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ORLANDO / Virgínia Woolf
ORLANDO / Virgínia Woolf

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ORLANDO

 

Ele - pois não havia dúvida quanto ao seu sexo embora a moda da época fizesse algo para disfarçá-lo - estava golpeando a cabeça de um mouro que balançava dos esteios. Era da cor de uma velha bola de futebol, tinha mais ou menos essa forma, exceto pela face encovada e um ou dois fios de cabelo seco, áspero como os de um coco. O pai de Orlando, ou talvez seu avô arrancara-a dos ombros de um pagão corpulento que encontrara ao luar, nos campos bárbaros da África; agora balançava suave e incessantemente com a brisa que não cessava de soprar nos quartos do sótão da gigantesca casa do senhor que o havia matado.

Os antepassados de Orlando tinham cavalgado nos campos de asfódelo e nos campos de pedra e nos campos banhados por estranhos rios e tinham decepado muitas cabeças, de muitas cores e de muitos ombros, e tinham trazido para pendurá-Ias nas vigas. Orlando jurava também fazer o mesmo. Mas, como tinha apenas dezesseis anos e era muito jovem para cavalgar com eles na África ou na França, saía às escondidas de sua mãe e dos pavões do jardim e ia para o sótão e lá lançava, batia e golpeava o ar com sua espada. Às vezes cortava a corda e a cabeça se estatelava no chão, e e tinha que amarrá-la de novo e pendurá-Ia com delicadeza, de forma que seu inimigo arreganhasse os dentes triunfantemente por entre os lábios negros e contraídos. A cabeça balançava de um lado para outro, pois a casa no topo da qual morava era tão vasta que o próprio vento parecia seu prisioneiro, soprando para lá e pa cá, inverno e verão. A tapeçaria verde com desenho de caçadores movia-se continuamente. Seus antepassados tinham sido sempre nobres. Vieram das brumas do norte, com diademas na cabeça. As faixas de sombra no quarto e as manchas amarelas que quadriculavam o chão não eram feitas pelo sol, ao atravessar o grande brasão do vitral da janela? Orlando estava agora no meio do corpo amarelo de um leopardo heráldico. Quando colocou a mão no peitoril para abrir a janela, coloriu-se instantaneamente de vermelho, azul e amarelo como a asa de uma borboleta. Assim, aqueles que gostam de símbolos e têm aptidão para decifrá-los devem observar que, embora as pernas bem-torneadas, o belo corpo e os ombros fortes estivessem ornados com vários matizes da luz heráldica, o rosto de Orlando, ao abrir a janela, estava iluminado unicamente pelo sol. Seria impossível encontrar rosto mais cândido e sombrio. Feliz a mãe que o gera, mais feliz ainda o biógrafo que registra a vida de alguém assim! Ela não precisa nunca se atormentar nem ele pedir a ajuda de um romancista ou poeta. De proeza em proeza, de glória em glória, de ofício em ofício ele deve prosseguir, seguido de seu escriba, até atingirem uma posição que seja o ápice dos seus desejos. Orlando, à primeira vista, parecia talhado para esta carreira. O vermelho de suas faces era recoberto por uma pele aveludada, e o buço sobre os lábios era apenas um pouco mais espesso do que a penugem do rosto. Os lábios, finos e ligeiramente repuxados sobre dentes de uma extraordinária brancura de amêndoa. Nada perturbava o vôo curto e tenso do nariz afilado; o cabelo era escuro, as orelhas pequenas e rentes à cabeça. Mas, ai, esta catalogação da beleza juvenil não pode terminar sem que se mencione a testa e os olhos. Oh, as pessoas raramente nascem sem eles; porém, ao olhar Orlando de pé junto à janela, devemos admitir que ele tinha olhos como violetas molhadas, tão grandes que a água parecia enchê-los e alargá-los; e a testa, como a abóbada de uma cúpula de mármore, apertada entre os dois medalhões alvos que eram suas têmporas. Ao olharmos diretamente para seus olhos e para sua testa, nos entusiasmamos. Ao olharmos diretamente para seus olhos e para sua testa, temos que admitir mil coisas desagradáveis que o objetivo de todo bom biógrafo é ignorar. Visões perturbavam-no, como aquela de sua mãe, linda senhora vestida de verde, caminhando para dar comida aos pavões, seguida por Witchett, sua criada; visões que o exaltavam - os pássaros e as árvores; e faziam-no amar a morte - o céu noturno, as gralhas retornando; e assim, subindo a escada de caracol do seu cérebro - que era bastante espaçoso -, todas essas visões, sons do jardim, o martelo batendo, a madeira sendo cortada, começaram aquele tumulto e aquela confusão paixões e emoções que todo bom biógrafo detesta. Mas para continuar - Orlando puxou lentamente a cabeça sentou à mesa e, com um ar semiconsciente de estar fazendo o que fazia àquela hora todos os dias de sua vida, pegou um caderno intitulado Aethelbert: uma tragédia em cinco atos e mergulhou no tinteiro uma velha pena de ganso manchada.

Logo ele já tinha enchido dez páginas ou mais com poesia. Era evidentemente fluente, mas abstrato. O cio, o crime, a miséria eram os personagens do seu dilema. Havia reis e rainhas de territórios impossíveis; terríveis intrigas os confundiam; sentimentos nobres inundavam; não havia uma só palavra dita como ele próprio a diria, porém tudo era transformado por uma delicadeza e uma fluência notáveis, considerando-se sua idade - ainda não tinha dezessete anos - e que o século XVI ainda teria alguns anos por transcorrer. Finalmente fez uma pausa. Estava descrevendo a natureza, como todos os jovens poetas fazem, e, para combinar com precisão a sombra do verde olhou (e aqui mostrou mais audácia do que a maioria) para o objeto que por acaso era um arbusto de louro que crescia ao sol: janela. Depois disso, sem dúvida, não conseguiu mais escrever. O verde na natureza é uma coisa, o verde na literatura é outra. A natureza e as letras parecem ter uma antipatia natural; basta juntá-las para que se dilacerem mutuamente. A sombra do verde que Orlando via agora estragou sua rima e quebrou 'seu metro'. Além do mais natureza tem suas próprias artimanhas. Basta olhar pela janela as abelhas entre as flores, um cachorro bocejando, o pôr-do-sol, basta pensar "quantos crepúsculos ainda verei?", etc., etc. (o pensamento é conhecido de muitos, pesa valer a pena escrevê-lo) e deixa-se cair a pena, pega-se o casaco, sai-se da sala e tropeça-se numa arca pintada. Pois Orlando era um pouco desajeitado.

Tomou cuidado para não encontrar ninguém. Lá estava Stubbs, o jardineiro, vindo pela alameda. Escondeu-se atrás de uma árvore até que ele tivesse passado. Escapou por um pequeno portão no muro do jardim. Contornou todos os estábulos, canis, destilarias, carpintarias, lavanderias, os lugares onde fabricam velas de sebo, matam bois, forjam ferraduras, costuram gibões - pois a casa era uma cidade ressoante, com homens trabalhando em vários ofícios - e alcançou a alameda de samambaias que subia a colina através do parque, sem ser visto. Talvez haja um parentesco entre as qualidades: uma puxa a outra; e o biógrafo, aqui, deveria chamar a atenção para o fato de que esse desajeitamento quase sempre combina com o amor pela solidão. Tendo tropeçado numa arca, Orlando naturalmente gostava de lugares solitários, de amplas paisagens, e de se sentir sempre, sempre e sempre sozinho.

Assim, após um longo silêncio, "estou sozinho", respirou finalmente, abrindo os lábios pela primeira vez neste relato. Ele tinha subido muito rapidamente a colina entre samambaias e espinheiros, espantando veados e pássaros selvagens até um lugar coroado por um carvalho solitário. Era muito alto, tão alto que dezenove condados ingleses podiam ser avistados abaixo; e, nos dias claros, trinta ou talvez quarenta, se o tempo estivesse muito bom. Às vezes podia-se ver o Canal da Mancha, onda após onda. Podiam ser vistos rios, e barcos de passeio deslizando neles; e galeões partindo para o mar; e esquadras, com lufadas de fumaça, de onde vinha o som surdo de tiros de canhão; e fortes no litoral; e castelos em meio aos prados; e aqui uma torre de observações; e ali uma fortaleza; e novamente alguma ampla mansão como a do pai de Orlando, amontoada como uma cidade no vale, cercada de muralhas. Para o leste ficavam os pináculos de Londres e a fumaça da cidade; e talvez, na linha do horizonte, quando o vento soprava na direção certa, apareciam montanhosos, entre as nuvens, os topos escarpados e as extremidades serrilhadas da própria Snowdon. Por um momento, Orlando ficou de pé, contando, fitando, reconhecendo. E, era a casa de seu pai; aquela, a de seu tio. Sua tia, pois saía aqueles trás torreões lá, entre as árvores. A charneca e a floresta eram deles; os faisões e os veados, raposas, os texugos e as borboletas.

Suspirou profundamente e lançou-se - havia uma paixão em seus movimentos que justifica a palavra ao chão, aos pés do carvalho. Amava, acima de tudo esta transitoriedade do verão, sentir o apoio da terra embaixo de si; pois assim considerava a dura raiz do carvalho; ou, como imagem puxa imagem, era o dorço de um grande cavalo que ele cavalgava; ou o convés um navio balouçante - era qualquer coisa, na verdade desde que fosse firme, pois sentia necessidade de alguma coisa onde pudesse amarrar o seu instável coração coração que batia em seu peito; o coração que parecia repleto de brisas perfumadas e amorosas quando ele passeava todas as noites por essa hora. Amarrou-o ao carvalho e ao se deitar lá a inquietação dentro e ao redor si gradualmente se acalmou; as folhinhas penderam, veados pararam; as pálidas nuvens de verão estacionaram; seus membros pesaram no chão; e ficou tão imóvel, que aos poucos os veados se aproximaram dele e gralhas voaram em torno e as andorinhas mergulharam em círculos e as libélulas dispararam como se toda fertilidade e a atividade amorosa de um fim de tarde verão se enredassem como uma teia ao redor do seu corpo.

Depois de mais ou menos uma hora - o sol declinava rapidamente, as nuvens brancas se tornaram vemelhas, as colinas roxas, as florestas púrpuras, os vales negros - uma trombeta soou. Orlando ergueu-se de salto. O som penetrante veio do vale. Veio de um lugar escuro lá embaixo, um lugar compacto e bem-delinido; um labirinto; uma cidade cingida por muralhas; veio do coração de sua própria mansão no vale que, enquanto ele olhava e a trombeta solitária se multiplicava em outros sons agudos, perdeu a escuridão e pontilhou-se de luzes. Algumas eram pequenas luzes apressadas, como se criados corressem pelos corredores para atender aos chamados; outras eram altas e brilhantes, como se ardessem em vazios salões de banquetes preparados para receber convidados que não tinham vindo; e outras submergiam e flutuavam e afundavam e ressurgiam, como se carregadas pelas mãos de bandos de criados se curvando, se ajoelhando, se levantando, recebendo, guardando e escoltando dentro da casa, com toda dignidade, uma grande princesa que descia de sua carruagem. Coches manobravam e circulavam no pátio. Cavalos agitavam os penachos. A Rainha chegara.

Orlando não olhou mais. Lançou-se colina abaixo. Entrou por uma portinhola. Precipitou-se pela escada de caracol. Alcançou seu quarto. Atirou as meias para um lado e o gibão para outro. Molhou a cabeça. Lavou as mãos. Aparou as unhas. Com apenas seis polegadas de espelho e um par de velas usadas para auxiliá-lo, vestiu calções vermelhos, gola de renda, colete de tafetá e sapatos com rosetas tão grandes quanto dálias dobradas, em menos de dez minutos, pelo relógio de pé. Ficou pronto. Estava ruborizado. Estava excitado. Mas estava terrivelmente atrasado.

Por atalhos conhecidos, abriu caminho através dos inúmeros aposentos e escadas até o salão de banquetes, cinco acres além, no outro lado da casa. Mas a meio caminho, nos fundos da casa, onde os criados viviam, parou. A porta da sala de estar da Sra. Stewkley estava aberta - ela saíra, sem dúvida, com todas as chaves, para atender à sua patroa. Mas ali, sentado à mesa de jantar dos criados, com uma caneca ao lado e um papel diante de si estava um homem bastante gordo e esfarrapado, com a gola muito suja e as roupas de estamenha parda. Segurava uma pena mas não escrevia. Parecia revolver um pensamento para cima, para baixo, de um lado para outro, na cabeça, até ganhar forma ou movimento a seu gosto. Os olhos redondos e nublados como uma pedra verde de textura estranha estavam fixos. Ele não viu Orlando. Apesar de toda a pressa, Orlando ficou paralisado. Seria um poeta? Estaria escrevendo poesia? "Diga-me tudo do mundo todo", ele queria dizer - pois tinha idéias selvagens, absurdas e extravagantes a respeito de poetas e de poesia - mas como falar com um homem que não o via? Que, em vez disso, vê ogros, sátiros, talvez as profundezas do mar? Assim, Orlando permaneceu olhando fixamente enquanto o homem girava a pena entre os dedos de um lado para outro; fitava e meditava, e então, muito rapidamente, escreveu meia dúzia de linhas e ergueu a vista. Depois do quê, Orlando, vencido pela timidez, saiu em disparada e alcançou o salão de banquetes, justo a tempo de cair de joelhos e, inclinando a cabeça confusa, oferecer uma tigela de água-de-rosas à grande Rainha.

Tal era a sua timidez que ele não viu nada além de suas mãos com anéis, na água; mas isso bastava. Era uma mão memorável; mão fina, com dedos longos, sempre arqueados, como se ao redor de orbe ou cetro; mão nervosa, retorcida, doentia; mão autoritária, também; mão que bastava levantar para fazer tombar uma cabeça; mão, pensava ele, ligada a um velho corpo que cheirava como um armário de guardar peles em cânfora; corpo que estava ainda ajaezado com todos os tipos de brocados e gemas; e que se mantinha muito empertigado. embora talvez com dor de ciática; e nunca sucumbia, embora atado por mil temores; os olhos da Rainha eram amarelo-claros. Tudo isso ele sentia enquanto os grandes anéis cintilavam na água e algo apertava seu cabelo - o que, talvez, concorresse para que ele não visse nada mais passível de ser utilizado por um historiador. E na verdade sua mente estava em tal rebuliço de contradições - da noite e das velas ardentes, do poeta maltrapilho e da grande Rainha, de campos silenciosos e da algazarra dos criados - que ele não podia ver nada ou unicamente uma mão.

Pelo mesmo motivo, a própria Rainha pode ter visto só uma cabeça. Mas se é possível pela mão deduzir-se um corpo, instruída com todos os atributos de uma grande Rainha, sua rispidez, coragem, fragilidade e terror, certamente a cabeça pode ser igualmente fértil, vista do alto de um trono, por uma senhora cujos olhos, se as obras de cera da Abadia são confiáveis, estavam sempre bem abertos. O cabelo longo, encaracolado, a cabeça escura inclinada com tanta reverência, tão inocentemente e diante dela, insinuavam um par das mais lindas pernas em que um jovem da nobreza já se apoiou; e olhos violeta; e um coração de ouro; e lealdade e encanto masculino - todas as qualidades que a velha senhora tanto mais amava quanto mais lhe faltavam. Pois estava ficando velha e fatigada e curvada antes do tempo. O som dos canhões ecoava sempre em seus ouvidos. Ela sempre via uma gota de veneno brilhando e um longo estilete. Ao sentar à mesa escutava; ouvia os canhões no canal; temia - seria isso uma maldição? Seria um murmúrio? Inocência, simplicidade se lhe tornavam mais caras devido ao escuro cenário contra o qual eram contrapostas. E foi naquela mesma noite, segundo a tradição, quando Orlando dormia profundamente, que ela, apondo formalmente sua assinatura e o sinete no pergaminho, doou para o pai de Orlando a grande casa monástica que fora do Arcebispo e depois do Rei.

Orlando dormiu toda a noite sem saber disso. Tinha sido beijado por uma rainha, sem o saber. E talvez, porque os corações das mulheres são intrincados, fora sua ignorância e o salto que dera quando os lábios dela o tocaram que mantiveram viva em seu pensamento a lembrança de seu primo (pois tinham o mesmo sangue). De qualquer modo, dois anos dessa tranqüila vida campestre ainda não haviam passado, e Orlando escrevera talvez não mais que vinte tragédias e uma dúzia de histórias e um grande número de sonetos quando recebeu a ordem de que deveria se apresentar à Rainha em Whitehall.

- Aqui - disse ela, vendo-o avançar pela longa galeria em sua direção - vem o meu inocente! (Havia sempre serenidade em torno dele com aparência de inocência, embora tecnicamente a palavra não se aplicasse.)

- Venha! - disse ela. Estava sentada, muito empertigada, junto à lareira. E deteve-o a um pé de distância e olhou-o de alto abaixo. Estaria conferindo suas especulações da outra noite com a verdade agora visível? Acharia suas suposições justificadas? Olhos, nariz, peito, quadril, mãos - examinou-os; seu lábios se contorceram visivelmente enquanto olhava mas, quando viu as pernas, riu alto. Ele era a própria imagem de um nobre. Mas, e intimamente? Dardejou o olhos amarelos de águia sobre ele como se lhe trespas sasse a alma. O jovem sustentou seu olhar e apenas se ruborizou de um rosa-adamascado, como lhe convinha. Força, graça, romantismo, loucura, poesia, juventude - ela pôde lê-lo como uma página. Imediatamente tirou um anel do dedo (a junta estava bastante inchada) e ao colocá-lo no dele, nomeou-o seu Tesoureiro e Mordomo; em seguida dependurou-lhe no pescoço as correntes de seu cargo; e, ordenando-lhe que dobrasse joelho, prendeu na sua parte mais fina a Ordem de Jarreteira, enfeitada com jóias. Depois disso nada lhe foi negado. Nos passeios oficiais viajava à porta de sua carruagem. Ela o enviou à Escócia numa triste embaixada à infeliz Rainha. Estava para embarcar para a guerras polonesas quando ela o chamou de volta. Pois como poderia suportar a idéia daquela tenra carne rasgada e que aquela cabeça de cabelos encaracolados rolasse na areia? Manteve-o junto de si. No auge de seu triunfo quando os canhões ribombavam na Torre e o ar estava tão carregado de pólvora que provocava espirro e as exclamações do povo ressoavam sob as janelas, ela puxou-o para as almofadas, onde as aias a tinham deitado (estava velha e cansada), e o fez enterrar o rosto naquela surpreendente composição - ela não trocava de roupa há um mês - que cheirava exatamente, pensava ele, lembrando de sua recordação infantil, como aquele velho armário em casa, onde se guardavam as peles de sua mãe. Ele se levantou, meio sufocado por seu abraço. "Esta", suspirou ela, "é a minha vitória!" - ao mesmo tempo em que um foguete estourou e tingiu suas faces de escarlate.

Pois a velha o amava. E a Rainha, que sabia reconhecer um homem quando via um, embora não da maneira usual conforme se dizia, planejou para ele uma carreira esplêndida e ambiciosa. Ela lhe daria terras, destinaria casas. Ele seria o filho de sua velhice; o amparo na sua doença; o carvalho em que apoiaria sua decadência. Ela grasnava essas promessas e ternuras estranhamente arrogantes (estavam em Richmond agora) sentada empertigada nos seus rígidos brocados junto ao fogo, que, por mais alto que o alimentassem, nunca chegava a aquecê-la.

Entretanto, os longos meses de inverno se arrastavam. Todas as árvores do Parque estavam recobertas de geada. O rio deslizava vagarosamente. Um dia, quando a neve cobria o chão e os escuros quartos apainelados estavam cheios de sombras, e os veados bramindo no Parque, ela viu, no espelho que mantinha junto a si com medo de espiões, à porta, que mantinha sempre aberta com medo de assassinos, um jovem - poderia ser Orlando? - beijando uma moça - quem, em nome do Diabo, seria aquela descarada? Agarrando sua espada de cabo de ouro, golpeou violentamente o espelho. O vidro se quebrou; pessoas vieram correndo; ela foi levantada e recolocada em sua cadeira; mas, depois disse ficou magoada e à medida que seus dias se findavam queixava-se muito da infidelidade masculina.

Talvez fosse culpa de Orlando; mas, afinal, devemos culpar Orlando? A época era a elisabetana; sua moral não era a nossa; nem os poetas; nem o clima; nem mesmo os legumes. Tudo era diferente. O próprio clima, o calor e o frio do verão e do inverno eram, podemos crer totalmente de outra feição. O dia brilhante e amoroso era tão completamente separado da noite como a terra da água. Os poentes mais vermelhos e mais intensos; as alvoradas mais brancas e mais luminosas. Nada sabia de nossa meia-luz crepuscular nem de nossa lânguida penumbra. A chuva ou caía com veemência ou nada. sol brilhava ou havia a escuridão. Traduzindo isto para as regiões espirituais, como é seu costume, os poetas cantavam lindamente como as rosas fenecem e as pétaIas caem. O momento é breve - cantavam; o momento acabou; uma longa noite será dormida por todos. Usar artifícios de estufas ou viveiros para prolongar ou preservar esses cravos e rosas não era de seu feitio. A insípidas complicações e ambigüidades de nossa época mais gradual e duvidosa eram desconhecidas para eles. A violência era tudo. A flor vicejava e murchava. O sol nascia e se punha. O amante amava e partia. E tudo que os poetas diziam com rimas, os jovens traduziam na prática. As moças eram rosas, e suas estações tão breve quanto as das flores. Precisavam ser colhidas antes do anoitecer; pois o dia era curto, e o dia era tudo. Portanto, se Orlando seguia a tendência do clima, dos poetas da própria época, e colhia sua flor no peitoral da janela mesmo com a neve cobrindo o chão e a Rainha vigilante no corredor, não podemos culpá-lo. Ele era jovem; era ingênuo; só fazia o que a natureza lhe ordenava. Quanto à moça, ignoramos seu nome, tanto quanto a Rainha Elizabeth. Poderia ser Doris, Clóris, Délia, ou Diana pois ele fizera versos para todas elas; poderia igualmente ter sido uma dama da corte ou alguma aia. Pois o gosto de Orlando era amplo; não amava apenas as flores de jardim; as selvagens e as ervas daninhas sempre exerceram fascínio sobre ele.

Aqui, sem dúvida, revelamos rudemente - como um biógrafo pode - um traço curioso nele, que talvez possa ser explicado pelo fato de uma de suas avós ter usado avental e carregado baldes de leite. Alguns grãos da terra de Kent ou de Sussex se misturaram ao fino, o delicado fluido proveniente da Normandia. Ele sustentava que a mistura da terra marrom e sangue azul era boa. É certo que sempre gostara da companhia de inferiores, especialmente dos letrados, cuja sabedoria freqüentemente os mantém em nível inferior, como se houvesse uma afinidade sangüínea entre eles. Nesta fase de sua vida, em que a cabeça estava cheia de rimas, nunca ia para a cama sem emitir algum conceito, a face da filha do hospedeiro parecia mais fresca, e a sagacidade da sobrinha do guarda-caça mais veloz que a das senhoras da Corte. Assim, começou a ir com freqüência a Wapping Old Staire e às cervejarias à noite, envolto numa capa cinza para ocultar a estrela no pescoço e a jarreteira no joelho. Lá, com uma caneca diante de si, entre as alamedas de areia e campos de jogos de bola, toda a arquitetura simples desses lugares, ouvia histórias dos marinheiros, da miséria, horror e crueldade do mar das Antilhas; de como alguns perderam os dedos do pé, outros os narizes - pois a história oral nunca era tão refinada nem ricamente colorida quanto a escrita. Acima de tudo, gostava de ouvi-los disparar suas canções dos Açores, enquanto os papagaios, trazidos daquela região, bicavam os brincos em suas orelhas, batiam com os bicos duros e ávidos nos rubis em seus dedos e praguejavam de forma tão vil quanto seus donos. As mulheres eram pouco menos atrevidas em seu discurso e menos livres em seus modos do que os pássaros. Empoleiravam-se em seus joelhos, lançavam os braças redor de seu pescoço e, percebendo que algo fora comum se escondia sob sua capa de pano grosso, ficavam tão ansiosas em chegar à descoberta quanto o próprio Orlando.

Não faltavam oportunidades. O rio estava agitado desde cedo com barcaças, balsas e embarcações de todos os tipos. Cada dia zarpava um belo navio rumo às Índias; de vez em quando um outro enegrecido e desconjuntado, com homens cabeludos a bordo, arrastava-se penosamente para ancorar. Ninguém sentia falta de um rapaz ou de uma moça que vadiassem um pouco a bordo depois do pôr-do-sol; nem erguia a sobrancelha se os mexeriqueiros os vissem dormindo profundamente, abraçados, entre os sacos de tesouro. Esta foi, sem dúvida, a aventura que aconteceu a Orlando, Sukey Conde de Cumberland. O dia estava quente; seus amores tinham sido intensos; eles adormeceram entre rubis. Tarde da noite, o Conde, cuja fortuna estava ligada a empresas espanholas, veio verificar o saque sozinho, com uma lanterna. Projetou a luz num barril. Recuou assustado, praguejando. Abraçados junto ao casco dois espíritos dormiam. Supersticioso por natureza, com a consciência pesada por muitos crimes, o Conde tomou o casal - eles estavam envoltos num manto vermelho, e o peito de Sukey era quase tão branco quanto as neves eternas da poesia de Orlando - por um espectro saído das tumbas dos marinheiros afogados, para acusá-lo. Benzeu-se. Jurou arrependimento. A fileira de asilos que ainda existe na Sheen Road é o fruto visível deste momento de pânico. Doze velhas pobres da paróquia hoje bebem chá e à noite bendizem o Senhor pelo teto sobre suas cabeças; por um amor ilícito num navio carregado de tesouros - mas omitimos a moral.

Logo, entretanto, Orlando se cansou, não apenas do desconforto desse tipo de vida e das tortuosas ruas dos arredores, mas também das maneiras primitivas do povo. Pois é preciso lembrar que o crime e a pobreza não tinham para os elisabetanos a mesma atração que têm para nós. Eles não possuíam a vergonha moderna de ter aprendido nos livros; nem a nossa crença de que ser filho de um açougueiro é uma bênção e não saber ler uma virtude; não imaginavam que o que chamamos "vida" e "realidade" estivesse relacionado de alguma forma com ignorância e brutalidade; nem tinham, na verdade, nenhum equivalente para estas duas palavras, Não foi para procurar a "vida" que Orlando andou entre eles; nem para procurar a "realidade" que os abandonou. Mas, depois de ouvir um certo número de vezes como Jakes perdera o nariz e Sukey a honra - eles contam histórias admiravelmente, é preciso admitir -, começou a ficar fatigado da repetição, pois um nariz só pode ser cortado de uma maneira, e a virgindade perdida de outra - ou assim lhe pareceu -, enquanto as artes e as ciências eram de uma diversidade tal que estimulavam sua curiosidade profundamente. Assim, embora levando deles boas recordações, deixou de freqüentar as cervejarias, os jogos de boliche, pendurou a capa cinzenta no armário, deixou a estrela brilhar no pescoço e a jarreteira cintilar no joelho e voltou para a corte do Rei Jaime. Era jovem, rico e belo. Ninguém poderia ter sido recebido com maior aclamação do que ele.

É claro que muitas damas estavam prontas a lhe conceder seus favores. Pelo menos três nomes foram livremente associados ao seu em matrimônio - Clori, Favila, Eufrosina - assim as chamou em seus sonetos. Tomando-as por ordem: Clorinda era uma jovem modos bastante graciosos; é certo que Orlando tinha andado muito interessado nela por seis meses e contudo ela tinha pestanas brancas e não podia suportar a visão de sangue. Uma lebre assada, trazida à mesa seu pai, fez com que desmaiasse. Era também excecivamente influenciada pela Igreja e economizava sua pele branca para dar aos pobres. Decidiu corrigir Orlando de seus pecados, o que o aborreceu tanto que resolveu desistir do casamento e não lamentou muito quando ela morreu de varíola, pouco tempo depois.

Favila, a próxima, era muito diferente. Era filha de um cavalheiro pobre de Somersetshire; que, por perseverança e pelos trejeitos de seus olhos, conseguiu chegar à corte, onde sua destreza na equitação, seus belos tornozelos, sua graça ao dançar conquistara admiração de todos. Um dia, porém, teve a má idéia de espancar um cachorro spaniel que lhe rasgara a meia de seda (e, para ser justo, deve ser dito que Favila tinha poucas meias e que a maioria era de lã) deixando-o quase sem vida, debaixo da janela de Orlando. Orlando que era apaixonado por animais, logo reparou que os dentes dela eram tortos, os dois da frente virados para dentro, o que considerava ser nas mulheres um sinal infalível de caráter perverso e cruel, e assim, naquela mesma noite, desfez o compromisso para sempre.

A terceira, Eufrosina, foi sem dúvida a mais seria destas paixões. Ela era, de berço, dos Desmonds da Holanda e tinha uma árvore genealógica tão antiga e profundamente arraigada quanto a do próprio Orlando.

Era loura, corada e um pouco apática. Falava bem italiano, tinha uma fileira de dentes perfeitos no maxilar superior, embora os do maxilar inferior fossem um pouco desbotados. Nunca estava sem um cão de corrida, um spaniel, no colo; alimentava-o com pão branco do seu próprio prato; cantava docemente acompanhando virginal; e nunca estava pronta antes do meio-dia devido ao extremo cuidado que dedicava à aparência. Em suma, teria sido uma perfeita esposa para um nobre como Orlando, e as coisas estavam tão adiantadas que os advogados de ambas as partes se ocupavam com contatos, dotes, legados, senhorios, aforamentos e tudo o que é necessário antes que uma grande fortuna possa se juntar a outra, quando, com a rapidez e o rigor que caracterizavam o clima inglês, chegou a Grande Geada.

A Grande Geada foi, segundo os historiadores, mais severa que jamais atingiu estas ilhas. Os pássaros gelavam no ar e caíam como pedras no chão. Em Norwic uma jovem camponesa de saúde vigorosa, que se dispunha a atravessar a rua, foi vista por testemunhas desfazer-se em pó e ser soprada por uma lufada para cima dos telhados quando uma rajada glacial a atingiu numa esquina. A mortandade de rebanhos e de gado foi enorme. Os cadáveres congelavam e não podiam arrancados dos lençóis. Não era raro se encontrar uma vara inteira de porcos congelados, imóveis, no caminho. Os campos estávam cheios de pastores, lavradores parelhas de cavalos e meninos como espantalhos, todos paralisados na atitude do momento, um com a mão no nariz, outro com a garrafa na boca, um terceiro com uma pedra pronta para ser arremessada num corvo que pousava, como se empalhado, numa cerca próxima. O rigor da geada era tanto que às vezes causava uma certa petrificação; e era comum se acreditar que o grande aumento de rochas em algumas partes de Derbyshire devia não à erupção, pois não houve nenhuma, mas solidificação de infelizes caminhantes, literalmente transformados em pedra, no lugar em que se encontravam. A Igreja pouco ajudou no assunto, e, embora alguns proprietários fossem benzer essas relíquias, a maioria preferiu usá-las como marcos, postes para as ovelhas se coçarem, ou, quando a forma da pedra permitia como bebedouro para o gado, funções a que servem, em geral, admiravelmente até hoje.

Mas, enquanto os camponeses sofriam necessidade extremas e o comércio do país estava paralisado, Londres desfrutava de um carnaval de brilho máximo.

A corte estava em Greenwich, e o novo Rei aproveitou oportunidade de sua coroação para se consagrar com os cidadãos. Ordenou que o rio, que congelara a uma profundidade de mais de vinte pés, e por seis ou sete milhas de ambos os lados, fosse varrido, decorado e tivesse o aspecto de um parque de diversões, com caramanchões, labirintos, alamedas, barracas de bebidas, etc., a suas próprias expensas. Para si e para seus cortesãos reservou um certo espaço, imediatamente em frente aos portões do Palácio, que, separado do público apenas por um cordão de seda, logo se tornou o centro da mais brilhante sociedade da Inglaterra. Grandes políticos, com barbas e gorjeiras, despachavam assuntos oficiais sob, toldo vermelho da Tenda Real. Soldados planejavam a conquista dos mouros e a derrota dos turcos em pavilhões listrados, encimados por plumas de avestruz. As mirantes caminhavam de um lado para outro nas alamq das estreitas, com lunetas na mão, varrendo o horizonte e contando histórias da travessia do noroeste e da Invencível Armada. Os amantes namoravam nos divãs cobertos por peles de morta. Rosas geladas caiam em chuveiro quando a Rainha passeava com suas damas. BaIões coloridos permaneciam imóveis no ar. Aqui e ali ardiam vastas fogueiras de madeira de cedro e carvalho profusamente salgadas, para que as chamas fossem verdes, laranja e púrpura. Mas, por mais ferozmente que ardessem, o calor não era suficiente para derreter o gelo que, embora duro como aço, era de uma transparencia singular. Era tão límpido que se podia ver congelado a uma profundidade de vários pés aqui um golfinho, um linguado. Cardumes de enguias jaziam imóveis, mas se seu estado era de morte ou de interrupção de vida que o calor pudesse reanimar, desconcertava filósofos. Perto da Ponte de Londres, onde o rio gela até umas vinte braças de profundidade, um navio era totalmente visível, jazendo no leito do rio no local onde naufragara, no último outono, carregado de maçãs. A velha do barco, que levava sua fruta para o mercado na ribeira de Surrey, estava sentada nas suas mantas e saia balão, com o regaço cheio de maçãs, e, para todo mundo, parecia que estivesse atendendo um freguês, embora um certo tom azulado em seus lábios sugerisse a verdade. Era uma visão que o Rei Jaime gostava de contemplar, e trazia um bando de cortesãos para admirar com ele. Em suma, nada podia exceder o brilho e alegria da cena, durante o dia. Mas era à noite que o carnaval ficava mais alegre. Porque o gelo continua intacto; as noites eram de tranqüilidade perfeita; a lua as estrelas brilhavam com a dura fixidez de diamante e ao som da bela música de flauta e trombeta os cortesãos dançavam.

Orlando, é certo, não era daqueles que dançava com leveza o coranto e a lavolta; era desajeitado e um pouco distraído. Preferia as danças simples de sua região, que dançava desde menino, a estes fantásticos compassos estrangeiros. Tinha acabado justamente uma quadrilha ou um minueto, pelas seis da tarde do dia 7 de janeiro, quando viu, saindo do pavilhão da Embaixada moscovita, uma figura de homem ou de mulher, pois túnica ampla e as calças à moda russa serviam para disfarçar o sexo, que o encheu da maior curiosidade. E a pessoa, qualquer que fosse seu nome ou sexo, era de estatura mediana, de forma delgada e inteiramente vestida de veludo cor de ostra, orlado de uma estranha pele esverdeada. Mas esses detalhes eram obscurecidos pela extraordinária sedução proveniente da própria pessoa. Imagens, metáforas das mais excessivas e extravagantes se entrelaçaram e reviraram em sua cabeça. Ele chamou de melão, abacaxi, oliveira, esmeralda ou raposa na neve, tudo no espaço de três segundos; não sabia se a tinha ouvido, provado, visto ou feito as três coisas juntas. (Pois, embora não devamos interromper em nenhum momento a narrativa, temos que anotar aqui, às pressas, que todas as suas imagens naquela época eram extremamente simples, para combinarem com seus sentidos, e eram, em sua maioria, extraídas de coisas de que tinha gostado em pequeno. Mas, se os sentidos eram simples, eram, ao mesmo tempo, extremamente fortes. Parar e procurar a razão das coisas era impossível.) Um melão, uma esmeralda, uma raposa na neve - assim delirava, assim a fitava. Quando o rapaz, porque, ai de mim!, tinha que ser um rapaz - nenhuma mulher poderia patinar com tanta velocidade e vigor -, passou por, ele quase na ponta dos pés, Orlando quase arrancou cabelos de vergonha ao ver que a pessoa era do seu sexo, e que os abraços estavam fora de questão. Mas o patinador se aproximou. Pernas, mãos, porte eram de rapaz, mas nenhum rapaz tinha uma boca assim; nenhum rapaz tinha aqueles peitos; nenhum rapaz tinha olhos daqueles, que pareciam pescados no fundo do mar. Por fim, parando e dirigindo com a maior graça uma reverência para o Rei, que negligentemente passava o braço com um Camareiro, o patinador desconhecido pairou. Ela estava ao alcance da mão. Era uma mulher: Orlando fitou-a; tremeu; sentiu calor; sentiu frio; teve vontade de se atirar pelo ar de verão; esmagar com os pés bolotas de carvalho; sacudir o braço com as faias os carvalhos. Na verdade, ergueu os lábios sobre os pequenos dentes brancos; abriu-os talvez meia polegada, como se fosse morder algo; fechou-os como se tivesse mordido. Lady Eufrosina pendia de seu braço.

Ele descobriu que o nome da estrangeira era Princesa Marousha Stanilovska Dagmar Natasha Viana Romanovitch, e viera na comitiva do Embaixador moscovita, seu tio ou talvez seu pai, para assistir à coroação. Muito pouco se sabia dos moscovitas. Com barba grandes e chapéus de peles, sentavam quase sempre em silêncio, tomando uma bebida escura que cuspiam de vez em quando no gelo. Nenhum falava inglês, e o francês ao qual alguns estavam pelo menos familiarizados era então pouco falado na Corte da Inglaterra.

Foi por causa desse incidente que Orlando e a Princesa se conheceram: estavam sentados um diante do outro, na grande mesa preparada sob um toldo enorme para abrigo dos nobres. A Princesa estava entre dois jovens senhores, um, Lorde Francis Vere, e o outro, o jovem Conde de Moray. Era cômico ver a situação em que ela os colocara, pois, embora ambos fossem, a seu modo, belos rapazes, seus conhecimentos de francês eram como os de um recém-nascido. Quando, no começo do jantar, a Princesa virou-se para o Conde e disse com uma graça que lhe arrebatou o coração: "Je croi, avoir fait Ia connaissance d'un gentil homme qui vou; était apparenté en Pologne l'eté dernier" (Creio ter conhecido, na Polônia, no verão passado, um cavalheiro que era seu parente.) - ou - "Le beauté des dames de Ia cour d'Angleterre me met dan; le ravissement. On ne peut voir une dame plus gracieuse que votre reine, ni une coiffun plus belle que Ia sienne" (A beleza das damas da corte da Inglaterra me encanta. Não se pode ver dama mais graciosa do que a vossa rainha, nem um penteado mais belo do que o seu.), tanto Lorde Francis quanto o Conde mostraram o maior embaraço. Um serviu-a abundantemente de molho de rábano, e o outro assobiou para o seu cachorro e fez com que ele pedisse um osso com tutano. Diante disso a Princesa não pôde mais conter o riso, e Orlando, captando seus olhos entre as cabeças de javali e os pavões recheados, riu também. Ele riu, mas o riso em seus lábios congelou de admiração. "A quem teria amado, o que ele teria amado até agora?", perguntava a si mesmo, num tumulto de emoção. Uma velha senhora, que era só pele e ossos, respondia. Prostitutas de faces vermelhas, inúmeras para serem mencionadas. Uma monja choramingueira. Uma aventureira intratável e desbocada. Uma sonolenta massa de renda e etiqueta. O amor não tinha sido para ele mais do que serragem e cinzas. As alegrias que ele tinha experimentado, insípidas ao extremo. Admirava-se como pudera passar por isso sem bocejar. Quando a olhava, a espessura de seu sangue se derrretia, o gelo se transformava em vinho em suas veias; ouvia as águas fluindo e os pássaros cantando; a primavera rompeu a pesada paisagem invernal; sua virilidade perlou; ele empunhou uma espada; investiu contra o inimigo mais ousado do que um polonês ou um mouro e mergulhou na água profunda; viu a flor do perigo crescendo numa fresta; estendeu a mão - na verdade, estava declamando um dos seus mais apaixonados sonetos quando a Princesa se dirigiu a ele:

- Poderia ter a bondade de me passar o sal?

Ele corou violentamente.

- Com o maior prazer do mundo, Madame - respondeu, falando em francês com uma pronúncia perfeita. Pois, o céu seja louvado, ele falava a língua como se fosse a sua própria; a aia de sua mãe lhe havia ensinado. Contudo, porém, talvez tivesse sido melhor para ele nunca tivesse aprendido aquela língua; nunca tivesse respondido àquela voz; nunca tivesse seguido a luz daqueles olhos...

A Princesa prosseguiu. Quem eram aqueles dois grosseirões, perguntou, que estavam sentados a seu lads com maneiras de cavalariços? Que era aquela mistura repugnante que derramavam em seu prato? Os cães Inglaterra comiam na mesma mesa que os homens? Aquela figura grotesca na extremidade da mesa, com cabelo enfeitado como um pau-de-sebo, "comme u grande perche mal fagotée" (Como uma grande vara malfeita.) era realmente a rainha? E o rei, babava sempre assim? E qual daqueles papagaios era George Villiers? Embora essas perguntas, no início desconcertassem Orlando, eram feitas com tanta bregerice e graça que ele não pôde deixar de rir; e viu, pelos rostos inexpressivos dos companheiros, que ninguém, compreendeu uma só palavra, e respondeu-lhe tão livremente quanto ela perguntou, falando como ela em francês perfeito.

Assim começou entre ambos uma intimidade que logo se tornou o escândalo da Corte.

Logo foi observado que Orlando dispensava à moscovita mais atenção do que a mera civilidade exigia. Raramente se afastava dela, e sua conversa, embora ininteligível para os outros, era conduzida com tal animação, provocava tantos rubores e risos que os mais estúpidos podiam adivinhar o assunto. Além disso, a mudança do próprio Orlando era extraordinária. Ninguém jamais o vira tão animado. Em uma noite ele se livrara da sua falta de jeito de menino; mudara, de um adolescente mal-humorado, que não podia entrar num aposento feminino sem derrubar metade dos enfeites de mesa, em um fidalgo cheio de graça e cortesia. Vê-lo conduzir a moscovita (como ela era chamada) para o seu trenó, ou oferecer-lhe a mão para uma dança ou apanhar o lenço pintado que ela deixara cair, ou cumprir qualquer outro desses múltiplos deveres que a suprema dama exige e o amante se apressa em atender, era uma visão que excitava os olhos dos velhos e fazia bater mais rápido o pulso dos jovens. Sobre isso tudo, no entanto, pairava uma nuvem. Os velhos davam de ombros. Os jovens sorriam dissimuladamente. Todos sabiam que Orlando estava comprometido com outra. Lady Margaret O'Brien O'Dare O'Reilly Tyrconnel (pois este era o verdadeiro nome da Eufrosina dos sonetos) usava a esplêndida safira de Orlando no segundo dedo da mão esquerda. Era ela quem tinha o direito supremo às suas atenções. No entanto, ela podia deixar cair no gelo todos os lenços de seu guarda-roupa (os quais tinha em grande número) sem que Orlando se curvasse para apanhá-los. Podia esperar vinte minutos por ele para que a conduzisse ao seu trenó e por fim contentar-se com os serviços de seu lacaio negro. Quando patinava o que fazia desajeitadamente, ninguém estava ao seu lado para encorajá-la, e, se caísse, o que fazia um tanto pesadamente, ninguém a levantava do chão, nem lhe sacudia a neve das saias. Embora fosse naturalmente pacienciosa, custasse a se ofender e fosse mais relutate do que a maioria das pessoas em acreditar que um simples estrangeira pudesse afastá-la da afeição de Orlando, a própria Lady Margaret, por fim, chegou a suspeitar de que algo estava sendo tramado contra a sua paz de espirito.

Na verdade, à medida que os dias se passavam, Orlando tinha cada vez menos cuidado em ocultar sentimentos. Dando uma desculpa ou outra, se retirava logo após o jantar ou escapava dos patinadores que estavam formando pares para uma quadrilha. Logo seguida via-se que a moscovita tinha desaparecido também. Porém o que mais ultrajava a Corte e a feria na parte mais sensível, que é a sua vaidade, era que o casal era freqüentemente visto deslizando sob o cordão de seda que separava o recinto real da parte pública e desaparecendo no meio da multidão. Pois de repente, Princesa batia o pé e gritava: "Leve-me daqui. Eu detesto sua plebe inglesa", referindo-se à própria Corte inglesa. Ela não podia suportar mais. Estava cheia de velhas intrometidas que encaravam as pessoas, disse, e jovens convencidos que lhe pisavam os pés. Eles cheiravam mal. Seus cachorros corriam-lhe por entre as pernas. Era como estar numa jaula. Na Rússia havia vales com dez milhas de largura, por onde se podia galopar com seis cavalos lado a lado o dia inteiro sem encontrar vivalma. Além disso, ela queria ver a Torre, os Guardas, as Cabeças Decapitadas em Temple Bar e as joalherias da cidade. Assim, Orlando levou-a à cidade, mostrou-lhe os Guardas e as cabeças dos rebeldes e comprou tudo aquilo de que ela se agradou na Bolsa Real. Mas não era o suficiente. Ambos desejavam cada vez mais companhia um do outro, em particular, o dia todo, onde não houvesse ninguém que os olhasse e importunase. Por isso, em vez de seguirem caminho para Londres davam a volta pelo outro lado e logo tinham ultrapassado a multidão ao longo dos braços gelados do Tâmis onde não encontravam ninguém exceto aves marinhas ou alguma velha camponesa quebrando gelo numa tentativa de conseguir um balde d'água, ou catando gravetos ou folhas secas que pudesse achar para fogo. Os pobres permaneciam perto de suas casas, e os que tinham mais recursos se dirigiam para a cidade em busca de calor e alegria.

Por isso, Orlando e Sasha, como ele a chamava para abreviar e porque era um nome de uma raposa branca russa que ele tivera em pequeno - uma criatura suave como a neve, mas com dentes de aço que o mordeu tão ferozmente que seu pai mandou matar -, por isso eles ficavam com o rio para si. Aquecidos pela patinação e pelo amor, atiravam-se em algum lugar solitário, onde os juncos amarelos adornavam a margem, e Orlando envolto numa grande capa de pele, tomava-a nos braços e, pela primeira vez - murmurava -, conhecia as delícias do amor. Então, quando o êxtase terminava, jaziam acalmados sobre o gelo e ele lhe falava de seus outros amores e como, comparados ao dela, tinham sido de madeira, de estopa e de cinzas. E, rindo de sua veemência, ela virava-se mais uma vez nos seus braços, dando lhe mais um abraço como prova de amor. E então eles se maravilhavam que o gelo não tivesse derretido com o seu calor e se apiedavam da pobre velha que não dispunha de meios naturais para derretê-lo e tinha que quebrá-lo com um machado de aço frio. E então, envoltos era suas peles, conversavam sobre tudo o que existe sob o sol; de paisagens e viagens; de mouros e pagãos; da barba deste homem e da pele daquela mulher; de um rato alimentado à mesa pela mão dela; da tapeçaria que se movia sem parar na sala da casa; de um rosto; de uma pluma. Nada era pequeno demais para a conversa, e nada era tão grande.

Depois, de repente, Orlando caía numa de suas expressões de melancolia; a visão da velha mancando sobre o gelo podia ser a causa disso, ou não haver nada atirava-se de rosto para baixo no gelo, olhava as águas congeladas e pensava na morte. Pois o filósofo tem razão ao dizer que nada mais espesso do que a lâmina de uma faca separa a felicidade da melancolia; e prossegue opinando que são gêmeas; e daí chega à conclusão de que todos os sentimentos extremos são aparentados à loucura; e assim convida-nos a buscar refúgio na verdadeira Igreja (a seu ver, a Anabatista), único porto, enseada, ancoradouro etc., dizia, para aqueles que se debatiam neste mar.

- Tudo termina em morte - dizia Orlando, amando-se, o rosto velado de tristeza. (Pois era assim que sua mente trabalhava agora, em violentas oscilações entre a vida e a morte, sem se deter no meio, de modo que o biógrafo também não pode parar, tem voar tão rápido quanto possível e acompanhar o passo das ações impensadas, apaixonadas e loucas e de súbitas palavras extravagantes a que, é impossível negar Orlando se entrega neste momento de sua vida.)

- Tudo acaba em morte - dizia Orlando, sentando-se no gelo. Mas Sasha, que afinal não tinha sangue inglês mas que era da Rússia, onde os crepúsculos eram mais longos, as auroras menos repentinas e as fraquezas muitas vezes abandonadas sem terminação pela dúvida de como terminá-las da melhor maneira -, Sasha fitava-o, talvez escarnecendo, pois ele devia parecer-se com uma criança - e não dizia nada. Mas finalmente o gelo esfriava debaixo deles, o que a ela não agradava, então fazia com que se levantasse, falava-lhe de forma tão encantadora, tão sedutora e tão sábia (mas infelizmente sempre em francês, o que, evidentemente, perde o sahí com a tradução) que ele esquecia as águas geladas, ou o cair da noite, ou a velhinha, ou o que quer que fosse; tentava dizer-lhe - mergulhando e revolvendo-se em mil imagens, tão gastas quanto as mulheres que as inspiraram - com o que ela parecia. Neve, creme, mármore, cerejas, alabastro, fio de ouro? Nada disso. Era com uma raposa ou como uma oliveira; como as ondas do mar quando vistas do alto; como uma esmeralda; com o sol numa colina verde ainda enevoada - como nada que ele tivesse visto ou conhecido na Inglaterra. Por mais que rebuscasse a língua, as palavras lhe faltavam. Queria uma outra paisagem e outro idioma. O inglês claro demais, cândido demais, meloso demais para Sasha, pois em tudo o que ela dizia, embora parecesse franca e voluptuosa, havia alguma coisa oculta; em tudo o que fazia, ainda que ousado, havia algo escondido. Assim, a chama verde parece oculta numa esmeralda, ou o sol aprisionado numa colina. A claridade era apenas exterior; por dentro havia uma chama errante, nunca resplandecia como a chama imperturbável de uma mulher inglesa - aqui, no entanto, lembrando-se de Lady Margaret e suas saias, Orlando exaltava-se em se arrebatamento e arrastava-a pelo gelo mais depressa cada vez mais depressa, jurando alcançar a chama, mergulhar pela jóia, e assim por diante, as palavras entrecortadas com a paixão de um poeta cuja poesia era meio provocada pela dor.

Mas Sasha ficava calada. Quando Orlando, cansasse de dizer que ela era uma raposa, uma oliveira, ou cume de uma colina verde, e tinha contado toda a história de sua família; como sua casa era uma das mais antigas da Inglaterra; como eles tinham vindo de Roma com os Césares e tinham direito de passear pelo Cor; (que é a principal rua de Roma) sob um palanquim adornado, o que ele dizia ser um privilégio reservado unicamente àqueles de sangue imperial (pois havia uma credulidade orgulhosa de sua parte que era bastante agradável), ele parava e perguntava a ela: Onde era a sua casa? O que o seu pai era? Tinha irmãos? Por que ela estava ali sozinha com o tio? Então, embora ela respondesse prontamente, um mal-estar surgia entre eles. Ele suspeitou, a princípio, de que ela não pertencesse a um nível social tão alto quanto pretendia; ou que tivesse vergonha das maneiras selvagens de seu povo, pois ele ouvia dizer que as mulheres em Moscou usavam barbas e os homens se cobriam com peles da cintura para baixo; que ambos os sexos se untavam com sebo para se proteger do frio, rasgavam carne com os dedos e viviam em cabanas onde um nobre inglês teria escrúpulo de abrigar o seu gado; então desistiu de pressioná-la. Mas refletindo, concluiu que esta não poderia ser a razão de seu silêncio; ela mesma era inteiramente desprovida de pêlos no queixo; vestia-se de veludo e pérolas, e suas maneiras não eram certamente as de uma mulher criada num estábulo.

O que, então, ela ocultava dele? A dúvida subjacente à tremenda força de seus sentimentos era como areia movediça sob um monumento que de repente desliza e faz tremer toda a construção. Subitamente a angústia se apoderava dele. Então se exaltava com tanta ira que ela não sabia como acalmá-lo. Talvez não quisesse acalmá-lo; talvez suas raivas a agradassem, e ela o provoca de propósito - tal é a curiosa sinuosidade do temperamento moscovita.

Para continuar a história - patinando mais longe que o de costume, naquele dia alcançaram a parte do rio onde os navios tinham ancorado e estavam congelados no meio da corrente. Entre eles estava o navio da Embaixada moscovita, com sua águia negra de duas cabeças flutuando no mastro principal, suspensa por coloridos pingentes de neve, de muitas jardas de comprimento. Sasha deixara algumas de suas roupas a bordo, supondo que o navio estivesse vazio, eles subiram ao convés e foram buscá-las. Recordando certas passagens de seu próprio passado, Orlando não teria se admirado que alguns bons cidadãos tivessem procurado este refúgio antes deles, e assim aconteceu, na verdade. Não tinham ido longe quando um belo jovem levantou-se de alguma ocupação com que se entretinha atrás de um rolo de cordas e, dizendo, aparentemente, pois ele falava russo, que era um dos membros da tripulação, e que ajudaria a Princesa a encontrar o que ela queria, acendeu um coto de vela e desapareceu com ela na parte inferior do navio.

O tempo passava, e Orlando, envolto em seus próprios sonhos, pensava apenas nos prazeres da vida; em sua jóia; em sua raridade; nos meios de torná-la sua irrevogável e indissoluvelmente. Havia obstáculos e faculdades a superar. Ela estava decidida a viver na Rússia, onde havia rios gelados e cavalos selvagens e homens, dizia, que se degolavam uns aos outros. É verdade que a paisagem de pinheiros e neve, hábitos de luxúria e carnificina não o seduziam. Nem estava ansioso em deixar os seus agradáveis hábitos rurais de esporte e plantio de árvores; em renunciar ao seu cargo, abandonar sua carreira; em atirar em renas em vez de em lebres; em beber vodca em vez de vinho, e carregar uma faca na manga - não sabia para quê. No entanto, tudo isso e muito mais ele faria por ela. Quanto ao seu casamento com Lady Margaret, embora marcado para dali uma semana, parecia-lhe tão absurdo que nem pensava nisso. Os parentes dela o censurariam por ter abandonado uma grande dama; os amigos dele zombariam por arruinar a mais bela carreira do mundo por uma mulher cossaca e um deserto de neve - isto não pesava uma palha, comparado a Sasha. Na primeira noite escura eles fugiriam. Tomariam um navio para a Rússia. Assim pensava, assim tramava, andando de um lado para outro no convés.

Virando-se para oeste, foi chamado à realidade pela visão do sol, suspenso como uma laranja na cruz da Catedral de São Paulo. Estava cor de sangue e descia rapidamente. Devia ser quase noite. Sasha tinha ido há mais de uma hora. Apanhado instantaneamente por aqueles sentimentos obscuros que sombreavam mesmo seus pensamentos mais confiantes a respeito dela, desceu pelo caminho que os vira tomar para o porão do navio; e, depois de tropeçar na escuridão entre caixas barris, vislumbrou, num canto, que eles estavam sentados ali. Por um segundo teve a visão dos dois; Sasha estava sentada nos joelhos do marinheiro; viu-a curvar-se para ele; viu-os abraçarem-se antes que a luz desaparecesse numa nuvem vermelha de sua ira. Lançou um tal uivo de angústia que ecoou pelo navio inteiro. Sasha atirou-se entre os dois, senão o marinheiro teria sido eliminado antes que pudesse apanhar o seu sabre. Então um terrível mal-estar se apoderou de Orlando, eles tiveram que deitá-lo no chão e dar-lhe aguardente para reanimá-lo. E então, quando se recuperou, sentou-se sobre um monte de sarrapilheira, Sasha inclinou-se para ele, passando diante de seus olhos tontos, suavemente, sinuosamente, como uma raposa que o tivesse mordido, ora bajulando, ora ameaçando, de modo que ele chegou a duvidar do que tinha visto. A vela não teria derretido, as sombras não teriam se movido? A caixa era pesada, ela disse; o homem estava ajudando-a a carregá-la. Orlando acreditou nela por um momento - pois, como ter certeza que a sua raiva não pintara aquilo que ele mais temia encontrar? - porém logo ficou mais violentamente indignado com a sua falsidade. Então Sasha empalideceu; bateu o pé no convés; disse que partiria naquela noite e invocou seus Deuses para que a destruíssem se ela, uma Romanovitch, tivesse estado nos braços de um simples marinheiro. Na verdade, vendo-os juntos (o que ele dificilmente se animava a fazer), Orlando se envergonhava pela infâmia de sua imaginação, capaz de pintar uma criatura tão frágil nas patas daquele peludo monstro do mar. O homem era enorme; tinha mais de seis pés de altura; usava argolas de arame nas orelhas; parecia um cavalo de carga sobre o qual uma carriça ou um tordo tivesse pousado. Então ele se rendeu; acreditou nela e pediu-lhe perdão. Mas, ao descerem do navio, novamente enamorados, Sasha parou com a mão na escada e lançou ao monstro queimado de cara larga uma série de cumprimentos, gracejos ou carinhos em russo, dos quais Orlando não compreendeu uma palavra. Mas havia algo em seu tom (podia ser o problema das consoantes russas) que lembrava a Orlando uma cena, noites atrás, quando encontrara com ela, num canto, roendo em segredo um toco de vela que apanhara no chão. É certo que era róseo; que era dourado; que era da mesa do rei; mas era de sebo, e ela o roía. Não havia nela, pensava, conduzindo-a para o gelo, alguma coisa grosseira, alguma coisa de sabor áspero, alguma coisa de camponesa? E ele a imaginava aos quarenta anos, pesadona - embora agora fosse esbelta como um junco - e entorpecida - embora agora fosse alegre como uma cotovia. Mas novamente, quando patinavam em direção a Londres, tais suspeitas se dissolveram em seu peito, e ele se sentiu como se tivesse sido fisgado pelo nariz por um grande peixe e impelido a contragosto pelas águas, embora com o seu próprio consentimento.

Era uma tarde de espantosa beleza. Com o pôr-do sol, todas as cúpulas, agulhas, torreões e pináculos de Londres se erguiam num negrume de tinta contra a furiosas nuvens vermelhas do poente. Aqui era a cruz ornada de Charing; ali, a cúpula da Catedral de São Paulo; lá, o bloco compacto dos edifícios da Torre; adiante, como um grupo de árvores despojadas de todas a folhas - exceto um tufo na extremidade -, estavam a cabeças nas varas em Temple Bar. Agora, as janelas da Abadia estavam acesas e brilhavam como um celestial escudo multicolorido (na imaginação de Orlando); agora, todo o poente parecia uma janela dourada com tropas de anjos (ainda na imaginação de Orlando) subindo e descendo continuamente as escadarias do céu. O tempo todo eles pareciam patinar nas impenetráveis profundezas do ar, de tão azul que o gelo se tornara; e tão transparentemente liso que eles deslizavam cada vez mais rápido para a cidade, cercados por gaivotas brancas que cortavam no ar, com as asas, os mesmos círculos que eles cortavam no gelo com os patins.

Sasha, como que para tranqüilizá-lo, estava mais terna do que de costume e ainda mais encantadora. Raramente tinha querido conversar a respeito de seu passado, mas agora lhe contava como no inverno, na Rússia escutava os lobos uivando pelas estepes, e, para de monstrar-lhe, uivou como um lobo três vezes. Ele, então, falou dos veados na neve, em sua casa, de como vagavam pelo grande vestíbulo em busca de calor e eram alimentados por um velho que lhes dava mingau de um balde. E então ela o elogiou; por seu amor pelos animais; por sua galanteria; por suas pernas. Encantado com os elogios e envergonhado de pensar como tinha maliciado imaginando-a no colo de um marinheiro vulgar, e gorda e entorpecida aos quarenta anos, ele diss eque não encontrava palavras para elogiá-la; mas logo considerou que ela era como a primeira e a grama verde as águas correntes e, apertando-a mais fortemente do que nunca, rodopiou com ela pelo rio, de forma que as gaivotas e os corvos-marinhos rodopiaram também. E parando afinal, sem fôlego, ela disse, levemente ofegante, que ele era como uma árvore de Natal com um milhão de velas (como as que há na Rússia), com bolas amarelas penduradas; incandescentes o suficiente para iluminar uma rua inteira (assim se poderia traduzir); pois, com suas faces brilhantes, seus cachos escuros, sua capa preta e carmesim, ele parecia como se estivesse ardendo com seu próprio esplendor, vindo de uma lâmpada acesa dentro de si.

Toda a cor, salvo o vermelho das faces de Orlando, em breve se desvaneceu. A noite chegou. Quando a luz alaranjada do poente desapareceu, foi substituída por um assombroso clarão branco das tochas, fogueiras, lanternas e outros recursos com os quais o rio era iluminado, e aconteceu a mais estranha transformação. Várias igrejas e palácios nobres, cujas fachadas eram de pedra branca, desenhavam-se em linhas e manchas como se flutuassem no ar. De São Paulo, em particular, nada ficara senão uma cruz dourada. A Abadia aparecia como o esqueleto cinzento de uma folha. Tudo se diluía e se transformava. Quando se aproximavam do carnaval, ouviram uma nota grave saída de um diapasão, que soava cada vez mais forte até se transformar num clamor. De vez em quando um grande grito acompanhava um foguete no ar. Gradualmente, eles podiam discernir pequenas figuras que se destacavam da vasta multidão e giravam para lá e para cá como mosquitos na superfície do rio. Em cima e em torno desse círculo brilhante, como um pote de sombras, impunha-se o negro profundo de uma noite de inverno. E então, nessa escuridão, começaram a erguer-se em intervalos que mantinham a expectativa alerta e as bocas abertas; foguetes em forma de flores; meias-luas; serpentes; uma coroa. Em um momento, as florestas e as colinas tornavam-se verdes como num dia de verão; a seguir, tudo era inverno e escuridão outra vez.

A essa altura Orlando e a Princesa estavam próximos do recinto real e encontraram o caminho barrado por uma multidão de populares que se comprimiam tão próximo do cordão de seda quanto era possível. Contrariados por terminar sua privacidade e encontrar os olhos penetrantes que os observavam, o casal ficou lá, acotovelado por aprendizes; alfaiates; peixeiras; negociantes de cavalos; caçadores de coelhos; estudantes famintos; empregadas domésticas de avental; vendedoras de laranjas; moços de estrebaria; cidadãos honestos; taverneiros obscenos; e uma horda de pequenos maltrapilhos, como as que sempre perseguem as margens de uma multidão, gritando e se arrastando entre os pés do povo; - toda a ralé das ruas de Londres estava na verdade ali, zombando e empurrando, aqui jogando dado, lendo a sorte, aos empurrões, fazendo cócegas, beliscando; aqui barulhentos, ali carrancudos; alguns com bocas escancaradas; outros tão irreverentes quanto gralhas num telhado; todos amontoados de forma tão variada quanto a bolsa ou a posição permitiam; este de pele e tecido fino; aquele em farrapos, com os pés protegidos do gelo apenas por um trapo de cozinha. A maior parte das pessoas parecia estar em frente de uma barraca com tablado, algo semelhante a um teatro de fantoches, onde se realizava uma espécie de representação. Um negro sacudia os braços e vociferava. Havia uma mulher de branco deitada numa cama. Embora o palco fosse tosco e os atores corressem para cima e para baixo por degraus e às vezes tropeçassem, a multidão batia os palmas e assoviava ou, quando estava entediada, jogava um pedaço de casca de laranja no gelo que um cão lutava para pegar, ainda assim a surpreendente e sinuosa melodia das palavras excitava Orlando como se fosse música. Falada com extrema rapidez e audaciosa com o idioma, o que lhe recordava os marinheiros cantando nos jardins das cervejarias de Wapping, as palavras, mesmo sem sentido, eram como vinho para ele. Mas, de vez em quando, uma frase solitária chegava até ele pelo gelo, como se arrancada das profundezas de seu coração. O delírio do mouro parecia o seu próprio delírio, e, quando o mouro sufocou a mulher na cama, era Sasha que ele matava com suas próprias mãos.

Finalmente a peça terminou. Tudo tinha escurecido. As lágrimas rolavam de sua face. Olhando para o céu não viu nada mais do que escuridão também. Ruína e morte, pensou, cobrem tudo. A vida do homem termina no túmulo. Vermes nos devoram.

Penso que deveria haver agora um grande eclipse. De sol e lua, e que o assustado globo...

Bocejava.

Enquanto dizia isso, uma estrela de certa palidez apareceu em sua memória. A noite estava escura; escura como breu; mas era por uma noite destas que tinham esperado; era numa noite como esta que tinham planejado fugir. Ele se lembrava de tudo. A hora chegara. Numa explosão de paixão arrebatou Sasha e murmurou em seu ouvido "Jour de ma vie!" (Luz da minha vida.) Era a senha deles. À meia-noite se encontrariam numa estalagem perto de Blackfriars. Os cavalos esperariam lá. Tudo estava pronto para a fuga. Assim partiram, ela para a sua tenda, e ele para a dele. Faltava ainda uma hora.

Muito antes da meia-noite, Orlando já estava esperando. A noite era de um tal negrume de tinta que um homem podia atacar outro sem ser visto, o que, afinal, era melhor, mas era também de um silêncio tão solene que a pata de um cavalo ou o choro de uma criança podiam ser ouvidos a uma distância de meia milha. Por vezes Orlando, medindo com os passos o pequeno pátio, refreava seu coração ao som de algum passo firme de cavalo nas pedras ou ao farfalhar de um vestido de mulher. Mas o passante era apenas algum mercador, que voltava para casa mais tarde; ou alguma mulher do bairro, cuja tarefa não era tão inocente. Eles passavam, e a rua ficava mais silenciosa do que antes. Então, aquelas luzes que ardiam no andar térreo dos pequenos quarteirões amontoados onde viviam os pobres da cidade moviam-se para os quartos de dormir e depois, uma a uma se extinguiam. Os lampiões de rua eram poucos nestes subúrbios; e a negligência dos guardas noturnos fez com que se apagassem muito antes da madrugada. A escuridão, então, se tornava ainda mais profunda. Orlando olhou para o pavio de sua lanterna, examinou silha da sela; preparou as pistolas; verificou os coldres fez isso pelo menos uma dúzia de vezes até não encontrar mais nada que necessitasse de sua atenção. Embora ainda faltassem uns vinte minutos para a meia-noite, e não conseguia entrar na sala da estalagem, onde a e talajadeira ainda estava servindo vinho seco e um tipo barato de vinho das Canárias para alguns marinheiros que estavam sentados cantarolando suas cantilenas contando histórias de Drake, Hawkins e Grenville que tombavam dos bancos e rolavam adormecidos na areia do chão. A escuridão era mais complacente para com o seu coração dilatado e violento. Ele ouvia cada passada; especulava cada som. Cada grito de um bêbado ou cada gemido de um pobre infeliz deitado na rua, ou com alguma outra angústia, cortava-lhe imediatamente o coração, como se proclamasse maus presságios à sua aventura. Contudo, ele não temia por Sasha. A coragem dela tornaria a aventura insignificante. Chegaria sozinha, de capa e de calças e de botas, como um homem. Tão leve era o seu passo que não poderia ser ouvido mesmo neste silêncio.

Assim ele esperava na escuridão. De repente, um golpe macio porém pesado atingiu-lhe um lado do rosto. Ele estava tão tenso com a expectativa que pulou e levou a mão à espada. O golpe se repetiu uma dúzia vezes, na testa e na face. A geada durara tanto tempo que ele levou um minuto para descobrir que eram gotas de chuva caindo; os golpes eram pancadas de chuva. A princípio caiam vagarosamente, deliberadamente, uma a uma. Mas em seguida as seis gotas se tornaram sessenta; depois seiscentas, e logo correram juntas em um forte aguaceiro. Era como se o próprio céu firme e maciço se derramasse todo em uma exuberante cascata. No espaço de cinco minutos Orlando estava encharcado até os ossos.

Colocando os cavalos apressadamente sob o abrigo, procurou refúgio sob o portal, de onde podia ainda observar o pátio. O ar estava agora mais denso do que nunca, e do aguaceiro se elevavam um vapor e um zumbido tais que abafavam qualquer passo de homem ou de animal. As estradas, crivadas de grandes buracos, deviam estar sob a água e talvez intransitáveis. Mas qual o efeito que isto poderia ter sobre sua fuga, ele pouco pensava. Todos os seus sentidos estavam concentrados olhando o caminho de pedras, brilhando na luz da lanterna para a chegada de Sasha. Às vezes, na escuridão, parecia-lhe vê-Ia envolta em rajadas de chuva. Mas o fantasma desaparecia. De repente, com um som terrível e agourento, um som cheio de horror e de alarme que fez crescer toda a angústia na alma de Orlando, São Paulo bateu a primeira badalada da meia-noite. Bateu quatro vezes mais, implacavelmente. Com a superstição de um amante, Orlando imaginou que ela chegaria na sexta badalada. Mas a sexta badalada ecoou e a sétima veio e a oitava, e para a sua mente apreensiva elas pareciam notas, primeiro anunciando e depois proclamando morte e desgraça. Quando a décima segunda badalada soou ele soube que seu destino estava selado. Era inútil que seu lado racional raciocinasse; ela podia estar atrasada; podia estar detida; podia ter errado o caminho. O coração apaixonado e sensível de Orlando sabia a verdade. Outros relógios soaram, disputando um com o outro. O mundo inteiro parecia ressoar com a notícia da falsidade dela e da humilhação dele. As antigas suspeitas, que trabalhavam sub-repticiamente nele, eclodiram do esconderijo abertamente. Ele foi picado por uma multidão de cobras, cada qual mais venenosa que a outra. Permaneceu no portal sob a tremenda chuva, imóvel. Com o passar dos minutos, arqueou um pouco os joelhos. O aguaceiro continuava. No meio dele parecia que canhões troavam. Grandes barulhos, como os de carvalhos sendo despedaçados e derrubados, podiam ser ouvidos. Havia também gritos selvagens e terríveis gemidos inumanos. Mas Orlando permanecia lá, imóvel até que o relógio de São Paulo bateu duas horas, e então, gritando com uma terrível ironia, mostrando todos os dentes, "Jour de ma vie! " (Luz da minha vida.), arremessou a lanterna no chão, montou seu cavalo e galopou sem saber para onde.

Algum instinto cego, pois ele não estava raciocinando, deve tê-lo levado a tomar a margem do rio em direção ao mar. Pois quando a aurora nasceu, o que aconteceu com rapidez incomum, o céu ficando amarelo-pálido e a chuva quase cessando, ele se encontrou às margens do Tâmisa, além de Wapping. Seus olhos se depararam com uma visão de natureza extraordinária. Onde por três meses ou mais tinha havido gelo sólido, de tal espessura que parecia permanente como pedra, e uma alegre cidade tinha sido erguida na sua superfície, era agora uma corrente de turbulentas águas amarelas. O rio ganhara a sua liberdade naquela noite. Era como se um jorro de enxofre (o que muitos filósofos se inclinavam a ver) tivesse surgido de regiões vulcânicas inferiores e rompido o gelo em pedaços com tal veemência que varria e separava furiosamente os enormes e maciços fragmentos. A simples visão da água era suficiente para estontear alguém. Tudo era tumulto e confusão. O rio estava coberto de blocos de gelo. Alguns eram tão grandes quanto campos gramados e tão altos quanto casas; outros não maiores do que o chapéu de um homem, porém fantasticamente retorcidos. Ora descia um conjunto inteiro de blocos de gelo, afundando tudo o que encontrava no caminho. Ora, girando em redemoinhos como uma serpente torturada, o rio parecia se arremessar entre os fragmentos e sacudi-los de uma margem para outra de forma que se podia ouvi-los se esfacelando contra os cais e os pilares. Porém o que era mais terrível e inspirava mais horror era a visão dos seres humanos que tinham sido apanhados de surpresa durante a noite e agora caminhavam na maior agonia por aquelas ilhas balouçantes e precárias. Quer pulassem na correnteza, quer permanecessem no gelo, seu destino estava decidido. Às vezes um bando dessas pobres criaturas descia junto, umas de joelhos, outras amamentando seus filhos. Um velho parecia ler em voz alta um livro sagrado. Outras vezes - e seu destino talvez fosse o mais terrível - um infeliz solitário carregava sua pequena moradia. Ao serem arrastados para o mar, alguns podiam ser ouvidos gritando em vão por ajuda, fazendo promessas terríveis de se corrigir, confessando seus pecados e prometendo altares e bens se Deus ouvisse suas preces. Outros estavam tão tontos de terror que se sentavam imóveis e em silêncio olhando firmemente para a frente. Uma multidão de jovens barqueiros ou estafetas, a julgar pelos uniformes, rugia e gritava as mais obscenas canções das tavernas como um desafio, e eram jogados contra uma árvore e afundavam com as blasfêmias nos lábios. Um velho nobre - como denunciavam seu traje de peles e sua corrente de ouro submergiu não longe do lugar onde Orlando estava, clamando vingança contra os irlandeses rebeldes que - gritava como seu último alento - tinham tramado esta coisa diabólica. Muitos pereceram agarrando contra o peito algum jarro de prata ou qualquer outro tesouro. E pelo menos um grupo de pobres-diabos se afogou por causa de sua própria cupidez, atirando-se da margem na correnteza para não deixar escapar um cálice de ouro ou para não assistir ao desaparecimento de alguma roupa de peles diante de seus olhos. Pois mobílias, valores, objetos de todos os tipos eram arrastados para longe nos blocos de gelo. Entre outros espetáculos estranhos via-se uma gata amamentando seu filhote; uma mesa posta suntuosamente para uma ceia de vinte; um casal na cama; juntamente com um extraordinário número de utensílios de cozinha.

Entorpecido e perplexo, Orlando não pôde fazer nada durante algum tempo senão observar a apavorante corrida das águas que se desenrolava diante dele. Finalmente, parecendo voltar a si, esporeou o seu cavalo e galopou firme ao longo da margem do rio, em direção ao mar. Dobrando uma curva do rio chegou defronte àquele lugar onde há dois dias os navios dos embaixadores pareciam imobilizados pelo congelamento. Apressadamente começou a contá-los todos; o francês, o espanhol, o austríaco, o turco. Todos flutuavam ainda embora o francês estivesse com suas amarras quebradas e o turco, com uma grande fenda na lateral, fizesse água rapidamente. Mas o navio russo, não era visto em parte alguma. Por um momento Orlando pensou que tivesse afundado. Mas, erguendo-se nos estribos e sombreando os olhos que tinham a visão de uma águia, conseguiu distinguir a forma de um navio no horizonte. As águias negras flutuavam no mastro principal. O navio da Embaixada Moscovita fazia-se ao largo.

Atirando-se do cavalo ele pretendeu, em sua raiva enfrentar a correnteza. Com água até os joelhos, lançou à mulher infiel todos os insultos que podiam ser ditos ao seu sexo. Falsa, inconstante, volúvel, ele a chamou de demônio, adúltera, traidora; e as águas revoltas receberam suas palavras e lançaram a seus pés uma vasilha quebrada e um pedaço de palha.

 

O biógrafo agora se depara com uma dificuldade que é melhor talvez confessar do que encobrir. Até este ponto da narrativa da vida de Orlando, documentos tanto particulares quanto históricos têm tornado possível cumprir o primeiro dever de um biógrafo, que é caminhar, sem olhar para a direita ou a esquerda, nas pegadas indeléveis da verdade; sem se deixar seduzir pela flores; indiferente à sombra; metodicamente continua até cair de súbito no túmulo e escrever finis na lápide sobre as nossas cabeças. Mas agora chegamos a um episódio que se encontra no meio do caminho, de forma que não é possível ignorá-lo. Contudo é sombrio, misterioso e não-documentado; de modo que não há com explicá-lo. Volumes inteiros poderiam ser escritos para interpretá-lo; completos sistemas religiosos criados sobre o seu significado. Nosso simples dever é expor os fatos até onde são conhecidos, e então deixar o leitor fazer com eles o que puder.

No verão daquele inverno desastroso em que viu a geada, a inundação, as mortes de tantos milhares e a completa derrota das esperanças de Orlando - pois foi exilado da Corte; em profunda desgraça com os nobres mais poderosos de seu tempo; a casa irlandesa de Desmond estava furiosa, com razão; o Rei já tinha problemas suficientes com os irlandeses para não querer acréscimo de mais um -, naquele verão Orlando se retirou para a sua grande casa no campo e lá viveu em completa solidão. Uma manhã de junho - era sábada dia 18 - ele não se levantou à hora de costume e quando o camareiro foi chamá-lo encontrou-o completamente adormecido. Não conseguiu ser acordado. Jazia como se em transe, sem respiração perceptível; e embora levassem os cachorros para latir sob sua janela; tocassen continuamente címbalos, tambores, castanholas continuamente em seu quarto; colocassem um galho de tojo sob seu travesseiro; aplicassem emplastros de mostarda em seus pés, ele não acordava, não se alimentava e não deu sinal de vida durante sete dias inteiros. No sétimo dia acordou à hora de costume (às quinze para as oito, precisamente) e botou para fora de seu quarto todo o bando de carpideiras e curandeiros da vila; o que era bastante natural; mas o que era estranho é que ele não demonstrasse nenhuma consciência do transe e se vestisse e mandasse buscar o seu cavalo, como se tivesse despertado de uma única noite de sono. No entanto, suspeitava-se de que alguma transformação tivesse acontecido na sua mente, pois, embora perfeitamente racional, ele parecia mais grave e mais calmo em seus modos do que antes, parecia guardar uma recordação imperfeita de sua vida passada. Escutava as pessoas falarem sobre a grande geada, ou a patinação, ou o carnaval, mas nunca deu sinal algum de tê-los testemunhado, exceto passar a mão pela testa, como se para afastar uma nuvem. Quando os acontecimentos dos últimos seis meses eram discutidos, ele parecia não tão aflito mas surpreso, como se fosse perturbado por lembranças confusas de algum tempo passado ou estivesse tentando relembrar histórias contadas por outra pessoa. Observou-se que se a Rússia era mencionada, ou princesas, ou navios, ele caia numa tristeza inquietante, levantava-se, olhava pela janela ou chamava um de seus cães, ou pegava uma faca e esculpia um pedaço de cedro. Mas os médicos não eram mais sábios do que hoje e, depois de prescreverem repouso e exercício, jejum e alimentação, companhia e solidão, que ele deveria ficar na cama o dia todo e cavalgasse quarenta milhas entre o almoço e o jantar, juntamente com os habituais sedativos e excitantes, diversificados com - segundo a fantasia de cada um - coalhada de baba de lagartixa ao levantar e goles de fel de pavão ao deitar, eles o deixaram por sua conta e lhe deram como diagnóstico que havia dormido uma semana.

Mas se aquilo foi sono, não podemos deixar de perguntar de que natureza são os sonos como esses. Serão medidas terapêuticas - transes durante os quais as mais torturantes lembranças, os eventos que parecem capazes de inutilizar a vida para sempre são varridos con uma folha escura que alisa sua aspereza e doura mesmo os mais feios e mais desprezíveis com brilho e incandescência? Terá o dedo da morte que ser colocado no túmulto da vida, de tempos em tempos, para que não sejamos dilacerados? Será que somos feitos de tal forma que devemos receber a morte em pequenas doses diariamente, ou não podemos continuar com o direito à vida? E então, que estranhos poderes são estes que penetram nossos caminhos mais secretos e mudam nossos bens mais preciosos apesar da nossa vontade? Teria Orlando, abatido pelo limite de seu sofrimento, morrido por uma semana e ressuscitado depois? E, se assim foi de que natureza é a morte e de que natureza é a vida? Depois de esperarmos mais de meia hora por uma resposta a estas questões, e não nos tendo chegado nenhuma, vamos continuar com a narrativa.

Agora Orlando se entregava a uma vida de extrema solidão. Sua desgraça na Corte e a violência de seu sofrimento eram, em parte, a razão disso, mas ele não fez qualquer esforço para se defender e raramente convidava alguém para visitá-lo (embora tivesse muitos amigos que fariam isso com prazer), parecia que estar sozinho na grande mansão de seus pais era adequado ao seu temperamento. A solidão era a sua escolha. Ninguém sabia exatamente como ele passava o tempo. Os criados, que ele mantinha em grau de séquito, embora tivessem como principal ocupação limpar os quartos vazios e alisar as colchas das camas que não eram ocupadas, observavam, na escuridão da noite - quando se sentavam de folga -, uma luz passando ao longo das galerias, através dos salões, subindo a escada, entrando pelos quartos, e sabiam que o patrão perambulava sozinho pela casa. Ninguém ousava segui-lo, pois a casa era assombrada por uma grande, variedade de fantasmas, e o seu tamanho tornava fácil alguém perder o caminho ou cair por uma escada secreta ou abrir uma porta que, se o vento batesse, deixaria esse alguém trancado para sempre - acidentes de ocorrência não rara, conforme evidenciavam as freqüentes descobertas de esqueletos de homens e animais em atitudes de grande agonia. Então a luz se perdia completamente e a Sra. Grimsditch, a governanta, diria ao Sr. Dupper, o capelão, que esperava que o seu Senhor não tivesse sofrido nenhum acidente. O Sr. Dupper opinaria que o seu Senhor estava, sem dúvida, de joelhos, entre os túmulos de seus antepassados na Capela, que era no Pátio do Bilhar, cerca de meia milha dali, na ala sul. O Sr. Dupper temia que ele tivesse pecados na consciência; ao que a Sra. Grimsditch replicava, com aspereza, como temos muitos de nós; e a Sra. Stewkley e a Sra. Field, e Carpenter, a velha ama, todos erguiam suas vozes elogiando o seu Senhor; e os cavalariços e os camareiros juravam que era lamentável ver um nobre tão gentil entediado pela casa quando podia estar caçando raposas ou perseguindo veados; e mesmo as pequenas lavadeiras e cozinheiras, as Judys e as Faiths, que carregavam os canecos e os bolos, emitiam seu testemunho sobre a galanteria do seu Senhor; pois nunca existiu cavalheiro mais bondoso nem mais liberal com aquelas pequenas moedas de prata que servem para comprar um laço de fita ou para colocar um ramalhete no cabelo; até mesmo a negra moura, que chamavam Grace Robinson para torná-la cristã, compreendeu o que eles discutiam e concordou, da única maneira que podia, ou seja, mostrando todos os dentes de uma vez num largo sorriso, que o seu Senhor era um cavalheiro bonito, agradável e gentil. Em suma, todos os empregados, homens e mulheres, lhe dispensavam o maior respeito e amaldiçoavam a princesa estrangeira (eles a chamavam por um nome mais grosseiro que este) que o levara àquela condição.

Mas, embora fosse provavelmente a covardia ou o amor pela cerveja quente que levasse o Sr. Dupper a imaginar que o seu Senhor estava a salvo entre as sepulturas, de modo que ele não precisasse ir procurá-lo, podia ser que o Sr. Dupper tivesse razão. Orlando, agora, se deliciava em pensamentos de morte e decadência e, depois de caminhar pelas longas galerias e salões com um círio na mão, olhando quadro após quadro como se procurasse a semelhança com alguém que não encontrava, subia ao balcão e ficava sentado horas, contemplando a oscilação dos estandartes e a flutuação do luar, tendo por companhia um morcego ou uma mariposa. A caveira. Mesmo isso não era suficiente para ele, tinha que descer à cripta onde jaziam seus antepassados, empilhados caixão sobre caixão, dez gerações juntas. O lugar era tão raramente visitado que os ratos tinham soltado as fundições e agora um fêmur prendia-se ao seu casaco quando ele passava ou esmagava o crânio de algum velho Sir Malise, que rolava sob seus pés. Era um sepulcro horrível; cavado profundamente sob os alicerces da casa, como se o primeiro Lorde da família vindo da França com o Conquistador, tivesse desejado testemunhar que toda a pompa é construída sobre a corrupção; como o esqueleto jaz por baixo da carne; como nós, que dançamos e cantamos na superfície, ficaremos embaixo; como o veludo púrpura se transforma em pó; como o anel (aqui Orlando, inclinando sua lanterna, apanharia um anel de ouro faltando uma pedra que rolara para um canto) perdia seu rubi e como o olho, que fora tão radiante, deixara de brilhar. "Nada resta de todos estes príncipes", diria Orlando condescendente, num exagero perdoável em sua classe, "exceto um dedo" e pegaria na sua a mão de um esqueleto, curvaria as juntas de um lado para outro, "que mão seria esta?", continuaria a perguntar. "A direita ou a esquerda? a mão de um homem ou de uma mulher? idosa ou jovem? teria incitado cavalos de guerra ou trabalhado com agulha? teria colhido a rosa ou empunhado o aço frio? Ou teria..., mas aqui, ou a sua imaginação falhara ou, o que é mais provável, lhe sugerira tantos exemplos do que a mão podia fazer que ele desistiu, como era de seu costume, do trabalho principal da composição, que é o da supressão, e colocou-a com os outros ossos, pensando num escritor chamado Thomas Browne, um doutor de Norwich cujos escritos sobre estes assuntos deleitavam-no surpreendentemente.

Assim, pegando sua lanterna e verificando que os ossos estavam em ordem - pois apesar de romântico ele era singularmente metódico e detestava deixar outro flagelo que habita no tinteiro e apodrece na pena. O infeliz dedica-se a escrever. E, se isto é ruim para um pobre homem cuja única propriedade é uma cadeira, uma mesa, sob a goteira de um telhado - que não tem, afinal, muito a perder -, a situação de um homem rico que possui casas e gado, empregados, mulas e linhos e ainda assim escreve livros é extremamente lamentável. Fica alheio ao sabor de tudo isso; é perfurado por ferros em brasa; é roído pelos vermes. Daria todo o dinheiro que possuía (tal é a malignidade do germe) para escrever um pequeno livro e tornar-se famoso; contudo, nem todo o ouro do Peru compraria para ele o tesouro de uma linha bem-escrita. De modo que cai em aborrecimento e doença, estoura os miolos e vira a cara para a parede. Não importa em que atitude eles o encontrem. Ele atravessou as portas da Morte e conheceu as chamas do Inferno.

Felizmente Orlando era de constituição robusta e a doença (pelas razões a serem apresentadas agora) nunca o abateu como abatera muitos de seus pares. Mas ele foi profundamente atingido por ela, como se verá a seguir. Pois, quando lia Sir Thomas Browne por uma hora ou mais e o bramido de um veado ou o sinal do guarda noturno demonstravam que era o fim da noite e todos dormiam a salvo, ele atravessava o quarto, tirava uma chave de prata do bolso e destrancava as portas de um grande armário embutido que ficava num canto. Dentro havia cinqüenta gavetas de cedro e em cada uma um rótulo claramente escrito pela mão de Orlando. Parou como se hesitasse qual abrir. Numa estava escrito "A Morte de Ajax", noutra "O Nascimento de Píramo", noutra "Ifigênia em Áulis", noutra "A Morte de Hipólito", noutra "Meléagro" e noutra "O Retorno de Ulisses", de fato, era difícil encontrar uma só gaveta onde faltasse o nome de um personagem mitológico num momento crítico de sua carreira. Em cada gaveta havia um documento de tamanho considerável, todo escrito pela mão de Orlando. A verdade é que Orlando tinha padecido por muitos anos. Nunca nenhum menino mendigara maçãs como Orlando mendigava papel; nenhum mendigara guloseimas como ele mendigara tinta. Esquivando-se de conversas e jogos, ele se escondia por trás das coronas, nos oratórios, ou num armário por trás do quarto de sua mãe, onde havia um grande buraco no chão e que cheirava horrivelmente a esterco de estorninho, com um tinteiro na mão, uma pena na outra e um rolo de papel sobre os joelhos. Assim, antes de completar vinte e cinco anos, escrevera cerca de quarenta e sete peças, histórias, romances, poemas; alguns em prosa, outros em verso; alguns em francês, outros em italiano; todos românticos e todos longos. Um ele mandara imprimir por John Ball, da Feathers and Coronet, defronte de St. Paul' Cross, Cheapside; mas, embora a visão dessa obra lhe desse extremo prazer, nunca ousara mostrá-la nem mesmo para sua mãe, pois sabia que escrever, e principalmente publicar, era, para um nobre, uma desgraça imperdoável.

Agora que era noite alta, e que estava sozinho, escoIheu do repositório um documento grosso chamado "Xenófila, uma Tragédia" ou um título parecido, e um outro fino, chamado simplesmente "O Carvalho" (este era o único título curto, entre todos), então se aproximou do tinteiro, empunhou a pena e executou outros passes adequados para começar os ritos desse vício. Mas deteve-se.

Como esta pausa era de extremo significado na sua história - mais ainda do que muitos acontecimentos que fazem os homens caírem de joelhos e os rios correrem com sangue -, é conveniente perguntarmos por que ele parou; e respondermos, depois da devida reflexão, que foi por uma razão como esta. A natureza, que tem pregado tantas peças em nós, plasmando-nos tão desigualmente de argila e de diamantes, de arco-íris de granito, e encerrando tudo em uma caixa freqüentemente tão insólita - pois o poeta tem cara de açougueiro e o açougueiro cara de poeta -, a natureza, que se compraz com a confusão e o mistério, de modo que mesmo hoje (1° de novembro de 1927), não sabemos porque subimos ou porque descemos novamente, nossos mais quotidianos movimentos são como a passagem de um navio por um mar desconhecido e os marinheiros no mastro principal perguntam, apontando suas lunetas para o horizonte: há terra à vista ou não? Ao quê, se somos profetas, respondemos sim; se somos verdadeiros, dizemos não; a natureza, que tem muito mais a responder do que pela talvez canhestra extensão desta frase, complicou ainda mais a sua tarefa e aumentou a nossa confusão, provendo-nos interiormente não apenas com uma perfeita miscelânea de velharias - um pedaço das calças de um policial ao lado do véu de casamento da Rainha Alexandra -, mas obrigando todo esse sortimento a ser alinhavado por um único fio. A memória é a costureira, e uma costureira caprichosa. A memória faz a agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para lá e para cá. Não sabemos o que vem a seguir ou o que virá depois. Assim, o movimento mais comum do mundo, como o de sentar-se à mesa e puxar para si o tinteiro, pode agitar mil fragmentos dispares e desconexos, ora brilhantes, ora embaçados, pendendo, flutuando, mergulhando, tremulando, como a roupa branca de uma família de quatorze pessoas numa corda ao vento. Em vez de serem uma obra simples, clara, firme, da qual nenhum homem necessitasse se envergonhar, nossos atos mais comuns estão envoltos por um trêmulo e vacilante bater de asas, um acender e apagar de luzes. Assim foi que Orlando, mergulhando a pena na tinta, viu a face irônica da Princesa perdida e instantaneamente se fez um milhão de perguntas que eram com flechas embebidas em fel. Onde estava ela e por que o tinha abandonado? O embaixador era seu tio ou seu amante? Estariam mancomunados? Teria sido forçada? Seria casada? Estaria morta? - e tudo isso o envenenou tanto que, para desafogar sua agonia em algum lugar, mergulhou a pena tão profundamente no tinteiro que a tinta esguichou sobre a mesa, o que, seja qual for a explicação que dermos (e talvez nenhuma explicação seja possível - a memória é inexplicável), de uma vez substituiu o rosto da Princesa por um rosto diferente. Mas que rosto era esse?, ele se perguntava. E teve de esperar talvez meio minuto olhando para a nova figura que se sobrepunha à antiga, como uma ilustração transparece na seguinte, antes que pudesse dizer para si mesmo: "Este é o rosto daquele homem gordo e andrajoso que se sentava na sala em Twitchett há muitos anos, quando a velha Rainha Bess veio jantar aqui e eu o vi", Orlando continuou, agarrando outro daqueles fragmentos coloridos, "sentado à mesa, quando espreitei ao descer a escada, e ele tinha os mais curiosos olhos", dizia Orlando, "que jamais se viram, mas que diabo era ele?" Orlando perguntava, pois aqui a Memória acrescentava à testa e aos olhos primeiro uma gola vulgar e gordurenta, depois um gibão marrom e finalmente um pesado par de botas, tais como usam os cidadãos em Cheapside. "Não era um nobre; não era um de nós", disse Orlando (o que ele não disse em voz alta, pois era o mais cortês dos cavalheiros; mas evidencia o efeito que um berço nobre tem sobre a mente e como é difícil para um nobre ser escritor), "um poeta, ouso dizer". Por todas as suas leis, a Memória, tendo-o perturbado suficientemente, deveria agora apagar tudo por completo ou deter-se em qualquer coisa tão idiota e fora de propósito - como um cachorro caçando um gato, ou uma velha assoando o nariz num lenço vermelho de algodão - que, em desespero por não acompanhar os passos de suas fantasias, Orlando, com determinação, golpeara o papel com a pena. (Pois podemos expulsar de casa, se decidirmos, a Memória e toda a sua comitiva.) Mas Orlando se deteve. A Memória ainda apresentava diante dele a imagem de um homem maltrapilho, de grandes olhos brilhantes. Continuava olhando, continuava parado. São estas pausas que são a nossa destruição. É aí que a insurreição adentra a fortaleza e as nossas tropas se levantam revoltadas. Ele já se detivera antes e o amor tinha irrompido, com o seu horrível tumulto, suas charamelas, seus címbalos e suas cabeças decapitadas e com mechas manchadas de sangue. Por amor ele sofrera as torturas dos condenados. De vez em quando detinha-se e pela fresta aberta pulavam a Ambição - essa megera - e a Poesia - essa feiticeira - e o Desejo da Fama - essa rameira; e, de mãos dadas, faziam do coração dele o terreiro de sua dança. De pé na solidão de seu quarto, jurou que seria o primeiro poeta de sua raça e que traria brilho imortal ao seu nome. Disse (receando os nomes e os feitos de seus antepassados) que Sir Boris tinha lutado e matado o Infiel; Sir Gawain, o Iouco; Sir Miles, o polaco; Sir Andrew, o franco; Sir Ridiard, o austríaco; Sir Jordan, o francês, e Sir Herbert, o espanhol. Mas o que restara de todas essas mortes e lusas, bebidas e amores, gastos e caçadas, cavalgadas e corridas? Um crânio, um dedo. Ao passo que, dizia ele voltando à página de Sir Thomas Browne, aberta sobre a nesa - e novamente se deteve. Como um encantamento, surgindo de todas as partes do quarto, do vento da noite e do luar, rolava a divina melodia daquelas palavras que, para não ofuscar esta página, deixaremos sepultadas, não mortas, apenas embalsamadas, tal a frescura de sua cor, tal a pureza de seu alento - e Orlando, comparando essa obra com a dos seus antepassados, proclamou que eles e seus feitos eram poeira e cinzas, mas este homem e suas palavras eram imortais.

Logo percebeu que as batalhas que Sir Miles e os outros travaram contra cavaleiros de armadura para conquistar o reino não eram tão árduas quanto esta que ele agora empreendia contra a língua inglesa para ganhar a imortalidade. Qualquer um moderadamente familiarizado com os rigores da composição não necessitará que a história seja contada em detalhes como escreveu e lhe pareceu bom; leu e pareceu-lhe ruim; corrigiu e rasgou; cortou; introduziu; ficou em êxtase; em desespero; teve noites boas e manhãs ruins; procurou captar idéias e perdeu-as; viu nitidamente diante de si o seu livro e este desapareceu; representou as partes de seus personagens enquanto comia; recitou-as enquanto andava; ora chorava; ora ria; vacilava entre um estilo e outro; ora preferia o heróico e pomposo; em seguida, o claro e o simples; ora os vales de Tempe; depois os campos de Kent ou Cornwall; e não conseguiu decidir se era o mais divino dos gênios ou o maior louco do mundo.

Foi para esclarecer esta última questão que decidiu, depois de muitos meses de trabaho febril, quebrar a solidão de anos e se comunicar com o mundo exterior. Tinha um amigo em Londres, um tal Giles Isham, de Norfolk, que, embora nobre de nascença, era relacionado com escritores e podia, sem dúvida, pô-lo em contato com algum membro dessa abençoada, na verdade sagrada, irmandade. Pois para Orlando, no estado em que se encontrava agora, havia uma tamanha glória em torno de um homem que escrevera um livro e o fizera imprimir, que ofuscava todas as glórias de sangue e posição. Em sua imaginação, parecia que mesmo os corpos daqueles que eram movidos com tão divinos pensamentos deviam ser transfigurados. Deviam ter auréola no cabelo; incenso como respiração e rosas crescendo entre seus lábios - o que certamente não acontecia nem com ele nem com o Sr. Dupper. Não podia imaginar maior felicidade do que ter permissão para sentar por trás de uma cortina e ouvi-los conversar. A simples imaginação desse discurso atrevido e variado fazia com que a lembrança das conversas que costumava ter com seus amigos cortesãos - um cachorro, um cavalo, uma mulher, um jogo de cartas - lhe parecesse extremamente grosseira. Orgulhava-se de sempre terem-no chamado de literato e de escarnecerem do seu amor à solidão e aos livros. Nunca possuíra aptidão para belas frases. Ficava paralisado, corava e caminhava como um granadeiro numa sala de visitas feminina. Caíra do cavalo duas vezes, por simples distração. Quebrara o leque de Lady Winchilsea, certa ocasião, enquanto fazia um verso. Relembrando avidamente estas e outras situações de sua incapacidade para a vida em sociedade, uma esperança inefável o possuiu, de que toda a turbulência de sua juventude, seu desajeitamento, seus rubores, seus longos passeios e seu amor pelo campo provassem que pertencia à raça mais sagrada que a dos nobres - que fosse de nascença um escritor, mais do que um aristocrata. Pela primeira vez desde a noite da grande inundação se sentiu feliz.

Orlando encarregou o Sr. Isham, de Norfolk, de entregar ao Sr. Nicholas Greene, da Estalagem Clifford, um documento que revelava admiração por sua obra (pois Nick Greene era um escritor muito famoso naqueIa época) e seu desejo de conhecê-lo; o que mal ousava pedir; pois não tinha nada a oferecer em troca; mas, se o Sr. Nicholas Greene condescendesse em visitá-lo, uma carruagem de quatro cavalos estaria na esquina de Fetter Lane, a qualquer hora que o Sr. Greene escolhesse, para conduzi-lo a salvo à casa de Orlando. Pode-se completar as frases que então se seguiram e imaginar a alegria de Orlando quando, em pouco tempo, o Sr. Greene informou a aceitação ao convite do Nobre Senhor; tomou assento na carruagem e foi recebido no salão sul do prédio principal, pontualmente às sete horas de segunda-feira, 21 de abril.

Muitos Reis, Rainhas e Embaixadores tinham sido recebidos ali. Juízes, com seus arminhos, ali estiveram. As mais belas mulheres da terra tinham ido lá; e os mais bravos guerreiros. Ali pendiam bandeiras que tinham estado em Flodden e em Agincourt. Lá estavam expostos os brasões de armas pintados com seus leões, leopardos e coroas. Lá estavam as mesas compridas onde repousavam baixelas de ouro e prata; e as amplas lareiras talhadas em mármore italiano onde todas as noites ardia até as cinzas um carvalho, com seus milhões de folhas, seus ninhos de gralhas e de carriças. Nicholas Greene, o poeta, estava ali naquele momento, modestamente vestido, com seu chapéu de abas largas e um gibão negro, com uma maleta na mão.

Que Orlando, ao se apressar para cumprimentá-lo, ficasse um pouco decepcionado era inevitável. O poeta não tinha mais que a estatura média; era uma figura mesquinha; magro, um pouco curvado, e ao entrar tropeçou no mastim - o cachorro mordeu-o. Além disso, Orlando, com todo o seu conhecimento da humanidade, estava perplexo e não sabia onde classificá-lo. Havia algo nele que não correspondia nem ao criado, nem ao cavalheiro nem ao nobre. A cabeça, com sua testa arredondada e nariz bicudo, era distinta, porém o queixo desaparecia. Os olhos eram brilhantes, mas os lábios eram frouxos e babavam. Contudo, era a expressão do rosto, como um todo, que era inquietante. Não havia nada da compostura digna que torna os rostos dos nobres tão agradáveis de se olhar; nada também da servilidade dignificante de um empregado doméstico bem-treinado; era um rosto marcado, enrugado e contraído. Embora fosse poeta, parecia mais acostumado repreender do que a elogiar; a brigar do que a murmurar; a arrastar-se do que a montar; a lutar do que a descansar; a odiar do que a amar. Isto também se constatava pela rapidez dos seus movimentos; e por algo ardente e suspeito em seu olhar. Orlando estava um pouco perplexo. Mas foram jantar.

Aí Orlando, que geralmente achava as coisas naturais, ficou pela primeira vez bastante envergonhado do número de seus criados e do esplendor de sua mesa. Mais estranho ainda, pensava com orgulho - pois a lembrança era geralmente desagradável - naquela Avó Moll que ordenhara vacas. Estava prestes a aludir àqueIa mulher humilde e a seus baldes de leite quando poeta se antecipou a ele dizendo ser esquisito que nome Greene fosse tão comum, pois a família viera com o Conquistador e era da mais alta nobreza da França. Infelizmente haviam decaído e feito pouco mais do que deixar seu nome ao burgo real de Greenwich. Seguiram-se conversas do mesmo tipo - sobre castelos perdidos, brasões de armas, primos que eram baronetes no norte, alianças por casamentos com famílias nobres do oeste, como alguns Greens escreviam o nome com "e" no final e outros sem "e" - que duraram até a chegada da caça à mesa. Então Orlando conseguiu dizer algo sobre a Avó Moll e suas vacas e já tinha aliviado um pouco do peso do coração quando foram servidas as aves selvagens. Mas só quando a Malvasia estava sendo servida livremente é que Orlando ousou mencionar que considerava um assunto mais importante do que os Greens ou as vacas; ou seja, o sagrado tema da poesia. À primeira menção da palavra, os olhos do poeta flamejaram; abandonou os ares finos de cavalheiro, que adotara; bateu com o copo na mesa e iniciou uma das mais longas, intrincadas, apaixonadas e amargas narrativas que Orlando tinha ouvido, exceto dos lábios de uma mulher abandonada, ou de outro poeta e de um critico, sobre uma peça sua. Da própria natureza da poesia. Orlando apenas conseguiu saber que era mais difícil de vender do que a prosa, e, embora as linhas fossem mais curtas, demoravam mais a serem escritas. Assim a conversa continuou com desdobramentos intermináveis, até que Orlando se aventurou a insinuar que ele mesmo já tinha sido suficientemente imprudente para escrever mas nesse momento o poeta deu um pulo da cadeira. Um rato havia guinchado nos lambris, disse ele. A verdade é que, explicou, seus nervos estavam em tal estado que o guincho de um rato o aborrecia por quinze dias. Sem dúvida a casa estava cheia de bichos, mas Orlando não os escutava. O poeta então contou a Orlando a história completa de sua saúde nos últimos dez anos. Tinha estado tão mal que podia se admirar de ainda estar vivo. Tivera paralisia, gota, malária, hidropisia e três tipos de febre, uma após outra; juntava-se a isso que tinha coração dilatado, baço hipertrofiado e fígado doente. Mas, sobretudo, dizia a Orlando, tinha sensações na espinha que eram indescritíveis. Havia um calombo na altura da terceira vértebra de cima para baixo, que ardia como fogo; um outro à altura da segunda de baixo para cima, que era frio como gelo. Às vezes acordava com a cabeça como chumbo; outras como se mil velas estivessem acesas e as pessoas soltassem foguetes dentro dele. Era capaz de sentir uma pétala de rosa através do colchão, dizia; podia se orientar em Londres pela sensação do calçamento. Todo ele era uma peça de maquinária tão finamente construída e tão curiosamente montada (aqui levantou a mão como se inconscientemente, e na verdade era a mais bela forma imaginável) que ficava consternado em pensar que vendera apenas quinhentas cópias de seu poema, mas sem dúvida isso era devido à conspiração que havia contra ele. Tudo o que podia dizer, concluiu batendo com o punho na mesa, era que a arte da poesia estava morta na Inglaterra.

Como podia isso ser verdade, com Shakespeare, Marlowe, Ben Jonson, Browne, Dorme, todos escrevendo agora, ou já tendo escrito? Orlando, recitando os nomes dos seus heróis favoritos, não podia entender.

Greene riu sardonicamente. Shakespeare, ele admitia, escrevera algumas cenas bastante boas; porém ele as tirara principalmente de Marlowe. Marlowe era um rapaz promissor, mas o que se poderia dizer de um jovem que morreu antes dos trinta? Quanto a Browne decidiu escrever poesia em prosa, e as pessoas logo se cansam de caprichos como esse. Dorme era um charlatão que dissimulava sua falta de idéias com palavra difíceis. Os crédulos se deixavam enganar; mas o estilo estaria fora de moda daqui a doze meses. Quanto a Ben Jonson - Ben Jonson era seu amigo, e ele nunca falava mal de seus amigos.

Não, concluiu, a grande época da literatura é o passado; a grande época da literatura foi a grega; a época elisabetana era inferior à grega em todos os aspectos Naqueles tempos os homens acalentavam uma divina ambição a que ele chamava La Gloire (pronunciava "Glour", de modo que Orlando, a principio, não entendeu o que ele queria dizer). Agora todos os jovens escritores estavam a soldo dos livreiros e despejavam qualquer lixo que vendesse. Shakespeare era o principal culpado disso e já estava sofrendo as conseqüências. Sua própria época, dizia, era marcada por conceitos preciosistas e experimentos selvagens - nenhum dos quais os gregos teriam tolerado por um só momento. Embora lhe custasse muito dizer - pois ele amava a literatura como amava a vida -, não via nada de bom no presente e não tinha esperança no futuro. Então, serviu-se de mais um copo de vinho.

Orlando estava chocado por essas doutrinas; contudo, não podia deixar de observar que o próprio crítico não parecia deprimido. Ao contrário, quanto mais denunciava a sua própria época, mais complacente ficava Podia lembrar, disse, de uma noite na Taverna do Galo na rua Fleet, quando Kit Marlowe estava lá com alguns outros. Kit estava alegre, um pouco bêbado - o que facilmente ficava - e disposto a dizer bobagens. Podia vê-lo ainda erguendo o copo para os companheiros e gaguejando: "Raios te partam, Bill!" (isso era para Shakespeare) "Está vindo uma grande onda e tu estás no topo dela", querendo com isso dizer - Greene explicou - que eles estavam à beira de uma grande época da literatura inglesa e que Shakespeare seria um poeta de alguma importância. Felizmente para ele, foi assassinado duas noites depois, numa briga de bêbados, e assim não viveu para ver como se concretizara a sua predição. "Pobre coitado", disse Greene, "dizer uma coisa destas. Uma grande época, mesmo, a era elisabetana, uma grande época!”

- Assim, meu caro Senhor - continuou, acomodando-se confortavelmente na cadeira e rolando entre os dedos o copo de vinho -, devemos tirar o máximo disto, apreciar o passado e honrar aqueles escritores há uns poucos deles - que tomam a antiguidade como modelo e escrevem não por dinheiro mas por "Glour". - (Orlando desejaria uma pronúncia melhor). - A "Glour" - disse Greene - "é o aguilhão das almas nobres. Se eu tivesse uma pensão de trezentas libras ao ano, paga trimestralmente, viveria exclusivamente para a "Glour". Ficaria na cama todas as manhãs, lendo Cícero. Imitaria seu estilo, de forma que não se pudesse fazer diferença entre nós. Isto é o que eu chamo de boa escrita - disse Greene -, isto é o que eu chamo de "Glour". Mas é necessário ter uma pensão para fazer isso.

A essa altura, Orlando já perdera toda a esperança de discutir sua obra com o poeta; mas isso importava menos do que a conversa que ora mantinham sobre as vidas e os personagens de Shakespeare, de Ben Jonson e dos demais, todos os quais Greene tinha conhecido intimamente e a respeito de quem tinha mil anedotas divertidas para contar. Orlando nunca rira tanto em sua vida. Esses, então, eram os seus deuses! Metade deles bêbados, todos libertinos. Muitos brigavam com suas mulheres; nenhum estava acima de uma mentira ou de uma intriga torpe. Sua poesia era rabiscada no verso de rolo de roupa, apoiada na cabeça de um aprendiz de tipógrafo, à porta da rua. Assim, Hamlet foi para a impressão; assim, Lear; assim, Otelo. Não é de admirar, como dizia Greene, que estas peças tenham os erros que têm.

O resto do tempo era gasto em farras e festejos, em tabernas e cervejarias, onde eram ditas coisas que passavam por inteligentes e onde se faziam coisas tais que se comparadas às maiores loucuras da corte, estas pareciam ingênuas. Tudo isso Greene contava com um espirituosidade que despertava em Orlando o mais alto grau de prazer. Ele tinha um poder de mímica que trazia os mortos à vida e podia dizer as mais belas coisas a respeito de livros, desde que tivessem sido escritos há trezentos anos.

Assim passava o tempo, e Orlando sentia por seu hóspede uma estranha mistura de simpatia e desdém, de admiração e pena, bem como alguma coisa muito indefinida para ter qualquer nome, mas era algo de medo de fascinação. Ele falava incessantemente de si, mas er tão boa companhia que se podia ouvir a vida inteira história de sua malária. Ora era tão espirituoso; ora tão irreverente; ora tomava liberdade com os nomes de Deus e da Mulher; ora cheio de artimanhas e de estranhos saberes na cabeça; podia preparar uma salada de trezentas maneiras diferentes; sabia tudo sobre a mistura de vinhos; tocava meia dúzia de instrumentos musicais, foi a primeira pessoa, e talvez a última, a tostar queijo na grande lareira italiana. Que não distinguisse um gerânio de um cravo, um carvalho de uma bétula, um mastim de um galgo, um cordeiro de uma ovelha, trigo de cevada, terra arada de terreno baldio; que ignorasse a rotação das colheitas; pensasse que as laranjas crescessem embaixo da terra e os nabos nas árvores; que preferisse qualquer paisagem da cidade à do campo; - tudo isso muito mais divertia Orlando, que nunca em sua vida encontrara alguém desse tipo. Até as empregadas, que o desprezavam, riam de suas piadas, e os empregados que o detestavam, ficavam por perto para ouvir suas histórias. Na verdade, a casa nunca estivera tão animada quanto agora, que ele estava lá - tudo isso deu a Orlando muitos motivos para pensar e fez com que comparasse esta maneira de viver com a anterior. Lembrou o tipo de conversa que costumava ter sobre a apoplexia do Rei da Espanha, ou sobre o cruzamento de uma cadeIa; relembrou como passava o dia entre os estábulos e o quarto de vestir; lembrou como os Lordes roncavam sobre os copos de vinho e detestavam quem os acordasse. Relembrou quão ativos e valentes eram de corpo; quão preguiçosos e tímidos de espírito. Preocupado com estes pensamentos e incapaz de encontrar um equilíbrio adequado, chegou à conclusão de que admitira em casa um calamitoso espírito de intranqüilidade que nunca mais lhe permitiria dormir em paz.

No mesmo momento, Nick Greene chegava à conclusão exatamente oposta. Descansando na cama de manhã, com travesseiros fofos, lençóis macios, e olhando pela sacada para o gramado que há séculos não conhecia nem dente-de-leão nem erva daninha, pensou que, se não conseguisse escapar, seria sufocado vivo. Levantar-se ouvindo o arrulho dos pombos, vestir-se ouvindo o correr das fontes... pensou que, se não ouvisse o rodar das carroças nas pedras da rua Fleet, nunca mais escreveria um verso. Se isso continuar por muito tempo pensava enquanto ouvia o lacaio reparando a lareira e espalhando pratos de prata sobre a mesa na sala ao lado - eu cairei no sono e (a esta altura deu um prodigioso bocejo) morrerei dormindo.

Assim, foi procurar Orlando em seu quarto e explicou que não conseguira pregar os olhos a noite inteira, por causa do silêncio. (Na verdade, a casa era cercada por um parque de quinze milhas de circunferência e um muro de dez pés de altura.) Disse que o silêncio era a coisa mais opressiva que havia para seus nervos. Com a permissão de Orlando, terminaria sua visita naquela manhã mesmo. Orlando sentiu certo alívio com isso mas também grande relutância em deixá-lo partir. A casa, pensou, pareceria muito insípida sem ele. Na partida (pois antes nunca mencionara o assunto) ele cometeu a temeridade de entregar sua peça sobre "A Morte de Hércules" ao poeta e pedir-lhe a opinião. O poeta recebeu; murmurou algo sobre "Glour" e Cícero, que Orlando interrompeu, prometendo pagar-lhe uma pensão trimestral; depois do que, Greene, com muitos protestos de afeto, saltou para a carruagem e partiu.

O grande salão nunca parecera tão grande, tão suntuoso ou tão vazio como quando a carruagem se foi. Orlando sabia que nunca mais teria ânimo para tostar queijo na lareira italiana. Nunca mais teria espírito para contar piadas sobre as pinturas italianas; não teria habilidade para misturar o ponche como deveria ser misturado; mil pilhérias e trocadilhos estariam perdidos para ele. Contudo, que alívio ficar livre do som daquela voz lamuriante, que luxo estar sozinho mais uma vez - não podia deixar de refletir, enquanto soltava o mastim que estivera amarrado durante seis semanas, pois nunca via o poeta sem mordê-lo.

Nick Greene desceu na esquina de Fetter Lane nesta mesma tarde e encontrou as coisas mais ou menos como as deixara. A Sra. Greene estava dando à luz uma criança num quarto; Tom Fletcher bebia gim noutro. Os versos estavam esparramados pelo chão; o jantar - ou coisa parecida - estava sobre uma penteadeira onde as crianças tinham feito bolos de lama. Mas esta, Greene sentiu, era a atmosfera para escrever; aqui podia escrever e escreveu. O tema era talhado para ele. Um Lord em casa. Uma visita a um nobre no campo - seu novo poema teria um título como este. Tomando a pena, com a qual seu filho pequeno estava fazendo cócegas na orelha do gato, mergulhando-a num porta-ovo que servia de tinteiro, Greene compôs, de pronto, uma sátira muito espirituosa. Era tão bem-feita que ninguém tinha dúvidas de que o jovem Lorde ridicularizado era Orlando; seus ditos e feitos mais secretos, seus entusiasmos e loucuras, a cor exata de seu cabelo, sua maneira estrangeira de pronunciar os erres estavam ali, ao vivo. E ainda houvesse alguma dúvida, Greene esclarecia ao santo, introduzindo quase sem disfarces passagens daquela tragédia aristocrática "A Morte de Hércules", que achou, conforme o esperado, extremamente prolixa e bombástica.

O panfleto, que imediatamente atingiu várias edições e pagou as despesas do décimo parto da Sra. Greene foi logo enviado a Orlando por amigos que se encarregam dessas tarefas. Quando o leu, o que fez com absoluta compostura do princípio ao fim, chamou um lacaio; entregou-lhe o documento na ponta de uma pinça; ordenou que o jogasse no centro do ponto mais sujo e fétido de sua propriedade. E, quando o homem ia saindo, ele o deteve: "Pega o cavalo mais veloz do estábulo", disse, "galopa a rédea solta para Harwich. Lá embarca num navio para a Noruega. Compra-me, do próprio canil do Rei, os mais belos galgos da matilha real, um macho e uma fêmea. Trá-los sem demora. Pois", murmurou, quase como num sopro, voltando-se para os livros, "estou cansado dos homens.”

O lacaio, perfeitamente treinado em suas obrigações, inclinou-se e desapareceu. Desempenhou sua tarefa tão eficientemente que estava de volta em três semanas, conduzindo na mão na trela com os mais belos galgos, um dos quais, a fêmea, naquela mesma noite deu à luz uma ninhada de oito lindos cachorrinhos, sob a mesa de jantar. Orlando mandou levá-los para o seu quarto de dormir.

- Pois - disse -, não quero mais saber dos homens.

No entanto, pagou a pensão trimestralmente.

Assim, aos trinta anos, mais ou menos, este jovem nobre tivera não apenas todas as experiências que a vida oferece como também vira a inutilidade de todas elas. Amor e ambição, mulheres e poetas eram igualmente vãos. A literatura era uma farsa. Na noite seguinte à leitura de "Visita a um Nobre no Campo", de Greene, queimou num grande incêndio cinqüenta e sete obras poéticas, conservando apenas "O Carvalho", que era seu sonho de adolescente e muito curto. Duas coisas restavam-lhe para confiar: cachorros e a natureza; um galgo e uma roseira. O mundo, com toda a sua variedade, e a vida com toda a sua complexidade, tinham sido reduzidos a isso. Cães e um arbusto eram tudo. Então, sentindo-se livre de uma vasta montanha de ilusão, e por conseguinte, despido, chamou seus cachorros e caminhou a passos largos pelo parque.

Tanto tempo ficara enclausurado escrevendo e lendo que andava meio esquecido das amenidades da natureza, que em junho podem ser grandes. Quando atingiu aquele morro alto, de onde, nos dias claros, se avistava metade da Inglaterra e ainda uma faixa de Gales e da Escócia, deitou-se sob o seu carvalho favorito e sentia como se não precisasse mais falar com nenhum homem ou mulher enquanto vivesse; se os seus cães não desenvolvessem o dom da fala; se nunca encontrasse novamente um poeta ou uma Princesa, poderia viver os anos que lhe restavam razoavelmente satisfeito.

Ali voltou então, dia após dia, semana após semana mês após mês, ano após ano. Viu as faias ficarem douradas e as samambaias novas abrirem-se; viu a lua em foice e depois redonda; viu - mas provavelmente leitor pode imaginar a passagem que se segue e como cada árvore e planta das proximidades é descrita primeiro verde, depois dourada; como a lua nasce e o sol se põe; como a primavera sucede ao inverno e o outono ao verão; como a noite sucede ao dia e o dia à noite; como acontece primeiro um temporal e depois a bonança; como as coisas permanecem as mesmas por dois ou três séculos, exceto por um pouco de poeira e alguma teias de aranha que uma velha pode varrer em meia hora; uma conclusão a que se poderia chegar mais rapidamente, sem dúvida, pela simples afirmativa de que "o Tempo passou" (aqui a duração exata poderia vir entre parênteses) e de que nada aconteceu...

Mas o Tempo, infelizmente, embora faça florescerem e murcharem animais e vegetais com surpreendente pontualidade, não tem o mesmo efeito simples sobre a mente humana. A mente humana, por outro lado, até com igual estranheza sobre o corpo do tempo. Uma hora, uma vez alojada no estranho elemento do espírito humano, pode ser estendida cinqüenta a cem vezes mais do que a sua duração no relógio; inversamente, um hora pode ser representada com precisão por um segundo, no tempo mental. Esta extraordinária discrepância entre o tempo do relógio e o tempo da mente é menos conhecida do que deveria ser e merece investigação mais completa. Mas o biógrafo, cujos interesses são, como dissemos, bastante restritos, deve ater-se a uma simples afirmação: quando um homem chega à idade dos trinta como Orlando, o tempo, quando ele pensa, se torna desordenadamente longo; quando age, desordenadamente curto. Assim, Orlando dava ordens e fazia num relâmpago os negócios de suas vastas propriedades; mas logo que estava sozinho no morro, debaixo do carvalho, os segundos começavam a arredondar-se e a completar-se até parecer que não acabariam nunca. Preenchiam-se, além disso, com a mais surpreendente variedade de objetos. Pois não apenas ele se defrontava com problemas que têm confundido os maiores sábios - tais como: O que é o amor? O que é a amizade? O que é a verdade? - mas, quando pensava nisso, todo o seu passado, que lhe parecia tão longo e variado, precipitava-se num segundo prestes a cair, dilatava-lhe uma dúzia de vezes o tamanho natural, coloria-o com mil matizes e enchia-o com toda a miscelânea do universo.

Com tal pensamento (ou qualquer que seja o nome que lhe dermos) ele passou meses e anos de sua vida. Não seria exagero dizer que saia depois do café da manhã como um homem de trinta e voltava para casa para jantar como um homem de pelo menos cinqüenta e cinco. Algumas semanas acrescentavam um século à sua idade, outras não mais que três segundos, no máximo. De um modo geral, a tarefa de calcular a duração da vida humana (dos animais não pretendemos falar) está acima da nossa capacidade, pois quando dizemos que algo dura séculos somos lembrados de que é mais breve do que a queda de uma pétala de rosa. Das duas forças que alternadamente e - o que é mais confuso ainda ao mesmo tempo dominam nossas infelizes estupidezes - brevidade e diuturnidade - Orlando ficava às vezes sob a influência de uma divindade com pés de elefante, e outras, da de um mosquito alado. A vida parecia-lhe de uma prodigiosa duração. Mesmo assim, ela corria como um raio. Mas, mesmo quando se alongava ao máximo e os momentos se dilatavam, ele parecia vaguear sozinho nos desertos da vasta eternidade, não havia tempo para alisar e decifrar aqueles pergaminhos rabiscados que durante trinta anos homens e mulheres tinham amarrado apertadamente em seu coração e cérebro. Muito antes que ele refletisse sobre o Amor (o carvalho lançara suas folhas e sacudira-as ao chão uma dúzia de vezes), este seria expulso do campo pela Ambição substituído pela Amizade ou pela Literatura. E como a primeira questão - O que é o Amor? - não tinha sido resolvida, ela retornaria à menor ou nenhuma provocação e motivaria Livros ou Metáforas sobre Por que se vive à margem, para ali esperar até surgir a chance de vir à tona novamente. O que tornava o processo ainda mais longo era ser profusamente ilustrado, não apena com figuras, como a da velha Rainha Elizabeth deitada no seu divã de tapeçaria, de brocado cor-de-rosa, com uma caixa de rapé de marfim na mão e uma espada de cabo de ouro a seu lado, mas com cheiros - ela está fortemente perfumada - e com sons - os veados estavam balindo no Parque Richmond naquele dia de inverno. E então o pensamento do amor ficaria todo amarelado de neve e inverno; com toras de árvores queimando com mulheres russas, espadas de ouro e o balir dos versos; com o velho Rei Jaime babando, e fogos e sacos e tesouros nos porões dos navios elisabetanos. Cada uma das coisas, toda vez que tentava deslocar de lugar em sua mente, ele encontrava obstruída com outro assunto como a protuberância do vidro que, depois de um ano no fundo do mar, aumentou com ossos, libélulas e moscas e cachos de mulheres afogadas.

"Por Júpiter, outra metáfora!" exclamaria ao dizer isso (o que demonstra a maneira desordenada e circular como sua mente trabalha, e explica por que o carvalho floresceu e murchou tantas vezes antes que ele chegasse a uma conclusão sobre o Amor). "E qual a razão disso?", perguntava-se. "Por que não dizer simplesmente em tantas palavras -" e então tentava pensar durante meia hora - ou seriam dois anos e meio? - como dizer simplesmente em tantas palavras o que é o amor "Uma imagem como esta é evidentemente falsa", argumentava, "pois nenhuma libélula, exceto sob circunstâncias muito excepcionais, poderia viver no fundo do mar. E se a literatura não é a Noiva e Companheira de Verdade, então o que é? Tudo é confuso", gritava, "por que dizer Companheira se já se disse Noiva? Por que não dizer simplesmente o que se quer e pronto?”

Assim ele tentou dizer que a grama é verde e o céu é azul e então propiciar o espírito áustero à poesia, a quem, embora a uma grande distância, ele não podia deixar de reverenciar. "O céu é azul", dizia, "a grama é verde." Olhando para o alto, viu o contrário, o céu é como os véus que mil Madonas deixam cair de seus cabelos; e a grama foge e escurece como um vôo de meninas fugindo dos abraços de sátiros cabeludos das florestas encantadas. "Palavra de honra", dizia (pois adquirira o mau hábito de falar alto), "não vejo que uma seja mais verdadeira que a outra. Ambas são totalmente falsas." E ele se desesperava por não ser capaz de resolver o problema - o que é a poesia, o que é a verdade -, e caiu em profunda depressão.

E aqui podemos aproveitar uma pausa neste solilóquio e refletir como era estranho ver Orlando estendido no chão, apoiado no cotovelo num dia de junho e ponderar que este belo rapaz com todas as suas faculdades e com o corpo saudável, conforme testemunham as faces e os membros - um homem que nunca pensou duas vezes para encabeçar um ataque ou enfrentar um duelo -, pudesse ser tão sujeito à letargia do pensamento e se tornasse tão suscetível que, em se tratando de poesia, ou de sua competência nela, ficasse tão tímido quanto uma menininha atrás da porta da cabana de sua mãe. Em nossa opinião, a ridicularização de sua tragédia, feita por Greene, feriu-o tanto quanto a Princesa ridicularizando o seu amor. Mas, voltando - Orlando continuou a pensar. Continuou a olhar a grama e o céu, procurando imaginar o que diria a respeito deles um verdadeiro poeta, que tem seus versos publicados em Londres. A memória, entretanto (cujos hábitos já foram descritos), mantinha firme diante de seus olhos o rosto de Nicholas Greene como se aquele homem sardônico, de lábios frouxos, traiçoeiro conforme demonstrara, fosse a Musa em pessoa e a quem Orlando devesse render homenagens. Assim, Orlando, naquela manhã de verão, ofereceu-lhe uma variedade de frases, umas simples, outras figuradas, e Nick Greene continuava a sacar a cabeça, a escarnecer e a murmurrar algo sobre "Cylour", Cícero e a morte da poesia na nova época. Finalmente, pondo-se de pé (era inverno e fazia muito frio), Orlando pronunciou um dos mais importantes juramentcos de sua vida, pois amarrou-o à mais severa das servidões. "Que eu seja fulminado", disse, se algum dia escrever mais uma palavra ou tentar escrever uma palavra a mais para agradar a Nick Greene ou à Mulher; Bom, mau, cru medíocre, escreverei de hoje em dias para agradar a mim mesmo"; e aqui fez como se estivesse rasgando uma pilha de papéis e atirando-a na cara daquele homem beiçudo e escarnecedor. Então, como um vira-lata se esquiva se lhe atiram uma pedra, a Memória apagou a imagem de Nick Greene, substituindo-a... por nada.

Mas Orlando, mesmo assim, continuou a pensar. Na verdade, tinha muito em que pensar. Pois quando rasgou o pergaminho, e o fez de uma só vez, o brasonado que fizera em seu próprio favor na solidão seu quarto nomeando-se - como o Rei nomeia os Embaixadores - o primeiro poeta de sua raça, o primeiro escritor de sua época, conferindo eterna imortalidade à sua alma e garantindo para o seu corpo um túmulo em meio a loureiros e bandeiras intangíveis, perpetuamente reverenciadas por um povo. Por mais eloqüente que fosse tudo isso, ele rasgava nesse momento e atirava na lixeira. "A Famas", dizia, "é como (e, como não havia um Nick Greene; para interrompê-lo, continuou a se divertir com imagens das quais escolheremos apenas umas duas das mais tranqüilas) um casaco trançado que tolda os membros; uma jaqueta de prata que refreia o coração; um escudo pintado que cobre um espantalho" e etc. O cerne; de suas frases era que, enquanto a faz impede e tolhe, a obscuridade envolve o homem como um nevoeiro; a obscuridade é escura, ampla e livre. A obscuridade deixa que a mente tome seu caminho sem impedimentcos. Sobre o homem desconhecido é derramada a misericordiosa inundação da obscuridade. Ninguém sabe aonde ele vai ou de onde vem. Pode procurar a verdade e dizé-la; só ele é livre; só ele é verdade; só ele está em paz. E assim caiu num estado de tranqüilidade, embaixo do carvalho, cujas duras raízes expostas acima da terra pareceram-lhe mais confortáveis do que nunca.

Mergulhado por muito tempo em profundos pensamentos quanto ao valor da obscuridade, o prazer de não ter um nome, mas ser como uma onda que retorna às profundezas do mar; pensando como a obscuridade liberta a mente dos aborrecimentos da inveja e do rancor; como faz correr nas veias as águas livres da generosidade e da magnanimidade; como permite dar e tomar sem agradecimentos ou louvores; o que deve ter sido a maneira de todos os grandes poetas, supunha (embora o seu conhecimento de grego não fosse suficiente para confirmá-lo), pois, pensava, Shakespeare deve ter escrito assim e os construtores da igreja construíam assim, anonimamente, sem necessitar de agradecimentos nem de citações, mas só pelo seu trabalho durante o dia e um pouco de cerveja à noite - "como esta vida é admirável", pensou, esticando as pernas sobre o carvalho. "E por que não aproveitar este exato momento?" O pensamento o atingiu como uma bala. A ambição caiu como um prumo. Livre da aflição do amor desprezado e da vaidade exprobrada e de todos os outros espinhos e ferrões com que as urtigas da vida o tinham queimado quando ambicionava a fama, mas que não podiam mais se impor a uma pessoa desinteressada da glória, abriu os olhos, que tinham estado bem abertos todo esse tempo mas tinham visto apenas os pensamentos, e viu, jazendo no vale a seus pés, sua casa.

Lá estava ela, ao sol precoce da primavera. Parecia mais uma cidade do que uma casa, mas uma cidade construída, não aqui e ali, como este ou aquele homem queriam, porém deliberadamente, por um único arquiteto, com uma única idéia na cabeça. Pátios e prédios, cinzentos, vermelhos, cor de ameixa, dispunham-se ordenada e simetricamente; uns pátios eram oblongos, outros quadrados; neste havia uma fonte; naquele uma estátua; alguns prédios eram baixos, outros pontudos; aqui havia uma capela, ali um campanário; espaços de grama verde entre moitas de cedro e canteiros de flores brilhantes; o todo era cercado por um sólido muro cilíndrico - tão bem distribuído que cada parte parecia ter espaço para se desenvolver apropriadamente; enquanto a fumaça de inúmeras chaminés volteava perpetuamente no céu. Esta vasta e harmoniosa construção, que podia abrigar mil homens e talvez dois mil cavalos, foi construída, pensava Orlando, por operários cujos nomes eram desconhecidos. Aqui viveram, por mais séculos do que eu posso contar, as obscuras gerações da minha própria obscura família. Nenhum desses Ricardos, Joões, Ana, Elisabetes deixou vestígio de si, embora todos trabaIhando juntos, com suas pás e agulhas, seus amores e maternidades, tenham deixado isto.

Nunca a casa lhe parecera mais nobre e mais humana. Por que, então, desejara suplantá-los? Pois parecia inútil e arrogante ao extremo tentar melhorar aquele anônimo trabalho de criação; os labores daquelas mãos desaparecidas. Melhor seria continuar desconhecido, deixar atrás de si um arco, uma adega, um muro onde os pêssegos amadureçam do que queimar como um meteoro e não deixar cinzas. Pois afinal, dizia, animando-se enquanto olhava a grande casa lá embaixo, no vale verde, os desconhecidos senhores e senhoras que ali viveram nunca se esqueceram de deixar algo para os que viessem depois; para o teto, que pode ter goteiras; para a árvore, que pode cair. Havia sempre na cozinha um canto aquecido para .o velho pastor; comida para os famintos; suas taças eram polidas, embora eles estive sem dentes, e suas janelas eram iluminadas, embora estivessem morrendo. Embora fossem lordes, agradava-lhes mergulhar na obscuridade com o caçador de toupeiras e com o pedreiro. Nobres obscuros, construtores esquecidos - assim ele os apostrofava com um cálculo que contradizia inteiramente os críticos que o chamavam de frio, indiferente, indolente (a verdade é que a qualidade em geral está do lado oposto àquele onde procuramos) - assim ele apostrofava sua casa e sua gente, com termos da mais comovedora eloqüência; mas ao chegar à peroração - e o que é a eloqüência sem peroração? -, atrapalhou-se. Gostaria de ter terminado com um floreio, prometendo seguir suas pegadas e acrescentar outra pedra à construção. Mas, uma vez que a construção já ocupava nove acres, acrescentar uma única pedra parecia supérfluo. Pode-se mencionar móveis numa peroração? Pode-se falar de cadeiras, mesas e tapetes para estender ao lado das camas? Pois, o que quer que fosse necessário à peroração, era disso que a casa precisava. Deixando o discurso provisoriamente por terminar, desceu a colina a passos largos, de novo resolvido a dedicar-se a mobiliar a mansão. O aviso - de que devia se apresentar a ele imediatamente - trouxe lágrimas aos olhos da velha Sra. Grimsditch, agora já um pouco envelhecida. Juntos percorreram a casa.

No porta-toalhas do quarto do Rei ("e era do Rei Jaime, meu Senhor", disse ela, insinuando que fazia muitos anos desde que um rei dormira sob aquele teto; mas os odiosos dias do Parlamento tinham terminado e agora havia novamente uma Coroa na Inglaterra) faltava um pé; não havia suportes para os jarros no pequeno gabinete que conduzia à sala de espera do pajem da Duquesa; o Sr. Greene fizera uma mancha no tapete com o seu horrível cachimbo, que ela e Judy, por mais que esfregassem, nunca tinham conseguido tirar. Na verdade, quando Orlando começou a fazer os cálculos para mobiliar com cadeiras de pau-rosa e armários de cedro, com bacias de prata, vasos de porcelana e tapetes persas cada um dos trezentos e sessenta e cinco quartos da casa, verificou que os gastos não seriam leves; e, se sobrassem alguns milhares de libras de sua fortuna, estas seriam suficientes apenas para pendurar algumas tapeçarias nas galerias, arrumar a sala de jantar com belas cadeiras esculpidas e prover de espelhos de prata maciça e cadeiras do mesmo metal (pelo qual tinha exagerada paixão) os dormitórios reais.

Ele então pôs-se a trabalhar com afinco, como se pode provar, sem dúvida, se olharmos seus livros. Vamos ver o inventário do que ele comprou nessa época, com as despesas anotadas à margem - mas estas nós omitimos.

- Cinqüenta pares de cobertores espanhóis, idem de cortinas carmesim e brancas; sanefas de cetim branco bordadas com seda carmesim e branca...

- Setenta cadeiras de cetim amarelo e sessenta banquetas, todas forradas com assentos de entretela...

- Sessenta e sete mesas de nogueiras...

- Dezessete dúzias de caixas contendo cada uma cinco dúzias de copos de Veneza...

- Cento e duas passadeiras, cada uma com trinta jardas de comprimento...

- Noventa e sete almofadas de damasco carmesim, cobertas com renda prateada, escabelos de tecido e cadeiras combinando...

- Cinqüenta braços, com doze luzes cada...”

Já - este é um efeito que as listas têm sobre nós começamos a bocejar. Mas, se paramos, é somente porque a enumeração é tediosa, não porque tenha acabado. Há noventa e nove páginas mais, e a soma total desembolsada chega a muitos milhares - ou seja, a milhões, em nosso dinheiro. E se o seu dia era passado dessa forma, à noite, novamente, Lorde Orlando podia ser encontrado calculando quanto custaria para nivelar um milhão de montes feitos pelas toupeiras, se os homens fossem pagos a dez pente a hora; e, novamente, quantas toneladas de pregos, a 5 1/2 pente por quarto de quartilho, seriam necessárias para consertar a cerca ao redor do parque, que tinha quinze milhas de circunferência. E assim por diante.

A narração, repetimos, é cansativa, pois um armário é muito parecido com outro, e um monte feito por uma toupeira não difere de um milhão deles. Proporcionoulhe algumas viagens agradáveis e algumas belas aventuras, como, por exemplo, quando contratou uma cidade inteira de mulheres cegas perto de Bruges para costurarem os cortinados para o dossel de prata de uma cama; e a história de sua aventura com um mouro em Veneza, de quem comprou (somente a ponta de espada) sua escrivaninha laqueada, que mereceria ser contada por outra pessoa. Nem à obra faltava variedade; pois ali chegavam de Sussex, arrastadas por juntas, grandes árvores para serem serradas e servirem como piso das galerias; e uma arca da Pérsia, forrada de lã e serragem, da qual, finalmente, ele retiraria um simples prato ou um anel de topázio.

Por fim, não havia mais espaço nas galerias para outra mesa; nas mesas não havia espaço para outro armário; nos armários, espaço para outro vaso de flores; nos vasos não havia mais espaço para outro ramalhete; não havia espaço para nada em parte alguma; em suma, a casa estava mobiliada. No jardim, galamos, açafrões, jacintos, magnólias, rosas, lírios, ésteres, dálias em todas as suas variedades, pereiras, macieiras, cerejeiras e amoreiras, com uma enorme quantidade de arbustos raros e floridos, de árvores verdes e perenes, cresciam tão densos, com raízes tão próximas que não havia nenhum pedaço de terra sem flor, nenhum pedaço de relva sem sombra. Além disso, importara aves selvagens de plumagem alegre; dois ursos da Malásia, cujos modos rudes escondiam, ele tinha certeza, corações confiáveis.

Tudo agora estava pronto. E ao anoitecer os inúmeros candelabros de prata eram acesos, e as leves brisas que continuamente se movimentavam pelos corredores balançavam as tapeçarias verdes e azuis, de modo que parecia que os caçadores estavam cavalgando e Dafne voando; quando a prata brilhou, a laca cintilou e a lenha ardeu; quando as cadeiras esculpidas tiveram os braços recolocados; e os golfinhos nadavam pelas paredes com sereias nos dorsos; quando isto e muito mais ficou pronto a seu gosto, Orlando andava pela casa acompanhado de seus cães, e se sentiu satisfeito. Agora, pensou, tinha assunto para completar a sua peroração. Talvez fosse melhor recomeçar o discurso. Contudo, quando passeava pelas galerias, sentia que alguma coisa estava faltando. Cadeiras e mesas, embora ricamente douradas e esculpidas, sofás apoiados em patas de leão e pescoços de cisnes, camas com os mais macios edredons de penas de cisnes não bastam por si mesmos. Pessoas sentadas neles, pessoas deitadas neles, os tornam surpreendentemente melhores. Por isso Orlando iniciou uma série de esplêndidas festas para a nobreza e os cavalheiros da vizinhança. Os trezentos e sessenta e cinco quartos ficaran cheios, uma ocasião, por um mês. Os hóspedes se comprimiam pelas cinqüenta e duas escadas. Trezentos empregados se movimentavam pelas despensas. Havia banquetes quase todas as noites. De modo que em poucos anos Orlando tinha estragado o seu veludo e gastado metade de sua fortuna, mas conquistara as boas graças de seus vizinhos, exercia várias funções no condado e era anualmente presenteado com cerca de uma dúzia de volumes dedicados à Sua Senhoria por poetas agradecidos, com termos bajulatórios. Pois embora tivesse o cuidado de não se associar a escritores daquela época e se conservasse afastado de senhoras de sangue estrangeiro, ainda era excessivamente generoso tanto com mulheres quanto com poetas, e umas e outros o adoravam.

Mas, quando a festa estava no seu apogeu e os convidados se regozijavam, ele retirava-se sozinho para o seu quarto. Lá, quando a porta estava fechada e tinha certeza de sua privacidade, tirava um velho caderno costurado com seda roubada da caixa de costura de sua mãe e rotulado com uma letra redonda de colegial, "O Carvalho, um Poema". Nele escrevia até meia-noite ou mais Mas, como apagava tantas linhas quantas escrevia, soma delas, ao final do ano, era freqüentemente menos do que no começo, e era como se, durante o processo, o poema ficasse completamente por escrever. Pois é digno de nota para os historiadores das letras que ele mudou seu estilo surpreendentemente. Seus floreios foram moderados; sua abundância dominada; a época da prosa estava solidificando aquelas fontes cálidas. A própria paisagem era menos adornada com grinaldas, e até os espinheiros eram menos emaranhados e tinham menos espinhos. Talvez os sentidos estivessem um pouco mais embotados e o mel e a nata, menos sedutores ao paladar. Não se pode duvidar também que as ruas estavam mais bem drenadas, as casas mais bem iluminadas, e isso produzia um efeito sobre o estilo.

Um dia estava acrescentando, com enorme esforço, uma linha ou duas a "O Carvalho, um Poema" quando viu pelo rabo do olho uma sombra. Não era uma sombra, logo verificou, mas a figura de uma dama muito alta, de manto e capuz, atravessando o quadrilátero onde ficava seu quarto. Como esse era o pátio mais íntimo e a dama era uma estranha para ele, Orlando se admirou como ela chegara até ali. Três dias depois, a mesma aparição surgiu de novo; e na quarta-feira ao meio-dia voltou mais uma vez. Desta feita, Orlando estava decidido a segui-Ia, e ela não parecia ter medo de ser encontrada, pois diminuiu o passo quando ele se aproximou e encarou-o resolutamente. Qualquer outra mulher apanhada dessa forma, nos domínios privados de um Lorde, teria tido medo; qualquer outra mulher com aquele rosto, penteado e aspecto teria jogado a mantilha por sobre os ombros para se esconder. Pois esta dama se parecia muito com uma lebre; uma lebre assustada mas teimosa; uma lebre cuja timidez era suplantada por uma imensa e louca audácia; uma lebre que se senta empertigada e encara seu perseguidor com olhos grandes e protuberantes; com orelhas eretas mas trémulas, com o nariz pontudo mas retorcido. Esta lebre, além disso, tinha seis pés de altura e usava um penteado de estilo antigo que a fazia parecer mais alta ainda. Assim confrontada, fitou Orlando com um olhar onde a timidez e a audácia estavam estranhamente combinadas.

Primeiro ela lhe pediu, com uma reverência correta mas meio desajeitada, que perdoasse sua intromissão. Depois, levantando-se completamente - devia ter uns seis pés e duas polegadas -, prosseguiu dizendo mas com tal acesso de riso nervoso, tantos "ih-ihs" e "ah-ahs" que Orlando pensou que ela tivesse fugido de um manicômio - que era a Arquiduquesa Harriet Griselda de Finster-Aarhorn e Scand-op-Boom, do território romeno. Desejava, acima de tudo, conhecê-lo, disse. Hospedara-se nos altos de uma padaria em Park Gates. Ela vira o seu retrato e ele era a imagem de uma irmã dela que - aqui deu uma gargalhada - estava morta há muito tempo. Ela estava visitando a corte da Inglaterra. A Rainha era sua prima. O Rei era um bom companheiro, mas raramente ia para a cama sóbrio. Aqui ela soltou "ihs" e "ahs" novamente. Em suma, não havia nada a fazer senão convidá-la e oferecer-lhe um copo de vinho.

Dentro da casa, seus modos retomaram a pose natural de uma Arquiduquesa romena; e se não tivesse mostrado um conhecimento de vinhos raro numa dama, feito observações sobre armas de fogo e regras de caça esportiva em seu país que eram bastante sensatas, a conversa teria carecido de espontaneidade. Pondo-se de pé finalmente, anunciou que voltaria no dia seguinte, fez outra prodigiosa reverência e partiu. No dia seguinte Orlando cavalgou. No outro virou-lhe as costas; no terceiro puxou a cortina. No quarto choveu, e, como não podia deixar uma dama na chuva e não estava avesso à companhia, convidou-a a entrar e pediu sua opinião sobre se a armadura que pertencera a um antepassado, se seria obra de Jacobi ou de Topp. Ele se inclinava par Topp. Ela sustentou outra opinião - pouco importa qual, mas o que é extremamente importante para o curso da nossa história é que, ilustrando seu argumento que tinha relação com o trabalho de articulação das peças, a Arquiduquesa pegou a caneleira de ouro e ajustou-a na perna de Orlando.

Que ele possuía as pernas mais bem-feitas que sustentavam qualquer nobre já foi dito antes.

Talvez alguma coisa na maneira pela qual ela apertou a fivela no tornozelo; ou sua postura inclinada; ou o longo isolamento de Orlando ou a natural simpatia que existe entre os sexos; ou o vinho da Borgonha; ou o fogo - qualquer dessas causas pode ser culpada; pois certamente há culpa de um lado e de outro quando um nobre da estirpe de Orlando, acolhendo em sua casa uma senhora, e ela mais velha que ele, com um rosto de uma jarda de comprimento e olhos espantados, vestida de maneira ridícula, com um manto e um capuz embora estação fosse quente - há culpa quando um nobre é tão rápida e violentamente dominado por um tipo de paixão que o obriga a sair da sala.

Mas que espécie de paixão seria esta?, pode-se perguntar. E a resposta tem duas faces, como o próprio Amor. Pois o Amor - mas, deixando o Amor fora do debate por um momento, o fato real era que: Quando a Arquiduquesa Harriet Griselda se inclinou para apertar a fivela, Orlando escutou repentina e inexplicavelmente o longínquo bater das asas do Amor. O distante movimento desta plumagem macia despertou nele mil lembranças de águas correntes, de carinhos na neve e infidelidade na inundação; e o som ficou mais próximo; e ele corou e tremeu; e se comoveu como nunca pensara se comover de novo; e estava pronto para levantar as mãos e deixar que o pássaro da beleza pousasse em seus ombros, quando - que horror! - um ruído como aquele que os corvos fazem quando caem sobre as árvores começou a reverberar; o ar parecia escuro com ásperas asas negras; vozes resmungavam; pedaços de palha, galhos e penas caíram; e lá pousou sobre seus ombros a mais pesada e repugnante das aves, que é o abutre. Precipitou-se, então, para fora do quarto e mandou o criado levar a Arquiduquesa Harriet à sua carruagem.

Pois o Amor, ao qual podemos agora retornar, tem duas faces; uma branca, outra negra; dois corpos: um macio, outro peludo. Tem duas mãos, dois pés, duas caudas, dois, na verdade, de cada membro, um exatamente o oposto do outro. No entanto, tão estreitamente ligados que não se pode separá-los. Neste caso, o amor de Orlando começou a voar em sua direção com a face branca exposta e com o corpo macio e adorável à mostra. Foi-se aproximando mais e mais, lançando lufadas de puro prazer. De repente (à vista da Arquiduquesa, presumivelmente) rodou, tomou o outro aspecto; mostrou-se negro, peludo, bruto; e era a Luxúria, o abutre, não o Amor, a Ave do Paraíso, que batia as asas traiçoeiramente sobre seus ombros. Por isso fugiu; por isso foi buscar o criado.

Mas a harpia não é tão facilmente banida. Não só a Arquiduquesa continuou a morar na casa do padeiro, como Orlando era assombrado dia e noite pelos mais repugnantes fantasmas. Em vão ele tinha equipado a casa com pratas e coberto as paredes com tapeçarias, quando a qualquer momento um pássaro molhado à esterco podia instalar-se sobre sua escrivaninha. Ali estava, batendo asas entre as cadeiras; ele o via bamboleando desajeitadamente pelas galerias. Agora empoleirava-se pesadamente sobre um guarda-fogo. Quando o enxotava, ele retornava e bicava a vidraça até quebrá-la.

Assim, percebendo que sua casa era inabitável e que devia tomar medidas para acabar com o assunto imediatamente, fez o que qualquer outro jovem teria feito en seu lugar e pediu ao Rei Carlos que o enviasse como Embaixador Extraordinário para Constantinopla. O Rei estava caminhando em Whitehall, de braços dados com Nell Gwyn. Ela atirava avelãs nele. "Que pena", suspirou a amorosa dama, "que um par de pernas como esta tenha que deixar o pais.”

Os Fados, não obstante, foram implacáveis; ela não pôde fazer nada além de lhe jogar um beijo por cima do ombro, antes que Orlando partisse.

 

É realmente uma grande infelicidade, e deve ser Iamentado, o fato de termos pouca informação sobre este estágio da carreira de Orlando, quando desempenhou um papel importante na vida pública de seu país. Sabemos que cumpriu seus deveres com zelo - conforme testemunha o fato de ter recebido a Ordem de Bath e título de Duque. Sabemos que participou das mais delicadas negociações entre o Rei Carlos e os turcos como atestam os tratados nos subterrâneos do Arquivo Público. Mas a revolução que eclodiu durante o período de sua missão e o incêndio que a seguiu danificaram e destruíram todos os documentos de onde se poderia extrair alguma informação, e tudo o que podemos oferecer é lamentavelmente incompleto. Freqüentemente o papel estava chamuscado de marrom no meio da frase mais importante. Justo quando pensávamos elucidar um segredo que confundira os historiadores durante cem anos havia um buraco tão grande no manuscrito que por ele podia passar um dedo. Fizemos o possível para compor um reduzido sumário dos fragmentos queimados que restam; mas muitas vezes foi necessário especular, supor e mesmo usar a imaginação.

O dia de Orlando parecia passar mais ou menos desta maneira: às sete horas ele se levantava, envolvia-se num longo casaco turco, acendia um charuto e punha os cotovelos no parapeito. Aí ficava parado, olhando a cidade a seus pés, num aparente êxtase. Nessa hora, o nevoeiro era tão denso que os domos de Santa Sofia e todo o resto pareciam flutuar; gradualmente, o nevoeiro os descobria; via-se que as bolhas estavam firmemente fixadas; ali seria o rio; lá, a ponte de Gálata; adiante, os peregrinos, de turbante verde, sem olhos e sem narizes pedindo esmolas; além, os cães sem dono apanhavam restos; acolá, mulheres com véus; lá, inúmeros burros; ali, homens a cavalo carregando longas varas. Logo toda a cidade despertava com o bater dos chicotes, com o soar dos gongos, com chamados para a oração, com o açoitar das mulas, o ranger das rodas chapeadas de bronze, enquanto odores acres provenientes do fermento do pão e incenso, e especiarias, se elevavam até as alturas de Pera e pareciam o próprio hálito da população estridente, multicolorida e bárbara.

Nada, pensava ele, contemplando a paisagem que agora brilhava ao sol, podia ser menos semelhante aos condados de Surrey e Kent ou às cidades de Londres e Tunbridge Wells. À direita e à esquerda erguiam-se, numa proeminência estéril e pedregosa, as montanhas inóspitas da Ásia, tendo ao alto um castelo árido, de um ou dois chefes de salteadores; mas não havia presbitério, nem mansões senhoriais, nem chalés, nem carvalhos, nem olmos, nem violetas, nem hera, nem madressilvas. Não havia sebes onde crescessem as samambaias, nem campos para as ovelhas pastarem. As casas eram tão brancas e nuas como cascas de ovos. Surpreendia-o que, sendo inglês de raiz e de fibra, pudesse exultar até o fundo do coração com aquele panorama selvagem e olhar aqueles desfiladeiros e aquelas alturas planejando jornadas para lá sozinho, a pé, onde somente uma cabra ou um pastor tivessem estado antes; pudesse sentir apaixonada ternura pelas flores brilhantes e extemporâneas, mais amor pelos cães rudes e sem dono do que pelos cães de raça de sua casa, e aspirasse avidamente o cheiro ácido e penetrante das ruas. Ele se perguntava se no tempo das Cruzadas um de seus antepassados não teria se unido a uma camponesa circassiana; pensou que seria possível; imaginou um certo tom moreno em sua tez; e, entrando novamente, recolhia-se para o banho.

Uma hora depois, devidamente perfumado, ungido e de cabelos ondulados, recebia a visita dos secretários e de outros altos funcionários, carregando, um após o outro, caixas vermelhas que somente eram abertas com a sua chave de ouro. Dentro havia documentos da maior importância, dos quais restam apenas fragmentos - aqui um rabisco, ali um selo firmemente preso a um pedaço de seda queimada. De seu conteúdo não podemos falar, só afirmamos que Orlando se mantinha ocupado com lacres, selos, fitas de diversas cores que tinham de ser amarradas de várias maneiras, cópias manuscritas e desenhos floreados das letras maiúsculas, até a hora do almoço - uma esplêndida refeição, de uns trinta pratos talvez.

Depois do almoço, os criados anunciavam que a sua carruagem de seis cavalos estava à porta e ele partia precedido de janízaros de vermelho, que corriam a pé agitando grandes abanos de penas de avestruz por cima de suas cabeças, para visitar outros embaixadores e dignitários. A cerimônia era sempre a mesma. Chegando ao pátio, os janízaros batiam com seus abanos no portão principal, que imediatamente era aberto, revelando uma grande sala esplendidamente mobiliada. Aí estavam sentadas duas figuras, geralmente de sexos opostos. Eram trocadas profundas reverências e cortesias. Na primeira sala só era permitido mencionar o tempo. Tendo dito que estava bom ou úmido ou quente ou frio, o Embaixador então passava para outra sala, onde novamente duas pessoas se levantavam para saudá-lo. Aqui só era permitido comparar Constantinopla a Londres, como um lugar para residir; e o Embaixador, naturalmente, dizia que preferia Constantinopla, e os anfitriões, naturalmente, diziam que, embora não conhecessem, preferiam Londres. Na sala seguinte, a saúde do Rei Carlos e do Sultão era discutida demoradamente. Na próxima, eram discutidas a saúde do Embaixador e a da esposa do anfitrião, porém mais sumariamente. Na outra, o Embaixador cumprimentava o anfitrião pela mobília, e o anfitrião cumprimentava o Embaixador pelo seu traje. Na seguinte eram oferecidas guloseimas, o anfitrião lamentando-lhes a insipidez, e o Embaixador exaltando-lhes a excelência. A cerimônia afinal terminava, com um cachimbo oriental e uma xícara de café; mas, embora os movimentos de fumar e beber ocorressem meticulosamente, não havia nem tabaco no cachimbo nem café na xícara, pois se o fumar e o beber fossem reais a resistência humana teria sucumbido com os excessos. Pois logo que o Embaixador terminasse esta visita já devia realizar outra. As mesmas cerimônias aconteciam precisamente na mesma ordem, quase sempre seis ou sete vezes, nas casas de outros altos dignitários, de modo que muitas vezes era tarde da noite quando o Embaixador retornava a casa. Embora Orlando desempenhasse essas tarefas admiravelmente e nunca negasse que eram talvez a parte mais importante dos seus deveres diplomáticos, estava sem dúvida cansado delas e freqüentemente deprimido, a tal ponto que preferia jantar sozinho com seus cães. Com eles podia falar em sua própria língua. E às vezes, dizia-se, atravessava os portões tarde da noite tão disfarçado que os sentinelas não o reconheciam. Então se misturava com a multidão na ponte de Gálata; ou percorria os bazares; ou tirava os sapatos e se juntava aos fiéis nas mesquitas. Certa vez, quando foi anunciado que ele estava com febre, pastores que traziam suas cabras para o mercado contaram ter encontrado um Lorde inglês no topo de uma montanha, rezando para o seu Deus. Acreditava-se que era o próprio Orlando, e sua prece era sem dúvida um poema dito em voz alta, pois sabia-se que ele ainda carregava consigo escondido na capa um manuscrito muito rabiscado; e os criados, escutando à porta, ouviam o Embaixador cantando algo com uma voz esquisita, quando estava sozinho.

É com fragmentos como este que devemos fazer o possível para elaborar um retrato da vida de Orlando e de seu caráter nessa época. Existem até hoje rumores, lendas, anedotas vagas e inautênticas sobre a vida de Orlando em Constantinopla (citamos apenas algumas) que servem para provar que ele possuía, agora que estava na flor da idade, o poder de despertar a fantasia e de prender o olhar, capaz de manter viva uma lembrança, quando tudo aquilo que as qualidades mais duráveis fazem para preservá-la é esquecido. O poder é misterioso e composto de beleza, berço e um certo dom raro a que podemos chamar fascínio. "Um milhão de velas", como dissera Sasha, ardiam nele sem que tivesse trabalho de acender uma única. Movia-se como um cervo, sem necessidade de pensar nas pernas. Falava com voz natural, e o eco soava como um gongo de prata. Por isso vivia cercado de rumores. Tornou-se adorado por muitas mulheres e alguns homens. Não era preciso que falassem com ele ou que o tivessem visto; imaginavam diante deles, especialmente quando o cenário era romântico ou quando o sol estava se pondo, a figura de um nobre cavalheiro de meias de seda. Sobre os pobres e ignorantes rinha o mesmo poder que sobre os ricos. Pastores, ciganos, condutores de burros ainda cantam canções a respeito do Lorde inglês "que atirou esmeraldas num poço", que sem dúvida se referem a Orlando, que certa vez, ao que consta, jogou suas jóias numa fonte num momento de raiva ou embriaguez; de onde foram pescadas por um pajem. Mas este poder romântico, é bem sabido, está quase sempre associado a uma natureza de extrema reserva. Orlando parece não ter tido amigos. Tanto quanto se sabe, não teve nenhuma ligação. Uma certa grande dama veio da Inglaterra para ficar perto dele e atormentou-o com suas atenções, mas ele continuou a cumprir com seus deveres tão incansavelmente que ainda não era Embaixador na corte havia dois anos e meio quando o Rei Carlos manifestou a intenção de promovê-lo ao mais alto posto da nobreza. Os invejosos disseram que isso era um tributo de Nell Gwyn à lembrança de uma perna. Mas, como ela o tinha visto apenas uma vez e estava ocupada em atirar avelãs no seu senhor real, é provável que tenham sido os seus méritos, e não as panturrilhas, que lhe conquistaram o Ducado.

Aqui devemos fazer uma pausa, porque atingimos um momento de grande significado em sua carreira. Pois a concessão do Ducado deu motivo a um incidente muito famoso e muito discutido que agora vamos descrever, da melhor forma possível, buscando o caminho entre papéis queimados e pequenos pedaços de fita. Foi ao final do grande jejum do Ramadã que a Ordem de Bath e a patente da nobreza chegaram em uma fragata comandada por Sir Adrian Scrope; e Orlando aproveitou a ocasião para a festa mais esplêndida do que qualquer outra jamais vista em Constantinopla. A noite estava bela; a multidão imensa e as janelas da Embaixada brilhantemente iluminadas. Novamente faltam detalhes porque o fogo destruiu tais registros e deixou apenas fragmentos esparsos que deixam obscuros muitos pontos importantes. No entanto, pelo diário de John Fenner Brigge, um oficial naval inglês que se encontrava entre os convidados, soube-se que gente de todas as nacionalidades "estava comprimida como arenques num barril", no pátio. A multidão estava tão desconfortavelmente apertada que Brigge logo subiu numa árvore para melhor observar os acontecimentos. Circulava um rumor entre os nativos (e aqui é uma prova adicional do misterioso poder de Orlando sobre a imaginação) de que algum tipo de milagre iria acontecer. "Assim", escreve Brigge (mas seu manuscrito está cheio de queimados e de buracos, com algumas frases quase ilegíveis), "quando os foguetes começaram a subir, havia um considerável desconforto, entre nós, de que a população nativa se deixasse arrebatar... carregada de conseqüências desagradáveis para todos... na companhia de damas inglesas, eu mesmo levei minha mão ao sabre. Felizmente", ele continua em seu estilo enfadonho, "estes temores, no momento, pareciam infundados, e, observando a conduta dos nativos... cheguei à conclusão de que esta demonstração de nossa habilidade na arte da pirotecnia tinha valor, pelo menos porque imprimiu neles... a superioridade dos britânicos... na verdade a visão era de uma magnificência indescritível. Eu me vi alternadamente louvando o Senhor, que permitira... e desejando que minha pobre e querida mãe... por ordem do Embaixador as grandes janelas, que eram um traço imponente da arquitetura oriental, embora ignorante em muitos sentidos... estavam totalmente abertas; e dentro podíamos ver um quadro vivo, ou uma representação teatral, na qual damas e cavalheiros ingleses... apresentavam uma mascarada, obra de um... As palavras eram inaudíveis, mas a visão de tantos dos nossos compatriotas, homens e mulheres, vestidos com a maior elegância e distinção... despertou-me emoções das quais certamente não me envergonho, embora seja incapaz... estava concentrado observando a surpreendente conduta de Lady - , que era de uma natureza capaz de prender os olhares sobre si e trazer o descrédito para o seu sexo e seu país, quando" - infelizmente um galho da árvore quebrou e o tenente Brigge caiu ao chão, e o resto do relato apenas registra sua gratidão à Providência (que desempenha um grande papel no diário) e a natureza exata de seus ferimentos.

Felizmente, a Srta. Penelope Hartopp, filha do general de mesmo nome, viu a cena de dentro e continua a narrativa numa carta, muito deteriorada também, que tardiamente chegou a uma amiga em Hunbridge Well; A Srta. Penelope não era menos pródiga, em seu entusiasmo, do que o galante oficial. "Deslumbrante", ela exclama dez vezes em uma página, "maravilhoso... além de qualquer descrição... baixelas de ouro... candelabros... negros de calças de pelúcia... pirâmides de gelo... fontes de ponche... gelatinas representando os navios de Sua Majestade... cisnes representando nenífares... pássaros em gaiolas douradas... cavalheiros em trajes de veludo vermelho... senhoras com penteados de pelo menos seis pés de altura... caixas de música... Sr. Peregrine disse que eu estava absolutamente encantadora, o que só repito para você, minha querida, pois sei... Oh! ...que saudade tenho de todos vocês! ...ultrapassando o que vimos em Pantiles... oceanos para beber... alguns cavalheiros se excederam... Lady Bett maravilhosa... a pobre Lady Bonham cometeu o erro de sentar-se sem ter uma cadeira... cavalheiros todos muito elegantes... suspirei mil vezes por você e pela querida Betsy... mas o espetáculo principal, a atração de todos os olhares... como todos admitiam, pois ninguém podia ser tão vil que negasse tal coisa, era o próprio Embaixador. Que pernas! que semblante! Que maneiras principescas!!! Vê-lo entrar no salão! Vê-lo sair novamente! E algo atraente na expressão, que faz sentir, embora não se saiba porquê, que ele tem sofrido! Dizem que uma dama foi a causadora disso. Um monstro sem coração!!! Como pode uma pessoa de nosso chamado sexo frágil ter tido esta coragem!!! Ele é solteiro, e metade das damas daqui está apaixonada por ele... Milhares e milhares de beijos para Tom, Gerry, Peter e o querido Mew" [presumivelmente o seu gato].

Da Gazeta da época extraímos que "quando o relógio bateu meia-noite, o Embaixador apareceu na sacada central, que estava adornada com tapeçarias preciosas. Seis turcos de Guarda Imperial, cada um com seis pés de altura, seguravam tochas à direita e à esquerda. Foguetes subiram quando ele surgiu, e um grande clamor elevou-se da multidão, ao que o Embaixador retribuiu, inclinando-se profundamente e falando algumas palavras de agradecimento em turco, fluentemente, o que era uma de suas conquistas. Depois, Sir Adrian Scrope, em uniforme de gala de almirante britânico avançou; o Embaixador dobrou um dos joelhos; o almirante colocou-lhe ao pescoço o colar da nobilíssima Ordem de Bath e prendeu a Estrela em seu peito; depois disso, um outro cavalheiro do corpo diplomático se adiantou solenemente e colocou sobre seus ombros as vestes ducais e entregou-lhe a coroa ducal, numa almofada vermelha".

Por fim, com um gesto de extraordinária majestade e graça, primeiro inclinando-se profundamente, depois levantando-se orgulhosamente, Orlando tomou o círculo dourado de folhas de morango e colocou-o sobre a fronte, com um gesto que os que viram jamais esqueceram. Foi nesse momento que o primeiro distúrbio começou. Ou o povo tinha esperado um milagre - alguns dizem que tinha sido profetizado que uma chuva de ouro cairia dos céus - o que não aconteceu, ou esse era o sinal escolhido para começar o ataque; ninguém parece saber; mas, quando a coroa foi colocada na fronte de Orlando, grande tumulto elevou-se. Os sinos começaram a tocar; os ásperos gritos dos profetas eram ouvidos acima dos clamores da multidão; muitos turcos se atiraram ao chão e tocaram a terra com suas testas. Uma porta foi arrombada. Os nativos precipitaram-se nos salões de banquete. Mulheres gritavam. Uma certa dama, que diziam estar morrendo de amor por Orlando, pegou um candelabro e jogou-o ao chão. O que poderia ter acontecido, se não fosse a presença de Sir Adrian Scrope e de uma esquadra de marujos ingleses, ninguém pode dizer. Mas o almirante ordenou que soassem as cornetas; uma centena de marujos postou-se instantaneamente em alerta; a desordem foi domada, e a calma, pelo menos no momento, foi restabelecida.

Até agora temos estado no terreno firme, embora estreito, da verdade comprovada. Mas ninguém jamais soube com exatidão o que aconteceu mais tarde naquela noite. O testemunho das sentinelas e de outras pessoa parece, entretanto, comprovar que a Embaixada ficou vazia, e as portas foram fechadas, como de costume, por volta das duas da manhã. O Embaixador foi visto dirigindo-se para o seu quarto, ainda usando as insígnias de seu posto, e fechou a porta. Alguns dizem que ele trancou-a, o que era contrário aos seus hábitos. Outros afirmam que tarde da noite, no pátio, sob a janela do Embaixador, ouviram música de natureza rústica, como a tocada pelos pastores. Uma lavadeira, que ficara acordada com dor de dente, disse que tinha visto uma figura de homem, envolta em uma capa ou roupão, aparecer na sacada. Depois, disse, uma mulher inteiramente encapotada, mas aparentemente de origem camponesa, subiu por uma corda que o homem lhe jogou da sacada Lá, a lavadeira disse, abraçaram-se apaixonadamente "como amantes", entraram juntos no quarto e fecharam as cortinas, de modo que nada mais pôde ser visto.

Na manhã seguinte, o Duque, como devemos chamá-lo agora, foi encontrado por seus secretários profundamente adormecido, em meio às roupas de cama bastante desarrumadas. Havia uma certa desordem no quarto, a coroa rolara ao chão, seu manto e a liga atirados sobre uma cadeira. A mesa estava cheia de papéis. Não havia suspeitas, a princípio, pois as fadigas da noite haviam sido grandes. Mas, quando chegou a tarde e ele continuava dormindo, chamaram um médico. Ele aplicou os remédios que haviam sido usados numa ocasião anterior, emplastros, urtigas, vomitórios etc., mas sem sucesso. Orlando continuava dormindo. Seus secretários acharam então que era seu dever examinar os papéis sobre a mesa. Muitos estavam rabiscados com versos com freqüentes alusões a um carvalho. Havia também vários documentos oficiais e outros de natureza privada, relativos à administração de suas propriedades na Inglaterra. Mas, finalmente, chegaram a um documento de enorme significado. Era nada menos, na verdade, que uma promessa de casamento, redigida, assinada e testemunhada, entre Sua Senhoria Orlando, Cavaleiro da Ordem da Jarreteira etc. etc. etc., e Rosina Pepita, dançarina, de pai desconhecido, mas tido como cigano, mãe também desconhecida, mas tida como vendedora de ferro-velho na praça do mercado, em frente à ponte Gálata. Os secretários se olharam atônitos. E Orlando continuava dormindo. Manhã e noite eles o observavam, mas, exceto por sua respiração, que era regular, e suas faces ainda rosadas, ele não dava sinal de vida. O que a ciência ou a engenhosidade podiam fazer para acordá-lo foi feito. Porém ele continuava dormindo.

No sétimo dia de seu transe (quinta-feira, 10 de maio), foi disparado o primeiro tiro daquela terrível e sangrenta insurreição, cujos primeiros sintomas o Tenente Brigge tinha detectado. Os turcos levantaram-se contra o sultão, incendiaram a cidade e condenaram à espada ou ao bastão todos os estrangeiros que encontraram. Alguns ingleses conseguiram escapar; mas, como era de se esperar, os cavalheiros da Embaixada britânica preferiram morrer defendendo seus cofres vermelhos ou, em casos extremos, engolir molhos de chaves a deixá-los cair nas mãos dos infiéis. Os amotinados invadiram o quarto de Orlando, mas, vendo-o estirado com aparência de morto, não o tocaram, somente roubaram a coroa e os trajes da Jarreteira.

E agora novamente a obscuridade cai, e oxalá fosse mais profunda! Oxalá, quase exclamamos do fundo do coração, fosse tão profunda que não pudéssemos ver nada através de sua opacidade! Oxalá pudéssemos aqui pegar a caneta e escrever finis em nosso trabalho! Oxalá pudéssemos poupar o leitor do que ainda virá e dizer-lhe em algumas palavras que Orlando morreu e foi sepultado. Mas aqui, ai de nós! A Verdade, a Franqueza e a Honestidade, austeras Deusas que observam e guardam o biógrafo pelo tinteiro, gritam Não! Colocando as trombetas de prata nos lábios, demandam em uníssono Verdade! E novamente gritam: Verdade! e de novo, pela terceira vez, juntas estrondeiam: A Verdade, e nada mais, que a Verdade!

Ao que - Deus seja louvado! pois nos concede um espaço para respirar - as portas foram abertas delicadamente, como se um sopro do mais amável e sagrazéfiro as tivesse empurrado, e três figuras entram. Primeiro vem Nossa Senhora da Pureza, cuja fronte é ornada com fitas da mais branca lã de cordeiro; cujo cabelo é como uma avalanche de neve deslizante; e em cuja mão repousa uma pluma branca de uma gansa virgem. Em seguida, com passo mais imponente, vem Nossa Senhora da Castidade, em cuja fronte repousa como um torreão de fogo, ardendo sem parar, um diadema de pingentes de gelo; seus olhos são puras estrelas, e seus dedos, se nos tocam, nos gelam até os ossos. Perto atrás dela, protegida pela sombra de suas irmãs mais nobres, vem Nossa Senhora da Modéstia, a mais frágil a mais bonita das três, cuja face somente é mostra como a lua crescente, quando é fina, tem forma de foice e está meio oculta entre as nuvens. Cada uma avançou para o centro do quarto, onde Orlando ainda jaz dormindo; e, com gestos que ao mesmo tempo apelam e ordenam, Nossa Senhora da Pureza fala primeiro: "Sou a guardiã dos cervos adormecidos; a neve me é cara, e o nascer da lua, e o mar prateado. Com minhas roupas, cubro os ovos das galinhas pintadas e as conchas listradas; cubro o vício e a pobreza. Sobre todas as coisas frágeis ou escuras ou duvidosas o meu véu desce. Por isso não fales, não reveles. Piedade, oh, piedade!" Aqui as trombetas estrondeiam.

"Pureza, fora! Vai-te, Pureza!”

Então, Nossa Senhora da Castidade fala: "Eu sou aquela cujo toque congela e cujo olhar transforma em pedra. Detive a estrela em sua dança e a onda em sua queda. Os mais altos Alpes são meu domicílio; e quando caminho, os relâmpagos brilham nos meus cabelos; onde os meus olhos pousam, matam. Em vez de deixar Orlando acordar, eu o congelarei até os ossos. Piedade oh, piedade!"

Aqui as trombetas estrondeiam.

"Castidade, fora! Vai-te, Castidade!”

Então Nossa Senhora da Modéstia fala, tão baixo que dificilmente se ouve: "Eu sou aquela que os homens chamam de Modéstia. Sou virgem e sempre serei. Não são para mim os campos fecundos nem os vinhedos férteis. A multiplicação é odiosa para mim; e, quando as maçãs brotam ou os rebanhos dão cria, fujo, fujo; deixo meu manto cair; meu cabelo cobre-me os olhos. Não vejo. Piedade, oh, piedade!”

De novo as trombetas estrondeiam.

"Modéstia, fora! Vai-te!, Modéstia!”

Com gestos de aflição e lamento, as três irmãs agora dão-se as mãos e dançam devagar, agitando seus véus e cantando:

"Verdade, não saias da tua horrível caverna. Esconde-te profundamente, temível verdade. Pois ostentas na brutal claridade do sol coisas que eram melhores se desconhecidas e não feitas; tu descobres o vergonhoso; esclareces o obscuro. Esconde-te, esconde-te, esconde-te!”

Aqui fazem como se fossem cobrir Orlando com seus véus. As trombetas, enquanto isso, ainda ressoam fortemente.

A Verdade e nada mais que a Verdade.

Então as Irmãs tentam colocar seus véus sobre as bocas das trombetas para abafá-las, mas em vão, porque agora todas as trombetas ressoam juntas, "Horríveis Irmãs, parti!”

As irmãs ficam aflitas e choram em uníssono, ainda dançando e agitando os véus para cima e para baixo.

"Nem sempre foi assim! Mas os homens não nos querem mais; e as mulheres nos detestam. Vamos embora, vamos embora. Eu para o poleiro das galinhas (diz a Pureza). Eu para os picos ainda não-violados de Surrey (diz a Castidade). Eu para qualquer recanto onde haja hera e cortinas em profusão (diz a Modéstia).”

"Pois lá, e não aqui (todas falam juntas, de mãos dadas, fazendo gestos de despedida e desespero em direção à cama onde Orlando jaz adormecido), moram ainda, em ninhos e toucadores, escritórios e cortes de justiça, aqueles que nos amam; aqueles que honram virgens e cidadãos; advogados e médicos; aqueles que pregam o bem; aqueles que negam; aqueles que reverenciam sem saber por quê, aqueles que elogiam sem entender, e ai da a numerosa (Deus seja louvado) tribo dos respeitáveis; que preferem não ver; desejam não saber; amam a escuridão; aqueles que ainda nos adoram com razão pois nós lhes demos Poder, Prosperidade, Conforto e Bem-estar. A eles nos encaminhamos, e te deixamos. Vinde, Irmãs, vinde! Isto aqui não é lugar para nós.”

Elas retiraram-se às pressas, agitando seus véus sob as cabeças como se para afastar completamente alguma coisa que não se atrevem a olhar, e fecharam a porta.

Ficamos então agora inteiramente sozinhos no quarto com o adormecido Orlando e os trombeteiros. Os trombeteiros, organizando-se lado a lado, sopram um terrível toque: - "A VERDADE!” - e com isso Orlando despertou.

Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou de pé completamente despido diante de nós, e enquanto as trombeteiros soavam Verdade! Verdade! Verdade! não temos escolha senão confessar - ele era uma mulher.

O som das trombetas diminuiu e Orlando continuou despido. Nenhum ser humano, desde que o mundo começou, parecia mais encantador. Sua forma combina ao mesmo tempo a força de um homem e a graça de uma mulher. Enquanto permanecia de pé, as trombetas de prata prolongavam seus sons, como se relutantes. E abandonar a deliciosa visão que seu toque provocara a Castidade, a Pureza e a Modéstia, inspiradas sem dúvida pela Curiosidade, espiaram pela porta e jogaram um pano como uma toalha à figura despida, que, infelizmente, caiu a algumas polegadas de distância. Orlando olhou-se de alto abaixo num grande espelho sem mostrar nenhum sinal de perturbação e dirigiu-se, provavelmente, para o banho.

Podemos aproveitar esta pausa na narrativa para fazer certas declarações. Orlando tinha se transformado numa mulher - não há como negar. Mas, em todos os outros aspectos, Orlando permanecia exatamente como era antes. A mudança de sexo, embora alterando seu futuro, nada fizera para alterar sua identidade. Seu rosto permanecia, como provam os retratos, praticamente o mesmo. Sua memória - no futuro devemos, por convenção, dizer "dela" em vez de "dele", e "ela" em vez de "ele" - sua memória, então, retornava a todos os acontecimentos de sua vida passada, sem encontrar qualquer obstáculo. Uma ligeira nebulosidade pode ter ocorrido, como se algumas gotas escuras tivessem caído no claro poço da memória; certas coisas tinham ficado um pouco apagadas; mas isso era tudo. A mudança parecia ter sido produzida completamente e sem sofrimentos, e de tal maneira que o próprio Orlando não demonstrava surpresa com ela. Muita gente, considerando isso, e sustentando que uma mudança de sexo é contra a natureza, esforçou-se para provar que (1) Orlando sempre tinha sido mulher, (2) Orlando é, neste momento, homem. Deixemos biólogos e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar o simples fato: Orlando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião tornou-se mulher e assim permaneceu daí por diante.

Mas deixemos que outras penas tratem de sexo e sexualidade; abandonemos tão odiosos assuntos o mais depressa possível. Orlando tinha agora tomado banho e se vestido com aqueles casacos e calças turcos que podem ser usados indiferentemente por ambos os sexos e era forçada a considerar sua posição. O primeiro pensamento do leitor que tem acompanhado sua história com simpatia é de que a situação era precária e embaraçosa ao extremo. Jovem, nobre e bela, ela tinha acordado e se encontrara numa posição bastante delicada para uma jovem dama da nobreza. Não a censuraríamos se tivesse tocado a sineta, gritado ou desmaiado. Mas Orlando não deu mostras de perturbação. Todos os seus atos foram extremamente ponderados, e poderiam fazer pensar em premeditação. Primeiro examinou cuidadosamente os papéis que estavam sobre a mesa; tomou aqueles que pareciam ser escritos em verso e escondeu-os. Depois chamou o galgo Seleuchi, que embora faminto não tinha arredado de sua cama todos esses dias, alimentou-o e penteou-o; então pôs um par de pistolas no cinto; finalmente, envolveu-se com vários cordões esmeraldas e pérolas do mais fino Oriente, que fazia parte do seu guarda-roupa de Embaixador. Feito isso debruçou-se à janela, assobiou baixinho e desceu a escada quebrada e manchada de sangue, agora cheia de lixo das cestas de papel - tratados, despachos, selos, lacre, etc. - e então entrou no pátio. Lá, à sombra uma gigantesca figueira, esperava-a um velho cigano montado num burro. Ele segurava um outro pela rédea Orlando montou e assim, escoltada por um cachorro magro, montada num burro, em companhia de um cigano, o Embaixador da Grã-Bretanha junto à Corte Sultão deixou Constantinopla.

Cavalgaram por vários dias e noites, encontraram inúmeras aventuras, umas vindas dos homens, outras natureza, e em todas Orlando portou-se corajosamente. Em uma semana alcançaram as terras altas fora de Broussa, que eram então o principal acampamento da tribo cigana à qual Orlando se aliara. Muitas vezes olhara essas montanhas de sua janela na Embaixada, muitas vezes desejara estar lá; e, para uma pessoa reflexiva, encontrar-se onde sempre tinha desejado esta uma oportunidade para reflexão. Por algum tempo, contudo, ela estava tão alegre com a mudança que não faria estragá-la com pensamentos. O prazer de não ter papéis para selar ou assinar, de não ter floreios para fazer, visitas para retribuir, lhe era suficiente. Os ciganos guiavam-se pela grama; quando ela acabava, eles mudavam. Ela se banhava nos riachos, se é que se banhava; nenhuma caixa vermelha, azul ou verde lhe era apresentada; não havia uma só chave, e muito menos uma chave de ouro, em todo o acampamento; quanto a "visitas", a palavra era desconhecida. Ela ordenhava cabras; apanhava lenha; de vez em quando roubava um ovo de galinha, mas sempre deixava uma moeda ou uma pérola em seu lugar; pastoreava o gado; podava as videiras; pisava a uva; enchia o cantil de pele de cabra e nele bebia; e quando relembrava como, àquela hora do dia, estaria fingindo beber e fumar com uma xícara de café vazia e um cachimbo sem tabaco, ria alto, cortava uma outra fatia de pão e pedia uma tragada do velho cachimbo de Rustum, embora estivesse cheio de esterco de vaca.

Os ciganos, com quem é óbvio que ela estivera em comunicação secreta antes da revolução, pareciam considerá-la uma deles (o que é sempre a mais alta homenagem que um povo pode prestar), e seu cabelo escuro e compleição morena deram origem à crença de que ela era uma deles, de nascimento, e que tinha sido arrebatada de uma nogueira por um duque inglês, quando ainda criança, e levada para aquela terra bárbara onde as pessoas vivem em casas porque são muito fracas e doentes para ficarem ao ar livre. Assim, embora fosse de muitas maneiras inferior a eles, queriam ajudá-la a tornar-se mais parecida com eles; ensinavam-lhe suas artes de fazer queijos e tecer cestos, sua ciência de roubar e caçar pássaros, e estavam mesmo preparados para consentir que casasse entre eles.

Mas Orlando contraíra na Inglaterra alguns hábitos ou doenças (como se queira considerar) que, segundo parece, não podem ser eliminados. Uma tarde, quando estavam todos sentados ao redor do fogo no acampamento, e o pôr-do-sol ardia sobre os montes da Tessália, Orlando exclamou:

"Que bom para comer!”

(Os ciganos não têm a palavra "bonito". Esta é a mais aproximada.)

Todos os jovens explodiram em estrondosas gargalhadas. O céu bom para comer, realmente! Os velhos, contudo, que já tinham visto mais estrangeiros de que eles, ficaram desconfiados. Eles observavam que Orlando freqüentemente sentava por horas a fio sem fazer nada exceto olhar para cá e para lá; encontraram-na no topo de uma colina com os olhos fixos à frente, sem se importar que as cabras estivessem pastando ou se dispersando. Começaram a suspeitar que ela tinha outras crenças diferentes das deles, os velhos e as velhas imaginavam que ela tivesse caído nas garras do mais vil mais e cruel de todos os Deuses, que é a Natureza. Não estavam muito enganados. A doença inglesa, o amor à Natureza, era-lhe inato, e aqui, onde a Natureza era muito mais vasta e poderosa do que na Inglaterra, ela caiu em suas mãos como nunca antes. A moléstia é bastante conhecida e tem sido freqüentemente descrita para necessitar de nova descrição, a não ser de forma muito breve. Havia montanhas, havia vales, havia rios. Ela galgava as montanhas; perambulava pelos vales; sentava-se margens dos rios. Comparava as colinas a trincheiras, a peitos de pombas e a flancos de vitela. Comparava flores a esmalte e o gramado a tapetes turcos gastos. As árvores eram bruxas esmirradas, e os carneiros era seixos cinzentos. Tudo, na verdade, era outra coisa. Encontrou uma lagoa no cume da montanha e quase se jogou nela para procurar a sabedoria que pensou estar escondida ali; e quando, do alto da montanha, avistou ao longe, através do mar de Mármara, as planícies Grécia, e distinguiu (seus olhos eram admiráveis) a Acrópole com uma ou duas manchas brancas que devia ser, pensou, o Partenon, sua alma expandiu-se com seus olhos, e ela rezou para que pudesse partilhar a majestade das montanhas, conhecer a serenidade das planícies, etc., etc., como fazem todos os que creem. Então, avistando o jacinto vermelho, a íris púrpura, explodiu em êxtase pela bondade e beleza da natureza; erguendo novamente os olhos, viu uma águia voando imaginou-lhe os arrebatamentos e identificou-os com os seus próprios. Retornando à casa, saudava cada estrela, cada pico e cada fogueira como se acenassem apenas para ela; e finalmente, quando se jogava sobre a esteira na tenda dos ciganos, não podia se conter e refletia "Que bom para comer!", "Que bom para come (pois é fato curioso que, embora os seres humanos tenham meios imperfeitos de comunicação, que digam apenas "bom para comer" quando querem dizer "bonito", ou vice-versa, prefiram suportar o ridículo e a incompreensão do que guardar para si qualquer experiência). Todos os jovens ciganos riram. Mas Rustum el Sadi, o velho que trouxera Orlando de Constantinopla no seu burro, sentava-se em silêncio. Tinha o nariz como uma cimitarra, as faces sulcadas como se pelo perpétuo escorrer de granizo de ferro; era moreno, olhos espertos e, enquanto sentava pitando o seu narguilé, observava Orlando minuciosamente. Tinha profunda suspeita de que o Deus dela era a Natureza. Um dia, encontrou-a em lágrimas. Interpretando que isto significava que o seu Deus a punira, disse-lhe que não estava surpreso. Mostrou-lhe os dedos da mão esquerda, ressequidos pela geada; mostrou-lhe o pé direito, esmagado pela queda de uma rocha. Isto, disse ele, era o que o Deus dela fazia com os homens. Quando ela disse: "Mas é tão belo", usando a palavra inglesa, ele sacudiu a cabeça; e quando ela repetiu, ficou zangado. Viu que ela não acreditava no que ele acreditava, o que era suficiente para enfurecê-lo, embora fosse sábio e velho.

Esta diferença de opinião perturbou Orlando, que tinha sido perfeitamente feliz até aquele momento. Ela começou a pensar se a natureza era bela ou cruel; e então se perguntou que beleza era aquela; se estava nas próprias coisas ou apenas nela; e assim passou para a natureza da realidade, que a conduziu à verdade, que por sua vez a levou ao Amor, à Amizade, à Poesia (como antigamente, na colina natal); meditações que, como não podia divulgar uma palavra, lhe fizeram sentir falta de pena e tinta, como nunca sentira antes.

"Oh, se ao menos eu pudesse escrever!", gritava (pois tinha a estranha presunção daqueles, que escrevem de que as palavras escritas são compartilhadas). Ela não tinha tinta; e pouco papel. Mas fez tinta com frutas silvestres e vinho; e, encontrando algumas margens e espaços em branco no manuscrito de "O Carvalho", conseguiu um tipo de taquigrafia para descrever o cenário, num longo poema em versos brancos, e para continuar, de forma bastante concisa, o diálogo consigo mesma sobre a Beleza e a Verdade. Isto a manteve extremamente feliz por horas e horas. Mas os ciganos ficaram desconfiados. Primeiro, notaram que ela estava menos disposta do que antes para a ordenha e para a preparação de queijos; depois, que freqüentemente hesitava antes de responder; e uma vez um menino cigano que dormia acordou assustado sentindo seu olhar sobre ele. Às vezes esse constrangimento era experimentado por ser a tribo, composta de dúzias de adultos, homens e mulheres. Era proveniente do sentido que tinham (e seus sentidos são muito agudos e mais desenvolvidos que o vocabulário) de que aquilo que estavam fazendo desintegrava-se como cinzas em suas mãos. Uma velha fazendo um cesto, um menino tosando um carneiro estavam cantando ou sussurrando, contentes no seu trabalho, quando Orlando chegava ao acampamento e se estendia ao pé do fogo olhando as chamas. Não precisava olhá-los para que logo sentissem: aqui está alguém que duvida (fizemos uma tradução livre da língua cigana), aqui está alguém que não faz por fazer; não olha por olhar; aqui está alguém que não acredita nem em pele de carneiro nem em cestos; mas vê (então olhavam apreensivamente em torno da tenda) alguma outra coisa. Então uma sensação vaga mas bastante desagradável começava a atingir o menino e a velha. Eles quebravam suas varas de vime; feriam os dedos. Enchiam-se de uma grande raiva. Desejavam que Orlando deixasse a tenda e nunca mais voltasse. No entanto, reconheciam que ela era agradável e tinha boa vontade; e que uma de suas pérolas era suficiente para comprar o melhor rebanho de cabras em Broussa.

Lentamente, ela começou a sentir que havia algumas diferenças entre ela e os ciganos que a faziam hesitar às vezes em se casar e se fixar entre eles para sempre. A princípio tentou explicar isso dizendo que provinha de uma raça antiga e civilizada, enquanto os ciganos eram um povo ignorante, não muito melhor do que os selvagens. Uma noite, quando a interrogavam sobre a Inglaterra, não pôde deixar de mostrar orgulho em descrever a casa onde nascera, que tinha trezentos e sessenta e cinco quartos, e que pertencia à sua família há quatrocentos ou quinhentos anos. Seus ancestrais eram condes, ou mesmo duques, acrescentou. Nisso, observou que os ciganos novamente estavam incomodados mas não zangados como quando ela elogiara a beleza da natureza. Agora estavam corteses porém embaraçados, como as pessoas de fina educação, quando um estrangeiro vem a revelar seu nascimento humilde ou sua pobreza. Rustum seguiu-a para fora da tenda sozinho e disse-lhe que ela não precisava se preocupar que seu pai fosse um duque e que possuísse todos os quartos e móveis que havia descrito. Nenhum deles pensaria mal dela por isso. Então, foi tomada por uma vergonha nunca antes sentida. É claro que Rustum e os outros ciganos pensavam que uma ascendência de quatrocentos ou quinhentos anos era a mais pobre possível. Suas próprias famílias remontavam a pelo menos dois ou três mil anos. Para os ciganos, cujos ancestrais tinham construído as Pirâmides séculos antes do nascimento de Cristo, a genealogia dos Howards e dos Plantagenetas não era nem melhor nem pior do que a dos Smiths ou dos Jones: todos eram insignificantes. Além do mais, quando um pastor tinha uma linhagem de tamanha antiguidade, nada havia de especialmente memorável ou desejável num berço antigo; os vagabundos e os mendigos também a possuem. E então, embora fosse extremamente cortês para falar abertamente, era claro que o cigano pensava que não há ambição mais vulgar do que possuir quartos às centenas (eles estavam no topo da colina quando conversavam; era noite; e as montanhas erguiam-se ao redor) quando a terra inteira é nossa. Do ponto de vista de um cigano, um buque, Orlando entendeu, não era mais do que um aproveitador ou ladrão que arrebatara terra e dinheiro do povo, que considerava essas coisas de pouco valor, e não podia pensar em coisa melhor do que construir trezentos e sessenta e cinco quartos, quando um era suficiente e nenhum ainda melhor. Ela não podia negar que seus antepassados tinham acumulado campo após campo; casa após casa; honraria após honraria; contudo, nenhum deles tinha sido santo ou herói ou grande benfeitor da humanidade. Nem podia deixar de reconhecer (Rustum era muito cavalheiro para insistir, mas ela compreendeu) que qualquer homem que fizesse agora o que seus antepassados haviam feito trezentos ou quatrocentos anos antes seria denunciado - ruidosamente, pela sua própria família - como um vulgar arrivista, um aventureiro, um "nouveau riche" (novo-rico).

Ela procurava responder a esses argumentos pelo método familiar, embora oblíquo, de considerar a vida dos ciganos rude e árdua; e assim em pouco tempo muita animosidade crescera entre eles. De fato, tais diferenças de opinião são suficientes para causar derramamento de sangue e revolução. Cidades têm sido saqueadas por menos cio que isso, e um milhão de mártires têm preferido o suplício a ceder uma polegada a respeito de qualquer dos pontos aqui debatidos. Nenhuma paixão é mais forte no peito do homem do que fazer os outros acreditarem naquilo em que ele acredita. Nada corta tanto a raiz de sua felicidade e o enche de cólera como perceber que outro menospreza aquilo que ele valoriza ao máximo. Whigs e Tories (Whigs: membros de um partido político da história inglesa, favorável ao progresso e à reforma. Tories: membros do Partido Conservador inglês), Liberais e Trabalhistas - por que batalham, se não pelo seu próprio prestígio? Não é o amor à verdade, mas o desejo de dominar que coloca bairro contra bairro e faz uma paróquia desejar a decadência de outra paróquia. Cada um procura paz de espírito e subserviência mais do que o triunfo da verdade e a exaltação da virtude - mas essas moralidades pertencem, e devem ser deixadas para o historiador, já que são muito enfadonhas.

"Quatrocentos e setenta e seis quartos nada significam para eles", suspirou Orlando.

"Ela prefere um pôr-do-sol a um rebanho de cabras", diziam os ciganos.

Orlando não sabia o que fazer. Deixar os ciganos e tornar-se mais uma vez Embaixador parecia-lhe intolerável. Mas era igualmente impossível permanecer para sempre, onde não havia nem tinta nem papel, nem reverência pelos Talbots, nem respeito por uma multiplicidade de quartos. Assim pensava uma bela manhã, nas encostas do monte Athos, enquanto vigiava as cabras. E então a Natureza, em quem confiava, ou pregou-lhe uma peça ou operou um milagre - novamente as opiniões diferem tanto que se torna impossível decidir. Orlando olhava bastante desconsolada para o declive da colina à sua frente. Era meados do verão, e, se pudéssemos comparar a paisagem a qualquer coisa, seria a um osso seco; a um esqueleto de carneiro; a um crânio gigantesco, escarnado por mil abutres. O calor era intenso, e a pequena figueira sob a qual Orlando repousava só servia para imprimir desenhos de folhas em seu albornoz claro.

De repente uma sombra - embora não houvesse nada para projetar uma sombra - apareceu do lado oposto da montanha escalvada. Escureceu rapidamente, e logo uma caverna verde surgiu onde havia antes uma rocha árida. Quando ela olhou, a caverna aprofundou-se e alargou-se, e um espaço como um parque abriu-se no flanco da montanha. Dentro, ela podia ver uma ondulante clareira coberta de relva; podia ver carvalhos salpicados aqui e ali; podia ver tordos pulando por entre os galhos. Podia ver veados andando delicadamente de uma sombra para outra e podia mesmo ouvir o zumbido dos insetos e os suaves suspiros e calafrios de um dia de verão na Inglaterra. Depois de contemplar em êxtase durante algum tempo, a neve começou a cair; logo toda a paisagem estava coberta e marcada com tons violeta, em vez da luz amarela do sol. Agora ela via pesadas carroças pelas estradas, carregadas com troncos de árvores que estavam levando, ela sabia, para serem serrados como lenha; e então apareciam os telhados, as cúpulas, as torres e os pátios de sua própria casa. A neve caia pesadamente, e ela podia ouvir-lhe o ruído escorregando e deslizando pelo telhado até cair no chão. A fumaça subia de mil chaminés. Tudo era tão claro e nítido que ela podia ver uma gralha catando minhocas na neve. Então, gradualmente, as sombras violetas se aprofundaram e cerraram-se sobre as carroças, os gramados e a própria casa. Tudo foi tragado. Nada restava, agora, da caverna coberta de relva, e em vez das clareiras verdes apenas a encosta ardente, que parecia pelada por mil abutres. Com iso ela explodiu em lágrimas, e retornando ao acampamento dos ciganos disse-lhes que precisava partir para a Inglaterra no dia seguinte.

Foi bom para ela ter feito isso. Os rapazes já tinham tramado sua morte. A finca, diziam, exigia isso, pois ela não pensava como eles. No entanto, tinham pena de cortar-lhe o pescoço; e a notícia de sua partida foi bem recebida. Um navio mercante inglês, por sorte, estava já no porto pronto para retornar à Inglaterra; e Orlando, arrancando outra pérola de seu colar, não apenas pagou a passagem mas ficou com algum dinheiro na carteira. Este ela gostaria de dar de presente aos ciganos. Mas sabia que eles desprezavm dinheiro; e teve que contentar-se com abraços que, de sua parte, eram sinceros.

 

Com alguns guinéus que lhe sobraram da venda da décima pérola do seu colar, Orlando comprou um enxoval completo de roupas femininas como as que se usavam, e foi vestida como uma jovem inglesa de classe.

Ela agora sentou-se no convés do Enamoured Lauem. Fato estranho, porém verdadeiro, que até aquele momento ela pouco tinha se preocupado com o seu sexo. Talvez as calças turcas que usara até então tivesse feito algo para distrair seus pensamentos; e as ciganas exceto em uma ou duas particularidades importantes diferem muito pouco dos ciganos. De qualquer modo somente quando sentiu a saia enrolando em suas pernas e o capitão oferecendo-se com grande polidez para mandar armar-lhe um toldo no convés que ela percebeu sobressaltada, as desvantagens e os privilégios de sua posição. Mas esse sobressalto não era do tipo que podia esperar.

Não foi causado, quer dizer, simples e unicamente pelo pensamento em sua castidade e de como preservá-Ia. Em circunstâncias normais, uma linda jovem sozinha não teria pensado em outra coisa; todo o edifício de controle feminino é baseado naquela pedra fundamental; a castidade é sua jóia, peça central, que elas protegem até à loucura e morrem quando é arrebatada. Mas quando alguém foi homem por trinta anos ou mais, ainda por cima Embaixador, se teve uma Rainha nos braços e mais uma ou duas damas, e - se o relato for verdadeiro - se foi casado com uma Rosina Pepita, de menos nobreza, e assim por diante, talvez não se tente por essa razão um sobressalto tão grande. O sobressalto de Orlando era de natureza muito complicada e não pode ser resumido num abrir e fechar de olhos. Ninguém, na verdade, jamais acusou-a de uma dessas inteligências velozes, que chegam ao final das coisas num minuto. Ela levou a viagem inteira para compreender o significado do seu sobressalto, e assim a seguiremos no seu próprio ritmo.

"Senhor", pensou quando se recuperou de seu sobressalto, espreguiçando-se sob o toldo, "esta é com certeza uma agradável e preguiçosa maneira de viver. Mas", pensou, dando um pontapé, "estas saias em volta dos calcanhares são uma praga. Contudo, o tecido (brocado florido) é o mais lindo do mundo. Nunca eu tinha visto a minha pele (aqui ela pousou a mão no joelho) parecer tão favorecida como agora. Eu poderia, no entanto, pular do navio e nadar com roupas como estas? Não. Portanto, teria que confiar na proteção de um marinheiro. Tenho alguma objeção a isso? Tenho?", assim imaginava, encontrando o primeiro nó na meada de seu raciocínio.

A hora do jantar chegou antes que ela o tivesse desatado, e então foi o próprio capitão - Capitão Nicholas Benedict Bartolus, capitão de marinha de aspecto distinto - que o desatou para ela, ao servir-lhe uma fatia de carne em conserva.

"Um pouco de gordura, senhora?" perguntou. "Deixe-me servir-lhe uma fatia fininha, do tamanho de sua unha." A estas palavras, um delicioso tremor percorreu-a. Pássaros cantaram; as torrentes se precipitaram. Relembrou o sentimento de indescritível prazer com que vira Sasha pela primeira vez, havia centenas de anos. Naquela época ela perseguira, agora escapava. Qual é o maior êxtase? O do homem ou o da mulher? E não serão talvez idênticos? Não, pensou, este é o mais delicioso (agradecendo ao capitão, mas recusando), recusar e vê-lo franzir o cenho. Bem, se ele quisesse, ela aceitaria a mais fina e menor lasca do mundo. Aquiescer e vê-lo sorrir era a coisa mais deliciosa de todas. "Pois nada", pensou, retomando o assento no convés e continuando o raciocínio, "é mais divino do que resistir e ceder; ceder e resistir. De fato, nenhuma outra coisa lança o espírito em tal arrebatamento. Assim, não tenho certeza", continuou, "de que não me atiraria de bordo, pelo simples prazer de ser salva por um marinheiro.”

(É preciso lembrar que ela era como uma criança tomando posse de um jardim ou de um armário de brinquedos; seu raciocínio não era próprio de uma mulher madura, que tivesse dirigido o curso de sua vida.)

"Mas o que nós, jovens companheiros de bordo do Marie Rose, costumávamos dizer de uma mulher que se jogava do navio pelo prazer de ser salva por um marinheiro?", disse ela. "Tínhamos um nome para elas. Ah!, bem sei..." (Mas devemos omitir esta palavra; é desrespeitosa ao extremo e imprópria para os lábios de uma dama.) "Senhor! Senhor!", gritou novamente, concluindo seus pensamentos, "devo então começar a respeitar a opinião do outro sexo, mesmo que me pareça monstruosa? Se uso saias, se não posso nadar, se tenho de ser salva por um marinheiro, meu Deus!", gritou, "devo!" E com isso entristeceu. Cândida por natureza e avessa todos os tipos de ambigüidades, mentir irritava-a. Isso lhe parecia um rodeio. Contudo, refletiu, se o brocado florido e o prazer de ser salva por um marinheiro só podem ser conseguidos com rodeios, deve-se continuar com rodeios, supôs. Lembrava agora como, quando rapaz, insistira em que as mulheres deviam ser obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas. "Agora tenho que pagar pessoalmente por esses desejos", refletiu; "pois as mulheres não são (julgando pela minha própria curta experiência do sexo) obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas por natureza. Elas só podem conseguir esses encantos sem os quais não desfrutam de nenhum dos prazeres da vida - por meio da mais tediosa disciplina. Há o penteado", pensou, "que sozinho toma uma hora da minha manhã; o olhar no espelho, mais uma hora; colocar e amarrar o espartilho; banhar-me e empoar-me; mudar de seda para renda e de renda para brocado; ser casta o tempo todo..." Aqui, sacudiu o pé impacientemente e mostrou uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro que estava no mastro, e que olhou por acaso para baixo naquele momento, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o equilíbrio e só se salvou por um triz. "Se a visão dos meus tornozelos significa a morte para um homem honesto que sem dúvida tem mulher e família para sustentar, devo, por humanidade, mantêlos cobertos", pensou Orlando. No entanto, suas pernas estavam entre seus maiores encantos, e ela começou a pensar a que estranha situação chegamos quando toda a beleza de uma mulher tem que ser mantida coberta para que um marinheiro não caia do mastro principal. "Que se danem!", disse ela, compreendendo pela primeira vez o que em outras circunstâncias lhe teriam ensinado quando criança, ou seja, as sagradas responsabilidades de ser mulher.

"E esta é a última praga que poderei rogar", pensou, "antes de pôr os pés no solo inglês. Não serei capaz de quebrar a cabeça de um homem, nem dizer-lhe que mente até os dentes, nem desembainhar minha espada e traspassá-lo, nem sentar entre meus pares, nem usar uma coroa, nem andar em procissão, nem condenar um homem à morte, nem comandar um exército, nem exibir-me num corcel pelo Whitehall, nem usar setenta e duas diferentes medalhas no peito. Tudo o que posso fazer quando pisar no solo inglês é servir chá e perguntar aos meus senhores como eles o preferem. Com açúcar? Com creme?" E, pronunciando as palavras, ficou horrorizada de perceber como era baixa a opinião que estava formando a respeito do outro sexo, o masculino, ao qual antes tivera orgulho de pertencer. "Cair de um mastro principal", pensou, "porque viu os tornozelos de uma mulher; vestir-se como Guy Fawkes e desfilar pelas ruas para que as mulheres o admirem; negar instrução à mulher para que ela não ria dele; ser escravo da mais reles sirigaita de saias e seguir como se fosse o Senhor da criação. - Céus!", pensou, "como nos fazem de bobas - que bobas somos nós!" E aqui parecia haver alguma ambigüidade em seus termos, pois estava censurando ambos os sexos igualmente, como se não pertencesse a nenhum; e na verdade, até aquele momento, parecia vacilar; era homem; era mulher; conhecia os segredos e partilhava as fraquezas de cada um. Era o mais desconcertante e atordoante estado de espírito. Os consolos da ignorância pareciam-lhe proibidos. Ela era uma pluma soprada pelo vento. Assim, não é de admirar que confrontasse um sexo contra o outro e alternadamente achasse cada um deles cheio das mais deploráveis fraquezas, e não tinha certeza a qual pertencia - não é de admirar que estivesse a ponto de gritar que retornaria à Turquia e se tornaria novamente cigana, quando a âncora caiu com grande ruído no mar; as velas arriaram sobre o convés, e ela percebeu (estivera por vários dias tão profundamente mergulhada em pensamentos que nada vira) que o navio estava ancorado na costa da Itália. O capitão imediatamente solicitou-lhe a honra da companhia para descer à terra em seu bote.

Quando retornou na manhã seguinte, estendeu-se na espreguiçadeira sob o toldo e ajeitou os drapeados, com o maior decoro, ao redor dos tornozelos.

"Ignorantes e pobres se comparadas com o outro sexo", pensou, continuando a frase que deixara sem terminar no outro dia, "armados com todas as armas como estão, enquanto nos privam do conhecimento do alfabeto" (e, por estas palavras iniciais, fica claro que algo acontecera durante a noite para que se inclinasse pelo sexo feminino, pois estava falando mais como mulher do que como homem, e além disso com uma espécie de satisfação), "ainda assim... eles caem do mastro principal." Aqui deu um grande bocejo e adormeceu. Quando acordou, o navio estava velejando com um vento a favor, tão perto da costa que as cidades no alto dos penhascos pareciam impedidas de escorregar para a água apenas pela interposição de alguma grande rocha ou das raízes retorcidas de alguma velha oliveira. O perfume das laranjas, desprendido de um milhão de árvores carregadas de frutas, alcançou-a no convés. Um cardume de golfinhos azuis, sacudindo as caudas, saltava no ar de vez em quando. Esticando os braços (os braços, ela já aprendera, não têm efeitos fatais como as pernas), agradeceu ao céu por não estar se exibindo num corcel de guerra pelo Whitehall, nem sentenciando um homem a morte. "É melhor", pensou, "estar vestida de pobreza e ignorância, que são as vestimentas escuras do sexo feminino; é melhor deixar o governo e a disciplina do mundo para os outros; é melhor abandonar a ambição marcial, o amor ao poder e todos os outros desejos masculinos, para que se possa apreciar completamente os mais sublimes arrebatamentos do espírito humano, que são", disse em voz alta, como de hábito quando estava profundamente comovida, "contemplação, solidão, amor.”

"Graças a Deus que sou mulher!", gritou, e estava quase caindo em extrema loucura - nada é mais lamentável numa mulher ou num homem do que ter orgulho do seu sexo - quando se deteve sobre a singular palavra que, por mais que tentemos substituir, se insinuou no final da última frase: amor. "Amor", disse Orlando. Instantaneamente - tal é a sua impetuosidade o amor tomou uma forma humana - tal é o seu orgulho. Pois, enquanto os outros pensamentos se contentam em permanecer abstratos, nada satisfará a este se não se revestir de carne e sangue, mantilhas e saias, calças e jaquetas. E, como todos os amores de Orlando tinham sido mulheres, agora, devido à censurável morosidade da constituição humana em adaptar-se à convenção, embora ela própria fosse uma mulher, era ainda uma mulher que ela amava; e, se a consciência de ser do mesmo sexo tinha algum efeito sobre isso, era o de apressar e aprofundar aqueles sentimentos que tivera como homem. Pois agora mil insinuações e mistérios que antes pareciam obscuros se aclaravam para ela. Agora, a obscuridade - que divide os sexos e permite a sobrevivência de inúmeras impurezas à sua sombra - foi removida, e, se há alguma relação no que o poeta diz sobre verdade e beleza, esta afeição ganhou em beleza o que perdeu em falsidade. Finalmente, gritou, ela conhecia Sasha como era, e, no ardor desta descoberta e no encalço de todos os tesouros que lhe eram agora revelados, estava tão arrebatada e encantada como se uma bala de canhão tivesse explodido nos seus ouvidos, quando uma voz de homem disse-lhe: "Permita-me, senhora", e a mão de um homem ajudou-a a levantar-se; e os dedos de um homem, com um veleiro de três mastros tatuado no dedo do meio, apontaram o horizonte.

"Os penhascos da Inglaterra, senhora", disse o capitão, e levantou a mão que apontara para o céu, para saudá-los. Orlando teve um segundo sobressalto, ainda mais violento que o primeiro.

"Cristo Jesus!", exclamou.

Felizmente a visão de sua terra natal depois de longa ausência desculpava o sobressalto e a exclamação, ou ela teria tido dificuldade em explicar ao Capitão Bartolus as furiosas e conflitantes emoções que ferviam dentro de si. Como lhe dizer que ela, que agora tremia em seu braço, tinha sido um Duque e um Embaixador? Como lhe explicar que ela, que tinha sido tratada como um lírio em pregas de brocado, degolara cabeças e deitara com mulheres perdidas, entre sacos de tesouros nos porões de navios piratas, nas noites de verão, quando as tulipas florescem e as abelhas zumbem na Wapping Old Stairs? Nem para si mesma podia explicar o violento sobressalto que deu quando a decidida mão direita do capitão de bordo lhe indicara os penhascos das Ilhas Inglesas.

"Recusar e ceder", murmurou, "que prazer; perseguir e conquistar, que imponência; perceber e raciocinar, que sublime." Nenhuma dessas palavras assim reunidas lhe parecia errada; no entanto, quando os penhascos brancos se aproximaram, sentiu-se culpada; desonrada; impura, o que era estranho, para quem nunca se preocupara com o assunto. Aproximaram-se mais e mais, até que os apanhadores de salsa, meio dependurados nos rochedos, ficaram visíveis a olho nu. E, observando-os, ela sentiu correr para cima e para baixo, como um fantasma irônico que em outro momento apanharia suas saias e desapareceria da vista, Sasha, a perdida, Sasha, a memória, cuja realidade acabava de experimentar agora, de forma tão surpreendente - Sasha, sentiu, fazendo caretas e trejeitos e todos os tipos de gestos desrespeitosos na direção dos penhascos e dos apanhadores de salsa; e, quando os marinheiros começaram a cantar, "então adeus, e até à vista, damas de Espanha", as palavras ecoaram no coração triste de Orlando, e sentiu que por mais que o desembarque ali significasse conforto, significasse opulência, significasse importância (pois ela sem dúvida caçaria algum príncipe nobre e reinaria como sua consorte sobre metade de Yorkshire), ainda assim significava convencionalismo, significava escravidão, significava fraude, significava negar o seu amor, acorrentar o corpo, franzir os lábios e conter a língua - então teve vontade de voltar com o navio e regressar para os ciganos.

Em meio à vertigem desses pensamentos, contudo, alguma coisa se erguia como uma cúpula de mármore branco e liso, alguma coisa verdadeira ou imaginária, mas tão marcante para a sua imaginação febril que nela se deteve, tal como alguém que vê pousar um vibrante enxame de libélulas, com evidente satisfação, sobre a redoma de vidro que protege uma frágil planta. Sua forma, pelo acaso da fantasia, lembrava-lhe aquela antiga e persistente memória - um homem de testa alta, na sala de Twitchett, um homem sentado escrevendo, ou antes, olhando, mas não para ela, pois pareceu nunca têla visto parada ali, com toda a sua elegância, como um lindo rapaz que não podia negar ter sido - e toda vez que ela pensava nele o pensamento espalhava ao redor, como a lua surgindo sobre águas turbulentas, um tranqüilo lençol de prata. Agora levou a mão ao peito (a outra ainda estava sob a guarda do capitão), onde as páginas do poema estavam escondidas. Podia ser um talismã o que mantinha ali. A preocupação com o sexo a que pertencia, e o que isso significava, diminuiu; ela agora somente pensava na glória da poesia, e os grandes versos de Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson, Milton começaram a pulsar e a reverberar, como se um badalo dourado batesse no sino dourado da torre da catedral que era a sua mente. A verdade era que a imagem da cúpula de mármore - que seus olhos no início tinham descoberto tão tenuemente que sugeria a testa do poeta e assim um bando de idéias irrelevantes - não era ficção, mas uma realidade; e enquanto o navio avançava pelo Tâmisa, com uma brisa favorável, a imagem, com todas as suas associações, deu lugar à verdade e revelou-se nada mais nada menos como a cúpula de uma vasta catedral, erguendo-se entre relevos de espirais brancas.

"São Paulo", disse o Capitão Bartolus, que estava ao seu lado. "A Torre de Londres", continuou. "O Hospital de Greenwich, construído em memória da Rainha Maria por seu falecido esposo, Sua Majestade Guilherme III. A Abadia de Westminster. As Casas do Parlamento." Enquanto falava, cada um desses famosos prédios aparecia. Era uma linda manhã de setembro. Um cojunto de pequenas embarcações trafegava de uma margem para outra. Raramente um viajante de regresso presenciava espetáculo mais alegre e mais interessante. Orlando estava na proa, absorta e maravilhada. Seus olhos tinham se acostumado por muito tempo aos selvagens e à natureza, para não se fascinarem com essas glórias urbanas. Aquilo, então, era a cúpula de São Paulo, que o Sr. Wren construíra durante a sua ausência. Bem próximo uma cabeleira dourada surgiu de uma coluna - o Capitão Bartolus estava ao seu lado para informar que aquilo era o Monumento; tinha havido uma peste e um incêndio durante a sua ausência, disse ele. Por mais que quisesse conter-se, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, até que, lembrando que é próprio da mulher chorar, deixou-as fluir. Aqui, pensou, tinha sido o grande carnaval, Aqui, onde as ondas batem com força, estivera o Pavilhão Real. Aqui ela encontrara Sasha pela primeira vez. Por ali (ela olhava a profundidade das águas cintilantes) costumava-se ver a mulher congelada, no bote, com suas maçãs no regaço. Todo aquele esplendor e aquela corrupção tinham passado. Haviam passado também a noite escura, o monstruoso dilúvio e as violentas vagas da inundação. Aqui, onde os blocos de gelo amarelado tinham rodopiado levando no alto uma multidão de mendigos aterrorizados, um bando de cisnes flutuava orgulhoso, ondulante, soberbo. A própria Londres tinha mudado completamente desde que a vira pela última vez. Naquele tempo, lembrava, era um amontoado de pequenas casas pretas e sombrias. As cabeças dos rebeldes sorriam com ironia, nas lanças em Temple Bar. Os pavimentos de pedra estavam impregnados de cheiro de lixo e de esterco. Agora, como o navio costeasse Wapping, ela viu de relance estradas largas e regulares. Carruagens imponentes, puxadas por parelhas de cavalos bem alimentados, permaneciam às portas das casas, cujas sacadas, vidraças e aldrabas polidas testemunhavam a riqueza e a comedida dignidade de seus habitantes. Senhoras vestidas de sedas floridas (ela usou o binóculo do capitão) caminhavam pelas altas calçadas. Cidadãos de casacos bordados cheiravam rapé nas esquinas, debaixo dos lampiões. Avistou uma variedade de anúncios pintados, balançando com a brisa, e pôde ter uma rápida noção do que estava escrito neles a respeito de tabaco, panos, seda, ouro, prataria, luvas, perfumes e mil outros artigos à venda ali. À medida que o navio se dirigia para o ancoradouro, perto da Ponte de Londres, ela nada podia fazer além de olhar para as janelas dos cafés, em cujas sacadas, já que o tempo estava bom, um grande número de respeitáveis cidadãos sentava-se confortavelmente diante de pratos de porcelana, cachimbos de barro ao lado, enquanto um deles lia o jornal e era freqüentemente interrompido pela risada ou comentários dos outros. Seriam tavernas, seriam intelectuais, seriam poetas?, perguntou ao Capitão Bartolus, que amavelmente informou que mesmo agora - se ela virasse um pouco a cabeça para a esquerda e olhasse em direção ao seu dedo indicador - assim - estariam passando pelo Cacaueiro, onde - sim, lá estava ele - podia-se ver o Sr. Addison tomando o seu café; os outros dois cavalheiros - "ali, senhora, um pouco à direita do lampião, um deles corcunda, o outro como a senhora ou eu" ali estavam o Sr. Dryden e o Sr. Pope. (O capitão estava cometendo um erro, como se pode verificair consultando qualquer manual de literatura; mas, como o erro era bem-intencionado, deixamos que permanecesse. - N.A.) "Pobres-diabos", disse o capitão, querendo dizer que eram papistas, "mas homens de talento, apesar disso", acrescentou, correndo para a popa para dirigir as manobras de atracação.

"Addison, Dryden e Pope", repetia Orlando, como se essas palavras fossem encantadas. Por um momento viu as altas montanhas sobre Broussa, e no momento seguinte pisava sua terra natal.

Mas agora Orlando teria de aprender como é insignificante o mais tempestuoso alvoroço de excitação diante da face férrea da lei; como esta é mais dura do que pedras da Ponte de Londres e mais rígida do que a bomba de um canhão. Nem bem retornara à sua casa e Blackfriars, foi avisada, por uma série de mensageiros de Bow Street e outros importantes emissários da Corte de Justiça, de que era parte em três grandes processo movidos contra ela em sua ausência, bem como em inúmeros outros litígios menores, alguns decorrentes e outros dependentes daqueles. As principais acusações contra ela eram: (1) que estava morta e portanto não podia ter propriedade alguma; (2) que era mulher, o que significa a mesma coisa; (3) que ela era um Duque inglês que casara com uma dançarina, Rosina Pepita, com quem tivera três filhos, os quais, declarando que o pai estava morto, reclamavam a posse de todas as suas propriedades. Acusações tão graves como estas, é claro, exigem tempo e dinheiro para serem resolvidas. Todos os seus bens foram embargados, seus títulos suspensos, enquam os processos estavam em curso. Assim, foi numa condição extremamente ambígua - sem saber se estava morta ou viva, se era homem ou mulher, Duque ou ninguém - que partiu para sua casa no campo, onde, à espera do julgamento legal, tinha permissão da Corte para residir incógnito ou incógnita, conforme fosse o caso.

Era uma linda tarde de dezembro quando chegou, a neve caía e as sombras violetas tinham a mesma inclinação das que ela vira dos cumes de Broussa. A grande casa parecia mais uma cidade do que uma casa, marrom e azul, rosa e púrpura, na neve, com todas as chaminés fumegando atarefadamente, como se animadas por vida própria. Ela não pôde conter um grito ao vê-Ia, tranqüila e maciça, estendida sobre os prados. Quando a carruagem amarela entrou no parque e rodou ao longo de alamedas entre as árvores, os veados vermelhos levantaram a cabeça em expectativa, e observou-se que, em vez de mostrarem a timidez natural de sua espécie, acompanharam a carruagem e permaneceram no pátio quando ela parou. Alguns sacudiam a galhada, outros batiam com as patas no chão, quando o estribo desceu e Orlando saltou. Diz-se que um, realmente, se ajoelhou na neve, diante dela. Ela não teve tempo de levar a mão à aldraba antes que as folhas da grande porta fossem abertas de par em par, e lá estavam, com luzes e tochas acima de suas cabeças, a Sra. Grimsditch, o Sr. Dupper e um séquito de criados que vieram saudá-la. Mas o organizado desfile foi interrompido, primeiro pela impetuosidade de Canute, o galgo, que se atirou sobre sua dona com tal ardor que quase a derrubou ao chão; em seguida, pela agitação da Sra. Grimsditch, que, ao fazer uma reverência, foi dominada pela emoção e não conseguia senão balbuciar "Milorde! Milady! Milady! Milorde!", até que Orlando confortou-a com um beijo carinhoso em ambas as faces. Depois disso, o Sr. Dupper começou a ler um pergaminho, mas, os cachorros latindo, os caçadores soprando as trombetas e os veados - que haviam acorrido ao pátio na confusão - bramindo para a lua, não pôde ir adiante, e o grupo se dispersou depois de se comprimir em torno de sua Senhora e de demonstrar de todas as maneiras grande alegria pelo seu regresso.

Ninguém manifestou a menor suspeita de que Orlando não fosse o Orlando que tinham conhecido. Se houvesse alguma dúvida na mente humana, a atitude dos veados e dos cachorros seria suficiente para dissipá-la, pois, como se sabe, os animais são melhores juízes de identidade e caráter do que nós. Além disso - disse a Sra. Grimsditch ao Sr. Dupper aquela noite, diante de sua xícara de chá -, se seu Senhor era agora uma Senhora, ela nunca via uma tão encantadora e não havia como escolher entre eles; um era tão favorecido quanto a outra; eram tão semelhantes como dois pêssegos em um galho; e quanto a si - disse a Sra. Grimsditch tornando-se confidencial - sempre tivera suas suspeitas (aqui balançou a cabeça misteriosamente), e não era surpresa para ela (aqui balançou a cabeça astutamente) e de sua parte isso era um grande alívio; pois, com as toalhas precisando remendar e as cortinas da sala do capelão comidas por traças nas franjas, era tempo de terem uma Senhora entre eles.

"E que alguns pequenos Senhores e Senhoras a sucedam", acrescentou o Sr. Dupper, cuja sagrada missão lhe conferia o privilégio de dar opinião em assunto delicados como esses.

Assim, enquanto os velhos criados mexericavam na sua sala, Orlando pegou um castiçal de prata e vagou mais uma vez através dos salões, galerias, pátios, quartos; viu inclinar-se diante dela, de novo, a face escura deste Lorde chanceler, daquele camareiro-mor, dentre seus antepassados; ora sentava-se naquele trono, ora reclinava-se naquele delicioso dossel; observava as tapeçarias, e como balançavam; olhava os caçadores cavalgando e Dafne voando; banhava a mão, como gostava de fazer em criança, na poça de luz amarela que o luar fazia atravessando o leopardo heráldico da janela; deslizava ao longo das tábuas polidas da galeria, que do outro lado eram madeira áspera; tocava esta seda, aquele cetim; imaginava que os golfinhos esculpidos nadavam; escovava o cabelo com a escova de prata do Rei Jaime; mergulhava o rosto no pot-pourri, como o Conquistador havia ensinado muitos séculos antes, e que era feito das mesmas rosas; olhava para o jardim e imaginava os açafrões dormindo e as dálias entorpecidas; via as frágeis ninfas brilhando brancas na neve, e, atrás delas, negras e espessas como uma casa, as grandes cercas de teixos; via os laranjais e as nespereiras gigantes; - tudo isso viu, e cada visão ou som, apesar da rudeza com que descrevemos, enchia o seu coração com tal prazer e com um tal bálsamo de alegria que finalmente, exausta, entrou na Capela e afundou na velha poltrona vermelha onde seus antepassados costumavam acompanhar o ofício religioso. Lá acendeu um charuto (era um hábito que trouxera do Oriente) e abriu o Livro de Orações.

Era um livrinho encadernado em veludo, costurado com fio de ouro, que Maria Rainha da Escócia segurara no cadafalso, e o olho piedoso podia detectar uma mancha pardacenta que se dizia ter sido feita por uma gota do sangue real. Mas quem ousaria dizer que piedosos pensamentos isso despertou em Orlando, que paixões malévolas adormeceu, visto que, de todas as comunhões, a mais inescrutável é com a divindade? Novelista, poeta, historiador, todos vacilam ao tocar nessa porta; nem o próprio crente nos esclarece, pois estará ele mais preparado para morrer do que as outras pessoas, ou mais ansioso em partilhar seus bens? Ele não mantém tantas empregadas e parelhas de cavalos, como o resto? E, com tudo isso, sustenta uma fé - diz ele - que torna os bens vaidade e a morte desejável. No livro de orações da Rainha, juntamente com a mancha de sangue, havia uma mecha de cabelos e uma migalha; Orlando agora acrescentava a essas relíquias uma lasca de tabaco, e assim, lendo e fumando, foi levada pela mistura humana de tudo isso - cabelo, migalha, mancha de sangue e tabaco - a uma tal forma de contemplação que lhe deu um ar reverente, adequado às circunstâncias, embora se dissesse que ela não tinha trânsito com o Deus habitual. Nada, porém, pode ser mais arrogante, embora mais comum, do que assumir que de Deuses só existe um, e de religiões nenhuma além da de quem fala. Orlando, parece, tinha uma fé própria. Com todo o ardor religioso do mundo, agora refletia sobre seus pecados e imperfeições, que tinham se insinuado em seu estado de espírito. A letra S, refletiu, é a serpente do Éden do poeta. Fizesse o que quisesse, ainda havia muitos desses répteis pecaminosos nas primeiras estrofes de "O Carvalho". Mas o "S" não era nada, em sua opinião, se comparado com a terminação "ndo". O particípio presente é o próprio demônio, pensou (agora que estamos num lugar para crer em demônios). Evitar tais tentações é o primeiro dever do poeta, concluiu, pois, como o ouvido é a antecâmara da alma, a poesia pode adulterar e destruir com mais segurança do que a luxúria ou a pólvora. O ofício do poeta é, então, o mais elevado de todos - continuou. Suas palavras alcançam onde os outros falham. Uma simples canção de Shakespeare tem feito mais pelos pobres e pelos desgraçados do que todos os pregadores e filantropos do mundo. Nem tempo nem devoção podem ser tão grandes, portanto, para tornar o veículo de nossa mensagem menos distorcido. Devemos modelar nossas palavras a que sejam o mais fino invólucro de nossos pensamentos. Os pensamentos são divinos etc. Assim, é óbvio que ela estava de volta aos limites de sua própria religião, que o tempo tinha fortalecido em sua ausência ia adquirindo rapidamente a intolerância da crença.

"Estou crescendo", pensou, pegando finalmente a vela. "Estou perdendo algumas ilusões", disse, fechando o livro da Rainha Maria, "talvez para adquirir outras", e desceu por entre as tumbas onde jaziam os ossos de seus antepassados.

Mas, mesmo os ossos de seus antepassados, Sir Mile Sir Gervase e os outros, tinham perdido algo de sua santidade desde que Rustum-el-Sadi abanara a mão, naquela noite, nas montanhas da Ásia. De alguma forma encheu-a de remorso o fato de que havia apenas três ou quatro séculos esses esqueletos tivessem sido homens com o seu caminho a percorrer no mundo, como qualquer arrivista moderno, e que tivessem feito isso adquirindo casas e cargos, jarreteiras e condecorações, como qualquer outro arrivista faz, enquanto poetas, talvez, homens de grande talento e educação tivessem preferido a quietude do campo e por essa escolha tivesse pago a pena de uma extrema pobreza e agora apregoa sem boletins no Strand, ou pastoreassem carneiros nos campos. Enquanto permaneceu de pé, na cripta, pensou nas pirâmides do Egito e nos ossos que jazem debaixo delas; e as vastas e desertas colinas que dominam o meio de Mármara pareceram-lhe, naquele momento, uma habitaçâo mais bela do que essa mansão de muitos quartos, na qual não faltava colcha a nenhuma cama nem tampa de prata a nenhuma terrina de prata.

"Estou crescendo", pensou, pegando a sua vela. "Estou perdendo minhas ilusões, talvez para adquirir outra novas", e foi caminhando pela longa galeria para o seu quarto. Era um processo desagradável e incômodo. Mas surpreendentemente interessante, pensou, esticando as pernas para a lareira (pois não havia nenhum marinheiro presente), e reviu, como se fosse uma avenida com grandes edifícios, o progresso do seu eu, ao longo de seu próprio passado.

Como amara o som quando menino e como pensara que a torrente de sílabas tumultuosas vindas dos lábios fosse a mais bela de toda a poesia. Depois - talvez por efeito de Sasha e de sua desilusão - deixou cair nesse grande frenesi uma gota negra, que transformou em morosidade a sua rapsódia. Lentamente abria-se dentro dela alguma coisa intrincada e de muitos compartimentos, que se precisa ter uma tocha para explorar, em prosa e não em verso; e recordou quão apaixonadamente estudara aquele doutor Browne, de Norwich, cujo livro estava ali ao seu alcance. Construíra aqui, em solidão, depois de seu caso com Greene, ou tentara construir pois Deus sabe como essas construções são demoradas - um espírito capaz de resistência. "Escreverei", disse, "o que eu gostar de escrever"; e então rascunhou vinte e seis volumes. Mesmo assim, apesar de todas as suas viagens e aventuras, suas profundas meditações e suas voltas para um lado e para outro, estava apenas no processo de criar. O que o futuro traria, somente os Céus sabiam. A mudança era incessante, a mudança talvez não cessasse nunca. Altas muralhas de pensamentos, hábitos que tinham parecido duráveis como pedra, caiam como sombras ao toque de um outro espírito e deixavam o céu desnudo, com estrelas brilhando. Aqui dirigiu-se à janela e, apesar do frio, não pôde deixar de abri-Ia. Inclinou-se no ar úmido da noite. Ouviu uma raposa uivar no bosque e o ruído de um faisão passando por entre os ramos. Ouviu a neve escorregar e cair do telhado ao chão. "Por minha vida", exclamou, "isto é mil vezes melhor do que a Turquia. Rustum", gritou, como se estivesse discutindo com o cigano (e, com este novo poder de criar e manter uma discussão com alguém que não estava ali para contradizê-la, mostrava novamente o desenvolvimento de seu espírito), "estavas enganado. Isto é melhor do que a Turquia. Cabelo, migalha, tabaco - e toda a miscelânea de que somos compostos", disse (pensando no livro de orações da Rainha Maria). "Que fantasmagoria é o espírito, e que ponto de encontro de dessemelhanças! Em dado momento deploramos nosso berço e nossa riqueza e aspiramos a uma exaltação ascética; no seguinte somos dominados pelo cheiro de alguma alameda, de um velho jardim e choramos ao ouvir o canto dos tordos." E assim, perplexa como de costume pela multiplicidade de coisas que exigem explicação e que imprimem sua mensagem sem deixar qualquer indício do significado, atirou o charuto pela janela e foi para a cama.

Na manhã seguinte, em conseqüência desses pensamentos, pegou pena e papel e recomeçou "O Carvalho", pois ter tinta e papel em quantidade, quando se teve que recorrer a sementes e margens, é um prazer inimaginável. Assim, estava agora esboçando uma frase nas profundezas do desespero, escrevendo outra nos cumes do êxtase, quando uma sombra escureceu a página. Apressadamente escondeu o manuscrito.

Como sua janela dava para a parte mais central dos pátios, e como dera ordens que não queria ver ninguém, como sabia que não conhecia ninguém e era legalmente desconhecida, ficou primeiro surpresa com a sombra, depois indignada com ela. Então (quando olhou para cima e viu o que a causava) foi dominada pela alegria pois era uma sombra familiar, uma sombra grotesca, sombra de nada menos que a Arquiduquesa Harri Griselda de Finster-Aarhorn e Scand-op-Boom, do território romeno. Ela atravessava o pátio, como antes com o seu velho traje negro de montaria e sua capa. Nenhum cabelo de sua cabeça havia mudado. Esta, então, era a mulher que a expulsara da Inglaterra! Este eis o ninho daquele abutre obsceno - este era o próprio pássaro fatal! Ao pensar que fugira para a Turquia para evitar sua sedução (que agora tinha se tornado excessivamente insípida), Orlando riu alto. Havia algo inexprimivelmente cômico naquela visão. Ela parecia - como Orlando pensara antes - nada mais do que uma lebre monstruosa. Tinha os olhos arregalados, as bochechas flácidas, o topete alto daquele animal. Parara agora, com uma lebre, sentada ereta no trigo, julgando não ser observada, e fitou Orlando, que por sua vez fitou-a da janela. Depois de terem se fitado dessa forma por algum tempo, não havia outra coisa a fazer senão convidá-la entrar, e logo as duas damas estavam trocando cumprimentos, enquanto a Arquiduquesa sacudia a neve de sua capa.

"O diabo carregue as mulheres!", disse Orlando para si mesma, indo até o armário pegar um copo de vinho, "nunca deixam a ninguém um momento de paz. Não existe gente mais bisbilhoteira, curiosa e intrometida do que elas. Foi para fugir deste mastro enfeitado que eu parti da Inglaterra, e agora" - aqui virou-se para oferecer a bandeja à Arquiduquesa e espantou-se: em seu lugar surgiu um cavalheiro alto, de negro. Um monte de roupas jazia no guarda-fogo. Ela estava sozinha com um homem.

Chamada bruscamente à consciência de seu sexo que ela esquecera completamente - e à dele, que era agora bastante remota para ser igualmente inquietante, Orlando sentiu que ia desmaiar.

"Ah!", gritou, pondo a mão no quadril, "que susto!”

"Gentil criatura", exclamou a Arquiduquesa, caindo de joelhos e ao mesmo tempo aproximando dos lábios de Orlando um licor cordial, "perdoe-me a peça que lhe preguei!”

Orlando sorveu o vinho, e o Arquiduque ajoelhou-se e beijou-lhe a mão.

Em suma, eles representaram papéis de homem e mulher por dez minutos, com grande vigor, e depois retornaram às maneiras habituais. A Arquiduquesa (mas que de agora em diante deve ser conhecida como o Arquiduque) contou sua história - que era um homem, e sempre tinha sido; que vira um retrato de Orlando e se apaixonara por ele desesperadamente; que para atingir seus fins se vestira como mulher e se hospedara na casa do padeiro; que ficara desconsolado quando ele fugira para a Turquia; que soubera de sua transformação e se apressara a oferecer seus préstimos (aqui representava, de um modo intolerável). Pois para ele, disse o Arquiduque Harry, ela era e sempre fora o Pináculo, a Pérola, a Perfeição do seu sexo. Os três "P" teriam sido mais convincentes se não tivessem sido entremeados com muxoxos e exclamações das mais estranhas. "Se isto é amor", disse Orlando para si mesma, olhando para o Arquiduque do outro lado do guarda-fogo, e agora do ponto de vista feminino, "há nele alguma coisa profundamente ridícula.”

Caindo de joelhos, o Arquiduque Harry fez-lhe mais apaixonada das declarações. Disse-lhe que tinha cerca de vinte milhões de ducados num cofre-forte em seu castelo. Possuía mais acres do que qualquer nobre na Inglaterra. A caça era excelente: podia prometer-lhe uma bolsa sortida de lagópodes e de galos silvestres como nenhum pântano inglês ou escocês poderia oferecer. Na verdade, os faisões tinham sido atacados de goma durante sua ausência e os antílopes perdido suas crias, mas isso poderia ser remediado e seria, com a sua ajuda, quando vivessem juntos na Romênia.

Enquanto falava, lágrimas enormes formavam-se nos olhos bastante proeminentes e escorriam pelos sulcos arenosos de suas longas e flácidas bochechas.

Que os homens choram tão freqüentemente e tão sem razão quanto as mulheres, Orlando sabia por experiência própria como homem; mas estava começando perceber que as mulheres devem ficar chocadas quando os homens demonstram emoção diante delas, e assim ficou chocada.

O Arquiduque desculpou-se. Controlou-se o suficiente para dizer-lhe que a deixaria agora, mas voltaria no dia seguinte para saber a sua resposta.

Era terça-feira. Ele veio na quarta; veio na quinta; veio na sexta; veio no sábado. É certo que cada visita começava, continuava ou concluía com uma declaração de amor, mas nos intervalos havia bastante espaço para o silêncio. Sentavam-se um de cada lado da lareira, e vezes o Arquiduque derrubava as tenazes e Orlando arrumava-as de novo. Então o Arquiduque lembrava que caçara um alce na Suécia e Orlando lhe perguntava se era um alce muito grande, o Arquiduque dizia que não era tão grande quanto a rena que caçara na Noruega. Orlando lhe perguntava se alguma vez tinha caçado um tigre, o Arquiduque dizia que caçara um albatroz, e Orlando perguntava (meio escondendo um bocejo) se um albatroz era tão grande quanto um elefante e o Arquiduque respondia algo bastante sensato, sem dúvida, mas Orlando não escutava pois estava olhando para sua escrivaninha, ou pela janela, ou para a porta. Depois disso, o Arquiduque dizia: "Adoro-a!", ao mesmo tempo que Orlando dizia: "Olhe, está começando a chover", e ficavam ambos muito embaraçados e coravam, e nenhum deles sabia o que dizer depois. Na verdade, Orlando estava no limite de seu conhecimento sobre o que conversar e, se não tivesse se lembrado de um jogo chamado fly soo - no qual se pode perder grandes somas de dinheiro com pouco dispêndio de espírito -, teria tido que casar, supunha, pois não sabia como se livrar dele. Mas com este artifício, aliás bem simples e que precisava apenas de três torrões de açúcar e de um número suficiente de moscas -, o embaraço da conversa era vencido e a necessidade de casamento evitada. Pois agora o Arquiduque queria apostar com ela quinhentas libras que uma mosca pousaria neste torrão e não naquele. Assim, tinham ocupação para a manhã inteira, observando as moscas (que estavam naturalmente vagarosas naquelas estação e quase sempre levavam uma hora ou mais rodando pelo teto) até que alguma varejeira azul fazia a sua escolha e o jogo estava ganho. Muitas centenas de libras passaram das mãos de um para outro durante esse: jogo o qual o Arquiduque - que se dizia um jogador nato - declarava ser tão bom quanto corrida de cavalos e jurava que poderia jogar a vida inteira. Mas Orlando logo começou a se cansar.

"Que vale ser uma linda mulher, na flor da idade", perguntava, "se tenho que passar todas as minhas manhãs observando varejeiras azuis com um Arquiduque?”

Começou a detestar o aspecto do açúcar; as moscas deixavam-na tonta. Devia haver alguma saída da dificuldade, supunha mas ela era ainda inábil nas artes do seu sexo e, como lá não podia dar uma pancada na cabeça de um homem nem atravessar-lhe o corpo com um florete, não pôde pensarem melhor método do que este: apanhou uma varejeira azul, amassou-a delicadamente até que morresse (já estava meio morta, do contrário sua bondade com os animais não lhe teria permitido isso) e colou-a com uma gota de goma arábica num torrão de açúcar. Enquanto o Arquiduque olhava para teto, ela habilidosamente substituía este torrão por aque onde pusera o dinheiro e gritava "Ganhei! Ganhei!'' declarava que tinha vencido a aposta. Seu cálculo e que o Arquiduque, com todo o seu conhecimento esportes e corridas de cavalos, detectaria a fraude como trapacear no jogo da mosca é o mais infame dos crimes - e por causa disso homens têm sido banidos definitivamente da sociedade humana para a dos macacos nos trópicos -, imaginou que ele seria homem bastante para recusar-se dai em diante a ter algum interesse por ela. Mas julgou mal a simplicidade desse amável nobre. Ele não era um bom juiz de moscas. Uma mosca morta parecia-lhe o mesmo que uma viva. Ela fez trapaça vinte vezes e ele pagou mais de 17.250 libras (o que equivale a cerca de 40.885 libras, 6 xelins e 8 pence e nossa moeda), até que Orlando enganou tão grosseiramente que nem mesmo ele podia ser logrado por mais tempo. Quando afinal percebeu a verdade, aconteceu uma cena penosa. O Arquiduque pôs-se de pé. Ficou escarlate. Lágrimas lhe rolavam pela face, uma por uma. Que tivesse ganhado uma fortuna à sua custa não era nada, de bom grado aceitava; que ela o tivesse enganado era alguma coisa - feria-o pensar que ela fosse capaz disso; mas que tivesse feito trapaça no jogo da mosca era tudo. Era impossível amar uma mulher que trapaceava no jogo, dizia. Aí, rompeu em definitivo. Felizmente, dizia, recuperando-se um pouco - não havia testemunhas. Afinal de contas, dizia, ela era apenas uma mulher. Em resumo, estava se preparando para perdoá-Ia, com a nobreza de seu coração, e se inclinava pa pedir-lhe perdão pela violência de sua linguagem, quando ela abreviou o assunto, pondo-lhe um sapinho entre a pele e a camisa, no momento em que ele inclinava a orgulhosa cabeça.

Para fazer justiça a ela, deve ser dito que preferiria mil vezes um espadim. Sapos são coisas pegajosas para alguém esconder consigo durante uma manhã inteira. Mas, se espadins são proibidos, deve-se recorrer a sapos. Além disso, sapos e risadas às vezes conseguem aquilo que o aço frio não consegue. Ela riu. O Arquiduque corou. Ela riu. O Arquiduque praguejou. Ela riu. O Arquiduque bateu a porta.

"O céu seja louvado!", gritou Orlando ainda rindo. Ouviu o som das rodas da carruagem rolando num ritmo furioso pelo pátio. Ouviu-as rodar pela estrada. O som se tornava cada vez mais fraco. Então desapareceu completamente.

"Estou só", disse Orlando em voz alta, uma vez que não havia ninguém para ouvir.

Que o silêncio seja mais profundo depois do ruído, ainda é preciso a confirmação da ciência. Mas que a solidão é diretamente mais aparente depois que alguém foi amado, muitas mulheres jurariam. Quando o som das rodas da carruagem do Arquiduque desapareceu, Orlando sentiu que se distanciavam dela cada vez mais um arquiduque (ela não se importava com isso), uma fortuna (ela não se importava com, isso), um título (ela não se importava com isso), a segurança e a condição da vida de casada (ela não se importava com isso), mas também a vida e um amor. "A vida e um amor", murmurou; e, dirigindo-se para a escrivaninha, mergulhou a pena na tinta e escreveu:

"A vida e um amor" - um verso sem ritmo e que não fazia sentido com o que vinha antes - algo a respeito da maneira adequada de dar banho em ovelhas para evitar sarna. Relendo, corou e repetiu:

"A vida e um amor." Então, deixando a pena de lado, foi para o seu quarto, parou em frente ao espelho e ajeitou as pérolas no pescoço. Então, já que as pérolas não produzem grande efeito num vestido de verão de algodão estampado, trocou-o por um outro, de tafetá cinza-pombo; depois por outro, cor de pêssego; depois por um de brocado cor de vinho. Talvez precisasse de um pouco de pó, e, se colocasse o cabelo - assim sobre a testa, podia ser que ficasse bem. Depois calçou sapatos de bico fino e colocou no dedo um anel de esmeralda. "Agora", disse quando estava pronta, e acendeu os candelabros de prata que ladeavam o espelho. Que mulher não se teria entusiasmado ao ver o que Orlando viu queimando na neve? - pois tudo em redor do espelho eram campos de neve, e ela era como um fogo, um arbusto ardente, e as chamas das velas em volta da sua cabeça eram folhas de prata; ou ainda, o espelho e água verde e ela, uma sereia coberta de pérolas, uma sereia numa caverna, cantando de tal forma que os remadores se inclinavam em seus barcos e caíam, caíam para abraçá-la; tão escura, tão brilhante, tão dura, tão suave, ela era, tão surpreendentemente sedutora que era uma pena não haver ninguém ali para expressar em linguagem clara e para dizer de uma vez: "Com os diabos Senhora, sois a encarnação da beleza!" - o que era verdade. Mesmo Orlando, que não tinha vaidade pessoal, sabia disso, pois ela sorriu o sorriso involuntário que mulheres sorriem quando sua própria beleza, que não parece a sua própria, toma a forma de uma gota que cai ou de uma fonte que sobe e confronta-as de repente no espelho - esse sorriso ela sorriu, e então escutou por um momento e ouviu somente as folhas soprando e pardais piando, e então suspirou: "A vida, um amor'' então girou nos calcanhares com extraordinária rapidez, arrancou do pescoço as pérolas, despiu os cetins das costas, empertigou-se em elegantes calções de seda negra como um nobre qualquer e tocou a campainha. Quando o criado apareceu, disse-lhe que preparasse imediatamente uma carruagem de seis cavalos. Tinha sido chamada a Londres, por negócios urgentes. Menos uma de hora depois da partida do Arquiduque, ela se pôs, caminho.

E como estava a caminho, podemos aproveitar a oportunidade - já que a paisagem era uma paisagem inglesa comum que não necessita de descrição - para chamar a atenção do leitor, mais particularmente do que pudemos fazer no momento, para uma ou duas observações que escaparam aqui e ali no curso da narrativa. Por exemplo, pode ter sido observado que Orlando escondeu seus manuscritos, quando interrompida. Depois, que olhava longa e intensamente no espelho; e agora, quando partiu para Londres, podia-se notar seu sobressalto e um grito abafado quando os cavalos galopavam mais rapidamente do que ela desejava. Sua modéstia com relação a seus escritos, sua vaidade com relação à sua pessoa, seus temores por sua segurança, tudo parece indicar que o que há pouco se disse da ausência de diferença entre Orlando homem e Orlando mulher estava deixando de ser totalmente verdadeiro. Estava se tornando um pouco mais modesta - como são as mulheres - quanto ao seu espírito, e um pouco mais vaidosa - como são as mulheres - quanto à sua pessoa. Certas suscetibilidades aumentavam, outras diminuíam. A mudança de roupas, diriam alguns filósofos, tinha muito a ver com isso. Futilidades vãs, como parecem, as roupas têm - dizem eles - funções mais importantes do que simplesmente nos aquecer. Elas mudam nossa visão do mundo e a visão do mundo sobre nós. Por exemplo, quando o Capitão Bartolus viu a saia de Orlando, imediatamente mandou estender um toldo para ela, insistiu para que se servisse de uma outra fatia de carne, e convidou-a para ir a terra com ele em sua chalupa. Essas atenções não lhe teriam sido feitas se suas saias, em vez de esvoaçar, fossem ajustadas às pernas como calças. E, quando recebemos atenções, convém retribui-las. Orlando fez mesuras; aquiesceu; elogiou os modos daquele homem gentil, como teria feito se suas calças elegantes fossem saias de mulher e seu casaco engalanado fosse um feminino corpete de cetim. Assim, pode-se sustentar o ponto de vista de que são as roupas que nos usam, e não nós que as usamos; podemos fazê-las tomar a forma do braço ou do peito, mas elas moldam nosso coração, nosso cérebro, nossa língua, à sua vontade. Assim, tendo usado saias por um tempo considerável, era visível uma certa mudança em Orlando, mesmo em seu rosto, que pode ser encontrada se o leitor verificar na página 104. Se compararmos o retrato de Orlando como homem com o de Orlando como mulher, veremos que, embora ambos sejam indubitavelmente uma e a mesma pessoa, há certas mudanças. O homem tem a mão livre para pegar a espada, a mulher deve usar a sua para evitar que os cetins lhe escorreguem dos ombros. O homem encara o mundo de frente, como se tivesse sido feito para seu uso e de acordo com o seu gosto, a mulher lança-lhe um olhar de esguelha, cheio de sutileza e até de desconfiança. Se usassem as mesmas roupas, é possível que sua maneira de olhar viesse a ser a mesma.

Esta é a opinião de alguns filósofos e sábios, mas nós nos inclinamos por outra. Felizmente, a diferença entre os sexos é de grande profundidade. As roupas são apenas símbolos de algo extremamente oculto. Foi a transformação do próprio Orlando que determinou sua escolha pelas roupas de mulher e pelo sexo feminino. Talvez nisso ela estivesse se expressando apenas um pouco mais abertamente do que de costume - a franqueza, a verdade, era a alma de sua natureza - algo que acontece com muita gente sem ser assim tão claramente expresso. Pois aqui novamente chegamos a um dito: Embora os sexos sejam diferentes, eles se confundem. Em cada ser humano ocorre uma vacilação de um ser para outro. E freqüentemente são apenas as roupas que mantêm a aparência masculina ou feminina, enquanto interiormente o sexo é aquele oposto ao que está à vista. Das complicações e confusões que daí resultam, cada um teve experiências; mas aqui deixamos o problema geral e observamos apenas o efeito ímpar que isso teve no caso particular de Orlando.

Pois foi esta mistura de homem e mulher, um preponderando, depois a outra, que freqüentemente dava sua conduta uma inesperada reviravolta. As curiosas perguntariam, por exemplo, se Orlando era uma mulher, como não demorava mais do que dez minutos para se vestir? E suas roupas não eram escolhidas ao acaso e vezes não estavam até um pouco gastas? Então responderiam, ainda, que ela não tinha a formalidade de um homem nem o amor masculino pelo poder. Ela possuia um coração excessivamente terno. Não suportava ver um burro ser espancado nem um gatinho ser afogado. Contudo, novamente observavam que detestava assuntos domésticos, levantava-se de madrugada e saía pelos campos no verão antes do nascer do sol. Nenhum fazendeiro conhecia melhor as colheitas do que ela. Podia beber com os mais fortes e gostava de jogos de azar. Montava bem e conduzia seis cavalos a galope sobre a ponte de Londres. Contudo, novamente, embora audaciosa e ativa como um homem, notava-se que a visão de alguém em perigo causava-lhe palpitações das mais femininas. Caía em lágrimas à mais leve provocação. Não era versada em geografia, achava matemática intolerável, e sustentava alguns caprichos mais comuns entre as mulheres do que entre os homens, como por exemplo que viajar para o sul é o mesmo que descer uma encosta. No entanto, é difícil dizer se Orlando era mais homem ou mais mulher, e isso não pode ser resolvido agora. Pois agora sua carruagem estava rodando nas pedras. Tinha chegado a Sua casa na cidade. Os estribos estavam sendo arriados e os portões de ferro abertos. Ela estava entrando na casa de seu pai em Blackfriars, que - embora a moda estivesse abandonando aquele extremo da cidade - era ainda uma mansão agradável, espaçosa, com jardins até o rio e um aprazível bosque de nogueiras para se passear.

Ali se instalou e começou imediatamente a procurar em torno de si aquilo que viera buscar - isto é, vida e um amor. A respeito da primeira, pode haver alguma dúvida; o segundo, ela encontrou sem a menor dificuldade, dois dias depois de sua chegada. Era uma terça-feira quando viera para a cidade. Na quinta-feira foi dar um passeio no Mall, como então era hábito das pessoas de condição. Não dera mais do que uma ou duas voltas pela avenida antes de ser notada por um pequeno grupo de gente vulgar que vai lá para espiar seus superiores. Quando passou por eles, uma mulher carregando uma criança no colo parou à sua frente, encarou familiarmente o rosto de Orlando e gritou: "Que o céu nos acuda se esta não é a Lady Orlando!" Seus companheiros aglomeraram-se em torno, e Orlando se encontrou por Um momento no centro de uma multidão de cidadãos espantados e mulheres de negociantes, todos ansiosos para ver a heroína do célebre processo. Tal foi o interesse que o caso despertou na mente do povo. Na verdade, ela poderia ter sido seriamente molestada pela pressão da multidão - esquecera que as damas não devem passear sozinhas em lugares públicos - se um cavalheiro alto não se adiantasse e lhe oferecesse a proteção de seu braço. Era o Arquiduque. Ao vê-lo, ela foi dominada ao mesmo tempo pelo embaraço e por um certo deleite. Este magnânimo cavalheiro não apenas a tinha perdoado mas, para mostrar que levara na brincadeira sua travessura com o sapo, procurara uma jóia feita com a forma daquele réptil, que lhe ofereceu, com a confirmação do seu amor, ao conduzi-Ia à carruagem.

Com a multidão, com o Duque, com a jóia, voltou para casa no pior estado que se possa imaginar. Era então impossível sair para um passeio sem ficar meio sufocada, sem ser presenteada com um sapo de esmeraldas e pedida em casamento por um Arquiduque? Teve um visão melhor do caso no dia seguinte, quando encontrou na mesa do café meia dúzia de bilhetes das damas mais famosas do lugar - Lady Suffolk, Lady Salisbury, Lady Chesterfield, Lady Tavistock e outra que a lembravam em termos polidos as velhas alianças entre suas famílias e a dela, e desejavam a honra de conhecê-la. No dia seguinte, que era sábado, muitas dessas grandes damas foram visitá-la pessoalmente. Na terça-feira, por volta do meio-dia, lacaios trouxeram cartões de convite para vários saraus, jantares e reuniões próximas; de modo que Orlando foi lançada sem demora, mas com algum alarido e espuma, nas águas da sociedade londrina.

Descrever verdadeiramente a sociedade londrina daquele ou de qualquer outro tempo ultrapassa os poder do biógrafo ou do historiador. Só aqueles que necessitam pouco da verdade e não a respeitam - poetas e novelistas - podem fazê-lo com confiança, pois este é um dos casos em que a verdade não existe. Nada existe. Tudo é um miasma - uma miragem. Para simplificar, Orlando podia voltar para casa, de um desses saraus às três ou quatro da manhã, com as faces como uma árvore de Natal e os olhos como estrelas. Desamarrava um laço, dava uma volta pelo quarto, desamarrava outro laço, parava e dava outra volta pelo quarto. Freqüentemente o sol ardia sobre as chaminés de Southwark antes que ela se resolvesse a ir para a cama, ali ficar deitada arfando e debatendo-se, rindo e suspirando, por uma hora ou mais, até afinal dormir. E qual a causa de toda essa agitação? A sociedade. E o que a sociedade teria dito ou feito para lançar uma dama racional em tal excitação? Em uma palavra, nada. Por mais que atormentasse a memória no dia seguinte, Orlando não lembrava de uma única palavra para exaltar coisa alguma. Lorde O. tinha sido galante. Lorde A., cortês. O Marquês de C., encantador. O Sr. M., divertido. Mas, quando tentava lembrar em que teriam consistido essa galanteria, essa cortesia, esse encanto e esse divertimento, era levada a crer numa falha de memória, pois não conseguia assinalar nada. Era sempre a mesma coisa. Nada restava no dia seguinte, embora a excitação do momento fosse intensa. Assim, somos forçados a concluir que a sociedade é uma dessas misturas que as donas-de-casa habilidosas servem quentes no período natalino, cujo sabor depende da mescla e da agitação adequadas de uma dúzia de diferentes ingredientes. Provar um a um em separado é insípido. Retirar Lorde O., Lorde A., Lorde C. ou o Sr. M., cada um deles separadamente, não é nada. Misturados todos juntos, combinam, produzindo o mais inebriante sabor e o mais sedutor dos aromas. Contudo, essa embriaguez e essa sedução fogem completamente à nossa análise. Por isso, ao mesmo tempo, a sociedade é tudo e a sociedade é nada. A sociedade é a mais poderosa mistura do mundo e a sociedade em si não existe. Com tal monstro só os poetas e os novelistas podem lidar; com esse tudo e esse nada suas obras atingem um volume considerável; e para eles o deixamos, com a melhor das boas vontades.

Seguindo o exemplo de nossos predecessores, conseqüentemente, diremos apenas que a sociedade no reinado da Rainha Ana era de um brilho ímpar. Ingressar nela era o objetivo de toda pessoa bem-nascida. Os encantos eram supremos. Os pais instruíam seus filhos, as mães suas filhas. Nenhuma educação era completa para ambos os sexos que não incluísse a ciência da conduta, a arte de fazer reverências e cumprimentos, o manejo da espada e do leque, o cuidado com os dentes, a postura da perna, a flexibilidade do joelho, os métodos adequado de entrar e sair da sala, com mil etc., que imediatamente se apresentarão por si mesmos a qualquer pessoa que esteja em sociedade. Já que Orlando tinha recebido o elogio da Rainha Elizabeth pela maneira como lhe entregara uma tigela com água de rosas, quando menino deve-se supor que era suficientemente habilitada para estar à altura das exigências. É certo que era distraída e que às vezes se tornava desastrada; estava pronta a pensar em poesia quando deveria estar pensando em tafetá. E talvez seu passo fosse um pouco largo demais para uma mulher e seus gestos, sendo abruptos, podiam pôr em risco, em certos momentos, uma xícara de chá.

Se essa ligeira inabilidade era suficiente para contrabalançar o esplendor de sua presença, ou se ela herdana uma gota a mais desse humor negro que corre nas veias de toda a sua raça, o certo é que não estivera nas rodas mundanas mais do que umas vinte vezes que já não tivesse perguntado a si mesma - quando não houvesse ninguém a não ser o seu cachorro Pippin - "que diabos acontece comigo?"

Era terça-feira, 16 de junho de 1712; ela acabava de voltar de um grande baile em Arlington House; a aurora estava no céu, e ela descalçava uma das meias. "Não me importo se não encontrar mais ninguém enquanto viver", exclamou Orlando rebentando em lágrimas. Amores ela tinha em abundância, mas a vida, que afinal tem certa importância, lhe escapava. "É a isso", perguntava - mas não havia ninguém para responder - "é a isso" - terminava a frase da mesma forma - "que as pessoas chamam vida?" O cachorro levantou a pata dianteira em sinal de simpatia O cachorro lambeu Orlando. Orlando afagou-o com a mão. Orlando beijou-o. Em resumo, havia entre eles a mais verdadeira simpatia que pode haver entre um cão e sua dona, embora não se possa negar que a mudez dos animais seja um grande impedimento para os requintes da comunicação. Eles abanam a cauda; inclinam a parte dianteira do corpo e elevam a traseira; rodam, pulam, arranham, ganem, latem, babam, têm toda a sorte de cerimônias e artifícios próprios, mas é tudo inútil, já que não podem falar. Essa era a sua discordância pensou, colocando o cachorro gentilmente no chão em relação às pessoas importantes de Arlington House. Elas também abanam a cauda, se inclinam, rodam, pulam, arranham e babam, porém não conseguem conversar. "Todos esses meses tenho freqüentado a sociedade", disse Orlando, atirando uma das meias pelo quarto, "não ouvi nada senão o que Pippin poderia ter dito. Estou com frio. Sou feliz. Tenho fome. Apanhei um rato. Enterrei um osso. Por favor, beije o meu nariz." E isso não bastava.

Procuraremos explicar como em tão pouco tempo ela passara do deslumbramento para a decepção, admitindo que esta misteriosa composição a que chamamos sociedade não é absolutamente boa ou má em si mesma, mas possui um espirito volátil embora potente, que ou embriaga quando pensamos que é encantadora - como Orlando pensara - ou produz dor de cabeça quando a julgamos repulsiva - como Orlando a julgava agora. Não temos dúvida de que a faculdade de falar tenha muito a ver com isso. Muitas vezes uma hora de silêncio é a mais arrebatadora de todas; um espírito brilhante pode ser indescritivelmente tedioso. Mas deixemos isso para os poetas e continuemos a nossa história.

Orlando atirou a segunda meia atrás da primeira e foi bem tristemente para a cama, resolvida a renegar para sempre a sociedade. Mas novamente chegou às conclusões muito apressadamente, como se verificou. Pois logo na manhã seguinte, ao acordar, encontrou entre os habituais cartões um convite sobre a mesa, o de uma certa grande dama, a Condessa de R. Tendo decidido na noite anterior que nunca mais voltaria a freqüentar a sociedade, só podemos explicar o comportamento de Orlando - mandou um mensageiro a toda pressa à casa de R. para dizer que aceitava o convite com o maior prazer do mundo - pelo fato de que ainda estava sofrendo o efeito de três palavras adocicadas, ditas em sei ouvido no convés do Enamoured Lady pelo Capitão Nicholas Benedict Bartolus enquanto desciam o Tâmisa Addison, Dryden, Pope - dissera ele apontando para o Cacaueiro -, e Addison, Dryden e Pope tinham soado em sua alma como um encantamento desde aquele instante. Quem pode acreditar em tal loucura? Mas assim. Toda a sua experiência com Nick Greene não lhe ensinara nada. Aqueles nomes ainda exerciam sobre ela o mais poderoso fascínio. Talvez devamos acreditar em algo, e como Orlando, conforme dissemos, não acreditava nas divindades usuais, depositava sua crença nos grandes homens - contudo, com uma diferença: almirantes, soldados, estadistas, não a afetavam. Mas o simples pensar em um grande escritor excitava a tal ponto sua crença que ela quase acreditava que ele fosse invisível. Seu instinto era certeiro. Talvez só se possa acreditar totalmente naquilo que não se vê. O rápido vislumbre que tivera desses grandes homens, do convés do navio, foi como que uma visão. Duvidava que a xícara fosse de porcelana ou o jornal de papel. Quando Lord O. disse um dia que jantara com Dryden na noite anterior ela absolutamente não acreditou nele. Agora, o saIão de recepções de Lady R. tinha a fama de ser a antecâmara da sala de audiência do gênio; era o lugar onde homens e mulheres se encontravam para balançar turíbulos e cantar hinos ao busto do gênio, num nicho na parede. Às vezes o próprio Deus concedia a sua presença por um momento. Só a inteligência permitia admissão, e (segundo corria) nada era dito lá dentro que não fosse brilhante.

Foi então com grande temor que Orlando entrou no salão. Encontrou o grupo já reunido em semicírculo, ao redor do fogo. Lady R., uma velhota de compleição morena, com uma mantilha de renda preta na cabeça estava sentada ao centro, numa grande poltrona. Desse modo, por ser um pouco surda, podia controlar a conversa de ambos os lados. De ambos os lados sentavam-se os homens e mulheres da mais alta distinção. Todos os homens, dizia-se, tinham sido Primeiros-Ministros, e todas as mulheres, murmurava-se, amantes de um rei. O certo é que todos eram brilhantes e todos eram famosos. Orlando tomou seu lugar com profunda reverência, em silêncio... Depois de três horas, fez outra profunda reverência e retirou-se.

Mas o que - o leitor pode perguntar com alguma exasperação - aconteceu durante esse tempo? Por três horas em tal companhia, devem ter sido ditas as mais espirituosas, as mais profundas e as mais interessantes coisas do mundo. Assim poderia realmente parecer. Mas o fato é que eles não disseram nada. É uma característica curiosa de que compartilham as mais brilhantes sociedades que o mundo tem visto. A velha Madame du Deffand e seus amigos conversaram por cinqüenta anos sem parar. E disso tudo o que resta? Talvez três ditos brilhantes. Assim, temos a liberdade de supor que nada foi dito, ou que nada de espirituoso foi dito, ou que a porção de três ditos espirituosos durou dezoito mil duzentas e cinqüenta noites - o que não deixa para nenhum deles um quinhão generoso de sabedoria.

A verdade parece ser - se ousarmos usar a palavra nesta situação - que todos esses grupos de pessoas estão sob um encantamento. A anfitriã é a nossa Sibila moderna. É uma bruxa que mantém seus convidados sob feitiço. Nesta casa eles se consideram felizes; naquela, espirituosos; numa terceira, profundos. É tudo ilusão (o que não é nenhum mal, pois as ilusões são as mais necessárias e valiosas de todas as coisas, e aquele que pode criar uma está entre os grandes benfeitores do mundo), mas, como é notório que as ilusões são despedaçadas por conflitarem com a realidade, assim nenhuma felicidade real, nenhuma sabedoria real, nenhuma real profundidade são toleradas onde a ilusão prevalece. Isto serve para explicar por que Madame du Deffand não disse mais do que três ditos espirituosos no decorrer de cinqüenta anos. Se ela tivesse dito mais, seu círculo teria sido destruído. O dito espirituoso, quando deixava seus lábios, rolaria sobre a conversação corrente como uma bala de canhão, arrasando violetas e margaridas. Quando pronunciou o seu famoso mort de Sair Denis, a própria grama ficou chamuscada. Seguiram-se a desilusão e o desconsolo. Nenhuma outra palavra foi pronunciada. "Poupe-nos de outro destes, pelo amor de Deus, Madame!", gritaram seus amigos em uníssono. E ela obedeceu. Por cerca de dezessete anos ela não disse nada memorávél, e tudo correu bem. A bela colcha de ilusão permaneceu intata sobre o seu círculo, como permaneceu intata sobre o círculo de Lady R. Os convidados pensavam que eram felizes, pensavam que eram espirituosos, pensavam que eram profundos, e, enquanto pensavam nisso, as outras pessoas pensavam ainda mais fortemente; por isso circulava que nada era mais delicioso do que uma das reuniões de Lady R.; todos invejavam aqueles que eram ali admitidos; aqueles que eram admitidos invejavam-se porque os outros os invejavam; assim, isso parecia não ter fim - exceto o que agora vamos relatar.

Por ocasião da terceira visita de Orlando ocorreu um incidente. Ela ainda estava sob a ilusão de estar ouvindo os mais brilhantes epigramas do mundo, embora na realidade o velho General C. estivesse apenas contando demoradamente como a gota deixara sua perna esquerda e passara para a direita, enquanto o Sr. L. interrompia sempre que algum nome próprio era mencionada "R.? Oh! conheço Billy R. tão bem quanto a mim me mo. S.? meu melhor amigo. T.? Ficou comigo quinze dias em Yorkshire" - o que, tal é a força da ilusão, soava como a mais espirituosa resposta, o mais penetrante comentário sobre a vida humana, e mantinha grupo em alvoroço; quando a porta se abriu e um cavalheiro baixo - cujo nome Orlando não conseguiu entender - entrou. Logo uma sensação curiosamente desagradável apoderou-se dela. A julgar pelas caras, os outros começaram também a sentir o mesmo. Um cavalheiro disse que havia uma corrente de ar. A Marqueza de C. temia que houvesse um gato debaixo do sofá.

E como se seus olhos estivessem sendo lentamente abertos depois de um sonho agradável e não encontrasse porcos no cascalho em Park Lane ou os bosques de carvalho de Tottenham Court Road, onde os porcos fuçavam. Mas mesmo assim faltava ainda a nossa eficiência moderna. Postes com lampiões de azeite ocorriam a cada duzentas jardas, mas entre eles se estendia uma considerável distância escura como breu. Assim, durante dez minutos, Orlando e o Sr. Pope ficariam na escuridão; depois, por meio minuto, novamente na luz. Um estado de espírito muito estranho se instalou em Orlando. Quando a luz desapareceu começou a sentir-se banhada por um bálsamo delicioso. "Era de fato uma grande honra para uma jovem estar viajando com o Sr. Pope", começou a pensar, olhando o perfil de seu nariz. "Sou a mais abençoada das mulheres. A meia polegada de distância - na verdade, sinto o nó das fitas de sua liga comprimindo minha coxa - está o maior talento dos domínios de Sua Majestade. Os tempos futuros pensarão em nós com curiosidade e me invejarão furiosamente." Aqui surgiu um outro lampião. "Que pobre louca sou eu!", pensou. "Não existe nem fama nem glória. Os tempos futuros não dedicarão um só pensamento nem a mim nem ao Sr. Pope. O que é uma 'época'? O que somos 'nós'?" E a passagem pela Berkeley Square parecia o tatear de duas formigas cegas momentaneamente reunidas sem interesse nem relação em comum, através de um deserto enegrecido. Ela tremeu. Mas aqui novamente estava escuro. Sua ilusão reviveu. "Como é nobre a sua fronte!", pensou (confundindo, na escuridão, uma corcova na almofada com a cabeça do Sr. Pope). "Que quantidade de gênio vive nela! Quanto talento, sabedoria e verdade - que abundância de todas essas jóias pelas quais as pessoas estão prontas a barganhar suas vidas! A tua é a única luz que arde para sempre. Mas para tua peregrinação humana seria realizada em total escuridão"; (aqui a carruagem deu um grande solavanco, ao cair numa vala em Park Lane) "sem os gênios estaríamos transtornados e perdidos. O majestoso, o lúcido esplendor!" - assim ela apostrofava a corcova da almofada quando passaram sob um dos lampiões de Berkeley Square e ela percebeu o seu erro. "Miserável!", pensou, "como me enganaste! Tomei aquela corcova pela tua cabeça. Examinando-te bem, tu és ignóbil e desprezível! Disforme e doentio, não há nada para venerar em ti, muito para lamentar e bastante para desprezar.”

Novamente estavam na escuridão, e sua raiva diminuiu quando não viu nada além dos joelhos do poeta.

"Mas eu é que sou miserável", refletiu quando mergulharam novamente em completa obscuridade, "por vil que sejas, não sou eu ainda mais vil? És tu que me alimentas e me proteges, que assustas as feras, atemorizas os selvagens, me fazes roupas com fios de seda e tapetes com lã de carneiro. Se careço adorar, não me deste a tua própria imagem e não a puseste no céu? Não há evidências do teu cuidado por toda parte? Portanto, como não hei de ser humilde, agradecida e dócil? Deixa toda a minha alegria servir-te, honrar-te e obedecer-te.”

Aqui alcançaram o grande lampião na esquina que é hoje Piccadilly Circus. A luz iluminou seus olhos e ela viu, além de algumas abjetas criaturas de seu próprio sexo, dois pigmeus indigentes, num terreno totalmente deserto. Estavam ambos despidos, solitários e indefesos. Um estava sem força para ajudar o outro. Cada um já tinha bastante o que fazer tomando conta de si. Olhando o Sr. Pope diretamente, pensou: "É igualmente inútil, para ti, pensar que podes me proteger e, para mim, pensar que posso te adorar. A luz da verdade bate em nós sem sombra, e a luz da verdade é terrivelmente imprópria para nós dois.”

Todo esse tempo, é claro, continuavam conversando agradavelmente - como costumam fazer as pessoas bem-nascidas e educadas - a respeito do temperamento da Rainha, da gota do Primeiro-Ministro, enquanto a carruagem ia da luz para a sombra por Haymarket, ao longo do Strand, subia Fleet Street e finalmente chegou à sua casa em Blackfriars. Desde algum tempo, os espaços escuros entre os lampiões tinham se tornado mais claros e os lampiões menos brilhantes - o que quer dizer que o sol se levantava, e foi numa luz uniforme mas confusa de uma manhã de verão, quando tudo se vê mas nada é visto distintamente, que eles se apearam, o Sr. Pope dando a mão a Orlando para descer da carruagem e Orlando fazendo uma reverência para o Sr. Pope, e precedendo-o ao entrar em sua mansão, com a mais escrupulosa atenção aos rituais das Graças.

Do parágrafos anterior, contudo, não se deve presumir que o gênio (mas essa doença está agora extinta nas Ilhas Britânicas, e diz-se que o finado Lorde Tennyson foi sua última vítima) esteja sempre iluminado, pois assim poderíamos ver claramente todas as coisas e talvez corrêssemos o risco de morrer durante o processo. Ele mais se assemelha a um farol em funcionamento, que envia um raio e depois pára por algum tempo; com a diferença de que o gênio é muito mais caprichoso em suas manifestações e pode lançar seis ou sete raios em rápida sucessão (como fizera o Sr. Pope naquela noite) e depois cair na escuridão por um ano ou para sempre. Guiar-se pelos seus raios é, portanto, impossível, e na fase de escuridão os homens de gênio, diz-se, são muito semelhantes às outras pessoas.

Felizmente para Orlando - embora a princípio decepcionante - que assim fosse, pois ela agora começava a conviver mais com os homens de gênio. Eles não eram tão diferentes de nós, como se poderia supor. Addison, Pope, Swift gostavam de chá - ela descobriu. Gostavam de caramanchões. Colecionavam pequenos pedaços de vidro colorido. Adoravam grutas. Não detestavam honrarias. Apreciavam elogios. Um dia usavam ternos cor de ameixa, e no outro cinzentos. O Sr. Swift tinha uma bonita bengala de junco. O Sr. Addison perfumava seus lenços. O Sr. Pope sofria de dor de cabeça. Um pouco de mexerico não os contrariava. Nem deixavam de ser ciumentos. (Estamos anotando algumas reflexões que ocorreram a Orlando desordenadamente.) A princípio ela se aborrecia consigo mesma por observar tais ninharias e mantinha um livro para escrever o que eles dissessem de memorável, mas a página permanecia vazia. Mesmo assim, entusiasmou-se e começou a rasgar os convittes para as grandes reuniões; mantinha as tardes livres; começou a viver na expectativa da visita do Sr. Pope, do Sr. Addison, do Sr. Swift - e assim por diante. Se o leitor quiser consultar O Rapto da Madeixa, O Espectador, As Viagens de Gulliver, compreenderá precisamente o que significam essas misteriosas palavras. Na verdade, biógrafos e críticos poderiair poupar seu trabalho se os leitores seguissem este conselho. Pois, quando lemos: Se a Ninfa quebrar a lei de Diana, ou lascar o frágil jarro de porcelana, ou manchar sua honra ou seu novo brocado, esquecer a oração ou faltar à mascarada. Perder o coração ou o colar num baile, - sabemos, como se o escutássemos, como a língua do Sr. Pope vibrava como a de um camaleão, como seus olhos brilhavam, como sua mão tremia, como ele amava, como mentia, como sofria. Em síntese, todos os segredos da alma de um escritor, todas as experiências de sua vida, todas as qualidades de seu espírito estão expressos em suas obras, e mesmo assim precisamos de críticos para explicar uns e de biógrafos para expor outros. A única explicação para esse monstruoso crescimento é que as pessoas estão enfadadas.

Assim, depois de lermos uma ou duas páginas do Rapto da Madeixa, sabemos exatamente por que Orlando estava tão alegre e assustada, e com as faces e os olhos tão brilhantes naquela tarde.

A Sra. Nelly bateu então à porta para dizer que o Sr Addison desejava ver a sua Senhora. Com isso, o Sr Pope se levantou com um sorriso enviesado, despediu-se e partiu manquejando. O Sr. Addison entrou. Enquanto ele se senta, vamos ler a seguinte passagem do Espectador:

Considero a mulher um animal belo e romântico que pode ser adornado com peles e plumas, pérolas e diamantes, metais e sedas. O lince lançara sua pele a seus pés para lhe fazer uma pelica; o pavão, o papagaio e o cisne contribuirão para o seu regalo; o mar será explorado por suas conchas e as rochas por sua: gemas, e todas as partes da natureza fornecerão quota para o embelezamento da criatura que é a sua obra suprema. Tudo isso eu perdôo, mas, quanto à saia de que venho falando, não posso nem quero aprovar.

Mantemos este cavalheiro, de tricórnio e tudo na palma da mão. Olhemos uma vez mais pelo cristal. Não se vê claramente até a prega de sua meia? Não estão expostos para nós cada ondulação e cada curva de seu talento, e sua bondade, e sua timidez, e sua urbanidade, e o fato de vir a casar com uma condessa e por fim morrer muito respeitavelmente? Tudo isso é claro.

E, quando o Sr. Addison acabou a sua fala, ouviu-se uma tremenda pancada à porta, e o Sr. Swift, que tinha maneiras autoritárias, entrou sem ser anunciado. Um momento, onde estão As Viagens de Gulliver? Aqui estão! Vamos ler um trecho da Viagem a Houyhnhnms:

Gozei perfeita Saúde de Corpo e Tranqüilidade de Espírito; não encontrei a Traição nem a Inconstância de um Amigo, nem as Injúrias de um Inimigo secreto ou declarado. Não tive ocasião de subornar, adular ou alcovitar para obter Favor de qualquer grande Homem nem de seu Favorito. Não necessitei de nenhuma Trincheira contra Fraude ou Opressão; aqui não havia Médico para destruir o meu Corpo nem Advogado para arruinar minha Fortuna; nem Informante de Aluguel para vigiar minhas Palavras e Ações, nem para forjar Acusações contra mim; aqui não havia Zombadores, Censores, Caluniadores, Ladrões, Salteadores, Assaltantes, Juízes, Cafetinas, Bufões, Jogadores, Políticos, Talentos, Faladores, rabugentos e cansativos...

Mas pára, pára tua saraivada férrea de palavras, ou seremos esfolados vivos e tu também! Nada pode ser mais óbvio do que este homem violento. Ele é tão grosseiro e ao mesmo tempo tão límpido; tão brutal e tão bondoso; despreza o mundo inteiro, embora fale com uma menina em linguagem infantil, e morrerá num manicômio - quem duvida?

Assim, Orlando servia chá para todos; e às vezes, quando o tempo estava bom, levava-os consigo para o campo e oferecia-lhes banquetes régios no Salão Redondo, onde pendurara todos os seus retratos em círculo, de modo que o Sr. Pope não pudesse dizer que o Sr. Addison vinha antes dele, ou vice-versa. Eles eram muito talentosos, também (mas o talento está todo em seus livros), e ensinavam-lhe a parte mais importante do estilo, que é o curso natural da voz que fala - uma qualidade que ninguém sem tê-la ouvido pode imitar, nem mesmo Greene, com toda a sua habilidade; pois nasce do ar e quebra-se como uma onda sobre a mobília, rola e desaparece, e não é para ser recapturada nunca, menos ainda por aqueles que tentam, aguçando os ouvidos meio século depois. Eles lhe ensinaram isso simplesmente pela cadência de suas vozes ao falar; de modo que seu estilo mudou um pouco, e ela escreveu alguns versos agradáveis e talentosos e alguns personagens em prosa, E assim ela esbanjou o seu vinho com eles, colocou dinheiro sob seus pratos ao jantar - que guardavam muito cordialmente - e aceitou suas dedicatórias, e sentiu-se altamente honrada com a troca.

Assim passava o tempo, e Orlando freqüentemente dizia para si mesma, com ênfase que podia parecer talvez um pouco suspeita para o ouvinte: "Por minha alma, que vida é esta!" (pois ela ainda estava à procura desse artigo). Mas as circunstâncias logo forçaram-na a considerar o assunto mais minuciosamente.

Um dia estava servindo chá para o Sr. Pope, que como qualquer pessoa pode inferir dos versos citados acima - a observava com olhos brilhantes, sentado enroscado numa cadeira ao seu lado.

"Senhor", pensou enquanto erguia a pinça de açúcar, "como as mulheres dos tempos futuros me invejarão! E no entanto", fez uma pausa, pois o Sr. Pope precisava de sua atenção. E no entanto - vamos completar o pensamento para ela - quando alguém diz: "como o futuro me invejará" é razoável dizer que se sente extremamente desconfortável no presente. Seria esta vida tão excitante, tão lisonjeira, tão gloriosa quanto parece na obra do escritor de memórias? Por um lado, Orlando positivamente detestava chá; por outro, o intelecto, divino como é, e todo adorável, tem o hábito de se alojar nas carcaças mais cheias de sementes e freqüentemente - ai de nós - age como um canibal entre as outras faculdades, de modo que muitas vezes, quando o Espírito é grande, o Coração, os Sentidos, a Magnanimidade, a Caridade, a Tolerância, a Bondade e o resto dificilmente encontram espaço para respirar. Por isso a alta conta que os poetas têm de si mesmos; por isso a baixa conta que têm dos outros; por isso as inimizades, injúrias, invejas e ofensas em que estão constantemente envolvidos; por isso a volubilidade que se permitem; por isso a avidez com que demandam simpatia; tudo isso, pode-se murmurar desde que os intelectuais não nos ouçam, tornando o servir o chá uma ocupação mais arriscada e mais árdua do que geralmente se imagina. Acrescente-se a isso (e de novo murmuramos para que as mulheres não nos ouçam) que há um pequeno segredo que os homens compartilham entre si; Lorde Chesterfield murmurou a seu filho com as mais severas recomendações de segredo "As mulheres são apenas crianças grandes... Um homem inteligente apenas se diverte; com elas, brinca com elas, agrada-as e elogia-as", e, como as crianças sempre ouvem aquilo que não devem, e às vezes crescem e podem deixar escapar algo, toda a cerimônia de servir o chá é curiosa. Uma mulher sabe bem disso, embora um gênio lhe envie seus poemas, elogie seu julgamento, solicite sua crítica e tome o seu chá, isso de modo algum significa que ele respeite suas opiniões, admire sua compreensão ou recuse, embora o espadim lhe seja negado, trespassá-la com sua pena. Tudo isso, por mais baixo que murmuremos, pode transpirar; de modo que, mesmo com uma jarra de creme suspensa e as pinças de açúcar estendidas, as senhoras podem se sentir cansadas, olhar um pouco pela janela, bocejar um pouco, e deixar o açúcar cair com um grande ploc - como Orlando fez agora - no chá do Sr. Pope. Nunca houve um mortal tão pronto a suspeitar de um insulto nem tão rápido em vingá-lo como o Sr. Pope. Virou-se para Orlando e presenteou-a imediatamente com um esboço imperfeito de um famoso verso dos "Retratos de Mulheres". Muito polimento lhe foi dado posteriormente, mas mesmo no original era bastante ferino. Orlando recebeu com uma reverência. O Sr. Pope partiu, com uma mesura. Orlando - para refrescar as faces, pois se sentia como se o homenzinho tivesse batido nela - vagou pelo bosque de nogueiras, ao fundo do jardim. Em breve a brisa fresca produziu seus efeitos, para seu espanto, descobriu que se sentia grandemente aliviada de estar só. Contemplou os alegres barcos de carga subindo o rio. Sem dúvida, a visão recordou-lhe um ou dois acontecimentos de sua vida passada. Sentou-se em profunda meditação sob um lindo salgueiro. Ali ficou sentada até que as estrelas surgissem no céu. Então levantou-se, voltou e entrou na casa, onde dirigiu-se para o seu quarto e fechou a porta. Em seguida abriu um armário onde ainda se encontravam muitas roupas que havia usado quando era um rapaz da moda e dentre elas escolheu um traje de veludo preto ricamente bordado com renda veneziana. Estava um pouco fora de moda, na verdade, mas caiu-lhe perfeitamente, e, nele vestida, parecia a própria imagem de um nobre Lorde. Deu uma ou duas voltas diante do espelho para se certificar de que suas saias não tinham prejudicado a desenvoltura das pernas e então saiu secretamente da casa.

Era uma linda noite do início de abril. Miríades de estrelas, misturando-se com a luz da lua em forma de foice, ainda reforçada pelos lampiões de rua, produziam uma luz infinitamente favorável à fisionomia humana e à arquitetura do Sr. Wren. Todas as coisas apareciam com o seu mais suave aspecto e, quando estavam prestes a se dissolver, uma gota de prata as reavivava e animava. Assim é que deveria ser a conversação, pensou Orlando (permitindo-se sonhos absurdos); deveria ser a sociedade, deveria ser a amizade, deveria ser o amor. Pois - os céus saberão por quê -, quando perdemos a fé nas relações humanas, a disposição casual de celeiros e de árvores ou de montes de feno e de um vagão se nos apresenta como um tão perfeito símbolo do inatingível que recomeçamos a procurar.

Entrava em Leicester Square enquanto fazia estas observações. Os prédios tinham uma simetria formal e etérea, que não possuem durante o dia. A abóbada celeste parecia ter sido muito cuidadosamente lavada, para completar o perfil dos telhados e das chaminés. Uma jovem tristemente sentada sob um plátano no meio da praça, com um braço caído para um lado e o outro repousando no colo, parecia a própria imagem da graça, da simplicidade e da desolação. Orlando deu uma barretada com o chapéu, como um galanteador corteja uma dama da moda num lugar público. A jovem ergueu a cabeça. Era belíssima. A jovem ergueu os olhos. Orlando viu neles um brilho, tal como às vezes se vê nos bules de chá, mas raramente num rosto humano. Através desse brilho de prata a jovem fitou-o (pois para ela era um homem) suplicante, esperançosa, trêmula, medrosa. Levantou-se; aceitou o seu braço. Pois - precisamos esclarecer? - ela era da tribo que todas as noites lustra sua mercadoria e arruma-a no balcão, à espera do melhor freguês. Conduziu Orlando ao quarto que lhe servia de alojamento, em Gerrard Street. Senti-Ia apoiada levemente, embora suplicante, em seu braço despertou em Orlando todos os sentimentos próprios de um homem. Olhava, sentia, falava como homem. Contudo, tendo sido ultimamente ela própria mulher, suspeitava que a timidez da moça, e suas respostas hesitantes, e seu desajeitamento com a chave na fechadura e com a dobra do seu casaco, e a languidez de sua mão, tudo isso fosse para agradar a sua masculinidade. Subiram, e o trabalho que a pobre criatura tivera para decorar o seu quarto e esconder o fato de que não possuía outro não enganou Orlando por um momento sequer. A decepção provocava-lhe desprezo; a verdade provocava-lhe compaixão. Uma coisa insinuando-se através da outra deu origem a mais estranha mistura de sentimentos, de modo que não sabia se ria ou se chorava. Enquanto isso, Nell, que era o nome da moça, desabotoou as luvas; cuidadosamente escondeu o polegar da mão esquerda, que estava descosturado; depois, esgueirou-se por trás de um biombo, onde talvez coloriu as faces, arrumou as roupas, colocou um outro lenço ao redor do pescoço, tagarelando o tempo todo como fazem as mulheres para distrair seus amantes, embora Orlando pudesse jurar pelo tom de sua voz, que seus pensamentos estavar noutro lugar. Quando tudo estava pronto reapareceu preparada - mas aí Orlando não pôde mais suportar. Num estranho acesso de raiva, alegria e piedade, arrancou todos os disfarces e admitiu que era uma mulher.

Nisto, Nell explodiu em tamanha gargalhada que podia ser ouvida na rua.

"Bem, querida", disse quando conseguiu se recuperar, "não me aborrece nada saber disso. Pois a mais pura verdade é" (e era notável como logo ao descobrir que eram do mesmo sexo seus modos mudaram e ela deixou de ser suplicante e queixosa), "que não estou disposta a lidar com o outro sexo esta noite. Na verdade, estou numa complicação danada." E assim, atiçando o fogo e mexendo uma taça de ponche contou a Orlando toda a história de sua vida. Uma vez que é a vida de Orlando que nos interessa no momento não precisamos relatar as aventuras da outra mulher mas é certo que Orlando nunca vira as horas correrem tão rápida e alegremente, embora a dama Nell não tivesse uma partícula de talento e, quando o nome do Sr. Pope surgiu na conversa, perguntasse inocentemente se tinha algo a ver com o cabeleireiro de Jeremyn Streel de mesmo nome. No entanto, para Orlando, tal é a graça da naturalidade e a sedução da beleza que a conversa, dessa pobre moça, embora entremeada de expressões vulgares das esquinas, tinha sabor de vinho depois das finas frases a que estava acostumada, e foi forçada concluir que o escárnio do Sr. Pope, a condescendência do Sr. Addison e o segredo de Lorde Chesterfield contribuíram para desgostá-la profundamente da companhia dos sábios, embora continuasse a respeitar suas obras.

Essas pobres criaturas - ela verificou, pois Nell trouxe Prue, e Prue trouxe Kitty, e Kitty trouxe Rose - tinham uma sociedade própria, da qual, agora, a elegiam membro. Cada uma contava a história das aventuras que a tinham levado ao seu atual gênero de vida. Várias eram filhas naturais de condes, e uma tinha mais intimidade do que devia com a pessoa do Rei. Nenhuma era tão miserável nem tão pobre que não possuísse um anel ou um lenço no bolso que lhe servisse de sinal de linhagem. Assim, faziam circular o ponche que Orlando se encarregava de fornecer generosamente, e eram muitas as belas histórias que contavam e muitas as observações divertidas que faziam, pois não se pode negar que quando as mulheres se reúnem - mas silêncio! - têm sempre o cuidado de ver se as portas estão fechadas e que nenhuma palavra seja impressa. Tudo quanto desejam é - mas silêncio! - não é um passo de homem na escada? Tudo quanto desejam é, íamos dizendo, quando um cavalheiro nos tirou as palavras da boca. As mulheres não têm desejos, diz esse cavalheiro entrando na sala de Nell; apenas fingimento. Sem desejos (ela o serviu e ele foi embora) a sua conversa não pode ter o menor interesse para ninguém. "É bem sabido", diz o Sr. S. W., "que, quando lhes falta estímulo do outro sexo, as mulheres não acham nada para dizer uma a outra. Quando estão sozinhas não conversam, arranham-se." E, uma vez que não podem conversar quando estão juntas e que o arranhar não pode continuar indefinidamente, e como é bem sabido (como provou o Sr. T. R.) "que as mulheres são incapazes de qualquer sentimento de afeição pelo seu próprio sexo e que se detestam mutuamente", o que podemos supor que façam as mulheres quando se reúnem em sociedade?

Como esta não é pergunta que possa interessar a qualquer homem sensato, vamos nós aproveitar a imunidade de todos os biógrafos e historiadores de não pertencer a nenhum sexo para passar ao largo e meramente constatar que Orlando gostava imensamente da companhia das pessoas de seu próprio sexo, e deixemos para os cavalheiros o encargo de provarem, como adoram fazer, que isto é impossível.

Mas fazer um relato exato e minucioso da vida de Orlando nessa época se torna cada vez mais difícil. Quando espreitamos e tateamos pelos pátios mal-iluminados, mal-pavimentados, mal-ventilados que existiam naquela época nos arredores de Gerrard Street e de Drury Lane, às vezes pensamos vislumbrá-la, mas em seguida a perdemos de vista. A tarefa se torna ainda mais difícil pelo fato de que ela achava conveniente, naquele tempo, mudar freqüentemente de vestimentas. Assim, muitas vezes figura nas memórias de seus contemporâneos como "Lorde" Fulano de Tal, que na verdade era seu primo, a quem atribuem a generosidade e os poemas que na relidade foram escritos por ela. Parece que ela não tinha dificuldade em sustentar o duplo papel, pois mudava sexo mais freqüentemente do que podem imaginar aqueles que usaram apenas uma espécie de roupa; e não pode haver dúvida de que com este artifício colhia uma dupla colheita, os prazeres da vida eram aumentados, suas experiências multiplicadas. Trocava a proibida dos calções pela sedução das saias, e usufruía igualmente o amor de ambos os sexos.

Assim, poderíamos representar Orlando, pela manhã, em um traje chinês de gênero ambíguo, entre seus livros; depois, recebendo um ou dois clientes (pois tinha muitas solicitações) com o mesmo traje; depois daria uma volta pelo jardim e podaria as nogueiras para isso as calças eram convenientes; depois, mudava para um vestido de tafetá florido, que mais bem se adequava a um passeio a Richmond e à proposta de casamento de algum nobre cavalheiro; de novo voltava à cidade, onde vestiria uma roupa cor de rapé, como a de um advogado, e visitaria os tribunais para saber como andavam seus pleitos - pois sua fortuna se consumia a cada hora, e seus processos não pareciam mais perto uma solução do que tinham estado cem anos antes; por fim, quando anoitecia, muito freqüentemente tornava-se um nobre dos pés à cabeça e passeava pelas ruas em busca de aventura.

Ao retornar de uma dessas incursões secretas - das quais há muitas histórias, tais como que lutou um duelo, serviu como capitão num dos navios do Rei, foi vista dançando nua numa varanda e fugira com uma certa dama para os Países Baixos, aonde o marido da dama seguira - mas não daremos opinião sobre a verdade ou falsidade dessas histórias -, voltando ao que quer que fosse a sua ocupação, fazia questão de passar sob janelas de um café onde podia ver os intelectuais sem ser vista e assim imaginar pelos gestos as coisas sábias, espirituosas ou malévolas que diziam, sem ouvir uma única palavra; o que, talvez, fosse uma vantagem, e uma vez ficou meia hora observando às escondidas três sombras que tomavam chá, numa casa em Bolt Court.

Nunca um espetáculo foi tão atraente. Ela queria gritar Bravo! Bravo! Pois, na verdade, que belo drama era aquele - que página arrancada do mais espesso volume da vida humana! Havia uma pequena sombra com lábios pontudos agitando-se de um lado para outro na cadeira, inquieta, petulante, intrometida; havia uma sombra feminina curvada, mergulhando um dedo numa xícara para ver a profundidade do chá, porque era cega; e havia uma sombra corpulenta, de ar romano, numa grande cadeira de braços - que torcia os dedos de modo esquisito e movia a cabeça de um lado para outro e engolia o chá em grandes goles. Dr. Johnson, Sr. Boswell e Sra. Williams - estes eram os nomes das sombras. Ela estava tão absorta na contemplação que se esqueceu de pensar na inveja que causaria nas épocas futuras, embora pareça provável que, nessa ocasião, isso aconteceria. Estava feliz mirando e remirando. Finalmente, o Sr. Boswell se levantou. Cumprimentou a velha senhora ríspida e asperamente. Mas com que humildade não se inclinou diante da grande sombra romana que agora se pusera de pé e balançando-se um pouco desfiava as mais grandiosas frases jamais saídas dos lábios humanos; assim pensava Orlando, embora não tivesse ouvido uma única palavra do que as três sombras diziam enquanto tomavam chá.

Finalmente voltou para casa uma noite depois de um desses passeios e subiu para o seu quarto. Tirou o casaco enfeitado de rendas e ficou de camisa e calção, olhando pela janela. Havia no ar algo excitante que a impedia de ir para a cama. Uma neblina branca pairava sobre a cidade, porque era uma noite gelada de meados do inverno e uma vista maravilhosa a rodeava. Podia ver a Catedral de São Paulo, a Torre, a Abadia de Westminster, todas as agulhas e as cúpulas das igrejas da cidade, o suave contorno das margens do rio, as opulentas e amplas curvas dos edifícios e templos. Ao norte erguiam-se as suaves e desnudas colinas de Hampstead, e, para oeste, as ruas e praças de Mayfair brilhavam num claro esplendor. Sobre esta serena e harmoniosa paisagem; estrelas pairavam brilhantes, nítidas, firmes, em um céu sem nuvens. Na extrema claridade da atmosfera, a linha de cada telhado, o capuz de cada chaminé era perceptível. Até as pedras das ruas se distinguiam umas das outras; e Orlando não pôde evitar comparar a ordem desta cena com os terrenos irregulares e confusos que formavam a cidade de Londres no reinado da Rainha Elizabeth. Naquele tempo, lembrava-se, a cidade, se é que se pode chamar assim, se amontoava numa simples aglomeração confusa de casas, sob suas janelas e Blackfriars. As estrelas se refletiam em fundas poças de água estagnada que havia no meio das ruas. Uma sombra negra na esquina onde antes era a taverna podia ser o cadáver de um homem assassinado. Podia se lembrar dos gritos de mais um ferido nessas brigas noturnas quando era menino e a ama o levantava até a altura das vidraças em losango. Bandos de rufiões, homens e mulheres, indescritivelmente entrelaçados, vagavam pelas ruas, vociferando canções rudes, com jóias brilhando nas orelhas e facas cintilando nos punhos. Em noite como esta, a trama impermeável das florestas de Higgate e Hampstead se delineava contra o céu, retorcida num intrincado emaranhamento. Aqui e ali, em uma das colinas que dominam Londres, havia uma forca com um cadáver pregado apodrecendo, ou fincado numa cruz pois o perigo e a insegurança, a luxúria e a violência, a poesia e a imundície fervilhavam nas tortuosas estradas elisabetanas, que zumbiam e fediam - Orlando, por se lembrar ainda agora daquele cheiro em uma noite quente - nos quartos apertados e nos caminhos estreitos da cidade. Agora - debruçava-se à janela - tu era luz, ordem e serenidade. Ouvia-se o débil ruído uma carruagem nas pedras. Ela ouviu o apito distar de um guarda noturno - "Doze em ponto, uma madragada gelada." Mal acabava de dizer estas palavras quando a primeira badalada da meia-noite soou. Orlando então pela primeira vez observou uma pequena nuvem crespa, atrás da cúpula de São Paulo. À medida que as badaladas soavam, a nuvem aumentava, e ela viu-a escurecer e estender-se com extraordinária rapidez. Ao mesmo tempo, uma leve brisa se elevou, quando soou a sexta badalada, e todo o céu, no leste, ficou encoberto por uma escuridão móvel e irregular, embora o céu no oeste e no norte continuasse claro como sempre. Depois a nuvem se espalhou para o norte. Cume após cume da cidade foram engolfados por ela. Só Mayfair, com todas as luzes acesas, ardia, por contraste, mais brilhante do que nunca. Com a oitava badalada, alguns velozes farrapos de nuvem espalharam-se sobre Piccadilly. Pareciam amontoar-se e avançar com extraordinária velocidade para o extremo oeste. Com a nona, a décima e a décima primeira badaladas, uma enorme escuridão se espraiava por Londres inteira. Com a décima segunda badalada da meia-noite, a escuridão era completa. Um turbulento redemoinho de nuvens cobriu a cidade. Tudo era trevas tudo era dúvida; tudo era confusão. O século dezoito terminava; começava o século dezenove.

 

A grande nuvem - suspensa não apenas sobre Londres, mas sobre todo o território das Ilhas Britânicas no primeiro dia do século dezenove - permanecia, ou melhor, não permanecia, pois era impelida constantemente por violentas rajadas, suficientes para causar extraordinárias conseqüências nos que viviam sob sua sombra. Parecia ter ocorrido uma transformação no clima da Inglaterra. A chuva caia com freqüência, mas apenas em pancadas vacilantes, que, mal terminavam, logo recomeçavam. O sol brilhava, naturalmente, mas estava tão circundado de nuvens e o ar tão saturado de água que seus raios descoloridos e purpúreos, alaranjados e vermelhos de tons sombrios, substituíram as paisagens mais nítidas do século dezoito. Sob este pálio melancólico escuro, o verde das couves era menos intenso e o branco da neve, enlameado. Mas o pior era que a umidade começava agora a se infiltrar em todas as casas - a umidade, que é o mais insidioso de todos os inimigos, pois ao passo que o sol pode ser vedado por venezianas e a geada evitada com um bom fogo, a umidade penetra secretamente enquanto dormimos; a umidade é silenciosa, imperceptível, onipresente. A umidade incha madeira, incrusta-se nas chaleiras, corrói o ferro, apodrece a pedra. O processo é tão vagaroso que somente quando levantamos uma cômoda ou um balde de carvão e a peça inteira despenca em nossas mãos é que suspeitamos que o mal está em curso.

Assim, furtiva e imperceptivelmente, sem que se marcasse o dia exato e a hora da mudança, a constituição da Inglaterra foi alterada, e ninguém soube. Os efeitos foram sentidos por toda parte. O robusto fazendeiro que se sentava contente para comer bife com cerveja numa sala talvez desenhada com dignidade clássica pelos irmãos Adam, agora sentia frio. Apareceram as mantas; as barbas cresceram; as calças passaram a ser ajustadas debaixo do pé. O frio que o fazendeiro sentia nas pernas em breve se transferiu para a sua casa; a mobília foi encapada; paredes e mesas cobertas; nada ficou exposto. Então, tornou-se essencial uma mudança de dieta. Foram inventados o muffin e o crumpet (Variedades de bolos secos, que se servem com chá.). O café suplantou o vinho do Porto depois do jantar e, como o café conduzia ao salão onde era tomado, e o salão a redomas, e redomas a flores artificiais, e flores artificiais a lareiras, e lareiras a pianos, e pianos a baladas de salão, e baladas de salão (pulando uma ou duas etapas) a inúmeros cachorrinhos, tapetes e enfeites de porcelana, o lar - que se tornara extremamente importante - foi completamente alterado. Do lado de fora da casa - era um outro efeito da umidade -, a hera cresceu numa profusão sem igual. As casas que tinham sido de pedra nua estavam cobertas pela vegetação. Em nenhum jardim - mesmo naqueles de traçado originalmente formal - faltavam arbustos, um ermo, um labirinto. A luz que penetrava nos quartos onde nasciam as crianças era naturalmente de um verde fosco, e a luz que penetrava nos salões onde viviam os adultos atravessava cortinas de pelúcia marrom e púrpura. Mas a mudança não parou nas coisas exteriores. A umidade infiltrou-se no interior. Os homens sentiram o frio no coração; a umidade em suas mentes. Num esforço desesperado de agasalhar seus sentimentos em algum lugar quente, tentaram um subterfúgio após outro. Amor, nascimento e morte foram envolvidos numa variedade de lindas frases. Os sexos se distanciaram mais e mais. Não se tolerava uma conversa, franca. Evasivas e dissimulações eram diligentemente praticadas por ambas as partes. E assim como a hera e a sempre-viva se regalavam na terra úmida lá fora, a mesma fertilidade se manifestava dentro. A vida de uma mulher normal era uma sucessão de partos. Ela se casava aos dezenove anos, e tinha quinze ou dezoito filhos quando chegava aos trinta, pois os gêmeos abundavam. Assim nasceu o Império Britânico; e assim - pois não se pode parar a umidade, ela entra tanto no tinteiro quanto na madeira - as frases se expandiram, os adjetivos se multiplicaram, os versos líricos se tornaram épicos, as bagatelas - que tinham sido ensaios de uma coluna - eram agora enciclopédias de dez ou vinte volumes. Mas Eusebius Chubb será nossa testemunha do efeito que isso tudo causou na mente de um homem sensível que não podia fazer nada para deter. Há uma passagen no final de suas memórias, onde ele descreve como depois de escrever numa manhã trinta e cinco páginas in-folio "a respeito de nada" - atarraxou a tampa do tinteiro e foi dar uma volta pelo jardim. Logo sentiu-se rodeado pelo bosque. Inúmeras folhas crepitavam e brilhavam sobre sua cabeça. Parecia-lhe "esmagar os restos de um outro milhão de folhas sob seus pés". Densa fumaça subia de uma fogueira úmida, no fundo do jardim. Ele refletia que nenhum fogo da terra poderia esperar consumir aquele vasto obstáculo vegetal. Para onde quer que olhasse, a vegetação era exuberante. Os pepinos "se atropelavam pela grama até os seus pés". Couves-flores gigantes subiam em patamares até rivalizarem - em sua imaginação desordenada - com os próprios álamos. As galinhas punham incessantemente ovos sem nenhuma cor especial. Então, lembrando-se com um suspiro de sua própria fecundidade e da de sua pobre esposa Jane, agora confinada em casa pelas dores do décimo quinto parto, ele se perguntava como podia culpar as aves. Olhou para o céu. O próprio céu, o aquele grande frontispício do firmamento que é o céu não indicava o consentimento ou mesmo o estímulo da hierarquia celestial? Pois lá, inverno ou verão, ano após ano, as nuvens giravam e rolavam como baleias - ponderou - ou melhor, como elefantes; mas não, não havia como escapar do sorriso que lhe suscitavam mil acres de ar; o céu todo, esparramado sobre as Ilhas Britânicas, não era mais do que um vasto colchão de plumas; a fecundidade indistinta do jardim, do quarto e do galinheiro era copiada ali. Ele entrou, escreveu a passagem citada acima, apoiou a cabeça num forno a gás e, quando mais tarde o encontraram, estava morto.

Enquanto isso acontecia por toda a Inglaterra, de nada adiantava Orlando se trancar em casa em Blackfriars e fingir que o clima era o mesmo; que ainda se podia dizer o que se queria e usar calças ou saias conforme o gosto. Mesmo ela, afinal, foi forçada a reconhecer que os tempos haviam mudado. Uma tarde, no inicio do século, conduzia sua velha carruagem almofadada pelo Parque Saint James quando um dos raios de sol que às vezes, mas não freqüentemente, se esforçava por atingir a terra abriu caminho, marmoreando as nuvens, ao passar, com estranhas cores prismáticas. Tal visão era suficientemente estranha, depois dos céus claros e uniformes do século dezoito para fazê-la abrir a janela e olhar. As nuvens castanho-avermelhadas e rosadas fizeram-na pensar com uma angústia prazerosa - o que prova que ela já estava insensivelmente afetada pela umidade - em golfinhos morrendo no Mar Jônico. Mas qual não foi sua surpresa quando, ao atingir a terra, o raio de sol fez surgir ou iluminou uma pirâmide, hecatombe ou troféu (pois tinha um ar de mesa de banquete) - um conglomerado de objetos os mais heterogêneos e disparatados, desordenadamente empilhados num vasto monte onde agora se ergue a estátua da Rainha Vitória! De uma enorme cruz de ouro filigranado em florões pendiam roupas de luto de viúvas e véus de noivas; pendurados em outras proeminências havia palácios de cristal, berços de vime, elmos militares, coroas fúnebres, calças, suíças, bolos de casamento, canhões, árvores de Natal, telescópios, animais extintos, globos, mapas, elefantes e instrumentos matemáticos - tudo sustentado como um gigantesco brasão de armas, à direita por uma figura feminina envolta numa flutuante túnica branca; e à esquerda por um imponente cavalheiro de casaca de calças bufantes. A incongruência dos objetos, a associação do totalmente vestido com o parcialmente envolto, a extravagância das diferentes cores e sua justaposição axadrezada afetaram Orlando muito profundamente. Ela nunca tinha visto em toda a sua vida nada ao mesmo tempo tão indecente, tão horrendo e tão monumental. Podia, e na verdade devia, ser o efeito do sol no ar carregado de água; desapareceria com a primeira brisa que soprasse; mas, apesar disso parecia-lhe, enquanto passava na carruagem, destinada a durar para sempre. Nada sentiu, encolhendo-se num canto da carruagem, nem vento, nem chuva, nem sol, nem trovão poderia demolir aquela espalhafatosa construção. Somente os narizes ficariam manchados e a trombetas enferrujariam; mas lá permaneceriam, apontando para leste, oeste, sul e norte, eternamente. Olhou para trás quando a carruagem passou por Coasntutio Hill. Sim, lá ficava ele, brilhando ainda placidamente uma luz que - tirou o relógio do bolso - era naturalmente, a luz do meio-dia. Nenhum outro podia ser tão prosaico, tão medíocre, tão inalterável a qualquer sugestão da aurora ou do crepúsculo, tão aparentemente calculado para durar para sempre. Ela estava decidida a não olhar de novo. Já sentia o sangue correr mais lentamente em suas veias. Porém o mais peculiar foi que um vívido e singular rubor se espalhou por suas faces quando passou pelo Palácio de Buckingham e seus olhos foram forçados, como por um poder superior, a olhar para os seus joelhos. Subitamente viu sobressaltada que usava calças pretas. Não cessou de corar até chegar à sua casa de campo, o que, considerando o tempo que levam quatro cavalos para trotar trinta milhas, servira esperamos, como um prova de sua castidade.

Uma vez lá, cedeu àquilo que se tornara a mais imperiosa necessidade de sua natureza e embrulhou-se o melhor que pôde numa colcha de damasco que tirou da cama. Explicou à viúva Bartholomew (que sucedera a boa e velha Grimsditch como governanta) que estava gelada.

- Assim estamos todos nós, Senhora - disse a viúva, dando um profundo suspiro. - As paredes estão molhadas - disse, com uma curiosa e lúgubre complacência e absolutamente convencida de que tinha apenas que pousar a mão nos painéis de carvalho para que marca dos dedos ficasse ali impressa. A hera cresceu tão profusamente que muitas janelas estavam agora lacradas. A cozinha estava tão escura que mal se podia distinguir uma chaleira de um coador. Um pobre gato preto foi confundido com carvão e atirado no fogo. Muitas das empregadas já usavam três ou quatro anáguas de flanela, embora o mês fosse agosto.

- Mas é verdade, Senhora - perguntou a boa mulher, toda encolhida, com o seu crucifixo de ouro pesando-Ihe no peito, - que a Rainha - bendita seja - está usando o que se chama uma - a boa mulher hesitou e corou.

- Uma crinolina - ajudou Orlando (porque a palavra já chegara a Blackfriars). A Sra. Bartholomew sacudiu a cabeça. As lágrimas já escorriam por suas faces, mas ela sorria ao mesmo tempo em que chorava. Pois era agradável chorar. Não eram todas elas frágeis mulheres, usando crinolinas para melhor ocultarem o fato; o grande fato; o único fato; mas não obstante o deplorável fato de que mesmo todas as mulheres recatadas faziam o possível para negar até que a negação era impossível; o fato de que ia ter um filho? Quinze ou vinte filhos, na verdade, de modo que a vida de uma mulher recatada se passava, afinal de contas, em negar aquilo que pelo menos um dia no ano se tornava óbvio.

- Os muffins estão quentes - disse a Sra. Bartholomew enxugando as lágrimas - na biblioteca.

E embrulhada na colcha de damasco Orlando sentou-se diante de um prato de muffins.

"Os muffins estão quentes na biblioteca", Orlando articulou a horrenda frase cockney com o refinado sotaque cockney da Sra. Bartholomew, enquanto tomava mas não, ela detestava este líquido insípido, seu chá. Fora neste mesmo aposento, lembrava-se, que a Rainha Elisabeth estivera escarranchada na lareira, com uma caneca de cerveja na mão, que subitamente atirara na mesa quando Lorde Burghley, indelicadamente, usara o imperativo em vez do subjuntivo. "Homenzinho, homenzinho" - Orlando podia ouvi-Ia dizer - "deve é palavra que se dirija a príncipes?" E jogou a caneca sobre a mesa: a marca ainda estava lá.

Mas quando Orlando se pôs de pé, como obrigava o simples pensar na grande Rainha, tropeçou na colcha e caiu sentada em sua poltrona, soltando uma praga. Amanhã teria que comprar vinte jardas ou mais de bombazina preta, calculou, para fazer uma saia. E então (aqui corou), teria que comprar uma crinolina, e então (aqui corou), um berço de vime, e então outra crinolina e assim por diante... Os rubores iam e vinham, na mais estranha alternância possível de pudor e vergonha. Podia-se ver o espirito da época soprando ora quente ora frio sobre suas faces. E se o espírito da época soprava am pouco desigualmente - pois corava mais com a crinolina do que com o marido - sua posição ambígua deve desculpá-la (seu próprio sexo ainda era discutível), bem como a vida irregular que antes levara.

Finalmente a cor de suas faces adquiriu estabilidade e foi como se o espírito da época - se na verdade existisse - adormecesse por algum tempo. Então Orlando apalpou o peito como se procurasse um medalhão ou uma relíquia de um afeto perdido e não retirou isso, mas um rolo de papel manchado de mar, manchado de sangue, manchado de viagens - o manuscrito de seu poema "O Carvalho". Ela o carregara consigo por tantos anos e em tão arriscadas circunstâncias que muitas das páginas estavam manchadas, outras rasgadas, e a dificuldade que tivera de papel para escrever enquanto estava entre os ciganos forçara-a a aproveitar as margens e cruzar as linhas, de modo que o manuscrito parecia um cerzido conscienciosamente executado. Voltou à primeira página e leu a data, 1586, escrita por sua mão de menino. Trabalhava nele há cerca de trezentos anos. Era hora de terminar. Enquanto isso, começou a folhear e a mergulhar e a ler e a saltar e a pensar, enquanto lia, como ela mudara tão pouco em todos esses anos. Tinha sido um menino melancólico, apaixonado pela morte, como são os meninos; depois, tinha sido amoroso e exuberante; mais tarde, esperto e satírico; e às vezes tentara a prosa, às vezes tentara o drama. Contudo, apesar de todas essas mudanças, tinha permanecido - refletiu - fundamentalmente a mesma. Conservava o mesmo temperamento meditativo e sorumbático, o mesmo amor pelos animais e pela natureza, a mesma paixão pelo campo e pelas estações.

"Afinal, pensara, levantando-se e dirigindo-se à sala, "nada mudou. A casa, o jardim, estão precisamerte como eram. Nenhuma cadeira foi removida, nenhum tapete vendido. Ali estão os mesmos caminhos - os mesmos gramados, as mesmas árvores e o mesmo lago onde - ouso dizer - vive a mesma carpa. A Rainha Vitória ocupa o trono, e não a Rainha Elizabeth, mas que diferença...”

Tão logo formulara este pensamento, eis que, como se para censurá-lo, a porta se abriu de par em par e entrou Basket, o mordomo, seguido por Bartholomew, a governanta, para retirarem o chá. Orlando, que tinha acabado de mergulhar a pena na tinta e ia começar a compor algumas reflexões sobre a eternidade de todas as coisas, ficou muito aborrecida pelo borrão que se espalhou e serpenteou em torno de sua pena. Era culpa da pena, supôs; estava quebrada ou suja. Molhou-a de novo. O borrão aumentou. Tentou continuar no que estava dizendo; não lhe vinham as palavras. Em seguida começou a decorar o borrão com asas e suíças, até que se tornou um monstro de cabeça redonda, algo entre um morcego e um gambá. Mas escrever poesia com Basket e Bartholomew no aposento era impossível. Mal acabara de dizer "impossível", para seu espanto e alarme, a pena começou a se curvar e a caracolear com a mais suave fluência possível. Na página ficaram escritos com caligrafia italiana, nítida e inclinada, os mais insípidos versos que jamais lera na vida:

Sou apenas um elo vil na corrente da vida cansada, mas falei palavras sagradas, oh, não digas que não valeram nada!

Será que a donzela, quando suas lágrimas Sozinhas ao luar brilharem, Lágrimas pelos ausentes e pelos amados, Murmurará.

(I am myself but a vile link Amid life's weary chain, But I Nave spoken hallow'd words, Oh, do not say in vain!

Will the young maiden, when her tears, Alone in moonlight shine, Tears for the absent and the loved, Murmur)

Escreveu sem parar enquanto Bartholomew e Basket grunhiam e resmungavam pela sala, atiçando o fogo, recolhendo os muffins.

Novamente molhou a pena e escreveu.

Estava tão mudada, a suave nuvem cor de cravo, Que uma vez lhe corara a face como esta que de tarde Pairava no céu, brilhando com um matiz rosado. Tinha empalidecido, despedaçada Por rubores brilhantes e ardentes, tochas do túmulo... (She was so changed, the soft carnation cloud Once mantling o'er her cheek like that which eve Hangs o'er the sky, glowing with roseat hue, Had faded finto paleness, broken by Bright burning blushes, torches of the tomb...)

Mas aqui, com um movimento abrupto, derramou a tinta sobre a página, bloqueando-a aos olhos humanos - esperava - para sempre. Estava toda trêmula, toda agitada. Nada mais repulsivo podia ser imaginado do que a tinta fluindo em cascatas de inspiração involuntária. O que teria acontecido a ela? Seria a umidade, seria Bartholomew, seria Basket, o que seria? perguntava-se. Mas a sala estava vazia. Ninguém lhe respondeu, a menos que se tomasse como resposta o gotejar da chuva na hera.

Enquanto isso, debruçada à janela, tomou consciência de um extraordinário zunido e de uma vibração por todo o corpo, como que produzidos por milhares de cordas sobre as quais uma brisa ou dedos errantes executasse escalas. Ora eram os seus dedos dos pés que zuniam; ora sua medula. Experimentava as mais curiosas sensações nos fêmures. Seus cabelos pareciam eriçar-se sozinhos. Seus braços vibravam e ressoavam como os fios telegráficos vibrariam e soariam dali a mais ou menos vinte anos. Mas toda essa agitação parecia afinal se concentrar em suas mãos; depois, numa das mãos e depois em um dedo daquela mão; e depois, finalmente, contrair-se de modo a formar um anel de trêmula sensibilidade em torno do segundo dedo da mão esquerda. E, quando o ergueu para ver o que causava essa agitação, não viu nada - nada senão a enorme esmeralda solitária que lhe fora dada pela Rainha Elizabeth. "E isso não era bastante?", perguntou. Era da mais fina água. Valia pelo menos dez mil libras. A vibração parecia, da maneira mais estranha (mas lembrem-se de que estamos tratando com algumas das mais obscuras manifestações da alma humana), dizer: "Não, não é bastante"; e em seguida assumia um tom de interrogação, como se perguntasse: o que significa este hiato, este estranho descuido? - até que a pobre Orlando se sentiu positivamente envergonhada do segundo dedo de sua mão esquerda, sem ao menos saber por quê. Nesse momento, Bartholomew entrou para lhe perguntar que vestido desejava para o jantar, e Orlando, cujos sentidos estavam muito aguçados, instantaneamente olhou para a mão esquerda de Bartholomew e instantaneamente percebeu o que não havia notado antes - um anel grosso, de um amarelo carregado, circundando o terceiro dedo, que, na sua mão, não tinha nada.

- Deixe-me ver o seu anel, Bartholomew - disse ela, estendendo a mão para pegá-lo.

Com isso, Bartholomew fez como se tivesse sido atacada no peito por um bandido. Recuou um ou dois passos, cerrou a mão e desviou-a com um gesto de extrema nobreza. "Não", disse, com resoluta dignidade, sua Senhora podia contemplá-lo se quisesse, mas tirar seu anel de casamento nem o Arcebispo, nem o Papa, nem a Rainha Vitória, do seu trono, poderiam forçá-la a fazer isso. O seu Thomas tinha-o colocado em seu dedo havia vinte e cinco anos, seis meses e três semanas; ela dormira com ele; trabalhara com ele; lavara com ele; rezara com ele; e pretendia ser enterrada com ele. De fato Orlando compreendeu o que ela dizia, embora sua voz estivesse partida pela emoção; que pelo brilho do seu anel de casamento ela asseguraria um lugar entre os anjos, e esse lustro seria ofuscado para sempre se ela deixasse fora de sua guarda por um segundo.

- Que o céu nos ajude - disse Orlando, de pé junto à janela, observando os pombos que brincavam -, em que mundo vivemos! Que mundo, este! - Suas complexidades divertiam-na. Parecia-lhe agora que o mundo inteiro estava circundado por um anel de ouro. Foi jantar. Anéis de casamento abundavam. Foi para a igreja. Anéis de casamento estavam por toda parte. Foi passear. De ouro ou de imitação, finos, grossos, lisos, polidos, brilhavam fortemente em todas as mãos. Os anéis enchiam as joalherias, não os de pedras preciosas de imitação, nem os de diamantes de que Orlando tinha lembrança, mas simples aros sem pedra alguma. Ao mesmo tempo, ela começou a observar um novo hábito nas pessoas da cidade. Nos velhos tempos, freqüentemente se encontrava um rapaz brincando com uma moça sob uma cerca de espinheiros. Orlando tocara muitos pares com a ponta do seu chicote, rira e seguira em frente. Agora, tudo mudara. Os pares caminhavam e se arrastavam no meio das estradas, indissoluvelmente unidos, mão direita da mulher estava invariavelmente entrelaçada na mão esquerda do homem, com os dedos firmemente presos pelos dele. Em geral, só se afastavam quando os focinhos dos cavalos já os atingiam, e então, embora se movessem pesadamente para a margem da estrada, era como se fossem um só bloco. Orlando só podia supor que tivesse sido feita alguma nova descoberta a respeito da raça; que eles eram soldados aos pares mas quem e quando teria feito isso, não podia adivinhar. Não parecia ter sido a natureza. Olhou os pombos, os coelhos e os galgos, e não parecia que a natureza tivesse mudado os seus métodos ou os tivesse corrigido pelo menos desde a época de Elizabeth. Não havia alianças indissolúveis que ela pudesse ver entre os animais. Poderia ser, então, a Rainha Vitória, ou Lord Melbourne? Seria deles, então, a grande descoberta do casamento? Contudo dizia-se que a Rainha gostava muito de cães - ponderava - e que Lorde Melbourne, segundo ouvira, gostava muito de mulheres. Era estranho - era de mau gosto; na verdade, havia algo nessa indissolubilidade de corpos que repugnava ao seu censo de decência e de higiene. Suas ruminações, porém, eram acompanhadas por um tal zunir e vibrar do dedo aflito que mal podia pôr suas idéias em ordem. Elas iam ficando lânguidas e ternas como as fantasias de uma empregada doméstica. Faziam-na corar. Não havia nada a fazer senão comprar um desses feios aros e usá-los como os demais. Assim o fez, escorregando-o pelo dedo à sombra de uma cortina, coberta de vergonha; mas sem proveito. A vibração persistia, mais violenta e furiosamente do que nunca. Não pregou olhos aquela noite. Na manhã seguinte, quando pegou a pena para escrever, ou não podia pensar em nada e a pena fazia, um após outro, enormes borrões lacrimejantes, ou ainda, de forma mais alarmante, embaralhava-se em divagações melífluas sobre a morte precoce e sobre corrupção, o que era pior do que não pensar em nada. Pois, segundo parece - seu caso prova isso -, escrevemos não com os dedos, mas com a pessoa inteira. O nervo que controla a pena enrola-se em cada fibra do nosso ser, amarra o coração e trespassa o fígado. Assim, embora a sede do seu problema parecesse ser a mão esquerda, ela sentia-se envenenada de alto abaixo, e foi forçada, afinal, a pensar no mais desesperado dos remédios, que era render-se completa e submissamente ao espírito da época e arranjar um marido.

Que isso era contra o seu temperamento natural já ficou suficientemente claro. Quando o som da carruagem do Arquiduque se desvaneceu, o grito que saiu de seus lábios foi "Vida! Um amor!" e não "Vida! Um marido!", e foi com esse objetivo que partira para a cidade e percorrera o mundo, como foi demonstrado no capítulo anterior. No entanto, tal é a indómita natureza do espírito da época, que derruba mais efetivamente aqueles que tentam enfrentá-lo do que os que se inclinam e segui-lo. Orlando se inclinara naturalmente para o espírito elisabetano, para o espírito da Restauração, para o espírito do século dezoito, e tinha por conseguinte percebido com dificuldade a mudança de uma época para outra.

Mas o espírito do século dezenove era-lhe antipático ao extremo, e assim ele tomou-a e quebrou-a, e, em sua mãos, ela sentiu, como nunca, a consciência de sua derrota. Pois é provável que o espírito humano tenha o seu lugar assinalado no tempo; uns nascem para esta época outros para aquela; e agora que Orlando se tornara muIher, com um ou dois anos além dos trinta, as linhas do seu caráter estavam fixadas, e era intolerável mudar-lhes o rumo.

Assim ficou pesarosamente à janela da sala de visitas (Bartholomew batizara assim a biblioteca), arrastando o peso da crinolina que submissamente adotara. Era o mais pesado e banal de todos os trajes que já usara. Nenhum lhe impedira tanto os movimentos. Não poderia mais passear pelos jardins com os seus cachorros nem galgar apressadamente a alta colina e lançar-se sob o carvalho. Suas saias prendiam folhas úmidas e palha. O chapéu de plumas sacudia com a brisa. Os sapatos finos rapidamente ficavam molhados e enlameados. Seus músculos tinham perdido a flexibilidade. Ficou com medo de que houvesse ladrões atrás dos lambris, ou pela primeira vez na vida, fantasmas nos corredores.

Todas essas coisas levavam-na passo a passo a submeter-se à nova descoberta - seja da Rainha Vitória ou de quem quer que fosse - que a cada homem correspondia uma mulher, por toda a vida, a quem ampara e por quem é amparado até que a morte os separe. Devia ser um conforto - sentia - apoiar-se; sentar-se; sim, deitar-se; nunca, nunca, nunca mais se levantar. Então o espírito agiu sobre ela, apesar do seu antigo orgulho, e enquanto descia pela escala da emoção para esse alojamento humilde e inabitual, aqueles zunidos e aquela vibrações, que tinham sido tão capciosos e tão interrogativos, se modulavam na mais doce das melodias, como se anjos tangessem cordas de harpa com dedos brancos - e todo o seu ser foi impregnado por uma seráfica harmonia.

Mas em quem podia se apoiar? Fez essa pergunta aos ventos selvagens do outono. Pois era outubro e úmido como de costume. Não no Arquiduque: ele se casara com uma grande dama e havia muitos anos que caçava lebres na Romênia; nem no Sr. M.: tornara-se católico; nem no Marquês de C.: produzia sacos em Botany Bay; nem em Lorde O.: havia muito tempo que servira de comida para os peixes. De uma maneira ou de outra, todos os seus antigos admiradores tinham desaparecido, e as Nells e as Kits, de Drury Lane, muito embora ela as favorecesse, dificilmente serviriam de apoio.

"Em quem", perguntou lançando os olhos às nuvens revoltas, entrelaçando os dedos enquanto se ajoelhava no peitoril da janela como a verdadeira imagem da suplicante feminilidade, "em quem posso me apoiar?" Suas palavras formavam-se por si mesmas, suas mãos se entrelaçavam involuntariamente, como a pena escrevera por seu próprio arbítrio. Não era Orlando que falava, mas o espírito da época. Mas quem quer que fosse, ninguém respondia. As gralhas atropelavam-se desordenadamente por entre as nuvens violetas do outono. A chuva cessara, finalmente, e havia no céu uma iridescência que tentou-a a colocar o seu chapéu de plumas e os seus sapatos de cordões e dar uma volta antes do jantar.

"Todos têm seu par, menos eu", refletiu enquanto atravessava desconsoladamente o pátio. Havia as gralhas; até Canute e Pippin - por mais transitórias que fossem suas alianças, esta tarde cada um parecia ter um companheiro. "Enquanto eu, que sou a dona de tudo isto", pensava Orlando, mirando ao passar as inúmeras janelas brasonadas do vestíbulo, "sou solteira, sem parceiro, sozinha.”

Tais pensamentos nunca lhe haviam antes ocupado a mente. Agora, esmagavam-na irremediavelmente. Em vez de abrir o portão, bateu com a mão enluvada para que o porteiro lhe abrisse. É preciso apoiar-se em alguém, pensou, nem que seja somente num porteiro; e quase desejou ficar para trás, ajudá-lo a grelhar sua costeleta num fogareiro de carvão em brasa, mas era muito tímida para pedir isso. Assim, aventurou-se sozinha pelo parque, vacilante a princípio, e apreensiva que caçadores furtivos, guarda-caças ou moços de recados estranhassem ver uma grande dama passeando sozinha.

A cada passo olhava nervosamente, temendo que algum vulto masculino estivesse escondido por trás de uma moita de tojos ou que alguma vaca bravia abaixasse os chifres para atacá-la. Mas havia apenas as gralhas fazendo algazarra no céu. Uma pena azul como aço caiu de uma delas entre as urzes. Ela amava penas de pássaros agrestes. Costumava colecioná-las, quando menino. Apanhou-a e prendeu-a no chapéu. O ar soprou algo em seu espírito e reanimou-o. Como as gralhas continuavam a circular e a dar voltas sobre sua cabeça e as penas caiam uma após outra, cintilando no ar purpúreo, seguiu-as, com a longa capa flutuando atrás de si, pelo pântano, colina acima. Havia muitos anos que não andava tanto. Apanhara da grama seis penas, fizera-as deslizar por entre os dedos, apertara-as contra os lábios para sentir-lhes a maciez e o brilho, quando viu, brilhando na encosta da colina, uma poça prateada, misteriosa como o lago em que Sir Bedivere atirou a espada de Arthur. Uma pena tremeu no ar e caiu dentro da poça. Então um estranho êxtase arrebatou-a. Um impulso selvagem de seguir os pássaros até o fim do mundo e atirar-se na turfa esponjosa e ali beber o esquecimento, enquanto o áspero riso das gralhas ressoava sobre ela. Apressou o passo; correu; tropeçou; as duras raízes das urzes atiraram-na ao chão. Seu tornozelo estava quebrado. Não podia se levantar. Mas ali ficou, contente. O cheiro da murta do pântano e da olmeira estava em suas narinas. A risada áspera das gralhas em seus ouvidos. "Encontrei meu companheiro", murmurou. "É o pântano. Sou a noiva da natureza", sussurrou, entregando-se num arrebatamento ao abraço frio da grama, enquanto dobrava sua capa numa cova ao lado da poça. "Aqui ficarei" (uma pena caiu-lhe sobre a testa). "Encontrei um loureiro mais verde do que os outros. Minha testa ficará sempre fresca. Estas penas são de pássaros agrestes - de corujas e de curiangos. Sonharei sonhos selvagens. Minhas mãos não usarão anel de casamento", continuou, retirando o que tinha no dedo. "As raízes se entrelaçarão nelas. Ah!", suspirou, afundando a cabeça voluptuosamente no travesseiro fofo, "procurei a felicidade durante muitas eras e não a encontrei; procurei a fama e a perdi; procurei o amor e não o conheci; a vida - e eis que a morte é melhor. Conheci muitos homens e muitas mulheres", continuou; "não entendi nenhum deles. É melhor que eu fique em paz aqui, só com o céu sobre mim - como o cigano me disse anos atrás. Foi na Turquia." E olhou para o alto a maravilhosa espuma dourada em que as nuvens tinham se desmanchado, e em seguida viu nelas uma trilha, e camelos passando em fila indiana pelo deserto rochoso entre nuvens de poeira vermelha; e então, depois que os camelos passaram, só havia montanhas muito altas, cheias de fendas e com pontas de rochas, e ela imaginou ouvir sinos de cabras ressoando pelos desfiladeiros, e, nas suas dobras, havia campos de íris e gencianas. Então o céu mudava e seus olhos se abaixaram lentamente mais e mais, até alcançarem a terra escurecida pela chuva e verem a grande corcova do South Down fluindo em uma única onda ao longo da costa; e onde a terra acabava havia o mar, o mar com navios passando; e imaginou ouvir um canhão lá longe no mar e pensou como a princípio: "é a Invencível Armada", e depois pensou: "Não, é Nelson", e lembrou que essas guerras já tinham acabado e que os navios eram atarefados navios mercantes; e as velas no sinuoso rio eram de barcos de recreio. Viu também gado disperso pelos campos escuros, ovelhas e vacas, e viu as luzes aparecendo aqui e ali nas janelas das casas de fazendas e lanternas movendo-se pelo meio do gado quando o pastor fazia sua ronda, e o vaqueiro; e depois as luzes se apagaram, as estrelas subiram e se misturaram pelo céu. De fato, ela estava adormecendo com penas úmidas no rosto e o ouvido colado ao chão quando ouviu bem no fundo um martelo batendo numa bigorna, ou seria um coração batendo? Tic-toc, tic-toc, assim martelava, assim batia, a bigorna ou o coração, no centro da terra; até que, enquanto ouvia, pensou que se transformara no trote de um cavalo, contou um, dois, três, quatro; então ouviu um tropeção; então, à medida que se aproximava mais, podia ouvir o estalar de um graveto e o chapinar dos cascos no pântano encharcado.

O cavalo estava quase em cima dela. Sentou-se empertigada. Destacando-se contra o céu raiado de amarelo da aurora, com lavadeiras que subiam e desciam sobre ele, ela viu um homem a cavalo. Ele sobressaltou-se. O cavalo parou.

- Senhora - disse o homem pulando para o chão -, está ferida!

- Estou morta, Senhor! - respondeu ela.

Alguns minutos mais tarde, ficaram noivos.

Na manhã seguinte, quando sentaram para o café da manhã, ele lhe disse seu nome. Era Marmaduke Bonthrop Shelmerdine, Esquire. (Título de cortesia que se emprega após o nome, correspondente a ilustríssimo senhor.)

- Eu sabia! - disse, pois havia nele algo romântico e cavalheiresco, apaixonado, melancólico, embora determinado, que combinava com o nome bárbaro, sombriamente emplumado - um nome que tinha, em sua mente, o brilho azul-aço das asas das gralhas, o riso áspero de seus grasnidos, a serpenteante queda de suas penas numa poça prateada, e mil outras coisas que serão descritas dentro em breve.

- O meu é Orlando - disse ela. Ele tinha adivinhado. Pois quando se vê um navio a todo pano, coberto de sol, atravessando orgulhosamente o Mediterrâneo vindo dos Mares do Sul, diz-se imediatamente "Orlando", explicou.

Na verdade, embora o seu conhecimento datasse de tão pouco tempo, ambos tinham adivinhado, como sempre ocorre entre os amantes, todas as coisas de alguma importância a respeito um do outro, em dois segundos no máximo, e agora faltavam preencher alguns detalhes insignificantes, tais como se chamavam; onde moravam; e se eram mendigos ou pessoas de posses. Ele tinha um castelo nas Hébridas, mas estava em ruínas, disse-lhe. Os gansos comiam no salão de banquetes. Tinha sido soldado e marinheiro, e explorara o Oriente. Agora estava a caminho para embarcar em seu brigue em Falmouth, mas o vento diminuíra e só quando soprasse o sudoeste poderia pôr-se ao mar. Orlando olhou apressadamente pela janela da sala de almoço para o leopardo dourado do catavento. Felizmente a cauda apontava para leste e estava firme como uma rocha.

- Oh! Shel, não me abandones! - gritou. - Estou perdidamente apaixonada por ti! - disse. Tão logo deixou escapar estas palavras, uma terrível suspeita invadiu simultaneamente suas mentes.

- És uma mulher, Shel! - gritou ela.

- És um homem, Orlando! - gritou ele.

Nunca houve cena de protestos e demonstrações como a que ocorreu, desde que o mundo começou. Quando acabaram, e estando outra vez sentados, ela perguntou-lhe que conversa era essa de uma ventania sudoeste? Para onde ele zarpava?

- Para o Cabo Horn - disse ele rapidamente, e corou. (Porque os homens coram como as mulheres, só que por coisas bastante diferentes.) Foi apenas à força de muita pressão da parte dela, e pelo uso de muita intuição, que conseguiu saber que a vida dele era esbanjada na mais desesperada e esplêndida das aventuras que é dar a volta ao Cabo Horn a despeito da ventania. Os mastros ficavam despedaçados; as velas rasgadas em tiras (ela teve que arrancar-lhe a confissão). As vezes o navio naufragava e ele era o único sobrevivente, numa balsa, com um biscoito.

- É tudo o que um homem pode fazer hoje em dia - disse envergonhado e servindo-se de grandes colheradas de geléia de morango. A visão que ela teve daí em diante desse menino (pois ele era pouco mais que isso), chupando pastilhas de hortelã - que adorava - enquanto os mastros se despedaçavam e as estrelas cambaleavam e ele rugia breves ordens de cortar esta amarra, lançar aquela ao mar, trouxe-lhe lágrimas aos olhos, lágrimas que notou terem um sabor mais leve do que as que chorara antes. "Sou uma mulher", pensou, "uma verdadeira mulher, afinal." Agradeceu a Bonthrop, do fundo do coração, por ter lhe dado esse raro e inesperado prazer. Se não estivesse mancando do pé esquerdo teria sentado nos seus joelhos.

- Shel, meu querido - recomeçou -, dize-me... - e assim conversaram duas horas ou mais, talvez sobre o Cabo Horn, talvez não, e na verdade pouco interessaria anotar o que disseram, pois se conheciam tão bem que podiam dizer qualquer coisa, o que equivale não dizer nada ou a dizer coisas tão idiotas, tão prosaicas tais como a maneira de preparar uma omelete ou onde comprar as melhores botas de Londres, coisas que não têm encanto fora do seu lugar, mas que no seu próprio são positivamente de uma beleza surpreendente. Pois, por uma sábia economia da natureza, nosso espfrito moderno quase pode dispersar a linguagem; as expressões mais comuns não são suficientes, uma vez que nenhuma expressão é suficiente; por isso, a conversa mais banal é freqüentemente a mais poética, e a mais poética é precisamente a que não se pode anotar. Razão pela qual deixamos aqui um grande espaço em branco o que servirá para indicar que o espaço está inteiramente preenchido.

Depois de alguns dias mais deste tipo de conversa - Orlando, minha adorada - Shel ia começando a dizer quando uma discussão começou lá fora, e Basket, o mordomo, entrou com a informação de que havia um par de guardas lá embaixo, com uma sentença da Rainha.

- Mande-os subir - disse sumariamente Shelmerdine, como se em sua própria ponte de comando, colocando-se instintivamente com as mãos para trás, em frente à lareira. Dois oficiais de uniforme verde-garrafa, com cassetetes à cintura, entraram na sala e ficaram perfilados. Cumpridas as formalidades, entregaram nas próprias mãos de Orlando, como era sua obrigação, um documento judicial de aspecto impressionante, a julgar pelos selos de lacre, as fitas, os juramentos e as assinaturas, tudo da mais alta importância.

Orlando percorreu-o com os olhos e então, usando o primeiro dedo da mão direita como indicador, leu em voz alta os seguintes; fatos, que eram os mais pertinentes ao assunto.

- Os processos estão resolvidos... - leu em voz alta -, alguns a meu favor, como por exemplo... outros não. Casamento turco, anulado (eu era Embaixador em Constantinopla, Shel, explicou) - os filhos, declarados ilegítimos (diziam que tive três filhos de Pepita, uma dançarina espanhola). Assim, eles não herdam, o que é uma vantagem... Sexo? Ah! mas o que dizem a respeito do meu sexo? Meu sexo - leu em voz alta com alguma solenidade - é declarado. Indiscutivelmente e sem sombra de dúvida (o que eu estava dizendo há um minuto, Shel?), feminino. As propriedades, que agora deixam de ser confiscadas para sempre, passam para os herdeiros do sexo masculino, ou, à falta de casamento... - mas aqui ficou um pouco impaciente com essa verborréia jurídica e disse: - Mas não haverá falta de casamento nem de herdeiros, e assim o resto pode ser considerado lido. - E com isso após sua assinatura sob a de Lorde Palmerston, e daquele momento em diante tomou posse indiscutível de seus títulos, de sua casa e de seus bens - que agora diminuíram, pois o custo do processo tinha sido prodigioso, de forma que, embora infinitamente nobre outra vez, estava também excessivamente pobre.

Quando o resultado do processo foi conhecido (e os rumores voaram mais rápido do que o telégrafo que os suplantou), toda a cidade se encheu de regozijo.

[Atrelaram-se cavalos às carruagens com o único propósito de fazê-los passear. Caleches e landos vazios rodavam incessantemente para cima e para baixo pela High Street. Foram lidas mensagens da Taverna do Touro. Foram respondidas pela Taverna do Cervo. A cidade foi iluminada. Porta-jóias de ouro foram selados de forma segura, em caixas de vidro. Moedas foram devidamente colocadas sob pedras. Fundaram-se hospitais. Clubes de diversão foram inaugurados. Mulheres turcas às dúzias foram queimadas em efígie, na praça do mercado, juntamente com dezenas de camponeses, com um letreiro pendurado na boca: "Sou um vil embusteiro." Os pôneis branco-amarelados da Rainha foram logo vistos trotando avenida acima, com uma ordem para Orlando jantar e dormir no Castelo, naquela mesma noite. Sua mesa, como numa ocasião anterior, estava coberta de convites da Condessa de R., de Lady Q., de Lady Palmerston, da Marquesa de P, da Sra. W. E. Gladstone e de outras, solicitando o prazer de sua companhia, lembrando-a de antigas alianças entre suas famílias e a dela, etc.] - tudo isso foi incluído adequadamente entre colchetes, como acima, pela simples razão de que um parêntese não tinha importância na vida de Orlando. Ela passou por cima dele, para continuar o texto. Pois, enquanto as fogueiras ardiam na praça do mercado, ela estava nos bosques escuros, sozinha com Shelmerdine. O tempo era tão bom que as árvores estendiam os galhos sem movimento sobre eles, e, se uma folha manchada de vermelho e dourado caia, ia caindo tão lentamente que se podia observar durante meia hora tremendo e caindo até parar por fim nos pés de Orlando.

- Conta-me, Mar - costumava dizer (e aqui deve ser explicado que quando ela o chamava pela primeira sílaba do primeiro nome ficava sonhadora, amorosa, submissa, doméstica e um pouco lânguida, como se madeiras aromáticas estivessem queimando e fosse ao entardecer, antes da hora de se vestir, talvez estivesse úmido lá fora, o bastante para fazer as folhas brilharem, mas podia se ouvir um rouxinol cantando entre as azáleas, dois ou três cachorros latindo em fazendas distantes, um galo cantando - tudo isso que o leitor deve imaginar em sua voz). - Conta-me, Mar - costumava dizer - sobre o Cabo Horn. - Então Shelmerdine faria no chão um pequeno desenho do Cabo, com ramos e folhas secas, e um ou dois caracóis vazios.

- Aqui é o norte - dizia. - Ali o sul. O vento vem mais ou menos daqui. Agora o brigue está navegando para oeste; acabamos de arriar a vela da mezena: e estás vendo - aqui onde está este pedaço de grama entra a corrente que encontrarás marcada - onde estão o meu mapa e os compassos, Contramestre? Ah! obrigado ali onde está o caracol. A corrente apanha-o a estibordo, de modo que devemos armar o pau da bujarrona ou seremos arrastados para bombordo, que é ali, onde está aquela folha de faia, pois deves compreender, minha querida -, e assim continuava, e ela ouvia cada palavra; interpretando-as corretamente, até chegar a ver, sem que ele precisasse descrever, a fosforescência das ondas, o gelo tinindo nas enxárcias; como ele ia para o topo do mastro durante uma ventania; lá refletia sobre o destino do homem; descia de novo; tomava um uísque com soda; ia à terra; era agarrado por uma mulher negra; arrependia-se; debatia; lia Pascal; decidia escrever filosofia; comprava um macaco; discutia a verdadeira finalidade da vida; decidia-se pelo Cabo Horn, e assim por diante. Tudo isso e mil outras coisas ela ouvia-o dizer e, se respondia "sim, as negras são muito atraentes, não são?" quando ele tinha dito que o suprimento de biscoitos estava acabando, ficava surpreso e encantado em descobrir como ela interpretara bem o seu pensamento.

- Tens certeza de que não és homem? - perguntava-lhe ansiosamente, e ela respondia como num eco, - Será possível que não sejas mulher? - e então imediatamente tiravam a prova. Pois cada um estava mais surpreso com a rapidez da simpatia do outro, e era para ambos uma tal revelação que a mulher pudesse ser tão tolerante e falasse com tal liberdade como um homem e que o homem fosse tão estranho e sutil como uma mulher que eles tinham que tirar a prova de imediato.

E assim continuavam conversando, ou antes, compreendendo, o que se tornou a principal arte da fala numa época em que as palavras estão se tornando escassas diariamente, em comparação com as idéias que "os biscoitos acabaram" podem significar, beijar uma negra no escuro depois de acabar de ler pela décima vez a filosofia do Bispo Berkeley. (E disso se depreende que apenas os mais profundos mestres do estilo podem dizer a verdade e que quando se encontra um escrito simples, monossilábico, pode-se concluir sem qualquer dúvida que o pobre homem está mentindo.)

Assim conversavam; então, quando seus pés estavam razoavelmente cobertos com folhas manchadas de outono, Orlando se levantava e penetrava solitária no coração do bosque, deixando Bonthrop sentado entre as concluas dos caracóis, fazendo desenhos do Cabo Horn. "Bonthrop", dizia, "vou embora", e quando ela o chamava, pelo segundo nome, "Bonthrop", deve significar para o leitor que estava predisposta à solidão, e sendo a ambas como manchas no deserto, desejava somente encontrar-se com a morte, pois as pessoas morrem diariamente, morrem à mesa de jantar ou assim fora de casa, nos bosques de outono; e com fogueiras ardendo e Lady Palmerston ou Lady Derby convidando-a para jantar todas as noites, o desejo da morte dominava-a, e dizendo "Bonthrop" dizia, de fato, "Estou morta", e abria caminho como um fantasma por entre as faias de uma palidez de espectro, e assim embrenhava-se profundamente na solidão como se o leve estremecer de ruído e movimento tivesse terminado e ela estivesse livre agora para seguir o seu caminho - tudo o que o leitor deve ouvir em sua voz, quando ela disser "Bonthrop"; e deve acrescentar, para melhor iluminar a palavra, que também para ele essa palavra significava, misticamente, separação e isolamento, e os fantasmas percorrendo o convés de seu brigue em mares impenetráveis.

Depois de algumas horas de morte, de repente um gaio gritou "Shelmerdine", e, inclinando-se, ela apanhou um desses açafrões de outono que para algumas pessoas significa aquela mesma palavra e colocou-o no peito, junto com a pena do gaio que vinha caindo, azul, pelo bosque de faia. Então chamou "Shelmerdine" - e a palavra foi vibrando por este e por aquele caminho, pelos bosques, e alcançou-o onde estava sentado fazendo desenhos com as conchas de caracóis na grama. Ele a viu e escutou-a vir em sua direção com o açafrão e a pena de gaio no peito, e gritou "Orlando", o que significava (e deve ser lembrado que quando cores brilhantes como o azul e o amarelo se mesclam em nossos olhos algumas apagam um pouco nossos pensamentos), primeiro a inclinação e a ondulação das samambaias, como se atravessadas por alguma coisa; que vinha a ser um barco a todo pano, inclinando-se e balançando-se meio sonhadoramente, como se tivesse um ano inteiro de dias de verão para fazer a sua viagem; e assim o barco se aproxima oscilando para lá e para cá, nobremente, indolentemente, e sobe na crista desta onda e afunda na cova daquela outra, e assim repentinamente fica em cima de nós (que o contemplamos de um pequeno bote), com as velas tremulando, e então eis que caem todas no convés - como Orlando caia agora na grama, ao seu lado.

Oito ou nove dias haviam passado dessa forma, mas no décimo, que era dia 26 de outubro, Orlando estava deitada na grama enquanto Shelmerdine recitava Shelley (cuja obra completa sabia de cor) quando uma folha que começara a cair vagarosamente do alto de uma árvore bateu com violência no pé de Orlando. Seguiu-se uma segunda folha e depois uma terceira. Orlando tremeu e empalideceu. Era o vento. Shelmerdine - seria porém, mais adequado chamá-lo agora Bonthrop - ergueu-se de um salto.

- O vento! - gritou.

Juntos correram pelos bosques, o vento colando folhas neles enquanto corriam para o grande pátio, e através dele para os pequenos pátios, de onde empregados assustados deixavam suas vassouras e panelas para segui-los, até alcançarem a Capela, e lá acenderem um turbilhão de luzes, tão rápido quanto possível, um tropeçando neste banco, outro espevitando aquele candelabro. Sinos tocaram. O povo foi chamado. Finalmente o Sr. Dupper, arrumando as pontas de sua gravata branca, perguntou onde estava o livro de orações. E eles colocaram o livro de orações da Rainha Maria em suas mãos e ele procurou apressadamente entre as páginas e disse: - Marmaduke Bonthrop Shelmerdine e Lady Orlando, ajoelhai-vos - e eles se ajoelharam e ora ficavam brilhantes ora escuros, conforme a luz ou a sombra que vinham através dos vitrais; e, por entre o bater de inúmeras portas e um som como o de vasos de bronze se chocando, o órgão soou, com um rugido que crescia e diminuía alternadamente, e o Sr. Dupper, que já era muito velho, tentava agora erguer sua voz acima do tumulto e não podia ser ouvido e então tudo se calou por um momento e uma palavra - podia ser "as faces da morte' - se ouviu claramente, enquanto toda a criadagem se comprimia para ouvir, ainda com ancinhos e chicote nas mãos, e alguns cantavam em voz alta e outros rezavam, e ora um pássaro batia contra a vidraça, ora se ouvia um trovo, de forma que ninguém ouviu a palavra "Obedecei" falada ou dita, nem viu, salvo como um relâmpago dourado, o anel passar de uma mão para outra. Tudo era movimento e confusão. Levantaram-se com o órgão soando, o trovão rugindo e a chuva caindo, e Lady Orlando, com o seu anel no dedo, saiu para o pátio com o seu vestido fino, e segurou o estribo balouçante, pois o cavalo estava freado e selado, e a espuma ainda estava em seu flanco, para seu marido montar, o que ele fez de um salto, e o cavalo pulou para a frente e Orlando, parada, gritou: - Marmaduke Bonthrop Shelmerdine! -, e ele lhe respondeu: - Orlando! -, e as palavras foram subindo e girando como falcões selvagens por entre campanários, mais e mais alto, mais e mais longe, girando mais e mais depressa, até se despedaçarem e caírem no chão, numa chuva de fragmentos; e então ela entrou.

 

Orlando entrou. Tudo estava completamente tranqüilo. Tudo era silêncio. Ali estava o tinteiro; ali estava a pena; ali estava o manuscrito do seu poema, interrompido em meio a um tributo à eternidade. Estava prestes a dizer - quando Basket e Bartholomew interromperam-na com as coisas do chá - nada muda. E então, no intervalo de três segundos e meio, tudo mudara - ela quebrara o tornozelo, se apaixonara e casara com Shelmerdine.

Havia o anel de casamento em seu dedo, para provar isso. É verdade que ela própria o pusera ali antes de encontrar Shelmerdine, mas isso se mostrara mais do que inútil. Agora dava voltas e voltas ao anel, com supersticiosa reverência, tomando cuidado para que não escorregasse da junta do dedo.

"O anel de casamento deve ser colocado no terceiro dedo da mão esquerda", dizia como uma criança repetindo cuidadosamente a sua lição, "pois senão não serve para nada.”

Assim falou em voz alta e mais pomposamente do que de costume, como se desejasse ser entreouvida por alguém cuja opinião lhe parecesse adequada. De fato, agora que finalmente estava em condições de ordenar os pensamentos, preocupava-se com o efeito que seu comportamento pudesse ter tido sobre o espírito da época. Estava extremamente ansiosa em ser informada se os passos que dera, comprometendo-se com Shelmerdine e casando-se com ele, mereceram aprovação. Certamente sentia-se mais segura de si. Seu dedo não voltara a vibrar, ou apenas muito pouco, depois daquela noite no pântano. Contudo, não podia negar que tinha suas dúvidas. Estava casada, é certo; mas se o seu marido estava sempre velejando em torno do Cabo Horn, seria isso um casamento? Se alguém gostasse dele, seria casamento? Se alguém gostasse de outras pessoas, seria casamento? E, finalmente, se alguém ainda desejasse, mais do que qualquer coisa no mundo, escrever poesia, seria casamento? Ela tinha suas dúvidas.

Mas queria pôr isso à prova. Olhou para o anel. Olhou para o tinteiro. Ousaria? Não, não ousaria. Mas devia. Não, não podia. Que faria então? Desmaiar, se possível. Mas nunca em sua vida se sentira tão bem.

- Com os diabos! - gritou, com um toque de seu antigo ânimo. - Lá vai!

E mergulhou a pena profundamente na tinta. Para sua enorme surpresa, não houve explosão. Retirou a ponta. Estava molhada, mas não pingava. Escreveu. As palavras custavam um pouco a vir, mas vinham. "Ah! mas fariam sentido?", ela se perguntava, com um certo pânico de que a pena voltasse às suas involuntárias travessuras. Leu:

E então cheguei a um campo onde a grama nascente Era sombreada pelas taças de lilases pendentes, Silenciosa e estrangeira, a flor serpentina, Velada em púrpura sombria, como egípcias meninas - (And then I come to a field where the springing grass Was dulled by the hanging cups of fritillaries, Sullen and foreign-looking, the snaky flower, Scarfed in dull purple, like Egyptian girls -)

Enquanto escrevia sentiu como que uma força (lembrem-se de que estamos lidando com as mais obscuras manifestações do espírito humano) lendo por cima do seu ombro, e, quando escreveu egípcias meninas, a força lhe disse que parasse. A grama - a força parecia dizer, recuando para o início, com uma régua, como usam as governantas - está bem; as taças de lilases pendentes - admirável; a flor serpentina - um pensamento forte para a pena de uma dama, talvez, mas Wordsworth, sem dúvida, autorizaria; mas - meninas? as meninas são necessárias? Tu tens um marido no Cabo Horn, não é? Ah! então está bem.

E assim o espírito passou adiante.

Orlando agora prestou em espírito (porque tudo isso aconteceu em espírito) uma profunda homenagem a espírito da época, tal como a que faz - para comparar grandes coisas com pequenas - um viajante (consciente de levar um maço de charutos no canto da mala) a guarda da alfândega que amavelmente libera a mala pondo-lhe um traço de giz na tampa, pois ela tinha sérias dúvidas de que, se o espírito examinasse cuidadosamente o conteúdo de sua mente, teria encontrado ali algum contrabando, pelo qual ela pagaria a mais alta das multas. Escapara por um triz. Conseguira - por uma hábil deferência ao espírito da época, pondo um anel e encontrando um homem no pântano, amando a natureza e não sendo satírica, cínica nem psicológica (o que teria sido descoberto de imediato) - ser bem-sucedida em seu exame. E deu um profundo suspiro de alívio, como de fato merecia, pois a transação entre um escritor e o espírito da época é de uma infinita delicadeza e de um bom acordo entre os dois depende todo o êxito de suas obras. Orlando se organizara tão bem que estava numa posição extremamente feliz; não necessitava combater sua época nem submeter-se a ela; era parte da época, mas permanecia ela mesma. Assim agora podia escrever, e escreveu. Escreveu. Escreveu. Escreveu.

Era novembro. Depois de novembro vem dezembro, Depois, janeiro, fevereiro, março e abril. Depois de abril vem maio. Seguem-se junho, julho e agosto. O próxima é setembro. Depois, outubro, e eis que se chega outra vez a novembro, tendo-se completado um ano.

Este método de escrever biografia, embora tenha seus méritos, é um pouco cansativo, talvez, e o leitor, se continuarmos assim, pode alegar que é capaz de recitar sozinho o calendário e poupar ao seu bolso qualquer que seja a soma que a Hogarth Press (Editora pertencente a Leonard e Virgínia Woolf. N. T.) cobre por este livro. Mas o que pode o biógrafo fazer quando seu biografado o coloca na situação em que Orlando nos colocou agora? A vida - e nisso concordam todos aqueles cuja opinião tem valor - é o único tema adequado para um novelista ou um biógrafo; a vida - as mesmas autoridades decidiram - nada tem a ver com sentar numa cadeira e pensar. Pensamento e vida são como pólos opostos. Por isso - já que sentar em uma cadeira e pensar são exatamente o que Orlando está fazendo agora -, não há nada a fazer senão recitar o calendário, rezar o rosário, assoar o nariz, atiçar o fogo, olhar pela janela, até que ela acabe. Orlando estava sentada tão quieta que se podia ouvir um alfinete caindo. Oxalá tivesse caído um alfinete! Já seria uma certa vida. Ou se uma borboleta entrasse pela janela e pousasse em sua cadeira, podia se escrever sobre isso. Ou supor que ela se levantasse e matasse uma vespa. Então imediatamente poderíamos pegar a pena e escrever. Pois haveria sangue derramado, mesmo que de uma vespa. Onde há sangue há vida. E embora a morte de uma vespa seja uma bagatela se comparada com a morte de um homem, ainda assim é um tema mais adequado para o novelista ou o biógrafo do que este simples passatempo; este pensar; este sentar numa cadeira dias e dias com um cigarro, uma folha de papel, uma pena e um tinteiro. Ah, se os personagens - poderíamos reclamar, porque a nossa paciência está diminuindo - tivessem mais consideração por seus biógrafos! Pode haver coisa mais irritante do que ver um personagem, com o qual esbanjamos tanto tempo e trabalho, escapar completamente ao nosso controle - como o testemunham seus suspiros e lamentos, seu rubor, sua palidez, seus olhos ora brilhantes como lâmpadas, ora pálidos como auroras - pode haver coisa mais humilhante do que toda essa pantomima de emoção e excitação que ocorre diante de nossos olhos, quando se sabe que sua causa - pensamento e imaginação - não tem nenhuma importância?

Mas Orlando era uma mulher - Lorde Palmerston acabara de provar isso. E, quando se está escrevendo a vida de uma mulher, pode-se - todos concordam - dispensar a exigência de ação e substituí-Ia pelo amor. O amor, disse o poeta, é toda a existência da mulher. E se olharmos por um momento para Orlando escrevendo em sua mesa, devemos admitir que nunca houve uma mulher tão apta para essa tarefa. Certamente, uma vez que ela é uma mulher, uma bela mulher, uma mulher na flor da idade, logo abandonará esse fingimento de escrever e meditar e começará, pelo menos, a pensar num guarda-caça (e, contanto que pense num homem, ninguém se opõe a que uma mulher pense). E então ela lhe escreverá um pequeno bilhete (contanto que escreva bilhetes, ninguém se opõe a que uma mulher escreva) e marcará um encontro para domingo ao entardecer, e o domingo ao entardecer chegará; e o guarda-caça assobiará sob a janela - o que, naturalmente, constitui o verdadeiro tema da vida e o único assunto possível para a ficção. Certamente Orlando deve ter feito uma dessas coisas! Meu Deus, mil vezes, meu Deus, Orlando não fez nada disso. Teremos que admitir que Orlando era um desses monstros de iniqüidade, que não amam? Era bondosa com os cachorros, fiel aos amigos, generosa com uma dúzia de poetas famintos, tinha paixão pela poesia. Mas amor - como os novelistas homens o definem - e quem realmente fala com maior autoridade? - nada tem a ver com bondade, fidelidade, generosidade ou poesia. Amor é despir as saias e - mas todos sabemos o que é o amor. E Orlando fez isso? A verdade nos obriga a dizer não, não fez. Se então o personagem da nossa biografia não ama nem mata, mas só pensa e imagina, podemos concluir que ele ou ela não é melhor do que um cadáver, e abandoná-lo.

O único recurso que nos resta é olhar pela janela. Havia pardais; havia estorninhos; havia uma porção de pombos, uma ou duas gralhas, todos ocupados a seu modo. Um acha uma minhoca, outro, um caracol. Um voa para um ramo, outro dá uma pequena corrida no gramado. Depois, um criado atravessa o pátio usando um avental de baeta verde. É provável que esteja metido em alguma encrenca com uma das copeiras, mas nenhuma prova visível nos é oferecida no pátio, podemos apenas esperar que seja isso e abandonar o assunto. As nuvens passam, finas ou densas, perturbando um pouco o tom da grama embaixo. O relógio de sol registra a hora em sua maneira enigmática, como de costume. A mente começa a levantar uma ou duas perguntas preguiçosamente, inutilmente, a respeito desta mesma vida. A vida canta, ou melhor, sibila como uma chaleira no fogo. Vida, vida, o que és tu? Luz ou escuridão, o avental de baeta do mensageiro ou a sombra do estorninho na grama?

Vamos então continuar explorando esta manhã de verão, quando todos estão adorando a flor da ameixa e a abelha. E cantarolando vamos perguntar ao estorninho (que é um pássaro mais sociável do que a cotovia) em que pensa, na borda da lata de lixo, enquanto apanha, entre os gravetos, restos de cabelo do ajudante de cozinha. O que é a vida, perguntamos, debruçados no portão do pátio da fazenda; Vida, Vida, Vida!, grita o pássaro - como se tivesse ouvido e soubesse exatamente o que queríamos dizer com esse hábito cansativo de fazer perguntas dentro e fora da casa -, e vai piando e apanhando margaridas como fazem os escritores quando não sabem o que dizer em seguida. Então eles vêm aqui, diz o pássaro, e me perguntam o que é a vida; Vida, Vida, Vida!

Arrastamo-nos pelo caminho do pântano até o topo da colina, violáceo e púrpura escuro, e lá nos atiramos ao chão e sonhamos ver ali um gafanhoto, carregando uma palha para sua casa no buraco. E ele diz (se a cicios como o dele pode ser dado um nome tão sagrado e terno) a vida é trabalho, ou assim interpretamos o zumbido do seu gasganete sufocado de poeira. E a formiga e a abelha concordam, mas se ficarmos aqui tempo suficiente para perguntar às mariposas, quando chegam noite, insinuando-se entre as campânulas mais pálidas elas sussurrarão aos nossos ouvidos coisas sem sentido, como as que se ouvem nos fios telegráficos em tempestades de neve: hi, hi, ha, ha. É riso, riso!, dizem as mariposas.

Tendo então perguntado ao homem, ao pássaro e aos insetos, porque os peixes - dizem os homens que têm vivido em grutas verdes, solitários, durante anos, para ouvi-los falar - nunca, nunca dizem, nem talvez saibam, o que é a vida; tendo então perguntado a todos e não tendo conseguido ficar mais sábios, mas apenas mais velhos e mais frios (pois não tínhamos implorado a dor de aprisionar num livro algo tão difícil, tão raro que só pudesse jurar ser o sentido da vida?), devemos voltar atrás e dizer diretamente ao leitor que espera ansioso ouvir o que é a vida - meu Deus! não sabemos.

Neste momento, mas justamente a tempo de salvar este livro da ruína, Orlando empurrou sua cadeira, esticou os braços, deixou a pena, foi para a janela e exclamou: "Pronto!”

Quase caiu ao chão diante da extraordinária visão com que seus olhos se depararam. Ali estavam o jardim e alguns pássaros. O mundo continuava como de costume. Todo o tempo em que estivera escrevendo, o mundo continuara.

E se eu tivesse morrido seria exatamente o mesmo! - exclamou.

Tal era a intensidade dos seus sentimentos que podia mesmo imaginar-se decomposta, e talvez algum desmaio, na verdade, a tenha afetado. Por um momento ficou olhando com olhos fixos o belo e indiferente espetáculo. Por fim foi reanimada de maneira singular. O manuscrito que repousava sobre o seu coração começou a palpitar e a mover-se como se fosse uma coisa viva, e, o que era ainda mais estranho, mostrava a simpatia que havia entre eles; Orlando, inclinando a cabeça, podia saber o que ele estava dizendo. Queria ser lido. Devia ser lido. Morreria em seu peito se não fosse lido. Pela primeira vez na vida ela voltou-se com violência contra a natureza. Havia em redor galgos e roseiras em profusão. Mas nem galgos nem roseiras podem ler. Esse é um lamentável descuido da Providência, que nunca a impressionara antes. Apenas os seres humanos recebem esse dom. Os seres humanos se tornaram imprescindíveis. Tocou a campainha. Ordenou que a carruagem a levasse imediatamente a Londres.

- Está na hora de alcançar o trem das onze e quarenta e cinco, Senhora - disse Basket. Orlando ainda não se apercebera da invenção da locomotiva, mas estava tão absorta no sofrimento de um ser que embora não sendo ela mesma dependia inteiramente dela que viu um trem pela primeira vez, tomou lugar num vagão, enrolou uma manta nos joelhos sem pensar naquela "fantástica invenção que tinha (dizem os historiadores) mudado completamente a face da Europa nos últimos vinte anos" (o que na verdade ocorre muito mais freqüentemente do que os historiadores supõem). Observou apenas que era extremamente sujo, rangia horrivelmente e as janelas batiam. Perdida em pensamentos, foi atirada em Londres em menos de uma hora, e ficou na plataforma de Charing Cross, sem saber aonde ir.

A velha casa em Blackfriars, onde passara tantos dias agradáveis no século dezoito, tinha sido vendida, parte para o Exército da Salvação, parte para uma fábrica de guarda-chuvas. Ela comprara uma outra, em Mayfair, que era higiênica, conveniente, no coração do mundo da moda, mas seria em Mayfair que o poema realizaria o seu desejo? Peçamos a Deus - pensou, recordando os olhos brilhantes das damas e a simetria das pernas dos cavalheiros - que eles não tenham se dedicado à leitura. Pois isso seria lamentável. Havia também o salão de Lady R. Ainda estariam conversando as mesmas coisas, ela não duvidava. Talvez a gota pudesse ter mudado da perna esquerda do General para a direita. O Sr. L. podia ter passado dez dias com R., e não com T. Depois entraria o Sr. Pope. Oh! mas o Sr. Pope estava morto. "Quais seriam os homens de talento?", perguntava-se mas esta não era pergunta que se fazer; a um carregador, e assim seguiu adiante. Agora seus ouvidos foram distraídos pelo tilintar de inúmeros sinos nas cabeças de inúmeros cavalos. Frotas das mais estranhas caixinhas com rodas eram arrastadas pelo calçamento. Caminhou até o Strand. Lá o tumulto era ainda pior. Veículos de todos os tamanhos, puxados por cavalos de raça ou de carga, transportando uma dama solitária ou apinhados de homens de suíças e cartola, viam-se inevitavelmente misturados. Carruagens, carros e ônibus pareciam aos seus olhos - por tanto tempo acostumados à visão de uma folha de papel - assustadoramente em disputa; e aos seus ouvidos - afinados a ranger de uma pena - o clamor da rua parecia violento e pavorosamente dissonante. Cada polegada do calçamento estava tomada. Rios de gente, abrindo caminho com incrível agilidade entre seus próprios corpos e o balanço e a desordem do trânsito, escorriam incessantemente para leste e para oeste. Ao longo da calçada, homens de pé carregavam tabuleiros de brinquedo e berravam. Nas esquinas, mulheres sentavam-se ao lado de grandes cestas de flores frescas e berravam. Meninos, correndo por entre os focinhos dos cavalos e segurando contra o corpo folhas impressas, berravam também: desastre! desastre! A princípio, Orlando pensou que tivesse chegado num momento de crise nacional mas se isso era feliz ou trágico, ela não podia dizer. Olhou ansiosamente para o rosto das pessoas. Mas isso a confundiu ainda mais. Aqui passava um homem afogado em desespero, resmungando sozinho, como se tivesse sabido de alguma terrível tristeza. Passando por ele ia um indivíduo gordo, de cara alegre, abrindo seu caminho como se aquilo fosse uma festa para todo mundo. Na verdade, ela chegou à conclusão de que não havia nem ordem nem sentido em nada. Cada homem cada mulher se dirigia para os seus próprios afazeres. E ela, aonde devia ir?

Caminhava sem pensar, subindo uma rua, descendo outra, passando por grandes vitrines repletas de bolsas, espelhos, roupões, flores, caniços de pesca, cestas para lanche, tecidos de todas as cores e padrões, finos ou grossos, estavam estendidos, repuxados como guirlandas e inflados de ponta aponta. Às vezes passava por avenidas de sossegadas mansões, sobriamente numeradas "um", "dois", "três", e assim por diante, até duzentos ou trezentos, uma a cópia da outra, com duas colunas e seis degraus e um par de cortinas cuidadosamente puxadas, e almoços familiares postos à mesa, um papagaio por uma janela, um criado por uma outra até que sua mente ficou tonta com a monotonia. Então chegou a grandes praças abertas, tendo ao centro lustrosas estátuas negras de homens gordos apertadamente abotoados, e cavalos de batalha empinados, colunas subindo, fontes caindo e pombos revoando. Assim caminhou e caminhou pelas calçadas por entre as casas até sentir muita fome, e alguma coisa agitando-se sobre seu coração repreendeu-a por ter esquecido tudo a seu respeito. Era o seu manuscrito - "O Carvalho".

Ficou perplexa com sua própria negligência. Parou de repente onde se encontrava. Não havia nenhuma carruagem à vista. A rua larga e bonita estava singularmente deserta. Só um senhor idoso se aproximava. Havia algo em seu andar que lhe era vagamente familiar. Quando ele chegou mais perto, ela teve certeza de que o encontrara em alguma outra ocasião. Mas onde? Este cavalheiro tão elegante, tão imponente, tão próspero, com uma bengala na mão e uma flor na lapela, de face gorda e rosada e bigodes brancos penteados, podia ser - sim, por Júpiter, era! - seu velho, seu velho amigo Nick Greene!

Ao mesmo tempo ele olhou para ela; lembrou-se, reconheceu-a.

- Lady Orlando! - gritou, quase varrendo o chão com a cartola.

- Sir Nicholas! - exclamou ela. Pois alguma coisa em seu porte intuitivamente a advertiu de que o escritor vil e subliterato que a satirizara, a ela e a muitos outros na época da Rainha Elizabeth, tinha ascendido no mundo e certamente se tornara um Cavaleiro e sem dúvida ainda por cima, uma dúzia de outras belas coisas.

Com uma outra reverência, ele confirmou que sua conclusão estava correta; ele era um Cavaleiro; era um doutor em letras; era professor. Era autor de vinte volumes. Em resumo, era o crítico mais influente da ere vitoriana.

Um violento tumulto de emoção dominou-a ao encontrar o homem que, havia anos, lhe causara tanto desgosto. Podia este ser o indivíduo inoportuno, inquieto que queimara seus tapetes e assara queijo na lareira italiana, e contara histórias divertidas sobre Marlowe e os outros, de que tinham visto o sol nascer nove noites em dez? Estava agora elegantemente vestido, com um terno matinal cinza, tinha uma flor cor-de-rosa na lapela luvas de camurça cinza para combinar. Mas enquanto ela se assombrava, ele fez outra reverência e perguntou se ela lhe dava a honra de almoçarem sua companhia. A reverência era talvez um pouco excessiva, mas o arremedo de fina educação era aceitável. Ela o acompanhou admirada a um excelente restaurante, tudo de pelúcia vermelha, com toalhas brancas, galheteiros de prata imaginando como era diferente da velha taverna ou do café, com o seu chão de areia, bancos de madeira, tigeIas de ponche e chocolate, seus impressos e suas escarradeiras. Ele pousou as luvas cuidadosamente a seu lado na mesa. Ela ainda não podia acreditar que fosse o mesmo homem. Suas unhas estavam limpas, quando costumavam medir uma polegada. Seu queixo estava barbeado, onde uma barba negra costumava brotar. Usava abotoaduras de ouro; quando antes seus punhos rasgados mergulhavam na sopa. Na verdade, ela só se convenceu de que era o mesmo homem quando ele pediu o vinho, o que fez com um cuidado que lhe lembrou seu antigo gosto pela malvasia.

- Ah! - disse ele, dando um pequeno suspiro, que era bastante confortador -, ah!, minha querida Senhora, os grandes dias da literatura acabaram. Marlowe Shakespeare, Jonson - aqueles eram gigantes. Dryden, Pope, Addison - aqueles eram heróis. Todos, todos agora estão mortos. E quem eles nos deixaram? Tennyson, Trowning, Carlyle! - arrastava um imenso desprezo na voz. - A verdade é que - disse, enchendo um copo de vinho -, é que todos os jovens escritores estão a soldo dos livreiros. Produzem qualquer lixo que lhes sirva para pagar as contas do alfaiate. É uma época - disse, servindo-se do hors-d'oeuvre - marcada por conceitos preciosos e experiências extravagantes, nenhum dos quais os elisabetanos teriam tolerado por um instante sequer.

"Não, minha querida Senhora", continuou, aprovando o linguado au gratin que o garçom submetia à sua apreciação, "os grandes dias terminaram. Vivemos tempos degenerados. Devemos cultuar o passado; honrar aqueles escritores - há ainda alguns deles - que tomam a antiguidade por modelo e escrevem não por pagamento mas por..." aqui Orlando quase gritou "Glour!" Na verdade, podia jurar que o ouvira dizer as mesmas coisas trezentos anos antes. Os nomes eram diferentes, é claro, mas o espírito era o mesmo. Nick Greene não mudara nada, apesar de sua nobreza. E, contudo, havia alguma mudança. Pois enquanto discorria sobre as vantagens de se tomar Addison como modelo (antes tinha sido Cícero, pensava ela) e passar as manhãs na cama (o que - ela se orgulhava de pensar - a sua pensão, paga trimestralmente, permitira que ele fizesse), saboreando as melhores obras dos melhores autores uma hora inteira, pelo menos, antes de encostar a pena ao papel, de modo que a vulgaridade do tempo presente e a deplorável condição de nossa língua nativa (devia ter vivido muito tempo na América, acreditava ela) pudessem ser purificada - enquanto discorria da mesma forma que Greene discorrera trezentos anos antes, ela tinha tempo para se perguntar em que pontos ele mudara. Tinha engordado; mas era um homem beirando os setenta. Ficara polido: a literatura tinha sido uma carreira evidentemente próspera; mas de certo modo a velha agitação, a incômoda vivacidade tinham desaparecido. Suas histórias, embora brilhantes, não passavam mais o mesmo desembaraço. É certo que ele mencionava "meu caro amigo Pope" ou "o meu ilustre amigo Addison" a cada segundo, mas tinha um ar de respeitabilidade deprimente, e via-se que ele preferia informá-la sobre ditos e feitos de pessoas do mesmo sangue dela a contar-lhe, como fazia antes, escândalos a respeito de poetas.

Orlando ficou indescritivelmente desapontada. Pensara na literatura todos esses anos (a reclusão, a categoria social e o sexo podem ser a sua desculpa) com alguma coisa selvagem como o vento, quente como fogo, rápida como o raio; algo errante, incalculável abrupto, e eis que a literatura era um cavalheiro idoso de terno cinza, falando sobre duquesas. A violência da sua desilusão foi tal que um dos broches ou botões que lhe fechavam a parte superior do vestido rebentou sobre a mesa e caiu o poema "O Carvalho".

- Um manuscrito! - disse Sir Nicholas, pondo seu pincenê de ouro. - Como é interessante, como extraordinariamente interessante! Permita-me vê-lo. E uma vez mais, depois de um intervalo de trezentos anos, Nicholas Greene tomou o poema de Orlando estendendo-o entre as xícaras de café e os cálices de licor, começou a lê-lo. Mas agora o seu veredito era muito diferente do que fora antes. Lembrava-lhe - enquanto virava as páginas - o Catão, de Addison. Pode ser comparado favoravelmente às Estações, de Thomson Não havia nele qualquer traço do espírito moderno, tinha satisfação em dizer. Fora composto com respeito pela verdade, pela natureza, pelos ditames do coração, que era raro, na verdade, nestes dias de excentricidade inescrupulosa. Devia, é claro, ser publicado imediatamente.

Na verdade, Orlando não entendeu o que ele queria dizer. Ela sempre carregara o manuscrito consigo, por dentro do vestido. A idéia divertiu Sir Nicholas consideravelmente. "Mas e os direitos autorais?", perguntou ele.

A mente de Orlando voou para o Palácio de Buckingham e para alguns obscuros potentados que estavam hospedados lá.

Sir Nicholas divertia-se muito. Explicou que estava aludindo ao fato de que os Senhores... (aqui mencionou uma famosa firma de editores) teriam muito prazer, se ele lhes escrevesse uma linha, de incluir a obra em seu catálogo. Ele provavelmente poderia conseguir uma percentagem de dez por cento em todas as cópias, até dois mil exemplares; depois disso, será quinze. Quanto aos críticos, ele escreveria uma linha ao Sr. ... que era o mais influente; depois, um cumprimento - dizendo um pequeno elogio de seus próprios poemas - dirigido à esposa do editor de... não faria nenhum mal. Faria uma visita... Assim continuou. Orlando não compreendeu nada disso tudo e, por sua experiência anterior, não confiou naquela boa-fé, mas não havia nada a fazer senão submeter-se ao que era evidentemente o seu desejo e o desejo fervoroso do próprio poema. De modo que Sir Nicholas embrulhou cuidadosamente o manuscrito manchado de sangue; achatou-o no bolso do peito para que não perturbasse a linha de seu casaco; e, com muitos cumprimentos de um lado e de outro, se separaram.

Orlando subiu a rua. Agora que o poema tinha partido - e sentia um vazio no peito, no lugar onde costumava levá-lo -, não tinha nada a fazer senão refletir sobre o que quisesse - talvez sobre os extraordinários acasos da vida humana. Aqui estava ela, na St. James Street; uma mulher casada, com uma aliança no dedo; onde tinha sido antes um café era agora um restaurante; era cerca de três e meia da tarde; o sol brilhava; havia três pombos; um cachorro mestiço; dois tróleis de aluguel e um lando. O que era então a vida? O pensamento penetrou-lhe a cabeça violentamente e de forma inoportuna (a não ser que o velho Greene tivesse sido a causa disso). E pode ser tomado como um comentário adverso ou favorável, conforme o leitor escolha sobre as suas relações com o marido (que estava no Cabo Horn) que quando alguma coisa penetrava violentamente em sua cabeça ela ia diretamente para o posto telegráfico mais próximo e lhe telegrafava. Havia um, por acaso, bem mão. "Meu Deus Shel" telegrafou, "vida literatura Greene bajulador" - e aqui passou para uma línguagem cifrada que eles tinham inventado entre si, de modo que um estado de espírito demasiadamente complexo pudesse ser transmitido em uma ou duas palavras, sem que o telegrafista percebesse, e acrescentou as palavra "Rattigan Glumphoboo", que o resumia com precisão. Pois não apenas os acontecimentos da manhã tinhan lhe causado uma profunda impressão mas também não deve ter escapado à atenção do leitor que Orlando estava crescendo - o que não necessariamente significa, ficar melhor - e o "Rattigan Glumphoboo" descreve um estado de espírito muito complicado - o que o leitor pode descobrir por si, desde que coloque toda a sua inteligência a nosso serviço.

Não podia haver resposta ao seu telegrama por algumas horas; de fato, era provável, pensou, olhando para o céu, onde as altas nuvens corriam apressadas, que houvesse uma ventania no Cabo Horn, de modo que seu marido poderia estar no mastro principal ou cortando algum mastro despedaçado ou mesmo sozinho em um bote com um biscoito. E assim, deixando o correio, foi se divertir numa loja próxima, que era uma loja tão comum em nossos dias que não precisa de descrição. Contudo, aos seus olhos, extremamente estranha; uma loja onde se vendiam livros. Toda a sua vida, Orlando conhecera manuscritos; tivera nas mãos as folhas pardas e ásperas em que Spencer escrevera seus pequenos garranchos; vira a escrita de Shakespeare e de Milton. Possuía na verdade um bom número de in-quartos e de in-folios, tendo alguns deles um soneto em sua homenagem e outros uma mecha de cabelos. Mas estes inúmeros pequenos volumes brilhantes, idênticos, efêmeros pois pareciam encadernados em papelão e impresso em papel de seda, surpreenderam-na infinitamente. As obras completas de Shakespeare custavam meia coroa e podiam ser levadas no bolso. É verdade que dificilmente se podia ler, pois o tipo era tão minúsculo, mas ainda não deixava de ser uma maravilha. "Obras" - as obras de cada escritor que ela conhecera ou de quem ouvira falar espalhavam-se de uma ponta a outra nas longas prateleiras. Nas mesas e cadeiras, mais "obras" estavam empilhadas e misturadas, e estas, ela viu, virando uma ou duas páginas, que eram freqüentemente obras sobre outras obras, por Sir Nicholas e um naipe de outros, que ela, em sua ignorância, supôs, desde que estavam impressos e encadernados, serem também grandes escritores. Assim, fez ao livreiro um pedido espantoso: que lhe mandasse tudo o que fosse importante em sua loja, e saiu.

Dobrou no Hyde Park, que já conhecia de antigamente (debaixo daquela árvore bifurcada, lembrava-se, o Duque de Hamilton caíra trespassado por Lorde Mohun), e seus lábios, que muitas vezes são culpados, começaram a moldar as palavras de seu telegrama num estribilho sem sentido: vida literatura Greene bajulador Rattigan Glumphoboo, de modo que vários guardas do parque olharam para ela desconfiados e só se inclinaram a uma opinião favorável sobre a sua sanidade mental observando o colar de pérolas que usava. Trouxera da livraria um maço de jornais e revistas e finalmente, apoiada no cotovelo, debaixo de uma árvore, espalhou essas páginas em redor de si e fez o possível para compreender a nobre arte da composição em prosa, tal como a praticavam esses mestres. Porque a sua antiga credulidade ainda estava viva, e até mesmo os caracteres manchados de um jornal semanal assumiam alguma santidade aos seus olhos. Assim, leu, apoiada no cotovelo, um artigo de Sir Nicholas sobre as obras completas de um homem que ela conhecera - John Donne. Mas sentara-se, sem saber, não longe da Serpentina. O latido de mil cachorros soava em seus ouvidos. Rodas de carruagens rolavam incessantemente em um círculo. As folhas suspiravam no alto. De vez em quando uma saia bordada e um par de calças vermelhas justas atravessavam o gramado a poucos passos dela. Uma gigantesca bola de borracha bateu violentamente em seu jornal, certa vez.

Violetas, alaranjadas, vermelhas e azuis, rompiam os interstícios das folhas e cintilavam na esmeralda em seu dedo. Lia uma frase e olhava para o céu; levantava os olhos para o céu e depois abaixava-os sobre o jornal. Vida? Literatura? Converter uma na outra? Mas que faculdade monstruosa! Pois - agora vinha um par de calças vermelhas justas - como Addison teria escrito isso? Ali vinham dois cachorros dançando nas patas traseiras. Como Lamb os teria descrito? Pois, lendo Sir Nicholas e seus amigos (como fazia nos intervalos em que deixava de olhar em torno de si), ela teve a impressão - aqui levantou-se e andou - de que eles provocavam uma sensação extremamente desconfortável - de que nunca nunca se deveria dizer o que se pensava (Estava ás margens da Serpentina. Era cor de bronze, botes leves como aranhas deslizavam de um lado para outro.) Eles provocavam a sensação, continuava ela, de que se deve sempre sempre escrever como outra pessoa (Lágrimas se formaram em seus olhos.) Pois, na verdade, pensava empurrando um barquinho com a ponta do pé, eu não creio que pudesse (aqui o artigo completo de Sir Nicholas apareceu à sua frente como fazem os artigos, dez minutos depois de serem lidos, com uma visão de seu quarto, sua cabeça, seu gato, sua mesa de trabalho e a hora do dia também), eu não creio que pudesse continuou, considerando o artigo desse ponto de vista, me sentar num gabinete - não, não é um gabinete, uma espécie de sala de visitas mofada - o dia inteiro, conversar com jovens e contar-lhes pequenas anedotas que eles não devem repetir, a respeito do que Duppe disse de Smiles; e então, continuou, chorando amargamente, eles são todos tão viris; e além disso eu detesto duquesas; e não gosto de bolo; e, embora seja bastante maliciosa, não conseguirei nunca aprender a ser tão maliciosa quanto eles - assim, como poderei ser crítica e escrever a melhor prosa inglesa da minha época? Que se danem!, exclamou, empurrando um vaporzinho tão vigorosamente que o pobre barquinho quase naufragou nas ondas cor de bronze.

Mas a verdade é que quando se está num certo estado de espírito (como dizem as amas) - e as lágrimas ainda permaneciam nos olhos de Orlando -, aquilo que se está olhando se torna não aquilo mesmo, mas outra coisa, maior e muito mais importante, sem deixar de ser a mesma coisa. Se se olha para a Serpentina nesse estado de espírito, as ondas se tornam tão grandes quanto as ondas do Atlântico; os barcos de brinquedo não se distinguem dos transatlânticos. Assim, Orlando confundiu o barco de brinquedo com o brigue de seu marido; e a onda que fez com o pé, com uma montanha de água do Cabo Horn; e, ao observar o barco de brinquedo galgar a ondulação, pensou ver o navio de Bonthrop galgando mais e mais alto uma parede de vidro; mais e mais alto subia, e uma crista branca, com mil mortos dentro, se arqueou sobre ele, e entre os mil mortos se foi e desapareceu - "Afundou!", ela gritou em agonia - e então eis que de novo estava ele navegando são e salvo entre os patos, do outro lado do Atlântico.

"Êxtase!", gritou. "Êxtase! Onde é o correio?", se perguntou, "pois preciso telegrafar a Shel imediatamente e contar-lhe..." E, repetindo alternadamente "um barco de brinquedo na Serpentina" e "êxtase" - pois os pensamentos eram permutáveis e significavam exatamente a mesma coisa -, apressou o passo em direção a Park Lane.

"Um barco de brinquedo, um barco de brinquedo, um barco de brinquedo", repetia, reforçando em si mesma a idéia de que não são os artigos de Nick Greene sobre John Dorne, nem as leis das oito horas, nem convenções, nem as leis sobre a segurança dos operários que importam; é uma coisa inútil, repentina, violenta; algo que custa uma vida; vermelho, azul, púrpura; um espírito; um esguicho; como aqueles jacintos (ela estava passando por um belo canteiro deles); livres de mácula, de dependência, da sujeira da humanidade ou de preocupação com os seus semelhantes; algo impetuoso, ridículo, como o meu jacinto, quer dizer, marido Bonthrop: isso é que importa - um barco de brinquedo na Serpentina, êxtase - é o êxtase que importa. Assin falava, esperando a passagem das carruagens em Stanhope Gate, pois a conseqüência de não viver com o marido senão quando o vento declina é falar absurdo em voz alta em Park Lane. Sem dúvida seria diferente se vivesse o ano inteiro com ele, como recomendava a Rainha Vitória. Mas, assim, o pensar nele caia sobre ela como um raio. Achava absolutamente necessário falar com ele de imediato. Não se importava o mínimo que isso fosse um absurdo nem que pudesse causar deslocamento na narrativa. O artigo de Nick Green mergulhara-a nas profundezas do desespero; o barco de brinquedo elevara-a aos píncaros da alegria. Assim repetia: "êxtase, êxtase", enquanto esperava para atravessar.

Mas o tráfego era intenso naquela tarde de primavera e deixou-a ali parada, repetindo, êxtase, êxtase, ou um barco de brinquedo na Serpentina, enquanto a riqueza e o poder da Inglaterra sentavam-se como que esculpidos, de chapéu e capa, em carruagens de quatro cavalos, vitórias e landós. Era como se um rio de ouro tivesse coagulado e se amontoado em blocos de ouro ao longo de Park Lane. As senhoras seguravam entre o dedos estojos de cartões de visitas; os cavalheiros balançavam entre os joelhos bengalas de castão de ouro. Ali ficou, mirando, admirando, chocada. Um único pensarnento a perturbava, pensamento familiar àqueles que contemplam grandes elefantes ou baleias de incrível magnitude: como será que esses leviatãs - aos quais obviamente repugnam esforço, mudança e atividade propagam sua espécie? Talvez - Orlando pensava olhando para as faces tranqüilas e majestosas - seu tempo de propagação tenha terminado; isto é o fruto isto é a consumação. O que ela contemplava agora era triunfo de uma época. Ali sentavam-se, imponentes esplêndidos. Mas, agora, o guarda abaixara a mão; o rio tornou-se líquido; o conglomerado maciço de esplendidos objetos se moveu, se dispersou e desapareceu

Piccadilly.

Assim, ela atravessou Park Lane e foi para a sua casa em Curzon Street, onde, quando a olmeira floria, podia se lembrar da voz de um maçarico e de um homem muito velho com uma espingarda.

Podia se lembrar, pensou, transpondo a soleira da casa, do que Lorde Chesterfield dissera - mas sua memória se deteve. Seu discreto vestíbulo do século dezoito - onde podia ver Lorde Chesterfield pousando o chapéu aqui, o casaco ali, com uma elegância de atitudes que era um prazer observar - estava agora completamente entulhado de pacotes. Enquanto estivera sentada em Hyde Park, o livreiro havia mandado sua encomenda e a casa estava abarrotada - havia pacotes escorregando pela escada - com toda a literatura vitoriana embrulhada em papel cinzento e cuidadosamente amarrada com barbante. Levou tantos desses pacotes quanto pôde para o seu quarto e mandou os criados trazerem o resto e, cortando rapidamente inúmeros barbantes, ficou logo cercada por inúmeros volumes.

Acostumada à reduzida literatura dos séculos dezesseis e dezessete e dezoito, Orlando ficou apavorada com as conseqüências de sua encomenda. Pois, naturalmente, mesmo para os vitorianos, a literatura vitoriana significava não apenas quatro grandes nomes separados e distintos, mas quatro grandes nomes afundados e misturados ruma massa de Alexander Smiths, Dicksons, Blacks, Milmans, Buckles, Taines, Paynes, Tuppers, Jamesons - todos eloqüentes, ruidosos, proeminentes, e requerendo tanta atenção quanto qualquer outro. O respeito de Orlando pela palavra impressa impunha-lhe uma difícil tarefa, mas, puxando a cadeira para a janela a fim de aproveitar a luz que se pudesse filtrar entre as altas casas de Mayfair, procurou chegar a uma conclusão.

E agora é claro que só existem dois caminhos para se chegar a uma conclusão sobre a literatura vitoriana - um é escrevê-la em sessenta volumes in-oitavo, outra é espremê-la em seis linhas do tamanho desta. Dos dois caminhos, a economia - já que o tempo curto - nos leva a escolher o segundo, e assim procedemos. Orlando então chegou à conclusão (tendo aberto meia dúzia de livros) de que era muito estranho que nenhum deles contivesse uma dedicatória a um nobre depois (examinando uma vasta pilha de memórias), que vários desses escritores tivessem árvores genealógicas quase tão altas quanto a sua própria; depois, que seria uma extrema falta de polidez enrolar uma nota de dez libras nas pinças de açúcar quando a Srta. Christin Rossetti viesse tomar chá; depois (aqui havia meia dúzia de convites para celebrar centenários com jantares) que a literatura, após comer todos esses jantares, ficaria muito corpulenta; depois (tinha sido convidada para uma série de conferências sobre a influência disto sobre aquilo; o renascimento clássico; a sobrevivência romântica e outros títulos do mesmo gênero) que a literatura, ouvindo todas essas conferências, ficaria muito seca; depois (aqui ela iria a uma recepção dada pela esposa de um Par do Reino) que a literatura, usando todas aquela estolas de pele, ficaria muito respeitável; depois (aqui visitou em Clelsea o quarto à prova de som de Carlyle que, se o gênio necessita de todos esses mimos, ficaria muito delicado; então, afinal, chegou à conclusão definitiva, que era da mais alta importância, mas que, como já ultrapassamos o nosso limite de seis linhas, devemos omitir).

Tendo chegado a essa conclusão, Orlando ficou na janela olhando por um considerável intervalo de tempo, pois quando alguém chega a uma conclusão é como se tivesse atirado uma bola por cima da rede e precisasse esperar que o antagonista invisível a devolvesse. O que lhe seria enviado depois, daquele céu sem cor que cobria Chesterfeld House?, ela se perguntava. E, com as mãos cruzadas, permaneceu por um tempo considerável pensando. De repente assustou-se - e aqui podemos apenas desejar que, como numa ocasião anterior, a Pureza, a Castidade e a Modéstia entreabram a porta e nos permitam pelo menos um espaço para respirar, durante o qual possamos pensar em como apresentar aquilo que tem que ser contado delicadamente, como é dever de um biógrafo. Mas não! Tendo atirado suas roupas brancas para Orlando despido, e vendo-as caírem a pequena distância, essas senhoras abandonaram qualquer relação com ela, por todo esse tempo, e estavam agora ocupadas com outras coisas. Não vai acontecer nada nesta pálida manhã de março para mitigar, velar, cobrir, ocultar, amortalhar este incontestável acontecimento, qualquer que ele seja? Porque, depois daquele repentino e violento susto, Orlando - mas o céu seja louvado, no mesmo instante soou lá fora um desses frágeis, agudos, aflautados, trêmulos, antiquados realejos que ainda às vezes são manejados por tocadores italianos, em ruas afastadas. Vamos aceitar essa intervenção, por humilde que seja, como se fosse a música das esferas, e permitir-lhe que, com todos os seus suspiros e gemidos, preencha esta página com som, até que chegue o momento cuja chegada é impossível negar; que o criado e a empregada vêem chegar; e o leitor verá também; pois a própria Orlando já é claramente incapaz de ignorá-lo por mais tempo. Deixemos o som do realejo e transportemo-nos em pensamento - que nada mais é do que um pequeno barco sacudindo nas ondas, quando há música; em pensamento, que é de todos os transportes o mais rude, o mais irregular - por cima dos sótãos e dos quintais com roupas penduradas na corda para... qual é este lugar? Reconheces o parque, e no meio o campanário, e o portão com um leão deitado de cada lado? Oh, sim, é Kew! Bem, que seja Kew. Assim, pois, estamos em Kew, e hoje (2 de março) lhes mostraremos, sob uma ameixeira, um cacho de jacintos e um açafrão e também um botão na amendoeira; de forma que passear por aqui é estar pensando em bulbos peludos e vermelhos, plantados na terra em outubro e agora florescendo; estar sonhando com mais do que se pode dizer e tirando de sua caixa um cigarro, ou mesmo um charuto, e ir estendendo um agasalho (como requer a rima) sob um carvalho e lá sentar à espera do marfim-pescador que, diz-se, foi visto certa vez, à tarde, atravessando de uma margem para a outra.

Esperem! Esperem! Aí vem o marfim-pescador; o marfim-pescador não vem.

Contemplemos, enquanto isso, as chaminés das fábricas e sua fumaça; contemplemos os que trabalham na cidade, passando rapidamente em seu barco; contemplemos a velha senhora levando o cachorro para um passeio e a criada usando pela primeira vez o seu chapéu novo, malcolocado; contemplemos todos. Embora os Céus misericordiosamente tenham decretado que os segredos de todos os corações sejam ocultos de modo a estarmos sempre iludidos suspeitando de algo que talvez não exista; ainda através da fumaça do nosso cigarro vemos flamejar e saudamos a esplêndida concretização dos desejos naturais de um chapéu, de um barco, de um rato numa vala; como uma vez vimos flamejar em que pulos tolos e falhas a mente incorre quando extravasa e o realejo toca - como vimos flamejar um fogo num campo diante de minaretes perto de Constantinopla.

Salve, desejo natural! Salve, felicidade, divina felicidade! E prazeres de todos os tipos, flores e vinho, embora aquelas murchem e o outro embriague; e viagens de lazer para fora de Londres, aos domingos, e cantar numa capela escura cânticos sobre a morte e qualquer coisa, qualquer coisa que interrompa e confunda o martelar das máquinas de escrever e o envio de cartas e o forjar de elos e correntes que unam todo o Império. Salve até mesmo os grosseiros arcos vermelhos dos lábios das vendedoras das lojas (como se Cupido tivesse muito desajeitadamente mergulhado o polegar em tinta vermelha e rabiscado um sinal ao passar). Salve, felicidade! Marfim-pescador atravessando como um raio, de uma margem para outra. E toda a concretização do desejo natural, quer seja o que os novelistas homens dizem ser, quer seja prece ou recusa, salve! em qualquer forma em que venha, e que tenha mais formas e mais estranhas. Pois o rio corre escuro e tristonho - se pudesse dizer, como pede a rima, "como um sonho" porém mais sombrio e pior do que o dele é o nosso destino comum; sem sonhos, mas vivo, complacente, fluente, habitual, sob as árvores cuja sombra verde-oliva afoga o azul da asa de um pássaro evanescente que se lança de súbito de uma margem para a outra.

Salve, felicidade, então - e depois da felicidade não saudemos aqueles sonhos que deformam a imagem nítida, como espelhos manchados fazem com o rosto, na sala de uma estalagem campestre; sonhos que se estilhaçam e nos rasgam ao meio, nos ferem e nos despedaçam à noite, quando queremos dormir; mas dormir, dormir tão profundamente que todas as formas sejam reduzidas a um pó de infinita finura, água de inescrutável obscuridade, e lá, dobrados, amortalhados como uma múmia, como uma mariposa, reclinados deitemos na areia do fundo do sono.

Mas esperem! Mas esperem! Desta vez não vamos visitar a terra cega. Azul, como um fósforo aceso diretamente no globo ocular, ei-lo que voa, queima, rompe o selo do sono; o marfim-pescador; de forma que agora reflui novamente, como um refluxo de maré, o vermelho, espesso rio da vida; borbulhando, gotejando; e ao acordar, nosso olhar (pois uma rima nos ajuda a passar a salvo da difícil transição da morte para a vida) cai sobre... (aqui o realejo pára de tocar abruptamente).

- É um lindo menino, minha Senhora - disse a Sra. Banting, a parteira, colocando nos braços de Orlando o seu primogênito. Em outras palavras, na quinta-feira, 20 de março, às três da madrugada, Orlando dera à luz um filho.

Mais uma vez Orlando pôs-se à janela, mas deixemos o leitor tomar alento; não vai acontecer nada da mesma natureza hoje, porque não é mais, de modo algum, o mesmo dia. Não - pois, se olharmos pela janela como Orlando fazia no momento, veremos que o próprio Park Lane mudara consideravelmente. Na verdade, podia-se ficar ali dez minutos ou mais, como Orlando estava agora, sem se ver um único landó. "Olhe aquilo!", exclamou ela alguns dias depois, quando uma carruagem absurda, truncada, sem cavalos, se pés a deslizar por sua própria conta. Uma carruagem sem cavalos! Ela foi chamada enquanto dizia isso, mas voltou pouco depois e tornou a olhar pela janela. Tempo estranho, esse de hoje em dia. O próprio céu - não podia deixar de pensar - tinha mudado. Não era mais tão espesso, tão chuvoso, tão prismático, agora que o Rei Eduardo - ei-lo ali, saindo de seu elegante automóvel para visitar uma certa dama em frente - sucedera à Rainha Vitória. As nuvens tinham se reduzido a uma fina gaze; o céu parecia feito de metal, que com o calor manchava-se de verde-acinzentado, cor de cobre ou laranja, como um metal na neblina. Era um pouco alarmante esta redução. Tudo parecia ter encolhido. Passando pelo Palácio de Buckingham ontem à noite, não havia traço daquela vasta construção que ela pensara ser eterna; chapéus altos, véus de viúva, trombetas, telescópios, coroas fúnebres, tudo desaparecera sem deixar no calçamento nem mancha nem mesmo uma poça de lama. Mas agora - depois de outro intervalo ela retornara ao seu posto predileto à janela -, agora, à noite é que a mudança era mais notável. Olhem para as luzes nas casas! Com um toque, toda uma sala se ilumina; centenas de salas se iluminam; e uma era precisamente igual à outra. Podia-se ver tudo nessas pequenas caixas quadradas; não havia privacidade; não havia nenhuma daquelas sombras demoradas, nem daqueles ângulos estranhos a que se estava acostumado; nenhuma daquelas mulheres de avental carregando luzes oscilantes, que pousavam cuidadosamente nesta ou naquela mesa. Com um toque toda a sala estava iluminada. E o céu ficava claro durante a noite inteira; e o calçamento ficava claro; tudo ficava claro. Ela voltou ao meio-dia. Como as mulheres tinham se tornado delgadas ultimamente! Pareciam espigas de milho, retas, brilhantes, idênticas. E os rostos dos homens: eram tão lisos como a palma da mão. A secura da atmosfera trouxe a cor a todas as coisas e parecia endurecer os músculos das faces. Era mais difícil chorar agra. A água ficava quente em dois segundos. A hera perecera ou fora raspada das casas. Os vegetais eram menos férteis; as famílias, muito menores. Cortinas e capas tinham sido abolidas, e as paredes eram tão lisas que os novos quadros coloridos, representando coisas reais como ruas, guarda-chuvas, maçãs, estavam pendurados em molduras ou pintados sobre a madeira. Havia algo definido e diferente, a respeito da época, que lhe lembrava o século dezoito, exceto que havia uma distração, uma desesperança... enquanto pensava nisso o túnel imensamente longo em que parecia estar viajando por centenas de anos se alargou; a luz penetrou nele; seus pensamentos se tornaram misteriosamente: tensos e estirados, como se um afinador de piano colocasse a chave em suas costas e lhe esticasse os nervos ao máximo; ao mesmo tempo, sua audição se aguçou; podia ouvir cada sussurro e cada estalido na sala, de modo que o tique-taque do relógio sobre a lareira soava como um martelo. E assim, por alguns segundos, a luz foi se tornando mais e mais brilhante, e ela viu tudo cada vez mais claramente, e o relógio soou mais e mais alto, até que aconteceu uma terrível explosão bem no seu ouvido. Orlando pulou, como se tivesse levado uma violenta pancada na cabeça. Dez pancadas. Na verdade, eram dez horas da manhã. Era dia 11 de outubro. Era 1928. Era o momento presente.

Ninguém precisa se surpreender que Orlando tenha se sobressaltado, levado a mão ao coração e empalidecido. Pois pode haver revelação mais terrível do que constatar que este é o momento presente? Se sobrevivemos ao choque é apenas porque o passado nos protege de um lado e o futuro de outro. Mas não temos tempo para reflexões; Orlando já estava terrivelmente atrasada. Correu escada abaixo, saltou para o carro, pressionou o arranque e partiu. Vastos blocos azuis de construções elevavam-se para o ar; os capelos vermelhos das chaminés salpicavam irregularmente o céu; a estrada brilhava como pregos de cabeça de prata; os ônibus vinham em sua direção, com motoristas de esculpidos rostos brancos; observou esponjas, gaiolas, caixas de tecido americano verde. Mas não permitiu que nenhum dessas visões penetrasse em sua mente, nem por um fração de polegada, enquanto atravessava a estreita prancha do presente, com receio de cair lá embaixo, na raivosa torrente. "Por que não olha para onde vai?... Não pode pôr a mão para fora?", era o que ela dizia, rispidamente, como se as palavras lhe fossem arrancadas. Pois as ruas estavam completamente apinhadas. As pessoas atravessavam sem olhar para onde iam. As pessoas murmuravam e cochichavam em redor de vitrines espelhadas, dentro das quais se podia ver um brilho vermelho um fulgor amarelo - como se fossem abelhas, Orlando pensou; mas a seu pensamento de que eram abelhas foi logo decepada, e ela viu, recuperando com um golpe de vista a perspectiva, que eram corpos. "Por que não olham para onde vão?", vociferou.

Finalmente, parou na loja Marshall & Snelgrove e entrou. Sombra e perfume a envolveram. O presente desprendeu-se dela como gotas de água escaldante. A luz oscilava para cima e para baixo como panos finos soprados por numa brisa de verão. Tirou uma lista da bolsa e começou a ler, numa voz a princípio estranha e áspera, como se segurasse as palavras debaixo de ume torneira de água multicolorida - botas para menino, sais de banho, sardinhas. Observou como se transformavam quando a luz caía sobre elas. As palavras banho e botas tornavam-se rombudas; a palavra sardinhas denteava-se como uma serra. Assim permaneceu no andar térreo da Marshall & Snelgrove; olhou para um lado e para outro; sentia este cheiro e aquele, e assim gastou alguns segundos. Depois tomou o elevador, pela simples razão de que a porta estava aberta, e foi lançada suavemente paca cima. A verdadeira textura da vida agora é mágica, pensou enquanto subia. No século dezoito sabia-se como cada coisa era feita; mas aqui vou eu, subindo pelo ar; ouço vozes da América; vejo honens voando - mas não posso nem imaginar como isso é feito. Assim minha crença na magia retorna. Agra o elevador deu um pequeno solavanco quando parou no primeiro andar, e ela avistou inúmeros tecidos cooridos flutuando numa brisa que produzia cheiros estranhos, especiais; e, cada vez que o elevador parava e abria as portas de par em par, uma outra fatia do mundo era exposta, impregnada de todos os cheiros daquele mundo. Recordou-se do rio além de Wapping, no tempo da Rainha Elizabeth, onde os navios de tesouro e os ravios mercantes costumavam ancorar. Como cheiravam intensa e estranhamente! Como se lembrava bem do contato dos rubis ásperos deslizando-lhe entre os dedos, quando metia a mão num saco de tesouro! E de estar deitada com Sukey - ou qualquer que fosse o seu nome - e de serem surpreendidos pela lanterna de Cumberland! Os Cumberlands tinham agora uma casa em Portland Place, ela almoçara com eles outro dia, e atrevera-se a uma pequena piada com o velho, a respeito dos asilos de Sheen Road. Ele piscara. Mas aqui, como o elevador não podia ir mais acima, teve que saltar sabem os céus em que "departamento", como diziam. Parou consultando a sua lista de compras, mas ali não teve sorte de encontrar nem sais de banho nem botas de menino, como a lista pedia. E na verdade já ia descer novamente sem comprar nada, mas escapou dessa vergonha dizendo automaticamente em voz alta o último item de sua lista, que vinha a ser "lençóis para cama de casal".

- Lençóis para cama de casal - disse para um homem no balcão, e, por uma concessão da Providência, eram lençóis que o homem daquele exato balcão vendia. Pois Grimsditch, não, Grimsditch já tinha morrido; Bartholomew, não, Bartholomew já tinha morrido; então Lufsa - Lufsa viera até ela numa grande aflição, outro dia, pois encontrara um buraco na ponta do lençol da cama real. Muitos reis e rainhas tinham dormido lá.

- Elizabeth; Jaime; Carlos; Jorge; Vitória; Eduardo; não era de admirar que o lençol tivesse um buraco. Mas Lufsa era afirmativa: ela sabia quem o fizera. Era príncipe consorte.

Sale boche! (Em francês no original: alemão sujo!) - disse (pois tinha havido outra guerra, desta vez contra os alemães).

Lençóis para cama de casal - repetia Orlando sonhadoramente, para uma cama de casal com uma colcha prateada, num quarto decorado com um gosto que e agora achava talvez um pouco vulgar - todo de prata pois ela o mobiliara quando estava apaixonada por aque metal. Enquanto o homem foi buscar os lençóis para cama de casal, ela pegou um pequeno espelho e uma pluma de pó. As mulheres não são mais tão disfarçadas em suas maneiras, pensava, empoando-se com a maior despreocupação, como no tempo em que pela primeira vez se transformara em mulher e repousava no convés do Enamoured Lady. Deliberadamente, deu ao nariz tom apropriado. Nunca tocava suas faces. Honestamente, embora tivesse agora trinta e seis anos, não aparentava nem um dia a mais. Parecia tão amuada, tão mal humorada, tão bonita, tão rosada (como uma árvore de Natal com mil velas, como dissera Sasha) como ficaram naquele dia no gelo, quando o Tâmisa congelara e tinham ido patinar...

- O melhor linho irlandês, Senhora - disse o vendedor, desdobrando os lençóis no balcão, - e eles tinham encontrado uma velhinha apanhando lenha. Nisso, enquanto apalpava distraidamente o linho, uma da portas giratórias entre os departamentos se abriu e deixou passar, talvez do departamento de artigos de fantasia, uma rajada de cheiro de cera, como se tingido por velas cor-de-rosa, e o cheiro curvou-se como uma concha em redor de uma figura - seria uma rapaz ou um moça? - jovem, delgada, sedutora - uma moça, por Deus! coberta de peles, pérolas, de calças russas; mas infiel, infiel!

- Infiel! - gritou Orlando (o vendedor tinha se retirado), e toda a loja parecia balouçar em águas amarelas, e bem longe viu os mastros do navio russo fazendo-se ao mar, e então, miraculosamente (talvez a porta tivesse sido aberta outra vez), a concha que o perfume produzira se transformou numa plataforma, num tablado do qual saiu uma mulher gorda, coberta de peles, maravilhosamente bem-conservada, sedutora, cheia de jóias, uma amante do Grão-duque; a mesma que, inclinada às margens do Volga, comendo sanduíches, tinha contemplado os homens se afogando - e começou a atravessar a loja em sua direção.

- Oh, Sasha! - gritou Orlando. Na verdade, estava chocada que tivesse chegado àquele ponto; engordara tanto, estava tão pesadona; inclinou a cabeça sobre o linho, de modo que passasse por trás dela, despercebida, essa aparição de uma mulher cinzenta, envolta em peles, e de uma jovem russa, de calças, com todos esses cheiros que trazia consigo - de velas de cera, de flores brancas e de velhos navios.

- Guardanapos, toalhas, guarda-pós hoje, Senhora? - insistiu o vendedor. E foi graças à lista de compras que Orlando agora consultava que pôde responder, com aparente tranqüilidade, que só precisava de uma coisa no mundo, que eram sais de banho - e que isso era em outro departamento.

Mas, descendo outra vez no elevador - tão insidiosa é a repetição de qualquer cena -, mergulhava de novo bem longe do momento presente; e quando o elevador bateu no chão, pensou ter ouvido um pote quebrar contra a margem do rio. E quanto a achar o departamento apropriado, qualquer que fosse ele, permaneceu absorta entre as bolsas, surda às sugestões de todos os vendedores polidos, vestidos de preto, penteados, atentos, que, descendo também - e alguns, talvez, tão orgulhosamente - das mesmas profundezas do passado que ela, preferiram deixar cair a impenetrável barreira do presente, de modo a hoje aparecerem como simples vendedores em Marshall & Snelgrove. Orlando ficou ali hesitante. Através das grandes portas de vidro pôde ver o tráfego em Oxford Street. Ônibus pareciam empilhar-se sobre ônibus e depois apartar-se. Assim os blocos de gelo tinham-se amontoado e balançado, naquele dia, no Tâmisa. Um velho nobre de chinelos de pele estava escarranchado num deles. Ele passara - ele podia vê-lo agora - lançando maldições aos rebeldes irlandeses. Eles naufragaram ali, onde o carro dela estava parado.

"O tempo tem passado por mim", pensou, procurando se recobrar; "é a chegada da meia-idade. Que coisa estranha! Nada é mais uma coisa só! Pego uma bolsa penso numa velha vendedora de maçãs, num barco, cor gelada. Alguém acende uma vela cor-de-rosa e vejo um moça de calças russas. Quando saio - como faço agora", aqui pisou na calçada de Oxford Street, "que gosto sinto? De pequenas ervas. Ouço sinos de cabras. Vejo montanhas. Turquia? Índia? Pérsia?", seus olhos se encheram de lágrimas.

Talvez o leitor se surpreenda que Orlando tenha se afastado um pouco demais do momento presente, ao vê-Ia agora se preparando para entrar no carro, com os olhos cheios de lágrimas e de visões das montanhas persas. E de fato não se pode negar que os mais bem sucedidos praticantes da arte de viver, freqüentemente pessoas desconhecidas, inventam alguma forma de sincronizar os sessenta ou setenta tempos diferentes que batem simultaneamente em todo o sistema humano normal, de maneira que, quando soam onze horas, todo resto ressoa em uníssono, e o presente não é nem um violenta interrupção nem um completo esquecimento do passado. Deles podemos apenas dizer que vivem precisamente os sessenta e oito ou setenta e dois anos consignados em seus túmulos. Do resto, alguns sabemos estarem mortos, embora andem entre nós; alguns ainda não nasceram, embora assumam outras formas de vida outros têm centenas de anos de idade, embora confessem apenas trinta e seis. A verdadeira extensão da vida de uma pessoa, diga o que disser o Dicionário Biográfico Nacional, é sempre matéria discutível. Pois esse registro de tempo é tarefa difícil; nada o desordena mais rapidamente do que o contato com qualquer das artes; e foi talvez pelo seu amor à poesia que Orlando perdeu a lista de compras e voltou para casa sem as sardinhas, os sais de banho e as botas. Agora que estava com a mão na porta do carro, o presente golpeou-lhe de novo a cabeça. Agrediu-a violentamente onze vezes.

Com os diabos! - gritou, pois ouvir o relógio bater é um grande choque para o sistema nervoso - tanto que por algum tempo não há nada a dizer sobre ela, exceto que franziu um pouco a testa, fez admiravelmente as mudanças de marcha e gritou como antes: "Olhem para onde vão! Não sabem o que querem? Então por que não dizem?", enquanto o carro arrancava, movia-se, abria caminho, deslizava - pois ela era exímia motorista por Regeut Street, Haymarket, Northumberland Avenue, Westmin5ter Bridge, à esquerda, em frente, à direita, em frente outra vez...

A Old Kent Road estava muito cheia de gente, na quinta-feira 11 de outubro de 1928. O povo transbordava da calçada. Havia mulheres com sacolas de compras. Crianças corriam. Havia liquidações nas lojas de tecidos. As ruas alargavam e estreitavam. Longas perspectivas se encolhiam uniformemente. Aqui era um mercado. Aqui um funeral. Aqui uma procissão, com estandartes onde estava escrito "Ra-Uh", e que mais? A carne era muito vermelha. Os açougueiros ficavam à porta. As mulheres estavam com os saltos dos sapatos quase cortados. "Amor Vin" - lia-se sobre um pórtico. Uma mulher olhava da janela de um quarto de dormir, profundamente contemplativa e muito quieta. Applejohn e Applebed, Undert... não se podia ver nada inteiro nem ler do princípio ao fim. O que se via começar - como dois amigos atravessando a rua para se encontrarem não se via terminar. Depois de vinte minutos o corpo e a mente eram como pedaços de papel rasgado caindo de um saco, e, na verdade, o processo de dirigir depressa por Londres afora se assemelha tanto ao ato de cortar identidade em pequenos pedaços - o que precede inconsciência e talvez a própria morte - que não se sabe como afirmar que Orlando tenha existido no momento presente. Na verdade, poderíamos considerá-la uma pessoa inteiramente dissociada se não acontecesse finalmente, de uma tela verde ser estendida à direita contra a qual os pedacinhos de papel caiam mais vagarosamente; e depois outra ser estendida à esquerda, de forma que se podia ver os pedaços separados agora girando sozinhos no ar; e então telas verdes foram estendidas continuamente de cada lado, de modo que sua mente readquiriu a ilusão de prender as coisas dentro de si e ela viu um chalé, um pátio de fazenda e quatro vacas, tudo precisamente em tamanho natural.

Quando isso aconteceu, Orlando deu um suspiro de alívio, acendeu um cigarro e deu uma baforada por um ou dois minutos em silêncio. Então chamou hesitantemente - como se a pessoa que ela procurasse pudesse não estar ali: "Orlando"? Pois se há (por acaso) setenta e seis tempos diferentes, todos pulsando de uma vez na mente, quantas pessoas diferentes não haverá - Deus nos ajude - todas morando num tempo ou noutro no espírito humano? Alguns dizem que há duas mil e cinqüenta e duas. De modo que é a coisa mais comum do mundo uma pessoa chamar, quando está sozinha, Orlando? (se este for o nome), querendo dizer com isso vem, vem! Estou mortalmente cansada deste eu. Preciso de um outro. Daí as surpreendentes mudanças que vemos em nossos amigos. Mas isso também não é muito fácil, pois, embora se possa dizer, como Orlando disse (estando no campo e precisando provavelmente de outro eu), Orlando? ainda assim o Orlando de que ela precisa pode não vir; esses eus de que somos construídos, sobrepostos um ao outro como pratos empilhados na mão de um garçom, têm ligações em outros lugares, simpatias, pequenos códigos e direitos próprios, chamem o que quiserem (pois muitas dessas coisas não têm nome), de forma que um só virá se estiver chovendo, outro se for num quarto com cortinas verdes, outro quando a SM, Jones não estiver, outro se puder prometer um copo de vinho, e assim por diante; pois cada pessoa pode multiplicar a partir da própria experiência as diferentes condições impostas pelos seus diferentes eus - e algumas são tão ridículas que não podem ser impressas.

Assim, Orlando passando pelo celeiro chamou "Orlando?" com uma nota de interrogação na voz e esperou. Orlando não veio.

- Então tudo bem - disse Orlando com o bom humor que as pessoas possuem nessas ocasiões; e tentou outro. Pois ela possuía uma grande variedade de eus para chamar, muito mais do que temos espaço para oferecer, de vez que uma biografia é considerada completa se simplesmente dá conta de seis ou sete eus, embora uma pessoa possa ter muitos milhares deles. Escolhendo, pois, apenas aqueles eus que já incluímos, Orlando podia agora chamar pelo menino que golpeou a cabeça do negro; o menino que a pendurou de novo; o menino que sentava na' colina; o menino que viu o poeta; o menino que ofereceu a tigela de água de rosas à Rainha; ou podia ter chamado o jovem que se apaixonou por Sasha; ou pelo Cortesão; ou pelo Embaixador; ou pelo Soldado; ou pelo Viajante; ou podia ter apelado para a mulher; a Cigana; a Grande Dama; a Eremita; a moça apaixonada pela vida; a Protetora das Letras; a mulher que chamava Mar (querendo dizer banhos quentes e fogos noturnos) ou Shelmerdine (significando açafrões nos bosques de outono) ou Bonthrop (significando a morte que morremos diariamente) ou todos os três juntos - o que significa muito mais coisas do que o espaço de que dispomos - todos eram diferentes, e ela podia ter chamado qualquer um deles.

Talvez; mas o que parece certo (pois agora estamos na região do "talvez" e do "parece") é que o eu de que ela mais precisava se mantinha a distância, pois ela ia mudando seus eus tão rapidamente quanto dirigia, a julgar pelo que se ouvia, e havia um novo eu em cada esquina - como acontece quando por alguma razão inconfessável o eu consciente, que é o mais importante tem o poder de desejar, não deseja ser mais nada se não um único eu. Isto é o que alguns chamam de verdadeiro eu e é, dizem, a união de todos os outros eus que existem em nós, comandados e aprisionados pelo eu-capitão, o eu-chave, que amalgama e controla todos os outros. Orlando estava certamente procurando esse eu, como o leitor pode julgar ouvindo sua conversa enquanto dirigia (e se é uma conversa incoerente, sem sentido, banal, insípida e às vezes ininteligível, é culpa do leitor, por prestar atenção à conversa de uma senhora falando consigo mesma; nós apenas copiamos as palavras como são faladas, acrescentando entre parênteses o eu que em nossa opinião está falando, mas bem podemos estar errados).

- O quê, então? Quem, então? - disse ela. - Trinta e seis anos; num carro; uma mulher. Sim, mas um milhão de outras coisas mais. Serei uma esnobe? A jarreteira no vestíbulo? Os leopardos? Meus antepassados? Orgulhosa deles? Sim! Gananciosa, voluptuosa depravada? Serei? (aqui entrou um novo eu). Não me importo nem um pouco se for. Sincera? Acho que sim. Generosa? Oh, mas isso não conta (aqui um novo eu entrou). Ficar na cama a manhã inteira em lençóis de linho ouvindo os pombos; baixela de prata; vinho; em pregadas; lacaios. Mimada? Talvez. Coisas demais para nada. Daí meus livros (aqui mencionou cinqüenta títulos clássicos que representavam, pensamos, as primeiras obras românticas que havia rasgado). Fácil, volúvel, romântica? Mas (aqui entrou um outro eu) desajeitada e desastrada. Mais sem jeito não podia ser. E... e... (aqui hesitou sobre uma palavra, e se sugerirmos "amor" podemos estar errados, mas certamente ela riu e corou (depois gritou) um sapo de esmeraldas! Harry, o Arquiduque! Varejeiras azuis no teto! (aqui entrou um outro eu). Mas Nell, Kit, Sasha? (mergulhou em tristeza: realmente, lágrimas se formaram, e havia tempos que ela não chorava). Árvores, disse ela. (Aqui entrou um novo eu.) Eu amo as árvores (ela estava passando por um arvoredo) que crescem ali há milhares de anos. E celeiros (passava por um celeiro em ruínas na beira da estrada). E cães pastores (aqui um atravessou a estrada correndo. Ela cuidadosamente o evitou). E a noite. Mas pessoas (aqui entrou um outro eu). Pessoas? (Repetiu como se fosse uma pergunta.) Não sei. Faladoras, maliciosas, sempre dizendo mentiras. (Aqui dobrou na rua principal de sua cidade natal, que estava cheia - porque era dia de feira - de fazendeiros, pastores e velhas com galinhas em cestas.) Gosto de camponeses. Entendo de colheitas. Mas (aqui um outro eu saltou para o topo de sua mente, como o facho de um farol). Fama! (Riu-se.) Fama! Sete edições. Um prêmio. Fotografias nos vespertinos (aqui referia-se a "O Carvalho" e ao prêmio de Burdett Coutts, que ganhara; e aqui aproveitamos o espaço para observar como é desconcertante para o seu biógrafo que este clímax a que todo livro conduz, esta peroração com a qual o livro ia acabar seja frustrada por uma gargalhada casual como esta; mas a verdade é que, quando escrevemos sobre uma mulher, tudo fica fora de lugar - clímax e perorações; o acento não cai nunca onde costuma cair com um homem). Fama!, repetiu. Um poeta - um charlatão; ambos todas as manhãs tão regularmente quanto o correio. Jantar, encontrar-se; encontrar-se, jantar; fama ... fama! (Aqui teve que diminuir a marcha para passar por entre a multidão da feira. Mas ninguém reparou nela. Um porco-do-mar na banca de um peixeiro atraia mais atenção do que uma senhora que ganhou um prêmio e que poderia, se quisesse, usar na cabeça três diademas superpostos.) Dirigindo bem devagar agora, sussurrava como que uma parte de uma velha canção "com os meus guinéus comprarei árvores floridas, árvores floridas, árvores floridas, e caminhareis entre as minhas árvores floridas e contarei aos meus filhos o que é a fama na vida". Assim sussurrava, e agora todas as suas palavras começaram a vergar aqui e ali, como um colar selvagem de contas pesadas. "E caminharei entre as minhas árvores floridas", cantou, acentuando fortemente as palavras "e verei a lua devagar subir e o vagão partir..." Aqui parou de repente e olhou para a capota do carro, em profunda meditação.

"Ele sentou-se à mesa de Witchett", refletiu, "com uma gola suja... Seria o velho Sr. Baker que vinha medir a madeira? Ou seria Sh-p-re?" (porque, quando falam em nomes que reverenciamos profundamente, nunca dizemos por inteiro). Olhou fixamente para a frente durante dez minutos, deixando o carro quase parar. "Assombração!", gritou, pressionando repentinamente o acelerador. "Assombração! Desde que eu era criança. Lá vai voando o ganso selvagem. Passa pela frente rumo ao mar. Dei um pulo (agarrou com força o votante) e depois me estiquei. Mas o ganso voa muito rápido. Eu o vi aqui - lá - além - na Inglaterra, na Pérsia, na Itália. Sempre voa rápido para o mar e sempre lhe atiro palavras como redes (aqui pôs a mão para fora) que se encolhem como as redes que tenho visto encolhidas no convés, apenas com algas dentro; e vezes há uma polegada de prata - seis palavras - no fundo da rede. Mas nunca um peixe grande, que vi nos bosques de coral." Aqui baixou a cabeça, em profunda reflexão.

E foi neste momento, quando deixou de chamar "Orlando" e estava em profundos pensamentos a respeito de outra coisa, que o Orlando que chamara apareceu por conta própria; como se pode provar pela transformação que aconteceu nela (tinha passado os portões da propriedade e estava entrando no parque).

Toda ela escureceu e se firmou, como quando se acrescenta um contraste para dar relevo e solidez a uma superfície, e o raso se torna profundo, e o perto, distante; e tudo isso é contido como a água é contida pelas paredes de um poço. Assim ela estava agora escura, tranqüila, e se transformou - com o acréscimo deste Orlando - naquilo que é chamado, correta ou erroneamente, de um único eu, um autêntico eu. E ficou em silêncio. Pois é provável que, quando as pessoas falam alto, os eus (dos quais pode haver mais de dois mil tenham consciência de sua divisão e procurem se comunicar, mas, quando a comunicação é estabelecida, ficam em silêncio.

Habilmente, rapidamente, dirigiu pela alameda curva entre álamos e carvalhos, pela grama do parque, cujo declive era tão suave que se fosse água teria se espalhado pela praia como uma lisa maré verde. Plantados aqui e ali havia grupos solenes de faias e carvalhos. Os veados caminhavam entre as árvores, um branco como a neve, outro com a cabeça de lado, pois alguma cerca de arame tinha prendido os seus chifres. Tudo isso, ais árvores, os veados, a grama, ela observava com a maior satisfação, como se sua mente tivesse se tornado um líquido que fluísse ao redor das coisas e as envolvesse completamente. No minuto seguinte parou no pátio, onde por tantas centenas de anos chegara a cavalo ou de carruagem de três parelhas, com homens cavalgando à frente, ou vindo atrás; onde plumas tinham balançado, tochas brilhado, e as mesmas árvores floridas que agora deixam as folhas caírem tinham sacudido suas flores. Ela agora estava sozinha. As folhas de outono estavam caindo. O porteiro abriu os grandes portões. "Bom dia, Jaime", disse ela, "há coisas no carro. Pode trazê-las?", palavras sem beleza, interesse ou significado em si mesmas, é certo, mas agora tão repletas de significado que caiam como nozes maduras de uma árvore e provavam que, quando a pele enrugada do comum é recheada de significado, satisfaz surpreendentemente os sentidos. Isto era verdadeiro agora em relação a cada movimento e ação, por mais costumeiros que fossem; de modo que ver Orlando trocar a saia por um par de calças de bombazina e uma jaqueta de couro - o que fez em menos de três minutos - era ficar encantado com a beleza do movimento, como se Madame Lopokova estivesse demonstrando sua melhor arte. Então dirigiu-se para a sala de jantar, onde os velhos amigos Dryden, Pope, Swift, Addison olharam-na a principio gravemente, como que dizendo: "Eis quem ganhou o prêmio!" Mas, quando refletiram que se tratava de duzentos guinéus, balançaram a cabeça aprovando. Duzentos guinéus, pareciam dizer; duzentos guinéus não são para se desprezar. E cortou uma fatia de pão e de presunto, juntou-as e começou a comer passeando pela sala para lá e para cá assim abandonou as boas maneiras em um segundo, sem perceber. Depois de cinco ou seis voltas, esvaziou um copo de vinho tinto espanhol e, enchendo outro que levava na mão, atravessou o longo corredor e uma dúzia de salas e assim começou a perambular pela casa, escoltada por galgos e spaniels que escolheu para acompanhá-la.

Isso também era parte de sua rotina diária. Chegar em casa e deixar sua avó sem um beijo era como voltar e deixar a casa sem percorrê-la. Imaginava que os quartos se iluminavam quando ela entrava; que se agitava abriam os olhos, como se tivessem dormido durante sua ausência. Imaginava também que centenas e milhares de vezes ela os tinha visto e que nunca pareciam duas vezes os mesmos, como se uma vida tão longa quanto a deles tivesse acumulado milhares de modos que mudavam com inverno e verão, com tempo claro e sombrio, com a sua própria sorte e com os temperamentos das pessoas que os visitavam. Eram sempre polidos com estranhos, mas um pouco enfastiados; com ela era inteiramente francos e à vontade. E por que não? Eles se conheciam por quase quatro séculos, agora. Não tinham nada a esconder. Ela conhecia suas tristezas alegrias. Conhecia a idade de cada parte deles e seus pequenos segredos - uma gaveta secreta, um armário disfarçado ou algum defeito talvez, como um pedaço remendado ou acrescentado depois. Eles também a conheciam em todos os seus modos e transformações. E não tinha nada a esconder deles; estivera lá como menino e como mulher, chorando e dançando, pensativa e alegre. No banco desta janela escrevera os primeiros versos; naquela capela, casara. Seria enterrada ali, refletiu, ajoelhando-se no parapeito da janela, no longo corredor, e bebericando o vinho espanhol. Embora não pudesse imaginar, o corpo de leopardo heráldico esta formando poças amarelas no chão, no dia em que a enterrassem entre os seus antepassados. Ela, que não acreditava em nenhuma imortalidade, não podia deixar de sentir que sua alma estaria indo e vindo para sempre com os vermelhos dos painéis e os verdes do sofás. Pois o aposento - acabava de entrar no quarto de dormir do Embaixador - brilhava como uma concha que, tendo ficado séculos no fundo do mar, fora recoberta e pintada pela água, com um milhão de cores; era rosa e amarela, verde e cor de areia. Era frágil como uma concha, tão iridescente e tão vazio. Nenhum Embaixador dormiria ali outra vez. Ah!, mas ela sabia onde o coração da casa ainda batia. Gentilmente abrindo a porta, permaneceu na soleira de modo que (imaginava) a aposento não pudesse vê-Ia e contemplou a tapeçaria que se levantava e caía com a eterna e suave brisa que nunca deixava de agitá-la. O caçador ainda cavalgava; Dafne ainda voava. O coração ainda batia, pensou, embora muito fraco, embora muito distante, o frágil, indomável coração do imenso edifício.

Agora, chamando os cachorros, passou pela galeria cujo chão era coberto com troncos de carvalhos serrados. Filas de cadeiras, com os veludos desbotados, estavam encostadas à parede, com braços abertos para Elizabeth, para Jaime, para Shakespeare, talvez, para Cecil, que nunca vinham. Essa visão entristeceu-a. Desamarrou acorda que as cercava. Sentou na cadeira da Rainha; abriu um livro manuscrito que estava sobre a mesa de Lady Betty; revolveu com os dedos as velhas pétalas de rosas; escovou o cabelo curto com a escova de prata do Rei Jaime, sacudiu-se para cima e para baixo na cama dele (mas nenhum rei dormiria lá novamente, apesar dos lençóis novos de Luísa) e comprimiu o rosto contra a gasta colcha prateada que a cobria. Mas por toda parte havia pequenos sacos de alfazema para afastar as traças e avisos impressos "favor não tocar", que, embora ela mesma tivesse colocado, pareciam censurá-la, A casa não era mais inteiramente sua, suspirou. Pertencia agora ao tempo; à história; estava fora do contato e do controle dos vivos. Ali nunca mais se derramaria cerveja, pensou (estava no quarto onde ficara o velho Nick Greene), nem se fariam buracos de queimadura no carpete. Nunca mais duzentos criados viriam correndo e gritando pelos corredores, com panelas quentes e com grandes galhos para as grandes lareiras. Nunca mais se prepararia cerveja preta, nem se fariam veIas, nem se moldariam selas, nem se talhariam pedras nas oficinas do lado de fora da casa. Martelos e malhes estavam agora silenciosos. Cadeiras e camas estavam vazias; jarros de ouro e prata, trancados em vitrines. As grandes asas do silêncio abanavam para cima e para baixo na casa vazia.

Assim sentou-se na extremidade da galeria com cachorros deitados à sua volta, na poltrona dura da Rainha Elizabeth. A galeria se estendia ao longe, até um ponto onde a luz quase falhava. Era como um túnel enterrado profundamente no passado. Enquanto passava os olhos, podia ver gente rindo e conversando; grandes homens que conhecera; Dryden, Swift e Pope; estadistas em colóquio; e amantes flertando nos bancos das janelas; e gente comendo e bebendo em longas mesas; e a fumaça da lenha volteando sobre suas cabeças e fazendo-os espirrar e tossir. Ainda mais longe viu grupos de esplêndidos dançarinos formados para a quadrilha. Uma música aflautada, frágil, mas apesar de imponente, começou a tocar. Um órgão retumbou. Um caixão foi trazido para a capela. Um cortejo de casamento saia dali. Homens armados com capacetes partiam para a guerra. Traziam estandartes de Flodden Poitiers, e penduravam-nos na parede. Assim a extensa galeria ficou repleta; e ainda perscrutando adiante, pensou distinguir bem no fundo, além dos elisabetanos, dos Tudors, alguém mais velho, mais distante, mais sombrio, uma figura encapotada, monástica, austera, um monge, segurando um livro entre as mãos, murmurando...

Como um trovão, o relógio de pé bateu quatro horas. Nunca um terremoto demoliu assim uma cidade inteira. A galeria e todos os seus ocupantes foram reduzidos a pó. Seu próprio rosto, que estivera escuro e sombrio enquanto olhava, iluminou-se com uma explosão de pólvora. Nessa mesma luz tudo que a cercava mostrava-se com extrema nitidez. Viu duas moscas girando e observou o brilho azul de seus corpos; viu um nó na madeira onde estava o seu pé e o tremor da orelha de um de seus cachorros. Ao mesmo tempo ouviu um galho quebrando no jardim, uma ovelha balindo no parque, um grito agudo pela janela. Seu próprio corpo tremeu e vibrou como se tivesse ficado despida de repente, numa forte geada. No entanto, ao contrário do que fizera quando o relógio batera dez horas em Londres, permaneceu completamente serena (porque agora ela era una e íntegra e apresentava, talvez, uma superfície maior para o choque do tempo). Levantou-se, mas sem precipitação, chamou os cachorros e desceu a escada com firmeza mas com grande agilidade de movimentos e foi para o jardim. Aqui as sombras das plantas eram miraculosamente diversificadas. Observou grão por grão da terra dos canteiros, como se tivesse um microscópio nos olhos. Viu o emaranhado dos ramos de cada árvore. Cada folha de grama era diferente, e cada nervura, e cada pétala. Viu Stubbs, o jardineiro, vindo pela alameda, e era visível cada botão de suas polainas; viu Betty e Prince, os cavalos da charrete, e nunca notara tão claramente a estrela branca na testa de Betty, e três pelos mais longos que caiam da cauda de Prince. Lá fora no pátio as velhas paredes cinzentas da casa pareciam uma fotografia recente, arranhada; ouviu do alto-falante condensando no terraço uma música de dança que se ouvia em Viena, na grande Casa de ópera, de veludo vermelho. Estimulada e excitada pelo momento presente, sentia-se também estranhamente amedrontada, como se cada segundo abrisse uma brecha no golfo do tempo e pudesse trazer consigo algum perigo desconhecido. A tensão era implacável e rigorosa demais para ser suportada sem desconforto. Caminhou mais rapidamente do que desejava, como se suas pernas se movessem sozinhas através do jardim, saindo para o parque. Aqui fez um grande esforço para parar na carpintaria e ficou ali parada, observando Joe Stubbs modelar uma roda de charrete. Estava parada, os olhos fixos na mão dele, quando soou um quarto de hora. Aquilo a atingiu como um meteoro, tão quente que os dedos não podem segurar. Viu com desagradável nitidez que o polegar da mão direita de Joe estava sem a unha e no lugar dela havia uma rodela de carne cor-de-rosa. A visão era tão repulsiva que por um momento sentiu que ia desmaiar, mas naquele momento de escuridão, quando suas pálpebras estremeceram, ficou aliviada da pressão do presente. Havia algo estranho na sombra que o tremular de seus olhos esboçou, algo que (como qualquer pessoa pode testar olhando agora para o céu) está sempre fora do presente - daí seu terror, seu caráter indefinível -, algo cujo corpo se hesita em atravessar com um alfinete e chamar de beleza, pois não tem corpo, é como uma sombra sem substância ou qualidade próprias, embora tenha o poder de mudar tudo aquilo a que se soma. Agora, enquanto ela pestanejava em seu desmaio diante da carpintaria, essa sombra saiu furtivamente e, apegando-se às inúmeras visões que tinha presenciado, transformou-as em algo tolerável, compreensível. Sua mente começou a balançar como o mar. Sim, pensava, dando um profundo suspiro de alívio, enquanto voltava da carpintaria para subir a colina, posso começar a viver novamente. Estou à margem da Serpentina, pensou, o barquinho está subindo pelo arco branco de mil mortes. Estou prestes a compreender...

Estas foram suas palavras, ditas bem claramente, mas não se pode ocultar o fato de que ela agora era uma testemunha muito indiferente à verdade daquilo que estava diante de si e podia facilmente ter confundido um carneiro com uma vaca, ou um velho chamado Smith com um que se chamava Jones, e nada tinha a ver com aquele. Pois a sombra do desmaio causado pelo polegar sem unha escavara-lhe um poço na parte posterior do cérebro (que é o ponto mais distante da visão), onde as coisas habitam numa escuridão tão profunda que raramente sabemos o que são. Agora ela olhava para dentro desse poço ou mar no qual tudo é refletido - e, na verdade, alguns dizem que todas as nossas mais violentas paixões, e a arte, e a religião, são reflexos que vemos no vão escuro da parte posterior da cabeça quando o mundo visível fica obscurecido pelo tempo. Olhava para lá, agora, longa e profundamente, e logo a alameda de samambaias que conduzia à colina, por onde ia caminhando, tornou-se não completamente uma alameda, mas parcialmente a Serpentina; os espinheiros eram parcialmente senhoras e cavalheiros sentados, com estojos de cartões de visitas e bengalas de castão de ouro; os carneiros eram parcialmente casas altas de Mayfair; tudo era parcialmente outra coisa, como se sua mente tivesse se tornado uma floresta, com clareiras se ramificando aqui e ali; as coisas se aproximavam e se afastavam, se misturavam e se separavam e faziam estranhas alianças e combinações, num incessante xadrez de luz e sombra. Ela esqueceu o tempo até que Canute, o galgo, caçou um coelho, e isso lembrou-a de que deviam ser quatro e meia - na verdade eram vinte e três minutos para as seis - ela esquecera do tempo.

A alameda de samambaias conduzia com muitas voltas e curvas cada vez mais alto até o carvalho, que ficava no topo. A árvore se tornara maior, mais robusta e mais cheia de nós do que quando ela a conhecera, aí pelo ano de 1588, mas ainda estava no vigor da vida. As pequenas folhas angulosamente recortadas ainda tremulavam densamente em seus ramos. Atirando-se ao chão, sentiu os ossos da árvore alongando-se para um lado e para outro, debaixo de si, como costelas de uma espinha dorsal. Gostava de pensar que cavalgava o dorso do mundo. Gostava de se agarrar a algo firme. Quando se atirou ao chão, um pequeno livro quadrado, encadernado em tecido vermelho, caiu do peito de sua jaqueta de couro - seu poema "O Carvalho". "Eu deveria ter trazido uma pá", refletiu. A terra era tão rasa sobre as raízes que parecia duvidoso que ela pudesse fazer o que queria - enterrar o livro ali. Além disso, os cachorros o desencavariam. A sorte jamais acompanha essas celebrações simbólicas, pensou. Talvez então fosse melhor dispensá-las. Tinha um pequeno discurso na ponta da língua, que pensava pronunciar sobre o livro quando fosse enterrá-lo (era uma cópia da primeira edição, assinada pelo autor e artista). "Enterro isto como um tributo", ia dizer, "um retorno à terra daquilo que a terra me deu", mas Senhor!, quando se começa a dizer palavras em voz alta, como elas soam bobas! Recordou-se do velho Greene, subindo numa plataforma, outro dia, comparando-a com Milton (a não ser pela cegueira) e entregando-lhe um cheque de duzentos guinéus. Pensara então no carvalho, aqui, na colina, e se perguntara o que uma coisa tinha a ver com a outra. O que o elogio e a fama têm a ver com a poesia? O que têm a ver sete edições (já chegara a isso) com o valor do livro? Escrever poesia não era uma transação secreta, uma voz respondendo a outra voz? De modo que todo esse palavrório, e elogio, e censura, e encontrar pessoas que admiram, e pessoas que não admiram, não combinam com a coisa em si - uma voz respondendo a outra voz. Que podia haver de mais secreto, pensou, mais lento e semelhante à conversa dos amantes do que a claudicante resposta que dirigira todos esses anos de velha e sussurrante canção dos bosques, e às fazendas, aos cavalos castanhos parados no portão, pescoço contra pescoço, e à ferraria, e à cozinha, e aos campos que tão laboriosamente produzem trigo, nabos, grama, e ao jardim explodindo de íris e lilases?

De modo que deixou ali o livro, sem enterrá-lo, em desalinho no chão, e contemplou a ampla vista, variada naquela tarde como o fundo do oceano, com o sol iluminando e as sombras escurecendo. Havia uma aldeia com a torre da igreja entre álamos; a cúpula cinzenta de uma mansão, num parque; um facho de luz brilhando numa vidraça; um quintal com espigas de milho amarelas. Os campos eram marcados por agrupamentos de árvores negras, e para além dos campos se estendiam vastas florestas e havia o brilho de um rio e depois novamente colinas. A distância os penhascos de Snowdon quebravam-se, brancos, entre as nuvens; ela via as longínquas colinas escocesas e as selvagens marés que faziam redemoinhos em torno das Hébridas. Escutou o som do canhão, no mar. Não - apenas o vento soprava. Não havia guerra hoje. Drake se fora; Nelson se fora. "E ali", pensou, deixando os olhos que tinham ficado olhando essas distâncias caírem uma vez mais sobre a terra a seus pés, "um dia foi a minha terra: aquele castelo entre as colinas era meu; e todo este pântano, que vai quase até o mar, era meu." Aqui a paisagem (deve ter sido algum jogo da luz que empalidecia) se abalou, se ergueu, e deixou deslizar toda essa aglomeração de casas, castelos e florestas por suas encostas cênicas. As montanhas nuas da Turquia estavam diante dela. Era um ardente meio-dia. Olhou diretamente para a encosta tostada. Cabras ceifavam os tufos de areia a seus pés. Uma águia pairava sobre ela. A voz rascante do velho Rustum, o cigano, corvejou em seus ouvidos: "Que são a tua antiguidade e a tua raça e as tuas propriedades, comparadas com isto? Por que precisas de quatrocentos quartos e tampas de prata em todas as tuas travessas, e empregadas domésticas espanando?”

Nesse momento algum relógio de igreja soou no vale. A paisagem cênica estremeceu e desmoronou. O presente caiu sobre sua cabeça uma vez mais, mas agora que a luz estava esmaecendo, mais suavemente do que antes, sem destacar nenhum detalhe, nenhuma coisa pequena, apenas campos enevoados, chalés com luzes, a massa adormecida de um bosque e uma luz em forma de leque empurrando a escuridão na sua frente ao longo de uma aléia. Não podia dizer se tinham batido nove, dez ou onze horas. A noite chegara - a noite que ela sempre amara, a noite que é quando os reflexos no poço escuro da mente brilham mais claros do que de dia. Não era necessário desmaiar agora para olhar profundamente a escuridão onde as coisas se moldam e ver no poço da mente, ora Shakespeare, ora uma jovem de calças russas, ora um barco de brinquedo na Serpentina, e depois o próprio Atlântico onde se elevam grandes vagas em torno do Cabo Horn. Olhou para a escuridão. Lá estava o brigue de seu marido subindo no topo da onda. Alto, cada vez mais alto, mais alto. O arco branco de mil mortes elevava-se diante dele. Oh, homem arrojado, ridículo, sempre velejando assim inutilmente em redor do Cabo Horn, nas garras de uma ventania! Mas o brigue passou pelo arco para o outro lado; estava salvo, finalmente!

- Êxtase! - gritou -, êxtase! - E então o vento amainou, as águas se acalmaram; e ela viu as ondas se encrespando calmamente ao luar.

- Marmaduke Bonthrop Shelmerdine! - gritou encostada no carvalho.

O belo, cintilante nome caiu do céu como uma pena azul-aço. Ela observou-a cair girando e torcendo-se como uma flecha vagarosa que perfura lindamente o ar profundo. Ele estava chegando, como sempre vinha em momentos de calmaria mortal. Quando a onda se encrespava e as folhas manchadas caíam lentamente sobre seus pés nos bosques de outono; quando o leopardo estava quieto; a lua sobre as águas e nada se movia entre céu e o mar. Então ele chegava.

Tudo estava calmo agora. Era quase meia-noite. A lua subia lentamente por sobre as planícies. Sua luz fez surgir um castelo fantasma sobre a terra. Lá estava a grande mansão com todas as janelas vestidas de prata. Não havia paredes, nem substância. Tudo era fantasmagórico. Tudo estava quieto. Tudo estava iluminado como se para a chegada de uma Rainha morta. Olhando para baixo, Orlando viu plumas balançando no pátio, tochas tremulando e sombras se ajoelhando. Uma Rainha mais uma vez saia de sua carruagem.

- A casa está às suas ordens, Senhora - gritou em profunda reverência. - Nada mudou. O falecido Senhor, meu pai, a conduzirá para dentro.

Enquanto falava, soou a primeira badalada da meia noite. A brisa fria do presente varreu-lhe a face com um breve sopro de medo. Olhou ansiosamente para o céu. Estava escuro com nuvens, agora. O vento rugia em seus ouvidos. Mas no rugido do vento ela ouviu o rugir de um aeroplano que se aproximava mais e mais.

- Aqui! Shel, aqui! - gritou, desnudando o peito para a lua (que agora brilhava) de modo que suas pérolas cintilavam como ovos de uma enorme aranha lunar. O aeroplano rompeu as nuvens e permaneceu sobre sua cabeça. Pairou sobre ela. Suas pérolas arderam como uma labareda fosforescente na escuridão.

E quando Shelmerdine, agora um belo capitão de marinha, vigoroso, corado e ágil pulou para o chão, por cima de sua cabeça surgiu um pássaro selvagem solitário.

- É o ganso! - gritou Orlando. - O ganso selvagem...

E a décima segunda badalada da meia-noite soou; a décima segunda badalada da meia-noite de quinta-feira, 11 de outubro de Mil Novecentos e Vinte e Oito.

 

                                                                                            Virgínia Woolf

 

                      

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