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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ORGULHO SAXÄO / Nieves Hidalgo
ORGULHO SAXÄO / Nieves Hidalgo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ORGULHO SAXÃO

 

Coração de Leão comanda a Segunda Cruzada e a Inglaterra sangra entre intrigas e lutas feudais. Normandos e saxões disputam o controle e o rei Ricardo concede a seu mais fiel servidor, Wulkan, o senhorio de Kellinword e a mão de uma dama saxã, com a ordem de rapidamente unificar e pacificar o território.

Nessa tarefa, empenhará sua ilusão e a busca de uma paz que não encontrou guerreando.

Sua prometida, lady Jacqueline de Lynch, entretanto, jurou vingar a morte de seus pais e não submeter-se a nenhum normando. Escapa para não se transformar em sua esposa, mas o destino a arrastará para Kellinword definitivamente…

 

                           Inglaterra, ano 1194

        A segunda expedição militar contra os sarracenos tinha fracassado. Luis VII, rei da França, e Conrado III da Alemanha tinham sitiado sem êxito a cidade de Damasco. O Papa Gregório VIII ordenou uma terceira cruzada, prometendo benefícios espirituais e terrestres aos combatentes. Federico I da Alemanha, Felipe Augusto da França e Ricardo I da Inglaterra, conhecido como Coração de Leão, contaram com o apoio de Isaac II, imperador do Oriente. A empreitada se iniciou sob um manto de bons presságios, mas Isaac faltou com sua palavra, Federico morreu e as divergências entre os reis da França e Inglaterra fizeram fracassar a cruzada.

        Ricardo Coração de Leão retornou a Inglaterra a tempo de solidificar seus feudos, enforcar alguns infiéis como castigo e encontrar—se com alguns nobres. Depois, partiu de novo para suas propriedades em território francês, e a Inglaterra voltou a ficar, uma vez mais, órfã de rei.

        Um sentimento de frustração invadiu o coração do cavaleiro, que, montado sobre um garanhão de pelagem escura e poderosas patas, atravessava as campinas inglesas seguido de um grupo de homens armados. Não lhe doía tanto ser abandonado por seu rei, mas sim a negativa de Ricardo em acompanhá—lo em sua missão, mas as ordens do monarca tinham sido claras e concisas:

        —Desejo pacificar meu reino —disse —A vida entre normandos e saxões parece ter chegado a um contínuo desencontro. Quero ser o soberano de todos, não o amado rei de uns e o odiado usurpador de outros. E você vai me ajudar.

        De nada serviram seus protestos, e agora, pensar em se encarregar do extenso feudo de Kellinword, cujo senhor tinha morrido em batalha sem deixar herdeiros, preocupava—o. Pelo que sabia, o território era grande. Abrangia ao menos cinco povoados, doze aldeias e uma grande quantidade de terras de pastoreio, lavoura e bosques. O anterior senhor de Kellinword ganhou fama pelo castelo que, pedra a pedra, levantou com esforço e com incursões em territórios vizinhos. Estes últimos lhe permitiram ampliar suas propriedades e proporcionar a suas arcas dinheiro suficiente para pagar os trabalhadores. Agora, as ameias desafiavam o céu azul da Inglaterra.

        Wulkan não era homem de sentar e se saciar de vinho e manjares. Jamais conheceu casa fixa, e a idéia de ter que se encarregar de tanta gente o incomodava.

        Sabia que teve um pai e uma mãe em alguma parte, talvez irmãos e irmãs, mas não lembrava deles. De vez em quando, ao dormir, ecoava em sua cabeça uma melodia que relacionava sempre com uma mulher formosa e jovem que acariciava seu rosto e o balançava em seus braços. Se aquela mulher foi sua mãe, jamais soube. Só recordava ter despertado sob a lona de uma tenda de campanha, propriedade de um tal Muderman de Levrón: bêbado, mulherengo, sujo e desumano com todos os que o rodeavam. Ladrão, enganador, vigarista e às vezes violador. Muderman o recolheu. Ignorava se por piedade ou porque necessitava de braços jovens para montar e desmontar a imunda lona em que vivia. Foi o único pai que conheceu.

        A princípio, Wulkan acreditou que Muderman tinha lhe dado seu nome mas, depois de três longos anos vivendo debaixo daquela asquerosa lona, vagando por quase toda a França, de feira em feira, de povoado em povoado e de aldeia em aldeia, descobriu um medalhão de ouro enquanto arrumava os escassos pertences do homem. Muderman entrou na tenda quando ele contemplava, extasiado, a jóia e conseguia ler com esforço (conhecia as letras graças aos ensinamentos de um velho monge) a dedicatória no verso: «A Wulkan, com meu amor». Então percebeu que não foi Muderman quem lhe pôs seu nome ao nascer, e que essa pessoa lhe tinha dado a jóia. Wulkan não lembrava. Tampouco sabia que quem o raptou da casa de seu pai, pedindo depois um grande resgate, jogou—o em uma ravina, dando—o como morto, para que jamais pudesse reconhecê—los. Tinha oito anos quando descobriu o medalhão, e a única coisa que conseguiu ao perguntar quem era ele na verdade, foi a maior surra de sua vida. Muderman o esbofeteou até atordoá—lo. Depois, a corrente ocupou o lugar dos punhos até o desmaio.

        Quando recuperou a consciência, mais morto que vivo, encontrou—se sozinho. Muderman tinha partido. Retornou depois de dois dias, totalmente bêbado, e voltou a golpeá—lo. Não pôde fazer nada. Era uma criança, e não só suportou aquela surra, mas também todas as que vieram depois, cada vez que Muderman se embebedava. Batia nele por tudo e nada. Se arrumava suas coisas, porque não ficavam ao seu gosto. Se levava uma prostituta à tenda e não o satisfazia, encolerizava—se. Se a rameira se comportava como ele desejava, dizia que era porque a tinha olhado com atrevimento. Sempre existia uma causa para libertar a corrente e deixá—lo moído a açoites.

        Tornou—se homem a golpes daquele resto humano. E fartou—dr também desses golpes. Até que um dia respondeu na mesma moeda. O trabalho constante e a vida ao ar livre lhe deram um corpo forte e musculoso, e houve um dia em que percebeu que não tinha que suportar aquele bastardo. Depois de fraturar sua mandíbula, pegou algumas moedas como pagamento pelas surras que levou por anos e partiu para Paris, levando uma mula de carga como montaria.

        Apesar de seus modos rudes, sempre bruscos, as mulheres dedicavam a Wulkan mais atenção que se podia imaginar. Era um rapaz de apenas dezesseis anos, alto e forte, mas sem nenhuma experiência na arte de encantar uma mulher. Foram elas, de fato, que o ensinaram. E o fizeram maravilhosamente. A primeira, uma jovem casada com um homem que tinha o triplo de sua idade, desejosa de carne fresca. A inexperiência de Wulkan a atraiu. Não só proporcionou a ele sua primeira experiência sexual, mas também lhe presenteou com roupas e professores que o ensinaram as letras, matemática, ciências e geografia. Quando o esposo ancião descobriu o rapaz que esquentava a cama de sua dama, Wulkan teve que escapar de Paris, com homens armados em seus calcanhares.

        Depois daquela esposa infiel vieram outras mulheres. Solteiras, casadas ou viúvas, Wulkan não rejeitou nenhuma, nem tampouco confiou nelas porque as rameiras de Muderman sempre o trataram a chutes. Assim aprendeu a usá—las e esquecer. Exercitou—se na arte das armas e acabou sendo um verdadeiro demônio no manejo da espada e da besta , conseguindo dominar o cavalo com as pernas, enquanto seus braços se ocupavam com a espada e o escudo.

        Entretanto, o que realmente o impulsionou ao topo foi uma rixa. Até agora, depois de quase dez anos, sorria recordando o causador da disputa: uma mulher. Uma jovem dona de cantina bela o suficiente para esquecer a falta de recursos de Wulkan. Mas também arisca. Esteve rondando—a durante uma semana antes de convencê—la a ir para a cama. Então apareceu aquele tipo, um pouco mais velho que ele, com um cabelo crespo e olhar ardente. Ofereceu a jovem uma bolsa de moedas e ela aceitou, encantada.

        Wulkan também pensou em pagar seus serviços, mas não poderia ter competido com aquela bolsa cheia. O olhar de seu rival cravou—se nos olhos escuros de Wulkan com ironia. Acabaram no pátio atrás da taberna, embora os homens que acompanhavam o intruso fizeram o impossível para evitar a briga. Sem armas. Com as mãos nuas. Só poder contra poder, macho contra macho em luta por uma fêmea. Depois de meia hora de combate, suado e dolorido, com uma sobrancelha em carne viva, o lábio inferior sangrando e um hematoma no ombro direito, Wulkan conseguiu derrubar seu competidor com um gancho no queixo: caiu deitado, derrotado, com uma contusão sobre um dos olhos e o queixo quebrado e azulado. Wulkan sentiu—se eufórico, embora seu aspecto fosse tão lamentável como o de seu oponente. Até que um daqueles homens que se aproximou, olhou para o homem caido e depois para ele, erguendo uma sobrancelha.

        — Rapaz — disse com uma pitada de humor na voz — acaba de derrubar nada menos que Ricardo Coração de Leão.

        Se tivesse sido condenado a morrer decapitado, não teria ficado tão surpreso. Ricardo! O preferido da rainha Leonor de Aquitania! Sem dúvida, o futuro herdeiro do trono da Inglaterra. E ele, um joão ninguém, tinha ousado quebrar—lhe o nariz.

        Embora ninguém fosse proibido de partir da taberna enquanto tentavam reanimar Ricardo, Wulkan permaneceu sentado no chão, com a cabeça entre as mãos. Por Deus, merecia que o enforcassem! A quem diabos a não ser a ele podia acontecer de envolver—se em uma briga com ninguém mais. Ninguém menos que Ricardo!

        Uma mão em seu ombro o fez voltar para a realidade.

        Engoliu a saliva com esforço ao enfrentar de novo aqueles olhos vivazes. Ricardo, longe de estar zangado, parecia divertido. Tocou o queixo e fez um gesto de dor que revirou o estômago de Wulkan.

        —Um punho que conseguiu me derrubar de semelhante forma, deve estar a meu serviço.

        Foi assim que Wulkan tornou—se cavaleiro, e depois esteve ao lado de Ricardo até se converter em um de seus amigos e conselheiros. Por isso agora doía a ele se ver relegado a transformar—se em senhor de Kellinword e se casar com a neta de Enric de Lynch, seu vizinho saxão, em uma aliança que contribuiria para pacificar aquela parte da Inglaterra.

        —Perentil diz que avistaremos o castelo assim que alcançarmos a colina e o bosque — disse alguém ao seu lado, despertando—o de suas lembranças.

        Wulkan olhou para o guerreiro que há tanto tempo transformou—se em seu melhor amigo. Gugger de Montauband tinha sempre o sorriso na boca e um rosto que despertava nas mulheres instintos maternais. Seus cabelos loiros, quase platinados, e seus faiscantes olhos azuis o faziam parecer um bebê grande. Eram uma dupla curiosa. Um loiro como um anjo, e o outro moreno como um demônio. Gugger tinha os olhos claros e alegres, e Wulkan, um olhar pardo, as vezes marrom escuro, outras verde. Alto e magro o primeiro, e o segundo largo de ombros, embora tão alto como seu amigo. As mulheres adoravam aquela risada, sempre aflorando, sempre disposta para uma donzela, mas se apaixonavam pela aparencia séria e viril de Wulkan.

        Este suspirou e massageou a nuca.

        — Isso quer dizer que esta noite dormiremos entre lençóis.

        — Não lhe causarão coceira?

        Wulkan ergueu as espessas e negras sobrancelhas.

        —Coceira? — aflorou seu sorriso zombador e grunhiu em voz baixa. — Tomara que se quebre todo em um poço, Gugger.

        A risada divertida de seu amigo alegrou seu humor sombrio.

 

        Logo chegaria a primavera e invadiria cada canto da Inglaterra de aromas de flor, grama fresca e amores. Mas ainda fazia frio.

        Jacqueline suspirou e dirigiu o cavalo malhado que montava para a entrada da casa principal. Aceitou a ajuda de um dos serventes para apear e correu para se reunir com duas de suas damas, que observavam os exercícios de alguns jovens com a espada. Logo entrou na sala principal. Chamou dois criados que trabalhavam para servir o jantar e saudou com uma inclinação os dois cavaleiros chegados do norte — a quem deram asilo, aproximando—se da cabeceira da mesa disposta no meio da sala. Curvou—se e beijou seu avô. Este ainda conservava o poder de sua juventude, mas naquele momento tinha a aparência envelhecida...

        — Sinto chegar tarde — desculpou—se ela.

        Em resposta, Enric de Lynch assentiu e continuou bebendo. Jacqueline estranhou que a carne de seu prato estivesse intacta, dado o bom apetite de seu avô. Acomodou—se em um banquinho coberto por uma almofada de cetim e perguntou com o olhar a sua irmã mais nova, Aelis, que deu de ombros.

        O jantar terminou sem que Enric tivesse provado a carne, mas sim bebido duas jarras de vinho. Os convidados agradeceram sua hospitalidade e se retiraram para seus quartos no segundo andar, enquanto Jacqueline aguardava que Aelis se ausentasse para falar com o ancião.

        — O que houve, avô?

        Este demorou para responder, mas após um momento disse:

        — Moça, não tenho boas notícias.

        Ela sorriu, ajudou—o a levantar e o acomodou junto as janelas. Não se alarmou. Para seu avô, o mínimo contratempo era uma má notícia.

        — Conte—me! — pediu, segurando as mãos enrugadas mas ainda fortes entre as suas.

        Enric deixou vagar seu olhar no escuro firmamento que se avistava através da alta janela de quase dois metros. Libertou suas mãos das de sua neta, como se estivesse envergonhado do contato. Desde que chegaram aqueles dois homens, esteve dando voltas no assunto procurando uma solução que não encontraria. E ele sabia. Levava o selo do rei, e seus pedidos eram ordens.

        — Vai se casar.

        A notícia não alterou a moça. Na verdade, esperava há anos, quando completasse dezesseis anos. Se seus pais estivessem vivos, já estaria casada e com duas crianças entre suas saias, mas seu avô tinha cedido uma e outra vez diante de sua negativa em se casar com alguém que não fosse de seu agrado.

        — Encontrou o homem de minha vida? — brincou.

        — Procure no armário — foi sua resposta brusca.

        Jacqueline o olhou com o cenho ligeiramente franzido. O que estava ocorrendo? Seu avô nunca era tão pouco explícito. Levantou—se e se aproximou do móvel. Dentro, junto ao tomilho que gostava de armazenar para perfumar o salão, havia um pergaminho enrolado. Intrigada, esticou—o e o leu. Enric a observava com o coração apertado, esperando a inevitável explosão.

        — De modo que o rei sugere que me case com esse indivíduo.

        — Leu a carta igual a mim.

        — Pode fazê—lo? Pode me obrigar a...?

        — Não. Ninguém pode obrigá—la a esse casamento, mas deveria considerar a advertência oculta de Ricardo.

        — Não sou tola, avô. Estas terras podem ir parar mãos estranhas, não?

        — Exatamente.

        — E se assinarmos um sinal de paz com nosso novo vizinho?

        — Sabe tão bem como eu que tanto as tréguas como a paz valem pouco. Poderíamos jurar sobre as Sagradas Escrituras ou sobre as relíquias. Mandar reféns como garantia que se tornariam prisioneiros se faltasse com minha palavra. Mesmo concordando com as sanções religiosas ou o confisco do feudo. Mas a eficácia é pouca. Bastaria não respeitar os compromissos e pisotear os acordos, como outros têm feito antes.

        — Você é um homem de honra!

        — Parece que nosso rei não sabe.

        — Pois deveria!

        — Os emissários de Ricardo foram claros. Nada de tratados. Um casamento para pacificar estes territórios.

        Jacqueline passeou pela sala com as mãos cruzadas nas costas, como costumava fazer seu pai. Depois de vários minutos nos quais Enric não se atreveu a falar, lançou um suspiro. Era uma moça que tomava decisões, com rapidez. Seu pai sempre lhe dizia que pensava mais rápido que um homem. Retornou junto a seu avô e sorriu.

        — Suponho que cedo ou tarde tinha que acontecer. — deu de ombros. — Consegui três anos de liberdade e agora devo confrontar os fatos. Não vou sacrificar a herança de seu sangue por um capricho infantil. Se devo me casar, me casarei. Afinal de contas, da na mesmo um homem ou outro. Mamãe dizia que o carinho nasce da convivência.

        — Sim. Assim dizia.

        — Alegre então esse rosto! — Segurou seu queixo — Submeto—me ao desejo de nosso rei, e garanto que serei a moça educada que esperará a chegada de seu prometido sem queixas…

        Enric desejava morrer nesse momento. Qualquer coisa menos vê—la ali, em frente a ele, aceitando o casamento com um homem que não sabia se era jovem ou velho. Por Deus, e era ele quem tinha que lhe dar a notícia! Mas tinha que fazer e o fez. Nunca evitava uma obrigação, e não ia começar agora.

        — É normando.

        O rosto da jovem perdeu a cor. Seus olhos violetas se estreitaram até se converterem em duas finas linhas. Levantou com tanta rapidez que a barra de sua túnica se enrroscou no assento, derrubando—o. Tinha os punhos tão apertados que os nódulos branquearam. Sua voz, quando falou, foi um assobio.

        — Avô, é uma brincadeira?

        Enric negou, incapaz de articular uma única palavra e Jacqueline explodiu.

        — Normando! — gritou em voz alta, erguendo os braços como quem pede ajuda ao céu. — Um PIOLHENTO, desgraçado e maldito normando!

        — Jacky...

        — Não vou fazer! — voltou a gritar. — Jamais consentirei que um bastardo normando ponha as mãos em cima de mim! — Seus olhos soltavam faíscas. — Por Deus, avô, meus pais se removeriam em suas tumbas se aceitasse me casar com um filhote da mesma matilha daqueles que os mataram!

        — Pequena…

        Enric de Lynch tinha lágrimas nos olhos e contagiou a jovem, que caiu de joelhos diante dele.

        — OH, avô, não posso! Não pode me pedir que...

        — Não, tesouro, não peço. — Acariciou a cabeleira crespa. — Procuraremos uma forma de evitar, juro.

        Naquela mesma noite, Jacqueline abandonou a casa de Lynch. Nem sequer Aelis soube o que os dois tinham nas mãos. Ricardo tinha enviado uma carta e esta tinha sido lida, mas Enric tinha meios para calar os dois mensageiros sobre o momento em que recebeu a missiva. Simplesmente, a jovem estava ausente.

        Escondida em uma carreta de feno e vestida como um mendigo, Jacqueline de Lynch escapou para as terras cedidas a um casal de idosos que tinham servido ao seu pai. Perto dos seus, mas suficientemente longe para que ninguém pudesse encontrá—la.

        Depois de uns meses, talvez o normando encontrasse outra dama para assinar seu contrato matrimonial. Aquela dama muito bem podia ser Clara de Eveling, a moça que seus pais tomaram como protegida ao ficar órfã.

 

        Wulkan estava meio confuso pensando que a vida em um castelo, como senhor de imensas terras, ia ser aborrecida. Estava há apenas uma semana em Kellinword e já tinha feito várias incursões para acabar primeiro com um bando de ladrões, e depois com os assassinos de um camponês.

        Agora apareciam novos conflitos.

        Na aldeia de Caberdin um grupo de mercenários, aqueles que começavam a povoar a Inglaterra, tinham mutilado três homens e matado várias cabeças de gado depois de se embebedar e destroçar a taberna.

        Wulkan pegou suas armas, saiu ao pátio e montou sobre seu cavalo sem saber que ele e seus homens iriam direto para uma armadilha. Ninguém pressentiu.

        Os mercenários eram soldados rudes, acostumados, como eles mesmos, às brigas e batalhas. Mas havia uma diferença: aqueles homens tinham feito um trato substancioso. Cinqüenta moedas de ouro se o novo senhor de Kellinword não retornasse com vida a seu castelo. Não importava o nome da pessoa que os pagaria, só a cor de seu dinheiro. Viviam e morriam por isso. Era seu trabalho. E o faziam bem.

        Confiantes, Wulkan, Gugger e os dez homens que os acompanhavam, entraram em Caberdin pela rua principal. Quase imediatamente, uma chuva de flechas começou a cair sobre eles. A barricada atrás de umas carroças com lenha não serviu de nada para três deles, que caíram atravessados pelas flechas, antes de saber o que acontecia.

        Wulkan apenas sentiu o impacto de uma flecha cravada em sua coxa esquerda enquanto gritava instruções ao grupo.

        Como uma matilha de lobos famintos, os mercenários caíram sobre eles. Eram mais de quinze. Wulkan esporeou sua montaria e investiu contra seus inimigos, proferindo um grito que os paralisou momentaneamente. Seu braço armado ergueu—se e desceu com tanta rapidez, que o primeiro homem que enfrentou mal teve tempo de saber que morria. Seu crânio abriu—se como um melão amadurecido e seu corpo estatelou—se contra o chão, levantando uma nuvem de poeira.

        A briga foi brutal e o grupo de Kellinword começou a sentir a diferença numérica.

        Wulkan escutou um grito de advertência, mas não pôde virar a tempo para esquivar—se do que vinha de cima, uma vez que respondia aos ataques de outros dois adversários. O golpe na cabeça o fez cambalear. Lutando contra a inconsciência, sentiu uma dor impressionante no peito, perto do coração, e viu o sangue escorrendo entre suas roupas. Querendo esquecer da dor, continuou combatendo. Parecia que ia morrer mas desejava fazê—lo lutando junto com seus homens. Ao lado de Gugger, ao qual escutava gritar como um condenado. Uma raiva surda o invadiu ao sentir que nublava—se sua visão e que seus braços perdiam a força, a espada e o escudo. O fôlego da morte gelou sua nuca, ali, naquela aldeia perdida da Inglaterra, longe da França. Só existia a dor e a imensa escuridão que começava a absorver—lhe.

        Antes de desmaiar sobre o garanhão, escutou o estampido de um trovão e a água que caía sobre seu corpo. Somente pôde se agarrar à crina do cavalo, que se lançou para frente com um relincho.

        Horas depois, o cavalo de guerra do normando, levando seu inerte cavaleiro sobre a sela empapada de sangue, seguia avançando, negando—se a parar, como se em seus olhos tristes estivesse escrito que devia procurar ajuda para o homem que o tinha conduzido nas batalhas, das quais sempre saía vitorioso.

John Plowman trabalhava curvado quando escutou o ruído dos cascos. Imediatamente, se esqueceu de suas bem cuidadas cenouras, soltou as ferramentas de lavoura e correu para o intruso. Com um olhar, soube que tanto o cavalo como o cavaleiro chegavam esgotados e maltratados.

        O cavalo de Wulkan cabeceou e uma espuma branca escapou de sua boca. Logo, como se pressentisse sua façanha, dobrou as patas dianteiras e desabou, derrubando seu amo. Plowman sobressaltou—se quando viu o soldado cair e, embora tentasse, não foi capaz de segurar o peso inerte daquele corpo desacordado. Já não era jovem e tinha menos reflexos.

        Hellen escutou o barulho da carreta de seu marido e sorriu. Limpou as mãos manchadas de massa no avental e olhou através da janela. Sempre era agradável que ele retornasse ao lar depois da jornada de trabalho. Mas o que viu a deixou perplexa: John puxava as rédeas da mula, quase tão velha como ele, com desespero. Imediatamente, soube que algo estranho acontecia.

        —Jacky, John necessita ajuda —avisou.

        Pouco depois, enquanto Hellen deixava a mula na parte atrás da casa, abrigada em uma simples cobertura, Jacky e Plowman carregaram o corpo inerte do estranho ferido até a humilde moradia.

        As casas dos camponeses eram choças, mas John sempre se gabava de ter um lar confortável. Em lugar de paredes de ripa, construiu—as de madeira e a armação era mais sólida. O teto de ardósia era suficientemente alto, com um amplo buraco para a saída da fumaça. Em vez de aberturas estreitas e escassas, a casa de Plowman tinha amplas janelas que davam para o leste, o que lhe proporcionava claridade. As venezianas eram pintadas de um marrom vistoso e brilhante. Não consistia de uma única peça, como era habitual, mas sim de dois espaços amplos, um deles para as camas. Nas paredes, Hellen tinha pendurado tapeçarias que ela mesma teceu, e o chão era forrado de peles no inverno e de ramos perfumados no verão.

        John fez gestos e indicou a Jacky sua própria cama, e Wulkan foi depositado com cuidado sobre o colchão de palha. Nem sequer se moveu e o camponês duvidou que estivesse vivo.

        Hellen entrou na casa quando seu marido e Jacky contemplavam o ferido, e imediatamente encarregou—se da situação, enquanto se recuperava.

        — O que estão esperando?

        — Parece que está morto.

        A mulher estalou a língua e inclinou—se sobre o ferido. Procurou sentir os batimentos do coração em seu pescoço e os encontrou, embora muito fracos.

        — Se não nos apressarmos, estará. Jacky, ponha água para ferver, e você, John, vá à adega e traga vinho para esquentá—lo. Traga também um pedaço de tecido branco... — John já se movia. — Que esteja limpo! É para enfaixar!

        Ela procurou uma faca e cortou a túnica negra que cobria o ferido. Arrancou—a do corpo, embora fosse muito dificil mover aquele peso morto. Depois tirou o casaco e por fim a camisa. A roupa era de qualidade; via—se que pertencia a um soldado com a bolsa abastecida. Sentia ter que estragar um pano tão bom, mas não havia tempo para reflexões. Primeiro precisava ver o estado do doente.

        Jacky parou ao seu lado e examinou aquele rosto moreno. Estava completamente barbeado, com o cabelo negro e suficientemente curto para proclamar sua procedência. Tinha um queixo poderoso, os cílios negros e espessos, as maçãs do rosto marcadas e o nariz ligeiramente aquilino.

        — Ajude—me — pediu a anciã.

        — É só um asqueroso normando — disse.

        A camponesa olhava Jacky com reprovação, embora em seus olhos cansados escondia—se um brilho de carinho. Parecia um menino, pensou. Calças apertadas nas botas, a camisa grande e solta, o colete de couro, o cabelo puxado para cima e coberto com aquele chapéu que cobria parte do seu rosto.

        — É um homem meio morto, menina – xingou — Normando ou não, nosso dever é salvá—lo.

        — Se estivesse na mesma situação, ele não faria nada para salvar sua vida.

        — Às vezes me assusta seu sangue—frio — suspirou Hellen enquanto arrancava a camisa. Fez um gesto de desagrado diante da ferida. Era muito profunda. Cruzava do ombro até quase o estômago e o sangue secou sobre ela. — Sou cristã. Deveria recordar que você também é. E ele.

        — Isso não impediu estes bastardos de devastarem nossas aldeias, queimar nossos castelos e erguer as armas diante de quem os enfrentou.

        — Como seus pais.

        Havia tanto rancor nas palavras da jovem...

        — Esqueça isso agora e me ajude a tirar—lhe a roupa. A perna também está ensangüentada.

        Jacky finalmente cedeu aos pedidos e colocou mãos à obra. Assombrou—se com a força daquele corpo, que, até próximo da morte, conservava uma aura poderosa. O normando era bronzeado pelo sol, como se vivesse ao ar livre, com os músculos do peito, dos ombros e dos braços endurecidos por uma vida de ação.

        — Traga a água — pediu Hellen diantes de seus calções.

        Jacky, apesar de tudo, sorriu e saiu de perto do colchão.

        Sabia o que Hellen pensava a respeito dos contatos entre jovens e, embora fosse tradição que as filhas atendessem as necessidades dos convidados de uma casa, incluindo a ajuda para o banho, não aprovava. Quando retornou ao seu lado com a água quente, o ferido já estava coberto por um lençol e uma manta de pele de raposa.

        John retornou da adega com duas canecas de vinho tinto. Bastou um olhar de Hellen para que ele se desculpasse com uma careta.

        — Uma para o jovem – disse — e outra para nós. — Vamos precisar se conseguirmos tirá—lo da foice da morte.

        Ela não disse nada. Um copo de vinho de vez em quando não fazia mal a ninguém, pensou, e certamente que precisariam depois de curar o doente... se é que conseguiriam.

        Hellen molhou um pano na água quente, escorreu—o e começou a limpar a ferida.

        A princípio, Wulkan não se moveu. Nada em seu rosto dava sinais de vida. Entretanto, quando a anciã acabou de limpar o sangue e apertou o corte, lançou um gemido e mexeu—se no colchão.

        — Se ainda sente a dor, está melhor do que pensávamos.

        Desinfetou a ferida o melhor que conseguiu, ignorando os gemidos lamentáveis do ferido. Jacky, que tinha ficado de lado para não atrapalhar, sentiu que o cabelo da nuca se arrepiava e acabou escapando da casa para, uma vez lá fora, apoiada na tosca parede, respirar fundo.

        — Me preocupa — murmurou Hellen olhando para seu marido.

        — Não pode pedir a ela que goste dos normandos, mulher. — deu de ombros. —Ninguém pode pedir.

 

        A dama ria enquanto ele cavalgava sobre seus joelhos emitindo gritinhos de felicidade. Era loira como o ouro, delicada de rosto, de pele sedosa e branca. Seus olhos pareciam carvões, contrastando com seu cabelo claro, solto, como uma nuvem formada por raios de sol, caindo sobre os ombros. Inclinou—se sobre ele e o beijou na ponta do nariz, com delicadeza infinita.

        — Meu amor... — sussurrou.

        Aquela voz se perdeu na bruma enquanto as mãos de Wulkan agarravam com força o medalhão pendurado em seu pequeno pescoço: um medalhão de ouro com um falcão gravado.

        O som distante de sinos o fez abrir os olhos. Encontrava—se deitado em algum lugar, não sabia onde. A primeira coisa que viu foi um teto grosseiramente caiado através do qual se via a ardósia escura. Depois, paredes que não eram familiares a ele. Mal movendo a cabeça observou o lugar, perguntando—se onde se encontrava. Procurou na sala a dama que tinha visto há um instante, mas ela tinha desaparecido. Invadiu—o um sentimento de frustração.

        Tentou se levantar e escapou dele o que pareceu ser um grito de ajuda. A dor no peito foi insuportável e sentiu o corpo suado. Voltou a deitar—se sobre o colchão...

        Algo fresco pousou sobre sua testa e Wulkan voltou a abrir os olhos...

        Jacqueline sentiu—se incômoda quando aquele olhar escuro cravou—se nela. Instintivamente, enterrou mais o chapéu que lhe cobria a cabeça.

        — Onde estou?

        A voz foi apenas um sussurro dolorido, e Jacqueline sentiu um pouco de compaixão por ele. Tinham lutado contra a morte durante dois dias seguidos, alternando—se em seu cuidado, e pareciam ter ganho essa batalha. Agora estava se recuperando.

        — Na casa de John Plowman — respondeu.

        O cenho desenhou um profundo sulco, tentando recordar aquele nome…

        — Deve descansar. — Voltou a cobrí—lo com o lençol. — Atiçarei o fogo. Esta manhã faz frio...

        Wulkan fez um esforço para seguir os movimentos do rapaz vestido com desgastadas roupas de camponês. Era magro e não muito alto. Calculou que tinha uns quinze anos, até menos. Ele o teria encontrado? Seriam amigos ou inimigos?        Realmente, seu estado não permitia—lhe pensar: a dor o atravessava como uma adaga e sentia os membros moles e frouxos.

        Jacqueline jogou umas lenhas na lareira e aguardou até que começaram a arder. Logo se voltou e ficou de frente com o normando. Não pareciam tão temíveis, pensou.

        — Água!

        Encheu um copo e se aproximou, ajudando—o a se levantar. Enquanto ele saciava a sede, observou—o. Sua pele, cinzenta quando John o levou para casa, tinha recuperado parte da cor. O rosto era severo, de traços duros e tão viris que a assombrou. Agora, as bochechas e o queixo estavam cobertos com um princípio de barba que sombreava sua pele bronzeada. Jacqueline piscou quando percebeu que o normando tinha deixado de beber e a olhava com olhos febris. Depositou novamente a cabeça do doente sobre o travesseiro e se afastou, incômoda.

        A porta da cabana se abriu e Plowman entrou, esfregando as mãos.

        — Esta maldita névoa acabará comigo — disse. Observou a recuperação de seu hóspede e aproximou—se com um sorriso. — Jacky, Quando despertou?

        — Faz apenas alguns minutos.

        — Como está, moço? — perguntou, sentando—se na cama.

        — Não sei — repôs Wulkan, com medo de se mover e voltar a sentir a dor penetrante no peito. Mas levou a mão à ferida. — O que houve?

        — Bom... — John levantou—se e tirou o chapéu que cobria suas orelhas e o casaco de pele — Chegou em estado deplorável em minhas terras. Sua montaria também, com um corte no pescoço, e ambos perderam muito sangue. Sem espada nem escudo, que acho que perdeu em uma batalha, por isso não soubemos a quem avisar.

        — Quanto tempo...?

        — Dois dias, moço. Horrorosos, com certeza. Nem minha esposa, nem Jacky, nem eu dormimos muito enquanto tentávamos mantê—lo no mundo dos vivos.

        Disse sem rancor.

        — Sinto muito.

        — A culpa é de seu cavalo, filho. Foi ele quem o trouxe até aqui. E devo dizer que deve a vida a esse precioso garanhão. Se tivesse se encaminhado para o oeste, a estas horas estariam ambos apodrecendo em alguma vala.

        Wulkan sorriu e fechou os olhos. Estava muito cansado.

        Desejava continuar falando com aquele ancião brincalhão e agradável, saber tudo que pudesse, saber se seus amigos continuavam vivos. A idéia de que Gugger tivesse morrido perfurou sua alma, mas a febre o estava consumindo e era incapaz de pensar com clareza. Adormeceu sem perceber.

        John aproximou—se e o olhou fixamente.

        — Não é um caipira vulgar —disse — A quem diabos servirá?

        — Sirva a quem servir, é um normando — repôs Jacqueline, tirando por fim o chapéu e deixando escorregar seus longos cabelos pelas costas.

        — Não deveria tirar o disfarce.

        — Estou há quase três semanas me escondendo debaixo deste disfarce de rapaz. Sempre que saio da cabana, não vejo ninguém a não ser você, Hellen... E agora este normando. Que perigo pode haver no fato de deixar meu cabelo solto enquanto estou aqui? Além disso, me coça a cabeça. — E começou a massagear o couro cabeludo.

        — Isso é o que você me diz, pequena. — John serviu—se de um prato de aveia cozida para tomar o café da manhã. Cortou um pedaço de pão e começou a engolir a comida. Só depois de algumas colheradas e um gole de leite, olhou para a jovem.

        — Quando veio para minha casa, escapando das ordens que seu avô recebeu, não disse nada sobre o assunto. Inclusive estive de acordo com você em que se escondesse por um tempo. A idéia de se vestir de rapaz foi sua e só sua, menina. Pareceu adequada. Pode ser que alguém procure lady Jacqueline, a neta de Enric de Lynch, mas com certeza ninguém procuraria Jacky, um jovenzinho desajeitado que vive com dois velhos no meio do bosque. — Tomou outra colherada de aveia e outro gole de leite. – Agora, se alguém descobrir que o tal Jacky é uma moça, começarão as suposições e acabará casada com esse normando do qual está fugindo.

        Jacky não havia pensado dessa forma. Voltou a erguer o cabelo e colocou o chapéu com um tapa. Em seu peito, nasceu de novo o ódio mais forte pelo homem de quem fugia. Queria esfolar todos e cada um dos malditos normandos que arrasavam a Inglaterra.

        — Não é justo que tenha que ser fugitiva em minha própria terra, John. Maldição, não é justo!

 

        Wulkan acabou de se barbear. Deixou a adaga, secou o rosto com um pano e suspirou com deleite enquanto passava a mão pelo queixo. A barba crescida tinha sido um suplício e agora sentia—se mais confortável e à vontade consigo mesmo. Não entendia como os saxões teimavam em usar barba e cabelo comprido quando era muito mais cômodo estar barbeado e usar o cabelo curto.

        — Terminou?

        Voltou—se para olhar o que já tinha catalogado como: o sempre mal—humorado Jacky. O jovenzinho era teimoso como uma mula e, embora tiesse atendido cada uma de suas necessidades desde que despertou, jamais o tinha visto sorrir. Não, isso não era de todo verdade. Jacky tinha deixado escapar um sorriso travesso na primeira vez que ele tentou se barbear. Sua mão trêmula provocou um corte na bochecha e soltou uma maldição abafada. Depois disso, nada, silêncio quase absoluto, monossílabos e olhares de soslaio.

        — Sim, obrigado.

        Jacky pegou a bacia e o pano. Pensou em sair, mas agarrou com um tapa a adaga emprestada por John. Então saiu da casa e retornou com a bacia limpa, que deixou em seu lugar. Claro que a adaga não. Wulkan recostou—se na cadeira em que esteve sentado abatido naqueles dias, divertido pelo detalhe. A febre tinha baixado e embora a ferida do peito continuasse doendo demais a perna respondia bastante bem. Não tinham falado nada sobre sua partida, embora John assegurasse que seu garanhão estava em perfeitas condições. Aparentemente, o corte do pescoço foi grande, mas não grave.

        — Escute, moço... — chamou. Jacqueline voltou—se e apertou mais o chapéu. — O que faz aqui?

        Pelos olhos violetas passou uma faísca de alarme.

        —Trabalho, como todos os outros.

        — Eles são sua família?

        — Poderiam ser.

        — Seus avós?

        — Não.

        — Tios?

        — Não.

        — Não fala muito, não é? — Wulkan sorriu.

        Jacqueline deu—lhe as costas. Aquele maldito normando sorria como um demônio. E quando fazia, parecia que uma chama atravessava seu rosto bronzeado, dando a ele um encanto especial.

        —Depende com quem — respondeu, zangada.

        — Quer dizer que você não gosta de falar comigo?

        — Quero dizer que me desagrada falar com qualquer maldito normando — cortou ela.

        Wulkan deixou cair sua cabeça para trás e explodiu em gargalhadas. Ela se virou para olhá—lo de novo, com a raiva arrepiando sua pele.

        — Então me odeia por ser normando, não é? Entretanto, cuidou de mim todos estes dias.

        — Isso foi idéia de Hellen.

        — Olhe, menino...

        — Meu nome é Jacky!

       — Sinto muito..., Jacky. Não queria ofendê—lo.

        — Ora!

        Jacqueline escapou da cabana, afogueada. Lá fora, cruzou com Hellen, que observou aquela fisionomia furiosa. Quando entrou na casa, seu hóspede ostentava um sorriso divertido. Estava perfeitamente barbeado e parecia muito mais jovem. Depositou o cesto da roupa que acabava de recolher sobre a mesa.

        — Parece que se encontra melhor.

        — O suficiente para partir.

        — Me alegro. Por um tempo pensamos que deveríamos cavar sua sepultura.

        Wulkan ergueu—se, abafando um gemido. Não era verdade que estivesse tão recuperado para montar e partir. Além disso, encontrava—se à vontade ali, no meio do nada, rodeado pelo bosque de um lado e pelo rio de outro. Mas não podia continuar incomodando aquelas pessoas. E tinha obrigações. A primeira, averiguar se Gugger e o resto de seus homens continuavam vivos.

        Se levantou com cuidado e apertou os lábios para não soltar um palavrão, mas ela percebeu seu estado.

        — Se teimar em em montar a cavalo, a ferida voltará a abrir.

        — Não posso ficar mais tempo.

        — Alguns dias mais e estará totalmente recuperado.

        — Impossível. Tenho que saber se um amigo continua vivo.

        — Brigou ao seu lado?

        — Sim.

        — Então é difícil que o encontre são e salvo. Você chegou em um estado lastimável.

        — Foi uma emboscada.

        — Emboscada?

        — Mercenários saxões — esclareceu.

        Hellen deixou de dobrar a roupa e o olhou com mais interesse. Não tinha dito com ódio, simplesmente estava informando. Seu hóspede era um jovem estranho. Não sabiam nada dele, a não ser que se chamava Wulkan e vivia nas terras de Kellinword.

        —Entendo — murmurou ela. — Pode ser que algum dia saxões e normandos possam viver em paz.

        Quatro dias depois, Wulkan, vestido com roupas emprestadas que, conforme disseram, eram de um sobrinho morto nas Cruzadas, montou sobre seu cavalo. Teve saudades da potência do animal entre suas coxas. Colocou sobre a sela o odre de vinho que John lhe deu e a bolsa de comida que Hellen preparou para ele.

        — Prometo pagar todos os cuidados que me foram dispensados nesta casa —disse ao apertar a mão do ancião.

        — Volte para sua casa e termine de se recuperar — Riu o camponês, coçando a barba, um tanto incômodo. — Não pedimos nada.

        — Certo. Mas tenho muito apreço por minha vida e vocês a devolveram.

        Então inclinou—se, pegou Hellen pela cintura e a elevou até sua altura, fazendo—a dar um gritinho de assombro. Beijou—a na bochecha e voltou a depositá—la no chão. A anciã, ruborizada, alisou o cabelo grisalho.

        — Obrigado por tudo, Hellen.

        Jacqueline permanecia afastada do trio, recostada no batente da porta, com os braços cruzados sobre o peito e o olhar oculto sob o chapéu.

        — Adeus, Jacky — despediu—se Wulkan — Espero que quando voltarmos a nos ver, seu humor tenha melhorado.

        Ela deu meia volta e entrou na cabana. Entretanto, através da janela seguiu o lento cavalgar do cavaleiro e do cavalo até que se perderam no bosque. Só falou quando John e Hellen voltaram a entrar na cabana.

        — Para ser normando, não parece muito com um filho da puta — disse com voz rouca.

 

        O castelo de Kellinword estava rodeado de um fosso de doze metros de largura em forma de «V». Os grossos muros e as altas torres davam a ele um aspecto esmagador e intimidador.

        Wulkan admirou mais uma vez a fortificação, mas sem orgulho. Não foi ele quem a levantou, a recebeu como prêmio por seu trabalho e noites sem dormir junto a Ricardo.

        Mas gostou da construção desde a primeira vez que a viu, orgulhosa e serena, como se desafiasse o mundo que a assaltasse para, depois, rechaçar os invasores lançando—os além das muralhas e das paliçadas de espinhos. Os alicerces afundavam—se na terra e seus muros, inclinados, fortaleciam a construção. Em caso de assalto, rebateria os projéteis lançados do alto das muralhas. Era um trapézio perfeito de trezentos metros de lado, com muralhas de mais de oito metros de altura e dois de espessura, com torres poligonais, mais altas que a muralha.

        Wulkan sentiu o olhar vigilante dos homens a seu serviço através dos vãos, sobre o parapeito e a passarela de ronda protegidas pelas ameias do parapeito. Mal os cascos de seu garanhão tocaram a seteira , escutou um rugido. Olhou para cima e viu alguém fazendo gestos frenéticos de uma das ameias. Continuou para a ponte levadiça, sempre baixada, seguindo suas instruções, para que qualquer um pudesse entrar com liberdade no castelo, e chegou ao pátio de armas, esquivando—se dos cães que brincavam, correndo ao seu encontro. Os cascos do animal ecoavam nas pedras quando um redemoinho de cabelos loiros e despenteados correu para ele, e Wulkan explodiu em gargalhadas vendo Gugger sorrindo já meio vestido, lutando ainda para colocar os calções. Desceu do cavalo com cuidado e foi ao seu encontro para fundir—se em um forte abraço.

        —Maldito patife! — Riu Gugger de Montauband — Já estávamos rezando missas por sua alma. Onde esteve? E essas roupas! Roubou? Posso saber que...?

        Wulkan tapou a boca de seu amigo e o fez calar um instante.

        — Se deixar de grasnar, Gugger, pode ser que eu explique. E não me esprema como se eu fosse seu amante... Estou ferido e ainda convalescente.

        O loiro o olhou de cima a baixo. Gritou uma ordem e alguém se encarregou da montaria do senhor do castelo e quase o arrastou até a torre de comemoração . Wulkan não se encontrou a salvo até que pôde se sentar a certa distância de seu fogoso amigo e os homens a seu serviço começaram a disparar perguntas como flechas.

        Narrar que despertou em uma cabana, mais morto que vivo, que o curaram e emprestaram roupas para retornar a Kellinword, levou apenas alguns minutos. Então quis saber do que aconteceu em Caberdin, e Gugger contou.

        — A armadilha era perfeita — disse, oferecendo uma taça de vinho. — Perdemos seis homens. — Coçou distraídamente as orelhas de um dos cães que se aproximaram. — Eu recebi a carícia de uma flecha no ombro e você desapareceu como se tivesse sido engolido pela terra. Pude ver que o feriram. Acreditávamos que tinha morrido. Buscamos você por todos os lados, mas seus rastros se encaminhavam para as correntes do rio e...por sorte, Guillermo de Bruswich chegou no momento exato.

        — O que aconteceu aos mercenários?

        — Eram vinte.

        — Eram? — Wulkan arqueou uma sobrancelha.

        — Não posso dizer que senti ter acabado com eles.

        — Não ocorreu a você tomar algum refém que nos permitisse chegar a quem nos fez a armadilha?

        — Francamente, a ira nos deixou cegos —retrucou Gugger franzindo o cenho. —Quando o vi cair, ferido de morte, sobre o pescoço de seu cavalo, nublou—me a mente. Não pensei mais nada além de vingá—lo, Wulkan. Lamento.

        — Não importa.

        — Os homens passaram vários dias vasculhando o território sem resultados. Inclusive usamos alguns dos quarenta moços que Gilbert treina. A tormenta apagou os rastros de seu cavalo junto ao rio. Acabamos aceitando que tinham caído na água e a corrente os arrastou.

        — Plowman vive a várias milhas de distância, do outro lado do rio. De algum modo, Arrogant conseguiu atravessar. Pelo que sei, o rio separa o feudo de Enric de Lynch do meu…

        Um homem loiro de olhos claros, vestido com uma túnica vermelha e dourada, se distinguiu do restante dos cavaleiros. Estava há uns meses junto a Wulkan mas servia bem e lutava melhor ainda.

        — Essas pessoas são servos de Lynch?

        — Não. São vassalos livres. Camponeses. Quero trazê—los para Kellinword, agora que vi que continua em pé e Gugger não o demoliu. — Sorriu. — Apadrinharam uma criança teimosa que muito bem poderíamos converter em um homem, se ele permitir.

        — Você parece gostar dele — disse Gugger.

        — É um atrevido e teimoso. Odeia todos os normandos. Mas acredito que merece algo mais que envelhecer entre gansos e couves. Gilbert se encarregará de trazê—los para o castelo o quanto antes. Vivem ao sul, logo depois da aldeia de Barrington, depois de um bosque de bétulas. Pegue alguns homens e parta amanhã mesmo.

        O aludido assentiu, deu meia volta e encaminhou—se para a saída.

        Wulkan esqueceu—se de Plowman e sua família porque Gugger começou a recriminá—lo por sua inoportuna aparição justo quando estava enrroscado com uma donzela. Entendeu então porque seu amigo saiu acabando de se vestir para recebê—lo, e caiu na gargalhada, no que foi imitada pelo resto dos homens.

 

        Jacqueline deitou—se sobre a palha amontoada no celeiro situado junto à cabana, no qual se subia através de uma escada podre do lado de fora. John sempre falava de fazer uma nova, mas seus ossos já não eram jovens e ia deixando de um dia para outro.

        Estendeu—se e alcançou uma viga de sustentação. Agarrou—a e brincou com ela deixando voar sua imaginação, como tantas vezes, recordando sua vida na casa de Lynch, de seu avô e irmã. Lembrou o que os tinha separado e mastigou com raiva a palha que tinha entre os dentes. Deixou a viga de sustentação de lado e se levantou para dar uma mão a Hellen na cozinha, justamente quando escutou cascos de cavalos. De barriga para baixo, arrastou—se sobre a palha e chegou até a porta. Eram quatro homens armados, mas não reconheceu seus escudos. Eram normandos.

        De seu esconderijo, viu—os chegar à porta da cabana, escutou o ruído da madeira ao abrir e a voz rouca de John dando boas—vindas. O que veio depois fez subir a bílis em sua garganta. Aquele que parecia comandar o grupo estava dando ordens a John para que pegasse alguns de seus pertences e os acompanhasse. John perguntou sobre o motivo, e o rugido do cavaleiro a deixou atônita. A voz irada de Hellen uniu—se a de seu marido, e Jacky esticou o pescoço o quanto pôde para não perder nenhum detalhe.

        Jacqueline nunca foi covarde. Nem mesmo prudente, tinha que fazer alguma coisa. E foi nesse momento, quando viu a mão envolta em uma luva que agarrava a Hellen pelo braço.

        Não pensou que estava naquela casa se escondendo. Nem nas conseqüências de seus atos. Ergueu o cabelo, cobriu—o com o chapéu, pegou a viga de sustentação e saltou do celeiro. Mal seus pés tocaram o chão e saltou como um gato, atacando, disposta a dar sua pouca proteção aos dois anciões.

        Gilbert de Bayard ficou de lado para esquivar—se do terremoto que caia sobre ele. Outro dos cavaleiros não foi tão rápido e o golpe de Jacqueline, em pleno joelho, o fez cair sentado.

        Certamente, foi um ataque absurdo. Em menos de quinze segundos, encontrava—se segura pelos braços de outro dos soldados e sua estúpida bravura enfureceu o cavaleiro. Gilbert gritou quatro ordens em francês e tanto John como Hellen, e também ela, foram arrastados até o carro do ancião. Em um segundo, amarraram mula, seu meio de transporte ficou preparado. Fizeram—nos montar na carreta a empurrões e ficaram rodeados e sem possibilidade de escapatória.

        — Velho, faz com que a mula caminhe.

        — Podemos saber ao menos para onde vamos? — perguntou Hellen, tentando mostrar integridade.

        Tinha que ser um engano. Um odioso engano. Eles eram livres e os estavam tratando como fugitivos. Não deviam nada a ninguém e só tinham alguns conhecidos, assim era absurdo pensar que se tratava de uma vingança. Quem ia contratar homens armados para se vingar de uns pobres camponeses?

        — Saberá quando chegar, mulher.

        — Mas isto não é...

        — Cale—se de uma vez!

        Jacqueline tentou saltar da carreta, mas uma espada a impediu. Seus olhos violeta soltaram faíscas de indignação, mas acabou recostando—se na tosca carroça, junto a Hellen, enquanto John tomava as rédeas e chicoteava a mula. Os três compreenderam que discutir com aqueles homens era inútil. A única coisa a fazer era esperar para esclarecer o mal—entendido quando chegassem para onde quer que se dirigiam.

        A preocupação de Jacqueline por seu destino desapareceu quando seus ossos começaram a sofrer o constante estalar continuado da desmantelada carreta.

        As horas passaram monótonas enquanto as rodas os afastavam da cabana.

        Jacqueline conhecia suficientemente bem aquelas paragens para se certificar de que fazia um tempo que entraram nas terras de Kellinword, embora isso pouco importasse. Suas costas doíam sem parar e tinha o traseiro duro pela agitação das rodas da carreta rodando sobre pedras e buracos de um caminho pouco transitado. Tentou se acomodar melhor e empilhou sob o velho corpo de Hellen a palha que John, por sorte, não tinha descarregado. Ela agradeceu com um sorriso preocupado.

        —Temos que parar! — gritou para o que liderava o grupo.

        Gilbert a olhou e ela desafiou—o com um olhar, irada e altiva. O cavaleiro captou a coragem daquele menino que olhava para ele de frente. Bayard não imaginava que na cabeça de quem ele acreditava ser um jovem atrevido surgiam mil e uma maneiras de esfolá—lo assim que a ocasião fosse propícia.

        Pararam apenas daquela vez. Permitiram que se retirassem um pouco para atender suas necessidades e depois deram a eles um pedaço de queijo duro e um pouco de água. Os soldados comeram por turnos, enquanto os vigiavam.

        Então voltaram ao sacolejar contínuo e o desconforto. Jacqueline jurou que alguém pagaria por esse abuso.

        Imaginando que talvez ela fosse a causa, pensou em saltar, arrancar o chapéu e mostrar sua identidade para evitar o sofrimento dos dois anciões, quando divisaram Kellinword.

        Ficou aflita. Tinha escutado tantas vezes seu avô falar sobre o castelo... E sua descrição coincidia exatamente com o que recordava.

        Hellen a olhou com terror e fez um gesto para que ficasse em silêncio. Sentiu um nó no estômago, perguntando—se se não teriam descoberto sua identidade e onde se escondia. Pelo amor de Deus, estavam se metendo na boca do lobo!

        Se o lado de fora do castelo de Kellinword era majestoso, depois de passar a ponte viu que o interior era imenso. Dentro do castelo em si existiam outros dois de dimensões mais reduzidas, mas construídos seguindo os mesmos princípios de fortificação. Havia fossos, paliçadas, torre, muralhas, parapeitos, portas e pontes. A distância que separava os muros exteriores daquelas fortificações era enorme, convertendo—o em uma praça forte. O pátio de dentro era uma verdadeira aldeia: casas de camponeses, oficinas, quartos para os trabalhadores domésticos, carpinteiros, pedreiros, trabalhadores de pedreiras, cuidadores de granjas e dos estábulos. O forno, o viveiro, o tanque e vários postos de mercados. Edificações desordenadas e um incessante ir e vir de gente.

        Antes de poder assimilar tudo aquilo, fizeram—nos descer do carro. Um dos homens fez gestos a um criado e a mísera propriedade de John desapareceu na curva de uma ruela. Seguiram a pé e alcançaram a segunda construção, em que se achavam os quartos da guarnição, a capela, as cavalariças, os canis, os pombais e as falcoeiras, os armazéns de mantimentos, as cozinhas e as cisternas.

        Atrás de seu caminho, a torre erguia—se, imperiosa. De difícil acesso, a residência do senhor e o coração militar da fortaleza dominavam o conjunto na altura. Jacqueline calculou uns trinta metros. Era octogonal e não devia ter menos de vinte e cinco metros de diâmetro.

        Sempre com seus guardiões às costas, exceto aqueles que os precediam, a moça e os dois anciões entraram na torre depois de descer a passarela chegando à única porta.

        Momentos depois, encontravam—se no grande salão.

        Jacqueline quase sentiu inveja da grandiosidade do mesmo quando comparou com o do castelo de seu avô. Mas sabia que os normandos se apropriaram dos melhores feudos, dos melhores castelos e de tudo que pudesse beneficiá—los. O desgosto daquele pensamento uniu—se ao medo de conhecer o novo senhor de Kellinword, o homem de quem estava escapando e em cujos domínios tinha ido parar tão estupidamente. Voltou a se peguntar se ele foi informado de seu paradeiro e tinha decidido raptá—la para cumprir as ordens de Ricardo. O estômago começou a apertar, mas desprezou a idéia com a mesma rapidez com que ela veio. Ninguém, a não ser seu avô, sabia onde estava. E o velho Enric morreria antes de delatá—la.

        O grande salão era curvo, de teto alto. O centro vital da residência do senhor. Ali o normando comia, divertia—se e recebia seus hóspedes... ou seus prisioneiros, como era o caso. Suportava as queixa dos homens de seu feudo. Administrava justiça, sempre e quando um normando soubesse sequer o que era a justiça.

        Ouviu uma fraca exclamação de Hellen. Depois a intrigou aquela voz... aquele tom profundo, rouco e aveludado ao mesmo tempo... Onde o tinha escutado antes? Seguiu o olhar surpreso de Hellen e seus olhos se estreitaram focando no homem sentado em um extremo da sala. Parecia concentrado, pois não ergueu os olhos quando eles entraram. Tinha o cenho franzido e puxava o lóbulo da orelha com um gesto nervoso, absorto no tabuleiro de xadrez que o desafiava. Enquanto sua mão direita era lambida por um dos seis belos cães que o dono de tudo aquilo alimentava. Sentado em frente a ele, um indivíduo de cabelo tão loiro que parecia quase branco, sorria de orelha a orelha, recostado na cadeira, as pernas esticadas, os braços cruzados, seguro que ganhava a partida.

        — Por São Judas! — soltou Wulkan, com voz potente, derrubando a peça do rei. O cão, assustado, gemeu e escapuliu com o rabo entre as patas. — Maldito seja, tornou a me dar xeque.

        — Mate — especificou Montauband.

        — Maldito! — esbravejou Wulkan.

        Gilbert de Bayard inclinou—se sobre seu ombro e sussurrou algo em voz baixa. Imediatamente, o normando perdeu o interesse pela partida e olhou os recém chegados. Também o loiro prestou atenção no trio que acabava de entrar no salão.

        Wulkan sorriu, contente, ao ver de novo o rosto gordinho de Plowman e atravessou o salão com passadas longas, apertando com força sua mão.

        — John! Hellen! — inclinou—se cortesmente para ela em uma reverência digna de uma dama. — Por Cristo, alegro—me de tê—los aqui! — disse. Então fixou—se no esquelético Jacky e se pôs a rir. — Moço, parece que acabou de ver o diabo — brincou, estendendo a mão.

        Para Gugger, atrás de Wulkan, não passou desapercebida a ansiedade dos dois anciões. Nem a nuvem de tormenta que atravessou os olhos violetas daquele moço.

        Nem Wulkan nem ele estavam preparados para o que aconteceu um segundo mais tarde…

        No lugar de apertar a mão que estendia—se para ela, Jacqueline deu um passo para o normando, ergueu o braço e o golpeou no queixo com todas suas forças. Imediatamente sentiu o braço tremer até o cotovelo, embora mordesse a língua para não gritar.

        Hellen gemeu e Gilbert segurou sua espada. Wulkan o deteve com um gesto, sem deixar de observar Jacky. O sorriso desapareceu do rosto, endureceu o queixo e, curiosamente, seus olhos já não eram escuros, mas sim de uma cor verde furiosa. Com deliberada lentidão, passou os dedos pela zona golpeada.

        — Suponho... — murmurou muito baixo, arrastando as palavras — que me deve uma explicação antes que cortem essa cabeça de cortiça que tem sobre os ombros.

        — Toque em mim e tirarei suas asquerosas tripas normandas para que sequem ao sol — ameaçou Jacky, embora retrocedesse um passo.

        Wulkan o olhou com interesse. Demônio de garoto...

        Não parecia se intimidar diante de nada, nem de ninguém e não parava de mostrar seu profundo ódio aos normandos. Entretanto, pareceu ver um pequeno vislumbre de medo naqueles olhos e aproveitou a chance.

        — Tem um segundo, insensato. Um segundo para se explicar antes que deixe seu estúpido traseiro saxão tão vermelho como a túnica de Gilbert.

        — Então escute: nem você nem ninguém tem direito de mandar homens armados para nos arrancar de nosso lar sem consideração alguma e nos arrastar até aqui. Não pertencemos a ninguém. Não somos servos, e sim vassalos do senhor saxão de Lynch, a quem juramos fidelidade. Posso assegurar que ele saberá deste abuso!

        Wulkan não gostou do que ela disse e olhou para seu homem.

        — Gilbert?

        — Não disse nada sobre o modo de tratá—los — desculpou—se o aludido, incômodo diante daquele olhar gelado. Conhecia seu senhor e sabia de sua cólera.

        — Disse que me salvaram a vida.

        — E todos nós agradecemos, Wulkan, mas não estava disposto a perder a minha nas mãos de um garoto que me atacou com um viga de sustentação. — Mostrou Jacky com o queixo.

        Os olhos de Wulkan brilharam alternando—se entre seu homem e Jacky. O menino não tinha baixado nem um pouco a guarda, e estava quase seguro que ele estaria encantado em começar uma briga ali mesmo. Certamente, acreditava que era capaz de enfrentar Gilbert. Voltou a passar a mão pelo queixo e sorriu dando as costas aos recém chegados. Gugger não entendeu nada, mas o divertiu ter visto como um garoto dava um bom golpe em seu amigo.

        Depois de uns segundos, Wulkan se dirigiu de novo a Plowman.

        — Parece, John, que devo a vocês desculpas por seu comportamento.

        — Bem, eu... — duvidou o ancião.

        — É o mínimo! — saltou Jacqueline — E nos proporcionar de novo nossa carreta para partir daqui. Isso está me cheirando a algo estranho — insinuou.

        — Talvez a normando? — zombou Wulkan. Ela teve que sorrir apesar de tudo e baixou a cabeça.

        — Você disse isso.

        Gugger não pôde suportar mais e caiu na gargalhada. Aquele acesso o levou a se sentar, alternando as convulsões da risada com os golpes de sua mão no joelho direito. Jacqueline gostou dele.

        — É muito tarde — disse Wulkan — Passarão a noite em Kellinword e amanhã falaremos com mais calma. Darei uma satisfação a vocês. Sentiria—me honrado se esta noite compartilhassem nossa mesa.

        — Preferimos retornar.

        — Por favor, Jacky! Foi um mal—entendido. Aceitaremos com gosto, ficamos esta noite no castelo.

        — Estupendo. Gilbert, avise que seremos mais três à mesa.

        Este assentiu e saiu da sala enquanto Wulkan oferecia—lhes as cadeiras. Gugger se aproximou e apresentou—se.

        — Sou Gugger de Montauband.

        Um criado vestido de preto apareceu para servir vinho, enquanto Jacqueline se acomodava sem deixar de observar o sujeito que John encontrou meio morto. Catalogou—o imediatamente: perigoso, com uma arma na mão, seguro de si mesmo, arrogante, orgulhoso, insolente, possivelmente briguento e, certamente, mulherengo. Sim, seu rosto e sua superioridade lhe permitiriam pular de saia em saia. E com toda certeza, protegido do senhor de Kellinword, nas costas do qual comeria, se divertiria a seu bel prazer e batalharia, sem dúvida. Havia muitos cavaleiros daquela índole na Inglaterra. Homens unidos a outros mais poderosos, dos quais procuravam a melhor fatia, já que não possuíam fortuna própria ou esta não era suficiente para custear suas armas e suas vestimentas de guerra. Ficou satisfeita por sentir não apenas ódio pelo normando, mas também desprezo, sabendo que ele era uma espécie de parasita a serviço do homem com quem Ricardo queria casá—la.

        Nesse momento, vários criados mais fizeram sua entrada no grande salão e começaram a colocar cavaletes sobre os quais assentaram grandes pranchas para formar as mesas. Uma mulher sem rodeios aproximou—se de Wulkan.

        — Milord...

        Aquela palavra explodiu na cabeça de Jacqueline.

        Mas também em John e Hellen. O ancião engasgou—se com um gole de vinho e Jacky sentiu uma súbita tontura.

        —Mando para Henry algumas jarras do vinho que trouxeram ontem, milord? —perguntou a criada, sorrindo aos recém chegados. — O senhor de Bayard deu a entender que seus convidados eram especiais.

        — Obrigado, Shanya. Claro que sim. — Sorriu Wulkan. Plowman esforçou—se para falar quando dirigiu—se a Wulkan.

        — Milord? — perguntou.

        — Acredito que não estou me comportando como um bom anfitrião — lamentou. – Devia ter me apresentado adequadamente. Sou Wulkan, lorde de Kellinword.

 

        Como convidados, foram alojados no segundo andar da torre, evitando dormir com os serviçais.

        Jacqueline notou, com agrado, que o quarto pertenceu a uma mulher e, quando dois criados trouxeram uma grande tina e baldes de água quente, quase esteve tentada a perdoar a indignidade de sua mudança.

        Não tinham jantado a sós com o senhor do castelo.

        Como era costume, Wulkan convidou para sua mesa todos seus cavaleiros e seus criados mais próximos. Os assados foram abundantes e os pratos a base de carne, esplêndidos: perdizes, cormorões e codornas com molho de tomilho, cominho e cravo. Porcos cevados e maçaricos enfeitados com salsinha e erva—doce. Trutas e pescado defumado, acompanhados de variados molhos. Por último queijo, pêssego e ameixas, um pouco de gengibre e geléia de fruta. O vinho, segundo Gugger, tinha sido colhido nos vinhedos de Auxerrois—Tonnerrois, que supriam boa parte do consumo parisiense.

        Jacqueline observou que, apesar dos manjares servidos, Wulkan comia com restrição: um pouco de perdiz, um pouco de pescado defumado, queijo fresco e ameixas. Também não bebeu em excesso. Parecia um homem austero a quem não agradava muito as celebrações.

        John, pelo contrário, comeu e bebeu além da conta e quando acabou o jantar, retirou—se para seu quarto, deixou—se cair na cama, meio tonto, sem intenção de se mover. Hellen, compreensiva, ajudou—o a se despir. Depois, com a ajuda de uma moça, estenderam alguns lençóis para isolar a banheira e Jacqueline despiu—se e se introduziu nela com verdadeiro deleite. Sentia—se suja da longa viagem e desejava relaxar seus músculos tanto do cansaço do caminho como da inquietação que a invadiu desde que soube que Wulkan era o homem destinado a ela por Ricardo Coração de Leão. Hellen esfregou suas costas e lavou seu cabelo. Depois afundou—se até o pescoço na tina e fechou os olhos.

        O aposento era amplo e não muito mobiliado.

        Parecia que a dama que ocupou o lugar anteriormente não tinha costumes tão austeros como o atual senhor do castelo. Uma cama grande e quadrada em que cabiam, ao menos, três pessoas. Um baú de enormes proporções e uma penteadeira pequena, embora belamente esculpida, de procedência estrangeira. Várias almofadas de tecido. O fogo da lareira ardia esquentando o quarto de forma agradável... E Jacqueline ficou meio adormecida na tina.

        Enquanto sucumbia em uma preguiça deliciosa, pensou em Wulkan. Era um homem estranho. Num instante estava sorrindo e no seguinte sua fisionomia se obscurecia e seus olhos escuros tornavam—se verdes, frios, tanto que quase assustavam Falou com John durante o jantar —o ancião inicialmente se incomodou que o sentassem à direita de Wulkan— a respeito das vinhas, de seus cuidados e da coleta. John, depois de seu quarto copo, acabou falando pelos cotovelos e Hellen teve medo que seu marido esquecesse com quem estava jantando, de tão animado que estava. Habilmente, inquiriu o camponês, mas não contou nada a respeito de sua vida.

        — Nos conhecemos faz tempo — foi a única e direta resposta que recebeu John sobre sua amizade com o rei Ricardo, e que na reunião depois do jantar trouxe Gugger de Montauband.

        A água estava ficando fria e Jacqueline levantou—se. Imediatamente, Hellen foi a seu lado e a ajudou a se secar com um pano de linho. Secou seu longo cabelo. Sobre a penteadeira, encontraram o necessário para o asseio pessoal de homem e mulher. Depois lavou—se ela mesma. Quando terminou, Jacqueline já tinha preparado sua cama usando algumas mantas e várias almofadas. Insistiu em que eles ocupassem a cama. Afinal de contas, ela era jovem e dormir uma noite no chão não deveria causar grande desconforto.

        Contudo, quando Hellen apagou as lamparinas de azeite e o aposento ficou na penumbra, iluminado somente pelas chamas da lareira, Jacqueline não encontrou a postura adequada para conciliar o sonho. Amaldiçoou mentalmente Wulkan e se colocou de barriga para cima, com os braços cruzados atrás da nuca.

        A imagem de Wulkan rindo, durante o jantar, quando John comentou algo sobre o bolo de frutas, a estimulou. Percebia que o senhor de Kellinword era um homem que enchia uma sala só com sua presença. E até podia—se dizer que parecia agradável e justo. Só que ela não confiava em nenhum normando. Jamais o faria. Não em vão, tinha jurado ódio eterno a eles desde que seus pais foram esfaqueados pelas mãos de um soldado invasor.

        Jacqueline voltou a renegá—los, colocou—se de lado e tentou ajeitar as almofadas sob sua cabeça. Seu último pensamento, antes de se deixar abraçar pelo deus Morfeu , foi para seu anfitrião, recordando aqueles olhos.

        — Maldito normando! — murmurou, antes de se perder no sono.

        Logo que amanheceu, Jacky despertou Hellen e John.

        Desejava abandonar Kellinword e seu humor era o mais sombrio. Os anciões não sabiam que ela tinha passado a noite em voltas e mais voltas. Não tinha nada a ver com a incômoda cama sobre o chão, mas sim com os pesadelos. Wulkan tinha aparecido como um homem atraente de olhos escuros e enigmáticos. Transformava—se depois em uma espécie de demônio. Mais tarde, seu próprio avô a arrastava pelo braço e a conduzia até um altar erguido com ossos de mortos. Um clérigo, ao qual não podia ver o rosto atrás de um capuz puído, recitava uma ladainha que não entendeu. Ela tentava escapar, mas algo a retinha no altar, uma força irresistível que emanava dos olhos escuros de Wulkan.

        Embora tentasse gritar, sua garganta não conseguia articular som algum. E o clérigo continuava sua reza em voz tão alta que anulava seus gritos. Por último, em seu desespero pedia ajuda a seu avô, a Hellen e a John, e pareceu ver, entre a multidão que estava naquela estranha função religiosa, o rosto do rei Ricardo. Embora Jacqueline o tivesse visto apenas uma vez, quando este visitou o castelo de Lynch para fazer justiça com os que assassinaram seus pais, no sonho tinha outro rosto, era outra pessoa. Seus cabelos loiro—avermelhados tornaram—se azulados e ralos, os olhos avermelhados, a boca enorme. Ricardo encontrou—se com seu olhar e começou a rir. As gargalhadas do rei se uniram as de Wulkan, e essa cacofonia a fez ficar meio louca. Despertou agitada e com medo, com um humor que se transformou em raiva contida logo que pisou o chão…

        O desejo de Jacqueline de sair dali não ia se realizar. Desceram ao grande salão e tomaram o café da manhã com rapidez, apenas um pouco de leite quente e uns pãezinhos. Por ela, teriam saído de Kellinword rapidamente, mas Plowman era um homem agradecido e se empenhou em procurar o senhor do castelo para agradecer o alojamento e os assados.

        Não encontraram o lorde. Só Gilbert de Bayard, que os informou que tinha saído a cavalo antes do amanhecer. Como não conseguiram mais informação, o ancião negou—se terminantemente a abandonar a fortaleza até conseguir cumprimentar seu anfitrião. Jacqueline não quis insistir. John era um homem teimoso e sabia que não conseguiria convencê—lo. Pensando bem, tanto fazia permanecer umas horas mais em Kellinword, e aproveitou para dar uma volta pelas muralhas enquanto os dois anciões desciam até as bancas dos mercados para entreter a manhã.

        A vida cotidiana nos castelos costumava ser aborrecida, e Kellinword não era uma exceção. Não estavam na Páscoa, nem no dia de Todos os Santos. Não havia feira, nem era época de colheita de uvas. Tampouco tinha chegado o tempo de pagamento das rendas ao senhor do castelo, nem parecia que fosse se reunir o tribunal senhorial. Não havia nada, portanto, a se fazer. Menos ainda, para uma jovem enfiada em amplas roupas de rapaz. Jacky acreditava que poderiam ver o lorde na hora da refeição, possivelmente antes do entardecer. Depois partiriam para as terras de Lynch e ela esqueceria definitivamente dos habitantes do castelo.

        Mas Wulkan não retornou até o anoitecer e insistiu em que permanecessem até o dia seguinte. Jacqueline queria arrancar os olhos dele, mas não podia fazer nada, para não ficar em evidência. Calou—se, portanto, e se dispôs a sofrer outra noite de sono agitado.

        Contudo, estranhou que Wulkan chamasse John à parte. Ambos caminharam pelas muralhas exteriores durante um longo momento. Quando voltaram, o sino da capela já havia tocado a madrugada. Encontrou sua esposa e Jacqueline acordadas, que o interrogaram assim que entrou no quarto.

        John disse uma palavra, mas fez um gesto tão preocupado que a moça voltou a ter pesadelos.

        — Quer fazer de você um escudeiro.

Jacqueline não soube, escutando o velho, se ria ou começava a chorar.

        — Escudeiro? — Perguntou como uma bêbada.

        — É sua maneira de pagar o que fizemos por ele. Diz que está disposto a qualquer coisa para transformá—la em cavaleiro. Assim quer agradecer—nos por termos salvo sua vida.

        Hellen nem sequer abriu a boca. Estava simplesmente aturdida. Deus! Como tinham se complicado as coisas desde que seu marido entrou em casa com aquele jovem ferido de morte! Talvez não devessem tê—lo encontrado... Talvez a pequena Jacqueline estivesse a salvo, sob seu disfarce.

        A moça passeou de um lado para outro do quarto.

        Estava furiosa.

        — Escudeiro! — escutaram—na repetir em voz baixa, como se cuspisse a palavra. —Escudeiro... — deteve—se de repente e olhou para Plowman — E você não disse nada?

        — Rebateu absolutamente tudo, pequena. Não é um homem com o qual se possa discutir.

        — Mas eu não desejo ficar em Kellinword!

        — Diz que se acostumará à agitação do castelo e que inclusive acabará gostando.

        — Não entendo nada de armas.

        — Também disse isso, menina, mas não pareceu um impedimento para ele. É o que quer ensinar a você, o manejo das armas e as normas de cavalaria.

        — Não sou um normando, John! — explodiu a jovem. – Ocorreu a você dizer a ele que não ficará bem transformar um estúpido saxão em escudeiro, que não sabe nem levantar uma adaga ou manejar uma espada? Pelo amor de Deus! Não disse nada? Além disso, se eu fosse um rapaz de verdade...

        — Jacqueline, se for capaz de fazer Wulkan de Kellinword mudar de opinião, faça. Eu me rendo. — Atraiu—a para si para acalmá—la — Escute, ele vive com a convicção moral de ter uma dívida. E não descansará até saldá—la. Prometeu—me uma boa bolsa, as melhores sementes para o próximo plantio, algumas vacas e seu treinamento. E está decidido a cumprir suas promessas.

        Jacqueline afastou—se bruscamente. Não só estava furiosa, encontrava—se sozinha. Aquilo estava se complicando tanto que não podia culpar John por não saber sair do atoleiro em que o maldito Wulkan os estava colocando.

        — O que vamos fazer? — perguntou Hellen.

        — Partimos — disse Jacqueline.

        — Não podemos ir de qualquer jeito. Não tratamos com um caipira vulgar... Imagine o que poderia acontecer se simples saxões cuspissem sobre a mão que um senhor normando estende a eles.

        —Com um pouco de sorte, poderia suicidar—se — ironizou a jovem.

        — Seus olhos não verão semelhante estupidez. Para ser sincero, não me parece que vá cometer nenhuma tolice. Sabe muito bem o que quer, talvez porque até agora não teve uma vida fácil.

        — Está apoiando—o, John?

        — De maneira nenhuma desejo que a neta de meu senhor permaneça sob as ordens de um normando, mas assim são as coisas e eu não vejo o que possamos fazer. Se escapássemos esta noite do castelo, assim, sem mais nem menos, poderia fazer represálias a outros saxões.

        — Por Cristo, John! — exclamou sua esposa. — Acho que está exagerando.

        — Não confie em um normando, mulher.

        Jacqueline apoiou—se na janela, tentando pensar.

        Apesar da hora, no pátio de armas vários jovens já estavam treinando. Chegava a seus ouvidos o golpe constante das armas, umas de madeira —para os principiantes — outras de metal. Dois deles atacavam com suas espadas dois fantoches.

        Jacqueline tomou uma decisão.

        — Devem partir. Avisem meu avô... Ele encontrará uma maneira de me tirar daqui.

        — Não vou deixá—la sozinha! — protestou Hellen.

        — Não há outro modo. Serão poucos dias, e com certeza posso escapar enquanto chega a ajuda.

        — Se seu avô apresentar—se em Kellinword reclamando—a, não ajudará em nada. Como acha que reagirá Wulkan ao saber que em sua casa está, casualmente, a mulher com quem Ricardo ordenou que se casasse? Acha que a deixará partir?

        — Claro que não. Mas esse bastardo não tem por que saber minha identidade. Meu avô deve trazer Clara e explicar minha partida antes de receber a carta do rei. Clara é uma moça muito bonita, e estou certa de que se sentirá atraído por ela. É uma questão de esperar ela agir. Conheço Clara e sei que fará o impossível para conseguir um homem como o senhor de Kellinword.

        — Espera que Wulkan se apaixone por ela?

        — Espero que esqueça Jacqueline de Lynch, nada mais. Deve se casar com alguém da casa de Lynch para conseguir a aliança entre os dois feudos. Tanto faz uma mulher ou outra.

        Plowman teve certeza de que, como o normando, a jovem não mudaria de opinião. Por outro lado, aquela idéia não era tão descabida. Não gostava de deixar Jacky entre aqueles muros, mas sabia que tinha coragem suficiente enfrentar as tarefas mais cansativas. Além disso, duvidava muito que Wulkan começasse imediatamente com seu treinamento.

        — Falarei com seu avô, menina. Espero que saiba o que faz.

        — Não se preocupe. Cumpram sua parte. Uma vez que meu avô venha, poderá me tomar sob seu amparo em troca de outras concessões. Saberá como fazê—lo..., é um homem de recursos.

        Hellen começou a chorar em silêncio e Jacqueline a abraçou. Embora demonstrasse integridade, o medo apertava sua garganta. Mas não havia outro modo. Jacky não queria pôr em perigo dois anciões e, muito menos, mostrar sua identidade, o que a acorrentaria nos braço de Wulkan. Era necessário enfrentar o problema, em vez de escapar como um coelho e dar a ele a oportunidade de se interessar mais por ela.

        Quando John as deixou para reunir—se com Wulkan, sorriu para Hellen.

        — Afinal de contas – disse — não conheço nenhum caso em que um saxão não tenha conseguido driblar um maldito normando.

 

        Viu—os partir acotovelada na muralha da torre de vigia, onde subiu apenas para se despedir deles. A carreta puxada pela mula de John levantou nuvens de poeira, enquanto estralava pelo caminho, em direção a Barrington.

        —Triste? — soou a voz de Wulkan a suas costas. Jacqueline enrijeceu—se e segurou as lágrimas. Não queria responder. Deu meia volta e dirigiu—se para as escadas, mas ele se interpôs e a fez parar.

        — Escute, moço — disse em tom conciliador — pode ser que agora me odeie por separá—lo deles, mas depois, quando se transformar em um bom escudeiro, verá as coisas de outro forma. Se você se aplicar bem à aprendizagem...

        — Duvido muito que um dia possa agradecer por me prender em Kellinword, milord.

        — Não faço isto para que me agradeça, garoto ingrato, mas esse homem me salvou a vida.

        — E em troca, tira dele a única pessoa que pode ajudá—lo.

        Wulkan olhou para o menino. De novo, sentiu algo estranho ao observar aqueles olhos violeta.

        — A partir de agora, Plowman terá uma pessoa que o ajude em suas tarefas —informou. — Sou um homem justo, e não vou deixar um ancião sozinho com o pesado trabalho de uma granja. Já organizei tudo.

        — Sim. Parece que você organizou tudo mesmo — respondeu ela, com raiva contida. – Me pergunto a favor de quem o fez, senhor.

        Wulkan já estava se irritando com a teimosia do jovenzinho.

        — Que demônios acontece com você, Jacky? – rugiu — Até agora, não foi mais que um camponês com as costas curvadas de se dobrar sobre a terra e o nariz manchado de esterco. Estou oferecendo uma oportunidade de ouro. A oportunidade de sair de uma cabana e viver em um castelo. — Assinalou a fortaleza com o braço. — De tornar—se um homem de verdade.

        — Então um camponês não é um homem de verdade? – alfinetou ela — Ou pensa que um camponês saxão não merece ser chamardo de homem?

        — Por Cristo! — Wulkan alisou o escuro cabelo em sinal de desalento. Ficou em dúvida entre responder ou dar um sopapo para trazê—lo a razão. Não fez nem uma coisa, nem outra. Agarrou Jacky pelo braço e o empurrou escada abaixo. — Não estou disposto a lutar com sua língua afiada. Gugger tem mais paciência que eu, então será a ele que servirá de hoje em diante...

        Jacqueline desceu as escadas aos tropeções, empurrada por Wulkan. Quando chegaram ao pátio de trás, ela voltou—se e lançou a perna, golpeando—o na canela. Então ele a soltou.

        — Condenado! — rugiu Wulkan, levando a mão ao local machucado. Então, seus olhos tornaram—se duas linhas verdes, e ela soube que estava realmente zangado. – Me parece, menino, que você precisa de uns bons açoites.

        Ela arregalou os olhos quando Wulkan ergueu—se em toda sua altura e deu um passo, diminuindo a distância. Sem pensar duas vezes pôs—se a correr, atravessando o pátio, enquanto escutava as risadas divertidas do grupo que treinava, correndo contra o tempo antes que soasse a sexta hora.

        Wulkan estava muito furioso para perceber que ia ficar em evidência e, quando saiu correndo atrás dela, as gargalhadas aumentaram de tom.

        Jacky esquivou—se de dois jovens que tentaram apanhá—la, deu um chute em um terceiro e um murro em um quarto. Quase conseguiu chegar até a porta que dava à ponte. Mas não foi rápida o bastante para esquivar—se dos braços de Gugger, que a apanhou, levantando—a do chão. Sua risada a fez se sentir uma estúpida.

        Ainda lutando entre os braços do cavaleiro loiro, viu Wulkan vindo. Mancava e seu olhar teria encolhido o coração de qualquer um. Gugger a deixou no chão, sem soltá—la e, embora ela tentasse bater nele, foi suficientemente hábil para esquivar—se do golpe.

        — Acreditei que tinha ouvido você dizer que sabia controlar os saxões — disse a seu amigo.

        — E sei controlá—los — resmungou Wulkan, agarrando Jacqueline — Agora mesmo vou dar uma tamanha surra neste garoto...

        — Vamos, vamos... — Gugger voltou a afastar Jacky, colocando—a às suas costas. — Quando se zanga não pensa com sensatez. Deixe comigo.

        —Tinha decidido que tomaria o lugar de Bertrán, enquanto se recupera, mas não vou consentir que...

        — Sábia decisão — cortou o loiro. — Bertrán me serve pouco, agora que tem a perna fraturada. Fico com Jacky.

        — Primeiro...

        — Colocou—o sob meu comando — insistiu Gugger — e eu o levo, amigo. — Baixou o tom de voz enquanto sentia as pequenas mãos do menino agarrarem—se a seu casaco de couro. — Wulkan, está fazendo papel ridículo diante dos rapazes.

        Wulkan ergueu—se e sua expressão tornou—se mais séria. Olhou de esguelha para os que treinavam sob a direção de Gilbert e escutou os cochichos e as brincadeiras safadas. Cerrou os dentes e lançou um olhar a Jacky, que parecia não estar disposta a sair debaixo da proteção de Gugger.

        — Mantenha—o ocupado até que caia rendido – recomendou — É pior que uma dor de dente.

        Depois afastou—se, com passos largos para a torre. Quando se perdeu de vista, os jovens retornaram a seus afazeres. Ao observá—lo, Gugger constatou que seu corpo magro não parecia muito fraco.

        — Dessa vez, jovenzinho, pude afastá—lo de uma surra, mas não tente muito à sorte. O lorde de Kellinword é um homem justo, mas com um humor de mil diabos. Se tentar um truque com ele novamente, nem sequer eu poderei evitar que o coloque sobre seus joelhos e deixe seu traseiro moído de açoites. Entendeu…?

        Jacqueline engoliu saliva diante da desagradável perspectiva e concordou, adotando uma atitude submissa. Inclusive sorriu ligeiramente ao cavaleiro. Ao menos, havia encontrado um protetor que a manteria afastada de Wulkan.

        Bertrán era um companheiro agradável. Tinha uma perna imóvel. Tinha quebrado durante a viagem, antes de chegar ao castelo. Depois, tinha sido mais uma carga do que ajuda para Gugger, e ele agradeceu ter em Jacky um par de mãos que arrumassem seus pertences.

        Bertrán era ruivo. Seus cabelos, soltos e revoltos por cima dos ombros, e suas sobrancelhas tinham um tom laranja muito singular. Seu rosto infantil, cheio de sardas tão grossas como lentilhas, o tornava agradável para todos. Com Jacky não foi diferente e logo que o conheceu soube que podia ser amiga daquele garoto de sorriso franco e olhos extremamente azuis.

        Durante o primeiro dia, Jacqueline não só desempenhou os trabalhos de criado de Gugger, mas também acompanhou Bertrán a um passeio ao ar livre, deixando que se apoiasse em seu ombro. Dobrou e guardou as roupas do cavaleiro normando, poliu sua adaga e sua espada, e até remendou uma de suas camisas. Jantou ao anoitecer ao lado do escudeiro de Gugger, no canto mais afastado do salão, olhando fixamente a mesa em que os normandos bebiam e conversavam. Não pôde disfarçar seu nervosismo cada vez que seus olhos cruzavam com os do senhor de Kellinword. Bertrán percebeu.

        Assim que terminaram a refeição, Gugger dispensou os dois rapazes, piscou os olhos para uma criada de quadris avantajados e afastou—se com ela para fora da torre. O ruivo deu uma cotovelada em Jacky, sorriu com cumplicidade e aceitou a ajuda de seu recente companheiro para chegar ao quarto de Gugger. Ali, prepararam dois leitos sob a janela e deixaram pronta a cama do cavaleiro para quando retornasse, depois de sua aventura amorosa. Atiçaram o fogo e caíram em seus colchões.

        Jacqueline sentia—se esgotada pelo trabalho duro. Não estava acostumada aquele tipo de atividade, e agradeceu que Gugger desaparecesse e os deixasse com um pouco de tranqüilidade. O maldito parecia querer seguir as instruções de Wulkan a respeito de mantê—la sempre atarefada. Fechou os olhos e suspirou.

        — Não acha que seria mais fácil se dissesse a eles que é uma mulher?

        A pergunta a deixou atônita. Ele apoiou—se sobre um cotovelo e a olhou com um sorriso tranqüilo.

        — Tenho seis irmãs, Jacky... ou devo chamá—la de outro modo?

        — Eu...

        — Não me interessa o motivo pelo qual se faz passar por um homem. Não é da minha conta. Mas certamente estaria muito mais confortável se soubessem que é mulher.

        — Não vai me delatar..., não é? – Sua voz tremeu.

        — Eu não. Mas até quando acha que pode esconder isso?

        Jacqueline levantou—se, jogou uma manta sobre os ombros e se aproximou do fogo. De repente, ficou gelada.

        — Você é saxão, Bertrán — disse, tentando escolher as palavras adequadas. —Como eu.

        — Mas não sou uma moça.

        — Nem eu devo ser. Ajude—me a parecer um menino. Diga—me se me enganar, se fizer algo errado.

Bertrán sorriu.

        — Quer que guarde seu segredo?

        — Por favor...

        — Sabe o que está me pedindo?

        — Perfeitamente.

        — Arrisco meu pescoço.

        — Não acredito.

        — Por que faria? Sirvo Gugger de Montauband e devo obediência a ele.

        — Mas é saxão e devemos nos ajudar... Bertrán estalou a língua e se deixou cair sobre o colchão com o olhar cravado no teto.

        — Sabe, Jacky? Até Gugger me tomar sob sua proteção, ninguém me deu uma mão. Nunca.

        Sua expressão era muito séria.

— Entendeu? Jamais encontrei um saxão disposto a me ajudar. Entretanto, Gugger me tratou bem, como uma pessoa e não como um animal.

        — Está me dizendo que admira esses bastardos? Os olhos de Bertrán relampejaram por um instante, mas captou seu gesto de angústia e ergueu—se, ligeiramente.

        — Eles fizeram muito mal a você?        .

        — Mataram meus pais. E agora querem que me case com um desses malditos invasores. Me escondo para não ter que passar a vida ao lado deles. Por favor, Bertrán, não me delate. Contarei tudo a você, será meu confidente, mas...

        — Não! — cortou ele. — Não quero que me conte nada, Jacky. Algo me diz que você atrai perigo. Se quer continuar sendo o criado de Gugger, eu me farei de surdo e cego. Não direi uma palavra. Mas não desejo saber nada a respeito de você, acredito que é melhor para ambos. Continuará sendo Jacky.

        Jacqueline aproximou—se e o beijou na bochecha. Bertrán grunhiu, deu meia volta e se cobriu com as mantas até a cabeça.

        — Boa noite.

        Jacqueline sorriu e enfiou—se também no calor do leito, agradecendo ao céu ter encontrado um aliado naquele refúgio de escorpiões. Procurou não pensar que se Bertrán a tinha descoberto com tanta rapidez, outros poderiam fazer o mesmo. Estava adormecendo quando seu companheiro a sobressaltou.

        — Procure andar menos ereta —disse. — Encolha os ombros e cuspa de vez em quando. Parecerá mais com um jovem.

        Jacky voltou a sorrir antes de adormecer.

        O dia seguinte foi uma verdadeira prova para Jacqueline. Ao amanhecer recebeu uma palmada nas nádegas e abriu os olhos. Bertrán já estava em pé e indicou por gestos que não fizesse ruído. Levantou—se com os ossos moídos e amaldiçoou os normandos, pois por sua causa dormia no duro chão. Ela, que sempre se acomodou em colchões de plumas. Jogou os ombros para trás e lançou um olhar colérico a Gugger, que descansava profundamente.

        O movimento no castelo começava com o despontar da alvorada. Os criados trabalhavam em excesso para preparar tudo para o novo dia. Os escudeiros se encarregavam das armas de seus senhores, caso estes decidissem se exercitar um pouco no pátio de armas. Os mercados preparavam suas bancas. Nas quadras limpavam e alimentavam os cavalos. Uma equipe de pedreiros já punha mãos à obra, rebocando um dos muros.

        Lavaram o rosto e os braços em um dos reservatórios de água, perto dos armazéns. A água estava gelada e Jacqueline almadiçoou entre dentes, costume que estava adquirindo com surpreendente rapidez.

        — Devemos levar água quente para Gugger — disse Bertrán.

        — Eu levo, não deve carregar peso.

        — Ora! Vão tirar minha tala em alguns dias.

        — Confie em mim. Descanse enquanto vou à cozinha e levo os baldes para cima. Bastam dois?

        — Quer comprar meu silêncio, não é?

        — Não seja tolo — brincou ela.

        — Adicione três baldes de agua fria — indicou. — Certo. Ficarei deitado enquanto você trabalha por mim. A idéia não me desagrada, sabe? Inclusive pode ser que quebre minha outra perna.

        Jacqueline se pôs a rir. Bertrán era um travesso encantador, e realmente não se importava em fazer seu trabalho durante uns dias.

        Carregou dois caldeirões de água fervendo das cozinhas até os aposentos de Gugger e desceu para buscar um terceiro. Quando ia em busca de água fria, ao dobrar uma curva da escada, tropeçou e quase caiu sobre seu traseiro. Por sorte, duas mãos grandes agarraram seu casaco, devolvendo—a a posição vertical.

        — Olhe por onde anda, Jacky.

        Engasgou—se diante daquela voz profunda. Era Wulkan.

        Imediatamente baixou a cabeça e inclinou os ombros, adotando a figura de um macaco. Murmurou uma desculpa e passou reto.

        Ele fixou—se em suas roupas gastas, no chapéu que a cobria até as orelhas, em sua forma de andar. Também no modo como cuspia.

        —Jacky...

        Jacqueline estacou,subitamente, com os batimentos do coração acelerando—se. Embora não se voltasse, deixou escapar um temeroso «sim, milord». Wulkan cortou a distância, agarrou—a pelo braço e a fez voltar—se. Ela manteve o olhar baixo, como se um ímã a atraísse para as pontas de suas opacas botas.

        — Está com dor nas costas?

        — Não, milord.

        — Demônios, Jacky, então caminhe mais ereto. — Parece um macaco. E pegue outras roupas; essas que usa estão velhas.

        — Sim, senhor — respondeu ela, cerrando os dentes.

        Wulkan ficou de lado e ela correu escada abaixo.

        Quando já estava na saída, outra vez sua voz voltou a deter seus passos e seu coração.

        — Gugger está acordado?

        — Vou despertá—lo assim que preparar seu banho, milord. Ontem à noite retornou tarde.

        — Diga—lhe que quero vê—lo. Entendeu?

        — Não sou tolo.

        — O que disse?

        — Sim, milord. Direi —E escapou para fora.

        Quando chegou ao pátio, apoiou—se no muro e deixou que seus pulmões se enchessem de ar frio, fazendo um esforço para que suas mãos deixassem de tremer.

        Nas escadas, Wulkan olhava para a porta com o cenho franzido. A atitude daquele rapaz o intrigava cada vez mais, mas acabou dando de ombros e subindo os degraus de dois em dois, em direção à torre de vigia.

 

        Naquela tarde, Jacky fez contato com as armas. O equipamento de um cavaleiro tinha que ter o elmo, a cota de malha, o escudo, a espada e a lança; o peitoral e o capacete de ferro; a espada ou lança e o arco para os guerreiros a cavalo; uma cota de malhas de couro, um capacete de couro, um arco, as correntes, as clavas, alguns bastões, as adagas e os ganchos de ferro para os homens da infantaria.

        Apesar de sua juventude, Gilbert de Bayard era quem dividia as classes, parecia um excelente professor, embora duro e sem misericórdia com os aprendizes que não faziam certo.

        Desde o começo pareceu implicar com Jacky. Fez ela dizer em voz alta, diante dos companheiros, o nome de cada utensílio. Depois a tirou do centro do circulo, colocou uma espada de madeira em sua mão e insistiu para que o atacasse. Jacqueline ficou petrificada.

        — Vamos, Jacky. Mostre que um saxão sabe manejar a espada como um normando.

        Engoliu a saliva. A espada de madeira não pesava tanto como uma autêntica, mas nem por isso era leve. Ao olhar para Bayard, viu diversão em seus olhos claros. Então fez uma ameaça de atacá—lo e na primeira investida Gilbert a deixou passar pelo lado só para dar um chute em seu traseiro com a ponta de sua bota. Jacqueline perdeu o equilíbrio e caiu no chão, o que provocou uma gargalhada geral.

        — Vamos! — ordenou Gilbert.

        Ela obedeceu. Voltou a ficar em guarda e atacou de novo, desta vez com mais ímpeto.

        Gilbert voltou a zombar dela do mesmo modo que anteriormente, e ela acabou beijando de novo o chão, para divertimento do resto.

        Voltou—se com uma fisionomia de ódio e deu de presente a Gilbert um olhar furioso. O normando, com essa resposta, jogou a cabeça para trás e caiu na gargalhada.

        — O que acontece, Jacky? Não é capaz de usar uma espada? — incitou—a. — Oh, desculpe, esqueci que para você são as vigas de sustentação e as enxadas. — E voltou a rir ruidosamente.

        Ela esfregou o traseiro do lado direito, onde recebeu duas vezes a ponta da bota. Limpou o pó do rosto e apertou ainda mais o chapéu. Odiava aquele normando, mas não podia nem sonhar em lhe dar um castigo. Era ridículo pensar em se vingar dele quando nem sequer sabia segurar uma espada de madeira, que pesava pouco, pelo menos para um homem.

        Entretanto, Gilbert viu em seus olhos uma clara intenção de não deixar se intimidar por suas brincadeiras e esqueceu—se dela. Formaram pares, e Jacqueline deveria enfrentar um rapaz moreno, de rosto grande e uma cicatriz no queixo. Não que fosse muito hábil no manejo da espada, mas não havia dúvida de que já tinha treinado o suficiente para deixá—la feita um farrapo.

        — Vamos! Abaixo! — gritava Gilbert sem descanso. — Ataquem à direita. Agora à esquerda. Arthur, disse à esquerda! Isso, com mais dignidade! Lembrem—se que estão enfrentando um inimigo e não as damas de companhia.

        Jacqueline fez um esforço para que as lágrimas não escapassem. Sentia os braços adormecidos pelos constantes embates da espada de seu oponente e suas mãos estavam esfoladas pelo roçar constante da madeira.

        — À direita. À esquerda. Abaixo agora. Jacky, essa espada é uma arma, não uma cenoura! — gritou. — À direita. Ataque na cabeça. Vamos, garotos, ponham um pouco mais de vocês nisso! Do lado esquerdo. De novo no esquerdo; agora no direito...

        Depois de uma hora, Jacqueline já não sentia nem os braços nem os ombros, e começou a agir como um autômato, sem se importar se suas mãos sangravam ou acabariam amputadas. Após alguns minutos, Gilbert percebeu as dificuldades do jovem saxão, aproximou—se e parou o treinamento. Arrancou a espada de madeira de Jacky e pegou suas mãos entre as dele. Moveu a cabeça, com aborrecimento.

        — Menino —disse — amanhã coloque umas luvas.Você combaterá comigo um momento mais — informou ao outro jovem — vamos ver se agora fica tão fácil. Ande, Jacky, vá lavar essas mãos e ponha algum emplastro nelas para que cicatrizem.

        As lágrimas lutavam para escapar quando livrou—se do treinamento. Não compreendia como os homens se obcecavam por esses exercícios durante horas. Era exaustivo e selvagem. Pôs—se a correr para a torre.

        Logo ao entrar no salão, viu Wulkan falando com um de seus homens. Fez uma pequena reverência e passou ao seu lado tentando ganhar as escadas, até os aposentos de Gugger, nas quais Bertrán ficou descansando. Seguramente ele saberia como de tratar suas mãos machucadas.

        Wulkan também a viu, acabou de dar as ordens ao homem com quem falava e, antes que ela pudesse escapulir, chamou—a. Jacky não teve outro remedio além de descer os dois degraus que já tinha subido e aproximar—se. Por instinto, cruzou os braços no peito e escondeu as mãos nos lados. Gilbert já havia rido dela e não queria que Wulkan fizesse o mesmo.

        — Vi você treinar no pátio de armas ou foi um sonho? — Perguntou com um sorriso nos lábios.

        Jacqueline grunhiu algo. Para ela, foi uma maldição murmurada; para ele, uma afirmação ininteligível. — O que disse?

        — Sim, milord, estive treinando.

        — Não parece muito feliz por isso.

Acomodou—se na poltrona, esticou suas longas pernas e serviu—se de uma taça de vinho, sem afastar o olhar daquele cabisbaixo e mal—humorado rapaz saxão.

— Como foi?

        — Psss...!

        Sorriu ao ouvir a resposta. Logo levou a taça aos lábios e bebeu um pouco antes de falar de novo.

        — Gilbert é um bom professor — disse — Um pouco duro, mas muito bom. Em uns dias, terá aprendido a manejar a espada de madeira e começará com uma de verdade. Você gostará.

        — Duvido.

        Por que diabos não a deixava em paz? Estava louca para partir dali e tratar as feridas de suas mãos. Deus, se seu avô pudesse vê—la! Estava suja de poeira e suor, com as mãos esfoladas e as costas e os ombros doendo. Agora sim parecia um rapaz de verdade, e não uma dama de bom berço a quem vários professores ensinaram a ler, escrever e resolver uma operação matemática a primeira vista. Pensou que, se não fosse por Wulkan, poderia estar cavalgando, caçando com seus falcões ou bordando em sua casa, perdida na agradável conversa de sua irmã Aelis e de suas damas de companhia. Odiou—o tão profundamente que doeu seu peito.

        — Jacky... Conhece Enric de Lynch? Plowman me comentou algo...

        O coração parou e em sua mente alojou—se a suspeita de que a tinha descoberto. Mas ele parecia absorto na borda de sua taça. Pigarreou,sentindo a garganta áspera pelo pó, antes de responder:

        — Um pouco, milord…

        — Convidei—o para vir a Kellinword — disse Wulkan — Eu gostaria de saber como posso agradá—lo. Vai ser meu hóspede durante alguns dias.

        — Gosta da carne de veado....

        Maldição! Por que tinha que informá—lo sobre seu avô, quando o que queria era partir e acabar aquela absurda conversa?

        — Veado, hein? Bem. Sairemos caçar um bem grande amanhã mesmo. Bertrán está melhor?

        —Amanhã vão tirar sua tala, mas não acredito que possa caminhar durante alguns dias.

        — Então você acompanhará Gugger e a mim. Poderá aprender algo da arte da caça.

        — Sim, milord.

        Wulkan levantou—se de repente e Jacqueline retrocedeu como impulsionada por uma mola.

        — O que houve, moço? Não como ninguém. Ela não respondeu, limitando—se a curvar mais os ombros e esconder as mãos nas laterais. Doíam terrivelmente.

        — Serviu na casa de Lynch? — quis saber ele.

        — Algum tempo.

        — E... como é a neta desse saxão?

        Os nervos da moça ameaçaram virar poeira. Apertou ainda mais as mãos nos lados e respondeu:

        — Como qualquer mulher saxã.

        — Bonita?

        — Depende do gosto. Na minha opinião, a afilhada de seu pai é muito mais bonita.

        — Não sabia que ainda vivia o filho de Enric de Lynch. Disseram—me que...

        — E não vive — repôs Jacqueline, fixando seus olhos violeta no escuro olhar de Wulkan — Ele e sua esposa foram assassinados.

        Wulkan sentiu a intensidade colérica naquele olhar.

        — Compreendo. Eram seus senhores?

        Ela fez um gesto ambíguo, entre afirmação e negação.

        — Por isso odeia todos os normandos? Porque eram normandos os que mataram os de Lynch, não é?

        — Eram sim.

        Wulkan ficou em silêncio enquanto observava o rosto do garoto. Ela voltou a baixar a cabeça, incapaz de suportar seu exame visual.

        — Tem frio?

        — Não, milord.

        — Não parece. Está encolhido.

        — Só me doem as mãos. Deve ser o treinamento. Se não deseja nada mais, eu gostaria de me retirar.

        — Deixe—me ver.

        Jacqueline enrijeceu—se e retrocedeu um passo.

        — Vamos, Jacky, não vou zombar de você. Também me esfolei treinando. Venha aqui e me deixe ver.

        — Preferia ir a...

        — E eu prefiro que fique! — trovejou com aspereza — Deixe de discutir comigo, por todos os infernos!

        Jacky teve que obedecer. Para se livrar o quanto antes de sua companhia... aproximou—se e estendeu as mãos com as palmas para cima.

        — Santo Deus! — exclamou ele ao ver os ferimentos. Segurou—a pelo braço e a obrigou a sentar—se em sua própria poltrona. — Maldição, destroçou as mãos! Gilbert não mandou que usasse luvas?

        — Não. Não me disse nada, talvez quisesse que eu ficasse meio inútil. — Suas palavras destilavam fúria.

        Wulkan levantou—se e chamou a gritos um dos criados. Pediu água morna, alguns panos limpos e óleo de linhaça. Jacqueline permaneceu com a cabeça curvada até que o servo reapareceu com o pedido. Sem poder evitar, Wulkan pegou uma de suas mãos e a inundou na água, fazendo—a gritar de dor.

        — Espere, não retire a mão, isto acalmará.

        O contato daquelas mãos grandes e calejadas foi como uma chicotada. Seus dedos longos, poderosos, capazes de segurar e manejar uma espada de várias libras de peso, tomaram seus pulsos com uma suavidade surpreendente. Secou as palmas das mãos com o pano de linho e depois colocou óleo sobre elas, espalhando—o em pequenos círculos. Ela sentiu que arrepiavam—se os cabelos da nuca e tentou puxá—las.

        — Quieto, moço.

        — Dói — queixou—se ela.

        — Mais vai doer se não me deixar acabar de tratar esses ferimentos. Vejo que é um desastre.

        Ela retorceu—se, incômoda. Tê—lo tão perto, agachado e cuidando de suas mãos destroçadas, a inquietava. – Eu posso acabar sozinho.

        — Espere. Um pouco mais de óleo de linhaça, e amanhã terá as mãos em condições de voltar a usar a espada..

        Jacky fixou—se na cabeça escura do normando, enquanto ele aplicava a segunda camada de óleo. Seu cabelo era tão escuro que tinha reflexos azulados. Se perguntou por um instante como seria afundar os dedos naquela cabeleira e como trataria as mulheres. Era sério, como parecia ser com seus cavaleiros, exceto Gugger? Ou amável, como era agora com ela? Parecia capaz de ambas as coisas.

        — O que me importa...? — resmungou em voz baixa.

        — O que disse?

        — Nada, milord.

        — Está pronto. — Acabou de enfaixar as mãos com o outro pano e levantou—se.

        Observado em pé era poderoso. Para não se sentir tão pequena, levantou—se com um salto.

        — Agradeço—lhe por isso, milord — disse. — Nunca acreditei que um cavaleiro normando se preocuparia em curar as feridas de um camponês saxão.

        Riu abertamente.

        — E você não curou as minhas? Olhe, moço, os normandos não são tão diferentes de vocês. Também somos de carne e osso e temos sentimentos. Ande, vá deitar; eu me encarrego de dizer a Gugger que ache alguém que o sirva esta noite. E coma algo antes de ir para a cama. Eu não gostaria que Plowman pensasse que em Kellinword o matamos de fome.

        —Sim, milord.

Jacqueline escapou do salão tão rápido como suas cansadas pernas permitiram. Quando chegou aos aposentos de Montauband, Bertrán não estava. Mordendo os lábios para suportar a dor, esticou o colchão perto da janela e pegou algumas mantas. Deitou imediatamente, rezando para dormir o quanto antes e despertar no dia seguinte sem aquela dor que a torturava. Mas a visão de Wulkan tornou isso difícil. Recordou o contato de suas mãos, a cor escura de seus olhos, seu cabelo... Remexeu—se entre as mantas e amaldiçoou a si mesma antes de adormecer.

        Quando Bertrán chegou e aproximou—se, a primeira coisa que viu foram suas mãos enfaixadas. Moveu a cabeça, pesaroso, se perguntando quanto seria capaz de suportar aquela mulher para esconder sua verdadeira identidade. Não entendia a natureza feminina. Se ele fosse uma mulher, não esconderia suas formas nem seu cabelo sob a aparência de um rapaz, mas sim exploraria seus encantos. Não tinha dúvidas de que Jacky, ou como diabos se chamasse, devia ter muitos encantos ocultos sob suas roupas meio desalinhadas, sujas e muito grandes. Deu de ombros e foi em busca de seu senhor, caso precisasse de sua ajuda.

 

        Jacqueline despertou ao primeiro sinal do sol. Ao se levantar, deixou escapar um gemido. Doía tudo, até as unhas dos pés.

        — Ontem foi um desafio, hein? — saudou Bertrán.

        — Foi uma matança. — Conseguiu ficar em pé e jogou os ombros para trás.

        — Wulkan quer você em seu quarto.

        — Agora?

        — Seu escudeiro está preparando os equipamentos para ir caçar e precisa de alguém que o ajude. Não se atrase.

        — Por que não vai você? Eu tinha que dar uma mão a Gugger.

        — Porque Gugger pediu um banho quente e não acredito que goste de carregar baldes e escovar suas costas — riu Bertrán.

        — Não, certamente que não.

        Acompanhada pelas idas e vindas de Bertrán que, apesar de sua perna prejudicada, conseguia transportar água quente e encher a banheira de Montauband, Jacqueline lavou o rosto, os braços e o pescoço.

        — O que eu daria por um banho quente...

        — Tire essas roupas de garoto e terá.

        — Vá para o inferno!

        Bertrán explodiu em gargalhadas enquanto ela se afastava para os aposentos do lorde.

        Jacqueline bateu na porta de Wulkan. Os baldes alinhados no corredor acenderam uma luz de alarme quando ele deu permissão. Entrou, fechou a porta a suas costas e amaldiçoou Bertrán. Wulkan estava se despindo.

        — Me passe a água que está lá fora, Jacky — pediu.

        Ficou presa ao chão, observando como ele se despia, deixando descoberto um peito bronzeado e largo e calções tão justos como uma segunda pele.

— O que está esperando?

        Quase de um salto, voltou—se, abriu a porta e escapou para fora. Pelo amor de Deus, ia tomar banho! Tinha que procurar uma desculpa e sair dali o mais rápido possível. Seu avô jamais permitiu que ela ajudasse os hóspedes em seu asseio pessoal e, embora não fosse dissimulada, jamais tinha visto um homem nú. Ao fechar os olhos com força, apareceu aquela imensa extensão de pele bronzeada, seus músculos, os ombros largos, os braços… Sua garganta secou.

        — Jacky, traga a água! — gritou Wulkan do interior.

        Olhou por todos os lados, procurando uma saída. Era uma dama bem nascida e...! Repentinamente, lembrou que não era. Que demônios! Agora era apenas um garoto que queriam transformar em escudeiro. Esperava que o ajudasse e não via maneira de escapar sem ganhar uma boa sova, que não estava disposta a suportar. Tomou ar e levantou o primeiro balde de água quente. Empurrou a porta com o ombro e cruzou o recinto com a cabeça abaixada até chegar à tina de madeira, onde derramou o líquido. Pela extremidade do olho, viu Wulkan tirar o único objeto que o cobria, e o sufoco aumentou. Seu rosto ficou escarlate. Alcançou o segundo balde de água fria e saiu quase correndo em busca do terceiro. Quando voltou a entrar, o normando estava entrando na banheira. Ela tropeçou na quina de um baú a sua direita e esteve a ponto de derramar tudo pelo chão. Wulkan tinha um corpo de atordoar qualquer mulher.

        — Depressa, pelo amor de Deus, ou quando chegarmos ao bosque os cervos ja foram dormir.— insistiu ele.

        Derramou a água quente com tal precipitação que parte dela caiu diretamente sobre o peito de Wulkan:

        —Maldição! — protestou ele, ficando em pé. — Está louco?

        Ficou pasma. De pé, dentro da tina, tão nu como tinha vindo ao mundo, a olhava como se quisesse estrangulá—la. O sangue subiu até a raiz do cabelo e balbuciou uma desculpa.

        — Garoto, posso entender que odeie os normandos, mas nunca acreditei que fosse capaz de tentar me transformar em um eunuco.

        — Lamento, milord. Eu... eu...

        — Esqueça e acabe de uma vez…

        Jacqueline saiu correndo e voltou com o último balde de água. Suas mãos tremiam ao aproximar—se da tina e desviou o olhar de novo para não ver sua gloriosa nudez.

        — Jacky, quer olhar o que faz, em nome de Cristo? Vai me escaldar!

        Ela com o coração retumbando no peito, concentrou—se para que a água caísse nos cantos da tina. Diminuiu logo a temperatura com um balde de água fria. Quando acabou, estava tão alterada, que ficou ao lado da banheira, com as mãos cruzadas nas costas e os olhos fortemente fechados. Só reagiu quando Wulkan, com um tom irônico, perguntou:

        — Sua excelência me esfregaria as costas?

        Pegou a esponja que ele estendia com seus nervos em frangalhos. Tremia como uma folha. Colocou—se atrás dele e se inclinou. Ao passar a mão por suas largas costas, ele abriu os lábios entre suspiros.

        — Mais forte.

        Fez o que ele pedia, embora não pôde olhá—lo enquanto esfregava. Sentiu—se culpada, agachada ali, no quarto do homem com quem Ricardo desejava casá—la, atendendo—o como se já fosse sua esposa. Ele, o odiado inimigo... O estômago começou a doer.

        Wulkan voltou—se, tirou a esponja de suas mãos, enquanto xingava algo entre dentes contra os saxões e toda sua linhagem, e acabou esfregando sozinho os braços e as pernas. Depois levantou—se e olhou Jacky, que permanecia estática, vermelha, os olhos cravados na janela. Esperou quinze segundos antes de gritar:

        — A água!

        Ela deu um salto, e esteve a ponto de cair sobre seu traseiro. O que viu a deixou gelada. Wulkan erguia—se, totalmente nú na frente dela, jorrando água e espuma. E era belo. Tão bonito como nunca teria imaginado. Bronzeado, com os músculos do peito e os braços brilhantes. Suas pernas eram longas e poderosas, seu ventre liso, seus quadris estreitos. Ao chegar aquela parte afogou—se e olhou para o teto. A voz de Wulkan estalou como uma bofetada.

        — Juro por Deus, Jacky, que se me resfriar tirarei sua pele em tiras! — ameaçou.

        — O que?

        — Deus santo! Estou dizendo que traga água para me enxaguar!

        Jacqueline saltou para o balde que restava e o derramou tão rápido que ele amaldiçoou de novo. Acabou se enxaguando com as mãos enquanto deixava escapar uma ladainha de obscenidades. Quando saiu da banheira, Jacky estendeu—lhe uma enorme toalha de linho. A pegou com um puxão e começou a se secar, sem deixar de olhar o rosto acalorado do jovem. Jacqueline notou que os olhos dele se tornaram esverdeados, o que evidenciava que estava com um humor do cão. Fez um esforço para não sair correndo e se propôs a ir com mais cuidado, porque bem poderia mandar que lhe dessem uma surra. Ou o que era pior, poderia dar ele mesmo. Esteve bem disposta para alcançar a ele a roupa para vestir.

        Apesar de seu péssimo humor, Wulkan aceitou a ajuda do garoto, quando entregou os calções de couro. Depois, uma camisa bordada nos punhos e no pescoço e meias verde musgo. Jacqueline agachou—se para calçar as botas e colocou sobre seus ombros o casaco de couro. Por último, a túnica verde de lã, que realçou ainda mais o negro de seu cabelo e seus olhos, que, gradativamente foram obscurecendo—se. Quando foram sair, aproximou dele a capa e um chapéu.

        O próprio Wulkan colocou o cinturão, com uma adaga de dois quartos de comprimento ao lado....

        — Vá buscar um casaco para você; faz frio — disse, e saiu com passadas largas, deixando—a a sós...

        Jacqueline respirou fundo várias vezes e, saiu também atrás dele. Com algumas passadas mais largas conseguiu ficar ao seu lado, embora os passos de Wulkan fossem largos e acelerados. Quando chegaram ao pátio, o escudeiro do normando já tinha as armas preparadas e os cavalos: um palafrén com um pêlo branco bem cuidado, outro cinza claro e dois cinza escuro para os escudeiros. A jovem não entendeu que devia montar em um deles até que Wulkan a observou com o olhar. Antes que pusesse um pé no estribo, sua voz a paralisou.

        — Disse que procurasse um casaco.

        — Não... Não tenho, milord.

        Wulkan olhou para o céu e fechou os olhos, com um gesto cansado. Por sorte, Bertrán chegou mancando e lançou uma capa a jovem. Ela agradeceu com um sorriso e se cobriu.

        — Certo — rosnou o lorde — Vamos ver se hoje somos capazes de caçar algo, ou acabo pendurando alguém na copa de uma árvore.

        Jacqueline entendeu a indireta e rezou para ser mais diligente. Graças a Deus, sabia como montar a cavalo, embora fosse um tosco cinzento. Só faltava para Wulkan que ela não soubesse montar um cavalo.

        A caça era uma paixão e uma necessidade, já que provia de carne a mesa dos cavaleiros. É obvio, estava regulamentada. A caça maior estava reservada aos donos dos feudos, sempre que fosse dentro dos bosques. Os aldeões, para quem a caça de veados, lebres e coelhos constituía uma alimentação extra, só podiam exercê—la em pleno campo ou nos limites dos bosques.

        Apenas quinze minutos depois de entrar no bosque, encontraram a primeira. Um veado os observou com os olhos muito abertos e as orelhas rígidas, pressentindo o perigo. Perseguiram—no durante um bom tempo e Jacqueline pôde admirar a facilidade com que Wulkan e Gugger dominavam suas montarias entre as árvores, agachando—se para penetrar sob os ramos ou erguendo—se sobre a sela para seguir a pista da caça. Por fim, conseguiram alcançá—lo em uma pequena colina, antes que cruzasse o rio, um que se bifurcava e seguia o curso até os limites do castelo. Wulkan e Gugger prepararam seus arcos, apontaram e dispararam de uma vez. O cervo deu um salto, avançou uns passos e caiu morto. Os dois cavaleiros desmontaram rindo, e correram para o animal, para comprovar qual das duas flechas tinha acertado o alvo. Jacqueline e Borgan, o escudeiro de Wulkan, aguardaram com os cavalos até que retornassem. Aparentemente, ambos tinham ferido mortalmente o animal.

        Carregaram a caça para um dos cavalos cinzentos. Depois, Borgan e Jacky montaram sobre o outro e seguiram de novo seus senhores.

        Jacqueline lembrou, cavalgando abraçada à cintura do rapaz, suas saídas de caça com seu avô, A falcoaria era uma verdadeira paixão para ele, e não deixava de praticá—la: ao menos duas vezes por mês. Gostava que ela o acompanhasse, embora alguns não viam com bons olhos que as mulheres praticassem essa arte. Os falcões de Lynch eram sem dúvida, os melhores daquelas redondezas. Jacky poderia jurar que eram uns dos melhores do país. Criados com mimos, tinham sido recolhidos do ninho poucos dias depois de nascer. Até recordava quando cortaram suas unhas e colocaram—lhes a campainha na pata (para encontrá—lós, caso se perdessem). Seu avô não gostava de costurar as pálpebras dos falcões, por isso em Lynch aquele costume tinha sido trocado por outro: colocar um tecido sobre outro engomado, a fim de cegá—los temporariamente sem fazê—los sofrer. Ela mesma tinha treinado Box a se manter sobre seu pulso e a obedecer seus assobios. Depois o deixava ver para excitá—lo com caças fictícias. Tinha demorado quase um ano para adestrar o falcão. Seu avô dizia que tinha um dom especial para os falcões, que pareciam preferi—la do que os outros componentes do grupo. Jacqueline sorriu ao se lembrar da primeira caça pega por Box. Suas palavras de alento sussurradas junto a seu bico, a súbita retirada do capuz de couro no momento em que apareceram as pombas... A formosa ave tinha reagido com uma rapidez maravilhosa, lançando—se para seu objetivo e abatendo uma, para retornar para seu pulso, atendendo a sua chamada, metade assobio, metade beijo.

        Perdida como estava nas lembranças que a transportavam a um tempo mais feliz, não prcebeu que Wulkan tinha caçado três coelhos e Gugger fazia o mesmo com um par de lebres…

        Quando retornaram ao castelo, o sino da capela tocava a sexta hora.

 

        Medardo de Lecoy, mais conhecido como Rednose, era um monge com ânsia de poder. Pertencia ao priorado de Barrington e vivia em Kellinword há muitos anos. Nem é preciso dizer que, depois da morte do antigo suserano, sem descendência, a resolução do rei Ricardo de passar tudo à mãos de Wulkan, não foi de seu agrado. Muito menos depois de conhecer o novo lorde, a quem catalogou imediatamente de pouco dado a concessões. Entretanto, soube reconhecer o lado fraco do normando.

        Medardo se vangloriava de possuir uma intuição para ler a mente de outros mortais, e em Wulkan achou uma fresta que podia ser benéfica. Caso fosse o único que visse aquela brecha. Todos consideravam Wulkan um homem severo, que quase nunca sorria, mas Medardo pressentiu que aquilo era apenas um escudo para preservá—lo do mundo. Era tolerante com o novo lorde, mesmo que Wulkan quase nunca assistisse as missas, o que, segundo ele, não era bom exemplo para os servos. Constantemente adulava o normando e fazia com que os olhos pardos do lorde se fixassem nele. Embora o monge não parecia interessar a Wulkan mais que uma raposa depois de ter caçado seis veados, Medardo não se desesperava, mas aquele desprezo oculto o ofendia.

        Jacqueline tinha conhecido o monge anos atrás, durante uma visita ao priorado em companhia de seu pai. Ela era uma menina, e embora só se viram uns minutos e Medardo não reparou na menina magricela que se agarrava à mão do senhor de Lynch, ela recordava o pouco que gostou dele. Jacqueline ficou atordoada, como se esperasse um milagre. Era a primeira vez que via um homem de Deus. Medardo tinha aproveitado aquela visita para convencer seu pai a fazer uma doação à comunidade. Certamente não solicitou diretamente, já que só o prior tinha esse poder, e Lecoy, nessa época, era apenas o encarregado das cozinhas. Mas insinuou as necessidades pelas quais passavam as caldeiras, com pouca água e com uns poucos ossos para dar substância, e queixou—se, embora dando graças a Deus, da cerveja aguada que era obrigado a servir aos outros monges. A visita acabou com a concessão de um rico trecho de vinhedos e uma granja para a criação de ovelhas.

        Aquele presente de Lynch valeu para Medardo que transformou—se na mão direita do prior. Depois, quando o antigo senhor de Kellinword solicitou um monge para a capela do castelo, Medardo viu a oportunidade de sua vida. O prior de Barrington era ainda muito jovem para pensar em ocupar seu posto, e junto ao suserano tinha acesso a mais comodidades. Tinha entrado como noviço por ser o oitavo filho de uma família pobre e, embora permanecesse como monge, não abraçou a religião com muito entusiasmo. Simplesmente era um modo de sobreviver.

        Sendo uma menina, Jacqueline se sentiu desapontada porque aquele homem de Deus não a notou, e depois guardava certo remorso por ele. Agora, passados os anos, confirmou sua primeira impressão. Medardo tinha abandonado o hábito tosco de lã, da cor marrom, por outro de fino tecido. A capa que o cobria era vermelha com uma tira fina no pescoço, e as mangas, de arminho branco. Muito pomposo para um humilde monge, como ele definia, que tinha jurado pobreza e humildade. Nem sequer Wulkan usava objetos semelhantes, nem se mostrava tão prepotente. E certamente não tinha aquele ar de superioridade que ostentava Medardo. Ela, entretanto, tentou ir às missas freqüentemente, assumindo que o tempo dedicado à igreja — embora fosse objeto de fofoca do resto dos escudeiros— era tempo que roubava do treinamento e das penosas tarefas de atender Wulkan e Gugger.

        Realmente, Jacqueline não tinha um senhor concreto para servir, pois tanto Montauband como o lorde já tinham Bertrán e Borgan. Para Jacky, o escorregadio Jacky, estava sempre dividido entre um e outro normando. Após uma semana, acabou se acostumando a ajudar Wulkan em seu asseio matinal e a polir as armas de Gugger. Quando tinha um momento livre, sempre estava na companhia do ruivo, com quem se dava bem. Ao menos Bertrán fazia mais suportáveis seus dias de inferno.

        Jacqueline pensou que devia faltar pouco para que seu avô chegasse a Kellinword. Calculou o tempo que tinha passado meio dobrada na cama sob a janela, escutando os roncos de Bertrán e as passadas sigilosas do cavaleiro quando retornava, de madrugada, depois de desfrutar dos favores de alguma jovem donzela. Tinham passado nove dias e, segundo Wulkan, seu avô foi convidado a comparecer diante dele. Embora Plowman o tivesse alertado dois dias depois no castelo, era lógico que seu avô aguardasse o convite do normando. Estava convencida de que apareceria a qualquer momento.

        —... à igreja — escutou Wulkan dizer.

        — Como?

        Wulkan esboçou um sorriso e ela avermelhou—se, baixando a cabeça. Embora já não se impressionasse em ver o normando nú, continuava sendo vítima da ansiedade quando a olhava fixamente. Em mais de uma ocasião, a pegou contemplando—o embevecida. Ele acabou de se secar e solicitou os calções, que foram entregues no ato.

        — Daria meu cavalo de guerra para saber o que acontece nessa cabeça —escutou—o — Estava dizendo que passa muito tempo na Igreja...

        Sentiu—se incomodada por ser observada, e quando estendeu a camisa para ele, fez com certo abandono. Sem querer, custava afastar seus olhos violeta da cicatriz que cruzava seu largo peito...

        — Ainda incomoda, se o faz se sentir melhor — comentou, mordaz.

        — Eu não gosto que as pessoas sofram — retrucou ela, afastando o olhar. Ele riu. Era a primeira vez que o via rir com vontade, e fez uma careta...

        — Sério? O que pensa então quando lhe dão um murro, chutam sua canela ou escaldam com água fervendo? — Riu mais forte.

        Jacqueline ficou vermelha de vergonha e mordeu a língua: embora aquele comentário conseguisse arrancar um sorriso.

        — Louvado seja Deus! É a primeira vez que o vejo sorrir. Respeito muito o sentimento religioso do meu povo, cada um é livre para dedicar—se aos sermões o tempo que achar conveniente, mas acredito que está descuidando de sua aprendizagem.

        — Aprendizagem! — saltou ela, lançando as meias, que Wulkan apanhou no ar. —Desde que estou aqui não aprendi outra coisa a não ser limpar seu quarto e o de Gugger, levar água como um burro, polir as armas e arrumar suas roupas. Isso... — explodiu com aspereza — e esfolar as mãos com o punho da espada de madeira. Simplesmente, milord, não consigo ver de que vai me servir.

        Wulkan suspirou com cansaço e amarrou o cinturão sobre a curta túnica vermelha. O constante mau humor do rapaz o divertia e irritava ao mesmo tempo, mas não ia se dar por vencido. Tinha prometido a Plowman que faria do moço um homem, e por todos os infernos que pensava em conseguir.

        — Acredito que tem razão — disse, dando—lhe as costas para que não visse seu prazer. — Gilbert não parece ter conseguido muitos progressos com você nestes dias, então a partir hoje, treinará comigo.

        Jacqueline engasgou. Wulkan saiu do quarto e ordenou que o seguisse.

        Jacqueline amaldiçoou durante todo o dia sua estúpida língua, e até pensou que estaria melhor sem ela. Wulkan a manteve ocupada da manhã até o anoitecer. Levou—a para caçar, ensinou o manejo da faca, como devia seguir o rastro de uma caça grande e até como devia apanhar um coelho dentro de sua toca, embora essa não fosse uma forma muito cavalheiresca de abastecer a dispensa. A fez abrir a carcaça de um javali e tirar suas tripas enquanto explicava que era o único jeito de evitar que a carne estragasse. Ela tentava reprimir a enorme vontade de vomitar... Trocou a espada de madeira por outra de aço mais curta e leve, e a fez enfrentá—lo durante mais de uma hora, ordenando cada golpe, corrigindo a cada instante, segurando—a por trás para ensinar o melhor e mais efetivo modo de empunhar a espada, quando fosse dar um golpe de surpresa.

        O pior de tudo aconteceu aquela tarde, depois de comer, quando Wulkan voltou a levá—la ao pátio de armas. Situou um fantoche de palha e tecido no canto mais afastado do mesmo e colocou entre suas mãos um arco.

        — Estou cansado! — protestou Jacqueline.

        — Eu também. Esta manhã disse que até agora não tinha aprendido nada, a não ser limpar aqui e lá. Certamente, esse não é trabalho para um saxão corajoso como você — zombou. – Cale—se e aponte. Corrigirei se fizer errado.

        É obvio que fez errado, na realidade, muito errado. E ele teve que segurá—la varias vezes pelas costas para orientar como devia segurar o arco e como disparar. Quanto mais Jacqueline tentava se concentrar para evitar o contato do amplo peito do normando mais errava o tiro.

        Por fim, Wulkan cedeu.

        — Por hoje é suficiente, menino.

        Jacqueline deixou cair os ombros. Doía—lhe até a alma e não pensava em mais nada a não ser dormir. Mas, parece que ele tinha outra idéia em mente porque, em lugar de permitir a ela se retirar, a fez sentar—se perto dele no salão de refeições para continuar ensinando—a sobre o comportamento na mesa. Que ironia! Um selvagem normando ensinando boas maneiras a uma dama saxã. Uma vez mais, teve que morder a língua para não soltar um palavrão.

        Naquela tarde tinha chegado em Kellinword um menestrel que prometia animar a noite recitando poemas de façanhas perdidas. Jacqueline, apesar do cansaço, ansiava em escutar as histórias e a suave música de seu alaúde, mas foi incapaz de resistir ao sono, e no meio da janta, depois de Wulkan ordenar que ocupasse seu lugar habitual, ficou adormecida sobre o ombro de Bertrán.

        Quando Wulkan a viu assim, totalmente esgotada e com os olhos fechados, invadiu—o um sentimento de culpa. Quis se mostrar firme com o garoto, mas ainda era muito frágil para submetê—lo ao exercício físico que o obrigou a fazer durante todo o dia, apesar de muitos meninos começarem seu treinamento como escudeiros aos sete anos. Aproveitou e se aproximou dos dois jovenzinhos. O menestrel, enquanto isso, recitava um poema que deixou todos de boca aberta. Bertrán deu um pulo ao ver o lorde pegando a moça por debaixo dos ombros e dos joelhos, levantando—a e levando—a para o andar superior. Teve medo que o normando descobrisse o segredo de Jacky e levantou—se apressado para segui—lo, com o coração apertado.

        Wulkan abriu a porta do quarto de Gugger com o pé e entrou. Bertrán se aproximou e espiou, disposto a intervir se precisasse, mas o lorde apenas deitou Jacky sobre um dos colchões e cobriu—a com uma manta. Por um instante, o coração de Bertrán parou de novo, quando ele ficou olhando a jovem. Se ocorresse a ele somente tirar o chapéu...

        Wulkan deu de ombros e aproximou—se da lareira. Atiçou o fogo, voltou a contemplar ligeiramente o garoto e saiu, fechando a porta a suas costas. Bertrán só teve tempo de se esconder.

        Wulkan estava muito longe de adivinhar a conspiração que pairava sobre ele. Não tinha deixado de se perguntar quem teria feito a armadilha em Caberdin, mas, como não existia nenhuma prova nem pista que o levasse a algum lugar, abandonou aquele assunto enquanto as preocupações da vida cotidiana ocupavam todos os minutos de seu tempo.

        Entretido com as divertidas canções do menestrel e suas picantes narrações, quase não reparou no convidado sentado a sua mesa, de barba grisalha e fisionomia severa. Tinha chegado naquela tarde e solicitado alojamento e um prato quente. É obvio, obteve os dois. Disse ser prefeito de uma pequena localidade ao norte da Inglaterra, em peregrinação à tumba de Saint Cuthbert de Durham, e ninguém duvidou de sua palavra. Apresentou a Wulkan seus respeitos quando este retornou de instruir Jacky no manejo do arco, e agradeceu sua acolhida. Wulkan perguntou por cortesia a respeito de sua viagem, ordenou que colocassem um lugar para o recém—chegado e não voltou a preocupar—se com ele. Muito menos percebeu que, depois do jantar, seu convidado se ausentou e entrou na capela. Deveria ter se preocupado em escutar a estranha proposta do viajante a Medardo de Lecoy, e a aceitação do monge ao plano que expos o hóspede. E sua saída posterior em busca de dois indivíduos com os quais falou em particular, entregando algumas moedas a cada um.

        Wulkan, incansável viajante por suas próprias terras e pelas estrangeiras, sabia bem o que era a necessidade de encontrar um lugar onde descansar da viagem e livrar—se da poeira do caminho. Admitir peregrinos era outra forma de cuidar do bem—estar das pessoas sob sua responsabilidade, e de sua própria alma.

        O bem—estar de Kellinword não era uma prioridade para todos. Ao menos, não para os dois homens que falavam aos sussurros, perto das casas dos mercadores.

        Um deles, o mais fraco, marcado por uma feia cicatriz debaixo do queixo, tamborilava nervosamente os dedos sobre o punho de sua espada.

        — Não dará resultado — disse.

        — Dará, Michel. Não poderão saber quem disparou a flecha.

        O aludido suspirou.

        Notava—se seu incômodo.

        — Suponha, só suponha, que nos apanhem. Gugger nos cortaria em pedacinhos tão pequenos que nem seria necessário enterrar nossos restos.

        — Gugger não me preocupa. — deu de ombros — Não estará a seu lado e nós retornaremos ao castelo antes que alguém saiba o que ocorreu. Culparão ao pequeno saxão.

        — É uma criança.

        — Não me diga que agora sua consciência começa a despertar. Matou muita gente.

        — Hotbob, enforcarão esse garoto acreditando que disparou no lorde.

        — Por todos os infernos! A única coisa com a qual deve se importar é a bolsa de dinheiro que receberemos ao acabar o trabalho. Pensou o que poderá fazer com todo esse ouro, estúpido? Vinho, boa comida, todas as mulheres que quiser.

        — Não sei, Hotbob. Não sei.

        — Quer seguir sempre às ordens de gente como Wulkan ou Gugger? Ou prefere Gilbert de Bayard? — alfinetou. — Olhe, vou fazer este trabalho, tanto se me acompanhar como não. Mas não esqueça uma coisa, Michel — baixou o tom ainda mais — feche sua maldita boca e não diga nada ou o próximo a morrer será você.

        — Não direi nada que vá prejudicá—lo — queixou—se o outro. — É só que...

        —Tem medo?

        — É obvio que tenho. Não confio nesse condenado monge. Quem diz que nos pagará depois? Esse porco não me inspira mais confiança que um verme.

        — Pagará, amigo. Claro que pagará. Ou o ouro ou sua sebosa barriga. Além disso, desejará que nos afastemos o quanto antes. Esperaremos alguns dias, até que enforquem o saxão, depois nos despedimos e jamais voltarão a nos ver.

        Michel respirou fundo e levantou o rosto. Por cima dos telhados, uma lua branca e fria lançava raios prateados. Sentiu um calafrio, mas acabou assentindo.

        — De acordo. Amanhã.

 

        Medardo de Lecoy fez o sinal da cruz no ar, sobre a cabeça do homem ajoelhado diante dele.

        — Que Deus proteja seus passos.

        Este, de barba grisalha, ergueu—se em pé e olhou diretamente nos olhos do monge.

        — Espero que não falhem. Seu futuro depende disso.

        Medardo assentiu com gesto seco, deu meia volta e dirigiu—se para a torre. Não fracassaria. Não sabia quem era o peregrino, mas a bolsa de moedas que lhe entregou na noite anterior era uma apresentação suficiente. E a promessa que fez. Não disse seu nome, mas deu a entender que servia um homem poderoso que tinha interesse em se desfazer do lorde. Para Medardo, aquela era a resposta as suas preces. Apesar de suas tentativas, Wulkan não parecia disposto a entregar para a igreja mais do que considerava necessário e, embora desde sua chegada tinha—o respeitado como homem de Deus, suas maiores concessões tinham sido para o priorado. Ele não se beneficiou em nada, salvo na remuneraçao eclesiástica, que acreditava insuficiente.

        O peregrino, além do dinheiro, tinha prometido a ele que seu senhor o tornaria prior do monastério de Ogier, ao norte de Gales. Medardo conhecia a zona e sabia que era rica em pastos e vinhedos.

        Medardo sorriu enquanto subia a passarela para entrar na torre. Prior de um monastério! Com poder sobre corpos e almas! Com a aprovaçao de seu senhor para castigar ou premiar seus fiéis. Não era um mau futuro para o oitavo filho de uma família humilde.

 

        Quando entrou no grande salão, Wulkan estava preparando o grupo de caça. E Gugger com ele. Não era costume do lorde afastar—se do castelo sem um contingente de guardas. A saída no dia anterior, a sós com o pequeno saxão, não era habitual. Mas Medardo tinha planejado bem as coisas, e ao amanhecer advertiu Gugger sobre um bando de foragidos ao norte. Antes de Wulkan descer ao salão, Gugger tinha ordenado que alguns soldados saíssem para uma batida. Quando o lorde sentou—se à mesa o plano do monge já estava em curso.

        Wulkan não pareceu contrariado pela ordem de Gugger; inclusive achou bom que ele tomasse certas precauções, já que o peso do comando não lhe deixava margem para atender todos os frontes. Era duro batalhar diariamente com os protestos dos mercadores, o salário dos pedreiros, as brigas entre os escudeiros, as denúncias de algumas prostitutas quando seus clientes não pagavam o combinado depois de finalizar o serviço. Multar os bêbados que organizavam brigas, castigar os aprendizes que roubavam seus professores, os lojistas que enganavam no peso. Gugger era de grande ajuda ao se ocupar de problemas como o daquela manhã. Francamente, nesse dia ficaria incomodado em não sair com Jacky para caçar. Tinha planejado ensiná—lo o modo de perseguir a caça maior, se a sorte os acompanhasse: o urso.

        Medardo viu que Gugger colocava suas luvas de couro e aproximou—se dele. Mal tinha dormido aquela noite, planejando, passo a passo, cada palavra. Depois de ter acertado o assassinato do lorde, procurou uma moça chamada Melissa, a quinta filha do ferreiro do castelo. Sabia que a jovem desejava se casar com o primogênito do professor de pedreiros e que Gugger tinha conseguido levantar suas saias mais de uma vez. Melissa não pode esperar três ou quatro anos para que seu futuro marido conseguisse um cargo que rendesse bons ganhos — naquela época era somente o ajudante de seu pai — e as atenções do loiro normando lhe proporcionavam bonitos presentes que ela apreciava.

        Medardo expôs a questão a jovem. Ou declarava que podia estar grávida do normando, ou faria com que seu pai a colocasse em um convento. Melissa suplicou, temerosa de que Montauband adotasse represálias contra ela, mas Medardo foi inflexível.

        — Sua declaração ou o convento. Escolha.

        A moça sabia que morreria se a trancassem entre quatro paredes. Era incapaz de imaginar sua vida entre os cânticos e as rezas das monjas. Além disso, apesar de suas aventuras com o cavaleiro normando, gostava de Peter. Não estava realmente apaixonada por ele, mas o apreciava o suficiente para se casar. Aceitou a proposta, e o monge, para tranqüilizá—la, prometeu que seu segredo ficaria entre eles.

        — Bom dia, pai — saudou Wulkan, enquanto Jacky colocava a capa sobre seus ombros.

        —Bom dia, milord. Bom dia, Gugger.

        — Ontem à noite perdeu bom divertimento, pai — disse o loiro. — O menestrel narrou histórias incríveis.

        — Sem dúvida, palavras do demônio.

        — Talvez fossem, mas eram muito divertidas. Pai, de vez em quando deveria diversificar. Todos sabem que vocês adoram a boa mesa e o bom vinho. Se podem desfrutar de ambas as coisas podem também escutar um menestrel, o que tem que mal nisso?

        Medardo inspirou e obrigou seu rosto a mostrar um mal—estar que não sentia, para dar mais autenticidade ao papel que se propôs representar. Levantou o braço direito e assinalou Gugger com um dedo indicador trêmulo, enquanto as palavras saíam cuspidas de sua boca.

        — Pensa que um homem de Deus pode sucumbir igual a você, que é movido somente pela luxúria?

        Wulkan prestou mais atenção.

        — Não quis...

        — Calado! — trovejou a voz de Medardo — Cale—se se não quiser que a cólera do Altissimo caia sobre você! Não se contentam com a luta? — O monge deixou escapar um suspiro fingido, como se tivesse pena dos pecados do jovem. —Têm que abusar também de uma menina?

        Os olhos claros de Gugger se transformaram em duas finas linhas. Wulkan não moveu—se.

        — Do que está falando, pai?

        — De seu procedimento. De Satanás, que apossou—se de seu corpo e governa seus atos até o ponto de violar uma menina.

        — Violar?!

        Gugger deu um passo para o monge, mas Wulkan o deteve, afastando—o. Com infinita calma, colocou uma luva de couro, depois a outra, sem deixar de olhar os olhos redondos e aquosos do monge. Quando falou, sua voz soou mais rouca e perigosa que nunca.

        — Quem é a jovem?

        — Não posso revelar seu nome porque...

        —Se tiver que castigar um de meus homens por violação — rugiu Wulkan — quero saber o nome de quem o acusa!

        Medardo recuou. Esperava que o lorde aceitasse a palavra da Igreja, mas ou estimava muito o outro ou só o via como homem. Simulou um sorriso amargo e disse:

        — A jovem não deseja que conheçam sua vergonha, milord. Mas eu exijo uma acareação entre Gugger e ela, uma compensação para a moça e uma multa que seu cavaleiro deve à capela como perdão por seu pecado.

        Wulkan apertou os dentes, quando Medardo acrescentou:

        — Pode ser que a jovem esteja gravida, senhor.

        Wulkan percebeu algo sombrio e olhou Gugger, que estava desconcertado.

        — Assim seja — disse. — Ordene sua acareação. E se este estúpido foi tão imprudente para fazer o que diz, deixo a você a incumbência de impor a multa pertinente, antes de cortar seu pescoço.

        Gugger quis protestar, mas o brilho nos olhos do lorde o fez guardar silêncio.

        — Vamos, Jacky. Pelo que vejo, hoje caçaremos sozinhos.

        Medardo viu—os abandonar o salão, e uma corrente de satisfação o alagou. Diante de Gugger, entretanto, adotou a expressão de pastor ofendido pelo abuso de uma de suas jovens ovelhas.

        — Acompanhe—me. A moça está na sacristia.

        Apenas os cavalos de Wulkan e Jacky deixaram o castelo, Michel e Hotbob ficaram em marcha. Dobraram à direita, entraram pelas ruelas dos comerciantes e chegaram ao lado oeste. Ali, tal como Medardo indicou, aguardava—os um terceiro homem, um pedreiro que reparava o muro. Tão logo os viu, levantou a escada tosca de troncos e a apoiou no andaime. Não perguntaram nada. Subiram ao andaime e imediatamente viram a corda pendurada do outro lado do muro. Sua saída e entrada na fortaleza passaria desapercebida já que se encontravam a distância da torre de vigia.

        Escalaram com habilidade, e uma vez no chão correram para os aterros. Saltar as cercas de espinheiros custou — lhes alguns arranhões, antes de correrem para o bosque. Os dois cavalos estavam onde Medardo tinha indicado. Montaram, sorriram diante da astúcia do monge e entraram no bosque, à caça de suas presas. Hotbob notou em suas costas o tamborilar do arco e começou a imaginar, apenas umas horas depois, ele como um homem rico.

        — Um dia destes, Jacky — disse Wulkan, enquanto seus olhos vigiavam cada canto do bosque e os cavalos andando — falaremos da caça com falcões. Possivelmente o ensine algum dia.

        — Certamente sei manejá—los melhor que você — retrucou ela.

        Wulkan ergueu uma das sombrancelhas. Fixou—se em Jacky, tão ereto sobre o cavalo, vestido sempre com roupas folgadas, e teve vontade de rir. Por sua forma de falar, altiva e direta, parecia de alto berço e não um simples camponês.

        — Sério?

        Jacqueline olhou—o e se arrependeu imediatamente. Wulkan a intimidava. Fazia com que sentisse um arrepio na espinha quando cravava seus olhos nela. Parecia adivinhar cada um de seus pensamentos. Emanava poder e sensualidade. Tanta que, muitas vezes, era incapaz de deixar de olhá—lo.

        — Sério — disse, sem querer dar mais explicações.

        — E pode me dizer onde aprendeu?

        — Meu avô me... — mordeu a língua.

        — Sim?

        — Meu avô me explicou tudo a respeito dos falcões.

        — Seu avô.

        — Sim.

        — Morreu?

        Ela engoliu em seco. Deus não permitisse que também seu amado avô a abandonasse naquele mundo dominado pelos selvagens normandos!

        — Morreu — mentiu.

        — Foi quando passou a viver com Plowman?

        — Eles eram seus amigos.

        — Bem. — Wulkan sorriu de repente. — Então pode ser que, quando sairmos caçar com falcões, você possa me ensinar algo.

        Jacqueline enfrentou aquele par de olhos pardos, agora escuros. Ensinar? Ensinar a ele? Duvidou que alguém pudesse ensinar algo àquele homem, arrogante como poucos. Fez uma careta depreciativa para cortar a atração que ele exercia sobre ela.

        — Pode ser.

        O lorde riu com vontade e atiçou sua montaria, deixando—a para trás. Jacky bateu nos flancos de seu cavalo para segui—lo. Durante aqueles dias, chegou a valorizar os poucos sorrisos de Wulkan, e uma gargalhada era como um prêmio.

        Cavalgaram devagar e em silêncio, vigilantes.

        Repentinamente ele se deteve e cruzou seus lábios com o dedo indicador.

        Esticou o braço. Jacqueline seguiu sua direção e fixou—se na sombra do arroio que corria manso. Os sons do bosque acompanhavam, semi—oculta, uma figura enorme, quase negra. Um urso. Ali estava. E pronto para a caça.

        Wulkan desmontou, fez gestos para que agisse no mais absoluto silêncio e soltou a capa. Ela desceu do cavalo, tomou as rédeas de ambos os animais e os prendeu em um galho baixo de uma árvore, acariciando os focinhos dos animais para acalmá—los e evitar que algum relincho alertasse a presa.

        Wulkan deitou—se no chão, cuidando para que o arco ficassse de seu lado direito. Com um gesto dele, Jacqueline o imitou e se arrastou até sua posição. Acomodaram—se atrás de um carvalho maciço, e ela ergueu o pescoço para contemplar o magnífico exemplar. Wulkan a segurou contra a terra com uma mão, enquanto com a outra tapava sua boca. Fechou os olhos um instante. A proximidade do perigo — pois espiar um urso daquele tamanho era um risco — e o aroma que vinha do corpo estendido junto a ela, aceleraram os batimentos do seu coração.

        Aquele leve aroma do cabelo dele misturou—se com o do couro da luva, o frescor da relva banhada de orvalho e a essência de um ramo de hortelã que acariciava sua bochecha. Por um instante, Jacqueline desejou permanecer assim para sempre. De repente, aquele momento desapareceu. Um esquilo atravessou a folhagem e subiu no tronco acima de uma árvore, enquanto o urso levantava sua cabeça, alerta. Wulkan apertou mais o corpo de Jacqueline ao seu lado. O contato a fez reagir e afastou—se imediatamente.

        Foi quando o viu. Rapidamente. Apenas um relance. Quis gritar quando um raio de sol refletiu—se na ponta da flecha, mas ficou muda e a única coisa que pôde fazer foi empurrar Wulkan com todas as suas forças.

        O corpo de Jacqueline ocupou o lugar onde momentos antes estava o largo peito do normando.

        Wulkan ouviu um gemido dolorido do garoto e como o urso empreendia a fuga. Amaldiçoou em voz alta, a plenos pulmões, ao mesmo tempo em que virava—se, disposto a estrangular o maldito menino.

        Também viu a flecha sobressaindo do ombro direito de Jacky, o arco que apontava para ele entre a folhagem e o rosto barbudo atrás deste. Foi uma fração de segundos que salvou sua vida. Acionou seu próprio arco armado e disparou,não acreditando que pudesse acertar o alvo. Mas conseguiu. Um grito ecoou no bosque.

        Com um salto, ficou em pé e pegou a adaga presa em seu cinturão. Um palavrão sufocado que vinha detrás e a palavra «bastardo» cuspida com ódio. Depois alguém correndo pelo bosque. Esteve tentado a perseguí—lo, mas a flecha que estava em Jacky o fez desistir. Olhou—o rapidamente. Viu que a ferida não era grave e entrou no matagal.

        Um homem vestido com roupas de couro muito gastas estava deitado no chão. O arco, ainda carregado, encontrava—se a um palmo de sua mão, já inerte. Tinha—o acertado justamente no meio da garganta. Tinha os olhos muito abertos e uma expressão de assombro em seu rosto barbudo. Teve vontade de chutar o cadáver, mas ouviu os gritos aflitos do pequeno Jacky e retornou. Ergueu—o até deixá—lo sentado, apoiado contra a casca do carvalho. Jacqueline soluçou, entre ondas de enjôo.

        —Não se mova. Tenho que tirar a flecha.

        —Não.

        —Acalme—se, a ferida não parece grave.

        —Deixe—me.

        Wulkan não ouviu seu protesto e com um rápido movimento agarrou a flecha e a tirou. Ela gritou quando a ponta rasgou sua carne pela segunda vez. A cabeça começou a rodar e a dor do ombro alcançou até a ponta de seus pés. Tentou manter os olhos abertos,mas perdeu os sentidos.

        Wulkan suspirou e segurou o corpo magro do garoto. A ferida manchava de sangue seu velho casaco, mas ele sabia que demoraria apenas alguns dias para cicatrizar. Tinha visto muitas feridas de flecha. Mesmo assim, devia cobrir o buraco para impedir que perdesse mais sangue. Deus sabia que aquele astucioso saxão não tinha precisamente carne de sobra no corpo.

        Recostou de novo Jacky contra a árvore, aproximou—se da corrente do rio, tirou seu próprio casaco e a camisa. Sentiu o golpe do ar frio na pele e voltou a colocar o casaco. Rasgou sua camisa em tiras, encharcou—a na água e retornou junto a ela.

        Tinha que parar o sangramento, assim deu um brusco puxão no casaco de Jacqueline.

        Os músculos retesaram—se diante das formas arredondadas que mostravam aquele corpo de mulher.

        Súbitamente aniquilado, esqueceu das ataduras e inclusive da ferida de Jacky e sentou—se sobre seus calcanhares. Paralisou—se, sem saber o que fazer, incapaz de reagir. Jacky respirava pausadamente e seus seios de mulher — de mulher, por todos os Santos! — atraíram o olhar negro do normando.

        — Por Deus...!

        Com um clarão, recordou os momentos em que Jacky o tinha ajudado a se banhar, como ele a segurava em seus manejos da espada ou do arco... Gemeu, sem afastar o olhar das formas jovens e femininas de quem, até esse momento, era um rapaz. Com um tapa, retirou aquele maldito gorro de sua cabeça. Uma longa e sedosa cabeleira, da qual até então só havia visto a franja, presa por um fino cordão, esparramou—se sobre seus ombros. Era de uma cor entre o dourado e avermelhado, espessa e brilhante. Wulkan afundou os dedos no cabelo da garota, devorando com seus olhos pela primeira vez, seu rosto infantil, atento a suavidade de suas bochechas, de seus longos e espessos cílios, da forma graciosa de seu nariz, da sensualidade de seus lábios. Deixou escorregar as pontas de seus dedos pelo queixo e o pescoço de Jacqueline, e só quando sentiu o contato pegajoso do sangue, despertou do feitiço.

        — Diabos! — grunhiu.

        Aplicou o pedaço de camisa molhada sobre a ferida e fez um curativo com o resto do tecido. Voltou a fechar seu casaco e recolheu o longo cabelo sob o odioso chapéu. Pegou sua capa, envolveu nela a moça e a carregou em seus braços. Foi tão diferente da ocasião em que subiu em seu colchão, quando acreditava que era um menino, que novamente se aturdiu diante daquele rosto. Caminhou até os cavalos, montou Jacky em seu garanhão e ele sentou atrás, abraçando o pequeno corpo dela para evitar que se movesse muito durante o trajeto. Assobiou ao cavalo cinzento, e o animal os seguiu de retorno ao castelo.

        A cabeça de Wulkan era um turbilhão, com um milhão de perguntas precisando de respostas. Quem era Jacky? Qual era seu verdadeiro nome? Por que se fazia passar por um rapazinho? Por que ou de quem se ocultava?

        Quando atravessaram a ponte levadiça, Wulkan já havia feito a firme promessa de decifrar tudo a respeito da moça, embora de momento não a deixaria saber que conhecia seu segredo. Se ela se disfarçava de garoto, devia existir algum motivo, e ele desejava saber antes de pôr as cartas na mesa.

        Bertrán foi o primeiro que os viu chegar, e em seguida percebeu que Jacky estava ferida. Correu para eles mancando e Wulkan descarregou o peso da jovem em seus braços.

        — Jacky acaba de me salvar a vida. Procure o médico e cuide dele como se sua existência dependesse disso. Entendeu?

        — Pode ter certeza disso, milord — respondeu Bertrán por cima do ombro, enquanto mancava para a torre.

 

        Naquele dia, Wulkan fiscalizou todos os trabalhos que se efetuavam no castelo, o que não era habitual na conduta do senhor da fortaleza. Parecia que queria se esgotar, esquecer algo que o atormentava. Passeou de cima abaixo, com o cenho franzido, em um gesto muito similar ao início de uma batalha. Gugger percebeu imediatamente que algo não estava bem, mas foi somente bem mais tarde que informou—se do acontecido no bosque. Wulkan, como se tivesse esquecido algo sem importância, disse—lhe, de sopetão:

        — Envie uma patrulha de vários homens ao bosque. Que procurem junto ao arroio, perto da folhagem de bétulas. E que tragam o cadáver que encontrarem.

        — Cadáver?

        — Cadáver, sim! Acaso está surdo? — Gritou.

        Montauband olhou—o aborrecido. Sabia que era impossível conversar com Wulkan quando ficava lambendo suas próprias feridas, e não havia dúvidas de que aquele era um desses dias.

        Bertrán apareceu nesse instante e Wulkan foi até ele com certa expressão de ansiedade.

        — Como está?

        — A ferida não é grave, milord.

        — Graças a Deus — suspirou. — Nada me causaria mais tristeza do que se acontecesse algo a ele, depois de ter salvado minha vida.

        — Posso saber que diabos ocorreu e de quem está falando, estúpido saxão?

        — De Jacky, senhor. —O menino olhou—o desconcertado. – Foi atingido por uma flecha dirigida ao lorde e...

        — Mas que diabos...! — Empalideceu e voltou—se para Wulkan como um furacão. —Tentaram matá—lo no bosque?

        —Tentaram, sim.

        — Por São Judas! E fica aí, calado? Bertrán, chame Bayard, que reúna aos homens e...

        — Não é necessário — resolveu Wulkan — Matei um deles e o outro escapou.

        — Daremos uma batida.

        — Disse que escapou, condenado! — voltou a gritar o lorde — De nada vai servir uma batida infrutífera. Preciso de vocês para outras coisas. Por exemplo, encontraram os bandidos na saída desta manhã?

        — Nem rastro deles.

        — Bem. Por certo — sentou e estirou suas longas pernas — acabo de receber uma mensagem de nosso vizinho. Lynch estará aqui em alguns dias. — Mostrou o pergaminho sobre a mesa.

        — Quem eram esses homens? — insistiu Gugger.

        — Não sei. O que matei me pareceu vagamente familiar. O outro nem pude ver.

        — Então, como está certo de que eram dois?

Wulkan levantou—se com tanto ímpeto que derrubou a cadeira e se aproximou perigosamente de seu amigo. Seus olhos ficaram com uma tonalidade ainda mais clara. Com o nariz grudado ao do loiro, disse:

        — Escutei. E escutei seu cavalo quando escapou. Lembre—se que está falando comigo, Gugger, e não com um mentecapto que não distingue os cascos de um cavalo dos grasnidos de um corvo.

        — De acordo! Me encarregarei de tudo. — Pela extremidade do olho, viu Bertrán se afastar, silenciosamente, como se estivesse fugindo da confrontação, mancando. —E o que aconteceu com Jacky?

        — Já ouviu. Não é grave. Alguns dias com o braço direito imobilizado.

        — Que sorte a minha! — rugiu Gugger — Vejo que terei que me agüentar sem escudeiros!

 

        Clara de Eveling era uma moça de estatura mediana, cintura estreita, quadris largos e seios chamativos. Toda curvas, como costumava dizer Aelis. Sua longa e cacheada cabeleira avermelhada ondulava ao vento, apenas coberta pelo véu, cavalgando um passo atrás de Enric de Lynch. De soslaio, não lhe passaram desapercebidos os olhares dos homens da escolta, e isso a satisfez. Sabia que era bonita. Tinha se deleitado nos braços de alguns amantes, e cada um deles lhe disse o quanto era bela e desejável.

        Órfã com pouca idade, foi apadrinhada pelo senhor e a senhora de Lynch. Tinham dado a ela a mesma educação que às suas duas filhas. Entretanto, não guardava boas lembranças e jamais chegou a amá—los. A cada passo, tudo recordava a ela aquele desgraçado capítulo de sua vida. Cada vez que recebia uma carícia, parecia que era como conseqüência de sua orfandade, nunca fruto do carinho. Sempre se sentiu uma intrusa. Amargurava—a que não tivessem sido seus verdadeiros pais. Sabia que era bonita, mas não tinha o sangue dos Lynch. Era mais inteligente, mais desejável que as duas irmãs juntas, mas por suas veias não corria o mesmo sangue. Era mais decidida, mais corajosa, mas não era um deles!

        Durante anos, aquela amargura tinha forjando um caráter irritável. Desde pequena quis demonstrar a seus pais adotivos, e depois ao próprio Enric, que era capaz de montar melhor que ninguém, dançar como nenhuma outra e romper os corações dos homens como e quando quisesse. Agora, às suas costas, suas constantes fantasias eram motivo de cochichos e meios sorrisos, e se contavam piadas sobre suas coxas abertas ao homem do momento. Clara não sabia... ou não desejava saber.

        Quando Enric decidiu que partiriam para Kellinword para visitar o homem que se encarregou do enorme feudo que pertencia a um distinto saxão, Clara desejou com todas suas forças compartilhar a experiência. E quando o próprio Enric insistiu que ela preparasse alguma bagagem, saltou de alegria. Tinha ouvido rumores sobre o novo lorde de Kellinword. Certamente, nem todos lisonjeiros. Entretanto, as pessoas concordavam com sua boa estatura e físico, embora também se comentasse sobre seu caráter irascível, indomável e até cruel. Acaso não era um invasor normando? Aquilo não preocupava Clara, e estava desejando visitar o enorme castelo. Nunca teve oportunidade de ver a fortaleza da qual tanto se falava, e se gabou, diante de quem quisesse escutá—la, de que ela, e somente ela, tinha sido escolhida para acompanhar o velho Enric.

        Clara era melindrosa e insensível com as criadas a seu serviço, e tornava insuportáveis seus dias. Tinha costumes relaxados, para não utilizar os termos com os quais a maioria dos criados costumava usar. Mas, sabia que a Inglaterra já não era governada por seus anteriores amos. Ricardo era um rei admirado, e todos deviam inclinar—se diante dele. Os normandos levaram a melhor parte desde que ele alcançou o trono. Estavam muito cima da hierarquia social estabelecida. Se fosse dividida a hierarquia em degraus, os saxões ocupariam o vigésimo primeiro lugar, somente antes dos homens e mulheres em uma larga lista, fechada por judeus e muçulmanos. Até um simples sacerdote valia mais que um suserano saxão.

        A perspectiva imediata de rostos novos e, sobretudo, de novos cavaleiros, fazia com que fervesse o sangue de Clara, de modo que acompanhou Enric resolvida a não voltar de mãos vazias da viagem, e alegrando—se de não ter que rivalizar com Jacqueline. Para Clara não importavam as causas do desaparecimento de sua meio—irmã. Só o fato que partiu e deixou o caminho livre, porque, embora ela considerasse Jacqueline uma estúpida que gostava mais de acompanhar o ancião nas falcoarias que paquerar com os jovens, sabia que ela era o centro das atenções de quase todos os olhares masculinos.

        Enric admirou uma vez mais as linhas do castelo que já visitara anos antes. Clara deixou escapar um gritinho de felicidade diante das almeias muito altas e da grandiosidade da fortificação. Adiantou sua montaria até situá—la ao lado do ancião.

        — Avô, quantos dias permaneceremos em Kellinword?

        — O mínimo possível, menina. Viemos apenas apresentar nossos respeitos ao normando; devemos a ele vassalagem e uma desculpa.

        — Desculpa? Acaso o ofendemos?

        — Não. Mas o lorde espera ver outras pessoas, além de nós, e vamos enganá—lo.

        — A quem espera ver?

        — Jacqueline.

        Clara sentiu o ferrão da inveja. A cólera invadiu—a como uma febre, mas se impôs com fingida indiferença.

        — Não se preocupe. Tentarei fazer com que o lorde não se sinta decepcionado.

        Enric olhou de esguelha a jovem e rezou para que fosse assim. Com sorte, poderiam fazer um bom casal.

        Wulkan viu da torre de vigia a comitiva aproximar—se, e seus músculos esticaram como cordas. Não gostava do mundo da política. Era um homem de ação, de campos de batalha, de longas peregrinações a terras estrangeiras, de comer o que caçava, de dormir ali onde era alto e de enfrentar homem a homem, medindo sempre a força de sua espada. Não foi feito para ter que lidar com vassalos, mais ou menos poderosos, que agora deviam jurar obediência em troca de outras concessões, como proteção em caso de perseguição do inimigo, assistência jurídica, auxílio em seu julgamento ou a concessão de alguma terra.

        Por sorte, os dois homens que tinha chamado não estavam mortos de fome nem pediriam terras para subsistirem com suas famílias.

        Seus olhos, perfeitamente adaptados às distâncias, repararam na dama que acompanhava o cavaleiro de cabelos grisalhos e barba espessa. Pareceu—lhe jovem.

        — Pelas cores de seus estandartes — disse Gugger a suas costas — parece de Lynch.

        Wulkan assentiu para si mesmo, sem responder diretamente seu amigo. Engasgava—se com a idéia de ter que se casar, caso a moça que se aproximava representasse o mandato de Ricardo. Amaldiçoou o rei e amigo em seu íntimo. A única coisa que faltava era uma mulher para se ocupar! As mulheres só davam dores de cabeça!

        Mas também recordou os sucessos daquela manhã e dirigiu—se cordialmente a Gugger, que esperava que dissesse algo, como se adivinhasse seus negros pensamentos.

        — E a donzela que supostamente abusou, malandro?

        — Há uma jovem, certo – sorriu — mas certamente, não donzela.

        — Então?

        — Uma das filhas do ferreiro.

        — Essa moça que...?

        — Essa mesma.

        — Jesus! — Wulkan relaxou. — Mas o persegue como uma cadela no cio!

        — Normal. Elas gostam.

        —Vá para o inferno! Então, como foi a acareação? Está grávida? Ficou satisfeito o maldito monge?

        — Parece que ficou. O preço foi uma bolsa de moedas para a garota, e outra, mais avultada, para a capela.

        — Acredito que o extorquiram, meu amigo.

        — É o que receio. O pior é que nestes dias tenho a bolsa vazia. Não poderia me adiantar um empréstimo?

        — Não.

        — Sirvo—o bem, não é?

        — E o pago melhor. Não, Gugger. Abandone seus múltiplos vícios e se ressarcirá logo da facada de Medardo.

        O outro estalou a língua.

        — Isso é fácil para alguém como você. Mal tem gastos porque mal tem vícios.

        — E você, muitos.

        — Procurar companhia feminina é ter muitos vícios?

        — Se a cada serva der um presente, sim. Com quantas mulheres esteve desde que chegamos a Kellinword? Quatro? Cinco?

        — Quatorze.

        — Por Deus, homem! — alarmou—se. — É um pervertido!

        — E você... quantas conquistas tem feito?

        — Tenho outras coisas para pensar. Bom, basta de conversa e vamos descer. Enric de Lynch está cruzando a ponte. Espero que Gofredo de Nortich não demore muito. Quanto antes acabarmos, melhor.

        Gugger seguiu seu amigo escada abaixo.

        — Eu não gosto de nada do que ouvi sobre esse saxão.

        — O que ouviu?

        — Que tem como esposa uma rameira e um filho com atraso mental.

        Wulkan parou subitamente e Gugger bateu em suas costas.

        — Espero que se comporte diante de meus convidados.

        — Só informo o que ouço.

        — E eu quero informar, de minha parte, que minha missão neste feudo, bem ou mau, é preservar a paz nas terras de Ricardo. E não vamos brigar com Nortich por culpa de sua rameira. Entendeu?

        — Wulkan, esta manhã, está impossível. Não seria mal praticar sexo de vez em quando para aplacar seus nervos. Asseguro que acalmaria seu mau gênio.

        Wulkan não disse nada e cobriu a descida das escadas de dois em dois degraus. A risada zombadora de seu amigo o seguiu até o pátio de armas.

        Por sorte, Gofredo de Nortich não demorou.

        Chegou a Kellinword apenas duas horas depois de Enric de Lynch. Acompanhavam—no doze homens armados até os dentes, e ele mesmo brilhava com uma armadura que devia ter custado os tributos de seus vassalos durante um ano inteiro. Essa, certamente, não era a maneira de impressionar Wulkan, mas ele não sabia.

        Por sua vez, a esposa, Viola, insistiu em que a acompanhassem quatro criadas, dois pajens e uma cozinheira. Para evitar que a presença desta última pudesse ser interpretada como um desprezo a comida de Kellinword, explicou que, como comemoração ao lorde, a mulher prepararia deliciosos pratos saxões para seu deleite.

        — Meus cozinheiros são saxões, senhora — foi tudo que Wulkan disse.

        Viola de Nortich era certamente bonita, embora não tão jovem. Wulkan calculou que tivesse uns trinta anos, e Gugger, muito mais atento ao belo sexo, vinte e seis ou vinte e sete. Na realidade, ninguém sabia com certeza sua idade, mas não havia dúvida de que era muito desejável.

        Quase no ato, Viola e Clara declararam guerra.

        A protegida de Enric, embelezada com seus melhores ornamentos — singela e natural, embora com ares muito educados — comportou—se em todo momento. Viola, entretanto, parecia decidida a reorganizar o castelo de cima a baixo, e sua vestimenta, parecia mais apropriada para a corte que para uma visita social entre vizinhos.

        Na hora do jantar, Wulkan estava mais que farto da esposa de Gofredo, cujo descaramento mostrava-se em contínuos olhares.

        Instalaram—se cavaletes e pranchas para acomodar a enorme mesa em forma de «U» invertido. Wulkan situou-se no centro da mesa, com Gugger de um lado e Gilbert do outro, acompanhado de seus demais cavaleiros e Medardo de Lecoy, como representante de Deus. Gofredo de Nortich, sua esposa e seu filho ficavam à direita de Wulkan, e Enric de Lynch e sua neta, à esquerda. Politicamente, talvez devesse ter colocado ambos os saxões o escoltando, mas nessa noite preferiu manter distância. Não estava com humor para conversas e, sobretudo, desejava ter Viola o mais longe possível dele. Já tratariam sobre os assuntos dos feudos.

        Arrancou um pedaço de carne de veado e o levou a boca. Seu olhar pardo cruzou com o de Duby de Nortich, o herdeiro de Gofredo. O jovem não era exatamente atrasado mental, como disse Gugger, embora parecesse totalmente dependente de seu pai. De rosto ladino e um olhar desafiante, desagradou—o profundamente. Não era filho de Viola, mas sim da primeira esposa de Gofredo, e tão moreno e magro como seu pai.

        Wulkan pegou sua taça e bebeu sem deixar de observar os dois homens que, no dia seguinte, jurariam vassalagem a Kellinword. Gofredo comia como um verdadeiro porco: a gordura escorria pelas mãos e a barba. Lynch assentia diante do sabor do veado. Veio a sua mente o comentário de Jacky quando informou-lhe de seu prato favorito.

        — Senhor de Lynch — impôs sua voz acima do rumor das conversas dos convidados e da agitação de criados indo e vindo com bandejas de comida, cerveja e vinho. — Diga-me. Ouviu falar de um tal Jacky?

        Enric meio que engasgou mas se conteve, e virou seu avolumado rosto para o normando.

        — Jacky, milord?

        — Um rapaz que serve em sua casa e que vivia com John Plowman e sua esposa.

        O mundo afundou-se sob os pés do ancião. A troco de que semelhante pergunta? O silêncio que se fez na sala pesou como uma laje sobre suas curvadas costas. Levou a mão ao queixo, como se tentasse lembrar.

        — Pode ser que o conheça, certamente, embora minha memória debilitou-se com os anos.

        — E você, lady Clara, lembra-se do moço?

        A jovem ruborizou ligeiramente quando Wulkan dirigiu-se a ela e os outros a olharam, em expectativa. No fundo, todo mundo se perguntava pela importância de um servente.

        — Não, milord. Não recordo de nenhum Jacky.

        — Entretanto, ele parece recordá—los, senhora — insistiu ele. — Disse, inclusive, que é mais bela que a neta de seu protetor.

        Enric voltou a se engasgar e esvaziou o conteúdo de sua taça com um gole. Sua neta tinha se adiantado, amaciando o caminho, para despertar o interesse de Wulkan por Clara. Esta continuava ruborizada, mas visivelmente satisfeita.

        — Agradeço que fale de mim desse modo, milord. Talvez simpatizasse com o rapaz. Procuro tratar da melhor maneira possível os serventes. Afinal de contas, devemos ser caridosos com os menos favorecidos.

        O comentário fez Gugger abrir a boca. Wulkan, com dissimulação, deu—lhe um chute por debaixo da mesa e voltou a se calar. O lorde decidiu que ia deixar o assunto. Teria tempo para esclarecer tudo quanto se referia ao maldito Jacky.

        — Só desejava informá—los que está no castelo. E vou convertê—lo em escudeiro. Agora — dirigiu—se a todos — imagino que vocês gostariam de desfrutar da música. Por sorte, temos em Kellinword um menestrel de passagem.

        Com um movimento de sua mão, este entrou no salão, sendo recebido pelos aplausos das mulheres e os vivas dos cavaleiros. Acomodou—se no centro do «U» invertido, pegou seu alaúde, sorriu a todos e começou a tocar. Debulhando notas do instrumento, sua voz alta e clara começou a brindar os presentes com versos picantes.

        Com a atenção de todos no recém—chegado, Gugger cutucou seu amigo com o cotovelo.

        — Pode—se saber que demônios acontece com Jacky? Qualquer um diria que esse garoto o deixou obcecado.

        Wulkan deu outra dentada na carne. Estava deliciosa.

        — Não sabe até que ponto, Gugger — disse em tom misterioso. — Nem pode imaginar.

 

        Jacqueline tentou levantar-se. Em seu ombro sentiu um impacto, como se estivesse pegando fogo. Mordeu os lábios para não gritar e voltou a cair sobre o colchão.

        Bertrán estava apoiado no batente da janela, atento a seus movimentos. Agradeceu em silêncio sua insônia e suspirou. Ficaria encantada em se ver livre daqueles odiosos trapos de garoto, envolta em sua sedosa camisola e agasalhada em uma cama macia e confortável. Afinal de contas estava ferida, pensou em um momento de compaixão por si mesma. O que mais desejava era perder de vista o maldito gorro que fazia de seus dias um suplício. Coçava—lhe a cabeça, confeccionado em um tecido áspero de cor cinza, e não suportava que sua longa cabeleira se assemelhasse a um ninho. Começou a tirar mas se conteve a tempo.

        — Bertrán, não pareço ridícula deitada com um gorro?

        —Deveria levantar-se. Do contrário, talvez se perguntem se é uma obsessão ou está escondendo algo. Efetivamente, parece ridícula.

        — Sinto—me fraca.

        — Isso é sua culpa, pequena — disse o jovem escudeiro — Quem diabos mandou se colocar no trajeto da flecha?

        — Iam matá—lo pelas costas!

        — Sim, suponho que é o que pretendiam.

        — É estranho que se importe tão pouco com quem lhe proporciona proteção e alimento — argumentou Jacqueline — Você mesmo disse que sempre o trataram bem.

        Bertrán assentiu com a cabeça e abandonou a janela para aproximar—se dela. De joelhos, tomou uma das mãos de Jacky entre as suas.

        — Sirvo Wulkan e o respeito, não interprete mal minhas palavras — disse. — Mas acredito que ele sabe se defender sem sua ajuda. Exceto nesta ocasião, claro. Mas... está tão pálida... perdeu um pouco de sangue, assim descanse. Por outro lado, não consigo entender como o lorde não descobriu seu segredo.

        — O que quer dizer?

        — Porque foi o próprio Wulkan quem cobriu sua ferida com sua camisa e a enfaixou.

        — Meu Deus...

        — Não se alarme. Seu segredo parece continuar a salvo. Só eu o conheço. Sem dúvida, é uma moça com sorte, mas essa sorte pode acabar a qualquer momento, Jacky. Como é possível que não percebesse nada? A não ser que estivesse muito preocupado por você e limitou-se a colocar o pedaço de tecido entre o casaco e a ferida antes de carregá—la até o castelo.

        Jacqueline levantou-se. Teve que tomar ar pela pontada de dor, mas conseguiu sentar—se no colchão.

        — Não se mova muito. O médico aplicou algo para evitar a infecção, mas não faz milagres.

        — Bertrán, tenho que ir. Tenho que sair de Kellinword o quanto antes e precisa me ajudar.

        — Nem sonhe.

        — Não posso ficar aqui!

        — Por que não? Pense um pouco, Jacky. Está fugindo de alguém, certo?

        Ela assentiu.

        — Que melhor proteção que a do próprio lorde para escapar de seus inimigos? Só se mostre como é, e ele a protegerá.

        — E acabar em sua cama! — Uivou ela. Sem aceitar a ajuda de seu colega, levantou—se e chutou o colchão. Até a dor do ombro diminuiu sob o acesso de ira. —Que fácil é para você! — Em seus olhos violeta a indignação faiscava — Maldição, pensei que fosse meu amigo!

        — E sou, cabeça oca. Sou. Por isso aconselho que...

        — Não! — negou. — Prefiro fugir de Kellinword! Demônios, como explicar a Bertrán que era de Wulkan que fugia?

        — Peça uma posição nas cozinhas. Sabe cozinhar?

        — Sim, sei cozinhar um pouco, mas sinceramente acha que me daria?

        Bertrán a observou. De repente, esticou a mão e arrancou seu gorro. Seu cabelo se desfez sobre seus pequenos ombros como uma cascata de fogo e a expressão do rapaz respondeu a jovem, antes de dizer com admiração:

        — Seria um idiota.

        — Agradeço o elogio, mas esse é precisamente o maior motivo para partir. —Voltou a colocar o chapéu com a ajuda do jovem e começou a dar voltas pelo aposento. —Disse que já chegaram os convidados de Wulkan. O senhor de Lynch e de Nortich.

        — Estão embaixo.

        — Bem. — Pensava depressa; o tempo era essencial. — Só preciso me esconder em algum lugar seguro. Se perguntarem, diga que estava assustado pela tentativa de assassinato. Diga o que quiser, Bertrán! Mas tenho que desaparecer até que Enric de Lynch saia de Kellinword. Esconder-me entre os homens de sua escolta não será difícil.

        — Está louca! Em primeiro lugar, Wulkan pode colocar o castelo de pernas para o ar se você desaparecer. Além disso, quem diz que Lynch aceitará proteger uma menina como você?

        — E por que diabos Wulkan iria pôr o castelo de pernas para o ar? Não sou mais que um saxão que lhe deu muitas dores de cabeça.

        — Deu sua palavra ao camponês que ia cuidar e alimentar você. Wulkan sempre cumpre sua palavra, Jacky. Digo que removeria céus e terras para encontrá-la, e então seria pior.

        — O senhor de Lynch me ajudará. Lembra que fui um de seus serventes.

        — Não diga tolices. O senhor de Lynch jamais enfrentará o lorde por um criado. Veio render-lhe vassalagem, não esqueça. Tratar de acordos entre seu feudo e o do normando.

        —Digo que ele me protegerá —insistiu ela, persistente.

        — De acordo! — explodiu o ruivo. — Desça agora ao grande salão e peça abertamente a proteção do saxão.

        Jacqueline recuou até a porta, mas logo ficou petrificada. Estava realmente louca? Pensou melhor, avançou até a cama de armar e deixou-se cair nela. Com o olhar perdido no teto, respondeu a Bertrán:

        — Melhor não.

        — A verdade é que torna tudo muito difícil, princesa. Não pode sair de Kellinword, não quer se mostrar como mulher e tampouco vai continuar sendo um garoto durante mais tempo.

        — Sei — resmungou ela.

        — Então, o que vai fazer?

        — Como demônios vou saber? — explodiu ela.

        Nesse momento, a porta do quarto abriu-se de repente e ambos se sobressaltaram. Jacky esqueceu das dores. Levantou—se como impulsionada por uma mola.

        Wulkan deu uma olhada e dirigiu-se a ela.

        — Como está? —perguntou.

        — Já estou melhor, senhor.

        — Dói?

        — Um pouco — mentiu.

        — Bom. Jantou?

        — Sim, senhor — respondeu Bertrán.

        — Estupendo. — Fez silêncio um momento, como se procurasse as palavras. Bertrán remexeu-se, inquieto. Era sua imaginação ou o normando parecia incômodo? — Encontra—se com forças para descer ao salão? Parece que o menestrel está inspirado esta noite. De passagem, poderá saudar seu antigo senhor, Enric de Lynch, embora nem ele nem sua protegida parecem lembrar de você.

        — Era muito pequeno quando servi em sua casa, milord — respondeu ela com os olhos brilhantes de esperança. Se conseguisse falar com seu avô a sós, mesmo por um minuto... — Eu gostaria de descer, sim. Obrigado.

        — Vamos então. Tomará um pouco de vinho e ficará melhor. Dizem que o vinho regenera o sangue e você o perdeu esta manhã. — Tem febre? — Esticou a mão para sua testa, mas ela deu um passo para trás.

        — Febre? Não.

        — Estou vendo. — Wulkan baixou sua mão, frustrado, porque um estranho sentimento o impulsionava a tocá—la.

        Bertrán foi o primeiro a sair, seguido por Jacqueline e Wulkan. Na metade da escada ela sentiu uma vertigem e apoiou-se na parede. Quase no ato, os braços de Wulkan a seguraram pela cintura. A sensação foi tão eletrizante que Jacqueline estremeceu. Como cheirava bem! Endemoniadamente bem. A relva, vinho, especiarias. Seu fôlego esquentou seu pescoço e uma agulha ardente percorreu suas costas, debilitando seus joelhos, de repente. Permaneceram assim um segundo ou uma hora, Jacky não soube dizer. Uma sensação de prazer correu de sua nuca aos dedos dos pés quando Wulkan sussurrava perto de sua orelha.

        — Ainda não agradeci por me salvar a vida... outra vez, Jacky.

        Deus, até o diminutivo de seu nome soava como cantos celestiais quando ele o pronunciava! O que acontecia? Tentava odiar aquele homem, mas sua presença, sua fortaleza, o poder que dele emanava lhe davam um halo de sensualidade que anulava sua vontade cada vez que se aproximava.

        Por sorte afastou-se, soltou o ar e continuou descendo, já sem ajuda...

        Do salão, alguns tinham visto a cena. Enric, com rosto preocupado, Duby de Nortich, com simpatia pelo senhor do castelo — vendo naquele gesto a mesma afeição oculta por Gugger, que já tinha estranhado a repentina ausência de seu amigo, e avaliava demasiadamente o que acabava de ver. Se ele conhecia um pouco Wulkan, aquilo poderia ser interpretado de maneira especial.

        Jacqueline e Bertrán ocuparam o lugar mais afastado do centro do salão, e Wulkan retornou a seu lugar. A jovem e o escudeiro aceitaram, com gosto, jarras de cerveja que passavam, e ela situou a sua imediatamente em frente ao rosto para se ocultar do intenso olhar do lorde. Então, procurou os olhos de seu avô e ninguém percebeu a corrente de carinho que surgiu entre eles.

 

        Acabavam de tocar o sino quando Jacqueline levantou com muito cuidado para não despertar Bertrán, que dormia a seu lado. O fogo da lareira seguia ardendo e os grossos troncos, com que os serventes o alimentaram antes de se retirassem para descansar, pareciam afugentar a noite. O ambiente estava quente, ajudado em grande parte pelo trançado em forma de esteira estendido no chão de madeira e as tochas sobre suportes de ferro. Não queria sair dali, mas tinha algo para fazer e era o momento adequado, agora que o castelo dormia.

        Seu amigo roncava como um anjo. Era o resultado de várias jarras de cerveja que tinha ingerido. No salão, sobre o chão, envoltos em suas próprias capas ou em mantas de lã, igualmente embriagados, dormiam cavaleiros e escudeiros em um único e homogêneo corpo, ou enfraquecidos nos lugares mais inusitados.

        Agarrou a manta que cobria um dos homens de armas de Gofredo de Nortich. O sujeito ronronou, talvez pela perda de calor, encolheu—se ainda mais sobre ele mesmo e roncou mais forte. Jacqueline envolveu-se na áspera lã e caminhou devagar, evitando pisar em alguém e saltando o melhor que pôde pernas, braços e cabeças.

        Seu avô, Clara, Gofredo e sua família, tinham subido com os maitines ao piso superior, onde lhes tinham preparados os quartos. O resto descansava sob o calor do cômodo principal da torre, saciados de comida e de bebida. Mais de um lamentaria na manhã seguinte. Sobretudo Bertrán. Não estranhou que o ruivo decidisse embebedar—se depois que o enganou para que falasse com seu avô. Certamente queria esquecer o quanto antes a entrevista que havia conseguido com o ancião em seu nome. Para assombro de Bertrán ele aceitou imediatamente ir com a moça nas almeias.

        Enric, por sua vez, agasalhou—se em sua capa e colocou o capuz sobre seus grisalhos cabelos antes de sair de seus aposentos. Espiou a galeria e fechou a porta com cuidado, encaminhou-se a esquerda para as escadas que subiam às almenas. Quando empurrou a portinha que dava ao exterior, amaldiçoou o ar da noite, frio e seco. O céu estava claro, limpo, sinal inequívoco de que aquela noite seria muito fria. Olhou as estrelas que formavam uma esteira no negro firmamento. Apoiou—se no muro e aguardou. Sua neta não demoraria para chegar. A questão era encontrar o melhor modo de sair daquela maluquice.

        Por pura casualidade, Wulkan viu o ancião Enric subindo as escadas. Estava custando a dormir e tinha saído para a galeria, fugindo do calor de sua antecâmara e os sufocos do jantar. O andar lento do velho cavaleiro lhe delataram, apesar da capa que o cobria. Wulkan, sem pensar em cubrir—se um pouco, e tal como estava, decidiu seguir seus passos. Sentiu a culpa perseguindo—o em plena noite. O mais provável era que Enric tampouco pudesse dormir e tivesse decidido dar um passeio para tentar conciliar o sono. Esteve tentado a dar meia volta e retornar a seus aposentos. Fazia um frio de mil diabos e não estava agasalhado.

        Nesse momento de dúvida, acreditou ouvir passos rápidos que vinham do salão e apertou-se contra o muro, como um proscrito perseguido pela Lei. Wulkan reteve a respiração, com o frio da pedra em suas costas. O intruso, com uma manta sobre seus ombros, passou tão perto dele que pôde cheirar um ligeiro perfume de hortelã. Afogou uma exclamação. Já sabia quem era o rei da insônia. E já eram muitos para aquela noite. Além disso, teria reconhecido aquele maldito gorro entre um milhão.

        Seguiu com o olhar os ágeis passos de Jacky subindo a escada. Escutou o chiado da porta da almeia ao abrir e fechar. Já não restava dúvida de que aqueles dois tramavam algo. Teria Lynch metido um espião em seu castelo? E nada menos que Jacky? Maldito, não entendia nada aquela noite!

        Enric reconheceu imediatamente sua neta. Em um mudo abraço, disseram tudo. Ergueu o queixo da moça e viu suas lágrimas.

        — Pequena... — voltou a abraçá—la com força.

        — Estou bem, avô. — limpou as lágrimas com um tapa e, tomando sua mão calejada, ampararam—se nas sombras.

        — Vamos — o vigia caminhava de um lado para outro da torre, monótonamente, aborrecido e tremendo de frio. Abaixo, junto à ponte levadiça, na ponte e no caminho de ronda, outros homens a serviço de Wulkan montavam sua guarda.

        — Como está? E Aelis?

        Enric tomou seu rosto e deixou que a lua iluminasse suas faces.

        —Está abatida.

        —Perdi um pouco de sangue. — Tapou—lhe a boca para afogar o protesto. — Não é nada. Uma pequena ferida de flecha.

        — Mas o que...? — Viu—se forçada a tapar sua boca de novo.

        —Por favor, baixe a voz. Quer que nos descubram? Não é nada, apenas um arranhão.

        Enric golpeou o muro com seu punho para acalmar sua frustração e perguntou, preocupado:

        — O que houve?

        — Saímos para caçar e tentaram assassinar Wulkan no bosque. Não sei por que me interpus.

        Como se tivesse enlouquecido, agarrou—a pelos braços e a obrigou a olhá-lo de frente.

        — Não reconheço a minha própria neta. Jacqueline, quando saiu de Lynch odiava os normandos.

        —Sigo odiando-os, avô, mas... — titubeou. — Bom, não podia deixar que o matassem pelas costas! Foi um ato reflexo.

        Enric a abraçou. Ela tremia e acariciou-lhe as costas como um gesto protetor.

        — O que vamos fazer? — falou mais consigo mesma. — Como vou sair daqui?

        Jacqueline recordou as palavras de Bertrán e o amaldiçoou porque estava certo.

        — Amanhã mesmo esclarecerei tudo isto. Não quero que minha neta continue vivendo entre homens, como se fosse um mendigo.

        — E estragar o nosso plano?

        — Que seja, contanto que saia daqui.

        — Não, avô. Se confessar a Wulkan quem sou, exigirá esse matrimônio. Além disso, acreditará que o traímos.

        — Acaso não é o que estamos fazendo, tesouro?

        — Não importa, não desejo que saiba. Tem que me dar mais tempo.

        — Para que? Para que a matem?

        —Tempo para que o normando perceba que Clara seria tão boa como qualquer outra saxã. Isso a princípio me pareceu injusto, mas acredito que poderia dar resultado e favoreceria a ambos. Vi como Clara não tirava os olhos de Wulkan. Atrai—lhe.

        — Percebi. E quem não? Esse condenado agradaria a qualquer mulher, dos doze aos oitenta anos. De qualquer forma, perguntou por você.

        — Por mim?

        — Por minha neta, sim. Apenas apresentei meus respeitos. Disse—lhe o que combinamos, que tinha saído de Lynch antes de receber a missiva de Ricardo.

        — Então seguiremos com nosso plano. Prolongue a estadia em Kellinword o suficiente para que Wulkan encante-se com Clara. Pode ser que, inclusive façamos felizes aos dois — ironizou. Mas imediatamente, o comentário pareceu muito odioso. Desprezou esse mal—estar no segundo seguinte. – Pensei em escapar do castelo quando partisse, mas Bertrán me abriu os olhos. Não posso fazê—lo, no momento.

        — Quem é esse Bertrán?

        — O escudeiro de Gugger de Montauband. O único que sabe que sou uma moça.

        — Pode delatá-la?

        — Não. Não fará. É saxão, e embora seja fiel a seu senhor, esteve me ajudando desde o primeiro dia. Disse que Wulkan removeria céus e terras se escapasse de Kellinword. Já que prometeu a John que me transformaria em escudeiro. Desgraçadamente, é um homem de palavra.

        — Então, jamais poderá sair daqui — desesperou-se ele. — Por Cristo, menina, colocamo—nos em uma ratoeira!

        — Se Wulkan aceitar que a mulher com que deve casar—se está longe e decidir ficar com Clara, teremos ganhado. Conseguido o propósito de assinar uma aliança com Lynch, poderia me reclamar a seu serviço, embora possivelmente você também tenha que jurar tornar-me um bom escudeiro.

        — Escudeiro! — resmungou Enric — Nem remotamente poderia passar por um escudeiro.

        — Não acho — sorriu ela, com malícia. – Assombraria—se com o que aprendi. Já posso quase manejar uma espada curta e consigo acertar no alvo com um arco... Ainda não no centro, claro.

        Enric a olhou realmente assombrado.

— Jacqueline, parece que isto a diverte. Ela pigarreou e ficou séria.

        — Não diga tolices, avô! Terei que fazer o que devo, nada mais. Agora devemos retornar; alguém poderia nos descobrir.

        Nenhum dos dois percebeu a sombra que cruzava a porta e parou depois do muro. Wulkan escutou a última frase certo de que se tratava de uma conspiração, e duvidando que a armadilha ocorrida em Caberdin não tivesse sido obra do velho Lynch.

        — O normando tem medo de que assaltem o castelo? — perguntou o ancião.

        — Não sei, mas não ficou parado em Caberdin. Suponho que teme que seus inimigos ataquem de uma ou outra forma.

        — Compreendo. — A idéia de que sua neta pudesse ver—se envolvida em uma escaramuça, caso alguém atacassse a fortaleza, agitou—lhe o estômago. — Jacky, você aprendeu algo sobre defesa, assim pense. Onde imagina ser o ponto fraco de Kellinword?

        Wulkan amaldiçoava a traição, viesse de onde viesse. De sua posição, poderia ter saído em um instante e reduzir aqueles dois com uma só mão. Não eram mais que uma menina e um ancião. Mas teve curiosidade e interesse em escutar a resposta de Jacky.

        — Bom... — repôs ela, apertando o lábio inferior — Já deve ter percebido que os aterros do exterior são suficientemente profundos para deter um primeiro ataque. Logo estão as paliçadas de espinheiros. A ponte levadiça está muito vigiada dia e noite, e seria difícil alcançar a ponte em um assalto rápido. Um exército poderia chegar inclusive a ocupar o caminho da ronda, mas chocaria-se com a resistência na ponte e seriam mantidos a distância.

        Enric a escutou, concordando com cada palavra. Wulkan, colado ao muro, continha a respiração...

        — Entretanto — continuou a jovem — Se vários homens conseguissem cruzar o fosso e chegar à casamata , seria—lhes possível chegar à torre. Teriam que ser poucos. Os cadafalsos e as escadas interiores da torre são de madeira. Só precisariam colocar fogo e dividir as forças de Wulkan em duas frentes. Desse modo, a metade de seu exército estaria ocupado extinguindo o incêndio e à outra metade acharia difícil fazer frente a um ataque.

        Wulkan assentiu, completamente absorto pela rápida e eficaz explicação. Onde tinha aprendido aquela maldita garota sobre tática militar? Tinha uma víbora sob seu traseiro. A surpresa não permitiu-lhe reagir, mesmo os ouvindo despedir—se.

        Deu—lhes tempo para que se fossem e quando seus ossos começaram a congelar, voltou-se. Estava gelado até a medula. Saiu de seu esconderijo e olhou, como um estúpido, o espaço vazio em que momentos antes Jacky comentou formas de assalto. A cólera que o invadiu, irradiou energia a cada um de seus músculos. Amaldiçoou em voz baixa e abandonou as almeias com uma idéia fixa: vingaria—se daquela cadela..

        — Aprenderá a não zombar de um normando – disse para si mesmo, descendo os degraus de três em três. — Aprenderá, Jacky!

 

        À alvorada, Wulkan não tinha conseguido pregar o olho e seu humor era mais parecido com um tufão. Com o leito revolto e os olhos avermelhados pela falta de sono, tentava recompor o quebra—cabeças das últimas horas. A teoria de que Plowman e sua esposa o tivessem recolhido e curado com o único propósito de infiltrar em seu castelo Jacky, não se sustentava. Por que disfarçá—la de menino? Teria sido mais simples apresentar à moça como tal e tornar-se parte de seus servos. Por outro lado, poderia, como agradecimento por seus cuidados, tornar aquela raposa um escudeiro?

        Remexeu—se uma vez mais entre os lençóis e deu um murro no travesseiro. Era tudo idéia de Lynch? Com que intenção? Ricardo desejava uma aliança entre os dois feudos, e isso beneficiaria claramente o saxão. Sua cólera acentuou ao precaver—se de que ele mesmo tinha levado o escorpião para sua casa, dando de presente uma brecha ao seu inimigo. Depois, as circunstâncias pareceram imemoráveis. Jacky teria se colocado de acordo com Plowman e este teria avisado a Lynch... Mas, então, por que tinha salvado sua vida no bosque? Algo não se encaixava.

        Acabou deitando—se na cama, cansado e nervoso. Ricardo o tinha metido no meio das intrigas políticas que tanto odiava, e estava furioso com o rei e consigo mesmo por deixar—se convencer.

        Aproximou—se da janela. O linho transparente apanhava a claridade do amanhecer e até ele chegavam os ruídos da atividade diária. Sentiu falta das longas caminhadas no lombo de seu cavalo. Tinham entrado no mês de maio sem perceber; a época em que os cavaleiros saíam para caçar e se preparavam para entrar em combate. Teve saudades do campo de batalha. De qualquer batalha. Ao menos ali tinha um rival de frente. Sentiu saudades inclusive do perigo. Queria estar longe daquela agitação, de intendências, conflitos e maquinações.

        Bateram na porta e interrompeu sue pensamento. Ouviu que se abria e voltava a fechar—se; o ruído de pegadas e alguém arrastando com dificuldade a pesada banheira. Não desejava ver ninguém, queria desaparecer.  

Nem sequer se voltou para olhar até que ouviu como vertiam água na tina e viu Jacky.

        — Bom dia, milord — saudou ela.

        Wulkan não respondeu. Fervia com mau humor. Esteve tentado a aproximar—se dela, apertar seu pescoço e retorcer—lhe, e conteve—se com muita dificuldade. Jacky, enquanto isso, ia e vinha com baldes que enchiam a banheira. Logo ficou de pé, com as mãos nas costas, aguardando que ele entrasse na tina...

        Wulkan tirou a camisa, mas seus dedos pararam na borda das meias diante da situação. Por Deus, tinha estado a ponto de despir—se diante da moça! Uma vez mais! Até então tinha confundido o nervosismo de Jacky com a falta de experiência, mas agora sabia que aqueles rubores, aqueles olhares envergonhados, aquele desconforto, não eram nada a não ser o pudor de uma dama contemplando seu corpo. Maldita fosse! Esteve se exibindo diante dela durante dias.

        — Procure o Borgan! — gritou. — Que venha imediatamente!

        Jacqueline o olhou de frente, sem entender nada. Ao ver seu peito nu, sua atitude, sua enorme estatura, o rubor cobriu suas bochechas e o pescoço, mas engoliu em seco e sustentou aquele olhar ofegante e furioso.

        — Perdão?

        — Está surdo? — gritou ele. — Quero que venha Borgan! E você não entre até que o chame!

        Escapou dali como uma alma que foge do diabo. Fora, suspirou com gratidão. Ao menos aquela manhã evitaria um Wulkan nu e poderoso, todo músculos dourados, todo pele. Não teria que esfregar-lhe as costas, nem ajudá-lo a secar—se, nem... Mas não pôde afastar a sensação estranha no estômago, como se acabassem de lhe roubar algo e, para seu assombro, teve uma certa sensação de vazio porque tinha perdido algo que a agradava. Chamou—se mil vezes de idiota, foi em busca de Borgan e esperou.

        Do exterior o ouviu amaldiçoar a tudo e a todos.

        Despediu—se de Borgan com palavras rudes e o escudeiro saiu vermelho como um tomate. Passou junto a ela e encolheu os ombros, perguntando—se que bicho tinha mordido o lorde aquela manhã.

        — Jacky!!

        Ela deu um pulo diante do grito e entrou. Wulkan ainda tinha a camisa aberta. Voltou a chamar—se idiota, sem poder evitar de cravar os olhos em seu peito nu. — Recolha tudo isto — ordenou de forma brusca. — Logo, vá ao chiqueiro. Falta-lhes um par de mãos bem dispostas.

        —Ao chiqueiro, senhor?

        —Sim, ao chiqueiro — alfinetou, com olhar venenoso — Não me ouviu?

        — Sim, senhor. — Agachou a cabeça.

        Gostaria que ela se negasse a realizar uma tarefa que não lhe correspondia, pois esse não era trabalho de escudeiros. Mas ela se humilhou e isso acabou tirando-o do serio. Chutou a arca com seus parcos pertences e saiu como se estivesse disposto a bater em todos no castelo.

        Jacqueline sentou-se na borda do leito quando ficou a sós. Certamente, algo não ia bem. Wulkan, apesar de tudo, era um homem prevenido, mas nesse dia levantou tão irascível que dava medo. Encolheu os ombros. Bem, o que importava o humor de um normando?

        Medardo de Lecoy aproveitou a presença de convidados e alargou a missa com um sermão para a ocasião: Deus era bondade e os ricos deviam corresponder à Igreja. Conseguiu que Nortich doasse uma boa bolsa para as velas. Naqueles tempos, a cera era muito cara e seu uso era quase exclusivamente da Igreja. Lynch prometeu lavrar um cálice de prata e enviá—lo a Kellinword. Wulkan se encarregaria de dois candelabros de prata e ouro. Eram dias de festa e deviam estar de bem com Deus.

        O clérigo ficou satisfeito, embora ver o lorde recordava—o do seu fracasso. Não era culpa dele que esses dois tolos falhassem tão estrepitosamente, nem que o condenado menino saxão se colocou no alvo da flecha. Assim a promessa do priorado Ogier se evaporaria sem o assassinato do lorde.

        Finalizado o santo ofício, tomaram o café da manhã e organizou—se uma patrulha de caça em honra aos convidados. Tanto Viola como Clara acompanhariam os cavaleiros, mesmo que os costumes marcassem que as mulheres ficassem em lugar seguro enquanto os homens se divertiam. Dispôs—se que a escolta fossem de homens de Gofredo e Enric, junto aos de Wulkan.

        O grupo saiu do castelo. Jacky, que nesse momento atravessava o pátio de armas com um cubo de água, cruzou um rápido olhar com seu avô, cumprimentou com o chapéu e continuou seu caminho para o chiqueiro, sem perceber que Wulkan observava cada um de seus movimentos.

        Jacqueline chegou às pocilgas e mesclou a água com as exumações de batatas e demais desperdícios do café da manhã e o jantar da noite anterior. Interrompeu—a uma voz ligeiramente aflautada procedente do exterior. Duby de Nortich se encontrava na entrada, com um lenço no nariz e uma careta de asco, fazendo gestos. Suspirou, deixou o que estava fazendo e seguiu o convidado até a portão. Só então, o jovem tirou o lenço do rosto, guardando—o na manga de sua camisa.

        — É um aroma nauseante. — Enrugou o nariz. — O que faz trabalhando aqui? Acreditei que o treinavam para escudeiro. '

        — O lorde me ordenou.

        — Ora! Não parece agradecido por lhe ter salvado a vida, verdade?

        Jacqueline se esticou. Com uma ligeira inclinação de cabeça, adotou uma atitude fria e repôs:

        — Se não necessita nada, senhor, devo continuar com meu trabalho.

        — Aguarde. Como vê, não desejei tomar parte na caçada. Eu não gosto de cavalgar atrás de um javali.

        A moça o olhou com atenção. Era um homem magro e não muito alto, apenas uns centímetros mais que ela. Seu pálido rosto, quase cinzento, parecia doentio. Vestia uma túnica azul celeste e um sobretudo sem mangas vermelho. Algo em sua pose a pôs em guarda com uma corrente de antipatia.

        — E? — perguntou, um pouco altivo para um camponês saxão.

        — Quero percorrer o castelo, e eu não gostaria de ir a sós. Poderia me acompanhar.

        Jacqueline fez um esforço para que este não descobrisse seu desagrado.

        — Devo cumprir com minhas tarefas.

        — Mas também agradar os hóspedes de seu senhor, imagino. Não se preocupe, encarregarei—me de explicar a Wulkan que reclamei—o a meu serviço. Não poderá castigá-lo por isso.

        Ela pesou os prós e os contra. Wulkan estava muito furioso, mas que diabos! Era muito melhor que impregnar-se de aroma dos porcos. Abandonou o desagradável trabalho e aceitou os desejos do filho de Gofredo.

        — Como queira, senhor.

        Quando a comitiva de caça retornou ao castelo, Jacqueline tinha amaldiçoado mil vezes ter aceito ser o cicerone do jovem Duby. Já não restavam dúvidas de suas verdadeiras inclinações. Em seu bate—papo insustancial e infestado de insinuações, somadas a pouca cultura do moço. Em duas ocasiões esteve tentada a corrigi—lo, mas não valia a pena. Para Duby, a única coisa importante era o castelo de seu pai, suas terras, seus vassalos e seus servos, além dos tributos que algum dia lhe pertenceriam. Em consequência disso, deduziu Jacky, o amor por seu progenitor brigava por sua ausência. Ao que parecia, Gofredo insistia a cada momento a mostrar—se mais atrevido, orgulhoso, arrogante e audaz. Sorriu ao pensar se Wulkan poderia dar aulas sobre esses quatro pontos.

        Com Viola, sua madrasta, tampouco se dava bem. E ainda tinha suas tendências, que se manifestaram em dissimulados toques que acenderam o sangue de Jacqueline, a quem tentava seduzir como um jovenzinho.

        Por sorte, o grupo retornou no instante preciso.

        Duby a estava pegando pela cintura, perto dos pombais. Desfez—se com brutalidade de seu abraço, desculpou—se, e se foi como se tivesse que atender aos que chegavam...

        Wulkan a viu descer dos pombais e irritou-se. Entretanto, quando apareceu a suas costas Duby de Nortich, relaxou. Jacky tinha uma expressão em seu rosto acalorado em que podia ler—se: «mataria—o». Imaginou o que podia ter acontecido e se sentiu melhor. De—lhe vontade de rir.

        Ninguém explicou a repentina mudança de humor do lorde. Tampouco Gugger, que, apesar das advertências, tinha estado paquerando descaradamente com Viola.

        De qualquer forma, o bom humor de Wulkan não durou muito. Só até a comida. Então saiu o tema dos tributos.       

        — É uma loucura! — exaltou—se Gofredo — É nos obrigar a dar outro tanto.

        Wulkan tinha pedido as contas, mal encarregou—se de Kellinword, das rendas dos que seriam seus vassalos. E aquele ano não eram boas. O inverno tinha sido muito rigoroso e as tormentas destruíram a metade das colheitas. Mal restou o necessário para que os camponeses pudessem subsistir. Soube que tinham passado, calamidades e que inclusive alguns tiveram que tosquiar as ovelhas antes do tempo, para vender a lã para comprar farinha e aveia. Wulkan sabia muito bem porque sofreu na própria carne o que significava ter frio no inverno e não poder esquentar as tripas mais que com uma sopa aguada. Conhecia o que era dor de estômago sem nada para levar a boca. Muderman de Levrón não só lhe deu surras, mas também fome em muitas ocasiões.

        Em seus lábios formou-se um riso sarcástico e perguntou:

— Vai me dizer que tornará a reduzir os impostos este ano?

        — Bom... — Gofredo olhava Enric em um mudo pedido de ajuda — Até agora jamais os rebaixei. Fazê—lo este ano é dar esperança que, em anos vindouros, possa repetir—se.

        — Veremos o problema em anos vindouros, então.

        — Perdoe que insista, lorde, mas você é um homem de armas. Não conhece os ardis dos camponeses na hora de pagar. Buscam mil e uma desculpas para livrar—se dos tributos.

        — É certo que fui um homem de armas. E continuo sendo. Mas conheço a vida dos camponeses; não em vão, em minha juventude, vaguei de aldeia em aldeia. Conheço também as penúrias que trazem um inverno rigoroso como o que sofreu este ano a Inglaterra. Decidi rebaixar os tributos e não penso voltar atrás.

        — Este ano tenho que custear a investidura de meu filho como cavaleiro. Sabe que isso é caro, Wulkan. Se seguir seu exemplo, não terei suficiente dinheiro.

        O lorde olhou para Duby. Investir naquela rapariga era como jogar flores aos porcos, pensou, embora guardou muito do que foi dito. Sabia que os vassalos deviam a seus senhores diferentes favores, do serviço militar — cuja modalidade se fixava por contrato — até a ajuda pecuniária. Na França, era obrigação o cumprimento em quatro casos: um resgate, a saída para uma cruzada, o casamento da filha mais velha ou a investidura do primogênito. E na Inglaterra o era também. Gofredo estava, portanto, em seu direito não só de cobrar os impostos de seus vassalos, mas sim de subí—los se fosse para poder custear a grandiosa festa que seguia-se a investidura de um filho em cavaleiro.

        — Aconselho que pense bem, senhor — disse. — Se obrigar seus camponeses a pagar um tributo elevado este ano, talvez o próximo não tenham nem para cobrir a quarta parte.

        — Terão — insistiu o outro, tenso.

        — Vendendo seus animais?

        — O que quer dizer?

        — Que esticar a corda, Gofredo, pode rompê-la.

        Nortich ergueu-se. Odiava que o deixassem como um idiota e era exatamente o que estava fazendo Wulkan. O que entendia um condenado normando sobre como dirigir um feudo?

        — Nem meu pai, milord, nem antes meu avô, deixaram de cobrar os tributos. E houve muitos invernos rigorosos. O que pensará meu filho se eu ceder diante da primeira ocasião?

        Wulkan respondeu com franqueza.

        — Imagino que o mesmo que pensa agora.

        Gofredo pressentiu que acabava de ser insultado, mas não soube adivinhar de que forma. Olhou aos pressente, abriu a boca para replicar, mas acabou respirando fundo.

        — A quanto rebaixou seus tributos? — perguntou,por fim.

        — A uma terça parte. Além disso, este ano não pagarão por utilizar o moinho de Kellinword.

        — Por todos os Santos! — explodiu de novo. — Essa é a fonte de meus maiores ganhos! Pretende também que eu faça isso em Nortich?

        — Só respondi a sua pergunta.

        Gofredo voltou a olhar para Lynch. O ancião parecia calmo, até ligeiramente divertido. Amaldiçoou—o mentalmente por não aliar—se a ele.

        — Para você é fácil – resmungou — porque seu feudo é o maior deste lado da Inglaterra, e goza da amizade de nosso bem amado rei Ricardo. Nós — assinalou a Enric para dar mais peso a seu protesto — Temos feudos menores e nossos ganhos são proporcionais.

        — Portanto, custará mais a mim do que a qualquer outro — resolveu Wulkan, começando a perder a paciência pela tenaz oposição.

        — Mas...

        — Têm um mercado de couro em Nortich. Celebra—se em julho, coincidindo com a colheita. Isso lhe dará bons benefícios.

        — Alguns, sim.

        — Poderia postergar a investidura de seu filho até depois do mercado. Virão visitantes de todos os condados, inclusive de Gales. Pense bem, Gofredo. Duby será investido e você seguirá dispondo de camponeses que trabalharão em suas terras no próximo ano.

        Enric levantou sua taça para ocultar sua satisfação. Divertia—lhe terrivelmente a discussão, sobretudo porque Gofredo a estava perdendo. Não sentia nenhuma simpatia por seu vizinho. Era um homem sem princípios que se colocou descaradamente ao lado dos normandos quando viu perigar seus bens. Traiu os seus para ganhar a confiança dos franceses, e embora, com o tempo, sua adimiração por eles esfriou-se, não o tinha esquecido. Gofredo era um porco, e Enric sabia. Era capaz de vender a sua própria mãe, se a boa mulher não estivesse já na Glória do Senhor. Por outro lado, surpreendeu—lhe gratamente o julgamento de Wulkan.

        — Também pensei em enviar um exército às terras de Ording — argumentou Gofredo como último recurso, vendo—se já irremediavelmente perdido.

        Wulkan suspirou ruidosamente e esticou suas longas pernas por debaixo da mesa…

        — Sabe que Ricardo não gosta desse tipo de rixas.

        — Quer paz em seus territórios. Por que atacar Ording?

        — Por que não? Algumas de suas terras entram em meu feudo, e minhas carroças e cavaleiros devem pagar cada vez que as cruzam, se não quiserem dar uma volta enorme. Se anexar esse território, economizarei um bom dinheiro. Além disso, Ording não confraterniza com os normandos.

        — Temo, Gofredo — interveio Enric, levantando-se de sua cadeira — que nesta mesa há alguém mais que pensa diferente. Suas terras divisam, em parte, com as minhas, e se insinua que minha simpatia vai ser a causa de que tente uma incursão em Lynch, me deixe que lhe diga que... — Gofredo levantou-se para enfrentá—lo.

        — Por favor! — impôs calma Wulkan — Estou seguro de que o senhor de Nortich não quis dizer isso. — Olhou de um para outro e aguardou até que ambos voltassem a sentar—se. – Simpatizem ou não conosco, senhores, o certo é que devemos nos suportar mutuamente. Ricardo assim o quer, e assim terá que ser. Vieram para pactuar com Kellinword, e estou disposto a ser magnânimo, mas há uma condição inegociável: não haverá rivalidades com territórios vizinhos.

        — Maldito seja! — Gofredo golpeou a mesa com o punho. — O que deixa—nos então? Pretende que reduza meus impostos, que atrase a investidura de meu filho, que dê de presente a moenda aos camponeses e renuncie a tomar terras que me economizariam uma boa bolsa. — Estava tão agitado que lhe engrossava a aorta. — Se quiser que eu reduza meus impostos, você deve rebaixar os seus! — acabou gritando.

        Wulkan, lentamente, aproximou sua taça dos lábios e deu um longo trago antes de responder a quem pouco depois devia lhe prometer vassalagem. Teria preferido que lhe jurasse fidelidade um cão sarnento. Seu olhar era já esverdeado quando dirigiu-se a Gofredo. Somente seus homens estavam conscientes daquela mudança.

        — Disse, em algum momento, que não o faria?

        Nortich ficou pasmo. Uma vez mais o fazia sentir-se como um idiota, e aumentou sua cólera. Mostrou sua taça vazia a um dos serventes, que a encheu até a borda, e a virou de um gole, depositando—a logo sobre a mesa com um golpe seco.

        — Não — concordou.

        —Têm que facilitar homens a Kellinword, de acordo com os pactos que se estabeleçam, ou pagar uma taxa por cada soldado reclamado que não enviar. Bem, este ano pedirei a metade dos homens ou rebaixarei o pagamento pela metade.

        Gofredo avermelhou-se ao limite. Wulkan o estava ridicularizando e o odiou como jamais tinha odiado ninguém. Até sua esposa divertia-se disimuladamente. Já ajustaria as contas com aquela raposa quando estivessem a sós!

        — Quanto a você, senhor de Lynch — continuou Wulkan, inclinando ligeiramente seu corpo em sua direção — os pactos serão diferentes, já que vamos unir nossos escudos…

        A referência ao casamento de Jacqueline azedou Enric.

        — Aceitarei um pacto justo, milord.

        — Espero que o seja para ambos. Quando disse que conheceria sua neta?

        O ancião olhou em seus olhos e não pôde definir se o normando estava zombando dele ou simplesmente esperava uma resposta clara. Pigarreou e murmurou:

— Enviei homens em sua busca antes de vir para cá. Mas não posso dizer que retorne logo.

        — Mesmo?

        — Minha neta herdou de seu pai o amor pelas viagens. Quero dizer que é uma moça inquieta a quem não agrada ficar muito tempo no mesmo lugar.

        — Mas retornará se você ordenar.

        — Se encontrar—se no lugar desejado, milord... Wulkan apoiou os cotovelos na mesa.

        — Quer me explicar isso, senhor?

        — Quis... quero dizer – gaguejou — Que talvez tenha decidido ir visitar outros parentes quando minha mensagem chegar aonde estava...

        O normando voltou a reclinar—se em sua cadeira. Pensou na resposta do ancião e por fim assentiu.

– No Natal estaria bom?

        — Perdão?

        — Penssa que poderá me trazer sua aventureira neta antes do Natal? —esclareceu. — Ricardo passará por Kellinword nos primeiros dias do ano e me desgostaria que acreditasse que não fui fiel a minha palavra de unir nossos feudos.

        Enric engoliu em seco e assentiu. Teve a estranha sensação de que o jovem lorde podia adivinhar seus mais íntimos pensamentos e de que inclusive escutava as batidas de seu cansado coração.

        —Tentarei, milord.

        —Que bom — opinou Wulkan — Antes do jantar assinaremos os acordos. Agora, se me desculparem...

        Enric esperou que a atenção dos reunidos fosse para outros temas e levantou-se um momento depois do jovem lorde. Desgostava—lhe o que ia fazer, mas não restava outra alternativa que lhe falar. Devia isso a sua neta.

        — Posso falar um momento com você, milord?

        Wulkan, com um pé na escada, voltou—se para ele.

        — Dos tratados?

        — É outro assunto.

        O normando esperou. Enric parecia a ponto de sofrer uma apoplexia e pressentiu que tinha vontade de tudo, menos de falar com ele. Intrigado, assentiu e assinalou o exterior com um gesto quase imperceptível, seguido do saxão. Deixaram para trás a torre e só falou quando ambos estavam perto do muro, cuja única companhia era o guarda que montava a ronda.

        — Então?

        — É a respeito de Jacky.

        Depois da discussão com Nortich, aquele espinho voltava a lhe cravar.

        — O que houve?

        — Ontem à noite falei com o garoto — sussurrou Enric.

        «Nas almeias? Às três da madrugada e como dois traidores?» Gostaria de perguntar Wulkan, mas mordeu a língua. Tinha que saber que demônios queriam aqueles dois. Intuía que a segurança de seu castelo dependia daquela conversa.

        — Como disse — continuou Enric, com a voz tremendo — Não recordava do moço. Reconheci—o antes de ir para a cama. Quando prestou seus serviços em Lynch, mal erguia-se dois palmos do chão.

        — Não que agora erga-se muito mais, na verdade.

        — É certo... Enfim, estava pensando que talvez não se importasse que Jacky retornasse comigo para Lynch.

        — Para que?

        — Seus pais morreram defendendo minha casa — disse Enric, sem mentir absolutamente. — Acredito que devo isso a ele. Plowman é um de meus vassalos, de modo que eu poderia me encarregar do rapaz e você teria uma carga a menos.

        Wulkan perguntou-se quanto demoraria para estrangulá—lo.

        Maravilhou—se, de qualquer forma, da maneira sutil e engenhosa do saxão. Primeiro, colocava um espião entre seus muros, e logo, como se lhe fizesse um favor, tentava tirá—lo antes que fosse descoberto. Esqueceu—se de tais conjeturas e se forçou a acalmar—se.

        — Dei minha palavra.

        — Não faltaria a ela, milord, mas...

        — Jacky fica! — sentenciou.

        Enric estudou por um momento o jovem rosto e viu a batalha perdida. Como gostaria de gritar a Wulkan que Jacky não era senão sua neta! Mas manteve-se em silêncio, pois teria que comprometê—la nos braços do homem que odiava. Inclusive se obrigou a concordar. Pôs—se a andar, com Wulkan atrás de seus passos, e falou:

        — Clara ficou fascinada com Kellinword. Seria pedir muito que a aceitasse como hóspede durante alguns dias mais?

        — Pode ficar todo o tempo que quiser, embora se aborrecerá. – encolheu os ombros. — Aqui não há mais que soldados rudes e armas. Não há damas.

        — Ficaria com uma de suas donzelas...

        — Nada tenho a objetar. Enviarei—lhe com uma escolta no domingo, depois da missa.

        — Obrigado, milord. — O saxão inclinou levemente a cabeça — Não o importunarei mais.

        Wulkan viu—o afastar-se para a torre e admirou quão bem mentia. Malditos fossem todos os saxões!

 

        Enric partiu de Kellinword depois do juramento de vassalagem ao novo lorde. Outro fez Gofredo de Nortich. Foi impossível para Jacqueline voltar a estar a sós com seu avô. Wulkan encarregou-se de monopolizar todo seu tempo. Mas ela agradeceu estar fora — embora não fosse para sempre – no chiqueiro, porque desse modo se livrou de ver ajoelhado o ancião diante do normando.

        Conhecia aquela cerimônia, porque tinha visto algumas em Lynch, quando seu pai vivia. O vassalo, de joelhos diante do senhor, começava a ladainha: «Converto—me em seu homem... »

        Em seguida, já em pé, jurava fidelidade a seu senhor sobre as Sagradas Escrituras ou sobre alguma relíquia sagrada. Genuflexões, troca de beijos e gestos litúrgicos acompanhavam o ato, que podia realizar-se uma só vez ou repetir—se periodicamente. Além disso, naquela ocasião assinaram-se documentos de pacto e acordos políticos e administrativos.

        Quando a comitiva partiu — deixando em Kellinword somente Clara e uma de suas damas de companhia — Bertrán entregou-lhe uma nota dobrada que tirou debaixo de sua roupa de couro. Jacqueline, a ponto de chorar de alegria, a guardou e a leu a sós. Dizia seu avô, que confiou no jovem escudeiro, na confiança que este merecia de Jacky, que o plano seguia “Seu curso”, mas que foi impossível convencer Wulkan de levá-la consigo. Dizia que a queria, que se cuidasse e que, se desejasse, atacaria Kellinword para libertá—la.

        Jacqueline se enterneceu com o último parágrafo. Atacar Kellinword. Sabia que seu avô era capaz disso por ela, mas não estava tão louca para pedir. Certo era que, em teoria, havia pequenas lacunas de segurança, mas, na prática, o castelo parecia inexpugnável. Secou as lágrimas e escondeu a nota…

        Por outro lado, Wulkan deu ordens de abandonar, no momento, o reforço dos muros do castelo e remodelar a torre grande, o que agradou a todos. Mandou levantar uma dupla muralha próxima onde o guarda montava a ronda, fortificar a casamata e mudar o telhado da torre, reforçando seus muros para que pudessem sustentar outro. O desenho original daquele, conforme explicou o chefe de pedreiros, não suportaria uma escada de pedra, assim devia conservar a de madeira. Wulkan não via outra alternativa que aceitar, embora decidiu estreitar as brechas,fazendo-as mais inacessíveis. Com isso, pareceu ficar satisfeito, mas se negou a dar explicações de tão repentinas melhoras na fortificação.

        Mandou vigiar Jacky desde que se levantava até que se deitava, e o encarregado de tão penosa missão não foi outro senão Bertrán, a quem desagradou seu novo encargo, que implicava desatender seu treinamento diário. Wulkan queria saber a quem via, com quem falava e até em quem pensava.

        Clara de Eveling aproveitou sua estadia no castelo para tentar atrair a atenção do normando. Não teve êxito durante o primeiro dia e, a ponto de desistir, o encontrou enquanto caminhava pela horta. Felizmente, Ana, sua acompanhante, encontrava—se indisposta, e ela gozou de uns momentos de liberdade. Era um lugar de passeio e repouso, de folga e, talvez, de encontros. A grama luzia cuidada com esmero. Mesmo um par de fontes aliviavam tanto verde. Um remanso de paz frente à agitação do castelo. Mas, além disso, o jardim parecia um lugar propício para os jogos amorosos. Não se tratava de um jardim, sem outra finalidade que o adorno. Não. dele se extraíam os frutos frescos, os legumes, o vinho e a água, as ervas aromáticas e as plantas têxteis e medicinais. Havia também uma estufa, pajareras e um par de caramanchões que podiam ser utilizados quando o tempo permitia. Uma horta, melhorada e belamente cercada, onde além de hortaliças se podia cheirar a fragrância das rosas, os lírios e as violetas.

        Tropeçou com um torrão recém escavado diante de uma fileira de couves, sobre as quais esteve a ponto de cair, o que seria um tombo em seu amor próprio. Ou nos braços de ferro que a seguraram no último segundo, evitando assim a ruína de um de seus melhores vestidos. Ergueu-se o melhor que pôde com o rosto de Wulkan a um palmo do dela. Sorriu como uma estúpida e não soube o que dizer, se desculpar ou agradecer.

        —Está aborrecida, senhora?

        Clara suspirou, repentinamente trêmula. Ele a amedrontava, mas o achava irresistível. E mais irresistível ainda sua fortuna e posição. Esse foi o momento que procurava para iniciar uma paquera.

        — Torci o tornozelo — lamentou—se de modo convincente.

        Wulkan sorriu. Tinha presenciado o escorregão e estava certo de que a queixa era uma mentira, mas fazia muito tempo que não gozava da companhia de uma dama e estava mais que farto das prostitutas, que, de quando em quando, subiam a seus aposentos. Decidiu seguir o jogo e, tomando—a por baixo dos joelhos e pela cintura, a levou a um lugar mais afastado da horta, ali onde as árvores procuravam um recanto oculto de olhares indiscretos.

        Clara o deixou carregá—la enquanto franzia os lábios em uma careta muito feminina. Sentia—se terrivelmente cômoda nos braços do normando e soube que tinha ganhado o primeiro ponto daquela partida que ele nem sequer imaginava que havia começado.

        Wulkan a depositou em um banco de pedra e examinou o tornozelo machucado. Ela se queixava e o deixava examiná—lo.

        — Pensará que sou uma tola... — respirou fundo, fazendo com que seu decote monopolizasse o olhar masculino, o que conseguiu facilmente...

        —A culpa é minha, senhora. Devia ordenar que cuidassem mais do jardim. Permite—me?

        Sem esperar o sim solicitado, dobrou a barra da túnica e tomou o tornozelo entre suas mãos. Começou a massageá—lo sem deixar de olhá—la nos olhos... E no decote, e viu que ela se ruborizava de puro prazer. O toque de suas mãos fez saltar o coração da moça. Clara podia ser encantadora quando se propunha. Fingiu ruborizar—se mais ainda e sentiu-se invadida por uma sensação de triunfo ao comprovar que o normando não afastava os olhos de seus atributos. Sabia que iria se casar com Jacqueline, mas isso agora importava pouco. Acaso não partiu de Lynch, e nem sequer Enric parecia conhecer seu paradeiro? Por que não aproveitar a ocasião? Se Ricardo desejava uma união, bem poderia ser ela a escolhida. Aelis era muito jovem e, adotada ou não, ela era também neta de Enric.

        — Melhor assim? — perguntou Wulkan.

        Clara retornou do mundo dos sonhos, piscou com rapidez, deixando que seus cílios abanassem suas rosadas maçãs do rosto, e o olhou como se, de repente, não soubesse onde se encontrava.

        — Sim! — exclamou ao perceber que ele aguardava uma resposta. — Sim, é obvio. Têm mãos maravilhosas.

        — Pode caminhar?

        — Não sei... Talvez... — Sorriu. Ergueu-se e os longos dedos dele acariciaram levemente sua perna ao baixar-lhe a túnica. Imediatamente, dobrou o joelho e fez uma careta. — Impossível, milord. Continua doendo muito... — mentiu.

        Wulkan ergueu-se em toda sua altura e sorriu à dama. Era realmente divertido. A saxã era uma perita na arte da sedução, e já não lembrava-se de quando uma mulher tinha flertado com ele de modo tão descarado. As rameiras estavam acostumadas ir ao ponto para acabar o quanto antes, embora ele jamais teve motivos de queixas com elas. Muito ao contrário, pareciam muito dispostas a atrasar—se em seu leito. Mas Clara era de outro tipo. Era uma dama. A mais descarada que já conheceu. E, sem dúvida, bela. Voltou a tomá—la nos braços, e dessa vez os braços femininos enroscaram-se em seu pescoço e a cabeça, cheia de cachos escuros mal coberto com o véu descansou em seu ombro.

        — Levarei—a a seus aposentos, senhora — disse ele. — Deve cuidar desse tornozelo.

        — OH, não, milord! — O normando deteve-se e arqueou uma sobrancelha. Ela, melosa, sorriu—lhe com descaramento. — Quero dizer que restam muitas coisas para ver de sua fortaleza... E é tão pouco o tempo de que disponho! Recorde que disse a meu avô que no domingo devolveria—me a Lynch.

        Wulkan esteve a ponto de rir com vontade. Aquela mulher batia todos os recordes.

        — Diga então o que você gostaria de visitar do castelo e eu mesmo a levarei nos braços.

        — O que diriam os outros? — escandalizou—se ela de modo conveniente.

        — Importa o que digam?

        — Bom, senhor... Sou uma dama bem educada e...

        — Uma dama que torceu um tornozelo. Só tento ser cortês, mas se preferir que a deixe no chão...

— De maneira nenhuma! — agarrou—se mais forte. — Quer dizer, que... que é muito amável em me brindar com seu amparo, milord. Eu adoraria conhecer os celeiros!

        — Os celeiros? — Por Deus, ia depressa, pensou. Clara percebeu o deslize e tentou explicar—se, notando que o rubor, agora autêntico, subia—lhe pela face.

        — Os celeiros de Lynch são pequenos. Ouvi dizer que os de Kellinword podem armazenar grãos para três invernos. É verdade?

        Wulkan não pôde evitar e explodiu em gargalhadas. Clara admirou-o, com prazer. Seu cabelo era tão negro que tinha reflexos azulados. Sem dúvida, era um homem muito belo...

        — Isso eu sei, senhora — disse ele, já mais sereno.— os celeiros podem armazenar grãos não para três, mas para quatro temporadas. Para falar a verdade, eu tampouco os conheço em seu interior, mas acredito que este é um bom momento para dar uma olhada, não lhe parece?

        Clara sentiu-se encantada. Abraçou—se a ele mais forte, como se temesse cair, embora fosse pouco provável que os braços do normando a soltassem.

        Wulkan caminhou da ponte sobre o fosso e a poterna com o peso de sua preciosa e leve carga. Mais à frente do muro cruzou com Gugger, a quem saúdou com uma sacudida de cabeça e seguiu para os celeiros, justo ao lado das moradias dos trabalhadores e do forno. O loiro, com seu semblante irônico, apoiou as mãos sobre a cintura enquanto os via afastar—se. Logo, pôs—se a rir. Finalmente! Para a satisfação de todos, o humor de Wulkan melhoraria nos próximos dias.

        O lorde subiu as escadas do celeiro. Já no interior, depositou a jovem sobre uns sacos e fechou a porta...

        — É enorme! — exclamou Clara, como uma menina, aparentando não perceber a manobra.

        Wulkan a guiou até o batente de uma janela e mostrou-lhe a vista do pátio, tocando levemente a cintura da jovem. Ela pareceu não perceber o jogo de suas mãos, o que animou Wulkan ainda mais...

       

        Ao que parecia, deram ordens muito estritas no tocante a Jacqueline. Gilbert de Bayard não a chamou para os treinamentos, nem Gugger pediu sua ajuda. Pensavam confiná—la para sempre nas pocilgas? O que tinha feito para dedicar—se só a dar de comer aos porcos e limpar o chiqueiro? Entretanto, aquele dia, carregando seu habitual cubo de água, Martha, a chefe da cozinhas, topou com ela. A mulher enrugou o nariz e a olhou de cima abaixo.

        — Deixa o que esta fazendo e vá ao celeiro. Preciso de um saco de aveia. Espero que se lave bem antes de entrar em minhas cozinha, jovenzinho.

        Jacqueline assentiu, morta de calor. Mal conhecia a mulher, mas não havia dúvida: que estava acostumada a mandar. Seu corpo e sua voz robusta intimidavam a qualquer um. — É que tenho ordens de atender os porcos.

        — Farei com que o substituam. Parece precisar de uma mudança de ares, e agora mesmo não tenho ninguém que possa buscar esse saco. Bem, depressa e não se entretenha.

        Jacqueline a viu afastar—se para o moinho. Temia Wulkan, mas agradeceu aquela inusitada intervenção, de modo que retornou ao chiqueiro, jogou o cubo de lado e largou um pouco de mangas aos animais. Aos diabos com Wulkan! Desprezava tanto aquele lugar que prometeu não voltar a comer presunto em sua vida.

        Aproveitou que estava a sós para lavar—se sem pudor.

        Desfez—se do casaco e da camisa e afundou as mãos no barril de água que ela mesma encheu, e as passou pelo corpo. Fez com rapidez, por medo de que aparecesse alguém, e voltou a colocar suas roupas de moleque. Então sentiu o nauseante aroma que as impregnava. Não era estranho que Martha mostrasse seu desagrado; era realmente repugnante. Encolheu os ombros. Deveria esperar para trocar de roupa.

        Subiu ao celeiro com passos largos. A oportunidade que a cozinheira lhe deu não ia desperdiçar, e fantasiou que Martha a reclamasse definitivamente para a cozinha. Não estava disposta a voltar para as pocilgas. Antes, mataria Wulkan!

        Empurrou a porta e entrou...

 

        Wulkan, nesta altura, já tinha avançado muito. Tanto, que tinha Clara virtualmente nua, recostada sobre os sacos. Com os olhos fechados, deixava suas mãos vagar pelo amplo peito masculino. Estava excitada. Wulkan era um belo espécime de homem, musculoso mas magro, e ardente. Começou abraçando—a quase inocentemente, mas logo suas mãos se perderam sob o sutiã e ficaram ali o tempo suficiente para que ela ansiasse por mais. Ela não protestou. Não disse nada. Encontrou—se aprisionada entre os braços do normando. Wulkan a tinha beijado lentamente, com paixão. Isso lhe provocou vertigem e acomodou-a sobre os sacos. Nesse ponto, Clara não se importou com o resto do mundo. Ele tirou o cinturão, a túnica e a camisa enquanto lhe devorava com o olhar. Esperta como era naquele tipo de jogo e com ele rendido ao desejo, piscou como se fosse uma virgem aturdida. E teve muito êxito. Sabia muito bem quando piscar, quando gemer e quando ruborizar—se.

        E Wulkan, apesar de seus músculos, sua estatura e seu poder, não era mais que um homem. A capa desapareceu em um instante, e a túnica ficou enroscada em sua cintura. Quando somente a cobria a regata, respirou rapidamente. Seus seios, plenos e erguidos, moveram—se, estremecidos sob o fino tecido. As mandíbulas dele se esticaram, e ela, como uma consumada atriz, tentou cobrir—se de novo com o saiote. Wulkan não permitiu. Pelo contrário, abriu—lhe a regata, descobrindo sua pele. Os seios generosos de Clara se moveram, mas ele manteve seus braços presos firmemente e tomou entre seus dentes um dos mamilos. Clara gemeu de prazer e enrijeceu os quadris. Desejava o normando. Desejava possui—lo, enfeitiçá—lo até o ponto de lhe fazer esquecer sua estúpida intenção de unir—se a Jacqueline. Ela conseguiria que suas preferências fossem outras.

        Quando a viu rendida, Wulkan libertou seus braços e, sem deixar de saborear a calidez de sua carne, acariciou o magro corpo, os quadris, o interior das coxas... A roupa lhe atrapalhava e enroscou a túnica na cintura, aproximando a mão do triângulo escuro...

        O feitiço rompeu-se quando a porta do celeiro abriu, com força, golpeando a parede, e a luz entrou, iluminando-os. Wulkan amaldiçoou com tanto que teria avermelhado até um taberneiro. Ergueu—se enquanto Clara gritava e tentava cobrir sua nudez. O uivo do lorde, reconhecendo o intruso, encheu o celeiro.

        —Jacky!!

        Jacqueline ficou paralisada diante da cena. Reagiu com um salto, mais por encontrar—se com um par de olhos verdes que por seu grito, sabendo imediatamente quão inoportuna tinha sido sua aparição. A boca ficou seca, as pernas tornaram-se gelatina e um vazio tomou conta de seu estômago.

        Fechou de repente a porta e desceu, aos saltos, as escadas. Escapoulhe um grito que se misturou com o vaivém da porta e a voz de Wulkan para que parasse. Não ia parar! Por nada do mundo estava disposta a deixar—se apanhar. Os olhos do normando podiam havê—la assassinado e, se antes o temia, agora estava completamente aterrada. Só pensava em escapar, esconder—se no último lugar de Kellinword e esperar que sua cólera diminuísse.

        Saltou a última meia dúzia de degraus até o pátio, aterrissando sobre as nádegas. Agüentou a dor e as lágrimas e ergueu-se, correndo como uma gazela e esquecendo de representar seu papel masculino. Wulkan continuava gritando para que parasse e ela acelerou ainda mais, ouvindo suas pegadas a suas costas, cada vez mais perto. Voltou—se sem parar e o viu ali mesmo. Colocou a cabeça entre os ombros a modo de aríete e acelerou. Sem dúvida, Wulkan, com suas longas pernas, a alcançaria, mas ela era mais sagaz e poderia escapulir assim que alcançasse a praça dos artesãos.

        Aquela zona do castelo era um verdadeiro labirinto de ruelas. Seu coração acelerou quando viu os primeiros postos. Calculou sua vantagem e lançou um grito estridente quando uma mão normanda desceu em seu ombro, paralisando—a a um passo da salvação. De repente, voltaram-na como um pião e a sacudiram. Gritou de novo. O medo a empurrou a defender—se e lançou a perna no joelho de Wulkan. Não acertou e se encontrou no ar, dependuranda pela gola do casaco, e cara a cara com seu inimigo, como um coelho recém caçado. Chutou e esbravejou, tentando golpeá-lo.

        Wulkan fazia um grande esforço para deter a chuva de golpes que caia sobre ele. Jacky parecia possuida, lançava as unhas em seus olhos, as pontas de suas desgastadas botas em sua virilha, debatendo—se como um animal em uma armadilha.

        — Basta! — bramou ele.

        Não se importou e continuou dando pontapés e lançando seus pequenos punhos no ar.

        —Digo que fique quieto! — Sacudiu—a de novo, afastando o rosto de suas afiadas unhas.

        Jacky parou um momento. Concentrou—se e lançou a perna direita, alcançando Wulkan nos testículos. Ouviu seu lamento entrecortado e a pressão dos dedos afrouxou, deixando—a cair no chão. Não pensou duas vezes e tentou escapar de novo. Agora Wulkan estaria mais furioso que antes e mandaria cortar sua estúpida cabeça.

        Não chegou a mover—se. A mão de Wulkan voltou a agarrar seu casaco e se encontrou de frente a um rosto furioso. Wulkan tinha os dentes tão apertados que parecia que iriam romper. Estava lívido pelo golpe recebido, mas ainda inteiro, e ela lamentou que seu ataque não tivesse sido suficiente para lhe deixar fora de combate. Voltou a tentar golpeá—lo no mesmo lugar. Mas dessa vez o normando esquivou-se do ataque, elevou a mão e esteve a um passo de golpeá—la. Conteve—se no último instante e, em vez de fazê—lo, agarrou—a pelos ombros e a sacudiu.

        Jacqueline rendeu-se aquela força, com meio castelo observando, assombrado. Quando ele a soltou, caiu no chão, estonteada. As testemunhas do enfrentamento se apinhavam no princípio da ruela, sem atrever—se a aproximar—se de seu senhor e do jovem que ousou desafiá-lo.

        Wulkan carregou no ombro o corpo de Jacky. Ela protestou com seu estômago encravado naquela musculatura. Apesar do enjôo, ainda tentou golpeá—lo de novo, mas o normando lhe deu um golpe nas nádegas e meio que engasgou com sua língua.

        Balançando—se como um saco de batatas, Jacqueline observou os rostos assustados dos mercadores e se sentiu a mulher mais desgraçada do mundo.

        Os olhos azuis de Montauband arregalaram-se vendo seu amigo carregar o pequeno Jacky. O rapaz se debatia fracamente e parecia estar sofrendo. Fez um gesto a seu competidor na briga e embainhou a espada. Todo mundo deixou de treinar e observava em silêncio. Tirou as manoplas e perguntou-se que diabos teria feito desta vez o saxão para enfurecê—lo. Colocou-as no cinturão e foi atrás deles. Em Jacky iria dar uma boa sova. O moço era simpático, de modo que tentaria suavizar o castigo. Alcançou a escada.

        —O que aconteceu?

        Wulkan não respondeu e continuou subindo os degraus de três em três, tão furioso que Gugger não insistiu. Tinha visto seu amigo zangado em outras ocasiões, mas desta vez parecia muito zangado. Também ele subiu em silêncio, escutando o choramingar fraco de Jacky.

        Wulkan abriu a porta de seus aposentos com um pontapé. Gugger apoiou-se e esperou. Começava a lhe desagradar toda aquela animação. A travessura do saxão não podia ser tão grande.

        Jacky caiu no chão e suas nádegas se encontraram dolorosamente com o pavimento. Seus olhos encheram-se de lágrimas, mais de impotência que de dor. Imediatamente, obrigou—a a ficar em pé e cambaleou no meio do quarto como um boneco.

        O punho de Wulkan chegou sem avisar, tão repentino que não pôde reagir. Jacky fechou os olhos, esperando o golpe. Mas o punho passou roçando sua orelha e estalou contra a parede. Quando abriu os olhos, Wulkan sacudia sua mão esfolada, soprando os nódulos.

        —Acalme-se, homem! — interveio seu amigo. — Outro golpe igual e ficará inútil.

        Jacqueline recuou para um canto e se encolheu no chão. Desejava desaparecer, evaporar, morrer. Observou Wulkan com verdadeiro espanto. Estava louca para voltar a chorar, mas mordeu os lábios, temendo que se lhe desse mais motivos não veria um novo dia.

        A intervenção de Gugger e a dor dos nódulos acalmou um pouco o colérico humor do lorde. Mesmo assim, voltou a levantá—la do chão, embora a soltasse imediatamente. Ela aproveitou para retroceder até o muro, colando-se a ele , sem atrever—se a respirar.

        Assinalou—a com um dedo trêmulo pela indignação.

— Vou pendurá-lo nas muralhas!!

        —Por todos os Santos, Wulkan, quer parar de gritar? O que fez agora? Não pode ser tão grave.

        —Vou torcer—lhe o pescoço, Gugger! Juro por tudo que é mais sagrado que vou torcê—lo.

        — Primeiro acalme-se e depois torça. Por Deus, está apavorado... — Jacky olhava a saída e Gugger lhe avisou — Melhor fica onde está, menino, ou nem sequer eu poderei evitar que lhe faça em picadinhos. — Ela ficou paralisada e ele assentiu. — E agora, quer me dizer o que houve?

        Wulkan nem sequer a olhou. Por que demônios estava sempre no meio? Aproximou—se da moça e a empurrou até o centro do quarto, e ela, aterrada, não opôs resistência. Tomou com força o queixo para olhar a sua aflição.

        — Sei quem é — disse com voz gelada — e por que está aqui. .

        O coração de Jacqueline pareceu parar de bater e abriu os olhos . Sacudiu a cabeça e retrocedeu, desejando morrer nesse mesmo instante. Wulkan sabia quem era! Teve a imperiosa necessidade de urinar.

        — Não vai escapar de Kellinword, de modo que pode seguir espiando minhas defesas a vontade, Jacky... mas não tolerarei que me espione !! — rugiu.

        — Do que está falando? — perguntou Gugger, com um dedo no ouvido, como indicando a Wulkan que estava ensurdecendo com seus berros.

        — Entrou no celeiro.

        — E...?

        — Estava com Clara —respondeu—lhe a contra gosto.

        Primeiro, Gugger pensou tudo aquilo. Depois, explodiu em gargalhadas. Diante do semblante anti—social de seu amigo, ainda riu com mais força, e seus olhos se encheram de lágrimas. — Pelo Céu, Wulkan, é um garoto.

        — Eu não vejo a graça.

        Aumentaram as gargalhadas de Gugger, que sentou sobre a arca. Chorava literalmente, enquanto dava palmadas na coxa.

        — Não posso acreditar que tenha mudado tanto — disse, mais calmo. — Desde quando se importa que o vejam fornicar? Não lembra quando íamos visitar as prostitutas, em Londres? Fazíamos no mesmo quarto e até nos parecia...         —

        — Cale-se!!

        Gugger ficou muito sério e ergueu-se. Estava começando a zangar—se. Wulkan estava impossível. E ele não suportaria seus ataques de histeria.

        — Compreendo que tenha novas responsabilidades. Sei que suas preocupações aumentaram, mas há dois dias está insuportável. Parece que acusar Jacky de espião porque o pegou desafogando-se com Clara, não é razão suficiente.

        Sem aviso, Wulkan deu um passo para Jacqueline, e de um só golpe fez voar o gorro de sua cabeça. A longa cabeleira derramou-se sobre seus ombros em uma cascata de cachos dourados. Um segundo depois, com um puxão, rasgou a gola do casaco e a camisa que usava por baixo.

        Sem poder reagir, Jacqueline cobriu-se com seus braços os seios nus, mas aquela mão agarrou seu cabelo — aquele desgraçado iria deixa—la careca — e a empurrou para Gugger.

        Quando aterrissou sobre o peito e os braços deste, ela tentou libertar—se, esquecendo os rasgões em sua roupa. Gugger contemplou a beleza de sua pele, seus longos cabelos, seus olhos violetas. A imagem do garoto se evaporou em um segundo.

        — Mas... que demônios! — retrocedeu.

        Jacqueline caiu no choro, já sem tentar disfarçar, tentando cobrir seu corpo maltratado com os farrapos de sua roupa. Deveria sentir—se aterrorizada, mas a única coisa que invadia cada parte de seu corpo era uma ira infinita. Tudo o que tinha feito para ocultar—se não tinha servido para nada. Nem os dias de duro trabalho nos campos junto a John e Hellen, nem o sofrido esgotamento treinando com Gilbert de Bayard... Nem sequer o asqueroso trabalho das pocilgas! No fim, o maldito normando a tinha descoberto, e agora não só clamaria vingança pela brincadeira, mas também, o pior, poderia exercer sua opção de casamento... E ela teria que submeter—se a seu inimigo e suportar o que viesse pela frente. Acaso um homem não podia fazer com sua esposa o que desejasse, sem ter que responder diante de ninguém?

        Uma tristeza infinita apoderou-se dela. Sentia—se sozinha.

        Mas em seu sombrio universo surgiu um raio de esperança.

        —...nas almeias — explicava Wulkan — Ainda não posso entender a razão pela qual Lynch colocou um espião em Kellinword, mas asseguro que esta harpía sabe mais de fortificações que você e eu juntos. Deveria ter escutado como indicava ao velho o melhor modo de atacar a torre e incendiá-la.

        Gugger prestava atenção a seu amigo, mas não deixava de olhar para Jacky, aniquilado. Até esse momento, só havia visto um rapaz teimoso como um burro de carga, de gênio ruim, metido sempre em roupas muito grandes para seu corpo fraco. E agora era uma mulher! Uma mulher muito bela, por sinal! E espião de Enric de Lynch! Sentou—se na borda da ampla cama, sem tirar os olhos da jovem.

        — O que pretenderá Enric? — perguntou, depois de um longo silêncio.

        — Maldita seja, se eu sei! — Wulkan passeava de um lado para outro da antecâmara, como se Jacky não estivesse presente. — Uma aliança com Kellinword o beneficia claramente. Tenho meios para libertar Lynch de qualquer ataque, mas ele está pensando em me atacar!

        — Por isso mandou reforçar a ronda, a casamata e a torre?

        — Disse ao saxão que se alguns homens ateassem fogo à torre, dividiriam-se as forças entre o fogo e o ataque. E por Satanás que tem razão!

        O outro assobiou entre dentes. Necessitaria um bom gole para pensar com clareza.

        —O que quer seu senhor?

        Jacqueline viu o céu aberto e começou a recuperar o controle. A pura realidade a estava confundindo. Wulkan tinha descoberto sua feminilidade, de acordo, mas estava cego a respeito de sua identidade, tomando—a como uma espiã às ordens de seu avô. Isso lhe dava uma vantagem sobre os dois normandos, se Wulkan não decidisse cortar-lhe a cabeça. Secou as lágrimas com um tapa e ergueu-se lentamente, dirigindo a Gugger um olhar suplicante. Precisava que ele acreditasse nela. Era a única influência sobre Wulkan.

        — O senhor de Lynch não deseja atacar Kellinword, senhor — disse com toda humildade. Wulkan avançou para ela, que retrocedeu. — É verdade! — gritou. — Deve acreditar, milord! Era uma simples hipótese!

        — Abrir os olhos de um cavaleiro saxão, inimigo declarado dos normandos, sobre o modo de atacar meu castelo,era uma simples hipótese? — Gostaria de tirar-lhe dois palmos de língua.

        — Juro!

        — Maldita raposa...

        — Deixe que explique — atravessou Gugger.

        Wulkan suspirou e apoiou-se contra a parede, com os braços cruzados sobre seu imponente peito. Jacqueline olhou de um para o outro cavaleiro e tentou ser o mais convincente possível — sua vida dependia disso.

Não custou muito consegui—lo porque não mentia... a esse respeito.

        — Enric não fez mais que comentar a grandeza do castelo, e eu só me limitei a assinalar seus pontos fracos.

        — O que pode saber uma mulher disso! —cuspiu Wulkan, com desprezo.

        —Meu pai era professor construtor — mentiu ela.

        — Quer me fazer acreditar que uma garota aprendeu o ofício com seu pai?

        — Não, senhor. Eu só o escutava quando falava com sua equipe.

        Os dois homens ficaram em silêncio um momento, pesando em sua resposta. Não era habitual que uma mulher entendesse o trabalho de um homem, mas Jacky já tinha demonstrado que era capaz de fazer coisas pouco habituais para uma mulher.

        — Isso não explica porque está disfarçando — disse por fim Gugger.

        — Escondia—me, senhor.

        — Do que? De quem? — perguntou então Wulkan.

        Jacqueline engoliu em seco e respondeu:

        — Do homem com quem pretendiam me casar, milord. —Fez um esforço e enfrentou seu olhar — Um ser horrível com o qual não estou disposta a me casar por nada no mundo. Pensei que o melhor era escapar disfarçada. Pedi ajuda aos Plowman, e eles me aceitaram em sua granja.

        Wulkan inclinou ligeiramente a cabeça. Até aí, tudo parecia possível.

— E teria me saído bem, se você não estivesse empenhado em me transformar em um maldito escudeiro!

        — Mas Enric a conhece...

        — Como já disse, faz muito tempo vivi na casa de Lynch. — E realmente parecia ter acontecido há uma eternidade. — Ele me conhecia por Jaquette — utilizou seu nome tal e como o faziam os plebeus, já que Jacqueline era empregado quase exclusivamente pela nobreza — E me reconheceu durante o jantar. Mandou—me um recado para nos encontrar—mos nas almeias e me perguntou o que fazia no castelo de um normando vestida de rapaz. Ele me apoiou para escapar desse homem, milord.

        — Por isso me pediu que a deixasse ir com ele a Lynch?

        — Imagino que sim, senhor.

        — Jesus, que história! — brincou Gugger — Afinal de contas, não é mais que uma camponesa que quer fugir dos braços de um noivo não desejado.

        — Detesto esse homem! — disse Jacky, olhando diretamente para Wulkan, com toda a fúria que sentia nesse instante.

        Wulkan pensou durante um minuto. Logo, foi até a porta e a abriu.

        —Vá. Tire esse repelente aroma de chiqueiro do corpo — ordenou com voz rouca.

 

        O príncipe João tinha sido, desde seu nascimento, o preferido de rei Henry, transgredindo os desejos de sua mãe, Leonor de Aquitania, que apoiava Ricardo. Aquela luta para que um ou outro alcançasse o trono da Inglaterra marcou a vida de João. Ao final ergueu-se em rebelião contra seu pai, ajudando seu irmão Ricardo. Por isso, foi recompensado com o senhorio de Mortain e vários feudos na Inglaterra. Entretanto, um anseio provinha do fundo de sua alma para ocupar o trono e, aproveitando a ausência de Ricardo Coração de Leão, que estava nas Cruzadas, ousou exceder-se.

        Ricardo conteve-o durante a luta de Mesina, Chipre e San Juan de Acre. Em setembro de 1192, negociou com Saladino o acesso dos cristãos aos Santos Lugares e sua fama alcançava patamares que João nem tinha chegado a imaginar. Tudo isso contribuiu para minar seu ego e alimentar sua aversão por Ricardo. Mal aconselhado por alguns dos seus, planejou arrebatar-lhe o trono. Ao retornar das Cruzadas, Ricardo foi feito prisioneiro por Leopoldo, Margrave da Austria, e retido no castelo de Diirnstein, cedendo—o posteriormente a Enrique IV, Imperador da Alemanha, que liberou o pagamento do resgate e comemorou.

        João tinha se negado a pagar o resgate por seu irmão, pensando que, desse modo, seria mais fácil ficar com o poder absoluto. Mas os ingleses queriam seu legítimo monarca e reuniram a soma exigida, e assim Ricardo ficou livre e retornou a Inglaterra. Então João perdeu todas as suas posses, que foram imediatamente confiscadas, e viu-se obrigado a exilar—se.

        Mesmo assim, as intrigas políticas não cessaram. Continuou mantendo encontros com alguns, analisando a distância os pormenores da vida da Inglaterra e esperando que se apresentasse uma oportunidade para reclamar o direito que foi negado por seu pai.

        Emil de Noirmont era um daqueles homens que o apoiaram, quando regia o país na ausência de Ricardo, como agora, vil exilado traidor à Coroa. Marcou durante anos seus interesses pessoais para seguir a esteira de quem considerava seu legítimo rei. Embora moralmente sua causa fosse justa, o personagem, não obstante, carecia de honestidade, e não lhe importava sujar as mãos para alcançar seus objetivos. Tinha esta prioridade há anos. Primitivo para ele; tanto, que forjou um ato criminoso vinte e cinco anos antes, do qual não se arrependeu, decidido como estava a chegar até o final. Seus desejos se postergaram, mas sua esperança continuava viva. Mais ainda agora, que dispunha de uma informação que podia usar.

        Olhou o homem na sua frente. Era ambicioso, capaz de tudo, como ele mesmo. Há tempo conhecia suas debilidades e a sorte que teve apenas uma semana antes. Por isso se apresentou na casa de Nortich, pediu audiência e fez sua proposta.

        Gofredo estudou o olhar agudo de Emil e uma sensação desagradável revirou seu estomago. Mas era a resposta a suas preces, de modo que concordou.

        — Um plano excelente, mas perigoso.

        — Benéfico.

        — Poderia reunir uns cem homens, entre infantaria e cavalaria.

        — Perfeito. Eu posso proporcionar alguns mais. Talvez duzentos.

        — Cavaleiros?

        — Posso chamá—los quando quiser.

        — Entendo. Mercenários. De onde tirará o dinheiro para pagá—los?

        — Melhor perguntar de onde tirará você, Gofredo. Não posso arcar com todos os gastos.

        Nortich endireitou-se em sua cadeira.

        — Cem homens são mais que suficientes como contribuição. Não pode querer mais além disso...

        — Os benefícios serão enormes — cortou—lhe. — Já lhe disse que Kellinword não me interessa, para nada... Além disso eu contribuirei com o dobro de soldados. Meu único objetivo é que Wulkan desapareça. É obvio, o butín do assalto será meu, quando tivermos tomado o Castelo. As terras e a fortaleza serão suas, e a ninguém, entenda isto bem, a ninguém terá que prestar contas.

        — Sempre que o príncipe João consiga sentar—se no trono da Inglaterra.

        — Sentará—se.

        — Ele está de acordo com tudo isto?

        — Bom — Emil encolheu os ombros — não exatamente. Tem muito respeito a Ricardo para atacar abertamente. Conspira com o único propósito de encontrar uma brecha que lhe dê a força suficiente para obrigar ao leão a restituir-lhe o senhorio e os feudos. Não é tão corajoso para lutar contra o rei. Mas se Ricardo cair, aproveitará a ocasião.

        — E nos deverá um favor enorme.

        — Deverá o trono. — Emil sorriu.

        A maior força com a qual conta Ricardo é a de Kellinword. Wulkan tem boa quantidade de cavaleiros, e talvez pudesse conseguir mais. O feudo é grande, e conseguir uma boa infantaria não levaria mais de um mês. Mas se Kellinword cair...

        — E os outros nobres?

        — Estão empobrecendo depois da última cruzada. A Cristandade inteira se propôs a sacrificar seus cavaleiros em sua luta contra o Islã, e Ricardo não foi uma exceção. Cada um de seus senhores perdeu homens e dinheiro, e agora tentam recuperar—se.     — Mas ainda poderiam reunir uma força considerável.

        — Não levantarão um dedo. Não estão em condições. Tiremos Kellinword do meio e Ricardo será um rei mais vulnerável.

        Gofredo repensou. Odiava Wulkan. Odiava—lhe desde seu primeiro encontro. O normando representava tudo o que gostaria de ser. E tudo o que desejava que fosse seu filho. Tinha poder e o exercia, obrigou—o a baixar os impostos, sem ir mais longe. Certo que tinham assinado acordos, que lhe tinha prometido fidelidade, mas sentia à humilhação a qual o submeteu.

        — Começarei amanhã mesmo — disse.

        Levantou—se e, estendendo uma taça ao visitante, brindaram com a promessa de tempos melhores.

 

        Sem serem consciente da traição que se abatia sobre a Inglaterra, os habitantes de Kellinword gozavam de uma ansiada paz. Após a chegada do novo lorde, tudo parecia funcionar melhor e, embora os cavaleiros bocejassem pela falta de atividade, os trabalhadores do castelo e os aldeãos viam diante deles um futuro próspero sob a forte mão de Wulkan. Desde que assumiu o controle, e espalhou a notícia de que aquele ano se cobraria a quarta parte dos impostos, todos festejaram a boa nova aclamando seu nome.

        Wulkan observou, apoiado no muro, o incessante vai e vem dos homens . Descarregavam sacos, moíam o trigo, encontravam uma jarra de cerveja e um prato de aveia quente e depois partiam, benzendo seu nome.

        Isso o incomodava.

        Não se acostumava. Era como se pusesse a cota de malhas em cima da carne. Ardia. Não lhe desagradava o júbilo de seus vassalos, mas parecia um servilismo ouvir seu nome aclamado na boca daquela boa gente. Ele era um homem de batalha, e não um suserano a quem todos se inclinavam. Como sentia falta do combate! Seus músculos estavam afrouxando-se com a falta de atividade, e tanto ele,quanto seus soldados tinham engordado. Tinha que pensar em algo para ativá—los. Talvez um torneio que desafogasse os homens e fizesse vibrar às mulheres.

        Uma figura magra o tirou de suas reflexões. Era Jacky. Aproximou—se do poço, amarrou a asa de seu cubo na corda e o jogou no fundo. Carregou o cubo e o que parecia uma réstia de alho e caminhou às pressas. Percebeu que a olhavam diferente de como faziam até então. Era impossível distinguir suas formas femininas debaixo das roupas que usava. Continuava vestida de garoto, e as meias se ajustavam a suas pantorrilhas — agora se dava conta das malditas pantorrilhas — que pareciam perfeitas, embora a túnica, mal ajustada pelo cinturão, tapava até os joelhos. Mas ele sabia o corpo de mulher que cobria aquele tecido.

        De repente, apareceu um menino. Outro, mais velho que ele, perseguia—lhe brandindo um chicote. O primeiro tentou esquivar-se, e o segundo, tremendo dos pés a cabeça, lançou—lhe um golpe que não o alcançou, mas ao agachar para se esquivar escorregou e caiu no chão, deixando escapar um gemido de dor.

        — Não penso ajudá-lo a levantar-se, Roland — disse o maiorzinho, ficando a seu lado. — Por mim, pode ficar aí todo o dia.

        —Machucou-me.

        — Castigo divino — repôs o outro muito sério. Ergueu o queixo e se afastou.

        Wulkan olhava a cena condescendente. As brigas dos meninos lhe recordavam os momentos agradáveis de sua própria infância. Entretanto, o pranto fraco do pequeno continuava, dizendo-lhe que algo não estava bem. Foi até o pirralho mas Jacky se adiantou. Livrou-se dos alhos e cubos e se aproximou dele. Roland chorava , agarrando a perna.

        —O que houve?

        — Peter me empurrou.

        — Não seja mentiroso, Roland — alfinetou. — Peter não o empurrou, caiu ao tentar fugir dele. Perguntei o que aconteceu com sua perna.

        — Quebrei! — gemeu o pequeno.

        — Não é para tanto. — Arregaçou as meias e o apalpou — Um simples raspão. Nada que não se arrume com um pouco de água e sabão para limpar.

        — Arderá...

        — Não perderá a perna — tranqüilizou—o, embora fizesse esforços para não rir — mas devo reconhecer que é uma ferida delicada. Suponho que um menino corajoso como você não vai gritar por um pouco de sabão, verdade?

        Roland, que mal tinha seis anos, secou o nariz e estufou o peito.

        — É obvio que não — afirmou, sem muita convicção.

        — Não esperava menos de um cavaleiro — disse ela, ajudando-o a erguer—se. — O que fez a Pet?

        — OH, só joguei um cubo de água em sua cabeça.

        — Por que?

        — Bom... Eu defendia minha posição e ele tentava ganhá—la. Tinha que fazer algo.

        Jacqueline mordeu o lábio inferior para evitar de soltar uma gargalhada. Acabou de erguer o pequeno e o carregou nos braços.

        — Solte-me, Jacky! — retorceu—se o menino.

        —Vou levá—lo para dentro e curá—lo. — O menino remexeu-se de novo tentando escapar. — Fique quieto, vai cair!

        —Solte-me!

        — Está bem, demônio! — Deixou—o no chão.

        O menino baixou a cabecinha.

        —Já sei que quer me ajudar, Jacky. Mas —baixou a voz—, não quero que vejam que me leva nos braços.

        — Entendo. Sua dignidade ficaria no chão, não?

        — Algo assim. Meu pai diz que um homem deve se cuidar sozinho.

        — Seu pai é tão rude como os outros — disse ela.

        Esqueceu o menino, recolheu suas coisas e caminhou para a cozinha com passos rápidos. — Na realidade, todos os homens são uns malditos brutos.

        Roland viu que ela se afastava de mau humor e sentiu-se culpado. A perna doía, e ainda por cima Jacky se zangou com ele. Começou a chorar novamente e ela voltou. Deixou tudo no chão e correu para o pequeno, abraçando—o contra seu peito.

        — Vamos, não chore. Disse que um homem não chora, Roland, lembra-se?

        — Eu sou um menino! — soluçou o menino.

        Jacqueline riu com vontade, revolveu o cabelo dele, beijou—lhe na bochecha, limpou—lhe as manchas do rosto com sua própria manga e carregou—o para dentro.

        Wulkan respirou fundo quando a perdeu de vista. Nem sequer percebeu que havia deixado de respirar. Por um momento, sentiu ciúmes do pequeno Roland. Sacudiu a cabeça e disse a si mesmo:

        — Não fazer nada acabará me deixando louco.

 

        Jacqueline recolheu uma bandeja de pescado defumado e saiu da cozinha. Encontrava certa grandeza no fato de fazer algo útil, como ajudar Martha. Na casa de seu avô apenas observava, salvo para ocupar—se de que tudo estivesse em ordem, fiscalizava para que houvesse especiarias suficientes, e cozinhava algum prato smples, coisa que adorava. Desde que Wulkan a destinou para este novo cargo, graças à insistência de Martha, tinha aprendido muito sobre os costumes das classes mais baixas.

        Apesar dos saxões terem caído em desgraça, continuavam conservando seu orgulho. Mas não o levavam como estandarte,isso ficava restrito à nobreza. Limitavam—se a viver. Tinham as mesmas preocupações que os senhores — sempre em torno de seu poder aquisitivo — vestir—se, calçar—se e comer diariamente. Gozavam do amor do mesmo modo que podia fazê—lo o senhor do feudo e odiavam da mesma maneira.

        Desde que soube que era uma mulher, Jacky tinha recebido constantes demonstrações de carinho. Martha a tratava com deferência e procurava não lhe encomendar trabalhos muito pesados. Dizia que a achava muito frágil e a comparava,desfavoravelmente, com as mulheres dos trabalhadores, sempre carregando sacos, cuidando das ovelhas ou limpando as terras.

        —Parece uma dama que uma camponesa. Como se a tivessem criado entre algodões — costumava brincar com ela.

        Jacqueline sorria e calava-se...

        Bertrán tinha visto a mudança com alegria, apesar de que tinha instruções de continuar vigiando—a constantemente. Alegrava—se de que ela não tivesse que voltar a treinar porque sabia o quanto foi duro seguir a marcha dos jovens aspirantes a escudeiro. Outros, de soslaio, olhavam sua longa cabeleira solta, mas em nenhum momento voltaram a zombar dela...

        —Jacky, leve essa bandeja de veado — pediu—lhe Martha, assim que retornou…

        Ela pegou a bandeja e saiu de novo para a grande sala. Desviou—se de um par de cavaleiros, de dois cães que cruzaram entre as pernas, a palma da mão de um escudeiro com intenções maliciosas, e acabou depositando—a em um dos extremos da mesa.

        Na cabeceira, os escuros olhos de Wulkan a seguiam onde ia. Voltou—lhe aquele desgosto. Sempre acontecia o mesmo quando seus olhares se cruzavam. Era como um vazio na boca do estômago.

        Gugger deu-lhe uma cotovelada para chamar sua atenção.

– Vísta—a de mulher e talvez acabe em sua cama — aconselhou, malicioso...

        —Antes colocaria uma serpente.

        —Então encontre-lhe um marido e livre-se dela. Ou devolva—a a Plowman. O velho ficará encantado.

        —Certamente, mas não vou obrigar ninguém a tomar conta de semelhante fera, e com Plowman seria apenas uma camponesa a mais…

        —Dê a moça a Lynch. Ele pediu.

        —Hummm... —negou ele.      .

        A Gugger divertiam-no suas dúvidas. Bebeu um gole de vinho e afirmou:

        —Aposto o pagamento de um mês.

        —O que?

        —Aposto o pagamento de um mês que essa moça acaba em sua cama.

        Wulkan não culpava Gugger que fosse promíscuo; culpava a si mesmo porque parecia adivinhar seu desejo mais íntimo desde que descobriu que Jacky era uma mulher. Ansiava dominar aquele espírito rebelde. Mal—humorado, levantou-se da mesa.

        —Está bêbado.

        Montauband soltou uma gargalhada e ergueu sua taça para o lorde.

        —Acredito que muito em breve encherei minha bolsa por sua causa, amigo. Muito em breve.

        Wulkan abandonou o salão, deixando que cavaleiros e escudeiros desfrutassem da noitada. Uma vez mais, subiu às almenas e acotovelou-se nas pedras. Parecia que ali seu mau humor passava. Com olhos críticos, abrangeu tudo que se estendia a seus pés. Seu castelo, seus trabalhadores, suas terras... Ricardo lhe tinha dado um grande presente, mas também o havia obrigado a mudar de vida. Até há muito pouco só se preocupava com seu cavalo, seu escudo e suas armas. Agora, um elevado número de pessoas dependiam dele e de suas decisões. Não estava certo de estar à altura.

        No horizonte, o sol se ocultava, e sua mortiça luz cobria os prados de um tom quase violeta. Aquela cor recordou-lhe os olhos de Jacky. E abriu caminho às curvas de seu corpo, que avistava sob seu surrado casaco. De repente, endureceu—se como a pedra sobre a qual se apoiava. Fechou os dentes com força, bateu no muro e espantou de sua mente a imagem de mulher que monopolizava seus pensamentos como nunca antes ocorreu.

        O sol ocultou—se totalmente, mas a luz das tochas, em baixo, no pátio, silenciou sua figura magra. Ali estava ela. Sua perturbação. Seu desejo.

        Jacqueline esticou os braços atrás da nuca e ergueu seu cabelo, que caiu em ondas, refletindo a luz das tochas. Suspirou enquanto se perguntava quanto faltava para que Deus a permitisse retornar a Lynch. Sabia que Kellinword recebeu uma mensagem de Enric, informando ao lorde que tinha enviado bilhetes a vários pontos do território para localizá-la. Bertrán continuava sendo seu confidente. Ao que parecia, Wulkan não se importou com a notícia. Parecia se importar pouco se a mulher que escolheu Ricardo aparecesse por fim, ou se perdesse no inferno. Isso, sem dúvida, beneficiava—a. Seu avô daria um tempo em sua busca, tal como tinham combinado, e se Wulkan pretendia selar uma aliança com Lynch antes do ano novo, era muito possível que decidisse unir—se a Clara. Pela cena nos celeiros, estava certa de que ambos tinham intimidade.

        Por alguma razão, aquele pensamento produziu-lhe um certo mal—estar. Bocejou. A jornada tinha sido dura, como todas em um castelo daquelas dimensões e com tantas necessidades. Ao menos, iria dormir com um raio de esperança no futuro. E com um pouco de sorte, Wulkan esqueceria de lady Jacqueline e ela poderia escapar de Kellinword de uma vez por todas.

        Levantou—se ao amanhecer. Martha lhe havia dito antes de deitar—se que precisava ir às compras e que ela deveria acompanhá—la, de modo que roubou horas do seu descanso e deixou preparado o mingau do café da manhã antes de que esta despertasse. Tomou uma rápida ração de aveia com mel e um copo de leite. Ouviu a missa e suportou a curta exortação de Medardo de Lecoy em relação aos pecadores que, para acobertar suas faltas, guiados por Satanás, tendiam a ocultar suas verdadeiras identidades. Deu—se por advertido — o monge tinha ficado indignado ao saber que era uma mulher, chamando—a de perversa sem escrúpulos. Ia à igreja para sentir—se mais perto de Deus, embora pensasse que seus representantes na Terra, em geral, não mereciam tal título.

        Martha e ela passaram da primeira muralha. Aquele dia o mercado estava mais animado, e escutaram que estava para chegar uma companhia de comediantes, farándulos excelentes que tinham feito sucesso em Londres. Jacky entusiasmou-se com a notícia. Fazia muito tempo que não via uma representação teatral e, se eram verdadeiros os rumores esperava desfrutar de uma brevemente.

        Martha comprou um par de caçarolas após barganhar firme com o vendedor. Era boa nisso. Ela não teria conseguido nunca um preço tão baixo.

        Diante da banca de um mercado onde estavam tecidos de lã trabalhada, Jacky deixou escapar uma imprecação. Wulkan as estava observando a meio metro. Martha, entretanto, saudou—lhe.

        —Bom dia, milord.

        —Excelente —disse ele.

        A moça fez menção de afastar—se, mas ele a segurou, tomando—a pelo braço.

        —Pensa continuar vestindo-se como um garoto?

        —Incomoda—o?

        —Incomodaria—me não saber cuidar de minhas propriedades.

        —Não sou propriedade de ninguém! —Ergueu seu queixo belicoso.

        —Isso ainda vamos ver —resolveu ele, e a soltou. Tirou de seu cinto uma bolsa de dinheiro, que Martha apanhou no vôo – Vista—a como uma mulher.

        Afastou—se rapidamente, embora não suficientemente rápido para não escutar uma réplica que se perdeu no vazio.

        —Pode guardar seu dinheiros onde...! Martha lhe deu um soco e ela se calou.

        —Não seja ingrata, jovenzinha —murmurou. —Poucos senhores gastariam seu dinheiro para procurar roupas decentes para uma camponesa tão magrela como você —pesou a bolsa — E pelo que vejo, de forma generosa. Venha, vamos ver o que encontramos.

        —Não vou comprar nada. Estou muito bem assim.

        Martha moveu a cabeça, admirada por sua firmeza.

— Ora! Mas se quer continuar trabalhando em minhas cozinhas, assim não pode vestir-se. Assim, pode retornar ao chiqueiro. Ali precisará de roupas novas.

        O asqueroso aroma dos porcos chegou ao seu nariz e cortou seu protesto. Seria capaz de qualquer coisa para não ir as pocilgas. Acabou encolhendo os ombros.

        —Bom. Se o normando quer gastar seu dinheiro, dane.

Martha a conduziu até o final da ruela, onde sabia que encontraria o que procuravam com as moedas de que dispunham. Compraram dois vestidos para o trabalho diário, uma peça de fustão para confeccionar outro para os dias de festa, duas camisas de linho e uma peça de lã. Uns sapatos de meio salto completaram o traje, e ainda restou dinheiro para um par de lenços. Jacky escolheu um vermelho e Martha um verde, mais discreto.

        Quando acabaram e retornaram as suas tarefas à torre, a cozinheira estava de muito bom humor.

— Menina, estou pensando que milord preocupa—se muito com você.

        —O que quer dizer?

        —Não é preciso ser muito esperta para notar que gosta de você. Quando se viu um homem desprender—se assim de uma bolsa para comprar o enxoval de uma moça?

        A cozinheira via coisas onde não havia. Tinha que ser isso, Por Deus! Só faltava que, depois de tantas privações, Wulkan se encantasse com ela!

        Martha fez com que entrasse em uma tina de água quente e Jacky não resistiu absolutamente. Fazia mais de duas semanas que não tomava um banho adequado. Devia conformar—se com uma rápida lavagem. A cozinheira determinou que a moça dormisse em seu próprio quarto — um espaço na parte atrás das cozinhas, que compartilhava com seu marido, Roy, encarregado das cavalariças de Wulkan, e com Roland, seu filho.

Roy não se opôs que outra pessoa dormisse no quarto deles. Geralmente, os criados descansavam no grande salão, nas quadras e, até mesmo nas adegas –nestas, só no verão, onde a temperatura era mais baixa para a boa conservação dos vinhos apinhados uns contra os outros e envoltos em suas capas ou mantas. Os solteiros dormiam a sono solto depois de um dia de exaustivo trabalho, e os casados faziam amor sob suas mantas, sem se importar com os que estavam em volta. Até então, Jacky tinha tido sorte, dormindo com Bertrán no quarto de Gugger. Agora, a sorte voltava a lhe sorrir com Martha. Entretanto, a princípio, sentiu—se acanhada ao escutar um casal mover—se sob as mantas e sussurrar ou gemer. Então levantava-se, envolvia—se em uma capa e saía, até que calculava que tinham terminado seus jogos amorosos. Logo retornava, aconchegava-se perto da pequena lareira, fechava os olhos e dormia.

        O banho cai—lhe como uma bênção. Martha lavou seu cabelo e o secou com uma toalha de linho. Logo a ajudou a vestir—se, emprestando-lhe um véu de musselina para rodear o peito. A regata caía até os tornozelos e seu toque pareceu uma bênção, depois de suportar a aspereza de suas roupas. Era branca, e tinha a gola e os punhos bordados. O vestido era formado de um corpete justo, uma longa franja que realçava sua silhueta e uma longa saia aberta de um lado.

        Jacqueline olhou—se e ficou espantada com a mudança. Já não era a moça que vivia na casa de Lynch, com os melhores tecidos a seu dispor e os cabelos perfumados. Tinha sido durante tanto tempo Jacky, somente Jacky, que era comovente voltar a observar à verdadeira lady Jacqueline, embora não dispusesse de seus vestidos elegantes.

        A túnica realçava sua figura, seus seios pequenos, firmes e altivos, e moldava seu ventre e os quadris. O decote era amplo e redondo, e as mangas largas e ligeiramente bufantes nos cotovelos. É obvio, não chegava a ser uma típica túnica de uma dama.

        Martha penteou sua longa cabeleira em duas tranças, que deixou cair de cada lado, por cima dos ombros.

        —É uma moça muito bonita —elogiou. — Não é extranho que Wulkan quisesse ver a mulher que escondia-se sob estes farrapos.

        —Só o fez porque prometeu a John cuidar de mim. Já que não pode me transformar em escudeiro, deseja me devolver como uma moça bem educada.

        —Não diga bobagens. Wulkan poderia tê—la largado ao vento quando soube que o enganou. Ninguém o teria recriminado, porque não teria faltado a sua palavra, já que deixou aos seus cuidados um rapaz e não uma jovenzinha.

        —Está enganada, Martha.

        —Pequena, eu não estou acostumada a me enganar nestas coisas. E agora, ao trabalho, perdemos muito tempo e há muito que fazer.

        Nesse momento, o pequeno Roland entrou correndo.

        —Mamãe! —agarrou—se nas saias da mulher e abriu a boca para lhe dizer algo, mas ficou assim, com a boca aberta, seus grandes e claros olhos arregalados — É você?

        A Jacqueline sua ingenuidade teve sabor de glória. Agachou—se e lhe beijou na ponta do nariz.

        —É o melhor elogio que já recebi, Roland.

        O pirralho enrugou seu nariz arrebitado e encantador, com aquele rosto doce e salpicado de graxa.

—Agora não poderá brincar comigo.

        — Por que não?

        —Vestida assim... — Assinalou suas roupas novas.

        — Prometo que brincaremos da mesma forma.

        —Não sei...

        —Roland —interveio sua mãe— se tiver algo a dizer, diga. Temos trabalho.

        —Ah, sim! —Sorriu de orelha a orelha. —Chegaram os artistas!

        —Finalmente! —exclamou a suas costas outra das ajudantes.

        —Bem, isso significa que teremos que preparar jantar para mais convidados. Quantos são?

        —Eu vi seis —disse encantado. —E um deles dava saltos para frente e para trás sem cair! Tem que vê—lo, mami!

        Jacky contagiou-se com sua inocência e alegria. O menino estava eufórico diante da perspectiva de ver atuar os cômicos. Naqueles tempos, era algo extraordinário contemplar os acrobatas, e alguns artistas ambulantes que percorriam a Inglaterra de um extremo a outro e se tivessem sorte, algum estranho animal de longínquas terras. Ter comediantes no castelo era um acontecimento para todos. Prometeu a si mesma que ninguém conseguiria estragar sua festa naquela noite. Nem sequer a presença de Wulkan.

 

        Como era de se esperar, aquela noite foi especial para os habitantes de Kellinword. Todo mundo acolheu com entusiasmo os comediantes, eram poucos, mas com muitas habilidades. Aplaudiram suas picantes histórias —exceto Medardo de Lecoy, que parecia ter comido um porco espinho — regozijaram—se da habilidade do jovem saltimbanco , riram com os malabaristas e extasiaram-se quando um deles tomou vários copos de uma mesa e começou a lançá-los no ar e a recolhê—los sem derramar a bebida nem cair no chão. Mas o prato forte foi o teatro. Encenaram com esmero uma obra curta a que chamaram de Tristán. A história, trágica, foi apresentada por um dos atores; tinha sido escrita apenas quatro anos antes. Ao final da representação, Tristán — cujo papel recaiu no jovem saltimbanco— ferido de morte, perecia na Bretanha. Antes pedia a seu cunhado, Kaherdin, que fosse a Inglaterra e procurasse Isolda, a esposa do rei Marcos, por quem sentia um amor profundo. Kaherdin abraçava Tristán e se despedia dele. Para encenar o balanço de um navio, os atores remavam sobre uma das largas mesas, utilizando um lençol para parecer as velas, apresentado com um toque de humor que diminuia a tragédia. Ao primeiro vento, Kaherdin partia para Londres, com um carregamento de sedas e aves estranhas e a intenção de chegar até a corte, ver Isolda e lhe dar a mensagem de Tristán.

        Inclusive alguns cavaleiros pigarrearam ao final da obra, quando Tristán morre. As mulheres choravam e as crianças não perdiam um detalhe.

        Quando o fraco ator que dava vida a Tristán tombou sua cabeça em sinal de morte, os aplausos aumentaram e a companhia saudou o público. Logo, entre palmadas de costas e palavras de admiração, sentaram—se no extremo da mesa e comeram e beberam até fartar—se, enquanto um deles cantava e tocava a cítara .

        Jacqueline subiu Roland em seu colo.

— Gostou?

        —Sim, mas não entendo uma coisa, Jacky. Se esse homem... como se chama?

— Tristán.

        —Isso. Bem, se morreu, por que levantou—se e saudou a todos?

        A jovem riu com vontade e abraçou o pequeno.

— Roland, carinho, é só teatro. Imagine se os atores tivessem que morrer a cada representação? Não restariam comediantes.

        —Mas se estava morto! —insistiu o pirralho.

        —Não estava. Se fingia de morto. Como quando você brinca com Peter e acerta-o com a espada. Cai no chão e fecha os olhos, não é verdade?

        —Entendo —disse, pensativo. — Estão brincando.

        —Algo assim, carinho. Algo assim.

        Do outro extremo do salão, Wulkan não perdia nenhum de seus movimentos. Sentiu uma estranha sensação quando a viu tão bela, vestida de mulher, servindo as mesas com o resto dos criados. Desse momento em diante, mal pôde afastar os olhos dela. Tentou, em repetidas ocasiões desviar sua atenção de sua esbelta cintura, de seu cabelo trançado, de seu busto erguido, e concentrar—se na representação. Mas não pôde, e mal desfrutou do espetáculo.

        —O que achou? —perguntou Gilbert.

        —O que?

        —A obra. Esplêndida.

        —Sim, claro, esplêndida.

        —Parece distraído —disse Bayard. Logo, serviu-se de mais vinho e esqueceu Wulkan.

        Gugger, entretanto, inclinou—se para seu amigo e cochichou em seu ouvido.

        —O pagamento de um mês, Wulkan, lembre-se. O lorde deu um pulo em sua cadeira

        —Vá para o inferno, Gugger!

 

        Para as matinas , todos estavam deitados exceto Jacky.

        Depois da festa, onde o vinho e a cerveja correram soltos, bêbados como estavam, não fizeram outra coisa além de cair em qualquer lugar e dormir. Mas Martha e Roy ainda estavam suficientemente sóbrios para acariciar—se debaixo das mantas. Como em outras ocasiões, Jacqueline levantou-se, envolveu—se na capa e abandonou o quarto. A grande sala estava lotada. À exceção de Wulkan e Gugger, o resto dormia em qualquer parte. Inclusive Bertrán estava jogado em um canto, perto da lareira.

        Jacqueline saltou os corpos adormecidos e saiu. O ar fresco da noite obrigou-a a ajustar a capa, mas a deixou mais lúcida; também tinha ingerido mais cerveja do que devia. Durante um minuto permaneceu apoiada no muro, com os olhos fechados, cheirando a noite, escutando o vento e o canto dos grilos. Se não fosse por encontrar os normando, a noitada teria sido perfeita. Por uns instantes, lembrou—se da representação: inclusive tinha esquecido de sua verdadeira situação, sentindo—se em casa, rindo e chorando enquanto os atores davam vida a seus personagens.

        Abriu os olhos e fixou-os no céu. O firmamento era maravilhoso. Milhares de estrelas representavam formas estranhas e assombrosas, e ela deixou vagar sua imaginação, como quando era uma menina, transformando—se no vôo de um falcão ou em uma águia e elevando—se até alcançá-las com a ponta de seus dedos. Suspirou e tomou o caminho do jardim. Sentia vontade de dormir ao ar livre, embalada pelos sons da noite, como se estivesse em Lynch. Quantas vezes se encontrou dormindo sobre o banco de pedra no jardim que com tanto amor cuidava sua mãe!

 

        Wulkan mudou de posição e encontrou um corpo quente ao seu lado. Ergueu—se sobre os cotovelos e amaldiçoou ao perceber que ainda estava de botas. A moça que dormia junto dele era bonita, ou assim pareceu à luz das tochas. Sua longa cabeleira escura emoldurava um rosto ovalado e moreno com longos cílios. Estava vestida, embora o sutiã permanecesse tal como ele havia deixado, quando entraram na antecâmara. Lamentou o modo como a tinha tomado nos braços. Ela, como outros, havia bebido mais do que devia, e sua risada ressoava na galeria enquanto abraçava seu pescoço. Era parte do grupo de atores, e que o senhor do lugar desejasse seus favores, não era novidade. Estava acostumada.

        Para Wulkan, só tinha representado um modo de deixar Gugger intrigado. E acalmar sua própria consciência. Mas tudo tinha saído errado, totalmente errado. Logo que entraram, deixou—a cair sobre a cama e descobriu seus seios, mas a imagem de Jacky esfaqueou sua mente de forma desumana. Escapou para a galeria para clarear a cabeça e ao retornar, convencido de que a saxã não era mais que um mau pensamento, encontrou a jovem atriz tal como a deixou, totalmente adormecida. Melhor que não despertasse. A empurrões, tinha—a colocado de um lado do leito e ele ocupou o outro. Tentou dormir e, sobretudo, esquecer o sonho com Jacky vestida de mulher. Mas não pôde. Sua acompanhante roncava e falava em sonos, o que avinagrou ainda mais seu já péssimo humor.

        Levantou—se da cama e pensou em fazer o mesmo com a atriz, mas acabou cobrindo—a com as mantas, vestiu o casaco e saiu, renegando a mulher. Todas eram iguais, umas harpías que nublavam os sentidos dos homens e os faziam cometer as maiores burrices.

        Aproximou—se do quarto de Gugger, rezando para que estivesse sozinho e talvez compartilhar seu leito, mas aquilo era pedir muito. Uma vez mais, encontro—o acompanhado de duas loiras das quais somente pôde distinguir as cabeleiras, um braço e um par de pernas entre a confusão de mantas. Fechou com cuidado a porta e desceu até o salão. Saltando os corpos adormecidos, alcançou a saída. O ar fresco da noite o serenou. Rodeou o pátio de armas e avançou para o pomar. Pouco a pouco, em seus lábios formou-se aquela velha canção que o recordava a dama de cabelos dourados de seus sonhos. Nunca saberia se aquela mulher era sua mãe, mas se agarrava aquela esperança com unhas e dentes porque foi sua única fonte de carinho durante sua infância. Agradava—lhe recorrer a aquele remédio quando se encontrava, como agora, só e abatido.

        Então descobriu a quem transformou-se em seu Némesis .

        Jacqueline pegou uma pedra e a lançou no poço. A lua, redonda e prateada, iluminou as ondas lá embaixo. Gostou e procurou outra pedra. Aproximou—se mais do poço, colocando sua mão esquerda na borda, com meio corpo para dentro, para ver melhor as ondas.

        Talvez houvesse se inclinado muito.

        Wulkan sentiu que o coração subia à garganta e em dois passos estava ao seu lado, segurando—a pela cintura. Ela gritou,assustada, e ele a afastou da borda.

        —O que está fazendo? Não vê o perigo? —perguntou ele a queima roupa.

        Jacky sobressaltou-se, envolveu—se mais na manta e respondeu, desafiante.

        —Não podia dormir.

        Wulkan acomodou-se no parapeito do poço e olhou a enorme torre. Jacqueline o observou com aqueles olhos violeta, incômoda por sua intromissão, sem saber se ficava ou partia. O normando parecia em paz, e ela tampouco se encontrava muito irritada, embora, por um momento, vendo-o sentado na borda do poço, pensou em como seria fácil empurrá—lo e acabar com ele. Ninguém a tinha visto sair da torre e ninguém sabia que estava no jardim. Tirando o normando do meio, acabariam todos seus problemas. Bufou e esmagou o chão com força como se quisesse reduzir a nada seu estúpido e perverso pensamento. Seria capaz de tudo para escapar daquele homem, mas até aí não chegaria, embora a idéia fosse tentadora. Certamente, estava louca. Deveria curar-se da cerveja que ingerira. A voz dele a deixou pasma.

        —Como é ter uma mãe, Jacky?

        Ficou olhando com os olhos arregalados, sem saber o que responder. Estava zombando dela? Todo mundo tinha uma mãe, Por Deus! Acaso aquele louco pensava que as pessoas saíam das couves?

        —Não entendo — conseguiu dizer. Wulkan sorriu com tristeza.

        —Esqueça — disse, sacudindo a cabeça. —foi uma pergunta estúpida. Volte para a cama, moça. —Saltou do parapeito— Começa a fazer frio.

        Jacqueline tentou organizar seus pensamentos. Desde que chegou em Kellinword, tinha aprendido: ele nunca fazia uma pergunta em vão.

        —Por que me perguntou isso?

        —Não sei! —passou a mão pela nuca, visivelmente aborrecido. —Vamos, vá, Martha não gostará se amanhã levantar com um resfriado.

        Jacky assentiu, mas não se moveu. Ele parecia precisar de uma conversa amiga e... enrijeceu—se ao tomar consciência de que sua couraça estava rachando. Se precisava de companhia que procurasse Montauband! Mas não pôde evitar e perguntou:

        —Não conheceu a sua, milord?

        Seu olhar revelava um conflito interno, e ela pensou que havia voltado a zangá—lo, mas o que provocou seu aborrecimento foi reconhecer que ela tinha aberto uma brecha em seu escudo. Devia estar mais bêbado do que pensava para abrir seu coração a uma harpía como aquela, inimiga de seu povo e de sua pessoa.

        —Não lembro —grunhiu, apesar de tudo. Jacqueline sentiu a resposta como um golpe no peito. Desde a morte de seus pais, foi incapaz de desfazer-se do sentimento de frustração e perda, mas ao menos ela, pensou, tinha lembranças. Reconfortava—se de sua mãe passeando pelo jardim, costurando ou conversando com outras damas, brincando como se fosse uma menina quando corria atrás dela... E Aelis, com as saias amarradas acima dos joelhos, tentando apanhá-las. Wulkan não tinha nada. Era um órfão com passado, mas sem memória. Sem ser consciente do que fazia, deu um passo para ele e apoiou-lhe a mão no braço.

        —Lamento —sussurrou. —Quer falar disso?

Wulkan a olhou e apertou os punhos até cravar as unhas nas palmas. O que estava acontecendo com ele? Que fazia aquela hora no jardim, revelando para aquela estranha seus pesadelos? Maldita de podia reconfortá-lo! Maldito se queria sua ajuda, por todos os infernos! No olhar limpido de Jacky acreditou ver um pouco de compaixão, e isso o encorajou.A única coisa que faltava era que uma saxã encrequeira e mentirosa tivesse consideração por ele! Pegou—a pelo braço, disposto a devolvê—la às cozinhas. O contato foi como um murro em pleno tórax. A descarga o aturdiu. Jacky continuava olhando—o com aqueles olhos grandes e cristalinos, tão estranhos e misteriosos que, sob a luz da lua, pareciam tornar—se prateados e feiticeiros. Um desejo insano se apoderou dele: a imperiosa necessidade de tê—la mais perto. Sua mente pedia para afastá—la; seu corpo, retê-la.

        Em lugar de soltá—la, aproximou—a com um puxão, enlaçou sua estreita cintura e a acomodou em seu abraço.

        Jacqueline quis protestar, mas lábios quentes cobriram os seus.Contorceu—se, presa nos braços que a apertaram mais. A boca de Wulkan, ávida e avassaladora, exigia resposta. Uma boca doce e lábios suaves que pressionavam os seus, suas brandas formas de mulher coladas em seu grande corpo, seus pequenos seios cravados em seu peito, suas pernas contra suas coxas... Tudo estava contra ela. Sua cabeça começou a dar voltas, enquanto a língua de Wulkan invadia sua boca, enviando descargas de adrenalina que arrepiavam seus nervos.

        Não estava preparada para um jogo cujas regras não dominava. Seria capaz de defender—se de qualquer outra perseguição, ou talvez tivesse tentado. Mas contra aquela plenitude só podia flutuar. Nunca a tinham beijado e abraçado como fez Wulkan, de um modo feroz, autoritário, exigente e embriagador. As sensações que invadiram seu corpo eram tão novas que não soube como impedir. Seus instintos de mulher despertaram como a erupção de um vulcão adormecido durante séculos, de forma selvagem. Reparou no calor que se expandia por seus membros, pelo peito e a cabeça. A boca dele queimava, e seus mamilos, sensíveis, ergueram—se.

        As mãos de Wulkan perderam-se sob a capa que a cobria. Jacky fechou os olhos com força e abriu a boca para respirar, momento que aproveitou ele para apanhar sua língua e mordiscá—la. A eletricidade arrastou a pouca prudência que restava. Quando aquelas mãos grandes, calosas, seguraram nas nádegas e as apertaram contra seu corpo, sentiu-se tonta.

        Sem saber como, deixando—se guiar por um instinto irracional, enroscou os braços e rodeou seu pescoço. Escutava—o gemer em sua boca e sentiu que a erguia do chão sem deixar de beijá—la. Wulkan avançou para a torre seguindo os impulsos de seu corpo, da fome voraz que o consumia. A calça o apertava, provocando—lhe dor pela premente e imperiosa necessidade de possui—la. Sem afastar os lábios de sua boca, atravessou o grande salão com sua preciosa carga nos braços. Ao chegar à galeria, lembrou-se da atriz e mudou seu rumo. Gilbert tinha um pequeno aposento do outro lado, que compartilhava com Guillermo, mas ambos estavam bêbados, deitados entre os que dormiam no salão…

        Jacqueline conseguiu separar seus lábios dos do normando e olhou seu rosto. Na penumbra o achou atraente e temível, insolente e gracioso como um deus pagão. Wulkan a tinha aniquilado, pois ela era incapaz de ordenar suas idéias. Queria escapar e ficar entre seus poderosos braços. Seus olhares se encontraram e ele voltou a beijá—la enquanto seus dedos acariciavam um de seus mamilos, em uma nuvem de sensações cheia de magia.

        Wulkan empurrou a porta com o ombro, entrou e fechou—a com o pé. A cama pareceu—lhe um estrado de rosas, e a depositou sobre ela com incrível suavidade. A lareira estava acesa, mas mesmo assim lançou duas lenhas mais sobre as brasas, e dedicou—lhe um feroz olhar de desejo. Seu grunhido e a acelerada respiração de Jacky foi a única coisa que se escutou.

        Certamente, para Wulkan tudo ajudou. Sua inocência, seu sobressalto diante de tantas e tão novas sensações, a penumbra do lugar, o crepitar do fogo... Aproximou—se com passos decididos e arrancou a capa, descobrindo uma regata branca, barreira leve que eliminou rapidamente.

        Jacqueline estudou cada movimento, cada gesto de seu bronzeado rosto.Ela arecia uma marionete. Mas não questionou o que estava fazendo, nem se importou que seus olhos escuros a devorassem quando ficou nua sobre as mantas. Tinha a impressão de que estava onde devia estar. Que aquele era seu lugar. Que sempre tinha sido. Gemeu e ergueu os quadris ao contato dos dentes que mordiscavam seu joelho. Nadava em um mar enfurecido no qual ansiava afundar. E deixou-se levar. Uma mão masculina massageou sua têmpora, seus cabelos, suas pálpebras, e a outra se perdia na suavidade de uma perna de seda. Quando os dedos de Wulkan alcançaram o triângulo entre suas coxas, Jacky arfou e abriu os olhos como quem acorda de um sonho. Sentimentos profundos tinham tomado conta dela e soube que estava a sua mercê, sem forças para lutar, se é que realmente queria fazê—lo.

        Sem deixar de olhá—la, Wulkan acariciou o pêlo entre suas pernas e se afogou ao ver o rubor colorir o delicado rosto.

        —Deus...! – escapou—lhe, ao tocar a umidade quente entre as coxas femininas.

        Como um autômato, desfez—se da roupa. As botas ricochetearam no chão de pedra. Cobriu—a com seu corpo e voltou a acariciar sua pele, fogo e veludo. Acabou perdendo a prudência. E então Jacky voltou a abraçá-lo. Percorreu os músculos de suas costas com suas pequenas mãos e o delírio que o consumia chegou ao seu ápice, e ele só pôde pensar em tomá—la. Separou—lhe as pernas com um joelho. A pressão tornou-se dolorosa, e seu membro, duro e latente, penetrava sem dificuldade na intimidade que o chamava...

        Um segundo depois, quando encontrou no caminho fechado, já era muito tarde. Muito tarde para deter a loucura que tomou conta de seus atos, muito tarde para frear o desejo que sentia.

        Muito tarde para parar e pensar que estava desflorando uma virgem saxã.

        Wulkan empurrou e Jacqueline afogou um gemido de dor contra seu ombro, suas unhas cravadas em suas costas.

—Fique quieta, pequena. Quieta... Passará em um segundo.

Realmente, a dor abrandava, pouco a pouco, e uma plenitude estranha e maravilhosa abriu caminho ao senti—lo totalmente dentro de si, enchendo—a. Já não importava nada, salvo manter Wulkan colado a ela, dentro dela, e apagar o fogo que a consumia. Algo entre suas coxas pedia para explodir, e quando ele começou a retirar—se, segurou—o com força, clamando em silêncio para que não se afastasse. Por instinto, rodeou os quadris masculinos com suas pernas. Wulkan voltou a penetrá—la, brandamente, com delicadeza, como se ela fosse o objeto mais precioso do mundo. Quando suas estocadas tornaram-se mais potentes e decididas, abandonou—se definitivamente ao prazer que a arrastava para o delírio.

        Suas unhas rasgaram—lhe quando veio o orgasmo. Gritou seu nome e uniu os quadris ao seu ritmo desenfreado.

        Escutou—o gemer junto a seu ouvido e sentiu esticar o magnífico corpo do guerreiro. Logo, uma paz incrível foi se estendendo por cada músculo, como se retornasse das nuvens. Um torpor que não podia vencer a colocou dentro dos braços dele, com ternura, e adormeceu. O pêlo do peito masculino fazia cócegas em seu nariz, mas negou-se a perder aquela calma. Suspirou e deu-lhe um último olhar sonolento e grato antes de abandonar—se ao sono.

 

        Quando Martha despertou, Jacqueline já preparava o café da manhã. Eram apenas seis da manhã. Foi ao pátio, lavou—se e retornou às cozinhas trançando o cabelo, disposta ao trabalho diário.

        —Levantou cedo —disse Martha,com uma saudação. —Dormiu mal?

        —Pouco.

        —Nota—se. Tem umas olheiras horríveis.

        Instintivamente, Jacqueline levou as mãos ao rosto. Rezou para que a cozinheira não indagasse mais sobre o motivo de sua insônia. Imaginou que devia ter o mesmo aspecto que Clara depois de uma noite de jogos amorosos. Ruborizada, voltou—se de costas, tomou um cubo e encaminhou ao pátio novamente.

        —Vou pegar água.

        Logo que saiu, sem poder evitar, deu um rápido olhar para o salão. Seu coração se deteve ao ver Wulkan falando com Guillermo de Bruswich. O outro jogou as mãos na cabeça. Wulkan riu com vontade.

        Jacky esqueceu da água e retornou às cozinhas imediatamente, antes que Wulkan a visse. Deixou o cubo, agarrou Martha pelo braço e disse:

        —Não me viu. —Olhou—a, esquecendo—se da massa que estava sovando. —Wulkan vem aqui. Não queira saber, pelo amor de Deus, só lembre-se que não me viu.

        —O que houve?

        —Martha!

        —OH, está bem. Não a vi.

        Jacky deu um ligeiro beijo na bochecha da senhora e escapuliu para os fundo da cozinha, escondendo—se entre uns sacos. Encolheu—se o quanto pôde e escutou as passadas do normando, invadindo as dependências.

        Wulkan saudou jovialmente Martha e perguntou por Jacqueline. Os batimentos do coração de Jacky cessaram, temerosos certamente de chegar aos ouvidos dele. Não queria vê—lo. Não podia vê—lo, por todos os mártires do Céu! Não, depois do que tinha acontecido na noite anterior!

        A resposta de Martha pareceu convencer o lorde, que partiu roubando-lhe antes um biscoitinho. Jacky, apesar de tudo, demorou um minuto para sair de seu esconderijo e só o fez pelo interesse de Martha. Quando apoiou-se na mesa, estava pálida. Martha a obrigou a sentar—se em um dos bancos.

        —E agora, jovenzinha, me diga o que fez.

        —Nada.

        —Quero saber. Não me faça mentir ao lorde, menina.

        Jacqueline a olhou, consternada. Aguardava uma explicação, mas ela não podia dar—lhe sem contar que acabou na cama do normando! Antes cortaria os pulsos! Soltou a primeira coisa que veio à mente:

        —Ontem à noite discuti com ele.

        —Sobre o que?

        —O de sempre.

        —Outra vez voltou a acusá-lo de assassino? —alarmou—se Martha— Pois parece que está acostumando—se, porque estava de bom humor.Algum dia, vai conseguir fazê-lo perder a paciência.

        —Disse que mandaria me açoitar —mentiu— Por isso, estou me escondendo.

        —Wulkan disse isso?

        Jacqueline ergueu-se, derrubando o banco.

        —Wulkan, sim! Acredita que é um anjo caído do Céu?

        —Milord não faria isso.

        —Milord não faria isso, milord não faria aquilo. Seu lorde é capaz de tudo! —acabou gritando. Era. É obvio que era. Acaso não a tinha seduzido? Não havia se aproveitado de sua inocência? Não se aproveitou de sua ingenuidade.

— Tudo.

        Martha encolheu os ombros e voltou para a massa.

— Continuo sem entender o que se passa com ele, menina, conheço esse homem desde que chegou aqui e não é como diz. Deixe que dê um conselho, Jacky. — Soltou a massa de repente, levantando uma nuvem de farinha. —Mude seu modo de ser ou vá embora de Kellinword, porque o lorde não é um jovenzinho ao qual possa amedrontar com brigas, mas um homem feito. Não consentirá por muito tempo com seus insultos, mesmo que salvado a vida dele.

        —Lembre-se que é ele quem insiste que eu fique no castelo, devido a sua maldita promessa.

        —Cuide de sua língua! —repreendeu. —E se for assim, baixe a guarda, criatura. Wulkan não é nenhum monstro, embora seja normando. Nem todos os normandos são uns animais, e conheço alguns saxões aos quais o adjetivo cai como um anel no dedo.

        Jacqueline suspirou e escapou dali. Não podia suportar suas censuras quando começava a elogiar Wulkan. Para Martha, aquele era o homem mais sensato, arrogante e cavalheiro do mundo. Estava cansada de escutá—la.

        Saiu com tanta rapidez que não reparou na direção que tomava e, ao dar a volta, chocou—se contra uma verdadeira muralha.

        —Ora, até que enfim a encontro.

        O nó na garganta a impedia de falar. Com um esforço sobre—humano, Jacky obrigou—se a olhar em seu rosto. Mas arrependeu-se imediatamente. Wulkan sorria como um demônio. Tinha o cabelo negro úmido e estava tão atraente que quase ergueu-se nas pontas dos pés para beijá—lo. Sua altura e a largura de seus ombros a presnsaram,deixando-a sem saída. Ela ruborizou e baixou a cabeça, que levantou um segundo depois quando o polegar dele roçou, de passagem, seu mamilo direito.

        —Pensei em ir a falcoaria.

        Ela não disse uma palavra. Estava começando a notar de novo aquela aborrecida debilidade. Sua proximidade a aturdia, privando-a de seu bom senso. A seu cérebro retornaram, como adagas, as cenas da noite anterior. A calidez de seu corpo, seus tórridos beijos, suas delicadas carícias, a ternura de suas mãos...

        —Talvez seja o momento para me mostrar o que sabe dos falcões —murmurou, enroscando uma das mechas de seus cabelos entre os dedos.

        ...O fogo que a tinha consumido, as ligeiras mordidas que deu em seu pescoço, o modo arrebatador como a preparou para recebê-lo...

        —... no monte —acabou ele, puxando um cacho para que prestasse atenção.

        —O que?

        Wulkan riu baixinho e ela o amaldiçoou por ser tão avassaladoramente atraente. Oxalá fosse disforme e repugnante. Ou corcunda e com o rosto marcado pela varíola. Dessa jeito, seria tudo mais fácil.

        —Dizia que encontrarei ajuda para Martha enquanto estamos no monte.

        —Sinto muito, não posso ir.

        Wulkan parou de mexer em seu cabelo, mas apoiou as mãos no muro e a deixou presa entre seus braços. Não quis tocá—la e tentou concentrar—se na fivela de seu cinturão, onde luzia o mesmo emblema que em seu brasão.

        —Acredito, pequena, que não me entendeu. Não é um convite para um passeio. —Sua voz endureceu e seus olhos adquiriram um tom esverdeado. — É uma ordem, Jacky.

        —Recordo—lhe, milord, que não sou uma escrava, sou uma serva livre —protestou sem levantar o rosto— e uma convidada em Kellinword, conforme disse você mesmo. Portanto, não devo obedecer suas ordens.

        —Então por que não se negou a ir às pocilgas?

A lembrança do castigo a irritou, e desta vez o enfrentou.

        —Porque não queria que descobrisse minha identidade!

        —Basta! Começo a ficar farto de seus protestos e negativas, moça. E de suas desculpas! Quando prometi a Plowman fazer de você um homem, reconheço que me deixei enganar por seu ridículo disfarce. Agora decidi convertê—la em uma dama, e uma dama não pode ficar todo o tempo nas cozinhas, de modo que virá comigo e aprenderá o que uma jovem deve...

        —Não irei!!

        Wulkan rilhou os dentes. Olhou—a de tal modo que seu estômago se contraiu. Não era possível que aquela Jacky fosse a mesma que teve em seus braços na noite anterior. Fazia o amor como uma mulher de verdade, suave e doce, e agora estava enfrentando uma víbora. Agarrou—a pelo braço e a arrastou, sem se importar com suas queixas. Quando chegaram ao pátio de armas, Jacky viu que Gugger, Guillermo e Gilbert estavam já a cavalo e que havia duas montarias preparadas. Tentou escapar, mas os dedos que a prendiam eram grilhões, e não pôde evitar que Wulkan a depositasse no lombo de uma delas de forma bruta. Tentou saltar, mas ele apontou para ela, com um dedo ameaçador.

        —Jacky, se voltar a discutir minhas ordens, juro pelo mais sagrado que torcerei o seu pescoço.

        Desafiava—a a desafiá—lo. Com um gesto orgulhoso, tomou as rédeas, lançando-lhe um olhar de desprezo. Esporeou os flancos do cavalo e trotou rumo ao portão sem prestar atenção às risadas divertidas dos cavaleiros.

        Ela dominou o cavalo com agilidade e ele montou, entre as brincadeiras dos outros. Parecia claro que era incapaz de dominar aquela fera. E ele começava a pensar que tinham razão.

 

        As pernas do garanhão chapinharam na borda do riacho quando Emil de Noirmont aproximou-se. Depois das saudações, e Gofredo foi direto ao assunto enquanto tentava tranquilizar a sua nervosa montaria.

        —Enric de Lynch não se unirá a nós.

        —Falaram com ele?

        —Não sejam tolo. Não confio nesse homem. Nunca o fiz. É estranhamente fiel a seus princípios, e isso o torna perigoso. Tirei minhas próprias conclusões. Como sabem, sua neta mais velha, lady Jacqueline, está prometida a Wulkan por ordem expressa de Ricardo. Por outro lado, Enric parece ter em alta estima o rei, apesar de tudo. Apesar de ser normando, quero dizer, não se ofendam. Em Lynch se respira um ar pouco propício ao príncipe João.

        —Não é o único lugar— sorriu Emil— Vivo essa sensação em Charandon.

        —Mas seu irmão...

        —Robert, meu meio—irmão, pensa que Ricardo é o verdadeiro rei, que o velho Henry deveria ter cedido-lhe o trono antes. Não me falem de atmosfera de traição, Gofredo, sei o que é isso.

        —Sabe o conde o que estamos tramando?

        —Agora é você o tolo. Jamais permitiria que Robert conhecesse meus planos... nossos planos —retificou imediatamente. —Me enfrentaria. E estou há muito tempo esperando para conseguir o que me pertence —acabou, em tom misterioso.

        —Bem. Podemos ter os homens reunidos nos primeiros dias de agosto.

        —Preferiria que fosse antes.

        —Alguns vem de muito longe. Acalme sua impaciência. Eu o faço, apesar de arder em desejos de atacar o castelo de Wulkan.

        —Tem razão. Daremos tempo ao tempo. Veremo—nos nos primeiros dias de agosto, e então, Gofredo, nosso exército superará o de Kellinword. Passaremos esse castelo sob o fio de nossas espadas. Quando terminarmos, juro que Wulkan não será mais que a lembrança de um bastardo.

        —E colocaremos João no trono.

        —OH, sim. Claro. Colocaremos João no trono da Inglaterra.

        Emil manobrou as rédeas e se afastou sem despedir—se.

        Gofredo o seguiu, entreabrindo os olhos. Sabia quais eram seus motivos para unir—se à causa de João, mas Noirmont parecia ter uma razão oculta. Pressentiu que não era somente colocar no trono o irmão de Ricardo e ganhar honrarias, e se perguntou o que aquele verme aninhava em seu interior para que desejasse tão fervorosamente acabar com Wulkan.

 

        Para seu pesar, Jacqueline estava consciente da atenção do normando enquanto cavalgavam para o alto de um monte. Não tinha deixado de observá—la desde que saíram do castelo. Escutou, sem desejar fazer parte na conversa, os comentários animados e às vezes picantes dos quatro cavaleiros.

        —A primeira aposta —dizia Gilbert— Conseguiria seu cavalo na primeira aposta.

        —Não seja idiota. Gorman deixaria para você só o capacete.

        —Também você deixaria?

        —Acaso duvida? O capacete, e esmagado.

        As brincadeiras de Gugger foram recebidas com muito bom humor.

        —Acredito que seria bom participar desse torneio —disse Wulkan, centrando sua atenção no rebolado de Jacky sobre o cavalo. —Desse modo, poderiam demonstrar até onde são verdadeiras suas brincadeiras.

        —Participará?

        —Por que não iria fazê—lo?

        —Bom... já sabe... —Gugger piscou os olhos para os outros— Um cavaleiro atento às saias de uma camponesa, não presta atenção em sua montaria.

        Um coro de risadas acompanhou o comentário. Logo, em tom elevado, para que Jacky pudesse ouvi—lo, disse:

        —Não acredito que haja camponesa capaz de anular os sentidos de um guerreiro. — Esporeou seu cavalo para colocar—se ao lado dela. —Não acha o mesmo, moça?

        Jacky, como resposta, esporeou seu cavalo e voltou a adiantar—se até circundar a colina. Abaixo, o bosque estendia-se como um braço verde e frondoso que embalava o castelo. E sobre eles, as aves, um bando de pombas que voavam para o oste.

        —Vamos ter uma caça magnífica —disse alguém. Wulkan estendeu o braço para Jacqueline. Sobre seu braço, enluvado em grosso couro, um jovem falcão gerifalte , com sua cabeça coberta por um capuz escuro, movia—se inquieto. Gugger levava outro magnífico animal, um macho um pouco mais pesado que o de Wulkan e ao qual esteve tranqüilizando durante todo o trajeto.

        —Não tinha que me ensinar algo, princesa? —Wulkan continuava com o braço estendido e a expressão zombadora.

        Jacqueline viu nele uma pose de superioridade. Estava convencido de que ela não saberia conduzir uma ave como aquela. Nos tempos atuais, além do cavalo e do cão, um falcão representava nobreza. Era o animal preferido dos cavaleiros. Por isso Wulkan o gravou em seu brasão, como símbolo do falcão em repouso em seu pescoço, no medalhão que arrebatou de Levrón. Jacky sabia que a posse de um falcão dignificava qualquer cavaleiro além da falcoaria, que, embora fosse um esporte selvagem, nem sequer as damas resistiam a praticá—lo.

        A ela, particularmente, estimulava o poder que a ave transmitia em seu braço, lançá—la ao ar já sem capuz e o modo sublime como se orientava em vôo, batendo suas asas e sulcando os céus em busca de uma presa a qual abater com um único e certeiro golpe. Possuir um falcão era muito caro. Dar de presente um, inestimável. A posse daquelas formosas aves estava proibida ao povo. Entretanto, Wulkan estava oferecendo-lhe o seu, que sem dúvida representava seu poder aquisitivo. Mas com um único propósito: zombar dela.

        Por um instante, esteve tentada a rejeitar a oferta. Mas a lembrança de seus dias de caça junto a seu avô, colocando a prova seu próprio falcão, falou mais alto. Estendeu seu braço e desafiou Wulkan em silêncio.

        —Mas, o que está fazendo? —interveio Gugger— Se for conduzir esta ave, use uma luva ou rasgará seu braço.

        Wulkan sorriu plenamente. Ela nem sequer percebeu. Passou seu falcão com um movimento rápido para o braço esquerdo e a ave agitou as asas, cravando suas afiadas garras no tecido. Tirou a luva de couro e a estendeu para ela, que colocou-a com rapidez. Sua ousadia fazia a delícia dos homens, diante da perspectiva que oferecia uma plebéia que acreditavam incapaz de dominar tão magnífico animal. O falcão do lorde estava nervoso e eles sabiam que precisava de uma mão firme.

        Jacqueline estendeu seu braço já protegido e aflorou um sorriso irônico em seus lábios.Iria demonstrar aqueles fedidos normandos que uma mulher saxã tinha mais astúcia que todos eles juntos. Wulkan passou-lhe o falcão e ela sentiu o peso da ave em seu braço como uma bênção. Foi como se lhe entregassem o passaporte de seu orgulho, a honra de seu sangue nobre, há muito tempo pisoteada pelo povo da Normandía. Ergueu—se nos arreios e espiou o horizonte, aproximando o animal de sua boca e sussurrando tão baixo, que ninguém ouviu o que dizia.

        Ao primeiro bando de pombas, seguiu um segundo. Jacky acariciou a suave plumagem do falcão e gorjeou brandamente com os lábios. Esperou um momento para que o animal se acostumasse a esse som e logo, com um rápido movimento, eliminou o capuz e o impulsionou para o espaço.

        Gugger fez o mesmo com o seu e ambos alçaram vôo em busca de vítimas. A aposta estava valendo. Para Gugger não importava que Wulkan quisesse perdê—la para zombar de Jacky. Precisava de dinheiro e não importava-se se,para isso, tivesse que aliviar a bolsa de seu amigo.

        Por um instante, diante do perigo, o bando de pombas perdeu velocidade e se dispersou, tentando escapar. O falcão de Gugger adiantou-se ao de Wulkan e lançou-se para uma das presas. Esta, no último momento, voltou-se inesperadamente, o que deu vantagem ao outro falcão, que, de primeira, impactou com sua vítima. A pomba, mortalmente ferida, efetuou um estranho giro no ar e precipitou-se a terra.

        Guillermo e Gilbert lançaram gritos de vitória. Gugger chamou seu falcão, e Wulkan, assombrado, assobiou também ao dele. O animal escutou-o, efetuou duas voltas mais, como quem reconhece o terreno, e lançou-se direto para o braço erguido.

        Ninguém esperava o que aconteceu a seguir. Jacqueline ergueu seu braço pouco depois do normando e emitiu um pequeno ruído, parecido a um beijo. O jovem gerifalte vacilou no ar e, para assombro de todos, pousou no braço enluvado da jovem, que ria, encantada.

        Se o tivessem esbofeteado no meio da corte, Wulkan não teria ficado tão petrificado. Incrédulo, observou o falcão sobre o braço de Jacky, como um gato manhoso, sob as carícias da mão feminina. Os cavaleiros, hipnotizados, não acreditavam no que viam, e ele tampouco. No bosque, em coro, escutavam-se as risadas ensurdecedoras de seus cavaleiros.

        —Perdi, mas não acredito que tenha que pagar a aposta —disse Gugger, afogado pela risada e satisfeito,apesar de tudo— Não acredito que para Jacky interesse um tonel de vinho francês e uma prostituta.

        Guillermo e Gilbert voltaram a explodir em gargalhadas.

—Então essa era a aposta? —disse ela, encapuzando à ave com seu olhar fixo no rosto sério do lorde.

        —O falcão é meu e devo pagar a aposta.

        —Certamente a perdi, mas não contra você. Estou em dívida com Jacky, e ela decidirá o pagamento que quer ganhar.

        —Não quero nada. Foi um prazer desfrutar do falcão, milord —disse, estendendo a ave para seu dono. —Mas acredito, senhor, que deve continuar treinando—o. Parece propenso a ir com qualquer um.

        Wulkan quase o arrebatou do braço dela, e Jacky ficou encantada. Acabava de ridicularizá-lo. Devolveu—lhe a luva e libertou com deleite a gargalhada que, até aquele momento, esteve contendo. —E agora, meu senhor, retornamos?

        Esperaram a resposta do lorde, agora mais contido. A manhã de caça parecia ter se estragado pelo negro humor de Wulkan, mas estavam divertindo-se com o ocorrido. Na realidade, todo mundo tinha desfrutado de um modo ou de outro, desde que a jovem chegou ao castelo. Ela quebrou a monotonia. Até então ninguém tinha ousado contradizer Wulkan, mas ela o irritava até fazê-lo perder as estribeiras. Era outro homem desde que ela deu—lhe um sopapo diante de todos. No fundo de seus corações, os três cavaleiros a admiravam.

        —Onde aprendeu falcoaria? Estas aves estão proibidas aos camponeses.

        —Já disse que me criei em Lynch. Cuidava das aves.

        —Seu avô, verdade? —ironizou Wulkan.

        —Ao que parece, milord, ensinou—me melhor do que ensinaram a você.

        As gargalhadas explodiram de novo. Gugger limpava as lágrimas com o dorso da mão. E Wulkan acabou dando—se por vencido. Era impossível calar a língua afiada daquela camponesa, e apesar de tudo, cada vez que a olhava, recordava—lhe a suavidade daquele corpo ao abraçá—la. A agressividade de Jacky não fazia nada a não ser excitá—lo até o colocar duro como uma pedra. Precisava possuí—la de novo. Tocou o pescoço de seu cavalo e desceu, a trote, da colina. Outros o seguiram. No remanso do rio, Wulkan fez um gesto para Gugger e ambos distanciaram-se ligeiramente.

        —Vão. Agora —ordenou Wulkan.

        —Isso, não.

        —Agora, Gugger.

        —Está louco? Já sei o que pretende, mas pelo amor de Deus, pense um momento. Atacaram—nos uma vez no bosque e poderiam voltar a fazê—lo. Não ficarão sozinhos.

        —Quero que o faça agora mesmo.

        —Por todos os Santos! Tome—a no castelo, com as costas cobertas, sob o amparo dos muros. Acha que vale o risco?

        —Gugger, não me esquente o sangue.

        —Mais ainda? —encolerizou—se. —O que há com você? Perdeu o juízo ? Digo que não penso em deixá-lo só no...

        —Gugger..., se não for... —pressionou um dedo contra o estômago de seu amigo como se fosse uma adaga — Já não vai mais.

        —Apodreça no inferno! Está avisado. Retornaremos ao castelo e espero que algum proscrito o mate, seu idiota. Acreditava que o que tenho entre as pernas nublava apenas o meu cérebro , mas...

        Wulkan o viu afastar—se. Seu sangue bulia e, em outro momento, talvez tivesse pensado com sensatez. A mesma que demonstrava Gugger. Mas sua necessidade de Jacky era mais imperiosa que qualquer suposto perigo.

        Ladeira abaixo, Gugger apontou algum lugar entre a folhagem, do outro lado do rio.

        —Um cervo. Vamos perseguí-lo. Gilbert e Guillermo, venham comigo. Wulkan e Jacky vão circundar, cruzando rio acima.

        Dando uma palmada na garupa de sua montaria, saiu a galope, cruzando a água e abrindo rios de espuma em seu cavalgar, seguido por seus companheiros.

        Sem perceber a manobra, Jacky encontrou-se a sós com Wulkan. Perguntou—se para onde se dirigiam. Não lhe interessavam os cervos, ela não sabia que tudo tinha sido obra de Gugger. Sim, realmente observou o olhar sombrio de Wulkan e começou a temer o pior.Agarrou as rédeas com muita força.

        —Vai ficar aí, enquanto os outros alcançam a caça?

        —Eu já tenho a caça que me interessa.

        —Partiram por sua ordem? —enrijeceu—se ela.

        —Exatamente. Temos que falar.

        —Não temos nada para falar, milord.

        —São modos diferentes de ver as coisas. —Desmontou e deixou seu cavalo livre para que pastasse. – Desmonte.

        —Nem sonhe.

        Wulkan analisou o terreno com um olhar, acostumado a tomar decisões em batalha em questão de segundos, quando sua vida dependia disso. Ele ia a pé e Jacky a cavalo, mas só tinha duas saídas: ou passava ao seu lado ou atravessava o riacho. Ela não era tola, e caso tentasse escapar por onde foram seus homens, daria de frente com eles. Certamente, ele não iria deixar que isso acontecesse.

        —Desmonte agora.

        Jacqueline arriscou-se. Tudo, pensou, menos voltar a ficar a sós com ele. Quando a olhava desse modo, já não raciocinava. Impulsionou seu cavalo e lançou-se para o estreito atalho nas costas do normando. Por um instante, Jacqueline viu possibilidades, mas ele saltou para esquivar-se dos cascos. Enganou—a. O que fez Wulkan esticar os braços e arrancá—la da sela com um puxão, fazendo—a cair diretamente em seus braços. Já no chão, apanhou sua boca. Jacky chutou suas pernas, mas ele intensificou o abraço como se quisesse romper suas costelas. Nem por um momento a soltou, nem deixou de beijá—la, e suas mãos trasnformaram-se em garras de aço.

        Não se cansou de beijá—la, e somente afastou-a um pouco de seu peito. Cravou o olhar em seus lábios, inchados pela carícia. Suaves, carnudos, vermelhos... Deus, beijaria—a por toda a vida, maldita fosse! Chutou—lhe uma coxa, embora quisesse acertar mais para cima. Ele segurou seus braços com uma só mão e passou a outra pela zona golpeada.

        —É uma harpía.

        —Que vai cortar sua alma assim que me soltar! —cuspiu ela.

        —Mas meu amor..., não penso soltá-la.

        Embora Jacky soubesse o que pretendia, não pôde escapar. Contorceu—se, tentou mordê—lo, chutou—o de novo com a ponta da bota... Wulkan alcançou o corpete e o abriu, tentando evitar os socos e as mordidas. Logo, com uma rasteira, atirou—a no chão e ele caiu sobre ela.

        Contorcia—se como uma possessa. Gritou. Insultou—lhe com as palavras mais profanas que conhecia em três idiomas. Seus dentes alcançaram o braço de Wulkan e cravou-os nele sem misericórdia. Mas isso somente atrasou um pouco as intençóes de Wulkan. Subiu—lhe a túnica e seus dedos perderam-se entre suas coxas.

        —Solte-me! Porco! Bastardo!

        Para Wulkan, os insultos e seu mau gênio era uma delícia que o excitava ainda mais. Por mais que ela gritasse, ninguém viria em seu socorro. Ele era o lorde, dono e senhor de tudo o que abrangiam seus olhos, e tinha o direito de... Deixou de pensar e sossegou seus gritos, beijando—a de novo.

        Foi uma briga muda, com os corpos derrubando—se sobre a terra. Mordeu—a no lábio e o sabor do sangue a anuviou.

        —Maldito! —insultou—lhe de novo, embora, apesar de tudo, a briga estava excitando—a extraordinariamente. — Juro por meu sangue saxão que o matarei na primeira ocasião.

        Wulkan deixou de brigar,mas não a soltou. Seus olhos, brilhantes de desejo, e seu membro, duro e quente, apertavam contra seu ventre, consumido de luxúria.

— Ontem à noite me desejava, Jacky.

        —Agora não!

        Olhou—a muito sério durante um instante. Logo, arrogante como nenhum outro, disse:

        —Mesmo? —Baixou a cabeça e mordiscou um dos mamilos, que imediatamente endureceu. —Mesmo, Jacky...?

        Passou a língua pelo outro mamilo. Antes que ela, afogada já em sensações, pudesse responder, seus lábios acariciaram sua clavícula, subiram pelo pescoço, a orelha, dando pequenas mordidas no lóbulo e a ponta da língua lambeu seu ouvido.

        —Mente, pequena raposa saxã. —Agora a boca estava sobre suas pálpebras, na ponta do nariz, de novo sobre os lábios, lambendo as comissuras, sem beijá—la, atormentando—a, fazendo com que o desejasse de novo— Mente, carinho. —Apanhou seu seio e sugou levemente.

        O corpo de Jacqueline reagiu com um espasmo de prazer que a desarmou. O maldito estava fazendo de novo! Seduzindo-a e excitando-a de um modo que a anulava! Desejava-o de um modo febril e insano.

        Wulkan ganhou em sua insistência. Sentiu que o corpo de Jacky se entregava, abrandava—se. Seus esforços por libertar—se transformaram-se em um baile erótico. Dedicou sua atenção ao outro seio, chupou, mordeu ligeiramente, soprou sobre ele... Quando enterrou sua mão entre as coxas femininas, ela enrijeceu os quadris e soluçou, tomada por uma febre desconhecida. Sua razão se diluía vertiginosamente sob as carícias.

        Os dedos de Wulkan tornaram-se delicados. Agora seus lábios a amaram com uma doçura terna e calma. Esperou pacientemente que fosse ela quem lhe mostrasse o que desejava. E ela não esperou mais. Já não importava que se encontrasse meio nua no bosque, onde qualquer camponês, proscrito, ou mesmo seus próprios cavaleiros pudessem descobri—los. Importava sua boca, queimando por onde passava. Importava sua língua, o sabor da pele sobre seu pescoço, a dureza de seu corpo. Seu aroma, mistura de couro e sândalo. Importavam suas mãos, que tocavam onde nunca antes ninguém se atreveu a tocar.

        Wulkan baixou as calças. Não precisou as pernas de Jacqueline porque estava ansiosa para recebê—lo. Quando entrou nela, ela gemeu e abraçou-o com força, acariciando seus músculos por cima do casaco de couro. Puxou as duras nádegas masculinas e segurou-as, como se quisesse fazê—lo seu prisioneiro.

        Foi uma união rápida, violenta, em que tanto ele quanto ela possuíram e foram possuídos. Wulkan investiu em sua intimidade como um demente e ela insistia que fosse depressa, mais forte, até que seu jovem corpo esticou-se e de seus lábios escapou um gemido longo que se uniu ao rugido dele, em um orgasmo quase simultâneo.

        Wulkan deixou-se cair sobre o corpo de Jacky, exausto, atordoado pela intensidade do prazer que havia sentido. Pesava, mas não se importou. Deitou—se de barriga para cima. Ela cobriu—se como pôde e sentou, abraçada a suas próprias pernas. O ardor entre as coxas tinha desaparecido, mas o que havia em seu coração ainda estava lá, como uma chama que não se apagava. Olhou para Wulkan, que mantinha os olhos fechados e um braço sobre o rosto. Tinha um corpo esplêndido. Sentiu um desejo infantil de acariciar o escuro cabelo, enquanto se perguntava o que estava acontecendo com ela.

        Deveria ter se matado antes de entregar—se aquele homem pela segunda vez. Seu corpo havia voltado a traí—la. Por um lado, desfrutou do prazer de haver possuído o magnífico corpo de Wulkan; por outro, desprezava—se por sua fraqueza. Nem sequer podia desculpar—se, porque demonstrou que o desejava! Não era uma vulgar rameira, mas se entregou como tal. Era uma dama, criada e educada para ser a esposa de um cavaleiro de honra saxão e, entretanto, transformou—se na rameira de um bastardo normando... Escapou—lhe um soluço e no segundo seguinte, ele estava murmurando palavras de carinho, protegida por fortes braços, que a rodearam e a acomodaram em seu amplo peito.

        —Por que está chorando?

        —Deixe-me.

        —Não. —Quero que me diga o que houve. —Eu acho que não foi tão ruim —brincou.

        —Não entende nada!! —Empurrou—o e ficou em pé.

        Wulkan a achou arrebatadora com o rosto ruborizado, o cabelo revolto e com alguns ramos nele. Seus olhos violeta brilhando de novo pela fúria...

—O que tenho que entender? —perguntou, erguendo-se e colocando as calças.

        —É meu inimigo, Wulkan! Os seus mataram meus pais! E me tomou como uma prostituta que...!

        —Cale-se!! —Agarrou—a pelos ombros e a sacudiu até que acreditou que a cabeça iria separar-se de seus ombros. —Não volte a dizer isso, Jacky! Nunca! Não pode se sentir suja porque não a tratei como uma rameira.

        —Admito isso. —enxugou o nariz com a manga. —Mas continua sendo meu inimigo.

        Wulkan suspirou, desanimado.

        —Jacky, escute... —Agarrou—lhe o rosto entre suas mãos e a beijou na ponta do nariz. —Desde que nos vimos pela primeira vez, tratou—me como um imprestável, embora não tenha feito nada para merecer isso. Não posso ser alvo de seu ódio só por ser normando.

        —Matou meus pais —repetiu ela, obcecada.

        —Mas não fui eu! Claro que matei saxões, por que iria negar? E eles tentaram me matar. É a guerra, Jacky. Mas terminou. Agora Ricardo é o rei de todos e o ódio deve terminar.

        —Quer que lembre-me disso quando rezar diante da tumba de meus pais?

        Rasgavam—lhe suas palavras.

        —Fala de dor como se fosse a única que sofreu nesta luta. Acaso pensa que os outros são de ferro? —gritou. — Deixe-me lhe dizer que sofremos como você. Talvez mais. Você teve a sorte de conhecer seus pais; eu nem sequer sei quem eram. Só lembro do homem que me criou e cuidou, se cuidar se pode chamar receber uma surra a cada dia. Um punho golpeando meu rosto e um látego ou um pau que marcavam minhas costas em cada ocasião... Batalhei, Jacky. Vi morrer a meus amigos lutando contra os filhos do Islã... mas não culpo ninguém pelo que aconteceu.

        —Você não viu arrasarem sua casa —gemeu ela.

        —Mas vi morrer em meus braços um rapaz de quinze anos ao qual os saxões fizeram prisioneiro —disse, com a voz carregada de cólera . —Um jovenzinho que não era mais velho que você, que adorava tocar a flauta e recitar canções. Jamais tinha usado uma arma, não era um perigo para ninguém, mas seus elevados e Santos varões saxões o prenderam e torturaram para que dissesse os pontos fracos da fortaleza em que nos encontrávamos com Ricardo. Deveria ter visto antes de me cuspir na cara que os normandos mataram seus pais. —Jacky chorava em silêncio, mas queria que sofresse como um ato de expiação. —Deveria ter visto seus olhos abertos, seu corpo cortado e queimado de forma horrível... Empalado! – faltou-lhe a voz.

        Jacqueline tapou os ouvidos. Não queria escutar atrocidades. Não dos seus. Wulkan agarrou seus braços e a obrigou a ouví—lo.

        —Pode ser que os normandos tenham causado muitas mortes e destruição na Inglaterra, Jacky. Pode ser que tenha motivos de sobra para nos odiar, mas... o que os outros fizeram não deve voltar-se contra mim.

        Ela não pôde suportar mais e explodiu em soluços, apoiando—se em seu peito. A couraça de Wulkan veio abaixo pela primeira vez em sua vida. Abraçou—a com ternura, com uma ternura infinita que não pensou que coubesse em outro ser humano. Tomou—a em seus braços e a levou até seu cavalo.

        Retornaram devagar, sobre o garanhão de Wulkan, como um casal que voltasse de um passeio pelo bosque. E ninguém nunca soube de tudo que se acusaram.

 

        Aprender a jogar xadrez era parte da educação de um cavaleiro. Para conseguir habilidade mental, deviam receber as primeiras lições na mais tenra idade. Wulkan, entretanto, não teve contato com o tabuleiro até conhecer aquela mulher rica que ofereceu seu amparo e o educou. Mesmo assim, defendia—se bem: era bom estrategista e um competidor difícil de ganhar.

        Aquela tarde, seu rival habitual não estava com humor para mover as peças. Gugger nem sequer tinha lhe dirigido a palavra, embora estiveram lado a lado, durante a comida.

        Sentado frente ao tabuleiro, solitário, sua mente vagou recordando cada instante transcorrido desde que conheceu Jacky. Seus longos dedos brincavam com uma das peças, enquanto evocava aquele corpo, que começava a obcecá—lo.

        Por sorte, Guillermo veio tirá-lo do transe. Sentou—se em frente a ele e começou a colocar suas peças.

—Cinco moedas?

        Wulkan assentiu, mecanicamente, mas mal ouviu a pergunta.

        —Como?

        —A distração é pouco recomendável para este jogo. Digo que devemos jogar a cinco moedas. Ou prefere esperar que Gugger diga que não vale a pena continuar zangado?

        Wulkan passou a mão pela nuca e remexeu-se na cadeira.

        —Parece que está zangado.

        —E não é para menos. Sua decisão não foi lógica. E além disso, foi perigosa.

        —Você também?

        —Pelos Céus! Quem sou eu para dizer a meu lorde o que é ajuizado e o que não é?

        Wulkan não passou por cima do tom irônico de Bruswich.

—Querem minhas desculpas por escrito? Guillermo acomodou-se, esticando as pernas. A luz do entardecer brilhou em seu cabelo curto e castanho, que o fazia parecer mais jovem do que era.

        —Jogue. Se é que pode afastar os olhos dos quadris de Jacky.

        Todo mundo sabia que naquele jogo comprometiam-se interesses consideráveis: tinham mudado de mão granjas inteiras, castelos, o destino de uma mulher, de um feudo e, inclusive, de um reino. Wulkan sabia que nem tudo era certo, mas algumas mentiras, repetidas, sempre continham uma verdade. No xadrez não se apostava a vida, nem o reino, nem os castelos. Nem o destino de nenhuma dama. Apostar dinheiro era proibido pela Igreja, embora isto a maioria dos cavaleiros não se importasse, e inclusive algumas damas de classe. Leonor da Aquitania, segundo esses rumores, era muito hábil no manejo das peças, e dizia-se que muitos nobres franceses e ingleses dobraram-se diante dela.

        O tabuleiro costumava ser de madeira trabalhado ou de metal e, certamente, um objeto de luxo que o proprietário exibia, embora desconhecesse seu manejo. O de Wulkan era a parte superior de uma caixa ricamente enfeitada, de grandes dimensões, no interior do qual se dispunha de espaço para outros jogos, como o gamão . Era totalmente branco, com raias gravadas nos ocos que formavam as casinhas, realçadas em tom vermelho para delimitar as sessenta e quatro. A peça principal era o rei, de ébano, com coroa. Logo estavam os cavaleiros a cavalo, os soldados a pé, a figura do senescal sentado, o bispo representado por um bispo (na França era a figura de um conde, e em outras partes podia ser representado por uma árvore ou um ancião). A torre, dois monstros entrelaçados.

        Guillermo pegou as figuras brancas e moveu primeiro. Wulkan, as vermelhas. No jogo de xadrez, voltava-se a dar a luta pelos símbolos: o branco, o nada, enfrentava o vermelho, a cor por excelência.

        A partida estava desde o começo a favor de Wulkan. Moveu os peões com uma estratégia que recordou Guillermo como era no campo de batalha, onde Wulkan era soberbo. Encurralou—o no quarto movimento, mas revidou, colocando diante de seu rei às torres e um bispo. Situou o cavalo na defensiva e conseguiu levar a frente o senescal de Wulkan em um movimento inteligente.

        Alguns servos foram colocando-se, silenciosamente, ao redor dos dois jogadores para dispor as mesas do jantar. Uma sombra cobriu o tabuleiro por uma fração de segundo e Wulkan a seguiu: era Jacky ajudando nos serviços. Cruzaram—se seus olhares por um instante e ele voltou para o jogo, esforçando—se para afastar de si a íris violeta da garota. Aquela leve distração foi suficiente para desperdiçar sua vantagem, e Guillermo se aproveitou. Dois movimentos rápidos e a defesa de Wulkan paralisou-se. Entregou um bispo e se viu encurralado como antes tinha estado Guillermo.

        —Você move.

        Wulkan não era capaz de pensar com clareza. Voltava para ele, uma e outra vez, como um enxame de vespas, a acusação dilacerante de Jacky: «Você os matou... ». encontrou—se com seu rei preso. Um movimento mais e levaria um cheque mate. Passou as mãos nos cabelos, gesto que não passou desapercebido a seu companheiro.

        Guillermo inclinou-se para ele por cima do tabuleiro e sussurrou:

        —Tome—a, ou afaste—a de sua vida, porque não serão somente cinco moedas que vai perder se continuar obcecado por ela.

        Maldita seja! Todos estavam conspirando contra ele?

        Derrubou a peça de seu rei e levantou-se, mal—humorado. Pegou sua bolsa, tirou cinco moedas e atirou-as sobre o tabuleiro.

        —Bertrán! —gritou.

        Da entrada das cozinhas, Jacqueline o viu sair a grandes passadas e perguntou-se que bicho teria mordido desta vez o normando.

        Depois do jantar, ajudou a recolher tudo e a preparar a massa do pão para o dia seguinte. Saiu ao pátio, lavou—se e retornou ao quarto que ocupava com a família da cozinheira. Na pequena arca onde guardava seus escassos pertences, não encontrou a regata limpa, nem o vestido que foi confeccionando com ajuda de Martha. Não deu tempo de perguntar a ela, por que esta estendeu—lhe um objeto de seda, de cor branca.

        —Pegue, Jacky.

        Pegou. Tinha um toque aveludado e suave. Era uma bela roupa, bordada com esmero no pescoço e nos punhos. Talvez muito chamativa para sua atual condição.

        —De onde a tirou?

        —O lorde a enviou há apenas um momento por meio de Bertrán. Não é divina?

        Aquilo irritou Jacqueline. Lançou o objeto para Martha, que pegou-o no ar para impedir que caísse no chão, sujo de pó e graxa.

        —Não a quero.

        —Temo que não terá outra alternativa além de aceitar.

        —Onde está o resto das minhas roupa?

        —Nos aposentos de Wulkan.

        —O q...? —engasgou—se.

        —Ordenou que levassem suas coisas para lá. E isto é um presente para que use esta noite.

        Tentando se controlar, Jacqueline apertou os punhos contra seus quadris.

        —Diga-me exatamente o que ordenou esse pedaço de...

        —Mas, o que há com você? Jamais conheci uma moça tão reticente a aceitar o amparo do senhor. Não percebe a sorte que tem?

        —Sorte! Chama de sorte ser sua rameira?

        —Chamo de sorte aceitar os cuidados do lorde. Não nos enganemos, Jacky. Tem idade suficiente para ter marido, mas não é casada. Seria diferente, certamente, se tivesse um marido, um homem que a protegesse. Não tem, e as mulheres de nossa classe social ou casamos ou acabamos sendo prostitutas.

        —Não penso chegar a...

        —Wulkan encantou-se com você. É um fato tão claro como o sol, vemos todos. Terá tudo o que quiser —argumentou. —Ninguém ousará aproximar—se de você sabendo que lhe pertence. Se por acaso acha pouco, também tem sorte porque o lorde é um homem muito atraente.

        —Eu não pertenço a ele! O senhor de Lynch é...!

        —O senhor de Lynch não moverá um dedo por você, pequena. Talvez tenha trabalhado em sua casa, mas não vai armar uma guerra com Kellinword por sua pessoa. Ou acredita que sim?

        Jacqueline sentiu vontade de chorar. Não podia dizer a ninguém quem era e que, em efeito, seu avô armaria uma guerra, se fosse preciso, para recuperá—la. Ela mesma se meteu naquela confusão. Acaso não foi sua idéia disfarçar—se de menino e ir viver com os Plowman? Teria sido melhor desaparecer da Inglaterra. Mas não, inventou aquela maldita farsa, que estava se voltando contra ela. O destino a tinha jogado em uma enrascada e agora se encontrava entre a espada e a parede. Se declarasse que era lady Jacqueline de Lynch, Wulkan a obrigaria a casar com ele. Se negava-se a aceitar seus galanteios, provocaria ainda mais seu orgulho e seria castigada de mil maneiras. Ao mesmo tempo, tampouco podia ir até seu avô, porque significaria a confrontação entre ambos feudos. Ricardo, sem dúvida, faria represálias contra seu vassalo saxão. O que restava então? Aceitar o presente de Wulkan sem protestar? Converter—se em sua amante?

        —Não deve preocupar—se com os falatórios —dizia Martha— As moças invejam sua sorte. Qualquer uma delas daria uma mão para estar em seu lugar. Não viu como olham para ele cada vez que entra ou sai? Babam, literalmente.

        —Por mim, que fiquem com ele e o façam em pedacinhos - respondeu como se cuspisse.

—Vamos! Bertrán espera no salão. Não seja suscetível. Pense que se der um filho ao lorde, será seu primogênito.

        —Um filho...!!

        —Não seria tão estranho se conviver com ele, verdade?

        —De qualquer forma, seria um bastardo, não?

        —Não. Seria seu primogênito. E você, sua mãe. Não é a primeira vez que a herança de um senhor passa a seu primeiro filho, embora seja bastardo, se não se casar e tiver filhos legítimos. E todo mundo vê que só olha para você. Assim, por que não pensa no que conseguiria? Amparo. Respeito. Inclusive poder.

        As lágrimas corriam livremente por seu rosto.

        Nunca em sua vida havia se sentido tão suja, tão só e desamparada. Ela não queria ter um filho de Wulkan, não um bastardo. Nesse caso, iria querer que fosse legítimo, que Wulkan fosse plenamente dela, um marido e... Apoiou—se na mesa porque seus pensamentos a conduziram por um caminho que não queria percorrer. Olhou para Martha com os olhos arregalados. Deus! O que estava acontecendo? Estava ficando louca! Já devia estar, para imaginar o normando daquele modo irracional! Como um marido! Se o odiava!

        Lentamente, como um boneco ao qual tivessem cortado os fios que o moviam, pegou a regata que Martha estendia de novo. Estava perdida e sabia. Quando Wulkan a teve em seus braços, quando fez amor com ele, havia—se sentido plena e feliz, embora logo depois amaldiçoou-se por ter caido em seu feitiço. Realmente era boba, pensou. Ele tinha conseguido despertar seus sentidos de mulher e tinha caído na armadilha, cedendo a sua sedução como uma cadela no cio. Ruborizou—se ao recordar como apertou-se contra seu corpo.

        Martha começou a tirar-lhe a roupa e ela a deixou fazê—lo.

        Acabava de tomar uma decisão: escaparia de Kellinword. Faria isso, mesmo que não pudesse retornar nunca mais a Lynch e se visse obrigada a levar uma vida de camponesa ou de criada em qualquer parte da Inglaterra. Não deixaria que o corpo de Wulkan dominasse o seu, não permitiria que sua mente se nublasse com suas carícias. Devia isso a seus pais mortos e enterrados, a todos os saxões que caíram vítimas das espadas invasoras.

        Quando colocou a regata, Martha mostrou-se satisfeita.

        —Está linda.

        Começou a desfazer-lhe as tranças e seu cabelo caiu solto quase até a cintura. Depois estendeu a capa.

        Jacky cobriu-se, dissimulando a luta interna que travavam seus dedos para não se enrolarem na borda do objeto. Teve frio. Um frio que transpassava seus ossos. Observou os olhos de Martha e os seus estavam secos, vazios, como os de um cego.

        —Amanhã verá as coisas de outro modo, Jacky.

        —Sem dúvida.

        Jacqueline inclinou-se e a beijou. No dia seguinte, escaparia do castelo. Sentiria falta de suas conversas, seus conselhos, suas reuniões depois dos jantares, sentiria falta inclusive dos momentos em que se perdia na intimidade como esposa e ela se afastava. Sobretudo, sentiria saudades de Roland. O menino dormia em sua cama de armar. Aproximou—se e beijou ligeiramente seu revolto cabelo.

        Quando saiu das cozinhas, Bertrán, em efeito, aguardava. Ela sentiu que, ao vê—la, baixou os olhos, morto de vergonha. Não quis ser dura com ele, mas sua voz adquiriu um tom gelado, como de uma dama ofendida.

        —De modo que é o arauto de seus desejos. Que seja, Bertrán. Leve-me.

        —Jacky, eu...

        —Melhor não dizer nada —cortou ela. —Vamos.

        Bertrán pegou-a pelo cotovelo e a conduziu até o grande salão, que aquela hora estava repleto.Teriam que atravessá-lo para chegar ao piso superior. Jacqueline não se deteve sob o olhar dos cavaleiros — já era habitual que lhe dedicassem um leve sorriso quando passava, sempre acompanhado de galanteios. Em sua passagem, fez—se o silêncio. Ia com o queixo erguido, o rosto sereno, o porte de uma rainha. Não pôde ver a expressão sombria de Guillermo nem a de Gilbert. Jacky sentiu que ardia de vergonha. Todos sabiam para onde se dirigia e o que isso significava. Aconchegou—se mais na capa, e seus pés aceleraram ao alcançar os degraus de pedra.

        Apesar de seu porte, o orgulho que ostentou ao passar entre os cavaleiros de Wulkan desapareceu à medida que diminuia a distância que a separava do quarto do normando. As pernas pesavam como chumbo. Bertrán sentiu sua angústia e a tomou pelos ombros.

        —É bom, Jacky. Não deve temê-lo.

        Ela observou entre as sombras da galeria o sardento rosto.

        —Lembra o que disse ao saber que eu era uma mulher?

        —Lembro.

        —Todos pensam que isto é o melhor para mim. Então, por que me sinto violentada?

        —Jacky, levei antes algumas moças até as dependências de Wulkan —confessou, sobressaltado. —Jamais uma resistiu. Muito pelo contrário, vinham encantadas. Você parece que estou levando para a forca, Por Deus!

        Tomou suas mãos entre as dela e as apertou com força. Não queria chorar, mas as lágrimas escorreram.

        —Bertrán, escute. Ao amanhecer, escaparei do castelo. Ajudaria—me se tivesse roupas masculinas.

        —Mas, Jacky, mandaram—me vigiá—la. Sou algo assim como seu...

        —Carcereiro?

        —Protetor! —retificou, visivelmente ofendido. —Por Deus, não posso ajudá-la, lamento. Se escapasse, Wulkan cortaria minha cabeça e a penduraria por uma almena.

        —Diz que é um bom lorde...

        —Ao menos, esfolaria—me.

        Se não contava com ajuda, suas esperanças de fuga se reduziam. Suspirou e baixou a cabeça.

—Então, farei sozinha.

        —Jacky, por todos os Santos...

        —Farei sozinha! —disse secando as lágrimas com um tapa— Dê uma desculpa amanhã, meu amigo, porque vou sair de Kellinword com ou sem sua ajuda. E não quero que o castiguem por minha culpa.

        —Jacky...

        Deixou—o com as palavras na boca e encaminhou-se para as dependências do lorde. Não chamou, limitou—se a empurrar a porta e entrou. Isolada do resto do mundo, ali, em seu quarto, tremeu dos pés a cabeça.

        Wulkan estava sentado em um tamborete, frente à lareira, remexendo um ramo das brasas entre as chamas. Deixou a vara e ergueu-se.

        Jacqueline não queria que avançasse. Vestia uma bata de veludo azul, bordada no pescoço e nas mangas. Era curta, e debaixo dela pôde apreciar suas musculosas pernas.

        Wulkan parou em sua frente, pegou—a pelos braços e retirou suas mãos da gola da capa. Logo, a tirou pelos ombros e a deixou cair. Na penumbra, seus olhos escuros brilharam de desejo, e ela, tensa e hostil, não pôde evitar que um calor intenso estremecesse seu corpo. Wulkan a observou com prazer e uma comichão tomou seu membro quando, na luz das chamas, a leve regata descobriu suas apetecíveis formas de mulher. Sem uma palavra, tomou—a nos braços e caminhou até o tapete de pele de raposa estendido em frente a lareira. Depositou—a, com infinita doçura, e deitou-se a seu lado. O tecido colava-se em seus seios e ventre, e afundava levemente em um arco onde nasciam as pernas. Seu rosto adquiriu uma cor dourada e seus cabelos cintilaram como se a natureza estivesse mesclando fogo com ouro. Os dedos de Wulkan acariciaram suas pálpebras entrecerradas, sua bochecha, o suave e orgulhoso queixo, os lábios. Beijou—a. Realmente não foi um beijo, foi quase como um toque suave. Quase temeroso. Como se tivesse vergonha.

        Ela o olhava de frente.

        Foi então que Wulkan soube que ela não estava ali.

        Seus olhos eram duas linhas de fogo e pensou que, se um olhar pudesse matar, ele já seria um cadáver. Ergueu—se para sentar, fazendo um esforço para não tomá—la ali, nesse instante. Dobrou o joelho e apoiou seu braço nele.

        —O que houve?

        Ela não respondeu. Permaneceu como ele a acomodou, sobre as peles, como uma estátua de pedra. Mal respirava.

        —Jacky...

        —Sou o seu presente, Wulkan —disse depois de um silêncio cortante como o fio de uma espada. —Deixei que Bertrán me trouxesse até aqui. Suportei a vergonha de ter que passar diante de seus homens, dos criados, de todo o mundo. —Tomou ar. A ele o mesmo ar parecia faltar, ao ver subir e descer aqueles seios divinos. —Assim, não pergunte.

        Ele se levantou, irritado, e ficou olhando-a. Para sua vergonha, Jacqueline o achou soberbo. Ele, entretanto, não a entendia. Tinha despertado seu desejo, o demonstrou nas duas ocasiões em que fez amor com ela. Então, o que falhava agora? Conhecia as mulheres e sabia que um presente era uma aberta declaração de desejo. Todas se sentiam lisonjeadas ao recebê—lo. Todas, não! Aquela maldita saxã, não!

        —Na realidade, não me odeia —disse. —Insistir nisso é absurdo.

        Jacqueline o amaldiçoou mentalmente, porque sabia que era verdade. Não o odiava. Desejava—o! Adorava estar a sós com ele... Cristo, ao vê-lo voltou a desejar que a possuísse! Tudo nele a atraía: seus olhos escuros, verdes quando se enfurecia —como começava a ficar agora— sua altura, a arrogância inata que escapava por cada poro de sua pele, seu cabelo negro como o pecado e brandamente ondulado. Sua boca dura, que parecia de cetim quando a beijava. Mas tinha que lutar com unhas e dentes contra aquela atração infernal. Desdenhosa, disse:

        —Sinto muito, milord, mas não me educaram para ser a rameira de um bastardo normando.

        O insulto alcançou seu destino como uma seta. Wulkan agachou-se, puxou-a por um braço e levantou-a, com um puxão.

        —Está certo —disse ele, enquanto a atraía para seus quadris, para que percebesse seu desejo. —Se ninguém a ensinou a ser a puta de um bastardo, eu o farei.

Jacqueline sentiu o coração saltar no peito quande Wulkan a beijou. Não foi um beijo, foi um castigo: feroz, sem delicadeza alguma. Depois a soltou e distanciou-se alguns passos dela. Seus olhos eram esmeraldas brilhantes; sua ira, ondas violentas que ameaçavam. Assustada pela hostilidade que lançava em cada olhar, sentou—se na borda do amplo leito. Jacky adivinhou uma reação selvagem. Quis dizer algo, mas emudeceu.

        —A primeira coisa que deve aprender uma puta é excitar um homem. Com a regata está linda, mas um normando precisa de mais. Tire isso. Tire a roupa, Jacky! —Sua voz soou como uma chicotada.

        Jacky esticou-se e retrocedeu um passo. Levou as mãos ao estômago, como se algo doesse por dentro. Não podia falar a sério, pensou. Não podia estar exigindo que se despisse como uma prostituta.

        —Tire a roupa, Jacky! —Sua voz soou como uma chicotada.

        Movendo a cabeça de um lado para outro, ela retrocedeu um passo. Seus olhos, ao mesmo tempo, procuraram uma saída...

        —Não chegaria à porta. Vamos. —Agora parecia divertido. —Há um momento se queixava de não saber. Estou dando a primeira lição. Logo, virão outras. —Ela voltou a olhar em direção à porta, inclusive deu outro passo para frente. —Meus homens agradeceriam um presente como você. Não me obrigue a dar de presente o que desejo só para mim.

        Jacqueline deixou escapar um soluço desesperado. Wulkan não tinha movido uma sobrancelha, como o amo que espera obediência, indolentemente sentado, meio recostado no leito. Em suas duras feições, lia—se a decisão de humilhá—la. Ou fazia o que ele queria ou seria o brinquedo de seus normandos.

        Armou—se de coragem. Embora as pernas tremessem, ergueu os ombros e o queixo. Ninguém, nem sequer ele, rebaixaria—a. Se tinha que deitar em sua cama, faria isso. Se tinha que despir—se, despiria—se para seu deleite. Mas sempre manteria o orgulho dos Lynch, como uma barreira.

        Enrijecida, raivosa, com aquele porte orgulhoso, régio...

        Wulkan não queria fazer aquilo Maldição! Mas precisava dela uma vez mais, estava tão duro que seu membro doía. Ela tinha se transformado numa espécie de droga, e já não sabia pensar quando a tinha por perto. Amaldiçoou Ricardo. Foi ele que armou—lhe a cilada em Caberdin. A Plowman por salvá-lo e levá-lo para sua casa. Amaldiçoou a si mesmo por não ser capaz de afastar aquela raposa de sua cabeça. Esteve a ponto de dizer que voltasse a colocar a capa e fosse embora, quando ela abaixou-se, agarrou a ponta da regata e com um puxão decidido e soberbo a tirou pela cabeça, deixando—a completamente nua.

        Ele ficou sem fôlego de novo diante da perfeição de seu corpo. Tinha pernas largas, perfeitamente modeladas, coxas firmes, os quadris magros e elegantes, a cintura estreita. Admirou seus seios, não muito grandes mas altivos, coroados por duas auréolas de um rosa intenso. A longa cabeleira caía sobre as costas e os ombros, cobrindo em parte seu seio. A luz do fogo arrancava brilhos avermelhados, envolvendo—a como uma deusa, uma aparição.

        Jacqueline obrigou—se a relaxar. Já feito. Tinha dado o primeiro passo. Jamais antes um homem a havia visto nua até que conheceu aquele feto do Diabo. A pressão de seus dedos na regata cedeu, e o objeto caiu no chão. Era tal o silêncio, que ambos puderam escutar o farfalhar do tecido.

        Wulkan, que até então tinha sido dono de suas emoções, sucumbiu ao apetite de seu corpo. Ergueu—se cambaleante, deu dois passos para ela e tomou—a em seus braços para levá—la de novo até o tapete de peles. Pela segunda vez, deleitou—se com a cor do cabelo e a suavidade de sua pele e começou a acariciá—la.

        Como uma maldição dos infernos, ela voltou a lançar sua fúria.

        —E agora, milord... qual é a segunda lição que deve aprender uma puta?

        Sentiu um incontrolável desejo de estrangulá—la com sua própria cabeleira. Em um segundo, jogou no lixo o feitiço do momento, a calidez que os rodeava.Tirou a camisa e sorriu ao ver nela o assombro ao ver sua masculinidade a ponto de explodir. Com certa rudeza, abriu as pernas de Jacky.

        —A segunda lição, senhora, é abrir as coxas —rugiu.

        Jacky gritou de raiva quando a penetrou de modo primitivo, como um animal.

        Apesar de tudo, quando Wulkan começou a golpear sua intimidade com investidas potentes e rápidas, perdido em sua excitação, seu corpo respondeu. Suas mãos voaram para as costas dele e seus dedos cravaram-se nos duros músculos para atrai—lo.

        Enquanto alcançava o orgasmo, Jacqueline chorou. Uma vez mais, Wulkan demonstrou o que ela queria ignorar: que o desejava como uma louca.

 

        Ainda era noite.

        Moveu—se com infinito cuidado para não despertá—lo.

        Levou um certo tempo para levantar do leito sem fazer ruído, e mesmo assim, como se Wulkan notasse sua ausência, estendeu a mão entre os enrugados lençóis, procurando—a.

        Jacqueline conteve a respiração quando o sino da capela tocou a prima . Faltava pouco tempo, suficiente para escapar, mas precisava roubar algumas roupas masculinas se não quisesse que descobrissem sua ausência logo.

        Colocou a regata e a capa e pegou os sapatos na mão. Jogou um último olhar a Wulkan e aproximou-se da porta. Até os batimentos de seu coração abrandaram-se quando a abriu, e não voltou a respirar até encontrar—se fora do quarto. Fazia frio e caminhou com rapidez pela galeria, com a umidade da pedra transpassando seus pés.

        Ao dobrar um corredor, alguém quase chocou-se com ela. Afogou um grito de alarme.

        —Bertrán... —sussurrou.

        O escudeiro ainda tinha olheiras. Sem medir as palavra, estendeu—lhe um saco de roupa, que ela examinou.

        —É tudo o que pude conseguir. Calças, camisa e um casaco. Também botas. Espero que sirvam, embora não estejam em bom estado.

        Jacqueline enterneceu-se.

—Adoro você.

        —Vista—se depressa. Wulkan está dormido? —Ela assentiu— Vai ficar furioso. Não quero pensar em como vai se comportar quando descobrir que fugiu.

        —Fique com eles. —Entregou—lhe os sapatos, tirou a capa e colocou as calças sobre a regata, amarrando—a de qualquer jeito, alheia ao sobressalto de Bertrán.Colocou a camisa e o casaco. As botas ficaram grandes, mas ao menos a protegiam. —Não me trouxe um gorro?

        —Santo Deus, não!

        —Não posso sair com o cabelo solto.

        —Leve o meu. – Entregou—lhe e ela recolheu o cabelo em um coque, cobrindo—o imediatamente. —Como estou?

        —Como estava quando chegou a Kellinword.

        —Então, está bom.

        Jacky caminhou apressada para as escadas, seguida pelo rapaz. Chegaram ao salão, atravessaram—no nas pontas dos pés para não alertar aos que ainda dormiam e só sentiram-se mais seguros quando cruzaram a poterna . Por sorte, os homens que montavam guarda não deram importância aos dois garotos. Demoraram uns minutos para chegar até a praça principal, e uma vez ali pararam, ofegantes.

        —E agora?

        —Agora preciso me esconder em qualquer uma das carroças que vá sair do castelo.

        —Onde irá? Para Plowman?

        —Nem em sonhos. Seria o primeiro lugar que Wulkan me procuraria. Irei para o sul. Ali tenho família.

        A atividade começava, e tanto os rapazes das cavalariças como os comerciantes, mais madrugadores, perambulavam pelo lugar amuralhado . Os que tinham ficado a noite sob o amparo do lorde se preparavam para partir.

        —Essa carroça —assinalou Jacky— É grande e vai carregado com sacos. Esconderei—me entre eles. —Abraçou Bertrán— Sentirei falta de você, meu amigo.

        —Jacky, está certa?

        —Muito certa. — mostrava—se aparentemente animada, mas uma sensação de angústia a invadia. —Espero que Wulkan não o culpe por minha culpa.

        —Não tem que saber —mentiu ele, sabendo que o lorde o moeria a pauladas. — Boa sorte.

        Viu—a correr como um moleque e saltar na traseira da carroça com agilidade, para desaparecer entre as mercadorias. Apesar de vê—la partir, Bertrán alegrou-se por ela. Momentos depois, o lavrador montou na boléia, pegou as rédeas e instigou às sonolentas mulas. Os animais puseram-se em movimento e as rodas chiaram, mas pareceu-lhe música.

        Encolheu—se o quanto pôde, sepultada entre sacos de farinha, suportando a vontade de tossir que lhe provocava o pó. Ouvia em cada movimento da carroça um gemido sobre o cascalho do caminho, e ouviu a saudação do aldeão aos soldados de guarda, rezando para que não lhes ocorresse revistar a carga.

        Minutos depois, apreciou a fragrância dos pinheiros e da lavanda e escutou o assobio alegre do camponês. Jacqueline relaxou e até atreveu a erguer—se. Observou ao redor. Iam paralelos ao bosque. Não importava a direção que tomassem, só o alívio de encontrar—se, por fim, fora dos muros de Kellinword. Tinha passado muito tempo desde que Gilbert de Bayard a arrastou até ali, e agora voltava a respirar os ares da liberdade. Enrolou-se de novo entre os sacos e esperou. O homem uma hora teria que parar a carroça que a afastava de Wulkan.

        Mas Jacqueline não podia saber o terremoto que estava assolando cada pedra da fortaleza.

 

        E Bertrán estava sofrendo-o na própria pele. Logo que retornou à torre, lavou o rosto para tirar as remelas. Uma vez no lugar, o mundo caiu em cima dele. Uma mão na gola do casaco ergueu-o dois palmos acima do chão para jogá-lo contra o muro. Os olhos verdes furiosos do lorde estavam tão perto de seu rosto que começou a tremer.

        —Onde está, Bertrán?

        Ele quis falar, dar uma desculpa, perguntar de quem falava para ganhar tempo, mas estava afogando-se e só pôde chutar no ar.

        —Maldita seja sua alma, garoto! —sibilou Wulkan. —Diga-me onde está ou juro que...!

        —Se não soltá-lo não poderá dizer nada —avisou Gugger a suas costas.

        O rosto congestionado do rapaz estava ficando arroxeado e soltou-o, juntamente com um xingamento que faria corar qualquer um. Bertrán caiu enfraquecido e aspirou o ar novo, que regenerou seus pulmões dolorosamente. Levou a mão à garganta e olhou, apavorado, ao lorde. Wulkan não lhe deu muito tempo para recuperar-se e voltou a segurá—lo, agora pelos braços.

        —Fale!

        —Eu... eu...

        —Juro pelo que é mais sagrado que pendurarei sua cabeça na ponta de uma lança, Bertrán! Farei um casaco com sua pele!

        Gugger conseguiu libertar o jovem e enfrentou-o.

—Maldito, deixe-o respirar!

        Wulkan soltou uma blasfemia e começou a passear como uma fera enjaulada. Nenhum de seus homens atreveu-se a abrir a boca. Não lembravam de vê—lo tão furioso e aguardaram que Gugger, o único capaz de opor—se a ele em certos casos, tranqüilizasse—o. Pouco depois que Wulkan despertou, a torre transformou-se em uma cacofonia de ordens, alternadas com uma ou outra blasfêmia. Todo mundo em pé... Hove uma exaustiva busca por toda parte, da torre ao pátio, em busca de Jacky. Nada. Então apareceu Bertrán.

        Este ainda lutava para manter o fôlego, e Gugger, que ainda não havia encarado Wulkan depois do que aconteceu no bosque, observava ambos.

— Fale, Bertrán...

        — O que?

        —O que eu pedi? Vigiar Jacky, não? Bem, pois desapareceu. Onde está?

        —Desapareceu... procuraram nas Co... cozinhas... milord?

        —Procurei até no inferno!! —gritou Wulkan, perdendo de novo a paciência.

—Eu... OH, milord, eu...

        —Vou assá—lo vivo, Bertrán. Sabe bem, não? Vou trespassá—lo em uma vara e mandar que o coloquem no fogo. Gotejará toda a graxa de porco que tem nesta barriga!

        —Meu Deus! —gemeu o jovem. —Meu Deus!

        —Deixe Deus tranqüilo! —Segurou—o pelo cabelo. —Diga-me onde ela está ou seus ossos estarão apodrecendo ao sol antes do galo cantar.

        Bertrán não era um covarde. Mas, embora tivesse carinho por Jacky e desejasse sua liberdade, temia Wulkan. Nunca o havia temido tanto como nesse momento, pois parecia possuido. Estava certo de que o lorde o abriria em dois, mas Jacky já estaria longe o suficiente para que não pudesse encontrá-la. Seria impossível seguir a pista de todos os aldeões que tinham saído naquela manhã do castelo. Agarrou—se ao braço de Wulkan para diminuir a pressão do apertão e disse:

        —Partiu, milord.

        —Onde?

        —Não sei. —Um novo puxão de cabelo e acabou respondendo entre soluços. —Juro, não sei! Pulou em uma carroça! Solte-me, por Nossa Senhora, não posso dizer mais nada!

        Soltou—o e caiu como um fardo.

        —Quero saber quantas carroças saíram hoje! E para onde foram! —Seus homens continuavam parados. —Estão esperando o que? Quero saber agora!

        Como impulsionados por uma mesma mola, saíram todos. Gilbert foi o primeiro, seguido por Gorman e Guillermo. Depois, o resto.

        O único que não se moveu foi Gugger. Ajudou Bertrán a levantar—se e lhe fez um gesto para que desaparecesse. Quando o salão ficou vazio, sentou-se nos primeiros degraus da escada. Wulkan golpeou a parede com o punho, amaldiçoou em francês e em inglês e chutou os juncos que cobriam o chão. Depois, mais calmo, Gugger aguardou que lambesse os nódulos machucados e perguntou:

        —Descarregou toda a raiva agora, irmão? Vai encontrá-la, mas vale a pena?

        Wulkan não respondeu. Depois do alvoroço que tinha armado, estava um pouco envergonhado. Nunca havia se comportado de um modo tão insensato. Mas ao despertar e não encontrá—la, a cólera o atacou como uma febre. Colocou-se em evidência uma vez mais. Por ela! Tudo por uma suja cadela saxã! Sentia—se um estúpido. E vulnerável. Porque o feria, mas precisava dela. Deu uma olhada para fora e perguntou-se para onde teria ido.

        —Wulkan, vale a pena? —insistiu o loiro.

        —Quero—a do meu lado —declarou por fim.

        —Para que?

        Olhou para Gugger como se tivesse enlouquecido. «Para que?»

        —Para o que se quer uma mulher?

        —Tem dúzias de moças em Kellinword, todas desejando ir para sua cama. Por que insiste em Jacky?

        —Porque sim —resolveu.

        —Apaixonou—se por ela?

        —Não diga tolices! —explodiu. —E mesmo que fosse assim, Ricardo ordenou que me case com lady Jacqueline de Lynch. Esqueceu?

        —Isso não importa.

        —Importa sim. — foi sentar—se junto a seu amigo. —Uma mulher é um problema; duas, uma dor de cabeça. Uma vez que Enric traga sua neta, terei uma esposa e uma responsabilidade. Não quero que, além disso, Jacky dependa de mim.

        —Então, não entendo. Pode me explicar por que armou todo este escândalo?

        —Porque não tolerarei que me ridicularize.

        —E chamou essa mobilização toda só por isso?

        —Exatamente.

        Gugger observou-o com atenção. Continuava lambendo o nódulo esfolado. Conhecia—o bem e nunca o tinha visto tão afetado. Pôs—se a rir, ergueu—se e olhou-o de cima abaixo.

        —Wulkan, nem você mesmo acredita no que está dizendo.

 

        O cavaleiro contemplou a jovem encolhida.

        A viagem estava sendo longa, mas ela não tinha soltado uma queixa pelas penúrias sofridas, nem quando teve que dormir em uma tenda de campanha, sem as comodidades de sua casa, na Normandía. Pediu para acompanhá—lo, na verdade exigiu, embora sabia Deus que aquela criatura nada tinha que purgar para fazer tal peregrinação.

        Era um anjo, e ele sentia-se orgulhoso. Correu para ele, jogou os braços em seu pescoço e o beijou na bochecha. O conde de Charandon abraçou-a.

        —O que houve, papai? Está muito sério.

        O curtido rosto de Robert iluminou-se e as rugas de sua fronte suavizaram-se. Ela acariciou suas têmporas, ligeiramente prateadas.

        —Pensava que fosse incansável.

        —OH, não acredito, já me doem todos os ossos.

        —Quando chegaremos a Capertien?

—Ainda falta muito.

        —Está aborrecido! —O cenho enrugou-se de forma encantadora— Parece que o rei o castigou em vez de recompensá-lo.

        —Como?

        —Bom... Temos Charandon. Porque o rei concedeu essas terras em Capertien, e não outras, mais perto da Normandía?

        —Acredito que deveria ter ficado com sua mãe e com Phillip.

        —E perder uma viagem com você? Nem em sonhos! Além disso, Phil é um pirralho impossível. Não há quem o agüente desde que pasou a ter pêlos no queixo. —Ele pôs—se a rir. —E continuo pensando que Ricardo podia ter outorgado terras mais perto de casa.

        —Podia, sim, mas foi na Inglaterra, Natalie. E não vamos julgar as decisões de nosso soberano.

        —Por que não? O Rei mesmo disse, muitas vezes, que o agrada que seus súditos façam chegar a ele suas opiniões.

        —Os monarcas dizem coisas quando encontram-se felizes. Mas raras vezes um vassalo os faz mudar de idéia. Além disso... —Viu—a observar ao longe. —O que houve? —Ela assinalou a nuvem de poeira que se aproximava. —Vamos voltar para o acampamento!

        Retornaram às pressas. Naqueles tempos, nunca se sabia o tipo de gente com a qual alguém podia cruzar. Natalie caminhou, apressada, de mãos dadas com seu pai, e retornaram a colina, as tendas de campanha oferecendo refúgio. Imediatamente, o conde deu o alarme e os soldados se apressaram a pegar as armas.

        Desde que sairam da Normandía, encontraram—se com grupos de cavaleiros. E não foram sempre cavaleiros que se dirigiam a suas propriedades. Em duas ocasiões tiveram que defender—se de proscritos, embora, por sorte, nenhum dos seus ficou ferido. Entretanto, deixaram para trás a tumba de alguns assaltantes.

        Natalie era jovem, mal acabava de fazer dezesseis anos e nunca esteve envolvida em um confronto. Ainda tremia a noite ao recordar o ensurdecedor ruído das espadas, o relinchar dos cavalos, o fogo que alcançava uma das tendas e que causou queimaduras em um soldado. Sobretudo, tremia diante do sangue. Apesar disso, na ocasião, comportou—se como devia, socorrendo os feridos. Refugiada junto a sua dama de companhia, atrás das árvores, afastadas do acampamento, rezou para que os cavaleiros que se aproximavam fossem gente de bem.

        O Céu a escutou, porque a voz de um soldado gritou:

—As cores de Noirmont!

        Natalie abraçou a sua companheira, que ergueu uma oração e fez o sinal da cruz três vezes seguidas. Voltou ao caminho e, quando chegou junto a seu pai, o conde abraçou-a. Ao longe, cada vez mais visíveis, ondulavam os estandartes de seu meio—irmão Emil.

        Pouco depois, desmontava e aproximava-se deles, sacudindo a poeira do caminho.    Abraçou Robert e ergueu a jovem em seus braços.

        —É casualidade, Emil? —perguntou surpreso Charandon.

        —Não, irmão —fez um gesto a seus homens para que desmontassem e caminhassem para as tendas, enquanto tirava as luvas — Não é nenhuma casualidade. Avistaram suas cores e decidi vir ao seu encontro.

        —Como vão as coisas? Faz quase dois anos que não o víamos.

        —Não posso me queixar. Já sabe que o pagamento por meus serviços é muito bom.

        —O melhor.

        —O que tem isso de mau?

        Ao chegar ao centro do acampamento, Emil aproximou-se da fogueira, onde se assava um cervo. Fechou os olhos e cheirou.

— Faz uma eternidade que não afio meus dentes em uma boa fatia de carne.

        —Pois agora é o momento. E para seus homens também —disse, elevando a voz e fazendo o convite extensivo ao resto. O oferecimento foi agradecido em silêncio, e ao redor da fogueira concentrou-se um grupo de soldados. —Sempre houve um prato para você em minha mesa. Chegou no momento oportuno.

        —Sempre estou acostumado a fazê—lo —murmurou de Noirmont. Foram distribuindo as partes fumegantes de carne, e os criados prepararam-se para servir a cerveja.

        Os dois sentaram-se afastados do resto. Emil deu uma dentada em sua carne e a engoliu com deleite. Assentiu, agradecido, e observou Natalie, que ajudava a servir.

        —Cresceu muito. Já é uma mulher.

        —É.

        —Por que a trouxe com você ? É uma viagem longa e pesada.

        —Nunca saiu de Charandon. Pediu—me e não pude negar.

        —Nunca nega nada a seus filhos. Como está Phillip? E Eleanor?

        —O rapaz é um demônio, e minha esposa continua tão bonita como sempre.

        Ficaram em silêncio enquanto saciavam o apetite. Emil recostou-se em uma árvore e observou seus homens conversando, cansados de batalhar para um e outro senhor. Fazia tempo que os estandartes de Noirmont eram alugados a quem precisasse de braços armados para suas guerras particulares, e não podia negar-lhes um pequeno descanso antes de empreender o que tinha em mente.

        Enquanto isso, Robert pensou no que havia dito. Não, jamais soube negar nada a Natalie, nem a Phillip. Agora era um bom pai, como não foi antes, mas fazia muito tempo havia negado quase tudo a uma criança, tentando transformá—lo em um homem valente desde o berço. Depois, quando já não houve a quem ensinar, sua vida e a de sua esposa afundaram num poço negro da desesperança. Jurou que, se tivesse mais filhos, exigiria—lhes, mas não os privaria dos prazeres da vida, porque talvez a vida não fosse mais que isso: um jogo de equilíbrio. Natalie criou-se, portanto, de modo diferente do resto. Tinha aprendido a costurar, a ler e escrever, mas também a cavalgar, a caçar e usar o arco. Com Phil passou o mesmo, e agora, aos treze anos, pensava mais nos jogos amorosos do que em aprender a manejar a espada e cavalgar.

        —Passei por Glastonbury —disse Emil, depois de dar um longo gole na bebida.

        —Em Gales?

        —Exatamente —Deu outra mordida na carne. —Dizem que ali se encontram as tumbas do rei Artur e de sua rainha.

        —Desde quando sai em peregrinação?

        Emil riu com vontade. Atirou o osso para um lado e agarrou de novo a jarra de cerveja.

        —Não se confunda, irmão. Eu não faço essas coisas.

        —Um trabalho, então.

        —Isso mesmo. Glastonbury estava no caminho e senti curiosidade. Realmente, não acredito que ali estejam enterrados esses dois. —Bebeu longamente e limpou os lábios com o dorso da mão. —Mas conte-me... Como está Ricardo? É certo que pensa fazer um tratado com a Alemanha?

        —Agora preocupa-se com a política?

        —Absolutamente, não enquanto existirem senhores feudais que precisem de meu braço e de meus soldados para resolver seus problemas. Mas mesmo quando se luta, escutam—se coisas.

        —Pouco posso dizer a respeito. Faz seis meses que não vejo o rei, desde que me concedeu algumas terras ao sul da Inglaterra, para as quais me encaminho.

        Emil manteve silêncio durante um momento e logo murmurou:

        —Pergunto—me que anjo o viu nascer, Robert. Somos filhos do mesmo pai e, entretanto, você teve tudo e eu só as migalhas. Ser o primogênito tem suas vantagens, não resta dúvida.

        O comentário continha certo pesar, e Robert não foi imune ao seu protesto.

        —Você ao menos não teve que perder nenhum ente querido —repôs.

        —Isso aconteceu há muito tempo, Robert. Faz quase vinte e cinco anos.

        —Jamais poderei esquecer, embora passem cem. Não voltei a dormir em paz depois disso, sem saber o que foi feito dele, sem poder rezar sobre sua tumba porque nem sequer sei onde se encontra. —levantou—se e esticou-se, cansado. —Digo, Emil, que, nesse sentido, é um homem afortunado.

        —Você tem Natalie e Phil.

        —Sim, sei. —Suspirou. —Não tenho direito de me queixar diante de Deus. Perdoe-me, irmão, mas recordar me coloca de péssimo humor.

        Robert afastou-se e Emil tomou um gole de sua bebida. Em seus lábios, apareceu um sorriso irônico.

        —Eu me encarregarei de que tampouco tenha Phil, depois de acabar com Wulkan. Juro —cuspiu, vendo o lento caminhar de seu meio—irmão.

 

        Jacqueline lutou para livrar—se de Gilbert, quando ele a empurrou ao centro do salão. Tropeçou e caiu no chão.

        Ao focar os olhos, encontrou—se com um par de botas, e imediatamente soube a quem pertenciam.

        Wulkan a examinou, enquanto o silêncio se tornava opressor ao seu redor. Desejava levantá—la e estreitá—la, mas com seus cavaleiros presentes não podia mostrar—se fraco, já que perderia o respeito que tanto custou-lhe ganhar. Tampouco era um sádico; assim deveria agir com os pés no chão. Por outro lado, ela estava linda, mesmo ali, de joelhos, apoiada sobre as palmas de suas mãos, com o longo cabelo vermelho e ouro cobrindo seu rosto choroso. Parecia uma selvagem. Uma belissima selvagem, pensou, a quem desejava com loucura. Nem sequer o repúdio que via em seus olhos violeta anulavam seu desejo.

        Jacky estava com o rosto cheio de manchas de poeira e lágrimas. Supôs que Gilbert não havia conseguido trazê—la de volta sem luta. Outra vez suas roupas estavam em farrapos.

        —Eu gostaria de saber o que conseguiu fugindo, Jacky —perguntou.

        Ela lembrou-se de sua felicidade ao recuperar a liberdade, os planos que fez entre os sacos, enquanto afastava-se de Kellinword. Mas tudo foi em vão. Ao longe, uma nuvem a cavalo começou a cortar a distância até que envolveu a carroça, o lavrador que guiava a mula e ela mesma. Detiveram—lhes antes de cruzar uma ponte. Segurando os cavalos pelas pelos arreios, o camponês desceu assustado, e revistou o carregamento até dar de cara com ela. Recebeu—os, trêmulo, primeiro Gilbert, depois Gorman — aquele que disseram ser capaz de ganhar em qualquer torneio. A coragem de Jacqueline não foi suficiente, e acabou nos braços de um deles, que a carregou sobre o cavalo de Bayard, de barriga para baixo. Tinha o corpo moído pela cavalgada e odiava mais do que nunca Wulkan por ordenar que a capturassem.

        —Cada segundo que passei longe de você —alfinetou o lorde, furiosa— foi uma bênção.

        Wulkan abaixou-se e a puxou para ele. Amaldiçoou-o, mas não pôde evitar que ele a colasse a seu peito. Suas vontades enfrentaram-se como armas em um campo de batalha. De repente, Wulkan baixou a cabeça e beijou-a com rudeza. Entre seus homens, houve imperceptíveis movimentos. Ela tentou evitar aquele abuso em público, embora o coração acelerou quando voltou a saborear sua boca. Antes de reagir, ele a soltou como teria feito com uma prostituta.

        —Talvez dentro de alguns dias não pense o mesmo.

Wulkan voltou sua atenção para Bertrán e Jacqueline seguiu seus olhos. A um gesto dele, Gugger empurrou o escudeiro para fora. Também ela foi empurrada, com as débeis súplicas de Bertrán precedendo—a, embora o jovem não resistisse. Quando o grupo chegou ao pátio de armas, Montauband inquiriu o lorde com o olhar e este assentiu.

        Formou—se um círculo ao redor de um poste e Gugger mandou Bertrán tirar o casaco. Jacqueline lutou várias vezes para soltar—se de Wulkan, mas ele a prendeu com mais força, obrigando—a a contemplar a cena. Gugger levou seu escudeiro até o poste, e com rapidez, amarou—lhe os braços mais acima do poste.

        Jacqueline imaginou o pior. E seus temores se confirmaram quando o loiro rasgou a camisa de Bertrán até a cintura, descobrindo suas costas. Pegou uma corda grossa e a desfez em tiras até a metade; logo aproximou-se de Wulkan e assinalou um dos extremos do improvisado látego. O lorde sabia que Gugger perguntava, em silêncio, se rematava os cabos em nós, e negou com a cabeça.

        —Vai mandar que o açoitem?

        Como resposta, Wulkan pegou o improvisado látego que lhe estendiam e empurrou—a para seu cavaleiro. Deu um passo para o poste, mas, antes de chegar, as mãos femininas o seguraram pela túnica.

        —Pelo amor de Deus, vai fazer isso?

        —Merece.

        —Não fez nada! Não me ajudou a escapar; foi minha idéia.

        —Não tente negar. Bertrán confessou.

        O escudeiro rezava em voz baixa. Suas costas nuas eram muito branca, e o normando parou um instante, consciente de que ia aplicar um castigo exemplar. Odiava o que ia fazer, mas ele era o lorde de Kellinword e todos esperavam que fizesse justiça. Não podia permitir que suas ordens fossem desobedecidas, caso contrário, poderia encontrar-se no meio a uma rebelião.

        —Não tem este direito! —gritou Jacqueline— Ouviu, Wulkan? Não tem direito de fazer isso! Maldito seja seu sangue!

        Não, não o tinha como homem, mas sim como lorde daquelas terras. Era seu dever, seu penoso dever, pensou ele. Jogou o braço para trás e descarregou o primeiro golpe, pedindo desculpas mentalmente ao rapaz.

        A chicotada emudeceu Jacky, que cravou seus olhos em Bertrán sem acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Nas costas de Bertrán começaram a desenhar—se quatro marcas vermelhas. O segundo açoite fez Jacky encolher—se e gritar ao rapaz. No terceiro, pequenas gotas de sangue salpicaram sua camisa rasgada.

        Jacqueline não pôde suportar. Em certa ocasião tinha visto açoitarem um homem, e o espetáculo foi horrível; as costas daquele desgraçado ficaram convertidas em uma massa de carne rasgada; durante várias noites, ela escutou os uivos do condenado. Não queria que aquilo se repetisse. Lançou o salto de sua bota na perna de Gugger e este, em um ato reflexo, afrouxou sua pressão,que ela aproveitou para lançar—se contra Wulkan e pendurar—se em seu braço, impedindo que descarregasse o próximo golpe.

        —Por Deus, pare! —rogou.

        Wulkan a tirou de cima dele com um simples empurrão, mas ela não se rendeu. Abraçou—se a sua perna esquerda, e nem sequer Gorman pôde afastá—la.

        —Suplico, Wulkan. —Soluçou, humilhando—se. —Por favor! Bertrán não é o culpado.

        Durante um momento, no pátio de armas, fez—se um silêncio sepulcral. Logo, o lorde expressou-se com voz clara:

        —Só há um modo para que eu suspenda o castigo. Jure pela memória de seus antepassados saxões que não voltará a escapar.

        Jurar que não escaparia? Deus, isso era como aceitar a forca! Sem hesitar, respondeu:

        —Fugirei na primeira oportunidade que se apresente, normando.

        Wulkan voltou-se e outra chicotada rasgou a pele de Bertrán. Jacqueline levantou-se, indignada, e agarrou seu braço.

        —Está bem, você ganhou! De acordo!

        —Isso é tudo? De acordo?

        —Quer que me rebaixe ainda mais? —Ela respirava rapidamente, tomada pelo ressentimento.

        —Isso é exatamente o que quero.

        —É um miserável! Um infame desprezível! Só alguém tão mesquinho como vcoê abusaria de um inocente para conseguir seus objetivos!

        —Você promete..., ou Bertrán continuará preso a esse poste.

        Jacky deu uma olhada nas costas de Bertrán. Era um mapa sulcado de vergões ensangüentados. Seu amigo não devia continuar sofrendo o castigo por sua culpa. Baixou a cabeça e assentiu, aceitando a derrota.

        —Juro—disse, quase para si mesma.

        —Jura o que? —provocou ele.

        Os olhos de Jacqueline gotejavam veneno.

        —Juro, pelo sangue dos meus, não escapar de Kellinword. —A voz saiu sibilante, estrangulada. —Está satisfeito?

        Wulkan suspirou, lançou o látego para um lado e abraçou-a pela cintura, colando—a a ele.

        —Estarei satisfeito quando a tiver esta noite em minha cama.

        Esbofeteou—o,furiosa. Empurrou—a e caiu no chão. Com os olhos marejados de lágrimas de humilhação, amaldiçoou-o, aos gritos. Wulkan afastou-se dali, e nem sequer se voltou para olhar para ela. Tampouco seus homens, que o seguiram em silêncio.

        Jacqueline engoliu sua própria bílis, sem ter tempo para lamentar: Bertrán esperava por ela. Ficou de pé, limpou as lágrimas com o dorso da mão e o desamarrou como pôde, abraçando-o como uma mãe.

        Depois, nas cozinhas, limpou as feridas, mortificando—se pela culpa. Bertrán, dolorido, queixava—se e blasfemava.

        —Baixe a cabeça, por favor.

        —É que dói...

        —Já sei que dói. Martha, pode me dar outro pano limpo?

        A cozinheira estendeu-o,enquanto repreendia:

— São dois idiotas. Tentar zombar do lorde... —resmungou— como se fosse um caipira sem recursos.

        —Martha, agora não é o momento. E não justifique o que ele fez!

        —Podia ter sido pior, e sabe disso. E bem pensei que o seria! Devia ter visto como estava esta manhã. Almadiçoou a gritos sua ausência.

        —De minha parte podia arrebentar os pulmões e morrer.

—Sei disso, já disse muitas vezes.Mas, Jacqueline, ele é um homem jovem e forte. Tem poder e meios, assim sua teimosia não conseguirá derrotá—lo. Deveria aceitar a idéia. Ele a quer para ele. Ponto final.

        —E minha opinião e meus sentimentos, não contam?

        —Não. Não contam para nada. É o lorde.

        —Não é meu lorde!

        Bertrán apoiou uma mão em seu ombro.

—Jacky, parece com isso.

        —Por Deus! Como pode dizer isso depois do que ele fez com você? —gritou.—Viu suas costas? Já não dói?

        —Claro que dói. Arde... E doerá por vários dias. Mas, como diz Martha, podia ter sido pior.

        Jacqueline lançou o pano sobre a mesa.

–Não os entendo. É uma animal!

        Bertrán ergueu-se e pegou a camisa que Martha remendou. Até seu roçar doía, e Jacky apressou-se a ajudá—lo.

        —Olhe, Jacky —explicou. —Eu sei o que humilha e o que dói, mas poderia ter sido muito pior, como diz Martha. Podia ter usado uma corda de nós, e não o fez.

        —Como diz?

        —Algumas corda se fazem nós em cada ponta, e são esses nós os que rasgam a pele. Ele não quis. Tenho machucados e cortes que produzirão vergões, mas logo desaparecerão. Em quinze dias nem se notará.

        —Isso não é desculpa!

        —Prefiro isso a que em minhas costas fiquem com cicatrizes para sempre. —encolheu os ombros. —Além disso, ele tem razão, ajudei—a a escapar. Desobedeci suas ordens.

        Jacqueline bufou e o censurou.

        —Estão loucos. Mas não irão me contagiar com sua loucura. Jamais aceitarei a degradação a que quer me submeter.

        —Entretanto, jurou não escapar —interveio Martha, — E se faltar com seu juramento, dará motivos a ele para fazer o que quiser com você.

        —Não me arrastarei, como você.

        —Mas irá para sua cama esta noite. E todas as noites!

        —Isso nós vamos ver!

        —Vamos ver hoje mesmo, menina!

        Jacqueline afogou um soluço. Martha estava certa. Deveria suportar Wulkan aquela noite e todas as noites, até que perdesse a vontade. A exasperação a envolveu como uma mortalha.

        —Oxalá seja vítima de uma enfermidade contagiosa!

Martha estalou a língua. Aquela garota era um caso perdido. Outra, em seu lugar, estaria pulando de alegria se o lorde tivesse decidido procurar seus favores. Jacky não. Certamente, ela não.

        —Parece—me que seu problema é que ainda não sabe seu lugar. Não pode escolher e, embora esteja errado, a vida é como é, e ninguém pode mudá—la. Ao menos, você não. Nem eu. Agora os normandos têm o poder, e nós, pobres saxões, temos que acatar suas decisões. Não seria mais lógico aceitar a vida como ela é e tirar o maior proveito de tudo?

        —Não sou uma vulgar camponesa.

        —Não? —zombou Martha— Diga-me... Então, o que é? Acaso Wulkan não a conheceu na casa de lavradores? —Viu que a feriam suas palavras e suavizou seu tom. —Jacky, eu gostaria de ajudar, mas não posso.

        —Claro que pode —disse ela. —Ponha veneno esta noite em meu jantar! —respondeu, e saiu das cozinhas batendo a porta.

        Mais tarde, apesar de tudo, viu—se obrigada a usar de novo roupas de mulher. Teria dado tudo pora continuar usando as de garoto, só para desgostar aquele feto do demônio, mas teve que conformar—se, resmungando para si mesma, cada vez que ele a olhava durante o jantar.

        Embora tentasse mostrar—se indiferente, tremia. Nem sequer a distraíram os gritos que ecoaram no salão quando Wulkan informou sua decisão de fazer um torneio. Ela só pensava que teria que subir ao seu quarto e ficava cada vez mais inquieta, conforme passavam os minutos. Desejou procurar uma corda e pendurar—se de uma almena. Lady Jacqueline de Lynch, amante de um normando, privada do direito de revelar sua verdadeira condição, obrigada a seguir um jogo que a tinha posto nas garras do maldito. Claro que sempre havia um lado positivo: embora tivesse que ser a rameira de Wulkan durante um tempo, seu avô acabaria forçando—o a um casamento com Clara, e ela seria definitivamente livre. Valia a pena guardar silêncio, suportar algum tempo.

        Afugentou suas reflexões, levantou a cabeça e seus olhos cruzaram com outros que a devoravam do extremo oposto do salão. Ergueu o queixo com orgulho e resistiu ao descarado escrutínio. Wulkan sorriu e elogiou sua tenacidade, enquanto erguia sua taça e brindava em silêncio por ela. Jacky cuspiu no chão e ele explodiu em gargalhadas.

 

        Jacqueline sentou-se em frente à janela, acomodando—se em uma almofada, e esperou. Lá fora, o tempo estava agradável. O ar fresco primaveril abria caminho às cálidas noites de junho. Havia passado a Ascensão e já aguardavam a próxima festa de Pentecostés , no dia 9 desse mês. Até mesmo Medardo de Lecoy parecia mais benevolente naqueles dias.

        Mas ela tinha que enfrentar Wulkan minutos depois. O normando aproveitou o jantar para aproximar—se e ordenar que o aguardasse em suas dependências, sussurrando—lhe a pior das ameaças.

        —Ainda posso mandar que esfolem Bertrán, carinho. Até que esfolem você.

        Jacqueline duvidava que fosse capaz disso; afinal de contas, tinha prometido a John cuidar dela, e todos diziam que era um homem de palavra. Mas não podia brincar com fogo. E ali estava, aguardando que ele aparecesse.

        Sobre uma arca, viu sua bata cuidadosamente dobrada, e como uma bofetada, veio a lembrança do corpo musculoso e bronzeado de Wulkan. Um calor intenso percorreu-lhe o peito e o ventre, e quase sentiu seus lábios sobre sua boca, seus braços envolvendo—a, sua língua quente procurando a dela, brincando com seus mamilos... Sacudiu a cabeça para livrar—se dos sonhos. Wulkan jamais conseguiria que ela cedesse de boa vontade. Agora estava preparada para enfrentá-lo, e sabia o modo de vencê—lo.

        Ela sabia. Ele foi todo ardor quando ela respondeu a suas carícias, mas... como veria a indiferença?

—Bem, milord —sorriu na penumbra. —Vamos ver o que acha.

        Teve que esperar, traída pelos nervos, quase uma hora. Enquanto isso maquinou, repetiu mil vezes que seria forte, que não se deixaria seduzir de novo por seus...

        A porta abriu-se de repente. Apesar de seus propósitos, encontrou—se abraçando a si mesma e tentando dissimular o medo.

        Wulkan olhou-a longamente e fechou a porta por dentro. O passador que a trancava foi como um murro para Jacqueline.

        —Está com frio? —perguntou.

        —Não.

        —Então, tire a roupa —ordenou. —Não tenho muito tempo para jogos amorosos. Amanhã tenho que madrugar.

        Ela engoliu o orgulho e perguntou:

—Então, não seria melhor dormir?

        Deixou sua espada de um lado da cama, aproximou—se dela, puxou—a e a beijou na boca. Ela não resistiu, embora custasse muito permanecer fria sob o fogo daquele beijo. Soltou—a e tirou a túnica e as botas. Jacky sentia uma comichão nas mãos, louca para acariciar sua pele morena.

        Tirou as calças e perguntou:

— Vai tirar o vestido ou não?

        —Tenho outra opção?

        —Não —riu ele, de muito bom humor. —Não tem nenhuma, pequena.

        Um tic nervoso fez tremer seu lábio superior. Queria ter coragem para tomar a espada e atravessá—lo de lado a lado! Inalou todo o ar que seus pulmões permitiram e começou a desfazer os laços do corpete. Wulkan não tirava os olhos dela, assim ficou de costas, em um ato de rebeldia, mas ele aproximou-se e puxou-a pelo braço, obrigando—a a encará—lo.

        —Atrasar o momento, Jacky, é somente o que conseguirá. E já lhe disse que tenho pressa.

        Agarrou o corpete com as duas mãos e abriu-o. Jacqueline pega de surpresa, tentou cobrir—se, mas não lhe deu opção, e arrancou seu cinturão e suas saias, que voaram no chão. Precisava dela.

        —Para a cama.

        —É um bárbaro! —gritou, vermelha de vergonha.

        —Possivelmente. —encolheu os ombros. —E terei que comprar outro vestido. Vamos, para a cama. —Bateu, carinhosamente, em suas nádegas.

        Ela saltou para o amplo leito, tentando evitar que a visse nua, mas expôs a deliciosa imagem de seu traseiro engatinhando sobre as mantas, o que impulsionou Wulkan a rir de novo. Enfiou—se entre elas e cobriu-se até o pescoço. Ele acabou de despir—se e mostrou, com todo o descaramento que um homem é capaz, sua mais que disposta masculinidade. Não quis vê—lo, e rezou para que acabasse o quanto antes, pressentindo que seu corpo podia voltar a traí—la. Era tão belo em sua nudez! Alto, forte e bronzeado, parecia esculpido em granito.

        Engoliu em seco, quando o peso de Wulkan afundou no colchão e manteve os olhos muito fechados,mesmo quando começou a acariciá—la. Seu estômago contorcia-se, mas seu coração pulsava como um cervo assustado. Conseguiu manter seu propósito de permanecer indiferente a suas mãos e ao calor de seu corpo. Claro que... só na aparência.

        Wulkan recostou-se sobre um cotovelo e a observou, com o cenho franzido. Ela representava a mais terna imagem da moça envergonhada diante da ousadia de um amante, e o sangue subiu-lhe à cabeça. Colocou as mantas para um lado e contemplou aquele corpo perfeito. O desejo de possui—la era tão forte que esqueceu das preliminares: deitou—se sobre ela e a beijou com avidez, fazendo força com o joelho para que abrisse as pernas.

        Jacqueline permitiu. Abriu os olhos e lançou um olhar gelado, sem corresponder ao beijo, por mais que ardesse por dentro.

        Wulkan suspirava pela mulher apaixonada que possuiu no bosque, mas só encontrou olhos frios e nenhuma resposta. A libido sumiu, e ela notou, satisfeita, sua virilidade encolher.

        —Que diabos está acontecendo?

        —Tem que acontecer algo, milord? —perguntou, tão inocentemente quanto foi possível.

        —Quero que me abrace.

        —Está bem. —E colocou os braços ao redor de seu pescoço, inertes.

        —Não pode fazer melhor? —perguntou, desalentado.

        —Não, quando não sinto o que faço.

        —Ontem à noite sentia! .

        —Isso foi ontem à noite.

        Wulkan levantou-se com um salto —que ela aproveitou para cobrir—se de novo—, e foi até a janela, totalmente nú. Era um animal magnífico, único, pensou. Sentou—se, cruzou as pernas e os braços e olhou para ela, com o cenho franzido. Ficou orgulhosa de si mesma. O desânimo dele provocou-lhe uma sensação de triunfo. Tinha ganhado aquela partida, pensou. Certamente, o ardor do normando acabou-se, definitivamente.

        —Vai ficar aí a noite toda? —perguntou ela.

        —Pode ser! —resmungou ele.

        —Então... posso dormir, milord? Ou talvez prefira que permaneça acordada, se por acaso..., se por acaso voltar a vontade?

        Aquela raposa o desesperava. Seus espinhos, sutis e certeiros, desarmavam—lhe. Desejava—a e a odiava, ao mesmo tempo.

        Calou—se, vestiu as roupas e saiu da antecâmara, com uma batida da porta que fez retumbar até os muros.

        Muito tempo depois, ainda não tinha retornado. Jacqueline adormeceu sem saber que lá embaixo, no salão, Wulkan entorpecia-se com um barril de cerveja. Tentava evitar de subir e voltar a enfrentar a indiferença daquela harpia.

 

        Tinham passado dois dias e Jacqueline estava mais tranqüila. Inclusive contente. Tudo por causa da atitude de Wulkan. Ela tinha esperado represálias e, entretanto, não parecia afetado absolutamente. Dedicou—se a preparar o torneio anunciado, e mal trocavam palavras durante o dia, embora a obrigasse a permanecer ao seu lado durante as comidas, como se fosse a senhora do castelo. Aquela atitude era ultrajante, porque dava a entender a todos sua condição de amante. Não a obrigava a aceitá—lo na cama mas obrigava-a a dormir nela, o que fazia de suas noites um suplício. Desejar Wulkan e obrigar—se a permanecer como uma estátua no leito era insuportável.

        Jacky seguiu, de longe, os preparativos do torneio.

        Já que não pareciam precisar dela, além de alguma ajuda nas cozinhas —da qual tinha sido retirada dada a sua nova condição— dedicou—se a dar curtos passeios pelo interior da fortaleza e brincar com o pequeno Roland. Todos esmeravam-se em preparar a festa, porque assim deveria ser um torneio.

        Em tempos de paz, os torneios constituíam a maior diversão para os cavaleiros. Era um meio rápido de conseguir fama e fortuna. Nas regiões em que não aconteciam guerras privadas entre feudos, os torneios representavam para os cavalheiros o único meio de desafogar a agressividade acumulada. Por outro lado, era uma razão poderosa para abandonar os castelos, com sua monótona ociosidade e rotina.

        A Igreja condenava estas simulações de luta, nas quais, freqüentemente, algum dos competidores perdia a vida. Diziam que nos torneios debilitava-se a força da cavalaria cristã, cuja única missão devia ser lutar contra infiéis para preservar a Terra Santa. Embora alguns soberanos se mostrassem a favor dos clérigos, a maioria deles eram tolerante a respeito, achando que um torneio,de vez em quando, afastava o aborrecimento.

        A maioria dos participantes eram jovens cavaleiros em busca de aventura ou de um casamento vantajoso. Alguns se especializavam em uma luta determinada, por isso eram muito estimados, e formavam grupos para competir, ganhando às vezes boas somas de dinheiro..

        Wulkan e cinco de seus homens voltaram para o castelo ao meio—dia, antes do almoço, depois de escolher o lugar.Entraram felizes, rindo e fazendo piadas, no pátio de armas e no grande salão, onde Jacqueline estava narrando uma história fantástica ao pequeno Roland. Logo ao vê—los entrar, o menino correu para eles, agarrou—se a túnica de Gugger, com quem mais se identificava, possivelmente por seu aspecto juvenil e seus loiros cabelos. Gugger tomou-o nos braços.

        —Vai lutar no torneio? —perguntou o pirralho, com olhos arregalados.

        —É obvio que sim. Virá torcer por mim, não?

        —Não poderei ir —lamentou—se. —Mamãe castigou-me.

        Gugger o deixou de novo no chão.

—O que fez, desta vez?

        —OH, bom... —tocou uma orelha.

        —Tornou a depenar alguma galinha? —perguntou Wulkan.

        Roland olhou para o lorde e zangou-se, com a cabeça baixa. Não era o mesmo falar com o cavaleiro loiro que com o outro, de cabelo e olhar escuro. Sua mãe dizia que o moreno era o dono de tudo e devia-lhe obediência e respeito, e para o pequeno, amedrontava-lhe seu corpão. Para ele, era um gigante.

        —Não, milord —respondeu, com uma vozinha temerosa— Foi por culpa de uma empada.

        —Uma empada, é?

        —Não tinha tomado o café da manhã! —exclamou o menino, com sua carinha voltada para o normando, quase desafiando-o a que também o repreendesse. —Depenar uma galinha foi ontem, por isso me castigaram sem tomar o café da manhã. Mas vi a empada e...

        —E comeu um pedaço —disse Wulkan.

        —Algo mais que um pedaço —confessou Roland— É que quase comi meia...

        Wulkan não pôde evitar: pôs—se a rir e foi seguido pelos outros. Para Roland, aquilo foi o maior dos castigos, porque achou que zombavam dele. Envergonhado, fez um biquinho e começou a chorar, voltando correndo para Jacqueline, que o abraçou e tranqüilizou.

        O normando aproximou-se do menino, agachou—se, pegou-o pelos ombros e o obrigou a dar a volta e olhar para ele. Roland soluçou duas vezes e limpou o nariz com o dorso da mão.

        —Deixe de choramingar e escute. —O pequeno prestou atenção. —Sua mãe o castigou de não poder assistir ao torneio por que comeu a empada, não?

        —Isto mesmo.

        —Acha que fez mau?

        —É que tinha muita fome!

        —Não se trata disso, Roland. Acha que sua mãe o castigou sem razão?

        —Disse que a empada era para a comida.

        —Roland...

        —OH, está bem! —concedeu o menino— Suponho que tinha que fazer.

        —Estamos de acordo nisso. —Jacqueline percebeu que se dirigia também a ela. —Castigou—o porque merecia. Deveria ter pedido permissão antes de atacar essa empada. Agora, quer ir ao torneio? —O menino assentiu repetidas vezes com a cabeça. —Poderíamos tentar falar com sua mãe.

        —OH, sim, senhor! —começou a pular. —Se o senhor falar com ela, com certeza me deixará ir e poderei ver as lutas! Por favor, milord, por favor...

        Wulkan deu um tapinha no ombro de Roland e este virou-se para trás. Era estranho falar com o normando no mesmo nível, pois tinha que levantar a cabeça até que doia seu pescoço. —O que fará em troca desse favor, Roland?

        —Juro que não voltarei a depenar galinhas, senhor! —gritou o menino. —E não comerei mais empadas! —Seus olhos brilhavam de emoção, vendo—se já no torneio. —Tampouco colocarei rãs no caldeirão da sopa, nem misturarei o sal com o açúcar, nem porei patas de frango em...

        —Basta, basta! —suplicou Wulkan— Por Cristo crucificado, o que temos em Kellinword? Um aprendiz do diabo?

        —Minha mãe diz que sou o diabo em pessoa, milord.

Wulkan tentou mostrar—se um pouco severo com o menino. Se era verdade tudo o que havia dito, estranho que não tivesse envenenado ninguém. Adotou uma postura séria, com as mãos nas costas, a cabeça curvada e seu rosto acalmaram o menino. Riu com vontade, como seus homens.

        —De acordo, Roland. Se prometer não fazer mais tudo isso, conseguirei que sua mãe o tire do castigo. Por Deus que é um pequeno pagamento por nossa saúde!

        Sairam comentando suas travessuras, deixando Roland e Jacqueline a sós. O menino abraçou-se a ela e sorriu como um anjo.

        —Conseguirá?

        —O que?

        —Que eu vá ao torneio.

        —Imagino que sim, carinho. Sim, fará. Algumas vezes me pergunto se existe algo no mundo que Wulkan não possa conseguir.

        O menino foi correndo contar a seus amigos a boa nova. A sós, Jacqueline sentiu-se confusa. Não imaginou que um homem como ele soubesse tratar com tanta simplicidade uma criança. Por um instante, recordou a seu próprio pai, quando se interessava por suas travessuras e as de Aelis, intercedendo diante de sua mãe para que abrandasse algum castigo. Uma onda de calor a sacudiu dos pés a cabeça. Não era a mesma coisa, Por Deus! Seu pai foi um homem de honra, e Wulkan era apenas um porco normando ao qual certamente teria divertido dedicar um minuto ao filho de sua cozinheira.

        Decidiu esquecê—lo e sair para o pátio no momento em que Bertrán entrava. O rapaz a reteve por um braço, olhou para todos lados e, ao ver que estavam sozinhos, tirou um pergaminho dobrado do casaco e o estendeu.

        —Tenho isto para você.

        —O que é?

        —Foi entregue por um camponês, embora, por suas maneiras e sua forma de falar, duvido que o seja. Disse muito claramente que era para Jacky e que vinha de Lynch.

        Jacqueline conteve sua alegria e o desdobrou, reconhecendo imediatamente a letra de seu avô. Devorou a carta em dois segundos e logo, sorrindo, a guardou no sutiã. Beijou o assombrado Bertrán.

        —Obrigada. Não sabe como me fez feliz. Onde está quem lhe entregou isso?

        —Disse que a esperaria no mercado, junto à banca dos couros.

        Ela voltou a beijá—lo e saiu rapidamente. Bertrán a seguiu enquanto atravessava a ponte e corria para o mercado. Jacky mergulhou no agitação do mercado até que localizou a quem procurava. Bertrán foi testemunha do abraço e da conversa apressada entre ambos. Logo despediram-se e ela retornou à torre. O escudeiro de Gugger apressou-se a esconder—se.

        Quando Jacky entrou no salão, irradiava felicidade.

        Pegou o ruivo pelas mãos e dançou pela sala em rápidos giros, entoando uma melodia. Ao final, deixou—se cair sobre um banco.

        —Vai me contar o que houve?

        Sorriu de orelha a orelha.

—Notícias de minha família.

        —Onde vivem? Em alguma aldeia próxima?

        —Sim —assentiu. Sentia—se mal por ter que mentir, mas devia fazê—lo.

        Ele manteve-se em silêncio por um momento e logo disse:

—Imaginava que o castigo que suportei por ajudá-la a escapar, merecia mais que uma simples mentira.

        Ela ficou tensa e ruborizou.

—Não entendo.

        —Seriamente? Pois eu acredito que sim, Jacky. Leu em dois segundos a carta. Nenhuma camponesa sabe ler desse modo. Na realidade, nenhuma sabe ler! E quanto ao...

        —Bertrán, está delirando! —assustou—se ela.

        —Pode ser que eu seja apenas um pobre aprendiz de escudeiro, mas não me tome por idiota. Desde que chegou, eu sei que é diferente de nós. Há algo estranho em você.

        —Bertrán...

        —Ao menos, gostaria de saber por quem arrisquei a pele.

        —Por Deus, é só uma nota! Você mesmo poderia ter lido.

        —Eu não sei ler! —rebateu. —Inclusive, muitos cavaleiros teriam levado meio—dia para traduzir o que você fez em um abrir e fechar de olhos!

        Jacqueline mordeu os lábios. Ela mesma tinha se delatado com sua imprudência e seu desejo por notícias. Eram muito poucas as pessoas que sabiam ler e escrever corretamente naqueles tempos, e certamente, não uma camponesa.

        —Posso explicar.

        —Espero que o faça.

        Ela suspirou e assentiu.

        —Vamos a outro lugar, meu amigo. Tenho que lhe contar um segredo.

 

        —Então, Enric de Lynch é...!

        —Baixe a voz, homem. Quer que toda Kellinword saiba?

        —Maldição, senhora! Sabe em que situação me colocou?

        —Ponto um: não sou uma senhora, tenho que continuar sendo somente Jacky. Ponto dois: você quis saber, então, agora não me culpe.

        O ruivo coçou a cabeça e a observou-a. Maldita história! Tinha tratado a moça como uma igual, e agora descobria que era nem mais, nem menos, que a neta de um suserano.

        — Wulkan acabará sabendo.

        —Não tem que saber. E espero que você não vá e conte, ou juro que eu mesma cortarei sua língua.

—Sabe o que me pede, milady?

        —Trate-me como fez até agora. Por todos os Santos, Bertrán! Se me chamar de milady em algum momento, nada do que passei terá adiantado.

        —Antes me açoitaram; agora podem me cortar a cabeça por isso.

        —Não vão cortar nada. Você não sabe nada! Entende isso? Logo desaparecerei e acabou tudo. Wulkan estará muito ocupado com sua esposa.

        —Cedo ou tarde saberá.

        —Então será muito tarde: já estará casado e terá pronunciado os votos de união com Lynch. Não poderá fazer nada.

        —E você... E você será livre.

        —Exatamente.

        —Que complicação! —bufou. —Ter que fingir ser a amante do lorde quando poderia estar levando as rédeas do castelo, como corresponde à senhora do lugar. Não seria melhor assim?

        —Ninguém me dirá com quem devo me casar! Menos ainda se ele for um normando!

        Bertrán mostrou-se um tanto reticente.

        —Acredito que idealizou muito esse tema, senhora. Os normandos são como os saxões. Nem mais, nem menos. Agora são eles que tomaram a Inglaterra, para isso sacrificaram muitos dos nossos, mas nós fizemos o mesmo, quando fomos os vencedores. Assim ponha fim a esse discurso. E, depois de tudo, não é tão mau.

        —Essa é sua opinião. Eu não penso assim, e sei o que faço.

        —Eu acredito que não. Eu gosto de observar às pessoas. Meu pai sempre dizia que se aprende muito com isso. E você não olha o lorde como antes.

        —Tolices...

        —Não, sabe disso.

        —OH, está bem! Não quero discutir com você. Vamos; devem estar servindo a comida e Wulkan bem poderia pensar que tramamos algo se não aparecermos.

        —Acho que está enganada —insistiu ele.

        —Faço o que é melhor.

        —Ser sua amante declarada é melhor para sua reputação? Pensou que depois não haverá nenhum cavaleiro que queira casar com você?

        —Melhor, Bertrán! —zangou—se. —Os homens não dão mais que dor de cabeça!

 

        O lugar escolhido para o torneio era uma planície que fazia divisa com as terras de Lynch, a poucas milhas do castelo. Faltavam três semanas para a celebração e Wulkan tinha enviado mensageiros a Lynch, Nortich, Caberdin, Barrington, e inclusive a Nottingham. Começavam os preparativos para levantar as tendas que atenderiam os participantes e seu séquito, que vinham em quantidade suficiente para que o acontecimento fosse memorável. Tiveram que reunir mantimentos, cozinheiros, montar as tribunas, as cavalariças, habilitar espaços para a diversão e o entretenimento. Wulkan tinha mandado chamar a cada circense que se encontrasse nos arredores, os quais traziam feras estranhas, os domadores de ursos, os de serpentes, homens que exibiam aves de longínquas terras, narradores de contos, de fábulas, de alucinantes batalhas e aventuras em terras fantásticas. As malabaristas, equilibristas e saltimbandos. Os mercadores vinham em bom número às imediações porque venderiam seus produtos a preços mais altos. Também chegariam mendigos e malfeitores, mas isso era algo do qual nenhuma celebração podia livrar—se, um mal inevitável.

        Jacqueline ansiava o acontecimento mais que ninguém no castelo, porque aquilo a faria retornar ao seu hábitat de sempre. Poderia conversar com cavaleiros, servir largas mesas, atender as feridas dos combatentes —como fazia em Lynch —e aplaudir ou vibrar diante dos ataques de um ou outro cavalheiro.

        Mas suas expectativas frustraram-se no dia de Pentecostés, a poucos dias do torneio.

        Na véspera, Wulkan subiu a seus aposentos mais tarde que o habitual. Desde a noite em que ela mostrou-se fria e distante não tocava nele: só entrava na antecâmara, despia—se — ela procurava estar sempre no leito e tapada até as sobrancelhas— depois se deitava do seu lado da cama, desejava boa noite e dormia quase instantaneamente. A tensão de Jacky diminuía assim que o escutava respirar pausadamente. Entretanto, estava intrigada. Não entendia por que não a tirava de seu quarto para meter nele qualquer prostituta.

        Nessa noite, o ruído de uma banqueta caindo no chão despertou. Wulkan a olhava fixamente e temeu que sua sorte tivesse durado muito e que ele exigisse resposta na cama. Mas Wulkan despiu-se como sempre, embora com movimentos torpes. Jacqueline franziu o cenho e observou-o com atenção. Tentando tirar as botas, falseou o pé e esteve a ponto de cair de bruços. Estava bêbado?

        Conseguiu tirar as botas sem cair e depois se desfez das calças, mas tropeçou e acabou por deitar—se com elas. Jacky levantou-se e ficou sentada, agarrando as mantas com ambas as mãos. Ao seu nariz chegou um aroma conhecido e rançoso. Sabão e perfume barato!

        O sensato seria calar—se, dormir e deixar que passasse o enjôo ou a bebedeira, mas o fato de que a ignorasse, que a obrigasse a compartilhar o quarto em tão deplorável estado, feriu seu amor próprio. Já era ruim ter que compartilhar sua cama, mal ter que esperar, aflita, para saber,cada noite, se ele usaria seu direito de possui—la. Agora suportar que chegasse bêbado e cheirando a prostituta, já era demais!

        —Está fedendo a rameira.

        Wulkan voltou-se e procurou estabilidade, apoiando—se em um cotovelo. Desde que ela desdenhou de suas carícias, começou a tratá—la com indiferença. Demonstrar que não se importava, mas que teria que continuar acatando suas ordens e dormir em sua cama porque ele era o lorde. E não falou mais com ela! Era uma revanche infantil, mas gostava de ver seu receio cada noite, pensando no perigo de seu contato. Havia pedido a Deus ajuda para encontrá—la ali, entre seus lençóis, e deitar—se para dormir sem tocá—la, noite após noite. Tinha desejado possui—la uma, duas, três vezes cada noite, fazer amor até o amanhecer, que gemesse em seus braços. Mas não iria ser um fantoche, nem tentaria esquentar o gelo. E a censura o despertou.

        —Como disse?

        —Disse que fede a rameira.

        Deixou—se cair de novo sobre os almofadões e fixou o olhar no teto. Sacudiu a cabeça para clarear os pensamentos; tinha bebido alguns copos de licor, mas não estava bêbado. Embora tivesse se embebedado algumas vezes, para esquecer aquele corpo de curvas suaves, que tinha ao seu lado e que comparou com o da exuberante morena de seios fartos e largos quadris que tinha insinuado—se para ele naquela noite.

        —É muito engraçado—sussurrou.

        —O que é engraçado?

        Ele sentou-se e sua expressão ficou sombria.

—Jacky... está com ciúmes?

        —Eu? Está louco!

        —Então, porque esse comentário?

        —Tenho nojo dos bêbados!

        Pela segunda vez deitou-se de barriga para cima e suspirou.

        —Tem nojo dos bêbados. Bem, pois eu não estou.

        —Isso diz, mas não é o que parece, meu senhor.

        —Estive com uma mulher, sim! —desafiou—a, mentindo como um cafageste, porque queria machucá—la— Tem algo a objetar?

        Jacqueline alertou-se, mentalmente. Era uma idiota!, pensou, está comportando—se como uma esposa ofendida e ciumenta. Mordeu a língua e enfiou-se entre os lençóis, dando-lhe as costas.

        — Pode deitar com todas as mulheres de Kellinword! —sibilou, com raiva por sua própria estupidez – Pelo menos assim não me importuna .

        Sua mão puxou-a pelo ombro e a fez dar meia volta. Ficaram perto,enfrentando-se com olhares.

—Jacky, eu gosto das mulheres bem dispostas, não as deusas de gelo, como você. Mas posso jurar que a mulher com a qual me deitei era um vulcão.

        E que diabos ele sabia, se nem sequer a havia tocado!

        Jacky estava com ciúmes, e ele estava adorando isto.

        O espinho cravou-se na alma. Para ela o que importava, maldito! Mas importava. Importou de tal forma ouví-lo dizer que tinha desfrutado nos braços de outra mulher, que desejou arranhá—lo, arrancar seus olhos. Ou talvez só quisesse deixá-la com ciúmes? Se por acaso fosse o que pretendia, fazendo um grande esforço para parecer desinteressada, desafiou—lhe:

        —Me alegro sinceramente, milord. Embora me alegraria mais se decidisse trocar meu posto pelo dela. Ao menos, poderia dormir tranqüila junto ao fogo das cozinhas.

        Wulkan pôs—se a rir, e antes que pudesse evitar, voltou—se e a beijou na boca.

        —Isso não, Jacky. Terá que continuar aqui, fingindo ser minha amante.

        —Por que, em nome do Céu? —Golpeou a cama com um punho. —Odeio você! Pode me possuir, mas não obterá minha resposta. Traga sua prostituta para este quarto. Teria prazer assegurado e eu seria livre.

        O normando lançou-lhe um beijo e deitou-se.

        —Eu adoro que enfeite meu quarto, Jacky. Nenhuma dessas velhas raposas tem sua classe. Boa noite, carinho.

        —É um...!

        —Bebi muito e forniquei mais do que o prudente —voltou a mentir. —Preciso de um bom descanso, então dê-se por satisfeita que outra tenha acalmado minha virilidade. Senão, agora estaria debaixo de mim, com as pernas abertas. Assim, cale-se e durma!

        Jacqueline engoliu o orgulho, a vontade enorme de torcer-lhe o pescoço e até as lágrimas. Sentiu—se o ser mais desgraçado da Terra, humilhada até onde só um miserável normando conseguiria fazer. Tentou dormir, mas não conseguiu. Naquela noite, Wulkan deu muitas voltas na cama, e o constante contato com seu musculoso corpo a manteve tensa até que amanheceu, contando cada segundo.

       

        Wulkan levantou-se cedo, calçou as botas e saiu, roupa na mão, para tomar um banho na antecâmara de Gugger, antes de ir a missa. A sós, Jacqueline levantou da cama. Seu estômago revolveu-se, sentiu que enjoava e um suor frio percorreu-lhe o corpo. Correu até a bacia, colocada depois de um biombo, para evitar vomitar no chão. Dobrou—se em duas: as arcadas vieram, e só depois de um momento que pareceu eterno pôde sentar—se no chão; transpirava de frio e achou que ia morrer.

        Conseguiu voltar engatinhando para a cama e cobriu-se até o queixo. Os tremores cessaram e sua cabeça parou de girar de forma vertiginosa.

        Bateram na porta e ela deu permissão com voz fraca, para ver aparecer a cabeça de Bertrán.

        —Wulkan me envia para saber se vai a missa.

Quis responder, mas uma nova arcada a impediu.

        Tapou a boca como pôde, e o rapaz, rapidamente, aproximou—lhe a bacia. Não vomitou mais que bílis, mas ficou trêmula e ensopada de suor. Bertrán observou as convulsões. Quando ela deixou-se cair sobre os almofadões, estava pálida como um morto.

        —Está gelada —disse, com a mão sobre sua fronte.

        —Vou morrer... —gemeu ela.

        —Chamarei o médico.

        —Tudo dá voltas. Meu estômago não pára de saltar.

        —Deve ser uma indisposição passageira. Tente levantar-se lentamente.

        —Não posso, juro. Ontem passou muito rápido, mas esta manhã parece que está me partindo em duas.

        —Ontem?

        —Acredito que comi algo que não me caiu bem, Bertrán.

        O ruivo sentou-se na beira da cama e observou atentamente seu rosto cinzento. Tinha o cabelo colado à cabeça e, embora estivesse recuperando a cor, seu aspecto não era saudável.

        —Ontem teve enjôos? Vômitos?—Ela assentiu. Levantou-se e se aproximou da janela. De costas para ela, estalou a língua. —Boas novas para Wulkan.

        —O que?

        O escudeiro retornou à cabeceira da cama e tomou entre suas mãos as de Jacky. Sorriu, embora não de forma convincente.

        —Bertrán, o que...?        .

        — Milady, acho que esta grávida —soltou de repente.

        Ela piscou, sem querer compreender. Logo, pouco a pouco, foi assimilando a notícia e seu cérebro clareou-se. Por fim, sentou—se na cama, como se uma mola a tivesse empurrado. Sua rosto empalideceu ainda mais.

        —Vou matá-lo —sussurrou. —Vou matá-lo, Bertrán. Juro que o matarei!

        Jacqueline não matou Wulkan, embora Bertrán custou para conter o acesso de cólera, até que aceitou que esperava um bebê.

        Bertrán procurou um modo de desculpá—la diante do lorde, falando de uma terrível dor de cabeça, e não assistiu aquela manhã a missa rezada por Medardo, passando a maior parte do tempo em seus aposentos.

        Durante a primeira hora em que ficou a sós, Jacqueline chorou, chutou tudo o que tinha por perto e insultou Wulkan até que esgotaram os palavrões. Depois, deixou—se cair sobre as almofadas, junto à janela, e sua cabeça começou a funcionar, de novo, com lógica.

        Estava grávida. Bem. Wulkan tinha plantado a semente de um bastardo em seu ventre e aquilo já não tinha remédio. Agora tinha que pensar no que ia fazer. Bertrán havia dito que a primeira coisa era falar com o lorde, expor a situação e deixar que ele arrumasse tudo. Afinal de contas, não era tão grave... Ora, não era tão grave! Lady Jacqueline de Lynch grávida de um normando sem classe que a tinha usado como rameira!

        Passeou pelo aposento,com passos rápidos, tentando pensar com clareza, evitando que a fúria nublasse seus sentidos. Deveria sair e fatiar a garganta dele, era o que merecia. Iria ter um filho. Dele! Pensou em atirar—se das almenas, mas depois dessa estupidez assaltou-a outra maior: a de que Wulkan pudesse amá—la agora que iria lhe dar um filho. Amaldiçoou—se mil vezes. Dois meses tentando escapar, e agora, pelo fato de estar grávida, começava a pensar como uma idiota. Teria seu filho sem Wulkan! Não contaria! Maldita se fosse tola o suficiente para contar que ele iria ser pai! Não desejava seu sacrifício, nem sua magnanimidade..., nem sequer sua ajuda! Ela sozinha poderia educar seu filho em Lynch.

        Na hora do almoço, Bertrán retornou, preocupado por seu estado de espirito.

—Vai contar?

        —Não.

        —Minha lady —queixou—se o jovem— não pensa com sensatez. O rei Ricardo deseja este casamento e, por azar, compartilhou sua cama antes das bodas. Vai ter um filho dele, demônios! Tudo é tão fácil de resolver, que devo dizer que está louca por não tentar. Pode ser a esposa de Wulkan e dar um herdeiro a Kellinword.

        —Não me casarei com ele só porque vou ter um filho dele.

        —Pela Muita Santa Virgem, senhora! Pense bem.

        —Pensei. O homem com o qual me casar será um homem que me ame, capaz de renunciar a tudo por mim. Certamente, não uma mula que se casa pela conveniência de unir dois feudos, porque o rei ordena.

        —Mas se ele a quer, senhora!

        —Quem? Wulkan?

        —Diga-me, então, por que a faz compartilhar seus aposentos diariamente, compra—lhe roupas e a tirou do serviço?

        Jacqueline não sabia se ria ou chorava.

        —Bertrán, é ainda muito jovem para entender as coisas. Wulkan me deseja, somente isso. Amor? Ora!

 

        —Suas arvores são tão altas que quase chegam as nuvens —narrava, encantado, o sujeito. Era um dos que primeiro chegou a Kellinword diante da iminência do torneio, e tinha sido chamado pelo lorde ao grande salão para amenizar as primeiras horas da tarde. Começou contando viagens incríveis, e quando Guillermo insistiu que falasse de um país fantástico, o peregrino aproveitou para nomear seus conhecimentos a esse respeito.

—A Índia é o país do mistério, damas e cavaleiros —anunciou, captando a atenção de todos, —Que conhece a cada ano dois invernos e dois verões. Suas árvores são assombrosas, enormes como castelos, com folhas tão grandes como uma casa. Algumas produzem frutas enormes, embora cheias de cinzas, por isso não podem comer; outras, dão um carvão que pode arder um ano inteiro sem consumir—se.

        —É verdade que crescem pedras preciosas entre seus ramos? —perguntou um dos soldados.

        —É verdade, sim, embora não seja freqüente. São as serpentes as que têm duas pedras preciosas no lugar de olhos. Por isso são caçadas, cada vez há menos e tendem a desaparecer. E os rios conduzem sementes de ouro; tantas, que seria possível forrar cada muralha deste castelo até transformá-lo em uma obra fantástica que deslumbraria o próprio sol.

        —Ouvi —interveio outro— que seus habitantes comem seus companheiros. O que pode contar sobre isso?

        O narrador calou-se um momento, em um silêncio que podia dar a razão ou tirá—la, até continuar com voz de trovão.

        —Algumas tribos comem aos mais velhos. Ses chamam antropófagos. Entretanto, outros habitantes se alimentam só de pescado cru da água salgada. Há homens que para viver precisam cheirar constantemente o aroma das maçãs. Existem os que tem um só olho no rosto, e outros tem uma boca no meio do peito e os olhos nos ombros.

        —Que horror! —exclamou Martha, verdadeiramente estremecida pelo relato.

        —Mas os mais curiosos são os de uma tribo cujo nome não recordo. Têm um único pé, mas tão largo, que lhes serve de escudo e como sombrinha nos meses de verão.

        —Incrível! Esteve lá?

        —Como poderia contar tudo isto se não tivesse pisado naquelas estranhas terras? Também viajei a Etiópia, cavaleiro, que é ainda mais estranha que a Índia.

        —Conte—nos algo desse país, então.

        —Dariam—me uma jarra mais de cerveja? Tenho a garganta seca...

        De boa vontade, alguém aproximou sua própria jarra do narrador, à espera de novas lendas.

        —Pois bem —continuou, depois de um longo gole— Na Etiópia todos os animais carecem de orelhas e de olhos, mas ali as pedras preciosas não estão nos olhos das serpentes, mas nos cérebros dos dragões, embora tenha que dizer que eles não se deixam capturar facilmente. Milhares de cavaleiros corajosos morreram tentando capturar a estes monstros. Os homens se alimentam da carne das panteras e dos leões, e rugem como eles. Andam nus e...

        —Jesus! —exclamou Martha de novo, e seguiu-se o coro das demais mulheres, tapando os ouvidos dos pequenos.

        —Algumas tribos tem por rei um cão. Outras, um enorme ciclope. Algumas, somente comem gafanhotos, é obvio depois que passam dos quarenta anos de idade, pois todos sabem que o gafanhoto tem veneno em seu sangue e é mortal para os homens.

        —Está perto da Etiópia esse país no qual reina João? —quis saber outro.

        O narrador encolheu os ombros.

        —Não sei nada a respeito de sua localização, senhor cavaleiro, mas ouvi dizer que está no centro da Ásia. Realmente, é um país no qual reina um sacerdote chamado João. Um cristão de rito nestoriano e inimigo acirrado do Islã, que poderia ser um aliado extraordinário para reconquistar a Terra Santa.

        —Até agora ninguém encontrou esse país —interveio Medardo de Lecoy, que concordou naquela tarde em acompanhar a reunião, tão ansioso como o resto por conhecer histórias fantásticas de longínquas terras. —Eu, particularmente, duvido que exista.

        —Entretanto, ali está, pai —prosseguiu. —E embora ninguém o encontre, esse sacerdote está esperando a chegada de algum cavaleiro cristão com o qual aliar—se para lutar contra os inimigos do cristianismo.

        Os contos e as histórias foram narrados quase até a hora do jantar, e ninguém se moveu do salão até que o sujeito deu por finalizada suas narrações. Logo, cada um se dedicou a seus fazeres, comentando entre si as maravilhas do mundo. Jacqueline esqueceu de seus problemas escutando aquelas narrações. De repente, uma mão em seu braço a tirou de suas aventuras.

        —Divertiu—se? —perguntou Wulkan.

        —Sim —admitiu ela.

        —Eu diria que acreditou em cada uma das palavras desse mentiroso.

        —Tolices! —separou—se dele. —Acaso você acha que existem seres com um pé tão grande que serve de sombrinha?

        Wulkan pôs—se a rir e a abraçou por trás, enlaçando sua cintura, colando suas costas a seu peito. Baixou a cabeça e falou em seu ouvido.

        —Se aqui, na Inglaterra, existem mulheres que negam seu corpo a um homem depois de enfeitiçá—lo, por que não acreditar?

        Jacqueline ficou rígida como o pau de uma vassoura.

—Demonstra muito mal que o enfeiticei, milord.

        —Você gostaria que demonstrasse isso agora mesmo, antes do jantar?

        —Milord...

        —Prefere esperar esta noite? —O fôlego de Wulkan fazia cócegas em sua orelha; suas mãos acariciaram seu ventre liso, provocando—lhe ternura.

        —Se não tem mais idiotices para dizer, vou ajudar Martha com o jantar.

        —Seu único trabalho, Jacky —reteve—a junto a ele— é estar ao meu lado. E agora quer dar uma volta pelo jardim.

        —Não estou muito bem e agradeceria que não me obrigassem a passear porque…

        —Basta, Jacky —cortou ele, tomando sua mão e puxando—a.

        Teve vontade de bater nele, mas tudo o que pôde fazer foi seguí-lo, aos tropeções, enquanto a arrastava para fora, atravessavam o pátio e chegavam até a horta. Fez com que se sentasse em um dos bancos e, colocando um pé ao seu lado e apoiando os braços sobre o joelho, perguntou:

        —Até quando vai durar este estúpido jogo, Jacky?

        —Que jogo?

        Os dedos de Wulkan correram pela garganta feminina, os ombros, o começo dos seios...

        —Refiro—me a que treme cada vez que a toco, pequena. Por que nega a si mesma o prazer do amor?

        —O que quer dizer quando fala do prazer do amor? —enfrentou-o. —Fornicar com a primeira rameira que aparece?

        —Não —sorriu ele, vendo-a irritar-se— Refiro—me a tomar você em meus braços e fazer com que delire. —Seu tom rouco e aveludado a fazia vibrar interiormente— Colocar minha boca sobre a sua, passear minha língua por seu seio e...

        —Por favor! —Jacky levantou-se, excitada. Afastou—se uns passos e torceu as mãos sem perceber.

        —Refiro—me, menina —prosseguiu Wulkan em sussurros, aproximando—se de novo dela e tomando—a— A sentir sob meu corpo cada uma de suas formas. A cheirar o perfume de seu cabelo. A olhar o brilho de seus olhos violeta, que escurecem quando alcança o prazer...

        —Odeio você —ela conseguiu dizer.

        Quem agora a aturdia com essas palavras não era outro senão o desalmado que tinha abusado de seu poder, tomado sua virtude e plantado sua semente nela. A semente de um bastardo. Mas os lábios de Wulkan acariciavam o lóbulo de sua orelha despertando seus sentidos, e os dedos masculinos massageavam o ventre, onde crescia o fruto da luxúria.

        —Refiro—me, carinho —seguia ele, mordiscando seu ombro— A sentir sua língua em minha língua. A entrar dentro de você. A...

        —Deus...

        Wulkan fez com que se voltasse e apanhou sua boca. Ela não foi capaz, nem quis resistir. Queria que ele a abraçasse, que a beijasse, que a enchesse de carícias e a fizesse sua uma vez mais. Já não importava seu pudor de dama, nem sua origem normanda, nem sequer se perdia-se para sempre; só importava o calor de seu corpo, aconchegar—se entre seus fortes braços, acariciar seus músculos e acolhê—lo dentro, tão dentro, que ninguém no mundo pudesse separá—los. Tinha perdido muito tempo negando a si mesma que o desejava.

        Tomou—a em seus braços e entraram no jardim. Aconteceria novamente!, pensou. Iria fazer amor ali mesmo, no meio das flores, com a fonte por testemunha!

        Tinha que resistir!, clamava sua mente embotada. Devia sobrepor—se à paixão de seu corpo jovem e traiçoeiro. Escapar do magnetismo de Wulkan...

        Não fez nada. Não podia fazer nada. Por isso, quando os dedos de Wulkan se aventuraram no sutiã, descobrindo seus seios, e puxaram suas saias, deixando suas coxas nuas, enroscou os braços em seu pescoço, beijando-lhe a boca, ardendo de desejo.

 

        Logo que entrou nas cozinhas, Roland lançou-se nos braços de Jacky.

        —Irei ao torneio! —gritou em sua orelha. —Ouviu? Vou ver as lutas!

        Jacqueline beijou-o na franja.

        —Me alegro muito, tesouro. Já não está de castigo?

        —OH, não. Milord suspendeu esta manhã.

        —É verdade —repôs Martha, salgando um enorme pedaço de carne. —Este diabinho procurou um bom advogado. Mas escute, jovenzinho —apontou a seu filho com um dedo coberto de sal— se não cumprir o que prometeu ao lorde...

        —Cumprirei, mamãe. Prometi, né?

        —Veremos —resmungou a mulher. —Já veremos. —Olhou a jovem e apontou para uma cadeira. —Sente—se e coma algo.

        A jovem obedeceu, sentou—se e deixou que o menino se acomodasse sobre seus joelhos. Aceitou a tigela de leite quente que Martha pôs diante dela e partiu duas fatias de pão recém assado. Martha a viu devorar a comida e não tirou-lhe os olhos de cima enquanto compartilhava o leite e o pão com Roland. Quando terminou, a moça acariciou o cabelo do pequeno e começou a narrar um conto.

        —Vai contar? - perguntou.

        —O que e a quem?

        —Roland, vá brincar lá fora.

        —OH, mamãe. Jacky está contando uma história.

        —Obedeça.

        O pirralho resmungou, mas desceu dos joelhos de Jacky e se perdeu de vista. Só então Martha voltou ao assunto.

–Você sabe. Dentro de alguns meses, todo mundo saberá de seu estado.

        Jacqueline levou a mão ao ventre.

—Bertrán deveria cuidar da sua vida.

        —Bertrán não fez mais que confiar em uma mulher adulta, não em uma pirralha —disse Martha— Contará?

        —Não.

        —Dane—se você! Juro pelas Sagradas Escrituras que não entendo uma palavra. Está louca. Ontem à noite os vi na horta. —Jacky não evitou uma exclamação de surpresa. —Ora, menina, não se esconderam muito... Tive que ir ao poço, não estava espiando, livre-me Deus! E eu diria que não estava muito insatisfeita, quando ele a tomava, de modo que... por que ocultar que vai ter um filho dele?

        —Ainda não é... seguro.

        —Seriamente?

        —Bom... —ruborizou—se—, não sei.

        —Melhor contar logo, filha. Quanto antes saiba, melhor.

        —É que não parece possível que tenha ficado grávida em tão pouco tempo...

        —Olhe, criatura —limpou as mãos em seu avental e abandonou definitivamente o trabalho para sentar—se junto a ela— Quando se fornica, o resultado costuma ser um bebê.

        —Martha!

        —Ai, não me ensinaram delicadezas, somente a trabalhar, obedecer a meus senhores, fossem quais fossem, e procurar não fazer mal ao próximo. Talvez se possa dizer com palavras mais bonitas, mas o resultado é o mesmo.

        Jacqueline escondeu o rosto entre as mãos.

—Não sei o que vou fazer... —soluçou.

        —A primeira coisa é se assegurar de que espera um filho. A segunda, se estiver segura, falar com o lorde. Wulkan cuidará de você e da criança. É um homem de honra.

        —Cuidará de sua rameira e de seu bastardo. É isso o que quer dizer?

        —Não. Quero dizer que cuidará da mãe e do filho. Não procure cinco pés no gato, Jacky.

        A jovem levantou-se e aproximou-se da porta da cozinha. Martha chegou perto dela e deu uma olhada para fora. Wulkan treinava com Gugger no pátio de armas. Os dois tinham o torso descoberto, seus corpos brilhavam de suor. Eram uma sinfonia de poder perfeita...

        —Ama—o, verdade?

        —Que tolice! —exclamou ela sem convicção.

        —Qualquer moça poderia apaixonar—se por ele. Olhe para ele.

        —Para mim, é só o homem que me desonrou.

        —Para você é muito mais que isso. Não negue. Seus olhos adquirem um brilho especial quando olha para ele.

        —Não diga bobagens, por favor—suplicou, retornando ao interior.

        —Do que tem medo?

        Ela não agüentou mais e sentiu-se desfalecer. Desde que soube de sua gravidez, sua cabeça fervia como uma caldeira. Já queria o filho que esperava. Parecia impossível, quando há pouco tempo nem sequer sabia de sua existência. E se odiava. E odiava Wulkan..., mas também o amava. Percebeu na horta. Os sentimentos eram tão opostos que a estavam destroçando. Não sabia o que pensar. Amar Wulkan era trair os seus. Fixou em Martha seu rosto choroso e disse:

        —É muito tarde para mudar.

        —O que tem que mudar?

        —Não entenderia.

        —Tente explicar.

        Jacqueline tomou o rosto da mulher entre suas mãos.

        —Esqueça. Talvez algum dia possa contar, quando não for prisioneira de minha própria fraqueza.

—Jacky...

        —Não, por favor. Deixe-me.

        —Escute um instante. É jovem e bonita. Se acha isso pouco, espera um filho de Wulkan. Sim, já sei, mas eu não tenho dúvidas como você. Espera um filho. Tem todos os trunfos na mão para que ele pense em você e esqueça dessas bodas arranjadas.

        Jacqueline alarmou-se.

— Está sonhando.

        —Nem tanto. Wulkan nem sequer conhece a mulher que lhe foi designada. Só vai casar-se com ela porque assim decidiu o rei. Lute por ele, menina.

        —Lutar?

        —Não é a primeira vez que um homem de sua classe desposa uma moça de classe mais baixa.

        —OH, Martha...

        —Escute-me. Se ama Wulkan, lute por ele. Você está aqui e essa dama, muito longe. Você o ama, teria que ser cega para não ver, e ele nem conhece esta herdeira. Você vai lhe dar um filho e ela..., talvez seja estéril. Pense que...

        Jacqueline explodiu em prantos e fugiu correndo das cozinhas. Escapou dos conselhos de Martha como se estivesse fugindo das chamas do inferno. Na realidade, fugia de si mesma. Uma vez a sós, apoiada no muro de uma almena, com o vento despenteando seus cabelos e açoitando seu rosto, não pôde evitar voltar—se para o pátio de armas. Não pôde evitar, tampouco, deleitar—se com cada movimento daqueles músculos bronzeados de Wulkan. Admirou o vaivém de seus golpes de ataque. Martha estava certa: qualquer mulher poderia apaixonar—se por ele. Só que ela não podia fazê—lo. Nem podia pôr aquele trunfo em suas mãos. Dizer que esperava um filho? Que, apesar do passado, desejava estar ao seu lado? Confessar que, desde que o conheceu, não podia deixar de pensar nele? Estava perdida e o tempo acabava.

        —Senhor —rezou— Ajude-me. Por favor, ajude-me.

 

        Na primeira hora da tarde viu a chegada de seu avô. Bertrán lhe avisou e ambos subiram às almenas para avistar, a distância, as cores dos estandartes de Lynch. A nuvem de poeira que envolvia o grupo tornava impossível distinguir alguém, mas ela imaginou seu semblante sério e honrado.

        —Bertrán, tenho que falar com ele logo que ponha os pés no castelo. Encarregará—se disso?

        —Farei o que puder, milady.

        O escudeiro desapareceu, deixando—a a sós. Ali permaneceu um momento mais, até que as insígnias de sua casa estiveram tão perto que quase podia tocá-las com a mão. Enric vinha acompanhado de vinte homens e trazia consigo Clara.

        Uma pontada de inveja fez cócegas em suas costas diante de sua formosa cabeleira. E sem querer, assaltou—lhe um ciúme terrível. Além disso, havia outro problema: Agora, sem os farrapos de moleque, estava nas mãos de Clara!

        Correu como uma louca escada abaixo, de dois em dois degraus, de três em três, arriscando sua integridade física. Ao chegar ao pátio, seu avô e a comitiva desmontaram. Escondida contra a parede viu como Bertrán se aproximava de seu avô e lhe sussurrava algo. O ancião assentiu e depois entrou na torre para saudar o senhor do castelo, acompanhado de Clara. Seguiu a distância, tentando não deixar—se ver, e foi testemunha das saudações corteses entre seu avô e Wulkan, e do lisonjeador sorriso que Clara dedicou quando o lorde inclinou-se e apresentou seus respeitos. Esta piscou com rapidez o que não deixou de divertir o anfitrião. O lorde pediu que servissem bebidas que aliviassem o pó de suas gargantas e mordeu a língua quando Wulkan ofereceu hospedagem até o começo das justas, cujo início estava fixado para uma semana. Clara, evidentemente encantada por ter a oportunidade de voltar a lançar suas redes, voltou a piscar.

        Aquilo era pior do que esperava. Retornou ao pátio e procurou seu amigo.

        —Vai vê-la ao anoitecer, junto às cozinhas —apressou—se a falar o moço.

        —Primeiro deve levar até a horta a jovem que o acompanha. Conhece—me e tenho que falar com ela, ou descobrirá minha identidade.

        —Demônios! Isto está se complicando, milady.

        —Leve—a ao poço, eu estarei ali.

 

        —De modo, sir Enric —falou Wulkan— que não encontrou ainda a sua neta.

        Lynch agradeceu em silêncio que o jovem lorde tivesse esperado que estivessem sozinhos.

        —Em minha carta dizia...

        —Sei. Francamente, senhor, custa—me acreditar que seja incapaz de dar o paradeiro de sua própria neta. Onde supõe que está agora?

        —Realmente, milord, não poderia dizer.

        —Bem. Saberei esperar. Uma moça viajante, não?—disse com ironia— Espero que quando me casar com ela, não seja tão esquiva. Na realidade, não posso dizer como agiria se minha esposa desaparecesse sem deixar rastro.

        —Senhor, sei que tudo isto parece inaceitável. Rogo que tenha paciência. Minha neta viveu sempre livre. Nunca ninguém pediu-lhe contas, nem sequer seu pai exigiu muito quando vivia. O certo é que jamais fomos contra suas idas e vindas.

        —Mas lembre-se que Ricardo quer ver unidos seu feudo e o meu.

        —É obvio, milord. Perdoe-me, mas... pensou na possibilidade de formalizar a aliança com... outro casamento?

        —Como diz? —impacientou—se Wulkan.

        Enric remexeu-se em sua cadeira, como se, de repente, tivessem colocado brasas sob o traseiro.

        —Veja,meu lorde. Amo minha neta e, certamente, uma aliança com você seria muito proveitosa —disse— Mas tenho que reconhecer que não é a mulher mais adequada para casar.

        —Não sei se o entendo.

        —É geniosa. Às vezes, impertinente. Está acostumada a fazer sua Santa vontade. —Bebeu um gole para continuar falando— Quero ser franco com você, Wulkan. Acredito que nosso rei, Ricardo, enganou-se de noiva.

        —Seriamente?

        —Já conhece minha protegida, Clara. A moça foi recolhida por meu filho e sua esposa, e logo foi adotada. Criou—se junto a minhas netas; teve os mesmos professores e as mesmas damas de companhia. É culta e obediente. Goza dos mesmos direitos que as outras duas. E quanto a sua beleza..., não acredito que possa ser posta em dúvida.

        Enric acabava de vender sua mercadoria, como um comerciante que quer enganar seu cliente. Desgostava—lhe profundamente representar aquele papel... Trocar uma noiva por outra? Mas não havia outro caminho. Se Wulkan aceitasse, Clara não caberia em si de felicidade e Jacqueline se livraria de um futuro que odiava. Portanto, não fazia mal a ninguém. A carta que enviou com um emissário especial a Ricardo tinha saído dois dias atrás, rogando ao rei que libertasse Jacqueline desse casamento. E com Clara não haveria problema. Ele mesmo percebeu as contínuas alusões da jovem para a beleza do normando, assim que retornou a Lynch. Por outro lado, Wulkan era o homem indicado para manter na linha uma cabeça—de—vento como Clara.

        —Tenta me dizer, senhor —falou Wulkan muito devagar— que devo me casar com sua protegida?

        —Sinceramente, acredito que seria o melhor.

        —Se tiver que trocar de noiva, por que não sua outra neta?

        —Tem só treze anos, milord.

        O normando respirou fundo e acabou sua taça com um gole. Olhou para o homem que tinha diante dele e não soube o que dizer. Parecia que uns fios invisíveis dirigiam sua existência, e isso não era bom, absolutamente. Primeiro, Ricardo o obrigava a tomar conta de Kellinword e selar uma aliança com Lynch; e agora, era Enric quem o aconselhava a trocar de noiva. Ao inferno com os dois!, pensou. No fundo, não importava a mulher com a qual ia casar—se, tanto se fosse lady Jacqueline, como se fosse lady Clara. Ele só podia pensar naquela víbora que ocupava sua cama a noite, a quem desejava domesticar e que sabia levá-lo ao céu. Por certo, em vez de estar ao seu lado, onde estaria agora? Jacky, Jacky...

        Ergueu-se de repente.

        —Pensarei, Enric. Asseguro que pensarei.

        Clara afogou uma exclamação de assombro ao reconhecer à moça que apareceu por trás do poço. Ergueu o queixo com altivez. Jacky pensou que, se fosse uma galinha, teria todas as penas arrepiadas.

        —O que está fazendo aqui? E vestida desse modo! Supõe—se que está no norte. Ou no sul. Realmente, o avô não sabe onde se encontra.

        —Tenho que falar com você, Clara.

        —Antes me dirá por que está em Kellinword. É por causa do torneio? É por isso?

        Jacky sentou-se sobre uma laje de pedra e fez gestos a Clara para que a acompanhasse. Devagar, cuidando as palavras, Jacqueline relatou os últimos acontecimentos, ocultando, sua relação com Wulkan. Quando terminou, os olhos de Clara faiscavam. Ria as gargalhadas.

        —Então, não quer se casar com Wulkan.

        —Deve me ajudar.

        —Por que devo fazê—lo? Quando me ajudou?

        —E quando não o fiz?

        —Cada vez que foi ao avô com fofocas.

        —Tentei preservar sua virtude e não eram fofocas.

        —Minha virtude! Minha virtude não importa a ninguém, exceto a mim.

        —Tem razão. Guardará meu segredo?

        —Não sei. —Tirou um lenço perfumado da manga do vestido e o passou pelo nariz. —Gostaria muito de ver a cara de Wulkan se disser que a camponesa que vive em seu castelo não é outra senão lady Jacqueline.

        —Sim, mas isso acabaria com seus planos.

        —Meus planos?

        —O avô não lhe contou? Solicitou minha licença ao rei. Se aceitar, ou se você conseguir conquistar Wulkan, será a escolhida. Seria a dama de Kellinword. —Forçou um curto silêncio para que assimilasse a notícia. —Mas se falar, Clara...

        —Posso jurar, querida, que guardarei seu segredo até a tumba.

        Jacqueline soube que dizia a verdade.

        Aquela noite não compartilhou a mesa com o lorde e seus convidados. Preferiu assim. Ter que lutar com o escrutínio de seu avô —com quem ainda não tinha conseguido falar— suportar as insinuações de Clara e cuidar para não contrariar Wulkan era muito para ela. Mas, mesmo assim, sentiu—se mal, tão mal, que Wulkan não a obrigou a acompanhá-lo naquela noite, como fez nas noites anteriores. Ou talvez fosse uma amostra inequívoca de que não desejava que conhecessem sua amante saxã. Tinha—a deixado de lado e, embora aliviada, indignou—lhe que a ordenasse jantar na cozinha. Mula presunçosa e piolhenta! Apreciava sua companhia na mesa quando não tinha convidados. Só servia para compartilhar sua cama, se não tivesse Clara de Eveling, de novo, em seus braços! Bem, ele mesmo deixou as coisas muito claras.

        Antes de jantar, teve a precaução de recolher algumas de suas coisas do quarto de Wulkan e retornou ao quartinho que ocupava junto a Martha e sua família. Deixou as coisas em um lugar e começou a preparar o colchão junto ao fogo.

        —O que é isso? —perguntou Martha.

        —Não quero incomodar o lorde, agora que tem melhor companhia que a minha.

        A cozinheira moveu a cabeça com pesar, mas seguiu com suas coisas e não disse nada. Jacky acabou de preparar sua cama e se deitou, vestida tal como estava. Roland, ao ver que a moça dormiria de novo com eles, aproximou seu colchão do dela e abraçou-se a sua cintura. Abraçou-o,por sua vez, e muito depois acabou dormindo, cheia de frustração e ciúmes.

        Wulkan, por sua vez, morria de raiva em silêncio. Tinha que estar ali, pelos bons costumes e escutar a conversa insossa de Enric e os olhares atrevidos de Clara. Como sentia falta de Jacky, suas maneiras suaves, seus graciosos movimentos!

        Somente Gugger pareceu perceber o quanto estava longe seu amigo, mas nada podia fazer por ajudá—lo. Certamente, nenhum lorde sentaria a sua mesa com sua amante tendo em frente talvez sua futura esposa. As confusões de saias aconteciam, mas devia-se saber ocultar das noivas as amantes. Podia chegar aos ouvidos de Enric a notícia de que Wulkan tinha uma amante, mas aquilo não era estranho; nem sequer seria se fosse casado. Outra coisa seria se Clara soubesse. Os ciúmes de mulher sempre eram má companhia.

        Wulkan mal provou a comida e só tomou uma taça de vinho. Embora tentasse mostrar—se cortês, respondeu quase sempre com monossílabos. Quando por fim seus convidados se retiraram, subiu os degraus até sua antecâmara de três em três. Sentia a necessidade premente de falar com Jacky, explicar o motivo pelo qual, aquela noite preferiu que não jantasse ao seu lado. Precisava justificar—se diante dela. E sobretudo, abraçá—la.

        A antecâmara se encontrava às escuras. Para iluminá-la, procurou uma vela. Uma pequena chama azulada iluminou o lugar. Procurou a figura adormecida de Jacqueline sob as mantas e franziu o cenho ao ver a cama vazia. Logo, percebeu que suas roupas tampouco estavam ali. Uma veia palpitou em sua têmpora, como se o sangue não encontrasse passagem. A primeira coisa que pensou foi que tinha escapado. Saiu enfurecido... E deu de cara com Bertrán, que tropeçou e caiu sentado.

        —Onde está desta vez? —rugiu Wulkan— Se essa raposa escapou de novo, juro que...

        —Está lá embaixo, milord —apressou—se a dizer o escudeiro— Nas cozinhas.

        —Nas cozinhas?

        —Recolheu suas roupas e se mudou para lá.

        —Quem demônios disse-lhe que se mudasse para qualquer parte?

        —Senhor, eu... —Não disse nada mais, porque o normando já atravessava a galeria a largas passadas.

        Wulkan chegou às cozinhas, acendeu uma tocha e a meteu na argola do muro. O feixe de luz despertou Martha e seu marido. Ele ficou em pé imediatamente para atender as ordens do lorde. Martha deu a volta e tapou—se até a cabeça sob as mantas.

        —Sabia que aconteceria —resmungou, baixinho.

        Wulkan descobriu Jacky, que piscou. Esta, ao vê—lo, sentou—se de repente e se limpou em um segundo. A cólera a invadiu. Estava tão irritada com ele, que tornaria a escapar se não fosse seu juramento.

        —O que faz aqui?

        Aquele arrogante lorde despertou Roland, que, sem pensar, afastou—se para o colchão de seus pais.

—Acredito que está muito tarde —repôs ela. —Dormia até que você chegou.

        —Quem disse que pegasse suas coisas e viesse para cá?

        —Você mesmo.

        —Eu não disse nada disso.

        —Agora tem convidados. E eles não veriam com bons olhos que o lorde de Kellinword, que logo se aliará com Lynch, ostentasse sua última aquisição. Não é por isso que me mandou jantar nas cozinhas?

        —Escute, Jacky...

        —Não! Escute você, milord. Sou consciente de que meu lugar não é em sua mesa. Não me ofendeu por me pôr no lugar que me corresponde, mas lembre-se então... que meu lugar é este, absolutamente para tudo!

        Wulkan inclinou-se e a pegou pelo braço.

— Levante-se daí. – Puxou—a.

        —Penso ficar aqui —teimou Jacky— Pensei que...

        Wulkan grunhiu, agachou—se e tomou—a nos braços. Jacqueline opôs resistência e lutou, até que seus olhos esverdeados cravaram-se nos dela. Já não houve mais nada e deixou de debater—se.

        —Jacky, minha pequena saxã —disse ele— Pensa muito.

        Beijou—a sem lhe dar tempo de responder. Beijou—a sem dizer mais nada, com lábios quentes, e Jacqueline perdeu a noção do que a rodeava. Agarrou-se ao seu pescoço e respondeu à carícia, embalada em um tórax que queria despir. Após terem partido, Martha deu uma cotovelada em seu marido.

        —Durma. Esses dois merecem um ao outro, embora ainda não saibam. Melhor que forniquem em seus aposentos. Assim descansaremos.

 

        Despertou com a alvorada e saiu às escondidas. Estava indisposta, como nas manhãs anteriores, e custou-lhe controlar as ânsias até chegar ao pátio de trás. Bebeu um pouco de água e respirou lentamente. Foi recuperando—se. Logo, tremendo, envolveu—se na manta e caminhou vagarosamente, de volta.

        —Jacqueline...

        A voz de seu avô a sobressaltou, mas aproximou-se, impaciente. Seus braços a rodearam imediatamente. Ela se sentiu reconfortada. De novo a salvo. Tinha passado a noite debatendo—se em dúvidas. Wulkan comportou-se como um marido contrariado mas carinhoso, e ela era feliz. Tinham feito amor com uma grande paixão, com carinho. E havia correspondido do mesmo modo, esquecendo—se de tudo. Logo, quando ele dormiu, passou um bom momento observando—o, perguntando—se o que sentia por ele, acariciando—o com o olhar, distraindo—se em seu cabelo escuro, em seus largos e espessos cílios, que sombreavam sua face, na fortaleza de seus músculos, no contorno de seu corpo sob as mantas. Quis tocá—lo, mas se conteve..., não iria despertá—lo para que ele não interpretasse isso como um jogo de sedução. Tinha tido o suficiente.

        Enric adivinhou sua inquietação e a conduziu até o quarto que lhe tinham atribuído. Com a porta fechada, tomou seu rosto entre suas grandes mãos.

        —Jacqueline, o que houve? Esperava vê—la ontem à noite.

        Ela o abraçou, tentando controlar—se.

—Avô, estou em uma confusão.

        —Sente—se e conte. Fréderic se alarmou quando chegou com minha mensagem e a viu. Esperava encontrar o menino que eu descrevi. Esse descarado ruivo que tem como amigo me contou que Wulkan descobriu que era uma dama.

        —Mas achou que eu era uma camponesa. Só uma camponesa, avô.

        —Então, nosso segredo continua a salvo.

        —Não poderia dizer por quanto tempo.

        Ambos se acomodaram frente a janela. Tomando suas mãos, tentou demonstrar uma confiança que não sentia.

        —Acha que o rei aceitará sua petição, avô?

        —Terá que estudá—la, ao menos. Se deseja a união de Kellinword e Lynch, deverá levá—la em conta.

        —Tive que falar com Clara.

        —Viu—a? —alarmou—se.

        —Não havia outro remédio. Expliquei que Wulkan acredita que sou uma camponesa e que não desejo me casar com ele. Guardará o segredo, pode estar certo.

        Enric assentiu.

        —Como estão as coisas?

        Lembrou-se de tudo que passou e viveu ultimamente.

        —Poderíamos dizer que ganhei em experiência. Agora sei cozinhar melhor que antes, servir mesas, limpar porcos e manejar uma espada curta.

        A jovem o pôs a par de que Wulkan os descobriu nas almenas, confundindo sua conversa com uma traição. Contou—lhe também de sua ida ao chiqueiro e seu posterior envio às cozinhas.

        Quando finalizou, Enric ergueu-se, passeou e esperou.

        Esperou que ela dissesse algo mais, berrando por dentro pelos abusos cometidos contra ela, mas Jacqueline manteve-se em silêncio.

        —Nada mais?

        Não deu importância ao que veio depois.

—Consegui escapar em uma carroça, mas ele enviou soldados. Bertrán recebeu algumas chicotadas como castigo por me ajudar, embora seu castigo não foi muito duro.

        —E a você ? O que fez a você ? —perguntou, espectador.

        Uma suspeita foi tomando forma.

        —Nada. Na realidade, avô, não me fez nada.

        Não iria defender Wulkan, certamente, embora devesse suavizar a verdade. Mas o saxão era uma velha raposa. Pegou—a pelo queixo até desafiar seus olhos violetas.

—Há mais, verdade?

        Jacqueline não pôde conter as lágrimas por mais tempo. Nos últimos dias, chorava por tudo. Abraçou—se a seu avô com força, e ele adivinhou que não iria gostar do que guardava. Acalmou—a, disposto a escutar.

        —No princípio, Wulkan só estava zangado. Não deu importância para mim, nos primeiros dias, depois de descobrir que era uma mulher, mas depois... —Afogou um soluço.

        —Depois o que? Depois o que? Jacqueline!!!

        Armou—se de coragem. Era impossível ocultar seu estado, em especial de seu avô. Mas não podia confessar olhando—o de frente, de modo que se afastou uns passos.

—Estou esperando um bebê.

        Enric sentiu uma vertigem. Seu rosto tornou—se cinzento e apoiou—se no muro. Olhou para sua neta e afirmou, decidido:

        —Vou matá-lo!!

        Tentou sair dali, como um touro ferido.

        —Farei um casaco com a pele desse filho da puta!!

Jacqueline conseguiu detê—lo antes que alcançasse a galeria.

        —Escute, avô...

        —Escutar?! —Separou a mão de seu braço. — Escutar? Quando acaba de me dizer que esse bastardo normando a manchou? —Tragou uma baforada de ar, afogando—se em sua própria ira. —Ainda me restam forças para vingar a honra dos Lynch, moça!

        —Por favor, avô, me escute! Acalme-se e entenda, pelo amor de Deus —soluçou ela.

        Suas lágrimas doeram no velho guerreiro.

—Dê-me uma só razão pela qual não deva matá—lo agora mesmo.

        —Wulkan não é o culpado de tudo, avô. Eu...

        —Você, o que? —perguntou, com uma sombra de dúvida.

        —Eu me senti atraída por ele.

        —Santo Deus! —murmurou, abismado. —Tenta me dizer que, depois de tudo, está em sua casa, humilhada, e ainda gosta desse filho do demônio?

        —Avô...

        —Usou este tempo para isto?

        Jacqueline rompeu de novo em soluços. Não parava de chorar; tinha os nervos destroçados, mas a irritação de seu avô ainda a deprimia mais. E este, por sua vez, debatia—se assumindo o impacto da notícia. Ao normando não podia perdoar, mas tampouco fazer algo contra ele. Se ela consentiu, era dona de seus atos. Sentou—se junto a ela e acariciou seus longos cabelos.

        —Fique tranquila, carinho. Na realidade, não era com você que eu gritava.

        —Sinto muito, avô! —cobriu—se, aproximando—se mais. —Sinto de verdade!

        Aguardou até que ela se acalmasse e comentou:

—Agora teremos que arrumar o assunto das bodas.

        —Não!

        —Não? O que quer dizer esse não?

        —Exatamente isso, avô. Que não vou casar com Wulkan.

        —Pelos dentes de Satanás, Jacqueline!

        Ela ergueu-se e elevou o queixo, e o velho saxão soube que aquela discussão tinha encerrado quase sem começar. Tinha visto muitas vezes aquele porte orgulhoso em seu próprio filho, e Jacqueline era sua viva imagem. Ela, por sua vez, havia lhe contado tudo; já não havia meias verdades.

        —O ruim de tudo, avô, é que o amo.— O senhor de Lynch tentou digerir...

        —Que me pendurem, se entendo algo! Se quer acabar com a vida deste pobre velho, está conseguindo. Esse normando a desonrou. Você o ama, Ricardo quer que se casem, espera um filho dele, mas não quer se casar com ele. Coloque-me a par do que aconteceu. Se você o quer, onde está o problema? Pense bem, deixe que a conheça, seja sua esposa e será muito feliz.

        —Não, avô, não é tão fácil. O homem com o qual me casar deve me amar por mim mesma, não por meu nome ou por ter deixado sua semente em mim.

        Enric assentiu, embora não entendesse nada. Cada vez compreendia menos. Talvez, com os anos, seu cérebro houvesse se aniquilado.

        —Quando decidiu isso?

        —Não sei. E também sei que Clara não o faria feliz.

        —Isso já sabia quando forjou seu maldito plano —resmungou ele.

        Jacqueline acariciou-lhe o rosto.

—Desejo que Wulkan me ame, avô.

        —Está amando-a, afinal não lhe fez um pirralho?

        —Avô, não entende nada!

        —Pela Santa Bíblia que não!

        — Wulkan me deseja.É só desejo.

        —E o que você deseja? Pense, Jacqueline. Que renuncie a uma dama saxã da casa de Lynch para casar—se com uma simples camponesa?

        —Sim —respondeu ela.

        —É um belo desejo, mas você não pode decidir – afirmou o ancião. —E o que fará? Será sua prostituta?

        —Avô!

        —Diga-me, criatura, de que outro modo posso falar?

        —Está bem! —levantou—se, alterada. —Não me importa, diga assim, se você quiser!

        Enric não conseguia refletir. Alisou a barba, angustiado.

        —Se ele não quiser desobedecer Ricardo, terá que se casar com ele, goste ou não.

        Mas Jacqueline seguia com seu pensamento.

        —Conseguirei que me ame, avô. Conseguirei, mesmo que leve toda a vida.

 

        Os acontecimentos de massas, como os torneios, não só atraíam a cavaleiros, nobres e damas, escudeiros e feirantes. Estelionatários, ladrões e gente de todo o tipo se misturava com facilidade entre o povo. Nos dois dias das celebrações aconteceram vários roubos, algumas brigas com feridos e uma jovem viúva denunciou que roubaram suas economias. Wulkan se viu obrigado a delegar alguns aspectos da organização do torneio para pôr ordem e distribuir os grupos de vigilância.

        Apesar de tudo, um acontecimento inesperado pegou a todos de surpresa: tinha relação com uma família judia.

        Os judeus eram considerados uma raça inferior. Infiéis que não admitiram a chegada do Filho de Deus e que aguardavam ainda o Salvador. Toda a Europa os relegou ao último lugar da sociedade, e a Inglaterra não era uma exceção, os que chegaram ali escapando da perseguição de outros países mal tinham direitos, só obrigações. De pouco serviu cooperar no resgate do rei Ricardo. Sua situação não melhorou.

        Wulkan conversava com Gilbert sobre o modo mais efetivo de enfrentar o estandarte de Lynch no primeiro confronto do torneio. De repente, irromperam no salão um ancião e um jovem com o corpo inerte de uma moça em seus braços. Dois soldados se interpuseram em seu caminho e, em segundos, o alvoroço da entrada chamou a atenção dos presentes. Sem contemplações, os guardas empurravam para fora os intrusos.

        —O que aconteceu? —impôs a voz de Wulkan.

        O ancião conseguiu escapulir do soldado e chegou, em uma curta e torpe corrida, até o normando, diante de quem se ajoelhou.

        —Milord.

        —Fora daqui! —insistiu o guarda. Apoiou o fio de uma adaga no pescoço do intrometido, agarrando-o pela túnica.

        —Espere —deteve—lhe Wulkan. O soldado afastou-se um passo. —O que é tão importante, ancião, para que interrompa meu jantar?

        O homem inclinou-se, levando a mão ao peito em sinal de vassalagem.

        —Milord, devo pedir justiça.

        No silêncio que seguiu-se, fez-se silêncio.

—Justiça? Duas vezes ao mês a administro. Seu caso não pode esperar?

        Jacqueline, dispondo bandejas no outro extremo da mesa, sentiu a angústia naquele rosto sulcado de rugas e no do jovem, apanhado na barreira do soldado. A moça que carregava era apenas uma menina, e parecia desmaiada. Acostumada como estava a ver repartir justiça tanto seu pai ,quanto seu avô, a atitude dos judeus despertou nela um toque de alarme: aquela menina precisava de ajuda. Não pensou.

        —Fale de uma vez, ancião —ordenou Jacky.

        Os murmúrios sossegaram e um silêncio sepulcral cobriu o salão. Todas os olhares convergiram para ela. Ela, a criada de um normando, ousava antecipar—se a seu senhor. Mas quem demônios acreditava que era? Que direito tinha? Ela lamentou no ato e o sangue congelou em suas veias. Mas era muito tarde para retificar. O dano já tinha sido feito. Olhou para o judeu e depois para Wulkan, que não se alterou e ordenou:

        —Já ouviu. Fale. E faça logo, antes que diga quem dormirá esta noite em uma masmorra. —A insinuação era uma mensagem a Jacqueline, mas os espectadores estavam perplexos. Não só não a castigava, mas também, além disso, não a desautorizava.

        O judeu inclinou-se de novo. Era um ser patético e velho, com o cabelo branco e ralo, que o fazia parecer muito velho, certamente mais do que realmente era...

        —Meu senhor, sei que não é o momento de pedir Justiça, e que não tenho direito de interromper seu descanso. Só somente um judeu em suas terras, mas... —então ergueu-se, atrevendo—se a chegar mais a frente— não peço nada para mim, mas para minha filha. —Com o polegar assinalou atrás.

        A um gesto de Wulkan, o soldado colocou-se de lado e o moço avançou com sua carga até situar—se junto ao ancião. Este depositou a jovem com enorme delicadeza sobre o frio chão. O murmúrio de horror estendeu-se pela sala. Jacqueline iniciou uma oração em voz baixa, com o sabor da bílis na garganta, e Medardo de Lecoy fez o sinal da cruz no ar. A moça não estava desmaiada, estava morta. O tecido que cobria seu pequeno corpo estava rasgado e coberto de sangue.

        Wulkan abandonou sua cadeira, alterado.

—Conte o que houve.

        —Dois de seus homens, milord —respondeu o judeu. —Estavam bêbados. Entraram em minha casa solicitando comida e eu os servi. Tenho uma estalagem no final da rua dos artesãos.

        —Mas esses dois bastardos —apontou o jovem— não se conformaram, e exigiram que fossem servidos por minha irmã.

        A mão do ancião conteve o jovem.

        —Milord, minha filha nunca serviu na estalagem. As moças judias não atendem os clientes.

        —Viram—na através das cortinas que separam a estalagem de nossa moradia! —voltou a rugir o rapaz. —Arrastaram—na pelos cabelos e a...! 

        —Aarón, por favor...

        —Não a defenderam? —perguntou Wulkan.

        —Não somos homens de armas, milord. Nem sabemos usá—las. O comércio é nosso modo de vida, e não pudemos enfrentá—los.

        —Eu tentei, milord —explicou o adolescente— mas puseram uma adaga no pescoço de meu pai. —desfez—se em lágrimas. —Violaram minha irmã diante de nós!

        —Aarón, filho...

        —Quando acabaram de se divertir continuaram zombando, nos humilhando. A lançavam de um para outro enquanto riam e a insultavam chamando—a... Ela... —guardou silêncio, tentando controlar os soluços— ela tentou escapar e arranhou um deles no rosto. Enfureceu—se. Atirou—a no chão, chutou—a. Depois tirou sua espada e a atravessou enquanto o outro continuava rindo. — Apertou os punhos e seus olhos escuros flamejaram frente a Wulkan — Entregue-me esses homens e eu mesmo farei justiça!

        —Aarón, já basta! —cortou o ancião. – Quem somos nós para pedir a morte de um semelhante, filho, embora a mereça. Recorde isso. Somente Deus pode dar a vida e tirá—la. — dirigiu—se ao lorde, que permanecia imóvel e em silêncio. —Senhor, não pedimos mais que justiça. Que se capture esses homens para evitar que outras inocentes possam sofrer o mesmo pesadelo.

        O silêncio podia ser cortado com uma faca. Todos continham a respiração, esperando a decisão de Wulkan. Jacqueline não podia adivinhar suas emoções, mas seus olhos, ligeiramente entreabertos, eram mais decididos que nunca.

        —Poderia identificá—los? —perguntou o normando. Gorman levantou-se e lhe falou no ouvido.

        —O que vai fazer? É só um judeu.

        —Sente—se.

        —Não pode...

        —Sente—se, Gorman!

        O cavaleiro obedeceu e procurou Gugger com um olhar de apoio, mas este não o concedeu. Wulkan respirou fundo, rodeou a mesa e aproximou-se do cadáver. Olhou longamente à menina, como se quisesse convencer—se de que já não voltaria a vida. Depois voltou sua atenção ao judeu.

        —Poderia identificá—los? —perguntou de novo.

        —Sim, milord. Um deles tem a cabeça totalmente raspada e uma cicatriz que lhe cruza da orelha ao queixo. O outro ainda deve ter as marcas das unhas de minha filha.

        Wulkan encarou Gorman.

        —Busque-os. Pela descrição, Tokien parece ser um de seus homens.

        —Wulkan, não posso...

        —Busque-os, Gorman! – gritou — Quero—os aqui antes que a lua esteja alta no céu, ou Por Deus que pagará com sua própria cabeça!

        Quem o enfrentou foi Medardo, a quem Gorman correu suplicando ajuda.

— Peço clemência para esses soldados, milord – disse o monge.

        O jantar havia terminado de forma terrível. Os criados desapareceram e quase todos os cavaleiros se ausentaram, deixando Wulkan em companhia de Gugger, Gilbert e Enric, seu convidado. Jacqueline, desconcertada, perdeu—se no limite das cozinhas.

        O lorde voltou a cabeça para o monge, mas ainda permaneceu calado durante um longo momento. Medardo odiava ter que permanecer meio inclinado diante do normando, esperando uma reposta que parecia que não iria chegar nunca, mas tinha que mostrar—se paciente, e o fez, até que Wulkan resolveu falar com ele.

        —Em que tiipo de clemência pensou?

        Então Medardo ergueu-se e assentiu, simulando ser todo bondade.

        —Milord, estavam bebados. A morte dessa moça é lamentável, mas deve ter em conta que são cristãos e...

        —... E portanto —cortou Wulkan— deveriam proteger os mais fracos, a virtude e a vida das mulheres. Em vez disso, violam e assassinam. É isso o que ia dizer?

        Medardo soube que pisava em terreno perigoso, mas não tinha alternativa. Um homem de Deus não podia permanecer calado estando em jogo a vida de dois crentes, embora estes tivessem cometido uma injustiça. Seu dever, como clérigo, era conseguir clemência.

        —Deus os castigará.

        Uma amarga gargalhada provocou ecos no salão.

–Pede que os deixe livres?

        —Não interprete mal minhas palavras, senhor. Só peço misericórdia quando forem capturados.

        —Misericórdia. Bem, terão misericórdia, Medardo, disso podem estar certo. Permaneçam a meu lado até que sejam encontrados, e verá de perto a justiça e clemência de um normando!

        Jacqueline escutou seus gritos das cozinhas, apoiada na dobradiça da porta.

        —O que vai fazer com eles? —perguntou a Martha.

        —Será melhor que se preocupe com sua própria integridade. Wulkan está realmente furioso, e não só pela morte dessa menina. Acaso ficou louca?

        Jacky ia responder, mas interveio Clara, tão altiva como sempre.

        —Tem razão, mulher. —Entrou como uma rainha, com gestos de repugnância e procurando não aproximar—se de nada que roçasse seu imaculado vestido. —Jamais se viu uma vulgar camponesa tomar a palavra frente ao lorde.

        Jacqueline conteve seu desejo de replicar. Era claro que estava divertindo-se as suas custas, e mereceu. Em outro momento a colocaria em seu lugar, mas tampouco ela se encontrava no dela.

        —Sem dúvida —continuou Clara, passando um dedo pela superfície da mesa e enrugando o nariz ao sujar—se de graxa— Wulkan deveria castigar sua ousadia.

        —Você ira propor-lhe isso, senhora?

        Clara bateu os cílios e encolheu os ombros.

— Talvez o faça. O lorde me escutaria, sem dúvida, já que é muito provável que me torne sua esposa.

        Martha afogou uma exclamação e Jacqueline mordeu a língua. O que podia dizer? Não foi ela mesma quem forjou esse plano para ver se Wulkan se decidia a casar com Clara?

        —Vá então, milady —incitou, transbordando de ciúmes.

        —Ah, mas não sou tão má —repôs, com triunfo —Conformo—me perdendo—lhe de vista esta noite. Suponho que para uma moça como você não será difícil encontrar emprego na cama de qualquer homem.

        Jacky teve que fazer um verdadeiro esforço para conter—se e não cruzar a mão no rosto da descarada. O que tramava? Seduzir Wulkan? Isso era certo. Mas estava amarrada de pés e mãos ,a não ser que confessasse que era ela quem ocupava a cama do normando.

        —Senhora —perguntou Martha— o que ganha com isso?

        Clara afastou seus longos e sedosos cabelos, deu—lhe as costas e caminhou para a porta. Dali, voltou—se com um sorriso de desdém nos lábios.

        —Neste castelo, os criados tomam muitas liberdades. Não vou rebaixar—me a responder a gente de sua classe, mas é bom prestar atenção na minha advertência. —Olhou diretamente para Jacqueline— Esta noite a quero longe da torre, ou conseguirei que esfolem suas costas. E pode ter certeza que, quando eu for a esposa do lorde, os criados saberão qual é seu lugar. É algo sobre o qual terei que educar Wulkan.

        Quando desapareceu, Martha esperou um pouco e despediu-se de seu modo: «Cadela»..., ouviu-lhe dizer.

 

        Gorman empurrou os dois homens para o centro do salão. Ambos vestiam blusas amarelas com listras negras. Um, efetivamente, tinha uma cicatriz que cortava o rosto, e o outro trazia marcas de arranhões em sua bochecha esquerda. Permaneceram em silêncio cabisbaixos e, pouco a pouco, foi-se formando um círculo em torno deles.

        Wulkan desculpou-se diante de Enric, com quem conversava nesse momento, e levantou-se. Sua expressão era uma máscara de pedra, mas seus olhos cintilavam. Conhecia ambos. De fato, tinha combatido com eles, corpo a corpo, em algumas combate.

        —Que tragam o ancião e seu filho. —mostrava—se calmo. Muito calmo.

        Um momento depois, os dois judeus compareciam diante dele. Ao reconhecer os agressores, o jovem deu um passo adiante, mas a mão ossuda de seu pai o deteve.

        —São eles? —perguntou Wulkan.

        —Sim, milord.

        Wulkan encarou-os.

        —Os acusam de abusar e assassinar uma jovem.

        —É um engano, milord! —defendeu—se o de cabeça raspada.

        —Sem dúvida nos confundem com outros, senhor —repôs o dos arranhões— Gorman já nos explicou do que nos acusam, mas somos inocentes.

        Wulkan assentia enquanto falavam mas, de soslaio, observava os judeus. Em seus semblantes via desespero e adivinhou seus pensamentos: judeus acusando soldados cristãos. Sua insignificante palavra contra a de homens de armas, já que não houve testemunhas do ultraje.

        —Tragam a moça.

        —Meu senhor, por favor... —suplicou o ancião— deixe—a descansar em paz.

        —Tragam a moça! —repetiu Wulkan.

        Gugger apressou-se a enviar dois homens em busca do cadáver da menina, o qual tinham amortalhado e colocado sobre um cavalete, nas adegas. Retornaram momentos depois trazendo o corpo, e Wulkan indicou com gestos que o depositassem no chão.

        Os dois acusados empalideceram, enquanto o Judeu ficava de joelhos e abraçava o corpo inerte de sua filha. Parecia adormecida, com seu cabelo negro e brilhante recolhido, envolta no tecido da mortalha.

        —Contemplem bem —exigiu. —Contemplem e jurem pelas Sagradas Escrituras que nada têm a ver com sua morte.

        Durante um tenso momento, os homens guardaram silêncio, com os semblantes tensos. O da cabeça raspada, talvez o mais fraco dos dois, cravou seu joelho direito no chão e choramingou:

        —Estávamos bêbados, milord. Só queríamos passar um bom momento. Suplico—lhes piedade, senhor!

        —Misericórdia —insistiu o outro, prostrando—se também.

        Gorman suspirou ruidosamente. Até esse momento duvidava da palavra do judeu. Muitos soldados podiam se enquadrar na descrição oferecida; havia muitos com o rosto sulcado de cicatrizes ou que raspavam a cabeça. Aqueles dois desgraçados acabavam de colocar a corda no pescoço. Um músculo tremia na bochecha de Wulkan. Não iria ter compaixão.

        —Amanhã, ao amanhecer —disse alto e claro— serão castrados e pendurados em uma corda no pátio das armas.

        O murmúrio de assombro foi sufocado pelas súplicas desesperadas dos condenados, que foram arrastados para fora por seus próprios companheiros.

        Wulkan encaminhava-se a seus aposentos, enojado. O ancião judeu, queixoso, deteve—lhe.

        —Milord, eu pedi justiça, mas não desejo a morte de ninguém. — Wulkan, que estava parado na escada, prestou atenção. —Sou um pobre pecador, senhor, certamente merecedor da ira de Deus. Não quero carregar em minha consciência a morte de duas pessoas. Peço benevolência, milord.

        Os prisioneiros, aterrados pela sentença, eram miseráveis que haviam perdido sua dignidade. Mas escutaram a súplica e ainda esperavam piedade.

        —Que seja —respondeu Wulkan, os olhos sobre os presentes, hierático como uma estátua de granito. —Serei benevolente. Não mandarei castrá-los. Mas, ao amanhecer, os pendurarão em uma soga. Quanto a você, bom homem, não se aflija. Suas mortes não pesarão sobre sua consciência, mas sobre a minha, e já estou acostumado a esse peso.

        Jacqueline apoiou-se no muro e controlou as ânsia de vômito.

        Tinha seguido o curto julgamento da galeria que dava para as cozinhas. Foi testemunha da atitude pesarosa e do gesto desdenhoso de Clara, que, da balaustrada do piso superior, também estava presente. Foi tomada por outra náusea, cobriu a boca e decidiu que o melhor era afastar—se naquela mesma noite da torre. Que Clara ficasse com Wulkan! Eram iguais, duas almas gêmeas, cruéis e sem um pingo de misericórdia!

        Disse a Martha que passaria a noite nos celeiros, recolheu um par de mantas e afastou-se, com passo lento, sem perceber que Clara a observava, cheia de complacência.

 

        A espartana decoração do aposento a devolveu à penosa realidade. Gugger a empurrou com delicadeza para o interior e fechou a porta atrás dela, deixando—a a sós com Wulkan.

        Montauband tinha recebido instruções para que fosse procurá—la, assim teve que acompanhá-la até a torre, quando já passava da meia—noite.

        Wulkan não a olhou. Tampouco falou. Estava sentado na beira do leito, com uma taça na mão. Sentiu comiseração, porque nunca até então o tinha visto beber no quarto. Observou, além disso, que suas roupas estavam amontoadas sobre a arca, quando ele estava acostumado a ser organizado. Fez—lhe um gesto para que se aproximasse e ela obedeceu. Agora chegariam as reprimendas e o castigo.

        Jogou os ombros para trás, alongou—se como um felino, depositou a taça no chão e levantou-se. O coração de Jacky saltou. Entretanto, Wulkan não foi para ela, mas sim aproximou-se da janela, apoiou um pé no assento de pedra e cruzou os antebraços sobre o joelho, escrutinando a noite.

        —Jacky, vai estar sempre escapando de mim? —perguntou de repente.

        Surpreendeu—lhe a pergunta, que, mais que uma recriminação, parecia expressar um desejo.

        —Pensei que o melhor seria deixá-lo a sós esta noite —desculpou—se.

        Wulkan foi aproximando-se, levantou—a brandamente e a depositou sobre a cama. Com doçura, começou a retirar sua regata, e o deixou fazer. Completamente nua, o ardente olhar masculino dominou cada montanha e vale de seu corpo, excitando—a. Desejava—o de novo, e não podia dissimulá—lo. Deitou—se a seu lado e cobriu ambos os corpos com as mantas. Colocou-a de lado e a amoldou a seu corpo, rodeando sua cintura feminina. Permaneceram assim, no mais absoluto silêncio, como marido e mulher esperando a chamada do sono. Jacky sentiu-se feliz... até que recordou a selvagem sentença e, ainda pior, Clara e sua firme decisão de seduzi—lo. Teria provado já o leito que agora era ocupado por ela? Ficou rígida e Wulkan notou. Ele a beijou no ombro e suas mãos rodearam os seios jovens, em um ato de carinhho, sem conotação sexual.

        —Durma, Jacky —sussurrou—lhe no ouvido.

        Ela agradecia esse grau de vinculo sem exigência, mas a dúvida a assaltava:

        —Já se satisfez esta noite, meu senhor?

        Ele ergueu-se um pouco, apoiando—se em um cotovelo. Tomando—a pelo queixo a obrigou a olhar para ele.

        —Não, Jacky, não. Mas me diga, por que se esconde de mim? Ela enterrou o rosto no travesseiro.

        —Se sai da torre não foi por vontade própria.

        —Por Clara, talvez? —Ao não obter resposta, sorriu na penumbra. —Esteve aqui, sim. E saiu por onde veio.

        —Não peço explicações, senhor.

        —Não. Mas eu dou.

        —Não zombe de mim. Afinal das contas, quem sou eu, a não ser uma pobre camponesa?

        Wulkan voltou a colocá-la de costas para ele e de novo abraçou seu corpo. Seus lábios faziam cócegas em sua clavícula.

—E o que fez quando tomou a palavra no salão?

        Jacky endireitou-se de repente e o olhou, assustada. Era hora de prestar contas!

        —Sinto muito —balbuciou. —Seriamente que lamento. Nunca devia fazê—lo, não era minha intenção...

        —Chsss...! —Um dedo cobriu seus lábios, passeou por seu queixo e acabou enredando—se em seu cabelo. Não pedi explicações. — Colou-a a ele uma vez mais, abraçando—a de novo.

        —Sei que meu comportamento foi intolerável. Sei que o incomodou.

        —Incomodou—me, sim.

        —Entretanto, não parece zangado.

        —Quando a gente quer algo, isso tem um preço. Suponho que terei que suportar seus de camponesa altiva, se quero tê—la ao meu lado.

        Ela não se moveu. Estava brincando com ela? Seu coração saltava e os seus batimentos retumbavam nas têmporas. Significava o que acreditava?         .

        —Quer... quer me ter a seu lado?

        —Onde, se não, deveria estar, minha arisca ferazinha saxã, mas basta de conversa e vamos dormir. Hoje não estou de bom humor e, além disso, estou esgotado.

        —É por esses soldados, verdade?

        Wulkan desfez o abraço e colocou-se de barriga para cima, os braços cruzados sob a cabeça. Ela riscou círculos em seu peito, brincando com o escuro pêlo.

        —É muito duro. Estiveram comigo no campo de batalha.

        —Foi uma decisão cruel.

        —E o que eles fizeram não foi?

        —Sim, mas... castrá—los...

        —Fui clemente nesse ponto.

        —Sim, é verdade. Mas os enforcarão ao amanhecer. Para isso, seria a mesma coisa que se tomasse sua espada e os degolasse ali mesmo.

        —Não, pequena. —Passou os nódulos por seu queixo— Não é o mesmo. Isso seria tomar a justiça nas minhas mãos.

        —E não é o mesmo condená—los a morte?

        —Não. Não é o mesmo. Minha obrigação é impor justiça. Para o bem ou para o mau, sou o senhor destas terras. Ricardo entregou-me Kellinword, e com ele o poder de exercer a justiça. Esses homens merecem morrer. Eu não gosto, mas tenho o sagrado dever de dar essa ordem e que sirva de castigo. E por Cristo que vou cumprir minhas obrigações!

        Jacqueline lembrou-se, de repente do rei Ricardo, quando ditou a sentença aos soldados que assassinaram seus pais a sangue frio. Ela mesma tinha clamado por vingança. Não houve clemência então, e exigiu que aplicassem a justiça aos criminosos. Foi inflexível, com a determinação que agora mostrava Wulkan. Aconchegou-se contra seu corpo.

        —Não se importe com isso —disse ela. —Descanse.

        —Tem sono?

        —Não.

        —Quer que faça amor com você? Ajuda a dormir.

        Ela negou e Wulkan beijou-lhe um seio.

—Não está de bom humor, lembra?

        Ele riu com vontade. No fundo, adorava que fosse irônica. Sem perder a compostura, enlaçou—a como antes e a beijou na nuca.

        —Durma então, e cale-se, pequena harpía, ou acabarei me deixando levar por meus instintos.

        Jacky sentiu-se feliz; encaixou seu traseiro contra o ventre dele e deixou-se levar por uma nuvem... imaginou toda a vida junto ao homem ao qual acreditou odiar com toda sua alma.

       

        A felicidade não durou muito.

        Ao amanhecer, afligiram—na outra vez as náuseas. Procurou não fazer ruído, para não despertá-lo, mas, no esgotamento de uma delas, apoiou—se na banqueta, derrubando—a. Ele ergueu-se, justamente quando Jacqueline levava a mão ao estômago, ajoelhando—se diante da bacia.

        Esteve a seu lado em um instante, segurando-lhe a fronte, assustado enquanto ela vomitava bílis. Logo, acompanhou—a ao leito, agasalhou—a e a observou, preocupado.

        —O que sente? Não está bem?

        —Não é nada. Deixe-me sozinha, por favor. —Escondeu o rosto entre as mantas.

        —Farei vir um médico.

        —Não!! —alarmou—se. —Não chame ninguém.

        —Não diga tolices! E não se preocupe. Certamente o jantar não sentou bem. Volto em seguida.

        —Por favor, não vá. Não é nada. Já me encontro melhor.

        Jogou uma bata pelos ombros, sentou—se na beira da cama, acariciou as madeixas úmidas de seu cabelo e a beijou na frente.

        —Seria melhor que visse...

        —Já passou, seriamente. Deixe que descanse um momento e estarei perfeitamente bem.

        Wulkan devorou seu pálido semblante respirando a intervalos regulares, com os olhos fechados. Um sentimento de amparo tomou seu peito. Via—a tão frágil... Mas ele cuidaria dela. Inclinou—se levemente e depositou um suave beijo na ponta de seu nariz. Jacky esboçou um sorriso cansado.

        —Melhor? —Ela assentiu. —Fique na cama. Nem atreva-se a levantar hoje. Já mandarei que subam...

        — Wulkan, estou bem, de verdade.

        —De qualquer forma, ficará na cama —decidiu.

        Jacqueline sentiu uma ternura infinita diante de seus gestos protetores. Estava sem barbear-se e com o cabelo revolto pelo sono, mas perdia o fôlego quando o olhava. Era o homem mais atraente do mundo. E o pai do filho que ela esperava. Não podia ocultar—lhe e ali, na intimidade, aceitando seus mímos, com o coração transbordante de amor, decidiu que não devia esperar mais.

        —Aborreceria—me estar ociosa durante todo o dia. —Acariciou—lhe o queixo. Jogou as mantas para um lado, procurou sua regata e sentiu-se feliz diante de seu faminto olhar. Rebolando ligeiramente os quadris, aproximou-se e jogou os braços em seu pescoço. O corpo masculino estava quente, e ela desfrutou daquela calidez. —A maioria das mulheres se sente indisposta de manhã quando vão ter um bebê.

        Wulkan ficou estático, assimilando a notícia. Depois separou-a dele, agarrando—a pelos ombros, e escrutinou seus olhos.

        —Um bebê?

        —Um menino —assentiu ela—. Sabe o que é, valente cavaleiro, ou esqueceu? São umas coisas pequeninas, branquinhas e rosadas, que choram todo o tempo.

        Por sua sua feição cruzaram mil emoções diferentes. Júbilo, assombro, talvez temor. Por um momento, ela também temeu. E se não aceitasse? Durou o que dura um suspiro, e depois a abraçou com força, cobrindo—a de beijos na fronte, os olhos, a boca.

        —Um filho —murmurou como se rezasse. Tomou—a em seus braços e girou com ela enquanto ria, encantado com a boa nova.

        Ela uniu-se a sua felicidade, rogando que não continuasse se quisesse evitar-lhe novas náuseas. Depositou—a no leito, subiu—lhe a regata e suas mãos, grandes e calosas, acariciaram o ventre côncavo como faria um menino ao qual acabassem de dar de presente um brinquedo novo. Por Deus, não podia acreditar em sua sorte!

        —Terá tudo o que quiser, Jacky —afirmou, com suas mãos na acetinada pele feminina. —Tudo! —Beijou—a com paixão e logo levantou-se e começou a dar voltas pela antecâmara, mexendo nos cabelos,os escuros olhos brilhantes. Jacky transbordava de alegria. —Vestidos, jóias, criados... —Retornou junto a ela. —Uma casa, Jacky! Maldita seja, comprarei a melhor casa que se construiu dentro das muralhas de Kellinword!

        Jacqueline piscou. Acabava de ouvi—lo, mas não queria entender.

        —Na rua dos curtidores há várias construções magníficas —continuava planejando Wulkan, alheio ao golpe que acabava de dar. —Visitarei—a todos os dias. O menino, é obvio... —embora a olhasse, só via ele mesmo — porque será um varão verdade? O menino terá uma babá. Procurarei uma mulher que possa amamentá—lo. Além disso...

        — Wulkan —interrompeu ela, tentando controlar—se — está indo muito depressa.

        — É claro que não, pequena! —Estava exultante— Pelos pregos de Cristo, que esse menino se transformará em um verdadeiro guerreiro! Gilbert o ensinará... Não! Não, não. Eu mesmo ensinarei e..

        —Wulkan!! —gritou para pôr fim a ladainha, saltando da cama, confusa e despeitada. Ele, aturdido, emudeceu.

        Jacqueline arrancou uma manta da cama e a pôs sobre os ombros. Aproximou-se e alfinetou com frieza: —Não consentirei que me separe de meu filho para criá—lo a sua maneira.

        —Também é meu filho, Jacky. Só desejo o melhor para ele.

        Iria tratá-la como uma amante. Precisava feri—lo.

        Feri—lo no mais profundo, como acabava de fazer com ela. Deus, como podia estar tão cega!! Por um momento, até chegou a pensar que Wulkan a amava. Mas não estava lhe oferecendo seu coração, mas meras concessões para pagar o fato de que seria a mãe de seu bastardo. Queria arrancar-lhe os olhos! Assassiná—lo! Tragando o arrebatamento de violência, ergueu aquele queixo saxão tão orgulhoso e disse, com veneno nos lábios:

        —Eu não disse que o bebê é seu, milord. Wulkan recebeu o anúncio como uma ferida. Como uma espetada profunda, perdeu a cor. Não pôde abrir a boca. Quando o fez, só pôde articular:

        —O que disse, Jacky?

        —Que não deve preocupar—se pela educação e a criação de meu filho. O menino não é seu.

        Os dedos dele transformaram-se em garras de ferro.

—Está mentindo!

        —Por que teria que fazê—lo? Oferece—me tudo que uma mulher pode desejar, só teria que continuar com a farsa. Mas não sou tão mesquinha, nem vou aproveitar—me de sua boa fé. Não, Wulkan, o bebê não é seu. —Mentiu, com frieza, embora sua alma rompia-se em mil pedaços.

        Sacudiu—a como um possesso. Quando pôde focar de novo o olhar em seu rosto, avistava-se o perigo.

        —Diga quem é o desgraçado!

        —Antes deixaria que me enforcasse —desafiou.

        —Jacky...

        —Não, milord—negou, despeitada— Tem Kellinword em seu punho. É senhor de homens, mulheres e terras, inclusive de suas vidas. Mas há algo do qual não será nunca, Wulkan. —Lágrimas salgadas sulcavam suas bochechas, como rios— Nunca, entenda bem, maldito normando! Nunca poderá ser dono de meu orgulho saxão!!

        Livrou—se de suas mãos e lançou-se para a porta, ferida e escapando dali. Atrás dela deixava uma dor aguda no peito de Wulkan. Enquanto afastava-se, apressada e mergulhada no desespero, renegou—o, insultou—lhe, amaldiçoou um milhão de vezes... Mas não podia odiá—lo, porque o amava com todas as suas forças. Admitir aquele sentimento causou-lhe uma dor tão grande que levou sua alma ao vazio.

        Parecia que aquela manhã havia caido um furacão sobre Kellinword. O humor de Wulkan afetava a todos por igual e, depois da execução, encerrou—se em seus aposentos, negando—se a atender quem quer que fosse. Nem sequer Gugger conseguiu permissão para entrar.

 

        Jacqueline, por sua vez, tentou erguer-se o melhor que pôde. Obrigou—se a seguir de tarefa em tarefa, sem descanso. Não disse absolutamente nada enquanto ajudava Martha nas cozinhas, e partiu assim que foi possível, refugiando—se na companhia do pequeno Roland. Em duas ocasiões cruzou com Wulkan, mas sem falar nenhuma palavra. Ela, tão irritada quanto ele, passou sem olhar para trás.

        O lorde não se apresentou no almoço, o que ela festejou. Ao menos, aquelas horas seriam dela. Até fugiu de seu avô, com o qual não quis falar. Era muito humilhante.

        No meio da tarde, entretanto, a porta de Wulkan foi esmurrada de modo premente.

        — Entre! —vociferou de dentro.

        A chamada repetiu-se, e este acabou abrindo a porta, que golpeou contra o tabique.

        —Está surdo?

        —Mesmo os mortos ouvem seus berros —protestou

        Gugger, passou a seu lado e entrou. — Chegaram mais hóspedes.

        —Pois atenda—os e me deixe tranqüilo —repôs, retornando à cama, onde deitou-se.

        Montauband não importou-se. De onde se encontrava, olhou para baixo e assobiou ao distinguir uma formosa dama acompanhando o cavaleiro que acabava de solicitar hospedagem. —É um sonho.

        —É um pesadelo —balbuciou Wulkan.

        —Não me refiro a sua ácida saxã,mas a jovem que acaba de chegar. Quer levantar seu traseiro e dar uma olhada?

        —Não me interessa.

        —Vá! Desta vez a briga foi pior que as anteriores, né? Jacky também está com um humor do cão. O que houve?

        —Nada.

        —Se você diz... —Caminhou para a saída. —Como lorde que é, deveria descer a dar as boas—vindas aos hóspedes.

        —Faça você.

        —Não sou o lorde.

        —Aja como se fosse. Não estou com humor para visitas.

        —Está bem. Encarregarei—me de que os acomodem, sobretudo à dama.

        Mas antes que saísse, Wulkan ordenou:

—Fique.

        Gugger retrocedeu. Fechou a porta e apoiou-se nela, cruzando os braços sobre o peito.

— Fale.

        E Wulkan disparou na hora.

        — Teve algo a ver com Jacky?

        Gugger ficou atônito. Abriu a boca, fechou—a, voltou a abri-la, mas não soube o que responder. Por fim, reagiu com cautela, porque não acreditava no que estava ouvindo.

        —Né, velho... no que está pensando?

        —Fiz uma pergunta.

        —Uma pergunta idiota, isso sim.

        —Responda!

        —Não.

        —Não, o que?

        —Nunca me aproximei dessa fera saxã. Quer se explicar?

        Wulkan blasfemou.

—Jacky vai ter um bebê.

        Gugger voltou a assobiar: era seu meio de expressão favorito.

        —O que vai fazer? Por Deus, menino, deixá—la grávida sim que é um problema! Diga, o que vai fazer?

        —O pirralho não é meu.

        O loiro guardou silêncio, enquanto meneava a cabeça lentamente, assentindo para si mesmo.

        —Então é isso. Pensa que eu posso ser o pai?

        —É?

        —Um momento... Fala sério?

        —Muito sério.

        —Acredita que sou capaz de deitar com uma mulher com a qual você está?

        —Não seria a primeira vez.

        —Não neste caso. Wulkan, está com ciúmes! —Agora estava se divertindo. —OH, maldito seja! Está com ciúmes como um rapaz ao qual põem chifres pela primeira vez.

        —Não vejo a graça!

        —Wulkan... —Agora sim ria abertamente. —Vá, amigo... Nunca pensei que veria este dia.

        Wulkan, pelo contrário, parecia um leão enjaulado.

        Gugger conhecia quase todos os estados de ânimo de seu amigo. Jovial, alerta, irritado, amável ou colérico. Mas aquela expressão era nova. Cristo! Realmente era grandioso ver Wulkan perdido naquela dúvida. Ele, que sempre encontrava uma solução para tudo. Colocou-lhe uma mão sobre o ombro e falou com a camaradagem que davam os anos de convivência.

        —Seriamente se importa tanto com essa moça? —Não obteve resposta, mas Wulkan o olhava de esguelha— Como sabe que o bebê não é seu?

        —Ela confessou. —encolheu os ombros. —Maldita seja, Gugger! Prometi que lhe daria criados, jóias... o que quisesse, e que criaria o menino sob minha custódia, que o transformaria em um cavaleiro. Interrompeu—me para dizer que eu não era o pai. Nunca me senti tão ridículo!

        —Talvez seja melhor assim. Prometeu a essa camponêsa cuidar dela, e o fez. Não é culpa sua que seja um pouco dada e tenha aberto as pernas para algum jovem atraente. —Retrocedeu um passo para proteger sua integridade. —Procure alguém e case—a. É muito bonita. Qualquer homem se sentirá afortunado de ficar com ela e com o que vier junto. Custará apenas algumas moedas.

        —Gugger, se não fosse meu amigo, sentiria um imenso prazer em assassiná—lo agora mesmo —advertiu Wulkan. —Deixemos esse crime para uma ocasião melhor. Agora tenho que me dedicar a lady Natalie.

        —Quem?

        —O recém—chegado,lembra-se? Anunciou—se como conde de Charandon, e ela é sua filha.

 

       Natalie tinha deixado impressionado Gugger mal os recém chegados apresentaram seus respeitos, mas Wulkan ficou petrificado. Teve a sensação de que o chão se abria sob seus pés, que o mundo da irrealidade tinha deixado uma porta aberta pela qual ele acabava de entrar. Aquele rosto de pele limpida, aquela longa cabeleira dourada. Os olhos não eram os de seu sonho, mas todo o resto sim. Beliscou—se várias vezes para confirmar que estava acordado, saudou o visitante apenas, sem olhá—ló, escutando suas palavras vagamente. Não podia deixar de olhar para aquela moça.

        —Agradeço sua hospitalidade, milord, e espero que nos permita tomar parte no torneio. Dirigíamo—nos a... —O conde calou-se, já que a atenção de Wulkan continuava em sua filha. Tossiu e conseguiu que prestasse atenção. —Esta é minha filha, lady Natalie.        Wulkan inclinou-se diante dela.

        —Por um momento... Juraria que a conheço.

        —Esteve alguma vez em Charandon? —perguntou ela, sorridente.

        —Não, acredito que não.

        —Pois eu nunca saí da Normandía, milord. Deve ter me confundido com outra dama.

        Wulkan recuperou o domínio de si mesmo quando Gugger, diplomaticamente, levou a jovem com a desculpa de mostrar-lhe as dependências. Então, e só então, concentrou—se no conde.

        —Desculpe-me, senhor... Estou sendo descortês. É que... sua filha me recorda muito outra pessoa.

        —Algum amor do passado? —Aceitou a taça que um dos criados lhe entregava.

        —Sim... Não...

        —Então...

        —Não vou aborrecê—lo com as fantasias de um homem forjado nas batalha. Diga-me, para onde se dirigem?

        —Para o sul. Soubemos do torneio ao passar por Caberdin e decidi que, se formos bem—vindos, um parada pelo caminho e o fragor da luta distrairão meus soldados.

        —São bem—vindos. E espero que possamos medir nossas armas.

        —Não contem comigo! —riu Robert — Faz tempo que não combato em torneios, embora não deixei de praticar, certamente. Meus homens, entretanto, são muito bons.

        —Colocarei uma tenda a sua disposição.

        —Será uma grande honra, lorde Wulkan. —Pareceu hesitar. —Perdoe meu atrevimento, mas não é muito jovem para governar um feudo do tamanho de Kellinword?

        —Oxalá Ricardo tivesse pensado o mesmo —suspirou— mas ele empenhou-se em conceder-me estas terras, mesmo contra minha vontade. Sou um homem de guerra..., ou melhor deveria dizer que era.

        —Você não gostou?

        —Até recentemente, minha única preocupação era colocar minha espada a serviço de Ricardo. Os problemas de um feudo desta natureza me dão dor de cabeça.

        Nesse instante, Roland atravessou o salão, fez uma meia reverência e perguntou:

        —Poderei ver os combates da tribuna?

        Wulkan esqueceu-se de seus problemas por um momento, levantou—o pelas axilas e o colocou sobre seus joelhos. O menino fixou-se no recém—chegado e inclinou a cabeça, como ensinou-lhe seu pai.

        —Roland, dê-se por satisfeito se puder assistir.

        —Mas milord, é que sou muito baixo...

        —E?

        —Que se tiver que ficar com outros, não verei nenhuma justa. Se for me tornar cavaleiro tenho que aprender.

        Robert de Charandon riu com vontade e revolveu o cabelo do menino.

        —Parece que o jovenzinho tem muito interesse.

        —OH, certamente que sim, senhor!

        Wulkan ia responder algo, mas tiraram-lhe o menino.

        —Desculpem, por favor, senhores. Vamos, Roland, não deve incomodar os cavaleiros.

        —OH, Jacky! Estava a ponto de conseguir que milord me deixasse ver o torneio das tribunas.

        —Se não me obedecer, não o verá de nenhum lugar.

        —Wulkan prometeu! —protestou o menino.

        — Wulkan promete muitas coisas —disse ela, com fina ironia.

        —Jacky...

        —Vamos. — Puxou o menino.

        —Espere! —Ela se deteve. —Roland, eu farei com que o coloquem nas tribunas.

        —Obrigado, milord!

        Jacqueline tomou a mão do menino e lançou a Wulkan um olhar mortífero.

        —Não gostou, Jacky?

        —Não. Mas acredito que o lorde de Kellinword deveria ocupar seu tempo em questões mais importantes que atender os pedidos de um menino.

        Afastou—se, puxando Roland, enquanto o pequeno ia contando a todo mundo a boa nova.

        O conde de Charandon seguiu com verdadeiro prazer o rebolado de seus quadris.

        —Quanta insolência! Se me permite, milord, quem é?

        —Uma maldita saxã.

        —Odeiam os saxões, senhor?

        —Francamente, desde que conheço esta moça, estou pensando nisso. E agora, se me desculpar, senhor...

        Robert assentiu enquanto Wulkan levantava-se e saía com passos decididos. O conde o observou e recordou a imagem de sua esposa. Eleanor teria gostado daquele enfrentamento. As intrigas amorosas eram sua paixão.

        Havia passado a primeira quinzena de junho. A relva estava pronta para ser ceifada e os campos precisavam de cuidados para melhorar a próxima colheita. Entretanto, todo mundo deixou de lado seus deveres, em maior ou menor grau, e servos e vassalos montaram suas tendas nos arredores da esplanada onde se celebrariam as justas.

        Os torneios eram um esporte. Às vezes, um esporte de equipe, já que não só se enfrentavam dois homens mas também um grupo contra outro. Uns a cavalo e outros a pé.

        Wulkan esperava que a festa fosse bem—sucedida e revertesse em benefício da bolsa de seus cavaleiros e a sua própria.

        Wulkan reunia-se com Gilbert para preparar os detalhes, mas não havia jeito de contar com Gugger. Desde que o conde de Charandon e lady Natalie chegaram, mal tinha trocado uma palavra com ele. Toda sua atenção se concentrava na loira dama, que parecia encantada com seus galanteios e cantadas. A isso somaram-se as hordas de cavaleiros aos quais teve que saudar como organizador do torneio. Aquilo era particularmente penoso para alguém com seu caráter. Tinham recebido escudos de todas as partes e os emblemas reluziam ao sol daquela manhã clara e amena, refletindo as cores. Em cada tenda, os pendões demarcavam os limites, o terreno pertencente a cada brasão. A tenda mais ampla correspondia a Wulkan e seus homens, e sobre ela, na parte central, ondulava uma bandeira com um falcão em repouso. Negro e azul, o símbolo e as cores que o normando adotou quando Ricardo lhe deu a oportunidade de escolher um escudo.

        —Promete ser um bom torneio —aventurou-se Gilbert.

        —Sim —admitiu Wulkan— Esperemos que não haja mais complicações. Estejam atentos a qualquer eventualidade.

        —Não se preocupe, tudo está sob controle.

        Não era o torneio que o mantinha inquieto e pouco comunicativo. Era Jacky. Desde que revelou, na verdade cuspiu, que o filho que esperava não era dele, os demônios o acossavam e seu povo o evitava como à peste.

        Jacqueline, pelo contrário, transformou-se na alma de Kellinword. Fossem normandos ou saxões, todos concordavam que sua presença era um bálsamo para o sombrio humor do lorde. E ela afirmava, minuto a minuto, sua posição para vingar—se de Wulkan. Para arrebatar o afeto de seus homens e seus servos. Sabia que era uma vingança tola, mas lhe dava satisfação. Desfrutava com o silêncio que se fazia quando ele entrava no salão, em contraste com os sorrisos e as brincadeiras que dedicavam a ela. Colaborou polindo espadas e adagas, preparou arcos e flechas, limpou os machados, arrumou as capas e se preocupou de que cada escudo estivesse bem colocado. As armaduras reluziam. Fez—se, por assim dizer, indispensável para os cavalheiros, incluindo seu avô e o conde de Charandon. Todos valorizavam sua disposição. Para todos tinha um sorriso, uma palavra amável, uma brincadeira. Exceto para Wulkan. Sabia que ele estava furioso e se alegrava.

        Wulkan buscou-a com o olhar entre a multidão que se apertava contra as cordas que delimitavam o campo de luta. Ali estava. Sentada no primeiro degrau com os vassalos, à esquerda da tribuna principal e à direita das tendas que luziam as cores de Charandon e Noirmont — o meio—irmão do conde foi apresentado na véspera. Por um instante, adorou vê—la de novo vestida de rapaz, com aquele estúpido gorro enfiado até as orelhas. De repente, recordou o encontro de dois dias antes. Foi na horta, enquanto ela carregava um cubo de água do poço. Ele tentou falar, mas recebeu um bufar como resposta.

        —Por que não procura lady Clara e me deixa em paz? Ela é uma dama, e eu sou uma tosca camponesa.

        —Deixe lady Clara tranqüila, Jacky.

        —Você se incomoda por ela? Vá! Não acreditei que se importasse tanto. Embora, é natural, verdade? Sempre é melhor uma dama envolta em sedas que uma arisca e suja criada...

        —O certo é que não está muito limpa, digamos —brincou ele, passando um dedo por seu nariz, sujo de fuligem.

        Jacky afastou-se dele e passou a manga pelo rosto, mas não conseguiu nada, a não ser ampliar a fuligem.

        —Ao menos estou limpa de alma e de pensamento. Nem todos podem dizer o mesmo.

        Afastou—se caminhando depressa e ele seguiu seu rebolado como um lobo faminto, as calças ficando subitamente apertadas. Jesus! Só ela o fazia reagir assim. Estava obcecado por ela. Decidiu ganhá—la de novo.

        Com passos decididos, encaminhou—se aos postos dos mercados.

        —Procuro algo para uma mulher— disse a um deles.

        —Uma dama, senhor?

        Wulkan assentiu. E o mercador, que cheirava um bom negócio, pôs diante de seus olhos os mais variados produtos.

        Escolheu uma peça de paile, tecido proveniente da Alemanha, e um pouco de pele, das mais cotadas entre as damas. Costumava ser utilizada para o pescoço e os punhos dos vestidos da corte. Pensou que o cabelo dourado avermelhado de Jacqueline combinaria perfeitamente com o branco e comprou um tecido dessa cor. Depois de alguma dúvida, adquiriu também uma regata de seda e sapatos forrados de branco.

        —Mande levar a torre. —Lançou uma bolsa ao mercador.

        Wulkan pediu que trouxessem para Martha e pôs em suas mãos as malhas, falando da exelente qualidade dos tecidos.

        —Tem dois dias —disse— então, peça ajuda a alguém de sua confiança e comece o trabalho.Disseram-me que costura bem, e conhece as medidas de Jacky.

        —Para que tudo isto, milord?

        —Quero que o use no torneio.

        —Estou vendo. Ela se negará. Acredito que gastou seu dinheiro inutilmente, senhor.

        —E por que demônios vai negar—se? Martha acariciou a rica pele antes de falar.

        —Milord, posso lhes dizer algo?

        —Dirá de qualquer forma, não é? —resmungou ele, cruzando os braços sobre seu amplo peito.

        —Veja, senhor. As mulheres são um pouco estranhas. O que para uma é gratidão, para outra é um insulto.

        —Explique-se.

        —Jacky é uma moça voluntariosa. Orgulhosa de seu sangue. Uma moça do povo, sim, mas não uma rameira.

        —Eu não disse que era!

        —Claro que não, senhor! Mas todos em Kellinword sabem que deitou-se com ela. Foi seu capricho, senhor. Pretende insultá—la mais ainda, vestindo—a como uma cortesã?

        —Pelos pregos de Cristo! Só pretendo agradá-la.

        —Se quer minha opinião, senhor...

        —Não a pedi!

        —Darei—a, com sua permissão. Jacky deveria ficar no castelo enquanto se celebra o torneio.

        —Por que?

        —Lembre-se que está se escondendo de um homem com quem pretendem casá—la? O mais certo é que ele venha ao torneio. O que acontecerá, se a encontrar?

        —Voltará por onde veio —resolveu Wulkan.

        —Nem sequer você, milord, têm direito a interceder neste assunto. Ela não é uma serva, não lhe pertence. Por mais que seja o lorde de Kellinword, não pode segurá-la aqui se sua família a reclamar para casar.

        A lógica o esmagou, e Wulkan entendeu. Não obstante, disse:

—Quero tê-la à vista. Se a soltar da torre, sem vigilância, poderia voltar a escapar.

        —E estaria em seu direito.

        —Não! Prometi cuidar dela!

        —Contra sua vontade?

        —Contra o inferno inteiro, se eu quiser! —exaltou—se. Tinha perdido as estribeiras e acalmou-se, assim disse a Martha com prudência—: Além disso, espera um filho.

        —Ah, sim, o bebê.Então, contou-lhe...

        —Pois sim. Claro que me disse! E daria meu braço direito para saber quem é o pai.

        —Como disse, senhor?

        —Você deve saber algo. —Colocou-lhe uma mão no ombro. —Jacky fez amizade com você. Certamente falou. E eu preciso saber com quem esteve às escondidas.

        Martha tentava compreender a que se referia. De repente, viu tudo muito claro.

        —Então ela lhe disse que o menino não é seu.

        —Confessou abertamente.

        —Sei.

        —O que significa esse «sei»?

        —Isso. Sei.

        —Martha...

        —Milord, quem sou eu para opinar neste assunto.

        —Está a meu serviço ou não?

        —Não como fofoqueira, senhor.

        —Pelo amor de Deus, fale! Fale o que sabe desse homem.

        —De que homem, senhor?

        —Diabos, mulher! De quem vai ser?

        —Do pai...

        —Do pai, sim.

        —A verdade é que... —encontrava—se em uma situação delicada. Devia obediência a Wulkan, admirava—o e tinha chegado a respeitá—lo, mas estava pedindo que traísse Jacky, porque era claro que a jovem tinha decidido guardar o segredo... —. Eu não sei nada.

        —Quero esse nome!!

        Wulkan perdeu a paciência e ela retrocedeu alguns passos.

        —Seu... nome..., milord?

        —Se voltar a perguntar, Martha, juro que...

        —Pelo que sei, senhor, Wulkan de Kellinword —respondeu.

        Ele piscou duas vezes e tomou ar.

        —O que?

        —Pediu um nome e acabo de lhe dar.

        Acabavam de desarmá-lo. Passou o dorso da mão pelos lábios, repentinamente secos.

        —Quer dizer que... —Martha assentia, — que o filho que espera Jacky é meu?

        —Sim, milord.

        —Ela dsse isso?

        —Assim é, senhor.

        —Deus! —gemeu. —Enganou—me! —Como um bêbado, apoiou—se no muro, deixando—se escorregar até o chão. Estava desconcertado— Por que negou?

        —Não me pergunte . Não sei mais do que disse, e certamente Jacky me estripará por ter falado.

        Wulkan relembrou a conversa com ela naquela manhã em que ela anunciou sua gravidez. Estava radiante, alegre. Depois, repentinamente, tudo mudou. Justamente quando estava oferecendo... De repente, acendeu-se uma luz em seu cérebro. Claro! Tinha que ser isso! Agora entendia por que negou sua paternidade. Secou-lhe a boca e lhe doía a cabeça.

        —Acredito que eu sei —sussurrou. —Agora entendo tudo.

        —Seriamente, milord? Wulkan ergueu-se.

        —Bruxa saxã... —Falou para si mesmo. —Martha, Jacky deve assistir ao torneio, quero que o faça. Que se vista de garoto, se quiser e passe desapercebida.

Martha assentiu e antes de sair perguntou:

— Acha que, ao menos aceitará a regata?

        —Procurarei convencê—la, milord.

        Wulkan desceu ao salão. Procurou Gilbert e o levou a um lugar afastado, onde conversou com ele. Quando acabou, este assentiu e seguiu—o até seus aposentos. Pouco depois, sem mais explicações a ninguém, Bayard saía do castelo. Iria fazer uma longa viagem, mas tentaria fazê—la no menor tempo possível. Debaixo de seu casaco, preso à cintura, levava a mensagem que Wulkan redigiu com urgência pouco antes. Ninguém, exceto o rei, devia conhecer seu conteúdo.

 

        Os oponentes formaram seus grupos. Já que os cavaleiros estavam em seus trajes de luta e o capacete lhes cobria a cabeça, as cores e os símbolos das armaduras e as bandeiras eram a única forma de reconhecer o senhor por quem foram lutar. Os homens de pé vestiam-se de formas desiguais, já que cada um devia custear seu próprio traje, e estes eram muito caros. Não era estranho que alguns candidatos à cavalaria atrasassem sua investidura pela falta de meios na hora de custear um equipamento completo.

        A loriga, peça primitiva, uma junção de argolas de ferro ou aço, às vezes reforçadas com duplas argolas. Uma boa cota de malha podia ser formada por trinta mil anéis e pesava entre dez e doze quilos. Sua solidez lhes proporcionava menos flexibilidade. Ficava sobre a camisa, presa à cintura, descendo até os joelhos, aberta pela frente e por trás para facilitar montar a cavalo. As mangas prolongavam-se até a mão e a camisa alargava-se por trás da nuca, formando um capuz que cobria a cabeça. Sobre ela, uma almofadinha sobre qual se enganchava o elmo.

        Wulkan segurou, com mão firme, as rédeas de seu escuro garanhão, ansioso por entrar em combate.

        —Senhores —disse— começa a diversão.

        —Gorman fez uma aposta com Guillermo —disse Gugger— quem mais cavaleiros conseguir abater, cobrará do perdedor um cavalo de combate.

        A aposta era excessivamente alta, já que um bom cavalo de combate podia custar os honorários de um ano de serviço.

        —E você, quer apostar algo? Gugger soltou uma gargalhada.

        —Wulkan, meu amigo, não quero esvaziar mais sua bolsa.

        —Ainda me deve o pagamento de um mês —recordou—lhe a aposta de Jacky.

        —Nem sonhe! Eu não aceitei a provocação.

        Dos degraus, Jacqueline não perdia um detalhe. Wulkan usava uma túnica de seda sobre a cota de malha que o protegia do sol e da chuva, se fosse o caso. Negra, como a cor de seu elmo, como suas luvas e suas botas, como o tecido que cobria o lombo e a cabeça de seu escuro garanhão. Coroava seu elmo um falcão sobre o qual estava um penacho de plumas de cor azul. Seu escudo era azul e negro. Era intimidador, como um deus vingador. E sentiu-se orgulhosa de levar sua semente dentro dela... embora ele ignorasse.

        Gugger vestia-se de azul e prata, e seu escudo também era dessa cor; Gorman usava vermelho e amarelo e Guillermo de Bruswich o roxo e branco. Não distinguiu Gilbert de Bayard, cujas cores, laranja e negro, o teriam feito destacar-se entre os outros. As trompetistas anunciaram o primeiro combate e Jacqueline esqueceu-se de Gilbert para concentrar—se no confronto.

        —Protege—o, Senhor —rezou em voz baixa.

        Wulkan e seus cavaleiros combatiam no primeiro assalto contra as cores de Nortich, e o normando esporeou os flancos de seu cavalo para pô—lo rapidamente em movimento, animando seus homens à luta.

        A gritaria do povo iniciou a batalha antes que os combatentes se chocassem entre si. A formação durante a avançada, em ambas as direções, transformou—se em um caos. Interessava capturar ao adversário para exigir resgate, apoderar—se de suas armas, de seu arreios e de seu cavalo. Na primeira investida, dois dos cavaleiros de Nortich caíram no chão, e Wulkan, enquanto se batia com outro soldado de Gofredo, viu de soslaio Gugger e Gorman conversar com os caídos.

        Multidões de contratos verbais e promessas foram feitos no coração da batalha. Os ganhadores exigiam uma quantidade por ter derrubado seus competidores, e eles davam sua palavra, a qual nunca podiam faltar segundo as normas de cavalaria, de pagar o exigido. Supôs que tinham conseguido uma boa quantidade, já que cavalo e armas foram devolvidas, a fim de que pudessem continuar combatendo e, se a sorte os acompanhasse, recuperar o que foi perdido. Pelo contrário, se a deusa da Fortuna não lhes sorrisse, acabariam endividados até as orelhas.

        Wulkan conseguiu desmontar seu competidor, do qual arrancou novas promessas de pagamento, e devolveu-lhe o escudo e o cavalo.

        Naturalmente, alguns homens de Wulkan perderam, juraram pagar e seguiram lutando. Da mesma forma agiam os homens de pé quando conseguiam derrubar o adversário.

        A multidão clamava e aclamava uns ou outros, e embora caissem mais com os de Kellinword que com os de Nortich, nem Wulkan, nem os seus sentiam, envolvidos como estavam na luta.

        A gritaria era tão grande que os arautos desdobravam-se tentando explicar ao público as principais variantes da batalha, descrevendo os ataques mais destacados, os golpes mais efetivos e os nomes de seus autores. Wulkan e Gugger foram nomeados mais que qualquer outro.

        Finalizada a luta, os combatentes retiraram-se entre aplausos, saudações e lançamento de flores de algumas damas, enquanto outras entregavam lenços que usariam nas lanças no próximo confronto. As damas também tinham feito sua escolha: Clara amarrou no braço de Wulkan um lenço de seda vermelho que destacou-se como uma mancha de sangue sobre o negro de seu traje.

        —Defenda minha cor na próxima luta, milord —pediu. O normando agradeceu com uma inclinação de cabeça e afastou-se para as tendas, seguido por Gugger, a quem lady Natalie tinha amarrado um lenço verde. —Agora vem o mais dificil —comentou o loiro— Negociar.

        —E pagar as dívidas —assentiu Wulkan.

        —Me sai bem nesta. Não posso me queixar.

        Houve três combates mais, que Wulkan seguiu com interesse. O das cores de Noirmont contra Farandon, o dos escudos de Charandon contra os de Cormanywall e, por último, antes da comida, o enfrentamento dos homens de Lynch contra os cavaleiros de Maronees.

        Mas não perdeu de vista o degrau em que se encontrava Jacky, que estava adorando o espetáculo. Aplaudia, levantava-se e gritava, prestando grande atenção à disputa de Lynch, prestando atenção as explicações que gritavam os arautos. Saltou de alegria quando os homens de Enric ficaram a frente na luta, e gesticulou com decepção quando um deles foi derrubado.

        Clara, entretanto, estava muito atenta a Wulkan para prestar atenção em outra parte. Aproveitou que ele sentava-se a seu lado, já limpo e vestido, para disparar perguntas sobre a vida no castelo, a servidão, a disciplina e os lucros do feudo. Wulkan explicava com monossílabos, mas ela não percebia a pouca atenção que lhe dava.

        Natalie, mais atenta, sim observou para onde dirigia-se, reiteradamente o olhar do lorde. Inclinou—se para seu pai.

— Esse menino dali é a moça da qual me falou?

        Robert localizou a magra figura de Jacky.

        —É.

        —Eu gosto dela, papai. Eu adoraria ensiná-la para que se vestisse como uma dama. Possivelmente poderia ser minha dama de companhia. Não acha que ficaria muito bela?

        —Estou certo que sim.

        —E você poderia fazer algo para que o lorde abdique dela para que nos acompanhe quando partirmos?

        —Algo me diz que não —sussurrou.

 

        Duby de Nortich tomou parte no grupo de combate que formou seu pai, e embora as lutas o desagradassem, soube dissimular e não acovardou-se. Não ganhou nenhuma moeda, mas tampouco perdeu. Para ele, o importante era a noite, e esta seria interessante. Fixou—se em um rapaz de tez clara e cabelo loiro, magro. Soube que era o filho de um sapateiro que, como outros artesãos, foi ao torneio em busca de lucros.

        Terminado o dia, todos se prepararam para os festins noturnos. Era hora de curar as feridas, de comer e beber até fartar—se, de escutar música e baladas, de rir com os bufões e assombrar—se com os malabaristas. De dedicar tempo aos jogos de azar... E aos jogos do amor. E presença feminina não faltava.

        —Esta noite não tem companhia? —provocou Wulkan a seu amigo.

        —As jovens estão por toda a parte. Os homens se esforçaram por elas, e já sabe que certos pais farão vista grossa se sua filha começar a flertar com algum dos soldados.

        —Só espero que não se meta em confusões.

        —Não se preocupe. A dama de minha escolha é intocável, no momento.

        Wulkan entendeu em seguida. Ao que parecia, lady Natalie tinha conquistado seu coração, ao menos por uma temporada.

        Os torneios eram uma oportunidade para que as donzelas encontrassem pretendentes, e como em outras ocasiões e em outros lugares, mais de uma jovem perderia sua virtude.

        O magro e doentio moço escolhido por Duby disse chamar—se Tigner. O filho de Gofredo comprou um par de botas que provou com a ajuda do mancebo , sem deixar de observá—lo. Um roçar inocente, uma palavra sussurrada, um meio sorriso... Duby sabia que o rapaz aceitaria e estava disposto a pagar. Sentaram—se atrás das tendas, com a música ao fundo e os coros alegres de algumas gargantas, que começavam a nadar em vinho e cerveja.

        Duby acariciou-lhe a bochecha, e Tigner, um pouco envergonhado, devolveu—lhe o carinho.

        —Vamos sair daqui? —perguntou Nortich.

        —Como quiser, senhor.

        Puxado pela mão, afastaram-se até o bosque, onde dificilmente seriam interrompidos. Na escuridão, Duby tomou o rosto do jovem entre suas mãos e aproximou seus lábios. O carinho foi prudente, como uma promessa, e Tigner demonstrou que tinha certa experiência. Foi ele quem apertou-se contra ele e fez vagar suas mãos por suas costas, pousando-as nas nádegas do parceiro. Depois, sobre a relva, entre fracos ôfegos, começaram a despir—se, suas bocas procurando e fundindo—se. Duby observou que o jovem quase parecia uma moça. Poderia passar por mulher se seu peito crescesse um pouco. De gestos delicados, olhar manso e lábios grossos, excitou—lhe muito. Seus magros quadris se moviam contra seu endurecido membro, que aumentava de tamanho.

        —Vire-se.

        Tigner obedeceu, colocando—se de joelhos, à espera. Desde que tomou consciência de sua sexualidade, seus esporádicos contatos foram sempre com homens mais velhos que ele. Gostava de deixar—se amar.

        Duby excitou-se quando lhe mostrou seu pequeno traseiro. Suas mãos apalparam a carne trêmula. A ponto de procurar satisfação, uma gargalhada surgiu das sombras, sobressaltou—o e procurou suas roupas com urgência.

        —Por mim pode continuar. —Reconheceu o indivíduo quando a lua iluminou seu perfil.

        —Noirmont...

        Emil observou, com desprezo, sua rapidez para vestir—se. Estava sobressaltado, mas o filho de Gofredo enfrentava-o, descaradamente.

        —É o filho do sapateiro?

        O moço balbuciou.

—Sim, senhor.

        —Recorde bem o que vou dizer. Seu pai deve ficar no castelo de Kellinword depois do torneio.

        —Mas pensava...

        —Ficará. Entendeu? Você se encarregará de que o faça, se não quiser que saiba de... disto. Será de muita utilidade —comentou, enigmático. Logo, dirigiu—se a Duby— Acabe o quanto antes, os casais começam a dispersar—se pelo bosque, e não seria impossível que os pegasse fornicando. Seu pai não gostaria nada disso.

        —Você vinha me seguindo, não? —acusou.

        —Vá com o menino e não se preocupe se o segui. E procure deixar-lhe satisfeito. Precisarei dele mais adiante.

        Sem dar-lhe tempo de replicar, afastou-se, desaparecendo na escuridão. Tigner passou ao seu lado, morto de calor, mas o puxou.

        —Aonde vai?

        —Sinto, mas... é a primeira vez que... que...

        —Que o descobrem com o cú para cima?

        —Esse homem é horrível! —choramingou.

        Sim, certamente, Noirmont era desprezível. Tomou o choroso rosto entre suas mãos e beijou-o nas pálpebras. —Esqueça esse bastardo e voltemos para a nossa brincadeira.

       

        O magnífico urso pardo apoiou-se em suas patas dianteiras. Um murmúrio admirado percorreu os espectadores. O domador saudou, como se tal proeza fosse dele, e um menino embrenhou-se entre o público para passar uma tigela.     Jacqueline se compadeceu do animal. Tinha o olhar triste e sentou-se sobre seus quartos traseiros, acorrentado à argola que aprisionava seu pescoço.

        A noite era agradável, embora o céu estivesse nublado. De qualquer forma, se chovesse o torneio não encerraria, absolutamente, já que todos agüentariam o aguaceiro e continuariam desfrutando do espetáculo.

        Começou a assobiar, sem perceber, aquela sintonia que escutou algumas vezes de Wulkan, procurando seu avô entre a multidão. Decidiram não deixarem—se ver juntos, mas ao menos podiam observar—se de longe.

        Mas não foi Enric que viu, mas Clara entrando sorrateiramente na tenda de Wulkan. Ficou cravada no chão. Instintivamente, levou a mão ao ventre, e uma horrível pontada de ciúmes a atravessou. Clara era uma cadela indecente! Uma perdida! Uma...! Menina estúpida!, pensou. Tenta achar em Clara seus próprios pecados. Acaso não era ela que obteve os favores de Wulkan? Não estava grávida dele? Não quis chegar a essa situação, mas teve a má sorte de apaixonar—se, de responder a suas carícias e agora estava pagando por isso. Clara só tentava conseguir o que ela mesma ofereceu em bandeja de prata.

        Não demorou muito no interior. Instantes depois, sua meia—irmã saía da tenda com o rosto fechado. Olhou para trás, pareceu que dizia algo e acelerou o passo, afastando—se. O alívio foi infinito e, sorrindo como uma boba, retornou a melodia.

        —Onde aprendeu essa música?

        O conde de Charandon estava a seu lado.

—Perdão?

        —Essa música... onde a aprendeu?

—Lorde Wulkan a cantarola, às vezes.

        —E conhece muito bem o lorde?

        —Faz algum tempo que estou a serviço em Kellinword, senhor.

        —Eu gostaria de saber algumas coisas deste lugar.

        —Gugger de Montauband é sua mão direita. Pergunte a ele, eu posso dizer pouco.

        —Gugger —repetiu ele, pensativo, observando sua tenda. —Obrigado. Divirta-se, Jacky.

        Afastou—se, e Jacky se perguntou o que lhe teria chamado a atenção, mas esqueceu-se por completo para continuar procurando seu avô. Seu passeio a levou perto da tenda, no momento em que saía Borgan. O escudeiro, ao vê—la, disse:

—Está ferido. Vá procurar ataduras.

O medo oprimiu-lhe as vísceras e, sem pensar, puxou a lona e entrou.

        Wulkan estava de costas, meio sentado na beira de uma mesa sobre a qual descansava seu elmo, as luvas e uma espada curta. Tirou o casaco de couro e a camisa e examinava um pequeno corte no ombro. Pensando que era o rapaz, gritou:

        —Depressa, Borgan. Isto arde como mil demônios.

        Jacqueline aproximou-se por trás e notou, aliviada, que não era nada sério. Wulkan havia voltado a lutar na última confrontação do dia, e nessa ocasião, seu adversário se mostrou mais hábil que os anteriores, embora ela não reparou nisso enquanto seguia o conflito. Adiantou sua mão e examinou a ferida, obrigando-o a voltar—se.

        —É você...

        —Não é grave.

        —Já sei que não é grave. Onde está Borgan?

        —Foi procurar ataduras.

        —Condenado seja! Deveria ter ficado aqui.

        Jacqueline livrou-se do gorro, pegou uma jarra de água e deu uma olhada, procurando algum pano. Ao não encontrá—lo, tirou a camisa de baixo das calças e a rasgou sem olhar, cortando uma tira larga. Empapou o tecido e começou a limpar a ferida. Wulkan a contemplou. Sob a amarelada luz das tochas, seu rosto adquiria uma tonalidade dourada. E seu cabelo... Seu lindo cabelo... Odiava o maldito gorro!

        Borgan retornou com as ataduras e um frasco de desinfetante, enquanto o atendia.

        —Pode ir se divertir. — Tomou os utensílios para o curativo —Eu cuido dele...

        O rapaz interrogou seu lorde com o olhar.

— Saia —disse o normando.

        Borgan desapareceu e Jacqueline aplicou na ferida um pouco de desinfetante.

        —Dói?

        —Agora decide você quando dispensar meu escudeiro? —perguntou ele por sua vez. Wulkan, no fundo, adorava sua iniciativa.

        Os olhos violeta faiscaram de raiva. Estava zombando dela novamente…

        —Quer que volte a chamar Borgan? —perguntou —Não que tenha muito interesse em remendar uma mula normanda.

        —Ande, acabe de uma vez.

        Esterilizou o corte o melhor que pôde, enfaixou—o e o rematou com um nó.

        —Não morrerá por isso — zombou.

        —Como se isso importasse para você! —resmungou ele.

        Wulkan colocou a camisa. Serviu—se de uma jarra de vinho e a esvaziou com um gole.

        —Pergunto—me como me deixei convencer por Martha —murmurou, dando uma olhada ao traje de Jacqueline.

        —A que se refere?

        —Eu não gosto nada que se vista de rapaz, mas pareceu bom, se por acaso seu pretendente aparecesse no torneio....

Maldito estrangeiro! Se soubesse que a tem debaixo do nariz! Recolheu os panos ensangüentados e ficou em silêncio.

        Wulkan achava reconfortante tê—la ali, ao seu lado, sob sua lona de campanha, como se lhe pertencesse. Aturdia—lhe o sentimento de posse que sentia cada vez que olhava para ela. Nesse instante soube que a decisão que havia tomado era certa. Aproximou-se e seu dedo indicador brincou nas costas de Jacqueline. Ela enrijeceu-se, colocando distância entre ambos.

        —Jacky, tenho que falar com você.

        —E com lady Clara, não queria também falar? —alfinetou, com voz irônica.

        —Sabia! Vai me pedir que preste contas do porque ela esteve aqui?

        —Já disse que não sou ninguém para pedir—lhe explicações.

        Wulkan segurou-a pelo queixo.

—Minha oferta está de pé, Jacky.

        —Que oferta?

        —Sou responsável por você. E pelo filho que espera.

        —Esse menino...!

        —Escute antes de começar a dizer tolices. Quero dizer que poderá viver em Kellinword. Em uma casa ou na torre, você escolhe. Seu filho poderá educar—se no castelo.

        —A educação de meu filho é meu problema, Wulkan!

        —Pelos dentes de Satanás! —explodiu. —Consegue me tirar tão facilmente do sério, Jacky... Não quero tirar seu filho, só dar-lhe segurança.

        —Sua oferta é muito altruísta, mas devo rechaçá—la. Obrigado, mas continua sendo um não. Que diferença existiria entre cuidar de mim e de meu filho vivendo fora ou dentro da torre? Todos em Kellinword sabem que fui sua amante e pensariam que esse é o pagamento por meus serviços.

        —A merda o que pensar o mundo!

        —É possível que os normandos importem—se pouco com a honra de uma mulher, mas os saxões se importam, e muito. É melhor que eu vá embora de Kellinword.

        —E retornar a sua cabana, no meio do bosque?

        —Isso é problema meu, milord.

        —Não, Jacky, isso não é problema seu. Tenho uma obrigação para com você e...

        —Coloque essa obrigação onde quiser, Wulkan! —cortou. —Não quero sua compaixão!

        —O que quer então? —desafiou—a. —Que me case com você para sossegar os comentários?

        Como dizer que era justamente isso que desejava? Mas o modo como disse parecia mais uma compensação do que um pedido. Uma forma de escapar. Talvez seu avô tivesse razão e ele nunca desobedeceria Ricardo para tomar por esposa uma camponesa. Deu—lhe as costas para que não a visse chorar.

        —Nem por todo o ouro do mundo me casaria com você —respondeu.

        Wulkan a amaldiçoou, silenciosamente. Teria sido muito mais fácil admitir que o desejava! Isso era pedir muito da parte de Jacky. Nunca daria seu braço a torcer. Era tão teimosa como somente uma mula saxã podia ser.

        —Jacky... por que tem que estar sempre discutindo? —perguntou—lhe muito baixinho.

        Ela não pôde evitar de voltar-se. Isso colocou tudo a perder.

        Wulkan era incrivelmente atraente. Gostava de acariciar sua pele morena sob a camisa entreaberta. Seu escuro cabelo, ligeiramente desordenado, lançava reflexos azuis sob a mortiça luz das tochas. Era diabólicamente viril. Não resistiu a suas mãos, que aprisionaram seus ombros, atraindo—a para ele. Beijaram—se com raiva, Wulkan acelerou os batimentos de seu coração, aprisionando as torneadas coxas femininas entre as suas, seus pequenos e altivos seios aderidos a seu tórax. E Jacky incendiou-se, uma paixão que sua boca não calava.

        —Desejo você, pequena —murmurou—. Preciso de você, Jacky.

        Também Jacqueline o desejava. Que diabos! Afinal contas, já não importava. Estava esperando um filho dele, e desfrutar de novo de seu corpo não a deixaria menos grávida. Desejava-o mais que ao ar que respirava.

        Wulkan saboreava sua língua e o fôlego que a impregnava. Queria que ela gozasse; que gozasse como nunca. Iria se oferecer a ela, entregar sua alma. Levou—a até o camastro, e nesse instante desejou que o estreito colchão fosse uma cama de plumas. Por ela. Só por ela respirava e por ela pulsava. Não queria possui—la. Queria tê—la. E amá—la. Depositou—a com cuidado. Foram—se desfazendo das roupas.Tomou um mamilo entre seus dentes e Jacky gemeu de prazer.

        Jacqueline rodeou sua cintura, estreitando a união. Sua inflamada virilidade se apertava contra sua coxa, e uma onda de fogo a percorreu. Abriu as pernas e suas mãos procuraram, apalparam e se apropriaram dele, sentindo que pulsava entre seus dedos. Conduziu—lhe, guiou—lhe em silêncio, empurrou—o a possui—la. Wulkan suportou o delicioso suplício até perecer, engolido na úmida cavidade. O prazer o aturdiu. Nunca tinha desejado tanto uma mulher como desejava Jacky, daquele modo irracional, obsessivo, doentio. As pernas femininas rodearam seus quadris atraindo-o mais, enquanto a boca de Jacqueline procurava de novo a sua. A plenitude o enlouquecia, transportava—lhe, incapaz de evitar o impulso que o chamava a fundir—se com ela. Com um esforço titânico, afastou-se e retirou-se dela, ficando de barriga para cima..

        Jacqueline, em êxtase, paralisou—se, observando como aprisionava seu membro com força.

        —Dói?

        —OH, Deus...! Não! —soluçou ele. —É só que não quero acabar tão cedo, carinho.

        Ela não conseguiu entender. E Wulkan a ensinou, fazendo pressão debaixo da glande.

        —Isto ajuda a aguentar mais um pouco —explicou. Jacqueline assentiu, absorta, embora a malícia brilhava em seus olhos.

        —Posso experimentar?

        Wulkan reteve o ar em seus pulmões. Só de pensar que ela pudesse substitui—lo, quase o fez derramar—se. Mas deixou que a mão de Jacky tomasse conta do jogo. Para sua desgraça, sua falta de iniciativa a levou a acariciá—lo devagar, brincalhona, admirada por aquele apêndice que parecia endurecer mais e mais. Ávida por experiência, esfregou—o entre as duas mãos.

        —Por Deus, não faça isso, Jacky!

        —Você não gosta?

        —Santa María! —afastou-se—. Se continuar, terminarei antes de agradá-la.

        —Excita—o! —alegrou—se, encantada do poder que exercia sobre ele.

        —Fico louco com você.

        Diabólica em sua ignorância, voltou a tomá—lo em suas mãos.

        —Seriamente? Se tocando-o fica louco...

        Sem aviso, agachou—se e o engoliu. Wulkan curvou-se quando sua boca o apanhou. Sua língua provocou espasmos de prazer. Estimulou,apertou e saboreou-lhe. Nem em sonhos Jacqueline tinha imaginado que aquilo podia ser tão prazeroso. Wulkan resistiu o quanto pôde, mas ela lambia gulosamente, e ele, incapaz de suportar a tortura, assumiu o comando.

        Imediatamente, Jacky estava sob seu corpo e a penetrava. O orgasmo explodiu como uma cascata e a aprisionou com força, seguindo o compasso de suas investidas. Cravou—lhe os dentes no ombro, para não gritar, quando seu corpo se derreteu em uma labareda, levando—a ao orgamo. Wulkan se uniu a ela nessa mágica dança que a paixão orquestrava.

        Depois, aconchegaram-se satisfeitos, permitindo que o torpor os envolvesse. Assim, plena, foi adormecendo com a música de seu coração, lembrando daquele ser amado, pelo qual faria o que fosse, inclusive mostrar sua verdadeira identidade.

 

        Baixou a viseira do elmo e observou seu oponente. No outro extremo da pista de areia, o soldado de Noirmont o vigiava. Vestia-se de roxo e em seu elmo tinha gravado um abutre com as asas estendidas, confirindo—lhe um aspecto feroz. Instintivamente, procurou Jacky entre a multidão que os aclamava. Teria ficado encantado se pudesse oferecer-lhe aquele confronto, mas teve que conformar—se, dedicando—o a Clara, ainda irritada por seu repúdio.

        De um lado da pista, Emil também seguia seu soldado, ansioso para enfrentar o lorde de Kellinword. Era um de seus melhores cavaleiros, mas sabia que Wulkan o venceria. Isso, entretanto, ajudaria a conhecê—lo melhor. Inclinou brevemente o pescoço para o sujeito que o acompanhava, ajustando as luvas.

        —Tudo pronto?

        —As cilhas cederão depois de um tempo. Agüentarão uns dois combates e estará preparada para quando enfrentar você.

        —Assim espero. Economizaria—me muito dinheiro e dores de cabeça tirar este bastardo do caminho. —Gofredo de Nortich me disse que tudo está preparado.

        Emil assentiu, satisfeito. Quem o acompanhava era um mercenário como ele mesmo, disposto a tudo por dinheiro.

        Estava a seu lado quase quinze anos, e nesse tempo soube ganhar sua confiança, embora não sua estima. Aprendeu com seu pai, aquele desgraçado que lhe deu a vida para depois negar—se a reconhecê—lo como legítimo.

        —Quanto antes acabe com ele, melhor —disse, atento à luta, e sem perder de vista Wulkan— Sua atitude me incomoda. Quero que sue, que tema o momento em que nossos homens assaltem sua fortaleza e passem seu povo na faca. Mas vencê—lo no torneio, fazê-lo comer pó, cobrir-se de sangue, seria um triunfo pessoal que me daria ainda mais prazer.

        —Então, rezemos para que as cilhas agüentem até seu confronto.

        —Reze você, meu amigo. Se essas correias romperem antes do tempo, perderá a cabeça.

      Os trompetistas anunciaram o início da luta. Jacqueline, do lugar que ocupava, sentiu um aperto no coração. Confiava que Wulkan ganhasse, mas e se não fosse assim? E se o ferissem? Não era a primeira vez que um cavaleiro perdia a vida em um torneio, e eram poucos os que saíam sem cicatrizes. Ele já tinha uma.

        O cavalo negro de Wulkan ergueu-se nas patas traseiras, lançando—se para frente. A cerca intermediaria, que dividia os dois lados pelos quais corriam os competidores, ainda mostrava sangue da luta anterior. Rogou a Deus pela integridade do homem que amava.

        O inimigo esporeou o cavalo. Sabia exatamente o que tinha que fazer para ganhar. Tinha observado seu oponente nos combates. Wulkan levava a lança alta, à altura do ombro, e estava acostumado a baixá—la um instante antes de cruzar com seu rival. E ele acreditava ter descoberto um ponto fraco: inclinava ligeiramente o corpo para a esquerda para dar mais potência ao golpe. Devia aproveitar a posição erguendo sua própria lança um pouco. Com sorte, conseguiria alcançá-lo no ombro, e o lorde voaria de seus arreios. As apostas eram altas a favor das cores de Kellinword e, se ele ganhasse, a bolsa seria maravilhosa.

        —Eu não gosto desse tal Farran.

        Gugger voltou sua cabeça para Gorman, com uma sobrancelha arqueada.

        —Por que diz isso?

        —Não sei. Mas eu não gosto.

        Jacky puxou a manga de seu casaco no momento em que os cavalos estiveram a ponto de cruzar—se. O silêncio tenso do público paralisou-lhe o coração e não quis olhar. Não podia vê—lo. Ouviu o entrechocar das armas, e um segundo depois um bramido geral e o nome de Wulkan gritado em coro por centenas de gargantas. Aplaudiu com entusiasmo enquanto os carregadores da maca trotavam pela pista para levantar Farran de Bobill, que tentava inutilmente erguer-se, devido ao peso da armadura. Logo que conseguiu ficar em pé, desfez—se das mãos solícitas que o ajudavam e saiu da pista por si mesmo.

        Wulkan deu uma volta e parou o cavalo em frente ao degrau onde estava Jacky. Só ela soube que, atrás da viseira, uns olhos escuros lhe sorriam. O público interpretou a parada como uma dedicatória ao próximo combate e a gritaria se elevou ao céu. Logo levou a lança até a tribuna onde se encontravam Natalie e seu pai, Clara e Enric. A primeira lançou-lhe um beijo com os dedos. Jacky observou o áspero olhar de Charandon. Decidiu que conversaria com Wulkan sobre o conde e a repentina curiosidade que tinha demonstrado por ele.

        Os trompetistas tocaram de novo e Wulkan ocupou, uma vez mais, sua posição. Entregou a Borgan a lança usada e aceitou uma nova. Ergueu a viseira, comentou algo com o jovem e voltou a cobrir—se. Antes que ocultasse seu rosto, seu olhar cruzou com o de Jacky, e deu-lhe um amplo sorriso.

        —Conseguirá que o matem —resmungou Gorman.

        —Eu acho que está se saindo muito bem — brincou Gugger—, embora não é habitual enfrentar três combates seguidos. Muito poucos seriam capazes de tombar os três brasões, um após o outro.

        —Não me refiro a que combata com os três, o que quero dizer é que tem a cabeça em outro lugar. —Apontou para os degraus.

        —Não é a primeira vez que Wulkan põe seus olhos em uma moça, Gorman —assegurou o loiro—, e nunca o vi desconcentrar-se.

        —Veremos.

        —Não se preocupe. Quando tem um inimigo na frente, nem todas as odaliscas da Turquia, dançando nuas, poderiam distrai—lo.

        —Veremos —repetiu Gorman.

        O próximo combate foi frente a um mercenário bastante conhecido, que chamava-se Asfort, O Verdugo. Estava totalmente vestido de vermelho, das plumas de seu penacho até as patas de seu enorme cavalo. Wulkan já tinha combatido com ele em outras ocasiões, no norte da Inglaterra e na Normandía, e agradecia que um guerreiro como aquele tivesse decidido medir suas forças em Kellinword. Reconheceu que tinha sido petulante e estúpido desafiar três homens de uma vez, mas quando apareceu a oportunidade de enfrentar com a lança os escudos de Farran, Asfort e Emil de Noirmont, não conseguiu resistir. Antes de pensar já havia enfrentado com a ponta de sua lança os três homens e os escudos caíram por terra, provocando um clamor de assombro na platéia. Gugger o exortou, e Gorman proferiu-lhe um insulto. Mas não tinha como voltar atrás.

        Expulsou ar dos pulmões e aguardou até os trompetistas abrirem a luta. Tiraria Asfort do caminho e enfrentaria Noirmont. Desejava isso. O indivíduo em questão o desagradou no momento em que foram apresentados. Desprezou esse pensamento e puxou as rédeas do cavalo. O animal sabia muito bem sua resposta.

        As patas das bestas levantaram torrões de terra. Por alguns segundos, como em cada combate, as gargantas emudeceram, espectadores pelo desenlace. Como em outras ocasiões, Wulkan colocou sua lança um segundo antes que os cavalos estivessem lado a lado. A lança de Asfort golpeou em cheio seu escudo, e um pulsar doloroso varreu seu peito como se o abrissem ao meio, mas a ponta de sua lança roçou o ombro inimigo, que se inclinou, perdeu o equilíbrio e caiu. A blasfêmia do Verdugo apagou-se na gritaria geral. Um pouco enjoado e sem fôlego, Wulkan tinha ganhado de novo.

        Emil dirigiu-se para seu lado da pista. Um criado retinha o nervoso garanhão e aceitou ajuda para montar. Colocou o elmo enquanto continuava escutando o clamor do povo aclamando Wulkan. Pegou o escudo, passou as correias por seu braço esquerdo e empunhou sua lança. Provou—a e pediu outra mais pesada. Precisaria de um pouco de sorte. Se conseguisse atravessar o escudo de Wulkan, economizaria homens, dinheiro e muitas dores de cabeça. E ninguém poderia culpá—lo pela morte do lorde de Kellinword.

        No outro extremo da pista, Wulkan sacudia a cabeça para afastar o enjôo e movia o ombro esquerdo.

        —Está bem? —perguntou Gugger, não tão tranqüilo.

        —Perfeitamente. Demônios! Esse Asfort golpeia como um boi.

        —Deveria prorrogar o combate com Noirmont.

        —E deixar para você a glória? Tenho amigos para isto!

        —Não seja idiota. Não está em condições.

        —Afaste-se se não quiser que meu cavalo passe por cima de você, amigo —continuou brincando. –Vou demonstrar como se luta.

        —Espere. Ainda está meio tonto pelo golpe.

        —Gugger, é pior que uma dor de dente. —ajustou a viseira e colocou seu cavalo em posição.

        Jacqueline, a distância, reparou no rival de Wulkan. Um ligeiro mal-estar se instalou em seu estômago. Iria combater outra vez, a multidão gritava, mas ela já não escutava nada, só tinha olhos para aquele guerreiro cujo rosto não podia ver sob o elmo. Seu instinto estava colocando-a em guarda diante do perigo. Passou as mãos pelos braços, repentinamente gelados. Os cavalos entravam no campo de batalha, adiantou—se um passo e segurou com força o corrimão, orando para que Wulkan saísse ileso.

        O garanhão negro, resfolegando, encontrava—se a pouca distância do cavalo de Noirmont.

        A ponta da lança de Emil estava muito baixa, e todos pensaram que tinha o combate perdido, mas justamente então as cilhas de Wulkan cederam e ele inclinou-se sobre os arreios. Ao perder o equilíbrio, viu—se obrigado a erguer o braço esquerdo uns centímetros, e isso foi o que salvou-lhe a vida. Emil tinha erguido a lança, apontava para o pescoço, por baixo do elmo, a zona mais desprotegida. Mas não tinha previsto a destreza de seu adversário sobre o cavalo.

        Wulkan recebeu o impacto no ombro machucado e achou que o tinham arrancado. Descendo do cavalo, caiu na areia, e o silêncio envolveu os competidores. Se o golpe no ombro foi doloroso, a forte queda forçou sua clavícula, que saiu do lugar. Tentou erguer-se por reflexo, mas a armadura pesava como mil diabos, e a dor nublou-lhe os sentidos e encontrou-se próximo da inconsciência. Não soube que Jacky, com um grito desesperado, tinha saltado a cerca e corrido para ele ao mesmo tempo que o faziam Borgan e Bertrán. Tampouco soube que foi tirado da pista por três de seus cavaleiros, com a plebe guardando um silêncio sepulcral.

        Jacqueline ficou atrasada ao ver entrar na tenda lady Natalie e Clara. Ficou lá fora, cheia de preocupação, retorcendo as mãos, até que ouviu Gugger ordenando que todos saissem. Rodeou a tenda e penetrou no interior pela parte traseira, arrastando—se sob a lona. Wulkan estava inerte sobre o canastro. Tinham retirado sua armadura. Comprovou com alívio que não estava coberto de sangue.

        —Tem a clavícula deslocada —anunciou Gorman. Wulkan recuperou a consciência, para sua desgraça, antes que seus amigos conseguissem colocá—la no lugar. Tentou sentar—se e escapou-lhe um gemido de dor.

        —Demônios!

        Gorman o empurrou, deitando-o, e imobilizou o ombro ferido, apoiando sua bota na beira do colchão.

—Será um segundo —assegurou. Antes que Wulkan digerisse suas palavras, puxou seu braço com todas as suas forças.

        Wulkan uivou, mas a dor cedeu momentos depois. Aceitou ajuda para erguer—se e massageou o ombro e o braço.

        —O que aconteceu? —perguntou. Viu Jacky no canto da tenda, louca de preocupação. Chamou—a com um gesto e ela aproximou-se. Manteve—a ao seu lado.

        —As cilhas estavam cortadas —esclareceu Robert de Charandon, fazendo sua aparição na tenda. Todos prestaram atenção. —A forma como inclinou-se sobre a sela me pareceu estranha, quando ainda não tinha recebido nenhum golpe. Tomei a liberdade de revisar seu cavalo. —Mostrou o couro desgastado. —Das duas uma, Wulkan: ou é descuidado com seus utensílios de batalha... ou alguém pretende matá—lo.

        Wulkan examinou as correias em silêncio. Charandon tinha razão.

        —Quero saber quem foi.

        —Pode ser qualquer um —disse Gorman.

        —Está bem? —interessou—se Robert.

        —Como se tivesse passado um rolo em cima de mim.

        —Teve sorte. Meu meio—irmão apontava para o pescoço. Se não tivesse levantado o braço, agora estaria morto.

        —Averigou algo mais? —perguntou o jovem lorde, intrigado.

        Robert passou o dedo indicador pelo lábio inferior.

—Não. Mas espero fazê—lo —repôs enigmáticamente.

        O torneio terminou e a noite culminou em uma celebração. Os homens que tinham tomado parte aproveitavam para contarem seus lucros ou suas perdas, algumas moças procuravam o favor dos afortunados e a imensa maioria se embebedava. Os cozinheiros assavam cordeiros e frangos, os comerciantes aproveitavam as últimas horas para vender seus produtos, os malabaristas e domadores mostravam suas habilidades uma vez mais. Gritaria e um pouco de exagero, aproveitando ao máximo a última noite antes de retornar à vida cotidiana.

        Wulkan desamarrou a lona da tenda depois de advertir Borgan que vigiasse para que ninguém o interrompesse. Não queria visitas naquela noite. Jacqueline o esperava, deitada no estreito canastro, vestindo a regata que deu-lhe de presente. Seu longo cabelo esparramava-se sobre o travesseiro.

        —Está suficientemente recuperado para batalhar, uma vez mais, milord? —brincou.

        Wulkan aceitou a brincadeira com humor, sentou—se junto a ela e a beijou na boca, doce como nenhuma outra.

—Nada me impedirá de saboreá—la, bruxa. —Mordeu—a no pescoço. —Nem ferido ficaria longe.

        Jacqueline ficou séria e,afastando-se um pouco, sentou—se abraçada aos joelhos e apoiando o queixo neles.

—E quem cortaria as cilhas? —Ele fez um gesto vago. —Não se preocupa que possa ter um assassino perto de você ?

        —Um homem como eu tem mais de um inimigo. Além disso, não é o primeiro que tenta.

        —Como?

        —Quiseram me matar no bosque, lembra-se? E agora começo a me perguntar como pôde romper-se uma das cordas que seguravam aquelas pedras.

        —O que?!!

        —Não dei importância. Acreditei que fosse um simples acidente, mas agora não estou tão certo. —Apesar de tudo, não parecia preocupado. —Mas temo que agora uma víbora cresce justamente sob minhas botas. Não terá você algo a ver com isso?

        O ar faltou em seus pulmões. Falava sério? Depois do que tinha acontecido entre eles? Depois de compartilhar as noites anteriores entre carícias e sussurros como um casal apaixonado?

        —É um bastardo —insultou—lhe.

        Fez menção de saltar do colchão, mas Wulkan, divertido, segurou-a. Fez com que se deitasse e tombou sobre ela.

        —Gatinha..., é uma brincadeira —murmurou sobre sua boca. —Embora seria melhor se chamasse de pantera – riu. —Com um gênio de mil diabos, mas fica linda quando se enfurece.

        —Por isso faz com que me zangue continuamente?

        —O certo, meu amor, é que se zanga com muita facilidade... — zombou.

        —É um...!

        —Chsss! Não diga. Se for aprender boas maneiras, deve esquecer dos palavrões.

        Esperou que se acalmasse e, enroscou—se por debaixo de seu ombro ferido, conseguindo escapar e saltar do canastro. Wulkan ocupou todo o espaço e se gabou, vaidoso, de que pertencia só a ele. Por Deus que não o preocupou nesse momento que quisessem matá—lo! Tinha como único fim saciar—se de tanto encanto. Se o preocupava, não disse. À luz de uma tocha, sua regata mostrava suas curvas perfeitas.

        —Quem disse que tenho que aprender bons costumes?

        —Eu.

        —Pode colocar seus bons costumes no...!

        Saltou como um gato e ela tentou esquivar-se, mas a capturou.

        —Realmente, pequena, não sei se quero que mude. Beijou—a e a estreitou contra si uma vez mais. E Jacqueline abandonou-se totalmente, pois seu guerreiro normando a amava. Tinha entre seus frágeis braços a força do homem adorado.

 

        Depois do torneio, a atividade diária voltou a sua rotina.

        Jacky aproveitou um descanso para ir ver seu avô, ainda escondendo-se, muito perto das bancas de verduras. Por sorte, Clara parecia afetada por seus nulos avanços na conquista do lorde, e mal a via.

        Tanto Enric como o conde de Charandon permaneciam no castelo, aceitando o convite de Wulkan, ao qual não se somou Nortich. Ambos partiriam logo. Robert seguiria seu caminho para tomar conta do feudo cedido pelo rei e Lynch retornaria ao dele. A este preocupava o curso dos acontecimentos, e assim quis ver Jacky.

        —Preciso de um pouco mais de tempo, avô —rogou. O ancião não queria deixar sua neta nas mãos de Wulkan, mas não havia alternativa.

        —Só até chegar a resposta de Ricardo —resolveu— Só até então. E juro, pelos chifres de Satanás, que tanto faz se o rei aceitar como não, tirarei—a deste castelo. E fará o que eu disser!

        Jacqueline comoveu-se porque seu avô sempre estava alí, disposto resgatá-la, e retornou às cozinhas.Mas estava distante.

        Martha ficou frente a ela, com as mãos nos quadris.

        —Vai ficar todo o dia vagabundeando?

        —Estava...

        —Sonhando —acabou ela. —Já vi. Acha que sou cega? Não tem feito mais que enjoar os pratos.

        A jovem assentiu.

        —Desculpe, estou muito cansada...

        —Não é da minha conta se ficou acordada a noite inteira, menina. —Jacky ruborizou e Martha retrocedeu. —Sinto muito. Minha língua solta-se com facilidade. Mas este maldito jantar de despedida dos convidados do lorde, depois de toda a animação do torneio, está acabando com meus nervos. Ande, dê-me aquela cesta de maçãs, terá que preparar bolos. E mova-se, que sozinha eu não consigo.

        —Agora mesmo.

        Wulkan apareceu nesse momento. Tinha adquirido o hábito de dar uma volta por ali várias vezes ao dia. Saudou com um parco «bom dia». E descobriu uma empada recém assada; revirou os olhos e partiu um bom pedaço, sabendo o quanto aborrecia Martha. Engoliu—a de uma só vez.

        —Mamãe —ouviu a voz de Roland — Vai castigá—lo?

        Ela pulou.

        —A quem?

        —A ele —disse o pequeno, carregado de razão, assinalando-o com um dedo. —Castigou-me quando comi a empada.

        A boa mulher ruborizou-se até a raiz dos cabelos e Jacky e Wulkan começaram a rir com vontade…

        —Suma daqui, demônio! —empurrou o menino para o pátio— Santa Mãe de Deus! Castigar o lorde por comer sua própria comida!

        Assim que voltou-se, encontrou-os se beijando.

        Outra, em seu lugar, talvez tivesse saído da cozinha às escondidas, deixando seu senhor sozinho com a moça. Ela, ao contrário, enfrentou—os com os braços abertos.

        —Não dá um descanso, milord. Agradeceria, portanto, que tome uma atitude a respeito dela —disse com integridade, obrigando ambos a prestarem atenção, um tanto sobressaltados.

Wulkan desarmou-se.

        —Quero dizer —esclareceu Martha— que se quiser Jacky nas cozinhas, bem. E se a desejar para que esquente sua cama, bem também. Mas ou um ou outro, milord, porque eu tenho muito trabalho e esta pobre menina não serve para nada com você por perto. Preciso de alguém que não durma em pé, de modo que é melhor que a leve de volta a seu leito e mande alguém que me ajude de verdade. Têm convidados, e eu não posso fazer milagres com duas mãos.

        Jacqueline afogou-se de vergonha e notou que Wulkan enrijecia-se enquanto rodeava sua cintura. Jogou—lhe um olhar de soslaio, temendo sua reação. Mas, depois da incerteza, libertou—a e encaminhou-se para a saída, murmurando um apagado:

        —Sinto muito.

        Fechou a porta com força e não ouviu-se mais nada. Jacqueline, sem aspereza, disse a Martha:

        —Mulher, como pode...?

        —Dizer—lhe umas boas? – disse num tom jocoso. —Ora, ora menina. Passa todo o tempo chamando-o de assassino e outras finezas e agora não gosta que eu diga umas coisas...

        —Acreditei que a mataria. Não viu seu rosto?

        —Claro que sim. Posso assegurar que só mostra as presas. Além disso, somente disse a verdade, e se o lorde tem algo bom, é que reconhece seus enganos.

        Jacky admirou sua integridade. Era fruto da sabedoria popular, que não se aprende nas escolas. As duas se olharam e começaram a rir, como se fossem velhas amigas.

        Aquela tarde, antes que todos se reunissem para o jantar, Gugger foi a sua procura.

        —Siga-me.

        Não disse mais nada, e Martha lamentou que a arrebatassem de novo.

        Jacqueline seguiu-o, sem trocarem uma palavra. Ao rodear o muro, encontrou—se com Wulkan. Segurava as rédeas de um cavalo, branco como a neve, excelente, com uma linda pelagem. Gugger a empurrou com delicadeza para seu amigo.

        —O que acha?

        Ela não soube o que dizer. Wulkan parecia satisfeito, e Gugger se mantinha a seu lado, na expectativa.

        —Tirou—me das cozinhas para me perguntar o que acho de um cavalo?

        —Não é somente um cavalo.

        —Já sei que não é só um cavalo, Wulkan. É um palafrén. Um cavalo que só é utilizado pela aristocracia, um animal de luxo. Acha,por acaso que não posso distinguir um burro de um exemplar como este?

        —Por que está zangada?

        —Pela alma de Judas! Martha está histérica com todo o trabalho que temos. Falta assar as codornas, encher as jarras...

        —Sentença dos infernos, Jacky! —cortou ele. —Eu gostaria de saber como diabos posso agradá—la. Se a trato como uma criada, fica zangada; se lhe dou um presente, grita comigo. E o cúmulo, até essa bruxa da Martha me passou um sermão nas cozinhas...

        —Fez isso? —exclamou Gugger.

        —Sim, fez.

        O loiro deixou cair suas costas contra o muro e começou a rir. Cobriram-lhe os olhos de lágrimas, assinalando seu amigo com um dedo.

        —Já basta, Gugger, não tem nada para fazer?

        —Não até ver o que vai dar esta loucura —conseguiu, por fim, articular.

        Wulkan estendeu as bridas para Jacqueline.

        —Quis saber que opinião tinha do cavalo, antes que o aceite —disse.

        Não podia acreditar no que tinha ouvido. Era seu o palafrén?

        O cavalo era para ela? Pelo Céu, nunca teve um animal igual!

        —É... para... mim? —gaguejou.

        —Se não o quiser, devolverei amanhã.

        —Claro que quero! — abraçou o animal. Acariciou—lhe o focinho e o lombo, e o cavalo retribuiu soprando-lhe o cabelo. Lançou—se para Wulkan, pendurando—se em seu pescoço, e ele aproveitou para beijá—la— OH, Wulkan, porque...?

        —Por que? Bom... não quero que cavalgue sobre um pangaré quando sair comigo para caçar.

        Gugger há muito tempo tinha adivinhado que Jacky era muito especial para seu amigo, e Wulkan, com aquele carisssimo presente, acabava de reconhecê—lo. Estava silencioso antes do torneio, e nada pôde descobrir sobre a repentina viagem de Gilbert de Bayard, cujo desaparecimento intrigava a todos. Certamente havia uma relação entre esta e Jacky, mas qual? Wulkan, enquanto isso, beijava à moça e ela correspondia.Afastou-se.

        Jacqueline voltou a acariciar o focinho do magnífico animal. Ainda não acreditava que lhe pertencesse.

        —É precioso! Não sabia que era costume normando dar presentes tão caros a uma amante!

        —Bruxa —abraçou—a— Não é nada usual.

        —Então, milord... —brincou— o que fiz eu para merecer semelhante amostra de afeto?

–Agrada-me na cama. —brincou— Ou quer me obrigar a dizer que nunca gostei tanto de estar com uma mulher como com você ? —brincou.

        Jacky estava ansiosa. Se Wulkan declarava aquilo tão abertamente, estava a um passo de... Mas a dúvida ainda rondava.

        —Até que se case com a mulher da casa de Lynch?

        Wulkan separou dela-se. Jacky arrependeu-se imediatamente de sua pergunta, mas precisava saber até que ponto a queria.

        A irritação de Wulkan, entretanto, era consigo mesmo. Desde que tomou uma decisão em relação à moça e enviou Gilbert com a missiva, seu estado de ânimo passava da cólera à apatia, do desalento à esperança. Temia a resposta de Ricardo... aguardava—a com ansiedade. E devia guardar silêncio até obtê—la. Não podia dizer nada, e muito menos, a ela. Amava aquela saxã brigona e orgulhosa mais que a sua própria vida, e era isso, precisamente, o que estava em jogo se Ricardo rechaçasse sua petição. No fim das contas, a segurança da Inglaterra era prioritária para o rei... embora já duvidasse que sentisse o mesmo.

        —Quem sabe —atreveu—se a dizer.

        Uma adaga cravada em seu flanco não teria ferido tanto. Maldito! Ainda pensava na possibilidade de acatar os desejos do rei. Quis esbofeteá-lo, mas se conteve. Seu avô tinha dado um prazo até que recebesse notícias de Ricardo, e ela não se renderia tão facilmente. Apuraria o tempo que restava, até o último segundo. Logo, o rei e o destino decidiriam.

        —Então agradeço o presente, milord —disse, já na defensiva— mas acredito que é melhor para todos que não o aceite. Poderiam pensar que prefere uma vulgar camponesa.

        —Jacky... —Abraçou—a, delineou seus seios, amoldando—os em suas mãos. —É meu presente para você, e não fale mais nada. Suba a meu quarto esta noite e conversaremos.

        —E quer que suba de boa vontade? —explodiu. Wulkan expandiu seu poderoso peito e tomou ar. Sua resposta voltava a feri-lo profundamente.

        —Também posso mandar que a subam amarrada pelos pés e as mãos.

        —Então, faça! Porque não penso facilitar as coisas. Não sou um lenço que se possa usar quando estiver com vontade. Nenhuma prostituta a qual deixar de lado quando tiver uma esposa!

        Wulkan a estreitou com força. Sabia há muito tempo. Ela era única. Seu orgulho o atormentava e excitava ao mesmo tempo. Era uma guerreira. E para ele, a quem as mulheres nunca negaram seus favores, desconcertava profundamente.

        —Esta procurando um castigo, Jacky.

        —Não se atreveria... —disse, enrijecendo.

        Wulkan estava irritado. Como aquela harpía imaginava que ele pudesse machucá—la? Acaso não sabia reconhecer uma brincadeira? Santa Virgem, se daria a vida por ela!

        —As saxãs são sempre tão estúpidas? —reprovou, soltando—a— Procure alguém que leve o cavalo às baias e volte para Martha; não tenho tempo para outra disputa com você. Esperam—me meus convidados.

        —Sim. Lady Clara —provocou ela.

        Wulkan esteve a um passo de replicar, mas não o fez e começou a afastar—se. Apenas uns metros à frente, voltou—se e apontou um dedo para ela.

        —Quero—a esta noite em meu quarto, Jacky. E juro que se arrependerá se me obrigar a enviar alguém para buscá-la!

        Jacqueline mostrou-lhe a língua. Uma mistura de adoração e raiva oprimia-lhe o peito. O grande presunçoso! Pensava que podia tê—la quando e como quisesse e... Bom, acaso não era verdade?, perguntou—se, animada.

        —Ali estarei, meu amado bárbaro. Ali estarei.

        Para não deixar o palafrén em mãos alheias, ela mesma o conduziu às baias e se encarregou de que cuidassem dele, argumentando com astúcia que era a última aquisição do lorde. Depois retornou a seus afazeres. Martha não estava para brincadeiras. Não respondeu a sua saudação, mas resmungava o tempo todo sobre os estragos que podia fazer um homem.

 

        Estava excitada. Pelos chifres de todos os demônios do inferno, estava mesmo! Mal   jantou pelo nó que tinha no estomago. Sentada em um banquinho, entre o marido de Martha e Roland, mordiscou um pouco de galinha, que foi difícil de engolir. Wulkan a observou todo o tempo, taciturno. Daria tudo para conhecer seus pensamentos.

        Enric adivinhou que algo andava mau, mas não sabia a causa e, mesmo que soubesse, a resposta estava em sua neta. Desejava falar com a jovem, mas uniu-se ao resto dos criados para recolher os restos do jantar, logo que este terminou. Percebeu a satisfação de Clara, ao seu lado, observando Jacqueline rebaixar—se em tarefas de serva.

        A velada não estendeu-se muito.Reinava um certo desconforto. Gugger manteve todo o tempo seu amigo sob seu olhar, sem compreender que bicho tinha mordido a ambos. Charandon, por sua vez, também olhou-o com dissimulação. Nos últimos dias parecia uma ave de rapina, atento a seus movimentos, como se procurasse algo em Wulkan que não encontrava.

        A nota agradável da noite foi dada por lady Natalie. Desafiou Clara para uma partida de gamão e ganhou três vezes seguidas. Clara zangou-se e acabou dando um tapa nas peças.

—Posso dar-lhe a revanche —convidou—a de boa fé.

        Clara interpretou como uma brincadeira, que azedou ainda mais seu humor, e retirou-se para seu quarto.

        O senhor de Lynch desculpou-se em seu nome e aproveitou para ausentar—se.

        —Amanhã será um dia longo —disse— e meus ossos já não são jovens.

        Wulkan levantou-se imediatamente, fazendo as honras de anfitrião. Rezava para que desaparecessem e pudesse encontrar—se com Jacky, de modo que aceitou, grato, a despedida de Enric.

        Robert de Charandon, captando sua impaciência, também justificou-se.

        —Seguirei seus passos, se me desculpar, Wulkan.

        —Boa noite.

        Robert deixou que Natalie passasse a frente e, no meio da escada, lançando um olhar ao lorde, que dava as últimas instruções a seus homens para que tudo estivesse preparado para o dia seguinte, quando seus convidados partissem, começou a assobiar aquela melodia que tantas vezes escutou na boca da mulher que amava. Wulkan também a ouviu.

        —Senhor... —deteve-se.

        Robert prestou atenção. Wulkan despediu de seus homens com um gesto e se aproximou.

—Essa música é muito familiar para mim.

        —Que música?

        —A que assobiava há um instante.

        Robert encolheu os ombros.

—Alguma velha canção...

        —Sei. —Wulkan procurou dissimular sua decepção. —Pensei que poderia me dizer... Esqueça, senhor. Boa noite.

        Jacqueline entrava no salão nesse momento e escutou o breve diálogo. Observou Charandon quando Wulkan deu as costas e não soube como interpretar seu olhar, uma mistura de esperança e angústia.

        Wulkan reparou nela e Jacqueline pressentiu que alguém ou algo acabava de machucá-lo. Ele indicou, com o queixo, o piso de cima e saiu para o pátio.

        Obedeceu—lhe e subiu até a antecâmara. E ali estava, aguardando que chegasse, que subisse o quanto antes, penando por cada poro de sua pele.

        Tornou—se seu dono, e tomou uma decisão. Contaria toda a verdade. Aos diabos, já não se importava que não se opusesse ao rei por ela! Ricardo decidiu por eles e acertou. Estava destinada a Wulkan e desejava ser dele. Nunca falou de amor, mas teriam tempo para isso. Ela amava pelos dois.

        Wulkan ruminou sua frustração, passeando como um louco pelo pátio de armas, até que seu mau humor passou. A musica da balada despertava algo que não conseguia puxar da memória. Não ficaria intrigado com isso; decifraria, se é que significava alguma coisa. Abandonou a vaga lembrança daquela etérea mulher loira embalando-o e concentrou-se no corpo de seda de sua ardilosa saxã.

        Alcançou o piso superior devorando os degraus e decidiu: falaria com Jacky. Diria o motivo da repentina ausência de Gilbert, E que Deus protegesse sua loucura!

        Jacqueline estava tensa porque ignorava o atual estado de espírito de Wulkan, mas relaxou quando entrou e aproximou-se dela. Estava tão atraente com a túnica que usava.... O vermelho escuro ressaltava seu cabelo e sua pele morena.

        Quando provou o néctar de sua boca, esqueceu totalmente do que queria falar sobre a carta. Afundou o rosto em seu pescoço, aspirou sua suave fragrância, mordiscou sua nuca e a levou para a cama. Jacqueline acariciou suas costas, percorreu suas nádegas e beijou-lhe o queixo. Ardiam de desejo.

        —Era esse o castigo que ameaçou me impor, milord? —brincou ela, esticando—se sobre as mantas.

        —Esqueci, bruxa —beijou—a na comissura dos lábios.

        —Então, não está zangado?

        —Não.

        —Assim livrei-me do castigo.

        Wulkan passou a ponta da língua pelo vale que formavam seus seios, e enterrou o nariz em sua morna carne. Só então apoiou-se em um cotovelo e seus olhos se tornaram escuros como a noite.

        —Nem sonhe, minha adorável guerreira.

        Não lhe deu tempo a pensar. Wulkan a aprisionou, subiu suas saias e rasgou o tecido de sua anágua. Ela tentou libertar—se, mas só conseguiu que ele a pressionasse mais contra o colchão. Segurando o tecido com os dentes, rasgou a seda em duas tiras. Antes que ela pudesse impedir, amarrou um de seus braços na cabeceira da cama. Jacqueline ficou muda por um instante e depois contorceu-se, súbitamente assustada.

        Wulkan reprimiu suas resistências e, embora se visse em dificuldades, conseguiu amarrar seu outro braço. Saltou para trás para evitar que o joelho de Jacqueline golpeasse justamente entre as pernas e sentou nos pés da cama, recuperando o fôlego. Sorria como um diabo.

        —Agora, Jacky, vou aplicar o castigo.

        —Cão normando! — gritou, lutando. —Vou gritar tão alto, Wulkan, que me escutarão até em sua maldita terra!

        —Não vai fazer nada disso, mulher— disse, com calma. E sem lhe dar tempo para mais insultos, colocou—lhe um pedaço de tecido na boca.

        Jacqueline grunhiu sob a mordaça, lançou pontapés e seus olhos violeta disparavam faíscas furiosas. De sua garganta só saíam sons fracos. Desesperava—se para gritar, mas se afogava em sua própria impotência, tentando cuspir o tecido.

        Prendendo—a pelos tornozelos, Wulkan tirou-lhe os sapatos, que atirou longe. Sentou—se sobre suas coxas e suas pernas e, com muita calma, saboreando cada passo, ergueu sua saia, descobrindo seus quadris lentamente, acariciando—a enquanto a despia. Quando chegou ao sutiã, Jacqueline estava em fogo.

        Abandonou seu corpo, que respondia a suas deliciosas carícias, arqueando—se sem nenhuma vergonha.

        Wulkan estava agora sentado sobre seus calcanhares, tão nú como ela. Tratou com atenção os dedos de seus pés, um a um, e massageou os tornozelos. Um calor abrasador estandia-se por seu ventre. Perverso abusado! Por que a amarrara? Enlouquecia para abraçá-lo, por beber de sua boca, para saborear sua pele morena.

        —Este é o castigo, pequena —disse ele, adivinhando seus íntimos pensamentos. —Não poderá me tocar até que eu permita.

        Jacqueline ergueu os quadris, puxou as amarras e moveu a cabeça de um lado para outro em sinal de negação.

        Wulkan riu.

        —Sei que me deseja, Jacky. —entreteve—se em chupar cada um de seus dedos, primeiro um pé, depois outro, e ela gemia e respirava entrecortadamente— Negue o quanto quiser, meu amor, mas não pode mentir. Seu corpo fala por você . Deseja—me, saxã! E este é seu castigo por me fazer enlouquecer.

        Com as palmas abertas, massageou—lhe as pantorrilhas, os joelhos, as coxas. Ela soluçava já sem pudor quando chegou à parte interna das coxas. Queria que a tocasse! Mas Wulkan adiou o momento, castigando—a, excitando-a, tocando cada pedacinho de sua pele, sem chegar ao centro de seu desejo. Suas mãos avançavam acariciando seu ventre e os seios.

        Jacqueline enrijecia os quadris e ofegava, mordendo o tecido que a impedia de falar, quando Wulkan apanhou os botões endurecidos de seus mamilos entre seus dedos e tocou com a língua quente o interior de seu umbigo. Desesperava-se para tocá—lo, para devolver cada carícia... Ergueu a cabeça e o olhou. Ele olhava—a por sua vez, sua língua brincando agora por seu ventre e lambendo-a, lentamente,deixando-a louca de desejo.Pequenos beijos sobre sua acetinada pele. Sem desviar seus olhos, deixou escorregar sua boca até o centro do prazer de Jacqueline. O áspero início da barba roçou seu monte de vênus, e acabou perdendo a prudência. Já nem sequer tentava soltar—se.

        Wulkan entreteve-se em seu corpo. Suas mãos acariciavam as coxas, o ventre, os seios, as nádegas. Sentia sua própria necessidade com uma pressão atroz, latente e dolorida, louco para entrar em seu quente túnel. Jacqueline retorcia-se, coberta de suor, a pele avermelhada pelo roçar do queixo dele, e Wulkan acreditou que não aguentaria... E não gritava, pedindo socorro, agora só chamava por ele. Tirou—lhe a mordaça e a beijou, e ela devorou sua boca.

        —Peça, Jacky!

        —Cão normando...! – ofegou ela.

        —Peça.

        —Jamais.

        —Implore que a possua, pequena. Não vê que o castigo está sendo, na realidade, para mim, que já não suporto um segundo mais?

        Da garganta de Jacky escapou um gorjeio de felicidade. Aquele poder era um elixir.

        —Então solte-me, Wulkan.

        —Se o fizer... dirá o que quero ouvir?

        Ali era ela a rainha; faria-o sofrer um pouco mais. Era prisioneira, mas era dona da situação. Wulkan transpirava e entre suas coxas, sua ardente virilidade, dura como o aço, clamava por liberação.

        —Não poderá saber até me soltar.

        Com um único puxão em cada braço, Wulkan desfez os nós. Afastou-se rápido, se por acaso suas unhas se vingassem do suplício, mas Jacqueline, como resposta, abraçou—se a ele, apertou—se contra ele. Com um ronronar que o deixou sem fôlego, ouviu—a murmurar:

        —Sim, Wulkan, desejo que me tome. Agora!

        Cobriu seu corpo e tocou a entrada que o esperava, palpitante e exposta, amoldando—se a ela. A tortura fundiiu-se em uma passagem úmida e quente que o aprisionou.

        Foi Jacqueline quem investiu primeiro. Foi ela quem ergueu os quadris e prendeu suas longas pernas para retê—lo. Wulkan não resistiu um segundo mais. Fundiram—se em um só, mistura de suor e bocas, de saliva e ardor. Era luta e era entrega, paraíso e perdição ao mesmo tempo. Como um só ser, chegaram ao êxtase. Sairam do mundo e voaram mais à frente.

        Exaustos e rendidos, como uma maré que acaricia a praia, abandonaram—se ao torpor, satisfeitos e sonolentos. Ela, sobre o forte peito masculino. Ele acariciando as longas mechas de seus cabelos.

        Era o momento de contar toda a verdade.

        Não houve tempo. O estrondo da porta sendo golpeada contra a parede o impediu. Wulkan, como um felino, procurou sua espada ao escutar o barulho, mas foi Gugger quem apareceu recortado na soleira, iluminado por uma tocha.

        —Estão nos atacando...!! —rugiu— Kellinword está cercado!!

 

        Os assédios eram montados em cima de prazos.

        Podiam durar semanas, meses, até mesmo anos. Mas não parecia esse o objetivo das tropas que rodeavam o castelo de Kellinword. À luz das tochas do acampamento inimigo, só viam o movimento de gente, mas ouviam o golpear dos artesãos, trabalhando metais, certamente armas de ataque.

        Vestido unicamente com calças e botas, como a maioria de seus homens, Wulkan passeou ao longo das almenas, inspecionou cada posto de vigilância e passou em revista o castelo por completo. Não era a primeira vez que preparava uma defesa, mas Kellinword abrangia muito para controlar tudo. Podiam ser atacados de tantos pontos que duvidou de sua capacidade de resposta.

        O bom tempo trouxe a guarnição completa a seus postos em um tempo recorde. Não precisando estarem vestidos com muitas roupas, atiraram os cobertores longe e tomaram suas armas. Wulkan agarrava a sua com determinação desde que saiu da cama, exigindo a Jacky que não saisse dali, sob nenhuma hipotese.

        Espiou a escuridão e perguntou:

— Sabe quem são?

        —Noirmont —repôs Gorman a suas costas. —Enviou um homem somente para dizer que nos cercavam.

        Também viu as cores de Nortich e outras que não reconheceu.

        Wulkan encarou o conde de Charandon, um passo atrás dele.

        —É seu meio—irmão! E esse filho da puta de Gofredo! O que pode dizer?

        —Emil aluga sua espada a quem melhor pagar.

        —Um mercenário! —cuspiu Wulkan.

        —Pelo qual não sou responsável! –enfrentou o conde.

        Wulkan estava furioso com tudo. Com o cerco inesperado, por não prever que podia ocorrer, pelas explicações que teria que dar a Ricardo —caso saíssem daquilo— pelas inevitáveis mortes que iriam acontecer... E agora, sobretudo, porque podiam privá—lo de Jacky.

        —Pergunto—me se deveria confiná—lo nas masmorras, senhor conde – disse Wulkan —Poderia ter a péssima idéia de ajudar seu parente de dentro da fortaleza.

        O homem ergueu-se, ofendido. Tão alto quanto Wulkan, irradiava superioridade e decisão. Sua voz retumbou sem intimidar-se.

        —Prenda-me, então! Mas Por Deus, seria um insensato. Não deve, nem pode privar-se de mim e de meus soldados!

        Wulkan engoliu seu orgulho e com um breve gesto de sua mão livre, pôs fim à questão. Considerou, em silêncio, suas opções e começou a dar instruções.

        —Não acredito que ataquem na escuridão, mas ao amanhecer devemos estar preparados.

        Robert de Charandon prestou atenção a cada ordem, assentindo em silêncio, admirando a perspicácia do jovem. Admirava Wulkan, o controle que exercia, a rapidez com que decidia e a fé que mostravam seus homens nele. Estaria orgulhoso dele se fosse... Ouviu de repente a melodia que assobiava Jacky. Ainda não podia confirmar se...

        Nesse momento, uma saravaiada de flechas caiu sobre eles. Foi dado o alarme e os soldados se mobilizaram. Robert escutou uma maldição e percebeu, imediatamente, que Wulkan tinha sido atingido. Gugger e ele se aproximaram para socorrê—lo, mas, antes que pudessem chegar, ele mesmo arrancou a flecha, blasfemando como um demônio. Gugger aproximou uma tocha da ferida, que, por sorte, não era grave.

        —Vá para dentro e tape esse buraco —disse—lhe. —Esses desgraçados não vão nos deixar dormir.

        —Foi um aviso —repôs Wulkan, apertando a ferida. O sangue escapava entre os dedos. —Não ponha mais guardas, é isso o que querem. Os mínimos. O resto, que descanse. Esperam nos encontrar cansados ao amanhecer. Ordene que todos...

        —Vá se cuidar de uma vez! Sei como proteger um feudo.

        —Vá para o inferno! —blasfemou Wulkan. Mas obedeceu e afastou-se em direção a torre.

        Robert tinha o rosto cinzento. Não tinha pronunciado nenhuma palavra, mas sua mão apertava o punho de sua espada como a uma tábua de salvação. Um suor frio o havia inundado, embora reagiu quando Gugger solicitou sua colaboração.

        —Sim, vamos —respondeu, como se estivesse bêbado. Até cambaleou um pouco.

        Jacqueline, por sua vez, vestiu—se com as roupas de Wulkan, decidida a sair dali. Queria saber o que acontecia.

        Quando ele a viu quis brincar, mas não era o momento.

        —Jesus bendito! Voltou ao disfarce?

        Jacky ia replicar, mas se conteve diante do sangue que escorria entre seus dedos e as calças. Aproximou—se, solícita.

        —O que aconteceu? —Lady Natalie apareceu.

        —Isto não tem importância. Mas lá fora temos um problema sério. É seu tio, milady, que está cercando Kellinword.

        —O tio Emil? —alterou—se a garota. —Está brincando, milord.

        —Parece que isso é uma brincadeira? —Retirou a mão da ferida.

        Clara juntou—se ao grupo, passando mal à vista do sangue, embora exigisse que Wulkan sentasse. Natalie, de costas para eles, tirava farrapos de suas anáguas, enquanto Jacky voava para as cozinhas.

        —Não é nada.

        —De qualquer forma, terá que limpar a ferida.

        Jacky retornou acompanhada de Martha e pôs mãos à obra. Não era grave, mas sangrava muito.

—Jacky, já estamos ajudando. Por que não atende os outros feridos?

        Natalie piscou com desagrado diante da ordem e, certamente, não esperava uma resposta tão contundente da saxã:

        —Se acha que pode fazer melhor, cedo o lugar.

        Clara ergueu o queixo.

        — Martha pode fazer isso.

        —Jacky é muito capaz se virar sozinha, milady —rebateu a cozinheira. —Eu irei ver se precisam de mim em outro lugar.

        Clara, uma vez mais, não encontrou respaldo, de modo que envolveu-se em seu orgulho e foi embora por onde veio. Ela era uma dama, e não ia manchar as mãos de sangue.

        Wulkan não a perdeu de vista até que desapareceu.

—Essa moça precisa de um bom castigo.

        Jacqueline passava o pano pela ferida e pressionou mais que devia.

        —Com cuidado, saxã! Ou quer acabar o que outros começaram?

        —Sinto muito, milord. O tema do castigo me deixou nervosa.

        Wulkan beijou-a brevemente nos lábios. Natalie, testemunha muda daquela ternura, pressentiu que algo lhe escapava.

        —Jacky, Por Deus, acabe de uma vez! Tenho que retornar às almenas.

        —Lady Natalie —pediu ela, sem dar importância ao pedido— Podem me dar o ungüento?

        A moça colaborou com boa vontade e percebeu a rapidez e eficácia com que desinfetava a ferida e untava-a com aquele creme que cheirava muito mal. Logo ajudou-a a enfaixar a cintura do lorde.

        Nesse momento entrou Gugger.

        —Já está medicado? Ou está na glória com esta companhia?

        Qualquer dama gosta de um elogio assim, mas as circunstâncias eram extraordinárias, e apenas deram uma leve inclinação de cabeça.

        —Sir Gugger —aproximou-se Natalie, — Lorde Wulkan diz que é meu tio quem nos sitia.

        —Ninguém a culpa por isso, senhora.

        —Onde está meu pai?

        —Lá fora. É muito bom para organizar uma defesa, e não hesitou em nos ajudar.

— Vai lutar contra seu meio—irmão?

        —Claro que vou fazê—lo, moça! —trovejou a voz de seu pai da entrada. —Atacar Kellinword neste momento é atacar o Rei Ricardo, e pelos pregos de Cristo que vou defender o que o próprio rei defenderia!

 

        Emil e Gofredo passavam em revista os preparativos. Interessaram—se pelo progresso dos artesãos e a instalação das tendas, e comandavam homens para seus postos. Noirmont estava certo de que tomariam Kellinword em pouco tempo. Tinha tudo planejado. Tinham começado a construir uma torre sobre rodas e duas galerias acopladas a ela para aproximar—se da muralha. Costumava distrair a atenção dos sitiados. Aumentou seu sorriso ladino, pensando que mataria dois pássaros com um só golpe, já que, segundo seus espiões, Robert, seu meio—irmão, continuava no castelo.

        —Quero essas escadas prontas antes da alvorada! —ameaçava. As galerias deviam suportar os homens e os disparos da artilharia. Graças às cruzadas, a construção de sistemas de assalto aperfeiçoou-se, imitando a experiência dos árabes e dos bizantinos.

        Gofredo via tomar forma a catapulta que estava sendo feita, e que era ainda um esbouço. O trabalho era feito pelos carpinteiros de Nortich, sob a direção de um professor de obras, e ao finalizar, seriam capazes de lançar grandes pedras incendiárias para o interior das muralhas de Kellinword. Não o preocupava muito ter que aproximar-se a duzentos metros das muralhas para não errar o alvo.

        Por outro lado, confeccionaram muitas flechas e lanças que serviriam para manter afastados os defensores da fortaleza, enquanto um grupo chegaria até o portão e tentaria derrubá—lo. Reconheceu que o plano de Emil era bom. Atacariam apoiados por um reduzido grupo de soldados, colocados no interior da fortaleza. Quando o maldito Wulkan percebesse, sua cabeça teria rolado sob o fio de alguma espada.

        Medardo de Lecoy envolveu-se em uma capa, mais para ocultar—se que pela temperatura extremamente agradável daquela noite. Estudou o sujeito que entrava na capela e assentiu. Aguardava aquele momento desde que Noirmont aproximou-se dele, pouco antes de terminar o torneio. Em seus ouvidos ressoaram de novo suas palavras:

        —Sua ajuda de novo, monge.

        É obvio, aceitou o trato. Durante o último mês chegou a odiar Wulkan de um modo insano, tomado por sua própria vaidade, quando pediu o priorado de Ogier, e Wulkan informou—o que não era possível. A Providência o brindava com uma nova oportunidade. Agora, devia sair das muralhas sem ser visto e falar com Emil de Noirmont, em cujo futuro vinculava o seu, uma vez que as forças de Wulkan caíssem.

        Era noite fechada e, como se os elementos da natureza se aliassem a eles, a lua ocultava-se atrás de imensas nuvens negras. Logo avistou a escolta que saiu pelo caminho e, sem trocar uma palavra, encontrou—se na tenda de Emil.

        —E bem? —perguntou o normando.

        —Pela sacristia —respondeu Medardo— Estudei tudo. Seus soldados terão que passar de um em um pela passagem; a entrada é estreita e o túnel mais estreito ainda, mas pode ser feito.

        —E o incêndio?

        —Isso está previsto, mas... está certo de que esse moço, Tigner, fará o que pedir?

        —Fará —respondeu Duby, levantando uma parte da lona.

        —Então não há mais o que falar. Amanhã, depois do amanhecer arderão os celeiros, e seus homens deverão estar preparados para atravessar a muralha. Farei—lhes um desenho.

        Emil concentrou-se no plano, assentiu satisfeito e levantou-se.

        —Isso é tudo, monge. Depois de amanhã, será o Prior

 

        Wulkan remexeu-se, um pouco incômodo pela ferida, quando Jacky aconchegou-se contra ele. Ela continuava usando as amplas roupas que tirou de sua arca. As calças ficavam largas, mas as tinha preso com uma corda e a camisa estava amarrada sobre seu estômago para evitar que abrisse. Contudo, Wulkan a achou deliciosa.

        Os dois tinham desistido de explicar-se um com o outro. Nem era o momento, nem deviam distrair—se com nada que não fosse a defesa da fortaleza.

        Jacqueline, por sua vez, também pensava. Refletia como ele; afinal, tinha vivido em um castelo.

—Pensou nos sapadores ? —perguntou.

        —Esqueci que é minha especialista em estratégia.

        —Não zombe. Sabe que os sapadores são os últimos responsáveis, quase sempre, de que as muralhas de uma fortaleza venham abaixo. Se conseguirem chegar ao pé das mesmas e colocarem fogo, amparados sob as galerias cobertas, teremos problemas muito graves.

        Ela falava e ele escutava. Estava colocando seu mundo do avesso.

        —O que propõe? —perguntou, verdadeiramente interessado.

        —Enxofre fervente —disse Jacky— Penetrará através dos troncos das galerias. Depois bolas de fogo. Acabaremos com eles.

        —Temos que reservar o enxofre para os que tentarem escalar o muro.

        —Podemos utilizar a palha.

        —A palha? —acomodou—se sobre um cotovelo. — Explique-se.

        —Bolas de palha em fogo, ligeiramente molhadas em azeite. Com poucos homens conseguirá deter os que tentarem escalar os muros, e esses arrastarão muitos outros em sua queda. Assim economizaremos água fervendo, azeite e enxofre.

        —Jesus misericordioso!

        —Não parece boa idéia?

        —O que me pergunto é como não me ocorreu fazer isso.

        Jacqueline mostrou um ar de superioridade e deu-lhe um beijo no peito.

        —Deve ser porque os normandos costumam pensar em termos de ataque, mas lembre-se que os saxões tiveram que aprender a defender-se durante muito tempo. Somos verdadeiros peritos em defesa, meu senhor.

        —E tem mais truques?

        As mãos de Jacqueline deslizaram até a virilha de Wulkan.

        —Muitos mais, normando. Muitos mais.

        Lá fora, os vigias passavam uns aos outros a mesma mensagem: «Sem novidades.»

 

        Ao amanhecer, inspecionou uma vez mais todos e cada um dos postos de defesa e vigilância. Os ganchos de ferro estavam preparados, e os líquidos, em ebulição nos caldeirões. O antigo senhor do castelo também se preparou para um possível ataque, e nos porões tinha uma grande quantidade de molas de suspensão e catapultas. Para os sitiados, era vital privar o inimigo de armas de ataque. Mas havia quatro coisas que, sem dúvida, conseguiriam derrubar Kellinword: a fome, o cansaço, as epidemias ou a traição. Contra a primeira estavam preparados, embora era certo que, diante do ataque de surpresa, muitos aldeões não puderam retornar a seus lares, mas os celeiros transbordavam e os animais estavam prontos para o abate. Teriam que pensar, de qualquer forma, se por acaso o assédio durasse muito tempo. Contra o cansaço não se lutava; ou se vencia com a ação ou arrastava-se. Nisso estavam de acordo Wulkan e seus soldados. Para evitar eventuais epidêmias, Gorman tinha montado, logo na alvorada, uma equipe que se dedicaria à busca e queima de qualquer animal ou ave morta ou com sintomas de doença, se por acaso o inimigo recorresse a esta estratégia.

        E restava a traição. Wulkan sabia estar rodeado de homens leais, tanto soldados como aldeões, dos quais acreditava ter ganhado a confiança, mas não podia pôr a mão no fogo pelos convidados e seus acompanhantes: os Lynch e os Charandon. Deveria vigiá-los de perto.

        Gugger aproximou-se, desperto. Apesar do sítio, pôde dormir umas duas horas.

        —Para que diabos mandou preparar bolas de palha?

        Wulkan explicou e o loiro permaneceu pensativo durante uns instantes.

        —Essa moça é uma caixa de surpresas! Sabe o que acho? Que, na realidade, Jacky não é quem diz ser.

        —A que se refere?

        —Não sei. Com sinceridade, Wulkan, não sei. Mas jogaria o pagamento de um ano que essa saxã guarda mais surpresas na manga.

        —Você e suas malditas apostas.

        —Por certo, ainda me deve...

        —Vá para o inferno, Gugger!

        Robert e Enric tornaram-se bons amigos durante aqueles dias, apesar de suas diferenças políticas. E apesar também da idade, pareciam se dar bem naquele ambiente de ataque. A recente competição e o fato de serem hóspedes do mesmo senhor colaborou para isso. De qualquer forma, o conde pressentia que Lynch escondia algo. Não o preocupava muito seus segredos, porque ele tinha seu próprio mistério para desvendar: Wulkan de Kellinword.

        Natalie pressentiu sua inquietação, mas a atribuiu à ameaça que pendia sobre todos eles.

        A primeira saravaiada de pedras, batendo com estrondo contra as muralhas colocou-os em guarda. Foi dado o alarme e ordens eram gritadas. As catapultas inimigas com braços gigantes disparavam blocos enormes, um dos quais chocou-se contra a primeira torre, derrubando parte de sua estrutura e atingindo dois homens, um deles ferido com gravidade. Como resposta, Kellinword repeliu o ataque, cujo efeito visível foi uma tenda inimiga esmagada.

        Os ataques, embora esporádicos, mantiveram—se durante toda aquela longa jornada. Inclusive houve uma tentativa de demolição do portão da entrada da fortaleza. Os soldados de Noirmont usaram um aríete pesado, construído sem dúvida rapidamente e rematado por uma grossa ponta de ferro de proporções consideráveis. Caldeirões ferventes cairam sobre eles e tiveram que retirar—se rápida e desorganizadamente. A ousadia custou-lhes seis vidas.

        —Eu não gosto disso —comentou Wulkan, acotovelado na muralha.

        —Eu também não —concedeu Montauband.

        —Enquanto estiverem atacando com tão pouca vontade, não deveríamos nos preocupar —argumentou Gorman.

        —Isso, precisamente, é o que me deixa intrigado, meu amigo. Parecem querer nos distrair.

—Realmente —interveio Enric, que aproximou-se do grupo. —Estão brincando conosco. Não entendo o que pretendem.

        —Se soubéssemos, não ficariamos de braços cruzados. Por Deus que eu adoraria que atacassem de verdade, poder abrir as portas e enfrentá-los em campo aberto.

        —Talvez estejam esperando isso, que fiquemos nervosos, cansar-nos e nos fazer sair. Parece-me que são menos de duzentos, mas quem pode dizer que não há mais, aguardando escondidos no bosque?

Passos suaves puseram fim a conversa, e os quatro homens voltaram-se como um só. —Quer o posto de tenente, Jacky?

Ela saudou com doçura e o normando suavizou-se.

—Fora das muralhas, poderia se ferir!

        —Aqui está melhor, milord. Nas cozinhas faz muito calor.

        —Mulher, isto não é uma brincadeira. Não pode se comportar como qualquer outra moça nestas circunstâncias?

        Ela encolheu os ombros.

        —Já vivi confrontos deste tipo e, embora me preocupe, posso controlar o medo. E entendo um pouco de defesa.

        —Este não é lugar para uma mulher, assim volte de onde veio!

        —Vá! —Seu grito era um bálsamo para a tensão— Parece que milord deseja me proteger de qualquer perigo.

Enric não acreditava no que via e ouvia. Ela não se acovardava, era engraçado. Arriscava muito, e o humor do normando poderia voltar—se contra ela a qualquer momento.

—Devo pensar que lamentaria minha perda, meu senhor?

        —Pelos dentes do Diabo, sim! —gritou ele. —Desça agora mesmo das muralhas ou mando prendê—la Jacky.

        Ela sorriu com malícia, mas deu-lhes as costas seguindo suas ordens e Wulkan deu uma palmada com vontade em seu traseiro, tão graciosamente metido em calções masculinos. Quando voltou a debruçar—se no muro, o silêncio era completo.

        Enric permaneceu perplexo, pensando rápido. Se ele se mostrava tão benevolente e ela tão atrevida, significava que os unia uma intimidade que ele desconhecia.

        Durante toda a tarde estendeu-se uma estranha calma sobre Kellinword, só quebrada por esporádicas ameaças de ataque. Era como se esperassem algo. Dentro da fortaleza, não havia dúvidas; todos sabiam que não se iniciava um sítio para depois abandoná-lo.

        Jacqueline; como os outros, estava convencida de que atacariam logo. A pergunta era por que esperavam?, O que esperavam? No castelo havia forças suficientes para sair e lutar cara a cara, mas deviam ser prevenidos e esperar, porque, com toda certeza, seus inimigos escondiam uma surpresa. Sair, sem mais nem menos, podia ser um desastre. Pressentia que tramavam algo importante. Por isso procurou Bertrán.

        O ruivo a escutou atentamente; movia a cabeça, assentindo.

        —Há um modo, sim. Por trás da cozinha.

        —Pelo pátio?

        —Sim. Depois dos arbustos há uma porta escondida. Descobri por acaso, e sempre está fechada. Ao que parece, há muito tempo utilizavam para o abastecimento das cozinhas. Dá diretamente no bosque, mas se vê da almena sul. Assim que cruzar o pátio, poderá vê-la.

        —Acha que poderia abrir essa porta? O jovem encolheu os ombros.

—Suponho que sim.

        —Então, faça. O guarda não dará por sua falta e eu pego os sacos no pátio.

– Contou ao lorde?

        —Acharia que estou louca!

        Bertrán inquietava-se. Começava a suar diante da perspectiva de ter que abandonar a segurança do castelo.

—Eu não gosto disso, milady.

        —Pense, pelo amor de Deus! —queixou—se ela. —Com quantos soldados contamos? Os de Wulkan, alguns do conde de Charandon e quinze de meu avô.

—Também podemos contar com os escudeiros.

        —É obvio! Mas não estão preparados. Não para enfrentar esses mercenários. Deu uma olhada lá fora? Os soldados de Nortich e Noirmont são homens de armas. Sei o que digo, Bertrán. E devem ter outros escondidos no bosque. É o que eu faria.

        —Gugger disse que somos suficientes para enfrentá-los em campo aberto.

        —Sim, você disse bem, em campo aberto, e sempre que não houver mais nas imediações. Estamos em desvantagem. E asseguro a você que um punhado de escudeiros, pedreiros e mercadores serão mais uma preocupação do que uma ajuda, quando começar o ataque.

        —Mas o castelo está bem protegido.

        —E poderemos defendê—lo durante dias ou meses, é verdade. Se o aríete não derrubar a porta e alcançarem a entrada. Então, não haverá nada que fazer.

        Bertrán respirou fundo. Não entendia nada de defesa militar... E Jacqueline parecia tão segura! Ela inspirava-lhe uma grande confiança. Mas também sentia-se ridículo: ele não estava à altura de uma moça.

        —Pensarão que fugi como um covarde, milady.

        —Que pensem o que quiserem! Se minhas previsões estiverem certas e chegar a tempo, Bertrán, Wulkan saberá recompensá-lo, estou certa.

        —Não procuro recompensas, senhora, unicamente cumprir com meu dever.

        —Cumpra—o, então. Saia e faça o que digo. Caberdin está a algumas horas de marcha.

        Acabou dando—se por vencido. Discutir com Jacky era uma causa perdida; sempre tinha raciocínios muito lógicos. Faria o que pedia e que Deus ajudasse a todos!

        —Está bem. Irei.

        Ao entardecer, Bertrán e Jacqueline começaram a conduzir sacos para o pátio atrás das cozinhas. De uma das torres, o vigia observou-os por um momento e logo se desinteressou deles.

        Tiveram que contar com a colaboração de Martha, de quem foi impossível esconder o que planejavam. Primeiro os repreendeu, mas uma vez que a convenceram, apoiou—lhes e jurou guardar silêncio.

        Enquanto Jacky continuava empilhando sacos contra o muro do pátio, Bertrán trabalhava na oxidada fechadura. O menino amaldiçoava baixinho, em meio a escuridão, até que por fim escutou um estalo. Instantes depois, com um bufar de alivio, o escudeiro escapuliu amparado pela noite, com o beijo de Jacqueline fazendo cócegas em sua bochecha.

        Ela permaneceu ali, vendo-o correr, agachado, até alcançar a segurança do bosque. Logo, fechou a porta e empilhou mais sacos contra ela, com o suor correndo pelas costas.

        —Acha que conseguirá?

        A voz de Martha a assustou; estava tensa como uma corda.

        —Diabos! Não a escutei!

        A cozinheira deu uma ajuda com os sacos e disse:

—Isto é uma loucura. Se o descobrirem, vão matá-lo.

        —Bertrán é treinado. Chegará a Caberdin.

        —Ali não há nada além de lavradores.

        —Mas é um povoado grande, e sabe Deus que Kellinword precisa agora de todos que puderem empunhar uma arma.

 

        Embora não deixassem perceber, Wulkan estava preocupado. Há horas havia chegado, sem saber, à mesma conclusão que Jacqueline. E o pressentimento de que algo incontrolável estava para acontecer não permitiu-lhe descansar, por mais que os homens vigiassem a torre, a entrada e o passeio de ronda.

        Jacqueline aconchegou-se contra seu corpo quente e acariciou-lhe as costelas.

        —Precisa descansar. Certamente atacarão ao amanhecer, e está há dois dias sem dormir.

        —Durma você, eu não posso. Sairei para ver como estão as coisas.

        Levantou—se. Ela não pôde deixar de devorá-lo com o olhar, enquanto vestia as calças e uma camisa que deixou aberta.

        —Fique comigo —rogou. Tinha medo do que podia acontecer na manhã seguinte, mas não diria.

        Wulkan sorriu, mas negou com a cabeça.

        —Neste momento, bruxinha, preciso de um passeio pelas muralhas. Durma, voltarei logo.

        Pegou sua espada, aproximou—se da cama, beijou—lhe a ponta do nariz e saiu. Quando amanheceu, ainda não tinha retornado.

        Jacky levantou-se antes que tocassem a prima. Todos seus músculos protestaram, depois do duro trabalho do dia anterior, carregando pedras para as catapultas, empilhando flechas e reunindo bolas de palha. Devia ter dormido como uma pedra, mas a preocupação com Bertrán e a ausência de Wulkan no leito a mantiveram acordada.

        Logo que tocou o chão, o enjôo a dobrou em duas. Amaldiçoando mentalmente, utilizou a bacia e, coberta de suor, sentou—se na beira da cama. Pouco a pouco, foi passando, deixando—a esgotada. Por sorte, uma vez que a indisposição passava, recuperava—se totalmente e o mal—estar não voltava naquele dia.

        Os gritos lá fora a sobressaltaram. Rapida, aproximou—se da janela.

        Fogo!

        Sentiu o coração apertar. A pior coisa que podia acontecer! Que Deus amparasse Kellinword!

        Vestiu—se depressa e desceu o mais rápido que pôde, tropeçando em sua amalucada corrida com criados que subiam, tão assustados como ela, chegando ao pátio sem fôlego. Ali, os gritos subiam de tom e encontrou-se em meio aos homens que se preparavam, carregados de cubos de água. Os celeiros ardiam e o vento espalhava as chamas, transformando tudo em um inferno. A espada do medo alojou-se em sua garganta: seus inimigos anulavam as defesas. Sem dúvida, seria impossível resistir ao ataque.

        —O que houve? —perguntou a Roy, o marido de Martha.

        —Ninguém sabe como aconteceu, Jacky. —O pânico refletia-se em seu rosto. —Não fique parada! Busque um cubo!

        Correu às cozinhas, mas os cubos e as panelas haviam desaparecido. Avistou Roland, escondido sob uma das largas mesas. Teve que tirá—lo, puxando-o porque o pirralho estava aterrorizado, mas conseguiu tomá—lo nos braços e levá—lo dali.

        O salão estava transformando-se em um hospital de campanha, e pôde ver lady Natalie, mal vestida, ajudando no que podia. Atravessou o cômodo e pôs Roland nos braços dela.

        —Cuide dele —pediu. E desapareceu no exterior.

        Jogavam os baldes de água contra as chamas para salvar o que pudessem, e o jovem Tigner aproveitou para escapulir até a capela. Dentro do sagrado recinto, Medardo rezava, ajoelhado diante do altar. Quando começou o incêndio, alguns tinham ido à missa, mas ele insistiu imediatamente que prestassem ajuda lá fora, e a capela esvaziou-se.

        —Eu rogarei por todos — disse.

        Tigner aproximou-se do monge, retorcendo as mãos e aguardou que finalizasse suas preces, lançando frenéticos olhares para a entrada. Medardo fez o sinal da cruz, levantou—se e fez gestos para que o seguisse até a sacristia. Sem uma palavra, entraram e fechou a porta por dentro.

        —Já fiz meu trabalho —informou o rapaz.

        —Alguém o viu entrar aqui?

        —Se o tivessem feito, estaria pendurando em uma corda.

        O monge assentiu. Desagradava—lhe profundamente ter que servir—se daquele menino, mas ele estava muito gordo para atravessar o túnel, como bem advertiu Noirmont. Felizmente, aquele rapaz respondeu tal como disse o normando, cumprindo fielmente suas instruções. Estava claro que o tinham apanhado.

        —Seu pai ficará livre —assegurou.

        Tigner perdeu a pouca integridade que restava e começou a soluçar como um menino. Medardo deu—lhe uma sonora bofetada.

        —Basta de choradeiras de mulher! Adiante! —Empurrou—lhe.

        Este obedeceu, secando as lágrimas. A consciência doía-lhe: ele não era um traidor e sabia que incendiar os celeiros era uma traição, mas não lhe deixaram escolha. Tinha que salvar seu pai, ao qual tinham mantido preso para obrigá-lo a participar daquela conspiração. Confiou em Duby e agora pagava muito caro por sua estupidez. Era a traição ou seu pai, e não pensou duas vezes.

        Medardo apontou a grande cruz de madeira que cobria quase por completo uma das paredes. Empurraram—na os dois e, diante do assombrado Tigner, apareceu um buraco no muro.

        —Entre, vá até o final e abra a portinha que encontrará.

        Sem coragem para negar, o jovem agachou-se e entrou na estreita passagem. As paredes pingavam com umidade e estavam impregnadas de uma substância viscosa. Às cegas, por aquele túnel escuro como a boca de um lobo, engatinhando, avançou alguns metros. Uma curva e outro lance reto. Apesar da umidade, suava copiosamente, tomado por uma mistura de medo, repugnância e esperança para escapar dali. Depois de alguns minutos que pareceram eternos, quando já pensava que nunca sairia do túnel, chocou—se com algo. Assustado como estava,mal reagiu, e percebeu que tinha chegado ao seu destino. Tocou a rugosa madeira até sentir uma trava. Continuou tocando e descobriu uma argola.

        —Virgem Santa, ajude-me... —choramingou, empurrando com força.

        Do outro lado pareceu escutar algo e empurrou com mais força. A maldita porta não cedia, obstruída certamente pelos anos e desesperou-se. Logo, ouviu como se alguém empurrasse do exterior. Sentado no chão, com os pés, utilizou toda sua energia até que cedeu. O ar alagou o túnel e Tigner encheu seus pulmões de oxigênio limpo. Agachado, queixando-se como um animal ferido, alcançou a saída.

        Nem sequer soube que morria. Não lhe deram tempo. Seguraram-no pelo cabelo, puxaram sua cabeça para trás e o fio de uma adaga cortou sua garganta.

        O soldado que acabou com sua vida, simulou o canto da coruja. Como almas penadas, amparados pelas sombras, os homens de Noirmont avançaram, arrastando-se. A escassa luz era sua cúmplice, e o vento, balançando os ramos das árvores, mascarava o ligeiro tinir das armas. Ass escuras nuvens que continuavam ameaçando uma tormenta e ocultavam a lua, eram seus aliados.

        Foram entrando um a um na estreita passagem.

        Eram cinqüenta homens bem treinados. Suas instruções eram muito claras: seis deles na ponte levadiça e outros na porta; o resto distribuiria-se entre a entrada, o passeio de ronda e a torre. Emil e Gofredo entrariam no castelo antes que o sol estivesse alto.

        O incêndio ameaçava, estendendo—se às ruas de comércio. As faíscas revoavam e caiam nos telhados, gerando novos focos e propagando as chamas. Teriam que criar duas frentes para barrar o fogo.

De repente, o ar silenciou-se e o ensurdecedor rugido de um trovão fez retumbar cada pedra do castelo. Um relâmpago iluminou a grande. Como um presente do céu, a chuva caiu na terra. Os gritos de júbilo percorreram a fortaleza. A cortina de água começava a apagar as chamas.

        Mas a essas vozes somaram-se as de alarme dos vigias: os intrusos acabavam de ser descobertos.

        O fogo e as tochas apagaram-se sob o rugido da chuva, mas instalou-se o pânico. A palidez do amanhecer e os relâmpagos envolveram Kellinword; as silhuetas pareciam fantasmas.

        Jacqueline foi uma das primeiras pessoas a afastar-se do incêndio que a chuva transformava em cinzas e correu para a torre. Continuava sem encontrar Wulkan, mas a esperança de que nada de ruim tinha acontecido deu-lhe forças. Os homens lutavam por todos os lados, e a mistura de gritos de dor e triunfo compunham uma cacofonia delirante. Colou-se ao muro, evitando os que combatiam, afogando soluços diante dos corpos de alguns criados, atravessados pelas armas inimigas.

        Saltou para trás quando o corpo de um homem veio por cima dela, a garganta cortada de lado a lado, jorrando sangue. O chiado das espadas cravava-se em seus ouvidos e, enlouquecida, temeu também pela vida de seu avô, que já não era jovem para enfrentar à horda sanguinária que os atacava. Por um momento, com o cadáver a seus pés, o medo a paralisou. A poucos metros, as figuras fantasmagóricas dos soldados lutavam perto do portão e do acesso à ponte levadiça. Ela sabia que se conseguissem baixá—la, tudo estaria perdido.

        Com um ar de de angústia, olhou o morto e ouviu os lamentos das mulheres que, apavoradas, corriam para refugiarem—se no interior das casas ou na capela. As blasfêmias dos soldados, o incessante rugir da chuva golpeando o pavimento... Agachou—se e tomou a espada. Pesava muito para ela, mas sentiu-se reconfortada ao segurá—la. Se tinha que morrer, ao menos o faria lutando.

        Pensava para onde ir, quando uma sombra projetou-se frente a ela. Por instinto, usando toda a sua força, impunhou a pesada espada com as duas mãos, justo no momento em que um braço armado se preparava para dar um golpe mortal. Escutou o rasgar da carne e uma exclamação, mais de assombro que de dor. Jacky afogou um grito de espanto, o amargo rosto de seu inimigo muito perto do dela, os olhos abertos e opacos. Sua espada tinha entrado no meio do peito. Gotejava—lhe sangue pela comissura dos lábios. Retrocedeu, cheia de pavor, soltando a arma, e viu o homem dobrar as pernas e cair no chão. A espada o atravessou de lado a lado, saindo pelas costas.

        Deu—lhe uma vontade incontrolável de vomitar. Gerava uma vida e acabava de ceifar outra. Deixou—se cair contra o muro, prisioneira de seus sentimentos, mas a culpa diluiu-se logo que escutou os pedidos de socorro. Os soldados de Wulkan, de Charandon e os de seu avô batalhavam, defendendo a praça e seus habitantes, e ela não podia perder tempo com lamentações. Deu um último olhar ao homem que acabava de matar, engoliu a bílis e agachou-se para pegar uma espada que o mercenário levava no cinto. Pesou—a, agradecendo que fosse leve, muito mais adequada para ela. Os ensinamentos de Gilbert de Bayard deveriam dar frutos nesse momento.

        Um grito angustiado colocou-a em alerta e, esquivando-se dos que lutavam na entrada da torre, cruzou a passarela e entrou no salão.

        Um homem vestido de negro arrastava Natalie pelos cabelo. Jacqueline sentiu o estômago revolver, pensando na sorte das mulheres se o castelo caísse em mãos inimigas. Não viu Roland e o coração doeu, temendo que o tivessem assassinado. Clara jazia em um canto, não soube se morta ou desmaiada. Os cavaletes que acomodavam as mesas estavam no chão, os candelabros espalhados pelo chão. O salão era um caos. Perto da saída que dava às cozinhas, um criado tinha sido morto a facadas, possivelmente tentando defender as mulheres.

        Não era momento de pensar. Só de agir. Saltou sobre o soldado que arrastava Natalie e agarrou-o pela blusa. Ele voltou-se e ela afundou a espada em seu estômago. O homem paralisou-se por um segundo e retrocedeu levemente, mas soltou seu punho, e a golpeou em um ombro, lançando—a no chão. A dor aturdiu-a e bateu no canto de um cavalete. Viu como o mercenário arrancava a espada do corpo e um jorro de sangue inundou sua roupa. Avançou para ela, esquecendo de Natalie.

        Antes que a alcançasse, algo o golpeou na cabeça e parou, bramando como um touro enfurecido. Natalie, pálida como um cadáver, segurava entre suas mãos um pesado candelabro, seus olhos arregalados pelo pânico. Jacky reagiu como uma loba. Rastejou pelo chão até a espada, ergueu—se e a cravou duas vezes em seus rins. O corpo do soldado desabou.

        Natalie tremia ao soltar sua improvisada arma.

        —Ia matar-me... —soluçou.

        Jacqueline recuperou o controle de seus nervos, lançando um olhar de desprezo a sua vítima.

        —É o segundo —disse com voz neutra, observando como a mancha de sangue ia se estendendo sobre o chão. —O primeiro não quis matar, mas...

        Natalie sacudiu-a pelos ombros para fazê-la reagir.

        —Tem que tirar lady Clara daqui!

        —Está ferida?

        —Não sei... Não acredito...

        —E Roland?

        —Debaixo da minha cama.

        Jacky passou a manga pelos olhos, suas lágrimas escorriam por suas bochechas. Inspirou para ter coragem e correu escada acima, em busca do menino.

 

        Tinham conseguido chegar à porta e eliminar duas das travas que a protegiam. A entrada estava cedendo aos golpes do aríete.

        Wulkan deu uma olhada rápida a suas costas para ver os que lutavam perto da torre. Seus homens estavam longe de controlar a situação, porque o inimigo tentaria chegar à torre de vigia, a barbacana, ao passeio de ronda... Muitas frentes para proteger.

        —As carroças! —gritou, fazendo—se ouvir por cima do fragor da tormenta e da luta.

        Uma chuva de pedras voou por cima do muro, alcançando vários dos homens, levando-os como uma avalanche, e uma chuva de flechas obrigou-os a esconder—se junto ao muro, impotentes diante dos que caíam mortos ou feridos debaixo das afiadas pontas. Por todos os lados, escutavam-se grunhidos de morte. O aroma adocicado do sangue misturava-se com o fedor da fumaça dos celeiros, tornando insuportável respirar...

        Apesar da tensão da luta, não deixava de perguntar—se pela sorte de Jacky, e ajudou a colocar carroças tapando a porta, tentando frear os golpes do aríete. A madeira rangia mais e mais, e a única trava ilesa partiu-se em duas.As carroças voaram, despedaçadas e a porta cedeu, deixando uma entrada exposta aos invasores. Gritos de vitória de seus inimigos o ensurdeceram, e agora, sem possibilidade de defender—se, afastou-se para o lado: estavam perdendo o passeio de ronda.

        Wulkan e Gugger, que foi em seu socorro, lutavam desesperadamente, tentando manter suas posições. Suando, com o cabelo colado ao rosto, Wulkan ondulava seu braço armado como uma máquina de guerra, lançando golpes, abatendo inimigos. A suas costas, um mercenário preparava-se para dar-lhe um golpe mortal, mas ele não podia atacar e defender-se ao mesmo tempo. Em um milésimo de segundo, viu a morte frente a frente. Kellinword estava se rendendo a uma força muito superior, e ele morreria sem voltar a ver a sua geniosa saxã.

        Mas a morte passou ao lado, no último instante.

        Com um grito arrepiante, uma enorme espada colocou-se em seu caminho desfigurando o rosto do mercenário, que exalou um ofego agoniado e caiu.

        Robert de Charandon o olhava, segurando a espada com as duas mãos,ensopado como ele mesmo dos pés a cabeça.

        —Retorne à torre e proteja às mulheres! —gritou Wulkan.

        O conde negou com a cabeça enquanto, imitando Wulkan, derrubava de novo os inimigos que iam penetrando pela fresta da porta arrebentada.

        —Meu lugar está ao lado de meu filho! —gritou por sua vez, brandindo a espada com mestria e o ímpeto de um jovem atiçado pela luta.

        Wulkan inclinou o corpo para esquivar-se do fio de uma espada e cerceou o braço que a empunhava. Por um instante, aquelas palavras repicaram em seu cérebro.

        O aríete conseguiu destroçar o que restava da porta e já não puderam conter a avalanche de inimigos. Ao ceder a madeira arrastou um das carroças, passando por cima de um soldado. Wulkan angustiou-se, mas nada pôde fazer por ele; escapava-lhe a vida profusamente, com sangue jorrando pela boca, arrebentado por dentro. O carro, carregado com troncos de madeira, estatelou-se e não se moveu com a rapidez necessária para evitar que um daqueles troncos golpeasse seu ombro, fazendo—o cair.

        A dor do impacto nublou sua visão, embora conseguisse rolar sobre o barro quando o fio de uma espada apontava para sua cabeça. A arma golpeou o chão, ao lado de seu pescoço, e ele lançou a perna direita a frente, alcançando seu oponente nos testículo. Entre brumas de dor, cego pela chuva e o barro, mal distinguiu Robert rodeando o pescoço de seu inimigo para degolá-lo. O soldado ficou inerte e o conde lançou o corpo para o lado. Estendeu seu braço e Wulkan o aceitou para erguer—se. Sacudiu a cabeça para clarear a mente, enquanto uma pontada de dor transpassava seu ombro.

        —Não vou bancar sua babá, filhote! —ouviu Charandon dizer— Vamos, mova-se! Procurei—o durante vinte e cinco anos e não gostaria de perdê—lo agora!

        Possivelmente teria sentido a mesma angústia se tivesse sido alcançado por uma lança. Foi um golpe sem aviso. Atônito, não reagiu até que Robert tirou uma corrente do pescoço e a lançou. Mecanicamente, Wulkan a apanhou no ar e olhou o pendente. Um medalhão com um falcão gravado.

        As pernas negaram-se a responder, mas um grito de advertência o obrigou a reagir diante do ataque que caiu sobre eles.

        —Como tem este medalhão? —perguntou saltando, arremetendo contra dois mercenários, obrigando-os a retroceder.

        —Meu filho o usava quando desapareceu! —respondeu o conde, que continuava lutando, espada na mão.

        —Deus…! —gemeu Wulkan.

        Tinha que ser nesse momento? Lamentou sua sorte. Vinte e cinco anos tentando saber quem era, se tinha família em alguma parte, se alguma vez alguém se importou com ele. Vinte e cinco anos para encontrar seu pai justamente quando todos iam morrer!

        A fúria cega golpeou sua mente e esta ordenou a seus músculos mover—se. Atacou com ira, sem importar se ia viver ou morrer, descarregando a bílis, o rancor e a tristeza por si mesmo, armazenada durante todos aqueles anos. Já não restava espaço para o esgotamento e a dor.

        A morna luz do amanhecer facilitava a briga para os dois bandos. Já não lutavam na escuridão. Agora começavam a ver os rostos de dor ou surpresa, de mutilação ou morte. Tinham perdido a conta do tempo que estavam lutando, e o faziam como autômatos, com os músculos duros e doloridos e a mente embotada. Pisoteavam atoleiros de sangue e barro. Uns e outros escorregavam, tropeçando e caindo, resistindo ao máximo ou morrendo.

        Tudo parecia inútil. Continuavam matando, mas estavam destinados a perder aquela batalha. Wulkan via cair os seus e Gugger defendendo—se, a alguns passos, quase cego por um corte na fronte.

        E ali, lutando com toda a coragem que restava, ombro a ombro com um pai recém encontrado, Wulkan lembrou-se do rosto de Jacky, que o impulsionou a resistir um pouco mais, quando começava a desmaiar. A qualquer momento as forças o abandonariam e o matariam. Arderam seus olhos pensando que não poderia voltar a vê—la, que deixaria este mundo sem abraçar de novo a calidez de seu corpo. A idéia de morrer sem conhecer seu futuro filho, enlouqueceu—o de ira. Encontrava seu pai e perdia tudo o que mais queria. Os desígnios do Altíssimo eram, às vezes, mais cruéis que o fio de uma espada.

        Justamente nesse instante, quando seus pensamentos eram mais negros, escutou, por cima de suas cabeças, uma gritaria que se expandia mais e mais, sobrepondo—se ao fragor da batalha. Wulkan livrou-se de um inimigo e dirigiu-se, aos tropeções, para a saida.

        Já não restava fôlego. Só as lágrimas de agradecimento que se misturaram com a incansável chuva que continuava castigando—os.

        Saindo do bosque, como um sonho, um enorme grupo de homens e mulheres, armados com paus, enxadas e foices, corria atrás das hostes a cavalo, à frente de um homem que os guiava, com estandartes de cor vermelha com leões dourados. Teria reconhecido aquele homem na mais escura das noites, mas o amanhecer mostrou sua cabeleira dourada. O coração de Wulkan transbordou de esperança e ergueu uma prece.

        Ricardo Coração de Leão brandía sua espada e incitava os soldados e a multidão para a ponte levadiça. Gilbert de Bayard cavalgava ao seu lado. O monarca ergueu-se em sua sela e exortou os seus sobre alguma coisa que Wulkan não conseguiu ouvir, mas a seu gesto ergueram-se gritos para o céu da Inglaterra, gritos que nasciam em Kellinword.

        Wulkan deixou-se cair contra o muro e assim recebeu seu rei, um cavaleiro do Apocalipse que passou ao seu lado e ao qual mal pôde saudar.

       

        Dois dias depois, a calma retornou ao castelo.

        Depois do sangue e da violência, todos estancaram suas feridas e enterraram os mortos. Houve muitas perdas, mas, por sorte, muito menos do que Wulkan imaginava.

        Jacqueline trabalhava nos ferimentos de seu avô, Enric, um exemplo de bravura apesar de sua idade.

        Para sua parte, lady Natalie cuidava de Gugger, que se queixava como um menino pequeno: uma vendagem cobria-lhe a fronte e parte de um olho. Encontraram—se ao finalizar a batalha, e ela lançou-se em seu pescoço, soluçando por ter sobrevivido. Ali mesmo se beijaram sem nenhum pudor, e Gugger, sem hesitar, aproximou—se do conde com a mão na cintura da moça e pediu sua mão.

        —Que Deus os proteja, filho— foi sua resposta.

       O grande salão foi limpo e organizado, e os criados iam e vinham preparando o festim. Nas cozinhas se assavam leitões e cordeiros e se enchiam as jarras de vinho e cerveja. Wulkan deu instruções para que no centro da praça se sacrificassem algumas cabeças de gado, frangos e patos, e que servissem barris de cerveja. Toda Kellinword devia desfrutar da vitória.

        Por outro lado, Wulkan ouvia as explicações de Ricardo e Gilbert, sem acreditar em sua boa sorte.

—Encontramos Bertrán à frente dos camponeses.

        —Estava esgotado —explicou Bayard— depois de correr toda a noite para chegar a Caberdin, seguindo as instruções de Jacky.

        —Estou vendo, Wulkan,que ganhou a confiança de seus vassalos —disse o rei. —E sua lealdade. As pessoas dessa aldeia seguiram o menino sem titubear. O que fez para conseguir?

        —Pouca coisa —sorriu Wulkan, sobressaltado. —Baixar os impostos e dar de presente a moenda.

        Ricardo assentiu e o congratulou. Esses eram os homens que faziam falta na nova Inglaterra: capazes de unir suas legítimas aspirações com as necessidades do povo. Com um povo agradecido pode-se fazer milagres, disse a si mesmo. Essa seria sua política.

        Sentando-se, Wulkan pediu a seu pai que se colocasse ao seu lado. Ainda tinham questões pendentes. Fizeram algumas confidências. Além disso, Ricardo interessou-se pelas história de seu amigo, o conde, que não esperava encontrar na batalha. Robert informou ao rei de sua viagem e a Wulkan como seguiu as poucas pistas que restaram depois do desaparecimento de seu herdeiro e as causas que o levaram a reconhecê—lo.

        —Sabe—disse—, seu nome não é Wulkan, é Étienne. Étienne de Charandon.

        Wulkan encolheu os ombros.

        —Um pouco tarde para me batizar de novo, senhor. Se não se incomodar, acredito que manterei meu nome.

        Robert não se incomodou, absolutamente. Tanto fazia que seu filho se chamasse de um modo ou de outro; o importante era tê-lo recuperado. Wulkan falou de seu sonho, que nunca o abandonava, e ele soube que Natalie era a viva imagem de sua mãe, lady Eleanor; e que a musica que lembrava-se era a canção de ninar com a qual dormia todas as noites.

        —Como soube que era seu filho?

        —Por intuição. Por seus gestos, muito parecidos com os de seu avô. O medalhão era dele. Na tarde em que desapareceu, tinha deixado com você para que brincasse com ele.Por essa canção de ninar. Mas sobretudo —explicou— pela cicatriz que tem no lado e que pude observar quando o feriram com a flecha. Foi um criado hindu que a fez. Ficou louco quando sua mulher e seu filho recém—nascido morreram de febre, e acreditou que você devia ser sacrificado para acalmar a cólera de seus deuses. Marcou—o com um ferro em brasa; quando tinha quatro anos. Chegamos a tempo de detê—lo antes que o degolasse. Ainda recordo quanto chorou por causa dessa queimadura.

        Serviram—se, comeram, beberam e distraíram-se com um menestrel que se acomodou no centro do salão e cantou para eles histórias de amor e morte, paixão e vida.

        Ricardo deixou todos recuperarem as forças, e só quando esteve diante do jantar, ficou em pé, mandou todos se calarem e lançou um olhar que abrangia os presentes. Num canto da mesa, do outro lado do salão, sentada entre Martha e seu marido, Jacqueline prestou atenção, como o resto.

        —E agora, meus leais súditos, queria esclarecer certa questão. —Com um gesto dele, aproximou-se um soldado que lhe entregou folhas dobradas. Ricardo as desdobrou lentamente, deu uma olhada nas cartas e depois, enrolando-as de novo, lançou uma para Enric e outra para Wulkan— Senhores —disse— estou aguardando uma explicação sobre suas missivas.

        Enric remexeu-se em sua cadeira e Wulkan pigarreou. Conhecia muito bem o conteúdo de sua carta, enviada através de Gilbert. Mas, para seu assombro, o papel que desdobrou não era o que assinou, mas outro com o selo de Lynch. Enric, por sua vez, tinha recebido a de Wulkan, de modo que a surpresa foi mútua. Ricardo tinha trocado as mensagens, para que cada um pudesse ler a do outro.

        Assim, cada um leu e observou a reação do outro. Não entendiam nada.

        —Para que todos os presentes entrem na brincadeira, senhores, vou explicar-me. Ao menos, até onde sei —guardou silêncio um momento, enquanto servia-se de uma suculenta coxa de ave e dava uma dentada, passeando seu olhar pelos comensais, desfrutando por mantê-los curiosos. —Sir Enric me fez chegar uma mensagem solicitando que desculpasse sua neta, lady Jacqueline, por não querer unir—se ao lorde de Kellinword.

        Um murmúrio de assombro percorreu o salão. Clara, entretanto, deleitou—se como uma gata saciada de leite...

        —Dias depois —continuou o soberano— o cavaleiro Gilbert de Bayard era portador de outra mensagem, desta vez de lorde Wulkan. Curiosamente, solicitava a mesma coisa.

        Os cochichos aumentaram de tom.

        —Francamente, senhores —Ricardo parecia entretido, escolhendo outro pedaço de carne— acreditei que essa questão poderia se tornar outro problema nesta parte da Inglaterra. Que os feudos se enfrentariam por brigas pessoais. Decidi, portanto, acelerar minha viagem a Kellinword, prevista para o Natal. E me parece que cheguei a tempo.

        Enric levantou-se. Seu enrugado rosto mostrava uma certo tom acinzentado, e era evidente que estava passando mal, expondo em público seus assuntos.

—Senhor, nunca enfrentaria lorde Wulkan.

        Ricardo agradeceu com um movimento de cabeça suas palavras. Logo, olhou para Wulkan, e em seus olhos, adivinhou uma explicação que não ia gostar, mas vangloriava-se de saber escutar seus súditos.

        —É sua vez —disse.

        Wulkan suspirou e levantou-se, mas não fugiu daquele olhar inquisidor. Agora ou nunca, pensou. Cedo ou tarde, aquela carta —soube sempre— significaria enfrentar o homem que regia os destinos da Inglaterra.

        —Minha petição não é tão simples como a de Sir Enric —disse com voz potente, mas medindo as palavras. Ricardo podia ser um homem Justo, mas também era propenso a ataques de fúria, e Wulkan temia o segundo.

        Apesar de tudo, tinha voltado para Kellinword para batalhar por um castelo cuja defesa só cabia a ele.

— Senhor, minha intenção tampouco era guerrear contra Lynch, mas não posso aceitar seus desejos e casar com a dama em questão.

        O coração de Jacqueline falhou uma batida.

        E o vozeirão de Ricardo devolveu-lhe o ritmo.

— Explique-se, condenado!

        Wulkan estava tenso. Estava jogando com seu futuro em alguns instantes. Pensou que uma imagem valia mais que mil palavras, e ele estava disposto a arriscar a vida para alcançar seu destino. Levantou-se de sua cadeira, rodeou a mesa e dirigiu-se com passos firmes, para o lugar que ocupava Jacqueline.

        Embargava-lhe a emoção e o suor ensopava as palmas de suas mãos, mas o escuro olhar do homem que amava a fortaleceu e ficou em pé quando ele, para assombro de todos, estendeu—lhe sua mão. Wulkan abraçou-a pelas costas, colando-se a seu corpo.

        —Esta é a causa de minha carta, na qual solicito que anule meu compromisso com Lynch.

        —Que diabo...! —engasgou—se Ricardo.

        —Amo esta mulher, Ricardo —interrompeu-o Wulkan— Está gerando meu filho e desejo fazê-la minha esposa.

        Jacqueline estremeceu. Sabia que o menino era dele!

        Seus olhos desviaram-se para os de Martha, e encolheu os ombros, como uma desculpa.

        —Uma moça da plebe! —trovejou a voz do rei. —Quer que Kellinword tenha por lady uma camponesa?

        Ele obrigou-se a relaxar e disse:

        —Renunciarei a Kellinword se assim desejar, mas quero que ela compartilhe minha vida, seja como lady de Kellinword ou não.

        Se no salão restava ar, evaporou—se. Até as respirações silenciaram.

        Ricardo perguntava-se se aquilo estava acontecendo. Wulkan, seu capitão mais fiel, pedia—lhe para casar com uma simples serva. Renunciava a sua parcela de poder por ela. Não havia precedentes de uma situação similar na história da Inglaterra. Ele sabia das convicções de Wulkan: uma decisão desse calibre dignificava quem a tomava. Tinha que querê—la muito. Sentiu seu silêncio, sintoma inequívoco de que o humor do Rei começava a lutar com o seu.

        —Venha aqui, moça!

        Wulkan soltou-a, empurrando—a brandamente, e ela rodeou as largas mesas, tremendo dos pés a cabeça, aproximando—se do rei. Chegou a ele, baixou a cabeça em sinal de submissão, mas Ricardo pegou-a pelo queixo, obrigando—a a olhar para ele. O gesto do soberano não denotava simpatia, mas ela, longe de amedrontar—se, embora mal pudesse respirar, devolveu—lhe um olhar discreto.

        —Que diabos vê nesta moça, Wulkan? —interrogou em tom depreciativo.

        Jacqueline ficou furiosa. Estava insultando-a, humilhando-a diante de todos, desprezando—a como pessoa por sua baixa condição. Suas pupilas se contraíram. Não ia dizer quem era. Não o faria. Até que aquela mula normanda decidisse...

        Ricardo voltou a observá—la e aceitou o desafio daquelas íris violeta. Soltou—lhe o queixo e voltou-se para Enric, como se esperasse resposta. O ancião, inexpressivo, só pôde assentir. Já não podia explicar nada.

        Wulkan percebeu a troca de olhares. Escapava-lhe algo, mas o que era?

        De repente, Ricardo jogou para trás sua cabeleira e rompeu em sonoras gargalhadas, assinalando Enric com um dedo. Homem de aguda visão e memória infalível, bastou—lhe comparar aqueles olhos orgulhosos da moça para intuir a verdade. Como por milagre, sumiu no ar a tensão.

        Ricardo limpou as lágrimas e voltou a sentar—se.

        Levantou sua taça que, imediatamente,foi enchida por Charandon, tão confuso quanto o resto. Bebeu—a de um gole e voltou a rir com vontade. Ninguém entendia seu repentino bom humor; parecia que se divertia sozinho. Serenou—se e disse por fim:

        —De acordo. Aceito sua petição, Wulkan. Afinal das contas, com estas bodas, todos saímos ganhando: você obtém o que quer. Obtém a moça, conforme acredito. E eu também.

        —Senhor? —murmurou Wulkan, realmente perdido.

        —Que pode se casar, diabos. Vai apresentar à noiva?

        —Seu nome é Jacky.

        —Jacky, não? Mas Jacky parece um diminutivo carinhoso. Acaso de Jaquette? Ou talvez... de Jacqueline, sir Enric?

        Wulkan quase teve um ataque. Agora entendia tudo. Jacky tomou seu rosto entre suas mãos.

—Meu amor —murmurou—, deixe que eu explique.

        Sua expressão tornou-se feroz. Afastou-a dele, e dirigiu-se a Ricardo.

        —Se me desculparem...

        Saiu do salão com passos largos e Jacky também suplicou a seu soberano para poder retirar-se. Coração de Leão olhou-a, dizendo:

        —Vamos, vamos, vamos...! Vá buscá—lo e tente acalmar sua fúria, milady, ou temo que Kellinword arderá novamente esta noite, mesmo com minha pessoa aqui dentro.

        Ela fez uma reverencia e saiu.

        Instantes depois, vozes furiosas invadiam o salão. Enric erguia-se, olhava a saída e esperava.

        —Vai brigar com ela, Senhor? —E suas palavras escutaram-se, nítidas, no silêncio.

        —Ela responderá, não tenha dúvidas —retorquiu Ricardo, muito tranqüilo. —Ainda lembro dela em minha frente. Plantou—se diante de mim e exigiu justiça por seus pais. Olhava—me como fez agora, desafiante e decidida. Disse—me: «É o rei, senhor. Mas se um rei normando não é capaz de impor justiça a seus vassalos saxões, não espere minha vassalagem.» Jesus, deixou—me gelado!

        Martha deu uma cotovelada em seu marido.

        —Não disse, homem? Ela não tinha ares de camponesa.

        Lá fora, fez-se o silêncio. Ricardo, com a taça erguida, assinalou a saída.

        —Parece que Kellinword não arderá esta noite, meus amigos. Brindemos a isso!

 

        Ricardo interrompeu, temporalmente, suas obrigações e permaneceu em Kellinword até a cerimônia das bodas, apadrinhando Jacqueline.

        Gofredo e Duby, encerrados nas masmorras, foram condenados. Emil de Noirmont seria também executado. Confessou o rapto do pequeno Étienne e suas tentativas de acabar com sua vida. Sob tortura, descobriram Medardo de Lecoy, que foi enviado aos cuidados de seu prior, com a ordem expressa de que nunca saísse de sua cela de confinamento.

        Viola de Nortich, que nada tinha a ver com os desmandos de seu marido, herdou suas terras e posses, e Ricardo ameaçou casá-la imediatamente, já que não podia comandar sozinha o feudo.

        Clara foi dada em casamento a um dos cavaleiros de Robert de Charandon.

        Bertrán, por fim, foi nomeado cavaleiro por méritos próprios.

        Jacqueline chorou de felicidade quando o prior a uniu a Wulkan. Pôde voltar a abraçar sua irmã Aelis, Hellen e John, de quem não esquecia.

        Kellinword ferveu em festas durante dias. Os cordeiros eram assados as dezenas, os patos e as galinhas as centenas e houve vinho, cerveja e cidra para todos.

        A lua iluminava um céu claro, e apenas alguns criados estavam em pé. A maioria dormia em qualquer parte, curando os excessos da celebração.

        Wulkan envolvia sua esposa em seus braços. Sobre a cama, nus, cansados e saciados, beijou—a nos lábios e a instigou.

        —Realmente, não queria se casar comigo?

        —Não queria me casar com um maldito normando, meu amor.

        Ele riu baixinho, acariciando seu ventre.

—Mas me achava atraente.

        —Arrogante! —Mordeu seu ombro.

        —Amo você, Jacky. —Abraçou—a com mais força. —Oh, diabos! Acredito que não me acostumarei a chamá-la por seu verdadeiro nome.

        —Eu gosto assim —sorriu ela. —De fato, pensei que o menino devia se chamar Jack.

        —Isso não! Chamará—se Étienne.

Ela aconcegou-se e disse:

        —Assim será, se for o seu desejo.

        Wulkan sentia o coração transbordar de amor.

        —Meu desejo, esposa, é que ninguém, nunca, afaste—a de mim.

Jacqueline sorriu para ele e respondeu:

        —Sou uma orgulhosa saxã, minha vida. Diga-me, quem vai se atrever a tentar?

 

                                                                                Nieves Hidalgo  

 

                      

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