de rever a propriedade. Mr. Gardiner concordou e perguntaram a Elizabeth se ela aprovava a idéia.

— Meu bem, você não gostaria de ver esse lugar de que tanto já ouviu falar? — perguntou a tia. — Um lugar onde muitos conhecidos seus já moraram? Wickham passou lá toda a mocidade, como você sabe.

Elizabeth ficou embaraçada. Não tinha nenhum interesse em ver Pemberley e foi obrigada a manifestar a pouca disposi­ção que sentia. Declarou que estava cansada de ver grandes casas. Depois de percorrer tantas, não encontrava mais nenhum prazer em belos tapetes ou cortinas de cetim.

Mrs. Gardiner zombou da sua ingenuidade.

— Se Pemberley fosse apenas uma casa ricamente mobiliada — disse ela —, eu tampouco faria questão de ir. Mas o parque é lindíssimo, e os bosques são dos mais belos do país.

Elizabeth não respondeu, mas no seu espírito não podia concordar. Imediatamente lhe ocorreu a possibilidade de en­contrar Mr. Darcy enquanto visitava o lugar. Seria horrível. A simples idéia a fazia corar. Talvez fosse preferível contar tudo claramente à tia a correr tal risco. Mas contra isto havia obje­ções. E finalmente ela decidiu que lançaria mão dessa idéia co­mo um último recurso, caso as indagações particulares que fizesse lhe revelassem a presença da família em Pemberley.

Por isso, quando foi se deitar à noite, perguntou à criada se Pemberley não era um lugar muito bonito, qual era o nome do proprietário, e, com íntimo alarme, se a família não estava lá para passar o verão. Felizmente, a última pergunta foi res­pondida de modo negativo. E, cessada a causa das suas inquie­tações, ela sentia agora uma grande curiosidade em ver a casa. E quando o assunto tornou a ser ventilado no dia seguinte, e novamente lhe pediram a opinião, ela respondeu prontamente, com ar de indiferença, que não fazia nenhuma objeção ao plano.

 

No caminho, Elizabeth esperava emocionada a primeira aparição dos bosques de Pemberley. E quando afinal chegaram à casa do vigia e entraram no parque, a sua agitação cresceu ainda mais.

O parque era muito grande e tinha os mais variados as­pectos. Entraram nele pela parte mais baixa e durante algum tempo caminharam através de um belo e extenso bosque.

Apesar da conversa animada que mantinha com os tios, Elizabeth viu e admirou todas as vistas e lugares pitorescos. Durante meia milha o caminho subia suavemente e depois de algum tempo se encontraram no topo de um morro bastante alto, onde o bosque cessava.

No outro lado do parque se avistava imediatamente a casa de Pemberley, e a estrada, encurvando-se bruscamente, descia em direção a ela. Era um grande e belo edifício, situado na en­costa de uma colina, por detrás da qual se elevava uma outra série de belas colinas arborizadas. Defronte da casa, corria um riacho de tamanho regular que, represado, formava um peque­no lago. As suas margens não tinham sido adornadas pela mão do homem. Elizabeth ficou encantada. Nunca vira um lugar tão bem dotado pela natureza. Ali, essa beleza natural não fora ainda prejudicada por artifícios de gosto duvidoso. Todos mani­festaram admiração. Naquele momento Elizabeth sentiu que ser a proprietária de Pemberley significava alguma coisa.

Desceram a colina, atravessaram a ponte e se aproximaram da casa. Enquanto a examinavam de perto, voltaram a Elizabeth as apreensões quanto a um possível encontro com o dono da casa. Tinha medo de que a criada pudesse ter-se enganado. De­pois de pedirem para ver a casa, foram conduzidos ao hall. E, enquanto esperavam a caseira, Elizabeth teve tempo bastante para voltar a si, perguntando-se por que motivo se encontra­va naquele lugar. A caseira chegou afinal. Era uma senhora idosa, de aspecto respeitável, muito mais simples e amável do que esperavam. Acompanharam-na até a sala de jantar. Era uma sala grande, bem proporcionada e mobiliada com ele­gância. Elizabeth, depois de examiná-la sumariamente, foi até uma das janelas para apreciar a vista. A colina de onde tinham descido, com as suas grandes árvores, parecendo mais abrupta, era porém mais bela de longe. Tudo naquelas terras tinha sido bem aproveitado. Elizabeth contemplou a paisagem com encan­to, o rio, as árvores espalhadas pelas margens, o vale serpen­teando até onde a vista podia alcançar.

Dos outros quartos, a cena variava. Mas de todas as ja­nelas a vista era linda. Os quartos eram grandes e elegantes. E a mobília revelava a fortuna do proprietário; mas Elizabeth admirou o bom gosto dos móveis, que não eram nem vistosos demais, nem desnecessariamente complicados. Tinham menos esplendor e mais elegância do que os de Rosings.

"Eu poderia ter sido a dona deste lugar", pensou ela. "Es­tes quartos eu os conheceria intimamente. E, em vez de vê-los como uma estranha, eu poderia alegrar-me de possuí-los e re­ceber aqui, como visitantes, meu tio e minha tia." Mas voltan­do a si continuou: "Mas não, isto não poderia ser. Meu tio e minha tia estariam perdidos para mim. Jamais me permiti­riam convidá-los".

A lembrança foi oportuna. Evitava que Elizabeth se arre­pendesse do que tinha feito.

Estava ansiosa para perguntar à caseira se o seu patrão es­tava realmente ausente. Mas a coragem lhe faltava. Afinal, a pergunta foi feita pelo tio. Elizabeth desviou o rosto, assustada, enquanto Mrs. Reynolds respondia que ele estava ausente, acrescentando:

— Mas nós o esperamos amanhã com um grande grupo de amigos.

Elizabeth deu graças a Deus de ter vindo naquele dia e não no seguinte.

A tia a chamou para olhar um quadro. Ela se aproximou e viu sobre a lareira um retrato de Mr. Wickham entre várias outras miniaturas. Mrs. Gardiner perguntou, sorrindo, se Eli­zabeth gostava do retrato. Mrs. Reynolds se aproximou e disse que era o retrato do filho do intendente do seu falecido patrão, que o tinha educado às suas expensas.

— Ele agora entrou para o Exército — acrescentou ela. — Mas creio que não deu boa coisa.

Mrs. Gardiner olhou para a sobrinha com um sorriso que Elizabeth não pôde retribuir.

— E este — disse Mrs. Reynolds, apontando para outra miniatura — é o meu patrão. O retrato é muito parecido. Foi feito ao mesmo tempo que o outro, há oito anos atrás.

— Já ouvi dizer que o seu patrão é um belo rapaz — dis­se Mrs. Gardiner, olhando para o retrato. — O rosto é simpá­tico. Mas, Lizzy, você pode dizer se é parecido ou não.

O respeito de Mrs. Reynolds por Elizabeth pareceu aumen­tar depois desta alusão às suas relações com o patrão.

— A senhora conhece Mr. Darcy? Elizabeth corou e respondeu:

— Um pouco.

— E não acha que é uma bela figura de homem?

— Realmente.

— Estou certa de que não conheço outro que lhe seja superior. Mas na galeria lá em cima hão de ver um outro re­trato melhor e maior do que este. Esta sala era o lugar favori­to do meu falecido patrão, e essas miniaturas estão exatamente no lugar onde estavam quando ele era vivo. Ele gostava mui­to delas.

Isto explicou a Elizabeth o fato de a miniatura de Mr. Wickham se encontrar entre as outras.

Mrs. Reynolds, então, chamou a atenção dos visitantes para um retrato de Miss Darcy pintado quando ela tinha ape­nas oito anos de idade.

— E Miss Darcy também é bonita? — perguntou Mr. Gardiner.

— Oh, sim, é a menina mais bonita que eu jamais vi. É tão instruída! Toca piano e canta o dia inteiro. Na sala ao lado, há um novo instrumento que acaba de chegar para ela. Um pre­sente do meu patrão. Ela virá amanhã também.

Mr. Gardiner, que tinha maneiras muito agradáveis e comunicativas, encorajava Mrs. Reynolds com perguntas e obser­vações; esta, fosse por orgulho ou afeição, tinha evidentemente muito prazer em falar do patrão e da irmã deste.

— Seu patrão vem muitas vezes a Pemberley, durante o ano?

— Não tanto quanto eu gostaria, mas creio que ele passa metade do ano aqui. E Miss Darcy vem sempre para os me­ses de verão.

"Exceto", pensou Elizabeth, "quando vai para Ramsgate."

— Se o seu patrão se casasse, a senhora o veria mais do que agora.

— Sim, senhora, mas não sei quando isto acontecerá. Não conheço ninguém que esteja à altura dele.

Mr. e Mrs. Gardiner sorriram. Elizabeth não pôde se im­pedir de dizer:

— Sem dúvida, é um grande elogio que está lhe fazendo.

— Não digo mais do que a verdade. E todos que o co­nhecerem dirão a mesma coisa — replicou Mrs. Reynolds.

Elizabeth achou que isto era ir demasiado longe. E ouviu com assombro a caseira acrescentar:

— Nunca ouvi o meu patrão dizer uma palavra ríspida em toda a minha vida. E o conheço desde que tinha quatro anos de idade.

Este era o elogio mais extraordinário de todos, mais oposto às idéias de Elizabeth. Ela acreditava firmemente que Mr. Dar­cy era um homem de mau gênio. A sua curiosidade cresceu ex­traordinariamente. Queria outras informações. E ficou grata ao tio, porque este disse:

— São poucas as pessoas de quem se pode dizer a mesma coisa. Tem muita sorte em ter um patrão destes.

— Sim, senhor, sei disto muito bem. Se eu saísse por este mundo, não encontraria outro melhor. Mas já notei que as pes­soas de bom caráter em criança também o são quando adultos. E Mr. Darcy, em menino, tinha um gênio de anjo e um cora­ção de ouro.

Elizabeth ficou boquiaberta. "Será mesmo Mr. Darcy?", pensou ela.

— O pai dele era um homem excelente — disse Mrs. Gardiner.

— Era mesmo; e o filho será exatamente como ele. Igual­mente afável para com os pobres.

Elizabeth ouviu, espantou-se, duvidou, e ficou impaciente por ouvir mais. Mrs. Reynolds não a poderia interessar noutro ponto. Em vão ela falou sobre as personagens que os quadros representavam, as dimensões da sala e o preço dos móveis. Mr. Gardiner, que achava muito divertida aquela parcialidade pela família, a que ele atribuía os excessivos louvores de Mrs. Reynolds, tornou a introduzir o assunto. E Mrs. Reynolds dis­correu com energia sobre as qualidades do patrão, enquanto subiam todos a grande escadaria.

— Ele é o melhor proprietário e o melhor patrão que ja­mais existiu — disse ela. — Não é como os rapazes loucos de hoje que só pensam em si próprios. Não existe um só dos seus rendeiros ou criados que não fale nele com admiração. Muitos dizem que é orgulhoso; mas eu nunca vi nada disto. Quanto a mim, penso que é porque ele não é tagarela como os outros rapazes.

"Sob que luz favorável ela o coloca", pensou Elizabeth.

— Estas informações não combinam com o seu procedi­mento para com o nosso pobre amigo — sussurrou a tia, en­quanto caminhavam.

— Talvez estejamos enganados.

— Não é provável. O testemunho é dos melhores.

Depois de chegarem ao espaçoso hall em cima, foram con­duzidos a uma linda sala de jantar, decorada recentemente, com maior elegância e graça do que os apartamentos e salas de bai­xo. E foram informados de que tudo aquilo tinha sido feito para dar prazer a Miss Darcy, que tinha manifestado preferên­cia por aquela sala, da última vez que estivera em Pemberley.

— Ele é certamente um bom irmão — disse Elizabeth, enquanto se dirigia para uma das janelas.

Mrs. Reynolds antecipava a surpresa de Miss Darcy, quan­do ela entrasse no aposento.

— Tudo o que ele pode fazer para agradar à irmã manda executar imediatamente. E é sempre assim que age; não existe nada que não faça para lhe dar um prazer.

A galeria de retratos e os dois ou três quartos de dormir principais era tudo que lhes restava a ver. A galeria continha muitos quadros interessantes, mas Elizabeth não entendia de pintura. Já quando lhe tinham mostrado os outros, embaixo, ela desviara o rosto para examinar uns desenhos a crayon de Miss Darcy, cujos assuntos eram geralmente mais interessantes e também mais fáceis de entender.

Na galeria havia também muitos retratos de família. Estes quadros, porém, tinham pouco interesse para uma estranha. Elizabeth procurou neles apenas os traços que conhecia. Afinal, um desses retratos lhe despertou a atenção. Era de uma pes­soa cujo rosto se parecia notavelmente com o de Mr. Darcy e tinha um sorriso que ela já se lembrava de ter visto também no seu rosto, quando ele a contemplava. Ela se deteve durante vários minutos diante do retrato, olhando-o fixamente. E, antes de sair da galeria, voltou para examiná-lo; e Mrs. Reynolds in­formou-lhe de que fora pintado ainda em vida do falecido Mr. Darcy.

Havia naquele momento, no espírito de Elizabeth, um sen­timento de benevolência para com o atual proprietário de Pem­berley, como jamais tivera no período em que melhor o conhe­cera. Os elogios de que Mrs. Reynolds o tinha cumulado não eram de pouca monta. Nenhum louvor é mais valioso do que o de um criado inteligente. A felicidade de muitas pessoas de­pendia dele como irmão, como proprietário e como patrão. Ele tinha o poder de dispensar o prazer e a dor, e a faculdade de praticar em larga escala o bem e o mal. Tudo o que Mrs. Rey­nolds dissera a seu respeito tinha sido favorável. E, diante da tela em que o seu rosto fora retratado e cujos olhos pareciam fitá-la, Elizabeth pensou na admiração de Mr. Darcy por ela própria, com uma gratidão que jamais sentira. Recordou a for­ça daquela afeição e suavizou as expressões com que ele a exteriorizara.

Depois de terem visto a casa toda, tornaram a descer as escadas, e ao se despedirem da caseira foram entregues aos cui­dados do jardineiro, que os encontrou na porta do hall. En­quanto atravessavam o gramado em direção ao riacho, Elizabeth se voltou para tornar a ver a casa; sua tia também se detivera, e enquanto a primeira fazia conjeturas sobre a data em que fora construído o edifício o proprietário em pessoa surgiu de repen­te na estrada que conduzia às cocheiras, do outro lado da casa.

Estavam a cerca de vinte metros um do outro, e seu apa­recimento fora tão repentino que era impossível a Elizabeth se esconder. Seus olhos se encontraram imediatamente. E am­bos coraram de um modo intenso. Ele teve um sobressalto e por um momento a surpresa o paralisou; mas, voltando ime­diatamente a si, adiantou-se para o grupo e se dirigiu a Eliza­beth se não com absoluta calma, pelo menos com toda a ama­bilidade.

Elizabeth tinha se virado instintivamente, mas vendo-o aproximar-se deteve-se e recebeu os seus cumprimentos com um embaraço impossível de dominar. Se a sua aparência a princí­pio, ou a sua semelhança com o retrato que tinham acabado de examinar, já não tivessem demonstrado por si a Mr. e Mrs. Gardiner que avistavam agora Mr. Darcy em pessoa, a ex­pressão de surpresa do jardineiro ao ver o patrão teria sido su­ficiente para o revelar. Ficaram um pouco afastados, enquanto ele conversava com a sua sobrinha, e esta, atônita e embaraçada, mal ousava levantar os olhos, e respondia inconscientemente às perguntas de cortesia que ele lhe fazia sobre a sua família. E, extremamente surpresa com a mudança nas maneiras de Mr. Darcy, cada frase que ele pronunciava agora aumentava a sua confusão. Voltavam-lhe à mente todas as idéias a respeito da inconveniência de encontrá-lo ali e os poucos minutos em que estiveram juntos foram os mais penosos da sua vida. Ele não parecia também estar muito à vontade. Quando falava, a sua expressão não tinha a calma habitual. Perguntou várias vezes em que dia Elizabeth saíra de Longbourn e quanto tempo se demoraria no Derbyshire, de uma maneira tão apressada que se tornara evidente que os seus pensamentos estavam longe. Afinal todas as idéias pareceram faltar-lhe. E, depois de ficar parado e mudo durante alguns instantes, Mr. Darcy voltou a si de súbito e se despediu.

Os outros então se aproximaram dela e exprimiram a sua admiração pela figura do rapaz; mas Elizabeth, inteiramente absorta em seus pensamentos, não ouviu uma só palavra. Acom­panhou-os em silêncio; sentia-se esmagada de vergonha e de contrariedade. A sua vinda ali fora a idéia mais infeliz e mais irrefletida do mundo. Como aquele encontro deveria parecer es­tranho a Mr. Darcy! E sob que luz desfavorável não a colocaria aos olhos de um homem tão vaidoso! Poderia até parecer que ela se tinha atirado no seu caminho! Oh, por que tinha vindo? Ou por que tinha ele vindo na véspera do dia em que era es­perado? Se tivessem saído dez minutos mais cedo de Pember­ley, ele não a teria reconhecido de longe, pois era evidente que chegava naquele momento e que tinha acabado de saltar do cavalo ou da carruagem. Ela enrubesceu várias vezes ao recor­dar a perversidade daquele acaso. E que poderia significar aque­la alteração que vira nos seus modos? Era espantoso que ele lhe tivesse dirigido-a palavra. Mas falar com tanta amabilidade e perguntar pela sua família! Nunca, na sua vida, Elizabeth lhe vira maneiras tão cordiais e tão pouco cerimoniosas. Nunca ele lhe falara com tanta doçura quanto durante aquele encontro inesperado. Que diferença daquela ocasião em que se dirigira a ela em Rosings Park, a fim de lhe entregar a carta. Ela não sabia o que pensar, nem como explicar aquilo.

Tinham agora penetrado num belo caminho que acompa­nhava as margens do riacho e cada passo que davam aproxima­vam-se de uma das mais belas partes do bosque. Mas só algum tempo depois é que Elizabeth começou a notar o que a cercava, e, embora respondesse mecanicamente aos repetidos apelos dos tios para que contemplasse os aspectos que lhe apontavam, não distinguia perfeitamente nenhum detalhe da paisagem. Seus pensamentos se voltavam para a casa de Pemberley e procura­vam adivinhar o lugar em que Mr. Darcy agora se encontrava. Ansiava por saber o que lhe passava pela mente naquele mo­mento, de que maneira pensava nela, e se apesar de tudo ainda lhe era cara. Talvez ele tivesse se mostrado tão amável porque se sentisse indiferente. No entanto, na sua voz, não havia trans­parecido aquela tranqüilidade. Elizabeth não sabia se ele senti­ra aborrecimento ou prazer ao vê-la. Mas, certamente, não per­manecera indiferente. Afinal, as observações dos companheiros sobre a sua distração fizeram-na voltar a si e com isto lhe ocor­reu a idéia de que era necessário se mostrar mais natural.

Penetraram no bosque e, dizendo adeus ao riacho por al­gum tempo, subiram para uma região mais elevada; e aí, através de clareiras ocasionais, descobriram encantadoras vistas do vale, das colinas do outro lado, recobertas de extensos bosques e ocasionalmente do riacho. Mr. Gardiner exprimiu o desejo de fazer a volta do parque, caso fosse possível percorrê-lo a pé. Mas o jardineiro informou-os com um sorriso triunfante de que o parque tinha mais de dez milhas de circunferência. Teriam portanto de se contentar com o circuito habitual. Tornaram a descer a colina por entre os bosques que lhes revestiam a en­costa, até voltar ao riacho num dos pontos em que as margens eram mais estreitas. Atravessaram-no por uma ponte rústica; era uma região mais selvagem do que as que tinham visitado até agora. E o vale, estreitando-se, tornava-se uma várzea diminu­ta, ocupada pelo curso d'água e por um caminho estreito, cer­cado de moitas de arbustos selvagens. Elizabeth desejava ex­plorar os meandros do riacho, mas, depois de atravessarem a ponte e perceberem a distância em que se encontravam da ca­sa, Mrs. Gardiner, que não gostava muito de caminhar, decla­rou que não podia ir mais adiante e que desejava voltar para a carruagem o mais depressa possível. Elizabeth foi portanto obrigada a se submeter, e o grupo voltou em direção à casa, do outro lado do rio, tomando o caminho mais curto. Mas a caminhada foi lenta, pois Mr. Gardiner, que gostava muito de pescar, mas raramente tinha oportunidade de fazê-lo, se deti­nha a todo instante para observar as trutas, e fazer perguntas ao homem que os acompanhava. Enquanto caminhavam assim lentamente, tiveram novamente a surpresa de avistar Mr. Dar­cy, que se aproximava deles a pequena distância. O espanto de Elizabeth foi igual ao que sentira durante o primeiro encontro. O caminho, que era menos protegido do que do outro lado, permitiu que o visse antes de encontrá-lo. Elizabeth, embora espantada, estava pelo menos mais preparada para a entrevista. Resolveu que falaria com calma, se Mr. Darcy tencionasse real­mente abordá-los. Durante alguns instantes, pensou que ele ia dobrar por outro caminho, e a idéia durou enquanto uma volta da estrada o ocultava das suas vistas. Mas, feita a volta, ele surgiu diretamente diante deles. Com um rápido olhar, Eli­zabeth viu que Mr. Darcy nada tinha perdido da recente ama­bilidade; e, para imitar a sua polidez, logo que se encontraram ela começou a louvar as belezas do lugar. Mas apenas as pala­vras "lindo" e "encantador" lhe tinham saído dos lábios, uma infeliz recordação a assaltou e ela imaginou que aqueles elogios a Pemberley podiam ser mal interpretados. Empalideceu e não disse mais nada.

Mrs. Gardiner estava parada um pouco atrás. E quando Elizabeth cessou de falar, Mr. Darcy lhe perguntou se ela que­ria lhe fazer a honra de apresentá-lo aos seus amigos. Elizabeth não esperava esta demonstração de cortesia e não pôde deixar de sorrir, ao vê-lo agora procurar o conhecimento daquelas mes­mas pessoas contra as quais o seu orgulho se tinha revoltado quando lhe propusera casamento. "Como vai ficar espantado", pensou ela, "quando souber quem são eles. Imagina natural­mente que são pessoas de importância..."

A apresentação, no entanto, foi feita imediatamente. E, ao mencionar o parentesco que os unia, Elizabeth não pôde deixar de olhar de soslaio para Mr. Darcy, esperando vê-lo fu­gir o mais depressa que pudesse da companhia de gente tão mo­desta. Era evidente que o parentesco o surpreendia. No entan­to nada deixou perceber e, longe de se voltar para partir, re­gressou com eles e entrou em conversação com Mr. Gardiner. Elizabeth não pôde deixar de se sentir lisonjeada. Mas não ex­perimentava nenhum sentimento de triunfo; em todo caso era consolador ter a certeza de que ele sabia agora que ela não pre­cisava se envergonhar dos parentes. Ouvia com a maior atenção tudo o que se passava entre eles e ficava radiante cada vez que uma expressão ou uma frase do seu tio revelava a sua inteli­gência, o seu bom gosto e as suas belas maneiras.

Dentro em pouco conversavam sobre a pesca. Ela ouviu Mr. Darcy convidar o seu tio, com a maior cortesia, para pescar no parque todas as vezes que quisesse, oferecendo-lhe ao mes­mo tempo os necessários acessórios, e indicando-lhe as partes do riacho onde a pesca em geral era mais proveitosa. Mrs. Gar­diner, que caminhava de braço com Elizabeth, lançou para a companheira um expressivo olhar de surpresa. Elizabeth nada disse, mas ficou extremamente satisfeita. Aquele ato de galanteria lhe era provavelmente dirigido; o seu espanto, entretanto, era extremo, e ela repetia continuamente: "Por que é que ele está tão alterado? Qual será o motivo disto? Não pode ser por minha causa; pois minhas admoestações em Hunsford não po­deriam efetuar nele uma tão grande alteração; é impossível que ele ainda me ame".

Depois de caminhar algum tempo desse modo, as duas senhoras na frente, os dois cavalheiros atrás, ao chegarem à mar­gem do rio onde iam examinar uma curiosa planta aquática houve uma pequena alteração: Mrs. Gardiner, fatigada pelo exercício daquela manhã, achou o braço de Elizabeth inadequa­do para nele se apoiar e preferiu o do seu marido. Mr. Darcy tomou o seu lugar ao lado de Elizabeth e continuaram a cami­nhar. Depois de um curto silêncio, Elizabeth foi quem primei­ro falou. Desejava que Mr. Darcy soubesse que antes de vir ti­nha feito indagações e lhe tinham afirmado que ele estaria ausente, e por isso ela se decidira a vir visitar o lugar. Come­çou, portanto, observando que a sua chegada tinha sido ines­perada

— A sua caseira — acrescentou ela — nos informou que o senhor não chegaria antes de amanhã. E, aliás, antes de sair­mos de Bakewell, disseram-nos que o senhor não era esperado imediatamente.

Mr. Darcy reconheceu a verdade do que ela dizia e res­pondeu que, por causa dos negócios que tinha a tratar com o seu intendente, adiantara-se algumas horas aos companheiros de viagem.

— Eles chegarão amanhã cedo — continuou ele. — Aliás, virão algumas pessoas que a conhecem: Mr. Bingley e suas irmãs.

Elizabeth respondeu com um leve aceno da cabeça. Seus pensamentos a levaram imediatamente para a ocasião em que o nome de Mr. Bingley fora pronunciado entre eles pela última vez. E, se lhe era dado julgar pela expressão do rosto de Mr. Darcy, seus pensamentos tinham tomado um rumo semelhante.

— Existe também outra pessoa no grupo — continuou ele depois de uma pausa — que deseja particularmente conhe­cê-la. Se me permite, eu lhe apresentarei a minha irmã, duran­te a sua estada em Lambton. Ou será que lhe peço demais?

A surpresa que causava a Elizabeth um tal pedido era realmente grande. Na sua perturbação ela concordou, mas sem saber de que maneira o fazia. Compreendeu imediatamente que esse desejo de Miss Darcy só poderia ter sido inspirado pelo irmão. E não era preciso fazer muitas indagações para desco­brir que isto era bastante satisfatório. Era agradável saber que o ressentimento de Mr. Darcy não o levara a pensar mal a seu respeito. Continuaram a caminhar em silêncio, ambos mergu­lhados nas suas reflexões. Elizabeth não se sentia muito à von­tade. Isto era impossível. Mas se sentia lisonjeada e contente. O seu desejo de lhe apresentar a irmã era uma homenagem de grande delicadeza. Em pouco eles haviam se distanciado bastan­te dos outros. E quando chegaram à carruagem, Mr. e Mrs. Gardiner estavam uns duzentos metros atrás. Mr. Darcy en­tão convidou-a a entrar. Mas Elizabeth declarou que não esta­va cansada. Permaneceram de pé no gramado. Numa ocasião como aquela, muitas coisas podiam ser ditas e o silêncio era embaraçoso. Elizabeth queria conversar, mas parecia haver um obstáculo em quase todos os assuntos. Afinal se lembrou de que estivera viajando e eles falaram de Matlock e de Dove Dale com grande perseverança. No entanto, o tempo e a tia cami­nhavam lentamente. E a sua paciência e as suas idéias estavam completamente esgotadas antes do tête-à-tête terminar. Quando Mr. e Mrs. Gardiner se aproximaram, foram convidados a en­trar, mas isto foi recusado e todos se separaram com a maior polidez. Mr. Darcy ajudou as senhoras a entrarem na carruagem e, quando esta se afastou, Elizabeth o viu caminhando lenta­mente em direção à casa.

As observações dos tios tiveram então início. Ambos decla­raram que o tinham achado infinitamente superior ao que espe­ravam.

— Ele é perfeitamente cortês e modesto — disse Mr. Gardiner.

— Existe certamente um pouco de dureza nas suas ma­neiras — replicou Mrs. Gardiner —, mas ela se limita à sua atitude e não lhe vai mal. Agora posso dizer, como Mrs. Rey­nolds, que, embora muitas pessoas o chamem de orgulhoso, não vi nada disto.

— O que me surpreendeu mais foram as suas maneiras para conosco. Eram mais do que polidas, eram realmente aten­ciosas. Suas relações com Elizabeth são muito recentes.

— Naturalmente, Lizzy — disse Mrs. Gardiner —, ele não é tão bonito quanto Wickham, embora os traços sejam per­feitamente regulares. Mas não entendo por que você nos disse que ele era tão desagradável.

Elizabeth se desculpou da melhor forma possível; disse que o achara mais simpático da última vez que estivera com ele no Kent, e que nunca o vira tão amável quanto naquela manhã.

— Mas talvez ele seja um pouco excêntrico nas amabilidades — replicou Mr. Gardiner. — Os homens importantes em geral o são. E portanto não tomarei ao pé da letra o convite que ele me fez para pescar, pois é possível que mude de idéia ama­nhã e me expulse do seu parque.

Elizabeth sentiu que eles se tinham enganado redonda­mente sobre o caráter de Mr. Darcy, mas não disse nada.

— Pelo que vimos dele — continuou Mrs. Gardiner —, eu jamais poderia pensar que fosse capaz de agir tão cruelmen­te com qualquer pessoa como fez com o pobre Wickham. A sua expressão não revela mal caráter, pelo contrário, ele tem um modo de mover os lábios, quando fala, que muito me agra­da. E há uma dignidade no seu rosto que dificilmente daria a alguém uma idéia desfavorável do seu coração. Aliás, a boa mulher que nos mostrou a casa lhe atribuiu o mais brilhante dos caracteres. Às vezes eu não podia me impedir de rir alto. Creio que ele deve ser um patrão condescendente e, aos olhos de um criado, isto resume todas as virtudes.

Elizabeth sentiu então que deveria dizer alguma coisa pa­ra justificar o procedimento de Darcy em relação a Wickham. E portanto deu a entender aos tios, da forma mais reservada que podia, que, pelo que ouvira dos seus parentes no Kent, os seus atos eram suscetíveis de uma interpretação inteiramente diferente. E que o seu caráter nem de longe era tão defeituoso quanto o tinham suposto no Hertfordshire; por outro lado o de Wickham estava longe de ser tão perfeito. E para confirmar o que lhe dizia relatou os detalhes de todas as transações pecuniá­rias em que se tinha envolvido, sem dar o nome da pessoa que a informara, porém acrescentando que era digna de todo o cré­dito. Mrs. Gardiner ficou surpreendida e preocupada. Mas, co­mo se aproximavam agora do lugar onde residira na mocidade, ela se entregou toda ao encanto das recordações, e estava tão preocupada em mostrar ao marido as maravilhas das redonde­zas, que se esqueceu do resto. Apesar de todas as fadigas da manhã, logo depois do jantar tornaram a sair à procura dos an­tigos conhecidos de Mrs. Gardiner, e esta passou a noite entre­gue ao prazer de reatar antigos laços de amizade.

As ocorrências daquele dia eram demasiado interessantes para que Elizabeth pudesse dar muita atenção a esses novos amigos. E não pôde fazer outra coisa senão pensar e refletir com assombro nas amabilidades de Mr. Darcy e sobretudo no seu desejo de lhe apresentar a irmã.

 

Elizabeth tinha combinado com Mr. Darcy que ele traria a irmã para visitá-la logo no dia seguinte ao da sua chegada em Pemberley. E decidiu portanto não se afastar da hospedaria durante toda aquela manhã. Mas a sua conclusão foi falsa, pois logo na manhã seguinte à sua chegada em Lambton surgiram esses visitantes. Elizabeth e seus tios tinham estado passeando pela cidade com alguns dos seus novos amigos e acabavam de regressar à hospedaria, a fim de se vestirem para jantar com a mesma família, quando o ruído de uma carruagem os atraiu para a janela. Elizabeth imediatamente reconheceu a libré, com­preendeu do que se tratava e relatou com grande surpresa para os parentes a honra que estava esperando. O tio e a tia ficaram extraordinariamente surpresos, e o embaraço de Elizabeth ao lhes comunicar aquilo, somado à circunstância em si, e à lem­brança de muitas outras do dia precedente, lhes deu uma nova visão do que se passava. Nada o havia sugerido anteriormente, mas sentiam que agora não havia outra maneira de explicar as atenções de Mr. Darcy, sem supor um interesse dele pela so­brinha. Enquanto essas novas idéias lhes atravessavam o pen­samento, a perturbação de Elizabeth crescia a cada momento. Ela mesma ficou espantada com o seu nervosismo. Além de outras inquietações, temia que Mr. Darcy, com a sua parciali­dade, houvesse exagerado as suas qualidades. E, ansiosa como nunca por agradar, desconfiava naturalmente de que todos os seus recursos seriam escassos.

Elizabeth recuou da janela com medo de ser percebida. E enquanto caminhava de um lado para outro, procurando se acal­mar, percebeu os olhares curiosos dos tios, o que tornou tudo ainda pior.

Mr. Darcy e a irmã apareceram. E aquela temível apre­sentação teve lugar afinal. Com espanto Elizabeth percebeu que a sua nova conhecida estava tanto ou mais embaraçada do que ela. Desde que estava em Lambton, Elizabeth ouvira dizer vá­rias vezes que Miss Darcy era extremamente orgulhosa. Mas agora a observação de poucos minutos lhe bastou para consta­tar que ela era apenas extremamente tímida. Foi muito difícil obter dela outras palavras a não ser simples monossílabos. Miss Darcy era alta e mais corpulenta do que Elizabeth, e, embora tivesse pouco mais de dezesseis anos, suas formas eram bem desenvolvidas e sua aparência graciosa. Seus traços eram me­nos regulares do que os do irmão, mas havia bom senso e cor­dialidade na sua expressão. E as suas maneiras eram perfeita­mente modestas e polidas. Elizabeth, que esperava encontrar nela uma observadora tão aguda e impassível quanto Mr. Darcy, sentiu-se extremamente aliviada ao discernir tamanha diferença de feitio.

Poucos momentos depois de chegar, Darcy avisou que Bingley também viria lhe apresentar os seus cumprimentos, e Elizabeth mal tivera tempo de exprimir a sua satisfação quando ouviu na escada os passos rápidos de Bingley, e no mesmo ins­tante ele apareceu na sala. Há muito já se tinha acalmado todo o ressentimento de Elizabeth contra ele. Porém, mesmo que conservasse ainda um resto daqueles sentimentos, teria sido impossível resistir à singela cordialidade com que ele se expri­miu ao tornar a vê-la. Bingley perguntou pela sua família de maneira cordial, embora vaga, falando com a mesma tranqüi­lidade bem-humorada de sempre.

Mr. e Mrs. Gardiner o olharam também com muito inte­resse. Há muito que desejavam conhecê-lo. O grupo todo, aliás, despertava neles a mais viva curiosidade. As suspeitas que a atitude da sobrinha acabara de provocar fizeram que observas­sem cada um dos presentes com curiosidade, embora reservadamente. E chegaram imediatamente à conclusão de que uma da­quelas pessoas presentes, pelo menos, sabia o que era o amor. Quanto aos sentimentos de Elizabeth, permaneceram um pouco em dúvida. Mas era evidente que o rapaz tinha por ela uma fervorosa admiração.

Elizabeth, por sua vez, tinha muito o que fazer. Queria se certificar dos sentimentos de cada um dos visitantes. Queria dominar os seus e tornar-se agradável para todos. E neste últi­mo ponto, acerca do qual eram maiores as suas apreensões, po­dia estar mais certa do seu êxito, pois aqueles a quem desejava agradar estavam dispostos a seu favor. Em Bingley encontrou a melhor das disposições, Georgiana ansiava por satisfazê-la e Darcy estava sequioso das suas atenções.

Ao ver Bingley, Elizabeth se lembrou naturalmente da irmã. E ela teria dado muita coisa para saber se os pensamentos dele tinham tomado o mesmo rumo que os seus. Às vezes lhe parecia que ele falava menos do que antigamente. E outras ve­zes parecia a Elizabeth que ao olhar para ela ele procurava en­contrar no seu rosto a semelhança de outra pessoa. Mas, em­bora esta impressão pudesse ser imaginária, Elizabeth não poderia se enganar quanto ao comportamento de Miss Darcy, em que certas pessoas tinham esperado encontrar uma rival para Jane. Nem de um lado nem de outro, um só olhar deixou transparecer qualquer interesse especial. Nada ocorreu entre eles que pudesse justificar as esperanças de Miss Bingley. Quan­to a este ponto, ela poderia ficar inteiramente tranqüila. E, an­tes de os visitantes irem embora, ocorreram dois ou três peque­nos fatos que, segundo a interpretação ansiosa de Elizabeth, denotavam uma recordação de Jane, não desacompanhada de ternura da parte de Bingley e de um desejo de dizer outras coi­sas que pudessem conduzir à menção do nome dela, sem que ele o ousasse. No momento em que os outros estavam conver­sando, Bingley observou para Elizabeth, num tom que deno­tava uma certa mágoa, que há longo tempo não tinha o prazer de vê-la. E, antes que ela pudesse responder, acrescentou:

— Faz mais de oito meses. Não nos vemos desde o dia 26 de novembro, quando estávamos todos dançando juntos em Netherfield.

Elizabeth ficou satisfeita ao ver que a memória de Bin­gley era exata. E depois, quando os outros estavam distraídos, ele encontrou ocasião de perguntar se todas as irmãs de Eliza­beth estavam em Longbourn. A pergunta nada tinha de excep­cional, como tampouco a observação precedente. Era o seu olhar e as suas maneiras que lhe emprestavam toda a signifi­cação.

Elizabeth não teve muitas ocasiões de voltar os olhos para Mr. Darcy, mas todas as vezes que o olhava de relance surpre­endia uma expressão de contentamento, e tudo o que ele dizia era num tom tão diferente da sua antiga altivez e desdém que Elizabeth ficou convencida de que a melhoria das suas manei­ras, que presenciara na véspera, por mais temporária que se mostrasse, durava pelo menos mais do que um só dia. Quando o via assim ocupado em procurar a companhia e a boa opinião de pessoas com as quais há poucos dias passados ele teria jul­gado desonroso manter relações, quando o ouvia tratar com a maior amabilidade não só a ela, Elizabeth, mas aos próprios parentes que tinha tão abertamente desdenhado durante aquela cena na reitoria de Hunsford, a mudança parecia tão grande e a impressionava de tal maneira, que só com o maior esforço ela conseguia esconder a surpresa. Nunca o vira tão desejoso de agradar, tão livre de orgulhosas e rígidas reservas como ago­ra, nem mesmo na companhia dos queridos amigos de Nether­field, ou de parentes importantes em Rosings. E agora, precisa­mente, nada poderia resultar dos seus esforços, e o simples co­nhecimento daquelas pessoas para as quais dirigia agora as suas atenções provocaria a censura e o sarcasmo das senhoras de Netherfield e de Rosings.

Os visitantes demoraram cerca de meia hora. E, quando se levantaram para partir, Mr. Darcy se dirigiu à irmã, pedindo que apoiasse o convite que fazia a Mr. e Mrs. Gardiner e a Miss Bennet para que fossem jantar em Pemberley antes de partirem. Miss Darcy prontamente acedeu, embora com uma timidez que revelava o pouco hábito que tinha de fazer convi­tes. Mrs. Gardiner olhou para a sobrinha, desejosa de saber se Elizabeth, a quem o convite principalmente se dirigia, estava disposta a aceitá-lo. Mas a sobrinha desviara a cabeça. Presu­mindo portanto que esta atitude estudada exprimia mais um momentâneo embaraço do que qualquer desagrado da proposta, e vendo que o marido, que apreciava a sociedade, estava dis­posto a aceitar, ela consentiu, e o jantar foi marcado para daí a dois dias.

Bingley disse então que o seu prazer em tornar a ver Eli­zabeth seria imenso, pois tinha ainda muito o que lhe dizer e muitas perguntas a lhe fazer sobre os amigos do Hertfordshire. Elizabeth, interpretando aquilo tudo como um desejo de ouvir falar em Jane, ficou satisfeita. Graças àquela e a outras coisas, depois que os visitantes partiram pôs-se a pensar naquela últi­ma meia hora com alguma satisfação, embora tivesse sido pequeno o seu prazer durante todo o decurso da visita. Desejosa de ficar a sós e temerosa das perguntas e alusões dos tios, per­maneceu em companhia destes apenas o tempo necessário para ouvir as suas opiniões favoráveis sobre Bingley. Em seguida os deixou apressadamente, sob o pretexto de se vestir.

Elizabeth não tinha razão de temer a curiosidade de Mr. e de Mrs. Gardiner. Eles não desejavam forçar-lhe as confiden­cias. Compreendiam que Elizabeth conhecia Mr. Darcy muito mais intimamente do que tinham suposto. Era evidente que ele estava muito apaixonado por ela. Viam naquilo um motivo de interesse, porém nada que justificasse indagações.

Quanto a Mr. Darcy, ansiavam por imaginar as melhores coisas a seu respeito. Até onde se estendiam as suas relações, não encontravam nele nenhum defeito. Não podiam deixar de se sentir tocados pela sua polidez. Se tivessem imaginado o ca­ráter de Darcy pelas suas próprias impressões e pelas informa­ções da criada, a sociedade do Hertfordshire, onde ele tinha residido, não o teria reconhecido. Havia agora, entretanto, in­teresse em acreditar nas palavras de Mrs. Reynolds. E em pouco chegaram à conclusão de que a opinião de uma criada que o co­nhecera desde os quatro anos de idade, e cujas maneiras eram as de uma pessoa respeitável, não poderia ser rejeitada sumaria­mente. Os seus amigos de Lambton, por outro lado, não sabiam de nenhum fato que pudesse diminuir o valor daquele testemu­nho. De nada o acusavam senão de orgulho. E orgulho ele tinha certamente. E, mesmo se não o tivesse, esse defeito lhe seria imputado pelos habitantes de uma pequena cidade provinciana, onde a família não possuía relações. Todos reconheciam no en­tanto que era um homem generoso, e fazia bem aos pobres.

Quanto a Wickham, os visitantes logo descobriram que não era muito estimado no lugar, pois, embora nada de preciso se soubesse sobre as suas relações com o filho do seu protetor, era sabido que ao sair do Derbyshire deixara muitas dívidas e que Mr. Darcy mais tarde as tinha saldado.

Elizabeth pensou mais em Pemberley naquela noite do que na precedente. E, embora as horas lhe parecessem difíceis de passar, não foram suficientes para que chegasse a uma conclu­são acerca dos seus sentimentos. E ficou duas horas acordada, tentando ler no próprio coração. Certamente não o odiava. Não, o ódio há muito se dissipara e há muito também que se en­vergonhava de ter antipatizado com ele. O respeito que as suas valiosas qualidades lhe inspiravam, embora a princípio admi­tido com relutância, já há longo tempo cessara de ser repugnan­te para os seus sentimentos. Agora se transformava num sen­timento mais cordial, graças aos testemunhos tão altamente a seu favor, e à impressão favorável que Darcy lhe produzira na véspera. Mas, acima de tudo, acima do respeito e da estima, encontrava em si mesma um motivo de boa vontade que seria impossível desprezar: era a gratidão. Gratidão não somente por­que ele a amara, mas porque ainda a amava bastante para es­quecer toda a acrimônia e petulância com que ela o rejeitara e todas as acusações injustas com que acompanhara essa rejeição. Estivera persuadida de que Darcy a evitaria como a maior ini­miga. E, no entanto, durante aquele encontro acidental mostra­ra-se ansioso por restabelecer as relações, sem qualquer exibi­ção indelicada de sentimentos ou qualquer excentricidade de ma­neiras, no seu modo de tratá-la a sós. Procurava também a boa opinião dos amigos de Elizabeth e insistira para apresentá-la à irmã. Tal mudança num homem tão orgulhoso produzia não so­mente espanto, mas gratidão. Pois só podia ser atribuída ao amor, e um amor ardente. E a impressão que sobre ela esse amor produzia não era de modo algum desagradável, embora não pudesse ser exatamente definível. Ela o respeitava e esti­mava; era-lhe grata, sentia um interesse real pelo seu bem-estar. E queria apenas saber até que ponto ela desejava que aquele bem-estar dependesse dela, e, para a felicidade de ambos, até que ponto deveria empregar o poder que imaginava ainda possuir de fazer com que ele renovasse as atenções.

Ficara decidido naquela noite, entre a tia e a sobrinha, que uma cortesia tão decisiva como a que manifestara Miss Darcy, vindo visitá-los no mesmo dia da sua chegada em Pemberley, deveria ser retribuída com um esforço de polidez da sua parte. Acharam, portanto, que seria altamente conveniente fazer uma visita a Pemberley na manhã seguinte. Elizabeth ficou conten­te. No entanto, quando perguntou a si mesma o motivo desse contentamento, não encontrou resposta.

Mr. Gardiner saiu logo depois da primeira refeição. O plano da pescaria fora renovado no dia anterior e um encontro marcado com alguns dos cavalheiros em Pemberley, ao meio-dia.

 

Convencida como estava agora de que a antipatia de Miss Bingley era devida ao ciúme, Elizabeth não podia deixar de sentir que a sua presença em Pemberley seria muito desagra­dável para aquela moça. E estava curiosa para saber em que grau de amabilidade da parte de Miss Bingley as suas relações seriam agora renovadas.

Ao alcançarem a casa, foram conduzidas, através do hall, para o salão, que, dando para o lado norte, era muito agradá­vel no verão. Das suas janelas, abrindo-se para o pátio, descor­tinava-se uma vista encantadora das altas colinas recobertas de árvores e dos belos carvalhos e castanheiros, espalhados sobre o gramado próximo.

Nesse aposento foram recebidas por Miss Darcy e pela senhora com quem ela morava em Londres; Mrs. Hurst e Miss Bingley também estavam presentes. Georgiana as recebeu com toda a amabilidade, embora na sua atitude transparecesse aque­le embaraço que provinha da timidez e do medo de errar e que poderia facilmente ser tomado por orgulho e reserva pelas pes­soas que se sentissem inferiores. Mrs. Gardiner e a sobrinha, no entanto, lhe faziam justiça e tinham pena dela.

Mrs. Hurst e Miss Bingley se limitaram a cumprimentá-la de longe com a cabeça. E, depois que se sentaram, seguiu-se uma pausa embaraçosa durante alguns segundos. A pausa foi quebrada por Mrs. Annesley, uma senhora muito gentil e agra­dável. A tentativa que fez para introduzir um assunto qualquer de conversação provava que era mais bem-educada do que as duas outras. Estabeleceu-se uma conversação entre essa senhora e Mrs. Gardiner, com o apoio ocasional de Elizabeth. Miss Dar­cy parecia desejar apenas um certo encorajamento para entrar na palestra. E às vezes arriscava uma frase curta, quando pare­cia não haver muito perigo de ser ouvida.

Elizabeth percebeu desde logo que estava sendo atenta­mente observada por Miss Bingley e que não podia dizer uma só palavra, especialmente para Miss Darcy, sem que a outra não se pusesse a escutar. Esta observação não teria impedido Eliza­beth de procurar estabelecer uma conversação com Miss Darcy, se não estivesse sentada a uma distância tão inconveniente des­ta. Esperava a cada momento a entrada dos cavalheiros. Dese­java e ao mesmo tempo temia que o dono da casa estivesse en­tre eles. E não sabia qual dos sentimentos era o mais forte, se o seu desejo ou o seu temor. Depois de permanecer desta manei­ra durante um quarto de hora, sem ouvir a voz de Miss Bingley, Elizabeth teve a atenção despertada por uma fria pergunta que aquela lhe dirigira sobre a sua família. Respondeu com igual indiferença e concisão e a outra nada mais disse.

O acontecimento seguinte foi a entrada de criados que tra­ziam travessas de carne fria, bolos e uma grande variedade das melhores frutas da estação. Mas isto não teve lugar senão depois de muitos olhares significativos e sorrisos de Mrs. Annesley, diri­gidos a Miss Darcy para lhe lembrar as suas obrigações como dona-de-casa. Havia agora ocupação suficiente para o grupo in­teiro, pois, embora nem todos pudessem conversar, todos po­diam comer. E as pessoas presentes se reuniram em volta da mesa, diante das belas pirâmides de uvas, ameixas e pêssegos.

Assim ocupada, Elizabeth teve uma boa oportunidade para refletir se realmente temia o aparecimento de Mr. Darcy ou se o desejava. E então, embora no momento anterior o seu desejo tivesse predominado, pôs-se agora a recear que ele viesse.

Mr. Darcy estivera durante algum tempo com Mr. Gardi­ner, que pescava em companhia de outros dois cavalheiros da casa. Mas, ao saber que Elizabeth e a tia tinham resolvido fazer uma visita a Georgiana naquela manhã, deixou-os para voltar à casa. Assim que apareceu, Elizabeth resolveu ajuizadamente se mostrar perfeitamente desembaraçada. Era uma resolução mais fácil de tomar do que cumprir, pois percebeu que as sus­peitas de todo o grupo se dirigiam contra eles. Todos os olhos se voltaram para observar a atitude de Mr. Darcy, desde o mo­mento em que entrou na sala. Mas em nenhuma fisionomia se espelhava uma curiosidade tão forte quanto na de Miss Bingley, apesar dos sorrisos derramados cada vez que se dirigia a Darcy, pois o ciúme ainda não a tornara desesperada, e de forma algu­ma desistira de cumular Mr. Darcy de atenções. Depois da che­gada do irmão, Miss Darcy começou a fazer esforços ainda maio­res para conversar. E Elizabeth percebeu que ele estava desejoso de que a irmã a conhecesse melhor, encorajando todas as tenta­tivas de conversação entre elas. Miss Bingley também observou aquilo e, na imprudência da sua cólera, aproveitou a primeira oportunidade para dizer, com um sarcasmo mal encoberto:

— É verdade, Miss Eliza, que o regimento da milícia foi removido de Meryton? Deve ter sido uma grande perda para a sua família.

Em presença de Darcy ela não ousava mencionar o nome de Wickham. Mas Elizabeth compreendeu imediatamente que era nisto que ela estava pensando. E por um instante as suas tristes recordações lhe produziram uma confusão. Mas, esfor­çando-se para repelir vigorosamente aquele malévolo ataque, respondeu à pergunta num tom bastante indiferente. Enquanto falava, lançando um olhar involuntário para Darcy, percebeu que este, com o rosto alterado, olhava fixamente para ela e que Miss Darcy, cheia de confusão, tinha os olhos baixos. Se Miss Bingley tivesse previsto que ia causar tamanho desconforto à amiga, não teria feito aquela alusão. Mas a sua intenção fora apenas perturbar Elizabeth, aludindo a um homem por quem acreditava que Elizabeth nutria afeição, fazendo com que ela mostrasse uma suscetibilidade que a poderia prejudicar aos olhos de Darcy, lembrando-lhe talvez as loucuras e os absurdos de cer­tas pessoas da família de Elizabeth. Miss Bingley nada sabia a respeito do planejado rapto de Miss Darcy. Nenhuma pessoa o sabia, além de Elizabeth. E Darcy desejava particularmente es­conder este fato da família de Bingley, devido à esperança que Elizabeth há muito lhe atribuía de que um dia aquela família se tornasse a da sua irmã. Ele certamente tinha formado aquele plano. E, embora não admitisse que tal intenção tivesse pesado na sua tentativa de separar o amigo de Miss Bennet, era prová­vel que aumentasse o seu interesse pelo bem-estar do amigo.

No entanto, a atitude digna de Elizabeth em breve acal­mou aquela emoção. E como Miss Bingley, contrariada e desa­pontada, não ousou fazer nenhuma alusão mais direta a Wick­ham, Georgiana também voltou a si aos poucos, mas não se atreveu a dizer uma só palavra mais. Darcy, cujos olhos Eliza­beth temia encontrar, já tinha esquecido quase completamente o interesse que esta tivera por Wickham e aquele ataque, cujo propósito fora afastar de Elizabeth os seus pensamentos, pare­ceu ter um efeito exatamente contrário.

Pouco depois terminou a visita. Enquanto Mr. Darcy acompanhava as senhoras à carruagem, Miss Bingley dava ex­pansão aos seus sentimentos, criticando a pessoa de Elizabeth, suas maneiras e seu vestido. Mas Georgiana não a encorajava. A recomendação do irmão lhe era suficiente. Aos seus olhos, o julgamento dele era infalível. E Darcy tinha falado em Elizabeth em termos tão elogiosos que Georgiana se dispusera a encon­trar nela todos os encantos e todas as qualidades imagináveis. Quando Darcy voltou ao salão, Miss Bingley não pôde se im­pedir de repetir uma parte das coisas que dissera à irmã dele.

— Achei Eliza Bennet muito maldisposta esta manhã — exclamou ela. — Nunca vi uma pessoa mudar tanto em tão pou­co tempo. A sua pele está tão escura e tão áspera! Louise e eu estávamos dizendo que quase não a reconhecemos.

Por muito que estas palavras desagradassem a Mr. Darcy, ele se limitou a responder friamente que não percebera nela nenhuma alteração, a não ser que estava um pouco queimada, fato que nada tinha de milagroso, quando uma pessoa viajava no verão.

— Aliás — continuou Miss Bingley —, devo confessar que nunca encontrei nenhuma beleza nela. O rosto é fino de­mais. A pele não tem brilho. E os traços não são nada bonitos. Ao nariz falta caráter, não há força nas suas linhas, os dentes são passáveis, mas nada têm de extraordinário. Quanto aos olhos, que ouvi dizer algumas vezes que são bonitos, não vejo neles nada de excepcional. O modo de olhar é duro e falso. E nas suas maneiras há uma vaidade sem elegância que acho intolerável.

Miss Bingley estava persuadida de que Darcy admirava Elizabeth; aquela não era portanto a melhor maneira de se re­comendar aos olhos dele. Mas o ciúme a fazia perder a cabeça. Todo êxito que obteve foi de vê-lo afinal um pouco irritado. No entanto ele permaneceu resolutamente calado. Decidida a fazê-lo falar, ela prosseguiu:

— Lembro-me, quando a vi pela primeira vez no Hert­fordshire, como nos surpreendemos de que ela tivesse a fama de ser bonita. Lembro-me especialmente de ouvi-lo dizer, certa noite, depois de um jantar a que foram convidados em Nether­field: "Se ela é bonita, então a mãe dela é inteligente". Mas depois parece que mudou um pouco de opinião, pois já o ouvi dizer, uma vez, que a achava bastante bonita.

— Sim — replicou Darcy, incapaz de se conter por mais tempo —, mas isto foi quando a vi pela primeira vez, pois há muito tempo já que a considero uma das mais belas mulheres que conheço.

E se afastou. Miss Bingley ficou com a satisfação de o ter forçado a dizer uma coisa que não magoava a ninguém, a não ser a ela própria.

Mrs. Gardiner e Elizabeth, ao regressarem, conversaram a respeito de tudo o que tinha acontecido durante a visita, exce­to sobre o que as interessava particularmente. Discutiram a ati­tude e a palavra de todos, menos da pessoa que lhes havia mais fortemente atraído a atenção. Falaram em sua irmã, seus ami­gos, sua casa, suas frutas, em tudo menos nele próprio. No en­tanto Elizabeth ansiava por saber o que Mrs. Gardiner pensa­va dele. E Mrs. Gardiner teria ficado muito satisfeita se Eli­zabeth tivesse introduzido o assunto.

 

Elizabeth ficara muito desapontada, ao chegar em Lamb­ton, por não encontrar uma carta de Jane. E este desaponta­mento se renovara cada manhã desde que aí se encontrava. Mas no terceiro dia, a sua expectativa foi recompensada, pois rece­beu duas cartas de Jane ao mesmo tempo, numa das quais es­tava escrito que fora enviada para outro lugar por engano. Eli­zabeth não se surpreendeu, pois Jane tinha escrito o endereço de maneira quase ilegível. Estavam se preparando para passear quando as cartas chegaram. O tio e a tia, querendo que ela ficasse à vontade para ler, partiram sozinhos. A carta extravia­da devia ser lida primeiro. Fora escrita cinco dias antes. O co­meço continha um relato de todas as pequenas reuniões e di­vertimentos da família com as últimas novidades da região. Mas a segunda metade, que estava datada do dia subseqüente e fora evidentemente escrita em grande agitação, trazia notícias mais importantes. Dizia assim:

 

"Cara Lizzy, desde que comecei esta carta, aconteceu um fato inesperado e muito sério. Tenho medo de assustá-la. Pode ficar certa de que todos estão bem. O que tenho a contar diz respeito a nossa pobre Lydia. Chegou um mensageiro ontem à noite, quando já estávamos todos deitados. Era do Coronel Forster e dizia que Lydia tinha partido para a Escócia com um dos seus oficiais. Para falar a verdade, foi com Wickham! Ima­gine a nossa surpresa. Para Kitty, entretanto, não parece uma coisa tão inesperada. Estou triste. Acho que é um casamento muito imprudente para ambos. Mas quero esperar o melhor e fazer o possível para acreditar que o caráter dele foi mal com­preendido. Considero-o leviano e indiscreto. Mas este ato não me parece revelar um mau coração. Sua escolha por Lydia é de­sinteressada; pois ele não deve ignorar que papai nada pode dar à filha. Nossa pobre mãe está muito desgostosa, meu pai suporta as coisas melhor. Que sorte não termos contado a Lydia nada do que sabíamos contra ele. Precisamos também esquecer estas coisas. Partiram sábado mais ou menos à meia-noite, ao que parece, mas a sua. ausência não foi notada senão ontem de ma­nhã às oito. O mensageiro foi mandado imediatamente. Minha cara Lizzy, eles devem ter passado a dez milhas de distância daqui. O Coronel Forster diz que tem motivos para esperar brevemente o regresso de Wickham. Lydia deixou algumas li­nhas para Mrs. Forster, informando-a acerca da sua resolução. É preciso concluir, pois não posso me afastar muito tempo da minha pobre mãe. Espero que você compreenda esta carta, pois eu nem sei bem o que escrevi".

 

Sem tomar tempo para refletir, sem saber quais eram exa­tamente os seus sentimentos, Elizabeth, ao acabar esta carta, abriu imediatamente a outra, com a maior impaciência, e leu o que se segue (a carta fora escrita um dia depois da conclusão da primeira):

 

"Ao receber esta, minha cara irmã, você já deve ter rece­bido a minha primeira carta. Faço votos para que a segunda seja mais inteligível, pois, embora não esteja premida pelo tempo, minha cabeça está tão confusa que não me responsabi­lizo pela coerência das minhas palavras. Minha cara Lizzy, nem sei o que vou escrever; tenho más notícias para você e não posso adiar esta comunicação. Por imprudente que seja o casa­mento de Mr. Wickham com a nossa pobre Lydia, estamos agora ansiosos para obter a confirmação de que ele tenha sido realmen­te realizado, pois existem bons motivos para acreditar que eles não foram para a Escócia. O Coronel Forster chegou aqui on­tem, tendo saído de Brighton no dia anterior, poucas horas de­pois de ter enviado o expresso. Embora o bilhete de Lydia para Mrs. Forster desse a entender que eles tinham ido para Gretna Green, correu a notícia em Brighton de que Denny dissera que na sua opinião Wickham não tencionava absolutamente ir para a Escócia nem se casar com Lydia. Chegando isto aos ouvidos do Coronel Forster, ele ficou alarmado e saiu imediatamente de Brighton, com o intuito de ir no encalço dos fugitivos. Conse­guiu descobrir facilmente o caminho que tinham tomado até Clapham, mas daí por diante não havia sinais da sua passagem, pois naquele lugar tinham tomado um coche de aluguel e dei­xado o carro que os trouxera de Epsom. Tudo o que se sabe deles depois disso é que foram vistos na estrada de Londres.

Não sei o que pensar. Depois de fazer todas as indagações pos­síveis daquele lado, o Coronel Forster voltou para o Hertford­shire, detendo-se em todas as encruzilhadas e hospedadas, em Barnet e Hatfield, mas sem nenhum resultado. Ninguém os ti­nha visto passar. Preocupado, por nossa causa, veio atenciosa­mente a Longbourn e nos revelou as suas apreensões de uma forma muito honrosa para o seu caráter. Estou sinceramente penalizada por ele e por Mrs. Forster, mas ninguém os poderá acusar de nada. A nossa aflição é grande, minha querida Lizzy; papai e mamãe acreditam no pior, mas não posso crer que ele seja assim tão perverso. É muito possível que Lydia e ele te­nham julgado mais conveniente realizar o casamento em segredo em Londres e desistido do projeto primitivo; e, mesmo que ele tenha desígnios tão perversos contra uma moça bem relacionada como Lydia, o que não é provável, não posso crer que Lydia tenha perdido todo o juízo. Impossível! Lamento no entanto dizer que o Coronel Forster não acredita no casamento. Meneou a cabeça quando lhe exprimi as minhas esperanças e disse temer que Wickham não fosse um homem de confiança. Nossa pobre mãe está realmente doente, e não pode sair do quarto. Seria melhor se ela fizesse um esforço, mas não é muito prová­vel; quanto a papai, nunca na minha vida o vi tão perturbado. Zangou-se muito com a pobre Kitty porque ela escondeu o na­moro, mas, como era segredo, acho essa atitude natural da parte dela. Estou contente, minha cara Lizzy, porque algumas dessas cenas penosas lhe foram poupadas, mas agora não posso me impedir de dizer que espero com ansiedade o seu regresso. Não terei entretanto o egoísmo de pedir muita pressa, se não lhe for conveniente. Até breve. Tomo novamente a minha pena para fazer o contrário do que acabo de lhe dizer, mas as coisas estão de tal modo que não posso deixar de lhe suplicar que vocês todos venham o mais cedo possível. Conheço o meu caro tio e a minha tia tão bem, que não tenho medo de fazer este pedido. Ao primeiro, tenho outro pedido a fazer. Meu pai vai partir para Londres com o Coronel Forster imediatamente, a fim de procurar os fugitivos. Numa circunstância como esta, os conselhos e o auxílio do meu tio seriam inestimáveis. Ele com­preenderá imediatamente o que eu sinto. Confio na sua bon­dade".

 

— Oh, onde está meu tio? — exclamou Elizabeth, dando um salto da cadeira, na sua ansiedade de ir ter com ele sem perda de um minuto; mas, ao chegar à porta, esta foi aberta por um criado e Mr. Darcy apareceu. A palidez do rosto de Eli­zabeth e os seus gestos agitados o assustaram. E, antes que ele pudesse voltar a si e falar, ela, que tinha em mente, acima de tudo, a situação de Lydia, exclamou apressadamente:

— Sinto muito, mas tenho que deixá-lo. Preciso encon­trar Mr. Gardiner imediatamente. O assunto é urgente, não tenho um instante a perder.

— Meu Deus, que terá acontecido? — exclamou ele, com mais inquietude do que polidez. Mas, voltando a si, acrescentou:

— Não a deterei um só minuto. Mas deixe-me ir chamar Mr. e Mrs. Gardiner ou mandar o criado. No estado em que se encontra, não pode ir pessoalmente.

Elizabeth hesitou, mas os joelhos tremiam tanto que ela compreendeu que não poderia ir muito longe. Chamando o criado, encarregou-o de ir imediatamente chamar o patrão e a patroa, e dizer-lhes que voltassem para casa.

Depois que o criado saiu, Elizabeth sentou, incapaz de se suster nas pernas. O seu estado era tão lamentável que Darcy compreendeu que era impossível deixá-la. E não pôde evitar de dizer, num tom de doçura e piedade:

— Deixe-me chamar a sua criada. Quer tomar alguma coi­sa? Posso lhe oferecer um copo de vinho? Parece que está se sentindo mal.

— Não, obrigada — replicou ela, procurando dominar-se.

— Não tenho nada. Estou me sentindo bem. Só estou muito aflita por causa de notícias más que acabo de receber de Long­bourn.

Ao aludir àquele fato, começou a chorar e durante alguns minutos não pôde falar. Mr. Darcy, penalizado e aflito, pôde apenas exprimir vagamente a sua preocupação e observá-la num silêncio piedoso. Afinal ela tornou a falar.

— Acabo de receber uma carta de Jane, com terríveis no­tícias. Não é possível escondê-las de ninguém. Minha irmã mais moça abandonou todos os seus amigos, fugiu, entregou-se a... Mr. Wickham. Partiram juntos de Brighton. Conhece-o bem de­mais para ter dúvidas quanto ao resto da história. Ela não tem dinheiro, relações, nada que o possa tentar. Está perdida para sempre!

Darcy ficou imobilizado de espanto.

— E quando penso — acrescentou ela, num tom mais agitado — que eu poderia ter evitado isto, eu, que sabia quem ele era, se tivesse apenas revelado à minha própria família uma parte do que vim a saber, se o caráter dele fosse conhecido, nada disto teria acontecido. Mas agora é tarde, demasiado tarde.

— Estou imensamente penalizado — exclamou Darcy, afli­to. — Mas isto é certo, absolutamente certo?

— Oh, sim. Eles saíram de Brighton juntos sábado à noi­te e foram seguidos quase até Londres. Certamente não foram para a Escócia.

— E que é que se fez, que é que se tentou para recupe­rá-la?

— Meu pai foi para Londres e Jane escreveu pedindo o auxílio imediato de meu tio. Partiremos, assim o espero, dentro de meia hora. No entanto, nada mais pode ser feito. Sei muito bem que não há nada a fazer. Como obrigar um homem como aquele a proceder corretamente? Como ao menos descobrir o seu paradeiro? Não tenho a menor esperança. É horrível.

Darcy sacudiu a cabeça, numa silenciosa aquiescência.

— Quando descobri qual era o caráter real daquele ho­mem... Oh, se eu soubesse o que deveria fazer! Mas eu não sabia... Tinha medo de ir demasiado longe. Foi um desgraça­do engano.

Darcy não respondeu. Mal parecia ouvi-la e caminhava de um lado para outro na sala, em profunda meditação. Suas so­brancelhas estavam contraídas, a expressão sombria. Elizabeth compreendeu imediatamente que a sua ascendência sobre Darcy estava em declínio. Nada podia resistir a tal demonstração de fraqueza da parte de sua família, a tão grande escândalo. Não podia se surpreender nem condená-lo. Refletiu que ele exercia sobre si mesmo um grande domínio, mas isto não lhe trouxe nenhuma consolação. E nunca Elizabeth sentiu tão claramente como naquele momento, quando todo o amor era vão, que po­deria tê-lo amado.

Mas as considerações pessoais, embora ocorressem, não a absorviam. Lydia, a humilhação, a desgraça que ela estava cau­sando à família, dominaram logo todos os pensamentos de or­dem particular. E, cobrindo o rosto com um lenço, Elizabeth esqueceu tudo o mais. Depois de uma pausa de vários minutos, a voz do companheiro fê-la voltar à realidade. E no tom daquela voz, embora transparecesse piedade, havia também contenção.

— Creio que há muito está desejando a minha ausência — disse Darcy. — E, a não ser a minha simpatia sincera, porém inútil, nada posso lhe oferecer que justifique a minha presença.

Oxalá pudesse dizer ou fazer alguma coisa que a consolasse. Mas não a atormentarei mais, exprimindo os meus vãos dese­jos, como se solicitasse propositadamente a sua gratidão. Creio que este infeliz acontecimento impedirá minha irmã de vê-la hoje à noite em Pemberley.

— Oh, sim, tenha a bondade de apresentar as nossas des­culpas a Miss Darcy. Diga que negócios urgentes nos obrigam a voltar imediatamente. Esconda a infeliz verdade o máximo de tempo que puder. Sei que não pode ser por muito tempo.

Ele lhe assegurou prontamente que poderia contar com a sua discrição. Tornou a exprimir os seus sentimentos pela afli­ção de Elizabeth. Desejou que o caso tivesse uma conclusão mais favorável do que no momento era possível esperar. Deixando os seus cumprimentos para Mr. e Mrs. Gardiner, com apenas um grave olhar de despedida foi-se embora.

Depois que ele saiu da sala, Elizabeth sentiu que era muito pouco provável que jamais tornassem a se encontrar em termos tão cordiais, como os que tinham marcado os seus vários en­contros no Derbyshire. E, ao lançar um olhar retrospectivo so­bre a história das suas relações com Darcy, história tão cheia de contradições e surpresas, não pôde deixar de suspirar, ao refletir sobre a inconstância dos próprios sentimentos e a per­versidade das circunstâncias que a levaram agora a desejar pro­longar aquelas mesmas relações, quando anteriormente se teria rejubilado com a sua cessação.

Se a gratidão e a estima são fundamentos suficientes para a afeição, a moderação dos sentimentos de Elizabeth seria bas­tante natural. Mas, ao contrário, se a afeição oriunda de tais motivos é insensata e pouco natural, em comparação com aquela que em geral dizem se originar no instante mesmo do encontro e antes de qualquer palavra ser trocada, nada pode ser dito em defesa de Elizabeth, a não ser que ela tinha experimentado este último método com Wickham e que o seu fracasso talvez a au­torizasse a procurar a outra espécie menos interessante de afei­ção. Seja como for, ela o viu partir com tristeza. E, ao refletir sobre aquele infeliz acontecimento, encontrou um motivo adi­cional de angústia no pensamento de que aquilo era apenas um exemplo dos males que a leviandade de Lydia poderia causar. Nem por um momento, desde que lera a segunda carta de Jane, Elizabeth tivera esperança de que Wickham tencionasse realmente se casar com a sua irmã. Ninguém, a não ser Jane, pensou ela, poderia alimentar tais esperanças. A surpresa fora o mínimo que sentira nessa ocasião. Ao ler a primeira carta, surpreendera-se enormemente de que Wickham quisesse se casar com aquela moça sem fortuna. Parecia-lhe também incom­preensível que Lydia estivesse apaixonada por ele. Mas agora achava tudo natural. Para uma aventura daquelas ela poderia ter encantos suficientes. E, embora Elizabeth não supusesse que Lydia consentisse deliberadamente numa fuga sem intenção de casamento, tinha razões para acreditar que nem a virtude nem o entendimento a preservariam de se tornar uma presa fácil.

Enquanto o regimento estava no Hertfordshire, nunca percebera que Lydia manifestasse qualquer preferência por Wickham. Mas Elizabeth estava convencida de que Lydia se apegaria a qualquer pessoa que a encorajasse. Entre os oficiais ela mudava constantemente de favorito, segundo as atenções que lhe concediam. Seus entusiasmos sofriam contínuas flutua­ções, mas nunca sem motivo. Agora é que Elizabeth compreen­dia o mal que havia em confiar excessivamente numa menina como aquela.

Elizabeth estava cada vez mais ansiosa por regressar a casa, para ver, ouvir, compartilhar com Jane os cuidados que agora deviam recair inteiramente sobre ela, numa família tão desorganizada, com o pai ausente, a mãe incapaz de um esforço e exigindo constantes cuidados. E, embora quase persuadida de que nada poderia ser feito por Lydia, a interferência do tio lhe parecia da maior importância e a sua impaciência foi grande enquanto não o viu entrar na sala. Mr. e Mrs. Gardiner tinham voltado apressadamente, alarmados, supondo pelo relato do cria­do que a sobrinha tivesse adoecido repentinamente. Depois de tranqüilizá-los sobre este ponto, Elizabeth se apressou em lhes revelar a causa do recado que enviara; leu as duas cartas em voz alta, e insistiu no post-scriptum da última carta com trê­mula veemência, embora Lydia nunca tivesse sido a favorita dos tios. Mr. e Mrs. Gardiner ficaram profundamente aflitos. Não era Lydia apenas, todos eles eram atingidos por aquilo. E, depois das primeiras exclamações de surpresa e de horror, Mr. Gardiner prontamente prometeu todo o auxílio de que fosse capaz. Elizabeth, embora não esperasse menos, agradeceu-lhe com lágrimas de gratidão. E como os três estavam imbuídos da mesma idéia, os detalhes relativos à viagem foram rapidamente combinados. Resolveram partir o mais depressa possível.

— Mas que faremos com relação a Pemberley? — excla­mou Mrs. Gardiner. — John nos contou que Mr. Darcy estava aqui quando você nos mandou chamar. É verdade?

— Sim, e eu disse a ele que não poderíamos cumprir os nossos compromissos. Ficou tudo combinado.

"Tudo o quê?", repetiu a outra para si mesma, enquanto corria para o quarto a fim de se preparar. "Será que eles já estão em termos tais que ela lhe possa revelar toda a verdade? É o que eu desejava saber."

Mas esses desejos eram todos vãos. No máximo poderiam servir para distraí-la durante a confusão dos preparativos apres­sados. Se Elizabeth tivesse tido tempo diante de si, na aflição em que se encontrava não poderia ter achado nenhuma distra­ção. Ela também tinha a sua parte a fazer nos preparativos. E entre outras coisas precisava escrever bilhetes para todos os seus amigos em Lambton, apresentando desculpas pela partida tão repentina. Dentro de uma hora tudo estava pronto; e como, entrementes, Mr. Gardiner tivesse pago a conta da hospedaria, nada lhes restava fazer senão partir. E Elizabeth, depois de todas as aflições da manhã, se encontrou, mais cedo do que esperava, instalada na carruagem e a caminho de Longbourn.

 

— Estive refletindo novamente sobre o caso — disse Mr. Gardiner, enquanto a carruagem saía da cidade. — E realmente, pensando bem, estou muito mais inclinado do que estava a julgar as coisas como a sua irmã mais velha. Parece-me muito pouco provável que um rapaz qualquer intentasse um desígnio desses contra uma moça, que não é de forma alguma desprote­gida nem carece de relações, e que além disso residia com a fa­mília do coronel do regimento dele. Por isto estou fortemente inclinado a acreditar no melhor. Poderia ele supor que os ami­gos dela não interviriam a seu favor? Poderia esperar ser nova­mente aceito pelo regimento depois de tal afronta ao Coronel Forster? O risco seria maior do que a tentação.

— Pensa realmente assim? — exclamou Elizabeth, subi­tamente esperançosa.

— Dou-lhe a minha palavra de que eu também começo a ser da opinião do seu tio — disse Mrs. Gardiner. — Este ato é uma violação tão grande da decência, da honra e do bom senso, que não acho que Wickham fosse capaz de praticá-lo. E você, Lizzy, será que mudou tanto a respeito de Wickham que agora o julgue capaz disto?

— Não o julgo capaz talvez de se descuidar dos seus pró­prios interesses. Mas de todos os demais descuidos eu o julgo capaz. Se ao menos eu pudesse acreditar no que vocês acabam de dizer! Mas não ouso esperar. Se isto é verdade, por que ele não foi para a Escócia?

— Em primeiro lugar — replicou Mr. Gardiner — não há prova absoluta de que não tenham ido para a Escócia.

— Oh, mas o fato de eles se terem mudado para um coche de aluguel é uma indicação muito clara da sua intenção. E além disso não se achou nenhum sinal da sua passagem na estrada de Barnett.

— Bem, suponhamos então que estejam em Londres. Po­dem ter ido para lá apenas para se esconder. Não é provável que tenham muito dinheiro. E é justo que tenham achado mais econômico se casarem em Londres do que na Escócia.

— Mas então por que todo este mistério? Por que se escondem? Por que é que desejam casar secretamente? Oh, não, isto não é provável. O mais íntimo amigo de Wickham, como leram na carta de Jane, está persuadido de que, ele nunca teve intenção de se casar com ela. Wickham nunca se casará com uma mulher que não tenha fortuna. Não poderá sustentá-la. E que grandes interesses tem Lydia, a não ser os encantos da mocidade, da saúde e um espírito alegre, para que ele renuncie por sua causa a um casamento rico? Quanto à ofensa aos brios do regimento que esse atentado contra a honra de uma moça possa produzir, não sei até que ponto isto poderá levá-lo a hesitar, pois não sei também os efeitos que um ato assim possa produzir. Mas, quanto à sua outra objeção, não creio que tenha muito peso. Lydia não tem irmãos que a possam defender. E Wickham, que conhece meu pai, julga que, com a sua indolência e com a pouca atenção que parece dar à família, ele pouco faria e pensaria o menos possível no assunto.

— Mas você acha que Lydia está tão perdidamente apai­xonada por ele que consinta em viver com um homem sem serem casados?

— É o que parece, e é bem triste — respondeu Elizabeth, com lágrimas nos olhos. — Ter de pôr em dúvida o senso de decência e virtude de uma irmã! Mas realmente não sei o que dizer. Talvez esteja sendo injusta. E Lydia é muito moça, nunca lhe ensinaram a pensar em coisas sérias. E durante os últimos seis meses, ou melhor, durante todo o último ano, ela nada fez senão se divertir e dar largas à vaidade. Deram-lhe a liberdade de dispor do seu tempo da maneira mais frívola e inútil e de adotar as opiniões de todos os que encontrava. Desde que o regimento da milícia ficou aquartelado em Meryton, ela não pensou em outra coisa senão em namoro, amor e oficiais. Fez tudo o que estava em seu poder para aumentar, como direi, a sua suscetibilidade aos próprios sentimentos, já por natureza facilmente inflamáveis. Pensou e conversou sobre isto continua­mente e todos sabemos que Wickham tem todas as qualidades pessoais para cativar uma mulher.

— Mas você vê — disse a tia — que Jane não o julga capaz de tal atentado.

— De quem é que Jane jamais pensou mal? E qual a pessoa que ela julgaria capaz de tal atentado, qualquer que fossem os seus antecedentes, até que o fato tivesse ficado pro­vado? Mas Jane sabe tanto quanto eu o que esse Wickham realmente é. Ambas sabemos que se trata de um dissoluto em todos os sentidos da palavra. Que não tem integridade e nem honra. Que é tão falso e perigoso como insinuante.

— E você sabe realmente disto tudo? — exclamou Mrs. Gardiner, curiosa.

— Sei realmente — replicou Elizabeth, corando. — Já lhes contei no outro dia a sua conduta infame para com Mr. Darcy. E a senhora mesma, quando esteve em Longbourn na última vez, ouviu em que termos ele falou de um homem que se mostrou tão generoso para com ele. Existem outras circuns­tâncias que não vale a pena mencionar. Mas as mentiras dele a respeito da família de Pemberley são inúmeras. Pelo que ele disse de Miss Darcy, eu julgava que ia encontrar uma moça orgulhosa, fechada, desagradável. No entanto, ele sabia a ver­dade. Ele deve saber que ela é amável e modesta.

— Mas Lydia nada sabe de tudo isto? Será que ela ignora tudo o que você e Jane parecem compreender tão bem?

— Oh, sim, isto é que é o pior de tudo. Até eu estar no Kent, e entrar mais intimamente em contato com Mr. Darcy e seu primo, o Coronel Fitzwilliam, eu mesma ignorava a ver­dade. E quando voltei para casa soube que o regimento ia dei­xar Meryton dentro de quinze dias. Por isto, nem eu nem Jane, a quem contei todo o caso, julgamos necessário tornar pública a nossa descoberta, pois pensamos que não valeria a pena des­truir a boa reputação que ele gozava em toda a redondeza. E, mesmo quando ficou decidido que Lydia ia com Mrs. Forster, nunca me ocorreu a necessidade de lhe abrir os olhos quanto ao caráter de Wickham. Nunca julguei que ela corresse o risco de ser iludida. E naturalmente nem de longe imaginava que pudesse sobrevir esta conseqüência.

— Quando eles partiram para Brighton, você não tinha motivos para supor que gostassem um do outro?

— Nem o mais leve motivo. Não me lembro do menor sintoma de afeição de nenhum dos lados. E, se alguma coisa fosse perceptível, a senhora bem sabe que a nossa família não deixaria o fato passar despercebido. Quando ele entrou no re­gimento, Lydia estava disposta a admirá-lo, mas todas as moças de Meryton e das redondezas perderam a cabeça por sua causa durante uns dois meses. Mas Wickham nunca distinguiu Lydia com qualquer atenção particular. E por conseguinte, depois de um curto período de extravagante entusiasmo, ela se esqueceu dele, e outros oficiais do regimento que a tratavam com mais atenção voltaram a ser os seus favoritos.

 

É fácil compreender que durante toda a viagem, conquanto nenhum fato novo os viesse esclarecer acerca dos seus temores, esperanças e conjeturas, nenhum outro tópico os poderia des­viar muito tempo daquele interessante assunto. Elizabeth pen­sava nele continuamente. A mais aguda de todas as angústias, o remorso, a impedia de encontrar um só minuto de descanso.

Viajaram o mais rapidamente possível. E dormindo uma noite na estrada alcançaram Longbourn no dia seguinte, à hora do jantar. Foi um consolo para Elizabeth saber que, pelo menos, Jane não tinha esperado muito tempo. Quando a carruagem entrou no jardim e se aproximou da porta de casa, todos os pequenos Gardiner, atraídos pelo rumor, vieram se colocar nos degraus da escada. E quando o carro parou manifestaram a sua alegria com muitos pulos e piruetas.

Elizabeth saltou. E, depois de dar a cada um, um rápido beijo, correu para o vestíbulo, onde se encontrou com Jane, que estava no quarto da mãe e que tinha descido apressadamente a escada. Abraçaram-se afetuosamente, com lágrimas nos olhos. Elizabeth, sem perder um só instante, perguntou se tinha sabido alguma coisa dos fugitivos.

— Ainda não — replicou Jane. — Mas, agora que o nosso caro tio chegou, espero que tudo vá melhor.

— Papai está em Londres?

— Está, foi na terça-feira, conforme escrevi.

— Já tiveram notícias dele?

— Sim, escreveu uma vez. Escreveu-me umas linhas na quarta-feira, dizendo que tinha chegado bem e dando o seu endereço, coisa que eu tinha pedido a ele particularmente. Acres­centou também que não escreveria mais até que tivesse algo de importante a comunicar.

— E mamãe, como está ela? Como vão todos?

— Mamãe vai regularmente, embora esteja muito depri­mida. Está lá em cima e teria" muito prazer em vê-los todos. Não sai ainda do quarto. Mary e Kitty, graças a Deus, vão muito bem.

— E você, como vai você? — exclamou Elizabeth. — Parece pálida! Por quanta aflição não deve ter passado!

Jane, entretanto, perseverou na afirmação de que estava perfeitamente bem. O colóquio foi interrompido pela entrada de Mr. e Mrs. Gardiner, que até aquele momento tinham estado com as crianças. Jane correu para os tios e os abraçou, agrade­cendo a ambos com sorrisos e lágrimas. Depois entraram todos na sala. As perguntas que Elizabeth já tinha feito foram natu­ralmente repetidas pelos outros. Mas logo ficaram sabendo que Jane não tinha nenhuma notícia a dar.

No entanto, devido ao seu caráter indulgente, Jane ainda não perdera todas as esperanças. Ainda acreditava que tudo acabasse bem, e que uma manhã daquelas chegaria uma carta, de Lydia ou de seu pai, explicando o procedimento dos fugiti­vos e anunciando talvez o seu casamento. Em seguida foram todos ao quarto de Mrs. Bennet, que os recebeu exatamente como era de esperar. Com lágrimas, lamentações, invectivas contra a conduta infame de Wickham, queixas pelos padecimentos que lhe infligiam, ela acusava a todo mundo, esquecen­do-se de que fora ela própria, com a sua insensata indulgência, a causadora principal do que acontecera à filha.

— Se me tivessem feito a vontade — disse ela —, se eu tivesse ido também para Brighton, com toda a família, isto não teria acontecido. Mas a minha pobre Lydia não tinha ninguém para tomar conta dela. Por que é que os Forster a perderam de sua vista? Estou certa de que houve um grave descuido da parte deles, pois Lydia não seria capaz de fazer isto se alguém tivesse olhado por ela. Sempre achei que eles não serviam para tomar conta de minha filha. Mas, como sempre, ninguém ouviu a minha opinião. Minha pobre filhinha... E agora lá se foi Mr. Bennet. Eu sei que ele vai se bater em duelo com Wickham, quando o encontrar, e na certa será morto. Que é que vai ser de nós depois? Os Collins vão nos expulsar daqui antes de o corpo ficar frio. E, se você não for bom para nós, meu irmão, não sei o que será.

Todos protestaram contra idéias tão sinistras. E Mr. Gar­diner, depois de tranqüilizá-la quanto à afeição que sentia por ela e pela sua família, disse que tencionava partir para Londres no dia seguinte, a fim de auxiliar Mr. Bennet nas tentativas de encontrar Lydia.

— Não se entregue a receios exagerados. É preciso estar preparada para o pior, mas não há motivo para acreditar que isto seja certo. Ainda não faz uma semana que saíram de Bright­on. Daqui a poucos dias devemos ter notícias deles. E, até que saibamos positivamente que não estão casados e que não têm intenção de casar, ainda não podemos considerar tudo per­dido. Assim que eu chegar em Londres, irei ver o seu marido e o levarei comigo para Gracechurch Street; e aí combinaremos o que deve ser feito.

— Oh, meu caro irmão — replicou Mrs. Bennet —, isto é exatamente o que mais desejo. E, quando chegar a Londres, faça tudo para encontrar minha filha, onde quer que esteja. E, se eles não estiverem casados, faça com que se casem. Quanto ao enxoval, diga que não precisam esperar. Diga a Lydia que ela terá todo o dinheiro que quiser para comprá-lo depois que se casar. E sobretudo não deixe Mr. Bennet brigar com Mr. Wickham. Conte a ele o estado em que me encontro. Fale que me acho horrivelmente assustada, e tenho tremores por todo o corpo, horríveis dores no lado, na cabeça, e tantas palpitações que não posso descansar nem de dia nem de noite. E diga à minha querida Lydia que não tome providências a respeito das roupas até que ela tenha me visto, pois ela não sabe quais são as melhores lojas. Oh, meu irmão, como você é bonzinho, bem sei que vai arranjar tudo!

Mr. Gardiner, embora lhe assegurasse que faria todos os esforços possíveis, não pôde deixar de lhe recomendar modera­ção, tanto para as suas esperanças como para os seus receios. E conversou com ela neste tom até a hora do jantar. Em seguida deixaram-na aos cuidados da criada, que tratava dela na ausência das filhas.

Embora Mr. e Mrs. Gardiner estivessem persuadidos de que não havia motivo para tal reclusão, acharam melhor não se opor, pois sabiam que ela não tinha prudência suficiente para calar a boca diante dos criados. Era preferível que apenas uma das criadas, aquela em quem mais confiavam, ficasse sabendo de todas as suas mágoas e temores.

Na sala de jantar, Mary e Kitty, que tinham estado ocupa­das nos seus respectivos quartos e não tinham aparecido mais cedo, se reuniram afinal aos outros. Uma vinha dos seus livros e a outra da sua toalete. O rosto de ambas, no entanto, estava bastante calmo. Apenas Kitty se mostrava mais irritada do que de costume, mas não se sabia se era por causa da perda da irmã ou da raiva que sentia por estar envolvida no acontecimento. Quanto a Mary, seu domínio sobre si mesma era perfeito. E com o rosto muito grave sussurrou para Elizabeth, pouco depois de se sentar à mesa:

— Isto é um acontecimento bem desagradável. E prova­velmente será muito comentado. Mas nós devemos nos opor à maré de maledicência, e derramar sobre os nossos corações feridos o bálsamo dos consolos fraternais.

Em seguida, vendo que Elizabeth não estava disposta a responder, acrescentou:

— Por infeliz que tenha sido Lydia, podemos tirar disto uma lição útil. Que a perda da virtude numa mulher é irremissível. Que um só passo falso acarreta uma série de desgraças sem fim e que a reputação não é menos frágil do que a beleza. Que uma mulher nunca pode ser cautelosa demais para com as pessoas do outro sexo, especialmente as que não merecem a sua confiança.

Elizabeth levantou os olhos atônitos. Sentia-se oprimida demais para responder. Mary, porém, continuou a se consolar extraindo máximas morais da infelicidade da irmã.

De tarde, as duas mais velhas conseguiram ficar meia hora sozinhas; e Elizabeth imediatamente aproveitou a oportunidade para pedir que Jane lhe contasse outros detalhes do aconteci­mento. Jane estava igualmente ansiosa para conversar sobre o assunto. Primeiro lamentaram as terríveis conseqüências daquele fato. Conseqüências que Elizabeth considerava muito graves. Jane não podia afirmar que os prognósticos da irmã fossem de todo impossíveis. Em seguida Elizabeth prosseguiu no assunto, dizendo:

— Conte-me tudo o que ainda não sei. Dê-me outros de­talhes. Que foi que o Coronel Forster disse? Eles desconfiavam de alguma coisa antes da fuga? Devem ter visto os dois fre­qüentemente juntos.

— O Coronel Forster confessou que muitas vezes des­confiou que houvesse alguma coisa. Especialmente do lado de Lydia. Mas nunca se passou nada que inspirasse alarma. Eu sinto muito por ele. Mostrou-se extremamente atencioso e bom. Resolveu vir até aqui para nos comunicar as suas preocupações, mesmo antes de saber que eles não tinham ido para a Escócia. Os rumores que começaram a circular apressaram a sua partida.

— E Denny estava convencido de que Wickham não ia se casar? Sabia que eles pretendiam fugir? O Coronel Forster falou com Denny pessoalmente?

— Falou. Mas, questionado pelo coronel, Denny negou que soubesse alguma coisa a respeito do plano. E não quis dar a sua verdadeira opinião. Ele não repetiu que estava convencido de que não se casaria, E por isto tenho esperanças de que te­nham entendido mal as suas palavras anteriormente.

— E até o Coronel Forster chegar nenhuma de vocês teve alguma suspeita de que eles não estivessem realmente casados?

— Como é que tal idéia nos poderia passar pela cabeça? Eu me senti um pouco temerosa quanto à felicidade de minha irmã com esse casamento, pois sabia que a conduta dele não fora sempre das melhores. Papai e mamãe nada sabiam a res­peito dos antecedentes do rapaz, e sentiam apenas que o casa­mento era imprudente. Kitty então confessou, triunfante, que sabia mais do que nós. Que Lydia, na última carta, lhe deixara entrever as suas intenções. Parece que ela já sabia há muitas semanas que os dois estavam apaixonados.

— Mas sabia disto antes de partirem para Brighton?

— Não, creio que não.

— E o Coronel Forster mostrou que desconfiava de Wickham? Ele conhece o seu verdadeiro caráter?

— Devo confessar que ele não falou muito bem de Wick­ham. Disse que o achava imprudente e extravagante. E, depois desta triste história, soube-se que ele saiu de Meryton muito endividado. Mas espero que isto seja falso.

— Oh, Jane, se não tivéssemos sido tão discretas, se ti­véssemos dito o que sabíamos a respeito dele, isto não teria acontecido.

— Talvez tivesse sido melhor — replicou Jane. — Mas não parecia justo denunciar os erros passados de uma pessoa, sem saber quais eram os seus sentimentos naquele momento. Agimos com a melhor das intenções.

— E o Coronel Forster sabia os termos da carta de Lydia para a mulher dele?

— Ele a trouxe consigo.

Jane então tirou a carta da bolsa e deu-a a Elizabeth. A carta era a seguinte:

 

"Minha cara Harriet: você há de rir bastante quando sou­ber que eu fugi, e não posso deixar de rir também, com a sur­presa que você terá amanhã de manhã quando der pela minha falta. Vou para Gretna Green. E, se você não adivinhar com quem, é uma grande tola. Só existe um homem no mundo que eu amo e ele é um anjo. Nunca poderia ser feliz sem ele, por isso acho que não faço mal em partir. Não precisa escrever para Longbourn comunicando a minha partida se não quiser, pois isto tornará apenas maior a surpresa quando eu escrever para casa e assinar o meu nome: Lydia Wickham. Há de ser uma boa piada. Quase não posso escrever de tanto rir. Trans­mita as minhas escusas a Pratt por não poder cumprir a minha palavra e dançar com ele hoje à noite. Diga-lhe que espero que ele me perdoe quando souber o motivo e que terei o maior prazer em dançar com ele no próximo baile em que nos encon­trarmos. Mandarei buscar as minhas roupas quando chegar em Longbourn; mas queria que você dissesse a Sally para costurar um rasgão no meu vestido de musselina usado, antes de pôr as coisas na mala. Até breve. Minhas lembranças para o Coronel Forster. Espero que bebam à nossa saúde, desejando que tenha­mos uma boa viagem. Sua amiga afetuosa,

Lydia Bennet".

 

— Oh, desmiolada Lydia! — exclamou Elizabeth, depois de ler a carta. Escrever uma carta destas num tal momento ... Pelo menos mostra que tinha intenções sérias. Não sei se depois ele a persuadiu a fazer outra coisa, mas pelo menos da parte dela a infâmia não foi premeditada. Pobre papai, como deve ter sofrido!

— Nunca vi ninguém ficar tão abalado. Durante bem uns dez minutos não pôde dizer nenhuma palavra. Mamãe caiu doente imediatamente e a casa toda ficou na maior confusão.

— Oh, Jane — exclamou Elizabeth —, você acha que um só criado nesta casa não tenha ficado sabendo da história, naquele mesmo dia?

— Não sei, espero que não. Mas é muito difícil ser dis­creta numa ocasião destas. Mamãe ficou histérica. E, embora eu procurasse auxiliá-la da melhor maneira, julgo que não fiz tanto quanto devia ter feito. Mas o horror do que poderia acontecer quase me privou do uso das minhas faculdades.

— Os seus cuidados foram demasiados. Você não me parece estar muito bem de saúde. Antes eu tivesse ficado a seu lado. Você teve de suportar tudo sozinha...

— Mary e Kitty foram muito prestativas. E estou certa de que teriam compartilhado das minhas fadigas de boa vontade, mas achei que não convinha a nenhuma das duas. Kitty é muito sensível e Mary estuda tanto que as suas horas de repouso não devem ser interrompidas. Minha tia Philips veio na terça-feira, depois que papai foi embora. E teve a bondade de ficar até quinta comigo. O seu auxílio nos foi precioso. E Lady Lucas também tem sido muito delicada. Ela veio até aqui, a pé, na quarta-feira de manhã, para exprimir os seus sentimentos e oferecer os seus serviços e os de qualquer uma das suas filhas, caso tivéssemos necessidade.

— Seria melhor que ela tivesse ficado em casa — excla­mou Elizabeth; — talvez a intenção tenha sido boa, mas numa situação como esta deve-se ver os vizinhos o menos possível. Qualquer auxílio é impossível. As condolências são insuportá­veis. Que elas triunfem a distância e se dêem por satisfeitas.

Elizabeth perguntou então quais eram os planos do pai para a descoberta de Lydia.

— Creio que ele tencionava ir a Epsom, lugar onde os fugitivos trocaram os cavalos, falar com os postilhões e ver se poderia obter deles alguma informação. O objetivo principal era descobrir o número do coche de aluguel que os trouxe de Clapham. Ele tinha trazido um freguês de Londres. É possível que ao trocarem de carro alguém os tivesse visto, por isso papai tencionava fazer indagações em Clapham. Se conseguisse desco­brir a casa aonde o cocheiro foi levar o freguês, faria indagações lá e talvez não fosse impossível descobrir o posto e o número do coche. Não sei se papai tem outros projetos em mente. Esta­va com tanta pressa de partir, tão inquieto e deprimido, que eu tive grande dificuldade em tirar dele o que estou lhe dizendo agora.

 

A família tinha esperança de receber uma carta de Mr. Bennet no dia seguinte. Mas o correio chegou sem trazer nem sequer uma simples linha da sua parte. A família sabia que normalmente ele era um péssimo correspondente. Mas num momento daqueles, tinham tido esperanças de que fizesse um esforço. Foram obrigados portanto a concluir que ele nada tinha de favorável a comunicar, mas mesmo quanto a isto eles dese­javam ter certeza. Mr. Gardiner tinha esperado pela carta. Como não viesse nenhuma, partiu imediatamente.

Daí por diante, com a chegada de Mr. Gardiner a Lon­dres, tinham pelo menos certeza de receber informações cons­tantes do que se estava passando. E ao despedir-se Mr. Gardiner prometeu que insistiria com Mr. Bennet para que voltasse a Longbourn o mais cedo possível, coisa que muito consolou Mrs. Bennet. Ela via neste regresso a única possibilidade de seu marido escapar de ser morto em duelo. Mrs. Gardiner e as crianças deveriam permanecer no Hertfordshire mais alguns dias, pois Mrs. Gardiner achou que a sua presença poderia ser de alguma utilidade para as sobrinhas. Ajudou-as a tomar conta de Mrs. Bennet e foi um grande consolo para as moças nas suas horas de liberdade. A outra tia também veio freqüente­mente, e sempre, como dizia, com o propósito de lhes infundir coragem e confiança, embora nunca chegasse sem trazer um novo exemplo da extravagância e da leviandade de Wickham. E raramente partia sem as deixar mais desanimadas do que quando chegara.

Meryton inteira parecia se esforçar por denegrir o homem que três meses antes fora quase como um anjo de bondade. Diziam que ele devia dinheiro a todos os comerciantes do lugar e que as suas aventuras, que receberam todas o título de "sedu­ções", se tinham estendido às famílias de vários comerciantes. Todo mundo declarou que ele era o rapaz mais perverso do mundo e todos começaram a descobrir que sempre haviam desconfiado dele, apesar da sua aparência de distinção. Elizabeth, embora só acreditasse em metade do que diziam, achava aquilo suficiente para tornar ainda mais certos os seus antigos prog­nósticos quanto à desgraça da irmã. E até Jane, que acreditava ainda menos do que Elizabeth nas coisas de que falavam, perdeu quase todas as esperanças, sobretudo porque chegara agora o momento de receber notícias ou cartas deles, caso tivessem ido para a Escócia, coisa de que nunca perdera inteiramente a esperança.

Mr. Gardiner saiu de Longbourn no domingo. Na terça-feira, a mulher recebeu uma carta dele. Dizia que tinha encon­trado imediatamente Mr. Bennet e o tinha convencido a ir para Gracechurch Street. Mr. Bennet já estivera em Epsom e Cla­pham, mas não tinha conseguido nenhuma informação satisfa­tória. Estava decidido agora a fazer indagações em todos os principais hotéis da cidade, pois achava possível que eles se houvessem instalado num daqueles lugares logo depois da sua chegada a Londres, antes de procurar novas acomodações. Mr. Gardiner, pessoalmente, não esperava que este plano obtivesse êxito. Mas como Mr. Bennet insistia naquilo, estava resolvido a ajudá-lo. Acrescentava que Mr. Bennet não se encontrava nada disposto a sair de Londres agora, e prometia escrever de novo muito breve. Havia também um post-scriptum que dizia o seguinte:

 

"Escrevi igualmente para o Coronel Forster pedindo que ele indagasse, se possível, entre os amigos mais íntimos de Wickham, no regimento, se este tinha quaisquer parentes ou relações que pudessem saber em que parte da cidade ele se escondera. E, se entre essas pessoas houvesse alguma de quem se pudesse, com alguma sorte, obter tal informação, seria de uma importância talvez essencial. Até o momento nada temos para nos guiar. Estou certo de que o Coronel Forster fará tudo o que estiver em seu poder para nos ajudar, mas, em última aná­lise, talvez Lizzy, melhor do que qualquer outra pessoa, saiba se ele tem parentes vivos".

 

Elizabeth compreendeu imediatamente de onde provinha aquela deferência pela sua autoridade. Infelizmente não possuía informações que a justificassem.

Nunca ouvira dizer que ele tivesse parentes, exceto o pai e a mãe, e ambos já haviam falecido há muitos anos. Era possível, entretanto, que alguns dos seus companheiros do regimento pu­dessem dar informações mais substanciais. E, embora não tivesse grandes esperanças a esse respeito, aquela providência não era para se desdenhar.

Cada dia em Longbourn era agora um dia de ansiedade. Mas o mais angustiante dos momentos era o da chegada do cor­reio. As cartas eram esperadas todas as manhãs com a maior impaciência. E cada dia aguardavam notícias de importância.

Antes de receberem nova carta de Mr. Gardiner, chegou uma para Mr. Bennet da parte de Mr. Collins. E, como Jane tinha recebido instruções de abrir toda a correspondência diri­gida ao pai na ausência dele, leu a carta. E Elizabeth, que sabia como as cartas de Mr. Collins eram curiosas, se debruçou sobre a irmã e leu também. Dizia o seguinte:

 

"Meu caro senhor: sinto-me obrigado pelo nosso paren­tesco e pela minha situação na vida a apresentar-lhe as minhas condolências pela grande aflição que agora está sofrendo e da qual fomos informados ontem por uma carta do Hertfordshire. Fique certo, meu caro senhor, de que Mrs. Collins e eu próprio nos solidarizamos sinceramente com o senhor e toda a sua res­peitável família no seu atual sofrimento, que deve ser dos mais agudos, porque provém de uma causa que, o tempo não pode remover. Para lhe aliviar tão grande infelicidade, não faltarão argumentos da minha parte. Desejo consolá-lo nesse transe, que deve ser, de todos, o mais duro para o coração de um pai. A morte da sua filha seria uma bênção em comparação com o que sucede agora. E isto ainda é de se lamentar quando sabemos que existem razões de supor, como a minha cara Charlotte me informou, que essa licenciosidade de conduta da parte de sua filha foi devida a uma excessiva e culposa indulgência; ao mes­mo tempo, para o seu próprio consolo e o de Mrs. Bennet, estou inclinado a acreditar que as tendências da sua filha devem ser naturalmente perversas. Sem o que, ela jamais seria capaz de cometer tão grande crime com tão pouca idade. Seja como for, o senhor nos merece a maior compaixão, e nisto sou acom­panhado não só por Mrs. Collins, como igualmente por Lady Catherine e sua filha, a quem contei a história e que são da mesma opinião. Elas concordam comigo quanto às apreensões que sinto, que este mau passo de uma das suas filhas será prejudicial para o futuro de todas as outras; na verdade, quem, como Lady Catherine pessoalmente condescende em dizer, quem quererá se relacionar com tal família? E esta consideração me conduz além disso a refletir com a maior satisfação num certo acontecimento do mês de novembro passado, pois de outro modo eu estaria envolvido em todas estas tristezas e desgraças. Permita que o aconselhe, pois, meu caro senhor, a se consolar a si próprio o mais que puder, a expulsar para sempre a sua filha indigna da sua afeição, e deixá-la colher os frutos do seu odioso crime. Seu, caro senhor, etc."

 

Mr. Gardiner não tornou a escrever senão depois que re­cebeu uma resposta do Coronel Forster; e, quando o fez, nada tinha de agradável a comunicar. Não se sabia de um só parente com quem ele mantivesse relações e era certo que Wickham não tinha nenhum parente próximo que estivesse vivo. Seus conhecimentos antigos eram numerosos, mas desde que entrara na milícia parecia que já não mantinha relações com nenhum deles. Não havia ninguém portanto a quem se pudesse procurar e obter notícias a seu respeito. No estado precário das suas finanças, o casal tinha um motivo poderoso para a reclusão, além do medo que Wickham tinha de ser descoberto pelos parentes de Lydia. Haviam sabido que ele tinha deixado grandes dívidas no jogo; o Coronel Forster acreditava que seria preciso mais de mil libras para cobrir todas as despesas que o oficial deixara em Brighton. Ele devia muito na cidade, mas as dívidas de honra ainda eram muito maiores. Mr. Gardiner não procurou esconder esses detalhes da família de Longbourn. Jane os ouviu com horror.

— Um jogador! — exclamou ela. — Isto eu não es­perava...

Mr. Gardiner acrescentava na carta que eles podiam contar com o regresso do pai no dia seguinte, que era um sábado. Abatido pelos insucessos dos seus esforços, ele se rendera às persuasões do cunhado para que voltasse para junto da família e deixasse a seu cargo tudo o que parecesse aconselhável para a continuação das pesquisas. Ao ser informada do fato, Mrs. Bennet não exprimiu toda a satisfação que as filhas esperavam, dada a ansiedade que manifestara pela vida do marido.

— O quê? — exclamou ela. — Então ele vai voltar sem trazer a nossa Lydia? Decerto Mr. Bennet não vai sair de Londres antes de ter encontrado os fugitivos... Quem vai bri­gar com Wickham e forçá-lo a se casar com ela?

Mrs. Gardiner começou a ter saudades de casa. Ficou com­binado que ela e as crianças voltariam para Londres quando Mr. Bennet viesse para Longbourn. A carruagem levou-os por­tanto até metade da jornada, e trouxe de volta Mr. Bennet a Longbourn. Mrs. Gardiner partiu, tão perplexa a respeito do caso de Elizabeth e de Mr. Darcy como viera desde o Derbyshi­re. O nome dele não fora mencionado voluntariamente nem uma vez pela sobrinha. E a vaga esperança que tinha Mrs. Gar­diner de que Elizabeth recebesse logo uma carta de Darcy não fora correspondida. Desde o seu regresso, Elizabeth não tinha recebido nenhuma carta que parecesse vir, de Pemberley. Os atuais dissabores da família tornavam desnecessária outra escusa para a depressão de Elizabeth. Ninguém podia portanto descon­fiar de coisa alguma. Mas Elizabeth, que conhecia regularmente os próprios sentimentos, sabia bem que se não tivesse renovado as relações com Darcy teria suportado a mágoa pela infâmia de Lydia com muito maior facilidade. E não perderia uma noite de sono em cada dois dias.

Mr. Bennet chegou e todos repararam que aparentemente ele conservava toda a serenidade filosófica. Falou muito pouco, como era o seu hábito. Não mencionou o assunto que o levara a Londres e só muito tempo depois as filhas tiveram coragem de se referir a isto.

Foi só à tarde, à hora do chá, que Elizabeth se aventurou a falar sobre o assunto. Começou exprimindo os seus sentimen­tos pelas aflições que o pai deveria ter passado. Ele respondeu:

— Não fale mais nisto. Quem deveria sofrer senão eu mesmo? Foi tudo por minha culpa, sou obrigado a reconhecê-lo.

— Não deve ser severo demais para consigo próprio — replicou Elizabeth.

— É bom que você me previna contra este erro. A natu­reza humana tem a tendência a cair nele. Não, Lizzy, deixe que por uma vez na vida eu sinta o peso da minha responsabilidade. Não tenho medo de ser esmagado pela impressão. Tudo isto não tardará a passar.

— Acha que eles estão em Londres?

— Sim, em que outro lugar poderiam se esconder?

— E Lydia sempre desejou ir para Londres — acrescentou Kitty.

— Então ela deve estar contente — acrescentou o pai, secamente. — Provavelmente residirá lá muito tempo.

Em seguida depois de curto silêncio, continuou:

— Lizzy, não lhe guardo rancor pelo conselho que você me deu no mês de maio passado; considerando o que aconteceu, isto mostra a largueza da sua visão.

Foram interrompidos por Jane, que vinha buscar o chá da mãe.

— Isto é uma demonstração que conforta a gente — ex­clamou ele. — Dá um ar elegante ao infortúnio. Um dia desses farei o mesmo. Ficarei sentado na minha biblioteca, de camisola e touca de dormir, e darei aos outros o maior trabalho possível. Ou melhor, vou deixar isto para quando Kitty também se re­solva a fugir.

— Eu não vou fugir, papai — disse Kitty, inquieta. — Se me deixassem ir a Brighton, eu me comportaria melhor do que Lydia.

— Você ir a Brighton? Não a deixarei ir nem a Eastborn aqui ao lado. Nem por cinqüenta libras. Não, Kitty, pelo menos aprendi a ser prudente e você há de sentir os efeitos disso. Ne­nhum oficial tornará jamais a entrar na minha casa, nem que esteja só de passagem pela aldeia. Os bailes serão absoluta­mente proibidos a não ser que você fique o tempo todo com uma das suas irmãs. E nunca sairá por esta porta sem provar que passou dez minutos de maneira sensata.

Kitty, que levava todas aquelas ameaças a sério, começou a chorar.

— Deixe disso — falou ele —, não fique triste. Se for uma boa menina nesses próximos dez anos, levarei você para ver uma parada.

 

Dois dias depois da chegada de Mr. Bennet, Jane e Eli­zabeth estavam passeando juntas no pequeno bosque atrás da casa quando viram que a criada se aproximava em direção a elas. E, concluindo que vinha a mandado de Mrs. Bennet a fim de chamá-las, foram-lhe ao encontro.

— Desculpe interrompê-las, mas creio que chegaram boas notícias da cidade e por isto tomei a liberdade de vir chamá-las.

— Que é que você quer dizer, Hill? Não recebemos ne­nhuma carta da cidade...

— Minha querida senhora — exclamou Mrs. Hill, espan­tada —, então não sabe que chegou um expresso da parte de Mr. Gardiner para o patrão? Ele está aqui há meia hora e trouxe uma carta para Mr. Bennet.

As meninas não perderam tempo em responder e saíram correndo. Atravessaram o vestíbulo, a sala de almoço e foram desse modo até a biblioteca. Mas não encontraram o pai. Esta­vam a ponto de subir para procurá-lo no quarto de Mrs. Bennet, quando o mordomo se dirigiu a elas e disse:

— Se estão procurando o patrão, ele está caminhando em direção ao pequeno bosque.

Tendo recebido esta informação, as meninas tornaram a passar pelo hall e atravessaram o gramado em busca do pai, que se dirigia para um dos pequenos bosques que havia de um dos lados do jardim.

Jane, que não era tão leve nem tinha tanta prática de cor­rer, ficou para trás, enquanto a irmã alcançava Mr. Bennet e exclamava, quase sem fôlego:

— Oh, papai, que foi que aconteceu, recebeu uma carta do tio?

— Sim, recebi uma carta dele pelo expresso.

— E que notícias traz, boas ou más?

— Que é que se pode esperar de bom? — disse ele, tiran­do a carta do bolso. — Mas talvez você queira ler.

Elizabeth tomou a carta, impaciente, enquanto Jane se aproximava.

— Leia em voz alta — disse Mr. Bennet. — Pois eu mesmo não sei de que se trata.

 

"Gracechurch Street, segunda-feira, 2 de agosto. Meu caro irmão:

Afinal posso lhe enviar notícias da minha sobrinha. Notí­cias que, em suma, acho que lhe agradarão. Pouco depois da sua partida no sábado, tive a boa sorte de descobrir em que parte de Londres o casal estava. Quanto aos detalhes deixo para quando nos encontrarmos. Basta que saiba agora que eles estão descobertos. Já estive com ambos."

 

— Então tudo se passou como eu esperava — exclamou Jane: — eles estão casados!

Elizabeth continuou:

 

"Estive com ambos. Eles não estão casados e não encontrei neles a menor intenção de fazê-lo. Mas, se estiver disposto a cumprir o compromisso que tomei a liberdade de aceitar por você, espero que se casem muito breve. Tudo o que é exigido da sua parte é assegurar à sua filha, por acordo, parte das cinco mil libras destinadas a serem repartidas entre as suas filhas depois da sua morte e a da sua mulher. E além disso comprome­ter-se a dar à sua filha, enquanto viver, a quantia de cem libras por ano. Estas são as condições que, pensando bem, não hesitei em aceitar, sentindo-me autorizado a fazê-lo. Enviarei esta carta por expresso para que a sua resposta me chegue sem perda de tempo. Você compreenderá facilmente, por estes detalhes, que a situação de Mr. Wickham não é tão má quanto se supunha. Quanto a isto, os rumores que corriam eram falsos. E alegra-me dizer que sobrará ainda um pouco de dinheiro, mesmo depois de pagas todas as dívidas do marido para instalação do casal, sem falar no dinheiro de Lydia. Se você me delegar plenos poderes para agir em seu nome, coisa da qual não tenho a menor dúvida, darei instruções imediatamente a Haggerston para pre­parar um contrato. Não há a menor necessidade de você voltar a Londres. Portanto, fique sossegado em Longbourn e conte com os meus cuidados e diligências. Mande a sua resposta o mais breve possível e tenha o cuidado de escrever claramente. Nós achamos melhor que a minha sobrinha se casasse em minha casa coisa que, espero, você aprovará. Ela virá hoje. Tornarei a lhe escrever assim que houver novas decisões. Seu, etc.

Edw. Gardiner".

 

_ Será possível? — exclamou Elizabeth, assim que ter­minou a carta. — Será possível que ele se case com ela?

— Wickham não é tão mau então como nós pensávamos _disse Jane. — Meu pai, eu lhe dou os parabéns.

— E o senhor já respondeu à carta? — perguntou Eli­zabeth.

— Não, mas é coisa que precisa ser feita imediatamente. Elizabeth suplicou então que não perdesse mais tempo.

— Oh, papai — exclamou ela —, volte e escreva sem demora! Pense na importância que cada momento tem num caso desses...

— Deixe-me escrevê-la para o senhor — disse Jane —, este trabalho lhe desagrada.

— Desagrada-me muito — replicou ele —, mas precisa ser feito.

E dizendo isto ele se virou e voltou com as moças em direção à casa.

— E posso saber qual é a resposta? — perguntou Eliza­beth. — Suponho que os termos devem ser aceitos.

— Aceitos? Só tenho vergonha de que ele peça tão pouco.

— E é preciso que eles se casem. No entanto, Wickham é um homem tão ordinário...

— Sim, sim, é preciso que eles se casem. Não há alternati­va. Mas há duas coisas que eu desejaria muito saber: uma delas é quanto dinheiro o seu tio deve pagar para arranjar isto. E a segunda é como eu poderei reembolsá-lo.

— Dinheiro? Meu tio? — exclamou Jane. — Que é que quer dizer com isto?

— Quero dizer que nenhum homem, no seu juízo perfei­to, se casaria com Lydia recebendo em troca uma compensação tão pequena. Cem libras por ano durante a minha vida e cin­qüenta depois que eu morrer!

— É verdade — disse Elizabeth. — Não me tinha ocorri­do antes. Havia as dívidas dele a serem pagas e devia ainda so­brar dinheiro. Deve ter sido meu tio quem arranjou isto. É um homem generoso. Mas tenho medo de que ele se tenha posto em situação difícil. O dinheiro que gastou não deve ter sido pouco.

— Não — disse Mr. Bennet —, Wickham seria um idiota se a aceitasse com menos de dez mil libras. De outro modo, sentiria ter de pensar mal dele logo no começo das nossas relações.

— Dez mil libras? Deus não permita tal. Como podería­mos pagar tal soma?

Mr. Bennet não respondeu. E todos, mergulhados nas suas reflexões, continuaram em silêncio até chegarem em casa. Mr. Bennet foi então até a biblioteca para escrever e as moças en­traram na sala de almoço.

— Então eles vão se casar? — exclamou Elizabeth, assim que se viu sozinha com Jane. — Como é estranho! Ainda por cima, temos de nos considerar muito felizes! Temos de dar graças a Deus que isso aconteça, embora sejam tão diminutas as possibilidades de Lydia ser feliz e Wickham tenha um caráter tão ruim... Oh, Lydia!

— Eu me consolo pensando que decerto ele não se casaria com Lydia se não tivesse afeição por ela — replicou Jane. — Embora acredite que nosso tio tenha feito alguma coisa por ele, não posso crer que tenha gasto dez mil libras nem coisa pare­cida. Ele tem os seus próprios filhos e ainda pode ter outras preocupações. Como poderia gastar dez mil libras?

— Se pudéssemos saber quais eram as dívidas de Wick­ham ... E com quanto ele dotou nossa irmã... Saberíamos exa­tamente o que Mr. Gardiner fez, pois Wickham não tem um tostão de seu. A bondade dos nossos tios é uma coisa que nunca poderá ser paga. Eles a levaram para casa e lhe deram toda a sua proteção e apoio moral. Isto é um sacrifício que anos de gratidão não podem compensar. Nesse momento, ela está em casa deles. Se uma tão grande bondade não lhe der a consciên­cia da falta que praticou, é que não merece nunca ser feliz. Imagine a cara quando chegar diante da minha tia.

— Devemos nos esforçar para esquecer tudo o que se passou — disse Jane. — Confio e espero que eles sejam felizes. Creio que o fato de ele consentir em se casar com ela é uma prova de que tomou juízo. A afeição que têm um pelo outro lhes dará estabilidade. E tenho a esperança de que eles se estabele­çam tranqüilamente na sua nova vida, e vivam de uma maneira tão ajuizada que com o tempo a imprudência que fizeram seja esquecida.

A conduta deles foi de tal ordem — replicou Elizabeth —, que nem você, nem eu e nem ninguém poderá jamais esquecê-la. É inútil falar nisto.

As meninas então se lembraram de que a mãe provavel­mente ainda ignorava tudo o que se passava. Dirigiram-se pois à biblioteca e perguntaram ao pai se ele não desejava que lhe fossem transmitir a notícia. Ele estava escrevendo. E sem levan­tar a cabeça respondeu, friamente:

— Como quiserem.

— Podemos levar a carta do meu tio e ler para ela?

— Levem o que vocês quiserem e vão embora.

Elizabeth tomou a carta de cima da mesa e as irmãs subi­ram juntas. Mary e Kitty estavam ambas com Mrs. Bennet. A mesma comunicação serviria portanto para todas. Depois de uma ligeira preparação para as notícias que traziam, a carta foi lida em voz alta. Mrs. Bennet não pôde conter os seus senti­mentos. Assim que Jane leu o trecho em que Mr. Gardiner exprimia a esperança de que Lydia em breve se casasse, Mrs. Bennet começou a manifestar a sua alegria, e cada frase subse­qüente a tornava ainda mais expansiva. A alegria era tão rui­dosa e violenta como anteriormente os receios e o desespero. Bastava saber que a filha se casaria. Nenhum receio quanto à felicidade de Lydia, nenhuma lembrança da sua falta a per­turbava.

— Oh, minha querida Lydia — exclamou ela. — Isto é realmente estupendo! Ela se casará! Eu tornarei a vê-la! Ela se casa com dezesseis anos! Que bom irmão eu tenho! Bem sabia que ele ia arranjar tudo! Que vontade de vê-la! E o meu que­rido Wickham também! Mas as roupas, o enxoval! Vou escre­ver para minha irmã Gardiner imediatamente! Lizzy, meu bem, corra lá embaixo e pergunte a seu pai quanto ele dará a Lydia para o enxoval. Não, fique, fique, irei eu mesma! Toque a cam­painha, Kitty, chame Hill, eu me vestirei num instante. Oh, minha querida Lydia! Como nos sentiremos felizes quando esti­vermos todos juntos!

Jane procurou abrandar a violência das suas expansões, lembrando-lhe quantas obrigações deviam a Mr. Gardiner pelo que ele tinha feito.

— Devemos atribuir a feliz conclusão desta história em grande parte à bondade do nosso tio — acrescentou Jane. — Estamos convencidos de que ele se empenhou para auxiliar Mr. Wickham com dinheiro.

— Bem — exclamou Mrs. Bennet —, está certo, quem o faria se não fosse o seu tio? Se ele não tivesse família, nós é que seríamos os seus herdeiros. E é a primeira vez que rece­bemos qualquer coisa dele, a não ser alguns presentes. Sinto-me tão feliz, em breve terei uma filha casada! Mrs. Wickham! Como soa bem... E ela fez apenas dezesseis anos em junho! Jane, estou tão nervosa que não posso escrever. Vou ditar e você escreve por mim. Mais tarde combinaremos com seu pai a respeito do dinheiro. Mas é preciso encomendar as coisas ime­diatamente.

Mrs. Bennet começou então a fazer uma lista de todas as peças de tecidos estampados, musselinas, e cambraias, e teria feito dentro em pouco uma grande encomenda, se Jane não a tivesse persuadido, com alguma dificuldade, que esperasse até poder consultar o pai. Um dia de atraso, observou ela, seria de pouca importância. E Mrs. Bennet se sentia feliz demais para ser obstinada como de costume. Outros planos vieram ocupar os seus pensamentos.

— Assim que estiver vestida, irei a Meryton e darei as boas novas a minha irmã Philips. E na volta irei à casa de Lady Lucas e de Mrs. Long. Kitty, corra lá embaixo e peça a carrua­gem. Um pouco de ar me faria muito bem. Meninas, querem que eu traga alguma coisa para vocês de Meryton? Oh, aí vem Hill. Minha cara Hill, você já ouviu as boas novidades? Miss Lydia vai se casar. Você terá que preparar um jarro de punch para o casamento.

Miss Hill começou imediatamente a exprimir a sua alegria. Elizabeth, entre outras, recebeu os seus parabéns. Em seguida, cansada de tanta loucura, foi se refugiar no seu quarto para poder refletir à vontade.

Coitada de Lydia; a sua situação, mesmo assim, era bas­tante ruim. Mas ainda tinha de dar graças a Deus por não ser pior. E, embora pensando no futuro, não via para a irmã gran­des possibilidades de felicidade nem de prosperidade; e, ao se lembrar do passado, dos seus temores há duas horas apenas, Eli­zabeth sentiu, entretanto, todas as vantagens que tinham ganho.

 

Mr. Bennet muitas vezes se arrependera de nunca ter pos­to de lado uma soma anual para garantia do futuro das filhas e da mulher, em vez de gastar toda a sua renda. Agora se arre­pendia mais do que nunca. Se tivesse cumprido o dever nesse ponto, Lydia não estaria agora devendo tanto ao tio, uma soma tão grande em dinheiro, honra e bom nome. E a satisfação de obrigar um dos piores rapazes da Grã-Bretanha a se casar com ela lhe teria cabido, como de direito.

Ele estava seriamente preocupado com que uma coisa de tão poucas vantagens para qualquer pessoa tivesse sido conse­guida unicamente às expensas do seu cunhado e resolvera, caso fosse possível, averiguar a importância exata do auxílio dele e lhe pagar o mais depressa possível.

Quando Mr. Bennet se casou, julgara que era perfeitamen­te inútil fazer economia, pois naturalmente haveria de ter um filho. Este filho entraria no direito de herdar a propriedade e desse modo a viúva e as crianças menores ficariam garantidas. Cinco filhas sucessivamente vieram ao mundo, mas o filho ainda estava para vir. Muitos anos depois do nascimento de Lydia, Mrs. Bennet acreditara que o filho viesse a nascer. Mas afinal tivera que renunciar a essa esperança. Mrs. Bennet não tinha jeito para economia e os gostos morigerados do marido foram a única coisa que os impediu de gastarem além da renda que possuíam.

Pelo contrato de casamento, cinco mil libras deviam ser deixadas para Mrs. Bennet e seus filhos. Mas a partilha devia ser feita de acordo com a vontade dos pais. Em relação a Lydia, este era um ponto que agora devia ser decidido. E Mr. Bennet não podia hesitar em aceitar os termos da proposta que lhe tinha sido feita. Em termos precisos, porém cordiais, exprimiu a sua gratidão pela bondade do cunhado. Em seguida declarou a sua plena aprovação a tudo o que tinha sido feito, e a sua aceitação aos compromissos que Mrs. Gardiner tomara em seu nome. Nunca tinha suposto que fosse possível convencer Wick­ham a se casar com a sua filha em termos tão convenientes. As cem libras que deveria pagar anualmente não representavam um déficit real de mais de dez libras; pois as despesas com o sustento de Lydia, o dinheiro que lhe dava para as suas despe­sas e os presentes que lhe chegavam continuamente às mãos por intermédio de Mrs. Bennet não somavam ao todo muito me­nos do que aquelas cem libras.

Outra surpresa agradável fora a facilidade com que tudo se arranjara sem lhe dar quase trabalho. Seu desejo agora era preocupar-se com aquilo o menos possível. O afã com que se lançara à procura da filha tinha sido apenas um efeito da cólera. Cessada esta, Mr. Bennet recaiu na habitual indolência. A carta foi logo despachada, pois, embora lento na elaboração dos seus projetos, ele era rápido na sua execução. Pedia a Mr. Gardiner que detalhasse as despesas que tinha feito, porém não enviou nenhum recado para Lydia, porque ainda estava ressentido com ela.

As boas notícias espalharam-se rapidamente pela casa e pelas redondezas. A vizinhança as acolheu filosoficamente. De­certo teria sido mais interessante se Miss Lydia tivesse regres­sado. Ou então se ela se encontrasse em reclusão em alguma fazenda distante. Mas o casamento era um tópico suficiente pa­ra a conversação.

As velhas invejosas de Meryton continuaram a enviar os seus votos de felicidade com o mesmo secreto contentamento com que anteriormente exprimiam as suas condolências, pois, com um marido assim, a desgraça de Lydia era considerada certa.

Mrs. Bennet passara quinze dias sem sair do quarto. Naque­la grande data, tornou a assumir o seu lugar à cabeceira da me­sa. Sua satisfação era extrema. Nenhum sentimento de vergonha atenuava o seu triunfo. Desde que Jane completara quinze anos, o seu maior desejo fora ver uma das filhas casada. E agora este desejo estava a ponto de se realizar. Todos os seus pensamen­tos giravam em torno dos acessórios de um casamento elegante, tais como musselinas finas, novas carruagens e criados. Procura­va lembrar-se de uma casa das redondezas que servisse para a filha e, sem saber qual seria a renda do casal, recusava muitas das que lhe sugeriam porque seriam demasiado modestas e aca­nhadas.

— Haye Park talvez sirva, se os Goulding consentirem em sair. Aquela casa espaçosa em Stoke também não é má. Mas a sala de estar é muito pequena. Ashworth é muito distan­te. Não quero que ela more a mais de dez milhas de distância daqui, no máximo. Quanto a Pulvis Lodge, as mansardas são horríveis.

Mr. Bennet deixou que ela falasse sem interrupção, en­quanto havia criados na sala. Mas, depois que eles saíram, disse:

— Mrs. Bennet, antes que tome uma destas casas ou to­das elas para a sua filha, é bom chegar já a um acordo quanto a este ponto. Numa determinada casa desta redondeza eles nun­ca serão admitidos. Não encorajarei a imprudência daqueles dois, recebendo-os em Longbourn.

A esta declaração se seguiu uma longa disputa. Mas Mr. Bennet se mostrou firme. E o assunto logo os conduziu a ou­tro. Mrs. Bennet descobriu com espanto e horror que o marido não adiantaria uma só libra para as despesas do enxoval. Ele declarou que ela não receberia o menor sinal da sua estima por ocasião do casamento. Mrs. Bennet não podia compreender aquela atitude. Parecia-lhe impossível que ele levasse o ressen­timento ao ponto de recusar à filha um dos privilégios sem o qual o casamento não pareceria válido. Mrs. Bennet era muito mais sensível à vergonha de ter casado a filha sem roupas novas do que à desonra causada pela sua fuga e pelo fato de ela ter vivido quinze dias com Wickham sem ser casada.

Elizabeth se arrependeu mais do que nunca por se ter dei­xado levar pela aflição do momento e revelado a Mr. Darcy os seus temores quanto ao futuro da irmã; pois, como o casamen­to se realizaria em breve, talvez pudessem esconder o fato ver­gonhoso a todos aqueles que não estavam diretamente relacio­nados com a família.

Ela não tinha receio de que o caso se espalhasse por inter­médio de Mr. Darcy; havia poucas pessoas atualmente em cuja discrição tivesse mais confiança. Por outro lado, não havia nin­guém cujo conhecimento da leviandade da sua irmã a mortificasse tanto. No entanto, não se sentia mortificada porque te­messe qualquer desvantagem para si própria, pois de qualquer modo parecia haver um abismo intransponível entre eles. Mes­mo que o casamento de Lydia tivesse sido concluído da forma mais respeitável, não era crível que Mr. Darcy quisesse se re­lacionar com uma família contra a qual tinha tantas objeções; agora, a estas objeções se acrescentava outra. Uma aliança que ele, com muita razão, considerava desprezível.

Não era pois de estranhar que hesitasse. O desejo de obter a consideração de Elizabeth, desejo que ele lhe havia manifes­tado no Derbyshire, não poderia sobreviver a tal golpe. Eliza­beth se sentiu humilhada e ferida. Tinha remorsos sem saber bem de quê. Desejava a estima dele quando não tinha mais es­perança de que essa estima a beneficiasse. Queria saber notí­cias suas e não tinha a menor esperança de que ele lhe escre­vesse. E agora, que não havia mais probabilidade de encontrá-lo, estava convencida de que poderia ter sido feliz com ele.

Que triunfo para Mr. Darcy se pudesse saber que as pro­postas que ela tinha rejeitado tão orgulhosamente há quatro meses atrás seriam recebidas agora com alegria e gratidão. Ele era generoso, disto Elizabeth não tinha a menor dúvida. Havia poucos homens mais generosos. Para não triunfar agora, entre­tanto, era preciso que não fosse humano.

Elizabeth começou a compreender então que Mr. Darcy era o homem que mais lhe convinha, tanto pelo temperamento como pelas qualidades. O gênio, embora diverso do seu, corres­pondia a todos os seus desejos. Essa união teria sido vantajosa para ambos. A espontaneidade e a naturalidade de Elizabeth contribuiriam para suavizar o espírito dele, e melhorar-lhe tam­bém as maneiras. Ela, por sua vez, receberia um benefício ainda maior com a segurança do seu julgamento e a sua experiência do mundo.

Porém esse modelo dos casamentos felizes não mais se rea­lizaria. Mas em breve uma união de caráter diferente e que excluía a possibilidade do outro seria formada na sua família.

Não sabia como Lydia e Wickham conseguiriam viver em relativo conforto. Aliás, um casal que tinha se unido por pai­xões mais fortes do que a sua virtude tinha diminutas possibi­lidades de felicidade duradoura.

 

Em breve Mr. Gardiner tornou a escrever para o cunhado. Aos pedidos de Mr. Bennet, respondeu apenas que estava sem­pre disposto a fazer o máximo esforço para o bem de qualquer pessoa da família, e concluiu pedindo que nunca mais se men­cionasse o assunto. A finalidade principal da carta era anun­ciar que Mr. Wickham tinha resolvido sair da milícia.

"Eu desejava muito que ele o fizesse assim que o casamen­to fosse marcado", acrescentava Mr. Gardiner. "E acho que você pensará, como eu, que esse passo é muito vantajoso, tanto para ele como para minha sobrinha. Mr. Wickham tenciona en­trar no Exército regular; e alguns dos seus antigos amigos es­tão dispostos a apoiá-lo. Prometeram-lhe um posto de tenente no regimento do General..., aquartelado agora no norte. Há vantagem em que ele fique longe daqui. Promete alguma coisa e espero que, entre pessoas estranhas, onde poderão fazer nova reputação, ambos se mostrarão mais prudentes. Escrevi para o Coronel Forster, a fim de informá-lo da nossa atual situação e pedindo que tranqüilize os vários credores de Mr. Wickham em Brighton e redondezas, com promessas de rápido pagamento, pois assumi o compromisso de pagá-las. Peço que faça o mes­mo com os seus credores em Meryton, dos quais lhe envio a lista, de acordo com as informações de Mr. Wickham. Ele con­fessou todas as suas dívidas. Espero ao menos que não nos te­nha enganado. Haggerston já recebeu as nossas instruções e tudo ficará pronto dentro de uma semana. Eles partirão em se­guida para a sede do regimento, a não ser que você os convide primeiro a ir a Longbourn. Mrs. Gardiner me disse que minha sobrinha está muito desejosa de vê-los a todos, antes de partir para o norte. Ela está bem e pede que eu lhe transmita os seus respeitos, bem como a Mrs. Bennet. Seu, etc.

  1. Gardiner."

 

Mr. Bennet e as filhas compreenderam logo as vantagens da saída de Mr. Wickham do regimento da milícia, não menos claramente do que Mr. Gardiner. Mas Mrs. Bennet de modo algum ficou tão satisfeita. Lydia ia morar no norte, exatamente quando teria maior prazer e orgulho na sua companhia, pois ela não tinha absolutamente desistido do seu plano de instalar a filha no Hertfordshire. Seu desapontamento foi grande. Além disso era uma pena que Lydia fosse afastada de um lugar onde ela tinha tantas relações.

— Lydia gostava tanto de Mrs. Forster! — disse ela. — E uma pena mandá-la embora. E além disso há muitos rapazes lá que ela aprecia. Os oficiais do regimento do General... po­dem não ser tão amáveis.

A insinuação de Mr. Gardiner podia ser tomada como um pedido formal para Lydia tornar a ser admitida entre os seus antes da sua partida para o norte; a princípio Mr. Bennet re­cusou terminantemente este pedido. Mas Jane e Elizabeth, que eram da mesma opinião, desejavam ambas, para bem da irmã, que ela recebesse o apoio dos pais. Pediram-lhe de um modo tão insistente, e ao mesmo tempo com tanta doçura, que os rece­besse em Longbourn assim que estivessem casados, que conse­guiram demover o pai da intenção primitiva. E Mrs. Bennet teve a satisfação de saber que ela poderia exibir nas redonde­zas a filha casada, antes de ela ser banida para o norte. Quando Mr. Bennet tornou a escrever para o cunhado, transmitiu afinal a sua permissão. Elizabeth, entretanto, ficou surpreendida por Wickham ter concordado com este plano. E, se ela tivesse con­sultado apenas as suas preferências, um encontro com ele seria a última coisa no mundo que ela própria desejaria.

 

Afinal o dia do casamento chegou. Jane e Elizabeth fica­ram mais comovidas do que a própria Lydia. A carruagem foi enviada ao encontro dos noivos, que eram esperados à hora do jantar. Jane e Elizabeth viam com crescente apreensão se apro­ximar a hora da chegada. Jane especialmente, que atribuía a Lydia os sentimentos que sentiria se estivesse no lugar dela, se entristecia com a idéia do que a irmã iria sofrer.

Chegaram. A família estava reunida na sala de almoço pa­ra recebê-los. Mrs. Bennet se desmanchou em sorrisos assim que a carruagem parou à porta. Mr. Bennet tinha um olhar gra­ve e impenetrável. E suas filhas estavam alarmadas, ansiosas e inquietas.

Ouviram a voz de Lydia no vestíbulo. A porta foi aberta com força e ela entrou correndo na sala. A mãe adiantou-se, abraçou-a, com grandes demonstrações de alegria. Sorrindo afe­tuosamente, ela estendeu a mão para Wickham, desejando feli­cidade a ambos com uma alacridade que demonstrava bem que ela não duvidava nem um minuto da realização do seu desejo.

Mr. Bennet os recebeu muito menos cordialmente. Seu rosto se tornou ainda mais grave e ele mal abriu a boca. A ati­tude despreocupada do jovem casal era realmente uma provo­cação. Elizabeth ficou irritada e mesmo Jane ficou consternada. Lydia continuava a mesma. Imprudente, indomável, louca, rui­dosa, temerária. Cumprimentou cada uma das irmãs exigindo os parabéns, e depois que todos se sentaram começou a olhar em torno de si com curiosidade, notando as pequenas alterações que tinha havido na sala; depois observou com uma risada que há muito tempo não via aquele lugar. Wickham ficou mais per­turbado do que ela. Mas as suas maneiras eram sempre agradá­veis, e se o seu caráter fosse perfeito e o casamento tivesse se realizado segundo as regras, seus sorrisos e palavras teriam con­quistado toda a família. Elizabeth nunca o supusera capaz de tal cinismo. Mas ela sentou, resolvendo consigo mesma que para o futuro nunca mais traçaria limites à imprudência de um ho­mem sem escrúpulos. Corou e Jane também, mas os rostos que lhes causavam essa perturbação não se alteraram.

A conversação era incessante. A noiva e a mãe competiam em exuberância. E Wickham, que estava sentado perto de Eli­zabeth, começou a perguntar pelos conhecidos nas redondezas, com uma tranqüilidade bem-humorada que ela sentiu jamais poder imitar nas respostas. Tanto Wickham como a esposa só pareciam ter lembranças agradáveis na vida. Nenhum fato do passado era lembrado com amargura. Ela própria mencionava assuntos a que as irmãs por coisa alguma no mundo aludiriam.

— Imagine, já faz três meses que fui embora — exclamou Lydia. — Não me parecem mais do que quinze dias. E no en­tanto aconteceram tantas coisas... Quando fui embora, nem sequer imaginava que um dia voltaria casada! Mas pensei que seria engraçado se o fizesse...

Mr. Bennet levantou os olhos. Jane ficou aflita e Eliza­beth olhou significativamente para Lydia; esta, porém, conti­nuou, como se nada tivesse visto:

— Oh, mamãe, o pessoal daqui das redondezas sabe que eu me casei hoje? Tive receio de que não soubessem. No cami­nho encontramos William Goulding na sua charrete. E, para que ficasse sabendo, abaixei a vidraça, tirei a minha luva e apoiei a mão no rebordo da janela para que ele visse a minha aliança. Depois, então, eu o cumprimentei e me desmanchei em sorrisos.

Elizabeth achou que aquilo passava dos limites. Levantou-se, saiu, e só voltou quando os ouviu passar através do hall para ir à sala de jantar. Ao entrar, viu Lydia, com sinais de ansieda­de no rosto, aproximar-se do lugar à direita da mãe, dizendo para a irmã mais velha:

— Ah, Jane, eu fico agora no seu lugar, você fica mais para baixo, pois agora sou uma mulher casada.

Não era crível que a solenidade do jantar desse a Lydia o constrangimento que até aquele instante não demonstrara. Ao contrário, o seu desembaraço e a sua alegria aumentaram. Es­tava louca de vontade de ver Mrs. Philips, os Lucas e todos os outros vizinhos, e ouvi-los chamá-la de Mrs. Wickham. Enquan­to essas pessoas não apareciam, logo depois, ela foi mostrar a aliança para Mrs. Hill e as duas criadas.

— Bem, mamãe — disse ela quando voltou à sala —, que é que você acha do meu marido? Não é mesmo um homem encantador? Estou certa de que todas as minhas irmãs me in­vejam. Desejo só é que elas tenham metade da minha sorte. Precisam todas ir a Brighton. Lá é que é bom lugar para se arranjar marido. Que pena, mamãe, não termos ido todas!

— É verdade; se me tivessem escutado, teríamos ido. Mas, minha querida Lydia, não gosto nada dessa idéia de você ir para tão longe. Será mesmo necessário?

— Oh, sim, não vejo nenhum mal nisto. Tenho muita vontade de ir. A senhora, papai e minhas irmãs precisam ir nos visitar. Estaremos em New Castle todo o inverno. Vai haver muitos bailes e eu arranjarei bons pares para todas as que forem.

— Eu bem que gostaria de ir — disse Mrs. Bennet.

— E depois, quando regressar, poderão deixar comigo uma ou duas das minhas irmãs. Garanto que arranjarei mari­dos para elas antes do fim do inverno.

— Agradeço pela parte que me toca — disse Elizabeth. — Mas não aprecio muito a sua maneira de arranjar maridos.

Os visitantes não poderiam demorar mais de dez dias. Mr. Wickham tinha sido nomeado antes de sair de Londres e haviam lhe concedido apenas quinze dias para se reunir ao regimento.

A não ser Mrs. Bennet, ninguém mais lamentou que eles demorassem tão pouco. Mrs. Bennet aproveitou o tempo da melhor forma possível, fazendo visitas com a filha e recebendo freqüentemente. Essas reuniões foram agradáveis para todos. Escapar ao círculo da família era mais agradável para os que pensavam do que para aqueles que não o faziam. A afeição de Wickham por Lydia era exatamente como Elizabeth tinha es­perado: inferior à que Lydia tinha por ele. Mesmo se não ti­vesse tido oportunidade de observá-los, chegaria à conclusão lógica de que a fuga tinha sido devido mais à paixão dela do que ao interesse dele. E, se não fosse a certeza de que ele tinha fugido porque a sua situação no lugar era insuportável, Eliza­beth se surpreenderia pelo fato de Wickham ter raptado a sua irmã sem possuir uma paixão violenta. Sendo este o caso, ele não resistiria à oportunidade de ter uma companheira para a viagem.

Lydia gostava imensamente de Wickham. Ele continuava a ser o seu querido Wickham. Ninguém podia competir com ele no seu coração. Fazia as coisas, segundo ela, melhor do que todo mundo. Certa manhã, pouco depois da sua chegada, es­tando sentada com as duas irmãs mais velhas, Lydia disse para Elizabeth:

— Lizzy, creio que nunca lhe contei como foi o meu casa­mento. Você não estava presente quando descrevi tudo para mamãe e as outras. Não está curiosa por saber como tudo isto se passou?

— Não, para falar a verdade — replicou Elizabeth —, penso que quanto menos se falar neste assunto, melhor.

— Ora, você é tão esquisita! Mas vou contar como acon­teceu tudo... Nós nos casamos na Igreja de São Clemente, porque a residência de Wickham era naquela paróquia. Combi­namos nos encontrar lá às onze horas. Meus tios e eu devía­mos ir juntos. E os outros nos encontrariam na igreja. Bem, chegou segunda-feira de manhã, e eu estava numa aflição que você nem imagina! Tinha medo de que acontecesse alguma coisa e que a gente tivesse de adiar o casamento. Eu teria fica­do desesperada! Enquanto me vestia, minha tia continuou fa­lando todo o tempo, tal qual se estivesse fazendo um sermão. Mal entendi uma palavra, pois como você deve supor estava pensando no meu querido Wickham. Estava doida para saber se ele ia se casar com o casaco azul. Bem, almoçamos às dez, como de costume. Pensei que o almoço nunca mais ia acabar. Entre parênteses, meu tio e minha tia foram horrivelmente se­veros comigo durante todo o tempo que estive lá. Imagine que não me deixaram botar os pés fora de casa nem uma só vez, durante os quinze dias que passei em casa deles. Nem uma festa, nem uma reunião, nada. Naturalmente Londres estava bastante deserta. Mas o Pequeno Teatro estava aberto. Bem, na hora em que a carruagem parou à porta, meu tio foi chamado a ne­gócios por um sujeito horrível chamado Mr. Stone. E você sabe que, quando ele começa a falar em negócios, não acaba mais. Eu estava tão assustada que não sabia o que fazer, pois era meu tio quem me serviria de padrinho. E se a gente perdesse a hora teria que deixar o casamento para o dia seguinte. Mas, felizmente, ele tornou a voltar dentro de dez minutos, e então saímos todos. Mas depois me lembrei de que, mesmo se ele fosse impedido de ir, o casamento poderia se ter realizado, por­que Mr. Darcy o poderia ter substituído.

— Mr. Darcy? — repetiu Elizabeth, com imenso espanto.

— Sim, ele tinha ficado de vir com Wickham. Mas que é que eu estou dizendo! Eu me esqueci! Não devia ter dito nada! Prometi que não diria! Que é que Wickham vai dizer? Era segredo!

— Se era segredo — disse Jane —, então não diga mais nada. Pode ficar certa de que não faremos outras indagações.

— Decerto — disse Elizabeth, ardendo de curiosidade. _Nada perguntaremos a você.

— Obrigada — disse Lydia —, pois se vocês perguntas­sem, eu certamente diria tudo. E depois Wickham ficaria mui­to zangado comigo.

Para resistir àquele encorajamento, Elizabeth foi obriga­da a fugir.

Mas era impossível viver na ignorância daquele detalhe. Ou pelo menos era impossível não tentar se informar. Mr. Dar­cy assistira ao casamento da sua irmã. Não poderia haver no mundo cena menos capaz de atrair o seu interesse. As conjeturas mais loucas atravessaram o seu espírito, sem que nenhu­ma a satisfizesse. As explicações que mais lhe agradavam, jus­tamente as que colocavam a conduta dele sob uma luz mais nobre, pareciam as menos prováveis. Ela não poderia suportar essa incerteza. E tomando uma folha de papel escreveu apres­sadamente uma curta missiva para a tia, pedindo-lhe a explica­ção do fato a que Lydia aludira, caso não fosse segredo.

"A senhora bem pode compreender", dizia Elizabeth, "que estou curiosa para saber como uma pessoa que não tem relações com qualquer uma de nós, e é comparativamente um estranho para a nossa família, pudesse estar presente ao casa­mento. Peço que escreva imediatamente e me explique tudo, a não ser que haja motivos muito fortes para guardar o segredo que Lydia parece achar necessário. Neste caso, terei de me re­signar à minha ignorância."

"Não, jamais me resignarei a isto", disse Elizabeth para si mesma. Em seguida terminou a carta.

"Minha querida tia, se a senhora não me disser isto por bem, serei obrigada a lançar mão de estratagemas para des­cobri-lo."

A delicadeza de Jane não lhe permitia que falasse em par­ticular com Elizabeth sobre o que Lydia tinha dito. Aliás, isto era agradável para Elizabeth. Ela preferia não ter uma confi­dente até saber se a sua curiosidade seria satisfeita.

 

Elizabeth teve a satisfação de receber uma resposta da carta e verificou que não era possível obtê-la mais prontamen­te. Assim que a carta chegou, correu para o pequeno bosque e, sentando-se num banco, preparou-se para ler tranqüilamente, sentindo-se feliz porque, pelo número de folhas, era fácil ve­rificar que não continha uma simples negativa.

"Gracechurch Street, 6 de setembro.

Minha cara sobrinha: acabo de receber a sua carta e devo­tarei toda esta manhã a lhe escrever a minha resposta, pois prevejo que em poucas linhas não poderei transmitir tudo o que tenho a dizer. Devo confessar que o seu interesse me surpre­ende. Não o esperava da sua parte. Não pense que eu esteja zangada, no entanto, pois o que desejo exprimir é que não es­perava que estas informações lhe fossem necessárias. Se prefere não compreender o que digo, perdoe a minha impertinência. Seu tio ficou tão espantado como eu. E nada, a não ser que você seja uma parte interessada, o teria levado a agir da ma­neira que fez. Mas se você é realmente inocente e ignorante, preciso ser mais explícita. No mesmo dia em que cheguei aqui de Longbourn, seu tio recebeu uma visita inesperada. Mr. Dar­cy veio à nossa casa e ficou em conferência com ele durante vá­rias horas. Quando cheguei, tudo isso já tinha acabado e por­tanto a minha curiosidade não foi tão intensamente despertada como a sua parece ter sido. Ele veio para dizer a seu tio que tinha descoberto o paradeiro de Mr. Wickham e da sua irmã e que já os tinha visto e conversado com ambos, com Wickham várias vezes e com Lydia apenas uma. Ao que parece, ele saiu do Derbyshire um dia depois da nossa partida. E veio a Lon­dres resolvido a procurar os fugitivos. O motivo alegado era sua convicção de que fora por sua causa que o caráter de Wick­ham não tinha sido bem conhecido, de maneira a que tornasse impossível que uma moça decente o amasse e confiasse nele.

Generosamente atribuiu tudo isto ao seu orgulho mal entendi­do, pois julgava estar acima da necessidade de expor aos outros os seus atos particulares. O seu caráter falava por si mesmo. Ele achava portanto que era o seu dever vir a público e ten­tar reparar o mal que ele julgava ter causado. Se tinha outro motivo, estou certa de que não era um motivo inconfessável. Passara alguns dias em Londres antes de descobrir os fugitivos. Mas ele possuía um elemento para dirigir a sua busca que nós não possuíamos: e este era o outro motivo para justificar a sua vinda. Existe uma senhora, ao que parece uma certa Mrs. Youn­ge, que foi durante algum tempo a governanta de Miss Darcy, tendo sido despedida por motivos que ele não nos contou. De­pois disto ela alugou uma grande casa em Edward Street e nela abriu uma pensão. Mr. Darcy sabia que esta Mrs. Younge era intimamente ligada a Wickham. E ele se dirigiu a ela em busca de informações, assim que chegou a Londres. Mas levou dois dias para obter dela o que desejava. Suponho que essa mulher não quisesse trair o segredo que lhe fora confiado sem receber um suborno, pois de fato ela conhecia o paradeiro do amigo dele. Wickham realmente tinha se dirigido a ela, logo depois de chegar a Londres, e se tivesse tido cômodos disponíveis, se­ria na sua casa que ele teria se instalado. Afinal o nosso bom amigo conseguiu obter o endereço desejado. Estavam na Rua ... Mr. Darcy esteve com Wickham e posteriormente insistiu em ver Lydia. O seu primeiro objetivo para com ela, reconhe­ceu ele, fora persuadi-la a abandonar a sua desonrosa situação atual e voltar para os seus amigos assim que eles consentissem em recebê-la, oferecendo o seu auxílio nesse sentido. Mas en­controu Lydia absolutamente resolvida a permanecer onde es­tava. Ela não queria saber dos amigos, não queria o auxílio dele e por coisa alguma deste mundo deixaria Wickham. Estava certa de que eles se casariam mais cedo ou mais tarde e que a data não tinha importância. Já que os seus sentimentos eram estes, pensou ele, restava apenas fazer com que se casassem o mais rapidamente possível. Logo na primeira conversação que teve com Wickham, compreendeu imediatamente que tal coisa nunca fora sua intenção. Aquele confessou que tinha deixado o regimento devido a algumas dívidas de honra muito urgentes. E não hesitava em atribuir unicamente à sua própria leviandade todas as más conseqüências da fuga de Lydia. Tinha também a intenção de resignar o seu posto imediatamente. E, quanto à sua futura situação, não sabia absolutamente o que fazer. Pre­cisava ir para algum lugar mas não sabia para onde. Sabia ape­nas que não tinha nenhum dinheiro para viver. Darcy pergun­tou por que ele não se tinha casado com a sua irmã imediata­mente. Embora não constasse que Mr. Bennet fosse muito rico, ainda assim poderia fazer alguma coisa por ele e a sua situação melhoraria com o casamento. Mas em resposta a esta pergunta, Mr. Darcy descobriu que Wickham ainda alimentava esperan­ça de fazer fortuna pelo casamento, em algum outro país. As­sim sendo, não seria prudente oferecer-lhe um auxílio imedia­to. Eles se encontraram várias vezes, pois havia muito que dis­cutir. Wickham, naturalmente, queria mais do que poderia obter. Mas afinal rendeu-se à evidência e tudo foi combinado entre eles. Mr. Darcy em seguida procurou o seu tio para lhe comunicar o que tinha feito. E ele esteve em Gracechurch Street na noite anterior à minha chegada. Mas não conseguiu encon­trar Mr. Gardiner, e Mr. Darcy descobriu então que seu pai ainda estava com ele, pois somente sairia de Londres na ma­nhã seguinte. Julgou então que era melhor entender-se com o seu tio do que com o seu pai. Resolveu, assim, adiar a entre­vista que teria com Mr. Gardiner para depois da partida daque­le. Ele não deixou o nome e, até voltar no dia seguinte, sabia-se apenas que um cavalheiro tinha procurado Mr. Gardiner a ne­gócios. No sábado reapareceu. Seu pai tinha partido, seu tio estava em casa e. como eu disse antes, tiveram uma longa en­trevista. Tornaram a se encontrar no domingo, e nesse dia eu o vi também. Só na segunda-feira ficou tudo combinado. E ime­diatamente um expresso foi despachado para Longbourn. Mas o nosso visitante se mostrou muito obstinado: creio, Lizzy, que afinal das contas a obstinação é o defeito real do seu caráter. Ele já foi acusado de muitas faltas, mas esta é a única verda­deira. Queria fazer tudo pessoalmente; embora eu estivesse certa (e não falo nisto para receber agradecimentos, e portanto não diga para ninguém) de que seu tio arranjaria tudo rapidamente. Discutiram durante muito tempo. Mais do que as duas pessoas em questão mereciam. Mas, afinal, seu tio foi forçado a ceder. Em vez de ser útil realmente à sua sobrinha, teve de se con­tentar com a fama, coisa que não lhe agradou de maneira algu­ma. E creio que a sua carta de hoje de manhã lhe deu um gran­de prazer, porque exigia uma explicação que o despojaria das suas falsas plumagens, restituindo a glória a quem de direito. Mas, Lizzy, isto não deve passar de você e de Jane, no máximo. Suponho que você deve saber muito bem o que foi feito para o jovem casal. As dívidas de Wickham, que sobem, creio eu, a muito mais de mil libras, precisam ser pagas. Outras mil são necessárias para o dote de Lydia. E a sua fiança ao posto que pretende tem de ser paga também. O motivo alegado para fa­zer tudo isto foi o que citei acima. Fora devido a ele, aos seus escrúpulos excessivos, que os outros se tinham enganado a res­peito do caráter de Wickham. E daí a confiança que tinham de­positado nele. Talvez haja uma certa verdade nisto, mas duvido que o seu silêncio ou o silêncio de qualquer outra pessoa possa ter sido a causa deste acontecimento. Mas, apesar de todas essas belas palavras, minha cara Lizzy, você pode ficar inteiramente certa de que o seu tio nunca teria cedido se ele não tivesse julga­do que Mr. Darcy tinha um outro interesse no assunto. Quando tudo isto ficou resolvido, ele voltou novamente para a compa­nhia dos amigos que ainda estavam em Pemberley, mas ficou combinado que voltaria a Londres novamente, no dia do casa­mento, para dar a última demão aos negócios de dinheiro. Creio que agora já lhe contei tudo. É um relato que, segundo vejo pela sua carta, lhe dará uma grande surpresa. Espero pelo me­nos que não lhe cause nenhum descontentamento. Lydia ficou morando conosco e Wickham esteve constantemente lá em ca­sa. Achei que ele era exatamente o mesmo rapaz que eu conheci no Hertfordshire. Mas eu não lhe contaria como me desagradou a conduta de Lydia, enquanto esteve conosco, se eu não tivesse percebido, pela carta de Jane que recebi na segunda-feira pas­sada, que o seu procedimento em Longbourn foi exatamente equivalente. E portanto o que lhe confesso agora não pode lhe causar novo desgosto. Conversei com ela várias vezes da manei­ra mais séria, mostrando-lhe o mal que tinha feito e toda a in­felicidade que causara à sua família. Se ela me ouviu foi por acaso. Estou certa de que não me prestou a menor atenção. Vá­rias vezes fiquei irritada. Nestes momentos eu me lembrava das minhas queridas Elizabeth e Jane, e por causa de vocês me ar­mei da maior paciência possível. Mr. Darcy voltou pontualmen­te e, como Lydia já lhe contou, assistiu ao casamento. Jantou conosco no dia seguinte e tencionava partir na quarta ou na quinta-feira. Espero que não se zangue comigo, minha cara Lizzy, por eu me aproveitar desta, oportunidade para lhe dizer uma coisa que antes nunca tinha ousado dizer: é que gosto mui­to dele. Seu procedimento para conosco foi sob todos os as­pectos tão agradável como quando estivemos no Derbyshire. Sua maneira de ver as coisas, suas opiniões, tudo me agrada muito. Só lhe falta um pouco mais de vivacidade. E isto, se ele se casar acertadamente, a mulher lhe poderá ensinar. Achei-o muito astuto. Quase nunca mencionou o seu nome. Mas a astúcia parece que está em moda. Peço-lhe que me perdoe se fui muito ousada ou pelo menos não me castigue a ponto de me excluir de P. Nunca me sentirei inteiramente feliz enquanto não tiver percorrido todo o pátio. Com um faéton baixo e uma boa parelha de pôneis, seria o ideal. Não posso escrever mais, as crianças já me esperam há meia hora. Sua tia muito afetuosa,

  1. Gardiner."

 

O conteúdo desta carta lançou o espírito de Elizabeth nu­ma agitação em que era difícil determinar se o prazer ou a dor predominavam. Às vagas suspeitas acerca do que Mr. Darcy poderia ter feito para auxiliar o casamento da sua irmã, suspei­tas que tivera receios de encorajar, pois demonstravam uma grandeza de alma que dificilmente encontraria em alguém, sus­peitas cuja confirmação ao mesmo tempo temia por causa da obrigação que acarretariam, se tinham convertido em realida­de além das suas expectativas. Ele a seguira deliberadamente a Londres. Assumira todos os incômodos e mortificações ineren­tes a tal pesquisa. Tivera que suplicar a uma mulher que devia abominar e desprezar. Fora obrigado a se encontrar freqüente­mente, discutir, persuadir e finalmente subornar o homem que sempre mais desejara evitar e cujo simples nome lhe era detes­tável. Tudo isso tinha feito para uma moça que ele não podia nem admirar e nem estimar. Seu coração lhe dizia que fora uni­camente por sua causa. Mas esta esperança era logo sufocada por outras reflexões e ela sentiu que não era vaidosa a ponto de julgar que Darcy tinha afeição por uma mulher que já o re­jeitara, e que ele seria capaz de vencer um sentimento tão na­tural quanto a repugnância em se relacionar novamente com Wickham. Cunhado de Wickham! O orgulho mais elementar se revoltaria contra isto. Decerto ele já tinha feito muito. Eli­zabeth até se envergonhava de pensar em tudo o que lhe devia. Mas Darcy tinha apresentado um motivo para a sua interferên­cia, um motivo que não exigia sutilezas de interpretação. Não era natural que ele sentisse que agira erradamente. Era genero­so e tinha meios de exercer a sua generosidade. E, embora ela não se considerasse como a causa principal desta conduta, po­deria talvez supor que um resto de afeição por ela tivesse con­tribuído para os seus esforços numa causa de que dependia di­retamente a sua paz de espírito. Era doloroso, muito doloroso, saber que deviam tal obrigação a uma pessoa a quem nunca po­deriam pagar. Eles deviam a reabilitação de Lydia, sua restitui­ção ao seio da família, exclusivamente a Mr. Darcy. Elizabeth se arrependeu amargamente de todos os desprazeres que jamais lhe causara, de todas as palavras duras que lhe havia dirigido. Sentia-se humilhada consigo mesma, mas estava orgulhosa dele. Orgulhosa porque numa causa de honra, movido pela compai­xão, ele conseguira se dominar. Ao pensar na certeza, que tanto ela como seu tio sentiam, de que a afeição de Mr. Darcy por ela continuava a subsistir, sentia até um certo prazer, embora de mistura à mágoa.

Elizabeth foi arrancada das suas reflexões pela aproxima­ção de uma pessoa. Levantou-se, mas antes de fugir pelo outro caminho foi abordada por Wickham.

— Acha que estou interrompendo o seu passeio solitá­rio, minha cara irmã? — indagou ele, aproximando-se. — Sen­tiria muito se o fosse. Sempre fomos bons amigos. E agora mais do que nunca.

— É verdade. Os outros não vêm passear?

— Não sei... Mrs. Bennet e Lydia vão de carro a Mery­ton. Então, minha cara irmã, soube pelos meus tios que você já esteve em Pemberley.

Elizabeth respondeu afirmativamente.

— Eu quase lhe invejo o prazer. No entanto acho que se­ria demasiado para mim. Sem o quê, iria até lá a caminho de New Castle. Naturalmente esteve com a velha caseira... Po­bre Mrs. Reynolds, ela gostava muito de mim! Mas suponho que ela não tenha falado em meu nome...

— Falou, sim.

— E o que foi que ela disse?

— Que tinha entrado no Exército e parecia que não tinha dado boa coisa. Mas compreende, a tal distância as coisas che­gam bem deformadas...

— Certamente — replicou ele, mordendo os lábios. Elizabeth supôs que o fizera silencioso, mas pouco depois ele disse:

— Fiquei espantado de ver Darcy em Londres, da vez passada. Avistei-o várias vezes na rua. Que será que ele anda fazendo lá?

— Talvez preparando o seu casamento com Miss de Bourgh — disse Elizabeth. — Ele deve ter tido ura motivo muito especial para vir a Londres nesta época do ano.

— Sem dúvida. Viu Mr. Darcy alguma vez quando esteve em Lambton? Se não me engano, os Gardiner disseram-me isto.

— Sim, ele me apresentou à irmã.

— E que achou dela?

— Gostei imensamente.

— Realmente, ouvi dizer que ela melhorou extraordina­riamente nesses últimos dois anos. Da última vez em que a vi, não prometia muito. Espero que ela acabe bem.

— Tenho certeza disto, pois já passou a idade mais pe­rigosa.

— Passaram pela aldeia de Kympton?

— Não me lembro.

— Falo nisto porque é a sede da reitoria que devia ter sido minha. Um lugar encantador. A casa é excelente. Teria sido extremamente conveniente para mim. Muito. Eu teria conside­rado isto parte do meu dever, e o esforço, afinal, não seria tão grande assim. A gente não deve se queixar. Teria sido um lugar esplêndido para mim. A tranqüilidade daquela vida teria cor­respondido a todas as minhas idéias de felicidade. Mas não ti­nha que ser. Darcy lhe falou alguma coisa sobre o caso, enquan­to esteve no Kent?

— Ouvi de uma pessoa, que considero tão bem informada quanto ele, que a reitoria lhe foi deixada apenas condicional­mente, ao arbítrio do atual proprietário.

— Ah, sim? Realmente, existe alguma verdade nisto. Aliás, foi o que eu lhe disse desde o princípio, não se lembra?

— Ouvi dizer também que, numa certa época da sua vida, a necessidade de fazer sermões não lhe era tão agradável quan­to atualmente. Ouvi dizer mesmo que tinha resolvido não se ordenar. E que neste sentido chegou a haver um acordo.

— Ah, ouviu dizer isto? E não foi sem fundamento. Deve se lembrar do que lhe falei a este respeito, quando falamos pela primeira vez neste assunto.

Estavam quase à porta da casa, pois Elizabeth tinha anda­do depressa para se ver livre dele.

Não querendo mais provocá-lo, por causa da irmã, ela res­pondeu apenas com um sorriso cordial:

— Vamos acabar com isto, Mr. Wickham, agora somos irmãos. Não devemos brigar por causa do passado. Para o fu­turo, espero que estejamos sempre de acordo.

Elizabeth estendeu a mão e ele a beijou com galante cor­dialidade, embora não soubesse que expressão tomar ao entrar em casa.

 

Mr. Wickham ficou tão satisfeito com a conversação que nunca mais mencionou aquele assunto em presença de Elizabeth. Esta, por sua vez, ficou satisfeita de ter dito o suficiente para silenciá-lo.

Breve chegou o dia da partida de Lydia. E Mrs. Bennet foi obrigada a se submeter à separação, que provavelmente du­raria pelo menos um ano, pois Mr. Bennet se recusou terminantemente a aderir ao plano de irem todos a New Castle.

— Oh, minha querida Lydia — exclamou ela —, quando nos tornaremos a ver?

— Não sei. Daqui a dois ou três anos talvez.

— Não deixe de me escrever sempre, meu bem.

— Escreverei sempre que puder. Mas a senhora deve sa­ber que as mulheres casadas não têm muito tempo para escre­ver. Minhas irmãs podem, pois elas não têm nada que fazer.

As despedidas de Mr. Wickham foram muito mais afe­tuosas do que as de sua mulher. Sorriu, fez pose, disse muitas coisas bonitas.

— É um ótimo rapaz — disse Mr. Bennet assim que o viu fora de casa. — Distribui sorrisinhos, gatimonhas e faz a corte a todo o mundo. Estou muito orgulhoso dele. Desafio o próprio Sir William Lucas a apresentar um genro melhor do que o meu.

A perda da filha fez Mrs. Bennet ficar triste vários dias.

— Muitas vezes penso — disse ela — que não há nada mais doloroso do que o fato de se separar dos amigos. A gente se sente tão abandonada...

— A senhora deve compreender, mamãe, que isto é a conseqüência de casar uma filha — disse Elizabeth. — Deve ficar contente, já que as suas outras quatro filhas continuam solteiras.

— Não é nada disto. Eu tenho de me separar de Lydia, não porque ela esteja casada, mas porque o regimento do mari­do dela fica tão longe. Se estivesse mais próximo, não seria obrigada a partir tão cedo.

Mas o desânimo em que este acontecimento precipitou Mrs. Bennet foi breve atenuado por uma notícia que começou a circular. A caseira de Netherfield tinha recebido ordem de preparar a casa para a chegada do patrão que chegaria daí a um ou dois dias, e se demoraria lá várias semanas para caçar. Mrs. Bennet ficou muito agitada. Olhava para Jane, sorria e movia a cabeça de vez em quando. Fora Mrs. Philips quem trouxera a notícia.

— Bem, bem, então Mr. Bingley está para chegar? Me­lhor, Não que eu faça muito caso disto, nós o conhecemos mui­to pouco, como sabe, e eu por mim não quero mais vê-lo. No entanto, acho que faz muito bem em vir para Netherfield. Quem sabe o que pode acontecer? Mas você bem sabe que há muito tempo resolvemos não falar mais nisto. Então é mesmo certa a chegada dele?

— Pode contar com isto — replicou a outra. — Pois Mrs. Nichols esteve em Meryton ontem à noite. Eu a vi passando e saí de propósito para perguntar o que estava fazendo. E ela me disse que era verdade. Deve chegar na quinta-feira o mais tardar, ou talvez mesmo na quarta. Estava a caminho do açougue, disse-me ela, justamente para encomendar carne para quar­ta-feira. E ela tem três casais de patos prontos para serem mortos.

Jane, ao ouvir a notícia, não pôde deixar de empalidecer. Havia muitos meses que não mencionava o nome de Bingley a Elizabeth. Agora, estando as duas juntas, disse:

— Reparei que você olhou hoje para mim, Lizzy, quando minha tia nos trouxe esta notícia. E eu sei que fiquei perturba­da. Mas não creio que tenha sido por uma causa à-toa. Só me senti assim porque vi que iam olhar para mim. Juro a você que esta notícia não me causa alegria nem sentimento algum. Só me alegro de uma coisa, é que ele não vem acompanhado; assim o veremos menos. Não que eu sinta medo de mim mesma, mas tenho horror às observações das outras pessoas.

Elizabeth não sabia o que pensar. Se ela não o tivesse visto no Derbyshire, podia aceitar o motivo que alegavam para a sua vinda. Mas achava que Bingley ainda gostava de Jane. E hesi­tava diante de duas outras explicações, que achava muito mais prováveis: se ele vinha porque o amigo o permitira ou se ou­sara espontaneamente tomar esta resolução.

Mas às vezes Elizabeth pensava: "Não vejo por que este pobre rapaz não possa vir à casa que alugou e é dele, sem des­pertar tamanha curiosidade. Não pensarei mais nele, vou aban­doná-lo à sua sorte".

Apesar do que a irmã lhe tinha declarado, e acreditava que ela tivesse falado sinceramente, Elizabeth percebia facil­mente que a perspectiva da chegada de Bingley a tinha afetado profundamente. Jane estava perturbada, agitada como poucas vezes a vira.

O assunto, que fora discutido tão calorosamente pelos seus pais, há um ano atrás aproximadamente, tornava agora a se apresentar.

— Mr. Bingley está para vir, meu caro — disse Mrs. Bennet. — Você, naturalmente, irá visitá-lo...

— Não, não, você me forçou a visitá-lo no ano passado e disse que se eu o fosse ver ele se casaria com uma das minhas filhas. Mas isto deu em nada e não vou tornar a fazer o pa­pel de tolo.

A mulher procurou convencê-lo de que isto era uma obri­gação que incumbia a todos os cavalheiros que residiam na região.

— É uma etiqueta que desprezo — disse Mr. Bennet. — Se ele deseja a nossa companhia, que a procure. Sabe onde nós moramos. Não vou perder tempo correndo atrás dos meus vizinhos cada vez que eles vão embora e tornam a voltar.

— Bem, tudo o que eu sei é que será uma abominável grosseria se você não for visitá-lo. No entanto, isto não impedi­rá que eu o convide a vir jantar conosco. Precisamos convidar Mrs. Long e os Goulding em breve. Contando conosco, sere­mos treze à mesa. E portanto haverá justamente um lugar para Mr. Bingley.

Consolada com esta resolução, Mrs. Bennet se sentiu com maior força para suportar a falta de cortesia do marido, embora fosse muito mortificante saber que por causa disto todos os vi­zinhos poderiam ver Mr. Bingley antes dos Bennet. Poucos dias antes da sua chegada, Jane disse para a irmã:

— Estou começando a preferir que ele não venha. Não que eu dê importância ao fato, sou capaz de vê-lo com perfeita indiferença. Mas não suporto ouvir falar constantemente nesse assunto. A intenção da minha mãe é boa. Porém ela não sabe, ninguém sabe quanto sofro com o que dizem. Vou dar graças a Deus quando Mr. Bingley for embora de novo.

— Eu poderia dizer alguma coisa que consolasse você — replicou Elizabeth. — Mas nada tenho realmente a dizer. Você deve saber disto. E a satisfação usual de recomendar paciência aos sofredores lhe seria negada, porque você já a tem de sobra.

Mr. Bingley chegou. Mrs. Bennet, por intermédio dos cria­dos, arranjou um meio para saber do fato o mais cedo possível, o que aumentava o período de ansiedade e agitação, prolon­gando a expectativa do jantar. Ela contou os dias que deviam decorrer antes de o convite ser enviado, pois durante esse tempo não havia esperança de vê-lo. Mas de manhã, três dias depois da sua chegada no Hertfordshire, Mrs. Bennet, que estava à janela do seu quarto de vestir, viu Mr. Bingley entrar a cava­lo pelo portão e se aproximar da casa.

Contentíssima, chamou as filhas para participarem da sua alegria. Jane continuou sentada no seu lugar, resolutamente. Mas Elizabeth, para contentar a mãe, foi até a janela, olhou e, vendo que Mr. Darcy vinha em companhia de Bingley, voltou a se sentar ao lado da sua irmã.

— Vem outro cavalheiro com ele, mamãe — disse Kitty. — Quem será?

— Deve ser um conhecido dele, meu bem, mas não sei quem é.

— Ora, parece aquele homem que já esteve aqui com ele uma vez. Mr..., como é que ele se chama? Aquele homem alto, orgulhoso...

— Quem, Mr. Darcy? E é mesmo... Bem, qualquer ami­go de Mr. Bingley será sempre bem recebido. Mas devo con­fessar que odeio aquele homem.

Jane olhou para Elizabeth com surpresa e inquietação. Ja­ne pouco sabia a respeito dos encontros que a irmã tivera com Mr. Darcy no Derbyshire. Supunha portanto que a irmã se sen­tiria muito embaraçada ao vê-lo depois da carta explicativa que recebera da sua parte. As duas irmãs se sentiam bastante em­baraçadas. Cada uma delas sentia pela outra e naturalmente por si própria. Mrs. Bennet continuou a falar sobre a antipa­tia que tinha por Mr. Darcy. E repetiu que estava disposta a tratá-lo amavelmente apenas porque era um amigo de Mr. Bin­gley. Mas as suas palavras não foram ouvidas por nenhuma das suas filhas. Elizabeth tinha motivos de inquietação de que a sua irmã não suspeitava, pois nunca tivera a coragem de mos­trar a Jane a carta de Mrs. Gardiner nem de lhe revelar a mu­dança dos seus sentimentos para com Mr. Darcy. Para Jane ele

continuava a ser o homem cujas propostas ela tinha recusado, e cujas qualidades ela subestimara. Mas para Elizabeth, que possuía outras informações, ele era a pessoa a quem toda a família devia o maior dos benefícios, e a quem ela própria vo­tava uma afeição, se não tão terna quanto a que Jane dedicava a Bingley, pelo menos tão razoável e tão justa. A surpresa cau­sada pela vinda dele a Netherfield e a sua visita a Longbourn, onde vinha espontaneamente para vê-la, era quase tão forte quanto a que sentira ao perceber a transformação que se tinha operado nele no Derbyshire.

As cores que tinham desaparecido do seu rosto tornaram a voltar com maior intensidade e um sorriso de prazer deu maior fulgor ao brilho dos seus olhos, durante alguns minutos; e disse a si mesma que provavelmente os sentimentos de Darcy continuavam inalterados. No entanto não queria se precipitar.

"Vamos ver primeiro como ele me trata", disse ela para si mesma. "Antes disso não convém ter esperanças."

Continuou atenta ao seu trabalho, procurando se acalmar, e sem ousar levantar os olhos, até que uma curiosidade ansiosa a levou a fitar o rosto da irmã, enquanto o criado se aproxima­va da porta. Jane parecia um pouco mais pálida do que de cos­tume, porém mais calma do que Elizabeth esperava. Quando os cavalheiros entraram, ela enrubesceu ligeiramente. No entanto recebeu-os com tranqüilidade e maneiras igualmente livres de qualquer sintoma de ressentimento, como de qualquer desejo exagerado de agradar.

Sem ser descortês, Elizabeth falou o menos possível. E voltou ao seu trabalho com um afinco que poucas vezes lhe de­dicava. Ela arriscara apenas um olhar para Darcy. A expressão dele era tão grave como de costume. Mais talvez do que no Hertfordshire e em Pemberley. Talvez não se sentisse tão à vontade na presença da mãe dela quanto na dos tios. Era uma história dolorosa, porém não de todo improvável.

Bingley, também, ela só vira de relance. E naquele ins­tante a sua expressão era ao mesmo tempo alegre e embaraçada. Mrs. Bennet o recebeu com tal cortesia, tão grande amabilida­de, que as filhas se sentiram envergonhadas. Especialmente quando viram a fria polidez com que ela cumprimentou o amigo dele.

Elizabeth, sobretudo, que sabia quanto a mãe devia a este último, cuja iniciativa lhe salvara a filha favorita de uma irre­mediável desonra, sentiu-se ferida e aflita com aquela distinção tão mal aplicada.

Darcy, depois de perguntar por Mr. e Mrs. Gardiner, per­gunta a que Elizabeth não pôde responder sem um certo emba­raço, quase mais nada falou. Não estava sentado perto de Eli­zabeth; talvez fosse este o motivo do seu silêncio. Porém no Derbyshire não procedera daquele modo. Lá, ele tinha palestra­do com os amigos de Elizabeth, quando não o podia fazer com ela própria. Agora decorriam vários minutos sem que se ouvisse o som da sua voz. E quando, às vezes, incapaz de resistir a um impulso de curiosidade, Elizabeth levantava os olhos e procura­va o seu rosto, via que ele olhava tanto para Jane como para ela própria, e freqüentemente olhava apenas para o chão. Aque­la atitude exprimia evidentemente maior despreocupação, me­nos ansiedade de agradar do que da última vez que tinham es­tado juntos. Ficou desapontada e depois zangada consigo mesma por ter cedido àquele sentimento.

"Podia eu esperar que fosse de outro modo?", exclamou ela para si própria. "Mas, se é assim, para que então ele veio?"

Ela não se sentia disposta a conversar com ninguém, a não ser consigo mesma. Faltava-lhe quase completamente a co­ragem para falar com Mr. Darcy. Perguntou pela irmã dele. Foi o máximo que conseguiu de si mesma.

— Faz muito tempo, Mr. Bingley, que o senhor foi em­bora — disse Mrs. Bennet.

Ele concordou prontamente.

— Eu tinha medo de que o senhor não viesse mais — continuou ela. — Andaram dizendo que tencionava abandonar Netherfield completamente, por ocasião da festa de São Mi­guel. Espero que não seja verdade. Têm acontecido muitas coi­sas aqui nas imediações desde que o senhor partiu. Miss Lucas está casada e uma das minhas filhas também. Acho que já deve ter ouvido falar nisto. Aliás, o senhor deve ter lido nos jor­nais. Saiu no Times e no Courier. Não saiu como devia, mas enfim... Dizia apenas: "Casamentos: George Wickham, Esquire, com Miss Lydia Bennet", sem acrescentar nem uma síla­ba a respeito do pai dela, do lugar onde vivia, nada. O contra­to foi feito por meu irmão Gardiner e a notícia também foi da­da por ele. Não sei como fez uma coisa tão sem graça assim. O senhor leu?

Bingley respondeu que tinha lido e lhe deu os parabéns.

Elizabeth não ousou levantar os olhos. Não sabia portanto qual a expressão do rosto de Mr. Darcy.

— É uma coisa muito agradável ter uma filha bem casa­da — continuou Mrs. Bennet —, mas ao mesmo tempo, Mr. Bingley, é muito duro a gente se separar de uma filha. Eles fo­ram para New Castle. Um lugar situado muito para o norte, ao que parece. E eles têm que permanecer lá durante não sei quanto tempo. É lá que é a sede do regimento. O senhor deve ter ouvido dizer que ele saiu da milícia e entrou no Exército regular. Graças a Deus ele tem alguns amigos, embora talvez não tantos quanto mereça.

Elizabeth, que sabia que isto era dirigido a Mr. Darcy, sentiu tal vergonha e confusão que por pouco não se levantou e fugiu. Estas palavras, no entanto, conseguiram arrancá-la ao silêncio. E perguntou a Bingley se tencionava ficar algum tem­po na região. Ele disse que ficaria algumas semanas.

— Depois que tiver matado todos os seus pássaros, Mr. Bingley — continuou Mrs. Bennet —, venha caçar aqui, matar tantos quanto queira. Estou certa de que Mr. Bennet se sen­tirá muito feliz com isto. E guardaremos todas as melhores caças para o senhor.

Essas atenções desnecessárias e exageradas faziam crescer o mal-estar de Elizabeth. Se agora surgissem para Jane as mes­mas possibilidades que no ano anterior, tudo se precipitaria para a mesma desastrosa confusão. Naquele instante ela sentiu que muitos anos de felicidade não poderiam compensar os mo­mentos desagradáveis que ela e Jane estavam passando.

"O maior desejo do meu coração", disse ela a si mesma, "é nunca mais estar em companhia de nenhum desses dois, por mais agradáveis que sejam; nada pode compensar esta miséria. Que eu nunca mais os veja, nem a um nem a outro." No entan­to a miséria, que anos de felicidade não poderiam compensar, pouco depois se atenuou de maneira muito sensível. Elizabeth observou que a beleza da sua irmã tornava a inflamar rapida­mente a admiração do antigo namorado. A princípio ele lhe falara pouco, mas cada minuto que passava parecia aumentar a admiração que lhe dedicava. Ele a achava tão bela quanto no ano passado, tão simples e natural, embora menos comunicativa. Jane se esforçava por não deixar perceber nenhuma diferen­ça na sua atitude, e estava realmente convencida de que con­versava tão animadamente como sempre. Seus pensamentos a absorviam tanto que ela não reparava nos momentos em que ficava calada.

Quando os cavalheiros se levantaram para partir, Mrs. Bennet se lembrou do convite que tencionava fazer, e eles fica­ram comprometidos para jantar em Longbourn daí a pou­cos dias.

— O senhor me deve uma visita, Mr. Bingley — acres­centou ela —, pois quando partiu para Londres no inverno pas­sado prometeu que tomaria parte num jantar de família assim que regressasse. Como o senhor está vendo, não me esqueci. Eu lhe asseguro que fiquei muito desapontada porque o senhor não voltou como tinha prometido.

Bingley pareceu um pouco embaraçado e falou vagamente que negócios urgentes o tinham impedido de vir e que sentia muito. Em seguida partiram.

Mrs. Bennet estivera fortemente inclinada a convidar os dois para jantar naquele mesmo dia. No entanto, embora tives­se sempre uma mesa muito boa, julgou que um jantar de me­nos de dois serviços não seria digno de um homem no qual tinha tantas esperanças, nem suficiente para satisfazer o apetite e o orgulho de outro que possuía dez mil libras de renda por ano.

 

Assim que as visitas partiram, Elizabeth saiu para recupe­rar a tranqüilidade. Ou, em outras palavras, para refletir sem interrupção nesses assuntos, que na realidade só a perturbariam ainda mais. A atitude de Mr. Darcy a surpreendia e penalizava.

Para que teria ele vindo, perguntava a si mesma, se era para permanecer silencioso, grave e indiferente? Ela não en­contrava uma resposta que a satisfizesse.

"Ele continuou a se mostrar amável para com os meus tios, quando esteve em Londres. Por que não o é para comigo? Se tem medo de mim, por que veio aqui? Se ele não gosta mais de mim, por que é que fica silencioso? Que homem misterioso! Não pensarei mais nele."

Sua resolução foi cumprida involuntariamente por pouco tempo, devido à aproximação da irmã, que se juntara a ela com um ar alegre, que mostrava que tinha ficado muito mais satis­feita com a visita do que Elizabeth.

— Agora que o primeiro encontro passou — disse ela —, sinto-me perfeitamente à vontade. Conheço as minhas forças e nunca mais me sentirei embaraçada quando ele vier. Estou contente que ele venha jantar aqui na terça-feira. Todos terão ocasião de ver que nos encontramos apenas como conhe­cidos comuns e indiferentes.

— Oh, realmente muito indiferentes — disse Elizabeth, sorrindo. — Tome cuidado, Jane.

— Minha querida Lizzy, você não há de pensar que eu seja tão fraca que esteja agora em perigo.

— Acho que mais do que nunca você está em perigo de fazer com que ele se apaixone por você.

Não tornaram a ver Mr. Bingley e o seu amigo senão na terça-feira. E durante esse tempo Mrs. Bennet se entregara a todos os planos felizes que o bom humor e a polidez habitual de Bingley em meia hora de visita haviam reavivado,

Na terça-feira reuniu-se um grupo numeroso em Long­bourn. E as duas pessoas mais ansiosamente esperadas chega­ram pontualmente. No momento de entrar na sala de jantar, Elizabeth observou Bingley avidamente, para ver se ele tomava lugar como antigamente, ao lado da sua irmã. Sua mãe, que era uma pessoa prudente e que punha as idéias em prática, não o convidou para sentar ao seu lado. Ao entrar na sala ele pareceu hesitar. Mas por acaso Jane olhou em torno de si e, igualmen­te por acaso, sorriu. Foi suficiente para que ele se decidisse e fosse sentar ao lado dela.

Elizabeth, triunfante, olhou para Mr. Darcy. Ele recebeu o fato com nobre indiferença e Elizabeth teria imaginado que Bingley tinha recebido afinal licença para ser feliz se não tivesse visto que este olhava também para Mr. Darcy com um ar en­tre sorridente e alarmado.

Durante o jantar a atitude de Bingley para com a sua irmã persuadiu Elizabeth de que a sua admiração por Jane, embora mais reservada, levaria o caso rapidamente a uma solução feliz, caso não houvesse interferências alheias. E, embora não pudes­se confiar no resultado de olhos fechados, aquilo lhe dava um grande prazer, despertando nela toda a animação que era possí­vel sentir, pois não estava de humor muito alegre. Mr. Darcy estava sentado quase na outra extremidade da mesa. Estava ao lado da sua mãe. Ela sabia que essa situação daria muito pouco prazer a qualquer um dos dois. Com a distância a que se en­contrava, não podia ouvir o que diziam, mas via que raramente falavam um com o outro e que o faziam cerimoniosa e fria­mente. A hostilidade da mãe lembrava dolorosamente a Eliza­beth tudo o que deviam a Mr. Darcy. E às vezes sentia que te­ria feito qualquer sacrifício para poder lhe dizer que a sua bon­dade não era nem ignorada nem desdenhada pela totalidade da família.

Elizabeth tinha esperanças de que, à noite, tivessem opor­tunidade de ficar juntos. E que a visita toda não se passaria sem lhes dar ocasião de trocar palavras mais significativas do que as simples saudações de cortesia. Ansiosa e inquieta, o pe­ríodo que decorreu na sala antes da entrada dos cavalheiros foi aborrecido a um ponto que quase a tornou impolida. Ela con­centrara todas as suas esperanças no momento em que eles en­trariam na sala.

"Se ele não se dirigir a mim", pensou ela, "renunciarei a esse homem para sempre."

Os cavalheiros entraram. Por um momento Elizabeth pen­sou que as suas esperanças se iam realizar, mas infelizmente as senhoras se tinham reunido todas em volta da mesa, onde Jane estava fazendo chá e Elizabeth servindo café, e não havia lugar ao seu lado nem para uma cadeira. E, quando os cavalheiros se aproximaram, uma das moças acercou-se ainda mais dela e lhe disse ao ouvido:

— Nós não queremos um homem aqui entre nós, não é?

Darcy se tinha dirigido para o outro lado da sala. Eliza­beth o acompanhou com os olhos, invejando todas as pessoas com quem ele falava. Serviu o café com impaciência e depois ficou irritada consigo mesma por ser tão idiota.

Um homem que foi recusado uma vez! Como podia ter esperanças de que ele tornasse a se declarar? Existiria uma só pessoa do seu sexo que não se revoltaria contra tão grande fra­queza? Não existe nada tão incompatível com o sentimento dos homens.

Elizabeth ficou mais animada, no entanto, quando ele veio pessoalmente trazer a sua xícara de café. E aproveitou a opor­tunidade para dizer:

— A sua irmã está ainda em Pemberley?

— Sim, ficará lá até o Natal.

— E está sozinha? Todos os seus amigos já partiram?

— Mrs. Annesley está com ela. Os outros foram para Scarborough para passar três semanas.

Elizabeth não encontrou mais nada para dizer; mas se ele quisesse conversar talvez fosse mais bem sucedido. No entanto, ficou ao seu lado, em silêncio, durante alguns minutos. E afinal, quando as moças vieram sussurrar novamente ao ouvido de Eli­zabeth, ele tornou a se afastar.

Quando o serviço de chá foi retirado e as mesas de jogo foram colocadas, todas as senhoras se levantaram. E Elizabeth teve outra vez esperança de vê-lo se aproximar. Porém todos os seus planos foram novamente destruídos; viu sua mãe se apoderar dele, para parceiro de uíste. Todo o prazer estava ago­ra acabado para ela. Seriam obrigados a passar a noite sentados em mesas diferentes e a única esperança que lhe restava era de que Darcy voltasse freqüentemente os olhos na sua direção e jogasse portanto tão mal quanto ela.

Mrs. Bennet tinha resolvido convidar os dois cavalheiros Netherfield para cear, mas infelizmente a carruagem deles foi chamada antes de qualquer uma das outras. E ela não teve outra oportunidade de vê-los.

_ Então, meninas — disse Mrs. Bennet, assim que fica­ram sós —, que é que vocês acharam da festa? Penso que tudo correu da melhor forma possível. O jantar estava excelente. O assado de cabrito estava realmente bom. Todos disseram que nunca viram uma perna tão gorda. A sopa estava incompara­velmente melhor do que a que serviram em casa dos Lucas na semana passada. E até Mr. Darcy reconheceu que as perdizes estavam notavelmente bem feitas. E calculo que ele tenha dois cozinheiros franceses, pelo menos. Você, minha querida Jane, estava tão bonita como nunca vi. Mrs. Long foi da mesma opi­nião. E sabe o que ela disse também? "Ah, Mrs. Bennet, acho que afinal a veremos instalada em Netherfield." Disse isto realmente. Acho Mrs. Long uma esplêndida criatura. E as so­brinhas dela são muito comportadas. E não são nada bonitas. Gosto delas imensamente.

Mrs. Bennet, em suma, estava de excelente humor. O que observara na atitude de Bingley para com Jane fora suficiente para convencê-la de que ele estava mesmo conquistado. E quan­do Mrs. Bennet estava de bom humor, as suas esperanças ma­trimoniais eram tão ilimitadas que no dia seguinte ficava de­sapontada de não ver o rapaz aparecer para fazer o pedido.

— Foi um dia muito agradável — disse Jane para Eliza­beth. — Os convidados foram bem escolhidos e pareciam se dar todos admiravelmente. Espero que tornemos a nos reunir freqüentemente.

Elizabeth sorriu.

— Lizzy, não faça isso. Você não deve suspeitar de mim. Isto me mortifica. Eu lhe asseguro que aprendi a gostar da con­versa dele; trata-se de um rapaz agradável e sensato. Garanto a você que não tenho outras intenções. Vejo perfeitamente, pela maneira como ele me trata, que nunca desejou realmente a mi­nha afeição. Só que ele é dotado de maneiras muito mais agra­dáveis, e de um desejo de agradar muito mais forte do que qual­quer outro homem.

— Você está sendo cruel — disse Elizabeth. — Você me provoca e depois não quer que eu sorria.

— Como é difícil às vezes fazer com que os outros acre­ditem em nós!

— E como é impossível às vezes, para os outros, acreditar!

— Mas então, por que é que você quer me persuadir de que os meus sentimentos são mais complexos do que confessei?

— Isto é uma pergunta a que não sei como responder. Todos gostamos de instruir os outros, embora só possamos trans­mitir o que não é digno de ser ensinado. Perdoe, se você insis­tir na sua indiferença, não me tome por confidente.

 

Poucos dias depois daquela visita, Mr. Bingley tornou a aparecer. E desta vez veio sozinho. Seu amigo tinha partido na­quela manhã para Londres, ficando de voltar, porém, daí a dez dias. Mr. Bingley se demorou mais de uma hora. Estava de excelente humor. Mrs. Bennet o convidou para jantar. Ele res­pondeu que sentia imensamente, declarando que estava com­prometido.

— Da próxima vez que vier — disse Mrs. Bennet —, es­pero que tenhamos mais sorte.

Ele teria imenso prazer em vir em qualquer outra ocasião, etc. etc. E, se Mrs. Bennet lhe desse permissão, viria muito breve.

— Pode vir amanhã? — Sim.

Ele não tinha compromisso para o dia seguinte. E o con­vite foi aceito com entusiasmo.

Mr. Bingley veio — e tão pontualmente que as moças ainda não estavam vestidas, quando chegou. Mrs. Bennet cor­reu para o quarto das meninas, enrolada num robe de chambre, o cabelo ainda por fazer, e exclamou:

— Jane, ande depressa! Corra lá para baixo! Ele chegou! Mr. Bingley chegou, chegou mesmo! Vá ligeiro, depressa! Sarah, venha ajudar Miss Bennet imediatamente a pôr o vestido. Deixe o cabelo de Miss Lizzy para depois.

— Nós desceremos assim que pudermos — disse Jane. — Mas, entre nós, Kitty é mais ligeira do que todas. Já desceu há meia hora.

— Oh, não se importe com Kitty, que tem ela a ver com isto? Vamos, vá ligeiro. Depressa! Onde está a sua echarpe?

Mas, depois que a mãe saiu, Jane se recusou a descer sem uma das irmãs.

Durante a visita Mrs. Bennet mostrou a mesma ansiedade que de costume para deixar Mr. Bingley e Jane a sós. Depois do chá, Mr. Bennet se retirou para a biblioteca, como sempre fazia. E Mary subiu para estudar piano. Dos cinco obstáculos, dois estavam suprimidos. Mrs. Bennet ficou olhando e piscando para Kitty e para Elizabeth durante um espaço de tempo considerá­vel, sem que nenhuma das duas se impressionasse com isto. Elizabeth fez que não via e Kitty disse inocentemente:

— Que é, mamãe? Por que é que a senhora está piscan­do para mim? O que é que a senhora quer que eu faça?

— Nada, meu bem, nada, eu não pisquei para você!

Ela então continuou sentada durante mais cinco minutos. Mas, incapaz de perder uma ocasião tão preciosa, levantou-se e disse para Kitty:

— Meu bem, quero falar com você!

E levou-a para fora da sala. Jane imediatamente lançou um olhar para Elizabeth, em que exprimia a contrariedade que aquela premeditação lhe causava e o seu desejo de que pelo menos a irmã não se prestasse àquela comédia. Poucos minu­tos depois, Mrs. Bennet entreabriu a porta e chamou:

— Lizzy, meu bem, quero falar com você. Elizabeth foi forçada a ir.

— É melhor deixá-los a sós — disse Mrs. Bennet, assim que entrou no hall. — Kitty e eu vamos lá para cima a fim de conversarmos no meu quarto de vestir.

Elizabeth resolveu não discutir com a mãe, porém per­maneceu tranqüilamente no hall e, assim que a mãe e Kitty ti­nham partido, voltou para a sala.

Naquele dia os planos de Mrs. Bennet foram inúteis. Bin­gley se mostrou encantador como sempre, mas a sua atitude não foi a de um pretendente. Seu bom humor e a sua simplicidade o tornavam um companheiro dos mais agradáveis. E ele suportou as inoportunas cortesias com que o cumulava Mrs. Bennet, e ouviu todas as suas observações disparatadas com uma paciên­cia e uma seriedade que encantaram a Jane.

Ele ficou para jantar sem que fosse preciso insistir. E an­tes de ir embora, graças à intervenção de Mrs. Bennet, assumiu o compromisso de vir na manhã seguinte para caçar com Mr. Bennet.

Depois daquele dia Jane não falou mais na sua indiferen­ça. Nem uma palavra foi trocada pelas irmãs acerca de Bingley. Mas Elizabeth foi para a cama contente com a certeza de que tudo chegaria breve a uma conclusão feliz, a não ser que Mr. Darcy voltasse tão breve quanto havia prometido. No entanto, ela estava até certo ponto persuadida de que tudo isso acontecia com a aquiescência dele.

No dia seguinte Bingley chegou pontualmente. Mr. Ben­net e ele passaram a manhã juntos, conforme tinham combina­do. Mr. Bennet encontrou no outro um companheiro muito mais agradável do que esperava; não havia em Bingley nenhu­ma pretensão que o tornasse ridículo nem nenhuma insensatez que fizesse Mr. Bennet se refugiar irritadamente no silêncio. Naquele dia ele estava mais comunicativo e menos excêntrico do que nunca. Bingley, naturalmente, voltou com ele para jan­tar, e à noite Mrs. Bennet lançou mão de todos os seus recur­sos para deixá-lo a sós com a filha. Elizabeth, que tinha uma carta para escrever, se retirou para a sala de almoço pouco de­pois do chá. Pois, já que os outros iam jogar cartas, a sua pre­sença não seria necessária para contrabalançar os planos da mãe.

Mas ao voltar para a sala, depois de acabar a carta, viu com infinita surpresa que havia vários motivos para temer que sua mãe tivesse sido mais engenhosa do que ela. Ao abrir a porta, viu que a irmã e Bingley estavam juntos, ao pé da larei­ra, como se conversassem sobre um assunto de extrema gra­vidade. E se este fato não bastasse para despertar suspeitas, a expressão de ambos, ao se virarem rapidamente e se afastarem, teria revelado tudo. A situação deles era bastante embaraçosa. Mas a sua própria, pensou Elizabeth, era pior ainda. Ninguém disse uma só palavra. E Elizabeth estava a ponto de se retirar novamente, quando Bingley, que, imitando o exemplo de Jane, se tinha sentado, subitamente se levantou novamente e, sussur­rando algumas palavras para Jane, saiu apressadamente da sala.

Jane não teria reserva para com a irmã. O assunto da con­fidencia era agradável demais para que Jane se mostrasse reser­vada. E, abraçando a irmã, imediatamente confessou com a mais viva emoção que ela era a criatura mais feliz do mundo.

— É demasiado para mim — acrescentou ela. — Eu não o mereço. Por que é que todos não estão felizes como eu?

Elizabeth deu os parabéns com uma sinceridade, um calor, um entusiasmo que as palavras não poderiam exprimir. Cada uma das suas palavras era uma nova fonte de felicidade para Jane. Mas esta não poderia se demorar mais junto da irmã, nem tinha tempo para lhe dizer metade do que ainda lhe restava para contar.

— Preciso imediatamente ir ver mamãe — exclamou ela. — Não quero deixá-la por mais tempo em suspenso; sua soli­citude por mim é tão carinhosa! Nem quero que ela saiba de tudo senão por meu intermédio. Ele já foi falar com papai. Oh, Lizzy, que prazer vai dar a toda a família o que eu tenho para dizer! Como poderei suportar tamanha felicidade?

Jane correu então para junto da mãe, que tinha interrom­pido o jogo de cartas propositadamente, e estava em cima com Kitty.

Elizabeth, que tinha ficado sozinha, sorriu da rapidez e da facilidade com que tinha resolvido um caso que lhes cau­sara ansiedade e incerteza durante tantos meses.

"E este", disse ela para si mesma, "é o fim de todos os cuidados e precauções do seu amigo, das mentiras e ardis da sua irmã, o fim mais feliz, mais justo e mais razoável!"

Poucos minutos depois, Bingley, cuja conferência com Mr. Bennet fora curta e decisiva, veio sé reunir a Elizabeth.

— Onde está a sua irmã? — disse ele, ao abrir a porta.

— Lá em cima com minha mãe. Ela descerá já. Bingley então fechou a porta e, aproximando-se, reclamou

os seus parabéns e a sua afeição de irmã. Elizabeth, sincera e cordialmente, exprimiu a sua alegria. Apertaram-se as mãos com grande cordialidade. Em seguida, até a irmã voltar, ela teve que ouvir tudo o que ele dizia sobre a sua própria felici­dade e sobre as perfeições de Jane. E, apesar de serem aquelas expressões de namorado, Elizabeth acreditava realmente no bem fundado de suas esperanças, porque elas tinham como base a excelente compreensão, o gênio esplêndido de Jane e uma se­melhança geral de sentimentos e gostos.

Aquela foi uma noite de grande alegria para todos. A fe­licidade de Jane dava-lhe ao rosto um brilho e uma doçura que o tornava mais belo do que nunca. Kitty dava risinhos e sorria, com a esperança de que a sua vez chegaria breve. Mrs. Bennet não encontrava termos bastante calorosos para exprimir o seu consentimento e a sua aprovação. E falou só nisto, durante meia hora. E quando Mr. Bennet apareceu, à hora da ceia, sua voz e suas maneiras mostravam claramente o contentamento que o possuía.

Nem uma só vez, no entanto, ele aludiu ao fato enquanto o visitante estava presente. Mas, assim que ele partiu, Mr. Ben­net se virou para a filha e disse:

— Jane, dou-lhe os meus parabéns. Você será muito feliz. Jane se aproximou dele imediatamente, beijou-o e agrade­ceu a sua bondade.

— Você é uma boa menina — respondeu ele. — E te­nho grande prazer em vê-la bem casada. Não tenho a menor dúvida de que vocês se darão muito bem. Seus gênios são bas­tante semelhantes. Ambos são tão tolerantes que nunca toma­rão resoluções definitivas. Tão fáceis de levar, que todos os criados os enganarão. E tão generosos que sempre hão de gas­tar mais do que têm.

— Espero que não. Imprudência ou imprevidência em matéria de dinheiro seriam imperdoáveis da minha parte.

— Gastar mais do que têm! Meu caro Mr. Bennet! — exclamou a mulher. — Que é que você está dizendo? Ora, ele tem quatro ou cinco mil libras por ano e provavelmente ain­da mais...

Em seguida, virando-se para a filha:

— Oh, minha querida Jane! Estou tão feliz! Estou certa de que não dormirei nem um só instante esta noite! Eu sabia que tudo ia acabar assim, eu sempre disse que isto se realizaria finalmente! Tinha certeza de que a sua beleza acabaria triunfante! Eu me lembro que quando ele chegou aqui no Hertford­shire, no ano passado, logo vi que era provável que vocês se dessem bem. Ele é o mais belo rapaz que jamais vi.

Wickham, Lydia, tudo o mais estava esquecido. Jane era, sem competição, a sua filha favorita. Naquele instante ela não pensava em nenhuma outra. As irmãs mais moças começaram logo a imaginar os proveitos e os prazeres que retirariam do casamento da irmã.

Mary pediu para usar a biblioteca de Netherfield e Kitty insistiu muito para que Jane desse alguns bailes lá durante o inverno.

Daquele dia em diante, naturalmente, Bingley veio diaria­mente a Longbourn. E muitas vezes chegava antes da primeira refeição e ficava até depois do jantar, a não ser quando algum cruel vizinho lhe tinha enviado um convite para jantar, convite este a que ele não se podia furtar.

Elizabeth dispunha agora de muito pouco tempo para con­versar com a irmã, pois enquanto Bingley estava presente Jane não podia dar atenção a mais ninguém. No entanto, Elizabeth verificou que era de utilidade considerável para ambos duran­te aquelas separações, que necessariamente ocorriam às vezes. Na ausência de Jane ele sempre se aproximava de Elizabeth para conversar. É, depois que Bingley tinha partido, Jane pro­curava idêntico alívio na conversa da irmã.

— Ele me deu um grande prazer — disse Jane certa noite. — Ele me disse que ignorava totalmente que eu estives­se em Londres na primavera passada. Eu não acreditava que isto fosse possível.

— Eu já suspeitava disso — replicou Elizabeth. — Mas como é que ele explicou o fato?

— Deve ter sido coisa feita pelas irmãs dele. Decerto elas não viam com bons olhos as suas relações comigo, coisa aliás que acho muito natural, pois ele poderia ter feito uma escolha muito mais vantajosa sob todos os pontos de vista. Mas, quando elas virem que o irmão é feliz comigo, espero que se resignem e voltaremos a ficar de bem novamente, embora nunca mais possamos ter a mesma intimidade de antes.

— Essas são as palavras mais severas que jamais ouvi você dizer — exclamou Elizabeth. — Ainda bem, eu ficaria realmente penalizada se a visse tornar a ser enganada pela falsa amizade de Miss Bingley.

— Imagine, Lizzy, quando ele foi para Londres em novem­bro, já gostava de mim. E só não voltou porque o convenceram de que eu lhe era totalmente indiferente.

— Ele cometeu um pequeno engano, decerto. Isto mostra pelo menos que é modesto.

Isto conduziu Jane naturalmente a fazer um panegírico da discrição de Bingley e do pouco valor que ele atribuía às suas boas qualidades.

Elizabeth ficou satisfeita por descobrir que ele não tinha revelado a interferência do amigo, pois, embora Jane tivesse o coração mais generoso do mundo, ela sabia que aquilo seria dificilmente perdoável.

— Sou decerto a criatura mais feliz que jamais existiu — exclamou Jane. — Oh, Lizzy, por que é que fui eu a escolhida na minha família para receber tão grande graça? Se ao menos eu pudesse vê-la tão feliz quanto eu... Se existisse outro ho­mem igual àquele para você!

— Mesmo se você me desse quarenta homens iguais para escolher, nunca seria tão feliz quanto você! Seria preciso que eu possuísse o seu gênio e a sua bondade. Não, não, deixe-me entregue ao meu próprio destino; talvez, se tiver muita sorte, eu encontre um dia um outro Mr. Collins.

A nova situação na família de Longbourn não podia per­manecer muito tempo em segredo. Mrs. Bennet sussurrou a no­vidade ao ouvido de Mrs. Philips e esta, embora sem nenhuma autorização, fez outro tanto para todos os vizinhos de Meryton.

Todos declararam que os Bennet eram a família mais afor­tunada do mundo, embora poucas semanas antes, quando Lydia tinha fugido, fossem considerados como pessoas marcadas pelo infortúnio.

 

Certa manhã, uma semana depois do noivado de Jane, Mr. Bingley e o resto da família estavam sentados na sala de jantar, quando a sua atenção foi despertada de súbito pelo ruído de uma carruagem. E, chegando à janela, viram que era um coche puxado por quatro cavalos que se aproximava da casa. Era de­masiado cedo para uma visita e além disso aquela equipagem não era a de nenhum dos vizinhos. A carruagem era puxada por cavalos de posta; tanto a carruagem como a libré do criado que a precedia lhes eram desconhecidos. Como fosse certo no entanto que alguém estava chegando, Bingley propôs a Miss Bennet, imediatamente, que evitassem o intruso e fossem dar uma volta pelo bosque.

Eles saíram e as pessoas restantes continuaram a fazer as suas conjeturas, até que a porta se abriu e a visita entrou. Era Lady Catherine de Bourgh.

Todos estavam naturalmente preparados para uma surpre­sa. Mas o espanto foi muito maior do que esperavam. E o de Elizabeth foi ainda maior do que o de Mrs. Bennet e o de Kitty, embora Lady Catherine lhes fosse completamente desco­nhecida.

Ela entrou na sala com um ar ainda menos gracioso do que de costume. Limitou-se a responder à saudação de Elizabeth com uma ligeira inclinação da cabeça e sentou-se sem dizer uma palavra. Elizabeth mencionara o nome da visitante à mãe, em­bora Lady Catherine não tivesse solicitado uma apresentação.

Mrs. Bennet ficou espantadíssima e ao mesmo tempo en­vaidecida por receber uma visita tão importante, e a acolheu com a maior polidez. Depois de permanecerem sentadas duran­te algum tempo em silêncio, Lady Catherine disse, muito seca­mente, para Elizabeth:

— Espero que esteja passando bem, Miss Bennet. Supo­nho que aquela senhora seja sua mãe.

Elizabeth replicou de maneira concisa pela afirmativa.

— E aquela deve ser uma das suas irmãs.

— Sim, minha senhora — disse Mrs. Bennet, deliciada de poder falar com Lady Catherine em pessoa. — É a minha penúltima filha. A mais moça se casou recentemente. E a mais velha está passeando aí pelo parque com um rapaz que em breve se tornará membro da família.

— A senhora tem um parque muito pequeno aqui — disse Lady Catherine, depois de um curto silêncio.

— Não é nada em comparação com Rosings, mas é muito maior do que o de Sir William Lucas.

— Esta sala deve ser muito inconveniente de tarde, no verão. As janelas dão todas para o oeste.

Mrs. Bennet acrescentou que nunca ficava ali depois do jantar, e em seguida disse:

— Vossa Senhoria me permite a liberdade de perguntar se deixou Mr. e Mrs. Collins bem?

— Sim, muito bem. Estive com eles a noite passada. Naquele momento Elizabeth supôs que Lady Catherine ia

tirar da bolsa uma carta de Charlotte, pois tal lhe parecia o mo­tivo mais provável da sua visita. No entanto a carta não apa­receu e Elizabeth ficou ainda mais intrigada.

Mrs. Bennet, com grande amabilidade, perguntou se Lady Catherine desejava tomar alguma coisa. Mas Lady Catherine, com grande resolução e pouca polidez, recusou. Em seguida, levantando-se, disse para Elizabeth:

— Miss Bennet, parece que há um pequeno bosque bas­tante agradável atrás da sua casa. Eu gostaria de dar uma volta por lá, se quiser me conceder o favor da sua companhia.

— Vá, meu bem — exclamou Mrs. Bennet. — E mostre a Lady Catherine os vários caminhos. Acho que ela gostará de ver o caramanchão.

Elizabeth obedeceu e foi correndo para o seu quarto bus­car a sombrinha e em seguida acompanhou a ilustre visitante. Ao atravessarem o hall, Lady Catherine abriu as portas que da­vam para as salas de jantar e de estar. Achou que eram salas bastante agradáveis e em seguida continuou o seu caminho.

A carruagem permanecia parada à porta e Elizabeth viu que a dama de companhia estava lá dentro. Caminharam em si­lêncio pela aléia ensaibrada até o bosque. Elizabeth estava re­solvida a não fazer nenhum esforço para entrar em conver­sação com uma mulher que naquele momento ainda se mostra­va mais insolente e desagradável do que de costume.


"Não sei como pude achar que ela se parecesse com o so­brinho", disse Elizabeth para si mesma, depois de olhar para o rosto de Lady Catherine. Logo que entraram no bosque, Lady Catherine começou a falar da seguinte maneira:

— Sei que compreende, Miss Bennet, a razão da minha viagem até aqui. Seu coração, sua consciência, devem lhe reve­lar por que foi que eu vim!

Elizabeth olhou para ela com sincero espanto.

— Realmente, está enganada, minha senhora. Não con­sigo absolutamente adivinhar o motivo da sua presença aqui.

— Miss Bennet — replicou Lady Catherine num tom irritado —, deve compreender que eu não sou de brincadeiras. Se preferir ser pouco sincera, fique certa de que não farei o mesmo. Meu caráter é célebre pela sinceridade e franqueza. E num assunto de tamanha importância, como o presente, não me mostrarei diferente do que sou. Uma notícia da mais alar­mante natureza chegou aos meus ouvidos, há dois dias atrás. Disseram-me não somente que a sua irmã estava às vésperas de realizar um casamento dos mais vantajosos, como também que a senhora, Miss Elizabeth, estaria provavelmente muito em breve unida ao meu sobrinho, ao meu próprio sobrinho, Mr. Darcy! E, embora eu esteja certa de que isto é uma escandalosa falsidade, embora eu nunca tenha feito ao meu sobrinho a in­júria de supor que esta notícia seja verdadeira, resolvi imedia­tamente vir a este lugar a fim de lhe revelar claramente o que penso disto.

— Se a senhora acha impossível que a notícia seja ver­dadeira — disse Elizabeth, corando de espanto e desdém —, não compreendo por que se deu ao trabalho de vir de tão longe. Que pretende, Lady Catherine, com isto?

— Insistir exatamente para que tal notícia seja universal­mente desmentida.

— Se esta notícia realmente existe — respondeu Eliza­beth, friamente —, o fato de a senhora vir a Longbourn para me visitar, e à minha família, constituiria antes uma confir­mação.

— Sim! Pretende então ignorar a notícia? Não foi ela posta astutamente em circulação pela sua própria família? Não sabe que este boato corre por aí?

— Nunca ouvi falar em tal coisa.

— E pode declarar igualmente que não existe fundamen­to para ele?

— Não tenho a pretensão de ter a mesma franqueza, Lady Catherine. A senhora pode fazer perguntas a que eu prefiro não responder.

— Isto é insuportável. Miss Bennet, exijo que me res­ponda. Meu sobrinho lhe fez alguma proposta de casamento?

— Vossa Senhoria mesma declarou que isto era impos­sível.

— Deve ser. É evidente, a menos que ele não esteja no uso da razão. Mas os seus artifícios e astúcias o podem ter leva­do a esquecer, num momento de fraqueza, o que ele deve a si próprio e a toda a sua família. É possível que o tenha seduzido.

— Se o fiz, serei a última pessoa a confessá-lo.

— Miss Bennet, sabe quem eu sou? Não estou acostumada a que me falem nesse tom. Sou quase o parente mais próximo que Mr. Darcy tem no mundo. E tenho direito de estar a par dos seus negócios mais íntimos.

— Mas não tem esse direito quanto aos meus. E com a sua atitude jamais conseguirá que me torne mais explícita.

— Permita que eu fale- mais claramente: esse casamento que tem a pretensão de ambicionar nunca se realizará. Mr. Darcy está noivo da minha filha. E agora, que tem a dizer?

— Apenas isto: que sendo este o caso não precisa temer que ele me venha fazer uma proposta.

Lady Catherine hesitou por um momento, e depois res­pondeu:

— O noivado deles é de natureza especial. Desde a infân­cia foram destinados um para o outro. Era o maior desejo da mãe dele, bem como o meu. Planejamos esta união enquanto ainda estavam no berço. E agora, quando o desejo de ambas as irmãs poderia ser realizado, uma moça de classe inferior, sem nenhuma importância na sociedade e totalmente estranha à fa­mília, ousaria se interpor entre eles, sem nenhuma consideração para com os amigos dele e o seu compromisso tácito para com Miss de Bourgh. Terá perdido todos os sentimentos de delica­deza e de equilíbrio? Não ouviu dizer que desde o seu nasci­mento ele foi destinado à prima?

— Sim, já ouvi dizer isto antes. Mas que tenho a ver com isto? Se não existe outra objeção ao meu casamento com o seu sobrinho, o simples fato de saber que sua mãe e a sua tia queriam que ele casasse com Miss de Bourgh não me faria renunciar a ele. Planejando o seu casamento, fizeram tudo o que lhes era dado fazer. A sua realização depende de outras pessoas. Se Mr. Darcy não está ligado a esse casamento nem pela honra nem pela inclinação, por que motivo não poderá ele escolher outra pessoa? E se esta escolha recair sobre mim, por que não hei de aceitá-la?

— Porque a honra, a decência, a prudência e até o inte­resse o impedem. Sim, Miss Bennet, o interesse. Pois não espere ser recebida pela família dele e pelos seus amigos se agir propositadamente contra a vontade de todos. Será censurada, humilhada e desprezada por todos os parentes de Mr. Darcy. Seu casamento será a sua infelicidade. Seu nome nunca será mencionado por qualquer um de nós.

— Estes são graves infortúnios — replicou Elizabeth. — Mas a mulher de Mr. Darcy ficará numa posição tão privilegia­da e terá tantos motivos de felicidade que, em última análise, ela não terá motivo de se arrepender.

— Menina teimosa e obstinada! Envergonho-me de você! E esta é a gratidão com que me paga as atenções com que a cumulei quando esteve em casa de Mr. Collins? Acha que não me deve nada por isto? Vamos sentar. Deve compreender, Miss Bennet, que vim decidida a resolver tudo isto. Nada me poderá dissuadir da minha resolução. Não fui habituada a me submeter aos caprichos dos outros. Não estou habituada a que resistam aos meus desejos.

— Isto apenas tornará a sua situação presente mais la­mentável, mais desagradável. Mas não terá nenhum efeito sobre a minha pessoa.

— Não me interrompa. Ouça-me em silêncio. Minha filha e meu sobrinho são feitos um para o outro. Ambos descendem pelo lado materno de uma nobre linhagem. E do lado paterno, de famílias respeitáveis, honradas e antigas, embora sem título. As fortunas de ambos são excelentes. É voz unânime nas respec­tivas famílias que eles estão destinados um para o outro. E quem pretende separá-los? Uma moça ambiciosa, que não pos­sui nem família, nem relações ou fortuna. Isto pode ser tole­rado? Não deve ser e não o será. Se pesasse os seus próprios interesses, não desejaria sair da esfera em que foi criada.

— Não acho que se me casar com seu sobrinho sairei da minha esfera. Ele é um gentleman. Eu sou a filha de um gentle­man. Portanto, somos iguais.

— De fato é a filha de um gentleman. Mas quem era a sua mãe? Quem são seus tios e tias? Não pense que ignoro a situação deles.

— Qualquer que seja a situação deles — respondeu Eliza­beth —, se o seu sobrinho não faz objeção a isto, não sei em que isto lhe pode interessar.

— Diga-me francamente: está noiva dele?

Embora Elizabeth não quisesse responder a esta pergunta, com o único fito de não fazer a vontade de Lady Catherine, ela não pôde se impedir de dizer, depois de pensar alguns instantes:

— Não estou.

Lady Catherine pareceu ficar satisfeita.

— E promete nunca aceitar um tal compromisso?

— Não farei nenhuma promessa dessa espécie.

— Miss Bennet, estou ofendida e atônita. Esperava en­contrar uma moça mais razoável. Mas não se iluda pensando que eu jamais recuarei. Não irei embora antes de receber a garantia que exijo.

— E pode estar certa de que nunca a darei. A senhora não poderá me intimidar nem me obrigar a fazer uma coisa tão pou­co razoável. A senhora quer que Mr. Darcy se case com a sua filha. Mas se eu lhe fizesse a promessa que deseja, isto tornaria o casamento deles mais provável? Suponha que ele tenha afei­ção por mim. Seria a minha recusa suficiente para que ele transferisse essa afeição para a sua filha? Permita-me dizer-lhe, Lady Catherine, que os argumentos com que procurou justificar este extraordinário pedido foram tão frívolos quanto o pedido, ele mesmo, foi insensato. A senhora se engana redondamente acerca do meu caráter se pensa que possa ser influída por per­suasões desta natureza. Não sei até que ponto o seu sobrinho permite que a senhora se imiscua nos negócios dele, mas a senhora não tem o menor direito de interferir nos meus. Peço-lhe portanto que não me importune mais a respeito deste assunto.

— Mais devagar, faça o favor. Eu ainda não acabei. A todas as objeções que já apresentei, acrescentarei ainda uma outra: sei tudo a respeito da infame conduta da sua irmã mais moça. Sei todos os detalhes. Sei que o casamento foi uma coisa arranjada, às pressas, às expensas do seu pai e do seu tio. E é possível que essa moça se torne a irmã do meu sobrinho? E que o marido dela, que é o filho do intendente do seu pai, se torne também um parente dele? Deus do céu, em que está pensando? Serão os antepassados de Pemberley ofendidos desse modo?

— Agora já nada mais terá a dizer — falou Elizabeth, ressentida. — Já me insultou de todas as maneiras. Com sua licença, vou voltar para casa.

E dizendo isto ela se levantou. Lady Catherine se levantou também, e elas regressaram. Sua Senhoria estava furiosa.

— Então não tem a menor consideração pela honra e bom nome do meu sobrinho? Menina egoísta, não vê que o casa­mento com você o desonrará aos olhos de todo o mundo?

— Lady Catherine, nada mais tenho a dizer! Já conhece a minha opinião.

— Então está resolvida a obtê-lo?

— Eu não disse tal coisa. Mas estou resolvida a agir de maneira a conquistar o que eu considero a felicidade, sem pedir os seus conselhos e nem os de qualquer outra pessoa estranha à minha família.

— Está bem. Então recusa atender ao meu pedido? Recu­sa-se a reconhecer os direitos do dever, da honra e da gratidão? Está decidida a destruir o bom nome do meu sobrinho na opi­nião de todos os seus amigos? E torná-lo assim um objeto de desprezo para todo o mundo?

— No presente caso, nem o dever, nem a honra, nem a gratidão têm quaisquer direitos sobre mim. Nenhum desses princípios será violado pelo meu casamento com Mr. Darcy. E, quanto à consideração ou ressentimento da sua família, ou a indignação do mundo, admitindo que eu a merecesse por este casamento, nada disto me daria a menor preocupação. E além disso as pessoas em geral têm bastante bom senso para desprezar os outros por motivo tão fútil.

— Então esta é a sua verdadeira opinião. Esta é a sua decisão final. Muito bem, saberei agora como agir. Não imagine, Miss Bennet, que a sua ambição seja jamais satisfeita. Eu vim aqui para a experimentar. Esperei encontrar uma moça razoável. Pode ficar certa, entretanto, de que farei valer a minha vontade.

E Lady Catherine continuou falando deste modo até que chegaram à porta da carruagem. Aí ela se virou de súbito e acrescentou:

— Não me despeço de você, Miss Bennet. Nem envio cum­primentos à sua mãe. Não merecem tal atenção. Estou seria­mente ofendida.

Elizabeth nada respondeu. E, sem procurar persuadir Lady Catherine a entrar novamente, virou as costas e se dirigiu cal­mamente para casa. Enquanto subia as escadas, ouviu a carrua­gem partir. Sua mãe, que estava impaciente, veio encontrá-la à porta da sala para indagar se Lady Catherine não tornaria a entrar a fim de descansar um pouco.

— Ela não quis — respondeu Elizabeth. — Preferiu partir.

— É uma senhora muito elegante. E a sua visita foi uma grande amabilidade, pois suponho que ela tenha vindo apenas para dizer que os Collins vão passando bem. Ela passou casual­mente e se lembrou que podia fazer uma visita. Suponho que ela não tivesse nada de particular para lhe dizer, não, Lizzy?

Elizabeth foi obrigada a inventar uma pequena história. Mas era impossível revelar o que se tinha passado.

 

A agitação que essa extraordinária visita provocou no espí­rito de Elizabeth durou muito tempo. E durante várias horas ela não pôde deixar de pensar incessantemente naquilo. Lady Catherine, ao que parecia, tinha se dado ao trabalho de sair de Rosings com o único fito de desmantelar o seu suposto noi­vado com Mr. Darcy. O plano não era mau. Mas de onde se originava a notícia do noivado? Isto é que Elizabeth não podia determinar. Mas afinal refletiu que o fato de Mr. Darcy ser um amigo íntimo de Bingley e de ela ser a irmã de Jane era suficiente para sugerir a idéia de outro casamento. Elizabeth já compreendera naturalmente que o casamento da irmã deveria aproximá-la mais de Darcy. Provavelmente, os seus vizinhos de Lucas Lodge (e por seu intermédio, através dos Collins, a notícia chegara aos ouvidos de Lady Catherine) tinham apre­sentado como coisa quase certa e imediata aquilo que ela mesma encarava como uma remota possibilidade.

Refletindo sobre as expressões de Lady Catherine, Eliza­beth não podia deixar entretanto de sentir uma certa inquietude quanto às possíveis conseqüências da sua interferência. Pelo que ela dissera da sua resolução de impedir o casamento, Eliza­beth concluía que ela devia ter em mente uma entrevista com o sobrinho. E como receberia ele a descrição que Lady Catheri­ne lhe faria das funestas conseqüências de tal casamento? Eli­zabeth não sabia até que ponto ia a afeição de Mr. Darcy pela tia, nem a confiança que ele depositava nos seus julgamentos. Porém era natural supor que ele tivesse maior consideração por Lady Catherine do que ela, Elizabeth. Por outro lado, enume­rando as más conseqüências de um casamento com uma pessoa cujos parentes eram tão inferiores aos seus, sua tia o atacaria pelo lado mais fraco. Com os seus preconceitos de classe, ele sentiria provavelmente que os argumentos que a Elizabeth tinham parecido fracos e ridículos continham bom senso e um raciocínio sólido.

Se antes ele hesitara algumas vezes quanto ao que devia fazer, os conselhos e as exortações de uma pessoa que era sua parente próxima poderiam destruir todas as suas dúvidas e convencê-lo de uma vez para sempre a procurar a sua felicidade sem ofender os seus brasões de família. Neste caso ele não voltaria mais. Lady Catherine o encontraria em Londres, e a promessa a Bingley de voltar a Netherfield seria esquecida.

"Se portanto ele enviar qualquer desculpa ao seu amigo dentro desses próximos dias, dizendo que está impossibilitado de vir, saberei o que pensar", disse Elizabeth para si mesma. "Então desistirei de tudo. E, se ele se limitar a lamentar a minha perda, quando está nas suas mãos obter a minha afeição, renun­ciarei a ele, sem mágoa."

 

A surpresa das demais pessoas da família quando souberam quem tinha sido a visitante foi muito grande. Contentaram-se no entanto com as mesmas suposições que haviam aplacado a curiosidade de Mrs. Bennet. E Elizabeth não foi incomodada por causa disso.

No dia seguinte, de manhã, Elizabeth estava descendo as escadas, quando o pai, saindo da biblioteca, veio ao seu encon­tro com uma carta na mão.

— Lizzy — disse ele —, eu ia à sua procura. Venha à biblioteca.

Elizabeth acompanhou-o. E a suposição de que o assunto que seu pai queria lhe comunicar se relacionava com a carta que ele tinha na mão aumentava a sua curiosidade. Ocorreu-lhe de súbito que a carta pudesse ser de Lady Catherine. Já se sentia desanimada, diante das explicações que teria de dar.

Sentaram-se diante da lareira. Então Mr. Bennet falou:

— Recebi esta manhã uma carta que me surpreendeu extraordinariamente. Como o assunto mais importante da carta se refere a, você, é preciso que seja informada do seu conteúdo. Eu não sabia que tinha duas filhas próximas do casamento. Deixe que eu a cumprimente pela sua conquista. É muito importante.

O sangue afluiu ao rosto de Elizabeth e ela por um mo­mento supôs que a carta viesse do sobrinho e não da tia. E hesitava se devia se sentir contente porque ele se tinha expli­cado afinal, ou ofendida porque a carta não lhe fora dirigida, quando seu pai prosseguiu:

— Você parece que compreendeu. As moças mostram grande penetração em assuntos desta natureza. No entanto, acho que posso desafiar mesmo a sua sagacidade. Não imagina quem seja o seu admirador. Esta carta é de Mr. Collins.

— De Mr. Collins! E que é que ele tem a dizer?

— O que ele tem a dizer vem muito a propósito, natural­mente. Começa congratulando-me pelo próximo casamento da minha filha mais velha. Coisa naturalmente que uma daquelas espevitadas da família Lucas lhe comunicou. Não vou ler o que ele diz sobre isto, para não provocar a sua impaciência. A parte que se refere à sua pessoa diz o seguinte:

 

"Tendo desse modo oferecido as sinceras congratulações de Mrs. Collins, bem como as minhas, pelo feliz acontecimento, permita que me refira agora sumariamente a outro assunto que chegou ao nosso conhecimento através da mesma fonte. Sua filha Elizabeth, ao que parece, não usará por mais muito tempo o nome de Bennet, depois que a irmã mais velha tiver renuncia­do ao mesmo. E o seu escolhido pode razoavelmente ser con­siderado uma das pessoas mais ilustres deste país".

 

— Pode imaginar, Lizzy, quem seja esta pessoa?

 

"Este rapaz foi aquinhoado com tudo o que um coração mortal pode desejar: esplêndidas propriedades, nobres parentes, considerável influência. No entanto, apesar de todas estas van­tagens, permita que eu previna a minha prima Elizabeth e ao senhor mesmo acerca dos males que poderão advir de um con­sentimento precipitado às propostas daquele cavalheiro; propos­tas de que naturalmente se sentirão inclinados a tirar imediato proveito."

 

— Você tem alguma idéia, Lizzy, de quem seja este ca­valheiro? Mas agora surge a revelação:

 

"O motivo que tenho para preveni-la é o seguinte: temos razões para acreditar que sua tia, Lady Catherine de Bourgh, não olha com bons olhos este casamento".

 

— Está vendo, portanto, que se trata de Mr. Darcy. Está aí, Lizzy, creio que lhe dei uma grande surpresa. Poderiam Mr. Collins ou Lucas ter feito uma suposição mais absurda? Mr. Darcy, que nunca olha para uma mulher senão para criticar, e que provavelmente nunca olhou para você em toda a sua vida! É espantoso!

Elizabeth tentou achar graça, mas pôde apenas sorrir com relutância. Nunca o espírito do pai lhe parecera menos agra­dável.

— Você não está achando graça?

— Estou, sim, continue a ler.

 

''Tendo eu mencionado a possibilidade deste casamento a Lady Catherine ontem à noite, ela imediatamente exprimiu o que sentia acerca desse assunto, com a sua usual condescen­dência. Ela então proclamou que, devido a certas objeções de família, jamais daria o seu consentimento para o que, segundo a sua expressão, era um péssimo casamento. Achei que era do meu dever comunicar isto à minha prima para que ela e seu nobre admirador saibam o que estão fazendo e não se precipitem num casamento que não foi convenientemente sancionado."

 

— E Mr. Collins acrescenta o seguinte: "Causa-me muita alegria saber que o triste caso da minha prima Lydia conseguiu ser abafado tão depressa! E o que me preocupa apenas é que outros tenham ficado sabendo que eles vivessem juntos antes de se casarem. Não posso, entretanto, esquecer os deveres do meu estado, nem deixar de manifestar o espanto que senti, ao ouvir dizer que o senhor recebeu o jovem casal na sua casa logo após o matrimônio. Considero isto um encorajamento ao vício, e se fosse o reitor de Longbourn ter-me-ia oposto a isto terminantemente. É certo que como cristãos os devia ter per­doado, porém jamais devia admiti-los em sua presença nem per­mitir que os seus nomes lhe fossem mencionados".

 

— Esta é a noção que ele tem do perdão cristão das ofen­sas. O resto da carta trata apenas da situação da sua querida Charlotte e das esperanças que ele tem de um herdeiro. Mas, Lizzy, você parece que não está gostando. Espero que não leve a sério e nem vá ficar ofendida por causa deste boato tolo. Não vejo por que não possamos rir, do nosso lado, com o ridículo dos nossos vizinhos...

— Oh — exclamou Elizabeth —, estou achando muita graça. Mas tudo isto é tão estranho!

— Sim, mas aí é que está a graça. Se eles tivessem esco­lhido outro homem qualquer, não haveria nada de estranho. Mas a perfeita indiferença de Mr. Darcy e a sua manifesta anti­patia tornam essa suposição tão absurda! Abomino escrever, mas por coisa alguma deste mundo desistiria da minha corres­pondência com Mr. Collins! Quando me chega uma carta dele, não posso deixar até de preferi-lo a Wickham. E prezo imen­samente a impudência e a hipocrisia do meu genro... Conte-me, Lizzy, que disse Lady Catherine acerca deste boato? Ela veio vê-la para recusar o seu consentimento?

A esta pergunta, sua filha respondeu apenas com uma risada. E, como ele de nada suspeitasse, Elizabeth não ficou embaraçada, mesmo quando ele repetiu a pergunta. Jamais sentira tamanha dificuldade em esconder os seus sentimentos. Era necessário rir e ela teria preferido chorar. O pai a tinha mortificado cruelmente pelo que dissera a respeito da indife­rença de Mr. Darcy. Aquela falta de sensibilidade a espantava. Por outro lado ela temia que, em vez de o pai ter visto pouco, ela é que tivesse esperado demasiadamente.

 

Mr. Bingley não recebeu nenhuma carta de escusas do seu amigo, como Elizabeth receava. Em vez disso, trouxe o amigo Darcy em visita a Longbourn, poucos dias depois do apareci­mento de Lady Catherine. Os cavalheiros chegaram cedo. Eli­zabeth, por um momento, teve medo de que Mrs. Bennet lhes contasse que tinham recebido a visita da sua tia. No entanto, antes que Mrs. Bennet pudesse falar, Bingley, que queria ficar a sós com Jane, propôs que todos saíssem a passear. Assim foi combinado. Mrs. Bennet não tinha o hábito de caminhar. Mary não podia perder tempo. E os cinco restantes partiram. Bingley e Jane, entretanto, deixaram os outros se distanciarem. Elizabeth, Kitty e Darcy foram na frente. Os três conversaram muito pouco. Kitty tinha medo de Darcy. Elizabeth tomava em segredo uma resolução desesperada. E ele talvez fizesse o mesmo.

Caminharam em direção à casa dos Lucas, pois Kitty que­ria fazer uma visita a Maria. E, depois que Kitty os deixou, Elizabeth continuou resolutamente com Darcy. Chegara agora o momento de executar o seu plano. E, antes que a sua cora­gem fraquejasse, falou:

— Mr. Darcy, sou uma criatura muito egoísta. E, a fim de aliviar as incertezas dos meus sentimentos, vou talvez ferir os seus. Não posso adiar por mais tempo a obrigação de lhe agradecer a sua inestimável intervenção a favor de minha irmã. Desde que soube o que o senhor tinha feito, fiquei ansiosa por uma ocasião de lhe manifestar a minha gratidão. E, se as outras pessoas da minha família o soubessem, não lhe falaria apenas em meu nome.

— Sinto imensamente — replicou Darcy, num tom de surpresa e emoção — que tenha sido informada de um fato que, mal interpretado, poderia causar-lhe contrariedade. Julguei que podia confiar na discrição de Mrs. Gardiner.

— Não deve culpar a minha tia. Foi por uma leviandade de Lydia que eu soube que o senhor se tinha envolvido no caso; e naturalmente não descansei até conhecer todos os deta­lhes. Deixe-me agradecer novamente, em meu nome e no da minha família, pela generosidade com que agiu, sofrendo toda a sorte de incômodos e mortificações.

— Se quiser me agradecer — respondeu ele —, faça-o apenas em seu próprio nome. Não nego que o desejo de lhe causar prazer tenha contribuído também para o que fiz. Mas a sua família não me deve nada. Respeito-a muito, mas creio que foi só em você que pensei.

Elizabeth ficou tão embaraçada que não soube o que res­ponder. Depois de uma curta pausa, seu companheiro acres­centou:

— Tenho a certeza de que é generosa demais para fazer pouco-caso dos meus sentimentos. Se os seus são ainda os mes­mos que manifestou em abril passado, diga-o imediatamente. Minha afeição permanece inalterada; basta porém uma única palavra sua para fazer com que me cale para sempre.

Elizabeth, sentindo a difícil e aflitiva situação em que Darcy se encontrava, se esforçou para falar. E, embora de forma hesitante, deu-lhe a entender imediatamente que os seus senti­mentos tinham passado por tão grande transformação desde o período a que ele aludira, que agora podia aceitar as suas de­clarações com prazer e gratidão. A felicidade que essa resposta causou em Darcy foi a maior que até então conhecera. E ele a exprimiu nos termos mais calorosos que o seu coração de apai­xonado pôde encontrar. Se Elizabeth tivesse podido levantar os olhos, teria visto que a felicidade de Darcy se refletia no rosto, infundindo-lhe uma animação que o tornava belo. Se não podia ver, Elizabeth, no entanto, podia ouvir. E Darcy lhe revelou a importância que o afeto de Elizabeth tinha para ele. E a cada momento o seu amor crescia de importância aos olhos de Elizabeth.

Continuaram a caminhar sem uma direção precisa. Seus pensamentos os absorviam, e além disso tinham muito a sentir e a dizer. Elizabeth ficou sabendo que deviam o seu atual enten­dimento aos esforços da tia de Darcy. Lady Catherine, com efei­to, de passagem em Londres, fora visitar o sobrinho e lhe rela­tara a sua viagem a Longbourn, suas causas e a conversa que tivera com Elizabeth, repetindo enfaticamente cada uma das expressões desta última, expressões que aos olhos de Lady Catherine denotavam a perversidade e o cinismo da moça, com o intuito de desacreditá-la perante o seu sobrinho. Infelizmente para Sua Senhoria, o efeito tinha sido exatamente o oposto.

— Eu, que não tinha mais esperanças, voltei a tê-las — acrescentou Darcy. — Conhecendo seu caráter, sabia que, se estivesse absoluta e irrevogavelmente decidida a me recusar, tê-lo-ia dito a Lady Catherine com toda a franqueza.

Elizabeth enrubesceu e sorriu.

— Sim, conhecia suficientemente a minha franqueza para saber que, se eu tinha sido capaz de tratá-lo de maneira tão abominável pessoalmente, não hesitaria em fazê-lo perante toda a sua família.

— Não acho que me tenha tratado mal. Não disse nada que eu não merecesse. Embora suas acusações repousassem so­bre premissas falsas, minha atitude naquele tempo merecia as mais severas censuras. Era imperdoável. Não posso lembrar dela sem horror.

— Não discutiremos a quem cabe a maior culpa na desa­vença daquela noite — disse Elizabeth. — A conduta de ne­nhuma das partes foi irrepreensível. Mas desde então creio que progredimos em cortesia. Pelo menos espero.

— Não posso me reconciliar tão facilmente comigo mes­mo. A recordação de tudo o que eu disse, da minha conduta, das minhas maneiras e expressões tem sido durante muitos me­ses e continua a ser indizivelmente dolorosa. Nunca me esqueci da sua admoestação, que considero tão justa: "Se tivesse agido de forma mais cavalheiresca..." Foram estas as suas palavras. Não sabe, não pode nem de longe imaginar como essas suas palavras me torturaram. Custei a lhes reconhecer a justiça.

— E eu estava muito longe de supor que elas lhe produ­ziriam uma impressão tão forte.

— Acredito. Naquele tempo pensava que eu era destituído de todos os sentimentos humanos. Disso tenho certeza. Nunca me esquecerei da expressão do seu rosto quando me disse que nada a poderia ter persuadido a aceitar a minha mão.

— Oh, não repita o que eu disse. Essas coisas não devem ser lembradas. Juro-lhe que há muito tempo que penso nelas com imensa vergonha.

Darcy mencionou a sua carta.

— Queria saber — perguntou ele — se a carta me justi­ficou aos seus olhos. Acreditou no que eu dizia?

Elizabeth lhe explicou os efeitos que a sua carta tinham produzido e como, aos poucos, a sua má vontade se dissipara.

— Eu sabia — continuou ele — que o que estava lhe escrevendo ia magoá-la, mas era necessário. Espero que tenha destruído a carta. Não descansarei enquanto não tiver a certeza de que não a pode mais ler, especialmente o começo da carta. Lembro-me de certas expressões que provocariam o seu ódio contra mim.

— A carta será queimada se acredita que isto seja essen­cial para a preservação da minha estima. Mas, embora tenhamos ambos razões para pensar que as minhas opiniões não são intei­ramente inalteráveis, não creio por outro lado que sejam tão facilmente influenciáveis como parece supor.

— Quando escrevi aquela carta — replicou Darcy —, pensava que me encontrava num estado de espírito perfeita­mente calmo e frio. Mas depois vi que estava extremamente amargurado e triste.

— Talvez no princípio a carta fosse amarga, mas o final era uma caridosa despedida. Mas não pense mais na carta. Os sentimentos da pessoa que a recebeu e da pessoa que a escreveu são agora tão diferentes do que eram, que todas as circunstân­cias dolorosas relativas a ela devem ser esquecidas. E é preciso que aprenda um pouco da minha filosofia. Lembre-se apenas daquilo que lhe causa prazer.

— Não creio que encontre dificuldade em aplicar esta filosofia à sua própria vida. As suas lembranças devem ser tão desprovidas de toda mácula que não é preciso nenhuma filosofia para sentir o contentamento que se origina delas. Mas comigo não é assim: quando penso no passado intervém muitas recor­dações dolorosas que não podem e não devem ser repelidas. Toda a minha vida fui um ser egoísta, se não na prática, pelo menos nos meus princípios. Em criança me ensinaram o que era direito, mas não me ensinaram a corrigir o meu gênio. Deram-me bons princípios. Mas deixaram-me praticá-los orgulhosamente. Infelizmente, sendo durante muito tempo único filho, e mais tarde único filho homem, fui mimado pelos meus pais e, embora eles fossem bons, meu pai sobretudo, que era a benevolência em pessoa, permitiram, encorajaram e quase me ensinaram a ser egoísta e tirânico, a pensar apenas nas pessoas da minha família, desprezar todos os outros e a pensar, com desprezo, no bom senso e valor das outras pessoas, comparados com os meus. Assim fui eu dos oito aos vinte e oito anos. E, se não fosse a minha querida e adorável Elizabeth, talvez ainda não me tivesse mudado. Que é que não lhe devo? A lição que me deu foi certa­mente a princípio muito dura, mas muito vantajosa. Por suas mãos recebi a humilhação que devia. Aproximei-me de você sem duvidar de que seria aceito. Revelou-me como eram insu­ficientes as minhas pretensões de agradar uma mulher digna de ser amada.

— Estava mesmo persuadido de que realmente me senti­ria lisonjeada?

— Confesso que estava. Que acha da minha vaidade? Eu acreditava que estava mesmo desejando e esperando as minhas propostas.

— A culpa talvez caiba às minhas maneiras, mas não agi intencionalmente. Posso lhe jurar; jamais tencionei enganá-lo. Como deve ter me odiado depois daquela noite!

— Odiá-la? Talvez a princípio eu me tivesse encolerizado. Mas logo dirigi esta cólera contra quem a merecia.

— Tenho quase medo de lhe perguntar o que pensou de mim quando nos encontramos em Pemberley. Achou que eu tinha feito mal em ir?

— Não, de modo algum, senti apenas surpresa.

— A sua surpresa não foi menor do que a minha ao veri­ficar que ainda se interessava por mim. Minha consciência me dizia que eu não merecia grandes cortesias e confesso que não contava receber mais do que me era devido.

— Meu fito naquela ocasião — replicou Darcy — era lhe mostrar, por todos os meios, que não guardava um rancor mes­quinho do passado. Eu esperava obter o seu perdão e apagar o mau conceito que tinha de mim, dando-lhe a perceber que eu tinha levado em conta as suas censuras. Não posso lhe dizer exatamente em que momento outros desejos nasceram em mim, mas creio que foi meia hora depois de tê-la visto.

Darcy contou-lhe então o prazer que Georgiana tivera em conhecê-la e o desapontamento que sentira com a súbita inter­rupção da sua visita. Isto o levou naturalmente a falar nas causas desta interrupção. E Elizabeth ficou sabendo que ele tomara a resolução de segui-la e de partir em busca da sua irmã, antes mesmo de sair da hospedaria. E que se naquela ocasião se mostrava grave e pensativo, era porque debatia consigo mesmo a respeito desta idéia. Ela tornou a exprimir a sua gratidão, mas o assunto era demasiado penoso para ambos para que insistissem nele.

Depois de caminharem várias milhas sem destino, sem repararem para onde se dirigiam, viram nos seus relógios que era hora de ir para casa.

— Que terá sido feito de Mr. Bingley e Jane?

Esta observação os levou naturalmente a discutir este caso. Darcy estava encantado com o noivado. Seu amigo lhe dissera tudo imediatamente.

— Ficou surpreendido? — perguntou Elizabeth.

— De modo algum. Quando parti, já sabia que isto devia acontecer.

— Quer dizer que deu o seu consentimento? Desconfiava disto também.

Embora ele protestasse contra a expressão, Elizabeth com­preendeu que a sua suposição não estava muito longe da verdade.

— Na noite antes da minha partida para Londres — disse Darcy —, eu fiz a Bingley uma confissão que, acredito, já devia ter feito há muito tempo. Contei-lhe tudo o que tinha ocorrido e disse que esses fatos me tinham feito compreender que a minha interferência no caso dele e de Jane tinha sido desastrosa. A sua surpresa foi grande. Ele não suspeitava de nada. Disse, além disso, que tinha razões para acreditar que me tinha enga­nado quando dissera que a sua irmã lhe era indiferente. E como vi imediatamente que a afeição dele por ela continuava inalte­rada, não tive dúvida de que viessem a ser muito felizes juntos.

Elizabeth não pôde deixar de sorrir da facilidade com que ele conduzia o amigo.

— Foi a sua própria observação que o convenceu de que a minha irmã amava a Bingley ou se baseou apenas na minha informação?

— Foi a minha observação. Durante as duas últimas vi­sitas que fiz aqui ultimamente, observei-a atentamente. Fiquei convencido de que ela o amava sinceramente.

— E Bingley acreditou imediatamente na sua afirmação?

— Acreditou. Bingley é de uma extraordinária modéstia. Foi o que o impediu de confiar no seu próprio julgamento, mas a confiança que ele tem em mim tornou tudo fácil. Fui obrigado a confessar uma coisa que o fez ficar ofendido comigo durante alguns dias. Não pude deixar de dizer que eu sabia que a sua irmã tinha estado em Londres durante três meses no inverno passado e que eu propositadamente escondera este fato dele. Ficou zangado, mas estou persuadido de que a sua cólera durou apenas enquanto tinha dúvidas acerca dos sentimentos da sua irmã. Ele agora me perdoou de todo o coração.

Elizabeth teve vontade de observar que Mr. Bingley tinha sido um amigo encantador. Sendo ele, como era, tão fácil de conduzir, possuía como amigo um valor inestimável. No entanto ela se conteve porque lembrou que Darcy ainda não aprendera a ser menos suscetível. E era ainda cedo para começar. Darcy continuou a falar sobre a felicidade que antecipava para Bingley, e que seria apenas menor do que a sua, até que chegaram em casa. No hall eles se separaram.

 

— Querida Lizzy, onde é que você tem andado?

Tal foi a pergunta que Elizabeth recebeu de Jane, assim que entrou na sala. E a mesma pergunta lhe foi dirigida por todas as pessoas, antes de se sentarem à mesa. Ela disse apenas que tinha se distraído e caminhado mais longe do que esperava. E, embora corasse ao dizer estas palavras, ninguém suspeitou da verdade.

A tarde passou calmamente sem que nada de extraordiná­rio ocorresse. Os noivos oficiais falaram e riram. Os não-oficiais ficaram calados. Darcy não era dessas pessoas em que a fe­licidade transborda em alegria; Elizabeth, agitada e confusa, tinha consciência da sua felicidade mas não a sentia propria­mente. Além dos obstáculos imediatos ainda existiam outros à sua frente. Ela antecipava as reações da sua família quando soubesse da sua decisão. Temia mesmo que a antipatia dos outros fosse de tal ordem que nem toda a fortuna e importância de Darcy a poderiam dissipar.

À noite abriu o coração para Jane. Embora Jane fosse uma pessoa muito pouco desconfiada, dessa vez Elizabeth esbarrou com a sua incredulidade.

— Você está brincando, Lizzy. Não pode ser! Noiva de Mr. Darcy! Não, não, você não me engana! Eu sei que é impossível!

— Este começo não é de fato muito animador. A única pessoa com quem eu contava era você. E se você não acreditar, sei que ninguém mais o fará! Sim, de fato eu falo seriamente. Digo apenas a verdade. Ele ainda me ama e estamos noivos.

Jane olhou para ela, incredulamente.

— Oh, Lizzy, não pode ser! Bem sei como você o de­testa...

— Você não sabe coisa alguma. Aquilo está tudo esque­cido. Talvez eu não o amasse antigamente tanto como agora, mas em casos como este a boa memória é um fato imperdoável. Esta é a última vez que recordo estas coisas.

Jane continuava atônita. Elizabeth tornou a lhe assegurar com a maior seriedade que estava falando a verdade.

— Será possível! Mas agora tenho de acreditar no que diz — exclamou Jane. — Minha querida, querida Lizzy! Eu a felicito. Mas você tem certeza? Perdoe a minha pergunta, você tem certeza de que pode ser feliz com ele?

— Quanto a isto não pode haver a menor dúvida. Ficou decidido entre nós que seremos o casal mais feliz do mundo. Mas você está contente, Jane? Você gostará de tê-lo como irmão?

— Muito mesmo. Nada poderia causar mais prazer a Bin­gley e a mim. Nós até já conversamos sobre isto e achamos que era impossível. E você realmente gosta dele? Oh, Lizzy, prefira tudo a se casar sem afeição. Você tem certeza de que o ama como deve?

— Oh, sim. Quando eu lhe contar tudo você até achará que a minha afeição excede os limites.

— Que é que você quer dizer?

— Ora, eu tenho que confessar que o amo mais do que a Bingley. Você vai ficar zangada?

— Minha querida irmã, fale seriamente: quero conversar com você muito a sério. Conte-me imediatamente tudo o que você acha que eu devo saber. Há quanto tempo você gosta dele?

— Isto aconteceu tão gradualmente que eu nem sei como começou. Mas acredito que a minha afeição data da primeira vez em que vi o belo parque de Pemberley.

Seguiu-se outra súplica para que ela falasse seriamente. Desta vez o pedido obteve o efeito desejado. E Elizabeth deu à irmã garantias as mais solenes da sua afeição por Darcy. Tran­qüilizada quanto a este ponto, Jane ficou satisfeita.

— Agora sinto-me contente — disse ela. — Pois você será tão feliz quanto eu. Sempre o apreciei muito. Bastava aliás o amor dele por você para fazer com que eu o estimasse para sempre, mas agora, como amigo de Bingley e seu marido, só Bingley e você mesma terão precedência na minha afeição. Mas, Lizzy, você foi muito sonsa, muito reservada comigo. Não me contou quase nada do que aconteceu em Pemberley e em Lamb­ton. Devo tudo o que sei a outra pessoa.

Elizabeth lhe explicou por que tinha guardado segredo. Não quisera falar no nome de Bingley. E a incerteza dos seus próprios sentimentos fazia com que ela evitasse falar no nome de Darcy. Mas agora Elizabeth não podia esconder por mais tempo da irmã a participação de Darcy no caso de Lydia. Con­tou tudo. Passaram metade da noite em conversa.

 

— Arre — exclamou Mrs. Bennet ao se aproximar da ja­nela na manhã seguinte. — Não é que aquele homem desagra­dável já vem aí com o nosso querido Bingley? Que deseja ele, com essas visitas contínuas? Não vê que nos importuna? Por que não vai caçar ou fazer outra coisa em vez de nos impingir a sua companhia? Que faremos com ele? Lizzy, é melhor você ir passear novamente com ele, para que não se meta no caminho de Bingley.

Elizabeth não pôde deixar de rir diante de proposta tão conveniente. No entanto ela estava realmente contrariada com aquelas manifestações de sua mãe.

Assim que entrou, Bingley olhou para Elizabeth tão signi­ficativamente e lhe apertou as mãos com tanto calor que não podia haver dúvida de que estivesse bem informado. E pouco depois ele disse, em voz alta:

— Mrs. Bennet, a senhora não tem no seu parque outros caminhos em que Lizzy possa se perder?

— Aconselho Mr. Darcy, Lizzy e Kitty — disse Mrs. Ben­net — a darem um passeio até Oakham Mount. É um belo e longo passeio e Mr. Darcy nunca viu a vista.

— Está muito bem para os outros — replicou Mr. Bin­gley —, mas estou certo de que é longe demais para Kitty. Não é, Kitty?

Kitty confessou que preferia ficar em casa. Darcy declarou que estava muito curioso para ver a vista, e Elizabeth consentiu em silêncio. Enquanto subia as escadas para ir se aprontar, Mrs. Bennet a acompanhou, dizendo:

— Sinto muito, Lizzy, que você tenha de fazer companhia àquele homem tão desagradável. Mas espero que você não faça caso. É para o bem de Jane, você sabe... E depois, não pre­cisa conversar muito com ele. Só de vez em quando. Portanto, não se dê muito trabalho.

Durante o passeio ficou resolvido que o consentimento de Mr. Bennet seria solicitado naquela mesma noite. Elizabeth se encarregou de falar com a mãe. Não sabia como Mrs. Bennet receberia aquela comunicação. E às vezes ela duvidava de que toda a fortuna e importância de Darcy seriam suficientes para vencer a antipatia que a mãe tinha por ele. Mas quer Mrs. Bennet se declarasse violentamente contra o casamento, ou vio­lentamente a favor, Elizabeth estava certa de que a sua atitude seria pouco conveniente e sensata. E Elizabeth não poderia to­lerar que Mr. Darcy ouvisse as primeiras manifestações da sua alegria ou a primeira veemência da sua desaprovação.

 

À noite, pouco depois de Mr. Bennet se levantar da mesa e entrar na biblioteca, Elizabeth viu Mr. Darcy se levantar igualmente e acompanhá-lo. Naquele momento a sua agitação foi extrema. Ela não receava a oposição de seu pai. Mas tinha certeza de que isto ia desgostá-lo. E a idéia de que ela, a sua filha favorita, lhe causaria uma grande decepção com a sua es­colha, enchendo-o de preocupação quanto ao seu futuro, fez com que ela ficasse angustiada e aflita até que Mr. Darcy tornou a aparecer. O sorriso que ele teve, ao vê-la, aliviou-a um pouco. Poucos minutos depois ele se aproximou da mesa onde Eliza­beth estava sentada com Kitty e, fingindo admirar o trabalho que ela fazia, sussurrou ao seu ouvido:

— Vá à biblioteca. Seu pai quer falar com você. Elizabeth partiu imediatamente.

Mr. Bennet caminhava de um lado para outro na bibliote­ca, e sua expressão era grave e ansiosa.

— Lizzy — disse ele —, que é que você está fazendo? Você está no seu juízo perfeito aceitando este homem? Você não o odiava?

Naquele momento Elizabeth desejou ardentemente que tivesse exprimido as suas opiniões mais moderadamente. Isto lhe teria poupado explicações embaraçosas. Mas agora era pre­ciso falar. E Elizabeth assegurou ao pai, um tanto confusa, que tinha muita afeição por Mr. Darcy.

— Ou, em outras palavras, você está decidida a se casar com ele. Ele é rico, certamente, e você pode ter roupas e carrua­gens ainda mais belas do que as de Jane. Mas você será feliz?

— O senhor tem outra objeção a não ser a sua suposição de que eu lhe seja indiferente?

— Nenhuma. Todos sabemos que ele é um homem orgu­lhoso e desagradável. Mas isto não teria importância se você realmente o amasse.

— Eu o amo — replicou Elizabeth, com lágrimas nos olhos —, eu o amo sinceramente. Asseguro-lhe que ele não tem nenhum orgulho injustificado. É um homem muito bom. O senhor, na realidade, não o conhece. Portanto, não me magoe falando nestes termos a seu respeito.

— Lizzy — respondeu Mr. Bennet —, já dei o meu con­sentimento. Ele é realmente um desses homens a quem eu nun­ca recusaria alguma coisa que ele condescendesse em pedir. E agora torno a lhe dar o meu consentimento, se a isto está deci­dida. Mas aconselho-a a pensar melhor. Conheço o seu gênio, Lizzy, penso que jamais você seria feliz e equilibrada a não ser que estime realmente o seu marido, a não ser que possa considerá-lo como o seu superior. Sua vivacidade e inteligência a colocariam numa situação de grande perigo num casamento desigual. Ser-lhe-ia difícil salvar a sua reputação e a sua felici­dade. Minha filha, não me dê o desgosto de vê-la impossibili­tada de respeitar o seu companheiro de vida. Você não sabe a seriedade do passo que está dando.

Elizabeth, ainda mais emocionada, respondeu solene e gra­vemente. E afinal, afirmando repetidamente que Mr. Darcy era realmente o homem que ela tinha escolhido, explicando-lhe a mudança gradual por que tinha passado a sua estima por ele, relatando a absoluta certeza que tinha da sua afeição, que não era uma coisa de momento, mas tinha resistido à experiência de muitos meses de incerteza, enumerando com energia todas as qualidades do futuro marido, ela acabou convencendo o pai e reconciliando-o com a idéia do casamento.

— Bem, minha querida — disse ele quando Elizabeth acabou de falar. — Nada mais tenho a dizer. Se este é o caso, ele a merece. Eu não me poderia separar de você, minha cara Lizzy, entregando-a a alguém que fosse menos digno da sua estima.

Para completar a impressão favorável do seu pai, ela então lhe relatou o que Mr. Darcy tinha feito voluntariamente por Lydia. Ele a ouviu com grande espanto.

— Realmente, esta é uma noite de surpresas. Então Dar­cy fez tudo! Arranjou o casamento, deu dinheiro, pagou as dívidas do rapaz e lhe arranjou um posto? Tanto melhor. Pou­pa-me inúmeros incômodos e grande soma de dinheiro. Se tudo tivesse sido feito por seu tio, ficaria na obrigação de lhe pagar e de fato lhe pagaria. Mas estes jovens violentamente apaixo­nados fazem tudo de acordo com a sua vontade. Amanhã lhe proporei o pagamento, Ele protestará furiosamente, alegando o seu amor por você, e assim acabará a história.

Mr. Bennet se lembrou então do embaraço com que Eliza­beth ouvira poucos dias antes a leitura da carta de Mr. Collins; e depois de caçoar com ela durante algum tempo, deixou-a par­tir, dizendo, ao vê-la sair da sala:

— Se chegarem rapazes para Mary ou Kitty, pode mandar entrar, pois não tenho nada que fazer.

Elizabeth se sentiu aliviada de um grande peso. E, depois de refletir calmamente no seu quarto durante meia hora, voltou para junto dos outros com o rosto tranqüilo. Tudo aquilo ainda era muito recente para que a sua alegria transbordasse. A noite passou tranqüilamente. Não havia mais nada a temer e a calma voltaria aos poucos.

Quando a mãe subiu para o quarto, Elizabeth a acompa­nhou e fez a importante comunicação. O efeito foi extraordi­nário, pois ao ouvi-la Mrs. Bennet permaneceu completamente imóvel, incapaz de dizer uma só palavra. Só depois de muitos e muitos minutos ela pôde compreender o que tinha ouvido, embora estivesse sempre atenta a tudo o que redundasse em proveito para a família, ou que se apresentasse sob o aspecto de um noivo para qualquer uma das suas filhas. Finalmente ela começou a voltar a si, a se mexer na cadeira; levantou-se, tornou a sentar, abriu a boca, persignou-se!

— Meu Deus do céu! Deus me abençoe! Imagine! Ora essa! Mr. Darcy! Quem poderia supor? É verdade mesmo? Oh, minha querida Lizzy! Como você será rica e importante! Que mesadas, que jóias, que carruagens você terá! O casamento de Jane não é nada em comparação com o seu! Estou tão feliz, tão contente! Um homem tão encantador! Tão bonito! Tão alto! Oh, minha querida Lizzy! Perdoe-me por ter antipatizado com ele no princípio! Espero que ele me perdoe. Minha querida Lizzy... Uma casa em Londres! Tudo o que há de melhor! Três filhas casadas! Dez mil libras por ano! Meu Deus do céu, que será de mim? Vou ficar louca...

Essas exclamações eram suficientes para mostrar a Eliza­beth que não precisava duvidar da aprovação da mãe. E, congratulando-se por ser a única testemunha daquela efusão, Eliza­beth se retirou para o seu próprio quarto. Três minutos depois Mrs. Bennet apareceu.

— Minha querida filha — exclamou ela —, não posso pensar noutra coisa. Dez mil libras por ano e provavelmente mais! É como se fosse um lorde! E vocês se casarão com uma licença especial. Faço questão de uma licença especial. Mas, meu bem, diga-me qual é o prato que Mr. Darcy prefere. Eu o farei amanhã.

Isto era um triste prenuncio do que poderia ser o compor­tamento da mãe para com o noivo. E Elizabeth descobriu que, embora de posse do mais caloroso dos afetos e tranqüila quanto ao consentimento dos pais, havia ainda alguma coisa a desejar. Mas o dia seguinte passou muito melhor do que ela tinha espe­rado. Mrs. Bennet, por sorte, tinha tanto respeito por seu futuro genro que só se atreveu a lhe dirigir a palavra para lhe dizer alguma amabilidade ou manifestar a deferência que sentia pelas suas opiniões.

Elizabeth teve a satisfação de ver o pai fazer esforços para entrar em comunicação com Darcy. Mr. Bennet lhe assegurou que a sua estima por ele crescia a cada momento.

— Admiro altamente todos os meus três genros. Wick­ham, talvez seja o meu favorito, mas acho que acabarei gostando do seu marido tanto quanto do de Jane.

 

Sentindo-se tranqüila, Elizabeth começou logo a gracejar. Pediu a Mr. Darcy que explicasse como se tinha apaixonado por ela.

— Como pôde começar? — perguntou ela. — Posso com­preender perfeitamente que tenha continuado uma vez feito o primeiro passo, mas que foi que o impulsionou?

— Não posso fixar a hora ou o lugar. Isto já foi há muito tempo. Eu já estava no meio e ainda não sabia que tinha co­meçado.

— Minha beleza, você a tinha negado desde o princípio. E quanto às minhas maneiras, meu comportamento para com você sempre beirou a falta de educação. E quase sempre, quan­do me dirigia a você, era com o intuito de feri-lo. Agora seja sincero: foi por causa da minha impertinência que me admirou?

— Pela vivacidade da sua inteligência, sim.

— É melhor chamar logo de impertinência. Era pouco menos. O fato é que estava farto de amabilidades, deferências e atenções. Sentia-se enojado com as mulheres que falavam, agiam e pensavam com o único fito de conquistá-lo. Despertei a sua atenção porque era tão diferente delas. Se você não fosse realmente bom, teria me odiado. Mas, apesar do trabalho que teve para disfarçar os seus sentimentos, estes sempre foram nobres e justos. E no seu coração sempre desprezou as pessoas que o cortejavam tão assiduamente. Aí está: já lhe poupei o trabalho de uma explicação; e realmente, pensando bem, acho a minha hipótese muito razoável. Para falar a verdade, não me conhecia nenhuma boa qualidade. Mas ninguém pensa nisto quando se apaixona.

— Então não havia bondade no que fez por Jane quando ela esteve doente em Netherfield?

— Jane é uma pessoa querida. Quem não teria feito outro tanto por ela? Mas faça disso uma virtude, se quiser; minhas boas qualidades estão sob a sua proteção. Pode exagerá-las quan­to quiser. Em troca cabe-me o direito de provocá-lo e discutir com você todas as vezes que me apetecer. E eu começarei ime­diatamente, perguntando por que é que à última hora se mostrou tão indeciso. Por que se mostrou tão tímido comigo por ocasião da sua primeira visita e depois quando jantou aqui? E, espe­cialmente, por que a sua atitude era tão distante e fria?

— Porque você estava grave, silenciosa e não me deu nenhum encorajamento.

— Mas eu estava embaraçada.

— E eu também.

— Podia ter conversado comigo quando veio jantar.

— Um homem menos apaixonado o teria feito.

— É pena que encontre para tudo uma resposta razoável e que eu tenha o bom senso de aceitá-la. Mas pergunto a mim mesma quanto tempo teria levado para se declarar se eu nada lhe tivesse perguntado. Minha resolução de lhe agradecer a sua bondade para com Lydia teve certamente um grande efeito. Receio que até mesmo demasiado. Que será da moral se o nosso entendimento for devido a uma quebra de promessa? Já que eu não deveria ter mencionado o assunto. Isto assim não está bem.

— Não precisa ficar preocupada. A moral está salva. As injustificadas tentativas de Lady Catherine para nos separar foram um meio de remover todas as minhas dúvidas. Não é ao seu ávido desejo de exprimir a sua gratidão que devo a minha atual felicidade. Eu não teria esperado. A comunicação de minha tia renovara as minhas esperanças. Eu estava decidido a saber de tudo imediatamente.

— Lady Catherine nos foi de imensa utilidade. E isto devia torná-la feliz, pois ela gosta de ser útil. Mas diga-me, por que veio a Netherfield? Foi apenas para passear em Longbourn e ficar embaraçado? Ou tinha intenções mais sérias?

— Meu fito real foi vê-la e verificar se eu ainda poderia ter a esperança de fazer com que me amasse. O motivo decla­rado, ou pelo menos aquele que confessei a mim mesmo, foi verificar se a sua irmã ainda gostava de Bingley e, caso ainda gostasse, fazer ao meu amigo a confissão que mais tarde eu realmente lhe fiz.

— Você terá coragem de anunciar a Lady Catherine o que nos espera?

— É mais fácil faltar-me o tempo do que a coragem. Mas, já que tem de ser feito, dê-me uma folha de papel e escreverei imediatamente.

— E se eu não tivesse também uma carta a escrever, sen­taria ao seu lado e admiraria a regularidade da sua caligrafia como certa moça, um dia, já fez. Mas eu tenho também uma tia e estou em falta com ela.

Para não responder que seus tios tinham exagerado o seu interesse por Mr. Darcy, Elizabeth ainda não respondera à carta de Mrs. Gardiner. Agora, porém, sabendo que ela receberia da melhor maneira possível a comunicação que tinha a fazer, Eli­zabeth se sentia quase envergonhada ao refletir que seu tio e sua tia já tinham perdido três dias de felicidade, e imediatamen­te respondeu o seguinte:

 

"Eu já teria escrito antes, minha querida tia, para lhe agra­decer, como devia, a sua longa e boa carta, cheia de detalhes satisfatórios, se, para falar a verdade, não estivesse aborrecida demais para escrever. A senhora supôs mais do que realmente existia, mas agora suponha tanto quanto quiser. Solte as rédeas da sua fantasia e entregue-se à sua imaginação, para os vôos mais arrojados. E, a não ser que suponha que já estou realmente casada, não poderá errar muito. Escreva-me novamente muito breve e faça a ele muito mais elogios do que na sua última car­ta. Não me canso de lhe agradecer por não me ter levado aos lagos. Não sei como pude ter a tolice de desejar esse passeio. A sua idéia dos pôneis é encantadora. Faremos a volta do par­que todos os dias. Sou a criatura mais feliz do mundo. Talvez outras pessoas já o tenham dito antes, mas não com tanta justiça. Sou mais feliz até do que Jane. Ela apenas sorri e eu rio. Mr. Darcy lhe envia todo o amor que ainda lhe resta. Estão todos convidados para vir a Pemberley pelo Natal. Sua, etc.

 

A carta de Mr. Darcy para Lady Catherine foi escrita em estilo diferente. Diferente também de ambas foi a carta que Mr. Bennet escreveu para Mr. Collins, em resposta à última daquele cavalheiro.

 

"Caro senhor:

Venho incomodá-lo mais uma vez com participações. Eli­zabeth será em breve a esposa de Mr. Darcy. Console Lady Catherine como puder. Mas, se estivesse em seu lugar, ficaria do lado do sobrinho. Ele tem mais a dar. Seu sinceramente, etc."

 

Os parabéns que Miss Bingley mandou para o irmão pelo casamento próximo foram tudo o que havia de mais afetuoso e insincero. Ela escreveu até para Jane, nesta ocasião, a fim de exprimir o seu contentamento e repetir todas as suas anteriores declarações de estima. Jane não se iludiu, mas ficou tocada. E, embora não tendo confiança nela, não pôde deixar de lhe escre­ver uma carta muito mais amável e carinhosa do que sabia que a outra merecia.

A alegria que Miss Darcy exprimiu ao receber uma infor­mação semelhante foi tão sincera quanto a do irmão ao enviá-la. Quatro páginas de papel foram insuficientes para conter toda a alegria que ela queria exprimir e o seu sincero desejo de ser estimada pela futura irmã.

Antes de chegar qualquer resposta de Mr. Collins, ou parabéns de Charlotte para Elizabeth, a família de Longbourn soube que os Collins em pessoa tinham chegado a Lucas Lodge. O motivo dessa súbita viagem tornou-se logo evidente. Lady Catherine se tinha enfurecido de tal modo com a carta do so­brinho, que Charlotte, que na realidade se alegrava com o casa­mento, ficou ansiosa para ir embora até que a tempestade pas­sasse. Naquele momento a chegada da amiga causou um sincero prazer a Elizabeth, muito embora todas as vezes que estivessem juntas esse prazer tivesse de ser pago a alto preço, quando veria Mr. Darcy exposto a todas as cortesias obsequiosas e pomposas de Mr. Collins. Darcy, no entanto, suportou tudo aquilo com uma calma admirável. Ouviu até com serenidade as palavras de Sir William Lucas, que o cumprimentou por ter conquistado a mais bela jóia do país, e exprimiu a esperança de que se en­contrassem todos freqüentemente em St. James. Se ele chegou a erguer os ombros, foi só depois que Sir William Lucas lhe tinha voltado as costas.

A vulgaridade de Mrs. Philips foi outra sobrecarga para a sua paciência, talvez ainda maior do que as outras. Embora Mrs. Philips, como a irmã, Mrs. Bennet, se sentisse atemori­zada diante de Darcy, que não tinha o bom humor de Bingley, todas as vezes que abria a boca era só para dizer coisas vulgares. Elizabeth fez tudo o que pôde para protegê-lo das freqüentes atenções de ambas, procurando intervalos para si mesma e para as pessoas da família com quem ele podia conversar sem se sentir mortificado. E, embora as contrariedades resultantes de tudo isso estragassem muito o prazer do seu noivado, faziam Elizabeth pensar com maior satisfação no futuro, antecipando a vida confortável que teriam, em Pemberley, longe daquela sociedade tão pouco agradável para ambos.

 

Grato para os seus sentimentos maternais foi o dia em que Mrs. Bennet se viu livre de duas das mais queridas filhas. É fácil imaginar com que orgulho ela visitava, mais tarde, Mrs. Bingley, e conversava com Mrs. Darcy. Eu desejaria poder acres­centar, para bem da família, que a realização dos seus mais caros desejos tivera o feliz efeito de torná-la uma mulher sen­sata, discreta e interessante para o resto da sua vida. No entanto foi bom para o seu marido que assim não acontecesse, pois talvez ele não tivesse apreciado uma felicidade doméstica tão excepcional. Mrs. Bennet continuou invariavelmente nervosa e ocasionalmente tola.

Mr. Bennet sentiu grandemente a falta da segunda filha. A sua afeição por ela foi um dos motivos que daí por diante mais o obrigaram a sair de casa. Ele gostava muito de ir a Pemberley, principalmente quando não era esperado. Mr. Bin­gley e Jane ficaram em Netherfield apenas mais um ano. Tama­nha proximidade da mãe e dos conhecidos de Meryton não era desejável, mesmo levando em conta o gênio fácil de Bingley e o coração afetuoso de Jane. O grande desejo das irmãs de Bingley foi satisfeito: ele comprou uma propriedade nas proximidades do Derbyshire. E, em acréscimo a todas as suas outras felici­dades, Jane e Elizabeth tiveram a de residir a trinta milhas uma da outra.

Kitty passava a maior parte do seu tempo com as duas irmãs mais velhas. E isto foi de grande vantagem para ela. Numa sociedade tão superior à que ela tinha conhecido, fez grandes progressos. Kitty não tinha um gênio tão rebelde quanto Lydia. E, longe da influência e do exemplo da irmã, graças a certos cuidados e atenções, tornou-se menos irritável, menos ignorante e menos insípida. A sua família julgou dever preservá-la de qualquer nova influência da parte de Lydia. E, embora Mrs. Wickham freqüentemente a convidasse para passar tempos em sua casa, com promessas de bailes e de rapazes, o pai jamais consentia que ela fosse.

Mary foi a única filha que permaneceu em casa. E, como Mrs. Bennet não suportasse a solidão, ela foi de qualquer modo impedida de prosseguir no aperfeiçoamento dos seus talentos. Obrigada a freqüentar mais assiduamente a sociedade, continuou no entanto a tirar conclusões morais de cada visita que fazia. E como Mary não se mortificasse mais com as comparações entre a beleza das suas irmãs e a sua própria, seu pai desconfiou que ela aceitava sem muita relutância essa alteração dos seus hábitos.

Quanto a Wickham e Lydia, o casamento pouco os alterou. Wickham se resignou filosoficamente à convicção de que Eli­zabeth sabia agora de todas as suas ingratidões e mentiras. E, apesar de tudo isto, continuava a alimentar a esperança de que ela um dia pudesse convencer Darcy a fazer a sua fortuna. A carta que Elizabeth recebeu de Lydia por ocasião do seu casa­mento lhe revelou que tal esperança era acalentada pela mulher, se não pelo próprio marido. A carta dizia o seguinte:

 

"Minha cata Lizzy: desejo-lhe todas as felicidades possí­veis. Se o seu amor por Mr. Darcy é apenas metade do que eu sinto pelo meu querido Wickham, você deve ser muito feliz. É um grande consolo saber que você é tão rica. E, quando não tiver mais nada a fazer, espero que pense em nós. Wickham gostaria muito de ter uma situação na justiça. Não creio que tenhamos bastante dinheiro para viver sem algum auxílio. Qual­quer lugar de trezentas ou quatrocentas libras por ano serviria. No entanto não fale sobre isto a Mr. Darcy, se prefere ficar calada. Sua, etc."

 

Como Elizabeth preferia muito ficar calada, procurou, na sua resposta, pôr um termo a todos os pedidos desta natu­reza. No entanto ela lhes enviava tudo o que podia economizar das suas despesas particulares. Sempre lhe parecera evidente que a renda que eles tinham, dirigida por pessoas tão extrava­gantes nos seus desejos e tão descuidadas do futuro, seria insu­ficiente para o seu sustento. E quando o casal mudava de resi­dência, Jane ou Elizabeth podiam estar certas de receber um pedido de auxílio, pois havia sempre contas a pagar. Sua ma­neira de viver, mesmo quando possuíam uma casa, era a mais irregular possível. Estavam continuamente de mudança, de lu­gar para lugar, em busca de uma situação barata, e gastavam sempre mais do que possuíam. A afeição de Wickham por Lydia em breve se transformou em indiferença. A de Lydia resistiu por mais algum tempo. Apesar da mocidade e das suas maneiras, ela conservou intacta a reputação que o casamento lhe havia assegurado.

Embora Darcy nunca se pudesse resignar com a idéia de receber Wickham em Pemberley, graças à interferência de Eli­zabeth ajudou-o na carreira. Lydia os visitava, ocasionalmente, quando o marido tinha ido a Londres ou a Bath, para se di­vertir. Em casa dos Bingley, no entanto, eles se demoravam muito mais tempo, a ponto de esgotar o bom humor de Bin­gley. Uma vez ele chegou a dizer que ia lançar uma indireta para que eles fossem embora.

Miss Bingley ficou profundamente mortificada com o casa­mento de Darcy; mas, como julgava aconselhável conservar o direito de freqüentar Pemberley, sufocou todos os ressenti­mentos. Continuou a gostar de Georgiana, como antes, mos­trou-se quase tão atenciosa para com Darcy como antigamente, e pagou com juros todas as cortesias que devia a Elizabeth.

Georgiana foi residir em Pemberley. A afeição das duas novas irmãs correspondeu a todas as expectativas de Darcy, e até mesmo às intenções das duas moças. Georgiana tinha uma grande admiração por Elizabeth. A princípio ouvira com assom­bro e um pouco de terror os gracejos e brincadeiras de Eliza­beth. O irmão sempre lhe inspirara um respeito que quase sufocava a sua afeição. Começou a saber de coisas que ignorava. Elizabeth lhe explicou que uma esposa pode se permitir com o marido liberdades que um irmão nem sempre poderia tolerar na irmã dez anos mais moça do que ele.

Lady Catherine ficou extremamente indignada com o casa­mento do sobrinho. Dando largas à franqueza que a caracteri­zava, enviou uma resposta em termos tão violentos, especial­mente contra Elizabeth, à carta de participação do sobrinho, que durante algum tempo todas as relações foram cortadas. Mas afinal, Elizabeth conseguiu que o marido perdoasse a ofensa e procurasse uma reconciliação. Depois de alguma resistência, o ressentimento de Lady Catherine cedeu, talvez diante da afei­ção que tinha pelo sobrinho ou da curiosidade de ver como a sua esposa se conduzia; e ela consentiu em ir visitá-los em Pemberley, apesar da ofensa que seus ilustres antepassados tinham recebido, não somente pela presença de uma esposa de tão baixa extração, como pelas visitas dos seus tios de Londres.

Com os Gardiner eles ficaram sempre em termos muito íntimos. Darcy, a exemplo de Elizabeth, tinha a maior afeição por eles. E além disso nunca se esqueceram da gratidão que deviam às pessoas por cujo intermédio eles tinham reatado as suas relações, durante aquele passeio pelo Derbyshire.

 

                                                                                Jane Austen  

 

                      

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